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Fazendo Gênero 2006 – Florianópolis - SC

Corporalidade, consumo, mercado ST 43


Osmundo Pinho1

A Integração Subordinada:
Raça e Gênero, Corpo e Consumo na Periferia do Rio de Janeiro

1. Modernização, Desigualdade e Sujeitos Sociais


Neste artigo, discutiremos a partir de dados produzidos durante trabalho de campo no
Jardim Catarina, periferia da cidade de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio de
Janeiro, os modos concretos de produção de sujeitos sociais no contexto da periferia
racializada. Tal produção, em nosso argumento, pode ser entendida como profundamente
vinculada à modernização desigual ou seletiva, que reestruturou as condições de vida e as
formas de sua representação no Brasil. Esta vinculação é fundamentalmente uma
integração subordinada, marcada pela relação desigual com o mundo das mercadorias e
com as condições de exercício de cidadania. Nesse sentido, a modernização das relações
sociais é uma modernização dos sujeitos sociais e ambos os processos são definidos por
suas contradições. O nosso marco fundamental é, desse modo, a modernização: da
sociedade, das relações de gênero (com as conseqüentes “transformações da intimidade”),
das relações raciais e da racialização. Nesse conjunto de transformações, o corpo é
convocado a testemunhar lutas culturais cruciais.
A modernização da estrutura social não poderia ser outra coisa que não também
a modernização dos agentes sociais. Ou a formação de sujeitos sociais modernos, dotados
de subjetividade e racionalidade modernas. Mas como entendermos isso junto à
persistência da desigualdade racial descrita em termos macro-sociológicos, hoje no século
XXI, de modo muito próximo daqueles do começo do século XX? Não que muitas e
profundas alterações não tenham transformado o país. Entre os anos 50 e 80, o Brasil
converteu-se de uma sociedade agrária para uma sociedade “de classes de tipo capitalista”
francamente urbana, através de um processo caracterizado como “modernização
conservadora” (Hasenbalg, 2003). Dizer que a modernização foi conservadora significa
apontar para o fato de que apesar de crescente contingente populacional encontrar-se
melhor qualificado, inserido em processos produtivos como trabalhadores “livres” em
contextos urbanos, a maioria da população não logrou participar do desenvolvimento e da

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Bolsista Pós-Doc (FAPESP) no Departamento de Antropologia da UNICAMP.

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riqueza produzidas. Na verdade, os padrões de concentração de renda só aumentaram2.


Ademais, a forte concentração de pobres nas cidades contrasta com o perfil rural da
pobreza na primeira metade do século. Atualmente, dois terços da população em situação
de pobreza estão nas cidades.
As expectativas depositadas no desenvolvimento econômico, que liberaria forças
vivas guardadas nos meios de produção, produzindo a expansão efetiva da modernidade
no Brasil, com seus corolários de universalização, emancipação subjetiva,
desencantamento do mundo e destradicionalização, pareceram altamente frustradas,
porque o modelo específico de desenvolvimento histórico da sociedade brasileira
combinou de modo particular e particularmente nefasto desenvolvimento e
empobrecimento3. Nesse processo a cor/raça tem papel explicativo central.
Na tradição brasileira, por outro lado, a oposição moderno/tradicional, ganha
ares da oposição atraso versus desenvolvimento, como foi tratado, criticamente, aliás,
por Cardoso e Faletto(2004{1969}). Embutido nesse pressuposto estaria a idéia que o
desenvolvimento social dos países do capitalismo central prefiguraria as etapas de
desenvolvimento dos países periféricos. Na medida em que, em grande parte, a
urbanização precedeu historicamente a industrialização, criou-se nos países da América
Latina um “efeito demonstração” que consiste em assumir como valor, por efeito da
vida urbana e do consumo das idéias e de modas do Ocidente, “pautas sociais” dos
países centrais, sem que tivéssemos vivenciado as mudanças estruturais, ou seja, na base
econômica, que sustentaram essas mesmas idéias nos países do capitalismo central. São
as idéias, mais uma vez, fora do lugar.
Sendo assim: “O efeito demonstração supõe que a modernização da economia
se efetua através do consumo”(Cardoso & Faletto, 2004 {1969}). O consumo de bens e
idéias dos países centrais do capitalismo dá o tom dos processos de desenvolvimento
das sociedades periféricas, justamente através dessa relação de constituição mútua entre
centro e periferia.

2
Essas mudanças também trazem importantes conseqüências para as relações de gênero, na medida em que se evidenciou uma
queda da fecundidade global e o aumento da participação das mulheres na força de trabalho, Cf.p.ex. Caetano, 2004.
3
Tal como colocado por Cardoso e Faletto, o processo de “internacionalização do mercado interno” poderia, como uma síntese de
processos contraditórios, produzir a expansão do horizonte econômico e político nacional, ao mesmo tempo em que criaria a
dependência dos centros produtores do capitalismo mundial. A expansão do mercado interno, devida a investimentos internacionais,
criaria, e a tese é famosa, a contradição entre interesses imperialistas de exploração econômica e projetos nacionais de
desenvolvimento dos países periféricos da América Latina. Os autores citados lançam mão da idéia de “desenvolvimento
dependente associado” para mostrar solução de conciliação entre interesses das burguesias nacionais e do imperialismo
internacional (Cardoso & Faletto, 2004{1969}).

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“A situação de subdesenvolvimento produziu-se historicamente quando


da expansão do capitalismo comercial e depois do capitalismo industrial
vinculou a um mesmo mercado economias que, alem de apresentar
graus variados de diferenciação do sistema produtivo, passaram a
ocupar posições distintas na estrutura global do sistema capitalista.
Dessa forma, entre economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas não
existe uma simples diferença de etapa ou de estágio do sistema
produtivo, mas também função ou posição dentro de uma mesma
estrutura econômica internacional de produção e distribuição. Isso
supõe, por outro lado, uma estrutura definida de relações de dominação”
(Cardoso & Faletto, 2004 (1969): 38-9).

Mais recentemente a problemática da especificidade da modernização brasileira


tem se colocado fortemente nos debates sociológicos4. A teorização sobre a
modernização seletiva brasileira, e sobre a construção social da sub-cidadania, interroga
justamente o aspecto combinado e desigual da modernização brasileira, através da
discussão de bibliografia relevante. Nesse campo de debate, a questão da
universalização, como singularidade da cultura ocidental é central. Nossa modernidade
seria incompleta, outra, anômala, divergente? Ou como coloca Partha Chatterjee(2004),
a nossa modernidade (dos países periféricos e pós-coloniais) é de fato uma modernidade
dos “já colonizados”?

“Por causa da forma pela qual a história de nossa modernidade foi


entrelaçada à história do colonialismo, nos nunca pudemos acreditar
que houvesse um domínio universal da livre expressão, desvinculado das
distinções de raça ou nacionalidade. De alguma forma, desde o mais
remoto princípio, tivemos uma intuição perspicaz que, dada a
cumplicidade próxima de conhecimentos modernos e regimes de poder
modernos, permaneceríamos sempre consumidores da modernidade
ocidental; nunca seriamos levados a sério como seus
produtores”(Chatterjee, 2004: 58).

Sob certo ângulo, esse sentimento de inadequação ou exterioridade tem sido


enfatizado pelo que Souza chama de “sociologia da inautenticidade”, que acredita que a
modernização brasileira seria apenas supérflua, “de fachada”, para “inglês ver”.
Particularmente relevante nessa interpretação, seria a carência de distinções claras nas
esferas da vida social, distinções tipicamente modernas, como as que separam, por
exemplo, e de modo importante, a vida pública da vida privada. Do mesmo modo, para
essa sociologia da inautenticidade (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda,

4
Pensamos na investigação de Jessé Souza (2000; 2003), além de muitos outros trabalhos importantes como os de José Maurício
Domingues (1999; 2001), Leonardo Avritzer (2000), Míriam Santos (2000) e outros.

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Roberto da Matta) não teríamos logrado “institucionalizar os valores individualistas e


burgueses da Europa ocidental”(Souza, 2000: 236).
Ora, para Souza, o Brasil é de fato um país plenamente moderno, na medida em
que os códigos valorativos do ocidente moderno, em especial o individualismo, são os
únicos códigos legítimos. O específico da modernização brasileira refere-se ao caráter
seletivo para acesso a bens centrais, o que define uma cidadania regulada
negativamente, com interdição a participação plena de atores sociais alocados, de modo
não-racional, como “párias urbanos e rurais”. Essa exclusão radica justamente na
relação diferencial com esse mundo dos valores modernos, sob a égide do mercado e do
Estado, instituições plenamente modernas e que são de fato os eixos estruturais da
modernização seletiva brasileira (Souza, 2003).

2. Periferia e Mercadoria
Assim como as nações, ou formações sociais, constituem-se na relação problemática
e contraditória entre centro e periferia, grupos sociais também são periferalizados5 e
integrados de modo subordinado às economias dinâmicas do mundo global. A
integração econômica subordinada, efetivada, em muitos casos, basicamente por
meio do consumo (real ou desejado) e não da produção (de valores para o mercado),
é traço característico e marcante de ampla parcela da experiência social brasileira e
de largo espectro de contextos sociais, como é o caso do Jardim Catarina. Mais do
que isso, o consumo, inclusive e principalmente entendido como um a prática ativa
de produção de significados, pode funcionar como um anteparo para o sentimento de
exclusão e para discriminação efetiva:
“P: Você já se sentiu discriminado de alguma forma?”.
A: Às vezes é sim cara, às vezes a gente ia naqueles lugares que só tinha
aqueles pessoal branquinho e tal, com a roupa assim que tá na moda e a
gente com a roupa que não tá na moda. Agora não que graças a Deus eu
trabalho e tal e comecei a comprar roupa que às vezes tá na moda, se eu
me sentir bem com ela eu compro.” (A. 22 anos)

Por outro lado, chama bastante a atenção no JC (Jardim Catarina), a miríade de


pontos comerciais de todos os tipos, inclusive a parafernália de equipamentos de
consumo que conectam o modo de vida dos jovens locais àquele de outros jovens de

5
Considerar grupos ou espaços sociais como periferalizados, não significa dizer que sendo periferia estão à margem do processo
social. Mas, na verdade, queremos ressaltar que a integração desses espaços e grupos se deu de modo a constituir uma relação de
dominação e subordinação, que se configura – “aparece” - como uma relação entre um centro e suas periferias. Nesse sentido,
concordamos com Zaluar e Alvito, que entender a favela é entendê-la como integrada a cidade, mas discordamos, nesse sentido, do
seu entendimento do significado da periferia, (Zaluar & Alvito, 2003).

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condições sociais diferentes. Estamos nos referindo à pizzarias, lan houses, locadoras
de vídeo e games, salões de beleza, etc. A maneira como a paisagem e o contexto
social imediato é assim composto pela associação entre a precariedade das
instalações urbanas públicas, e esses pontos de contato com o mundo do consumo e
do lazer, comuns em qualquer bairro de classe média, dão o tom efetivo da
experiência da pobreza e da relação com o mundo das mercadorias e serviços
modernos. A história da formação dos bairros periféricos, inclusive o JC é assim a
história de sua produção como espaços sociais precarizados, mas também a história
da relação entre essa precariedade e as aspirações de consumo e integração ao mundo
das mercadorias. Como no caso do Município de São Gonçalo, e ainda mais
especificamente do bairro Jardim Catarina, que tem a história de sua formação
claramente caracterizada pelo processo de modernização da região Metropolitana do
Rio de Janeiro6. Isso deveria parecer óbvio. Não é tão evidente assim, entretanto, que
os aspectos deletérios da vida urbana sejam encarados como resultados do processo
de modernização e integração metropolitana.
De um modo ou de outro, o crescimento de São Gonçalo deve-se a dinâmica da
metrópole carioca, constituindo-se a partir dos anos 40, diante do elevado processo de
urbanização, numa aglomeração urbana, reservatório de mão de obra barata,
notadamente formada por emigrantes nordestinos. Nos anos 50, a cidade chegou a ser
considerada pólo industrial, tendo também expressiva concentração de fazendas
dedicadas à citricultura. A partir dos anos 80, como ocorreu com o restante do país, a
recessão econômica e a des-industrialização tiveram seus efeitos sentidos na cidade.
(Cordeiro, 2004; Brandão, 2004).
Sendo considerada “periferia consolidada” a cidade de São Gonçalo se inscreve
na teia de relações metropolitanas como uma região de privação relativa ou pobreza.
Nosso sítio não poderia, dessa forma, ser caracterizado exatamente como uma favela,
mas como “periferia”. Apesar disso, acreditamos encontrar muitos traços comuns entre
seus aspectos formativos e os de favelas cariocas7.
É impressivo e relevante perceber, por outro lado, como os agentes parecem ter
consciência prática e discursiva do transe vivido entre um desejo de participação e de

6
Conhecido como o “maior loteamento da América Latina”, O Jardim Catarina com população de 40.807 mil habitantes, começou a
ser loteado oficialmente em 1953(Cordeiro, 2004).

7
O processo de gênese das favelas cariocas, como resultado do desenvolvimento urbano e social moderno no século XX, é
relativamente bem conhecido Cf.p.ex. Zaluar, 1985; 1999; Zaluar & Alvito, 2003; Alvito, 2001; Caldeira, 1984; Alves, 2003;
Burgos, 2004.

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acesso à cidadania, que passa necessariamente pela instrução formal, mas


principalmente pela garantia de acesso ao mundo do trabalho. Ao mesmo tempo em
que anseiam de modo significativo pela integração social realizada pelo consumo. Os
atores sabem que não podem consumir sem serem, em certo sentido muito concreto,
consumidos como força de trabalho, sabem também que o mundo do trabalho é o
mundo da subordinação e onde sua subordinação social parece mais clara. R. 23
anos, comenta seu desconforto ao trabalhar numa barraca que vende comida na rua:
“É porque a gente vê lá na rua, a gente passa e vê muitos jovens
passando sabe, então, há uma certa discriminação por quem trabalha na
rua, o pessoal fala pra caramba. Então a gente sofre de discriminação
porque quando a gente arruma uma namorada: Pô , você trabalha de
que? Pô, sou vendedor. Vendedor de que: (risos). Entendeu? É uma
dificuldade muito grande, com preconceito com tudo; é bom a gente ter
o trabalho da gente quando a gente terminou o segundo grau, a gente
corre atrás também, mas só não tem retorno”.

Enquanto isso, o mundo do consumo, que é vivido separadamente, ainda que


indissoluvelmente ligado ao mundo do trabalho, é o mundo o lazer, do desejo e da
afirmação da identidade subjetiva. O mesmo agente citado acima, continua falando
sobre como gasta seu dinheiro:
“Roupa cara eu adoro roupa, essa é minha despesa maior, é com roupa.
Porque é a prioridade, você vive hoje, eu digo assim, na rua, eu ando,
preciso de roupa, tipo assim, a aparência hoje é tudo; as pessoas hoje te
definem pelo que você veste e não pelo que você é, entendeu?”.

É importante considerar que a ética do consumo e das aparências é vivida sob os


constrangimentos materiais e de classe a que esses atores estão submetidos. Mas é
também prevalecente, em termos muito semelhantes, para jovens das classes médias
e altas, como fica claro no depoimento de Diego, um dos jovens entrevistados por
Almeida & Tracy: “Na night, a respeito do valor do corpo, alem dele ser seu cartão
de visitas, ele é o seu tudo.” (2003: 82). Ora, esses jovens que vivem na mesma
aglomeração urbana, mas que a vivem de modos diferentes, contam com recursos
diferentes para atualizar essa ideologia consumista que, não pode haver dúvida, é
parte da estrutura social de países capitalistas, como uma propriedade estrutural,
tanto constitutiva dos padrões sociais como orientadora da ação.
Podemos ver, assim, como jovens de classe média têm uma consciência
discursiva incrivelmente semelhante à dos jovens no JC. O trabalho já citado de
Maria Isabel Mendes de Almeida e Kátia Maria Almeida de Tracy, nos mostra com

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muita clareza os valores e práticas de jovens das elites e classes médias altas
cariocas, em certo sentido, o grupo social que é o análogo oposto estrutural de nossos
agentes no JC. Um dos informantes das autoras explica o que é o visual básico,
correto, para sair à noite:
“Quem vai na night é o padrão clássico. Nego que malha, nego que é
da Zona Sul, Leblon, Gávea, Ipanema, nego que veste Osklen, Redley e
não sei quê. Vai a praia no Garcia, que tem galera, porra, tem a
disposição de pagar 40 contos na night. Básico, alem de ser diferente
para varias pessoas, é diferente em vários aspectos. Básico na roupa é a
calça, camisa gola V., camisa estilo, assim.” (Almeida & Tracy, 2003:
191).

Se para jovens de classes populares, como coloca Livio Sansone, o consumo é um


modo de acessar a cidadania e a inclusão social, que lhes é negada em diversos
outros planos, para estes jovens das elites cariocas, o consumo é modo de expressão
de uma identidade que não está descolada da consciência dos próprios privilégios e
do desejo de afirmar-se como participante desse mundo de privilégios, oposto ao
mundo dos pobres. Observamos então uma coincidência entre condições materiais de
existência, produção de subjetividade e reprodução de valores hegemônicos. A
estrutura social está representada, in-corporada e não encontra contradição com a
formação de tais sujeitos.
A participação nas redes sociais, a “zoação” e o consumo, são um modo de
emulação da posição de classe desses jovens, que, ao que parece, não é vivido sem
certa ansiedade e com uma preocupação constante de fazer a “coisa certa” em termos
de comportamento e estilo, de modo a reafirmar sempre sua participação no mundo
das pessoas (e coisas) com as quais esses jovens, que encarnam os valores
dominantes socialmente, se identificam.
“Entrevistador: Quando você diz todo mundo, quem é todo mundo?”.
Ana Paula: São os amigos, são pessoas bonitas, e a galera da
academia; sabe? É a galera do colégio ou da faculdade é a galera do
meio social, a galera que você conhece de vista, os amigos dos amigos
que também são interessantes, são da mesma ninhada sabe? Mesmo
status ali. Não é tribo, nem é classe social. É formação” (Almeida &
Tracy, 2003: 162).

Assim como os jovens da elite tem consciência de seu “meio social”, assim também
os jovens pobres, em virtude do acesso indiferenciado a exposição da mídia, aos
valores individualistas burgueses e a ideologia consumista. Como coloca Sansone:

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“Podemos imaginar uma sociedade em que as expectativas das diferentes camadas


em termos de qualidade de vida (...) tornam-se mais próxima, mas cuja estrutura de
oportunidades fica muito atrás e não consegue atender a esse aumento de
expetativas.”(Sansone, 2003: 247).
O acesso a mercadorias, como roupas “de marca” e CDs, parece central para a
estratégia de afirmação individual dos jovens, como nossos dados de campo no JC
nos indicam com muita intensidade. Esse acesso não seria possível, dadas as
condições atuais, por outro lado, sem a falsificação de mercadorias, os “genéricos” e
os camelôs com seus produtos do "Paraguai". Como o mesmo Sansone coloca, e os
agentes reiteram diversas vezes, sem esse mercado paralelo os jovens não teriam
acesso nem mesmo a essas mercadorias de qualidade inferior e os sinais visíveis de
sua subordinação seriam ainda mais evidentes.
“Em shopping é tudo assim. Um cinto que vê no camelô por dez reais do
bom, você vai na loja de sapato tá 39 reais. 29 reais. 19 reais . Vários
preços mas tudo acima do 10.” (Grupo Focal de Mulheres – 14 a 24
anos – 13/11/2004)

Diferentemente do que Sansone parece apontar, entretanto, entre os nossos


entrevistados, a ética do consumo parece conviver e mesmo pressupor, como já
sugerimos acima, a ética do trabalho como um valor central, não como um valor em si,
mas como um meio de acesso justamente ao mundo do consumo e à dignidade pessoal.
Trabalhar parece algo muito importante para esses jovens e mesmo definidor de seu
lugar no mundo e de suas chances de felicidade.

3. Corpo, Raça e Gênero


O sistema dos gêneros operantes em meios populares seria sob determinada perspectiva
mais tradicional, residindo essa tradicionalidade na cultura popular ou das classes
populares. Gostaríamos de tentar explicar essa diferença, que aparece como diferença
cultural irredutível, como determinado modo possível de engajamento em performances
e práticas de gênero em contextos estruturados socialmente, no qual as condições
materiais de existência têm aspecto determinante, o que já foi apontado, por exemplo,
por Monteiro (2002).

No que se refere, por exemplo, ao lazer, à sexualidade e também, de modo forte,


às rotinas do dia-a-dia, rapazes e garotas parecem habitar mundos coexistentes, mas
divididos no JC. O sistema dos gêneros determina com consistência universos distintos

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de sentido para homens e mulheres. Ainda que, de certo modo, meninos e meninas,
estejam expostos e atualizem determinados padrões socioculturais comuns, operando,
nesse sentido, expectativas semelhantes no que diz respeito, por exemplo, ao trabalho e
ao consumo, as chances de realização dessas aspirações parecem ser muito diferentes,
ou representadas como diferente para meninos e meninas. A expressão particular dos
idiomas de gênero e raça, necessariamente precisaria traduzir e guiar os agentes na
navegação pelo entorno social configurado pela pobreza e periferalidade.
Na atividade etnográfica em torno das performances objetivas de raça e gênero,
naquele contexto que pretendemos reconstituir como significativo, a atenção para com
as práticas reais concretas não pressupõe sua essencialização e fixação como correlatos
já dados e pensados de outras identidades/entidades interiores. O interesse descritivo na
raça e no gênero, para o nosso caso em questão, jovens de comunidades populares, é um
interesse pelas encenações práticas, construídas, desconstruídas e reconstruídas em
torno de movimentos de identificação e des-identificação8. Nossa atenção não está
dirigida, dessa forma, para objetos particulares discretos, mas para processos
contingentes, baseados na distância entre a significação e ação, ou talvez melhor, na
coexistência problemática, através da agência dos sujeitos, de sistemas discursivos
diversos: a raça, o gênero, o mercado, a violência, etc. Encenações abertas de
identidades e posições de identidade, realizadas nas práticas e amparadas
estruturalmente.
Nossas inquietações originárias, sobre o modo prático de reprodução social
desigual em ambientes de modernização “periférica” e os modos efetivos de interação
entre estruturas de raça e gênero, pareceram encontrar correspondência com as
perspectivas dos agentes sobre o “eu”(Pinho, 2006). De outro lado, os processos de
individualização social9 que fomos capazes de distinguir podem nos ajudar a
reposicionar questões sobre o escopo de universalização da modernidade, justamente
em sua instância articuladora mais problemática, o individualismo moderno como um
valor, atualizado num contexto de pobreza urbana na Região Metropolitana do Rio de
Janeiro.

8
José Esteban Muñoz qualifica como des-identificação o processo de identificação subversiva levada a efeito por performances
culturais, que produzem uma interface de identidade móvel, entre um modelo de identificação sancionado e hegemônico, e sua
atualização reconstruída como uma prática irônica e crítica. Para por em ação seu próprio senso de self, identidades minoritárias
necessitam identificar-se com diferentes campos sub-culturais, inclusive aqueles hegemônicos ou dominantes, definidos pela
supremacia branca, o machismo e a hetero-normatividade. Performances subalternas des-identificam-se como modos práticos de
produzir uma crítica in acto: “disidentification is the hermeneutical performance of decoding mass, high, or any other cultural field
from the perspective of a minoritary subject who is disempowered in any such representational hierarchy”(Muñoz, 1999:25).
9
Esses processos são tipicamente modernos e definem a “pessoa” na modernidade ocidental. Tais processos associam-se a
complexificação da divisão do trabalho, a expansão do mercado e aos ideais iluministas (Giddens, 1993; 2002).

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Ora, o que temos visto é que as distinções raciais e de gênero tem se prestado
exemplarmente a reproduzir do ponto de vista dos sujeitos desigualdades estruturais. E
mais, sexo e a raça se encontram no corpo, socialmente produzido e representado, e é no
corpo, como esse artefato sociológico e discursivo, que se articulam as estruturas
reprodutoras da sujeição. Não que a raça e o gênero, como práticas sociais, não sejam de
fato estruturais, no sentido de exteriores e pré-existentes ao desempenho de agentes
individuais, mas que essas práticas e discursos de raça e gênero, como dispositivos,
produzem determinada conexão forte entre a formação dos sujeitos e as estruturas para a
reprodução social desigual. Ou como já colocou Focault uma “tecnologia política do
corpo” (2004: 26). Para este autor, o corpo está mergulhado no campo político e sua
dominação está produzida como a sua mesma sujeição aos efeitos dispersos do poder,
que as classes ou setores dominantes exercem e que replicam seus efeitos por sobre o
corpo social de modo não necessariamente organizado ou intencional. Como se o poder
que se exerce, e que produz os corpos, fosse o efeito relativamente imotivado do
“conjunto de posições estratégicas” das classes dominantes.
O corpo não pré-existiria a política, o poder ou o discurso, mas, inversamente, o
produz submetido, circunscrito, disciplinado, “semiotizado”, pelos efeitos do discurso e
do poder.
“Trata-se de alguma maneira de uma microfísica do poder posta em jogo
pelos aparelhos e instituições, mas cujo campo de validade se coloca de
algum modo entre esses grandes funcionamentos e os próprios corpos em
sua materialidade e suas forças” (Focault, 2004: 26).

De uma perspectiva não-essencialista, poderíamos assim dizer que a raça e o gênero são
performados e se reproduzem socialmente como estruturas performativas, estruturadas e
estruturantes, ligadas à reprodução social desigual como a produção do social em
contextos contingentes, cenários híbridos, históricos e abertos para a transformação,
através dos protocolos práticos de interpretação e ação. Como coloca Balibar (2000),
por outro lado, a investigação sobre a formação da subjetivação é também uma
investigação sobre as formas de sujeição, a sujeição a si mesmo ou a “realização de sua
própria sujeição” como a constituição de si como subjetividade.

Sujeitos sociais subalternizados e, nesse nosso caso, periferalizado, o são


também e principalmente através dos modos sociais através dos quais seus corpos são
produzidos, interpretados, acessados, disciplinados e representados Em contextos

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materiais concretos. Brancos diante de negros, homens diante, de mulheres, negros


diante de negras, “bichas” diante de “homens”, e assim pos diante.

4. Sujeitos Periféricos e as Contradições da Modernidade


Diante da literatura sobre modernidade que consideramos anteriormente podemos dizer
que sujeitos sociais periféricos, como os que estamos considerando, são modernos.
Diante do modo de integração destes à economia e à rede de relações sociais
“desencaixadas” da sociedade global, podemos dizer que são periféricos e subordinados,
ou marginalizados. Fazem parte do mundo moderno e são ademais parte de nossa
modernidade realmente existente. As condições de vida e a paisagem sócio-cultural com
quais se defrontam são análogas para a grande maioria da população jovem no Brasil,
plenamente integrada do ponto de vista econômico e ideológico aos sistemas de
reprodução do capital. Extasiados, como todos nós, pela abstração suprema, a forma-
mercadoria e o efeito de espetacularização do mundo que produz e que torna o real
fantástico e fantasia realidade (Debord, 1997; Internacional Situacionista, 2002).
Imersos no ambiente ideológico da alta modernidade, não podem furtar-se a
sedução dos mercados e da mercadificação da vida cotidiana. Do mesmo modo, estão
coagidos pelo valor normativo da igualdade e do individualismo como ideologia. As
contradições que estão na base da reprodução desigual do sistema, são vividas por eles
de modo crucial. A modernidade em suas extremidades os põe diante de escolhas
impossíveis. Tudo o que o sistema lhes promete deve lhes negar para preservar o perfil
(racial e de gênero) de sua renovação. Tudo o que lhes nega e ao mesmo tempo
promete, os constitui como sujeitos. A raça, o gênero e a sexualidade, no ambiente
moderno de pobreza e exploração de classe, parecem ser os elementos operativos no
plano concreto da experiência dessa contradição subordinada. Definindo para cada
interseção contingente e estruturada, as formas particulares de opressão e de contradição
com os ideais de universalização e igualdade da modernidade.

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