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Stefan Kürle1
Resumo
O presente artigo tem sua saída do fato de que muitos cristãos contemporâneos têm
dificuldade de se relacionar com a lei do Antigo Testamento. Há diferentes propostas
hermenêuticas e teológicas que levam a várias abordagens sobre o valor contínuo das
coleções da lei do Antigo Testamento para a igreja. Uma breve introdução das principais
abordagens sobre o assunto é incluída na esperança de que uma reflexão das leituras
históricas e atuais das leis da Torá irá ajudar o leitor a ver os problemas subjacentes. Na
parte principal segue um resumo dos aspectos importantes que deve levar a uma
apreciação da lei do AT em seus próprios termos. Argumenta-se que a lei do AT nunca foi
destinada a ser lida legalisticamente ou como imperativos morais eternos. Ao contrário, as
coleções legais foram projetadas para ajudar o leitor histórico em sua determinação de
como viver como parte do povo de Deus e, como tais, foram consideradas como um ato
da graça divina. Com base nessa visão interior do Antigo Testamento, será oferecida uma
interpretação coerente das passagens-chave do Novo Testamento. Essa parte, finalmente,
leva a algumas teses curtas sobre uma leitura adequada da lei do AT pela igreja.
PALAVRAS-CHAVE
ABSTRACT
The present article takes its departure from the fact that many contemporary Christians
find it difficult to relate to Old Testament law. There are differing hermeneutic and
theological proposals leading to various approaches to the ongoing value of the OT law
collections for Christians. In the hope that a reflection of historical and present readings
of the law in the Torah will help the reader to see the underlying issues, a brief review of
the major approaches is included. In the main part follows an outline of important aspects
which shall lead to an appreciation of OT law on its own terms. Here it is argued that OT
law was never intended to be read legalistically or as timeless moral imperatives. Rather
the legal collections were designed to help the historical reader in his determination of
how to live as part of the people of God and as such were considered as an act of divine
grace. On the basis of this inner Old Testament reading a consistent interpretation of key
New Testament passages will be offered. This finally leads to some short theses about an
adequate reading of OT – law by the church.
KEYWORDS
1
Doutor em Teologia pela University of Gloucestershire, Grã Bretanha. Professor da Faculdade Teológica
Sul Americana. Email: stefan@ftsa.edu.br
Introdução
Muitos leitores da Bíblia, quando olham para a lei do Antigo Testamento, estão
vendo mais uma caricatura que foi desenhada por sua tradição teológica sendo mais ou
menos refletida. Portanto, quero principalmente tentar situar a lei do Antigo Testamento
em seu próprio contexto e, a partir disso, entender o apreço pela lei que encontramos
repetidamente no Antigo Testamento e, finalmente, como podemos apreciá-la hoje.
Este deus, porque criou a matéria, vista como má, era um deus do mal. Isso, na
visão Marcião, se mostra principalmente no fato que ele quer escravizar as pessoas pela
Lei de Moisés. Todo sofrimento e todo pecado vem deste deus do Antigo Testamento.
Para um verdadeiro homem espiritual, isto é, aquele que se liberta de tudo que é
material e deseja vivamente a chegada da sua morte física como uma libertação da alma
da sepultura do corpo, para tal pessoa esse deus deve ser inacessível. Ela abraça-se
muito facilmente ao deus do Novo Testamento, que é todo espírito, amor e liberdade.
Nessa visão Jesus foi, naturalmente, não um homem de verdade, ele só parecia ser, uma
vez que tudo o que remete ao mundo físico é ruim – ideia cristológica também chamada
de docetismo (do grego dokeo, “parecer”). Acima de tudo, este Jesus de Marcião pregou
a libertação da lei mosaica. No entanto, para provar tudo isso biblicamente, ele
precisava de outra Bíblia e, enfim, cancelou todos os livros do cânon cristão que não se
encaixavam com a sua teologia. No final, sua Bíblia continha apenas 10 cartas de Paulo
e um pouco de um evangelho adaptado de algumas partes do de Lucas.
Embora esta solução para o problema da lei do Antigo Testamento parecer pouco
elegante (ela foi, por diversas razões, a heresia principal da igreja primitiva), ela é
consistente e eficaz. Na cultura popular cristã ainda estão preservados fragmentos de
platonismo o suficiente para nos deixar em perigo a inclinar para essa tendência
marcionita em nossa consideração do Antigo Testamento, em geral, e da lei mosaica, em
particular. Em alguns círculos cristãos, a matéria é rigorosamente separada do mundo
espiritual, ao passo que nós, os cristãos, devemos nos preocupar especialmente com o
espiritual. A frase de Jesus: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça,
e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33), será lida no contexto da
oposição espiritual versus material. A partir disso pode crescer uma ética dualista e
conflitante: uma ética asceta e uma libertina. Para ambas, não precisamos da lei do
Antigo Testamento. Um asceta vive de uma motivação espiritual e não requer nenhuma
orientação específica para a vida prática. Não importa o que ele faz com o seu corpo,
conquanto sua mente permaneça iluminada mantendo-se, assim, a salvo. Este tipo de
pessoa se liga ainda menos com a lei do Antigo Testamento.
2
Talvez esta tenha sido a ideia de Teodoro de Mopsuéstia (350-428), que, em seu comentário sobre
Gálatas, pôs em forte oposição a aliança de Moisés à nova aliança em Cristo (Wright, 2004, p. 390).
3
Wright comenta: “[…] numa perspectiva da história salvífica o novo em Jesus ultrapassa e substitui tudo
o que foi anteriormente. Assim, Lutero se sente não apenas livre para tratar a lei do AT analogicamente,
mas também as narrativas do AT. Curiosamente, ele pode defender os atos moralmente questionáveis dos
heróis veterotestamentários (p. ex., a mentira de Abraão referente Sarai frente à Abimeleque), quando
mostra como eles agiram a partir da fé nas promessas de Deus. Nesse sentido, a graça cobre uma multidão
de pecados de maneiras bem distintas” (Wright, 2004, p. 390).
1.4. Diferenciação em lei moral, judicial e cerimonial
Tudo isso não é tão complicado quando você olha ao Decálogo. Mas o que
devemos fazer com as leis obsoletas e que, obviamente, são mais difíceis de colocar em
prática hoje? A abordagem reformada tradicional é distinguir a lei mosaica em lei moral,
lei cerimonial e lei judicial. Especialmente o Decálogo corresponde à essência da ética,
sendo, portanto, válido para sempre e para todos. A lei cerimonial (os mandamentos
referentes ao culto israelita) não tem mais validade em função sacrifício de Jesus na
cruz, suficiente e para sempre válido (querer mantê-las seria como um de tapa na cara
de Jesus). As leis civis, ou seja, aquelas que têm um significado essencialmente
doméstico para Israel (por exemplo, o serviço militar, as leis de escravos) são
interessantes na medida em que ilustram certos princípios (como a igualdade perante o
juiz) e, portanto, podem ser adaptadas de acordo com a situação.
O problema com essa visão é que não é possível separar, de modo responsável, a
lei mosaica desse jeito. Algumas leis individuais certamente poderiam ser classificadas
desta forma, mas como muitas delas estão firmemente enraizadas em seu contexto
literário, poderia ser que pertencessem a outro tipo de lei (por exemplo, Lv 19, onde são
agrupadas leis de sacrifício e de comércio junto com o famoso mandamento sobre amar
ao próximo). Em outros mandamentos, como o do sábado, podemos encontrar
relevância moral, social e ritual. Em geral, uma leitura do Antigo Testamento não sugere
essa divisão tripartite. Teologicamente muito mais grave é a consequência, que podemos
encontrar frequentemente, de se pensar que a Bíblia (e Deus) não quer mais interferir
em assuntos cultuais, sociais ou civis, uma vez que, como cristãos, somos “livres” neste
caso.
2. Características da lei
Ninguém que se arrasta sob o fardo pesado de ser convencido de ter que
conquistar a salvação por boas obras, fala desse jeito. Ninguém que quer se relacionar
com Deus através da observância meticulosa da lei mosaica, fala assim. Estas não são
palavras de alguém que se infla em orgulho autoindulgente. Este salmo não é um caso
isolado; basta ler o maravilhoso Salmo 119, com a sua reflexão sobre o valor da lei, para
o indivíduo e para a nação como um todo, para se ter uma ideia do valor a ela dado.
Pelo menos se percebemos a Torá a partir da perspectiva do Antigo Testamento, não há
nenhuma razão para essas caricaturas da lei insurgidas no decorrer da história da igreja.
Paulo também está longe de condenar a lei do Antigo Testamento. Ao contrário, ele luta
contra o abuso da lei e/ou contra uma interpretação errada da mesma.
A seguir, quero considerar a lei do Antigo Testamento por si desde seu pano de
fundo histórico e literário. É uma tentativa de se abstrair dos preconceitos dogmáticos,
muitas vezes decisivos em nossa leitura. Os salmistas não se entendiam nem como
calvinistas, arminianos, luteranos ou “judaizantes”. Eles se viam numa relação viva com
Deus, o Senhor da aliança. Este Deus inicialmente ofereceu-lhes sua aliança em Abraão
e reconfirmou-a como aplicável a todos os israelitas após o êxodo do Egito. Eles foram
o povo de Deus, salvos pela graça, e experimentaram o perdão de Deus sempre de novo.
Eram gratos pelo país em que eles foram autorizados a viver e entenderam a lei como a
graça de Deus, como instruções para a vida, dadas para que pudessem se manter na
aliança como pessoas solidárias frente a outros povos.
“Em seguida, [Moisés] leu o Livro da Aliança para o povo, e eles disseram:
'Faremos fielmente tudo o que o Senhor ordenou.'” (Êx 24.7). O “livro da aliança”,
portanto, serve na narrativa do fechamento da aliança (Êx 24) como a base para a
obediência do povo. O contexto literário sugere que o “código da aliança” é o conjunto
de leis (Êx 20.22-23.33). Entre as coleções de leis em Êxodo, também se encontram os
Dez Mandamentos (ou Decálogo, 20.1-17) e a coleção referente ao calendário festival
(34.18-26). O Decálogo forma uma parte central na narrativa do encontro do povo com
Deus em Êxodo (19-24). Deus responde à preparação por parte do povo, e o povo
responde diretamente às palavras de Deus com espanto e a solicitação de um mediador.
A coleção cúltica (em Êx 34) é uma reafirmação resumindo a aliança, a qual foi
renovada após a “queda de Israel” (a idolatria do bezerro de ouro, 32-34). Assim,
podemos já em Êxodo encontrar a conexão inextricável entre coleção legislativa e
narrativa.
No judaísmo a Torá é vista como uma unidade, pela qual a tradução “instrução”
deveria ser preferida ao invés da tradução comum “lei”. Isso se aplica para todas as suas
partes, incluindo não apenas Êxodo, Levítico ou Deuteronômio, mas também livros com
mais narrativas como Gênesis e Números. Surpreendente é o texto de Gênesis (26.4-5),
onde Deus renovou sua aliança com Abraão por meio de Isaque. A Deus foi atribuída a
seguinte frase: “Por meio da sua descendência todos os povos da terra serão
abençoados, porque Abraão me obedeceu e guardou meus preceitos, meus
mandamentos, meus decretos e minhas leis.” Obviamente, esta afirmação é anacrônica,
porque estes quatro termos são termos técnicos para as coleções de leis de Êxodo a
Deuteronômio. Para o autor de Gênesis, era importante ressaltar que Abraão, muito
antes de Moisés, já havia cumprido a essência da lei, como mais tarde os israelitas
fizeram após o Sinai, uma vez que tinham a lei de forma muito mais detalhada (Wright,
2004, p. 283).
Assim, vemos que as leis individuais estão firmemente ancoradas numa estrutura
narrativa, e seria tolice pensar que os autores da Torá teriam feito isso sem intenção, já
que há exemplos suficientes de outras coleções de leis do antigo Oriente Próximo que
têm buscado outra estratégia literária. A localização literária da lei na narrativa da Torá
deve ser levada a sério se quisermos entendê-la em seu significado bíblico.
Outro sinal sugerindo a mesma ideia pode ser encontrado em Êxodo (20.2). No
início dos Dez Mandamentos, um dos textos centrais de Êxodo, o passado de Israel é
lembrado. Torna-se óbvio como a questão da escravidão no passado domina as partes
centrais do livro. O processo de leitura cria uma conexão mental entre a crueldade
egípcia para com os estrangeiros, os israelitas (Êx 1-2 e 5), e o possível maltrato de
estrangeiros por israelitas (22.20-26). Os possíveis ofensores já foram vítimas. Assim,
as leis sobre escravos (21.2-11) não são aleatórias como início da coleção central do
código da aliança (Chirichigno, 1993; Jackson, 2000; Jacob, 1997; Sprinkle, 1994).
Se as leis falam muito sobre Deus, a fonte legislativa, elas dizem muito sobre o
seu receptor. As coleções de leis em Êxodo mostram claramente o interesse do autor.
Este é duplo: por um lado, são expressas as expectativas referentes ao povo de Deus
ideal; por outro, a mera existência de leis antecipa a sua necessidade. Leis não são
promulgadas sem necessidade e, com isso, torna-se óbvio o que o autor considera seu
leitor capaz. Na Torá, isto não é diferente. As narrativas sobre o caminho no deserto e,
especialmente, a história do bezerro de ouro, lançam uma luz clara sobre a atitude
rebelde do povo, a qual é, indiretamente, identificável nas coleções de leis (Patrick,
1994; Watts, 1999).
A base para o Israel ideal se encontra em Êxodo (19.6). Lá, o povo é declarado
um reino de sacerdotes frente aos demais povos. Com este papel, Israel é levado à
proximidade da presença divina. Uma proximidade assim apresenta suas próprias
exigências referentes ao comportamento dos israelitas. No Decálogo e no código da
Aliança, as consequências do papel de um povo sacerdotal e santo são apresentadas.
Curiosamente, lemos em Êxodo apenas uma seleção relativamente limitada de regras
representativas. Grande parte da vida diária permanece não tocada pelos regulamentos.
Essa situação não muda significantemente com os demais livros da Torá. Assim, em
muitos casos, deixa-se para o leitor decidir por si mesmo como viver sua vida como
parte do povo da aliança, sem comprometer a presença divina e, portanto, a bênção
divina para si e para o seu companheiro. Esta abertura contribui significativamente para
a atualidade das leis, na medida em que o leitor é convidado ao processo de atualização.
Isto se pode ver muito bem em Deuteronômio e, mais tarde, com mais clareza, nos
livros proféticos.
A maneira pela qual Israel tem de viver na presença de Deus não muda. O ideal
comunicado para a geração do êxodo continua se aplicando para o leitor. Uma junta
literária de encaixe semelhante pode ser observada nas regras sobre o sábado (cf. Êx 16;
20.8-11; 31.12-17; 35.1-3). Nas passagens que vêm imediatamente antes e depois da
violação da aliança (32), o sábado é confirmado como o sinal da aliança eterna: ele
sobreviverá ao tabernáculo (Dohmen, 2004, p. 293s), bem como à desobediência e
violação da aliança de Israel. O sábado deve servir como um lembrete constante do
êxodo da escravidão egípcia. Assim, ele lembra a existência contínua da aliança com
Deus, na qual Israel toma de novo o papel de “escravo”, mas agora tendo Deus como
seu Senhor. Êxodo, no capitulo 16, deixa claro que o sábado deve afetar a vida
cotidiana. Com isso, o sábado recebeu uma qualidade persistente como sinal desta
aliança. A inclusão do sábado nos Dez Mandamentos torna evidente o quão conectado
ele está com a santidade de Israel, definida como uma nação de sacerdotes.
É claro, há leis que são de um nível mais geral e outras que são apontadas de
forma especifica. No Antigo Testamento, podemos descrever três níveis de concretude
ou abstração. Isso não significa que poderíamos pôr em oposição algumas leis contra
outras, ou que algumas são mais importantes do que outras – aqui tratamos apenas o
nível de abstração. Todas as leis são do mesmo autor e, por isso, têm a mesma
autoridade, a mesma motivação e até o mesmo conteúdo essencial (Jenson, 2010, p. 10).
Nas coleções de leis da Torá, o Schema Jisrael (“Escuta, Israel, YHWH é nosso Deus,
YHWH é um”, Dt 6,4) toma o lugar primeiro e mais importante. O fundamento de todas
as leis da Torá é a relação de aliança entre Deus e seu povo. Assim a lei se torna uma
expressão da personalidade do Deus da aliança. O Schema continua exatamente neste
sentido: “Amarás YHWH, teu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com todas
as forças” (Dt 6.5). Essa lei do amor é provavelmente a forma mais abstrata da ética que
encontramos no Antigo Testamento. Todas as outras leis são concreções do Schema. Os
seguintes versos mostram claramente que a alvo deste mandamento central é a vida
cotidiana (Jenson, 2010, p. 15).
Primeiro, há uma função social evidente das coleções legais: definir o que está
certo e como punir atos que infringem aos valores da sociedade. Há também uma
função retórico-política (quase propagandística), que hoje já não é tão conectada com os
textos legais, na qual o rei deseja de se expor como um legislador sábio e capaz. Essa
perspectiva é particularmente evidente nos registros monumentais da lei nas chamados
estelas (epitáfios de pedra). Nessas coleções não se trata de uma lei universal e eterna,
que estabelece o direito para fundamentar os atos tribunais em todo o país. Conhecemos
do Antigo Oriente (principalmente da Mesopotâmia), a prática de publicação de
coleções legais em estelas no final do mandato de um rei influente. A coleção foi
destinada, aparentemente, para estabelecer um monumento memorial referente às
decisões sábias e prudentes do respectivo rei (Assmann, 2000; Bottéro, 1992). O grande
valor que os reis colocaram na reclamação de que eles próprios são os autores dessas
leis, aponta na mesma direção. Desse modo, a coleção suporta, em primeiro lugar, a
autoridade do legislador e quer qualificá-lo como político capaz. Certamente, o efeito na
direção contrária foi intencionado também: um rei bem conhecido como confiável e
sábio também confere sua autoridade às leis da coleção. Ambas as funções
comunicativas desempenham um papel importante na Torá, especialmente em Êxodo.
Deus distingue-se por suas leis como um rei capaz, cuja legislação é consequentemente
seguida. E, de fato, pode ser estabelecido, com base nas leis de Êxodo, um retrato
abrangente de Deus, consistente com o de passagens narrativas da Torá (Graupner,
2005; Watts, 1996). Por outro lado, as leis “emprestam” a autoridade do legislador.
Podemos supor isso porque Êxodo primeiramente pressupõe Deus como conhecido por
seus leitores e, em seguida, modifica e amplia esse retrato.
2.6. Em resumo
Deus diz enfaticamente: “Habitarei no meio dos israelitas e serei o seu Deus.
Eles reconhecerão que eu sou o Senhor seu Deus, que os tirou do Egito para habitar
entre eles. Eu sou Senhor seu Deus” (Êx 29.45-46). A partir dessa perspectiva, pode não
ser surpreendente que o salmista esteja tão cheio de gratidão pela lei maravilhosa de
Deus. Deus com eles: isso, no final das contas, é o tema central da lei. A proximidade
divina desafia, de modo que é bom haver algumas orientações para fazer com que essa
proximidade não seja ameaçadora para ninguém.
Espero que tenha ficado claro que a compreensão da lei do Antigo Testamento
estará comprometida se lida exclusivamente através de nossa noção moderna acerca dos
códigos legais. Ademais, reduzir a lei da Torá a um imperativo categórico4 abstrato, tal
como se fez na época do idealismo alemão, não faz justiça aos textos antigos. Na Torá
são descritos os ideais do povo de Israel, mas eles são sempre relacionados à ação
libertadora de Deus no evento do Êxodo e à necessidade e possibilidade de perdão.
Assim, as leis devem ser entendidas pelo seu encaixamento narrativo com a história de
Israel, como consequência e expressão da graça de Deus. A dualidade lamentável (mas
infelizmente popular) entre “Lei e Evangelho” não pode ser mantida neste fundo5.
4
“Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal” (Kant:
AA IV, 421).
5
Estou dolorosamente consciente da limitação dos parágrafos anteriores sobre a lei da Torá. Haveria
muito a dizer sobre o papel da lei nos profetas, nos livros históricos e nos salmos. Mas essas perspectivas
posteriores sobre a lei já estão presentes na Torá, e somente são acentuadas ou esclarecidas.
Qual dia melhor poderia ter sido escolhido pela igreja cristã para comemorar a
sua fundação? Deus dá o seu Espírito e o dá a todos, sem distinção, homens e mulheres,
crianças e velhos, livres e escravos. Para o judaísmo, comente a Torá permite a presença
de Deus entre o povo. Para os cristãos, Deus está presente por seu Espírito. A presença
de Deus a ambos transforma em seu povo.
No Antigo Testamento, há séculos antes de Cristo, foi expresso que algo deveria
mudar radicalmente caso Israel fosse mantido no papel de povo de Deus. Jeremias fala
de uma lei que já não precisa ser ensinada, mas que deveria estar escrita no coração (Jr
31). Ezequiel fala de um vento de Deus soprando onde não há nada Dele e, em seguida,
faz brotar uma nova vida; um vento que renova o povo após o exílio (Ez 37). Acima de
tudo, foi Paulo quem lutou com o problema de como o novo povo da aliança de Deus
pode se formar, se ele não pode consistir apenas de judeus. Para ele, são agora Jesus e o
Espírito Santo que cumprem a lei e possibilitam a obediência do povo de Deus.
Mas o que fazer com as críticas de Jesus referentes às leis dietéticas (cf. Mc
7.19)? Como ficou claro na seção anterior, a lei apontou como um israelita poderia
expressar o seu amor a Deus. Como vimos, com a presença de Jesus, encontramos
novas circunstâncias que são descritas com o termo “cumprimento”. Nosso
relacionamento com Deus não é necessariamente exteriorizado por obedecer a lei, mas
através de nossa lealdade para com Jesus. Esta nova realidade significa que agora
devemos repensar a lei (como sempre em novas circunstâncias) e ver como podemos
viver na vontade de Deus nessa nova situação. Paulo faz exatamente isso (por exemplo,
em 1Co 8), quando fala da liberdade em relação ao consumo de carne sacrificada aos
ídolos como sendo limitada devido à uma possível ofensa ao outro – aqui observamos
uma lei dietética adaptada; ou em Gálatas, quando o assunto era a igualdade de judeus e
não judeus diante de Deus o que, por exemplo, cancelava a circuncisão compulsória.
Antes de Paulo, Pedro teve de repensar as leis dietéticas de uma forma muito
semelhante (Atos 10), e a igreja de Jerusalém optou também por reformular a ideia
central da lei referente às condições da comunhão entre judeus e não judeus (Atos 15).
Com Jesus, e a reorientação consequente em termos de terra, templo e
regulamentos de pureza, especialmente aquelas leis perdem a sua relevância contextual
em relação à delimitação de Israel como entidade política e cultural. Especialmente em
Gálatas, Paulo argumenta dessa perspectiva quando questiona exatamente essas
características que definiam a identidade do judaísmo, negando sua relevância para não
judeus, ora acrescentados ao povo de Deus6. Como o argumento em Gálatas é denso e
muito importante para a nossa pergunta, vou o elaborar um pouco mais.
“Obras da lei” não é um código paulino para “legalismo”, pelo qual alguém está
tentando ganhar a sua entrada para o céu. Aqui um problema social tem levantado uma
questão teológica mais profunda: como devemos ver a relação entre dois grupos, ambos
crentes em Jesus Cristo, mas que procedem de diferentes origens culturais? A
obediência aos ditames da cultura judaica é necessária para manter um relacionamento
correto com Deus, ou para ser justificado? A resposta de Paulo é “não”.
Para que, então, serve a lei? Obviamente, a lei não é contra as promessas de
6
Em minha interpretação, inclino-me fortemente à exegese da chamada Nova Perspectiva sobre Paulo,
que me parece fazer maior justiça ao contexto histórico de Paulo e do judaísmo na época greco-romana
(Matera, 2000; Wright, 1994, 2005).
Deus (Gl 3.21). Em dado momento (Gl 3.17-24), Paulo argumenta sobre o processo
desde o início. A aliança do Sinai nada mais foi que a renovação da aliança com Abraão,
e de nenhuma maneira substitui a antiga aliança (3.17). A lei trata das violações para
marcar a linha divisória da vida como povo de Deus. Mas isso só foi necessário até que
o descendente singular, o descendente obediente de Abraão aparecesse (3.19). Nunca foi
a intenção de Deus que a lei propiciasse vida (pensando aqui na justificação, 3.21). A lei
nos protegeu até que Jesus veio e, posteriormente, o Espírito nos libertou (3.23-24).
Consequentemente, a lei não é algo negativo, mas aos Gálatas, Paulo teve de definir o
lugar certo da lei. A nova interpretação da lei tornou-se necessária por causa da vinda do
Messias de modo muito diferente (do que era esperado). A lei revelou a Israel a vontade
de Deus e ajudando-os a viver a sua vocação (Êx 19.5-6). A justificação que trazia a
vida, sempre podia chegar apenas pela semente especial de Abraão, em nome do qual os
Gálatas haviam sido batizados (Gl 3.26-29).
Em Gálatas, Paulo não escreveu sobre como alguém pode retificar o seu
relacionamento com Deus, mas sobre se não judeus, que se tornaram cristãos, deveriam
ser circuncidados. Então, a pergunta é: como definir o povo de Deus? É exatamente
nessa definição que a lei do Antigo Testamento não tem papel algum a desempenhar.
Em Romanos, Paulo lida com o problema de que alguns judeus esperaram pela
parte da lei que lhes permitia comportar-se conforma a vontade de Deus. Mas porque os
judeus também eram pecadores, não havia para isso prospecto de sucesso algum (Rm
2). Paulo disse até mesmo que a lei ligou também os judeus a Adão, para que eles
descubram seus pecados (5.20; 7.1-6). Paulo traça um paralelo entre a queda do homem,
que aconteceu justamente no momento quando foi dada a regra sobre a árvore do
conhecimento, e a queda de Israel (no momento da adoração do Bezerro de Ouro), que
aconteceu logo após da revelação dos mandamentos no Sinai (7.1-12). Em ambos os
casos, o problema não foram as regras, mas o pecado que havia tomado lugar. Para lidar
com o embaraço no pecado, precisamos do Espírito de Deus (8.3), e ele nós temos
através de Jesus. Paulo é tão realista (em 7.13-20), quando afirma que a matéria-prima
com a qual se esperava que a lei funcionasse tem sido sempre o homem pecador. Aqui
ele fala somente sobre Israel, porque este povo é a sua preocupação aqui; mas nos
capítulos 2 e 3, ele tinha provado que os judeus são pecadores como todos os outros. A
solução, então, vem em Romanos 8 (o grande capítulo sobre o Espírito Santo). A partir
de uma perspectiva diferente, a mesma solução está sendo novamente discutida em no
início do capítulo 12 (1-12), onde Paulo fala da renovação das nossas mentes, do nosso
entendimento, que, como consequência, conduz a um novo comportamento.
4. Teses para uma leitura da lei do Antigo Testamento desde a perspectiva cristã
Numa cultura que prefere soluções simples e rápidas, onde pouco lugar resta
para introduções prolongadas e onde discussões profundas são mal vistas, há um perigo
de insistir precipitadamente na observância de leis claras que, sociologicamente,
facilitam a distinção entre insiders (os de dentro) e outsiders (os de fora). Muitas vezes,
então, recorremos a regulamentos detalhados, que, em seguida, tentam regular todos os
aspectos da vida cristã (o chamado casuísmo). Especialmente nos estratos menos
escolarizados da população, isso pode levar rapidamente a uma extrema dependência de
lideranças carismáticas que, pela legitimidade de sua posição, promulgam essa
“legislação”. Para esse tipo de liderança é relativamente fácil achar fundamentos nas
leis do Antigo Testamento simplesmente porque lá eles acham um tipo exato de regra.
Em tais situações, pode realmente acontecer o que os reformadores do século XVI já
haviam criticado, a saber, que as pessoas são escravizadas por uma regulamentação,
cujo cumprimento supostamente seria determinante para a sua salvação futura, ainda
que isto nunca estivesse presente em sua intenção primária.
O foco das leis do Antigo Testamento na vida cotidiana da sociedade pode servir
de auxílio em contexto de igreja que, devido à história da missão, foram fortemente
influenciados por conceitos neoplatônico-gnósticos. O cristianismo não é apenas uma
coisa “espiritual”, sendo este termo aqui entendido como interioridade pura e simples. O
amor a Deus se expressa não apenas num louvor dedicado, mas também, e
principalmente, no amor ao próximo. Este amor ao próximo também não se traduz
apenas em sentimento agradável, mas em ações concretas.
As coleções de leis do Antigo Testamento são, além da vida de Jesus, uma das
principais fontes para a formulação de nossos valores cristãos. Deste ponto de vista,
seria um trabalho gratificante questionar os valores geralmente válidos em nossa cultura
a partir dos princípios expressados na Torá. A partir disso, poderíamos desenvolver
novas direções específicas para representar estes valores básicos para o nosso tempo.
Além da consideração dos níveis de abstração, o aspecto de imitação de Deus (imitatio
dei) seria um terreno fértil para o desenvolvimento de princípios, bem como as
aplicações concretas. A Torá refere-se sempre à origem da lei em Deus e no reflexo de
sua persona nos mandamentos. Neste caso, porém, recomenda-se cautela, já que não é
só um risco latente o de basear a nossa definição de Deus em conceitos não bíblicos,
mas mais filosóficos ou religiosos. O processo não é: conhecemos a Deus e, por
conseguinte, podemos compreender os mandamentos. O caminho é o inverso: lemos os
mandamentos sobre a vida de Jesus e, portanto, podemos moldar a nossa imagem de
Deus.
Uma reconsideração da lei, como exposto até aqui, pode dar um novo valor a
uma ação externa, além da autenticidade interior, como uma expressão de amor a Deus.
Fazer ou deixar de fazer algo já tem um valor intrínseco em si, em sua exterioridade, e
não precisa necessariamente ser apoiado por uma motivação pura. A renovação da
mente através do Espírito Santo (Rm 12) não é necessariamente alcançada pela exclusão
da exterioridade. Uma ação sempre tem um impacto sobre a personalidade, seja
negativa ou positivamente. Assim, a prática de uma vida que agrada a Deus pode muito
bem, na segunda etapa, formar a mente e as emoções (veja a abordagem psicológica da
terapia comportamental).
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