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Capa

Educação
sem
Descriminação
Organizadora: Dircenara dos Santos Sanger

Viamão - 2006

Volume 1
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Secretaria Municipal de Educação
Prefeitura Municipal de Viamão
Grupo de Trabalho Anti-Racismo de Viamão,
Viamão - Rio Grande do Sul - Brasil

Sanger, Dircenara dos Santos

Educação sem discriminação: caminhando rumo a Lei


Federal 10.639/03 / Organizadora, Dircenara dos Santos
Sanger. – Viamão, RS: Prefeitura Municipal de Viamão,
Secretaria Municipal de Educação, Grupo de Trabalho
Anti-racismo da Prefeitura Municipal de Viamão, 2006.
80p.
Coleção Educação Sem Discriminação
ISBN -

1. Negros. 2. Lei Federal 10.639/03. 3. Política de ação


afirmativa. 4. Educação de Negros. Viamão. I. Secretaria
Municipal de Educação. II. Grupo de Trabalho Anti-ra-
cismo da Prefeitura Municipal de Viamão. III. Título

Prefeito:
Alex Sander Alves Boscaíni

Vice-prefeito:
Sérgio Antonio Kumpfer

Secretária Municipal de Educação:


Vera Lúcia de Oliveira

Diretor-geral de Educação:
Jussemar da Silva

Coordenador do Grupo de Trabalho Anit-Racismo:


Jader Luis Nogueira da Fontoura

REVISÃO: Beatriz Tavares


PROJETO GRÁFICO: Giss Comunicação
CAPA: Web9
ORGANIZADORA: Dircenara dos Santos Sanger
TIRAGEM DA EDIÇÃO: 1.500 exemplares

Este material utiliza papel 100% reciclado


Este livro resulta de textos elaborados
pelos representantes dos órgãos
governamentais e dos palestrantes do Curso
“EDUCAÇÃO SEM DISCRIMINAÇÃO”,
promovido pela Secretaria Municipal de Educação,
Grupo de Trabalho Anti-Racismo e Prefeitura de Viamão
nos dias 08 e 10 de agosto de 2005 com o propósito de
trabalhar a Lei Federal 10.639/03.
Desejamos ao leitor uma boa leitura e a
possibilidade de oferecer um caminho
rumo ao cumprimento da Lei.
Sumário
Introdução
Cláudia de Campos Soares 9
A EDUCAÇÃO e a importância do Grupo de
Trabalho Anti-Racismo na elaboração de políticas afirmativas
Jader Luis Nogueira da Fontoura
13
Educação para TODOS: políticas de ação afirmativa
Dircenara dos Santos Sanger
17
Educação Escolar e INCLUSÃO ÉTNICO-RACIAL
Véra Neusa Lopes 25
EDUCAÇÃO AFRO-Brasileira: Ação para uma Educação Inclusiva
Lúcia Regina Brito Pereira 33

A formação de professores para


DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL segundo a Lei 10.639/03
Vera Rosane Rodrigues de Oliveira
43
A história na visão dos EXCLUÍDOS
Jorge Euzébio Assumpção
51

NEGRITUDE, identidade e educação


Maria Juraci Assis
59

Interdisciplinaridade e a questão dos NEGROS na educação


Carmem Suzana Soares de Lima
67

Trabalhando a NEGRITUDE nas séries iniciais


Lair Tereza Vidal da Silva
73
8
INTRODUÇÃO

Cláudia de Campos Soares1

É urgente e necessária a capacitação dos professores para que


seja possível cumprir a Lei 10.639/03 que torna obrigatória a inclusão
do ensino da história da cultura afro-brasileira no currículo oficial da
Rede Municipal de Ensino.
Em consonância com essa Lei, a Secretaria Municipal de Educação
de Viamão em parceria com o Grupo de Trabalho Anti-Racismo tem
como objetivo fundamental à construção de um currículo em que as
questões étnico-raciais sejam inseridas no processo de ensino-aprendi-
zagem. Ao repensarmos nosso currículo, temos a clareza da importân-
cia de resgatarmos esta história afro-brasileira, não somente para nos-
sos alunos afrodescendentes como também para os demais alunos de
outras descendências étnicas. Pois no espaço escolar cotidiano, todas
as contribuições que o tornam vivo e pitoresco é resultante da cultura
familiar de gerações passadas agregadas, consciente ou inconsciente-
mente, em nossa formação.
Nesse sentido, desde 2003, a Secretaria de Educação e o Grupo
de Trabalho Anti-Racismo têm oportunizado encontros, textos e sema-
na escolar, viabilizando momentos de reflexão, estudo e busca de novas
ações. Este ano o encontro recebeu o título de Educação sem Discrimi-
nação, os palestrantes enfocaram em suas temáticas o dia-a-dia dos
professores e o comportamento que os mesmos apresentam junto ao
seu aluno negro. Tendo sido apresentado o filme “Vista minha pele”2
no qual se percebeu a sutileza com que a invisibilidade negra se instala
e torna-se comportamento natural dentro de uma sociedade onde exis-
te uma cultura étnica dominante.
1
Assessora Pedagógica da Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de Viamão e Pedagoga.
O filme é uma realização do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)
e dirigido por Joel Zito de Araújo.

9
Conscientização! Esta é a mola mestra na formação do perfil de
um professor que se compromete a combater o racismo, o preconceito
e a discriminação, os quais não produzem nenhum benefício para a
escola ou a sociedade. Ao adotarmos essa postura combativa, percebe-
mos que estamos lutando contra algo que, na maior parte das vezes,
encontra-se mascarado atrás de valores historicamente cultivados e
normas sociais devidamente estabelecidas. Elas influenciam o agir e o
pensar da etnia dominante (branca) e por ora a etnia dominada (ne-
gra).
Ainda hoje, muitos profissionais não compreendem a importân-
cia que caracteriza tais encontros, por acreditarem que, por não pro-
moverem ações discriminatórias, elas não existam. Caso elas ocorram,
pensam que quanto mais salientarmos, mais discriminação estaremos
gerando. Tal ideologia deve ser modificada, pois a sua permanência
significa não dar voz ao aluno negro e estigmatizar o preconceito em
todo o colegiado.
Nosso encontro recebeu o apoio, estudo e principalmente a expe-
riência dos seguintes profissionais: Profª Ms. Dircenara dos Santos Sanger;
que situou o público presente da caminhada legal que está ocorrendo
para tornar realidade o resgate da cultura da história afro-brasileira e
Africana com o devido respeito que merecem todas as etnias formado-
ras do povo brasileiro. Com a professora especialista Vera Néusa Lopes
foi destacada a importância do cumprimento das leis anteriormente
citadas e atitudes mais efetivas por parte dos órgãos competentes
quanto a não instalação da Lei 10.639 nos currículos escolares. A Pro-
fessora Ms. Lúcia Brito enfatizou a necessidade de ações mais concre-
tas e objetivas dos professores, na busca de inclusão do seu aluno
negro, desvelando a todos uma cultura rica e merecedora de admira-
ção e resgate. Junto a Professora Vera Rosane R. de Oliveira, fomos
convidados a refletir sobre a diversidade étnica racial com que nos
deparamos em sala, porém os currículos insistem em permanecer com
uma estrutura igualitária, não tendo como relevância as diferentes
construções históricas escritas por cada etnia e de suprema importân-
cia para o cidadão e cidadã que hoje caracteriza o perfil da nossa
cidade. O professor Ms. Euzébio Assumpção aproximou o imaginário da
real divisão política que constitui a África, sendo importantíssimo não
esquecer que a África é um continente formado por vários países numa
ampla diversidade cultural, fator este preponderante no êxito obtido
pelo sistema escravocrata. Através da Professora Especialista Maria Juraci

10
Assis, fomos subsidiados com ativida-
des e indicações bibliográficas, que po-
dem ser exploradas no Ensino Infantil
e Fundamental e como podem reper-
cutir positivamente na auto-estima do
aluno negro. Já a Professora Especia-
lista Carmem Suzana S. de Lima, in-
dicou como caminho à organização
de um currículo interdisciplinar em
que todos os professores tenham
preparo e sensibilidade de atuarem com
praticidade nas disciplinas que estão à frente, na reversão
desta sociedade que teme revelar a feia face do preconceito racial com
que foi forjada.
E, para encerrar o nosso encontro,
fomos sensibilizados pela Professora Lair
Vidal a entrar na magia dos mitos e
lendas africanas e a sua ligação com a
religião praticada pelos
afrodescendentes, que com toda pro-
priedade podem fazer parte da Hora
do Conto das nossas crianças, tendo
como destaque os personagens ne-
gros como protagonistas positivos
nestas histórias.
Nunca conseguimos atingir a todos, porém acreditamos que al-
gumas sementes sempre germinarão e com isto velhas práticas serão
questionadas, tendo como resultado fi-
nal professores mais comprometidos na
busca do respeito às diferenças, mas
que almejam igualdade de direitos a
todas etnias ora desvalorizadas.

(Fotos do curso ministrado


nos dias 08 e 10 de agosto de 2005
no Auditório Valter Graff)

11
12
A EDUCAÇÃO e a importância
do Grupo de Trabalho Anti-Racismo
na elaboração de políticas afirmativas

Jader Luis Nogueira da Fontoura1

O racismo em nosso País iniciou desde a chegada dos negros ao


Brasil durante a escravidão e, no passar dos anos, houve poucas mu-
danças. Esta afirmação pode ser constatada na atualidade quando se
criam barreiras para ascensão da comunidade negra, principalmente
na educação e no mercado de trabalho. Esse racismo contra os negros
vem primeiramente em forma de leis, não permitindo mesmo após a
escravidão seu acesso aos bancos escolares. Após, o esforço do Movi-
mento Negro Brasileiro que vem de décadas, o Estado Brasileiro assu-
me na III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Raci-
al, a Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em 2001,
Durban – África do Sul, a sua dívida com a população negra deste país,
e começa a elaborar políticas públicas que vêm ao encontro das reivin-
dicações da sociedade civil negra.
Hoje, através do Grupo de Trabalho Anti-Racismo (GTA), criado a
partir de militantes do movimento negro e regulamentado através do
decreto municipal 072/2003, o município vem mudando este quadro no
que diz respeito às políticas afirmativas para o povo negro, principal-
mente em relação ao mercado de trabalho, reparando séculos de ex-
clusão neste setor. Dessa forma, assegura para os 44% viamonenses
afro-brasileiros melhores oportunidades. Estas políticas começam a ser
implementadas a partir da elaboração de um Programa de Ações Afir-
mativas para Afro-Brasileiros pelo GTA, sendo entregue ao Executivo

1 Coordenador do Grupo de Trabalho Anti-Racismo


da Prefeitura Municipal de Viamão e Membro do Movimento Negro Unificado.

13
Municipal no ano 2003. O conteúdo deste programa reserva vagas atra-
vés de cotas em concursos, convênios em contratações de mão-de-
obra, estágios remunerados, contratações de cargos de confiança e
por tempo determinado na administração pública municipal e, ainda
orientarão critérios para incentivar as empresas privadas para a
contratação de funcionários negros. Esta iniciativa levou Viamão a ter
hoje leis municipais, encaminhadas pelo executivo e legislativo tornan-
do-se um avanço surpreendente e ganhando destaque nacional na su-
peração do racismo, tendo a lei 3.197/2003- que reserva 20% das va-
gas para estudantes afro-brasileiros, a lei 3.210/2004, que reserva 44%
das vagas nos cargos efetivos para afro-brasileiros e a lei 3217/2004
que reserva 44% das vagas nos cargos comissionados para afro-brasilei-
ros, como exemplo a ser seguido.
Com a criação da SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Pro-
moção da Igualdade Racial), em 2003, Viamão é convidado a participar
do Fórum Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Este
fórum é composto por governos estaduais e prefeituras de norte a sul
do país, onde no seu primeiro encontro foi priorizado 3 eixos para
atender as demandas do povo negro: Educação, Quilombolas e Mercado
de Trabalho. Dos três eixos foi priorizada a educação, tendo em vista a
discussão em torno da Lei 10.639, que estava tão voga na agenda do
Movimento Negro Nacional. Nesse sentido, criou-se uma expectativa
para o avanço das políticas raciais, principalmente nas escolas públicas
municipais, e a possibilidade da inserção da temática da História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana, bem como a Educação para as Rela-
ções Étnico-Raciais.
O papel fundamental da educação em relação à desconstrução do
racismo é levar a comunidade escolar à herança deixada e esquecida.
Para tanto, deve buscar nos quilombos e nos terreiros de matriz africa-
na, localizados no município, a história dos descendentes de africanos
mostrando sua verdadeira participação na construção da sociedade
viamonense. Quando a escola se propõe a fazer este trabalho, está
possibilitando as crianças negras a construírem uma identidade positiva
e as crianças de outras etnias a conhecerem uma história que na mai-
oria das vezes não chegam a ter contato. O conhecimento de distintas
culturas e histórias, certamente oportunizará às nossas crianças um
desenvolvimento mais saudável e também a construção de uma cidada-
nia com respeito às diferenças.
A educação tem sido um dos pilares que o GTA tem se debruçado.

14
Um outro ponto fundamental nas atividades desen-
volvidas pelo Grupo de Trabalho tem sido a Semana
da Consciência Negra do município de Viamão. A
partir de 2002, esta semana teve um novo for-
mato, fato ocorrido devido à criação do decreto
executivo 088/2002. O decreto regulamenta as
atividades e a programação a serem realizadas
na Semana Municipal de Consciência Negra.
Porém, o diferencial dado com base no decreto
é justamente a participação efetiva da socie-
dade civil na programação e a importância dos
eventos como forma de debate, reflexão e
conscientização dos problemas vividos pelos ne-
gros nas localidades e na sociedade em geral.
Com esta nova dinâmica abre-se para uma
discussão que se insere durante todo o ano nas
escolas municipais, em diferentes secretarias do
governo e nos mais diversos setores do tecido so-
cial.
E assim vamos caminhando para somar nas
relações entre os diferentes cidadãos viamonenses
que nos seus 263 anos de história e com uma
herança açoriana sempre teve uma população
negra marcante e, se comparada ao resto do
Estado, possui em sua grande maioria indivídu-
os de raça negra. Indivíduos estes que nunca
tiveram sua história devidamente contada ou pesquisada. Es-
tas iniciativas nos levam a estudar e criar novas perspectivas para a
comunidade negra de Viamão, seja por meio de leis, ou, por ações da
própria comunidade que irão beneficiar não somente a população afro,
mas o conjunto dos mais de 250 mil habitantes.

15
16
Educação para TODOS:
políticas de ação afirmativa

Dircenara dos Santos Sanger1

O artigo tem como foco apresentar uma discussão atual a respeito


do tema das ações afirmativas como políticas públicas. Essa temática
vem se inscrevendo na agenda nacional de maneira definitiva por meio,
no que tange os negros brasileiros: da Lei Federal 10.639/03, dos pro-
gramas de cotas nas Instituições de Ensino Superior, na reserva de
vagas para afro descendentes nos concursos públicos, nos NEAB’s (Nú-
cleos de Educação Afro-brasileiras), entre outros.
No entanto, precisamos ainda comprovar com as pesquisas reali-
zadas pelos órgãos oficiais o abismo social existente entre brancos e
negros na nação brasileira. A diferença é revelada através dos dados
ficando evidente quais os indivíduos que estão situados nos piores
percentuais na escola, no mercado de trabalho, nas condições básicas
de vida.
Com base nas pesquisas que apresentam a discrepância nos núme-
ros entre os brasileiros percebemos a necessidade de meios que possi-
bilitem erradicar ou minimizar as desigualdades existentes os cidadãos.
Para tanto, as políticas de ações afirmativas seria uma das possibilida-
des para mudar este quadro.
Mais especificamente, no aspecto educacional, a partir do ano de
2003 temos a Lei Federal assinada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva que traz a História e Cultura Afro-brasileira e Africana e as Rela-
ções Raciais como obrigatoriedade nas escolas brasileiras.
Para finalizar esta introdução, apresento os aspectos que serão

1
Doutoranda e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Especialista
em Gestão Educacional – UFSM, Pesquisadora do TRAMSE (Trabalho, Movimentos Sociais e
Educação) e Conselheira da Organização de Mulheres Negras – Maria Mulher.

17
abordados neste artigo: começo trazendo alguns percentuais das pes-
quisas na área educacional, após situo as políticas de ação afirmativa
no cenário mundial, continuando trago o conceito de ação afirmativa e
no término deste trabalho abordo a Lei 10.639 e as possibilidades que
esta oferece pela primeira vez na história da educação brasileira.

Conhecendo a realidade dos dados


O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra, em
números, uma retrospectiva feita na década de 90, com a categoria
cor no Brasil. A população brasileira compõe-se de 54% de brancos e
45% de não brancos, ou negros (somando-se pretos e pardos), (Brasil,
Ministério do Planejamento e Orçamento, 2000).
Cabe ressaltar que houve uma mudança significativa nesta afirma-
ção, visto que os indivíduos ao se declararem segundo a sua cor ou raça
têm demonstrado um outro olhar, de 1993 a 2003 nas pesquisas reali-
zadas. Conforme consta na reportagem intitulada “Síntese dos indica-
dores sociais traz um retrato do Brasil em 2003” no site do IBGE: A
população que se declarara branca sofreu redução de 2%, passando de
54,3% para 52,1%, enquanto os percentuais de pretos (de 5,1% para
5,9%) e pardos (de 40% para 41,4%) cresceram. No Nordeste, a partici-
pação de pretos passou de 5,2% para 6,4% no período. No Sul, essa
proporção passou de 3% para 3,7% e, no Centro-Oeste, de 2,8% para
4,5%. Os pardos também tiveram aumento: no Sudeste, sua propor-
ção, que era de 27,7% em 1993, subiu para 30,3%; no Sul, de 12,1%
para 13,4%; e no Centro-Oeste, de 48,9% para 51,8%.
Esses dados apontam o aumento do número de negros se
autodeclarando como tal, e mais precisamente na região sul do país o
quadro fica assim constituído: 3,7% para pretos e 13,4% para pardos,
totalizando 17,1% de negros ou não brancos.
Com base nos dados nacionais, destaco a área educacional como
foco do estudo. Quando consideramos a taxa de analfabetismo, a dos
negros é de 16,9% e a dos brancos é de apenas 7,1%.
Segundo Censo de 2000, dados sobre nível de instrução por raça
revelam: 18% dos pretos e 14,5% dos pardos estudaram por menos de
um ano na vida contra 7,5% dos brancos e 6% dos amarelos. Entre
aqueles que estudaram mais de 11 anos, os brancos são 25% e os
amarelos 47%, os pretos apenas 11% e os pardos 12%.
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

18
Teixeira (INEP) destaca no seu Informativo nº 88 de 11 de maio de
2005 a pesquisa realizada pelo Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, 2003) / IBGE menciona que: pretos e pardos, na faixa etária
de 15 a 17 anos, que não concluíram o ensino fundamental somam
63,6%, enquanto os brancos e amarelos na mesma faixa são 37,8%. Na
faixa seguinte – de 18 a 24 anos – na mesma situação de desvantagem
na escolarização: há 44,3% de pretos e pardos contra 23,1% de brancos
e amarelos.
Partindo do pressuposto de que a população de 15 anos ou mais
que não concluiu o ensino fundamental é predominantemente pobre, é
razoável supor que pretos e pardos pobres estão em pior situação do
que os brancos e amarelos pobres. Nesse ponto do texto cumpre desta-
car os percentuais que revelam a questão não sendo simplesmente de
classe social, mas também de cunho racial: Em 1999, entre as famílias
brancas pobres, vemos que 21% das crianças de 7 anos não freqüentam
a escola, enquanto que esse valor é de 30,5% entre as famílias negras
pobres;
Analisando a população brasileira como um todo, constatamos que
apenas 20,4% dos alunos de 15 anos conseguem finalizar este nível de
ensino. Quando consideramos essas informações sob o recorte racial
observamos que 29,2% dos brancos completam o ensino fundamental e
apenas 11,5% dos negros chegam a este resultado. Após essa breve
contextualização de dados estatísticos confirmando a desigualdade en-
tre brancos e negros na educação e na sociedade de maneira geral,
passo a discutir as políticas de ação afirmativa como uma forma de
superação deste quadro.

Política de ação afirmativa algumas referências


Esta parte do texto situa os primórdios da ação afirmativa como
sendo uma política já implantada em outros países e, no caso brasilei-
ro, estamos começando a reclamar esta possibilidade. Em 1963 nos
Estados Unidos, no governo de John Kennedy, já existiam políticas de
ação afirmativa nas universidades.
No Brasil tivemos a Lei do Boi de 1968 que dizia: “Os estabeleci-
mentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de agricultura
e veterinária, mantidas pela União, reservarão anualmente, de prefe-
rência, cinqüenta por cento de suas vagas a candidatos agricultores ou
filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas
famílias na zona rural, e trinta por cento a agricultores ou filhos des-
19
tes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas
que não possuam estabelecimentos de ensino médio” (Gomes, 2003, p.
17).
Temos também as leis que garantem uma cota mínima de 30% de
mulheres entre os candidatos de cada partido político para eleições em
qualquer nível da federação. Verificam-se políticas de ação de afirma-
tiva nos concursos públicos: no município de Porto Alegre, Viamão,
Bagé, Caxias do Sul (esses são do Estado do Rio Grande do Sul), entre
outros no restante do país. Existem quatorze universidades públicas
que implementaram cotas até o momento, são elas: Universidade de
Brasília, Universidade Federal do Paraná, Universidade Federal de São
Paulo, Universidade Federal de Juiz de Fora, Universidade Federal de
Alagoas, Universidade Federal da Bahia, Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro,
Universidade Estadual da Bahia, Universidade Estadual de Mato Grosso
do Sul, Universidade Estadual Amazonas, Universidade Estadual de Lon-
drina, Universidade Estadual de Mato Grosso, Universidade Estadual
Montes Claros.

Conceituando as políticas de ações afirmativas


Dando continuidade a respeito das discussões sobre ações afirma-
tivas, não podemos perder de vista os conceitos que são atribuídos a
essas políticas. Nos casos citados acima se pode entender como políti-
cas de ação afirmativa porque são emanadas do poder estatal. Quero
enfatizar dois conceitos que se complementam e que caminham na
mesma linha. Guimarães (1999, p. 153) define a ação afirmativa como
“programas voltados para acesso de membros de minorias raciais, ét-
nicas, sexuais ou religiosas a escolas, contratos públicos e postos de
trabalho”.
Outro conceito que converge neste olhar ajudando-nos a entender
as ações afirmativas, conforme Joaquim B. Gomes (2005, p. 53): po-
dem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de
caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas
ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e
de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos pre-
sentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a
concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens funda-
mentais como educação e o emprego.
Com base nos conceitos entende-se a Lei Federal 10.639/03, por
20
meio da obrigatoriedade da temática de História e Cultura Afro-Brasi-
leira e Africana, como uma política em que as escolas tanto públicas
quanto privadas devem fazer cumprir as letras da lei. Esta Lei é fruto
das lutas há tempos reclamadas pelo Movimento Negro Brasileiro para
que a história do povo negro na formação e construção da nação viesse
a ser estudada pela comunidade escolar.

Novos horizontes –
política de ação afirmativa através da Lei 10.639/03
Desde o dia 9 janeiro de 2003 foi promulgada a Lei Federal 10.639
que altera a Lei 9.394 de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira”.
A lei 9.394 passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-
A e 79-B:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste
artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos
negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial
nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.
Art. 79-A. (Vetado);
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como
“Dia Nacional da Consciência Negra”.
Depois de feita a explicitação do que diz a lei, destaco rapidamen-
te ainda o artigo 79-A que foi vetado e que tratava em seu conteúdo de
um item fundamental para que a lei fosse realmente apropriada pelo
corpo docente das escolas: a formação de professores. Nesse sentido,
gostaria apenas de fazer uma reflexão que merece talvez, um outro
artigo, porque justamente onde deveria haver o comprometimento
das instâncias governamentais na formação dos professores com rela-
ção à lei o artigo é vetado?

21
Seguindo na legislação, o Conselho Nacional de Educação (CNE/CP
Resolução 1/2004) institui:
Art.1º A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacio-
nais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, a serem observadas pelas
instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educa-
ção Brasileira e, em especial, por instituições que desenvolvem progra-
mas de formação inicial e continuidade de professores.
Com isso, as secretarias de educação e os cursos de formação de
professores estão comprometidos a abordarem o assunto de maneira
responsável para que a lei seja adequadamente implementada nas es-
colas de todo o país. A educadora Jeruse Romão em entrevista ao
Jornal Irohin destaca seis desafios para implementação da Lei. Um
deles diz respeito justamente à formação de professores e sua preocu-
pação com o assunto: “Estamos escrevendo um capítulo sem preceden-
tes na história da educação do país. Um capítulo em que os excluídos
retornam à escola para ensinar/educar o sistema que os exclui. [...]
recomendo que as organizações negras brasileiras com excelência no
tema de educação se conveniem com os sistemas de educação formais
e certifiquem estes [...]”.
Dessa forma, não podemos tratar esta Lei como um curso/ofici-
na/seminário de tantas horas e depois ser esquecida pelas escolas. A
Lei deve ser abordada na escola durante todo o ano, e não somente em
novembro (mês que reflete o Dia Nacional da Consciência Negra). Deve
estar incluída no currículo, no projeto político-pedagógico, nas reuni-
ões de formação de professores e outros espaços que for possível o
tema ser discutido, inclusive na sala de aula pensando numa educação
para todos, que não exclua o ALUNO NEGRO.

Referências Bibliográficas:
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la: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus, 1998.
BENTO, Maria Aparecida Silva. Cidadania em preto e branco: dis-
cutindo as relações raciais. 3ª edição. São Paulo: Editora Ática, 2003.
BRASIL, Ministério do Planejamento e Orçamento, 2000. IBGE. Pes-
quisa Nacional por Domicílio – PNAD 1999; Síntese dos Indicadores Soci-
ais (www.ibge.gov.br).
Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei Federal nº
10.639/03. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação
22
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GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirma-
tiva pelo direito constitucional brasileiro. In: SANTOS, Sales Augusto dos
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mativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de
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GUIMARÃES, Antonio Sérgio A. Racismo e anti-racismo no Brasil.
São Paulo: Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo: Fundação
de Apoio à Universidade de São Paulo; Ed. 34, 1999.
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. Para entender o
negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos.
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2004. 2 vol. (Coleção Viver, Aprender – Educação de Jovens e Adultos,
2º segmento do Ensino Fundamental).
ROCHA, Rosa Margarida de Carvalho. Almanaque Pedagógico Afro-
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atualidade e de desafios para o futuro. In: NUNES, Margarete Fagundes
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Novo Hamburgo: Feevale, 2005.

23
24
Educação Escolar
e INCLUSÃO ÉTNICO-RACIAL
Aspectos a considerar no cumprimento
da legislação que trata da questão afro-brasileira

Véra Neusa Lopes1

O Brasil é, sabidamente, um país multirracial e pluriétnico. Em


território brasileiro se encontram, entre outros, indígenas com suas
inúmeras etnias, descendentes de portugueses, franceses, italianos,
alemães, poloneses, japoneses, chineses, aqui nascidos, bem como es-
trangeiros que escolheram o Brasil como segunda pátria. E aqui vive-
ram e ainda vivem brasileiros descendentes de africanos trazidos na
condição de escravizados.
Os brancos sempre mantiveram-se como dominadores, assumin-
do-se como superiores étnica e culturalmente aos povos considerados
primitivos. A hegemonia sobre os não-brancos tem provocado muitos
problemas, relacionados às questões de democracia e cidadania e de-
correntes de situações de racismo, preconceito e discriminação que
são encontradas na sociedade.
Partindo do fato de que no Brasil são exercitadas práticas racistas,
construir uma nação livre, soberana e solidária, onde o exercício da
cidadania não se constitua privilégio de uns poucos mas direito de to-
dos, deve ser a grande meta a ser buscada por todos os segmentos
sociais brasileiros. As pessoas não herdam geneticamente idéias de
racismo, sentimentos de preconceito e modos de exercitar a discrimi-

1
Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais. Especialista em Planejamento da Educação. Professora
e Técnico em Educação do Sistema Estadual de Ensino/ RS. Integrante do Coletivo Estadual de
Educadores Negros APNs/RS. Membro Efetivo do GT de Acompanhamento e Avaliação da Implanta-
ção do Parecer CNE/CP/ 003/ 2004 e da Resolução CNE/ CP 001/ 2004. Membro do GT de Implan-
tação e Implementação do Programa de Educação Anti-Racista da PROREXT/ UFRGS.

25
nação. Elas se tornam racistas (com repertórios e práticas racistas),
preconceituosas e discriminadoras no convívio social, em diferentes
grupos e, de modo muito particular na família e, também na escola. As
pessoas não se dizem racistas, mas a observação de diferentes situa-
ções de vida nos indica a existência de práticas racistas no quotidiano
dos brasileiros.
Trabalhando a partir de valores euroetnocêntricos, o sistema de
educação brasileiro leva crianças e adolescentes afro-brasileiros e indí-
genas a se sentirem inferiores e a serem considerados como tal pelos
demais, ao conviverem com imagens estereotipadas, em confrontos
diários com manifestações racistas, que causam danos psicológicos e
morais, muitas vezes irreparáveis, bloqueando o desenvolvimento da
identidade pessoal, étnica e cultural dos mesmos. Tais práticas muito
contribuem para que os marginalizados (negros e indígenas), entre
outros, tenham dificuldade de acesso a condições dignas de sobrevivên-
cia como cidadãos.
O desconhecimento da cultura e da história dos afro-brasileiros
escamoteadas da historiografia oficial, muito contribui para a não-
valorização de parcela expressiva da população. O brasileiro, de modo
geral, sabe muito pouco a respeito da contribuição do negro e do
indígena para o desenvolvimento da nossa sociedade. No caso dos afro-
brasileiros, os conhecimentos costumam ir da chegada do africano es-
cravizado ao Brasil, na condição de mercadoria, descalço, semi-nu,
selvagem até 13 de maio de 1888, tida como a data da redenção, da
libertação do negro escravizado, quando na verdade foi oficializada,
então, a exclusão: sem-teto, sem-terra, sem-trabalho e sem direito à
educação.
Segundo Santos, no âmbito da escola e das práticas escolares
formais se impõem “goela abaixo” os valores branco-ocidentais como
“valores universais” a serem incorporados, assimilados, cumpridos e
não questionados. Os outros valores são apresentados, no mínimo,
como pertencentes a alguma pré-história da “evolução branco-oci-
dental”, portanto “exóticos e primitivos”.

A lei e as normas decorrentes


A Lei Federal 10.639 / 03 alterou as diretrizes e bases da educação
nacional (Lei 9.394/1996), ao incluir obrigatoriamente a temática afro-
brasileira no que-fazer pedagógico, dando ao negro, de modo especial,
um lugar de destaque como sujeito na construção da sociedade brasi-
26
leira. Essa inclusão exige da educação um salto de qualidade. Modifi-
cou-se a lei, foi um ganho político. Agora, é necessário transformar
essa alteração em ganho pedagógico. Precisam ser atingidos os siste-
mas de ensino em todos os seus níveis e instâncias administrativas.
Para seu pleno entendimento e cumprimento, precisa a Lei 10.639 ser
lida devidamente contextualizada, buscando-se compreender:
a) os entrelaçamentos dos artigos 26-A e 79-B com dispositivos da
Constituição Federal, Estatuto da Criança e do Adolescente, outros
artigos da própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e do
Plano Nacional de Educação;
b) o conteúdo específico do Parecer CNE/CP/ 004/ 03, que define
princípios, estabelece determinantes, indica focos, propõe meta e
objetivos.
Neste momento, destacamos:

• Princípios
* Consciência política e histórica da diversidade, destacando,
entre outros aspectos: a igualdade básica entre as pessoas, como su-
jeitos de direitos; a diversidade étnico-racial dos grupos formadores da
sociedade; a história dos povos africanos e a cultura afro-brasileira; a
necessidade de superação das diferenças, injustiças e desqualificações
com que o negro, o indígena e as classes populares são tratados; a
necessidade de desconstrução de idéias e de comportamentos alimen-
tados pela ideologia do branqueamento.
* Fortalecimento de identidades e de direitos, orientando, entre
outros, para: o processo de afirmação de identidades, de historicidade
negada ou distorcida; a necessidade de romper com imagens negativas
referentes a negros e povos indígenas.
* Ações educativas de combate ao racismo e a discriminações,
encaminhando, por exemplo, para: a crítica de representações de ne-
gros e de outras minorias em livros didáticos e outros materiais; a
valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, como marcas da
cultura de raiz africana ao lado da escrita e da leitura; a construção de
projeto político-pedagógico e planos curriculares que contemplem a
diversidade étnico-racial.

• Objetivos
* Divulgar e produzir reconhecimentos, bem como atitudes, postu-
ras e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial,

27
tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que
garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identi-
dade, na busca da consolidação da democracia brasileira.
* Reconhecer e valorizar a identidade, a história e a cultura dos
afro-brasileiros, bem como garantir o reconhecimento e igualdade de
valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indíge-
nas, européias, asiáticas.

Compromissos da educação escolar


A escola brasileira encontra-se, assim, diante de um grande desa-
fio: garantir educação de qualidade a todos o brasileiros, consideran-
do, obrigatoriamente, dentre os quesitos de qualidade a educação das
relações étnico-raciais e os conteúdos de história e cultura afro-brasi-
leiras e africanas. Isto significa, na Educação Básica, criar condições
favoráveis para que todas as crianças e adolescentes sejam respeitadas
em suas especificidades e histórias de vida e venham a obter êxito em
seus estudos escolares. Essa obrigatoriedade volta-se, especialmente,
para negros e indígenas que, dentre os grupos marginalizados e
desconsiderados socialmente, são os mais prejudicados por um modelo
de escola que tem no aluno branco os seus parâmetros de qualidade.
Escola de qualidade deve constituir-se em espaço de inclusão, onde
são reconhecidas e combatidas as relações preconceituosas e
discriminadoras, além de outras formas de exclusão; onde deve ocor-
rer a apropriação, por parte de todos os integrantes do grupo social,
dos saberes dos até então marginalizados, o que significa a
desconstrução das hierarquias entre as culturas, os povos, as nações e
as pessoas; em que se afirma o caráter pluriétnico da sociedade brasi-
leira e se reconhece a diversidade cultural da população, tendo por
meta: promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio
da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações
étnico-sociais positivas, rumo à construção de nação democrática (Pa-
recer CNE/CP/ 003/ 04); onde se resgatam a história e cultura afro-
brasileiras e africanas e se pratica a educação das relações étnico-
raciais, como formas de contrapor à cosmovisão branco-ocidental
(oligárquica, patriarcal, individualista e contratualista) a visão de mun-
do afro-brasileira e ameríndia (comunitária, não-patriarcal, coletiva e
não-contratualista), conforme afirma Santos.
Essa escola levará em conta, entre outros aspectos:
a) o contexto, que dá sentido às aprendizagens e que, segundo
28
Vayer, é o conjunto de circunstâncias em que se inserem um feito,
uma atividade, um comportamento. Santos considera que ainda que a
escola sozinha não seja capaz de reverter anos de desqualificação da
população negra e supervalorização da população branca, a longo
prazo ela pode desempenhar um importante papel na construção de
uma nova cultura, de novas relações que vão além do respeito ás
diferenças. Possibilitando que as vozes possam ecoar no espaço esco-
lar, chegar-se-á à consciência de que é na diversidade que se constrói
algo novo;
b) os acontecimentos particulares e projetos que se expressam no
meio ambiente, ou seja, nos dados materiais e nas pessoas que inte-
gram os diferentes segmentos que compõem a estrutura da escola;
c) a proposta pedagógica, que deve considerar os parâmetros ou
referenciais curriculares, explicitando as áreas de conhecimentos e te-
mas transversais que abordarão a temática, considerando os dois focos
da inclusão: a educação das relações étnico-raciais e o ensino da histó-
ria e cultura afro-brasileiras e africanas;
d) as práticas pedagógicas construídas a partir do conhecimento
local , abrindo-se a escola para ver e ouvir a comunidade e dialogar
com ela;
e) o espaço escolar como um ambiente educativo em que se res-
peita o outro, em que se dá visibilidade a todos, combatem-se as
discriminações, busca-se eliminar os preconceitos e são desfeitos os
estereótipos, em que se estimula auto-estima e auto-imagem positi-
va, em que se promove a igualdade racial, pelo combate às diferentes
formas de exclusão;
f) o livro didático e outros materiais didático-pedagógicos, tendo
um olhar crítico sobre os textos, as ilustrações, os contextos, os con-
teúdos que perpassam subliminarmente ou não, os preconceitos e este-
reótipos, de modo a desconstruir situações de racismo e promover a
igualdade racial. Segundo Silva houve sedimentação de papéis sociais
subalternos e reificação de estereótipos racistas, protagonizados pe-
las personagens negras. Essas práticas afetaram negros/as e brancos/
as em sua formação, destruindo a auto-imagem do primeiro e cristali-
zando, no segundo, imagens negativas e inferiorizadas da pessoa ne-
gra, empobrecendo em ambos o relacionamento humano e limitando
as possibilidades exploratórias da diversidade étnico-racial;
g) o fato de que todas as pessoas que compõem a comunidade
escolar são sujeitos aprendentes em busca de formação, de maior

29
conhecimento sobre relações étnico-raciais e história e cultura afro-
brasileiras e africanas, fazendo disso, condição basilar para a promo-
ção da igualdade racial.
Na escola de qualidade de que estamos falando, as crianças e
adolescentes, conforme afirma Berman, além de aprenderem a relaci-
onar-se com aqueles com os quais se estabelece bastante facilmente
uma afinidade, as crianças e os jovens precisam examinar as percep-
ções que têm das pessoas diferentes delas, se desejam incluir uma
gama de diferenças entre aqueles por quem se interessam. À medida
que aprendem a ver com olhos penetrantes os motivos pelos quais
gostam de certas pessoas e não gostam de outras, as crianças podem
descobrir maneiras de interessar-se por pessoas que lhes pareçam di-
ferentes.
Nessa escola a idéia de identidade cultural, conforme entende
Hernandez é sempre mais complexa do que seu reducionismo vincula-
do a uma nação, um território, uma religião, uma língua ou uma
etnia. Essa instituição é, assim, geradora de cultura que advém do
encontro dos diversos e do partilhamento dos saberes.
Sob a ótica das relações étnico-raciais, é preciso repensar a esco-
la, para que alcance condições de excelência, levando em conta, ainda
conforme o mesmo autor, uma perspectiva relacional do saber que
supõe ensinar a:
a) Questionar toda forma de pensamento único, o que significa
introduzir a suspeita sobre as representações da realidade baseada em
verdades estáveis e objetivas;
b) Reconhecer, diante de qualquer fenômeno que se estude, as
concepções que o regem, as versões da realidade que representam e as
representações que tratam de influir em e desde elas;
c) Incorporar uma visão crítica que leve a perguntar-se a quem
beneficia essa visão dos fatos e a quem marginaliza...
d) Introduzir, diante do estudo de qualquer fenômeno, opiniões
diferenciadas, de maneira que o aluno comprove que a realidade se
constrói desde pontos de vista diferentes, e que alguns se impõem
frente a outros nem sempre pela força dos argumentos, e sim pelo
poder de quem os estabelece.

30
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Coleção Harward, v. 10. São Paulo: Nova Cultural, 1986.
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Racismo: mais uma Tarefa Essencial. In: CAVALLEIRO, Eliane (Org.).
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nº 10.639 / 03. Brasília: Ministério da Educação. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversi-
dade, 2003.

31
32
EDUCAÇÃO AFRO-Brasileira:
Ação para uma Educação Inclusiva

Lúcia Regina Brito Pereira1

Boa tarde!
Este curso além de atender à Lei 10.639 é uma das grandes reivin-
dicações do Movimento Social Negro brasileiro, quando trata da intro-
dução das africanidades brasileiras no currículo escolar. No dizer de
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva é,
“o que se refere às raízes da cultura brasileira que têm origem
africana nos modos de ser, de viver, de organizar suas lutas, próprios
dos negros brasileiros, e de outro lado às marcas da cultura africana
que, independente da origem étnica de cada brasileiro, fazem parte
do seu dia-a-dia2 ”.
E vem, em parte, suprir à necessidade de uma formação continu-
ada e inicial de trabalhadoras/es em educação com base em novos
parâmetros preconizados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), Lei nº 9.394/96, alterada pela inserção do artigo 26-A,
referido na Lei 10.639/03, da Resolução 1/2004 e do Parecer nº 003/
2004, do Conselho Nacional de Educação, que institui as Diretrizes
Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileiras e Africanas a serem executados pelos
estabelecimentos de ensino nos diferentes níveis e modalidades, ca-
bendo aos sistemas de ensino, no âmbito de sua jurisdição, orientar e
promover a formação de professores e supervisionar o cumprimento
1
Doutoranda no PPG em História – PUCRS, Bolsista do Programa Internacional de Bolsas de
Pós-Graduação da Fundação Ford, Integrante de Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras,
Coordenadora do GT Negros: História, Cultura e Sociedade.
2
SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves e. “Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras”. In
MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. 2ª ed. Brasília: Ministério da
Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001.

33
das Diretrizes3 . São estas as bases que norteiam o desenvolvimento do
presente texto e visam contribuir para uma educação, uma sociedade
inclusiva e sem discriminações de qualquer ordem.
O tema que ora discutimos é complexo, envolve significativas di-
mensões, sejam elas históricas, psicológicas, culturais, sociais, religio-
sas, etc. Tentaremos dentro deste universo pinçar alguns elementos
que nos parecem significativos a fim de que possamos contribuir para
novos olhares e novas ações no contexto escolar.
Iniciaremos nossa exposição a partir de alguns elementos históri-
cos e conceituações de termos que contextualizam o racismo, a discri-
minação racial e a invisibilidade, consciente ou não, dimensões que
contribuíram e contribuem para o silenciamento, a reprodução do status
quo, e a conseqüente exclusão das educandas e educandos negros dos
bancos escolares.
Desta forma é importante que conheçamos alguns conceitos que
nos acompanham no dia-a-dia, mas que, na verdade, desconhecemos o
seu real significado. O preconceito se caracteriza pelo conceito ou opi-
nião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conheci-
mento dos fatos; é uma idéia pré-concebida, julgamento ou opinião
formada sem levar em conta o fato que os conteste. Assim como, o
preconceito, o estereótipo está no campo das idéias, isto é, é um
processo interno subjetivo e geram, por extensão, suspeita, intolerân-
cia, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos ou religiões.
No campo das ações está a discriminação que se caracteriza pelo
ato ou efeito de discriminar, pela faculdade de distinguir, de discernir,
de separar. No sentido pejorativo causa a apartação e a segregação
racial.
Igualmente, nesta dimensão está o racismo que caracteriza-se pela
doutrina que sustenta a superioridade de certas raças e generaliza-
ções, estigmatizando qualquer indivíduo de determinado grupo sem
levar em conta as variações entre seus membros.
A raça, biologicamente falando, constitui-se em um conjunto de
indivíduos cujos caracteres somáticos, são semelhantes e são transmi-
tidos por hereditariedade, embora variem de indivíduo para indivíduo,
tais como cor da pele, a conformação do rosto e do crânio, o tipo de
cabelo, ou o conjunto de ascendentes ou descendentes de uma família,
de um povo ou de uma tribo, que se originam de um tronco comum.
3
Eliane dos Santos Cavalleiro, Coordenadora-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional/MEC/
SECAD/CGDIE, mimeo, s/d.

34
Destacamos aqui que o nosso entendimento da idéia de raça diz
respeito a um conceito sociológico criado historicamente para situar
determinadas populações em situações de privilégio ou exclusão.
Outro aspecto importante a ser lembrado diz respeito à
implementação de políticas públicas. Para que tal procedimento se con-
cretize de fato são necessários dados da realidade, caso contrário, a
política pública não é implementada. Daí a necessidade de enfatizarmos
os números da evasão escolar e insistirmos para que os dados por cor
sejam incluídos em todos os procedimentos oficiais das três instâncias
governamentais. Outro ponto a destacar refere-se ao fato de que ao
falarmos em discriminação não estamos nos referindo a uma pessoa e,
sim ao coletivo de uma população que, historicamente vivencia as ar-
madilhas do sistema excludente da sociedade brasileira.
Nesta ótica, estão as ações afirmativas que se originaram a partir
da implementação nos Estados Unidos no final dos anos 50 do século XX
da Lei dos Direitos Civis. A expressão Ação Afirmativa foi criada em
1963 pelo presidente Jonh Kenedy significando: “um conjunto de polí-
ticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou volun-
tário, concebidas com vistas ao combate da discriminação de raça,
gênero, bem como, para corrigir os efeitos presentes da discrimina-
ção praticada no passado”.
Os objetivos das Ações Afirmativas são: induzir transformações de
ordem cultural pedagógica e psicológica, visando tirar do imaginário
coletivo a idéia de supremacia racial versus subordinação racial e/ou de
gênero; coibir a discriminação do presente; eliminar os efeitos persis-
tentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do
passado, que tendam a se perpetuar, que se revelam na discriminação
estrutural; criar as chamadas personalidades emblemáticas para servi-
rem de exemplo às gerações mais jovens através da educação (Gomes:
2001, 6).
Posto isto, vamos retomar um pouco da história do sistema educa-
cional implementado no Brasil desde a sua ocupação. No período coloni-
al a educação estava a cargo dos jesuítas, que estavam imbuídos em
converter e defender os nativos da terra. Quanto aos escravizados
estes estavam fora do sistema educacional regular. Em 1835 foi legal-
mente determinada a proibição dos mesmos de freqüentarem a escola.
Na época do império esta sistemática persistiu, sendo alterada a partir
dos debates relativos à abolição no Brasil.
O autor Marcus Vinícius discorre sobre a posição das elites brasilei-

35
ras em relação à educação, visto que as práticas educacionais “eram
realizadas no espaço privado e em meio ao cotidiano da sociedade
escravista, tendo como objetivo formar trabalhadores adaptados á
escravidão”4 . A partir daí os debates se darão na direção de práticas
educativas mais próximas daquilo que se conhece hoje como educação
moderna, isto é, a escolarização realizada fora do espaço privado, em
espaço público, na escola propriamente dita. Neste contexto, pela pri-
meira vez, a educação de escravizados e seus descendentes foi defini-
da como uma atribuição legal no sentido da inclusão ao sistema oficial
de ensino.
Os discursos parlamentares passaram, então, a incluir as crianças
negras. A Lei 2040 ou Lei do Ventre Livre, de 28/09/1871, estabelecia
que às crianças negras ao saírem da tutela do senhor deveriam ir para
uma instituição. Instituição esta criada com o fim de ensinar os rudi-
mentos agrícolas e noções básicas de ler, escrever e contar.
Aqui vale destacar as dimensões entre educação privada e a públi-
ca. Àquela estava atrelada à exploração do trabalho e essa última,
além da utilização das crianças na prestação de serviços deveria dar um
mínimo de escolarização. Sintetizando,
“A educação foi valorizada como instrumento capaz de construir
o perfil ideal para negros na sociedade livre, garantindo que eles
continuassem nos postos de trabalho mais baixos do processo produti-
vo e que não subverteriam a hierarquia racial construída ao longo da
escravidão, pois esta hierarquia era fundamental para um País que
objetivava manter vivas as suas origens européias...” (Fonseca: 2002,
59).
O que podemos extrair do processo de discussão sobre a educação
dos filhos livres de mulher escravizada e concordando com as conclu-
sões de Fonseca é que: a) a maioria das crianças foram criadas e
educadas pelos senhores de suas mães; b) ao se aproximar à abolição a
educação dos ingênuos deixou de ser uma preocupação em relação à
superação da escravidão para transformar-se em uma questão relativa
à infância pobre e desamparada no Brasil.
Exemplo da pouca eficiência desta discussão foi o episódio A Revol-
ta da Chibata, ocorrida em 1910 no Rio de Janeiro e liderada pelo
gaúcho de Encruzilhada do Sul, João Cândido que se rebelou contra os
maus tratos infringidos aos marinheiros na Marinha. Portanto, vinte e
4
FONSECA, Marcus Vinícius. A Educação dos negros: uma nova face do processo de abolição da
escravidão no Brasil. Bragança Paulista: EDUSF, 2002.

36
dois anos após a abolição numa instituição pública ainda predominavam
a pedagogia do castigo, herança triste do período escravista.
A educação tomará novos contornos a partir da Revolução de 30
onde se estabelece o processo de higienização da educação, isto é,
cria-se o Ministério da Educação e Saúde que sistematiza a escola com
as características semelhantes as atuais.
Quanto a questões pedagógicas e de funcionamento destacamos
aspectos que permanecem e se reproduzem na escola atual. Entre eles,
a ausência de memórias coletivas restringe à educação em um pólo
eurocêntrico onde as diferentes figuras de linguagem alojam o precon-
ceito e atitudes discriminatórias que permeiam todo o cotidiano esco-
lar, inclusive os instrumentos de trabalho sejam materiais didáticos,
sejam materiais visuais ou audiovisuais estão carregados de conteúdos
viciados, depreciativos e preconceituosos em relação a questões de
gênero, da comunidade indígena e da comunidade negra. Exemplificamos
com as representações contidas nestes materiais didáticos onde na
maioria das vezes,
“a humanidade e cidadania é representada pelo homem branco e
de classe média. A mulher, o negro, os povos indígenas são descritos
pela cor da pele ou pelo gênero para expressar a sua existência”
(Silva: apud: Munanga: 2001: 15).
Isto pode ser traduzido de uma forma, aqui muito simplificada,
como integrante de uma estrutura mental herdada da democracia ra-
cial, que criou mecanismos na nossa própria educação e formação nos
impedindo, na maioria das vezes, de perceber e admitir ações racistas
e preconceituosas na escola. Assim, muitas educadoras e educadores
desconhecem o tratamento adequado numa situação de racismo e dis-
criminação. A ausência de uma memória coletiva é responsável pela
falta de identidade de educadoras e educadores, de educandas e
educandos e em conseqüência ocorre o precoce abandono dos bancos
escolares. E, quando são apontadas causas para tal acontecimento a
questão racial passa despercebida. Essa é uma das conseqüências da
falta de uma memória coletiva que no dizer de Joseph Kizerbo se
traduz em, “Um povo sem história é igual a um indivíduo sem memó-
ria” (Apud: Munanga: 2001, 8).
Esta estrutura herdada faz com que esqueçamos que o preconcei-
to e a discriminação foram criados e são produtos das culturas huma-
nas transformando-se em arma ideológica para legitimar e justificar a
superioridade de uns grupos sobre outros.

37
A maneira de agir, de pensar e relacionar o preconceito com a
ignorância das pessoas põe a culpa no indivíduo e não na estrutura
social. Assim, é projetada a superação das desigualdades no domínio da
razão, ou seja, onde a educação é mais desenvolvida o racismo seria
um fenômeno raro. Ou na lógica da razão científica, onde não existem
raças superiores e inferiores. E da moral cristã que diz que somos todas
e todos iguais perante Deus, entretanto, estas formas de pensar e de
agir não modificam por si só o imaginário e as representações coletivas
que se tem das populações excluídas em nossa sociedade.
Nesta ótica temos algumas questões que se estabelecem como
desconstruções do senso comum que permeia o pensamento da maioria
das colegas e dos colegas envolvidos com a educação.
Assim, temos as seguintes questões: “Não há necessidade de tra-
balhar este tema, pois na minha escola não existe isto; O deslumbra-
mento em realizar alguma atividade referente ao tema africanidades
na escola; O racismo vem dos próprios negros; Vocês têm um discurso
muito raivoso e ofensivo; Quem é negro no Brasil?; Todos nós temos
um pé na cozinha/África; Prá que cotas? Esta não é uma forma de
discriminar os negros?; As cotas devem ser prá pobres; O governo deve
se preocupar e melhorar a educação fundamental”.
Diante destas questões sugerimos algumas estratégias de ação que
são fundamentais para a desconstrução de estigmas que povoam o
nosso imaginário e nossas ações. Entre elas, a necessidade de nos dar-
mos conta que o preconceito, o racismo e a discriminação estão im-
pregnados na nossa formação, assim, devemos estar atentas e atentos
nas nossas ações e naquilo que nos cerca. As ações referentes ao tema
das africanidades na escola têm seu mérito ao serem desenvolvidas por
aquelas e aqueles que se interessam pelo tema, entretanto, temos que
ter em mente que esta é uma ação que envolve muito mais que uma
educadora ou um educador. É uma ação que perpassa todos as instânci-
as da escola abrangendo todos os segmentos e as áreas de conhecimen-
to.
Em relação ao racismo dos próprios negros, lembramos que isto foi
uma instância historicamente construída e está impregnada em nossas
subjetividades, assim, a reprodução dos estereótipos atinge a todas e
todos. Quando dizemos que os próprios negros são racistas, estamos
nos posicionando do lado dos opressores, isto é, somente eles podem
ter este sentimento.
Quanto ao pertencimento “todas/os temos um pé na África”, existe

38
uma apropriação cultural pela sociedade hegemônica, entretanto os
dividendos, sociais e econômicos não são eqüitativamente divididos.
Em relação às cotas na universidade, estas, são apenas uma das ações
afirmativas e visam reparar de forma emergencial uma disparidade
vivenciada historicamente por um grupo. Nas ações afirmativas estão
incluídas a melhoria da educação básica, a garantia do acesso, da per-
manência com sucesso na escola, atenção à saúde, à habitação e ao
trabalho. No que se refere aos pobres, a população negra integra a
maioria deste grupo, entrementes, a questão racial ultrapassa a di-
mensão da classe.
A inclusão da cultura afro-brasileira e africana a partir da Lei 10.639
dá o caráter de obrigatoriedade a todas as ações nos sistemas de
ensino e em todos os seus níveis e modalidades. Desta forma temos
que retomar a História da África desde os seus primórdios e relacionar
a sua ligação com o Brasil. Retomar a sua produção tecnológica e as
contribuições no desenvolvimento da sociedade brasileira.
Para tanto, na educação formal institucionalizada é necessário en-
volver todas as áreas de conhecimento a fim de conhecermos as contri-
buições do povo negro nas áreas do comércio, da metalurgia, nas téc-
nicas da mineração, nas técnicas de plantação, na medicina, nas técni-
cas da construção civil, na confecção de tecidos, nas artes plásticas, na
música, na literatura, na preservação da cultura, da religião e da famí-
lia.
No desenvolvimento de tal ação é fundamental o planejamento
participativo e o envolvimento de todas as instâncias da escola, bem
como o envolvimento da comunidade em seu entorno. A pesquisa sócio-
antropológica é um caminho de grandes descobertas, pois além de
envolver a comunidade descortinará dimensões antes ocultadas e
desconsideradas pela cultura dominante. Estas são algumas estratégias
na área das relações interpessoais e da construção do conhecimento
que, fazendo parte dos currículos em todas as suas dimensões, permi-
tirão que os diferentes grupos se vejam no conhecimento historica-
mente acumulado. Desta forma estaremos trabalhando no sentido de
que educandas e educandos dos diferentes grupos étnicos da sociedade
brasileira sintam-se como partícipes ativos do processo de formação da
sociedade brasileira.
Sabemos da importância da educação familiar e da educação esco-
lar sistematizada, no entanto, não existem fórmulas educativas pron-
tas na busca de soluções contra o racismo e a discriminação. Mas reco-

39
nhecer que a sociedade brasileira e suas estruturas são racistas e
discriminatórias é de fundamental importância. Isto nos implica a atu-
ar de forma radical na transformação da nossa estrutura mental her-
dada da democracia racial. Assim, devemos estar vigilantes quanto a
nossa falta de entendimento e a nossa indiferença em relação a proble-
mas, como a restrição ao acesso, a permanência efêmera, a evasão e
a repetência de educandas e educandos negros na educação escolarizada,
que configuram a sociedade brasileira como uma das mais díspares do
mundo.
Um último destaque diz respeito ao currículo oculto, conceito pe-
dagógico sistematizado e representado pelas cadernetas de freqüên-
cia, pelo sinal de entrada e saída, pela disciplina imposta na sala de
aula, pelo sistema de recompensas e castigos que não são admitidos
como partes integrantes do mesmo, embora toda a experiência escolar
seja regida por estes rituais que se organizam em torno destas formas
de controle. Da mesma forma as ações racistas e discriminatórias se
desenvolvem no cotidiano escolar sob o véu da invisibilidade.
Como parte de uma ação renovadora e com vistas a dar visibilida-
de à história, à memória coletiva que faz parte da formação da socie-
dade brasileira, incluindo de fato todos os grupos que dela fazem par-
te, nas diferentes dimensões da estrutura social nos valemos do desta-
que de Glória Moura que sugere a troca das formas usuais de controle
contidas no currículo oculto por uma atitude diferenciada que se tra-
duz no currículo invisível e se caracteriza pela “Transmissão de valo-
res dos princípios e das normas de convívio, dos padrões sócio-cultu-
rais da vida comunitária”. Investidas desta forma de atuação, como
educadoras e educadores, estaremos contribuindo de maneira concisa
para mudar o quadro excludente em que está inserida a população
afro-brasileira.

Bibliografia
CASHMORE, Ellis (org.). Dicionário de relações étnicas e raciais.
Trad. Dinah Clevel. São Paulo: Summus, 2000.
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GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa & princípio consti-
tucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação
40
social. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.
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face do processo de abolição da escravidão no Brasil. Bragança Paulista:
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africanidades brasileiras”. In MUNANGA, Kabengele (org.). Superan-
do o racismo na escola. 3ª ed. Brasília: Ministério da Educação, Secre-
taria de Educação Fundamental, 2001, p. 151-168.

41
42
A formação de professores para
DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL
segundo a Lei 10.639/03
Vera Rosane Rodrigues de Oliveira1

INTRODUÇÃO
Aqui, faço um diálogo com a experiência educacional propiciada
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, através do Projeto Pré-
Vestibular Afro-Indígena e a formação de professores para a diversida-
de étnico-racial. Trago como perspectiva a unidade entre as ações das
organizações negras, das instituições educacionais públicas e das políti-
cas demandadas pelos governos, pois os projetos Pré-Vestibulares Po-
pulares têm origem nas Organizações Negras. A Universidade, ao pro-
por a fazer o projeto, possibilita novos olhares sobre a realidade e
primordialmente a formação de seus alunos (futuros professores) para
esta realidade. O governo, ao financiar, assume com o seu o discurso
da diversidade étnico-racial.

DESENVOLVIMENTO
O que significa tratar os “diferentes” enquanto “iguais”? Histori-
camente a sociedade brasileira vem tratando os diferentes enquanto
iguais, e, o que se vê de fato é a permanência das grandes desigualda-
des sócio-raciais. Mas como ocorre isto? Ou melhor, por que problematizar
a igualdade na diferença, se tudo que se busca é uma sociedade iguali-
tária? E mais, qual é a validade deste questionamento no atual contex-
to brasileiro?
Para responder a essas indagações, é necessário situá-las dentro
de um espectro mais amplo, tanto, no que tange ao processo educaci-
onal brasileiro, como inter-relacional e da estrutura econômica de do-

1
Graduada em Ciências Sociais (UFRGS).

43
minação que perpassam a vida de mais de 45% da população2 , que se
encontram incluídas de forma marginal à estrutura social.
Ao trazer a perspectiva da exclusão de parte significativa da popu-
lação à luz do debate educacional, não estou fugindo ou mascarando o
viés econômico pertinente a esta questão, pois em tempos de
globalização é impossível falar de mercado ou trabalho, sem nos repor-
tarmos ao papel preponderante que a educação tem neste sistema de
“competências”, ou seja, definir quem estará empregado, em que
postos e basicamente em que condições. Isto significa dizer que, se a
educação de um povo é importante para sua constituição social, hoje,
ela adquire um papel mais relevante, pois define as relações sócio-
econômicas de uma nação, povo ou etnia. Segundo Muniz Sodré (2001,
p. 145):

A globalização tecno-econômica do mundo - que é uma etapa qua-


litativa da mundialização, uma nova etapa qualitativa da planetarização,
que aceita a fragmentação territorial, mas nivela culturalmente as
diferenças de povos e costumes em função da virtualidade do mercado
- deixa intocada a questão do etnocentrismo ocidental. Deixa intocada
a questão essencial da heterogeneidade humana, heterogeneidade sim-
bólica.

Na perspectiva adotada por Sodré, como enfatizo anteriormente,


a lógica perversa do avanço tecnológico capitalista em nome de um
mercado global aceita diferenças, desde que a regra dominante seja a
da cultura dominante, os padrões do aceitável social, política e cultu-
ralmente permanecem os da cultura européia, branca e cristã.
Trazer o diálogo dos diferentes enquanto desiguais, para, aí sim,
buscarmos de fato a igualdade, implica em entender que a diferença
tem a ver com possibilidades, ou seja, condições de acesso aos recur-
sos materiais da sociedade, e não com identidade.
Então, como contextualizar a partir do olhar da complexidade que
nos impõe a nova agenda de discussões culturais, de modo a provocar

2 No Brasil, o processo de modernização excludente através da história arquiteta instituições que


produzem mais de 55 milhões de pobres, dos quais 24 milhões em condições de pobreza extrema.
Além da vergonha que esses valores representam, será que a pobreza esta "democraticamente"
distribuída em termos raciais, preservando um perfil sócio-econômico sem viés racial? Não. Os
negros representam 45% da população brasileira, mas correspondem a cerca de 66% da população
pobre e 70% da população em extrema pobreza. Os brancos, por sua vez, são 54% da população
total, mas somente 35% dos pobres e 30% dos extremamente pobres. (Henriques, 2003, 13-14).

44
rupturas nos valores hegemonizados pelo culturalismo, as discussões
emergentes a partir do atravessamento do discurso da diversidade
sociocultural brasileira? Perspectiva que me remete a dar conta de
discussões que há muito permanecem em um subterrâneo das verda-
des: “O Culturalismo que foi a lógica dessas operações no período clás-
sico do colonialismo europeu, retorna com novos matizes sob a
globalização financeira do mundo” (Sodre, 2001, p. 151).
É nesta busca de possibilidades que trago a Lei 10.639 de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, que
em seu Art. 26-A, no caput § 1º do conteúdo programático, inclui o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinentes à História do Brasil, neste momento
intelectual e político efervescente do qual emergem reflexões e ações
paradoxais que expõem e propõem o quanto de efervescência e
paradoxalidade constitui e institui o que chamamos de realidade, e ao
termos consciência ou ciência desta realidade, permite-nos salientar
que o povo brasileiro é constituído de uma diversidade e pluralidade
que nos torna singular. E esta singularidade trazida sob a égide das
reparações ao povo negro necessita ser percebida pela sua diversidade,
e porque não dizer, também, sua singularidade. E retratar esta
heterogeneidade é importante como mecanismos para reconstituir a
alteridade do negro brasileiro assujeitado pela homogeneidade de seus
costumes e tradições culturais e lingüísticas.
Neste sentido ao trazer a Lei 10639, com a perspectiva de traba-
lhar na formação de professores para a diversidade étnico-racial, signi-
fica não apenas possibilitar o aprendizado de uma cultura que é basea-
da na oral, mas a constituição da interdisciplinariedade e da
transdisciplinariedade dos conhecimentos da história e da cultura do
negro no Brasil.
Pensar na formação docente como mecanismo de dar conta da
demanda trazida pela Lei 10.639, pressupõe antes de tudo, descrever
de que “lugar” e “olhar” falamos, ou seja, Implica em dizer que em
nome da diversidade étnico-racial é preciso adotar nova postura fren-
te ao processo educacional. A analisar qual concepção está presente e
se impõe ao sujeito social histórico, como nos diz Brandão (1986): De

45
um lugar Generalizante (com uma posição social abstrata) como o
historicamente definido, ou Significativo no qual damos atenção aos
seus sentimentos, pensamentos, expectativas e a sua realidade.
Segundo, ainda, Brandão, a prática educacional catequética do
passado que destrói na vida, na consciência e na cultura, a diferença
do outro de “mim”, necessita ser abolida, porque ela é responsável
pela cristianização do índio, pelo batismo do negro e pela opressão
das mulheres. Necessita-se pensar em um processo educacional que
resignifique a cultura e a identidade das diversas culturas.
A educação, longe de ser uma prática desinteressada e neutra, é
um importante instrumento de reprodução social, que impõe ao edu-
cando o modo de pensar considerado correto, a maneira “científica”,
“racional”, “verdadeira” de se entender e explicar a sociedade, a fa-
mília, o trabalho, o poder, bem como, os modelos sociais de comporta-
mento, conforme expressa Bourdieu (2001).
Em nosso país a educação enfrenta sérios problemas. Segundo o
IBGE no ano de 2001, a evasão no ensino médio foi de aproximadamen-
te 20%. Este instituto também aponta que 62% da população adulta
acima de 25 anos, não possui o ensino fundamental completo. Particu-
larmente na área pública, professores mal pagos e instalações precári-
as influenciam na qualidade do ensino. As classes mais privilegiadas
economicamente voltam-se para as escolas particulares, melhor
estruturadas materialmente criando um desnível em relação à maioria
da população brasileira, que depende unicamente do ensino público.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional define como
finalidade da educação básica, “desenvolver o educando, assegurar-lhe
a formação indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe
meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores”3 . Culmina-
do a isto, a Lei 10.639 de janeiro de 2003, que em seus artigos 26-A,
79-A e 79-B, institui nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, oficiais e particulares, a obrigatoriedade do ensino sobre Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira. E ainda, os conteúdos referentes à Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileira.

3
Esta concepção foi resgatada do texto da Marise Nogueira Ramos, Diretora de Ensino Médio da
SEMTEC/MEC, do texto O Projeto Unitário de Ensino Médio sob os princípios do trabalho, da
Ciência e da Cultura, organizado para o texto base na exposição na sessão especial na reunião
anual da ANPED, realizada em Poços de Caldas, no período de 07 a 11/10/2003.

46
A formação de professores para dar conta da implementação des-
ta Lei, se dá no contexto atual do estabelecimento de um conjunto de
Políticas Públicas de Ações Afirmativas para população afrodescendente
e indígena, através do protagonismo central do Programa Diversidade
na Universidade do Ministério da Educação (2001), da Secretaria Espe-
cial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da
República - SEPPIR (2003), da Fundação Cultural Palmares do Ministério
da Cultura - FCP/Minc 1998 - Governo Fernando Henrique Cardoso , do
Conselho Nacional de Combate à Discriminação da Secretaria Especial
de Direitos Humanos do Ministério da Justiça - CNCD/SEDH/MJ (2001).
Essa configuração política de políticas encontra sua história nos
vários tratados internacionais de Direitos Humanos, assinados pelos
governos brasileiros desde 1944 com a Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos e as Convenções Internacionais Sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1969, que introduz o
princípio da discriminação positiva (consignado na atual Constituição
brasileira) sustentando (1) o dever do estado de erradicar a
marginalização e as desigualdades. (2) o estabelecimento de presta-
ções positivas em prol da promoção e integração de segmentos
desfavorecidos e (3) a prescrição da discriminação justa para compen-
sar a desigualdade de oportunidade ou fomentar setores considerados
prioritários.
Também encontra sua história tanto na ação e organização das
entidades e grupos do Movimento Negro, quanto nas pesquisas e refle-
xões acadêmicas sobre as questões étnico-racial, estas tendo como
fundamento teórico-metodológico tanto as inspirações e aspirações pro-
venientes dos intelectuais do próprio Movimento Negro, quanto aquelas
poucos voltadas ao cotidiano vivido por uma população negra, que está
incluída nas contradições e paradoxos históricos dos quais é parte sin-
gular, o que escapa de uma perspectiva homogeneizante e parte
fundante, e desrespeitosa da vitimização.
As novas bases materiais que caracterizam a produção
(reestruturação produtiva), a economia (globalização) e a política
(neoliberal) trazem profundas implicações para a educação neste final
de século, uma vez que cada estágio de desenvolvimento das forças
produtivas gesta um projeto pedagógico que corresponde às suas de-
mandas de formação de intelectuais, tanto dirigentes quanto trabalha-
dores.
Aos educadores cabe, dada a especificidade de sua função, fazer a

47
leitura e a necessária análise deste projeto pedagógico em curso, de
modo a, tomar por base as circunstâncias concretas, participar da
organização coletiva em busca da construção de alternativas que arti-
culem a educação aos demais processos de desenvolvimento e consoli-
dação de relações sociais verdadeiramente democráticas.

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Excludente: a nova forma de dualismo estrutural que objetiva as novas
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Capitalismo, Trabalho e Educação. 1.ed. Campinas: Autores Associa-
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UTOPIA - Estudo do projeto de cotas na Rede Metodista de Ensino -
IPA e as contradições de uma sociedade desigual. Porto Alegre: UFRGS,
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48
SODRÉ, Muniz. Identidade Cultura e Globalização. In: FRIGOTTO,
Gaudêncio. Teoria e Educação no Labirinto do Capital. Petrópolis:
Vozes, 2001. p. 145-156.

49
50
A história na visão dos EXCLUÍDOS

Jorge Euzébio Assumpção1

Normalmente os livros didáticos nos apresentam uma História elitista


e conservadora, na qual a maior parte da população é excluída. Ou
seja, o povo é colocado como um mero expectador, deixando os fatos
e atos de heroísmo para os grandes vultos, quase sempre pertencentes
à classe dominante. E destinam aos excluídos sociais o papel de
expectador, ou no máximo serão coadjuvantes dos heróis, e nesta
abordagem jamais ocuparão o papel de sujeitos da História brasileira.

A quem interessa este tipo de História?


Obviamente que a História vista por este ângulo não interessa aos
despossuídos e marginalizados, mas sim as elites econômicas que não
vêem e nem querem uma história reflexiva, e conscientizadora. Mas,
sim a querem como uma sucessão de fatos e datas incapaz de criar
uma percepção transformadora da realidade social, política e econômi-
1
Mestre em História do Brasil (PUC/RS), Especialista
em História do Rio Grande do Sul (FAPA), Graduado em
História – Licenciatura Plena (PUC/RS), Professor de História do Brasil e História da África na
FACOS/Osório, Coordenador do Curso de Pós Graduação em História da Faculdade de Osório.

51
ca. Como fruto desta percepção os destinos da nação passam longe da
participação popular e serão promovidos ou vistos como ações, diretas
do heroísmo de poucos eleitos, tanto por nascimento, como por ações
individuais dantescas, onde a participação coletiva das massas traba-
lhadoras é desprezada.
Atendendo aos interesses ideológicos dos detentores do poder, as
classes sociais, oprimidas geralmente estiveram à margem das páginas
da história: índios, negros e brancos pobres, ordinariamente aparecem
apenas como figurantes, de uma história oficial classista, racista e
discriminadora. Haja visto os grandes festejos nacionais, onde a figura
do povo sucumbe perante os “guardiões” da pátria brasileira, por via
de regra identificados ou a serviço das elites econômicas deste país.

Ao excluir estes segmentos marginalizados, deixa-se também de


questionar-se sua realidade social, ou melhor, através da sonegação
histórica, fica implícita a falta de interesse sobre o questionamento de
suas posições na pirâmide social brasileira. Visto estas pelas classes
detentoras do poder como algo natural e imutável. Desta forma não
examinamos origens de suas exclusões ou marginalizações sócio-polícas,
econômica e religiosa. Assim operando os alocamos na posição de
expectadores de fatos concretos e irreversíveis independentes de suas
vontades. E deixamos de ver a História como um processo dialético.
Nesta linha de raciocínio, vários livros didáticos abordam como se
fossem leis próprias da natureza o domínio europeu sobre os habitantes
das Américas, e outros continentes. Da mesma forma, como o conse-
qüente extermínio, das populações nativas destas terras foi visto como
52
uma lei regular dos fatos, derivados estes pela “superioridade tecnológica
e étnica dos povos do velho mundo”. Calcula-se que, quando da chega-
da dos primeiros viajantes vindos da Europa, a população americana
era de aproximadamente 88 milhões de habitantes. E cerca de 50 anos
após, a mesma já teria sido reduzida à metade.
Sobre o extermínio dos americanos escreveu Michel de Montaigne:
”...quantas cidades arrasadas, quantas nações exterminadas, quantos
milhões de povos passados a fio de espada. Nunca a ambição humana
chegou a promover coisas tão horríveis e miseráveis”.
Já em terras brasileiras a população nativa era calculada estimati-
vamente entre 3 a 5 milhões de habitantes, quando do início da con-
quista dos portugueses em 1500. Igualmente na América portuguesa,
não foi dado um destino muito diferente dos demais ameríndios do
novo mundo. Inicialmente, após um primeiro contato com os nativos
brasileiros, foi estabelecido uma relação amistosa e pacífica, com os
brasis. Onde foi praticado o escambo, este benéfico para os dois lados.
Porém tais relações se modificaram, com a introdução da escravidão,
imposta pelos dominadores europeus, devido à inclusão das práticas
mercantilistas, impostas pela metrópole portuguesa.
Após terem eliminado grande parte da população nativa do litoral,
pela imposição exploratória da escravidão e necessitando de mais mão-
de-obra, a classe dominante portuguesa partiu para a feitorização em
grande escala dos africanos e seus descendentes, para substituir os
aborígines brasileiros. Ambas as escravidões foram violentas, cruéis e
deixaram marcas profundas nas etnias submetidas à crueldade deste
modo de produção.A escravização dos ameríndios e dos afro descen-
dentes sempre foi contada pela ótica dos dominadores e nunca pela
visão dos escravizados, no que acarretou em uma visão distorcida e até
certo ponto romantizada da mesma. E como conseqüência desta ima-
gem estereotípica deste processo histórico, não radicalizamos ainda
um debate com maior profundidade das conseqüências e dos reflexos
deste período histórico, em uma análise de maior abrangência do atual
e complexo quadro racial brasileiro.
Em decorrência desta sonegação, ou melhor, de amenizações, as
relações de explorações escravistas, passaram a permear quase que de
maneira indiscutível a mentalidade de uma sociedade democrática,
quase sem conflitos e sem discriminação de espécie alguma – principal-
mente racial. O que é fartamente desmentido pela documentação his-
tórica.

53
A classe dominante brasileira, diferentemente de outros países, ao
estilo E.U.A. e África do Sul entre outros, prefere não partir para um
confronto aberto com os setores discriminados racialmente. O que a
nosso ver se justifica devido ao fato de ser o Brasil o maior país
miscigenado do mundo moderno, assim como o de maior número de
afros descendentes. Devido a tais fatos, as elites preferiram, inteligen-
temente, não partir para o confronto e sim para a “conciliação” racis-
ta, através da sonegação do conflito ou das diferenças étnicas.
Ao invés do racismo aberto, declarado eles preferiram a negação
como uma forma de excluir os afros descendentes, o que também é
uma forma de racismo. O que faz do Brasil, um país de onde os confli-
tos raciais se dão de maneira diferenciada. Ao invés do conflito, tere-
mos a “conciliação” e a negação das discriminações, estas tidas e
escamoteadas por tal visão ideológica, como atitudes isoladas no con-
texto nacional.
A exclusão étnica dos ameríndios e afros descendentes se mani-
festa igualmente nos currículos escolares. Onde os alunos começam,
geralmente, a estudar História do Brasil com a chegada dos europeus e
não a partir dos habitantes locais – brasis – o que determina o
aculturamento, um eurocentrismo cultural. Este domínio cultural varia
conforme a época, aumentando ano após ano. E em grande parte é
estimulado pelos meios de comunicação. Esses em geral, com raras
exceções, comprometidos com interesses comerciais não brasileiros.
É notória a influência de grande parte dos professores, estimula-
dos pela mídia, que ano a ano preferem dar ênfases às tradições cultu-
54
rais norte-americanas, em detrimento do folclore brasileiro. Haja visto
o destaque dado cada vez maior ao HALLOWEEN (dia das bruxas) ao
invés de retratarem as lendas brasileiras como: Saci, Curupira, Negrinho
do Pastoreio, entre outros. Esta dominação cultural de elementos
anglo-saxões e europeus fortalece e estimula a falta de uma identidade
e auto-estima cultural indígena e afro-brasileira, assim como fortalece
os laços da superioridade das elites dominantes comprometidas e
identificadas com a importação e desnacionalização de uma cultura
nacional.
Já em relação à cultura africana, temos um paradoxo, pois o
Brasil é o país com maior número de afro descendentes e, no entanto
sua história é renegada e desconhecida por grande parte da sociedade
brasileira. Haja visto que foi preciso uma lei para incluir a sua história
nos currículos escolares. Mesmo assim ainda nos dias de hoje são pou-
cas as faculdades ou universidades que possuem em seus currículos a
disciplina de História da África.
O desconhecimento do continente negro é gritante, prova esta
que muitas pessoas o associam a um país, homogêneo sem distinções e
conflitos entre os seus povos. Entretanto, as diversidades africanas são
inúmeras. Quer seja pelo tamanho e número de países, ou pela diversi-
dade lingüística, assim como outros aspectos culturais, que fazem da
mesma um mosaico de povos.
A nosso ver não basta uma lei para introduzir a história dos afro-
brasileiros na escola, pois essa não se aplica por si só. Ou será mais
uma lei para inglês ver. Há não ser que junto com a mesma sejam
tomadas outras medidas:
a) Introdução de História e literatura africana nas faculdades;
b) Incentivar a leitura de contos africanos, nas séries iniciais;
c) Valorizar a mitologia africana;
d) Desmistificar a religião afro-brasileira, dentre outras.
Porém para efetuarmos estas medidas temos que primeiro admi-
tirmos que somos um país racista de fato. E pararmos com a hipocrisia
de uma existência pacífica entre as várias etnias brasileiras. Neste
contexto a escola pode desempenhar um papel fundamental. Pois atra-
vés da mesma, poderemos começar um debate realmente democrático
sobre a situação dos povos e classes marginalizados neste país. Mas
para tanto é fundamental o investimento na formação de professores
comprometidos com a causa dos oprimidos e na formação de uma
sociedade mais justa e igualitária para todos.

55
Bibliografia

A África e os problemas globais da actualidade. Moscou: Pro-


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57
58
NEGRITUDE, identidade e educação

Maria Juraci Assis1

Introdução
O presente trabalho trata do processo de formação da identidade
e auto-estima das crianças e jovens afro-brasileiros no cotidiano esco-
lar.
Através deste, tentarei expor algumas experiências de minha vida
profissional e também a visão de algumas crianças e jovens, mostrando
o racismo como um dos graves problemas da sociedade, trazendo como
conseqüência prejuízo no processo de formação da identidade e auto-
estima das crianças e jovens negros principalmente nos ambientes es-
colares.
Não tenho a pretensão de fornecer receitas, mas refletir e esti-
mular os profissionais da área da educação a buscar, juntamente com
os seus alunos e a comunidade escolar, uma melhora em suas praticas
pedagógicas, procurando trabalhar e respeitar a história, cultura e
religião de seus alunos e com isso, estará sendo contemplada a diversi-
dade étnica racial destas crianças e destes jovens.
Minha experiência como educadora há quase vinte anos na rede
municipal e estadual de ensino fundamental tem me mostrado que a
formação que alguns dentre nós recebemos não foi suficiente para
lidar com o desafio que a problemática da convivência com a diversida-
de e as manifestações de discriminação e do racismo dela resultam nos
ambientes escolares.
1
Professora da rede pública Municipal de POA, graduada em Pedagogia com
especialização em Orientação Educacional (FAFIMC), Pós Graduada em Gestão
de Educação em Diferentes Espaços Educativos (UNIRITTER),
Integrante do Coletivo dos Educadores Negros APNS (Agente de Pastoral Negro).

59
A questão racial e a escola
É importante percebemos que a diversidade étnica racial não sig-
nifica um fator de superioridade de um ou de outro grupo, mas um
fato de complexidade e de enriquecimento para todos.
Todos os alunos, principalmente os discriminados devem orgulhar-
se de sua história, cultura, religião, seu jeito de ser, estabelecendo
uma relação com sua origem que por si só já é uma arma contra a
discriminação na perspectiva de sua etnia. Pois se sabe o quanto à
discriminação traz prejuízos no processo de formação da identidade e
auto-estima. Principalmente, quando as vítimas são crianças e jovens.
Seria importante que todos os profissionais da área de educação
pensassem uma melhor forma de reestruturar seu fazer pedagógico e,
conseqüentemente suas ações buscando caminhos através de estudos
continuados, contando com auxílio de seus alunos, colegas, comunida-
de escolar. Os movimentos sociais têm muito a contribuir neste proces-
so de busca de novos caminhos para que haja uma melhora significati-
va nas bases dos sistemas de ensino e, conseqüentemente, em nossas
escolas, principalmente na sala de aula. Com isso, haverá respeito à
história, à cultura, à religião e ao jeito de ser de cada um, pois cada
aluno é único e merece crescer e se desenvolver feliz e em harmonia.
Assim, a diversidade étnica racial estará sendo contemplada e o pro-
cesso de formação da identidade e auto-estima de todos os alunos
também.

A investigação
Esta pesquisa teve como objetivo: compreender como a gestão
das escolas públicas municipais, estaduais, federais e particulares po-
dem contribuir para o processo de construção da identidade e auto-
estima das crianças e jovens afro-brasileiras.
Foram escolhidos dois grupos como universo de minha pesquisa. O
primeiro é constituído por dez crianças de seis a oito anos, alunos do 1
Ciclo de uma escola municipal de Porto Alegre. Essas crianças estudam
em turmas diferentes e estão assim estratificadas por sexo e etnia:
cinco meninos e cinco meninas; três crianças negras, quatro mestiças e
três brancas, como mostra a tabela ao lado:

60
O segundo grupo se inclui em outra classe etária: são jovens ne-
gros que têm quatorze a vinte e seis anos. Trata-se de um grupo que
participa do movimento Agentes da Pastoral Negros (APNs/RS). Tais
jovens freqüentam diferentes níveis escolares, do ensino fundamental
ao médio, incluindo curso preparatório para o vestibular e também
com ensino superior completo (ou seja, se dividem nas redes munici-
pal, estadual, federal e particular). São, num total de aproximadamen-
te 50, mas apenas 16 responderem o questionário.
A escolha de dois grupos visou captar um mesmo fenômeno em
duas classes etárias, isto é, em dois momentos diferentes na vida dos
sujeitos. Quis ter uma visão tanto de como a criança percebe a situa-
ção do negro no dia-a-dia da escola, quanto quis perceber essa mesma
percepção do jovem, que já apresenta mais vivência no ambiente es-
colar e, portanto é mais contaminado pelos modos impostos pela escola
e pela sociedade. Com isso, pretendi analisar a participação da escola
no processo de formação de identidade e auto-estima. Dei mais ênfa-
se, portanto, neste segundo grupo.
Na visão das crianças, através de várias atividades, diálogos, leitu-
ra pude observar que os resultados mostraram tendência à maior valo-
rização do branco enquanto o negro aparece em situações socialmente
desfavoráveis. Alguns exemplos: a criança negra aparece, nas respos-
tas do grupo, como a mais feia, menos simpática, mais pobre e que
ainda, seria capaz de praticar pequenos furtos.
Foi feita numa 2ª Série atividade com o livro de Ruth Rocha para
trabalhar a questão da auto-afirmação de sua etnia, para verificar se
as crianças negras se identificaram enquanto afro-brasileiras.
O livro “Amigo do Rei”, de Ruth Rocha, foi utilizado para esta
atividade, pois esta autora foi muito feliz em pensar sobre a importân-
cia de uma história para as formações da criança e, principalmente, de
criança negra, uma vez que ela apresenta um rei negro.
61
Quero salientar, porém, a importância que faz uma imagem no
momento em que a criança negra, que está em processo de formação
de sua identidade e a auto-estima, tem ao ver dois personagens, um
com um “sapato” e o outro sem. Parece ser insignificante, mas não é.
Vejamos o que disseram diante de minha pergunta; Quem é o rei e por
que?
Ao analisar estas atividades, fica clara a idéia que as crianças de 6
a 8 anos têm sobre as pessoas negras e brancas. Pude observar a
importância da imagem para a formação da auto-estima da criança,
pois neste livro, a pessoa branca estava com “sapatos” e bem vestida e
a criança negra “sem sapatos” e com roupas simples: (nunca poderia
ser rei...) na visão dos alunos.
Dezoito crianças responderam que o rei era branco, porque tinha
cabelos ruivos, olhos verdes e “bonito”, e ainda porque estava com
“sapatos”. Não tiveram dificuldades ao responder. Por outro lado, nove
alunos responderam que o rei era negro... Um aluno pensou, pensou...
e disse: - Ah , porque não tem rei negro... Os outros não souberam
responder. Vagaram... Alguns disseram: - Ah, porque ele está com
calça branca... Camisa Verde... Não tinham segurança de suas esco-
lhas.
No mês da Consciência Negra, cada criança contou o que sabia
sobre o continente africano e seu povo. Comentou-se sobre a vida dos
escravos no Brasil, suas lutas e vitórias, Zumbi, quilombos etc.
Após vários trabalhos sobre os afro-brasileiros durante este mês,
eu perguntei em minha sala de aula, quem era negro nesta sala? Nin-
guém se identificou. Na minha visão havia oito crianças negras. Para a
segunda pergunta sobre quem era mestiço, nove alunos responderam
que eram. Eu percebi sete crianças mestiças e, para a pergunta de
quem era branco, dez responderam afirmativamente e, na minha vi-
são, realmente, havia dez crianças brancas.
Achei interessante que, quando levantei a mão para a primeira
pergunta me identificando como negra, quase todos disseram: – a
senhora não é negra, é moreninha, mestiça ou meio branca. Mais uma
vez, aparece o negro em desvantagem perante as outras etnias na
visão das crianças.
E ainda para coletar dados, foram feitas várias observações na
escola onde essas crianças estudam. Estas observações foram durante
um mês e meio.
Foi possível verificar nitidamente que as crianças mestiças e ne-

62
gras ainda são as mais encaminhadas à coordenação por problemas de
indisciplina ou de briga. Muitas vezes, eles alegam que brigaram por-
que foram chamadas de macacas, carvão, negro sujo, fedidos, etc., e
reagiram. Serão essas crianças que abandonam mais cedo os ambien-
tes escolares? E ainda, as atividades propostas pelos professores não
contemplam nem nos textos e nem nas gravuras a etnia negra. Nota-
se nos filmes, na biblioteca, na sala dos professores, no pátio da escola
e na secretaria, grande invisibilidade dos afro-brasileiros. Muitas vezes
este silêncio e esta ausência é uma forma grave de racismo e precon-
ceito com o povo negro.
Com o grupo de jovens:
Foram aplicadas três técnicas e um questionário. A primeira técni-
ca tinha dois objetivos bem claros:
Levar os jovens a desabafar sobre tudo o que já haviam ouvido
negativamente referente a sua etnia afro-brasileira e levá-los a;
Refletir sobre o que gostariam de levar de positivo em sua viagem
para “O Novo Milênio” referente a seu povo.
Na segunda técnica o objetivo era investigar os reais desejos deste
grupo para que os afro-brasileiros sejam realmente vistos e respeita-
dos enquanto formadores de história, cultura, religião, na trajetória
do Brasil.
Na primeira técnica os jovens apontavam várias expressões e
xingamentos que sofrem nos ambientes escolares. E um deles, de ‘16’
anos, disse:
“É um descontentamento muito grande quando atingem a nossa
etnia através de piadas ou brincadeiras racistas. Nos sentimos muito
humilhados”.
Ainda nesta técnica, mas no segundo objetivo, algumas caracte-
rísticas que surgiram sobre os afro-brasileiros foram: belos, alegres,
criativos, perseverantes, cooperativos, religiosos, amigos, inteligentes
e estudiosos, bons donos de casa, felizes e faceiros, excelentes profis-
sionais, acolhedores, capazes de perdoar, lutadores, conscientes e ca-
pazes, motivo de orgulho para todos etc.
Na segunda técnica os desejos deste grupo para o “Novo Milênio”
foram:
Que o (a) negro (a): tenha liberdade de expressão em sala de aula,
na escola e na sociedade; tenha consciência de sua cultura, história e
religião e, se orgulhe; tenha paz nos ambientes escolares; tenha mora-
dia e saneamento básico, vença na igualdade; vença sempre seus obs-

63
táculos; melhore sempre sua auto-estima; não se humilhe mais; não
sofra mais racismo; que seja respeitado como cidadão; que assuma a
sua negritude e se liberte do seu preconceito; que seja visto como um
ser capaz; que tenha a cada dia mais força espiritual; que não precise
de leis para alcançar seus objetivos, “que as crianças negras quando
crescerem tenham consciência de que todo o povo quando sofre, ad-
quire sabedoria e, que a sabedoria do nosso povo é linda” (Pensamento
da avó de uma jovem APN).
Os dados coletados nas respostas do questionário revelam a preo-
cupação dos jovens negros a respeito da forma como o racismo se
produz ou como a cultura negra é mantida no esquecimento, pois estes
jovens não tiveram bonecos negros quando crianças em casa e muito
menos na escola; livros infanto-juvenis, os filmes, as peças de teatro,
cartazes e livros didáticos contemplando sua etnia.
Os jovens revelam também, que onde mais escutam expressões
desvalorizando os negros é no ambiente escolar. Os professores em sua
grande maioria não trabalham a cultura, a religião e nem a história dos
afro-brasileiros contribuindo com isso, muito pouco para seus proces-
sos de formação de identidade e auto-estima.
Nesta pesquisa também foi feita uma breve análise de como apa-
recem os personagens negros na literatura infanto-juvenil, pois muitas
vezes, o contexto dos escritores e ilustradores se dão com intenções
boas, mas, ao mesmo tempo para uma população que já tem a sua
auto-imagem tão negativa, estas imagens podem trazer um efeito
muito negativo, motivo de constrangimentos e chacota em sala de
aula. Algumas delas são estereotipadas, demonstrando fragilidades, tris-
teza, pobreza, formas grotescas, em situação de humildade, passivas,
primitivas e formas animalescas, burrice etc.
Desde 1982, quando comecei a lecionar, a invisibilidade do negro
nos currículos escolares, já me chamava à atenção.
Não conformada, passei a pensar em várias formas de amenizar
esta situação como, por exemplo, ministrando oficinas para professo-
res, palestras e até formações para os meus colegas das escolas muni-
cipais onde trabalho, e em Seminários de Educação de vários municípi-
os do R.G.S. e realizo ainda um trabalho com jovens negros APNs
(Agente Pastoral Negro) na Vila Cruzeiro do Sul, nesta capital, uma vez
por mês.

64
Reflexões finais
Atualmente, além dos jovens a minha prática inclui uma série de
atividades juntamente com as crianças de A30 (correspondente à se-
gunda série). Sempre busco o bem-estar e a valorização de todos,
respeitando suas individualidades.
Conforme Rocha:

A grande tarefa no campo da educação “há de ser o de busca de”


caminho e métodos para rever o que se ensina e como se ensina nas
escolas públicas e privadas, às questões que dizem respeito do mundo
da comunidade negra. A educação é um campo com seqüelas profundas
de racismo para não dizer, o veículo de comunidade de ideologia bran-
ca. (1998, p.56).

Cavalleiro diz:
[...] Acredito que um dos papéis de educadores (as) na construção
de auto-estima positiva de criança negra seja ensinar a viver de fato,
não ensinar a morrer! (2001, p.177).
A pesquisa aqui apresentada apontou, confirmando as hipóteses
desenvolvidas ao longo de minha vivência, os prejuízos sofridos pelas
crianças negras no que diz respeito à desvalorização de sua etnia.
Então, pensando mais especificadamente nessa criança, no ambi-
ente escolar, minha prática inclui uma série de atividades, filmes, mú-
sicas, orações, livros infanto-juvenis, textos que têm me permitido
realizar um trabalho com mais qualidade e, a cada dia que passa,
recebo mais sugestões dos colegas, amigos, pais de alunos e, até mes-
mo dos próprios alunos. Vamos assim enriquecendo essas práticas e
mostrando que a valorização das origens étnicas leva à melhora das
auto-estimas e essas, por sua vez, contribuem para desempenhos es-
colares mais qualificados em todos os sentidos.
E por fim, alinho-me ao pensamento de Cavalleiro, quando afirma
que:

É necessário construirmos um cotidiano escolar que dê margem


também à participação positiva de crianças e do adolescente negro, o
que auxiliará a todos os presentes na escola a vivenciar um tratamento
pautado na igualdade e na solidariedade. (CAVALLEIRO 2001, p.135).

65
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66
Interdisciplinaridade
e a questão dos NEGROS na educação

Carmen Suzana Soares de Lima1

A educação vive uma fase onde é de fundamental importância uma


nova abordagem da construção do conhecimento.
A escola tem papel preponderante no processo de formar cidadãos
e cidadãs críticos, que desenvolvam ações solidárias, buscando criar e
recriar o mundo em que vivem, sendo ativos, com atitudes que possibi-
litem um mundo mais democrático, mais humanizado e Cristianizado.
O nosso compromisso, enquanto educadores e educadoras, é o de
oportunizar a construção e a socialização do conhecimento por meio de
atividades que reformulem conceitos mal estruturados, com origem,
muitas vezes, na família, reforçados pela escola, carregados de ima-
gens distorcidas à respeito da “raça humana”.
Quando tratamos de educação, temos que fazer referência à questão
da identidade.
Todo o ser humano precisa construir a sua identidade, a respeito
disso diz Kabengele Munanga: “Partindo da tomada de consciência des-
sa realidade, sabemos que nossos instrumentos de trabalho na escola e
na sala de aula, isto é, os livros e outros materiais didáticos visuais e
audiovisuais carregam o mesmo conteúdo viciado, depreciativo e
preconceituoso em relação aos povos e culturas não oriundos do mundo
ocidental. Os mesmos preconceitos permeiam também o cotidiano das
relações sociais de alunos entre si e de alunos com professores no

1
Licenciada em Ciências Sociais e Estudos Sociais. Pós-graduada
em Orientação Educacional. Integrante do Coletivo de Educadores Negros APNs / RS.

67
espaço escolar. No entanto, alguns professores, por falta de preparo ou
por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situa-
ções flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala de aula
como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e
conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à
nossa cultura e à nossa identidade nacional”.
A identidade étnica perpassa pelas respostas às questões, como
por exemplo:
- Quem sou eu?
- Qual é a minha descendência?
- Os meus antepassados, quem foram?
- De onde vieram?
- O que fizeram?
O que acontece com o indivíduo, quando não encontra respostas
positivas para as suas indagações?
A identidade étnica será construída, deixando lacunas na formação
da personalidade do indivíduo, interferindo na sua auto-estima, não
permitindo que perceba as injustiças sociais direcionadas ao seu grupo.
Um indivíduo sem história, sem heróis, sem antepassados, é um
ser que não existe para a sociedade.
A escola é uma das principais instituições que tem como uma das
funções sociais, fornecer elementos para a construção da identidade
étnica do sujeito.
A escola precisa colocar em prática, mecanismos que contribuam
para a identidade da criança e do jovem negro.
É preciso reverter o quadro das desigualdades raciais, através do
conhecimento da verdadeira história do negro na África e no Brasil.
É preciso desenvolver práticas pedagógicas onde alunos, negros e
brancos (ou de outra etnia), entendam que existe um passado de ri-
queza cultural no Brasil, que começa na África, do qual descende a
maioria dos brasileiros.
O processo de ensino deve proporcionar aos negros, condições de
ocupar os mais diversos postos da sociedade brasileira, legitimando a
presença afrodescendente, através da construção do conhecimento.
Portanto, devemos salientar a importância da política de cotas para
acelerar esse processo.
A população afrodescendente protagoniza as pesquisas, quando se
refere a índices elevados de evasão escolar. Essa exclusão provoca a
não inserção da juventude negra no mercado de trabalho, trazendo

68
uma conseqüência maior, a marginalização.
No Brasil fala-se em democracia racial, seguindo as determinações
da Constituição do país, mas no cotidiano ela não é praticada. É uma
afirmação que o movimento negro divulga desde o início de sua organi-
zação, denunciando a falsa unidade.
Só teremos democracia racial quando as diferenças forem respei-
tadas.
Já temos a Lei 10.639, que estabelece a mudança nos currículos
escolares. Mas precisamos da prática educacional renovada onde, efe-
tivamente, a escola, através do corpo docente, adote uma pedagogia
de inclusão, atendendo a obrigatoriedade do Art. 26-A: “o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resga-
tando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e polí-
tica pertinentes à História do Brasil”.
Nessa fase inicial, é fundamental a criação de cursos de formação
de professores, capacitando profissionalmente os educadores, preen-
chendo as lacunas deixadas pelas universidades que, por sua vez, tam-
bém precisam reestruturar os cursos de graduação para adaptarem-se
às exigências da Lei, reformulando os seus programas, para que os
novos professores saiam das academias conscientizados e
instrumentalizados.
Outro aspecto que deve ser destacado é no que se refere ao
monitoramento que deve existir, acompanhando a execução dos traba-
lhos, por parte do setor pedagógico das escolas e, também, por parte
da comunidade, principalmente a afrodescendente, no sentido de exi-
gir a aplicabilidade da Lei.
Hoje vivemos num mundo globalizado, buscando intercâmbios de
todas as formas.
Como está a educação brasileira nesse contexto?
A maioria das escolas insiste em manter uma organização discipli-
nar, compartimentando a construção do saber.
As transformações são cada vez mais rápidas e complexas, exigin-
do dos indivíduos raciocínio intenso e com solidez de análise.
A quem cabe o preparo das gerações para suportarem a velocidade
da evolução que vivenciamos?
A LDB (art.32, item III) ressalta o objetivo de formação básica do
cidadão, visando ao desenvolvimento da capacidade de aprendizagem,
tendo em vista a aquisição de conhecimentos e habilidades, bem como

69
a formação de atitudes e valores.
Para que a escola proporcione a formação de um indivíduo integra-
do e íntegro, faz-se necessário um trabalho educativo, que contemple
a idéia de conjunto, de interação das disciplinas e áreas do conheci-
mento.
Neste artigo, eu proponho como um “caminho” de mudança na
prática pedagógica buscar o trabalho interdisciplinar.
A interdisciplinaridade é o desenvolvimento do conhecimento, atra-
vés de um trabalho conectado entre as diversas disciplinas, onde o
aluno irá constatar que o ensino e a aprendizagem não são compostos
por conteúdos fragmentados; que o saber resulta de um processo
construído pelo somatório das informações de todos os componentes
curriculares.
Fazer uso da metodologia interdisciplinar para aplicação da Lei
10.639 é permitir que a escola, embora ainda conservadora, reassuma
o seu papel como agente de transformação. A justificativa para essa
prática encontra respaldo na obrigação que o sistema educacional tem
em modificar os valores e conceitos errados que foram transmitidos,
por mais de 500 anos, pela cultura eurocêntrica, promovendo idéias
preconceituosas, e que precisam contar com a verdade histórica, mas
que só poderão influenciar na reorganização de uma sociedade consci-
ente e anti-racista, contando com a mudança dos currículos e a atua-
ção, em conjunto das diversas disciplinas que compõem o ensino fun-
damental e médio.
Conforme afirma Henrique Cunha Jr., a imagem do africano na
nossa sociedade é a do selvagem acorrentado à miséria, imagem
construída pela insistência e persistência das representações africanas
como a terra dos macacos, dos leões, dos homens nus e dos escravos.
“Há um bloqueio sistemático em pensar diferente das caricaturas
presentes no imaginário social brasileiro”.
De acordo com Paulo Freire, o ensino dos conteúdos não pode dar-
se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente
formar.
Portanto, buscar a interdisciplinaridade, fazendo dessa prática um
processo de organização integrado ao trabalho curricular, é oportunizar
ao aluno a compreensão da realidade, com mais facilidade, permitindo
a conscientização de que vivemos num país multicultural, que a diversi-
dade está na escola, como em todo o contexto da sociedade brasileira,
mas entendendo que essas características não podem ser vistas como

70
motivação para o desrespeito à história e a cultura da população ne-
gra, evidenciando que devemos conviver com a diversidade cultural,
mantendo a igualdade dos direitos para todos.

Como trabalhar com a interdisciplinaridade?


O trabalho interdisciplinar pode começar com dois ou três profes-
sores e, aos poucos, outros irão agregar-se naturalmente; a opção
pode ser por uma série, com várias turmas; ou com turmas de séries
diferentes, mas que tenham um grupo de professores comum às mes-
mas.
Nas séries iniciais, a metodologia pode ser aplicada, com resulta-
dos eficazes.
A abordagem interdisciplinar pode ser feita através da elaboração
de projetos.
Alguns exemplos que podem ser utilizados no trabalho
interdisciplinar, tendo como enfoque as questões que deram origem à
Lei 10.639:
- Educação Artística – estudo da arte de origem africana e
afrodescendente.
- Língua Portuguesa – influências africanas no vocabulário brasilei-
ro.
- História – a África pré-colonial: seus reis e rainhas; África: ori-
gem da raça humana; a resistência negra brasileira.
- Geografia – as riquezas naturais da África; formação da popula-
ção do Brasil.
- Matemática – estudo de tabelas, percentuais, dados estatísticos
referentes à população africana e afrodescendente.
- Ciências – estudo da formação genética do povo brasileiro.
- Educação Física – estudo da Capoeira; Ritmos de origem afro.
- Ensino Religioso – a identidade do povo negro; a ética, o respeito
à diversidade cultural; o sincretismo religioso.
A interdisciplinaridade perpassa pelo compromisso de não estar
dissociada das atividades do programa escolar, pois cada disciplina faz
a inter-relação do seu conteúdo com o tema escolhido para a ação
conjunta.
O currículo escolar estruturando-se dessa forma estará
desmistificando os erros históricos, restabelecendo a função da escola,
que deve ter compromisso com a verdade, com a moral, com os valo-
res éticos, formando a cidadania da criança e do jovem do Brasil,
71
respeitando às diferenças, trabalhando para termos um país verdadei-
ramente democrático e com igualdade racial.

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de aula: uma experiência pedagógica nas 3ª e 4ª séries do primeiro
grau. Porto Alegre. UFRGS, 1995.
SILVA, Petronilha B.G.e. Prática do racismo e formação dos pro-
fessores. In: DAYREL, J.
Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte.UFMG,
1996.
TRIUMPHO, Vera (Org). Rio Grande do Sul: aspectos da negritude.
Porto Alegre. Martins Livreiro Editor, 1991.

72
Trabalhando
a NEGRITUDE nas séries iniciais

Lair Tereza Vidal da Silva1

“Eu sou negro sim como Deus criou...”.


Inicio com esse verso de um melodioso canto composto pelos agen-
tes de Pastoral Negro, porque ele traz à tona a valorosa negritude de
que quero falar. Ser como Deus criou, para muitos negros, não é fácil;
e há razões históricas para isso, porque temos uma ideologia do
embranquecimento introjetada no psiquê da sociedade brasileira nos
quinhentos anos de nossa história. Mas aqui estamos nós, negros e
negras, com nossa garra, nossa força, nossa teimosia e nossa luta para
contarmos uma história de resistência que não é uma única, mas é a
nossa.
Pretendo com esse ensaio ajudar professores negros e não negros
a resgatarem a verdadeira história construída pelos povos africanos no
Brasil; elevar a auto-estima de nossas crianças negras; contemplar o
estudo da cultura africana no fazer pedagógico de nossos educadores,
para que os afros decendentes encontrem aí identidade cultural, e os
demais aprendam a conhecer e a respeitar as outras culturas. É sabido
que ninguém aprende o que não ama, e ninguém ama o que não co-
nhece.
Temos uma cultura europeizada que ignora a sabedoria do dono da
casa, os povos indígenas do Brasil, e discrimina pelo silêncio a contri-

1
Graduada em Letras (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cachoeira do Sul),
Coordenadora do Museu Municipal de Cachoeira do Sul – Patrono Edyr Lima,
Integrante do Grupo de Consciência Negra Raízes, Cachoeira do Sul – RS.

73
buição econômica, cultural e étnica do imenso contingente de negros
deste país.
Nós negros temos musicalidade no corpo. Cantar foi forma de
resistência para nossos ancestrais durante a escravidão. Canções can-
tadas em dialeto africano nas grandes plantações de cana, café, algo-
dão, possibilitaram organizações de fugas e rebeliões. “Cantar é rezar
duas vezes”, “Quem canta seus males espanta”, então cantemos com
nossos alunos, além do que, o canto como atividade pedagógica desen-
volve inúmeras habilidades no educando, contribuindo com a sua apren-
dizagem.
Quem de nós não cantou “Escravos de Jó” na infância?! Pois en-
tão, essa era uma das canções código cantada pelos negros. E agora,
num momento não só de resgate, mas principalmente usufruindo dessa
riqueza cultural, podemos exercitar motricidade, lateralidade e
tonicidade em Língua Portuguesa com essa canção:
Escravos de Jó
Jogavam caxambó
Bota, tira
Deixa o Zé Pereira
Que se vá.
Guerreiros com guerreiros
Fazem zigue-zigue-zá.

Criança adora cantar, aproveitemos isso! Veja a doçura desta can-


ção parodiada, onde podemos trabalhar a expressão corporal, a religi-
osidade, a educação artística e a Língua Portuguesa.

Melodia: Mãezinha do Céu

Deus Pai do céu Deus é Pai dos negros


Deus meu criador Gosto dessa cor
Venho agradecer Deus é Pai dos brancos
Pela minha cor, E dos índios também.
Pelo meu cabelo, Obrigado, Pai, pela minha cor,
Pelo meu nariz. Nasci para ser livre,
Eu sou filho de Deus Jesus é meu Senhor!
Nasci pra ser feliz

74
Para trabalharmos a geografia, a matemática e coreografia, esco-
lhemos uma música cuja letra fala de fuga. Ninguém foge do que é
bom, assim, antes de iniciar o trabalho artístico, questione seus alunos
sobre o porquê dos negros quererem fugir, mostre no mapa a localiza-
ção de Guiné e conte como eles foram roubados e trazidos de lá para o
Brasil.
Proponha aos alunos que aumentem o número de negrinhos na
canção, sempre observando o ritmo, e façam, em dupla, uma coreo-
grafia para a música.
Eram quatro negrinhos,
Todos quatro da Guiné,
Tentaram fugir
Pulando o ciricoté,
Ciricoté, caricoté,
Quatro negrinhos lá da Guiné.
E as histórias? Ah, as histórias... Quanta herança nos foi legada
através das histórias contadas por nossas negras velhas enquanto tran-
çavam nossos cabelos. Nosso cabelo é uma outra história... Somos um
povo de tradição oral por excelência, nossos ancestrais tinham nos
idosos e nas crianças um valor, onde o velho era a enciclopédia da
comunidade. Aproveitemos, pois, essa valiosa contribuição popular para,
a exemplo de nossos ancestrais, gerir em nossos alunos valores e habi-
lidades, através da mitologia africana.
Veja como é linda a Lenda da Pipoca – estrelas de Oxalá ou flores
de Xapanã, e aproveite para trabalhar religião, português, dramatização
e educação artística.
Era uma vez um forte guerreiro que vivia com seu exército e sua
família em uma aldeia africana. Seu nome era Xapanã, guerreiro va-
lente e temido em todos os reinos.
Xapanã já havia liderado muitos ataques em vários reinos, mas
existia ainda um que nunca sofrera ataque do exército de Xapanã. Isso
despertou a curiosidade do temível guerreiro e levou-o a jogar os búzi-
os para saber qual a razão. (?)
Em resposta aos búzios, Ifá respondeu:
- Xapanã, Xapanã, se a esse reino fores, de lá não voltarás.
O guerreiro ficou muito intrigado.
Enquanto isso, o povo do reino distante também consultou os
búzios, temendo o ataque de Xapanã. A esses Ifá respondeu confir-
mando:

75
- Em breve este reino será atacado por Xapanã!
Todos no reino ficaram assustados, pois temiam Xapanã, e como é
costume da cultura africana reuniram seus anciãos para ouvirem seus
conselhos de como deveriam enfrentar a situação.
Os anciãos disseram:
- Temos em nossos celeiros aquelas sementes que, ao se aquece-
rem, multiplicam-se fartas, alvas e macias, então vamos receber o
exército de Xapanã com essas sementes. ...
E assim aconteceu. Ao ser recebido de forma tão extraordinária,
Xapanã sentiu seu coração tocado, jamais reino algum o recebera com
tão gentil gesto.
Xapanã mandou buscar sua esposa, filhos e seus pertences, e esta-
beleceram-se naquele reino para sempre. Por isso, na cultura africana,
a pipoca – Estrela de Oxalá ou flores de Xapanã – é até nossos dias o
prato da solidariedade.
(Relato oral de candomblecista)

Outra variante da mesma lenda:

Xapanã era um líder que amava seu povo e por sua comunidade
dava a própria vida.
Um dia, o povo da aldeia apareceu com uma estranha doença na
pele, todos os moradores tinham como que pipocas pelo corpo.
Xapanã, ao ver o sofrimento de seu povo, foi para a beira do rio e
chamou por Olorum, rogando que ele tivesse clemência de sua gente.
Pediu que Olorum limpasse a pele dos sofridos, passando para o seu
próprio corpo o mal que aos outros afligia.
Olorum escutou o clamor do chefe Xapanã e imediatamente este
sentiu seu corpo coberto pelas feridas pipocadas, enquanto seu povo
ficava com o corpo completamente limpo. Por isso, para os negros e as
negras candomblecistas, Xapanã é o Orixá da doença, e é comum lim-
parem a casa com pipocas no final do ano, para iniciarem o próximo
com saúde. Também acontece todas as segundas-feiras, na frente da
igreja de São Lázaro, Bahia, a oferenda de pipocas que as pessoas
fazem para começarem a semana com saúde.
(Relato oral de candomblecista)

Outra rica contribuição didática é A Lenda de Iemanjá:

Iemanjá era uma linda princesa negra em terras africanas, muita


76
amada por seu pai Oxalá. Um dia Iemanjá conheceu um príncipe muito
valente, se apaixonaram e casaram. Iemanjá foi morar no reino do
esposo, mas antes de partir seu pai Oxalá chamou-a e deu-lhe de
presente um pote de barro, dizendo:
- Leva contigo este pote e guarda-o com carinho e cuidado, só
abra em caso de extrema necessidade.
Iemanjá foi muito feliz nos primeiros tempos de casada, mas de-
pois o esposo começou a mostrar-se ciumento e possessivo, fazendo
sofrer Iemanjá que um dia decidiu fugir.
Ao deixar o castelo do marido, ela lembrou-se do presente de seu
pai e voltou para buscá-lo; depois, aproveitando a noite escura fugiu.
Quando o príncipe deu por falta de Iemanjá, procurou-a por todo
castelo e não a encontrou. Reuniu então seus guerreiros e saíram ao
encalço da esposa fugitiva.
Iemanjá, ao ver-se cercada e sem saída, lembrou-se de seu pai
Oxalá, de suas palavras ao dar-lhe o presente, e cheia de confiança
abriu o pote de barro. Imediatamente jorrou dele água, muita água,
tanta água que inundou tudo ao redor. E as águas levaram Iemanjá
para muito longe do perigo, livrando-a da fúria do ciumento esposo.
Por isso até hoje Iemanjá só é encontrada nas águas, Iemanjá é a
Senhora dos Mares.
(Relato oral de candomblecista)

Temos ainda lindas lendas gaúchas cujo enfoque é o negro e que


muito enriquecem nosso cotidiano docente. Tais como: A escrava hon-
rada e Pai Coati, da região de Santa Maria, Lagoa da Pinguela, da
região de Osório, O escravo que salvou a senhora, da região de Caverá.
Dentre elas, a mais conhecida e mais linda lenda do Rio Grande do Sul,
O Negrinho do Pastoreio. Também o texto Uana e Marron de Terra, de
Lia Zatz é proposta de trabalho para ser trabalhado como leitura e
interpretação.
Uana e Marron de Terra

Uana despedaçou o papel de presente com tal energia e alegria


que o pai e a mãe sorriram talvez pela primeira vez nesta semana.
Mais um dia e ela voltaria para casa. Sarampo dos brabos este que
tinha atacado a menina. Tão brabo que nos primeiros dias teve que
ficar isolada num quartinho do hospital. Agora se recuperava num quarto
grande junto com outras crianças. O medo tinha sido enorme. Era a

77
primeira vez que ficava fora de casa, sozinha. Os pais só podiam entrar
um pouquinho, na hora da visita. Ficavam olhando pra cara dela, com
pena, os olhos marejados de lágrimas. Uana ficava até arrepiada de
pavor: lembrava o jeito que as pessoas tinham olhado pela última vez
pro Marcelo, seu primo morto atropelado por um caminhão há uns dois
anos atrás. Será que ela iria morrer também? Não teve coragem de
perguntar para a mãe. Perguntou para a enfermeira do dia: uma mu-
lher enorme que não sorria nunca, mais parecendo um robô fantasiado
de enfermeira. A grandalhona olhou bem pra menina e disse: “Sarampo
não é moleza não. Se não obedecer direitinho é bem capaz de virar
anjinho... ou quem sabe um diabinho, pois anjinho preto eu nunca vi.”
Resolveu perguntar para a enfermeira da noite que tinha mais jeito de
gente. A moça, que já ia saindo do quarto, parou, voltou, sentou na
cama de Uana e disse: “E essa força que eu posso ver no brilho destes
teus olhos de jabuticaba? Será que ela não tem mais nada para fazer
nesse mundo? Põe essa força para trabalhar, menina!” Foi a primeira
noite que Uana dormiu bem desde que tinha entrado no hospital. No
dia seguinte, estava fora de perigo e começou a se recuperar.
A menina acabou de rasgar o papel, arregalou os olhos e ficou
olhando o presente, sem saber bem o que estava sentindo. Vocês adivi-
nharam: era uma boneca. Uma boneca assim: olhos bem pretos, como
duas jabuticabas, iguaizinhos aos olhos de Uana, cabelo escuro, bem
enroladinho, igualzinho ao cabelo de Uana, pele bem marrom e brilhan-
te, igualzinha a pele de Uana (sem sarampo, lógico!). Uana nunca
tinha tido uma boneca assim, parecida com ela. Ficou confusa. Será
que achava bonita ou feia aquela nova boneca?
A hora da visita acabou, os pais beijaram Uana, prometeram vir
buscá-la bem cedinho no dia seguinte e foram embora. A menina mais
que depressa escondeu sua boneca embaixo do lençol, disfarçou, ten-
tou brincar com outras coisas, mas sua cabeça não parava de pensar:
“Não vou poder levar essa boneca na escola. Vão ficar gozando da
minha cara, vão chamar de boneca de piche que nem fizeram com a
boneca de pano, bem pretinha, que a Rosa levou. Pior ainda, só vão
deixar minha boneca ser a empregada na brincadeira de casinha. Nun-
ca vão deixar ser a mãe, ser a filha ou a avó. Quanto mais Uana
pensava, mais ficava com raiva: “Por que minha boneca só pode ser
empregada, heim?” Foi com cara de briga e falando sozinha que a
enfermeira da noite encontrou Uana, ao entrar no quarto: “Calma,
Uana, você já está quase boa. Amanhã vai para casa e mais três dias já

78
pode ir na escola.”
Uana esperou apagarem a luz e entrou debaixo do lençol. A clari-
dade que entrava pela janela foi suficiente para perceber que sua
boneca tinha mudado o penteado e a roupa. Usava agora um cabelo
cheio de trancinhas e um vestido comprido cheio de desenhos geomé-
tricos.
- Eu ia passar cândida em você mas agora...não sei não. Você está
toda bonita, enfeitada, parece que vai ao baile.
- Acho bom mesmo não passar – respondeu a boneca. – Ou você tá
querendo que eu fique com cara de fantasma de barata descascada? E
depois, fique sabendo que bonita eu sempre fui, enfeitada ou
desenfeitada!
- Tá doido! Nunca vi boneca mais mal-educada.
- E não é pra ser? Você me esconde embaixo do lençol, morre de
vergonha, não sabe se me acha bonita ou feia... pois vem aqui pertinho
que vou te contar uma estória...
No dia seguinte, com cara de sono mas feliz, Uana foi para casa
com os pais, carregando orgulhosamente sua boneca. Três dias depois,
entrando na escola com a boneca no colo, foi logo convidando os ami-
gos para brincar:
- Só que hoje minha boneca é uma princesa: uma princesa africa-
na, chamada Marrom de Terra. Quem quer brincar?
Teve quem não quis e arrumou logo outra brincadeira. Mas teve
menina querendo ser Branca de Neve e teve menino querendo ser
príncipe, e teve menina querendo ser bruxa e teve menino querendo
ser guerreiro. E quem brincou foi conhecendo a história de Marrom de
Terra, uma princesa muito antiga, talvez mais antiga que a Branca de
Neve, mas que só agora tá começando contar sua história por aí...
Querem saber como começa essa história?
“Era uma vez, há muitos e muitos anos atrás, numa pequena
aldeia da África, um povo que vivia unido e feliz. O chefe da aldeia
tinha uma filha que além de muito linda e bondosa, tinha sido abenço-
ada pelos orixás com mais um precioso dom: o de conversar com a
terra. A terra lhe ouvia, não tinha seca nem encharcada e assim as
colheitas eram abundantes e o povo da aldeia nunca passava fome. Por
isso e também por sua pele marrom e brilhante como a terra depois da
chuva, chamavam-na de Marrom de Terra. Até que um dia...”
(Relato oral de candomblecista)

79
Ainda trabalhando o lúdico, podemos utilizar as inocentes brinca-
deiras infantis que além de atraentes, podem retratar diferentes his-
tórias do nosso povo. Negrinhos da África é uma das muitas brincadei-
ras que se presta para isso. Aqui, iremos usá-la para contar às crianças
como os negros vieram da áfrica com o domínio sobre a agricultura e
fundição, aprendendo aqui diversos ofícios como sapateiro, alfaiate,
barbeiro e outros mais. Quando se mostravam aptos, eram mandados
para a cidade como escravos de ganho para exercerem esses ofícios,
sendo que todo o dinheiro arrecadado durante o dia era entregue ao
seu senhor.

Negrinhos da África
Objetivo:
· Conhecer, valorizar e preservar a cultura africana;
· Desenvolver habilidades corporais diversas, que possibilitem a
dramatização;
· Reconhecer e usar as diferentes formas de expressão não verbal,
· Exercitar a criatividade;
· Trabalhar limite e freio inibitório.

Como brincar:
· A dinamizadora risca o chão, dividindo o espaço em dois;
· Divide as crianças em dois grupos;
· Cada grupo escolhe um ofício (profissão) e combina a mímica que
será encenada para representá-lo;
· A dinamizadora risca o chão, dividindo o espaço em dois, determinan-
do um lado para cada grupo;
· Dispostos em fileira, de frente um grupo para o outro, inicia a brinca-
deira;
1. Grupo 1 – bate palmas.
2. Grupo 2 – pergunta: Quem é?
3. Grupo 1 – responde: Negrinhos da África.
4. Grupo 2 – pergunta: que ofício traz?
5. Grupo 1 – responde por meio da encenação mímica combinada.
6. Grupos 1 e 2 – enquanto o grupo 1 encena a resposta, o grupo 2 vai
nomeando Ofícios e tentando pegar componentes do grupo adversário;
estes por sua vez, esquivar-se-ão, evitando se deixar apanhar.
7. Quando elemento do grupo 2 acertar o ofício e, ao mesmo tempo,
pegar um oponente, este passará a fazer parte do grupo 2, invertendo

80
a situação, ficando o grupo 2 responsável pela mímica do ofício e o
grupo 1 tendo de identificá-lo.

Referências Bibliográficas:

A libertação dos escravos em quadrinho. Desenho de textos e


capa Eugênio Colonnese; Quadrinização Pedro Anísio. Ed. Brasil-Améri-
ca, 1970.
ARAÚJO, Chloris de. Histórias de vovó zabelê. Ilust. Cláudio Luchesi
e Themilton Tavares. Ed.Paulinas, 5ª ed., 1984.
BLOCH, Pedro. Dito, o negrinho da flauta. Ilust.Marcelo Cips.
Ed.Moderna, 11ª ed., 1986.
DEMARQUET, Sonia. Em busca da liberdade. Ilust. Paula Regis
Junqueira. Ed.Vigília, 1986. Série Meninos de Nossa História.
MACHADO, Ana Maria. Do outro lado tem segredo. Ilust.Gerson
Conforto. Ed.Nova Fronteira, 4ª ed.,1985.
________. Mandingas da ilha quilomba. Ilust.Flávia Savary. Ed.
Salamandra, 3ª ed., 1984.
________. Menina bonita do laço de fita. Ilust.Walter Ono. Ed.
Melhoramentos, 1986. Série Conte Outra Vez.
MOTT, Odette de Barros. E agora? Ed. Brasiliense, 22ª ed., 1986.
Col. Jovens do Mundo Todo.
NICOLELIS, Giselda Laporta. Da cor do azeviche. Ilust.Edu.
Ed.Salamandra – INL, 1986.
OLIVEIRA, Alaíde Lisboa de. A bonequinha preta. Ilust. Ana Ra-
quel. Ed.Lê, 1982. Col. Primeiras Leituras.
OLIVEIRA, Ganymedes José Santos de. A história do galo marqu-
ês. Ilust.Maria Ângela Haddad Villas. Ed. Moderna, 1982.
Rocha, Ruth. A decisão do campeonato. Ilust. Ivan & Marcello.
Ed. Rocco, 2ª ed., 1985. Col. Catapimba e Sua Turma.
SANTOS, Joel Rufino dos. A botija de ouro. Ilust. José Flávio Teixeira.
Ed. Ática, 1986. Col. Curupira.
________. Dudu calunga. Ilust.Zeflávio Teixeira. Ed. Ática, 1986.
Col. Curupira.
________. O mistério de zuambelê. Ilust.Gerson Conforto.
Ed.Abril, 1983.

81
Leis e Decretos de Viamão Anti-Racismo

1. Lei Municipal 2.551/96: institui a Seman da Umbanda e


das Religiões Afro-Brasileira;

2. Lei Municipal 3.072/02: institui a Semana Municipal de


Estudos da Semana da Consciência Negra;

3. Decreto Executivo 088/02: regulamenta as atividades a


serem realizadas na Semana de Estudos da Conciência Negra.

4. Lei Municipal 3197/03: estabelece a cota de 20% para


estudantes Afrodescendentes em estágio Municipal;

5. Lei Municipal 3210/04: estabelece cota de 44% para


Afrodescendentes em Concurso Público;

6. Lei Municipal 3217/2004 que reserva 44% das vagas nos


cargos comissionados para afro-brasileiros;

7. Lei Municipal 3.277/04: estabelce Identificação de Raça


e Etnia nos dados cadastrais da administração;

8. Decreto Executivo 017/05: convoca a Iª Conferência Mu-


nicipal de Promoção para Igualdade Racial.

82
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Mensagem de veto

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases


da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e


eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos


seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,


torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo


da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra
brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição
do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no


âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de
Literatura e História Brasileiras.

§ 3o (VETADO)”

“Art. 79-A. (VETADO)”

“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da
Consciência Negra’.”

Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e 115o da República.

Luiz Inácio Lula da Silva

Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

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