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Vertentes do

MARIA ALICE REZENDE DE CARVALHO

republicanismo

no Oitocentos

brasileiro

A
o longo da década de 1870 tornou-se
evidente o fim de um certo consenso

valorativo que caracterizara, até então,


o Império. Após a Guerra do Paraguai,

a cidade e a cultura derivada dela desa-

fiaram a metáfora do “jardim sóbrio e


firme” com que os conservadores re-

presentavam a permanência da civiliza-


ção agrária brasileira. A noção de mu-

dança, trazida então pelos liberais, im-


pôs-se, começando por deslocar a con-

cepção atemporal das representações


tradicionais do Brasil.

De fato, esgotadas as energias revo-


lucionárias que sacudiram o país até o

final da década de 1840, as idéias de


movimento, mudança e outras noções
MARIA ALICE
REZENDE DE correlatas conheceriam um certo des-
CARVALHO
é professora do Iuperj.

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A partir de 1850, portanto, o senti-
mento conservador se instalou de for-

ma tão vasta que, nas palavras do vis-


conde do Uruguai, recobriu todas as

dimensões da vida brasileira – a políti-


ca, primeiro, completando-se na inte-

lectual, na moral, na material, na religio-

sa. Paralisados desde então, os liberais


viveriam ainda mais algum tempo sob

os efeitos de sua derrota, submergindo


em uma cena pública desvitalizada, qua-

se inerte, resultado da conciliação en-


tre “moderados conservadores, dese-

jando reformas parciais, e velhos libe-


rais, abjurando revoluções” (1).

Aquele foi o tempo, como se sabe,

de consolidação do Estado imperial,

quando lideranças conciliadas e arre-


fecimento do ânimo partidário traduzi-

am o curso de um processo de centra-

prestígio. Se a lembrança do passado lização do poder – ou, na linguagem da

revolucionado pelas paixões partidá- época, uma vitória da razão administra-

rias precisava ser apagada, a fabricação tiva sobre as “paixões” das casas se-

de imagens ideais do futuro, cerceada nhoriais; ou ainda, da soberania nacio-

pelo recorrente medo de um descon- nal sobre a “tutela de facções” que


1 Paulo Mercadante, A Consci-
ência Conservadora no Brasil,
trole semelhante era das mais limitadas. apenas cuidavam de interesses particu- Rio de Janeiro, Saga, 1965, pp.
163-4.
O presente tornou-se, assim, o grande lares, negligenciando o bem comum (2). 2 As expressões são do visconde
do Uruguai, extraídas de: En-
estuário das crenças, expectativas e re- Pretensão de fôlego, a obra dos cha- saio sobre o Direito Administra-
tivo, 1862, apud Ilmar Rohloff
de Mattos, “O Lavrador e o
presentações sobre o Brasil – um pre- mados construtores do Império – con- Construtor – o Visconde do
Uruguai e a Construção do Es-
sente atemporal e perene, em que Joa- servadores à frente – consistiu, entre tado Imperial”, in Maria Emília
Prado (org.), O Estado como
Vocação. Idéias e Práticas Polí-
quim Nabuco identificará um sintoma outras coisas, em produzir instrumen- ticas no Brasil Oitocentista, Rio
de Janeiro, Access , 1999, pp.
do conservadorismo brasileiro. tos para o exercício de tão vasta lide- 191-218.

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rança, dentre eles o próprio vocabulário ros políticos”, com seu séqüito de apadri-
político, que teve alguns termos redefinidos, nhados e oportunistas.
algumas distinções estabelecidas. Uma Por fim, relacionada à diferenciação
dessas distinções concerniu à idéia de mo- entre governo e Estado, foi a separação que
vimento, que, à diferença de “agitação”, o visconde do Uruguai estabeleceu entre
foi agregada ao campo político conciliado. poder político – locus, como se viu, dos
Desse modo, conservação e movimento não particularismos – e poder administrativo, um
seriam incompatíveis – ao contrário: sua poder apolítico, entendido como elemento
associação denotava a possibilidade de uma de conservação e progresso, já que posto
marcha progressiva de conquistas, que, acima dos interesses de grupos para melhor
contudo, levasse em conta a tradição, que “prover as necessidades coletivas”. A con-
não desconhecesse aquilo que o visconde seqüência destacável dessa associação en-
do Uruguai tratava como as “especifici- tre poder administrativo e bem comum foi a
dades” do país – ainda que, em sua própria política de interiorização de agentes do Es-
avaliação, grande parte delas, fosse transi- tado no espaço territorial do Império – ver-
tória. Pode-se entender, nesse caso, que o dadeiro bandeirantismo de funcionários,
compromisso entre mudança e conserva- destinado a romper o isolamento das casas
ção referia-se, basicamente, a um método senhoriais para melhor vigiá-las e dirigi-las,
de inscrição do Brasil no curso de uma his- afirmar o controle sobre o território e inte-
tória ocidental, de sentido já previsto e grar os homens livres, dispersos nas veredas
consagrado, embora em registro mais amá- do “Brasil de dentro”, à esfera estatal.
vel, sem os saltos revolucionários da Ingla- Mas o resultado político desse empreen-
terra do século XVII, e da França, no XVIII. dimento, tão importante quanto pouco des-
Outra distinção importante foi aquela tacado, terá sido a entrada em cena de um
estabelecida entre governo e Estado impe- princípio de unidade operado pela monar-
rial, cujas conseqüências institucionais – a quia – princípio esse que, em alguns mo-
existência do Poder Moderador, por exem- mentos, terá o seu sentido vazado por ideais
plo – não são pequenas, mas não serão tra- mais sensíveis como o de “justiça una”, no
tadas neste texto. Aqui será mencionada contexto da abolição da escravidão, ou o de
apenas a substância daquela distinção – o “vontade geral”, empunhada pelos intelec-
fato de que governo e Estado, no Império, tuais reformadores do Estado imperial quan-
tenham sido concebidos como instâncias do já ia alta a propaganda republicana. O
apartadas e movidas por ideais diversos, já argumento a ser fixado, nesse passo, é o de
que o governo se voltava à consecução de um Estado imperial progressivamente iden-
interesses necessariamente parciais, pró- tificado com princípios de teor republica-
prios do partido ou da facção que estivesse no, em sua forma e orientação.
no comando da política, enquanto o Estado O modelo, enfim, era o das monarquias
imperial dedicava-se a estender a sua bene- administrativas que vicejaram no período
merência por todos quantos fossem e onde da Restauração européia, e que tiveram
estivessem os brasileiros. como inspiração a cultura ao mesmo tem-
A conseqüência mais óbvia dessa ar- po cortesã e burocrática do Império na-
quitetura terá sido a depreciação da políti- poleônico, com sua dinâmica centralizadora
ca parlamentar, dos sistemas partidário e e expropriadora dos poderes aristocráticos,
eleitoral, por parte dos grandes expoentes sua hierarquia de funcionários públicos in-
da elite brasileira oitocentista; a deprecia- teressados em consolidar os órgãos da ad-
ção, enfim, da política com “p” pequeno – ministração, com sua perspectiva em al-
como a ela se referirá, apenas para citar um guns casos territorialista, porém sempre
dos mais notáveis dentre eles, Joaquim civilizatória, empenhada em estabelecer a
Nabuco –, daquela política que gira expli- presença do Estado onde parecia impossí-
citamente em torno de interesses e, portan- vel, com sua crença na institucionalização
to, enseja o aparecimento dos tristes “bair- das profissões intelectuais reguladas por

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O abolicionista
Joaquim
Nabuco

institutos e academias e, finalmente, com a atuação de intelectuais estatais, responsá-


abertura de postos da burocracia estatal a veis pela aclimatação local dos efeitos da
representantes dos estratos médios da so- Revolução Francesa, sem, evidentemente, 3 Sobre o conceito gramsciano
de “reação-superação da re-
ciedade, que passaram a ser incorporados o concurso da revolução (3). volução francesa” nas forma-
principalmente no setor militar do funcio- O fato é que o apogeu do Império bra- ções nacionais periféricas, cf.:
Luiz Werneck Vianna, “O Ator
nalismo. Tal modelo, plenamente reconhe- sileiro caracterizou-se pelo esforço de cons- e os Fatos: Revolução Passiva
e Americanismo em Gramsci”,
cível no programa construtivo dos saqua- trução de instituições ajustadas a um in A Revolução Passiva –
remas e que terá perdurado, já com os libe- racionalismo típico da cultura barroca – ra- Iberismo e Americanismo em
Gramsci , Rio de Janeiro,
rais, até a Proclamação da República, per- cionalismo de fundo teológico, segundo o Revan, 1997. Para o caso bra-
sileiro, cf.: Maria Alice
mite inscrever a consolidação do Império qual Deus (razão suprema) seria o meio de Rezende de Carvalho, O Quin-
brasileiro no contexto mais amplo em que prova das doutrinas morais, legais e políti- to Século. André Rebouças e a
Construção do Brasil, Rio de
tiveram curso processos de modernização cas da vida secular. Já no contexto colo- Janeiro, 1998, especialmente
de formações sociais periféricas, nos quais, nial, esse preceito neo-escolástico operou o capítulo “Três Caminhos Bra-
sileiros – o Rinnovamento”, pp.
dentre outras características, foi comum a em registro político, afirmando a razão 22-46.

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incontrastável do rei em luta contra as for-
ças irracionais da dispersão. E, afinal, pela
ação dos saquaremas, em pleno ambiente
oitocentista brasileiro, assumiu a figura de
uma razão de Estado que, em nome do bem
comum, realiza a paz e a unificação da classe
senhorial em uma ordem arquitetonicamen-
te concebida – na base, a família patriarcal,
acima dela, o patriciado dirigente e, acima
deste, o cérebro, o núcleo ativo daquele
edifício, representado na pessoa do impe-
rador, critério último de avaliação da coe-
rência entre as aspirações nacionais e a Idéia
fundadora (4).
Essa narrativa nacional, que, em última
instância, consignava o caráter transcen-
dente da civilização que se erigia pela ação
do imperador, ainda que extemporânea em
sua epistemologia e retrógrada em sua ori-
entação institucional estratégica – uma vez
que assumiu um territorialismo “defensi-
vo”, típico dos nacionalismos europeus,
quando já tinha curso a experiência norte-
americana de um territorialismo fundado

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na ação coletiva de colonos-proprietários A partir daí, duas concepções de repú- Na página
(5) –, tal narrativa, repita-se, continha, po- blica passaram a povoar o horizonte dos
rém, aspectos que se mostraram bastante debates políticos no Império brasileiro. A
anterior, em
permeáveis ao imaginário republicano que primeira delas, mais forte, enunciada, não cima, Nabuco
se adensaria nos anos de 1870-80. à toa, por um “radical urbano” – André Re-
na Academia
Primeiramente, porque relevou os temas bouças –, reeditava em grandes linhas uma
do bem comum e da moralização do interes- tradição americanista que já circulara com Brasileira de
se, ou seja, chamou a atenção para a virtude Teófilo Otoni e Tavares Bastos, cuja imple- Letras e,
contida na conversão das “paixões pri- mentação, contudo, dependia de uma trans-
vatistas” em desejo de felicidade coletiva – formação completa da estrutura econômi-
embaixo, na
ainda que tal conversão fosse considerada co-social brasileira. Conferência
atribuição do Estado imperial. Rebouças, por aquela época, constituí-
Pan-Americana,
Secundariamente, porque incorporou ra o tema do interesse individual como fun-
um certo dinamismo à estrutura atemporal damento de uma nova sociedade, por acre- 1906
e naturalizada das figurações sobre o Bra- ditar nos efeitos moralizadores que advi-
sil – mesmo que tal dinamismo fosse mais riam da liberdade experimentada pelo ho-
compatível com o tema do aperfeiçoamen- mem comum na condução de sua própria
to, isto é, com a proposta de uma auto-re- vida e prosperidade. O associativismo en-
forma das instituições estatais, do que com tre indivíduos autônomos seria o ambiente
a perspectiva da ruptura, do cancelamento social onde prosperaria a solidariedade e a
do estado de coisas existente, como deseja- boa vida. Porém, para que isso se verificas-
riam os republicanos. se, a república propugnada por ele deveria
Finalmente, porque, do ponto de vista alterar dois aspectos básicos da ordem vi-
empírico, as monarquias administrativas gente: libertar o trabalhador – escravo ou
tenderam a favorecer o crescimento e a com- livre – do jugo do grande proprietário e
plexificação da vida urbana, uma vez que reduzir a área de influência do Estado, ga-
seus funcionários, desgarrados da estrutu- rantindo maior liberdade de ação aos indi-
ra agrária, passaram a viver, pensar e agir víduos e de cooperação entre eles.
4 Sérgio Buarque de Holanda,
em um cenário inteiramente novo e públi- O limite desse novo giro americanista Raízes do Brasil, Rio de Janei-
ro, José Olympio, 1936;
co, como o da cidade, em que critérios iné- do final da década de 1870 dizia respeito ao Richard Morse, O Espelho de
ditos de reconhecimento e prestígio come- fato de que, para Rebouças, a defesa da Próspero, São Paulo, Compa-
nhia das Letras, 1988; Ruben
çam a regular seu comportamento e a apro- república com essas características sequer Barboza Filho, Tradição e Ar-
tifício, Belo Horizonte, Editora
fundar sua autonomia em relação ao mun- previa a possibilidade de uma revolução. da UFMG, 2000.
do de onde, quase sempre, provinham (6). Nisso Rebouças diferia de Teófilo Otoni 5 Giovanni Arrighi, O Longo Sé-
De modo que, em meados da década de que, na primeira metade do século, levara culo XX. Dinheiro, Poder e as
Origens de Nosso Tempo, Rio
1870, quando o carro liberal começou no- suas idéias às últimas conseqüências. O fato de Janeiro/São Paulo,
vamente a se mover, o tema da cidade, como é que, ou porque o caos revolucionário vi- Contraponto/Unesp, 1994.

metáfora fundacional da república (7), não vido no período regencial havia sido muito 6 Sobre a constituição de uma
elite desvinculada dos interes-
encontraria aqui, inteiramente prontos, os fortemente associado a uma fracassada ses dos proprietários rurais e o
aparecimento dos “radicais
atores adequados à sua filologia – afinal, a “experiência republicana no Brasil” (8) e, urbanos” no último quartel do
sociedade brasileira se apresentava confor- a partir daí, o binômio república-revolução século XIX, cf.: José Murilo de
Carvalho, A Construção da
tavelmente assentada nos princípios da passasse a sofrer uma rejeição generaliza- Ordem, Rio de Janeiro, Edito-
domesticidade e da desigualdade. Mas já da; ou porque os anos saquarema haviam ra da UFRJ/Relume-Dumará,
1996.
encontraria, sim, uma certa audiência, cristalizado, de fato, a idéia de que a socie-
7 Eric Auerbach, “La Cour et la
educada publicamente, que começou a dar dade é sempre fonte de vícios, lugar das Ville”, in Luiz Costa Lima (org.),
Teoria da Literatura em suas
indícios de que a grande cultura do Impé- paixões privatistas, e que a sua reforma, Fontes, Rio de Janeiro, Francis-
rio, seu repertório intelectual, a imagem, nas circunstâncias brasileiras, só poderia co Alves, 1974.

enfim, de um jardim que se repunha nos vir pelo Estado; ou porque Rebouças re- 8 Joaquim Nabuco, Um Estadis-
ta no Império. José Thomaz
trópicos sem alterações de grande monta conhecia a inexistência de atores sociais Nabuco de Araújo, sua Vida,
desde o período colonial, tudo aquilo se capazes de fazê-lo, ou, ainda, por todos suas Opiniões, sua Época, Rio
de Janeiro, Nova Aguillar,
esgotava rapidamente. esses motivos, o fato, repita-se, é que ele 1975.

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abdicou, tal como os demais liberais de – foram de natureza empírica. Em 1889,
seu tempo, de inserir no horizonte político quando caiu a monarquia, caiu também a
a revolução agrária popular-democrática. possibilidade de viabilização do ideal repu-
Seu radicalismo, por isso, esgotou-se em blicano de Nabuco – a “monarquia demo-
círculos urbanos mais restritos, o que, al- crática e popular” (11). Concluiu, assim, que
gumas décadas mais tarde, daria munição o movimento militar, liderado por Deodoro
à crítica de Oliveira Vianna ao liberalis- da Fonseca, fizera apenas desmoronar o cimo
mo brasileiro. de um edifício hierárquico que era o que
A segunda concepção de república, auferia honra aos diferentes lugares
também presente nas últimas décadas do estamentais e dignidade aos indivíduos.
século XIX, era mais fraca, mais precavi- Nabuco reconhecia, ademais, que, a repú-
da, mais atenta às circunstâncias locais. blica se instalara porque a base desse edifí-
Dela se pode dizer que, de fato, represen- cio hierárquico já se encontrava corroída,
tou uma acomodação do ideário republi- desde que a “aristocracia de maneiras” – as
cano ao acervo ideal, material, cultural e elites tradicionais nordestinas – fora substi-
político dos construtores do Império. Seu tuída pelos novos fazendeiros do sul, com
portador, Joaquim Nabuco, dificilmente seu instinto utilitário e individualista, para
poderia ser identificado com um republi- quem os trabalhadores eram “iguais entre
cano, nos moldes em que essa figura viria si”, porém, nada além do que “meros instru-
a se apresentar em 1889 – sua rejeição mentos de colheita” (12). Segundo Nabuco,
àquele personagem, aliás, não foi apenas a república vitoriosa pôde renegar os nossos
veemente, como sincera (9). costumes e teve a intenção de escrever uma
Sua principal contribuição, contudo, nova história, produzir uma nova tradição.
foi a de conceber a república como uma Vista da perspectiva do fim do século, era a
“forma vazia”, e, a partir daí, tentar carac- morte de tudo em que Nabuco acreditara.
terizar, no Brasil, a substância a preenchê- Derrotadas, as idéias de Rebouças e
la. Os temas da agenda saquarema, no que Nabuco não foram completamente supera-
ainda podiam representar a produção de das. Em Rebouças, por exemplo, encontra-
um certo consenso – ou como se dizia: se a questão da moralização do interesse –
uma consciência única, apartidária, naci- pode o interesse individual constituir a ba-
onal –, fizeram-se, então, presentes. Em se de uma república? Em Nabuco, talvez
9 Joaquim Nabuco, Minha For- Nabuco, por exemplo, encontra-se a no- importe atentar para a idéia da república
mação , Rio de Janeiro,
Topbooks, 1999.
ção de mudança sem ruptura com a tradi- como um “método” de aperfeiçoamento
ção; encontra-se também o desejo de permanente e progressivo das instituições
10 Luiz Werneck Vianna e Maria
Alice Rezende de Carvalho, integração ao século, sem, contudo, a e da vida social. É o que se buscará apre-
“República e Civilização Brasi-
leira”, in Newton Bignoto (org.), importação irrefletida de soluções engen- sentar a seguir.
Pensar a República, Belo Hori- dradas em outras formações nacionais;
zonte, Editora UFMG, 2000,
pp. 131-54. encontra-se, ainda, a defesa de uma vida •••
11 A expressão é de André Re- pautada pela exemplaridade dos ancestrais
bouças, referindo-se à concep-
ção republicana de Joaquim
da pátria, e não pela adoção de virtudes Nos primeiros anos da década de 1870,
Nabuco. Cf.: Maria Alice extraídas de uma cartilha filosófica, como Rebouças teve em suas mãos a obra de L.
Rezende de Carvalho, O Quin-
to Século. André Rebouças…, a do jacobinismo; encontra-se, por fim, a Reyband, Vie de Harrington (13).
op. cit., p. 170. crença na experiência como um marcador Harrington representava, no debate que
12 Joaquim Nabuco, Minha For- ideal do nosso destino, e a descrença em teve curso na Inglaterra do século XVII, a
mação, op. cit. Ver também,
sobre o tema: Maria Alice uma república que nasce da adesão dos assimilação das idéias de Maquiavel sobre
Rezende de Carvalho, “Joaquim
Nabuco – Minha Formação”,
homens a princípios abstratos. a fundação democrática do Estado. Ao con-
in Lourenço Dantas Mota (org.), Os limites dessa concepção – em que trário da recepção francesa, portanto, que
Introdução ao Brasil (2). Um
Banquete no Trópico, São Pau- pese ter ela cumprido uma trajetória muito classificara a obra de Maquiavel como uma
lo, Senac, 2001, pp. 219-37. além do contexto em que foi originalmente teoria da violência, adaptada à sustentação
13 Maria Alice Rezende de Car- produzida, sendo, mesmo, uma das linhas apologética do Estado absolutista, na In-
valho, O Quinto Século…, op.
cit., p. 165. de força do nosso processo civilizatório (10) glaterra predominaria uma recepção pro-

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gressista e republicana, a que a chave puri- mento do interesse moderno; mas, antes, a
tana conferiu um conteúdo prático, de cu- garantia de que o interesse, em se expan-
nho revolucionário. dindo permanentemente, reporia as bases
Assim, o puritanismo inglês – ainda não do conflito e impediria o estiolamento da
rotinizado e tornado uma parábola ética do política (15).
capitalismo – conheceria a radicalidade de Em síntese, o Maquiavel republicano
uma Beruf coletiva do político, que se tra- assimilado por Harrington exalta a religião
duziu na “revolução dos santos” (14). De civil de um povo em armas, capaz de fazer
modo que aquilo que foi considerado o li- da virtude a garantia da república e, da pro-
mite da dialética maquiaveliana no cenário priedade, a sua base material. Sob o repu-
florentino – a polaridade entre virtú e for- blicanismo inglês, a atividade virtuosa do
tuna, ou seja, entre a atualidade ética e o cidadão está indissociavelmente ligada à
devir político – assumiu, na Inglaterra, um propriedade e à permanente democratiza-
registro religioso e, por analogia à discus- ção do acesso a ela – ultrapassando, por isso,
são sobre o livre-arbítrio, que também opu- a caracterização que os seus antagonistas
nha a atualidade da liberdade e o devir da lhe imputaram, qual seja, a de uma reedição
graça, resolveu-se igualmente pela ação, recessiva da noção de governo misto de
pelo movimento incessante a que se entre- Políbio. Em outras palavras, ao atribuir uma
gam os homens de fé, mesmo ignorando o base material à teoria dos contrapesos polí-
seu desfecho. ticos da Roma imperial, Harrington se ins-
Aquela era a Inglaterra do capitalismo crevia entre os modernos, embora se movi-
nascente, em que a liberdade praticada em mentasse contra o capitalismo nascente, que
nome da fé ainda é potência, ainda é puro representava um obstáculo à autono-
desejo de mudança; era a Inglaterra em que mização de pequenos proprietários.
a virtude assumia a forma de um “povo em Daí que, na Revolução Inglesa, o prin-
armas” e a fortuna se mantinha como um cípio republicano se apresente como uma
horizonte aberto, que ainda não se cristali- proposta política de oposição ao status quo,
zara na forma de um destino inamovível. e não como um ideal antigo ou uma utopia
No âmbito do pensamento de Maquiavel, a messiânica, pois ele prevê uma tradução
discussão se fecha nesse salto – ou seja, na material e cognitiva da virtude, passando a
constatação de que a virtude pode ser cor- representá-la como a autonomia do homem
rompida pela fortuna consolidada, pelo mo- comum, garantida pela propriedade. Em
mento em que fossem eliminados da Cida- Harrington, a possibilidade de corrupção
de os seus aspectos conflitivos e, com eles, da república não derivava mais da dialética
a sua potencialidade democrática. naturalista de Políbio, da necessária cadu-
Assim, a vitalidade da república con- cidade cíclica de um Estado virtuoso na
sistiria na preservação de um contexto origem, e sim da corrupção dos proprietá-
“aberto”, no qual a liberdade praticada em rios mesmos, pela experiência de rotini-
nome da fé fosse ainda um horizonte, des- zação da riqueza, pelo esquecimento do
conhecendo a forma cristalizada de uma êmulo instituinte de uma sociedade demo- 14 Michael Walzer, The
“jaula”, de um destino inamovível. Nesse crática (16). De modo que a Constituição Revolution of the Saints. A Study
of the Origins of Radical
sentido, a questão republicana inglesa con- republicana atenderia a essa função “reme- Politics , Harvard University
sistia em impedir que, tal como ocorrera morativa”, organizando a vida social em Press, 1965.

em Florença, a dialética se fechasse com a moldes que lhe permitissem continuar 15 Antonio Negri, El Poder
Constituyente. Ensaio sobre las
cristalização da política, isto é, com a eli- ampliando a esfera da liberdade; seria, nes- Alternativas de la Modernidad,
Madrid, Libertarias, 1994.
minação dos conflitos da cidade. E o antí- se sentido, uma Constituição que contem-
16 J. G. Pocock, “Machiavelli,
doto concebido para tal problema seria um plaria uma dimensão prospectiva, buscan- Harrington and English Political
sistema de liberdades baseado na proprie- do incorporar o tempo futuro – inclusive na Ideologies in the Eighteen
Century”, in Politics, Language
dade privada e em contínua expansão. A sua expressão espacial, associada à amplia- and Time. Essays on Political
questão para os republicanos não era, pois, ção da disponibilidade de terras – a fim de Thought and History , New
York, Atheneum, 1973, pp.
o isolamento da virtude em face do anda- que as virtudes da origem continuassem a 104-47.

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encontrar possibilidades de realização. via-se a burocracia ligada ao Estado e emer-
São três, então, os aspectos do repu- gia uma nova disposição produtiva, menos
blicanismo de Maquiavel incorporados articulada à terra. Nos anos de 1660 e 1661
ao debate inglês do século XVII. Em pri- Harrington se entregara à militância revo-
meiro lugar, a idéia de fundação da liber- lucionária e terminara preso. Mas a sua
dade, enraizando-se o tema da descon- derrota e a do radicalismo democrático que
tinuidade política no âmbito do conflito ele encarnara não significaram o banimento
entre classes. Em Harrington, a guerra da “república dos santos” da memória po-
civil inglesa – o ápice do desentendimen- pular. Ela viverá de forma latente e, pelo
to – se converte em ponto de partida de sentimento religioso, será alçada à condi-
uma ordem nova, permanentemente re- ção de uma metáfora do desejo de autono-
novadora. Desse critério de renovação mia individual e de inovação social – o
contínua emprestado à interpretação da cenário privilegiado dessa reconstrução re-
vida social inglesa deriva um segundo volucionária será a América.
aspecto, de natureza teórica e prática: a A história do republicanismo inglês não
perspectiva constitucional do governo era ignorada pelos setores educados da eli-
misto polibiano dizia respeito a um mun- te política brasileira. Nabuco, mesmo, re-
do estático, destituído da energia expan- conhece o tema da virtude republicana a
siva, sendo corrigida, portanto, pela pers- oxigenar o edifício institucional da Ingla-
pectiva constitucional republicana, por- terra monárquica. Porém, seria Rebouças a
tadora de uma dimensão prospectiva. reunir, mais explicitamente, alguns dos tra-
Finalmente, o último e mais importan- ços do chamado republicanismo democrá-
te aspecto do republicanismo maquia- tico, acomodando-os, não sem tensões, ao
veliano incorporado ao debate inglês seu repertório analítico.
concernia ao fato de que a virtude fora Em primeiro lugar sua narrativa nacio-
imersa na materialidade do mundo e so- nal era atravessada pelo diagnóstico da
mente a consideração desse aspecto pode- corrupção do Império. Segundo Rebouças,
ria salvá-la da corrupção representada pela após o término do ciclo revolucionário que
transformação da liberdade – que é potên- perdurara até a derrota dos liberais na déca-
cia – em destino. O passo seguinte consis- da de 1840, haviam rareado as energias
tiu, então, em identificar a base da liber- transformadoras do país e o Brasil iniciara
dade – a propriedade da terra – e em pro- um processo de enrijecimento ontológico,
por uma nova lei agrária. cuja principal evidência era a ausência de
A se prosseguir na caracterização do estímulo para quaisquer iniciativas inova-
republicanismo inglês do século XVII, o doras. A paz e a unidade territorial – valo-
tema mais relevante deveria ser o da defi- rizadas pela inteligência cortesã como obra
nição da noção de propriedade. Quanto a do gênio político nacional – eram conside-
isso, contudo, basta a consideração de que radas por Rebouças como manifestação de
Harrington não possuía uma perspectiva um ordenamento oligárquico que se fixara
burguesa e que o seu conceito de proprie- precocemente, como expressão do nosso
dade estava mais próximo da idéia de apro- destino.
priação, inscrevendo-se em um regime Naquele Império, contido e limitado,
igualitário e coletivo, garantido pela militia cresciam as vozes da conciliação política,
e pela legalidade incorporadora da repúbli- enquanto a sociedade, desde o topo até
ca Commonwealth. embaixo, vivia os sinais da degeneres-
De qualquer modo, em fins da década cência: “o parasitismo dos miseráveis é filho
de 1650, a guerra civil caminhava para o bastardo do parasitismo dos teocratas, dos
seu desfecho e a sociedade inglesa conhe- oligarcas, dos aristocratas e dos plutocra-
cia alterações importantes na sua estrutu- tas. O parasitismo superior cria o parasi-
ração – crescia a importância das cidades e tismo inferior; depois ambos concorrem
a monetarização da economia, desenvol- para atrofiarem e esfacelarem a criatura

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humana pela preguiça, pelo ódio ao traba- nais, espoletas eleitorais, mandatários de
lho, pela cobiça abjeta de viver às custas de assassinatos, servos da gleba prontos a
outrem nas camadas sociais, ou mesmo nas morrer e matar ao aceno da aristocracia-
células das prisões. Porque há desgraçados territorial-negreira” (19). Aqui, portan-
que chegam a tal grau de aviltamento que to, Rebouças aproxima-se do republi-
preferem a casa de correção à oficina do canismo inglês, ao enfatizar a dimensão
trabalho” (17). coletiva do Estado e ao afirmar a propri-
Derivado dessa avaliação do Império, edade como fundamento material da cons-
o segundo traço do radicalismo de Rebou- trução da república – “só há liberdade na
ças consistiu em introduzir o argumento democracia rural, no lavrador-proprietá-
do conflito entre classes na crítica ao po- rio, no operário da terra absolutamente
der imperial. Nas suas palavras: “o ideal livre ou independente…” (20).
aristocrático é o Estado […] servindo de Contudo, o aspecto que distinguia o
fecho à enorme abóbada, cujas aduelas são radicalismo de Rebouças daquele que pros-
os monopólios e os privilégios oligár- perou na guerra civil inglesa foi, como já se
quicos, e cujos pegões são formados pelos disse, o fato de que ele tinha na paz um
miseráveis, pela plebe, pelos proletários, imperativo. De modo que o engenheiro
argamassados na escravidão, na servidão não conferiria à plebe, à população de ho-
da gleba, no salariato forçado e nos inú- mens pobres, sem acesso à propriedade da
meros sistemas de exploração do homem terra, a virtude de um “povo em armas” que
pelo homem”. se organiza como poder constituinte.
Assim, tal como no radicalismo inglês De fato, Harrington lhe chegara como
do século XVII, a república para Rebouças parte do movimento de idéias produzido
se definia como um movimento de insti- por reformadores do século XIX, para os
tuição da liberdade plebéia, conferindo- quais o liberalismo deveria ser repensado à
lhe expressão material. Em uma série de luz das novas questões trazidas pelo desen-
artigos publicados no Cidade do Rio, jor- volvimento urbano-industrial. Salvavam-
nal de propriedade de José do Patrocínio, se os seus fundamentos, mas a drama-
entre os meses de junho e julho de 1888, ticidade ética vivida na hora inaugural das
ao criticar o avanço do movimento repu- liberdades havia sido aplacada, rotinizada,
blicano dos latifundiários de São Paulo, o em uma pragmática que apagara a dimen-
engenheiro avançará uma definição alter- são agonística inscrita na sua origem.
nativa de república: “a nossa república, a A idéia, portanto, de reforma era a tra-
república ideal virá no devido tempo, quan- dução – já agora bastante disciplinada –
do não houver mais landlords, quando ti- dos valores que partejaram o mundo mo-
verem desaparecido os monopolizadores derno. Por ela passava o tema do acesso das
da terra, quando for impossível a impuni- grandes massas de miseráveis dos países
dade feudal […]. Se não for assim, então capitalistas centrais aos direitos sociais – o
é infinitamente melhor a monarquia po- que, em Rebouças, assumia a forma análo-
pular e democrática de Joaquim Nabuco, ga da extração da questão agrária da chave
opulenta de aspirações nobres e altruístas, revolucionária da militia – com a sua co- 17 André Rebouças, Orfelinato
Gomes de Araújo, apud Ma-
bem ciente e muito consciente de que não notação radicalmente cívica – para acomo- ria Alice Rezende de Carva-
deve haver Irlandas no continente ameri- dá-la a uma versão modernizadora das re- lho, O Quinto Século …, op.
cit., p. 169.
cano…” (18). lações sociais no campo. Evidente que no
18 Idem, “Republiquistas – Parte
Em Rebouças, o tema da liberdade se Rebouças reformador a dimensão política III”, in Cidade do Rio, Rio de
associava à idéia de propriedade – a gran- implicada no monopólio da terra era perce- Janeiro, 27 de junho de 1888.

de força capaz de transformar em cida- bida, tal como atesta a já citada caracteriza- 19 Idem, “Republiquistas – Parte
II”, in Cidade do Rio, Rio de
dãos os “brasileiros deturpados pela mi- ção da quebra desse monopólio, como úni- Janeiro, 16 de junho de 1888.
séria e pela subserviência, por caboclos e ca via de acesso do homem comum à cida- 20 Idem, “Colonização da
caipiras, moradores, foreiros e residen- dania. Porém a forma de realizá-la não se- Algéria”, in Revista de Enge-
nharia, n. 237, Rio de Janeiro,
tes, por outrora comensais, guardas nacio- ria pela revolução – aliás, segundo Rebou- julho/1890, pp. 149-62.

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ças, um recurso bem mais compatível com do imperial, políticos, enfim, que deveri-
a aristocracia do que com as classes traba- am corrigir, de cima para baixo, o anda-
lhadoras – e, sim, pela auto-organização de mento da modernização cidadã do país.
colônias de pequenos proprietários livres, Aqui a América, para se realizar, depen-
isto é, pela aclimatação local de uma “onto- dia do Estado.
logia espacial da apropriação” (21), que,
na América, resultara da cultura inconfor- •••
mista portada pelos primeiros colonos.
De fato, a solução da fronteira norte- Ainda hoje – e de modo mais intenso
americana demonstrara ser uma via de afir- no contexto em que viveu Joaquim Nabuco
mação da natureza expansiva e uni- – o ideal republicano aparece, em geral,
versalista do ideal republicano que ani- associado à Revolução Francesa de 1789,
mara a guerra civil inglesa, destituída, ade- momento em que a sociedade de Corte ruiu
mais, do caráter de urgência e de confli- sob a pressão revolucionária do Terceiro
tividade aberta presente na concepção Estado. Assim, em virtude da radicalidade
maquiaveliana da política. Ao aprofundar do seu momento fundacional, a solução
as questões sobre o monopólio da terra e republicana francesa teve obscurecidas as
estabelecer a impropriedade da militia como suas semelhanças em relação à solução
poder constituinte de uma nova lei agrária processualista inglesa, isto é, tendeu a
brasileira, Rebouças, muito rapidamente, desconsiderar a progressiva institucio-
reconhecerá na ontologia norte-americana nalização política do seu sucesso ao longo
a expressão de uma radicalidade social que de todo o século XIX, do que é exemplo a
prescindira do gesto revolucionário – os monarquia constitucional de Luiz Felipe,
sujeitos da política são, ali, as massas de que, se por um lado reconduziu ao poder
proprietários livres. a nobiliarquia francesa, não pôde, por ou-
Nessa recorrência, porém, Rebouças não tro, desconhecer a força da presença bur-
ignorou o fato de que aqueles colonos foram guesa naquela sociedade civil.
o resultado da derrota popular no âmbito da Originária da ação jacobina na França,
Commonwealth e que, portanto, o sentido a moderna idéia, portanto, de república re-
da colonização aninhara a memória coletiva mete, freqüentemente, à de revolução, ocul-
da invenção, da apropriação e da liberdade. tando, nesse caso, o longo processo de se-
Além disso, a propriedade pudera ser o cri- dimentação “passiva” das transformações
tério da política porque lá ela fora arrancada que se operaram no âmbito social e que
como experiência inaugural do próprio di- terminariam por levar as forças do Tercei-
reito em terras americanas. Na América, ro Estado a se converterem em classes po-
como o direito precedesse a Constituição, liticamente dirigentes. Contra aquela defi-
essa seria apenas o ato de rememoração do nição mais estrita de república, Norbert
consenso democrático das grandes massas Elias, por exemplo, acentuou o caráter trans-
de proprietários, erigidos em expressão per- formista do processo europeu – o caso fran-
manente do poder constituinte. cês incluído –, considerando um tanto exa-
No Brasil, diversamente, descartada a gerada a avaliação de que as sociedades
hipótese da revolução agrária, a práxis da européias oitocentistas já ostentassem um
apropriação territorial ficaria dependente franco predomínio burguês. Para ele, a subs-
do legislador, da sua iniciativa de liberação tituição da direção política dos grupos di-
da terra – o que repunha, dramaticamente, násticos e aristocráticos por classes médias
a dimensão da política. Essa, portanto, a e trabalhadoras ter-se-ia processado até,
tensão presente no americanismo de Re- pelo menos, o final da Primeira Guerra
bouças – no Brasil, a realização da Amé- Mundial.
rica supunha a recorrência a atores políti- Desse ponto de vista, a visão dos an-
cos que não eram socialmente homólogos glófilos franceses do período da Restaura-
21 Antonio Negri, El Poder Consti-
tuyente…, op. cit., p. 184. a ela – aristocratas, funcionários do Esta- ção européia e do próprio Nabuco era ex-

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traordinariamente inovadora, ao concebe- “vida vegetativa”, sustentada na satisfação
rem a república como resultado de um alar- privada dos interesses, uma “vida moral”.
gamento da esfera pública, que a tornaria No Brasil, portanto, a adesão à via inglesa
institucionalmente permeável à livre ma- de modernização – e, inclusive, às suas ins-
nifestação da “vontade geral”, e não como tituições – não dispensaria um Estado éti-
uma forma política obrigatória. O elogio co, de modelagem aproximada à que resul-
que faziam à monarquia constitucional in- tara, programaticamente, do idealismo fi-
glesa é uma ilustração satisfatória dessa losófico alemão, isto é, posto acima dos
dissociação entre a república, tal como efe- interesses das classes e capaz de encarnar a
tivamente existia, e a sua manifestação ori- Idéia universal, a noção republicana do
ginal, dramatizada no contexto da Revolu- bem-comum.
ção Francesa. Além disso, no caso especí- O dilema, então, de Nabuco, mas não
fico de Nabuco, a idéia de “republica- apenas dele, seria exposto, como se viu,
nização” do Brasil nem de longe implicava por André Rebouças, que, embora igual-
uma sugestão de mudança na forma de mente refratário à solução dos impasses bra-
governo, sendo, aliás, a República de 1889 sileiros com base em uma revolução na-
condenada por ele, exatamente por repre- cional-popular, tinha claros os limites do
sentar uma vitória do “argumento utilitá- “republicanismo” local, notadamente no
rio” sobre a “consciência pública” (22), em que se referia ao esvaziamento da dimen-
uma inversão completa do que deveria ser são plebéia que estivera presente no seu
o compromisso republicano com o bem- contexto de origem e à eliminação da idéia
comum e do que, afinal, fora efetivamente de “conflito entre classes” como elemento
a agenda civilizatória do Império. indissociável do próprio Estado republica-
A questão, contudo, da permeabilidade no. Sem esses elementos, não só o repu-
da esfera pública, sob qualquer forma de blicanismo monárquico seria frágil, como
governo, à manifestação da “vontade ge- a Proclamação da República não resultaria
ral”, quando transposta para o Brasil, co- na extirpação do vezo aristocrático inscrito
nhecia algumas dificuldades. Ela esbarra- na formação estatal.
va, aqui, na inexistência empírica – mas Nabuco, na chave de Rebouças, era as-
também normativa, no caso dos segmentos sociado a uma monarquia democrática, que
reformistas da intelligentzia brasileira – de inscrevia o tema popular nas suas “aspira-
um ethos revolucionário, de uma ampla ções”, e que, por esse motivo, era superior
sedimentação da cultura da liberdade e da à república desenhada pelos cafeicultores
igualdade, que ancorasse o republicanismo paulistas. Faltava, contudo, o fundamento
na base da sociedade, e não apenas no edi- material que extrairia o republicanismo
fício institucional. Sem uma animação ple- brasileiro do campo semântico aristocráti-
béia, que, “de baixo para cima”, vitalizasse co – a democratização da propriedade da
as instituições e preservasse o impulso de terra –, sem o que o bem-comum continua-
“publicização” da monarquia brasileira, os ria a ser perseguido pelas nobres e altruís-
intelectuais reformadores seriam levados a tas convicções da nossa intelligentzia,
assumir um papel “substitutivo” das clas- melhor ou pior sucedida, de acordo com o
ses, de vezo aristocrático e moralizador. contexto, em seu esforço de internalizá-las
Quanto a isso, a propósito, poder-se-ia men- na dinâmica institucional.
cionar não apenas a auto-representação de De qualquer modo, o retorno a Re-
Nabuco como portador de um “mandato da bouças, neste passo do texto, cumpre ape-
raça negra […] para protestar perante a nas o objetivo de apontar o caminho que
história”, como também a sua convicção acabou prosperando na grande marcha da
de que, deixada livre, a classe politicamen- modernização brasileira. Não foi, certamen-
te ativa no Brasil reproduziria as circuns- te, o apontado por ele, aproximando-se bem
tâncias de uma sociedade de privilégios, mais das concepções de Nabuco, que, ten-
22 Joaquim Nabuco, Minha For-
sendo necessária ao país, mais do que uma do conferido ao Estado uma atividade mação, op. cit.

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modeladora da sociedade civil, antecipara quia constitucional moderna; do medo, o
a solução republicana que acabaria vingan- despotismo. Tais princípios de governo, for-
do após 1930. mulados no quadro mental do Iluminismo,
Assim, a sobrevidapolítica de Nabuco operariam como “esclarecimentos” úteis à
refletiria, igualmente, o seu acerto no inte- intervenção dos estadistas sobre as insti-
rior do campo teórico que elegera. An- tuições e, por extensão, sobre os valores e
glófilo, como Rebouças, sua referência não as práticas sociais, entendidos como
seria, porém, a Inglaterra dos santos, de mutáveis e passíveis de aperfeiçoamento.
Harrington ou do republicanismo radical. Nabuco vira, ali, a possibilidade de con-
De fato, Bagehot, enfaticamente citado em ciliar, no plano político a conservação
Minha Formação, correspondia a uma re- institucional com os valores da reforma –
cuperação, no século XIX, das idéias de algo impensável na sociedade francesa, tão
Montesquieu, outro anglófilo que, no sé- marcada por ideologias e valores absolu-
culo XVIII, relevara o nexo necessário entre tos. Escreveu Nabuco:
as características “espirituais” dos gover-
nados e a legitimidade conferida a determi- “O que dirige o espírito de progresso [na
nadas formas políticas: da virtude cívica Inglaterra] é o espírito de realidade, espíri-
derivaria a república; da honra, a monar- to prático, positivo, que se manifesta pela

O engenheiro
André
Rebouças

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rejeição de tudo que é teórico, a priori, também incapaz de incorporar os novos se-
tentativo, lógico, ou que tenda à perfeição, tores sociais, empresários, militares e ope-
à finalidade, à uniformidade, à simetria. A rários, levando a que, nas análises vitoriosas
esse espírito corresponde, na ordem políti- à época, fosse necessária uma ação
ca, a idéia de crescimento: as instituições interventora do Estado, que livrasse o país
têm o seu hábitat como as plantas, as suas do estrito círculo de comando a que estava
latitudes e terrenos próprios, condições submetido. Novamente, às vésperas de
especiais de aclimação, obstáculos e peri- 1930, o diagnóstico sobre as condições
gos de aclimatação” (23). propiciadoras de uma mudança das tristes
circunstâncias brasileiras enfatizaria o ne-
Sob a lente de Nabuco, então, tratava- cessário fortalecimento do público contra
se de promover o auto-aperfeiçoamento do a sua privatização, visando restituir ao Es-
Estado monárquico, a fim de que ele pu- tado a capacidade de operar com autono-
desse, a partir de uma racionalidade jurídi- mia em relação aos interesses particu-
co-política, atuar sobre os valores corren- laristas. É claro que a intenção civilizatória
tes, aperfeiçoá-los e atenuar, progressiva- alterara, sob certos aspectos, o seu curso,
mente, o privatismo predatório dos oligar- voltando-se, então, para uma pedagogia cí-
cas, sem se ver deslocado pela forma repu- vica mais abrangente, do ponto de vista so-
blicana de governo. Contra os “poderes cial, compatível com as mudanças estrutu-
locais”, portanto, o centro monárquico; e, rais que tinham transformado a composi-
com ele, a ordem racional-legal, o civismo, ção demográfica e ocupacional do Brasil à
a civilização e o caminho para a afirmação época. Tal pedagogia, nesse sentido, teria
da liberdade. como pedra de toque a conformação de uma
Entretanto, como se sabe, após a Pro- ética social centralmente vinculada ao
clamação da República, a agenda ci- mundo do trabalho.
vilizatória dos intelectuais liberais do Im- Novamente, portanto, o cenário de frag-
pério, ainda que pudesse ter tido, no con- mentação e insociabilidade, dessa vez re-
texto anterior, uma realização autocontida sultante do liberalismo oco das elites e de
e intrinsecamente hipotecada à ordem patri- sua impermeabilidade à incorporação so-
monial, foi ainda mais limitada pela cha- cial e civil dos novos atores da vida brasi-
mada “política dos governadores” – uma leira, levaria à imposição de uma sociabi-
espécie de reconhecimento, no plano lidade ditada pela intelligentzia refor-
institucional, da oligarquização do país. O madora, que, pela criação do direito, as-
liberalismo que, no Império, impusera uma sentasse as instituições que deveriam apro-
certa contenção ao poder local e ao “barba- ximar os indivíduos do Estado. A repúbli-
rismo vistoso dos caudilhos”, como afir- ca seria refundada, então, com base em uma
mou o monarquista Eduardo Prado, viu-se educação cívica, orquestrada, regulada e
cristalizado em uma ideologia de elites, administrada pelo direito do trabalho e suas
destituído das suas funções “pedagógicas” instituições. Na década de 30, conquanto a
e esquecido da sua atribuição tradicional vida institucional brasileira tivesse altera-
de superpor a lei ao arbítrio. Viu-se, por do a natureza e o sentido da institucio-
isso, reduzido a uma dimensão vazia, com nalidade que presidira a construção do Es-
o direito se aviltando em um maneirismo tado-nação, seria dela que se alimentaria o
de bacharéis, em óbvia descontinuidade processo civilizatório do país.
com a cultura que o concebera como a gran- O grande legado do Império, a cultura
de força ideal que presidiria as transforma- política que associara o direito à civiliza-
ções moleculares necessárias à moderniza- ção, voltava à cena. Com ela, Joaquim Na-
ção do país. buco e a aposta em uma “republicani-
Desvitalizado e destituído das suas zação” progressiva de nós mesmos, na len-
potencialidades universalistas, em termos de ta marcha que tem sido a moderna história
direitos civis, o ideário liberal mostrar-se-ia brasileira. 23 Idem, ibidem, “O Espírito Inglês”.

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