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A sua vida, muito conhecida, torna-o inteligível também para muitos não-
cristãos. Retórico, homem do mundo, carnal, fez um longo esforço para
encontrar a chave da inquietação que o devorava. Primeiro maniqueu, depois
platônico, finalmente convertido, num célebre momento que ele mesmo contou
com um gênio inimitável.
A BUSCA DA VERDADE
A verdade está no interior do homem. “Não queiras sair para fora; é no interior
do homem que habita a verdade”. E há verdades constantes, inalteráveis, para
sempre. Dois mais dois serão sempre quatro. Santo Agostinho tenta esclarecer
de onde pode vir essa verdade. Não das sensações, diz, porque essas são e não
são, são mutáveis, efêmeras. Tampouco do espírito humano, que, por profundo
que seja, é limitado. Essas verdades eternas só podem ter por autor Aquele que
é eterno: Deus. São reflexos da verdade eterna, que nos ilumina e nos permite
ver. Nisso consiste o que depois ficou conhecido como “doutrina da
iluminação”; porém, desde já é preciso dizer que Santo Agostinho não a
apresenta nunca como uma “teoria”, mas como uma comprovação. Já no final
da sua vida, diz nas Retractationes que o homem tem em si, enquanto é capaz,
“a luz da razão eterna, na qual vê as verdades imutáveis”.
A BUSCA DE DEUS
Qual é o melhor nome para Deus? O que se lê no Êxodo: “Aquele que é”. “Non
aliquo modo est, sed est est” (Confissões). Santo Agostinho dará com
freqüência a Deus o nome de Bem, de Amor, porém não desconhece que antes
de tudo Ele é; e porque é o que é, é Amor, Bem, Infinito. São Tomás de Aquino
não precisará modificar nada de substancial nesta metafísica agostiniana. Como
exemplo das dezenas de textos agostinianos, temos este, das Confissões: “Eis
que o céu e a terra são; e dizem-nos em altos brados que foram feitos, pois
modificam-se e variam. Porque, naquilo que é sem ter sido feito, não há coisa
alguma agora que antes não houvesse: que isso é modificar-se e variar. O céu e
a terra clamam também que não se fizeram a si mesmos: somos porque fomos
feitos; não éramos antes que fôssemos, de modo a termos podido ser por nós
mesmos. Basta olhar para as coisas para ouvi-las dizer isso. Tu, Senhor, fizeste
essas coisas. Porque és belo, elas são belas; porque és bom, são boas; porque tu
és, elas são.”
Esta última afirmação (quia est: sunt enim) significava a definitiva superação
por parte de Santo Agostinho do essencialismo platônico. Deus é causa do ser
das coisas, porque é o Ser por essência. Se a fórmula de Santo Agostinho não é
essa, a idéia é.
Voltemos à questão anterior. Deus é Aquele que é; as coisas são criadas. Deus
é quem lhes deu o ser. Por quê? Por pura bondade. “Porque Deus é bom,
somos.” A razão da criação é a bondade de Deus. Deus não pode ter, no seu
querer, outro fim que não o seu próprio ser. Só em relação a si mesmo pode
querer mais. A criação é gratuita. Não há nada preexistente. Santo Agostinho
acaba com as dúvidas de Orígenes e com o universo grego, eterno.
Deus cria todas as coisas do nada. E todo o criado é composto de matéria. Santo
Agostinho, que durante tanto tempo não conseguiu conceber uma substância
espiritual, não deixa de atribuir uma certa materialidade mesmo às criaturas
espirituais, aos anjos. A absoluta imaterialidade só cabe a Deus. Em Deus estão
as idéias exemplares de todas as coisas, que são as formas. Ao criar, essas idéias
ficam limitadas pela matéria, mas, ao mesmo tempo, nessa matéria já estão os
germes de tudo o que será: as rationes seminales.
O ENIGMA DO HOMEM
Fica claro que a alma é imortal, porque conhece as verdades imortais e eternas.
Que conheçamos o que seja a verdade e que nunca deixará de sê-lo é, para Santo
Agostinho, evidente. Como pode morrer ou desaparecer o que é a sede do
indestrutível?
A alma será sempre um mistério. Muitas outras realidades sobre as quais
pensamos também o são. O tempo. É famoso o dito agostiniano: “Se ninguém
mo pergunta, sei; mas se quero explicá-lo a quem mo pergunta, não o sei”.
Depois de uma análise do passado, do presente e do futuro – até hoje não
superada –, Santo Agostinho concluí: “Não se diz com propriedade «três são os
tempos: passado, presente e futuro»; talvez fosse mais apropriado dizer:
«presente das coisas futuras, presente das coisas passadas, presente das coisas
presentes». Porque essas três presenças têm algum ser na minha alma, e é
somente nela que as vejo. O presente das coisas passadas é a memória; o
presente das coisas presentes é a contemplação; o presente das coisas futuras é
a expectação” (Confissões). O tempo é, assim, distensio animi, “uma espécie
de extensão da nossa alma”. É preciso ler ao menos esse livro XI das Confissões
para captar o tom da filosofia agostiniana: incerta às vezes, nada dogmática, em
diálogo constante com Deus.
A COMPLEXIDADE DA HISTÓRIA
A Cidade de Deus é mais uma das grandes obras universais que Santo
Agostinho legou à humanidade. Mas poucos escritos têm sido tão mal lidos, tão
mal interpretados. A oposição entre Cidade de Deus e Cidade terrena foi vista
como oposição entre Igreja e Estado. Nada mais falso. O texto célebre não deixa
lugar a dúvidas. Dois amores criaram duas cidades: o amor próprio, que leva ao
desprezo de Deus, a terrena; o amor de Deus, que leva ao desprezo de si mesmo,
a celestial. Ou: “Dividi a Humanidade em dois grandes grupos. Um é o daqueles
que vivem segundo o homem; o outro, o dos que vivem segundo Deus. Damos
misticamente a esses dois grupos o nome de cidades, que quer dizer sociedades
de homens”.