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aos segredos
da antiga
sabedoria
siberiana
Círculo
de Xamãs
Olga Kharitidi
Tradução de PEDRO RIBEIRO
ROCCO
Rio de Janeiro - 2001
Kharitidi, Olga
K9lc
Círculo de xamãs: iniciação aos segredos da antiga sabedoria
siberiana / Olga Kharitidi; tradução de Pedro Ribeiro. - Rio de Janeiro:
Rocco, 2001.
(Arco do Tempo)
De acordo com a tradição, este hino era oferecido para expiar possíveis quebras
nas condições sob as quais a Sabedoria Sagrada poderia ser transferida.
Nota da autora
Olga Kharitidi
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Prólogo
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
intensidade nos seus rostos. Não escuto som algum, a não ser as insistentes
batidas do tambor.
De início não compreendo por que os homens pareciam tão estranhos para
mim, mas à medida que noto mais e mais detalhes, percebo que seus rostos
mostram uma consciência e ligação com sua cerimônia que as pessoas do nosso
mundo moderno perderam. Compreendo que eles são seres antigos, e que estou
experimentando algo que aconteceu há muitos milhares de anos.
Ainda estou flutuando acima do círculo de dança, descendo gradualmente
rumo à finalidade da minha vinda. A mulher que é o ponto focal da dança e do
batuque torna-se mais visível à medida que eu desço. Sua figura sem vida é
incrivelmente bela. A simplicidade do seu vestido cinza-amarelado faz um forte
contraste com as jóias elaboradas que enfeitam seu pescoço e corpete. Embora os
colares sejam toscamente confeccionados, as jóias que brilham neles são
belíssimas. Sei que ela acabou de morrer.
Olho ao meu redor numa tentativa de decifrar o que está acontecendo e o
que estou fazendo aqui. Meus olhos são atraídos para uma velha. Ela está
sentada numa pequena caixa de madeira próxima a uma estrutura semelhante a
um yurt, uma tenda mongol, com um teto pontudo feito de grama trançada. Ela
está fumando um cachimbo, movendo os olhos constantemente do círculo de
dança para o céu, com sua presença em toda parte ao mesmo tempo. A sua idade
física parece próxima a cem anos, mas a sua aparência não tem idade. Sua pele é
escura e enrugada, como pergaminho pintado exposto ao sol constante durante
muitas vidas. Seus olhos são estreitos, como os de muitos mongóis da atualidade.
Eles se estreitam mais ainda enquanto ela traga a fumaça de seu cachimbo.
A sua participação na cerimônia não inclui a movimentação física dos
outros. O ritmo de seu corpo é muito mais lento do que o dos dançarinos. Ela
respira calmamente, e às vezes levanta a cabeça lentamente para o céu, como se
estivesse esperando alguma coisa. No momento em que penso nisso, ela olha
diretamente para mim e fico sabendo que me viu. Há um poder no fato de ser
reconhecida por essa mulher; e ele cria uma estranha mistura de alegria e medo
dentro de mim.
Continuo a flutuar levemente acima do chão. Uma questão se forma em
minha mente enquanto sinto a mulher me focalizar e se concentrar em mim.
"Quem sou eu, e o que estou fazendo aqui?" Então o ritmo do tambor pára
abruptamente, e os homens param de dançar como se fossem um único corpo,
eles olham para mim e começam a cantar. A linguagem deles me é desconhecida,
mas de algum modo, entre as coisas que gritam reconheço as palavras, "Deusa
Branca! A Deusa Branca está aqui!" Não é através de uma compreensão da
linguagem deles que reconheço essas palavras. Elas são de algum modo
embebidas no meu ser, junto com o olhar penetrante da mulher idosa, que me dá
a sensação de ondas me atravessando sem parar.
Minha atenção é subitamente redirecionada para os homens, que se
moveram num círculo maior ao redor da bela garota, abrindo espaço para eu
descer com facilidade ao lado dela. As suas cabeças estão inclinadas para cima,
olhando para mim, e sinto a expectativa deles diante do que está por vir. Nada
me surpreende. Se a surpresa estiver por vir, será mais tarde, quando eu me
encontrar de pé novamente na minha sacada.
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vários distritos da cidade. Foi depois da construção da primeira ponte, no final do último
século, que a cidade começou a crescer. No inverno, o Ob é coberto com gelo espesso, e
os homens que gostam de pescar podem caminhar até o meio do rio para cortar
aberturas arredondadas. Então podem ficar sentados com seus camaradas, contando
histórias e fofocando no gelo durante horas, esperando pela primeira mordida de um
peixe faminto. A rota de ônibus segue a costa do Ob até imediatamente antes de chegar
ao meu hospital, e hoje, como praticamente todo dia de inverno, os pescadores
madrugadores enchiam o ônibus inteiro com seu equipamento volumoso, sentando nos
melhores lugares, vestindo longos e escuros casacos invernais e falando em vozes altas
e rascantes pontuadas por blasfêmias.
Eu trabalhava num grande hospital psiquiátrico com milhares de pacientes. O
hospital ficava fora da cidade, porque sempre foi considerado mais seguro localizar
essas instituições longe das áreas populosas. Depois do que parecia muito mais de duas
horas de pé, balançando para frente e para trás, mas de outro modo imobilizada pela
multidão opressiva no ônibus congelante e sem aquecimento, finalmente alcancei minha
parada no hospital. Saí e caminhei rapidamente, tentando restaurar a sensação aos meus
pés entorpecidos.
A cada dia, o mesmo quadro desanimador me saudava: treze prédios de um andar
construídos no estilo de velhos quartéis de madeira, pintados de uma cor verde-
amarelada, com barras de ferro pesadas e cheias de ferrugem cobrindo suas pequenas
janelas. Este lugar oferecia a parte mais importante da minha vida; este era o meu
hospital.
Caminhando pelo pátio do hospital, vi cerca de vinte pessoas deixando o edifício
que servia como cozinha. Elas carregavam pesados baldes de metal cheios de desjejum,
e se apressavam de volta para suas enfermarias numa inútil tentativa de manter o chá e
seu grude aquecidos. Eu mal podia vê-las porque ainda estava muito escuro, mas podia
escutar seus passos claramente na neve gelada, acompanhados pelos sons metálicos de
suas bandejas enquanto tomavam caminhos distintos para seus diferentes prédios. O
mesmo grude era servido todos os dias. Era a única comida disponível para nós. As
grandes bandejas de metal, com suas duas alças de metal e tampas chatas, me
lembravam do que poderia ser usado para alimentar prisioneiros.
Havia alguns pacientes cujo estado mental permitia que fizessem trabalhos braçais
no terreno do hospital. Esses poucos privilegiados usavam agasalhos cinzentos de
mangas longas com seus números impressos nas costas. As cabeças das mulheres
estavam cobertas por lenços; os homens tinham cabeças raspadas. Alguns deles eram
meus pacientes há muito tempo. Apesar da escuridão, muitos deles me reconheciam e
gritavam saudações amigáveis. Outros, novos e desconhecidos para mim, ficavam em
silêncio.
Cheguei na minha enfermaria e me preparei para a conferência matinal diária. Eu
sempre ia a essas conferências sentindo-me tensa. Os enfermeiros me informavam sobre
os eventos da noite, e eu tinha que estar pronta para qualquer coisa. Hoje não foi
diferente, e fiquei antecipando os muitos problemas possíveis que poderiam ter surgido.
Em primeiro lugar, escutei pelo relato noturno que um servente que eu contratara
há pouco mais que um mês se embebedara e surrara impiedosamente um paciente
inofensivo e senil que tinha apenas se recusado a executar um pedido insignificante. O
servente chutara repetidas vezes o pobre velho com suas pesadas botas militares,
mandando-o para a clínica cirúrgica de emergência com uma ruptura no baço.
Eu esperava que o pobre coitado sobrevivesse. De algum modo sentia que o que
acontecera era minha culpa, mas eu sabia que isso não era verdade. A maioria das
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pessoas que estavam dispostas a trabalhar como serventes eram homens que tinham
passado algum tempo na prisão, e muitas vezes traziam com eles o vício do álcool ou
das drogas. Eles substituíam uns aos outros com freqüência. Um deles era suspenso do
trabalho depois de algum incidente criminal, e outro tomava seu lugar, com o mesmo
rosto embotado pelo álcool e a mesma mente cínica - uma péssima combinação para os
pacientes de quem eles cuidavam. Eu tinha pouca escolha sobre as pessoas que podia
contratar, e pelo menos isso tornou mais fácil saber que eu não tinha realmente como
proteger meu paciente. Ele estava sendo operado naquele exato momento, e eu fiz uma
oração rápida e silenciosa por ele.
O enfermeiro contou em seguida sobre um novo paciente que fora trazido ao
hospital pela policia às três da manhã. Li o relatório do policial sobre o jovem:
Eu estava curiosa para vê-lo, mas estava na hora da minha visita matinal pela
enfermaria masculina. Eu teria de vê-lo mais tarde.
Oitenta homens com problemas mentais viviam em quartos de enfermaria mal-
iluminados por lâmpadas azuis. Todos eles usavam pijamas semelhantes, uniformes
idênticos, sujos, cinzentos e com listras negras verticais. Havia de cinco a dez pacientes
em cada quarto. Eles não tinham privacidade, já que os seus quartos não tinham portas.
Um grande quarto para pacientes crônicos abrigava mais de vinte homens. As serventes
tentavam lavar e limpar a enfermaria, mas era impossível se livrar do forte cheiro de
suor humano misturado com urina, remédios e uma desagradável sensação de
abafamento. Este era o odor regular do meu trabalho, e eu tinha me acostumado a ele há
muito tempo.
Os meus pacientes eram todos tão familiares para mim que quase pareciam uma
família. Eu sabia a história da vida de cada pessoa desde a infância mais tenra até o
ponto em que a doença mental havia cortado suas expectativas, cuidados e família - toda
a sua vida até aquele momento - e a isolara no que era chamado de "casa dos loucos".
Cada paciente era diferente. Enquanto eu fazia meus turnos, um deles me pediu
para reduzir sua dose de remédio porque ele já se sentia muito melhor. Um outro nem
mesmo me ouviu chegar, porque a sua mente só tinha espaço para suas vozes interiores.
Um outro simplesmente ria silenciosamente no canto. A única coisa comum em todos
eles era a qualidade pálida, quase fantasmagórica dos seus rostos, com profundas
olheiras por baixo dos olhos. Essa gente nunca via o céu ou respirava o ar fresco.
Eu passava de um paciente para o outro, notando mudanças nas suas condições
médicas, dando as recomendações de tratamento usuais para os enfermeiros,
respondendo a perguntas. Pensei brevemente sobre o novo paciente mais uma vez. "Um
soldado", pensei comigo mesma. "Isso é muito interessante. Será que os horrores da
vida no exército levaram esse homem a fingir uma doença mental?"
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Fingir-se de louco era um truque familiar que muitos homens usavam para sair do
exército. Os homens geralmente eram recrutados para o exército logo após o ginásio,
como rapazes de dezoito anos. Saindo do ambiente de um lar seguro, eles estavam
completamente despreparados para o comportamento chocante que encontravam. Eles
experimentavam zombarias, humilhações, e até mesmo surras dos soldados veteranos.
Esta era a lei tácita do exército. Se você não fazia aos outros, eles fariam com você.
Muitos eram incapazes de aceitar estes fatos. Alguns que não conseguiam lidar com isso
chegavam a realmente desenvolver sérias doenças mentais e precisavam ser internados.
Outros, vendo isso, preferiam a relativa segurança de serem trancados no hospício, e
portanto fingiam estar doentes.
Entrei na sala dos pacientes recém-chegados. Eu pude perceber desde o primeiro
olhar que aquele soldado estava inquestionavelmente doente. Ele estava sentado num
canto, hirto de medo, parecendo mais um animal assustado do que um ser humano.
Todo o seu corpo indicava uma incrível tensão. Eu nunca deixei de me perguntar de
onde vinha a impossível energia das pessoas com problemas mentais. Como os seus
corpos a criavam?
A mesma energia que estava imobilizando o soldado naquele momento também
podia fornecer uma força física incrivelmente violenta que muitas vezes levava os
pacientes a ferir a si mesmos ou aos outros. Eu já tinha visto variações deste quadro
repetidas em muitas ocasiões, paciente após paciente. As roupas deste pobre sujeito
eram exatamente como o policial as descrevera, sujas e rasgadas. A equipe noturna
tinha sido incapaz de trocá-las sem causar mais danos do que benefícios, e portanto isso
seria uma tarefa para a equipe diurna. Mesmo agora, sentado nervosamente no chão, ele
ainda estava rasgando suas vestes. As roupas eram feitas de um resistente tecido
projetado para sobreviver às duras condições da vida militar, e não teria sido possível
para ele rasgá-las no seu estado de espírito normal.
Ele continuou a destruir suas poucas posses enquanto eu assistia. Os seus olhos
azul-claros e vazios miravam fixamente o nada. A nossa enfermaria podia conter o seu
corpo, mas o resto do seu ser estava em algum lugar muito além dela.
Os seus lábios sussurraram algumas palavras indecifráveis. Fiz a ele algumas
perguntas necessárias sem esperar pelas respostas. Eu não tinha acesso ao que quer que
fosse a sua "realidade" naquele momento, de modo que pensei sobre a dosagem da
injeção que lhe daria. Eu sabia que mais tarde, quando estivesse lúcido, ele descreveria
para mim as imagens e experiências que estava tendo naquele momento.
O seu nome era Andrey, e parecia ter cerca de dezessete ou dezoito anos de idade.
Seu corpo era muito magro. Talvez ele houvesse perdido peso devido à má nutrição que
era comum no exército. O seu cabelo castanho-claro fora raspado rente pelos barbeiros
do exército, e agora só tinha cerca de dois centímetros e meio na sua cabeça inteira. Isso
fazia com que seu rosto parecesse vulnerável e aberto. Ele tinha um rosto ainda bastante
infantil, com uma expressão de grande medo. Ele era só um garoto cuja mente fora
totalmente sobrepujada pelas experiências traumáticas que agora provavelmente o
afetariam pelo resto da vida. Por enquanto, uma dose média intravenosa de Haloperidol
deveria ser o bastante para acalmá-lo e iniciar o seu retorno à realidade.
O meu próximo paciente era Sergey, um sujeito bonito, jovem e de compleição
robusta que, externamente, parecia pronto para ir para casa brevemente. Ele parecia
alegre, falava comigo abertamente, e conversava de maneira crítica sobre suas
experiências enquanto estivera doente. Ele fora muito útil no trabalho da enfermaria.
Mas talvez tudo estivesse um pouco bem demais, um pouco alegre demais, um pouco
aberto demais. Ele desejava apaixonadamente ir para casa para ficar com sua adorável
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jovem esposa, mas eu sabia que uma grande parte da sua psicose estava conectada a um
ciúme patológico.
Como sempre ocorre no caso de pacientes potencialmente perigosos, o médico-
chefe do hospital fora chamado para uma consulta. Ele receitara uma combinação de
drogas para suprimir a vontade consciente de Sergey, o que por sua vez o forçaria a
falar a verdade. Eu ainda não dera esses medicamentos a ele, muito embora eles
certamente pudessem me dizer sobre o seu verdadeiro estado de espírito quanto à sua
esposa.
Este tipo de decisão sempre criava um dilema moral para mim. Se eu fosse
Sergey, como me sentiria se alguém, sem minha permissão, entrasse na minha psique
através de drogas para conseguir as respostas para qualquer pergunta que desejasse
fazer? A minha opinião negativa desse processo nunca se alterou, e ela me perturbava
sempre que essas drogas eram receitadas.
Com sorte, eu conseguiria encontrar uma maneira diferente de lidar com o caso de
Sergey. De qualquer modo, eu já sabia que precisava me encontrar com sua esposa e
insistir para que eles se divorciassem. Eu precisava fazer com que ela compreendesse
que necessitava ficar o mais longe possível dele. A sua doença sempre seria perigosa, e
havia uma possibilidade grande demais de que ele a matasse, ou que matasse alguma
outra pessoa num ataque irracional de raiva enciumada. Infelizmente, eu já vira o final
trágico de muitas histórias similares.
Quando cheguei a uma conclusão temporária nos meus pensamentos sobre
Sergey, escutei o enfermeiro me chamando de volta a minha sala. A mãe do meu novo
paciente, o jovem soldado chamado Andrey, acabara de chegar. Alguém no escritório
administrativo do exército a contatara, e ela viajara para cá imediatamente. A maioria
dos parentes, mesmo as mães, não costumava ir para a casa dos loucos tão rápido.
Ela tinha um típico jeito russo. Era muito parecida com seu filho, com o mesmo
rosto simples e aberto e traços comuns. Os movimentos nervosos de suas mãos também
me lembravam o seu filho, enquanto de pé ela amassava o seu escuro vestido
interiorano, com medo de sentar-se sem minha permissão. Eu sabia pelos papéis de
Andrey que ela vivia numa vila próxima com seu marido e dois filhos, um dos quais
estava agora neste hospital.
Era óbvio que ela nunca estivera numa clinica psiquiátrica. Ela ainda não
compreendera o que tinha acontecido com seu filho mais velho. Estava na verdade feliz
com o fato dele ter voltado tão rápido do exército, e estava agradecida pelo seu retorno
em segurança. Ela não teria mais que se preocupar com ele durante os dois anos que
esperava que ele estivesse longe; ainda não compreendera a diferença entre a
esquizofrenia e a pneumonia.
A sua primeira pergunta foi a de qualquer mãe preocupada:
- Diga-me, doutora, quando é que ele vai melhorar?
Se eu tivesse dito a verdade total imediatamente, provavelmente teria respondido,
"Nunca". Em vez disso, respondi:
- Provavelmente serão necessárias duas semanas para trazê-lo de volta.
O seu rosto transformou-se numa expressão de felicidade. Mais tarde eu teria de
tentar explicar que eu queria dizer que ele se recuperaria da sua atual psicose aguda em
duas semanas, mas que quando ele voltasse para ela, seria diferente do que era antes.
Talvez só um pouco diferente de início, mas haveria mais mudanças na sua
personalidade e comportamento com o passar do tempo. Ele nunca seria novamente o
rapaz normal de que ela se recordava. Como eu poderia contar para ela que um mal que
destrói mentes e almas sem discriminação já fizera o seu lar dentro dele? Eu sabia, a
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
partir da minha experiência médica, que a esquizofrenia era uma garra que ninguém
podia arrancar.
A experiência também me dizia que ela não acreditaria em mim de início. Ela
esperaria, cheia de expectativas, que seu filho voltasse do hospital e se recuperasse
completamente com o apoio da sua família amorosa. Ela e o pai esperariam que o rapaz
ajudasse novamente nas tarefas do seu pequeno lar no interior. Durante algum tempo as
coisas pareceriam quase normais, até que certo dia a garra atacasse o seu corpo
novamente, fazendo com que ele corresse por trilhos diferentes na direção de outro trem
em movimento. Algo assim certamente ocorreria, e depois disso, sua mãe morreria de
medo da época em que seu outro filho, o seu bebê, também fosse mandado para servir
no exército. Mas por enquanto a mãe já tinha o bastante com que se preocupar, e ela
saiu para contar ao marido e filho as boas-novas de que Andrey voltaria para eles em
duas semanas.
Esta impotente sensação de fraqueza profissional, a minha falta de onipotência
enquanto médica, era um dos aspectos mais difíceis do meu trabalho. Eu nunca me
acostumei com o fato de que muitas vezes precisava admitir derrota parcial ou total para
as doenças que estava combatendo. Eu não sabia se médicos de outras especialidades
sentiam a mesma coisa tão regularmente, mas é um mal ocupacional bem conhecido
para psiquiatras. Não existem drogas, medicamentos ou técnicas cirúrgicas para trazer
de volta a mente de um paciente. Enquanto eu abria novamente meus olhos, ouvi uma
batida na porta da minha sala.
Agradecida pela interrupção, disse "Entre". O meu amigo Anatoli entrou, e fiquei
feliz por ver alguém com quem eu gostava de conversar.
- Oi! - disse ele. - Vamos almoçar e tomar uma xícara de chá?
A manhã passara rapidamente, e eu nem percebera que já era meio-dia. Esta era a
hora favorita da equipe do hospital, já que nos dava uma chance de visitar as outras
enfermarias, conversando e comendo os almoços que tínhamos trazido de casa.
Geralmente eram sanduíches ou saladas simples com uma forte xícara de chá ou café.
Era só nos dias especiais, tais como aniversários ou feriados nacionais, que podíamos
trazer nossos pratos favoritos como sobremesas ou caviar, já que eles eram caros demais
para ser comprados regularmente.
Eu gostava de Anatoli. Ele era jovem e fisicamente capaz, com cabelos castanhos
e olhos azuis. Sua criatividade, inteligência e sensibilidade faziam dele um dos nossos
melhores médicos. Nós muitas vezes falávamos sobre ele. Seus professores e colegas
esperavam que ele tivesse uma carreira muito boa na psiquiatria, mas isso não
acontecera ainda. Muitas vezes pensei em puxar o assunto com ele, mas a hora nunca
parecia adequada. Hoje finalmente decidi falar com ele sobre isso.
Ele estava sentado no sofá diante de mim, com a tradicional xícara de chá, usando
o jaleco branco obrigatório do hospital. Seus olhos estavam escondidos, como de
costume, por trás de óculos escuros.
- Sabe, Anatoli, muitas pessoas acreditam que você é um gênio psiquiátrico. Posso
perguntar por que a sua carreira ainda não reflete isso?
Ele levou meus comentários como um cumprimento, com visível prazer.
- Mas eu tenho uma carreira muito boa - replicou. Então, com um sorriso irônico
ele disse: - Mas acho que você sabe que isto aqui não é um hospital psiquiátrico?
A minha expressão facial não mostrou qualquer surpresa, porque a essa altura eu
já estava acostumada com o seu truque de brincar com significados.
- Este não é um hospital de jeito nenhum - continuou. - É um gigantesco navio de
malucos, e nós que somos a tripulação realmente acreditamos que trabalhamos aqui
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como médicos. Nós até mesmo acreditamos que podemos tratar as pessoas e curá-las.
Mas eu não acho que seja uma grande idéia fazer carreira numa nave de loucos. Tudo
que podemos fazer é navegar cegamente no oceano da realidade ao nosso redor,
acreditando que sabemos o que estamos fazendo. Continuaremos navegando em
direções desconhecidas para nós, porque não podemos parar. Cada uma das pessoas que
trabalha aqui fez a escolha de flutuar através da realidade dentro deste navio, e agora
não podemos mais deixá-lo. Porque este é o lugar mais seguro para nós, no caso de
realmente acreditarmos que somos médicos, realmente capazes de tratar as pessoas que
supostamente estão loucas.
- Você não acredita que exista alguma maneira de escaparmos dessa situação? -
perguntei, compreendendo o artifício que estava usando para evitar uma resposta séria à
minha pergunta.
- Bem, acho que talvez possa existir um veículo que possamos pegar para escapar
rumo à realidade. Você pode vê-lo agora mesmo. Olhe aqui!
Com um sorriso sardônico, ele gesticulou na direção da janela. Através dela eu
podia ver a forma familiar do grande, velho e quebrado bonde que estava no pátio do
lado de fora do nosso prédio. Ele já não tinha roda alguma, e o seu corpo corroído pela
ferrugem estava repleto de galhadas de metal apontando inutilmente na direção do céu,
buscando fios que já não estavam mais presentes. Ninguém sabia o motivo por que este
bonde fora abandonado no meio do terreno do nosso hospital.
Anatoli estava rindo agora. Ele ainda não me dera uma resposta direta para minha
pergunta sobre sua carreira, e seus olhos tinham um brilho mefistofélico.
- Muitíssimo obrigado pelo chá e pela conversa. E agora eu preciso voltar para o
trabalho e completar as histórias de mais algum passageiro - desculpe, quero dizer,
paciente.
*****
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- Como está a senhora, doutora? Eu sou Nicolai. A sua amiga, Anna Anatolievna,
me indicou à senhora.
Nicolai era um jovem siberiano com um belo rosto mongólico. Com a idade,
rostos como o dele são muitas vezes dominados por uma dura força masculina. Este
homem ainda era jovem o bastante para mostrar traços de timidez e sensibilidade, que
estavam particularmente aparentes naquele momento. Ele estava claramente
embaraçado e intranqüilo por estar no consultório de uma psiquiatra.
Deixando de lado seu nervosismo, o jovem siberiano diante de mim certamente
não parecia mentalmente doente. Ainda assim, tive o palpite de que ele devia estar em
sérios apuros para se confidenciar com Anna e então vir até aqui por livre e espontânea
vontade. Na minha experiência profissional, descobri que muito poucas pessoas estavam
dispostas a buscar o auxílio psiquiátrico por conta própria. Havia um enorme estigma
associado com qualquer indício de anormalidade mental. Isso não só desmotivava as
pessoas a procurar ajuda, como também levava aquelas que o faziam a tentar manter
isso em segredo através de todos os meios possíveis. Se a situação se tornasse conhecida
por seus amigos e colegas, ela inevitavelmente criaria discriminação social.
Nicolai avançou e ficou no meio do meu pequeno consultório, ainda parecendo
desconfortável e inseguro de si. Mandei que ficasse à vontade, mostrando a cadeira na
frente da minha mesa. Olhei para ele enquanto se sentava. Parecia um operário. Estava
vestindo um terno cinza-escuro, camisa branca e gravata preta. Eu podia dizer que ele
percebia nosso encontro como um evento bastante oficial. Ele sentou-se nervosamente
na beirada da cadeira. Não o apressei, mas simplesmente esperei que ele me contasse
sua história. Depois de um breve silêncio para direcionar seus pensamentos, ele
começou.
- Obrigado por me ver. O motivo por que estou aqui começou há um mês.
Ele falava russo com um leve sotaque das montanhas que eu achei agradável.
Anna me dissera que ele vinha de Altai, uma região isolada e tecnicamente diferente,
com sua própria linguagem. Eu não estava surpresa de ouvi-lo dar um nome tipicamente
russo, porque todas as pessoas nativas recebiam nomes russos quando pediam
passaportes internos ao Estado soviético. Era um mal premeditado, que pretendia
acelerar a destruição de suas culturas apagando deliberadamente a herança que vivia em
seus nomes.
Nicolai não olhava para mim enquanto falava. Estava claro que ele ainda sentia-se
embaraçado, mas que jurara a si mesmo falar comigo, e estava determinado a cumprir
sua promessa. Sem dúvida era difícil para ele abrir-se com uma estranha, e ele temia a
minha reação quanto ao que pretendia dizer.
- Essa coisa começou para mim quando minha mãe me pediu que voltasse para
casa na minha vila em Altai. - A expressão no seu rosto mostrava que ele estava
relutante em falar sobre sua vila. Isso era comum. Muitos jovens que vinham trabalhar
na cidade preferiam esconder suas origens interioranas com medo do ridículo. Ele
continuou lentamente.
"O meu tio, Mamoush, adoecera gravemente, e minha mãe precisava de mim para
ajudá-la a cuidar dele. Nós éramos seus únicos parentes, e ele vivia sozinho, separado
das outras pessoas da vila. Eu nunca me interessara em passar algum tempo com ele,
mas eu não podia recusar o pedido de minha mãe. Não tive escolha a não ser tirar
licença sem remuneração e ir para casa.
"Passei dez dias lá. O meu tio morreu no quinto dia. Ele tinha oitenta e quatro
anos, e como a maioria das pessoas do nosso povo com sua idade, ele sabia que sua hora
tinha chegado. Ele não estava mais interessado em tentar continuar vivendo. Na nossa
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vila, nós acreditamos que qualquer pessoa da sua idade já viveu uma vida completa e
deveria desejar morrer. Eu nunca tive muito amor pelo meu tio, de modo que não
desejava mudar nada a menos que fosse para ajudá-lo a seguir em frente mais
rapidamente, de modo que eu pudesse voltar à minha vida na cidade."
À medida que Nicolai prosseguia, sua voz tremia, e ele fazia pausas mais longas
entre as sentenças. Durante todo o tempo, ele continuou a enfatizar que nunca fora
muito íntimo do seu tio. Eu não pude deixar de me perguntar por que ele estava ainda
tão nervoso. Sua personalidade sensível não era motivo suficiente para explicar por que
fora tão afetado pela morte de um parente idoso que mal conhecera. Eu sabia que a sua
história ainda não fazia sentido, mas não fiz perguntas nem o interrompi. Por enquanto,
o meu trabalho era simplesmente escutá-lo e deixar que ele continuasse sua história ao
seu próprio modo.
Nicolai continuou a falar, contando como fora difícil para sua mãe cuidar do seu
tio moribundo e o que ele, Nicolai, fizera para apoiá-la. Então ele compartilhou comigo
algumas opiniões sobre a natureza da doença do seu tio, passando de uma possível
moléstia para outra. Eu podia ver que os seus medos estavam no caminho do seu desejo
de curar-se e que ele estava tentando encontrar a coragem para me contar a verdadeira
essência de sua história.
Finalmente decidi interrompê-lo, numa tentativa de trazê-lo de volta ao motivo
por que me procurara.
- Nicolai, você está sugerindo que o que quer que seja que você queira me contar
começou há cerca de um mês?
Ele concordou sem falar ou olhar para mim, simplesmente assentindo com a
cabeça.
- O que aconteceu depois da morte do seu tio?
- Bem, é uma história estranha...
- Eu já escutei muitas histórias estranhas. O que há de tão estranho na sua?
- A senhora acredita em xamãs? - tentou ele.
Subitamente percebi que talvez eu, e não ele, estivesse em apuros. Eu não sabia
quase nada sobre xamanismo. A palavra xamã tinha um significado muito negativo na
nossa sociedade, como um símbolo doentio de crenças culturais e espirituais primitivas.
Tive de ser muito cuidadosa com minha resposta.
- Infelizmente, só sei que o xamanismo está relacionado com a antiga religião dos
povos siberianos, muito antes do cristianismo. Isso é tudo que sei. Mas acredito na
existência de pessoas que são chamadas de xamãs.
Gradualmente, ainda sem olhar para mim, ele pareceu compreender que eu estava
aceitando suas palavras sem julgá-las. O seu corpo relaxou numa postura mais suave, e
sua voz pareceu menos nervosa.
- O meu tio era um xamã - ele continuou. - Por causa disso, eu não gostava de
passar o tempo com ele. Ele vivia sozinho nos limites da vila. Muitos dos que moravam
na vila acreditavam que ele tinha poderes xamânicos muito fortes, mas ninguém tinha
certeza de que ele só usasse esses poderes para as coisas apropriadas. E talvez eles
estivessem certos. As pessoas tinham medo dele, e o evitavam, exceto quando
precisavam da sua ajuda para seus problemas e doenças.
"Eu nunca estive interessado nessas coisas. Desde que era muito jovem, meu
único desejo era deixá-lo, e mesmo também a minha vila, assim que pudesse. Você
sabe, não há nada para fazer no interior, especialmente durante o inverno. É frio e
tedioso. Eu nunca duvidei de que iria para a cidade assim que me formasse no ginásio.
Eu queria servir no exército, mas não passei no exame médico. A minha visão é terrível.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Assim, a senhora pode compreender como fiquei feliz em encontrar o meu trabalho
atual. Estou trabalhando nele há quase um ano, e já me prometeram um apartamento
para o ano que vem. É raro que isso aconteça tão rápido. Por enquanto, naturalmente,
ainda vivo num dormitório."
Eu sabia que assim que os rapazes e moças conseguiam um emprego numa
fábrica, os seus nomes ficavam numa lista de espera para conseguir seus próprios
apartamentos. Às vezes eram necessários vinte anos para que um nome chegasse ao
topo da lista. Ocasionalmente um nome podia até mesmo se perder, e a feliz recompensa
de um lugar próprio para se viver podia jamais acontecer. Essas pessoas infelizes teriam
que viver suas vidas úteis em dormitórios onde três ou quatro pessoas compartilhavam
um quarto pequeno. Às vezes quinze ou vinte quartos compartilhavam uma pequena
cozinha, um chuveiro e um toalete. Compreendi o quanto significava para Nicolai ter a
promessa de um apartamento tão cedo.
Nicolai continuou:
- Eu tenho uma namorada, e pretendemos nos casar. Assim, você poderia dizer
que os sonhos da minha vida começaram a se realizar. Agora tenho medo de que tudo
esteja perdido. Eu realmente preciso da sua ajuda, doutora. Estou pronto a fazer
qualquer coisa, tomar quaisquer remédios para restaurar a minha saúde; para restaurar a
minha sanidade.
Ele olhou para mim com uma esperança desesperada que raramente via nos meus
pacientes. Ainda era difícil para mim juntar os pedaços da sua história. O seu tio xamã
morrera, e agora ele estava com medo de estar sofrendo de alguma doença mental. O
seu problema ainda não estava claro para mim. Tentei retardar uma conclusão de algum
tipo de psicose, muito embora, pela história que escutara até então, estivesse tentada a
fazê-lo.
Hesitante, ele continuou a falar.
- Eu fiquei doente um dia depois da morte do meu tio. Enquanto ele estava
morrendo, me pediu para passar algum tempo com ele a sós. Eu não estava nada
satisfeito com a idéia, mas concordei porque era o seu último pedido. Ele vivia numa
pequena casa escura sem eletricidade. Ele tinha uma coleção de algumas coisas bastante
estranhas ali: plantas meio mortas, pedras (algumas com figuras nelas), seu tambor,
roupas esfarrapadas. Tudo na sua pequena casa era incomum. Eu estava assustado, no
entanto sentia que não tinha escolha a não ser passar seus últimos dias sozinho com ele.
"Então meu tio começou a falar comigo sobre poder - poder xamânico. Na
primeira vez, falou mais de duas horas sobre ele. Não prestei atenção. Me parecia que
estava tendo algum tipo de fantasia agonizante, portanto simplesmente tentei ser polido
com ele. Nós tivemos muitas outras conversas. Eu não me lembro de muito, a não ser da
última delas.
"Ela aconteceu certa madrugada. A sua doença piorara muito, mas ele não me
deixou convidar mais ninguém para ficar conosco. A sua respiração tornou-se rápida e
pesada. A sua fala tornou-se interrompida, e ele parecia confuso. Eu sabia que o seu fim
estava próximo. Finalmente, ele me pediu para chegar perto da sua cama. O quarto
estava escuro. Só o canto onde sua cama alta e estreita de madeira estava mal iluminado
por uma única vela, queimando numa pequena mesa entre estranhos amuletos e ervas
secas.
"O meu tio estava coberto por um cobertor quente feito de remendos
multicoloridos de diferentes tecidos. Quando me aproximei, ele agarrou minha mão
rudemente com suas próprias mãos secas e quentes. De algum lugar, a sua voz
subitamente encontrou grande força e claridade. Ele me fitou com intensidade. Todo o
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
seu ser se alterara tão dramaticamente que, por um momento, realmente pensei que ele
houvesse se livrado da doença.
"Lentamente e com grande concentração, como se ele estivesse tentando me
hipnotizar, disse, 'Os poderes xamânicos vivem conosco neste mundo, e devem ser
deixados neste mundo. Eu estou morrendo, e meu poder não me seguirá no lugar para
onde estou indo. Eu o dou para você, porque foi essa a decisão dos espíritos.'
"Enquanto ele falava, experimentei uma dolorosa câimbra na mão que ele estava
segurando de maneira tão desesperada. Era como se um fogo atravessasse o meu corpo.
Eu estava aturdido demais para perceber que naquele mesmo instante o meu tio morrera.
O meu estado de espírito me era completamente estranho. Eu não podia, e ainda não
posso, descrever totalmente o que aconteceu. Compreendo que isso pode ser necessário
para o seu diagnóstico do que está errado comigo, mas eu não sei o que mais dizer. Eu
tentei esclarecer o meu problema lendo alguns livros sobre psiquiatria, mas tive de
desistir deles. Era difícil demais para mim compreender as palavras."
Ele parecia estar revivendo a sua experiência enquanto a descrevia. A mão
esquerda pareceu ter uma câimbra enquanto falava sobre o assunto. O seu rosto agora
estava suando, como se houvesse escutado a voz do seu tio morto novamente enquanto
falava comigo.
- Vamos parar de falar no seu tio por algum tempo. Talvez você possa me dizer
mais sobre a sua vida na cidade?
Ele aceitou minha sugestão com alivio evidente.
- O que a senhora gostaria de saber? - Ele deu de ombros de maneira indecisa.
- Fale-me sobre o seu trabalho, sobre os trabalhadores na sua fábrica. Como eles
se relacionam com você?
- Bem. Muito bem.
Olhei para ele silenciosamente. Ele estava imóvel, sentado muito ereto na beirada
da cadeira. A sua postura evidenciava uma grande quantidade de tensão.
- Eles são boas pessoas, mas muito diferentes das pessoas da minha vila natal.
- Quais são as diferenças?
- Bem, é difícil dizer. Eu nunca pensei realmente sobre o assunto. Eu
simplesmente sinto isso. Eles bebem um bocado, mesmo no trabalho. O meu povo
também gosta de vodca, mas eles nunca são tão grosseiros depois de algumas bebidas,
ou mesmo depois de muitas bebidas.
Eu imaginei este jovem sensível entre seus colegas de fábrica mais rudes. Bem,
pelo menos parte do seu sonho de mudar-se para a cidade não fora tão agradável quanto
ele esperava.
- Você está tentando ser como eles?
- Não, acho que não. Mas percebi que teria de me acostumar a estar aqui. Foi
desejo meu viver numa cidade grande, mas esperava muito mais. Acho que ainda
acredito que pode ser muito mais. Só preciso me acostumar a estar aqui. E preciso ser
saudável.
Depois de uma breve pausa, que pareceu ajudá-lo a juntar sua força, Nicolai
continuou.
- Depois da morte do meu tio, tive uma febre muito alta durante cinco dias. Eu
não comia, não falava. E nem mesmo me lembrava de quem eu era. No meu delírio, eu
via o meu tio o tempo todo. Graças a um médico de distrito local, que veio me ver e me
deu algumas injeções, me recuperei da febre. Me esqueci de tudo que me veio durante
minha doença, e muito embora ainda estivesse me sentindo muito fraco, voltei ao
trabalho.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
"Então fui ficando cada vez melhor fisicamente, mas ao mesmo tempo algo
começou a acontecer à minha mente. Comecei a ouvir a voz do meu tio exigindo que eu
recordasse os meus sonhos. Agora a sua voz vem até mim sem aviso, a qualquer hora,
em qualquer lugar. Ela vem quando estou conversando com pessoas, e quando estou no
ônibus entre estranhos. Fico profundamente assustado quando isso acontece, e sei que
devo parecer louco. Eu sinto pânico e quero fugir. Está ficando tão ruim que tenho
medo de ser demitido do meu emprego".Depois de um longo e profundo suspiro, ele
perguntou se podia fumar.
Normalmente não permito que um paciente fume em meu consultório; no caso de
Nicolai, decidi quebrar essa regra. Achei que isso o ajudaria a sentir-se confortável e a
se abrir. Ele pegou um maço de cigarros sem filtro do bolso do terno e freneticamente
procurou pelos seus fósforos, suas mãos se movendo rapidamente de bolso para bolso
sem encontrá-los.
Eu me levantei e fui até o canto da sala oposto à minha mesa. Tirei de cima da
geladeira os fósforos e o pires que ocasionalmente substituía um cinzeiro e dei-os a ele.
A pequena abertura com uma dobradiça na parte de cima da minha janela era alta
demais para que eu pudesse alcançá-la, por isso, antes de voltar à minha mesa, usei um
longo bastão de madeira para abri-la um pouco. O bastão tinha uma cabeça humana
esculpida em uma das extremidades. Ele fora feito para mim alguns anos antes por um
paciente idoso que, durante vinte anos, acreditara que era Deus, e que tentara
incessantemente criar pessoas com a madeira. O homem morrera no ano anterior, velho
e sozinho como tantos dos nossos pacientes. Ele não tinha parentes para enterrá-lo,
portanto nosso hospital mandou o seu corpo para a escola médica, onde seria usado para
o estudo de anatomia.
Lembro-me de que quando comecei a escola de medicina, uma das coisas mais
difíceis para mim emocionalmente era dissecar os cadáveres idosos, magros e muitas
vezes decrépitos. Conseqüentemente, não tive escolha a não ser me relacionar com eles
como ferramentas para a ciência, tentando esquecer que eles já tinham sido sujeitos que
viveram os finais de suas vidas sozinhos, sem ninguém para tomar conta deles ou para
dar-lhes conforto no momento em que morreram. Até mesmo na escola médica, onde
eles se tornaram objetos em nome da ciência, os seus corpos sem vida eram tratados
sem respeito.
O ar gelado entrou através da abertura estreita da janela e voluteou pelo meu
consultório. Nicolai afastou sua cadeira da minha mesa e fumou com tragadas
profundas.
"O que vou fazer com este homem?" pensei. Eu sabia que tinha todos os recursos
necessários para iniciar uma estratégia psiquiátrica eficaz para diagnosticá-lo e tratá-lo.
Se Nicolai fosse um paciente oficial, admitido legalmente, eu estaria mais ou menos
obrigada a pedir uma série de testes de laboratório que me diriam se ele sofria dos
efeitos posteriores de alguma febre desconhecida, manifestada através de uma psicose
orgânica residual, com possíveis episódios de ataques. Mas neste caso eu podia ser mais
flexível, de modo que decidi tentar primeiro algo diferente. Eu faria o que achava
correto para Nicolai. Dependendo do resultado, eu sempre poderia utilizar uma terapia
psiquiátrica mais tradicional posteriormente.
Perguntei se ele estava disposto a tentar uma experiência. Ele concordou com a
cabeça, e perguntei:
- Você acha que poderia ouvir a voz do seu tio novamente, na minha presença?
Ele tragou profundamente mais uma vez, e era óbvio que o cigarro fazia com que
ele se sentisse mais confortável.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
- Acho que posso, mas não sei como fazer que isso aconteça. Ela sempre vem
sozinha, sem que eu a chame.
- Talvez possamos fazê-lo juntos.
- Eu concordo em tentar.
Apertei o botão oculto no chão perto da minha mesa, chamando a enfermeira para
o meu consultório. O botão fora instalado originalmente para emergências com
pacientes violentos, mas nós geralmente o utilizávamos como uma forma de
comunicação entre estações diferentes do hospital.
Quando a enfermeira chegou, pedi a ela que levasse Nicolai até a sala onde
realizávamos a hipnose, e que me esperasse lá. Ele apagou seu cigarro, levantou-se, e
pegou seu casaco curto de pele de ovelha com a enfermeira.
Fiquei olhando para eles enquanto caminhavam para neve até a sala de
hipnoterapia. A enfermeira era uma profissional. Ela se aposentara há alguns meses mas
decidiu voltar a trabalhar para ajudar a sustentar suas três filhas. Era comum que os pais
ajudassem a sustentar seus filhos mesmo depois que estes começassem a trabalhar nos
seus próprios empregos. Esta enfermeira, que era conscienciosa e frugal, conseguia
comprar roupas novas para suas filhas quase a cada dois meses. Às vezes fazer isso
custava mais da metade do seu salário, mas ela o fazia de boa vontade. Eu estava feliz
em tê-la de volta.
Eu acabara de preencher e assinar papéis da enfermaria e estava prestes a ir para a
sala de hipnoterapia quando o médico de plantão me chamou da recepção.
- Olga - disse ele. - Estou admitindo uma paciente em condição muito séria na sua
enfermaria feminina. Ela tem vindo aqui periodicamente já há vinte anos. O diagnóstico
é esquizofrenia. Ela foi admitida à nossa clínica há dois anos. Agora está nos últimos
graus de caquexia [exaustão física]. Parece que ela não comeu realmente nada durante
mais de um mês devido às vozes que preenchem sua mente. Eu vou preparar todas as
receitas para as enfermeiras esta noite, mas realmente gostaria de ver você e o marido
dela antes que você fosse embora.
- Quando ela estará na enfermaria? - perguntei.
- Em uma hora e meia - replicou.
Concordei em vê-la, e fiquei aliviada ao saber que ainda teria tempo para trabalhar
primeiro com Nicolai.
Nossos médicos tinham se esforçado muito para criar a sala de hipnoterapia. Ela
já tinha sido construída quando comecei a trabalhar no hospital, e era um milagre que
existisse. Repetidas vezes, escutei as histórias dos médicos dedicados que se
transformaram em lendas ao fornecer o equipamento, suprimentos, móveis e carpete
para criar essa importante instalação. Isso nunca poderia ter sido feito através dos canais
governamentais. A sala de hipnoterapia era crucial para o meu trabalho, e sempre me
sentia confortável lá.
Entrei na sala escura silenciosamente, o carpete denso permitindo que me
movesse com passos silenciosos. Havia uma pequena lâmpada vermelha em cada canto
da sala. O silêncio e o suave brilho vermelho das lâmpadas me permitiram fazer a
viagem mental e emocional necessária além dos sons e imagens do mundo externo.
A enfermeira já tinha preparado Nicolai. Ele estava reclinado numa poltrona
ampla e confortável no meio da sala, vestindo só sua camisa branca e calças. O seu
terno, gravata e botas tinham sido levados para outra sala pela enfermeira, que os
devolveria no final da sessão. Ele parecia relaxado e nem mesmo notou a minha
chegada. Caminhei em silêncio até ele e lentamente abaixei o encosto da poltrona.
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"Você está num ponto na sua memória onde pode escutar a voz do seu tio.
Ninguém do seu trabalho está notando coisa alguma. Os colegas com quem você estava
conversando vão embora, se dissolvem. A sua atenção passa para a voz do seu tio."
O rosto de Nicolai ficou tenso. Ele respirou de maneira mais profunda e acelerada.
Coloquei minha mão sobre o meio do seu peito, dizendo:
- Agora a minha mão respira junto com seus pulmões, e podemos desacelerar esse
ritmo, lenta e calmamente - gradualmente, juntos.
Ele se acalmou, e disse suavemente, quase num sussurro:
- Eu posso ouvi-lo...
- Escute tudo que a voz dele está dizendo para você. Fique calmo e seguro. A
minha mão está aqui com a sua respiração, e você pode conseguir ajuda de mim no
momento que desejar. Mas você não precisa parar, porque você está protegido e seguro.
Nicolai falou suavemente:
- Ele não me assusta mais; está diferente do que era antes.
- Pare de falar comigo, Nicolai. Você não veio aqui para falar. Você veio para
escutar. Faça isso agora. Aprecio que você compartilhe o que ouve comigo, mas não
neste momento. Faremos isso mais tarde. Por enquanto, tente apenas lembrar-se de tudo
o que seu tio diz, e estar aberto para isso.
Fiquei sobre ele na poltrona reclinada por meia hora, a minha mão no seu peito.
Estava bastante escuro na sala, mas eu podia ver o seu rosto. Estava relaxado, e de
início parecia que ele estava dormindo. Gradualmente, à medida que ele começava a
reviver sua memória, sua expressão tornou-se mais ativa. Os seus olhos passaram a se
mover rapidamente sob suas pálpebras fechadas. Obviamente ele estava vendo imagens
intensas. Todas as emoções que ele estava experimentando se refletiam no seu rosto. Eu
o vi se perguntando, expressando curiosidade de início, então uma profunda tristeza, e
pensei que ele poderia começar a chorar. Eu sentia que ele estava muito longe,
experimentando algo importante na sua memória. Eu guiei sua respiração com minha
mão, tornando-o mais lento, preparada para acordá-lo se o seu estado emocional
parecesse perigoso. Senão, eu o deixaria retornar por conta própria quando estivesse
pronto.
Finalmente, ele respirou profundamente e anunciou:
- Completei a minha jornada. Agora estou pronto para voltar.
A sua voz me pareceu mais forte e segura de si. Falei com ele novamente.
- Agora eu peço que você preste atenção nas minhas palavras, Nicolai.
Gradualmente você irá recordar-se de como nos encontramos pela primeira vez nessa
tarde, quando você chegou ao hospital. Você provavelmente está sentindo-se muito
diferente agora, porque possui uma nova memória dentro de si. Quando você retornar da
sua jornada e voltar à minha sala, irá perceber essas mudanças. Quando eu retirar a mão
do seu peito, você abrirá os olhos e estará presente aqui novamente.
Notei que a sua mão esquerda estava apertando com força o braço da poltrona, e o
toquei suavemente para ajudá-lo a relaxar. Caminhei até a parede, acendi a luz do teto, e
apertei o botão para chamar a enfermeira. As luzes vermelhas se desligaram
automaticamente.
Agora eu podia ver as pinturas que foram doadas ao hospital pela Galeria
Siberiana de Belas-Artes. Era sempre um pequeno milagre para mim que pinturas tão
belas houvessem chegado até esse lugar tão incomum. Havia algumas lindas paisagens
nas paredes, mas a pintura mais especial para mim era um retrato a óleo de uma jovem
com o cabelo partido no meio que estava vestindo ricas roupas rendadas de algum
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século passado. Ela tinha um rosto generoso e tranqüilizador, e quando trabalhava ali,
eu sentia como se ela me apoiasse.
A enfermeira ajudou Nicolai a se levantar e a recolocar o seu terno. Joguei meu
casaco de pele sobre meus ombros e comecei a caminhar de volta para minha sala. Eu
estava bastante satisfeita com a sessão. Ela tinha ido muito bem, e me parecia certo ter
tentado resolver o conflito interior de Nicolai sem farmacologia. Eu esperava que esta
experiência provasse ser o que ele precisava para resolver este relacionamento familiar
que lhe aparecera numa forma tão mitológico-religiosa.
Nicolai entrou no meu consultório parecendo sério e de algum modo diferente.
Parte da sua transformação era que ele parecia agora completamente relaxado, sem se
importar com sua aparência. Ele segurava sua gravata na mão e sentou-se
tranqüilamente na mesma cadeira que ocupara com tanto nervosismo anteriormente.
- Quero agradecer a você pela sua assistência. Eu recebi uma mensagem muito
importante. Ela mudou muitos sentimentos dentro de mim.
- Fico feliz em poder ajudá-lo. Espero que isso permita que você viva sua vida de
maneira mais tranqüila e bem-sucedida.
- Mas agora tudo mudou, doutora. Acho que preciso me tornar um xamã.
Fiquei espantada. Sentei imóvel na minha cadeira, tentando manter a mesma
expressão impassível enquanto o escutava. Mas o meu sentimento de auto-estima
afundou cada vez mais, transformando-se em vergonha. Como pude deixar aquilo
acontecer? Aquele homem me procurara pedindo ajuda, e em vez disso eu agira de
maneira pouco profissional e só reforçara seus delírios. Eu falhara com ele, e
subitamente senti pena de nós dois.
Nicolai começou a explicar.
- Eu realmente me comuniquei com meu tio. Ele não morreu em nenhum aspecto.
Ele parecia totalmente vivo, e falava comigo como se fosse uma pessoa real. Ele
discutiu comigo, e descobri que não podia discordar de tudo que ele estava me dizendo.
No final, ele me persuadiu.
"De algum modo, ele me mostrou uma história completa do nosso povo de uma
maneira que eu nunca vira antes. Ficou claro para mim como era difícil para o meu
povo viver na Sibéria. Eu vi como eles tinham perdido sua religião e poder devido às
tremendas pressões dos estrangeiros e aos maus espíritos entre nós. Eu vi alguns dos
nossos amigos que tinham aceitado trabalhos que exigiam que eles se tornassem
comunistas. Eu vi como suas almas os haviam abandonado, e como eles se tornaram
ferramentas do mal.
"Eu viajei repetidas vezes com o meu povo de inverno a inverno, sem esperança,
sem alegria, assustado todo o tempo. Eles tinham medo até mesmo de rezar
silenciosamente aos seus ancestrais e protetores, porque podiam ser mandados para a
prisão se alguém adivinhasse o que eles estavam fazendo. Doutora, esta visão que a
senhora permitiu que eu visse me abriu para algo dentro de mim que sempre esteve
fechado. Agora essa coisa está acessível.
"O meu tio não me deixou nenhuma escolha. Ele me disse que realmente preciso
me tornar um xamã. Caso eu não faça isso, a minha doença vai piorar terrivelmente. Ele
diz que sou o único que pode fazer isso, e que o tempo da perda de fé do meu povo
acabará. E para alcançar esta meta, devo trabalhar para eles. Ainda não sei o que pensar
sobre isso. Eu não sei nada sobre ser um xamã! Mas ao mesmo tempo eu sinto que é
meu verdadeiro modo de vida. Vou precisar de tempo para compreender exatamente o
que fazer."
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Foi estranho que eu não temesse as suas palavras, porque elas eram muito
perigosas. Num passado bastante recente, nós dois poderíamos ter sido mandados para a
prisão por causa delas. Mesmo agora, com a declaração da perestroika e o novo
pensamento, se a pessoa errada ouvisse as suas palavras, isso ainda poderia causar
muitos problemas para nós.
Mas eu não estava com medo. Descobri que me identificava com muitas das
coisas que ele estava dizendo. Eu não sabia muito sobre extinção dos povos nativos,
mas eu sabia o que significava ter de ocultar as próprias crenças religiosas. Eu fora
secretamente batizada na Igreja Ortodoxa Russa pela minha avó em Kursk, e muitas
vezes me confrontara com minha incapacidade de expressar minha forte atração pelos
ensinamentos de Jesus Cristo. Minha vida diária não oferecia a possibilidade de ir à
igreja ou me comunicar com pessoas envolvidas no sagrado. Possuir literatura religiosa
ou esotérica de qualquer tipo, incluindo a Bíblia, era proibido. Se descobertos, esses
livros ameaçariam a segurança do lar da pessoa no mesmo instante.
Enquanto eu sentia as fortes emoções de Nicolai, elas mudaram as minhas. Eu não
me importava mais em avaliar minhas habilidades terapêuticas no contexto do
tratamento de Nicolai. Eu sentia que algo importante tinha acontecido, e o que eu mais
queria era compreender essa coisa.
Nicolai interrompeu meus pensamentos, dizendo:
- Meu tio pediu que eu desse uma mensagem à senhora.
A idéia me pareceu tão maluca que eu não respondi.
- Mamoush me disse: "Diga à mulher que muito em breve ela vai encontrar o
Espírito da Morte. Diga a ela para não se assustar."
Eu não gostei nem um pouco dessas palavras. Nunca apreciei previsões do futuro,
especialmente quando eram terríveis como essa. Olhei para as roupas de Nicolai. A sua
camisa estava desabotoada na parte de cima, e ele estava sem gravata. Isso me ajudou a
me lembrar que ele não era um oráculo, mas só um operário que era amigo de uma
amiga.
A minha experiência me dizia que a nossa sessão já estava essencialmente
terminada, e também me lembrei da mulher recém-admitida que ainda precisava da
minha atenção. Decidi concluir o meu encontro com Nicolai rapidamente.
- Eu não sei coisa alguma sobre uma mensagem do seu tio, Nicolai, mas quero
manifestar meu desejo de que você tenha sucesso no caminho de sua escolha. Acredito
que você possui a habilidade de fazer todas as escolhas corretas, mas caso você precise
de alguma ajuda adicional, por favor, sinta-se à vontade para me procurar. Neste exato
momento, contudo, eu preciso ver uma paciente da emergência que acabou de ser
admitida.
Nicolai também pareceu pronto para terminar nosso encontro.
- Está tudo bem, doutora - ele replicou. - Agradeço pela sua atenção e ajuda.
Talvez nos encontremos novamente. Adeus, por enquanto.
Assim que ele deixou o meu consultório, eu rapidamente cruzei a pequena sala
para impedir que o ar gélido continuasse a entrar pela janela aberta. Durante alguns
momentos silenciosos, fiquei em pé e olhei para o terreno abaixo. A minha sessão com
Nicolai fora bastante incomum, e eu iria precisar de tempo para compreender e integrar
a minha experiência. Contemplei Nicolai enquanto ele caminhava pelo pátio do hospital
até a estação de ônibus. Os seus passos rápidos e decididos eram os de um homem que
tinha certeza de qual era a sua finalidade na vida. Fechei a janela usando o mesmo
bastão, aquele com a cabeça humana esculpida por "Deus".
22
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
*****
3
Em outros casos envolvendo mulheres com doenças mentais que já eram mães, a
custódia dos seus filhos costumava ser transferida para uma das organizações que
cuidavam de órfãos. Eu tentara treinar a minha natureza emocional para que ela se
distanciasse sempre que isso precisasse ser feito, mas nem sempre tinha sucesso. Muitas
vezes me lembrava de uma antiga paciente minha chamada Olga, como eu. Quando ela
estava num estado mental normal, era uma mãe cuidadosa e carinhosa. Ela tinha um
rosto suave e gentil, e era sempre difícil imaginá-la como a entidade terrível e destrutiva
em que ela se transformava durante um dos seus episódios psicóticos. A sua psicose
poderia muito bem tê-la levado a matar de fome seus filhos ou surrá-los até a morte,
enquanto ela escutava as vozes que se apresentavam na sua mente enlouquecida.
Seus dois filhos, um menino de quatro anos e uma menina de nove, foram tirados
dela pela corte, decisão baseada na conclusão de uma comissão psiquiátrica. Depois
disso, Olga ficava sentada num canto do corredor da enfermaria, chorando
silenciosamente consigo mesma. Eu fora uma das psiquiatras da comissão, e embora
estivesse totalmente satisfeita com a necessidade da nossa decisão, não podia evitar o
sentimento de culpa que experimentava toda vez que via Olga chorando de maneira tão
desesperada no seu canto.
Aproximei-me da ala dos pacientes violentos, e olhei para a garota gritando
através da parte superior aberta da porta de duas folhas que guardava a entrada. Ela
estava de pé do outro lado da porta, agarrando a borda superior com suas mãos. O seu
cabelo negro e curto estava despenteado; seus grandes olhos escuros brilhavam com
uma luz doentia. Ela pintara seus lábios e faces com um batom brilhante e parecia
excitada e fora de controle. Eu já fora sua médica algumas vezes no passado, e portanto
sabia que ela não era perigosa.
- Katia! Quero que você se acalme. Você não precisa gritar aqui.
Ela imediatamente ficou passiva, sorrindo marotamente para mim enquanto
passava para o canto do seu quarto perto da sala. Quando o alcançou, ela se virou e teve
a última palavra.
- Tudo bem, doutora. Vamos brincar de esconde-esconde. Mas eu sei quem você
é.
A nova paciente que eu viera ver estava na sala de emergência. Três enfermeiras
cercavam a sua cama, impossibilitando-me de vê-la quando entrei na sala. Tubos de
alimentação intravenosa pendurados acima dela já estavam conectados com o seu corpo.
- Como está, doutora? - me perguntou uma enfermeira enquanto se afastava, me
dando acesso à minha paciente.
- Olá. Como está ela?
- Doutora, ela está morrendo - disse uma voz desconhecida. Voltei-me para ver
um homem se levantando do canto da sala onde estivera agachado. Ele era alto e magro,
e obviamente não dormia há alguns dias. O seu rosto estava pálido, com manchas
amarelo-escuras ao redor dos olhos. Estava barbeado e usava um terno, mas a sua
superfície bem-vestida não escondia o medo e a angústia que estava sentindo.
Uma das enfermeiras apressou-se a explicar a situação em sussurros.
- Desculpe-nos, doutora, por permitir que ele estivesse aqui. - Havia uma regra
que não permitia que parentes entrassem na sala de emergência, que raramente era
quebrada. - Ele nos implorou para ficar, e estava tão perturbado que fomos incapazes de
recusar.
- O senhor poderia esperar em minha sala, por favor? - pedi a ele. Via-se a sua
relutância em sair em seu rosto perturbado. Ele estava sofrendo intensamente e parecia
estar à beira das lágrimas.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
- Por favor, doutora - ele implorou. - Deixe-me ficar. Ela está morrendo...
- Acho que não. Eu preciso examinar a sua... ela é sua esposa?
- É, sim.
- Eu preciso examinar a sua esposa, e então vou me encontrar com o senhor. Por
favor, espere em minha sala.
Fiquei aliviada quando ele concordou sem nenhuma discussão, e pedi a uma das
enfermeiras que o levasse.
Agora podia voltar minha atenção para a mulher. Minha primeira impressão dela
foi perturbadora; ela era um mero esqueleto coberto por uma pele amarelada solta sobre
os ossos. Seus olhos vazios estavam fechados; sua respiração era rápida e superficial.
Uma grande agulha entrava na sua pele perto da clavícula, e um nutriente liquido caía
em gotas lentas de uma garrafa acima da sua cabeça. Isto restauraria alguma vitalidade
ao seu corpo durante os próximos três ou quatro dias. Ela estava imóvel, mas eu sentia
que estava consciente e que percebia o que se passava à sua volta.
Aproximei-me e tomei sua mão. Ela estava quente e seca. O seu pulso estava um
pouco mais rápido que o normal, mas estava forte e em ritmo constante. Examinei-a
fisicamente. Não parecia haver nada de errado com ela, a não ser pela exaustão física
devido à desnutrição. Os seus órgãos pareciam fortes o bastante para devolvê-la à saúde
completa com tratamento cuidadoso.
- Eu sei que você pode me ouvir - disse a ela, tocando sua mão. - E tenho certeza
de que você vai estar se sentindo melhor muito em breve. Nós faremos o máximo para
ajudá-la.
Ela respondeu abrindo os olhos e me fitando com uma chocante hostilidade. Seus
olhos eram de um lindo tom azul, mas estavam cheios de um ódio que distorcia todo o
seu rosto. Ela não disse uma palavra, só me fitou durante um longo tempo, transmitindo
através dos seus olhos um olhar que parecia vir de outro mundo. Não era um olhar
humano, mas ainda outro vislumbre da doença que voltava meus pacientes da luz para
as trevas, da vida para a não-existência. Eu não queria mais tocá-la, e retirei minha mão
rapidamente quando ela fechou os olhos.
Os medicamentos receitados pelo médico de plantão pareciam apropriados,
portanto mandei as enfermeiras continuarem com o que estavam fazendo.
Eu dividia uma sala nessa ala com outro psiquiatra que já fora embora naquele
dia. A sua sala era maior e menos acolhedora que a minha na enfermaria masculina. O
marido da minha nova paciente estava sentado lá quando cheguei, parecendo estar num
transe profundo. Ele estava olhando com intensidade para uma foto numa pequena
moldura escura de madeira, que segurava nas mãos de tal modo que eu não conseguia
vê-la.
Percebendo a sua angústia, comecei a conversa reconhecendo a sua necessidade
desesperada de ficar ao lado da esposa. Fizemos alguns arranjos para que ele ficasse
com ela durante o resto da noite na sala de emergência.
Ele me agradeceu e então pediu que eu olhasse para a foto. Ele explicou:
- Gostaria que a senhora visse uma foto dela anterior à doença. Acho que pode
ajudar se eu puder falar sobre o meu casamento com esta mulher, que amo mais do que
qualquer coisa na vida.
Eu tirei a foto das suas mãos enquanto ele continuava a falar rapidamente. Falava
sem parar num único fôlego aparentemente interminável. Ele me contou sobre coisas
que provavelmente nunca dissera antes e talvez não houvesse percebido inteiramente até
então. Ele continuou a tagarelar, movido por um desses estados emocionais extremos
em que as inibições da auto-reflexão e do orgulho ficam totalmente submersas. Foi
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
como se ele estivesse sendo levado por um fluxo emocional em que os humanos podem
cair apenas algumas vezes nas suas vidas.
- Sabe, a maioria dos meus colegas ri de mim. Esposa maluca. Claro. Eles nunca
me perguntam sobre ela nem dizem nada ofensivo, mas sempre percebo a atitude deles.
A minha sorte é que sou um excelente matemático, e portanto tenho status. Sou chefe de
um grande laboratório, e adoro o meu trabalho. As únicas duas coisas com que já me
importei na minha vida foram minha esposa e meu trabalho.
"Quando éramos jovens e ela ainda estava saudável, passamos um período
maravilhoso juntos. Nós o chamávamos de amor, mas não me lembro dele assim. Acho
que o amor é muito diferente da atração da juventude. Essa última desaparece
rapidamente, mas o amor é algo que podemos manter para sempre. Durante todos esses
anos em que ela esteve doente eu nunca falei com ela sobre isso, mas sei que ela não me
amava. Na verdade, acho que ela passou a me detestar. Ela tentou se suicidar repetidas
vezes, de todas as maneiras em que pôde pensar.
"Os médicos me dizem que essas tentativas de suicídio foram o resultado de vozes
dentro da sua cabeça que a impeliram a fazer isso, mas acho que foi a própria vontade
dela. Eu não consigo compreender. A senhora é a profissional; a senhora pode ter
algumas explicações científicas para mim. Eu só acredito que numa determinada altura
ela fez a escolha contra a vida e tentou seguir essa escolha com uma força invencível."
Uma linda garota loira me olhava da velha fotografia. Ela tinha um penteado alto,
antiquado, e vestia um vestido revelador com um corpete aberto mostrando seu belo
pescoço. Parecia uma das estrelas de cinema dos anos 1960. A única similaridade
remota entre essa mulher e o esqueleto na sala de emergência era a brilhante energia
azul vindo dos seus olhos, muito embora no retrato a fúria gélida que eu tinha visto
estivesse ausente.
- Ivan Sergeyevich! - Não pude deixar de exclamar. - Por que não veio ao hospital
antes? A sua esposa não comeu nada durante mais de um mês, no entanto você não
procurou ajuda. Por que não?
- Era o desejo dela. - Ele estava falando muito baixo agora. - Ela não me permitiu
conseguir ajuda. Ela queria morrer.
- Então por que você finalmente a trouxe para cá? Por que não a deixou morrer em
casa?
- Sinto muito, doutora. Sinto muito mesmo. Eu não devia ter esperado muito
tempo, e compreendo que a condição dela é culpa minha. Foi sempre tão difícil para
mim ir contra a vontade dela. Eu sinto muito. - Ivan mostrava sinais de colapso
enquanto falava essas últimas palavras.
Eu me senti mal por fazê-lo sentir-se tão culpado, especialmente porque não
achava que a sua procrastinação teria conseqüências fatais. Eu tinha certeza de que o
estado físico da sua mulher, se não o seu estado mental, retornaria à normalidade
rapidamente.
- Não se preocupe, Ivan Sergeyevich. Tenho certeza de que sua esposa irá
recuperar a saúde. Felizmente, temos todos os remédios necessários na enfermaria.
Ele nem mesmo tentou ocultar o fato de que não acreditava em mim. Ficou de pé,
apressado para voltar ao lado dela, e deixei-o ir.
Escrevi todos os dados pertinentes da doença dela e a sua história de tratamento
nos registros do hospital. Foi um dia longo e difícil, e antecipava a volta para casa.
Quando deixei a enfermaria, vi Ivan através da porta aberta da sala de emergência. Ele
estava tão concentrado na esposa que nem me notou. Eu o vi virar o corpo de sua esposa
e limpar as suas costas com um chumaço de algodão embebido em álcool para evitar
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
escaras. Ele sabia como cuidar dela, o que seria uma grande ajuda para nossas
enfermeiras enquanto ela estivesse internada.
Como sempre, o meu retorno para casa ofereceu um contraste agradável com a ida
matinal. O hospital era praticamente a primeira parada, por isso o ônibus quase vazio
me deu uma ampla escolha de lugares. Como costumava fazer, a tranqüila viagem de
volta pelo campo no final do meu longo dia de trabalho me levou rapidamente a dormir.
Pouco depois, estava retraçando meus passos matinais até o meu pequeno estúdio,
e então cozinhei e comi um jantar simples de batatas fritas e um filé de peixe do rio Ob,
vendido na feira por alguns dos mesmos pescadores que me acompanhavam todos os
dias no ônibus. Eu teria apreciado algumas verduras com meu peixe e batatas, mas elas
não estavam disponíveis no inverno.
Depois do meu humilde repasto, fui para cama e caí rapidamente no sono. No
meio da noite, subitamente despertei em pânico devido a um pesadelo tão intenso que
ele me pareceu mais real do que meus momentos de vigília. O sonho era tão persistente
que me perseguiu mesmo depois de ter me sentado na cama e acendido a luz. Eu ainda
podia ouvir a voz fria e remota do desconhecido homem de aparência mongólica que
surgira para mim.
Várias vezes ele repete: "Eu quero que você veja a jornada dela!" A frase
não faz nenhum sentido para mim, mas isso não o impede. Então a energia muda.
Eu vejo uma mulher, minha nova paciente da emergência, a esposa de Ivan. A
sua bela silhueta branca forma um contraste extremo com o espaço vazio,
assustador e tenebroso em que ela flutua. Ela se move lenta e graciosamente,
voando cada vez mais alto. Gradualmente ela se volta na minha direção. O seu
rosto está lindo novamente. O seu corpo está normal e saudável, com uma forma
vital e feminina que não mostra sinais da sua doença.
Eu tento escapar desta visão, mas o rolo de filme onírico continua. O
misterioso homem de aparência mongólica controla a cena, que se torna cada vez
mais assustadora. Agora a mulher olha diretamente para mim, os seus olhos
vitoriosos e irônicos. O seu olhar me hipnotiza. Sinto-me como se ela estivesse
roubando a minha vontade.
"Ela é uma mulher rara e poderosa", diz o homem numa voz rouca. "Ela fez
tudo que devia fazer de maneira rápida e simples. Ela fez o que todo mundo aqui
faz, mas ela é mais honesta e brava do que a maioria."
Eu assisto enquanto a mulher se ajoelha, diante de uma grande figura
branca que subitamente apareceu acima dela. O seu rosto torna-se extático e
parece estar num transe. Ela está muito parecida com a foto da sua juventude. A
figura branca lentamente se derrama sobre ela, cobrindo inteiramente o seu
corpo agora prostrado.
O sentimento criado ao reexperimentar esta visão foi tão intenso que começou a
quebrar o controle do sonho sobre mim. Tão rapidamente quanto pude, tentei me
colocar totalmente além dele. Para me despertar totalmente e recuperar a posse sobre o
meu ser, disse a mim mesma que era apenas um sonho, e que a mulher que eu vira
estava na verdade dormindo profundamente na sua cama de hospital, onde eu a deixara.
Disse a mim mesma que estava simplesmente cansada demais nesses dias e que
precisava fazer algo sobre isso.
Essas tentativas artificiais de me tranqüilizar não apagaram totalmente os meus
medos. Eu não podia deixar de lado os sentimentos mistos de atração e medo que me
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
invadiram ao ver a poderosa imagem da imensa e fluida figura que cobrira e engolfara
minha paciente.
Era inútil tentar dormir depois do sonho. Mal podia esperar pela chegada da
aurora, e peguei o primeiro ônibus para o trabalho de manhã. Eu estava ansiosa para
estar ocupada novamente, esperando soltar os fortes ganchos que o sonho fincara em
minha consciência. Tentei não pensar sobre ele no caminho para o hospital, me
concentrando em vez disso em seguir os passos para a enfermaria repetidas vezes na
minha mente. A enfermaria seria um porto seguro onde meu pesadelo finalmente se
dissolveria e eu poderia voltar novamente a normalidade, livre da ansiedade.
Finalmente meus passos reais chegaram até a porta da enfermaria. Eu fiz a curva
no topo das escadas, abri a porta, e entrei. As primeiras golfadas de ar com o seu odor
familiar de urina misturada com suor e medicamentos eram quase bem-vindas hoje,
como recordações da minha realidade normal. Agora eu podia estar com outras pessoas.
Eu seria forçada a utilizar a minha mente. Eu seria a médica, a psiquiatra, aquela que
estava no controle e fora do alcance de vozes e imagens estranhas na noite.
Era tão cedo quando eu cheguei que meus pacientes ainda estavam dormindo nos
seus quartos, e a luz noturna azul do corredor ainda estava acesa. Tudo estava tranqüilo
e pacífico, quase surreal depois do meu estado de agitação. Eu vi que a porta da sala de
emergência estava fechada. Talvez o pobre Ivan tivesse sido capaz de tirar um cochilo
durante a noite.
Caminhando entre meus pacientes adormecidos, rostos distorcidos pelas suas
doenças mesmo nos seus sonhos, senti um grande alívio. Eu estava de volta à minha ala
familiar. Tudo estava normal e sob controle.
A enfermeira de plantão estava sentada em sua sala, escrevendo no seu diário.
Fiquei pensando como poderia explicar a ela a minha chegada tão cedo. Então ela olhou
para cima, e vi imediatamente que estava assustada e irritada.
- Oh, doutora! Por que elas perturbaram a senhora? Ela se foi de maneira tão
inesperada e rápida! O seu corpo já está no necrotério do hospital. Eu disse a elas que só
a chamassem pela manhã. Não há nada que a senhora possa fazer agora que não pudesse
fazer mais tarde. Oh, doutora, sinto muito que tenha sido incomodada.
Corri para a sala de emergência e abri bruscamente a porta. Diante de mim estava
uma cama vazia com lençóis em desalinho. A sala ainda estava desarrumada devido às
tentativas frenéticas da equipe noturna de prender uma alma que só queria seguir em
frente. O equipamento de ressuscitação, seringas usadas, conta-gotas vazios estavam
espalhados pela sala. Máquinas e a medicina moderna não conseguiram enfrentar os
mistérios da morte, e tinham perdido o interesse.
Agarrei a borda da cama de metal angustiadamente enquanto a enfermeira entrava
atrás de mim.
- Foi absolutamente inesperado. Arritmia no início; então subitamente o seu
coração parou. Nós tentamos tudo, mas foi inútil. Para mim não faz sentido algum,
doutora.
O meu corpo estava drenado de energia, e simplesmente assenti com a cabeça
distraidamente para responder às palavras da enfermeira. O que eu realmente queria era
ficar sozinha durante algum tempo, para organizar meus pensamentos. Deixei a sala de
emergência e caminhei lentamente para a minha sala, vendo e escutando pouco do que
estava ao meu redor. Os meus passos eram automáticos, os passos de alguém que
traçara o mesmo caminho milhares de vezes.
Assim que entrei no consultório, uma enfermeira perguntou na sua voz mais
amigável:
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
*****
4
Certo dia, algumas semanas depois, Anna me ligou e me convidou para visitá-la à
noite. Muito embora costumássemos nos encontrar pelo menos duas vezes por semana,
eu nunca mencionava Nicolai. Ela comentou uma vez que ele parecia estar indo bem, e
que estava muito agradecido pela minha ajuda.
Anna e eu nos encontramos depois do trabalho e nos sentamos, como de costume,
no velho sola estreito no seu apartamento de uni quarto. Eu estava folheando o último
número de uma revista de cinema, lendo sobre novos filmes e me perguntando se
deveríamos sair esta noite em vez de simplesmente ficarmos em casa e conversarmos.
Anna estava fumando demais e parecia estar nervosa. Eu sentia que algo a incomodava.
Sabia que durante os últimos meses ela sofrera de problemas físicos. O seu ciclo
menstrual fora doloroso e irregular, vindo várias vezes por mês, e isso a estava deixando
exausta. De início não parecia uma doença séria, e eu tinha certeza de que ela se trataria
rapidamente. Nós duas éramos de famílias de médicos, e eu sabia que seus pais tinham
marcado consultas com os melhores médicos da cidade para ela.
Finalmente, ela olhou direto para o meu rosto e me contou que os médicos ainda
não tinham sido capazes de diagnosticar o que havia de errado com ela. Eles disseram
que precisariam fazer mais testes, e que eles não podiam começar nenhum tratamento
até que soubessem exatamente qual era o problema.
Enquanto isso, a sua condição piorava a olhos vistos. Ela parecia pálida e às vezes
quase desleixada, porque não estava prestando atenção na sua aparência. Seu cabelo
curto estava despenteado, seus olhos azul-claros não estavam destacados com sua
maquiagem geralmente tão cuidadosa, e a sua pele não estava limpa nem com uma
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
aparência saudável. Mesmo após os poucos dias desde que eu a vira pela última vez, sua
aparência tinha deteriorado. Ela comentava como estava cansada, e como era difícil se
levantar pela manhã para trabalhar.
Eu não podia imaginar Anna esperando muito mais tempo por um tratamento
definitivo, de modo que sugeri que ela fizesse alguma coisa rapidamente. O meu
conselho era ir para um hospital onde, além de uma observação profissional, ela pudesse
descansar bastante.
Anna concordou que precisava fazer alguma coisa imediatamente, mas ela não
queria ir para o hospital. Em vez disso, ela perguntou:
- Você se lembra de Nicolai, o homem que você viu como um favor para mim?
Fiz que sim com a cabeça. Naturalmente que eu me lembrava dele.
Ela continuou:
- Você provavelmente se lembra que ele é meu vizinho. Bem, eu o encontrei
ontem nas escadas. Ele me perguntou como eu estava me sentindo, e eu lhe contei tudo.
Estava muito deprimida com a minha doença, e acho que ele sentiu isso. Ele está indo
embora em breve para voltar à sua vila em Altai, e me convidou para ir com ele. Ele
sugeriu que eu buscasse a cura com um dos anciãos. Provavelmente será em abril, daqui
a algumas semanas, quando o pior do inverno já houver passado.
"Alguém de Altai contou a ele sobre uma curandeira. As pessoas dizem que ela
pode curar qualquer um. Estou perdendo a fé nos meus médicos, e não posso deixar de
me perguntar se essa mulher não seria capaz de me ajudar. Nicolai me disse que ela
também já curou pacientes mentais, por isso achei que você poderia estar interessada.
Você vem comigo? Me daria um imenso apoio."
Olhei surpresa para ela enquanto falava, ficando mais espantada a cada frase. Ir a
Altai me parecia uma loucura. De qualquer modo, eu estava planejando aproveitar
minhas férias no verão, no calor do sol do mar Negro, não em abril numa remota vila
siberiana que provavelmente ainda estaria enterrada na neve e no gelo. Disse a Anna
que provavelmente não poderia ir, mas que talvez ela devesse fazê-lo. Na melhor das
hipóteses, a mulher poderia ajudá-la. Na pior, ela se afastaria da cidade numa viagem
com um amigo.
Mas assim que a nossa conversa se voltou para outros assuntos, percebi que a
idéia não me abandonava. Senti um anseio sutil na parte mais profunda do meu ser de
encontrar essa mulher que curava pessoas. Quanto mais eu tentava não pensar sobre o
assunto, mais a idéia me dominava. Uma voz silenciosa no fundo do meu ser me dizia
que este convite para o Altai seria uma porta para uma compreensão de fatos estranhos e
inexplicados que eu experimentara recentemente. Alguma coisa desconhecida parecia
estar vindo até a superfície da minha vida, e eu sentia cada vez mais que devia deixar
essa coisa acontecer.
Parecia mais do que uma coincidência o fato de que, algumas semanas depois,
durante o tradicional chá matinal da equipe do hospital, vários dos meus colegas
comentaram que eu estivera trabalhando demais, que eu parecia pálida demais, e que
provavelmente seria bom que eu descansasse um pouco tirando parte das minhas férias
imediatamente. Com alívio e sentindo-me excitada, descobri que minha decisão de
visitar Altai já estava tomada. Liguei para Anna imediatamente para que ela soubesse
que eu iria com ela.
Ela ficou deliciada e ficou tagarelando sobre os detalhes da viagem.
- Mas, sabe, nós estamos indo amanhã. Eu não sei se você será capaz de conseguir
bilhetes para o mesmo trem. Por que não pega qualquer trem para Biisk, e me diz o
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
número do trem? Nós encontraremos você na estação e viajaremos juntos pelo resto do
caminho.
"Estou tão feliz que você tenha decidido ir, Olga", continuou. "Hoje eu estava
começando a pensar que estava errada em fazer isso, mas agora sinto que é a única coisa
para mim. Eu não sei que tipo de cura vou ter, e me sentirei muito mais tranqüila com
você ao meu lado. Muito obrigada. Nos veremos em Biisk."
Consegui um bilhete no trem número oito, e telefonei para Anna para informá4a.
O meu trem chegaria duas horas depois do dela e de Nicolai, mas ela disse que
esperariam com prazer. Nicolai combinara com um vizinho da sua vila para que ele nos
pegasse de carro na estação. Já que não havia transporte público ou comercial até
Shuranak, a vila de Nicolai, a única maneira de chegar até lá era através de um carro
particular.
Arrumei uma pequena mala com uma quantidade mínima de roupas, e fui para a
estação ferroviária de táxi. O trem número oito deixou Novosibirsk às 10 da noite, e
chegou em Biisk na manhã seguinte. Enquanto caminhava para a estação e para o trem,
não pude deixar de perceber que, mesmo de noite, a sensação da primavera estava ao
meu redor. A primavera estava nos passos das pessoas nas ruas e no som dos pássaros
cantando misturado com o tinir da neve derretida caindo como água. O ar escuro estava
mais fresco, e a gélida faca do inverno que corta através de todas as roupas, exceto as
mais quentes, desaparecera.
Como de costume, a estação estava cheia além da sua capacidade. Não havia
cadeiras o bastante nem mesmo para um terço dos passageiros e visitantes. Pais e filhos
estavam dormindo sobre jornais no chão e nos largos parapeitos internos das janelas
fechadas. Crianças pequenas no colo das mães estavam chorando, mas menos
desesperadamente do que de costume, como se soubessem que as estações estavam
mudando e que o calor do verão logo retornaria. Mesmo dentro da sala abafada da
estação, com pessoas sentadas e dormindo por toda parte, havia uma agradável
atmosfera de antecipação.
O meu trem chegou no horário previsto, o que era um alívio. Era tão sujo e
abafado quanto eu esperava, e me senti afortunada de só precisar passar uma noite nele.
Pelas conversas com meus vizinhos no pequeno compartimento, deduzi que eram uma
família de mineiros de carvão. O marido era taciturno, a esposa cansada mas generosa,
me oferecendo um pedaço da sua galinha frita quando eles mal tinham o bastante para si
mesmos. O filho deles de dois anos de idade já estava dormindo quando eles entraram
no trem, e surpreendentemente, não acordou nem mesmo com a agitação de todos os
outros passageiros subindo a bordo.
Polidamente recusei a galinha e ofereci o beliche inferior para que eles pudessem
dormir. Subi no beliche superior, satisfeita por estar onde não precisaria responder a
quaisquer perguntas sobre onde estava indo, quem eu ia encontrar, ou quanto tempo
ficaria lá. A mulher estava obviamente ansiosa para conversar, mas eu não estava. Com
os primeiros sons e movimentos rítmicos do trem, adormeci imediatamente. Eu sabia
que no dia seguinte encontraria um novo mundo.
Os sons das colheres de metal batendo contra o vidro me despertaram na manhã
seguinte. Os membros da família estavam tomando chá depois de terminarem a galinha
de ontem. O trem já estava quase chegando em Biisk, o que me deliciou. Tive tempo só
de limpar rapidamente o rosto em um pequeno banheiro no vagão, depois de ter ficado
primeiro de pé numa longa fila com muitos outros que queriam fazer o mesmo.
O trem já tinha chegado nos limites da cidade quando pude me sentar e olhar pela
janela, de modo que eu não tinha ainda visto em que tipo de terreno nós estávamos.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Sabendo que Biisk ficava numa grande altitude, eu esperara ver montanhas na
paisagem. Em vez disso, vi apenas blocos cinzentos de apartamentos que pareciam
todos iguais, cercados por algumas árvores mirradas. A cena parecia tanto com
Novosibirsk que não era nada inspiradora.
O trem deu um último solavanco e então parou completamente na estação. Os
passageiros estavam olhando pelas janelas, esticando seus pescoços, procurando aqueles
que os esperavam. Eu me pilhei fazendo a mesma coisa. Para o meu desapontamento,
ninguém na plataforma parecia familiar.
Peguei a minha mala e me despedi dos meus vizinhos noturnos. Quando desci, um
forte vento das montanhas rapidamente confirmou a minha expectativa de que a
primavera não tinha chegado ainda em Biisk. Algumas das árvores menores ainda
estavam completamente cobertas com uma neve profunda, e a atmosfera matinal estava
absolutamente frígida. Antes mesmo de ter tempo para concluir meu pensamento, minha
pele já estava adquirindo um colorido desagradável devido ao frio extremo.
Um carregador sonolento apareceu por trás de um grande carrinho de mão que
fazia muito barulho enquanto ele o empurrava. Estava vestindo um avental que
provavelmente tinha sido branco algum dia, mas que com o tempo ficara tão sujo que
desafiava qualquer descrição, e já não se podia dizer que ele tinha alguma cor
específica. O carregador me perguntou se ele podia carregar minha pequena mala até o
ponto dos táxis.
Mal tive tempo de dizer não antes de escutar Anna chamando o meu nome. Ela
estava rindo excitada enquanto corria na minha direção do lado oposto da plataforma.
- Você nos deu o número errado do vagão, e estávamos esperando do outro lado
do trem. Estou tão contente que você tenha vindo! - disse ela, me abraçando.
Voltando-me para a saída, notei Nicolai de pé ali perto em silêncio. Ele me
cumprimentou informalmente dessa vez, como um amigo em vez de um doutor, e
parecia muito diferente - mais alegre, mais relaxado, e mais seguro de si. Ele até mesmo
parecia mais velho. O seu cabelo crescera desde a última vez que o vira; ele o prendera
num rabo-de-cavalo, e estava usando roupas quentes de trabalho.
Cumprimentei-o enquanto ele pegava minha mala, e caminhamos na direção da
rua. Os únicos veículos estacionados do lado de fora eram dois velhos táxis, alguns
carros particulares, e um jipe cáqui. O motorista do jipe saiu e andou na nossa direção.
Ele era um homem alto e forte, vestindo botas de borracha sujas que iam até seu joelho,
um capote e um boné de pele de coelho negro com abas para as orelhas.
Nicolai o apresentou para nós como seu vizinho, Sergey. Sergey deixou bem claro
que não estava feliz em estar ali, e que só viera devido a um senso de obrigação. Sua
impaciência para voltar à sua vila era evidente nas suas ordens mal-humoradas para que
entrássemos no jipe.
Anna e eu obedientemente nos sentamos onde ele mandou, no banco de trás. Anna
segredou no meu ouvido que, pela sua maneira autoritária, Sergey provavelmente
acabara de ter baixa do exército.
- Ele é velho demais para o exército - repliquei, e nós duas rimos. O motor do jipe
tinha um som horrível, mas parecia correr bem, de modo que seguimos na última fase
da nossa viagem até Shuranak. Ninguém estava caminhando a essa hora da manhã, mas
muitos carros já estavam nas ruas da cidade. A maioria era de automóveis velhos e
amassados cujos motores eram ainda mais barulhentos do que os nossos.
Ocasionalmente um grande caminhão passava perigosamente perto de nós, deixando
para trás uma nuvem marrom e suja de carburador que pairava por um longo tempo sem
se desvanecer no ar gelado matinal.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Finalmente deixamos a cidade sem ver nada de diferente dos pequenos vislumbres
que eu já tivera no trem. Se havia alguma coisa especial em Biisk, eu não tinha visto.
Logo chegamos na estrada principal, acompanhados apenas por alguns caminhões de
transporte. Quanto menos freqüentes os edifícios se tornavam, maior era o número de
árvores que podíamos ver. Logo as árvores estavam abraçando a estrada, ficando
maiores e mais ousadas, e parecendo se aproximar da rodovia estreita à medida que
passávamos por ela.
Sergey era tão bom em evitar os horríveis buracos na estrada que rapidamente
perdoei suas ríspidas maneiras militares. Ele e Nicolai sentaram-se nos bancos da frente,
contando fofocas da vila. Anna e eu passamos o tempo conversando sobre alguns dos
nossos amigos comuns. Gradualmente o ritmo hipnótico da estrada aquietou-nos, e
caímos num silêncio natural.
Levamos mais de três horas para chegar em Shuranak. Não pareceu levar tanto
tempo, porque a minha atenção estava absorvida pelo cenário fora do jipe. Subitamente
estava num tipo de transe. A neve congelada nas bordas da estrada ia ficando cada vez
mais branca à medida que avançávamos, e as gigantescas árvores perenes pareciam
fundir-se umas nas outras quando vistas da janela do jipe em movimento.
Tendo vivido tanto tempo numa cidade relativamente industrial, eu tinha
esquecido o que significava estar em contato com a natureza. Até mesmo minhas poucas
visitas ocasionais a casas do campo tinham sido devotadas ao contato social, e não havia
espaço nessas curtas visitas para experimentar a beleza de um ambiente natural. Agora,
a floresta por onde estávamos passando exigia completamente a minha atenção. Eu
sentia um tremendo poder nas suas poderosas árvores com seus troncos velhos e
nodosos, no profundo verde-escuro das árvores perenes, e nos movimentos rítmicos das
árvores, que sugeria a sua unidade com o vento.
Passamos uma curva na estrada e subitamente a primeira visão panorâmica das
montanhas Altai nos alcançou. A gentil silhueta daquelas montanhas antigas, com os
raios do sol iluminando seus picos arredondados lá em cima, criava padrões belíssimos
de luzes e sombras. Esta suave beleza contida de maneira tão gentil dentro da aspereza
das montanhas era algo que eu nunca presenciara anteriormente, e que literalmente me
tirou o fôlego.
A estrada foi ficando cada vez mais estreita e sinuosa. A paisagem parecia tão
original que era difícil imaginar a vida humana conseguindo algum sustento aqui. Mas
quando as primeiras pequenas casas da vila finalmente apareceram, elas pareciam
totalmente naturais no seu ambiente. Passamos por algumas casas de madeira dispostas
longe o bastante umas das outras para parecerem de algum modo remotas e isoladas,
mas ainda assim próximas o bastante para permanecerem conectadas à energia comum
da vila. Uma mulher idosa perto de uma dessas casas saíra para fazer algo no seu jardim
ainda coberto de neve. Ela endireitou-se atentamente enquanto passávamos e olhou com
um ar sério para nosso jipe. Finalmente, paramos perto de uma pequena estufa instalada
atrás de uma cerca de madeira.
*****
5
- Aqui estamos nós - disse Nicolai, abrindo a porta de passageiros do jipe. O latido
do que parecia ser um cachorro muito grande veio de algum lugar lá de dentro da cerca
alta. A parte superior de uma porta era visível acima da cerca. Ela abriu, e ouvimos a
voz de uma mulher dizendo: "Estou indo! Estou indo!"
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Enquanto saíamos do jipe continuamos a ouvir sua voz, agora gritando com o
cachorro para que se aquietasse e saísse do seu caminho.
Pegamos a nossa bagagem e esperamos pacientemente perto da cerca.
- É tão bonito aqui - disse Anna, respirando fundo. Concordei silenciosamente.
Enquanto o fazia, meus olhos e outros sentidos me recordavam que em algum lugar do
meu passado eu experimentara outro lugar estranho e selvagem como este, muito
embora não me lembrasse de onde ou quando.
Finalmente o portão da cerca se abriu ousadamente, revelando uma mulher
pequena e de meia-idade com um casaco de pele jogado sobre os ombros. O seu belo
rosto altaico, parecido com uma lua cheia, estava iluminado pela simpatia e carinho. Era
a mãe de Nicolai, Maria, e ela rapidamente nos guiou para fora do frio e dentro de casa.
Bebemos chá ao redor de uma velha mesa de madeira escura e nos instalamos.
Depois de algumas horas, já nos sentíamos bem à vontade em nosso novo ambiente.
Anna e eu estávamos ao mesmo tempo cansadas e excitadas, nossas mentes
naturalmente pensando nos próximos dias. Nicolai estava obviamente relaxado na casa
da sua mãe. Ele compreendia o importante compromisso que mudaria sua vida ao voltar
à sua vila, e estava claramente contente com ele.
Finalmente, a escuridão começou a cercar a pequena vila. Maria esperou até o
crepúsculo para acender as luzes da casa. A mensagem que Nicolai mandara por um
vizinho dizia apenas que ele estava voltando para casa com dois amigos, ambos
médicos. Maria esperava duas pessoas que correspondessem à sua experiência com
médicos - homens de meia-idade vestindo ternos e de óculos. Ela se preocupara durante
todo o dia sobre como encontraria esses amigos sérios e intelectuais do seu filho, e tinha
até mesmo preparado algumas perguntas. Agora, em vez disso, duas mulheres jovens
estavam sentadas à sua mesa, e elas apresentavam um dilema totalmente diferente.
Se ficássemos na casa com ela e Nicolai, forneceríamos um suprimento de fofocas
para toda a vila durante meses. Ela já estava imaginando o que diriam. "Por que Nicolai
trouxe não uma, mas duas garotas para a sua vila natal? E como pôde Maria, sua mãe,
permitir que todos ficassem juntos?"
Mesmo se os comentários dos vizinhos não fossem uma dificuldade, a casa de
dois quartos era tão pequena que até mesmo acomodar quatro pessoas nela era um
verdadeiro problema. Ela bebeu lentamente o seu chá, tentando parecer calma, enquanto
por dentro a sua mente fervia. Como poderia lidar com essa surpresa que seu filho lhe
aprontara? Ela rezou com fervor para si mesma: "Ó grande filha de Ulgen! Você que é
sábia e cheia de generosidade, me ajude! Me dê um sinal dizendo o que eu devo fazer."
Ela esperou por uma resposta, mas não obteve nenhuma.
Sem saber do dilema de Maria, Anna e eu estávamos ficando cada vez mais
intranqüilas na nossa necessidade de descanso. Maria estava igualmente ansiosa, e
estava irritada com Nicolai, que parecia completamente alheio ao mal-estar que criara.
Enquanto Maria sentava pensando, a sua atenção subitamente caiu sobre o
tamborim pendurado à direita da sua porta da frente. Ela fizera esse pequeno tamborim
depois da morte do seu irmão Mamoush, seguindo o conselho de alguns anciãos da vila.
Eles tinham dito que ela devia fazer isso porque o seu irmão era um kam - um xamã - e
o tamborim o ajudaria a permanecer aqui na terra. Ele era muito bem-feito, e ela sentia
orgulho dele, mesmo sem compreender totalmente a sua função. Agora o tamborim
recordou-a de seu irmão e deu-lhe a solução que ela estava procurando de maneira tão
desesperada. As garotas podiam ficar na casa de Mamoush. "Naturalmente!", disse
consigo mesma. "Como não pensei nisso antes?"
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Ela fez essa sugestão para Nicolai enquanto tomava lentamente o seu chá. A
minha mente estava viajando, e só ouvi metade das suas palavras.
- Está tudo bem - disse eu, percebendo que alguma decisão estava sendo tomada
sobre nosso abrigo e que eu poderia fechar os olhos em breve. - Nós podemos ficar onde
for mais conveniente para vocês.
- Contanto que não seja no lado de fora - brincou Anna, cansada.
Nicolai sentou-se, pensando profundamente durante alguns minutos antes de
responder. Então concordou e pediu alguns lençóis à sua mãe. Nós agradecemos a ela e
nos aventuramos na noite, tendo como destino a casa de um xamã morto.
O céu estava claro, com milhares de estrelas e uma meia-lua sobre nossas cabeças.
Os gritos dos pássaros noturnos vindos da floresta poderiam ter parecido assustadores
em qualquer outro lugar, mas aqui pareciam naturais. Os medos encontrados na noite só
podem viver perto das suas fontes. As cidades gigantescas, com todas as tensões e
agressões de pessoas por demais obrigadas a se amontoarem, eram muito mais
assustadoras do que os sons noturnos da cidade ao redor dessa pequena vila.
Um homem e duas mulheres cansadas caminhavam lentamente sobre o caminho
cercado de neve, alternando conversa e risadas, seguindo o seu caminho até uma das
casas mais longínquas da vila. Mamoush deliberadamente colocara a sua casa no
extremo norte da vila, no topo de uma colina.
Nicolai acendeu uma vela quando entramos na casa, porque não havia
eletricidade. Tudo estava coberto por uma grossa camada de pó, mas o ar estava fresco.
A casa não era mais do que uma sala alongada com uma única janela no canto esquerdo,
perto de uma cama estreita feita de madeira escura. Do outro lado da sala estava a
pequena área da cozinha com uma lareira. Uma grande pele de urso cobria o meio do
chão. Um velho par de botas de homem feitas de pele de rena estava colocado quase que
diretamente sobre a cabeça do urso. De início, surpreendidas pela estranheza da pequena
casa, nós gradualmente passamos a apreciá-la.
- Olga, olhe para mim! - exclamou Anna. Ela descobrira um estranho trabalho
com plumas que fora transformado num chapéu e que ela colocara sobre sua cabeça
num momento de humor nascido do cansaço e de um ligeiro nervosismo. Agora ela
olhava comicamente sob ele.
- Combina comigo? É do meu tamanho? - perguntou ela. O chapéu fora feito de
uma coruja. A parte superior era a cabeça e o corpo inteiro do pássaro, com olhos
abertos, bico e orelhas. As suas asas foram puxadas para baixo e transformadas em abas
que agora emolduravam o rosto de Anna.
- Não combina nada com você - respondeu Nicolai. Ele tirou o chapéu da cabeça
de Anna e o colocou no lado oposto da sala.
Anna, que fizera uma rápida vistoria na sala, pediu para dormir na cama estreita,
deixando a pele de urso no chão como a única outra cama possível para mim. Nicolai
arrumou a cama e a pele de urso com lençóis e cobertores, e então desapareceu no
caminho solitário de volta à casa de sua mãe. Anna e eu não perdemos tempo para
apagar a vela e desabarmos nas nossas camas. Tinha sido um dia longo e interessante.
Quase desmaiei na pele de urso, apreciando imensamente o fato de ter qualquer
lugar para me deitar. Só levei alguns minutos para perceber que o cobertor de penas de
ganso não ia ser quente o bastante, de modo que coloquei meu próprio casaco de pele
sobre o cobertor e me agasalhei na minha cama exótica.
Pela respiração profunda de Anna, pude perceber que ela já estava dormindo, mas
eu estava achando difícil relaxar. A transição do meu mundo confortável comum para
essa cama de pele de urso na casa de um xamã morto tinha sido tão rápida que eu não
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
percebera como estava mexida até me deitar. Agora, o leve cheiro da pele de urso, que
não tinha chamado minha atenção até aquele momento, tornou-se cada vez mais
perturbador, criando um sentimento intranqüilo na minha mente. Não havia nenhum dos
sons familiares do meu lar para me acalmar e aquietar. Não havia o tique-taque familiar
do relógio, quase imperceptível ao lado da minha cama; nenhuma voz de vizinhos
atravessando as paredes finas do meu apartamento; nenhum som de tráfego do lado de
fora. Eu não tinha percebido antes que algumas das coisas que me perturbavam no meu
pequeno apartamento urbano também me confortavam e tinham se tornado uma parte do
meu condicionamento para dormir.
A luz forte da lua atravessava a única janela, iluminando os poucos objetos ao
meu redor na sala quase vazia. Uma pilha vertical de lenha para a lareira jazia como
uma sentinela perto da porta. A minha direita havia uma velha cadeira branca, onde
Nicolai jogara o chapéu de coruja. O chapéu pareceu ganhar vida enquanto eu olhava
para ele na penumbra. Acima de mim, perto da janela, estava uma pequena mesa. De
onde eu me deitara no chão, não podia ver o que estava sobre ela.
À minha esquerda, um velho tambor oval feito de couro permanecia encostado
contra a parede branca. A sua face estava voltada para a parede, e eu só podia ver o
fundo aberto. O seu cabo era feito de dois pedaços de madeira esculpida, cruzados em
ângulos retos e unidos no meio. As peças cruzadas tinham sido esculpidas na figura
simbólica de um homem. O pedaço mais comprido formava o seu corpo, com a cabeça
sustentando a borda superior do tambor e os seus pés pressionando a borda inferior. A
outra pessoa tinha sido formada como os braços e mãos do homem, com nove anéis de
metal atravessando os dedos de cada mão. O tambor era grande, quase noventa
centímetros de diâmetro. No meio da sua superfície de pele, visível mesmo do lado de
fora, estava o que parecia ser um corte proposital. Eu imaginei como aquele tambor
devia tocar alto antes de ter sido quebrado. Enquanto imaginava o seu ritmo, o tambor
pareceu se aproximar de mim, cada vez mais perto, até que a sua forma escura parecia
preencher todo meu campo de visão, e eu já não tinha certeza se estava acordada ou
sonhando.
Eu devo ter adormecido imediatamente e caído num sono profundo. Mais tarde,
me lembrei de um sonho estranho. Neste sonho eu estava próxima de uma grande porta
de madeira que chegava a brilhar de tão polida. A porta estava fechada. Me aproximei
para tocá-la, e quando senti minha mão sobre ela, a mão foi se tornando cada vez mais
real para mim. Quanto mais eu me movia, mais consciente eu me tornava de mim
mesma e de todos os meus outros sentidos.
Percebi que ainda estava dormindo e dentro de um sonho, mas ao mesmo tempo
eu tinha consciência plena e total liberdade de vontade. Eu sabia que tinha o poder de
usar minha mão para abrir a porta e entrar no espaço por trás dela. Havia um doce senso
de alegria no meu coração, e eu queria que o sonho continuasse. Então percebi
subitamente que mais alguém estava no meu sonho, esperando no espaço por trás da
porta fechada, e que essa pessoa podia me ver com um nível de consciência igual ao
meu. Isso me assustou. Parei de mover minha mão e tudo se dissolveu.
Nós acordamos na aurora, com o silêncio total da pacífica vila. O sol matinal
brilhava pela nossa pequena janela. Mesmo na luz, a estranha casa do xamã morto não
perdia a sua atmosfera assustadora. Ela me fez recordar a história que Nicolai contara
no hospital sobre o seu tio moribundo, nesta mesma casa. Obviamente, um lugar como
esse podia induzir uma profunda perturbação psíquica em pessoas que possuíam uma
inclinação natural para essas coisas. Nicolai fazia parte desse grupo. De pé na casa do
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
xamã, esperando que Nicolai viesse nos tirar dali o mais rápido possível, compreendi a
sua história com muito mais clareza.
Felizmente, Nicolai chegou logo depois de termos nos levantado e nos convidou
para o desjejum na casa de sua mãe. Antes de sairmos, perguntei a ele sobre o tambor.
Ele me impressionava ainda mais na luz da manhã do que no escuro. Mesmo estando
quebrado, ele parecia forte, poderoso e cheio de vida.
- Era o tambor do meu tio. Eu só o vi usá-lo uma vez. Depois da sua morte, alguns
dos nossos velhos vieram e disseram a minha mãe as coisas que devem ser feitas
quando um xamã morre. Uma dessas coisas é quebrar o seu tambor. É uma lei não-
escrita. Eles disseram que o tambor só deve servir a um xamã. O espírito do tambor
deve ser mandado embora depois da morte do xamã através de uma abertura feita por
um parente. Então a minha mãe o fez.
"Hoje iremos ver Umai, a xamã de Kubia, uma vila próxima. Ela sabe muito mais
sobre esse rito de passagem, caso você queira perguntar a ela.
Estávamos contentes em deixar a casa de Mamoush, que ainda parecia
ameaçadora mesmo à luz do dia. A amigável casinha de Maria, ocupada com as
preparações do desjejum, fazia um contraste tranqüilizador. Maria estava cozinhando
ovos, esquentando pão preto, e vertendo leite de verdade com uma camada de creme,
fazendo uma calorosa refeição matinal para nos preparar para nossa jornada do dia.
Não tínhamos idéia do que estava planejado para aquele dia.
Quando nós perguntamos a Nicolai como chegaríamos a Kubia ou quanto tempo
levaríamos para chegar lá, ele ignorou silenciosamente as nossas questões. Ele só nos
disse para nos vestirmos com as roupas mais quentes que tivéssemos trazido e para
segui-lo. Maria nos deu um pacote de pão e queijo para que levássemos conosco.
*****
6
Se eu soubesse como seria fria e difícil a jornada para a vila de Umai, não teria
ido. Caminhamos incessantemente pela neve profunda numa pequena estrada da
montanha, na verdade nada mais do que um caminho estreito que às vezes quase
desaparecia na neve.
Depois de uma hora, Nicolai ainda não tinha nos dito nada, e começamos a nos
perguntar se seríamos capazes de completar a jornada. De inicio tentamos rir, mas logo
o frio e a altitude nos afetaram e ficamos exaustos. A beleza da paisagem deixara de nos
alegrar. Começamos a especular, brincando mas não muito, sobre morrer naquele rude
caminho das montanhas, nos perguntando se nossos corpos seriam recuperados algum
dia. O fato de que nossas mortes poderiam nem mesmo ser notadas em meio à
tranqüilidade dessa estrada coberta de neve cercada por grandes árvores perenes era
uma idéia muito sóbria, que nos manteve caminhando, por mais dolorosos que fossem
os passos.
Foi Anna quem primeiro notou a fumaça se elevando acima de uma casa pequena.
Ela saltou alegremente o mais alto que podia, e então me abraçou e beijou na sua
animação.
Nicolai confirmou que era Kubia, e ficamos felizes por seu silêncio irritante ter
finalmente terminado. Enquanto nos aproximávamos da vila, Anna e eu ficamos felizes
em pensar que logo estaríamos numa casa novamente, sentados diante de um fogo
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
quente, sem que precisássemos caminhar por intermináveis camadas de neve gelada. No
entanto, notei que Nicolai parecia estar nervoso.
- Preciso contar uma coisa para vocês - disse ele finalmente. - Preciso preveni-las
que não sei exatamente como as pessoas daqui vão reagir a vocês.
Olhamos para ele, sem saber o que dizer.
- Nós estamos aqui para ver Umai, que é uma kam. Nós não usamos a palavra
xamã; não é nossa palavra. Xamã é uma palavra criada pelos russos. Nós chamamos
essas pessoas de kams. O problema é que vocês são russas. Nosso povo tem um bom
relacionamento com pessoas brancas, mas superficial. Talvez ninguém em Kubia
explique alguma coisa para vocês sobre os kams ou sobre seus ritos e rituais. E é ainda
mais provável que ninguém permita que vocês vejam o que realmente acontece nas
curas deles. Eu não sabia disso antes da viagem. Minha mãe só me contou agora de
manhã. Ela disse que poderia haver um problema para que você encontrasse Umai.
Parecia estúpido e absurdo que, depois de todo o esforço que fizemos para
chegarmos neste lugar remoto, Anna pudesse não ter permissão de ser curada. Comecei
a rir, mas Anna ficou furiosa.
- Não é engraçado, é loucura - disse ela. - Estou seriamente doente, e vim com
Olga até este lugar esquecido e fora do mundo na esperança de conseguir ajuda. Foi
você, Nicolai, que nos convidou para vir até aqui. Foi você que nos trouxe nesta jornada
longa, fria e perigosa hoje. E agora você me diz que podemos ser expulsos da vila? Para
quê? Para morrermos na neve?
- Por que você fez isso? - perguntei, incrédula. - Todo o seu povo é tão
irresponsável quanto você?
Sem hesitar, Nicolai replicou:
- Meu tio, Mamoush, me disse para trazê-las comigo. - Enquanto dizia estas
palavras, o seu nervosismo desapareceu e ele parecia mais calmo e seguro de si.
- Excelente! - zombou Anna. - Aqui estou eu no meio de um deserto gelado com
um paciente mental e uma amiga que supostamente é uma psiquiatra. Olga, você não
examinou Nicolai no hospital? - Ela olhou para mim acusadoramente. - Até eu, que não
sou uma psiquiatra, posso dizer que ele apresenta os sintomas óbvios de uma doença
mental.
Eu me senti mal por Anna ter dito isso, e muito pior quando percebi que as
palavras dela tinham alguma verdade. Nicolai ficou perto de nós em silêncio, e senti
pena do seu embaraço. Finalmente eu falei.
- Anna, nós já estamos aqui. Já nos comprometemos. Não há qualquer
oportunidade de voltarmos agora, já que precisamos descansar primeiro. Não temos
escolha a não ser entrar na vila. - Eu me senti um pouco mais calma, e esperava que
minhas palavras ajudassem Anna a relaxar.
- Deixem-me contar uma coisa - disse Nicolai. - Aconteceram certas coisas aqui
há quase cem anos que afetaram muito a atitude do nosso povo para com estranhos.
Pessoas estrangeiras para nós e nossa terra decidiram trazer para cá sua própria religião.
Certo dia, eles chamaram os kams de perto e de longe para um ritual. Eles disseram que
queriam a paz entre suas religiões. Cerca de trinta kams apareceram, trazendo apenas os
seus tambores. Os estranhos pegaram todos os kams e os colocaram numa pequena casa
de madeira. Então eles cobriram a casa com querosene e acenderam um fósforo.
"A casa com os kams queimou durante uma hora. Nenhuma das pessoas da vila
pôde fazer nada. Quando ela tinha queimado totalmente, três dos kams se levantaram e
andaram para fora das cinzas, vivos. Os estranhos ficaram apavorados quando viram
isso. Eles não tentaram deter os três kams, mas correram para longe da casa queimada e
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
contemplaram chocados enquanto os kams iam embora. Os três kams seguiram direções
diferentes e continuaram a "kamlanie". Mas a partir de então, os kams executam seus
rituais em segredo. Umai é uma descendente de um dos três kams que saíram andando
do fogo.
- Os estranhos eram cristãos?
- Não - replicou Nicolai. - Nós tivemos cristãos depois, e então vieram os
comunistas.
Sem dizer mais nada, fomos na direção da vila.
Vi Anna tocar gentilmente a mão de Nicolai e a ouvi perguntar:
"Você me perdoa?" Eu sabia que ela estava falando sobre as palavras que dissera
com raiva alguns minutos antes. Ele assentiu e soltou rapidamente a mão dela.
A vila era semelhante à de Nicolai, mas as casas eram menores e as pessoas
pareciam ainda mais pobres. Aproximamo-nos de uma casa antiga com fumaça subindo
pela velha chaminé. Não havia gente nas ruas, nenhum cão latindo para anunciar a nossa
presença.
- Acredito que ela esteja aqui - disse Nicolai, quando paramos perto da porta. - É
melhor que vocês me esperem - acrescentou enquanto empurrava a porta destravada e
desaparecia no pequeno interior da casa.
Meus pés molhados estavam ficando congelados. Anna pegou um cigarro no seu
bolso e fumou. Nós esperamos nervosamente durante o que pareceu um tempo muito
longo. Finalmente Nicolai emergiu da casa e caminhou diretamente para Anna.
- Umai vai curá-la esta noite. - As suas palavras pareceram pairar no ar durante
um momento até que nossos ouvidos preocupados as compreendessem plenamente. -
Ela me disse para levar vocês para outra casa, onde vocês esperarão por ela. Ela disse
que sentiu o seu desejo de curar o seu corpo e voltar a uma vida normal. - Ele pegou
Anna pela mão e a levou para uma casa no outro lado da rua.
- Espere ai, Nicolai. E eu? - gritei.
- Umai me disse para perguntar a você por que você tinha vindo. Espere por mim
aqui. Volto já.
Fiquei surpresa e confusa. Esta pergunta simples certamente não deveria ter me
preocupado, mas foi o que aconteceu. Por que eu estava aqui? Devia ser algum tipo de
sonho estranho. Viajando ali, me senti vagamente como se estivesse me movendo rumo
a algum tipo estranho de experiência mística, mas em nenhum momento da viagem eu
tentara considerar uma explicação racional. Eu podia dizer que viera como turista,
simplesmente acompanhando minha amiga para ver as montanhas. Mas isso não era
verdade, e eu sabia que não seria uma resposta aceitável para a mulher daquela casa.
Mais uma vez estava encarando as conseqüências de não tomar decisões conscientes
com minha vida, e senti pena de mim mesma.
Quando Nicolai retornou e tocou minha mão, ele me surpreendeu. Disse a ele a
primeira coisa que veio à minha cabeça.
- Eu vim aqui para aprender com ela.
Ele entrou novamente na casa. Quase imediatamente ele reemergiu e fez um gesto
para que eu entrasse. Vindo de um dia tão claro, de início pensei que a casa estivesse
totalmente escura. À medida que os meus olhos se ajustaram, percebi que uma pequena
quantidade de luz entrava por duas pequenas janelas. Eu vi que a casa só tinha uma
grande sala e que ela parecia absolutamente vazia, exceto por duas mulheres. Disse
"Olá" antes que Nicolai rapidamente fizesse um gesto pedindo que eu ficasse em
silêncio e me sentasse no chão em um dos cantos da casa.
39
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Uma das mulheres estava deitada de bruços no chão, no meio da sala. As suas
costas estavam nuas, com traços de terra e ervas sobre ela. A outra mulher parecia mais
velha. Ela era baixa, com um rosto forte e saudável. As suas roupas eram estranhas para
mim: uma longa saia feita de tecidos de inverno pesados de diferentes cores, com
algumas pequenas bonecas de pano costuradas nas suas costas. Ela tinha cabelo escuro,
na maior parte coberto por um xale azul, e um rosto mongol envelhecido com muitas
rugas. Eu diria que tinha cerca de setenta anos.
Ela não pareceu me notar. Parecia muito ocupada e estava concentrada em colocar
cuidadosamente um estranho objeto perto da mulher deitada. Era um triângulo tosco
feito de três pedaços de madeira, cada um com cerca de noventa centímetros de
comprimento. A madeira recém-cortada ainda tinha uma cor fresca, e até mesmo o
aroma perfumado do pinheiro de sua origem. Imagens de peixes estavam esculpidas nas
superfícies planas dos seus lados.
Percebi que devia ser Umai de pé sobre a outra mulher, e que estava ocorrendo
uma cura. Umai colocou o triângulo com os peixes no lado direito da mulher, de modo
que ele separou as duas de uma grande pele de rena que estava do outro lado do
triângulo.
Nicolai estava sentado em um dos cantos da casa, de modo que todo o espaço ao
redor das duas mulheres no centro da casa estava aberto. Umai pegou um pequeno
tambor do chão e começou a bater suavemente. De início o seu ritmo era quebrado e
fraco, parecendo incerto. Então ela começou a cantar na sua língua nativa. As palavras
da sua canção tinham uma entonação de súplica enquanto ela se movia graciosamente
ao redor do corpo imóvel abaixo dela.
A mulher no chão não fazia som algum e parecia estar dormindo. As suas costas
estavam nuas, exceto pela terra e as ervas. Embora a temperatura dentro da casa fosse
apenas alguns graus mais alta do que do lado de fora, seu corpo parecia relaxado e
aquecido. Umai caminhou ao redor dela, às vezes se curvando e batendo no seu tambor
bem acima das costas da mulher. O ritmo da sua canção ficou mais claro, as palavras
mais altas. Ela se movia cada vez mais rápido.
Assistindo à rápida energia da sua dança, eu agora pensava que ela devia ser mais
nova do que achara de início. O poder do tambor aumentou tanto que parecia impossível
que um instrumento tão pequeno soasse tão alto. A voz de Umai assumiu um tom
incrivelmente profundo e vigoroso. Eu mal a reconheci como a mesma pessoa que vira
no início da dança. Ela parecia mais alta, mais forte, mais agressiva e masculina, quase
como um guerreiro prestes a duelar até a morte com um poderoso inimigo. Ela saltou e
girou o seu corpo com uma inacreditável rapidez e força. A sua canção transformou-se
num grito de batalha. Ela respirou profunda e rapidamente, seus olhos se incendiaram
com um brilho vitorioso. Então ela agarrou a mulher rudemente pelos ombros e gritou
com ela na linguagem de Altai.
A mulher se ajoelhou. O seu cabelo caía num emaranhado. Os seus olhos ainda
estavam fechados, e ela parecia estar num transe profundo. Ela se arrastou de joelhos até
o triângulo de madeira. A abertura no triângulo era do exato tamanho para que um
humano se arrastasse, e ela entrou dentro dele.
Umai gritou ainda mais alto com ela. Jogou longe o tambor e empurrou a mulher
cada vez mais fundo no triângulo com suas mãos nuas. Os seus gritos se transformaram
num cântico queixoso. Era difícil para a mulher passar pelo triângulo. O seu corpo nu
entrava em convulsão e se contorcia contra as extremidades ásperas da madeira recém-
cortada. Umai tentou tornar a situação ainda mais dolorosa para ela movendo o
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
triângulo para frente e para trás, arranhando o corpo da mulher continuamente à medida
que a empurrava.
Eu ficara totalmente absorvida pelo que estava acontecendo. Subitamente os
peixes esculpidos adquiriram vida para mim, nadando da esquerda para a direita pelos
lados do triângulo. Umai continuava a cantar enquanto a mulher se aproximava do final
da sua luta para passar pelo triângulo. Quando ela estava quase completamente sozinha
do outro lado, Umai saltou até ela e levantou a pele de rena. A mulher se arrastou para
baixo da pele e logo estava totalmente coberta.
Umai então tornou-se ainda mais furiosamente agressiva. Gritando, ameaçadora
nos seus gestos, ela agarrou o triângulo de madeira e o destruiu. Ela fez isso como se
estivesse sentindo um intenso ódio, como se legiões de inimigos se escondessem dentro
dele. Ela o pisoteou, e então bateu nele com suas mãos. Parecia que ela o estava
amaldiçoando rudemente na sua própria linguagem. Quando só os restos da forma
jaziam sobre o chão, ela fez o mesmo com o tambor. Logo havia apenas pedaços de
madeira espalhados ao redor da mulher, que ainda estava coberta pela pele de rena.
Umai voltou-se para Nicolai e disse uma frase curta na sua linguagem. De algum
modo, compreendi que isso significava que ele deveria ajudar a mulher sob a pele. Umai
novamente pareceu ser uma pequena mulher nativa, mas eu sabia agora que ela tinha
um tremendo poder dentro de si. Ela sentou-se no chão, tirou um cachimbo de um bolso
oculto do seu vestido, e começou a fumar. Ela assistiu Nicolai calmamente enquanto ele
ajudava a mulher a se levantar e a colocar o resto das suas roupas.
A mulher parecia cansada e sonolenta. Ela não parecia notar Umai, e se movia
lentamente na direção da porta com passos pesados. Ela a abriu e saiu sem uma única
palavra ou gesto. Isto me surpreendeu e impressionou. Eu tinha esperado que ela
mostrasse gratidão, que dissesse a Umai como estava se sentindo - tudo menos mostrar
uma completa indiferença a sua curandeira.
Voltei-me para Umai, tentando ler no seu rosto qualquer reação a maneira como a
mulher fora embora. Inesperadamente, descobri que ela estava me olhando com
intensidade e um ar matreiro. Ela disse algumas palavras a Nicolai e continuou a me
fitar, ainda fumando seu cachimbo. Eu não podia tirar os meus olhos dela, e me pilhei
sorrindo estupidamente.
Nicolai traduziu suas palavras para mim.
- Ela disse que você fez bem em ajudar os peixes a levarem o espírito da doença
da mulher e a carregá-lo ao mundo inferior.
Umai se levantou e rearranjou os restos da sua sessão curativa no chão. Então ela
caminhou para onde Nicolai estava sentado e teve uma curta conversa com ele na sua
língua nativa. Eu sabia que, mesmo que ela falasse russo, eu não ouviria dela nenhuma
palavra na minha língua.
Nicolai voltou-se para mim.
- Ela quer que você a siga para outra casa na vila, onde ela está ficando. Ela não
vive nessa vila, sabe? Ninguém sabe onde ela mora. Esta casa onde estamos agora foi
abandonada quando a família que vivia aqui se mudou para a cidade há alguns anos. É
um lugar onde Umai só vem para curar pessoas.
Eu perguntei se íamos para onde Anna estava à nossa espera, desejando que eu
pudesse assistir e talvez até mesmo ajudar na cura da minha amiga. Nicolai respondeu
que não tinha idéia para onde Umai ia me levar.
Enquanto conversávamos, Umai se movera até a porta e a abrira. Descobri que
não tinha notado a passagem do tempo, pois a luz do dia quase acabara e a rua já estava
numa escuridão muda. Umai me chamou até a porta, e saí no crepúsculo atrás dela. Ela
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
ainda estava vestindo apenas o seu vestido, sem nenhum capote para protegê-la do frio
terrível. Ela caminhava rapidamente pela rua congelada, virando-se na direção oposta à
casa onde Anna estava esperando.
Escutei Nicolai dizer: "Vou até Anna."
Segui a figura de Umai pelo caminho estreito de neve compacta entre altos muros
de neve dos dois lados. A luz de lâmpadas brilhava de algumas das janelas enquanto
passávamos, parecendo confortável e quente para nós que caminhávamos no frio ar
noturno.
Tudo o que eu experimentei durante o dia esticou tanto a minha consciência que
minha mente estava bastante sacudida. Eu não estava cansada, tampouco assustada.
Embora eu não soubesse o que esperar em seguida ou o que Umai poderia querer de
mim, decidi deixar de pensar sobre o assunto. Pela segunda vez em dois dias vagamente
reconheci meus sentimentos como eco de uma outra época, mas ainda não podia me
lembrar de quando ou onde.
*****
7
Finalmente, chegamos a uma casa grande com duas portas, uma de cada lado. A
metade esquerda da casa estava iluminada, e pude ver pessoas entrando nela. Umai
caminhou para a outra porta, à direita, abrindo-a facilmente.
A sala por trás da porta era quase perfeitamente redonda, sem móveis exceto por
um único catre coberto com um velho cobertor. Estava escuro, e alguma coisa
despertara uma forte premonição de perigo. Eu teria me sentido ainda mais intranqüila
se não fosse pelo ar tranqüilizador do rosto calmo de Umai. De algum modo, sem
compreender por quê, eu já sentia como se conhecesse bem Umai. Talvez porque o seu
rosto me lembrasse um pouco a minha avó, que tinha traços que lembravam a herança
mongol de muitos russos. Eu seguia o rosto de Umai constantemente, tentando manter o
contato visual com ele a cada segundo. Sem isso, eu sentia que meu medo aumentaria e
que eu estaria perdida.
Ela apagou a luz e mandou que me deitasse no catre. Levantei o velho cobertor
feito de vários tecidos coloridos e comecei a tirar o meu casaco. Ela fez sinais para que
eu parasse, de modo que me deitei debaixo do lençol com minhas roupas de inverno. O
chão era de terra, não muito mais quente do que o do lado de fora, e imediatamente senti
o frio vindo de baixo. Fiquei pensando quanto tempo ficaria deitada ali.
De onde estava deitada, vi Umai enquanto ela acendia uma fogueira no meio da
sala e depois apagava a luz. Não havia lareira ou buraco para o fogo, só uma fogueira no
chão de terra no meio de uma sala vazia. As chamas subindo pareciam bastante
misteriosas. Muito embora eu não tivesse visto nada como isso antes, havia alguma
estranha familiaridade que me fazia sentir saudade de algum período antigo e
desconhecido. Umai cantava suavemente com palavras que eu não conseguia entender,
mas que pareciam estar endereçadas ao fogo com amor e devoção.
Muito embora eu só estivesse entre o povo de Altai há pouco tempo, tive uma
sensação intuitiva de que eles estavam completamente centrados no presente. Eles não
viviam no passado; não sonhavam com o futuro. Umai estava totalmente focalizada no
"agora", e nesse momento "agora" significava acender uma fogueira.
À medida que a chama iluminou a sala, minha frágil calma desapareceu e o perigo
novamente parecia espreitar ao meu redor. Eu não podia mais ver os olhos de Umai,
porque ela se recusava a olhar para mim. Ela tirou alguma coisa do seu bolso e colocou
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
no fogo. A chama engoliu seu novo alimento como um animal faminto, cresceu durante
alguns segundos, e então voltou ao normal.
A canção de Umai se alterou, e comecei a sentir como se eu estivesse de algum
modo dentro dela. Algo estava acontecendo dentro de mim. A minha atenção estava
presa pela fumaça subindo com o fogo. Eu não podia desviar os olhos, nem conseguia
pensar em qualquer outra coisa.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
As minhas botas estavam perto do capacho, e alguém tivera o cuidado de colocar meias
de lã quentes nos meus pés.
*****
8
Depois de arrumar minha cama improvisada e calçar minhas botas, saí para um
lindo dia. O ar estava tão incrivelmente fresco que a primeira inspiração me fez sentir
calma e alegre novamente. O céu azul exibia nuvens brancas e fofas, os pássaros
estavam cantando das altas árvores perenes que me cercavam, e as montanhas distantes
pareciam uma bela foto de cartão-postal. Tudo parecia trazer a mensagem de que a vida
ainda podia ser harmônica em alguns lugares desta terra. Eu estava contente pelo
destino ter me dado a oportunidade de visitar um deles.
- Oi! - disse a voz de um homem vinda da outra porta da casa.
- Olá! - respondi, prestando atenção para ver se a minha voz tinha sido alterada
por todas as experiências de ontem e da última noite.
- O meu nome é Victor. - Ele falou russo sem sotaque, marcando-o como outro
visitante na vila, como eu. - O proprietário da casa nos disse que uma velha ficaria aqui
na noite passada, e nos pediu para não ficarmos surpresos com nada que acontecesse.
Mas você é essa mulher que supostamente é tão velha e assustadora? Não sabia que
teríamos uma companhia tão atraente na casa ao lado!
- Quase - respondi. - O meu nome é Olga.
Alguma coisa nas suas palavras, na sua expressão facial e no seu tom de voz me
deixaram cautelosa. Mesmo com toda a sua beleza, a Sibéria ainda era um local muito
isolado. Estranhos eram uma raridade, e mulheres estranhas independentes eram ainda
mais raras. Uma mulher sozinha sem um marido ou família poderia estar vulnerável, e
era preciso às vezes tomar cuidado para evitar criar situações embaraçosas ou até
mesmo perigosas.
Felizmente, a minha experiência psiquiátrica tinha muitos aspectos úteis. Sendo
jovem e trabalhando principalmente na enfermaria masculina, precisei aprender
rapidamente como transformar o interesse masculino em amizade sem conotações
românticas ou sexuais. Instintivamente, eu sentia que este rude de aparência ativa, com
seu corpo grande e musculoso e risada máscula e profunda, acharia o tópico de funções
corporais íntimas embaraçoso o bastante para fazer submergir quaisquer outras idéias
que pudesse ter.
- Acho que realmente preciso encontrar um banheiro imediatamente - disse eu. -
Onde há um toalete que eu possa usar?
Ele fez um gesto na direção de uma pequena cabine estreita na parte de trás da
casa principal, e corri para lá. Victor estava esperando pelo meu retorno com um ar
amigável e protetor no seu rosto. Ele me apresentou seu amigo, Igor, que estava de pé
ao seu lado. Igor era o oposto completo de Victor, baixo e magro, com traços angulares.
Eles me convidaram para o desjejum e uma xícara de chá, e a idéia de comida era boa
demais para recusar.
Quando entrei, não pude deixar de ficar surpresa com o ambiente totalmente
diferente que me saudou. Aquela parte da casa parecia um lar normal. Era calorosa e de
bom gosto, cheia de belos objetos feitos a mão. A mesa estava coberta por uma toalha
branca bordada a mão com flores. Um grande bule de cobre estava sobre ela. Cortinas
de algodão translúcido permitiam que a luz passasse pelas pequenas janelas, e havia
45
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
taças de porcelana de verdade, com antigos desenhos russos. Tudo aqui fazia com que
eu me sentisse em casa, e descobri que estava relaxando um pouco.
- Vocês dois são os criadores de toda essa beleza? É difícil imaginar como dois
alpinistas como vocês pudessem arrumar tudo isso de modo tão belo - brinquei com
eles.
- Você é a bruxa de quem nos falaram ontem? - eles riram de volta. - Falando
sério, só essas coisas são nossas - acrescentou Igor, apontando para um canto onde eu já
vira o seu grande monte de equipamento de alpinismo. - Nós só alugamos este lugar
como uma base para nossas viagens nas montanhas.
O chá que eles fizeram era muito quente, e provavelmente tão forte quanto
qualquer um poderia ter feito. E eles tinham uma das minhas geléias favoritas, oblepiha,
que serviram em pequenos biscoitos duros como bolachas quebradiças. Depois das
experiências surpreendentes do dia anterior, era bom simplesmente relaxar e ter uma
conversa despreocupada. Eu sabia que recebera coisas demais para integrar em tão
pouco tempo, e que pensar sobre o assunto não me ajudaria neste exato momento.
Oblepihas crescem em árvores só encontradas na Sibéria, e são a fonte de muitas
lendas que eu escutara repetidas vezes na infância. A oblepiha era usada para tudo,
desde tratar uma pequena ferida na mão de uma criança até uma cura miraculosa para o
câncer, e possuía incontáveis vitaminas. Eu a adorava especialmente devido à sua
notável cor laranja brilhante. A cada outono a nossa família ia para nossa casa de campo
para colher essas frutinhas.
Nós precisávamos ser muito gentis para colhê-las, tomando cuidado para não
destruir a pele fina e delicada que quebraria facilmente nas nossas mãos, permitindo que
o doce e grudento suco alaranjado explorasse todos os sulcos dos nossos dedos. Elas
não eram fáceis de colher, porque as folhas eram bastante espinhosas. Os meus dedos
sempre acabavam decorados com pontos de sangue, com pequenos pedaços de espinhos
quebrados embebidos na minha carne. Tentar sair da colheita com meus dedos sem
espinhos e relativamente livres do suco alaranjado grudento era um exercício que nunca
esqueci.
Percebi que meus novos conhecidos estiveram falando, brincando e conversando
um com o outro enquanto eu sonhava acordada, e voltei ao presente. Eles pareceram não
ter notado minha breve distração e continuaram a me contar suas histórias de alpinismo.
Enquanto eu escutava, me ocorreu que estavam tão dedicados ao seu esporte que
provavelmente tinham poucas conversas que não se voltavam rapidamente para suas
experiências nas montanhas. Em pouco tempo, me contaram em detalhes todas as
diferenças grandes e pequenas entre as montanhas do Cáucaso e da Ásia Central, e
revivi com eles todos os seus momentos mais difíceis. Com um entusiasmo igual aos
detalhes, me falaram de seus amigos que morreram nas montanhas. E naturalmente
falaram um bocado sobre suas amadas montanhas altaicas.
No entanto, mesmo neste abrigo confortável com dois animados conversadores,
ainda me sentia emocionalmente distante. Em alguma outra ocasião eu poderia ter me
entretido mais com suas narrativas, mas agora a minha mente estava constantemente
retornando às minhas experiências do dia anterior. A única ocasião em que seus volteios
verbais pelas montanhas capturaram minha atenção plena foi quando mencionaram
Belovodia. Eu tinha escutado muitas lendas sobre este lugar. Belovodia, que significa a
terra da água branca, seria um pais místico e escondido que teria sido encontrado e
adentrado apenas por uns poucos escolhidos. Muitos acreditavam que ele ficava em
algum lugar das montanhas altaicas. Algumas pessoas afirmavam que Belovodia era um
46
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
outro nome para Shambhala, um pais sagrado citado em muitos mitos indianos e
tibetanos, de onde pessoas sagradas governavam o mundo.
- Você sabia que até mesmo o Dalai Lama disse recentemente que acreditava que
Shambhala estava em algum lugar nas Altai? - perguntou Victor.
- Eu não sei nada sobre a localização de Shambhala - disse Igor -, mas tenho
certeza de que Belovodia está nas montanhas altaicas. Eu subi muitos picos nesta terra,
mas em nenhum outro lugar vi rios tão brancos. Os cientistas provavelmente
explicariam a cor como sendo devida à alguma estranha mistura do solo aqui, mas
apesar disso, acredito que seja por causa de Belovodia. Além disso, se eu fosse um
espírito governando o mundo, escolheria fazê-lo de Altai. É o único lugar de onde o
resto da terra poderia ser governado, se quer saber.
Victor acrescentou seus próprios pensamentos.
- Sabe, tremendas fissuras se abriram no chão por todo o Altai, descobrindo
camadas de milhões de anos de idade. Alguns dizem que a radiação da terra chega até a
superfície e se dissipa através dessas fissuras, cobrindo todo o Altai com um guarda-
chuva. Provavelmente é por isso que o Altai é tão diferente de qualquer outro lugar, e
por que até mesmo velhos leninistas materialistas como nós sentem que milagres são
possíveis aqui.
- Você poderia falar mais sobre esse pais misterioso? - perguntei. As palavras de
Victor sobre Belovodia tinham me tocado profundamente.
Igor falou novamente.
- Ninguém de fora sabe muito sobre ele. Os povos nativos têm antigas histórias
sobre encontros com espíritos e sacerdotes misteriosos desse pais escondido. Nunca o
encontramos, mas acreditamos que seja possível.
- O povo de Altai os chama de xamãs? - perguntei, pensando em Nicolai e na
minha recente conversa com ele.
- Nunca nos contaram nada sobre essas coisas do povo de Altai. Você mesma
deveria perguntar a eles. Eu não acho que ainda existam xamãs. Mas quem sabe? - O
tema dos xamãs obviamente não interessava Victor, e ele abandonou o assunto
rapidamente.
- Se você está interessada em saber mais sobre esse assunto misterioso, aqui está
alguma coisa que você pode ler. O proprietário da casa me deu isso - disse Igor me
oferecendo uma brochura de cerca de quinze páginas com Belovodia impresso em
grandes letras na capa.
Enquanto eles continuavam a conversar, abri a brochura e comecei a ler.
saber do meu destino. O guia me deixou. Eu fiquei olhando enquanto seus passos
se dissolviam no nada.
"O sol nascente iluminou os picos brancos até que eles pare-cessem chamas
ardentes. Eu era a única criatura à vista. Estava sozinho com meu Deus, que me
trouxera até ali depois de uma viagem tão longa. Um sentimento de exultação
celestial indescritível tomou o meu ser. Eu sabia que estava abraçado por um
espírito. Me deitei no caminho e beijei o chão rochoso, o meu coração e minha
mente silenciosamente agradecendo a Deus pela sua graça. Então segui adiante.
"Logo cheguei a uma encruzilhada. Os dois caminhos pareciam me levar à
parte mais alta das montanhas. Escolhi o caminho da direita, que levava ao sol
nascente. Continuei meu caminho com orações e canções. Havia mais duas
encruzilhadas naquele primeiro dia. Na primeira delas, um dos caminhos estava
bloqueado por uma serpente em movimento, como se estivesse fechado para mim,
portanto segui o outro caminho. Na segunda, três pedras bloqueavam um dos
caminhos. Escolhi o caminho livre.
"No segundo dia, havia uma encruzilhada. Desta vez, o meu caminho se
dividia em três partes. Acima de um deles voava uma borboleta, e foi esse que
escolhi. Depois do meio-dia o caminho me levou para perto de um lago na
montanha.
"No terceiro dia, os raios do sol nascente iluminaram o pico branco e
coberto de neve da montanha mais alta e a cercaram com chamas de fogo. Minha
alma se elevou em reverência diante dessa visão. Olhei durante muito tempo; ela
se tornou parte de num. A minha alma se uniu com as chamas ao redor da
montanha, e o fogo tornou-se vivo. Havia figuras brancas se virando, voando na
direção do topo em rios de fogo numa bela dança circular. Então o sol se elevou
por detrás da montanha, e esta visão hipnótica desapareceu.
"Havia três encruzilhadas no terceiro dia. A primeira tinha ao seu lado um
arroio belo e espumante da cor da esmeralda, com espuma branca dançando sobre
milhares de pedrinhas e musgos. Rapidamente escolhi o caminho do arroio.
"Por volta de meio-dia cheguei à encruzilhada seguinte. Três caminhos se
dividiam nela. Sem pensar, escolhi um rochedo na forma de um ídolo gigantesco
protegendo o caminho. Na encruzilhada seguinte, que também tinha três caminhos
levando a três direções diferentes, escolhi o caminho mais iluminado pelos raios
do sol.
"Quando a escuridão caiu nesse terceiro dia, escutei sons estranhos. Logo,
ao lado de uma colina, vi uma casa iluminada pelos últimos raios do sol. Cheguei
nesse casebre antes de anoitecer, entrei no humilde refúgio e dormi, agradecido.
"No dia seguinte fui despertado por vozes. Dois homens estavam diante de
mim, falando numa língua desconhecida. Estranhamente, minha personalidade
interior os compreendeu de algum modo, e eles também me compreenderam.
Perguntaram se eu precisava de comida.
"Repliquei: 'Sim, preciso, mas só para o meu espírito.'
"Eu os segui até uma vila onde fiquei durante algum tempo. Ali fiquei
sabendo de muitas coisas, e recebi alguns deveres e trabalho para fazer. Sentia-me
tremendamente contente. Então, certo dia, me disseram que estava na hora de
seguir adiante na minha jornada.
"Fui tratado como um parente amado quando alcancei o lugar seguinte, e
então novamente fui levado mais longe quando chegou a hora certa.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
"Perdi a noção do tempo, porque não havia como pensar nisso. Cada dia
trazia algo novo, algo surpreendentemente sábio e maravilhoso para mim. O
tempo se passou como se eu estivesse num miraculoso sonho de todas as coisas
boas. Finalmente, me disseram que estava na hora de voltar para casa, e foi o que
eu fiz.
"Agora que estou prestes a deixar esse mundo, estou contando o que é
possível para mim contar. Calei-me sobre muitas coisas, porque a sua mente
humana não poderia aceitar tudo o que eu vi e escutei
"O país de Belovodia não é uma fantasia. É uma realidade. Ele recebeu
muitos nomes diferentes nas lendas populares. Os Grandes Seres Sagrados, os
orientadores do Mundo Elevado, vivem lá. Eles trabalham constantemente junto
com todos os Poderes Luminosos celestes para ajudar e guiar todos os povos da
terra. O seu é um reino de Puro Espírito, com chamas maravilhosas, cheio de
mistérios encantadores, alegria, luz, amor, inspiração, calma, e uma inimaginável
grandeza.
"A cada cem anos, só sete pessoas de todo o mundo têm permissão de
penetrar neste país. Seis delas retornam com o conhecimento sagrado, e a outra
permanece.
"Em Belovodia, as pessoas vivem tanto quanto querem. O tempo pára para
qualquer um que entre no reino. Eles vêem e escutam tudo que acontece no
mundo externo. Nada está oculto de quem está em Belovodia.
"À medida que o meu espírito ficou mais forte, recebi a oportunidade de ver
além do meu corpo, de visitar cidades diferentes e conhecer e escutar tudo que eu
desejava. Contaram-me sobre o destino do nosso povo e do nosso país. Há um
grande futuro à nossa espera."
Lentamente fui virando as páginas da brochura, curiosa sobre essa bizarra mas
estranhamente verossímil história. No final da brochura, uma nota dizia que o texto fora
escrito em 1893, copiando exatamente as palavras da boca de um monge moribundo
num monastério. Fiquei surpresa quando percebi que essa história fora passada
oralmente desde 987, quando o grão-duque mandou seu embaixador para o mundo, até
1893, quando finalmente fora escrita.
Senti uma estranha excitação, percebendo que tinha aquele pequeno livro nas
mãos quase cem anos depois de ele ter sido escrito. Não consegui achar na sua capa
nenhum sinal de um autor ou editor. Perguntei aos meus novos amigos sobre ele, mas
eles não podiam me dizer mais nada.
- A única coisa que posso acrescentar - disse Victor - é que um dos meus amigos,
um fotógrafo profissional, costumava vir até aqui de vez em quando para tirar fotos. Ele
ficou tão impressionado com Altai que decidiu viver aqui. Ele está convencido de que
Belovodia está aqui, e possui suas próprias teorias detalhadas sobre o assunto. Ele viu
algumas ravinas rochosas nas montanhas com apenas gelo por baixo delas. Ele me disse
que quando o sol ilumina esses lugares, um fogo torna-se visível. Essa visão é tão
diferente de tudo que alguém possa ter visto que ele tem certeza de que é a localização
de Belovodia.
Victor olhou para o seu relógio, e vi que já era quase meio-dia. Fiquei surpresa em
ver quanto tempo tinha se passado e comecei a me preocupar com Anna e Nicolai.
Rapidamente agradeci e me despedi e voltei à luz do dia para encontrar a casa onde
Anna desaparecera no dia anterior.
50
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
*****
9
A única rua da vila parecia mais real e normal de manha do que pare-cera na noite
anterior. Enquanto eu caminhava, recordava minhas experiências da noite e a sensação
da presença de Umai. Era mais fácil para mim agora pensar em tudo aquilo como um
sonho. Eu não tinha contexto para Umai no meu estado de espírito matinal. Eu nem
mesmo conseguia imaginar que ela estivesse na vila.
Uma coisa sobre a experiência de ontem tinha me incomodado mais do que
qualquer outro detalhe. O fato de ter uma visão poderia ser explicado usando diferentes
ferramentas psiquiátricas, mas eu não sabia como racionalizar o fato de que vira peixes
esculpidos nadando sobre pedaços de madeira e Umai agradecendo por tê-la ajudado a
dar-lhes vida e fazer com que nadassem com a doença para longe. Como ela sabia que
eu os vira se movendo? Era só uma coincidência? Não ter uma resposta para isso
destruía as explicações racionais que eu tinha para todas as outras coisas que
aconteceram.
Esta pergunta era perturbadora demais para qualquer outro pensamento. Para
aquietar minha mente, simplesmente me concentrei nos meus passos e segui para a casa
em que tinha deixado Anna. Eu esperava que estar com Anna e Nicolai me ajudasse a
trazer alguma ordem aos meus pensamentos e emoções, e me permitisse encaixar as
peças misteriosas desse estranho quebra-cabeça.
Cautelosamente, me aproximei da porta da casa e bati algumas vezes, cada batida
mais ousada e mais alta do que a anterior. Nenhuma voz respondeu, nem havia som
algum de passos se movendo para a porta. Finalmente, empurrei a porta e ela abriu. As
janelas estavam bem fechadas, e a casa estava escura. De início não consegui ver nada,
e pensei que a casa estivesse vazia. Quando meus olhos se acostumaram à escuridão e
pude ver a vaga silhueta de alguns móveis na sala, entrei. Procurando Anna, passei
lentamente da primeira sala para a segunda. Ainda assim não vi ninguém. Pensei que
talvez Anna e Nicolai houvessem saído para me procurar e que tivéssemos nos
desencontrado. O meu pensamento estava tão confuso que momentaneamente esqueci
que teria sido impossível para nós nos perdermos, já que só havia uma estrada
atravessando essa pequena vila da montanha.
Um som leve a minha direita me fez me voltar para a parede. Procurei
desesperada pelo interruptor, e quando finalmente o encontrei, me vi diante de uma
imagem de Anna que nunca esquecerei. A sua figura estava caída desajeitadamente
contra a parede. Ela estava imóvel e não dava nenhuma indicação de perceber a minha
presença. As suas mãos tinham sido amarradas com uma grossa corda escura que
passava por dois grandes anéis de metal presos na parede. Ela estava meio sentada,
vestindo só sua roupa de baixo, sua cabeça caída contra o peito. Suas mãos estavam
abertas, e podia ver que estavam cobertas com pequenos cortes e sangue seco. Pensei
que minha amiga tinha morrido.
- Anna! - gritei, aterrorizada. Ela fez um ligeiro movimento, e um gemido escapou
dos seus lábios. Sentei ao seu lado, segurando os seus ombros, tentando não me entregar
às emoções. Ela lentamente abriu seus olhos e olhou para mim. Feias manchas escuras
sob seus olhos deixavam seu rosto velho e enfraquecido.
- Me ajude, Olga - ela pediu numa voz cansada e fraca.
Saindo do meu choque inicial, comecei a trabalhar com a corda grossa, libertando
suas mãos o mais rápido que pude. Tive medo de perguntar a Anna o que tinha
acontecido, e em vez disso me concentrei em desamarrar as cordas para soltá-la. Então a
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
ajudei a atravessar a sala e a coloquei confortável numa grande cama que estava no lado
oposto. O medo e a confusão tomaram conta de mim, e me vi chorando, sentindo que
algo irreversível tinha acontecido com ela.
Ouvindo meus soluços, Anna falou.
- Pare de chorar, por favor. Nada de perigoso aconteceu comigo, Olga. Eu só não
dormi o bastante.
Ela fez um gesto na direção do seu vestido, que estava disposto sobre uma
cadeira. Eu a ajudei a vesti-lo, a sua mente ainda não totalmente presente e seu corpo
ainda se recuperando.
- É claro, Anna - repliquei. - E como você não conseguia dormir, amarrou suas
mãos nos elos de metal na parede. Então, quando ainda assim não conseguiu dormir,
cortou-as com uma faca. Olhe só para você!
Minha explosão emocional ajudou a me sentir melhor. Anna parecia estar
ganhando força, o seu corpo se movendo com mais facilidade agora, e ela parecia pelo
menos um pouco com sua velha personalidade. Olhei cuidadosamente para ela e fiquei
aliviada ao concluir que nada de sério tinha acontecido.
- Mas, Olga, foi minha própria decisão fazer isso. Eu não sabia exatamente o que
esperar, mas Umai me disse que poderia ser difícil. Ela me perguntou se eu estava
pronta a sofrer um pouco para acabar com a minha doença, e eu concordei prontamente.
Então, foi minha decisão. Eu vou ficar bem. Só me dê mais algum tempo. - A sua voz
enfraqueceu novamente, mas não mostrava outros sinais de abuso.
Finalmente, com um suspiro profundo, ela começou a descrever os eventos da
noite anterior. Depois de termos partido ontem, Nicolai a trouxe para sua casa e a
deixou sozinha para esperar por Umai. Ela esperara durante um bom tempo, mas
felizmente encontrara um livro interessante e passara o tempo lendo. Finalmente, Umai
chegou e não perdeu um minuto para começar o processo de cura.
- A primeira coisa que Umai fez foi perguntar, como já disse um minuto atrás, se
eu estava pronta para sofrer. Eu disse que sim.
- Espere um minuto, Anna. Como você conseguiu compreendê-la? - perguntei,
confusa.
- A pergunta dela era simples o bastante, Olga, e eu a compreendi literalmente.
Ela perguntou se eu concordava em sofrer e respondi que sim. Eu não tinha vindo todo
esse caminho para ser curada, trazendo você junto, só para recusar por causa de um
pouco de desconforto.
Percebi que ela não compreendera a minha pergunta.
- Não foi isso que eu quis dizer, Anna. Como você compreendeu a linguagem
dela?
- Como assim, Olga? - Ela franziu o cenho e sacudiu a cabeça como se a pergunta
não fizesse sentido. - Umai pode falar com sotaque, mas o russo dela é fluente.
Imaginei se Anna estava de algum modo confusa ou se Umai realmente falava
russo. Se ela falava, me perguntei, por que não falou comigo?
- O que ela fez em seguida - continuou Anna -, foi pegar duas garrafas de vidro na
mesa. Acredito que estavam cheias de vodca, ou pelo menos era isso que estava escrito
nos rótulos. Ela bebeu-as facilmente, como se fosse água. Não posso imaginar que fosse
realmente vodca, porque não acho que alguém pudesse ter bebido as garrafas tão rápido
nesse caso.
"De qualquer maneira - seja lá o que houvesse nas garrafas - logo depois ela
pareceu estar bêbada. Ela pegou essas cordas que você viu de algum lugar do outro lado
da sala. Então ela me pediu para tirar minhas roupas e ficar perto da parede. Nunca me
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
ocorreu que ela pudesse me amarrar com elas. Fui até a parede, e quando me voltei para
olhar para ela, já estava amarrando minhas mãos. Não tive nem tempo de pensar sobre o
que estava acontecendo comigo.
"Acho que aceitei tudo como um tipo de jogo etnográfico no início. Quando
percebi que ela parecia muito bêbada e que não podia ou não queria responder a
nenhuma das minhas perguntas, então comecei a sentir medo. Eu gritei com ela,
exigindo que ela respondesse. Perguntei a ela o que estava fazendo. Ainda não havia
nenhuma reação da sua parte, não importa o que eu fizesse. Ela só queria dançar pela
sala, dando passinhos rápidos e cantando uma canção monótona enquanto se movia. Ela
estava bêbada, louca e assustadora, e eu estava totalmente em seu poder.
"Ficar totalmente indefesa dessa maneira foi a coisa mais horrível que eu já
experimentei. A perda da minha liberdade foi apavorante. Acho que o inferno deve ser
algo assim.
"Então Umai começou a cantar muito alto. Ela parecia estar completamente fora
de controle, sem responsabilidade nenhuma pelas suas ações. Finalmente cansei de
gritar com ela, e já que nada de horroroso realmente acontecera, o meu medo passou um
pouco. Decidi simplesmente esperar pelo final da sua atuação. Então ela deixou a sala e
voltou com uma grande faca afiada. Ela veio na minha direção com um ar ameaçador,
gritando alguma coisa na sua própria língua, e começou a enfiar a faca na parede ao
redor do meu corpo.
"Você pode imaginar como eu fiquei horrorizada, Olga? Eu pensei que fosse
morrer naquele exato momento. Eu não acho que alguém possa imaginar como eu me
senti naquele instante. Eu chorei; rezei. Lutei para me soltar; mas era impossível. Então
ela ficou ainda mais louca e começou a cortar minhas mãos com sua faca.
"Quando vi o primeiro sangue fluindo do meu corpo, o meu medo de alguma
maneira se transformou em raiva. Fiquei furiosa com Umai e gritei que ia matá-la! Ela
olhou para mim, e então subitamente passou por uma transformação completa. Com um
ar totalmente sóbrio, ela disse em russo que não pararia até ter mandado a minha doença
embora. Então voltou ao seu porre e começou a me espetar novamente com sua faca.
"Experimentei um incrível sentimento de ódio, não só na minha mente mas
também no meu corpo inteiro. Mas dessa vez não era ódio por Umai, mas por mim
mesma, pela situação em que tinha me metido, e por permitir que eu ficasse à mercê de
Umai dessa maneira tão indefesa. Este ódio me invadiu dos pés até o topo da minha
cabeça. Eu não sabia o que fazer com essa sensação; pensei que fosse enlouquecer.
Então, subitamente um grito animal veio da minha garganta. Eu me sentia como o
animal. Cheguei a ver uma figura gigantesca sair da minha boca junto com o grito. E
então tudo mudou. Acho que foi o grito que mudou as coisas. O meu ódio dissolveu-se
imediatamente.
"Ao mesmo tempo, Umai ficou bastante calma novamente e pareceu cansada. Ela
sentou-se na cadeira na minha frente e começou a fumar o seu cachimbo. Não sentia
mais raiva dela; estava exausta demais. Pedi-lhe para dar uma tragada, e ela levou o
cachimbo aos meus lábios durante alguns momentos. O tabaco era forte e tinha um
cheiro diferente de qualquer outro que eu já tivesse provado. Eu ainda estava amarrada,
e estava cansada demais.
"'Eu não vou desamarrá-la', disse ela. 'Se o fizer, você vai achar que tudo foi
apenas um sonho. Você vai precisar de uma testemunha. Os seus laços servirão para
essa finalidade. E não sinta pena de si mesma. Sentir pena não vai realizar nada. A sua
amiga vai chegar logo. Ela vai ajudar você, e vai ser muito boa sentindo pena de você.'
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
"Com essas últimas palavras, ela riu e deixou a casa. Caí no sono, exatamente
onde eu estava amarrada na parede. Então você veio e me acordou. E você sabe, ela
estava certa. Você realmente foi muito boa em chorar por mim. - Anna terminou sua
história, rindo suavemente de mim.
Enquanto Anna falava, eu me sentia cada vez mais como se tivesse passado pela
terrível provação que ela descrevera. Tudo que ela disse parecia tão real. Eu queria fazer
mais perguntas, mas vi que ela simplesmente não tinha forças para dizer mais nada. Eu
também estava cansada, e por isso só fiz uma última pergunta simples antes de deixá-la
dormir.
- Onde está Nicolai?
- Eu não sei. A última vez que o vi foi ontem, quando ele caminhou comigo até
esta casa. Pensei que você e ele estivessem juntos em algum lugar.
- Não, também nos separamos ontem, e ele disse que ia voltar para cá para esperar
com você. Ele não veio?
- Não, Olga. Eu não me lembro de tê-lo visto. - Ela dormiu quando a última
palavra deixou sua boca.
Sentei-me e fechei os olhos por um instante. Pensamentos vinham rápidos à minha
mente. Obviamente, a situação excedera a minha capacidade de lidar com ela. O mesmo
tipo de coisa acontecera algumas vezes no passado, quando estivera em situações
extremas. Minha mente consciente sentia-se sobrepujada e embotada, enquanto meu
inconsciente tentava escolher o melhor caminho a tomar. Mas dessa vez não veio
nenhuma idéia do meu estupor. Estava incapaz de reagir racionalmente, e não sabia se
chorava, corria, gritava ou simplesmente dormia como Anna. Tudo estava acontecendo
rápido demais.
Eu não sei quanto tempo fiquei ao lado de Anna enquanto ela dormia, mas
finalmente decidi voltar para ver Victor e Igor novamente. Esses homens pareciam ser a
minha única conexão com a normalidade. Eles agora eram símbolos de estabilidade e
ordem para mim. Assim que pensei em vê-los, não perdi tempo. Coloquei meu casaco
ao redor dos ombros, deixei a casa, e caminhei rapidamente para a estrada familiar até a
casa deles.
Bati na porta e abri sem esperar por uma resposta. A tradição de portas abertas da
vila rapidamente desapareceu para mim, assim que uma mulher de ar severo me olhou
obviamente irritada com minha intrusão.
- O que você quer? - perguntou ela em russo, numa voz alta vazia do mais remoto
traço de hospitalidade.
- Vim fazer algumas perguntas a Victor e Igor - falei sem pensar, surpresa de ter
encontrado essa mulher rabugenta.
- Não há ninguém com esses nomes aqui - respondeu rispidamente.
- Mas eu os encontrei aqui hoje de manhã - insisti. - Fiquei aqui na noite passada,
na outra metade da casa. Umai me trouxe aqui.
Eu estava cada vez mais confusa, e precisava confirmar algum tipo de realidade
para mim mesma. Era importante que essa mulher confirmasse que eu estivera lá com
Victor e Igor, e que minha experiência com eles tinha sido real.
Ela repetiu suas palavras de maneira ainda mais ríspida.
- Nunca houve ninguém aqui com esses nomes. Eu não tenho idéia do que você
está dizendo, mocinha.
- Por favor, me escute. Dois amigos e eu viemos para cá de Novosibirsk. Estou
procurando o homem de Altai que nos trouxe ontem para cá da sua vila. O seu nome é
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Nicolai, e nós chegamos aqui ontem. Não podemos encontrar nosso caminho de volta
para a sua vila sem ele. Pode me ajudar a encontrá-lo, por favor?
Em vez de suavizar, como tinha esperado, o seu rosto tornou-se ainda mais
severo. Se possível, sua voz ficou ainda mais dura.
- Quando eu era uma jovem, nunca teria me metido numa situação assim com um
homem. Isso é problema seu. Não sei de nada que possa ajudá-la. Agora por favor deixe
a minha casa.
Eu tinha certeza de que ela sabia sobre Victor e Igor e provavelmente sobre Umai
e Nicolai também. Era impossível viver numa vila tão pequena e não saber de tudo que
acontecia, especialmente sobre pessoas que tinham pernoitado na sua própria casa. Mas
a sua hostilidade para comigo, uma mulher jovem e solteira do mundo exterior, viajando
com um homem solteiro, era clara demais. Eu sabia que ela falara suas palavras finais
comigo.
Irada, voltei para a rua, que estava completamente vazia. O medo e a solidão
estavam tomando conta de mim, e para piorar as coisas, eu podia sentir pelo
formigamento da minha pele que as pessoas estavam sentadas nas suas casas ao meu
redor, sabendo de tudo que acontecera mas sem nenhuma disposição de me ajudar.
"LOJA". O sinal simples no teto de uma casa chamou minha atenção. Imaginei
como poderia ter caminhado por essa rua e deixado de notá-lo antes. Muito embora
estivesse com medo de que minha extrema intranqüilidade piorasse dentro da loja, como
a porta estava aberta entrei sem pensar.
Um velho altaiano estava sentado por trás do balcão. Ele estava quase dormindo,
sua cabeça oscilando enquanto respirava alto. Ele vestia o tradicional traje quente de
Altai com o cinto ao redor do seu grande estômago. Ele estava usando um típico chapéu
russo, feito de pele de coelho tingida, que obviamente o ajudava a sentir-se confortável
na sua loja sem aquecimento. Ele só pareceu me notar quando perguntei, bastante
nervosa, o que eu poderia comprar para comer. Não havia comida ou bebida em nenhum
lugar que eu pudesse ver, só alguns itens para crianças e coisas como sabão e pasta de
dente.
Voltando a atenção lentamente, o velho olhou para mim e disse:
- Bem, você pode comprar pão e doces. Todo o resto da comida que tenho já foi
vendido. Eu não sei quando vão trazer mais coisas para eu vender. - Ele olhou para mim
com indiferença, mas tive a sensação de que já sabia de tudo sobre mim. Uma intensa
sensação de tensão se espalhou pelo meu abdômen e peito.
Forcei-me a recordar os casos de paranóia ferroviária, descritos por um famoso
psiquiatra russo do século XIX como um tipo de desordem situacional que atacava
pessoas que viajavam de trem pela primeira vez. Esta síndrome estava relacionada com
muitos tipos de paranóia causados por situações desconhecidas. Eu não tinha nenhum
desejo de experimentar a psicose em primeira mão, de modo que me concentrei em
decidir o que comprar.
Isso me acalmou, e fui capaz de comprar algum pão e um pacote de doces secos
sem qualquer outro alarme. Deixara minha bolsa e todos os meus documentos na minha
mala na casa de Maria, mas felizmente encontrei dinheiro bastante no bolso do meu
casaco para pagar pela comida. Isso fez com que me sentisse estúpida e irresponsável ao
pensar na maneira descuidada com que planejara e levara adiante essa viagem.
Quando voltei para casa, Anna ainda estava dormindo. Ainda não havia sinal
algum de Nicolai. Perturbava-me não saber onde ele estava e quando iria aparecer.
Percebi, também, que algo incomum acontecera ao meu senso de passagem de
tempo. Parecia que só algumas horas tinham se passado desde que eu acordara naquela
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
manhã, mas quando olhei para fora vi que a luz do dia já estava diminuindo e que a
noite estava caindo sobre nós. Eu não conseguia encontrar meu relógio, e não me
lembrava se estava com ele ontem ou não. Nunca sentira essa estranha compressão
cronológica antes, e ela me deixava ainda mais confusa.
Eu achava que talvez pudesse me centrar mais e voltar a me sentir mais inteira me
concentrando no meu corpo físico. Olhei para a bolsa de Anna e encontrei o pão e
queijo que Maria nos dera ontem. Havia sido realmente apenas ontem?
Enquanto fazia uma pequena refeição, escutei a voz de Anna. De início me senti
mal por ter feito tanto barulho e a despertado cedo demais. Mas quando ela entrou na
cozinha, mal pude acreditar nos meus próprios olhos. Ela parecia anos mais nova, e a
expressão de felicidade no seu rosto era como a de uma criança recém-nascida. Estava
gargalhando de algum lugar centrado dentro de si, e obviamente tinha uma enorme
energia em todo seu corpo.
- Olá! Estou de volta - disse ela finalmente, com um sorriso jovial no seu rosto.
- Estou vendo. - Analisei o seu rosto, primeiro com espanto, então com um grande
alívio ao ver que minha amiga de fato parecia estar totalmente de volta. E no processo,
ela parecia melhor do que nos últimos tempos.
- Olga! Não consigo acreditar como estou me sentindo bem. Não me lembro de ter
me sentido tão saudável e forte. Obviamente precisamos experimentar, em certas
ocasiões, a doença para perceber o que é a saúde, e foi isso que eu fiz. A sua Umai é
uma velha maluca, mas acho que ela pode realmente fazer milagres.
- Estou feliz em ouvir isso, Anna, mas ela não é a "minha" Umai. Ela é pelo
menos tão sua quanto minha. Especialmente porque eu não compreendo de modo algum
a experiência que tive com ela. Se foi uma cura, certamente tinha muito de loucura nela.
Senti-me quase louca depois que ela trabalhou comigo!
- Anna, você tem alguma idéia do que devemos fazer em seguida? Não sabemos
onde está Nicolai, quando ele vai aparecer, ou até mesmo se ele vai aparecer. Está na
hora de voltarmos para casa, não acha? Mas não sabemos como sair daqui sozinhas.
Você tem alguma sugestão?
- Eu não me importo com nada disso. Neste exato momento, quero alguma coisa
para comer, e depois provavelmente me faria bem dormir mais algumas horas. Está
quase de noite novamente, não é?
Olhando pelas janelas, fiquei chocada ao perceber que a luz do dia já se fora
inteiramente e que uma escuridão total envolvera a pequena vila. Então fui abalada por
outra descoberta quando percebi que alguém acendera a luz elétrica. Eu sabia que não
tinha sido eu, e não achava que houvesse sido Anna, tampouco. Mas do que poderia ter
certeza nesse lugar estranho?
Anna poderia achar que estava tudo bem em ficar aqui, mas eu estava achando
isso cada vez mais difícil. A minha caminha no meu apartamento sem graça e
desinteressante na cidade me parecia cada vez melhor. Recordei as palavras de Anna na
minha mente e finalmente lembrei a ela que tínhamos o pão e queijo de Maria, assim
como algumas coisas que eu comprara na loja. Decidimos fazer uma boquinha e então
dormirmos o mais cedo possível para que pudéssemos acordar com a primeira luz do dia
e começarmos a tentar sair daquele lugar. Quando fomos dormir, disse: "Boa noite,
Anna. E espero não acordar amanhã de manhã para encontrar você amarrada na parede
novamente!"
O segundo quarto tinha outra cama. Deitei-me imediatamente, sem nem mesmo
tirar minhas roupas ou me meter sob um cobertor.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Subitamente, uma onda calorosa cobre o meu corpo vinda de cima, e posso
sentir que estou sendo arrebatada através do tempo e do espaço por uma força
desconhecida. Embora eu esteia indefesa, sinto-me segura, de modo que
simplesmente me rendo a seja lá o que estiver acontecendo. Vejo-me deitada
novamente no mesmo quarto onde estive com Umai ontem. De algum modo isso
não me surpreende. Estou num novo estado de consciência em que posso sentir
plenamente o meu corpo, mas não posso mover qualquer parte dele. Existem
muitas vozes ao meu redor mas elas são indistintas e não posso compreendê-las.
Eu não tenho voz própria.
Sinto novamente vibrações passando pelo meu corpo, do topo da minha
cabeça até meus pés. É uma sensação agradável, de modo que tento não resistir a
ela. Um som rítmico lentamente invade a minha percepção e chega cada vez mais
perto. Não é importante para mim descobrir a origem deste som. Estou
novamente me acostumando a não questionar o que está acontecendo comigo,
simplesmente me permitindo estar dentro dos acontecimentos. Confio que é
seguro para mim fazer isso.
O ritmo me agrada e começo a segui-lo. Ele começa a criar imagens para
mim. De inicio elas não são claras, rapidamente substituindo umas às outras, até
que finalmente uma delas torna-se forte e focalizada. É a visão de uma pirâmide
de âmbar. De início ela está muito longe, mas ela se aproxima de mim com
grande velocidade. Ela está muito longe de início, e não sei o que fazer
O espaço na minha frente torna-se amarelo. A pirâmide fica enorme, e
subitamente me vejo penetrar a sua parede de âmbar. Não há tempo para
compreender o que está acontecendo.
Estou dentro do âmbar flutuando lentamente para cima dentro dela. O meu
corpo está se movendo em harmonia através de corredores amarelos. É um
mundo sereno sem pessoa alguma, sem qualquer outra energia que não a
experiência do âmbar. O tempo é comprimido neste lugar. Sinto uma espiral de
algum tipo dentro do meu corpo, que lentamente se retesa e me empurra para
cima, cada vez mais para cima. O tempo se espalha para cima comigo. A
pirâmide se torna um vulcão e entra em erupção. Estou no meio da explosão, que
me propele violentamente para longe.
Sou transportada em segurança para uma floresta escura. Em algum ponto
profundo dentro de mim mesma estou calma e aceitando tudo que está
acontecendo. Não tenho medo; sinto-me mudada. Embora algumas das minhas
experiências recentes tenham sido aterradoras, elas também me ensinaram muito.
Elas tornaram possível afastar-me de mim mesma e ser uma observadora de uma
maneira que nunca fora anteriormente.
"Siga em frente!" É a voz de Umai, e me reconforta saber que ela está por
perto. Há um pequeno caminho, e eu o sigo até as profundezas da floresta. As
cores da floresta são o negro e o azul. Pelos tipos de árvore ao meu redor sei que
estou em algum lugar da Sibéria. Percebo o inconfundível aroma de um rio, e sei
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
que a água não está longe. Todos os meus sentidos são intensos, como se os
prazeres e dores das eras houvessem se fundido no meu coração. Cada vez que
meus pés invisíveis dão um passo, sinto esta mistura de dor e prazer. O efeito da
gravitação no meu corpo mudou, e é um esforço manter meus pés sobre o chão.
"Siga em frente!" A voz de Umai está mais forte e mais urgente, e continuo
no caminho. Ele parece ter se tornado ainda mais escuro. O pesado silêncio é
agora meu único companheiro. Subitamente pareço ter me tornado uma mulher
muito velha, no entanto sinto-me num estado muito poderoso. O caminho me leva
para um ponto de fogo brilhando numa pequena clareira cercada por árvores.
"Por que estou tão velha?", pergunto a ninguém em particular. Não há
resposta, só a voz de Umai me mandando novamente seguir em frente.
O meu corpo agora está vestido em longas roupas brancas. Caminho cada
vez mais rápido, atraída pelo fogo que queima diante de mim. Muitas pessoas
estão reunidas ao redor nas mesmas vestes brancas. Algumas estão sentadas,
algumas de pé, e outras dançam em volta do fogo. Os seus rostos parecem
estranhamente familiares, embora eu não chegue a reconhecer nenhuma pessoa
conhecida. Os cavalos estão amarrados a muitas das árvores ao redor da
clareira. Me aproximo do fogo, e os dançarinos se afastam, abrindo caminho
para mim.
Três figuras estão sentadas ao redor do fogo, vestindo roupas brancas
flutuantes como as minhas. Suas cabeças, cobertas por capuzes brancos, estão
voltadas para o chão. Elas estão sentadas em três das quatro direções cardeais, e
o caminho que estou seguindo me leva até a quarta direção. Elas não se movem
enquanto eu me aproximo, mas sei que estão conscientes da minha presença.
Sento silenciosamente com elas no quarto lado da fogueira.
Gradualmente, o ritmo da dança em torno fica cada vez mais forte. Sem uma
palavra ou gesto entre nós, ficamos de pé simultaneamente. Alguma coisa
importante está prestes a acontecer e eu me permito ser tomada por essa coisa.
Eu piso na fogueira, encarando as três figuras diante de mim. A chama
abraça o meu corpo, mas eu não estou assustada e nem sinto dor alguma.
Instantaneamente a figura do lado diretamente oposto da fogueira entra no fogo
comigo. Ela remove seu capuz, e pela primeira vez posso ver o seu rosto. Então
todo o seu ser se transforma num tremendo relâmpago que ilumina todo o espaço
ao nosso redor, as suas extremidades conectando as duas figuras ainda de pé á
minha direita e esquerda.
Volto-me para a figura à esquerda e fito diretamente o seu rosto. Quando o
faço, sua carne desaparece e ela se transforma em nada a não ser ossos - ossos
velhos e embranquecidos. Então o relâmpago lampeja novamente, e olho para a
figura à minha direita. À medida que o relâmpago deixa o seu corpo, ela se
transforma num buquê de lindas e vibrantes flores brancas que parece conter a
energia de toda a vida. Posso sentir a sua essência na sua fragrância.
Agora todas as três figuras se fundem na fogueira, entrando no espaço
onde estou de pé e se integrando comigo completamente. Agora sou ossos e flores
unidos através do relâmpago, e o meu corpo de velha se transformou no corpo de
uma jovem forte.
A voz vibrante de um homem vem de algum lugar no círculo ao redor da
fogueira. "Estamos prontos para irmos embora. Guarde a memória do que você
experimentou. Nos reuniremos novamente." As pessoas estão começando a ir
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*****
10
Eu tinha então dezoito anos de idade, e era uma estudante do primeiro ano na
escola de medicina em Novosibirsk. Foi uma época maravilhosa na minha vida, em que
eu estava finalmente livre das regras estritas e das restrições do segundo grau. Foi uma
época cheia de festas, de novos amigos, teatro, todo tipo de novas experiências. Como
os jovens estudantes no mundo todo, estávamos descobrindo os primeiros prazeres da
vida adulta.
Como estudantes de medicina, estávamos continuamente indo de uma clínica a
outra, geralmente de ônibus. Era frustrante ter que desperdiçar tanto tempo a cada dia
viajando longas distâncias para chegar até nossas aulas. Certo dia no meio do inverno,
eu tinha esperado durante um tempo longo demais pelo meu ônibus no vento gélido, de
modo que não fiquei surpresa quando comecei a me sentir mal algumas horas depois.
À noite eu estava com febre alta. A gripe daquele período era muito forte, e estava
mandando as pessoas para a cama durante pelo menos uma semana, de modo que soube
que precisaria de mais um dia ou dois para me recuperar. O pensamento também era
perturbador, porque as férias de inverno estavam prestes a começar, e eu pretendia ir
para um hotel no campo com meus amigos. Se fosse realmente a gripe, eu certamente
teria que interromper meus planos de divertimento merecido. Relutantemente, fui para a
cama para esperar pela manifestação dos sintomas.
No dia seguinte eu estava deitada na minha cama sob um quente edredom,
tentando ler um livro e ocasionalmente assistindo a um dos vários programas maçantes
da televisão, quando o telefone tocou. Era Irena, uma das minhas amigas, me ligando
para perguntar como eu estava me sentindo.
Depois de ter escutado as minhas reclamações e dito as coisas apropriadas sobre
como sentia muito o fato de eu estar doente, fofocamos durante algum tempo sobre as
novidades da universidade. Finalmente, no momento em que nossa conversa estava
prestes a terminar, ela disse, hesitante, que não tinha certeza de como eu responderia ao
que ela estava prestes a sugerir, mas ela achava que podia haver uma chance de eu ir
para o hotel com todo mundo. Ela contou que sua mãe conhecia um curandeiro. Ele
trabalhava com ela no conservatório, onde ele era um compositor. Diziam que ele era
capaz de fazer milagres. A sua mãe certamente conseguiria que eu o visse sem hora
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Embora estivesse sem camisa, vestindo apenas um par de calções brancos, ele
parecia bastante confortável no seu traje consideravelmente incomum. Ele me convidou
a sentar na única cadeira do quarto, e então começou a falar sobre música. Ele explicou
como os sons da música influenciavam nossas psiques e como a música podia fazer
milagres quando era criada com as intenções corretas.
Não compreendi metade das suas palavras, e me senti cada vez mais
desconfortável. A combinação dos seus estranhos maneirismos e o fato dele estar só
meio vestido me deixava cada vez menos confiante de ter feito a coisa sensata em
procurá-lo. Fiquei aliviada quando a jovem voltou da cozinha com uma xícara de chá
preto forte. Ela me passou o chá e sentou-se na cama à minha frente.
- Gostaria de explicar os sintomas da minha doença - disse a ela, tentando
construir um diálogo médico-paciente mais familiar.
- A doença é só uma maneira de trabalhar com uma linha da realidade - respondeu
ela. - Prefiro outras maneiras. Olhe para mim: tenho quarenta e três anos, e a minha
aparência reflete o meu modo de trabalhar com minha linha particular de realidade.
Meu queixo caiu e fiquei olhando como uma boba para ela, sentindo-me tonta. Ela
não parecia ter mais que dezoito anos, e não podia ter quarenta e três.
- Você deve estar brincando - disse eu, tentando me concentrar nos meus
pensamentos para ignorar a crescente sensação de inquietude no meu estômago.
Lembrei-me de ter visto o retrato de um garoto adolescente na estante e de ter notado
como ele se parecia com ela. Agora estava lutando com a idéia de que aquele devia ser
de alguma maneira o filho dela. Eu não podia aceitar isso, e me senti ainda mais confusa
e nervosa do que antes.
- Uma das coisas que eu faço para tornar mais vagaroso o fluxo do meu tempo
pessoal é tirar fotos. - Ela pegou um álbum de fotografias grande e gasto pelo uso na
estante. Então, sentando de volta na cama perto de mim, ela folheou o álbum página
após página, mostrando as suas fotos. Aqui estava ela na praia ao lado do rio Ob, jovem
e sorridente num dia quente e ensolarado. Depois ela estava num escritório, sentada
numa escrivaninha, parecendo muito séria. Eu me perguntei qual era a sua profissão.
Em seguida ela estava com o filho e outro jovem na frente de uma casa do campo,
vestindo roupas de trabalho e segurando uma pá. As árvores estavam cobertas com
folhas outonais amarelas e vermelhas, e havia montes de folhas na terra ao redor dela.
Ela me levou consigo enquanto folheava pelas páginas do álbum, viajando por
lugares diferentes com pessoas diferentes. Os homens com quem ela estava foram
substituídos por outros homens, um sorriso feliz depois do outro, à medida que as
páginas viravam. O seu cabelo ficou mais longo e depois mais curto. Ela fazia diferentes
poses; ela sorria e chorava. Pude reconhecê-la em muitos lugares diferentes. Alguns
deles eu já visitara, mas a imagem dessa mulher implantada neles era de alguma
maneira surreal e misteriosa.
Ela foi ficando cada vez mais jovem nas fotos à medida que as páginas viravam, e
percebi que ela estava me mostrando a sua vida na ordem inversa, indo do presente para
o passado. Agora ela estava deixando a maternidade com seu bebê e muitas flores,
parecendo feliz e um pouco confusa, apenas começando a ver a si mesma como mãe.
Então ela era uma jovem na escola, perto do quadro-negro vestindo um uniforme
escolar regular negro com gola branca, o seu cenho franzido enquanto olhava para a
velha professora sentada tão séria na sua mesa. A última foto do álbum era a primeira já
tirada dela. Era uma criança nua com um sorriso sem dentes, deitada numa mesa.
- Eu trabalho com elas todas as noites antes de dormir. Eu começo com uma
fotografia do presente e volto para trás uma a uma, experimentando o estado de cada
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
uma delas até chegar a essa primeira foto de mim mesma quando bebê. Então adormeço
como um bebê.
- Por que está me contando tudo isso? - Eu estava fraca devido à febre, e era muito
difícil para mim compreender o que estava acontecendo, tanto ao meu redor quanto nas
estranhas emoções que eu estava sentindo.
- Para que você possa compreender e aceitar isso. - Foi a voz do homem que
respondeu.
- Eu vim aqui me curar da minha gripe, e não me tornar mais jovem. - Fiquei
surpresa de como a minha voz parecia nervosa e fraca.
- Isso é só o que você acredita agora. Mas, naturalmente, isso também faz parte.
Mas não se preocupe. Você vai ter a sua recuperação, assim como tudo mais pelo que
você veio - respondeu ele.
A minha tontura anterior tinha retornado, e o calor na minha testa me dizia que
minha febre estava piorando. Teria sido difícil para mim ficar de pé. Mas lembrar-me da
febre me acalmou um pouco, enquanto eu decidia que talvez as minhas estranhas
percepções e sentimentos eram pelo menos parcialmente aberrações causadas pela
febre. Talvez eu estivesse ainda mais doente do que pensara. Esperava que fosse
possível que eu acordasse logo na minha própria cama e percebesse que isso tinha sido
apenas um sonho febril. Era quase um pensamento agradável! Naquele momento as
minhas férias no hotel já não pareciam mais importantes. No meu estado de
desconforto, eu estava pronta a passar quase qualquer período deitada na cama, caso
isso significasse escapar da situação onde estava.
- Sente-se aqui - disse o homem, me indicando a cama desfeita. Sentei-me
nervosamente na beira e fechei os olhos. Ouvi um som alto de zumbido, e meu corpo
sentiu-se simultaneamente quente e frio.
Então ouvi alguns acordes poderosos vindos do piano. Abri meus olhos e vi que
ele levara a cadeira até o piano e estava tocando. A música era desconhecida para mim,
mas tinha uma energia tão forte que minha mente foi capturada e passou a fluir com ela.
Eu me sentia como se estivesse nadando num oceano tempestuoso, levantada e atirada
pela sua força poderosa. Fiquei olhando para ele enquanto tocava; ele colocava uma
tamanha expressão física na sua música que todo o seu corpo pulava para cima e para
baixo na cadeira. Todo o seu mundo consistia nessa musica. Então ela alcançou um
crescendo de energia além do que ele podia tolerar. O seu corpo foi lançado
violentamente do piano, e ele caiu no chão. Eu estava convencida de que ele devia ser
totalmente louco. Então percebi que o acorde final ainda estava continuando, enquanto o
piano parecia tocar sozinho. Naquele momento passei a me perguntar se era eu que
estava louca. Senti-me fora de mim.
Finalmente ele ficou de pé, pegou a minha mão, e me levou para um canto do seu
quarto. Para minha surpresa, talvez porque eu estivesse além de toda resistência, me
sentia mais calma. Havia uma pequena mesa ali, com uma vela e uma faca muito afiada
cujo cabo estava entalhado com símbolos de aparência chinesa. Ele colocou sua mão
sobre minha testa e disse alguma coisa numa linguagem que me era desconhecida. A
sua voz ficou mais alta, e ele gritou algumas palavras que não compreendi. Então ele
subitamente agarrou a faca e cortou algumas mechas dos meus longos cabelos.
- Olhe para isto - ordenou. - A sua doença está aqui na minha mão! - Ele colocou
o cabelo que cortara na chama da vela. Eu não tinha notado que ele acendera a vela, e
estava certa de que nem eu nem a mulher a tínhamos acendido, mas de alguma maneira
uma chama saudável apareceu do nada. Não experimentei choque algum diante de tudo
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
isso, porque ao mesmo tempo estava consciente de que já não estava mais com febre e
que sentia-me completamente bem.
Querendo agradecer a ele mas ainda me sentindo desorientada demais para pensar
claramente, eu só podia dizer:
- Muitíssimo obrigada. Estou me sentindo muito bem agora. Quanto é que eu lhe
devo? - Olhei para o seu rosto, agora impassivo, esperando pela sua resposta.
Ele sorriu e me fitou de perto.
- O seu pagamento será lembrar-se de uma coisa muito importante que vou lhe
contar. - Ele pegou minha mão e olhou para ela cuidadosamente. Então disse
simplesmente: - Eu vejo que algum dia você vai aprender a controlar a duração da sua
vida.
Deixei a sua casa confusa mas completamente recuperada. A minha febre tinha
desaparecido por completo. Caminhei rapidamente de volta ao meu apartamento, onde
fiz alegremente as malas para a viagem do dia seguinte para o campo de estudantes.
A minha vida voltou ao normal depois disso, mas o dia tinha sido uma vitória
permanente para o meu lado que estava fascinado com o lado misterioso da vida. Minha
mente consciente fora obrigada a reconhecer essa experiência, e assim ela se tornou uma
parte integrada do meu ser total.
Durante um longo período depois disso, eu pensei sobre as últimas palavras que
aquele homem dissera para mim, e me perguntei sobre o seu significado. Agora, aqui na
vila do Altai, eu me sentia prestes a compreendê-las pela primeira vez. Eu sabia que
alguma coisa fugidia e importante acabara de acontecer comigo, algo que eu nem podia
começar a explicar racionalmente.
Eu ainda estava enfeitiçada pelo meu sonho com Umai. O senso de existência real
que viera até mim dentro da realidade do sonho não me era inteiramente desconhecido.
Eu não conseguia me lembrar onde experimentara esse estado nos meus sonhos antes,
mas a sensação docemente dolorosa no meu coração não era nova. Ela estava associada
com o sentimento de "possuir" o meu livre-arbítrio, sabendo que mesmo num estado de
sonho eu poderia controlar minha realidade através de um puro exercício da vontade.
Uma batida forte na janela me trouxe de volta, surpresa, da minha viagem mental
para o momento presente. Saltei da cama com meu coração acelerado. Ainda era noite lá
fora, e eu não conseguia ver ninguém na rua escura ou na janela. Perguntei quem era, só
para perceber que a minha voz era tão baixa que eu mal podia me ouvir. A batida se
repetiu.
- Quem está aí? - gritei, dessa vez alto demais.
- Sou eu, Olga. É Nicolai.
- Corri para a porta e a abri.
- Entre. Oh, meu Deus, Nicolai, onde você esteve? Não sabíamos o que pensar.
Anna cambaleou no corredor atrás de mim, ainda meio adormecida e olhando para
o seu relógio. Ela parou quando viu Nicolai.
- Olá, Nicolai. Como está? - perguntou.
- Bem melhor agora, Anna. Será que alguém poderia me fazer um chá, por favor?
- Claro - respondi. Fomos todos para a cozinha. Liguei a luz forte do teto, e Anna
colocou uma chaleira com água no fogão a gás. Nicolai parecia exausto e de alguma
maneira diferente. A sua aparência despertou novamente velhas preocupações da minha
avaliação psiquiátrica de que poderia estar de fato mentalmente doente.
- Nicolai, como você está se sentindo? - indaguei, repetindo a pergunta de Anna.
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"Ela disse: 'Bem, não temos muito tempo. Eu lhe darei algumas coisas que você
precisa saber para começar. As outras você vai ter de descobrir sozinho. Existem
algumas coisas que eu, como uma mulher, não posso saber. Existem outras coisas que
eu posso saber mas que não posso ensinar a você. Essas coisas virão até você de
maneiras diferentes à medida que forem necessárias. O seu tio Mamoush foi um kam
muito poderoso. Ele era um kam do céu. Nem todos conseguem viajar até o mundo
celeste superior. Mas ele conseguia fazer isso, mesmo no inverno, quando o céu está
congelado. Usando o martelo do seu tambor manual, ele era capaz de quebrar o gelo no
céu e penetrar na terra de Ulgen. Eu o vi fazer essa viagem uma vez.
"'Você pode pensar que quando for um kam de verdade será diferente de
Mamoush, assim como todas as pessoas são diferentes umas das outras. Mas isso é um
erro. Um dos maiores segredos é que o kam é sempre um kam. Mamoush, você, quem
quer que venha depois de você, todos são um kam que vive em formas diferentes. É
uma linha de herança, e o kam verdadeiro é a linha da herança, e não o kam individual.
Vocês podem ser pessoas especiais, mas no seu poder são um só. Assim, a sua tarefa
agora é estar completamente aberto a esse poder de Mamoush e tornar-se único com ele.
Você escutará a voz de Mamoush até que ela se acabe. Depois disso, terá a sua própria
voz e seu próprio poder. Mas terá que trabalhar duro para consegui-los. E tem razão,
você não tem escolha. Os espíritos apontaram você, e não está dentro da sua vontade
discutir com eles'.
"'Venha cá!' Ela dirigiu o seu comando para seu companheiro de viagem, um
homem de Altai com cerca de quarenta anos. Eu tinha notado que ele mantivera um
ligeiro sorriso no rosto durante todo o tempo que Umai falara comigo. Ele parecia
completamente desinteressado em mim, mas respondeu a ela instantaneamente,
caminhando até ela e dando-lhe uma grande bolsa de onde tirou um grande tambor
manual.
"'Mamoush deixou isso comigo, e me disse para dá-lo a você', ela falou enquanto
dava o tambor para mim. O tambor oval era novo e bastante pesado, e o seu cabo fora
esculpido na forma de um homem. A parte de madeira era feita de salgueiro. A parte de
couro era feita da pele de alce e ainda estava tão fresca que possuía um inconfundível
odor animal.
"'Esse alce será seu animal de viagem. Nós o ajudaremos a torná-lo vivo.
"Eu não tenho permissão para contar a vocês muita coisa sobre a cerimônia que
eles me ajudaram a executar. Nem mesmo eu tenho ainda uma compreensão total do
que aconteceu. Mas primeiro eles me colocaram num tipo de sonho. O ajudante de
Umai ficou atrás de mim, segurando meus ombros e balançando meu corpo para a frente
e para trás, enquanto Umai fazia uma fogueira na minha frente. A fumaça era espessa e
machucava meus olhos, forçando-me a fechá-los. Logo senti o meu tio atrás de mim,
segurando meu corpo, e então fomos caçar juntos. Estávamos rastreando um grande alce
fêmea que estava grávida e que logo teria seu filhote. Precisávamos ser muito
silenciosos.
"Segui o alce fêmea passo a passo até a taiga. Escondido no abrigo da floresta, vi
o seu bebê nascer. Exatamente no momento do nascimento, senti meus ombros serem
agarrados e sacudidos vigorosamente. Compreendi que devia apanhar esse filhote de
alce e levá-lo. Essa era a finalidade da caçada. Eu fiz o que devia fazer o mais rápido
possível. Tive medo do alce fêmea, que poderia ter facilmente me matado. Corri o
máximo que pude, sem saber por quê. Então escutei novamente a voz de Umai.
"'Coloque-o aqui!' Ela estava segurando o tambor, com a figura do homem voltada
para mim. Empurrei o filhote de alce para o tambor e senti como ele entrou no tambor.
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'Abra seus olhos!', me ordenou Umai. Enquanto obedecia, ela disse numa voz muito
mais suave e satisfeita, 'Você pegou o seu chula'. Ela segurou o tambor para mim, e
pude ver e sentir a vida nele mesmo sem tocá-lo.
"Tive de perguntar a ela, 'O que quer dizer chula?' Eu nunca havia escutado antes
essa palavra.
"'Chula é a força espiritual viva do alce que deu a sua pele para seu tambor',
replicou ela. 'Agora ela será a sua força vital, também. Caso alguém roube esse tambor,
você morrerá. Ele é precioso e deve ser sempre mantido perto de você.' Estiquei a mão
para pegá-lo, e ao mesmo tempo ele me pareceu vibrar nas minhas mãos. Ele estava
quente, e parecia vibrar fracamente. Senti-me instantaneamente ligado a ele, e soube
que isso acontecia porque agora ele possuía a força vital do alce
Então notei algo que me confundiu. 'A pele é de um alce velho, mas eu peguei o
bebê. Fiz algo errado?', perguntei.
"'Não, você fez tudo perfeito. Para pegar o chula de um alce velho, você teve que
agarrá-lo quando era um bebê. Nós o ajudamos a voltar no tempo até o momento do
nascimento dele. Agora o chula só servirá a você. Ele não possui nenhuma outra
história. Agora você sabe como pegar chulas, e quando o fizer novamente não vai
precisar da ajuda de outros.
"'Tudo no mundo possui seu próprio chula. Quando você está curando alguém que
perdeu seu chula, viajará até encontrar o chula da pessoa doente e agarrá-lo pelo cabo
do seu tambor. Então você trará o chula de volta até o presente e o martelará na orelha
esquerda da pessoa doente. Isso devolverá a ela o chula perdido'.
"'O seu chula será o seu novo parceiro e ajudante. Ele irá ensinar-lhe várias coisas.
A sua próxima tarefa é marcar o seu território xamânico fazendo um mapa dele na pele
do alce. Mais tarde mostrarei como se faz isso.'
"Aliás, Olga, perguntei a ela por que o tambor na casa de Mamoush estava
quebrado. Ela disse que o motivo era que o mundo para onde as pessoas vão depois da
morte é um reflexo de espelho do nosso mundo. Todas as coisas que são boas para elas
aqui são más para elas lá, e vice-versa. Assim, se eles não tivessem quebrado o tambor
de Mamoush quando ele morreu, ele não poderia tê-lo usado no outro mundo.
"Passei o dia inteiro nas montanhas com Umai e seu ajudante. Eles me mostraram
muitas coisas. Nós tivemos que esperar que a noite caísse novamente para que eu
pudesse fazer outra viagem. Era necessário para eles me conduzir por esta segunda
viagem para que eu herdasse o território mágico do meu tio. Umai me levou pelo mundo
inferior e me mostrou muitas coisas lá. Eu aprendi um bocado, mas não devo dizer mais
nada a vocês sobre isso. E agora é melhor eu relaxar."
Ele suspirou e ficou em silêncio.
A história de Nicolai me deixou sem palavras. Levantei-me e fui até a cozinha
para limpar nossas xícaras e refletir sobre o que tinha escutado. O ritual de cura de
Umai na casa vazia anteontem, a minha experiência com ela na noite passada, a cura de
Anna, sua presença no meu segundo sonho, e agora a história de Nicolai - todas essas
experiências estavam separadas, contudo, tudo isso estava conectado. O que ligava tudo
era a imagem de Umai.
Pensando sobre todos esses eventos e quando tinham ocorrido, percebi que Umai
podia não ter tido nenhum tempo para dormir. Ela parecia ter ido de um lugar a outro
sem parar durante quase dois dias. Como isso podia ser possível para ela? Sacudi minha
cabeça sem poder acreditar, como se isso pudesse me dar uma resposta. Não veio
nenhuma, de modo que simplesmente continuei a arrumar a cozinha.
Ouvi Nicolai chamar pela porta aberta da cozinha, dizendo:
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
- Temos que nos apressar. São quase sete horas da manhã, e vai passar um ônibus
aqui em quinze minutos que vai nos levar até a casa da minha mãe.
- O quê? Um ônibus! - Anna e eu gritamos em uníssono. - Tem um ônibus que
vem até aqui? Por que você nos fez caminhar durante horas na neve?
- Porque ele só passa uma vez por semana - explicou ele. - O dia é hoje, então
estamos com muita sorte. Depressa, garotas!
Quando vimos o pequeno ônibus, ele era tão velho e batido que parecia ter sido
quebrado há muito tempo e estar enraizado permanentemente, uma escultura de metal
imóvel plantada no meio da rua. Mas Nicolai insistiu que o ônibus não só era real como
também nos levaria para sua vila se nos apressássemos e entrássemos nele.
Quando entramos no ônibus, subitamente senti uma surpreendente dor ao pensar
em deixar Umai.
- Nicolai! - deixei escapar. - E Umai? Nós a veremos novamente? Ela deixou uma
mensagem para nós? - Antes que ele pudesse replicar, o ônibus começou a sua jornada
para fora da pequena vila até a floresta ainda mais antiga.
- Eu não sei onde ela está. Ela não disse nada para você?
Quando não respondi, ele perguntou:
- Você está esperando receber alguma coisa dela, Olga?
- Não - repliquei, sentindo-me desapontada. O impacto de Umai na minha vida
tinha finalmente chegado à superfície da minha mente.
- Eu tenho algo para dar a ela - disse Anna. - Eu quero pagá-la pela minha cura.
Você daria a ela este dinheiro por mim, Nicolai?
- Não, eu não posso. Ela não o aceitaria. Se ela precisasse, teria dito.
Enquanto o ônibus sacudia lentamente pelo caminho, nos acomodamos em nossos
bancos, ficando o mais confortável possível. Quase não havia estrada para o ônibus
seguir, então em vez de caminhar na neve durante horas, passamos quase o mesmo
tempo sentados no ônibus gelado enquanto ele balançava desajeitadamente pelas
montanhas. No silêncio que caiu sobre nós durante a maior parte da jornada, perguntei a
mim mesma repetidas vezes o que significara para mim o encontro com Umai.
Eu estava fazendo o máximo para compreender e integrar minhas experiências no
Altai com o resto do meu ser, mas era difícil. Umai não tinha explicado tudo para mim,
nem mesmo tinha mostrado qualquer interesse em saber se Anna e eu iríamos ficar ou
não. Isso fez com que eu me sentisse incompleta, e até mesmo criou dúvidas na minha
mente sobre a importância do que tinha acontecido. Imaginei se o que parecia tão
impressionante e significativo para mim tinha sido apenas um evento cotidiano para
Umai. Mas se fosse esse o caso, porque ainda parecia tão importante para mim?
*****
11
mudanças que temia já terem ocorrido. Pela primeira vez, percebi como Maria poderia
se sentir quanto a seu filho deixar de lado a vida na cidade para se tornar um kam, e me
entristeceu ver Maria, geralmente tão alegre, parecer tão preocupada. Numa tentativa de
distraí-la, decidi perguntar a ela sobre Belovodia.
- Maria, você já ouviu falar alguma coisa sobre um lugar chamado Shambhala, ou
talvez Belovodia?
Ela ficou em silêncio durante alguns minutos, como se estivesse tentando se
lembrar. Finalmente ela replicou:
- Não ouvi falar muita coisa. Porém, alguém me contou que Belukha sempre foi
considerada um lugar especial como Belovodia.
O meu coração bateu um pouco mais rápido diante da possibilidade de que ela
poderia me dizer mais sobre esse lugar que me intrigava tanto.
- O que é Belukha? - perguntei.
- Belukha é a montanha mais alta em Altai. O topo está sempre coberto de neve, e
é muito difícil escalá-la. Muitos morreram tentando conquistá-la.
Ela me fitou pensativamente durante um momento. Então continuou,
- Se quiser, contarei a você a única história que conheço.
Respondi rapidamente:
- Oh, sim, Maria. Eu adoraria escutar a sua história.
- Há uma lenda entre o meu povo que diz que, muito tempo atrás, a deusa Umai e
seu marido, Altaiding Aezi, o governante de Altai, viviam no extremo norte. Certo dia,
um monstro emforma de peixe chamado Ker-Dupa virou a terra pelo avesso. O clima
em Altai sempre fora quente, mas depois de Ker-Dupa ter alterado a rotação da terra,
ficou muito frio aqui. Altaiding Aezi viajou ate o ceu para perguntar aos Altos
Burchans, os seres espirituais mais poderosos daquela época, se poderiam ajudar.
Enquanto estava indo de um Burchan para o outro numa tentativa de encontrar Ulgen, o
mais elevado de todos e o único capaz de virar a terra do lado certo novamente, estava
ficando cada vez mais frio em Altai.
"Para salvar seus filhos do congelamento, Umai transformou suas almas em
pedras e rochedos. Ela fez isso com seus dois únicos filhos e com quatro das suas seis
filhas. Então ela pegou as outras duas filhas pelas mãos e foi com elas, em busca do
calor, até a parte mais ao sul de Altai. Ela e suas filhas congelaram lá, se transformando
numa montanha com três picos. O pico do meio é a cabeça de Umai, e os dois picos
menores, um de cada lado, são as cabeças das suas filhas. Esta montanha é chamada de
Belukha.
- É uma história interessante - disse Anna, provando a sua xícara de chá de ervas.
- Ouvi dizer que Belukha também se chama Ak-Sumer, ou o Verão Branco. É um nome
tirado da mitologia budista, e representa a montanha que está no centro do mundo.
Eu sentei calmamente escutando, excitada em saber que o nome Umai
aparentemente fora o nome de uma das altas deusas do Antigo Altai.
Depois de terminar sua história, Maria começou a preparar nosso almoço. Ela
acrescentou lenha ao fogão e juntou os ingredientes culinários dos armários da sua
pequena cozinha. Depois de ter acabado de cozinhar, ela pegou pequenos pedaços de
carneiro e batata que preparara e os colocou deliberadamente no fogo. Ao mesmo
tempo, ela disse algumas palavras indistinguíveis bem baixo. Reconheci isso como uma
cerimônia de Altai honrando e alimentando o espírito do fogo do lar antes de cada
refeição. Depois do fogo ter abraçado os pedaços de madeira como um símbolo da
nossa gratidão, tivemos a permissão de comer. Nos alimentamos em silêncio a maior
parte do tempo. cada um de nós refletindo sobre nossos próprios pensamentos.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Depois do jantar, Nicolai caminhou novamente com Anna e comigo até a casa de
Mamoush, onde iríamos passar nossa última noite no Altai. No dia seguinte
começaríamos nossa viagem de volta para Novosibirsk. A sala não parecia mais tão
assustadora para nenhuma de nós dessa vez. Tudo parecia estar como tínhamos deixado,
de modo que talvez a nossa percepção do local houvesse mudado. Fiz a minha cama na
pele de urso, mais uma vez dando a cama de verdade para Anna. Eu realmente preferia a
pele firme de urso à cama mais macia onde Mamoush morrera, mas decidi não
mencionar isso a Anna.
Quando me deitei, o tambor quebrado mais uma vez chamou minha atenção.
Voltando-me para ele de novo, fiquei deitada olhando-o durante algum tempo.
Gradualmente comecei a sentir uma vibração na escuridão ao meu redor e ao redor do
tambor. No momento em que comecei a dormir, vi o pequeno homem de madeira que
servia como o cabo do tambor saltar e começar a dançar no espaço diante dos meus
olhos.
Logo entrei num estranho estado de realidade em que sabia que estava novamente
mergulhando num sonho, mas também sabia que desta vez seria capaz de controlar o
estado da minha consciência.
tenho uma memória real delas ainda, mas a resposta apavorada do meu corpo
me faz procurar períodos, datas e circunstâncias. Antes que possa alcançá-los,
uma mudança inacreditável ocorre na minha percepção. Subitamente percebo
que não só estou dentro do meu próprio sonho, como também que dentro do meu
sonho uma segunda visão está forçando espaço até minha mente. Essas duas
realidades conflitantes estão interagindo uma com a outra, lutando para dominar
minha consciência.
Por um momento, a nova visão parece agradável. A figura graciosa de uma
bela mulher dança no espaço diante de mim. Mas subitamente ela se volta para
mim, e vejo o seu rosto. Eu conheço esse rosto. Instantaneamente me lembro do
seu olhar cheio de ódio e a mirada triunfante do fundo dos seus olhos azuis
hipnóticos na primeira vez que a vi.
"Ela é uma mulher rara e poderosa", diz a voz, e agora reconheço que é a
mesma voz rouca do meu pesadelo em Novosibirsk. Indefesa, sucumbo mais uma
vez aos sentimentos de medo, fraqueza e raiva que me tomaram diante da morte
inexplicada desta mulher que fora minha paciente.
A sua morte, com a minha visão de pesadelo do seu ódio, tinha sido uma
das experiências mais assustadoras da minha vida. Mas esses sentimentos não
foram nada diante do terror que me atacava agora neste novo sonho. O meu
sonho anterior com ela tinha sido posto de lado, mas nele havia um tipo de limite
protetor entre mim e a realidade onírica. Neste novo sonho, esse limite de
segurança desaparecera totalmente. Todo o meu ser estava paralisado pela
imagem horrível desta mulher. Eu sei que ela possui poder ilimitado, e que ela
pode me aterrorizar à vontade.
Repetidas vezes eu abro a boca para gritar, mas as palavras só ecoam na
minha cabeça. Não sai nenhum som. Todo o controle que pensei ter sobre minha
vontade, minha voz e minhas ações foi tirado de mim.
"Você pode aprender a ter o mesmo poder que ela."
"Não! Não! Não quero!", eu grito silenciosamente de um espaço interior
sacudindo minha cabeça para frente e para trás, tentando rejeitar tudo no sonho.
No momento seguinte estou de volta dentro do meu corpo no frio da casa de
Mamoush, deitada na dura pele de urso. Uma sensação extremamente dolorosa
entre meus olhos me apunhala, e acordo violentamente.
O sonho foi tão assustador e intenso que não me arrisco a fechar novamente meus
sonhos na escuridão hostil. Fico deitada acordada nervosamente pelo resto da noite,
ficando com câimbras e com o corpo duro porque tenho que me deitar sobre o lado
direito para não ver a pequena figura de madeira no tambor.
Quando a primeira luz da manhã finalmente se filtrou através da pequena janela, o
alivio tomou o meu ser. Eu estava mental, física e emocionalmente exausta, e não queria
nada além de voltar para meu apartamento seguro e previsível na cidade. Eu precisava
novamente do meu ambiente familiar; eu precisava de normalidade na minha vida. Só
queria viajar de volta para casa.
Anna despertou cerca de uma hora depois. Logo nós ouvimos a batida de Nicolai
na nossa porta, e fomos agradecidas com ele para a casa de Maria. O ônibus estava
marcado para as duas horas, de modo que tínhamos bastante tempo para comer o
desjejum e fazer visitas.
Depois do café, Nicolai veio falar comigo em particular e disse:
- Olga, tenho algo importante para lhe contar.
72
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
O meu primeiro pensamento foi que ele decidira que realmente precisava de ajuda
psiquiátrica, afinal de contas.
- Vá em frente, Nicolai. Estou escutando - respondi.
- Podemos caminhar um pouco? - ele perguntou.
Assim que saímos para a rua, surpreendi-me em saber que estar sozinha com ele
tinha despertado novamente todas as sensações desagradáveis do sonho da noite
anterior.
- Isso pode parecer estranho para você, Olga, mas quero pedir que você fique aqui
comigo durante mais alguns dias.
Quando ele viu o ar espantado no meu rosto interrompeu o que dizia, percebendo
como eu interpretara o seu pedido.
- Oh, não, não é isso que quero dizer - deixou escapar -, não estou convidando
você para ficar como minha namorada. Não. A minha intenção é muito diferente. Na
verdade, nem mesmo é meu desejo que você fique. Até algumas horas atrás, eu esperava
que você e Anna fossem embora hoje. Era o que eu esperava, e estava tudo bem para
mim. Mas hoje, de manhã cedo, escutei novamente a voz de Mamoush. Ele disse que
você deve ficar.
Apesar dos protestos de Nicolai, eu ainda estava incerta das suas intenções. Eu
não tinha desejo algum de ficar, e o seu pequeno discurso me irritou.
- Sabe, Nicolai, estou tocada com essa comunicação invisível e improvável do seu
tio. E não quero insultá-lo de nenhuma maneira, mas realmente prefiro quando as
pessoas são honestas e assumem responsabilidade por elas mesmas. Se você quer me
pedir alguma coisa, por favor faça-o por conta própria. Eu não acredito na capacidade
dos mortos de se envolverem tanto com os negócios dos vivos.
- Isso porque você não acredita na morte.
- O que quer dizer, Nicolai?
- Quero dizer que os seus pés foram colocados num caminho que podem levá-la a
um tremendo poder, mas está se afastando dele, ou porque não quer se esforçar ou
porque está com medo.
Junto com uma mudança no seu modo de falar, notei que sua voz também tinha
ficado mais profunda, e ele parecia estar quase em transe. Isso despertou a minha
curiosidade profissional; para fazer com que continuasse, repliquei:
- Bem, que tipo de esforço você acha que eu devo fazer?
Pela primeira vez desde que o conhecera, Nicolai demonstrou verdadeira raiva. Os
seus olhos brilharam friamente, e suas palavras para mim foram ásperas.
- Primeiro, você precisa parar de jogar seus joguinhos estúpidos comigo e aceitar
minhas palavras diretamente. Você está usando de auto-engano para evitar acreditar que
o que estou lhe dizendo é importante. Você poderá ver isso se parar de se esconder.
Esse modo de falar era tão diferente do geralmente tranqüilo Nicolai que eu não
consegui responder. Só fiquei olhando para ele com uma expressão perplexa no meu
rosto.
Ele continuou:
- Você ganhou uma chance de receber conhecimento e poder oferecidos só para
alguns poucos escolhidos. Esse conhecimento permitiria a você aliviar qualquer
problema que pudesse encontrar na vida. Nada poderia incomodá-la depois que
aceitasse esse conhecimento.
Finalmente me recuperei o bastante para falar de novo. Eu o interrompi, dizendo:
- Muito bem, Nicolai, realmente soa de um modo atraente. Mas você poderia por
favor me explicar por que eu sou a escolhida para este importante conhecimento? - Eu
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
estava certa de que ele tinha ouvido o sarcasmo na minha voz, mas seu rosto continuou
pensativo.
- Não há lugar para palavras vazias neste momento. Você tem uma escolha. Esta
escolha não lhe será dada duas vezes, portanto, por favor, pense cuidadosamente antes
de jogá-la fora. Para responder à sua pergunta de maneira mais séria do que perguntou,
você recebeu essa oportunidade parcialmente porque na sua profissão já fez grandes
progressos no aprendizado de como ajudar os outros aliviando suas doenças e
problemas. Mas você descobriu uma única ferramenta confiável com que possa contar
de maneira infalível para diminuir o sofrimento humano, muito menos para curá-lo? Por
mais que você tente, muitos dos seus pacientes continuam a estar doentes, infelizes, e
assustados. Você já teve sucesso na sua busca para deter o sofrimento? Seja honesta
agora e me responda.
- Bem, suponho que tenha falhado, como você está tentando mostrar. Mas o que
você sugere?
- Nada, exceto por uma coisa muito simples. Eu quero explicar para você que a
fonte de toda a dor neste mundo está entre nosso conhecimento de que vamos todos
morrer, e nosso desejo de viver para sempre.
- Nicolai, eu poderia fazer para você minha própria palestra sobre o assunto. Mas
ainda não entendi onde quer chegar.
- Eu não quero dar nenhum sermão para você, mas tenho a habilidade de ensinar
você a aceitar a morte. Você não está pronta para isso ainda. Por isso, não está pronta
para ajudar as pessoas desta maneira. Mas se você ficar comigo mais alguns dias, posso
dar-lhe um dom importante que você vai precisar se verdadeiramente deseja aliviar o
sofrimento que vê ao seu redor.
Pela primeira vez desde que Nicolai começara a explicar a sua oferta, um
sentimento de excitação tomara conta de mim. Aos poucos, ele apagara meu ceticismo.
Eu não duvidava mais que o que acontecera comigo tinha sido importante e me
influenciara profundamente. Abandonar isso voltando para a cidade sem a experiência
final que Nicolai estava me oferecendo parecia uma loucura muito maior do que ficar.
Apesar disso, a minha mente racional ainda compreendia que o fato de ficar ali
pareceria muito estranho para Anna e Maria. Eu não sabia como explicar isso para elas;
me sentia muito confusa.
- Muito bem, Nicolai. Devo admitir que o seu argumento é bom. Talvez faça
sentido para mim ficar um pouco mais, como você sugere. Mas preciso de tempo para
pensar sobre isso. Pode esperar uma hora enquanto tomo minha decisão?
- A hora não é problema, Olga. Mas eu sei que você já tomou sua decisão. - Com
essas palavras, ele caminhou rapidamente para a casa de Maria e desapareceu lá dentro.
Comecei a caminhar lentamente na direção oposta. Tudo ao meu redor parecia
extraordinariamente calmo e pacífico. Os movimentos da minha caminhada, junto com
a beleza natural das montanhas, começaram a me colocar num estado semelhante a um
sonho. Eu não estava pensando em nada em particular, nem estava consciente de
nenhum sentimento específico. Eu tinha a estranha sensação de que o mundo estava se
dissolvendo ao meu redor. Continuei caminhando na direção das montanhas que
começavam do lado de fora do limite ocidental da vila. Onde a rua acabava, uma trilha
estreita continuava morro acima.
O sol estava na minha frente, iluminando o meu caminho. Subi mais alto; o meu
esforço fazia com que eu me sentisse mais quente à medida que o caminho ia ficando
mais íngreme e estreito. Tirei meu casaco e o carreguei sobre meus braços. Finalmente
cheguei ao nível onde a neve ainda cobria totalmente a terra. As altas árvores verdes se
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
mesma. Deixe que a sua respiração seja a sua própria vida, e deixe-a livre. Confie em
mim. Siga a minha história, e eu seguirei você. Você está protegida.
Talvez seja a luz forte do sol fazendo alguma coisa com a minha visão, mas
o espaço interior diante dos meus olhos fechados está ficando mais escuro. Então
ele se transforma num vazio que eu começo a atravessar numa velocidade
incrível. Alguns clarões luminosos surgem da minha esquerda e direita, e então
estão ao meu redor. Não escuto mais a voz de Umai. Percebo que estou me
movendo entre as estrelas. Logo uma delas, de forma poligonal, se aproxima de
mim. Eu seguro uma das suas pontas nas minhas mãos. A estrela está girando ao
redor do seu eixo, e o espaço e o tempo giram com ela. Sinto que estou prestes a
chegar numa nova dimensão do meu ser. Quando sinto que estou diretamente
acima do lugar onde devo estar, minhas mãos soltam a estrela. Imediatamente
caio em outra realidade, tão rápido que a transição é instantânea. Antes de saber
o que está acontecendo, já estou de pé confortavelmente dentro dessa nova
realidade, totalmente consciente dos arredores.
Estou numa pequena sala com alguns homens. Eles estão tirando algo de
uma caixa parecida com um cofre. É uma múmia velha e ressecada de um
homem, mantida inteira por faixas aos trapos e amareladas pelo tempo. Eles
cuidadosamente o colocam no chão do meio da sala. Enquanto contemplo seus
movimentos graciosos, começo a sentir um fluxo de energia dentro de mim. No
momento seguinte, compreendo que ele me levará para o que vou fazer com esse
corpo seco.
Experimento tudo em lampejos caleidoscópicos, como um filme mudando de
uma cena para outra tão rapidamente que não há transição discernível entre
elas. Agora estou ajoelhada perto da múmia, desenrolando suas faixas
cuidadosamente para impedir que as formas originais dos seus músculos secos se
separem uns dos outros.
À minha direita há uma taça contendo sal. Eu pego um pouco com minha
mão esquerda e faço uma cruz branca com ele no rosto da múmia, da testa até o
queixo e então através dos seus dois olhos fechados. Enquanto faço isso, posso
sentir o toque de maneira tão sólida como se estivesse tocando a minha própria
face.
À minha esquerda há uma taça com terra. Usando minha mão direita, pego
essa terra e faço um circulo negro ao redor da cruz branca.
Eu sei que a múmia deve ser trazida de volta à vida, e que tenho o
conhecimento para fazê-lo. Preciso começar dando a ele o desejo de viver.
Respiro profundamente sobre o seu corpo, criando esse desejo para ele com cada
uma das minhas respirações. Eu sinto sua resposta pela aparência de desejo na
sua natureza masculina. Ele cria uma tempestade de energia que o lançará para
sua nova vida.
Embora agora ele esteja ansioso para voltar a experimentar o prazer do
seu corpo físico, ele ainda não está preparado totalmente para isso. O seu corpo
de múmia precisa primeiro ser transformado de tal maneira que passe a ser uma
ponte para sua nova existência. Um dos outros homens me passa uma tocha. A
sua chama se contorce com tamanho calor e intensidade que me assusta.
Então lembro-me de algo importante sobre a tocha, e o medo que sinto dela
desaparece; lembro que o meu corpo não está sob o controle do fogo.
Calmamente, coloco minha mão diretamente na chama. As duas se fundem de
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
vez mais familiares, muito embora eu não os reconheça, nem me lembre onde os
vi.
Por um momento tenho medo novamente. "Umai! O que isso significa? Por
que você está fazendo isso comigo?"
Eu ouço a voz dela novamente, "Porque eu tenho ancestrais das duas
linhagens. Eu preciso ajudá-la a fazer uma escolha. Ninguém, a não ser eu, pode
fazer isso por você."
"Então é possível pertencer a duas direções? Se você pode fazê-lo, então
deve ser possível?"
"Eu de fato pertenço a duas direções."
78
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
*****
12
"Está certo. Essa não é a hora de pensar Você tem outras coisas a fazer."
As palavras foram faladas numa voz forte e masculina, no entanto elas parecem
ter vindo de dentro de mim.
"Oh, meu Deus! O que está acontecendo?", eu grito, terrivelmente
assustada.
"Você está simplesmente sonhando. Acalme-se", ordena a voz.
Surpreendentemente, sinto-me mais calma. Talvez eu tenha apenas caído no sono
sem perceber e isso seja apenas um sonho.
"Você precisa aprender algumas coisas agora. O que você gostaria de
saber primeiro?"
"Eu quero saber a coisa mais importante que eu possa compreender no meu
estado atual."
"Ótimo. Siga-me." Eu aceito a sua voz como sendo a do meu professor de
modo que quando vejo um homem vestido de branco, sigo-o sem qualquer da
vida. Estou curiosa para descobrir o que ele tem reservado para mim. Ele se
move de maneira decidida, e logo começa a descer uma escada que vai até o
subterrâneo. Isso me surpreende, porque quando pedi uma revelação, esperei que
fosse novamente algo como a se dissolver no céu.
Eu o sigo à medida que ele vai cada vez mais fundo. Enquanto descemos,
fica cada vez mais quente, e quase totalmente escuro. Finalmente o vejo entrar
numa sala por trás de uma pesada porta de ferro negra. Rapidamente entro atrás
dele, sem querer ficar sozinha. Línguas rubras de fogo cercam a sala. Homens
nus segurando martelos nas suas mãos estão próximos a enormes bigornas
negras. Eu vejo a forma branca do meu professor deixar a sala por outra porta
do lado oposto. Para segui-lo, preciso passar pelo círculo daqueles homens, e
eles obviamente não pretendem me deixar passar. Eles sorriem e sussurram uns
para os outros, me fitando com um desprezo indisfarçável.
As chamas quase tocam meu cabelo. Os homens se movem lentamente na
minha direção. Eles estão em silêncio, mas sei que eles decidiram fazer alguma
coisa terrível comigo. A porta de ferro fecha atrás de mim com um som pesado e
abafado, impedindo qualquer fuga possível.
Percebendo que estou presa, começo a chorar. Como pude ser tão ingênua
a ponto de aceitar esse diabo como um mestre e então permitir que ele me levasse
até lá? Em vez da revelação que ele me prometera, eu sei que estou prestes a
experimentar alguma coisa realmente terrível.
Os homens estão se aproximando, e posso ver que estão totalmente
bêbados. O medo toma o meu ser e só pode ir para fora. Começo a gritar.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
o destroem. Elas vêem que algumas pessoas são atraídas para elas e que outras
não são. Na maior parte do tempo, quando estão perto de pessoas que não
sustentam seu senso de Individualidade, elas experimentam o que poderia ser
chamado de antipatia por essas pessoas. Por outro lado, quando experimentam o
apoio para si mesmas das pessoas ao seu redor elas criam o sentimento de gostar
daquelas pessoas específicas. Desse modo, as pessoas combinam o passado,
presente e futuro para criar a si mesmas. Se prestar atenção, vai perceber isso
tudo acontecendo em qualquer pessoa e qualquer situação. Olhe ao seu redor.
Você vai notar muitos exemplos interessantes disso.
"Mas quando você compreende tudo que pode sobre esse processo, então
chega a existência da outra Personalidade, que está consciente de tudo isso e é
independente desses atos. Essa é a sua Personalidade do Coração, e é nela que
começa a verdadeira liberdade e magia. Ela é a fonte da grande arte de fazer
uma escolha. Mas isso é o bastante para você agora."
Eu estava exausta, e uma onda pesada de sonhos logo cobriu a minha consciência.
Quando finalmente abri meus olhos novamente, meu corpo parecia pesado e duro por
ter ficado sem se mover por muito tempo. Lentamente massageei minhas pernas para
renovar a circulação e então me levantei para fazer café. Quando ele ficou pronto, sentei
à minha pequena mesa de cozinha e o provei lentamente numa velha xícara de
porcelana, apreciando não tanto o café em si quanto o seu aroma amigável e
tranqüilizador. Já era dia, e através da minha janela eu podia ver as crianças correndo
umas atrás das outras no pátio, gritando e rindo com deleite.
As crianças pareciam distantes da minha janela do terceiro andar, assim como a
própria realidade parecia distante e longínqua naquele momento. A minha cabeça ainda
estava pesada, e o meu corpo permanecia naquele espaço intermediário entre o sono e o
despertar. Eu sabia que precisava pensar em tudo que acontecera para poder
compreender, mas ainda não estava pronta para fazê-lo. A minha consciência ainda
estava demasiadamente desordenada para trazer minha vida de volta ao normal. Por
enquanto, eu teria que deixar esse trabalho para o meu inconsciente.
A minha tarefa imediata era me preparar para voltar ao trabalho. Havia muitas
coisas a fazer, e fui dormir bem tarde. Isso me fez bem, porque rapidamente caí num
sono profundo que finalmente não teve sonhos.
Na manhã seguinte, a minha velha rotina parecia ao mesmo tempo familiar e
estranha, e percebi que a estava experimentando através do filtro das minhas
experiências recentes.
Até mesmo férias normais criavam sentimentos conflitantes. De início sempre
parecia uma bênção deixar para trás o meu trabalho, com seus rostos doentes, os odores
desagradáveis, os gritos fortuitos, as grandes quantidades de trabalho burocrático, na
maior parte desnecessário. Então, depois de algum tempo, eu ficaria impressionada ao
perceber que estava começando a sentir falta dessas mesmas coisas. Eventualmente, eu
ficaria esperando que o tempo passasse rápido para que eu pudesse voltar ao meu
hospital. Hoje não era diferente, e eu me sentia tanto excitada quanto aliviada por voltar
à rotina confortável do hospital.
Caminhando pelos familiares corredores escuros, falando com as enfermeiras e
meus pacientes, revi as alterações que tinham ocorrido nos poucos dias em que estivera
longe. A porta branca fechada da sala de emergência me assustou no momento em que
olhei para ela. Tudo que me lembrasse da mulher morta fazia com que a ansiedade
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Pela primeira vez seus olhos se iluminaram, e seu rosto aberto e redondo pareceu
estar feliz como uma criança. Obviamente ele ficou contente em saber que logo seria
capaz de escapar desse lugar.
Disse a ele que gostaria que ele começasse a trabalhar na área do hospital,
ajudando a equipe. Isso eliminaria uma restrição importante na sua vida diária, e ele
agora estaria desimpedido para sair ao ar livre. Ele limparia os caminhos e talvez fizesse
alguns outros trabalhos menores no terreno. Depois de algumas semanas passadas em
isolamento, a perspectiva de ter até mesmo essa pequena quantidade de liberdade o
excitava visivelmente. Ele sabia que estava finalmente no seu caminho de volta para
casa. Saiu feliz do meu consultório.
Enquanto eu passava pelo processo normal de avaliar Andrey, percebi novamente
o quanto tinha mudado. As minhas percepções tinham se alterado tão dramaticamente
que foi como se, nos poucos dias de viagem, eu tivesse passado por anos de estudos
psicológicos combinados com intensas experiências pessoais. Não era mais uma coisa
simples para mim julgar alguém insano ou considerar as suas fantasias irreais. As
sensações inesquecíveis dos meus sonhos vívidos no Altai tinham abalado a minha
compreensão da realidade. Tendo uma consciência intensa da minha própria
participação consciente nessas visões, não era mais tão simples assim marcar os limites
entre sonho e realidade. O que era verdadeiro e o que era falso? Eu não sabia mais.
Muitos anos de experiências inexplicáveis tinham sido comprimidos numa
pequena fração de tempo, e elas tinham me dado uma compreensão totalmente nova do
potencial humano. Ou, para ser mais exata, elas tinham me dado um conjunto
totalmente novo de perguntas e dúvidas sobre minhas antigas percepções. Alguma coisa
estava se transformando dentro de mim. Eu podia senti-lo, mas era algo que não estava
pronto ainda para tomar forma completamente na minha mente. Isso levaria tempo, se é
que realmente aconteceria.
Enquanto isso, eu não estava mais confiante na minha compreensão da doença de
Andrey. Mesmo enquanto tentava reassegurá-lo de que suas visões assustadoras tinham
sido apenas as alucinações de sua consciência doente, as dúvidas surgiram na minha
mente. Agora eu brincava com a possibilidade - até mesmo probabilidade - de que a
realidade poderia realmente se manifestar de maneiras mais complicadas do que aquelas
que conhecíamos. Minhas velhas crenças e regras não teriam coberto nem mesmo a
milésima parte do que eu tinha experimentado em Altai. Eu sentia que estava nadando
num enorme oceano inexplorado.
Olhando pela janela, fiquei tranqüilizada ao ver o velho bonde ainda parado no
meio do terreno. A tinta azul descascada que cobria a sua carcaça fazia um perfeito
contraponto com o azul brilhante do céu da primavera. Refleti que talvez esse ferro-
velho inescrutável pudesse ser a única constante segura na minha realidade.
Abri o meu diário e escrevi o relato obrigatório sobre o progresso de Andrey.
Ainda tinha muito trabalho por fazer, e me censurei por perder tempo sonhando
acordada.
*****
13
- Olá! - disse ele. - Você é a médica que devo ver? - Sem esperar por uma resposta
ou por um convite, o homem bastante baixo e de meia-idade, vestindo um terno azul-
escuro, entrou e ficou diante da minha mesa.
- Meu nome é sr. Dmitriev. Sou um físico da cidade acadêmica. Aqui está o meu
pedido de hospitalização.
Assim que ele mencionou a cidade acadêmica, percebi que ele fazia parte da elite
intelectual. "Academgorodok", como essa cidade era conhecida, tinha sido construída
como um experimento pelo governo soviético no início dos anos 1960. Eles construíram
casas confortáveis num belo ambiente siberiano e convidaram as mentes mais brilhantes
de toda a União Soviética a se instalarem lá. A finalidade era desenvolver uma nova
ciência soviética. As pessoas que foram para lá trabalhavam sob as melhores condições
do país. O equipamento científico e a tecnologia mais avançados estavam disponíveis
para eles. Até mesmo as pessoas que não estavam diretamente envolvidas na pesquisa,
que só trabalhavam em posições subalternas, podiam comprar a melhor comida com
facilidade e tinham camas confortáveis para dormir à noite.
O centro realizou sua promessa, tornando-se a fonte de algumas das maiores
teorias e avanços tecnológicos da época. As pessoas que viviam lá eram altamente
inteligentes e viviam numa atmosfera de democracia e liberdade de pensamento que os
capacitava a expressar sua individualidade. Isso lhes dava uma presença inconfundível,
uma mistura de confiança e abertura.
Pude sentir essa presença no homem que estava diante da minha mesa. Agora ele
estava puxando o seu pedido de hospitalização, uma folha de papel que dobrara e
enfiara no bolso, e agora o apresentava atirando-o casualmente na minha mesa. Então,
sem esperar mais nenhuma palavra de mim, ele se sentou. Tive a sensação de que estava
fazendo um jogo comigo no qual se equilibrava delicadamente no limite entre o
brincalhão inofensivo e o grosseirão.
Olhei para a folha de papel que ele atirara tão descuidadamente diante de mim.
Era do seu médico local, declarando que o sr. Dmitriev tinha uma síndrome neurótica de
gênese somática, e que tínhamos ordem de cuidar dele no hospital.
- A senhora vai me tratar usando hipnose, doutora? - ele perguntou zombeteiro. Os
seus olhos estavam rindo, mas o resto do seu rosto tinha uma aparência generosa que
mostrava que ele não queria ofender com seu humor.
Percebi que estava me comunicando com alguém que tinha a habilidade de pular
de uma face para outra da sua personalidade, mas não experimentei a sensação dolorosa
e familiar de descobrir um esquizofrênico.
- Detesto desapontá-lo, sr. Dmitriev mas não vou tratá-lo com hipnose; na
verdade, não vou tratá-lo. O seu pedido de hospitalização é para a enfermaria de
neuroses. Esta é uma ala psiquiátrica regular. O senhor precisa levar seu pedido de volta
para o lado de fora e então ir para o segundo prédio à sua esquerda. O médico que vai
tratá-lo estará lá.
- Não! Não posso acreditar nisso. Que injustiça! Posso dizer imediatamente que a
senhora é a médica que poderia me ajudar. Por que não estamos vivendo durante a
época do czar, quando poderia ter contratado qualquer médico que desejasse, sem
quaisquer malditas regras territoriais ou outras que fossem? - gritou dramaticamente.
Então, abaixando a voz, ele acrescentou: - Mas é melhor assim. O salário que recebo
como um físico proeminente não seria o bastante para contratar um médico. Eu mal
consigo me sustentar. Boa tarde, doutora. Vejo a senhora mais tarde.
Quando ele saiu, seu rosto estava totalmente sério novamente, sem mesmo uma
sombra da sua ironia brincalhona de alguns momentos atrás. "Que pessoas estranhas os
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
psiquiatras encontram", pensei, e então o esqueci até o meu turno da noite na semana
seguinte.
Era sempre necessário ficar um médico disponível durante a noite, para ser
responsável pelos pacientes existentes assim como por aqueles admitidos depois das
horas regulares. O dever era alternado entre a equipe, e o meu turno acontecia a cada
duas semanas. Algumas noites acabavam sendo tão ocupadas que não havia chance de
dormir, mas elas tinham a vantagem de me oferecer a oportunidade de trabalhar com
outros pacientes que não os meus. Alguns deles eram interessantes, e eu gostava da
experiência. Também era útil financeiramente, porque recebíamos quase o dobro do
pagamento das horas regulares pelas nossas horas noturnas.
Naquela noite, as minhas voltas pelas enfermarias do hospital começaram sem
problemas, exigindo apenas algumas mudanças simples de medicação para pacientes
cujas condições tinham mudado. Finalmente, cheguei à entrada da enfermaria de
neuroses. O sr. Dmitriev estava de pé ao lado da porta aberta, parecendo não estar nem
um pouco surpreso, como se soubesse que eu iria entrar a qualquer momento.
- Como vai, doutora? - ele perguntou. Estava mais calmo e muito mais polido do
que na última vez que o vira.
- Estou bem, obrigada. E parece que o senhor está se sentindo muito melhor?
- Eu estou muito melhor. A senhora tem um minuto para falar comigo? - ele
perguntou.
- Bem, se você realmente precisa de algo, é claro que tenho - repliquei.
Era uma regra estrita que os médicos precisavam se encontrar com todos os
pacientes que pediam para falar com eles durante o turno da noite, e me perguntei que
desafio especial a mente brilhante do sr. Dmitriev tinha planejado para mim.
- Então digamos, doutora, que eu precise da sua ajuda.
Pedi à enfermeira de plantão que abrisse o consultório do médico regular da
enfermaria para mim. Ela parou o que estava fazendo e caminhou pelo corredor até uma
porta de madeira negra com uma plaqueta escrita "Dr. Fedorov" nela. Ela descobriu a
chave no seu molho e abriu a porta.
Entrei no consultório primeiro. Os consultórios dos outros médicos sempre
pareciam mais impressionantes e menos confortáveis que o meu. Neste caso, a
reputação do dr. Fedorov também podia estar me influenciando. Ele era conhecido por
seguir rotineiramente procedimentos misteriosos e arriscados com pacientes neuróticos
que outros haviam abandonado como incuráveis. Ninguém negava seus resultados, que
eram incríveis, mas devido à sua discrição ninguém realmente compreendia como ele os
conseguia.
- Entre, sr. Dmitriev, e sente-se.
Como antes, o meu convite veio tarde demais. O sr. Dmitriev já tinha entrado na
sala, se abancado confortavelmente, e estava esperando pacientemente que eu sentasse
antes de falar. Terminei minhas meditações e olhei para ele, esperando.
- Temo que o motivo por que pedi para falar com a senhora possa parecer estranho
de início. Mas peço que tente ouvir minhas palavras de maneira compreensiva.
"Eu pesquiso no campo da física quântica. O meu laboratório está envolvido no
estudo do fenômeno da realidade. Eu até mesmo diria que, pela minha profissão, fui
colocado num relacionamento mais direto com a realidade do que qualquer outra
pessoa. Tenho muita liberdade no que faço. A maior parte da minha exploração da
realidade envolve experimentos na ciência física, mas também começamos a usar
técnicas baseadas na percepção humana e na mente subconsciente. Eu gostaria de contar
mais sobre nosso trabalho para a senhora e talvez convidá-la a visitar nosso laboratório.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
uma cama no meu sofá e fui dormir, esperando não ter que atender a nenhuma
emergência antes da manhã. Enquanto caía no sono, refleti que foi provavelmente o
respeito inconsciente que eu sempre tivera pela física, desde as minhas modestas
tentativas no científico de compreender a teoria da relatividade, que me impediu de
jogar fora o cartão de Dmitriev. Ainda não tinha intenção de aceitar a oferta dele.
*****
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Entre os principais crimes na União Soviética, um dos piores foi definido pelo
Artigo 70 da legislação soviética. Ele tratava da agitação e propaganda anti-soviéticas.
Quase todos os criminosos condenados sob este artigo se tornavam os equivalentes
funcionais de mortos. A única diferença consistia em que eles não eram executados,
mas em vez disso passavam pelos horrores do "tratamento especial". Muitos foram
perdidos para o mundo para sempre, e a maioria daqueles que voltaram se tornaram
inválidos psicológicos permanentes.
Victor Isotov foi uma das raras exceções que recebeu a chance de voltar para a
sociedade. Depois de dois anos nos horrores mentais da clínica especial do Casaquistão,
ele fora mandado para Novosibirsk e enviado para nosso hospital para tratamento. Ele
chegou na minha enfermaria carregando consigo o rótulo de "esquizofrenia lerda", um
diagnóstico tapa-buraco que era aplicado a praticamente qualquer um que não
correspondesse aos critérios sociais de normalidade do governo.
Aqueles que recebiam este diagnóstico, mesmo que fossem completamente sãos,
sofriam as mesmas conseqüências terríveis que qualquer outra pessoa com diagnóstico
de esquizofrenia. Eles perdiam praticamente tudo que fosse valioso nas suas vidas;
perdiam seus empregos e seus amigos. Não tinham permissão de ir para a escola ou de
participar de quaisquer organizações sociais.
A síndrome principal na história de Victor, de acordo com as notas feitas por seu
último médico, era "intoxicação metafísica". A sua ficha dizia: "O paciente expressa um
interesse anormal pela literatura particular de um caráter filosófico, religioso e
metafísico. Ele declara que poderia passar o dia inteiro lendo livros sem ter nenhum
outro interesse. Ele não tem muitos amigos porque seus critérios para amizade são
muito altos. A sua fala é elaborada e intricada. Ele expressa idéias anti-soviéticas;
acredita que a sociedade soviética é imperfeita e que pode ser melhorada de muitas
maneiras."
O crime de Victor - sua insanidade - foi ter decidido, aos dezessete anos, que a
vida na União Soviética poderia ser melhor e que as pessoas deveriam ter mais
liberdade. Ele fez pequenos panfletos escritos à mão, tentando explicar como essas
mudanças poderiam ser realizadas. Ele colocou os panfletos nas paredes de alguns
lugares públicos da sua cidadezinha.
A cadeia de eventos que veio a seguir foi típica. O departamento local da KGB o
prendeu, foi arranjada uma consulta psiquiátrica, o diagnóstico resultante de
esquizofrenia foi levado à corte, e a corte consignou Victor ao tratamento especial.
Desejava saber por que ele recebera permissão de voltar para casa. Talvez eles
tenham finalmente percebido como tinha sido ridículo, em primeiro lugar, rotulá-lo
como uma perigosa ameaça à sociedade, ou talvez tenham decidido que ele estava
curado. Quando ele veio até mim, certamente não parecia nem um pouco perigoso. Ele
tinha um pescoço magro e branco, e seus olhos estavam sempre humildemente voltados
para o chão. A sua voz era suave, e ele mostrava todos os sinais de uma profunda
depressão.
Victor tinha sido meu primeiro paciente de uma clínica especial. Descobri que ele
tinha medo de tudo. Cooperava completamente, e respondia obediente a todas as minhas
perguntas. O problema era que todas as suas respostas tinham sido cuidadosamente
memorizadas e ensaiadas. Elas sempre eram dadas em frases curtas e formais que eram
repetidas sem alterações. "Eu estava doente. Compreendo isso agora. Eu quero
continuar a tomar meus remédios para prevenir a recaída da doença."
Só houve uma vez em que vi um traço de animação relembrada no seu rosto. Ele
tinha notado um livro samizdat que fora reproduzido secretamente para mim numa
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
máquina copiadora por um amigo. Tinha sido escrito por Sri Aurobindo, um filósofo e
místico indiano, e normalmente eu o mantinha escondido na minha mesa. Depois de
Victor tê-lo visto, nosso relacionamento lentamente começou a mudar. Foi o início da
sua confiança em mim. Foi a porta para um longo e complicado processo para ajudá-lo a
recuperar o máximo de fragmentos possível da pessoa que existia antes do seu
"tratamento especial". Me apoiei um bocado em drogas antidepressivas e
desintoxicantes, construindo ao mesmo tempo uma ponte sutil para que ele voltasse à
sociedade e a si mesmo.
Victor não pensava mais que a sociedade precisava de mudanças, provavelmente
porque ele simplesmente desistira da idéia de que as mudanças ocorreriam algum dia.
Eu nunca o escutei dizer alguma coisa que poderia ser interpretada como uma idéia anti-
soviética. Ele tinha sido biologicamente treinado para evitar esses temas. Mas
gradualmente ele começou a ter uma visão nebulosa de um futuro para si.
Calou fundo o fato dele ter tido uma sorte impressionante de ter sido liberado da
clínica especial e de ter pelo menos uma chance de ganhar a vida em algum trabalho
simples na sua cidade e de voltar aos seus amados livros. Ele percebeu que suas antigas
esperanças de ter uma educação estavam enterradas para sempre, e nunca tentei
persuadi-lo de que isso não era verdade. As universidades estavam fechadas
permanentemente para ele. Compreender isso foi traumático para ele, com sua mente
brilhante e vontade de aprender. Mesmo depois dos dois anos de tratamento destrutivo
que atravessara, ele ainda tinha uma sede apaixonada de conhecimento. Isso tornou-se a
ferramenta que tentei usar para ligá-lo novamente à realidade. Apontei para ele os vários
livros clássicos que ainda não lera, e quantas descobertas científicas ainda podia
conhecer, mesmo na sua biblioteca local.
Tive medo do que poderia acontecer com ele uma vez que fosse liberado, de modo
que o mantive hospitalizado o máximo que pude. Mas a internação não podia durar para
sempre. Certo dia a sua mãe, uma mulher solteira que vivia como contadora para uma
fábrica local, veio levá-lo para casa. Embora já estivesse na meia-idade, vestia-se de
maneira provocante, no estilo de uma mulher muito mais jovem. A sua tentativa de
recapturar sua juventude era tão óbvia quanto sem sucesso. As minhas tentativas
anteriores de envolvê-la na reabilitação de seu filho tinham todas falhado. Ela tinha me
deixado claro que não tinha tempo para nada além da sua vida particular, e que ela tinha
problemas de reconciliar sua imagem de tentadora com ser a protetora do filho doente.
Até mesmo a palavra esquizofrenia trazia uma expressão de repulsa ao seu rosto
cuidadosamente maquiado.
Depois da sua liberação, Victor me escrevera uma carta curta me contando suas
tentativas de encontrar um trabalho. Ele fora rejeitado em alguns lugares que tentara,
mas ainda esperava encontrar alguma coisa. Também mencionou que a sua mãe vendera
todos os seus livros enquanto estivera fora.
Não tive mais notícias depois disso, mas pensava nele com freqüência. Algumas
vezes estivera prestes a entrar em contato com seu médico distrital, mas então alguma
coisa mais urgente sempre parecia me impedir, e eu deixava a idéia de lado. Depois veio
a minha preocupação com a viagem ao Altai e sua seqüência, e eu o havia esquecido até
hoje.
Agora Victor tinha tomado a sua própria vida, e eu sentia que ele tinha levado
uma parte da minha vida com ele. De fato, depois do primeiro choque ter passado,
descobri que a notícia tinha me deixado não só triste, mas com um senso de perda mais
profundo do que poderia ter sido explicado pelo meu apego por Victor. Tentei várias
vezes analisar o meu estado peculiar de mente, e decifrar o que eu estava perdendo.
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*****
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Alguns dias depois, tirei o cartão do sr. Dmitriev da minha mesa. Eu sabia que ele
já tinha sido liberado do hospital, portanto liguei o número de seis dígitos do seu
telefone de trabalho. Ele mesmo respondeu, e reconheceu minha voz imediatamente.
Disse a ele que gostaria de aceitar o seu convite, e marcamos um horário para que eu o
encontrasse em seu laboratório dois dias depois. Era necessária uma permissão especial
para visitar o instituto, portanto ele estaria esperando na porta principal para me deixar
entrar.
Quando cheguei, ele estava de pé junto à porta principal do edifício branco de
nove andares em que trabalhava. Ele parecia completamente diferente da última vez que
o vira na enfermaria de neuróticos. Ele usava um longo casaco preto, carregava uma
pasta preta na mão, e parecia muito mais alto do que antes. Enquanto caminhávamos
pela sala de espera, ficou claro, pela maneira como seus colegas o tratavam, que ele era
respeitado. Mais uma vez, fiquei impressionada com a sua capacidade camaleônica de
transformar sua persona tão facilmente.
Nós subimos pelo elevador até o sétimo andar, e caminhamos até o seu laboratório
através de uma série de corredores longos e vazios, com fileiras de portas idênticas de
cada lado. Ele parou quando finalmente chegamos na última porta à esquerda. A
modesta placa dizia simplesmente: "Laboratório". Enquanto ele firmemente abria a
porta, por algum motivo eu subitamente percebi que não conhecia o seu primeiro nome.
- Olá, todo mundo - disse ele numa voz alegre. O seu tom de voz deixou claro
para mim que os três homens vindos na nossa direção não eram só seus colegas, mas
também bons amigos. - Esta é Olga - escutei-o dizer a eles. - Nós vamos fazer algumas
experiências hoje. Vamos precisar da sua ajuda, Sergey, para ativar os espelhos.
Sergey olhou para mim com interesse afável.
- Estou pronto - disse ele.
O laboratório consistia em duas salas grandes. Uma estava cheia de sofisticados
equipamentos de informática; a outra era dominada por um longo aparelho tubular feito
de um metal brilhante similar ao alumínio, com vários tipos de tubos e conexões ligados
a ele. A coisa toda parecia um tipo de pequena espaçonave.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
- Aliás - sorriu o sr. Dmitriev -, você pode me chamar de Ivan Petrovich. E espero
que não se importe que eu a chame de Olga, já que provavelmente tenho o dobro da sua
idade. Você já ouviu falar, Olga, do astrofísico Kosirev?
- Não, sinto muito, mas nunca ouvi.
- Bem, isto não é surpreendente. Em primeiro lugar, eu teria que deduzir que a
física não está incluída na sua esfera principal de interesses. É verdade?
Assenti com a cabeça.
- E em segundo lugar, era proibido dizer o seu nome até pouco tempo atrás. Ele
esteve no Gulag durante muitos anos. Era muito inteligente e talentoso; alguém no seu
campo teve ciúmes o bastante para escrever uma carta denunciando-o, de modo que
naturalmente foi levado pela KGB.
Eu o interrompi.
- Sei como isso pode acontecer. O meu bisavô serviu como médico no exército do
czar durante a Primeira Guerra Mundial. Ele escreveu um relatório para o czar sobre as
terríveis condições médicas que os soldados tinham que suportar. Por conta disso, foi
mandado para a Sibéria e punido lá durante muitos anos. O seu filho, meu avô, também
foi médico em uma grande usina na Sibéria. Ele escreveu um relatório para o governo
de Stalin sobre as condições inumanas suportadas pelos trabalhadores da usina. Ele foi
considerado culpado sob os artigos políticos e também foi mandado para o Gulag. Ele
só foi libertado depois da morte de Stalin, quase vinte anos depois, e só viveu um ano
depois disso. Nunca o conheci.
- É a mesma história de Kosirev, pelo que parece. Então você sabe que as mentes
mais brilhantes muitas vezes foram mantidas no Gulag junto com os sacerdotes, xamãs
e criminosos empedernidos. Kosirev passou muitos anos lá. Ele teve alguns contatos
especiais com xamãs siberianos no Gulag, mas nunca falou muito sobre isso.
"Conseqüentemente, depois de retornar do campo de concentração, o seu interesse
científico principal passou a ser a teoria do tempo. Ele criou experimentos brilhantes
que o capacitaram a desenvolver uma teoria complexa do tempo, provando que o tempo
possui uma natureza substancial. Ele tem a sua própria solidez, que muda de acordo
com a configuração do globo. Conseqüentemente, o tempo é mais sólido ou menos
sólido em pontos diferentes da Terra. Naturalmente, é completamente impossível
detectar isso com nossas habilidades perceptivas humanas normais, mas o seu aparato
sofisticado foi realmente capaz de medir as diferenças. Isso provou suas teorias
matemáticas sobre como a substância do tempo poderia ser de fato alterada.
"Sem dúvida você notou esse equipamento grande e, suponho, de aparência
bastante peculiar no centro da sala. É um tubo feito de uma combinação especial de
metais polidos que funciona como um espelho. Nós descobrimos que essa é uma das
maneiras como podemos alterar a percepção temporal de um indivíduo. De maneiras
que ainda não compreendemos totalmente, os espelhos funcionam para transformar o
tempo e o espaço para a pessoa dentro deles. Isso faz algum sentido para você?"
- Acho que sim. - Eu realmente compreendi pouco do que ele estava me dizendo,
mas eu confiava nele e estava pronta para explorar a sua teoria. - Vou precisar das suas
instruções para saber o que fazer.
- Sim, naturalmente. Não se preocupe - replicou Dmitriev. - Vamos dizer tudo
para você, passo a passo, à medida que seguirmos adiante.
"Em primeiro lugar, tire as botas e sente-se dentro do tubo em qualquer posição
que seja confortável. Sergey lhe dará fones de ouvido, através dos quais ouvirá sons
gravados que devem ajudá-la a relaxar e a abrir o canal para sua experiência
subconsciente.
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"A forma cilíndrica dos espelhos, junto com os sons que vai escutar, influenciarão
suas percepções. Você precisa tentar definir claramente na sua mente o tipo de
experiência que deseja evocar. Então espere que ela aconteça, totalmente consciente das
nuances do seu estado de ser. Não vamos falar com você ou interferir de modo algum, a
menos que achemos que você precisa de ajuda.
Tirei minhas botas, sentindo-me feliz por ter escolhido jeans confortáveis em vez
de um vestido. Então, à medida que subia no tubo, imediatamente comecei a sentir
sensações estranhas. Compreendi por que o chamavam de espelho; só via paredes
metálicas arredondadas, polidas de modo que suas superfícies refletissem imagens
vagas e gerais. Nunca tinha estado num espaço parecido com aquele, e era difícil achar
uma maneira de encaixar meu corpo confortavelmente dentro dele. Experimentei com
posições diferentes, finalmente escolhendo uma posição embrionária, na qual ficava
meio sentada, meio deitada no tubo.
Sergey me trouxe os fones de ouvido. Eu não consegui ver seu rosto da minha
perspectiva, e parecia que a mão desencorporada de alguma estranha criatura estava
tentando me alcançar. Coloquei os fones e tentei relaxar como fora instruída. Uma
melodia remota, agradável e harmônica, fluiu gentilmente para minha mente. Os meus
olhos ainda estavam abertos, mas um ritmo particular na melodia me dava a sensação de
já estar dormindo.
Eu tentei me concentrar numa das minhas técnicas regulares de relaxamento, mas
as paredes espelhadas pareciam influenciar o meu diálogo interno, suprimindo-o quase
que inteiramente. A sensação me lembrava dos meus estados anteriores de estar
desperta e totalmente alerta dentro do que eu sabia ser um sonho. No meu coração,
sentia a mesma sensação familiar de prazer intenso misturado com dor.
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"O próximo passo será aquele que vocês já estão tomando, que é perceber
que existe outra personalidade que cria a realidade pessoal do indivíduo. A sua
Personalidade-Coração, a sua personalidade genuína, aquela que é responsável
por essa criação. Cada pessoa precisa experimentá-la para compreender."
Embora num certo nível eu percebesse que o que ele está me contando é
extremamente difícil de absorver usando o entendimento racional, de algum
modo me parece claro, e assimilo tudo sem muito esforço. Questiono por um
instante se a presença dele está criando um canal de compreensão além da
explicação verbal.
"O seu 'ego' não é tão ruim quanto você aprendeu a pensar. Na verdade",
ele sorri, "podem existir egos melhores ou piores. As pessoas são diferentes. Mas
o fenômeno do ego foi em si mesmo o principal fundamento para realizar as suas
tarefas evolucionárias. A sua civilização não poderia ter tomado a forma que
tomou sem o ego. O motivo por que tantos agora sentem que ele possui efeitos
danosos e deve ser diminuído é porque eles conscientemente prevêem o próximo
passo da evolução. A sua sociedade será capaz de reconhecer e de se integrar
com as outras só quando descobrir e adentrar a sua Personalidade-Coração. O
ego não é mais um ajudante."
"Como posso acelerar esse processo?", é a minha pergunta seguinte.
"Trabalhando nele e o praticando. Muitas escolas esotéricas no seu mundo
criaram maneiras diferentes de preparar as pessoas para fazer isso. Os seus
praticantes atravessaram essas transformações. No passado, a instrução desse
tipo era um privilégio obtido só por alguns escolhidos. Uma das importantes
mudanças nos tempos futuros é que a transformação será experimentada por
muitas pessoas no mundo todo e ao mesmo tempo. Já existem sinais que apontam
para essas mudanças, e a sua cultura deve estar preparada para elas.
"Você, Olga, está particularmente conectada com uma das mudanças. O
evento teve lugar em Altai, mas está geograficamente relacionado com
Belovodia. Você já é parte dessa história, sem ter ainda muita memória dela. Mas
isso virá no seu devido tempo."
O meu coração começa a bater mais rápido. Tenho a sensação de que ele
está perto de me dizer algo muito importante para mim pessoalmente. Ao mesmo
tempo, noto que o sol tornou-se tão brilhante que é muito difícil para mim olhar
para ele sem semicerrar meus olhos até que eles estejam quase fechados. Me vem
a idéia ridícula de que deveria ter trazido meus óculos escuros.
Se ele está consciente do meu pensamento irreverente, não o demonstra.
Ele continua: "Algumas das antigas tumbas abertas pelos seus cientistas na
verdade foram tumbas que pertenciam a outras dimensões, outras correntes
evolutivas. Essas não são apenas manifestações materiais, físicas. Os habitantes
aparentemente mortos na verdade possuem intenções vivas. Eles servem como
canais de comunicação com outras dimensões humanas. Esses canais foram
criados com a finalidade específica de fazer contato com o seu povo. Existem
alguns lugares na terra onde isso foi feito; Altai é um deles. A sua jornada até lá
não foi uma cadeia de acidentes. Cada passo que você deu foi planejado para
despertar uma memória. E você está se movendo por esse caminho.
"A tumba descoberta em Altai foi planejada para ser aberta apenas quando
a transformação vindoura estivesse pronta para ser visível em grande escala. O
fato de já ter sido aberta significa que as mudanças serão aceleradas
naturalmente. Isso significa que mais e mais pessoas experimentarão a
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Eu não me sinto pronta para perder minha profunda e intensa atração por
ela, de modo que respondo: "Não. Acho que não estou preparada para isso."
"É bom que você possa perceber isso de maneira tão clara. Agora está na
hora de você ir embora."
Ele coloca sua mão na minha testa, e uma forte energia me toca. Lampejos
brilhantes de luz me surpreendem, e abro meus olhos durante alguns segundos.
Estou num lugar diferente, mas não consigo me lembrar exatamente onde. A mão
de um homem diferente segura meus pulsos e gentilmente me ajuda a sair do
tubo.
Quando fico mais desperta, vejo Dmitriev e dois dos seus colegas de pé ao meu
redor parecendo sérios e cansados. Dmitriev tirou de mim um caderno, que eu notei
estar escrito com a minha letra.
- Posso olhar isso, Olga?
- O que é isso?
- Suas anotações. Nós lhe demos uma caneta e papel depois que você iniciou a sua
jornada. Você esteve escrevendo o tempo todo, muito embora possa não ter notado.
Eu deixei com ele o caderno e caminhei lentamente até o banheiro no final do
corredor. Quando me vi no espelho, meu rosto me assustou. Um triângulo vermelho-
escuro o cobria do meio da minha testa até o meu nariz. Quando instintivamente o
toquei com meus dedos, ele estava quente. Era a minha marca de nascença, que os
médicos tinham dito a minha mãe ser uma forma de tumor vascular. Felizmente, ele
desaparecera quando eu tinha apenas um ano de idade exceto por um breve sinal rosado
que ocasionalmente se tornava visível quando eu estava sob uma grande dose de
estresse ou trauma emocional. Ele era tão leve que mais ninguém o tinha notado. Agora
eu vi que ele estava intensamente escuro, como minha mãe o tinha descrito quando
nasci.
Sentindo-me ainda confusa, voltei-me para a pia e lavei o rosto com água fria. Eu
sempre detestei o cheiro de cloro, mas agora seu ligeiro traço na água me ajudou a
completar a transição de volta para o meu corpo. Concentrei-me no pensamento de que
estava de pé num pequeno banheiro no Instituto de Física Nuclear. Logo tomaria um
ônibus de volta para o meu apartamento e para o que eu esperava que fosse uma noite
de sono repousante e sem sonhos.
Quando voltei para o laboratório, o triângulo no meu rosto tinha quase
desaparecido. Ninguém o mencionou, e na verdade mal pareceram perceber o meu
retorno. Eles estavam todos juntos de pé ao redor de uma mesa que tinha o mapa de
Altai aberto sobre ela. Eles tinham marcado um ponto na parte sul de Altai, e o
reconheci como o local da tumba de onde a múmia da sacerdotisa tinha sido descoberta
recentemente. Eles estavam conversando sobre isso.
- Olhe, é perto de Belukha. Eles têm alguma coisa publicada sobre a múmia que
encontraram lá?
- Parece que não. Eu não acho que nada tenha sido publicado, a não ser por alguns
artigos de jornal. Acredito que uma equipe da revista National Geographic tenha
visitado o local e entrevistado as pessoas que o escavaram. Talvez publiquem alguma
coisa em breve.
Todos eles se voltaram e me olharam ao mesmo tempo. Dmitriev me devolveu o
caderno.
- Isso é fascinante, Olga. Eu estava esperando que algo assim acontecesse. A sua
experiência hoje me ajudou a amarrar as coisas de novas maneiras. A partir do meu
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está de pé atrás de mim. Ela diz algo para as pessoas ao meu redor na sua
própria linguagem. Então sinto os seus longos dedos negros tocando a minha
testa, e relaxo.
Meu corpo inteiro parece ser feito de alguma substância plástica que pode
facilmente mudar de forma. Os dedos dessa mulher dançam rapidamente no
espaço entre os meus olhos, ocasionalmente tocando a minha pele. Uma energia
está sendo criada dentro de mim. O meu corpo começa a se virar, como se eu
estivesse rolando em algum tipo de bola. O movimento vai ficando cada vez mais
rápido, e eu viro uma espiral giratória rodando para um ponto focal derradeiro.
Então está acabado. Os bilhões de células que formam meu corpo se
rearranjaram, unindo-se numa única célula redonda que contém todas as
informações que existem sobre mim.
Estou vagamente consciente de que as pessoas estão fazendo alguma coisa
comigo. Eu não resisto, porque compreendo que elas estão curando alguma coisa
no fundo da minha estrutura. Isso dura algum tempo, e então sinto-me deitada
numa superfície sólida. Está completamente escuro ao meu redor. Estou
consciente de ainda estar sonhando e que a lógica onírica ainda se aplica, de
modo que não fico surpresa ao escutar alguém rindo suavemente à minha direita.
"Quem está aí?" De algum modo o som da minha voz influencia a
luminosidade do lugar onde estou, e ele fica mais claro a medida que faço minha
pergunta.
Uma mulher está sentada com as pernas cruzadas no chão perto de um
canto da sala, segurando um cachimbo. É Umai, e o seu cachimbo é o mesmo que
a vi fumar em Altai. Embora ela esteja fumando, não sinto nenhum cheiro de
tabaco. Por algum motivo, isso me surpreende mais do que a presença de Umai.
Em vez de me saudar ela faz uma pergunta. "Você se lembra por que veio
até Altai para me ver?"
"Receio que não."
"Então tente lembrar-se."
De início só me lembro do meu motivo inicial para a jornada. "Acho que
Anna me pediu para acompanhá-la", repliquei. Então me lembro de mais. "E é
claro! Também queria aprender alguns métodos de cura com você."
Umai continua a rir suavemente enquanto conversamos, e balança o seu
corpo ritmicamente de um lado para o outro. De alguma maneira, tenho a
impressão de que ela pode se dissolver no ar no momento em que desejar.
"Você pode ficar comigo aqui por um momento e não ir embora?" Eu não
quero que ela se vá, e estou pescando alguma garantia da sua presença.
"Você pode?" Umai pergunta como resposta. Ela aperta seus estreitos
olhos mongólicos até quase fechá-los e solta uma baforada de fumaça na minha
direção.
"Acho que posso."
"Então eu também posso."
Sorrio aliviada, enquanto ao mesmo tempo tento manter uma expressão
apropriadamente solene no meu rosto para o momento de ensinamento que
espero.
Umai ri alto, como se visse alguma coisa muito engraçada. Então ela
parece lembrar-se de alguma coisa e fica séria novamente, falando um pouco
mais rápido como se agora estivesse com pressa.
103
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
"Muito bem. Você disse que veio para Altai para aprender sobre cura. Isso
está absolutamente correto. A cura é o seu destino.
"Você acha que tudo começou para você com a sua experiência no espaço
do seu Lago do Espírito. Não foi bem assim; o ensinamento desse espaço na
verdade foi a segunda coisa. O seu verdadeiro início foi quando permiti que você
fizesse aqueles peixes na madeira nadarem. Isso permitiu que você
experimentasse o poder da cura pela primeira vez. Mas eu tenho que admitir que
você fez bem em integrar essas duas lições com aquelas que se seguiram.
"Agora eu quero responder uma pergunta que você ainda não perguntou,
exceto na sua mente. Eu faço isso porque acho que pode ajudar você a pensar no
seu trabalho como uma curandeira. É o seguinte:
"As doenças da mente só possuem duas causas e elas são totalmente
opostas uma a outra. Uma maneira das pessoas ficarem loucas é se a sua alma,
ou parte da sua alma, for roubada. Isso geralmente acontece porque a alma foi
roubada delas mas às vezes elas podem até mesmo decidir inconscientemente
entregá-la, talvez em troca de algo mais que elas queiram. A segunda maneira de
uma pessoa ficar louca é se ela é subjugada e ocupada por uma força estranha.
"Só existem esses dois motivos; mais nada. Parece simples, mas você pode
levar muito tempo para aprender a distinguir a fonte de uma doença
corretamente e curá-la. Caso você se engane quanto à causa, então a sua
tentativa de curá-la vai na verdade alimentar a doença e piorá-la. Você precisa
estar preparada para aprender muito antes de poder tornar-se uma boa
curandeira.
"É por isso que a lição do espaço do Lago do Espírito foi dada para você
bem no início. O poder de cura está naquele espaço. É a casa do Curandeiro
dentro de todos nós. Ao mesmo tempo, esse espaço é também a sua estrada para
Belovodia. Quanto mais você explorar a sua água da vida interior mais perto
estará de Belovodia. Estou certa em pensar que você está procurando isso?"
"Sim", respondi. Mais uma vez sinto uma excitação particular no meu
corpo, na expectativa de que uma peça importante de conhecimento está prestes a
vir para mim. Sinto-me como uma caçadora, prestes a pegá-la com todos os meus
sentidos.
"Você está se perguntando se Belovodia é um país real ou não. Você vai
aprender mais sobre isso mais tarde, mas não importa realmente agora. A coisa
importante de se lembrar é que ninguém encontrará Belovodia, nesse mundo ou
em qualquer outro, exceto pela exploração da personalidade interior. O único
caminho para Belovodia é através do seu espaço interno, através da expansão do
seu autoconhecimento.
"Com isso, não estou falando da teorização vazia com que tantas pessoas
gostam de se alimentar. Isso é totalmente separado do lago do Espírito. Estou
falando de trabalho sério e prático. Para você será o trabalho na cura.
"Escute o que vou dizer em seguida, porque é muito importante. Cada
humano possui uma entidade particular que habita o lugar do seu Lago do
Espírito. Essas entidades existem dentro desse espaço interior, esperando na
entrada para Belovodia. Eu chamo essa entidade de Gêmeo Espiritual, mas o seu
nome também pode ser Espírito Auxiliar, Vigia das Sombras, Guia Espiritual, ou
Guardião Interior. Eles na verdade são muitas coisas.
"Para começar eles estão intimamente conectados com a finalidade
suprema dada a cada pessoa no nascimento. Eles também são puros
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Então uma pequena nuvem de fumaça de tabaco era tudo que restava no canto
onde Umai estava sentada um momento antes. A nuvem ainda flutuava na minha
memória quando abri meus olhos na escuridão do meu quarto e tentei despertar.
Na minha imaginação, o meu diário quase parecia feliz quando o tirei da estante e
comecei a escrever tudo que me lembrava do meu sonho. Fiquei particularmente
intrigada com a última sugestão de Umai sobre meu Curandeiro Interior: "Experimente-
o amanhã e veja por si mesma."
Eu já não visitava a enfermaria feminina há algum tempo, de modo que na manhã
seguinte decidi começar meu dia de trabalho nela. Eu dividia um consultório ali com
George, o médico encarregado da enfermaria. Ele já estava sentado atrás de sua mesa
quando cheguei, e pelo seu sorriso particularmente benigno, suspeitei que devia ter
alguma surpresa desagradável me esperando.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Paciente Lubov Smechova admitida no nosso hospital pela primeira vez há cerca
de um mês. O seu atual diagnóstico é uma progressão do tipo sch., schisocarn;
síndrome depressiva-paranóica.
Sch., schisocarn significava que ela tinha uma forma particularmente rápida e
malígna de esquizofrenia.
A maioria dos pacientes com esquizofrenia levava de oito a dez anos antes de
serem classificados no "segundo grupo de incapacidade mental", o que significava que
eram totalmente incapazes de se recuperar ou de cuidar de si mesmos. O progresso
incrivelmente rápido da doença de Lubov Smechova era uma prova da sua virulência.
Classificá-la no segundo grupo também significava que seria necessário preencher
infinitos formulários, fazer infinitas consultas com colegas e comitês de especialistas, e
então uma audiência final diante de uma comissão.
- Oh, não! Isso não é justo! Você não pode fazer isso comigo. Eu já estou
sobrecarregada com quatro criminosos na minha ala masculina que precisam de
avaliação total, diagnósticos e recomendações a ser preenchidas na corte até o final do
mês. Eu não posso pegar outro caso de incapacidade. Você quer que eu more no
hospital?
Eu quase gritei, mas ao mesmo tempo sabia que George não mudaria de idéia. Ele
era um doce velhinho, sábio e sempre pronto a ajudar, mas também conhecido em todo
o hospital pela sua vontade inabalável de ter o mínimo possível de contato com
documentos, cortes, ou diagnósticos complicados. Além disso, como chefe dessa
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
enfermaria, George tinha todo o direito de me passar pacientes. Assim, eu não tinha
realmente nenhuma escolha. Essa mulher, Lubov Smechova, ia realmente ser minha.
George olhou para mim silenciosamente, com infinita compaixão, enquanto eu
pegava os documentos e ia embora, batendo a porta com mais barulho do que de
costume para expressar minha irritação. Eu quase podia ver seu rosto paternal, ainda
sorrindo gentilmente para mim, por trás da porta fechada.
Como de costume, descobri que não conseguia ficar zangada com ele mais do que
alguns minutos. Quando cheguei no consultório que usávamos para avaliações de
pacientes, eu estava calma novamente. A enfermeira de plantão era Marina, e pedi que
ela me trouxesse Luba.
Enquanto esperava, li a sua ficha inteira. O seu caso era realmente terrível. A
palavra schisocarn no seu diagnóstico significava que a sua psique inteira fora
queimada completamente, centenas de vezes mais rápido que a maioria dos outros
esquizofrênicos. Estudei cuidadosamente as avaliações psicológicas e psiquiátricas
preliminares que tinham sido feitas, incluindo informações sobre sua história familiar
indicando que alguns dos seus parentes próximos tinham sofrido do mesmo tipo de
doença.
Tudo no seu diagnóstico parecia correto. Ela não tinha esperança de nem mesmo
uma curta remissão, portanto deveria ser colocada no "segundo grupo" sob cuidados do
governo, quase na sua estréia ria insanidade. Apesar da minha carga de casos já
carregada, não havia motivo plausível para que eu atrasasse sua disposição.
A enfermeira bateu baixinho na porta.
- Aqui está Luba, doutora. Ela pode entrar? - perguntou.
- Sim, por favor, faça-a entrar - respondi. Vi como a enfermeira guiava
cuidadosamente minha nova paciente para a sala. Os seus movimentos estavam cheios
de compaixão enquanto ajudava Luba a sentar-se na cadeira diante da minha mesa.
- Muito bem, querida - disse ela. - Aqui está sua nova médica. Talvez ela possa
ajudá-la a ficar bem.
As palavras de Marina eram tão obviamente impróprias que me irritaram. "Do que
ela está falando?", perguntei a mim mesma. "Por que ela está dando falsas esperanças a
essa mulher?" A minha irritação inicial de ter Luba como paciente retornou, mas agora
estava direcionada para a enfermeira. Depois de trinta anos na psiquiatria, ela deveria
saber o que dizer para pacientes nos estágios finais e incuráveis da esquizofrenia. "Ficar
bem"? Ah!
Fiz uma cara feia para Marina quando a mandei embora.
- Obrigada, isso é tudo. Chamarei você para levar Luba de volta quando houver
acabado.
Marina saiu em silêncio, deixando-me sozinha com uma mulher de quarenta anos
congelada como uma estátua sentada diante da minha mesa. O seu cabelo negro, curto e
grosso estava despenteado. Seus olhos grandes, com uma forma amendoada
ligeiramente oriental, estavam tão vazios e inexpressivos que eram quase imperceptíveis
no seu rosto. Um ligeiro tremor nas suas mãos era o único movimento que o seu corpo
se permitia. Ela não caminhava, não falava, não fazia nada sem algum empurrão externo
de algum tipo.
- Olá, Luba. Sou sua nova médica.
Ela não mostrou o menor sinal de interesse.
- Bem, Luba, quer você queira ou não, tenho que informar sobre o seu estado atual
e como vamos ajudá-la. - Ela estava tão ausente que era como falar comigo mesma.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
- Tudo bem. - A sua voz tinha um som mecânico totalmente vazio de qualquer
traço de personalidade ou interesse.
Folheei novamente as páginas da sua história. Ela tinha sido uma professora, com
um marido e dois filhos adolescentes. Nada incomum. Mas de algum modo, enquanto
olhava para os seus registros, a minha mente retornava involuntariamente para a frase
imprópria que Marina tinha usado: "Talvez ela possa ajudá-la a ficar bem."
Essa frase ficou ecoando na minha mente até que subitamente ela se encontrou
com as últimas palavras de Umai para mim: "Simplesmente peça ao seu Curandeiro que
venha e faça o trabalho. Não se surpreenda com as suas próprias ações, mesmo que elas
pareçam estranhas ou até mesmo tolas. Tente amanhã e veja por si mesma."
As duas frases se fundiram de tal maneira que uma onda de tentação subiu dentro
de mim, me levando a uma ação que não fazia sentido para a parte racional da minha
mente. Alguma coisa, talvez o vazio total que parecia ocupar o ser de Luba, me dizia
que a sua doença não vinha da ocupação de alguma entidade estranha, mas de ter
perdido, de alguma forma, a sua alma. A única maneira de dar a ela algum tipo de
estímulo seria dar-lhe a vontade de se estender para fora, na esperança de que ela
pudesse encontrar e recuperar o que perdera. Imaginei se poderia talvez fazer isso.
"Não há risco envolvido", pensei. Ela está perdida de qualquer maneira. Faça o
que Umai disse; apenas tente. Use a situação como uma experiência. Nada que eu possa
fazer poderá piorá-la"
Luba estava sentada diante de mim com a mesma expressão vazia. Eu não sentia
nenhum impulso de dizer a ela o que eu estava pensando, porque sabia que eu não
estava sendo refletida na sua mente consciente.
Sentindo-me meio boba, só ousei pronunciar as palavras silenciosamente, dentro
da minha cabeça: "Peço ao Curandeiro dentro de mim que saia e cure esta mulher:"
Durante um breve momento, houve uma estranha interrupção na minha percepção.
Parecia que o meu rosto, minha identidade, desceu da sua posição comum na minha
cabeça e parou no lugar do meu coração. Durante alguns segundos eu realmente pareci
ver o mundo da parte central do meu corpo, como se meu coração tivesse ganhado olhos
e tivesse a capacidade de ver. Isso foi acompanhado por uma forte onda de calor e
excitação que passaram como um relâmpago pelo meu peito e então rapidamente
desapareceram. Quando ela passou, minha maquinaria terapêutica usual começou a
funcionar.
Fiquei de pé, dei a volta ao redor da minha mesa, peguei a segunda cadeira, e me
sentei muito perto de Luba, bem na frente dela.
- Eu quero que você me escute com muita atenção. Não importa que você não
reaja ao que eu estou dizendo, porque eu sei que há uma parte de você que vai me
escutar, e que aceitará minhas palavras como verdade. Eu sei que você escolheu sua
doença devido a algum motivo muito importante na sua vida, Luba. Eu não tenho idéia
do motivo que faz com que você precise da sua doença para se salvar, mas tenho certeza
de que foi uma decisão corajosa naquele momento. Me uno a você no agradecimento a
sua doença por ter vindo a você no momento correto, e por ter feito algo muito
importante para você. Certo?
"Agora, Luba, quero que me escute ainda mais atentamente."
Isso parecia realmente patético aos meus ouvidos, pois até agora Luba não
mostrava nenhuma reação às minhas palavras ou até mesmo à minha presença. Apesar
disso, eu continuei.
- Quero enfatizar uma coisa muito importante para você. Muito embora a doença
que você criou tenha sido útil para você, o seu acordo com ela era temporário. O
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
problema é que você esqueceu isso. Você ainda espera que sua doença realize algo para
você, mas isso está errado. Está totalmente errado, porque a necessidade disso já passou.
Ela não tem mais valor, e agora só é destrutiva.
Eu estava ficando muito emocionada enquanto falava com ela, como se fosse
parte da família, expressando a mesma angústia, medo, amor, ódio e vergonha que seu
marido e filhos tinham sem dúvida experimentado. Eu quase me senti como se fosse
perder o controle de mim mesma.
- Você não precisa pagar um preço tão alto. A sua doença a enganou. Ela é um
monstro que destruirá você, a sua família, e toda a sua vida. Você sabe o que vai
acontecer com você? Não, não sabe. Vou dizer-lhe o que vai acontecer; tenho certeza.
Eu já vi o seu futuro, e vou lhe dizer como você também pode vê-lo! - Eu estava quase
gritando, e segurei sua mão com força.
"Olhe para mim, e eu vou lhe dizer o que você vai ser.
Sacudi a sua mão violentamente para frente e para trás, tentando chamar a sua
atenção, mas tudo que consegui como reação foi um breve olhar indiferente. Então ela
virou o rosto e olhou para a janela. Continuei a falar.
Você vai ficar exatamente como Larisa Chernenko. É tudo o que você vai ser. Se
está disposta a continuar com isso, então vá em frente. Tudo que posso fazer por você
agora é dar-lhe esse aviso.
Todo mundo na enfermaria feminina conhecia Larisa Chernenko. Ela vivia ali há
vinte anos. Uma ex-cantora, ex-esposa de um general, ex-beleza, agora ela era um terror
violento, imprecador e raivoso para todos, pacientes e equipe do hospital. A sua mente
estava completamente destruída. Ela não cuidava de si, ria histericamente sem motivo,
intimidava até as pacientes mais psicóticas ao seu redor, e passava a maior parte do seu
tempo presa na cama, porque ela era perigosa na sua demência violenta. As correias que
amarravam suas mãos e pés só eram removidas para trocar seus lençóis ou comadre ou
para alimentá-la.
Luba não deu absolutamente qualquer resposta às minhas palavras, e ainda estava
sentada como o mesmo monumento de pedra na sua cadeira. Fiquei de pé, me sentindo
derrotada, e fui para o corredor, onde Marina esperava.
- Leve-a de volta para seu quarto, por favor - pedi, e então fiquei perto da porta
assistindo como Marina ajudou Luba a se levantar e andar até o corredor. Marina fechou
a porta atrás dela, me deixando sozinha no consultório, tentando não reconhecer a
vergonha e insatisfação que sentira com meu desempenho. Mas os sentimentos eram
fortes demais para ser evitados, e logo estava me censurando pelos meus atos estúpidos
e antiprofissionais.
Questionei o que tinha esperado quando pedi ao meu Curandeiro Interior que
saísse. Certamente não esperara o que realmente acontecera. A única "cura" que tentei
foi a técnica trivial de dissociar o assunto introduzindo a idéia de que uma função
positiva transitória para a doença já tinha passado. Teria sido impossível escolher uma
paciente menos apropriada para esta técnica; a psique de Luba já tinha sido totalmente
desintegrada pela sua doença, e ela obviamente não tinha a energia ou habilidade de
aceitar novos significados ou símbolos.
Tentei me consolar e acalmar com o pensamento de que meu Curandeiro Interior
talvez não tivesse desejado sair desta vez, ou talvez eu não o tivesse convocado de
maneira apropriada.
Escrevi tudo no meu diário à noite, descobrindo que o processo de escrever sobre
meus fracassos não era uma má idéia, já que me ajudava a aceitá-los e me dava pelo
menos algum sentimento de alívio.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Eu não vi Luba novamente nos quatro dias seguintes, devido ao final de semana e
a algumas situações de emergência na minha ala masculina. No quinto dia, finalmente
fui ver meus pacientes femininos. Reservei três horas para passar na enfermaria, e
decidi usar parte desse tempo para completar todos os formulários legais de Luba. Não
havia por que atrasá-los, e quanto mais cedo o fizesse, menos prazos teria que cumprir
no final do mês.
Marina estava novamente de plantão naquele dia. Ela obviamente estava feliz em
me ver, e fiquei contente ao descobrir que não guardava nenhum embaraço ou
sentimentos negativos em relação com o meu recente fiasco com Luba.
- Olá, doutora - disse ela. - Tive medo de não encontrá-la. Se a senhora não viesse
aqui hoje, eu iria chamá-la.
- Por que a pressa? Aconteceu algo de novo?
- Oh, definitivamente aconteceu algo de novo. - Ela tinha um sorriso excitado no
seu rosto enquanto caminhava comigo pelo corredor. Ela parou do lado de fora do
quarto com Luba e três outras pacientes.
- O que está acontecendo? - perguntei, sentindo que havia algo incomum no
comportamento de Marina.
- Luba quer vê-la, doutora. - Marina fez um gesto para o quarto, de modo que me
virei e entrei.
Luba não me viu de inicio. Ela estava sentada na cama, lendo o jornal local. O seu
belo rosto, totalmente vivo, mostrava interesse e concentração. O seu cabelo estava
cuidadosamente penteado; até mesmo tinha um leve toque de batom nos lábios. Ela
estava usando o seu próprio vestido bordado de casa, um privilégio permitido apenas às
pacientes com licença para ir para casa durante alguns dias. Eu não acreditava nos meus
olhos. Fiquei na porta totalmente surpresa, olhando para ela numa mistura de espanto e
admiração.
Subitamente ela me viu. Largou imediatamente o jornal, saltou da cama, e correu
para mim com um grande sorriso, como se estivesse saudando uma amiga há muito
perdida.
- Oh, estou tão feliz em vê-la, doutora! Estive esperando ansiosa por você. Muito
obrigada pelo que fez! Muito, muitíssimo obrigada! - Então ela parou, sem ter certeza se
devia continuar até ver minha reação.
Eu estava tão atordoada que quase perdi a fala.
- Olá, Luba. Também estou feliz em vê-la. Vamos para o meu consultório, Luba.
Agora mesmo, por favor - foram as únicas palavras que vieram à minha mente chocada.
Caminhamos até a mesma sala onde ela tinha ficado sentada na minha frente,
passiva e inerte como uma pedra, apenas alguns dias atrás. Agora ela era uma pessoa
totalmente diferente, viva, comunicativa, que mal conseguia controlar sua energia e
entusiasmo.
- Você parece totalmente diferente, Luba. Incrivelmente diferente. Acho que agora
você está se sentindo melhor, também? - Falei lentamente, tentando ajustar a nova
percepção que tinha dela.
- Você me curou, doutora. Estou de volta, estou saudável. Não pode imaginar
como estou feliz.
Eu a escutei, pensando nas suas palavras e tentando compreender o que eu estava
vendo e ouvindo. Luba tinha definitivamente entrado numa remissão pronunciada e
totalmente inesperada, quase impossível. Ao mesmo tempo, eu sabia que não havia
como o trabalho trivial que fiz com ela ter causado esse resultado. Era completamente
implausível. Algo diferente devia tê-la ajudado, e me inclinava para a idéia de que
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
algum ciclo endógeno bioquímico tinha criado a sua remissão, depois de seguir suas
próprias leis desconhecidas.
- Bem, Luba, aprecio que você ache que a ajudei. Mas eu realmente não acho que
meu papel tenha sido tão importante. Acho que seu corpo curou a si mesmo, e que tive
pouco ou nada a ver com isso. Gostaria de ter sido responsável, mas tenho de encarar a
verdade.
- Você não teve nada a ver com isso? Por favor, não diga isso. Foi você que me
tirou daquele pesadelo! - Ela estava bastante perturbada. - Deixe-me dizer o que
aconteceu depois que me deixou aqui na semana passada. Marina me trouxe do seu
consultório, e me deitei na cama como já tinha feito em todos os dias anteriores. O meu
estado mental antes disso tinha sido bastante estranho, mas ao mesmo tempo ele não
fazia nenhuma diferença para mim. Eu não era mais "eu". Eu tinha me tornado alguma
coisa alienígena, vazia de todo pensamento, emoção, ou mesmo movimento. Eu era um
pedaço seco e morto do inferno.
"Quando Marina me deixou no seu consultório, pude vê-la falando comigo.
Compreendia o que dizia, mas estava totalmente indiferente às suas palavras.
Naturalmente, naquela época eu estava totalmente indiferente a tudo, até mesmo aos
meus próprios filhos. Mas você plantou uma pequena semente de interesse em mim
quando me disse que eu ia ficar como Larisa Chernenko. De início o meu interesse era
fraco demais para fazer com que eu me levantasse e a procurasse. Mas o pensamento
ficou aparecendo no vazio quase total da minha cabeça, me dando uma pequena
conexão com a realidade externa. Lentamente fiquei cismando quem poderia ser essa
pessoa, e então perguntei à Marina quem era ela.
"Nós não temos uma paciente com esse nome na nossa enfermaria - ela
respondeu. Esse foi o verdadeiro início da minha mudança. A sua resposta me
surpreendeu, e esse sentimento de surpresa foi a primeira emoção que voltou para mim.
"Pensei sobre isso durante algum tempo. Então comecei a olhar para as outras
pacientes no café da manhã, almoço, e jantar, tentando descobrir quem poderia ser
Larisa Chernenko. Finalmente percebi que Marina tinha dito a verdade. Não havia uma
paciente com esse nome na enfermaria. Esse mistério intensificou meus sentimentos, e o
meu interesse cresceu como uma bola de neve ao seu redor.
"Era tão importante para mim descobrir o que você quis dizer que a minha atenção
ficou totalmente obcecada com isso. Eu não conseguia pensar em mais nada, não podia
fazer mais nada, exceto caminhar para cima e para baixo no corredor, entre as mulheres
da enfermaria ao meu redor, procurando sem parar por Larisa Chernenko. Finalmente
cheguei a um estado em que toda a minha existência dependia de reconhecer essa
mulher. Mas ela não estava na enfermaria.
"Finalmente, o domingo é o dia em que nossos parentes têm permissão de nos
visitar. A minha própria família tinha ficado tão desapontada e perturbada nas outras
tentativas de falar comigo que nenhum deles veio. Eu caminhava entre os pacientes e
seus parentes, ainda consumida pelo meu desejo ardente de encontrar Larisa Chernenko.
"Subitamente ouvi a voz de um enfermeiro anunciando outro parente que viera
visitar. 'Larisa está aqui para ver sua mãe.' - Ouvir o nome foi como receber um choque
elétrico. Fui ansiosa para a porta e esperei que ela entrasse.
"'Pobre garota, ainda vem ver a sua mãe" - ouvi um enfermeiro dizer.
"'Mãe é sempre mãe, apesar de tudo. Mas nada pode ser feito por ela' - replicou
outra voz. Então vi o enfermeiro trazer uma jovem para o quarto onde os pacientes mais
violentos ficavam presos.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
"'Tamara Chernenko, a sua filha, Larisa, está aqui!' O enfermeiro gritou no quarto
onde a mulher que todos chamavam de 'Tamara, a terrível', ficava presa. Ela foi solta
temporariamente das suas presilhas, e quando viu sua filha começou a insultá-la
violentamente, dizendo coisas terrivelmente baixas para ela.
"Larisa ficou na porta chorando em silêncio, sem ousar dar um passo na direção
da sua mãe violenta. Tamara continuou a gritar e a ofendê-la. Subitamente, ela correu
até a filha e socou-a com força no rosto. Larisa fugiu enquanto vários enfermeiros
agarravam Tamara e a amarravam de volta na sua cama. Ela recebeu imediatamente
uma injeção para acalmá-la, mas continuou a gritar, cuspir e vociferar durante quase
trinta minutos, até que a droga finalmente fez efeito.
"Eu não vi quando Larisa deixou a enfermaria. Ainda estava de pé perto da
parede, sentindo-me espantada. Finalmente compreendi de quem estava falando, e por
que usara o nome da filha em vez do da mãe. Foi só um truque para me confundir, para
me dar alguma coisa fora de mim em que pudesse me agarrar.
"Algo aconteceu no momento em que percebi isso. Senti-me como se alguém
houvesse literalmente agarrado meu cabelo e me puxado para fora da minha doença.
Fiquei tomada por pensamentos sobre meu marido e meus filhos, e como eles deviam
estar se sentindo sobre minha doença. Foi como se uma represa houvesse subitamente
arrebentado, e a grande energia que ela liberou entrou no meu corpo e o preencheu
novamente. Me senti totalmente curada em apenas alguns segundos, enquanto ficava
parada perto da parede.
"E eu sei que isso nunca teria acontecido sem você, doutora. É por isso que
agradeço."
Eu a escutei, perplexa. O meu erro ao me referir a "Larisa" Chernenko tinha sido
um ato falho totalmente inconsciente. A minha mente consciente nunca teria sido capaz
de bolar uma estratégia de cura tão estranha. Mas de algum modo isso tinha acontecido,
e deu certo. Luba era a prova. Ela estava sentada na minha frente, saudável e linda. O
meu próximo passo seria o agradabilíssimo esquecimento dos seus papéis de
incapacidade, e em vez disso, completar os procedimentos que lhe permitiriam ir para
casa.
Eu senti uma tamanha e incrível excitação, alívio e felicidade que mal consegui
deixar de chorar. O conselho de Umai realmente funcionara! O meu Curandeiro Interior
realmente saíra e ajudara essa mulher. Eu estava pronta a beijar Luba, a dançar com ela
e a correr pelo hospital contando a todo mundo o que tinha acontecido.
Ao mesmo tempo, a idéia de contar a verdadeira história para outros médicos me
deixou sóbria. Era impossível até mesmo imaginar partilhar o conceito místico do
Curandeiro Interno com meus colegas na comunidade psiquiátrica. Assim, em vez de
sair correndo excitadamente para espalhar as novidades, eu falei com Luba durante
algum tempo sobre ir para casa e sobre seu trabalho e futuro, e então a mandei preparar-
se para ir embora.
Peguei a ficha de Luba e fui para o escritório de George. Enquanto andava pelo
corredor, subitamente notei a porta branca da sala de emergência. Percebi que
finalmente, depois de todas as semanas após a morte da minha paciente ali e todos os
eventos misteriosos associados com ela, essa era a primeira vez que eu tinha a força de
olhar para ela sem um sentimento de medo ou culpa. Até então, eu a havia
simplesmente evitado, negando sua existência. Agora eu era capaz de olhar para ela
novamente, com uma sensação de vitória. Eu sabia que Luba e essa mulher tinham sido
invadidas pela mesma doença insaciável. Antes, ela tinha conseguido capturar e devorar
sua presa. Mas desta vez eu a tinha derrotado.
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George tinha acabado de voltar do almoço, e estava pendurando seu longo casaco
de lã quando cheguei.
- Ah, Olenika! - ele me saudou pelo meu apelido. - Estou muito feliz em vê-la.
Ouvi falar que você tem algumas notícias muito boas sobre Luba!
- Exatamente; ela vai para casa.
- Sim, sim. Eu a vi. É quase um milagre. Não, não é quase um milagre; é
realmente um milagre completo. Não consigo encontrar nenhuma explicação para sua
remissão. Não acho que estivesse errado no seu diagnóstico inicial. Tudo parecia
perfeitamente claro, e agora isso. Bem, a única coisa que posso dizer é que, às vezes,
mesmo para anciãos da psiquiatria como eu, não faz mal aprender mais um pouco sobre
nossa profissão.
Luba voltou para casa e para sua família. Ela teve que deixar seu emprego de
professora, porque o rótulo de ter estado na "casa dos loucos" não lhe deixava nenhuma
outra escolha. Apesar disso, ela encontrou um emprego como bibliotecária na biblioteca
local, e parecia estar razoavelmente contente com ele. Eu acompanhei o seu caso
durante outros três anos, e no final desse período ela ainda estava num estado de
remissão estável.
*****
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
estava cercado por milhares de estrelas brilhantes e remotas. Me senti viajando com o
ônibus através do espaço para algum universo estranho, distante e ilimitado.
Percebi que essa metáfora se encaixava perfeitamente na situação que estava
vivendo. Agora eu era a motorista encarregada de guiar na nova direção para minha
própria vida. Eu podia escolher para onde ir e em que direções explorar, agora que
Umai me libertara da pequena cela de realidade em que estivera trancada.
Subitamente, um leve som atrás de mim me deixou instantaneamente alerta. Então
a voz baixa de um homem me disse: "Boa-noite" O meu corpo ficou rígido de medo.
Alguém estava sentado na escuridão profunda da fila de trás. Eu estava totalmente
desprotegida, e éramos constantemente prevenidos sobre fugitivos da prisão local, que
era próxima ao hospital. Que melhor lugar para se esconder durante a noite do que o
bonde? Fiquei paralisada, com medo até de voltar a cabeça.
- Então, está dirigindo o bonde para longe de todas as nossas ilusões? - A pergunta
foi acompanhada de uma risada familiar.
- Anatoli? - gritei aliviada. - É você?
Virei para trás, e vi um pequeno ponto de luz de um cigarro. Ele brilhou
brevemente enquanto meu amigo inspirava, refletindo um par familiar de óculos escuros
e me dando um tênue vislumbre do rosto bem-vindo de Anatoli.
- Ele mesmo - Anatoli respondeu.
- O que está fazendo aqui? - Não pude conter a pergunta.
- Bem, acho que tenho mais direito do que você para fazer essa pergunta primeiro.
Estou de plantão esta noite, e escapei para cá durante alguns minutos para fumar um
cigarro. E agora, definitivamente é minha vez de perguntar, o que você está fazendo
aqui?
- Naturalmente, é você que está de plantão. Eu devia ter adivinhado que era sua
noite quando tentei várias vezes contatar o médico encarregado e me disseram que
ninguém sabia onde estava o médico de plantão. Você é famoso por cuidar bem dos
pacientes mas ser totalmente irresponsável na hora de seguir regras e regulamentos.
Quem mais seria tão impossível de encontrar durante o plantão?
Anatoli riu novamente. Parecia que tudo que o diferenciasse dos outros médicos o
deixava feliz.
- Eu vim aqui trocar a medicação de um dos meus pacientes, e agora vou para casa
- respondi.
- Bom para você. Estou preso aqui até de manhã. Se você está contando com esse
ferro-velho para levá-la em casa, acho que também vai ficar aqui até a manhã, se não
um pouco mais. Posso fazer outra pergunta, aliás, já que parecemos estar num local de
fazer e responder perguntas?
- Pode perguntar, mas não prometo responder - repliquei, deixando o assento do
motorista e caminhando pelo bonde até a parte de trás. Talvez devido à escuridão,
experimentei a ilusão de que o bonde realmente estava se movendo. Por um instante
cheguei a procurar o corrimão para me apoiar, como se esperasse que fosse cair numa
parada brusca.
- Bem, eu notei que há alguma coisa definitivamente diferente em você desde que
voltou da sua viagem ao Altai. Eu não sei exatamente o que é, mas está mudada de
alguma forma. É como se você possuísse algum tipo de segredo agora, algo muito
poderoso. Vi você escrevendo os seus diagnósticos, injetando alguns remédios
fatalmente exatos em algum sujeito maluco, ou até mesmo fazendo coisas simples como
apenas falar com seus pacientes e enfermeiras. E falando seriamente, parece que você
caminha dentro de algum poder que está dançando ao seu redor.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
"Todo mundo está comentando sobre seus sucessos miraculosos com alguns dos
nossos pacientes mais desesperados, às vezes com a ajuda de terapias incomuns que
você descreveu como novas técnicas experimentais, mas que eu pessoalmente suspeito
virem mais do mundo antigo do que do moderno.
"Você sabe como eu sou obsessivo em descobrir explicações para o
comportamento humano, mas isso é uma coisa que não consigo explicar. Acho que não
é da minha conta, mas a minha pergunta é esta: isso está conectado de alguma maneira
com Altai? Isso faria uma diferença pessoal para mim. Se você quiser, eu explico por
quê.
Com a ajuda do brilho do seu cigarro, meus olhos tinham finalmente se
acostumado com a escuridão. Eu podia vê-lo diante de mim.
- Sim, está conectado com o Altai - respondi. - Mas não acho que possa contar-lhe
o que aconteceu lá. Não porque eu não confie em você; você sabe que não é verdade. É
só porque eu ainda não me sinto pronta para essas explicações.
- Compreendo isso perfeitamente. Então, em vez de perguntar mais sobre suas
mudanças, vou contar um pouco sobre a minha própria experiência em Altai. Você tem
algum tempo?
- Sim. Preciso pegar o último ônibus para Novosibirsk, mas ainda há tempo.
Anatoli nunca mencionara Altai antes, e fiquei intrigada para saber o que ele ia
dizer.
- Bem, eu sou um caçador, como sabe. Bem, não quero dizer isso simbolicamente
apenas, como um caçador de significados, mas literalmente. De vez em quando eu vou
para a taiga caçar.
"A minha avó vive em Altai. Eu levo dois dias inteiros para dirigir até sua vila, de
modo que raramente tenho tempo para visitá-la. Mas há pouco mais de um ano, decidi
tirar férias curtas e caçar na floresta ao redor da vila da minha avó. Levei meu rifle
favorito e fui para lá com grandes expectativas.
"Alguns dias depois de ter chegado à vila, finalmente saí para caçar. O inverno
tinha terminado, e a maior parte da neve tinha derretido, deixando para trás um tapete
marrom-dourado da grama morta do ano que passou. Logo os novos brotos verdes da
primavera estariam abrindo caminho entre essa camada. A caminhada era fácil, e entrei
cada vez mais fundo na floresta.
"Sabe, é impressionante o que uma pequena mudança na percepção pode fazer às
nossas mentes. Enquanto eu caminhava pela floresta, percebi que estava deixando para
trás todos os barulhos da cidade grande e entrando num silêncio primordial que parecia
causar no meu estado de espírito uma alteração maior do que a dos meus pacientes nos
estágios mais profundos da hipnose. Eu caminhei num total silêncio, relaxado e
concentrado num tipo de meditação especial, mas ainda com os instintos mais agudos de
um caçador. Era exatamente o que eu antecipara ao ir para lá, e estava apreciando
muito.
"Então, um pequeno som à direita chamou minha atenção. Eu olhei, e lá estava
ela. Uma bela e jovem corça, ao lado das árvores. Ela me pareceu estranha de algum
modo, e eu soube instintivamente que precisaria de uma estratégia especial para caçá-la.
"Ela ficou olhando para mim num silêncio absoluto. Não fez nenhum movimento,
mas não estava imobilizada pelo choque ou pelo medo. Era como uma escultura. Sua
pose graciosa, sua bela forma, só podia ser comparada a uma obra de arte. Cada linha do
seu corpo tinha sido traçada com uma graça incrível.
"Anteriormente, o meu relacionamento com os animais que caçava tinha sido
sempre puramente utilitário. Eles eram simplesmente uma caça impessoal, e se eu
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
pudesse ser mais esperto do que eles e atirar direito, eles seriam comida na mesa. Eu
não sabia por que nunca tinha visto mais do que isso, mas até aquele momento nunca
imaginara que um animal poderia ser tão bonito.
"No momento seguinte, meus olhos encontraram os dela. Seu olhar era claro e
direto. Perdi toda a noção do tempo. Eu estava olhando nos suaves olhos negros da
própria natureza. Então alguma coisa aconteceu dentro de mim, e percebi que eram os
meus próprios olhos que me fitavam de volta. O limite entre mim como ser humano e a
corça como animal tinha se dissolvido completamente, e nos tornamos um só. Passei a
ser caçador e presa ao mesmo tempo. Era real, e não uma simples coisa imaginada. Era
cem vezes mais forte do que a minha imaginação. Eu estava conectado àquele animal
em todos os níveis do meu ser, da menor molécula até as profundezas da minha própria
alma. Naquele momento eu perdi a maldição da minha racionalidade, a minha
necessidade usual de explicar tudo racionalmente, de simbolizar tudo. Era um momento
de existência pura e concentrada.
"No momento seguinte, a minha mão se moveu sem pensar e puxei para trás a
trava do meu rifle. Tudo isso fazia parte do mesmo fluxo de energia que me conectava
com a corça. Era tudo natural e correto, porque eu sentia os dois lados do que estava
acontecendo. Era parte do mesmo contínuo, do mesmo equilíbrio.
"Eu fiz pontaria e puxei o gatilho num só movimento. De início não ouvi som
algum. Vi apenas aquele maravilhoso animal selvagem, a corça, balançar delicadamente
e então começar a cair. Cada pequena fração do seu movimento formava um padrão
intricadamente coreografado, realizado em si mesmo, como se um conjunto de lindas
fotografias estivesse se substituindo na minha mente. E ao mesmo tempo, me senti
como se estivesse caindo, caindo dessa vida. Então os olhos dela finalmente se
fecharam, e a conexão acabou.
"Foi só então que ouvi o som do tiro, um som primordial de vida e morte, um
trovão preenchendo todo o espaço ao meu redor. Levantei minha cabeça e olhei para o
topo dos velhos pinheiros nos cercando. E então olhei para o céu. Por incrível que
pareça, havia um brilhante arco-íris quase diretamente acima de mim. Fiquei sacudido.
Me sentei na grama morta e úmida e comecei a chorar.
"Eu sempre me considerara um homem forte, mas estava chorando como uma
criança. Havia uma mistura de dor e êxtase nas minhas lágrimas, e toda a minha mente e
corpo estavam em choque. Eu me sentia totalmente transformado. Esta foi
provavelmente a única experiência da minha vida consciente que eu nunca tentei
interpretar ou explicar.
"Voltei a Novosibirsk, mas era diferente. Aquele sentimento que veio até mim na
morte da corça, do meu coração sendo despedaçado pela dor incrivelmente bela da
minha conexão com o mundo ao meu redor, tornou-se uma parte da minha vida.
"Você me perguntou certa vez por que eu não tinha seguido adiante com minha
carreira. Eu não respondi então, mas acho que hoje lhe disse por quê. Quando voltei de
Altai, a idéia de uma carreira tinha perdido toda a importância para mim. Tudo que me
importava era ajudar as pessoas através do meu trabalho. Desde então, toda vez que vejo
um paciente, experimento novamente a sensação de ser tanto o caçador quanto a vítima.
Essa perspectiva cobre meus relacionamentos pessoais. Acho que me torna um pouco
diferente enquanto psiquiatra; espero que me faça um médico melhor."
Como colegas profissionais, Anatoli e eu não estávamos acostumados a mostrar
nossos sentimentos um para o outro de maneira tão aberta. Fiquei feliz por ele não poder
ver meu rosto com clareza no escuro. A sua história tivera um impacto emocional
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
profundo sobre mim, de tal modo que eu não tinha nem mesmo palavras para responder-
lhe.
- Obrigada por me contar sua história, Anatoli - foi tudo que consegui dizer. Então
fiquei em silêncio durante algum tempo.
- Obrigado por me escutar - ele respondeu depois de uma pausa. - Eu contei isso
só porque senti que Altai teve algum impacto importante em você, também.
- Tem razão. E, igual a você, ele ainda continua para mim.
O som da sua voz tinha mudado depois de ter terminado sua história. Eu sabia que
ele estava de volta à sua personalidade normal quando continuou a falar.
- Sabe, eu li vários livros sobre aquele lugar posteriormente. Descobri alguns
antigos livros numa livraria, livros muito antigos. Altai é uma das regiões mais
misteriosas e incomuns do mundo na sua geografia, geologia, história, e
multiculturalismo. Muitas tradições e culturas diferentes parecem ter nascido ali, e então
se espalhado por toda a Ásia através de migrações. Lingüistas chegaram a conectar a
linguagem altaica a muitas regiões distantes. Está relacionada com o mongólico, que é
falado da Mongólia à China do Norte, Afeganistão, e Sibéria oriental, e à linguagem
tungus falada em outras partes da Sibéria. As antigas línguas turcas que varreram numa
longa faixa por todo o continente da Ásia, começando no oeste da Turquia, e então
passando pela Ásia Central e oeste da China, e chegando ao nordeste da Sibéria,
também pertencem à mesma família lingüística altaica.
"Você pode imaginar o incessante movimento para frente e para trás, as migrações
sem fim, as inumeráveis ascensões e quedas de civilizações desconhecidas durante
milênios incontáveis, que devem ter sido necessários para deixar esta vasta difusão
lingüística como resíduo? Acredito que eventualmente descobriremos que há algo muito
especial em Altai, e que o seu significado cultural para a história da humanidade ainda
não foi compreendido totalmente.
"Fico muito zangado quando vejo quanta destruição foi feita nesse lugar. Muitos
dos nativos são alcoólatras. As lojas não têm comida, de modo que além do seu trabalho
regular, as pessoas precisam plantar e produzir suas próprias provisões. A poluição está
piorando o tempo todo, e ouvi dizer que estão planejando construir uma nova usina
nuclear no rio Katun. Não ficaria surpreso em ver o monstro sem cabeça da nossa
sociedade destruir totalmente o tesouro que é Altai em mais algumas décadas, se não
mais cedo.
Ele suspirou profundamente e então consultou de algum modo o seu relógio no
escuro.
- Bem, nós poderíamos falar mais sobre isso, mas então infelizmente você teria
que passar a noite aqui. O último ônibus sai em cinco minutos.
- Obrigada, Anatoli. Eu gostaria de ficar, mas a minha noite de plantão está
marcada para amanhã. Não estou a fim de passar duas noites seguidas aqui, portanto
vou me despedir. E obrigada novamente pela sua história.
Fui embora e caminhei até a estação de ônibus. Voltando-me uma vez para olhar
para trás, vi o pequeno brilho do cigarro de Anatoli dentro da carcaça escura do bonde.
De algum modo, essa pequena luz fazia com que tudo ao redor dela parecesse vivo e
cheio de significado.
Ela me lembrou que as barracas identicamente escuras das enfermarias cercando e
quase que abrigando o bonde estavam cheias de vidas. Centenas de pacientes estavam
dormindo pacificamente sob essa mesma lua, e eu nunca duvidaria novamente que as
suas vidas eram tão cheias de significado quanto a de qualquer outra pessoa. Estávamos
119
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
todos conectados, mesmo que essa verdade importante estivesse oculta para muitas das
pessoas consideradas sãs.
Então escutei o som de um veículo se aproximando, e corri rapidamente para o
ponto de ônibus. Eu sabia que o motorista não estava esperando nenhum passageiro a
essa hora, portanto fui para o meio da estrada para garantir que ele não passaria direto.
O ônibus estava completamente vazio, e fui para casa num silêncio bem-vindo,
pensando sobre o milagre inesperado que aquela noite acabara se revelando.
*****
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
independente por arqueólogos. Eu sabia que essa conexão estava viva dentro de mim, e
que era importante.
Crescia dentro de mim a necessidade de dar outro passo no caminho da minha
busca de conhecimento sobre Belovodia. Voltar tão cedo a Altai estava fora de questão
devido ao meu horário de trabalho de modo que a minha mente voltava a Dmitriev. Eu
não o tinha visto desde minha experiência com os espelhos, muito embora houvéssemos
falado pelo telefone algumas vezes. Em cada ocasião nossa conversa tinha sido polida,
mas eu sentia uma troca de energia desajeitada entre nós. Ela era como uma corrente
sob a nossa conversa, como se num nível semiconsciente nós ainda estivéssemos
procurando a forma e equilíbrio do nosso relacionamento recém-formado.
Nossos papéis eram complicados pelo fato de Dmitriev estar acostumado a ser um
cientista importante, uma autoridade nacional no seu campo. No entanto, na época do
nosso primeiro encontro, eu tinha sido a figura de autoridade, uma médica, e ele tinha
sido um paciente num hospital psiquiátrico. Embora Dmitriev definitivamente possuísse
limites mais amplos para expressar sua persona do que a maioria das pessoas, pude ver
que ainda era importante para ele ser definido dentro da moldura da sua pesquisa e da
sua posição acadêmica. Por causa disso, havia a necessidade de manter um certo
respeito e distanciamento profissionais, apesar da nossa crescente amizade e da minha
sensação de que estávamos nos movendo rumo a um tipo de parceria nas nossas
explorações mútuas das realidades alternativas.
Dmitriev tinha sido cuidadoso nas nossas conversas para não me obrigar a
nenhum envolvimento posterior com seu laboratório, mas ele sempre me dava a
impressão de que eu seria bem-vinda se resolvesse voltar. Certo dia, simplesmente
liguei para seu telefone de trabalho e disse que gostaria de repetir o meu trabalho com
os espelhos, caso ele estivesse disposto. Ele concordou imediatamente, e decidimos nos
encontrar no instituto no dia seguinte.
A primavera já estava quase no fim. As árvores mais uma vez estavam cobertas
com folhas verdes, quiosques recém-surgidos estavam oferecendo casquinhas de sorvete
para os passantes, e o ar estava mostrando os sinais do quente e pesado verão siberiano
que estava por vir. Os sons da cidade pareciam mais altos do que no inverno sonolento,
e as pessoas pareciam se mover com mais rapidez e energia.
Quando cheguei ao instituto, fiquei surpresa ao encontrar Dmitriev usando uma
barba curta que o fazia parecer mais um poeta iniciante do que um eminente cientista.
O seu laboratório estava cheio da clara luz do sol vinda das janelas, e parecia um
pouco menor dessa vez. Só um dos seus assistentes estava no laboratório, um homem
que não tinha visto antes, que se sentara a sua mesa trabalhando. Descobri que me sentia
mais confortável com menos pessoas presentes.
Enquanto ele caminhava comigo para a sala com os espelhos, Dmitriev parecia
muito sério, quase tenso.
- Eu vou ser o único aqui com você hoje - disse ele. Então fez uma pausa por um
segundo. - Antes de começarmos, posso mostrar um material para você?
Concordei com a cabeça.
- Olga, os resultados do seu experimento aqui me impressionaram e intrigaram.
Pensei na sua experiência várias vezes depois que você foi embora. Havia muito nas
suas notas que se relacionava com o trabalho que estive fazendo de acordo com meu
próprio sistema de pesquisa científica racional, usando métodos convencionais e
técnicas experimentais. Esse sistema nos ofereceu algumas compreensões muito
interessantes sobre a natureza subjetiva do tempo e da realidade, mas a sua abordagem
puramente intuitiva a levou imediatamente a um nível que nunca tínhamos penetrado
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
acima da minha cabeça, olhando para o lado oposto. Os topos das nossas cabeças
se tocam ligeiramente. Distribuo minha atenção igualmente entre as duas figuras,
preenchendo o duplo com a mesma energia e consciência da minha personalidade
usual. Logo as figuras unidas começam a girar ao redor do ponto de conexão entre
nossas cabeças. Da posição da minha imagem comum, estamos girando na direção
horária. Vistas de lado, nossas formas unidas parecem uma suástica giratória. Giro
cada vez mais rápido.
O pedaço do tempo que ocupo está mudando, voltando para trás. Minha
tarefa não é seguir Olga exatamente, mas só descobrir o mesmo nível de vibração
que ela, e ver onde ele me leva. Meu relógio interno sabe intuitivamente onde
parar para fazer isso, e confio nele para fazer seu trabalho. Concentro toda minha
atenção em facilitar a totalidade da minha imagem em movimento.
Em algum ponto eu a sinto parar. Uma série de ondas de energia viaja
através de diferentes partes do meu corpo até que uma delas passa diretamente
através do meu coração. Sinto um choque, como se tivesse sido atingido por
alguma coisa. Lembro-me da frase de um antigo evangelho copta: "Você precisa
prestar atenção em mim para me ver", e sei que agora devo dirigir toda minha
atenção para esse portal vibratório específico. Eu preciso me segurar a ele sem um
único momento de distração.
Experimento a mesma sensação familiar de uma nova realidade emergindo
na minha percepção. Da mesma maneira que uma fotografia gradualmente se
transforma em formas visíveis quando é revelada, formas e imagens estão
começando a se revelar na minha visão. De início, vejo apenas as formas de
árvores, as suas folhas se movendo levemente no vento. Então um grande pátio se
abre para mim, cercado por todos os quatro lados por edifícios baixos feitos de
pedras marrom-avermelhadas. Estou de pé no meio do terreno, perto de um
grande jardim em forma de estrela cheio de flores brancas e vermelhas.
De início, parece não haver mais ninguém no terreno. Sinto que as
construções estão cheias de pessoas, e que elas estão trabalhando duro para criar
algo muito significativo. Então, à minha direita, noto um homem sentado num
banco. Ele está desenhando alguma coisa no chão, usando um longo bastão como
ferramenta.
O homem parece bastante contemporâneo. O seu rosto me é familiar, mas
não me lembro onde o vi antes. Eu sei, por experiência passada, que não devo me
distrair com detalhes como tentar me lembrar de rostos. Preciso me concentrar
apenas na experiência do momento.
Eu me aproximo do homem. Levantando sua mão, ele me saúda com um
sorriso. Ele age como se soubesse quem eu sou, e gesticula para eu sentar ao seu
lado no banco. Eu sei que preciso ser muito econômico com minha energia para
me manter nesse lugar, de modo que evito falar, e em vez disso transfiro meus
pensamentos para ele simplesmente olhando direto para o seu rosto.
Meu pensamento para ele é uma pergunta, e ele balança a cabeça
afirmativamente. Então ele começa a falar. Escuto a sua linguagem como russo
fluente. "Você quer ouvir a história de uma lenda", diz ele.
Confirmo isso mentalmente para ele.
"Bem, primeiro você deve considerar todo o conceito de lenda e tentar
responder à pergunta do que separa a lenda da realidade. Existe uma diferença
entre elas? Naturalmente, eu sei que no nível pessoal de considerar uma questão
como essa você ganhou um bocado de liberdade da sua antiga maneira de ver as
123
Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
coisas, mas ainda é rígido demais para aceitar que a sua própria pesquisa cientifica
seja um tipo de lenda sendo contada por outros."
Discordo intensamente disso, porque sinto-me livre de qualquer apego à
minha posição de pesquisador. Ele não presta atenção no meu pensamento e
continua.
"Agora vou lhe contar a lenda de Belovodia, só que vou contá-la não como
uma fantasia arquetípica, mas como uma história real. Você pode decidir por
conta própria como vai aceitá-la. Mas o que vou lhe contar é a verdade real."
Enquanto fala, o homem se curva e acrescenta um ou dois pequenos
símbolos ao desenho que fez no chão.
"Há muito tempo, tanto tempo que não faria sentido algum especificar
quando, uma grande catástrofe sacudiu o continente agora conhecido como
Eurásia. Esta catástrofe tinha sido prevista como uma possibilidade pelo círculo
interno da elite de uma civilização sofisticada que existia no norte da Sibéria. O
clima nessa época era muito benigno, ao contrário de como é hoje em dia nessa
região. A civilização que evoluíra ali era altamente desenvolvida. Alguns dos seus
avanços foram depois duplicados pela sua própria cultura, mas em geral eles eram
mais diferentes nas suas capacidades e realizações do que vocês poderiam
imaginar.
"Uma das conseqüências imediatas da catástrofe foi uma tremenda alteração
no clima. O seu clima quente e favorável foi instantaneamente substituído pela
neve. Logo toda a terra estava coberta de gelo, e tornou-se impossível que sua
civilização sobrevivesse. Mas mesmo depois do seu colapso, a elite dos líderes fez
todos os esforços possíveis para preservar seu conhecimento.
"A cultura deles não era tecnológica, como a de vocês. As suas principais
conquistas tinham sido no desenvolvimento das dimensões internas da mente.
Antes da catástrofe, toda a sua sociedade possuía uma bela intensidade espiritual
que na sua cultura materialista só fora experimentada por muito poucos. Eles
possuíam uma incrível sabedoria psicológica. Eram capazes de controlar a sua
própria experiência pessoal do tempo, e tinham aprendido a se comunicar
telepaticamente através de grandes distâncias. Eles tinham grandes técnicas para
se projetar no futuro, e a sua estrutura social foi a mais eficiente que já existiu.
"Depois da catástrofe, aqueles que eram fisicamente capazes foram
organizados para uma migração para o extremo sul. A elite espiritual escolheu
ficar para trás, e esses homens e mulheres experimentaram uma série de
transformações intensivas. Do seu ponto de vista eles encontraram a morte. Mas
ainda formavam um núcleo coletivo conectado com os remanescentes da sua
gente que migrara para o sul.
"Aqueles que tinham se afastado não compreendiam isso totalmente, mas
sabiam que seus anciãos e mestres continuavam a viver em algum lugar do norte,
e que governavam suas vidas através de conexões com seus sacerdotes e rituais.
"Com o passar dos anos, as novas vidas dos migrantes foram consumidas
pelas exigências puras da sobrevivência. Suas lembranças do passado
gradualmente se apagaram. Com sua atenção coletiva voltada para as necessidades
prementes da existência material, a direção da sua cultura eventualmente acabou
totalmente alterada. Mas a linha que os conectava com o conhecimento e poder da
sua elite espiritual nunca foi interrompida.
"Esse elo continua vivo, ainda hoje. Mas gradualmente, com a passagem de
tantos milhares de anos, ele se tornou cada vez mais oculto. Mesmo para a maioria
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
muito em breve. Você pode responder a ela da maneira que preferir. Você pode
escolher lutar contra ela, ou pode em vez disso escolher dar boas-vindas à sua
essência divina e beleza viva."
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
que algumas expedições estavam sendo organizadas para explorar o território ao redor
de Altai, para testar a idéia de que a origem da sua nação poderia ser traçada até lá.
"Foi particularmente fascinante traçar a conexão entre o nome da principal deusa
da região de Altai, Umai, e outras divindades, como a Kali indiana e a Tara budista.
Cheguei à conclusão de que eram todas a mesma. Umai foi incorporada em Uma, o
antigo espírito feminino indiano, que como uma Shakti, encarnação feminina do poder
do deus Shiva, é o poder da luz que torna a percepção possível. Uma se manifesta como
Kali no sistema Kalavada e no Tantra Kalachacra.
"Os dois sistemas estavam conectados com uma crença numa roda do tempo. A
maioria dos aspectos sagrados dos seus rituais eram as portas cerimoniais abrindo nas
raízes do tempo, através dos quais os iniciados eram capazes de alcançar Shambhala, ou
Belovodia, e de tocar o mistério da imortalidade. Existem também impressionantes
similaridades com a tradição Zervanit da antiga Pérsia, onde a habilidade de
compreender e manipular o tempo era a essência da sua prática espiritual.
"Também existem os mesmos paralelos fascinantes no sufismo. Durante muitos
anos o meu bom amigo, o sr. Vasiliev, lidera um grupo de estudiosos pesquisando a
obra de Gurdjieff e seus predecessores. Ele me contou há pouco tempo que na parte da
obra de Gurdjieff mais essencialmente ligada aos mestres sufis, ele descobriu a mesma
idéia de uma roda do tempo que poderia ser adentrada e usada como uma passagem para
o portal místico guardando a terra sagrada de Hurqalya. O nome Hurqalya pode ser
considerado o equivalente sufi de Belovodia.
"Vasiliev aprendeu que Gurdjieff também encontrou entre os mestres sufis o
conhecimento de que a roda do tempo representava uma lei primordial estável, que
podia ser captada e compreendida através de muitas modalidades diferentes de
percepção. Por exemplo, o praticante que toca essa lei através da meditação sobre
mandalas abre os olhos do coração com o auxílio do sentido da visão. Aqueles que
escutam a música de círculos, especialmente no modo como Gurdjieff ensinou,
alcançam a mesma experiência mística ajudados pelos sentidos auditivos. O mesmo
estado também pode ser alcançado pela dança, em que todo o corpo se torna o
instrumento que leva aos portais sagrados.
"O grupo de estudantes de Gurdjieff que continuou na Rússia levou esse conceito
mais longe. Eles confirmaram que qualquer que fosse o mecanismo utilizado, caso fosse
usado corretamente, a roda do tempo começaria a girar. E inevitavelmente nos levaria
ao ponto final do nosso destino, o país místico de Belovodia. Tudo isso é bastante
interessante, não é?
"No entanto, se realmente houve urna antiga e avançada civilização em alguma
parte do norte da Sibéria, por que nós ainda não descobrimos seus restos físicos? Não
importa há quanto tempo ela possa ter existido, por que ainda está tão misteriosamente
fora da nossa visão? Bem, talvez a resposta possa ser encontrada nas teorias do
eminente historiador e etnólogo russo Lev Gumilev, cuja mãe, Anna Akhmatova,
considero a maior poetisa que a Rússia já produziu.
"Enquanto era um prisioneiro político no Gulag, Gumilev estudou o efeito das leis
cósmicas da transformação da energia na evolução das culturas. Um dos muitos
conceitos que ele introduziu foi que toda civilização é caracterizada pelos diferentes
materiais que ela usa como fundamento da sua existência - madeira, couro, tecidos,
metal, osso, pedra, e assim por diante. Devido às grandes variações de materiais que
utilizaram, assim como dos climas que habitaram, ele percebeu que diferentes
civilizações produziriam restos que obviamente seriam preservados de maneiras muito
desiguais.
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
ascendente. Assim que completamos cada volta, ela se torna mais completa dentro de
nós, formando uma parte integral da nossa experiência, e somos imediatamente
expostos à fronteira externa do próximo círculo. Então estamos prontos para seguir o
caminho em espiral até o próximo nível.
Sem saber disso ainda, eu estava totalmente despreparada quando o telefone tocou
e meus pensamentos foram interrompidos por uma profunda e rouca voz masculina
dizendo num tom ríspido:
- Quero falar com Olga. É você?
- Sim - respondi. - Quem é? - Tentava reconhecer a voz ríspida telefonando numa
hora tão adiantada, mas ela era definitivamente desconhecida.
Ele continuou no mesmo tom rude e condescendente, como se nem houvesse me
escutado.
- Me disseram que você é uma garota bastante interessante, fazendo coisas muito
interessantes. É mesmo?
Então ele me disse seu nome, Mikhail Smirnov, de tal maneira que sugeria que eu
deveria instantaneamente saber quem era ele. O nome não significava absolutamente
nada para mim, mas em pouco tempo eu ficaria sabendo que ele era um homem muito
culto e controvertido que passara algum tempo na prisão como dissidente, e que agora
era considerado o padrinho de todas as atividades esotéricas e espirituais subterrâneas
que aconteciam em Novosibirsk. Ele até mesmo criara uma rede internacional de
correspondentes que enviavam para ele as últimas pesquisas sobre a consciência
humana de todos os cantos do mundo.
O seu chamado provou ser o início do meu próximo círculo. Ele me levaria de
volta a Altai, e então para o Usbequistão e o Casaquistão, formando uma longa curva na
espiral que me traria muitos novos testes, tentações e dons. Ela privaria certas pessoas
da sua sanidade, e até mesmo custaria a vida de algumas delas. Mas também traria
grande amor e paz para outras. Para mim, iluminaria mais os fascinantes mistérios das
espirais do tempo e das trilhas evolutivas da humanidade, o significado das antigas
tumbas com seus "habitantes aparente-mente mortos com intenções vivas", e a posição
central de Altai na antiga teia que criara tantas das religiões do mundo. Tudo isso seria
conhecimento que completaria outro círculo na minha busca de Belovodia.
Epílogo
O céu noturno tinha voltado ao normal, mas o vento e o ar úmido ainda eram tão
refrescantes que continuei na minha sacada durante muito tempo, relembrando o círculo
de dançarinos e os olhos de Umai no final da visão, olhando para as estrelas e refletindo
sobre os eventos em Altai que tinham mudado minha vida de tantas maneiras.
Mais de um ano tinha se passado desde que eu encontrara pela primeira vez Umai
na vila de Kubia, e passara muito do meu tempo viajando pela Ásia Central em busca de
conhecimento, encontrando novos mestres no processo. Apesar disso, minhas memórias
de Umai ainda estavam vivas, e sempre me traziam alegria e excitação. Talvez isso
acontecesse porque elas eram mais do que simplesmente os retratos mentais indistintos
e distantes que geralmente carregamos pela vida como registro de nossas experiências.
Essas memórias tinham formado o fundamento da transformação que ocorrera dentro de
mim.
Embora eu ainda estivesse absorvendo e integrando na minha vida tudo que
acontecera em Altai e nas minhas experiências subseqüentes no laboratório de Dmitriev;
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Círculo de Xamãs Olga Kharitidi
Esta viagem é curta, começando com sua voz profunda e hipnótica dizendo:
"Vou lhe ensinar uma coisa importante sobre seu livro."
Imediatamente senti que ele tinha colocado um objeto desagradavelmente
frio, liso e fino se contorcendo na minha mão direita. Começo a abrir minha mão
para atirá-lo longe, mas ele me impede.
"Segure-a!", diz ele. "Não abra os seus olhos! É uma serpente que está
segurando na sua mão."
Seja lá o que for que está em minha mão, está se contorcendo furiosamente.
Estou quase paralisada de medo e mal consigo me impedir de gritar. Ainda quero
soltá-la, mas tenho medo que seja venenosa e que me morda se o fizer.
"Sinta a serpente na sua mão", diz ele. "Ela é um poder. Sinta-a e lembre-se
da sensação de segurá-la. Você precisa encontrar o equilíbrio entre você e o
poder que segura. Se apertar demais, você vai ferir a cobra e ela pode mordê-la.
Se você não segurá-la apertado o bastante, ela vai escapar e você vai perdê-la.
Você precisa encontrar o equilíbrio correto e mantê-lo."
Tentei me lembrar dessa lição e usá-la ao escrever este livro. Muitas pessoas estão
procurando poder, buscando novas qualidades para desenvolver em si mesmas,
procurando se abrir para sua mágica interior. Algumas vão aprender a contatar esse
poder interior, às vezes de maneira muito bem-sucedida. Mas, sem o fundamento para
administrá-lo e controlá-lo, elas segurarão com força demais e ele as morderá. A sua
força vai vencê-las, e em vez de usá-lo elas se tornarão seus servos.
As pessoas que estão desequilibradas da maneira oposta podem ser capazes de
usar seu poder durante algum tempo, mas não serão capazes de controlá-lo e ele irá
embora. Se eu for capaz de transferir uma compreensão do entendimento apropriado
para aqueles que lerem este livro, então uma das minhas tarefas terá sido cumprida.
Em breve, irei embarcar na minha nova jornada. Ela irá de Altai até a Ásia
Central, e então para a América do Norte. Ela irá pelo mesmo caminho que foi trilhado
por seres humanos que levaram o fogo da verdade e da luz para onde quer que tenham
ido. É a mesma verdade e luz que está voltando agora às mentes e memórias das pessoas
do nosso tempo.
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Orelha do livro:
FIM
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