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Primavera em Veneza

Violet Winspear

Sabrina 190

Livros Abril
Copyright: VIOLET WINSPEAR
Título original: “TENDER IS THE TYRANT”
Publicado originalmente em 1967 pela Mills & Born Ltd., Londres, Inglaterra
Tradução: OLÍVIA DUVAL
Copyright para a língua portuguesa: 1982
ABRIL S.A. CULTURAL E INDUSTRIAL — São Paulo
Composto e impresso em oficinas próprias
Foto da capa: ZEFA

Este livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos, de fãs para fãs.
Sua distribuição é livre e sua comercialização estritamente proibida.
Cultura: um bem universal.

Digitalização: Palas Atenéia


Revisão:

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— Você será uma grande bailarina, custe o que custar! — prometia Maxim di Corte,
o diretor da companhia de balé. E Lauri tremia só de pensar nas torturas que ia
enfrentar nas mãos daquele tirano. Tremia de medo, de insegurança… e de emoção.
Porque tinha se apaixonado por ele, um italiano sem coração, feito apenas de nervos,
de pura vontade. A canção de amor que os gondoleiros ofereciam aos namorados
nunca seria dela. Maxim nunca seria dela… Será que não era melhor desistir de tudo
e cair nos braços do doce Michael, que a amava com alegria e lhe prometia todos os
prazeres?

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CAPÍTULO I

Lauri estava mais impaciente que cansada. Naquela tarde, o tão esperado
espetáculo da Escola Darnell de Dança tinha sido encenado, e agora ela
estava indo para casa, contar tudo a tia Pat.
Por causa de uma crise de artrite, tia Pat não pôde ir assistir ao
espetáculo; mas ia ficar muito contente em saber que tudo havia corrido bem,
e principalmente que o balé tinha tido um espectador muito especial: o
conhecido empresário signor Maxim di Corte.
Todos na escola sabiam por que ele havia sido convidado e por que tinha
ido. Estava ali para ver Júlia Ray, a melhor aluna da escola. Júlia era a estrela
do balé Lago dos Cisnes, de Tchaikovski, que a escola estava produzindo. Fazia
o papel de Odete. Lauri dançava no papel de Odile, o cisne negro.
Quando chegou à ponte ao lado do velho moinho, ela parou. Durante a
primavera, os cisnes costumavam aparecer por ali. Mas o inverno ainda não
havia terminado e ás árvores ao longo das margens do rio continuavam
desfolhadas. Lauri adorava a primavera, quando a vegetação parecia
renascer, enchendo tudo com suas cores.
Recostou-se à murada da ponte e olhou a água que corria lá embaixo,
enquanto escutava o gorjeio de uns poucos pássaros. Aquele caminho era um
tanto longo, mas ela estava mesmo precisando espairecer, depois do alvoroço
e da tensão do balé.
Lauri tinha consciência de que seu desempenho como Odile, naquela
tarde, havia sido excelente. Mesmo assim, não tinha ilusões. Sabia que, se o
signor di Corte estava procurando uma nova dançarina para a companhia
dele, na certa escolheria Júlia. Tecnicamente, Júlia estava muito à frente das
outras moças da escola. Além disso, tinha um charme incrível, coisa que
Lauri, decididamente, não tinha.
Sabia também que não era Uma pessoa atraente. Mesmo tia Pat, que a
amava e cuidava dela desde criança, como uma mãe, reconhecia que a
sobrinha não era lá uma moça de muitos encantos.
Aos dezessete anos, Lauri tinha os olhos da cor do topázio escuro.
Os cabelos, loiros e ondulados, caíam em desalinho sobre os ombros
magros. Ela gostava de andar pelos bosques de Downhollow, trepando nas
árvores como os esquilos e os passarinhos. No verão, nadava como um peixe
nas águas que corriam por baixo daquela velha ponte de pedra. Nunca se

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preocupava com a sorte. Por outro lado, era de poucos amigos.
Já estava escurecendo e tia Pat podia ficar preocupada com a demora.
Lauri enfiou as mãos nos bolsos da jaqueta de veludo e retomou a caminhada
em direção ao chalé.
A tia, Pat Donaldson, era viúva e, durante a juventude, havia dançado
balé profissionalmente. Mas nunca chegou ao estrelato, ficando sempre em
segundo plano. Conseguiu, porém, um bom casamento, e quando o marido
morreu pôde continuar vivendo confortavelmente e ainda mandar Lauri para
uma escola de dança de primeira classe. Tinha grandes planos para a
sobrinha. Lamentavelmente, mesmo gostando de dançar, Lauri não tinha as
mesmas ambições da tia.
O chalé onde elas moravam ficava a menos de um quilômetro da vila,
junto com algumas outras construções do mesmo estilo. Lauri admirou-se de
ver um automóvel preto estacionado em frente à casa. Devia ser uma visita
para algum vizinho. Abriu o portão e atravessou a entrada lateral da casa.
Quando chegou à porta da cozinha, viu que não havia ninguém.
— Tia Pat, estou chegando — chamou.
Ouviu a voz da tia na sala de visitas, um local da casa que raramente
usavam:
— É a minha sobrinha, Lauri, Venha aqui na sala, querida!
Enquanto caminhava para a sala de visitas, Lauri ia tentando adivinhar
quem a tia podia estar recebendo. Na entrada da sala, hesitou um pouco
antes de abrir a porta.
Havia no ar um aroma de café misturado com fumaça de charuto. Tia Pat
estava sentada numa poltrona; em outra, madame Darnell, a diretora da
Escola Darnell de Dança. Quando Lauri entrou, o fumante do charuto
levantou-se. Estava impecavelmente vestido, num terno cinza-escuro. Ali, na
sala de visitas do chalé, ele parecia vinte vezes mais solene do que no
auditório da escola de balé, quando esteve observando o desempenho dos
alunos de madame Darnell.
— Este é o signor di Corte, minha filha— apresentou a diretora, sorrindo.
— Ele quer falar com você.
— Comigo? — espantou-se Lauri, parada diante daquele italiano
famoso, fundador e diretor de uma das mais bem conceituadas companhias
de balé do mundo.
Sentiu-se pequenina e indefesa, enquanto o homem a estudava da cabeça
aos pés, com olhos muito negros e vivos. Deus! Como eram magnéticos
aqueles olhos! No rosto, arrogante e altivo, sobressaía o nariz característico
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dos romanos. Era um homem esbelto e muito alto, o que fazia Lauri sentir-se
ainda menor.
— Parece confusa, srta. Garner — disse ele, com a mesma segurança com
que encarava Lauri. — Posso saber a razão de sua surpresa?
— Bem… — gaguejou ela — realmente não esperava encontrá-lo aqui,
signore.
Não conseguia desviar-se daqueles olhos; era como se estivesse mag-
netizada. O coração batia tão forte que ela pensou que os outros podiam estar
ouvindo.
— Não posso imaginar o que o senhor tem para falar comigo —
continuou.
— É muito modesta, signorina. Por favor, sente-se.
Lauri obedeceu ao gesto imperioso e sentou-se na poltrona que ele
indicava. Di Corte acomodou-se também numa outra poltrona, em frente à
dela, e cruzou as pernas. Depois apagou o charuto no cinzeiro, sem desviar os
olhos do rosto de Lauri.
— Gostaria de conversar sobre a sua dança — continuou ele.
— A minha dança? — perguntou Lauri, surpresa. — Mas todos, na
escola, pensávamos que o senhor estivesse interessado em Júlia Ray. Ela, sim,
dança muito bem. — Voltou-se para madame Darnell, como se pedisse ajuda.
— Júlia é sua melhor aluna, não é mesmo, madame?
A diretora deu de ombros, parecendo um pouco desapontada.
— O signor di Corte parece não concordar com o meu ponto de vista —
disse madame Darnell.
Tia Pat sorriu, contente. Tinha a expressão de quem estava comendo um
doce roubado.
Lauri voltou-se novamente para o signor di Corte, que continuava sério.
— Não estou interessado em exibicionismos ou poses bonitinhas — disse
ele, sem esconder o que pensava sobre Júlia Ray. — Para mim, só o domínio
da técnica não é o bastante. Mas diga-me, srta. Garner: gostou realmente de
fazer o papel de Odile?
— Claro, signor di Corte.
— Não teria preferido o papel principal, o de Odete? Ela balançou a
cabeça, com convicção.
— Não. Acho que a personagem não é tão… caracterizada.
— Nem tão apaixonada — completou di Corte. — Estou vendo que a
senhorita, mesmo muito jovem, já percebeu que uma dançarina pode
expressar, apenas com os movimentos do corpo, uma quantidade enorme de
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emoções. Mesmo que seja apenas algo inconsciente, esta percepção é muito
mais importante para uma dançarina do que a simples execução mecânica
dos passos traçados pela coreografia.
Ele inclinou levemente a cabeça para madame Darnell, sorrindo. Fez
aquilo com tanto charme que só Lauri percebeu a ironia do gesto.
— Uma dançarina é como o fio de uma espada, um cálice cheio de vinho
e fogo,— disse para a diretora.
Depois, assumindo novamente o ar sério, voltou-se para Lauri:
— Srta. Garner, por que fica de repente tão nervosa em cena? Às vezes
tropeça nos passos mais fáceis. Esta tarde, observei isto duas vezes. Parecia
que estava descalça num chão quente.
Lauri olhou para ele, espantada. Depois, empalidecendo, pôs-se de pé.
— Veio aqui somente para me criticar, signore? — perguntou, com os
olhos faiscando.
— Lauri! — exclamou madame Darnell, escandalizada com a atitude
dela. — Isso não são modos de falar com o signor di Corte. As críticas dele são
sempre úteis para qualquer aluno de balé.
— Por favor, signor di Corte — intrometeu-se tia Pat —, espero que
desculpe a minha sobrinha. Ela tem um temperamento muito…
— Não se preocupe, signora. Já estou acostumado às explosões
temperamentais das bailarinas.
Então ele voltou os olhos negros para o rosto pálido de Lauri.
— Che è stato, signorina?
Lauri percebeu que ele estava fazendo uma pergunta. Mas, como não
entendia italiano, manteve-se calada.
— Estou perguntando o que está havendo — insistiu ele. — Vejo que
você se descontrola a tal ponto que não consegue ter no palco o desempenho
de que é capaz.
— Eu… ainda tenho muito o que aprender — disse ela, enfiando as mãos
nos bolsos e enfrentando aqueles olhos penetrantes. — Madame Darnell pode
confirmar o que. estou dizendo.
— Lauri começou a dançar quase ao mesmo tempo em que começou a
andar — informou tia Pat, orgulhosa. — Os pais dela também eram
dançarinos. Por isso, é como se ela tivesse a dança no sangue e…
— Por favor — interrompeu Lauri, voltando-se para a tia com um olhar
de aborrecimento. — Estou certa de que essa história não interessa ao signor
di Corte. Além disso, e apesar de agradecer o interesse que ele está
demonstrando pela minha dança, você sabe, tia Pat, o que penso da vida
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artística.
— Você, é claro, pretende tornar-se uma profissional? — indagou di
Corte.
— É o que minha tia quer. -— Disse isso olhando para o visitante com
uma cara de poucos amigos. Desejava mesmo que ele fosse embora. Assim,
poderia ter paz novamente e controlar o nervosismo que estava tomando
conta dela.
— O amor é mesmo um sentimento muito forte, não acha? — disse di
Corte, com ar divertido. — Por amor à sua tia, você continua dançando,
mesmo não gostando do que faz.
— Dizer isso talvez seja um pouco exagerado — protestou ela. — Não é
bem que eu não goste de dançar…
— Já sei — atalhou ele, com voz calma. — É que você tem medo da vida
artística.
— Quando eu tinha cinco anos, meus pais morreram num incêndio no
teatro onde trabalhavam — explicou ela. — As pessoas dizem que crianças
dessa idade não se lembram das coisas, mas eu me lembro muito bem. Às
vezes tenho pesadelos. Sempre que estou dançando, lembro-me do fato. É por
isso que não quero me tornar uma bailarina profissional.
Por alguns instantes, todos ficaram calados. Tia Pat tinha o rosto
contraído. Madame Darnell não se sentia à vontade. Di Corte levantou-se e
apagou o charuto que havia acendido um pouco antes.
— Seria uma pena, signorina, deixar que uma coisa passada estragasse o
seu futuro — disse ele, com voz firme. — Eu não vim aqui esta tarde para
criticar ou encorajar uma aluna de dança. Vim convidá-la a fazer parte da
minha companhia. No entanto, uma coisa que exijo de todos os meus
dançarinos, é a dedicação integral à arte. Pensei ver em você muita poesia e
imaginação. Sua dança é uma coisa quase instintiva. Mas, se não tem a
coragem, ou pelo menos o desejo de superar os seus medos, então não é a
pessoa que estou procurando.
Tia Pat pôs-se de pé, quase desesperada.
— Lauri, você não pode recusar uma oferta maravilhosa como esta.
— Não vou permitir!
— A sua sobrinha precisa tomar uma decisão, signora — disse di Corte,
com voz calma, procurando tranqüilizar a mulher. — E deve ser uma decisão
dela, apenas dela.
Depois, olhou o relógio e caminhou para pegar o casaco.
— Está na hora de voltar para Londres. Vou acompanhar meus
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dançarinos numa tournée pelo País de Gales e Escócia. Estaremos fora cerca
de três semanas. Quando voltar a Londres, entrarei novamente em contato
com você, srta. Garner. Nesse meio tempo, poderá pensar com calma na
minha proposta.
Lauri olhou para ele, sem dizer nada. Percebeu que aquele era um
homem capaz de convencer as pessoas a fazerem exatamente o que ele
queria. No entanto, sentiu que naquele momento ele não estava querendo
convencê-la de nada. Achava realmente que ela devia tomar uma decisão por
si própria.
— Por favor, não pense nas minhas razões para que você ingresse na
companhia — pediu, como se estivesse lendo os pensamentos dela. — Pense
apenas no que você realmente quer, com coragem e honestidade. E lembre-se
de que nada na vida se deve inteiramente à sorte. Fugir dos problemas não
resolve nada.
Depois, abriu um largo sorriso e despediu-se. Madame Darnell
despediu-se também e os dois entraram no carro negro, afastando-se do
chalé.
Durante muito tempo, depois que eles partiram, Lauri ainda tinha na
mente as palavras dele e o charme daquele sorriso. Não se lembrava de ter
conhecido um homem com personalidade tão forte.
Alguns dias depois, Lauri e a tia estavam na sala de estar, em frente à
lareira. Lauri espreguiçava-se no tapete, como uma gata. Tia Pat estava na
cadeira de balanço.
— Você não pode recusar a oferta dele, querida — disse a tia, voltando
ao assunto. — Uma oportunidade como essa pode não surgir nunca mais. A
Companhia di Corte de balé tem renome internacional. É uma honra, para
qualquer um, ser convidado para dançar ao lado de Lydia Andreya e Michael
Lonza.
— Lonza, o Tigre — murmurou Lauri. — Deve ser uma experiência
maravilhosa vê-lo dançar.
— E você tem a oportunidade de trabalhar na mesma companhia que ele.
Pode conhecê-lo, talvez até dance com ele.
Lauri começou a rir.
— Tiazinha querida, eu não passaria de uma figurante no corpo de baile.
E Lonza é um astro. Os críticos mais severos afirmam que ele tem condições
de tornar-se o maior do mundo, um “monstro sagrado”. Há apenas seis anos,
Maxim di Corte viu Lonza dançando entre os ciganos de Madri.
Imediatamente, mandou que se inscrevesse numa escola de balé e ofereceu a
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ele um contrato.
— Pois é! Igualzinho ao que di Corte está lhe oferecendo agora. Para
qualquer bailarina, isto seria um sonho. Mas você disse que era um pesadelo.
E bem na cará do homem!
— Ele não gostou do que eu disse, não foi mesmo? — comentou Lauri,
ajoelhando-se e olhando para o fogo. — Os olhos dele faiscavam. Di Corte
tem critérios rígidos demais para a arte, tia Pat. Como alguém pode querer
que eu me adapte a isso?
— Minha filha, você é realmente incrível — disse a tia, observando Lauri
contra a luz da lareira. — Na minha juventude, eu daria tudo para ter a
quarta parte de seu talento. É isso mesmo. Então, você acha que um homem
como Maxim di Corte teria vindo até aqui se não tivesse visto alguma coisa
de especial em você? Mas ele veio, e esfregou o nariz de madame Darnell na
lama. É claro que ele não estava querendo apenas a dança bonitinha de Júlia
Ray. Lauri sorriu.
— Na escola, todos estão sabendo que ele esteve aqui. Pensam que di
Corte deve estar louco por me preferir a Júlia. Ela é tão bonita e charmosa!
— Mas é você quem tem talento, minha gatinha dengosa — disse a tia,
com um olhar cheio de carinho. — O signor di Corte disse que você tinha
poesia e imaginação. E a capacidade de transmitir isso e a verdadeira essência
do balé. De outra forma, como ele disse, a dança se transforma numa simples
sucessão de poses vistosas. Ora, Lauri, você sabe que ele tem razão. A dança
está nas suas veias. O que faz você vacilar é esse medo mórbido da vida
artística.
— Pode ser. Gosto de estudar balé, mas acho que nunca vou me
profissionalizar. Sinto muito, tia Pat. Sei quanto você deseja isso. A questão é
que, sempre que subo num palco para dançar, acabo tropeçando em algum
passo e perco a confiança em mim mesma.
— Você é mesmo muito engraçada, menina. Acha que os seus pais
gostariam de que você agisse assim? Eles eram profissionais de verdade. Para
eles, o espetáculo estava sempre em primeiro lugar.
— Acredito — disse Lauri asperamente. — Tanto que morreram por
causa disso. Ainda me lembro das sirenes dos bombeiros. Morávamos do
outro lado da rua, bem em frente ao teatro, e aquelas sirenes, dezenas delas,
nunca mais pararam de soar nos meus ouvidos.
— Vão parar de soar no instante exato em que a platéia prorromper em
aplausos a você. Não pensa nisso, Lauri? Não pensa no sucesso, a segunda
estrela mais brilhante do céu?
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— E qual é a primeira? — perguntou Lauri, com um sorriso
curioso.
— É a felicidade proporcionada pelo amor, minha querida
— O amor é uma estrela tão brilhante assim? — perguntou Lauri,
voltando os olhos para a tia. — Você descobriu isso por si mesma, não foi?
— Descobri a segurança. Eu já tinha mais de trinta anos quando me casei
com Stanley, e nenhuma esperança de ingressar no corpo de baile, Ele foi
muito bom e carinhoso comigo.
Bom e carinhoso. Aquelas palavras ficaram dançando no pensamento de
Lauri. Elas tinham muito de ternura, mas estavam longe de significar algo
mais quente, uma chama que inflamasse o corpo e os sentidos.
— De qualquer forma, tia Pat, como é que vou conseguir me afastar de
você? Não vou conseguir!
— Separar-me de você, minha gatinha querida, vai me fazer sofrer
muito. Mas não quero nem pensar em segurá-la. Viajando pelo mundo, você
vai se desenvolver como bailarina e como mulher, e isso está acima de
qualquer outra coisa. Lauri, você tem que aceitar a oferta do signor di Corte.
— Vai ver que ele até já esqueceu — disse Lauri, meio esperançosa.
— Você é mesmo uma capetinha! — reprovou a tia, puxando as orelhas
da .sobrinha. — Maxim di Corte não é homem de esquecer os compromissos
assumidos. Você reparou como ele fala bem?
— E com muita profundidade — completou Lauri, irônica. Levantou-se e
foi atiçar o fogo da lareira.
No dia seguinte, Lauri estava na escola de balé, exercitando-se na barra,
quando Júlia Ray aproximou-se.
— Mesmo que o signor di Corte me tivesse convidado para ingressar na
companhia dele — disse Júlia —, meu pai não teria permitido. Ele quer que
eu entre para uma companhia inglesa. Afinal de contas, Margot Fonteyn é
inglesa, e é a maior bailarina do mundo.
— Ela é mesmo maravilhosa — concordou Lauri, com um sorriso.
— De qualquer forma, ainda não sei se vou aceitar o convite dele. Ainda
não está nada definido.
— Ah, sim — fez Júlia, olhando a colega com o rabo dos olhos.
— Acho que você ia mesmo se sentir deslocada no meio daqueles
estrangeiros. Quando termina a temporada de dança, eles se reúnem num
velho palazzo em Veneza. Você já pode imaginar como isso deve ser uma coisa
chata e doentia.
Lauri continuou o exercício, levantando uma perna e abaixando bem a
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cabeça, até encostar no joelho.
— O palazzo deve ser mesmo um lugar um pouco esquisito para o nosso
gosto — disse. — Mas imagino que tenha também o romantismo
característico dos lugares antigos. De outra forma, a família di Corte não teria
vivido lá há alguns séculos.
— Você não ia poder levar a sua tia junto, Lauri — disse Júlia, com uma
ponta de satisfação na voz. — Ela não suportaria as esquisitices dos italianos.
Lauri já havia mesmo pensado naquilo, e era uma das razões pela qual
resistia à idéia de entrar para a Companhia di Corte de balé.
O fim do mês estava chegando, e mais uma vez tia Pat lembrou-a de que
precisava tomar uma decisão.
— O tempo está se esgotando, querida. Logo o signor di Corte virá
procurá-la.
— Eu sei, mas ainda não consigo me imaginar uma bailarina
profissional.
— É como fazer parte de uma família muito especial — disse a tia,
lembrando-se da própria experiência. — As pessoas do mundo do balé têm
uma qualidade que não pode ser definida em palavras. Elas são especiais,
dedicadas, parecem não fazer parte deste mundo. Tenho certeza de que você
vai se adaptar, Lauri.
— Acho que vou me sentir perdida, como se estivesse no meio de um
bando de loucos — disse ela, rindo, mas com uma ponta de apreensão. —
Veja como é o próprio maestro.
— O que viu de errado no signor di Corte? — perguntou a tia, sem
entender o que Lauri estava querendo dizer.
— Ele me pareceu um tanto opressor. Não sei… Senti alguma coisa de
cruel nele. Molda as pessoas de acordo com sua vontade, faz com que se
submetam, quer queiram, quer não.
— É possível. O balé é. uma arte especial. É muito diferente da escultura,
por exemplo, que pode ser pintada em cores brilhantes e depois coberta por
uma lona. No balé, tudo precisa ser medido com cuidado, e o resultado tem
que ser uma mistura perfeita de tons, formas e movimentos. O dançarino é a
argila com que se molda esta arte, e é com essa matéria-prima, com corpos
maleáveis mas sem muita sutileza, que o signor di Corte vai moldando, ps
seus dançarinos, até que eles possam sentir a chama do verdadeiro balé.
Tia Pat deu uma tragada profunda no cigarro e continuou:
— É um trabalho formidável, Lauri, ser diretor artístico de uma
companhia de balé. É necessário ter um conhecimento profundo de todas as
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artes, a malícia de um empresário, habilidade para dirigir e inspirar os
artistas e, acima de tudo, voz de comando.
— Enfim, a mão de ferro na luva de veludo — brincou Lauri. — Titia,
você fala como se estivesse enfeitiçada pelo homem.
— A mim ele pareceu um homem capaz de realizar grandes trabalhos.
Imagino que, para uma jovem como você, talvez ele pareça mundano demais.
— Não sou assim tão jovem!
— Queridinha, em algumas coisas você é até desenvolvida demais para a
sua idade. Mas tem que admitir que às vezes se comporta como uma criança
que não quer crescer. Você não liga para os rapazes, por exemplo. Não me
lembro de você ter trazido algum deles para tomar chá aqui.
— Os rapazes são ótimos para dançar. Fora da escola, acho que são todos
uns chatos.
— Os homens que você vai encontrar na Companhia di Corte não são
simples estudantes. Espero que isto possa fazer você mudar de idéia, minha
gatinha.
— Ainda não decidi se vou ingressar na companhia — disse Lauri,
pondo-se de pé num pulo. — Neste momento, o que me preocupa é que estou
com fome. Vou esquentar ó nosso chocolate. Acho que vou fazer também um
sanduíche quente de carne. Que tal?
— Para mim, não. Se comer a esta hora da noite, não vou conseguir
dormir.
Tia Pat observou enquanto a sobrinha se dirigia à cozinha. Era uma moça
muito magra, esbelta, que andava quase sempre descalça. Os cabelos em
desalinho caíam nos ombros magros. Mexia o corpo sempre de forma
diferente. Não se podia dizer que tivesse um andar característico.
Depois que Lauri saciou a fome, as duas foram dormir. Quando estavam
no corredor, tia Pat pegou no queixo da sobrinha,
— Quando chegar a hora de você tomar uma decisão, minha gatinha,
lembre-se das palavras do signor di Corte. Não deixe que coisas passadas
estraguem o seu futuro.
— Vou me lembrar — prometeu Lauri.
Beijou a tia e entrou no pequeno quarto de solteiro que ocupava, Olhou
as paredes brancas, enfeitadas por gravuras de balé recortadas de revistas ou
programas de espetáculos. Bem na frente dela, um enorme retrato de Michael
Lonza e Lydia Andreya, num pas de deux do Lago dos Cisnes.
Lauri sorriu e lembrou-se do papel que ela própria fizera no espetáculo
da escola. Pensou no que uma bailarina poderia sentir ao dançar com Lonza,
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o Tigre, como o chamavam os críticos. Lonza era belo demais. Tinha os traços
característicos dos tártaros.
Nos dias terríveis da Revolução Russa, o pai dele, um homem da corte,
tinha fugido para a Romênia. Lá, apaixonou-se por uma dançarina cigana e,
da união, nasceu um filho. Mas os dois acabaram se separando e a cigana
morreu. Michael, já rapazinho, resolveu perambular pela Europa.
Para Lauri, ele mais parecia um deus pagão. Mas acreditava que Lonza
tivesse um enorme talento e desejava ardentemente vê-lo dançar.

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CAPÍTULO II

Havia uma grande expectativa naquele pequeno chalé de Downhollow.


Num dos últimos dias do mês, quando Lauri chegou da escola de balé, havia
uma carta esperando por ela.
— Abra logo isso, antes que eu enlouqueça! — pediu tia Pat. Antes de
abrir, Lauri ficou olhando o envelope com o timbre de
Londres.
— Estou com medo.
— Medo de quê, menina? Caso o signor di Corte esteja dizendo que
mudou de idéia, você vai ficar aliviada.
— Acha que ele mudou de idéia? — perguntou Lauri, com o coração
acelerado.
— Só há um jeito de descobrir.
Pegou o envelope das mãos da sobrinha e rasgou num dos lados.
Quando começou a ler a carta, abriu um sorriso.
— Quer que você vá encontrar-se com ele em Londres — disse, excitada.
— Aqui diz que…
— Deixe ver — disse Lauri, puxando a carta.
Os olhos dela brilhavam de excitação. Di Corte propunha que
continuassem a conversação no dia 6 do mês seguinte. A companhia daria um
espetáculo de gala no Covent Garden Opera House, de Londres, rio sábado à
tarde, e ele esperava que ela assistisse. Se pudesse estar em Londres no
sábado, di Corte teria prazer em encontrá-la no saguão do Strand Palace
Hotel, às sete e meia da noite.
— É claro que você vai, não é, Lauri? — disse a tia, quase perdendo a
respiração. — Já pensou? Um espetáculo de gala no Covent Garden! Lonza
deve estar no elenco, e você sempre sonhou em vê-lo dançar.
— É verdade — disse Lauri, com os olhos arregalados. — Não acha uma
coisa estranha?
— Estranha não é bem a palavra, minha querida. É uma coisa
maravilhosa! Agora você vai precisar de um vestido novo. Sugiro que
partamos para Londres na sexta-feira. Assim, vai ter tempo de comprar o
vestido lá. Como vai ser cansativo voltar para casa logo depois do encontro
com di Corte, passaremos o fim de semana em Londres.
— Um fim de semana inteiro em Londres vai ser ótimo — concordou

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Lauri. — Vai ser bom para você também, tia Pat, e talvez o signor di Corte nos
arranje uma outra entrada para o…
— Lauri! Não sou do tipo que gosta de ir grudada no primeiro encontro
importante de uma jovem.
— Encontro? Ora, titia! Vamos tratar apenas de negócios, e você gosta de
balé tanto quanto eu.
— Mas conheço a vida muito mais do que você, minha gatinha. Mesmo
quando um homem vai apenas tratar de negócios com uma moça, não quer
ver a tia dela por perto, como uma guardiã. Antes de mais nada, ele é um
homem, e muitos homens sabem ser bem mais gentis do que as mulheres.
— Não acho quê ele seja exatamente um homem gentil.
Lauri lembrou-se da expressão dura de di Corte e, principalmente,
daquele olhar persuasivo. Bastava olhá-lo uma vez para saber que era um
homem experiente, que conhecia lugares sofisticados, terras exóticas e
mulheres bonitas.
Na sexta-feira pela manhã, Lauri seguiu com a tia para Londres. Lá
chegando, instalaram-se num hotel na Russell Square. Depois do almoço,
foram de táxi até a Connaught Street, ver as butiques. Entraram em várias
lojas e Lauri experimentou muitos vestidos de noite. Finalmente, escolheu um
amarelo. Era um modelo juvenil e caía muito bem nela.
— Um casaco de pele ficaria muito bem com esse vestido — disse tia Pat
para a moça da loja. — Você não tem aí alguma coisa que sirva para uma
jovem?
Enquanto a moça se afastava, Lauri protestou. Achava que já tinha um
casaco em boas condições e que comprar um outro seria um gasto
desnecessário.
— Di Corte sabe que não estamos nadando em dinheiro. Não deve estar
esperando que eu apareça lá vestida como uma ricaça.
— Ele é um homem sofisticado — insistiu a tia. — Não vai gostar de ver
você vestida como uma suburbana. Minha filha, não sente vontade de ficar
bonita para um homem tão atraente?
— Para ele, eu sou pouco mais que uma menina. Além disso, não estou
sendo convidada ao Opera House por causa do meu charme. O que ele quer
mesmo é que eu veja os dançarinos da companhia em ação.
Os olhos de Lauri brilharam só de pensar nisso. Michael Lonza ia dançar
A Tarde de um Fauno, baseado num poema de Malarmé, com música de
Debussy e coreografia do grande Nijinski. Com tantos mestres juntos, ela
esperava assistir a um espetáculo inesquecível.
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Para alegria de tia Pat, a vendedora voltou com um casaco curto de pele
que ficou ótimo em Lauri. A gola marrom realçava o rosto fino e os olhos
grandes.
— Estou parecendo uma gata — comentou ela.
— As gatas têm muito charme, minha filha. Você vai ver como ficará
bom quando fizer o penteado.
Quando voltaram ao hotel, tia Pat tomou uma xícara de chá e sugeriu
que Lauri saísse para dar uma volta sozinha pela cidade. Ela gostou da idéia.
Saiu e pegou o primeiro ônibus que passou. Perto do Covent Garden
Market, desceu e caminhou pela calçada. Em frente ao Opera House, parou e
ficou observando o teatro, imaginando o que aconteceria ali no dia seguinte.
Fosse qual fosse o resultado da conversa com di Corte, estava feliz pela
oportunidade de assistir a um magnífico espetáculo de dança.
Lauri pôs o vestido amarelo, quase dourado. Tinha os cabelos longos e
claros amarrados numa trança que caía sobre o ombro esquerdo. Com os
ombros nus, a trança lhe dava um ar juvenil.
— Você pareceria pelo menos dois anos mais velha se arrumasse os
cabelos num penteado solto, minha filha — disse tia Pat, que não parava de
tagarelar.
— É, talvez ficasse melhor. Com o pescoço descoberto, estou parecendo
um ganso.
Ela não estava acostumada a vestir-se daquele jeito, e olhava curiosa a
silhueta que aparecia no espelho. O colo e os ombros tinham uma brancura
que jamais havia notado antes. Nas orelhas, um par de brincos de ouro com
duas pequenas pedras de topázio.
Tia Pat segurou o casaco de pele para que ela vestisse. Os olhos das duas
encontraram-se no espelho.
— Aproveite cada momento desta noite, querida — disse a tia, sorrindo.
— E procure tomar a decisão correta quando o signor di Corte repetir o
convite para ingressar na companhia. Ele vai fazer isto, pode crer. Di Corte
tem o dom de descobrir os grandes dançarinos.
Lauri pegou a carteira, sorriu e beijou a tia na face.
— Está com tudo aí? — perguntou, ansiosa. — Tem dinheiro para o táxi?
Não vai ficar bem você ir até o Strand Palace Hotel de ônibus.
— E não tem nenhuma abóbora por perto, para você transformar numa
carruagem de ouro, como fez a fada madrinha de Cinderela — disse Lauri,
rindo. — Não se preocupe, titia. Tenho cinco libras na carteira. Vou em
grande estilo ao encontro do príncipe encantado.
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Enquanto o táxi percorria as ruas centrais de Londres, Lauri sentia-se um
pouco nervosa. Pela janela aberta do carro, observava os letreiros luminosos e
as pessoas nas calçadas. Sentia o ar londrino batendo no rosto levemente
maquilado.
Quando o táxi parou em frente ao Strand Palace, ficou ainda mais
excitada. Procurando controlar-se, pagou a corrida e desceu. A fachada do
hotel tinha um ar de discreta sofisticação. Como se estivesse fazendo a coisa
mais natural do mundo, passou pelo porteiro uniformizado e entrou no
enorme 'saguão, cheio de colunas e lustres de cristal.
Olhou em volta, esperando encontrar um homem alto que parecesse um
conquistador romano, mas viu apenas pessoas comuns. Mexeu nervosamente
na carteira, como se procurasse alguma coisa. Como Lauri, havia ali outras
pessoas esperando por alguém. No entanto, nunca antes ela havia posto um
vestido de noite e um casaco de pele, e aquilo a deixava nervosa. Teve medo
de que as pessoas notassem o desconforto que estava sentindo.
De repente, ficou tensa. Na direção dela, vinha uma figura alta, num
smoking preto muito elegante. Lauri sentiu um nó na garganta, mas, com
esforço, conseguiu sorrir.
— Finalmente nos encontramos de novo, srta. Garner — disse di Corte,
estendendo a mão. — Estou feliz por me acompanhar ao Covent Garden esta
noite. Achei que, assistindo a um espetáculo da nossa companhia, você se
decidiria por ingressar nela.
Mantinha fixos em Lauri os olhos negros e brilhantes.
— Como vai a sua tia? Não me pareceu muito bem na última vez em que
nos encontramos.
— Viemos juntas a Londres. Tia Pat está bem melhor agora, £ horrível
sofrer de artrite depois de ter sido tão ativa na juventude. O senhor sabia que
ela já foi bailarina?
— Eu soube, e isso aumentou ainda mais o meu interesse— disse com
um sorriso. — Ainda temos algum tempo antes do espetáculo. Que tal irmos
tomar uma bebida?
Lauri concordou e ele a conduziu até uma outra sala do hotel, onde
havia uma porção de mesinhas baixas cercadas por poltronas de couro.
Sentaram-se, um de frente para o outro, e ele chamou o garçom.
— O que quer beber, srta. Garner?
— Um bloody mary, por favor — disse Lauri, determinada a mostrar que
não era tão inexperiente quanto parecia.
Di Corte pediu um gim. Depois que o garçom anotou os pedidos e se
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afastou, ele tirou do bolso uma cigarreira de prata e pegou um cigarro, sem
oferecer a ela. Uma dançarina, é claro, não devia ser encorajada no vício do
fumo.
— Costuma assistir a espetáculos de balé, srta. Garner?
— Sempre que possível, signore — respondeu, enquanto observava as
mãos finas que acendiam o cigarro. — Alguns meses atrás, fui com tia Pat ver
Margot Fonteyn dançar Giselle. Tivemos que esperar várias horas numa fila,
mas foi até bom. As pessoas ali quase só falavam de balé.
— E gostou do espetáculo? — perguntou ele, soltando uma baforada do
cigarro e recostando-se na poltrona.
— Adorei. Tia Pat disse que jamais viu antes alguém interpretar como
Margot Fonteyn o papel de Giselle.
— É um balé estranho, quase mágico, e se ajusta perfeitamente à
personalidade de Margot — concordou di Corte. — Já tivemos Giselle no
nosso repertório, mas Andreya não se adaptou muito bem ao papel. A
propósito, você vai ver Andreya dançar esta noite.
— Quase não posso esperar por isso — disse Lauri, com os olhos
brilhando. — Há muito que venho sonhando também com a oportunidade de
ver Michael Lonza dançar. Ele é mesmo tão notável quanto dizem os críticos,
signore?
— Não vai demorar muito para que Lonza ocupe o lugar que merece
entre os maiores dançarinos do mundo — profetizou di Corte, olhando a
fumaça do cigarro. — Não gostaria de dançar com ele, srta. Garner?
— Meu Deus! — exclamou Lauri. — É uma coisa que não posso nem
imaginar. Sei que jamais vou alcançar o nível dele.
— Não é fácil encontrar mulheres tão modestas quanto você — disse di
Corte.
Lauri não pôde deixar de notar que, quando sorria, aquele homem era
fascinante.
— Pode ficar certa, srta. Garner, de que eu só me interesso por uma
bailarina quando ela é realmente talentosa. Ah! Finalmente, aí vem a nossa
bebida.
Enquanto ele pagava a conta, Lauri o observava. Estava excitada, tanto
pelo efeito daquele sorriso como pelo que ele tinha dito sobre o talento dela.
Devia ser verdade. Afinal, um homem distinto como aquele não perderia
tempo com uma jovem interiorana se ela não tivesse talento de verdade.
Continuava a observá-lo. Aquele era realmente um homem especial,
descendente de nobres italianos e neto da grande Travilla, que, no seu tempo,
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foi considerada a maior bailarina do mundo.
— Salute — disse ele, quando Lauri pegou o copo de bloody mary.
Beberam os dois ao mesmo tempo.
— Em que está pensando, signorina? — perguntou ele, de repente.
— Eu… não sei como dizer, signore — respondeu, tomando mais um
gole. Gostava daquela bebida mais por achar o nome bonito.
— Insisto que diga — disse ele, com aquele olhar persuasivo. — Sei que
já formou um julgamento a meu respeito, e quero saber qual é, para poder
defender-me.
Lauri sorriu, divertida com a idéia de que Maxim di Corte precisava
defender-se de Lauri Garner. Aquilo lhe deu coragem e ela resolveu falar:
— Acho que o senhor, quando quer, sabe ser tirânico. Talvez isto seja
herança de seus antepassados. Já li alguma coisa sobre eles.
— Verdade?
Por um momento, os olhos dele se fixaram na trança que caía sobre o
ombro de Lauri. Depois di Corte continuou:
— Houve um homem nada tirânico que disse o seguinte: “A mágoa
contida é como um grilhão de ferro”. Pode ser que, por causa da morte de
seus pais, seja doloroso para você subir ao palco. Mas tenho certeza de que
vai ser muito mais doloroso parar de dançar.
— Oh! — fez ela, com um soluço. — Por que o senhor tinha que ir àquela
escola e prestar atenção logo em mim?
— Eu podia não ter notado você — disse ele francamente. — No final do
espetáculo, porém, não pude deixar de reparar que você era a única que
realmente vivia o papel. Movimentava-se com o fascínio de um cisne de
verdade. Aquela outra garota, a tal que madame Darnell queria que eu a
observasse, é convencida demais dos próprios encantos. Quando uma
bailarina se preocupa mais consigo mesma do que com o papel que está
desempenhando, o personagem perde o caráter, morre. Nem toda a técnica
do mundo pode perdoar tanto egoísmo, ainda mais numa simples aluna. É a
humildade que faz os grandes artistas.
Lauri sentiu que ele tirava as palavras do coração, ao mesmo tempo que
usava o profundo conhecimento que tinha do balé. O espírito da dança estava
no sangue dele, deixado ali pela avó famosa.
— Não é um desejo seu, srta. Garner, de coração, ser bailarina? Ela não
respondeu. Apenas fechou os olhos, para não ter que enfrentar aquele olhar
implacável.
— Compreendo — continuou ele, agora com um jeito brincalhão. —
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Você não tem estômago para o que estou lhe oferecendo. Sente-se mais
segura aqui na Inglaterra, pendurada na saia de sua tia. Consegue fazer as
pessoas se esquecerem de tudo, apenas para seguirem os seus movimentos.
No entanto, prefere guardar esse talento para si mesma, não é, sua egoísta?
Percebendo que ele brincava e falava sério ao mesmo tempo, Lauri
resolveu ir direto ao ponto:
— Se eu não me adaptar a seus padrões, logo vai me mandar de volta. -
— E por isso não quer se arriscar? Se passar o resto da vida fugindo dos
riscos, jamais encontrará felicidade ou satisfação.
Ele continuava com o olhar brincalhão. Como era possível uma jovem
quase indefesa lutar contra um homem tão determinado? Lauri não sabia.
Será que ele não estava vendo que ela não daria certo como bailarina
profissional?
No momento seguinte, ele estendeu o braço por cima da mesa e pegou a
mão dela.
— Toda dançarina é frágil como uma criança. Por causa disso, preocupo-
me com o bem-estar das minhas dançarinas, assim como com a carreira delas.
Não pense que eu sou um bárbaro comandando um bando de selvagens.
Lauri riu. Aquilo era exatamente o que pensava dele.
— Não costumo pedir o impossível a meus dançarinos — continuou ele,
olhando-a fixamente. — No entanto, é espantoso como eles chegam perto de
fazer coisas impossíveis. Estivemos viajando por vários meses, apresentando
um espetáculo atrás do outro, mas já na próxima quarta-feira estaremos
partindo para o meu palazzo em Veneza.
— Vão partir na quarta-feira?!
— Por que o espanto, srta. Garner? Achou que eu ia lhe conceder mais
algumas semanas para pensar? Já lhe dei três semanas. Estou esperando a sua
resposta esta noite.
— Mas eu não posso — disse ela, sem conseguir esconder a angústia. —
Preciso pensar também na minha tia
Ele apertou de leve a mão dela.
— Por favor, não faça da sra. Donaldson Uma desculpa. Ela sabe que a
separação vai ser inevitável, se você decidir ingressar na companhia. Mas
tenho certeza de que não vai se opor. Já foi dançarina, e o desprendimento é
uma coisa que a carreira artística ensina a qualquer um. Quantos anos tem,
exatamente, srta. Garner?
— Tenho… Vou fazer dezoito em julho.
— Já é idade bastante para ser uma diva — disse ele, sorrindo. — Nunca
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esteve em Veneza, não é mesmo?
— Não. As viagens longas são muito cansativas para tia Pat. No ano
passado, fomos à Holanda. Ficamos lá só um fim de semana, mas foi
maravilhoso! Adorei os canais, os lugares onde Rembrandt morou…
— Veneza é uma cidade feminina, tão adorável quanto o nome que tem.
Soltou a mão dela e levantou-se.
— E agora, signorina, vamos ao balé.
Quando eles entraram no camarote, havia uma luminosidade
avermelhada por trás das cortinas do palco. As luzes da platéia já começavam
a se apagar. No momento exato em que se sentaram, as cortinas foram se
abrindo. Ao som de flautas, várias ninfas apareceram correndo pelo palco, em
saltos, leves e graciosos, agitando os véus coloridos. De repente, houve uma
mudança dramática na música. Num salto espetacular, uma figura esbelta
surgiu de entre, as árvores. A platéia do Opera House prendeu a respiração.
Em perseguição às ninfas, Lonza parecia voar, como um animal
selvagem em busca da presa. Sob a luz dos refletores, a pele morena era de
bronze. Lauri sabia que aqueles saltos monumentais se deviam aos músculos
vigorosos que ele tinha nas pernas. No entanto, só uma pessoa que amasse
profundamente a dança poderia transmitir tanta força. Os olhos oblíquos nas
faces marcadamente tártaras eram fascinantes.
Aqueles dez minutos de balé passaram depressa demais para Lauri.
Uma tempestade de aplausos veio da platéia e dos camarotes. Lonza
permaneceu no meio do palco, sozinho, a cabeça abaixada numa reverência,
até que as cortinas se fecharam. Um murmúrio escapou de centenas de
mulheres.
Lauri estava encantada. Voltou-se para di Corte, com os olhos brilhando,
e notou que ele a observava.
— Finalmente, você viu Lonza em ação — comentou o italiano.
— Ele é soberbo! Fica praticamente parado no ar. É uma coisa quase
sobre-humana!
— Posso garantir que ele é muito humano.
Cada momento daquela noite de gala era um encanto para Lauri. Sentiu
o coração disparar quando Lonza voltou ao palco, desta vez para dançar com
Lydia Andreya.
No exato instante em que os astros da companhia pisaram no palco,
Maxim di Corte pediu licença e retirou-se do camarote, deixando Lauri
sozinha. Ela notou que as pessoas dos outros camarotes a observavam, talvez
querendo adivinhar quem ela era. Sentiu olhos curiosos na trança sobre o
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ombro nu, nos brincos de topázio, no pescoço descoberto e no vestido
amarelo. Juntou as mãos e desejou que di Corte voltasse logo, trazendo a
segurança de que ela precisava. Ouviu claramente a conversa no camarote ao
lado,
— Acha que ele está ficando cansado de Andreya? — dizia uma voz
feminina. — Ela ainda está em grande forma, mas os anos já vão começar a
pesar. Além disso, tem o marido.
Como todo aficcionado do balé, Lauri sabia que Andreya estava
separada do marido. O que a intrigava, porém, era a idéia de que Maxim di
Corte tivesse um caso com a prima ballerina, e de que ele fosse capaz de
interromper uma carreira como a dela por razões meramente pessoais, em
vez de usar critérios exclusivamente artísticos.
Sentiu-se mais aliviada quando as luzes se apagaram novamente,
livrando-a do assédio daqueles olhos curiosos. No palco, no meio de um
cenário feito de pedras, uma tênue luz avermelhada dançava sobre os
destroços de uma embarcação de madeira. Havia também estranhas árvores
das quais pendiam frutos do mar. Ninfas marinhas executavam uma dança
em volta de uma enorme planta marítima, cujas folhas iam se abrindo
vagarosamente. Dali surgiu Andreya, como uma sereia, os cabelos
esvoaçantes e uma expressão excitada. Na ponta dos pés, correu até os
destroços da embarcação, puxando de lá o corpo sem vida de um jovem
marinheiro que ela havia enfeitiçado.
Lauri sentiu quando uma mão tocou a dela, mas não desviou os olhos do
palco. Era di Corte, que finalmente voltava ao camarote. Ela apenas sorriu,
sem olhar para ele.
No palco, Andreya puxava o homem pela mão, de cá para lá. Enquanto
isso, ele procurava abraçar e acariciar aquela sinistra feiticeira. Dançavam
maravilhosamente, não importando o fato de que, ao lado de Andreya, Lonza
às vezes mais parecia um menino. Os movimentos da dança exigiam, muitas
vezes, que ele levantasse bem alto a parceira. Como Andreya era bastante alta
para uma bailarina, talvez aquilo fosse extenuante. Lonza, porém, não
demonstrava cansaço. Parecia ter músculos de aço, levantando a companheira
como se fosse uma pluma.
Lauri não conseguia desviar os olhos do palco, mesmo sentindo a
intensidade da presença masculina a seu lado. E percebeu que di Corte
acompanhava atentamente cada movimento de Andreya.
A ação foi se tornando mais e mais dramática. Num dado momento, o
marinheiro arremessou um laço construído com plantas marinhas no pescoço
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da feiticeira, tentando sufocá-la. Mas ela era uma deusa do mar e não podia
ser morta. Livrando-se com facilidade, ela riu sarcasticamente da tentativa do
enfeitiçado. Nesse momento, as cortinas se fecharam e a gargalhada da
feiticeira ecoou junto com as últimas notas da música.
Por um breve momento fez-se silêncio, como se estivessem todos com a
respiração presa. Em seguida, a platéia prorrompeu em aplausos e as cortinas
se abriram novamente, mostrando todo o elenco. Lonza colocou a mão na
cintura de Andreya e fez com que ela se adiantasse. Enquanto ela agradecia
os aplausos, ele retrocedeu um passo, deixando que a parceira se tornasse o
centro das homenagens. Mas Andreya achou aquilo demais para ela e voltou-
se para Lonza, como se pedisse ajuda. Ele adiantou-se e beijou a mão dela.
Nesse momento, o teatro parecia estar vindo abaixo com os aplausos.
Como todas as pessoas ali, Lauri aplaudia freneticamente, destinando a
Andreya e a Lonza todas as honras da noite. Sem reprimir a alegria, voltou-se
para di Corte.
— Signore, deve estar muito orgulhoso daqueles dois!
— Claro que estou — respondeu ele, também sorrindo. — Você não
gostaria de conhecê-los?
— Está falando sério? — perguntou Lauri, com os olhos arregalados.
— Sempre falo sério, srta. Garner. Vai haver uma festa de despedida no
Strand Palace. Acho que, mesmo parecendo uma criança, você resistirá bem a
mais uma hora de excitação.
— Não sou uma criança!
Ele apenas sorriu. Depois, ajudou Lauri a pôr o casaco e conduziu-a à
saída. Mal deixaram o camarote, foram abordados por um grupo de pessoas.
Falavam todos ao mesmo tempo, quase exigindo que a companhia
permanecesse mais algum tempo na Inglaterra.
— Meus dançarinos estão precisando de descanso — explicou di Corte,
distribuindo sorrisos. — Vocês todos estão sendo muito gentis e eu agradeço
por isso. Prometo que breve estaremos de volta. Podem anotar a minha
promessa.
Finalmente conseguiram escapar e entraram no ar frio da noite. Lá fora,
uma verdadeira multidão esperava para pedir autógrafos aos astros do
espetáculo. Di Corte pegou a mão de Lauri e os dois foram atravessando
aquele mar de gente. Quando chegaram à rua, ele olhou para os lados,
procurando um táxi. Depois de um espetáculo como aquele, porém,
conseguir um táxi era algo praticamente impossível.
— Se ficarmos aqui esperando um táxi, você vai acabar pegando um
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resfriado — disse ele. — Não vamos levar mais que alguns minutos
caminhando até o Strand Palace.
— Uma caminhada vai ajudar a clarear as minhas idéias — concordou
ela. — Oh, signore! Que noite! Nunca vou esquecer!
— Mas ainda não acabou, signorina!
Na escuridão da noite, a voz dele parecia mais profunda. Num gesto frio
mas delicado, di Corte fez com que ela caminhasse mais perto dele. Lauri
notou, então, que ele era realmente muito alto.
Quase havia esquecido por que estava ali: precisava dizer se queria ou
não ingressar na companhia, e ele continuava esperando a resposta. Para
ganhar tempo, achou melhor falar sobre qualquer coisa.
— Adoro a noite. Nas planícies da minha terra, quando as estrelas
surgem, parece que estão compondo um balé no céu.
— Os dançarinos são criaturas da noite — disse ele. — Brilham de uma
forma sutil quando chega o crepúsculo, como os vagalumes dos trópicos.
— Já esteve com a companhia em muitos lugares do mundo, signore?
— Já estivemos numa porção de lugares.
Lembrando-se de uma das viagens, ele falou do balé Bolshoi, da União
Soviética. As coreografias do Bolshoi costumavam fazer com que os
bailarinos dessem muitas corridas e saltos. Por causa disso, dizia-se no
Ocidente que o balé soviético estava perdendo o encanto da época do
Império.
— No entanto, signorina, poucas coisas se comparam à experiência de ver
o Bolshoi dançando a Petrushka.
Continuou narrando as experiências que tivera pelo mundo afora. Estava
falando da dança japonesa, que vira no Teatro Kabuki, em Tóquio, quando se
aproximaram do Strand Palace e o rosto dele foi iluminado pelo letreiro do
hotel.
— O que acha de Londres, signore? — perguntou Lauri, num impulso.
— É uma cidade muito estimulante, mas naturalmente eu faço
comparações com a minha Veneza benedetta. Veneza parece ter sempre uma
beleza nova a ser descoberta. Pode ser uma onda batendo contra uma pedra
cinzenta, o balanço de uma gôndola, um velho palazzo refletindo na água…
Ah! Eu poderia ficar a noite toda falando de Veneza, mas temos um outro
assunto a tratar.
O coração de Lauri disparou. Ele pegou a mão dela e atravessaram a rua.
Era a mão do maestro di Corte, que conduzia dançarinos pelo palco de todo o
mundo.
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— Não percebe, srta. Garner — disse ele, enquanto empurrava a porta de
vidro do Strand Palace —, que está desafiando o destino, as ordens de seu
coração, e desafiando a mim também?
Lauri não tinha como escapar àquele homem. Já estavam no meio da
festa quando di Corte fez com que ela se voltasse para ele.
— Vamos — ordenou. — Escolha agora.
Um garçom aproximou-se trazendo uma bandeja com champanhe.
Várias pessoas observavam, enquanto os dois permaneciam no meio do salão,
um de frente para o outro. Di Corte parecia não se importar com o que
acontecia em volta. Apenas esperava pela resposta. Levantando os olhos,
Lauri sentiu-se como uma presa que ia ser devorada.
— Tenho escolha? — murmurou. — O que vai fazer comigo se aceitar
sua oferta e depois falhar?
— Mando prender você num calabouço que existe no porão do meu
palazzo.
Voltou-se para o garçom, pegou duas taças de champanhe e colocou uma
na mão dela.
— Beba tudo. Depois, vou apresentar você a cada uma das pessoas aqui.
Estão quase estourando de curiosidade.
Só então ela reparou como as pessoas a olhavam. Havia uma mulher
com uma estola de raposa branca e Lauri reconheceu nela a ocupante do
camarote ao lado do dela, no Opera House. Era a mulher que havia sugerido
a existência de um caso entre Maxim di Corte e Lydia Andreya.
Naquele momento, Andreya ia entrando no salão, carregando um
imenso buquê de rosas vermelhas.
— Maxim! — exclamou a prima ballerina, caminhando para o local onde
eles estavam.
Di Corte foi na mesma direção, estendendo as mãos para receber a
estrela da companhia.
— Lydia, querida! — disse, sorrindo. — Venha conhecer a jovem de
quem estive lhe falando, Lauri Garner. Ela vai seguir conosco para Veneza, na
quarta-feira.
Quando o ouviu dizer isso com tanta convicção, Lauri quis protestar,
mas não conseguiu. Os olhos firmes de di Corte pareciam dizer que ela não
devia fazer nada além de submeter-se. Por alguns instantes os dois se
olharam fixamente, sob as vistas dos presentes.
— Então você vai conosco para Veneza? — perguntou Andreya.
— Sim… Sim, madame Andreya. Eu vou.
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Os olhos brilhantes da bailarina pararam por alguns instantes no rosto
de Lauri, empalidecido por tantas emoções.
— Bem-vinda ao nosso grupo, srta. Garner. Espero que resista ao
trabalho e à disciplina que o tirano de Veneza nos impõe.
— Lydia! — disse di Corte, rindo.— Assim você vai assustar a menina.
A bailarina riu também e pegou uma taça de champanhe.
— Desculpe, querido. Não sabia que ela é do tipo que costuma se
assustar.
Naquele momento, Lauri desejou sair correndo. Di Corte notou seu olhar
de desespero e resolveu socorrê-la.
— Vamos até o bufê pegar um pouco de caviar — disse, segurando na
mão dela. — As jovens sempre têm muita fome. A menos que você seja
daquelas que vivem à base de leite e legumes.
— Signore…
— Pois não, signorina — disse ele, olhando curioso o rosto jovem de
Lauri.
— Eu… Eu nunca comi caviar.

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CAPÍTULO III

A viagem de navio até Veneza foi relaxante para a maioria dos membros
da companhia de balé. Lauri, porém, sentia-se triste por separar-se de tia Pat.
As duas vinham morando juntas desde que Lauri tinha cinco anos. Os
conselhos da tia sempre foram importantes para ela. Agora, ia caminhar com
os próprios pés.
Estava dividindo uma cabine com duas dançarinas do corpo de baile,
Concha e Viola. Eram tão lindas e joviais que passavam a maior parte do
tempo atendendo aos admiradores. Lauri, mais tímida, acabou tendo que
perambular sozinha pelo navio.
Via muito pouco Maxim di Corte, que passava quase todo o tempo com
Andreya e Bruno Lanning, o coreógrafo da companhia. Os três nunca se
juntavam aos demais nos jogos de salão, e mesmo as serenatas pareciam
aborrecê-los.
Uma noite, Lauri saiu para um passeio pelo convés. O mar estava calmo
e o navio deslizava suavemente em direção a Veneza, a princesa do Adriático.
Pensava naquela cidade que havia nascido de pequenas ilhas e que, através
dos séculos, fora amada e cantada por poetas como Byron e Browning e
cavaleiros como Casanova.
Olhou a lua e lembrou-se de um poema veneziano, que contava a
história do surgimento da primeira gôndola. Dizia o poema que, certa noite, a
lua nova desceu do céu e pousou num canal de Veneza, para servir de abrigo
a um casal de apaixonados em fuga. Lauri gostava de lendas antigas e
Veneza, certamente, tinha um bom repertório delas. Foi se sentindo ansiosa
para conhecer a cidade e o antigo palazzo, onde ficaria por dois meses.
Maxim di Corte era o último varão da família e tinha orgulho do sangue
que lhe corria nas veias. Possuía a mesma astúcia e a mesma voz de comando
dos antigos venezianos, que haviam construído uma cidade tão bonita e
famosa. Agora, para manter o nome da família, ele com certeza precisava
casar-se. Lauri pensou em Andreya, com aquele rosto marcante, estranho… e
no marido que ela já havia tido.
Recostou-se na amurada do navio, para observar o reflexo da lua no mar
e sentiu o aroma de um cigarro. Voltou-se e viu uma silhueta esbelta, a alguns
passos de onde estava. Apesar da escuridão, pôde identificar, pela luz
mortiça do cigarro, o rosto de Michael Lonza.

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— Está parecendo muito sozinha, Nijinka — disse ele. — É a nossa
última noite no mar. Por que não vai dançar com os oficiais do navio, como as
outras moças?
— Ninguém me convidou, sr. Lonza — respondeu ela, rindo, nervosa.
— Como vocês ingleses são formais.
Ele caminhou até a amurada, jogou a ponta de cigarro no mar e, antes
que Lauri pudesse esboçar um gesto, pegou na mão dela.
— Que mão fria! Está com medo de mim?
— A brisa do mar esfriou minhas mãos. Acho… Acho que vou voltar
para a minha cabine.
— Sei que ficaria aqui mais tempo, se não fosse a minha presença.
Aquele sotaque estrangeiro dava a Lonza um charme fascinante.
Lauri nunca tinha estado sozinha com ele. Conhecia-o apenas como um
grande dançarino, mas tinha notícia de que, fora do palco, ele podia ser
perigosamente atraente.
— Por favor, fique e converse comigo — pediu ele. — Também me sinto
só.
Lauri riu timidamente.
— Não posso acreditar, sr. Lonza. Tenho certeza de que todas as
mulheres neste navio dariam tudo para estar a seu lado.
O dançarino continuava a segurar a mão dela.
— Não é a companhia de todas as mulheres do mundo o que eu quero.
Acho que você e eu devíamos nos conhecer melhor. Vamos morar um bom
tempo no mesmo palazzo, dormir sob o mesmo teto, dançar no mesmo palco.
— Vou estar bem no fundo do palco, talvez na posição mais
insignificante do corpo de baile.
Lonza sorriu, admirado da modéstia da nova colega.
— O que é isso? O nosso diretor não estabelece um limite rígido entre os
figurantes e os astros. Além disso, meus instintos me dizem que você não vai
ser por muito tempo uma simples figurante.
Depois ele virou a mão de Lauri, deixando a palma para cima.
— A luz da lua produz um reflexo prateado na sua mão. É um convite
para que eu leia o que dizem estas linhas. Sabia que sou meio cigano? Nós,
ciganos, temos poderes misteriosos. . — Que fascinante — disse ela, sorrindo.
— Imagino que ler a mão à luz da lua tenha uma certa magia.
— Claro. A lua sempre influenciou o coração das mulheres.
Mesmo achando que aquilo era uma brincadeira, Lauri estava curiosa.
Por alguns segundos, Lonza fixou os olhos na palma da mão dela. Depois
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começou a leitura.
— Vejo duas pessoas nesta pequena mão, um homem e uma mulher,
fadados a se tornarem amigos, ou amantes. Vejo também que não se sente
muito bem no palco. Tem um certo medo. É como se houvesse um fogo
queimando os seus pés. No entanto, está irremediavelmente destinada a se
dedicar à vida artística, mesmo que o som dos aplausos seja para você como o
fogo queimando alguma coisa…
— Por favor! Pare! — exclamou Lauri, puxando a mão. — Você sabe que
tenho razões para odiar a simples menção da palavra fogo…
— O que está dizendo? Sei apenas o seu nome e que você jamais dançou
profissionalmente.
Lauri levantou os olhos para ele, curiosa.
— Mas… É estranho como sabe dos meus sentimentos.
— Desculpe se magoei você, Nijinka.
Sentiu que ele falava sinceramente. Por isso, contou o que havia
acontecido aos pais dela.
— Preferia não ser bailarina, mas acredito que o signor di Corte esteja
certo. Devemos seguir o nosso destino, a nossa estrela.
Levantou os olhos, como se procurasse uma estrela.
— Várias vezes me chamou de Nijinka. O que significa esse nome?
— Na Rússia, é um nome carinhoso. Acho que fica bem em você. Tem o
aspecto gentil e frágil de um cordeiro. Foi mesmo maldade de di Corte trazê-
la para o meio dos cisnes e dos tigres.
— Lonza, o Tigre — murmurou ela. — Os dançarinos estão sempre
associados à graça das aves e à força dos felinos. Só espero que eu não venha
a ser chamada de Lauri, o Cordeiro.
Lonza riu e levantou bem a cabeça, até que a luz da lua iluminou
inteiramente aquele rosto meio tártaro, meio cigano.
— Vou lhe contar uma coisa: Quando vi você pela primeira vez, na festa
do Strand Palace, com uma taça de champanhe na mão e parecendo um
pouco cansada, pensei que di Corte estava louco por contratar uma dançarina
tão jovem. Mas estou mudando de idéia. Estou vendo que é o tipo de mulher
que um homem tem que ir descobrindo aos poucos. Já estou ficando ansioso
para vê-la dançar. Baixou os olhos para ela e continuou:
— Espero que não seja daquelas que apenas repetem os passos . da
coreografia, mecanicamente. Algumas não conseguem fazer mais que isto.
Mais parecem donas-de-casa concentradas no trabalho de fritar um ovo ou
bater um bolo. Você dançava muito na sua cidade?
29
Ela sorriu.
— Nas noites quentes de verão, eu costumava ir para a planície que
existe perto da minha casa, e dançava à luz da lua e das estrelas, com os pés
descalços.
— Como Isadora Duncan — comparou Lonza, sorrindo. — Ela trouxe
liberdade de movimentos ao balé, mas não pôde submeter-se à disciplina que
a arte exige. Pôde apenas ser uma mártir do amor. Conhece a história dela,
Lauri?
— Sempre procuro ler sobre os dançarinos famosos. Pavlova, Nijinsky, e
a avó do signor di Corte, Travilla. Incomoda-se de ser comparado a Nijinsky,
sr. Lonza?
— Pode me chamar de Michael, Nijinka. E, por favor, não me chame de
senhor. Agora, falando francamente, não gosto de ser comparado a qualquer
outra pessoa. Quando estou dançando, sou Lonza e mais ninguém. Está certo
que, como ele, tive ancestrais poloneses. Mas, diferentemente do grande
Nijinsky, não fico chorando a juventude perdida. Estou contente com a idade
que tenho. Já fui dançarino e vagabundo, lenhador e mascate. Andava por aí,
sem casa nem pátria, até que di Corte me encontrou, assim como encontrou
você. Então, deixei os ciganos e dediquei-me ao balé clássico.
— O que acha do signor di Corte?
— O nosso diretor é astuto e inteligente, Nijinka, mas ninguém pode
dizer que o conhece bem. Você parece ter um certo medo dele, não é?
— Ele me apavora — admitiu Lauri. — É prepotente demais, exigente
demais. Ele costuma fazer os dançarinos se exercitarem no palazzo?
— Quase sempre. Mas é um grande mestre. Primeiro, vai fazer com que
você o odeie. Depois, fará de você uma grande dançarina. Di Corte tem uma
ambição, que Lydia Andreya jamais conseguiu concretizar: revelar ao mundo
uma bailarina tão talentosa quanto
Travilla.
— Mas Andreya é tão exótica, tão fascinante.
— Realmente, Andreya sabe como cativar uma platéia. É uma feiticeira
da dança, magnífica, como você viu no Covent Garden. Mas não tem a
inocência que Travilla transmitia, mesmo depois de casar-se com Falcone di
Corte. As pessoas vão aos espetáculos de balé em busca do romantismo
perdido, e endeusam os dançarinos que conseguem satisfazer a esse desejo.
Andreya teve um casamento tumultuado, que acabou fracassando, e
transmite mais paixão que romantismo ou inocência.
Ele estava dizendo a verdade. Ao dançar, Andreya parecia estar
30
enfurecida, atormentada, cheia de sentimentos que precisava expulsar de
dentro de si. Aquilo deixava a assistência excitada e tensa, com a atenção
presa, mas não era algo com um encantamento.
Lauri olhou o reflexo da lua na água. O navio continuava a deslizar,
sereno, em direção a Veneza. Ela tinha deixado tudo o que amava para
mergulhar no desconhecido. Mas alegrava-se em saber que estava indo para a
cidade onde Travilla vivera.
Travilla tinha nascido em Roma, de uma família muito pobre. A mãe
dela lavava roupa para o pessoal do meio artístico. Aos oito anos, foi
encarregada pela mãe de levar a roupa lavada e passada para entregar aos
atores e dançarinos. Um desses dançarinos, Emílio Vanci, notou os encantos
da menina e resolveu iniciá-la na arte do balé.
Foi treinada e orientada por Vanci até estar pronta para a estréia. Emílio
era muitos anos mais velho que Travilla, mas acabou apaixonado pela
protegida. Nos meios artísticos, todos sabiam daquele amor. Travilla, porém,
apaixonou-se pelo nobre Falcone di Corte, com quem se casou. Depois de
casada, continuou dançando até a noite em que aconteceu o acidente. Ela
estava estrelando A Dama da Lua, um balé coreografado por Vanci, quando
ficou com o pé preso numa parte móvel do cenário, que era controlado de
fora do palco. Aquele balé havia sido criado para ela, e nunca mais foi
encenado. Depois daquele dia, Travilla não voltou a dançar. Emílio Vanci, à
época já viciado na bebida, morreu pouco tempo depois.
Lauri voltou-se e viu que Lonza a olhava.
— Não quer tomar um lanche comigo antes de voltar à cabine? —
convidou ele.
— Mas já deve ser tarde. O bailarino sorriu.
— Quem não faz o que quer, à hora que quer, nunca se diverte. Conheço
um rapaz na cozinha deste navio que me; serve a qualquer hora do dia ou da
noite. Espere por mim aqui. Promete?
— Prometo.
Enquanto ele se afastava, Lauri observava aquela figura esbelta,
comparando-a com a gravura que havia na parede do quarto dela, em
Downhollow. As linhas do corpo, os oblíquos no rosto expressivo eram os
mesmos. E pensar que, alguns segundos antes, aquele deus da dança estava
na frente dela, como um ser humano qualquer.
Pouco depois Lonza voltou trazendo uma bandeja com sanduíches, uma
garrafa de vinho e duas canecas de metal. Colocou a bandeja no chão, ao lado
de uma das chaminés do navio, sentou-se e chamou Lauri.
31
— Acomode-se.
Ela ainda não havia conseguido vencer totalmente a timidez. Sentou-se
no chão e observou enquanto ele enchia as canecas.
— Que o seu futuro na Companhia di Corte seja duradouro e cheio de
sucesso — desejou o bailarino, levantando a caneca.
Lauri fez o mesmo, cativada pelo charme daquele homem famoso e belo.
Bebeu do vinho e sentiu um calor reconfortante nas veias.
— Você não tem nada da menininha que eu estava esperando encontrar
— disse Lonza. — Quando me disseram que di Corte estava contratando uma
estudante de balé, pensei que ia encontrar uma garota sardenta e espevitada.
Nunca imaginei que você pudesse ser tão recatada, com uns olhos tão
profundos e mágicos, como o vinho que estamos bebendo.
— Que vinho é este?
— É um Tokay, feito para ser saboreado sob a luz das estrelas, por um
homem e uma mulher. Acha muito forte?
— Um pouco.
Lauri imaginou o que diria Maxim di Corte se a visse ali, bebendo vinho
ao lado de Michael Lonza. Talvez ordenasse que ela fosse imediatamente para
a cabine. Na certa diria que os dançarinos têm que estar descansados para ter
o melhor desempenho. Ela deveria ter a alma e o coração de uma dançarina…
Não para ele, mas para a arte à qual ele servia. Precisava ajudá-lo a satisfazer
a ambição de formar uma bailarina que seguisse os passos mágicos de
Travilla.
Lauri bebeu uma caneca de vinho, comeu um sanduíche, depois
levantou-se.
— Preciso voltar para a cabine. Se não for agora, quando o navio ancorar,
amanhã, vou ficar dormindo.
Michael levantou-se também.
— Vou acompanhá-la à cabine…
— Não. Muito obrigada pela companhia e pelo piquenique, sr. Lonza.
Lauri tinha medo de que, se outras pessoas os vissem juntos, a magia
daquele encontro desaparecesse. Lonza deu um passo em direção a ela.
— Por que não me chama de Michael, como eu pedi? Os lanches juntos e
as conversas não precisam terminar, quando chegarmos. Por mim, gostaria
que continuassem. E você, Lauri, o Cordeiro?
Lauri sorriu. Durante a maior parte da viagem, Lonza mal olhara para
ela. Agora, talvez estivesse sob a influência do vinho e do luar. Na manhã
seguinte, provavelmente perderia o interesse naquela jovem inglesa que ia
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dançar no corpo de baile.
— Veremos — disse ela.
Já estava para afastar-se dali quando ouviu o som de passos. Voltou-se e
viu Maxim di Corte aproximando-se na sombra da noite. Quando chegou
perto dos dois, o diretor fixou os olhos em Lauri. sério.
— Já passa da meia-noite, Lauri — disse calmamente, mas era como se
sugerisse que ela já devia estar na cama.
Quando viu a garrafa de vinho, ele apertou os olhos.
— Não aprovo que minhas jovens dançarinas participem de festinhas
clandestinas regadas a vinho no meio da noite. Você sabe disso. Lonza, e, está
vendo que Lauri é quase uma menina. Está certo que precisa relaxar, depois
da excursão cansativa que fizemos. Mas lembre-se, no futuro, de que a srta.
Garner saiu há pouco tempo da escola. Quero que ela comece a ensaiar o
nosso repertório tão logo cheguemos ao palazzo. Você vai trabalhar com
Bruno num novo espetáculo, e é provável que a srta. Garner tenha um papel
de destaque nesse novo trabalho.
— Desde o primeiro momento em que vi esta jovem — disse Lonza —,
percebi que você já tinha prontas as algemas que ia colocai nos punhos dela.
Di Corte não pareceu atingido pelo sarcasmo do dançarino.
— Percebeu, mesmo? Quanto a você, signorina, para a cama. Já está com
os olhos esbugalhados.
Disse aquilo e pegou no braço de Lauri, fazendo-a caminhar.
— Boa noite, Lauri, o Cordeiro — disse Lonza, enquanto eles se
afastavam.
Quando iam descendo a estreita escada em direção à cabine que ela
estava ocupando, Lauri sentiu que o mestre a olhava.
— Você também acha que eu sou como um feitor de escravos, com um
chicote na mão?
— O senhor não precisa de chicote.
— Não sou o tirano que você está imaginando. Se sou rigoroso com
meus dançarinos, é para o próprio bem deles. O balé exige flexibilidade,
reflexos rápidos, e só um tártaro consegue resistir a uma vida desregrada.
— Estávamos conversando e o tempo foi passando sem que
percebêssemos — defendeu-se Lauri. — Eu me sentia sozinha, com saudades
de casa, e tenho que agradecer ao sr. Lonza por ter me feito companhia.
— As moças que estão dividindo a cabine com você são muito amáveis.
Pedi a elas que procurassem fazer você se sentir em casa.
Lauri não gostou do que ele estava dizendo.
33
— Por favor, signore. Não deve incomodar Concha e Viola com os meus
problemas. Elas têm muitos amigos e também estão merecendo um descanso.
— Você está querendo dizer que elas preferem companhias masculinas.
Ou seja, que é natural as mulheres procurarem conforto no sexo oposto.
Lauri aceitou o desafio.
— Os homens fazem a mesma coisa quando querem chorar as mágoas,
sempre procuram as mulheres.
— Não estou negando isso — disse di Corte, com um sorriso enigmático.
— Sei que nenhum de nós é tão auto-suficiente quanto pensa. Sempre chega
uma hora em que ficamos à mercê dos caprichos da natureza.
Lauri não conseguia imaginar um homem tão orgulhoso e arrogante à
mercê do que quer que fosse. A menos que ele estivesse se referindo ao fato
de que Lydia Andreya estava presa a um homem que se recusava a dar o
divórcio. Uma pessoa apaixonada não podia ser auto-suficiente, e tudo
indicava que Andreya e di Corte estavam apaixonados. Estavam sempre
juntos, tanto no trabalho como quando se divertiam, Eram muito diferentes,
mas talvez um completasse o outro.
— No palazzo, você vai me achar rigoroso — advertiu o diretor. — Você
tem muito o que aprender, e estou decidido a ensinar-lhe o que for preciso.
Mesmo que, nesse processo, você fique ressentida comigo.
Lauri lembrou-se de que Lonza havia dito algo muito parecido e ficou
ainda mais assustada. Pensou em quanto estava longe do amor de tia Pat.
Aborrecida, segurou com firmeza o trinco da porta da cabine.
— Não seja criança, Lauri — disse ele, como se estivesse brincando. —
Não vou bater em você por qualquer coisinha, e o calabouço do palazzo foi
desativado há muito tempo.
— Estou vendo que o senhor não vai mesmo ter paciência comigo. Não
pode desculpar o nervosismo de uma simples integrante do corpo de baile?
O diretor pegou no queixo dela e fez com que o olhasse nos olhos.
— Você não estava tão nervosa lá em cima, naquele piquenique ao luar.
Sou assim tão diferente dos outros homens?
Lauri resolveu enfrentá-lo bravamente.
— Acho que o senhor é tirânico demais.
— Sou o diretor de uma companhia de balé, e não posso agir de outra
forma. Dirijo um bando de criancinhas caprichosas e engraçadinhas. Algumas
delas não têm consciência do talento que possuem. Imagine o que seria se eu
fosse complacente. Petrushka não iria mais querer parecer uma louca, os
cisnes se recusariam a voar e as próprias ninfas desistiriam da dança para
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sentar no meio do palco e jogar baralho.
Lauri teve que rir. Sentiu no queixo a pressão daqueles dedos e olhou
nos olhos o homem que tinha nas mãos o seu futuro. Sentiu que não poderia
fugir àquele fascínio.
— O talento, srta. Garner, é como um diamante bruto. Precisa ser
burilado, com paciência e muito trabalho. E esse processo, na maioria das
vezes, é doloroso.
— O que vai acontecer se continuar me burilando e descobrir que não
sou um diamante?
— Vou ficar desapontado comigo mesmo, por ter errado no julgamento
que fiz. Tive uma conversa com sua tia e ela também acha que, em Veneza,
você esquecerá seus medos e seus fantasmas. É o que espero. Lá, pode-se
aprender muita coisa. Deixe Veneza entrar no seu coração, signorina.
Com aquilo, ele encerrou a conversa.
— Buona notte — disse, afastando-se sem que ela tivesse tempo de
responder.
Lauri entrou na cabine e encontrou as companheiras dormindo nas
beliches. Tomando cuidado para não fazer barulho, trocou de roupa e deitou-
se.
Embalada pelo balanço do navio, dormiu e sonhou com um palácio que
mais parecia uma fortaleza. Na torre do palácio morava um homem que
estava sempre mascarado. Mesmo assustada, ela sentia um impulso
irresistível de subir as escadas e chegar aos aposentos dele. Queria arrancar
aquela máscara. No entanto, quanto mais ela se aproximava, mais ele se
afastava. Pensou que jamais chegaria a ver o seu rosto.

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CAPÍTULO IV

Desembarcaram no porto de Zattere e tomaram uma lancha que os


levaria até o palazzo, atravessando um lago. Quando passaram em frente à
Catedral de São Marcos, ouviram o badalar dos sinos. Havia ali uma fileira de
gôndolas negras, parecendo as embarcações de guerreiros que houvessem
desembarcado para saquear a cidade e fazer prisioneiros.
Lauri olhou em volta. Aqueles edifícios pareciam saídos de um conto de
fadas. Em cima das enormes cúpulas douradas da catedral, milhares de
pombos voavam em círculo, só pousando quando os sinos pararam de tocar.
Já era quase primavera em Veneza, justamente a melhor época do ano
para se estar na cidade. No verão, os turistas chegavam aos bandos, com suas
máquinas fotográficas e sua algazarra. Na primavera, a brisa filtrava os raios
de sol, dando uma agradável frescura aos canais.
Passaram por uma embarcação que servia de mercado ambulante e
dobraram a esquina, entrando num canal. Dos dois lados viam-se construções
muito antigas, com janelas coloridas e sacadas cheias de plantas. Cruzaram
com uma gôndola e Lauri observou que os movimentos do gondoleiro
tinham a graça de um balé.
Sentia-se excitada. Aquela era mesmo uma cidade para ser amada.
Acompanhando a passagem da gôndola, deu com o olhar de Maxim di
Corte, que a observava. Por alguns segundos os dois se olharam, sem dizer
palavra. A postura daquele homem estava muito de acordo com a
imponência medieval da cidade à qual pertencia.
— Veneza é fascinante, signore — disse ela, notando também os olhos
estranhos de Andreya por trás da fumaça de um cigarro.
— Não acho tão fascinante à luz do dia — disse a prima ballerina. Michael
Lonza aproximou-se dos três, com um sorriso nos olhos.
— Como uma mulher que já foi bela, Veneza precisa do manto escuro da
noite e da luz mortiça das estrelas para recuperar o encanto— falou o
dançarino, como se quisesse dar àquelas palavras um duplo sentido.
A lancha parou num cais particular, em frente a uma enorme casa de
pedra. Entre o cais e a casa havia uma piazza, ladeada por colunas
ornamentais. Enquanto a lancha ia encostando no cais, a atenção de Lauri foi
chamada por uma torre muito alta que havia ao lado da casa.
Olhando aquela torre, lembrou-se do estranho sonho que tivera na noite

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anterior. Pensou que podia ter visto o palazzo antes, nas gravuras de algum
livro sobre Travilla di Corte. O que a intrigava, porém, é que a torre era igual
à do sonho em todos os detalhes. Não teve dúvidas sobre quem moraria nos
aposentos que deveriam existir no alto daquela torre: só podia ser o senhor
do palazzo.
Olhou o homem alto ao lado dela, num terno cinzento muito elegante.
Ele estudava com os olhos a velha construção, com o mesmo interesse que
demonstrava em relação a tudo. Parecia estar querendo que Travilla
aparecesse ali, toda de branco, dançando na piazza. Se aquilo acontecesse, ele
abriria aquele sorriso encantador que Lauri vira tão poucas vezes.
Os dançarinos da companhia foram descendo aos grupos, carregando a
bagagem e tagarelando em vários idiomas, enquanto atravessavam a piazza.
Michael Lonza parou em frente à enorme porta de madeira trabalhada no
palazzo, no meio da qual havia uma grade de ferro. Um pouco acima da porta,
dominando a entrada, estava um falcão de pedra, com as asas bem abertas.
— Caça com falcão, o esporte dos cavaleiros — disse Lonza, voltando-se
para o diretor. — Acho que ainda pratica esse esporte, não, maestro? Os
falcões têm a visão muito apurada. Sem aviso, mergulham sobre a presa para
arrancar-lhe o coração. Não é verdade, signore, que antigamente os nobres
puniam severamente aqueles que ousassem tocar na plumagem de seus
falcões domesticados?
— É verdade. A maioria das aves usadas na caça eram fêmeas, e cada
fêmea devia ter apenas um senhor. Srta. Garner, bem-vinda ao Palazzo
Falconne.
Mal tocando o braço de Lauri, di Corte conduziu-a ao interior da casa.
Atravessando a porta, chegaram a um grande hall, com piso de mármore. A
luz atravessava os vitrais coloridos e, nas paredes, havia lâmpadas de azeite.
O compartimento era decorado por cadeiras de encosto muito alto e
almofadas de tecido escuro. Nas paredes, quadros a óleo com motivos da
Veneza medieval.
Muitos anos antes, os risos das damas da nobreza deviam ter ecoado
naquele hall, durante os festejos carnavalescos Aquelas paredes eram
testemunhas dos galanteios que os cavaleiros venezianos sussurravam nos
ouvidos das damas.
Uma escada de pedra muito larga levava aos aposentos do primeiro
andar. Depois de muitos meses, a paz do palazzo era quebrada pela algazarra
dos membros da companhia. Falavam todos ao mesmo tempo, querendo
saber onde iam dormir, onde iam comer.
37
— Lorenzo! Giovanni! — chamou di Corte, em voz alta.
Os criados vieram correndo receber as ordens. Miraculosamente, em
menos de uma hora todos os dançarinos já estavam distribuídos pelos
quartos, desfazendo as malas. Lá embaixo, numa espaçosa cozinha, uma
cozinheira veneziana, que adorava aquela algazarra, preparava o jantar.
Para alegria de Lauri, destinaram-lhe um pequeno quarto, onde ficaria
sozinha. Depois de desfazer a mala e pendurar a roupa no velho armário, ela
atravessou o quarto e abriu bem as janelas. Olhou para fora e ficou pensando
em como devia ser estranho morar num palácio cercado pela água.
Lá embaixo, escura e brilhante, a água batia na parede do edifício, de um
dos lados. Lauri sentiu-se como se estivesse numa cidade encantada. Pegou
um bloco de papel e uma caneta, sentou-se ao lado da janela e começou a
escrever uma carta para tia Pat, descrevendo o palazzo. Contou como eram as
molduras douradas que sustentavam os quadros e espelhos, as cortinas
bordadas com motivos florentinos, enfim, toda a suntuosidade que havia no
Palácio do Falcão. Depois falou da cidade, dos canais, da água batendo nas
construções de pedra, daquele odor mágico no ar.
De repente, ficou com os olhos cheios d'água. Pensou que tia Pat estaria
se sentindo muito sozinha em Downhollow. Se pelo menos pudesse ter ido
com ela para Veneza… Infelizmente, o ar da cidade era úmido demais para
uma pessoa que sofria de artrite.
— Tudo o que quero — dissera tia Pat quando se despediu da sobrinha
— é ver você dançando um balé, iluminada pelos refletores, a estrela do
espetáculo.
Lauri olhou as águas de Veneza e deixou as lágrimas escorrerem.
Quando se ama uma pessoa, sempre se procura fazer o que ela está
esperando. Isto, porém, às vezes é muito difícil.
Fechou o envelope, selou e foi até o quarto que Concha e Viola estavam
dividindo, perguntar onde havia uma caixa do correio. Muitos dos bailarinos
falavam inglês, inclusive Concha, e aquilo facilitava as coisas para Lauri.
Soube pela colega que a carta deveria ser colocada dentro de uma cesta que
havia em cima de uma mesa do hall.
— Preferia colocar eu mesma a carta no correio — disse Lauri, ansiosa
por conhecer as vizinhanças.
Tinha ouvido falar que, ao lado do palazzo, havia uma ponte que levava a
uma calle. Uma calle, de acordo com o guia da cidade, era uma passarela
suspensa ao longo de um canal. Quando ela falou na ponte, Concha informou
que aquela calle ia dar num pequeno centro comercial onde ela encontraria
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uma agência do correio.
— Tem certeza de que vai se orientar bem? — perguntou Concha,
preocupada. — Anoitece muito cedo em Veneza, e não é difícil para uma
estrangeira se perder por aí.
— Não se preocupe — disse Lauri, sorrindo. — Sou uma moça do campo
e, por isso, tenho muito senso de direção.
Enfiou a carteira no bolso da saia estampada e desceu. Saindo do palazzo,
seguiu por uma passagem pavimentada que levava a uma pequena ponte de
pedra. Caminhando pela ponte, atravessou o canal e voltou-se para observar
o palazzo e sua torre alta. Era um dos duzentos palácios de Veneza, onde ela
ficaria por várias semanas.
Como dizia tia Pat, nem toda garota tem a chance de passar uma
temporada num palácio… ainda mais sob as ordens do tirano de Veneza, ela
pensou.
Foi caminhando pela passarela, enquanto observava as poucas gôndolas
que atravessavam o canal. Sem dificuldade, encontrou a agência do correio,
ao lado de uma drogaria. A funcionária que a atendeu estava acostumada
com os turistas e não teve dificuldade para entender o que ela queria. Depois
que despachou a carta, Lauri foi até um fruteiro e comprou uma sacola cheia
de ameixas frescas que mais pareciam pingos de ouro.
Não tinha pressa em voltar. Foi caminhando ao longo da passarela,
comendo as ameixas e jogando os caroços na água. Vez por outra passava
uma gôndola, como um cisne negro, conduzida por seu gondoleiro forte. O
remo que os gondoleiros usavam para movimentar a embarcação devia ser
bastante pesado, mas eles executavam o trabalho com uma graça especial.
Reparou que as gôndolas transportavam caixas e fardos de mercadorias, em
vez de casais apaixonados trocando juras de amor, enquanto o gondoleiro
cantasse uma ópera.
Lauri quase perdeu a noção do tempo. Caminhando sem rumo, foi dar
num velho pátio, cercado por estátuas de pedra. Notou que estava
escurecendo. Pontinhos brilhantes começavam a aparecer no céu e uma brisa
leve sacudia seus cabelos claros, soltos sobre os ombros. Achou melhor voltar
ao palazzo, antes que escurecesse por completou
Voltando-se para fazer o caminho de volta, observou que os dois lados
do pátio eram ocupados por construções absolutamente iguais, como se
fossem gêmeas. As duas extremidades davam para canais. Hesitante, ficou
parada no meio daquela velha praça, olhando para um lado e para o outro.
Não conseguia lembrar de que lado tinha vindo.
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Sentiu-se perdida no meio daquela cidade desconhecida. Não sabia falar
uma palavra de italiano, por isso não ia adiantar bater numa daquelas velhas
portas de madeira. Mas também não ia adiantar entrar em pânico. Ficou na
espreita. Quando ouviu um barulho na água, num dos lados do pátio, correu
para lá. Uma pequena embarcação deslizava para o local onde ela estava.
— Pope! — chamou, em voz alta.
Tinha visto no guia da cidade que se devia usar aquela palavra quando
se quisesse alugar um barco. A embarcação encostou na pedra e os olhos
negros do gondoleiro se fixaram nela.
— Palazzo Falcone, por favor — pediu, quase suplicando.
O homem ajudou-a a entrar na gôndola e, enquanto o crepúsculo descia
melancolicamente sobre o canal, Lauri foi conduzida de volta ao palazzo, no
meio de sacos de cereais e caixas de legumes e verduras.
Esperava não ser vista quando chegasse ao palazzo. Quando a
embarcação se aproximou do ancoradouro, porém, viu uma figura alta, de pé,
que a observava com uma cara de poucos amigos.
— Onde esteve? — perguntou ele, enquanto ela pagava ao gondoleiro. —
Já estávamos preocupados.
Ela saltou da gôndola e ficou frente a frente com o homem que mais
queria evitar naquele momento: o padrone em pessoa. Pela primeira vez o via
em roupas informais, com uma jaqueta sobre um suéter de lã, o que lhe dava
a aparência de um rapaz.
— Fui colocar uma carta no correio e resolvi dar uma volta pela cidade
— explicou, sentindo-se culpada por ter ultrapassado os limites da agência
postal. — Não me diga que temos de dizer aonde vamos sempre que
quisermos sair do palazzo.
— Não seja criança — disse ele, com aquela voz metálica e cortante. —
Você saiu sem comer nada. Não tomou sequer uma xícara de café. Lembre-se
de que agora sou responsável por você. Se queria sair para um passeio, devia
ter pedido a alguém para acompanhá-la, alguém que já conhecesse a cidade.
Esses canais parecem ter o dom de atrair as pessoas, srta. Garner. Você vai
seguindo e, quando se dá conta, está perdida. Naturalmente isto aconteceu
com você hoje.
Ele estava certo, e aquilo deixava Lauri enfurecida.
__ Há apenas alguns instantes, o senhor me disse para não agir
como uma criança. E é por isso, porque não quero depender das outras
pessoas, que resolvi sair sozinha. Aprendemos com os nossos próprios erros,
signore. Como diretor de uma companhia de balé, o senhor deveria saber
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disto melhor do que ninguém. O diretor mordeu os lábios.
— Tem razão. Talvez não tenha sido muito correto chamar você de
criança. Você tem a habilidade das mulheres para fazer os argumentos de um
homem virarem-se contra ele. Poucas mulheres têm a coragem de admitir os
próprios erros.
— Por que os homens têm sempre que falar sobre as mulheres de forma
generalizada? — falou Lauri, os olhos faiscando. — Todo ser humano tem
liberdade para fazer o que quer, e as mulheres também são seres humanos.
Por que, então, os homens sempre esperam delas a submissão total? Quando
um homem decide fazer alguma coisa, aquilo tem que ser o certo, mesmo que
seja uma loucura. Ele pode enfiar-se num carro de corrida a mais de trezentos
quilômetros por hora, arriscando a vida apenas para bater um recorde. Neste
caso, ele é um herói. Pode também deslizar loucamente numa montanha
coberta de neve, ziguezagueando entre as árvores. Faz isso porque é um
esportista. Quer saber de uma coisa? Os homens é que agem como crianças!
— Estou vendo que você tem muita consciência dos direitos das
mulheres — disse di Corte, como se estivesse se divertindo.
Com surpresa Lauri notou que, enquanto conversavam, ele a havia
conduzido aos jardins do palazzo, através de uma porta lateral. A luz
esverdeada de uma fonte luminosa fazia os arbustos parecerem fantasmas.
Os altos ciprestes assumiam a forma de gigantes saídos de uma história de
assombração.
Havia no ar um cheiro de incenso, o farfalhar das árvores e, por todos os
lados, viam-se flores de várias qualidades. A fonte tinha a forma de uma
enorme taça de pedra e o silvo da água esguichando parecia o canto de uma
ave noturna.
Lauri não queria demorar-se ali com Maxim di Corte. No entanto, não
tinha alternativa, já que não conhecia o caminho para entrar no palazzo.
— Que tal o seu primeiro passeio de gôndola? — perguntou o diretor.
— Viajei no meio de verduras e frutas. Por isso, não foi um passeio lá
muito romântico.
Recostou-se numa árvore e, quando esfregou a mão no tronco, lembrou-
se de Downhollow, com seus bosques cheios de árvores, e daquele pequeno
chalé onde ela sempre tinha encontrado segurança. Agora, estava sozinha no
mundo, no meio de estrangeiros, tendo ainda que enfrentar aquele veneziano
inflexível que jamais tinha sido desafiado ou humilhado.
Lauri levantou os olhos para a lua e seu rosto foi iluminado pela luz
prateada. Di Corte seguiu aquele olhar.
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— É a lua nova, na qual Pierrô viaja pelo céu — murmurou ele. — Viajar
numa gôndola é como estar na lua, não acha?
— Como eu já disse, tive que dividir o espaço com caixas de frutas e
verduras.
Lauri procurava falar calmamente, mas sua voz transmitia emoção e um
pouco de medo.
— Você tem que encontrar alguém entre as outras dançarinas para
acompanhá-la nas suas saídas. Faço questão disso.
— Pode insistir à vontade, signore — respondeu ela, apertando com os
dedos o tronco da árvore— Acontece que eu gosto de andar sozinha.
— Devo entender disso, signorina, que também não gosta da companhia
masculina?
Sabia que ele estava fazendo um teste e sentiu, aborrecida, que corava. A
maioria das garotas da sua idade já tinham saído com rapazes e sido beijadas.
Lauri, porém, não sabia qual era o gosto de um beijo. Olhou o rosto atraente
do diretor, com os olhos escondidos pela sombra mas deixando ver a linha do
queixo e o lábio inferior, carnudo. Tinha os traços característicos dos latinos,
que despertavam tantas paixões.
— A inocência é uma qualidade traiçoeira, srta. Garner. — Há
dançarinos em minha companhia que vão logo descobrir essa qualidade em
você.
— Posso tomar conta de mim sozinha — disse ela, com a voz firme, mas
tão corada que ficou claro que não sabia mesmo de nada acerca dos homens.
— Se está se referindo ao sr. Lonza, posso garantir que o interesse dele é
puramente profissional, signore. Ontem mesmo ele me disse que estava
curioso para me ver dançar.
— Com certeza também leu a sua mão — disse di Corte, com sarcasmo
na voz. — É o passatempo favorito dele, e as mulheres não resistem. O que
lhe disse? Que existe um homem alto e moreno atravessando o seu caminho,
e que você deve afastar-se dele?
Disse aquilo e riu. Depois, tirou das mãos dela as folhas que ela estava
amassando com força.
__ Amanhã você vai começar a trabalhar sob a minha orientação.
Se ficar tão tensa, srta. Garner, não vai obter um bom resultado.
__ Sob sua orientação, signore? — perguntou Lauri, assustada.
— Sim. Sob minha orientação. Alguma objeção?
Ela balançou a cabeça, rezando para que o amanhã não chegasse nunca,
ou para que ele tivesse pena dela e a deixasse sob as ordens daquele
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cavalheiro gentil, Bruno, o regente.
— Venha — chamou ele, mostrando o caminho.
Por uma porta lateral, entraram no palazzo, onde as lâmpadas já estavam
acesas, iluminando os móveis de estilo veneziano.
— Um pouco de medo é compreensível, srta. Garner — continuou ele,
enquanto caminhavam. — Mas não deixe que ele tome conta de você. Sua
vida privada diz respeito apenas a você mesma, desde que não prejudique o
seu desempenho como dançarina. Não gostaria de ver você por aí como um
passarinho com as asas partidas. É por isso que estou advertindo sobre
Lonza. Divirta-se com ele, mas guarde o seu coração para coisas mais sérias.
— Como o balé, por exemplo? — perguntou, ciente de que estava sendo
atrevida demais por enfrentar um homem que podia aterrorizá-la com um
simples olhar. — Estou vendo, signore, que exige de uma bailarina que ela se
entregue de corpo e alma ao balé. Só que isto é uma coisa que eu não posso
prometer.
— É mesmo?
Olhou-a fixamente e ela sentiu que corava novamente. Quando ele a
olhava daquela forma, podia conseguir dela qualquer coisa, como fazê-la ir
dormir, por exemplo. Aquele pensamento tolo fez com que sorrisse, mesmo
sob a mira daquele olhar implacável.
— Na minha opinião, srta. Garner, você não sabe exatamente o que quer.
Um dia, porém, vai crescer de verdade. Quando isso acontecer, descobrirá
que nem tudo na vida depende de nossa vontade. Todos nós lutamos contra
isso, mas a verdade é que o nosso destino já está traçado.
— Mesmo o seu destino, signore? — desafiou ela.
Aquele homem de ferro, cuja influência sobre outras pessoas era tão
grande, devia ter forças para traçar o próprio destino.
— Mesmo o meu destino, signorina.
— Como é fatalista.
— Che sara sara — disse ele, dando de ombros. — A crença de que não se
pode fugir ao destino faz parte do temperamento latino. Agora, porém, vou
deixar que você fuja para o seu quarto. O jantar vai ser servido às oito e meia.
Em Veneza jantamos tarde, como em todos os países latinos, onde a noite tem
uma magia própria.
Fez uma reverência formal e afastou-se, atravessando uma porta muito
alta. Lauri subiu as escadas quase correndo e tomou a direção do quarto, no
fim do corredor. Entrou e fechou a porta, encostando-se nela. Sentia o coração
batendo forte, as faces queimando e as mãos geladas.
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O que estava acontecendo com ela? Nunca antes tinha se sentido tão
frágil. Respirou fundo. Maxim di Corte, com aquele jeito de falar, era o
responsável por ela sentir-se assim. O destino era uma força traiçoeira, que
envolvia as pessoas em silêncio, até agarrá-las irremediavelmente.
Acendeu a luz e ficou olhando o quarto onde deveria morar por alguns
meses. A enorme e pesada cama do século XVII parecia ocupar todo o espaço,
com a cabeceira muito alta quase chegando ao teto. A colcha que a cobria era
tão antiga, que devia ter sido bordada por alguma dama medieval. Era um
trabalho de muita paciência, talvez executado por alguma amante de Falcone
di Corte que tivesse morado ali.
Encontrando água quente numa bacia, Lauri despiu-se e lavou o colo e o
rosto. Havia um banheiro a poucos passos do quarto mas quando passou por
lá, poucos minutos antes, notou que estava fechado. Achou que a melhor
hora para tomar banho devia ser pela manhã, bem cedo, quando os
ocupantes dos outros quartos daquele corredor ainda estivessem ferrados no
sono.
Depois que se lavou e espalhou talco pelo corpo, foi até o armário,
escolher o que vestir entre as poucas roupas que havia trazido. Como não
sabia se devia vestir-se formalmente, decidiu-se por uma saia cor de vinho e
uma blusa branca.
Arranjou os cabelos num penteado alto, prendendo bem. Naquela noite,
queria parecer um pouco mais velha e sofisticada.
Olhou-se no espelho e achou-se com uma aparência curiosamente
medieval. Devia ser efeito do ambiente. Com a maquilagem, parecia ter as
maçãs do rosto mais salientes, os olhos mais oblíquos e os lábios mais
carnudos. Achou que o pescoço descoberto dava-lhe um ar um tanto
vulnerável. Estava mesmo decidida a soltar os cabelos quando alguém bateu
na porta.
— Salve! — saudou Michael Lonza, quando ela abriu a porta. — Oh!
Você está diferente. Não parece nada aquela colegial que ficava enfiando o
dedo na taça de champanhe.
— Sempre que me penteio assim, pareço um pouco mais velha —
explicou ela, rindo e achando que ele não tinha muita razão para ficar
admirado.
— Está parecendo uma dama da nobreza — disse ele, sorrindo e
oferecendo o braço. — Posso escoltá-la até a sala de jantar, madame?
Enquanto desciam a escada, Lauri reparou como os dedos dela eram
brancos, comparados com o tecido escuro do paletó. Lonza explicou que,
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quando voltavam de alguma tournée, a primeira noite no palazzo era sempre
uma espécie de comemoração. Quando tinham convidados importantes para
o jantar, normalmente pessoas ligadas ao balé, também deviam vestir-se
formalmente. Nas outras ocasiões, porém, principalmente quando não
tinham exercícios marcados para a manhã seguinte, Maxim di Corte até que
lhes concedia uma certa liberdade. Alguns dançarinos tinham o costume de ir
ao Café Anzolo, comer ravióli.
— Eu teria acompanhado você esta tarde, Lauri, se soubesse que estava
querendo conhecer a cidade.
— Só fui colocar uma carta no correio.
— Ouvi dizer que você se perdeu. Entre dançarinos, as fofocas se
espalham como fogo. Uma das dançarinas estava na janela do quarto e viu
quando você desceu de uma gôndola e caiu bem nas mãos do nosso diretor.
Ela disse que você parecia muito assustada e ele carrancudo.
— Ele é muito mandão — disse Lauri, corando um pouco. — O signor di
Corte acha que eu sou uma criancinha, incapaz de tomar conta de mim
mesma, por isso ordenou que eu arranjasse alguém para me acompanhar
sempre que quiser sair.
— Na certa ele está querendo se assegurar de que você não vai se
desencaminhar — disse o dançarino, com um brilho nos olhos. — Mas vai ser
um prazer para mim cumprir as ordens dele. O que você acha?
Como ela parecesse hesitar, ele insistiu:
— No navio, eu disse que devíamos ser amigos. Já esqueceu?
— Estava falando sério? Não foi só por causa do vinho, sr. Lonza? Ele
achou aquilo engraçado e começou a rir. Sem saber por que,
Lauri também riu. Chegaram ao último degrau da escada no justo
momento em que o senhor do palazzo aparecia, saindo de uma porta num
canto do hall. Ele parou e ficou olhando aquele casal que ria tão jovialmente,
em contraste com a severidade das cortinas escuras e das colunas de
mármore.
Ante o olhar de Maxim di Corte, Lauri ficou confusa. Vestido a rigor, ele
parecia ainda mais opressor.
— Espero que vocês dois dancem juntos com a mesma facilidade com
que se divertem — disse o diretor, passando por eles. — Amanhã poderemos
ter certeza disto.
Aquilo parecia uma ordem e Lauri olhou alarmada para Lonza.
Enquanto isso, di Corte afastava-se em direção a um grande salone onde a
maioria dos outros dançarinos tomavam aperitivos.
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— Não me olhe assim — disse Lonza, apertando a mão dela num gesto
encorajador. — Não precisa ficar nervosa só porque vai dançar comigo.
Estamos nos dando muito bem e amanhã dançaremos como dois anjos.
Ela sorriu, nervosa. Não tinha dúvidas de que ele poderia dançar como
um anjo mesmo com a mais desajeitada das criaturas.
— Por favor, Michael, não brinque! Não vou conseguir dançar com você
na frente das outras pessoas. Acho que morreria!
— Não acredito — disse o dançarino, parando em frente a ela como se
estivesse pronto para executar um pas de deux. — Não sei se você já leu
alguma coisa a respeito, mas certa ocasião Isadora Duncan dançou de
improviso com Nijinsky, num palácio veneziano. Um não conhecia nada
sobre o estilo do outro. No entanto, dançaram como se fossem uma só pessoa.
A verdade é que pode existir uma identificação perfeita entre duas pessoas,
às vezes por toda a vida, às vezes por apenas uma hora. Para Isadora e
Nijinsky, uma hora era o suficiente.
— Eu não sou uma das divinas — disse Lauri, calmamente. — Sou
apenas Lauri Garner.
Todos tinham lugar reservado na grande mesa de estilo feudal e Lauri
teve que separar-se de Lonza. Havia arranjos de flores em jarras de porcelana,
travessas de prata e garrafas de cristal com vinho. Como os dançarinos ao
lado dela mal falavam inglês, ficou calada a maior parte do tempo. Também
não estava com muito apetite. Às vezes olhava para Maxim di Corte, sentado
à cabeceira da mesa, com Andreya ao lado. A prima ballerina estava
deslumbrante, com todo aquele charme de mulher sofisticada. Tinha os
cabelos presos no alto da cabeça por uma tiara de jade. O vestido que ela
usava era de estilo medieval, com um cinto também cravejado de jade, na
mesma cor estranha dos olhos.
Num instante em que se fez silêncio, a voz de Andreya atravessou a
mesa.
— Srta. Garner, ouvi dizer que amanhã vamos poder ver as suas
habilidades como dançarina. Mas teremos que esperar até amanhã?
Ficaríamos felizes se a víssemos dançar esta noite.
O coração de Lauri disparou quando encontrou o olhar brilhante de
Andreya.
— Não vai precisar executar nenhum salto espetacular, srta. Garner —
disse Maxim di Corte, com um sorriso. — Afinal, não terá que dançar como se
estivesse na frente de uma platéia de verdade.
— E por que não, Max? — falou Andreya, depois de tomar um gole de
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vinho. — Não há razão para que ela fique nervosa. Sabemos que, há pouco
tempo, era uma simples amadora, e vamos perdoar os erros que cometer.
— Termine o seu jantar, Lydia — disse o diretor, sério. A prima ballerina,
porém, não pareceu assustada.
— Acha que nós vamos rir de você, sita. Garner?
Todas as pessoas na mesa olhavam alternadamente para uma e outra.
Mesmo as que não falavam inglês perceberam que Andreya estava lançando
um desafio à nova contratada. Lauri sentiu um olhar de simpatia em algumas
delas. Sabia, porém, que a timidez não era uma qualidade muito admirada
num grupo como aquele.
— Será que não pode encontrar outro palhaço para diverti-la depois do
jantar, madame Andreya?
“Houve um riso generalizado na mesa. Lauri não sabia como tinha tido a
coragem de dizer aquilo, mas também se divertiu.
Andreya levantou os olhos, surpresa com a súbita desinibição da jovem.
— Estou apenas pedindo que você dance para nós, minha inglesinha. Dê
uma olhada em volta. Veja como estão todos ansiosos para ver o que você
pode fazer.
Todos perceberam que o ar estava ficando carregado. Lauri olhou para di
Corte e viu que, a qualquer momento, ele poderia intervir para resolver a
questão. Num instante, um pensamento passou pela cabeça dela. Precisava
mostrar àquele homem que não era mais uma criança. Não precisava de
nenhum tutor para tomar decisões por ela. Queria que ele visse que Andreya
não a amedrontava.
— Está bem — disse claramente. — Eu dançarei esta noite, mas se o sr.
Lonza concordar em ser o meu partner.
Um murmúrio percorreu a mesa. Michael Lonza estava recostado na
cadeira, escutando a conversa.
— Claro que eu concordo, Nijinka — disse ele, levantando o copo de
vinho para saudar a coragem dela. — Meus instintos ciganos já estavam
mesmo me dizendo que nós íamos dançar esta noite. Por isso, achei melhor
comer pouco, como um monge.
Novamente todos riram. Ninguém podia imaginar Lonza como um
monge. Os olhos da jovem inglesa se fixaram, alegres, naquele tártaro esbelto
e ágil, que acreditava que a juventude não devia ser desperdiçada.
Maxim di Corte levantou-se, esfriando com um gesto de mão a alegre
algazarra que tinha se formado.
— Muito bem, srta. Garner. Então você vai dançar para nós esta noite.
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Mas quero avisá-la de uma coisa: vai ter uma platéia muito especial.
Depois o diretor voltou-se para Lonza, com um olhar irônico.
— Os dançarinos são como o vinho que acabamos de tomar: nasceram
do trovão e têm sangue nas veias.
— Os diretores também — disse Andreya, com um riso debochado. —
Não é verdade que uma tempestade sacudiu Veneza na noite em que você
nasceu? Li alguma coisa a respeito nas memórias de Travilla.
Quando ouviu o nome de Travilla, os olhos do diretor brilharam,
fixando-se em Lauri.
— Vamos terminar o jantar — disse ele. — Isto é, os que não vão executar
um pas de deux.
Para Lauri, a próxima meia hora foi de muito desconforto. A todo
momento ela sentia o assédio dos olhares curiosos. Foi com alívio que, no
final do jantar, retirou-se para ir vestir uma túnica e calçar as sapatilhas de
balé.
Depois que se vestiu e começou os exercícios de aquecimento, sentiu que
aquela disposição que demonstrara à mesa, aceitando o desafio de Andreya,
estava esmorecendo. Na verdade, sentia-se assustada. Céus! E se fizesse um
papel ridículo na frente da prima ballerina e, pior ainda, na frente de Maxim di
Corte?

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CAPÍTULO V

Lauri desceu sozinha a escada do palazzo, uma figura esbelta numa


túnica simples, as sapatilhas pisando o chão como se ele estivesse cheio de
pontas de faca.
Ficou ainda mais nervosa quando viu a companhia inteira no hall,
alguns sentados em poltronas ou cadeiras, outros acomodados no chão com a
graça que só os dançarinos sabem ter. A lenha queimava na lareira e as
janelas estavam cobertas por longas cortinas de veludo. Maxim di Corte
estava supervisionando a colocação de uma toalha de feltro no chão, bem na
frente de uma tapeçaria antiga que serviria de cenário para o pas de deux.
Andreya estava sentada ao lado da lareira, com as longas mãos
descansando nos braços da poltrona. Ao lado dela, de pé, Bruno Lanning
observava o trabalho do diretor.
Quando viu Lauri ao pé da escada, Bruno caminhou para ela. Era um
brilhante coreógrafo, filho de pai italiano e mãe americana. Tinha os cabelos
sempre em desalinho. Por causa da delicadeza no trato com as pessoas, todos
gostavam quando chegava a hora de aprender com ele os passos de uma
nova dança.
— Pronta para enfrentar os leões de di Corte? — perguntou ele, com um
sorriso amigável.
— Pronta para ser devorada por eles, sr. Lanning.
Segurou o corrimão da escada e percebeu que Andreya a observava, de
longe, com um olhar frio. Sentiu-se mesmo como uma cristã da antiga Roma
entrando na arena dos leões.
— Não sei por que fui aceitar o desafio de Andreya — continuou ela,
confiando no sorriso amigo de Lanning. — Acho que o signor di Corte deve
estar aborrecido comigo. Pelo jeito dele…
— Quando o diretor assume aquela expressão de crueldade —
interrompeu o coreógrafo, calmamente —, às vezes é porque está contente.
— Contente?
Olhou o homem alto que arrumava uma harpa antiga em cima da ponta
da toalha de feltro. Com os dedos finos e compridos, ele afinava as cordas do
instrumento. Fazia aquilo com a delicadeza de quem amava a beleza e era
incapaz de fazer algum mal.
Quando o diretor caminhou para o local onde ela estava, Lauri apertou

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com força o corrimão da escada. Com aquela imponência toda, ele parecia ter
saído de um daqueles quadros que havia pendurados nas paredes.
— A sua orquestra está esperando por você, Bruno — disse ele, sorrindo.
(

Depois, olhou Lauri da cabeça aos pés, como se estivesse inspecionando


alguma coisa. Antes que ela pudesse fazer um movimento, o diretor pegou a
mão que apertava o corrimão da escada.
— Cielo, como você está gelada! Venha para perto do fogo, enquanto
esperamos por Lonza. Ou será que prefere desistir da dança?
— E desapontar todas essas pessoas, signore? Sentiu o calor daquela mão
segurando a dela.
— Quero dançar… com Michael Lonza.
— Acho melhor você vir aquecer-se um pouco — insistiu o diretor. Lauri
balançou a cabeça. Não queria ficar muito perto de Andreya.
— Está vendo como ela é temperamental, Bruno? — falou di Corte,
enquanto a estudava com os olhos. — Existe um balé chamado Lurline e o
Cavaleiro. Você o conhece, srta. Garner?
Lauri balançou a cabeça afirmativamente. Lurline e o Cavaleiro tinha sido
um dos primeiros balés que ela aprendeu. Era mesmo um dos que mais
gostava, por causa da história fantástica.
— Acha que pode executar o pas de deux de Lurline com Lonza?
Imediatamente ela aceitou a sugestão, recuperando a alegria.
— Ótimo — disse o diretor, enquanto tirava do bolso alguma coisa de
ouro. — Aqui está o talismã mágico que você deve entregar ao seu cavaleiro.
Colocou no pescoço dela a fina corrente de ouro, na qual estava
pendurado um coração de topázio. Lurline entregaria aquele coração ao
cavaleiro, para protegê-lo na guerra, mesmo sabendo que separar-se daquela
jóia seria a morte para ela.
Os dedos de Lauri seguraram a pedra preciosa. Desejou que o talismã
tivesse também o dom de ajudá-la a vencer aquela prova, que parecia tão
difícil. Era um topázio verdadeiro, uma pedra grande, valiosíssima.
— É uma jóia de muito valor, signore — disse, levantando os olhos para o
diretor. — Tem certeza de que…
— Tenho — disse ele simplesmente. — Ah! Aí vem Lonza!
— Boa sorte, Lauri — desejou Bruno, enquanto se encaminhava para a
harpa.
Um murmúrio de excitação percorreu o hall quando Lonza desceu a
escada, em passos rápidos. Vestido numa malha prateada, ele estava
50
transformado num ser de um mundo no qual Lauri jamais pensou ser
possível entrar: o mundo mágico dó balé.
— Já disse a Lauri que nós vamos dançar o pas de deux de Lurline? —
perguntou Lonza ao diretor, olhando de relance para a parceira.
— Sim — respondeu di Corte.
Continuava a olhar para Lauri com aqueles olhos magnéticos. Depois,
com uma voz profunda, passou a ela as orientações finais.
—Esqueça a assistência, esqueça tudo para concentrar-se na
interpretação de Lurline e o Cavaleiro. Ela é uma jovem tão profundamente
apaixonada que está pronta a dar a vida pelo amado. É uma criatura da
floresta. Sabe que o cavaleiro por quem está apaixonada morrerá na batalha
se não for protegido pelo coração dela, que se transformou em pedra, mas
está cheio de amor. Se você se conscientizar disto, da magia do personagem,
não precisa ter medo da assistência. Aliás, não precisa ter medo de nada. Está
me ouvindo?
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, sentindo-se quase
hipnotizada.
— Você é uma jovem infelice in amore — continuou ele. — Lembre-se
disto.
A um gesto do diretor, Bruno deu início à música. Lonza pegou na mão
dela e os dois foram caminhando em direção ao feltro que serviria de palco.
— Oh, Michael — ela murmurou. — Estou apavorada. Acho que… Acho
que não vou me lembrar de um só passo do balé.
— E nem precisa, Nijinka — respondeu ele, também cochichando. —
Não vamos dançar num teatro. Além disso, podemos substituir o que você
não lembrar por um pouco de improvisação.
Quando chegaram ao local onde iam dançar, ela levantou os olhos para
os espectadores. Atrás deles dois, na parede, uma enorme tapeçaria mostrava
uma cena silvestre. Lauri resistiu ao impulso de olhar para Andreya. Achou
que, se tivesse que enfrentar o sarcasmo daqueles olhos estranhos, certamente
desabaria no lugar onde estava. Em vez disso, olhou para o partner e suspirou
de leve. Obedecendo à música, Lonza iniciou os movimentos do pas de deux.
Naqueles primeiros momentos, Michael Lonza fez o que pôde para não
deixar transparecer o nervosismo de Lauri, guiando-a e orientando-a em
todos os movimentos. Fazia aquilo com uma certa facilidade. Minutos depois,
porém, Lauri sentiu que podia executar a sua parte sem precisar apoiar-se
tanto no parceiro. Aos sons maravilhosos que Bruno tirava da harpa, dançou
sem qualquer inibição, como um ser encantado da floresta.
51
Quando o dançarino a levantou bem alto, caminhando alguns passos
com uma expressão de alegria no rosto, Lauri acariciou o rosto dele,
demonstrando a paixão que sentia por aquele cavaleiro. Manteve uma das
pernas esticada no ar, até que ele a colocou no chão e os dois se enlaçaram
num breve e silencioso abraço. Depois, correram um pouco, como se
brincassem no meio das árvores.
Naquele momento, eles pareciam realmente criaturas da floresta.
Impulsionada por Lonza, Lauri arremessou-se num salto magnífico. Parecia
estar abrindo as asas, pronta para voar. Mesmo quando estava longe dele,
sentia a respiração daquele amante generoso, um amante belo e perigoso.
Rindo, fugia dos braços dele, para excitá-lo ainda mais. Depois, correndo
na ponta dos pés e em silêncio, colocou no pescoço dele o talismã que o
protegeria sempre. Sabia que ia morrer, pois estava dando o próprio coração,
mas estava feliz.
Em seguida, afastou-se dele. Os cabelos dela, longos e soltos,
simbolizavam a escravidão. Era como se servissem para que o amante a
agarrasse pelos cabelos se ela tentasse fugir. Lonza saltou na frente dela,
como se quisesse afastá-la de alguma coisa que estava tomando conta dela.
Segurou nos cabelos dela e puxou-a para bem perto, mantendo-a presa. Ela
demonstrava medo da morte, mas não podia ficar com ele.
Abraçou-se ao parceiro e foi deslizando pelo corpo dele, até dobrar os
joelhos, abandonando-se como um animalzinho ferido. Lonza ajoelhou-se,
afastou uma mecha de cabelo do rosto dela e os dois trocaram um beijo de
morte.
Como não havia cortinas para serem fechadas, Lauri não sabia como
fugir àquele beijo profundo de Lonza.
— Doçura — cochichou ele, enquanto os assistentes aplaudiam —, acho
que você nunca foi beijada.
Lauri corou, afastou-se dele e correu em direção à escada. Passou por
Maxim di Corte, mas não parou. Precisava refugiar-se no quarto, afastar-se da
realidade que quebrava o encanto daquele mundo de sonhos.
Ainda sentia na boca a pressão dos lábios de Lonza, ao mesmo tempo
que lembrava do olhar de Maxim di Corte.
— Quando ele parece cruel — dissera Bruno —, às vezes é porque está
contente. — Rezava para tê-lo contentado naquela noite, mesmo sabendo que,
nos primeiros movimentos da dança, errara demais.
Cansada, tirou a roupa de dança e vestiu um roupão. Debruçou-se na
janela e ficou escutando o barulho da água batendo nas paredes de pedra do
52
palazzo.
De repente, o silêncio foi quebrado por um som de vozes vindo da
piazza, bem ao lado da janela de Lauri. Já ia se afastar da janela quando ouviu
alguém mencionar o nome dela. Como qualquer ser humano, ficou curiosa
para saber o que estavam dizendo.
— Acha que não sei por que você trouxe essa tal Garner para Veneza? —
dizia uma voz feminina, quase histérica. — Quer que ela dance com Lonza a
nova produção de Giselle. Está pensando que, porque ela é mais jovem, vai
dançar melhor do que eu…
— Por favor, Lydia — disse a voz de Maxim di Corte, paciente. — Esta
cena é completamente desnecessária. Pode estar certa de que não tenho
nenhum plano específico para a garota. É a pura verdade.
— Não negue que, como todo o resto da companhia, você não reparou
como ela esteve bem com o Lonza. Você reparou, não foi? Jovem, tão
fresquinha, que eu gostaria de matá-la… Max! Largue o meu pulso! Você…
está me machucando!
— Quantas vezes tenho que dizer que você não deve ter ciúmes de
ninguém? Você é Andreya… bela e fascinante, e com um número de
admiradores que poucas dançarinas jovens esperam conseguir.
— Largue o meu pulso! — repetiu ela, com petulância. — Você é cruel,
Max, e se pensou em me substituir em Giselle, vai acabar fazendo isso.
— Você detesta aquele papel, sempre se aborreceu com ele, mas
dificilmente eu a substituiria por uma jovem dançarina, Lydia — replicou o
diretor. — A garota está mostrando muitas qualidades. De outra forma, não
estaria mesmo conosco. Mas temos outras na companhia que têm mais
técnica, mais experiência…
— As outras na companhia não têm aquele certo ar, Max…
— O que está querendo dizer?
Ele parecia realmente enfurecido e Lauri temeu pela segurança de
Andreya.
— Sabe muito bem o que estou querendo dizer — desafiou a bailarina. —
Andei estudando aquele retrato de Travilla que você tem. A moça tem aquele
mesmo ar de pureza, de inocência, como se tivesse vivido sempre entre as
criaturas da floresta, sem qualquer idéia do que é a vida real.
Por alguns instantes, fizeram silêncio. Lauri esperava, tensa, a resposta
de di Corte.
— Realmente, existe uma semelhança física — disse ele, finalmente. —
Mas isto não pode suprir outras deficiências.
53
— Essa garota inglesa tem deficiências importantes, Max?
A voz de Andreya estava mais calma, como se finalmente ele houvesse
dito alguma coisa que a agradava. Lauri sentiu-se magoada Justamente na
noite em que pensava ter agradado a Maxim di Corte, ele dizia que ela tinha
deficiências.
— Está ficando tarde, coccinella — falou o diretor. — Acho melhor
entrarmos.
— Faz tempo que você não me chama de coccinella, querido ;— disse
Andreya, com carinho na voz. — Isso me faz lembrar o primeiro balé que
dancei para você. Ainda danço tão bem como naquele tempo, Max? Seja
honesto.
— Você sempre dançou com sedução e feitiço. É Andreya. Existe alguma
coisa mais importante?
— Você é mais importante, Max. Sem você, eu estaria perdida, caro.
— Bobagem.
Fizeram silêncio e Lauri adivinhou que ele abraçava a bailarina. Apesar
de ser um homem de grande discernimento, era evidente que Maxim di Corte
estava fascinado pela beleza de Andreya. Era indul-gente com os ciúmes dela
em relação às bailarinas mais jovens.
Lauri sentiu frio e fechou a janela, devagar. Depois, pegou uma 54
escova, sentou-se na cama e ficou escovando os cabelos
automaticamente, contando os movimentos da mão como se quisesse
neutralizar o pensamento.
Quando se deitou, estava tudo em silêncio, a não ser pelo barulho da
água. Naquela noite, ia dormir num palácio. Como uma Cinderela, tinha
dançado e sido beijada…
Quando se lembrou daquilo, sentiu as faces queimando contra o
travesseiro. Pensou que um beijo devia ser uma coisa excitante. Na frente de
Maxim di Corte, porém, foi simplesmente humilhante. Talvez ele estivesse
pensando que ela era leviana, por submeter-se ao beijo de Lonza na frente
dele e de toda a companhia. Esperava que ele entendesse que ela havia sido
tomada de surpresa.
Suspirou e ficou imaginando quais as deficiências que o diretor podia ter
visto nela. Fosse o que fosse, ele não precisava dizer aquilo só para aplacar a
ira de Andreya.
Nos dias seguintes, Lauri fez vários testes numa sala equipada com uma
barra, algumas cadeiras e um grande espelho. Costumava passar duas horas
exercitando-se sob as vistas de Maxim di Corte, indo depois juntar-se aos
54
outros dançarinos. Tomavam café com rosquinhas e em seguida iam ensaiar,
sob a supervisão de Bruno, o balé que a companhia apresentaria no verão.
Ensaiavam no salão de baile do
palazzo.
Formavam um grupo muito chegado, passando a maior parte do tempo
juntos. Estavam quase sempre um no quarto do outro, conversando sobre
balé, remendando as malhas de dança, serzindo as sapatilhas e tagarelando à
vontade.
É verdade que ensaiavam muito, mas nem tudo era trabalho. Todos ali
amavam Veneza e sempre se programava algum passeio de barco. À noite,
costumavam sair em grupo para algum café, onde sempre se ouvia música
veneziana e onde era tudo muito informal.
Logo Lauri percebeu que todos se referiam a ela como a “amiguinha” de
Michael Lonza. Algumas jovens, mais bonitas que ela, não se preocuparam
em esconder a inveja. Outras pareciam divertir-se. Sempre havia alguém para
avisá-la de que Lonza, o Tigre, além de ter um charme muito perigoso, era
muito volúvel. Lauri já tinha descoberto aquilo há muito tempo. Mas queria
conhecer o máximo que pudesse de Veneza, e Lonza parecia adorar servir de
cicerone para ela. Às vezes, quando os dois estavam sozinhos em algum lugar
romântico, só pelo brilho daquele olhar Lauri adivinhava o que ele estava
querendo.
— Se você só pensa em beijar, Michael, é melhor procurar outra— disse
ela, uma tarde. — Só as pessoas apaixonadas devem se beijar. Não me
importo se você achar que eu sou antiquada ou quadradona por afirmar isto.
— Você só vai saber se está apaixonada ou não se deixar que um homem
a beije.
— Não vou cair nessa, seu sabidão — respondeu Lauri, rindo. — O amor
é uma coisa muito séria, e não quero pensar nisso antes de ter pelo menos uns
vinte e um anos. Aliás, pode ser até que eu nunca pense nisso.
— Depois de viver algum tempo em Veneza, você vai engolir essas
palavras, sua orgulhosa — advertiu o dançarino. — Não vê que duas pessoas
que formam um par perfeito na dança podem muito bem se apaixonar?
— De acordo com o signor di Corte, eu não danço assim tão bem. Ouvi
dizer que, se eu desperdiçar cinco minutos de alguma dança, como fiz na
primeira parte de Lurline e o Cavaleiro, ele vai me expulsar da companhia.
— Duvido muito — disse Lonza, encostando-se numa das estátuas da
praça de São Marcos. — Quando estiver sozinha com o maestro, dê uma
olhada no queixo dele. O homem gosta de desafios. Como você é uma
55
mulher, pode desafiá-lo ainda mais do que eu fiz quando concordei em
deixar a minha vida de vagabundo para ingressar na companhia. Se você
soubesse como eu era naquele tempo, Nijinka!
— Imagino que você deve ter feito muito barulho — disse Lauri, rindo.
— Deu muito trabalho ao diretor? Mais do que eu?
— Muitas vezes chegamos quase a brigar. Atualmente, ainda há ocasiões
em que nos desafiamos, mas ele acabou conseguindo o que queria:
transformar num dahseur noble um simples cigano, que dançava apenas para
ganhar dinheiro para pagar uma caneca de vinho ou um prato de comida.
— É estranho — murmurou Lauri. — Por que temos que nos curvar ante
um homem que faz com que o odiemos? Mesmo quando pensamos ter
executado perfeitamente uma pirueta, ele sempre acha algum defeito. E
quando fazemos a pirueta da forma que ele sugere, acabamos vendo que ele
tem razão. Às vezes eu quase rastejo para fora daquela sala de exercícios.
Pensa que ele se incomoda? Não! Apenas diz: Tome uma xícara de café, você
é jovem. Vai sobreviver ao meu tratamento.
Lonza riu alto, e o riso ecoou na praça vazia.
— É reconfortante estar com você, Lauri — disse, puxando de leve a
trança dela. — Você tem profundidade mas, nas horas mais inesperadas,
parece ingênua. “Vacila entre a paixão e a poesia”, como disse Oscar Wilde.
Não tem muita malícia, e isso me diverte. Veja bem: não estou trazendo você
nestes passeios para tirar algum proveito, como pode parecer. Apenas gosto
de estar com você, de ver nos seus olhos a imagem de alguma igreja antiga,
de ver você afagando os gatinhos malhados e fugindo supersticiosamente dos
gatos pretos.
— Gosto de todos os gatos. Só não quero que um gato preto atravesse no
meu caminho.
— E bate na madeira três vezes — brincou ele, com uma expressão
engraçada. —, Vocês mulheres têm uma loucura encantadora. Dê uma olhada
em volta. O crepúsculo nesta piazza molhada pela chuva não é mesmo uma
coisa romântica, ou trágica? Parece que, de um momento para o outro, o
próprio Otelo vai sair, arrogante, de trás de uma dessas arcadas, ou que um
bando de cavaleiros vai aparecer
em suas armaduras.
Lauri sentia a mesma coisa. A atmosfera ali, ao crepúsculo, era mesmo
fantástica. A chuva tinha deixado algumas poças onde os pombos iam beber
água. Além deles dois, não havia quase mais ninguém na praça. As luzes já
começavam a ser acesas.
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— Já é hora de voltarmos — disse Lauri.
— Estive pensando em chamar você para jantar no Café das Três Fontes.
Você nunca esteve lá, Lauri. O lugar é calmo, a comida é boa e podemos
jantar em paz, sem precisar ficar escutando a eterna conversa sobre balé.
— Mas você adora o balé, como todos os outros!
— Também adoro risoto, mas não agüentaria comê-lo todos os dias.
Gosto da música de Ravel, dos livros de Thomas Mann e de discutir balé com
Maxim, mas não posso fazer nenhuma destas coisas o tempo todo. Esta noite
quero jantar no Três Fontes, olhando as estrelas, ser um homem ao lado de
uma garota. Não acha que seria ótimo?
Lauri concordava com ele. Estava mesmo com vontade de esquecer o
balé por algumas horas. Principalmente, queria ficar longe do homem que a
tiranizava todas as manhãs, controlando cada movimento cada gesto, como
se ela fosse uma marionete sem sentimentos humanos. “Você não está
cansada”, dizia ele. “Venha. Vamos ensaiar aquele pas de bourré novamente. E
desta vez veja se faz com mais graça.” .
Às vezes parecia que ele tinha um coração de pedra. Não se importava
com o fato de que ela podia estar, sentindo saudades de casa, ou aborrecida
por Andreya considerá-la a intrusa inglesa. Tudo o que importava para o
diretor era o balé. “O seu corpo deve ser como o violino para um violinista”,
dizia ele, sempre. “Cuide dele, proteja o seu tendão de Aquiles, nunca use
uma sapatilha estragada e sempre faça massagens depois dos exercícios.”
A autoridade daquele homem era absoluta. Se alguém se rebelava, ele
sempre sabia o que fazer para mostrar quem estava mandando ali. Por outro
lado, Lauri tinha que admitir que estava alcançando muitos progressos. À
cada dia, a técnica dela melhorava.
O diretor parecia conhecer tudo sobre o balé. Alguma coisa que ele por
acaso não conhecesse caberia no compartimento de veneno do anel de
Andreya. Todos sabiam, na companhia, que aquele era um anel próprio para
carregar veneno. Um dia, no toalete das bailarinas, Viola teve oportunidade
de examiná-lo com cuidado. O rubi agora estava lacrado, fechando a parte
oca. Na época dos Borgia, porém, bastaria uma simples pressão do dedo
naquela pedra para que se derramasse uma dose letal na taça de alguém.
Lauri estava pensando naquelas coisas quando ouviu a voz de Lonza,
chamando uma gôndola. O dançarino pegou na mão dela e os dois
atravessaram correndo a piazza, até onde a embarcação os esperava.
— Não estamos vestidos apropriadamente para irmos a um local
sofisticado, Michael — argumentou ela.
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Ela vestia uma calça comprida preta e uma jaqueta jeans azul, com uma
boina cor de vinho na cabeça. Lonza também estava vestido muito
informalmente. Mesmo assim ele insistiu, ordenando ao gondoleiro que se
dirigisse ao Café das Três Fontes.
— Estamos em Veneza, Nijinka. Aqui as pessoas se vestem para
contentar a elas mesmas, não às convenções.
Enquanto se afastavam das cúpulas bizantinas da Catedral de São
Marcos, o gondoleiro achou que estava transportando um casal de
namorados e resolveu cantar uma serenata para eles. A voz dele era forte e
Lauri escutava, fascinada, a canção veneziana ecoando nas paredes dos
velhos palazzos. A canção dizia que uma jovem deve casar-se cedo, na verdura
dos anos, porque a juventude passa depressa. Enquanto cantava, sorria para
Lauri.
Quando o gondoleiro parou de cantar, eles ficaram ouvindo apenas o
barulho do remo na água. A canção, porém, tinha deixado uma atmosfera
mágica. Lauri olhava em volta, sentindo-se num mundo encantado. Nunca
tinha imaginado, na Inglaterra, que Veneza pudesse ser um lugar tão
cativante.
Não importava o fato de Maxim di Corte trazer os dançarinos ali apenas
para descansar, recobrar forças para nova tournée. Reconhecia que, como
diretor de uma companhia de balé, aquele homem estava acima de qualquer
crítica. Conhecia a fundo os anseios e sentimentos de cada dançarino. Sabia
que, como os seres que interpretavam no palco, eles eram criaturas cheias de
emoções e imaginação. Veneza era o lugar ideal para eles descansarem.
— Você está muito quieta — disse Lonza.
Lauri voltou-se para ele e sorriu. Pensou que, naquela hora, ele poderia
estar usando meiões escuros e compridos, uma blusa de veludo com as
mangas fofas e um barrete com uma pluma. Se carregasse também um
espadim, ficaria igualzinho aos jovens venezianos da Idade Média.
— Está contente por ir ao Três Fontes comigo? — perguntou o dançarino,
com um sorriso nos olhos.
—— Ainda não concordei em ir. Está me parecendo, senhor tártaro, que
você me raptou.
— O que um tártaro quer, dushamoya, ele toma.
E pegou na mão dela. Lauri levantou os olhos para a figura alta e morena
do gondoleiro e, por um instante, quase perdeu a respiração. Pensou estar
vendo a silhueta de Maxim di Corte, e isso fez com que ela lembrasse de uma
coisa que havia esquecido.
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— Michael, esta noite vamos ter convidados importantes no palazzo.
Esperam que estejamos todos lá, para o jantar.
— É, eu não me esqueci. Só que esses jantares formais são sempre uma
chatice. Você não acha?
Lauri concordava, mas havia outros problemas.
— A questão principal não é essa — insistiu ela. — O signor di Corte não
vai ficar muito satisfeito conosco. Além disso, todos os outros dançarinos vão
estar lá.
— Se os outros estiverem lá, o Maxim na certa nem vai notar a nossa
ausência — disse Michael, apertando a mão dela. — Relaxe, Lauri. Ele vai
estar ocupado demais com os convidados para lembrar-se de nós. A questão é
que, como um senhor feudal, ele gosta de exibir os vassalos às pessoas que
financiam a companhia.
— Está querendo dizer que é uma boa política empresarial exibir a
possíveis investidores os produtos em que eles vão investir dinheiro?
— Exatamente isso, minha gatinha. Os dançarinos de Maxim di Corte
conseguem atrair multidões, e isso pode ser uma coisa muito rentável. Para as
pessoas que vão jantar hoje no palazzo, não temos outra importância além
dessa.
— Se é assim,prefiro não ir mesmo.
Lauri não estava mais preocupada por ficar ausente do jantar que seria
oferecido à condessa Riffini e alguns amigos dela. Títulos de nobreza e tiaras
de pérolas sempre a deixavam nervosa.
— Veja — mostrou Lonza —, lá está a ilhota onde fica o Café das Três
Fontes.
Lauri olhou para a pequena ilha que ele apontava e viu luzes no meio de
algumas árvores. Havia um som de violinos. Quando a gôndola encostou no
pequeno cais de pedra, Lonza pagou ao gondoleiro e saltou, ajudando Lauri a
descer.
— Jantar numa pequena ilha faz muito mais o meu gênero — disse ela,
sorrindo. — Você tem mesmo ótimas idéias, Michael.
— É muito bom ouvir você dizer isso, minha inglesinha. Dirigiram-se ao
local de onde vinha a música. Havia um jardim
com três fontes e mesinhas arrumadas embaixo das árvores. Um garçom
sorridente os levou até uma mesa ao lado de uma fonte decorada com ninfas
e faunos. Em vez de água, saía da fonte um buquê de flores brancas. O ar
estava tomado pelo aroma das flores do jardim.
— Este lugar é idílico demais — disse Lauri. — Sinta só o cheiro dessas
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flores.
— Antes, quero sentir o cheiro de uma boa comida — disse Lonza,
pegando o cardápio. — O que vamos comer? Hum! Que tal peixe do
Adriático com meia garrafa de Faierno, para começar? Depois, macarrão. Eles
fazem aqui um molho com manteiga e cebola que é
uma delícia!
Do jeito que ele estava falando, devia mesmo ser delicioso. Quando
serviram o macarrão, Lonza mostrou a ela como deveria enrolar o garfo. Com
aquele molho amanteigado, era necessário uma técnica especial. Aquele
vinho, ele explicou, era o mesmo que os antigos ciganos costumavam tomar.
Demoraram-se bastante naquele jantar ao ar livre, entre as árvores da
pequena ilha. Os violinistas iam de mesa em mesa, tocando seus
instrumentos.
Fizeram vários brindes, sempre comentando o que os outros dançarinos
não deviam estar fazendo para agradar à condessa.
— Detesto camisas engomadas e gestos afetados — disse Lonza,
enquanto o garçom servia a sobremesa. — Quero liberdade. Quero alegria e
amor. Não acha, dushamoya, que estas são as coisas mais importantes da vida?
Ela achava que o amor é uma coisa importante, só que fazia dele uma
idéia diferente da de Lonza.
— Pêssego com amêndoas é uma coisa deliciosa — disse Lauri, em vez
de responder à pergunta dele. — Tem o gosto de uma coisa
paga.
— Fico contente em saber que você gosta das coisas pagas. Estou
descobrindo você aos poucos, Lauri, pétala por pétala, como uma rosa.
— Que romântico! Sou assim tão cheia de espinhos?
O dançarino sorriu e olhou de lado para ela, como se estivesse
especulando.
— Às vezes você fica um pouco ouriçada. Não quer que eu fale coisas
românticas para você?
— Por favor, não. Coma seu pêssego com amêndoas.
— Está com medo de gostar do que eu possa dizer?
Disse aquilo estudando o rosto delicado e jovem, aqueles lábios
enrubescidos pelo vinho.
— Pensa que não sei da sua luta contra os seus pesadelos, da sua luta
para satisfazer a sua tia… e ao grande signor que vê em você uma nova
Travilla?
Ela sentiu um arrepio, como se tivesse sido tocada por um fantasma. De
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repente, todo o encantamento daquela noite foi embora.
— Por favor, Michael. Eu não sou Travilla. Não tenho o talento dela, não
tenho…
— Você não viu o retrato dela que o Maxim colocou lá na torre do
palazzo? Às vezes, quando você inclina um pouco a cabeça e os cabelos
produzem sombras no seu rosto, fica igualzinha à mulher do retrato. Reparei
isso naquela noite em que estivemos conversando no navio. Ele deve ter
reparado também. Com aquele temperamento calculista, e ainda mais
sabendo que você é dançarina…
— Pare! — ela exclamou, levantando-se. — Quero voltar para casa!
— Para casa? Quer dizer para a Inglaterra?
Quando ouviu aquilo, ela sentiu de repente uma saudade enorme da
Inglaterra, da tia, da vida calma que levava lá.
— Claro que não —— explicou, forçando um sorriso. — Quero voltar
para o palazzo.
Chegaram ao palazzo já bastante tarde. O jantar havia terminado há
muito tempo e quase todas as luzes estavam apagadas. Havia luz apenas
numa janela da torre, onde ficava o apartamento de di Corte. Era uma torre
sólida e alta, com uma aparência imponente à luz das estrelas.
Lonza reparou que Lauri olhava para lá e riu.
— O que houve? Está com medo de que ele esteja esperando para nos
repreender?
— Claro que não — disse ela, mesmo sabendo que sentia alguma coisa
parecida com o que ele estava dizendo.
— Vamos, confesse. Está com medo dele.
— Não estou com medo de nada — respondeu, afastando-se dele e
entrando no palazzo.
Odiava ter que admitir que estava apreensiva em relação ao que podia
acontecer no dia seguinte, na hora dos exercícios com o mestre.

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CAPÍTULO VI

Lauri continuava apreensiva em relação ao encontro com Maxim di


Corte, no dia seguinte. No entanto, para surpresa dela, soube que ficaria livre
dele por algum tempo. Na hora do café da manhã, Bruno informou que o
diretor precisava tratar de negócios com a condessa Riffini e que teria de se
afastar por pelo menos um dia.
Naquela manhã, durante duas horas, os dançarinos se exercitaram sob as
ordens de Bruno. Depois, ele fez com que todos se sentassem, formando um
semicírculo, e falou dos grandes dançarinos de todos os tempos, de como eles
tinham alcançado a perfeição.
Falou de Taglioni, Pavlova, Nijinsky. Cada um desses monstros sagrados
da dança, dizia Bruno, tinha uma personalidade própria, um estilo próprio,
que se revelava nos personagens que encarnavam.
Enquanto falava, ele caminhava pela sala, com as mãos cruzadas nas
costas e um semblante alegre. Aquele era um assunto que o agradava muito.
— Agora vamos falar de Trávilla — anunciou. — Uma andorinha em
pleno vôo. Podemos defini-la assim, crianças. Era como se ela fizesse parte da
música, flutuando com as notas, como um raio de luz. Quem a visse dançar
entenderia que cada passo da dança é, na verdade, uma variação das batidas
do coração; Diferentemente das outras grandes bailarinas, ela não dançava
para o mundo, como se pensava na época. Dançava para um único homem, o
marido dela. E, dançando para ele, Trávilla tocava os corações dos outros
homens, atendendo a anseios universais.
— Você chegou a conhecê-la? — perguntou um dos dançarinos.
— Só no fim da vida dela, bem depois de ter abandonado a dança—
respondeu o coreógrafo. — Mas, na minha juventude, pude vê-la muitas
vezes no palco. Meu pai era diplomata e minha família o acompanhava nas
constantes viagens pelo mundo. Muitas vezes, tivemos a sorte de estar em
alguma cidade onde Trávilla estava se apresentando. Um criado trouxe café e
torradas com manteiga. Depois de uma pausa de alguns minutos, voltaram a
falar de Trávilla.
— Dizem que era muito bonita — falou uma jovem dançarina. — Mas,
pelos retratos que vi dela, achei que tinha um rosto comum.
— Poucos retratos fizeram justiça aos encantos de Trávilla — disse
Bruno. — No palco, tinha uma beleza estranha, incomum. À luz dos

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refletores, transformava-se numa ave do paraíso. Parecia ter o dom de tornar
a magia uma realidade, fazendo a assistência sentir-se parte daquele mundo
encantado.
Lauri escutava, fascinada. Bruno falava com facilidade meia dúzia de
idiomas. Estava falando em italiano, mas traduzia cada frase para o inglês e o
francês. Naquele momento, estava traduzindo a pergunta de um dos
dançarinos.
— Você acha que pode surgir uma nova Trávilla?
Talvez por acaso, os olhos do coreógrafo se fixaram em Lauri por alguns
segundos, e ela ficou tensa.
— Sempre fui um homem de muita esperança — respondeu Bruno. —
Acredito em contos de fadas, de outra forma não estaria neste mundo louco e
maravilhoso do balé. Agora, crianças, chega de conversa e vamos ao trabalho.
Lauri estava ensaiando com um grupo O Jade Mágico, uma idéia de
Bruno sobre uma estatueta de jade que, certa noite, numa casa de leilões,
ganha vida. Um jovem que quer apossar-se da estatueta invade a casa de
leilões na esperança de possuí-la por uma noite apenas.
Lauri gostava daquele tipo de balé. Por isso, o resto da manhã foi muito
agradável para ela. O almoço foi servido no salone. Depois, até as cinco da
tarde, ela teve aula de mímica. No balé, cada movimento deve ter um
significado. O dançarino deve falar com as mãos, com os olhos, com todo o
corpo.
Michael Lonza às vezes comparecia àquelas aulas de mímica. Naquele
dia, porém, estava trabalhando com Andreya na nova produção de Giselle,
onde fazia o papel de Albrecht.
Era sabido na companhia que Andreya detestava aquele papel. No
entanto, como era a prima ballerina, não queria permitir que uma outra
ocupasse o lugar que era dela, mesmo que fosse por um espetáculo apenas.
— Não sei por que Andreya detesta tanto aquele papel — disse Lauri a
Concha, enquanto comiam ravióli no Café Anzolo.
— Como toda beldade, Andreya é muito vaidosa — explicou Concha. —
Sabe que nunca vai dançar Giselle igual a Travilla. Por isso, tem um ciúme
quase doentio da avó do nosso diretor.
Quando terminaram de comer, Concha foi com outros colegas a uma
exposição de quadros. Lauri não estava com vontade de ir com eles e voltou
sozinha para o palazzo. Antes de entrar, ficou olhando a torre, que parecia tão
sombria quanto 0 homem que morava ali. Como di Corte estava fora, não
havia luz na janela.
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Lauri entrou e parou em frente à porta que levava à escadaria da torre.
Aquela porta alta e pesada tinha um ar de coisa proibida, o que aumentava
ainda mais a curiosidade dela sobre o esconderijo de Maxim di Corte. Lá em
cima, devia existir uma enorme coleção de livros sobre balé… e aquele retrato
de Travilla.
Levantou a mão e girou o trinco. A porta não estava trancada. Logo
adiante havia uma escada em espiral, iluminada pela luz fraca de uma
lâmpada fixada na parede. O coração de Lauri batia acelerado. Sentia uma
tentação quase irresistível de subir aquela escada. Achou que levaria uns
cinco minutos para ir e voltar. Lá de cima, daria uma rápida olhada à cidade,
desceria a escada e fecharia a porta. Seria como se ninguém tivesse estado ali.
Enquanto ia subindo, sentia como se estivesse sendo acompanhada por
sombras. Lá em cima havia três portas, duas das quais davam para os
aposentos de Maxim di Corte. Sentiu um arrepio e arrependeu-se de ter
subido. Mas já não tinha escolha. Voltou-se e abriu a terceira porta, que dava
para uma sacada.
Sentiu o ar fresco da noite batendo nos cabelos soltos. A vista dali era
maravilhosa. À “luz da lua, podia ver a silhueta dos palácios seculares,
construídos pelos antigos venezianos. Lauri sorriu e pensou que talvez; no
refúgio da torre, Màxim di Corte se tornasse mais humano.
O vento batia no vestido vermelho de tecido aveludado que estava
usando. Aquele era o vestido de que ela mais gostava. Não sabia por que o
tinha posto naquela noite. O Café Anzolo era um lugar informal e Michael
não estaria lá. Talvez, como sugeriu Concha, ele tivesse saído com outra
garota.
Precisava sair dali imediatamente. A cada segundo que passava,
aumentava o perigo de Maxim di Corte voltar e encontrá-la ali. Quando
voltou-se para sair da sacada, sentiu algo estranho. Pensou ver alguma coisa
na escuridão. Ouviu um som fraco, que podia ser até o vento na parede de
pedra da torre.
Ficou arrepiada. Quis sair correndo e descer a escada. No entanto, o
medo do desconhecido a segurou ali. Era um sentimento tão forte quanto o
que a fizera subir a escada.
Os dançarinos diziam que aquela torre era mal-assombrada. Seria
verdade? Achou que o que estava pensando era uma bobagem. No entanto,
não conseguia se mover.
Sentiu um calafrio quando ouviu claramente um som de passos nos
degraus de pedra. Uma silhueta alta apareceu na sombra e ela recuou.
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— Cuidado! — advertiu uma voz cortante. — Tem uma rachadura nessa
sacada.
Antes que ela pudesse fazer um gesto, as mãos de Maxim di Corte a
puxaram para um lugar seguro.
— Sua louca, podia ter morrido!
— Eu… não sabia que era o senhor.
— E quem mais podia ser? — disse ele, soltando-a. — Esta torre é minha.
Só vem aqui quem eu convido.
Lauri estava cada vez mais confusa.
— Sei que eu não tinha o direito de subir aqui, signore. Tem razão em
ficar zangado comigo.
— O que me deixa zangado é que você podia ter sofrido um acidente
sério, srta. Garner. Há alguns anos, esta torre foi atingida por um raio,
ficando com a estrutura um pouco abalada. É por isso que não quero que os
dançarinos venham aqui. É sempre bom evitar acidentes.
Depois ele sorriu e procurou tranqüilizá-la.
— Vamos, pare de tremer. Sei que a curiosidade das mulheres é às vezes
irresistível.
— A vista daqui é maravilhosa — disse Lauri, sorrindo também — Às
vezes, lá de baixo, eu vejo o senhor aí na sacada, admirando as construções
antigas e os canais.
— Só que eu sei quais são as partes seguras da torre. Se me dissesse que
estava querendo vir aqui, eu a teria trazido alguma tarde, ao pôr-do-sol. É
nessa hora que a vista da cidade é mais bonita. Por que não me falou?
— É um homem muito ocupado, signore. Não queria aborrecê-lo com…
— Não seria nenhum aborrecimento. Pelo contrário, falar de Veneza
sempre me alegra. Não achou uma cidade fascinante, signorina? Michael
Lonza já mostrou tudo a você. As igrejas bizantinas, as galerias, as ilhas, o
cristal veneziano…
— Michael prometeu me levar a um lugar chamado Murano. Disse que
lá tem muito cristal antigo. Adoro ver objetos antigos de cristal.
— O cristal veneziano de melhor qualidade é o do século XVI. Você vai
achar interessante uma jarra que eu tenho, daquela época. Já esteve nos
museus, srta. Garner?
— Estive em alguns deles. A questão é que o Michael parece se aborrecer
nos museus. Ele só gosta de ver as roupas suntuosas dos antigos venezianos,
os ornamentos, as espadas.
— Aquelas roupas são muito bonitas, mesmo.
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Como Lauri ainda permanecesse um pouco assustada, ele riu.
— Esta parte da torre é bastante segura, srta. Garner. Se quiser ir até
aquela outra sacada, pode ir. Prometo que não vou agarrar você. como fiz da
outra vez. Pobre criança! Talvez você esteja me comparando a um barão
feroz. Nesse caso, foi muita coragem sua vir até aqui, só para dar uma olhada
na cidade.
— Foi uma loucura minha, signore — disse ela, debruçando-se na sacada.
— Será que existem sereias nesses canais, morando em palácios submersos?
O diretor sorriu e debruçou-se também na sacada.
— É bem possível. Veneza é uma cidade misteriosa, quase uma fábula
viva. Quando as sombras das torres e dos campanários se encontram na água,
tudo pode acontecer.
Lauri sentiu um leve tremor, que ele deve ter percebido.
— Os venezianos têm um caráter ao mesmo tempo sutil e melancólico —
continuou di Corte, sério. — Mas diga-me, srta. Garner, onde esteve ontem à
noite? A condessa Riffini queria conhecer você e eu tinha prometido
apresentá-la. Ela ficou muito desapontada por não encontrar a minha jovem
dançarina inglesa.
— Eu… me esqueci do jantar, signore. Sinto muito.
Lauri levantou os olhos para ele e viu que estava mesmo zangado.
Durante todo o dia, ela tinha temido pelo momento em que ele pedisse uma
explicação.
— Lonza também não estava lá — disse ele, com uma voz fria. — Posso
supor que vocês dois estavam juntos? Acham a companhia um do outro mais
interessante que a companhia dos meus amigos?
— Nunca imaginei que fossem sentir a minha falta.
— Como você é modesta! — disse di Corte, rindo com um jeito gozador.
— Lonza não iria querer a sua companhia se você fosse uma pessoa sem
atrativos. Onde está o seu Romeu, agora? Resolveram dar um descanso um
ao outro, ou planejavam encontrar-se aqui? Reparei que você ficou muito
surpresa com a minha chegada.
Ela tentou sorrir, procurando acalmá-lo.
— Por favor, signore, não exagere. No meu lugar, qualquer pessoa teria
tido a mesma reação. Afinal, fui surpreendida invadindo uma propriedade
privada. Sinto muito por ter faltado ao jantar. Eu realmente esqueci. Depois,
foi ficando tarde. . .
— Aceito parte das suas explicações, mas não tenho dúvidas de que
Lonza convenceu você a não ir ao jantar. Aonde vocês foram?
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— Fomos jantar num restaurante em uma ilhazinha, o Café das Três
Fontes.
— Conheço o lugar. É um recanto bem romântico.
Depois, de repente, ele passou a falar num tom de voz mais amigável.
— Agora, para me fazer esquecer a sua falta ao jantar de ontem, faço
questão de que você tome um lanche comigo aqui na torre. Hoje a cozinheira
está de folga, mas deixou preparada uma salada fria para mim. Temos
também frutas da época e café.
Antes mesmo de Lauri dizer se aceitava o convite, di Corte pegou no
braço dela e a conduziu à porta que levava aos aposentos dele. Entraram
numa sala bastante espaçosa, bem iluminada, cheia de quadros e gravuras de
balé. Uma das paredes era totalmente -tomada por uma estante atulhada de
livros.
— Por favor, sente-se, srta. Garner — disse ele, indicando uma poltrona
ao lado da qual havia uma mesinha com um tabuleiro de xadrez.
Ela sentou-se e ficou examinando, interessada, as peças do jogo.
— Sabe jogar xadrez?
— Infelizmente, não. Só sei jogar damas.
— No xadrez, os cavaleiros ameaçam as torres e desafiam a rainha. Pode
ser um jogo interessante para você.
— Pelo jeito como o senhor fala, parece que eu sou jovem demais —
protestou Lauri. — É como se eu ainda acreditasse em duelos de cavaleiros
armados.
— E você não acredita?
Ele se afastou um pouco e ligou um interruptor, na parede.
Imediatamente um retrato a óleo pendurado na parede em frente iluminou-
se. Era um quadro grande, mostrando uma jovem vestida com uma blusa
amarela bordada, saia vermelha bem rodada e um avental branco com
lacinhos de fita. Os cabelos estavam presos por,fivelas e enfeitados por ramos
de flores.
Depois de um breve silêncio, di Corte voltou-se para Lauri.
— Travilla — murmurou. — Está vestida para o papel de que ela mais
gostava, o de Giselle,
Lauri olhava o retrato, admirada. Sentia como se conhecesse aquela
jovem há muito tempo.
Parecia um retrato sem muitos retoques. O pintor tinha procurado
mostrar, com realismo, a beleza física de Travilla e, ao mesmo tempo,
transmitir a graça daquele espírito juvenil.
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— Que coisa impressionante — murmurou Lauri. — É como se ela
estivesse querendo falar. Parece que, a qualquer momento, vai sair do retrato
e dançar para nós.
— Sempre achei esse retrato uma coisa mágica — concordou di Corte.
Lauri voltou-se para ele. De repente, uma atmosfera romântica havia
tomado conta da torre. Ela sentiu que corria algum perigo por ficar ali,
sozinha com aquele homem.
Di Corte parecia estar lendo os pensamentos dela. Levantou o braço e
indicou uma mesa de canto onde havia algumas travessas de prata, uma
garrafa de vinho e uma cesta de frutas.
— Depois que tomarmos o nosso lanche — disse ele, caminhando para a
mesa —, vou mostrar a você alguns objetos pessoais de Travilla. Acho que vai
gostar.
— Estou curiosa — respondeu Lauri, sorrindo.
Enquanto ele arrumava o lanche, ela se levantou e foi até a estante.
Pegou um volume e abriu no lugar onde tinha um marcador de livro. Era um
livro de poemas e, naquela página, dois versos estavam sublinhados, como se
tivessem significação especial para o dono do livro.
“Coloquei meus sonhos a seus pés.
Pise de leve, porque é neles que estará pisando.”
Lauri ficou intrigada. Aos pés de quem teria Maxim di Corte colocado os
sonhos dele? Talvez aos pés leves e ágeis de Lydia Andreya.
Recolocou o livro na estante e voltou-se. Di Corte estava arrumando a
mesa para o lanche, compenetrado. Lauri achou que aquele homem seria
capaz de amar uma mulher com grande intensidade. Certamente seria como
Falcone di Corte, que nunca olhou para outra mulher além de Travilla. Por
aquele retrato, porém, a cândida Travilla parecia ter sido muito diferente da
mundana e sofisticada Andreya.
— Quer um pouco, de alcachofra, srta. Garner?
— Sim, por favor.
Enquanto ele servia, Lauri observou seu perfil de falcão. Andreya com
certeza não iria gostar de saber daquele lanche a dois.
Di Corte deixou o que estava fazendo e foi sentar-se na mesinha de
centro, em frente ao sofá onde ela estava.
— Você está muito quieta.
— Sempre fico quieta quando as coisas em volta me agradam — ela
respondeu, sorrindo. — Acho que os gatos também são assim. Se eu tivesse
uma torre como esta, signore, ia querer ficar nela o tempo todo.
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— Nesse caso, em vez de um lugar agradável, a torre acabaria se
transformando numa prisão.
Ele levantou-se e foi até a mesa, retornando com dois pratos de salada de
legumes e verduras.
— É sempre bom ter contato com o mundo exterior. Só assim podemos
aproveitar inteiramente as coisas boas da vida.
Disse aquilo e entregou a ela um dos pratos, colocando o dele em cima
da mesinha. Depois, foi apanhar a garrafa de vinho e dois copos. Enquanto
ele enchia os copos, Lauri se deu conta de que tinha ficado sentada quase o
tempo todo, enquanto ele fazia sozinho os arranjos para o lanche.
— O senhor deve estar me achando muito preguiçosa — disse, corando
um pouco.
— Acho que é jovem e bastante tímida. Este vinho se chama Chuva de
Ouro. Gosta de vinho, signorina?
Lauri tomou um gole e sorriu.
— Hum! Este aqui é delicioso! Mas tenho tomado bastante vinho
ultimamente, sabia?
— Claro — disse o diretor, sentando-se ao lado dela e pegando o prato.
— Não me esqueci de que o Lonza resolveu assumir parte da sua educação.
Ponha um pouco de molho na sua salada.
__ Obrigada — disse ela, derramando no prato um pouco do molho
italiano.
A salada estava muito gostosa e o vinho era realmente delicioso. Lauri
comeu e bebeu com bastante apetite.
— Um vinho envelhecido deve ser saboreado devagar, signorina. O que
achou destas taças para vinho? Estão com a minha família há centenas de
anos. Talvez ache estranho o fato de estarmos bebendo em taças que já
serviram a pessoas de várias gerações.
Lauri segurou a taça de vinho e uma idéia estranha passou pela sua,
cabeça. Pensou que aqueles objetos, mesmo muito frágeis, podiam sobreviver
àquela família de homens orgulhosos e arrogantes, como o que estava ao lado
dela. Talvez pela primeira vez, pensou nele como uma pessoa humana,
dependente, tanto quanto ela, das contingências da vida.
— Acho que assustei você — disse di Corte, parecendo preocupado com
o silêncio dela. — Quase me esqueci de que sou mais velho, e por isso mais
conformado com os fatos da vida. Para cada raio de sol, temos antes que levar
três chicotadas.
— A vida é uma ilusão, quase uma miragem — murmurou Lauri. — Já
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aceitei este fato, signore, e por isso espero que não me considere uma criança.
Levantou os olhos e viu que ele sorria. Parecia contente por tê-la
convidado e aquilo a agradou muito.
— Coma o seu pedaço de frango, piccola. Depois, nós vamos quebrar o
ossinho e fazer um pedido. Será que o povo da Terra dos Anjos é tão
supersticioso quanto os venezianos?
Lauri mordeu o pedaço de frango, com apetite.
— Na minha terra, pelo menos o pessoal do campo é bastante
supersticioso. O senhor acha mesmo que a Inglaterra é uma Terra dos Anjos?
— Digamos que seja a terra dos anjos do inferno — respondeu di Corte,
sorrindo. — Os ingleses, assim como os venezianos, são um povo de
mercadores e artistas. Ambos têm orgulho da sua história. Também acho que
os britânicos são bem mais emotivos do que querem deixar transparecer. Esse
ar frio e dissimulado é apenas uma máscara para a timidez. E nada é mais
impenetrável do que a timidez.
— Acho que tem razão. Pelo menos, nunca vi um motorista de táxi
londrino cantando uma serenata para os passageiros, como fazem os
gondoleiros daqui. Seria até engraçado!
— Talvez seja porque a atmosfera de Veneza é um pouco mais
romântica.-'Já escutou uma serenata numa gôndola, srta. Garner?
Lauri sentiu-se um pouco embaraçada pela pergunta, principalmente
pela frieza que havia na voz dele. Parecia que o ar de informalidade estava
desaparecendo.
— Sim. Achei… uma experiência charmosa.
— Lonza deve ter achado ainda mais charmosa. Ele não tentou tirar
nenhuma vantagem da ocasião?
Lauri achou que ele estava perguntando aquilo só porque ela não tinha
comparecido ao jantar com a condessa.
— Por que ele teria que tirar vantagem? — perguntou, meio aborrecida.
— Aqui em Veneza, diz-se que, para descobrir os mistérios do amor, um
homem e uma mulher têm que passear sozinhos numa gôndola.
— Então o senhor imagina que eu estou querendo descobrir os mistérios
do amor com Michael? Acha que toda garota só pensa nisso quando sai com
um homem?
— Não é bem isso. A questão é que Lonza é um homem muito charmoso,
um dos dançarinos mais famosos da atualidade. E você é uma jovem
inglesinha por quem eu me sinto responsável.
— Tenho quase dezoito anos, signore — disse ela, com dignidade —
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Posso tomar conta de mim mesma. Não preciso de nenhum guardião.
— De uma forma ou de outra, você arranjou um guardião. A inocência,
menina, não tem nada a ver com a idade. É antes um estado de espírito.
Como amigo seu, sinto-me na obrigação de preservar isso, até que você esteja
preparada para um relacionamento mais profundo.
Os olhos de Lauri faiscaram de indignação.
— Quer dizer que só -vou poder me apaixonar por alguém quando o
senhor me der a permissão? Não posso acreditar no que estou ouvindo! Quer
mesmo que eu me submeta à sua vontade, para que possa me moldar a seu
gosto, como um escultor faz com a estátua? Quer fazer de mim uma
dançarina perfeita, uma outra Travilla?
Ele não confirmou nem desmentiu o que ela estava dizendo. Levantou-se
e foi até a mesinha de canto, onde ligou uma cafeteira elétrica. Lauri ficou no
sofá, esperando.
— É muito pretensiosa, srta. Garner, por se comparar a Travilla — disse
ele finalmente. — Acha mesmo que pode igualar-se a ela?
Lauri abraçou-se a uma almofada, como se precisasse de um escudo.
— Sabe muito bem que não tenho essa pretensão. Às vezes, duvido até
da minha capacidade para integrar o corpo de baile da sua companhia.
— Tenho essas mesmas dúvidas, senhorita — disse o diretor, com uma
franqueza que chegava quase à crueldade. — Quer o seu café preto ou com
leite?
— Preto, por favor.
Quando ele encheu as xícaras, o aroma do café quente espalhou-se pelo
aposento. Di Corte olhou para ela, com um ar ao mesmo tempo curioso e
divertido.
— Queria ver a sua reação se eu dissesse que estou pretendendo fazer de
você a substituta eventual de Andreya, no papel de Giselle.
Lauri levantou o rosto, espantada. Ele não podia estar falando sério!
— Deve estar brincando, signore. Há poucos minutos, disse que
duvidada das minhas habilidades.
— Não é bem das suas habilidades que eu duvido. Mas tome o seu café.
Tremendo como está, vai acabar virando a xícara e sujando o seu lindo
vestido.
Ele se levantou, colocou a xícara vazia na mesinha de canto e foi sentar-
se numa cadeira de balanço, de frente para Lauri. Olhava para ela com aquele
ar de quem está sempre no comando.
— Vai ter muito o que aprender com o papel de Giselle — continuou di
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Corte. — E não precisa ter medo de subir ao palco. Afinal, vai ser a substituta
eventual, para o caso de Andreya ficar doente, e isso é uma coisa que
raramente acontece.
Lauri estava realmente espantada.
— O que Andreya não vai dizer? Ela não gosta muito de mim. O diretor
sorriu.
— Isso vai fazer com que ela se cuide mais, evitando uma distensão ou
coisa assim. Não vai querer que você, de uma hora para outra, chegue ao
estrelato, ocupando o lugar que é dela.
Amedrontada, Lauri tomou um gole de café, procurando acalmar-se.
— E se eu tiver mesmo que substituir Andreya? Ai, se não me sair bem, o
senhor vai ficar furioso. Quer sempre a perfeição. E a perfeição, pelo que
entendi do que o senhor tem me dito, só pode ser alcançada pelas bailarinas
que amam apenas o balé, ou pelas que estão inspiradas pelo homem que
amam.
— E você não está em nenhum dos dois casos, não é, srta. Garner? —
disse, ele, acendendo um cigarro e soprando a fumaça em direção a Lauri. —
Quer dizer que estou perdendo o meu tempo com uma garota que logo vai
desistir do balé para ser secretária ou coisa parecida?
— A necessidade de segurança não é uma piada, signore. Muitas vezes,
quando estou no palco, sinto sombras dançando ao meu lado, e isso me deixa
completamente insegura. O senhor mesmo já reparou nisso!
Os olhos negros do diretor a observavam, através da fumaça.
— É verdade, já reparei. E acho qúe é uma coisa mais ou menos
consciente. É como se você quisesse uma desculpa para abandonar o balé e
dedicar-se a algum outro tipo de vida, onde se sentisse mais segura.
Lauri estava chocada com as palavras dele.
— Como pode dizer uma coisa dessa?
— As emoções, signorina, têm uma grande influência no comportamento.
Normalmente, as pessoas sentem medo por causa de experiências passadas.
Quanto mais se afastam da dor, mais são perseguidas por ela. Quanto mais
querem encontrar o prazer, mais ele parece fugir. Só conseguirão vencer o
medo se resolverem enfrentá-lo.
Ele sorriu, aquele sorriso encantador que ela não via há muito tempo.
— Prometi mostrar a você alguns objetos pessoais de Travilla. Não
gostaria de vê-los agora?
— Gostaria muito, signore.
Ele pediu licença e saiu. Lauri recostou-se no sofá e fechou os olhos.
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Discutir com Maxim Falcone di Corte era uma tarefa formidável. Ele fazia as
pessoas se sentirem frágeis, indefesas. Abriu os olhos e respirou a paz
daquele ambiente. Ficou imaginando se o dono daquele lugar seria tão
impiedoso com a pessoa amada.
Logo ele voltou, com o cigarro na boca, segurando com as duas mãos
uma pequena arca. Colocou o que trazia em cima do sofá e Lauri reparou que
a arca era toda enfeitada com desenhos de figuras da mitologia grega.
Di Corte pressionou uma daquelas figuras e a tampa se abriu. Com a
respiração presa, Lauri ficou olhando o tesouro que ele estava mostrando.
Havia diversos objetos: enfeites para cabelo, pulseiras, colares e um par de
sapatilhas brancas com cadarço vermelho.
— Experimente isto — disse ele, tirando as sapatilhas da arca.
Sem esperar pela resposta, ele se ajoelhou no tapete e foi tirando os
sapatos dela. Lauri não tentou resistir, sentindo no tornozelo a leve pressão
daqueles dedos.
— E então, serviram? — perguntou di Corte, quando já tinha calçado
nela as duas sapatilhas de Travilla. — Dê alguns passos.
Como se estivesse hipnotizada por ele, Lauri obedeceu. Depois, voltou-
se e se submeteu ao olhar curioso do diretor. Era uma figura indefesa que
transpirava inocência, naquele vestido vermelho, os cabelos soltos, a pele
branca e os olhos castanhos muito claros.
— Você está parecendo uma personagem da Divina Comédia, de Dante —
disse di Corte, olhando-a com interesse. — Como está se sentindo com as
sapatilhas de Travilla?
— Um pouco alarmada.
Descalçou as sapatilhas e entregou-as ao diretor.
— Veja isto, signorina — disse ele, tirando da arca um frasco de cristal
trabalhado com tampa de prata. — É uma peça do século XVI, que foi
ofertada a Travilla como presente de casamento. A tampa simboliza o coração
humano. Não quer segurá-lo, para ver melhor?
Lauri pegou o frasco nas mãos, com cuidado. Era muito bonito e tinha
uma inscrição em latim gravada na tampa.
— O que querem dizer estas palavras, signore?
— Fuja do que é doce, se achar que pode tornar-se amargo — traduziu
ele. — Quer dizer que, antes de se casarem, duas pessoas devem ter certeza
de que se amam. De outra forma, a união pode se tornar amarga. E o
casamento, na Itália, é para toda a vida.
Lauri ficou pensando naquilo, na felicidade, na segurança de um
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casamento para toda a vida. E a felicidade, ela pensou, só podia nascer do
verdadeiro amor.
Di Corte guardou o frasco e fechou a tampa da arca. Enquanto Lauri
calçava os sapatos, ele se aproximou, colocando as duas mãos nos ombros
dela, de leve. Um pouco assustada com aquela atitude, Lauri levantou o
rosto. O diretor fez com que ela ficasse de pé na frente dele.
— Amanhã, começaremos a trabalhar juntos em Giselle — disse ele,
depois de um breve silêncio. — Vamos trabalhar sozinhos, você e eu. Acho
melhor não dizer a ninguém que eu estou lhe ensinando o papel.
Aquele “ninguém” se referia, evidentemente, a Andreya. Lauri achou
ótima a sugestão. Não queria complicações com Andreya.
— Chi tace consente? — perguntou ele.
— É claro que eu concordo, signore.
— Buonno! — exclamou o diretor, sorrindo. — Está começando a
entender alguma coisa de italiano. Logo vai ter que falar, também. É ótimo
para uma bailarina dominar vários idiomas. O mundo é grande e a
Companhia di Corte viaja muito.
— Está mesmo esperando que eu continue na companhia, não é, signore?
E se eu tropeçar logo na primeira apresentação?
— Você está proibida até de pensar nisso, menina — disse ele, apertando
de leve os ombros de Lauri. — Hoje você calçou as sapatilhas que foram de
Travilla.— Espero que nunca se esqueça disso.
Lauri afirmou com a cabeça, sorrindo. Desejou boa noite e já ia se
afastando em direção à saída quando ele a reteve.
— Espere. Ainda temos algo a fazer.
Foi até a mesa de canto e pegou, num dos pratos, o ossinho de frango.
Levantou a mão é Lauri segurou na outra ponta do osso. Ele não parecia estar
fazendo pressão. No entanto, quando o osso quebrou, a parte maior ficou na
mão dele.
Lauri sorriu, imaginando que pedido um homem como Maxim di Corte
poderia fazer. Talvez sucesso na nova temporada artística, que começaria
dentro de seis semanas.
Seis semanas passam depressa, pensou, e ela finalmente dançaria para
uma platéia de verdade. Talvez, na noite de estréia, tia Pat pudesse ir até
Veneza, para vê-la dançar.
Notou que o diretor a olhava, com aqueles olhos profundos que mais
escondiam do que revelavam.
— Pelo seu sorriso, acho que também fez um pedido — ele disse.
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— As garotas estão sempre desejando coisas. Muito obrigada pelo
convite para o lanche na torre, signore. Gostei muito da experiência.
— A sua companhia foi muito agradável, signorina — disse ele
formalmente. — Agora, já para a cama! Buona notte.
— Buona notte, signore.
Quando ela passava no hall, o enorme relógio de parede que havia ali
começou a dar as horas. Enquanto contava as batidas, teve a desagradável
sensação de que estava sendo observada. Acelerou o passo, subiu a escada e
entrou no quarto. Deu uma volta na chave e encostou-se na porta, numa
atitude de defesa. Continuava com a impressão de que, escondido na sombra
do hall, alguém a vira sair dos aposentos de Maxim di Corte.

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CAPÍTULO VII

Maxim di Corte caminhava ao lado de Lauri, segurando os braços dela,


curvando-os e esticando-os.
— Mexa as cadeiras — ordenava. — É com o movimento das ancas que
uma mulher transmite toda a sua feminilidade. E, lembre-se, nesta parte do
balé você é uma jovem despreocupada e apaixonada; uma jovem camponesa
que considera o amor algo capaz de proporcionar muita alegria. Bene. Está
ótimo! Agora vou ficar observando enquanto você dança pensando no
homem que está amando, um camponês. Ainda não sabe que ele, na verdade,
é um príncipe.
Ele se afastou e foi encostar-se à janela da sala de exercícios, que dava
para os jardins do palazzo. Agora que estava sob a observação direta dele,
Lauri ficou um pouco nervosa. Sentiu que não estava coordenando bem o
movimento de braços e pernas.
— Está nervosa — ele disse, com a voz forte. — É claro que está. Mas os
nervos são como instrumentos de trabalho para uma dançarina. Aceite esse
fato, menina, da mesma forma como aceita os seus cabelos, os seus olhos, e
esse sinalzinho ao lado da testa… Depois, esqueça.
— Para o senhor, deve ser fácil falar. Parece què não tem nervos. O
diretor sorriu.
— Para tratar com você, é preciso mesmo controlar os nervos. Acho que
você podia até abandonar o balé para dedicar-se à datilografia, por exemplo.
Só que os seus dedos iam tremer tanto quanto os seus pés estão tremendo
agora.
— Muito obrigada!
Desafiada pela observação cheia de sarcasmo do diretor, Lauri executou
com perfeição uma seqüência de passos.
— Por que só dança direito quando eu brigo com você? — perguntou ele,
rindo de um jeito gozador. — Agora vá até o fim da sala e comece a dançar
para mim. Mas lembre-se: ainda estou muito zangado. Pense em Loys, o seu
amado, que você acredita ser um camponês adorável.
Lauri colocou-se no fim da sala e começou a encarnar o papel de Giselle,
uma jovem pronta a morrer de amor se não pudesse viver por amor. Lauri
adorava aquele balé, mas estava achando detestáveis aqueles ensaios diários
com Maxim di Corte.

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Fechou os olhos e deu alguns passos rápidos até o centro da sala. Era
Giselle, saindo da pequena choupana onde morava. Deu um salto leve e
curvou os braços, como se estivesse abraçando a imagem do amado. Depois
recuou, na ponta dos pés, com um sorriso onde transparecia todo aquele
amor.
Quando o solo terminou, di Corte estendeu a mão para ela. Lauri
caminhou até onde ele estava e segurou a mão que lhe era oferecida.
— Está vendo como. as coisas saem fáceis e naturais quando você se
esquece de si mesma? — disse ele, quase num murmúrio.
ÀS vezes, Lauri sentia-se fascinada pelo sorriso daquele homem. Era o
que estava acontecendo naquele momento. Ele devia estar satisfeito com o
desempenho dela.
— Então está gostando do papel de Giselle, não é? Está sentindo a poesia
e a força da história? Isso quer dizer que você é uma romântica, srta. Garner.
— Acho que sou, mesmo. E quase todas as mulheres não são românticas?
O diretor abaixou a cabeça e beijou de leve as costas da mão que estava
segurando. Lauri sentiu um estremecimento.
— É verdade. As mulheres sonham muito. Mas é necessário colocar
sempre a realidade em primeiro plano. Amanhã vou levar você para ouvir o
coro da Catedral de São Marcos, um dos mais gloriosos da Itália. Quem se
dedica à dança deve ter muita afinidade com a música, e estou curioso para
ver a sua reação. Você ainda não conhece o coro de São Marcos, não é?
Ela balançou a cabeça.
— Só de ouvir falar, é claro.
Ele virou-se e ficou olhando o jardim, através da janela. Um pardal
agitava as asas, encarapitado no alto de uma estátua.
— Tenho certeza de que esse seu coraçãozinho romântico vai se sentir
tocado pela arte daqueles cantores. Depois que sairmos de São Marcos,
vamos lanchar na Vila Nora, com a condessa Riffini. Ela foi uma grande
amiga de Travilla. Vai contar a você tudo o que sabe sobre o balé italiano dos
anos passados. Aqueles anos foram realmente muito mais gloriosos do que os
atuais.
Lauri percebeu que ele já tinha arranjado tudo. Mesmo que ela tivesse
planejado alguma coisa para o dia seguinte, teria que cancelar.
De repente ele se virou, como se houvesse lido o pensamento dela.
— É claro que você já percebeu que nós não estamos aqui passando
férias — disse, sério. — Estamos aqui para trabalhar. É muito provável que
você tenha feito outros planos para amanhã. Mas sinto muito, mocinha. Desta
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vez, Lonza vai ter que ser deixado de lado, como eu fui deixado de lado
naquela noite.
— Claro, signore. Sei que o trabalho vem sempre antes do… prazer.
Di Corte percebeu a ironia das palavras dela, mas não respondeu.
Apenas sorriu. Lauri ficou mais aliviada quando ele se voltou novamente
para o jardim e disse que estava na hora do lanche. Ela podia ir juntar-se aos
outros dançarinos.
Já estava se afastando quando a porta se abriu, de repente, e duas mãos
seguraram firmemente nos braços dela, empurrando-a em direção a di Corte.
Quando conseguiu parar, Lauri ficou estática, sem mover um músculo,
enfrentando o olhar irado de Andreya.
— O que está tramando, Max? — disse a prima ballerina, com a cabeça
levantada, os cabelos em desalinho e a blusa entreaberta. — Está bancando o
Lobo Mau com o Chapeuzinho Vermelho?
Por um momento, Lauri achou que ele confessaria que estavam ensaindo
o papel de Giselle. Pela primeira vez, viu que o diretor não conseguia
dissimular a tensão que sentia. As mãos dele quase tremiam.
— Não é nada disso, Lydia — disse ele. — Não sou do tipo de homem
que persegue menininhas. A própria srta. Garner pode dizer a você o que
pensa de mim. Ela me considera um tirano, e estava justamente se afastando
daqui quando você entrou.
Andreya riu, enquanto girava, com os dedos compridos, o rubi do anel.
— É mesmo? Você devia se sentir lisonjeada, menina, por estar
recebendo instruções diretamente dê Max. Ele com certeza acha que você
aprende muito devagar, e que isso pode prejudicar a precisão do corpo de
baile. Como você sabe, ele não permite que qualquer coisa, por menor que
seja, atrapalhe o brilho do balé di Corte.
O rosto de Lauri ficou vermelho. Naquele momento, desejou
ardentemente ser uma bailarina brilhante, e que Maxim di Corte confirmasse
isso.
— Você tem razão, Lydia — disse o diretor, dando um leve empurrão em
Lauri, em direção à porta. — Não permito mesmo que nada estrague o brilho
da Companhia di Corte. Nisso sou rigoroso.
— Você também é rigoroso em relação ao amor, Max. Só se entrega a
seus sentimentos quando acha que está na hora…
Lauri não ouviu mais nada. Fechou a porta e afastou-se, quase correndo.
Sentiu-se melhor quando entrou na sala onde estava sendo servido o lanche
aos dançarinos.
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Viu que Michael levantava duas canecas de café, indicando que ela
deveria sentar-se ao lado dele.
— Você parece um pouco aborrecida, gatinha — disse o dançarino. —
Naquela sala, o Maxim se transforma num demônio. Deve ter feito gato e
sapato de você. Mas não deixe ele abusar, Nijinka. Você é uma ótima
dançarina. Não concordo com o que Andreya anda dizendo.
— O que madame Andreya anda dizendo? — perguntou Lauri, pela
primeira vez na vida sentindo raiva de uma outra pessoa.
— Diz que o Maxim vai demitir você por causa do seu nervosismo.
Realmente, você é um pouco nervosa. Só que eu acho que devia ter orgulho
do seu talento, e não ficar aí acanhada, como um ratinho assustado. Lembre-
se de que os gatos estão sempre prontos a abocanhar os ratos.
Enquanto tomava o café, Lauri ficou pensando no que ele estava falando.
De fato, Andreya não perdia uma oportunidade para atacá-la, e justo na
frente de Maxim di Corte.
— O que você andou fazendo a manhã toda? — perguntou Lauri.
— Ensaiando, ensaiando! Agora, é relaxante ficar com você, gatinha.
— Gatinha ou ratinha? — perguntou ela, rindo baixinho. — 0 que você
estava ensaiando? Vi madame Andreya ainda há pouco, com roupas de sair,
por isso achei que você não estava trabalhando com ela.
— Estive ensaiando o meu solo, a Dança do Demônio. Você vai gostar do
meu desempenho como um bandido cigano.
— Parece excitante. Lauri olhava para ele com admiração, como uma
colegial em frente a seu ídolo. Sentia-se novamente abalada por todos aqueles
acontecimentos. Pouco tempo antes, ela era apenas uma aluna de balé na
tranqüila Downhollow. De repente, um maitre de baile alto e moreno entrou na
sua vida, sem pedir licença, levando-a para um palácio veneziano, onde a
transformou quase numa escrava da dança. Michael observava o ar distante
dela.
— O que está perturbando você? Acho que já somos amigos o bastante
para que você me conte algum segredo.
Ao ouvir aquilo, ela sentiu um leve estremecimento.
— Estava pensando em quanto o nosso diretor é uma pessoa complexa.
Você acaba de dançar, olha no rosto do homem e o que vê? Apenas uma
máscara.
— Veja bem, Lauri: ele está fazendo de você uma artista. O resto não tem
a mínima importância.
— Claro que tem importância! Sei muito bem que ele não perderia um
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minuto comigo se eu realmente não tivesse queda para a dança.
Olhou para Michael e viu que ele estava rindo.
— Você é engraçado! — ela continuou. — Não se incomoda com o fato
de o diretor ver as pessoas como marionetes que ele pode manobrar à
vontade.
— Pobre criança! Você pensa demais.
Lonza estava se divertindo com a ira de Lauri. De repente, porém, ficou
sério.
— Talvez você esteja querendo ser notada por ele como… mulher.
— Meu Deus! Não é isso! -— disse Lauri, alarmada pela idéia.
— As mulheres costumam apaixonar-se por ele. Só que ele é um falcão.
Todos os Falcone di Corte ligaram-se a apenas uma mulher, para toda a vida.
E nós dois sabemos qual é a mulher a quem Maxim parece estar ligado.
Lauri pensou em Andreya com aquelas roupas de sair muito justas,,
realçando as curvas perfeitas. Pensou neia no palco, bela e magnífica em
alguns papéis, assustadora em outros. Um homem precisaria ser muito forte
para suprir a necessidade de amor de Andreya. Apenas calor humano e
afeição não bastavam. Precisaria, talvez, de uma força sobre-humana.
— O que o Maxim anda ensinando a você? — perguntou Michael, bem
perto do ouvido dela. — Dancei Lurline com você e notei que já é bem mais
que uma simples principiante. Acho que já está merecendo um papel mais…
— Não! — ela exclamou, empalidecendo. — Ainda não estou preparada.
Não quer dizer nada o fato de o signor di Corte estar me ensinando o papel
de…
De repente, ela engasgou. Michael segurou na mão dela, com os olhos
brilhando.

— Que papel, Lauri? Pode me dizer. Não sou tão amigo de Andreya a
ponto de contar á ela alguma coisa que possa prejudicar você.
— Solte a minha mão. Já está quase na hora da aula de Bruno. Preciso ir.
— Eu sei qual é o papel! — disse ele, exultante. — Ele não podia mesmo
resistir. Você tem uma aparência assim tão… Lauri, em “Gi-selle”, nós dois
seríamos a sensação da temporada. Eu sei, eu sinto isso! Você tem a idade
exata, o temperamento exato. Vou pedir ao Maxim para que deixe você ser
minha partner.
— Por favor, não, Michael — pediu Lauri, com o rosto muito perto do
dele. — O diretor ia achar graça dessa sua idéia. Além disso, ficaria furioso.
Michael levantou a cabeça, atrevido, os cabelos em desordem depois de
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uma manhã de ensaios puxados.
— Não se preocupe. Já enfrentei o grand signore outras vezes. Lauri,
minha ratinha de olhos grandes, eu quero que você seja a minha partner.
A voz dele ecoou na sala já quase vazia. O lanche havia terminado e os
dançarinos estavam se dispersando. Naquele momento, uma figura alta
passava por ali, em direção à porta que levava à torre. Parou e voltou o olhar
para o casal. O olhar era tão direto que não era possível evitá-lo. Mesmo
depois que ele se foi, Lauri ainda se sentia fulminada.
— Acha que ele ouviu, Michael? — perguntou, cochichando.
— E daí? É bom mesmo que saiba logo o que estou querendo…
A palidez dela fazia um contraste gritante com a malha preta.
— Não pode fazer isso, Michael! Se fizer, eu… eu fujo. O signor di Corte
vai pensar que eu estou querendo roubar o papel que pertence a Andreya e,
nessas circunstâncias, não posso permanecer aqui.
— Você não vai estar roubando nada — disse Michael, obstinado, —
Acho que o papel é seu. Por que, então, Maxim está fazendo você
ensaiar?
— Ele disse que é apenas para eu ganhar confiança.
— E por que todo esse segredo?
— Você conhece Andreya. Por favor, Michael, prometa que não vai falar
nada. Ele vai pensar que eu vim me queixar com você.
Lonza não respondeu logo. Ficou olhando para ela.
— Se eu beijasse o seu pescoço, você gritaria? Imediatamente ela se pôs
de pé, pronta para se defender.
— O que foi? — disse o bailarino, rindo, com um brilho nos olhos. —
Vamos fazer um trato: ou um beijo no pescoço, ou eu falo com Maxim.
— Mas isso é uma chantagem!
Ele se levantou e caminhou em direção à porta que levava à torre. Por
alguns instantes, Lauri ficou hesitante. Depois, imaginou a expressão do
diretor quando ouvisse o que Michael tinha a dizer.
— Você ganhou — disse, com uma ponta de raiva. — Odeio você por
causa disso.
Ele se voltou, com um movimento de felino. Lauri encostou-se à parede,
esperando a aproximação.
— Você é atrevido — disse.
— Mas também sou um bom dançarino, e sei que você me admira por
causa disso. Toda pessoa tem pelo menos uma qualidade. A minha é a
honestidade. É por isso que digo estas coisas. E é por isso também que digo
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que você é encantadora.
Lauri procurou manter a calma.
— É muito experiente, sr. Lonza. Quero que saiba que estou me
submetendo apenas porque sou nova na companhia e não quero me
prejudicar. Saiba também que não estou nem um pouco caída por você.
Ele sorriu. Olhava para ela bem nos olhos.
— Alguém já disse que o amor é como um vinho agridoce, uma maldade
que encanta, um feitiço que envolve as pessoas. Acho que estou enfeitiçado,
ratinha que pensa demais.
— Preciso ir à aula do Bruno.
— E o prêmio a que tenho direito? — perguntou ele, passando levemente
os dedos no pescoço dela. — Que tal amanhã, quando eu levar você na Casa
Dourada do Grande Canal?
— Michael, amanhã… não vamos poder sair juntos.
— E por que não?
— O signor di Corte planejou algumas coisas para mim. Primeiro, vou
ouvir o coro da Catedral de São Marcos. Depois, ele vai me levar para
conhecer a condessa Riffini. Acho que está querendo aprimorar a minha
educação artística.
— Educação artística a três? — disse Michael, com sarcasmo. — Vai ser
mesmo engraçado. Enquanto Maxim mostra o patrimônio cultural de Veneza,
Andreya segue atrás, odiando os seus adoráveis dezessete anos.
— Michael! Ele riu da expressão irada de Lauri e alisou os cabelos dela.
— Estou impedindo você de ir à aula, pobre menina. É melhor ir. Que tal
jantarmos juntos esta noite?
Ela balançou a cabeça afirmativamente e correu para a aula.
Os domingos eram sempre dias de preguiça. Os sinos das igrejas
pareciam convidar à paz e ao descanso.
Enquanto Maxim di Corte pagava ao gondoleiro, Lauri ficou escutando o
badalar dos sinos. Depois, os dois seguiram pela praça de São Marcos,
caminhando no meio dos pombos, em direção à entrada do grande templo
bizantino.
A claridade da primavera realçava as linhas clássicas do tempo, em volta
do qual os pombos voavam, como mensageiros da paz. Lauri admirou a
majestade da catedral. Sentiu vontade de abrir o coração, para guardar dentro
dele toda aquela beleza.
— Toda a mitologia romântica de Veneza está contida nesse templo —
disse Maxim.
82
Lauri sorriu. Achou ótimo Andreya não ter ido com eles. A presença
hostil da prima ballerina tiraria dela o prazer de admirar toda aquela beleza.
Entraram na meia-escuridão da catedral, que contrastava com a
claridade de fora. Mesmo naquela luz mortiça, porém, podiam ver os
mosaicos coloridos da cúpula. Mostravam cenas da Bíblia: Adão e Eva no
paraíso; Noé conduzindo os animais à arca; Moisés com as tábuas da lei.
O piso também era de mosaico. Havia colunas de mármore e arcos
góticos. Nas paredes, ao lado das enormes janelas de vidro cor-de-rosa,
estátuas de anjos e profetas talhadas em pedra. A atmosfera era sombria,
oriental, mística.
Ficaram ali, assistindo ao ofício religioso e escutando o maravilhoso
canto do coral. Quando finalmente saíram para a claridade da praça, Lauri
sentiu que jamais esqueceria as coisas que tinha visto e ouvido.
— Casanova costumava passear por aqui com a namorada do momento
— disse Maxim, sorrindo. — Veneza, uma cidade eterna, ao mesmo tempo
um sonho e uma realidade.
Lauri tocou, emocionada, um cavalo de bronze que tinha sido trazido da
Grécia há muitos séculos e já havia enfeitado o Arco do Triunfo de Nero.
Num relógio instalado no alto de uma pequena torre, duas figuras
mouriscas de metal bateram as horas. Maxim tocou no braço de Lauri e disse
que estava na hora de irem para Vila Nora, que ficava numa das ilhas
Lagunas.
A gôndola particular da condessa já estava esperando por eles, no
ancoradouro que havia no final da piazza. Entraram na embarcação e
sentaram-se, um de frente para o outro. Lauri reparou que Maxim olhava,
embevecido, as construções medievais que iam passando. Era um homem
que amava a beleza, e aquilo certamente o transformava numa pessoa
vulnerável. Talvez pela primeira vez, Lauri não estava com medo dele. Sentia-
se tão bem que resolveu tomar a iniciativa da conversa.
— Acha que a minha reação ao coro foi boa, signore? — perguntou, com
um sorriso.
— A sua reação foi bastante aceitável — ele respondeu, também
sorrindo. — Os jovens não são pessoas fáceis. Às vezes, uma coisa que nos
agrada pode ser chata para vocês, jovens.
— Não acho que o senhor seja chato.
Depois de dizer aquilo, desviou os olhos, sentindo-se um pouco confusa.
Ficou olhando os barcos que navegavam na lagoa. As velas, pintadas nas
mais variadas cores, contrastavam com o azul do céu e o verde da água.
83
— Veja! — exclamou ela, mostrando uma frotilha de gôndolas que se
afastavam, enfeitadas com flores e bandeirolas.
Havia som de risos e música.
— É uma festa de casamento veneziana — explicou Maxim.
— Deve ser lindo a noiva ir para a igreja numa gôndola. É tão pitoresco,
tão alegre.
Di Corte sorriu, condescendente com o romantismo dela. Depois,
acendeu um cigarro.
— Acho que você vai se dar bem com a condessa. Ela não envelhece, tem
o coração e o temperamento de uma mocinha. A vila onde mora parece ter
sido trazida do oriente, num tapete mágico. Atualmente, uma afilhada dela,
Venetia, está morando lá. Venetia ficou viúva muito jovem e a condessa a
acolheu.
Lauri escutava, curiosa. De repente, ele pareceu ficar triste,
— Venetia adorava o marido, e o filho que tiveram veio coroar aquela
felicidade. Moravam nos arredores de Florença, bem no local onde ocorreram
aquelas inundações, no ano passado. Venetia é também uma excelente
escultora. Estava em Roma, cuidando da exibição de uns trabalhos, na noite
em que ocorreu a pior enchente, que destruiu praticamente metade de
Florença. O marido e o filho morreram juntos.
— Que horrível! — exclamou Lauri. Ele deu uma tragada profunda no
cigarro.
— O pior é que Venetia perdeu todo o interesse pelo trabalho. Passa
horas sozinha, olhando o rio, como se ele pudesse trazer de volta os entes
queridos dela.
— Talvez fosse melhor ela mudar-se para o campo — sugeriu Lauri.
— Não adianta fugir dos fantasmas, srta. Garner. Percebe agora por que
eu queria que você conhecesse meus amigos, particularmente Venetia?
— Sim, por causa dos meus pais — ela respondeu calmamente. — Já
aprendi a viver sem eles, signore. Mas eram muito queridos e a falta deles me
faz sofrer. Parece até que cresceu uma pele em volta desta minha dor, para
defendê-la da impaciência das outras pessoas.
Os olhos de Maxim endureceram quando ela disse aquilo.
— Está querendo dizer que eu sou impaciente com você?
Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça, ao mesmo tempo em que
desviava os olhos.
— Às vezes o senhor é… ou, pelo menos, parece ser.
— Pensa que eu não compreendo o que é amar alguém, sofrer por isso?
84
Acha que eu sou feito de pedra?
Aquelas perguntas bateram em Lauri como uma ducha fria. Olhou para
Maxim e viu que o rosto dele parecia ter sido talhado na pedra.
— O senhor tem uma força de vontade maior que a das outras pessoas.
Não quero dizer com isso que não tenha sentimentos.
— Ora, muito obrigado — ele disse, com ironia. — Quer dizer que as
pessoas têm que se render a todos os sentimentos e vontades?
— Não é isso. Está torcendo as minhas palavras.
— Pode ser. Mas é perigoso provocar um homem afirmando que ele não
tem sentimentos. Ele pode se sentir tentado a provar o contrário.
Por alguns instantes eles se olharam, em silêncio.
— E então? Os gondoleiros não se incomodam quando um homem
abraça uma mulher numa gôndola. Se eu beijar você, ele vai apenas olhar
para o outro lado.
Ela se encostou na borda da gôndola, como para defender-se. — O
senhor não tentaria!
Ele riu, gozador, e olhou para outro lado, como se nada houvesse
acontecido.
Logo avistaram um cais particular na praia. O sol batia forte nas paredes
de Vila Nora.

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CAPÍTULO VIII

Lauri debruçou-se na sacada do terraço, para apreciar a vista. Seus olhos


brilhavam. Depois voltou-se para olhar a vila. Era toda branca, com
patamares de concreto nas paredes laterais. Ouvia o barulho do mar e o som
do vento nas árvores do jardim.
— Gostou da vila? — perguntou Maxim.
— Parece uma coisa das Mil e Uma Noites.
— A visão deste lugar também me deixa meio estonteado. Mas talvez
seja o calor do sol que esteja abrandando os meus sentimentos.
Lauri sabia que aquilo era uma provocação. Maxim estava de costas para
o sol e ela não podia ver os olhos dele. Mesmo assim, não_ resistiu ao
impulso de responder ao desafio.
— As pessoas o comparam a um falcão, por causa do brasão dã sua
família — disse, sorrindo. — E não é verdade, signore, que os falcões recusam
carinho e arrancam o coração das aves menores?
Por alguns instantes, fez-se um silêncio pesado. Depois ele caminhou em
direção a Lauri, tão de repente que ela levantou uma das mãos, como para
defender-se.
— Estou entendendo — ele disse. — As aves menores são os meus
dançarinos, de quem eu exijo tudo sem dar em troca nada do meu coração,
não é? Sua bobinha, você não conhece mesmo nada sobre mim.
Em seguida ele se afastou em direção a outra pessoa que tinha chegado
ao terraço. Lauri protegeu os olhos dos raios de sol com a mão, e viu uma
mulher no alto de uns degraus, de pé. Era ainda jovem e estava toda de preto,
com os cabelos longos soltos ao vento. Devia ser Venetia.
Maxim beijou as mãos dela, num gesto tão terno que emocionou Lauri.
Por alguns instantes, os dois falaram em voz baixa. Depois ele se voltou e
estendeu o braço para Lauri.
— Esta é a minha jovem protegida, Venetia.
A condessa sorriu, com os olhos negros e os dentes muito brancos.
Quando saudou Lauri, porém, foi com a voz fria e um tanto formal.
— Estou contente em conhecê-la, signorina Garner.
Tinha uma voz profunda e, pelos olhos, podia-se ver que era uma pessoa
sofrida.
— Zena está impaciente, esperando por vocês dois — disse ela, sorrindo

86
para Lauri. — Preciso avisar que a condessa tem um espírito muito fino e às
vezes cortante. Por favor, não se assuste com ela.
— Já estou me acostumando a não me assustar com nada, signora —
disse Lauri, também sorrindo.
Como ela não entendesse as palavras da visitante, Maxim explicou,
devolvendo a ironia.
— A menina está falando isso por minha causa, Venetia. Ela acha que eu
sou um carrasco. Teve até a coragem de dizer que eu não tenho coração.
Venetia olhou para Lauri, surpresa.
— Acha mesmo isso do Max, signorina? Sempre o considerei o mais
amável dos homens.
Maxim olhava para Lauri com um sorriso de sarcasmo.
— A srta. Garner vai responder que é porque você nunca precisou
dançar sob as minhas ordens. Como escultora, Venetia, você vê nas pessoas
formas que simbolizam alguma coisa. Diga-me: o que vê na minha protegida?
Venetia não demorou muito para responder.
— Vejo as formas de um ser mitológico da floresta. Agora, Max, deixe a
menina em paz. Se faz sempre assim, ela tem mesmo razão de achar você um
chato.
— Não é bem isso — ele disse, rindo alto. — O que ela acha é que
eu sou um tirano.
Então ele se afastou, para que as duas pudessem seguir na frente. A
condessa esperava por eles num dos patamares da casa, tomando sol. As
paredes brancas eram quase todas cobertas por trepadeiras floridas.
Ela estava sentada numa cadeira de vime, com um gato no colo. Olhou
para Lauri, curiosa, enquanto estendia a mão para que Maxim a beijasse.
— Você ainda não pediu desculpas pelo atraso — disse.
— Sabe muito bem, condessa, que em Veneza os horários nunca são
cumpridos.
— Hum! — fez a condessa, olhando para ele com um brilho nos olhos. —
O que estou vendo é que você nunca pede desculpas por nada. Uma mulher
pode ficar esperando horas, a vida inteira, que você nem se incomoda. É
incapaz de uma atitude humilde.
— Acha que alguma coisa pode me fazer ser humilde?
— Bem, você é um Falcone di Corte, um homem feito para amar uma
mulher apenas. Com certeza vai ser humilde com essa mulher, Max.
— Deus me livre! — ele exclamou, rindo.
— Pelo contrário, Max, que Deus permita.
87
Como ele não respondesse, a condessa cantou vitória.
— Está vendo? Consegui encurralar você!
— Ainda não. Tenho argumentos que me permitem sair dessa. Só que
prefiro guardá-los para mais tarde. .
— Timidez, caro amigo? — ela perguntou, caçoando.
— Apenas tática, signora — disse ele, ao mesmo tempo em que se voltava
para Lauri, chamando-a com um gesto de mão. — Venha. Não tenha medo,
que a condessa não vai bater em você. Ela já gastou as energias comigo.
Nervosa, Lauri caminhou em direção à pequena senhora sentada na
enorme cadeira. Quando chegou perto, o gato levantou a cabeça para ela.
— Pode acariciá-lo — disse a condessa. — Minou gosta dos jovens e dos
velhos. Como todos os gatos, ele é muito sábio.
— Ele é lindo — disse Lauri, sorrindo e acariciando o pêlo branco do
gato.
— A beleza não tem muita importância. O que conta mesmo nele é a
sabedoria e a lealdade. Então você é a protegida de Maxim? Gosta de ser
aluna dele ou vivem em guerra?
Lauri não viu nos olhos daquela mulher o temor que Maxim costumava
provocar nas outras pessoas; talvez porque ela o conhecia desde o
nascimento.
— A minha pergunta embaraçou você? — perguntou a condessa.
— Não se esqueça, Zena, de que a srta. Garner é inglesa — disse Maxim.
— Sem dúvida, os ingleses tomam muito cuidado ao falar. Venetia mia,
quer nos servir um pouco de refresco?
Um criado tinha acabado de colocar sobre uma mesinha uma bandeja
com uma jarra de refresco e um balde de gelo.
— Tire a jaqueta para ficar mais à vontade — disse a condessa, dirigindo-
se a Lauri. — Venha sentar-se ao meu lado para conversarmos um pouco.
Lauri desabotoou e tirou a jaqueta, ajudada por Maxim. Como estava
com uma blusa sem mangas, não pôde deixar de reparar na brancura da sua
pele, em contraste com a dele.
Venetia entregou a ela um copo grande de suco de frutas.
— Para você, Max, vermute com gin.
Lauri viu a forma como Maxim olhava para Venetia. Parecia querer
envolvê-la, protegê-la.
— Esta menina tem uma qualidade muito rara, Max — disse a condessa,
referindo-se a Lauri, enquanto ele se sentava ao lado da jovem viúva. — £
tranqüila como um riacho na floresta. Se você não conseguir fazer dela uma
88
dançarina, quero que a deixe vir morar comigo.
— Mas eu vou conseguir — disse ele, olhando para Lauri. — Vou fazer
com que ela dance da forma que eu quero. Depois, será livre como um
passarinho. Poderá ir morar com quem quiser. Mas com certeza não será com
você, Zena.
— Posso saber por que não?
Lauri sentiu vontade de dizer que não era uma boneca, uma marionete
que seria jogada fora quando Maxim di Corte se cansasse dela.
— Tenho uma tia na Inglaterra — disse, olhando friamente para ele. —
Ela queria que eu me tornasse uma bailarina de sucesso, e foi só para fazer a
vontade dela que eu vim para Veneza.
— Está gostando de Veneza? — perguntou Venetia, num tom de voz
amigável.
— É uma cidade muito pitoresca, diferente.
— Mas tem saudades da Inglaterra?
— Sim. A minha terra é lá. Além disso, sempre fui muito chegada à
minha tia.
De repente, sentiu um aperto no coração. Àquela hora, tia Pat deveria
estar colocando no forno a torta que fazia todos os domingos. O rádio estaria
ligado no programa dominical de música. Naquele domingo ensolarado de
primavera, os habitantes de Downhollow certamente estariam passeando
pelas ruas estreitas da cidade.
— Então a sua tia quer que você faça sucesso? Lauri voltou-se para a
condessa.
— Na juventude, ela também foi bailarina. Por isso… A condessa sorriu.
— O que não se faz por amor a outra pessoa? Sempre acabamos vítimas
dos impulsos do coração. É a vida, minha menina. Tendo vivido o que já vivi,
sei que o que faz da vida uma coisa tão excitante e enriquecedora é essa
necessidade de compartilhar tudo com outras pessoas, ou com outra pessoa.
A necessidade de amar e ser amado. Às vezes isto nos machuca, mas é a
essência da vida. Quem se recusa a aceitar este fato acaba passando pela vida,
sem viver.
— Quer dizer, condessa, que tudo o que precisamos aprender do mundo
está aí mesmo, na vida?
— Exatamente — respondeu a mulher, pegando na mão de Lauri. — Se a
sua tia está usando o amor que tem por você para protegê-la da vida, está
fazendo mais mal do que bem. Tenho certeza de que você tem talento. Max
não perderia tempo com alguma coisa que não valesse a pena.
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Depois, a condessa voltou-se para Maxim, sorrindo com um ar de
nostalgia.
— Você vai apresentar Giselle na próxima temporada, Max? Lembro-me
de como a sua avó estava maravilhosa naquele papel.
— Giselle é uma tentação a que eu não posso resistir — disse ele, com um
brilho alegre nos olhos. — É verdade. Vou apresentar o balé no Teatro Fenice,
na abertura da temporada.
— Com Andreya? — perguntou Venetia.
Lauri pensou ver nos olhos azuis de Venetia um certo ar de
aborrecimento. Maxim baixou os olhos para o copo.
— Andreya é a minha prima ballerina. Veio para a companhia há uns seis
anos, num momento em que estávamos fazendo um grande sucesso, É
verdade que em Giselle…
— A lealdade está cegando você, Max. Aquela mulher é uma víbora.
Venetia disse aquilo em voz alta e todos se voltaram para ela. Estava com
os olhos muito abertos, excitada, o que lhe dava uma estranha beleza. Logo
em seguida, colocou uma das mãos na boca.
— Oh, Max! Como pude dizer uma coisa dessa? Devo estar ficando
louca!
— Minha querida…
— Por favor, Max, não procure ser gentil comigo. Se eu não consigo
resolver os meus problemas, isto não é razão para machucar as outras
pessoas, principalmente você, que me apoiou num momento em que eu mais
precisava de um amigo. Sem você, acho que eu teria…
Ele se levantou e colocou as duas mãos nos ombros dela. Lauri olhava os
dois, comovida pela cena.
— Não se torture, Venetia — ele disse.
— Está na hora do almoço — anunciou a condessa, enxotando o gato e
estendendo o braço, para que Lauri a ajudasse a levantar-se. Enquanto
entravam na casa, ela ia tagarelando, como se nada houvesse acontecido.
Venetia e Maxim vinham um pouco atrás, conversando em voz baixa.
Almoçaram comidas típicas italianas. O tempo todo, a condessa falou de
balé, com muita vivacidade. Depois do café, ela disse que precisava cochilar
um pouco. Depois se juntaria novamente a eles. Venetia também pediu
licença e retirou-se. Enquanto folheava um jornal, Maxim perguntou se Lauri
não queria conhecer um pouco mais da ilha.
— Aqui não precisamos fazer cerimônia. Sou amigo da condessa há
tanto tempo que a vila é como o meu segundo lar.
90
Enquanto saíam da sala, Lauri notou que ele estava um pouco excitado.
Na entrada do jardim havia um arco de pedra antigo, com três lanças
cruzadas no alto. Lauri olhou, curiosa, para aquele símbolo.
— Na época das conquistas romanas — explicou Maxim —, as três lanças
cruzadas simbolizavam a submissão. Os povos conquistados tinham que
passar embaixo dele para mostrar que se submetiam à dominação.
— Que interessante.
— Nesta ilha há outras ruínas do tempo dos romanos. Perto da praia há
uma caverna onde se praticavam ritos pagãos. Não gostaria de conhecê-la?
— Gostaria muito, O sol estava forte e as paredes da vila eram muito
brancas. Por isso,
Lauri pegou os óculos escuros. Agora, podia olhar para ele com mais
segurança.
Maxim continuou a dar informações sobre a ilha.
Os cultos que se praticavam na caverna eram dedicados a Afrodite, a
deusa do amor. Os habitantes do lugar dizem que quando uma mulher entra
lá, acompanhada por um homem, corre o perigo de ser enfeitiçada pelo
espírito de Afrodite.
— E o homem? — perguntou Lauri, com atrevimento. — Também não
corre o mesmo perigo?
— Acho melhor não responder, principalmente depois da conversa que
tivemos na gôndola.
Ele parecia um pouco perturbado e um frio correu pela espinha de Lauri.
Ela se virou e desceu correndo os degraus que havia no fim do jardim.
— Cuidado! Você pode torcer o tornozelo.
Céus! Será que ela não podia esquecer, pelo menos por um momento, os
preciosos pés da bailarina?
A vista dali era muito bonita. O horizonte parecia não ter fim e havia
muitas ilhotas. A areia da praia era completamente preta.
— Nunca tinha visto uma praia de areia preta — disse, quando Maxim
chegou onde ela estava.
Ajoelhou-se e enfiou as mãos na areia, que estava quente apesar de não
refletir os raios do sol. As mãos dela, muito brancas, formavam um forte
contraste com o negrume daquela areia.
— É a mosca no leite — disse, brincando.
Olhou para Maxim e admirou-se de ver que ele tinha tirado o paletó e a
gravata e desabotoado o colarinho. Estava de pé, com uma mão fechada
apoiada na cintura. Aquela devia ser a postura dos ancestrais dele, na proa de
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um navio, saindo para alguma conquista.
— Venha — disse ele, estendendo a mão para ajudá-la a levantar-se.
Lauri sentiu que corria algum perigo, sozinha com ele naquela praia de
areia negra. Havia a caverna de Afrodite, a brisa leve e o murmúrio das
ondas.
— Você parece assustada. Está com medo de que eu cumpra a ameaça
que fiz na gôndola?
O coração dela disparou. Sentiu a mão dele no pescoço, obrigando-a a
virar-se. Quando viu que os lábios dele se aproximavam procurando os dela,
virou o rosto, rápido. Com os músculos retesados, sentiu na face a respiração
quente dele.
— Está me usando como um objeto da sua vontade, como se eu fosse um
instrumento de trabalho — disse, mal conseguindo respirar.
— O que está querendo dizer?
— Desde— antes do almoço, o senhor está intratável. Tenho certeza de
que é por causa do que Venetia disse. .
— E o que foi que ela disse?
— Sabe muito bem.
Ao contrário da voz dele, que era alta e cortante, Lauri falava em voz
baixa e tremida.
Ele a abraçou e Lauri sentiu que o coração dele também batia rápido.
— Por favor, pare de agir como um demônio — ela pediu.
Por um longo momento ele ficou olhando para ela, nos olhos. Lauri
rezou para que ele a poupasse de um beijo que só serviria para humilhá-la,
puni-la.
— Então é isso o que pensa que eu sou, um demônio?
— No momento, é o que penso.
Tudo o que ela queria era livrar-se daquele abraço.
— Quer dizer que se arrepende de ter vindo para Veneza comigo?
— O senhor permitiria que eu voltasse para a Inglaterra?
— Não. Não costumo deixar as coisas pela metade. Ele beijou de leve o
rosto dela e soltou-a do abraço.
— Prometi mostrar a você a caverna de Afrodite. A menos que tenha
medo de entrar lá com um sujeito tão diabólico como eu.
— É ali a caverna? — ela perguntou, caminhando em direção a umas
estranhas pedras nas bordas de um penhasco.
As pedras eram muito escuras. Pareciam dragões petrificados, postados
ali para defender os segredos pagãos da caverna. Ela foi caminhando com
92
passos cuidadosos, até chegar na entrada. Tirou os óculos escuros e entrou,
seguida por Maxim.
— A magia nasceu nas cavernas — disse ele, olhando em volta.
— Era em lugares como este que as feiticeiras prediziam o futuro e
vendiam poções de amor às jovens.
— Acredita em magia, signore?
— Acredito que as pessoas são moldadas por uma força misteriosa,
profunda. Mas talvez você esteja se referindo à magia como uma coisa de
fadas e homenzinhos verdes que saem da floresta encantada, à noite, para
assustar as pessoas.
— Então acha que é assim que eu penso? — ela perguntou, rindo.
— Os mais velhos sempre sabem o que nós devemos pensar, mesmo
contra a nossa vontade.
Maxim olhava para ela. Estava no centro da caverna, encostado num
balcão que parecia um altar para sacrifícios pagãos.
— Quer dizer que veio para Veneza contra a sua vontade?
— Às vezes, acho que sim. Sei que tia Pat ambiciona muita coisa para
mim. Por mim mesma, porém, jamais ambicionei qualquer coisa.
— Acha, então, que está se sacrificando pelas ambições de uma outra
pessoa? Não vê que uma pessoa que tem talento tem também certas
obrigações? O talento não pode ser guardado, como uma propriedade
particular. Tem de ser dividido com as outras pessoas.
— Eu sei, mas naturalmente o senhor está se referindo ao talento de
Andreya, ao talento de Travilla.
— Estou me referindo ao seu talento. Fiquei impressionado quando vi,
pela primeira vez, a sua semelhança com Travilla. O mesmo brilho nos olhos,
a mesma expressão, esse ar de quem veio de um mundo onde só existe
pureza. No princípio, é verdade, você dançava como uma amadora. Mas eu
sabia que podia dar um jeito nisso.
Lauri apertou os olhos.
— Como é egoísta! Tudo tem que ser conforme a sua vontade.
— Sim, quando se trata de alguma coisa relativa ao balé. Resolvi que,
quando chegarmos a Londres, você vai dançar Giselle, com Lonza. Já vai estar
segura o bastante para enfrentar o palco.
— Andreya jamais vai concordar com isso — disse ela, arregalando os
olhos.
— Infelizmente ela vai ter que concordar. Giselle é uma personagem
adorável, de muita sutileza. Precisa de alguém que possa transmitir
93
inocência, caso contrário fica uma coisa que não convence ninguém. Andreya
é uma bailarina de muitas qualidades, mas transfere para Giselle a histeria da
própria infelicidade.
— Signore, como pode falar assim da mulher por quem sente tanto…
Maxim riu alto, e a gargalhada dele ecoou nas paredes da caverna.
— Por que sinto o quê? Amor? Acha mesmo que Andreya e eu estamos
apaixonados? Não é nada disso. A mulher que eu amo está nesta ilha.
Lauri admirou-se com aquela súbita explosão de franqueza. Mesmo no
ambiente escuro da caverna, notou que os olhos dele brilhavam.
— Estou apaixonado por essa mulher há muito tempo — ele continuou
—, e acho que vou amá-la para sempre. Mas preciso esperar um pouco, ter
paciência. Existe alguma coisa entre nós dois e ela ainda não está pronta para
o amor.
Amor… Amor… A palavra ecoou na caverna e Lauri teve certeza de que
ele estava falando de Venetia. Aquele templo pagão conseguira fazer com que
ele, finalmente, abrisse o coração.
— Compreendo — disse ela, sem mais comentários.
Ela nunca tinha entendido, mesmo, o que ligava Maxim a Andreya.
Olhou em volta e sentiu um calafrio. Desejou sair daquele lugar.
— Vamos — disse Maxim, pegando no braço dela. — Está frio aqui.
Vamos voltar para o calor do sol.
— Vamos logo embora? — perguntou ela, quando saíram da caverna.
— Zena espera que fiquemos para o jantar. Por que está olhando assim
para o mar? Está com medo da neblina?
— Ela está muito espessa. Se piorar, não vamos poder voltar, não é?
— É verdade. Já tive que ficar outras vezes aqui, por causa da neblina.
Mas não se preocupe. As camas da vila até que são confortáveis.
— Quer dizer que teríamos de passar a noite aqui?
— Seria o mais sensato.
— Talvez seja mais sensato partirmos antes que a neblina aumente —
disse ela, procurando falar de forma convincente. — Tenho certeza de que a
condessa entenderia…
— Mesmo assim, prefiro esperar. É uma experiência excitante ficar
separado do mundo. É como estar perdido nas nuvens.
Além disso, ele também poderia ficar algumas horas a mais com Venetia.
Lauri ia pensando nisso enquanto caminhavam, olhando as ondas que
quebravam na areia preta.
— Imagino que tenha que me curvar ante o inevitável — ele disse.
94
— Pelo que estou vendo, o senhor nunca volta atrás quando toma uma
decisão.
— Pelo que você está dizendo, parece que eu sou autoritário.
— Todos os homens são autoritários, e o senhor é um pouco mais que os
outros.
Ele riu, divertido.
— Ouça a voz da experiência, menina! Como todas as mulheres, você
áge de acordo com as suas emoções. Não consegue entender a lógica que
determina o comportamento de um homem.
— Não é nada lógico pensar que eu já estou pronta para dançar Giselle.
Andreya tem anos de experiência e não vai deixar que lhe tomem o papel
assim, tão fácil.
— O diretor da Companhia di Corte sou eu. Meus dançarinos têm que
cumprir as minhas ordens.
— Mas eu não poderia… O senhor e Michael devem estar loucos em
pensar que eu…
— Então Lonza quer que você seja partner dele?
De repente, ela percebeu que havia dito alguma coisa errada.
— Deve ter ouvido o que ele estava falando, signore, quando passou pelo
hall, ontem.
— Ah! Então era isso? Devo confessar que não entendi bem o que ele
estava querendo dizer.
— E o que mais podia ser?
Lauri estava confusa. Ele sorriu, com aquele sorriso que desarmava os
inimigos e escravizava os dançarinos.
— Se você não sabe, minha menina, isto prova quanto é inocente.
Lauri ficou olhando para aquele rosto moreno. Não conseguia entender
como um homem tão altivo e dominador se contentava com apenas metade
do coração de uma mulher.
— Você não gosta mesmo de mim, não é? — disse ele, sorrindo. — Sei
que a diferença de idade é uma grande barreira. Além disso, para se
conhecerem de verdade, as pessoas têm que se machucar. E sinto que você
também quer me conhecer. Mas é necessário que os defeitos sejam
perdoados, as virtudes sejam reconhecidas, os talentos sejam aplaudidos, e
que a atração física seja recíproca. Assim é a vida. É como disse Victor Hugo:
a flor de onde se tira o mel do amor.
Lauri não entendia mais nada. Sempre tinha pensado que Maxim di
Corte era um homem de coração gelado. Agora, naquela pequena ilha de
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Veneza, via que estava errada.
Enquanto caminhavam pela praia, ela olhava a neblina, cada vez mais
espessa. De repente, sem saber como, tropeçou e caiu de joelhos.
— Machucou o tornozelo? — perguntou ele, enquanto a ajudava a
levantar-se.
— Não, mas dê uma olhada nas minhas meias.
As meias de seda estavam com dois rombos enormes e os joelhos, um
pouco arranhados.
— Devia tomar mais cuidado — disse Maxim, com o braço em volta da
cintura dela, já perto da vila. — Podia ter torcido um tornozelo.
— Dane-se o tornozelo! — exclamou ela, aborrecida. — O que me
preocupa agora são as minhas meias. Olhe só como estão rasgadas! 96
— O que aconteceu? — perguntou Venetia, debruçada numa janela.
— A menina não olhou onde estava pisando — disse Maxim.
— Não sou uma menina — protestou Lauri, massageando os joelhos.
— Precisa lavar esses joelhos — disse Venetia gentilmente. — Vamos lá
no meu quarto ver o que tem que ser feito. Maxim, peça a algum criado para
fazer um chá. Zena já deve ter acordado e, a esta hora, ela sempre gosta de
uma xícara de chá.
— Pois não, minha querida — concordou ele, voltando-se depois para
Lauri. — Tenho certeza de que Venetia pode lhe emprestar um vestido, já que
vamos jantar aqui, com ou sem neblina.
— Deixe de ser insolente, Max — disse Venetia, dando um tapa de leve
no ombro dele. — Daqui a pouco, vai fazer Laurina chorar.
— Para fazer Laurina chorar, vai ser preciso mais do que a minha
insolência — ele respondeu, repetindo de propósito a forma italianizada do
nome dela.
Os olhos de Lauri faiscaram, mas ele continuou impassível.
Quando chegaram no quarto, Venetia cuidou dos joelhos dela, colocando
curativos nos ferimentos. Depois, levou-a até os aposentos que ocupava
quando estava na vila com o marido. Havia ali um armário, onde ela
guardava as roupas daquela época feliz. Lauri reparou que foi com um certo
esforço que ela abriu a porta do armário.
— A recordação da felicidade é mais dolorosa do que a lembrança da
tormenta — disse a jovem viúva, olhando em volta. — Quando olho para
aquele espelho, é o rosto de Stefano que vejo, não o meu. Quando olho para
aquele relógio de parede, sinto que o tempo não tem mais qualquer
significado para mim, já que Stefano não está para chegar dentro de uma ou
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duas horas.
Lauri tocou no braço dela, solidária.
— Venetia, tenho certeza de que você ainda voltará a ter uma vida cheia
de felicidade.
— Não existe felicidade maior do que ter alguém que nos ame e que
precise de nós — disse a outra, enquanto mexia no armário de vestidos. —
Este deve servir. Por sorte, usamos o mesmo número.
Lauri encostou o vestido verde no corpo, como se o experimentasse.
— Ê muito bonito. Mas ouça, Venetia: tenho certeza de que existe alguém
que precisa muito de você, que ama você demais.
— Pode ser — respondeu Venetia, afastando-se. — Vou deixar o vestido
aqui para que você troque de roupa. Você não se incomoda de usar este
quarto, não é? Ele tem alguns fantasmas, mas são jovens e adoráveis. Não
fazem mal a ninguém, além de mim.
Lauri olhou enquanto ela se afastava. Sentia muita pena daquela jovem
mulher, que devia ter sido muito cheia de vida.
Mais tarde, enquanto se olhava no espelho com o vestido emprestado,
ela se lembrou das palavras de Venetia. Pensou também na idéia que ela
própria tinha, quando criança, de que as coisas não mudavam. Tia Pãt a havia
acolhido com muito carinho e amor. Não precisou de palavras para
convencê-la de que os pais dela tinham desaparecido, deixando apenas a
lembrança da alegria, da beleza, do amor deles.
Amava demais tia Pat. Assim mesmo, havia noites em que se lembrava,
com um sentimento de perda irreparável, do sorriso da mãe, do beijo
carinhoso do pai.
Talvez ainda se passassem muitos anos antes que Venetia estivesse
pronta para amar de novo, capaz de gerar um outro filho, nascido de um
novo amor.
Foi até a janela e olhou para fora. Tinha se formado uma densa camada
de neblina. Não havia mais jeito. Pelo menos por algumas horas, a ilha estava
isolada do resto do mundo.
Lauri saiu do quarto e caminhou pelo corredor que levava à escada.
Quando começou a descer os degraus, ouviu vozes lá embaixo, que diziam:
— Sei o que você sente, Maxim — dizia Venetia. — Mas estive tão
profundamente apaixonada que não posso sentir a mesma coisa por outra
pessoa.
Lauri não sabia se devia seguir ou retroceder.
— Vou continuar esperando, cara — disse Maxim —, e oxalá meu amor
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seja logo correspondido. Não posso aceitar uma simples afeição ou coisa
semelhante. Você compreende, não é?
— Compreendo. Para você, Max, é tudo ou nada.
Lauri fez um movimento e Maxim deve ter ouvido o barulho do vestido
dela.
— Ah! Aí está você — disse ele, levantando os olhos. — Não está se
parecendo nada com uma menina. Até pelo contrário.
— Obrigada — agradeceu ela, descendo a escada.
Quando entraram na sala de jantar, as velas estavam acesas nos
candelabros venezianos, havia fogo na lareira e as cortinas estavam fechadas,
por causa da neblina. O ambiente estava aquecido e acolhedor. Mesmo assim,
Lauri sentia um frio no coração.

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CAPÍTULO IX

Passou-se uma semana desde aquela noite em Vila Nora. Os ensaios para
o novo balé estavam aumentando de ritmo e Maxim já havia anunciado que
Lauri seria a substituta eventual de Andreya no papel de
Giselle.
Lauri tremia quando se lembrava da expressão de Andreya. Houve um
burburinho entre os outros bailarinos e olhares significativos foram trocados.
— Cuidado — eles advertiam. — Andreya não tolera rivais.
— Não estou querendo o papel — explicava ela. — Só de pensar que
talvez tenha que dançar, já fico assustada.
Era verdade. Ela tinha certeza de que, se fosse obrigada a dançar,
acabaria fugindo. A simples semelhança física com Travilla não substituía a
experiência e uma boa técnica. Maxim, com certeza, não correria o risco de
fazer uma apresentação desastrosa apenas por um capricho.
Dizia aquelas mesmas coisas a Michael, uma tarde, quando estava com
ele olhando o pôr-do-sol de uma das pontes do Grande Canal. Ele acendeu
um cigarro e jogou o fósforo queimado na água.
— E se Andreya quebrar uma perna? — ele perguntou. — Você me
confunde, Lauri. O amor pela dança nos absorve quase integralmente. Afinal,
o que é que você ama?
— Por que temos que ser absorvidos pelas coisas que amamos?
— É a lei da natureza, porque o mundo das emoções é uma selva. Sabe
de uma coisa, Lauri? Se você não tomar cuidado, vai acabar se apaixonando
desesperadamente por um homem. E vai ser uma situação muito mais
perigosa do que amar a dança.
Os olhos deles se encontraram. Havia curiosidade no olhar de Michael.
— Quem é você, Lauri? Uma feiticeira disfarçada ou uma criança
que ainda não acordou?
— Nem uma coisa nem outra — respondeu ela, rindo. — Sou apenas
uma jovem inglesa comum que, quando se deu conta, estava no meio de
pessoas brilhantes que dizem coisas estranhas. Tia Pat vai ficar maravilhada
quando ouvir o que tenho para contar sobre vocês. Escrevi a ela convidando-
a para a abertura da temporada. Espero que esteja em condições de viajar. Tê-
la ao meu lado me dá muito mais confiança.
— Qualquer desejo seu é meu desejo também — disse Michael, com

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aquele encantador sotaque estrangeiro.
A água corria por baixo da ponte secular. Da porta aberta de um
restaurante, vinha o som de Vozes da Primavera, a maravilhosa valsa de
Strauss.
— Vamos dançar? — convidou Michael.
— Os dançarinos de balé dançam valsa muito mal — disse ela, olhando a
água, que já começava a refletir as estrelas.
Michael passou o braço em volta da cintura dela.
— Está procurando sereias? Olhe ali adiante. Está vendo aquela de
cabelos longos, pele branca e olhos misteriosos? Ela costuma dançar para
atrair as vítimas.
— Seu bobo! — disse Lauri, rindo.
Com um movimento rápido, ele puxou-a para bem perto, ao mesmo
tempo em que jogava o cigarro na água.
— Está me devendo uma coisa, sua diabinha, e agora vai pagar. Lauri
não pôde protestar porque, no mesmo instante, teve os lábios cobertos pelos
dele. Como ela se debatesse, tentando soltar-se, um gondoleiro que ia
passando não resistiu a fazer um comentário.
— Viva! — gritou o homem. — Amor sem um pouco de luta é como
batata sem sal!
Lauri ouviu o riso do gondoleiro e continuou se debatendo, até que
conseguiu soltar-se. Saiu correndo da ponte e continuou pela calle, entrando
depois numa passagem lateral mal iluminada. Sabia que podia se perder, mas
não estava se importando. Sua cabeça girava. A única coisa que conseguia
pensar era que tudo pareceria melhor quando tia Pat chegasse.
Desejava ardentemente a chegada da tia. Ela seria o único refúgio
seguro.
Os dias foram se passando sem que viesse carta da Inglaterra. Por outro
lado, os ensaios foram se tornando tão absorventes que sobrava pouco tempo
para as preocupações pessoais. A tensão que imperava, os músculos doendo,
a música que enchia o palazzo, tudo contribuía para afastar a depressão.
Os enormes espelhos do hall refletiam os passos e os saltos dos
dançarinos. Agitando os braços, Bruno comandava o ensaio, enquanto o
assistente dele dedilhava o piano.
Maxim era como um farol no meio de uma tempestade. A toda hora era
consultado sobre a música, o cenário, as roupas. Ele assumiu toda a direção
artística, em cada detalhe. Além disso, cuidava da publicidade, desenhando
pessoalmente os cartazes de promoção. Quase todos os dias, havia chamadas
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telefônicas das capitais européias onde a companhia se apresentaria depois
que abrisse a temporada em Veneza.
O palazzo vivia cheio de gente. Victor Arquest, compositor e regente,
passava ali dias e noites. Entendia de música para balé tanto quanto
Stravinsky. Tocava piano maravilhosamente. No fim de um puxado dia de
trabalho, era bom sentar-se numa poltrona, relaxar, ouvir Arquest ao piano e
conversar. E como eles conversavam! Discutiam cada detalhe do balé, que
era, na verdade,' uma criação coletiva. Às vezes, Vitya, como eles chamavam
carinhosamente o compositor, pedia mais café e um pouco de silêncio. Estava
tendo uma nova inspiração.
Dentro de poucos dias seria realizado o primeiro ensaio geral, no Teatro
Fenice. Lauri estava apreensiva. Felizmente, tinha todo o tempo preenchido, o
que a afastava um pouco das preocupações. Michael também andava muito
ocupado e não sobrava tempo nem espaço para que eles se encontrassem. Às
vezes, em algum lugar cheio de gente, os olhares deles se cruzavam. Lauri
pensava, então, que o que ele estava querendo era apenas um caso rápido de
amor. Michael Lonza não se dedicaria inteiramente a nada além da dança.
O futuro, para Lauri, parecia um imenso vazio, que ela deveria
atravessar sozinha. Tudo o que podia esperar é que tia Pat estivesse na platéia
do Teatro Fenice, na noite em que ela subiria ao palco pela primeira vez,
como uma profissional.
No entanto, o tempo ia passando e não chegava carta da Inglaterra. Um
dia, bem cedo, ela foi à agência do correio passar um telegrama. “Você está
bem?”, escreveu, no papel que lhe entregaram. “Por favor, mande notícias.
Amo você demais e preciso da sua companhia. Se puder, venha. Lauri.”
Saiu da agência do correio com a preocupação estampada no rosto. Ia
atravessando a ponte que levava ao palazzo quando viu Maxim, de pé no
outro lado, esperando por ela.
— Onde esteve?
— A minha tia é mais importante para mim do que os ensaios.
— Eu compreendo, menina…
— Não! Tenho certeza de que o senhor não compreende. Passou por ele,
rápido, indo juntar-se aos outros integrantes do corpo de baile. Eles estavam
cuidando do material de dança e das roupas para a estréia. Lauri pensou que
Maxim di Corte era um homem de sorte. Todos os membros da companhia
eram não apenas dançarinos talentosos, como também pessoas responsáveis e
disciplinadas.
— Botei as suas coisas junto com as minhas — disse Concha, piscando
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aqueles lindos olhos de espanhola. — Você parece preocupada, chiquita.
— E estou mesmo.
Pensou que tia Pat podia estar doente. Se fosse verdade, Maxim não teria
como segurá-la ali. Afinal, ele não era tão poderoso assim. Não poderia
mantê-la afastada da única pessoa que realmente se preocupava com ela.
— Pode ser que a sua tia Pat esteja lhe preparando uma surpresa, Lauri
— disse Concha, com um sorriso solidário e amigo. — Vocês, britânicos, são
sempre imprevisíveis.
— Somos iguais a todo o mundo — disse, procurando assim mesmo
parecer grata pela solidariedade da amiga.
Pensou que até que seria bom se fosse verdade o que Concha estava
dizendo. Tia Pat às vezes preparava surpresas agradáveis. Foi pensando
nessas coisas que ela entrou na lancha que levaria os dançarinos ao Teatro
Fenice.
Era um velho e belo teatro. A fachada impressionava pela majestade das
colunas. No interior, a platéia era em forma circular, com os camarotes em
volta.
Os dançarinos trocaram rapidamente de roupa, nos camarins que havia
por trás do palco. Lauri estava um pouco nervosa. Iam fazer o ensaio geral de
A Ave do Fogo. Concha passou por ela, agitando um chalé vermelho.
No outro lado do palco, Maxim chamava os dançarinos para começar o
ensaio. Lauri olhou para ele. Os olhos do diretor tinham um brilho diabólico.
Fechou os olhos e desejou que Concha estivesse certa. Rezou para que tia Pat
já estivesse a caminho de Veneza.
Quando abriu os olhos, sentiu que havia alguém atrás dela. Virou-se e
deu de cara com Lydia Andreya. Imediatamente levou a mão à boca, para
abafar uma exclamação de surpresa.
— Está com medo? — perguntou a prima ballerina, rindo com sarcasmo.
— Quando entrar naquele palco, tudo vai depender de você. É por isso que
está com medo, não é? Tem medo da platéia, das luzes, da imponência do
teatro…
— Por favor! — disse Lauri, dando um passo atrás. Andreya não
desistiu. Parecia deliciar-se com aquela tortura.
— Você sabe muito bem que vai parecer uma idiota quando subir ao
palco. A platéia vai rir de você. É por minha causa que eles pagam ingresso.
Sem mim, a Companhia di Corte não seria nada. Nada! Está ouvindo?
Andreya falava em voz baixa, para que as outras pessoas não ouvissem.
— Você não tem nada para atrair as pessoas. Só esse ar sonso de
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inocência. Está usando isso para atrair Lonza, e até o Maxim.
— Não é verdade!
— Tenho que reconhecer que você até que conseguiu um certo sucesso.
Foi com essa inocência falsa que fez com que Maxim lhe prometesse o papel
de Giselle?
— Ele não prometeu nada. Sou apenas a substituta eventual, sem
qualquer esperança ou desejo de assumir o papel.
Andreya deu um passo em direção a ela. Os olhos da prima ballerina
chispavam, ameaçadores.
— É mesmo? E se eu inventar um mal-estar na noite de estréia, só pelo
prazer de ver você vaiada pela platéia? Não existe nada pior do que uma
vaia, queridinha. Pior do que isso, só o fogo, que vai queimando devagar…
Lauri começou a ver o mundo rodando. Via pessoas correndo, gente
gritando. Caiu pesadamente no lugar onde estava, desmaiada. Quando abriu
os olhos, alguém lhe dava para beber alguma coisa que tinha o gosto de
conhaque.
— Levem-na imediatamente para o palazzo — dizia Maxim, com a voz
grave.
Viola esfregava as mãos dela. Sentiu vontade de dizer que estava bem,
que podia participar do ensaio. No entanto, queria mesmo sair daquele local
abafado, cheio de gente.
— Viola — disse, com um fio de voz — você não precisa vir comigo.
— Não — disse di Corte firmemente. — Tem que ser como eu estou
dizendo. Você precisa de alguém para acompanhá-la.
Lauri sentiu vontade de dizer que não precisava de acompanhante. Não
pretendia mesmo fugir. Aonde quer que fosse, não conseguiria escapar de si
mesma.
— Por favor, signor di Corte — disse, com a voz suplicante. — Eu estou
bem e não quero atrapalhar mais o ensaio. Deixe Viola ficar. Este ensaio é
muito importante para ela.
— Está bem — ele concordou, voltando-se para Viola e sorrindo. — Pode
voltar ao palco, mocinha.
A jovem dançarina sorriu e afastou-se correndo, para juntar-se aos
companheiros. Lauri não entendia por que Maxim se preocupava com uma
pessoa tão complicada como ela.
— Por favor, desculpe-me. Sei que atrapalhei tudo e…
— Realmente, as coisas estão um pouco complicadas — disse ele,
andando de um lado para outro do camarim. — Já desculpei muita coisa em
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Andreya, mas agora foi demais. Tentar intimidar uma companheira de
trabalho é uma coisa que não pode ser tolerada. Ela vai…
Imediatamente, Lauri pôs-se de pé.
— Signore, deixe que eu parta. Assim as coisas vão se ajeitar. Andreya é
muito importante para o senhor…
— Importante?
Di Corte parou. Parecia um felino, pronto para dar o bote sobre a presa.
— Você diz isso porque eu sou um feitor, que açoito os meus dançarinos
para que eles dancem direitinho, não é? Ou será porque, segundo o seu ponto
de vista, eu sempre coloco o talento para a dança acima do humanismo, da
compaixão, do amor pelos semelhantes?
— Mas o balé é um negócio como outro qualquer, não é? — argumentou
Lauri.
— Justamente. Acho bom que você pense assim, porque amanhã vai
começar a ensaiar Giselle, com Lonza.
Lauri ficou olhando para ele, quase desmaiando novamente.
— Há algum tempo, Andreya já vinha ameaçando deixar a companhia —
disse ele, enquanto caminhava para a saída. — Recebeu alguns convites para
dançar no país dela. Lá, tem muito prestígio e vai ser estrela. Portanto, não
pense que foi você a causa disso tudo.
— Mas ela depende do senhor…
— Andreya não depende de ninguém. Só as pessoas que têm coração
têm esse tipo de necessidade, pobres idiotas.
Ele saiu do camarim e Lauri ficou sozinha. Estava com as pernas
tremendo e sentou-se novamente. Parecia não estar suportando o peso
daquela decisão do diretor.
Ali no palco do teatro da Fênix, o pássaro que ressurgiu das cinzas, ela
deveria interpretar o papel de Giselle. Precisava lembrar-se de tudo o que
Maxim havia ensinado sobre balé. Cada passo, cada gesto sutil. E precisava
esquecer, se pudesse, os insultos de Andreya.
Vestiu-se e saiu do teatro por uma porta lateral. Resolveu caminhar sem
destino, olhando as vitrines das lojas, procurando adaptar-se à nova
realidade. Quando passou em frente ao café Madonna, entrou para tomar
uma xícara.
Pela janela ao lado da mesa onde se sentou, podia ver o Teatro Fênix, tão
antigo e romântico, onde Travilla havia dançado há tanto tempo. Ela tinha
sido adorada pelas multidões. Lauri ficou imaginando qual seria a reação do
público a Giselle que o neto da grande Travilla estaria apresentando dentro de
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duas semanas.
Quando acabou o café e se levantou, tinha tomado uma decisão. Voltou
ao Fênix para assistir ao resto do ensaio. Maxim não disse nada, mas Lauri
pensou ver nos olhos dele um brilho de aprovação.
Dois dias depois, chegou uma resposta ao telegrama que ela tinha
mandado à tia. Por causa da artrite, tia Pat não estava em condições de
escrever, mas ditou a carta a uma vizinha. Estava com muita vontade de ir a
Veneza, assistir à estréia. Infelizmente, o médico era contra.
“Não se preocupe comigo”, dizia a carta. “Concentre-se apenas na sua
dança, Lauri, em obter um grande sucesso quando aparecer no palco do
Fênix. Tenho certeza de que é um lindo teatro. O signor di Corte foi muito
gentil em escrever para mim. Disse que você vai indo muito bem e que ele
tem muita confiança no seu desempenho. É um homem muito mais bondoso
do que você pensa, minha querida. Gostaria, do fundo do meu coração, de
estar aí. No entanto, agora você depende muito mais do signor di Corte do
que de mim. Espero melhorar para poder ir ver você dançar em Londres.
Penso sempre em você, Lauri querida. Dance para mim, da forma que eu sei
que você é capaz de dançar.
Com todo amor e esperança, Tia Pat.”
Quando Lauri terminou de ler, as lágrimas molhavam o papel da carta.
Pobre tia Pat. Sofria tanto, sem nunca se queixar. Leu novamente a parte que
falava da carta de Maxim. Tinha sido um gesto generoso, e Lauri sentiu
vergonha pelo que respondeu quando ele disse que entendia a ansiedade
dela. Lembrou-se de que Venetia também tinha ficado chocada quando soube
que ela considerava Maxim um homem sem coração.
Sorriu, imaginando o que Venetia e tia Pat diriam se vissem o demônio
que tinha dirigido o ensaio no palco do Fênix.
Recostou-se no banco do jardim do palazzo, procurando relaxar. Estava
com os dedos dos pés um pouco feridos e sentia alguma dor. Será que Maxim
sabia que ela estava com os dedos feridos? No ensaio daquela manhã,
reparou que ele não ficou muito satisfeito quando ela executou a parte final
do balé, sentando-se no joelho de Michael. Aqueles passos eram difíceis mas,
quando executados corretamente, eram belíssimos. Rezou para que os
ferimentos sarassem logo.
Já estava na hora de entrar, mas resolveu ficar mais um pouco na paz
daquele jardim. Era bom mesmo afastar-se, pelo menos por algum tempo,
das conversas que giravam sempre sobre o espetáculo que iam estrear. É
verdade que todos estavam procurando animá-la com palavras
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encorajadoras. Os dançarinos, no entanto, têm o dom de falar com os olhos, e
Lauri via naqueles olhos que todos estavam tão preocupados quanto ela.
Pensava naquelas coisas quando viu Maxim se aproximando.
— Vi que havia uma carta para você em cima da mesa — disse ele, com
um ar interessado. — Deve ter sido da sua tia. Como está ela?
— Está bem pior da artrite — respondeu Lauri, sem conseguir esconder
o desapontamento. — Ela não vai poder vir para o espetáculo de estréia.
— É uma pena. Sei quanto isso era importante para você. Mas agora já
sabe que precisa enfrentar tudo sozinha. É a virgem escolhida para o
sacrifício.
Lauri fez uma careta de aborrecimento.
— Se está querendo ser engraçado, saiba que não estou nem um pouco
disposta a rir.
Maxim levantou as duas mãos, como para dizer que não queria briga.
— Eu já tinha notado — disse. — Parece que as coisas não estão saindo
muito bem para você hoje.
Imediatamente ela juntou os pés, alarmada.
— Estou um pouco cansada. E tem também o nervosismo, a tensão …
— Venha comigo — disse ele, pegando firmemente na mão dela. —
Quero dar uma olhada nos seus pés.
— Mas… não há nada de errado com os meus pés.
Lauri tentou soltar a mão mas ele não permitiu. Foi sendo puxada
através do jardim, entrando no hall, até chegar na escada que levaVa à torre.
As lâmpadas dos aposentos dele estavam acesas e havia um criado pondo a
mesa.
Ela reparou que a mesa estava sendo posta para duas pessoas.
Maxim fez um gesto em direção ao sofá e ela se sentou. Seria inútil
desobedecer.
— Tire os sapatos e as meias — ele ordenou. — Vamos lá! Não precisa
ficar envergonhada que eu já vi pernas de fora antes.
Ela tirou os sapatos, soltou as ligas e tirou as meias de náilon. Impassível,
ele se abaixou e examinou os dois pés dela, um após o outro.
Apertou com força o tendão de aquiles, a parte mais vulnerável do pé de
um dançarino. Depois levantou o rosto, com um olhar de desaprovação.
— E você pretendia continuar dançando com esses dedos feridos, até que
estivesse inutilizada para o balé? As sapatilhas que você usa não são feitas a
mão, estou certo?
Ela balançou a cabeça, confirmando.
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— As sapatilhas se estragam muito rapidamente, e as industrializadas
são bem mais baratas.
— Mas acabam saindo mais caras, se a dançarina tem os pés sensíveis.
Virou-se para o criado e disse alguma coisa em italiano. O homem saiu e
retornou logo em seguida, trazendo um tubo de pomada que Maxim
entregou a Lauri.
— Passe isto nos pés, agora. Antes de dormir, faça a mesma coisa.
Amanhã vou levar você para encomendar sapatilhas novas, sob medida.
Quero que me prometa que nunca mais vai usar essas sapatilhas
industrializadas. Lembre-se de que seus pés são muito valiosos, e muito
vulneráveis também, porque você é jovem.
— É muita gentileza sua preocupar-se com os meus pés — disse ela,
sublinhando as duas últimas palavras, ao mesmo tempo em que mas-sageava
os dedos dos pés com a pomada.
Ele sorriu e pegou no bar uma garrafa e dois copos.
— Você não acha, realmente, que eu estou sendo gentil. Pensa que estou
preocupado apenas com o meu investimento.
— E não está, signore?
Ele entregou a ela uma dose de conhaque.
— Nesse caso, permita que o meu investimento fique aqui mais algum
tempo. Soube que o Lonza saiu para jantar com um grupo de pessoas.
Portanto, você estará livre para jantar comigo, aqui na torre.
Lauri olhou a mesa posta, com velas acesas e flores.
— Pensei que estava esperando alguém especial — disse ela, confusa. —
Não estou nem vestida para um jantar assim.
— Não se preocupe com isso.
Maxim olhou a fivela que prendia os cabelos dela, o rosto sem
maquilagem e, por fim, aqueles pés pequenos e descalços. Quanto a ele,
estava impecável, vestindo um smoking preto e calças cinza.
— Beba o conhaque e relaxe — ele sugeriu. — Talvez um pouco de
música ajude.
Ele foi até o aparelho de som e colocou um disco. Os acordes de O Lago
dos Cisnes chegaram aos ouvidos de Lauri, trazendo a lembrança do primeiro
encontro que ela tivera com Maxim di Corte. Naquela noite, ele lhe parecera o
mais assustador dos homens, com aquele rosto altivo, os olhos penetrantes e
o sorriso raro. Olhou por cima do copo de conhaque e ficou imaginando se
ele estava lendo o pensamento dela.
— Quando resolve transformar um pato num cisne, signore, vai mesmo
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até o fim — disse, sorrindo timidamente.
— Sempre gostei de desafios. Mesmo que você dançasse como uma pata,
eu teria aceito o desafio.
— Só por causa da minha semelhança com Travilla? — perguntou Lauri,
olhando o retrato da avó de Maxim, aquele semblante indefeso, a poesia que
havia naquele rosto e naqueles olhos. — É estranho. Parece que estou me
olhando num espelho d'água, vendo a minha imagem meio fora de foco.
— Quando você subir no palco do Fênix para dançar Giselle, a platéia vai
pensar que estará vendo um fantasma.
Por alguns instantes, Maxim ficou olhando o retrato. Depois voltou-se
para ela, com um sorriso.
— Você vai estar usando roupas iguais àquelas. Até as flores serão iguais.
Talvez isto faça com que se sinta um pouco menos sozinha.
Disse aquilo e afastou-se, ordenando ao criado que começasse a servir o
jantar. Lauri calçou os sapatos, tirou o casaco e foi até o banheiro, lavar as
mãos.
Quando voltou, as lâmpadas estavam apagadas. Apenas as velas
iluminavam o ambiente.
-— Que flores lindas — disse ela.
Pensou novamente que ele devia ter estado esperando alguém especial,
talvez Venetia, que na última hora não pôde comparecer.
— As flores são como as mulheres — ele disse. — Vão mudando com o
passar das horas. À luz de velas, são muito mais bonitas do que quando
iluminadas pelo sol.
Enquanto ele servia o vinho, Lauri olhou aquele aposento circular, com
móveis antigos muito conservados e os olhos de Travilla pairando sobre tudo.
Era um ambiente que convidava ao repouso. Ela, porém, sentia-se um pouco
tensa.
O criado servia-a de uma posta de peixe ao molho de vinho branco.
— À rápida recuperação de sua tia — brindou Maxim, levantando a taça
de vinho. — Tenho certeza de que, pelo menos no espírito, ela estará com
você na noite de estréia, na semana que vem.
— Na semana que vem — repetiu Lauri, tomando um gole de vinho para
criar coragem.
Maxim olhava para ela através das rosas e da chama das velas.
— A presença da sua tia é tão importante assim? Vai ter Lonza como
partner, e eu também vou estar lá. Ficarei sempre nos bastidores.
— Como meu feitor?
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— Não — disse ele, passando de repente a falar de modo áspero.
— Nunca procurei forçar você a fazer nada. Apenas quero trazer para
fora o que está dentro de você. Criancinha tola, será que ainda não
compreendeu?
— Compreendi, e já faz muito tempo — ela respondeu, um pouco
enervada pelo tom de voz dele.
— O que está querendo dizer? O que foi que você compreendeu?
— Compreendi que o senhor está querendo revelar aos amantes do balé
uma nova Travilla — respondeu, baixando os olhos para o prato.
— Só espero, signore, que eu seja capaz de corresponder ao que está
esperando de mim.
Por alguns instantes fizeram silêncio. Maxim a observava, comum sorriso
enigmático.
— Quero que me prometa uma coisa, Lauri: nunca se entregar à vida
mundana.
Ela sorriu, afastando com a ponta do dedo uma pétala de rosa que tinha
caído na mesa.
— Não é uma promessa difícil de cumprir. Afinal, não se transforma um
pato em cisne assim tão fácil, signore.
Ele pareceu gostar da resposta.
— Falando em cisnes — disse —, Lorenzo está trazendo um pato assado
para o nosso jantar.
— Está brincando! — exclamou Lauri. — Que horror! Maxim riu e olhou
para os lados.
— Não deixe Lorenzo ouvir o que você está dizendo. Ele tem muito
orgulho do pato assado que faz e já me prometeu que o de hoje vai estar uma
delícia.
— Não vou comer nem um pedacinho.
Quando Lorenzo entrou, trazendo a ave numa bandeja, Lauri olhou para
ele de um jeito meio enviesado. Maxim ria. Chamou o criado e disse alguma
coisa em italiano. Lorenzo olhou para Lauri e saiu, apressado. Logo depois
voltava, trazendo um pato cuidadosamente esculpido em sorvete de baunilha
e morango, nadando num lago de gelatina.
— Lorenzo fez especialmente para você — disse Maxim.
— Para mim? — disse Lauri, sorrindo para o criado. — Mas é lindo,
Lorenzo! É até pecado comer.
— Pecado seria deixá-lo derreter — disse Maxim.— Não é possível
manter-se no céu o arco-íris, ou segurar no ar uma nota musical, assim como
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não é possível manter de pé um pato de sorvete. Quando você crescer um
pouco mais, minha menina, vai aprender que se deve amar e esquecer.
Lorenzo retirou-se discretamente, levando o sorvete para mantê-lo na
geladeira por mais algum tempo.
— O senhor é capaz disso? Amar e esquecer?
— Se for necessário — ele respondeu, sério. — Não se pode abocanhar a
felicidade. É como querer segurar a água na mão, ou um raio de sol. Eles
acabam escorrendo entre os dedos… Mas vamos comer, antes que o jantar
esfrie.
Lauri abaixou a cabeça para o prato e obedeceu. Na sua cabeça, porém,
martelavam as palavras de Maxim. Ele tinha dito que se devia amar e
esquecer. Talvez quisesse dizer que Venetia podia esquecer o passado,
ficando livre para amar novamente.
— Quer um pouco mais de vinho, Laurina?
— Meu copo ainda está pela metade, signore.
— Então, beba. Vai lhe fazer bem.
Mais uma vez, ela obedeceu. Laurina, ele tinha dito. Até um nome
italiano estava arranjando para ela.
Na sobremesa, dividiram o sorvete de baunilha e morango. Depois,
escutaram gravações de românticas sonatas ao piano. Mais tarde, Maxim
disse que já era hora de ir para a cama e se dispôs a levá-la até o hall. Quando
ele abriu a porta para descerem a escada, porém, ela sentiu um golpe de ar e
estremeceu, esbarrando involuntariamente em Maxim.
— O que foi? — ele perguntou. Lauri riu, nervosa.
— Não foi nada. É que às vezes penso que este palazzo é mal-
assombrado.
— As construções antigas sempre têm os seus fantasmas. Às vezes
alguma coisa rola no chão e nós pensamos que é o vestido de seda de uma
dama medieval. Eu mesmo já tive impressões assim. São coisas deste palácio
antigo. Mas você sabe que não é nada mais que a sua imaginação, brincando
com você.
— Claro, é bobagem minha. Buona notte, signore. Maxim beijou a mão
dela.
— Buona noite, signorina. Amanhã não precisa ir ao ensaio, mas tem que
ir tirar as medidas para a sapatilha. Está com a pomada?
— No meu bolso — disse Lauri, pensando que era uma atitude muito
típica de Maxim beijar a mão dela e, logo em seguida, falar dos pés dela,
aqueles preciosos pés de dançarina. — Muito obrigada pela pomada. Meus
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pés já estão doendo menos.
— É bom ouvir isso. Agora, já para a cama.
Quando ia atravessando o hall, ela se voltou. Maxim ainda estava ao pé
da escada da torre, meio escondido pelas sombras. Talvez fosse apenas
impressão, coisa daquele palácio antigo, mas ele pareceu naquele momento
uma pessoa muito só.

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CAPÍTULO X

Finalmente, chegou a grande noite. Havia uma agitação muito grande,


com homens correndo de um lado para outro e mulheres dando os retoques
finais nas roupas. Estavam todos muito tensos.
Recepcionistas uniformizados conduziam o público aos seus lugares na
platéia ou nos camarotes. O ar estava carregado de um sentimento quase
mágico, que sempre toma conta dos amantes da arte em ocasiões
como aquela.
Todos já sabiam que uma jovem bailarina ia substituir Lydia Andreya no
papel de Giselle e aquilo aumentava ainda mais a excitação. Era uma inglesa,
bastante jovem. Nunca tinha antes dançado num papel tão importante, mas o
que se dizia era que estava tendo aquela oportunidade por ser muito parecida
com Travilla di Corte.
— A jovem pode ser parecida com ela — diziam os mais velhos —, mas
jamais alguém será capaz de transmitir o mesmo encantamento de Travilla.
No camarim, Lauri imaginava, quase sentia com os nervos, o que as
pessoas estavam dizendo. Olhou-se no espelho. A maquilagem fazia com que
aqueles olhos grandes parecessem ainda maiores. Examinou o contorno do
rosto e o pescoço comprido. Naquela noite, aquele pescoço se curvaria para
receber os aplausos… ou a espada afiada da
crítica.
Sentia medo e solidão. Maxim tinha lhe reservado um camarim bem no
final do corredor, longe dos outros dançarinos. “Você precisa de
tranqüilidade”, ele tinha explicado. “Os outros já estão acostumados com
noites de estréia. É como se estivessem tomando um copo de vinho. Mas com
você é diferente.”
Tocou as flores que enfeitavam os cabelos, iguais às que Travilla tinha
usado. Pensou que mais parecia um fantasma, pronto para assustar a platéia
do Teatro Fênix. Riu daquele pensamento tolo, que pelo menos serviu para
acalmá-la um pouco. Alguém bateu à porta.
— Entre.
O camarim se encheu de um agradável perfume quando um rapazinho
entrou, carregando uma enorme cesta de flores. Havia muitos lírios, uma
dúzia de rosas amarelas e uma orquídea.
— Que lindo! — disse Lauri, pegando os dois cartões que

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acompanhavam as flores.
O primeiro vinha dos membros do corpo de baile, desejando sorte. Ela
sorriu e leu os dizeres do outro cartão: “Os lírios são pela inocência, as rosas
pela juventude, e a orquídea um símbolo do amor que vamos dançar esta
noite”.
O cartão não tinha assinatura, mas ela adivinhou imediatamente que
vinha de Michael Lonza. Michael, que continha todo o fogo e todo o espírito
da dança, para quem o amor era apenas um êxtase a ser vivido pelo corpo.
Lauri arranjou um vaso, encheu de água e colocou nele as flores. Escutou
um som de vozes e passos vindo do lado dos bastidores. O corpo de baile já
devia estar esperando que as cortinas se abrissem.
O coração dela batia descompassado. Dentro de mais algum tempo, teria
que entrar no palco. Naquele momento, porém, precisava manter-se ocupada.
Pôs laquê no cabelo e ajeitou as flores. Abaixou-se e verificou se as sapatilhas
estavam amarradas corretamente. Aquelas sapatilhas ajustavam-se tão
perfeitamente que pareciam fazer parte dos seus pés. A costureira entrou,
para dar os últimos retoques na roupa, mas não teve muito o que fazer.
Lauri estava consciente de que aquele não era apenas o primeiro grande
papel da vida dela. Estava também substituindo uma bailarina de renome.
Ficou ainda mais assustada quando se lembrou das palavras de Andreya
sobre o escárnio do público. Ela sabia que não poderia suportar uma vaia.
Sentiu as pernas tremendo mas não teve coragem de sentar-se, com medo de
amarrotar a roupa.
Bateram novamente à porta.
— O diretore! — anunciou a costureira, abrindo a porta. Maxim entrou,
muito elegante na roupa de gala.
— Ah! Já está pronta! — disse ele, olhando depois para as flores. —
Quem mandou?
— Foi o pessoal do corpo de baile.
— É um costume mandar flores na noite de estréia. Eu também trouxe.
Lauri olhou para ele, curiosa. A única flor que conseguia ver era um
cravo na lapela. Maxim sorriu e tirou do bolso uma caixinha. Quando ele
abriu a caixa, apareceu um broche de ouro, na forma de um buquê de flores.
Era simples, mas Lauri percebeu que, sendo uma jóia antiga, devia ter
custado muito dinheiro.
— Acho melhor você não usar isto durante o balé — disse ele. — Não
quero que Lonza se encoste nesta jóia. Deixe para usá-la no coquetel.
— É muito bonito, signore — disse ela, pegando o broche. — Terei muito
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prazer em usá-lo.
— E guardá-lo para você, é o que espero. Lauri arregalou os olhos.
— Guardá-lo… para mim?
— E por que não?
A voz dele era calma, não parecendo nada com a de quem está
oferecendo uma jóia muito valiosa.
— Porque é de muito valor. Se fosse uma coisa mais simples… Bem, seria
completamente diferente.
— Seria mesmo. Só que eu jamais vou oferecer a você alguma coisa de
pouco valor, e também não vou agradecer por estar recusando a minha
oferta. Mas você vai aceitar, primeiro porque eu quero que aceite, depois
porque não existe mais ninguém em quem esta jóia fique tão bem.
— E Venetia?
Lauri disse aquilo num impulso, quase sem pensar.
— Venetia? Se você tivesse um broche que fosse uma… uma herança de
família, iria dá-lo a alguém… de fora?
Lauri afastou-se, sem entender bem o significado das palavras dele.
Maxim guardou o broche na caixa e segurou nos ombros dela. As mãos dele
estavam quentes.
— Agora não é hora de discutir coisas do amor, direitos, deveres, etc.
Daqui a pouco você vai entrar naquele palco. Como está se sentindo, menina?
— Assustada.
— Quando você entrar naquele palco, estará carregando as esperanças
da sua tia, que não pode estar aqui hoje, a solidariedade dos seus
companheiros e a minha crença de que você é uma dançarina. Será Giselle,
não Lauri Garner. Esqueça a platéia, esqueça o teatro, esqueça tudo. Lembre-
se apenas de que é uma jovem apaixonada.
Segurou o rosto dela com as duas mãos, forçando-a a olhá-lo nos olhos.
— Laurina, você não deve ter medo de nada. Lembre-se de que vou estar
nos bastidores, a poucos metros de você. Eu não pediria nada que você não
tivesse condição de dar, e sei que Giselle está no seu coração, pronta para ser
oferecida aos que amam o balé.
— Aos que amam o balé — ela repetiu, pensando em tia Pat. Sabia que
tia Pat estava pensando nela agora, que ficaria orgulhosa se pudesse vê-la no
palco, exercendo aquele poder de encantamento sobre os amantes da arte.
Sorriu e olhou para Maxim.
— Fico feliz que esteja nos bastidores, signore. Confio no senhor.
— Sim, confie em mim — ele disse numa voz profunda, quase de ânsia.
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— Aconteça o que acontecer, saiba que você está no meu coração.
Afastou-se e deu uma última olhada naquelas roupas que tinham
pertencido à avó.
— Vamos — disse, pegando na mão dela. — Está quase na hora de você
entrar em cena.
Caminharam pelo corredor e logo estavam entre os bastidores, ao lado
do palco. Ela jamais confessaria que, no último momento, quando a música
anunciou que era hora de entrar, teve o impulso de pular nos braços dele e
ficar lá para sempre. Quando se deu conta, já estava no palco, sob a luz dos
refletores.
A orquestra parou de tocar. Lauri deveria seguir dançando, em completo
silêncio. Executando com perfeição os passos da dança, sentiu como se
estivesse sendo guiada do lado de fora. Os movimentos do seu corpo deviam
estar sendo controlados por cordões invisíveis, ligados a um coração.
Virando-se para o lado esquerdo, viu Maxim, nos bastidores, sorrindo.
Percebeu que teria que se entregar inteiramente àquele homem, não como
mulher, mas como dançarina.
Quando as cortinas se fecharam, no final do primeiro ato, havia uma
excitação geral. Giselle, louca de amor, tinha se matado com a espada de
Albrecht. No segundo ato ela reapareceria, representando o espírito de uma
virgem que tinha morrido com o amor insatisfeito.
No caminho para o camarim, Lauri encontrou-se com Michael.
— Lauri, minha adorável criança! — ele exclamou, beijando-a na testa. —
Esteve maravilhosa, Nijinka! Nunca vi você dançar assim. Deve estar
apaixonada, e espero que seja por mim.
Ela procurou passar pelo partner, rindo e quase chorando, mal
conseguindo controlar a emoção.
— Michael, seu bobo… Deixe-me ir. Preciso trocar de roupa.
— Lauri, você esteve soberba. Aquelas pessoas estão amando você tanto
quanto eu.
Ela entrou correndo no camarim e fechou a porta. Respirou fundo e
lembrou-se de que tinha interpretado as cenas de amor com excessivo
realismo. Sentia uma profunda dor no coração, e era por causa de Maxim.-
*Deus do céu! Estava perdidamente apaixonada por ele. Só agora percebia
aquilo.
Amava-o, sem saber, desde aquela primeira noite na torre. Na ilha onde
Venetia morava, tinha sabido de um amor do qual ela não podia participar.
A costureira abriu a porta e entrou, começando logo a tagarelar. Todos
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só falavam no balé, dizia a mulher. O diretore estava cercado por um mundo
de gente. Ela nem tinha podido entregar um papel que tinha caído do bolso
dele, junto com o lenço.
— Pode deixar que eu entrego — disse Lauri, estendendo a mão. Sentiu
o sangue gelar quando viu o que estava escrito no envelope que a mulher lhe
entregava. Era o nome dela!
A costureira começou a arrumar a roupa e os enfeites que seriam usados
no ato seguinte. Quando ouviu a respiração ofegante de Lauri, correu para
ela.
— Signorina, não está se sentindo bem?
Lauri estava aturdida, chocada pelo quê dizia o telegrama. Tia Pat tinha
sido levada para o hospital na noite anterior… E Maxim tinha guardado o
telegrama para que o pensamento dela se voltasse apenas para o precioso
balé.
Fechou o envelope e, como se estivesse em transe, com os olhos parados,
deixou-se vestir para o último ato. Lá fora, os membros do corpo de baile já se
dirigiam aos bastidores. Quando terminou de se vestir, juntou-se a eles e
caminhou até o local onde estava Maxim. Sem dizer nada, estendeu a mão
para entregar o telegrama.
— Onde encontrou isto? — perguntou Maxim, olhando para ela.
— Caiu do seu bolso e a costureira apanhou — ela respondeu, com a voz
fria e o olhar fixo. — Como estava endereçada a mim, abri para ver do que se
tratava.
— Minha querida…
— Não — disse ela, indicando com um gesto o palco, os bastidores, os
dançarinos. — Isso aí é tudo o que interessa a você. É a razão da sua vida e a
dor de outras pessoas não deve interferir nos seus projetos. Acho que odeio
você, Maxim. Esta noite vou voltar para casa e para tia Pat. Não vou dançar
mais!
Maxim segurou no braço dela e fez com que entrasse numa pequena sala
ao lado do palco. Fechou a porta e olhou para Lauri, com determinação nos
olhos.
— Sabia que você ia se sentir assim. Por favor, não queira entender os
meus motivos. Fiz apenas o que acreditava ser o melhor para você…
— Ou o melhor para o balé? — ela interrompeu, irada. — E alcançou
mesmo o sucesso no lançamento da sua segunda Travilla, não foi, Maxim? As
pessoas lá fora estão dizendo justamente o que você queria que elas
dissessem.
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— Quem conseguiu o sucesso foi você! Será que não está vendo isto?
Lauri fez um gesto de cansaço e desdém.
— Eu nunca almejei a fama, a luz dos refletores, o assédio das multidões.
— Não é isso o que estou querendo dizer — falou Maxim calmamente.
— Antes, quando você dançava, parecia que havia dois fantasmas segurando
os seus pés. Hoje você se livrou dos fantasmas. Dançou como nunca, com as
pernas livres. Com isso, provou que aquela mulher brava e desprendida
estava certa quando insistiu que você viesse para cá, dedicar-se à dança.
— Foi você quem insistiu com ela para que me deixasse vir. Acho que
sabia desde o princípio que ela estava muito mal, muito pior do que me
diziam.
— É verdade, eu sabia. Ela mesma me contou. Mas disse também que
queria que você tivesse a chance de se tornar uma grande dançarina. Sua tia
acredita que a dança está no seu sangue. Eu também acredito, e não só pelo
que você dançou esta noite. E agora, vai deixar que ela fique desapontada?
Lauri olhou para Maxim. Novamente pensou que ele jamais seria para
ela mais que um.estranho.
— Não, signore. Agora preciso ir. Não vai querer que eu entre no palco
atrasada. Amanhã tomarei um avião para a Inglaterra. Minha tia precisa de
mim.
— Está bem — disse ele, abrindo a porta.
Ela correu para os bastidores e ficou esperando a deixa para entrar em
cena. Ia interpretar o espírito de uma jovem infeliz no amor.
O silêncio era total e ninguém se mexia na platéia lotada do teatro. Todos
olhavam fixamente para a jovem dançarina de grandes olhos cor de mel. Ela
se sentia indefesa, empurrada para o palco pelas mais diferentes forças: amor,
traição, caprichos e crueldades de outras pessoas, nas quais tinha confiado.
Deü um salto e caiu nos braços do partner. O romantismo daquela cena
inundou o palco e o coração dos que assistiam. Todos acreditaram novamente
que a inocência realmente existia.
O pas de deux foi dançado com tanta sensibilidade que, em algum lugar
da platéia, uma mulher não conseguiu reprimir um soluço. Seria possível um
amor tão grande como o daquela jovem? Ela segurava nas mãos o rosto
moreno do amado, com uma enorme mágoa estampada nos olhos pela
impossibilidade de realizar aquele amor.
Lauri transmitia na dança toda a dor que sentia no coração. Michael, que
tinha presenciado, pouco antes, o encontro dela com Maxim, nos bastidores,
sabia que a doce Nijinka não seria dele. Assim mesmo, demonstrava uma
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incrível ternura.
Inevitavelmente, chegou o momento da separação entre Giselle e
Albrecht. Quando ele se ajoelhou e cobriu o rosto com os lírios do túmulo da
amada, ouviu-se um murmúrio na platéia. Logo em seguida, vieram as
palmas, como um trovão.
— Bravo! Bravíssimo!
A platéia gritava e, no palco, as duas figuras esbeltas agradeciam,
inclinando a cabeça. O rosto de Lauri estava molhado pelas lágrimas.
Muitas flores eram jogadas no palco. Escondido nos bastidores, um
homem alto e moreno aplaudia, sorrindo discretamente.
Lonza voltou-se para a companheira, pegou as mãos dela e beijou-as.
— Nijinka — murmurou.
Os gritos e os aplausos da assistência aumentaram com aquele beijo.
— Bravo! Bravíssimo!
O triunfo de Maxim era completo. Os dançarinos estavam excitados.
Quando as cortinas finalmente se fecharam, eles cercaram Lauri para abraçá-
la e beijá-la.
— Todos para os camarins! — ordenou Bruno, entrando no meio deles.
— Lauri deve estar muito cansada, depois desse desempenho maravilhoso.
— Obrigada, Bruno — disse ela.
Olhando para um lado, Lauri viu que Maxim se aproximava. Antes que
ele chegasse perto, ela correu para o camarim. Estava calmo lá, mas não tinha
nenhuma intenção de demorar. Rapidamente tirou as sapatilhas e calçou os
sapatos. Com uma toalha, limpou a maquilagem do rosto. Depois, tirou as
flores do cabelo e saiu do camarim. Ia abotoando um sobretudo por cima das
roupas de dança enquanto saía por uma porta lateral do teatro.
Uma neblina fraca cobria a cidade. Enquanto caminhava, Lauri tomou
consciência de que estava entre coisas tão opostas como o triunfo e o
desespero.
Meteu as mãos nos bolsos e continuou andando. Lembrou-se do que
tinha dito a Maxim: “Acho que odeio você… odeio você”. Aquelas palavras
martelavam na cabeça dela.
Chegou numa ponte, caminhou até o meio dela e encostou-se na
amurada. Estava frio, mas resolveu ficar ali olhando a lua, que sumia e
aparecia novamente no meio das nuvens. Uma gôndola passou lá embaixo.
Desejou que o dia seguinte chegasse logo. Queria dizer a tia Pat que a
única coisa que ela queria era amor. Ser uma grande dançarina era um sonho
de outras pessoas, não dela.
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Quando se voltou para ir embora, viu alguém que se aproximava na
neblina. Encostou-se na amurada da ponte.
— Vá embora — disse. — Já chega por hoje.
— Acha mesmo que eu vou embora deixando você aqui? — falou
Maxim. — Que criancice! Saiu do teatro com a roupa de dança, só com essa
capa fina por cima. Felizmente o porteiro viu quando você saiu e me disse
para que lado tinha vindo. Como eu sei que você gosta de pontes, achei que
devia ter vindo passear por aqui.
— Passear? Como pode falar assim, quando minha tia está no hospital e
você esconde o fato de mim… pelo bem do balé?
— Que bem você podia fazer à sua tia se resolvesse não dançar hoje?
Tenho certeza de que, sabendo do seu triunfo, ela vai até melhorar. Eu estava
passando um telegrama para o hospital quando você fugiu do teatro.
— Oh! — ela exclamou, com um soluço.
Enquanto a abraçava, Maxim afagou os cabelos dela, num gesto protetor.
— Você é mesmo uma criança. Do outro lado desta ponte há um
restaurante. Vamos até lá tomar um café.
— Seria bom — concordou Lauri.
Atravessaram a ponte, ouvindo a música suave que vinha do restaurante.
Maxim mantinha o braço em volta do ombro dela. Aquilo fazia com que
Lauri se sentisse mais segura.
— Preciso agradecer, signore, pelo telegrama que mandou à tia Pat. Foi
muita gentileza sua.
— Eu também posso ser gentil. Venetia ficou realmente chocada quando
você disse que eu não tinha coração.
Lauri forçou um riso para esconder um soluço.
— Não é bem que não tenha coração. Venetia deve ter visto em seu
coração alguma coisa que eu não vi. Deve ter visto… amor.
Ele parou e voltou-se para ela.
— Não estou entendendo. Por que Venetia teria condições de entender o
meu coração mais do que outras pessoas?
— Porque você a ama.
Ele pareceu espantado.
— Conheço Venetia há muito tempo, é uma amiga muito querida, mas
de onde você tirou essa idéia de que eu a amo?
— Você mesmo disse, naquele dia na Vila Nora. Disse que a mulher que
amava estava na ilha.
Maxim segurou os ombros dela. Lauri tremia de frio, de nervosismo e
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por causa da proximidade dele. — Queria fugir, mas quanto mais procurava
escapar, mais ele a segurava firmemente. Quando viu, estava praticamente
encostada nele.
— Signore… por favor…
— Por favor o quê? — disse ele, brincando. — Então você ficou com
ciúmes quando eu disse que a mulher que eu amava estava na ilha? Espero
que tenha ficado, carina, porque eu já senti muito ciúme de você.
— De mim?
Maxim sorria, com aquele sorriso que, desde o primeiro encontro, tinha
mexido com o coração dela.
— Eu posso ser ciumento e cruel como qualquer homem apaixonado.
Parados no meio da ponte, eles se olhavam como se não houvesse mais
ninguém no mundo.
— Você estava na ilha, não estava? Tudo o que eu disse se referia a você.
Precisava, antes, poder dançar livremente, sem aqueles medos infantis. Por
isso fui tão rude com você, quase a obrigando a dançar hoje. Nunca mais vou
fazer isto, meu amor. Você só dançará se quiser.
Lauri encostou a cabeça no ombro dele.
— Em Londres, quero dançar para tia Pat — disse, com ternura na voz.
— Você não se incomoda, Maxim, se eu for me encontrar com ela amanhã?
— Eu vou com você.
— Mas… E a companhia?
Lauri olhava para Maxim com tanto espanto que ele começou a rir.
— Bruno pode tomar conta de tudo. Agora, meu amor, você vem na
frente de tudo. Agora e sempre.
— Agora e sempre? — ela repetiu. — Oh! Maxim…
Agora e sempre. Aquelas palavras soavam tão doces, tão ricas em
promessas.
— Você não vai ser minha para sempre? — ele perguntou.
Lauri balançou a cabeça afirmativamente. Fechou os olhos e aninhou-se
no peito dele.
— Não sei como pode me amar — murmurou. — É tão experiente e
culto, enquanto eu sou tão boba. Será que não vou aborrecer você?
— Bobos são os outros, minha criança. Como eu já disse uma vez, não
quero que você mude nunca, querida. Amo você exatamente do jeito que é,
toda coração, toda inocência.
— E se eu tivesse me apaixonado por outra pessoa?
— Os deuses não teriam sido tão maus assim comigo, depois de eu ter
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esperado tanto tempo. Você é tudo para mim, Laurina. Cada gesto seu, cada
passo de dança, cada sorriso é querido para mim.
Naquela velha ponte de Veneza, onde Lauri e Maxim trocavam juras de
amor, muitos namorados já se tinham beijado através dos séculos.
Uma gôndola passou no canal e eles escutaram a voz do gondoleiro,
clara e forte:
— Case-se jovem, menina, na verdura dos anos…

FIM

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Você vai viver uma história emocionante!

SABRINA 191

COMEÇAR DE NOVO…
Jane Donnelly

Quem visse Angela Millar hão diria que ela tinha problemas. Era bonita, vivia numa
cidade agradável do interior da Inglaterra, tinha um bom emprego e um noivo
atraente. Mas Angela guardava um segredo terrível: era fria, sexualmente, desde a
noite em que foi rejeitada por Matt Hanlon, por quem estava apaixonadíssima. Mais
velho que ela, Matt não quis se envolver e pediu que ela saísse de seu quarto, fosse
dormir… Amargurada, Angela não sabia o que decidir agora. Se casasse com o noivo,
estaria morta para o sexo. Se procurasse Matt, para curar-se, ele poderia rejeitá-la de
novo…

Um romance que você não pode perder!

SABRINA 192

QUANDO OS DEUSES SE APAIXONAM


Elizabeth Hunter

Charity levantou os olhos do livro e não pôde acreditar no que estava vendo. Devia
ser efeito do sol forte da Grécia, ou da magia daquelas ruínas misteriosas. Apolo
vinha andando na direção dela! Tornou a olhar para a gravura do livro e depois para
o homem. Era como se o deus grego ganhasse vida de repente. Com o coração
disparado, esperou que a visão desaparecesse no ar. Mas Apolo falou com ela. E,
daquele momento em diante, a vida de Charity ficou em suas mãos. Nas mãos de
Lukas Papandreous, que se considerava mesmo um semideus, com poderes diabólicos
e sede de vingança!

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