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VANDERCI DE ANDRADE AGUILERA


Universidade Estadual de Londrina

OS ATLAS LINGÜÍSTICOS
NO PARANÁ: PERCURSOS
E ESTÁGIO ATUAL

Introdução cional, diastrática e diassexual, pesquisando as vari-


antes lingüísticas do espanhol dentro e fora das fron-
A geografia lingüística, desde a sua origem, dis- teiras uruguaias. Incluem também uma investigação
tinguiu-se por estudos diatópicos que abrangiam o do português na fronteira dos territórios brasileiro e
país como um todo, muitos deles extrapolando até uruguaio, num raio de 150 km a partir dos limites entre
mesmo as fronteiras geopolíticas, na delimitação das os dois países.
isoglossas. O atlas de George Wenker, por exemplo, No Brasil, a idéia de um atlas lingüístico nacio-
embora publicado apenas um fascículo em 1881, tinha nal materializou-se no Decreto 30. 463, de 20 de março
como propósito demonstrar as fronteiras dialetais da de 1952 (CARDOSO: 1998, p. 165) e, por mais de 10
Alemanha, trabalhando apenas com dados fonéticos anos, contou com o empenho de Serafim da Silva
da língua. Neto, Celso Cunha e Antenor Nascentes. Silva Neto,
Na França1 , o Atlas Linguistique de la France em 1954, ao relacionar as tarefas mais urgentes no
envolveu 639 localidades não só do território francês, campo da Dialetologia, coloca em último lugar a elabo-
mas também da Bélgica e da Suíça, onde são falados ração do Atlas Nacional, por crer que as sondagens
dialetos franceses, provençais e franco-provençais. preliminares, a recolha de vocabulários, as monografias
Outros atlas como o da Suíça, da Itália, da Catalunha e etnográfico-lingüísticas sobre falares e os atlas re-
dos Estados Unidos da América e Canadá, também gionais são atividades insubstituíveis para a conse-
não se restringiram às fronteiras políticas. cução de alcance nacional (SILVA NETO: 1957, p. 11).
Normalmente a publicação de atlas nacionais Dessa forma, começam a ser elaborados os pri-
suscita estudos mais detalhados em espaços geográfi- meiros atlas estaduais iniciando-se pela Bahia, com o
cos de menor extensão. Com o estreitamento da rede de Atlas prévio dos falares baianos, de Nélson Rossi,
pontos, e conseqüente ampliação do universo de in- em 1963, seguido pelo Esboço de um Atlas Lingüís-
formantes, busca-se ora confirmar os dados registra- tico de Minas Gerais (1977), de José Ribeiro e cole-
dos no atlas nacional, ora detectar possíveis “ilhas” gas, do Atlas Lingüístico da Paraíba (1984), de Cleuza
lingüísticas que possam se opor às zonas de isoglos- Menezes e Maria do Socorro Aragão, do Atlas Lingüís-
sas, ora levantar arcaísmos lingüísticos. tico de Sergipe (1987), de Carlota Ferreira e colegas, e
Um movimento inverso observa-se hoje, na Eu- o Atlas Lingüístico do Paraná (1994), de Aguilera.
ropa, quando os esforços estão concentrados na ela- Além desses que já estão publicados, outros estão
boração do Atlas Linguarum Europae, registrando em andamento como o Atlas Lingüístico do Ceará e o
tanto dados de trabalhos mais antigos como de ou- Atlas Lingüístico e Etnográfico da Região Sul. Os
tros mais modernos. São métodos geolingüísticos que métodos, os dados e a experiência desses autores e a
se alternam ou se complementam com enfoques dife- iniciativa de Suzana Alice Cardoso e Jacyra Mota, da
rentes seja na análise ou na síntese. UFBA, com a realização do Seminário Caminhos e
Na América do Sul, o Atlas Lingüístico e Etno- perspectivas da Geolingüística no Brasil, em novem-
gráfico da Colômbia é mais uma prova da tendência bro de 1996, dão impulso ao Projeto do Atlas Lingüís-
do método geolingüístico em privilegiar atlas de gran- tico do Brasil que, em sua base, propõe, entre outros
de extensão. No Chile, depois de frustradas tentativas de objetivos, “descrever a realidade lingüística do Bra-
atlas regionais, sob a direção de Guillermo Araya, pu- sil, no que tange à língua portuguesa, com enfoque
blica-se o primeiro volume do Atlas lingüístico-etno- prioritário na identificação das diferenças diató-
gráfico del sur de Chile (ALESUCH). Para o Uruguai, picas (fônicas, morfossintáticas, léxico-semânticas
Harald Thun e Adolfo Elizáicin elaboram o Atlas e prosódicas) consideradas nas perspectivas da Revista
Diatópico e Diastrático – ADDU – com base numa Geolingüística”. Chega-se, então, no fechar do milê- do GELNE
investigação lingüística pluridimensional: diagera- nio com um projeto nacional e interinstitucional. Ano 1
No. 2
1999

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Excetua-se o primeiro atlas de Gilliéron, O Petit Atlas Phonétique du Volais Roman (1881), da região do Sul do Rhône.
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1 Primeiras informações sobre e expressões do século passado vigentes em regiões
os falares paranaenses agrestes, ainda imersas nas florestas, com as existen-
tes na fala rural e mesmo urbana em todo o Estado.
As primeiras observações das diferenças lin-
güísticas paranaenses datam do início do século XIX, 2 Dos estudos dialetológicos
quando, viajando por várias províncias brasileiras, o sistematizados aos atlas lingüísticos
cientista francês Auguste de Saint-Hilaire registra o
mais antigo testemunho, de que se tem notícia, sobre Os primeiros estudos acadêmicos, portanto sis-
o português falado pelos habitantes dos Campos Ge- temáticos, dos falares paranaenses são impulsiona-
rais do Paraná: dos principalmente pela Universidade Federal do
Paraná e elegem como objeto de estudo a linguagem
Não é, pois, de se admirar que os habitan- do sul e litoral paranaenses, em particular da baía de
tes dos Campos Gerais, apesar de sua profun- Guaraqueçaba, primeiro ponto explorado pelos por-
da ignorância, falem um português muito mais tugueses e paulistas no século XVII. Sobre o falar
correto do que os que habitam os arredores guaraqueçabano, dedicaram-se AMARAL (1952),
da cidade de São Paulo; eles não pronunciam,
ALVAR e ALVAR (1979) e MERCER (1979).
por exemplo, o ch como se fosse ts, nem o g
A primeira, Serafina Taub do AMARAL, no ca-
como dz (...). (apud Mercer, 1992: 26).
pítulo referente ao léxico, expõe algumas especifici-
Segundo Mercer (1992: 28), outras informações dades dialetais registradas no litoral paranaense a
sobre a linguagem do Paraná do início do século XIX partir de sua Contribuição para um inquérito lin-
foram dadas pelo escritor paranaense Salvador José güístico no litoral do Paraná. Faz algumas observa-
Correia Coelho num livro sobre as recordações de via- ções de ordem fonética, como a ausência do fonema
gem que fez ao interior do Estado em 1844. Em duas constritivo palatal, como em Iórie (por Jorge), ingreia
passagens, salienta a influência castelhana sobre o modo (por igreja), a desnasalização (fándángo, bánána) e a
de falar paranaense, ressaltando a presença constan- articulação do fonema lateral alveolar em trava silábi-
te de interjeições, hipérboles e bravatas espanholas. ca ora como vibrante retroflexa, ora como semivogal
Os comentários desses dois observadores so- (arquere, eis, caine) (por alqueire, eles, carne). Dedica
bre a realidade lingüística paranaense são exíguos e também uma seção ao vocabulário referente aos cam-
superficiais. Assim, o primeiro registro sistemático dos pos semânticos da natureza, fenômenos atmosféri-
falares paranaenses pode ser considerado o trabalho cos, astros, tempo, plantas e animais.
do General José Cândido da Silva Muricy, sintetizado Manuel e Janine ALVAR iniciam uma pesquisa
e apresentado por Andrade MURICY durante o Pri- etnográfica na mesma região litorânea de Guaraque-
meiro Congresso da Língua Nacional Cantada, no Rio çaba, no ano de 1973. Publicada em dois volumes,
de Janeiro, em 1938, sob o título Algumas vozes regio- registra no primeiro um Glossário com mais de 2.000
nais do Paraná do Extremo Oeste. Trata-se de uma vocábulos. O segundo, de caráter etnográfico, traz
compilação, sob a forma de vocabulário, do vasto gravuras e nomes dos instrumentos de trabalho e dos
material coletado sobre as vozes mais características objetos da cultura dos caiçaras, além de elementos da
do dialeto falado no Extremo Oeste paranaense, mais flora e da fauna locais. É o primeiro trabalho etnolin-
precisamente na antiga e extinta República Teocrática güístico a registrar esses elementos através do dese-
do Guaíra, a famosa Vila-Rica dos Jesuítas. nho. Nesta obra lançam a proposta da elaboração de
Segundo Andrade Muricy, o General parana- um atlas lingüístico do Paraná.
ense, em “sucessivas excursões ao sertão bruto do MERCER (1979), com a tese de doutorado Le
Paraná” captou naquele grande mundo virgem lexique technique des pêcheurs de Guaraqueçaba
“abundante e vivo manancial do linguajar local, sem (Brésil), em três volumes, apresenta, além de um exten-
nenhum eruditismo intencional, através de anedo- so glossário da pesca, um estudo das origens históri-
tas, de cenas, de narrativas, de solilóquios de toda cas da localidade e dos principais traços fonológicos,
natureza em que só o que é autêntico aparece, na prosódicos, fonéticos e morfossintáticos da fala
sua pureza intacta” (1938: 576). guaraqueçabana.
Embora o autor tivesse pretendido selecionar Dois outros estudos da linguagem paranaense
os vocábulos que indicavam um autêntico falar para- merecem destaque: de FILIPAK (1976) e de TONIOLO
naense, na maioria das vezes o que temos são varian- (1981). O primeiro, no Glossário do Vale do Iguaçu,
tes lexicais do falar caipira brasileiro muitos dos quais registra mais de quatrocentos vocábulos coletados
constituem verdadeiros arcaísmos, ou variantes fô- em localidades do sul paranaense, mais especifica-
nicas da fala padrão, ou mesmo da fala rural brasileira, mente no Vale do rio Iguaçu, região colonizada no
como se pode observar em alguns exemplos: adonde final do século passado e início do atual por contínuas
Revista (aonde), amó que, amode que (a modos que, parece levas de imigrantes e reimigrantes poloneses, alemães,
do GELNE que), antão (então), aquentar o sol (aquecer-se ao russos, italianos e ucranianos. Trata-se de um elenco de
Ano 1 sol), arreganhado (cavalo cansado), aspa (chifre do 460 verbetes, muitos dos quais, embora não dicionari-
No. 2 animal), banda (lado), campear (procurar). zados ou dicionarizados com significados diferentes,
1999 O trabalho, no entanto, reveste-se de valor in- pertencem não só à linguagem rural paranaense, mas

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contestável uma vez que permite comparar vocábulos à linguagem padrão comum a outras regiões brasileiras,
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como: aceiro (faixa de terreno capinado ou arado O segundo atlas municipal estuda a distribui-
para impedir o avanço do fogo nas queimadas das ção diatópica lexical e fonética em Ortigueira, mu-
roças; araticum (fruto da família das anonáceas); bor- nicípio localizado ao sul de Londrina, distante cerca
nal (saco de pano ou taquara); coivara (galhos, ra- de 150 km e cortado pela serra do Cadeado, portan-
magens, troncos de árvores que não foram queimados to solo bastante acidentado que dificulta o acesso a
totalmente nas roças), destripar o mico (vomitar). muitos bairros rurais. Essa topografia irregular moti-
Toniolo (1981), por sua vez, a partir de alentada vou um estudo geolingüístico levado a efeito entre
pesquisa de campo desenvolvida durante os anos de 1988 e 1992 com vistas a registrar arcaísmos léxico-
1975 a 1978, no interior do município de Tibagi, no semânticos e fonético-fonológicos, considerando
centro-sul, apresenta seu Vocabulário. Registra e co- como fator determinante o isolacionismo de determi-
menta cerca de oitocentos vocábulos, muitos dos nadas áreas devido a essa topografia acidentada. In-
quais não são exclusivos daquela região, mas próprios vestigados 16 pontos rurais e 3 urbanos, através de
da linguagem rural brasileira como um todo ou de sig- um extrato do Questionário do Atlas Lingüístico do
nificativa extensão territorial, como se pode verificar Paraná, como produto final elaboraram-se 130 cartas,
em arroio (por córrego, rio pequeno), bainha (por das quais 79 são lexicais e 51 fonéticas. Novamente
vagem), banhado,(por brejo), barra (por foz ou ponto comprova-se que a língua é um sistema heteróclito
em que dois rios se cruzam), guaxo (animal criado com de variantes, como se pode observar pela carta 8,
leite não-materno), fuzilo (por relâmpago), intendente com as variantes para o conceito trilho (anexo 2). A
(por parteira), piruá (por grão de milho que não reben- análise da distribuição diatópica das variantes tri-
ta quando se faz pipoca). lho/carreiro indica que Ortigueira está no limite en-
Esses primeiros estudos, como se pôde obser- tre o falar nortista e sulista paranaense, uma vez que
var, demonstram o interesse que os estudos dialeto- ambas as formas se interseccionam: a primeira forma,
lógicos vinham despertando, muitos dos quais já mais produtiva no norte, irradia-se para o sul, o inver-
ressaltavam a importância de se fazer um Atlas so ocorrendo com a forma carreiro, característica do
Lingüístico do Estado. sul que se irradia para o norte. O mesmo fato pode ser
No entanto, a geolingüística no Paraná só come- comprovado pela comparação de outras cartas do Atlas
ça a ganhar corpo quase um quarto de século depois de Ortigueira com as do Atlas Lingüístico do Paraná
dos estudos pioneiros da Bahia, ou seja, na década de (ALPR), que abordam temas comuns.
1980, com o Esboço de um Atlas Lingüístico de Lon- O ALPR, concluído em 1990 e publicado em
drina (EALLO) (AGUILERA: 1987) e com o Atlas 1994, compõe-se de 92 cartas lexicais, 70 fonéticas e
lingüístico de Ortigueira (AGUILERA: 1992), ainda 29 de isoglossas. Algumas cartas fonéticas permitem
inédito. Ambos os trabalhos se constituíram em eta- visualizar duas grandes áreas de isófonas que divi-
pas de sondagem para o Atlas Lingüístico do Paraná, dem o falar do Norte e do Sul paranaenses: a manu-
publicado em 1994 ( o volume das cartas). tenção das vogais média-altas posterior e anterior /o/
O EALLO teve como objetivos: a) registrar as e /e/, em posição inacentuada e final absoluto, no
variantes lexicais e fonéticas em 11 comunidades ru- Sul, ou seu alçamento para /u/ e /i/ no Norte. Outro
rais e uma urbana do município londrinense; b) traçar fato fonético que pode ser considerado como distinti-
possíveis áreas de isoglossas e c) verificar a influên- vo dessas regiões é a distribuição diatópica do /R/
cia do elemento indígena, no caso, o kaingang sobre o inicial em vocábulo e em sílaba, que se realiza como
falar local. Na primeira parte, além da discussão da posterior velar ou uvular no Norte, e anterior, ou alveo-
metodologia adotada, apresenta um estudo sobre os lar múltiplo no Sul.
aspectos lingüísticos da fala londrinense, ressaltan- As cartas lexicais, por sua vez, documentam
do as variantes fonéticas e as variantes lexicais. Na várias distribuições que, a rigor não são homogêneas
segunda, apresenta um esboço de atlas com 80 cartas mas apresentam claramente os pontos de irradiação.
analítico-sintéticas, (45 lexicais e 35 fonéticas), e 6 sin- Em primeiro lugar pode-se comprovar a resistência
téticas ou de isoglossas, permitindo observar que, de vocábulos tupis, como a carta 177 para jojoca (so-
mesmo dentro de um espaço mais restrito, a língua luço) (anexo 3) no território denominado Paraná Tradi-
não é homogênea, sofre variações de toda ordem: fo- cional, partindo da região litorânea de Guaraqueçaba,
nético-fonológica, léxico-semântica e morfossintática, ponto 46 e expandindo-se no sentido leste-oeste e
sujeita que está a variáveis lingüísticas, sociais e situa- sul-norte.
cionais. A carta 6 (anexo 1) para arco-íris indica uma Em segundo lugar, verifica-se a predominância
primeira divisão diatópica dos falares londrinenses: de vocábulos populares na designação de certos con-
uma que se prende ao falar urbano, e outra a leste e sul ceitos como a carta 70 (anexo 4), capela, para pálpe-
que se prende ao falar rural das regiões mais antigas, bras. Com menor abrangência, temos outras
com a variante arco-da-velha/arco-de-velho. Este fato designações rurais populares e arcaicas como
pode ser explicado pelos fatores histórico-sociais que cuitelo, cuitelinho para beija-flor; garrão para tor- Revista
nortearam a colonização do Norte Parananense, mo- nozelo ou calcanhar; fuzilo para raio; tromenta para do GELNE
tivada pela expansão do plantio de café, na primeira tempestade e dente do quexá para os molares. Ano 1
metade deste século, e o movimento de ocupação pro- Em terceiro lugar, há uma série de cartas lexicais No. 2
cedente do sul do Estado, pelos criadores de suínos e que aponta para a divisão dialetal N e S paranaenses, 1999
cultivadores de milho no final do século passado. como sarilho/manivela (anexo 5).
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Considerações finais Bibliografia

Os fatos lingüísticos documentados nas cartas AGUILERA, Vanderci. de Andrade. Aspectos lingüís-
do ALPR ensejam, a cada leitura, elementos que po- ticos da fala londrinense. Esboço de um atlas
dem ser comparados com variáveis extralingüísticas lingüístico de Londrina. Assis: UNESP, 1987, dis-
como, por exemplo, fatos históricos e econômicos da sertação de mestrado.
ocupação do território. É o caso do Caminho do Peabiru, _______. Atlas lingüístico do Paraná. Curitiba: Im-
trilha pré-colombiana que servia de acesso aos nati- prensa Oficial do Estado do Paraná: 1994.
vos do Oceano Atlântico ao Pacífico, segmentando o _______. Atlas lingüístico de Ortigueira. Londrina:
território paranaense na linha aproximada que divide UEL, versão original, 1993.
os falares do Norte e Sul do Estado. Outro é o Cami-
nho dos Tropeiros que, durante mais de um século, AMARAL, Serafina Taub Borges do. Contribuição
serviu de ligação entre Viamão, no RS, e Sorocaba, em para um inquérito lingüístico no litoral do Paraná.
SP, ao longo do qual se formaram muitos municípios Letras, 5/6: 157-66, dez., 1956.
paranaenses. ALVAR, Manuel e ALVAR, Jeanine. Guaraqueçaba:
Por outro lado, as entrevistas transcritas com- mar e mato. Curitiba: UFPR, 1986. CARDOSO,
põem um conjunto de 13 volumes que têm servido de Suzana Alice Marcelino. O Atlas Lingüístico do
corpora para diversos trabalhos acadêmicos, como a Brasil: um projeto nacional. A geolingüística no
elaboração de cartas complementares com o aprovei- Brasil. AGUILERA, Vanderci de Andrade (org.).
tamento do material não cartografado, análise do dis- Londrina: EUEL, 1998.
curso rural, investigação sobre as lendas e crendices, FILIPAK, Francisco & SICURO, Nélson. Antologia do
entre outros. Outras pesquisas estão sendo levadas a Vale do Iguaçu. União da Vitória: Fundação Facul-
efeito considerando aspectos históricos singulares. dade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de
É o caso, por exemplo, do Projeto do Atlas Lingüístico União Vitória, 1976. (Coleção Vale do Iguaçu, n.º 24).
de Cândido de Abreu (Lino e equipe), no centro do Para- MERCER, José Luiz da Veiga. Le lexique technique des
ná, e do Projeto do Atlas Lingüístico de Adrianópolis pêcheurs de Guaraqueçaba (Brésil). Toulouse:
(Altino, Cabral e equipe), ao sul, no vale do rio Ribeira, Univ. de Toulouse II, 1979, tese de doutorado.
que serão apresentados nesta sessão. _______. Áreas fonéticas do Paraná. Curitiba: UFPR,
Além disso, os atlas lingüísticos oferecem tam- 1992, tese para inscrição no concurso para Pro-
bém inesgotável material para subsidiar estudos fessor Titular. 2 v.
interdisciplinares, como a antropologia, a etnolin-
MURICY, Andrade. Algumas vozes regionais do
güística, o folclore, a lexicologia e a sociolingüística,
Paraná do Extremo Oeste. Primeiro Congresso da
entre outros. Muito do que se publicou pode fornecer
Língua Nacional Cantada, Rio de Janeiro: 1938.
elementos importantes para uma descrição da lingua-
gem paranaense. E mais ainda poderá ser feito quando SILVA NETO, Serafim da. Guia para estudos
estiverem disponíveis para os pesquisadores os dados dialectológicos. 2 ed. Belém: [s.ed.] 1957.
do Atlas lingüístico e etnográfico da Região Sul – TONIOLO, Enio. Vocabulário de Tibagi. Apucarana:
ALERS, coordenado por Koch, cuja publicação está Fundação Faculdade Estadual de Ciências Eco-
sendo esperada para muito breve. nômicas de Apucarana, 1981.

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ANEXO 1

ANEXO 2
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ANEXO 4
ANEXO 3
ANEXO 5

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MARIA DO SOCORRO SILVA DE ARAGÃO
Universidade Federal do Ceará

A VARIAÇÃO FONÉTICO-LEXICAL EM
ATLAS LINGÜÍSTICOS DO NORDESTE

Introdução Nossa visão, a partir dos estudos realizados, é


que as variações fonético-lexiciais podem ser con-
Ao estudarmos os falares regionais, especial- sideras sócio-dialetais. Concordamos, portanto, com
mente naqueles estados brasileiros que já possuem FISHMAN (1971:36) quando diz:
seus Atlas Lingüísticos, e ao estabelecermos as dis-
“Couramment cependant, les dialects peuvent
cussões sobre Dialetologia e Sociolingüística, surge
representer, signifier ou symboliser des éléments non
sempre a questão que diz respeito ao tipo de variação
géographiques.”
que ocorre, se as variações fonético-lexicais, por exem-
plo, são, realmente, regionais, dialetais, em seu sentido
específico, ou se elas são sociais, sociolingüísticas. 1 As Variações Diatópicas e Diastráticas
Os especialistas de cada uma das áreas tendem
a priorizar ou chamar a atenção para seu campo Sabe-se que a língua é um todo homogêneo, com-
específico de atuação. posto de partes heterogêneas que, reunidas, consti-
Por trabalharmos mais aprofundadamente com tuem a estrutura desse todo. O princípio da variedade na
a Dialetologia procuraremos mostrar que a Dialetologia unidade é uma realidade que não se pode desconhecer.
atual não é uma mera Geolingüística, como se consi- Os avançados estudos dialetológicos e socio-
derava até alguns anos atrás, com o estudo, apenas, lingüísticos têm mostrado o quanto o conhecimento
das variações regionais ou diatópicas, que produzia dessas variações pode ajudar num maior aprofunda-
apenas resultados monodimensionais, monostráticos, mento das análises lingüísticas e no melhor conhe-
monogeracionais e monofásicos, no dizer de ELIZAINCÍN cimento das línguas.
e THUN ( 1992: 128-9), mas que estuda, também, as Contudo, esse desenvolvimento da dialetologia
causas sociais e estilísticas que determinam as varia- e da sociolingüística não tem sido bem aplicado no
ções regionais, pois: sentido de valorizar as variantes regionais e sociais, a
nível de escola fundamental, por exemplo, fazendo com
“... el Atlas lingüístico tiene la obrigación y es que essas variações sejam vistas não como algo exó-
además capaz de dar uma imagen de la multi- tico, diferente, ou “errado”, em alguns casos, mas como
dimensionalidad y de las interrelaciones de los parte do todo que constitui nossa língua. É necessário
fenómenos variacionales” (THUN, FORTE e que se entenda o que muito bem frisou WILLIAM
ELIZAINCÍN 1989:28). LABOV (1972:5) “ diferença não é deficiência”.

Nessa mesma linha de pensamento dizem


Deste modo, a Dialetologia moderna utiliza-se,
SCARTON e MARQUARDT (1981:6)
também, dos princípios e métodos da Sociolingüística,
por exemplo, para caracterizar as variantes regionais e “As múltiplas variações observadas no siste-
sociais daquela comunidade. ma lingüístico ocasionadas por fatores vários
LOPE BLANCH (1978:53-4) reforça esta idéia dão uma idéia multicolorida da língua, real-
ao falar sobre o papel da Sociolingüística nos estudos çando seu caráter maleável, diversificado. Tal
dialetais, ao dizer: imagem corresponde a uma realidade eviden-
te e desconhecê-la ou não levá-la em con-
“La dialectología puede, evidentemente, sideração o suficiente, significa ter uma
beneficiarse mucho com las aportaciones de la concepção mutilada da língua.”
sociolingüística, como de hecho ya se há estado
beneficiando. El progreso metodológico que há Outra questão também polêmica é de que disci-
Revista estabelecido la sociolingüística con su rigurosa y plina é mais ampla: a Dialetologia ou a Sociolingüística.
do GELNE detenida consideración de factores sociológicos Os defensores da Dialetologia argumentam que ela,
Ano 1 antes sólo superficialmente atendidos por la ao estudar as variantes regionais, ou diatópicas, tem que
No. 2 dialectología, es aportación de primera magnitud, estudar, obrigatoriamente, o grupo social que fala aquela
1999 que la actividad dialectológica habrá de tener ahora variação, tendo assim, que estudar as variações sociais
muy en consideración.” ou diastráticas bem como as estilísticas, ou diafásias.
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Os sociolingüistas, por sua vez, dizem que a base e contrações pode indicar marcas características da
de todos os estudos de variação é sempre o social linguagem de pessoas de nível cultural mais baixo.
que está presente em qualquer tipo de variedade que O fenômeno da despalatalização, seguido ou
estude, já que o homem e o meio em que vive são o não de iotização é um caso típico de economia da
princípio de tudo. linguagem muito freqüente na linguagem popular e
Assim, as barreiras entre o dialetal e o sociolin- causado pela necessidade de facilidade de articulação,
güístico ficam cada vez mais tênues ficando difícil, sendo um caso inverso da palatalização que o próprio
muitas vezes, dizer onde termina uma e começa a outra. TROUBETZKOY (1967: ) diz ser “um trabalho ar-
A esse respeito diz FISHMAM (1971:36): ticulatório suplementar”.
O fonema / ´ / é descrito fonética e fonolo-
“Ce qui constituiait une varieté régionale à gicamente como consoante oral, sonora, lateral, dorso-
l’origine devient ainssi une vareté sociale ou palatal e o fonema / ø / como consoante vibrante,
um sociolecte.” sonora, nasal, dorso-velar. Ambos ocorrem sempre
em posição medial de sílaba medial, ou final de palavras
2 As Variações Fonético-Lexicais e, com raríssimas exceções, em posição inicial de
alguns empréstimos espanhóis e no pronome de 3ª
Em todos os processos de variação e conse- pessoa lhe. Ao tratar da posição das consoantes / λ /
qüente mudança lingüística é nos aspectos fonéticos e / ø / nas palavras, CÂMARA JR. (1972:38) considera
e léxicos que começam todos esses processos de uma neutralização a posição não-intervocálica de / l -
variação da língua que poderão se cristalizar numa λ / e / n - ø /.
mudança. Com base neste tipo de variação CINTRA Em suas palavras:
(1971: 1-2) diferencia dialeto e falar, dizendo que:
Podemos dizer que em posição não-inter-
... o dialeto vem a ser o desvio na estrutura (de vocálica há uma neutralização das oposições
caráter morfo-sintático) e o falar é o desvio entre [...] líquida dental / l / e líquida palatal,
superficial (fonético e vocabulário)”. ou molhada / λ /, e entre nasal dental / n / e
nasal palatal, ou molhada / ø /, em proveito
Deste modo, as variações fonético-lexicais do primeiro membro de cada par.
assumem um importante papel no estudo de uma língua
Em determinados contextos, por facilidade ou
por poderem dar início a todo um processo não só de
relaxamento de articulação o / λ / e o / ø / podem
variação mas de mudança, começando por estabelecer
perder o traço palatal, passando a ser articulados
falares, passando esses falares a se constituírem dia-
como alveolares / l / e / n /, como iode / y / ou sofrer
letos que poderão, num momento histórico e político
apagamento, desaparecendo.
se transformar em novas línguas.
Autores há que consideram esse fato um fenô-
meno fonético. Outros acham que é um problema de
3 As Variações Fonéticas influência africana, uma mudança fonética do latim
na Paraíba e no Ceará para o português, ou ainda um fato que pode vir a ser
fonológico, gerando um novo fonema e não apenas
Apesar de partirmos de corpora diferentes: o uma articulação diferente dos fonemas / ´ / e / ø /.
corpus da Paraíba, constituído de material do Atlas A despalatalização, definida como perda de tra-
Lingüístico da Paraíba, e o do Ceará, constituído do ço palatal na articulação de um fonema, pode ser vista
corpus do projeto Dialetos Sociais Cearenses, mas também como variedade regional, social, estilística
tendo ambos os corpora informantes de áreas urbanas ou individual.
e rurais, de classes sociais, nível de escolarização, sexo e BERGO (1986: 70) ao falar sobre o assunto
faixas etárias bastante semelhantes, cremos que pode- diz que é:
mos utilizá-los para mostrar os casos da Despalata-
lização de / λ / e / ø / e o caso do uso das Proparoxítonas. Fenômeno fonético de caráter individual ou
regional, que consiste em trocar-se um fonema
3.1 O Fenômeno da Despalatalização palatal por um alveolar ou linguodental em
e Iotização do / λ / e do / ø / conseqüência de não se apoiar devidamente
a ponta da língua na abóbada palatina ao
O princípio lingüístico da economia da lingua- proferir aquele som.
gem atinge todos os níveis de análise lingüística. Po-
rém, é no nível fonético-fonológico que podemos per- JOTA (1976:103) além de considerá-lo fato fo-
ceber, de imediato, a aplicação desse princípio. nético, considera-o fato estilístico quando diz:
Esta percepção é ainda maior quando se trata Revista
do estudo do registro popular, coloquial e descuidado ... O fato não é raro em linguagem descuidada do GELNE
da fala. de alguns, que mudam o NH ou LH por N ou L Ano 1
A tendência natural para a facilidade da articu- ...” e ainda regional quando afirma: No. 2
lação dos sons, neste registro, conjuntura, assimila- ... Em camadas rurais é comum [véyu] (velho), 1999
ções, monotongações, apócopes, síncopes, aféreses [muyé] (mulher)...

15
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Ao falar da iodização/iotização como um dos português a iotização antecede a palatalização. As-
fatos decorrentes da despalatalização, explica JOTA sim, em latim havia o iode, que se palataliza no por-
(1976:179) que ela precede a palatalização na passagem tuguês como nos casos de milia > milya > milha ou
do latim para o português, dizendo: foleam > folha ou somnium > sonho, sendo que / l
+ y / deram / ´ / e / n + y / deram / ø /.
A iodização precede a palatalização: lat. milia Ora, no caso da despalatalização, que leva à io-
> por. Milya > milha.. tização, o movimento se inverteu, ou seja, o / ´ /
O autor (1976: 179) igualmente trata como desdobra-se em / l + y / e o / ø / em / n + y /.
ipsilonismo a passagem do / l / palatal / λ /, em semi-
consoante / y / afirmando que: 3.2 Os Corpora Analisados

... Na passagem do latim para o por. ocorre na 3.2.1 O Corpus do Atlas Lingüístico da Paraíba
fase intermediária, anterior à palatalização:
palia > palya > palha. A pesquisa para a realização do Atlas Lingüís-
Já MELO (1981) considera a despalatalização tico da Paraíba, ocorrida entre 1976 e 1982 e
um caso sociolingüístico, de registro de linguagem publicada em 1984, foi feita em 100 municípios
popular, de pessoas incultas, ao dizer: paraibanos cobrindo todas as microrregiões do Es-
tado, com cerca de 200 informantes de faixa etária
Penso que a despalatalização seja fenômeno entre 30 e 75 anos, de ambos os sexos, com nível de
semi-culto, pois, muita vez, se ouve ligeira pro- instrução entre analfabeto e primário completo. Para
lação do R final: mulér. este trabalho foram analisadas as variações ocorri-
Já a iotização (fio por filho) é fenômeno po- das em onze cartas fonéticas: de número 013 - Re-
pular, em qualquer região do país. demoinho; 027 - Orvalho; 055 - Espinha dorsal, 077
Para CÂMARA JR. (1979) a despalatalização - Zarolho; 114 - Castanha; 097 - Apanhado; 105 -
pode muitas vezes, ser um fato fonológico, já que Bilha; 076 - Caraolho; 054 - Espinhaço; 026 -
podemos ter, mudança de significado do signo, tanto Molhação; e 066 - Patinho.
no caso de despalatalização / ´ > l / como com a
iotização / ´ > y /, como diz ele: 3.2.2 O Corpus do Projeto Dialetos
Sociais Cearenses
... no caso do molhamento, trata-se a rigor
de uma iotização, mas temos que considerar O corpus da pesquisa Dialetos Sociais Cearen-
o resultado uma consoante simples em vir- ses foi colhido entre 1986 e 1987 e publicado em
tude da possibilidade de contraste como 1996. É composto de 18 entrevistas com informan-
olhos-óleos, venha-vênia. tes de 11 bairros de Fortaleza, por faixas etárias que
Mas, ao definir a iotização o autor usa critéri- vão de 10 a 40 anos, homens e mulheres, com níveis
os fonéticos quando diz (1977:149): de escolaridade entre 1º. e 2º. graus, de classe mé-
dia e baixa e de profissões variadas. Para este traba-
Mudança de uma vogal ou consoante para a lho foram utilizadas as entrevistas de 6 informantes;
vogal anterior alta / i / ou para a semivogal
correspondente ou iode.
3.3 A Despalatalização e Iotização
Outra hipótese para a despalatalização e iotiza- no Falar da Paraíba e do Ceará
ção do / ´ / e do / ø / é a da influência do português
crioulo dos escravos ou do substrato indígena, como As primeiras análises indicam alguns fatos
diz CÂMARA JR. (1979): como os mostrados a seguir:
É igualmente possível que [ ...] se explique pelo
3.3.1 Apagamento do / ø / - / ø > O /
português crioulo dos escravos negros ou pelo
substrato indígena...
Nos corpora estudados há uma predominân-
hipótese esta também levantada por outros estudiosos cia, quase que absoluta, do apagamento do /ø / - /ø >
que vêem a despalatalização e iotização como uma O / antecedido da vogal fechada / i /, em sílaba nasal,
marca da fala dos índios e africanos que tinham restando, contudo, a nasalização, como nos casos de:
dificuldades de articular o / ´ / e o / ø /, como frisa
Ceará
SILVA NETO (1977):

... No nosso caso particular e histórico, ob- minha [‘mîøa > m i a ]


Revista servamos que os aloglotas (mouros, índios e caminho [ kâ’mîøu > kâ’mi ]
do GELNE negros) se mostraram sempre incapazes de
Ano 1 pronunciar o lh. Paraíba
No. 2
1999 Historicamente, pode-se também explicar o redemoinho [ hidi’mûøu > hidimui ]
espinha [ ispîøa > is’pia ]
16
fenômeno uma vez que na passagem do latim para o
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
3.3.2 Permanência do / ´ /

Fato marcante, também nesse contexto, é a permanência do / ´ / tanto em sílaba medial quanto em final, como nos
exemplos:
Ceará Paraíba

milho [ ‘mi´u ] orvalho [ ú’vaλu ]


melhora [ mi’´Ra ] zanolho [ zâ’noλu ]

3.3.3 Permanência do / ø /

O fonema / ø /, permanece em sílaba medial e final, no falar do Ceará, porém, no falar da Paraíba esse
fato aparece raramente, como nos exemplos:

Ceará Paraíba

escolinha [ isk‘lîøa ] espinhaço [ ispî’øasu ]


conheço [ ku’øesu ] patinho [ pa’tîøu ]

3.3.4 Iotização do / ´ /

Em seguida, em número de ocorrências, vem a iotização do / ´ /, em sílabas medial e final, como nos
exemplos:
Ceará Paraíba

filho [ ‘fi´u > ‘fiy ] caraolho [ kaÖa’oλu > kaÖa’oy ]


trabalhador [ tRaba´a’doú > tRabaya’do ] molhação [ mλa’sãw > mya’sãw ]

3.3.5 Iotização do / ø /

O / ø / também sofre iotização em sílabas medial e final, como nos exemplo:

Ceará Paraíba

banho [‘bâøu > ‘bãy ] castanha [ kaS ’tâøa > kaS ’tãya
sonhado [ so’øadu ] apanhado [ apâ’øadu > apãy’adu ]

3.3.6 Baixas Freqüências ou Não Ocorrências

Apesar de se esperar que ocorressem, alguns fatos não apareceram ou apareceram com uma única
ocorrência em ambos os corpora. É o caso de:

3.3.6.1 Dupla iotização [ ´ - ø > yy ] que apareceu em:

Ceará Paraíba

galhinho [ ga’´iøu > ga’liyyu ] espinhaço [ ispî’øasu > ispiyy’asu ]

3.3.6.2 Despalatalização simples do [ ´ > l ], como em:

Ceará Paraíba

mulher [ mu’´E > mu’lE ] bilha [ ‘biλa > ‘bila ] Revista


do GELNE
3.3.6.3 No caso do [ ø > n ], não ocorreu em nenhum caso a despalatalização simples. Ano 1
No. 2
1999

17
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
3.3.6.4 O apagamento do [ ´ ] não ocorreu em 4 As Variações Lexicais nos Atlas
nenhum caso. Lingüísticos da Paraíba,
O estudo da despalatalização tem sido feito em
outros estados, com corpus semelhante ao nosso,
Sergipe e Bahia
com análises que seguem essa mesma linha de tra-
Do mesmo modo que as variações fonéticas,
balho. Entre esses trabalhos podemos destacar o de
as lexicais podem ser e geralmente são conside-
AGUILERA (1988): O fonema /λ /: realização fo-
radas, ora como puramente geográficas, dialetais ou
nética, descrição e sua comparação na fala po-
diatópicas, como sociais ou diastráticas, ou ainda
pular paranaense, para o Estado do Paraná,
dependentes do estilo, estilísticas ou diafásicas.
ARAGÃO, (1994): A despalatalização e iotização
no falar paraibano, para a Paraíba, A Despalata- Para uma análise de alguns desses aspectos,
lização e Conseqüente Iotização no Falar de For- selecionamos algumas cartas léxicas dos Atlas Lin-
taleza (1996) e CARUSO (1983): A iotização do /- güísticos da Bahia (1963), Paraíba (1984) e Sergipe
LH/ segundo o atlas prévio dos falares baianos, (1987), levando-se em consideração as seguintes
para a Bahia, entre outros. variáveis:
Nesses trabalhos observa-se que a despala-
a) a freqüência e distribuição das variantes em
talização e iotização estão sempre relacionadas, além
todo o Estado e em cada ponto de per si;
dos aspectos puramente fonéticos, de articulação
defeituosa ou relaxada, a fatores sociais e geográfi- b) a estruturação das variantes em forma de
cos, sendo consideradas diastráticas, uma vez que se lexias simples, compostas, complexas e como ex-
diz que esses fenômenos ocorrem com falantes de pressões completas;
pouca escolaridade, e diatópicas, já que ocorrem em c) o uso de formas diminutivas com valor
falantes da zona rural ou de regiões mais atrasadas. afetivo ou representativo;
SERAINE (1985: 60) faz referência ao fenô-
meno da despalatalização, iotização e apagamento do d) o uso de adjetivos qualitativos em lexias
[ λ ] e do [ ø ] no falar de Fortaleza ligando-o ao aspecto compostas e complexas;
diastrático, ao comentar que mesmo no falar de pes- e) o número de variantes lexicais em cada tema
soas cultas, no registro informal e familiar ocorre a das cartas.
despalatalização e a iotização. Em suas palavras:
O objetivo da seleção e análise dessas cartas
Se examinarmos, porém, a fala urbana culta é tentar determinar se essas variantes são diatópicas
de Fortaleza, no colóquio informal ou na lin- ou diastráticas ou, se ao contrário, são sócio -
guagem familiar, [...] encontraremos diver- dialetais.
sas infrações ao que prescrevem essas nor-
mas sociolingüísticas.[...] vocalização do As cartas escolhidas, em todos os Atlas fo-
dígrafo nh para formar ditongo nasal com a ram soutien, útero, arco-íris, tornozelo e rótula
vogal anterior [ tãmãyu ] ou [ tãmãy ], [ põyu ] e fazem parte dos campos semânticos a terra e o
ou mesmo síncope como em [ kariu ] [ karim ]... homem.

Paraíba Bahia Sergipe


1. Sutiã Soutien Soutien
corpete corpete corpete
califon califon califon
porta-seio porta-seio porta-seio
guarda-seio guarda-seio guarda-seio
bustiê —————— ——————
—————— corpinho ——————
—————— aperta-seio ——————
—————— sustenta-seio ——————
2. Útero Útero Útero
mãe do corpo mãe do corpo ——————
bacia bacia bacia
ventre —————— ——————
ventre da mãe —————— ——————
—————— dona do corpo ——————
Revista —————— saco saco
—————— ova ——————
do GELNE —————— senhora do corpo ——————
Ano 1 —————— madre ——————
No. 2 —————— comadre ——————
1999 —————— ————— companheira

18
—————— ————— fato
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
3. Arco-íris Arco-íris Arco-íris
arco-celeste arco-celeste arco-celeste
olho de boi olho de boi olho de boi
—————— arco de boi arco de boi
—————— arco da velha arco da velha
—————— arco de velho arco de velho
arco arco arco
—————— arco da aliança ——————
as barras —————— ——————
as torres —————— ——————
sub-dourada —————— ——————
os vieiras —————— ——————
os véus —————— ——————
cu de boi —————— ——————
—————— sete couros ——————
—————— barra de nuvem ——————

4. Tornozelo Tornozelo Tornozelo


rejeito rejeito rejeito
junta junta junta
mocotó mocotó mocotó
junta do pé ————— ——————
osso de São Severino ————— ——————
osso do gostoso ————— ——————
—————— peadouro ——————
—————— mondongo mondongo
—————— cotovelo cotovelo
————— —————— joaninha
————— —————— tronco
————— —————— machinho

5. Rótula Rótula Rótula


bolacha bolacha bolacha
bolacha do joelho ————— —————
rodinha do joelho ————— —————
cabeça do joelho ————— —————
patinho patinho patinho
bolachinha bolachinha —————
————— rodela —————
————— bolinh —————
————— pataca —————
————— pataquinha —————
————— cotovelo cotovelo
————— prato —————
————— carapuça —————
————— ————— cabeça
————— ————— pratinho
————— ————— bola
————— ————— catoca
————— ————— carapucinha

Após a análise das cartas léxicas dos Atlas Lin- b) As variantes distribuem-se em todo o es-
güísticos da Paraíba, da Bahia e de Sergipe, selecio- tado, comprovando o princípio da norma lingüística:
nadas como amostragem para este trabalho, chegamos alta freqüência e distribuição regular;
a algumas conclusões:
c) Muitas das variantes são comuns aos três Revista
a) Os temas analisados apresentam uma gran- do GELNE
de variação lexical. O que apresentou menor número estados analisados, podendo-se pensar numa varia-
ção regional nordestina, contudo, ao analisarmos os Ano 1
de variantes teve cinco formas diferentes para o No. 2
mesmo conceito e o de maior riqueza lexical apre- Atlas Lingüísticos de Minas Gerais e do Paraná va- 1999
sentou doze variações; mos encontrá-las também naqueles estados;

19
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
d) As variantes lexicais analisadas possuem vá- CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estru-
rias estruturas, que podem ser lexias simples, com- tura da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Pa-
postas e complexas; drão, 1979.
_____. Estrutura da língua portuguesa. Petró-
Conclusão polis: Vozes, 1972.
_____. Dicionário de lingüística e gramática.
Ao propormos o presente trabalho queríamos Petrópolis: Vozes, 1977.
não só mostrar o problema da variação lingüística CARDOSO, Suzana A. M. Atlas lingüístico do Bra-
fonética e lexical, propriamente dita, mas, principal- sil - ALiB - Projeto. Salvador: UFBA, 1998.
mente, analisar até onde essas variações podem ser CARUSO, Pedro. A iotização do /-LH/ segundo o atlas
consideradas apenas geográficas, diatópicas ou so- prévio dos falares baianos. Alfa, São Paulo, 27,
ciais, diastráticas. p. 47-52, 1983.
Sabemos que, em determinadas situações, esta CINTRA, L.F.L. Nova proposta de classificação dos
distinção torna-se bastante difícil, uma vez que, ao dialetos galego-portugueses. Boletim de Filolo-
mesmo tempo que os informantes são de uma deter- gia. Lisboa, 22 (1-2), 1971.
minada região, têm, ao mesmo tempo, todas as mar-
cas sociais, de faixa etária, de sexo, de escolaridade, ELIA, Sílvio E. A unidade lingüística do Brasil -
de nível sócio-econômico diferentes que poderão condicionamentos geo-econômicos. Rio de Ja-
influenciar no seu modo de falar. neiro: Padrão, 1979.
Quer fonética, quer lexicalmente, pode-se fa- ELIZAINCÍN, A. Dialectología de los contactos:
lar em variantes sócio-dialetais e não apenas em un ensayo metodológico. Annuario de Letras.
dialetais e sociais, porém se dará maior ênfase a um México, v. XXVI, 1988.
desse tipos de variação, dependendo da linha de tra- FISHMAN, J. The sociology fo language. Massa-
balho que se esteja seguindo. chussetts: Newbury House Publishers, 1972.
JOTA, Zélio dos S. Dicionário de lingüística. Rio
de Janeiro: Presença, 1976.
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AGUIAR, Martins de. Fonética do português do University of Pennsyvania Press, 1972.
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anno LI, Fortaleza, 1937, p. 271-307. ção fonológica: o fator semântico. Revista de
AGUILERA, Vanderci A. O fonema /´ /: realização Estudos da Linguagem. Belo Horizonte, ano
fonética, descrição e sua comparação na fala po- 6,v.1, p. 5-22, jan/jun.1997.
pular paranaense. III ENCONTRO NACIONAL MELO, Gladstone Chaves de. A língua do Brasil.
DE FONÉTICA E FONOLOGIA. João Pessoa: Rio de Janeiro: Padrão, 1981
UFPB, 1988. MONTEIRO, José Lemos. Fontes bibliográficas para
ARAGÃO, M. do Socorro Silva de. A despalata- o estudo do falar cearense. Revista da Acade-
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AÇÃO BRASILEIRA DE LINGÜÍSTICA. Re- SCARTON, G. et MARQUARDT, L.L. O princípio
sumos. Salvador: UFBA, 1994. da variação lingüística e suas implicações numa
_____. et al. A despalatalização e conseqüente política para o idioma. Boletim do Gabinete Por-
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BERGO, Vitório. Pequeno dicionário brasileiro de trados no Ceará). Fortaleza: Stylus, 1991
gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Francis- SILVA, Marinalva F. da. As seqüências “LH” e “NH”
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BISOL, Leda. A palatalização e sua estrutura variá- PUC-RS, v. 22, n. 3, p. 91-99, set. 1987.
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Ano 1 BLANCH, M.L. La sociolingüística y la dialec- tación de un proyeto. Iberoromânia,3. Tübingen:
No. 2 tología hispánica. In: ALVAR, M & BLANCH, 26-62, 1989.
1999 M.L. En torno a la sociolingüística. México: TROUBETZKOY, N.S. Principes de Phonologie.
UNAM, 1978. Paris: Klincksieck, 1967.
20
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
CARLOTA DA SILVEIRA FERREIRA, SUZANA ALICE MARCELINO CARDOSO
Universidade Federal da Bahia

ARCO-ÍRIS NO BRASIL:
UM ESTUDO LINGÜÍSTICO-
ANTROPOLÓGICO A PARTIR
DOS ATLAS REGIONAIS

Neste trabalho examinam-se as respostas à per- documentados em apenas um dos pontos da rede de
gunta arco-íris, cartografadas nos cinco atlas lingüís- cada área considerada. Assim, há formas — excluída
ticos já publicados no Brasil – Atlas Prévio dos arco-íris por ser a designação geral de langue – que
Falares Baianos (1963), Esboço de um Atlas Lingüís- atingem índices consideráveis como arco celeste,
tico de Minas Gerais (1977), Atlas Lingüístico da 96% da rede de pontos na Paraíba e 36% na Bahia, ou
Paraíba (1984), Atlas Lingüístico de Sergipe (1987) e arco-da-velha com 67% da rede no Paraná, 49% em
Atlas Lingüístico do Paraná (1994), buscando-se, por Minas Gerais e 28% na Bahia. Outras, no entanto,
um lado, o conhecimento da realidade específica de constituem-se em registos únicos como é o caso de
cada região, e, de outro, a identificação de áreas dialetais. rabo-de-pavão, os véus, sete e um couro, num rol
Ao examinar as designações para arco-íris pro- mais amplo de 11 formas. O Quadro 1 fornece os da-
cura-se analisar as formas documentadas (a) com vis- dos de maneira global, com indicação do número de
tas ao estabelecimento de áreas dialetais, traçando, localidades da rede em que foram documentadas, nú-
segundo as possibilidades, isoléxicas, e (b) incursio- mero esse que deve ser examinado na sua relação
nando pelo campo lingüístico-antropológico para o com o total de pontos da região que, também, vem
exame das designações no que diz respeito, sobretu- indicado.
do, à natureza da motivação que as determina e à rela- Como revelam os dados, observa-se que uma
ção que se estabelece com a realidade cultural em que única designação está presente em todas as áreas
se inserem os usuários das formas em questão. consideradas. Trata-se de arco-íris que se constitui,
na língua portuguesa, na denominação geral para o
fenômeno. As demais ou são atestadas em quatro
Panorama das designações para arco- das áreas – olho de boi e arco-da-velha —, ou em
íris: uma visão diatópica três – arco celeste, arco-da-aliança e arco-de-velho
—, ou em apenas duas, como é o caso de arco-de-
Os atlas lingüísticos brasileiros publicados do- boi. As demais documentam-se em apenas uma área,
cumentam uma farta relação de lexias que recobrem o com índices muito baixos, variando entre um máximo
conceito “arco-íris”. Perfazem um total de 24 diferen- de 5 ocorrências ou simplesmente uma. O Quadro 2
tes formas cujos índices de ocorrência, por região, põe em destaque as denominações registradas a par-
variam de percentuais elevados a registos unitários, tir de duas áreas.

QUADRO 1
Formas para designar arco-íris no Brasil
(A partir dos dados dos atlas lingüísticos publicados)

Formas Paraíba(25) Sergipe(15) Bahia(50) M.G.(116) Paraná(65)


arco 01
arco-celeste 24 3 18
arco-da-aliança 06 03 08 Revista
arco-da-velha 02 14 57 44 do GELNE
arco-de-boi 01 01 Ano 1
arco de celeste 01 No. 2
arco-de-velho 04 08 9* 1999
arco-do-celeste 01
21
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
arco-do-sol 03
arco inselente 02
arco-íris 17 13 43 89 64
as barras 04
as torres 02
barra de nuvem 02
cu-de-boi 01
mãe d’água 01
navio 01
olho-de-boi 08 01 02 01
os véus 01
os vieiras 01
rabo-de-galo 05
rabo-de-pavão 01
sete-e-um-couro 01
sub-dourada 01
Observações: a) O número que se segue à denominação de cada área indica o total de localidades
que constituem a rede de pontos do atlas considerado.
b) A indicação de ocorrências de cada forma refere-se ao número de localidades em
que foi documentada.
c) O ALPr não tem registada na carta a forma, mas vem indicada nas notas a
ocorrência em 9 localidades.

QUADRO 2
Designações para arco-íris comuns a várias áreas
Formas Paraíba Sergipe Bahia Minas Gerais Paraná
arco-íris t t t t t
olho-de-boi * * * *
arco-da-velha * * * *
arco celeste Ÿ Ÿ Ÿ
arco-da-aliança Ÿ Ÿ Ÿ
arco-de-velho Ÿ Ÿ Ÿ
arco-de-boi

Das lexias com registo em uma única área, ob- interpretados, pelo menos alguns deles, como vari-
serva-se uma maior ocorrência na Paraíba, seguida ações estilísticas individuais. O Quadro 3 apresen-
de Minas Gerais, Bahia e Sergipe. O atlas do Paraná ta a distribuição das formas ocorrentes em apenas
não traz, em carta, exemplos de registos únicos. Os uma das cinco regiões documentadas pelos atlas
casos de ocorrências únicas, entretanto, podem ser publicados.

QUADRO 3
Distribuição das ocorrências com registro em uma única área

Paraíba Sergipe Bahia Minas Gerais


arco arco do celeste arco-de-celeste arco-do-sol
as barras arco inselente barra-de-nuvem mãe d’água
as torres sete-e-um-couro navio
cu-de-boi rabo-de-galo
os véus rabo-de-pavão
os vieiras
sub-dourada
Revista
do GELNE
Ano 1 A descrição das áreas apresentada de forma re- Assim, Paraíba, Bahia, Sergipe e Minas Gerais
No. 2 sumida nos Quadros 1, 2 e 3 permite identificarem-se formam um continuum se se considerar a designação
1999 algumas subáreas lexicais com base nas designações olho-de-boi; do mesmo modo que Sergipe, Bahia,
para “arco-íris”. Minas Gerais e Paraná, se tomada a lexia arco-da-
22
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
velha. Menos extensas, mas também áreas configura- mente para o caminho que algumas formas seguiram,
das, as que se definem com arco-celeste, que envolve caminho que pode ter relevância para o conhecimento
Paraíba, Sergipe e Bahia, com arco-da-aliança, pre- da história da língua no país.
sente na Bahia, Minas Gerais e Paraná, e com arco-de-
velho registada em Sergipe, Bahia e Paraná.
A noção de contínuo a que se faz referência não
Panorama das designações para arco-íris:
pode, porém, ser tomada no sentido estrito de conti- uma visão lingüístico-antropológica
nuidade ininterrupta. A referência é feita consideran-
do as regiões com atlas lingüísticos publicados e, Se observarmos o extenso rol de designações
obviamente, lacunas se interpõem entre Paraíba e Ser- para “arco-íris”, deparamo-nos, de imediato, com um
gipe, do mesmo modo que entre Minas Gerais e Paraná. vasto espectro de motivações que deram origem às
De igual forma, os índices de ocorrência das lexias diferentes formas. Assim, podemos identificar pelo
consideradas não são os mesmos em todas as áreas, menos quatro grupos: 1. Designações pautadas na
nem se encontram as formas distribuídas de maneira motivação “arco’; 2. Designações com outras motiva-
generalizada por essas regiões, como facilmente se de- ções do principal elemento componente; 3. Formas
duz do número de localidades da rede de pontos em que atestam casos de zoomorfismo; 4. Formas que
que foram documentadas em cada parte (Ver Quadro 1). documentam o antropomorfismo, como se mostra no
O fato para o qual se quer chamar a atenção é essencial- Quadro 4.

QUADRO 4
Designações para arco-íris segundo a natureza da motivação

Arco como motivação Outras motivações do


Zoomorfismo Antropomorfismo
do elemento principal elemento principal
arco barra-de-nuvem arco-de-boi arco-íris
arco celeste cu-de-boi cu-de-boi arco-da-aliança
arco-da-aliança olho-de-boi olho-de-boi arco-da-velha-
arco-da-velha rabo-de-galo rabo-de-galo arco-do-velho
arco-de-boi rabo-de-pavão rabo-de-pavão
arco-de-celeste
arco-de-velho
arco-do-celeste
arco-do-sol
arco inselente
arco-íris

1. A motivação arco está presente em 11 dos cebe-se que motivações distintas orientam o proces-
nomes atribuídos ao fenômeno. Trata-se de uma de- so de metaforização. De um lado, associa-se o fenô-
signação bastante transparente, que se prende à forma meno à cauda do galo ou do pavão cuja diversidade de
com que geralmente assume na abóbada atmosférica. penas, no tamanho e na cor, mais neste do que naque-
A qualificação do elemento principal, porém, segue le, é evidente. De outro, toma-se a denominação barra
caminhos diferenciados. A começar pela designação que tem servido, também, na área rural pelo menos
mais genérica, arco-íris, de inspiração nos deuses pa- da Bahia e de Sergipe para designar a “aurora”, o “rom-
gãos, e pelas ocorrências de arco-da-velha e arco- per do dia”, quando aparece na abóbada celeste o pri-
do-velho, casos de antropomorfismo a serem tratados meiro clarão, de cor avermelhada, que se espalha
no subitem 4, observa-se que as demais se agrupam, gradativamente. As duas outras lexias – olho-de-boi
no que se refere ao segundo elemento, em: e cu-de-boi – não deixam transparecer, pelo menos
i) Referência à abóbada celeste ou a elementos com certa clareza, a natureza da comparação. Con-
nela existentes – arco celeste, arco-do-sol, arco-do- vém assinalar, no entanto, que olho-de-boi, que foi
celeste, arco-de-celeste. registrada em quatro das cinco áreas com atlas
ii) Referência a animais, de que se trata no sub- lingüísticos publicados, encontra-se, também, docu-
item 3, casos de zoomorfismo – arco-de-boi. mentada em regiões da Europa, como atesta o Atlas
iii) Termo de caráter religioso-cristão, arco-da- Linguarum Europae-ALE, na carta I.9 que regista a
aliança. ocorrência da forma - oeuil de boeuf - na França.
2. As designações com outras motivações do 3. As lexias olho-de-boi, cu-de-boi, rabo-de- Revista
elemento principal do componente são: barra-de-nu- galo, rabo-de-pavão e arco-de-boi constituem-se do GELNE
vem, cu-de-boi, olho de boi, rabo-de-galo e rabo- exemplos de zoormorfismo pois trazem para a deno- Ano 1
de-pavão. minação do fenômeno a associação com um deter- No. 2
Das formas que constituem o elemento princi- minado animal. Assim, são evocados o boi, o galo e 1999
pal nas designações classificadas nesse grupo, per- o pavão. No caso dos dois últimos, parece evidente
23
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
o mecanismo de associação: o tipo de cauda que os cadente e cambalhota – permite-nos algumas con-
caracteriza, menos densa e menos colorida em um, siderações de ordem diatópica.
mais ampla e multicor no outro. A relação, porém, que Primeiramente, a forma arco-íris revelou-se, ou
se estabelece com boi não nos parece muito clara. confirmou-se, como a de uso generalizado, não deixan-
Alinei (1983) refere-se nos comentários que faz às car- do de ocorrer em nenhuma das regiões consideradas.
tas arco-íris do ALE, ao caráter mais antigo das designa- No que diz respeito a ocorrências registadas
ções para arco-íris com motivação em animais dizendo em apenas três ou quatro das regiões, observa-se que
que “...thus reflect an ancient totemic vision of a Bahia ocupa uma posição singular: é a única área
reality.” (1983:50). Refere-se ainda e imediatamente a que de referência às cinco designações consideradas
seguir ao mito expandido por toda a Europa de que – olho-de-boi, arco-da-velha, arco celeste, arco-da-
aliança e o próprio arco-íris – está contemplada com
“the reinbow is a gigantic animal – most often a documentação de todas elas. Não se leva em conta,
a snake – that “drinks” or “sucks” water, as para essa afirmação, o número de ocorrência nem a dis-
well as people and animals, from the earth tribuição diatópica delas, pois o que se quer salientar
and eventually spits them out.” é, simplesmente, a presença de cada uma dessas lexias.
Finalmente é interessante notar-se como algu-
4. O quarto grupo contempla as formas que ates- mas designações se fixam da Bahia para o norte e
tam casos de antropomorfismo: arco-íris, arco-da- outras da Bahia para o sul, colocando este Estado
velha, arco-do-velho e arco-da-aliança. O ALE na bem ao meio, o que pode ter implicações culturais e
Carta I.9 admite um “anthropomorphisme païen” e históricas, especificamente.
um “anthropomorphisme cretien et islamique”. No
primeiro caso enquadra-se a designação arco-íris que Bibliografia
toma a divindade Iris, mensageira alada dos deuses
que se recobria com um xale de sete cores identificado AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas Lingüístico
com o próprio arco-íris, como elemento da sua forma- do Paraná. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado,
ção. No segundo caso, “antropomorfismo cristão”, 1994.
situa-se a denominação arco-da-aliança que traz o ALINEI, Mario. “Arc-en-ciel”. In: Atlas Linguarum
tema da aliança entre Deus e os homens, após o dilú- Europae. Assen-Maastricht: Van Gorcum, I, 1983.
vio, anunciada pela presença do arco-íris. As duas Volume I - Commentaires.
outras denominações, arco-da-velha e arco-do-ve-
ARAGÃO, Maria do Socorro e Cleuza Bezerra de
lho constituem-se em variantes em que a segunda
Menezes. Atlas Lingüístico da Paraíba. Brasília:
denota a perda da motivação de que, conseqüente-
UFPB/CNPq, Coordenação Editorial, 1984.
mente, pode ter resultado a mudança de gênero de da
velha para do velho. Na citada Carta I.9 do ALE, a Atlas Linguarum Europae. Assen-Maastricht: Van
designação arco-da-velha vem classificada como caso Gorcum, I, 1983.
de “antropomorfismo pagão”, uma vez que a velha FERREIRA, Carlota; Judith Freitas; Jacyra Mota; Nadja
está identificada com a “vieille, sorcière, famme sage, Andrade; Suzana Cardoso, Vera Rollemberg e
vieille boîteuse”. Neste caso específico levanta-se, Nelson Rossi. Atlas Lingüístico de Sergipe. Sal-
porém, uma questão: não seria o arco-da-velha, e por vador: Universidade Federal da Bahia/Fundação
conseqüência o arco-do-velho, um caso de antropo- Estadual de Cultura de Sergipe, 1987.
morfismo cristão em que a forma resultaria de um en- RIBEIRO, José; Mário Roberto Lobuglio Zágari; José
curtamento de arco-da-velha-aliança? Passini e Antônio Pereira Gaio. Esboço de um Atlas
Lingüístico de Minas Gerais. Rio de Janeiro: Mi-
À guisa de conclusão nistério da Educação e Cultura/Casa de Rui Bar-
bosa/Universidade Federal de Juiz de Fora, 1977.
O estudo das denominações para arco-íris nas ROSSI, Nelson; Carlota Ferreira e Dinah Isensee. Atlas
cinco áreas brasileiras possuidoras de atlas lingüís- Prévio dos Falares Baianos. Rio de Janeiro: Mi-
ticos, que se soma, nessa Sessão de Comunicações nistério de Educação e Cultura/Instituto Nacio-
Coordenadas, ao estudos de duas outras — estrela nal do Livro, 1963.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

24
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
JACYRA MOTA
Universidade Federal da Bahia

ESTRELA CADENTE NOS ATLAS


REGIONAIS BRASILEIROS

1 Preliminares estrela cadente, a partir dos dados fornecidos pe-


los cinco atlas, considerando que essa é uma das
A geolingüística brasileira conta, atualmente, com quatro cartas3 que, coincidentemente, constam de
cinco atlas regionais publicados, três deles — o Atlas todos eles.
Prévio dos Falares Baianos (APFB), o Atlas Lin-
güístico de Sergipe (ALS), o Esboço de um Atlas
Lingüístico de Minas Gerais (EALMG) — recobrindo
2 Denominações para estrela cadente 4
uma área contínua, em grande parte coincidente com a
área do chamado falar baiano2 e dois de áreas geogra- Encontram-se, nos cinco atlas, diferentes de-
ficamente afastadas — o Atlas Lingüístico da Paraíba nominações para o fenômeno que se identifica como
(ALPB) e o Atlas Lingüístico do Paraná (ALPR). estrela cadente e, embora nenhuma delas ocorra em
Apresentamos nesta comunicação o estudo das todos os atlas, algumas se registram em mais de uma
denominações para o fenômeno identificado como área (cf. Quadros 01, 02 e 03).

QUADRO 01 - FORMAS DOCUMENTADAS EM TRÊS OU QUATRO ÁREAS


Nº DE LOCALIDADES EM QUE SE ENCONTRAM

FORMAS DOCUMENTADAS APFB EALMG ALS ALPB ALPR TOT.

exalação ~ (co)zelação ~ velação


~ relação ~ elevação ~ viração 39 13 01 15 -- 78
planeta ~ praneta 09 13 --- 13 08 43
cometa 02 16 --- --- 04 22
estrela corredeira 01 01 --- --- 01 03

Além dessas formas, merecem destaque as ocor- essa e outras formas flexionais do verbo mudar 5 ,
rências da expressão estrela se mudando, documen- em doze dos quinze pontos do ALS e em trinta e
tadas em quatro das 25 localidades do ALPB, e, com sete dos sessenta e cinco do ALPR.

QUADRO 02 - FORMAS DOCUMENTADAS EM DUAS ÁREAS


Nº DE LOCALIDADES EM QUE SE ENCONTRAM

FORMAS DOCUMENTADAS APFB EALMG ALS ALPB ALPR TOT.

mãe do ouro ~ mãe de ouro --- 25 --- --- 14 39


estrela de rabo --- 06 --- --- 08 14
satélite --- 06 --- --- 04 10
diamante --- 03 --- ---- 02 05
estrela-do-oriente --- 01 --- --- 02 03
papa- ceia 02 07 09
estrela d’alva --- --- --- 13 02 15
estrela cadente --- 01 --- 01 --- 02
Revista
2
A denominação falar baiano aplica-se, segundo Nascentes (1953), à área compreendida pelos estados de Bahia e do GELNE
Sergipe, norte, nordeste noroeste de Minas Gerais e oeste de Goiás. Ano 1
3
As outras cartas se referem a arco-íris, neblina e cambalhota. No. 2
4
Cf. APFB, carta 2; EALMG, cartas 22, 23 e 55; ALS, carta 2, ALPB, carta 38 e ALPR, cartas 13.e 14. 1999
5
Registram-se também as formas verbais mudar, muda, mudava, mudou, mudado e, no ALS, o substantivo mudança.

25
Ocorrem ainda os verbos correr, cair, descer e trocar.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
QUADRO 03 - FORMAS DOCUMENTADAS EM APENAS UMA ÁREA
Nº DE LOCALIDADES EM QUE SE ENCONTRAM
APFB EALMG ALS ALPB ALPR TOTAIS
FORMAS DOCUMENTADAS

meteoro 01 --- --- --- --- 01


estrela-do-norte --- 01 --- --- --- 01
estrela-andante --- 01 --- --- --- 01
estrela da guia --- ---- --- ---- 03 03
rabo de fogo --- --- --- --- 02 02
aparelho --- --- --- 02 02
rabisca --- --- --- 02 --- 02
sete-estrelas --- --- --- 01 --- 01
mercúrio --- --- --- 01 --- 01
barca --- --- --- 01 --- 01
estrela mariana --- --- --- 01 --- 01
meteorolito --- --- --- --- 01 01

2.1 Distribuição areal as duas substâncias fônicas presentes em


zelação e velação, [...] tem-se uma isoglossa
Examinamos, a seguir, a distribuição diatópica fônica não muito nítida, dentro do próprio
das formas que se documentam em mais de uma área. estado [da Bahia], que marca alternância entre
as dentais [z] e [v].
2.1.1 Exalação e variantes A variante zelação ocorre em vinte e um pon-
tos da Bahia — os pontos 1, 2, 13, 19, 23, 27, 29, 30, 31,
A ocorrência em quatro dos cinco atlas, em 78 32, 33, 34, 35, 36, 39, 41, 43, 44, 47, 48 e 49 e no único
localidades, de exalação e variantes delineia uma gran- ponto de Sergipe em que a forma é documentada (pon-
de área dialetal que se inicia na parte setentrional de to 60); velação se documenta em quatorze pontos —
Minas Gerais e se estende em direção norte, alcan- 14, 17, 20, 21, 22, 29, 30, 34, 37, 38, 39, 40, 41 e 466 ;
çando a Paraíba. Segundo os dados do APFB, essas exalação, em três — 4, 7 e 27; e relação apenas no
variantes são freqüentes na Bahia, onde deixam de ponto 21. (cf. mapa 1).
ocorrer em apenas quatorze pontos — os pontos 8, Quanto à alternância entre vogal aberta e fe-
9, 10, 11, 12 e 50, do extremo sul; os pontos 24 e 25, em chada, na sílaba anterior ao acento, é interessante
área limítrofe com Minas Gerais; os pontos 15 e 16, observar que em sete pontos do EALMG — pontos
próximos ao estado de Sergipe; os pontos 3 e 5, no 1, 1A, 1B, 1C, 5, 6 e 8 — registram-se variantes com a
Recôncavo baiano; e, mais ao norte, os pontos 26 e vogal média aberta ([é]) na primeira sílaba, como na
42, este último, a oeste, às margens do rio São Fran- Bahia, enquanto nos outros seis pontos a vogal é
cisco (cf. mapa 1). fechada ([ê]).
Em Sergipe, registra-se apenas uma ocorrência Fora da área do falar baiano, zelação registra-se
de zelação, no ponto 60. também na Paraíba, nos pontos 5, 6, 8, 9, 12, 14, 15,
Ao norte de Minas Gerais, na área mineira do 16, 18, 19, 20 e 22, onde se encontram ainda as va-
falar baiano, registra-se zelação, nos pontos 1, 1A, riantes elevação, nos pontos 22 e 24, e viração, no
1B, 1C, 2A, 5, 6, 7, 8 e 10 e, mais ao sul, ainda próximo ponto 9. (cf. mapa 2).
ao falar baiano, no ponto 18. Ocorrem aí mais duas
variantes: cozelação (no ponto 16) e velação (no ponto 2.1.2 Planeta, praneta
52). (cf. mapa 1).
A propósito das variantes zelação, velação e As variantes planeta e praneta — as mais do-
exalação, no falar baiano, citamos Ferreira e Cardoso cumentadas depois de exalação e variantes — encon-
(1994: 13): tram-se em 43 localidades, também em quatro dos
cinco atlas (APFB, EALMG, ALPB e ALPR).
Neutralizadas as três substâncias fôni- Essas variantes delineiam uma subárea no fa-
cas é possível delinear uma isoléxica que lar baiano que compreende o nordeste de Minas Ge-
aponta uma semelhança de grande parte do rais, — pontos 4A, 15, 19, 20, 23, 38 e 39 — e o extremo
estado da Bahia, excluindo-se a região sul, sul da Bahia — 9, 10, 11, 12 — estendendo-se daí em
Revista com a área contígua do norte de Minas Ge- direção norte, por uma faixa que alcança os pontos
do GELNE rais, contrastando com Sergipe onde zelação 25, 23, 22 e 20, pelo interior, e o ponto 5, próximo a
Ano 1 teve ocorrência única. [...]. Observando ainda Salvador, pelo litoral. (cf. mapa 3).
No. 2
1999
6
Os pontos 37, 38, 39, 40 e 41 encontram-se às margens do rio São Francisco.

26
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Em Minas Gerais, as variantes ocorrem ainda 45 e 57; diamante, em três pontos do EALMG, —
nos pontos 31 e 32, um pouco abaixo do limite do falar 24, 40 e 45 e dois do ALPR — 49 e 53 e estrela-
baiano, a oeste, e, mais abaixo, nos pontos 29, 40, 51 do-oriente apenas no ponto 40 do EALMG e nos
e 85c (cf. mapa 3). pontos 22 e 29 do ALPR.
É interessante observar que planeta e praneta
é também documentado na Paraíba, em treze localida-
des espalhadas por todo o Estado — os pontos 2, 3, 4, 2.1.5 Estrela-d’alva e papa-ceia
6, 7, 8, 10, 15, 16, 17, 18, 19 e 24 — (cf. mapa 2) e no
Paraná, em oito localidades — pontos 14, 25, 37, 44, Estrela-d’alva e Papa-ceia, formas representa-
55, 58, 59 e 62. (cf. mapa 5). das no ALPB em 13 — 1, 2, 3, 4, 10, 11, 13, 14, 15, 16,
17, 20 e 25 — e 07 pontos — 1, 8, 12, 13, 14, 17 e 24,
2.1.3 Cometa e estrela corredeira respectivamente, encontram-se também em duas outras
áreas não contígüas: papa-ceia, em dois pontos de
Essas duas denominações encontram-se no Minas Gerais,— 70 e 73 — e estrela d’alva, em dois
APFB, no EALMG e no ALPR, com freqüências bas- do Paraná — pontos 11 e 29 .
tante diferenciadas.
Cometa, documentado em 22 localidades, encon- 3 Considerações finais
tra-se em apenas dois pontos da Bahia — pontos 1, no
litoral norte, e 40, ao norte, às margens do rio São Fran- Os diferentes nomes que se dão para o fenô-
cisco, e em quatro do Paraná — pontos 15, 25, 36 e 60. meno conhecido como estrela cadente, documenta-
Minas Gerais é a única das três áreas em que a dos em mais de uma área e em um número
forma é mais documentada. Aí cinco das 16 ocorrências significativo de localidades, como exalação ~
— pontos 13, 19, 21, 36 e 60 — encontram-se na parte zelação e outras variantes; planeta ~ praneta, mãe
leste do falar baiano, área em que, como vimos, tam- do ouro ~ mãe de ouro, possibilitam a delimitação
bém ocorre planeta; seis estão no falar mineiro — de isoléxicas importantes para a caracterização de
nos pontos 16, 17, 35, 53, 67 e 95 — e cinco no falar áreas dialetais do português do Brasil.
paulista — pontos 28, 29, 45, 74 e 86. (cf. mapa 4).
Estrela corredeira se documenta apenas uma A partir da análise dessas variantes observa-
vez em cada uma das três áreas (Bahia, Minas Ge- mos que:
rais e Paraná).
(a) a presença de zelação ~ velação em algu-
2.1.4 Mãe do/de ouro, estrela de rabo, satélite, mas localidades da Bahia e na parte setentrional de
diamante e estrela-do-oriente Minas Gerais demonstra a unidade da área que se
identifica como falar baiano, assim como a existên-
Essas denominações são encontradas apenas cia de subárea dialetal dentro dessa área, caracteriza-
no EALMG e no ALPR, indicando, talvez, uma área da pela ausência dessas variantes no extremo sul da
dialetal que começaria em Minas Gerais, abaixo do li- Bahia e na parte nordeste de Minas Gerais, subárea
mite do falar baiano, e se estenderia para o sul. em que ocorrem as variantes planeta ~ praneta, como
Mãe de/do ouro é a forma mais documentada vimos no mapa 3.
nas duas áreas em que ocorre. Em Minas Gerais, as 25
ocorrências localizam-se, quase exclusivamente, na (b) a alternância, nas variantes zelação e ve-
área centro-sul do Estado — áreas que se identificam lação, das consoantes iniciais [z] e [v] e das vogais
como de falar paulista e falar mineiro (Zágari, 1998: pré-acentuadas médias abertas ( [é] ) e médias fe-
34-35 e 46 ) — nos pontos 24, 27, 29, 33, 40, 45, 61, 62, chadas ( [ê] ) é também indicadora de subáreas diale-
63, 56, 59, 68, 69, 70, 75, 77,78, 80, 83, 84, 88, 89 e 90. Na tais no falar baiano;
área mineira do falar baiano, registra-se apenas em
dois pontos — o 2 e o 22. (cf. mapa 4). (c) a ausência de mãe do ouro, estrela de rabo,
No Paraná, as 14 localidades onde se encontra a assim como outras variantes menos representadas
variante mãe de ouro são as de número 9, 11, 19, 20, (satélite, diamante, estrela do oriente), na parte se-
25, 26, 30, 31, 34, 38, 45, 49, 53 e 60. (cf. mapa 5). tentrional de Minas Gerais e no Estado da Bahia, vem
Estrela de rabo registra-se no EALMG, em seis mais uma vez confirmar os limites do falar baiano,
pontos, cinco situados na área do denominado falar enquanto o fato de essas variantes se documentarem
paulista — pontos 28, 42, 44, 49 e 87 — e um na do apenas no EALMG e no ALPR pode estar indicando
falar mineiro, no ponto 81, próximo ao limite entre uma outra grande área dialetal, ainda não suficiente-
esses dois falares. (cf. mapa 4). mente delimitada;
As demais variantes comuns às três áreas — Revista
satélite, diamante e estrela-do-oriente — registram- O Paraná é, como vimos, a única das cinco áre- do GELNE
se em um número insignificante de pontos: satélite, as em que não se documenta exalação, sob qualquer Ano 1
em 6 pontos do EALMG (um no falar baiano, o ponto das variantes, apresentando, no entanto, um maior No. 2
2; três, a leste, no falar mineiro; e dois, a oeste, no grau de formas coincidentes com as do falar mineiro 1999
falar paulista) e em quatro pontos do ALPR — 14, 39, ou paulista de Minas Gerais.
27
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(d) a presença de variantes como zelação tam- ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de / Menezes, Cleusa
bém no ALPB mostra a semelhança entre o falar Palmeira Bezerra (1984): Atlas lingüístico da
baiano e o nordestino, aqui representado pelo Esta- Paraíba. v. I. Brasília: Universidade Federal da
do da Paraíba. Paraíba / CNPq, Coordenação Editorial.
FERREIRA, Carlota / Mota, Jacyra / Freitas, Judith
(e) a forma cometa não oferece elementos para / Andrade, Nadja / Cardoso, Suzana /
o confronto entre os diferentes atlas: registra-se prin- Rollemberg, Vera / Rossi, Nelson (1987): Atlas
cipalmente no EALMG — na parte nordeste e em loca- lingüístico de Sergipe. Salvador: Universida-
lidades mais ao sul —, aparecendo, no APFB e no de Federal da Bahia/ Fundação Estadual de Cul-
ALPR, em um reduzido número de pontos, afastados tura do Estado de Sergipe.
entre si.
FERREIRA, Carlota / Cardoso, Suzana (1994): A
dialectologia no Brasil. São Paulo: Contexto.
O fato estudado, assim como outros que têm
merecido a atenção de diversos pesquisadores, mos- NASCENTES, Antenor (1953): O Linguajar carioca.
tram a importância dos atlas regionais para o conheci- 2ª ed., Rio de Janeiro: Simões.
mento do português do Brasil, apesar das lacunas, RIBEIRO, José / Zágari, Mário Roberto / Passini, José/
que poderão vir a ser preenchidas com a publicação Gaio, Antônio Pereira (1977): Esboço de um atlas
de outros atlas regionais e com um levantamento em lingüístico de Minas Gerais. v. I. Rio de Janeiro:
âmbito nacional, como o que se está programando Fundação Casa de Rui Barbosa / Universidade
com o Atlas Lingüístico do Brasil. Federal de Juiz de Fora,
ROSSI, Nelson (1963): Atlas prévio dos falares baia-
Bibliografia nos. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro.
ZÁGARI, Mário Roberto (1996): Esboço de um atlas
AGUILERA, Vanderci (1996): Atlas lingüístico do lingüístico de Minas Gerais, em: Seminário nacio-
Paraná. Curitiba. Imprensa Oficial do Estado. nal caminhos e perspectivas para a geolingüís-
AGUILERA, Vanderci (1998): A geolingüística no Brasil- tica no Brasil. Salvador: Instituto de Letras, Uni-
caminhos e perspectivas. Londrina: Editora UEL. versidade Federal da Bahia, págs. 15-19.

Revista
do GELNE
Ano 1
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DENOMINAÇÕES para Estrela cadente no ALPB
DENOMINAÇÕES para Estrela cadente no falar baiano

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DENOMINAÇÕES para Estrela cadente no EALMG


DENOMINAÇÕES para Estrela cadente no falar baiano
DENOMINAÇÕES para Estrela cadente no ALPR

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JOSÉ LEMOS MONTEIRO
Universidade Federal do Ceará

ERRO GRAMATICAL OU
PRECONCEITO LINGÜÍSTICO?

A idéia de que existem formas lingüísticas corre- qüentes mas possíveis. Muitas vezes, o que se inter-
tas e, logicamente, formas erradas parece ser tão antiga preta como infração a uma regra gramatical nada mais
quanto as primeiras reflexões sobre a linguagem huma- é do que um empréstimo de outra norma.
na. Tal idéia constitui a razão de ser de um tipo de gra- O mais curioso é que essa concepção de erro
mática, denominada de prescritiva ou normativa, que não equivale necessariamente à de desvio. Este é um
privilegia o uso escrito da língua e condena as constru- conceito de base estatística, que se refere a qualquer
ções não abonadas pelos grandes escritores do passado. fato que destoa dos demais numa distribuição de fre-
O conceito de erro para essa concepção grama- qüências. Por exemplo, observou-se que o verbo ha-
tical deixa de levar em conta vários fatores, entre os ver, quando tem um sentido existencial, é usado
quais se evidenciam os seguintes: a) o uso oral é intrin- impessoalmente pela maioria dos escritores portugue-
secamente distinto do escrito, desde que ninguém fala ses e brasileiros tidos como grandes vernaculistas.
como escreve ou vice-versa; b) cada uso, oral ou es- Da alta freqüência desse emprego impessoal decorreu
crito, é influenciado pela situação comunicativa; c) a então a prescrição de que constitui erro crasso plura-
norma literária representa apenas uma das possíveis lizar o verbo haver em frases do tipo “houve eleições”
formas de realização do sistema lingüístico; d) uma ou “havia mulheres bonitas na festa”. A pluralização
vez que as variações e mudanças são inerentes à língua, no caso constitui um desvio, por ser uma ocorrência
a própria norma literária está longe de ser homogênea. bastante rara em comparação ao uso não flexionado,
É bastante simples comprovar que fatores como pelo menos em determinados estágios da língua. Mas,
os citados acima interferem na conceituação equivo- se tal desvio for encontrado em Camões (cf. no Auto
cada do chamado erro gramatical. Quando um professor d’el Rei Seleuco: “Hajam festas de prazer”, “Hajam
de português é taxativo em ensinar que o objeto dire- contos para ouvir”), apesar de gramáticos como Góis
to anafórico deve ser preenchido com o clítico acusa- (1951) o censurarem, a maioria tenta descobrir alguma
tivo, e não com o pronome reto, ou quando insiste em justificativa de ordem estilística.
dizer que ninguém pode começar uma frase por um Na realidade, além do desvio ocasionado pelo
pronome oblíquo, apenas está demonstrando não ter desconhecimento da norma ou por fatores de ordem
consciência de que no Brasil tais regras têm uma apli- psicobiológica, como o cansaço, a pressa e os lapsos
cação bastante restrita, não sendo adequadas por exem- de memória, há o desvio expressivo ou intencional,
plo à maioria das situações de fala espontânea ou objeto de estudo da estilística (Monteiro, 1991), prati-
mesmo a determinados tipos de expressão escrita. De cado quando o escritor percebe que a forma usual é
modo análogo, quando ensina as regras de concor- incapaz de expressar o que ele deseja. Os grandes
dância, estigmatizando construções de alta freqüên- criadores da língua, observou Coseriu (1987), rompem
cia nos dialetos populares, não percebe que essas conscientemente a norma e realizam no grau mais alto
mesmas construções poderiam até ser consideradas as possibilidades do sistema. Quando isso ocorre, não
elegantes e expressivas, se fossem incorporadas à se costuma dizer que houve um erro gramatical, senão
norma culta. E se algum aluno mais perspicaz lhe per- que uma prova maior do domínio lingüístico. Ao cha-
guntar por que é erro crasso falar de um jeito e não de mado erro sempre se atribui uma conotação negativa,
outro, sua resposta será sempre evasiva: “a gramática associado que é ao despreparo, descaso ou até mes-
diz que é assim”, “isso não soa bem”, “as pessoas mo falta de amor e respeito à língua materna. Como se
cultas e bem educadas não se expressam dessa for- os indivíduos que não têm acesso a um bom nível de
ma”. Em suma, pois, o errado é o modo de falar não escolaridade fossem culpados por se expressarem de
aprovado pela elite dominante ou o que pertence ao modo diferente.
domínio das classes desfavorecidas. Há uma forte ironia por trás disso tudo: as pes-
Não estamos querendo inverter os valores cul- soas que pertencem às classes desfavorecidas não
tivados pela sociedade nem muito menos defender têm o domínio da norma culta simplesmente porque a
Revista que o ensino de português deixe de tomar como refe- sociedade lhes nega, entre muitos outros, o direito a
do GELNE rência a chamada língua padrão. Nosso propósito é uma boa educação. Mas, como na fábula do lobo e do
Ano 1 apenas o de refletir sobre a hipótese de que o erro cordeiro, são elas que estão erradas e a elite está cer-
No. 2 gramatical na prática não existe, pois em última análise ta. E se cria nelas um sentimento de insegurança tão
1999 o que se condena no uso da língua ou são variantes grande que elas próprias passam a aceitar a culpa e
populares estigmatizadas ou construções pouco fre- admitir que realmente falam errado.
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Ora, conforme defendem inúmeros lingüistas, de se pronunciar, por exemplo, [papel] com o /e/ fe-
entre os quais Trudgill (1979), todos os dialetos são chado não afeta o sistema, mas constitui um desvio
igualmente bons como sistemas lingüísticos, uma vez da norma, sendo pois algo insólito. Há então um úni-
que são adequados às necessidades de seus falantes. co fonema /e/ no sistema, duas variantes típicas des-
Desse modo, o sentimento de que as formas discre- se fonema na norma e, finalmente, inúmeras
pantes do modo de falar culto são erradas se deve a realizações distintas (variantes individuais e ocasio-
um grave preconceito social. Nada há que torne por nais) na fala, nos atos lingüísticos.
natureza errônea uma variante popular. O que existe é No campo da morfologia, a distinção entre sis-
apenas uma associação com falantes de classes não tema e norma pode igualmente ser percebida. Assim,
privilegiadas pois, mesmo uma construção antes es- em português, embora o sistema permita para o plural
tigmatizada, não mais será avaliada como incorreta se das palavras terminadas em -ão três possibilidades,
for incorporada à língua padrão. A atitude prescritivista o plural de cão só se realiza na norma como cães. Na
da gramática e a pressão institucional da escola são, formação do feminino, a norma admite a oposição
por conseguinte, em grande parte responsáveis pela deputado / deputada ou vereador / vereadora, po-
manutenção do preconceito que sustenta essa falsa rém não a oposição cabo / caba; isto é, realiza só
concepção de erro. parcialmente o sistema. De modo semelhante, toman-
É verdade que, com o advento da lingüística, do-se como referência o paradigma derivacional, é
muito dessa postura prescritivista cedeu lugar a uma lícito afirmar que o sistema admite a adjunção dos
preocupação descritivista. Todavia, o pressuposto sufixos -mento ou -ção a qualquer base verbal. A
falso da homogeneidade sempre constituiu um obstá- norma, porém, seleciona cassação e não *cassamento
culo à plena aceitação das estruturas variantes, prin- e, de modo contrário, casamento e não *casação.
cipalmente as estigmatizadas. Em função desse Sendo assim, quando um falante cria uma nova
pressuposto, sobretudo a partir dos conceitos gera- forma, poderá estar apenas desenvolvendo as poten-
tivistas de agramaticalidade e inaceitabilidade associa- cialidades que definem o sistema. Não haverá erro
dos ao de falante-ouvinte ideal, a noção de frase algum nisso, pois a norma lingüística não é imutável.
correta ou bem formada continuou a ser cultivada por Mas, como se pensa que ela é imexível, se a nova for-
muitos pesquisadores, com talvez uma agravante: o ma, embora plenamente possível, for criada por al-
julgamento de uma sentença como boa ou má tornou- guém que relembre algum estigma de classe será
se dependente da intuição do próprio lingüista e não criticada e tachada de erro. Uma crítica sem o menor
mais do testemunho dos grandes escritores. fundamento, salvo o fundamento que termina sendo
A teoria sociolingüística veio, porém, demonstrar o maior de todos: o preconceito lingüístico.
que a agramaticalidade na fala cotidiana não passa de Em suma, pois, são critérios de ordem social e
um mito, sem base em dados reais. Deixando de lado os não de natureza estritamente lingüística os que sub-
titubeios ou lapsos normais, qualquer enunciado reú- sistem ao se avaliar uma forma de expressão como
ne condições de ser descrito, não passando de mera errada ou correta. O que se julga erro nada mais é do
diferença dialetal o que muitas vezes se julga uma fra- que uma diferença devida a fatores múltiplos, entre
se impossível. Labov (1983) afirma que, nos diversos os quais, a região, a classe social do falante e o registro
estudos empíricos que realizou, a grande maioria dos ou situação comunicativa. Seria bem mais lógico que,
enunciados é constituída de frases corretamente for- em vez de se ensinar que as frases são corretas ou
madas segundo todos os critérios. Assim sendo, em erradas, se transmitisse a consciência de que a língua
termos sociolingüísticos, a probabilidade de que al- não é uniforme nem estática e que, por isso mesmo,
guém produza uma sentença agramatical é quase nula. admite uma pluralidade de usos. Estes podem ser ex-
Na realidade, o costume de avaliar as frases como pressivos ou inexpressivos, elegantes ou grosseiros,
bem ou mal formadas tem muito de subjetividade pois, comuns ou raros, formais ou informais, adequados
conforme dissemos, depende da intuição do pesqui- ou não aos propósitos comunicativos, sempre dife-
sador. O que se constata em geral é que são frases rentes uns dos outros e jamais errados em sua essência.
perfeitamente normais em outro dialeto ou são cons-
truções absurdas que o sistema lingüístico não permi- Bibliografia
te e que, por isso mesmo, não ocorrem no desempenho
dos falantes nativos. COSERIU, Eugenio (1987). Sistema, norma e fala. In:
Não se deve esquecer que o sistema lingüístico, ___
Teoria da linguagem e lingüística geral. Rio
sendo um conjunto de oposições funcionais, oferece de Janeiro, Presença, pp. 13-85.
múltiplas possibilidades de realização. O fato de que GÓIS, Carlos (1951). Sintaxe de concordância.
uma construção possa parecer estranha às vezes de- 10. ed. Rio, Gráfica Sauer. 247 p.
corre de sua baixa ou nula freqüência, não querendo
isto dizer que o sistema não a aceite. Uma coisa é, MONTEIRO, José Lemos (1991). A estilística. São Revista
Paulo, Ática. 188 p. (Série Fundamentos)
pois, o que ocorre na norma ou na fala e outra é o que do GELNE
está previsto no sistema. LABOV, William (1983). Modelos sociolingüísticos. Ano 1
A título de ilustração, pode-se citar, seguindo Madrid, Cátedra. 411 p. No. 2
Coseriu (1987), o caso das vogais em espanhol, onde TRUDGILL, Peter (1979). Sociolinguistics: an Intro- 1999
não existe distinção entre abertas e fechadas. O fato duction. Great Britain, Penguin Books. 189 p.
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DERMEVAL DA HORA
Universidade Federal da Paraíba

PROCESSO DE PALATALIZAÇÃO DAS


FRICATIVAS NA LÍNGUA PORTUGUESA

1 Introdução Callou e Moraes (1995) constatam que São Paulo e


Porto Alegre revelam uma curva de variação estável,
com comportamentos diferenciados por sexo, o mesmo
Entendemos ser apaixonante dedicar-se ao es-
ocorrendo com o Rio de Janeiro e Recife. Salvador,
tudo de um fenômeno lingüístico e poder ao final ter-
entretanto, apresenta resultados intermediários, “com
se um perfil de sua distribuição, quer do ponto de
uma curva de variação estável para os homens e de
vista diatópico quer do ponto de vista diastrático,
mudança em favor da palatalização para as mulheres”.
entendendo seu processo de variação ou de mudan-
Estudo similar foi realizado por Mota e Rollem-
ça. Isso, com certeza, seria tarefa das mais fáceis, se
berg (1994), utilizando, também, dados do Projeto
não ocupássemos área territorial tão vasta e não ti-
NURC, especificamente de Salvador. Nesse estudo,
véssemos um processo de variação tão acentuado. E
o que nos chama atenção são os resultados referen-
mais fácil ainda seria se tivéssemos estudos mais sis-
tes ao condicionamento contextual. Segundo as au-
temáticos sobre a variável a ser estudada.
toras, p. 673,
Nosso objetivo nessa comunicação é tratar do
processo de palatalização das fricativas /s/ e /z/,
enfatizando estudos realizados e suas tendências. Para “os contextos em que figuram constritivas em
isso revisitaremos resultados conhecidos através da distribuição implosiva - em sílaba interna ou
literatura obtidos por alguns pesquisadores e apre- em final de vocábulo - mostram realizações
sentaremos alguns mais recentes. palatais em alternância com realizações al-
Nesse estudo, os dados analisados fazem parte veolares diante de quase todos os fonemas
de alguns projetos (NURC, APERJ e VALPB) e de al- consonânticos: as variantes não-sonoras
gumas pesquisas individuais. Têm em comum o fato de ([S,s]) se documentam antes dos oclusivos e
evidenciarem a variação do processo de palatalização. constritivos não sonoros (/p, t, k, f, s/); as
variantes sonoras ([Z,z]) diante dos oclusivos
sonoros labial e dental (/b, d/), dos cons-
2 Palatalização das fricativas alveolares tritivos lábio-dental, palatal e velar sonoras
(/v,Z, x/); do lateral alveolar (/l/), dos nasais,
Analisando dados do Projeto NURC/Brasil, dis- labial e alveolar (m/, n/)”.
tribuídos nas cinco capitais brasileiras (Porto Alegre,
São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife), Callou A análise desses contextos revela, segundo
e Moraes (1995) consideraram quatro variantes do Mota e Rollemberg (1994), diferentes índices para
fonema /S/ (fricativa alveolar, fricativa palatal, fricativa as palatais e alveolares, dependendo da consoante ini-
laríngea e zero fonético), encontrando 9.026 ocorrên- cial da sílaba seguinte; favorecendo o uso das palatais
cias, distribuídas posteriormente nos contextos pós- a oclusiva dental não sonora (/t/), e as demais conso-
vocálicos final e interno. antes favorecendo o uso das alveolares. Enquanto isso,
Sem levar em conta a posição da sílaba no com a presença da oclusiva dental sonora (/d/) não se
vocábulo, os resultados de São Paulo e Porto Alegre tem comportamento idêntico, visto que neste contexto
apresentam, segundo os autores, uma distribuição pra- predomina a realização das alveolares (87,5%).
ticamente idêntica , predominando a realização alveo- Para as autoras, situação similar à de Salvador
lar. Enquanto o Rio de Janeiro e Recife apresentam a verifica-se em outras áreas do Nordeste do Brasil, em
predominância da realização palatal, com índice mais que as fricativas estão sujeitas a um processo dissi-
baixo para Recife. Salvador revela uma distribuição, milatório sob a ação condicionadora de consoante
para alveolar e palatal, homogênea, respectivamente, dental da sílaba seguinte, a exemplo do Ceará..
Revista 45% e 44%. Brandão, utilizando o corpus do APERJ, levan-
do GELNE Discriminando os contextos medial e final, os tou para o estudo do /S/ implosivo 3.939 vocábulos.
Ano 1 autores constatam tendência consistente de palatali- Nesse conjunto, há predomínio das realizações alveo-
No. 2 zação em posição medial para todas as capitais. lares, ao contrário do que acontece na capital do Esta-
1999 No que concerne aos fatores sociais, e volta- do. Para a autora, os resultados devem ser relativizados,
dos especificamente para o processo de palatalização, visto que a posição e o valor morfêmico ou não do
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segmento implicam maior ou menor produtividade Utilizando o mesmo conjunto de fatores, rea-
das variantes. Em sua conclusão, ela constata que na lizamos análise independentes, de um lado as
região Norte-Noroeste do Estado do Rio de Janeiro fricativas surdas; de outro, as sonoras.
predomina a variante alveolar. Embora a tendência à Em relação às fricativas surdas, procedidas às
palatalização seja menor do que na variante culta, tan- amalgamações necessárias para a utilização do pro-
to na capital quanto em zonas rurais ou ruralizadas, a grama de regra variável, foram selecionados, hierarqui-
aplicação da regra vem sendo incrementada, o que camente, como relevantes os grupos de fatores:
corrobora não só seu caráter inovador, mas também contexto fonológico subseqüente, contexto fonoló-
sua representatividade como forma de prestígio. gico precedente, anos de escolarizaçào e classe de
Corrêa (1998), em seu estudo sobre o /s/ pós- palavras. No que concerne às fricativas sonoras, fo-
vocálico em Brasília, analisando 1.200 realizações, ram selecionados apenas o contexto fonológico sub-
tem como resultado 97% para alveolar, 2% para as- seqüente e distância em relação à sílaba tônica.
pirada e 1% para o zero fonético. Para a autora, as Levando em conta que o contexto fonológico sub-
realizações palatalizadas foram idiossincrasias na fala seqüente foi selecionado para os dois grupos de
de dois informantes. Um deles tem fortes laços com variantes, e, ainda, o objetivo de estabelecer uma
pessoas do Rio de Janeiro e o outro apresentou ape- comparação com resultados obtidos nos estudos aqui
nas três realizações. A autora conclui que a variante apresentados anteriormente, optamos por analisar
alveolar é praticamente categórica entre os apenas esse contexto.
brasilienses ali nascidos, o que hoje representa 41% Os resultados obtidos, em relação às fricativas
da população do Distrito Federal. Do ponto de vista surdas, levaram-nos a separar a consoante dental das
da classe social, não foi observada diferença. demais consoantes. Para a primeira, conforme Tabela 1,
observamos que sua presença é um forte condicionador
A análise do corpus do Projeto Variação da palatalização do [s], com índice 0.81 de correlação
Lingüística no Estado da Paraíba (VALPB) deu-nos, positiva. Enquanto a presença de outras consoantes,
ao todo, 9.699 ocorrências, distribuídas entre as va- categoricamente, se correlaciona à não palatalização.
riantes: [s], [S], [z], [Z], [h], [O]. No que concerne às fricativas sonoras, por
Considerando o baixo número de ocorrências questões operacionais, separamos os contextos sub-
para o zero fonético [O], e a recorrência de poucos seqüentes em três grupos, como se vê na Tabela 2.
itens lexicais (meOmo,109), e que, embora com Semelhante ao que aconteceu com as fricativas sur-
maior número de ocorrências, a variante [h] também das, a oclusiva dental sonora, categoricamente, está
apa-rece em poucos itens lexicais (mehmo, 564, correlacionada à palatalização, com índice categórico
dehde, 19), preferimos não considerá-las na análise. de aplicação, seguida da alveolar com 0.95. Na mesma
Optamos então pelas oposições [s] : [S] e [z]: [Z] em tendência anterior, as demais consoantes se corre-
interior de vocábulos. lacionam negativamente à palatalização (0.36).

Tabela 1
Contexto fonológico subseqüente

Contextos Apl./Total % Peso Relativo


Cons. Dental (este) 5811/5970 97 0.81
Outras cons. (escada) 47/1571 3 0.00

Valor aplicação = palatalização

Tabela 2
Contexto fonológico subseqüente

Contextos Apl./Total % Peso relativo


Cons. Dental (desde) 44/48 92 1.00 Revista
Cons. Alv. (deslocar) 2/4 50 0.95 do GELNE
Outras cons. (mesmo) 9/586 2 0.36 Ano 1
No. 2
1999
Valor aplicação = palatalização
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Confrontando nossos resultados com os obti- não pesquisadas, é que poderemos fazer afirmações
dos nos estudos de Callou, Moraes (1995) e os de mais categóricas acerca do processo em pauta.
Mota, Rollemberg (1994), verificamos convergências
e divergências. Em relação aos primeiros, a divergên- Bibliografia
cia básica está no fato de que nos dados das cinco
capitais brasileiras estudadas, no mesmo contexto que BISOL, Leda. A palatalização e sua restrição variável.
analisamos, há uma tendência generalizada à palatali- Porto Alegre, 1985. Relatório de pesquisa, mimeo.
zação das fricativas, independentemente do contexto
subseqüente. Já em relação aos de Mota, Rollemberg BRANDÃO, Sílvia Figueiredo. Sobre a palatalização
(1994), divergimos, principalmente, quando o contex- num dialeto brasileiro. 1998, mimeo.
to subseqüente é uma oclusiva dental sonora, uma CALLOU, Dinah, MORAES, João Antônio de. A nor-
vez que em Salvador a sua presença favorece o apare- ma de pronúncia do S e R pós-vocálicos: distri-
cimento de uma fricativa alveolar, ao contrário do que buição por áreas regionais. In: Diversidade lin-
acontece em João Pessoa, que categoricamente favo- güística e ensino, 1995.
rece sua palatalização. CORRÊA, Cíntia da Costa. Focalização dialetal em
Brasília: um estudo das vogais pretônicas e do /s/
4 Conclusão posvocálico. Dissertação de Mestrado, UnB:
DF, 1998.
O que fica claro, a partir de uma comparação HORA, Dermeval da. Palatalização das oclusivas
entre os resultados é que a palatalização parece deli- dentais: variação e representação não linear. Tese
near-se claramente como uma regra que aos poucos de Doutorado, PUC-RS, 1990.
tende a generalizar-se. Em se tratando das consoan- MOTA, Jacyra, ROLLEMBERG, Vera. Constritivas
tes em pauta, o contexto lingüístico fortemente atua implosivas na norma culta brasileira: alveolares
sobre sua aplicação. ou palatais? Actas do XIX Congreso Internacio-
Entendemos que só através de estudos sistemá- nal de Lingüística e Filoloxia Románicas. Universi-
ticos que abarquem outras comunidades, até então dade de Santiago de Compostela, 1989, p. 671-679.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

36
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MARIA DAS NEVES ALCÂNTARA DE PONTES
Universidade Federal da Paraíba

CLIMA & HIDROGRAFIA EM


MENINO DE ENGENHO, de José Lins do
Rego: uma análise sócio-etnolingüística

A presente comunicação intitulada CLIMA & A contribuição propiciada por esse estudo re-
HIDROGRAFIA EM MENINO DE ENGENHO, de pousa, a nosso ver, na influência de manifestações
José Lins do Rego: uma análise sócio-etnolingüística, socioculturais e na sua interação com a língua, na
é parte da nossa pesquisa desenvolvida no Doutora- obra em análise. Optamos pelo nível lexical, uma vez
mento em Letras, na Universidade Estadual Paulista que o léxico é o elemento móvel mais sensível às mu-
“Júlio de Mesquita Filho” – UNESP – Araraquara/SP danças culturais, que torna possível os diversos mo-
e tem como finalidade maior evidenciar vocábulos re- mentos de realização da língua, de forma que revela os
gionais/populares, considerando o nível do léxico utili- interesses culturais de uma determinada comunidade.
zado na cultura canavieira, especificamente na realidade Para tal análise, fizemos um levantamento sis-
sociocultural do Nordeste brasileiro, a partir do mundo temático dos termos, expressões e estruturas lingüís-
físico, tais como a flora, a fauna, o clima e a hidrogra- ticas, consideradas regionais/populares na obra.
fia, entre outros e sua repercussão na língua. Preten- Foram detectados os aspectos léxico-semânticos, de
dendo-se constatar como a língua reflete e retrata a forma a se consubstanciar uma amostra bastante re-
realidade física, social e cultural de uma região. presentativa do universo de Menino de engenho.
Averiguamos, mais especificamente, de que ma- Durante o curso das investigações, foram observa-
neira a relação entre o tipo de linguagem utilizado pe- das questões específicas envolvendo o intercâmbio
los habitantes da região açucareira e sua cultura é entre a sociedade, a cultura e a língua. Daí a necessi-
retratada no vocabulário, procurando-se, conseqüen- dade dessa visão sócio e etnolingüística, numa con-
temente, detectar possíveis interpenetrações lingüís- cepção de linguagem apoiada também na história na
ticas e extralingüísticas que agem na configuração desse Sociologia e na Antropologia Cultural.
vocabulário. Nossas reflexões foram orientadas por Os dados foram organizados em campos léxi-
princípios teóricos especialmente da Lexicologia, da co-semânticos, verificando-se, principalmente, as rela-
Semântica, da Sócio e da Etnolingüística indicadas na ções manifestas com a práxis social entre os diferentes
fundamentação teórica, além de textos específicos so- termos selecionados.
bre a obra de José Lins do Rego, bem como dicionários Os vocábulos levantados em Menino de enge-
gerais e específicos da língua regional. nho têm como suporte a realidade sociocultural do
Para atingirmos os objetivos propostos, proce- engenho, expressos pela linguagem regional/popu-
demos à observação direta da obra, tendo em vista o lar, ressaltando-se que, esse tipo de variação apresenta
nível lingüístico do léxico, espelho da realidade física, muito mais componentes de natureza etno-socio-
social e cultural da região, e, em particular, do universo lingüística do que propriamente regional.
açucareiro. Foram detectados os aspectos léxico-se- Os dados hauridos do corpus foram agrupa-
mânticos, de forma a se consubstanciar uma amostra dos em três macrocampos considerando-se o mundo
bastante representativa do universo de Menino de físico como representação da natureza, com todos os
engenho. Durante o curso das investigações, foram seus elementos e sua relação com o homem; os tipos
observadas questões específicas envolvendo o inter- humanos, destacando-se, sobretudo, o menino de
câmbio entre a sociedade, a cultura e a língua. Daí a engenho com todas as suas reminiscências, o senhor
necessidade dessa visão sócio e etnolingüística, numa de engenho - representante da aristocracia rural vi-
concepção de linguagem apoiada também na Sociolo- gente e, por fim, o homem do eito. Esse sistema tri-
gia e na Antropologia Cultural. partite dá a configuração do homem e de sua relação
Constitui, assim, objeto de nossa análise a lin- com a cultura, esta, constituindo o terceiro macro-
guagem regional/popular nordestina, considerando-se campo em que se pode observar, no plano material, o Revista
aspectos de ordem histórica, antropológica, socioló- engenho como construção (visão sociocultural), do GELNE
gica que o Autor exercita de forma livre, espontânea, como fábrica, a agricultura, a alimentação e a medici- Ano 1
num estilo com sabor de oralidade, constituindo-se numa na popular. No plano espiritual, incluem-se a religiosi- No. 2
marca da influência da linguagem regional/popular dade, as crendices e costumes além de artes e 1999
sobre a escrita. diversões que foram abordados como elementos
37
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portadores de idéias, de padrões de comportamento Observemos, assim, a visão do Coronel Zé
e atitudes, refletindo a relação correspondente no Paulino, ao tratar das enchentes:
comportamento lingüístico.
Para a organização dos campos léxico-semân- “Meu avô, em pé, olhava de uma ponta da
ticos específicos, adotamos um conjunto de gráfi- calçada as suas plantas de cana submer-
cos do tipo organogramas, procurando explicitar as sas, a sua safra quase toda perdida. Mas
relações semânticas básicas entre os vocábulos re- não se lastimava porque sabia que rique-
gionais/populares coletados em Menino de en- za em limo lhe trouxera o rio por suas ter-
genho. A metodologia usada para a elaboração desses ras. Ele mesmo dizia: - Gosto mais de
gráficos teve como suporte os modelos apresenta- perder com água do que com o sol.”(ME,
dos por John Lyons e B. Pottier cujas obras serão p.71)
referenciadas ao final do trabalho. Se o Rio Paraíba destrói os partidos de cana, se
Esse conjunto de informações forneceu os dados estraga as plantações, representa, também, a fartura,
que foram analisados no plano da Semântica e da Lexi- o limo para a terra.
cologia a fim de explicitar a descrição da realidade
lingüística nordestina como um dos paradigmas da Observemos, nos trechos a seguir, a grande
realidade brasileira. importância desse fenômeno para a vida dos enge-
Estabelecemos, enfim, uma análise léxico- nhos, assumindo dimensões expressivas nas relações
semântica considerando a realidade sócio-lingüístico- entre os dominados e o senhor de engenho.
cultural, tornando possível uma visão lingüística,
específica do ambiente físico e humano do mundo dos “O povo gostava de ver o rio cheio, cor-
engenhos. rendo água de barreira a barreira. Por-
Vejamos, a seguir, a nossa análise específica que era uma alegria por toda a parte
em torno do campo léxico-semântico do Clima e quando se falava da cheia que descia. E
da Hidrografia. anunciavam a chegada como se tratasse
de visita de gente viva [...]”(ME, p.68)
Descrição temática do campo léxico- [...]
semântico “E por onde as águas tinham passado,
espelhava ao sol uma lama cor de moeda
Clima & hidrografia de ouro: o limo que ia fazer a fartura dos
Neste campo incluíram-se não apenas os rios, novos partidos.”(ME: p.74)
mas todo manancial associado à idéia de ÁGUA - ele-
mento de importância relevante no dia-a-dia do enge- O Rio, enfim, é o elemento de efeito mágico fun-
nho, de forma a estabelecer-se uma vinculação entre cionando, sobretudo no inverno, como um persona-
ele e a realidade humana; além, evidentemente, do cli- gem dramático, caracterizando a interação da
ma, como fenômeno ligado à hidrografia. natureza com o homem.
Como já foi dito, não foram incluídos, neste cam- As citações a seguir justificam:
po, apenas as correntes hídricas, mas, ainda, associa-
ram-se outros itens que constituem fenômenos “Fomos ver o rio. E pouco andamos, por-
cíclicos, como as enchentes, de grande destaque no que já estava entrando pelas estreba-
universo do Nordeste úmido. rias.”(ME, p.79) [...]
O episódio da cheia constitui um fato marcante “Mas o rio, que vazava para mais de metro,
no mundo dos engenhos, razão por que há tantas à noitinha começou a encher outra vez.
expressões para caracterizá-lo. Observemos algumas: Nós íamos sair de casa em carro de boi
“cabeça da cheia”, “correnteza d’água”, “barulho das para a caatinga.”(ME, p.72)
águas”, “água muita”, “água com força de açude ar-
rombado”, entre outras. Há nele uma significação simbólica trazendo a
O Rio Paraíba sintetiza a maior corrente hídrica imagem da terra fértil, coberta de lavoura, num cenário
naquele contexto e representa, assim, o paradoxo en- verde, com água deslizante e de grande fecundidade.
tre a destruição e a riqueza. Sua faixa marginal povoa-se de casas-grandes,
O problema da enchente nivela a todos, igua- solares, de amplas varandas, harmonizando a fidalguia
lando os da casa-grande e os da “senzala”. com a fartura, caracterizando, assim, o domínio do
Como se vê, Menino de engenho é um docu- patriarcalismo, símbolo de dominação e de poder.
mento vivo da miséria da Várzea, das dificuldades do
homem servil, pobre, que vive em condições subuma- A pintura da “enchente” do rio é uma das pas-
Revista nas, uma vez que o clima e a hidrografia, notadamente, sagens mais belas do romance que se passa na zona
do GELNE a cheia exercem tanta influência nos seus hábitos e fronteiriça entre Pernambuco e Paraíba, retratando,
Ano 1 costumes, expressos com vigor na língua comum. com muita clareza, as paisagens e a vida dos enge-
No. 2 A cheia representa também perspectiva de far- nhos de açúcar, na civilização rural nordestina.
1999 tura, pois traz o limo para a terra. Assim, a mesma água Como se observa, apesar de todas as classifi-
cações, é intensa a marca do Regionalismo na obra,
38
que destrói traz a fartura.
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a riqueza de vocábulos, bem como a existência de Ressaltamos que, na bibliografia compulsada,
uma marca forte, de um estilo de espontaneidade, de pouco há descrito sobre a questão do clima e da
apego ao mundo descrito. É importante salientar que hidrografia em Menino de engenho. Entretanto, es-
a base regionalista foi fundamental para a obra de José peramos que as nossas observações preliminares
Lins enquanto narrativa criada a partir de uma moti- possam ser valiosas para futuros pesquisadores
vação estético-cultural. dessa área.

CAMPO CONCEITUAL & REDE SEMÂNTICA


1.1 CLIMA & HIDROGRAFIA

AGUACEIRO, CHUVADA, PANCADA

PÉ-D’ÁGUA CHUVA (Fenômeno)

CONSEQÜÊNCIA

CABEÇA D’ÁGUA AÇUDE ARROMBADO BUEIRA


(Reservatório d’água) (Ponte submersa)

CABEÇA DA CHEIA COM MAIS DE NADO CACIMBA


(Rio) (Reservatório d’água
subterrâneo após
enchente)

DESTRUIÇÃO

LIMO
(Boa agricultura)

FARTURA

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MARIA APARECIDA BARBOSA
Universidade de São Paulo

ESTRUTURA, FUNÇÕES E PROCESSOS


DE PRODUÇÃO DE DICIONÁRIOS
TERMINOLÓGICOS MULTILÍNGÜES

Introdução continuum, que vai da microestrutura mínima - en-


trada e definição sumária - a uma microestrutura que
tende ad infinitum: os paradigmas informacionais
Este trabalho relata resultados de pesquisas que
atribuíveis a uma entrada compreendem faixa de va-
realizamos sobre a produção de vocabulários técnico-
lores de 1 a n.
científicos e dicionários terminológicos bilíngües e
Assim, existe uma microestrutura básica, de
multilíngües, no âmbito geral de nossas investigações
acordo com Debove (1971), constituída pelo con-
nas áreas de Lexicologia, Lexicografia e Terminolo-
junto das ‘informações’ ordenadas que se seguem à
gia. Examinamos aspectos de sua estrutura, natureza
entrada, que tem uma estrutura constante, corres-
e funções, face a metamodelos construídos pelas ciên-
pondente a um programa e a um código de informa-
cias que têm por objeto a palavra. Esses estudos per-
ções aplicáveis a qualquer entrada. A esse conjunto
mitiram-nos chegar à proposição de metodologia de
‘entrada + enunciado lexicográfico’ denominamos
compatibilização de um mesmo conceito em duas ou
‘artigo’ou ‘verbete’. Desse modo, o verbete míni-
mais línguagens de especialidade e, por outro lado,
mo tem dois constituintes: ‘entrada’ e ‘definição’.
de elementos estruturais básicos específicos desse
Observe-se, entretanto, que a definição, como
tipo de obra lexicográfica/terminológica, quanto à
os demais paradigmas integrantes do enunciado
macroestrutura, microestrutura e remissivas.
lexicográfico, e a metodologia que permite sua cons-
trução organizam-se em função da natureza da obra
lexicográfica ou terminológica em que comparecem.
1 Teoria, metodologia, tipologia Há, pois, correlação entre tipologia de dicionário e
tipologia de definições, estabelecendo-se relação de
Preliminarmente, a partir de um corpus dependência entre natureza da obra e natureza do
constituído de vários dicionários bilíngües, aleatoria- enunciado lexicográfico; ‘tipologia de dicionário’
mente escolhidos, examinamos sua macroestrutura, e ‘tipologia de enunciado lexicográfico’ situam-se
microestrutura e sistema de remissivas predominan- numa relação determinante/determinado: o tipo de
tes. Isso nos permitiu, dentre outras facetas, caracte- obra lexicográfica condiciona a quantidade, os ti-
rizar uma tipologia estrutural dessas obras e, quanto à pos de paradigma, a sua distribuição combinatória e
microestrutura, delimitar uma tipologia de relações coerções no enunciado.
de equivalência entre a entrada e a correspondente de- Observe-se, entretanto, que a definição, como
finição de um verbete. os demais paradigmas integrantes do enunciado
Considerando as questões acima apontadas à lexicográfico, e a metodologia que permite sua
luz dos modelos elaborados por J. Rey-Debove, G. construção organizam-se em função da natureza da
Haensch, H. Weinrich, Bernard Al, J. e C. Dubois, B. obra lexicográfica ou terminológica em que com-
Pottier, E. Coseriu, R. Galisson, F. Rastier, pelo Groupe parecem. Há, pois, correlação entre tipologia de di-
Interdisciplinaire de Recherche Scientifique et cionário e tipologia de definições, estabelecendo-se
Apliquée en Terminologie de Québec, pelos pesqui- relação de dependência entre natureza da obra e na-
sadores da terminologia francesa La banque des tureza do enunciado lexicográfico; ‘tipologia de di-
mots, como P. Lerat, dentre outros, levou-nos a pos- cionário’ e ‘tipologia de enunciado lexicográfico’
tular a existência de critérios fundamentais, para a situam-se numa relação determinante/determinado:
ordenação das entradas (macroestrutura), para a cons- o tipo de obra lexicográfica condiciona a quantida-
tituição das definições complementares (microes- de, os tipos de paradigma, a sua distribuição com- Revista
trutura) e para a explicitação da rede de relações binatória e coerções no enunciado. do GELNE
inter-verbetes (sistema de remissivas). Logo, a microestrutura básica exposta na fi- Ano 1
Quanto à microestrutura, um dos aspectos mais gura 1 é uma variável, visto que o programa de in- No. 2
complexos, nas reflexões sobre o saber e o fazer formações nele contido sustenta-se numa relação 1999

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lexicográficos e terminológicos, concebemos um de dependência para com o contexto lexicográfico.
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Thesauri, dicionários monolingües, dicionários bi- Nessa segunda estrutura possível, o ‘enun-
língües, multilíngües, vocabulários técnico-científicos, ciado lexicográfico’, constitui-se de três macro-
vocabulários especializados, glossários, etc., requerem paradigmas, três zonas semântico-sintáticas:
programas diferentes e adequados aos seus universos. paradigma informacional (PI), paradigma defini-
Nessas condições, indo além da estrutura mínima, o cional (PD) e paradigma pragmático (PP). Esses
artigo de dicionário, segundo Vilela (1983), pode con- macro-paradigmas, por sua vez, subdividem-se em
ter: entrada + informação (etimológica /ortográfica / micro-paradigmas, variáveis em qualidade e quanti-
fonética / gramatical) + definição (ou explicação) + dade, conforme a natureza da obra, seus objetivos,
exemplos (ou aplicação em contextos). limites e público-alvo. Desse modo, temos:

Artigo = { + entrada + enunciado lexicográfico (+ definição)}

microestrutura mínima
predicados da entrada

Figura 1

Artigo = { Entrada + Enunciado Lexicográfico (± PIi + PDi ± PPi)}

microestrutura possível

onde:
Paradigma I = {PI1, PI2 ,..., PIn}
Paradigma D = {PD1, PD2 ,..., PDn}
Paradigma P = {PP1, PP2 ,..., PPn}
ou seja,
Paradigma I = {abreviatura, categoria, gênero, número, conjugação, pronúncia, homônimos,
campos léxico-semânticos, etc.}
Paradigma D = {sema1, sema2 ,..., seman}
Paradigma P = {classe contextual1, classe contextual2 ,..., classe contextualn}
Figura 2

Teoricamente, o número de tipos de ‘informa- emprego preferencial por um autor; relações de sig-
ções’ sobre uma entrada tende ad infinitum. Assim, nificação como sinonímia, hiperonímia, antonímia,
outros paradigmas podem ser acrescentados aos ci- homonímia; analogias; ilustrações, etc.
tados, enriquecendo a microestrutura: índices de fre- Completando-se a fórmula inicial de micro-
qüência; nível de rapidez da difusão de uma palavra; estrutura, teremos, portanto:

Artigo = {+ Entrada + Enunciado Lexicográfico (± ParadigmaI1, + Paradigma Diferencial, ± Paradigma


Pragmático1 ± Paradigma PragmáticoI2,..., ParadigmaIn)}

micro estrutura que tende ad infinitum

Figura 3

Se a microestrutura, considerada em todos os elemento nuclear. Sua natureza também varia em fun-
seus aspectos, é variável de uma obra lexicográfica/ ção do contexto lexicográfico, numa relação inter-
terminológica para outra, é constante no interior de dicionários. É constante, porém, numa relação
Revista uma mesma obra. Adotado um programa, sustentar- inter-artigos e intra-dicionários, independentemen-
do GELNE se-á ao longo da obra. Essa mesma organização se te da modalidade de construção escolhida, na vasta
Ano 1 reitera em subclasses das macro-classes componen- gama de opções oferecidas pela tipologia de defini-
No. 2 cias da microestrutura. ções lexicográficas. Dessa maneira, quer se opte pela
1999 A microestrutura apresenta, pois, uma hierar- análise sêmica, quer por outro tipo de identificador
quia interna, que tem no paradigma definicional o seu
42
semântico, estabelecem-se paradigmas sêmicos
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(semas, sintagmas semânticos ou enunciados semân- de termos técnico-científicos da língua de partida e
ticos), que têm, igualmente, uma hierarquia e um pro- possíveis equivalentes na língua de chegada. Pude-
grama definitório (Barbosa, 1989). mos observar muitos outros tipos de soluções estru-
Desse modo, se a microestrutura é constituída turais na classe dos dicionários e vocabulários
de um ‘programa de informações’, requerido pelo bilíngües e multilíngües, que confirmam essa falta
contexto lexicográfico e pelo universo de discurso de homogeneidade e coerência estruturais. Mesmo
que lhe corresponde, chega-se às correlações entre no caso dos vocabulários que optam pelo tipo de es-
diferentes tipos de obra e os níveis de atualização trutura formada por entrada na língua de partida e
dos elementos lingüísticos: sistema, normas e falar equivalentes na língua de chegada, ocorre enorme va-
concreto (Coseriu, 1969). riação, na medida em que há toda uma tipologia das
Tomando por base o modelo de Charles Muller relações de equivalência, dentre elas o caso ideal e
(1978) sobre a distinção entre universo léxico, con- raro de equivalência aproximada entre duas unida-
junto vocabulário e conjunto palavras-ocorrência, des, uma, da língua de partida, e outra, da língua de
e a relação que o autor estabelece entre universo chegada; muito mais comuns são os casos de exis-
léxico e sistema, conjunto vocabulário e normas, tência de vários equivalentes na língua de chegada,
conjunto palavras-ocorrência e o falar concreto, para uma única unidade léxica da língua de partida,
e, ainda, a distinção que faz entre lexema (unidade ou, inversamente, de várias entradas, da língua de
lexical de sistema), vocábulo (unidade lexical de partida, às quais corresponde apenas um equivalen-
normas), palavra (unidade lexical de falar concre- te na língua de chegada.
to), inferem-se alguns aspectos fundamentais.
Destacamos aqui a correlação possível entre: 2 Relações entre conjuntos noêmicos
a) dicionário de língua/universo léxico/conjunto e conjuntos léxico-semânticos
lexema/sistema; b) vocabulário técnico-científico,
especializado/conjunto vocabulário/conjunto de Nesse sentido, nota-se que as relações entre
vocábulos/norma; c) glossário/conjunto palavras- os conjuntos noêmicos e os conjuntos léxico-semân-
ocorrência/conjunto de palavras/falar concreto. ticos das estruturas lingüísticas que os manifestam,
De maneira geral, a eficácia dos dicionários e, no âmbito do universo conceptual-cultural de uma
mais especificamente, a dos vocabulários técnico- língua, as relações entre os conjuntos noêmicos de
científicos depende, em grande parte, da seleção e uma língua e de outra, ou seja, entre os universos
ordenação adequadas dos modelos de paradigmas sub- conceptuais-culturais que lhes correspondem, e, ain-
jacentes à sua estruturação, paradigmas informacio- da, as relações que se estabelecem entre os conjun-
nais, definitórios e pragmáticos. Contudo, verifica-se tos léxico-semânticos de duas línguas ou mais
que a desejada uniformidade metodológica e estru- línguas distintas caracterizam-se como funções de
tural - um dos princípios que devem reger a produ- bijeção, injeção e sobrejeção.
ção de qualquer obra lexicográfica/terminológica e Temos, pois:
garantir o seu estatuto, natureza e funções - nem sem-
pre ocorre. CONJUNTO CONJUNTO
Nos vocabulários por nós analisados, observa- CONCEPTUAL ¨
LINGUÍSTICO
mos acentuada falta dessa postulada uniformidade.
Com efeito, alguns deles apresentam uma micro- a) * * um conceito,
uma denominação
estrutura constituída, apenas, da entrada, na língua de
especialidade de partida, e de uma ‘definição’ restri- b) * * um conceito, duas
* ou mais denominações
ta a possíveis unidades léxicas equivalentes, na lín-
gua de chegada; outros organizam-na como entrada e c) * dois ou mais
* * conceitos,
a correspondente definição, elaborada na língua de uma denominação
chegada, da língua de especialidade de partida; ou- d) * Ø um conceito,
tros, ainda, apresentam um enunciado lexicográfico/ sem denominação
terminográfico constituído de entrada + pronúncia
+ categoria gramatical + domínio de experiência + Percebe-se a complexidade da rede de rela-
definição ou equivalentes da entrada da língua de par- ções que se estabelece entre as unidades da língua
tida, formulada com a língua de chegada + de partida e aquelas que devem ser propostas como
combinatória semântico-sintáxica na língua de par- equivalentes. A relação nunca é biunívoca, já na
tida (frase ou segmento de frase), traduzida na lín- linguagem coloquial. Nas linguagens de especiali-
gua de chegada + sentidos figurados, da língua de dade, a rede de possíveis ‘equivalentes’ torna-se ainda
partida (frase ou segmento de frase), traduzidos na mais complexa. Por vezes, não há nenhuma unidade
língua de chegada + informações morfo-sintáxico- lexical que possa ser proposta como equivalente e Revista
semânticas redigidas apenas com a língua de che- a solução tem de ser buscada numa paráfrase ou do GELNE
gada + remissivas. mesmo numa ‘explicação’ de tipo enciclopédico. A Ano 1
O primeiro tipo descrito configura, antes, uma precisão e o rigor exigíveis de um vocabulário téc- No. 2
relação terminológica que um vocabulário/dicioná- nico-científico, ou especializado, e de um dicioná- 1999
rio propriamente ditos, constitui somente uma lista
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rio terminológico acentuam o problema.
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Uma análise noêmica, léxico-semântica e se- 4 Conclusão
mântico-sintáxica de microssistemas de uma área
técnica e/ou científica permite determinar com pre- Cumpre ressaltar a questão dos sistemas de
cisão essas relações. valores sustentados por linguagens de especialidades,
manifestadas em línguas naturais distintas. Diferen-
3 Propostas de microestrutura de ças observadas, em alguns casos, são, apenas, termi-
dicionários terminológicos bilíngües nológicas, remetendo ao mesmo conjunto noêmico
e multilíngües ou conceitual; noutros casos, diferenças mais
profundas dizem respeito à própria organização con-
Obtém-se, enfim, um modelo de microes- ceitual da cultura e ao sistema de valores corres-
trutura de dicionários terminológicos bilíngües e pondente.
multilíngües, que contempla os seguintes campos: Existem, pois, tipos de relações entre o sistema
noêmico ou conceptual e o sistema terminológico,
a) paradigmas informacionais de pronúncia, de ca- conducentes a uma escala de equivalências, quando
tegoria gramatical, de domínio e sub-domínio da análise contrastiva entre termos de línguas distin-
de experiência, conjunto noêmico; tas, ainda que se considere a mesma área, domínio e
subdomínio.
b) paradigma definicional e formas equivalentes
na língua de chegada;
Bibliografia
c) paradigmas pragmáticos (frases ou segmentos
de frases, na língua de partida, traduzidos na lín-
gua de chegada, incluindo-se possíveis combina- BARBOSA, M. A. (1989) “Da microestrutura dos vo-
tórias semântico-sintáxicas); cabulários técnico-científicos”. In: Anais do IV
Encontro Nacional da ANPOLL. (Recife,
d) paradigma de freqüência de emprego e de nor- ANPOLL), p. 567-578.
malização na área de especialidade;
_____. (1990) “Considerações sobre a estrutura e
e) paradigma de formas lexicais equivalentes, no função da obra lexicográfica: metodologia,
discurso banal; tecnologia e condições de produção”. In: Coló-
f) paradigma informacional de relações de quio de Lexicologia e Lexicografia. Actas.
significação — ‘sinônimos’, parassinônimos, (INIC. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa),
hiperônimos, hipônimos, co-hipônimos —, para p. 229-241.
estabelecimento do sistema de remissivas. _____. (1996) “Dicionário, vocabulário, glossário:
concepções”. In: Cadernos de Terminologia, 1.
Por outro lado, uma ficha terminológica, para
(São Paulo, FFLCH-CITRAT), p. 23-45.
elaboração de vocabulários técnico científicos bi-
língües e/ou multilíngües, poderia, por exemplo, fi- BUZON, C. (1979) “Dictionnaire, langue, discours,
car assim constituída, para cada língua de partida: idéologie”. In: Langue française, 43. (Paris,
Larousse).
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1. N.º da Entrada. Termo em LP; informações tica general. (Madrid, Gredos).
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10. Nota 1 (explicativa,) THOIRON, P. et BEJOINT, H. (Org.) (1996) Les
11. Nota 2 (de caráter enciclopédico) dictionnaires bilingues. (Louvain-la-Neuve,
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13. Remissivas
VILELA, M. (1983) Definição nos dicionários do
14. Domínio, subdomínio, área de aplicação
português. (Porto, Ed. ASA).
Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
ALICE MARIA T. SABOIA
Universidade Federal do Mato Grosso

A VARIAÇÃO ORTOGRÁFICA
NOS DICIONÁRIOS

1 A variação ortográfica e a Terminologia princípio da escrita alfabética, a língua escrita apresen-


ta-se, a exemplo da oral, com dupla articulação e, além
A Norma Internacional - ISO 1087 - de 1990, traz disso, propicia a comunicação, na ausência ou no
em seu vocabulário, dentro de uma organização de distanciamento do interlocutor, no tempo e no espaço,
itens e subitens, a definição de variante como “cada permitindo, ainda, o vaivém entre a escrita e o oral, de
uma das formas existentes de um termo”, destacando, acordo com esse mesmo autor.
em nota, uma classificação dessas variantes em or- Na base, em princípio, a maior simplificação
tográficas, morfológicas e sintáticas, com remissão da escrita alfabética deve ser dada pela biunivocidade
ao conceito de termo, enquanto designação, ou entre os fonemas e as letras: quanto mais integrada
representação de uma noção, por meio de uma uni- for essa correspondência, maior a simplicidade do
dade lingüística, definida numa língua de especiali- sistema, como bem demonstram CASTRO et al. (1987:
dade. Dentro dessa perspectiva, dois conceitos 58). Acontece que inúmeros fatores terminam por im-
básicos destacam-se: 1. a monossemia, ou seja, a pedir uma perfeita adequação entre o sistema fonoló-
relação biunívoca entre designação e noção, pela qual gico e o sistema ortográfico das línguas, tais como,
uma designação representa uma e tão somente uma as mudanças fonéticas, com repercussões na repre-
noção; 2. a mononímia, ou seja, a relação entre de- sentação ortográfica, dado que, enquanto a língua
signação e noção, pela qual a noção tem apenas uma oral está sujeita à variação constante, na sua atuali-
única designação (1990: 5-6). zação discursiva, a representação escrita, ou melhor
Vale observar já, aqui, a própria designação das ainda, a ortográfica, está sujeita à normalização oficial,
noções da Semântica e da Terminologia. Trata-se do cuja periodicidade não se prevê, além do que, se cons-
termo ‘monossemia’ que, de acordo com BARBOSA tantemente modificada, poderá perder seu papel de
(1996: 37), em face da noção que representa, deve registro permanente da informação em forma oficial.
ser substituído por ‘monossememia’, se se levar em Do que até agora se expôs, tem-se que, se a
conta o universo de discurso específico do vocábulo- escrita alfabética das línguas guardasse o princípio
ocorrência. da biunivocidade permanentemente, estaria ela mais
A questão da designação, porém, é anterior a próxima das bases da Terminologia, no que tange às
toda essa discussão e remonta à própria relação ho- relações entre noções e designações.
mem-realidade, ou ainda, ser racional, linguagem e di- De qualquer modo, a escrita alfabética em tipos
zer, ou representar, lingüisticamente, a realidade. Ela gráficos proporciona a redução das variações indivi-
retroage, pois, à própria origem da linguagem que, para duais, encontradas nos manuscritos. Esse fator, ao
Platão, é o instrumento mais adequado para distin- lado da normalização oficial, proporciona a neutra-
guir, designar, a realidade (1961: 56). lização das variações, do que se tem um sistema orto-
Mais do que a história da linguagem, importa aqui gráfico que contempla, em si mesmo, todas as
a história da escrita, especialmente da escrita alfabéti- variações, uma vez que não privilegia qualquer atuali-
ca, cujo princípio foi descoberto pelos gregos por vol- zação fonética específica (CAGLIARI, 1992: 114-117).
ta de 2.000 aC., consistindo de uma representação Era de se esperar, portanto, que a escrita orto-
abstrata da língua, com duas virtudes básicas: a) do mes- gráfica garantisse uma única forma correta para cada
mo modo que na língua oral utiliza-se um número limi- unidade do léxico. Entretanto, não é isso que se verifi-
tado de sons (fonemas), a escrita apresenta-se ca e, ao contrário, a variação ortográfica identificada
organizada em um número limitado de figuras (os em línguas de cultura como a inglesa, a francesa, a por-
grafemas); b) como se sabe, o fato de uma língua estar tuguesa, etc. aponta na direção de que, se na escrita da
“morta” não elimina sua forma escrita ou, por outra, o língua padrão esse já é um problema relevante, com
número de línguas ágrafas é bem maior do que o das muito mais propriedade, ele se manifesta na represen- Revista
que têm a forma escrita; isso aponta a autonomia de tação escrita das línguas de especialidade, contrarian- do GELNE
uma forma em relação à outra, conforme ressalta do, frontalmente, o princípio da mononímia, dado que Ano 1
BAJARD (1994: 15-29). Um bom exemplo desse fato a variação ortográfica alcança apenas o significante No. 2
é a língua sânscrita, da qual somente se tem referência gráfico, determinando, assim, que uma noção seja re- 1999
na forma escrita. Desse modo, uma vez descoberto o presentada por mais de uma forma de sua designação.
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2 A variação ortográfica em algumas matégau, nanar/nanard, ogam/ogham, odographe/
línguas de cultura e o tratamento hodographe, pacquage/paquage, pacquer/paquer,
lexicográfico dessa questão quadrillion/quatrillion, quipu/quipou, raboin/rabouin,
rollet/rôlet, etc.

Nos países de língua inglesa, a variação orto-


3 A variação ortográfica
gráfica não chega a criar uma preocupação mais
constante. De qualquer modo, CARDOSO (1988:59)
nos países lusófonos
aponta vários exemplos dicionarizados, como:
defence/defense, offence/offense, license/licence, Diversamente do que ocorre na França, onde
traveller/traveler, marvellous/marvelous, skilful/ o grupo liderado por Nina Catach há vários anos de-
skillful, instil/instill, colour/color, theatre/theater, dica-se aos estudos nessa linha, tendo, inclusive,
como já se registrou acima, produzido excelente
judgement/judgment, mould/mold, foetal/fetal,
material de pesquisa, em torno das reflexões sobre
analyse/analyze, catalogue/catalog, etc.
a normalização ortográfica nos dicionários france-
No que se refere à língua espanhola, não obs- ses, a variação gráfica e/ou ortográfica da língua
tante a existência de variedades dialetais, historica- portuguesa não tem despertado muito interesse, en-
mente, o governo espanhol sempre conduziu a questão quanto área de pesquisa, quer no Brasil, quer em
ortográfica, de tal modo que conserva uma só orto- Portugal, quer nos outros países lusófonos, talvez
grafia, em face dos países de língua espanhola oficial. porque as universidades têm ficado à margem das
Desse modo, ainda que o procedimento não tenha sido discussões e das decisões em torno dos destinos da
escrita da língua portuguesa, pois credita-se à Aca-
“democrático”, o fato é que a unificação da escrita
demia Brasileira de Letras e à Academia de Ciênci-
não constitui maior preocupação dos governos, haja
as de Lisboa a competência (jurídica e intelectual)
vista que, no geral, o sistema comporta as variações. para definir a normalização e a normatização orto-
Entre os países de língua francesa, a própria gráficas da língua portuguesa.
França apresenta um grande volume de pesquisas Por essa razão, resta um grande espaço de pes-
nessa área e, oficialmente, desenvolve-se um traba- quisa, ainda pouco explorado, da variação ortográfi-
lho voltado tanto para as perspectivas lingüísticas e ca, de maneira geral e, em especial, nos dicionários. É
didático-pedagógicas, conforme destacam FAYOL e nesse viés que o projeto “Variantes Ortográficas da
JAFFRÉ (1992, quanto para as retificações ortográ- Língua Portuguesa” vem sendo desenvolvido, no
ficas, de acordo com CATACH (1995), desenvolven- Departamento de Letras do Instituto de Ciências Hu-
do-se um esforço, entre os estudiosos do ramo, no manas e Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso, em Rondonópolis. No momento, a investiga-
sentido de que se faça uma harmonização ortográfi-
ção aborda a variação já dicionarizada, para fins de
ca nos dicionários franceses. Para tanto, o Conseil
controle e de parâmetro, para detecção das variantes
Internationale de la Langue Française - CILF - então
não dicionarizadas.
sob a presidência de Joseph Hanse, dirigiu um im- Os resultados obtidos até agora apontam na di-
portante projeto de normalização ortográfica da lín- reção de que há uma variação decorrente da “faculta-
gua francesa, contando com a participação dos mais tividade”, prevista no Acordo Ortográfico de 1990, e
renomados especialistas em Lexicografia e em Or- outra decorrente de fatores diversos, como, por exem-
tografia, como Alain Rey, Claude Kannas, George plo, variações fonéticas, com repercussões ortográ-
Matoré, Charles Muller, entre outros, do que resul- ficas, o que, aliás, é de alta freqüência, tanto em
tou o livro intitulado Pour l’harmonisation português como nas outras línguas acima citadas.
orthographique des dictionnaires. Nesse trabalho, O fato de se registrar uma variação ortográfi-
registram-se um pouco mais de 2.600 unidades ca não prevista no Acordo é relevante, no sentido de
lexicais que apresentam mais de uma forma ortográ- que essa variação poderá ultrapassar os 2%, obtidos
fica. Senão, vejam-se alguns exemplos, extraídos em face dos 110.000 verbetes, base de cálculo tomada
desse trabalho: abadir/abbadir, abatage/abattage, pelas duas Academias, para prever o alcance, em ter-
mos quantitativos, dos usos facultativos, impeditivos
accon/acon, ægagre/égragre, allegro/allégro, angrois/
da tão sonhada unificação.
engrois, bagou/bagout, baïram/bayram, bouller/
É possível afirmar-se também que a variação
boulier, cabillaud/cabillau, caracul/karakul, carré/
ortográfica da língua portuguesa, nas hipóteses não
quarré, carreur/careur, caleil/chaleil, daïmio/daïmyo, previstas, alcança notadamente as línguas de especi-
dissymétrie/dyssymétrie, écepper/écéper, embatre/ alidade, como se verificou até o momento. Esse fato,
Revista embattre, évoé/évohé, euristique/heuristique, constatado nos dicionários de língua portuguesa que
do GELNE flegmon/phlegmon, gabare/gabarre, gesha/geisha/ vêm sendo examinados, explica a preocupação pre-
Ano 1 ghesha, harpé/herpé, herma/herm, indouisme/ sente na Norma ISO 1087, no que se refere especi-
No. 2 hindouisme, indusia/induse, jaco/jacquot/jacot, ficamente aos problemas advindos das dificuldades
1999 kasbah/casbah, kava/kawa, lanter/lenter, lambruche/ reais de normalizar, por inteiro, a ortografia dos ter-

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lambrusque, maffia/mafia, mage/maje, matagot/ mos, na direção de que sejam mononímicos.
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Bibliografia CATACH, N. Langue Française - L’Orthographe.
Larousse, Paris.
ANIS, J. (1983) Langue Française - Le signifiant CST (1990) Recommandations relatives a la Ter-
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glossário: concepções”. In: Cadernos de Termi- HANSE, J. (1988) Pour l’harmonisation ortho-
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CAGLIARI, L. C. (s/d) Alfabetização & Lingüística.
Editora Scipione, São Paulo. LEHMANN, A. (1995) Langue Française. L’exemple
dans le dictionnaire de langue. Histoire,
CARDOSO, M. E. (1988) “Entre irmãos e cavalheiros:
typologie, problématique. Larousse, Paris.
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da Costa, Lisboa. miotica et Lingvistica, nº 8, Plêiade, São Paulo.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

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MARIA ANTONIETA CARBONARI DE ALMEIDA
Universidade Estadual de Londrina

UMA NOVA DENOMINAÇÃO


DOS MUNICÍPIOS PARANAENSES

Cada povo tem sua tradição, seus hábitos, suas denominação é uma homenagem ao navegador itali-
idiossincrasias. Este povo procura diferenciar-se dos ano que descobriu a América.
demais à medida em que perpetua o seu passado, o Os imigrantes eslavos, por sua vez, aportaram
seu modo de ser. E a Toponímia, nosso objeto de estu- em 1896 na então “Colônia Pequena” que hoje é a
do, possibilita o entendimento de um povo uma vez cidade de Antonio Olinto, preito ao Ministro da In-
que procura analisar “o nome de lugar” como deposi- dústria, Viação e Obras, promotor de assentamentos
tário das esperanças, dos medos e da religiosidade de colonos ucranianos.
dos moradores de uma localidade. Mais recente, na década de 40, o norte do Esta-
Dauzat, em 1878, sistematizou as pesquisas so- do era conhecido como a “Terra da Promissão”, local
bre “os nomes de lugar da França”, apresentando a para onde migraram paulistas, mineiros e nordestinos.
etimologia dos topônimos. No Brasil, no início deste A qualidade das terras atraiu pessoas em busca de
século, Theodoro Sampaio muito trabalhou com os oportunidades. Diamante do Norte, por exemplo, é de
topônimos de origem indígena. Mais recentemente, colonização recente; segundo Ferreira (1996: 264), “por
Dick, na USP, procura classificar os topônimos com volta de 1949, levado pelo impulso de transformar flo-
base na sua motivação lingüística. Exemplo: rio do restas em núcleos de civilização, chegaram à região
Tigre – zootopônimo, São José do Rio Preto – hagio- do atual município de Diamante do Norte, os primei-
topônimo. ros povoadores do lugar”. O primeiro nome do povoa-
Outras pesquisas têm contribuído para a siste- do foi “Fazenda Macuco”.
matização da Toponímia – destacamos, em particular, O oeste paranaense também é de colonização
os estudos sobre a toponímia paranaense. O projeto recente, era “um imenso vazio demográfico” (apesar da
ATEPAR – Pelos caminhos do Paraná, da UEL, tem presença dos jesuítas no século XVI). Getúlio Vargas
disseminado reflexões acerca da denominação de mu- propôs a campanha “Marcha para o Oeste” com o
nicípios (bairros, distritos) e acidentes físicos (rios, intuito de assentar principalmente colonos gaúchos.
praias) do estado do Paraná. Palotina (a 654 km de Curitiba) é nome dado em “ho-
O recorte que propomos fazer, nesta comunica- menagem aos padres palotinos, que no início da colo-
ção, diz respeito à alteração dos nomes de municípios. nização muito contribuíram para a estabilidade social,
Alguns dados históricos serão apresentados pois são cultural e religiosa da comunidade” – a primeira deno-
eles que justificam a substituição de um nome por outro. minação do povoado foi Nova Iporã.
No século passado, parte da então Província do A nossa proposta não é apenas relatar a substi-
Paraná encontrava-se loteada em colônias distribuí- tuição dos nomes de municípios e seus motivos
das a imigrantes europeus (não esquecer que o país subjacentes. Nos casos mencionados anteriormente,
precisava de mão de obra, principalmente depois da observa-se a substituição de:
Abolição da Escravatura). Eram glebas de terra às quais a) antropotopônimo por antropotopônimo – Colônia
se atribuíam os nomes genéricos de colônia (ainda Alfredo Chaves > Colombo
no tempo do Império) ou de fazenda (neste século).
b) dimensiotopônimo por antropotopônimo – Colô-
À medida em que o desenvolvimento acontecia, a co-
nia Pequena > Antonio Olinto
munidade transformava-se em Distrito (de um mu-
nicípio maior, próximo) e, posteriormente, conseguia c) zootopônimo por litotopônimo – Fazenda Macuco
a sua emancipação política. > Diamante do Norte
Ferreira (1996: 240) atesta que o período de 1860- d) cronotopônimo por hicrotopônimo – Nova Iporã >
1880 marcou o estabelecimento de 27 colônias agríco- Palotina
las, assentando imigrantes europeus em terrenos Os exemplos indicam que não existe uma di-
Revista doados pelo governo de D. Pedro II. O atual municí- retriz única na substituição dos designativos de cida-
do GELNE pio de Colombo (a 20 km de Curitiba) foi, inicialmente, des. O objetivo desta comunicação é agrupar os
Ano 1 a “Colônia Alfredo Chaves”, que recebeu, em 1878, topônimos paranaenses em conjuntos que conside-
No. 2 cerca de 160 colonos de nacionalidade italiana. A pri- rem o nome original do povoado – qual era a sua
1999 meira denominação foi uma homenagem ao Ministro taxionomia? O “novo” nome se enquadra na mesma
da Agricultura, na época do assentamento; a atual categoria? O que se pode inferir de tal substituição?
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Um primeiro conjunto a ser estudado resgata Os poucos exemplos apontados indicam a subs-
antigos hagiotopônimos. A motivação religiosa é fre- tituição de um hagiotopônimo por antropotopônimo,
qüente na Toponímia brasileira e é registrada desde o etnotopônimo, mitotopônimo, fitotopônimo. Ou seja,
início da colonização. A cidade de São Paulo, por exem- não há uma uniformidade quanto ao surgimento de
plo, deve seu nome à data de sua fundação, a saber 25 um novo nome. Por isso, parece ser mais significativo
de janeiro, dia dedicado ao apóstolo Paulo. destacar-se que há a substituição de um hagiotopô-
Os nomes de cerca de 50 municípios paranaenses nimo: a visão teocêntrica dá lugar ao profano, ao ho-
enquadram-se, atualmente, na categoria de hagio- mem, à natureza.
topônimos, dando origem até a uma distinção entre Um segundo grupo de antigos nomes de muni-
hagiotopônimos autênticos (São João) e hagioto- cípios paranaenses arrola designativos bastante des-
pônimos aparentes (Santa Mônica), de acordo com critivos, como Barreiro do Oeste, numa referência às
pesquisa realizada por Lima (1997). “dificuldades da região, principalmente à péssima qua-
Entretanto, no passado, havia outros municípios lidade das estradas que, em tempos de chuva, fica-
que referendavam a fé do povo. A alteração do nome vam completamente intransitáveis” (Ferreira, 1986: 179)
parece indicar uma maior valorização do homem, como – o nome atual, Boa Esperança, provém do otimismo
vemos em: em um futuro melhor e foi escolhido pelos fundadores.

• Arraial Queimado era a denominação devida a um


• Nossa Senhora da Conceição do Cercado > Almi- devastador incêndio ocorrido na atual localidade
rante Tamandaré, patrono da Marinha; de Bocaiúva do Sul, nome que homenageia Quintino
• Santo Antonio do Iratim > Santa Bárbara > Bituruna, Bocaiúva, senador carioca que foi Ministro das Re-
termo usado para designar a nação indígena que lações Exteriores.
habitava a região (Ferreira, 1996: 178); • Lajeado, em 1925, era uma referência a um lugar às
• Villa Rica del Espiritu Santo > Fênix. margens do rio Laranjinhas, significa “arroio ou re-
gato cujo leito é de rocha”. Em 1943, substituído
A fundação da cidade remonta a 1580, com a por Abatiá, termo de origem Tupi que significa “ho-
presença de espanhóis e jesuítas; em 1632 a cidade mem de nariz batata” e/ou “grão de milho”.
foi sitiada, destruída e incendiada pelo bandeirante
paulista Raposo Tavares. A reconstrução da cidade Cumpre especificar, aqui, que um decreto fede-
permitiu uma comparação com a ave mitológica que ral promulgado a 21 de outubro de 1943 estipulava e
renasce das próprias cinzas. regulamentava a eliminação dos topônimos homôni-
mos, numa tentativa do governo organizar a Toponímia
• Sant’Ana do Iapó > Castro brasileira e incentivar, na mudança de nomes, a res-
tauração de nomes tupis.
O nome Castro é uma homenagem feita a
• Feijão Cru foi a primeira designação da localidade
Martinho de Mello e Castro, Ministro dos Negócios
de Marilena e traz à baila as dificuldades da época
Ultramarinhos de Portugal, nos anos de 1785 e 1790.
da colonização.
A nova denominação prende-se a um fato ocorrido na
prisão de Limoeiro, em Portugal. Encontrava-se en- Muitas vezes, o nome do rio (atribuído por to-
carcerado o capitão Manoel Gonçalves Guimarães, pógrafo) se estendia às pequenas povoações que se
enriquecido no contrabando de ouro e dono de exten- desenvolviam às margens do rio; posteriormente, a
sa área de terras que, ajoelhado, pediu clemência e localidade recebia uma nova denominação, como acon-
liberdade a Martinho de Mello e Castro. O prisioneiro teceu com:
informou que morava no Brasil, numa florescente fre-
guesia, na qual não havia justiça e os crimes ficavam • Suruquiá > Nova Aliança do Ivaí
impunes, mas... se lhe fosse concedida a liberdade, • Água do Sabiá > Santa Bárbara > Nova Santa
trataria de elevar a freguesia à categoria de vila e, com Bárbara
o nome do Ministro português, iria melhorar a vida • Água da Aliança > Vila Nova Dantzig > Cambé
dos que ali moravam. Tal pedido sensibilizou a autori-
dade que libertou o potentado e este, reconhecido, A cidade foi fundada por alemães, oriundos do
empenhou-se para que a nova nomeação fosse uma Porto de Dantzig. Na época da 2ª Guerra Mundial, o
realidade, em 1788. nome foi substituído por um termo de origem tupi e
Observa-se, também, a supressão do item lexical significa “árvore ou planta de raízes aéreas”.
que denota a religiosidade, mantendo-se parte do nome
• Rio do Tigre > Braganey, homenagem prestada ao
original, como em:
ex-governador paranaense (ainda vivo), que teve a
anteposição de seu nome ao prenome. Revista
• Nossa Senhora da Luz dos Pinhais de Curitiba >
do GELNE
Curitiba
Por último, um conjunto formado por apenas Ano 1
• São Sebastião do Guaraci > Guaraci três antropotopônimos teve alteração nos designa- No. 2
• Espírito Santo do Pinhal > Laranjinha > Ribeirão tivos de lugar. Curiosamente, dois deles são substituí- 1999
do Pinhal dos por antropotopônimos:
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• Epitácio Pessoa (ex-presidente da nação, cujo nome a) a substituição de hagiotopônimos, o que parece
não vingou por motivos políticos advindos do perío- ser um resquício do Humanismo;
do da Revolução de 30 e depois por já existir uma b) o uso de termos bastante descritivos do local,
cidade homônima no interior paulista) > Adrianó- registrando muitas vezes as adversidades vivi-
polis, homenagem ao pioneiro da indústria de miné- das na época da colonização;
rios da região, Sr. Adriano Seabra da Fonseca. c) a expansão do emprego dos nomes dos rios às
• Interventor Manoel Ribas, antigo governador do povoações próximas;
Paraná (1932-1945) > Munhoz de Mello, presidente d) a alteração de um antropotopônimo, que equiva-
do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, nome le a retirar a homenagem anteriormente prestada
dado à localidade em novembro de 1955. Ressalte- a alguém.
se que, em julho de 55, Campina Alta sofreu altera-
ção para Manoel Ribas. Bibliografia
• Lovat, de nacionalidade inglesa, foi o fundador da
Companhia de Terras Norte do Paraná, pioneiro da FERREIRA, João Carlos Vicente. O Paraná e seus
colonização > Mandaguari, termo de origem Tupi municípios. Maringá: Memória Brasileira, 1996.
que designa uma espécie de abelha silvestre. LIMA, Ivone Alves de. A motivação religiosa nos
topônimos paranaenses. In: Anais do XLV Gru-
Concluindo, pode-se dizer que o resgate dos pos de Estudos Lingüísticos de São Paulo. Cam-
primeiros designativos das comunidades aponta para: pinas: UNICAMP, 1997.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

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ANTÔNIO LUCIANO PONTES
Universidade Estadual do Ceará

DICIONÁRIO BILÍNGÜE
(PORTUGUÊS-FRANCÊS) DOS
TERMOS DA LINGÜÍSTICA APLICADA

Introdução a Sociolingüística, a Psicolingüística e outras vêm


tendo lugar de importância nos estudos de lingua-
O projeto Dicionário Bilíngüe (Português- gem, numa perspectiva essencialmente interdisci-
Francês) dos termos da Lingüística Aplicada vem plinar e multidisciplinar.
sendo desenvolvido por nós e por bolsistas ligados Por todos estes aspectos, é que se torna impres-
ao PIBIC/CNPq e encontra-se em fase inicial. cindível gerar um glossário técnico para fazer acessí-
Como ainda não temos um corpus completamen- vel a todos os interessados os conhecimentos relativos
te formado, nem análises realizadas, resolvemos, por à Lingüística Aplicada, área importantíssima, quando
ora, apenas apresentar, nesta publicação, o projeto. se coloca em discussão educação, ensino, intercâm-
No futuro, os resultados da pesquisa serão publica- bio cultural e circulação de conceitos no mundo.
dos em periódicos especializados ou em livros.
O glossário tem como público-alvo estudan- 2 Delimitação do Tema
tes de letras, tradutores e professores de línguas
estrangeiras. Dada a extensão do conceito, procuramos de-
limitar o campo de ação da área, porque se sabe que o
1 Importância da Pesquisa conceito em torno do que é verdadeiramente Lingüís-
tica Aplicada não é claro e seu campo de ação não é
A carência de um glossário multilíngüe, de base
bem definido, até mesmo para os profissionais da área.
terminológica, dos termos da Lingüística Aplicada pro-
Por isso, para a pesquisa em questão, conceberemos
voca dificuldades para todos os que produzem ou lêem
Lingüística Aplicada como a disciplina que investiga
textos acadêmicos em Língua Portuguesa, uma vez
tudo o que diz respeito ao ensino/aprendizagem de
que as línguas-bases para a formação dos pesquisa-
línguas: teorias/abordagens, métodos, planeja-
dores brasileiros tem sido o Inglês e o Francês, e a
mento curricular, técnicas, sistemas de avaliação,
fonte teórica mais vigorosa de que nos servimos tem
etc. Noutras palavras, eqüivaleremos Lingüística Apli-
sido alimentada por autores que escrevem livros, arti-
cada ao ensino de línguas, noção mais comum
gos e relatórios de pesquisa, em língua inglesa e em
encontrada nas obras especializadas e o que, tradicio-
língua francesa, principalmente.
nalmente, tem-se feito no Brasil e noutros países.
Diante disso, resolvemos desenvolver um pro-
jeto de pesquisa que tivesse como objetivo produzir
um glossário bilíngüe dos termos específicos da Lin- 3 Objetivos
güística Aplicada.
A Lingüística Aplicada foi o domínio contem- 3.1 Geral
plado como objeto de estudo porque é, hoje, uma área
que tem crescido rapidamente. Com o aparecimentos Produzir um dicionário bilíngüe (Português/
de vários novos programas de pós-gradução em Lin- Francês) dos termos da Lingüística Aplicada, seguin-
güística Aplicada foi criada a ALAB ( Associação de do a metodologia terminográfica, os fundamentos da
Lingüística Aplicada do Brasil). Sucedem-se com fre- Terminologia e as contribuições da Terminótica.
qüência os congressos, simpósios e seminários na área.
Publicam-se revistas especializadas e anais de eventos 3.2 Específicos
acadêmicos, com as contribuições emergentes.
Por ser esta área já bastante importante e com a) Descrever sobre os aspectos morfossintá- Revista
crescimento a passos largos, é natural a incorporação ticos e samânticos, os termos da área em questão; do GELNE
de novos termos para denominar abordagens, novas b) Caracterizar os gêneros dissertativos aca- Ano 1
técnicas, métodos, especialmente a partir do final da dêmicos, do ponto de vista pragmático; No. 2
década de 80, quando a Lingüística do Discurso, a Re- c) Apresentar as variantes terminográficas dos 1999
tórica, as Teorias Pedagógicas, a Psicologia Cognitiva, termos da Lingüística Aplicada.
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4 Metodologia 4.3 Da Macroestrutura

Os verbetes serão distribuídos em campos


Nosso trabalho baseia-se na orientação meto- nocionais, apresentando-se internamente em ordem
dológica da Terminologia temática, que segue as eta- alfabética. Optamos por tal modalidade por ser o glos-
pas seguintes: sário em questão organizado a partir da perspectiva
onomasiológica, que fundamenta, em geral, os estu-
4.1 Levantamento do Corpus dos de caráter terminológico.
Para facilitar a consulta, organizaremos um ín-
dice remissivo, em que todos os termos estarão em
No primeiro momento, fizemos o levantamento ordem alfabética, com o indicativo do número da
bibliográfico, com a finalidade de coletar informações página em que se encontrarão no glossário.
sobre o que foi feito no Brasil e outros países, relati- Usaremos programas computacionais adequa-
vamente a estudos e a pesquisas nas áreas da Termino- dos para o levantamento dos contextos e tratamento
logia e Lexicologia. do vocabulário.
Na etapa seguinte, levantamos a produção cien- Para a organização do glossário utilizaremos uma
tífica dos programas de pós-graduação em Lingüís- ficha terminológica, considerando os seguintes campos:
tica Aplicada, de 1987 a 1997, objetivando construir • Unidade terminológica
a nomenclatura do glossário em Português, a partir • Contexto
dos contextos recortados na literatura produzida.
• Definição
A literatura para composição do corpus, cons- • Domínio/sub-domínio
titui-se de teses, dissertações, artigos de periódicos
e livros, escritos em língua portuguesa, variante bra- • Informações enciclopédicas
sileira, cujos temas girarão em torno de ensino/ • Equivalente em Francês
aprendizagem de línguas, abrangendo teorias, abor- • Sinônimos/Quase sinônimos em Português
dagens, métodos, técnicas, sistemas de avaliação, • Siglas
considerando-se as capacidades de leitura, escrita,
• Variantes morfológicas
audição e fala, isso em L.M., L.2, L.E.
• Variantes morfossintáticas
Os termos coletados terão equivalentes em
• Variantes ortográficas
Francês. Essas equivalências serão extraídas de di-
cionários de Lingüística, livros, revistas, todos pro- • Área de aplicação
duzidos em língua francesa. Concluídas as fichas, organizaremos o glossá-
Os programas de pós-graduação que servirão rio, tanto do ponto de vista da microestrutura, quanto
de fontes de informação são: o da PUC/RS, o da PUC/ do ponto de vista da macroestrutura.
SP e o da UNICAMP, programas considerados de con-
ceito excelente, frente aos critérios de creden- 4.4 Da Microestrutura
ciamento da CAPES.
O glossário, em sua microestrutura, organizar-
se-á da seguinte forma:
4.2 Do Diagrama do Domínio
• Número de entrada
• Termo em Português, com informações gra-
Foi elaborado um diagrama de domínios, o qual maticais
será assim representado:
• Abreviatura
LINGÜÍSTICA APLICADA • Variantes morfológicas/morfossintáticas
Aplicação à Pedagogia do Outras aplicações • Quase-sinônimos
Línguas
Ensino de línguas • Termo equivalente em Francês, com infor-
Capacidade de leitura Abordagens, métodos, mações gramaticais
Capacidade de escrita sistemas de avaliação, • Definição
Capacidade de fala estratégias.
• Contexto
Capacidade de audição • Nota
• Remissivas
Serão considerados termos específicos os re-
Revista Trabalharemos com a definição por compre-
lacionados ao ensino de línguas e os relativos a estas
do GELNE ensão, a ideal para estudos terminológicos.
quatro capacidades.
Ano 1 As notas serão elaboradas para fornecer infor-
No. 2 A árvore do domínio servirá, então, para ava- mações adicionais, explicativas e/ou de caráter
1999 liar à relevância e a pertinência do termo em relação enciclopédico, que permitam ao usuário a compre-
à área considerada. ensão do fenômeno em causa.
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5 Considerações Finais veiculados hoje em Lingüística Aplicada, domínio que
cresce como ciência interdisciplinar.
Na fase em que se encontra a pesquisa, estamos
A pesquisa que ora se inicia pretende ser uma procedendo ao levantamento do corpus e formulan-
contribuição importante para os que se iniciam nes- do as fichas no programa computacional Access. Essa
ta área, considerando que não há trabalhos desse gê- etapa garantirá uma melhor organização micro e
nero que dêem conta dos principais conceitos macroestrutural do produto em questão.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

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CIDMAR TEODORO PAIS
Universidade de São Paulo

SISTEMAS DE VALORES E VISÕES DE


MUNDO NOS DICIONÁRIOS
TÉCNICO-CIENTÍFICOS
BILÍNGÜES E MULTILÍNGÜES

Introdução do processamento da informação que lhe é pecu-


liar. Desse ponto de vista, como é evidente, a estru-
Desde há muitos anos, nos interessamos, em tura, o funcionamento e a produção daqueles
nossos estudos e pesquisas, por modelos que procu- processos permitem construir modelos que procu-
ram dar conta das condições semióticas e semântico- ram dar conta do que é semelhante nas diversas co-
sintáxicas da produtividade sistêmica, lexical e discursiva munidades humanas, em função da chamada “natureza
(Pais, 1993: 554-602). Essas investigações nos con- humana”, como se dizia na Antigüidade.
duziram a outro importante problema, aqui abordado, Assim, por exemplo, todos os processos semió-
o exame de aspectos do processo de produção do co- ticos são suscetíveis de ser parcialmente explicados
nhecimento, articulado ao da produção da significa- por um modelo simples, o da oposição entre eixo
ção, enquanto função semiótica (Hjelmslev, 1966: paradigmático e eixo sintagmático. Todos os proces-
63-79), ou seja, das relações entre episteme - como sos semióticos contêm, ainda, no nível da competên-
projeção do homem sobre os ‘objetos do mundo’, no cia, um ‘léxico’, isto é, universo das unidades
sentido aristotélico - e semiose - entendida como pro- memorizadas disponíveis para atualização, e uma ‘sin-
cesso de instauração das relações entre o plano do taxe’, enquanto conjunto de regras ou de leis
conteúdo e o plano da expressão. combinatórias, para a produção de enunciados consti-
Assim, neste trabalho propusemo-nos a estu- tutivos do discurso e para a produção do próprio dis-
dar, ainda, aspectos do processo de construção e per- curso. No caso particular das semióticas verbais, por
exemplo, todas as línguas naturais conhecidas e seus
manente reconstrução da ‘visão de mundo’ das
discursos se assinalam pelo tratamento seqüencial e
comunidades humanas, em abordagem multidisci-
descontínuo (discreto) da informação, dentre muitos
plinar, fundamentando-se em modelos teóricos for-
outros aspectos.
mulados pela semântica cognitiva, pela noêmica, pela
Além disso, todas as semióticas-objeto cons-
semântica lexical, em sua forma mais avançada, e
tituem processos de produção de significação, de
considerando, ainda, suas articulações com a
produção de informação, de produção e sustenta-
sociossemiótica e a semiótica das culturas. Busca-
ção de ideologia, de sistemas de valores. Com eles
mos examinar certas facetas dos mecanismos de pro-
e através deles se dá a permanente construção e re-
dução do ‘saber sobre o mundo’ e suas relações com
construção de um saber sobre o mundo e da ‘visão
a produção de significação, de informação, como
de mundo’, eis que são “instrumentos de pensar o
também, com a sustentação de sistemas e micros-
mundo”.
sistemas de valores subjacentes aos discursos, em
Entretanto, se os mecanismos fundamentais
nível profundo e hiper-profundo.
da cognição e da semiose são os mesmos para o
homem, enquanto espécie, os processos e os resul-
1 A propósito dos ‘universais’ tados dessa produção incessante variam extrema-
semióticos e da diversidade cultural mente, daí decorrendo a constituição de culturas,
de formas de ordenamento social, de processos
Caracterizam-se os processos semióticos - sis- semióticos diferentes, de memória dessas codi-
Revista temas e discursos, ou, se preferirmos, competência ficações, donde o desenvolvimento do processo his-
do GELNE e desempenho, dialeticamente articulados -, verbais, tórico e a tomada de consciência no que tange a esse
Ano 1 não-verbais e complexos ou sincréticos, por certos complexo simbólico. Noutras palavras, temos, como
No. 2 atributos comuns e constantes, decorrentes da natu- conseqüência, a extraordinária diversidade socio-
1999 reza do homem, como espécie biológica, e de mecanis- cultural e lingüística que é o apanágio do homem.
mos básicos do funcionamento do cérebro humano, De fato, os homens são a única espécie animal do
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planeta que desenvolveu, por exemplo, milhares de pesquisa, aqueles modelos anteriormente publica-
instrumentos de comunicação distintos, para menci- dos sofreram reformulações.
onar apenas as línguas naturais. Quanto a essa ques- Trata-se de um domínio multidisciplinar por de-
tão, convém lembrar a afirmação de Hjelmslev (1966: finição, de que decorre a exigência de uma cooperação
79), no sentido de que “não existe formação univer- intensa entre ciências, disciplinas e domínios como,
sal, mas apenas um princípio universal de formação”. por exemplo, a lingüística, a semiótica, a antropologia,
É preciso assinalar que formar, no sentido a sociologia, a história, a filosofia da linguagem, as ló-
hjelmsleviano, significa atribuir, suprimir, criar ou gicas, as ciências da comunicação, as investigações
modificar valores. sobre inteligência artificial. Contudo, toda pesquisa inter
Nesse sentido, a ‘visão do mundo’ de uma co- ou multidisciplinar compreende uma ou duas discipli-
munidade sociocultural e lingüística, assim como a nas dominantes que definem o ponto de vista de que se
ideologia, ou, se preferirmos, o sistema de valores parte, para adicionar, em seguida, as contribuições das
de uma cultura acham-se sempre em contínuo pro- outras disciplinas envolvidas. Assim, nossos modelos
cesso de (re)formulação, num perpétuo “vir a ser”, e metamodelos fundamentam-se, essencialmente, na
no processo histórico da cultura e, paradoxalmente, lingüística e na semiótica.
transmitem aos membros da comunidade o senti- A nosso ver, os sistemas semióticos - verbais,
mento de estabilidade e de sua continuidade. Desse não-verbais e complexos ou sincréticos e seus dis-
modo, todos os processos semióticos (sistemas x cursos - são concebidos como processos de produ-
discursos), numa etapa qualquer de sua existência e ção, simultaneamente, da significação - relações
funcionamento, são geograficamente delimitados e entre um plano do conteúdo e o plano da expressão,
historicamente determinados. funções semióticas e metassemióticas lato sensu-,
Parece, pois, pouco produtivo afirmar, como o produção da informação do conteúdo - recortes cultu-
fazem certas teorias, que somente são pertinentes para rais -, produção, transformação e reiteração da ideo-
as ciências da linguagem e da significação, as caracte- logia - aqui entendida como sistema de valores - e,
rísticas ‘universais’ de tais processos semióticos, ou, por conseguinte, da ‘visão do mundo’. Nesses termos,
ao contrário, sustentar que apenas a diversidade lin- os sistemas semióticos e seus discursos articulam-
güística e sociocultural têm interesse científico. Como se dialeticamente, constituindo as duas instâncias dos
é evidente, articulam-se dialeticamente a universali- processos semióticos de produção (Pais, 1979a,
dade de certas estruturas e mecanismos decorrentes 1980; 1982; 1993: 309-328, 404-419). Espacial-
da natureza biológica do homem e a riquíssima e ex- mente delimitados e historicamente determinados,
tremamente complexa diversidade dos processos devem ser estudados, em sua estrutura e funciona-
semióticos, das culturas e dos modos de ordenamento mento no seio da vida social, enquanto instrumen-
social que, através dos primeiros, se constroem e per- tos de comunicação humanos, dotados de
manentemente se reconstroem. mecanismos de auto-regulagem e auto-alimentação,
e também em sua mudança no eixo da história, em
2 Considerações sobre cognição, suas relações com a sociedade e a cultura, enquanto
conceptualização e semiose instituições sociais, culturais e históricas.

Propusemo-nos, pois, a investigar as relações 3 Do mundo semioticamente cons-


entre o processo de construção e reconstrução do
truído e do percurso gerativo da
saber, efetuado pelo sujeito cognitivo, e o processo
de elaboração e reelaboração de um mundo semio- enunciação, da coerência e da
ticamente construído, pelo sujeito enunciador/ compatibilidade
enunciatário do discurso. Foram utilizados os mo-
delos da semântica cognitiva, da análise noêmica, da Por outro lado, pudemos verificar que dife-
análise sêmica e léxico-semântica, da socios- rentes sistemas semióticos e seus discursos em fun-
semiótica. Consideraram-se o percurso gerativo da cionamento numa mesma comunidade lingüística e
enunciação de codificação e de decodificação, seus sociocultural, não obstante a diversidade da nature-
níveis de estruturação e transformações, buscando za de seus códigos e processos de tratamento da in-
verificar de que modo neles se inscrevem e se arti- formação, produzem e reiteram, de modo geral,
culam o fazer cognitivo e o fazer discursivo. Em tra- recortes culturais compatíveis, sistemas de valores
balhos anteriores (Pais, 1979a; 1979b; 1982; 1984a; e ‘visões do mundo’ coerentes. Esse fato é detectável
1984b; 1985; 1988; 1993), examináramos muitos não só nos percursos de transcodificação inter-
aspectos dos processos de produção da significação semiótica, como também nos percursos sintag-
e da informação, da construção e permanente recons- máticos concomitantes dos discursos complexos ou
trução das visões do mundo, nos sistemas significantes, sincréticos resultantes do funcionamento combina- Revista
dos problemas observáveis nas relações que se estabe- do (em paralelo) de várias semióticas-objeto ditas do GELNE
lecem entre os processos semióticos, sistemas ‘simples’, ou seja, nas semióticas-objeto comple- Ano 1
semióticos e seus discursos, de um lado, e a socie- xas ou sincréticas (Pais, 1979b; 1993:382-403). No. 2
dade e a cultura em que se verificam sua operação e Nessas condições, diremos que tais sistemas e seus 1999
manifestação, de outro. Em função dos avanços da discursos constituem, em conjunto, o que chama-
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mos de macrossemiótica de determinada cultura dade, para ser tratada, em seguida, por qualquer
(Pais, 1982; 1993: 420-421). semiótica-objeto: o nível do metassistema concep-
Esse caráter culturalmente coerente e articu- tual, da conceptualização, das estruturas hiperpro-
lado, no tocante à informação, observado nos proces- fundas (Pais, 1979b; 1985; 1988; 1993: 535-541,
sos semióticos de produção, conduziu à necessidade 562-598). Nesse nível, são produzidos recortes cul-
de propor noções operacionais, utilizáveis na turais - destacados do continuum dos dados da ex-
metalinguagem científica, de elaborar ou reelaborar periência, como objetos, processos e atributos de
certos metamodelos, para tentar explicar não somen- objetos ou de processos - e analisados, a seu turno,
te os mecanismos que autorizam as transcodificações em traços semânticos conceptuais, os noemas, ob-
e, na realidade, impõem a coerência e a compatibili- jeto da noêmica (Pottier, 1980a; 1980b; 1991: 9,
dade mencionadas, no interior de uma macros- 13, 16, 60-70, 76). Uma rede de relações se esta-
semiótica, mas também aqueles que permitem as belece, pois, entre os recortes culturais - os
transcodificações inter-macrossemióticas, de uma a designata do mundo ‘referencial’ - e os conjuntos
outra cultura. de noemas, nebulosas sêmicas ou conjuntos
Daí decorreram nossos esforços de construção noêmicos que são os lexes (Pottier, 1974: 44 e 82),
de metamodelos, de reconstrução teórica dos patama- entendidos como designationes potenciais ou como
res, das etapas dos percursos gerativos da enunciação matrizes sígnicas pré-semióticas e trans-semióticas.
de codificação e de decodificação, dos corresponden- Esses lexes correspondem, de outro ponto de vista,
tes processos de elaboração, transmissão, armazena- aos conceptus, aos ‘modelos mentais’ de que se ocu-
gem, recuperação e reelaboração da informação. pa a semântica cognitiva, segundo a proposição de
Esses patamares e esses processos correspondem, Rastier (1991: 73-114). De maneira geral, a cada con-
por sua vez, teoricamente, a outros tantos níveis de ceptus, enquanto ‘modelo mental’, se relacionam um
abstração, desde os textos manifestados até as es- ou vários conceitos, ao nível lingüistico (de uma lín-
truturas hiperprofundas, pré e trans-semióticas, em gua natural), por exemplo.
correlação com os diferentes universos semióticos Entretanto, na passagem do patamar da percep-
afetados, nos planos do sistema e das normas (Pais, ção ao da conceptualização, convém distinguir três
1985; 1988; 1993: 522-553, 554-602). estágios de atributos semânticos, as latências (tra-
Essas reflexões nos conduziram a conceber um ços dos ‘objetos do mundo’ in potentia), as saliên-
percurso gerativo, em sentido amplo, da enunciação cias (traços que se destacam na semiótica natural) e
de codificação, que vai da percepção biológica - cul- as pregnâncias (escolhas do sujeito enunciador in-
turalmente filtrada - e da análise da experiência até a dividual e/ou coletivo), assim como as etapas que
sua manifestação em discurso e, inversamente, um intervêm entre as latências e as saliências - o “perce-
percurso gerativo da enunciação de decodificação, ber” - e entre as latências e as pregnâncias – “con-
que, por sinal, coincide com o processo de recons- ceber” (Pottier, 1992: 61-69; Pais, 1993: 556-561).
trução teórica do lingüista e do semioticista, a partir Aqui, parece-nos indispensável formular a hi-
dos textos manifestados, únicos objetos diretamen- pótese de que todo metassistema conceptual compre-
te observáveis. ende dois níveis e dois tipos de lexes. Os processos
O percurso gerativo da enunciação de codifica- mentais, na atividade cognitiva do homem, os meca-
ção compreende, como pudemos demonstrar em tra- nismos de produção dos recortes culturais, de cons-
balhos anteriores (Pais, 1985; 1988; 1993: 522-553, tituição dos lexes e dos ‘modelos mentais’ que são
554-602), a percepção, a conceptualização, a os conceptus, os mecanismos de seleção, de mudan-
semiologização, a semiotização - que inclui a ça e de fixação dos atributos semânticos, do estabe-
lexemização e a atualização - e, finalmente, a semiose lecimento e da transformação das relações entre tais
em discurso. Por seu lado, o percurso gerativo da formações e de sua conversão semiótica (através do
enunciação de decodificação realiza-se em sentido percurso gerativo) são próprios ao homem, enquanto
contrário, conduzindo à reconceptualização, à recons- espécie biológica e, nesse sentido, universais; nesse
trução, pelo sujeito semiótico, de uma análise da ex- primeiro nível, o mais profundo, situam-se certos
periência e, conseqüentemente, à realimentação e à lexes que integram a aptidão semiótica geral do ho-
auto-regulagem dos processos semióticos de pro- mem - denominadores comuns de todas as culturas e
dução (Pais, 1993: 309-328). sociedades -, que definem os universais semântico-
sintáxicos da linguagem e da significação, ou, se pre-
4 Do metassistema conceptual e ferirmos, proto-lexes (universais) que dirigem os
da produtividade discursiva processos de construção dos ‘modelos mentais’, as
operações cognitivas. A universalidade dos proces-
Dessa maneira, a compatibilidade dos recor- sos e mecanismos, de ordem mental, assegura a pos-
Revista tes culturais, a coerência ideológica e a própria pos- sibilidade de transcodificações entre metassistemas
do GELNE sibilidade das transcodificações exigem postular conceptuais distintos e, ipso facto, entre semióticas-
Ano 1 teoricamente uma instância, imediatamente subse- objeto de culturas e de macrossemióticas diversas
No. 2 qüente à percepção biológica e, portanto, pré-semió- (Pais, 1993: 584-598). Em contrapartida, no segun-
1999 tica – entendida como etapa logicamente necessária do nível do metassistema conceptual), ainda perten-
- e trans-semiótica - no sentido de sua disponibili- cente às estruturas hiperprofundas mas subordinado
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ao primeiro e, portanto, menos profundo, é preciso das línguas, de seus discursos, dos estudos semióticos,
situar os lexes ou conceptus construídos, que consti- sociossemióticos (Pais, 1984a; 1993: 454-456, 495-
tuem conjuntos ordenados de noemas bem definidos - 521) e de semiótica das culturas (Pais, 1993: 603-640).
o ‘léxico-conceptual’ -, específicos de uma cultura,
característicos desta e disponíveis para todas as semió- 5 Do léxico e das
ticas-objeto de uma macrossemiótica, resultantes do estruturas conceptuais
processo histórico da cultura. Ainda nesse segundo
nível, situa-se uma ‘sintaxe-semântica’ conceptual, Em determinado processo semiótico, as signifi-
encarregada da produção dos complexos conceptuais, cações - funções semióticas e metassemióticas lato
seqüências sintagmaticamente ordenadas de lexes/ sensu e suas combinações - e os recortes culturais
conceptus, suscetíveis de ser manifestados como enun- produzidos determinam em conjunto, como vimos, a
ciados, enquanto análise de determinada experiência, configuração de um mundo semioticamente construído
nos textos produzidos por uma semiótica-objeto. Tra- (Pais, 1984b; 1993: 556-561). Contudo, essas funções
ta-se, pois, de uma construção cultural e histórica, es- semióticas só podem existir no interior de uma semió-
pecífica de uma macrossemiótica, resultante de seu tica-objeto e no âmbito de determinada macrosse-
funcionamento e mudança incessantes, exposta a in- miótica; não são transcodificáveis; a informação de
terferências de outras macrossemióticas (Pais, 1993: conteúdo, ao contrário, fundamentada nos recortes cul-
584-598). turais, é suscetível de transcodificação, não só de uma
Por outro lado, os metassistemas conceptuais semiótica-objeto a outra, como também de determina-
assim construídos, em seu dinamismo, funcionam, como da macrossemiótica a outra, ainda que haja filtragem e
vimos, enquanto instância pré-semiótica e trans- certa perda de informação potencial. Essa foi sem-
semiótica, capaz de assegurar, por sua vez, a coerência pre uma das questões mais árduas das pesquisas
dos recortes culturais e a compatibilidade ideológica semióticas e lingüísticas.
intracultural e intra-macrossemiótica, sustentadas pelos Por outro lado, constitui o léxico uma espa-
processos semióticos, ou seja, pelos sistemas semióticos ço semiótico privilegiado, nos sistemas semióticos
e seus discursos, no interior desses limites. que são as línguas naturais. Com efeito, através dele,
Dessa maneira, os lexes, ou conceptus, enquanto sobretudo, se realizam a produção, a reiteração, a
matrizes sígnicas, são disponíveis para o engendramento transformação e a manifestação dos recortes cultu-
de funções semióticas e funções metassemióticas rais e da correspondente ‘visão do mundo’. Uma ten-
(Hjelmslev, 1968: 65-79 e 144-157; Pais, 1979b; 1985; são dialética e um processo de alimentação e
1993: 384-403, 548), em todos os sistemas semióticos realimentação são sustentados entre o léxico e os
e discursos dependentes de um mesmo metassistema sistemas e práticas sociais e culturais (Pais, 1979;
conceptual. O problema da convertibilidade dos lexes 1984b; 1993: 373-381, 641-649). Noutros termos,
em funções semióticas e metassemióticas lato sensu o léxico é um instrumento de produção da cultura e,
se propõe, então, nos percursos gerativos próprios a ao mesmo tempo, seu reflexo.
cada processo semiótico. Ora, as pesquisas lexicológicas, lexicográficas
O processo discursivo, como afirmamos mui- e terminológicas se defrontaram sempre com o pro-
tas vezes, é o único lugar possível da semiose, seja blema acima apontado, das relações entre significa-
da produção da significação e da informação novas, ção - necessariamente intrassemiótica - e
seja da reiteração da significação e da informação informação - suscetível de transcodificação -, ques-
preexistentes. Em dado discurso, as funções tão ainda mais complexa, quando as semióticas-ob-
semióticas e metassemióticas lato sensu têm um jeto envolvidas pertencem a macrossemióticas
valor de comunicação exclusivo desse discurso. O distintas (Barbosa, 1989).
discurso lingüístico e o das semióticas não-verbais Se uma língua natural e seus discursos, assim
co-ocorrentes, como a gestualidade, assim como os como os sistemas semióticos não-verbais e sin-
discursos complexos das semióticas sincréticas de- créticos, pertencentes a uma mesma comunidade lin-
terminam tratamentos em paralelo e processos de güística e sociocultural, integrantes da mesma
semiose concomitantes, transcodificações simultâ- macrossemióti-ca, produzem e reiteram recortes
neas, possibilitadas justamente pelo metassistema culturais compatíveis, produzem e reiteram um sis-
conceptual subjacente. O resultado dessa produção tema de valores coerente, como vimos, segue-se que
significante e informacional realimenta, através do esses recortes culturais, ou ‘referentes’, são espe-
percurso gerativo da enunciação de decodificação, o cíficos de determinada cultura, de sorte que não é
metassistema conceptual e todas as semióticas-obje- possível encontrar, noutras culturas, elementos que
to deles dependentes, conduzindo à auto-regulagem e lhes sejam idênticos, no sentido matemático do ter-
à realimentação. Evidentemente, o mecanismo é mui- mo. Fenômeno comparável se verifica nas relações
to mais complexo, nos processos discursivos em que entre dada língua natural e as metalinguagens, as ‘lín- Revista
se dão transcodificações entre semióticas-objeto per- guas de especialidade’, a partir daquela construídas, do GELNE
tencentes a diferentes macrossemióticas, dependentes entre uma língua natural e os universos de discurso Ano 1
de metassistemas conceptuais distintos. Reconhece- que lhe correspondem. No. 2
se, assim, a complementaridade obrigatória, por exem- Nessa perspectiva, toda transcodificação se 1999
plo, dos estudos de semântica cognitiva, de semântica efetua como uma busca de informações do conteú-
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do que sejam aceitáveis como ‘equivalentes’, para as Por isso entendemos que os lexes, ou conce-
quais são engendradas significações - intras- ptus, de outro ponto de vista, e os complexos concep-
semióticas - na semiótica-objeto receptora, capazes tuais constituem, tanto para o lingüista, para o
de manifestá-las. Evidentemente, soluções desse lexicógrafo, para o semioticista, como para os sujei-
tipo são sempre parciais, mais ou menos satisfatórias: tos falantes-ouvintes de uma língua natural e para os
não existem ‘sinônimos’ perfeitos numa língua na- sujeitos semióticos enunciadores/enunciatários, em
tural, salvo em casos excepcionais, e é impossível geral, das semióticas-objeto verbais, não-verbais e
encontrá-los, quando se passa de uma língua a outra. sincréticas, critérios e parâmetros que permitem ava-
O problema se apresenta com todo o seu peso nos liar a qualidade e a quantidade de informação produ-
trabalhos de elaboração de dicionários ou vocabulá- zida, o instrumento, não só para estabelecer relações
rios técnico-científicos e, sobretudo, na produção entre as unidades do léxico das línguas naturais e as
de obras lexicográficas bilíngües ou multilíngües unidades das metalinguagens construídas a partir da-
(Barbosa, 1992). quelas, as funções semióticas e metassemióticas lato
Além disso, o lingüista e o lexicógrafo são obri- sensu e os recortes culturais (os ‘referentes’) que são
gados a levar em conta, rigorosamente, o caráter meta- encarregadas de representar, ou, noutras palavras, as
lingüístico das lexias utilizadas como metatermos designationes e os designata que lhes correspondem
suportes da análise sêmica. É preciso fazer abstra- ou podem lhes corresponder, mas também, para jul-
ção, atentamente, das conotações de tais lexias em gar essas relações; constituem, enfim, o instrumen-
língua natural. O sujeito falante-ouvinte comum e o to para apreciar as equivalências propostas e a
usuário da obra lexicográfica têm a tendência de ‘ler’ precisão relativa das transcodificações.
esses metatermos com seu sobressemema Além disso, essas noções revelam-se operacio-
polissêmico e/ou polissemêmico de língua (Pais, nais, na medida em que autorizam tanto o lingüista
1993: 189-190, 216-220), donde os mais que pro- como o semioticista a construir uma metalinguagem
váveis ‘deslizamentos’ (glissements) de sentido. científica mais rigorosa, que pode ajudá-los a forma-
Todas essas reflexões levaram-nos a conside- lizar feixes de relações tão complexas.
rar que os lexes, de um ponto de vista, ou os
conceptus, de outro, assim como os complexos 6 Ainda a propósito dos
conceptuais desempenham papel extremamente im-
portante nos processos de produção da significação, ‘universais’ e dos ‘protótipos’
da informação, da construção e permanente recons-
De outro ponto de vista, que nos parece
trução do ‘mundo’; asseguram a própria possibilidade
complementar ao acima exposto, é conveniente dis-
de realizar os percursos gerativos da enunciação de
tinguir, como propõe Pottier, os conceitos gerais ou
codificação e de decodificação, os processos de ela-
‘conceitos’ que recobrem os seres e as coisas do
boração, transmissão, armazenagem, recuperação e
reelaboração da significação e da informação, a acu- mundo (percepções discretas do mundo, assim como
mulação e a transformação das designationes e dos as propriedades e as atividades que formam a expe-
designata, o estabelecimento das redes de relações riência comum aos seres humanos) dos conceitos
que mantêm, a conservação/mudança de elementos universais, entendidos como as representações
e redes, a possibilidade das transcodificações relacionais, abstratas de experiência, ou seja, uma
intradiscursivas, interdiscursivas, intrassemió- espécie de universo de formas comuns a todas as lín-
ticas, intersemióticas, intra-macrossemióticas e guas (Pottier, 1992: 70-78).
inter-macrossemióticas. Assim, as noções relativas ao primeiro sub-
Estamos, pois, convencido de que os elemen- nível constituem elementos indispensáveis, para a
tos do nível conceptual desempenham o papel de um construção de teorias lingüísticas e semióticas ge-
tertium comparationis (Pais, 1993: 569-578) entre rais mais completas e coerentes. Os elementos que
as funções semióticas e metassemióticas lato sensu, compõem o segundo subnível são os que, no interior
entre os recortes culturais, entre os primeiros e as de determinada cultura e sua macrossemiótica,
segundas - isto é, entre designationes e designata-, achando-se disponíveis para todas as semióticas-ob-
seja no interior de uma semiótica-objeto e seus dis- jeto e seus discursos nela inseridos, garantem, como
cursos - na norma de um universo de discurso, ou vimos, a compatibilidade dos recortes culturais e a
quando se passa de um universo de discurso a outro -, coerência ideológica, intra e intersemióticas, intra
seja quando se passa de uma semiótica-objeto a ou- e interdiscursivas.
tra, seja, ainda, quando da passagem de uma macros- Além disso, parece-nos importante diferençar
semiótica a outra. o lexe construído e o conceptus, ‘modelo mental’ do
Além do caráter operacional dessas noções, modelo prototípico (Pottier, 1992: 63-66; Dubois,
para o lingüista e o semioticista, parece-nos eviden- 1991). Este representa, segundo Pottier, um “compro-
Revista te que os lexes, os conceptus e os complexos misso entre o muito geral e o muito específico”, ou
do GELNE conceptuais desempenham, sempre, esse papel de seja, aproximadamente, a “idéia banal da coisa”, a nos-
Ano 1 tertium comparationis, nos sujeitos semióticos so ver, uma redução do lexe ou do conceptus a certo
No. 2 enunciadores/enunciatários, em seus processos de número de atributos constantes e facilmente reconhe-
1999 produção semiótica, ainda que disso não sejam cons- cíveis, uma espécie de ‘núcleo sêmico’ conceptual,
cientes, eis que se trata de mecanismos automatizados. ou seja, um subconjunto de semas conceptuais do lexe
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- subconjunto noêmico -, composto de traços cons- saber sobre o ‘mundo’ e sobre si mesmos e são
tantes que configuram algo como uma norma semân- simultaneamente produzidos num processo em que
tica e sociocultural, que assegura as condições de são determinantes a racionalidade, a sensibilida-
previsibilidade semântica (Pais, 1993: 178-185). O de, a intuição, a afetividade e a historicidade.
lexe ou o conceptus, ao contrário, enquanto conjunto
noêmico e matriz sígnica é, por definição, largamente 7 Classes noemáticas e redes
polissêmico; compreende todos os traços semânticos léxico-semântico-conceptuais
já atualizados num discurso de uma semiótica-obje-
to qualquer pertencente à macrossemiótica em cau- Como pudemos observar, acima, é necessário
sa e, ainda, os traços latentes mas que podem ser opor, de um lado, os noemas e conjuntos noêmicos
introduzidos, a qualquer momento, num percurso ‘universais’, integrantes dos mecanismos de opera-
gerativo da enunciação de codificação. Como é evi- ção do cérebro humano, ou seja, biologicamente
dente, existe uma relação direta entre o modelo proto- determinados, daqueles que resultam das escolhas,
típico e o lexe e/ou conceptus que lhe correspondem. das pregnâncias, realizadas no interior de uma co-
Verificamos, pois, que o poder-fazer-saber do munidade lingüística e sociocultural, ao longo do
sujeito cognitivo só pode realizar-se através de um po- processo histórico da cultura. Distinguem-se, pois,
der-saber-fazer do sujeito enunciador-enunciatário a nosso ver, duas classes de noemas, os noemas de
do discurso, que, manifestando-se, conduz à reali- classe A, que são universais semânticos hiperpro-
mentação e à regulagem do metassistema conceptual fundos, que presidem aos mecanismos básicos da
e dos processos semióticos dele dependentes. O su- cognição, e os noemas de classe B, atributos semânti-
jeito cognitivo e o sujeito semiótico produzem um cos conceptuais-culturais. Esquematicamente, temos:

Classes de Noemas Caracterização semântico-conceptual Natureza


Noemas A Universais semânticos hiperprofundos mecanismos básicos da cognição
Noemas B Atributos semânticos conceptuais-culturais pregnâncias
Figura 1: Classes noemáticas
Além disso, os complexos conceptuais, enquan- equivalência, de inclusão, de pertinência - e a atri-
to combinatórias de lexes/conceptus e, ao mesmo tem- buição de processo. Estas se convertem, a seu tur-
po, ‘matrizes’ de enunciados suscetíveis de manifestação no, em esquemas de entendimento, ditos
nos discursos de diferentes semióticas-objeto, respectivamente mono-actancial e bi-actancial
distinguem-se por dois tipos de relações básicas de (Pottier, 1974:41-57; Pais, 1993: 244-275). Não
atribuição, em esquemas conceptuais que determinam examineramos aqui, por escapar ao nosso propó-
relações entre um suporte - informação pressuposta sito, no presente trabalho, os diferentes subtipos
conhecida do enunciador e do enunciatário e condição dessas duas formulações básicas. Limitamo-nos a
da comunicação - ao qual um aporte atribui informa- apresentar, de maneira sumária, nossa formalização
ção nova, dotada de valor de comunicação. Trata-se de dos complexos conceptuais, apontando dois exem-
duas relações de atribuição, a atribuição de atri- plos dos decorrentes esquemas de entendimento.
butos - que compreende, por sua vez, relações de Temos, pois:

Complexo conceptual Atributivos de atributo A ≅ / ⊃ / ⊂ /∈... B


Esquema de entendimento ←
Complexo conceptual Atributivos de processos A <CAUS> B: α →β , A ≅ / ≠ B
Esquema de entendimento → →

Figura 2: Complexos conceptuais e esquemas de entendimento

Parece-nos necessário acrescentar, por outro A título de ilustração, consideramos aqui, ape-
lado, que a denominação, se entendida como a rela- nas, a parassinonímia, caracterizada como a relação
ção que se estabelece entre o conceptus, ‘modelo’ entre um conceptus e duas ou mais unidades
mental, unidade do metassistema conceptual, e as fun- lexicais, cujos sememas lingüísticos, apresentam
ções semióticas e/ou metassemióticas lato sensu, uma intersecção; a co-hiponímia, definida como
ou, noutros termos, as unidades do ‘léxico’ de deter- relação entre dois conceptus e duas unidades
minada semiótica-objeto, permitem examinar, com lexicais, cujos sememas lingüísticos têm uma
maior rigor, as relações de significação. No caso das intersecção; a hiperonímia/hiponímia, em que dois
línguas naturais e seus discursos, torna-se possível conceptus, em relação de inclusão, ligam-se a duas
analisar, descrever e explicar, de maneira mais pre- unidades lexicais, cujos sememas estão em relação Revista
cisa, não só as relações de significação, intrassemió- de inclusão inversa, na medida em que o conceptus do GELNE
ticas, como também as relações léxico-semântico includente define um τοπος semântico mais amplo, Ano 1
conceptuais, a nosso ver de grande interesse para enquanto o semema lingüístico relativo ao conceptus No. 2
semanticistas, lexicólogos, lexicógrafos e termi- incluído tem, como é evidente, semema lingüístico 1999
nólogos (Barbosa, 1998). mais específico. Esquematicamente, temos:
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Conceptus Sememas Conceptus Sememas Conceptus Sememas

S1 C2 S3 C4 S5
C1 S2 C5
S4 S4
C3

parassinonímia, v.g. co-hiponímia, v.g. hiperonímia/hiponímia, v.g.

Figura 3: Relações léxico-semântico-conceptuais

8 Conceptualização e semiose riza o desempenho -, a produção, reiteração, transfor-


no âmbito do percurso gerativo mação dos recortes e das significações que os mani-
da enunciação festam em discurso, a produção de novo estágio do
sistema, ou, a modificação da competência, decor-
rente da produtividade discursiva, ao longo do pro-
Como pudemos verificar acima, o processo de
cesso histórico da sociedade envolvida, em seu todo,
produção do conhecimento, articulado ao da produ-
como em cada um de seus membros, numa relação
ção da significação, como função semiótica, ou seja,
dialética.
das relações entre episteme, como projeção do homem
Essa produção, reiniciada e reiterada em cada
sobre os ‘objetos do mundo’, na concepção aristotéli-
enunciação, conduz à (re)constituição de um metas-
ca, como construção do ‘saber sobre o mundo’, e se- sistema conceptual - ‘léxico’ e ‘sintaxe’ -, disponí-
miose, enquanto produção da significação, ou seja, vel para atualização em qualquer semiótica-objeto
das designationes que manifestam os designata, recor- de determinada comunidade, caracterizando-se
tes culturais, nas diferentes semióticas-objeto, verbais, como uma pancronia (funcionamento e mudança).
não-verbais e sincréticas, podem ser mais satisfato- Articulam-se dialeticamente conceptus e recortes
riamente explicados, quando examinados no âmbito culturais, ou designata, que funcionam como ‘refe-
do percurso gerativo da enunciação, numa concep- rentes’, como ‘objetos do mundo’ semioticamente
ção mais ampla. construídos da cultura e da sociedade envolvidas.
Desse modo, nosso modelo de percurso Importa, a nosso ver, retomar, de forma mais
gerativo da enuniação de codificação e de decodifi- minuciosa, alguns aspectos das relações entre o fa-
cação, compreende, vale lembrar, os patamares da zer do sujeito da cognição e o fazer do sujeito da
percepção, da conceptualização, da semiologização, semiose. De fato, o processo de produção do co-
da lexemização, da atualização, da semiose, quanto ao nhecimento, articulado ao da produção da significa-
fazer persuasivo, os do reconhecimento da semiótica- ção, como função semiótica, ou seja, das relações
objeto, da re-semiotização, da ressemiologização e da entre episteme, como projeção do homem sobre os
reconceptualização, quanto ao fazer interpretativo; e ‘objetos do mundo’, em suma, do ‘saber sobre o
as transformações que entre eles se realizam (Pais, mundo’, e o processo da semiose dita infinita, en-
1993a; 1993b; 1994; 1995; 1996; 1997). quanto produção das designationes que manifestam
Tornou-se necessário examinar as unidades cor- os designata, podem ser mais satisfatoriamente ex-
respondentes a cada patamar do percurso e suas rela- plicados, como já tivemos ocasião de assinalar, quan-
ções: a questão das latências, saliências, pregnâncias; do examinados ao longo do percurso gerativo da
a construção do protótipo e do conceptus, ‘modelo enunciação. Para a sua formalização, utilizamos mo-
mental’, sua relação com o recorte cultural, na concep- delos da lógica formal, da lógica matemática, das ló-
tualização; a relação de denominação, entre ‘modelo gicas dialéticas e das lógicas modais.
mental’, do metassistema conceptual, e unidade ‘lexical’, Desenvolve-se o fazer persuasivo do sujeito
de sistema e normas discursivas; a relação de designa- enunciador do discurso, em cada processo discur-
ção, entre unidade ‘lexical’ e recorte cultural; a refe- sivo, como vimos acima, através dos patamares da
rência, relação entre funções semióticas intra-sígnicas percepção, da conceptualização, da semiologização,
manifestadas e recortes culturais, ‘objetos do mundo’, da lexemização, da atualização, da semiose.
tomados no texto. Com o auxílio da noêmica, da se- Verifica-se que, na enunciação de codificação
mântica cognitiva, da semântica lexical e da semiótica, e a partir da percepção biológica - culturalmente fil-
formalizaram-se complexas redes de relações semân- trada em função dos comportamentos e condiciona-
tico-conceituais, léxico-semânticas, semântico- mentos adquiridos, ou, noutros termos, do
sintáxicas, referenciais, pragmáticas. ‘aprendizado’ de uma comunidade - dos dados da ex-
Obtivemos, então, um modelo teórico que pro- periência, desencadeia-se no patamar da conceptua-
cura dar conta da produtividade sistêmica e discursiva, lização, a produção de modelos mentais - conceptus
da produção, reiteração, transformação dos recortes - e recortes culturais - designata -, que leva em conta
Revista e das significações que os manifestam em discurso, a prévia detecção e escolha de atributos semânticos
do GELNE da modificação da competência, decorrente da pro- conceptuais, nos diferentes graus da latência, da sa-
Ano 1 dutividade discursiva, ao longo do processo histórico, liência e da pregnância (Pottier, 1992: 72) dos ‘obje-
No. 2 numa dinâmica configuradora de processo semiótico. tos’, dos processos e atributos da semiótica natural.
1999 Explica-se, dessa maneira, o processo de produção do Essa produção, sempre reiniciada e reiterada em
discurso, a partir do sistema - a competência auto- cada enunciação, conduz, por geração, acumulação e
60
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
transformação, à construção de um ‘léxico’ conceptual cognitiva e a produção de significação, concomi-
- protótipos (Dubois, 1990: 29-100) e conceptus tantes e articuladas.
(Rastier, 1991: 73-114) - e de uma ‘sintaxe’ concep- Segue-se à conceptualização, já examinada, a
tual, ou, noutras palavras, de um metassistema semiologização, enquanto processo de conversão
conceptual disponível para atualização em qualquer dos atributos dos conjuntos noêmicos em atributos
semiótica-objeto de determinada cultura e sociedade, semânticos pré-semióticos, trans-semióticos, e de
caracterizando-se como uma pancronia no sentido (re)ordenamento dos campos semânticos, os τοποι.
amplo (funcionamento e mudança). A semiotização configura-se como outro ní-
Entendem-se as latências como os atributos vel que depende da escolha - consciente ou não - da
semânticos possíveis dos ‘objetos’ e ‘processos’ da semiótica-objeto - verbal (uma língua natural), não-
semiótica natural; as saliências, como os atributos verbal ou sincrética -, inserida na macrossemiótica
que se destacam, na estrutura, funcionamento e hie- de uma cultura (Pais, 1982).
rarquia dos ‘fatos naturais’. As pregnâncias, por sua Compreende a semiotização o nível da lexemi-
vez, constituem o resultado da atividade do homem, zação, entendida, por sua vez, como processo de con-
das escolhas que faz nas diferentes maneiras de apre- versão dos conceptus, das matrizes noêmicas, em
ensão daqueles ‘fatos’. funções semióticas (grandezas signos) de uma
Nessa perspectiva, o protótipo deve ser conside- semiótica-objeto e/ou em funções metassemióticas
rado como núcleo noêmico, ou núcleo sêmico con- dessas grandezas, ou seja, da geração e/ou transfor-
ceptual. A ele podem corresponder um ou vários mação de designationes, relacionadas a determina-
conceptus que o contêm, numa relação de inclusão. do conceptus e seu correspondente designatum.
O conceptus, ou ‘modelo mental’, constitui, assim, Nas línguas naturais e seus discurso, por exem-
um conjunto noêmico expandido, conjunto sêmico plo, importa distinguir, na etapa da atualização, o nível
conceptual, resultante de uma escolha do sujeito in- do sistema e o das normas. No sistema, caracterizam-
dividual e/ou coletivo. Articulam-se dialeticamente se as unidades lexicais, enquanto designationes, por
os conceptus e os recortes culturais, ou designata, um semema polissêmico, denominado sobres-
que funcionam como ‘referentes’ ou, mais precisa- semema. Sofre esse semema uma restrição sêmica,
mente, como ‘objetos do mundo’ semioticamente quando de sua inserção numa norma, no plano
construído de uma cultura e sociedade. diatópico e/ou diastrático e, sobretudo, num universo
Dessa forma, comporta-se o metassistema de discurso. Desse modo, a um sobressemema, ao
conceptual como sistema de matrizes noêmicas - nível do sistema, correspondem vários sememas es-
dialeticamente articuladas aos recortes culturais, pecíficos, caracterizadores de normas discursivas.
como vimos - da produção de funções semióticas e A combinatória particular das unidades no
metassemióticas lato sensu. Assim, a produção, acu- enunciado de determinado discurso manifestado, em
mulação e transformação do saber sobre o ‘mundo’ função das relações intratextuais, intertextuais,
somente ocorrem no processo de enunciação do dis- intradiscusivas, interdiscursivas, conduz, dialetica-
curso, concomitante e indissociavelmente da produ- mente a uma ampliação do epissemema dessas uni-
ção, armazenagem, e recuperação, durante o percurso dades, nesse discurso, de que resulta o processo da
gerativo, da significação e da informação semiotica- semiose, do ponto de vista do sujeito enunciador, com
mente construída. a produção de significação e informação novas, espe-
Esse percurso sustenta-se, pois, dentre outros cíficas do discurso em causa e dotadas de valor de
aspectos, num contrato de cooperação entre sujei- comunicação. Verifica-se, na verdade, que as mesmas
to enunciador - sujeito da enunciação de codificação relações entre sistema, normas e discurso manifesta-
- e sujeito enunciatário - sujeito da enunciação de co- do ocorrem nas semióticas não-verbais e sincréticas,
dificação -, sem o qual não são viáveis a produção mutatis mutandis. Esquematicamente, temos:
Modelo sumário de percurso gerativo da enunciação de codificação
Percepção (biológica, culturalmente filtrada) -

Conceptualização - Metassistema conceptual

latênciasatributos semânticos da semiótica natural


saliências
Processos pregnâncias escolhas do enunciador individual ou coletivo
pré- e
trans- noêmica Protótipo (núcleo noêmico)
semióticos
Conceptus (conjunto noêmico) designatum
COGNIÇÃO ‘modelo mental’ recorte cultural
‘Enunciados conceptuais’ (processos/atribuições) (‘referência’,
objetos do mundo)
Semiologização (campos semântico-conceptuais)

Semiotização designação
Processos lexemização
semióticos denominação

Atualização

Semiose
função semiótica ou
Revista
metassemiótica de
uma semiótica-objeto 1 designatio do GELNE
f.s. ou m.f.s. de- Ano 1
uma semiótica-objeto 2 designatio
No. 2
Enunciado - Texto manifestado 1999
Figura 4: Percurso gerativo da enunciação de codificação
61
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Em síntese, cumpre distinguir diferentes rela- so, equivale à uma ‘visão de mundo’, apoiada na rede
ções. A conceptualização estabelece o percurso en- de designata, de recortes culturais.
tre a percepção e a construção do ‘modelo mental’, Ao fazer do sujeito enunciador correspondem,
conceptus, dialeticamente articulado a um recorte no fazer interpretativo do sujeito enunciatário, como
cultural; a denominação configura a etapa pela qual vimos, os patamares da percepção do objeto semióti-
um conceptus é lexemizado, ou, se preferirmos, é co concreto, da reatualização ou do reconhecimento
convertido em ‘lexema’ de determinada semiótica- (da semiótica -objeto e dos elementos manifestados),
objeto, estabelecendo-se a relação conceptus-deno- da re-semiotização, da ressemiologização, da recon-
minação; a designação define a relação entre a função ceptualização, conducentes à realimentação e a auto-
semiótica e/ou metassemiótica lato sensu e o regulagem do metassistema conceptual.
designatum, o recorte cultural, a referência qualifi- De maneira sumária, pois, podemos consi-
ca-se como relação de implicação entre o significa- derar em conjunto o fazer persuasivo do sujeito
do (excepcionalmente, também., o significante, na enunciador e o fazer interpretativo do sujeito enun-
‘função poética’) construído no texto e o mundo ciatário, inseridos e articulados no percurso ge-
semioticamente construído, que, para os sujeitos rativo da enunciação, de acordo com o seguinte
enunciador-enunciatário, naquele universo de discur- esquema:
Do percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação
Fazer persuasivo Fazer interpretativo
Saber sobre o mundo X Saber sobre o mundo X’

Percepção (do ‘mundo’) Nova percepção

Conceptualização Transcodificação Reconceptualização

Semiologização Ressemiologização

Semiotização Ressemiotização

Atualização Reatualização
or ário
Semiose Texto E /E Percepção (do texto)

Figura 5: Percurso gerativo da enunciação enunciador-enunciatário

Nessas condições, acreditamos que seria útil e do qual fizemos uma sumária apresentação acima.
tornar mais claras ou, ao menos, mais explícitas, as Simultaneamente, fizemos um ensaio de homologa-
relações que se estabelecem entre o percurso gerativo ção das estruturas e patamares semióticos stricto sen-
transfrástico proposto por Greimas, e o percurso ge- su e semântico-sintáxicos (Pais, 1985). Assim
rativo frástico, proposto anteriormente por Pottier. procedemos, para alcançar, para nós mesmos, uma me-
Para tanto, buscamos articular os dois modelos, inse- lhor compreensão das condições de produtividade
rindo-os no modelo de percurso gerativo de enuncia- sistêmica, lexical e discursiva (Pais, 1993: 522-553).
ção de codificação e de decodificação que elaboramos De maneira sumaríssima e esquematicamente temos:
Ensaio de homologação dos modelos de percurso gerativo de Greimas e Pottier
e sua inserção no modelo de percurso gerativo de Pais.
MANIFESTAÇÃO manifestação das manifestação
estruturas semióticas fonético-fonológica

NÍVEL DAS estruturas transfrásticas estruturas frásticas


ESTRUTURAS

Superfície figurativização,
tematização

atores, lexemas, sememas lexias, sintaxias

temporalização, modalidades,
espacialização, aspectualização
aspectualização dêixis

Intermediária actantes, relações actância,


actanciais, esquema esquema de
canônico, programas e entendimento
percursos

Profunda semas, organização semas,


semântica, estruturas sobressememas
elementares da casos,
significação, previsibilidade
previsibilidade semântico-
semântico-sintáxica sintaxica

Revista Hiperprofunda modelos de nível conceptual


organização e de lexes, conceptus
do GELNE operação dos (Rastier)
sistemas semióticos noemas
Ano 1
No. 2 percurso gerativo

1999 Nível da Percepção

62
Figura 6: Percurso gerativo frástico e transfrático
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9 Racionalidade, sensibilidade, interpretação lingüística, dentro das possibilidades
afetividade, historicidade do sistema fonético-fonológico de cada língua.
Acrescentam os primeiros que, além da motivação
As relações entre designationes e designata, fonética stricto sensu, existem no universo léxico
de um lado, e entre o plano do conteúdo e o plano da das línguas naturais motivações léxicas e morfo-se-
expressão, de outro, constituem questões das mais mântico-sintáxicas. A discussão parece inexaurível.
complexas, no âmbito dos estudos da filosofia da lin- Fundamentando-nos na teoria semiótica mais
guagem, da lingüística e da semiótica, discutidas des- avançada, formulamos um pequeno modelo que, a
de o período greco-romano até os dias de hoje. Na nosso ver, permite explicar alguns dos aspectos des-
Antigüidade, Platão (1969), por exemplo, narra no se relevante tema. Pensamos que arbitrariedade e
diálogo Crátilo, a discussão de Sócrates sobre a na- motivação devem ser entendidas como duas forças,
tureza do signo, retomada, logo depois, por ou duas tendências contrárias, dialeticamente arti-
Aristóteles (1973). Tratava-se, então, de duas teses, a culadas. Nesses termos, a significação, enquanto
de que o signo e sua relação com os ‘objetos do mun- função semiótica, ou relação de dependência entre o
do’ resultam de um consenso social, de uma conven- plano do conteúdo e o plano da expressão, sustenta-
ção (θεσει), ou da ‘natureza das coisas’ (jusei). A se, na tensão dialética entre aqueles dois termos;
discussão prossegue entre os filósofos da Idade ~arbitrariedade e ~motivação constituem os cor-
Média e da Renascença (que nos abstemos de citar, respondentes termos contraditórios. Obtém-se, as-
por falta de espaço) e alcança o século XX. Saussure sim, a formalização dessas relações e das que delas
(1964) sustenta, em 1911, que as relações entre decorrem, num octógono semiótico dialético. Te-
significante e significado e do signo com o ‘refe- remos, pois, quatro metatermos complexos. A sig-
rente’ são arbitrárias, de modo geral. Benveniste nificação, resulta, como vimos, da combinação
(1966), posteriormente defenderia a proposição de arbitrariedade x motivação, numa perspectiva
que o signo é motivado. pancrônica em sentido amplo (funcionamernto e
De maneira sucinta, os defensores da tese da mundança); arbitrariedade x ~motivação definem
motivação do signo lingüístico apontam, por exem- o metatermo racionalidade, numa perspectiva ri-
plo, os casos das onomatopéias, das palavras impres- gidamente sincrônica; a combinação motivação x
sivas, da harmonia imitativa e da harmonia sugestiva ~arbitrariedade determina o metatermo historici-
(Grammont, 1963). Contra-argumentam os que sus- dade, na perspectiva diacrônica; ~motivação x ~ar-
tentam a posição contrária, da arbitrariedade do sig- bitrariedade definem o termo neutro (fora do sistema
no, que, mesmo nesses casos, tem-se sempre uma da significação). Esquematicamente, temos:

Significação
(pancronia)

arbitrariedade motivação

Racionalidade a b Historicidade
(sincronia) (diacronia)

~motivação ~arbitrariedade


Figura 7: Racionalidade e historicidade

Nessas condições, observa-se que b é o per- e ~expressão. A combinação conteúdo x ~moti-


curso dialético da neologia, enquanto a equivale ao vação define o metatermo complexo do plano
percurso dialético da desneologização. semiológico-conceptual (o conceito e o con-
Complementarmente, parece-nos lícito con- ceptus); a combinação expressão x ~conteúdo de-
ceber a significação, enquanto função semiótica, termina o metatermo do plano do sensível;
como uma tensão dialética entre os termos con- ~expressão x ~conteúdo definem o termo neu-
teúdo e expressão. A esses metatermos corres- tro. Tais relações podem ser formalizadas no
pondem os metatermos contraditórios ~conteúdo octógono dialético:

Significação

conteúdo expressão
Revista
Plano Semiológico- Plano do
-conceptual Sensível do GELNE
Ano 1
~expressão ~conteúdo
No. 2
∅ 1999
Figura 8: Sensibilidade, Racionalidade
63
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
10 Sujeito, conceptualização, signifi- turno, da construção e da permanente reconstrução
cação, informação, designação de uma visão de mundo, ou, se preferirmos, de um
mundo semioticamente construído, de sorte que ou-
tra tensão dialética é sustentada, a tensão processo
Convém lembrar que os dados da experiência semiótico/mundo construído.
constituem informação potencial, suscetível de ser Ora, como já tivemos ocasião de assinalar
transformada em informação utilizável pela inter- muitas vezes, a produção de informação e de signi-
mediação dos processos semióticos. Essa transfor- ficação, a produção e reiteração dos sistemas de
mação exige, como vimos, a produção de recortes valores só podem efetuar-se em discurso, na pro-
culturais, ou seja, de ‘objetos’, de processos que se dutividade discursiva.
verificam entre aqueles e de atributos de ‘objetos’ Por conseguinte, se desejamos elaborar mo-
e processos, ou, noutras palavras, a produção de ‘re- delos que permitam uma melhor compreensão des-
ferentes’, enquanto elementos de um universo cul- se complexo processo de produção, temos de levar
tural, dialeticamente articulada ao processo da em conta, necessariamente, o sujeito do discurso,
conceptualização, acima examinado e da correspon- ou, mais precisamente, o sujeito da enunciação, tan-
dente produção de ‘modelos mentais’, os conceptus. to o sujeito da enunciação de codificação, como o
Parece-nos legítimo, pois, considerar que uma ten- da enunciação de decodificação, no âmbito do per-
são dialética se sustenta entre o sistema cultural e o curso gerativo da enunciação.
metassistema conceptual, que define a informação Dessa maneira, é o sujeito do discurso - indivi-
de conteúdo dos processos semióticos envolvidos. dual ou coletivo - que opera os processos semióticos,
Por outro lado, a produção de informação é in- produz e reitera informação e significação, em seus
dissociável, como sabemos, da produção de significa- discursos, segundo a tensão consenso/especificidade.
ção. Logo, as informações utilizáveis o são, na medida O mundo semioticamente construído é reiterado e
em que assumem o estatuto de designata, em relação reconstruído incessantemente.
às funções semióticas e metassemióticas, carac- Entretanto, o sujeito do discurso é, ele mes-
terizadas, por sua vez, como designationes. Assim, a mo, um elemento desse mundo construído: neste
nosso ver, outra tensão dialética se sustenta, a tensão integra todos os dados da experiência e, portanto,
designatio/designatum, a que chamamos a designação. inscreve-se ele próprio nas redes do universo cultu-
Quanto à significação, entendida como função ral, do metassistema conceptual e dos universos
semiótica, ou seja, uma relação de dependência en- semióticos construídos, no âmbito da macrossemió-
tre um plano do conteúdo e um plano da expressão, tica em questão.
resultante da semiose, define-se, no âmbito de
Além disso, enquanto enunciador-enunciatário
determinado processo semiótico, como uma tensão
o sujeito produz seus discursos e é, ao mesmos tem-
significante/significado.
po, produzido por seus discursos. Daí resulta uma
Nessas condições, a informação pode ser
produzida como intersemiótica - no caso dos pro- tensão sujeito/processo semiótico. Por outro lado,
cessos semióticos sincréticos, ou tornar-se in- como já pudemos observar, uma tensão dialética se
tersemiótica, como resultado de transcodicações sustenta entre processos semióticos e mundo
sucessivas, ao passo que a significação é, por defi- construído. Desse modo, pela intermediação dos pro-
nição, intrassemiótica. cessos semióticos e seus discursos, sustenta-se,
Encontramo-nos, assim, diante de processos finalmente, uma tensão dialética sujeito semiótico/
semióticos construídos e operantes em dada comu- mundo construído (Pais, 1993: 579-584).
nidade lingüística e sociocultural, encarregadas, a seu Esquematicamente, temos:
PRODUÇÃO SIGNIFICAÇÃO DESIGNAÇÃO INFORMAÇÃO

PROCESSO
DISCURSIVO
Universo
semiótico
Metassistema
ENUNCIAÇÃO CO
codificação Conteúdo conceptus

t.d. t.d. Conceptualização t.d.


Sujeito do Enunciado t.d. .
Discurso . mundo
t.d.
t.d.
“o real”

ENUNCIAÇÃO Expressão Universo


Revista decodificação Cultural

do GELNE Recortes

Ano 1
No. 2 designationes designata
1999
Figura 9: Sujeito, conceptualização, significação, informação, designação
64
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Saber e significação articulam-se, pois, no pro- âmbito de uma especialidade técnica ou científica,
cesso de produção discursiva, e revelam, ao mesmo configurando-se, pois, a um tempo, como universo
tempo, as escolhas, ou seja, a fixação dos critérios e de discurso terminológico e simulacro do universo
da pertinência, que determinam e refletem o sistema de discurso que é objeto do dicionário em questão.
de valores de uma comunidade. A reiteração da pro- Verificou-se, notadamente, que o sistema de
dução discursiva e a subseqüente realimentação e remissivas, quando bem elaborado, constitui uma
autorregulagem do metassistema conceptual e das rede paradigmática que permite reconstituir a teo-
semióticas dele dependentes, no âmbito de uma ma- ria científica e/ou tecnológica que toma por objeto,
crossemiótica, configuram o processo de produção, no plano semântico-conceptual, como também no
acumulação e transformação do saber, assim como plano das relações lingüístico-socioculturais, apon-
da significação e da informação (recortes culturais) tando ao usuário caminhos de acesso ao saber.
que o sustentam, ao longo do processo histórico de Além disso, observou-se que o dicionário ter-
uma cultura. minológico, enquanto simulacro, sustenta os
microssistemas de valores relativos ao universo
11 Dicionários técnico-científicos semiótico da especialidade em causa e, também,
bilíngües e multilíngües: visões de como é evidente, microssistemas de valores da lín-
gua em que se manifesta.
mundo, sistemas de valores e coope-
ração técnico-científica internacional
12 Conclusão
Desse modo, a produção (e transformação) do
saber sobre o ‘mundo’ só é viável no processo de Nessas condições, constatou-se que dicioná-
enunciação do discurso, articuladamente à produção, rios terminológicos bilíngües e multilíngües reve-
armazenagem, e recuperação da significação e da in- lam extraordinária complexidade, quanto aos
formação semioticamente construídas, num percur- sistemas de valores e às visões de mundo sustenta-
so sustentado em contrato de cooperação entre das, das várias línguas e culturas envolvidas. Deter-
enunciador e enunciatário. minaram-se, com o apoio dos modelos e da
Nesse sentido, a ‘visão do mundo’ de uma co- metodologia apontadas, diferentes relações de arti-
munidade lingüística e sociocultural, assim como a culação e de confronto, de dominação, dependência
ideologia, a axiologia e o sistema de valores de uma e submissão lingüístico-culturais, de conflito entre
cultura acham-se sempre em incessante (re)formu- identidades e diversidade culturais, dentre outros as-
lação, num perpétuo “vir a ser”, no processo históri- pectos, com sérias conseqüências, para o rigor e a
co da cultura, transmitindo, simultaneamente, aos eficácia dessas obras, enquanto instrumentos impor-
membros da comunidade o sentimento de sua per- tantes de auxílio à comunicação entre especialistas
manência e continuidade: processos semióticos e e à cooperação técnico-científica internacional.
mundos semioticamente construídos são espacial-
mente delimitados e historicamente determinados. Bibliografia
Assim, examinaram-se alguns aspectos do es-
tatuto lingüístico, pragmático, semiótico e socio- ARISTOTE (1963) Rétorique, Livres I e II (Paris,
cultural dos dicionários terminológicos bilíngües e “Les Belles Lettres”).
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65
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
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Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

66
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
PAULO MOSÂNIO TEIXEIRA DUARTE*
Universidade Federal do Ceará

O NÃO: FORMADOR DE
PALAVRAS EM PORTUGUÊS?

Introdução vado a crer, por inferência, que um e outro são prefi-


xos, em virtude da alusão às unidades prefixais cita-
Das leituras feitas por nós, no que respeita ao das anteriormente. Cabe indagar por que não não
elemento de negação em português não, inferimos aparece hifenizado junto à palavra tolerante, enquan-
que não é pacífica a classificação deste em compên- to sem apresenta hífen junto aos itens lexicais. Per-
dios gramaticais, lingüísticos e mesmo em obras guntamos também por que motivo, na página 99, ao
lexicográficas. Uns acolhem não como marca de ne- tratar dos prefixos, em especial dos indicadores de
gação sintática, mesmo em ambiente pré-substantival negação, Bueno não menciona não.
e pré-adjetival. Outros o têm como formador de pa- Barreto (1986) refere-se explicitamente a não
lavras, neste contexto, mas, ainda assim, reina como expediente sintático de negação:
dissenso. Além da palavra não, há outros sinais
Neste segundo grupo, há uns que classificam de negação, que dão significado negativo
não como prefixo, outros como prefixóide, outros a vocábulos distintos dos verbos usados em
como elemento de composição. desinência pessoal. Tais são os prefixos in,
Este trabalho intenta dar uma certa ordem ao des, a, e a preposição sem: indomável,
caos. Procuramos responder às seguintes perguntas: incapacidade, desprimor, desamparo, desatar,
a) não participa da formação de palavras em desagradável, afônico, anormal, sem-razão,
ambiente pré-substantival e pré-adjetival? sem-justiça, sensabor. (pp. 141-2)
b) se a resposta é positiva, que classificação é Entre os gramáticos mais modernos, Cunha
cabível para não: prefixo, prefixóide ou ele- (1983: 78) trata o não como elemento de composi-
mento de composição ção, de natureza adverbial. Todavia não o faz explici-
tamente. Inferimo-lo através de um exemplo,
Responder a tais perguntas é o objetivo do ex-
não-euclidiana.
posto na secção abaixo.
Falemos agora das obras lexicográficas. Em
Moraes (1813), 2º. volume, o dicionarista reconhe-
Não: formador de palavras em português? ce a possibilidade de não poder ajuntar-se a substanti-
vos e adjetivos. Cita inclusive exemplos de autores
Entre os gramáticos tradicionais, há reticên- antigos, como João de Barros e Vieira, o que já
cia ou dúvida quanto ao fato de não- poder formar elucida que o emprego de não, nesses contextos, não
novas unidades vocabulares a partir de adjetivos e é tão recente, nem se deve a influência do inglês, como
substantivos. Para ilustração, reproduzamos o tre- imagináramos.
cho abaixo, de Bueno (1963): Moraes, todavia, trata o não como advérbio,
Recorre a língua aos prefixos negativos quer seja pré-verbal, pré-substantival ou pré-adjetival.
para suas expressões de negação, princi- Interrogamo-nos se ele o encarava como elemento
palmente a in-, de-, des-: infiel, desgosto, formador de novas unidades léxicas, já que não há
desamar, desadorar, depor, depenar, e também entradas em separado com os itens lexicais precedi-
ao grego a-: acatólico, amoral. Algumas ve- do do morfema.
zes per- toma o sentido: perjurar, pérfido. O Aulete ( s/d) não oferece entrada à parte para
Muito comumente emprega não, sem, a fim substantivos ou adjetivos antecedidos de não. Exem-
de destruir o sentido afirmativo dos vocá- plos como não eu, não existente (sem hífen) cons-
bulos: não tolerante, sem-cerimônia, sem- tituem ilustrações. Já no Aulete (1958) há verbetes
em separado com não: não apoiado, não confor-
ventura, sem-razões, etc. (p. 330) Revista
mismo, não euclidiano, não filho, etc.
O autor deveria ter explicitado melhor a con- Cunha (1987) não dá um só exemplo de for- do GELNE
dição morfológica de não, caso contrário somos le- mações com não. Biderman (1992) não só elenca Ano 1
No. 2
1999

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* Professor do Mestrado em Lingüística da UFC. Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa.
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exemplos de não como elemento prefixado, como c) o acréscimo de significado à base a qual se
explicita três entradas para ele: advérbio, substantivo liga;
e prefixo. d) o fato de pertencer à classe adverbial.
Lingüistas há que negam ao não o estatuto de
formador de novas unidades léxicas, entre eles Macam- O primeiro argumento peca por petição de prin-
bira (1987: 44). Alargando a definição tradicional de cípio. Pressupõe que aceitemos ser não um elemento
advérbio como palavra invariável, modificadora do formador de palavras, mas isto é o que se quer provar.
verbo, do adjetivo e de outro advérbio, o autor admite Quanto ao forte rendimento funcional, que é uma ver-
que a referida classe pode modificar o pronome, o são do critério da produtividade, julgamos que é de
numeral ou mesmo o substantivo, do que decorre ser natureza exterior, pois simplesmente afere a produti-
não um elemento independente, não formador de pa- vidade de uma regra. Reclama-se previamente um cri-
lavras. Macedo (1987: 114) tem igualmente o não como tério de base estrutural.
veiculador de negação sintática. O segundo argumento é ainda mais precário. É
Mateus et alii (1983), em estudo sobre a nega- vicioso, pois, tal como o outro supracitado, pressupõe
ção e o escopo desta, postula três tipos de negação: a que é dado como certo o fato de não ser elemento
lexical, a frasal e a dos constituintes frasais. Deixam formador de novas unidades léxicas. A multiutilização
claro que não, além de ter como escopo um sintagma de não, junto a substantivos e adjetivos, nos amplos
verbal, pode também incidir sobre um sintagma nomi- exemplos domínios da experiência, também nada prova.
nal e um sintagma preposicional. Parecer semelhante O terceiro argumento também nada demonstra.
ao de Mateus et alii é o de Brenner (1981: 101-2). O mero fato de não acrescer o significado a um item
Pottier (1978: 173-6) também se reporta a não lexical não confere a ele caráter prefixal. O equívoco
em português, como um meio de exprimir negação. da autora reside, assim pensamos, em tomar, como
Esta, enquadrada na classe da formulação, subclasse ponto de partida, o sentido. Ora, não também acres-
da asserção, pode aplicar-se ao nível do sintagma ou centa o sentido de negação a um verbo e, nem por
do enunciado. Incide sobre o sujeito, sobre o pre- isto, é constituinte vocabular.
dicado e sobre o circunstante. O substantivo e o adje- O último argumento é baseado na concepção
tivo admitem dois graus de negação: a integrada, com de Mitterrand, segundo a própria autora nos informa.
in-, por exemplo, e a não-integrada, com não: incor- Para o autor de Les Mots Français, os nomes construí-
reção/ não-correção, infeliz/não-feliz. dos pela junção de um advérbio ou de uma preposição
Também existem lingüistas para os quais não é pertencem ao domínio da derivação, sendo o primeiro
formador de novas unidades lexicais. Por exemplo, para um prefixo. Assinalar isto porém não é o bastante.
a negação explícita de cunho lexical, Uppendahl (1979) Comecemos por destacar a independência de
admite a prefixação com in-negativo, des- (desleal, não, a qual decorre da impossibilidade de aglutinar-
desfavor), dis- (dissenso), a- e an- (agramatismo, anar- se às bases a que se liga. Essa independência, relacio-
quia). A negação também se pode fazer por meio de nada ao fato de não conter um ditongo nasal, se
elementos correspondentes a itens lexicais: mal (mal- traduz nos planos ortográfico e fonológico. Por isto,
ditoso), sem (sem-cerimônia) e não (não-intervenção, ocorre a hesitação no emprego do hífen, quer na lín-
não-alinhado). No caso das formações com mal, sem gua de uso geral, quer nas linguagens técnicas.
e não, configura-se, para o autor, composição e não Não veicula negação sintática, em orações de-
derivação, sendo os referidos elementos unidades senvolvidas na voz passiva, com verbo de cópula
léxicas categorizáveis. elíptico:
Uppendahl explica o que ele caracteriza como Embora não ignoradas, estas questões fo-
composição por não, pela economia lingüística, uma ram relegadas a segundo plano.
vez que poupa uma oração subordinada ou outras par-
tes sintáticas: o não-fumante = a pessoa que não fuma; Quando não revisado, o trabalho pode apre-
a não-entrega dos documentos = o fato de não entre- sentar erros.
gar os documentos. É em essência a mesma explica-
Cremos ser igualmente necessário considerar
ção de Alves (1987).
as orações reduzidas de particípio, em que o elemen-
Existem outros autores que tratam os grupos
to participial é acompanhado por não, de negação
formados de não + substantivo e não + adjetivo como
sintática:
processos em que o elemento de negação é prefixal.
Não iniciado no horário previsto, o espetá-
Além de Alves, já citada, cita-se Ferreira (1989).
culo foi cancelado.
Esta, por fornecer mais pormenores, tem seu traba-
lho aqui apreciado com mais detença. Um outro fator, a nosso ver, merece ser con-
A autora aponta as seguintes razões para o ca- siderado: a entonação marcada sobre o adjetivo ou o
Revista ráter prefixal de não: substantivo antecedido de não, de modo que eles
do GELNE a) o forte rendimento funcional do elemento, que acarretam informação nova. Há uma nítida pausa en-
Ano 1 dá origem a inúmeras formações neológicas; tre não e o adjetivo ou substantivo, a qual nos au-
No. 2 b) a extensão de sua utilização a domínio de toriza encarar o elemento de negação como
1999 experiência e registros de língua extrema- independente do item nominal:
Cristo pregou não PAZ.
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mente diversificados;
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Os discípulos são muitas vezes não APLICADOS. b) esta forma pode ser encarada como advér-
bio, participante do processo composicional;
Construções como estas acima se ligam ao
problema do foco e da pressuposição. Diante delas, c) esta forma pode ser classificada como
o alocutário sente necessidade de informações su- prefixóide, porque se vincula a forma livre,
plementares, como as que se verificam abaixo: mas na formação tem aspecto distribucional
Cristo pregou não PAZ, mas DISSENSÃO. distinto desta última;

Os discípulos são muitas vezes não APLICA- A primeira posição é sincronicamente arbitrá-
DOS, mas ACOMODADOS. ria. Não se explica por que as correspondências tem
de existir. A terceira, que é a de Sandmann (1989), é
Face ao exposto até o momento, constatamos
mais explícita. Quanto à base formal, funda-se na dis-
que é simplificador ao extremo caracterizar não como
tinção distribucional entre forma, enquanto constitu-
elemento formador de palavras, pela simples menção
inte vocabular, e forma, enquanto elemento de
da ambiência. Além do problema de inserir as forma-
ocorrência isolada. Parece-nos que o autor parte do
ções de que ele participa na derivação ou na composi-
princípio de que formas em composição devem ser
ção, existem restrições a serem feitas, as quais
réplicas de formas em sintaxe. Mas a junção de for-
contribuem para que ele seja elemento independente.
mas, num caso e no outro, não se dá paritariamente.
Para nós, convém tomar, como ponto de parti-
Como explicar compostos com radicais presos e for-
da, a distribuição de não em dois contextos: um pré-
mas livres ou mesmo com radicais presos tão so-
verbal, em que ele é veiculador de negação sintática
mente? Como explicar uma formação como
e outro, em que ele é pré-substantival ou pré-adjetival,
videomania e fã-clube, em que o elemento deter-
formador de novas unidades lexicais. Não se conta-
minante é um nome anterior a outro nome? E fã e
bilizam os seguintes casos:
vídeo não são considerados prefixóides, apesar da
a) em orações desenvolvidas ou reduzidas na voz distribuição diferente em relação às mesmas formas,
passiva ou em orações reduzidas em que se enquanto elementos de ocorrência isolada. Se for-
registra o apagamento do verbo de cópula; mas em composição copiassem estruturas sintáti-
b) junto a adjetivos ou substantivos marcados cas em todos os casos, por que compostos do tipo
por foco. V^N são categorizáveis como nomes, mas não como
Ferreira elenca outras marcas das formações verbos?
com não. Em primeiro lugar, à semelhança de mui- Parece-nos que é melhor classificar não, em
tos prefixos, funciona como elemento recate- contexto pré-substantival e pré-adjetival, como ele-
gorizador: impressoras não-impacto, países mento adverbial formador de novas unidades lexicais.
não-OPEP. Em segundo lugar, adjunge-se a forma- Assim evitamos a criação de uma entidade ainda um
ções com in- negativo: não-inconstitucionalidade. tanto espúria, porque mal caracterizada, o prefixóide.
Por fim, enquanto as unidades construídas com in-
negativo são passíveis de ser enquadradas em estru- Conclusão
turas de intensificação, as construídas com não são
insusceptíveis de gradação. Diz-se, por exemplo, um Julgamos ser possível estabelecer que não é
grande insucesso escolar, mas não um grande não elemento formador de palavras, em ambiente pré-
sucesso escolar. substantival e pré-adjetival. Isto, porém, por si só não
O alto número de formações com não deve- basta, uma vez que não devem ser levados em conta
se ao fato de ele estar mais disponível ao falante mé- substantivos e adjetivos marcados por foco. Também
dio, como muito bem assinalou Ferreira. A sua devem ser excluídos os casos em que não se antepõe
utilização não implica alografias nem alomorfias, que a particípios em orações desenvolvidas ou reduzidas
se registram por exemplo em in- negativo. A propó- em que ocorre o apagamento do verbo de cópula.
sito disto, faz-se necessário salientar uma observa-
ção de Camara Jr. (1977: 47) quanto ao fato de as
pretônicas iniciais começadas por vogal deslocarem
Bibliografia
sua atonicidade mínima para a sílaba seguinte, do que
resulta o semi-apagamento das vogais átonas inici- ALVES, Ieda Maria (1987). A produtividade do pre-
ais, que do ponto sincrônico, torna pouco eficientes fixo não- no português contemporâneo. In: Ci-
contrastes do tipo regular/irregular. ência e cultura 39 (11): 1026-8. São Paulo.
Uma vez tendo exposto toda a complexa ques- AULETE, F. J. Caldas (s/d). Diccionario contempo-
tão em torno do não, em ambiente pré-substantival raneo da lingua portuguesa. Vol. 2. Lisboa: Li-
ou pré-adjetival, concluímos o seguinte: vraria Editora e Officinas Typographicas e de En-
a) esta forma pode ser vista como prefixo, por cadernação. Revista
uma questão de tradição, já que os afixos do GELNE
_____. (1958). Dicionário contemporâneo da lín-
iniciais são geralmente associados a advér- Ano 1
gua portuguesa. Vol. 4. Rio de Janeiro: Delta. No. 2
bios e preposições, mas não pode ser con-
siderado derivacional ou composicional, BARRETO, Mário (1986). A palavra não e outros 1999
conforme a perspectiva do autor; sinais de negação. In: _____ Através do dicio-
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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
nário e da gramática. Rio de Janeiro: Presen- de Lingüística e Filoloxia Românicas. Santiago
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HELOISA MARIA MOREIRA LIMA SALLES
Universidade de Brasília

ORAÇÕES INFINITIVAS
NO PORTUGUÊS DO BRASIL

Sabe-se que o português do Brasil apresenta (i) Por que (1a) só ocorre no português
inúmeros aspectos que o distinguem de outras vari- do Brasil, não sendo encontrada no
edades do português, em particular da européia. Tam- português europeu, nem em outras lín-
bém notório é o fato de que alguns desses aspectos guas românicas?
estabelecem diferenças em relação ao grupo româ-
nico como um todo. Tais fenômenos têm sido in- (ii) Por que (1b) não ocorre em outras lín-
vestigados em inúmeros estudos dedicados à guas românicas?
caracterização da modalidade brasileira do português
(cf. Tarallo, 1989; Roberts & Kato, 1993; e referên- (iii) Existe uma correlação entre a cons-
cias ali citadas). trução em (1a) do português do Brasil
Considere-se por exemplo a construção e (2a) do inglês? Pode-se dizer que se
exemplificada em (1a), que ocorre em diversas varie- trata de construções idênticas?
dades da língua em substituição à construção exem-
plificada em (1b), associada à variedade dita padrão: 1 Análises prévias

(1) a. Comprei um livro para mim/ti ler Considere-se primeiramente (ii) – em segui-
b. Comprei um livro para eu/tu da, discutiremos (i) e (iii). Aqui, a questão central é
ler/leres que a língua portuguesa, mas não as demais línguas
românicas, possui o chamado infinitivo flexionado,
o que permite o licenciamento do sujeito nominativo
O contraste em (1) sugere uma abordagem comparativa
na construção encaixada. Ou seja, a variação é
com o português europeu, em que (1b), mas não (1a), é
explicada em termos de uma propriedade morfológica
encontrada, sendo referida como construção de
da língua.
infinitivo flexionado (cf. Raposo (1987), Madeira
Várias análises discutem o processo de licen-
(1995) e referências ali citadas). Também, uma aborda-
ciamento da construção com infinitivo flexionado
gem comparativa com outras línguas românicas, em que
(cf. Raposo (op. cit.), Madeira (op. cit.), e referên-
(1a) e (1b) não ocorrem. Além disso, uma correlação
cias ali citadas). Considerando que o interesse do
com a construção do inglês, exemplificada em (2) e (3)1 :
presente estudo se concentra em (1a), e nas impli-
cações de seu surgimento expressas em (i), (iii),
(2) I bought a book for me/you to read tomarei como ponto de partida a análise de Botelho
(3) I want (for) you to read a book Pereira & Roncarati (1993) (doravante P&R,1993)
sobre o licenciamento da construção em (1a) em
A ocorrência de (1a-b) no português do Bra- oposição a (1b). Nesse estudo, propõe-se que a dife-
sil suscita várias perguntas: rença crucial entre essas construções é que (1a) é

1
A construção em (2a) tem sido discutida na literatura, ao lado da construção em (i), referida como construção de
marcação excepcional de Caso (MEC) (cf. Chomsky (1981), (1986), (1995); Kayne (1984), (1995); Braningan
(1992), entre outros):
(i) He believes me/you to be a genius
Ele crê mim/ti ser um gênio
Ele me/te crê/considera um gênio
Chomsky ((1993), (1995)) propõe que em (i) o sujeito da oração encaixada é licenciado na oração matriz por meio de
movimento na sintaxe fechada (dos traços) do sujeito para a posição de especificador de uma projeção funcional cujo Revista
núcleo é definido por traços de concordância (os chamados traços phi de pessoa, gênero e número), os quais são do GELNE
associados às propriedades licenciadoras do objeto da oração matriz (esse núcleo é referido como concordância de O
Ano 1
(bjeto), o núcleo funcional Agr (eement) O). Tal idéia baseia-se no fato de que existem evidências de que, nas constru-
No. 2
ções MEC, o sujeito da oração encaixada infinitiva ocupa uma posição mais alta do que o sujeito da oração encaixada
finita (cf. Braningan (1992)). Quanto ao processo licenciador da construção (2a), entende-se que o sujeito recebe caso
1999

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de P (excepcionalmente), na oração encaixada.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
um caso de marcação excepcional de Caso (MEC), ocorre como um argumento dativo ou benefactivo
dada a reanálise de para como um complementador (cf. (6a)). Partindo da construção em (6a), em que
(ou na posição de complementador). Quanto a (1b), ocorre um SP benefactivo (para um criente) em
entende-se que para não sofre reanálise: ‘a oração oposição à sequência para SN, P&R mostram que o
infinitiva está contida em um sintagma preposicional segundo elemento é imune a processos sintáticos
encabeçado pela preposição para’ (p. 20). que afetam constituintes, como a topicalização ou a
Seguindo análise de Lobato (1988) e Rocha clivagem, conforme ilustrado em (6b) e (6c)2:
(1989) (citadas em P&R,1993)), P&R (1993) assu-
mem que a atribuição do caso nominativo ao sujeito (6) a. Eu já cheguei a dar entrada para
do infinitivo é determinada pela a presença de CONC um criente para mim ganhá o
no núcleo FLEX que por sua vez concorda com o nú- percentual sobre aquela entra-
cleo C, já que este elemento também apresenta traços da que eu dei.
de concordância – isto é, ‘o complementizador sub- b. *para mim, eu já cheguei a dar
categoriza que o núcleo de FLEX seja [+CONC] ou entrada para um criente, __
[-CONC]. É a presença de [+CONC] no núcleo de ganhá o percentual sobre aquela
FLEX que determina a atribuição de caso nominativo entrada que eu dei
ao sujeito’ (p.20). Essa derivação está ilustrada em (4):
c. *foi para mim que eu já cheguei
(4) SP a dar entrada para um criente,
/\ __ ganhá o percentual sobre
para SC aquela entrada que eu dei
/\
∅ SF Como suporte para essa análise, B&R mostram
[+CONC] /\ que para ‘aparece em posições que costumam ser
eu F’ preenchidas por outros complementadores no dialeto
/\ padrão’(p. 23). É o caso de (7) e (8), respectivamente:
F VP
[+CONC] ∆ (7) a. Para você ir a um lugar e não
[-TEMPO] fazer ficar tranquilo não adianta

Conforme ressaltam P&R (1993), a análise aci- b. E para ir para ficar chorando não
ma não se aplica a (1a), visto que o núcleo FLEX nes- dá também, né?
sas construções é marcado como [-CONC]. Além
disso, o sujeito lexical não é marcado com o caso (8) a. Você ir a um lugar e não ficar
nominativo na construção em (1a), mas com o caso tranquilo não adianta
oblíquo – o que é previsto na análise. A proposta de b. E ir para ficar chorando não dá
P&R é que a preposição para é reanalisada na posi- também, né?
ção de COMP mantendo, porém, suas propriedades
lexicais, notadamente a de atribuidor de caso oblí- Propõem que a presença de para em (7) ‘parece
quo, do que decorre que o sujeito lexical na oração ser justificada pela necessidade de implementação de
encaixada seja licenciado com o caso oblíquo (cf. um elemento lexical no núcleo de COMP, atribuindo um
mim em (1a)) – nesse aspecto, distingue-se dos caso estrutural oblíquo ao sujeito, dada a ausênciade
complementadores que, se e ∅, que não atribuem [+CONC] em FLEX’ (p.24) – nesse caso, entende-se
Caso. que (8) envolve um complementador nulo (cf. (4)).
Outras construções envolvem verbos transiti-
(5) SC vos como esperar, lembrar, esforçar: numa varieda-
/\ de, para licencia o sujeito oblíquo, enquanto na
para SF outra, isto é, na variedade padrão, ocorre (i) o
[-CONC] /\ complementador nulo, introduzindo uma oração
mim F’ infinitiva ou (ii) o complementador que, introduzindo
/\ uma oração finita, conforme ilustrado em (9) e (10),
F SV respectivamente:
[-CONC] ∆
[-TEMPO] fazer (9) a. quando minha mãe estava espe-
Nesse sentido, a sequência para SN não é um rando pra mim nascer
Revista constituinte, na construção em (1a), ao contrário de b. não me lembrei pra mim pedir
do GELNE contextos sintáticos em que a sequência para SN meu filho pra te mostrar (...)
Ano 1
No. 2
1999 2
Os dados de Botelho Pereira & Roncarati (1993) foram extraídos de sete entrevistas de três mobralenses da pesquisa

72
‘Competências Básicas do Português’ (Lemle & Naro (1977)) e três falantes da Amostra Censo (UFRJ 1980).
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c. me esforço pra mim tirá meu as duas últimas possibilidades não estão disponíveis
diproma para a variedade não-padrão.
(10) a. quando minha mãe estava espe- O que eu gostaria de sugerir é que existe uma
rando eu nascer correlação entre a reanálise de para na posição de
a’. quando minha mãe estave espe complementador e a ocorrência da construção com
rando que eu nascesse o complementador que introduzindo uma oração
b. não me lembrei de pedir a meu finita com o verbo no subjuntivo. Em particular,
filho que lhe mostrasse (...) minha sugestão é que a reanálise de para na posi-
c. me esforço para tirar meu diploma ção de complementador está associada ao fato de que,
em algumas variedades do português, o uso da for-
2 O problema da variação ma verbal no subjuntivo encontra-se em variação
com a forma verbal no indicativo, caracterizando uma
Assumindo que a análise de P&R (1993) está situação de perda da marcação morfológica da mo-
essencialmente correta, uma questão que se coloca é dalidade por meio da flexão do verbo no subjuntivo.
por que o processo de reanálise de para na posição de De fato, conforme apontado na literatura, em
COMP ocorre nessa variedade do português, e não em algumas variedades do português do Brasil, usam-se
outras. Em outras palavras, cabe perguntar o que deter- as formas do indicativo pelas do subjuntivo, sendo o
mina a reanálise da preposição na posição de COMP. subjuntivo restrito a algumas expressões cristaliza-
Conforme amplamente registrado na literatura, das (Deus lhe pague) e a construções com as conjun-
sabe-se que algumas variedades do português falado ções se e quando que por sua vez não se substituem
no Brasil apresentam um processo de empobrecimen- pelas construções em estudo (cf. Pereira (1974);
to do paradigma flexional dos verbos, que atinge tam- Rocha (1997), e referências ali citadas).
bém a flexão do infinitivo. Esse fenômeno pode, Conforme ressaltado em Pereira (1974: 39), ‘há
portanto, ser invocado para explicar a ocorrência da variantes do português nas quais a flexão modal do
construção em (1a): na ausência do infinitivo flexio- verbo não entra como uma categoria ativa do sistema
nado, a preposição para é reanalisada na posição de dos falantes, que fazem uso exclusivamente do
COMP, com as consequências apontadas acima. indicativo’, conforme ilustrado em (11a), em oposi-
Entretanto, ainda assim é preciso explicar o que ção à construção com a forma verbal no subjuntivo,
bloqueia a ocorrência de infinitivo não flexionado na ilustrada em (11b):
posição relevante em outras variedades do português,
notadamente a européia, já que é uma forma disponí- (11) a. Você quer que eu saio?
vel na língua. Essa observação se aplica às demais b. Você quer que eu saia?
línguas românicas, que não dispõem da forma flexio-
Para Pereira (1974), o uso do indicativo em con-
nada do infinitivo, mas possuem a forma não flexiona-
textos que seriam compatíveis com o subjuntivo se
da, como se sabe. Conforme apontado por Roberts
justifica pelo fato de que o predicado da matriz selecio-
(p.c.), pode-se aqui argumentar que o surgimento de
na a modalidade do seu complemento, propiciando o
(1a) decorre da existência de construção com sujeito
uso do indicativo nos contextos de subjuntivo.
lexical na oração infinitiva (a saber, a construção com
Entretanto, merece destaque o caso dos pre-
o infinitivo flexionado (cf. (1b)) – ou seja, a constru-
dicados ditos indiferentes, que se caracterizam pelo
ção com infinitivo flexionado forneceria a base para o
fato de que a modalidade deve ser distinguida na
desenvolvimento da construção ‘para mim VP’, em
oração encaixada, pois não há outro elemento na ora-
português.
ção matriz que determine um ou outro modo verbal
Nesse caso, é impossível atribuir uma correla-
(isto é, o uso de um ou de outro modo verbal na
ção entre (1a) do português e (2-3) do inglês: dada a
encaixada é em si a única diferenciação). São verbos
ausência de infinitivo flexionado em qualquer período
que apresentam suposições, opiniões, recordações
do desenvolvimento da língua inglesa, não se pode
(ex. reputar/ achar/ supor; dizer/ afirmar/ observar/
postular um desenvolvimento semelhante para essas
insinuar (performativos); lembrar/ recordar). Assim,
construções nas duas línguas. A hipótese que gosta-
comparem-se:
ria de explorar é que as construções (1a) e (2-3) do
português e do inglês apresentam desenvolvimento (12) a. João disse que eu saísse.
semelhante, seu surgimento sendo, portanto, indepen- b. João disse que eu saí.
dente da existência da construção com o infinitivo
flexionado. Assim, a idéia é que o problema não se Nessas construções, a oposição entre o subjuntivo e
reduz à perda da flexão. o indicativo estabelece que o valor de verdade de
Considerem-se novamente os casos em (9) e (12a) seja interpretado como indefinido e de (12b)
(10). Conforme ressaltado por P&R (1993), na varieda- como verdadeiro. Revista
de dita padrão, além da projeção da construção com Cabe então perguntar o que ocorre nas varie- do GELNE
o infinitivo flexionado, existe a possibilidade de dades do português mencionadas acima, em que o Ano 1
construir a oração com o complementador que in- subjuntivo é sistematicamente substituído pelo in- No. 2
troduzindo uma oração finita, e nesse caso, o verbo dicativo – isto é, o que ocorre ocorre nas varieda- 1999
ocorre no subjuntivo. Nesse sentido, assume-se que des do português em que a marcação morfológica
73
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do subjuntivo não é esperada nesse contexto (sendo tuguês europeu, nem em outras línguas românicas?
restrita aos casos mencionados acima)? Vale ressaltar que a construção Disse para não é en-
O que eu gostaria de sugerir é que a marcação contrada no português de Portugal., mesmo no caso
da interpretação indefinida do valor de verdade é ob- em que se tem o sujeito nominativo e o infinitivo
tida por meio da construção ‘disse para NP VP’. A flexionado, como em Disse para eu/nós sair/sair-
idéia é que a construção Disse para mim sair (em mos, opção atestada em algumas variedades do por-
lugar de Disse que eu saísse) ocorre em oposição a tuguês do Brasil. Minha sugestão é que o surgimento
Disse que eu + indicativo (=saí/sairei/sairia/tinha da construção Disse para no português do Brasil
saído) como forma de distinguir a interpretação de está associado a outro fato que caracteriza a varieda-
valor de verdade indefinido e verdadeiro, respectiva- de brasileira do português em oposição à portugue-
mente, o que constitui um traço das variedades do sa, a saber, a substituição do clítico (dativo) me; te;
português mencionadas acima que usam as formas lhe pelo sintagma preposicionado introduzido por
do indicativo pelas do subjuntivo. para, dando origem a Disse pra mim .
Essa restrição de interpretação explica por que É interessante notar que o processo que deu
somente para é reanalisada como complementador. Ne- origem à reanálise da preposição para no português
nhuma outra preposição pode ser utilizada nesse con- do Brasil pode ser comparado ao que deu origem à
texto, e esse é o contexto por excelência da reanálise de construção com a preposição for na contraparte in-
para. Uma vez reanalisada na posição de COMP, a pre- glesa da construção (1a), ilustrada em (2a). Conforme
posição para recebe o traço de [+ irreal], uma proprieda- apontado em Jarad (1997), (2a) tem sido analisada como
de morfológica da língua. Essa possibilidade envolvendo a reanálise de for como complementador,
estende-se então a outros predicados, do que decorre a partir de uma construção em que a preposição for
a emergência das construções ilustradas em (1a), (6a), é introduzida para substituir o caso morfológico
(7) e (9). marcador de dativo benefactivo (cf. Lightfoot,1991).
Cabe então perguntar por que (1a) só ocorre Nesse contexto, surge a construção em (13), cujo
no português do Brasil, não sendo encontrada no por- predicado da matriz se caracteriza também por não

(13) It is pleasant [benefact. for the rich] [suj. for the poor] to do the hard work
É agradável para os ricos para os pobres fazer o trabalho árduo
‘É agradável para os ricos que o pobres façam o trabalho árduo’
(exemplo de Chomsky (1977), citado em Jarad (1997:172))

selecionar a modalidade da construção encaixada. A Buscou-se então determinar as condições


preposição for é reanalisada na posição de comple- licenciadoras de cada construção. Enquanto a pri-
mentador, recebendo o traço [+irreal]: meira for associada à presença de flexão na forma
Assim, pode-se dizer que existe uma correla- infinitiva, uma propriedade morfológica exclusiva da
ção entre a emergência da construção (2a) em in- língua portuguesa em relação ao grupo românico, a
glês e um conjunto de mudanças que determinaram segunda foi associada a outros fatos da morfologia
a transição do período chamado inglês médio para do português falado no Brasil, a saber, (i) a (tendên-
o inglês moderno, entre elas a perda dos clíticos, a cia à) perda da marcação morfológica do subjunti-
perda da marcação morfológica de caso e a perda da vo, no contexto de predicados introduzidos por
realização morfológica do subjuntivo (cf. Van verbos não-factivos e verbos performativos
Kemenade (1987), Jarad (op. cit.)). Em face disso, (notadamente os últimos) e (ii) a substituição do
é possível reponder à pergunta (iii), formulada aci- clítico dativo pela construção introduzida pela pre-
ma, afirmando que existe, de fato, uma correlação posição para.
entre as construções em (1a) do português do Bra- A análise permitiu ainda afirmar que existe uma
sil e (2) e (3) do inglês, respectivamente, já que se correlação entre as construções em (1a) do português
demonstrou que as condições que determinam o do Brasil e (2) e (3) do inglês, tendo sido demonstrado
surgimento das mesmas estão associadas a fenô- que o surgimento das mesmas foi determinado por
menos semelhantes. condições semelhantes no âmbito da diacronia. Esse
estudo vem reforçar a hipótese formulada em Roberts
3 Conclusão (1993, cf. ainda Salles (op. cit.)) segundo a qual exis-
tem semelhanças entre o desenvolvimento do inglês
O presente estudo constitui uma abordagem pre- moderno e do português do Brasil.
liminar das questões examinadas. Seguindo análise
de P&R (1993), mostrou-se que as construções em
Revista (1a) e (1b) estão associadas a diferentes projeções Bibliografia
do GELNE sintáticas: em (1a), a oração infinitiva ocorre encai-
Ano 1 xada no sintagma preposicional cujo núcleo é para, Botelho-Pereira, M.A. & C. N. Roncarati (1993) ‘O
No. 2 e em (1b), a oração infinitiva ocorre encaixada numa caso do sujeito em orações infinitivas
1999 estrutura em que a preposição para é reanalisada na introduzidas por ‘para’ no português popular do
Brasil’. DELTA 9 (1), 15 - 30.
74
posição de complementador.
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Botelho-Pereira, M.A. (1974) Aspectos da oposição Madeira, A.M. (1995) Topics in Portuguese Syntax:
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temporâneo. Dissertação de Mestrado. UFRJ. torado, University College London.
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Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

75
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
WERNER THIELEMANN
Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha)

VALORES SEMÂNTICOS E
TEXTUAIS DOS ADVÉRBIOS
EM PORTUGUÊS

1 Introdução - Nível da enunciação (Nível E);


- Nível das funções sintácticas (Nível S1);
A teoria das partes da oração, antiga de 2.000 - Nível das funções semântico-sintácticas (casos se-
anos, reserva à classe dos advérbios um estatuto es- mânticos) (Nível S2);
pecial. Trata-se de uma classe heterogénea,1que in- - Nível dos modos de validez2 (MV);
tegra elementos muito diversos, com variação marcada - Niveis modalizadores dependentes de diversos es-
em distribuições e funções, se bem que se viu baptizar tratos (Niveis M )
cesto de lixos categorial pelos críticos. A primeira distinção fundamental que se impõe
Daí que a investigação dos últimos anos prefe- com base nesta estratificação é aquela entre valores
re tratar os advérbios de operadores, i.e., unidades endocêntricos e valores exocêntricos dos advérbios.
que abrem uma área operacional, um escopo, acima de
entidades sintagmáticas ou discursivas. Além dos 2.2 Funções endo e exocêntricas
valores denotativos, os advérbios frásicos, ilocutó- dos advérbios3
rios e metadiscursivos têm valores pragmáticos, liga-
dos à própria acção discursiva. Por tudo isso é São endocêntricos os valores que dependem
evidente que, para descrever as funções dos advérbi- do nível L, dos lexemas4 que se reúnem em proposi-
os, exige-se um modelo sumamente flexível que, a títu- ções. Permitem especificações de traços da micro-
lo provisório, tentamos aqui apresentar como modelo estructura lexical. Por outro lado, há especificações
estratificatório. externas (valuativas, de gradação etc.) fora do lexema
(dimensão exocêntrica).
2.1 Estratos descritivos (1) (D. Sebastião) ”...o seu temperamento místi-
co; a sua vocação para herói - tudo isso tem um
a) modificações de traços micro-estruturais (nível do liame que, sem uma forçada interpretação psi-
lexema); cológica, o liga indissoluvelmente às condições
b) operações globais sobre sintagmas ou lexemas den- especiais do seu nascimento e da sua educa-
tro da proposição; ção.” (Sales Loureiro, 1978: 78/79)
c) operações acima da proposição; (1.1) ligar <===> indissolúvel.
d) operações acima do enunciado;
e) operações ilocutórias; Indissoluvelmente é emprego endocêntrico, de-
f) produção de conexões textuais / operações metadis- pende de ligar: ”unir por vínculos morais ou afetivos”
cursivas. e especifica o sema: vínculo, classificando-o indisso-
Desenham-se sucintamente os casos a - c, para lúvel. São empregos exocêntricos aqueles em níveis
depois dar-se preferência às operações d - f. acima de L, nas macro-estructuras. Incluem os advér-
Os níveis que distinguimos são os seguintes: bios de maneira (MAN), de escopo (SCOP), de sujeito
- Nível lexical (Nível L); (SU), de acto ilocutório (ILOC),5 a mais, advérbios
- Nível da proposição (Nível P); de conexão transfrástica, advérbios avaliativos de
- Nível comunicativo (Nível C); veracidade, de modo de validez da proposição, de

Revista 1
“Sob a denominação de ADVÉRBIO reúnem-se, tradicionalmente, numa classe heterogénea, palavras de natureza nominal
e pronominal com distribuições e funções às vezes muito diversas.” Cintra/ Cunha 1989: 538.
do GELNE 2
Em alemão: Gültigkeitsmodi.
Ano 1 3
Cf. Melis 1983: 29.
No. 2 4
De verbos ou adjectivos.
1999 5
Como costumam tratar-se em diversos trabalhos respectivos (p.ex. Renzi et al. (1988), Fuentes (1991); Thielemann

76
(1996); desiste-se aqui da descrição datalhada desses grupos.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
comentário, até metadiscursivo ou textual (COM). Os (2) ”Pessoal e institucionalmente (como do-
constituintes de referência destes grupos são o sin- cente e investigador do Instituto de História
tagma, a proposicão ou níveis supraproposicionais. da Expansão Ultramarina da Universidade
de Coimbra FLC), optei e aceitei comemorar
3 Nível do proposição (Nível P) estes 500 anos dos Descobrimentos Portugue-
ses cumprindo sobretudo um plano de inves-
3.1 Advérbios de escopo
tigação e publicação, sincronizado o mais
Trata-se dum grupo que restringe a validez do possível com a celebração dos grandes even-
sintagma ou da proposição toda. O locutor não quer tos.” (JL: 01-07-98: 11)
atribuir validez geral ao conteúdo proposicional, pre-
ferindo restringir a validez a um certo domínio, uma (2.1) ASS: P1 & RESTR: SCOP (P1 vale para a
área: política, estratégia, teoria, instituição, pessoa minha pessoa e para a instituição).
(empregos exocêntricos). Em (2), a concretização dos
advérbios entre os parênteses, mostra muito bem a O gráfico mostra a respectiva árvore de de-
atribuição de escopos. pendências:

Nível E E

Nível P P’’

Nível P SCOP P1

pessoalmente

Nível S1 SU PRED

VP

Nível S 2 xAG V yCT

Nível L eu optar/aceitar P2 (x comemorar y com z)

Os advérbios de escopo costumam marcar-se 4 Nível da enunciação (Nível E)


por entoação suspensa e pausa depois do advérbio,
vendo-se assim claramente a divergência de estatuto No nível da enunciação já não se completa ou
entre advérbio e proposição (P1).6 restringe o conteúdo proposicional (P), mas ope-
ram-se valorizações, atitudes de locutor e interlocutor,
reacções dos actores do próprio acto comunicativo
3.2 Advérbios explicativos7
(Nível C) com respeito a P.

Os advérbios explicativos, capazes de introdu- 4.1 Advérbios de evaluação subjectiva


zir informações suplementares, são às vezes equiva-
lentes a toda uma subordinada, permitindo em (4) a (5) “Cardoso e Cunha resiste ou sobrevive à
frente da Expo’98? [...] Infelizmente para ele
paráfrase causal:
nenhuma das condições lhe é favorável.” (Ex-
presso Priv. 13-4-96: 4)
(4) Alejandro Gravier, um argentino com êxitos
(5.1) Infelizmente tenho que constatar P1.
nos negócios segue-a amorosamente desde há
cinco anos: (...).(Expr. Vivas 9-3-96:5) Com infelizmente, advérbio performativo, o locu-
(4.1) Segue-a porque/ já que está amoroso/ tor anuncia que lamenta o facto P1 (condição de sin-
apaixonado por ela. ceridade).8 O advérbio de frase (lamentavelmente,

6
O quadro restrito deste trabalho não nos permite discutir a fundo a mobilidade de advérbios, sendo a última o traço
saliente de advérbios frásicos. É evidente no caso de advérbios aléticos cf. Melis (1983): Revista
(3) O Pedro tem provavelmente razão. vs.
do GELNE
(3.1) Provavelmente o Pedro tem razão. vs.
Ano 1
(3.2) O Pedro tem razão, provavelmente.
7 No. 2
Também discutidos como Advérbios de sujeito, cf. Renzi 1988.
8 1999
A operação de infelizmente, leva o conteúdo de P1 ao modo de factividade. No entanto, é evidente que na fala o valor

77
dos elementos do grupo depende da condição de sinceridade, e, se não houver esta, pode se tornar em pura hipocrisia.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
afortunadamente, felizmente, paradoxalmente, 4.3 Advérbios de função assertiva
inexplicavelmente etc.) escolhido pelo locutor per-
mite evitar a expressão frásica do mesmo conteúdo. Existe a mais um grupo de adverbios que à dife-
rença da veracidade da proposição, destaca o valor
4.2 Advérbios de evaluação funcional dos argumentos, pondo argumentos em re-
alética e epistémica: levo. Pertencem àquele grupo: designadamente, ver-
dadeiramente, essencialmente, precisamente e outros.
Com estas modalidades, o locutor que dispõe
dum leque de avérbios para designar a factividade, (8) A verdade, porém, é que também este seg-
probabilidade, eventualidade do conteúdo propo- mento do mercado habitacional continua à espera de
sicional (P), vem notar o grau de certeza atribuido à melhores dias em Portugal.
factividade de P: aparentemente, provavelmente,
Porquê? Essencialmente porque durante todo
presumivelmente, aparentemente, obviamente, cer-
o ano de 1995 não se assitiu, neste domínio,
tamente e outros.
segundo a AEOPS (Assoçiação de Empresas
(6) “Não foi certamente por acaso que a Repú- de Construção e Obras Públicas - Th.), à intro-
blica de Haiti ficou à margem da viagem pa- dução de qualquer «medida significativa» no
pal.(P1) O Vaticano não morria de amores pelo intuito de lhe conferir uma maior flexibilidade e
Presidente Jean-Bertrand Arsitide (reposto no uma melhor funcionalidade. (Expresso 11-5-96:
poder, em 1994, pelas tropas americanas)(P2). Priv.: 9)
Ex-padre salesiano, Aristide lembrava a João (8.1) Vou dar uma explicação, mas o que se se-
Paulo II os «padres vermelhos» centro-ameri- gue parece-me constituir o critério essencial. (Valida-
canos.(P3)” (Expresso 10-2-96: 23) ção dum argumento para a continuidade da
argumentação.)
(6) é uma sequência justificativa. O autor presupõe o
(8.2) P2 & P1 é essencial para P2.
leitor na atitude (P1: por acaso), justificando, por
conseguinte o seu enunciado (P1: não por acaso). Precisamente, às vezes, é de emprego compa-
Certamente ironisa o presuposto do leitor (P1); não rável: confere unicidade ao argumento, declarando-
é destinado a criar certeza, mas destinado a sugerir o decisivo.
dúvidas. A modalidade sugestiva será depois susten- (9) “... esta atitude da Igreja Católica portugue-
tada: não morrer de amores (P2); ex-padre salesia- sa não pretende tomar a forma de um «novo
no (P3). Como não há conector justificativo (é que, já colonialismo», mas apenas «empenhar cida-
que) é ao leitor de concluir à exactidão de P1, aumen- dãos crentes na sua responsabilidade históri-
tando-se assim a força persuasiva: (6.1) (CERT(P1)) ca de promoverem um encontro de povos no
<== não morrer de amores (P2). campo da cultura e da solidariedade». E fo-
ram precisamente os resultados desta persis-
(7) ... e consequentemente (o PS deveria - Th..) tência que conseguiram «convencer» os bispos
apostar na destruição da AD e na realização de Angola, Brasil, S.Tomé e Príncipe, Moçambi-
desse acordo (E’1), obviamente após novas elei- que, Guiné-Bissau e Cabo Verde a encontrarem-se
ções.” ( E’2/P2) (O Jornal: 29-1-82: 9) durante quatro dias com os seus pares portu-
gueses.” (Expresso 11-5-96:11)
Dentro do enunciado global E, o sintagma ob-
viamente após novas eleições possui valor subsidiá- Valoriza o acto ilocutório: (9.1) Vou indicá-lo
rio duma operação de sugestão (E’2), com vista a de maneira precisa.
aumentar a aceitabilidade do enunciado (E’1) basea-
do em P1 (O PS deve apostar na destruição da AD e 5 Avaliações textuais -
na realização desse acordo). O locutor sugere E’1 comentários textuais9
sob restrição temporal, reforçando-a por obviamente
que é coercitivo para o interlocutor e pois inverte to- Noutras operações advérbiais, sobrepostos à
talmente a situação persuasiva. Não exprime a con- proposição inferior (P), o locutor comenta (verbo de
vicção do locutor; lhe serve de argumento para fazer fala) enunciados, conteúdos proposicionais ou sin-
aderir o leitor a E’1. E’1 deve ser óbvio para o leitor, tagmas (níveis E, P e S). Comentam-se sucintamente
sendo parvo quem não o aceite. O enunciado (7) é conjuntos de factos, situações, maneiras de agir, con-
uma sugestão em três níveis: 1º. reclamação do que teúdos textuais. Os comentários subjectivos integram-
o PS deveria fazer (E’1); 2º. deveria fazê-lo após no- se também na estratégia de persuadir o interlocutor.10
vas eleições (P2); 3º o advérbio obviamente ope- Em (10) é menos o conteúdo a que o comentário diz
rando acima do conjunto de 1º. e 2º. para sustentar a respeito que a maneira de argumentar, avaliada opor-
Revista
estratégia persuasiva do locutor destinada a fazer tunística. Oportunisticamente domina a estrutura do
do GELNE aderir o leitor às suas afirmações. pacote proposicional (10).
Ano 1
No. 2
1999 9
Muitas vezes os comentários textuais estão muito perto da actividade metadiscursiva, cf. abaixo 7.

78
10
Advérbios de função argumentativa.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
(10) Nível E E’’

Nível E’ COM PROP E’’(E’1)

oportunisticamente(E’2)

Nível P P1’’

Nível S2 Ø argumentar CT (P2’’) (nível P’)

Nível S1 SU PRED

Nível S2 V ATTR ATTR

Nível L considerar Portugal como X (COMP)

(10) ”Oportunisticamente, argumentou-se tem sido conduzida não tem nada a ver com o
também, que considerar Portugal já não como discurso da campanha (...) Num documento dis-
insusceptível de segmentação regional mas an- tribuído por ocasião do aniversário da eleição,
tes como uma única região nos daria vantagens intitulado «A grande desilusão dos franceses»,
nas negociações dos quadros comunitários o PSF contesta igualmente a política externa de
com a União Europeia, uma vez que desse Chirac afirmando designadamente que «a ima-
modo, seria mais fácil fazer valer a tese que gem da França no estrangeiro está desfocada.»
todo o território deveria beneficiar das mes- (Expresso Rev. 11-5-96: 82)
mas taxas de participação dos fundos comuni- Igualmente tem duas funções: classifica a parte
tários. Este é, com certeza, de todos os antecedente como comparável, integrando assim o pri-
argumentos que têm vindo a ser apresentados meiro parágrafo de (11) nas críticas, e criando, regres-
contra a regionalização o mais inconsistente.” sivamente, conferindo clareza à estrutura textual.
(Expr. Econ. 11-05-96 : 12) Em (12) apresentamos a ossatura metadiscur-
siva dum comunicado da Associação Portuguesa de
(10) mostra a complexidade e a condensação do Seguradoras (APS)11 que tem o objectivo de refutar
processo de textualização. O comentário (COM) vem pa- acusações proferidas contra as Seguradoras, a saber,
rafraseado: (10.1) É oportunístico tal modo de ver o de não cumprirem o estipulado no Decreto-Lei. O con-
problema. junto dos conectores usados se revela um armazém
conectorial de refutação, por si só já permitindo ima-
6 Funções metadiscursivas dos advérbios
ginar a estrutura argumantativa.
A estructura metadiscursiva dos textos é, hoje (12) Nunca..., Foram, assim,.., Entretanto...,
em dia, na linguística textual, um facto adquirido. Or- Entretanto.., Ora,.. Pelo respeito que merecem..., Com
ganizando redes lógicas e sequências textuais, os si- efeito..., É essa mesma confiança que faz..., É de re-
nais metadiscursivos são os faróis, os guias de ferir..., Ora..., Nestas condições..., Finalmente...,(...).
produção e recepção. Em muitos casos trazem rou- (DN 9-6-98: 7)
pagem adverbial: finalmente, igualmente, posteri- Vêem-se claramente os passos argumentativos
ormente, paralelamente, antigamente e outros. de constatar, fornecer novos argumentos (entretan-
to, é de referir), reduzir o valor do argumento em fa- Revista
(11) ”Sobre o balanço dos primeiros 12 meses vor (ora), justificar-se (nestas condições), e chegar
do GELNE
de Chirac, Jospin foi frontal: «A política que (finalmente) ao argumento superior da cadeia.12
Ano 1
No. 2
11
1999
Publicado no DN 09-06-98: 3. Infelizmente,por falta de espaço não será possível imprimir o próprio texto.

79
12
Cf. Ducrot 1980.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
7 Advérbios criadores de Curiosamente sugere que a FN, partido xenófobo
coerências argumentativas notório, não é sincera. O modo sugestivo é inferen-
cial;cabe ao leitor inferir a conclusão. Não se lhe
Além do mais, um papel notável dos advérbios asserta que a FN era hipócrita. O 1º valor escalar é
consiste em assegurar a coerência argumentativa do neutro: (P1) estrangeiros afastados das listas. No-
texto. Ao lado das conjunções, não é raro que sejam mes de estrangeiros nas listas da FN (P2) é domina-
também os advérbios que servem a encadear macro- do por curiosamente, valor superior que invalida a
proposições, pacotes de enunciados, organizados em asserção de P2. (P3) quarto nome descendente dum
cadeias argumentativas, quadros pragmáticos, reforçan- imigrante árabe, aumenta a contradição afirmando
do, invalidando e combinando os modos assertivos P2 vero. Prepara P4, a conclusão: alibi da FN. A
dos enunciados particulares. Assim vão transfor- mistura das orientações argumentativas contrárias faz
mando factos informativos em estrategemas persua- com que o leitor descubra a estratégia da FN.
sivos: juízos, objecções, justificações, conclusões,
etc., tentando tornar óptimo o efeito persuasivo em 8 Resumo
frente do interlocutor (evidentemente, logicamente,
naturalmente, obviamente), convidando, intimando A dificuldade em encontrar uma descrição ho-
ou mesmo forçando o interlocutor a aceitar a argu- mogénea para os advérbios depende do facto de tra-
mentação apresentada, (cf.13): tar-se de categoria polifuncional, sendo portanto tudo
menos que um cesto de lixos categorial. Mesmo com
(13) Estas formas pronominais, logicamente, formas idênticas (em -mente), revelam-se a esfinge da
não podem introduzir comentários actanciais, classificação, já que funcionam em vários níveis de
não referindo-se a actantes, mas sim, a elemen- língua e linguagem. Capazes de traspassar distâncias
tos intensivos. funcionais consideráveis, conseguem alterações im-
O autor trata dum fenómeno que apresenta como pressionantes de valor pragmático. Daí a tendência
notório: pergunta se as formas relexivas podem in- de classificá-los palavras-instrumentos, operadores.
troduzir comentários sobre actantes, servindo-se da A sua riqueza e a sua variedade, no entanto,
forma silogística: SE ==> ENTÃO (em seguida S/E): contribuem em maior grau ao funcionamento da lin-
guagem: além de modificar significados verbais, os
(13.1) O pronome intensifica a forma verbal advérbios exprimem, no níveis de frase e enunciado,
==> ORA, este pronome não representa um sentimentos, escopos, valores epistémicos e partici-
actante ==> ENTÃO não pode introduzir co- pam com funções metadiscursivas na organização do
mentários actanciais. => texto. Daí que se lhes propõe a descrição num modelo
(13.2) SE o pronome é intensificador ==> EN- estratificado que saiba, em níveis distintos, visualizar
TÃO não pode introduzir coment.s actanciais. as operações efectuadas. Tentámos mostrar várias das
suas áreas funcionais: intrafrásicas, suprafrásicas,
Sendo pré-fabricado e pressuposto: SE (P1)
textuais e discursivas, a última sendo sem dúvida a
==> ENTÃO (P2), o arranjo de conteúdos P1 ==>
mais atractiva delas.
P2, em virtude do silogismo, terá de ser aceito como
lógico. Do início, a asserção (P2) é qualificada lógi-
ca e coercitiva (não podem). Logicamente anuncia o Textos: Expresso, Diário de Notícias (DN), O Jornal, O
direito para afirmar-se P2. Sendo P1 a condição sufi- Público, Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), Lisboa;
ciente de P2, torna-se ridículo refutá-la. Sales Loureiro, Francisco, D. Sebastião - antes e de-
Em (14) integra-se curiosamente numa dis- pois de Alcácer-Quibir, Lisboa: Ed. Vega,1978.
cussão sobre a sinceridade da Frente Nacional (FN)
na França, destinada a qualificar o seu comportamen-
to como hipócrita: Bibliografia
(14) ”Quanto aos franceses de origem estran-
geira, continuam praticamente afastados das ADAM, Jean-Michel. 1990. Eléments de lin-
listas (P1). Curiosamente, é nas listas da Fren- guistique textuelle - théorie et pratique de
te Nacional que aparecem nomes de estrangei- l’analyse textuelle. Liège: Mardaga.
ros (P2) de segunda geração de emigrantes em ANSCOMBRE, Jean-Claude.1990. Thème, espaces
situação de eligibilidade. Tal é o caso de Paris, discursifs et représentation événementielle. In: J-
onde o quarto nome da lista da extrema-direita Cl. Anscombre/ Gino Zaccaria (eds.), Fonctionna-
é o de um descendente de um imigrante árabe lisme et pragmatique. A propos de la notion de
(P3). Uma maneira de a FN obter um alibi (P4) thème. Milano: Ed. Unicopli, pp. 43- 150.
Revista
para as acusações de partido racista.” (DN 15-
do GELNE CUNHA, Celso / Luís F. Lindley Cintra, 1984 Nova
03-98: 20)
Ano 1 gramática do português contemporâneo.2 Lis-
No. 2 Com curiosamente estabelece-se quadro ma- boa: Sá da Costa.
1999 croproposicional pragmático (P1 a P4) que desen- DUCROT, Oswald. 1980. Les échelles argumen-
volve uma escala crescente de valores dubitativos. tatives. Paris: Minuit.
80
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
FUENTES RODRIGUEZ, Catalina. 1991. Adverbios THIELEMANN, Werner. 1994. Valenzen, Kasus,
de modalidad. In: Verba, Santiago de Compostela, Frames. In: W.Thielemann/ Kl.Welke (eds.),
18 (1991), pp. 275 - 321. Valenztheorie - Werden und Wirkung. Münster:
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di Lorenzo Renzi, 1988 Bologna: Il Molino; Par- THIELEMANN, Werner. 1996. El adverbio: Prag-
te: L’avverbio, a cura di Laura Lonzi, pp. 350 - 412. mática - Gramática - Léxico: Campo conflictivo.
HEINEMANN, Wolfgang / Dieter Viehweger. 1991. In: Gerd Wotjak (ed.)(1996), pp. 59 - 91.
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VIEHWEGER, Dieter et al. 1977. Probleme der
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compléments circonstanciels en français WOTJAK, Gerd (ed.). 1996. En torno del adverbio
moderne. Louvain: Presses Universitaires. español y los circunstantes. Tübingen: Narr.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

81
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
DURVALI EMILIO FREGONEZI
Universidade Estadual de Londrina

ACONTECEU A
VIRADA NO ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA?
As perguntas que me faço
São levadas ao espaço
E de lá eu tenho todas
As respostas que eu pedi
(Roberto Carlos/Erasmo Carlos
“Pensamentos”

Os estudos de linguagem dade, procurando explicitar todos os seus elemen-


tos funcionais, incluindo as unidades textuais e
Os estudos contemporâneos de linguagem ca- discursivas, não contempladas até então pelas teori-
racterizam-se através de dois movimentos: o desloca- as anteriores de estudo de linguagem. Surgem, a par-
mento do foco da frase para o texto e do enunciado tir daí, novas categorias de análise que devem ser
para a enunciação. No entanto, basta uma olhada em incorporadas à reflexão sobre a linguagem.
nossos materiais pedagógicos, basta uma observa-
ção nas conversas de estudantes de nossas escolas, O professor de Língua Portuguesa
basta um rápido contato com professores de língua O professor que trabalha com língua portugue-
materna, para concluir que as novas tendências ainda sa nas séries iniciais recebe sua formação em esco-
não chegaram às salas de aula. É a marca prescritivista las de Magistério. Esse educador, geralmente, não
do estudo e do ensino que ainda predomina. Essa atua em apenas uma ou outra disciplina. Recebe a for-
mudança nos paradigmas de estudos lingüísticos tem mação para atuar no conjunto de todas as disciplinas
como conseqüência um novo posicionamento do ho- ministradas nas séries iniciais. Sua formação, marcada
mem diante da linguagem. O objeto linguagem passa a por essa pulverização é precária na área de alfabetiza-
ser visto não mais como um produto a ser dissecado, ção e língua portuguesa. A finalidade da formação é
a ser analisado e sim como um processo. Em última mais com “o como se ensina” do que com “o que se
análise, o estudo da linguagem procura o homem que ensina”. Por essa razão, o professor que atua em nos-
está na linguagem: sas séries iniciais com a área de língua portuguesa
“... como as idéias não existem desvinculadas pouco conhecimento tem sobre o funcionamento da
das palavras, a linguagem é um dos lugares linguagem. Seu conhecimento limita-se, quando mui-
onde se materializa a ideologia” (Gregolin, to, a regras normativas. Por outro lado, o professor
l988 p.118) que atua a partir da 5ª série recebeu em sua formação
uma dose bastante significativa de estudos lingüís-
A abordagem prescritiva da linguagem, histori- ticos. Língua portuguesa, lingüística, teoria da litera-
camente, dominou os estudos lingüísticos. Essa ten- tura, filologia e outras disciplinas relacionadas à
dência é tão forte que se transformou em um mito. Tanto linguagem ocuparam todo o seu currículo. No entan-
é que, se perguntarmos aos representantes letrados de to, as escolas de formação de professores na área de
nossa sociedade qual é o objetivo do ensino de língua Letras - que se expandiram a partir dos anos 70 - não
portuguesa em nossas escolas, a resposta é unânime: acompanharam a evolução dos estudos lingüísticos.
estuda-se língua portuguesa com a finalidade de apren- Continuam com seus currículos defasados e marca-
der regras para falar e escrever corretamente. dos fortemente por uma visão tradicional de estudos
Os enfoques contemporâneos de estudo de lin- de linguagem.
Revista guagem tiveram como conseqüência o surgimento de Os professores, em resumo, que atuam com o
do GELNE novas disciplinas lingüísticas: a Lingüística de Texto, ensino de língua materna - uns, por não terem recebi-
Ano 1 a Análise do Discurso, a Semântica Argumentativa, a do uma formação em termos lingüísticos, outros, por
No. 2 Análise da Conversação e outras. Essas disciplinas, terem recebido uma formação prescritiva - continuam
1999 cada uma com suas finalidades e à sua maneira, ten- a trilhar um caminho tradicional em termos de estudo
tam abranger o fenômeno linguagem em sua totali- de linguagem.
82
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Inevitavelmente, a partir daí, há um paradoxo. um teoria da frase. Os elementos teóricos presentes
A prática tradicional do professor de língua portu- nos PCN ultrapassam o nível da frase: são elemen-
guesa, sua visão prescritiva em termos de linguagem tos ligados à gramática do texto e à gramática do dis-
encontra-se em oposição com a visão contemporânea curso. Na parte dedicada à prática de compreensão
- a visão textual e discursiva que fundamenta as pro- de textos, notamos a presença de elementos de
postas curriculares de ensino e que está presente nos tipologia textual/gêneros discursivos, apresentação
difundidos “Parâmetros Curriculares Nacionais”. Parâ- ao aluno de diferentes tipos de textos, bem como de
metros esses que representam, segundo a versão ofi- “regras” textuais. Fala-se em “análise de indicadores
cial, a verdadeira tábua de salvação para o ensino. Em lingüísticos e extralingüísticos presentes no texto...”
sua publicidade oficial, os órgãos do governo afirmam: Desenvolvendo os objetivos e os conteúdos relacio-
nados à produção de textos, novamente percebemos
“O Governo está entregando os Parâmetros a presença de elementos teóricos ligados às novas
Curriculares Nacionais para 600 mil profes- tendências de estudo de linguagem: “mecanismos
sores da Escola Pública. Os PCN sugerem discursivos”, “força de argumentos” “seleção do
uma nova maneira de ensinar. Agora, as interlocutor”. Essas novas categorias de análise
crianças vão aprender mais.” estabelecidas pelas novas tendências de estudo de lin-
guagem encontram lugar ainda nas sugestões de ativi-
Em síntese, a situação atual do ensino de língua
dades de análise lingüística: “utilização de recursos
portuguesa pode ser assim delineada: os professores,
sintáticos e morfológicos para expressar (.....) uma
com sua formação tradicional em termos de linguagem
diferente topicalidade...” , “emprego de elementos
envolvidos no processo de formação continuada - cur-
anafóricos sem relação explícita com situações ou ex-
sos de atualização, leituras, grupos de estudos, semi-
pressões que permitam identificar a referência”.
nários- percebem que a teoria que dominam para falar
A prática de ensino de língua portuguesa em
da linguagem já não é suficiente para embasar sua
nossas escolas, porém, continua a mesma. O profes-
prática pedagógica, uma vez que com as tendências
sor, sem tempo para planejar suas aulas, utiliza-se do
contemporâneas de estudos lingüísticos surgiram
livro didático que se transforma em uma espécie de
novas categorias, novas teorias para explicitar o
guia de conduta para o professor. As editoras, seden-
funcionamento da linguagem. Os órgãos oficiais,
tas de lucros, procuram por todos os meios abocanhar
preocupados com a qualidade de ensino e responsá-
seu quinhão no rentável negócio de venda de livros
veis pela Educação tentam a todo custo atualizar
para a FAE - Fundação de Amparo ao Estudante “ór-
esses mesmos professores, dar a eles uma instru-
gão do governo que adquire os livros das editoras e
mentalização teórica para redirecionar sua prática
os repassa gratuitamente aos alunos. Fazendo uma
pedagógica de acordo com a nova visão da lingua-
análise dos livros mais distribuídos pela FAE, obser-
gem. De outro lado, porém, os Cursos de Formação
vamos o paradoxo entre as propostas contidas nos
de professores na área de Letras- em sua maioria-
parâmetros curriculares nacionais e nos conteúdos,
continuam a proporcionar uma formação defasada,
objetivos e atividades contidos nos livros didáticos.
uma formação tradicional em termos de linguagem.
Torna-se necessário afirmar que o livro didático subs-
Os materiais didático-pedagógicos utilizados pelos
titui o professor nas tarefas de escolher “o que ensi-
professores com “marketing” e apresentação: “no-
nar”, “como desenvolver as atividades”, “como
vos”, “renovados”, ainda continuam também a
avaliar” ...; enfim, é o livro que assume o papel de
sedimentar as tradicionais atividades e visão de en-
sujeito no processo ensino-aprendizagem.
sino de língua portuguesa.
Enquanto nos PCN, encontramos uma concei-
tuação bastante clara do que é o trabalho com a refle-
Os parâmetros curriculares xão que se faz com a linguagem denominada “análise
nacionais X livro didático lingüística”, nos livros didáticos esse estudo ainda está
de Língua Portuguesa planejado de acordo com a visão prescritiva, tradicio-
nal da linguagem. Um dos livros mais distribuídos pela
Os parâmetros curriculares nacionais repetem FAE, o livro “Linguagem Nova” de FARACO e MOURA,
em linhas gerais o já publicado nas propostas curri- apresenta o desenvolvimento dessas atividades em ca-
culares de ensino de diversos estados brasileiros, nos tegorias estanques com o título de “Gramática”, abran-
anos 80. Os conteúdos de ensino de língua portuguesa gendo sob esse rótulo, as categorias lingüísticas restritas
estão articulados em três eixos: compreensão e pro- ao nível da frase. O livro, assim estruturado, propõe o
dução de textos relacionados ao eixo do uso da lin- desenvolvimento de atividades justamente como é cri-
guagem e análise lingüística relacionada ao eixo da ticado pelo PCN de língua portuguesa:
reflexão sobre a linguagem. Através de uma análise
dos conteúdos sugeridos, bem como dos objetivos “Assim não se justifica tratar o ensino gra- Revista
listados, podemos facilmente perceber que “a teoria” matical como se fosse um conteúdo em si, do GELNE
que está embasando a proposta tem como fundamen- mas como um meio para melhorar a qualidade Ano 1
to as “lingüísticas textuais e discursivas”. da produção lingüística. É o caso, por exem- No. 2
Como foi descrito no início dessa exposição, o plo, da gramática que, ensinada de forma 1999
ensino tradicional de língua portuguesa se embasa em descontextualizada, tornou-se emblemática

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de um conteúdo estritamente escolar, do Foi solicitado aos professores que depois da
tipo que só serve para ir bem na prova e leitura do texto respondessem às seguintes questões:
passar de ano...”(p. 17) 1- O que o repórter perguntou ao deputado?
Nos “parâmetros curriculares nacionais” há nas 2- Qual foi a resposta do deputado? Como
sugestões do ‘“tratamento didático dos conteúdos”(p. sabe?
50 e ss.) orientações para um curso de leitura. No livro O resultado do teste foi, em números, ainda maior que
didático, as atividades de leitura não aparecem “siste- o da reportagem do jornal, isto é, apenas 30% dos
matizadas”, isto é, não há um “ensino de leitura”. É professores “leu” o texto. Em reflexão com os cursistas
apresentado um texto com perguntas, o aluno respon- sobre esse resultado da “leitura dos professores”, a
de às perguntas, depois há um outro texto e assim conclusão foi a de que os professores, antes de entrar
sucessivamente. Não se percebe subjacentemente às na escola usavam a linguagem de um modo inteligente.
atividades de leitura sugeridas pelo livro didático uma A escola com seu encaminhamento tradicional de en-
gradação, uma seleção de estratégias de leitura a se- sino de leitura “mitificou” leitura como decodificação.
rem exercitadas. Um professor, na discussão chegou a afirmar: “Eu ti-
nha feito a leitura adequada, mas pensei que fosse
A concepção de leitura do professor para responder às questões como fazemos na escola”.
A partir dos anos 80 houve uma mudança nos b. Ainda em pauta o tema leitura, foi solicitado
paradigmas de estudo de linguagem. Essa mudança ao professor que tipo de encaminhamento daria para a
tem conseqüências diretas no modo de ver a lingua- atividade com dois textos publicados nas revistas
gem e no modo de ensinar linguagem. Para que a grande “Veja”(7-5-97) e “Isto é”(7-5-97). Seguem os textos.
massa de professores em atuação tivesse conheci-
mento desses novos encaminhamentos, os governos Revista “Isto é”:
iniciaram na segunda metade dos anos 80 os cursos
de capacitação, na tentativa de colocar em ação um “Morreu o psicanalista e deputado federal Eduardo
processo de educação continuada. Mascarenhas. Conhecido na década de 80 por tentar
Dois fatos ocorridos em nossa atuação nesses popularizar a psicanálise através de programas de tevê,
encontros, chamaram a atenção. Mascarenhas entrou para a política em 1990 como su-
a. Em um deles, a análise de uma reportagem. plente de deputado pelo PDT e em 1993 filiou-se ao
Por ocasião do dia mundial da alfabetização - 8 de PSDB. No Rio de Janeiro, de causa não divulgada, aos
setembro- o jornal “A Folha de São Paulo” (em sua 54 anos. Na terça-feira 29.”
edição de 8-9-97) traz como machete “Analfabetismo
funcional atinge 33% em SP”. O assunto focaliza uma Revista “Veja”
pesquisa “montada com textos do cotidiano” e reali-
zada com uma amostra de mil pessoas entre 15 a 54 “Morreu o psicanalista e deputado federal Eduardo
anos de idade da cidade de São Paulo. Aparecem na Mascarenhas. Com uma clientela de artistas e socia-
reportagem três exemplos do teste realizado. No pri- lites, sempre acompanhado de belas mulheres, Mas-
meiro, há um anúncio de emprego. O segundo texto carenhas fez algum sucesso em programas de TV e em
apresentado foi um boletim informativo divulgado jornais, discutindo de forma superficial conceitos
numa empresa sobre o resultado das eleições da CIPA. freudianos. Iniciou-se na vida pública em 1990, eleito
O último é um formulário de depósito bancário. As pelo PDT. Três anos mais tarde mudou para o PSDB.Dia
questões apresentadas no teste da pesquisa são bas- 29, aos 54 anos, de câncer no pulmão, no Rio de Janeiro”.
tante simples. No anúncio de emprego, por exemplo,
os pesquisados deviam “Riscar embaixo do endereço Um grupo de professores deveria encaminhar a
onde o candidato deve se apresentar para o empre- leitura do texto publicado na Revista “Isto É”. O outro
go”. A conclusão da reportagem é a seguinte: Na es- grupo, o texto da revista “Veja”. As questões formula-
cola, as pessoas aprenderam a ler, a escrever e a fazer das pelos professores resumiram-se aos conhecidos:
contas, mas não conseguem usar isso no dia-a-dia.” quem, onde, como, quando ....
Depois de discutir a reportagem, resolvemos Esses tipos de questões deixam de enfocar um
verificar como os cursistas estavam utilizando suas aspecto importante dos textos em questão. Como afir-
estratégias de leitura. Selecionamos um texto publica- mou Halliday (1976) a linguagem deve ser enfocada
do na revista Veja (edição de 16/04/97). Após uma através de três componentes: o componente ideacional
reportagem sobre os casos de violência policial ocor- (o conteúdo do texto), o componente interpessoal (as
ridos em Diadema (SP) e na Cidade de Deus (RJ) e relações que se estabelecem através do texto entre o
divulgados pelas redes de Tv, aparece uma charge. autor-texto-leitor) e o componente textual (de que
Revista modo os elementos se relacionam, se organizam no
Na parte visual, há dois personagens: um repórter e
do GELNE um deputado. Passa-se então o seguinte diálogo: texto para significar aquilo que eles significam). As
Ano 1 questões elaboradas pelos professores para o encami-
No. 2 “ - Deputado, o Senhor é da Bancada da PM? nhamento da leitura dos textos mostram que apenas o
1999 - Negativo. O elemento que disse isso eva- componente ideacional foi contemplado. A linguagem
diu-se do local e não pode provar nada.” é para esses professores apenas o veículo de idéias.
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Essa reflexão mostrou ainda que os exercíci- tendência prescritiva, tradicional de ensino/aprendi-
os de leitura escolar realizados são exercícios de “co- zagem de linguagem. Geraldi (1991) percebe a proble-
piação” e não de “compreensão” (Marcuschi, 1996). mática da produção e utilização de livro didático,
O encaminhamento da leitura pelos professores dei- quando ao tratar da atividade de análise lingüística
xou de enfocar o componente interpessoal. Enquanto assim se refere à produção de material didático:
no texto da “Isto é” o jornalista tenta passar uma ima-
gem neutra de Eduardo Mascarenhas, preocupando-se “Enfim, o risco deverá ser assumido em al-
com a referência do texto, a revista “Veja” posiciona- gum momento com a produção de material
se diante do político e psicanalista, caracterizando-o didático destinado a professores de 1º e 2º
como um “bom vivant” - “sempre acompanhado de graus sobre a análise lingüística na sala de
belas mulheres”- e colocando em dúvida sua própria aula. Um projeto a mais no horizonte das
profissão, afirmando que o psicanalista fez sucesso muitas coisas a fazer”. (p. 241)
(algum ) - “discutindo de forma superficial conceitos
freudianos”... (chamamos a atenção para o uso do ad- O risco a que faz referência o autor é a transfor-
jetivo “superficial”). mação desse material num receituário.
Há necessidade de superar esse primeiro obstá-
Um obstáculo a superar culo se quisermos mesmo caminhar em busca de uma
mudança qualitativa do ensino de língua portuguesa.
Os professores, que hoje atuam na rede pública Essa superação inclui também uma mudança de atitu-
de ensino, são oriundos de cursos superiores cujos de do professor em relação à linguagem, ao ensino, à
currículos não têm se mostrado muito eficazes na for- escola e à educação. Não se deve esperar soluções
mação de educadores que realmente possam provo- simplistas como a anunciada pela publicidade do Mi-
car a mudança qualitativa de ensino. Esses profissionais, nistério da Educação ao afirmar que a qualidade se al-
no mercado de trabalho, sobrecarregados de aulas, cança pela distribuição dos parâmetros curriculares
apóiam o encaminhamento de suas atividades didá- aos professores da rede pública, nem tampouco espe-
tico-pedagógicas no material que têm à sua disposi- rar por soluções mágicas como a do nosso cancionei-
ção - o livro didático. No processo de educação ro popular que encontra todas as respostas no espaço.
continuada - cursos, palestras, leituras, grupos de es-
tudo - entram em contato com as propostas curri-
culares de ensino que apregoam a não-adoção de livro Bibliografia
didático. Os próprios parâmetros curriculares naci-
onais fazem uma distinção entre aqueles que plane- FARACO E MOURA. Linguagem Nova - Coleção di-
jam o ensino e aqueles que apenas o executam (estes dática 5ª a 8ª séries. São Paulo, Ática, 1994.
seriam os que adotam o livro didático). O que fazer? GERALDI, J.Wanderley. Portos de Passagem. São Pau-
Abandonar o material didático? E o que colocar em lo, Martins Fontes, 1991.
seu lugar? Mesmo aqueles professores que conhe- GREGOLIN, Maria do Rosário V. As fadas tinham idéi-
cem as novas teorias de estudo da linguagem sen- as: estratégias discursivas e produção de senti-
tem-se inseguros diante dessa realidade. É mesmo um dos. Araraquara. Tese de Doutoramento, 1988.
salto no escuro que muitos, a maioria não quer dar.
HALLIDAY, M. A . K. Estrutura e Função da Lingua-
Por outro lado, os consultores dos subsídios
gem. In: LYONS, J. (org) Novos Horizontes em
curriculares, os professores universitários - a comuni-
Lingüística. São Paulo, Cultrix, 1976.
dade científica - mostram-se bastante radicais no que
diz respeito à elaboração e uso do livro didático. As MARCUSCHI, L. Antonio. Exercícios de Compreensão
editoras percebem a lacuna e a preenchem. Seus li- ou Copiação nos Manuais de Ensino da Língua.
vros adquiridos pela FAE e distribuídos por todo o Em Aberto, Brasília, ano 16, n. 69, jan/mar.1996.
Brasil continuam a direcionar, a mostrar os rumos do PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS-POR-
ensino de língua portuguesa. Um levantamento junto TUGUÊS. Versão preliminar para discussão nacio-
às editoras nos levou a uma rápida análise dos livros nal. Ministério da Educação e Desporto. Brasília,
mais distribuídos no Brasil, hoje. Todos eles com uma out/97.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

85
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MARIA AUXILIADORA FERREIRA LIMA
Universidade Federal do Piauí

MECANISMOS QUE
OPERACIONALIZAM O
VALOR GENÉRICO DO ARTIGO

Neste trabalho, discutiremos os mecanismos outra ocorrência de p. O artigo zero também apre-
que permitem que o artigo assuma um valor genéri- senta o mesmo comportamento do artigo definido,
co, em função da construção de um enunciado gené- remetendo para a totalidade da classe:
rico. Como marca de determinação, o artigo é
suscetível de remeter o nome à zona do genérico em 4 Homens são seres racionais.
que se consolida um grau de determinação genérica.
O grau de determinação genérica consiste em Esses enunciados acima apresentam mecanis-
uma determinação qualitativa vinculada à indicação mos responsáveis pelo valor genérico do artigo cen-
de que a quantificação é possível (Groussier et Rivière, trados no relator Ser que apresenta a ausência de uma
1966). Tomando os enunciados: determinação temporal associada à construção “o ho-
mem”, favorecendo uma varredura que resulta no va-
1 O homem é um ser racional. lor genérico do artigo. Esse mecanismo força, de
2 Um homem é um ser racional. alguma forma, uma ruptura com o empírico, ou mais
3 Os homens são seres racionais. precisamente, com as variedades preestabelecidas. Por
exemplo, quando temos:
Em 1, o artigo definido marca uma flechagem
genérica identificando “homem” com a espécie “ho-
5 O homem não é um ser racional.
mem”. Não se trata de uma determinação puramente
qualitativa, pois, se pensarmos de uma forma bem
A ausência da determinação temporal associa-
“ingênua” desvinculada de qualquer realidade pronta,
da à ocorrência “o homem” possibilita uma operação
temos nessa asserção uma decorrência de observa-
de varredura remetendo para qualquer ocorrência que
ções da propriedade “ser racional” atribuída a homens
tenha a propriedade “homem”. Do ponto de vista
diversos. Foi da observação de que um homem a en-
lingüístico, o mecanismo que nos leva a construir um
quanto homem tem a propriedade de ser racional; de
valor genérico para “o homem” sobrepõe-se à ques-
que um homem b enquanto “homem” tem a proprie-
tão da verdade do enunciado.
dade de “ser racional”, de que um homem c enquanto
Uma expressão nominal é genérica quando, no
“homem” tem a propriedade de “ser racional”... que
processo de construção referencial, o artigo indica
houve suporte para a asserção: “O homem é um ser
uma referência a uma classe, a todo elemento perten-
racional”. A propriedade é atribuída à espécie que
cente a uma classe ou a qualquer elemento não locali-
qualitativamente estende-se a cada elemento da es-
zado de uma classe. A construção referencial requer
pécie homem por meio de uma quantificação: Todo
um elemento não atualizado no sentido de não ser um
X que tem P é um ser racional. Podemos dizer que
elemento situado no tempo e no espaço em uma situa-
“ser racional” é uma propriedade estável, de caráter
ção de enunciação. Tomando, por exemplo, os enun-
definitório, do centro organizador de homem. Essa
ciados 6 e 7, podemos observar que em 6, o artigo
extensionalidade da propriedade “ser homem” per-
definido não remete o nome para elementos situados
mite que se tenha uma extração por aferição em 2. O
no tempo e no espaço como ocorre em 7:
artigo indefinido, nesse exemplo, marca uma extra-
ção por aferição por não termos uma ocorrência in- 6 Percebi que os cegos têm seu modo de ver. (R.E)
dividualizada de p, e sim uma ocorrência enquanto
7 Os cegos estão aguardando o médico na sala
possuidora da propriedade da espécie “homem” por
de espera.
Revista ser membro dessa espécie. Essa extração por aferi-
ção resulta em uma varredura:
do GELNE Em 6, o artigo definido remete “cegos” para a
Ano 1 Qualquer X que tenha P é um ser racional totalidade dos elementos da classe; já em 7, o artigo
No. 2 definido remete para um conjunto de elementos de-
1999 Em 3, o artigo indefinido remete para a totalida- terminados que se encontram em um espaço dado e
de da classe. Toda ocorrência de p é identificável a que pertencem à classe dos cegos. Em 6 e 7, as ope-
86
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rações de determinação são distintas. Em 6, temos 8.1 O cearense que conheci é hospitaleiro.
uma operação de varredura. O artigo definido marca
a atribuição de propriedades que passa por cada ele- Temos uma propriedade estável, relativa à
mento da classe mas não se detém em um valor dis- ocorrência x que não se estende necessariamente a
tinto; já em 7, o artigo definido realiza uma operação toda ocorrência de p. A relativa rompe com a
de flechagem identificando cada elemento de um genericidade por provocar operações de determina-
grupo de uma classe. A partir de uma predicação de ção que se afastam de uma zona genérica. Conside-
existência em um pré-construído: rando, ainda, o enunciado 8.1:

Há cegos na sala de espera 8.1 O cearense que conheço é hospitaleiro.


8.2 Os cearenses que conheço são hospitaleiros.
Temos: um cego a que se encontra na sala de espera, 8.3 Um cearense que conheço é hospitaleiro.
um cego b que se encontra na sala de espera, um cego
c que se encontra na sala de espera, etc; o artigo defi- Temos em todas essas ocorrências uma quan-
nido marca a totalidade dos cegos que se encontram tificação que isola uma dada quantidade de ocorrências
na sala de espera. de x de uma noção p (cearense). No genérico, não há
No enunciado 6, o valor genérico resulta de vá- ocorrências de p isoladas de outras ocorrências em
rios atos de observação em relação à maneira dos ce- relação a uma predicação; já nesses enunciados, é
gos perceberem o mundo que difere da classe dos não possível termos ocorrências isoladas de p que se co-
cegos. Em 7, temos um conjunto de cegos que se en- locam em zonas opostas em função da predicação:
contram em um espaço dado, opondo-se a outros ce-
gos que não se encontram em tal espaço. Essa 8.4 O cearense que conheço é hospitaleiro mas
oposição cria zonas heterogêneas: de um lado temos o cearense que você conhece não é hospi-
a existência dos cegos que aguardam o médico na sala taleiro.
de espera; de outro lado, temos cegos que não são 8.5 Os cearenses que conheço são hospitalei-
localizados em relação a “médico”, em uma situação ros mas os cearenses que você conhece não
de interação verbal. são hospitaleiros.
Já em 6, não é possível a bipartição em zonas
heterogêneas: Uma ocorrência de p é sempre identifi- 8.6 Conheço um cearense que é hospitaleiro
cada a outra ocorrência de p em função de uma predi- mas você conhece um cearense que não é
cação atribuída. Assim “os cegos têm seu modo de ver” hospitaleiro.
significa que um cego tem seu modo de ver, um cego
tem seu modo de ver, um cego tem seu modo de ver... II) O aspecto pontual alternado à determinação
Nesses exemplos supracitados, temos uma pe- genérica
quena amostra de que existem mecanismos que inter-
ferem na construção de um valor genérico do artigo. 9. A criança carente não sabe como provar sua
Trabalharemos a partir de agora em função desses inocência (R.E)
mecanismos que possibilitam uma operação de deter- 9.1 A criança carente não soube como provar
minação genérica. sua inocência.

I) A ausência de uma determinação temporal do Em 9 e 9.1, o aspecto pontual tira a ocorrência


relator Ser caracterizando uma propriedade “criança carente” de uma zona genérica e estabelece
definitória zonas heterogêneas, provocando o surgimento de uma
ocorrência localizada na situação de interação verbal,
No enunciado: as quais diferenciam-se, entre si, pela natureza da ope-
ração de determinação. Em 9, o artigo definido mar-
8 O cearense é hospitaleiro. ca uma operação qualitativa e em 9.1, uma operação
quantitativa. Uma ocorrência, ao ser situada na situa-
O relator Ser, desprovido de uma marca de ção de interação verbal, opõe-se a uma outra ocor-
determinação temporal, é responsável pelo valor ge- rência em uma zona de abstração. Em 9.1, por
nérico do artigo. Esse tipo de construção expressa exemplo, trata-se da criança da qual estou falando e
uma propriedade definitória relacionada à proprie- não desta ou daquela “criança carente”.
dade permanente de Ser. Glosando temos: Em 9.2, temos uma ocorrência individualizada
de p por meio de uma extração. Entretanto, a presença
Defino o cearense como uma pessoa hospitaleira. da marca nunca elimina o aspecto pontual e transpõe
Esse enunciado não abre espaço para zonas hete- a ocorrência para a zona do genérico: Revista
rogêneas. Temos uma propriedade atribuída a um argu- do GELNE
mento em todo tempo e em todo espaço por todos os 9.2 Uma criança carente nunca soube como Ano 1
locutores. No entanto podemos forçar uma hetero- provar sua inocência. No. 2
geneidade, inserindo elementos que individualizam a 9.3 Uma criança carente nunca soube como 1999
ocorrência. Por exemplo, se inserirmos a relativa em provar sua inocência.
87
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A presença do artigo indefinido marca a ope- latir. Não há um ato de latir atualizado no tempo. O
ração de varredura, percorre um conjunto de ocorrên- A1 (argumento 1) não se consolida como agente da
cias abstratas, não individualizadas: ação de latir em um momento e espaço dados. Ele se
torna agente quando há a predicação de existência
Uma criança carente não soube como provar consolidada ou a se consolidar, de existência prová-
sua inocência; uma criança carente não soube vel, hipotética, do resultado a ação - o latido. Dessa
como provar sua inocência, etc. forma, quando temos:

Já a presença do artigo definido não marca ne- 10.2 O cachorro late no quintal.
cessariamente um genérico:
Na inserção do especificador “no quintal” te-
9.4 A criança carente nunca soube como pro- mos a passagem do estado de não latir, ou seja, sai-se
var sua inocência. da existência zero de “cachorro latido” (latido no sen-
tido de resultado de “cachorro late”) e passa-se a uma
Pode ser uma criança carente envolvida em uma dada existência de “cachorro latido” situada no tempo e no
situação: espaço. O mesmo ocorre em 10.3 e 10.4:

9.5 Naquele caso do roubo na escola, a crian- 10.3 Um cachorro late.


ça carente nunca soube como provar sua 10.4 Um cachorro sempre latiu.
inocência.
Em 10.3, o artigo indefinido remete para um
O enunciado apresenta elementos (a marca do elemento não situado da espécie, uma ocorrência abs-
dêitico “naquele caso”) que levam a identificação de trata, não havendo um ato de latir de uma ocorrência
criança carente. individualizada de p, atrelada a um tempo e a um espa-
Se a asserção se contrapõe a uma outra asserção, ço; o que ocorre em 10.4.
o valor genérico do artigo permanece. Imaginemos uma Os artigos definido e indefinido não assumem
situação em que A afirma: necessariamente um valor genérico em um mesmo
ambiente lingüístico. Por exemplo, em 10.5 e 10.6,
A criança carente sabe como provar sua ino- tanto o artigo definido quanto o indefinido assumem
cência. um valor não genérico em função do aspecto pontual
Uma criança carente sabe como provar sua ino- do verbo:
cência.
10.5 O cachorro latiu.
E B rebate: 10.6 Um cachorro latiu.

A criança carente sabe como provar sua ino- Em 10.6, “um cachorro” passa à zona genérica
cência? A criança carente nunca soube como se acrescentarmos a marca aspectual sempre :
provar sua inocência!
10.7 O cachorro sempre latiu..
Uma criança carente sabe como provar sua ino-
10.8 Um cachorro sempre latiu.
cência? Uma criança carente nunca soube
como provar sua inocência! Se estabelecermos uma relação de causalidade
em 10.7 o valor genérico do artigo definido é destruído:
Essa presença ou ausência da marca da tempo-
ralidade está ligada à natureza das relações primitivas 10.7 O cachorro sempre latiu.
que uma noção relacional (para a qual o verbo remete) 10.9 O cachorro sempre latiu, só agora você
estabelece entre os elementos que preenchem os lu- está reclamando.
gares dos Argumentos da lexis. A natureza das rela-
ções interfere nas operações de determinação marcadas O que já não ocorre em 10.8:
pelo artigo. Vejamos:
10.8 Um cachorro sempre latiu.
10 O cachorro late. 10.9 Um cachorro sempre latiu, só agora você
10.1 Um cachorro latiu. está reclamando. (*)

Pensemos na asserção acima, como resposta a Se criarmos, por exemplo, uma relação de locali-
uma pergunta bem ingênua: zação por meio de uma relação de posse, também rom-
Revista pemos com o valor genérico do artigo:
do GELNE O que faz um cachorro?
10.10 O cachorro de Ana sempre latiu.
Ano 1
No. 2 O artigo definido remete para a noção ca- Vimos que a marca da aspectualidade bloqueia o
1999 chorro que, enquanto propriedade p, ou seja, en- valor genérico do artigo. Mas há alguns casos em que esse
quanto/cachorro/, caracteriza-se pela predicação fato não se verifica em relação ao artigo definido:
88
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
11 O homem inventou o avião. A asserção e a retirada do modal em sintonia com a
12 Um homem foi à lua. marca de especificação impede uma operação de var-
redura, há uma ocorrência individualizada com capa-
Em 11 e 12, não temos uma ocorrência individua- cidade de ser identificada a outra ocorrência. Temos
lizada e identificada da noção p. Neste tipo de enuncia- uma predicação de existência sobre aluno:
do está se destacando o evento realizado pela espécie
homem e não por um determinado elemento dessa es- Há um aluno participando desta comissão.
pécie. O artigo definido remete para a espécie enquan-
to espécie que se diferencia de outra espécie pela Já a modalidade interrogativa provoca a inde-
propriedade “inventar avião”(11) e “ir à lua”(12). terminação:
Nesses caos, não consideramos que haja um
genérico da mesma natureza de “O homem é um ser 14.2 Um aluno pode participar desta comissão?
racional”, a predicação que atribui um valor genérico
a “O homem” em 11 e 12, resulta da observação ou da A presença de uma modalidade à direita pode
constatação de que um elemento ou alguns elemen- romper com o valor genérico do artigo indefinido:
tos da espécie realizaram tal evento. A propriedade
não se estende a todos os elementos da espécie, daí 15 Um sindicato tem o poder de parar o país
termos o artigo indefinido como marca de extração e inteiro. Infelizmente é o resultado dos mo-
não, como genérico: nopólios estatais, além da baixa produção.
(F.SP)
11.1 Um homem inventou o avião.
12.1 Um homem foi à lua. Em 15, a modalização apreciativa “infelizmente
é o resultado dos monopólios estatais” provoca a
III) A modalidade e a determinação genérica individualização da ocorrência “sindicato’; na ausên-
cia dessa apreciação, o artigo indefinido assume um
As modalidades que envolvem o necessário, o valor genérico no sentido de que todo sindicato tem o
possível, o eventual, o desejo, o deôntico afetam o uso do poder de parar o país inteiro:
artigo indefinido. Tomando, por exemplo, o enunciado
15.1 Um sindicato tem o poder de aparar o país
13 Um país pode ter o seu desenvolvimento inteiro.
comprometido quando o seu povo não tem
acesso à educação. (F.SP) Subjacente a 15.1, há a marca de um modal:

A modalização força o artigo indefinido a situar a ocor- 15.2 Um sindicato pode parar o país inteiro.
rência em uma zona genérica, não há uma ocorrência
individualizada de “país”, glosando temos: Para esse tipo de enunciado, imaginemos uma
situação em que está sendo discutido o poder de gre-
Todo X que tenha a propriedade P pode ter o ve dos sindicatos em geral e alguém observa:
seu desenvolvimento comprometido quando o seu
povo não tem acesso à educação. Um sindicato tem o poder de parar o país inteiro.
Um sindicato pode parar o país inteiro.
A retirada da marca do modal não afeta a indeterminação:
Em 15.1 e 15.2 , a asserção não recai sobre uma
13.1 Um país tem o seu desenvolvimento com- ocorrência individualizada de p, o artigo indefinido
prometido quando o seu povo não tem marca uma operação de varredura.
acesso à educação. A inserção do operador haver rompe com a
genericidade do artigo indefinido:
Aí a ausência de uma determinação temporal provoca
a genericidade.
Se no enunciado há uma marca de especificação, 15.3 Há um sindicato que tem o poder de parar
o modal força a indeterminação mas não joga o artigo o país inteiro.
indefinido para a zona genérica:
Observamos que as marcas das modalidades não
14 Um aluno pode participar desta comissão se harmonizam necessariamente da mesma forma com
os artigos indefinido e definido:
O dêitico “desta” bloqueia o uso genérico do
artigo indefinido mas não interfere na indeterminação; Revista
15.1 Um sindicato tem o poder de parar o
há uma operação de varredura, o artigo indefinido não do GELNE
país inteiro.
isola nenhuma ocorrência de p; não há uma existência Ano 1
15.4 O sindicato tem o poder de parar o país No. 2
de x participando de uma comissão. Mas se temos:
inteiro. 1999
14.1 Um aluno participa desta comissão. 16 Um país deve honrar seus compromissos.
89
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16.1 O país deve honrar seus compromissos. Já em 15.4, a presença do artigo definido re-
mete para um dado sindicato em função da operação
Entretanto, não se trata de uma determinada marca
de localização que se manifesta. No pré-construído
modal bloquear o uso do artigo definido genérico.
“sindicato” é localizado em relação a um outro ele-
Pois, enquanto que em 15.4 e 16.1, o artigo não assu-
mento (o sindicato dos petroleiros, por exemplo).
me um valor genérico, em 17.1 e 18.1, ele assume:
Em 16.1, por trás da presença do artigo defini-
do, há uma operação de localização (país de alguém; o
17 Um bom amigo deve ajudar os amigos.
país do qual estou falando).
17.1 O bom amigo deve ajudar os amigos.
18 Você acha que um pobre deve ser assim?
18.1 Você acha que o pobre deve ser assim? Bibliografia
Consideramos que essa questão está relaciona- 1. CORBLIN, Francis. Indéfini, défini et
da com as propriedades das noções que são colocadas démonstratif. Genève. Libraire Groz S.A, 1987.
em relação. Por exemplo, “bom amigo” ao ser coloca-
2. CULIOLI, Antoine. Notes sur détermination et quan-
do em relação com “amigos” deixa subjacente uma
tification: définition des opérations d’extraction et
propriedade definitória:
de fléchage. In: Project Interdisciplinaire de
Um bom amigo é aquele que ajuda os amigos. traitement formel et automatique des langues et
O bom amigo deve ajudar os amigos. du langage (PITFALL), Départament de Recher-
ches Linguistiques (D.R.L), Université de Paris VII,
Subjacente a 18 e 18.1, há também uma
p.1-14, 1975.
propriedade definitória:
3. ____. Notes du Séminaire de D.E.A, Université
Um pobre é assim. de Paris VII, D.R.L., 1985.
O pobre é assim. 4. ____. Pour une linguistique de l’énonciation.
Paris, Ophrys, 1990.
Da observação de que n bons amigos apresen- 5. GROUSSIER, M. L. et RIVIÈRE, C. Les mots de
tam a propriedade definitória “ajuda os amigos” de- la linguistique. Léxique de linguistique
corre o artigo definido genérico. énonciative. Paris, Ophrys, 1996.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

90
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MÁRIO VILELA
Universidade do Porto

O ENSINO DA LÍNGUA NA
ENCRUZILHADA DAS NORMAS1

Vou construir as minhas reflexões à volta de necessário encontrar a palavra certa para as diversas
três afirmações produzidas recentemente (Julho- situações comunicativas. Isto é, o homem apenas se
Agosto de 1998) na imprensa escrita brasileira. A realiza por meio da língua, por meio da palavra, e essa
primeira (a), colocada na boca do Presidente da Aca- língua, essa palavra deverão inscrever-se patriotica-
demia Brasileira de Letras («Isto é», nº 1504, mente naquilo que é correcto. A última abordagem
29.7.98), Gustavo Niskier, a outra («Isto é», 1506, vai muito para além do correcto ou incorrecto, situa-
12.8.98), (b), colocada na boca de quem apresenta a se no “adequado”, assinalando que o Ensino da lín-
palavra como algo que transcende a própria comuni- gua é um instrumento de integração do aluno na língua
cação, a terceira, (c), formulada por um professor e no meio social através da interacção.
(Luiz Antônio Ferreira, in: «Educação», 62, Julho Há neste conjunto de posições dois aspectos
1998) de língua portuguesa e bem mais abrangente e essenciais: o primeiro aspecto é o que podemos de-
questionadora. As afirmações são as seguintes: signar como a mapeação da realidade através da lín-
a) «Falar nossa língua corretamente é hoje um gua, seja através do mapa lexical e do roteiro mental
exercício patriótico» da nossa categorização da realidade, seja através da
b) «é com a palavra que a pessoa se coloca no carteação dos figurinos configuradores dos nossos
mundo». mitos colectivos. O segundo aspecto é já mais pro-
c) «O objectivo da escola é criar condições para blemático e exige uma integração de dados bem mais
a aprendizagem do português padrão, e como complexos.
este – normalmente – não é aquele trazido pelos Não vou entrar em grandes discussões a respei-
alunos, começam os conflitos. Na base do mo- to das distinções que Eugenio Coseriu introduziu na
derno raciocínio pedagógico ... é preciso ser dicotomia “langue”-“parole” saussureana, com as dis-
poliglota em nossa própria língua. Assim o usuá- tinções de tipo, sistema, norma e uso, nem nas distin-
rio precisa ser capaz de usar a língua com pro- ções que a sociolinguística tem trazido ultimamente
priedade nas diversas situações de comunicação. para o interior da linguística: apresentarei, sempre
À Escola, portanto, caberia a missão de propiciar apoiado em dados autênticos, algumas reflexões à
o contacto do aluno com a maior variedade pos- volta do tema da “norma e o ensino da língua”.
sível de situações de interação comunicativa,
caberia ampliar a capacidade de análise e produ- 1 Mapeação da realidade
ção de textos ligados aos vários tipos de situa- por meio da língua
ção de enunciação… O perigo [do ensino da
gramática] é ampliar um preconceito antigo de que 1.1 Mapeação lexical
tudo o que foge ao padrão culto é “errado”»
A nossa experiência “corporizada” do mundo
Assim, temos, por um lado, a afirmação “patrió- torna significativa a estrutura conceptual, interferin-
tica” de que a “pátria da língua” se exercita e se prati- do quer nas categorias básicas quer nos esquemas
ca no “falar correctamente” e, por outro lado, a imagéticos de comprensão do mundo2. Em primei-
afirmação “humana” de que é apenas com a palavra ro lugar, o homem ao colocar-se no mundo por meio
que o homem se posiciona no mundo e se afirma como da palavra, coloca o mundo “no seu canto” (PB)3, no
pessoa, finalmente, a afirmação pragmática de que é seu lugar, reduzindo-o a categorias por força da sua

Revista
1
Muitas das informações aqui inseridas foram testadas, na parte brasileira, junto dos Mestrandos de “Linguística Portu- do GELNE
guesa”, na UFC, durante os Seminários que aí dirigi nos meses de Julho e Agosto de 1998. Aos meus Colegas da mesma
Universidade agradeço a disponibilidade para contextualizar e explicitar muitas das expressões e construções tidas como
Ano 1
próprias da “norma” brasileira. No. 2
2
Cfr. Lakoff 1887: 267 1999

91
3
Usarei a sigla ‘PB’ para indicar “Português do Brasil” e ‘PE’ para indicar Português na variante europeia.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
experiência perceptiva e motora, da sua experiência jegue será o exemplo típico de uma parte da popula-
vivida corporalmente4. Com isto quero dizer que, ao ção do Ceará, mas não terá esse estatuto, nem em
ensinar-se a língua, deve prestar-se atenção em pri- relação ao Brasil, nem mesmo em relação a uma boa
meiro lugar aos roteiros mentais dos aprendentes. E parte da população do Ceará.
esses roteiros mentais estão inscritos no interior das De qualquer modo, a primeira norma a seguir
mesmas palavras. Estas têm vinculadas a si a sua pró- é ter-se a noção de que os roteiros mentais dos apren-
pria explicação. Assim, não constitui um bom exemplo dentes estão já moldados e modelados pela língua,
a ilustração de um verbo transitivo directo e indirecto língua num espaço e num tempo concretos. As pala-
feita, com base no verbo dar, no seguinte enunciado vras instanciam conceitos já inscritos na língua e os
que a apresentadora do programa para a 7ª Série (Bra- que mais facilmente se descodificam são os que se
sil) forneceu num canal da TV (no dia 13.8.98): aproximam dos exemplares típicos. Mas as taxonomias
não se situam apenas nos objectos da natureza. Tam-
O Ricardo dava trabalho aos professores.
bém nas coisas fabricadas pelo homem se verificam
em que o verbo “dar” não ocorre no seu valor escolhas:
típico (ou, se preferirmos, no seu uso “prototípico”5),
PE PB
que é, evidentemente, o de “transferência de posse”,
vai-e-vem (espacial): ônibus espaciais
nem “trabalho” é o exemplo prototípico de objecto
tubo de escape: escapamento
directo, o “objectum affectum / effectum” implicado
troço de estrada: trecho
no significado do verbo. Como não será um bom exem-
plo do predicativo de objecto directo o que surge no sumo: suco
enunciado, apresentado no mesmo programa: passeio: calçada, calçadão
passadeira: passagem pedestre
O Ricardo deixou a mãe triste. tasca: botequim
em que “triste” tanto pode ter uma leitura de prego: churrasquinho (de carne de vaca)
“atributo” como a leitura de predicativo em sentido leitor de cassetes: toca-fitas
estrito. Não bastará alinhar a exemplificação pela nor- fato: terno
ma, como ainda ter em consideração os usos proto- atendedor automático: secretária eletrónica,
típicos das palavras que tipificam os nossos bilhete: ingresso (ter dois bilhetes: ter dois in-
exemplos. Os verbos dar, deixar, etc., têm usos que gressos)
são mais exemplares do que outros. bilhete de identidade: carteira de identidade
Todos temos a noção de que o mundo se en- atacador: cadarço, etc.
contra reduzido na língua a categorias e, se alguém
quiser apresentar a categorização taxonómica do A mapeação da realidade feita pela língua sele-
mundo6, não vai exemplificar a categoria PÁSSARO, cciona um ou outro aspecto: oculta determinados tra-
com pardal, rola, melro, no Brasil, em Moçambique, ços e salienta outros. Ao que em Portugal chamamos
ou em Macau, ou com sabiá, beija-flor, em Portu- carro descapotável, chamam no Brasil carro conversí-
gal; ou apresentar a lexicalização da categoria HER- vel, a direccção assistida chamam direcção hidráuli-
DADE com xácara, sítio, granja em Portugal, ou ca, a laço chamam gravata borboleta, etc. Os
quinta, quintinha, casa de campo no Brasil; ou ain- aspectos categorizados pela língua têm alguma jus-
da a categoria ÁRVORE com pau-brasil, coqueiro, tificação: “descapotável” e “conversível” são carac-
mangueira, em Portugal, ou carvalho, castanheiro terísticas visíveis e são postas em saliência pela
no Brasil. E os exemplos poderiam estender-se in- respectiva categorização, embora se silenciem ou-
definidamente. tros traços na respectiva lexicalização.
E há mesmo coisas curiosas neste domínio: pode Mas a mapeação feita pela língua não se situa
acontecer que a categoria representativa se situe no apenas nas taxonomias. Vejamos alguns casos pa-
mesmo “denotatum”, como é o caso de “cão”, mas a radigmáticos:
palavra que instancia em primeiro lugar esse conceito PB PE
é, em Portugal, cão, e no Brasil é cachorro, ou pavi- lotado vs. esgotado / cheio (avião lotado / es-
mento (de um edifício) no Brasil e andar em Portugal, gotado, cheio)
o mesmo se dá em parada, ponto (PB) e paragem borrachudo / voador vs careca (relativamente
(PE). E os problemas não acabam aqui: possivelmente a “cheque”)

4
«simple structures that constantly recur in our everyday experience: CONTAINERS, PATHS, LINKS, FORCES, BALANCE,
and in various orientations and relations: UP-DOWN, FRONT-BACK, PART-WHOLE, CENTER-PERIPHERY, etc.» (Lakoff
Revista 5
1987: 267)
Para a noção de protótipo cf. T. Givón 1986, G. Kleiber 1990, E. Rosch 1973 e 1977, J. Taylor 1989.
do GELNE 6
Devemos chamar a atenção para o facto de a categorização do mundo não ser propriamente uma simples categorização de
Ano 1 coisas («.. the large proportion of our categories are not categories of things, they are categories of abstract entities. We
No. 2 categorize events, actions, emotions, spatial relationships and abstract entities of an enormous range: governments,
1999 illness and entities in both scientific and folk theories, like electrons and colds. Any adequate account of human thought
must provide an accurate theory for all our categories, both concrete and abstract» (Lakoff 1987: 6).

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varejo vs. por atacado, por grosso vs. à peça estore: persiana
escanteio-canto (futebol) ementa: cardápio
checagem-verificação / confirmação ecrã: tela
um cara-um gajo esaparregado: creme de legumes
(processo de) barganha («a busca do consen- cachopa: moça
so [no Japão] a corruptas barganhas entre políticos e cancro: câncer
conglomerados» («Veja», 2.9.98) -discussão, gelado: sorvete
galera-malta joaquinzinho: carapau pequeno
transar-fazer amor malta: turma
emergentes-novos ricos maquetagem: paginação (de jornal)
pedágio-portagem (lâmpada) fundida: queimada
maracutaia-falcatrua jantarada: festança
mulher-a-dias: diarista
e há uma soma de palavras próprias de cada uma das cimeira: reunião de cúpula
variantes. Da parte brasileira: peão: pedestre
manjadíssimo (notícia manjadíssima), racha, talho: açougue
comunicólogos, viúvas da seca, paquera, receita (de um jogo): renda
rés-do-chão: andar térreo
da variante europeia: pronto-a-vestir: roupa feita
palmarés [curriculum], marisco, pelouro (cada reformado: aposentado
um dos ramos da administração pública), etc. pensão de reforma: aposentadoria
carregar no/ o botão: apertar (o botão)
As preferências nunca são desmotivadas: optar capachinho: peruca
por demanda em vez de procura, revide («muitos água fresca: água gelada
enxergaram nos comentários do presidente um revide às frescos: afrescos
posições do seu antigo aliado [Chico Buarque]»(«Veja», utente: usuário
5.8.98) em vez de remoque, nenén em vez de bebé, tareia: surra (PE, PB)
racha («uma aglomeração de jovens enlouquecidos, tacão: salto (PE, PB)
que faziam uma racha na Avenida x…» («Veja», 5.8.98) serviço à lista: serviço à la carte
em vez de corrida, fumaça em vez de fumarada, fu- salsicha: lingüiça
mante em vez de fumador, maconha em vez de dro- sapateira: caranguejo (PB e PE)
ga, comunicólogos em vez de discutidores de retrete: privada, banheiro, toalete
banalidades (na TV), turma em vez de grupo/equipa pequeno almoço: café da manhã
(«a turma do presidente»), manjadíssimo em vez
badaladíssimo («a causa do fim do namoro … é E há depois as palavras que já fazem parte das
manjadíssimo: a agenda carregada» («Veja», 5.8.98), armadilhas da língua:
seriado em vez de série («Outro seriado que segue a rapariga: moça
mesma linha, Melrose Place, também vai ser exibido bicha: fila
no TeleUno, de seguna à sexta-feira» («O Povo», pega: prostituta
Agosto de 1998), bula (explicação acerca da com- camisa: camiseta
posição e aplicação que acompanha qualquer cuecas: calcinhas
remédeio) e literatura, têm a sua razão de ser, seja calções: bermudas
ela de natureza histórica ou cultural. penca: nariz grande, narigudo
Há por vezes palavras e expressões conhecidas
nas duas línguas, mas a preferência vai por uma dada ou os vulgaríssimos:
variante: tomates: colhões
PE PB cu: bunda
(em grandes) parangonas: manchete (de jornal) rabiosque: nádega
morada, direcção: endereço rabo: bunda
montra: vitrine pila: pinto
recado: mensagem (deixar recado/mensagem) tesão: ponta
matrícula (do carro): placa
marcha atrás: marcha-a-ré É evidente que há criações em que as normas se
marçano: aprendiz encontram, tais como, mãe de aluguel (mãe de alu-
grelha da TV: programação guer: PE), cópias de genes (clonagem), ou emprés-
frincha: fresta timos semânticos comuns, embora com frequências Revista
tomada: ficha diferentes: do GELNE
fiambre: presunto evidência: «A primeira evidência dessa mudan- Ano 1
feijão verde: vagem ça é o aumento das instituições independentes No. 2
fato macaco: macacão para o bem alheio.» («Veja», 5.8.98) «Infelizmente, 1999
factura: nota fiscal surgem evidências de que esse modelo virtuoso
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está longe de obter resultados tão promissores português do Brasil, ou do Português Europeu, há
…» («Folha de São Paulo», 23.8.98) opções formativas muito próprias, tais como:
Os brasileirismos ou portuguesismos semân- - canadense, israelense (PB) - canadiano e
ticos estão igualmente a infiltrar-se na língua portu- israelita (PE);
guesa, nos vários espaços da lusofonia. O -olhada («dar uma olhada», PB) - olhadela
brasileirismo do verbo arrumar: «Você não bebe, («dar uma olhadela», PE),
não joga e não fuma? Já é tempo de você arrumar um - virada («na virada do século, PB), viragem
vício» (Anúncio, in: «Veja», 2.9.98) brasileirsimo no («viragem do século», PE),
sentido de ‘procurar’, ou os portuguesismos nos ver- - camioneiro / caminhoneiro, sanfoneiro, fichá-
bos arrancar no sentido de ‘começar’, grilar («o rio, orçamentário («Sem equilíbrio orçamentário, fim
carro grilou»: bater pinos no PB), magoar no sen- de gastos ‘eleitoreiros’, …, eleições sem voto de cabres-
tido de ’contundir’. to, não chegaremos àquele estágio alcançado pelos
Não esqueçamos os brasileirismos fofoca (‘in- países mais avançados …» («Jornal de Comércio»,
triga’) e fofocar (coscuvilhar) – que já fazem parte da 21.8.98) (PB) - camionista, ficheiro, orçamental (PE)
língua portuguesa seja qual for a variante -, viadagem - litorâneo («faixa / zona litorânea», PB) - lito-
(‘maricas), frescos (maricas), legal, cafona (piroso), ral (PE), mas neutral (PB): neutro (PE)
ou os lusismos, cheché (‘gagá’), chalado (‘maluco’), - natalino («festas natalinas», PB) – natalício
chavalo, aldrabão (‘vigarista’), giro (‘legal’), bestial («festas natalícias», PE).
(‘excelente’), porreiro (‘genial’), pastora (‘estúpido’),
E termos como agropecuaristas, supermercadista,
taralhoco (‘doido’), baril (‘legal’), bué/ buereré (‘mui-
manobrista (vs. arrumadores) são ainda exemplo de
to bom’: africanismo), piropo (‘galanteio’), sarilho
preferências do PB por certos afixos e que, portanto,
(‘confusão’), paneleiro (‘bicha’), puto (‘menino’, ‘ado-
constituem a sua norma.
lescente’), pildra / choldra (‘prisão’), pega (‘prosti-
tuta’), quadro (‘executivo’), piada (‘anedota’), batota As possibilidades que a língua disponibiliza são
(‘trapaça’), engatar (‘tentar conquistar uma moça’) e aproveitadas de modo diferenciado, contribuindo as-
engatatão. sim para uma norma com marcas próprias: ocorrem, no
Criações muito próprias do PB são também aque- PB, os afixos -agem (vendagem, checagem «uma vez
las em que há a justaposição de elementos vernáculos por ano os pilotos brasileiros fazem um vôo de checa-
com elementos estranhos ou adopção nua e crua da gem acompanhados de um supervisor ..» («Veja»,
palavra importada, como acontece em socialite («A 5.8.98) e, nas duas normas ocorre clonagem (clones,
aprovação é da socialite carioca …», «Veja», 5.9.98), clonar). Por exemplo; o afixo –mento surge em casos
hora de rush: hora de ponta, durex: fita-cola, office onde são outras as opções no PE:
boy: paquete, dublar: dobrar (um personagem), milk- devotamento, xingamento (xingar), experimen-
shake: batido, camelódromo, etc. tos (os – realizados) (PB), mas indústria do entreteni-
A língua está lexicalmente “mapeada” de deter- mento (PB e PE); faturamento (PB) vs facturação(PE),
minado modo e é esse “jeito” que o professor e a gerenciamento (escolar) (PB) vs. gestão (PE), etc.
gramática deve propor como norma. A palavra expli-
Temos, por outro lado, no PB, opções bem níti-
ca-se a ela mesma, desde que a circunstância e o modo
das na selecção de um afixo como processo de nega-
que circundam a palavra se correspondam.
ção do conteúdo sémico do lexema primário – DES
(aliás, também presente no Português Africano):
1.2 Mapeação da realidade por
meio de processos formativos despreparo: «o despreparo da polícia» («Isto
é», 1506, 12.8.98)
A formação de palavras7, além de revelar as pre- despreparar: «a Escola está despreparada para
ferências dos actuais falantes, mostra ainda como a trabalhar a leitura em sala de aula» («Educasção», nº
língua instancia os conceitos ligados aos nossos ti- 207, Julho de 1998)
ques, aos nossos estereótipos, aos “tópoi” que, como
desinstitucionalizar: «A linguagem da impren-
lugares comuns da nossa categorização do mundo,
sa escrita acompanha a lógica da televisão, que é dra-
denunciam os mitos, os medos e as esperanças que
matúrgica, conflitante, desinstitucionalizadora»
nos envolvem. As designações nas normas dentro de
(«Isto é» / 1506, 12.8.98)
uma mesma língua desviam-se frequentemente. Por
exemplo, os pensos (adesivos) do PE surgem no PB destratar alguém: ‘tratar mal’
como band-aids, ou os “momentos livres, de lazer”, descasar, descasados, descasamento («os
ao fim do dia de trabalho, são designados no PB como descasamentos da classe média ..»), despretensão,
happy-hours, e o PE não tem qualquer expressão para descreditar (uma Universidade), despoupança, etc.
Revista os designar.
do GELNE Ao lado dos processos lexicais já tidos como mas existe decolagem (decolar PB) ao lado de
Ano 1 tradicionais e ligados a preferências de normas do descolagem (PE). O PB mostra ainda uma alta
No. 2
1999

94
7
Para uma visão geral da “formação de palavras” cfr. M. Vilela 1994.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
frequência de criações denominais ou deadjectivais modo e modismo. É como naquele velho dito popu-
em – AR e, consequentemente, de todos os possí- lar: ouve-se tocar o sino, mas não se sabe onde fica a
veis derivados: torre» («Jornal do Comércio», 21.8.98)
«maneirar nos cremes e frituras» (‘usar com estrelismo: termo da “mídia” / dos “media”
parcimónia’) (Jornais do Brasil) _ ÍCIO: empregatício: vínculo empregatício
revidar: «ela xingou-me e eu revidei» («Isto é», _ EIRO: «Sem equilíbrio orçamentário, fim de
1506, 12.8.98)
gastos ‘eleitoreiros’, …, eleições sem voto de ca-
checar: «Sabemos que esta [«Isto é»] é uma
bresto, não chegaremos àquele estágio alcançado
revista séria, justamente por isso causou-nos estra-
pelos países mais avançados …» («Jornal de Comér-
nheza o fato de não se procurar sequer checar uma
cio», 21.8.98)
informação antes de publicá-la» («Isto é», 1506,
12.8.98) – ÃO: O charmosão, o mineirão, o estadão,
clonar (PB e PE) o calçadão, o garotão («Garotão nota 10. Medalha
plugar: casa plugada (‘casa inteligente’, liga- de ouro na Olimpíada Interncacional de Memática»),
da à Internet) bolão (Os argentinos estão batendo um bolão no ci-
favelização das metrópoles nema), calçadão, mercadão, brasileirão (futebol da
reprisar: «ele não gosta de reprisar a generosi- 1.ª divisão), o provão (‘prova pública abrangendo todo
dade» («Veja», 5.8.98) o ensino médio’), etc.
conflitar / conflitantes («O poder do tempo e do
homem, embora conflitantes, se equivalem» («Veja», É evidente que a tecnologia, as nossas esperan-
5.8.98). «A linguagem da imprensa escrita acompanha ças e os nossos medos nos obrigam à recuperação de
a lógica da televisão, que é dramatúrgica, conflitante, processos já bem antigos: nanotecnologia (‘técnica da
desinstitucionalizadora» («Isto é», 1506, 12.8.98); miniaturização’), bedeteca, brinquedoteca («Veja»,
coletar: «coletadores de plantas / de dados» 2.9.98), gamemaníacos («As novidades sobre o lança-
mapear: «mapear a filantropia no mundo» mento estão na revista SuperGamePower de agosto, que
(«Veja», 5.8.98) vem com um adesivo que é cara aos gamemaníacos»
inocentar: inocentar uma pessoa («O Povo», Agosto de 1998), aidsteria, aidético (PE:
acessar: «acessar dados financeiros de empre- seropositivo), codinome (a defesa da privacidade, com
sas» («Veja», 2.9.98) um nome de código: «O nova-iorquino Mark Abene é
clicar: «clicar O. K. no computador» («Veja», um nome praticamente desconhecido na Internet. Phiber
2.9.98) Optik, seu codinome, contudo, tornou-se uma legenda
embasar: «busca-se hoje fazer uma revisão dos na rede mundial de computadores» («Veja», 2.9.98) e
conceitos da velha filosofia liberal dos séculos 17-18 «Uma múmia infantil, com boneca construída em mar-
e das práticas decorrentes desses princípios que em- fim, já ganhou o codinome de “Barbie” da antigüidade»
basaram a Revolução Industrial» («Jornal do Comér- («Veja», 5.9.98), etc.
cio», 21.8.98) O processo formativo representa um dos mei-
alavancar a economia os privilegiados de “formatar” na língua a realidade,
os conceitos que vamos construindo acerca do mun-
terceirização: «resultou na terceirização de mui-
do. E a gramática não pode ignorar esses processos,
tos funcionários» («Isto é», 1506, 12.8.98)
não deve ignorar as escolhas que determinada vari-
A escolha de certos afxos como marcadores da ante do português faz ou deixa de fazer.
pejoração ou majoração mostra também determinadas
afirmações da norma, como: 1. 3 Mapeação por meio de
_ ISMO: colocações e fraseologias
governismo das Tvês (‘favorecimento descara-
do’) Como todos sabemos, as línguas estão sobre-
empreguismo: «Horácio Macedo … praticou carregadas do que designamos, genericamente, por
o mais desbragado empreguismo na instituição. Con- fraseologias. O nome mais comummente usado para
tratou 5.000 novos funcionários, que engordaram seu enfocar estes produtos lexicalizados é o de expres-
colégio eleitoral e atravancaram para sempre o orça- sões idiomáticas. As palavras individuais, ao integra-
mento dea UFRJ.» («Veja», 5.8.98) rem estas expressões, perdem a transparência e
assembleísmo: «É claro que você não pode im- tornam-se opacas. O significado global não é o re-
plantar no país um assembleísmo, não há como pro- sultado composicional das palavras individuais que
mover reuniões para 5 milhões de milhões»(«Veja», integram o conjunto. Incluo também aqui, além das au-
12.8.98) tênticas expressões idiomáticas, as chamadas “colo- Revista
achismo: «É preciso adquirir autonomia [na lei- cações”. Trata-se de um conjunto de factos que não do GELNE
tura], sem cair no achismo» («Educação», 207, Julho pode ser ignorado pela gramática no ensino da lín- Ano 1
de 1998) gua, pois a norma reflecte-se de modo bem patente No. 2
modismo: «Opções e debates políticos no Bra- nesse género de factos de língua. Reporto-me a ex- 1999
sil ainda costumam revestir-se de características de pressões da norma brasileira como:
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pedir as contas a alguém: “despedir-se” (em- «dar uma folheada» («Educação», 207, Julho
prego)(«ela pediu as conta..»(Aragão / Soares, E. 3) de 1998) (PB)
dar as contas a alguém: despedir alguém (no dar uma apitadela (PE): fazer um tefonema
emprego) dar o badagaio a alguém (PE): ter um troço
estou voando: ‘não perceber nada do que se (PB)
está a falar’ dar sangue (PE): doar sangue (PB)
(é um) point: ‘(é o) máximo’
levar:
Certas expressões mostram percursos mentais levar o fora (PE) / levar um fora (PB)
evidentes e que, por vezes, são diferenciados de lín- «levei um corte na praia» (Aragão / Soares, E. 10)
gua para língua: «levei uma queda» (Aragão / Soares, E. 9)
PE PB
estar ao corrente de: estar sabendo bancar:
em directo: ao vivo (transmissão na TV) «Não ter condições de bancar a prova, bancar
em diferido: videoteipe (TV) a faculdade» (=’pagar’) (PB)
do pé para a mão: de um momento para outro «ele bancou o otário..» (Aragão / Soares, Entre-
estar à brocha, estar à rasca: estar aflito vista 10)(= ‘fazer-se passar por’)
fazer o manguito: dar uma banana
fazer farinha com alguém: abusar de alguém e há depois uma série de verbos que apontam para
fazer óó: fazer nanã complementos muito específicos, tais como:
estou-me nas tintas para: estou-me cagando e surtir: surtir efeito (colocação específica) (PB e PE)
andando curtir: «já a querer curtir a vida» (Aragão / Soa-
terminar em águas de bacalhau: dar em nada res, E. 3) (PB)
ele teve a lata de ..: ter a cara de pau ganhar nenén: «quando eu ia ganhar nenén»
a páginas tantas / às tantas: a dada altura (Aragão / Soares, E. 3) (PB)
vir abaixo, avariar: quebrar (motor, rádio, etc.) tomar: «Leila Guimarães tomou um susto ao ser
chamada aos bastidores pelo sistema de alto-falante»
Não vou insistir em que o fundo imagético de
(«Veja», 12.8.98) (PB)
expressões como “estar ao corrente de”, “fazer o man-
fazer: «vamos fazer uma vaquinha» (Aragão /
guito”, “dar uma banana”, “ter lata”, são reveladores
Soares, Entrevista 10) (também PE)
de caminhos mentais claramente diferenciados e por-
tanto autónomos.
Também muitos nomes são ponto de atracção
Também nas expressões feitas há um uso (ou
de colocações muito próprias, como:
abuso) diferenciado. Por exemplo, a expressão por mi-
nha conta e risco está a ser utilizada no Brasil em bola:
contextos distantes do uso normal no da variante pisar na bola (‘dar barraca, armar barraco’) (PB)
europeia: ocorre a sequência «este sentido está por o bate-bola entre duas pessoas (‘discussão’) (PB)
conta do texto»(Ingedore Vilaça Koch, no Congresso «não bater bem da bola» (PB e PE)
do GELNE, Fortaleza, 1998), com o valor de ‘esta inter- «estar com a bola toda» («Isto é», 22.7.98)
pretação do texto é autêntica / permitida’. carne:
Na impossibilidade de percorrermos toda a estar por cima da carne seca: “estar bem na
fraseologia do português europeu e do português do vida” (PB)
Brasil, vamos apenas ver, a título de amostragem, algu-
mas expressões construídas à volta de certas palavras: barraco:
armar /fazer o barraco: ‘fazer uma confusão’
dar:
(PE: dar barraca)
«Os jovens davam cavalo-de-pau e passavam
raspando pessoas…» («Veja», 5.8.98): ‘fazer derrapa- sítio / canto:
gens com o carro, fazer um pião’ colocar no sítio certo (PE.) vs.colocar no canto
dar o golpe do baú: ‘casar por interesse’(PB) certo (PB)
dar-lhe na veneta / na telha (PB e PE)
quadro / quadra:
dar-lhe duro (PE e PB)
«Na véspera do leilão, contudo, o quadro co-
não dá para inventar («como está o negócio,
meçou a mudar» («Veja», 12.8.98)
não dá para inventar») (PB)
«Ele pertence ao quadro da empresa»
dar plantão em: «as empregadas dão plantão
«Ele entrou no quadro muito cedo»
na casa de madame» («Veja», 12.8.98)
«Ele entrou na quadra no segundo tempo» (PB)
Revista «mas aí nem deu» (Aragão / Soares, E. 3) (= ‘dar
(equipa, PE)
do GELNE certo’)
«Na segunda quadra, volte à direita» (PB) (quar-
Ano 1 «deram uma facada nele» (Aragão/Soares, E.
teirão, PE)
No. 2 11) ou «aí meteram facada nele» (Aragão / Soares, E. 11)
1999 «sem dar uma palavra com ninguém»(Aragão/ papo:
Soares, E. 3) ele tem um papo legal

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«os bons do papo» (=’capacidade de criar bor- «Opções e debates políticos no Brasil ainda cos-
dões / slogans’: «Veja», 12.8.98) tumam revestir-se de características de modo e
bater um papo (Aragão / Soares, E. 3) modismo. É como naquele velho dito popular:
ouve-se tocar o sino, mas não se sabe onde fica
Uma série de termos como maracutaia (ocor-
a torre» («Jornal do Comércio», 21.8.98)
reram maracutaias: negócios “enrolados”, feitos às
«fora maior o dia e maior seria a romaria» (PE).
escondidas), caixinha (‘gorgeta’), manobrista (‘arru-
madores’), paquera, paquerar / azarar (‘flirt’, É evidente que não vamos incluir aqui o mundo
‘flirtar’), que indicam alguns dos nossos “topoi” actuais das anedotas que os brasileiros arrolam à volta do
esão diferentes nas respectivas normas. Há outros ter- “portuga” ou das que os portugueses criam em redor
mos que pôem em relevo determinadas marcas do nos- dos seus “brasucas”: estes pormenores estarão para
so tempo em relação a outros tempos, com os mesmos além de qualquer norma.
ou diferentes termos, como é a discusão à volta das
designações babá / criada/ empregada /trabalha- 1.4 Mapeação da realidade
dores domésticos / clones de escravas /secretárias por meio de metáforas
do lar / diarista:
Nos manuais de gramática não se tem dado o
«Muita gente ainda está acostumada a ver as empre- lugar devido a um dos fenómenos marcantes nas lín-
gadas como clones de escravas», «Tudo está mudan- guas naturais: a presença do que é designado generi-
do, deixam de ser criadas para se transformar em camente como a linguagem figurada8. Vamos apenas
trabalhadoras» («Veja», 12.8.98)
registar algumas das ocorrências nos produtos lin-
«Empregada doméstica desde os 11 anos, Tere- guísticos detectados em textos actuais de grande cir-
sinha ganhou fama recente, quando seu patrão culação, ou no “corpus” oral do Ceará, ou de algumas
desde 1978, o presidente Fernando Henrique revistas brasileiras do mês de Julho / Agosto de 98.
Cardoso, usou o exemplo de “secretária As metáforas tomam com veículo um determinado ro-
doméstica”, como muitas preferem ser chama- teiro imagético, em que a (nova) configuração linguís-
das» («Veja», 12.8.98) tica acolhe e recolhe iluminações novas, salientando
«Gastar dinheiro com a diarista» determinados pontos e ocultando outros9. Assim, os
Nota-se na norma brasileira, por um lado, a con- abstractos tornam-se concretos, entidades manipulá-
servação de certos segmentos de língua que já não veis e visíveis – as chamadas metáforas ontológicas -,
ocorrem no PE, como, por exemplo, a expressão sujeitas a guerras e a violências, entidades inseridas
«trecho em obras» usada no PB para indicar um es- dentro de um “contentor”, com um “dentro” e um
paço de uma rua em reparação. Por outro lado, há o “fora”, colocadas no espaço, com um lado superior e
recuo no uso de certas expressões com verbo “su- um lado inferior, etc.
porte” em favor do verbo simples, como, por exem- Neste tratamento, faremos o seguinte per-
plo, ajoelhar substitui por completo pôr-se de curso: áreas em que se situam as metáforas, como o
joelhos, a expressão mais frequente no PE. “corpo / organismo humano”, a “casa”, a “guerra / vio-
No domínio das expressões idiomáticas, fraseo- lência”, o “desporto”, ou as chamadas metáforas do
logias, colocações, há ainda que referir a importância “contentor”, as metáforas “ontológicas” propriamen-
dos “topoi”, os provérbios, os lugares do poiso ar- te ditas e as “espaciais”10. Trata-se de metáforas11
gumentativo. Passar por alto este domínio da língua é detectáveis na leitura de revistas e jornais, na obser-
ignorar algo de muito importante na nosso linguajar vação de “noticiários” de telvisão e que, como falan-
quotidiano. Se na fala quotidiana encontramos usos des- te vindo de uma outra norma, me chamaram de
se fundo cultural e linguístico, também nos “midia” / “me- imediato a atenção.
dia” encontramos exemplos de uso de ditos populares Metáforas em que o veículo é o corpo / orga-
como apoio e ilustração das afrimações mais diversas: nismo humano /animal12:

8
É volumosa, actualmente, a bibliografia sobre a “linguagem figurada”. Apenas indico alguns autores que me têm servido
de apoio nos últimos tratramentos deste tema: C. Cacciari / Glucksberg 1994, R. Gibbs 1994, T. Givón 1986, J. Hintikka
1994, G. Lakoff / M. Johnson 1980, E. Pontes 1990, M. Vilela 1996.
9
É a dinâmica da sociedade que força a língua expandir-se, a “figurar-se” («Extensions of prototype occur for the same
reasons that they do with lexical items: because of our proclivity for interpreting the new or less familiar with reference
to what is already well estabished; and from the pressure of adapting a limited inventory of conventional units to the
unending ever-varyin parade of situations requiring linguistic expressions» (R. Langacker 1991: 295)
10
Para a definição de metáfora do “contentor”, metáfora “ontológica”, “espacial”, cfr. Lakoff / Johnson 1980.
11
Embora tenhamos presente que metáfora e metonímia são fenómenos diferentes – a transferência [mapping] metafórica
envolve dois domínios, o domínio origem e o domínio alvo, apoiando-se o processo de substituição numa relação de
similaridade parcial, a transferência metonímica labora dentro do mesmo domínio através da relação de contiguidade (a
relação de “estar por”) – procedemos aqui como se a “figuração” se processasse por força da metáfora em sentido
Revista
amplo, abrangendo portanto as duas estratégias (cfr. Lakoff 1987: 288 e s.). do GELNE
Ano 1
12
Chamamos a atenção para o facto de o corpo humano e as ezperiências que nele se situam ou dele derivam determinarem
os sistemas conceptuais, o pensamento e, portanto, a categorização linguística («Thought is embodied, that is, the No. 2
structures used to put together our conceptual systems grow out of bodily experience and make sense in terms of it;
1999
moreover, the core of our conceptual systems is directly grounded in perception, body movement and experience of a

97
physical and social character» (Lakoff 1987: xiv).
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
cara: «ele quer alterar a cara do seu governo pesos pesados da economia, tomou-lhes o pulso»
fazendo uma mudança ministerial» («Isto é», 1506, («Veja», 12.8.98)
12.8.98) garfar: «garfar o futebol cearense» (Aragão /
cotovelo: «Tem alguma coisa para a dor de co- Soares, E. 10) (‘prejudicar’, ‘roubar’)
tovelo?» («Isto é», 1506, 12. 8. 98) viver na contramão: «No mundo muçulmano,
mão: «Não abrir mão de suas revindicações ..» onde a regra é impor às mulheres severos códigos
(«Veja», 12.8.98) de conduta, a Turquia vive na contramão.» («Veja»,
boca: «ela mastiga muito a matéria prá gente 5.8.98)
entender» (Aragão / Soares, Entrevista 12) de vento em popa: «As exportações de carros
sofrer: «Esse dinheiro nunca … sofre aumen- vão de vento em popa..» («Veja», 12.8.98)
tos»(Aragão / Soares, E. 3) barqueiro/pastor: «De pastores passaremos a
engordar: «Horácio Macedo … praticou o mais barqueiros. … O professor barqueiro ajuda na traves-
desbragado empreguismo na instituição. Contratou sia, orienta nesse dilúvio de informações, no mar do
5.000 novos funcionários, que engordaram seu colé- conhecimento. Na companhia de seus alunos, vai
gio eleitoral e atravancaram para sempre o orçamento questionar com quantos gigabytes se faz uma jangada,
dea UFRJ.» («Veja», 5.8.98): um barco que veleje nesse informar”, como canta Gil-
pular: «o número de incêndios pulou para um berto Gil, na música Pela Internet» («Educação», nº
número muito elevado» 207, Julho de 1998)
clone: «Anthony Garotinho é clone do Brizola»
(«Isto é»/ 1506, 12.8.97) São muito frequentes as metáforas conhecidas
vacas magras: os tempos são de vacas magras como a metáfora do “contentor”, as metáforas onto-
meter pé: «aí ele [ladrão] metia pé na carreira…» lógicas, as espaciais, etc. Assim, e apenas apresenta-
(Aragão /Soares, E. 9) mos alguns exemplos da metáfora do contentor13 e
vivo: dinheiro vivo («Além de dinheiro vivo, há em que essa metáfora é levada a expansões recupe-
outras maneiras de levar valores para o exterior» rando constantemente o “veículo”:
(«Veja», 2.9.98) pacote /embrulho / embrulhada: «O ministro
aquecer: «A estratégia do turismo de eventos Pedro Marlan .... disse... que ... virá um novo pacote
para aquecer o ano inteiro» («Inside», Junho 98) fiscal. Não deu detalhes - se seria um simples embru-
salto: «o país acabou de dar um salto para trás» lho, um pacotinho, ou um pacotaço» («Tribuna da
Bahia», 25.8.98)
a casa: «Quando vi a embrulhada em que se meteu o
porta dos fundos: resta-lhe entrar porta dos fun- Presidente dos Estados Unidos, …» («Jornal do Co-
dos (= ‘por vias travessas’, ‘porta do cavalo’) mércio», 21.8.98)
lavagem de roupa suja: «nesta lavagem de rou- sair dos seus cuidados/sair pela tangente: «Não
pa suja entre comerciantes …» foi à toa, portanto, que o presidente Fernando Henrique
espinafrar: «ela foi espinafrada pela crítica» Cardoso saiu dos seus cuidados para desmentir o seu
(«Veja», 5.8.98) auxiliar» («Tribuna da Bahia», 25.8.98). «Assedia-
varrer para baixo do tapete: «as decisões var- díssimo especialmente pela clientela feminina, ele sai
ridas para baixo do tapete pode custar caro…» («Isto pela tangente: “Digo que tenho namorada e tenho mais
é», 1506, 12.8.98) uma amiga» («Isto é», 1506, 12.8.98)
sair de: «Afinal de contas, saímos de uma in-
a guerra / violência:
flação …» («Veja», 12.8.98)
minar a confiança desengavetar: «desengavetar um velho pro-
guerra contra a balança (para emagrecer) jeto» («Isto é», 1506, 12.8.98)
detonar: «isso detonou a crise» («Veja», 5.8.98). emergente: os países emergentes, os emer-
«Moscou detona uma nova crise mundial com calote gentes, a classe emergente
de 32 biliões de dólares» («Veja», 2.9.98) caixa aberta / caixa fechada: «O computador é
conflito: conflitantes («O poder do tempo e uma caixa aberta, enquanto a TV é uma caixa fechada»
do homem, embora conflitantes, se equivalem» («Inside», Junho 1998)
(«Veja», 5.8.98) dentro do figurino: «a campanha [eleitoral no
o desporto / código de condução Brasil]vai começar como sempre; quer tudo como
manda o figurino»
pisar na bola: «ele admite que pisou na bola»
(fez besteira) («Tribuna da Bahia», 25.8.98) metáforas “ontológicas”14:
pesos pesados: «Fernando Henrique ouviu os passo: «segurar o passo» (Aragão / Soares, E. 10)
Revista
do GELNE
Ano 1 13
A base experiencial para a metáfora do “contentor” é o próprio corpo humano em se baseia a fronteira para estabelcer um
No. 2 “dentro” e um “fora” (cfr. M. Johnson 1987 e M. Vilela 1996: 317-356).
1999 14
A função da metáfora ontológica é a de se fazer compreender as experiências abstractas em termos de objectos e

98
substâncias, tornando-as deste modo tangíveis e manipuláveis.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
barra: «ela tá enfrentando essa barra» (Aragão mergulhar: «ele vai mergulhar nas raízes bra-
/ Soares, E. 9) sileiras» («Isto é», 1506, 12.8.98
ouvir todos os lados da questão / do problema flagrar: «o satélite flagrou num só dia um gran-
fila: «aquele povo querendo cortar a fila»(‘furar’: de número de incêndios» («Veja», 5.8.98)
Aragão / Soares, E. 3) sem fundo: cheques sem fundo (PB e PE), borra-
salário: «… se congelar salário…» (Aragão / chudo, voador, careca
Soares, Entrevista 12) plugada: casa plugada (casa inteligente, ligada)
projecto: «desengavetar um velho projeto» longe de mim pensar que …,«Brasil muito além
(«Isto é», 1506, 12.8.98): da notícia» («Inside», Junho 1998)
máquina: «ele quer modernizar a máquina go- rezoneamento: «metade dos eleitores ignora o
vernamental» («Isto é», 1506, 12.8.98) rezoneamento» («A Tarde», 24.8.98)
script: «Ele seguia um script pré-determinado, enxuto / gordo: «As abordagens sobre a re-
repetitivo e obssessivo. Via uma morena, de cabelo forma do Estado, estado enxuto ou saturado de gor-
encaracolado, matava» («Isto é», 1506, 12.8.98) (A dura, …» («Jornal do Comércio», 21.8.98)
propósito do maníaco do parque) embasar: «busca-se hoje fazer uma revisão dos
matéria: «Ele [jornalista}, …, partiu para fazer conceitos da velha filosofia liberal dos séculos 17-18
uma matéria para o Globo Repórter» («Veja», 12.8.98) e das práticas decorrentes desses princípios que
líquido: «a sua reeleição é tida como líquida» embasaram a Revolução Industrial» («Jornal do Co-
(«Isto é?», 1506, 12.8.98) mércio», 21.8.98)
preta: «a coisa tá preta» [situação política] (voto de) cabresto: «Sem equilíbrio orçamentá-
(Jornais) rio, fim de gastos ‘eleitoreiros’, …, eleições sem voto
desfrutar: «Pode-se desfrutar desde os quadros de cabresto, não chegaremos àquele estágio alcança-
até ..» («Isto é», 1506, 12.8.98) do pelos países mais avançados …» («Jornal de Co-
enxuto: empresa enxuta, pessoa enxuta («As mércio», 21.8.98)
abordagens sobre a reforma do Estado, estado enxuto «viúvas da seca»: as mulheres que ficavam com
ou saturado de gordura, …» («Jornal do Comércio», os filhos “os maridos partiam para as metrópoles
21.8.98)
fundo: «os fundos de pensão» Uma vez que uma boa parte da literatura (escrita
esborrachar-se: «a notícia esborrachou-se con- e oral) consumida no nosso dia a dia é constituída por
tra a inverdade» [Jornais] esta “linguagem figurada”, não será de pedir à gramáti-
manjadíssima: «a causa do fim do namoro …é ca que deixe de remeter para as “literaturas” o ensino
manjadíssimo: a agenda carregada» («Veja», 5.8.98) e a explicação deste género de linguagem? E a “nor-
varejo: «compras por atacado ou por varejo» ma” situa-se também neste domínio: cada variante
passado: «Não tenho medo do futuro: o que eu selecciona os seus veículos, tem as suas “figuras”,
quero é cancelar o passado» (TV) os seus roteiros, os seus figurinos para a construção
filantropia: «mapear a filantropia no mundo» dos seus percurso imagéticos.
(«Veja», 5.8.98)
«doença-arrastão»: ‘indústria do entretenimen- 2 Elementos de fonética,
to’ («Veja», 5.8.98)
economia: «alavancar a economia»
morfologia e sintaxe
pastorar: «estar pastorando o carro» (‘vigiar’)
mercado verde: «Por enquanto o Ibope está Vamos tentar encontrar alguns traços da norma
avaliando o mercado – que ainda está verde, diz brasileira – ou ausência de norma - relativamente à
Montenegro» («Inside», Junho 1998) forma de adopção de estrangeirismos e a adaptação
record: «quebrar o record» / «estar quebrado» fonético-gráfica e morfológica à língua portuguesa.
(‘estar liso’) Referiremos ainda alguns elementos divergentes na
sair da inflação: «Afinal de contas, saímos de flexão e mesmo na sintaxe.
uma inflação …» («Veja», 12.8.98)
2.1 Estrangeirismos
metáforas “espaciais”:
azeitar estratégia: «a bem azeitada estratégia A adopção pura e simples de termos estrangei-
de marketing» [campanha eleitoral de FHC] («Veja», ros, sobretudo americanismos, é um dos traços mar-
5.8.95) cantes da norma brasileira, aliás também presente no
trilhas sonoras PE, mas menos saliente. Eis alguns exemplos do PB:
cobrir: «um valor que deveria cobrir os custos delivery: «Negócios com delivery [entrega]
da publicação» crescem em SP», Revista
margem: «superar por larga margem os núme- sofware [programa], upgrade [expansão], e-mail do GELNE
ros previstos» [correio electrónico], delete /deletar, plug-plugar [li- Ano 1
baixaria: «A baixaria coloca em xeque um em- gar], call center, meeting, sales manager [gerente de No. 2
presário ..» («Isto é», 1506, 12.8.98) vendas], workshop [seminário], briefing [resumo], 1999
colateral: efeitos colaterais board [conselho empresarial], budget [orçamento],

99
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
chairman [presidente de uma empresa], cash flow sentei exemplos da norma gráfica e fonética do PB,
[fluxo de caixa], check-out [conferêrncia final], será que existe alguma norma visível? Como será
personal trainers, showroom, car wash (espaço para possível ensinar a grafia, numa gramática, com esta
lavar carro), baby house (berçário), double safe (en- disparidade de critérios?
trada com dois portões), grill area (churrasqueira),
kids place (parque infantil), playground (área de 2. 3 Outras divergências entre as normas
recreio), studio (quarto reversível), utility space
(espaço multiuso), casual Friday (moda da sexta- A divergência das diversas normas pode situ-
feira desengavatada: informal), happy-hours, «bug ar-se em vários domínios. Por exemplo, na escolha das
do milénio» («Veja», 2.9.98). Expressões mais am- variantes lexicais possíveis16:
plas que atingem já sintaxe: ser in, farei o meu me- triglicérides- triglicerídeos, planejar-planear, ater-
lhor (=I’ll do my best), fiz o meu melhor (=I’ve done rissar-aterrar, decolar-descolar, conexão-ligação,
my best)15. ônibus-autocarro, gol-golo, gramado-relva, za-
gueiro-defesa, guarda-redes - goleiro, escantei-
Há assim grande disponibilidade para aceitar ro-canto, parada/ponto-paragem, etc.
palavras estranhas, como (uma) homepage, (as) web-
cams (câmaras de vídeo digital que transmitem ima- Essas divergências podem ainda situar-se em
gens pela Internet), ou combinações novas, segundo certos pontos muito específicos, como a pluralização:
modelos também novos, ou segundo modelos já con- - «entrar pela porta dos fundos», «resta-lhe en-
sagrados, como gamemaníaco, camelódromo, sam- trar pela porta dos fundos» (PB)
bódromo, etc. - «ao fim das contas» (PB)
-«ser chamado às pressas», «O Telemar, …,
2. 2 Grafia de estrangeirismos foi formado às pressas, a partir de um grupo de
empresas ..» («Veja», 12.8.98).
Se por um lado há, no PB, a adopção do termo
estrangeiro e a sua adaptação à grafia da língua portu- No género / número:
guesa, como: mídia: «César Maia ganhou destaque na mídia
esnobe, estandes, estoque, estressante, boate, como prefeito do Rio por causa de atitudes extrava-
toalete, suvenir, comitê, turnê, maiô (e maio- gantes» (Isto é / 1506, 12.8.98), com valor singular e
zinho), drinque, contêineres («o porto de Bremer- plural, ao contrário do que acontece no PE («os mass-
haven, na Alemanha, movimenta uma quantidade media / os media»
de contêneres superior a todos os portos brasi- videocassete: «o videocassete» (Veja, 2.9.98)
leiros juntos» («Folha de São Paulo», 28.8.98), disquete: «o disquete»
caubói, Vietnã, Amsterdã, sutiã, flerte, flertar,
Verificam-se ainda algumas divergências na es-
blefe, blefar («Você acha que é blefe, num é?»,
colha do modelo flexional: as preferências do PE, nos
«querer blefar» (Aragão / Soares, E.10), avionês
verbos em –IAR, vão pela realização em –eio, no PB,
(“aviation lingo”), plugar (casa plugada) , bre-
pela realização em –io:
car e breque (travar e travão).
-negoceio, negoceiam, premeio, premeiam (PE)
-negocio, negociam, premio, premiam (PB)
por outro lado, há a conservação da grafia e da foné-
tica original: Nos verbos em –UAR as divergências são mais
trade («A aposta unânime do trade parece ser fundas:
mesmo no turismo de ventos» («Inside», Junho -adéquo, adéquam, averíguo, averíguam (PB) e
98), marketing, shows, megashow, garçon, gar- -adequo, adequam, averiguo, averiguam (PE).
çonette, country, (físico de) skatista, happy-
hours, gamemaníaco, band-aid. Uma nota saliente no PB é a supressão e aligeira-
mento de muitas expressões:
Há ainda uma mestiçagem: mantêm-se certos tra- - supressão de preposição: «você torce Ceará»:
ços do estrangeirismo e marcas do português, como (Aragão / Soares, Entrevista 10), puxar a mãe / o pai
acontece em marketeiro («o marketeiro da campanha («ela puxou a minha mãe» (Socorro, E. 3), «assistir
eleitoral»), etc. aula» (Aragão / Soares, 27), agradar / desagradar al-
Tanto a norma europeia como a brasileira têm guém / os fregueses
critérios díspares na grafia e na fonética, quer aten- - supressão do artigo: «toda hora você vai in-
do-nos aos termos nas duas variantes, quer compa- ventar uma razão para …», «toda hora você vai inven-
rando os termos dentro de cada variante, qualquer tar razões para… » puxar a mãe / o pai («ela puxou a
Revista escrevente ou aprendente da língua terá muita difi- minha mãe» (Aragão / Soares, E. 3)
do GELNE culdade em saber qual é a norma. Uma vez que apre- - supressão de outros elementos:
Ano 1
No. 2
1999 15
Alguns destes exemplos foram extraídos de: «Educação», 207, Julho de 1998.

100
16
A ordem é: PB-PE.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
«Até [há] pouco tempo atrás os homens deixa- pegar no carro (PB e PE)
vam a encomenda de cosméticos a cargo da compa- o carro não pegou (PB e PE)
nheira ..» («Veja», 12.8.98), pegar passageiros: «Taxistas autônomos são
«a notícia repercutiu no mundo inteiro» [re- impedidos de pegar passageiros que desembar-
percutiu-se], quem [em Brasília] dos aviões» («Veja», 12.8.98)
galera [galeria], negada (Ceará [negrada])
- supressão sistemática de elementos (ao tele- botar:
fone)17: «Quem deseja?» (= Quem deseja falar com botar remédio na comida (‘pôr, colocar’)
ela/ele?), «Quem gostaria?» (= Quem gostaria de falar botar dentadura
com ele / com ela?») (Cfr. «Veja», 2.9.98, pg. 154) bota aqui a tua mão
«botar defeito» (Aragão / Soares, E. 10)18
- supressão de sílabas: «Curso de quadrinhos.
Se você é da turma que curte quadrinhos, se ligue virar:
nessa: O Graphite, estúdio de quadrinhos genuina- «vira-te!», «ele que se vire!» (‘arranje’, ‘resolva
mente cearense, inicia amanhã, dia 17, curso sobre o o probnlema’) (PB)
assunto», («O Povo», 16.8.98), «filme pornô», xérox «ele virou artista», «isso virou realidade» (‘tor-
(=xerocópia). nar-se’) (PB)
2. 4 Concentração dos verbos genéricos no PB virada: «Com menos de dois meses para provo-
car uma virada na campanha presidencial, o can-
Os verbos genéricos como ter, haver, fazer, pôr, didato do PT fala do governo FHC e do país»
e os verbos genéricos de cariz popular, como botar, («Veja», 12.8.98) (‘mudança total’)
pegar, no seu uso quotidiano, aproximam-se semica- vencer de virada: «Vitória vence de virada o
mente entre si, podendo substituir-se sem mais aque- América e pega Juventude» («Correio da Bahia»,
las. O verbo ter e fazer ocupam assim o espaço de 24.8.98)
haver. Vejamos apenas o caso de ter:
«tem gente que quer ter um carro importado» 2. 5 Mudanças de “regências”
«Tem esportes, tem cinema, tem jornalismo, tem
documentários, tem per-view, tem mais na outra pá- Estão a definir-se algumas divergências na re-
gina, tem diversão, tem variedade, tem inteligência, gência verbal, adjectival e nominal. Não vou alargar-
tem o que ninguém mais tem: tem a qualidade Glo- me nas exemplificações, mas apenas ilustrar essa
bosat. Só os canais Globosat têm o que os Canais divergência:
Globosat têm. E quem não tem tem que ter» (Publici- - contribuir com / contribuir para («directores
dade a Globosat) de estatais costumavam pedir aos fornecedores que con-
«aqui no colégio tem a merenda do governo? … tribuíssem com os candidatos oficiais» («Veja», 5.8.98)
tem não, de primeiro tinha» ( Aragão / Soares, 17)
- assistir / assistir a: «Tu não assiste nada na
«Sempre não tem festa não, lá na sua igreja? –
televisão» (Aragão / Soares, 33)
Tem festa quando é dia de aniversário ..» (Aragão /
agradar / agradar a: agradar / desagradar al-
Soares 96, 19)
guém; agradar os fregueses
«A Iraci tem uma mão para máquina» (Aragão /
namorar / namorar com: «ela namorou com ele
Soares, 1996, 3)
«ter grana» mais ou menos ..»(Aragão / Soares, 3)
etc. brincar a / brincar de:
O verbo fazer recobre muitos dos usos de ‘haver’: «Em o Brasil encantado de Monteiro Lobato,
«faz menos de um século que as pessoas come- as crianças vão poder brincar de jogos de fundo de
çaram a tirar o pé do chão para voar em aviões... quintal, no Sítio do Pica-Pau Amarelo.» («Correio da
(«Veja», 5.8.98) Bahia», 24.8.98), «brincar de bola» (Aragão / Soares, 19)
solidário (para) com / solidários a: «os religio-
Os verbos pegar, botar, virar alargam o âmbito sos … são solidários aos sem-terra e sem-teto ..» («Fo-
de seu uso, ocupando o espaço de outros verbos mes- lha de São Paulo», 23.8.989)
mo na norma culta: a / em: televisão em preto-e-branco (PB), televi-
pegar: são a preto e branco (PE)
pegar dois meses de suspensão (PB, ‘apanhar’)
«eu peguei os quatro anos» (Aragão / Soares, de: precisar de («Tem aniversário, tem bodas,
Entrevista 12) tem formatura, tem promoção na empresa. Se você pre-
«(o pé) pegou cinco ponto» (Aragão / Soares, cisa presentear alguém, o melhor é um Tissot» (Anún-
Entrevista 10) cio, in: «Veja», 2.9.98) Revista
do GELNE
17
No PE também se verificam fenómenos semelhantes. Contudo, a redução obedece a um critério diferente: como, ao telefone:
Ano 1
- «tálá?», No. 2
- «toussim» / «tôssim» 1999
18
Em Trás-os-Montes usa-se de modo habitual, na linguagem popular, botar no sentido de ‘pôr’, ‘colocar’.

101
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
2. 6 Nova forma de passiva «eu nunca vi ela não» (Aragão / Soares, 28),
«eu chamo ela de tia» (Aragão / Soares, 31)
Começa desenhar-se no PB a ocorrência de pas-
Trata-se de exemplos do corpus oral de Forta-
sivas feitas à imagem do inglês. Este facto encontra-
leza, mas não deixa de ser também um sintoma: mes-
se também no PA: neste último caso, as explicações
mo a nível de “media”, há exemplos frequentes, pelo
apontam tanto para a influência do inglês como para
menos nos jornais publicados em Fortaleza.
influências bantu. Apenas um exemplo:
No pronome pessoal, usado como complemen-
«Os bancos jogam duro com os clientes. Seis to indirecto, temos de fazer algumas distinções:
meses após cancelar cheque roubado durante -«há uma tendência da fala de Fortaleza para
assalto no Rio, um cliente foi comunicado que, utilização de pronomes tónicos em detrimento dos áto-
para renovar o cancelamento, teria que pagar nos. É raro encontrarmos formas como trouxe-me, dou-
R#5.» («Correio da Bahia», 24.8.98) lhes, etc. Comummente as formas empregadas são
trouxe para mim, dou para (pra) vocês.» (Pereira Lima /
Creio que está a surgir també no uso do PE o Gadelha 1998)
mesmo fenómeno, se bem que com menor incidência. -«Em dei-lhe um presente a forma recorrente é
É frequente ouvir em pessoas cultas – ou que têm dei um presente para / p’ra ela, mas quando a refe-
obrigação de o ser – frases como: rência pronominal é a primeira ou segunda pessoas
«este problema foi respondido prontamente» do singular, há uma tendência para a utilização do pro-
nome me em posição proclítica. Assim teríamos Ele
em que tanto pode haver uma influência estranha à
me deu um presente com maior recorrência do que Ele
língua, como pode existir uma analogia com interrogar:
deu um presente para mim. Como já apontamos, o
«ele foi interrogado (naquele preciso momento)». mesmo fenômeno ocorre com a segunda pessoa tu,
sendo o pronome tu intercambiável com a forma você.
2. 7 Pronomes Na realidade, dificilmente um falante em situação in-
formal de interação e até mesmo formal utilizaria a for-
2. 7. 1 Colocação dos pronomes átonos ma para ti. Na maioria das vezes é a forma para você
que permuta com te.» (Pereira Lima / Gadelha 1996)
São conhecidas as divergências nas duas nor-
-«Outra realização importante é a da forma para
mas no que concerne a colocação dos pronomes áto-
gente. Em:
nos. Apesar de fenómeno repetido, não deixa de ser
Ele deu-nos um presente
um facto. Apenas alguns exemplos:
Ele nos deu um presente
«- Me fala do jogo de ontem» (Aragão / Soares Ele deu um presente pra nós
1996) Ele deu um presente para / pra gente
«Consta que vai-se instalar em …» (Aragão / É a última realização a mais recorrente em nossa
Soares 1996) fala» (Pereira Lima / Gadelha 1996). Perguntamo-nos
«o petista não consegue se mostrar ao eleitor se se trata de fenómeno localizado ou generalizado?
como alternativa confiável de poder» («Época», Não será a norma do PB?
3.8.98)
«nós vamos conversar um pouquinho sobre tudo 2. 8 Enfatização
que você … tudo que você quiser me contar»
(Aragão / Soares, 15) Quer o PE, quer o PB, usam, sem grande parcimó-
nia, dos processos disponíveis da língua para enfatizar,
Não deixa de ser curioso o facto de, possivel- reforçar determinados conteúdos. Também nesse do-
mente, haver outras divergências na colocação. En- mínio suponho ter encontrado processos próprios do
contramos a designação cristalizada «Oriente Médio». PB. Eis alguns desses processos:
Será apenas um facto ocasional, ou um indício? - diminutivo que é comum às duas vairantes,
mas mais insistente no PB:
2. 7. 2 Pronomes usados como complementos «Pode contar como é que foi a festa todinha»
(Aragão / Soares, 17)
O pronome pessoal na função de objecto directo «Aí merendava …. O mês todinho» (Aragão /
tem tendência para ser realizado na forma sujeito: Soares, 17)
«ele quer ver eu em casa» (Aragão /Soares, 21) «passava o dia todinho no ônibus» (Aragão /
«a mãe botava eu na cama» (Aragão / Soares, Soares, 27)
21) - negação dupla19:
Revista «aí eu fui lá no meu pai chamar ele ….chamei «eu num tenho nem que contar, porque … lá
do GELNE ele..» (Aragão / Soares, 21), é muito bom» (Aragão / Soares, 27)
Ano 1
No. 2 19
No falar de Trás-os-Montes ouve-se ainda uma dupla negação, mas esta de carácter nitidamente arcaico:
1999
- Queres ir comigo?

102
- Não num quero
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«eu num vou não» (Aragão / Soares, 30), -né?, «n’era?», «viu?», «isso!», «sabe?»,
«Nessa hora, o público não quer nem saber -«olha só!», «tadinho!»,
das subtilezas do estilo ou das fligranas do - «sei não», «é não», «não enche o saco sua
regulamento»(«Viaje bem», revista de bordo da VASP, nega» («Isto é», 1506, 12.8.98),
nº 16, 1998) -bom!, bem! repare! ora bem! veja bem! repare
«Não é preciso nem dizer que a maior parte -«faz favor!», «pois não?»,
dos acidentes acontece nesta modalidade» («Viaje -«percebes?», «pronto!», «e pronto»,
bem», revista de bordo da VASp, nº 16, 1998) -«se calhar», «pode ser» (=’talvez’)
-«ena!», «puxa!», «do caraças!», «chiça!»
- reflexivização: -etc.
«engraçar-se com alguém / alguma coisa»
- expressões lexicalizadas: e expressões que aparecem colocadas na gramática,
«a coisa tá preta» ou no lugar errado, como «daí», «então», ou no lugar
na hora: «Um morreu na hora, o outro, no hos- devido mas em agrupamentos que nada explicam, como
pital» («Veja», 12.8.98) «pois!», «depois», «em seguida», «absolutaqmente»,
estar jeca: «o mundo está muito jeca» («Isto é», etc. Finalmente, elementos que categorialmente se si-
1506, 12.8.98) tuam num dado lugar da grelha, mas que exercem fun-
pisar na bola: «ele admite que pisou na bola» ções muito diferentes, como:
(fez besteira) Ele vem sempre atrasado
etc. Ele sempre me saiu um marau!
Onde situar na gramática tais expressões? Igno-
3 Expressões coloquiais rá-las? Ao dizermos - Bom!, - Ora bem!, os lexemas
do discurso quotidiano não se reportam a ‘bondade’ ou ao “bem” presentes
nos respectivos lexemas. etc. Colocá-las como inter-
As gramáticas da língua têm-se retardado a in- jeições?
cluir nas suas páginas factos que estão já a ser estu- A «gramática da palavra» tem de encontrar um
das há algum tempo20. Reporto-me a elementos como lugar para estas expressões. Apresentei expressões,
partículas modais, partículas conversacionais, marcas umas pertencentes à norma do PE, outras à norma do
discursivas, conectores discursivos, etc. É bem ver- PB, mas todas essas expressões são correntes. E se há
dade que estes elementos pressupõem um enquadra- factos da língua que estejam dependurados na norma,
mento teórico que envolve pragmática, análise do estas expressões estão bem dependentes da norma.
discurso, linguística de texto. E este enquadramento
necessita de um espaço que não é redutível a um ma- 4 Conclusão: o que ensinar?
nual de gramática. Mas a própria “gramática da pala-
vra” não deverá incluir já estes elementos? É que estes 4. 1. Ensinar a língua é ensinar o modo como a
elementos são muito frequentes em todos os textos, língua categoriza o mundo extralinguístico, é reduzir a
escritos ou orais, extensos ou de pequeno porte. Veja- realidade a categorias de conceitos. E o princípio mais
mos alguns desses elementos e o seu alcance para o elementar manda que nos sirvamos dos figurinos, dos
conhecimento / aprendizagem da norma. “scripts” que os falantes têm ao seu dispor: coisas e
As gramáticas tradicionais incluíram muitas das relações entre as coisas. As palavras têm atrás delas
expressões em questão, ou nas interjeições, ou nas cha- os instrumentos que as explicam: elas guiam-nos no
madas partículas de realce. Mas ao lado de expressões percurso através das errâncias do seu significado.
mais ou menos transparentes, que serão perfeitamente Coisas e conteúdos interagem, desde que as coisas
enquadráveis numa conversação normal, como: sejam usadas através das palavras adequadas.
- não faz mal, não tem mal, não faz nada Cada palavra tem um uso típico, mais saliente e
há outras expressões – que são exemplo de partículas outros usos mais genéricos ou mais específicos. Inte-
conversacionais – encontráveis na despedida numa grar a palavra no seu uso mais saliente é assim o pri-
conversa, como: meiro caminho.
-«vou chegar», «estou chegando», «fui», equi- 4. 2. A língua dispõe de modelos de formação
valente (no PB) a «ciao», «tchau» verbal: a preferência por afixos, por neologismos lexi-
cais, por empréstimos semânticos, por palavras im-
ou expressões equivalentes ás interjeições tradicio- portadas de outras línguas. Ensinar a língua é colocar
nais, para mostrar admiração, espanto, distan- o aluno perante esses roteiros mentais e materiais.
ciamento, etc., como: Os modelos mentais de representação tanto se situ-
Viche!, Viche Maria!, Afe / Afe Maria! (PB) am na imitação como na criação. Enfrentar a realida-
Revista
expressões de interpelação, mostrando concordân- de através da língua é o primeiro passo para ter acesso
do GELNE
cia, discordância, admiração, dúvida, etc., como: à língua e à realidade.
Ano 1
No. 2
20
Luiz Antônio Marcuschi – aliás, o primeiro linguista da área lusófona a interessar-se por estes fenómenos – fez um 1999
levantamento crítico do que está subjacente ao conceito de “língua oral” ns manuais escolares de 1º e 2º níveis (1997)

103
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
4. 3. A linguagem é fruto de convenções e uma KLEIBER, Georges 1990 – La sémantique du
das convenções mais salientes é o que designamos prototype: catégories et sens lexical, Paris: PUF.
como “figuração” ou linguagem figurada. Esta verten- LAKOFF, Georges 1987 – Women, fire, and
te da língua não é apenas uma criação de poetas: faz dangerous things. What categories reveal about
parte da própria língua. No ensino, nos manuais, não the mind, Chicago: The Univ. f Chicago Press.
se reconhece esse papel da “metáfora” na instauração
LAKOFF, Georges / Thompson, H. 1977 - «Lin-
da língua. Não ensinamos esse modo novo e original
guistic Gestalts», in: Chicago Linguistic Society,
de categorizar o mundo, que aliás atravessa todo o dis-
13, 236-287.
curso quotidiano, seja ele oral ou escrito.
4. 4. O universo do que designávamos como LAKOFF, Georges / Johnson, Mark 1980 – Metaphors
“partículas”, hoje desdobrado em partículas modais, we live by, Chocago: The Univ. of Chicago Press.
partículas conversacionais, conectores discursivos e LAKOFF, Georges / Norwig, Peter 1987 - «Taking:
textuais, anáforas associativas, etc., é outro dos tópi- a study in lexical network theory», in: Pro-
cos impostos pela língua. Logo na gramática da pala- ceedings of the thirthenth aqnnual meeting of
vra há que dar lugar a esses elementos mínimos, mas the Berkeley Lingistic Society, 196-206.
que dão sabor ao nosso discurso quotidiano. NOGUEIRA DUARTE, Sérgio 1998 – Língua viva.
4. 5. Finalmente, língua escrita, língua oral, não Uma análise simples e bem-humorada da lin-
estão tão distantes como pensávamos há alguns anos guagem do brasileiro, Rio de Janeiro: Rocco.
antes: há apenas recorrências mais frequentes de um
LANGACKER, Ronald W. 1991 – Foundations of
ou outro elemento na língua oral, mas a estrutura es-
cognitive grammar: descriptive application,
sencial mantém-se. Haverá razões de fundo para a gra-
vol. II, Stanford: Stanford Univ. Press.
mática, os manuais se aterem apenas ao padrão
“standard” ignorando completamente os outros pa- MARCUSCHI, Luiz Antônio 1997 - «Concepção de
drões? Nos exemplos que apresentei servi-me tanto língua falada nos manuais de português de 1º e
de um corpus oral como de corpus escrito: a diferença 2º. graus: uma visão crítica», in: Trab.Ling.Aplic.,
não é assim tão grande. A noção de “correcto” e “in- Campinas, 30, 39-79.
correcto” tem de ser novamente aferida: o “uso” tam- PEREIRA LIMA, Ana Maria / Gadelha, Cibele 1998
bém tem o seu peso na definição da norma. – Análise das categorias de complemento
indirecto em uma amostra da linguagem fala-
da em Fortaleza, Trabalho apresentado no
Bibliografia Mestrado “Linguística Portuguesa”, Fortaleza.
PONTES, Eunice 1990 – A metáfora, Campinas:
Unicamp.
ARAGÃO, Maria do Socorro Silva / Soares, Maria
Elias (orgs.) 1996 – A Linguagem Falada em PRATA, Mário 1993 – Dicionário de português.
Fortaleza. Diálogos entre informantes e Schifaizfavoire, 17ª ed., SP: Globo.
documentadores, Fortaleza: Mestrado em Lin- ROSCH, Eleanor 1973 - «On internal structure of
güística e Ensino da Língua Portuguesa. perceptual and semantic categories», in: Moore,
CACCIARI, Cristina / Glucksberg, Sam 1994 - T. (org.) – Cognitive development and the
«Understanding figurative language», in: Morton acquisition of language, New York: Academic
Ann Gernsbacher (org.) – Handbook of psycho- Press, 111-144.
linguistics, San Diego: Academic Press, 447-477. ROSCH, Eleanor 1977 - «Human categorization», in:
DAMÁSIO, António R. 1995 – O erro de Descar- Warren, N. (org.) – Studies in cross-cultural
tes. Emoção, razão e cérebro humano, Mem psychology, vol. I, New York, Academic Press. 1-49.
Martins: Europa América. TALMY, Leonard 1988 - «Force dynamics in language
GIBBS, Raymond 1994 - «Figurative thought and and cognition», in: Cognitive Science, 12, 49-100.
figurative language», in: M. A. Gernsbacher (org.) TAYLOR, John 1989 – Linguistic categorization.
– Op. Cit, 441-445. Prototypes in linguistic theory, Oxford:
GIVÓN, Talmy 1986 - «Prototypes between Plato Clarendon Press.
and Wittgenstein», in: Craig (org.) – Noun, Clas- VILELA, Mário 1994 – Estudos de lexicologia do
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Benjamins, 78-102. VILELA, Mário 1995 – Léxico e Gramática, Coimbra:
GONÇALVES, José Milton 1995 – Tira-teimas de Almedina.
Português, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1995 VILELA, Mário 1996 – «A metáfora na instauração
Revista HINTIKKA, Jaakko 1994 – Aspects of metaphor, da linguagem: teoria e aplicação», in: Revista da
do GELNE Boston: Kluwer Academic Press Publishers. Faculdade de Letras da Univ. do Porto: Lín-
Ano 1 JOHNSON, Mark 1987 – The body in the mind. The guas e Literaturas Modernas, 13, 317-356.
No. 2 bodily basis of meaning. Imagination and VILELA, Mário 1997 - «Do campo lexical à explicação
1999 Reason, Chicago: The Univ. Chicago Press. cognitiva: risco e perigo», in: Diacrítica, 11, 639-666.

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○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
MARCOS FALCHERO FALLEIROS
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ROMANCES
DESENCONTRADOS

Combinar matéria local ao molde europeu do blicação de Ao vencedor as batatas no final dos
romance foi um desafio para os grandes escritores anos 70, e que ainda perdura, podemos lembrar que o
brasileiros que inauguraram o período romântico, e autor não a professa como um diagnóstico pelo qual
há ainda hoje um traço permanente desse aspecto em teoricamente se responsabilize, mas que a utiliza como
nossa cultura. A Senhora, Aurélia, de Alencar, tem forma de indicar a auto-imagem do país. Apesar do
em seus arrufos grandiloqüentes algo de disparatado, alcance genérico e ainda hoje permanente, tal como o
de descabido e de contraditório. Comprando o casa- autor a menciona em outros ensaios, no contexto des-
mento por meio de negociação escusa, a menina po- se seu trabalho de crítica literária, a expressão é situa-
bretona enriquecida por herança, que então se vinga da no século XIX, particularmente na contradição
do amado que a abandonara por um dote mais atraente, experimentada pelos estratos intelectualizados, que
acaba por encenar uma afetação de princípios liberais conviviam com a simultaneidade disparatada da ideo-
e humanistas em contraste cômico com o movimento logia liberal dominante e da aberração escravocrata,
circunstancial do romance. Assim, discurso dramáti- ou, em outros termos, entre a dependência de origem
co e ressentido aparece cercado de personagens me- que disseminava em solo brasileiro as idéias européi-
nores, cuja configuração lembra Memórias de um as sobre trabalho livre como valor humanista e a pre-
sargento de milícias. A contradição dos “princípios” sença do escravo nos serviços... - para usar uma
frente a uma sociedade escravista faz o fundo desse imagem - da sala de jantar, onde tais idéias eram coti-
sentimento de desencontro, que levava Alencar a se dianamente discutidas .
desculpar da pequenez de seus romances, argumen- Para exemplificar a complexidade e a sutileza
tando estar condicionado ao “tamanho fluminense”. desse trabalho, podemos citar um detalhe do capítu-
Com a caracterização desse quadro em Ao ven- lo “A importação do romance e suas contradições em
cedor as batatas, Roberto Schwarz observa o parado- Alencar”. Trata-se da nota 20, quase um ensaio, em que
xo: o avanço estético de Machado de Assis dependeu o crítico se lembra das teorizações de Walter Benja-
de um recuo ideológico como modo - não plenamente min em “O Narrador”, retomando-as com linguagem
bem sucedido - de resolver esses desajustes. O Ma- própria - o que de quebra resulta num modo diferente
chado de Assis menor, da primeira fase, com a racio- de dificuldade para o entendimento de Benjamin -
nalização do paternalismo, procura adequar a para enfocá-las no exame da situação específica da
realidade social e ideológica do país aos seus enre- condição colonial, quando se dá a confluência da nar-
dos. O resultado não é dos melhores: A mão e a luva, rativa tradicional frente à ascensão do romance. Re-
Helena e Iaiá Garcia têm em comum a expectativa vela-se aí o paradoxo que se produz numa obra como
em chave subserviente de que a classe dominante a de Alencar, em que a defasagem causada pela im-
possa oferecer um tratamento digno aos seus depen- portação do romance, relativamente à simplicidade e
dentes. Mas a decepção crescente anuncia a grande concreticidade da narrativa pré-capitalista, faz de suas
virada de Machado de Assis. Iaiá Garcia encerra soluções algo mais complexo que o romance europeu.
esse período como um romance abafadiço, em que a A lição de crítica literária e de reflexão que a
situação subalterna ao favor de seus protagonistas densidade dessa leitura cerrada nos oferece não se
quase paralisa o enredo para que eles possam man- limita somente às suas qualidades internas de rigor
ter sua dignidade num meio em que a sobrevivência intelectual e de redação desmistificada com espírito
do trabalhador livre estava plenamente condicionada anti-retórico e desempolado, num texto ágil, cuja
aos caprichos e interesses dos poderosos. racionalidade límpida e criativa é antídoto eficaz para
O romance ter existido no Brasil antes de haver o delírio verborrágico e fraudulento dos modismos
romancistas brasileiros é o motivo condutor da abor- intelectuais em que a falta de horizonte de nossa con-
dagem de Roberto Schwarz. Tal constatação é núcleo dição pós-moderna nos atola. Aqueles são apenas
Revista de ressonâncias complexas, que atingem em âmbito aspectos decorrentes de um processo coeso de in-
do GELNE amplo a condição colonial do país e o estatuto de sua terpretação, que, ao invés de sobrevoar tematicamente
Ano 1 formação cultural, cuja síntese sob forma de metáfora os elementos da literatura com abordagens meramente
No. 2 aparece na inquietante e desconfortável expressão conteudistas, exteriores ao estético, procura justa-
1999 “idéias fora de lugar”. Para deixar logo de lado a polê- mente romper com esses enquadramentos divisio-
mica que essa expressão causou no momento da pu- nistas ao sondar a historicidade da forma. Ao invés

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de recolher simploriamente nos romances analisa- O objetivo final desta comunicação é lembrar a
dos a expressão externa das ideologias autorais atra- força desse caminho. Imediatamente, damos conta do
vés do discurso dos narradores e de seus personagens, curso de mestrado a respeito, que oferecemos no úl-
a interpretação sonda o nível entranhado e concreta- timo semestre pelo Programa de Pós-Graduação em
mente mais significativo das resoluções estéticas es- Estudos da Linguagem da UFRN. Mediatamente, o
colhidas pelos autores, procurando no modo de suas curso se relaciona com o nosso projeto de pesquisa
escolhas e andamentos de enredo a significação ple- Formas Brasileiras, um projeto por fases e, portan-
na de sua historicidade. Sem o alarde fácil das estereo- to, permanente, armado por lógica dedutiva a partir do
tipias e sem o mascaramento sedutor das mistificações que foi acima exposto: se José de Alencar e Machado
metafóricas e de suas mesmices, tais procedimentos de Assis tiveram que resolver esteticamente a nossa
revelam o avanço teórico e a contemporaneidade do situação específica, incluindo aí a sensação das “idéi-
empenho reflexivo, na disposição aberta e transdis- as fora de lugar”, por conseqüência temos uma condi-
ciplinar muito além do up-to-date, evitando transfor- ção presente a toda produção cultural do país. No caso
mar o discurso teórico num vale-tudo respaldado no da literatura, é o que Formas Brasileiras se propõe a
arcaico e inexorável relativismo, que a diluição hodierna examinar, percorrendo gradativamente por esse pris-
apresenta como novidade. ma nossas manifestações mais relevantes.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
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FRANCELI APARECIDA DA SILVA MELLO
Universidade Federal de Mato Grosso

A CRÍTICA TEATRAL
DE MACHADO DE ASSIS

A maior parte dos estudiosos da obra de Ma- Ao se estudar Machado de Assis sob o ponto
chado de Assis ressalta as suas qualidades de crítico. de vista de sua evolução não há como evitar uma re-
Tristão de Athayde chega a afirmar que, ao traçar, em ferência às chamadas duas fases de sua trajetória.
1865, o ideal do crítico, Machado de Assis marcou Para Lúcia Miguel Pereira, entre os vinte e vinte e
um conceito modelar de crítica literária, não só para si seis anos ele teria sido um jornalista destemido e agres-
como para os seus contemporâneos. sivo, comentando sem rebuços homens e aconteci-
Com relação à crítica teatral, parece haver una- mentos. É claro que a autora relativiza um pouco os
nimidade quanto à superioridade de Machado em rela- traços dessa personalidade audaciosa ao sugerir que
ção aos seus pares. Para Edmundo Moniz1 perspicácia, talvez ela se devesse mais à influência do meio (Ma-
bom senso, bom gosto, serenidade e equilíbrio são as chado vivia entre os liberais), que à uma inclinação
principais qualidades de suas análises. A paixão pelo inata. Assim, à medida em que vai se estabilizando na
teatro, o espírito combativo e esperançoso caracteri- vida, o escritor vai abandonando a crítica, alheando-
zavam suas primeiras críticas, cujas idéias poderiam, se da política, recolhendo-se na rotina e nos roman-
segundo o autor, ser subscritas presentamente. José ces. Enfim, Pereira nos chama a atenção para o
Galante de Sousa escreve que, como crítico, os traba- contraste entre o Machadinho, moço atrevido, aman-
lhos de Machado de Assis valem por uma profissão de te de festas, teatro e atrizes e o ‘Seu’ Machado, sisu-
fé; “ E, sobretudo como crítico teatral, não perde do chefe de repartição pública, amante da solidão,
ocasião de demonstrar que crê firmemente na pos- que detestava o carnaval. Massa aponta para a exis-
sibilidade do verdadeiro teatro entre nós...”2 . Se- tência de três momentos distintos na trajetória do
gundo Lúcia Miguel Pereira, Machado sai-se muito autor, ao considerar a fase anterior aos vinte anos,
bem como analista literário e não há que se discutir a quando ele teria sido, se não um alienado, no mínimo
sua seriedade como crítico dramático. Jean-Michel um “equivocado”, pois ao elogiar o teatro francês,
Massa vai mais longe e vê nessa atividade uma forma Machado menciona os fabricantes de melodramas
de engajamento do escritor, e mais, ela teria revelado d’Ennery e Bourgeois, ao invés dos idealistas Victor
o verdadeiro Machado dos anos da juventude, “... sem Hugo e Dumas Filho. Segundo este biógrafo de sua
as máscaras com que se cobriu mais tarde. Aos vin- juventude,“Aos vinte anos, Machado de Assis reali-
te anos, é-se franco e sincero. E mais ainda quando zou uma mutação completa, mudou de alma, rene-
se tem responsabilidade e se deseja mudar, como gou-se a si mesmo e, num nobre movimento de
Machado de Assis, a face do teatro e do mundo.” 3 , sacrifício, queimou tudo aquilo que adorava. Foi,
até o momento em que se retira à“torre de marfim do simultaneamente, uma revolução e autocrítica.”5.
esteticismo” e abandona o jornalismo cotidiano para Nessa época, influenciado por Francisco Otaviano,
dedicar-se à ficção. Creio haver certo exagero tanto Ribeyrolles e pelas leituras de Pelletan, tornou-se re-
numa quanto noutra asserção, pois sabemos que publicano e democrata.
Machado nunca apartou os problemas sociais de sua Ainda aqui prefiro a prudência de Pereira, pois
obra, essencialmente crítica, aliás; e, quanto à ausên- embora reconheça o homem de oposição no jovem
cia de máscaras no jovem escritor, tenho minhas dúvi- Machado, a autora observa que sua adesão ao libe-
das. Desse modo, prefiro ratificar a opinião de Eugênio ralismo não fora tão radical, como quer Massa. Ma-
Gomes4 que, citando Barreto Filho a propósito da críti- chado de Assis sempre resguardou seu ponto de vista
ca teatral machadiana, vê nela um ângulo privilegiado pessoal e reservou-se o direito de expressá-lo, pelo
de onde pode-se perceber a evolução de seu espírito. menos nas questões concernentes à arte, assunto impor-
Verificar em que medida isso se dá, é a minha preten- tantíssimo para ele. Assim, numa crônica de 1861 em
são nesse trabalho. que reivindica do governo a criação de uma escola

Revista
1
do GELNE 2
“Machado de Assis e a crítica teatral”, Correio da Manhã, R.J., 12/03/1950.
“Machado de Assis, censor dramático”, Revista do Livro, Ano I, nº 3-4, dez., 1956, p.83.
Ano 1 3
MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de Assis. Ensaio de Biografia Intelectual. R.J., Civilização Brasileira,
No. 2
1971, p.254.
1999 4
“Influência do teatro de Machado de Assis”, Correio da Manhã, R.J., 14/06/1952.

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MASSA, op. cit., p.215.
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normal de teatro, referindo-se a um artigo de Macedo geiros, e a adoção dos princípios da escola realista
Soares (Correio Mercantil), Machado condena a (que ele chamava de ‘nova escola’) que, pela sua índo-
aplicação do princípio liberal da concorrência em le pragmática, ajustavam-se como uma luva aos proje-
arte: “Não, o teatro não é indústria, como diz a tos de sua geração. Desse modo, o crítico incentivava
opinião a que me refiro; não nivelemos assim as os autores a estudarem a vida cotidiana a fim de en-
idéias e as mercadorias.”6 Nessa crônica o autor contrar na sociedade brasileira a inspiração para a sua
demonstra sua preocupação em salvaguardar a liber- obra; que até podia imitar a fórmula francesa, mas não
dade de expressão e, por conseguinte, a qualidade da o seu conteúdo.
arte, que não deveria ser sujeitada a fatores como, O ensaio termina num tom bastante otimista,
por exemplo, a lei da oferta e da procura, regulada projetando no teatro grandes expectativas. Machado
por empresários gananciosos e pelo público, supos- acreditava que uma vez solucionados os problemas,
tamente ignorante. Isso poderia significar a vitória com a proteção governamental e a adoção da nova
do mau gosto e da depravação. Do seu discurso estética, “... o teatro nascerá e viverá; é assim que há
depreende-se também uma visão paternalista da re- de se construir um edifício de proporções tão colos-
lação do artista com o público; ao primeiro caberia sais e de um futuro grandioso.”
ensinar e doutrinar sua platéia, cujas únicas interfe- No ano seguinte Machado renegaria este en-
rências permitidas seriam os aplausos ou as pateadas. saio,“ por apresentar idéias muito metafísicas e va-
A implantação de um teatro nacional de alto porosas”, era o revolucionário falando. Contudo, no
nível fazia parte de um projeto político que a gera- que diz respeito ao teatro, suas idéias não se apresen-
ção de Machado abraçou, qual seja, o de moderniza- taram assim, ao contrário, pareceram-me bastante prag-
ção da sociedade brasileira, cujo modelo, embora máticas e objetivas. Tanto que na série intitulada
inspirado no europeu, tinha um fundo nacionalista. “Idéias sobre o teatro”, publicada n’O Espelho, o
De fato, essa foi a tônica de seu primeiro ensaio autor retoma-as, explicitando-as.
importante, “O Passado, o Presente e o Futuro da Desse modo, reafirmava a necessidade urgente
Literatura”, de 1858. Nele, Machado delega ao teatro de criar-se uma dramaturgia nacional, sem o que o
a responsabilidade pelo futuro da nossa literatura. Ao processo de civilização não se completaria. O teatro
falar do passado, o autor refere o caráter essecialmente existente não tinha originalidade, era cópia de uma
europeu da nossa poesia como um defeito, dando fórmula já gasta. (Machado não desconsiderava os
como exemplo Gonzaga que “... pintava as cenas da talentos individuais, mas lamentava que a ausência
Arcádia, na frase de Garret, em vez de dar uma cor de uma política cultural pudesse levá-los a abandonar
local às suas liras, em vez de dar-lhes um cunho pu- a cena).
ramente nacional...”. Por outro lado, elogia o “Uru- Moralizar e civilizar. Essas deveriam ser as me-
guai” de Basílio da Gama, não por ser indígena, mas tas do teatro naquele momento; ele poderia também
pela sua poesia suave, natural, tocante, “elevada sem divertir, para quebrar a“monotonia em que vegeta-
ser bombástica”. Vê-se que Machado já revela sua mos n’este país sensaborão”, mas o importante era
predileção pela sobriedade em arte e, assim como fará que acompanhasse as reformas sociais, fosse o espe-
Joaquim Nabuco alguns anos mais tarde ao criticar o lho da sociedade, para que essa, vendo-se, pudesse
indianismo em Alencar, recusa-se a identificar indíge- corrigir suas falhas.
na com nacional. Para ele, o caráter próprio de uma Assumindo um tom reivindicatório, o autor quei-
literatura não se expressava na escolha de assuntos, xava-se do meio brasileiro, por não incentivar a
personagens ou paisagens locais, mas naquele“cunho criatividade, e da falta de“uma mão poderosa que abra
nacional”, que será melhor explicitado em 1873 (Ins- a direção aos espíritos”. Afirmava que era preciso ir
tinto de Nacionalidade). Seu nacionalismo voltava- além do tablado, havia que se educar as platéias: “De-
se para a construção de uma cultura essencialmente monstrar aos iniciados as verdades e as concepções
brasileira e moderna. Para isso era necessário livrarmo- da arte ... Desta harmonia recíproca de direções acon-
nos do estigma do exotismo selvagem e, ao mesmo tece que a platéia e o talento nunca se acham arre-
tempo, combatermos a dominação estrangeira, presen- dados no caminho da civilização.” Aqui fica claro
te também no campo das artes. Justifica-se, assim, a que o autor referia-se às verdades e concepções da
reação de Machado contra as peças traduzidas, res- arte realista, pois afirmava a seguir: “Ora, não se pode
ponsáveis pela transformação da arte em indústria e moralizar fatos de pura abstração em proveito das
pelo consequente atraso do nosso teatro. Esta era sociedades...”. Para ele, assim como o jornal e a tribu-
não só uma tomada de posição política, como uma na, o teatro além de se constituir em meio de educação
estratégia para forçar uma produção dramática local. e proclamação pública, era também instrumento de
Nesse sentido Machado propõe duas medidas, uma democracia e transformação social; só que com van-
de ordem política, outra de ordem estética, quais se- tagem sobre os primeiros, pois, “Diante da imprensa
jam: medidas protecionistas, através de legislação que e da tribuna as idéias abalroam-se, ferem-se e lutam Revista
garantisse os direitos autorais aos escritores brasilei- para acordar-se; em face do teatro o homem vê, sen- do GELNE
ros e taxasse a importação/tradução de textos estran- te, palpa; está diante de uma sociedade viva, que Ano 1
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Diário do Rio de Janeiro, 16/12/1861.
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se move, que se levanta, que fala e de cujo compos- tanto na crítica, cuja dificuldade ou recusa em tomar
to se deduz a verdade, que as massas colhem por partido ofereciam como saída o ecletismo ou a “ neu-
meio de iniciação. De um lado a narração falada tralidade”, quanto nas outras instâncias envolvidas
ou cifrada, de outro a narração estampada, a so- com o palco. Assim como o Ginásio não exibia apenas
ciedade reproduzida no espelho fotográfico da for- dramas realistas, o São Pedro não se limitava aos ro-
ma dramática.” (grifos meus) Reprodução, espelho, mânticos; os atores, devido à precariedade de sua si-
fotografia, termos reveladores de uma opção pela arte tuação, viam-se obrigados a “peregrinar” de teatro em
como cópia fiel da realidade, e que, nesse caso, não teatro, sem condições de se reunir sob um só pensa-
podia imitar senão a realidade local. Aí tinham os mento, como era o desejo de Machado de Assis. Mes-
defensores do teatro nacional, mais um argumento mo os autores não primavam pela fidelidade às
contra a importação, uma vez que a peça traduzida só escolas, veja-se o caso de Joaquim Manuel de Ma-
desviava a cena de sua missão formadora, pois, ao cedo, sobre quem Machado observou, em tom de
discutir problemas de outras sociedades, não “edu- reprovação, que não professava escola alguma; era
cava” o povo brasileiro, nem fornecia à crítica o estu- realista ou romântico, conforme se lhe oferecesse a
do de nossa sociedade. ocasião.
Na sua cruzada pela renovação do teatro brasi- Essa “encruzilhada” parece ter sido benéfica para
leiro, o cronista elogiava muito o teatro Ginásio, por Machado em sua atividade como crítico, pois levou-o
prestigiar os autores realistas, assim como o ator Fur- à procura de novos caminhos.
tado Coelho, por aderir ao modo novo de representar, Em 1865 quando publica no Diário do Rio de
pautado pela naturalidade. Por outro lado, condenava Janeiro o ensaio“O ideal do crítico”, encarece a fun-
o conservadorismo de João Caetano, cobrando-lhe ção da crítica como auxiliar indispensável na formação
um posicionamento mais comprometido com o novo. da boa literatura, pois, na medida em que guia os estre-
Seu teatro, o São Pedro, era alvo constante das críticas antes, corrige os talentos. Julga a crítica no Brasil ain-
machadianas. Criticava as peças lá representadas, a da bastante atrasada e arrola uma série de requisitos
decoração, a atuação exagerada do Sr. Barbosa: “... para tirá-la do estado de mediocridade: a ciência literá-
toma gestos e inflexões de voz hiperbólicos, alonga as ria deve suplantar a imaginação; a análise da obra não
palavras, carregando sobre elas, tortura a língua, a deve limitar-se a frases feitas, mas ser feita com ciên-
arte e a paciência dos pensadores que lá vão” 7 . cia, consciência, coerência, independência e imparcia-
De 1862 a 1864 Machado de Assis foi censor do lidade; o crítico deve ser tolerante com as escolas,
Conservatório Dramático, o que causa estranheza a expressar-se com urbanidade e moderação, adotar uma
alguns de seus biógrafos, afinal, ele trabalhava num regra bem definida para não cair em contradição, e,
jornal de oposição. Mas, nessa época o teatro vinha finalmente, ser franco sem aspereza. Tais princípios
enfrentando sérias dificuldades. O cronista da seção são os mesmos defendidos por Quintino Bocaiúva em
“Vespas Dramáticas”, do jornal A Semana Ilustrada 1856, o que me leva a concordar com João Roberto
escreve em 1862: Faria8 quanto a uma possível influência deste sobre
“O teatro de S. Pedro está, arreia, não ar- Machado e a especular sobre as razões que o levaram
reia, arreia. a adotá-los quase dez anos depois. Uma delas talvez
“O Ginásio está, cai, não cai, cai. tenha sido o próprio amadurecimento do autor, a ou-
“O Ateneu está, espicha, não espicha, espicha. tra, a necessidade de encontrar um eixo para o seu
“Mais alguns dias, e todos estes três tea- pensamento crítico. Isso o teria levado aos Estudos
tros farão ponto final”. críticos e literários, de Bocaiúva, a quem respeitava
muito, no afã de definir princípios norteadores para o
Ciente disso e disposto a contribuir para a su- trabalho que deveria empreender daí para a frente.
peração da crise, Machado provavelmente viu na no- Enquanto homem de espírito democrático, aves-
meação para o Conservatório, além do prestígio so aos privilégios, Machado suspirava por leis poéti-
pessoal, uma oportunidade de combater pelo progres- cas que fossem os únicos critérios de julgamento do
so da nossa arte dramática. mérito literário; não poderia, portanto, deixar-se levar
O fato de nunca dispensar a avaliação formal, por entusiasmos guerreiros do tipo que o dominaram
aliado ao desejo de atuar com severa imparcialidade anos atrás. O momento era outro e sua postura deixou
nos pareceres para o Conservatório, levaram o crítico de ser a do militante para ser a do cientista que, diante
a uma posição mais conciliadora em relação às esco- do objeto estudado e partindo do princípio da neutra-
las literárias. Em 1860 já havia se declarado eclético; lidade da ciência, não podia adotar outra atitude que
embora a sua prática como crítico na época ainda apon- não fosse a do distanciamento crítico. Na análise crite-
tasse para um certo tendenciosismo, isto é, uma boa riosa que faz de “ Os primeiros amores de Bocage”9,
vontade para com as peças realistas. de Mendes Leal, o autor reformula alguns posicio-
Revista A encruzilhada em que se encontrava o teatro namentos adotados anteriormente. Um deles diz
do GELNE da época, entre o romantismo e o realismo, reflete-se respeito ao classicismo. Se em 1859 não o reco-
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MACHADO DE ASSIS, Crítica Teatral, R. J., M. Jackson Inc. Editores, vol. 30, 1944, p.74.
1999 8
FARIA, João Roberto. “Retrato de um republicano quando jovem”, Revista da Usp, set/out/nov, 1989.

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MACHADO DE ASSIS, op. cit., p.p. 196-205.
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mendava: “ A leitora sabe que o clássico não é o cado um artigo bem mais desesperado no Diário do
meu forte; aplaudo-lhes os traços bons, mas não o Rio de Janeiro (10/01/1865) em que escreve:
aceito como forma útil ao século.”; agora elogia o “Que resultou do abandono de tantos anos?
autor do drama justamente por ter atendido à lição O estado deplorável que hoje presenciamos: uma
clássica, que determina a separação entre arte e his- arte bastarda, apenas legitimada por uns raros
tória, “ ... fazendo-se imaginoso e intérprete” da lampejos, arrasta a mais precária existência deste
biografia de Bocage. Ainda nessa linha, prescreve que mundo.
a arte não deve ser cópia fiel da realidade, como de- “Os artistas foram obrigados a fazer ofício da-
fendera no passado: “Se a arte fosse a reprodução quilo que devia ser culto: enfim os escritores dramá-
exata das cousas, dos homens e dos fatos, eu pre- ticos, que podiam contribuir mais ativamente para
feria ler Suetonio em casa, a ir ver Corneille e um repertório nacional, se outras fossem as cir-
Shakepeare”; mas que o artista deve preferir os tra- cunstâncias - apenas, por uma devoção digna de
ços largos da pintura, à “implacável minuciosidade ser admirada, apresentam de longe em longe os
do daguerreotypo”. Observe-se que até a sua lingua- produtos de sua inspiração.
gem e preferências vão ao encontro do ponto de vista “Em tal estado de coisas, sem esperança de um
clássico, em detrimento do realista; lembremo-nos próximo remédio, não há outra coisa a fazer senão
da expressão ‘reprodução fotográfica’ usada em cruzar os braços.
1859, quando o crítico reivindicava um teatro volta- “ E a crítica, diante de uma arte penosa e ingló-
do aos problemas da sociedade presente; agora, a ria, deve tomar a benignidade por seu principal ele-
transcendência é eleita como condição essencial da mento, a fim de não aumentar a aflição ao aflito.”
arte. Outra opinião que Machado reconsidera é com Machado não cruzou os braços, tanto que iria
relação aos dramaturgos Scibe e Dumas, merecedo- voltar ao assunto e, diplomaticamente, consideraria
res de rasgados elogios no passado e, agora preteri- com certa complacência as causas da demora do go-
dos em favor da simplicidade de Molière: “... nada verno em aprovar a lei de criação do teatro nacional,
mais simples que a ação do ‘Misantropo’, e contudo na esperança de que a reforma se efetuasse breve-
eu dava todos os louros juntos do complexo Dumas e mente. Também a “benignidade”, acrescentada ao seu
do complexo Scribe para ter escrito aquela obra pri- código de conduta como crítico, não iria afetar o rigor
ma do engenho humano.” de suas análises, pelo contrário, por ter adquirido maior
A partir da segunda metade da década de 1860 maturidade intelectual, passaria a exigir mais em ter-
o vaudeville passa a dominar a cena teatral do Rio de mos de coerência estética, aprofundando-se no exa-
Janeiro, ameaçando a sobrevivência do teatro de idéi- me das obras, fazendo relações e teorizações mais
as. Machado já vinha se manifestando contra isso há complexas.
algum tempo. Em 1864 utilizara-se da seção “Correio Assim, em “O Teatro de Gonçalves de Maga-
da Semana Ilustrada” para protestar contra o Alcazar lhães” (1866) Machado atribui ao nosso primeiro po-
Lírico. Em cartas ao chefe de polícia e ao presidente eta romântico o mérito de reformar a cena no tocante
do Conservatório Dramático reivindicava que o à declamação e o de fundador do teatro nacional, em-
Alcazar também fosse submetido, como as demais ca- bora seu talento dramático não correspondesse ao lí-
sas de espetáculo, à inspeção policial e à censura do rico. Numa análise da peça “Antonio José”, o crítico
Conservatório. Talvez por trás disso existisse a in- reconhece seu caráter de tragédia, mas observa que
tenção de provocar o fechamento da casa, eliminan- Magalhães não a realizou como devia, pois o elemen-
do, assim, um concorrente “desleal”. Em 1865, na to trágico só existe no quinto ato. A propósito
seção “Novidades da Semana”, também do jornal de“Olgiato”, Machado parece reformular sua concep-
Semana Ilustrada, o crítico, com bastante ironia, ção de arte ao admitir o sacrifício da verdade históri-
protestava contra o gosto do público, que preferia o ca em favor dos preceitos artísticos. Lamenta que o
espetáculo aparatoso, no caso “Colombo”, levado poeta não tenha tido uma produção mais fecunda, pois
no teatro S. Pedro, aos dramas encenados no Giná- isso despertaria, pelo exemplo, os talentos nacionais.
sio Dramático. Se Magalhães teve o mérito de inaugurar a tra-
Num artigo pessimista de fevereiro de 1866: “O gédia nacional, Alencar teve o de iniciar a comédia, e
teatro nacional”, Machado prevê a completa disso- com mais sucesso. Machado só tece elogios às peças
lução das artes dramáticas. Nem as peças estrangei- “Verso e Reverso” e “O demônio familiar”, essa, alta
ras, quer fossem clássicas, românticas ou realistas, comédia, aquela, comédia elegante, simples, fina, com
atraíam o público, que, no entanto, não era responsa- ela “ ... era a sociedade polida que entrava no teatro,
bilizado pela queda; mas sim, as reformas romântica e pela mão de um homem que reunia em si a fidalguia
realista, por deteriorarem-lhe o gosto ao transforma- do talento e a fina cortesia do salão.” No fundo, era
rem-se em ultra-romantismo e ultra-realismo. Neste ar- este o retrato da sociedade brasileira que se queria ver
tigo o autor delimita o sentido da função formadora representado no palco. Mas, como uma sociedade Revista
do teatro; a prioridade não é mais moralizar, mas edu- podia ser polida e admitir a barbaridade da escravi- do GELNE
car o gosto, restringindo-se, portanto, ao campo da dão? Embora já não acreditasse no caráter de demons- Ano 1
arte. Outro responsável pelo fracasso seria o gover- tração da arte, como proclamara no passado, o crítico No. 2
no, por não ter criado um teatro normal. Esta antiga considera bastante satisfatória a solução alencariana 1999
reivindicação do autor e de seus pares já havia provo- de consolar a consciência - protestando contra o ca-
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tiveiro _ sem sair das condições da arte, isto é, pela cômicas por meio de frases e considerações ocio-
própria pintura dos sentimentos e dos fatos; pois o sas; em cena só devem ficar os personagens e a situ-
teatro deveria, no seu entender, influenciar o especta- ação. Mais uma vez a verborragia perde o dramaturgo.
dor pela impressão produzida em seu espírito e não A partir da década de 1870 o teatro aparece
através de argumentações cansativas. cada vez menos nas crônicas machadianas. No co-
Ao discorrer sobre o tema da reabilitação da nhecido ensaio “Notícia da Atual Literatura Brasi-
mulher perdida, caro ao teatro da época, Machado leira. Instinto de Nacionalidade”, (1873), em que
evita entrar no mérito da questão moral, talvez por faz um balanço de nossa produção literária até aque-
considerá-la menor em face de outras mais relevantes, le momento, dedica poucas linhas ao teatro. Menci-
limitando-se a condenar apenas a monotonia do as- ona M. Pena, Magalhães, G.Dias, Porto Alegre,
sunto: “Que a conclusão fosse afirmativa ou negati- Agrário de Menezes, Alencar, Quintino Bocaiúva,
va, pouco importa em matéria de arte.” O crítico Pinheiro Guimarães, deixando claro que, se houve
comporta-se da mesma forma ao comentar “As asas de alguma coisa boa, foi no passado; no presente a can-
um anjo”: “ Pondo de parte esta questão da correção tiga burlesca e o cancã, a mágica aparatosa, levaram
dos costumes por meio do teatro, coisa duvidosa para o gosto do público ao último grau de decadência e
muita gente...”. Sobre a famosa última cena do quarto perversão. Essa constatação e a descrença numa pos-
ato, considera-a desnecessária e inconveniente. sível recuperação do teatro “sério”, levaram Macha-
Mais maduro, Machado não repudia a arte pura. do a nova mudança de atitude e o discurso ponderado
Admite-a como mais uma dentre as concepções de do cientista foi substituído pela ironia com que co-
arte existentes. mentava o movimento cultural da época, cuja maior
Sobre “O que é o casamento” o crítico elogia o afluência de público parecia ir para as touradas:
gosto e discernimento de Alencar ao conceber os ca- “... certo gozo superfino, espiritual e grave, que
racteres, o diálogo natural e vivo e o estudo de senti- patentea a brandura dos nossos costumes e a graça
mentos, mas nota certo exagero na fidelidade à de nossas maneiras”;
pintura dos costumes, características da escola rea- “ ... um dos mais belos espetáculos que se po-
lista que o incomodará sobremaneira em “O Primo dem oferecer à contemplação do homem; e que uma
Basílio”. sociedade já enfarada de tantas obras de arte, de
Ao analisar a dramaturgia de Joaquim Manuel um teatro superior, quase único, de tantas obras-
de Macedo, Machado de Assis, numa demonstração primas do engenho humano, uma sociedade assim,
de que para ele não havia inviolabilidades, sublinha a precisa de um forte abalo muscular, precisa de re-
regressão artística do autor de “O Cego” e “Cobé”, pousar os olhos num espetáculo higiênico, delei-
peças cuja qualidade não foi mantida em “Lusbela” e toso e instrutivo.” 10
“Luxo e Vaidade”, obras ruins, mas com muito suces- Aqui é bom deixar claro que esse discurso irôni-
so de público. Dentre os inúmeros defeitos dessas co não teve o mesmo papel dos discursos “militante”
composições, o crítico ressalta o excesso de oratória, ou “científico” na crítica teatral machadiana, porém é
e, ao fazê-lo, aproveita para explicitar a forma como o importante registrá-lo como uma manifestação anteci-
ensinamento deve aparecer em cena: “A moral do tea- pada do que viria a ser a marca de sua literatura de
tro, mesmo admitindo a teoria da correção dos cos- ficção da chamada segunda fase.
tumes, não é isso: os deveres e as paixões na poesia O exame da crítica teatral de Machado de Assis
dramática não se traduzem por demonstração, mas nos mostra que a sua evolução, se é que se pode
por impressão.” Machado condena veementemente chamar assim sua trajetória como homem e como es-
a preocupação de Macedo em produzir efeitos de cena critor, não se deu de forma linear, mas em espiral, atra-
ao invés de efeitos de arte, descumprindo o seu dever vés de uma série de retomadas e aperfeiçoamentos.
de autor prestigiado, qual seja, o de educar o gosto do Assim, em 1879, Machado publica, na Revista
público, mediante obras de estudo e observação. Brasileira, um longo estudo sobre a obra de Anto-
Ao comentar a” Torre em Concurso” o crítico nio José, no qual retoma o discurso teórico, rigoro-
revela-se conhecedor da teoria da comédia concluin- so, que conquistou graças à prática cotidiana da crítica
do pela superioridade desta sobre o gênero burlesco. dos espetáculos teatrais. Esse exercício crítico per-
É fundamentado nisso que condena Macedo também mitiu-lhe descobrir uma grandeza e uma fragilidade
como poeta cômico, ou melhor, burlesco, pois ele não na arte, ou seja, ela era muito grande para caber nos
faz alta comédia, talvez por preguiça, insinua o autor, limites de uma escola literária, mas muito frágil para
já que seu talento não precisaria do escudo protetor mudar a sociedade.
de um gênero menor para justificar as inverossimi-
lhanças, as tintas carregadas e outros defeitos. “Para Bibliografia
fazer rir não precisa empregar o burlesco; o burlesco
Revista é o elemento menos culto do riso”, afirma. FARIA, João Roberto. “Retrato de um republicano
do GELNE Numa comparação com Molière, o crítico quando jovem”, Revista da USP, São Paulo, set/
Ano 1 aconselha Macedo a evitar a anulação de situações out/nov, 1989.
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____, Obra Completa, R. J., Ed. Nova Aguilar, vol. 3, p.381.

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GOMES, Eugênio. “ Influência do teatro de Macha- MONIZ, Edmundo. “Machado de Assis e a crítica
do de Assis”, Correio da Manhã, Rio de Janei- teatral”, Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12/
ro., 14/06/1952. 03/1950.
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Crítica Tea- PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis: estu-
tral, Rio de Janeiro., M. Jackson Inc. Editores, do crítico e biográfico. 6ª ed., Belo Horizonte:
vol.30, 1944. Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1988.
_____. Obra Completa, Rio de Janeiro., Editora PONTES, Joel. Machado de Assis e o teatro, Rio de
Nova Aguilar, vol. 3, 1992. Janeiro, SNT/MEC, 1960.
MASSA, Jean-Michel. A juventude de Machado de SOUSA, José Galante de. “Machado de Assis, censor
Assis. Ensaio de Biografia Intelectual. Rio de Ja- dramático”, Revista do Livro, Ano I, nº 3-4, Rio de
neiro, Editora Civilização Brasileira, 1971. Janeiro, INL/MEC, dezembro, 1956.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

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