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ARTIGO DA ÁREA DE BÍBLIA (2)

A IMPORTÂNCIA DA LEI DO ANTIGO TESTAMENTO PARA OS CRISTÃOS

Stefan Kürle1

Resumo
O presente artigo tem sua saída do fato de que muitos cristãos contemporâneos têm
dificuldade de se relacionar com a lei do Antigo Testamento. Há diferentes propostas
hermenêuticas e teológicas que levam a várias abordagens sobre o valor contínuo das
coleções da lei do Antigo Testamento para a igreja. Uma breve introdução das principais
abordagens sobre o assunto é incluída na esperança de que uma reflexão das leituras
históricas e atuais das leis da Torá irá ajudar o leitor a ver os problemas subjacentes. Na
parte principal segue um resumo dos aspectos importantes que deve levar a uma
apreciação da lei do AT em seus próprios termos. Argumenta-se que a lei do AT nunca foi
destinada a ser lida legalisticamente ou como imperativos morais eternos. Ao contrário, as
coleções legais foram projetadas para ajudar o leitor histórico em sua determinação de
como viver como parte do povo de Deus e, como tais, foram consideradas como um ato
da graça divina. Com base nessa visão interior do Antigo Testamento, será oferecida uma
interpretação coerente das passagens-chave do Novo Testamento. Essa parte, finalmente,
leva a algumas teses curtas sobre uma leitura adequada da lei do AT pela igreja.

PALAVRAS-CHAVE

Torá; Lei; Antigo Testamento; Hermenêutica; Leitura Cristã.

ABSTRACT

The present article takes its departure from the fact that many contemporary Christians
find it difficult to relate to Old Testament law. There are differing hermeneutic and
theological proposals leading to various approaches to the ongoing value of the OT law
collections for Christians. In the hope that a reflection of historical and present readings
of the law in the Torah will help the reader to see the underlying issues, a brief review of
the major approaches is included. In the main part follows an outline of important aspects
which shall lead to an appreciation of OT law on its own terms. Here it is argued that OT
law was never intended to be read legalistically or as timeless moral imperatives. Rather
the legal collections were designed to help the historical reader in his determination of
how to live as part of the people of God and as such were considered as an act of divine
grace. On the basis of this inner Old Testament reading a consistent interpretation of key
New Testament passages will be offered. This finally leads to some short theses about an
adequate reading of OT – law by the church.

KEYWORDS

Torah; law; Old Testament; Hermeneutics; Christian Readings.

1
Doutor em Teologia pela University of Gloucestershire, Grã Bretanha. Professor da Faculdade Teológica
Sul Americana. Email: stefan@ftsa.edu.br
Introdução

Muitos leitores da Bíblia, quando olham para a lei do Antigo Testamento, estão
vendo mais uma caricatura que foi desenhada por sua tradição teológica sendo mais ou
menos refletida. Portanto, quero principalmente tentar situar a lei do Antigo Testamento
em seu próprio contexto e, a partir disso, entender o apreço pela lei que encontramos
repetidamente no Antigo Testamento e, finalmente, como podemos apreciá-la hoje.

Em relação à lei do Antigo Testamento, o que está em questão não é apenas a


decisão de aceitá-la ou rejeitá-la. Devemos seguir um caminho de análise e
interpretação. Algumas estipulações da lei podem ser atualizadas facilmente (como o
mandamento de amar a Deus e ao próximo, ou o de não assassinar). Outras estipulações
são mais importantes se vistas como uma janela para um mundo passado, mas ainda
assim são capazes de nos desafiar em nosso próprio contexto pela sua abordagem. Mas
podemos encontrar uma lógica superior que pode nos mostrar um caminho, quando se
trata do significado da lei para os cristãos?

Para percorrer este caminho, a consciência dos próprios preconceitos e tradições


pode ser útil. Para isso servirá a primeira parte. Mostrar-se-á que muitos modelos
interpretativos tradicionais recebem a sua energia de um contraste fundamental entre a
“lei” e o “evangelho”. Claro que este contraste é, muitas vezes, justificado por
interpretações de algumas afirmações do Novo Testamento. Portanto, eu vejo a
importância de, inicialmente, colocar de lado o Novo Testamento com a finalidade de
tentar entender o Antigo Testamento eu ipso (por si mesmo). Como último passo, então,
farei alguns comentários deliberadamente breves sobre o assunto a partir do Novo
Testamento.

1. Vários modelos de relação com a lei

1.1. Marcião – o Deus do Antigo Testamento e o Deus do NT

A solução clássica para o problema da lei do Antigo Testamento no contexto


cristão é a negação consistente de qualquer relevância do Antigo Testamento para a
Igreja Cristã. Provavelmente, Marcião, um teólogo cristão de Sinope, na Ásia Menor
(85-160), formulou essa ideia mais consistentemente (cf. Longenecker, 1987, pp. 22–
32). Ele era fortemente influenciado pelo gnosticismo. Falava do deus do Antigo
Testamento como “Demiurgo”, que, como um artesão (gr. demiurgos), criou a matéria
de acordo com um plano fixo (o que era originalmente uma ideia platônica). A criação
foi interpretada por seu lado negativo: inter urinas et faecas nascimur (entre urina e
fezes nascemos).

Este deus, porque criou a matéria, vista como má, era um deus do mal. Isso, na
visão Marcião, se mostra principalmente no fato que ele quer escravizar as pessoas pela
Lei de Moisés. Todo sofrimento e todo pecado vem deste deus do Antigo Testamento.
Para um verdadeiro homem espiritual, isto é, aquele que se liberta de tudo que é
material e deseja vivamente a chegada da sua morte física como uma libertação da alma
da sepultura do corpo, para tal pessoa esse deus deve ser inacessível. Ela abraça-se
muito facilmente ao deus do Novo Testamento, que é todo espírito, amor e liberdade.
Nessa visão Jesus foi, naturalmente, não um homem de verdade, ele só parecia ser, uma
vez que tudo o que remete ao mundo físico é ruim – ideia cristológica também chamada
de docetismo (do grego dokeo, “parecer”). Acima de tudo, este Jesus de Marcião pregou
a libertação da lei mosaica. No entanto, para provar tudo isso biblicamente, ele
precisava de outra Bíblia e, enfim, cancelou todos os livros do cânon cristão que não se
encaixavam com a sua teologia. No final, sua Bíblia continha apenas 10 cartas de Paulo
e um pouco de um evangelho adaptado de algumas partes do de Lucas.

Embora esta solução para o problema da lei do Antigo Testamento parecer pouco
elegante (ela foi, por diversas razões, a heresia principal da igreja primitiva), ela é
consistente e eficaz. Na cultura popular cristã ainda estão preservados fragmentos de
platonismo o suficiente para nos deixar em perigo a inclinar para essa tendência
marcionita em nossa consideração do Antigo Testamento, em geral, e da lei mosaica, em
particular. Em alguns círculos cristãos, a matéria é rigorosamente separada do mundo
espiritual, ao passo que nós, os cristãos, devemos nos preocupar especialmente com o
espiritual. A frase de Jesus: “Buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça,
e todas estas coisas vos serão acrescentadas” (Mt 6.33), será lida no contexto da
oposição espiritual versus material. A partir disso pode crescer uma ética dualista e
conflitante: uma ética asceta e uma libertina. Para ambas, não precisamos da lei do
Antigo Testamento. Um asceta vive de uma motivação espiritual e não requer nenhuma
orientação específica para a vida prática. Não importa o que ele faz com o seu corpo,
conquanto sua mente permaneça iluminada mantendo-se, assim, a salvo. Este tipo de
pessoa se liga ainda menos com a lei do Antigo Testamento.

1.2. A lei do Antigo Testamento é válida apenas para o judaísmo

Esta solução vem da visão teológica de que o cristianismo e o judaísmo


correspondem a duas diferentes dispensações de Deus. A lei do Antigo Testamento é
completamente “válida” aos judeus (pessoas com antepassados judaicos), semelhante à
forma como uma constituição é válida para outros povos. Só que a “constituição”
judaica é qualitativamente diferente, uma vez que ela provém de Deus. Os cristãos,
separados do judaísmo, possuem outra “constituição”, que eles chamam de
“evangelho”. Deus age no momento de uma maneira diferente, mas quando os cristãos
forem arrebatados desta terra, a atenção de Deus estará de volta ao povo judeu e, em
seguida, aplicar-se-á a lei do Antigo Testamento de novo e todas as suas profecias serão
cumpridas. Portanto, a criação do Estado de Israel, em 1948, tem um inestimável valor
espiritual para este movimento teológico. Com isso, foram preenchidos os requisitos
para a lei mosaica, que agora pode ser apresentada como constituição política.

Como corolário, esta solução se assemelha à de Marcião: a lei do Antigo


Testamento não tem nada a dizer aos cristãos, mas por razões completamente diferentes.
Nessa visão a lei não é uma coisa ruim, muito pelo contrário. O Deus do Antigo
Testamento e o do Novo Testamento permanece sendo o mesmo. Mas o cristão vive em
uma ordem diferente de salvação e, portanto, a lei não lhe diz respeito. A partir desta
perspectiva, a lei se torna mais objeto de uma curiosidade espiritual, que acha
interessante como Deus lida com os judeus, e um indicador para “medir” quão longe o
projeto divino com os judeus foi avançando, e em que ponto atualmente nos
encontramos no plano divino de salvação.
1.3. A alternativa lei-evangelho

A teologia de Martinho Lutero opera em uma dialética acentuada, por assim


dizer, como uma doutrina de distinção. Ele entende a lei e o evangelho como duas
manifestações distintas da única Palavra de Deus, conforme ele mesmo explica (1520):
“Quando vou à farmácia, é uma arte dizer qual é a doença, e outra arte dizer o que você
deve fazer para se livrar dela. Mesma coisa aqui: a lei descobre a doença, o evangelho é
o remédio”. Este é o primeiro e mais importante benefício da lei do Antigo Testamento
para Lutero: mostrar às pessoas o quanto elas são pecadoras, condená-las fortemente e
assim levá-las a se refugiar em Cristo, e descobrir a nova vida liberta do pecado. No
entanto, Lutero não era sempre muito consistente em sua interpretação da Bíblia e nem
em sua teologia. Portanto, muitas ideias contraditórias podem advir de uma
interpretação literal dos escritos de Lutero.

Alguns que seguem Lutero, neste sentido, compreendem o evangelho como a


maneira de Deus de nos libertar da lei mosaica, para que possamos viver uma vida
guiada pelo Espírito Santo. O evangelho seria mais uma libertação da “maldição da lei”
do que do poder do pecado2. Como ele basicamente é uma antítese radical da lei do
Antigo Testamento, não oferece significados construtivos para os cristãos. No fundo
desta perspectiva, reside o medo de uma justiça própria ou baseada em obras, contrária à
soberania de Deus e à natureza incondicional da oferta de graça.

Provavelmente, cometeríamos uma injustiça com Lutero se dissolvêssemos “Lei


e Evangelho” para significar “Lei de Moisés e Evangelho do Novo Testamento”. Ao
invés disso, Lutero falou de dois modos de ação da Palavra de Deus em geral. No
entanto, a ambiguidade semântica evidentemente levou alguns a igualar a unidade
literária da lei mosaica com o que Lutero chamou a “lei”. Talvez Lutero tenha falado
melhormente de “exigência e promessa”, que estão conectadas entre si em ambos os
testamentos. A exigência não se limita apenas a um gênero literário específico ou um
grupo de textos. Com essa perspectiva, não parece muito estranho que Lutero dê aos
Dez Mandamentos um papel significativo na educação do cristão para uma vida digna
(cf. seus dois catecismos). No entanto, os Dez Mandamentos dele são “desjudaizados” e
“cristianizados”, e assim, sem rodeios, comunicam a vontade moral de Deus em geral.
Dessa perspectiva, o Decálogo ainda é “válido”. Podemos, provavelmente, ver como
Lutero já se aproxima mais tarde à ideia de uma “lei natural”3.

Assim, para Lutero, a Lei de Moisés não é necessariamente uma unidade


literária inimiga ao evangelho. Torna-se evidente o quão complicado essa conversa pode
ser quando surge uma confusão semântica e/ou conceitual. Este cuidado com a
semântica deve nos ocupar ainda mais.

2
Talvez esta tenha sido a ideia de Teodoro de Mopsuéstia (350-428), que, em seu comentário sobre
Gálatas, pôs em forte oposição a aliança de Moisés à nova aliança em Cristo (Wright, 2004, p. 390).
3
Wright comenta: “[…] numa perspectiva da história salvífica o novo em Jesus ultrapassa e substitui tudo
o que foi anteriormente. Assim, Lutero se sente não apenas livre para tratar a lei do AT analogicamente,
mas também as narrativas do AT. Curiosamente, ele pode defender os atos moralmente questionáveis dos
heróis veterotestamentários (p. ex., a mentira de Abraão referente Sarai frente à Abimeleque), quando
mostra como eles agiram a partir da fé nas promessas de Deus. Nesse sentido, a graça cobre uma multidão
de pecados de maneiras bem distintas” (Wright, 2004, p. 390).
1.4. Diferenciação em lei moral, judicial e cerimonial

Já na igreja primitiva, Orígenes sugeriu dividir a lei mosaica em mandamentos


cerimoniais e outros morais. Os primeiros chegaram ao seu fim com Jesus; as leis
morais permaneceram. Esta distinção foi posteriormente ampliada pela lei judicial (ou
civil) de Israel. Esta escola de pensamento enfatizou um ponto importante: a
continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento, que é devida ao fato de que o
Espírito Santo inspirou ambas as partes da Bíblia. Portanto, ambas têm um significado
espiritual para os cristãos (Wright, 2004, p. 392s).

João Calvino seguiu essa posição alexandrina quanto à continuidade da graça de


Deus nos dois testamentos (Longenecker, 1987, pp. 22–32). Para ele, Jesus, junto com
Paulo, tinha claramente demonstrou que a lei do Antigo Testamento não é uma coisa
ruim e, portanto, Calvino supõe que esta lei seria a base das boas obras cristãs, sendo,
assim, resposta à graça salvadora de Deus. Segundo Paulo, o evangelho agora traz à
obediência da fé que Deus espera dos cristãos, para que cumpram a lei de Cristo pelo
Espírito (Rm 1.5, 8.3-4). O que está destacado aqui é o valor educativo da lei, que
também se reflete no fato de que o aspecto positivo dos mandamentos é enfatizado – em
contraste com Lutero, que destacou especialmente as proibições para que o confronto do
pecador seja tão duro quanto possível.

Tudo isso não é tão complicado quando você olha ao Decálogo. Mas o que
devemos fazer com as leis obsoletas e que, obviamente, são mais difíceis de colocar em
prática hoje? A abordagem reformada tradicional é distinguir a lei mosaica em lei moral,
lei cerimonial e lei judicial. Especialmente o Decálogo corresponde à essência da ética,
sendo, portanto, válido para sempre e para todos. A lei cerimonial (os mandamentos
referentes ao culto israelita) não tem mais validade em função sacrifício de Jesus na
cruz, suficiente e para sempre válido (querer mantê-las seria como um de tapa na cara
de Jesus). As leis civis, ou seja, aquelas que têm um significado essencialmente
doméstico para Israel (por exemplo, o serviço militar, as leis de escravos) são
interessantes na medida em que ilustram certos princípios (como a igualdade perante o
juiz) e, portanto, podem ser adaptadas de acordo com a situação.

O problema com essa visão é que não é possível separar, de modo responsável, a
lei mosaica desse jeito. Algumas leis individuais certamente poderiam ser classificadas
desta forma, mas como muitas delas estão firmemente enraizadas em seu contexto
literário, poderia ser que pertencessem a outro tipo de lei (por exemplo, Lv 19, onde são
agrupadas leis de sacrifício e de comércio junto com o famoso mandamento sobre amar
ao próximo). Em outros mandamentos, como o do sábado, podemos encontrar
relevância moral, social e ritual. Em geral, uma leitura do Antigo Testamento não sugere
essa divisão tripartite. Teologicamente muito mais grave é a consequência, que podemos
encontrar frequentemente, de se pensar que a Bíblia (e Deus) não quer mais interferir
em assuntos cultuais, sociais ou civis, uma vez que, como cristãos, somos “livres” neste
caso.

1.5. A coisa principal é a motivação

O problema de muitos cristãos com a lei mosaica esta em sua interpretação e


aplicação de modo legalista. A interpretação legalista da lei seria aquela que tenta
agradar a Deus pelo cumprimento da lei, ao passo que Deus retribui de acordo (por
exemplo, fazendo-nos participar na redenção ou nos “abençoando”). Muitas vezes, a
carta aos Gálatas é lida sob esse pano de fundo. Nela, Paulo adverte acerca dos
“inimigos” que supostamente tinham essas tendências legalistas (como discutirei
adiante). Muitas vezes, o termo (infeliz) “judaizante” aparece neste contexto, como se
contivesse a característica fundamental da espiritualidade judaica primitiva. Muitos
estudos mostram que essa avaliação do judaísmo primitivo generaliza demais, e que o
legalismo se aplica apenas a uma minoria no mundo religioso de Israel já muito
diversificado nessa época. Ainda mais lamentável é culpar o Antigo Testamento de
engendrar uma ética baseada em atos legalistas. Quem pode defender isso de boa
consciência, aparentemente conhece o Antigo Testamento apenas através de uma lente
colorida ideologicamente.

Se a motivação, porém, não for deturpada, perceberemos que a obediência à lei,


segundo o AT, não é uma coisa ruim, mas boa. Só que, novamente, surge a pergunta:
quais dos mandamentos individuais deveríamos obedecer? O que nos leva de volta à
questão original: qual é o significado da lei para os cristãos?

Em resumo, pode-se afirmar que a base de todas estas abordagens (e dos


preconceitos a elas subjacentes) encontra-se na suposição básica de que a lei do Antigo
Testamento é radicalmente oposta ao evangelho da graça. Se assim for, minha suposição
é a de que esta avaliação da lei se baseia no conceito inconscientemente conformado à
mente do leitor moderno. No entanto, nossa cultura atual não aprecia tanto qualidades
como precisão, complexidade e nuanças. Estamos mais orientados visualmente e
amamos o que é imediato (como macarrão instantâneo). São essas tendências que
contrariam uma verdadeira valorização e uma profunda compreensão dos textos
veterotestamentários em geral, em especial a Torá.

Mesmo que num esforço contracultural, devemos fazer a pergunta se a lei de


Moisés realmente intencionou a obediência pura e simples de certas regras, ou se ela
não pertence a uma convenção literária totalmente diferente, que formou a primeira
recepção e a interpretação judaica dos cinco livros de Moisés (Torá).

2. Características da lei

A lei do SENHOR é perfeita, e revigora a alma. Os testemunhos do


SENHOR são dignos de confiança, e tornam sábios os inexperientes. Os
preceitos do SENHOr são justos, e dão alegria ao coração. Os
mandamentos do SENHOr são límpidos, e trazem luz aos olhos O
temor do SENHOr é puro, e dura para sempre. As ordenanças do
SENHOr são verdadeiras, são todas elas justas. São mais desejáveis do
que o ouro, do que muito ouro puro; são mais doces do que o mel, do
que as gotas do favo (Sl 19.7-10).

Ninguém que se arrasta sob o fardo pesado de ser convencido de ter que
conquistar a salvação por boas obras, fala desse jeito. Ninguém que quer se relacionar
com Deus através da observância meticulosa da lei mosaica, fala assim. Estas não são
palavras de alguém que se infla em orgulho autoindulgente. Este salmo não é um caso
isolado; basta ler o maravilhoso Salmo 119, com a sua reflexão sobre o valor da lei, para
o indivíduo e para a nação como um todo, para se ter uma ideia do valor a ela dado.
Pelo menos se percebemos a Torá a partir da perspectiva do Antigo Testamento, não há
nenhuma razão para essas caricaturas da lei insurgidas no decorrer da história da igreja.
Paulo também está longe de condenar a lei do Antigo Testamento. Ao contrário, ele luta
contra o abuso da lei e/ou contra uma interpretação errada da mesma.

A seguir, quero considerar a lei do Antigo Testamento por si desde seu pano de
fundo histórico e literário. É uma tentativa de se abstrair dos preconceitos dogmáticos,
muitas vezes decisivos em nossa leitura. Os salmistas não se entendiam nem como
calvinistas, arminianos, luteranos ou “judaizantes”. Eles se viam numa relação viva com
Deus, o Senhor da aliança. Este Deus inicialmente ofereceu-lhes sua aliança em Abraão
e reconfirmou-a como aplicável a todos os israelitas após o êxodo do Egito. Eles foram
o povo de Deus, salvos pela graça, e experimentaram o perdão de Deus sempre de novo.
Eram gratos pelo país em que eles foram autorizados a viver e entenderam a lei como a
graça de Deus, como instruções para a vida, dadas para que pudessem se manter na
aliança como pessoas solidárias frente a outros povos.

2.1. Contexto literário

“Em seguida, [Moisés] leu o Livro da Aliança para o povo, e eles disseram:
'Faremos fielmente tudo o que o Senhor ordenou.'” (Êx 24.7). O “livro da aliança”,
portanto, serve na narrativa do fechamento da aliança (Êx 24) como a base para a
obediência do povo. O contexto literário sugere que o “código da aliança” é o conjunto
de leis (Êx 20.22-23.33). Entre as coleções de leis em Êxodo, também se encontram os
Dez Mandamentos (ou Decálogo, 20.1-17) e a coleção referente ao calendário festival
(34.18-26). O Decálogo forma uma parte central na narrativa do encontro do povo com
Deus em Êxodo (19-24). Deus responde à preparação por parte do povo, e o povo
responde diretamente às palavras de Deus com espanto e a solicitação de um mediador.
A coleção cúltica (em Êx 34) é uma reafirmação resumindo a aliança, a qual foi
renovada após a “queda de Israel” (a idolatria do bezerro de ouro, 32-34). Assim,
podemos já em Êxodo encontrar a conexão inextricável entre coleção legislativa e
narrativa.

No judaísmo a Torá é vista como uma unidade, pela qual a tradução “instrução”
deveria ser preferida ao invés da tradução comum “lei”. Isso se aplica para todas as suas
partes, incluindo não apenas Êxodo, Levítico ou Deuteronômio, mas também livros com
mais narrativas como Gênesis e Números. Surpreendente é o texto de Gênesis (26.4-5),
onde Deus renovou sua aliança com Abraão por meio de Isaque. A Deus foi atribuída a
seguinte frase: “Por meio da sua descendência todos os povos da terra serão
abençoados, porque Abraão me obedeceu e guardou meus preceitos, meus
mandamentos, meus decretos e minhas leis.” Obviamente, esta afirmação é anacrônica,
porque estes quatro termos são termos técnicos para as coleções de leis de Êxodo a
Deuteronômio. Para o autor de Gênesis, era importante ressaltar que Abraão, muito
antes de Moisés, já havia cumprido a essência da lei, como mais tarde os israelitas
fizeram após o Sinai, uma vez que tinham a lei de forma muito mais detalhada (Wright,
2004, p. 283).

Repetidamente encontramos a expressão “pela fé”, em referência à vida


obediente de Abraão. Confiança e lealdade em relação a Deus encontram a sua
expressão também por obediência à vontade divina revelada. O entrosamento narrativo
das coleções de leis com os textos narrativos permeia os livros Levítico e Números. Em
Levítico estas narrativas têm um caráter mais interpretativo referente às leis. Em
Números, ergue-se a visão do caminho de Israel no deserto. Nessa perspectiva, então, as
coleções de leis (sobre a pureza e organização do acampamento, os levitas e sacerdotes,
a bênção araonica) sirvam para elevar os olhos do leitor ao culto futuro, em que deverão
comemorar no país da promessa. A conclusão é formada por Deuteronômio, um grande
discurso de Moisés, que visa lembrar o povo novamente acerca da lei. Este discurso é
embutido numa narrativa histórica, mas Moisés lembra aos israelitas não apenas das
várias leis, mas também dá um resumo da história que eles tiveram com Deus.

Assim, vemos que as leis individuais estão firmemente ancoradas numa estrutura
narrativa, e seria tolice pensar que os autores da Torá teriam feito isso sem intenção, já
que há exemplos suficientes de outras coleções de leis do antigo Oriente Próximo que
têm buscado outra estratégia literária. A localização literária da lei na narrativa da Torá
deve ser levada a sério se quisermos entendê-la em seu significado bíblico.

Além da interdependência literária, a grande moldura narrativa sugere uma


leitura histórica das leis individuais. Até mesmo as próprias leis se relacionam com a
experiência histórica de Israel. Isto é particularmente evidente em relação à sua
experiência como escravo no Egito. O passado migrante e escravo do povo aparece em
duas cláusulas motivacionais importantes (Êx 22.20 e 23.9). Juntas elas formam um
parêntese ao redor da parte do código da aliança, que define os valores sociais de Israel:
“... porque vós fostes migrantes no Egito”. Desde que as leis não têm a intenção de
afetar apenas o intelecto do leitor, mas também apelar aos sentimentos a fim de motivar
a obediência, este retrospecto histórico é bastante significativo para o leitor, seja
experimentado pessoalmente ou trazido de volta na celebração pascal. Assim, a Torá
apela para a compaixão.

Outro sinal sugerindo a mesma ideia pode ser encontrado em Êxodo (20.2). No
início dos Dez Mandamentos, um dos textos centrais de Êxodo, o passado de Israel é
lembrado. Torna-se óbvio como a questão da escravidão no passado domina as partes
centrais do livro. O processo de leitura cria uma conexão mental entre a crueldade
egípcia para com os estrangeiros, os israelitas (Êx 1-2 e 5), e o possível maltrato de
estrangeiros por israelitas (22.20-26). Os possíveis ofensores já foram vítimas. Assim,
as leis sobre escravos (21.2-11) não são aleatórias como início da coleção central do
código da aliança (Chirichigno, 1993; Jackson, 2000; Jacob, 1997; Sprinkle, 1994).

Outro aspecto literário importante é a seleção de temas nas coleções de leis e a


ordem das leis individuais. De novo o livro de Êxodo serve de exemplo. Para leitores
modernos, a partir da perspectiva de hoje, especialmente a mistura do secular com o
religioso é notável. Observe as leis sobre o altar (Êx 20.24-26), sobre a primeira colheita
(22.27-30), sobre o calendário cultual (23.14-19) e o epílogo do código da aliança com
suas referências claras à presença de Deus (23.20-33). A posição desta legislação em
lugares estruturalmente destacados no código da aliança funciona como um guia
importante no processo de leitura; toda a legislação “secular” é cercada por um contexto
cultual, de modo que o leitor deve perceber a totalidade desse código como sendo
também religiosamente relevante. O autor apresenta uma perspectiva divina sobre o
comportamento, os ideais, o sistema legal, as atitudes e as relações interpessoais de
Israel. Esta perspectiva une tudo o que hoje gostamos de separar em forte tradição
moderna: o comportamento na sociedade e o comportamento com o “santo”. Para
Êxodo, ambos estão ancorados no caráter divino. Deus, como o parceiro e legislador de
Israel, é aquele que mostra o caminho que o “povo de Deus” deve seguir. Em outras
palavras, isso significa que o povo de Deus deve construir o seu comportamento ético a
partir de sua imagem de Deus. Em última instância, a ética de Israel é baseada no
conceito da imitatio dei (a imitação de Deus).

No entanto, imitar alguém pressupõe certa familiaridade. A moldura narrativa


das leis as colocou diretamente na boca de Deus. Intrigantemente, ouvir a Deus sem
mediação é um privilégio do leitor. O israelita, que acampou aos pés do monte Sinai
ouvindo a lei, ouviu-a apenas através da mediação de Moisés. Aquele acesso
privilegiado do leitor à voz de Deus oferece, além de uma ponte para diminuir a
distância entre leitura e evento, um senso de contato muito mais imediato do leitor com
Deus, o legislador. Essa estratégia literária sugere que qualquer geração pode e deve
deduzir de forma não imediata o caráter do legislador pelo caráter das leis. Assim, se
forma uma parte da imagem de Deus, que a Torá gostaria de oferecer aos seus leitores.

2.2. A graça de Deus ou a tensão entre ideal e realidade

Se as leis falam muito sobre Deus, a fonte legislativa, elas dizem muito sobre o
seu receptor. As coleções de leis em Êxodo mostram claramente o interesse do autor.
Este é duplo: por um lado, são expressas as expectativas referentes ao povo de Deus
ideal; por outro, a mera existência de leis antecipa a sua necessidade. Leis não são
promulgadas sem necessidade e, com isso, torna-se óbvio o que o autor considera seu
leitor capaz. Na Torá, isto não é diferente. As narrativas sobre o caminho no deserto e,
especialmente, a história do bezerro de ouro, lançam uma luz clara sobre a atitude
rebelde do povo, a qual é, indiretamente, identificável nas coleções de leis (Patrick,
1994; Watts, 1999).

A base para o Israel ideal se encontra em Êxodo (19.6). Lá, o povo é declarado
um reino de sacerdotes frente aos demais povos. Com este papel, Israel é levado à
proximidade da presença divina. Uma proximidade assim apresenta suas próprias
exigências referentes ao comportamento dos israelitas. No Decálogo e no código da
Aliança, as consequências do papel de um povo sacerdotal e santo são apresentadas.
Curiosamente, lemos em Êxodo apenas uma seleção relativamente limitada de regras
representativas. Grande parte da vida diária permanece não tocada pelos regulamentos.
Essa situação não muda significantemente com os demais livros da Torá. Assim, em
muitos casos, deixa-se para o leitor decidir por si mesmo como viver sua vida como
parte do povo da aliança, sem comprometer a presença divina e, portanto, a bênção
divina para si e para o seu companheiro. Esta abertura contribui significativamente para
a atualidade das leis, na medida em que o leitor é convidado ao processo de atualização.
Isto se pode ver muito bem em Deuteronômio e, mais tarde, com mais clareza, nos
livros proféticos.

Israel, no entanto, é falível e depende de perdão. Já a existência de textos legais


mostra este fato por si. Mas também, sobretudo, no sistema sacrificial, juntamente com
a regulação do culto (cf. principalmente Levítico), enfoca-se que Israel precisa de
perdão. Deus mesmo oferece uma oportunidade para expiar o pecado. A estratégia
literária de composição da renovação da aliança (Êx 34.11-26) é teologicamente muito
significativa neste contexto. Com a construção e idolatria do bezerro, o povo arriscou a
presença de Deus entre eles. Foi apenas a graça de Deus que permitiu a continuidade do
plano divino original. Êxodo (34.11-26), então, contém muitos paralelos com a parte
final do código da aliança. Ambos os textos mantém um foco no futuro de Israel (e,
portanto, na presença do leitor). Ambas coleções de leis terminam com a mesma frase
memorável: “Não cozinharás o cabrito no leite da própria mãe” (23.19b, 34.26b). O
inconfundível efeito retórico dessa repetição é fruto da associação entre as duas
coleções. Todo o código da aliança é posto em perspectiva em Êxodo, capítulo 34: antes
e depois da renovação da aliança, Deus requer exatamente o mesmo de seu povo.

A maneira pela qual Israel tem de viver na presença de Deus não muda. O ideal
comunicado para a geração do êxodo continua se aplicando para o leitor. Uma junta
literária de encaixe semelhante pode ser observada nas regras sobre o sábado (cf. Êx 16;
20.8-11; 31.12-17; 35.1-3). Nas passagens que vêm imediatamente antes e depois da
violação da aliança (32), o sábado é confirmado como o sinal da aliança eterna: ele
sobreviverá ao tabernáculo (Dohmen, 2004, p. 293s), bem como à desobediência e
violação da aliança de Israel. O sábado deve servir como um lembrete constante do
êxodo da escravidão egípcia. Assim, ele lembra a existência contínua da aliança com
Deus, na qual Israel toma de novo o papel de “escravo”, mas agora tendo Deus como
seu Senhor. Êxodo, no capitulo 16, deixa claro que o sábado deve afetar a vida
cotidiana. Com isso, o sábado recebeu uma qualidade persistente como sinal desta
aliança. A inclusão do sábado nos Dez Mandamentos torna evidente o quão conectado
ele está com a santidade de Israel, definida como uma nação de sacerdotes.

2.3. Três níveis da lei

Já dentro da Torá, nem todos os mandamentos são de igual importância. A lei


está em movimento e não consiste de “leis” atemporais que reclamam validade
permanente. Os mandamentos individuais foram destinados a um contexto específico.
Quem mantém isso em mente, junto com os desenvolvimentos desses mandamentos no
Antigo Testamento e, em seguida, no Novo Testamento, tem boas condições de deixar
os mandamentos falar de modo novo para novos contextos. A grande vantagem dessa
perspectiva é que ela não deixa a ética bíblica se dissolver em palavras difusas e
genéricas, como abnegação, humildade, verdade, justiça ou amor, especialmente. Essas
palavras obviamente ajudam no processo de repensar e descrever os valores de Deus.
Mas elas não ajudam a colocá-los em prática na vida concreta. O que exatamente
significa “amar o próximo”? Encontrar isto em certos mandamentos (e narrativas) do
Antigo Testamento ajuda muito mais que frases sobre o grande ideal. Frases como a de
Agostinho: “Ame a Deus e faze o que quiseres”, só servem, enquanto máximas, se eu
reconheço que meu amor a Deus tem a ver com meu vizinho (Jenson, 2010, p. 12).

É claro, há leis que são de um nível mais geral e outras que são apontadas de
forma especifica. No Antigo Testamento, podemos descrever três níveis de concretude
ou abstração. Isso não significa que poderíamos pôr em oposição algumas leis contra
outras, ou que algumas são mais importantes do que outras – aqui tratamos apenas o
nível de abstração. Todas as leis são do mesmo autor e, por isso, têm a mesma
autoridade, a mesma motivação e até o mesmo conteúdo essencial (Jenson, 2010, p. 10).
Nas coleções de leis da Torá, o Schema Jisrael (“Escuta, Israel, YHWH é nosso Deus,
YHWH é um”, Dt 6,4) toma o lugar primeiro e mais importante. O fundamento de todas
as leis da Torá é a relação de aliança entre Deus e seu povo. Assim a lei se torna uma
expressão da personalidade do Deus da aliança. O Schema continua exatamente neste
sentido: “Amarás YHWH, teu Deus, com todo o coração, com toda a alma e com todas
as forças” (Dt 6.5). Essa lei do amor é provavelmente a forma mais abstrata da ética que
encontramos no Antigo Testamento. Todas as outras leis são concreções do Schema. Os
seguintes versos mostram claramente que a alvo deste mandamento central é a vida
cotidiana (Jenson, 2010, p. 15).

No nível médio de abstração, podem ser facilmente classificados os Dez


Mandamentos. Eles traduzem o amor de Deus com os mandamentos referentes ao culto
(os quatro primeiros mandamentos) e, em seguida, com respeito ao próximo. As
proibições servem como marcadores de limites, enquanto os mandamentos positivos
querem incentivar as pessoas a explorar as possibilidades de expressão de amor a Deus.
No entanto, nem os Dez Mandamentos cobram cada decisão ética possível (Jenson,
2010, p. 17). Apesar disso, eles indicam como Deus imaginou que pessoas que o amam
podem conviver com seus semelhantes.

Os muitos regulamentos e ordenanças das coleções de leis da Torá mostram,


ainda mais especificamente, como pode ser realizado o amor a Deus e as pessoas. Aqui
é o terceiro nível de concretude, mas nem todos os casos imagináveis são aqui tratados.
Assim, todos precisam recorrer em confiança, fé e obediência à comunidade como
modo de moldar responsavelmente sua vida. Várias vezes, essas regras tentam alcançar
a justiça tanto quanto possível, num contexto social muito complexo em que
provavelmente não há uma solução ideal (ver, por exemplo, as leis referentes à
escravidão).

Observando os diversos níveis de abstração, torna-se óbvio que, eventualmente,


as leis são uma chamada a expressar de forma holística nosso amor a Deus. Essa
perspectiva em relação à lei é bastante diferente da do legalismo. Nunca foi o alvo da lei
fazer com que alcançássemos o céu por meio de nossos esforços morais.

2.4. Cláusulas de motivação ou por que devemos cumprir a lei?

Muito esclarecedor, neste contexto, são os diferentes tipos de penalidades que


devem motivar a obediência às leis. Como princípio orientador aqui serve a restituição,
em que o dano deve ser compensado (por exemplo, Êx 21.18-19). O status social da
vítima ou do agressor é irrelevante (ver 21.33-22.5) – uma particularidade da lei
israelita e uma clara expressão da ordem criada por Deus, que enfatiza a igualdade de
todas as pessoas. Outras formas de sanções são a pena de morte e a ameaça indireta de
exclusão da bênção divina. A pena de morte torna-se uma ameaça se a restituição não
for possível e caso haja um crime particularmente grave (ver 21.12-17.29; 22.18; 31.14-
15; 28.35.43; 30.20-21; 35.2 – Jenson, 2010, p. 17). Finalmente, a morte é a saída
definitiva do espaço da bênção divina e, assim, esses dois tipos de sanção podem ser
combinados em uma categoria. Perder a bênção de Deus (ou dos deuses) é o medo
básico existente na antiguidade. Da bênção divina depende o bem-estar do povo e do
indivíduo. As leis de Êxodo também se aproveitam desse fato quando (em 23.20-33 e
34.10-26) não é detalhada nenhuma ameaça direta de punição, mas sim uma
consequência geral que aponta ao desejo de Deus por recompensar a obediência e
penalizar a desobediência (Watts, 1996). Aqui se torna evidente o que Eckart Otto
chamou de uma “teologização da lei” – a lei de Israel está ligada inegociavelmente com
o seu legislador divino (Otto, 1991).
2.5. O contexto histórico

Um aspecto interessante de nosso tema, muitas vezes desconsiderado, é a


comparação das coleções de leis do antigo Oriente Próximo com as da Bíblia em termos
de sua intenção comunicativa. Qual a função deste tipo de texto na sociedade antiga?

Primeiro, há uma função social evidente das coleções legais: definir o que está
certo e como punir atos que infringem aos valores da sociedade. Há também uma
função retórico-política (quase propagandística), que hoje já não é tão conectada com os
textos legais, na qual o rei deseja de se expor como um legislador sábio e capaz. Essa
perspectiva é particularmente evidente nos registros monumentais da lei nas chamados
estelas (epitáfios de pedra). Nessas coleções não se trata de uma lei universal e eterna,
que estabelece o direito para fundamentar os atos tribunais em todo o país. Conhecemos
do Antigo Oriente (principalmente da Mesopotâmia), a prática de publicação de
coleções legais em estelas no final do mandato de um rei influente. A coleção foi
destinada, aparentemente, para estabelecer um monumento memorial referente às
decisões sábias e prudentes do respectivo rei (Assmann, 2000; Bottéro, 1992). O grande
valor que os reis colocaram na reclamação de que eles próprios são os autores dessas
leis, aponta na mesma direção. Desse modo, a coleção suporta, em primeiro lugar, a
autoridade do legislador e quer qualificá-lo como político capaz. Certamente, o efeito na
direção contrária foi intencionado também: um rei bem conhecido como confiável e
sábio também confere sua autoridade às leis da coleção. Ambas as funções
comunicativas desempenham um papel importante na Torá, especialmente em Êxodo.
Deus distingue-se por suas leis como um rei capaz, cuja legislação é consequentemente
seguida. E, de fato, pode ser estabelecido, com base nas leis de Êxodo, um retrato
abrangente de Deus, consistente com o de passagens narrativas da Torá (Graupner,
2005; Watts, 1996). Por outro lado, as leis “emprestam” a autoridade do legislador.
Podemos supor isso porque Êxodo primeiramente pressupõe Deus como conhecido por
seus leitores e, em seguida, modifica e amplia esse retrato.

Então, de novo, podemos ver como a relação entre os legisladores e o receptor


das leis forma o fundamento da Torá. Como mencionado acima, especialmente o código
da aliança e o Decálogo devem ser entendidos como a base da aliança do Sinai. Por isso,
precisamos entender as leis dentro da relação já existente entre o legislador (Deus) e os
receptores (Israel). Há um clima de aceitação e reconhecimento mútuos. Assim como as
leis refletem o caráter de Deus, eles são destinadas a formar e impactar o cotidiano de
Israel, o povo da aliança. Portanto, a lei também é uma expressão da “graça de Deus”
(ver Sl 119.64; 124).

2.6. Em resumo

Poderíamos destacar muitas outras implicações teológicas para a nossa


compreensão da lei do Antigo Testamento, mas vou limitar-me a um aspecto a mais,
que, de alguma forma, resume os resultados anteriores.

Um propósito central das leis da Torá é a criação de uma nação solidária.


Meinrad Limbeck chama esse aspecto da lei de “benevolência obrigatória” (Limbeck,
1997), enquanto Eckart Otto fala de uma “ética de solidariedade” (Otto, 1991). Ambos
os termos expressam o ideal de um Israel unificado, que só em sua unidade e
solidariedade reflete o seu estado especial como povo de Deus. Seria perfeitamente
possível para os poderosos em Israel interpretar as leis da Torá com a finalidade de
reprimir os mais fracos. Provavelmente porque existia essa possibilidade, o autor incluiu
alguns regulamentos na sua coleção referente aos socialmente marginalizados. Muitas
vezes essas leis são difíceis de obrigar num tribunal de justiça, uma vez que estes se
preocupam mais com a atitude de uma pessoa que com um fato concreto (por exemplo,
Êx 20.12; 17.20-23; 22.24-26; 23.4-8). As cláusulas motivacionais que as acompanham
dependem do caráter de Deus, que é para ser imitado, ou se referem a Deus como a mais
alta instância judicial. A possibilidade do tribunal injusto é visto e entendido como
destrutivo a solidariedade do povo. Quem age assim, age fora da intenção da lei e traz o
juízo divino sobre si mesmo.

É o desejo de Deus que os membros de seu povo apoiem-se mutuamente e


construam sua unidade – só assim poderá viver a aliança com Deus. A justiça exigida
pela Torá não é abstrata, mas encontra a sua expressão no cuidado ativo até mesmo com
as pessoas que não são de perto, como “inimigos” ou “estrangeiros”. Assim, a Torá
tende a afetar as atitudes do indivíduo através de suas coleções de leis.

Deus diz enfaticamente: “Habitarei no meio dos israelitas e serei o seu Deus.
Eles reconhecerão que eu sou o Senhor seu Deus, que os tirou do Egito para habitar
entre eles. Eu sou Senhor seu Deus” (Êx 29.45-46). A partir dessa perspectiva, pode não
ser surpreendente que o salmista esteja tão cheio de gratidão pela lei maravilhosa de
Deus. Deus com eles: isso, no final das contas, é o tema central da lei. A proximidade
divina desafia, de modo que é bom haver algumas orientações para fazer com que essa
proximidade não seja ameaçadora para ninguém.

Espero que tenha ficado claro que a compreensão da lei do Antigo Testamento
estará comprometida se lida exclusivamente através de nossa noção moderna acerca dos
códigos legais. Ademais, reduzir a lei da Torá a um imperativo categórico4 abstrato, tal
como se fez na época do idealismo alemão, não faz justiça aos textos antigos. Na Torá
são descritos os ideais do povo de Israel, mas eles são sempre relacionados à ação
libertadora de Deus no evento do Êxodo e à necessidade e possibilidade de perdão.
Assim, as leis devem ser entendidas pelo seu encaixamento narrativo com a história de
Israel, como consequência e expressão da graça de Deus. A dualidade lamentável (mas
infelizmente popular) entre “Lei e Evangelho” não pode ser mantida neste fundo5.

3. Perspectivas neotestamentárias sobre a lei

Os judeus comemoram a Shavuot ou “Festa das Semanas” (Pentecostes), pela


qual se lembram da revelação da Torá. Primeiramente, no ciclo do ano, vem Páscoa, o
dia em que os filhos de Israel deixaram para trás, de uma vez por todas, a escravidão do
Egito. Eles viajaram através do deserto e chegaram ao Monte Sinai cinquenta dias
depois. Moisés subiu a montanha e retornou com as tábuas da aliança (da lei) em mãos.
Como vimos, essa lei é um presente de Deus ao seu povo. Assim Deus imagina o modo
de vida com qual eles podem mostrar que são realmente o seu povo.

4
“Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal” (Kant:
AA IV, 421).
5
Estou dolorosamente consciente da limitação dos parágrafos anteriores sobre a lei da Torá. Haveria
muito a dizer sobre o papel da lei nos profetas, nos livros históricos e nos salmos. Mas essas perspectivas
posteriores sobre a lei já estão presentes na Torá, e somente são acentuadas ou esclarecidas.
Qual dia melhor poderia ter sido escolhido pela igreja cristã para comemorar a
sua fundação? Deus dá o seu Espírito e o dá a todos, sem distinção, homens e mulheres,
crianças e velhos, livres e escravos. Para o judaísmo, comente a Torá permite a presença
de Deus entre o povo. Para os cristãos, Deus está presente por seu Espírito. A presença
de Deus a ambos transforma em seu povo.

No Antigo Testamento, há séculos antes de Cristo, foi expresso que algo deveria
mudar radicalmente caso Israel fosse mantido no papel de povo de Deus. Jeremias fala
de uma lei que já não precisa ser ensinada, mas que deveria estar escrita no coração (Jr
31). Ezequiel fala de um vento de Deus soprando onde não há nada Dele e, em seguida,
faz brotar uma nova vida; um vento que renova o povo após o exílio (Ez 37). Acima de
tudo, foi Paulo quem lutou com o problema de como o novo povo da aliança de Deus
pode se formar, se ele não pode consistir apenas de judeus. Para ele, são agora Jesus e o
Espírito Santo que cumprem a lei e possibilitam a obediência do povo de Deus.

Nosso entendimento de Paulo, no entanto, depende muito se o entendemos


depois de sua experiência de Damasco, como alguém que se afastou completamente do
judaísmo, em direção a um cristianismo helenístico, ou se ele se manteve como um
judeu, com uma cosmovisão judaica, tendo um pouco de medo do contato com a cultura
greco-romana. Não é difícil provar que Paulo firmemente se estabeleceu na tradição de
Jesus e que não foi ele quem inventou o cristianismo. Mas ele repensou todas as
consequências (Wenham, 1995). Entender o próprio Jesus é uma tarefa mais fácil
quando o vemos como alguém firmemente enraizado no judaísmo. Assim, como Paulo
mais tarde, ele enfatiza a história de Deus com Israel como a moldura interpretativa para
a sua própria vida, morte e ressurreição. Neste sentido, ele apresentou uma opinião
bastante diferenciada da lei mosaica. O próprio Jesus confirma a lei como divinamente
inspirada, que ele não quis destruir, mas cumprir (Mt 5.17-20). Este cumprimento,
então, não pode ser entendido no sentido de “executar/obedecer completamente”, mas
no sentido de “realizar” o que a lei sempre tencionou. Em Jesus, o cumprimento está
presente, mas ele não abole (ou “dissolve”) a lei, mas a eleva (“até que o céu e a terra
passem”). Portanto, não está certo dizer que, com a encarnação de Jesus ou com a sua
morte (ou Pentecostes), ele pregou uma espécie de liberalismo sem lei, como ele mesmo
foi, aparentemente, acusado muitas vezes pelos fariseus (Wenham, 1979).

Mas o que fazer com as críticas de Jesus referentes às leis dietéticas (cf. Mc
7.19)? Como ficou claro na seção anterior, a lei apontou como um israelita poderia
expressar o seu amor a Deus. Como vimos, com a presença de Jesus, encontramos
novas circunstâncias que são descritas com o termo “cumprimento”. Nosso
relacionamento com Deus não é necessariamente exteriorizado por obedecer a lei, mas
através de nossa lealdade para com Jesus. Esta nova realidade significa que agora
devemos repensar a lei (como sempre em novas circunstâncias) e ver como podemos
viver na vontade de Deus nessa nova situação. Paulo faz exatamente isso (por exemplo,
em 1Co 8), quando fala da liberdade em relação ao consumo de carne sacrificada aos
ídolos como sendo limitada devido à uma possível ofensa ao outro – aqui observamos
uma lei dietética adaptada; ou em Gálatas, quando o assunto era a igualdade de judeus e
não judeus diante de Deus o que, por exemplo, cancelava a circuncisão compulsória.
Antes de Paulo, Pedro teve de repensar as leis dietéticas de uma forma muito
semelhante (Atos 10), e a igreja de Jerusalém optou também por reformular a ideia
central da lei referente às condições da comunhão entre judeus e não judeus (Atos 15).
Com Jesus, e a reorientação consequente em termos de terra, templo e
regulamentos de pureza, especialmente aquelas leis perdem a sua relevância contextual
em relação à delimitação de Israel como entidade política e cultural. Especialmente em
Gálatas, Paulo argumenta dessa perspectiva quando questiona exatamente essas
características que definiam a identidade do judaísmo, negando sua relevância para não
judeus, ora acrescentados ao povo de Deus6. Como o argumento em Gálatas é denso e
muito importante para a nossa pergunta, vou o elaborar um pouco mais.

Os oponentes de Paulo (Gl 1.7) parecem ter sido missionários judaico-cristãos


que vieram depois dele para a região da Galácia e argumentaram que o evangelho de
Paulo sem o auxílio da Torá não seria suficiente. Um modo de vida judaico, marcado
por um cotidiano de acordo com uma série de características específicas, como a
circuncisão, restrições alimentares e conformidade com as diversas festas religiosas,
também seria essencial, de acordo com esse grupo, para cristãos vivendo em um
contexto pagão. Exatamente estas marcas de identidade é Paulo descreve como “obras
da lei”. Paulo argumenta que essas “obras da lei” não são obrigatórias para garantir um
lugar no novo Israel (6.16). A fé em Jesus, o Messias, é a única marca de identidade que
mostra que alguém legitimamente pertence ao povo de Deus, aos descendentes
verdadeiros de Abraão.

“Obras da lei” não é um código paulino para “legalismo”, pelo qual alguém está
tentando ganhar a sua entrada para o céu. Aqui um problema social tem levantado uma
questão teológica mais profunda: como devemos ver a relação entre dois grupos, ambos
crentes em Jesus Cristo, mas que procedem de diferentes origens culturais? A
obediência aos ditames da cultura judaica é necessária para manter um relacionamento
correto com Deus, ou para ser justificado? A resposta de Paulo é “não”.

Como somos justificados? É improvável que Deus tenha pensado: “Bem, se a


obediência à lei é tão difícil para os seres humanos, então vou elaborar algo mais
simples para eles; daqui pra frente, basta que eles creiam em Jesus. Provavelmente isso
eles sejam capazes de fazer”. Não, se o evangelho é pregado, a boa notícia de Jesus é
preconizada, e as pessoas vão perceber o Espírito é que age em seus corações fazendo
brotar a fé. E se eles creem, é sinal de que eles realmente pertencem à nova família de
Jesus, ao povo messiânico. Justificação, assim, passa a ser a declaração de Deus de que
alguém faz parte do seu povo e sua fé é o único indicador de que ele foi justificado. Não
há nenhuma outra garantia; a fé, portanto, é o indicador universalmente válido, tanto
para judeus como para gentios.

A posição de Paulo sobre a lei do Antigo Testamento é a seguinte: homens que


se autojustificam pela lei, estão sob a ameaça constante da maldição caso Não a
cumpram (Gl 3.10, citando Dt 27.26). Assim, realmente não faz sentido manter apenas
uma parte da lei (como a circuncisão, as leis alimentares ou os festivais). Jesus morreu
para libertar as pessoas, tomando para si mesmo a maldição da lei (Gl 3.13, citando
Dt 21.23). Portanto, quando os Gálatas novamente passaram a colocar sua confiança na
mera obediência à lei, eles efetivamente estavam negando a eficácia da cruz.

Para que, então, serve a lei? Obviamente, a lei não é contra as promessas de
6
Em minha interpretação, inclino-me fortemente à exegese da chamada Nova Perspectiva sobre Paulo,
que me parece fazer maior justiça ao contexto histórico de Paulo e do judaísmo na época greco-romana
(Matera, 2000; Wright, 1994, 2005).
Deus (Gl 3.21). Em dado momento (Gl 3.17-24), Paulo argumenta sobre o processo
desde o início. A aliança do Sinai nada mais foi que a renovação da aliança com Abraão,
e de nenhuma maneira substitui a antiga aliança (3.17). A lei trata das violações para
marcar a linha divisória da vida como povo de Deus. Mas isso só foi necessário até que
o descendente singular, o descendente obediente de Abraão aparecesse (3.19). Nunca foi
a intenção de Deus que a lei propiciasse vida (pensando aqui na justificação, 3.21). A lei
nos protegeu até que Jesus veio e, posteriormente, o Espírito nos libertou (3.23-24).
Consequentemente, a lei não é algo negativo, mas aos Gálatas, Paulo teve de definir o
lugar certo da lei. A nova interpretação da lei tornou-se necessária por causa da vinda do
Messias de modo muito diferente (do que era esperado). A lei revelou a Israel a vontade
de Deus e ajudando-os a viver a sua vocação (Êx 19.5-6). A justificação que trazia a
vida, sempre podia chegar apenas pela semente especial de Abraão, em nome do qual os
Gálatas haviam sido batizados (Gl 3.26-29).

Em Gálatas, Paulo não escreveu sobre como alguém pode retificar o seu
relacionamento com Deus, mas sobre se não judeus, que se tornaram cristãos, deveriam
ser circuncidados. Então, a pergunta é: como definir o povo de Deus? É exatamente
nessa definição que a lei do Antigo Testamento não tem papel algum a desempenhar.

Em Romanos, Paulo lida com o problema de que alguns judeus esperaram pela
parte da lei que lhes permitia comportar-se conforma a vontade de Deus. Mas porque os
judeus também eram pecadores, não havia para isso prospecto de sucesso algum (Rm
2). Paulo disse até mesmo que a lei ligou também os judeus a Adão, para que eles
descubram seus pecados (5.20; 7.1-6). Paulo traça um paralelo entre a queda do homem,
que aconteceu justamente no momento quando foi dada a regra sobre a árvore do
conhecimento, e a queda de Israel (no momento da adoração do Bezerro de Ouro), que
aconteceu logo após da revelação dos mandamentos no Sinai (7.1-12). Em ambos os
casos, o problema não foram as regras, mas o pecado que havia tomado lugar. Para lidar
com o embaraço no pecado, precisamos do Espírito de Deus (8.3), e ele nós temos
através de Jesus. Paulo é tão realista (em 7.13-20), quando afirma que a matéria-prima
com a qual se esperava que a lei funcionasse tem sido sempre o homem pecador. Aqui
ele fala somente sobre Israel, porque este povo é a sua preocupação aqui; mas nos
capítulos 2 e 3, ele tinha provado que os judeus são pecadores como todos os outros. A
solução, então, vem em Romanos 8 (o grande capítulo sobre o Espírito Santo). A partir
de uma perspectiva diferente, a mesma solução está sendo novamente discutida em no
início do capítulo 12 (1-12), onde Paulo fala da renovação das nossas mentes, do nosso
entendimento, que, como consequência, conduz a um novo comportamento.

4. Teses para uma leitura da lei do Antigo Testamento desde a perspectiva cristã

As seguintes teses pretendem responder aos desafios que se impõem nas


sociedades ocidentais de hoje. Eles querem levar a sério a qualidade atualizadora das
coleções de leis do Antigo Testamento.

4.1. Casuísmo e ética

Numa cultura que prefere soluções simples e rápidas, onde pouco lugar resta
para introduções prolongadas e onde discussões profundas são mal vistas, há um perigo
de insistir precipitadamente na observância de leis claras que, sociologicamente,
facilitam a distinção entre insiders (os de dentro) e outsiders (os de fora). Muitas vezes,
então, recorremos a regulamentos detalhados, que, em seguida, tentam regular todos os
aspectos da vida cristã (o chamado casuísmo). Especialmente nos estratos menos
escolarizados da população, isso pode levar rapidamente a uma extrema dependência de
lideranças carismáticas que, pela legitimidade de sua posição, promulgam essa
“legislação”. Para esse tipo de liderança é relativamente fácil achar fundamentos nas
leis do Antigo Testamento simplesmente porque lá eles acham um tipo exato de regra.
Em tais situações, pode realmente acontecer o que os reformadores do século XVI já
haviam criticado, a saber, que as pessoas são escravizadas por uma regulamentação,
cujo cumprimento supostamente seria determinante para a sua salvação futura, ainda
que isto nunca estivesse presente em sua intenção primária.

Como vimos acima, as leis mosaicas nunca foram intencionadas como a


revelação final da vontade de Deus, mas como considerações concretas sobre como o
povo de Deus poderia viver sua vocação perante outras nações. Portanto, é um processo
contínuo de repensar cada nova situação com o objetivo expressar de modo relevante à
sociedade o amor de Deus. O que segue, em consequência, seria uma ética superior ao
casuísmo descrito, no sentido de que podemos reagir de muito mais flexível e sucumbir
menos ao perigo de ossificação de regras e de abuso de poder. Entretanto, torna-se
necessário que as pessoas não terceirizem sua responsabilidade, que pensem e decidam
por si mesmas. Esta tarefa só pode ser feita por aqueles que estão dispostos a
desenvolver um pensamento crítico e reflexivo. Isso, por sua vez, só é possível caso
nossas comunidades e seus líderes invistam em formas de educação cristã que permitam
esse tipo de reflexão.

4.2. Ação em responsabilidade e como metáfora

O foco das leis do Antigo Testamento na vida cotidiana da sociedade pode servir
de auxílio em contexto de igreja que, devido à história da missão, foram fortemente
influenciados por conceitos neoplatônico-gnósticos. O cristianismo não é apenas uma
coisa “espiritual”, sendo este termo aqui entendido como interioridade pura e simples. O
amor a Deus se expressa não apenas num louvor dedicado, mas também, e
principalmente, no amor ao próximo. Este amor ao próximo também não se traduz
apenas em sentimento agradável, mas em ações concretas.

Além disso, as leis também têm um forte caráter metafórico, representando


realidades espirituais através de ações. Especialmente as leis dietéticas ou de pureza
poderiam servir como modelos aos nossos esforços para comunicar os valores do reino
de Deus também de forma simbólica. Áreas com muito potencial poderiam ser a
valorização da harmonia estética, num ambiente cultural que muitas vezes enfatiza o
lado trágico e negativo do mundo. Ou pode se dar através de um estilo de uma vida
simples, como contraste para o modelo consumista dominante em nossa sociedade.
Poderia servir como uma perspectiva norteadora, quando perguntamos de que modo
hoje deve parecer uma humanidade desejada e possibilitada por Deus.

4.3. Valores e imitatio dei

As coleções de leis do Antigo Testamento são, além da vida de Jesus, uma das
principais fontes para a formulação de nossos valores cristãos. Deste ponto de vista,
seria um trabalho gratificante questionar os valores geralmente válidos em nossa cultura
a partir dos princípios expressados na Torá. A partir disso, poderíamos desenvolver
novas direções específicas para representar estes valores básicos para o nosso tempo.
Além da consideração dos níveis de abstração, o aspecto de imitação de Deus (imitatio
dei) seria um terreno fértil para o desenvolvimento de princípios, bem como as
aplicações concretas. A Torá refere-se sempre à origem da lei em Deus e no reflexo de
sua persona nos mandamentos. Neste caso, porém, recomenda-se cautela, já que não é
só um risco latente o de basear a nossa definição de Deus em conceitos não bíblicos,
mas mais filosóficos ou religiosos. O processo não é: conhecemos a Deus e, por
conseguinte, podemos compreender os mandamentos. O caminho é o inverso: lemos os
mandamentos sobre a vida de Jesus e, portanto, podemos moldar a nossa imagem de
Deus.

4.4. Lei e espiritualidade

A relação ideal entre Jesus e um cristão é vista frequentemente numa


interioridade íntima, ou seja, especialmente num amor interiorizado a Deus. Desse
ponto de vista, todas as minhas ações externas devem ser idealmente emanações do meu
ser transformado por Deus. Espiritualidade, assim, seria a maneira como um indivíduo
expressa o seu amor a Deus. A base dessa perspectiva é o sentimento. Tudo isso é uma
consequência da influência da corrente existencialista em nossa cultura. Valores centrais
são: autenticidade, autodesenvolvimento, autodeterminação e liberdade. O que não é
autêntico passa a ser uma imposição e, assim, uma mentira. As leis vêm de fora para
dentro; portanto, são suspeitas desde o início, porque a obediência, nesse caso, não
nasce a partir do interior.

Agora surge a questão de como esta perspectiva descreve a realidade do homem.


Há pessoas que se sentem atraídas para Deus por causa de fundamentos racionais ou
morais. Mesmo o existencialista mais teimoso entrará numa situação onde ele não sente
a presença profunda de Deus. Dúvida, solidão, frustração, frio e silêncio encontram-se
por toda vida. O problema é que hoje, no entanto, estes estados psíquicos são vistos
como negativos por causa da ênfase na interioridade e no indivíduo.

Uma reconsideração da lei, como exposto até aqui, pode dar um novo valor a
uma ação externa, além da autenticidade interior, como uma expressão de amor a Deus.
Fazer ou deixar de fazer algo já tem um valor intrínseco em si, em sua exterioridade, e
não precisa necessariamente ser apoiado por uma motivação pura. A renovação da
mente através do Espírito Santo (Rm 12) não é necessariamente alcançada pela exclusão
da exterioridade. Uma ação sempre tem um impacto sobre a personalidade, seja
negativa ou positivamente. Assim, a prática de uma vida que agrada a Deus pode muito
bem, na segunda etapa, formar a mente e as emoções (veja a abordagem psicológica da
terapia comportamental).

A ética precisa de todas as três motivações geralmente reconhecidas, qual sejam:


primeiro, queremos nos comportar bem, porque primeiramente temos medo das
consequências do mau comportamento; segundo, queremos nos comportar bem, porque
temos desenvolvido um bom caráter que corresponde à nossa personalidade e foi
moldado pelo Espírito Santo; e, terceiro, queremos nos comportar bem, porque temos
um grande respeito pela boa lei de Deus e, portanto, somos obedientes. Esses três
fundamentos do raciocínio ético são encontrados na lei do Antigo Testamento. Assim, é
bom e sábio evitar a unilateralidade.

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