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REVISTA DE HISTÓRIA DA

UEG QUIRINÓPOLIS

Revista de História da UEG – Quirinópolis v.1 n. 8 - 2018 Quirinópolis-GO. Editora Kelps, 2018
EDUARDO JOSÉ REINATO
MARCOS VINICIUS RIBEIRO
WANDERLEIA SILVA NOGUEIRA
(EDITORES)

REVISTA DE HISTÓRIA DA
UEG QUIRINÓPOLIS

Goiânia-GO
2018
Copyright © 2018 by Revista de História da UEG Quirinópolis

Editora Kelps
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Diagramação: Marcos Digues


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Capa: Lucas Clara Leão

REVISTA DE HISTÓRIA DA UEG-QUIRINÓPOLIS


CONTENDO OS TRABALHOS APRESESTADOS:
XX Semana de História
IV Congresso Regional de História UEG – campus Quirinópolis
Tempo, história e interdisciplinaridade: rupturas e possibilidades

Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Quirinópolis


Equipe Técnica da Revista de História da UEG – Quirinópolis

Coordenadores responsáveis:
Eduardo José Reinato
Marcos vinicius Ribeiro
Wanderleia Silva Nogueira

Organização:
Eduardo José Reinato
Marcos vinicius Ribeiro
Wanderleia Silva Nogueira

CIP – Brasil – Catalogação na fonte


Biblioteca da Universidade Estadual de Goiás

Revista de História da UEG Quirinópolis: contendo os trabalhos:

XX Semana de História & IV Congresso Regional de História UEG-Câmpus Quirinópolis: Tempo, história
e interdisciplinaridade: rupturas e possibilidades /Universidade Estadual de Goiás – Campus Quirinó-
polis; organizadores: NOGUEIRA, Wanderleia Silva. REINATO, Eduardo José.RIBEIRO, Marcos Vinicus.2018

ISSN 2179-5703

1. História. Congressos, conferências, etc. 2. Ensino de História, Reforma. 3. Revolução

CDU: 94(817.3):37

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A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

Impresso no Brasil
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2018
5

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Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação
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Pró-reitora de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis
Profº. Marcos Antônio Cunha Torres

CAMPUS QUIRINÓPOLIS
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Coordenação de Extensão e Assuntos Estudantis
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Coordenação de pesquisa e Pós-Graduação
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Coordenadora do curso de História
Wanderleia Silva Nogueira
6

Revista de História da UEG – Quirinópolis

Conselho Editorial
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Dr. Eduardo José Reinato – PUC Goiás
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Ms. Marcos Vinicius Ribeiro - UEG
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Ms. ​João Oliveira Ramos Neto- IFGoiano
Dr. Luiz Antonio Sabeh –UFPR
Ms. Robson Mendonça Pereira - UEG
Dr. Rafael Saddi Teixeira - UFG
Dr. Victor Passuello - UEG
7

SUMÁRIO

11 APRESENTAÇÃO

13 LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA


DE LA GUERRA “CRISTERA”
Amílcar Carpio Pérez

31 EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU


HISTORIA E IMPORTANCIA
Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo
Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

47 CONDENA EN BRASIL POR LA CIDH EN EL CASO ESCHER y


OTROS: PONDERACIÓN, ARGUMENTACIÓN Y EL PRINCIPIO DE
LA PROPORCIONALIDAD PARA LA SOLUCIÓN MÁS ADECUADA
CARGNIN, Gecilda Facco

56 A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO


FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓRIA
Daniela da Silva Santos,
Daniel Precioso

74 O AUTISMO É COLORIDO: EXPERIÊNCIA COM A ARTE


EDUCAÇÃO NO ESPAÇO NÃO FORMAL
Fabricio da Silva Santos
Vera Regiane Brescovici Nunes

83 ANÁLISE HISTÓRICA DO CRIME DE SEDUÇÃO E RAPTO: O


CÓDIGO PENAL DE 1940
Cíntia Wolfart

91 ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA


NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO
Marcos Vinicius Ribeiro
8

103 ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO


DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
Adriana Ferreira de Paula

121 OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO


Vera Regiane Brescovici Nunes

139
AGRICULTORA FAMILIAR E O PROGRAMA NACIONAL DE
ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: uma análise da implementação no
município de Pedro Velho (RN)
Osmar Faustino de Oliveira
Marcos Vinícius da Silva
Washington Maciel da Silva

153
A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA:
REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM
Paulo Henrique Ferreira
Washington Maciel da Silva

165 LAPINHA E REISADO DO SALTO


Cícero Félix de Sousa

174 O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À CRIANÇA


DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS SÉCULOS XVIII E XX
Dra. Roberta Aline Sbrana
Dra. Joana Corrêa Goulart

O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS


185
DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS
Nelson Soares

199
CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS
OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE
Pedro Fernando Sahium
9

212 ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS


Gilson Xavier de Azevedo

229 APROXIMAÇÕES ENTRE RELIGIÃO OFICIAL E CATOLICISMO


POPULAR
Gilson Xavier de Azevedo
Simone Maria Zanotto
Janice Ap. de Azevedo Fernandes

239
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO
OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA EDUCAÇÃO
INFANTIL?
Mayara Pereira dos Santos
11

APRESENTAÇÃO

Esta edição da Revista de História da UEG Campus Quirinópolis, traz uma


miscelânea de artigos que representam diversas pesquisas históricas coordenadas
por um grupo heterogêneo de historiadores. Tais artigos foram apresentados em
forma de comunicações coordenadas registradas durante a XX Semana de História
& III congresso Regional de História da UEG, evento que, tradicionalmente, tem
se dedicado a proporcionar espaços de debates democráticos que visam contribuir
para o desenvolvimento do pensamento cintífico e acadêmico nas várias áreas
contempladas pelo campo das Ciências Humanas.
O evento como um todo, bem como os artigos ora publicados, partiram
de uma abordagem que também é uma homenagem à principal matéria prima
do Historiador que se traduziu no seguinte eixo temático: Tempo, história e
interdisciplinaridade: permanências, rupturas e possibilidades. O conjunto
qualitativamente expressivo de debates que foram experimentados durante
o simpósio consolidaram este que é o principal evento na área de humanas
especialmente contemplada no campo da História em nossa região.
Os 27 autores e 18 artigos que seguem contribuíram para que pudéssemos
superar as distâncias que nossos acadêmicos encontram para participar de
fóruns orgânicos de discussão e intercâmbio e, de pesquisas no campo da ciência
Histórica. De certa forma, proporcionar periodicamente tais situações de contato
com a pesquisa histórica no recôndito sul goiano é contribuir para a integração do
pensamento cientifico. Além disso, proporcionamos três artigos de pesquisadores
mexicanos que introduzem o leitor ao universo da pesquisa histórica daquele país
e abrem caminho para a realização do III Simpósio Internacional de História da
UEG que será sediado em Quirinópolis no ano de 2019.
Como já nos alertou o historiador herudito Fernand Braudel, ao historiador:

(...) é necessário ir pela contra-encosta, reagir contra as facilidades de seu mis-


ter, não estudar apenas o progresso, o movimento vencedor, mas também seu
oposto, essa abundância de experiências contrárias que não foram quebradas
sem dificuldades.1

Portanto, não há caminho fácil para o historiador, pois somos parte de uma
ciência crítica que se contrói à contrapelo, na feliz expressão de Walter Benjamin.

1 BRAUDEL, Fernand. Escritos Sobre a História. 2ª. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992. p. 117
12

Não se pode ignorar o fato de que a História se afirmou como campo do saber que
procura contrapor-se ao discurso do progresso inevitável. Somos historiadores e,
enquanto tais, estamos sempre a procura das dissonâncias do inevitável progresso
por que é justamente aí que residem as melhores histórias; aquelas que representam
os sabores e dessabores da vida cotidiana.
Segundo Benjamin, é na desconstrução do discurso sobre o progresso
que reside o grande encontro entre a história e a arte. Ao analisar o quadro de
Paul Klee Angelus Novus, Benjamin nos brindou com uma irretocável passagem
analítica sobre o tempo, a história e o exercício de sensibilidade absoluto de um
historiador que soube apreciar os melhores produtos do espírito humano.
Segundo Benjamin:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que


parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão es-
cancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruí-
na sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se
em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade
o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de
progresso.2

Em períodos de retrocesso da humanidade, tempos em que a intolerância


travestida de “progresso” parece se sobrepor a alteridade, a melancolia de
Benjamin se fortalece como uma chave de interpretação única de nosso tempo.
Tempo e história se fusionam em uma alquimia única e proposital para construir
o futuro na brecha do tempo presente e sobre os escombros do passado. Sejamos
o desafio aceito de sermos historiadores e produtores do conhecimento histórico,
mesmo em tempos em que a barbárie parece se sobrepor à humanidade.
Desejamos a todos uma excelente leitura!

Eduardo José Reinato


Marcos vinicius Ribeiro
Wanderleia Silva Nogueira

2 BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. 7.ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. p.226.
13

LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA


MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA”

Amílcar Carpio Pérez1

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo analizar la función social de las
fotografías posmortem que se difundieron entre un sector del catolicismo mexicano
durante el conflicto cristero entre los años de 1926-1929. La colección de fotografías
que se analizan corresponde a personas muertas a unas horas de su deceso ¿qué
función tenían estás imágenes en un conflicto armado con tintes religiosos? Cabe
destacar que esta práctica se difundió en otros países principalmente durante el siglo
XIX, aunque en México esta práctica tuvo poca difusión. Los retratos de la muerte
han cumplido una función diferente en los diversos países y periodos de la historia,
por ello, este trabajo busca explicar la función social de la fotografía posmortem
durante la guerra cristera en México. Asimismo, destacar su función como artefacto
de la memoria del catolicismo de la época.
Abstract: This article aims to analyse the social function of postmortem
photographs that if they spread among a sector of Mexican Catholicism during the
Cristero conflict between the years of 1926-1929. The collection of photographs
that are analyzed corresponds to people who died within a few hours of their death.
What function did these images have in a conflict armed with religious dyes? It
should be noted that this practice was disseminated in other countries mainly
during the nineteenth century, although in Mexico it had very little diffusion. The
portraits of death have fulfilled a different function in the various countries and
periods of history, for this reason, this work seeks to explain the social function of
postmortem photography during the Cristero War in Mexico. It also emphasizes
its function as an artifact of the memory of Catholicism of the time.
Palabras clave: Imagen, catolicismo, martirio, mentalidades, memoria

“Los retratos de la muerte durante la persecución religiosa de los años veinte:


artefactos de la memoria del martirio”
“La muerte no existe,
la gente sólo muere cuando la olvidan;

1 (Profesor-Investigador de tiempo completo en la Universidad Pedagógica Nacional Ajusco. Doctor en Humani-


dades (Área de Historia) por la Universidad Autónoma Metropolitana Iztapalapa. Licenciado en Historia por la
Escuela Nacional de Antropología e Historia (ENAH). Miembro del Sistema Nacional de Investigadores (SNI).
Miembro de la Comisión para el Estudio de la Historia de las Iglesias en América Latina (CEHILA-México). E-
mail ozomatli_acp@hotmail.com
14 Amílcar Carpio Pérez

si puedes recordarme, siempre estaré contigo.”


Isabel Allende Llona
(Eva Luna)

Los comportamientos del hombre ante la muerte han evolucionado a lo


largo de la historia. Como lo ha mostrado magistralmente el historiador Philippe
Aries en su texto ya clásico sobre la muerte en occidente, en donde sostiene que
estas actitudes han sufrido grandes cambios a lo largo del tiempo, modificándose
sustancialmente desde el siglo XX. (Aries, 2008)
De esta forma alrededor de la muerte se han construido un sin número
de ritos y tradiciones. Por ejemplo, en nuestro país se siguen celebrando el
día de muertos, tradición que ha evolucionado e incorporado elementos:
prehispánicos, hispanos cristianos y hoy incluso, en algunos hogares se integran
elementos propios del Halloween, debido a la influencia estadounidense en
nuestro territorio.
En estas líneas abordaré algunos elementos sobre una práctica que en la
actualidad nos puede parecer morbosa, malsana y escabrosa. Me refiero a las
fotografías postmortem. Hoy en día las fotografías de personas en su lecho de
muerte son una práctica distante. La muerte en la actualidad como lo señala Aries,
es una práctica privada e íntima, los familiares y amigos guardan por lo general la
imagen en vida de la persona fallecida.
En los últimos años la práctica y la facilidad de realizar una fotografía ha
provocado que se generen retratos de todo tipo: familiares, de pareja, de comida,
mascotas, momentos felices y extraordinarios, “selfies”, nuestra vida cotidiana,
etcétera; estamos frente a una sociedad acostumbrada a fotografiar todo, de lo más
importante a lo más vano y efímero. Nuestros perfiles en redes sociales constatan
esta afirmación; pero a pesar de ello, las imágenes explicitas de muertos aún nos
parecen inapropiadas, a pesar de ser escenas cotidianas en el contexto de violencia
prevaleciente en nuestro país.
Hace algunas décadas la práctica de fotografiar a los difuntos estaba
difundida en varias partes del mundo. En algunos países se siguió retratando a
los muertos hasta bien entrado el siglo XX. En México estas fotografías fueron
comunes para un sector de la sociedad todavía en la década de 1920.
Una de las primeras cuestiones que se desprenden al acercamos a esta
temática es la función que cumplían y el sentido que tenían estas imágenes, por
ello la primera pregunta a responder es ¿Por qué para un sector de la sociedad
mexicana estas fotos eran significativas?
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 15

Para responder esta pregunta hay que tomar en cuenta que las imágenes
han estado presentes en varios rituales religiosos y recientemente la fotografía
forma parte de ofrendas, altares, tumbas, cementerios, etcétera. A pesar de ello
los retratos en torno a la muerte pueden tener varios significados. Para Sánchez
Montealban estás imágenes:

…mantienen su valor de fijación de la realidad, de interés por el referente y, por


su puesto, su carácter sustitutivo y simbólico. Sustitutivo porque reemplazan a
la persona desaparecida y simbólico porque resumen y condensan valores de
personalidad, de lazos familiares o conceptuales, incluso. En ocasiones, como
un último recuerdo, las fotografías registran los últimos momentos de una vida,
o sirven como reconocimiento y el certificado de ello. De esta manera podremos
encontrar un numeroso ejemplo de imágenes consumidas en el entorno familiar
que se refieren e experiencias ritualizadas y religiosas sobre la muerte. (Sánchez,
2006, p. 332)

Hoy a pesar de que la muerte se ha privatizado y hay empresas orientadas


a cumplir con todos los servicios relacionados incluidos los de arreglos y
fotografías, la muerte sigue teniendo un fuerte vínculo espiritual y religioso. Por
ello, las fotografías postmortem que analizo en estas líneas son parte de un rito
más amplio de índole religioso e incluso ideológico.
Las preguntas principales que busco responder en esta investigación son:
¿qué función tuvo el fotografiar a los católicos muertos en México en la década
de los veinte y treinta del siglo pasado? ¿por qué la fotografía en estos años sirvió
como un artefacto de memoria de los católicos?

Los retratos de la muerte en México: antecedentes

La práctica de tener un último recuerdo de una persona recién difunta


es muy antigua como lo atestiguan las máscaras mortuorias o las pinturas
encontradas principalmente en Occidente. Por ejemplo, desde el siglo XVI, en
Europa se realizaron pinturas postmortem, principalmente a religiosos y niños.
(Aries, 2008)
La fotografía irrumpió en el siglo XIX como uno de los inventos más
llamativos de la humanidad, la posibilidad de capturar una escena de la vida
significó un gran avance. Varios especialistas datan la aparición de este invento en
1839 con el sistema de obtención de imágenes del francés Louis Daguerre (1787-
1851). La fotografía se fue ganando terreno entre los diversos grupos sociales,
su costo más accesible en comparación de las pinturas posibilitó que incluso las
16 Amílcar Carpio Pérez

clases menos favorecidas aspiraran a tener una foto propia, de la familia o de un


ser querido. Por ello, en un tiempo relativamente corto, la fotografía modificó
algunas prácticas cotidianas y religiosas, por ejemplo los ritos funerarios.
Las fotografías postmortem surgen en Francia en el siglo XIX. Se le conoció
como el “último retrato”, y tenía la función de ser un artefacto de memoria, que
conservaba el recuerdo de un ser querido; en el caso de los niños, servía como
recordatorio a las familias de que en el cielo tenían un angelito.
En México tenemos noticias de que esta práctica ya se llevaba a cabo en
algunas familias desde finales del siglo XVIII y en el caso de la fotografía ya
estaba presente a mediados del siglo XIX. Por ejemplo, en una nota publicada en
el periódico Monitor Republicano de 1855 se anuncia lo siguiente: “Fotógrafos
mexicanos agregados a la Sociedad Fotográfica de París ofrecen retratos sobre
papel… Los retratos de muertos, enfermos o de las personas que no se quieran
molestar, iremos a su domicilio mediante un aumento en el precio, el cual será
amigablemente fijado.” (en Bringas, 2014, p. 66)
Al parecer en este periodo esta práctica era común sobre todo en las
principales ciudades del país, y como lo señala la escritora Sara Bringas, “Y es
que de París había llegado la costumbre de fotografiar muertos, por lo que tales
imágenes no eran consideradas morbosas en aquella época en la que dominaba la
ideología del Romanticismo” (Bringas, 2014, p. 66)
De esta forma las fotografías posmortem en México no son raras y existen
colecciones que aún se conservan en algunos archivos del país. Por ejemplo,
las fotografías de Romualdo García Torres, nacido en el año de 1852 en Silao,
Guanajuato y falleció en 1930. Romualdo García se dedicó como fotógrafo desde
1887 cuando abrió públicamente su estudio. Sus fotografías conservadas hasta hoy
son principalmente de retratos de gelatina sobre vidrio de entre 1906 y 1914.  Como
un ejemplo de esta colección tenemos las fotos de los llamados “angelitos” o de
la “muerte niña”; hay que tomar en cuenta que durante estos años la mortandad
infantil era muy alta entre los menores de cinco años, aproximadamente el 30
% de los niños fallecía por enfermedades como viruela, cólera, diarrea, fiebre y
pulmonía. (Bringas, 2014, p. 66)
Desde mediados de siglo XIX las fotografías de niños eran una forma de
recordar y celebrar la llegada de un angelito al cielo: de acuerdo con la tradición
católica los niños que morían bautizados, sin pecado original, van al cielo: “…y a
quienes no habían recibido ese sacramento se les enterraba con los ojos abiertos
para que vieran a Dios y su gloria, pero tendrían que reposar su alma en el Limbo”
(Bringas, 2014, p. 67)
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 17

En estas fotografías se podían apreciar tres formas distintas de presentación:


a) como angelitos b) como si estuvieran vivos c) o simulando su llegada al cielo.
Las fotografías de los niños muertos tenían una función social muy clara en estos
años a decir de Sara Bringas: “…preservar el recuerdo de un ser querido, en una
mezcla de dolor, placer y nostalgia. Sin duda, este tipo de imágenes ayudaban
a mitigar la pena y en muchas ocasiones se convirtieron en motivo de culto.”
(Bringas, 2014, p. 68)
Por lo anterior la noción de artefacto de memoria es fundamental para
entender esta práctica. Se considera que la memoria colectiva de un grupo queda
fija en sus miembros por medio de los marcos sociales y de los artefactos de la
memoria. Por artefacto debemos entender:

“Que son objetos producidos por el hombre con clara intención de recordar,
esto es, que los artefactos son una especie de almacenes de acontecimientos
significativos que permiten comunicar a posteori lo que aconteció en tiempos
pretéritos. En esta tesitura que los artefactos otorgan un sentido al pasado expe-
rimentado por una colectividad o sociedad. La idea de los artefactos es que per-
duren y que en un futuro comuniquen situaciones significativas para un grupo
o sociedad. Los artefactos tienen una larga historia y de acuerdo con su tiempo
y condiciones se van modificando, pero no así su intención que siempre es co-
municar para no caer en el olvido.” (Mendoza, 2015, p.79)

A continuación, voy a describir una colección de fotografías postmorten


diferente a las arriba mencionadas, así como explicar el contexto y la función
social que cumplieron, me refiero a las fotografías de católicos muertos durante el
periodo conocido en México como la: Guerra Cristera.

Contexto de la guerra cristera: el discurso social del martirio

Entender el contexto en el que se desarrolla una práctica colectiva es


fundamental, es el lienzo sobre el cual se plasman posteriormente los trazos más
gruesos y los detalles más finos de la narración histórica. De esta forma nuestro
contexto abarca desde 1914 cuando en México comienza un periodo de roces entre
la Iglesia y el Estado, que tuvo su clímax con el conflicto de 1926-1929 conocido
como la “guerra cristera” y que se prolongó en algunas regiones hasta finales de los
años treinta. Este conflicto género que seguidores de ambos bandos se radicalizaran,
dando ocasión para que la Iglesia desarrollara un discurso de persecución.
Después de algunos roces durante el periodo posrevolucionario entre la
Iglesia y el Estado, en los primeros años de la década de los veinte, siendo presidente
18 Amílcar Carpio Pérez

Álvaro Obregón (1920-1924) hubo una cierta conciliación con la Iglesia católica.
Obregón le permitió a la Iglesia y a las organizaciones católicas hacer algunas
manifestaciones públicas a pesar de la vigencia de una constitución de corte laico,
por ejemplo, la celebración de la coronación de la Virgen de Zapopan el 16, 17
y 18 de enero de 1921, que sirvió entre otras cosas para mostrar la capacidad de
movilización que tenía el clero.
Tal vez la dificultad más grave que enfrentó la Iglesia durante el gobierno
de Obregón, fue la expulsión del país del delegado apostólico Ernesto Filippi, por
haber asistido a la colocación de la primera piedra en el monumento de Cristo
Rey en el cerro del Cubilete. Aunque después Obregón se encargaría de que este
episodio no tuviera mayores complicaciones, permitiendo que para 1924 llegara a
México un nuevo delegado apostólico. Se puede decir que durante el gobierno de
Obregón se vivieron incidentes menores y estuvo lejos del hostigamiento de los
años anteriores. (Carpio, 2006, p. 62)
La relativa calma no sobrevivió a la salida de Obregón de la presidencia,
el sucesor Plutarco Elías Calles, era de fuerte tendencia anticlerical. Pronto
se multiplicaron los gobernadores que, en busca de ganarse la confianza del
presidente, siguieron sus tendencias hasta pasar de los discursos a los actos.
Ejemplo de ello fueron los gobernadores de Hidalgo, Jalisco, Colima, Chiapas,
Tabasco y Yucatán. Desde enero de 1926, Calles demostró que su política no iba
a ser la de Obregón, por lo que hizo aprobar en el Congreso la ley reglamentaria
del art. 130° de la Constitución y reformó el Código Penal para poder aplicar
la Constitución en los estados. (Rius, 1960, p. 59) Con esta ley de 33 artículos,
conocida como ley Calles reinició el conflicto que se extendería en su primera fase
hasta 1929, y que es conocido como el conflicto más grave en materia religiosa de
la primera mitad del siglo XX en México.
El 4 de febrero de 1926, el periódico El Universal, publicó una entrevista
al arzobispo de México, Mons. Mora y del Río, en donde decía: “El episcopado,
clero y católicos, no reconocemos y combatiremos los artículos 3, 5, 27 y 130 de la
Constitución vigente.” En algunos círculos se aseguraba que esta entrevista había
sido preparada por el gobierno. (Rius, 1960, p. 59) De cualquier manera Calles
interpretó las declaraciones del arzobispo como un reto hacia su gobierno y contra
la revolución. El 11 de febrero, ordenó a los gobernadores que reglamentaran el
artículo 130°, al mismo tiempo el secretario de gobernación, Adalberto Tejada,
expulsó a los primeros sacerdotes extranjeros. El 13 de febrero, se ordenó la
aplicación de los artículos 5° y 27° y en los días posteriores se empezaron a aplicar
las leyes en San Luís Potosí, Puebla, Jalisco y el Distrito Federal. El 20 de febrero,
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 19

Monseñor Ruiz y Flores, arzobispo de Michoacán, hacía una violenta protesta


por esta situación. El 22 del mismo mes se publicaba el nuevo reglamento de
enseñanza en donde quedaban inexistentes las escuelas católicas y hacia finales de
febrero, Calles ordenaba a los gobernadores aplicar la Constitución a toda costa.
(Meyer, 2000, pp. 241-244)
La situación se mantuvo en los tres meses siguientes. En marzo 202
sacerdotes extranjeros habían sido expulsados y cerrados 83 oratorios, 118
colegios y 83 conventos. Los gobernadores tomaron diferentes posturas ante
este problema religioso, algunos trataron de evitar los enfrentamientos con la
población católica optando por solucionar los problemas a nivel local como en
Guerrero, Veracruz, Coahuila, San Luís Potosí y Michoacán; sin embargo, en
estados como Zacatecas, Puebla, Pachuca, Tabasco y Colima hubo enfrentamientos
entre católicos y autoridades. Por ejemplo, en Colima la Liga Nacional en Defensa
de la Libertad Religiosa promovió el boicot contra el comercio establecido y la
suspensión del culto; situación que obligó al gobierno a declarar su decisión de
mitigar la aplicación de la ley a cambio de suspender el boicot. El 21 de abril
los obispos publicaron con la aprobación de Roma, una carta pastoral colectiva,
donde pedían la reforma de la constitución específicamente los artículos 3° y 130°.
Esto fue considerado por el gobierno como una provocación y como respuesta el
10 de mayo el delegado apostólico Mons. Caruna fue expulsado del país. El dos
de julio el Papa por medio del cardenal Gaspirri dio a conocer su opinión sobre
la situación en México y en la cual condenaba al gobierno: “bajo la apariencia
hipócrita de la pretendida legalidad, quienes dirigen el gobierno practican una
persecución real contra la religión católica(...) ”(Meyer, 2000, pp. 246-248) Ese
mismo día apareció en el Diario Oficial un decreto presidencial que reformaba
el Código Penal, en donde se establecían como delitos actividades relacionadas
con el culto, la enseñanza y la prensa. Semanas después el 23 de julio se publicó el
reglamento sobre la obligatoriedad del laicismo de la enseñanza en las escuelas.
Por su parte la jerarquía católica pasó de las advertencias a los hechos, el
25 del mismo mes ocho arzobispos y veintiocho obispos en una carta colectiva
condenaban el anticlericalismo callista: “así, pues siguiendo el ejemplo que nos
da el santo Padre, ante Dios, protestamos contra ese decreto; protestamos ante
las naciones civilizadas del mundo. Con la ayuda de Dios y vuestra cooperación,
trabajaremos por conseguir la reforma de ese decreto y de los artículos
antirreligiosos de la Constitución, y no renunciaremos antes que nuestros
esfuerzos hayan sido coronados por el éxito.” Y ordenaban que los sacerdotes
suspendieran actividades en las iglesias de toda la República, dejándolas abiertas
20 Amílcar Carpio Pérez

y bajo el resguardo de los fieles. Al día siguiente de esta publicación, Calles declaró
al corresponsal de los periódicos de la cadena Herast: “naturalmente que mi
gobierno no piensa siquiera suavizar las reformas y adiciones del código penal,
que han tomado como pretexto líderes políticos católicos y malos prelados en
nuestro país, para oponerse a la obra reconstructiva y revolucionaria social que
estamos llevando a cabo, y cada nueva manifestación de animosidad u oposición,
o estorbo a las tareas administrativas de mi gobierno, se traducirá forzosamente
en nuevas medidas de represión para quienes no acaten o desconozcan las leyes
de México(...)” (Meyer, 2000, pp. 262-267)
En efecto días después de conocer la publicación de la jerarquía, el presidente
por medio de la circular 103 de la Secretaría de Gobernación, estableció que se
tomaran las disposiciones necesarias para que las leyes fueran cumplidas y resolvió
que en cuanto un sacerdote abandonara una iglesia, las autoridades la retomaran
para después entregarla a una comisión de 10 vecinos, nombrados por las
autoridades, previo inventario de los objetos. Pero como los obispos prohibieron
a los católicos participar en dichas comisiones el choque se hacía evidente. La
suspensión del culto y los inventarios en las iglesias, entre otras cosas, provocaron
los primeros levantamientos de una lucha que se prolongaría hasta 1929. La
revolución renovó el anticlericalismo que en buena medida había sido superado
durante el porfiriato; se puede decir que de 1914 a 1938 se viven constantes roces
entre la Iglesia y el Estado, inclusive algunos alcanzan enfrentamientos violentos
entre 1926 -1929; aunque también hubo una relativa tranquilidad durante el
gobierno de Obregón. Para algunos revolucionarios la Iglesia era un competidor
que había que eliminar, era un enemigo insoportable, un competidor al que se
debía eliminar para tener el control de la sociedad.
Durante la guerra cristera se vivieron excesos provocados por algunos
partidarios de ambos bandos involucrados. Para la tradición católica los que
mueren en defensa de su fe son considerados mártires en la mayoría de los casos,
por su parte el Estado reconoce los sacrificios hechos por la Nación al situar a sus
muertos en el panteón de la patria como héroes.
El martirio fue una de las imágenes más recurrentes durante estos años y
se difundió por medio de distintos documentos e imágenes. En un contexto de
roces entre la Iglesia y la autoridad civil, el catolicismo recupera la situación de
persecución vivida en el alba del cristianismo, periodo recordado por la aparición
de los primeros mártires de la Iglesia. En México durante la guerra cristera se
dio un contexto favorecedor para que la Iglesia reconociera el sacrificio de sus
defensores.
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 21

El catolicismo en general exaltó el discurso del martirio, en un inicio fue


una adaptación de los testimonios existentes sobre los mártires de los primeros
siglos. Posteriormente este discurso fue adecuado a la realidad mexicana, y al
transcurrir de los años sirvió al catolicismo como ejemplo que quedó marcado
en la memoria colectiva; la Iglesia proyectó el martirio en la imagen de santidad
mexicana del siglo XXI, manteniendo la continuidad de este discurso hasta el día
de hoy.
En las historias que narran la vida de los primeros cristianos es común
encontrar las palabras lapidado, decapitado, crucificado, calcinado, etcétera
vinculadas al motivo de su muerte. Esta situación produjo entre los cristianos la
exaltación del martirio, imitando la forma en que murió Jesús como testimonio
de fe. En general este lenguaje lo encontramos en el lenguaje dominante durante
el conflicto religioso en México de las primeras décadas del siglo XX. (Santagada,
2006, p. 450) Por mártir debemos entender: “la persona que sufre la muerte
por causa de su fe. A menudo por negarse a renunciar a ella. El término… se
aplicó… a aquellas personas cuyo testimonio a favor de su fe les había acarreado
la muerte o algún tipo de persecución. A partir del siglo II, los mártires recibieron
honores especiales en las iglesias, y los aniversarios de su muerte empezaron a ser
celebrados como la fiesta de su natalicio.” (Browker, 2006, p. 418)
Las fotografías postmortem de cristeros durante estos años forman parte
del discurso social católico de la época y tenían como objetivo resaltar la imagen
de martirio y de persecución de la época. Son un artefacto de memoria que fijo el
ideal de buen cristiano que se difundió en México a causa del conflicto religioso.

Retratos de la muerte: fotografías postmortem (1926-1929)

En la actualidad las imágenes son empleadas como fuente para el análisis


del pasado sin mayores problemas. Jacques Le Goff señala en el prólogo de la
famosa obra del historiador francés Marc Bloch, Los Reyes Taumaturgos, que la
imagen era reveladora y tenía una mayor importancia de la que se le había dado
hasta ese momento, “su relación con los textos, su lugar en el funcionamiento
de las diversas sociedades históricas, su estructura y su localización deben ser
cuidadosamente estudiados.” (Bloch, 2006, p. 44) Peter Burke ha profundizado en
la metodología para el estudio de la imagen, y destaca que esta fuente complementa
la información aportada por los documentos escritos, pero su testimonio resulta
valioso en temas donde los textos son escasos, como es el caso de la “visión de los
acontecimientos desde abajo o en los cambios de sensibilidad… muestran ciertos
22 Amílcar Carpio Pérez

aspectos del pasado a los que otro tipo de fuente no llegan.” (Burke, 2001, pp. 235-
239) Aunque una imagen puede ser polisémica y ambigua, es incuestionable que
es un testimonio que muestra, “el ordenamiento social del pasado y sobre todo de
las formas de pensar.” (Burke, 2001, pp. 235-239) De esta manera la imagen debe
ser situada en contextos particulares (culturales, materiales, políticos, etcétera),
para su mejor comprensión.
Hablando específicamente de las funciones de la imagen vinculados a
procesos religiosos, Burke señala los siguientes usos: como adoctrinamiento,
objeto de culto, estímulo para la meditación y como arma en los debates. En el
caso de las imágenes que seleccioné para este apartado, que muestran escenas
explicitas con muertos y que se relacionan con el martirio durante la persecución
religiosa, hablamos de que pudieron ser usadas como un arma en los debates de
la época. Fueron empleadas para difundir el sacrificio hecho por los católicos
frente a sus enemigos, forman de un discurso que iba encaminado a resaltar una
supuesta persecución de corte religioso.
Es recurrente a lo largo de la historia, cuando la Iglesia se encuentra en
conflicto con alguna autoridades civiles, donde la disputa de sus privilegios estén
en juego, asume dicho conflicto como un problema de persecución religiosa,
aunque el problema principal sea por cuestiones políticas y por delimitar su
poder e influencia terrenal. Por ello durante el conflicto cristero, dentro amplios
sectores del catolicismo, sus muertos fueron equiparados a los primeros mártires
del cristianismo, situación que propició un periodo de mártires. La imagen del
mártir se volvió clave para sustentar la idea de persecución religiosa, de esta forma
el martirio se volvió una bandera ideológica y política para el catolicismo. “El
catolicismo en general exaltó el discurso del martirio que en un inicio fue una
adaptación de los testimonios existentes sobre los mártires de los primeros siglos.
Con posteridad este discurso se adecuó a la realidad mexicana y, al transcurso
de los años, sirvió a algunos sectores del catolicismo como ejemplo que quedó
marcado en la memoria colectiva…” (Carpio, 2016, pp. 63-64)
Durante los años del conflicto cristero existió un discurso social dominante
entre los católicos, a través de oraciones, discursos, imágenes, sermones, folletos,
prensa, libros, etcétera, la idea de persecución y martirio fue ampliamente
difundida. Las fotografías posmortem que a continuación revisamos forman
parte de este discurso social de la época.
En cuanto a cómo interpretar una imagen, Burke señala que hay tres
niveles a considerar: 1) Descripción preiconográfica, que consiste en identificar
los elementos u objetos que conforman una imagen (descripción); 2) Análisis
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 23

iconográfico, se refiere al “significado convencional” que se le ha dado a la imagen


(por ejemplo reconocer la imagen de la Virgen de Guadalupe, y no sólo ver en
ella una imagen mariana más); 3) Interpretación iconológica, entendida como el
significado intrínseco, “…los principios subyacentes que revelan el carácter básico
de una nación, una época, una clase social, una creencia religiosa o filosófica.”
(Burke, 2001, pp. 45-46)
Varias imágenes de la época son muy graficas respecto a estos temas y por
diferentes medios se difundió este lenguaje, por ejemplo, a través de panfletos y
fotografías que exaltaban la muerte y el martirio de algunos cristeros y sacerdotes.
Hay que señalar que este tipo de material fue creado y difundido por el catolicismo
en general: laicos y miembros de la Iglesia.
Las imágenes usadas a continuación forman
parte de la colección documental Aurelio R. Acevedo,
del Archivo Histórico de la UNAM (colección en
línea: http://www.iisue.unam.mx/ahunam/banco-
imagenes/galerias/Aurelio_R_Acevedo)
La primera imagen es una muestra del
discurso social de la época donde el martirio estaba
en el centro de las ideas que circulaban en medios
católicos. El folleto titulado El soldado de ¡Cristo Rey!,
destaca la imagen de un laico, a quien se le atribuyen
las siguientes palabras antes de ser fusilado: “Ustedes
son soldados de un mal gobierno. Yo soy soldado
de ¡Cristo Rey¡”. No tenemos el nombre de este
personaje, pero sabemos la intensión de estos folletos: dar a conocer la persecución
que sufren.
El folleto anterior es
de los llamados mártires
de León, en el fondo, en la
parte superior aparece una
fotografía de un paisaje,
que supongo corresponde
a Zamora, lugar donde
fueron martirizados. El
elemento más importante
se encuentra en el centro
en la parte inferior, se
24 Amílcar Carpio Pérez

encuentran los cuerpos sin vida de cuatro personas recostadas en el suelo, visten
traje sastre y se alcanza a percibir el año 1927, resaltando la fotografía después de
sus muertes.
Las siguientes imágenes representan una escena similar, la muerte del
padre Gumersindo Sedano. En la primera imagen se lee el título “mártir de ciudad
Guzmán”, además se señala que el cadáver fue expuesto al público por los soldados
del Presidente Calles. En ambas fotografías se aprecian rastros de lodo o sangre en
su rostro y ropa. En la segunda fotografía se aprecia una nota pegada a su cuerpo a
la altura de sus rodillas que dice: “Este es el Sr. Cura Sedano.” Es posible que en el
caso de esta imagen haya sido tomada por sus mismos ejecutores y difundida para
desalentar a los cristeros. Aunque posteriormente se aprovechó para ser usada
como propaganda por los católicos por eso se destaca en el folleto la idea de dar a
conocer la horrible persecución que sufren.
En la siguiente
fotografía se distingue
el cuerpo de una
persona en lo que
parece un velorio. En
el fondo se aprecian
algunos rostros al
parecer de niños
contemplando el
cuerpo. El difunto tiene
algunos elementos
relacionados con el
martirio, como lo es
una flor roja cerca de
su rostro, que se relaciona con la sangre derramada; además varias flores blancas
alrededor del cuerpo en señal de pureza y la inocencia de alma, además en este
contexto resalta la situación de la muerte. El cuerpo está cubierto por una túnica,
lo que nos hace suponer que se trata de un sacerdote, sabemos por su clasificación
en el archivo que es en Veracruz. Resalta un cáliz cerca de su rostro lo que puede
representar la reafirmación de la fe cristiana y de la redención. En la cabecera se
aprecian dos banderas, una colocada su lado izquierdo, al parecer es la bandera
tricolor con la imagen de la virgen de Guadalupe en el centro, y otra colocada a
su lado derecho una bandera con la siguiente inscripción: sacramentum pietatis †
maritatis (sacramento de bondad † casamiento).
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 25

En las siguientes
imágenes podemos
observar el cuerpo de
católicos en su lecho
de muerte; un laico y
un presbítero. En las
imágenes nuevamente
son evidentes algunos
elementos simbólicos
que se relacionan
con el martirio. Por
ejemplo, en ambas
imágenes en la parte inferior de las fotografías y sobre el cuerpo de los difuntos,
se distinguen algunas palmas. Las palmas son el símbolo que usó la Iglesia de
los primeros siglos del cristianismo para representar la victoria del cristianismo
sobre la muerte; asimismo es un atributo que representa a los mártires cristianos.
También se pueden apreciar
las flores blancas rodeando
el ataúd en ambos casos. En
el caso de la segunda foto
se alcanza a leer: PBRO.
ÁNGEL MARTÍNEZ
MARTIRIZADO EN
PUEBLO NUEVO,
GUANAJUATO.
En la siguiente fo-
tografía se lee: BRIGIDO
GONZALEZ. Se aprecia
el cuerpo de un católico
muerto sobre una cama.
Como en las anteriores
imágenes se aprecian dos
elementos principales: las
flores blancas que cubren
totalmente todo el cuerpo,
las flores están colocadas en
desorden, dejando al des-
26 Amílcar Carpio Pérez

cubierto sólo el rostro. Asimismo, a la altura del estómago se distinguen algunas


palmas, en referencia al martirio.

En la siguiente imagen se observa el cuerpo


sin vida de un católico. Nuevamente los elementos
que destacan son las flores blancas que cubren el
cuerpo, envuelto en una sábana blanca. En la cabecera
del cuerpo se encuentra una imagen de la virgen de
Guadalupe. Se lee en la imagen el siguiente nombre:
PORFIRIO MORENO.

En la siguiente imagen se destaca en el centro el


cuerpo sin vida recostado sobre un camastro cubierto
con una sábana blanca con flores blanca; el difunto
está vestido con una
camisa blanca y con las
manos juntas agarrando
un crucifijo. En cada
una de las esquinas
se encuentran velas
encendidas y en la parte
inferior se aprecia un
ramo de flores blancas. A
un costado se encuentra
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 27

un adolescente, sereno con la mirada hacia el frente. Al fondo destaca un


estandarte de la imagen de Jesucristo.

En la siguiente imagen se aprecia un cuerpo sin vida dentro de un ataúd,


vestido totalmente blanco y a la altura
de sus pies un ramo de flores blancas.
Atrás un crucifijo en el centro. Resalta
la imagen de un niño vestidos de blanco
recargado en el ataúd, sosteniendo una
vela encendida en su mano izquierda.

En la siguiente fotografía se aprecia


a dos hombres y una mujer sosteniendo
el cuerpo de un hombre muerto, vestido
y calzado de blanco. A un costado de la
mujer se encuentra un niño no mayor
de tres años. La escena de fondo destaca
una pared de adobe y detrás las ramas de
un árbol; además contiene un texto que
indica el posible lugar donde ocurrió
este hecho: “Jesús López, Puruandiro
Michoacán”
Otro tipo de imágenes que circularon
en medios católicos son las llamadas: Galería
de mártires mexicanos. Estas son imágenes
compuestas por varias escenas donde se
destacan varios elementos que remiten a
una simbología que recupera el martirio y la
persecución como eje del mensaje. Por ejemplo,
en la siguiente imagen se puede apreciar en
el centro la escena de un sacerdote con las
manos juntas como en oración, frente de él,
un pelotón de soldados listos para disparar: la
imagen corresponde a un fusilamiento. En los
extremos de la parte superior de la fotografía se
aprecian el rostro de dos católicos en su lecho
de muerte, corresponde a Luís Segura Vilchis
28 Amílcar Carpio Pérez

y Miguel Agustín
Pro, implicados en un
atentado contra la vida
del presidente electo
Álvaro Obregón. En
el extremo izquierdo
inferior se aprecia la
imagen de los mártires
de Zamora (imagen
analizada líneas atrás).
En el extremo derecho
inferior se muestra
una escena donde se
destaca la línea férrea, y del lado izquierdo postes del cableado eléctrico, donde
se distingue la silueta de personas ahorcadas. En el centro de la imagen resalta
la figura de Jesucristo con los brazos extendidos, asimismo en los bordes es
notorio varios elementos como las palmas y las flores. El mensaje de persecución
y martirio a partir de la muerte es muy claro en esta imagen.

Conclusión

Las anteriores fotografías sólo cobran sentido si entendemos el contexto en el


que fueron realizadas. En México los conflictos Iglesia-Estado han sido constantes
a lo largo de la historia, teniendo momentos álgidos donde los conflictos han
llegado a las armas. Grupos radicales han existido en ambos bandos por ejemplo,
conservadores, liberales, revolucionarios, cristeros, etcétera.
Desde 1914 la Iglesia católica consideró la existencia de un ambiente de
persecución religiosa, debido a las medidas tomadas por algunos gobiernos civiles en
los diferentes estados del país. Pero en su mayoría las medidas fueron encaminadas a
limitar la acción social y política de la Iglesia, y en muy pocos casos atentaron contra
la fe y religiosidad de los católicos. Por ejemplo, durante el gobierno de Plutarco Elías
Calles se intentó limitar el número de sacerdotes y las muestras púbicas de religiosidad,
esto fue considerado por la Iglesia como una muestra de anticlericalismo y a través de
diversos medios de comunicación respondió acusando al gobierno de tirano, incluso
llamando a Calles “el Turco” por demostrar un supuesto odio al catolicismo. Al paso de
los meses este conflicto involucró al pueblo creyente y dio inicio al conocido conflicto
Cristero que en términos estrictos se extendió de 1926 a 1929.
LOS RETRATOS DE LA MUERTE: ARTEFACTOS DE LA MEMORIA DE LA GUERRA “CRISTERA” 29

Por lo anterior, la Iglesia católica encontró un contexto propicio para


difundir la idea de persecución como en los primeros siglos del cristianismo. En
diferentes épocas la Iglesia ha recurrido a resaltar el discurso de persecución y
martirio, discurso de se difunde a través de textos, oraciones, sermones, noticias,
en imágenes, etcétera. Durante la Cristiada fueron considerados como mártires la
mayoría de los católicos que murieron durante el conflicto. Dentro de la tradición
católica hablar de martirio nos remite por un lado a la persona que lo sufre y
por el otro a quienes lo ejecutan. Para la Iglesia un mártir debe reunir una serie
de particularidades, sobre todo el mártir es un testigo de Dios, es un modelo
a seguir por su conducta, debe de aceptar su martirio y en ningún momento
oponerse a su muerte. Pero existe otra tipología del martirio si recuperáramos
una propuesta de análisis que nos permita entender esta problemática desde un
enfoque sociohistórico. Para la historiadora Marisol López Menéndez, el mártir
forma parte de una narrativa redentora creada por algún grupo con agendas
políticas sociales diversas, por ello el martirio se politiza y moviliza a distintos
sectores con intereses diversos como: “los asistentes a procesiones, los que piden
favores, los que manifiestan su afinidad con la causa que se concibe como la razón
por la que la persona en cuestión ofrendo su vida.” (López, 2015, pp.5-6) De esta
forma la narrativa juega un papel importante en la construcción del martirio, y
por lo mismo se deben considerar tres elementos: el mártir, sus seguidores que
desarrollan una serie de narrativas exaltando el martirio y el statu quo sobre el que
recae la imagen del tirano.
Para la jerarquía eclesiástica la narrativa del martirio está orientada a
presentar a un testigo de fe, ante las injusticias de las autoridades civiles. Por lo
anterior, las fotografías postmortem analizadas en este texto buscan a través de la
imagen del mártir hacer una denuncia, y por lo mismo politizan e ideologizan el
conflicto: un mártir es un testigo político que reivindica la postura de la jerarquía
de la Iglesia durante el conflicto cristero.
Las fotografías postmortem de la Cristiada fueron usadas como artefactos
de la memoria para recordar la persecución sufrida por los católicas: es un
recordatorio de sacrificio que se ha repetido desde los primeros siglos del
cristianismo. Formaron parte de un discurso social de la época y fueron usadas
para reafirmar la imagen de una Iglesia mexicana perseguida, y resaltó la muerte
como resultado de la persecución del Estado.
30 Amílcar Carpio Pérez

Bibliografía

Aries, P. (2008). Morir en Occidente. Desde la Edad Media hasta nuestros días. Buenos Aires:
Adriana Hidalgo editora.
Bringas, S. (2014). Angelitos: la tradición de fotografiar a los pequeños difuntos. Relatos e Historias
de México, no. 69, año: 2014, México, 2014. Pp.
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Burke, P. (2001). Visto y no visto. El uso de la imagen como documento histórico. Barcelona: Critica.
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Mendoza, J. (2015). Sobre Memoria Colectiva. Marcos sociales, artefactos e historia. México:
Universidad Pedagógica Nacional.
Meyer, J. (2000). La Cristiada, III tomos. México: Siglo Veintiuno Editores.
López Menéndez, M. (2015). “La humanidad de los mártires. Notas para el estudio sociohistórico
del martirio.” documento inédito. Una versión de este trabajo se presentó en el XVIII encuentro
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Rius Facius, A. (1960). Méjico cristero. Historia de la ACJM. México: Patria.
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Revista Teológica, Pontificia Universidad Católica Argentina, Tomo XLIII, p. 450.
Sánchez Montalbán, F.J. (2006). “Fotografía: muerte y religiosidad”. Zainak-Cuadernos de
antropología y etnografía, 28, 331-349.
31

EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE


YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA

Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo1


Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo2

Resumen: Este Artículo de investigación presenta la Historia de Archivo Histórico


del Arzobispado de Yucatán, desde que fue creado hasta su estado actual de
organización y conservación, sin omitir las peripecias que comúnmente sufren los
Archivos históricos y los personajes que intervinieron en su cuidado. Además, se
señala su importancia a nivel Patrimonial, Cultural, y de la investigación histórica
a través de la descripción de la información que resguarda.

El Archivo Histórico del Arzobispado de Yucatán (AHAY) es uno de


los Acervos documentales más importantes del Sureste Mexicano, donde se
resguarda el mayor corpus documental concerniente a la época Novohispana o
“Colonial” en el Estado de Yucatán.3 Éstos, representan el testimonio escrito de la
acción pastoral y administrativa de los Obispos y Arzobispos que han gobernado
la Diócesis de Yucatán de 1633 a 1986. A lo largo de su Historia ha sido llamado
“Archivo de la Secretaría del Arzobispado”, “El Archivo de la Mitra Emeritense”
y “El Archivo del Arzobispado de Yucatán” por los diferentes investigadores que
lo han utilizado como fuente principal de sus trabajos.4 . En total, la conforman
14, 735 volúmenes, puestos en 626 cajas (AG12) de polipropileno en 75.12 metros
lineales.
1 (Sacerdote católico, licenciado en Historia de la Iglesia por la Pontificia Universidad Gregoriana de Roma.
Actual Director del Archivo Histórico de la Arquidiócesis de Yucatán)
2 (Licenciado en Historia por la Universidad Autónoma de Yucatán, y en la actualidad es estudiante del Más-
ter en Gestión de la Documentación, Bibliotecas y Archivos en la Universidad Complutense de Madrid. De
igual forma, funge como Coordinador General del Archivo Histórico de la Arquidiócesis de Yucatán)
3 Durante la “Colonia” y gran parte del Siglo XIX la jurisdicción administrativa del Obispado de Yucatán
abarcaba Tabasco, Campeche, el Petén-Itzá y Belice. En 1906 el Obispado de Yucatán es elevado a Arzobis-
pado, asignándole como diócesis sufragáneas los recién nombrados obispados de Tabasco (1880) y Campe-
che (1895).
4 Entre los primeros historiadores que hicieron mención del fondo documental, que ahora se llama Archivo
Histórico del Arzobispado de Yucatán, al utilizarlos como fuente de sus diversas investigaciones, están Mi-
chael J. Fallon en su artículo: Michael J. Fallon, El Archivo de la Mitra Emeritense, The Americas, Academy
of American Franciscan History, 1976; Rodolfo Ruz Menéndez en su traducción del artículo publicado en el
Diario de Yucatán el 12 de julio de 1978 y en la Revista de la Universidad de Yucatán, vol. XVII, núm. 107; y
Nancy Farriss, “Nucleation versus Dispersal: The Dinamics of Population Movement in Colonial Yucatán”,
impreso en la revista Hispanic American Historical Review, vol. 58, 1978, pp. 187-216. Información tomada
de Maritza Arrigunaga Coello, Catálogo de las fotocopias de los Documentos y Periódicos Yucatecos en la
Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington, The UTA Press, Texas, Estados Unidos, 1983, p. 8.
32 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

La información que se desprende de su consulta se caracteriza por su


diversidad, es por ello que investigadores locales, nacionales e internacionales
solicitan acceder a ella para sustentar sus proyectos enfocados en discernir
la Historia regional de lo que actualmente comprende la zona del Petén de
Guatemala, Tabasco, Campeche, Quintana Roo y Yucatán.
Su Historia no se concibe sin la mención especial del Obispo Crescencio
Carrillo y Ancona5 (1837-1897), quien fue el primer Historiador en utilizar
como fuente principal de sus numerosos estudios el mencionado Archivo.
Su metodología de investigación se basó en utilizar documentos veraces y de
preferencia contemporáneos a los hechos para desarrollar sus estudios históricos.6
Incluso dentro del corpus de sus escritos hacía mención de la importancia que le
concedía poder respaldar sus textos con documentos que habían sido testigos de
los acontecimientos relatados. Ejemplo de lo antes mencionado se encuentra en
su escrito “Vida del Venerable Padre Fray Manuel Martínez” en el que señala:

No lo habíamos hecho (biografía sobre Fray Manuel Martínez) porque no ha-


bíamos logrado reunir los datos y principalmente los documentos más indis-
pensables para una obra como ésta, pero que últimamente, y cuando ya había-
mos perdido toda esperanza de encontrarlos, quiso la Divina Providencia que
vinieran a nuestras manos, desde la misma Orden Franciscana en su Providen-
cia que fue de San José de Yucatán; contando además con los buenos informes
que hemos recibido de personas que viven aún en avanzada edad y que fueron
inmediatos testigos de la vida de nuestro héroe, así en Mérida como en Izamal.7

También, en su obra “Historia del Obispado de Yucatán y sus Obispos”,


pondera que el “Archivo de la Secretaría de la Diócesis de Yucatán” representa la
fuente más confiable para desarrollar su Historia, exponiendo en el apartado de
su texto dedicado al Obispo Luis de Piña y Mazo, que Justo Sierra8 juzgó en sus
5 Crescencio Carrillo y Ancona (1837 – 1897), es considerado uno de los personajes más relevantes del
Yucatán decimonónico. Incursionó de manera importante en los ámbitos de la Historia, la Arqueología, la
Antropología, la Filología, la Literatura y el clerical. Véase: José Florencio Camargo Sosa, Crescencio Carrillo
y Ancona, el Obispo Patriota, Editorial Área Maya, Mérida, 2006; Víctor Manuel Suárez Molina, Historia del
Obispado de Yucatán: historia de su fundación y de sus obispos, t. III, Fondo Editorial del Estado, 1981; José
Dolores Rivero Figueroa - Francisco Cantón Rosado, Dos vidas ejemplares: Ensayos biográficos del Ilmo. Sr.
Obispo de Yucatán Don Crescencio Carrillo y Ancona y de Monseñor Norberto Domínguez, Habana, Imprenta
“Avisador Comercial”, 1918; Francisco Sosa, Don Crescencio Carrillo. Ensayo biográfico, en “Boletín de la
Sociedad de Geografía y Estadística de la República de mexicana, Tercera época, t. I, núm. 12, 1873, pp.
733-742.
6 Cfr. José Florencio Camargo Sosa, Crescencio Carrillo y Ancona, el Obispo Patriota, Editorial Área Maya,
Mérida, 2006, p. 299.
7 Crescencio Carrillo y Ancona, Vida del Venerable Padre Fray Manuel Martínez, Mérida, Gamboa Guzmán
y hermano, Impresores - Editores, 1883.
8 Justo Sierra O´ Reilly (1814-1861) fue un prominente Historiador, Jurista, Político, y Novelista Yucateco.
Entre sus escritos más importantes se encuentran las dedicadas a las biografías de los Obispos de Yucatán
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 33

escritos de manera equivocada a este Prelado, al fundamentar sus investigaciones


en fuentes no fidedignas.

El citado biógrafo funda sus acertos (sic) en la abundante copia de documentos


que dice haber poseído; pero la justicia y la verdad histórica exigen que nosotros
aquí consignemos, que por la gravedad de los sucesos ocurridos en el pontificado
del Ilmo. Sr. Piña, tuvo estos grandes y numerosos enemigos que dejaron contra
él muchísimos papeles, acusaciones e informes. Siendo estos los copiosos docu-
mentos, verdaderos libelos infamatorios, que el biógrafo tuvo en su poder, con la
circunstancia sobremanera notable de no haber tenido en su estudio la no menos
abundante copia de documentos fidedignos y oficiales, originales y auténticos,
que acerca de dicho Prelado se conservan en los archivos de la Catedral y de la Se-
cretaría del Obispado. Que el Dr. Sierra no vio, como debía, estos últimos, atenido
a que tenía entre sus papeles la copia o el fragmento de uno u otro…9

De igual manera, con esto último, queda en evidencia que el Fondo


documental que conocemos actualmente como el Archivo Histórico del
Arzobispado de Yucatán se encontraba en ese momento conjuntado, por lo
menos en su mayoría, en el departamento perteneciente a la Secretaría de Cámara
y Gobierno del Obispado de Yucatán ubicado en el Palacio Arzobispal, junto a la
Catedral de Mérida10. Ahí permaneció hasta que en 1915, en el marco del gobierno
anticlerical del General Salvador Alvarado11, fueron incautados tanto la Catedral
como el Palacio Arzobispal, siendo reubicadas sus oficinas en varios lugares. Al
regreso del exilio del primer Arzobispo de Yucatán Martín Tritschler y Córdova12,

publicadas en el periódico literario “El Registro Yucateco” con el nombre de “Galerías biográficas de los
Señores Obispos de Yucatán”. Para más información sobre él, véase: Carlos Sierra, Diccionario Biográfico
de Campeche, México, Ed. La Muralla, 1997; Juan de Dios Pérez Galaz, Diccionario Geográfico, Histórico
y Biográfico de Campeche, México, Gob. del Edo. de Campeche, 1979; Manuel Lanz, Bosquejo biográfico
del Dr. don Justo Sierra de O'Reilly, a su memoria, en el cuadragésimo quinto aniversario de su fallecimiento,
Campeche, Imprenta del Gobierno del Estado, 1906.
9 Víctor Manuel Suárez Molina, Historia del Obispado de Yucatán, historia de su fundación y de sus Obispos,
tomo III, Mérida, Fondo Editorial del Estado, 1981, pp. 907-908.
10 La Catedral de Mérida, capital del Estado de Yucatán, es la sede de la Arquidiócesis de Yucatán. Es consi-
derada la primera Catedral erigida en la América Continental (tierra firme), y por lo consiguiente la más
antigua de México. Para más información sobre su Historia, véase: Miguel A. Bretos, Catedral de Mérida : U
pakal ku na y an chumuc cah t'hó ; La gran casa de Dios en medio de t'hó, Mérida, Yucatán, Cultura Yucatán,
A.C., 2013.
11 Gobernador del Estado de Yucatán de 1915 a 1917.
12 Ante las inquietantes noticias que llegaban a Yucatán de la lucha armada que se efectuaba en el centro y
norte del País, en el marco de la Revolución Mexicana, el Arzobispo Martín Tritschler y Córdova temió ser
víctima de algún abuso de autoridad por parte de la nueva administración (Venustiano Carranza), por ello,
decidió ausentarse por un tiempo mientras se aclaraba aquella situación. El 23 de agosto de 1914 salió de
Mérida para Progreso y al día siguiente tomó pasaje en el vapor americano “Esperanza” rumbo a La Habana
junto a otros clérigos, desembarcando en Cuba el 26 del mismo mes. Retornó a Yucatán el 12 de mayo de
1919. (José Ignacio Rubio Mañé, El Excmo. Sr. Dr. D. Martín Tritschler y Córdova primer Arzobispo de Yuca-
tán. Edición especial de la Junta organizadora del Jubileo sacerdotal del Excmo. Sr. Arzobispo de Yucatán, Dr.
D. Martín Tritschler y Córdova, México, Sobretiros de ABSIDE, 1941, pp. 59-64). Otro importante estudio
34 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

su residencia, registros y oficinas de la mitra se instalaron en la calle 56 No. 47413


del centro de Mérida. Al siguiente año se trasladaron a la calle 57 No. 459, en
donde permanecieron hasta que los pasaron en la década de 1950, a la calle 58 No.
501 altos.14 El edificio obtenido, anexo de la Catedral de Mérida, se encontraba en
malas condiciones, pero bajo la acertada dirección de los Arzobispos Fernando
Ruiz Solórzano y Manuel Castro Ruiz, respectivamente, se lograron llevar a cabo
los trabajos de reacondicionamiento.15
Asimismo, dicho Fondo documental, se encontraba en condiciones no propicias
para su conservación, por lo que fue necesario establecer planes de acción encaminados
a contrarrestar dicho problema, así lo indica Maritza Arrigunaga Coello, quien en 1983
escribió una reseña para la Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington:

Por falta de recursos suficientes para restaurar en un corto tiempo la anexa,


cuyos planos habían sido aprobados, los documentos del Archivo fueron des-
cuidadamente amontonados en un rincón del edificio. La parte este donde antes
se encontraban no estaba bien protegida contra las lluvias, por tener el techo
muchas goteras. Fue allí en donde Don Joaquín de Arrigunaga encontró estos
documentos en el año de 1959. Para contrarrestar la infestación de insectos que
cubrían los documentos, el Sr. Arrigunaga los sumergió en soluciones químicas,
colocándolos más tarde en patios y azoteas para que se secaran. Poco a poco los
separó y copiló (sic) en orden cronológico. Al pasar el tiempo y al mejorarse la
situación económica, se reconstruyó y acondicionó una morada en donde hasta
la fecha se albergan las colecciones que el Sr. Arrigunaga había copilado.16

Se carece de la documentación suficiente para señalar quién fue la persona


que se encargó de clasificar y organizar por vez primera, y de manera general, el

biográfico sobre este Prelado es: Vida, muerte y testamento del Excmo. Y Rvmo. Sr. Dr. D. Martín Tritschler y
Córdova, primer Arzobispo de Yucatán, en Boletín Eclesiástico, Mérida, Díaz Massa, 1943.
13 Cfr. Víctor Manuel Suarez Molina, Historia del Obispado de Yucatán, historia de su fundación y de sus Obis-
pos, Tomo III, Mérida, Fondo Editorial del Estado, 1981, p. 1367.
14 Cfr. Maritza Arrigunaga Coello, El Archivo de la Mitra, en Catálogo de las fotocopias de los Documentos y
Periódicos Yucatecos en la Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington, The UTA Press, Texas, Estados
Unidos, 1983, p. 8.
15 Ibidem, p. 8.
16 Maritza Arrigunaga Coello, Catálogo de las fotocopias de los Documentos y Periódicos Yucatecos en la Bi-
blioteca de la Universidad de Texas en Arlington, Texas, The UTA Press, 1983, p. 8. De igual forma, el Señor
Joaquín de Arrigunaga, fundador y presidente perpetuo de la Academia Yucateca de Historia y Genealogía
“Francisco de Montejo”, contribuyó con la organización y la creación del Archivo General de la Arquidió-
cesis de Yucatán en 1961. Este Acervo resguarda el total de los libros de registros de sacramentos (Bautis-
mos, confirmaciones, matrimonios, defunciones) efectuados en las distintas parroquias que conformaron
la Diócesis de Yucatán de 1543 hasta 1900. Cfr. Epígrafe ubicada en el Archivo General del Arzobispado de
Yucatán (AGAY) anexo a Catedral, que menciona la creación de tal Archivo en 1961 y también a sus inicia-
dores; epígrafe colocada en una pared del Archivo General del Arzobispado de Yucatán, piedra, plenamente
legible, técnica de grabado sobre piedra.
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 35

Archivo Histórico del Arzobispado de Yucatán;17 es decir, por orden cronológico


y de acuerdo a la temática expuesta en los expedientes, legajos y libros.18 Para
1974 estaba organizado de esta manera, así lo precisa Michael J. Fallon en su
artículo titulado “El Archivo de Mitra Emeritense” publicado en “La Revista de la
Universidad de Yucatán” a finales de 1976:

Cuando comencé a trabajar en este Archivo, en marzo de 1974, no había, hasta


entonces, guías o índices disponibles para la consulta y me vi obligado a elabo-
rar mi propia relación no oficial de los fondos del Archivo. Afortunadamente, la
mayoría de los documentos estaban clasificados cronológicamente, por materia.
Con base en esta primitiva organización, pude estimar que el 90 % de los fondos
datan a partir de 1700…
El Archivo comprende grandes colecciones de documentos, así como muchas
secciones, más pequeñas, constantes de dos o tres legajos y libros específica-
mente titulados y de materias inconexas. Algunas de las secciones, de las que me
ocuparé, son las de Concursos; Hábitos, Becas y Órdenes; Capellanías; Visitas
Pastorales; Oficios y Decretos; Asuntos Terminados; Informaciones de Cristian-
dad; Dispensas de Parentesco; Matrimonios Ultramarinos; Libros de Órdenes;
Cofradías; Libros de Exámenes de Colegiales; etcétera.19

Igualmente, Miguel Américo Bretos20 y Rodolfo Ruz Menéndez21 en 1977


y 1980, respectivamente, refieren estas mismas “secciones” documentales y otras
como “Inventarios parroquiales” y “Libros de Fábrica” en sus artículos publicados
en la Revista de la Universidad de Yucatán. Esto ayudó a difundir tal información
a la comunidad académica, resultando investigaciones cuyas fuentes primarias
fueron los documentos emanados del Archivo ya referido.22 De ahí la importancia
17 Probablemente fue el propio Crescencio Carrillo y Ancona quien organizó este Archivo, ya que como he-
mos señalado, fue el primer Historiador en fundamentar sus estudios con su revisión. Además, de 1877 a
1883 fungió como Secretario de Cámara y Gobierno del Obispo de Yucatán, Leandro Rodríguez de la Gala,
en donde tuvo contacto directo con dicho Archivo.
18 En 1917 el Papa Benedicto XV promulgó el Código de Derecho Canónico donde se planteó la aplicación
de ciertas normas en el cuidado y organización de los archivos eclesiásticos; por ejemplo, el canon 375 § 1
establece que el Archivo diocesano debe ubicarse en un local seguro y cómodo, a fin de evitar que se desa-
parezcan o deterioren los documentos resguardados, y además, para que resulte adecuada la estancia de los
investigadores y trabajadores. Cfr. Ramón Aguilera Murguía - Jorge Garibay Álvarez, Teoría y Técnica para
organizar los archivos de la Iglesia, México, ADABI, 2010, p. 51.
19 Michael J. Fallon, “El Archivo de la Mitra Emeritense” en Revista de la Universidad de Yucatán, núm. 107,
vol. XVIII, Mérida, Yucatán, Septiembre - Octubre de 1976, pp. 86-94.
20 Miguel Américo Bretos, “Índices de inventarios parroquiales conservados en el Archivo de la Arquidiócesis
de Yucatán” en Revista de la Universidad de Yucatán, núm. 114, vol. XIX, Mérida, Yucatán, Noviembre-Di-
ciembre de 1977, pp. 65-71.
21 Rodolfo Ruz Menéndez. “Los Archivos del Estado de Yucatán” en Revista de la Universidad de Yucatán,
Número 128, vol. XXII, Mérida, Yucatán, Marzo-Abril de 1980, pp. 12-19.
22 Otros ejemplos de los primeros trabajos realizados, basados en fuentes primarias emanadas del Archivo
Histórico del Arzobispado de Yucatán, además de los presentados al comienzo de este escrito, también como
nota a pie de página, son: Michael Fallon, The secular clergy in the diocese of Yucatán, 1750-1800, Tesis para
optar al grado de doctor en filosofía por The Catholic University of America, Washington, 1979. Michael
36 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

del trabajo Archivístico que se le aplicó y además se fomentó, que si bien no fue el
ideal, permitió el acceso a la consulta de la información.
Posteriormente, en 1980 se encargó al Padre José Florencio Camargo Sosa
realizar un estudio a fondo del problema y la formulación de soluciones adecuadas. A
fin de comenzar el trabajo necesario para su correcta organización y conservación de
los documentos, recibió una instrucción práctica de archivística en el Archivo General
de la Nación; luego, fue nombrado Director de lo que se llamaría provisionalmente,
Archivo Histórico de la Curia Arzobispal de Yucatán (1980), y más tarde Archivo
Histórico de la Arzobispado de Yucatán (AHAY). El Padre José Camargo dirigió dicha
institución hasta junio de 2013, es decir, durante casi 33 años.23
A lo largo de su gestión se mantuvo el servicio de consulta a la documentación
histórica, sin exceptuar las complicaciones para ello. Para acceder al fondo se
presentaba una solicitud24 justificando su investigación25 con la presentación
del proyecto y sus fines, avalado por alguna institución. Se carecía de una guía o
índice general para su consulta, por lo que la revisión del corpus documental se
realizaba prácticamente sin un material de apoyo que pudiese ayudar y agilizar la
búsqueda de la información requerida.
En el tiempo que el Padre Camargo Sosa fungió como Director, los
documentos estuvieron en cajas de diferentes formatos colocados en estantes,
pero las instalaciones no disponían de aire acondicionado, sino hasta 2007
aproximadamente (y nada más en las horas de trabajo, 9 am - 1 p.m.). Sólo se
contaba con la ventilación manual sin tener un control de humedad.26
A principios de 2009 el Doctor Miguel Bretos27 planteó al Arzobispo,
Monseñor Emilio Carlos Berlie Belaunzarán la posibilidad de solicitar la
Fallon, The secular clergy in the diocese of Mérida de Yucatán, 1780-1850. Their origins, careers, wealth and
activities, Tesis para obtener el grado de doctor en filosofía de la Catholic University of America, Washing-
ton, D.C., 1982.
23 Cuando se realizó la reorganización en 2013, la clasificación antes realizada se anexó al inventario con las
siglas “CA” (Clasificación anterior), como parte de las observaciones que entre otros aspectos, hace una
descripción del contenido de cada caja.
24 Las cartas de presentación van desde 1988 hasta 2013, y de los registros de consulta escritas van de 2002-
2013. El período histórico con mayor afluencia en cuanto a los temas de investigación es el Novohispano,
con proyectos como Historia eclesiástica de la provincia de Yucatán, siglos XVI-XVII, Sociedad hispánica
(criolla y española) en Mérida de la primera mitad del siglo XVIII, Educación en la iglesia colonial en Yucatán,
Jesuitas y la sociedad de Jesús, siglos XVII-XVIII, por mencionar algunas.
25 Las cajas con mayor afluencia de estudio y consulta fueron las correspondientes a “oficios y decretos”,
“asuntos terminados”, “asuntos pendientes”, “concurso a curatos”, “visitas pastorales”, “becas y órdenes” “ma-
trimonios ultramarinos” y las cajas pertinentes a gobiernos pastorales de los distintos obispos de la curia
diocesana de Yucatán.
26 Cfr. Héctor Cárdenas Angulo - Carlos Armando Mendoza Alonzo, Inventario del Archivo Histórico del
Arzobispado de Yucatán, México, ADABI de México A.C., (Colección inventarios), 2014, pp. 32-33.
27 El Doctor Miguel Américo Bretos tiene publicaciones en torno a las iglesias “coloniales” de Yucatán. En
1998 propuso las capillas de indios yucatecas para el prestigioso listado de la Vigía de Monumentos del
Mundo, entre otros trabajos históricos.
Le obsequió su colección a la Arquidiócesis de Yucatán en 2011, especialmente para el Archivo histórico,
de aproximadamente 2000 volúmenes; obras bibliográficas especializadas en arte sacro y arquitectura lati-
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 37

inclusión de la Catedral de Mérida y su entorno en el listado del Patrimonio de


la Humanidad de la UNESCO. De esa coyuntura, a sabiendas de sus necesidades,
surgió la idea de trasladar al que podría ser la nueva sede del archivo histórico, un
espacio restaurado para un Museo de Arte Sacro de Yucatán en Conkal. Entonces,
en el año 2012, se habilitaron los espacios subutilizados del lugar, ofreciendo
una simbiosis con lo que sería una “Galería” de Arte sacro. En junio de 2011 el
Doctor Bretos hizo contacto con la Dra. González Cicero, Directora de Apoyo
al Desarrollo de Archivos y Bibliotecas de la Nación (ADABI), expresándole el
interés por reorganizar el Archivo Histórico de la Arzobispado Yucatán (AHAY),
proponiendo un espacio más adecuado y facilidades para la consulta a los
investigadores y estudiosos, a lo cual respondieron de forma eficaz e inmediata.
Después de una visita de la Doctora Stella González a las instalaciones citadas,
le pareció factible realizar la propuesta del nuevo espacio para el AHAY. Por
consiguiente, se elaboró el proyecto.
El 23 de abril de 2013, el Arzobispo Emilio Carlos Berlie Belauzarán nombró
Director del Archivo Histórico de la Arquidiócesis de Yucatán al Presbítero
Licenciado Héctor Augusto Cárdenas Angulo, y en agosto de 2013 se dispuso la
organización para reubicar el AHAY en Conkal. El proyecto de reubicación del
Archivo Histórico del Arzobispado de Yucatán (AHAY) comenzó con el traslado
del fondo documental del salón anexo de la Iglesia Catedral, a su nueva sede, el
ex - Convento de Conkal, Yucatán.
Al trasladarse, se realizó la labor de limpieza de los documentos, puestos
para la protección de cada uno de ellos en papel cultural para posteriormente
trasladarlos a cajas de polipropileno, AG12. Conforme se fue terminando el
cambio de cajas y limpieza se trasladaron a los anaqueles establecidos en el espacio
destinado para el Archivo. La finalización del cambio de cajas correspondiente a
todo el fondo histórico se realizó en febrero de 2014.

noamericana y yucateca. A ese donativo se han sumado otros, como la colección particular del Padre José
Camargo Sosa, con obras de Historia de México y Yucatán, con casi 2000 volúmenes; también se llevó al ar-
chivo, en custodia, la Colección del Seminario de Yucatán que comprende 1804 volúmenes, de los cuales 545
son antiguos y 1259 son históricos y modernos relativos a la Península de Yucatán y se trasladó la Colección
de la Catedral de Mérida que contiene 122 libros: 12 antiguos y 110 históricos. Además, hay que sumar los
manuscritos y las carpetas con documentos que se anexaron de folios históricos resguardados en depósitos
del Seminario de Yucatán y trasladaron al archivo histórico (la idea es crear una biblioteca de referencia
especializada adjunta al archivo y al museo).
La anexión de los nombrados materiales fue iniciativa del Presbítero licenciado, Héctor Augusto Cárdenas
Angulo en el inicio de su dirección del Archivo Histórico de la Arquidiócesis de Yucatán en 2013, con el fin
de buscar un espacio donde se trabaje la conservación, la catalogación y el uso de los acervos bibliográficos
del Seminario y la Catedral. En su momento, el Padre Cárdenas fue intermediario con la familia del Padre
Camargo ya difunto, para hacer el traslado de libros que había dejado al Seminario y los concernientes a
Conkal; expuso en 2013 al entonces Rector del Seminario Conciliar de Yucatán, Presbítero licenciado Jorge
Antonio Laviada Molina, la propuesta de trasladar y trabajar en la biblioteca de Conkal, los libros antiguos
e históricos fuera de uso en el Seminario, encontrados en unos depósitos y posteriormente se le planteó a
“Apoyo al desarrollo de Archivos y Bibliotecas” (ADABI) la propuesta de catalogar dicho acervo; trabajo que
fue realizado de marzo a junio de 2014.
38 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

A la par del cambio de cajas y limpieza se realizó el trabajo de clasificación


y reorganización de los documentos que como se ha señalado, carecían de una
organización adecuada, al estar divididos sólo en forma temática, sin respetar
muchas veces el orden cronológico. La metodología archivística para realizar tal
propósito se fundamentó en la creación de Secciones y Series de acuerdo a la
naturaleza administrativa de los diferentes legajos y expedientes que conforman
su estructura documental. El resultado final de ello fue el inventario de todo el
Acervo, herramienta necesaria para facilitar el acceso a la consulta documental, al
saber de qué tipo de información se cuenta y en qué cantidad.
A continuación, describiremos de manera general su organización
e inventario, así como la información que resguardan algunas de las Series
documentales más importantes.
Su organización está dividida por dos Secciones; “Gobierno” y “Justicia”,
de las cuáles se desprenden 24 Series documentales.

Cuadro clasificador28

SECCIONES
GOBIERNO
JUSTICIA
SERIES
CAPELLANIAS

CABILDO DISPENSAS
CEDULAS REALES OBRAS PÍAS
CIRCULARES LEGITIMACIONES
COFRADÍAS
CORRESPONDENCIA
CUENTAS
ESTADISTICAS
IMPRESOS
INFORMES
INVENTARIOS
LICENCIAS
MANDATOS
OBISPOS
PARROQUIAS

28 El cuadro clasificador representa una guía precisa para organizar los documentos de los Archivos dioce-
sanos, pues señala las secciones y series que han sido determinadas por las funciones que se desarrollan
en la diócesis y la forma de ejercerlas, dicho de otra forma, de acuerdo a la función administrativa de los
documentos.
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 39

RELIGIOSOS
SACERDOTES
SEMINARIO
SINODOS
ULTRAMARINOS
VISITAS PASTORALES

Inventario
Sección Gobierno:

Fechas No. de Piezas doc.


Serie Libros Leg. Exp.
extremas cajas Totales
Cabildo 1705-1903 29 223 0 21 202
Cédulas Reales 1633 -1817 8 31 21 8 2
Circulares 1809-1963 3 77 0 42 35
Cofradías 1662-1961 10 99 51 8 40
Correspondencia 1809-1961 38 549 6 535 8
Cuentas 1759-1976 44 1076 154 492 430
Estadísticas 1727-1915 5 35 13 5 17
Impresos 1785-1981 16 1499 1250 44 205
Informes 1778-1964 29 872 9 384 479
Inventarios 1784-1929 7 102 12 81 9
Licencias 1745-1961 5 64 11 53 0
Mandatos 1658-1971 159 1713 150 1119 444
Obispos 1689-1979 81 1390 12 1063 315
Parroquias 1780-1968 9 207 8 85 114
Religiosos 1660-1965 10 205 15 49 141
Sacerdotes 1766-1956 11 159 6 95 58
Seminario 1720-1925 68 2686 3 0 2683
Sínodos 1879-1945 4 54 54 0 0
Ultramarinos 1777-1948 35 2529 0 21 2508
Visitas Pastorales 1778-1901 8 255 1 0 254
Total de volúmenes 13825.
40 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

Total de libros: 1776.


Total de expedientes: 7944.
Total de legajos: 4105.
Total de cajas: 579
Sección Justicia

Fechas No. de Piezas doc.


Serie Libros Leg. Exp.
extremas cajas Totales

Capellanías 1736-1891 6 306 1 1 304


Dispensas 1745-1986 34 395 9 7 379
Legitimaciones 1767 -1943 4 132 0 46 86
Obras Pías 1760-1915 3 77 0 14 63

Total de volúmenes: 910.


Total de libros: 10.
Total de expedientes: 832.
Total de legajos: 68.
Total de cajas: 47.

Sin embargo, hay Series que destacan por la gran cantidad de volúmenes
que las conforman y por su riqueza en información. Prueba de ello es que en los
últimos 23 años estas han sido las más requeridas como fuentes de investigación.
Estas son:
Cabildo: Su corpus documental está compuesto, en su mayoría, por
“Concursos a Curatos”, cuya cronología abarca de 1705 a 1850. Sus expedientes
resguardan la información recopilada de los concursos que se realizaban para
la obtención de un beneficio parroquial, en los que se anexaban los edictos
convocatorios para la provisión de los curatos, las solicitudes de cada participante
que incluía información de sus lugares de nacimientos, edades, actas de bautizos y
demás sacramentos, los oficios de sus méritos y servicios, aplicación de exámenes
que consistían en escribir un texto en latín y de redactar elocuciones morales, y
por último, la resolución final de Obispo para ocupar los curatos en pugna.
Como se puede observar, la Serie Cabildo presenta una gran variedad
de información que permite estudiar la acción pastoral y administrativa de los
señores curas que conformaron la diócesis de Yucatán en el lapso de tiempo ya
referido, además de poder indagar sobre cuestiones de jurisdicción parroquial y
de perfiles sacerdotes.
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 41

Visitas Pastorales: la conforman 254 expedientes distribuidos en 8 cajas,


cuya cronología abarca de 1778 a 1901, correspondiente a las administraciones
de los obispos Antonio Caballero y Góngora, Fray Luis de Piña y Mazo , Pedro
Agustín Estévez y Ugarte, José María Guerra, Leandro Rodríguez de la Gala y
de Crescencio Carrillo y Ancona. Los documentos de esta serie se originan de
la visita periódica que realiza el obispo a las parroquias de su jurisdicción, con el
propósito de reconocer las necesidades de su grey y de sus Ministros (sacerdotes).
Los expedientes contienen información de la ceremonia de bienvenida del obispo
a su llegada a iglesia parroquial, de los resultados de la revisión de los archivos
parroquiales, los lugares sagrados, el ajuar litúrgico que incluye muchas veces el
inventario de alhajas y ornamentos, los exámenes de las cuentas de cofradías y bienes
parroquiales, además del cuestionario que se le realizaba a 4 personas con preguntas
relacionadas a la acción pastoral, disciplinar y administrativa del cura titular . Por
último, se anexaba el documento en donde el obispo estipulaba sus sugerencias para
el mejoramiento de la administración del curato y la carta que el sacerdote redactaba
en el que describía sus trabajos a favor de los feligreses con relación a la última
visita. En esta última se agregaba el número de bautizados, casados y difuntos. Así
pues, las visitas pastorales representan una fuente de información importante para
comprender la cotidianidad y los entramados sociales, culturales y religiosos que se
desprenden de la administración de los curatos.
Mandatos: la integran 1713 volúmenes distribuidos en 159 cajas, cuya
cronología comprende de 1658 a 1971. Sus documentos resguardan la información
que la autoridad, eclesiástica y civil, dispone, manda y legitima con el propósito
de mejorar la administración de su jurisdicción. Son representados de distintas
formas, entre ellos están los oficios, decretos, rescriptos, bulas, cartas pastorales,
correspondencia oficial, cordilleras, circulares y edictos. Cada uno de estos tiene su
propia complejidad en cuanto a la diversidad de información que puede contener,
y su consulta es de suma importancia para entender la relación Iglesia – Estado, y
sus múltiples disyuntivas, a lo largo de la Historia de diócesis de Yucatán.
Seminario: guarda la información de la vida administrativa de la casa
de formación intelectual y espiritual de los sacerdotes a lo largo de su Historia
(1720 – 1925). Su volumen documental está compuesto en su mayoría por la
subserie “Becas y Órdenes”, la cual, a su vez, está dividida por los expedientes de
cada uno de los estudiantes que estuvieron en sus aulas en el periodo de tiempo
señalado, siendo un total de 2137. Al consultarlos podrán encontrar sus boletas
de calificaciones, información de limpieza de sangre, cristiandad y de costumbres,
solicitudes para vestir hábitos clericales, recibir órdenes sagradas (menores y
mayores), y las cartas – aval que proporcionaba un sacerdote que fungía como su
mentor recomendando al seminarista para recibir la ordenación sacerdotal.
42 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

Obispos: Se divide en 1390 volúmenes que abarcan los años de 1689 a 1979,
resguardados en 81 cajas de polipropileno. La información que contiene representa
la más diversa entre todas la Series que conforman la organización del AHAY.
Destacan cédulas reales, decretos, oficios y mandatos, circulares, cartas pastorales,
correspondencia particular y oficial de los señores obispos y los expedientes de los
diferentes asuntos que recibieron para su resolución, recomendación y designación.
En algún momento de la historia del AHAY estos documentos fueron conjuntados
en legajos de acuerdo al gobierno pastoral de cada uno de los obispos que pasaron
por la Diócesis de Yucatán a lo largo del siglo XVIII, XIX y XX. De ahí que en la
clasificación anterior se señalen cajas como “Gobierno pastoral del Señor Carrillo y
Ancona”, y que su información sea diversa.
Cabe destacar que actualmente contamos con el Catálogo Archivístico del
30 por ciento del corpus documental que conforma esta Serie.
Por otro lado, el AHAY resguarda Series documentales con información
inédita para la investigación histórica, que en el pasado no estaban a consulta
por varias razones, la principal, como se ha mencionado, era porque se carecía
de un inventario que pudiese determinar qué tipo de información contenían y
en qué cantidad. Un ejemplo de lo mencionado es la Serie “Inventarios” en la
cual se registran los bienes muebles e inmuebles de carácter histórico, artístico y
documental de la Arquidiócesis de Yucatán. Su importancia reside en que permite,
a través de su análisis, conservar y valorar los objetos litúrgicos, y en algunos casos
identificar los casos de robo, ya que su información puede servir como prueba
jurídica para recuperarlos. Estos documentos, pues, contribuyen a apreciar la
importancia del patrimonio artístico y cultural que custodia la Iglesia Católica.
En total, está conformada por 7 cajas con un total de 102 volúmenes
divididos en 12 libros, 81 legajos y 9 expedientes. Cuya cronología abarca de 1784
hasta 1929.
Hemos identificado que en su cuerpo documental se presenta una
importante variedad de información respecto a la “Guerra de castas”29, un suceso
histórico de gran importancia para la región y que impactó a varios niveles,
incluyendo lo político, social y económico. La perspectiva que denota esta Serie es
la pérdida del patrimonio artístico y documental de la Arquidiócesis de Yucatán,
así como la defensa de ellos por parte de los sacerdotes y personas cercanas a

29 La Guerra de Castas, iniciada en julio de 1847 en los pueblos de Tepich y Tihosuco al oriente del Estado de
Yucatán, representa un hecho histórico bien conocido. Los Historiadores han abordado este tema desde va-
rias perspectivas; sus causas u orígenes, protagonistas, su impacto económico, demográfico, político y social,
son algunos ejemplos de ello. Sin embargo, como todo objeto de estudio, quedan episodios aún por escribir-
se en relación a ella. Véase: Baqueiro Preve, Serapio. Ensayo histórico sobre las revoluciones de Yucatán desde
el año de 1840 hasta 1864, Mérida, Yucatán, Manuel Heredia Argüelles, 1878; Reed, Nelson. La guerra de
castas de Yucatán, México, Editorial Era, 1971; González Navarro, Moisés, Raza y tierra. La guerra de castas
y el henequén, México, El Colegio de México, Segunda Edición, 1979; Revista de Cultura Maya SAASTUN,
Mérida, Yucatán, Número 1, Abril de 1997.
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 43

la Iglesia, durante los primeros años de la confrontación; es decir, entre 1847 y


1850. La información se desprende de los oficios y cartas que se anexaban a los
inventarios parroquiales que fueron enviados, por mandato, de los curas párrocos
al entonces Obispo de Yucatán el Señor José María Guerra, durante los años
señalados.

Consideraciones finales

Descubrimos con lo descrito, el estilo de Archivo que se encuentra


en la Arquidiócesis de Yucatán, que como hemos señalado, ha sufrido una
reorganización desde 2013 y del cual tenemos una visión prospectiva para
continuar actualizándolo.
Hemos descrito en el texto la situación del Archivo Histórico del Arzobispado
de Yucatán (AHAY), pero dentro del Archivo histórico de la Arquidiócesis de
Yucatán (AHAYUC) existen otros cinco Archivos: El Archivo General del
Arzobispado de Yucatán (AGAY) 50.64 metros lineales hasta hoy pues se está
trabajando y va creciendo mediante traslados; el Archivo Carrillo y Ancona del
Seminario de Yucatán (ACASY) con 1.56 metros lineales; el Archivo José Florencio
Camargo Sosa (AJFCS) con 4.44 metros lineales; el Archivo Juan Arjona Correa
(AJAC) 0.96 metros lineales, Archivo del Venerable Cabildo Metropolitano de
Yucatán (AVCMY), aunque físicamente está en el salón del Cabildo catedralicio
de la Catedral de Mérida, quien desee consultar tal documentación lo puede
realizar digital en el Archivo Histórico de la Arquidiócesis de Yucatán, en Conkal.
Queremos posesionarnos como uno de los Centros de apoyo para la
investigación histórica más importante del Sureste Mexicano, capaz de ofrecer
a su vez en sus instalaciones asesoría a las diversas parroquias que conforman la
Arquidiócesis de Yucatán, y a las instituciones que así lo requieran en materia de
clasificación, ordenación y conservación de sus Acervos documentales.
Por tanto, invitamos a los estudiosos de la Historia a conocer este Archivo
histórico.

Bibliografía

Aguilera Murguía, Ramón - Garibay Álvarez, Jorge, Teoría y Técnica para organizar los archivos de
la Iglesia, ADABI, México 2010.
Arrigunaga Coello, Maritza, Catálogo de las fotocopias de los Documentos y Periódicos Yucatecos en
la Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington, Texas, The UTA Press, 1983.
Camargo Sosa, José Florencio, Crescencio Carrillo y Ancona el Obispo Patriota, Editorial Área Maya,
Mérida, 2006.
44 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

Carrillo y Ancona, Crescencio, Vida del Venerable Padre Fray Manuel Martínez, Gamboa Guzmán y
hermano, Impresores - Editores, Mérida, 1883.
Fallon, Michael J., “El Archivo de la Mitra Emeritense” en Revista de la Universidad
de Yucatán, núm. 107, vol. XVIII, Mérida, Yucatán, septiembre - octubre de 1976, pp. 86-94.
Héctor Augusto Cárdenas Angulo - Carlos Armando Mendoza Alonzo, coordinadores, Inventario
del Archivo Histórico del Arzobispado de Yucatán, Conkal, Mérida, Arquidiócesis de Yucatán, –
México: Apoyo al Desarrollo de Archivos y Bibliotecas de México A. C., 2014.
Suárez Molina, Víctor Manuel, Historia del Obispado de Yucatán: historia de su fundación y de sus
obispos, t. III, Fondo Editorial del Estado, Mérida, Yucatán, 1981.
Nota de explicativa
1 Durante la “Colonia” y gran parte del Siglo XIX la jurisdicción administrativa del Obispado de Yucatán
abarcaba Tabasco, Campeche, el Petén-Itzá y Belice. En 1906 el Obispado de Yucatán es elevado a
Arzobispado, asignándole como diócesis sufragáneas los recién nombrados obispados de Tabasco (1880) y
Campeche (1895).
² Entre los primeros historiadores que hicieron mención del fondo documental, que ahora se llama Archivo
Histórico del Arzobispado de Yucatán, al utilizarlos como fuente de sus diversas investigaciones, están
Michael J. Fallon en su artículo: Michael J. Fallon, El Archivo de la Mitra Emeritense, The Americas, Academy
of American Franciscan History, 1976; Rodolfo Ruz Menéndez en su traducción del artículo publicado en el
Diario de Yucatán el 12 de julio de 1978 y en la Revista de la Universidad de Yucatán, vol. XVII, núm. 107; y
Nancy Farriss, “Nucleation versus Dispersal: The Dinamics of Population Movement in Colonial Yucatán”,
impreso en la revista Hispanic American Historical Review, vol. 58, 1978, pp. 187-216. Información tomada
de Maritza Arrigunaga Coello, Catálogo de las fotocopias de los Documentos y Periódicos Yucatecos en la
Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington, The UTA Press, Texas, Estados Unidos, 1983, p. 8.
³ Crescencio Carrillo y Ancona (1837 – 1897), es considerado uno de los personajes más relevantes del
Yucatán decimonónico. Incursionó de manera importante en los ámbitos de la Historia, la Arqueología, la
Antropología, la Filología, la Literatura y el clerical. Véase: José Florencio Camargo Sosa, Crescencio Carrillo
y Ancona, el Obispo Patriota, Editorial Área Maya, Mérida, 2006; Víctor Manuel Suárez Molina, Historia del
Obispado de Yucatán: historia de su fundación y de sus obispos, t. III, Fondo Editorial del Estado, 1981; José
Dolores Rivero Figueroa - Francisco Cantón Rosado, Dos vidas ejemplares: Ensayos biográficos del Ilmo. Sr.
Obispo de Yucatán Don Crescencio Carrillo y Ancona y de Monseñor Norberto Domínguez, Habana, Imprenta
“Avisador Comercial”, 1918; Francisco Sosa, Don Crescencio Carrillo. Ensayo biográfico, en “Boletín de la
Sociedad de Geografía y Estadística de la República de mexicana, Tercera época, t. I, núm. 12, 1873, pp.
733-742.
4 Cfr. José Florencio Camargo Sosa, Crescencio Carrillo y Ancona, el Obispo Patriota, Editorial Área Maya,
Mérida, 2006, p. 299.
5 Crescencio Carrillo y Ancona, Vida del Venerable Padre Fray Manuel Martínez, Mérida, Gamboa Guzmán
y hermano, Impresores - Editores, 1883.
6 Justo Sierra O´ Reilly (1814-1861) fue un prominente Historiador, Jurista, Político, y Novelista Yucateco.
Entre sus escritos más importantes se encuentran las dedicadas a las biografías de los Obispos de Yucatán
publicadas en el periódico literario “El Registro Yucateco” con el nombre de “Galerías biográficas de los
Señores Obispos de Yucatán”. Para más información sobre él, véase: Carlos Sierra, Diccionario Biográfico
de Campeche, México, Ed. La Muralla, 1997; Juan de Dios Pérez Galaz, Diccionario Geográfico, Histórico
y Biográfico de Campeche, México, Gob. del Edo. de Campeche, 1979; Manuel Lanz, Bosquejo biográfico
del Dr. don Justo Sierra de O’Reilly, a sumemoria, en el cuadragésimo quinto aniversario de su fallecimiento,
Campeche, Imprenta del Gobierno del Estado, 1906.
7 Víctor Manuel Suárez Molina, Historia del Obispado de Yucatán, historia de su fundación y de sus Obispos,
tomo III, Mérida, Fondo Editorial del Estado, 1981, pp. 907-908.
8 La Catedral de Mérida, capital del Estado de Yucatán, es la sede de la Arquidiócesis de Yucatán. Es
considerada la primera Catedral erigida en la América Continental (tierra firme), y por lo consiguiente la
más antigua de México. Para más información sobre su Historia, véase: Miguel A. Bretos, Catedral de Mérida
EL ARCHIVO HISTÓRICO DEL ARZOBISPADO DE YUCATÁN. SU HISTORIA E IMPORTANCIA 45

: U pakal ku na y an chumuc cah t’hó ; La gran casa de Dios en medio de t’hó, Mérida, Yucatán, Cultura
Yucatán, A.C., 2013.
9 Gobernador del Estado de Yucatán de 1915 a 1917.
10 Ante las inquietantes noticias que llegaban a Yucatán de la lucha armada que se efectuaba en el centro y
norte del País, en el marco de la Revolución Mexicana, el Arzobispo Martín Tritschler y Córdova temió ser
víctima de algún abuso de autoridad por parte de la nueva administración (Venustiano Carranza), por ello,
decidió ausentarse por un tiempo mientras se aclaraba aquella situación. El 23 de agosto de 1914 salió de
Mérida para Progreso y al día siguiente tomó pasaje en el vapor americano “Esperanza” rumbo a La Habana
junto a otros clérigos, desembarcando en Cuba el 26 del mismo mes. Retornó a Yucatán el 12 de mayo
de 1919. (José Ignacio Rubio Mañé, El Excmo. Sr. Dr. D. Martín Tritschler y Córdova primer Arzobispo de
Yucatán. Edición especial de la Junta organizadora del Jubileo sacerdotal del Excmo. Sr. Arzobispo de Yucatán,
Dr. D. Martín Tritschler y Córdova, México, Sobretiros de ABSIDE, 1941, pp. 59-64). Otro importante estudio
biográfico sobre este Prelado es: Vida, muerte y testamento del Excmo. Y Rvmo. Sr. Dr. D. Martín Tritschler y
Córdova, primer Arzobispo de Yucatán, en Boletín Eclesiástico, Mérida, Díaz Massa, 1943.
11 Cfr. Víctor Manuel Suarez Molina, Historia del Obispado de Yucatán, historia de su fundación y de sus
Obispos, Tomo III, Mérida, Fondo Editorial del Estado, 1981, p. 1367.
12 Cfr. Maritza Arrigunaga Coello, El Archivo de la Mitra, en Catálogo de las fotocopias de los Documentos y
Periódicos Yucatecos en la Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington, The UTA Press, Texas, Estados
Unidos, 1983, p. 8.
13 Ibidem, p. 8.
14 Maritza Arrigunaga Coello, Catálogo de las fotocopias de los Documentos y Periódicos Yucatecos en la
Biblioteca de la Universidad de Texas en Arlington, Texas, The UTA Press, 1983, p. 8. De igual forma, el Señor
Joaquín de Arrigunaga, fundador y presidente perpetuo de la Academia Yucateca de Historia y Genealogía
“Francisco de Montejo”, contribuyó con la organización y la creación del Archivo General de la Arquidiócesis
de Yucatán en 1961. Este Acervo resguarda el total de los libros de registros de sacramentos (Bautismos,
confirmaciones, matrimonios, defunciones) efectuados en las distintas parroquias que conformaron
la Diócesis de Yucatán de 1543 hasta 1900. Cfr. Epígrafe ubicada en el Archivo General del Arzobispado
de Yucatán (AGAY) anexo a Catedral, que menciona la creación de tal Archivo en 1961 y también a sus
iniciadores; epígrafe colocada en una pared del Archivo General del Arzobispado de Yucatán, piedra,
plenamente legible, técnica de grabado sobre piedra.
15 Probablemente fue el propio Crescencio Carrillo y Ancona quien organizó este Archivo, ya que como
hemos señalado, fue el primer Historiador en fundamentar sus estudios con su revisión. Además, de 1877 a
1883 fungió como Secretario de Cámara y Gobierno del Obispo de Yucatán, Leandro Rodríguez de la Gala,
en donde tuvo contacto directo con dicho Archivo.
16 En 1917 el Papa Benedicto XV promulgó el Código de Derecho Canónico donde se planteó la aplicación
de ciertas normas en el cuidado y organización de los archivos eclesiásticos; por ejemplo, el canon 375 §
1 establece que el Archivo diocesano debe ubicarse en un local seguro y cómodo, a fin de evitar que se
desaparezcan o deterioren los documentos resguardados, y además, para que resulte adecuada la estancia
de los investigadores y trabajadores. Cfr. Ramón Aguilera Murguía - Jorge Garibay Álvarez, Teoría y Técnica
para organizar los archivos de la Iglesia, México, ADABI, 2010, p. 51.
17 Michael J. Fallon, “El Archivo de la Mitra Emeritense” en Revista de la Universidad de Yucatán, núm. 107,
vol. XVIII, Mérida, Yucatán, Septiembre - Octubre de 1976, pp. 86-94.
18 Miguel Américo Bretos, “Índices de inventarios parroquiales conservados en el Archivo de la Arquidiócesis
de Yucatán” en Revista de la Universidad de Yucatán, núm. 114, vol. XIX, Mérida, Yucatán, Noviembre-
Diciembre de 1977, pp. 65-71.
19 Rodolfo Ruz Menéndez. “Los Archivos del Estado de Yucatán” en Revista de la Universidad de Yucatán,
Número 128, vol. XXII, Mérida, Yucatán, Marzo-Abril de 1980, pp. 12-19.
20 Otros ejemplos de los primeros trabajos realizados, basados en fuentes primarias emanadas del Archivo
Histórico del Arzobispado de Yucatán, además de los presentados al comienzo de este escrito, también como
nota a pie de página, son: Michael Fallon, The secular clergy in the diocese of Yucatán, 1750-1800, Tesis para
optar al grado de doctor en filosofía por The Catholic University of America, Washington, 1979. Michael
Fallon, The secular clergy in the diocese of Mérida de Yucatán, 1780-1850. Their origins, careers, wealth and
activities, Tesis para obtener el grado de doctor en filosofía de la Catholic University of America, Washington,
D.C., 1982.
46 Pbro. Lic. Héctor Augusto Cárdenas Angulo | Lic. Carlos Armando Mendoza Alonzo

21 Cuando se realizó la reorganización en 2013, la clasificación antes realizada se anexó al inventario con
las siglas “CA” (Clasificación anterior), como parte de las observaciones que entre otros aspectos, hace una
descripción del contenido de cada caja.
22 Las cartas de presentación van desde 1988 hasta 2013, y de los registros de consulta escritas van de 2002-
2013. El período histórico con mayor afluencia en cuanto a los temas de investigación es el Novohispano, con
proyectos como Historia eclesiástica de la provincia de Yucatán, siglos XVI-XVII, Sociedad hispánica (criolla y
española) en Mérida de la primera mitad del siglo XVIII, Educación en la iglesia colonial en Yucatán, Jesuitas y
la sociedad de Jesús, siglos XVII-XVIII, por mencionar algunas.
23 Las cajas con mayor afluencia de estudio y consulta fueron las correspondientes a “oficios y decretos”,
“asuntos terminados”, “asuntos pendientes”, “concurso a curatos”, “visitas pastorales”, “becas y órdenes”
“matrimonios ultramarinos” y las cajas pertinentes a gobiernos pastorales de los distintos obispos de la curia
diocesana de Yucatán.
24 Cfr. Héctor Cárdenas Angulo - Carlos Armando Mendoza Alonzo, Inventario del Archivo Histórico del
Arzobispado de Yucatán, México, ADABI de México A.C., (Colección inventarios), 2014, pp. 32-33.
25 El Doctor Miguel Américo Bretos tiene publicaciones en torno a las iglesias “coloniales” de Yucatán.
En 1998 propuso las capillas de indios yucatecas para el prestigioso listado de la Vigía de Monumentos del
Mundo, entre otros trabajos históricos.
Le obsequió su colección a la Arquidiócesis de Yucatán en 2011, especialmente para el Archivo histórico,
de aproximadamente 2000 volúmenes; obras bibliográficas especializadas en arte sacro y arquitectura
latinoamericana y yucateca. A ese donativo se han sumado otros, como la colección particular del Padre
José Camargo Sosa, con obras de Historia de México y Yucatán, con casi 2000 volúmenes; también se llevó
al archivo, en custodia, la Colección del Seminario de Yucatán que comprende 1804 volúmenes, de los
cuales 545 son antiguos y 1259 son históricos y modernos relativos a la Península de Yucatán y se trasladó
la Colección de la Catedral de Mérida que contiene 122 libros: 12 antiguos y 110 históricos. Además, hay
que sumar los manuscritos y las carpetas con documentos que se anexaron de folios históricos resguardados
en depósitos del Seminario de Yucatán y trasladaron al archivo histórico (la idea es crear una biblioteca de
referencia especializada adjunta al archivo y al museo).
La anexión de los nombrados materiales fue iniciativa del Presbítero licenciado, Héctor Augusto Cárdenas
Angulo en el inicio de su dirección del Archivo Histórico de la Arquidiócesis de Yucatán en 2013, con el fin
de buscar un espacio donde se trabaje la conservación, la catalogación y el uso de los acervos bibliográficos
del Seminario y la Catedral. En su momento, el Padre Cárdenas fue intermediario con la familia del Padre
Camargo ya difunto, para hacer el traslado de libros que había dejado al Seminario y los concernientes a
Conkal; expuso en 2013 al entonces Rector del Seminario Conciliar de Yucatán, Presbítero licenciado Jorge
Antonio Laviada Molina, la propuesta de trasladar y trabajar en la biblioteca de Conkal, los libros antiguos
e históricos fuera de uso en el Seminario, encontrados en unos depósitos y posteriormente se le planteó a
“Apoyo al desarrollo de Archivos y Bibliotecas” (ADABI) la propuesta de catalogar dicho acervo; trabajo que
fue realizado de marzo a junio de 2014.
26El cuadro clasificador representa una guía precisa para organizar los documentos de los Archivos
diocesanos, pues señala las secciones y series que han sido determinadas por las funciones que se desarrollan
en la diócesis y la forma de ejercerlas, dicho de otra forma, de acuerdo a la función administrativa de los
documentos.
2 La Guerra de Castas, iniciada en julio de 1847 en los pueblos de Tepich y Tihosuco al oriente del Estado
de Yucatán, representa un hecho histórico bien conocido. Los Historiadores han abordado este tema desde
varias perspectivas; sus causas u orígenes, protagonistas, su impacto económico, demográfico, político y
social, son algunos ejemplos de ello. Sin embargo, como todo objeto de estudio, quedan episodios aún por
escribirse en relación a ella. Véase: Baqueiro Preve, Serapio. Ensayo histórico sobre las revoluciones de Yucatán
desde el año de 1840 hasta 1864, Mérida, Yucatán, Manuel Heredia Argüelles, 1878; Reed, Nelson. La guerra
de castas de Yucatán, México, Editorial Era, 1971; González Navarro, Moisés, Raza y tierra. La guerra de castas
y el henequén, México, El Colegio de México, Segunda Edición, 1979; Revista de Cultura Maya SAASTUN,
Mérida, Yucatán, Número 1, Abril de 1997.
47

CONDENA EN BRASIL POR LA CIDH EN EL


CASO ESCHER y OTROS: PONDERACIÓN,
ARGUMENTACIÓN Y EL PRINCIPIO DE LA
PROPORCIONALIDAD PARA LA SOLUCIÓN MÁS
ADECUADA

CARGNIN, Gecilda Facco1

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo discutir, a la luz del principio de la
proporcionalidad y ponderación bajo la perspectiva de los derechos humanos,
la condena del Brasil por la CIDH, ante la actitud de entidades brasileñas, que
intervinieron líneas telefónicas de miembros pertenecientes a determinado grupo
del movimiento sin tierra, con fines de incriminar al referido grupo frene a su
actuación. Para esto, destaca el principio de la proporcionalidad, la argumentación
y ponderación en la doctrina constitucional e internacional para, a partir de ella,
analizar el conflicto entre normas y valores: derechos humanos como principios
jurídicos deontológicos o como bienes jurídicos optimizables. Hay que observar
que no hay intención de agotar el asunto.
Palabras clave: Principios – leyes - derechos humanos

En el caso que se analiza, la Corte Internacional de Derechos Humanos,


condenó al Brasil por intervenir ilegalmente llamados telefónicos de miembros
de asociaciones de trabajadores rurales ligados al Movimiento de los Trabajadores
Rurales sin Tierra (MST), en el Paraná, en 1999¹.
El pedido de intervención, hecho por el Comisario Waldir Copes Neves,
de la Policía Militar del Estado del Paraná se basó en la sospecha de desvíos de
dinero/recursos financieros de programas del gobierno federal, así como en el
asesinato de Eduardo Aghinoni. El pedido fue aceptado por la jueza Elizabet Khater
inmediatamente, sin notificar al Ministerio Público. A continuación, un nuevo
pedido fue efectuado a la misma jueza, incluyendo un nuevo número de teléfono, y
la referida magistrada también lo concedió, procediendo de la misma forma.
En 25 de mayo de 1999, el Comisario solicita al Tribunal de Loanda-PR el
fin de la intervención de las líneas telefónicas. El 7 de junio de 1999, sin ninguna

1 (Alumna del Curso de Doctorado de la Universidad de Buenos Aires – UBA, área de Derecho Constitu-
cional. Master en Derecho Constitucional por la Universidad de Franca-SP y Coordinadora del Curso de
Derecho de la Facultad Almeida Rodrigues/FAR)
48 CARGNIN, Gecilda Facco

determinación legal, fragmentos de los diálogos telefónicos interceptados son


divulgados por la prensa. Inmediatamente a continuación, la Secretaría de
Seguridad Pública del Paraná convoca a una conferencia de prensa y distribuye
fragmentos editados de las conversaciones, cuyo contenido insinuaba que
integrantes del MST planeaban un atentado contra la jueza Khater y al Foro de
Loanda. El 2 de julio de 1999, el Comisario Neves envía al Tribunal de Loanda
las más de 100 cintas con conversaciones telefónicas grabadas en los períodos del
14 al 26 de mayo de 1999 y del 9 al 30 de junio de 1999, no estando el segundo
período de intervención autorizado por la Justicia. Después de prácticamente un
año, el 30 de mayo de 2000, el MP tuvo conocimiento de tales hechos y solicitó
la nulidad de las intervenciones, así como la inutilización de las grabaciones. La
jueza Khater, sin embargo, rechaza el pedido, determinando, a pesar de ello, la
incineración de las cintas.
En la denuncia presentada a la Corte, la CIDH alegaba la ilegalidad y la
nulidad de las intervenciones, de la decisión que las autorizó y de la forma como
esta fue implementada. Ello con base en la incompetencia de la autoridad solicitante
de la intervención², de la inexistencia de decisión fundada, de la ampliación del
objeto de la intervención, del exceso en la duración de la intervención y de la
divulgación indebida de las grabaciones. Por consiguiente, la CIDH acusaba al
Estado brasileño de violar los derechos a las garantías judiciales, a la protección de
la honra y de la dignidad, a la libertad de asociación, a la protección judicial y la
cláusula federal consagrados en los artículos 8.1, 11, 16, 25.1 y 28, respectivamente,
de la CADH.
Según interpretación de la Corte, los diálogos telefónicos están incluidas
en el ámbito de protección de la vida privada. Asevera que tal derecho no es
absoluto y, por lo tanto, puede sufrir injerencias en su ejercicio, las cuales, a su vez,
deben ser adoptadas con diligencia y respeto a los derechos fundamentales, de
modo de evitar excesos. Para ser reconocida como legal, la medida de injerencia
debe estar fundamentada en ley. En el caso en cuestión, la Corte entendió que
las intervenciones y grabaciones de los diálogos telefónicos no observaron varias
disposiciones de la Ley n° 9.296, del 24 de julio de 1996, que reglamenta el
artículo 5° XII de la CF relativo a la inviolabilidad del sigilo de las comunicaciones
telefónicas y, por esto, no estaban fundamentadas en ley. Por lo tanto, quedan
violados los derechos a la vida privada, a la honra y a la reputación. Con respecto a
la finalidad y a la necesidad de las intervenciones, la Corte concluyó que el pedido
del Comisario Neves no fue presentado en el marco de una investigación, cuyo
objeto sería la verificación de los hechos que sirvieron como justificación para
CONDENA EN BRASIL POR LA CIDH EN EL CASO ESCHER y OTROS: ... 49

las “pinchaduras” (sospechas de desvío de recursos públicos y de vinculación


con un homicidio). Además de esto, la jueza Khater no expuso en su decisión el
examen de los requisitos legales ni los elementos que la motivaron a aceptar las
intervenciones, ni la forma y el plazo en que se realizaría la diligencia. Con base
en las declaraciones de las testigos, que demostraron el temor sufrido por ellas y
las dificultades causadas por la divulgación de las conversaciones a los miembros
de las asociaciones, la Corte reconoció que los hechos ocurridos afectaron la
imagen de esas entidades, de tal forma que quedó configurada la violación del
derecho a la libertad de asociación. Por fin, con relación a los procedimientos y
procesos penales y administrativos adoptados en el ámbito interno con respecto
a la conducta de los agentes públicos, la Corte concluyó que hubo una violación
del derecho a las garantías judiciales y a la protección judicial³. Por unanimidad,
la Corte decidió que el Estado debe: (a) pagar a cada víctima indemnización por
daños morales; (b) publicar la sentencia en el Boletín Oficial, en periódico de
amplia circulación nacional y en periódico de amplia circulación en el Paraná,
además de en el sitio de la Unión y del Estado del Paraná e (c) investigar los
hechos que generaron las violaciones del presente caso4.

Análisis al Principio de Proporcionalidad y Ponderación aplicado

En el estudio desarrollado sobre el referido caso, se busca explicar el


principio de la proporcionalidad y la ponderación utilizada en la referida decisión.
Para ello se hace necesario interpretar las orientaciones de algunos doctrinarios,
estudiosos sobre el asunto. Según J. J. Canotílho, tenemos que en el principio de
la proporcionalidad en sentido estricto “medios y fin son puestos en ecuación
mediante un juicio de ponderación.”5 Es que el principio de la proporcionalidad,
por el simple hecho de admitir que determinado derecho fundamental pueda ser
violado en caso de que el acto transgresor cumpla los requisitos de adecuación,
necesidad y proporcionalidad en sentido estricto, está, nada más y nada menos,
permitiendo que se pondere entre dos expectativas de derecho antagónicas.
Se verifica que, en el caso analizado, según la decisión de la corte los
requisitos para la aceptación de la intervención de los teléfonos no fueron
observados, puesto que conforme determinación de las leyes brasileñas, los
errores comienzan desde la competencia para requerir la intervención, así como
los períodos de intervención y utilización de estas informaciones fuera del
período de autorización de las intervenciones, además de la divulgación de las
conversaciones espiadas.
50 CARGNIN, Gecilda Facco

Bajo esta perspectiva se verifica que realmente hubo varios errores en la


aceptación del pedido de las escuchas, pero, por otro lado, si no hubiese existido
la autorización, tal vez más drástico sería el resultado, en el sentido del desvío de
valores del gobierno federal por el grupo, cuyo hecho se vinculaba al asesinato de
un miembro, así como a la muerte de la misma jueza, la cual estaba siendo planeada.
En este sentido entra el cuestionamiento, el acto puede ser violado por el
transgresor siempre que el acto transgredido cumpla los requisitos de adecuación,
necesidad y proporcionalidad en sentido estricto, está, nada más y nada menos,
permitiendo que se pondere entre dos expectativas de derecho antagónicas. Este
cuestionamiento se hace frente al acto en sí.
La misma pregunta se hace ante la condena de la Corte, ¿que fue más
perjudicial o qué debería haber sido preservado? ¿Herir los principios ideológicos
del grupo/asociación? ¿O preservar la idoneidad financiera, así como la vida de
personas vinculadas a esta asociación, y de terceros, como la vida de la Magistrada,
incluso si estas escuchas hubieran ocurrido después de la fecha del requerimiento/
autorización?
La corte no lo vio de esta forma, por esta razón la condena, puesto que
interpretó que aun habiendo consecuencias mayores se no hubiesen existido
las escuchas, la forma en que se hizo la intervención telefónica fue más lesiva
a los derechos humanos/fundamentales, ya que lesionó directamente la imagen
de las entidades involucradas, de tal forma que quedó configurada la violación
del derecho a la libertad de asociación. El análisis sobre las leyes existentes con
relación a intervención telefónica, prevaleció desde la perspectiva del principio de
la proporcionalidad.
Nuevamente pasamos a una nueva discusión, o sea, sólo se puede admitir
que los derechos humanos puedan ser objeto de medición, o de análisis de grado
o intensidad de violación, si los consideramos como comandos optimizables, que
pueden ser elásticos para más o para menos.
Sin embargo, para entender mejor esta cuestión de cómo llegar a una
decisión justa, que implica derechos humanos, los juzgadores, a título de ejemplo,
analizan algunos elementos, en este caso meramente ilustrativos, que pueden
influir en la decisión de un proceso judicial: 1. Importancia de la información a
ser captada por la escucha (¿es de interés público o de interés particular?); 2. ¿Fin
de lucro? (¿beneficiaría a alguien? ¿un organismo social? ¿una persona privada?);
3. El acto de intervenir los teléfonos ¿lesionó la integridad moral y de personalidad
privada (de alguien o de algún grupo)? 4. Las comunicaciones captadas en la
escucha ¿tienen lógica, con relación a los fundamentos del pedido?
CONDENA EN BRASIL POR LA CIDH EN EL CASO ESCHER y OTROS: ... 51

Por cierto, conforme sean respondidas estas preguntas, la solución jurídica


se inclinará para uno de los dos lados. Y, finalmente, los juzgadores sopesarán esos
valores (ponderación) y solucionarán el caso con base en la proporcionalidad,6
decidiendo la litis, conforme hizo la CIDH, dentro de sus convicciones, después
del análisis detallado.
Considerando el tema bajo la perspectiva de la Argumentación Jurídica,
que da al caso concreto interpretación constitucional inspirada en una concepción
pospositivista del derecho. Que tiene como base y fundamento la calificación de
las reglas, y su distinción con relación a los principios.
Incluso porque el derecho no puede ser analizado de una forma holística,
acabada, aplicada como impuesta, sino haciendo un análisis de cómo se llega
a aquella decisión judicial. El proceso de decisión precisa ser fundado en una
perspectiva racional del conjunto de ideas que lo componen para ofrecer
respuestas a aquellos que operan el Derecho.
Robert Alexy se posiciona en el sentido de que, tanto las reglas como los
principios son normas jurídicas. La diferencia es que las reglas se cumplen o no, o
sea, son o no son válidas. Por su parte, los principios “son normas que ordenan que
algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de las posibilidades jurídicas
y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de optimización, que
están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado
y que la medida debida de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades
reales sino también de las jurídicas”.7
Hay que observar claramente, que, para Alexy, los principios no actúan en
el campo deontológico (de la ética y de la moral), sino en la esfera teleológica
(argumentos relacionados con hechos y sus fines) de las preferencias y de los
valores. Derechos humanos fundamentales para Alexy, por lo tanto, tanto para la
ponderación de bienes como para el principio de la proporcionalidad, son bienes
jurídicos optimizables, dotados de preferencia.
Diferente del posicionamiento de Alexy, encontramos la doctrina de Ronald
Dworking, Jürgen Habermas, Friedrich Muller, entre otros. Para Habermas,8 por
ejemplo, principios o normas más elevadas, a cuya luz otras normas pueden ser
justificadas, poseen sentido deontológico, al tiempo que los valores tienen un
sentido teleológico. Normas válidas obligan a sus destinatarios, sin excepción,
a un comportamiento que completa expectativas generalizadas, mientras que
los valores deben ser comprendidos como preferencias. Las normas surgen con
una pretensión binaria –pueden ser válidas o inválidas-, mientras que los valores
determinan relaciones de preferencia. A la luz de las normas, es posible decidir
52 CARGNIN, Gecilda Facco

lo que debe ser hecho, en tanto que en el horizonte de los valores es posible saber
cuál es el comportamiento más recomendable. También para Ronald Dworking
los derechos son “triunfos” que pueden ser usados en los discursos jurídicos
contra los argumentos de políticos.9
En la misma línea de razonamiento, interpreta Friedrich Müller que los
“derechos humanos no son valores, son normas, y cuando la Constitución los
positiva se vuelven derechos vigentes”.10 Que alternativa teórica quedaría,
entonces, al juzgador, al enfrentarse, en determinado caso concreto, con la
expectativa antagónica de dos derechos fundamentales en disputa como, por
ejemplo, el derecho a la honra y a la libertad de expresión?
Sobre esto, dice Habermas: “Se entendiésemos la colisión de normas
ponderadas en el proceso de interpretación como una contradicción del sistema de
normas, estaríamos confundiendo la validez de la norma, justificada bajo el aspecto
de la fundamentación, con la adecuación de una norma que es examinada bajo el
aspecto de la aplicación. De la indeterminación de normas válidas, explicable por la
lógica de la argumentación, resulta, en vez de eso, el buen sentido metodológico de
una disputa de normas, las cuales se candidatean ‘prima facie’ para su aplicación: la
colisión de normas no puede ser reconstruida con un conflicto de pretensiones de
validez, porque las normas en colisión o las variantes de significación concurrentes
sólo entran en una determinada relación mutua en el ámbito de una situación
concreta. Un discurso de fundamentación tiene que abstraer el problema de la
colisión, que depende de la situación. Para saber qué otras normas o variantes de
significación son aplicables, es preciso entrar en la respectiva situación.” 11
Pero, se observa más adelante del estudio realizado que la hermenéutica
tradicional de aplicación e interpretación de normas tomó un nuevo rumo con
el pospositivismo, ya que con la incorporación por las constituciones de valores
humanitarios, como dignidad humana, libertad, igualdad, solidaridad, etc., se
introdujo la posibilidad de colisión de las referidas normas constitucionales (en
este caso, normas de la misma jerarquía, publicadas al mismo tiempo y en el
mismo lugar), forzando una nueva técnica de juzgamiento –proporcionalidad y
ponderación, en la aplicación de las reglas-.
En el caso concreto, hubo necesidad del uso del principio de la
proporcionalidad respecto a la aplicación de las normas existentes, ya que quedó
demostrada la colisión de derechos. Hubo ponderación, en el sentido de aplicar a
aquella situación una decisium, menos gravosa para las partes.
El principio de la proporcionalidad es el instrumento necesario para
evaluar la legitimidad de leyes y actos administrativos que restringen derechos
CONDENA EN BRASIL POR LA CIDH EN EL CASO ESCHER y OTROS: ... 53

fundamentales. “El objetivo de la aplicación de la regla de la proporcionalidad,


como el propio nombre lo indica, es hacer que ninguna restricción a derechos
fundamentales tome dimensiones desproporcionales”12
La CIDH interpretó que la preservación de los derechos fundamentales
establecida en la norma general –Constitución Federal- combinada con la ley/
norma específica, debía prevalecer en el caso en cuestión.
Se verifica que la fundamentación para la decisión esté basada/fundada en
la aplicación de la norma existente sobre tal asunto, o sea, escuchas telefónicas,
tal cual como se dan, aunque el valor a ser custodiado en aquel momento por
la Magistrada era mayor que el derecho a asociación, es decir, la vida (descubrir
crímenes, así como resguardar su propia vida, y defender de amenazas contra
el organismo público Foro de Loanda), independientemente de la forma como
se descubrió (escucha ilegal –ya que estaba fuera del plazo y fue requerida por
persona incompetente para hacerlo: un militar) y la idoneidad del grupo. La ley
preexistente prevaleció en esta decisium, con el fin de mantener el equilibrio
social, objetivo perseguido por aquella Corte.
Finalmente, se verifica que el principio de la proporcionalidad aplicado como
medio de juzgar conflictos de normas o conflicto de derechos fundamentales es una
forma de decidir valiéndose de vicisitudes menos gravosas para las partes involucradas,
así como para la colectividad, cuando puede haber reflejos de esta decisión. Los
jueces, valiéndose de las tres dimensiones de este principio: adecuación, necesidad y
proporcionalidad, posibilitan en este caso, la limitación de un derecho fundamental,
cuando en la medida limitadora estuviesen presentes estos tres aspectos. Por cierto,
fue el análisis hecho por la CIDH, cuando condenó a Brasil, en el caso estudiado, a
pagar a cada víctima indemnización por daños morales; publicar la sentencia en el
Boletín Oficial, en periódico de amplia circulación nacional y en periódico de amplia
circulación en el Paraná, además de en el sitio de la Unión y del Estado del Paraná y,
por fin, a investigar los hechos que generaron las violaciones del presente caso.

Referencias:

ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 1993.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999.
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Disponible en: http://www.corteidh.or.cr/casos.cfm>. Consultado el 6 de mayo de 2016.
54 CARGNIN, Gecilda Facco

CLÉRICO, Laura. (2009): El examen de proporcionalidad en el derecho constitucional. Buenos


Aires, Eudeba.
DORF, Michel; TRIBE, Laurence. Hermenêutica constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University, 1978.
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, v. 1.
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais – 6º vol. rev. actual. y ampl. – São Paulo:
Atlas, 2016.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 16ª ed. São Paulo,
Saraiva, 2016
______________. Direitos Humanos e Justiça Internacional. 6ª ed. São Paulo, Saraiva, 2015.
SILVA. Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. In: RT, v. 798, São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 24.
SPOTA, Alberto Antônio. Lo político, lo jurídico, el derecho y el poder constituyente. Editorial Plus
Ultra, Buenos Aires, 1972.
STRECK, Lênio Luiz. O papel da jurisdição constitucional na realização dos direitos sociais
fundamentais. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito
constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.

Nota Explicativa

¹ El 5 de mayo de 1999, el entonces Comisario Waldir Copes Neves de la Policía Militar del Paraná solicitó
ante la Comarca de Loanda la autorización para intervenir líneas telefónicas de asociaciones de trabajadores
vinculadas al MST. El pedido se basaba en sospechas de desvíos de recursos financieros provenientes de
programas del gobierno federal y de vínculos con el asesinato de Eduardo Aghinoni. La jueza Elisabeth
Khater concedió el pedido inmediatamente, sin ninguna fundamentación y sin notificar al Ministerio
Público (MP) la decisión. Días después, un segundo pedido fue presentado, sin ningún motivo, reiterando
la intervención de una de las líneas incluidas en el primer pedido y añadiendo una nueva. Como había
ocurrido anteriormente, el pedido fue concedido sin ninguna base legal y sin notificación al MP. El 25
de mayo de 1999, el Comisario Neves solicita al Tribunal de Loanda el fin de la intervención de las líneas
telefónicas. El 7 de junio de 1999, sin ninguna determinación legal, fragmentos de las conversaciones
telefónicas interceptadas son divulgadas por la prensa. Al día siguiente la Secretaría de Seguridad Pública
del Paraná convocó a una conferencia de prensa y distribuyó fragmentos editados de las conversaciones,
cuyo contenido insinuaba que integrantes del MST planeaban un atentado a la jueza Khater y al Foro de
Loanda. Todo el material fue difundido por la prensa. El 2 de julio de 1999, el Comisario Neves dirige al
Tribunal de Loanda las más de 100 cintas con diálogos telefónicos grabadas en los períodos del 14 al 26 de
mayo de 1999 y del 9 al 30 de junio de 1999. Quiere decir, el segundo período de intervención fue hecho
sin autorización de la Justicia. Solamente el 30 de mayo de 2000, el MP tuvo conocimiento de tales hechos y
solicita la nulidad de las intervenciones, así como la inutilización de las grabaciones. A pesar de ello, a jueza
Khater rechaza el pedido, determinando, sin embargo, la incineración de las cintas. Ver Corte IDH. “Caso
Escher y otros vs. Brasil”. Sentencia del 6 de julio de 2009. Serie C, N. 200, p. 29-32. Disponible en: <http://
www.corteidh.or.cr/casos.cfm>. Consultado el 06 de mayo de 2016.
² De acuerdo con la legislación brasileña, solamente la Policía Civil, la Policía Federal y el MP pueden requerir
la quiebra del sigilo telefónico. Cabe resaltar que, en mayo de 2012, el 2ª Tribunal del STF reconoció que la
Policía Militar, excepcionalmente, con autorización judicial y acompañamiento del MP, está legitimada para
realizar escuchas telefónicas, cuando hay indicios de implicación de policías con la actividad criminal. Ver
STF, 2ª Tribunal, HC 96986/MG, rel. Min. Gilmar Mendes, del 15 de mayo de 2012.
CONDENA EN BRASIL POR LA CIDH EN EL CASO ESCHER y OTROS: ... 55

³ En lo referido a la violación de la cláusula federal, la Corte determinó que las violaciones alegadas no
se referían a hechos con valor suficiente para ser considerados como un verdadero incumplimiento de la
CADH. Ver Corte IDH. “Caso Escher y otros vs. Brasil”. Sentencia del 6 de julio de 2009. Serie C, N. 200,
op. cit., p. 27 y siguientes.
4 El caso sólo llegó a la Corte después de frustradas tentativas de reparación de los daños sufridos por causa
de las intervenciones ante la Justicia brasileña. De todas las acciones presentadas, ninguna obtuvo decisión
definitiva sobre la materia. En la interpretación de la Corte, el Estado no tomó las medidas necesarias para
investigar debidamente el caso. Ver Corte IDH. “Caso Escher y otros vs. Brasil”. Sentencia del 6 de julio de
2009. Serie C, N. 200.
5 CANOTILHO, J. J. Gomes. Derecho Constitucional. 3ª ed. Coimbra: Almedina, p. 265.
6 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais – 6º vol. rev. actual. y ampl. – São Paulo: Atlas,
2016. Pág. 374.
7 ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 1993, p. 86.
8 HABERMAS, Jürgen. Derecho y democracia: entre faticidade y validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1997, v. 1, p. 316.
9 DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University, 1978, p. 82 et seq.
10 MÜLLER, Friedrich apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 580.
11 HABERMAS, Jürgen. Derecho y democracia: entre faticidade y validade. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1997, v. I, p. 271-272.
12 SILVA. Virgílio Afonso da. O proporcional y o razoável. In: RT, v.798, São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 24.
56

A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS


DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ
HISTÓRIA

Daniela da Silva Santos1, 2


Daniel Precioso3

Resumo: O presente trabalho tem como objeto de estudo o ensino da História da


África. A ênfase acerca desse assunto está presente na lei 10.639 de 09 de janeiro de
2003. A referida lei estabelece as diretrizes e bases da Educação Nacional para incluir
as temáticas de História e Cultura Afro-brasileira e História da África no conteúdo
curricular do Ensino Básico. O propósito deste projeto é verificar em que medida
a História da África aparece nos livros didáticos do ensino fundamental. As fontes
utilizadas na pesquisa são os livros do Projeto Araribá História (6º ao 9º ano). O
procedimento de pesquisa consiste em análise as vertentes historiográficas africanas
presentes nos livros didáticos, bem como verificar se as temáticas referentes à
História da África estão – ou não –relacionadas aos demais conteúdos consagrados
da disciplina. A metodologia utilizada na pesquisa será tomada de empréstimo
das análises de livros didáticos operacionalizadas pela historiadora Circe Maria
Bittencourt, com base na História dos Livros de Roger Chartier. As análises prévias
do material sugerem que houve uma maior abordagem de temas relativos à história
africana após 2003, proporcionando a ampliação de conhecimentos do educando.
Porém, os capítulos específicos sobre a temática aparecem isolados, permanecendo
a História da África, muitas vezes, em segundo plano.
Palavras-chave: Ensino de História; Livros didáticos; História da África; Lei
10.639/03

Abstract: The present work has as object of study the teaching of the History of
Africa. The emphasis on this subject is present in Law 10.639 of January 9, 2003.
This law establishes the guidelines and bases of National Education to include the
themes of History and Afro-Brazilian Culture and History of Africa ​​in curricular
content of Basic Education. The purpose of this project is to verify to what extent
1 Graduada em História e especialista em Cultura, Diversidade e Meio Ambiente pela UEG/Quirinópolis
2 (Este artigo foi apresentado por Daniela da Silva Santos como trabalho de conclusão do Curso de Pós-
-Graduação (Lato Sensu) em “Cultura, Diversidade e Meio Ambiente” da Universidade Estadual de Goiás,
Câmpus Quirinópolis, em 2018, sob a orientação do Prof. Dr. Daniel Precioso)
3 Doutor em História-UFF / Professor da UEG
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 57
RIA

the History of Africa appears in the primary school textbooks. The sources used
in the research are the books of the Projeto Araribá História (6th to 9th grade).
The research procedure consists of analyzing the African historiographic aspects
present in the didactic books, as well as verifying that the themes related to
the History of Africa are - or not - related to other consecrated contents of the
discipline. The methodology used in the research will be borrowed from the
analysis of didactic books operated by the historian Circe Maria Bittencourt,
based on the History of the Books of Roger Chartier. Preliminary analyzes of
the material suggest that there was a greater focus on African history after 2003,
providing the learner with expanded knowledge. However, the specific chapters
on the subject appear isolated, with the History of Africa often remaining in the
background.
Keywords: History Teaching; Didatic books; History of Africa; Law 10.639/03

Introdução

A lei 10.639/03 tornou obrigatória a inclusão de temáticas da História


da África e da História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos do Ensino
fundamental e médio das escolas brasileiras. No art. 26 A § 1o percebe-se que
os conteúdos a serem trabalhados deverão dar ênfase à História da África e dos
africanos e à cultura afro-brasileira, com a finalidade de resgatar a contribuição
desses povos em diversas áreas na sociedade.

Art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-bra-
sileira e indígena.
§ 1oO conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspec-
tos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira,
a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e
dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra
e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, res-
gatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes
a história do Brasil.
§ 2oOs conteúdos referentes á história e cultura afro-brasileira e dos povos in-
dígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar,
em especial nas áreas de educação artística e de literatura e histórias brasileiras.
(LEI DE DIRETRIZES E BASES DA EDUCAÇÃO 9394/96, 2010, p.30)

Tendo como respaldo a Constituição da República Federativa do Brasil de


1988, no capítulo lll, “Da Educação”, em seu art. 205, consta que a educação é
58 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

um “direito de todos e dever do Estado e da família.” O art. 206 apresenta vários


princípios de como o ensino deverá ser ministrado, entre os quais o que ressalta
o pluralismo de ideias e a diversidade de conhecimentos para a preparação do
indivíduo para a vida em sociedade.
A inclusão da história africana e da cultura afro-brasileira, demanda dos
movimentos negros desde os anos 1970, também vem ao encontro do conteúdo
da LDB, mais precisamente à defesa da tolerância e do respeito à diversidade
como sendo tarefas fundamentais do ensino básico. Em 2008, a lei 11.645 reiterou
a obrigatoriedade do ensino de História da África e da Cultura Afro-Brasileira,
incluindo também a História e Cultura Indígena. Considerando a legislação
vigente no país, as temáticas africanas e afro-brasileiras têm sido incluídas em
algumas coleções de livros didáticos.
Ao se falar em África, geralmente as pessoas tem uma visão superficial,
fragmentada e incompleta sobre a importância do legado africano. Cabe ressaltar
que a história africana é rica, diversificada e heterogênea, o que reflete na própria
historicidade dos descendentes africanos no Brasil. Ao longo do tempo, percebe-
se que alguns insistem em mencionar os povos africanos como sendo de cultura
inferior, ao invés de abordá-los sob o prisma da alteridade ou das diferenças
culturais. Também há uma tendência de referir-se à África como um continente
homogêneo, miserável e de clima tórrido. Na verdade, a África não é uma, mas
muitas. Como sintetizam os versos de Rogério Andrade Barbosa:

África
de florestas, pântanos,
desertos, estepes, savanas,
rios, mares e montanhas infindáveis. África de
monumentos históricos talhados em blocos de pedra.
[...] África de povos
Urbanos, agrícolas e pastoris.
África de múltiplas etnias,
Culturas, línguas e religiões.
[...]
(BARBOSA, 2007. p. 7).

Alguns questionamentos devem ser feitos acerca do estudo dessa temática,


para que a partir daí possamos perceber que, com a lei 10.639/03, houve uma
abordagem maior da história africana, algo que não acontecia antes. Como
observou Anderson Ribeiro Oliva no ano da promulgação da lei:
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 59
RIA

Quantos de nós estudamos a África quando transitávamos pelos bancos das es-
colas? Quantos tiveram a disciplina História da África nos cursos de História?
Quantos livros ou textos, lemos sobre a questão? (OLIVA, 2003, p. 3).

É preciso reconhecer a História da África em perspectiva africana, de modo


a superar o paradigma eurocêntrico. Para tanto, é fundamental trazer para os livros
didáticos as contribuições dos historiadores africanos e africanistas da época da
descolonização – presentes na coleção História Geral da África (UNESCO) – e da
chamada “nova escola de estudos africanos” (LOPES, 1995, p. 21-29). Somente
assim será possível garantir uma formação consistente e desmistificadora dos
preconceitos concernentes à África e aos africanos.

O livro didático como instrumento no ensino de História

O livro didático é de suma relevância no contexto escolar, usado como


ferramenta no processo ensino-aprendizagem. De acordo com Circe Bittencourt:
“Os materiais didáticos são instrumentos de trabalho do professor e do
aluno, suportes fundamentais na mediação entre o ensino e a aprendizagem”
(BITTENCOURT, 2008, p. 295).
Sabe-se da relevância dos materiais didáticos no contexto escolar, já que os
manuais interferem na formação dos educandos. Para a sua análise, é necessário
promover uma reflexão que envolva uma série de questões desde a concepção,
uso, produção didática, indústria cultural, formação do educador.

Os livros didáticos, os mais usados instrumentos de trabalho integrantes da


“tradição escolar” de professores e alunos, fazem parte do cotidiano escolar há
pelo menos dois séculos. Trata-se de objeto cultural de difícil definição, mas
pela familiaridade de uso, é possível identificá-lo, diferenciando-o de outros li-
vros. (BITTENCOURT, 2008, p. 299)

Ao se falar em livro didático, é preciso problematizar algumas questões,


tais como: ideológicas, conceitos equivocados, preconceitos das diversas formas
trazidas nos conteúdos nas épocas em que foram redigidos. É preciso verificar,
ainda, se há ausência de temáticas que foram relevantes na história; se as
“minorias”ou grupos oprimidos (às vezes majoritários na população) ficam a
margem, aparecendo de forma superficial nesses materiais.
Os livros didáticos têm um papel no processo de aprendizagem da leitura
e da escrita, proporcionando a elaboração dos conhecimentos. Muitas vezes a
60 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

prática de leitura acaba sendo imposta pelo educador, que obedece as autoridades
educacionais e autores dos manuais, seguindo as interpretações trazidas no
material, sem abrir espaço para as demais interpretações.
Percebe-se que os livros didáticos têm o papel de controle do ensino por
parte dos governantes e classes dominantes. Nesta perspectiva, há toda uma
preocupação sobre a produção, submetendo-a critérios de avaliações. Há, desse
modo, interferência de diversos sujeitos na produção, circulação e consumo
(BITTENCOURT, 2008, p. 298).
De fato, o livro didático acaba sendo um transmissor de valores, ideologias,
que acabam proporcionando reproduções na historiografia, dando espaço apenas
para fatos consagrados no ensino da história, uma dita visão eurocêntrica. Sendo
assim, percebem-se ausências, visões distorcidas, estereótipos da temática da
História da África, dentre outras.
Atualmente, os discursos dos textos didáticos têm sido analisados, havendo
diversas críticas sobre os estereótipos acerca dos grupos étnicos. Há todo um
processo de mudança. Vale ressaltar que o livro didático não dever ser o único
material utilizado pelo educador. É preciso buscar outros meios para obter uma
formação qualificada para mediar os conteúdos. De acordo com Júlia Silveira
Matos (2012, p. 20):

(...) o livro didático pode ser um instrumento contributivo, desde que o profes-
sor o perceba como um produto da sociedade de consumo e o utilize dentro de
seus limites apenas como um recurso e não como um meio pelo qual o ensino-
-aprendizagem se realiza.

O livro didático é visto como um produto da indústria cultural, como uma


mercadoria. As editoras oferecem mecanismos para atrair os professores. Porém,
nota-se que o problema sobre os conteúdos históricos são as reproduções, as
simplificações e certas representações. Segundo Júlia Silveira Matos (2012, p. 9-10):

Na perspectiva de nossa análise, podemos perceber que o livro adquire uma face
de produto, mercadoria, dentro de um jogo editorial de consumo, por um lado
os autores com suas próprias direções teórico-pedagógicas, por outro, as edito-
ras que buscam autores capazes de suprir as expectativas dos professores dentro
das tendências pedagógicas em voga, ainda o governo que almeja selecionar um
número expressivo de livros que não firam suas políticas educacionais e por fim
os próprios professores que possuem ideias construídas sobre o que esperam de
um livro didático.
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 61
RIA

Cabe ressaltar a necessidade de uma reflexão sobre o livro didático, pois é,


frequentemente, a partir dele que o educando elabora o seu conhecimento sobre
si mesmo e sobre outros povos. Nessa perspectiva, os manuais didáticos envolvem
construções de identidades coletivas e alteridades, mas também podem reiterar
preconceitos. O livro didático é também um produto comercial, inserido em
políticas publicas de educação nacional. Trazem, portanto, ideologias do tempo
em que são produzidos.
Para a análise dos livros didáticos, realizada a seguir, utilizaremos os
conceitos de “representações” e “apropriações”, propostos pela História dos Livros
e das Leituras de Roger Chartier (1990), e aplicada especificamente aos livros
didáticos por Circe Bittencourt (1993). Como observou Chartier, não existem
discursos neutros, uma vez que os grupos ou pessoas responsáveis pela escrita,
edição e impressão dos livros (aqui, especificamente, os didáticos) veiculam –
e mesmo impõem –propositalmente como verdades as suas posições políticas,
econômicas, sociais e culturais, com a finalidade de serem absorvidas e assimiladas
pelo público alvo. Nas palavras de CHARTIER (1990, p. 17):

As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à uni-


versalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário re-
lacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As
percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem
estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a impor uma
autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um proje-
to reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. Por isso esta investigação sobre as representações supõe-nas como
estando sempre colocadas num campo de concorrências e de competições cujos
desafios se enunciam em termos de poder e de dominação. As lutas de represen-
tações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do
mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio. Ocupar-se dos con-
flitos de classificações ou de delimitações não é, portanto, afastar-se do social
- como julgou durante muito tempo uma história de vistas demasiado curtas
-, muito pelo contrário, consiste em localizar os pontos de afrontamento tanto
mais decisivos quanto menos imediatamente materiais.

Observa-se que o processo de apropriação da representação do discurso


pelo público geralmente, se feita de forma acrítica, pode enfatiza os propósitos
dos geradores e propagadores das informações. O livro didático é uma ferramenta
que contém representações oficiais e dos grupos dominantes e que, assim, visa
62 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

construir uma hegemonia cultural em torno das visões de mundo desses grupos e,
em última instância, a manutenção dos seus valores e do status quo. Sendo assim,
torna-se necessária uma reflexão crítica sobre os conteúdos e as visões de mundo
veiculadas nos livros didáticos.

O desafio da inserção da História da África após a lei 10.639/2003

A partir das modificações trazidas pela institucionalização da Lei 10.639/03,


foram inseridos conteúdos sobre a História da África, tendo como finalidade
apresentar o continente africano em sua diversidade e riqueza, desconstruindo
tanto os estereótipos existentes quanto as visões distorcidas trazidas nos livros
didáticos anteriores à lei.Como afirma Mauricio Reis:

No bojo das políticas afirmativas foi promulgada em 2003 a Lei Federal 10.639.
A referida lei tem como objetivo, não apenas ressaltar uma versão verdadeira
ou desconstruir estereótipos, mas sobretudo corrigir (ou minimizar) distorções
no processo didático pedagógico e inserir a população afro-descendente e suas
histórias de forma mais ampla no contexto educacional brasileiro. (REIS, 2008,
p. 8)

Ao se falar em História da África e dos Afro-descedentes, percebe-se


o desafio que o educador enfrenta, pois na maioria das vezes há o predomínio
de visões eurocêntricas e racistas nos manuais didáticos, proporcionando ao
educando uma visão negativa sobre esta temática. A partir do momento em que
houve a necessidade de colocar em prática os conteúdos na matriz curricular,
os educadores se depararam com uma situação difícil. Segundo Albuquerque &
Lurdes:

Desconstruir e construir conhecimentos sobre um continente tão amplo e di-


verso como a África se apresenta como um desafio para os professores de His-
tória da Educação Básica no Brasil. Esse desafio tem origem em vários fatores,
dentre eles podemos citar três: o fato da África possuir uma imagem negativa de
raízes no sistema de Escravidão imposto no Brasil; dos materiais didáticos du-
rante anos apresentarem conteúdos distorcidos sobre os negros; e do professor
que está em sala de aula, atuando há mais de 10 anos, não ter sido contemplado
com este conteúdo na sua formação. (ALBUQUERQUE & LURDES, 2012, p. 1)

De fato, a tarefa do educador exige habilidade e competência na construção


de novos conhecimentos, possibilitando um espaço maior para o entendimento
do continente africano sob um novo ponto de vista. Muitos educadores tem
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 63
RIA

apenas o livro didático como recurso utilizado em sala de aula. Isso requer uma
atenção, reflexão e análise de como essa temática está sendo retratada. Segundo
Circe Bittencourt:

O livro didático pode ser o único material a que professores e alunos recorrem
no cotidiano escolar ou pode ser apenas uma obra de consulta eventual. Mas é
importante destacar que a distinção essencial entre essa prática de leitura e as
outras reside na interferência constante do professor e sua mediação entre o
aluno e o livro didático. (BITTENCOURT, 2008, p. 317)

É imprescindível ao educador estar sempre ampliando, atualizando os seus


conhecimentos, buscando outras fontes para complementar os conteúdos. De
acordo com ALBUQUERQUE & LURDES:

Entretanto, ainda existe muito a reivindicar e avaliar quanto ao tipo de informa-


ção publicada nestes manuais se elas estão acrescentando com o conhecimento
e desmistificação a imagem negativa dos povos negros ou cristalizando estereó-
tipos. (ALBUQUERQUE & LURDES, 2012, p. 12)

Portanto, são recentes os estudos sobre a história da África, refletindo


identidade própria, desvinculada das visões europeias que foram produzidas
durante o colonialismo. As imagens construídas pelos colonizadores associavam
uma visão negativa, como se a parte do Sul do Deserto do Saara resultasse em
selvageria e outros termos, motivo pelo qual justificava a missão civilizadora dos
europeus no território. Por meio de vários fatores, tais como as lutas pelo fim do
domínio colonial da África e o movimento dos afro- americanos foram relevantes
para uma história em perspectiva africana. A partir daí, a história das sociedades
africanas ganhou um espaço, deixando de ser apenas a “história dos europeus na
África” ou a “história do tráfico e da escravidão moderna. Sabe-se que os desafios
ainda existem, mas diversos livros didáticos trazem uma nova visão, ampliando
os conhecimentos sobre o continente africano que é o berço da humanidade,
refletindo na valorização da história e da cultura dos povos africanos.

Análise dos livros didáticos do ensino fundamental: Projeto Araribá História

O manual didático analisado resulta do Projeto Araribá História, adotado


pelo Programa Nacional do Livro Didático no período de 2017, 2018, 2019, e
publicado em 2014 sob coordenação de Maria Raquel Apolinário. Consiste em uma
obra coletiva, concebida, desenvolvida e publicada pela Editora Moderna. Cada
64 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

volume da coleção (6°, 7°, 8° e 9° anos) está organizado em nove Unidades, que
estão subdividas em temas numerados. Entre outros livros vinculados ao PNLD, a
presente obra foi selecionada para análise por referendara lei 10.639/03, incluindo
temas referentes à História da África no contexto do ensino fundamental II.
No que se refere ao manual do professor, percebe-se que os autores
buscam justificar a inserção da História da África na coleção, destacando que o
conhecimento sobre a história e a cultura dos povos africanos é especialmente
significativo, dadas as conexões entre a história do Brasil e a da África desde a
colonização portuguesa, e a presença marcante dos descendentes de africanos na
formação do povo brasileiro e de sua cultura. Trata-se, também, de um passo
importante no esforço de descolonizar o ensino da História na educação básica,
superando a perspectiva eurocêntrica – vigente ainda hoje – por uma perspectiva
multicultural.

Origem do homem e da civilização (6º Ano do Ensino Fundamental)

No livro do 6° ano, a unidade 2, correspondente “As origens do ser humano”


traz temas referentes à História da África nos seguintes capítulos: “A evolução
do ser humano”, “A vida humana no Paleolítico”, “O Neolítico e a Revolução
Agrícola” e “O surgimento do comércio e das cidades”. Na abertura da unidade
(2014, p.36), há uma ilustração que representa a evolução do ser humano, desde o
Australopithecus até o Homo sapiens, e trecho de canção Comida, dos Titãs.
De acordo com o tema 1 (2014, p. 40), são apresentadas as principais
explicações existentes sobre a origem da vida na Terra. Ao tratar da teoria
evolucionista, os autores do livro destacam que os cientistas ligaram a origem do
ser humano a um grupo de mamíferos chamado primatas, que surgiu na África
há cerca de 70 milhões de anos. Nesta perspectiva, as contínuas descobertas de
esqueletos de hominídeos muito antigos na África levaram os cientistas a concluir
que o ser humano provavelmente surgiu na África e de lá se espalhou para os
outros continentes.

As teorias racialistas negaram a contribuição da África ao desenvolvimento hu-


mano. Qualquer vestígio de arte, de tecnologia ou de civilização encontrado
no continente africano seria atribuído a uma intervenção externa europeia ou
asiática. Até hoje se especula que a Esfinge do Egito seria uma pedra gigantes-
ca modelada pela força dos ventos e não uma obra humana com rosto negrói-
de ou até que a construção da cidade murada de Monomotapa seria obra de
extraterrestres! Pesquisas científicas recentes identificam na África o berço da
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 65
RIA

humanidade e demonstram que a África está no início e no centro da história


universal do mundo. Ao recolocar o Ser negro no início e no centro da história
da humanidade, essas pesquisas científicas fazem à África uma grande justiça,
devolvendo-lhe sua contribuição ao mundo que ajudou a povoar e a construir
e da qual foi rechaçada por razões ideológicas. Assim passamos a constatar que
os africanos negros iniciaram e desenvolveram as invenções científicas e tec-
nológicas como agricultura, matemática, medicina, embarcações marítimas e
tecnologia naval, metalurgia de bronze e de ferro, domesticação das plantas e
dos animais, e outras que explicam sua capacidade de migrar para povoar e
levar cultura a outros continentes (Ásia, Europa, América, Oceania). (NASCI-
MENTO, 2007, p. 8)

A tese da “África como berço da humanidade” foi uma das mais relevantes
na re-historização do continente. O principal defensor dessa tese foi Cheick Anta
Diop, historiador e naturalista senegalês. Vale ressaltar que essa tese está presente
na obra História Geral da África (UNESCO), responsável pelo surgimento de uma
grande síntese histórica sobre o continente, escrita do ponto de vista africano.
Dessa forma, com o reconhecimento devido ao continente africano, modifica-se
toda a situação anterior, enfatizando a África como o primeiro marco da história
da humanidade. Segundo Munanga:

Como a história de todos os povos, a da África tem passado, presente e conti-


nuidade. Mais do que isso: sendo a África o berço da humanidade, é a partir
dela que a história da humanidade começa e nela se desenvolveram as grandes
civilizações que marcaram a história da humanidade, como a civilização egíp-
cia. (MUNANGA, 2015, p.6)

Para além da discussão sobre a origem do homem, a unidade 5, “O Egito


e os Reinos da Núbia” (2014, p.102-126), é consagrada integralmente à História
da África. Além das discussões historicamente recorrentes sobre o Egito Antigo
(“Egito: a civilização do Nilo”; “O faraó e seu povo”; “A religião e a escrita no
Egito”), foram introduzidos – em sintonia com a lei 10.639/03 – dois capítulos
sobre os núbios e o Reino de Cuxe, entre a fase de Kerma e Méroe (“A Núbia e as
origens do Reino de Cuxe” e “A poderosa civilização cuxita de Méroe”).
Cabe destacar que ao colocar o Egito ao lado da Núbia, a unidade “reintegra”
o Egito à História da África, pois nos materiais didáticos tradicionais, o Egito
aparecia em meio à “Antiguidade Oriental” ou ao “Oriente Próximo”. Apesar disso,
deve-se mencionar a ausência de referências a XXV dinastia egípcia dos “faraós
negros”. O fato é aludido apenas laconicamente no capítulo sobre Cuxe (2014, p.
119) nos seguintes termos: “... foi estabelecida na cidade de Napata, de onde os
66 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

núbios avançaram sobre o Egito e dominaram o território por quase cem anos.”
Além disso, nos capítulos sobre o Egito deveria ter aparecido a estreita relação
comercial, cultural e social entre o Egito antigo e Cuxe (para além da escravização
de negros da Núbia). Em consonância com a História Antropológica dos Annales,
percebe-se a intenção dos autores do livro em destacar a História do Cotidiano,
ou seja, em destacar o que se comia, vestia, enfim, como era a vida diária no Egito
Antigo.
No tema 4, “A Núbia e as origens do Reino de Cuxe” (2014, p. 117), nota-
se, logo no primeiro parágrafo, uma crítica aos pesquisadores do século XIX e
início do XX, que tinham uma visão preconceituosa sobre os povos da África
subsaariana, como os núbios. Os autores afirmam que as antigas crenças racistas
não permitiam que os estudiosos daquela época reconhecessem a grandeza e a
originalidade da civilização cuxita.

Várias noções falsas foram criadas para justificar a ideia da inferioridade do


negro africano. Dizia-se que os negros não construíram civilização. Mas algu-
mas das primeiras civilizações do mundo, como a egípcia e a núbia, estão na
África. Como justificar, então, a ideia da falta de capacidade dos negros africa-
nos para criar ou mesmo contribuir para a civilização humana? A egiptologia,
disciplina surgida na Europa no século XIX, dedicou-se durante muito tem-
po a esse dilema, produzindo as teses que formam a base principal das teorias
pseudocientíficas do racismo. Uma das mais importantes soluções encontradas
foi a de extirpar as civilizações clássicas africanas do continente, situando-as
como civilizações orientais. Assim, o Egito pertenceria não à África, mas ao
Oriente Médio. Apesar de geograficamente impossível, essa operação foi um
sucesso ideológico: ainda hoje existe o hábito de identificar o Egito como país
do Oriente Médio e não do continente africano, como era ensinado nas escolas
do Ocidente até muito recentemente. Outra ideia igualmente importante é que,
desde a Antiguidade, o norte da África tenha sido racialmente distinto do res-
tante do continente, formando uma suposta “África branca”. (NASCIMENTO,
2007, p.20)

Diversos argumentos foram utilizados, no século XIX e até meados do


seguinte pela “História Colonial”, com a finalidade de justificar a inferioridade
do negro africano. Afirma-se que a África não teve uma história. A partir
desse veredicto de Hegel, outros pensadores europeus desenvolveram ideias
equivocadas e preconceituosas a respeito do continente e de seus habitantes. A
situação se agravou com o evolucionismo social e o colonialismo. Tratava-se,
agora, de justificar a invasão e colonização do continente, enfatizando, para tanto,
a antiga concepção de inferioridade da África Negra (FAGE, 2000).
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 67
RIA

Ao analisar um livro didático, devemos atentar para as representações


veiculadas pelos seus autores (CHARTIER apud BITTENCOURT, ano), assim
como as ideologias presentes em meio aos conteúdos. Como observou Anderson
Oliva, é conveniente indagar sobre a abordagem apenas de grandes civilizações da
África negra, deixando de fora as sociedades que não formaram reinos ou impérios.
Outra questão referente aos desacertos do livro é aquela que coloca a história do
Egito como principal (acima da história da Grécia e Roma antigas), estratégia dos
historiadores da História Geral da África (UNESCO) para reabilitar a história do
continente. Como adverte Anderson Oliva, com base nas considerações de Carlos
Lopes, trocar o mito da origem Greco-Romana de nossa sociedade pelo da Egípcia
não contribui para a reabilitação de muitas civilizações da África – precisamente,
daquelas que não constituíram grandes reinos ou impérios. A ênfase nas “grandes
civilizações” (Egito, Cuxe, Gana, Mali, Songhai, Congo, etc.) adota um parâmetro
europeu de sociedade e instaura uma “pirâmide invertida” (expressão de Carlos
Lopes), ou seja, substitui a tese de inferioridade africana pela de superioridade
africana.Noutras palavras, troca-se o “eurocêntrismo” pelo “afrocentrismo”.

Uma das principais gerações de pensadores desse grupo foi a dos intelectuais
liderados pelos africanos Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop. A maior parte
dos historiadores ligados a esse movimento supervalorizou o argumento de que
a África também tinha sua história. Tal iniciativa fez com que Carlos Lopes
chamas- se esse grupo de “Pirâmide Invertida”, ou Corrente da Superioridade
Africana. Para Lopes, não seria difícil entender ou justificar este nome, já que
eles estavam ligados à iniciativa de modificar as leituras e visões sobre a África,
procurando redimensionar sua história, inclusive colocando-a como o ponto de
partida para explicar a História Ocidental. (LOPES, 1995, p. 25-26)

Segundo os autores do manual didático, no manual do professor, “os


historiadores tinham a ideia de que a região da Núbia não passava de um conjunto
de colônias egípcias, pensamento reforçado pelos preconceitos que cercaram a
história da África negra até recentemente.” No entanto, pesquisas atuais caminham
no sentido de destacar a particularidade dos povos da África negra, reconhecendo
sua história e identidade próprias. O estudo da civilização núbia recupera uma
parte importante do passado da África subsaariana e garante que ela ocupe o
lugar que lhe é devido na história da humanidade.
Para desconstruir as representações eurocêntricas de que no continente
africano só existia miséria, o manual didático apresenta uma descrição sobre os
povos da região da Núbia, que possuía território rico em recursos naturais. Na página
118, menciona-se que o Reino de Cuxe foi um dos principais produtores de ouro do
68 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

mundo antigo. O reino cresceu em riqueza e habitantes, em razão principalmente


do comércio e da exploração do ouro. De fato, percebe-se que os núbios produziram
uma cerâmica notável e foram habilidosos na metalurgia do ferro. Eles também
disputaram o controle comercial do centro e do norte da África, desenvolveram
um sistema próprio de escrita e seu poderio econômico militar estendeu-se até o
Egito, que foi dominado pelos núbios por cerca de cem anos. Demonstrou-se como
principais centros urbanos a capital Kerma e Napata na civilização cuxita.

Em todo o continente e em diversas épocas, os povos africanos desenvolveram


sistemas de escrita e altos conhecimentos na astronomia, matemática, agricul-
tura, navegação, metalurgia, arquitetura e engenharia. Na medicina, praticavam
cirurgias desde a cesariana até a à autópsia, passando pela remoção de cataratas
oculares e tumores cerebrais. Conheciam e aplicavam vacinas contra a varío-
la e outras doenças. Construíram cidades belíssimas e centros urbanos de co-
nhecimento internacional que abrigavam bibliotecas enormes – em Timbuktu,
os maiores lucroseram obtidos com o comércio de livros. Criaram filosofias
religiosas, sistemaspolíticos complexos e duráveis, obras dearte de alta sensi-
bilidade e sofisticação. A riqueza do ouro e do marfim africanos não apenas
compunha as moedas como decorava os lares e as beldades daÍndia, da China e
da Europa. O melhor ferro no mercado internacional do século doze, de acordo
com o historiadormuçulmanoal-Idrisi, era o da África central e meridional.
(NASCIMENTO, 2007, p. 18)

No tema 5, “A poderosa civilização cuxita de Méroe” (2014, p. 120),


os autores ressaltam a existência de um conjunto de mais de 200 pirâmides
construídas pelos núbios, e não pelos egípcios. Elas não são grandes como as do
Egito, mas cumpriam a mesma função: cobrir os túmulos de reis e rainhas de
Méroe, a última capital do Reino de Cuxe. Por volta do século III a.C., Méroe
tornou-se um grande empório de produtos vindos de vários pontos da África.
Nesta perspectiva, percebe-se a habilidade de construtores, artesãos, exportadores
de ouro, que desenvolveram um comércio eficaz.
Como sugestão de leitura relacionado à temática,os tempos dos povos
africanos contestam as interpretações que omitiram o papel destacado dos
povos negros na África e sua participação econômica, cultural de identidade e
transformações políticas em seus estados de origem. Portanto, foram forçados
como escravos do Egito perdendo a sua identidade, isso desprestigia a valorização
desse povo que muito contribuiu com a história africana.
Após análise do livro didático do 6° ano, concluímos que existem nele
aspectos positivos relacionados às mudanças trazidas pela lei 10.639/2003 e ao
desenvolvimento da historiografia africana após as décadas de 1950 e 1960, que
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 69
RIA

proporcionaram ao material didático um espaço maior e novas representações


acerca da História da África. A África figura como “berço da humanidade”, e ainda
que insatisfatoriamente relaciona-se a história do Egito com a da Núbia (África
Negra), reintegrando-o à história do continente africano e rompendo com a sua
inclusão no “Oriente Próximo”. Apesar de usar um parâmetro europeu de “grande
civilização”, os autores do manual didático mencionam que o Egito e outros reinos
africanos possuíam uma riqueza e uma diversidade cultural vasta e complexa,
contribuindo, assim, para desconstruir visões equivocadas de pobreza e miséria
generalizada, que homogeneizavam um continente extremamente heterogêneo.

Reinos e povos da África; Escravidão, resistência e trocas culturais (7° ano)

No livro didático do 7° ano do Projeto Araribá História, unidade 3 “Reinos e


povos da África” (2014, p. 62-85), apresenta os seguintes temas: Reinos islamizados
do Sahel; O comércio caravaneiro; Povos iorubás e bantos. Na introdução tem-se
um “Hino à minha terra” de autoria de José Craveirinha que é considerado o
maior poeta de Moçambique, em que os versos do poema dão ênfase à natureza e
à cultura de uma parte da África habitada por povos negros, que é Moçambique, a
terra do poeta. Na abertura há também fotos em que indagam o que informam hoje
sobre a África, representando a diversidade existente nas sociedades africanas.
No tema 1, referente aos Reinos islamizados do Sahel, (2014, p. 64), a lei
10.639/03 é a premissa para u m questionamento sobre porque devemos conhecer
a história da África. Na primeira página do tema 1 (“Reinos Islamizados do Sahel”),
duas imagens são apresentadas: a Cidade do Cabo, na África do Sul, e a cidade de
Marrakech, no Marrocos. São lugares diferentes, exprimem a diversidade de povos
e tipos de economia que caracteriza o continente. Segundo Silva (2008, p.11): “A
África é um continente enorme, com uma grande diversidade geográfica”.
Um ponto positivo no material didático refere-se à abordagem de povos que
constituíram grandes reinos e impérios na África ocidental (geralmente, chamada
“sudanesa”) entre os séculos IX e XV. A ênfase recai sobre os antigos reinos de
Gana e Mali, ficando de fora Songhai. O Reino de Gana é abordado como a “terra
do ouro” mais antiga do Sahel. Outro espaço dado refere-se a questão religiosa
presença do islã em Gana. O Império do Mali floresceu entre os séculos XIII e
XVI se tornando um império rico e poderoso
O material didático discorre sobre cidades, tais como Djenné e Timbuctu.
Esta última é vista como grande pólo cultural. Sob o domínio do Império do Mali,
a cidade se tornou um ponto de encontro de intelectuais e estudiosos que vinham
70 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

de vários lugares do mundo árabe. Em 1988, a cidade de Timbuctu foi declarada


patrimônio mundial pela Unesco. No que tange ao comércio caravaneiro percebe-
se que este integrou diferentes regiões do continente africano, tornando possível a
troca do sal vindo do norte pelo ouro extraído do sul.
O tema 3, “Povos iorubás e bantos” (2014, p. 73), trata dos nossos ancestrais
africanos, abordando as suas regiões de procedência. Como destacou Anderson
Ribeira Oliva, a respeito do manual didático de Mário Schmidt, a antiga divisão
entre “bantos e sudaneses” é muito abrangente e encerra nessas terminologias
uma vasta gama de povos e culturas. No tocando ao capítulo do livro do Projeto
Araribá, a ênfase exclusiva nos iorubás, negligencia os povos de origem akan e
ewe (falantes de línguas kwa). Sabemos que os que eram identificados como de
“Nação Mina” no Brasil eram, em sua maioria, jejes (falantes de língua fon). Os
candomblés jejes na Bahia e o culto aos voduns do Maranhão são bem conhecidos,
assim como um dicionário de “língua mina” das Minas Gerais do século XVIII,
que é baseado em língua fon. Portanto, o capítulo referido incorre em imprecisões
ao negligenciar a matriz jeje-fon da cultura afro-brasileira.Menciona que segundo
os dados do Censo 2010, cerca de 97 milhões de brasileiros.
Na unidade 8, “O Nordeste Colonial”, no tema 2, “Escravidão, resistência
e trocas culturais” (2014, p. 191), os africanos e seus descendentes nascidos no
Brasil são apresentados como “mão de obra escrava”. Embora o capítulo aborde a
“resistência escrava”, apenas a vê através da formação de quilombos. Negligencia,
portanto, os estudos que, desde os anos 1980, apontam para estratégias cotidianas
dos escravos, que iam da negociação ao conflito. Assim, o direito de constituir
famílias escravas, de ter uma roça para plantas aos domingos, o direito de ir e
vir, de visitar parentes, entre outros, são frutos da negociação, de um escravo
que atua como agente histórico. Ao apresentar o africano apenas como força
bruta, reforçam-se estereótipos negativos. Desde pelo menos Gilberto Freyre, são
ressaltadas as contribuições dos africanos (não apenas no aspecto religioso, citado
pelos autores do manual), mas também na agricultura, mineração, metalurgia,
áreas-chaves na economia colonial. Constata-se, portanto, algo recorrente nos
livros didáticos cujos conteúdos foram adaptados à lei 10.639/03: os capítulos
sobre a África ressaltam a existência de reinos e impérios, ciência e metalurgia, arte
e arquitetura desenvolvida, mas os capítulos sobre os descendentes de africanos
no Brasil (e os capítulos sobre a história europeia) mantem representações
estereotipadas sobre o continente africano e os seus habitantes negros. No caso
referido acima, ao tratar do “escravismo colonial”, o manual didático mantem o
estereótipo negro = africano = escravo.
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 71
RIA

De qualquer modo, o espaço aberto à África no material didático contribuiu


para desconstruir visões de pobreza e atraso. A abordagem sobre o Reino de Gana
e o Império do Mali proporcionou a ampliação do conhecimento de que a África
Ocidental estava inserida em rotas comerciais de longa distância, possuindo
sociedade de organização complexa, rica em ouro e com conhecimentos
metalúrgicos e mineralógicos importantes.

Mineração, mão de obra e escravidão (8° Ano)

O livro do didático do 8° ano, na unidade 2 (“A Mineração no Brasil


Colonial”) do tema 3 (“A sociedade mineira”), apresenta um subtítulo sobre os
africanos escravos e libertos (2014, p. 54). Merece destaque a análise da alforria
como prática de pacificação social. Esse é um ponto positivo, pois a maior
parte dos materiais didáticos não se refere aos africanos e seus descendentes
na liberdade, mas apenas na escravidão. Não deixa de ser questionável, no
entanto, a ausência da referência aos alforriados no capítulo referente ao
nordeste açucareiro no manual do 7º ano – como já tivemos a oportunidade
de destacar. Ainda assim, a ausência de uma discussão sobre a procedência dos
africanos das Minas Gerais é um ponto fraco do manual didático analisado,
pois os seus autores perderam a oportunidade de articular as discussões
sobre as técnicas de mineração existentes no Reino de Gana e Império do
Mali (regiões de onde vieram os africanos aqui designados como “Minas”)
com a mineração na Capitania de Minas Gerais. A negligência desse debate
não cria os mecanismos necessários para que os alunos possam relacionar
a História da África com a História dos Africanos (e seus descendentes) no
Brasil. Sabemos que as Áfricas Ocidental e Centro-Ocidental (ou seja, voltadas
para o Atlântico) formavam com a América o que os historiadores africanos
e africanistas chamaram de “Atlântico Negro”. Portanto, ressaltar os vínculos
das duas margens do Atlântico seria de extrema valia.
Outra questão interessante “Compreender um texto” (2014 p. 134), refere-
se a abordagem do assunto “Candombe: ritmo africano na cultura uruguaia”
proporciona assim conhecer esse ritmo musical profundamente enraizado no
cotidiano e na memória da população do Uruguai, que é procedente da África,
que chegou ao Uruguai por meio dos escravos chegados da África, é presente nos
dias de hoje nas ruas, nos becos e nos carnavais do país.
72 Daniela da Silva Santos | Daniel Precioso

Dominação imperialista na África; Violência, exploração e resistência africana


(9° ano)

No material didático do 9° ano, na unidade 1, tema 4 “A expansão


imperialista na África” (2014, p. 28), encontramos referências ao Congresso de
Berlim e à Partilha da África, eventos ocorridos entre os anos de 1884 e 1885. Os
autores do manual didático ressaltam as características da colonização na África,
denunciando a violência e a exploração, mas também a resistência africana a
dominação imperialista.
Na unidade 7 “As Independências na África e na Ásia” contempla os seguintes
temas: Independências na África; O fim do Império Português na África; Desafios
após as independências; O apartheid na África do Sul. Na abertura da unidade
(2014, p. 184). Outro ponto positivo é a discussão sobre o pan-africanismo
enquanto ideologia de libertação nacional. A emergência dessa “consciência
nacional”, decorrente da exploração do continente, permitiu a emergência do
ideal da “unidade africana”, que viria a ser de fundamental importância para
as independências das nações africanas nos anos 1950-70. Também merece
destaque a existência de capítulo próprio sobre as independências dos países
africanos colonizados pelos portugueses, no qual se ressalta que a democratização
portuguesa (advinda com a Revolução dos Cravos) deveu-se também à resistência
das ex-colônias africanas. O destaque dos desafios colocados às nações africanas
pós-independência também merece elogio. Diante do exposto, o volume do 9º
ano é o que apresenta uma visão mais acertada sobre a História da África.

Considerações finais

Concluímos que o manual didático Projeto Araribá História contempla


as temáticas da História da África do 6° ao 9° ano, exigidas pela lei 10.639/03,
apresentando pontos positivos e lacunas/imprecisões. A nosso ver, o principal
problema é a falta de articulação entre História da África & História da Europa
/ História do Brasil. Também há imprecisões acerca da procedência dos povos
africanos que vieram para o Brasil durante a Diáspora Moderna. A apresentação
das técnicas e conhecimentos mineralógicos e metalúrgicos dos reinos do Sahel
também não vem acompanhada de um destaque para a reprodução/adaptação
dessas técnicas em solo brasileiro.
Por fim, destacamos que o presente estudo apresenta apenas uma dimensão
das implicações da lei 10.639/03 sobre o ensino de História. Estamos cientes de
A HISTÓRIA DA ÁFRICA NOS LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO FUNDAMENTAL DO PROJETO ARARIBÁ HISTÓ- 73
RIA

que não basta estudar os materiais didáticos. Para melhor averiguar o ensino de
História da África nos colégios seria necessária uma pesquisa sobre o modo como
esses conteúdos são ensinados em sala de aula – isto é, do processo de ensino-
aprendizagem. Também estamos cientes de que o professor pode – e mesmo
deve – assinalar imprecisões nos livros didáticos, completar lacunas com material
complementar.

Referências bibliográficas

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CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1988.
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Geral da África: Pré-história ao século XVI. Brasília: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013.
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na Literatura Didática. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, n. 3, 2003.
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SILVÉRIO, Valter Roberto. Síntese da coleção História Geral da África: Pré-história ao século XVI.
Brasília: UNESCO, MEC, UFSCar, 2013.
74

O AUTISMO É COLORIDO: EXPERIÊNCIA COM A


ARTE EDUCAÇÃO NO ESPAÇO NÃO FORMAL

Fabricio da Silva Santos1


Vera Regiane Brescovici Nunes2

Resumo: O presente trabalho objetiva relatar as atividades artísticas/ educacionais


desenvolvidas d nos meses de março/abril de 2018 no espaço de educação
terapêutica infantil “Educartes”, instituição privada existente há nove anos na
cidade de Santa Maria da Vitória que desenvolve um trabalho semanal com
crianças que possuem déficit de atenção, Síndrome de DOWN, Hiperatividade
e em sua maioria, são afetadas pelo Transtorno do Espectro Autismo (TEA).
Destaca as experiências de um graduando em Artes Visuais e a realização de
performances artísticas neste espaço.
Palavras Chave: Autismo. Educação. Arte. Criança.

Abstract: The present work aims to report the artistic / educational activities
developed since March / April 2018 in the area of children’s education “Educartes”,
a private institution that has been in existence for nine years in the city of Santa
Maria da Vitória, which develops a weekly work with children who have Attention
Deficit Disorder, Down Syndrome, and Hyperactivity are mostly affected by
Autism Spectrum Disorder (ASD). It highlights the experiences of a graduate in
Visual Arts and the realization of artistic performances in space.
Keywords: Autism. Education. Art. Child.

Introdução

O TEA (Transtorno do espectro autismo), afeta 70 milhões de pessoas em


todo o mundo. Esse índice vem cresce com o passar do tempo. É um transtorno
com diagnóstico recente e interfere nas habilidades cognitivas, na interação
social, comunicação, coordenação motora e dificuldade de entender alguns
comandos simples que geralmente são realizados pelas pessoas sem qualquer tipo
de transtorno sem nenhum problema.
1 (Graduando do sexto semestre do curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Oeste da Bahia- UFOB
– e-mail fabricioytr2335@gmail.com)
2 (Doutora em Ciências da Religião – PUC – Goiás . Professora Assistente da Universidade Federal do Oeste
da Bahia – email: veraregiane@yahoo.com.br)
O AUTISMO É COLORIDO: EXPERIÊNCIA COM A ARTE EDUCAÇÃO NO ESPAÇO NÃO FORMAL 75

Os primeiros estudos sobre o tema datam da década de 1940 e por isso,


ainda sabe-se pouco sobre o transtorno se comparado com outros já estudados
pela medicina desde muito antes. Portanto, a maior parte da sociedade ainda
desconhece a forma de lidar com essas pessoas, porque nenhum autista é igual
ao outro, não sendo possível tratá-los da mesma maneira. Os estudos ainda são
recentes e as políticas públicas para as pessoas autistas só vieram a ser discutidas
recentemente, e por isso, atualmente no Brasil ainda sabe-se muito pouco sobre
os direitos do autista, limites e necessidades. Isso se reflete na educação pública,
âmbito em que encontramos diariamente o pouco preparo dos profissionais para
lidar com tamanhas especificidades. Um exemplo é que muitas pessoas autistas
nas décadas anteriores viveram isoladas do mundo e da interação com outras
pessoas, atrapalhando assim o seu desenvolvimento humano. Mas, já existem
muitas instituições que se voltam para atender essa e outras deficiências, uma
delas é a Educartes, instituição que trabalha com crianças que apresentam algum
tipo de deficiência. Volta-se para atividades variadas que incluem principalmente
a arte e com isso, oportunizam a socialização e o aprendizado. Lá as atividades
desenvolvidas estimulam o desenvolvimento a partir da terapia ocupacional, de
jogos, brincadeiras e da arte por meio da pintura, do desenho, do teatro, da dança,
e da música. As atividades de arte educação realizadas no espaço são desenvolvidas
pelo supracitado graduando em Artes Visuais da Universidade Federal do Oeste
da Bahia que atua como monitor/professor.

O que é o TEA?

Atualmente já é possível encontrar ampla literatura sobre esse transtorno,


que começou a ser citado na medicina a partir de Eugen Bleuler em 1911, com
o intuito de classificar pessoas com algum tipo de dificuldade, quer seja na
comunicação ou, interação social, e que apresentavam tendência ao isolamento.
Schimidt (2013) destaca que as primeiras publicações a respeito, foram realizadas
pelos psiquiatras infantis Hans Asperger (1944) e Leo Kanner (1943), respaldados
por casos que observaram e se fundamentaram nas teorias já existentes, após
analisarem várias crianças com diferentes comportamentos e com características
que divergiam umas das outras quanto a capacidade de relacionamento. Foi assim
que surgiu uma das primeiras formas de definição do TEA, que mais tarde foi
definido como um Transtorno Complexo do Desenvolvimento, do ponto de
vista comportamental, com diferentes etiologias e que se manifesta em graus de
gravidade variados (GADIA, 2006).
76 Fabricio da Silva Santos | Vera Regiane Brescovici Nunes

De acordo com Oliveira (2009 apud ONZI; GOMES, 189, p. 2015),

“autos” significa “próprio” e “ismo” traduz um estado ou uma orientação, isto


é, uma pessoa fechada, reclusa em si. Assim, o autismo é compreendido como
um estado ou uma condição, que parece estar recluso em si próprio. O termo
“autismo” perpassou por diversas alterações ao longo do tempo, e atualmente é
chamado de Transtorno do Espectro Autista (TEA) pelo Manual Diagnóstico
e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) (APA, 2014). As características
do espectro são prejuízos persistentes na comunicação e interação social, bem
como nos comportamentos que podem incluir os interesses e os padrões de ati-
vidades, sintomas que estão presentes desde a infância e limitam ou prejudicam
o funcionamento diário do indivíduo (APA, 2014).

Segundo Onzi e Gomes (2015), o “TEA é considerado um transtorno


que vai além da sua complexidade, distante de ser definido com exatidão, pois
não existem meios pelos quais se possa testá-lo, muito menos medi-lo (ONZI;
GOMES, 2015, p. 189). Destacam que apesar das pesquisas atuais a “cura” para
o autismo está distante porque cada caso é único e com características próprias.
O autismo e a síndrome de Asperger são os mais conhecidos entre os
transtornos invasivos do desenvolvimento (TID). Para Klin (2006,p.54) “uma
família de condições marcada pelo início precoce de atrasos e desvios no
desenvolvimento das habilidades sociais, comunicativas e demais habilidades”.
Segundo o autor a validade do diagnóstico para o autismo é inquestionável,
porém, para “o status de validade da síndrome de Asperger (SA) ainda é
controverso, muitas vezes essa síndrome é confundida como autismo, pelo “fato
deste diagnóstico ser acompanhado de retardo mental, ou autismo com ‘alto grau
de funcionamento’” ( KLIN, 2006, p. 55).
A identificação de uma criança com TEA, acontece a partir da família,
pais ou responsáveis ao perceberem que algo não está de acordo procuram ajuda,
inicia-se assim um período de incertezas por estar frente ao desconhecido. Após
o diagnóstico geralmente a utilização de literaturas norteia e fornece informações
sobre o transtorno, porque há uma variedade a depender do caso. Sabe-se que no
autismo, “nem todos são iguais e nem todos têm as mesmas características. Uns
podem ser mais atentos, uns mais intelectuais e outros mais sociáveis, e assim por
diante” (FERREIRA, 2009, p. 15).
A aceitação pelos pais de que o filho apresenta um transtorno pode gerar
a princípio, diferentes tipos de sentimentos como negação, raiva e culpa, após
a confirmação do diagnóstico, inicia-se o processo de aceitação e a busca por
soluções. Procuram entender como será o procedimento a seguir como também,
O AUTISMO É COLORIDO: EXPERIÊNCIA COM A ARTE EDUCAÇÃO NO ESPAÇO NÃO FORMAL 77

o nível que o mesmo apresenta, que de acordo com alguns estudiosos se insere
como leve, moderado e severo. Porém, se for considerada a literatura recente
alguns pesquisadores não mais o classificam a partir dos níveis. Isso não significa
que seja uma doença ou que exista alguém que é mais ou menos autista que outro,
porque cada um possui um universo muito particular, um ritmo e uma forma de
entender e se relacionar com o mundo ao seu redor. Dessa forma, é necessário dar
oportunidade para que o mesmo se desenvolva.
O TEA não tem cura, mas há diferentes tratamentos que ajudam atenuar
os déficits. Em alguns indivíduos os tratamentos apresentam maior resultado,
devido ao nível em que se encontra que pode variar conforme já destacado.
Para Onzi; Gomes (2015, p. 194) existem algumas terapias como a,

psicoterapia comportamental [...] que facilita os cuidados com o autista, tornan-


do-o mais bem estruturado emocionalmente e organizado. A psicoterapia tem
como objetivo auxiliar a interpretar a linguagem corporal, a comunicação não
verbal, a aprendizagem e também as emoções e as interações sociais [...]. A tera-
pia cognitiva comportamental (TCC) contribui para o ensinamento dos autistas
em relação a diferentes formas de utilizar, recordar e processar as informações,
como treinamento de autoinstrução. [...] e a musicoterapia.

São técnicas que permitem que o autista consiga ser autônomo e com
isso levar uma vida mais independente. Existem diversos outros métodos de
reabilitação utilizados pelos pais e instituições desde os voltados para estimulação
do desenvolvimento comunicativo e social, aprimoramento da capacidade de
solucionar problemas e do aprendizado, e muitos outros porém, o que deve ser
considerado é a particularidade do indivíduo, seu processo de aprendizagem e
adaptação para as atividades quer sejam simples ou complexas. E que para isso
é necessário a presença da família e de instituições que desenvolvam métodos
de reabilitação e socialização para que possam viver tranquilamente. Esse espaço
existe em Santa Maria da Vitória, cidade localizada na região Oeste baiana e se
denomina Educartes.

O Espaço Educartes

O espaço Educartes é uma instituição privada, criada pela psicopedagoga


Loiane Sodré Matos, que atende crianças autistas, com déficit de atenção, síndrome
de Asperger e síndrome de Down, porém, a maior parte das crianças é afetada
pelo Transtorno do Espectro Autista (TEA). Se localiza no bairro Sambaíba em
78 Fabricio da Silva Santos | Vera Regiane Brescovici Nunes

Santa Maria da Vitória, cidade que compõe o Território da Bacia do Rio Corrente
na região Oeste da Bahia, o espaço é um dos poucos na região que desenvolve
trabalho voltado para o autismo.
Há nove anos, o Educartes se constituiu por iniciativa da supracitada
educadora com o objetivo de acolher e apoiar as famílias com integrantes
que apresentam algum tipo de transtorno. Desde então, os pais contribuem
financeiramente para manter o espaço com valores diferenciados entre si, a
depender de suas possibilidades, que de forma voluntária, são proporcionados
atendimentos em que a família recebe orientações e encaminhamentos quando
necessários.
Uma das funções do Educartes é viabilizar um espaço adequado para convívio
e aprendizagem. Algumas crianças por exemplo, não tinham lugar para poderem
conviver entre si e desenvolver suas habilidades. A esquipe do espaço tem como
objetivo, proporcionar aos alunos, visibilidade frente a sociedade, desenvolvendo
habilidade para conviver de forma plena na comunidade, que apresenta maiores
obstáculos para as pessoas que não se encaixam nos padrões determinados.
O espaço oferece profissionais nas áreas de psicopedagogia, terapia
ocupacional e arte educação esta última promove oficinas de teatro, flauta doce,
desenho, pintura e outras, e atividades recreativas e lúdicas, que promovem o
desenvolvimento de habilidades, de inclusão e autonomia para conviverem com
independência, superando suas limitações.
O espaço Educartes é um dos poucos na região que possui um trabalho
voltado para o desenvolvimento das pessoas com autismo. Por isso, existem
famílias que se deslocam de cidades vizinhas como Correntina e Coribe em
direção a Santa Maria da Vitória para realizarem o tratamento. No cotidiano e
funcionamento da instituição está sempre presente a busca por interação social
por meio de diferentes atividades e oficinas que estimulam a percepção, a
sensibilidade, as expressões e a capacidade de criar que cada criança apresenta.
Atualmente, é perceptível na sociedade a intolerância e a não abertura de
convivência quando a aceitação do diferente . Apesar dos diversos avanços que a
humanidade já conseguiu conquistar e paradigmas que foram sendo quebrados
ao longo dessa evolução, o autismo ainda é um tema delicado de ser discutido em
diversas esferas. As primeiras pessoas que se deparam com o diferente modo de
ser e viver no mundo da pessoa com autismo são os familiares, que costumam
lidar com isso ainda na infância. Atualmente, devido as inúmeras pesquisas na
área há mais facilidade de detectar ou diagnosticar o transtorno nas crianças em
idade de zero a três anos, porque anteriormente sabia-se menos sobre o TEA,
O AUTISMO É COLORIDO: EXPERIÊNCIA COM A ARTE EDUCAÇÃO NO ESPAÇO NÃO FORMAL 79

o que possibilitava que o transtorno fosse facilmente confundido com doenças


mentais e rotulado como demência.
No sistema público de ensino não é fácil encontrar profissionais preparados
para trabalhar com a educação dessas pessoas que possuem uma forma diferente de
viver no mundo. Por isso, existe tanto preconceito e resistência em aceitar as diferenças
dos indivíduos com autismo. Em busca por tratar o transtorno, esses familiares
encontram apoio na neurologia, psicologia, psicopedagogia, terapia e também nas
artes, uma vez que é notório o quanto as pessoas com autismo se relacionam bem
com atividades artísticas. Assim, cada família e pessoa autista, aos poucos encontra
maneiras e métodos que podem ajudar no desenvolvimento da mesma.
Antes de começar a desenvolver qualquer atividade com crianças e
adolescentes, é necessário conhecê-las e permitir que elas o conheçam. Com a
criança autista não seria diferente; Uma vez que para as pessoas com autismo é
característico do transtorno a dificuldade em interagir com quem não faz parte
de seu cotidiano, logo, aprende-se que é preciso antes de tudo, ser observador e
tentar aos poucos ganhar a confiança destes indivíduos. É necessário ser curioso
e interessado para conhecer o mundo de cada criança e realizar primeiro os
interesses dela, para que só então a mesma se sinta confiante o suficiente para
realizar as tarefas propostas. Conseguir isso não é simples e tampouco fácil, em
razão de que elas possuem jeitos, ritmos, interesses e formas diferentes de lidar.
Logo, se faz presente a missão diária de compreender e respeitar o tempo e a
maneira necessária para realizar as atividades desejadas.
As atividades de arte educação como oficinas de canto, teclado e pintura
(esta, de maneira casual) desenvolvidas no espaço até o final de 2017 aconteciam
esporadicamente. Em janeiro de 2018 surgiu a oportunidade de inserir nas
ações propostas pela instituição, aulas de teatro. Nessas aulas começou-se a se
trabalhar com jogos teatrais, exercícios de relaxamento com foco na concentração
dos movimentos do corpo e do olhar. Os exercícios também proporcionaram o
estímulo da memória, da comunicação através da fala, do corpo e da sensibilidade
de cada um à sua maneira, que foi capaz de sentir de si mesmo e do outro.
Com o passar dos encontros, percebeu-se que os diferentes códigos artísticos
presentes nas artes poderiam ser algo proveitoso para a educação das crianças,
devido ao gosto de cada uma pela música, pelo desenho e pelas cores. Diversificar
o trabalho traria ainda mais benefícios para elas que passariam a ter contato com as
diferentes linguagens, e assim expandir os seus conhecimentos e possibilidades de
se expressar e criar a partir das vivências compartilhadas nas aulas. Em razão disso,
foram inclusas nas aulas o desenho, a prática de flauta doce e a pintura. Sobretudo,
80 Fabricio da Silva Santos | Vera Regiane Brescovici Nunes

porque o trabalho abriu espaço para o desenvolvimento coletivo e a interatividade,


por proporcionar gradativamente que a criança encontre seu caminho e as
habilidades que melhor se identifica. Em nenhum momento, a intenção das aulas
foi de formar ou descobrir artistas, mas conduzir as crianças à um caminho de
apreciação das linguagens. Porque a arte toca, sensibiliza, desperta novos olhares
e transforma. Tudo isso é vivenciado a partir da experimentação da pluralidade
de atividades que são propostas pela equipe Educartes. Entre essas atividades, é
possível citar o projeto “O autismo é colorido”, realizado pelas crianças e orientado
pelo graduando acima citado, no espaço Educartes, no mês de março a abril de 2018,
em que foram desenvolvidas diferentes oficinas considerando as especificidades de
cada criança. As oficinas foram divididas em três etapas, conforme a descrição a
seguir, e resultaram em uma exposição artística.

Etapa nº 1: O dançar das tintas (03/03/2018)

O objetivo da oficina foi trabalhar a movimentação do corpo por meio da


pintura, utilizando as mais variadas cores. Aliado a isso, buscou-se uma forma
diferente de pintar, uma vez que os alunos do espaço já tinham contato com a
pintura há algum tempo, usavam pincel e papel ou tela de maneira convencional.
Então, para instigá-los, pensou-se em uma oficina que apresentasse alguma
novidade. Ela aconteceu em uma área livre dentro do espaço, para isso, utilizou-
se uma máquina de bolha de sabão para o divertimento das crianças antes de
começarem a pintar. A experimentação contou com a técnica de gotejamento que
consiste em gotejar a tinta na tela e movimentá-la para dar forma a pintura que
vai sendo criada. As pinturas criadas por eles tiveram muita semelhança com o
Expressionismo Abstrato, movimento que teve como um dos maiores destaques
o pintor norte-americano Jackson Pollock, ao inovar a pintura com uma técnica
chamada “Action Painting ¹”.
É importante salientar que antes de estar na pintura das crianças, o
movimento estava no corpo, na expressão de cada rosto e no balançar de cada tela
fazendo as tintas dançarem e dançando junto com elas. Assim, o objetivo principal
da oficina foi acontecendo, com o intuito de estimular a linguagem corporal
junto a pintura. Durante a oficina, alguns alunos apresentavam resistência em se
sujar com as tintas, e por isso pintaram durante pouco tempo, mas deixaram sua
expressão na tela até onde conseguiram ir. Ao final, todas as telas foram colocadas
para secar e depois guardadas para a última etapa do projeto.
O AUTISMO É COLORIDO: EXPERIÊNCIA COM A ARTE EDUCAÇÃO NO ESPAÇO NÃO FORMAL 81

Etapa nº 2: Performar e pintar (10/03/2018)

O segundo passo foi uma performance coletiva sobre um tecido de 2 m², em


que as crianças pintavam usando os movimentos do corpo, incluindo pés e mãos.
Foram orientados pelo graduando, cada uma das crianças encontrou na atividade a
sua própria maneira de pintar. Nesse encontro, elas viam o tecido estendido no chão
e aos poucos iam brincando de pintar. No decorrer da atividade, não só o tecido
estava sendo pintado, como também o corpo de cada uma delas. Porque o objetivo
dessa oficina além de pintar no tecido, era colocar o corpo também como uma tela
onde as cores de tinta se misturaram à cor da pele. Quando comparamos esta oficina
com a anterior, foi possível perceber que a resistência em se sujar com a tinta já não
estava tão presente como na etapa anterior. Agora, pintar o tecido, a si mesmo e
aos colegas foi divertido, tanto que quando o tecido já estava todo pintado, alunos
e professores do Educartes se juntaram para colorir o muro com desenhos, formas
geométricas e os nomes de todas as pessoas que compõem o espaço.

Etapa nº3: Exposição “O autismo é colorido” (17/03/2018)

A exposição “O autismo é colorido”, que se sucedeu após as duas oficinas


descritas, realizou-se no espaço Educartes às 09:30 h e teve como objetivo, mostrar
os trabalhos de pintura desenvolvidos pelas crianças nos últimos encontros. Para
essa etapa, uma sala foi preparada não somente com as telas e o tecido pendurados
na parede, como também, foram colocados os registros fotográficos dos dois
encontros. Além disso, os nomes das crianças estavam abaixo de suas respectivas
telas, para que todas as crianças pudessem identificar na parede os seus nomes,
as suas obras e as fotos de tudo o que realizaram, individual e coletivamente,
isso permitiu a interação entre todos. A exposição foi aberta aos familiares e
permaneceu no espaço até o dia 02 de abril, dia mundial de conscientização do
autismo.

Considerações Finais

Dessa forma, o projeto surgiu da vontade e da necessidade de se trabalhar


a prática de ensino das artes para as crianças. Aproveitando esta situação, o
direcionamento deste trabalho vai de encontro ao projeto Educartes, espaço de
educação terapêutica infantil. Unindo a prática do ensino de artes com a educação
para pessoas com transtorno do espectro autismo, muito presente na sociedade,
82 Fabricio da Silva Santos | Vera Regiane Brescovici Nunes

mas pouco observado e debatido. Os trabalhos de pintura dos alunos do projeto


Educartes, foram desenvolvidos na sede do espaço durante os encontros semanais
realizados. A cada novo encontro no espaço foi possível perceber uma certa
familiarização das crianças com os professores, umas com as outras e com as
experimentações artísticas em si, por isso, o resultado das oficinas do projeto
“O Autismo é colorido” foi bastante positivo porque ao longo do processo, a
interatividade das crianças se tornou cada vez mais natural e espontânea. Além
disso, todas elas puderam criar a partir dos movimentos do próprio corpo em
contato com as tintas. Isso prova que a arte pode ser utilizada como ferramenta
de estímulo da percepção, do movimento e das maneiras que cada criança pode
se expressar.

Referências

FERNANDES, Alisson; NEVES, João; SCARAFICCI, Rafael. Autismo. São Paulo: UNICAMP, 2011.
KLIN, Ami. Autismo e síndrome de Asperger: uma visão geral. Rev Bras Psiquiatr. 2006;28(Supl
I):S3-11. www.scielo.br/pdf/rbp/v28s1/a02v28s1.pdf. Acesso em 28 de ag. de 2018.
ONZI, Franciele Zanella; GOMES, Roberta de Figueiredo. Transtorno do Espectro Autista: a
importância do diagnóstico e reabilitação. Caderno pedagógico, Lajeado, v. 12 - 3, p. 188-199.
www.univates.br/revistas/index.php/cadped/article/viewFile/979/967. Acesso em 28 de ag. de 2018.
PEREIRA, Márcia Cristina Lima. Pais de alunos autistas: relatos de expectativas, experiências
e concepções em inclusão escolar. Brasília: UCB, 2009. Dissertação (Mestrado em Psicologia),
Universidade Católica de Brasília, 2009.
SCHECHTER, R.; GRETHER, J. K. Continuing increases in autism reported to California’s
Developmental Services System: Mercury in retrograde. Archive of General Psychiatry, v.65, n.1,
p.19-24, 2008.
SCHMIDT, Carlo. Autismo, educação e transdisciplinaridade. Campinas: Papirus, 2013.
SCHULMAN, C. Bridging the process between diagnosis and treatment. In R. GABRIELS; D.
HILLS. Autism- From research to individualized practice. London: Jessica Kingsley Publishers,
2002.
BARBOSA SILVA, Ana Gabriela; Mundo singular: Entenda o autismo – São Paulo: Fontanar, 2012.
FERNANDES, Ciane; O corpo em movimento: O sistema Laban/Bartinieff na formação e
pesquisa em artes cênicas. – São Paulo: Annablume, 2002.
BAPTISTA, Carlos Roberto; Autismo e Educação: Reflexões e Propostas de Intervenção. Brasil,
Artmed, 2002.
ZIRALDO; Autismo: Uma realidade, Brasil, Outubro, 2013.
Nota Explicativa
¹ Pollock trabalhava com uma técnica que ficou conhecida como “Action  Painting” (Pintura de
Ação). https://www.todamateria.com.br/expressionismo-abstrato/ acesso em: 30 ag.2018.
83

ANÁLISE HISTÓRICA DO CRIME DE SEDUÇÃO E


RAPTO: O CÓDIGO PENAL DE 1940

Cíntia Wolfart1

Resumo: A proposta desta pesquisa é analisar o processo histórico de constituição


do Código Penal brasileiro de 1940. Tratou-se de um período em que ocorreram
várias mudanças no país, influenciadas pela industrialização e a urbanização.
Consequentemente, essas propostas modernizadoras levaram a certas
transformações no espaço social, também influenciado pelas ondas migratórias
e imigratórias. A vida na cidade, a industrialização e os meios de comunicação
permitiram o estabelecimento de novos contatos e relações entre as pessoas. Além
disso, o período em questão também é marcado pela ampliação do espaço do trabalho
feminino. O Estado criou mecanismos para regulamentar as relações e ações sociais
constituídas a partir desse processo. Nesse estudo, as intervenções sobre a sociedade
e a vida privada foram problematizados a partir das fontes judiciais de sedução e de
rapto que ocorreram no Oeste do Paraná entre os anos de 1950-1960.
Palavras-Chave: Processos Judiciais; Estado; Poder

Introdução

Em 1940, o Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Francisco Campos,


encaminhou ao presidente da República, Getúlio Vargas, a exposição de
motivos em relação à reforma do Código Penal de 1890. Segundo Campos, era
necessário colocar a ciência penal em dia com as ideias dominantes no campo
da criminologia, e também contemplar novas figuras delituosas oriundos com o
progresso industrial e técnico.
Com a intenção de adaptar as leis as novas pretensões da sociedade
brasileira, o novo Código Penal de 1940 foi elaborado com a finalidade de
substituir o Código de 1890. As várias transformações ocorridas no país e em
outras nações ocasionaram novas diretrizes para as questões da jurisprudência
do país.
Levando em consideração as proposições apresentadas pelo ministro
Francisco Campos, identificamos facilmente a influência do contexto histórico na
elaboração do Código Penal de 1940.
1 (SEDUCE-GO)
84 Cíntia Wolfart

No Brasil, durante as décadas de 1920 e 1930, ocorrem várias mudanças


em sua estrutura, influenciadas pela industrialização e a urbanização.
Consequentemente, essas inovações modernizadoras contribuíram para a
transformação do espaço social. A vida na cidade, a industrialização e os meios de
comunicação permitiram mudanças sociais.
É importante destacar algumas reflexões de Ismael Antonio Vannini que,
em seu trabalho sobre a criminalidade e sexualidade na Região Colonial Italiana
no Rio Grande do Sul, entre os anos de 1938 e 1958 aborda às transformações
sociais ocorridas com o advento da industrialização, especialmente quais foram
às implicações dessas mudanças em relação ao universo feminino. Desta forma,
de acordo com Vannini,

[...] o perigo da moralidade e dos costumes recaía sobre a mulher, pois era ela
que, no advento da Modernidade, passava a ser “moderna”. Segundo as inter-
pretações jurídicas da época, os novos caminhos trilhados pela mulher iriam
comprometer a sociedade como um todo; seria a degeneração da família e da
sociedade .

Ou seja, a introdução de muitas mulheres no mercado de trabalho que


poderia ser a única opção de renda familiar ou uma forma de complementação,
fez com que elas precisassem sair do ambiente doméstico. Acreditava-se
que a mulher ao sair do lar para trabalhar perderia alguns comportamentos
considerados femininos, como a “delicadeza”, “submissão”. E passaria a adquirir
comportamentos entendidos como masculinos como, força, coragem e decisão.
A necessidade de enfrentar a nova realidade no ambiente público, fora do lar, aos
olhos de muitos ofereceu um tipo de liberdade às mulheres. Devido a essa suposta
liberdade das mulheres, fez com que a jurisprudência repensasse e organizasse as
leis para intervir nos chamados “novos” comportamentos femininos adquiridos
com a industrialização e a modernização.
Uma importante contribuição para a análise do contexto histórico e social
em relação ao Código de 1940, são as informações apresentadas por Ismael
Antônio Vannini, sobre à jurisprudência, especificamente no que se refere ao
período de reelaboração do Código Penal de 1890. Especialmente no que refere a
tentativa de regular o comportamento feminino.
A jurisprudência do período pós-Primeira Guerra Mundial entendia que o
Brasil precisava adaptar o Código de 1890 às realidades do cotidiano por meio de
uma nova interpretação. O ambiente social moderno, complacente e licencioso,
apresentava um tipo de moça bem diferente daquela de meio século atrás. Parece
que alguns juristas nostálgicos das décadas de 1920 e 1930 esperavam recriar uma
ANÁLISE HISTÓRICA DO CRIME DE SEDUÇÃO E RAPTO: O CÓDIGO PENAL DE 1940 85

forma de reinventar a inocência, uma época na qual a mulher fosse zelosa e se


preservasse na ignorância das maldades do mundo .
A citação permite compreender a tentativa da jurisprudência em
regulamentar o cotidiano dos sujeitos no Paraná, por meio de leis, num momento
de crescente modernização no campo e na cidade. Como se tratava do contexto
da Segunda Guerra Mundial, muitos homens eram recrutados a participar da
Guerra, o que levou a acentuação das mulheres no mercado de trabalho. A partir
de então, as mulheres tiveram que se adaptar a novas circunstâncias e ocupar
espaços antes considerados restritos aos homens.
Ao mesmo tempo, o país passou para uma fase de intensa industrialização,
urbanização, divulgação de meios de comunicação, incentivo ao consumo e ao
lazer. Diva Muniz, interpretou esse momento histórico da seguinte maneira,
Com efeito, a elaboração e promulgação do novo Código Penal, em
1940, foi iniciativa que se apresentou como resposta jurídica às necessidades de
adaptação das antigas prescrições legais à realidade a uma sociedade vincada pelas
transformações inscritas no projeto de modernização conservadora do governo
Vargas: industrialização, urbanização, difusão de novos meios de comunicação,
cultura de consumo e de lazer, dentre outras. Nas mudanças de comportamentos
ocorridas, enfocava-se particularmente a ‘excessiva liberdade da mulher moderna’
como um dos efeitos daninhos da modernização. Observa-se nessa construção,
que as mulheres, modernas ou não, embora constituídas a partir de experiências
múltiplas, diversas e variáveis, eram vistas pelo pensamento jurídico da época sob
uma perspectiva essencialista, universal e fixa, contida na representação unificada
de ‘mulher’.
Cabe observar que havia uma grande preocupação do ministro da justiça
e do aparato jurídico em relação aos “novos” comportamentos apresentados
pelos jovens na sociedade, principalmente com relação à sexualidade, até então
relegada aos adultos. Assim, pode-se dizer que a elaboração desse “novo” Código
Penal, também era uma tentativa de ordenar a população e uma forma controlar
alguns tipos de comportamentos considerados desviantes na sociedade, dentre
eles, os impulsos sexuais.
O novo Código Penal, aprovado em 1940, entrou em vigor em 1º de Janeiro
de 1942, modificou a tipicidade do crime de defloramento e reelaborou sua
visão sobre o feminino. A partir de então, o crime de defloramento passou a ser
chamado de sedução, sendo uma das alterações a redução da idade das vítimas: de
menores de 21 anos para menores de 18 anos.
Assim, comparativamente ao Código Penal de 1890, o “novo” código trouxe
mudanças na forma como os crimes eram classificados. Os chamados “Crimes
contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao
86 Cíntia Wolfart

pudor” do Código Penal de 1890 incluíam: defloramento, estupro, atentado ao


pudor, rapto, lenocínio, adultério e ultraje público ao pudor. A partir do novo
Código de 1940, os crimes sexuais foram separados em duas categorias: em crimes
contra os costumes e crime contra a família.
Os crimes contra os costumes passaram a abranger o estupro, atentado
violento ao pudor, posse sexual mediante fraude, atentado ao pudor mediante
fraude, sedução, corrupção de menores, rapto violento ou mediante fraude, rapto
consensual, concurso de rapto e outro crime. Mediação para servir a lascívia de
outrem, favorecimento da prostituição, casa de prostituição, rufianismo, tráfico de
mulheres, ato obsceno escrito ou objeto obsceno. Os delitos que enquadravam aos
crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público
ao pudor, era a violência carnal, o rapto, o lenocínio, adultério ou infidelidade
conjugal e o ultraje público ao pudor.
A possibilidade de interpretarmos essa mudança ocorrida no novo Código
Penal é o fato de que nos crimes contra os costumes, o delito passou a ser
considerado contra a “vítima”, deixando de ser contra a família. A legislação de
1890, nos mostra que não pretendia defender a honra como uma característica
feminina, mas sim, a honra da família, ou seja, especialmente ao do pai. Num
contexto em que prevalecia fortemente o sistema patriarcal.
Segundo Priscila David, ao abordar sobre as jovens das classes populares
da cidade de Assis/SP, entre os anos de 1950 a 1979, explica que o que levou à
reforma do Código Penal, foi à inserção da mulher no mercado de trabalho, a
modificação dos comportamentos femininos em contraposição às características
de mãe/esposa/dona-de-casa. Além disso, acrescenta que a maior participação
delas no ambiente público contribuiu para a constituição do título “Dos crimes
contra os costumes”.
A primeira definição de crime por defloramento foi elaborada no Código
de Processo Penal da República Federativa do Brasil de 1890. No referido Código,
o defloramento era uma categoria do crime sexual, conjuntamente com o estupro.
O crime por defloramento era definido no artigo 267, do seguinte modo: “[...]
deflorar mulher de menor idade, empregando sedução, engano ou fraude.” Esse
tipo de delito era classificado no Título VIII: “Dos crimes contra a segurança da
honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor” e no Capítulo I
“Da violência carnal”, do referido Código . A penalidade para esse tipo de crime
era de um a seis anos de prisão. Em relação à penalidade indicada no crime de
sedução, prevista no código penal de 1940, verificamos que houve diminuição,
passando de um a seis anos, para dois a quatro anos de prisão .
Segundo Campos, o título defloramento foi repudiado, porque supunha
imprescindível a condição material do crime, e ruptura do hímen, bastava que a
ANÁLISE HISTÓRICA DO CRIME DE SEDUÇÃO E RAPTO: O CÓDIGO PENAL DE 1940 87

cópula fosse realizada com mulher virgem, ainda que não resultasse essa ruptura.
A mulher virgem era o sujeito passivo da sedução. Para que o crime de sedução
fosse identificado, era preciso que fosse praticado “com abuso da inexperiência ou
justificável confiança” da ofendida. O projeto não tinha a intenção de proteger a
moça “emancipada”, nem a denominada “ingênua”, que se deixasse influenciar por
promessas insinceras.
Segundo o ministro Campos, a justiça tinha como principal intuito
proteger somente moças de família, ou seja, aquelas que apresentavam um bom
comportamento perante a sociedade, pois dava a entender que era considerado
um exemplo a ser seguido. No caso das mulheres que eram consideradas como
“prostitutas”, a Justiça entendia que não mereciam o seu apoio. Uma “prostituta”
era considerada na época, como mulher que não ficava somente no ambiente
doméstico, conversava com outros homens, saía a determinados lugares
considerados como ambiente masculinos e mantinha relações sexuais antes do
casamento.
Segundo Campos, a vida daqueles tempos, no ano de 1940, pelos costumes
da época e pelo seu estilo, permitiu aos indivíduos que não haviam atingido a
maioridade, surpreenderem com os mistérios, até então reservados aos adultos, ou
seja, a vivência antecipada da sexualidade. Nesse sentido, percebemos a tentativa
do referido ministro e do sistema Jurídico em reelaborar as leis de acordo com as
transformações dos costumes ocorridas na sociedade .
Nos casos de sedução, como previsto no Código Penal reformulado,
acreditava-se que esses tipos de crime passariam a ser resolvidos de forma mais
eficaz. No entanto, verificamos que a preservação da virgindade (honra feminina)
ainda continuava a ser um dos elementos defendidos pela justiça.
Ao tratar sobre o hímen e a lei na região Colonial Italiana, Vannini esclarece
questões relacionadas à virgindade feminina enquanto um valor social.
Esta é uma questão que se funda na atinente formação ético-social, nos
usos e modos de uma coletividade, conforme sua consciência moral e suas raízes
culturais. Impossibilitados de considerar e identificar tais peculiaridades nos
grupos sociais em geral, voltamo-nos ao contexto ocidental predominante e seu
legado em relação à virgindade, onde as raízes mais profundas estão fincadas no
dogmatismo religioso. Na acepção cristã, a membrana virginal, em regra, é um
símbolo absoluto de pureza e castidade, cuja perda fora do matrimônio implica o
repúdio à mulher no seu meio familiar e social.
A citação nos mostra que alguns valores, como aqueles relacionados à
preservação da virgindade feminina e à castidade da mulher, têm raízes culturais
no meio social. Como veremos adiante, a grande importância dada à membrana
virginal pelas pessoas envolvidas nos processos crime, pode ser entendida como
88 Cíntia Wolfart

resultado da influência de uma moral religiosa baseada em regras e símbolos, em


específico o relacionado à pureza (honra) das mulheres, como destaca Vannini.
Por outro lado, cabe considerar que por meio do estudo dos processos
crime de sedução e rapto, é possível verificar que a busca pela justiça poderia
não estar somente relacionada à recuperação da honra (perdida durante o ato
sexual), mas sim a outros interesses como a possibilidade da jovem conseguir
uma segurança material e realizar seus intentos amorosos por meio do casamento.
No entanto, evidenciamos que o pai ao alegar que sua filha tinha sido seduzida,
desvirginada e era honesta é porque sabia que somente nessas condições teria o
amparo da justiça e concomitantemente se adequaria aos preceitos jurídicos e aos
valores morais daquele contexto.
Em contrapartida, notamos que as fontes analisadas expressam a
valorização da virgindade presente na vida da maioria das pessoas que viviam no
Oeste do Paraná. No entanto a lei buscava regulá-la baseada em princípios morais
e religiosos, como também, as pessoas que partilhavam desses princípios morais,
faziam interpretações próprias deles e tais interpretações eram também resultado
de uma leitura particular da lei.
Segundo Sueann Caulfield, em seu livro denominado “Em defesa da honra:
moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro, 1918-1940”, as decisões
tomadas por alguns antigos juízes, influenciaram diretamente no modo de
percepção em relação à sexualidade. A autora ao abordar a respeito de alguns
antigos juízes no Brasil, afirmou que eles concordavam que o velho código penal
de 1890, deveria ser adaptado para ajustar-se aos “tempos modernos”. As mulheres
modernas, para esses juízes, não deveriam merecer a proteção legal da honra, mas
a lei deveria proteger apenas as jovens que foram influenciadas a acreditar em
promessas de casamento insinceras e a cometer “atos incompreensivos” por elas,
como por exemplo, a relação sexual.
O crime de sedução, era mencionado no Código de 1940, em seu artigo
217, o qual punia a quem seduzisse “[...] mulher virgem, menor de dezoito anos
e maior de quatorze, e ter com ela mantido conjunção carnal, aproveitando-se de
sua inexperiência ou justificável confiança” . A pena prevista era de reclusão de
dois a quatro anos.
Em relação ao rapto, o artigo 220 do mesmo código afirmava “Se a raptada
é maior de 14 (catorze) anos e menor de 21 (vinte e um), e o rapto se dá com seu
consentimento: Pena detenção, de (um) a 3 (três) anos.” O artigo 221 possibilitava
a diminuição de “um terço da pena, se rapto fosse com a finalidade de casamento,
e da metade, se o agente, sem ter praticado com a vítima qualquer ato libidinoso,
a restituía a liberdade e se a colocasse em lugar seguro, à disposição da família.”
Cabe observar que o Código Penal de 1940 reconhecia que por meio do casamento
ANÁLISE HISTÓRICA DO CRIME DE SEDUÇÃO E RAPTO: O CÓDIGO PENAL DE 1940 89

subsequente extinguiria a punibilidade. No caso do defloramento, a extinção da


punibilidade também poderia ocorrer por meio do casamento entre a “vítima” e
acusado.
Nesse sentido, observamos que caso o acusado assumisse o compromisso
do casamento com a jovem, esta atitude poderia ser uma estratégia para se livrar
de uma possível pena, bem como, era uma possibilidade de ter o reconhecimento
da união. Este é o caso das situações de fuga planejada entre o casal. Muitas vezes
era uma oportunidade de legitimação de uma união negada pela família da jovem.
Até mesmo, uma maneira de forçar um possível casamento.
São raros os processos crimes relacionados ao rapto movidos na Comarca
de Toledo entre 1950 a 1970. Supomos que nem todos os casos envolvendo a fuga
de um casal poderiam ter se constituído em processo criminal. Grande parte dos
casos envolvendo defloramento e fuga eram solucionados no meio privado. No
entanto, são restritas as fontes de que dispomos para o estudo desses casos.
Segundo Valdir Sznick, o rapto era um dos crimes que tinha ligação com a
galanteria do passado. Originou-se na tendência do homem, levado pela paixão e
não encontrando solução, raptar a amada. O rapto, também, era um meio usado
pelo noivo para fugir à indenização devida a família da noiva. Cabe observar que
os processos analisados que envolveram casos de rapto, pareciam mais uma opção
ou uma solução encontrada pelo casal para poderem estar juntos e namorar.
A prática do rapto poderia ter várias apropriações, dentre elas, destacamos
a do rapto como alternativa para uma relação amorosa, que não a regularizada.
Por vezes poderia se tratar de uma vontade feminina, ou quando a própria família
não aprovava o pretendente (futuro cônjuge). E por final, quando desejavam um
relacionamento livre dos trâmites legais e até mesmo das dificuldades burocráticas.

Fontes

Código Penal brasileiro de 1940, DL-002.848. Título VI Dos crimes contra os Costumes, artigo
217 no que se refere ao crime de sedução. Disponível em: <http://www.dji.com.br/codigos/1940
_dl_002848_cp/cp217a218.htm>. Acesso em: 26 out. 2012.
Consultar Código Penal brasileiro de 1940, DL-002.848. Título VI Dos crimes contra os Costumes,
Capítulo III. Disponível para consulta no site www.dji.com.br/codigos/1940_dl_002848_
cp/219a222.htm

Referências

CAULFIELD, Sueann. Em defesa da Honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro


(1918-1940). Campinas: Ed. Unicamp; Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2000.
90 Cíntia Wolfart

DAVID, Priscila. As jovens das classes populares sob a mira dos crimes de estupro, sedução e rapto
na cidade de Assis (1950-1979). 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2009.
MUNIZ, Diva do Couto Gontijo. Proteção para quem? O código penal de 1940 e a produção da
“virgindade moral. Labrys, Estudos Feministas, v. 7, jan./jul. 2005. Disponível em:
<http://www.tanianavarroswain. com.br/labrys/labrys7/liberdade/muniz.htm>.Acesso em: 01 set.
2012.
PIARANGELLI, José Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru, SP: Jalovi,
1980.
REICHERT, Emannuel Henrich. A sedução e a honestidade: representações de gênero nos processos
de crimes sexuais (Porto Alegre, 1920-1926). 2008. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em
História) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
SARTORI, Rocha Guilherme. Práticas Discursivas: um estudo sobre crimes de defloramento
(1920-1940) na Comarca de Bauru (SP). In: FAZENDO GENERO, 9., 2010, Florianópolis. Anais...
Florianópolis, 2010. Disponível em: <www. Fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1277830548_
ARQUIVO_ trabalhocompleto.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2012.
SZNICK, Valdir. Assédio sexual e crimes sexuais violentos. São Paulo: Ícone, 2001.
VANNINI, Ismael Antônio. História, sexualidade e crime: imigrantes e descendentes na Região
Colonial Italiana do Rio Grande do Sul (1938/1958). 2008. 245p. Tese (Doutorado em História) –
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008.
91

ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA


VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO

Marcos Vinicius Ribeiro1

Resumo: Seguindo a indicação para o debate sobre o papel da violência na história


do capitalismo, propomos partir das premissas de organização do sistema capita-
lista e sua relação com a violência, analisando a construção e aplicação do aporte
teórico-conceitual do intelectual marxista Antônio Gramsci. A importância das
organizações (seu caráter orgânico) de classes, perpassou os estudos de Gramsci e
resultou em profunda análise da história do capitalismo, escrita durante sua prisão
em meio à ascensão do fascismo na Itália. Gramsci aprofundou aspectos centrais da
produção marxista sobre o Estado, o partido, o papel dos intelectuais, a cultura po-
pular, a revolução e a contrarrevolução (Revolução Passiva) e construiu, sobretudo,
o conceito de Hegemonia. Para Gramsci, o marxismo (ou “filosofia da práxis”) era,
para Gramsci, uma forma de “historicismo absoluto”, devido ao peso da história na
elaboração de seu método e arcabouço conceitual. Sua obra foi dividida de acordo
com temas e eventuais desenvolvimentos conceituais que deles pudessem surgir.
Nesta comunicação, centramos fogo na análise dos aspectos gerais da organização
na definição do papel desempenhado pela violência na história.

Antônio Gramsci e a violência capitalista como projeto de dominação

A violência seletivamente praticada contra os extratos subalternos na história


do capitalismo, engendrou novas racionalidades históricas que se efetivaram como
produto das lutas no plano da produção irradiando-se para a conjunto mais geral
da sociedade. A adaptação a esse processo não foi passiva, mas seus mecanismos de
imposição visaram ao apassivamento dos setores antagonistas. A ação violenta pro-
posta por organizações anticomunistas visaram aplicar esses mecanismos de apassi-
vamento mantendo a luta de classes em níveis alarmantes e irradiando para fora do
plano da produção os mecanismos de controle aplicados contra os trabalhadores.
No entanto, o exercício efetivo da hegemonia e de imposição de uma certa
racionalidade histórica apresentam possibilidades que se traduzem na direção
moral. Ao mencionar a questão da hegemonia no processo de unificação do
Estado italiano no século XIX, Gramsci produziu a seguinte reflexão,
1 (marcosvhistoria@gmail.com). (UEG/UNIOESTE)
92 Marcos Vinicius Ribeiro

(...) a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como “domí-


nio” e como “direção intelectual e moral”. Um grupo social domina os grupos
adversários, que visa a “liquidar” ou a submeter inclusive com a força armada,
e dirige os grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, deve ser diri-
gente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições
principais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e
mesmo se o mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante mas deve conti-
nuar a ser também “dirigente”. (GRAMSCI, 2002, p. 63)

A necessidade de dirigir e dominar comporta ações determinadas visando


apassivar os grupos antagonistas no confronto entre as classes pela hegemonia.
A violência é uma das variantes do processo histórico capitalista previstas por
Gramsci para a ampliação da direção moral e da dominação (hegemonia) de uma
classe (burguesa) sobre as demais. Essa imposição é o resultado dos mecanismos
de apassivamento que são aplicados contra o grupo antagonista sendo que a
violência é uma das constantes do processo. A anulação do grupo antagonista
representa a consolidação de um processo histórico denominado de Revolução
Passiva. ¹ Tratam-se das formas violentas de imposição da direção moral e
dominação visando aniquilar os grupos antagonistas.
Pensar as formas de direção e domínio determinados pela história do
capitalismo, remete ao tema da hegemonia em Gramsci registrado nos Cadernos
do Cárcere de número 13 (“Breves notas sobre a política de Maquiavel”) e 18
(Nicolau Maquiavel. II), trazidos ao público brasileiro no volume 3 da edição
brasileira, também conhecida como edição de Carlos Nelson Coutinho intitulado
de “Maquiavel: Notas sobre o Estado e a Política”. Ao refletir sobre a construção do
partido (principal tema de interesse desses cadernos, 13 e 18) baseado na revisão
sobre os escritos de Nicolau Maquiavel, Gramsci observou alguns princípios
gerais do papel da organização da “vontade coletiva”. ² O diálogo proposto por
Gramsci com a obra clássica de Nicolau Maquiavel tem um propósito implícito
de situar o marxismo na tradição literato-cultural europeia e de desenvolver sua
concepção sobre o papel do partido na Revolução.
A Revolução é um projeto de sociedade que deve ocupar o lugar das
tradições seculares na “conquista de corações e mentes”, como dito por Edmundo
Dias, ³ na organização de uma “vontade nacional-popular”, ou ser o partido o
organizador de uma “vontade coletiva”. Este seria, para Gramsci, o “livro vivo” de
Maquiavel, “O Príncipe” capaz de suscitar nos sujeitos o despertar de uma tarefa
histórica imediata, mas com fôlego de sobra para transcender o tempo presente e
tornar-se uma premissa de ação. Segundo Gramsci,

O processo de formação de uma determinada vontade coletiva, para um deter-


minado fim político, é representado não através de investigações e classificações
ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO 93

pedantes de princípios e critérios de um método de ação, mas como qualida-


des, traços característicos, deveres, necessidades de uma pessoa concreta, o que
põem em forma mais concreta às paixões políticas. (GRAMSCI, 2007, p. 13)

Com essa indicação para a pesquisa, o papel dos grupos sociais na


organização da “vontade coletiva” foi inserida no contexto de uma ação efetiva
como realpolitik, pois, para Gramsci, “O Principe” de Maquiavel “é um livro vivo”.
O papel do Partido é justamente de oferecer à organização uma linha orgânica
(organizativa) para que os sujeitos da ação possam conduzi-la segundo seus
interesses de classe, ademais de ser o partido para Gramsci o espaço da reserva
moral mais elevada de uma sociedade futura. A práxis marxista em Gramsci,
assim como todo o arcabouço teórico do marxismo para o autor, possui como
critério de aplicação e avaliação para ação criar, renovar e reformar uma nova
cultura e sociedade. Essa premissa leva em consideração que a ausência de um
organizador coletivo (o Partido) constrói para os grupos subalternizados uma
perspectiva avaliativa difusa do terreno da hegemonia que é o terreno da luta de
classes. Esse movimento conduzido pela dominação e direção burguesa impede
a organização de um programa revolucionário pela classe subalternizada. Esta
avaliação é produzida pela revisão gramsciana do príncipe de Maquiavel da
seguinte forma,

Em todo o pequeno volume, Maquiavel trata de como deve ser o Príncipe para
conduzir um povo à fundação do novo Estado, e o tratamento é conduzido com
rigor lógico, com distanciamento cientifico: na conclusão, o próprio Maquiavel
se faz povo, confunde-se com o povo, mas não com um povo “genericamente”
entendido e sim com o povo que Maquiavel convenceu com seu tratamento
precedente, do qual ele se torna e se sente consciência e expressão, com o qual
ele se identifica: parece que todo o trabalho “lógico” não é mais do que uma au-
to-reflexão do povo, do que um raciocínio interior que se realiza na consciência
popular e acaba num grito apaixonado, imediato. De raciocínio sobre si mesma,
a paixão transforma-se em “afeto”, febre, fanatismo de ação. Eis porque o epilo-
go do Príncipe não é algo extrínseco, “imposto” de fora, retórico, mas deve ser
explicado como elemento necessário da obra, ou melhor ainda, como aquele
elemento que reverbera sua verdadeira luz em toda a obra e faz dela algo similar
a um “manifesto político”. (GRAMSCI, 2007, p. 14)

Os elementos descritos por Gramsci na revisão de “O Príncipe” trazem


novos temas sobre os critérios de organização que confluem na construção
de uma “vontade coletiva”. Além disso, podemos perceber que os escritos de
Maquiavel representam o amadurecimento e tradução dessa vontade coletiva e
por isso o livro é um manifesto político e não um manual construído de fora da
história como se pode verificar se comparamos o trecho acima com o que foi
94 Marcos Vinicius Ribeiro

anteriormente citado que fazia referência às “(...) investigações e classificações


pedantes de princípios e critérios de um método de ação (...).”
Por meio dessa avaliação da obra, Gramsci conduz-nos a uma interpretação
mais realista do que metafisica dos escritos de Maquiavel. Disso se abstrai que
o Príncipe de Maquiavel é apropriado por Gramsci como a personificação da
organização coletiva. É o intelectual coletivo que organiza a vontade (nacional
popular). Ou seja, é o partido.
Trata-se do sujeito de uma ação coletiva, fundada na ligação orgânica e dela
produtor, perpetuador, mas também sujeito, que simboliza a prática de um novo
homem em uma nova sociedade. Reserva moral que proporciona a elevação do
plano intelectual da massa em conexão com ela mesma. Produtor de uma realidade
que rompe com os vínculos de dominação econômica e social mecanicamente
reproduzido pelas premissas de perpetuação da hegemonia burguesa irradiada
pelos intelectuais organicamente ligados a classe dominante.
O Príncipe, ou o partido, é a personificação do mito da vontade coletiva
organizada. Produto da luta de classes que não deixa esta vontade esmorecer
ou degenerar, pois está organicamente ligado aos princípios e premissas do
proletariado. Por isso, o mito e a vontade coletiva, a fé na revolução, diríamos,
é um processo dialético de destruição e reconstrução violenta. Violência evitada
a mão de ferro pela classe dominante, uma espécie de fight fire with fire, que
no caso da classe dominante serve para apassivar os subalternos, bem como no
caso do proletariado é uma destruição relacionada à tarefa de reconstrução da
sociedade sobre outras bases, qual seja, as bases revolucionárias. Gramsci, por sua
vez, avalia a questão sobre a crítica a Sorel da seguinte forma,

Mas pode um mito ser “não construtivo”, pode-se imaginar, na ordem de intui-
ções de Sorel, que seja produtor de realidades um instrumento que deixa a von-
tade coletiva na fase primitiva e elementar de sua mera formação, por distinção
(por “cisão”), ainda que com violência, isto é, destruindo as relações morais e
jurídicas existentes? Mas esta vontade coletiva, assim formada de modo elemen-
tar, não deixará imediatamente de existir, pulverizando-se numa infinidade de
vontades singulares que, na fase positiva seguem direções diversas e contrastan-
tes? E isso para não falar que não pode existir destruição, negação, sem uma im-
plícita construção, afirmação, e não em sentido “metafisico”, mas praticamente,
isto é, politicamente, como programa de partido, neste caso, pode-se ver que se
supõe por trás da espontaneidade um puro mecanicismo, por trás da liberdade
(arbítrio-impulso vital) um máximo de determinismo, por trás do idealismo um
materialismo absoluto. (GRAMSCI, 2007, p. 15)

Para que o objetivo de reconstrução revolucionária possa ser um plano amplo


de reforma intelectual, a tarefa histórica em tela não pode ser relegada a uma persona-
ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO 95

lidade, o que colocaria a ação num plano imediato e sem consequências a longo prazo.
Por isso, o Príncipe, assim entendido por Gramsci, deve perpassar objetivos imedia-
tos presentes no espaço de uma conjuntura. Deve articular as categorias históricas de
uma época e sistematizá-las num programa de amplas proporções. Esta tarefa deve ser
confiada a uma reserva moral, apta a concretizar as avaliações de maneira orgânica e
ser capaz de torná-las conscientes, históricas e permanentes. Trata-se da construção e
afirmação de um projeto capaz de tornar-se uma “vontade coletiva” já existente, mas
desorganizada e, portanto, difusa e sedimentada por aspectos parcelares de interpre-
tação e histórica e de ação dos sujeitos. Segundo Gramsci,

O moderno príncipe, o mito-príncipe não pode ser uma pessoa real, um in-
divíduo concreto, só pode ser um organismo; um elemento complexo da so-
ciedade no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva
reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Este organismo já está dado pelo
desenvolvimento histórico e é o partido político, a primeira célula na qual se
sintetizam germes da vontade coletiva que tendem a se tornar universais e to-
tais. (GRAMSCI, 2007, p. 16)

Se uma personalidade protagonizasse a ação, não haveria possibilidade de


construir uma Revolução. Seria, sim, uma restauração, Revolução Passiva capaz
de comprometer o protagonismo dos subalternos, pois no ritmo do raciocínio
empreendido visando a consecução destes objetivos, seria escamoteado o projeto
da “vontade coletiva” em razão da afirmação de uma personalidade. Personificação
expressa no programa de conservação da ordem, referenciada na ação de
apassivamento, e não como tarefa catalizadora da revolução. Essa personificação
completa o quadro da violência constante do capitalismo.
Como dissemos anteriormente, além de submeter suas avaliações ao
contexto histórico, Gramsci produziu sua reflexão baseada no entendimento dos
mecanismos implementados pela classe dominante que propiciaram a derrota
histórica da revolução na Itália. O ano de 1922, que demarcou a ascensão do
fascismo é o marco histórico desta reflexão retomada por Gramsci na prisão.
Sabe-se que o culto à personalidade e a retórica nacionalista(ainda que não fossem
os únicos, nem mesmo os determinates) proporcionou ao fascismo a adesão
das massas, além de promessas de cunho imediato e sem compromissos com a
transformação profunda das calasses sociais. A ascensão fascista foi marcada,
também, por certa ojeriza ao partido. Benedetto Croce, e seu antipartidarismo,
ainda que no campo liberal, representou esta tendência e foi o principal intelectual
burguês combatido por Gramsci.
Contudo, a retomada do Príncipe por Gramsci tendo como horizonte a
organização do partido revolucionário, possuiu como peculiaridade o erro do
96 Marcos Vinicius Ribeiro

partido socialista no combate ao fascismo. Mussolini foi o condutor desta derrota


histórica e sua personificação, pois apesar de empreender a organização do fascismo
através das premissas organizativas de um partido, a ausência de um projeto de
sociedade amplo e progressivo não foi a marca preponderante do fascismo italiano.
Ao contrário, sob a sombra pujante do crescimento da esquerda italiana, mais do
que um projeto de sociedade de amplo alcance, uma das tarefas imediatas e urgentes
do fascismo foi justamente o apassivamento do movimento operário italiano e a
violência como mola propulsora do anticomunismo. Assim, o culto à personalidade
e o anticomunismo foram os substitutos, portanto, da “vontade coletiva”, e
engendraram o projeto de sociedade do fascismo. Na avaliação de Gramsci,

No mundo moderno, só uma ação histórica-política imediata e iminente, ca-


racterizada pela necessidade de um procedimento rápido e fulminante pode
se encarnar miticamente num indivíduo concreto: a rapidez só pode tonar-se
necessária diante de um grande perigo iminente, grande perigo que cria preci-
samente, de modo fulminante, o fogo das paixões e do fanatismo, aniquilando
o senso crítico e a corrosividade irônica que podem destruir o caráter “carismá-
tico” do condottiero (o que ocorreu na aventura de Boulanger). Mas uma ação
imediata desse tipo, por sua própria natureza, não pode ser ampla e de caráter
orgânico: será quase sempre do tipo restauração reorganização, e não do tipo
peculiar à fundação de novos Estados e de novas estruturas nacionais e sociais
(como era o caso no Príncipe de Maquiavel, onde o aspecto de restauração era
só um elemento retórico, isto é, ligado ao conceito literário da Itália descendente
de Roma), será de tipo “defensivo” e não criativo original, ou seja, no qual se
supõe que uma vontade coletiva já existente tenha se enfraquecido, dispersado
e sofrido um colapso perigoso e ameaçador, mas não decisivo e catastrófico,
sendo assim necessário reconcentrá-la e fortalecê-la; e não que se deva criar
uma vontade coletiva ex novo, original, orientada para metas concretas e racio-
nais, mas de uma concreção e racionalidade ainda não verificadas e criticadas
por uma experiência histórica efetiva e universalmente conhecida. (GRAMSCI,
2007, p. 16)

Neste trecho, Gramsci se refere a fórmula de tomada de poder por meio


de um Golpe de Estado e também indicou as insuficiências estruturais de
construção de uma racionalidade ainda não verificada na história italiana, como
a experimentada na Rússia a partir de 1917. Ou seja, a práxis revolucionária.
Vê-se claramente no trecho acima que a dificuldade de afirmação do projeto
revolucionário na Itália esteve diretamente ligado à capacidade de articulação,
precedida de avaliação, entre os intelectuais/dirigentes para difusão de uma
“vontade coletiva” racional e de acordo com as expectativas dos grupos dirigidos,
estes, também, dotados de capacidade de avaliação de acordo com o projeto da
práxis criativa e original.
ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO 97

Ou seja, o elemento da alienação, nesse caso, aparece relacionado à função


de direção. Com a ausência de capacidade articuladora do projeto revolucionário
no seio do partido, ou seja, do “Moderno Príncipe”, ou seu apassivamento diante
dos diversos mecanismos violentos e progressivos, a capitulação toma o espaço
da criação revolucionária e, sabe-se que um dos elementos mais importantes
desta criação, para Gramsci, reside exatamente na sua capacidade ao mesmo
tempo criadora e inovadora. Nos dizeres de Edmundo Dias, um projeto capaz de
“conquistar corações e mentes” e que não se encerrará num golpe de Estado.
Com isso, podemos dizer, por exemplo, que os golpes de Estado na
América Latina dos anos de 1960, 1970 e 1980 só puderam ser restaurações.
Seus objetivos “saneadores” e “preventivos” não motivaram transformações
que incluíssem premissas revolucionárias, mas sim contrarrevolucionárias.
Ativaram mecanismos de apassivamento contra o antagonismo dos movimentos
populares que pudessem disputar a direção do processo histórico em favor dos
subalternizados. Seus objetivos foram além dos golpes propriamente ditos, se
verificando na história dessas ditaduras a planificação do Terrorismo de Estado.
A ideologia é um conceito permanente avaliado por Gramsci sobre a
possibilidade de realização do contexto revolucionário. Ela é a paixão que suscita
a ação, elemento de persuasão moral que difunde a necessidade da ação. Por isso,
a metáfora da guerra para a prática política torna a avaliação do terreno da ação
complexo e real, inextricavelmente ligado a prática, mas mediado pelo elemento
de destruição total.
O elemento máximo de destruição pertencente ao terreno das armas,
ou seja, a própria realização da violência com a guerra, difunde a premissa de
disputa da correlação de forças políticas que possuiu como corolário a existência
da reserva de forças, nesse caso, os exércitos permanentes, mas também todo o
aparato de repressão, capaz de produzir a imposição do projeto sob a forma de
repetição e complementação da ideologia preparada nos períodos de relativa paz
no contexto da luta de classes.
A experiência histórica que fundamenta a realização da metáfora bélica da
guerra na ação política não é exatamente o da I Guerra Mundial, mas sim o da
Revolução Francesa. Embora para o terreno da ação bélica a presença permanente
dos traumas das trincheiras, sua atuação na refundação das sociedades pós-
guerra, elemento, portanto, que não fora abandonado no período de “paz”, pela
mobilização permanente dos sujeitos na realização das tarefas revolucionárias
desatadas a partir de 1789, e pela ação dos jacobinos como elemento de realização
da vontade coletiva, se justifica a atenção delegada pelo autor a práxis proveniente
do terreno de luta da Revolução Francesa. Podemos dizer, que a sociedade civil é
o elemento mais atual e menos anacrônico, portanto, de correspondência com a
98 Marcos Vinicius Ribeiro

correlação de forças políticas das sociedades contemporâneas e não, como se pode


abstrair do trecho citado anteriormente, as soluções de tipo personalista presente
na realização dos impérios da antiguidade, cujo exemplo usado foi Roma.
Porém, mesmo que depois de 1789 os elementos de difusão dos projetos
revolucionários amadurecessem qualitativamente a ponto de tornarem-se práxis
efetiva, os elementos de complexificação da sociedade civil tendo em vista que a
práxis revolucionária só amadurecram depois de 1870. É o período de expansão
dos impérios coloniais que define, para Gramsci, o teor de superação da “revolução
permanente”, típica da elaboração política pós 1848, pelo correspondente político
atualizado da “hegemonia civil”. Trata-se do elemento histórico da práxis capaz
de concretizar a maturação, bem como possibilitar efetivamente a realização do
projeto atualizado de disputa política.
Na avaliação de Gramsci, todos estes elementos complexificados por
diversos saltos qualitativos formam o terreno de lutas e refundam a correlação
de forças para a realização dos projetos políticos no contexto contemporâneo
da luta de classes. Cada elemento em disputa no terreno político e no terreno
de sua realização na superestrutura, encontra-se dialeticamente ligado com um
correspondente que é, poderíamos dizer, seu próprio elemento de difusão na
sociedade civil. Por isso, a existência contemporânea destes projetos, seja na
sociedade política, ela mesma um elemento da superestrutura, seja na sociedade
civil, agora tornada superestrutura pela dialética dos Estados contemporâneos.
Projeto que se robusteceu com elementos de força/violência, que podem ser
praticados em função da realização criativa e desalienada, ou, por outro lado,
em função do apassivamento dos grupos subalternos. Este último, diga-se de
passagem, é o expediente mais usado pelos governos burgueses e que vemos
materializados nas ditaduras de Segurança Nacional e de Terrorismo de Estado.
Mas como é, para Gramsci, a realização da política neste contexto? Ou
seja, quais elementos de formação da vontade coletiva devem ser levados em
consideração para que se possa avaliar o terreno de disputas? Pode-se dizer
que quase tudo passa pela construção material do terreno que se disputa. Desta
forma, extingue-se a possibilidade de realização de soluções imediatistas e pode
se realizar, se o preparo dos intelectuais do grupo subalterno esteja de acordo
com a realização da “vontade coletiva”, uma nova práxis criativa. Porém, sem o
conhecimento do terreno de atuação, e consequente reconhecimento da estratégia
da ação, não há práxis criativa, revolucionária, pois não é possível desconsiderar
que a formulação do arcabouço teórico instrumentalizado para a luta perpassa
o reconhecimento do terreno oferecido para a luta. Ou seja, atividade teórica e
prática se fundem e são combatidas pelos grupos dominantes. Segundo Gramsci,
ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO 99

Ocorre na arte política o que ocorre na arte militar: a guerra de movimento


torna-se cada vez mais guerra de posição; e pode-se dizer que um Estado vence
uma guerra quando a prepara de modo minucioso e técnico no tempo de paz.
A estrutura maciça das democracias modernas, seja como organizações estatais,
seja como conjunto de associações na vida civil, constitui para a arte política
algo similar as “trincheiras” e às fortificações permanentes da frente de combate
na guerra de posição: faz com que seja apenas “parcial” o elemento do movi-
mento que antes constituía “toda” a guerra, etc. (GRAMSCI, 2007, p. 24)

Com isso, não é possível afirmar que o elemento da coerção seja anulado
pelo consenso, sob a justificativa de que aquele seria característico da guerra de
movimento enquanto este seja o mais apropriado para a guerra de posição. Pelo
contrário, por ser parte preponderante, senão total, da estruturação do terreno em
disputas, a coerção é um elemento permanente no plano da luta para a hegemonia
capitalista, pois ao grupos subalternizados reagem a ela e a ela resistem. Embora
o elemento de complexificação da sociedade civil experimentado no pós-guerra
traga possibilidades de estabelecer paralelos entre o terreno em disputas no
campo de batalhas com o da luta de classes, a coerção permanece como ponto
primordial da estratégia de dominação contrarrevolucionária, mas não só
relegado aos períodos de crise, e sim como correspondente permanentemente
difundido, estrategicamente preparado tendo em vista o apassivamento dos
grupos subalternos.
Como resultado do plano de dominação e imposição de racionalização, o
Estado atua de maneira decisiva na garantia da realização do planejamento da
dominação. Gramsci nunca abandonou a premissa marxiana do Estado capitalista
como órgão regulador e difusor da dominação de classe. Tanto para Marx, como
para Gramsci e Lenin, o estado é o mecanismo de dominação impositivo da
burguesia em relação aos subalternos. Não deixa de sê-lo, portanto, mesmo que o
mapeamento do terreno em disputas nas sociedades contemporâneas ocidentais
estabeleça como premissa de atuação a guerra de posição como estratégia de ação
para os grupos subalternos ou até mesmo para os partidos. Até mesmo porque,
como se sabe, mesmo nesse terreno os mecanismos de coerção se fortalecem
sobremaneira, pois são apoiados pela difusão do consenso nas “trincheiras” de
luta, nas “casamatas” do capitalismo. E mesmo assim, a mobilização permanente,
ou seja, a guerra de movimento propriamente dita, não deve ser abandonada.
O estado capitalista torna-se elemento de difusão e implementação da
estratégia de dominação. Elemento de alienação para os subalternos e afirmação
da hegemonia burguesa. Qualificador do tipo de política que interessa ao exercício
de dominação burguesa e desqualificador do papel político exercido pelos
subalternos. Elemento de estranhamento para os grupos subalternos no terreno
100 Marcos Vinicius Ribeiro

da política que ratifica a impossibilidade de hegemonia do proletariado a mão de


ferro (com violência). Em última instância, trata-se do aparato mais poderoso em
termos de força que garante a realização do projeto educador do qual os grupos
dominantes são portadores, mas nem por isso desvinculado dos interesses das
classes dominantes que, sob o capitalismo, corresponde à dominação da burguesia.
O Estado (sociedade civil + sociedade política) é um elemento de racionalização
indispensável para o exercício de dominação burguesa-capitslista. Para Gramsci,

O Estado, também neste campo, é um instrumento de “racionalização”, de ace-


leração e de taylorização; atua segundo um plano, pressiona, incita, solicita e
“pune”, já que, criadas as condições nas quais um determinado modo de vida é
“possível”, a “ação ou omissão criminosa” devem receber uma sanção punitiva,
de alcance moral, e não apenas um juízo de periculosidade genérica. (GRAMS-
CI, 2007, p. 28)

Nesse caso, pode-se realizar uma analogia com o universo de novos modos
de vidas que são solapados pelas reestruturações produtivas características das
sociedades ocidentais pós 1870 com o novo ciclo de expansões imperialistas
coloniais. Gramsci refere-se aqui especificamente ao plano de adequação das leis
ao novo contexto. Porém, para além de apresentar uma tendência conjuntural,
descartável, portanto, quando se encerra a tarefa imediata, de “criação de um
novo tipo de civilização”, como discutido anteriormente a partir da leitura e
avaliação de Gramsci sobre o “Americanismo e Fordismo”, estes mecanismos
se expandem para as sociedades ocidentais como um conjunto de medidas que
buscam estabelecer a planificação da dominação burguesa.
Com isso, as transformações dentro do capitalismo alcançam um estatuto
distinto daquele relacionado à transição da sociedade feudal em capitalista.
Não se quer, com isso, exagerar no peso histórico das transformações sociais
de grande vulto, como exercício de mero historicismo desinteressado, mas sim
lembrar de um elemento complexo do papel exercido pela burguesia no período
contemporâneo. Papel político que oscilou entre a Revolução e a contrarrevolução
de 1789 a 1870 na França como caso paradigmático. Retomando o caráter vivo da
literatura “maquiaveliana”, a metáfora do Centauro presente na atuação do Estado
ocidental, traduz certa duplicidade (coerção/consenso) nos seguintes termos,

Outro ponto a ser fixado e desenvolvido é o da “dupla perspectiva” na ação polí-


tica e na vida estatal. Vários graus nos quais se pode apresentar a dupla perspec-
tiva, dos mais elementares aos mais complexos, mas que podem ser reduzidos
teoricamente a dois graus fundamentais, correspondentes a natureza dúplice do
Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade
e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele
ANTÔNIO GRAMSCI E OS ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO 101

universal (da “Igreja” e do “Estado”), da agitação, da propaganda, da tática e da


estratégia, etc. (GRAMSCI, 2007, p. 33)

Como se pode observar no trecho acima, mais uma vez as duas formas de
atuação do Estado (coerção e consenso-convencimento), observando o exercício
efetivo da hegemonia, são equivalentes, complementares e profícuos. Força e
consenso é a dupla moral que estrutura a ação do Estado ocidental, visto de forma
ampliada na interação dialética, termo de unidade e distinção entre sociedade civil
e sociedade política. A preponderância da sociedade civil, com a organização das
“trincheiras” de luta, evidencia o papel estratégico do partido. Com isso, observa-
se que o partido é uma instituição inserida no terreno da violência, pois, como
vimos, é no debate sobre a organização do intelectual coletivo que Gramsci retoma
o papel da violência na organização do Estado ocidental, preocupação, diga-se de
passagem, presente em toda avaliação das sociedades ocidentais contemporâneas.
Na contracorrente dos aspectos mais progressistas da política que podem
traduzir o caráter mais adiantado da construção da vontade nacional popular,
ou seja, a Revolução (proletária) necessária e a única possível de ser enquadrada
nos casos de Revolução discutida por Gramsci para o contexto nacional italiano,
se encontra outro tipo de governo que possui a peculiaridade “apassivadora”,
retrograda ou progressista, ainda que não revolucionária. Trata-se do Cesarismo,
variante do Bonapartismo estudado por Marx e desenvolvido por Trotsky, mas
retomado por Gramsci para avaliar os mecanismos de atuação dos governos
personalistas que marcaram contextos contrarrevolucionários.
O cesarismo é uma categoria histórica de análise das formas assumidas
pelo poder de Estado em contextos de crise, aí sim sob o protagonismo do poder
executivo. Trata-se da correlação de forças em disputa no desenvolvimento da
luta de classes, cujo Estado é conquistado por um elemento “aparentemente”
alternativo entre duas ou mais forças em equilíbrio. Geralmente o exercício de
poder é relegado a uma personalidade com algum apelo popular, ou surgida do
movimento de definições inerentes à construção da força dirigente. Uma via
“alternativa” ao contorno político apresentado por definições antagônicas.
No entanto, este conceito será objeto de outros artigos. Aqui nos foi possível
discutir apenas alguns aspectos da violência na obra de Gramsci, sobretudo ao
que se refere ao papel deste elemento da luta de classes nas sociedades capitalistas,
principalmente quando se trata de fixar os limites possíveis para a atuação das
classes e grupos subalternizados. Não se trata de uma investigação pedante, cujos
conceitos servem apenas para descrever termos da história passada, mas sim
elementos ativos e de guia para ação nas sociedades concretas.
Esperamos ter contribuído para a publicização e melhor entendimento da
obra deste grande militante comunista e teórico dos meios e metodologias para
102 Marcos Vinicius Ribeiro

o alcance do exercício da política que realmente interessa às classes dominadas.


Com Gramsci é possível perceber, sobretudo, que a única transformação que
realmente interessa ao povo, entendido aqui como classe hegemonizada pelos
interesses da burguesia no capitalismo, é a Revolução proletária. A ela (Revolução
proletária), o capitalismo reagirá com violência, mas não significa que a violência
capitalista, tampouco o próprio sistema capitalista é imutável. Pois, como afirmou
Leon Trotsky, “Todas as revoluções são impossíveis até que se tornem inevitáveis”.

Referências:

DIAS, Edmundo. O Outro Gramsci. Xamã. São Paulo, 1996.


GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere, volume 1. Introdução ao Estudo da Filosofia de
Benedetto Croce. 4ª Ed. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 2006.
_________________. Cadernos do Cárcere - Volume 2. Os Intelectuais. O Princípio Educativo.
Jornalismo. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
_________________. Cadernos do Cárcere - volume 3. Maquiavel - Notas Sobre o Estado e a
Política. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
_________________. Cadernos do Cárcere. Volume 4: Temas de Cultura, Ação Católica.
Americanismo e Fordismo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
_________________. Cadernos do Cárcere. Volume 5. O Risrogimento. Notas sobre a História da
Itália. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

Nota Explicativa
1 O Conceito de Revolução Passiva é trabalhado por Gramsci nos cadernos 22 (volume 4 da edição
brasileira) e 19 (volume 5 na edição brasileira). A grosso modo, podemos definir a Revolução Passiva como
Revolução/Restauração ou até mesmo contrarrevolução. No primeiro caso, trata-se da organização dos
grupos dominantes visando sabotar o projeto de Revolução dos grupos subalternizados, (re)estabelecendo
o equilíbrio relativo a favor dos grupos dominantes. No segundo caso, trata-se da aniquilação dos projeto de
Revolução dos grupos subalternizados, sendo que a violência é acionada para compensar e (re)estabelecer
a dominação.
2 A formação de uma “vontade coletiva nacional-popular” é o papel do partido revolucionário, projeto
capaz de articular a ação dos grupos subalternizados para o cumprimento das tarefas revolucionárias.
3 DIAS, Edmundo. O Outro Gramsci. Xamã. São Paulo, 1996.
103

ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE


PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Adriana Ferreira de Paula1

Resumo: Este trabalho aborda como que a economia verde pode promover o
desenvolvimento sustentável, a partir da análise de uma série de relatórios da
Rio+20. Antes de adentrar a temática, apresenta-se a conceituação de economia
verde e desenvolvimento sustentável, enfatizando que não se trata de substituição
de nomenclaturas. A pesquisa bibliográfica tem o propósito de demonstrar as
dificuldades enfrentadas para tornar o desenvolvimento sustentável realidade,
bem como os meios para transição do modelo econômico para verde, rechaçando
o papel do Estado neste processo. Além disso, identifica as consequências da
mudança do atual modelo econômico para verde, os meios de implantação desta
economia, os desafios a serem enfrentados, enfatizando a necessidade de mudar
os mecanismos de avaliação do crescimento econômico utilizado pelos países.
Aborda-se, ainda, exemplos de desenvolvimento sustentável postos em prática
por alguns países, como o escopo de demonstrar que é possível a concretização
da economia verde. E, não poderia deixar de comentar como que a matéria foi
debatida na Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável do Rio de 2012.
Palavras-Chave: Economia Verde, Desenvolvimento Sustentável, Meio Ambiente.

Introdução

A pesquisa apresenta os conceitos de desenvolvimento sustentável e


economia verde, enfatizando que não se trata de substituição de termos, visto
que a economia verde apresenta como ferramenta para implementação do
desenvolvimento sustentável.
O desenvolvimento sustentável enfatiza o aspecto econômico e ambiental,
enquanto a economia verde abarca também o aspecto social.
Na sequência, verificou-se as dificuldades para colocar o
desenvolvimento sustentável em prática, não obstante os inúmeros acordos
internacionais selados nos últimos anos, nas Conferências realizadas pela

1 (Advogada e Professora do Curso de Direito da Faculdade Almeida Rodrigues de Rio Verde-GO. Especia-
lista em Direito Processual Civil, Trabalho e Penal. Mestre em Direito, Relações Internacionais e Desenvol-
vimento)
104 Adriana Ferreira de Paula

Organização das Nações Unidas (ONU) e pelo Programa das Nações Unidas
para o Meio Ambiente (PNUMA).
Ato contínuo, apresentou-se alguns mecanismos que podem impulsionar
o processo de transição do atual modelo econômico rumo uma economia verde,
destacando o papel do Estado, através de políticas públicas que incluam normas
rígidas de regulamentação, investimentos em áreas que incentive o esverdeamento
da economia, limitação de gastos em setores que esgotem o capital natural,
utilização de imposto ambiental, investimento em capacitação e treinamento,
dentre outros.
Destacou-se as consequências da mudança do atual modelo econômico
para verde, como ampliação do número de empregos na agricultura, a partir do
investimento em reflorestamento e conservação de florestas, transporte, energia e
construção civil, bem como a redução de emissão de gases que provocam o efeito
estufa e melhoria da mobilidade urbana. Isso sem falar que pode minimizar o
câncer de qualquer sociedade, a pobreza.
Para tornar realidade a economia verde depende de novos investimentos,
habilidades, tecnologias, o que requer recursos financeiros. Assim, constatou-se
que os meios de implementação da economia verde dependem de cooperação
internacional através de transferência de recursos e fiscalização destes.
Abordou-se, ainda, que a avaliação da economia verde deve ser feita através
de um indicador que envolva o socioeconômico e os recursos naturais de cada
país e não através do Produto Interno Bruto (PIB).
Após, diagnosticou-se o principal desafio para implementação da economia
verde, ou seja, recursos financeiros.
O estudo demonstrou-se que é possível estabelecer um novo modelo
econômico, a partir de ações colocadas em práticas por alguns países, em especial,
países em desenvolvimento, tendo em vista que estes apresentam maiores
resistências.
Por fim, apresentou-se uma síntese do resultado da Conferência do Rio
sobre desenvolvimento sustentável de 2012, com enfoque na economia verde.

Conceito De Economia Verde E Desenvolvimento Sustentável

Não há um consenso quanto ao conceito de economia verde, bem como


quanto à distinção desta de desenvolvimento sustentável.
Uma coisa é certa, o termo desenvolvimento sustentável é frequentemente
utilizado, nas últimas décadas, por empresas que buscam vincular sua imagem à
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 105

conservação da natureza, como marketing, enquanto o termo “economia verde”


apareceu recentemente.
Porém, há alguns questionamentos em torno das duas expressões: qual a
origem do desenvolvimento sustentável e economia verde? Trata-se de sinônimos?
Por que estão relacionados com a erradicação da pobreza?
Salienta-se que o conceito de “economia verde” é mais abrangente do que
“desenvolvimento sustentável”, estabelecido pelo Relatório de Brundtland, em
1987, reafirmado na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento do Rio de Janeiro de 1992.
Com efeito, “a expressão desenvolvimento sustentável foi empregada pela
primeira vez, provavelmente em 1980, na Estratégia de Conservação Mundial
(WCS), documento preparado pela União Internacional para Conservação da
Natureza e dos Recursos Naturais (AMARAL JÚNIOR, 2011, p.578).
Através do relatório da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e
Desenvolvimento, denominada de Relatório de Brudtland, de 1987, tem-se a
definição de desenvolvimento sustentável, concebido como “é aquele que atende
às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade das futuras gerações
de atender às suas próprias necessidades” (MILARÉ, 2009, p.68-69).
Para Amaral Júnior (2011, p. 578):

o conceito de desenvolvimento sustentável já estava implícito no trabalho da


Conferência sobre o Meio Ambiente Humano e na elaboração da Carta Mundial
para a Natureza de 1982. Recebeu, todavia, consagração definitiva na Declara-
ção do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na Convenção sobre Mu-
danças Climáticas e na Convenção sobre Diversidade Biológica, na Agenda 21
e no programa de ação aprovado na Conferência do Rio de 1922. O desenvolvi-
mento sustentável consta, ainda, na Declaração d ecopenhague sobre Desenvol-
vimento Social, na Declaração do Milênio adotada pela ONU no ano 2000, na
Declaração de Nova Délhi dos Princípios de Direito Internacional Relacionados
ao Desenvolvimento Sustentável, que vieram à luz na Septuagésima Conferência
da Associação de Direito Internacional, ocorrida em 2002, e no Resultado da
Cúpula Mundial, adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2005.

O conceito de desenvolvimento sustentável foi positivado no Princípio


3, da Agenda 21, como sendo aquele capaz de “atender equitativamente às
necessidades, em termos de desenvolvimento e de ambiente, das gerações atuais e
futuras” (AMARAL JÚNIOR, 2012)
O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) define
a economia verde como “é aquela que resulta em melhoria do bem-estar humano
106 Adriana Ferreira de Paula

e da igualdade social ao mesmo tempo em que reduz significativamente os riscos


ambientais e a escassez ecológica” (PNUMA, 2011, p.9).
Cabe assinalar que a economia verde traduz no caminho para
o desenvolvimento sustentável e erradicação da pobreza, o que será
debatido na Conferência Rio + 20, em 2012, sobre desenvolvimento
sustentável.
Extraí-se da síntese elaborada pelo PNUMA para os tomadores de decisão
da Conferência Rio + 20 que a economia verde é

considerada como tendo baixa emissão de carbono, é eficiente em seu uso


de recursos e socialmente inclusiva. Em uma economia verde, o crescimen-
to de renda e de emprego deve ser impulsionado por investimentos públicos e
privados que reduzem as emissões de carbono e poluição e aumentam a
eficiência energética e o uso de recursos, e previnem perdas de biodiversidade e
serviços ecossistêmicos (PNUMA, 2011, p.9).

Assim, não estamos diante de substituição de “desenvolvimento


sustentável” para “economia verde”, mas sim reconhecendo que “a realização da
sustentabilidade se baseia quase que inteiramente na obtenção do modelo certo
de economia” (PNUMA, 2011, p.9).
O que se pretende com a economia verde é a mudanças do processo
produtivo, a fim de propiciar o desenvolvimento sustentável, melhora da questão
social e ambiental. Portanto, não visa à economia verde mudar o modo de viver,
mas sim aperfeiçoar a forma de produção e consumo, fontes de desigualdades
entre os povos e degradação ambiental.
A Cartilha ilustrada sobre economia verde, desenvolvimento sustentável e
erradicação da pobreza, elaborada pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE) ao disciplinar o assunto ressalta que,

a expressão economia verde refere-se à otimização de atividades que façam uso


racional e equitativo dos recursos naturais (socialmente inclusivo), emitindo
baixas taxas de gases de efeito estufa (economia descarbonizada), agredindo mi-
nimamente o meio ambiente. Para isso, são necessárias novas tecnologias que
permitam aos diferentes segmentos da economia utilizar maquinários de baixo
consumo energético (ORSINI, 2012, p.8).

Para o INPE, é preciso substituir as matrizes energéticas por fontes “não


poluentes e renováveis, eólica (energia dos ventos), a eletrovoltaica (energia
solar), a biodigestora (queima de gases emitidos por decomposição de dejetos de
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 107

animais domésticos, sobra de cultivares agrícolas, esgoto doméstico) e a maré-


motriz (força motriz de marés)” (ORSINI, 2012, p.9).
O INPE enfatiza, ainda, a necessidade de estabelecer o consumo responsável
de água, diante da escassez de água potável.
Partindo destas premissas, como será a transição do modelo
macroeconômico para economia verde? Quais as conseqüências desta mudança
de modelo econômico? Porém, antes de responder tais questionamentos, precisa-
se identificar as dificuldades enfrentadas ao longo dos anos para por em prática o
desenvolvimento sustentável.

Dificuldades Para Tornar O Desenvolvimento Sustentável Realidade

Estabelece o Painel de Alto Nível do Secretário Geral das Nações Unidas sobre
Sustentabilidade Global que: Painel de Alto Nível sobre Sustentabilidade Global

há vinte e cinco anos, o Relatório Brundtland introduziu o conceito de desen-


volvimento sustentável à comunidade internacional como um novo paradigma
para o crescimento econômico, igualdade social e sustentabilidade ambiental.
Afirmava que o desenvolvimento sustentável poderia ser alcançado por meio
de um marco regulatório integrado que englobasse esses três pilares. O Relató-
rio Brundtland tinha razão na época e continua tendo hoje. O problema é que,
25 anos depois, o desenvolvimento sustentável continua sendo um conceito de
aceitação generalizada em vez de uma realidade prática cotidiana. O Painel se
questionou porque isso acontece e o que pode ser feito agora para mudar a si-
tuação (PESSOAS RESILIENTES..., 2012, p.3).

O Painel aponta duas possíveis respostas para tais questionamentos. A


primeira diz respeito à falta de vontade política para colocar o desenvolvimento
sustentável em prática. A segunda funda-se na ausência de incorporação do
assunto no debate nacional e internacional sobre a política econômica. “A maioria
dos tomadores de decisões econômicas ainda considera o desenvolvimento
sustentável como algo exógeno às suas responsabilidades principais de gestão
macroeconômica e outras ramificações da política econômica” (PESSOAS
RESILIENTES..., 2012, p.4).
Assim, faz-se necessário aliar o tripé do desenvolvimento econômico, social
e ambiental, na concepção do Painel:

[...] integrar questões ambientais e sociais às decisões econômicas é essen-


cial para seu sucesso. Há tempo demais, economistas, ativistas sociais e cien-
108 Adriana Ferreira de Paula

tistas ambientais têm simplesmente falado ao mesmo tempo – quase falando


línguas diferentes ou no mínimo dialetos diferentes. Há tempo demais, eco-
nomistas, ativistas sociais e cientistas ambientais têm simplesmente falado
ao mesmo tempo – quase falando línguas diferentes ou no mínimo diale-
tos diferentes. Chegou a hora de unificar as disciplinas, desenvolver uma
linguagem comum para o desenvolvimento sustentável que transcenda os
campos opostos; em outras palavras, trazer o paradigma do desenvolvimen-
to sustentável para a economia tradicional. Desta forma, será muito mais
difícil para políticos e legisladores ignorá-lo. É por este motivo que o Painel
afirma que a comunidade internacional precisa daquilo que alguns chama-
ram de “uma nova economia política” para o desenvolvimento sustentável
(PESSOAS RESILIENTES..., 2012, p.4).

Essa nova economia que o Painel ressalta é aquela que promove crescimento
aliado ao desenvolvimento de forma sustentável, que é a proposta da economia
verde.
Diagnosticadas as dificuldades para implementação do desenvolvimento
sustentável convém-nos analisar como que pode ser feita a transição do modelo
atual para uma economia verde e os principais responsáveis por este processo.

Transição Para Economia Verde E O Papel De Seus Atores

Para Becker, geógrafa, historiadora e professora emérita da Universidade


Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) “a transição para economia verde significa
a passagem de uma economia de destruição da natureza para economia do
conhecimento da natureza”. Esta define “a economia verde com a economia do
conhecimento da natureza como aquela que utiliza a natureza sem destruir suas
potencialidades e diversidades” (KAMPF, 2012).
Na concepção do PNUMA (2011), a transição da economia para verde,
vai variar entre as nações a depender especificidades de capital humano e natural
de cada país e de seu nível relativo de desenvolvimento. Os países que têm alto
nível de desenvolvimento humano, alcançado sem sombra de dúvida à custa dos
recursos naturais e alta de emissões de gases de efeito estufa, terão a tarefa de
reduzir suas pegadas ecológicas per capita, sem prejudicar a sua qualidade de vida.
Enquanto os países que têm pegada ecológica menor, devem fornecer melhores
serviços e bem-estar, sem aumentar suas pegadas ecológicas.
Entende-se por pegada ecológica as marcas feitas pelo ser humano na terra,
a partir de seu modo de viver, seja utilização dos recursos naturais, degradação do
meio ambiente, geração de resíduos sólidos, dentre outros aspectos.
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 109

O principal ator da transição da economia para verde é o Governo, a partir


de suas políticas públicas que, segundo o PNUMA (2011, p. 35), devem incluir:

o estabelecimento de normas rígidas de regulamentação;


a priorização de investimentos e gastos públicos em áreas que estimulem o
esverdeamento de setores econômicos;
a limitação de gastos em áreas que esgotem o capital natural;
o uso de impostos e instrumentos que se baseiam no mercado para mu-
dar a preferência do consumidor e promover o investimento verde e a
inovação;
o investimento em capacitação e treinamento; e
o fortalecimento da governança internacional.

Com o estabelecimento de normas regulatórias, tem-se a possibilidade de


reduzir práticas insustentáveis, até mesmo eliminá-las. O grande dificultador é o
cumprimento destas normas, portanto, faz-se necessário estabelecer instituições
fortes para fiscalizarem.
Ademais, faz-se necessário também a priorização de investimentos e gastos
públicos em áreas que estimulem o esverdeamento de setores econômicos, seja,

os subsídios verdes, tais como as medidas de apoio ao preço, os incentivos fis-


cais, a subvenção direta e suporte para empréstimos podem ser usados por uma
série de razões: (a) agir rapidamente a fim de evitar o bloqueio de ativos e siste-
mas insustentáveis, ou da perda de capital natural valioso do qual a população
depende para a sua subsistência; (b) garantir a realização de infraestrutura e
tecnologias verdes, especialmente aquelas com benefícios não-financeiros subs-
tanciais ou benefícios financeiros que sejam difíceis para os setores privados
capturarem; e (c) estimular as indústrias emergentes verdes, como parte de uma
estratégia para construir uma vantagem comparativa e conduzir para o emprego
e crescimento a longo prazo (PNUMA, 2012, p.29).

Outro exemplo de investimentos na economia verde é a criação de


incentivos fiscais voltados para a produção e consumo, como acontece num
“grande número de municípios da Índia, por exemplo, estabeleceu um desconto
no imposto predial para os usuários de aquecedores solares de água [...]” Que
pode variar de 6-10% do imposto predial (PNUMA, p. 29, 2012).
Já a limitação de gastos em áreas que esgotem o capital natural, a necessidade
premente é a redução dos subsídios, posto que a redução dos preços das
mercadorias impulsiona o consumo excessivo e, por consequência, a degradação
do meio ambiente, como se vê na política brasileira de diminuição de impostos de
eletrodomésticos e veículos.
110 Adriana Ferreira de Paula

Também constitui importante ferramenta de transição para economia


verde, o uso de impostos e instrumentos que se baseiam no mercado para mudar a
preferência do consumidor e promover o investimento verde e inovação. É o que
se pode chamar de imposto ambiental “para impor um preço sobre a poluição e o
uso dos recursos naturais escassos e para estimular a criação de empregos através
da redução do custo do trabalho sob a forma de impostos e contribuições sociais”
(PNUMA, p.31, 2012).
Neste particular, o Brasil anda na contramão, pois se está vivenciando
políticas de redução do Imposto sobre Produto Industrializado (IPI), sobretudo
veículos e alguns eletrodomésticos, para estimular o consumo e reduzir o
desemprego. Porém, enfreta-se um aumento de emissão de gases poluentes em
decorrência da utilização destes veículos. Assim, o Governo brasileiro não está
utilizando os impostos para promover desenvolvimento sustentável.
Segundo o PNUMA (2012, p. 31):

um estudo da OIT (Organização Internacional do Trabalho) analisou o impacto


de um imposto ambiental sobre o mercado de trabalho. Foi concluído que a im-
posição de um preço sobre as emissões de carbono e o uso da renda para redu-
ção de custos trabalhistas através da redução de contribuições previdenciárias
criaria 14,3 milhões de novos postos de trabalho durante um período de cinco
anos, o que equivale a um aumento de 0,5% de empregos no mundo. Em 1999, o
governo alemão aumentou gradativamente os impostos sobre os motores com-
bustíveis, eletricidade, petróleo e gás em escalas previstas até 2003. A receita foi
diretamente usada na redução dos encargos não salariais através da redução das
contribuições sociais dos parceiros ao fundo de pensão. Um estudo de impacto
feito pelo Instituto Alemão para Investigação Econômica descobriu que se o
modesto imposto ambiental não tivesse sido introduzido, a contribuição para o
fundo de pensão seria 1,7% mais elevada146. Estima-se que o efeito da redução
sobre os custos trabalhistas não salariais tenha criado mais 250.000 postos de
trabalho de período integral e reduzido às emissões de CO2 em 3% em 2010.

Também para se chegar a uma economia verde é preciso investimento em


capacitação e treinamento, ou seja, é indispensável preparar os trabalhadores para
os novos empregos e para as mudanças de execução do trabalho insustentável. Para
tanto, há que ressaltar o papel das organizações intergovernamentais, instituições
financeiras internacionais, organizações não governamentais, o setor privado
e a comunidade internacional como um todo para prestar assistência técnica e
financeira aos países em desenvolvimento (PNUMA, 2012).
Destarte, vale lembrar que a sociedade, as empresas privadas e demais
atores sociais desempenham grande papel neste processo, mas, sem sombra de
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 111

dúvida, suas ações são incipientes, frente à dimensão do problema, ou melhor,


é ilusão acreditar que basta “cada um sua parte”, que a mão Terra está protegida.
Portanto, precisa-se de ações com resultados efetivos para alcançar a
necessária economia verde, pois da análise das Conferências da ONU para o meio
ambiente, desde Estocolmo, em 1972, até os documentos atuais, o que se nota,
não é a falta de instrumentos jurídicos, mas sim, ausência de implementação dos
debates e dos compromissos assumidos, por parte dos Estados.
O assessor extraordinário do Ministério do Meio Ambiente para a Rio+20,
Fernando Lyrio, ao comentar o assunto destaca que: “[...] ainda há expressivas
lacunas na implementação de alguns desses compromissos, resultado da falta de
vontade política e da ausência de meios adequados para a implementação dos
compromissos acordados em 1992” (ECONOMIA VERDE..., 2012).
Assim, verifica-se que a defesa do meio ambiente e a promoção do
desenvolvimento sustentável ficam restrita ao campo diplomático, diante da
inércia dos atores responsáveis por sua implementação. Os Governos e as grandes
empresas fazem muito marketing e poucas ações com resultados efetivos, ou seja,
encontra-se ainda na fase greenwashing ou maquiagem verde, em português.
Diante disso, precisa-se então fortalecer a governança internacional,
nacional, regional e locais como reconhece a ONU no Relatório “O Futuro que
Queremos” preparado para a Rio+20 (2012a, p.8):

nós reconhecemos que uma forte governança em níveis locais, nacionais, regio-
nais e global é crucial para dar prosseguimento ao desenvolvimento sustentável.
O fortalecimento e reforma da estrutura institucional deve, entre outras coisas:
a) Integrar os três pilares de desenvolvimento sustentável e promover a imple-
mentação de Agenda 21 e resultados relacionados, de modo consistente com
os princípios de universalidade, democracia, transparência, custos acessíveis
e responsabilidade, mantendo em mente os princípios do Rio, em particular
as responsabilidades comuns, mas diferenciadas. b) Oferecer uma orientação
política coesiva e centrada nos governos para o desenvolvimento sustentável
e identificar ações específicas de modo a cumprir a agenda de desenvolvimen-
to sustentável através da promoção de uma tomada de decisões integrada em
todos os níveis. c) Monitorar o progresso na implementação da Agenda 21 e
resultados e acordos relevantes, em níveis locais, nacionais, regionais e global. d)
Reforçar a coerência entre as agências, fundos e programas do Sistema da ONU,
incluindo Instituições Financeiras e Comerciais Internacionais.

Seguem a mesma esteira, as propostas do Painel de Alto Nível do Secretário


Geral das Nações Unidas sobre Sustentabilidade Global, como se vê a seguir:
112 Adriana Ferreira de Paula

para atingirmos o desenvolvimento sustentável, precisamos construir um arca-


bouço efetivo de instituições e processos decisórios nos níveis local, nacional,
regional e global. Devemos superar o legado de instituições fragmentadas es-
tabelecidas a partir de uma única temática; déficits tanto de liderança quanto
de espaço político, falta de flexibilidade para adaptação a novos tipos de desa-
fios e crises; e uma falha frequente em prever e planejar tanto desafios quanto
oportunidades - tudo isso prejudica não só a formulação de políticas como sua
realização efetiva (PESSOAS RESILIENTES..., 2012, p.10).

Segundo Abromovay, mestre em Ciências Políticas, Doutor em Ciências


Econômicas e Professor de economia, precisaram de uma governança que permita
compatibilizar o sistema econômico e fazer com que ele caiba dentro dos limites
ecossistêmicos. Enfatiza que isso é algo que a humanidade precisa aprender a fazer.
Para Abromovay é necessário que saibamos impor limites ao lucro, à produção, ao
consumo, ao crescimento econômico, e respeitemos as fronteiras ecossistêmicas
(KAMPF, 2012).
Além disso, faz-se necessária a cooperação dos países desenvolvidos para
com os países em desenvolvimento, na tarefa de transição do sistema econômico
para verde. Segundo a ONU, no Relatório “O Futuro que Queremos” (2012, p.6):

nós notamos que a transformação para a economia verde deve ser uma oportu-
nidade para todos os países e uma ameaça para nenhum. Portanto, nós resolve-
mos que os esforços internacionais para ajudar os países a estabelecerem uma
economia verde no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação
da pobreza não podem:
a) criar novas barreiras comerciais;
b) impor novas condições para assistências e financiamentos;
c) ampliar diferenças tecnológicas ou exacerbar a dependência tecnológica de
países em desenvolvimento perante países desenvolvidos;
d) restringir o espaço político para que países busquem seus próprios caminhos
para o desenvolvimento sustentável.

Tem-se portanto, que a governança deve ser fortalecida, bem com a


cooperação internacional para tornar realidade a economia verde.

Consequências Da Mudança Do Atual Modelo Econômico Para Verde

Há que diga que o “esverdeamento” de economias retraia a mesma, diminui


empregos e, por consequência, minimiza a criação de riquezas. Para os otimistas,
com a economia verde tem-se “oportunidades significativas de investimento e
crescimento relacionado à riqueza e empregos”, desde que existam “[...] novas
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 113

condições possibilitadoras para promover transição para uma economia verde,


questão na qual se faz necessária a ação urgente por parte dos tomadores de
decisão do mundo todo” (PNUMA, 2011, p.10).
Mas, como pode gerar mais emprego? Basta à inclusão de condições
possibilitadoras- nas políticas públicas para atingir tal desiderato?
É certo que o fortalecimento das políticas públicas contribuirá para
alavancar a economia e gerar novos postos de trabalho, porém, não será suficiente.
O PNUMA (2011) cita algumas áreas que alavancariam o número
de empregos, no modelo verde de economia, como: agricultura, a partir do
investimento em reflorestamento e conservação de florestas, transporte, energia e
construção civil, conforme segue:

ao longo da próxima década, o emprego mundial na agricultura cresceria até


4%. O investimento na conservação florestal e no reflorestamento poderia so-
zinho, impulsionar os empregos formais nesse setor em cerca de 20% até 2050.
No que diz respeito ao setor de transportes, a melhoria na eficiência de energia
em todos os modos de transportes e a mudança de transporte privado em pú-
blico ou não motorizado aumentaria ainda mais os empregos em cerca de 10%
acima do modelo atual. Finalmente, investimentos na melhoria da eficiência
energética na construção civil poderia gerar um adicional de 2 a 3,5 milhões
de empregos apenas nos Estados Unidos e na Europa. Se a demanda por novas
construções (casas, hospitais, escolas, etc.) que há nos países em desenvolvi-
mento for considerada, o potencial é muito maior (PNUMA, 2011, p.20).

Além da geração de mais trabalho, a economia verde proporcionará a


redução de emissão dos gases que contribuem para o efeito estufa, a partir da
substituição dos combustíveis fósseis por energias renováveis.
O setor energético contribui de forma significativa pela emissão dos gases
de efeito estufa. Portanto, tornam-se indispensáveis os investimentos em fontes
renováveis, sobretudo, nos locais em que se encontram.
Outro aspecto positivo do esverdeamento da economia é a sustentabilidade
urbana. Estima-se que cerca de 50% da população mundial vive nas cidades, sendo
responsável por 75% de emissões de gases carbono (PNUMA, 2011).
O fato é que a população urbana não para de crescer. Portanto, novos
investimentos devem ser injetados em infraestrutura e melhorar as que já existem.
Neste contexto, faz-se necessário inserir práticas que reduzam o impacto de
emissão de gases e consumo de energia.
Também, a economia verde pode,
114 Adriana Ferreira de Paula

reduzir a pobreza contínua através de uma série de setores importantes – agri-


cultura, silvicultura, água doce, pesca e energia. A silvicultura sustentável e os
métodos de cultivo ecologicamente corretos ajudam a conservar a fertilidade do
solo e recursos hídricos em geral; principalmente para agricultura de subsistên-
cia, sobre a qual depende o sustento de quase 1,3 bilhão de pessoas (PNUMA,
2011, p.10).

Com as desigualdades sociais, tem-se mais exploração dos recursos


naturais, vez que os mais necessitados dependem mais dos recursos ambientais
para garantir sua sobrevivência.
Após, a análise das consequências da economia verde para a economia e
o meio ambiente, há que se verificar os meios de implementação e avaliação da
economia desta.

Meios De Implantação Da Economia Verde

Sem sombra de dúvida, para implementação da economia verde é necessário


“[...] novos investimentos, formação de novas habilidades, desenvolvimento,
transferência e acesso à tecnologias e fomentação de capacidade em todos os
países” (O FUTURO QUE QUEREMOS, 2012a, p.8).
Isso somente vai ser alcançado se os países desenvolvidos apoiarem
os países em desenvolvimento, inclusive, financeiramente, como reconhece
a ONU:

nós reconhecemos em particular que precisamos oferecer apoio a países em


desenvolvimento nesse sentido e concordamos em: a) Oferecer fontes de fi-
nanciamento novas, adicionais e ampliadas para países em desenvolvimento;
b) Lançar um processo internacional para promover o papel de instrumentos
de financiamento inovadores para a criação de economias verdes; c) Eliminar
gradualmente subsídios que exerçam efeitos consideravelmente negativos so-
bre o meio ambiente e sejam incompatíveis com o desenvolvimento sustentável,
complementado com medidas para proteger grupos pobres e vulneráveis; d) Fa-
cilitar a pesquisa colaborativa internacional de tecnologias verdes envolvendo
países em desenvolvimento, assegurando que as tecnologias desenvolvidas desse
modo continuem sendo de domínio público e estejam disponíveis para países
em desenvolvimento a preços acessíveis; e) Encorajar a criação de Centros de
Excelência como pontos nodais para P&D de tecnologia verde; f) Apoiar cien-
tistas e engenheiros e instituições científicas e de engenharia de países em de-
senvolvimento para fomentar seus esforços no desenvolvimento de tecnologias
verdes locais e usar o conhecimento tradicional; g) Estabelecer um esquema de
desenvolvimento de capacidade para oferecer aconselhamentos específicos para
cada país e, quando apropriado, aconselhamentos específicos para cada região e
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 115

setor para todos os países interessados e auxiliá-los a acessar fundos disponíveis


” (O FUTURO QUE QUEREMOS, 2012a, p.8).

Assim, a ONU reitera a necessidade de ampliação e eficácia da ajuda


financeira, assumida numa séria de instrumentos internacionais, bem com
enfatiza a necessidade de maior fiscalização dos recursos, senão veja-se:

nós pedimos pela ampliação da eficácia da ajuda, levando em conta a Declara-


ção de Paris, a Agenda de Ação de Acra e a Parceria para Cooperação Efetiva
Busan para o Desenvolvimento, para assegurar que a ajuda seja efetiva, respon-
sável e responsiva para as necessidades e prioridades dos países em desenvol-
vimento. É necessária uma maior coerência tanto no nível internacional como
no nacional, incluindo uma efetiva fiscalização de recursos para assegurar que
países em desenvolvimento tenham acesso constante e previsível a financiamen-
tos adequados, incluindo os do setor privado, para promover desenvolvimento
sustentável” (O FUTURO QUE QUEREMOS, 2012a, p.19).

Portanto, além de novos investimentos, formação de novas habilidades,


desenvolvimento, transferência e acesso às tecnologias e fomentação de
capacidade em todos os países, é preciso auxílio financeiro, bem como fiscalização
dos recursos.

Mecanismos De Avaliação Da Economia Verde

O PIB é um indicador de desenvolvimento utilizado pelos países. Assim,


quanto maior o PIB, mas desenvolvido é o país.
Ressalta-se que a economia verde não deve ser avaliada pelo PIB, “[...]
uma vez que tais medidas não refletem a extensão com a qual as atividades de
produção e o consumo podem estar drenando o capital natural” (PNUMA, 2011,
p.12). Portanto, faz-se necessário agregar indicadores sociais e ambientais.
Para alguns, é preciso estabelecer o PIB per capita, ou seja, dividir as
riquezas pelo número de habitantes. Acontece que tal operação não retrata as
desigualdades sociais.
Com efeito, para medir o desenvolvimento social, o indicador mais utilizado
na atualidade é o Índice de Desenvolvimento Humano (IHD).
Assim, há que considerar outros indicadores como as

[...] mudanças em reservas de capital natural seriam avaliadas em termos mone-


tários e incorporadas nas contas nacionais, que é o objetivo que se busca através
do contínuo desenvolvimento do Sistema Integrado Ambiental e Econômico
116 Adriana Ferreira de Paula

(SEEA, da sigla em inglês) pela Divisão de Estatística da ONU, e pelos métodos


ajustados de valores líquidos das reservas nacionais do Banco Mundial. O uso
mais abrangente de tais métodos proporcionaria uma indicação mais apurada
do nível real e da viabilidade de crescimento de renda e de emprego. A con-
tabilidade verde, ou a contabilidade da valoração ambiental, é uma estrutura
disponível que esperamos que seja adotada inicialmente por algumas nações e
que pavimente o caminho para a medição de uma transição de economia verde
no plano macroeconômico [...] Significativamente, isso aconteceria simulta-
neamente ao aumento das reservas de recursos renováveis, redução dos riscos
ambientais e reconstrução da nossa capacidade de gerar um futuro próspero
(PNUMA, 2011, p.12).

Tem-se portanto, que o PIB deve ser substituído por um indicador mais
abrangente que engloba o socioeconômico e o capital natural de cada país.

Desafios A Serem Enfretandos

O principal desafio de novo modelo econômico, diz respeito ao investimento


financeiro que, segundo o PNUMA (2011), estima US$1,05 – 2,59 trilhões, menos
de um décimo do investimento global total por ano (conforme medido pela
Formação Bruta de Capital mundial). Isso medido de acordo com o impacto em
empregos, intensidade de recursos, emissões de carbono e impacto ecológico.
Percebe-se com isso, que a economia verde não é a vilã do crescimento e
que para sua implementação demanda menos custo que manter o modelo atual.
Para o Painel de Alto Nível do Secretário Geral das Nações Unidas sobre
Sustentabilidade Global resta “evidente que o desenvolvimento sustentável é um
objetivo correto. Nosso desafio é demonstrar que ele também é racional - e que o
custo da omissão supera em muito o custo da ação” (PESSOAS RESILIENTES...,
2012, p.3).
Na Conferência do clima em Cancun, no México, em 2010, foi lançada a
proposta para criação de um Fundo Verde, para transformação da economia de
baixo carbono. Merece destaque também, o Fundo para o Meio Ambiente Global
que necessita de fortalecimento.
Além desses fundos, o PNUMA (2011, p.44) rechaça o papel das instituições
financeiras no plano internacional e nacional no apoio à economia verde, como
segue:

essas instituições incluem bancos multilaterais de desenvolvimento tais como


o Banco Mundial e os bancos de desenvolvimento regionais/sub-regionais,
agências bilaterais de assistência ao desenvolvimento tais como o KFW (Ban-
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 117

co Alemão de Desenvolvimento), a Caisse des Depots (uma organização fi-


nanceira francesa), a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD, da sigla
em francês) e bancos nacionais de desenvolvimento tais como o BNDES do
Brazil, o Banco de Desenvolvimento da África do Sul (DBSA, da sigla em in-
glês) e o Banco de Desenvolvimento da China (CDB, da sigla em inglês). Em
2009, as instituições financeiras multilaterais de desenvolvimento concederam
US$168 bilhões em assistência ao desenvolvimento, enquanto que os bancos
nacionais de desenvolvimento e as agências bilaterais concederam mais de
US$350 bilhões em 2008.

Assim, a largada para a transição do modelo econômico deve ser dada


através de investimentos públicos, porém, a maior parte da caminhada será do
setor privado.

A Economia Verde Na Prática

Após a análise conceitual e de alguns aspectos que redundam a temática,


convém apresentar exemplos de implementação de novo modelo econômico,
demonstrando, com isso, que a economia verde pode ser uma realidade.
O relatório da ONU, intitulado “O Futuro que Queremos” (2012, p.9), cita
alguns exemplos bem sucedidos de desenvolvimento sustentável em áreas como
energia, agricultura, planejamento urbano, produção e consumo, senão veja-se:

no Quênia, mecanismos de inovação financeira têm estimulado novos investi-


mentos em fontes de energias renováveis, incluindo energia eólica, solar, peque-
nas centrais hidrelétricas, biogás e energia de resíduos urbanos, gerando renda
e emprego.
Na China, medidas para mudar para uma estratégia de crescimento de baixo
carbono, baseada no desenvolvimento de fontes de energias renováveis, cria-
ram fluxos de emprego, renda e receita para promissoras indústrias de baixo
carbono.
Em Uganda, uma transição para uma agricultura orgânica gerou receita e ren-
da para pequenos agricultores e beneficiou a economia, a sociedade e o meio
ambiente.
No Brasil, um projeto no âmbito do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo
(MDL) foi adotado em São Paulo com o objetivo de transformar dois dos maio-
res lixões da cidade em aterros sanitários sustentáveis. De 2004 a setembro de
2011, esses aterros impediram a liberação na atmosfera de 352 mil toneladas de
gás metano, que foram utilizados para produzir mais de um milhão de mega-
watts de eletricidade.
No Nepal, o manejo florestal comunitário — liderado por grupos florestais
locais — contribuiu para restaurar os recursos das florestas após um declínio
constante nos anos 1990.
118 Adriana Ferreira de Paula

No Canadá, a EcoLogo — uma das marcas de certificação ambiental mais res-


peitadas da América do Norte — promoveu milhares de produtos que atendem
a rigorosos padrões ambientais.
Na França, cerca de 90 mil empregos foram criados nos setores verdes entre
2006 e 2008, principalmente em áreas como conservação de energia e desenvol-
vimento de energias renováveis.
No Haiti, a Iniciativa Costa Sul deve beneficiar cerca de 205 mil pessoas atra-
vés da recuperação e do desenvolvimento sustentável de uma terra severamente
degradada em uma área com quase a metade do tamanho da Grande Londres.

Vislumbra-se que a transição do modelo econômico para verde não é


privilégio apenas dos países desenvolvidos, ou seja, pode-se verificar a mudança
em países em desenvolvimento, como constatou o relatório da “Construindo uma
Economia Verde Inclusiva para Todos”, elaborado pela ONU e redes de parceiros:

a Etiópia está desenvolvendo seis projetos de energia eólica e um projeto geotér-


mico, os quais aumentarão a capacidade do país em mais de 1.000 megawatts.
Mongólia atualmente está construindo seu primeiro parque eólico de 50 mega-
watt, e este deve gerar um valor estimado de 5% da energia necessária pelo país;
Em Lagos, na Nigéria, as parcerias públicas e privadas reduzem o congestiona-
mento, melhoram as condições nas favelas e ajudam a criar cerca de 4.000 em-
pregos, relacionados ao meio ambiente, para a comunidade jovem desempregada
Em Uganda, a promoção da agricultura orgânica está ajudando dezenas de mi-
lhares de fazendeiros a ganharem até 300% a mais nas produções certificadas de
abacaxi, gengibre, baunilha e outros produtos para exportação. Mundialmente,
o mercado para os produtos orgânicos triplicou desde 2000 (ECODESENVOL-
VIMENTO, 2012).

Conclui o relatório que “os países menos desenvolvidos, com a infraestrutura


menos desenvolvida podem se beneficiar da economia verde inclusiva em áreas
de eficiência energética e tecnologias limpas para os modernos sistemas de
transporte público” (ECODESENVOLVIMENTO, 2012).

Rio + 20 E Economia Verde

Como mencionado em linhas volvidas à economia verde faz parte da


discussão da Conferência do Rio, sobre “desenvolvimento sustentável”, vinte anos
depois.
Após vários debates, os Chefes de Estado e de Governo das Nações Unidas
assinaram o documento final, intitulado “O futuro que queremos”, que ratifica
os princípios das Conferências anteriores. Além disso, o documento reafirma a
ECONOMIA VERDE COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL 119

necessidade de acelerar os esforços para implementar os compromissos assumidos


anteriormente.
Destaca, ainda, o documento “as políticas de economia verde”, como
ferramenta para promoção do desenvolvimento sustentável, que não devem
“impor normas rígidas”, mas sim respeitar a soberania nacional de cada país, sem
constituir “um meio de discriminação”, nem “uma restrição disfarçada ao comércio
internacional”, deixando a critério de “cada país a escolha de sua abordagem”.
O texto prioriza a governança mundial para o desenvolvimento sustentável,
a partir da substituição da Comissão de Desenvolvimento Sustentável para
“Fórum Intergovernamental de Alto Nível” e valoração do papel do PNUMA, que
configura a autoridade global e na liderança da questão ambiental.
O documento rechaça um quadro de ações voltadas para erradicação da
pobreza, segurança alimentar, água, energia, saúde, emprego, oceanos, mudanças
climáticas, consumo e produção sustentável.
O texto enfatiza a necessidade de reforçar o apoio financeiro, sobretudo
dos países em desenvolvimento, bem como o papel dos “novos parceiros e fontes
novas de financiamento”. A declaração insiste na “conjugação de assistência ao
desenvolvimento com o investimento privado”.
Por fim, observa-se a preocupação dos países voltada para a transferência de
tecnologias para os países em desenvolvimento e sobre o “reforço de capacidades”
(formação, cooperação, dentre outros).

Considerações Finais

Tem-se, portanto, que economia verde não substitui o desenvolvimento


sustentável, pelo contrário, proporciona a realização deste, como consta do
documento final da Conferência do Rio+20, que debateu o assunto, além
da governança internacional, redução da pobreza e cooperação financeira
internacional.
A economia verde, assim como o desenvolvimento sustentável, também
enfrentará vários desafios para tornar realidade, em especial, investimentos,
políticas públicas e transferência de tecnologias. As novas tecnologias têm papel
crucial, à medida que permitem o uso eficiente de energia, dos recursos naturais
e geram novos empregos.
A avalição da economia verde não deve pautar pelo índice atual de mercado,
mas sim, por um indicador que envolva socioeconômico e o capital natural de
cada nação.
120 Adriana Ferreira de Paula

Porém, verificou-se através de exemplos concretos, que a proposta de


economia de baixo carbono, que requer menos combustíveis fósseis e utiliza
fontes renováveis de energia, não é utópica, desde que os atores públicos e privados
empreendam esforços para transição.

Referências

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726p.
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Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/507218-economia-verde-inclusiva-a-
proposta-do-brasil-para-a-rio20-entrevista-especial-com-fernando-lyrio> Acesso 20.06.2012.
KAMP. Cristiane. Economia verde? Indefinição pode comprometer debate na Rio+20. Revista
Eletrônica de Jornalismo Científico, LABJOR/SBPC. Disponível em: <http://www.erambiental.com.
br/painel/noticia/detalhe.php?id=102> Acesso: 20.06.2012.
MILARÉ. Édis. Direito do Ambiente: gestão ambiental em foco. 6. ed.rev. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2009. 1343p.
ORSINI, José Antônio Marengo, et al. O futuro que queremos: economia verde, desenvolvimento
sustentável e erradicação da pobreza. Disponível em:< www.inpe.br/50anos>Acesso em:15.06.2012
O FUTURO QUE QUEREMOS: rascunho zero do documento final. Disponível em: <http://www.
onu.org.br/rio20/documentos> Acesso: 10.06.2012a
______. Guia Rio+20. Disponível em: <http://www.onu.org.br/rio20/documentos> Acesso:
10.06.2012b
POVOS RESILIENTES. Planeta Resiliente: um futuro digno de escolha. Painel de Alto Nível do
Secretário-Geral da ONU sobre Sustentabilidade Global. Disponível em: <http://www.onu.org.br/
rio20/documentos> Acesso: 10.06.2012
PNUMA, 2011, Caminhos para o Desenvolvimento Sustentável e a Erradicação da Pobreza: Síntese
para Tomadores de Decisão. Disponível em: < www.unep.org/greeneconomy> Acesso 10.06.2012
121

OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM


DESENVOLVIMENTO

Vera Regiane Brescovici Nunes1

Resumo: O presente texto discute a região oeste baiana, o contexto histórico e


o grande desenvolvimento a partir da inserção do agronegócio. Os paradoxos
ocorridos ocasionando o desmatamento do cerrado, poluição de mananciais
hídricos localizados nas cidades principais, como também a importância desse
desenvolvimento para a região.
Palavras-Chave: Oeste – Baiano. Agronegócio. Desenvolvimento. Paradoxos.

Abstract: The present text discusses the west region of Bahia, the historical context
and the great development from the insertion of agribusiness. The paradoxes
occurred causing the deforestation of the cerrado, pollution of water sources located
in the main cities, as well as the importance of this development for the region.
Keywords: West - Bahia. Agribusiness. Development. Paradoxes.

Introdução

O oeste da Bahia é uma região em que se encontra em desenvolvimento


exacerbado graças ao investimento realizado em suas terras, a partir do
agronegócio e outras formas de investimento, por pessoas que vieram de várias
partes do território brasileiro e do exterior.
O termo Oeste baiano é utilizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) (2010) para designar uma área de pouco mais de 183 mil km2
composta por 29 municípios dos 35 que compõem a Região Econômica Oeste
da Bahia, designada por muitos de Além São Francisco (NEVES, 2012, p. 36)
por estar localizada à margem esquerda do Rio São Francisco. Ocupa territórios
originados das capitanias de Pernambuco, Bahia e Ilhéus, que foram incorporadas
a Bahia. Faz fronteira ao norte com o estado do Piauí, ao sul com o estado de
Minas Gerais, a leste com a região econômica do Médio São Francisco e a oeste
com os estados de Tocantins e Goiás. A cidade mais desenvolvida nessa região é
Barreiras.

1 (Doutora em Ciências da Religião – PUC – Goiás . Professora Assistente da Universidade Federal do Oeste
da Bahia – email: veraregiane@yahoo.com.br)
122 Vera Regiane Brescovici Nunes

O Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável¹ (PDRS) (CAR,


1997) destaca que a região é constituída por clima Tropical Continental com
estações bem definidas, uma úmida e quente, de novembro a abril, e outra seca e
fria, de julho a setembro. Essa região possui características físicas peculiares que a
tornam bastante diferente das outras regiões geográficas do Estado da Bahia, tais
como o clima, o relevo e a rede hidrográfica. O cerrado é a vegetação característica
que predomina no oeste baiano, com a caatinga em menor proporção, na parte
central e nos tabuleiros da Chapada Diamantina. Para caracterizar melhor o tipo
de vegetação, encontramos em Costa (2012) a seguinte definição:

[...] esta vegetação pode se expressar de três formas: a graminoide (os campos
rupestres), a arbustiva e a arbórea. Porém, a sua composição típica é constituída
de árvores e arbustos tortuosos com casca grossa e rugosa, espaçados no terreno
e entremeados por uma grama densa e lenhosa; isto é, vegetação de estepe ar-
bórea densa e aberta. As folhas dos arbustos e árvores são duras, como folíolos
medianos a grandes, superfícies lisas ou ásperas, e a superfície das gramíneas é
áspera e dura. A coloração das folhas varia de tons verde-claros a acinzentados
(MANUAL..., 1991, p. 2627; SILVA et al. 2004, p. 71 apud COSTA, 2012, p. 119).

O cerrado apresenta uma grande variedade de plantas com destaque para

Cajueiro (Anacardium occidentale), Pequi (Caryocar brasiliense Camb.), Pau de


Tucano (Vochysia tucanorum), Azeitona do Mato (Rapanea ferruginea), Jacarandá
(Cybistax antisyphilitica), Mangabeira (Hancornia speciosa), Mucuri (Rheedia brasi-
liensis), Pau D’arco Roxo (Tabebuia avellanedae), Sucupira (Pterodon emarginatus),
Araçá (Psidium cattleianum), Cambuí (Myrciaria tenella), Jatobá (Hymanea courba-
ril), Caroba (Jacaranda micrantha), Barbatimão (Stryphnodendron adstringens) e Ba-
tiputá (Ouratea hexasperma) (CORREIA, 1978 apud COSTA, 2012, p. 119).

Ainda outras espécies podem ser encontradas. Também apresenta grande


diversidade na fauna e

em formações ecossistêmicas específicas que ocorrem no interior do chamado


Cerrado Contínuo, como: matas de galeria, as veredas, os campos rupestres, os
cerradões, matas secas, matas de interflúvio, mata de cocais com predomínio do
coco babaçu, estas últimas são uma transição de três grandes biomas: Cerrado,
Amazônia e Catinga -. Segundo o número de espécies descritas e os cálculos eco
geográficos e biogeográficos, se considera que no Cerrado se encontra aproxi-
madamente 5% da biodiversidade planetária, sendo considerada a Savana Tro-
pical mais diversificada do mundo (MAZZETTO SILVA, 2009; KLINK, 2005
apud MUNDUJANO; ALVES, ANO, 2013, p. 1).
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 123

O cerrado brasileiro representa cerca de 5% da biodiversidade do planeta


(SILVA, 2009). Na região onde se encontra essa vegetação, os invernos são
secos e verões chuvosos e as chuvas são concentradas de outubro a março, com
temperatura a média do mês mais frio superior a 18º C.
Uma forte característica desse ecossistema é o de sobreviver com pouca
água, fator que não interfere na qualidade dos nutrientes presentes nas frutas que
fazem parte da dieta dos povos do Cerrado e de outras localidades brasileiras.
Segundo Silva (2009), a partir de dados apresentados pelo Laboratório de Estudos
de Movimentos Sociais e Territorialidades (LEMTO, Geografia/UFF), o Cerrado
é o segundo maior bioma da América do Sul, se estendendo no país em uma
área de 204,7 milhões de hectares, em treze estados da federação (figura 3), o que
corresponde a 22,65% do território com um alcance de 22 milhões de pessoas. É
designado de Cerrado Contínuo, ou área nuclear do Cerrado brasileiro (SILVA,
2009, p. 29). Neste espaço se encontram as nascentes das três maiores bacias
hidrográficas da América do Sul (Amazônica/Tocantins, São Francisco e Prata)².
Apenas 0,85% de sua área é integralmente protegida na forma de unidades de
conservação (por exemplo, Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e Parque
Nacional das Emas no estado de Goiás)³.
Um fator importante a ser salientado é a função de caixa d’água do Cerrado,

exercida primordialmente pelas suas chapadas, que se reforça pela própria fi-
siologia e ecologia da vegetação que se manifesta nas seguintes características:
baixa produção de biomassa e baixo consumo de água. Enquanto a Floresta
Amazônica produz entre 350 e 550 toneladas de biomassa por hectare, o Cerra-
do produz entre 10 e 40 toneladas. Como 2/3 da biomassa é constituída de água,
conclui-se que a vegetação do Cerrado retém menos água na sua biomassa do
que as formações florestais (SILVA, 2009, p. 41).

Não é por acaso que, devido a sua capacidade hídrica, encontram-se em seu
território grandes e importantes rios, como o São Francisco, Grande e muitos outros.
A função de caixa d’água (área de recarga) exercida pelas chapadas do
domínio do Cerrado é também condicionada por sua topografia plana ou suave-
ondulada e pelas características dos latos solos profundos e porosos que aí
predominam, fazendo com que funcionem como uma esponja absorvedora de
água que alimenta o lençol freático (SILVA, 2009).
Os latossolos sob Cerrado apresentam “uma estrutura granular que facilita
a infiltração de água, a erosão em sulcos e a baixa condutividade capilar, quando
o solo deixa de estar saturado” (SILVA, 2009, p. 43).
124 Vera Regiane Brescovici Nunes

Oeste Baiano: Formação e Desenvolvimento

Segundo a Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (AIBA), duas


áreas de características fundiárias distintas compõem a região oeste, o vale e o
cerrado. A região do “vale” margeia o Rio Grande onde predomina a agricultura
de subsistência, devido à topografia variada. Já na área “cerrado”, por ser mais
plana, favorece a mecanização e a agricultura empresarial.
A formação territorial e socioeconômica do oeste baiano foi ocasionada
por fatos históricos importantes, como a descoberta da foz do Rio São Francisco
durante expedição comandada por André Gonçalves e Américo Vespúcio, em 04
de outubro de 1501 (BRANDÃO, 2009). O autor destaca que o período de 1827
tornou-se um importante marco pela incorporação

do território então conhecido como Comarca do São Francisco à Província da


Bahia, através da sua perda por Pernambuco, como represália do Império do
Brasil à Confederação do Equador. Não antes, porém, de ter sido anexado à
Província de Minas Gerais durante cerca de três anos. A longevidade de 326
anos se explica pela perpetuação de processos econômicos, sociais e políticos
que não foram capazes de produzir transformações significativas ao ponto de
gerar um novo quadro na formação do território ao longo deste lapso de tempo
(BRANDÃO, 2009, p. 49).

O território se formou lentamente, pois a prioridade sempre foi para outras


regiões baianas, principalmente o Recôncavo, considerado uma região propícia
para diferentes culturas e pecuária. A região Oeste, por apresentar uma vegetação
e relevos considerados impróprios para muitas culturas, demorou a ser ocupada
pelo colonizador. No início século XVII, a população não tinha grandes ambições,
preocupando-se em sobreviver com o que encontrava na natureza e com o pouco
que cultivava e criava. Isso ocasionou atrasos no desenvolvimento, retardando
transformações de ordem econômicas e até social; assim, o período entre 1501 a
1827 foi de poucas inovações, discussão pertinente em Brandão (2009).
Ainda no século XVII, os sesmeiros 4, que eram grandes proprietários de
terra, ampliaram o território com atividades voltadas para a pecuária (criação
de gado) e a cana-de-açúcar, com o intuito de fixar os habitantes nos povoados.
Diferente de outros contextos e locais, o oeste baiano não possuía uma história que
o configurasse como um polo propício para um grande desenvolvimento. Entre os
séculos XVII e início do XIX, com objetivo de buscar novos espaços para atividades
agropecuárias e exploração de minérios pelos fazendeiros de outras regiões baianas,
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 125

houve uma ocupação, que pode ser chamada de interiorização da economia


(BRANDÃO, 2009). A abertura se consolidou a partir da concessão pela Coroa
portuguesa (1534) à Capitania de Pernambuco, através da Carta de Évora, com

o direito de posse das terras localizadas na margem esquerda do rio São Fran-
cisco, que foram apropriadas de fato pelos baianos, menos atribulados com a
defesa do litoral que os donatários de Olinda e, portanto, com maior disponibi-
lidade de homens, armas e dinheiro para adentrar o grande sertão (BRANDÂO,
2009, p. 51).

Com relação à apropriação espacial pela colônia portuguesa na América,


Brandão (2009) destaca que a exploração e o acesso ao interior ocorreu por dois
caminhos: “o Rio São Francisco e as estradas abertas desde Salvador e Olinda rumo
ao Sertão de Dentro e ao Sertão de Fora, designações dadas às terras sertanejas da
Bahia e de Pernambuco e Piauí” (BRANDÃO, 2009, p. 51). Independe de caminhos
a serem utilizados, o objetivo era a exploração, principalmente da pecuária.
Assim,

exploradores saídos especialmente da colônia e Salvador, mas também de Olin-


da, eram enviados sob ordem de importantes detentores de sesmarias e, com os
auspícios do Governo-Geral (PIERSON, 1972), expulsaram os índios e esten-
deram a produção de alimentos diversos, mas principalmente a pecuária, até
as margens do Rio São Francisco, tendo sido decisivos na criação de pequenas
nucleações que davam certo apoio à manutenção das atividades (BAHIA, 2000)
(BRANDÂO, 2009, p. 51).

A partir do século XVII, iniciou-se um grande povoamento às margens do


Rio São Francisco, onde grandes latifundiários se instalaram e foram “responsáveis
pela maior incidência de currais nas margens do Rio São Francisco e, em seguida,
nos cursos navegáveis dos rios Grande, Corrente e Preto” (BRANDÂO, 2009, p. 51).
Por apresentar extensa área navegável, o São Francisco se tornou a alternativa
para que os produtos e serviços chegassem a diferentes localidades, já que não
havia estradas suficientes para a locomoção. No século XVIII, a mineração das
Minas Gerais e do Rio de Contas na Bahia, denominado ciclo do ouro, utilizou
o leito navegável do rio São Francisco para o transporte de mercadorias para os
locais de extração do ouro e outros minerais, o que ocasionou um crescimento na
região (SOUZA, 1989, p. 30). Mas, após a finalização do ciclo do ouro, a região
desacelera o seu crescimento, por ser uma região localizada relativamente longe
do litoral e regiões mais desenvolvidas. Esses fatores ocasionaram a implantação
126 Vera Regiane Brescovici Nunes

de uma pecuária extensiva, agricultura de subsistência e, nas localidades próximas


ao rio, o sustento ocorria com a pesca e a salga de peixes, a chamada “economia do
catado” (CARIBÉ; VALE, 2012, p.17).
As contribuições para que o oeste baiano fosse povoado, além de Portugal e
outros agentes econômicos, também couberam à Igreja Católica. Foram erguidas
capelas pelos monges franciscanos, como a Capela de São Francisco das Chagas da
Barra do Rio Grande, “criando um aldeamento de índios catequizados” (BRANDÂO,
2009, p. 51). Posteriormente, esse aldeamento deu origem à Missão do Aricobé,
fundada pelos padres capuchinhos. Essa missão resultou na catequização dos índios
Aricobés que, segundo relatos locais, foi o grupo indígena que habitou o oeste
baiano, podendo-se encontrar alguns descendentes na região. A Missão do Aricobé
é, atualmente, uma comunidade pertencente a Angical, cidade localizada na região.
O primeiro município a ser formado na região foi São Francisco das Chagas
da Barra do Rio Grande do Sul, elevada a vila em 1752 (SANTOS, 2000, p. 33). Por
localizar-se próximo às margens do Rio São Francisco e Rio Grande, transformou-
se em importante rede de ligação comercial entre os Estados da Bahia, Goiás,
Minas Gerais e Piauí (SANTOS, 2000, p.33). Os Rios, principalmente o São
Francisco, foram fundamentais nessa integração, já que não havia rodovias que
favorecessem essa integração. A circulação fluvial ocasionada pela bacia do São
Francisco contribui para a integração com o inóspito interior.
O povoamento e desbravamento do oeste baiano demoraram a ser
consolidados, pois somente em 1752

foi criada a Resolução Régia que resultou na primeira nucleação com status de
vila do Oeste Baiano, denominada Vila de São Francisco das Chagas da Barra
do Rio Grande do Sul (atual Barra), A segunda vila estabelecida no período, a de
Pilão Arcado, ascendeu a esta condição apenas em 1810, através do Alvará de 15
de janeiro daquele ano (BAHIA, 1936). Ambas as vilas estavam, quando nomea-
das, sob jurisprudência da Província de Pernambuco (BRANDÃO, 2009, p. 53).

Ao se considerar a grande extensão de terras oestinas, é interessante


destacar que no século XVIII já havia a formação de pequenas comunidades
que apresentavam um pequeno comércio. Brandão (2009) observa que, além
dessas vilas, havia milícias formadas para a manutenção da ordem, devido aos
confrontos entre índios, fazendeiros e posseiros. Essas pequenas comunidades
foram assim denominadas: a citada Pilão Arcado Santa Rita do Rio Preto (atual
Santa Rita de Cássia) e Campo Largo, atual distrito de Taguá, município de
Cotegipe (ALMEIDA, 2005; BAHIA, 2001 apud BRANDÃO, 2009).
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 127

Por conta da grande extensão territorial e a precariedade de locomoção pela


falta de estradas, se poderia pensar que não houve muito contato entre o interior e as
margens dos rios, ou vice-versa, ou que não ocorreu a exploração via terrestre. Apesar
da grande exploração fluvial, não foi isso o que ocorreu, pois houve a utilização de
caminhos tanto por terra quanto por água. Segundo Brandão (2009), é possível afirmar
que “a constituição do território oestino no período entre os anos de 1501 e 1827, se
deu de forma linear mais do que areal, já que o povoamento e as atividades econômicas
obedeciam aos caminhos fluviais e terrestres que eram abertos” (BRANDÃO, 2009, p.
54), permitindo o comércio e a integração entre comunidades e estados.
O século XVIII foi de pouco desenvolvimento para a região Oeste,
apesar de algumas associações e incentivos 5. A economia se voltou para
produções diversificadas e praticamente de subsistência, não produzindo nada
para exportação. Em 1866, o então governo provincial baiano criou a primeira
companhia de navegação a vapor do Rio São Francisco, iniciativa que foi seguida
pela Província de Minas Gerais. Iniciou-se, assim, o processo econômico integrador
da bacia fluvial do São Francisco, que foi integrada à estrada de ferro Salvador–
Juazeiro em 1896 (BRANDÂO, 2010, p. 39), o que gerou novas possibilidades de
comércio e desenvolvimento para a região oeste.
O Oeste não sofreu fortes influências de negros libertos, como outras partes
do Brasil. Em 1872, havia um contingente de 3600 escravos devido à estrutura
fundiária, com favorecimento para “a perpetuação de relações de trabalho pré-
capitalistas, nos quais os homens ‘livres’ eram mantidos em condições de vida
assentadas, em bases semifeudais de servidão” (BRANDÃO, 2010, p. 39).
Para melhor compreensão desse período, é necessário citar novamente
Brandão (2010), que proporciona, em sua discussão de historiador, bases sólidas
para entender o que ocorreu a partir da ordem de D. Pedro II a Teodoro Sampaio
em 1879 para que fossem realizados estudos de navegação no interior do Brasil,
neles incluindo o rio São Francisco. Esse período foi de intensa oligarquia: os
coronéis, como foram denominados, passaram a exercer forte poder político,
exercidos em consonância com a Constituição da República de 1891, em que o
voto secreto não foi consagrado. A igreja assume um papel secundário, talvez por
conta da decretação do Estado laico, pela República.
Entre os séculos XIX e meados do século XX, não houve grandes
mudanças em sua estrutura geopolítica e econômica. O próprio termo “oeste
baiano” só aparece recentemente. De início, “o Oeste–Além São Francisco, até
a baliza cronológica de 1950, não conformava uma área autônoma, já que era
vista participando de um universo maior, definido como Vale ou Sertão do Rio
128 Vera Regiane Brescovici Nunes

São Francisco” (FREITAS, 1999, p. 92). O grande impulso na sua estrutura,


inclusive urbana, ocorreu a partir dos anos de 1950 com a comissão do Vale do
São Francisco. Um dos fatores desse crescimento foi a exploração da borracha de
mangabeira e as extensas terras propensas à agricultura mecanizada e à pecuária.
O Oeste seguia em ritmo lento. O século XX se descortinou como uma
proposta de que, aos poucos, viriam surgir novos povoamentos, principalmente
urbanos. Nem mesmo acontecimentos como a primeira guerra mundial e a
recessão de 1929 influenciaram a vida tranquila desse pedaço de Brasil. Vivia-se
da agropecuária que abastecia suficientemente o mercado interno e da agricultura,
ainda de subsistência (BRANDÃO, 2010).
Se a primeira guerra não interferiu na vida oestina, a Segunda Guerra marcou
o território, principalmente Barreiras, a cidade mais populosa do Oeste. Esta
recebeu tropas e engenheiros norte-americanos, que construíram um aeroporto
para abastecer as aeronaves em voos para os Estados Unidos durante as décadas de
1950 e 1960. “Utilizaram aeroportuária principalmente para envio de látex extraído
da mangabeira para elaboração de artigos militares” (BRANDÃO, 2010, p.42).
Os anos seguintes foram de grande impulso econômico. Com a construção
de Brasília, se intensificaram a pavimentação e abertura de estradas que colocaram
não somente o Oeste no cenário nacional, mas a Bahia. Com a ditadura militar,
o Brasil passou por um processo designado por Brandão (2010, p. 43) como
“processo de aceleração induzida”, devido ao grande número de obras realizadas
pelas autoridades militares. Essas obras repercutiram positivamente na região.
Projetos foram criados e se tornaram fundamentais, na construção de rodovias,
fornecimento de energia elétrica e incentivo à agricultura irrigada.6
A Década de 1980 pode ser chamada de moderna, tecnológica e tantos
outros sinônimos. Foi permeada por um intenso contingente de migrantes e
imigrantes que descobriram terras mecanizáveis no cerrado brasileiro, além de
um setor comercial urbano com potencial para investimentos, resultando em
possibilidades eminentes de progresso.
Pessoas de várias regiões brasileiras, principalmente das regiões sul e
sudeste, além de outros países, como os Estados Unidos, adquiriram terras a
preços infinitamente menores e maiores em hectares em relação aos locais de
onde haviam vindo, ocuparam as áreas do cerrado e estabeleceram lavouras,
favorecendo a implantação de latifúndios agrários.
De início, essa ocupação não ocorreu de forma civilizatória devido à forma de apro-
priação do território habitado, a grilagem de terras. Santos (2009) afirma que a grilagem era
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 129

legitimada pela execução das políticas públicas de regularização fundiária que


manteve uma estrutura de propriedade extremamente desigual. Tanto que, pas-
sados trinta anos do início da ocupação dos cerrados, a Região Oeste apresenta
um dos mais elevados índices de Gini 7 da estrutura fundiária no Estado da
Bahia (SANTOS, 2009, p. 6).

Essa ocupação indevida gerou atrasos para os municípios. O resultado


foi que os seis municípios (Barreiras, Correntina, Formosa do Rio Preto, Luís
Eduardo Magalhães, Riachão das Neves e São Desidério), por contarem com
“ocupação clara” e agricultura mecanizada, os agricultores receberam maiores
facilidades governamentais de recursos, ao contrário dos outros vinte e três, por
desenvolverem “sistemas de produção e culturas para a subsistência” (SANTOS,
2009, p. 6).
Os governos federais e estaduais, bem como a iniciativa privada, investiram
intensamente na região, que se materializou em extensas plantações, dentre elas a
soja, o milho e, mais tarde, o algodão. Os municípios de Barreiras e Luiz Eduardo
Magalhães – este último era chamado de Mimoso – que, em 30 de março de 2000,
por meio de referendo, se emancipou do município de Barreiras, e São Desidério
são os maiores produtores de grãos da região Oeste, em volume produzido e
plantado. O milho e o algodão são também cultivados em outras regiões baianas,
que se adequam a esse tipo de cultura.
O agronegócio se tornou atrativo e a produção agrícola mecanizada opor-
tunizou a ocupação do Oeste. Com atividades associadas direta ou indiretamen-
te ao fator produtivo, as cidades cresceram e se modernizaram. A instalação do
4° Batalhão de Engenharia e Construção (4°BEC) repercutiu beneficamente na
construção e manutenção de estradas, como a construção da BR 242 (liga a região
à Brasília e demais localidades) e a BR 135 (Brasília- Piauí). As culturas se dividi-
ram em sequeiras e irrigadas. Com o potencial hídrico da região, graças aos rios
e suas extensas bacias: Grande, Fêmeas, Rio de Ondas, Corrente, São Francisco e
outros, os investimentos em irrigação foram em grandes proporções. A CODES-
VAF 8, empresa que promove a revitalização dos rios por meio de agricultura sus-
tentável, foi um projeto do governo do Estado que contribui por meio da irrigação
o cultivo de muitas culturas na região, dentre elas a banana e o mamão.
Todo o investimento no Oeste, principalmente no cultivo de grãos,
demonstra um aumento significativo na produção. Um exemplo é em relação à
soja. Os dados do IBGE comprovam que em 1981 foram colhidas 3080 toneladas;
já em 2015, 4.201.200,00 toneladas. Houve, portanto, um aumento significativo
somente nessa cultura, sendo que outras, como o algodão, o milho, o feijão e o
130 Vera Regiane Brescovici Nunes

café, também apresentaram elevação. O fator preponderante para esse crescimento


foram os investimentos realizados pelos produtores em alta tecnologia. Segundo a
Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (AIBA),

a produção de grãos da safra 2017/2018 deve ficar entre 223,3 a 227,5 milhões
de toneladas. [...} A soja e o milho, as principais culturas da safra, devem res-
ponder por cerca de 89% dos grãos produzidos no país. A expectativa é de que
a produção de soja alcance entre 106,4 milhões e 108,6 milhões de toneladas e a
do milho total, entre 91,6 milhões e 93,1 milhões (AIBA, 2017)9.

O que se percebe em relação à área cultivada quando avistada do alto é


a quebra de fronteiras ou territórios (MONDARDO, 2010), que se descortina
diante do observador: trocou-se uma paisagem retorcida e incerta (característica
do cerrado), para uma planificada e geométrica. Percebem-se recortes de áreas
cultivadas que se imbricam formando um extenso patchwork 10 e proporcionando
uma agradável imagem. Esse extenso terreno cultivado poderia ser chamado de
bricolagem, devido às ações humanas e tecnológicas exercidas, que proporcionam
visualizar além das fronteiras geográficas pré-estabelecidas pelos proprietários,
conforme se observa na Figura 1 .

FIGURA 1 - PLANTAÇÃO DE SOJA E DE ALGODÃO - OESTE BAIANO

FONTE: Imagens Google.

Em 1990 foi fundada AIBA, hoje a principal representação dos agricultores


da região. Seu principal objetivo é promover o agronegócio de maneira sustentável,
integrado e socialmente responsável dos seus associados. Nesse sentido, suas
pesquisas contribuem para o desenvolvimento agrícola de forma a não causar
impactos aos mananciais naturais existentes. As contribuições com pesquisas e
tecnologias de ponta projetaram a região no mercado internacional.
A transformação dos cerrados preencheu o espaço que Santos (2009)
destaca como “espaços considerados vazios, devido à ausência de bases
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 131

técnicas e empreendimentos agrícolas e industriais” (SANTOS, 2009, p. 8). O


preenchimento desses espaços por áreas cultivadas promoveu a integração entre
a cidade e o campo, o que resultou em abertura comercial em muitas áreas. A
instalação de empresas internacionais esmagadoras de grãos nos anos de 1990
foi um dos fatores-chaves, para o fortalecimento desse crescimento. A CEVAL11
- Alimentos do Nordeste, a BUNGE 13 e a CARGILL14, estão entre as empresas
que se instalaram na compra e beneficiamento de grãos.
A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) desenvolveu
sementes que se adequam à região, denominadas de “grãos do Cerrado”, as quais,
juntamente com insumos e tecnologia, dobraram a produção de grãos nas últimas
décadas. Os investimentos em pesquisas, tecnologias e modernas máquinas e
implementos agrícolas têm contribuído para o aumento da receita interna dos
municípios e para geração de empregos, porém, com prioridade para quem tenha
alguma qualificação voltada para a demanda exigida. Os sem ou com pouca
escolaridade ou qualificação se mantém fora do mercado competitivo.
Barreiras, a maior cidade da região, que em 1970 possuía uma população de
20.864 habitantes, passa a ter, em 2017, uma estimativa de 155.51915. Verifica-se
que o crescimento populacional foi intenso, reflexo da chegada e ocupação dos
imigrantes. O comércio também passou a oferecer produtos e serviços procura-
dos e exigidos por uma nova clientela acostumada com o sul e sudeste do Brasil.
Concessionárias de automóveis oferecem os últimos lançamentos em marcas e
modelos, lojas de roupas, calçados e acessórios, franquias conhecidas, sem contar
as ligadas ao agronegócio, que oferecem equipamentos de alta geração tecnológi-
ca.
Esse desenvolvimento repercutiu também na educação. Atualmente,
Barreiras e Luís Eduardo oferecem inúmeras faculdades; em Barreiras, além de
algumas faculdades, encontram-se as Universidade Estadual do Estado da Bahia
(UNEB) e a Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), recentemente
criada, que oferece em seus cinco campi inúmeros cursos, dentre os quais os
voltados para as áreas que se insere o agronegócio.
Mas, apesar do progresso, nem tudo pode ser considerado positivo.
Barreiras cresceu sem infraestrutura, não há planejamento urbano, saneamento,
os bairros periféricos sofrem com o descaso dos gestores. Há carência na saúde,
educação básica e muita violência. Com a mecanização do campo, houve uma
migração para os centros urbanos, principalmente em Luís Eduardo Magalhães,
Barreiras e Santa Maria da Vitória. A tecnologia utilizada com maquinários e
outros serviços exigem uma qualificação e um número menor de operários para
132 Vera Regiane Brescovici Nunes

realizar o trabalho; em decorrência, cresce o desemprego no campo e infla as


cidades e, sem qualificação, a população sobrevive em trabalhos temporários ou
informais.
O rio Grande, que corta a cidade e é a principal ligação com o rio São
Francisco, está poluído e assoreado. Em 2008, Jusmari Oliveira, paranaense
da cidade de Pérola do Oeste, assumiu a prefeitura de Barreiras, porém, não
conseguiu resolver os principais problemas da cidade, nas áreas da saúde,
educação e saneamento urbano. Assim, apesar do intenso progresso, Barreiras
ainda se depara com muita precariedade organizacional.
Outros municípios se adequaram melhor à nova realidade. Luiz Eduardo
Magalhães, de pequena vila nos anos de 1980, transformou-se em uma próspera
cidade, com uma população estimada para 2017 em 81.730 (IBGE, 2010).
Iniciou-se já com os imigrantes por ser próxima às fazendas e, por esse motivo,
foi planejada. Mesmo assim, apresenta problemas típicos de cidades que estão em
crescimento, como a violência e o descuido com a saúde da população.
O Oeste apresenta, como citado anteriormente, mais trinta e dois
municípios, todos em desenvolvimento, com produtores de diferentes culturas,
desde a familiar ao agronegócio. Algumas são voltadas mais para a pecuária
devido às suas especificidades geográficas.
O agronegócio trouxe desenvolvimento e progresso, mas, como todo de-
senvolvimento desenfreado, muitos problemas de ordem ambiental e social estão
ocorrendo, principalmente para os municípios que utilizam a agricultura meca-
nizada. O Oeste da Bahia possui cerca de 2,7 milhões de hectares cultivados, com
estimativas de safras de 8,6 milhões de toneladas e que pode ser maior, devido
à utilização da tecnologia e adoção de sementes que resistam a pragas e outros
problemas decorrentes de plantios (ARATICUM, 2015). As melhorias foram em
todos os setores: nas estradas sempre conservadas, a AIBA trabalhou no sentido
de revitalizar a hidrovia do São Francisco e, com isso, facilitou e barateou o trans-
porte dos produtos. Outro investimento que está sendo realizado pelo governo
federal e que irá beneficiar o Oeste é a construção da ferrovia Oeste – Leste, que
escoará a produção até o porto em Salvador a um custo inferior ao rodoviário.
O Oeste baiano, outrora denominado “Além São Francisco” ou “Sertão do
Rio São Francisco”, se transformou em um polo agrícola e industrial moderno. A
chegada de migrantes e imigrantes preencheram as grandes extensões de mata
nativa, com as formas e cores das imensas áreas de terrenos plantados, um extenso
mosaico, ao se observar do alto, que surgiu a partir do desmatamento nem sempre
consciente. Ao analisar o espaço, que antes era coberto de vegetação, hoje se
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 133

vislumbra uma paisagem diferente: resultou em quilômetros de lavouras e quase


nada de cerrado. As plantações chegam até próximo às rodovias para aproveitar
cada pedaço de terra, sem considerar as espécies nativas da flora e da fauna. Não se
percebe nenhuma reserva de mata nativa, contribuindo para o desaparecimento
da fauna nativa: o cerrado.

Agronegócio: desenvolvimento e paradoxos

Inicio esta discussão com fragmentos de poesias do poeta barreirense


José Roberto de Sena, residente na cidade de Barreiras, cidade que apresenta um
volumoso potencial hídrico, mas que devido a uma série de fatores, encontram-se
ameaçados, fadados ao desaparecimento. Na tessitura, o poeta chama a atenção
para os problemas que estão ocorrendo com os rios do oeste baiano, que sofrem
agressões por contaminantes (agrotóxicos) utilizados pela agricultura, na área
urbana (lixos e dejetos) e outros fatores que agravam o problema, devido ao
crescimento populacional nas áreas urbanas e a extensa agricultura e pecuária da
região. O texto expõe uma realidade e supõe uma outra que poderá ocorrer. Os
fragmentos foram suprimidos, porém estão na íntegra no endereço eletrônico.

Os rios do oeste baiano são responsáveis


por 26 por cento da vazão de água do Rio São Francisco.
Minuto a minuto entregam água
Língua a língua, boca a boca,
O corpo de um rio dentro de outro rio
É igual a água dentro de outra palavra
Rio e palavra, palavra e rio
(...)
O capitalismo selvagem conspira
contra o meio ambiente
mas não se pode permitir
que alguém tenha hegemonia sobre as águas
O que será destes rios que escrevo
Daqui a 100 anos?
Ainda terão portos?
Estarão vivos?
Estarão mortos?
Ou ficarão distantes
A lembrança destes rios
E de seus navegantes?
(SENA, 2007)
134 Vera Regiane Brescovici Nunes

O crescente aumento populacional demandou que se investisse em diferentes


setores, principalmente na produção de grãos, expandindo as fronteiras agrícolas. Esse
processo no Oeste baiano intensificou-se na década de 1980, conforme já destacado,
e substituiu em grande parte o cultivo das lavouras de subsistência, dando lugar aos
grandes cultivos, principalmente milho, soja e, posteriormente, o algodão. Para que
houvesse adesão na aquisição de terra por parte de investidores nacionais e internacionais,
foram criados programas de incentivo à expansão agrícola no Cerrado, como a criação
da política de preços mínimos; os subsídios creditícios; a implementação de obras de
infraestrutura voltadas à dinamização do fluxo produtivo (MOREIRA, 2013).
Com isso, houve a grande procura pelas terras, não somente no Oeste
da Bahia, como também em Mato Grosso, Goiás, Tocantins e outros estados.
Isso repercutiu em um crescimento desordenado, pois as cidades não estavam
preparadas para receber um contingente tão grande de pessoas, resultando
em grandes problemas estruturais, como o déficit habitacional, que gerou a
especulação imobiliária, o aumento da informalidade e do desemprego, e muitos
problemas ambientais, principalmente no que se refere ao manancial hídrico.
O Oeste baiano se destaca por possuir uma rede hidrográfica extensa e
bem distribuída. O grande volume de rios e as vastas áreas de relevo de planaltos
propiciaram a utilização do território para culturas irrigadas. Segundo Moreira
(2013, p. 32), “o cultivo irrigado por pivô central pode ocasionar a supressão da
mata ciliar - erosão das margens - assoreamento dos rios, além da contaminação
das águas pelo escoamento de agrotóxicos”.
Com o aumento das culturas irrigadas, diminuiu-se a vazão de rios
importantes, como o Formoso, Arrojado, Correntina, Grande e outros. Em
novembro de 2017, a população de Correntina saiu em protesto contra a utilização
dos recursos naturais, principalmente da água, pelo agronegócio. Com o uso
desenfreado dos recursos sem a preservação das nascentes, os rios menores já
estão morrendo; além disso, há a erosão e o assoreamento das encostas devido ao
desmatamento, bem como a contaminação das águas pelos agrotóxicos.
Dessa forma, os problemas só tendem a agravar-se se não forem tomadas
medidas que garantam a conservação e preservação dos mananciais hídricos.
Para isso, deve-se considerar que o número de pivôs não ultrapasse a capacidade
permitida por área porque, se assim continuar, a tendência é a morte de rios
considerados grandes.
O cultivo sem os cuidados ambientais necessários pode provocar danos
inclusive nas áreas de sequeiro. Moreira (2013) alerta para o cultivo em extensões
OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 135

contínuas de área cultivada nos planaltos, pode influenciar na sobrexploração


dos solos. Com o solo exposto há o aumento do albedo e a elevação da evapo-
ração da umidade nos horizontes mais superficiais, e o uso de defensivos pode
comprometer a dinâmica natural da microbiota do solo (MOREIRA, 2013, p.
32).

As grandes áreas abertas para a agricultura ocasionaram a destruição de


grande parte do bioma cerrado e de sua biodiversidade. A mudança na cobertura
vegetal causou impactos principalmente na flora e na fauna e, consequentemente,
nos recursos hídricos. Silva (2009) chama a atenção quando apresenta os dados de

um estudo importante realizado nos últimos anos pela Conservação Internacio-


nal do Brasil (Machado et al, 2004), com base em imagens de satélite de agosto
de 2002. Já atingia 55% da área de domínio do Cerrado (cerca de 87 milhões de
hectares), numa taxa média anual de desmatamento de 1,1%. O estudo mostra
que entre as regiões mais conservadas estão o Oeste da Bahia e Sul do Piauí e
Maranhão, que são hoje, junto com as áreas do Estado do Mato Grosso, as prin-
cipais áreas de expansão das monoculturas de soja, fato que confirma a prefe-
rência do agronegócio por “áreas novas”. O estudo mostra ainda que as unidades
de conservação no Cerrado somavam 2,2% – sendo modestas as perspectivas
de sua expansão – e as terras indígenas representavam 2,3% da área original do
domínio do Cerrado (SILVA, 2009, p. 44).

Porém, daquele período até a atualidade, o Oeste baiano avançou em


desmatamento. Grande parte da vegetação nativa deu lugar à agricultura, à
pastagem, à monocultura de árvores,(15) principalmente o eucalipto, e a áreas
urbanas. Em decorrência do desmatamento, a partir de 2001, é obrigatório que
o proprietário mantenha uma reserva legal.(16) Caso ele não tenha essa reserva,
poderá adquirir uma em outro local e averbá-la em sua escritura, devendo ter a
proporção conforme determina a lei vigente no Estado.
O progresso trouxe a desigualdade social e econômica. Em muitas cidades,
como Luís Eduardo Magalhães, descortina-se claramente o paradoxo: ao lado de
grandes mansões, visualizam-se barracos.
Por ser uma localidade em que circulam muitos projetos e recursos
financeiros, muitos indivíduos chegaram em busca de trabalho e outros objetivos,
mas nem todos conseguiram progresso e hoje estão à margem da sociedade,
entregues à própria sorte. Muitos agricultores também não conseguiram
sucesso em suas terras, alguns por não possuírem recursos financeiros ou por
desconhecimento com o tipo de solo; assim, se encontram em dificuldades,
trabalhando em fazendas de outros ou em subempregos para sobreviver.
136 Vera Regiane Brescovici Nunes

A agricultura mecanizada oportunizou o crescimento dos municípios de Luiz


Eduardo Magalhães, Barreiras e São Desidério, que se destacam no cenário nacional pelo
investimento na produção agrícola. Em contrapartida, em alguns municípios integrantes
do Oeste baiano, o desenvolvimento caminha lentamente, sem muitos investimentos do
governo, vigorando agricultura de subsistência e predomínio da pecuária. Outro fator é
o tipo de terreno nem sempre propenso para a utilização de máquinas.

Considerações Finais

A região Oeste baiana tornou-se conhecida mundialmente a partir da inserção


do agronegócio. Hoje está entre as maiores produtoras de alimentos e algodão do
Brasil. Os investimentos com a tecnologia e pesquisas no setor proporcionaram o
crescimento para a região. Porém, com ele, também vieram os problemas.
Consequências de um progresso sem a preocupação ambiental e social
ocasionaram a diminuição da mata nativa, poluição dos rios, cidades sem
infraestrutura para receber imigrantes que para aqui se dirigiram a procura de
melhor oportunidade. A tecnologia utilizada com maquinários e outros serviços
exigiram preparo/conhecimento e um número menor de operários para realizar
o trabalho. Em decorrência disso, cresceu o desemprego no campo e inflou as
cidades e, sem qualificação, a população com menos recursos sobrevive de
trabalhos temporários.
Os rios que cortam as cidades maiores, como Barreiras, e outras menores,
como Santa Maria da Vitória, estão assoreados, poluídos e com comprometimento
na sua vazão devido ao desmatamento e ao lixo que se acumula em suas encostas.
Aliado a isso, faltam gestores preocupados com a qualidade de vida da população.
Saúde e educação necessitando urgentemente de investimentos.
Desta forma, são necessários investimentos na preservação dos mananciais
hídricos presentes da região. Uma boa notícia com relação a isso, é que algumas
associações juntamente com as prefeituras estão realizando a revitalização das
nascentes. Espera-se que também a população se insira nesse contexto.

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OESTE BAIANO: UMA REGIÃO EM DESENVOLVIMENTO 137

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SOUZA, J. E. de. Raízes e Histórias: a saga de viver. Petrópolis: Vozes, 1989.
138 Vera Regiane Brescovici Nunes

Nota Explicativa
¹ Realizado pela Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR) em parceria com a Secretaria do
Planejamento, Ciência e Tecnologia (SEPLANTEC).
² Informações no site do Ministério do Meio ambiente - http://mma.gov.br/biomas/cerrado. Acesso em: 18 jan.
2018.
³http://mapas.mma.gov.br/mapas/aplic/probio/datadownload.htm?/cerrado - Acesso em: 18 jan. 2018.
4 Sesmarias eram terras oferecidas como recompensa pelos governos de Mem de Sá e Duarte Coelho aos que
exterminavam os nativos. Ou seja, as entradas tiveram essa incumbência. Além de exterminar, também explorar,
retirar riquezas. As sesmarias deram origem as fazendas de gado (SANTOS FILHO, 1989).
5 Em 1823, da Sociedade d’Agricultura, Comércio e Indústria, da proliferação das instituições financeiras na
Bahia entre os anos de 1834 e 1858, criação da Associação Comercial, em 1840, e da Companhia para Introdução
e Fundação de Fábricas Úteis no ano seguinte (FREITAS, 1999). Ver também Brandão (2010, p.39).
6 Instalação do 4º Batalhão de Engenharia e Construção do Exército Brasileiro (4º BEC), em 1972, transferido
do Ceará e responsável pela pavimentação das rodovias BR 242 e BR 020; a Companhia para o Desenvolvimento
do Vale do São Francisco (CODEVASF); para o setor energético, foi criado o Lago de Sobradinho – para gerar
energia através da hidrelétrica de mesmo nome e regular o regime das águas do Rio São Francisco, garantindo
também o funcionamento da Usina de Paulo Afonso, inaugurada em 1955.
7 Gini refere-se de uma “medida do grau de concentração de uma distribuição que varia entre zero e um.
Teríamos G=0 se houvesse perfeita igualdade na distribuição da posse da terra, isto é, se todos os estabelecimentos
tivessem a mesma área e houvesse milhares de micro minifúndios quase sem terra. Um índice de Gini superior a
0,8 mostra, sem dúvida alguma, que há uma forte concentração da posse da terra” (HOFFMANN, 1979, p. 208),
para mostrar o caráter concentrador dessa estrutura fundiária (SANTOS, 2009, p. 6).
8 Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba. Empresa pública vinculada ao
Ministério da Integração Nacional que promove o desenvolvimento e a revitalização das bacias dos rios São
Francisco, Parnaíba, Itapecuru e Mearim com a utilização sustentável dos recursos naturais e estruturação de
atividades produtivas para a inclusão econômica e social. Disponível em: http://www2.codevasf.gov.br/empresa.
Acesso em 12 abr. 2018.
9 Disponível em http://aiba.org.br/noticias/estimativa-para-safra-20172018-e-de-ate-2275-milhoes-de-
toneladas/#.Ws9yK4jwbIU. Publicado em 13/11/2017 10:00:42. Acesso em: 12 abr. 2018.
10 O patchwork é trabalho manual muito antigo. As primeiras evidências desse tipo de trabalho são de 3400
A.C. É uma palavra inglesa que pode ser traduzida como trabalho feito de pedaços ou retalhos de tecidos.
Patch significa pedaços e work, trabalho. Trabalho com retalhos. É um trabalho artesanal, costurado a mão ou
a máquina, unindo os retalhos e cortes de tecidos formando desenhos. É a arte de unir retalhos. Disponível em:
http://www.celeiropatchwork.com.br/?pg=origem. Acesso em: 12 abr. 2018.
11 Cereais do Vale
12 A Bunge é uma empresa multinacional de agronegócio e alimentos. De origem holandesa, está presente no
Brasil, onde é a principal empresa do ramo agro-alimentar e a terceira maior exportadora do país. Disponivel
em: www.bunge.com.br/Bunge/Nossa_Historia.aspx. Acesso em: 10 jan. 2018
13 Cargill é uma empresa privada, multinacional, com sede no estado de Minnesota, EUA, cuja atividade é a
produção e o processamento de alimentos. Disponível em: forebears.io/pt/surnames/Cargill. Acesso em: 10 jan.
2018.
14 Dados do IBGE. Disponível em: http://cod.ibge.gov.br. Acesso em: 10 mar.2017
15 Nos anos 2000, a região do oeste baiano, entrou no rol de expansão da eucaliptocultura no estado da Bahia,
com 57.500 ha de área plantada com significativo aumento de área nos últimos três anos. Uma das hipóteses
dessa investida é o projeto de implantação de duas termoelétricas que serão movidas a base de biomassa de
eucalipto, demandando cerca de 150.000 ha de área de plantada (AIBA, 2014).
16“O Código Florestal de 1965 definiu Reserva Legal como sendo uma parcela ou percentual, variável de 20
a 50% conforme a Região em que se localize, de cobertura florestal de cada propriedade rural privada que
não pode ser suprimida, usando a seguinte redação: Art. 16. As florestas de domínio privado, não sujeitas ao
regime de utilização limitada e ressalvadas as de preservação permanente, previstas nos artigos 2° e 3° desta
lei, são suscetíveis de exploração, obedecidas as seguintes restrições: [...] [...] A Medida Provisória nº 2166-67,
de 24 de agosto de 2001, reconceituou Reserva Legal como sendo: Art. 1º [...] [...] 17 III - Reserva Legal: área
localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao
uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da
biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas” (PETERS, ?, p. 3).
139

AGRICULTORA FAMILIAR E O PROGRAMA


NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: UMA
ANÁLISE DA IMPLEMENTAÇÃO NO MUNICÍPIO DE
PEDRO VELHO (RN)

Osmar Faustino de Oliveira1


Marcos Vinícius da Silva2
Washington Maciel da Silva3

Resumo: Esta reflexão é fruto de um Estudo de Caso ao avaliar os status da


implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), no
município de Pedro Velho/RN. Ver como as políticas públicas contribuem
para o desenvolvimento socioeconômico local. Destacar quais são os impactos
socioeconômicos na renda familiar dos produtores? Quais são as principais limitantes
que impendem a expansão da proposta? Quantas escolas participam do programa?
Esta pesquisa é uma análise interdisciplinar entre as Ciências Sociais Aplicadas,
Agrárias e a Educação no Campo. Já os procedimentos metodológicos e recursos
são: quantitativos, qualitativos e estatísticos, ao realizar o levantamento histórico e
socioeconômico da implementação do projeto. Portanto, os resultados revelam, em
primeiro momento que o funcionamento do PNAE vem acarretando um conjunto de
mudanças no acréscimo da produção e renda dos agricultores. Além disso, a melhora
significativa da qualidade da alimentação escolar na rede básica de ensino.
Palavras-chave: Agricultura Familiar, PNAE Ensino e Desenvolvimento
Socioeconômico.

Abstract: This reflection is the result of a Case Study to evaluate the status of
the implementation of the National School Feeding Program (PNAE), in the
municipality of Pedro Velho / RN. See how public policies contribute to local
socioeconomic development. Highlight what are the socioeconomic impacts
on producers’ family income? What are the main constraints on the expansion
of the proposal? How many schools participate in the program? This research
1 (Graduado em Economia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Especialista em Mercado de Capi-
tais e Mestre em Desenvolvimento Urbano, Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Brasil. Recife –PE.
E-mail: osmarfaustino@yahoo.com.br)
2 (Graduado em Engenharia Agrícola, Universidade Estadual de Goiás, Mestrando em Engenharia Agrícola,
Universidade Federal Rural de Pernambuco, UFRPE, Brasil. Recife – PE.
E-mail: marcolino_114@hotmail.com)
3 (Doutorado em Ciências da Religião pela PUC Goiás, bolsista da FAPEG. Estágio Sanduíche em História
com a Universidad Iberoamericana de la Ciudad de México, co-orientado pelo Dr. Yves Bernado Solis Nicot).
Mestre em História Cultural pela PUC Goiás e Licenciado em História – UEG. E-mail. Washingtonmaciel-
dasilva@gmail.com)
140 Osmar Faustino de Oliveira | Marcos Vinícius da Silva | Washington Maciel da Silva

is characterized by the interdisciplinary analysis between Social, Applied,


Agrarian Sciences and Education in the Field. The methodological procedures
and resources are: quantitative, qualitative and statistical, when carrying out the
historical and socioeconomic survey of the project implementation. Therefore,
the results reveal, in the first moment, that the operation of the PNAE has been
bringing about a set of changes in the increase of the production and income
of the farmers. In addition, the significant improvement in the quality of school
feeding in the basic education network.
Keywords: Family Agriculture, PNAE, Socioeconomic Education and
Development.

Introdução

A agricultura familiar tem uma relevância crucial para o mercado interno,


por esta razão, que o PNAE¹ caracteriza-se como uma política pública para segu-
rança alimentar. Para explicar este contexto é necessário apresentar o histórico da
agricultura familiar no Brasil e a sua relação com Estado Moderno e suas políticas.
Há uma estimativa que o programa em 2012 teve um orçamento R$ 3,3
bilhões, beneficiando 45 milhões de alunos da rede pública de ensino². No Brasil,
as políticas governamentais para a alimentação escolar foram criadas 1930, por
causa do déficit nutricional provocado pela fome e a miséria³ de boa parte da
população. Essa realidade instituiu graves problemas que elevou a demanda pelo
serviço de público de saúde (VASCONCELOS, 2013; MENDES, 2014).
O embrião do atual PNAE foi instituído em 1955 com a Campanha Nacional da
Merenda Escolar. Essa campanha estave ligada ao MEC4 e contou doações internacionais
da FAO5, na gestão do Dr. Josué de Castro (VASCONCELOS, 2013; MENDES, 2014).
Este programa ainda é coordenado pelo FNDE6, que repassa os recursos
financeiros para os estados e municípios destinados para a alimentação escolar.
Então, em 1955-1997 foi definido como o PNAE, e a partir da Lei n° 11.947 de 16
de junho de 20097 ficou determinando que 30% do recurso FNDE deve ser para
alimentação escolar, para compra de produtos de origem da agricultura familiar,
com isso, o PNAE visou fortalecer a produção familiar e os hábitos alimentares
saudáveis(VASCONCELOS, 2013; MENDES, 2014 e MDA, 2009)..
Por meio de um Estudo Caso8, descreve-se o histórico do PNAE no
município de Pedro Velho/RN, que se encontra localizado a 88 km da capital Natal.
A área da unidade territorial do município é de 192,7 km2, o bioma é a Caatinga e
Mata Atlântica (IBGE, 2000/2010; FONSECA, 2006, OLIVEIRA, 2015).
A partir destes aspectos, as questões que moveram a reflexão foram: como
funciona o PNAE no município de Pedro Velhor/RN? O que mudou a partir de
AGRICULTORA FAMILIAR E O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: 141

sua implementação? Quais avanços e obstáculos que ainda permanecem para o


eficiente andamento do projeto? Para responder a essa questão, buscou-se dados
quantitativos junto a EMATER local, e informações que foram concedidas pelos
setores administrativos da prefeitura. Ainda, expor quantas escolas participam do
projeto? E como é a inserção de novos produtores ao programa?
Tendo em vista o referencial sobre as políticas públicas, realizou-se um
estudo descritivo pela pesquisa bibliográfica e documental. Ao coletar os dados
da EMATER a experiências da implementação do PNAE no município de Pedro
Velho. Identifica-se o número de agricultores familiares que participam do
programa, e quais foram as mudanças que passaram nortear a agricultura familiar
no município.
O estudo é um prévio diagnóstico desse programa que aposta no
fortalecimento da agricultora familiar e a alimentação escolar saudável e o
desenvolvimento socioeconômico.

Políticas públicas para o desenvolvimento socioeconômico no Campo

A intervenção do Estado Moderno brasileiro nas questões socioeconômicas


por meio das chamadas políticas sociais de desenvolvimento é um dever do
Estado. Ou seja, a regulação do custeamento da produção e reprodução para o
consumo da população é uma função intrínseca do Estado de Bem-Estar Social:

A emergência da concepção de cidadania como um conjunto de direitos atribuí-


dos ao indivíduo frente ao Estado nacional é, pois, produto do desenvolvimento
do próprio Estado capitalista, requerendo, portanto, uma análise da natureza
deste Estado para sua compreensão integral. A transformação do direito em
uma função estatal pela generalização e equalização jurídica no conceito de ci-
dadania é parte da transformação que se dá com a expansão da ordem burguesa,
em substituição à concepção anterior de direito restritivo e punitivo, emanada
da organização social estatal (FLEURY, 1994 p. 11).

O Brasil tem um perfil de desenvolvimento capitalista tardio4, onde gran-


de parte da população não tinha acesso aos serviços financeiros. A financeiriza-
ção5 é o permite ascender ao crédito segundo o moderno sistema financeiro, que
engloba um conjunto de instituições, procedimentos, reflexões e estratégias para
implantação de projetos de desenvolvimento (BALESTRO, LOURENÇO, 2014).

4 O capitalismo caracteriza-se pela contra tendência e a tendência fundamental da expansão da produção,


formando o capitalista capitalismo tardio (DEÁK;1994).
5 No prefácio ao livro “A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, conseqüências” (2005)
organizado por François Chesnais, comenta sobre o crescimento do capitalismo pela acumulação da riqueza
como uma “natureza” do regime de capital.
142 Osmar Faustino de Oliveira | Marcos Vinícius da Silva | Washington Maciel da Silva

Segundo Relatório de Gestão do Ministério de Desenvolvimento Agrário – MDA


(2009), a Secretaria de Agricultura Familiar – SAF destaca quatro pontos específicos:

1 - Redução da pobreza rural, por meio da intensificação de articulações entre as


atuais políticas (acesso ao microfinanciamento rural, Seguro Garantia-Safra, ga-
rantia de assistência técnica e extensão rural, apoio à mercialização/Programa
de Aquisição de Alimentos, Programa deProdução e Uso de Biocombustíveis);
2 - Segurança e soberania alimentar e nutricional, priorizando a continuidade e o
aumento crescenteda oferta de alimentos de boa qualidade, com valorização dos
alimentos produzidos pela agricultura familiar e organização de sua produção;
3 - Sistemas de produção sustentáveis, tratando de buscar políticas que estimulem
mais intensamente a transição para sistemas de produção sustentáveis;
4 - Geração de renda e agregação de valor, com a preocupação de apoiar a relação
da agricultura familiar e o atual mercado, fomentando alianças estratégicas com
o objetivo de fortalecer modelos e arranjos produtivos que possam promover a
cooperação e concorrência com vistas a viabilizar as economias dos pequenos e
médios empreendimentos rurais (BRASIL-MDA, 2009.p.132-133).

Em suma, as políticas públicas constituem em um mecanismo para a promoção


do desenvolvimento econômico que possibilita aos agricultores de baixa renda o
acesso ao crédito, por exemplo: a redução da pobreza, apoio à comercialização dos
produtos produzidos oriundos da agricultura. Conforme descrito por Ribeiro (2013)
tem um fundamento teórico e metodológico das políticas públicas para a promoção
do desenvolvimento rural que contribui para o desenvolvimento econômico e social.
Por meio do acesso ao crédito e os ademais incentivos fiscais para os agricultores
familiares. Toda política pública possui fases, como mostra a figura 1:

Figura 1. Ciclo de Políticas Públicas.

Fonte: OLIVEIRA, 2013, p.416..

6 Elaborado e adaptado pela origem da fonte.


AGRICULTORA FAMILIAR E O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: 143

As Políticas Públicas possuem dois elementos fundamentais, sendo-os:

A) Intencionalidade pública – motivação para o estabelecimento de ações para tra-


tamento ou para resolução de um problema; b) Problema público – diferença
entre uma situação atual vivida (status quo) e uma situação ideal possível à rea-
lidade coletiva [...] De fato a Política Pública é um conceito abstrato, isso requer
um esforço intelectual para conseguir torna-lo concreto, palpável. Podemos
comparar a Política Pública a alma e para tomar forma, precisa de um corpo.
As políticas públicas ‘tomam forma’ por meio de programas públicos, projetos,
leis, campanhas publicitárias, esclarecimentos públicos, inovações tecnológicas
e organizacionais, subsídios governamentais, rotinas administrativas, decisões
judiciais, coordenação em rede atores, gasto público direto, contratos com sta-
keholders dentre outros (BRANCALEON; et. al, 2015. p.02).

A formulação de determinada política pública começa com a identificação


de um problema e a construção da “agenda de execução do projeto”. São ações e
processos que formatam o perfil do campo e do público-alvo da ação. A formação
da agenda deve se capaz de instigar um debate e a intercessão pela autoridade
pública (FLEXOR; LEITE, 2007).
As políticas públicas segundo as ideias de Flexor; Leite, (2007) atuam na
esfera macro, regional e setorial. A macro atua basicamente nas arenas comerciais,
financeiras, fiscais e cambiais. Na regional atua no campo do desenvolvimento,
polos regionais, sociais e incentivos. E por fim, no meio setorial agrícola, agrário,
social, nutricional e ambiental, por isso, que o PNAE é uma política setorial.

O PNAE a partir de 2009

O PNAE tem objetivo de proporcionar acesso a alimentos de qualidade e,


em abundância, sem afetar o acesso a outras práticas alimentares promotoras da
saúde que respeitem a diversidade de qualquer natureza (MANFIOLLI, 2014).
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é responsável pela
alimentação dos alunos das escolas públicas durante o ano letivo, seja no ensino
fundamental I e II. Lembrando que a alimentação escolar é um direito exposto na
constituição de 1988, que atende aproximadamente 37,8 milhões de crianças, nos
quais representa 21% da população brasileir. Incetivando o aprendizado e os bons
hábitos alimentares (VOOS, 2009).
Em 2010, o PNAE apresentou um aporte de R$ 3,0 bilhões, atendendo a
45,6 milhões de alunos depois da criação da Lei nº. 11.947/2009, que determinou
um mínimo 30% dos produtos para a merenda escolar deveriam ser oriundos
144 Osmar Faustino de Oliveira | Marcos Vinícius da Silva | Washington Maciel da Silva

da agricultura familiar local. Dando prioridade aos agricultores assentados


pelos projetos de reforma agrária, comunidades quilombolas e indígenas.
Representando uma ordem de R$ 910 milhões, ocasionando o desenvolvimento
econômico desses grupos agrícolas (MOURA, 2014; FORNAZIER, 2014).

Implementação do PNAE no município de Pedro Velho/RN

Para implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar ser


eficaz precisa-se de uma gestão eficiente que tenha como diretriz a participação
e a coordenação dos atores envolvidos. A gestão do PNAE significa um conjunto
de fatores administrativos, técnicos e financeiros que incidem na estratégia para
a implementação. A participação e o controle social envolvem as ações colocam
o PNAE em prática. Já a eficiência alimentar e nutricional pretende executar um
planejamento operativo que atenda às necessidades nutricionais do ambiente
escolar local (SILVA, 2009).
Partindo para a análise do lócus, pode-se perceber a relevância da
participação da sociedade civil e o poder executivo local foi primordial para
a implementação e coordenação do programa. Silva (2014) diz que a partir
da segunda metade da década de 2000, esses programas foram mediados pela
aproximação do poder federal e municipal em prol do projeto. O fortalecimento
dessa relação visou iminuir as desigualdades
inter-regionais e intermunicipais, que auxiliou
o desenvolvimento da aptidão técnica,
financeira e gerencial ao implementar essa
política pública (SILVA, 2014). A figura 2 deixa
claro essa interdependência para a execução do
programa:

Figura 2. Fluxograma de operacionalização


do PNAE.

Fonte: FORNAZIER, 2014, p. 83.

O município de Pedro Velho está


inserido na Zona Litoral Oriental, Subzona da
Mata. Segundo os dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), a população
AGRICULTORA FAMILIAR E O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: 145

em 2014 era de aproximadamente de 14.787 habitantes (OLIVEIRA, 2015;


FONSECA, 2006 e IBGE, 2000/2010). Como ilustra a figura 3:

Figura 3. Mapa de localização do município de Pedro Velho.

Fonte: IBGE, 2000; FONSECA, 2006, p. 36; OLIVEIRA, 2015, p. 20.

Tomando como referência o município de Pedro Velho/RN foi possível


verificar seu progresso, segundo os dados da EMATER local. O PNAE no município
de Pedro Velho já apresentou resultados significativos (Ver tabela 1) o aumento
da comercialização e de renda da Associação de Moradores da Comunidade de
Porteiras e Adjacências7 (AMCOPA), após a sua inserção ao programa.
A tabela 1 apresenta os produtos comercializados no município em 2014:

Tabela 1. Valor total em reais por produto em Pedro Velho/RN em 20148.


Valor total por
Produto Unidade Quantidade Preço/unidade
produto
Feijão Verde KG 1500 5 7.500,00
Alface KG 300 4,5 1.350,00
Batata Doce KG 1400 1,3 1.820,00

7 Localizada no Sítio Porteiras, Zona Rural de Pedro Velho.


8 Chamada Pública N° 001/2015-Emater e Prefeitura de Pedro Velho.
146 Osmar Faustino de Oliveira | Marcos Vinícius da Silva | Washington Maciel da Silva

Macaxeira KG 1700 1,3 2.210,00


Ovo de Codorna KG 600 11 6.600,00
Tomate KG 1000 3,9 3.900,00
Melão KG 500 1,95 975
Jerimum KG 500 1,7 850
Melancia KG 500 0,99 495
Banana KG 500 2,3 1.150,00
Coentro KG 100 8 800
Carne Suína KG 1500 9,5 14.250,00
Queijo Coalho KG 750 22,49 16.867,50
Carne Ovina KG 1500 17 25.500,00
Carne Bovina de 1° KG 2400 18,49 44.376,00
Carne Bovina de 2° KG 3000 14,89 44.670,00
Inhame KG 1500 3,5 5.250,00
Tapioca com Leite UNID. 30000 2 60.000,00
Bolo de Ovos KG 750 12,85 9.637,50
Bolo de Batata KG 1800 9,85 17.730,00
Total       265.931,00
Fonte: EMATER e Prefeitura de Pedro Velho/RN9.

Segundo os dados da EMATER do município de Pedro Velho, o programa


começou no município em 2014 que iniciamente atendeu 20 famílias e 24 escolas
municipais. No total são 24 escolas municipais beneficiadas com o PNAE,
sendo elas: a Escola Municipal Acácio José Barbosa, a Escola Municipal Antônia
Gomes, a Escola Municipal Antônio Fernandes, a Escola Municipal João Celso,
Escola Municipal João Pedro de Oliveira, Escola Municipal Joaquim Bezerra
Cavalcante, Escola Municipal José Targino, Escola Municipal Maurícia da Sila,
Escola Municipal Padre Leôncio, Escola Municipal Rabiscando o Saber, Escola
Municipal Capim Grosso, Escola Municipal Jessé Freire, Escola municipal
Claudino Martins Delgado, Escola Municipal de Boa Vista, Creche Joana de
Carvalho Dantas, Escola Municipal do Casaca, Escola Municipal Maria Eunice da
Silva Souto, Escola Municipal Genar Bezerril, Escola Municipal Maria Leonor M.
de Lima, Escola Municipal Antônio Marques Teixeira, Escola Municipal Grimaldi
Ribeiro, Escola Municipal Castelo Branco, Escola Municipal São Sebastião e a
Escola Municipal Três Aroeiras. Toas localizadas tanto na cidade, como também

9 Elaborado a partir dos dados da EMATER local.


AGRICULTORA FAMILIAR E O PROGRAMA NACIONAL DE ALIMENTAÇÃO ESCOLAR: 147

na zona rural nas comunidades10. A maioria das escolas estão nas zonas rurais,
nos pequenos vilarejos distritais.
A maioria dessas crianças e adolescentes residem nas proximidades e não
possuem uma alimentação adequada para o desenvolvimento cognitivo. Sendo a
escola, possivelmente, o único local onde recebem uma alimentação de qualidade.
Segundo Sen (2000) uma pessoa que não sofre privação nutricional alcança um
desenvolvimento cognitivo mais rápido. Também, leva a defender a diminuição
da evasão escolar por razões alimentares.
A tabela 2 mostra a lista dos alimentos comercializado com a gestão
municipal e o valor pagos pelas unidades:

Tabela 2. Chamada Pública N° 001/2015.


Unida- Preços de
Itens Quantidade Orçamento Total
de Referência
1 Feijão verde KG R$ 9,00 R$ 17.100,00
2 Alface KG R$ 6,00 R$ 1.200,00
3 Batata doce KG R$ 2,50 R$ 9.500,00
4 Macaxeira KG R$ 2,50 R$ 9.500,00
5 Tomate KG R$ 3,00 R$ 1.680,00
6 Melão KG R$ 1,92 R$ 4.992,00
7 Banana KG R$ 2,50 R$ 5.000,00
8 Coentro KG R$ 7,00 R$ 560,00
9 Carne bovina de primeira KG R$ 19,50 R$ 40.950,00
10 Melancia KG R$ 2,00 R$ 5.280,00
11 Bolo de ovos KG R$ 10, 00 R$ 42.000,00
12 Milho verde KG R$ 0,88 R$ 4.400,00
13 Inhame KG R$ 6,00 R$ 15.600,00
Total R$ 157.762,00
Fonte: EMATER e Prefeitura de Pedro Velho/RN11.

Quando a Associação dos moradores da Comunidade de Porteiras e


Adjacências (AMCOPA) fornecem seus produtos para várias escolas, incentivando
a alimentação saudável dos estudantes e ao mesmo tempo são beneficiados
economicamente pelo aumento da renda. Ainda, exigi maiores investimento em
insumos agrícolas pelos agricultores, estimulando a economia local
10 Listagem segundo os informes da EMATER local.
11 Elaborado a partir dos dados da EMATER Local.
148 Osmar Faustino de Oliveira | Marcos Vinícius da Silva | Washington Maciel da Silva

Segundo a EMATER local, o programa tem aumentado significativamente


aptidão técnica e produtiva da comunidade fornecedora, e a melhora na qualidade
da alimentação escolar. Porém, há obstáculos que devem ser superados pela gestão
municipal, como o atraso no processo licitatório que afeta o processo de compra
desses produtos. Também, inserir outros agricultores, e garantir a alimentação
escolar para estudantes de baixa renda que frequentam escolas municipais que
ainda não são beneficiadas pelo projeto.
É conveniente lembrar que a Chamada Pública N° 001/2015 do Programa
Nacional de Alimentação Escolar ainda está sendo executada no município de
Pedro Velho, “segundo a EMATER local”.

Considerações finais

O estudo trouxe um debate histórico-social sobre as políticas públicas do


meio rural e um prévio diagnóstico da implementação do PNAE no município
de Pedro Velho, em tempo presente. Revela a relevância dessa política pública
para o desenvolvimento socioeconômico local e a nutrição escolar, além disso,
mostra uma série de obstáculos que devem ser superados pela gestão pública
local. Contudo, o programa se mostrou eficaz, por causa do crescente aumento
no rendimento dos agricultores, investimento em insumos agrícolas, a melhora
na qualidade da nutrição escolar, a diminuição da evasão escolar motivada pelo
déficit alimentar e a garantia do emprego e renda para o jovem no campo.

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04/12/2018.

Nota Explicativa
¹ Programa Nacional de Alimentação Escolar.
² Usamos esta cifra por ser um resultado já finalizado, e corrigido pelo órgão de incumbência.
³ desnutrição, anemia ferropriva, deficiência de iodo, hipovitaminose A, entre outras.
4 Ministério da Educação e Cultura.
5 Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura.
6 Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação.
7 BRASIL (2009).
8Metodologia de coleta e tratamento dos dados é um Método Misto sugerido por Gray (2012) e Creswel (2007).
9 Oliveira (2015).
10 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
153

A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA:


REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM1

Paulo Henrique Ferreira2


Washington Maciel da Silva3

Resumo: A proposta visa trazer uma reflexão historiográfica sobre a representação


da morte e dos mortos no imaginário medieval, a partir da existência de uma
religiosidade do temor aos mortos e da morte. Tal estudo, procura relacionar o
cotidiano do católico com a mentalidade religiosa expressa na arte e literatura.
Este recurso expõem uma religiosidade imediatista e escatológica medieval.
Então, como explicar a relação da religiosidade e o temor na representação
dos mortos e da morte? Quais são essas mentalidades religiosas? A releitura
historiográfica e o uso da semiótica evidenciam essa hermenêutica religiosa. Tais
considerações foram elaboradas pela ótica da História Cultural e as Ciências da
Religião um labor claramente interdisciplinar. Além disso, os recursos e fontes
são de origem bibliográfica, artística, literária e iconográfica. É possível afirmar
que a representação do medo da morte e dos mortos revela um conjunto de
mentalidades religiosas que se ajustavam a conduta católica.
Palavras Chave: morte, medo, religiosidade e História.

Abstract: The proposal aims to bring a historiographic reflection on the


representation of death and the dead in the medieval imaginary, starting from a
religiosity of the fear of the dead and of death. This study seeks to relate the daily life
of the Catholic with the religious mentality expressed in works of art and literature.
This feature exposes a medieval immediatist and eschatological religiosity. So
how to explain the relationship of religiosity and fear in the representation of the
dead and of death? What are these religious mentalities? The historiographical re-
reading and the use of semiotics in art and literary works clarify these religiosities.
These considerations were elaborated from the perspective of Cultural History

1 Este artigo é um avanço do TCC intitulado: “O Medo no Imaginário Social: os Vampiros na Europa da Ida-
de Média a Contemporaneidade”, defendido por Paulo Henrique Ferreira em 2016, sobre a orientação de
Washington Maciel da Silva na Universidade Estadual de Goiás - Campus Quirinópolis.
2 (Licenciado em História – Universidade Estadual de Goiás. E-mail. henrickferreira@gmail.com)
3 (Doutorado em Ciências da Religião pela PUC Goiás, bolsista da FAPEG. Estágio Sanduíche em História
com a Universidad Iberoamericana de la Ciudad de México, co-orientado pelo Dr. Yves Bernado Solis Nicot).
Mestre em História Cultural pela PUC Goiás e Licenciado em História – UEG. E-mail. Washingtonmaciel-
dasilva@gmail.com)
154 Paulo Henrique Ferreira | Washington Maciel da Silva

and the Sciences of Religion, a clearly interdisciplinary work. In addition, the


resources and sources are of bibliographic, artistic, literary and iconographic
origin. It is possible to affirm that the representation of the fear of the death and
of the dead reveals a set of religious mentalities that adjusted the catholic conduct.
Keywords: Death, fear, Religion and History.

Introdução

Este ensaio debate sobre a religiosidade expressa pelo medo da morte e


dos mortos durante a Idade Média. De nenhuma maneira, é defendida por uma
postura definitiva, pelo contrário, visa lançar ideias que correlacionam a pesquisa
pela abordagem historiográfica e das Ciências da Religião. O tema e a metodologia
permitem adentrar ao cotidiano das mentalidades religiosas no imaginário social
medieval e, deslumbrar-se com as possíveis leituras desse assunto. Também, é
clara a impossibilidade de esgotar o tema nessa suscita proposta, no entanto, não
é conveniente deixar de expor algumas observações.
A representação¹, a religiosidade e a significação da morte e o dos mortos
para os cristãos no medievo estão expostas nas obras artísticas, literárias, teatrais
e na liturgia cristã. Por isso, ao explicar significância da morte e dos mortos se faz
necessário usar a semiótica para entender a religiosidade na cristandade medieval.
Além disso, torna evidente o funcionamento da mentalidade religiosa e a repre-
sentação da post-mortem para a sociedade da época. Tal cenário, também permiti
perceber como a inserção de mitos, tradições e lendas influenciaram a religiosidade
católica. Essas e outras considerações visam propor uma religiosidade redigida pelo
temor à brevidade da vida humana e a crença na eternidade da alma. A conduta
religiosidade passa a ser moderada pela incerteza da vida e a da certeza da morte.

A representação do medo da morte e dos mortos

Falar sobre o medo da Morte e dos Mortes na Alta ou Baixa Idade Média
sempre é um tema que envolve a conjuntura da sociedade cristã. Dev-se levar em
conta o imaginário social e a mentalidade religiosa escatológica e imediatista no
cristianismo da época. Além disso, essa caraterística permite ver os sentimentos e
as subjetividades cotidianas que motivavam uma religiosidade fundamentada no
temor à morte (PERNOUD, 1997b e DUBY, 1994).
Ao observar a religiosidade é possível visualizar como era representado
cosmologia religiosa cristã, pois o medo dos mortos e da morte são uma
A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA: REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM 155

das manifestações mais antigas na história da humanidade. Expressar-se


religiosamente foi a dinâmica responsável, em boa medida, pela concepção
das lendas, tradições, cultos e a espiritualidade mística no medievo (FRANCO
JUNIOR, 2001 e COULANGES, 2004). Neste contexto Delumeau (2003),
afirma que significado da morte e dos mortos foram inseridos pelas práticas
culturais e religiosas germânicas, que se desenvolvem no interior da sociedade
católica:

Assim, Claude Lecouteux teve o mérito de insistir na dívida da literatura ecle-


siástica e latina da Idade Média com relação às tradições germânicas. Ele mos-
trou como o par cristão da alma (imaterial e eterna) e do corpo (material e
perecível) por vezes não fez mais do que recobrir superficialmente a concepção
pagã germânica de um duplo quase físico (hamr) sobrevivendo depois da morte
(SCHMITT, 1999, p.16).

Por esta razão que a representação da Morte e dos Mortos² possuíam


diferentes definições, porém eram majoritariamente redigidas pela cosmologia
cristã. Continha uma configuração que alimentava a religiosidade e a sua
representação exposta pelo imaginário religioso³:

Eram exatamente estes os mesmos juízos formulados a tal respeito tanto por
gregos como por romanos. Ao deixarem de oferecer a refeição fúnebre aos mor-
tos, estes saíam dos seus túmulos; sombras errantes, sentiam-nos gemer pela
calada da noite silenciosa. Repreendiam os vivos pela sua negligência ímpia;
procuravam puni-los, enviando-lhes doenças ou ameaçando-os com a esterili-
dade do solo. (COULANGES, 2004, p.17).

Para entender a religiosidade é preciso observar antropologicamente signi-


ficado do medo, da morte e dos mortos pela representação do fenômeno religioso.
Essa atuação é importante para que o historiador retome a vivência como o espa-
ço de apreensão da dinâmica da crença e o sujeito em seu tempo:

Contudo, parece-me que o historiador da Idade Média deve enriquecer a defi-


nição antropológica universal dos fantasmas por considerações históricas mais
particulares. Alguns desses fatores específicos devem-se à formação complexa
da cultura medieval, ao peso das heranças que lhe deram origem: as heranças
do paganismo greco-romano (em que o culto dos mortos da cidade ou da gens
desempenhava um papel muito importante) ou ainda as heranças “bárbaras”
revivificadas pelas migrações dos povos germânicos e integradas à cristandade
durante o primeiro milênio (SCHMITT, 1999, p.16).
156 Paulo Henrique Ferreira | Washington Maciel da Silva

Muitas dessas representações estavam atreladas aos fatores históricos,


sociais culturais, religiosos e até climáticos, que provocaram ondas migratórias
em busca da sobrevivência. Ou seja, habituar-se com a fome, seca, peste e guerra
era parte da vida, e recordava a onipresença da morte para com a existência
humana (FRANCO JÚNIOR, 2001). Foi por meio da experiência com a incerteza
da continuidade da vida que a sociedade católica medieval demarcou a crença na
post-mortem. Uma ideia é defendida por Le Goff (2004), que entende a vivência
como um ponto fundamental para definir a relação do católico com Deus e a sua
religiosidade.
O primeiro exemplo do significado da morte e a representação da crença na
post-mortem é a narrativa do “purgatório”. Um momento para o julgamento das
“almas. Para explicitar essa representação é conveniente usar as obras artísticas da
Idade Média, que materializa o conceito de mentalidades religiosa (VOVELLE,
1985 e DUBY, 1994). A pintura nomeada como o Julgamento das Almas (Ver
figura 1), retrata a imagem de um Deus como um ser soberano que irá julgar a
todos. Por isso, a representação do purgatório pode ser considerada um exemplo
essencial para perceber a mentalidade cristã neste período:

Figura 1: Julgamentos das almas

Fonte: Acervo do DGPC-Governo de


Pòrtugal (4).
A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA: REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM 157

A representação do purgatório pode ajudar a explicar a ideia


soterológica da salvação e a post-mortem para a cristandade medieval.
Uma narrativa permeada de medo, anseios e pelo destino incerto, era
uma preocupação real e que não gerava apenas uma inquietude moral e
espiritual, mas determinava a conduta cristã (PERNOUD, 1997 b e DUBY,
1994). Outra caraterística era a expectativa escatológica, “o fim do mundo
ou da vida humana” que direcionava para um culto preenchido de mitos,
superstições, lendas e preceitos. Tudo isso, devido a eminente ideia do “fim
da vida humana” e a fé que seguramente todos passariam pelo julgamento da
alma” (LE GOFF, 2004 e PERNOUD, 1997b).
O medo da morte ou daqueles que estavam aguardando o julgamento
estimulava a procura pela remissão dos pecados pelo sacrifício ou pela indulgência.
Por tal razão que as relíquias sagradas eram amplamente comercializadas
e disputados como ha única garantia efetiva de salvação e remissão dos
pecados (PERNOUD, 1997ª). O conceito de “pecado” estava com certeza
instrumentalizado, usando o temor da morte e daqueles foram condenados com
exemplo para incentivar à observância e obediência aos sangramentos e a Igreja
(MATTOSO, 1992). Por este motivo que as relíquias dos diversos santos católicos
eram consideradas como meio de intercessão que poderia “afiançar” a remissão e
garantir a salvação imediata:

A invocação dos santos como intercessores especialmente eficazes para prote-


gerem os mortos contra as penas eternas desenvolveu- se, porém, durante os sé-
culos VIII a X, provavelmente por influência do culto das relíquias, a que eram
atribuídos poderes especiais na assistência de quem as tocava e venerava. No fim
deste período, já se havia tornado um tópico quase indispensável das práticas e
das crenças funerárias (MATTOSO, 1992. p. 25).

Por isso que ao entender o medo que os vivos possuíam dos mortos
e da morte é permite destacar o surgimento e o desenvolvimento de uma
“religiosidade do temor” (VOVELLE, 1985 e ARIES, 2000). Outro exemplo,
é a obra A Divina Comédia de Dante Alighieir”, editada no século XIV. Que
utiliza a representação do Inferno de Dante para mostrar o quão o homem
estava enraizado em uma religiosidade aonde o temor era um motivador da
crença (Ver figura 02):
158 Paulo Henrique Ferreira | Washington Maciel da Silva

Figura 2: O Inferno de Dante

Fonte: Acervo do DGPC-Governo de Pòrtugal (5).

As raízes pagãs permaneceram no interior das práticas cristãos, porém,


eram associadas diariamente aos temores da morte ou daqueles que foram
condenados, segundo a doutrina cristã. A crença e a representação do inferno
eram uma advertência do destino da alma (ARIES, 2000 e PERNOUD, 1997ª). Ou
seja, recordar a morte e o inferno era uma tática eficiente para instruir a crença
na eternidade da alma marcada pelo sofrimento ou pela salvação. A Pintura
conhecida como “Carlos V, ante uma visão do Inferno” (Ver figura 03) é uma
dessas representações.
A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA: REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM 159

Figura 3: Carlos V ante uma visão do Inferno

Fonte: Acervo do DGPC-Governo de Portugal (6).

É viável dizer que a atuação e a observância da conduta cristão era regida


pela religiosidade orientada pelo termor da morte e dos mortos. Essa representação
tinha um poder verdadeiramente doutrinador, e que definia a desenvoltura da
conduta e da mentalidade religiosa medieval. Além disso, há outro aspecto,
sobreviver na sociedade segmentária medieval era algo difícil, pois as constantes
guerras e os longos períodos de fome e peste reforçavam a narrativa escatológica.
Um forte incentivo para a busca da salvação imediata, seja por meio do sacrifício,
indulgência ou pela beneficência das relíquias sagradas. Pois, tais práticas estavam
arraigadas a atuação cristã, dando uma significação social, religiosa e cultural
a post-mortem, porque simplemente a morte emergia do cotidiano medieval
(MATTOSO, 1992). O reconhecimento da brevidade da vida humana nutriu uma
religiosidade em busca da redenção imediata:

Aparece com a maior frequência nas fórmulas documentais que justificam as doa-
ções solenes feitas a igrejas e mosteiros, dentro do espírito do sistema do dom e do
contra-dom: o devoto oferecia um bem ao santo, ou mais precisamente aos santos
cujas relíquias estavam no altar da igreja ou mosteiro, e declarava que esperava
dele a proteção, o patrocínio, para a remissão dos pecados. Estas fórmulas tor-
nam-se, de facto, muito frequentes no século X (MATTOSO, 1992. p. 25).

Em tempos de guerra ou pestes, populações inteiras eram obrigadas a


abandonar às suas cidades, vilarejos ou vilas, devido o risco de morte causado
160 Paulo Henrique Ferreira | Washington Maciel da Silva

pela perseguição ou pela fome. Morrer, não assustava o homem na Idade Média,
mas estar preparado para o julgamento de sua alma essa era uma prioridade
(FRANCO JUNIOR, 2001). Neste ensejo, tendo em mente o constante risco de
morte, vivenciar uma aproximação constante com o risco de morte literalmente
integrava o cotidiano do católico medieval, pois em qualquer momento poderia
ser uma vítima a morte súbita, mors repentina (ARIES, 2000 e LECOUTEUX,
2005).
A pintura conhecida como “A Batalha de Roncesvales: a morte de Rolando”
pode exemplificar esta proximidade com a brevidade da vida humana em caso de
guerra ou de um longo período de intempérie:

Figura 04: Batalha de Roncesvales: a morte de Rolando

Fonte: Acervo da BNF Expostions-Governo da França (7).

Estar em uma guerra ou em meio a um surto de peste aproximava o homem


da morte, segundo Philippe Ariès na obra, O Homem Perante a Morte e A História
da Morte no Ocidente. Que dizer que, o homem medieval tinha consciência
da brevidade de sua existência, por isso, estar “em dias” com os sangramentos
católicos poderia evitar um sofrimento eterno.
A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA: REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM 161

Partido para narrativa do moribundo demonstra a tradição da intervenção


divina em uma situação de morte e a crença no providencialismo divino para o
devir da alma humana (ARIES, 2000 e SCHIMITT,1999). A figura chamada de
“Agar e o Anjo junto à morte” é uma representação dessa narrativa. Ressalvo, que
a pintura foi uma obra da Idade Moderna, porém é possível perceber a mentalida-
de religiosa que perpassou pela sociedade medieval:

Figura 05: Agar e o Anjo junto à fonte

Fonte: Acervo do DGPC-Governo de Portugal (8)

Neste ínterim, os nobres quando faleciam distantes de suas casas, os corpos


(ou que havia dele) deviam ser levados para sua terra natal ou, ter minimante um
funeral cristão no local de sua morte. Porém, esse é um tema cheio de controvérsias,
porque o cuidado com o corpo humano sem vida era uma influência das práticas
pagãs germânicas, já que para a teologia católica o corpo sem vida possui um
significado profano:

Em 421, Paulino, bispo de Nola, na Campânia, escreve a seu amigo, o bispo de


Hipona, que ele aquiesceu ao desejo de uma nobre dama, Flora, de mandar se-
pultar seu filho morto na basílica de São Félix de Nola; ele supõe que a sepultura
ad sanctus beneficie os mortos pede a opinião de Agostinho. A resposta que este
162 Paulo Henrique Ferreira | Washington Maciel da Silva

acaba por lhe enviar é um verdadeiro tratado sobre o “cuidado que é preciso
ter com os mortos”. Agostinho não partilha a opinião de Paulino. Os cristãos,
segundo ele, não devem preocupar-se com o corpo dos mortos, como fazem os
pagãos. Somente a alma deve importar-lhes e, para a sua salvação, devem orar a
Deus (SCHIMITT,1999, p.35).

Tal contexto, coloca em evidência a representação da morte nefasta


exemplificada principalmente pelo suicídio. Então, não era suficiente ter uma
vida de boas ações e de observância da doutrina cristã, era necessário morrer pela
razão e da forma adequada conforme a tradição na cristandade:

Na sociedade medieval, assim como em muitas outras sociedades tradicionais, a


forma particular de existência que se atribui aos defuntos depende do transcur-
so do “rito de passagem” da morte: os mortos voltam, de preferência, quando os
ritos dos funerais e do luto não puderam efetuar-se normalmente, por exemplo,
se o corpo de um afogado desapareceu e não pôde ser sepultado segundo o
costume, ou ainda se um assassinato, um suicídio, a morte de uma mulher no
parto, o nascimento de uma criança natimorta apresentam para a comunidade
dos vivos o perigo de uma mácula. Esses mortos são geralmente considerados
maléficos (SCHMITT, 1999, p.16).

Em resumo, a sociedade medieval revelou uma variedade de representações


do medo da morte e dos mortos, porém se pode perceber que há uma “religiosidade
do temor” que modelava a conduta católica. Que pode ser vista pelo seu caráter
imediatista e salvacionista na crença na post-mortem. O reconhecimento da
brevidade construiu um católico motivido pela temeridade como diretriz do culto
católico e de seus cuidados diários com a doutrina cristã. Então, ao manter um
cuidado doutrinário e a observância da ética e moral cristão era uma atitude que
poderia garantir a salvação, segundo a tradição teológica cristã.

Considerações finais:

É difícil evitar a relacionar da representação com o cotidiano e a religiosidade


durante a Idade Média. Um período, no qual, caracteriza-se pelo temor da morte
e dos mortos como parte da concepção de vida e da morte. Essa assertiva está
presente tanto na historiografia quanto expressa nas obras artísticas da época que
materializam esta argumentação.
A crença e a representação da morte, dos mortos, do inferno e do purgatório
eram advertências que recordavam a relevância dos cuidados com a observância
da doutrina cristã e seus sacramentos como uma forma de garantir a salvação
A RELIGIOSIDADE E O TEMOR NA IDADE MÉDIA: REPRESENTAÇÕES E A CRENÇA NA POST-MORTEM 163

na post-mortem. Além disso, revela uma mentalidade religiosa baseada no medo,


seja provocado pelo modelo de sociedade segmentária ou pelas intempéries da
vida: guerras, pestes e períodos de fome e seca. Ou seja, esse enredo favoreceu
o desenvolvimento de uma “religiosidade do temor à morte e dos mortos”,
incentivando práticas que garantissem a salvação imediata para aquele que estava
exposto a esse contexto. Evitando assim, uma condenação pelo “possível fim
escatológico da humanidade” ou pelo risco cotidiano de morte. Esta arremetida
demonstra como a semiótica pode ser usada como recurso metodológico para a
historiográfia.

Referências:

ARIES, Philippe. O homem perante a morte. Portugal: Europam, 2000.


BACZKO, Bronislaw. Les imaginaires sociaux. Mémoires et espoirs collectifs. Paris, Payot,1984.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de Maria Manuela
Galhardo. 2 ed. Lisboa: DIFEL, 1990.
DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Editorial Estampa, 1994.
DELUMEAU, Jean. El Miedo no en occidente. [s.I]: Taurus, 1978.
__________, Jean. A civilização no renascimento. Lisboa: Ediorial Estampa, 1994.
__________, Jean. O pecado e o medo: a culpabilização no Ocidente (séculos 13‐18). v. 1. 623 p.
Tradução Álvaro Lorencini. Bauru: EDUSC, 2003.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense,
2001.
COULANGES, Numa Denis Fustel de. A cidade antiga. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida: economia e religião na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 2004.
________, Jacques. As raízes medievais da Europa. Petrópolis: Vozes, 2007.
LECOUTEX, Claude. História dos vampiros: autopsia de um mito. São Paulo: Editora Unesp, 2005.
MATTOSO, José. O culto dos mortos na península ibérica (séculos VII A XI). In: Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. LUSITANIA SACRA, 2.” série, 4
(1992) p. 13-38. Disponível em: https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/4864/1/LS_S2_04_
JoseMattoso.pdf acessado em: 30-07-2018.
MELTON, J. Gordon. Enciclopédia dos vampiros. São Paulo: M. books do Brasil Editora Ltda, 2008.
PERNOUD A, Régine. Luz sobre a Idade Média. Portugal: Publicações EUROPA-AMERICA , 1997.
PERNOUD B, Régine. O mito da Idade Média. Portugal: Publicações EUROPA-AMERICA , 1997.
PEIRCE, C. S. Semiótica. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
164 Paulo Henrique Ferreira | Washington Maciel da Silva

PROENÇA, Graça. História da Arte. São Paulo: Ática, 2007.


SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo: Companhia das
Letras, 1999.
VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

Nota explicativa
Conceito subsidiado por Chartier (1990).
² Lembrando que para o uso deste conceito foi realizado uma relação entre a representação defendida em
Chartier (1990), a Semiótica de Peirce (2010) e a História da Arte de Proença (2007).
³ A concepção de imaginário cruzar com as ideias de Duby (1994), Volvelle (1985) e Baczko (1984).
4 A imagens retirada do inventário luso disponível do site http://www.matriznet.dgpc.pt/. À sua manutenção
é de responsabilidade do Governo de Portugal-Secretária de Estado e da Cultura. O uso desta imagem é para
análise e ilustração do debate não havendo qualquer interesse comercial para o autor, sendo assim, estamos
segundo os termos do copyright do sítio da Web. Inventário digital do Museu Nacional de Arte Antiga, N.º
de Inventário:71 Pintura: categoria: Arte, Categoria: Pintura, Denominação: Julgamento das Almas. Título:
Julgamento das AlmasAutor:DesconhecidoDatação:1525 d.C. - 1550 d.C. Matéria: Óleo Suporte: Madeira
de carvalho Técnica: Pintura a óleo Dimensões (cm):altura: 210; largura: 176,5; Disponível em: http://www.
matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=248881&EntSep=3#gotoPosition
acessado em: 16-07-2018.
5 Inventário do Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea, N.º de Inventário:133, Super
categoria:Arte Categoria: Desenho Denominação :Grupo (Inferno de Dante) Autor: BASTOS, António
VICTOR de Figueiredo (Lisboa, 1830 - idem, 1894)Datação:1863 d.C. Matéria: Lápis Suporte :Papel
Técnica: Desenho a lápis Dimensões (cm):altura: 39; largura: 32. Disponível em: http://www.matriznet.
dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=200528&EntSep=5#gotoPosition acessado
em 17-07-2018.
6 Inventário do Museu: Palácio Nacional da Ajuda, N.º de Inventário:41402 Supercategoria: Arte Categoria:
Pintura Denominação: Carlos V ante uma visão do Inferno Autor: Desconhecido Datação: XVII d.C.
Matéria: Óleo Suporte: Tela Dimensões (cm):altura: 71; largura: 132. Disponível em: http://www.matriznet.
dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=1045995, acessado em: 17-07-2018
7 Obra de Jean Fouquet, pintor francês que viveu entre 1420-1481, que atualmente está no repositório
de domínio público; Les Galeries Virtuellles de la Bibliothèque Nationale de France, “BNF Expostions”.
Disponível em http://expositions.bnf.fr/fouquet/grand/f011.htm acessado em 17-07-2018
8 Palácio Nacional da Ajuda, N.º de Inventário:53146/75Supercategoria:
ArteCategoria:GravuraDenominação:A gar e o anjo junto da fonte Autores: COELÉMANS, I. LOYR,
Nicolas (1624-1679) Datação: XVII d.C. - XVIII d.C. Matéria: Papel, tinta Suporte: Papel Técnica: Buril
Dimensões (cm):altura: 17,8; largura: 25,8. Disponível em;. http://www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/
Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=1054968, acessado em: 17-07-12018
165

LAPINHA E REISADO DO SALTO

Cícero Félix de Sousa1

Resumo: Durante o período natalino, um dos mais significativos para a Igreja


Católica, o Território de Identidade da Bacia do Rio Corrente (TIBC), na região
Oeste da Bahia, torna-se palco para diversas manifestações do catolicismo popular
que celebram o nascimento do “Menino Deus”. A Lapinha e o Reisado são as mais
recorrentes e presentes nos 11 municípios do território. Neste artigo, destacamos
a relação entre essas duas manifestações na comunidade tradicional do Salto,
no município de Correntina, e como os elementos da indústria cultural são
ressignificados e compõem a espetacularização dessas performances etnográficas
em constante atualização da memória e história das comunidades geraiseiras da
região.
Palavras-Chave: Lapinha. Reisado. Catolicismo popular.

Abstract:During the Christmas period, one of the most significant for the
Catholic Church, the Identity Territory of the Rio Current Basin (TIBC), in the
western region of Bahia, becomes the stage for various manifestations of popular
Catholicism celebrating the birth of the “ God”. The Lapinha and Reisado are the
most recurrent and present in the 11 municipalities of the territory. In this article,
we highlight the relationship between these two manifestations in the traditional
community of Salto, in the municipality of Correntina, and how the elements of
the cultural industry are re - signified and compose the spectacularization of these
ethnographic performances in constant update of the memory and history of the
general communities of the region.
Key words: Lapinha. Reisado. Popular Catholicism.

Introdução

O Território de Identidade da Bacia do Rio Corrente (TIBC) tem uma


formação étnica predominantemente indígena, comum às populações centrais do
Brasil, devido à colonização portuguesa iniciada no século XVI que expulsou as

1 (Jornalista, Mestre em letras, pesquisador de cultura popular e professor do Centro Multidisciplinar de San-
ta Maria da Vitória. Professor Assistente da Universidade Federal do Oeste da Bahia – UFOB- email cicero.
souza@ufob.edu.br)
166 Cícero Félix de Sousa

tribos dos litorais para regiões geraiseiras2 como essa, circunscrita entre o sertão
do São Francisco e o cerrado baiano. Sobre os aspectos religiosos da cultura do
povo dos gerais, o Plano Territorial de Desenvolvimento Sustentável (2010),
afirma,

A formação católica foi predominante, porém a presença da igreja católica na


região foi deficiente, levando os princípios católicos a serem desnaturados nas
classes mais baixas, dando origem a crendices e superstições que sustentavam os
valores morais e as regras de conduta da sociedade (PTDS, 2010).

Esta avaliação, apesar de constar em um documento oficial do Ministério


do Desenvolvimento Agrário do governo federal, parece mais a avaliação oficial
de uma igreja pouco eficiente no controle de seus fiéis, principalmente nas
populações menos assistidas por políticas públicas, como as das comunidades
rurais. Por outro lado, poder-se-ia dizer que a Igreja foi até bastante eficiente em
sua expansão de domínio, considerando os vestígios de rituais católicos antigos
nas manifestações de catolicismo popular dessas comunidades.
Vale salientar que nesse território a religiosidade desnaturadamente
“independente”, reconfigurada, alheia à liturgia oficial da Igreja parece ser mais
densa. O povo encontrou nessas manifestações o alimento para o espírito, para
o corpo e o convívio social. Esses rituais espetaculares em torno do sagrado,
em momentos especiais de celebrações, constituem “uma forma de ser, de se
comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se emocionar, de falar, de cantar
e de se enfeitar” (PRADIER, 1999, p. 24) de um território rico em manifestações
do catolicismo popular. Portanto, para melhor delimitar o objeto de pesquisa,
decidimos analisar a lapinha e o reisado da comunidade tradicional do Salto, em
Correntina, no Oeste da Bahia, que acontecem entre dezembro e janeiro, entre a
preparação para celebrar o nascimento do “Menino Jesus” (também chamado de
“Menino Deus”), no dia 25 de dezembro, e a visita dos Três Reis Magos, no dia 6
de janeiro, Dia de Reis.
Nessa época, os gerais tornam-se um grande palco para um catolicismo
arraigado ao rito Tridentino, cujo latim ainda fazia parte de uma liturgia oficial
antiga da Igreja. Nessa época, o moderno e o industrial imbricam-se em uma
dança ritmada por flautas, tambores, triângulos, pandeiros e afoxés, em que os
ícones e mitos da indústria cultural misturam-se a santos e imagens sagradas,
2 Termo que reúne certas características geográficas e de vegetação do cerrado. De acordo com o Dicionário
Aurério (2004), “Gerais”, de campos gerais, significa: 1 .Campos do Planalto Central. 2.Lugares desertos e
intransitáveis, no sertão do Nordeste. 3.Campos planos cobertos de erva ou grama. 4.Campos extensos,
inaproveitados e pouco habitados.
LAPINHA E REISADO DO SALTO 167

como coadjuvantes de uma teatralidade cujos protagonistas populares são o povo.


No Salto, em Correntina, Sú ergue sua lapinha na sala e Nego sai com seu grupo
em giros performáticos, conjugando a fé, dança e passionalidade, só retornando
para a casa e para sua mulher Sú, no Dia de Reis.

Lapinha de Sú

Sú começa a montar a lapinha no dia 19 de dezembro. No dia 24, à tardinha,


está pronta. Maria Sueli Neiva Costa, 55 anos, conhecida no Salto como Sú, era
adolescente quando começou a se encantar pela lapinha e criar afetividade,
inspirada em sua avó, nos anos 1970. Portanto, há mais de 40 anos ela ergue a
lapinha. “É um tempo que a gente sente alegria, tem aquele entusiasmo de chegar
o dia de Natal para montar a lapinha”, conta.
Sua Lapinha é gigante, ocupa cerca de 12m2 da sala. Sobra pouco espaço
para circular ou ficar em volta. O Menino Jesus fica ao centro, na manjedoura, no
final de uma rampa repleta de miniaturas de animais. São cavalos, rinocerontes,
leões, vacas, cachorros, elefantes e outros. Na lateral direita da rampa, sobem os
três reis magos; e abaixo e em torno da rampa, centenas de objetos espalhados
de forma aleatória, porém, dentro de uma organização espacial. Assim estão o
surfista prateado, o caubói americano, um campo de futebol, carrinhos, limousine,
pássaros eletrônicos “importados da China” que cantam ao som das palmas,
calungas, a fada Sininho, Mikey, carros de bois de madeira, engenho de cana com
tração animal, carro da Fórmula 1, soldadinho com metralhadora em pontaria
para qualquer direção, outro com canhão, bonecas ensaiando o Terno de Reis, um
tigre, um pássaro que não para de mexer a cabeça; todos esses e outros objetos que
não estão citados parecem reverenciar o nascimento do Menino Jesus, que olha
singelo para o céu ladeado por Maria e José e alguns animais.
“Eu penso assim: esses aqui que são as ovelhinhas, os boi, os animais; isso
eu vejo contar de geração para geração, que Jesus nasceu no meio das ovelhas,
dos bois... Os pastores tavam naquela época perto daquele lugar. Agora, os outros
objetos são pra compor mesmo a Lapinha”, explica Sú, que começou a fazer
lapinha com sua vó Joanísia, aos 15 anos.
De acordo com a tradição, o Menino Jesus só deve ser colocado na
manjedoura à meia noite do dia 24 de dezembro, a hora em que segundo a Bíblia,
Ele nasceu. Mas, Sú o coloca à tardinha e acredita que isso não trará consequências
do sagrado. À meia noite, contudo, as mulheres fazem a primeira das várias rezas
que farão até o Dia de Reis, em 6 de janeiro, incluindo ofícios e ladainha em latim.
168 Cícero Félix de Sousa

As rezas são baseadas no devocionário popular intitulado “Porta do Céu”


(BOM JESUS DA LAPA, 2006), composto pelos padres Missionários Filhos do
Imaculado Coração de Maria, congregação fundada em 1849, na Espanha. Este
livreto também é usado em outras manifestações do catolicismo popular da região,
a exemplo do Altar do Menino Deus, de Dona Pulô, no Jataí, na comunidade rural
de Cristópolis.
Após a reza, entra em cena o Reisado do Salto, que canta à lapinha
rendendo homenagem ao nascimento do Menino Jesus. O tom triste e solene das
rezas dá lugar a alegria dos homens que cantam e tocam em torno da lapinha. São
dois momentos de rupturas com o tempo e o espaço que se complementam em
rituais que atravessam séculos em atualização e ressignificação da realidade das
comunidades e de seus entornos.
A cada dia que passa os Três Reis Magos sobem alguns passos da rampa da
lapinha. No dia 1º de janeiro, eles chegam à manjedoura e presenteiam o Menino
Jesus. No dia 6, Dia de Reis, eles passam a descer a rampa e os animais mudam
de direção, deixando a manjedoura para trás. Nesse contexto, a movimentação
das peças dá vida a Lapinha, que segue um roteiro de evolução cênica que conta a
história através de um tempo representado pela própria movimentação.
Na tarde do dia 6 de janeiro, Sú e demais rezadeiras fazem a última reza em
torno da lapinha, sob a presença solene do Reisado do Salto que encerra seu giro
exatamente onde e como começou, cantando para a lapinha de Sú. Em seguida,
uma refeição coletiva feita a partir de doações e “esmolas” arrecadadas pelo grupo
do reisado é servida a toda comunidade, que celebra o espetáculo da lapinha e do
Reisado em festa. No dia seguinte a lapinha é desmontada.

O Reisado do Salto

Os caminhos de Nego e Sú se cruzaram e tempos depois veio o casório.


Sú já fazia a lapinha, mas Jaime da Costa, vulgo Nego, ainda não saía em giro3 de
reisado e nem existia o Reisado do Salto. Eis que a devoção de Nego pelo Santo
Reis foi crescendo e ganhando força. As conversas com os amigos sobre a criação
do grupo começaram em 1976. A ideia era criar “alguma coisa para movimentar o
lugar”, lembra Nego, 57 anos. Um grupo denominado Domingo de Gino passava
pelo Salto quase todo ano. Foi daí que veio a inspiração. “A gente gostava demais.
Para mim era uma das coisas lindas que eu via”.

3 Movimento ciclo dentro do ritual religioso que é repetido em toda casa durante todos os dias de circulação
do Reisado pelas comunidades.
LAPINHA E REISADO DO SALTO 169

Dos integrantes da primeira formação do reisado do Salto, apenas


Gilberto tinha alguma experiência, pois ele já havia participado do Domingo
de Gino.
Seu Nego continua,

No primeiro ano que saímos, a letra do Canto do Dono da Casa era totalmente
diferente, pois pegamos de seu Domingo de Gino e o compadre que copiou
não estava com ele todo na memória e seu Domingo não tinha como [passar],
pois não tinha nada escrito, era tudo na cabeça. Depois do primeiro ano que
saímos, numa comunidade vizinha, tinha um folião antigo e quando nós chega-
mos na casa dele, segundo ele, o céu havia chegado na terra e nisso ele passou
uma letra, que hoje o pessoal acha diferente, mas dá mais certo um verso com
o outro, combina mais. No começo a gente saía com a cópia para não errar (
NEGO,2017).

Quando o Reisado do Salto começou a girar, o grupo saía no dia de Natal


e só retornava para o ponto de partida no Dia de Reis, em 6 de janeiro. O tempo
foi passando, os foliões cansando; alguns desistiram, um faleceu desanimando
o grupo, que passou a sair a partir do dia 1º de janeiro, só realizando uns dois
pousos4 no máximo. Nas outras noites eles retornavam para dormir em casa e
reiniciavam de onde pararam na manhã seguinte.
No dia da saída, Nego se reúne no terreiro de sua casa com os 13 foliões para
fazer algumas recomendações. Falando sobre o cuidado com o excesso da bebida,
comportamento e fé. Em seguida o grupo inicia seu périplo pela comunidade do
Salto e demais comunidades do município de Correntina. Usam chapéus com
fitas, camisas iguais e portam instrumentos. Alguns usam uma espécie de estola
em volta do pescoço. Na primeira visita, em uma casa não muito distante de Sú,
o som de flautas, tambores, triângulo, reco-reco, afoxé e pandeiro acompanhado
de um canto executado por duas vozes em conjunto com timbres diferentes abre
o giro contínuo do Reisado do Salto.
Nos seis dias pesquisados, o grupo visitou uma média de 150 casas nas
comunidades do Salto, Barreiro Vermelho, Vereda Grande, Sussuarana e Toledo.
Nego estima que nesse período eles percorram cerca de cem quilômetros. Como
regra da tradição, a cada visitação eles fazem três cantos: a) o canto do dono da
casa (saudação), b) canto da lapinha (quanto há na casa visitada) e c) canto da
louvação da mesa (quando o dono da casa oferece “lanche” aos foliões, composto
de farofa de galinha caipira com pequi, cachaça, vinho de gengibre e de raízes).
Caso na casa não tenha lapinha nem oferta de “lanche” eles fazem apenas o
4 Dormir na última casa em realizar o giro do dia.
170 Cícero Félix de Sousa

canto do dono da casa e giram em círculo tocando os instrumentais com base no


repertório fora dos cantos oficiais do giro de reis.
As visitas são mais ou menos programadas, explica Nego. Há sempre
um convite antes, embora no trajeto possam se apresentar em uma casa não
previamente planejada. De modo geral, elas acontecem nas casas dos devotos do
Santo Reis. Muitas vezes em função de uma graça alcançada.
É comum ao final do giro, o dono da casa oferecer uma “esmola” ao grupo
para ajudar na realização do almoço coletivo promovido pelo grupo, no dia 6 de
janeiro, no início da tarde, eles retornam para a casa de Nego e Sú. Lá, um batalhão
de mulheres começou a preparar o almoço coletivo desde cedo. As despesas são
bancadas por membros da comunidade e pelas doações conseguidas nas casas
visitadas durante o giro.
Diferentemente do dia 24 de dezembro, no Dia de Reis é o reisado que
inicia a saudação à lapinha com seu canto, após os foliões retirarem os chapéus e
os colocarem em torno ao redor do cenário. Na sequência, as mulheres iniciam as
rezas sob uma resignação comovente dos reiseiros, que assistem ao ritual de joelho
e, agora, com chapéu no peito. A reza é comandada por Sú e outras mulheres. Em
seguida, galinha, pequi, arroz e feijão de corda começam a serem servidos para os
presentes que ocupam os espaços internos e externos da casa, se espalhando por
vários cantos do terreiro.
Seu Nego reflete sobre a jornada,

A primeira coisa que eu sinto quando vejo a multidão valorizando a gente, eu


imagino no dia que parar. Antes de sair, eu já imagino isso. Essa jornada toda
está indo com mais de anos. Então, eu já imagino assim: a sensação é de alegria
no momento, mas aí já a preocupação da tristeza. E o ano que vem? Se parar, o
que vai acontecer nessa hora?

Embora sua reflexão seja compartilhada por todos os foliões, o que se vê nos
rostos de cada um, ao final do giro, além do cansaço, é um sentimento de realização,
missão cumprida, de espetáculo bem sucedido com um público freneticamente
agradecido pela apresentação. Mas, ao invés dos aplausos, tem-se a sensação de que
o silêncio dos gerais parece dizer amém, como no encerramento de uma ladainha.

Algumas reflexões

O catolicismo popular nasceu no Brasil colônia, com a chegada dos jesuítas.


Curiosamente, sobrevive até hoje, principalmente no ambiente rural. O latim
LAPINHA E REISADO DO SALTO 171

é uma das heranças mais significativas dessa época, transmitido basicamente


através da tradição oral. Sú e as demais mulheres rezam a Ladainha de Nossa
Senhora em latim, a partir da leitura do devocionário popular “Porta do Céu”. O
livreto foi composto por Padres Missionários Filhos do Imaculado Coração de
Maria e impresso pela primeira vez em 1961.
Em entrevista, o padre Marcos Silva, bacharel em teologia, explicou que o
uso do latim reinventado pelo povo pode ter sido influência da Missa Tridentina,
que era celebrada de costas e em latim. Só após 1969, a prática foi abolida dos
rituais litúrgicos da Igreja, embora o idioma materno da língua portuguesa
continue a resistir nessas práticas espetaculares.
Para Certeau (2002), a história é a arte da encenação e está relacionada
com o lugar social, onde fenômenos se manifestam através do tempo e do espaço
para ratificar, na memória, a identidade coletiva de grupos sociais. A memória
é espaço de lembrança, esquecimento, errância, preservação, transformação e
atualização; é o berço do imaginário popular em que se congregam saberes não
eruditos com possibilidades de inserções de planos de saberes institucionais. A
memória ocupa, portanto, um movimento dentro de uma alegoria etnográfica
(CLIFFORD, 2002) em que enredos estruturados se encarnam em relatos escritos
e estéticos de movimentos, cores e sons.
A errância dessa memória ativada está presente nas duas manifestações
pesquisadas. A memória de Nego do Salto, reconstruída e ressignificada a
partir das lembranças da infância, dos ensaios dos giros de reis com outras
crianças. Portanto, essa afetividade e encantamento pelo espetáculo do reisado
é anterior à Domingo de Gino. A transformação da lapinha de Sú, face a que ela
aprendeu a montar com sua vó há mais de três décadas, conhecimento que ela
naturalmente aprendeu com sua mãe, outro parente ou alguém próprio. Enfim,
tudo isso representa uma memória ativa, orgânica e dinâmica reconstruída com a
espetacularidade manifestada em cada ano.
.
Considerações

O universo de catolicismo popular encontrado no TIBC, sob a ótica das


artes cênicas (Etnocenologia) e de conhecimentos de fronteira constitui um
denso espetáculo cultural promovido pelas comunidades rurais tradicionais
geraiseiras do Oeste da Bahia. As duas manifestações aqui apresentadas, entre
outras realizadas na região, seguem um roteiro pré-estabelecido e exigem dos
participantes, assim como da plateia, uma postura sedimentada na fé de uma
172 Cícero Félix de Sousa

formação religiosa familiar, cujos valores estão intrinsecamente ligados à relação


do homem com a terra e com o espírito (metafísica).
Acompanhamos os movimentos desses espetáculos em vários momentos,
como a experimentar fatias de tempo/espaço - cronotopo - diferentes, da montagem
e desenvolvimento dos cenários ao encerramento das performances. Tramas
baseadas em um script cujas estruturas subjetivas têm relevância e significado
no interior dessas comunidades. Espetáculos com públicos que interagem,
performatizam e se confundem - ora são expectadores, ora são personagens da
apresentação.
Todo esse campo lúdico, ritualístico e, sobretudo, estético, “compreendido
simultaneamente como âmbito da experiência e da expressão sensoriais e dos ideais
de beleza compartilhados” (BIÃO, 2007, p. 25) a partir do olhar da Etnocenologia,
foi identificado nas manifestações do catolicismo popular encontrado na região.
Constatamos que é recorrente a preocupação das comunidades com o
futuro das tradições, que minguam com o passar do tempo, segundo avaliações
próprias. Mas, realizá-las é mais importante, confessam. E, nesse realizar, a
própria dinâmica do tempo e do espaço se encarregam de planejar o futuro.
Assim, tem-se a sensação que a participação das crianças nessas manifestações,
por exemplo, é uma “providência natural” do tempo para promover a continuação
da reconstrução da memória coletiva da própria comunidade. Um dia, Nego
do Salto e Sú foram crianças, tais quais essas que hoje se misturam aos adultos.
A participação das crianças, naturalmente, não garante necessariamente a
continuidade dessas tradições. Mas, certamente, essas experiências estéticas, essa
memória de fragmentos e descartes ficarão guardados no sótão da lembrança por
toda a vida e a qualquer hora pode ser reativada.
Reconfigurada a cada ano com novos objetos, a lapinha de Sú parece ignorar
o domínio da Indústria Cultural. O Surfista Prateado, Barbie, Super-homem,
Sininho, Papai Noel, o índio americano, soldadinhos, Piu-piu e outros, são
ressignificados a partir da perspectiva religiosa popular, convertidos em adornos
curiosos e coloridos em festa pela chegada do Menino Jesus. Não importam quem
são, como são, o que representam ou não; caíram no gosto de Sú e assim cumprem
seu papel de adorno.
O hit “Fuscão Preto” (Atílio Versutti e Jeca Mineiro), gravado por Almir
Rogério em 1980, o “Peão Apaixonado” (Pinocchio), sucesso em 1997 na voz
da dupla Rionegro e Solimões e “A Jardineira”, marchinha de Benito Lacerda e
Humberto Porto de 1938, compõem o repertório do Reisado do Salto, intercalando
o canto oficial do ritual do giro. Tudo sem receio ou puritanismo. É assim, com
LAPINHA E REISADO DO SALTO 173

essa capacidade inventiva de atualização e ressignificação de sua própria natureza


espetacular, que essas manifestações continuam transformando os gerais no
período natalino em um imenso palco a céu aberto da cultura popular.

Referências

BIÃO, Armindo. Um trajeto, muitos projetos. In: Artes do corpo e do espetáculo: questões de
etnocenologia, Salvador: P&A, 2007, pp. 21-42.
BOM JESUS DA LAPA. Porta do Céu. Devocionário Popular composto pelos padres Missionários
Filhos do Imaculado Coração de Maria. 31 ª ed. Bom Jesus da Lapa: Gráfica Bom Jesus, 2006.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) Plano Territorial de Desenvolvimento
Sustentável (PTDS). Bahia, novembro de 2010. Disponível em: http://sit.mda.gov.br/download/
ptdrs/ptdrs_qua_territorio015.pdf. Acessado em: 10 de maio de 2015.
CERTEAU, M. A operação historiográfica. In: A escrita da história. Rio de Janeiro: Editora Forense
Universitária, 2002.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica. Antropologia e Literatura no século XX. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ, 2002.
E GOFF, J. História e Memória. Campinas: São Paulo: Editora da UNICAMP, 1996.
________ A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
PRADIER, Jean-Marie. Etnocenologia. In.: BIÃO, Armindo e GREINER, Christine. In:
Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo: Annablume, 1999.
174

O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À


CRIANÇA DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS
SÉCULOS XVIII E XX

Dra. Roberta Aline Sbrana1


Dra. Joana Corrêa Goulart2

Resumo: Neste trabalho fez-se um estudo sobre a história da criança no Brasil.


Sabe-se, pelos estudos da história, que no Brasil, a assistência a criança abandonada
teve início no período colonial, sendo as Câmaras Municipais as responsáveis por
garantir esses pequenos sua criação. Diante da omissão e desinteresse do Estado
no cumprimento dessa tarefa, a assistência à criança abandonada no Brasil
enfrentou inúmeros percalços. Nesse período, foi a sociedade civil quem exerceu
a assistência aos abandonados mediante sua grande preocupação com o destino
da criança desamparada; o Estado e a Igreja atuaram apenas indiretamente. Este
trabalho tem como fundamento teórico, os estudos de autores da História do
Brasil, tais como: MARCÍLIO, 1998; DICKENS, 1993; RAGO, 1985; SANTOS,
1999; dentre outros.
Palavras chave: Criança. Abandono. Assistência.

Introdução

A existência da miséria, da marginalização social, do abandono e


ilegitimidade de crianças marcou profundamente a história da humanidade.
Desde a idade média era frequente o abandono de crianças, pois muitas vezes,
não se sabia o que fazer com elas (MARCÍLIO, 1998, p. 127). Na Europa, mais
precisamente na Inglaterra, essa realidade pode ser um pouco conhecida a
partir da obra Oliver Twist de Charles Dickens, a qual apresenta a história de
um menino órfão, que desde a mais tenra idade, enfrenta inúmeras adversidades
travando uma verdadeira luta para sobreviver na sociedade inglesa do século XIX
(DICKENS, 1993).
Nessa época, segundo retrata o autor, a vida para as crianças pobres era
muito sofrida; a Inglaterra, em meio a Revolução Industrial, apresenta um cenário
de grande crescimento populacional nos centros urbanos devido à procura de
1 UNESP-Araraquara, Bolsista Fapesp
2 Universidade Estadual de Goiás
O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À CRIANÇA DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS SÉCULOS XVIII 175
E XX

trabalho nas fábricas; entretanto, há uma insuficiência destas cidades em acolher


todo esse contingente populacional, fato que redunda na expulsão e repulsão dos
pobres para áreas periféricas desses centros dando origem aos cortiços, locais
imundos e deletérios, que concorriam para a grande proliferação de doenças
que faziam das crianças suas principais vítimas. Além das moléstias, as crianças
pobres ainda eram grandes vítimas do trabalho nas fábricas, pois naquele século
na Europa havia poucas leis que protegiam as crianças que trabalhavam, e a
frequência escolar também não era obrigatória; muitas delas chegavam a trabalhar
doze horas por dia em condições extremamente insalubres (DICKENS, 2007, p.
8-9).
Mediante as dificuldades enfrentadas para sobreviver e a consequente
impossibilidade de criar seus filhos, muitas famílias pobres acabavam por
abandoná-los à própria sorte, isso quando não perdiam suas vidas nas fábricas
ou perante alguma moléstia, o que caracterizou a forte presença nesse contexto
de práticas como o abandono, a marginalização e a criminalização das crianças.
Muitos desses pequenos abandonados ou órfãos, como Oliver, eram vítimas
do enclausuramento em instituições como orfanatos, que previam corrigir seu
caráter e os maus hábitos, considerados desviantes e prejudiciais à sociedade;
devido ao intenso sofrimento e humilhações que sofriam nesses locais, muitas
crianças, como Oliver, acabavam fugindo para tentar a vida na rua, se tornando
presas fáceis para ladrões e mercenários que faziam desses pequenos verdadeiros
aprendizes do crime (DICKENS, 2007).
Na obra romanesca de Dickens, apesar das inúmeras dificuldades
enfrentadas em sua trajetória, mediante sua condição de órfão e pobre, o menino
Oliver conseguiu sobreviver, algo realmente difícil para crianças pobres daquela
época; o objetivo do autor era mostrar ao leitor que o crime, como forma de
sobrevivência, “não compensa”. Tanto na Inglaterra, como em toda a Europa e
mesmo nas Américas, essa problemática da infância criminalizada, marginalizada
e abandonada era recorrente devido às intensas mudanças sociais, políticas e
econômicas ocorridas em todo o mundo no decorrer dos séculos XVIII, XIX e
XX (DICKENS, 2007, p. 8).
Nas Américas, a prática de abandono de crianças foi introduzida pelo
colonizador, sendo posteriormente aderida pelos negros e mestiços mediante
a realidade de miséria, marginalização e exploração que foram submetidos ao
longo dos séculos XVII, XVIII e XIX. A forte influência dos preceitos católicos
que pregavam a formação da família modelar, o controle da vida sexual da mulher
da elite e a preservação de sua honra, contribuíram para a disseminação dessa
176 Dra. Roberta Aline Sbrana | Dra. Joana Corrêa Goulart

prática entre as famílias abastadas. De um modo geral, o abandono de crianças


na América perdurou até meados do século XX. Mediante o crescente número
de abandonos e o consequente aumento da mortalidade de crianças, começou-
se a tomar consciência da necessidade de amparar esses pequenos. Na América
Espanhola a assistência às crianças abandonadas estava diretamente ligada à Igreja
Católica (MARCÍLIO, 1998, p. 128-129).
No Brasil, tal assistência teve início no período colonial, sendo as Câmaras
Municipais as responsáveis por garantir aos pequenos abandonados sua criação;
diante de sua omissão e desinteresse no cumprimento dessa tarefa, a assistência à
criança abandonada no Brasil enfrentou inúmeros percalços. Nesse período, foi a
“sociedade civil, organizada ou não”, quem exerceu a assistência aos abandonados
mediante sua grande preocupação com o destino da criança desamparada; o Estado
e a Igreja atuaram apenas indiretamente por meio do “controle legal e jurídico”,
além de “apoios financeiros esporádicos e estímulos diversos” (MARCÍLIO, 1998,
p. 131-132).
Segundo Marcílio (1998, p. 132), do período colonial ao século XX,
é possível detectar “três fases distintas na evolução da assistência à infância
abandonada brasileira”. A primeira fase, denominada “Caritativa”, se estende
até meados do século XIX; a segunda, “filantrópica”, tem início nesse século e se
encerra na década de 1960; a terceira fase, iniciada nessa mesma década com a
instalação do chamado “Estado do Bem-Estar Social”, se estende até o final do
século XX.

A Fase Caritativa e as instituições de atendimento à criança abandonada.

Da colonização até meados do século XIX imperou no Brasil a fase


“Caritativa” de assistência à infância abandonada. Sua principal característica é
o “sentimento de fraternidade humana, de conteúdo paternalista” que assolava os
ricos e poderosos, os quais não apresentavam nenhuma “pretensão a mudanças
sociais”. Essa fase possuía grande influência religiosa; por intermédio da caridade,
das boas ações com os desvalidos os beneméritos esperavam alcançar a salvação
eterna (MARCÍLIO, 1998, p. 134).
Nesse momento, segundo as Ordenações Filipinas, a responsabilidade de
assistir a infância abandonada cabia inteiramente às Câmaras Municipais, as quais
por meio de acordos e convênios aprovados pela Coroa acabavam delegando tal
responsabilidade a outras instituições, bem como às “Rodas e Casas de Expostos
e os Recolhimentos para meninas expostas”. Além dessas instituições formais,
O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À CRIANÇA DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS SÉCULOS XVIII 177
E XX

havia também nesse período a assistência informal ao pequeno desvalido; dentre


todas as formas de assistência, essa última foi a que atingiu maiores proporções
(MARCÍLIO, 1998, p. 135).
Desde o século XVI as Câmaras Municipais já estavam incumbidas da
assistência à criança desvalida; entretanto, suas ações e apoios financeiros eram
escassos ou mesmo inexistentes, fato que por muitas vezes, impulsionou a
sociedade civil a reclamar uma solução para o destino daqueles pequenos que
morriam ou vagavam pelas ruas das cidades. A parca assistência dispensada pelas
Câmaras ocorria por meio de “contratos com amas-de-leite ou convênios com
as Misericórdias”; entretanto, a maioria das crianças abandonadas dependia da
piedade ou interesse de famílias que as acolhia em suas casas e lhes criavam. Da
Colônia ao século XIX, apesar das ordenações reais, as Câmaras nunca assistiram
a totalidade de crianças abandonadas existentes nas províncias em que atuavam;
fato que impulsionou grande parte dos pequenos abandonados a se valerem “da
prostituição, da mendicância” e da criminalidade para garantir sua sobrevivência
(MARCÍLIO, 1998, p. 144).
Nessa fase Caritativa, a assistência aos desvalidos ocorreu em sua maioria a
partir do modelo informal; aliás, tal modelo teve destaque durante toda a História
do Brasil. Nessa época, o abandono de crianças em portas de famílias, igrejas, ou
ruas era imenso, por isso, era comum as famílias assumirem a responsabilidade de
criar uma criança deixada em sua porta ou a partir de contratos estabelecidos com
as Câmaras Municipais. Pode ser que em muitas dessas famílias tenha prevalecido
uma piedade para com esses pequenos o que as levava a acolhê-los, mas em muitos
casos o interesse em adquirir vantagens econômicas era o que regia tal acolhimento;
além de receber um ônus das Câmaras para a criação do pequeno, essas famílias
garantiam mão-de-obra barata, livre e fiel, devido ao reconhecimento que aquelas
crianças desvalidas nutriam pela sua criação (MARCÍLIO, 1998, p. 136-137).
Somente no século XVIII é que surgem no Brasil duas instituições que
irão se ocupar da assistência à infância abandonada – a Roda dos Expostos e o
Recolhimento para meninas. A existência da instituição da Roda perpassou a
Colônia, o Império e a República sendo extinta no país apenas na década de 1950.
A primeira Roda de expostos foi instalada em Salvador em 1726, a segunda no Rio
de Janeiro em 1738 e a terceira no Recife em 1789; ambas no período Colonial.
Durante o Império e a República, outras Rodas foram abertas nos diferentes
estados brasileiros, bem como em São Paulo, em Minas Gerais, na Bahia, e no Rio
Grande do Sul; mesmo assim estas instituições não foram capazes de suprir toda a
demanda de abandonados existente no país (MARCÍLIO, 1997, p. 53).
178 Dra. Roberta Aline Sbrana | Dra. Joana Corrêa Goulart

O surgimento dessas instituições ocorreu devido às altas taxas de abandono


de crianças, o qual ocorria em lugares muitas vezes insalubres como ruas e lixos,
o que ocasionava altos índices de mortalidade infantil; o objetivo era livrar da
morte esses pequenos abandonados pelos pais, já que as Câmaras Municipais
alegavam não ter condições de fazê-lo. Além da mortalidade dos expostos, as
rodas tinham como finalidade “regular o tamanho das famílias”, visto que na
época não havia “controle de natalidade”, manter o “anonimato dos expositores”,
evitando o abandono em locais insalubres, e preservar a “honra de famílias cujas
filhas haviam engravidado fora do casamento” (MARCÍLIO, 1997, p. 74).
Tendo inicialmente um caráter assistencial caritativo, as Rodas de Expostos
foram instaladas nas Santas Casas de Misericórdia, nas Casas Pias e Hospitais
a partir de convênios das Câmaras com a Misericórdia; cabia às primeiras a
responsabilidade de custear os gastos dessas Casas e Hospitais; entretanto, tal
subvenção dificilmente era enviada mediante a alegação das Câmaras da ausência
de recursos, fato que contribuía para a realização de um atendimento precário
nessas instituições. Diante dessa situação, em 1828 foi promulgada a “lei dos
municípios”, que com uma redação imprecisa, acabou por isentar as Câmaras
Municipais dessa responsabilidade; a partir de então, os Estados, juntamente com
as Assembleias Legislativas, assumiriam a assistência aos pequenos desvalidos,
unindo questões públicas e privadas nessa assistência (MARCÍLIO, 1997, p. 62).
Ao serem depositados nas rodas, os expostos eram acolhidos pelas Irmãs
da Misericórdia que imediatamente os batizavam a fim de salvar suas pobres
almas; nessas Casas e Hospitais, os expostos ficavam durante dias ou meses até
serem enviados às amas-de-leite, que os amamentavam e cuidavam até os seis
anos de idade. Nesse momento, as Irmãs tentavam convencê-las de ficar com a
criança, mas a maioria das amas acabava abdicando daquela responsabilidade.
Alguns expostos permaneciam ainda por algum tempo nas Casas e Hospitais
da Misericórdia até que as Irmãs encontrassem uma família que os acolhesse
em troca de trabalho, mas em sua maioria essas crianças acabavam entregues à
própria sorte, indo viver nas ruas a partir de pequenos furtos (MARCÍLIO, 1997,
p. 74-75).
As amas-de-leite recebiam vantagens econômicas por dispensar cuidados
aos expostos, por esse motivo muitas delas não comunicavam aos Hospitais
e Casas da Misericórdia quando essas crianças morriam; outras acabavam
colocando o próprio filho na roda para no outro dia buscá-lo visando receber
benefícios com tal criação (MARCÍLIO, 1997, p. 75). Diante de tal realidade e da
situação precária em que essas instituições se encontravam os Bispos, juntamente
O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À CRIANÇA DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS SÉCULOS XVIII 179
E XX

com os governos provinciais, trouxeram da França as “Irmãs de Caridade”, que


passaram a organizar tal assistência com enérgica disciplina. Nessa nova realidade,
a assistência à criança abandonada passou a ser mais centralizada, principalmente
a partir de 1830 (MARCÍLIO, 1997, p. 67-68).
Ainda no século XVIII, concomitante à existência da Roda, foram criados em
alguns estados brasileiros, como Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Maranhão,
os “Recolhimentos para meninas expostas”; a finalidade de tal instituição era
“proteger a honra dessas meninas; dar-lhes alguma instrução e treinamento
profissional”, além de “fornecer-lhes um dote propiciando-lhes, assim, um destino,
por meio do casamento”. Esses Recolhimentos eram normalmente edificados a
partir de doações feitas por beneméritos que se apiedavam das pequenas expostas
e previam ter seu nome reconhecido em obras de caridade (MARCÍLIO, 1998, p.
163).
Originalmente, tais instituições visavam receber, em regime de internato,
as moças de famílias portuguesas que vivam no Brasil; entretanto, com o
grande número de meninas expostas entregues à prostituição, que ameaçavam a
disseminação de costumes diversos dos cristãos, tal instituição acabou se tornado
uma “continuação da Roda dos Expostos para o sexo feminino”. As órfãs acolhidas
nessa instituição possuíam entre sete e treze anos permanecendo ali até conseguir
casamento. Durante esse tempo aprendiam afazeres e obrigações domésticas
adquirindo a postura de uma digna dona de casa, mãe de família (MARCÍLIO,
1998, p. 163-164).
Quanto aos meninos expostos, não se pode dizer que tiveram a mesma
sorte das meninas; com eles não havia a “preocupação com a honra e a virtude”;
por essa razão, somente no século XIX foram criadas instituições destinadas a
assisti-los quando saiam das Casas dos Expostos. No decorrer do século XVIII,
grande parte dos meninos que eram devolvidos aos seis anos pelas amas-de-leite
acabavam nas ruas vivendo do crime e da mendicância; a maioria morria antes de
atingir dezesseis anos. Diante do esforço das Irmãs de Caridade em proporcionar
um futuro mais digno a esses meninos, alguns deles acabavam sendo acolhidos
por famílias ou artesãos se tornando aprendizes de algum oficio ou tão somente
serviçais. Aqueles que ficavam com as amas acabavam se tornando empregados
destas (MARCÍLIO, 1998, p. 178).
Em meados do século XIX, o modelo assistencial caritativo, que regia as
instituições de assistência aos expostos, criadas até o momento, não atendia mais
os propósitos daquela sociedade revestida de mudanças; tal modelo foi então
substituído pelo caráter assistencial filantrópico, dando início a uma nova fase
180 Dra. Roberta Aline Sbrana | Dra. Joana Corrêa Goulart

na história da assistência à infância abandonada no Brasil (MARCÍLIO, 1998, p.


190).

A Fase Filantrópica e as instituições de atendimento à criança abandonada.

Essa segunda fase de assistência aos expostos no Brasil é situada


historicamente entre o despontar do século XIX e a primeira metade do século
XX. Durante esse período, inúmeras foram as mudanças vividas pelo país que
interferiram diretamente na constituição de novas políticas e instituições
destinadas a assistir a infância desvalida. “A abolição do regime escravocrata, o
fim da Monarquia, a separação entre o Estado e a Igreja, a perda do monopólio
da Igreja frente à assistência social e o avanço das legislações e Direitos a favor
da infância” são algumas dessas mudanças. Nessa época, o país se libertava
lentamente da antiga estrutura oligárquica instaurando a nova “ordem econômica
capitalista” (MARCÍLIO, 1998, p. 191).
Nesse período, as transformações no cenário brasileiro ainda somam o
desenfreado processo de industrialização, a crescente urbanização e uma “explosão
demográfica”; no entanto, as condições sociais não acompanharam todo esse
“progresso”. A crescente pobreza tomou conta das cidades, que não conseguiam
absorver todo contingente populacional, propiciando a formação de cortiços
e favelas; a inexistência de condições mínimas de saneamento e salubridade
neste tipo de habitação contribuiu para a disseminação de doenças e epidemias
(SANTOS, 1999, p. 212). Esse contexto ainda favoreceu a exploração da mão-de-
obra de homens, mulheres e crianças; a mulher de origem pobre encontrou como
alternativa de sobrevivência o trabalho doméstico ou nas fábricas, e a prostituição;
o surgimento da “mãe solteira” contribuiu diretamente para o aumento do número
de desvalidos (MARCÍLIO, 1998, p. 192-193).
Com o aumento de crianças abandonadas foram criadas nos séculos XIX e
XX novas políticas em seu favor; estas eram orientadas por preceitos filantrópicos
que uniam a ciência e a fé. Nesses séculos, tem destaque no cenário brasileiro os
preceitos higienistas que previam combater a “mortalidade infantil e o problema do
menor abandonado” tornando a “figura do médico e da medicalização” uma “célula
básica” na estrutura social. A partir desse momento, estes profissionais passam a
atuar tanto na sociedade quanto no interior das famílias com o objetivo de sanear
os corpos e as mentes; visando acabar com as pestes e epidemias que ameaçavam as
cidades brasileiras, os médicos higienistas passaram a defender o enclausuramento
das crianças abandonadas em instituições higiênicas que pudessem lhes garantir
O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À CRIANÇA DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS SÉCULOS XVIII 181
E XX

cuidados como a alimentação e a higiene a fim de formar homens sadios que


pudessem contribuir para o progresso da Nação (RAGO, 1985, p. 118).
Mediante a crise social que a sociedade brasileira enfrentava naqueles
séculos, há um significativo aumento dos crimes praticados pelos desvalidos, que
a cada dia mais se avolumavam nas ruas; diante da insegurança que se instalava
nos centros urbanos e o consequente clamor das elites, surgiu no cenário brasileiro
os preceitos trazidos pelos Juristas destacando a temática do “menor”; a partir
de então, a criança abandonada, desvalida, tornou-se o “vadio”, o “vagabundo”, o
“criminoso”, que precisava ser corrigido e, portanto, enclausurado em instituições
em que prevalecessem a ordem, a moral e o disciplinamento dos corpos; somente
assim, seria possível transformar esses pequenos desviantes em cidadãos do bem,
úteis à Nação (SANTOS, 1999, p. 213).
Nessa fase da filantropia surgiu também o “lema da Modernização”,
que trazia a crença de que o “progresso da humanidade seria infinito” graças à
“ciência e à adesão da civilização à ordem”, além das ideias positivistas de “ordem
e progresso”, que pregavam a necessária retirada dos indivíduos desviantes da
sociedade e sua correção em instituições adequadas. Com essas ideias, buscou-se
durante essa fase retirar as crianças abandonadas da ociosidade em que viviam
nas ruas e prepará-las para servir ao Estado, transformando-as em indivíduos
úteis à sociedade. A preparação dessas crianças para o trabalho ainda tinha
como pressuposto o interesse das elites, que estavam desesperadas com o fim
da escravidão e a possível falta de mão-de-obra barata, e o medo dos médicos
de que esses desvalidos ao viverem nas ruas sem condições mínimas de higiene
contribuíssem para a disseminação de doenças, como a Febre Amarela e a Cólera
(MARCÍLIO, 1998, p. 192-193).
Em resposta a todas essas influências, a Roda e a Casa dos Expostos,
instituições existentes no Brasil desde a Colônia, passaram por contundentes
mudanças. Anteriormente orientadas por um modelo assistencial caritativo,
essas instituições, nas primeiras décadas do século XIX, assumiram um
caráter assistencial filantrópico, sendo orientadas pelo preceito utilitarista que
previa transformar aquelas crianças em cidadãos úteis ao progresso da Nação.
(MARCÍLIO, 1997, p. 64). Com o afastamento das misericórdias, essas instituições
passaram a ser regidas pelo poder público e privado sofrendo contundentes
influências higienistas e jurídicas em seu funcionamento e organização. Apesar
das críticas apresentadas pelos médicos às Rodas de expostos, consideradas
“imorais e contra os interesses do Estado”, estas ainda permaneceram no Brasil até
a década de 1950 (MARCÍLIO, 1997, p. 68).
182 Dra. Roberta Aline Sbrana | Dra. Joana Corrêa Goulart

Mediante a preocupação dos higienistas, juristas e toda a sociedade civil


com o destino das crianças abandonadas quando estas saíam por volta dos seis
anos de idade das Rodas e Casas de Expostos, foram também criados asilos e
orfanatos em quase todas as províncias durante o século XIX. O objetivo era
enclausurar os pequenos desvalidos a fim de lhes fornecer “instrução elementar,
formação cívica e a capacitação profissional” necessária para transformá-los não
somente em homens, mas em cidadãos úteis ao país, que pudessem prover seu
próprio sustento sem depender de ninguém (MARCÍLIO, 1998, p. 193). Contudo,
no início de suas atividades essas instituições apenas cuidavam das crianças
abandonadas; somente mais tarde algumas atividades educacionais passam a
ser realizadas em seu interior. Quando saiam dessas instituições, os desvalidos,
em sua maioria adolescentes, eram encaminhados para exercer algum “ofício,
como de caixeiro, marceneiro”, ou trabalhar nas escolas de oficiais da Marinha,
caso fossem meninos; às meninas estavam reservados o casamento ou o trabalho
doméstico em casas de família, visando com isso proteger sua honra (MARCÍLIO,
1997, p. 76).
Diante das altas taxas de crianças que viviam nas ruas à custa de pequenos
furtos para sobreviver foram também criadas duas instituições que previam
corrigir o caráter desviante apresentado por esses “menores”. A colônia correcional
era destinada aos “gatunos” entre nove e quatorze anos que tivessem “agido com
discernimento” ao praticar os furtos; nesta instituição a correção dos menores era
feita a partir da educação cívica e moral, além da “pedagogia do trabalho” que
consistia na realização de trabalho agrícola; somente assim, aqueles indivíduos
desviantes poderiam ser recuperados e endireitados para o convívio social.
Para os “vadios” maiores de quatorze anos foi criado o “Instituto Disciplinar”,
que seguia as mesmas orientações e atividades daquela Colônia, aumentando
contundentemente a carga horária de trabalho de seus internos (SANTOS, 1999,
p. 224-225). A finalidade dessas instituições era “disciplinar e adestrar os corpos e
espíritos” através da “terapia do trabalho” a fim de “reprimir a vadiagem”; buscava-
se desenvolver nesses “menores” abandonados o amor à Pátria para torná-los úteis
ao seu progresso da Nação (RAGO, 1985, p. 122).
Ao lado das questões higiênicas e jurídicas, a educação teve maior destaque
no Brasil com o despontar do século XX. Com o “otimismo pedagógico” e o
“entusiasmo pela educação”, preceitos advindos do ideário liberal, os educadores
brasileiros, principalmente os pertencentes ao movimento da Escola Nova,
passaram a considerar a educação o verdadeiro “motor da história”, a melhor
maneira de conduzir o Brasil ao progresso (NAGLE, 2001, p. 134). Nesse momento,
O ABANDONO E AS FASES DA ASSISTÊNCIA À CRIANÇA DESVALIDA NO BRASIL ENTRE OS SÉCULOS XVIII 183
E XX

instituiu-se claramente no país, uma “educação dual”, que previa a “ilustração”


para as crianças oriundas das elites brasileiras, e o “ensino profissional” para as
crianças desvalidas e aquelas advindas das camadas populares (MARCÍLIO, 1998,
p. 223).
Durante as primeiras décadas do século XX, o Estado começa a apresentar
maior participação nas políticas e iniciativas em relação à infância e à juventude
abandonadas; entretanto, suas ações ficavam restritas às “funções de estudo,
de vigilância e de controle da assistência ao menor” além da “repressão dos
desviantes”, as quais eram cumpridas de modo descontínuo por meio de uma
ação política insipiente a partir de órgãos públicos, tal como o “Departamento
Nacional da Criança (1919)” que tinha como função “controlar toda a assistência
à infância carente”. Somente a partir da década de 1960 com a criação do “Estado
do Bem-Estar Social” é que ele assume de fato suas responsabilidades perante a
infância desvalida (MARCÍLIO, 1998, p. 225).
O despontar dos anos de 1980 apresentou uma nova realidade e inúmeras
mudanças em relação ao papel do Estado perante a infância. Com a promulgação
da Constituição de 1988, os Direitos Internacionais da Criança, proclamados pela
ONU em 1950, passam a ser reconhecidos no Brasil; pouco tempo depois, em
1990 foi publicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), documento
de máxima importância em que o Estado assumiu totalmente a responsabilidade
pela infância e a Juventude; a partir dessa década, pela primeira vez na História
do país, “as crianças deixam de ser objeto e passam a ser sujeitos de direitos”
(MARCÍLIO, 1998, p. 228).

Considerações finais

Segundo Gondra (2002, p. 307), no decorrer dos séculos XVIII e XIX a


temática da infância desvalida ganhou destaque no cenário brasileiro; com base
em um caráter assistencial caritativo, os cuidados com a criança abandonada
eram ditados pela fé. No decorrer do século XIX, mediante o reconhecimento
da existência de diferentes “infâncias”, médicos higienistas, pedagogos e juristas
passaram a elaborar diferentes métodos e instituições destinadas à criança,
principalmente a desvalida; nesse momento, a fé se associou à ciência e a partir
da filantropia buscou-se transformar a criança em um cidadão útil à Nação. A
“proteção à infância” foi o “motor” da década de 1870 que impulsionou todo o
ocidente a “cuidar da criança” (KUHLMANN JR., 2002, p. 464). No início do
século XX, os cuidados com a infância e sua educação foram imersos no discurso
184 Dra. Roberta Aline Sbrana | Dra. Joana Corrêa Goulart

que previa a construção de uma sociedade moderna. No regime republicano,


porém, tal educação se apresentou de forma dual, caracterizando uma nítida
distinção entre a criança pobre e a criança da elite (MARCÍLIO, 1998, p. 224).

Referências Bibliográficas

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DICKENS, Charles. Oliver Twist. Adaptação de Naia Bray-Moffat; ilustrações de Ian Andrew;
tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2007.
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FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). História Social da Infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
GONDRA, José Gonçalves. “Modificar com brandura e prevenir com cautela”. Racionalidade médica
e higienização da infância. In: FREITAS, Marcos Cezar de; KUHLMANN JR, Moysés (Orgs.). Os
intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.
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século XX. In: FREITAS, Marcos Cezar de; KUHLMANN JR, Moysés (Orgs.). Os intelectuais na
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NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na Primeira República. 2. edição. Rio de Janeiro: DP&A,
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SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: DEL PRIORE,
Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p.210-230.
185

O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS


DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA
A COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS
MARCAS

Nelson Soares1

Resumo: Esse artigo objetiva discutir as marcas comerciais e a publicidade contem-


porâneas como fenômenos de produção de sentidos sociais. A partir de compreensão
das marcas enquanto motor semiótico, que coloca os sujeitos em comunhão através
do consumo simbólico dos discursos publicitários, e considerando o arcabouço teóri-
co da Análise e Discurso, com destaque para as noções de ethos discursivo e cenogra-
fia, na perspectiva de Dominique Maingueneau, desenvolve-se uma metodologia de
análise das marcas contemporâneas a partir dos seus discursos publicitários.
Palavras-chave: Marcas, Publicidade, Análise de Discurso, Ethos, Cenografia.
Abstract: This article aims to discuss contemporary commercial brands and
advertising as phenomena of social meanings production. Understanding brands
as a semiotic motor, which puts subjects in communion through the symbolic
consumption of advertising speeches, and considering the theoretical framework
of Analysis and Discourse, with emphasis on the notions of discursive ethos and
scenography, in the perspective of Dominique Maingueneau, a methodology for
analyzing contemporary brands is developed based on their advertising speeches.
Keywords: Brands, Advertising, Discourse Analysis, Ethos, Scenography

Apresentação

Durante o século XX, assistiu-se à crescente importância social e econômi-


ca da comunicação publicitária e do fenômeno-marca, os quais, gradativamente,
assumiram um papel crucial na cultura contemporânea. Nesse cenário, o discurso
publicitário e as marcas não reconhecem fronteiras e buscam ocupar todos os espa-
ços livres (ou não) de inscrições (QUESSADA, 2003, p.76). Dentro dessa lógica, a

1 (Professor dos cursos de Publicidade e Propaganda e Artes Visuais da Universidade Federal do Oeste da
Bahia (UFOB). Doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas (FACOM-UFBA).
E-mail: nsoares@outlook.com.
Artigo resultante de pesquisa realizada no âmbito do Laboratório de Estudos Multidisciplinares em Linguagens,
Comunicação e Cultura – LINC (UFOB), com o apoio da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB)
e do CNPq. Uma versão preliminar desse artigo foi apresentada no XII ENECULT – Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura.
186 Nelson Soares

comunicação publicitária da marca não se contenta mais em estar apenas nos locais
tradicionais (no filme publicitário apresentado nos intervalos comerciais da TV, nas
páginas de revistas e jornais, entre outros), mas tenta alcançar a todo instante o lei-
tor/consumidor, criando espaços alternativos, como a chamada extramídia¹.
Essa disseminação da lógica da marca e do discurso publicitário –
fenômenos muitas vezes “naturalizados” e simplificados; de caráter globalizante
– merecem um estudo cuidadoso por parte das abordagens teóricas do campo
da Comunicação, uma vez que participam ativamente da constituição, cada
vez mais intensa, de sujeitos (e sociedades) mediatizados. Ocupando um lugar
de expressão privilegiada da economia global, o discurso publicitário concorre
para o apagamento das fronteiras territoriais e o enfraquecimento da cultura dos
Estados, contribuindo também para uma reorganização da sociedade.
Além disso, outro fator faz da publicidade e do fenômeno-marca práticas
discursivas fundamentais das economias de consumo: a evolução tecnológica
e o desenvolvimento da produção industrial criaram um ambiente em que os
produtos e marcas concorrentes apresentam desempenho e padrões de qualidade
muito semelhantes. Suas ações mercadológicas e recursos de distribuição também
não mostram diferenças marcantes (PINHO, 1996), o que agrega à comunicação
desses produtos a função de estabelecer conceitos e valores, a fim de criar
distinções entre concorrentes tecnicamente muito semelhantes.
Nessa perspectiva, esse artigo propõe, a partir do arcabouço teórico da
Análise de Discurso², uma metodologia de estudo das marcas a partir de suas
ações de comunicação publicitária. Para tanto, num primeiro momento, tratamos
da evolução do fenômeno-marca. Em seguida, apresentamos os conceitos
fundamentais de nossa proposta – a saber, as noções de ethos discursivo e
cenografia. Por fim, apresentamos a proposta de metodologia para o estudo
comparativo das marcas contemporâneas a partir dos seus discursos publicitários.

A Evolução das Marcas: da identificação à produção de sentidos

Primeiramente, é importante perceber que as marcas contemporâneas


resultam de um processo evolutivo, que tem início na Antiguidade. Os
romanos utilizavam figuras para resumir de forma prática os tipos de produtos
comercializados. Dessa forma, na frente dos açougues era possível encontrar o
desenho de uma pata traseira de boi, o comércio de vinhos era representado por
uma ânfora e as casas de laticínios recebiam em suas fachadas a figura desenhada
de uma vaca (PINHO, 1996, p.11).
O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A 187
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS

Nota-se que o uso dessas marcas cumpria a função apenas de identificar o


tipo de comércio e produto. Trata-se de um papel da marca bastante elementar,
quando comparado ao que fazem as marcas no século XX em diante ou mesmo
em relação às funções das marcas criadas na Idade Média. Por volta do século
XI, conforme afirma Carmem Carril (2007), além de identificar os serviços
comerciais, as marcas tinham a função de identificar a origem dos produtos e
distinguir os seus fabricantes. Além disso, o uso das marcas criava condições para
normatização de padrões de qualidade, controle de áreas de comercialização,
ajustes quantitativos de demanda e oferta, uma vez que todo fabricante era
obrigado a possuir sua marca individual. O desenvolvimento dos processos de
produção e comercialização percebidos nesse período é responsável por outro
aspecto importante: o aumento da distância entre produtor e consumidor – tal
situação impôs às marcas outra função: estabelecer a relação (e a comunicação)
entre produtor e consumidores; ser o principal elo entre essas duas instâncias.
Com o passar do tempo, algumas marcar começaram a representar referência de
qualidade dentro do seu setor e, com isso, garantiram maior destaque frente à
concorrência.
Com a diversificação de suas funções, as marcas adquiriram maior
participação na vida das pessoas e, consequentemente, sua importância
comercial se tornou estratégica e decisiva. Assim, por volta do século XIX, o
valor econômico de algumas marcas começou a ser algo realmente representativo
dentro do patrimônio das suas empresas detentoras. Surgiu então, nesse contexto,
a preocupação com o registro e proteção de marcas comerciais. Países como
Inglaterra, Estados Unidos e Alemanha, que já na segunda metade do século
XIX tinham indústria e comércio bem desenvolvidos, foram os primeiros a
criar leis de proteção às marcas. No Brasil, uma legislação adequada para reger
a propriedade de marcas só surgiu alguns anos depois, em 1875 (PINTO, 1996
apud DOMINGUES, 1984).
O final do século XIX e o início do século XX foram caracterizados por um
grande desenvolvimento do uso de marcas comerciais, de tal modo que ao conceito
de marca comercial foi acrescentada a noção de marca industrial. Essa nova forma
de compreensão do fenômeno demonstrava as rápidas transformações que os
processos de produção e consumo estavam sofrendo e a importância de todo esse
novo contexto. A partir daí, com o crescimento quantitativo e qualitativo dos meios
de comunicação massivos, o que se dá no decorrer do século XX, a estreita relação
entre comunicação e marca abre espaço para uma complexa e diversificada forma
de construção de sentidos e interação entre a sociedade e as marcas (PINHO,
188 Nelson Soares

1996). De fato, o que se percebe é que, com o passar do tempo, a marca se tornou
um fenômeno do campo da comunicação – “A marca moderna não pertence ao
mundo do comércio, mas ao da comunicação” (SEMPRINI, 1995, p.19). Ainda
na perspectiva de Semprini, desde o fim do século XIX, tem-se a consolidação
de dois importantes processos que vão definir o papel e o sentido das marcas
na contemporaneidade: (1) O aumento da importância dada à comunicação
do produto em detrimento da atenção dada apenas à sua comercialização; (2)
A diminuição da importância dada às características materiais do produto e o
aumento da importância das às suas características imateriais.
Ainda no século XIX, as teorias advindas da economia, que dão sustentação
a boa parte dos fundamentos iniciais do marketing, tinham foco concentrado no
produto, o que impedia uma compreensão satisfatória das transformações no
interior das marcas. Além disso, as teorias de destaque que surgiram no século
XX ainda não davam conta de definir e explicar adequadamente o fenômeno —
como exemplo, encontramos a teoria das necessidades, de Maslow, que, segundo
Semprini, trazia uma abordagem das necessidades humanas demasiadamente
concentradas no produto. Em consequência dessas deficiências conceituais, não
se pode encontrar no marketing ou nas teorias econômicas uma compreensão
precisa, que dê conta da complexidade das marcas contemporâneas. É bem
verdade, como destaca o autor, que o marketing foi capaz de elaborar formas de
operar e gerir marcas, mas seus métodos apresentam limitações, uma vez que não
há uma base teórica que consiga conceituar e explicar com precisão o fenômeno
(SEMPRINI, 1995).
Tais abordagens apresentam limitações bem mais expressivas a partir
da observação das duas tendências citadas acima. Com a evolução das marcas
no século XX, a comunicação dos produtos ganha significativa importância,
de maneira que não comunicar o produto (e sua marca), praticamente o torna
inexistente — ou seja, produtos e marcas só passam a existir quando estabelecem
suas comunicações (vale ressaltar que há setores – raros, é bem verdade – em que
as marcas apresentam pouca importância). Além da necessidade de existir dentro
dos dispositivos de comunicação, outro processo importante é que a comunicação
passou a destacar muito mais as características imateriais do produto, carregadas
de valores simbólicos e apelos emocionais, devidamente pertinentes dentro do
imaginário, produzindo uma cadeia coerente de associações ao produto e à marca.
Esses dois processos, que destacam a evolução das marcas e suas
transformações, têm sustentação em um conjunto de circunstâncias de diversas
ordens (sociais, econômicas e culturais, por exemplo). Semprini (2006) destaca
O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A 189
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS

algumas circunstâncias que adquiriram crescente destaque no último século,


indicadas por ele como tendências. São elas:
O aumento da oferta de produtos: Com o desenvolvimento do consumo
percebido no século XX, a quantidade e variedade de produtos disponíveis nas pra-
teleiras cresceram de maneira intensa. No universo de tantos produtos, é a constru-
ção de uma adequada comunicação – coerente, com pertinência e identidade forte
– que garante o diferencial diante dos consumidores de marcas e discursos.
A crescente importância da comunicação: o século XX também mostrou
ser o período em que a importância da comunicação foi percebida pelas. Segundo
Semprini (2006), as empresas passaram a desenvolver sua comunicação publicitária
tendo em vista não somente o interesse nas vendas imediatas, mas comunicando
os valores da instituição, suas preocupações futuras com a sociedade, agregando à
publicidade um importante papel na construção da imagem da marca.
Poluição midiática: o aumento na quantidade de marcas e produtos no
mercado, aliado ao trabalho de comunicação das empresas, dá origem a uma
grande quantidade de discursos comerciais na comunicação de massa e outros
suportes alternativos, o que provoca o enfraquecimento de todo o conjunto da
comunicação. Assim, cabe aos discursos da marca a função de estabelecer com o
leitor um elo coerente e distinto dos demais discursos concorrentes, nos quais o
produto mostre alguma pertinência.
Desmaterialização dos produtos: Semprini (2006) explica que, na segunda
metade do século XX, consolidou-se a tendência de valorização das características
imateriais dos produtos, em detrimento de seus aspectos físicos. Ou seja, o papel
que os produtos assumem e a rede de significados que eles despertam se tornam
cada dia mais relevantes – o que faz do valor semiótico da marca um aspecto
crucial do fenômeno.
Assim, vê-se que o papel desempenhado pelas marcas – sua função de
atribuir sentido aos produtos na relação entre fabricantes e consumidores – torna-
se fundamental. A marca na contemporaneidade se desloca do campo puramente
comercial, no qual a gestão de negócios empresariais determina a maneira de
compreensão do fenômeno, para o campo da comunicação e da significação, no
qual o discurso publicitário, entre outros recursos de comunicação, assume um
papel central na criação de uma rede de sentidos entre aqueles que produzem
e aqueles que consomem – o que, em última instância, determina não apenas
um consumo material, mas, acima de tudo, um consumo de ordem simbólica
(BAUDRILLARD, 2008).
190 Nelson Soares

Cenografia e o ethos na perspectiva da Análise de Discurso

A expressão “Análise de Discurso”, como evidencia Maingueneau, indica


muito mais um “modo de apreensão da linguagem” (1998, p.43) do que um campo
bem definido de investigação. Trata-se de um conjunto teórico marcado pela
instabilidade, visto que está no cruzamento de diversas fronteiras – antropologia,
linguística, psicanálise e teorias marxistas. Além disso, tal olhar sobre o fenômeno
da linguagem e seu aparato conceitual e metodológico se presta a investigações
muito variadas em campos como a linguística, a psicologia, a sociologia e a
comunicação (BRANDÃO, 1997).
A noção de ethos, que encontra em Aristóteles um dos primeiros e principais
exploradores (MAINGUENEAU, 2008), está ao lado das noções de phatos e logos
como as três provas dos discursos fundamentais no processo de persuasão. Para
Aristóteles, o ethos se refere “[...] a construção de uma imagem de si destinada a
garantir o sucesso do empreendimento oratório” (AMOSSY, 2008, p.10), a fim
de garantir a força do discurso no que se refere à mobilização do auditório. Na
perspectiva da AD praticada por Dominique Maingueneau (2001, 2008), o ethos
é a fonte, a origem do discurso, a voz que sustenta o dizer. E essa voz precisa
encarnar um corpo que, a partir do discurso, expressa seus atributos físicos, seu
jeito de ser no mundo, seu modo de fluir e agir e seus traços de ordem psicológica.
Não se deve confundir o ethos com o orador empírico – aquele que
fisicamente é responsável pelo dizer. Trata-se de uma figura do discurso, uma
instância que se constitui à medida que a enunciação toma forma. E, conforme
explica Maingueneau (2008), o ethos não adquire compleição física e traços
psicológicos num ambiente estéril, isolado do mundo. O ethos se constitui em
um lugar, em uma situação específica que adquire contornos no decorrer do
desenvolvimento do discurso, no memento de sua enunciação. Tal ambiência
social, enquanto figura de discurso, na qual transita o ethos, é o que se chama de
cenografia do discurso. Assim, esse mundo do discurso – conjunto de padrões
sociais de comportamento e sistema de valores – é o que caracteriza a cenografia,
esse ambiente do qual parte e no qual está situado o ethos.
O ethos e a cenografia do discurso publicitário dão vida à dimensão física
e psicológica da marca (espécie de ethos da marca) e constituem um mundo ético
da marca, com seu sistema de valores e estereótipos de comportamento ao quais
os leitores podem aderir ao não, a depender da sua pertinência e relevância sociais
(PEREIRA JUNIOR; TELLES, 2015). Assim, a partir do discurso publicitário os
sujeitos podem aderir a esse sistema simbólico posto em discurso pela marca,
O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A 191
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS

formando verdadeiros subgrupos sociais pela partilha dos valores da marca


(QUESSADA, 2003).

A cenografia e o ethos do discurso publicitário e as marcas contemporâneas

A comunicação publicitária historicamente se caracteriza como um discurso


a serviço de uma finalidade específica, a saber, a circulação de informações que,
direta ou indiretamente, contribuirão para promover um produto e/ou serviço
– em outras palavras, o discurso publicitário por muito tempo teve um caráter
utilitário no contexto de uma economia de consumo inspirada nos ideais
liberalistas. No entanto, o que se assiste na contemporaneidade é uma verdadeira
inversão de posições: o complexo sistema da comunicação publicitária, que antes
servia prioritariamente para colocar em circulação produtos e marcas, agora,
assume posição central, deixando de ser um meio para se tornar o próprio fim,
conforme afirma Dominique Quessada:

A economia contemporânea já não parece estritamente centrada em torno da


produção nem em torno do consumo. O centro de gravidade deslocou-se para
aquilo que constitui vínculo entre uma e outro: a distribuição.
De fato, os intermediários e as mediações (distribuidores, mídias, publicidade)
tornaram-se prevalentes a ponto de imporem suas normas, tanto aos produtores
quanto aos consumidores. Hoje, pode-se verdadeiramente falar de uma forma
nova de economia, globalmente regida pelos intermediários: a economia de mí-
dia (2003, p.119. Grifo do autor).

Nessa esteira, as agências de publicidade encarnam a produção de


discursos enquanto produção de manufaturados, na perspectiva de sua eficácia,
de um resultado em função da mobilização da sociedade, os coenunciadores.
Assim, toda a estrutura de funcionamento da agência de publicidade atende a um
dispositivo de produção em série que converte o discurso em produto. A divisão
do trabalho em especialidades, a projeção do discurso em seus detalhes mínimos
como a escolha das palavras, os estereótipos e representações mobilizados pelas
imagens, o estudo do leitor enquanto receptor (de discursos e de produtos), a
avaliação da comunicação através de pré-testes – enfim, a configuração da agência
em um sistema de produção em série e a conversão da linguagem em produto.
A organização da agência de publicidade, independentemente da estrutura
adotada, inicia a linha de produção com a interface que se faz com o cliente, a fim
de delimitar o problema de comunicação que será enfrentado. Em seguida, os res-
ponsáveis pelo planejamento de comunicação, que fundamentam suas ações em
192 Nelson Soares

diversas pesquisas sobre os hábitos de consumo das sociedades e a concorrência,


desenvolvem orientações gerais para as ações de comunicação. A partir daí, os
profissionais de criação, dão início à elaboração do material de comunicação pro-
priamente dito. De acordo com Quessada, o que os diversos integrantes da linha
de produção buscam – no contexto de suas especialidades técnicas – é responder
a pergunta: “[...] qual é a linguagem apropriada para falar do produto ao seu des-
tinatário suposto [...]?” (2003, p.122).
Assim, ao incorporar a lógica da linha de produção da linguagem – ou
seja, a constituição do discurso publicitário da marca enquanto produto central
da relação de consumo –, a publicidade se posiciona como uma das principais
expressões do fenômeno-marca, que assume, na contemporaneidade, as seguintes
características:
Ordenação social: apesar de a lógica de identificação de procedência
e indicação de propriedade já existir desde a Antiguidade, conforme afirma
Pinho (1996), é somente na Idade Média que as marcas assumem um papel mais
complexo, indicando padrões de qualidade e coibindo a falsificação numa grande
quantidade de objetos do cotidiano e produtos comerciais, por exemplo. Assim,
a Idade Média consagra à marca o papel de ordenadora social, classificadora
de corpos, fenômeno que dá significado e situa socialmente objetos, espaços e
pessoas, vinculando-os a grupos, normas e funções sociais (QUESSADA, 2003).
Diferenciação dos indivíduos: o sistema ordenador da marca, como se pode
ver, não surge na modernidade. No entanto, a onipresença do fenômeno marca,
que atua em diversas dimensões da legitimação do espaço social, é algo bem mais
recente. Assim, o sistema das marcas dá condições para o surgimento de uma
verdadeira ordem da classificação e da categorização dos elementos do espaço
social. Para Quessada (2003), o embate de classes sociais, e a própria ideia de classe
social, perde gradativamente a relevância, enquanto entra em cena a lógica das
categorias do Ser. Passamos, assim, de um funcionamento baseado no antagonismo
de classes, próprio do séc. XIX e da Revolução Industrial, para o funcionamento de
um contexto social baseado numa escala contínua que toma como base o “valor de
Ser” (QUESSADA, 2003, p.132-133). Com isso, as marcas operam a diferenciação
dos indivíduos fora do antagonismo de classes, mas dentro de uma uniformidade
social, na qual ela, a marca, passa a ser não um o elemento diferencial entre outros,
mas o principal elemento diferenciador dos indivíduos. O objeto que carrega uma
marca permite, por extensão, [...] “alguém definir-se a si mesmo e definir outrem
imediatamente, segundo a lógica do signo; dar uma identidade a corpos socialmente
indiferenciados e a roupas semelhantes” (QUESSADA, 2003, p.133).
Territorialização e subgrupos sociais: A imposição de uma lógica social
fundada no econômico e o grande crescimento dos conglomerados de comuni-
O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A 193
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS

cação e publicidade, características do séc. XX, que reforçam o esmaecimento das


fronteiras e culturas nacionais e a homogeneidade própria da globalização, fazem
com que a busca por novas territorialidades e a formação de subgrupos sociais
sejam formas de se contrapor à força que age no sentido de apagar as diferenças
culturais – assim, trata-se de um movimento em sentido oposto, que visa à dife-
renciação social. Dessa forma, na contemporaneidade, o consumo das marcas e
seus discursos, que ao mesmo tempo assume o papel simbólico de criação de di-
ferenças, de elementos distintivos, acaba criando – por semelhanças e afinidades
– subgrupos sociais que se aglutinam ao redor dos sistemas de valores e crenças
postos em circulação pelos discursos das marcas. Como afirma Quessada, o fenô-
meno marca se caracteriza pelo paradoxo “[...] de um indiferenciado que distin-
gue e de uma distinção que indiferencia” (2003, p.23. Grifos do autor).
Isso permite inferir que o discurso publicitário é resultado de um trabalho
que visa angariar a adesão dos leitores, sua persuasão. Tal trabalho indica a
mobilização dos corpos em sociedade, constituindo agrupamentos imaginários,
subgrupos sociais que se formam a partir do consumo simbólico das marcas. É a
partir daí que vemos no conceito de ethos e cenografia uma importante chave de
análise para a compreensão do fenômeno das marcas contemporâneas.
Assim, a fim de explicar a relação que as marcas contemporâneas constroem
com seus coenunciadores através de sua comunicação publicitária – que
interações contratuais (expectativas mútuas entre as marcas e os consumidores de
seus discursos) estão implicadas, que sentidos são mobilizados pela publicidade
das marcas e qual conjunto ordenado de valores, representações e estereótipos
sustentam o seu projeto de sentido – propomos um dispositivo de análise que
evidencie os traços fundamentais que compõem o ethos do discurso publicitário
da marca e a sua cenografia.
A relação que a marca constrói com seus leitores é, assim, estudada em
dois diferentes níveis, (1) a cenografia constituída pelos discursos publicitários e o
conjunto de padrões sociais de comportamento e estereótipos valorizados positiva
e negativamente – ou seja, o mundo ético da marca; (2) o ethos, a constituição
física e psicológica do fiador do discurso da marca, com o qual o leitor pode se
identificar e integrar a comunidade imaginária daqueles que aderem aos valores
da marca e seu mundo ético.
O primeiro nível de análise das relações entre a marca e seus leitores
busca compreender a constituição da cena de enunciação das peças publicitárias
estudadas. Dessa forma, os recursos verbais e não verbais mobilizados pelos
discursos dos anúncios de maneira regular dão forma à ambiência social da marca,
com seu sistema de comportamentos valorizados positiva e/ou negativamente e os
estereótipos culturais que sustentam toda a cenografia da peça e, consequentemente,
194 Nelson Soares

o mundo ético da marca – como afirma Maingueneau (2008a, p.65), “[...] a


publicidade contemporânea apoia-se maciçamente em tais estereótipos (o mundo
ético dos executivos, dos esnobes, das estrelas de cinema etc.)”.
Interessa-nos, assim, evidenciar o mundo ético que a comunicação
publicitária constitui e que permite situarmos as marcas em uma das três
categorias gerais: (1) marcas excludentes: são aquelas cuja enunciação de seus
discursos publicitários instaura cenografias que atuam na formação de subgrupos
sociais e relações de pertença por efeitos de sentido de exclusão; (2) marcas de
comunhão: são aquelas cuja enunciação de de sua comunicação publicitária
engendra cenografias que orientam a formação de subgrupos sociais e relações
de identificação por efeitos de sentido de comunhão, ampla união social; e (3)
marcas de exclusão-comunhão são aquelas em que os elementos de enunciação
criam cenografias que mesclam efeitos de sentido tanto de exclusão quanto de
comunhão. Tais categorias de análise podem ser situadas sobre um eixo horizontal,
que expressa como o coenunciador é posicionado através de efeitos de sentido de
exclusão, comunhão ou de maneira intermediária.

Figura 1 – Categorias de marca a partir de sua cenografia

Fonte: Elaboração nossa

Contudo, embora as três categorias apresentem uma gradação entre efeitos


de sentido de exclusão e comunhão na constituição da cenografia, é importante
frisar que tais sentidos são estratégias discursivas mobilizadas de acordo com o
projeto da marca, que, em última instância, sempre visa a comunhão por adesão
do leitor ao mundo ético da marca expresso em seus discursos.
Posteriormente, o segundo nível de análise das relações entre a marca e seus
coenunciadores concerne ao estudo do processo do ethos discursivo e a configuração
de uma fonte enunciante, que sustenta e dá sentido àquilo que se “diz” – ou seja, o
fiador do discurso. Conforme Maingueneau (2001) explica, o ethos diz respeito à
dimensão corpórea, mas também psicológica do fiador, de maneira que compleição
física, modo de se portar e fluir no mundo, vestimenta, gestual e qualidades referentes
ao caráter, valores e comportamentos do fiador estão aí implicados. Embora a
publicidade busque persuadir o leitor através da associação do produto/serviço a
um corpo em movimento, inserido em uma ambiência social que lhe dá sentido e o
O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A 195
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS

torna desejado, há marcas, por exemplo, cujos discursos publicitários privilegiam a


apresentação mais explícita de qualidades físicas de seu ethos, enquanto qualidades
psicológicas são apresentadas de forma mais difusa ou imprecisa. Ou o contrário:
o discurso publicitário pode colocar em relevo qualidades de caráter do ethos,
enquanto traços físicos são apresentados de forma pouco expressiva. Assim, pode-
se falar em três tipos de ethos da marca:
Ethos físico: aquele que caracteriza um enunciador a partir de sua
corporalidade, que coloca em circulação os traços físicos de seu fiador e que busca
a mobilização dos coenunciadores no sentido de aderir a um corpo imaginário de
marca que se define por uma corporalidade;
Ethos psicológico (ou de caráter): é aquele que apresenta um enunciador
em sua dimensão psicológica, a partir de estereótipos de caráter, que intencionam
provocar a adesão dos coenunciadores a um corpo imaginário de marca, que se
define por seus traços de caráter e valores morais;
Ethos integrado: trata-se daquele que se define de forma bastante explícita
tanto por seus atributos físicos, sua corporalidade, quanto por seus traços
psicológicos e de caráter, constituindo no interior do discurso um corpo imaginário
da marca que ao mesmo tempo é fisicamente e moralmente bem definido.
As categorias acima apresentadas podem ser organizadas em uma escala de
três estágios situadas num eixo horizontal, conforme se vê na figura abaixo:

Figura 2 – Categorias de ethos da marca

Fonte: Elaboração nossa

Essa categorização nos permite compreender como se dá o processo de incor-


poração do ethos discursivo que a publicidade de cada marca põe em funcionamento
e que, consequentemente, convoca os coenunciadores a “formar corpo” com o fiador,
que os persuade a entrar em comunhão imaginária com aqueles que aderem aos dis-
cursos da marca. Conforme explica Quessada (2003), a lógica da marca contemporâ-
nea orienta a organização do espaço social e permite que se estabeleçam classificações
das mais diversas ordens – em outras palavras, compreender o funcionamento do
ethos discursivo da publicidade das marcas nos ajuda a entender como se dá esse pro-
cesso de adesão e a formação imaginária de subgrupos sociais.
Em síntese, o modelo analítico que propomos intenciona explicar como o
discurso publicitário colabora para a constituição das marcas contemporâneas e
196 Nelson Soares

constrói um conjunto de expectativas mútuas entre as instituições enunciadoras e


os seus leitores, o que configura as relações significantes e discursivas das marcas
contemporâneas. Para tanto, o método de análise proposto está dividido em duas
etapas distintas. O quadro abaixo apresenta uma síntese do método proposto:

Quadro 1 – Categorias de análise da publicidade e das marcas contemporâneas


Marcas de
EXCLUSÃO

CENOGRAFIA E Marcas de
MUNDO ÉTICO EXCLUSÃO-COMUNHÃO

Marcas de
COMUNHÃO

Ethos
FÍSICO
Ethos
ETHOS DA MARCA
INTEGRADO
Ethos
PSICOLÓGICO

Fonte: Elaboração nossa

Para a aplicação do procedimento de análise aqui proposto entendemos que


o estudo de caso é o mecanismo mais adequado, pois garante maior profundidade
em relação ao caráter descritivo e explicativo da pesquisa². A fim de operacionali-
zar o estudo de caso e, com isso, contribuir para a construção da metodologia de
análise, a unidade-caso apropriada é o conjunto de peças publicitárias de uma dada
marca anunciante coletados num intervalo de dois anos. Propomos, para isso, o
meio revista.
Optamos por trabalhar com anúncios de revistas, pois, como destaca
Sant’Anna (2002), trata-se de um meio que atinge uma extensão geográfica mais
ampla (em muitos casos circulando em todo território nacional), o que favorece a
comunicação publicitária com fim institucional – aquele discurso publicitário que
visa colocar em circulação os valores da marca. Além disso, o meio revista apresenta
melhor qualidade de impressão, o que dá condições de uma melhor exploração
da imagem. Por fim, o modo de leitura do meio revista, que se caracteriza pela
dedicação de um tempo mais longo por parte do leitor (SANT’ANNA, 2002),
permite o uso de textos e imagens mais complexos e pode apresentar de modo
mais completo as principais ideias de uma campanha publicitária.
O FENÔMENO-MARCA: A CENOGRAFIA E O ETHOS DO DISCURSO PUBLICITÁRIO COMO CHAVES PARA A 197
COMPREENSÃO DO CONSUMO SIMBÓLICO DAS MARCAS

Para detectar as regularidades dos discursos publicitários das marcas


contemporâneas e seus traços distintivos frente aos discursos concorrentes –
em outras palavras, aquilo que define e consolida as expectavas mútuas entre
anunciantes e leitores/consumidores –, é necessário analisar o material publicitário
da marca posto em circulação por um período relativamente longo. Dessa forma,
como indica Verón (1985) em seus estudos acerca das relações contratuais entre
veículos de comunicação e seus leitores, propomos por delimitar a unidade-caso
em um intervalo de tempo mínimo: dois anos.
Considerando que o sentido se constrói na diferença (ORLANDI, 1999),
torna-se necessário um número mínimo de dois casos. No entanto, considerando
que, segundo Gil (2002), um estudo de caso no campo das ciências sociais
demanda um mínimo de quatro casos, entendemos por um estudo inicial deve
tomar para análise comparativa quatro marcas que disputam o mesmo segmento.
Desta forma, é possível aplicar de maneira minimamente adequada à proposta
metodológica em quentão.

Considerações

Esse artigo apresentou dois aspectos fundamentais na construção de


um dispositivo metodológico de análise das marcas contemporâneas – o ethos
discursivo a cenografia da comunicação publicitária posta em circulação pelas
marcas anunciantes. Para tanto, considerando nossa compreensão dos fenômenos
que implicam a comunicação midiática e que envolvem processos de significação
que se dão no tecido social, tomamos como princípios fundamentais da pesquisa
a valorização dos seguintes aspectos: (1) os pressupostos teóricos e metodológicos
da Análise do Discurso, e (2) a compreensão da lógica da marca como uma
produção de sentidos sociais.
Um terceiro aspecto não abordado aqui em função das dimensões do
texto é a enunciação do discurso publicitário, com especial destaque para a
imagem, já que o não verbal é um traço enunciativo marcante do discurso
publicitário. No entanto, evidenciamos a complexidade do fenômeno-marca
na contemporaneidade e o importante papel da publicidade na constituição de
subgrupos sociais e processos de ordenamento social a partir das marcas. As
noções de ethos e cenografia, com base na comunicação das marcas, dão-nos uma
adequada perspectiva para explicar os processos de produção de sentido e como
os sujeitos em sociedade incorporam a marca e com eles formam uma espécie de
corpo social pela adesão ao mundo ético e sistema de valores postos em discurso
pelas marcas contemporâneas.
198 Nelson Soares

Referências

AMOSSY, Ruth. Da noção retórica de ethos à análise do discurso. In: Imagens de si: a construção do
ethos. 1 ed. São Paulo: Contexto, 2008.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 6. ed. Campinas: Editora
UNICAMP, 1997.
CARRIL, Carmem. Qual a importância da marca na sociedade contemporânea? São Paulo:
Paulus, 2007.
GIL, A.C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002.
MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MAINGUENEAU, D. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.
PEREIRA JUNIOR, Nelson S.;TELLES, Adriana. O ethos da marca: análise da publicidade no
processo de construção das marcas contemporâneas. In: XI ENECULT, 2015, Salvador. Anais
eletrônicos Edição 2015 – XI ENECULT. Salvador: UFBA, 2015. Disponível em: http://www.cult.
ufba.br/enecult/anais/artigos-aprovados/ Acesso em: 15 nov. 2015.
PINHO, J.B. O poder das marcas. 2. ed. São Paulo: Summus, 1996.
PINTO, Milton José. Semiologia e imagem. In: A enunciação do sentido. Rio de janeira: Diadorim/
Compós, 1996. v. 1.
QUESSADA, D. O poder da publicidade na sociedade consumida pelas marcas: como a
globalização impõe produtos, sonhos e ilusões. São Paulo: Futura, 2003.
SANT’ANNA, Armando. Propaganda – teoria, técnica e prática. 7. ed. São Paulo: Pioneira, 2002.
SEMPRINI, Andrea. A marca pós-moderna: poder e fragilidade na sociedade contemporânea. São
Paulo: Estação das Letras Editora, 2006.
SEMPRINI, Andrea. El marketing de la marc: una aproximación semiótica. Barcelona: Paidós,
1995.
VERÓN, Eliseo. El análisis del “contrato de lectura”: un nuevo método para los estudios de
posicionamiento de los soportes de los media. In Les medias: experiences, recherches actuelles,
aplications”, IREP, París, 1985.

NOTA EXPLICATIVA

1 O termo “extramídia” se refere às atividades que procuram levar o discurso publicitário para fora dos seus
locais habituais, mas que o fazem através dos meios de comunicação de massa. Como exemplo, temos a
produção e o patrocínio de programas (batering e sponsoring, respectivamente), mecenato, relações públicas,
publicidade no local de vendas e outros, como nos mostra Dominique Quessada (2003).
2 Doravante, a expressão Análise de Discurso será abreviada pelas iniciais “AD”.
3 Trata-se do processo de “comoditização”, conforme explica Carmem Carril (2007).
4 Trata-se, assim, de um estudo de caso do tipo instrumental (GIL, 2002).
199

CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR:


MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA
PROTESTANTE

Pedro Fernando Sahium

Resumo: Gestada num contexto histórico de supremacia da Igreja Católica Ro-


mana, a Reforma Protestante, cujo marco foi a publicação das 95 teses contra a
Igreja no ano de 1517 pelo alemão Matinho Lutero, professor de teologia e monge
agostiniano, seguiu numa jornada de muitos desdobramentos. Os desdobramen-
tos, que se orientaram por doutrinas e produções teológicas diferentes entre si,
também eram adaptações aos muitos contextos sociais e econômicos. Acompa-
nhando esses desdobramentos na perspectiva dos contextos históricos chegamos
a um cristianismo que ampara teses de interpretação bíblica devedoras à Reforma
Protestante que na atualidade conjugam a ética religiosa que produz certos com-
portamentos nos fiéis - a religião de exigências ética segundo Max Weber -, mas,
que também, passa a usar largamente, como centro organizador comunitário, os
espetáculos cúlticos, estilo show business, e devedora, portanto a dinâmica fluida,
estetizada e cheia de novidades da sociedade líquida (Bauman). O Deus ético é
apresentado atualmente por um cristianismo de performances elaboradas e ir-
radiadas pelo sistema multimídia. Apontando para uma adaptação à sociedade
do espetáculo (Debord) bem sucedida e mantendo os mitos, ritos e símbolos do
cristianismo, um novo cristianismo pentecostal espetacular é a nova onda que
envolve a juventude e negocia necessidades e sentidos de vida. Esse cristianismo
se encontra adaptado para uma nova demanda social e fixa os antigos valores da
religião. Esse artigo tentará mostrar através da pesquisa iniciada em 2016/17, e em
andamento, como a igreja Church in Connection, na cidade de Anápolis incorpo-
rou esse espírito de mudanças e de espetáculos permanentes.
Palavras Chave: Juventude. Religião. Sistema multimídia. Reforma Protestante.
Espetáculo.

Introdução

Esse artigo propõe baseado em pesquisas ainda em andamento na igreja pente-


costalizante Church in Connection - em atividade na cidade de Anápolis - apontar as
transformações sofridas no movimento Presbiteriano e Presbiteriano Renovado para
incluir os jovens numa nova formatação religiosa cristã que os interessa e que para isso
torna indispensável o uso do sistema multimídia e as dinâmicas do espetáculo.
200 Pedro Fernando Sahium

Partindo do relato histórico da Reforma Protestante e de suas mudanças,


se percebe a dinâmica ativa dessa vertente do cristianismo em se adequar aos
diversos e diferentes contextos sociais, culturais e econômicos. Atuando e se adap-
tando às muitas demandas no campo religioso a Reforma Protestante atravessa a
história, nesses 500 anos de protestantismo (o marco histórico está nas 95 teses
de Lutero contra a Igreja Católica em 1517), gerando adaptações e reformas que
tornam possível a negociação de sentido do sagrado na relação com a sociedade e
na relação com grupos e faixas etárias.
Essa negociação possibilita o revigorar das crenças e a criação de novas
comunidades de fé que se adequam à demanda criada pelo sistema sociocultural
da atualidade que se organiza de forma informacional, em rede e globalmente. O
ponto de partida do artigo mostra os desdobramentos do protestantismo refor-
mado europeu, que, passando pela América do Norte chega ao Brasil e se mul-
tiplica em grande diversidade para atingir, na atualidade, os jovens que buscam
na afirmação de sua individualidade e na quebra de usos e costumes uma comu-
nidade ligada em rede e repleta de espetáculos, no sentido que o filósofo Debord
(1995) da ao termo para adaptá-lo ao conjunto de práticas que reforçam o sistema
social e econômico capitalista de produção e consumo.
A igreja Church in Connection possibilita o estudo da religião em sintonia
com a dinâmica do mercado de bens culturais e simbólicos que dominam o
mundo na atualidade. Essa possibilidade permite anotarmos aspectos de uma
religião que pende do ético para o espetáculo, do tradicional para o moderno no
uso dos mais finos meios de organização e comunicação. É uma religiosidade que
se dá de forma permanente e “sem pausas” via Whatsapp, Facebook, Instagram e
outros meios e aplicativos da Internet.

O Contexto Histórico Do Surgimento Do Presbiterianismo

No século XVI reformas protestantes abalaram os alicerces da Igreja de


Roma por intermédio de diversos homens que, ao se opor à teologia e à prática
Católica, fizeram “pipocar” movimentos de reforma religiosa por toda a Europa.
De acordo com a teoria sociológica da religião de Wach (1990), “todas as religiões
mundiais enfrentam de tempo em tempo protestos contra a tendência principal
de seu desenvolvimento” (WACH, 1990, p. 192). Foi o que ocorreu com o cristia-
nismo europeu no século XVI por meio da Reforma Protestante.
Além de Martinho Lutero (1483-1546) surgem movimentos convulsivos
em diversas partes da Europa liderados por Andreas Bodestein von Karlstadt
(1486-1541), Thomas Müntzer (1489-1525), Huldrich Zwingli (1484-1531), Mar-
tin Bucer (1491-1551), João Calvino (1509-1564), João Knox (1505-1572), e mui-
CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE 201

tos outros que replicavam as ideias de um novo cristianismo, livre das peias de
Roma.
Foi precisamente com base nas ideias de Calvino que seu discípulo João
Knox, no final do século XVI, reformou a Igreja na Escócia. Esta se constituiu
num baluarte do presbiterianismo. O nome “presbiteriano” faz menção à estru-
tura eclesiástica organizada localmente em presbitérios (reunião de presbíteros,
cristãos que no seio da nova organização cristã devem administrar os trabalhos
na igreja). Os grupos calvinistas se espalharam pela Grã-Bretanha, e a Confissão
de Westminster foi acatada como declaração de fé dos presbiterianos. Da Grã-
-Bretanha o presbiterianismo foi levado para a América do Norte e constituído o
primeiro sínodo da Igreja (1729), que adotou a Confissão de Westminster. Regis-
tra-se o envolvimento do presbiterianismo na Revolução Americana (1775-1783),
e na Declaração da Independência dos Estados Unidos, sendo que “o único minis-
tro a assinar a Declaração da Independência (1776) foi o Rev. John Witherspoon
(1723-1794), pertencendo à mesma denominação o presidente, o secretário e o
capelão do Congresso Continental” (REILY, 2003, p. 129).

O Presbiterianismo Vem Para O Brasil

A inserção do presbiterianismo no Brasil começou com o envio de missio-


nários dos Estados Unidos para o Brasil, tanto do presbiterianismo do sul quanto
do norte dos Estados Unidos. Merece destaque a vinda do primeiro missionário
enviado pela Igreja Presbiteriana do norte daquele país a Presbyterian Church
United States of América (PCUSA) em 1859, o jovem pastor Ashbel Green Si-
monton (1833-1867). Missionários da Igreja Presbiteriana do Sul (PCUS) tam-
bém foram enviados para o Brasil no mesmo período. Esses emigraram em 1867
atraídos pelas boas terras na província de São Paulo, colônia de Santa Bárbara do
Oeste e também pela possibilidade de manter a escravidão de negros para o traba-
lho, o que lhes era negado nos Estados Unidos pós Guerra da Secessão, ou Guerra
Civil Norte-Americana (1861-1865).
Isso aponta para as adaptações do presbiterianismo em solo americano do
norte e suas respectivas adaptações ao contexto socioeconômico daquele país.
Partindo do esforço missionário e institucional das duas Igrejas Presbiterianas
vindas dos Estados Unidos, o trabalho cresceu e se expandiu, surgindo os primei-
ros missionários autóctones. A obra atingiu outras regiões e aumentou numeri-
camente.
Por essa razão, e de acordo com a política mundial que favorecia a aproxi-
mação dos diversos ramos do presbiterianismo, as duas juntas missionárias apro-
varam a fusão dos esforços presbiterianos numa só Igreja Presbiteriana nacional,
202 Pedro Fernando Sahium

o que efetivamente ocorreu em 1888. Com a criação do Sínodo da Igreja Presbi-


teriana no Brasil, o presbiterianismo se tornou uma Igreja nacional autônoma,
situação estratégica tanto frente à nação brasileira, às vésperas de se tornar uma
República, quanto em relação às igrejas irmãs (REILY, 2003, p. 130).
Essa união de trabalhos das duas igrejas presbiterianas vindas dos Estados
Unidos deu origem à Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) e fortaleceu o trabalho reli-
gioso da denominação, que ao longo do século XX sofreria muitas divisões. Próprio
do mundo religioso protestante, os cismas possibilitaram o avanço do protestantis-
mo cristão em terras brasileiras e o surgimento de novas denominações.
Com base nos estudos de Riley (2003), Mendonça (1984), e Gini (2010),
montamos uma tabela explicativa da chegada e dos cismas do presbiterianismo
no Brasil. O quadro abaixo não pretende esgotar a história dos cismas ocorridos
no presbiterianismo, mesmo porque esses ocorreram em escalas menores até an-
tes da união dos missionários do presbiterianismo do sul e do norte dos Estados
Unidos em 1888, quando se formou a Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).

Figura 1 - Divisões do presbiterianismo no Brasil

Fonte: Elaboração própria

Da Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil (IPRB) formada em 1975 surgiu


a Church in Connection (2016) que se configurou como uma igreja para jovens
e gozou de um crescimento muito rápido e surpreendente. Enquanto as igrejas
CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE 203

evangélicas do campo tradicional (Presbiteriana, Batista, Metodista, Cristã Evan-


gélica do Brasil e outras) e também aquelas que aderiram a mudanças pentecos-
talizante sem se distanciarem dos ensinamentos dos reformadores (Presbiteriana
Renovada, Batista Renovada, Cristã do Avivamento e outras) tiveram crescimento
pequeno na cidade de Anápolis, a Church in Connection, cresceu num ritmo ace-
lerado e atingiu mil frequentadores num prazo curto de tempo.
Esse crescimento provocou a saída dessa comunidade de fé, que se abrigava
sob a responsabilidade da Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil (IPRB), e a for-
mação de um ministério novo copiado do cristianismo espetacular e temático de
uma igreja dos Estados Unidos a Church By the Glades.

Church In Connection: Organização E Influências

Assim como a Igreja Presbiteriana Renovada (IPRB), que em 1975 foi fun-
dada no Brasil obedecendo alguns princípios da sua matriz Presbiteriana brasilei-
ra (IPB), mas, se estruturando para competir num campo religioso nacional com
a crescente influência dos pentecostais no mercado religioso, a igreja Church in
Connection se estrutura partindo de uma igreja Presbiteriana Renovada (IPRB),
com isso mantendo princípios da organização religiosa reformada do século XVI
que estabelece a Bíblia como regra de fé e a salvação por meio de Jesus Cristo, sem
a necessidade de outra mediação. Esses desdobramentos ampliam a participação
de vertentes do cristianismo que mantem algumas semelhanças, mas, se adequam
à realidade conjuntural socioeconômica brasileira. È o avanço do cristianismo,
com modificações e adaptações de organização e de funcionamento dentro de
um espaço estruturado. Pierre Bourdieu chama esse espaço social estruturado,
onde agentes disputam por valores materiais e não-materiais de “campo religioso”
(BOURDIEU, 1998).
Os campos são os lugares de relações de forças que implicam tendências
imanentes e probabilidades objetivas. Um campo não se orienta totalmente ao
acaso. Nem tudo nele é igualmente possível e impossível em cada momento.
(BOURDIEU, 2004, p. 27).
É preciso registrar que no funcionamento do campo religioso, de acordo
com Bourdieu (1998), dentre outras coisas, se fazem presentes: As instâncias reli-
giosas que podem lançar mão do “capital religioso” na concorrência pelo mono-
pólio e gestão dos bens de salvação; Uma luta entre a Igreja o profeta e sua seita
no monopólio legítimo do poder religioso sobre os leigos; A tentativa da Igreja em
impedir a entrada no mercado de novas empresas de salvação por diversos meios;
(4) os profetas e suas seitas colocando em questão o monopólio dos instrumentos
de salvação - tentando conquistar um capital religioso; (5) a gestão burocrática
204 Pedro Fernando Sahium

do depósito de capital religioso; (6) a força do profeta em produzir e distribuir


bens de salvação e de buscar a transformação da seita em Igreja; A eficácia de uma
ideologia que é produto do trabalho coletivo (BOURDIEU, 1998, p. 58).
A Church in Connection lançou mão do capital religioso conquistado en-
quanto esteve ligada ao ministério da IPRB (2010-2016), e, ao se constituir num
ministério independente (2016), já tinha um capital religioso próprio para con-
correr com sucesso no nicho jovem desse mercado (faixa etária entre 15 - 30 anos).
A organização presbiteriana, com a presença de presbíteros e diáconos, os cultos
centrais de domingo à noite e de escola dominical pela manhã foram mantidos.
A forma de estruturação interna em departamentos, de crianças, de jovens, de
mulheres, homens e casais também se mantiveram como herança da organização
anterior. Uma adaptação feita foi a nova nomenclatura usada para alguns departa-
mentos e programações que passaram a ter nomenclatura em inglês (Church kids,
jovens Church, envoy, Conference Church, Church Prayer etc.). Esse anglicismo,
seguindo o nome Church in Connection, foi resultado da influência e da cópia de
uma igreja nos Estado Unidos, a igreja Church By the Glades .
Foi dessa última que veio a imitação técnica para os cultos temáticos do
domingo, das performances dos líderes, e, dos shows que se tornaram o culto de
domingo à noite, principal programação da igreja e a que mais pessoas atraem.
Abaixo ilustramos com fotos captadas dos cultos das duas igrejas, a semelhança e
a “luminosidade” teatral e cúltica desses modelos religiosos de vertente cristã que
atuam especificamente no meio jovem.

Figura 2 - Imagens da Church By the Glades e da Church in Connection

Fonte: Instagram churchbytheglades e churchcinconecction, consulta feita em 17 de março de 2017.


CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE 205

Essa tônica na produção de um culto que se aproxima de uma produção


cinematográfica e na realização de shows que devem variar com base nos temas
adotados, aproxima o modus operandi das duas denominações, a dos EUA e a
do Brasil. Com orçamento bem menor que sua inspiradora nos EUA, a Church
in Connection tem, além do anglicismo, um dirigente carismático e uma equipe
técnica engajada para tirar o melhor proveito das mídias eletrônicas para fixação
da marca Church. A marca, em inglês, chama a atenção pelo efeito monossilábico
e fácil de pronunciar, além de se associar a algo novo no mercado religioso de
Anápolis, onde as variações dos nomes das igrejas giram sempre, ou, na maioria
das vezes, em torno do nome “Assembleia de Deus”. Os jovens se manifestaram
satisfeitos com o nome Church, com a forma temática da organização dos cultos
e as mudanças operadas pelas lideranças espirituais e técnica.
A Church in Connection, ainda como Igreja Presbiteriana Renovada, no
ano de 2010, contava com uma dúzia de membros. No espaço de seis anos e com
a independência organizacional em julho de 2016, pulou para mais de mil mem-
bros. Desses, 520 são membros oficiais, participando e contribuindo de forma
sistemática com a manutenção da igreja, e, pouco mais de 500 são participantes
dos cultos de domingo, configurando uma igreja (em números) “flutuante”. No
total dos frequentadores, mais de mil e vinte pessoas, 41% são de homens e 59%
de mulheres, sendo quase 85% de jovens entre 15 e 30 anos . Essa nova igreja per-
mite uma filiação mais “solta”, sem as amarras institucionais dos evangélicos mais
tradicionais. Consequentemente sem as cobranças em termos de usos e costumes
e permitindo uma afirmação das individualidades ou do pluralismo e busca de
novidades que marcam o mundo na atualidade, o mundo pós-moderno, ou, “lí-
quido”.

O Sólido E O Líquido Na Church In Connection

A narrativa do sociólogo Zigmunt Bauman (2001) sobre um mundo em


que as instituições sociais se tornaram porosas (líquidas) nos seus limites, guar-
dando novas características que as diferencia das suas correlatas dos séculos XIX
e da maior parte do seculo XX, deve ser lembrada para uma análise mais apurada
do crescimento e participação jovem em religiões como a Church in Connection.
Como instituição “herdeira da Reforma Protestante” do século XVI, nota-se
as mudanças: igreja calvinista (Suiça) > Igreja Presbiteriana da Inglaterra > Igreja
Presbiteriana dos Estado Unidos da América > Igreja Presbiteriana do Brasil >
Igreja Presbiteriana Renovada do Brasil e Church in Connection. As transforma-
206 Pedro Fernando Sahium

ções dessa vertente do cristianismo são uma constante. Nada de surpreendente.


Todas guardam uma sintonia com seu tempo e lugar. Contudo as mudanças que
se operam na sociedade atual guardam uma velocidade jamais vista em épocas
passadas. É essa velocidade das transformações um dos elementos que fizeram
com que Bauman (2001) cunhasse o termo de “modernidade líquida” para carac-
terizar os tempos atuais.
No decorrer na história humana o período do século XV em diante, inau-
gurado com a invenção da máquina de impressão tipográfica, com a ampliação
do mercado oceânico, com a expansão ultramarina, com o renascimento comer-
cial e urbano e com o renascimento cultural e religioso, o mundo passou por
transformações profundas e colocou para girar a roda da modernidade.
O “novo” em todos os setores era buscado visando a construção de um am-
biente que fosse o mais acolhedor, confortável, melhorado e rico possível. A ideia
de progresso estava inaugurada e os homens se lançaram na busca da felicidade,
da afirmação de sua individualização, da precisão, da técnica e da ciência como
elementos imprescindíveis para a compreeensão da vida humana e do seu entor-
no. Nessa modernidade tudo se põe em movimento e as tradições, os costumes e
as instituições não se livram do fator transformação. Estava inaugurado o tempo
da “destrição criativa, da perpétua desmontagem e demolição” (BAUMAN, 2008,
p. 89).
De acordo com Bauman (2001, 2008) a modernidade é líquida pois se es-
trutura a cada manhã com renovadas novidades, e, desejos postos em movimento
pelas cadeias produtitvas do sistema capitalista de produção e de busca incessante
de lucro. É nesse contexto que algumas vertentes da religião cristã se organizam.
A Church By the Glades nos Estados Unidos e a Church in Connection no Bra-
sil, acertam seus cultos baseados numa renovação constante dos seus cultos e na
aproximação das apresentações cúlticas com a grande indústria cultural de massa
do entretenimento.
Sua forma, maneira de apresentar as mensagens religiosas e de se organizar
nas apresentações, obedece uma mudança constante.
Embora o conteúdo teológico permaneça centrado na Bíblia como livro
sagrado e em Jesus como o Nome e catalizador central das disposições e moti-
vações dos novos fieis, é o culto, com o som gospel e o corpo técnico e religioso
que o acompanha o fator de ligação entre os fieis frequentadores dessa vertente
do cristianismo. Mais ainda, o caráter espetacular e mutante das apresentações
dos cultos e as performances dos dirigentes o fio condutor que atrai os novos fieis.
CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE 207

Figura 3 – Fatores apontados como mais importantes da igreja

Como visto na figura acima os dados colhidos pela pesquisa, com questões
semi estruturadas, apontam que a dinâmica do culto à noite que inclui o “show que é
o culto”, a “performance do pastor” (visão do pastor), e o “louvor”, somados chegam a
71% do “diferencial” apresentado pela Church e tido como muito importantes pelos
membros. Em depoimento para a pesquisa os membros da igreja apontaram como
fatores que os atraiu para a igreja, em primeiro lugar “o estilo das pregações” (26,5%),
em segundo lugar o “louvor gospel” (21,5%) e, em terceiro lugar as “novidades do cul-
to” (20,2%). Esse aspecto do espetáculo, da dinâmica temática dos cultos de domingo
à noite se constituem no “carro chefe” de atração e manutenção dos membros na igre-
ja. Contudo, quase 28% dos pesquisados apontaram o “ensino bíblico” da igreja como
o mais importante. O que mostra alguma importância dessa religião com sua origem
reformada. Ainda na figura acima vale destacar que 8% dos pesquisados responderam
que o fator “diferente” é o que importa na dinâmica da igreja.
Fatores da instituição histórica, sólida (ensino bíblico e doutrina reforma-
das), aparecem, apesar da desvantagem com outros itens. O que mantem a igreja
em crescimento é mesmo a dinâmica fluida, sem imposições de usos e costumes,
mais livres na participação dos membros, que se conectam pelo sistema multimí-
dia entre si e com a liderança criando um sistema de conexão permanente.

Church In Connection E Sistema Multimídia

Maximizado o sistema midiático , a Church segue levantando adeptos e


preparando-os com ensinamentos virtuais, curtos, condensados e com referência
bíblica ou de cristãos proeminentes. É uma catequese de “escola dominical” fora
208 Pedro Fernando Sahium

dos domingos, em todos os dias e horários, de forma não-presencial, ou seja, vir-


tual e em rede.
A Church está construindo sua marca, impulsionada pela linguagem vir-
tual e imagética sempre que lança um novo programa, uma nova atividade, uma
nova ação social, uma nova mobilização dos jovens, um novo show. A atração de
jovens para o grupo religioso Church in Connection recebe o reforço de diversos
instrumentos da mídia. Mara Einstein (2012) destaca o uso que a religião faz das
mídias, e, enfatiza que “A ‘construção do si mesmo religioso’ tem sido tradicional-
mente uma forma de comunicação e atualmente está cada vez mais perpassada
pela tecnologia da mídia” (EINSTEIN, 2012, p. 19).
Na Church é frequente o uso de clipes de filmes durante o período de cânti-
cos, nos cultos, e, na publicidade feita por toda a rede da Internet. A experiência de
ouvir uma prédica sofre o texto bíblico de Marcos 15: 16-20, que relata o momento
em que Jesus é entregue aos soldados e a narrativa sobre o escárnio e sofrimento
físico de Jesus, é duplicado potencialmente com as cenas do filme Hollywoodiano
“A paixão de Cristo”. Conquanto o texto bíblico seja muito bem exposto ao narrar a
cena de violência e dor de Jesus Cristo, ao usar das imagens do filme o processo de
comoção e envolvimento dos fiéis com a realidade descrita ganha uma força excep-
cional. Nas observações para a pesquisa feitas nesse dia foi possível anotar e sentir a
força dessas imagens do filme que esteve em cartaz no ano de 2005.

Figura 4 – Cenas projetadas durante a pregação


CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE 209

Fonte:https://www.google.com.
br/?gws_rd=ssl#q=a+paixao+de
+cristo+mel+ gibson&*
Consultado em 01 de março de
2017.

Outra maneira pela qual a imagem da Church está sendo construída é atra-
vés do bom uso da Internet na interligação de diversos instrumentos: WhatsApp,
Facebook, Instagram e App para celular. Com a maior possibilidade do uso de
smartphones pela parcela jovem, majoritária frequentadora dos cultos e do rol de
membros da Church, as comunidades física e virtual se aproximam. O lugar de
conexão é mais do que o espaço físico da igreja. A conexão se dá no “não-lugar”
do ciberespaço. Por conseguinte essa conexão se dá “sem pausa” porque a Church
não cessa de enviar posts os mais variados para os que estão ligados a ela.
A religião faz, dessa forma, o uso engajado das Novas Tecnologias de In-
formação e Comunicação (TICs) possibilitando aos jovens fiéis da igreja uma
ambiência animada, emocional ao extremo, renovável e repleta de novidades. Os
dados da pesquisa apontam para o uso em larga escala dos aparelhos smartpho-
nes pelos membros da igreja, são 83% do total. O sistema multimídia atende esse
público conectando-o concomitantemente à realidade global e local.
As programações da religião, embora assentadas nos mitos, ritos e símbo-
los próprios da instituição, ganham movimentação na sua apresentação. Os cultos
são realizados no escuro e depois do louvor, que ocupa mais de 1/3 da progra-
mação, a leitura bíblica é feita e acompanhada pelos celulares, uma vez que não
existe iluminação suficiente para a leitura no livro. Durante as observações para a
pesquisa, nos anos 2015/16, notou-se que o ambiente de show, com muitas luzes
coloridas, tipo estroboscópica, encenação teatral e performances espetaculares
calcadas num corpo técnico e religioso competente, mantem toda a igreja anima-
da e na expectativa das novas apresentações. Não existe mesmice, tudo obedece
a uma dinâmica intensa. Os fiéis são participantes do espetáculo e não ouvintes
passivos. O templo/palco funciona como espaço cênico
210 Pedro Fernando Sahium

Conclusão

Potencializado pelas mídias eletrônicas a Church apresenta um “dinamismo


empresarial” articulado para e pelos jovens que operam a sistemática de funciona-
mento dos cultos. É constante a produção de novos espetáculos com componentes di-
versos e envolvendo uma carga emocional coletiva muito grande e de muito entusias-
mo. Ela se enquadra na “empresa liberal carismática”, como definida por Naso (2015),
que caminha pelos “sulcos da Reforma”, consciente das suas raízes nos “fundamentos
da teologia protestante clássica”, mas, trilhando seus caminhos por meio da informali-
dade e “ausência de formas obrigatórias” impostas pela Reforma. A Church através de
uma catequese sem pausas (por meio das mídias eletrônicas) fortalece princípios da fé
cristã bíblica junto aos seus seguidores. Esses expressam sua fé enquanto os líderes, em
suas pregações, não dispensam a “prosperidade nos projetos terrenos” como uma das
consequências de seguir a Jesus, mas não fazem disso a sua pedra de toque.
Se a igreja oriunda da Reforma Protestante foi sendo “reformada”, em mui-
tos de seus aspectos, a sua formatação atual é de combinação dos elementos da
fé cristã com a indústria cultural de massa, principalmente no que é apresentado
pelos canais fechados de televisão e pelo cinema. Os cultos temáticos criam o mi-
se-en-scène criativo e técnico espelhando produções cinematográficas. A religião
não descarta nessa vertente os serviços apresentados por um grupo de talentosos
cantores apoiados por igualmente talentosos, técnicos, artistas visuais e engenhei-
ros de som e iluminação. Parece que esse aparato técnico-mágico-cinematográfico
tem um poder peculiar no contexto religioso aqui avaliado. O “maravilhamento”
parece estar no mise-en-scène.
As duas igrejas, Church By the Glades e Church in Connection, atingem a
juventude naquilo que está mais forte no contexto comunicacional da atualidade,
a apresentação de espetáculos que se renovam, da criatividade das produções dos
cultos e na alegria afirmativa dos cultos com muita música gospel.
A religião parece se organizar pelo espetáculo e pelo “relaxamento” de dispo-
sições de cunho normativo, ou, ético. Embora existam exigências normativas para
a vida dos frequentadores, a religião também se pauta, agora, pela estetização dos
cultos fazendo das novidades cênicas, passageiras e descartáveis, o fator fulcral de
sua existência. Se essa configuração será durável, ou, se evoluirá para conteúdo mais
denso da religião e fé cristã, ainda depende de muitos fatores a serem observados.
O fato é que vemos surgir um protestantismo pentecostal com ênfase espetacular,
encetado por forte trabalho de marketing, pelo menos em suas apresentações.
CRISTIANISMO PENTECOSTAL ESPETACULAR: MUDANÇAS OPERADAS NA HISTÓRIA PROTESTANTE 211

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THOMPSON, John B. A mídia e a modernidade. 15. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
212

ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE


CRENÇAS

Gilson Xavier de Azevedo1

Resumo:O objetivo do presente artigo é considerar o problema das crenças dentro


do viés antropológico a partir do referenciamento de três obras de antropólogos
que permitem inter-relacionar a problemática aqui proposta. Parte-se do proble-
ma de uma ausência direta de referências na antropologia sobre o problema das
crenças e da necessidade de um direcionamento epistemológico sobre tal aspecto.
A hipótese padrão é a de que é possível pensar as crenças sob o viés antropoló-
gico tendo por pressuposto que a formação cultural se dá justamente a partir de
um bem delimitado sistema de crenças que envolve espacialidade, ritos e religião.
Trata-se de um estudo revisional a partir de três autores/obras que permitem an-
tever o problema em questão. Aponta-se como resultado a ampliação dos debates
entorno do que tenho tratado como “Sistema de Crenças”.

Palavras-chave: Antropologia. Cultura. Sistema de crenças.


ANTHROPOLOGICAL ASPECTS OF THE BELIEF SYSTEM
Abstract:The objective of this article is to consider the problem of beliefs within
the anthropological bias from the reference of three works of anthropologists that
allow to interrelate the problematic proposed here. It starts from the problem of
a direct absence of references in the anthropology on the problem of the beliefs
and of the necessity of an epistemological direction on this aspect. The standard
hypothesis is that it is possible to think of beliefs under the anthropological bias,
assuming that cultural formation takes place precisely from a well-defined belief
system that involves spatiality, rites and religion. This is a review study from three
authors / works that allow us to foresee the problem in question. As a result, the
debate is broadened around what I have treated as the “System of Beliefs”.

Key-words: Anthropology. Culture. System of beliefs.

1 Pós-doutorado em andamento (Lusófona/Lisboa/PT). Doutor em Ciências da Religião pela PUC-GO


(2014-2017-BOLSISTA FAPEG).; Editor das Revistas REEDUC-UEG, ANAIS SIMPED UEG, RECIFAQUI.
E-mail: gilson.azevedo@ueg.br
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 213

Introdução

Existem crenças do ponto de vista antropológico? Este breve artigo preten-


de discutir tal questão a partir de um recorte de tres obras que abordam em seu
conjunto crenças em uma visão antropológica a partir das luzes da culturalidade e
da educação (FRANS BOAS), das luzes da Religião e da noção de pedado e morte
(BETTINA SCHIMIDIT; DELUMEAU).
Espera-se que a leitura do presente texto influencie os debates em anda-
mento sobre a questão das crenças na atual conjuntura acad~emica e potenciali-
zem tais imbricamentos.

1 Frans Boas E O Sistema De Crenças

A obra de Boas (2010), considerada hoje um clássico da sociologia e an-


tropologia, aborda sobremaneira os elementos Cultura e Educação. Nela Boas
considera que o desenvolvimento educacional de um povo se deve mais aos seus
próprios méritos e esforços do que a influência externa.
Todavia, Boas não eterniza esses dois conceitos e nem os livra de contami-
nações em relação à sua universalidade, ao contrário, como o contexto da obra se
dá no século XIX, a obra de certa maneira desconstrói ideias como a de evolução
e cultura assim alinhadas, traçando o que se poderia chamar de um relativismo
cultural como visão motora dentro dessa ciência.
Para Boas (2010), a formação cultural se dá por meio de mitos fundadores,
o que translitero como crenças fundadoras. Dois mitos importantes da antropo-
logia são postos em cheque por Boas que são o de raça totalmente definida e,
portanto, pura, desmontando ainda a ideia de uma evolução irremediável, não
havendo assim nenhum tipo de superioridade de seres humanos a não ser do
ponto de vista da violência ou seja, alguns grupos desenvolveria naturalmente o
poder de violência, mas que outros motivados por fatores diversos. Vale lembrar
que afirmações como essa causaria grande impacto não apenas nas pesquisas an-
tropológicas, mas nas sociedades em geral.
No fundo o que Boas parece propor é o fim de certo ou de todo deter-
minismo cientificista como, por exemplo, a ideia de determinismo geográfico
e econômico. Boas constrói a ideia de que são comuns a todos os seres hu-
manos estruturas de pensamento (Siatemas de crenças) que independente do
local onde estejam situados, podem ser desenvolvidas mediante o processo
educacional.
214 Gilson Xavier de Azevedo

Ainda no âmbito da relação Cultura e Educação nas teorias de Boas (2010),


destaca-se a insistência do autor no estudo dos diferentes tipos culturais que com-
põem a humanidade em oposição à ideia de raça que classifica os seres humanos
como se estes fossem inferiores ou superiores uns dos outros, de acordo com fa-
tores externos, como, por exemplo, cor da pele, localização geográfica, costumes,
etc. Dessa maneira, ele combate o preconceito que desqualifica pessoas e as co-
locam numa condição de inferioridade umas das outras. Esse elemento que Boas
traz para a reflexão é essencial no campo da formação da cidadania e da civilidade.
O sistema de crenças formado a partir do conjunto e da cultura influen-
ciam inclusive na composição da hereditariedade. Questões como hereditarieda-
de e raça que são amplamente divagadas na obra denotam estudos feitos na época
sobre a influência do meio no comportamento humano, bem como abordagens
referentes às atitudes mentais do ser humano “primitivo”, a partir de novos pontos
de vista. Desse modo Boas conclui que não existe uma diferença fundamental nos
modos de pensar do ser humano primitivo e do civilizado. Esta constatação altera
ou determina seu conceito de educação e de cultura, pois ambos são comumente
relacionados à suposta diferença na maneira de pensar dos diferentes povos.
Boas crítica amplamente os conceitos deterministas de raça em relação a
preconceitos científicos de inferioridade racial, de modo que a educação desses
povos era construídas para manterem-nos em condição de inferioridade. Alimen-
tava-se a crença de que uma força ou ser superior se-los impedia de alcançar outro
estamento. Estavam naquela condição para purgar alguma situação passada.
O cerceamento do pensamento e a supressão da liberdade intelectual pro-
clamam a morte da ciência, afirma Boas (2010). Um sistema educacional que uti-
liza materiais que legitimam o poder opressor, forma pessoas para a submissão ou
para a opressão. Dessa maneira, Boas indiretamente toca na questão da educação,
questionando modelos que, aparentemente, são bons, mas que não passam de um
sistema de controle e defesa da opressão.
Embora não apareça explicitamente a palavra diversidade é muito bem dis-
cutida, ao considerar que cada um com seus diferentes aspectos, idiomas e vida
cultural, suas próprias invenções e costumes.
Para o Boas (2010), raça e cultura devem estar intimamente associadas, de
modo que, a origem racial determina a vida cultural. Isso levaria a crer também
na teoria da superioridade de uma raça sobre a outra, o que Boas vai contestar ao
longo dessa sua obra. Com uma série de questionamentos, Boas introduz a leitura
de sua obra com um olhar crítico sobre teorias até então muito aplicadas como,
por exemplo o evolucionismo e o determinismo.
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 215

Tanto o evolucionismo quanto o determinismo só encontram respaldo nas


crenças que os retroalimentam. Seu traçado começa pela matriz histórica, desta-
cando a relação ja citada entre raça e cultura ou formação cultural. Boas critica
os preconceitos raciais, nacionais e de classe que pouco ou nada contribuem para
o avanço da ciência, mas entende que uma mudança sistêmica so se dá por uma
mudança de crenças.
Para Boas (2010), existem as características hereditárias das raças huma-
nas, demonstrando que cada grupo tem um ritmo de desenvolvimento caracterís-
tico, mas ainda paira dúvida se ele está relacionado a traços hereditários ou se as
condições ambientais contribuem para esse desenvolvimento.
A instabilidade dos tipos humanos, denota a importância de se pesquisar a
gênese dos diversos tipos de seres humanos que se encontra na face da terra, bem
como suas diversas crenças. Boas não discute a evolução das raças, mas emite
algumas considerações importantes que ajudam a entender esta problemática an-
tropológica, como, por exemplo, a relação entre a forma corporal de um povo e a
incidência de certas enfermidades que podem exercer uma leve incidência sobre
a composição de uma população.
Nota-se uma posição morfológica das raças; analisando a composição das
populações; o efeito da hereditariedade e o grau de instabilidade dos tipos huma-
nos, considerando a significação desses tipos fundamentalmente diferentes. Neste
aspecto, o desenvolvimento fisiológico e psicológico das raças e que elas, as raças,
não são substancialmente diferentes uma das outras.
Boas entende que as manifestações culturais a partir do conceito de cultura
engendram uma crança na “totalidade das reações e atividades mentais e físicas
que caracterizam a conduta dos indivíduos que compõem um grupo social, co-
letiva e individualmente, em relação ao seu ambiente natural, a outros grupos, a
membros do mesmo grupo e de cada indivíduo para consigo mesmo”.
Boas (2010) analisa a mente do ser humano primitivo e o progresso da
cultura. Ele questiona o uso de termos como “primitivo” e “avanço da cultura”, até
então muito em voga não apenas no senso comum, mas entre os pesquisadores.
Boas entende que mudanças culturais ocorrem pela substituição de impressões
sensoriais, emocionais, pelas mais racionais e intelectuais.
Por fim, o problema racial na sociedade moderna, oferece indicativos para
refletir sobre a questão cultural, hoje, e seus desdobramentos, como, por exemplo,
a educação e outros fatores sociais, como a migração, a miscigenação. Embora
Boas entenda que existem crenças fundadoras, ele aceita a ideia de que algumas
crenças mudam, perdem e sofrem acrescimos ao longo das eras; demodo que
216 Gilson Xavier de Azevedo

Boas defende o relativismo cultural, acreditando na autonomia da cultura, na sua


singularidade, valorizando os costumes, pois os costumes são manifestações da
cultura.
Existem nessa nova construção o que se poderia chamar de padrão cultu-
ral, ou uma série de elementos que constituem cada cultura com interrelações. O
padrão cultural corresponde à soma das crenças de um povo, ou grupo, como, por
exemplo, as atitudes deste grupo, os objetos por ele utilizados, seus costumes, suas
ideias, enfim, ao ajustamento dos diversos traços e complexos característicos de
cada agrupamento humano que traduzem o conjunto de valores que esse grupo
expressa.
Desse modo, o papel do antropólogo é o de estudar e compreender os fe-
nômenos dessas culturas particulares e descobrir qual sentido os detentores dessa
cultura atribuem às suas práticas. Além disso, constatou-se a necessidade de re-
construir a história de uma cultura para poder compreendê-la (PEREIRA, 2011).
Para Boas, somente conhecemos verdadeiramente um povo quando ana-
lisamos técnica e metodicamente suas ações diárias, resultadas do seu universo
psíquico, seus costumes, como, por exemplo, hábitos alimentares, comportamen-
to rituais, e principalmente sua manifestação artística, como fez Boas ao analisar
a arte primitiva dos povos e a relação que ela tinha com a vida social destes, bem
como o seu desenvolvimento.
A obra ora analisada de Boas, abre caminho para o relativismo cultural e a
antropologia amplia seu campo de ação e, consequentemente, de pesquisa, impe-
lindo os antropólogos a irem a campo recolher materiais para fundamentar suas
pesquisas. O relativismo cultural inaugurado por Boas mostra a evolução como
fenômeno que pode decorrer do estado mais simples para o mais complexo den-
tro de uma cultura e que esta tem o seu valor e a sua riqueza dentro do seu próprio
sistema cultural (PEREIRA, 2011).
Antigos conceitos como a noção de bem e de mau, de certo e de errado e ou-
tras categorias de valores são relativos a cada cultura. Isso vale para todas as práticas
e costumes de um povo, inclusive para a sua educação, como veremos abaixo. Assim
sendo, a educação está relacionada à herança cultural e não biológica.
Desta feita, o relativismo cultural de Boas chama atenção para o dado da
herança que o indivíduo recebe em sua vida e que o caracteriza de acordo com o
grupo em que ele vive, ajudando, assim, a formar a sua personalidade.
Boas distingui com detalhes a herança biológica e a herança cultural. Para
Ele, a herança biológica é aquela que se recebe dos pais, que corresponde à cor
da pele, aos traços físicos ou genéticos dos grupos humanos a que se pertence. A
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 217

herança cultural é transmitida por hábitos e costumes do grupo social em que se


vive (PEREIRA, 2011).
Assim, uma criança indígena ou negra, quando adotada por uma família
branca e criada num outro meio que não é o de seu grupo de origem, vai desen-
volver os costumes, gostos e demais manifestações culturais conforme o meio em
que foi, ou está sendo criada, porém manterá os traços físicos dos seus progeni-
tores.
Quando qualquer criança recebe a mesma educação, e ter as mesmas opor-
tunidades de estudo de uma criança branca, ela concorrerá com essas em iguais
condições, porém as de seu grupo biológico terão dificuldades de acompanhá-la,
pois não tiveram a mesma formação, ou educação para estas situações.
Para ele a educação não ensina algo, mas molda as crenças e o indivíduo a
uma cultura. Se uma criança indígena criada num grande centro urbano por uma
família branca, cercada de facilidades e de avanços tecnológicos, quando adulta,
dificilmente desenvolverá habilidades com arco e flecha, com a caça e a pesca e
demais costumes das que permaneceram na sua tribo origem.
O exemplo não quer expressar que seja superior ou inferior uma da outra,
mas que são culturalmente distintas e que foram educadas distintamente, tornan-
do-se, assim, desiguais enquanto conhecimento, mas semelhantes enquanto po-
tência mental.
Boas (2010) afirma ainda que assim como nosso sistema escolar requer
escolas secundárias e universidades – além das escolas primárias –, um grande
museu deveria cumprir a função objetiva de uma escola primária para o público
em geral, sem deixar de servir àqueles que procuram uma educação mais elevada
e de ajudar a treinar o professor.
Para ele, o ensino e a pesquisa devem ser livres de interferência externa, e
de que a liberdade pessoal dos integrantes do corpo docente não deve ser restrin-
gida pelo conselho diretor, já que os conselhos diretores não são os únicos inimi-
gos potenciais da liberdade do professor.
Boas (2004) destaca a necessidade da liberdade não apenas para o ensino,
mas também para a aprendizagem. Mostra que as “grades” curriculares cerceiam
a liberdade da aprendizagem, apresentando ao estudante uma espécie de “forma”,
previamente determinada, pela qual ele deve passar para sair “formado”. Afirma:
“essa tradição da escola, quando a linha de estudo é cercada por inúmeras regras e
regulações, ainda controla a universidade” (PEREIRA, 2011, p. 116).
Como uma espécie de sátira, afirma que o diploma universitário deveria
expressar o domínio de um método de investigação que pressupõe o conheci-
218 Gilson Xavier de Azevedo

mento dos fatos básicos, não conforme as necessidades de uma profissão, mas
conforme as necessidades da pesquisa.
O conceito de “raça” não pode individualizar as constantes anatômicas, fi-
siológicas e psicológicas de um grupo humano, pois, as diferenças entre as po-
pulações são numerosas e as manifestações da vida social mostram como não se
pode tratar o comportamento humano com critérios determinísticos, e como se
deve abandonar o conceito supracitado, sobretudo porque este conduz ao surgi-
mento do preconceito e a prática discriminatória que resultam em ações como as
que se viu nos regimes nazistas e fascistas da Europa e de diversas outras partes do
mundo (PEREIRA, 2011, p. 116).
Para o autor analisado, raça, linguagem e cultura são variáveis indepen-
dentes e que qualquer teoria que pense na derivação dos fenômenos sociopsico-
lógicos pela componente fisicobiológica não pode ter qualquer fundamento cien-
tífico. Assim sendo, o problema da “raça ariana”, defendida por Adolf Hitler, não
passa de uma mistificação.
De mesmo modo, a legitimidade de todos os conhecimentos que compõem
a cultura, sem hierarquias entre eles, oferecendo as bases não apenas para a ideia de
uma ciência étnica, ou “etnociência”, mas para uma filosofia da educação, cujo mé-
todo se preocupa com o recolhimento e a conservação metódica do patrimônio cul-
tural, para o estudo dos avanços cognitivos de cada povo (PEREIRA, 2011, p. 117).
Desse modo, a “tensão moral” é, portanto, uma maneira de se chegar à
verdade nas pesquisas antropológicas. Faz parte das bases lançadas por ele para
a moderna antropologia americana que veio afirmar um ponto de vista micros-
sociológico do estudo dos grupos humanos, transcrevendo-as minuciosamente
na busca de uma abordagem mais fiel possível das manifestações culturais que
ele observou, bem como a consideração de cada sociedade em si e para si, como
totalidade autônoma.
Se o problema da educação é para Boas o mais incisivo ao se pensar a ques-
tão das crenças, para Bettina, a religião torna-se o centro consolidador destas.

2 Bettina Shmidt E O Problema Das Crenças

Para Bettina (2007), a religião em sua forma macro é uma totalidade; é algo
bem maior que o que descreve o senso comum. Exatamente nesse sentido, insere-
-se a antropologia da religião considerando a origem histórica de cada uma e suas
origens comuns que segundo ela, se dá no meio acadêmico em termos de análise
ou rechassamento das religiões.
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 219

Com autores como Rousseau, o advento do iluminismo propiciou estudos


mais aprofundados sobre seguimentos variados e dentre eles a religião. Mas para
se chegar a essa vertente, conceitos como o de sociedade, cultura, tecnologia e
outros entram no roll das preocupações.
Assim, a religião teria sua origem histórica atribuída ao processo de inte-
ração da cultura das civilizações, a fim de entender o mistério, o místico de cada
cultura, fatos estes originários da cultura humana.
Bettina constrói o panorama sobre os períodos formativo, moderno e re-
belde, a fim de mostrar como a história da mentalidade, das civilizações, hoje
conhecida como história cultural influenciou os conceitos da antropologia sobre
a questão da religião e da religiosidade, o que é muito importante para o seu en-
tendimento enquanto ciência clássica em busca de autonomia.
Nesse sentido, a fortmação das crenças em Bettina (2007) se dá por meio
da evolução social dos seres humanos, quando se começa a valorizar as culturas e
tradições religiosas presentes no ser humano, trata-se de um olhar cultural, mas já
antropológico devido ao uso da razão em suas interpretações.
Neste período ora exposto, a grande característica marcante foi o Darwi-
nismo social, que tinha como ideia que a sobrevivência dos seres humanos estava
ligada diretamente a sua sobrevivência do mais forte. Sobre esta ideia apresento
e questiono se não foi neste período que tivemos a penetração do capitalismo na
sociedade e a partir deste momento o temos ate o presente.
No período moderno Bettina (2007) apresenta algumas ideias sobre o con-
ceito de religião relevantes para o entendimento antropológico da religião como
a teoria de Thrower que apresenta a religião como uma maneira codificada, no
qual, o ser humano fala de si, de suas esperanças, dos medos, teoria próxima e
semelhante ao funcionalismo. Ao proceder assim, dá-se a solicificação de nossas
crenças por meio de ações e espectativas em relação a essa totalidade que chama-
mos de cultura social.
Emille Durkheim (BETTINA, 2007) também contribui com essa com-
preensão sobre a religião, tendo como objetivo investigar as funções sociais da
religião, pois a tem a religião como um “fato social”, onde segundo o qual todo
o ser humano necessita de algum tipo de crença. Tais informações expostas pela
autora são fundamentais para o entendimento da importância da antropologia da
religião face a diversidade e o pluralismo existente nas diversas culturas.
No período indicado como rebelde, tem-se a questão da tradução como
protagonista, quando Bettina (2007) enfatiza as dificuldades diante da tradução,
fato que traz inúmeros desencontros com as demais culturas principalmente as
220 Gilson Xavier de Azevedo

culturas estrangeiras e a religião como um fato cultural não pode deixar de ser
investigado com o devido cuidado de não entrar em equívocos face ao fundamen-
talismo ou ao dogmatismo religioso.
Ao considerar a Antropologia da religião hoje, autora apresenta a ques-
tão da contextualização como a coluna dorsal da antropologia nos dias atuais,
enfatiza que os antropólogos atuais tendem a ter uma abordagem holística, con-
textualizando a religião com outras realidades e instituições, sendo dificilmente
entendida separadamente ou isolada. Tal abordagem não diz respeito à questão
das crenças como se tem buscado tratar aqui, mas antes, à relação dessas crenças
com a noção de totalidade, enquanto relação do indivíduo com o todo fora de si,
compreendendo a fisicalidade do mundo e o simbolismo das relações que este
estabelece.
Aqui Bettina (2007) considera o paradigma sistêmico como um novo norte
da reflexão antropológica em detrimento ao paradigma cartesiano, desconstruin-
do assim a ideia de exatidão de métodos de determinação conceitual. Todavia a
autora não utiliza o termo sistêmico e sim holístico.
Bettina (2007) ainda aborda nesse tomo, a questão da dificuldade da tra-
dução no campo religioso. Sabemos bem o quanto difícil e perigosa é essa tarefa.
Sendo assim a autora expõe que precisamos de certo distanciamento crítico para
melhor compreender o real significado de determinados conceitos e ideias, prin-
cipalmente na relação oriente e ocidente, onde o oriente é visto pelo ocidente de
forma oposta a sua realidade, ignorando assim a sua diversidade e o pluralismo
existente em cada cultura. Destaca a importância do relativismo cultural e a com-
plexidade dos elementos insider e outsider nas culturas e nas religiões.
Dentro dos Conceitos-chave da antropologia da religião, Bettina (2007) en-
tende não ser tarefa simples abordar tais conceitos, estando os mesmos repletos
de viéses diversos que apontam para crenças, os símbolos, os mitos, as lendas,
os folclores de cada cultura e ate mesmo o próprio gênero pode ser considerado
como um elemento chave para o entendimento da religião.
Nesse ponto a autora retoma Geertz e sua abordagem para a religião dentro
de uma ótica simbolista, onde os símbolos estabelecem a harmonia na vida e nas
relações pessoais. A autora destaca ainda que esses símbolos precisam ser con-
textualizados, assim sendo a religião precisa se entendida e vista em seu contexto
histórico-cultural.
Para outros é usado apenas em termos de sinais explicitamente convencio-
nais de um ou outro tipo — uma bandeira vermelha é um símbolo de perigo, uma
bandeira bran ca de rendição. Para outros, ainda, limita-se a algo que expressa
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 221

de forma oblíqua e figurativa aquilo que não pode ser afirmado de modo direto
e lateral; assim, há simbolos em poesia, mas não em ciência, e é errado falar em
lógica simbólica. Para outros, entretanto, ele é usado para qualquer objeto, ato,
acontecimento, qualidade ou relação que serve como vínculo a uma concepção —
a concepção é o “significado” do símbolo — e é essa abordagem que seguirei aqui
(GEERTZ, 1989, p. 71).
O quarto item abordado por Bettina é o da Relevância da antropologia da
religião, no qual a autora destaca o atual e acelerado processo de globalização, faz
com que deixemos de lado a preocupação com os estudos de religião, uma vez
que o secularismo ou práticas cotidianas livres de influença religiosa mas não de
crenças, também ganha cada vez mais espaço.
A globalização acaba fazendo um pré-julgamento sob as culturas e tradi-
ções religiosas, sendo cada vez mais comum generalizar a cultura a partir de um
conceito único e universal. Assim a globalização tende a trazer danos irreparáveis
devido a cultura moderna ocidentalizada não respeitar a diversidade.
Tal fato é inquestionável a autora mais uma vez tocou no cerne da questão
em levantar a importância do respeito sobre as demais culturas, denuncia com
muita clareza o quanto a globalização tende a ser perigosa para as culturas e re-
ligiões. Observamos assim novamente o uso radical do poder e da dominação
sobre o mais fraco, percebe-se com isso claramente que o sistema capitalista tam-
bém tem interesses na esfera religiosa.
Na análise feita da obra por Libânio, Bettina esbarra logo com a plurisse-
mia do conceito de religião. Opta por começar pela história acadêmica acerca
do discurso sobre a religião nas universidades européias. No início, negavam-se
quaisquer tradições religiosas dentro de culturas não européias. Ao traçar uma
história da antropologia da religião desde o período formativo, marcado pelas
ideias evolucionistas do séc. XIX e do início do séc. XX e de corte intelectualista,
passando pelo período classicista chegando ao período moderno, debatendo a
ideia dos principais antropólogos.
Na continuidade da análise, a Segunda Guerra, a era anticolonial, a antro-
pologia da religião sofre mudanças analisadas nas obras de Evans-Pritchard, P.
Worsley e do estruturalista Lévi-Strauss. A antropologia da religião hoje vive o
período pós-colonial. Depois desse périplo histórico, a A. elucida conceitos-chave
da antropologia, começando pela definição de religião em Geertz. Em seguida,
trabalha os conceitos de símbolo, mito e gênero. Fecha o tema confrontando a
antropologia com a globalização. A A. restringe na enucleação dos conceitos a an-
tropólogos. Os conceitos de religião, de símbolo recebem na filosofia e na teologia
222 Gilson Xavier de Azevedo

aprofundamentos que a antropologia desconhece. Basta citar Paul Ricoeur, que


trabalhou tão profundamente os símbolos.
Em resumo, o que a autora faz é construir como o dito, uma visão panorâ-
mica da religião, nada mais que isso, não aprofunda conceitos, nem se preocupa,
uma vez que não é o escopo da obra, ou seja, produzir um tratado, desenvolver
uma visão realmente sistêmica do que se pretende analisar. Tal análise se apro-
xima em ultima instância de conceitos fundadores tanto da religião como das
crenças que temos aqui tratado.

3 Delumeau E A Noção De Crenças

No capítulo 1, do volume 1 em O desprezo do mundo e do homem, e exame


de consciência e severidade para com o mundo e o homem se mesclam. Tendo
por base o livro de Jó, os ascetas e padres primitivos fixaram suas bases no entorno
da desvalorização da vida humana frente à eternidade.
Essa desvalorização ou negação do que Delumeau chamada de realidade
objetiva do homem, surge a partir dos teólogos moralistas de um estilo essencial-
mente humano após o século IV. Santo agostinho ao refletir sobre o tempo, o faz
com base da ideia de brevidade da vida.
O pessimismo histórico advém da ideia de culpa stigmatizada na ideia de
pecado, ou seja, de que existe um juiz, no caso Deus, e a ele deve-se a existência,
de modo que deve-se vivê-la segundo sua ordem prefigurada pelos ministros ecle-
siásticos.
Tal crenças, denota a noção que Delumeau (2003) aborda em seu livro em
dois volumes sobre como se deu a noção de pecado no mundo ocidental. Se con-
sideradas a noções de crença em Boas (2010) a partir da noção de educação e
de Bettina (2007) na condição de simbolismo cultural, Delumeau aponta para
o apego à matéria e sua fragilidade em detrimento à criação da vida angélica e
a ideia de eternização como crença da integralidade de nossa totalidade com o
mundo: “Estabelece-se assim um vínculo entre o caráter transitório e o desprezo
do mundo” (p. 94).
A terra se orna como um vale de lágrimas, um deserto, somente na morte,
e na ideia de eternidade é que o homem encontra segurança. Ai que longa e esta
vida, que duro esse desterro, esse cárcere, estes ferros onde a alma está metida”
escreve Tereza de Ávila. O desapego e desprezo pelo mundo também foi uma
forma das ordens mendicantes justificarem e acalmarem os ânimos dos pobres na
idade média.
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 223

O fato de ser um ser corruptível em sua essência e integralidade física, faz com
que o homem se veja em uma situação de inferioridade frente ao cosmos. Tereza de
Ávila brada: “se esvazia de tudo o que é criatura por amor de Deus [...] um vazio com-
pleto em relação a todos os objetos criados”. Dentro da conotação eternidade, entram
diversas denotações, tais como a ideia de beleza, bondade, felicidade e bem.
Somente o todo pode salvar as partes nunca o contrário, embora o todo
só possa ser reconhecido pelas partes, sua existência é apenas conhecida, mas ele
preexiste a elas. Em resumo a melancolia apresentada ao longo da história pelos
grupos religiosos são não descamba para o desespero em razão de sua esperança
estratosférica.
Em o discurso para todos os cristãos, Delumeau, propõe que a vida na terra
sempre foi vista como uma passagem que nos levaria a outros mundos novos e
mais perfeitos que este, uma crença elementar para que a existência pós morte
ganhe algum significado. O mundo é um mar tenebroso e morada do mal; desse
modo, a inteliência seria uma forma de apego ao mundo e ao corpo na pretensa
esperança de conhecer deus e os mistérios do cosmo.
A justificação pela fé e necessidade do desespero indica que os deveres cris-
tãos nada mais são que fugas do mundo, da carne, do prazer corpóreo. A sacrali-
dade matrimonial é uma forma de sobrelevar uma prática eminentemente carnal.
Para Lutero todavia, o casamento era algo impuro, tolerado por Deus. Na
teologia protestante, a teologia da depreciação do homem atinge níveis fortíssi-
mos de violência. Malvado e insondável é o coração do homem segundo Zuínglio,
outro reformador.
Por sua vez, Calvino chama o homem de besta indomável, verme da podri-
dão. “é necessário que a consciência nos castigue”.
Delumeau (2003) indica que o protestantismo do quinhentos trouxe uma
nova fuga do mundo, embora tenha livrado o mundo dos flagelos da Idade Média.
Um jogo de violência no entanto toma os movimentos religiosos protestantes e a
fuga do mundo torna-se ainda mais cruel que antes.
A ideia de pureza influencia esses grupos e os torna radicais na separação
do que mundo do pecado e mundo da graça. a salvação é escolha divina e eterna.
O anabatismo é o movimento mais radical desse período, mostrando-se
como sectario pregando um anti-sacramentalismo à espera de um milenium,
onde Deus retornaria e julgaria os maus.

No capítulo 5, do volume 1 em um homem frágil, trata inicialmente da de-


bandada da razão. No texto não só o homem aparece no século XIV como mau,
224 Gilson Xavier de Azevedo

mas sua inteligência também. Nesse período, a questão dos universais pôs em xe-
que a autoridade da igreja sobre assuntos trinitários, além de um forte ceticismo.
Mas não tardaria para que também a razão começasse a ser questionada. No sécu-
lo 16 um desconforto intelectual começa a ser sentido por toda Europa, ao ponto
de se dizer que as ciências não passarem de opiniões. “ciências e artes frequentente
são fontes de pecados, de males e de heresias. A arquitetura é louvável em si, mas
ela sobrecarrega as igrejas e construir engenhos de guerra” (p. 279).
O pessimismo na ciência era sentido em vários aspectos, dado que os pro-
blemas sociais não desapareciam e esta parecia ser no quintecentos a grande pro-
messa do fim da fé.
Somos quase uma injúria de Deus, nada temos para nos glorificar. Mesmo
alguns animais são mais perfeitos em beleza e lealdade que nós. Deus fala apenas
aos ignorantes, pois em tese possuem um coração humilde.
Nomes como Montaigne, Port Royal e Pascal são algumas das expressões
existentes nesse período. “Nossos céticos põe em pé de igualdade todas as disci-
plinas [...] o homem é rebaixado ao mesmo tempo como orgulhoso, como incapaz
de atingir a verdade [...] a razão está sufocada no batismo e a louca sabedoria não
pode prejudicá-la” (p. 284; 287).
Analisando a questão do destino, Delumeau entende-o como fortuna ou
sorte; o homem por ser frágil e contingente, funda para si crenças que lhe permi-
tem tatear o mundo e à partir dessas crê que possui breve acesso à fortuna divina.
Boécio e Dante discorreram amplamente sobre ela, dando-lhe tons distintos. O
fato de ambos se referirem a ela como deusa, mas de maneira diversa, mostra o
medo do poder sobre a totalidade.
Mas autores como Aquino, Calvino e Budé são unânimes em admitir que
ela não deva ser dita como potência autônoma.
Outra característica do homem medievo é a melancolia que este vivia em
relação à própria condição. A ideia de hierarquia, de desprezo do mundo, de men-
dicância nas ordens religiosas denotam um novo olhar sobre o sujeito (sub hecto
ou submetido). O século 16 é intensamente marcado por esta submissão expressa
na estrutura econômica, política, religiosa medieval.
Livros eram escritos sobre esta melancolia existencial e humanista, as obras
barrocas ganham expressão do sofrimento, a imitação de cristo ressalta o valor
do sofrer. Simbolismos como sangue novo se viam em todas as tabernas; existia
um certo otimismo de que algo novo seria descoberto e que libertaria as mentes.
A melancolia tendia por vezes ao humor negro e este era visto como doen-
ça, pois acreditava-se que o baço não absorvia a bile negra.
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 225

É da natureza dos amantes entregar-se, por exemplo, a pensamentos tristes,


que em meio aos suspiros e às lágrimas, alimentam sua fome amorosa. O ficismo
de Agripa é um dos evidentes desta forma de ver o homem, ao lado de Dürer e
Michelangelo.
Essa doença escreve Burton (apud DELUMEAU, 2003), é tão frequente em
vários setores. Aarão de Shakespeare, os cínicos, os intelectuais e os amorosos,
bem como os religiosos.
A diferenciação entre vício e doença também manteve os medievos confu-
sos em relação à melancolia. Nesse caso a interpretação vem dos moralistas que
vêem o universo emocional do homem ou as paixões como algo ruim em relação
à razão.
Isso sem contar que toda melancolia para religiosos vinha de satã. O demô-
nio utiliza a alavanca da tristeza para possuir as almas passionais ou ditas frágeis.
Elas se exasperam e se desesperam caminhando furtivamente para a morte. Para
os medievos, a infelicidade existe porque existe o mal e este é externo.

O capítulo 7 trabalha a questão do território do confessor trazendo inicial-


mente a questão da inveja e a necessidade da confissão, tornada obrigatória no
século IV (Latrão). Inicialmente a inveja foi bastante confundida com ciúme amo-
roso. Todavia, o termo pouco aparece nos escritos medievais dos séculos 13 a 16,
dos grandes literatos.
Em tese, a inveja é um pecado de língua diz o autor, cometido pelos fracos
e inferiores em uma relação hierárquica também inferior. Nesse contexto, o clero
é acusado pelos nobres. Funda-se na crença de que o outro foi mais beneficiado
por dons divinos que eu.
O pecado da luxúria, talvez por conter em si o elemento sexual como causa
do desvio e vício é o pecado que mais desagrada ao criador. Muitos daqueles que
cometiam impurezas na noite em que Jesus veio ao mundo.
Mas o pecado da luxúria ao contrário do que se possa pensar não existia
apenas fora do casamento ou nas escapadas deste ou mesmo da vida religiosa, mas
dentro, como caracterização do vicio sexual.
As regulações morais eram frequentes na idade média e o ascetismo à reta
razão, uma espécie de palavra de ordem. Também se tinha por tabu, questões
como sexo durante a menstruação, sexo com mais de um indivíduo, homossexua-
lidade entre outros.
Outra questão bastante comum no medievo era a usura e avareza entre o
período do século 12 ao 18. Mesmo os evangelhos fazem menção a tais questões.
226 Gilson Xavier de Azevedo

Também aqui o ascetismo indica antropomorfismo como na summa aurea em


que se faz menção ao sol que doa seus raios e calor. Tanto o negar doações e es-
molas, quanto a cobrança de juros ou de valores elevados pode fazer com que o
indivíduo caia na danação.
O usurário seria o moleiro que empresta para conseguir clientela e o profes-
sor que adianta dinheiro e seus estudantes a fim de que sigam seu curso.
A preguiça não era um pecado menos preocupante nesse período. O ócio
ou Bel farniente não era bem quisto, sobretudo no meio religioso ou entre vassa-
los. Também conhecido por acídia, o torpor da alma a impedia de crescer na fé e
experiência divina.
De todo modo, evitar o pecado ou sair dele, ambos implicava em trabalho,
luta, sacrifício, coisas que o preguiçoso evitaria. A preguiça é inicialmente espiri-
tual, pneumática, concebida primeiro e depois ativada. O ocioso não pode ficar
diante de Deus, pois muito tem que ser feito.
Nesse caso, a pobreza é atribuição de culpabilidade, dado que esta viria da
falta de esforço e trabalho. O torpor impediria a alma de fazer o bem, de aprovei-
tar o tempo fazendo esse bem. A santificação do tempo estaria nesse caso ligada
ao trabalho como forma de agradecimento pela vida. “quem souber empregar o
tempo, possuirá tudo o que quiser”.
A iconografia do pecado medievo é uma caricatura das práticas imorais dos
camponeses e vassalos. Concomitavam as crenças de que existia um pecado a ser
castigado e de que existia um livre-artitrio que se me permitia uma escola. Uma
forma de afastá-los do convívio religioso e burguês. O homem religioso é rico,
bonito, limpo e tem o favor divino, não possui vícios.
De outro modo o pecado no século 16 assumia formas de animais como
algo simbólico; uma forma de torná-los conhecidos e populares aos pobres.
Os sete pecados são então figurados a dragões de sete cabeças. Também a
ideia de castigo eterno com requintes de tortura propiciava tal imprecação.

Por fim o breve capítulo 9 aborda a massa de perdição e o sistema de pecado.


Aqui, poucos irão para o céu, dado o sistema de pecado no qual são concebidos.
Falavam-se na idade média de índices assustadores. Comparava-se a multidão
de execrados a plantações. Mesmo videntes diziam ver muitas mitras no infer-
no. Desse modo se disseminou um sistema que obrigava a todos a decidirem e
buscarem a adequação ao processo de salvação. O abrandamento à concepção de
salvação levava facilmente ao desânimo.
Nomes como Canisius, Salmeron, Belarmino, Suarez, Vasques, todos jesuí-
ASPECTOS ANTROPOLÓGICOS DO SISTEMA DE CRENÇAS 227

tas professaram a doutrina do pequeno número de escolhidos. Somente no século


18 é que a defesa de um grande numero de salvos volta a ser ou começa a ser feita.
Se o homem é um ser desprezível e criminoso, deus é um ser terrível e capaz
de puní-lo. Em outras palavras, a natureza humana é uma mulher possuída pelo
demônio. Toda humanidade está doente, no maligno e carece de cura e punição.
“A grandeza de nossos pecados é perniciosa e abominável, grandeza de efi-
cácia ruidosa e mortal, poderosa e eficaz para provocar a morte” (p. 550).
Quanto maiores forem os pecados, maior será o esfriamento e o torpor
religioso. Seja qual for o pecado, era considerado tão intenso quanto o mais grave
destes. Basta um pequeno furo para afundar o maior navio no mar.
Deus não quer ser o único a nos castigar, ao contrario que sejamos punidos
por todas as criaturas. O homem torna-se a caça do imperador, sua destruição é
inevitável.
Deus estava totalmente ocupado em se vingar, em trazer ao homem o peso
de sua desobediência. O temor sempre o mantinha de olhos no chão. Desse o
modo o mundo é um lugar de suplícios, dores, espasmos de dor e a boca do infer-
no está sempre aberta.
Somente cabe a Deus se vingar de suas injurias. Os males que nos decorrem
nesta vida nem se comparam com os que nos virão na futura. Nada mais pode ser
feito, o mundo jaz no pecado. A vida de Jesus foi totalmente tensa por nós e Deus
pai o virou o rosto dada a imensidão de nossos pecados.
O conjunto dessas imprecações mostra uma intensa neurose coletiva. O
que está por trás dessa exacerbada culpabilidade é o resquício da repreensão mo-
ral à violência comum nas sociedades primitivas.
A observação da pureza transformou-se em exame de consciência, em
olhar hostil. Uma grande materialização do pecado, sendo todo ele impuro, não
humano. Nossa dívida como criador não é menos pesada nem entre os grandes
santos que se viam como grandes pecadores em vida.
Parece que tudo é condenável, impuro e muito pecaminoso. O prazer, o
descaso, a doença a pobreza. Uma ideia que provavelmente como conclui Delu-
meau, deve ter vindo da peste negra ou da das perseguições islâmicas.
O protestantismo erguido nesse período não vivenciou algo diferente do
proposto nessa áurea pessimista. Ascetismo e ritualismo eram os únicos cami-
nhos para uma certa segurança que se poder chegar à salvação eterna.
A concepção de crença em Delumeau passa inevitavelmente por um con-
junto de realidades religiosas que percorre toda a história recente humana. Para
compreender o ser humano, é necessario compreender esse periodo.
228 Gilson Xavier de Azevedo

Conclusão

O disposto nesse artigo permite perceber que a visão educacional, cultural


e religiosa são visões que em Boas, Schmidit e Delumeau corroboram para um
imbricamento de crenças das mais variadas e que fundam a compreensão antro-
pológica a partir das noções de realidade e totalidade de cada um e todos os indi-
víduos, seja em qual periodo histórico for, solidificam por meio de concepções e
aproximaçõe de mundo construidas em sua coletividade.
Nota-se que o tratado aqui expõe a necessidade de se olhar de forma mais
acurada a questão das crenças e perceber como estas indidem em nosso cotidiano
hodierno.

Referências

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229

APROXIMAÇÕES ENTRE RELIGIÃO OFICIAL E


CATOLICISMO POPULAR

Gilson Xavier de Azevedo1


Simone Maria Zanotto2
Janice Ap. de Azevedo Fernandes3

Resumo: O objetivo desse artigo é bordar conceitos variados sobre catolicismo


popular dentro do viés da religião enquanto forma de manifestação de uma cul-
tura religiosa não oficial buscando situar possíveis imbricamentos entre ambos.
Trata-se de uma pesquisa revisional de caráter exploratório e bibliográfico.

Palavras-chave: Religião. Popular. Festas. Devoções. Catolicismo popular.


OFFICER APPROACHES BETWEEN RELIGION AND POPULAR CATHOLI-
CISM

Abstract:The aim was to embroidering various concepts of popular Catholicism


in the bias of religion as a form of manifestation of an unofficial religious culture
seeking to point imbricamentos possible between them. This is a revisional study
exploratory and bibliographical.
Key-words: Religion. Popular. Party. Devotions. Popular Catholicism.

Introdução

Atualmente as ciências humanas tem se debruçado corriqueiramente sobre


o fenômeno religioso. As muitas humanidades procuraram colocar luz sobre o
mistério e compreender as diferenças encontradas no meio religioso.
Há uma busca, cada vez maior e necessária, dos saberes de outras ciências,
tidas então com ciências da natureza. É nesse sentido que As religiões em suas
variadas formas de manifestação, se mostram como terreno fértil de pesquisa.

1 Doutor em Ciências da Religião pela PUC-GO (2014-2016-BOLSISTA Docente Efetivo da Universidade


Estadual de Goiás (Concurso 2013). E-mail: gilson.azevedo@ueg.br.
2 Licenciada em Letras (UEG)/ Licenciada em filosofia (FAEME), Bacharel em Teologia (Mackenzie), Espe-
cialista em Administração escolar e coordenação pedagógica (Veiga de Almeida); Especialista em Ensino da
Língua Portuguesa (Gama Filho). E-mail: simonezanotto@yahoo.com.br.
3 Mestra em Letras pela PUC-GO (2014-2016-BOLSISTA FAPEG). Licenciada em Letras (UEG). Docente
convidada pela Faculdade Quirinópolis (Desde 2013). Preparadora de materiais didáticos da SEDUC-GO.
Agrega ao currículo. E-mail: janiceeduc@yahoo.com.br
230 Gilson Xavier de Azevedo | Simone Maria Zanotto | Janice Ap. de Azevedo Fernandes

Nosso cotidiano tem sido atravessado por processos como a secularização e


a descolonização, religiões tradicionais como o cristianismo e o islamismo recon-
figuram suas funções nas diversas sociedades em que estão.
A vivência em uma sociedade marcada pelos interesses tecnológicos, eco-
nômicos e políticos exerce influência sobre todo o conjunto de indivíduos situa-
dos nas mais variadas situações. Desse modo, ao analisar alguns aspectos do cato-
licismo popular, tenciona-se justamente observar sua presença se plausível ou não
e as formas em que esta está situada na atualidade.

1 Do conceito de religião

O conceito de religião sofre modificações variadas em sua estrutura con-


forme as ciências da religião vão expandindo seu horizonte de pesquisa ao longo
dos tempos. Dentro da extensa lista de conceitos trazidos por Crawford (2005, p.
13) religião teria haver com o cosmos e a concepção desse pelo infinito ser que é
o ser humano. Religião teria ainda relação com Deus, sua revelação, o sistema de
crenças que se desenvolve dentro dos múltiplos conceitos de Deus.
A ideia de uma religião pode ainda estar centrada em símbolos, ritos, livros
sagrados, conduta moral, igrejas, denominações tradições, o que é definido por
Crawford (2005, p. 13) como estruturas passageiras ou faces do conceito de reli-
gião. Nesse contexto, a religião tem haver diretamente com a vida humana, com
suas tragédias, ilusões, sistemas, crenças, práticas, chegando até mesmo ao âmbito
jurídico.
Autores como Rudolf Otto (1985, p. 115), fazem uma relação entre religião
e Deus, definindo-os como elementos numinosos, não racionais, esquematizados
e repletos de significados. Para Otto (1985, p. 115), são predicados sintéticos e
essenciais a priore. “A religião não está sob a dependência do ‘telos’ (finalidade),
nem do ‘ethos’ (moral) e não vive de postulados”.
Para John Hick (apud CRAWFORD, 2005, p. 14):
Religião é uma coisa para o antropólogo, outra para o sociólogo, outra para
o psicólogo (e outra ainda para outro psicólogo!), outra para o marxista, outra
para o místico, outra para o zen-budista e outra ainda para o judeu ou o cristão.
Existe, por conseguinte, uma grande variedade de teorias religiosas sobre a natu-
reza da religião. Não há, portanto, nenhuma definição universalmente aceita de
religião, e possivelmente nunca haverá.
Nesse contexto, pode-se afirmar que a religião situa-se num roll de inter-
pretações que só tendem a aumentar e se diversificar à medida que é permeada
APROXIMAÇÕES ENTRE RELIGIÃO OFICIAL E CATOLICISMO POPULAR 231

pelas estruturas que diariamente são construídas no âmbito das múltiplas relações
econômicas e do mundo globalizado.
Assim, ao se pensar uma definição de religião, não se pode paradoxalmente
pensa-la como única, dogmática e definitiva, pois assim como outros conceitos
dentro do campo fenomenológico, a religião para Crawford (2005) é sim um todo
múltiplo e complexo do qual se extrai diversos significantes e significados.
Segundo o que se pretende aqui, no sentido de situar o conceito de catoli-
cismo popular dentro do viés religioso, há que se pensar então como se articulam
tais vertentes e depois buscar responder como esta forma religiosa e popular pode
ser analisada e pensada na atualidade.

2 Da ideia de religião e plausibilidade

Conforme se indicou, as religiões hoje estão permeadas de uma série de


fatores e questões que ora lhe são positivas, ora parecem querer fazer com que a
religião ou o senso religioso no indivíduo desapareça.
Para Souza e Martino (2004, p. 145):
Neste início de milênio, somos todos convidados a renunciar ao Deus me-
tafísico, distante e patriarcal, e peregrinar em direção a um Deus humilde, em
kénosis, encarnado que habita o mais profundo de nós mesmos. Caminhar na
direção de um Deus maternal, gerador de vida. Este sim poderá livrar-nos da
violência fratricida e reavivar nossa fraternidade e sororidade adormecida pela
rotina do dia-a-dia.
De forma muito geral, o mundo hoje é marcado por formas diversas de se-
cularização, ou seja, de substituição de crenças. O home não abandona suas cren-
ças, ele apenas as substitui e ao fazê-lo, substitui crenças religiosas, por econômi-
cas, jurídicas, médicas, políticas, racionais dentre uma gama de outras possíveis, o
que leva então ao inevitável questionamento: é plausível se pensar a religião hoje?
Só para situar o discurso, Para Souza e Martino (2004, p. 16) em 1940, os
católicos eram 95,2% da população. Em 1950, o percentual caiu para 93,7%. Em
1960, caiu para 93,1%. Em 1970, o percentual era de 91,1%. Em 1980, já saiu da
casa dos 90. Na ‘década perdida’ dos anos 1980, ainda eram 89,2% os que se de-
claravam católicos. Em 1991, caiu para 83,3%, e finalmente, no ano 2000, houve
uma queda para 73,8%.
No entanto é preciso ter cuidado ao se pensar o fenômeno da plausibilida-
de, dado que essa substituição de crenças não significa necessariamente o fim das
religiões ou da crença religiosa.
232 Gilson Xavier de Azevedo | Simone Maria Zanotto | Janice Ap. de Azevedo Fernandes

Sendo a modernidade um fenômeno complexo, a religião conforme foi ex-


posto também o é; mesmo assim, torna-se reveladora e não menos peculiar sua
complexidade. Igrejas usam formas variadas de recursos tecnológicos, políticos,
poéticos, orais e simbólicos para sobreviverem e encontrarem espaço em meios
às transformações mundiais, de mesmo modo práticas religiosas muito antigas
como o fenômeno da benzição, rezas, terços, festejos sofrem modificações para se
situar no contexto da pós-modernidade.
Para Siqueira e Lima (2003, p. 28) vemos surgir uma nova concepção de
religião, à medida que a nova espiritualidade em construção não seria apenas a
religião institucionalizada e especializada. Se dá maior ênfase à espiritualidade, ou
caminho espiritual, entendida como busca de autoconhecimento e de auto-aper-
feiçoamento, que não se restringe apenas ao campo religioso, mas que se remete
também a campos como a psicologia e a medicina.

[...] integração e sintetização de doutrinas, de crenças e de visões de mundos


que nasceram na Índia, no Japão, no Tibet, no Egito, na Amazônia... Tece-se,
juntamente com a pluralidade de origens regionais, internacionais, de etnias, a
universalidade e a integração sonhadas (SIQUEIRA; LIMA, 2003, p. 32).

Vive-se talvez um híbrido religioso que poderia ser chamado de ecoreligião


ou holismo pós-modermo. Ainda para Siqueira e Lima (2003, p. 32) esse novo
momento tem conotação ecumênica, o que inclui colagem ou combinação de
elementos de várias religiões ocidentais e orientais, tradição hermética, ciências,
consciência planetária, paz mundial, ecologia, e uma grande circulação pelos gru-
pos e rituais. Sua intenção talvez seja a de criar uma nova forma de humanidade.
Estamos diante de um processo de desinstitucionalização das religiões his-
tóricas e de destradicionalização da religiosidade, a partir da ênfase no presente,
nas diferenças, na experimentação, no indivíduo, e na ruptura com a noção de re-
presentação. O Catolicismo oficial; kardecismo [que penetrou no País na segunda
metade do século XIX]; as tradições esotéricas e a teosofia [que aqui chegaram no
final do século passado e início do atual, respectivamente]). Estas teriam contri-
buído para a ampliação de nossa cultura religiosa. [...] sensação de simultaneida-
de de presenças, coexistência de tempos históricos muito diferentes, sensação de
pluralidade (SIQUEIRA; LIMA, 2003, p. 146, 150).
Assim, ao mesmo tempo em que se vive uma quebra na superestrutura da
chamadas religiões universais, novas formas, menores, mais frágeis do ponto de
vista histórico e conceitual de religiões vão surgindo e tomando espaço na pós-
-modernidade. A citação acima nos leva a crer que concomitantemente substitui-
APROXIMAÇÕES ENTRE RELIGIÃO OFICIAL E CATOLICISMO POPULAR 233

-se tradições por inovações, certezas dogmáticas por dúvidas existenciais, afetan-
do inclusive o catolicismo.
Tais mudanças são ao mesmo tempo uma expressão do humano, conforme
Berger (2004, p. 18) “a existência humana é um continuo ‘pôr-se em equilíbrio’
do homem com seu corpo, do homem com seu mundo. É nesse processo que o
homem produz o mundo” e claro produz a si mesmo, produz as formas religiosas
históricas e é ainda o responsável por sua substituição.
A parte historicamente decisiva da religião no processo de legitimação é
explicável em termos da capacidade única da religião de ‘situar’ os fenômenos
humanos em um quadro cósmico de referência. [...] A legitimidade religiosa
pretende relacionar a realidade humanamente definida com a realidade última,
universal e sagrada. [...] os nomos humanamente construídos ganham um status
cósmico (BERGER, 2004, p. 48-49).
Pode-se intuir, portanto que a religião imbricada em sua teia de relações e
vertentes com seu propositor vive esta espécie de simbiose que a legitima e produz
o ser humano de modo que “a religião aparece na história quer como força que
sustenta, quer como força que abala o mundo. Nessas duas manifestações, ela tem
sido tanto alienante quanto desalienante” (BERGER, 2004, p. 112).
Nesse sentido, analisar aqui a religião em sua macro-compreensão obser-
vando a questão de sua plausibilidade recobra necessariamente duas possibilida-
des às instituições religiosas:
Elas podem ou acomodar-se à situação, fazer o jogo pluralista da livre
empresa religiosa e resolver da melhor forma possível o acordo com a demanda
do consumidor; ou recusar-se acomodar, entrincheirar-se atrás de quaisquer es-
truturas socioreligiosas que possam manter ou construir e continuar a professar
as velhas objetividades tanto quanto possível, como se nada tivesse acontecido
(BERGER, 2004, p. 163-164).
È nesse contexto que se encontra o que se vai chamar aqui de condição reli-
giosa, ou seja, entre a aceitação de sua situação contingencial ante um mundo em
continuo processo de mudanças de valores e formas humanas e sua permanência
dogmática que lhe pode se aterradores. Para Berger (2004, p. 178) “o problema
fundamental da legitimação de uma instituição religiosa em face da perda de rea-
lidade de sua tradição” é a maneira como cada religião, o sentimento religioso, o
fenômeno religioso e o ser humano estão articulados nesse conjunto.
Resta portanto considerar o fenômeno do catolicismo popular dentro dos
dois conceito ora elaborados aqui, enquanto forma religiosa plausível e contextual.
234 Gilson Xavier de Azevedo | Simone Maria Zanotto | Janice Ap. de Azevedo Fernandes

3 Catolicismo Popular e suas contextualizações

O catolicismo popular é uma das muitas formas de religiosidade existentes


na atualidade. Nesse sentido, convém situar que religiosidade é a forma como
cada pessoa vivencia sua religião dentro de um contexto não oficial, ou seja são
os simbolismos, crenças e costumes ligados à religião oficial e portanto objetiva,
porém vivenciados de maneira subjetiva. Para Silva (2005, p. 20) “A expressão
Catolicismo Popular é conceituada algumas vezes como ‘religião popular’, ‘catoli-
cismo rural’”.
Segundo Hoornaert:
Diante do assunto que passamos a apresentar existem três atitudes bem
distintas: uns negam simplesmente a existência de um Catolicismo Popular dis-
tinto do catolicismo estabelecido ou patriarcal: no Brasil só há um catolicismo que
constitui o “cimento da unidade nacional”. Outros aceitam o Catolicismo Popular
mas lhe negam toda originalidade e todo valor: o catolicismo vivido pelo povo é
simplesmente a interiorização dos temas apresentados pela religião dominante. A
nossa posição é a seguinte: existe um Catolicismo Popular distinto do catolicismo
patriarcal. O povo tem uma cultura própria e podemos mesmo afirmar que o
Catolicismo Popular constitui a cultura mais original e mais rica que o Brasil já
produziu [...] (HOORNAERT, 1991, p. 98-99).
Dessa maneira, entender o fenômeno do catolicismo popular é abarcar um
todo tão complexo quanto o conceito de religião ora exposto.
Oliveira (1985) menciona que o catolicismo popular se manifesta nas re-
presentações e práticas religiosas que ligam o homem ao sagrado por meio de
ritos, atos e manifestações pessoais de fé. Embora não seja um fenômeno só no
Brasil, cada lugar desenvolve culturalmente sua forma de catolicismo, de modo
que os rituais populares católicos estão vinculados aos símbolos religiosos do ca-
tolicismo oficial.
A autoprodução religiosa popular não fica, portanto separada da produ-
ção oficial, mas guarda com ela uma relação dialética: ela exprime as condições
de existência das classes dominadas e subalternas, fazendo uso dos códigos reli-
giosos oficiais. Podemos então definir o Catolicismo Popular como um conjunto
de representações e práticas religiosas autoproduzidas pelas classes subalternas,
usando o código do catolicismo oficial. Isso significa que o Catolicismo Popular
incorpora elementos do catolicismo oficial – os significantes – mas lhes dá uma
significação própria, que pode inclusive opor-se à significação que lhes é oficial-
mente atribuída pelos especialistas. O resultado é que o mesmo código religioso
APROXIMAÇÕES ENTRE RELIGIÃO OFICIAL E CATOLICISMO POPULAR 235

é diferentemente interpretado pelas classes sociais de maneira que, sob uma uni-
dade formal, escondem-se, de fato, diversas representações e práticas religiosas
(OLIVEIRA, 1985, p. 135).
Ainda sob o mesmo autor:
As romarias são um momento forte e privilegiado de contato entre o devo-
to e o santo, mas é também uma oportunidade de contato entre o romeiro com a
instituição religiosa. O romeiro aproveita a ocasião para confessar-se e comungar
e por vezes aproveita para batizar os filhos ou para casar-se, colocando-se assim
sob a proteção do santo padroeiro nesses momentos marcantes de sua vida fami-
liar. Os santuários geralmente tinham assistência de um padre, contratado pela
irmandade que tomava conta dele, ou vindo da matriz paroquial para prestar as-
sistência aos romeiros (OLIVEIRA, 1985, p. 138).
Desse modo fala-se de uma influência portuguesa na construção dessa for-
ma religiosa de crença.
Segundo Teixeira (2009, p. 19-20) O Catolicismo Popular no Brasil ma-
nifesta-se por atos concretos ligados ao cotidiano, como rezar para pedir chuva,
benzer uma pessoa doente; junto a isso se destaca o culto aos santos, buscando
uma resposta positiva para os seus problemas e reinterpretando as doutrinas do
catolicismo oficial. Os rituais, além de estabelecer contato com o sagrado, permi-
tem recriar a consciência coletiva do povo. Esse catolicismo conta com os rituais
oficiais (missa e sacramentos) e acrescenta novos sentidos para torná-los mais
funcionais para sua vida (batismo-saúde, confissão-cura, sacramento-compa-
drio). Deve-se citar ainda a devoção aos santos, romarias, novenas, procissões,
bênçãos, festa do padroeiro, promessas.
Ainda que se considere apenas o Brasil em sua catolicidade popular, no-
tam-se grandes diferenças entre as formas populares de devoção de região para
região e até de cidade para cidade. Fala-se de um catolicismo sulista, outro goiano,
outro nordestino e assim por diante.
Nem sempre as manifestações populares de catolicismo são aceitas pelas reli-
gião oficial, quando isso corre chama-se romanização. “a romanização aparece, pois,
como um processo de repressão clerical do catolicismo do povo. Porém, este último
nem por isso desapareceu [...], sobreviveu à margem do controle clerical [...] Para a
burguesia agrária, como para os bispos e clérigos, a luta contra o Catolicismo Popu-
lar apresentava-se como uma luta contra a ignorância, o fanatismo, as superstições,
as crenças atrasadas, as práticas imorais. O combate aparecia, portanto, como uma
missão educativa a ser desempenhada pelo aparelho religioso, para elevar o nível
cultural e religioso das grandes massas populares” (OLIVEIRA, 1979, p. 72, 81).
236 Gilson Xavier de Azevedo | Simone Maria Zanotto | Janice Ap. de Azevedo Fernandes

Nesse contexto, o catolicismo popular traz para o seio do catolicismo oficial


o incômodo de certa pluralidade religiosa.
Falar de pluralidade religiosa conduz, necessariamente, ao reconhecimento
da continuidade de cultos tradicionais, conhecidos, sobretudo, como religiosida-
de popular, através dos quais, em boa medida, os indígenas e afro-americanos pu-
deram resistir à imposição do catolicismo colonial, orquestrando manifestações
sincréticas e distantes da ortodoxia doutrinal católica. Estas combinam diversas
fontes religiosas: espiritualidade indígena e catolicismo devocional; cultos a di-
vindades africanas e santos católicos; espiritismos oriundos da Europa e corren-
tes esotéricas orientais e práticas espiritualistas indígenas e práticas xamânicas,
muitas destas vivenciadas em circuitos espiritualistas e terapêuticos New Age (SI-
QUEIRA; DE LA TORRE, 2008).
Para Steil e Herrera (2010) antes da diversificação do campo religioso brasi-
leiro, o catolicismo se apresentava como uma meta-religião que incorporava múl-
tiplas tradições de origem européia, indígena e africana. Neste contexto, o sincre-
tismo, que se efetuava na prática cotidiana dos fiéis, acabava sendo subsumido por
um modelo religioso hegemônico que se mantinha e se reproduziu graças a sua
relação orgânica com o Estado colonial e monárquico.
Parece, portanto que a questão do campo religioso brasileiro nas formas ro-
manizada ou popular apresenta-se por meio de um paradoxo que aparentemente não
possui nada de religioso, mas antes de político e de relações de poder, de modo que:
[...] a intelectualidade e o clero, em fins do século XIX, entendiam tal va-
riedade de cultos como prova de desenvolvimento cultural, social e econômico
retardado do seu país. Nas sociedades civilizadas - julgavam eles - não seriam en-
contrados esses cultos bárbaros, essas práticas extraordinárias, esses rituais arcai-
cos, essas cerimônias fora de época que no Brasil faziam as delícias dos etnólogos
e dos folcloristas (QUEIROZ, 1988, p. 68).
Todo esse contexto de separações e distanciamentos terá influência direta
nas festas populares, pois nestas a idéia de sagrado e profano se manifestam de
maneira forte. De um lado estão a figura do pároco e das beatas que são os defen-
sores dos valores religiosos a serem vivenciados na forma de um afastamento do
mundo; de outro lado estão as festas populares de vinculação religiosa em home-
nagem aos santos, mas que trazem em sua organização sobremaneira a bebida.
Segundo Steil e Herrera (2010):
As congregações religiosas europeias foram peças fundamentais para os bispos,
que se dedicavam à cruzada romanizadora em suas dioceses. Instaladas nos velhos
centros de religiosidade popular voltaram-se, a partir desses lugares, para as mani-
APROXIMAÇÕES ENTRE RELIGIÃO OFICIAL E CATOLICISMO POPULAR 237

festações exteriores do culto. Festas, ruas, procissões, folias e foliões foram incessan-
temente devassados, vigiados e normatizados. A cultura clerical esforçou-se na mar-
ginalização de todo um corpo de comportamentos e práticas culturais socialmente
admitidos e que, a partir de então, começaram a ser criticados e condenados.
Para Del Priore (2000) a distinção entre festa religiosa e profana, é difícil de ser
estabelecida, pois uma está bastante imiscuída na outra. Essa fusão do sagrado,religio-
so com o profano, pagão, popular, era tão forte que a linha entre um e outro é de difícil
identificação. Isso vai permitir um sincretismo ainda maior das raças em miscigena-
ção no período colonial. Povo e tradicionais suportes do Estado absolutista conviviam
na mesma presença, além daqueles que assistiam a tudo isso “de camarote”.
Bebedeiras, vadiagem, desvio de esmolas arrecadadas, denúncias de orgia,
de abusos, de jogos de roleta e de víspora, críticas à falta de higiene das bandeiras
que eram beijadas (como um veículo de propagação de moléstias) foram fatores
básicos nessa conjugação de esforços. Danças, músicas, alardes, tambores, folias,
máscaras, palhaços, imperatrizes, bandas, fogos - representações emblemáticas do
sagrado que eram consentidas e incentivadas pelo catolicismo tradicional, como
privilegiadoras dos sinais visíveis da fé e da graça começaram a ser ciosamente
regulamentadas. (STEIL; HERRERA, 2010, s.p.).
O profano e o sagrado são sempre presentes nas festividades coloniais. Um
espaço de muitos olhares, leituras e funções políticas e religiosas. Irmandades e
confrarias em geral estavam ao dispor de tais eventos, se colocando como servas.
Del Priore (2010, p. 43) vai dizer ainda da festa dentro da festa fala dos muitos
eventos e detalhes que constroem a festa dentro da festa, ou seja, cada momento é
um vento completo. Sagrado e profano se misturavam em cada cena.
O pudor, a honestidade e modéstia que são e deve ser sempre inseparáveis
de todas as ações cristãs e religiosas em execução do preceito do apostolo que
manda guardar, fazer tudo na igreja com decência e ordem [...] e do que reescre-
vem os padres de Trento que cheios do mesmo espírito gravíssimo encarregaram
aos bispos se aplicassem todo o seu zelo e cuidado e ordem das procissões e mais
praticas do culto publico de um modo digno da piedade cristã apartando dela
todas as profanações e abusos que tivessem introduzido com prejuízo da religião
e do bem espiritual dos fieis (DEL PRIORE, 2010, p. 97).
Assim, ao se pensar no catolicismo popular, pode-se entrever uma com-
preensão sobre vários aspectos. Não há uma forma de catolicismo popular, mas
inúmeras manifestações, surgindo novas formas a cada dia. Além de representar
a fá de um povo, é expressão de uma cultura popular que altera por completo as
formas romanizadas de culto e festejo religioso.
238 Gilson Xavier de Azevedo | Simone Maria Zanotto | Janice Ap. de Azevedo Fernandes

Considerações Finais

As relações entre religião, sua plausibilidade e o catolicismo popular, não são


tão simples de serem pensadas, dado a multiplicidade de formas religiosas existentes
no Brasil e demais países latinos, desse modo a religião na atualidade ainda assume
papel importante dentro do aspecto da normatização social. Por sua vez as formas ele-
mentares da religião presentes no mundo hodierno sofrem constantes modificações
advindas das mudanças sociais quase cotidianas. Estas novas demandas tem especial
expressão nas festas populares que unem atos e fatos não religiosos como o jogo e a
bebida e atos clericalizados ou oficiais. Assim, pensar o catolicismo popular não é ape-
nas pensar as manifestações e crenças, mas pluralizar a presença de tais crenças num
mundo tomas pelas mais variadas formas de relação social não religiosa.

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239

EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM


DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA
EDUCAÇÃO INFANTIL?

Mayara Pereira dos Santos1

Resumo: Este artigo discute a relação existente entre a educação física e a psico-
motricidade na educação infantil, a fim de compreender se essa inter-relação se
instaura como duelo ou parceria nas práticas pedagógicas. Para isso, por meio
de uma revisão bibliográfica, apresentamos o histórico da educação infantil, seus
objetivos e conceitos, perpassando pelas funcionalidades da educação física e da
psicomotricidade. Em seguida problematizamos e discutimos a realidade da dis-
ciplina que cuida do movimento na educação infantil. Por último, levantamos
as possibilidades de uma parceria ou se realmente há um duelo, no qual não se
encontra a possibilidade de utilizar as duas abordagens para concretizar um tra-
balho pedagógico na educação infantil. Concluímos então que o duelo existe, mas
quando a psicomotricidade e a educação física são trabalhadas em comum parce-
ria nas aulas tem resultados significativos ou quando o professor tem a liberdade
de escolher qual o momento utilizar uma ou a outra, a criança só tem a melhorar
o seu rendimento e sua aprendizagem.
Palavras-chave: Educação física, psicomotricidade, educação infantil, movimen-
to.

Introdução

Criança é quase sinônimo de movimento; movimentando-se ela se descobre,


descobre o outro, descobre o mundo à sua volta e suas múltiplas linguagens.
Criança é quase sinônimo de brincar; brincando ela se descobre, descobre o ou-
tro, descobre o mundo à sua volta e suas múltiplas linguagens. Descobrir, desco-
brir-se. Des-cobrir, tirar a cobertura, mostrar, mostrar-se, decifrar... Alfabetizar-
-se nas múltiplas linguagens do mundo e da sua cultura. (AYOUB, 2001, p. 57)

Todos nós já fomos crianças, e talvez, até hoje na fase adulta ainda temos
momentos em que retornamos a nossa fase de infância, porém, agora como sujei-
tos autônomos, responsáveis e críticos ou pelo menos deveríamos ser, se retorna-
mos é porque temos uma “melhor construção de nossa intersubjetividade”, quer
1 (Educação Física pela PUC). Email: mayara.pesantos@hotmail.com
240 Mayara Pereira dos Santos

dizer que a educação (família e Estado), cumpriu seu papel que é o de desenvolver
um ser humano pleno, ou seja, que desenvolveu os seus aspectos físicos, psico-
lógicos (cognitivos e emocionais) e sociais e o de capacitá-lo para o exercício da
cidadania, um sujeito que sabe dos seus direitos e deveres, responsável por suas
tarefas perante a sociedade e crítico para melhorar o que for necessário.
Antes de discutirmos o objetivo da educação infantil, vamos primeiramen-
te discutir o que ela não é para deixarmos claro onde ela pretende chegar.
Segundo Kramer (1982, p.27) quando surgiram as instituições infantis,
desenvolvia-se um trabalho apenas assistencial, ou seja, de cuidar das crianças
enquanto suas mães trabalhavam, preocupavam-se apenas com a alimentação, hi-
giene e segurança física delas. Esses espaços institucionalizados de convivência da
criança funcionavam apenas como um depósito para esperar que elas chegassem
à idade adulta (principal fase), com intuito de fornecer mão de obra às indústrias,
nesse caso a infância era apenas uma passagem, a criança (apesar do nome dife-
rente) era um adulto em miniatura. Essas instituições afirmavam que as crianças
permaneciam na classe social em que nasciam, logo filhos de operários, operários
seriam, não educavam, apenas reforçavam a subordinação, não tinham nenhum
compromisso com os aspectos motores, cognitivos e afetivos da criança e muito
menos as instigavam a mudar de classe social.
O papel da educação infantil também não é o de preparar a criança para o
futuro, e, muito menos, resume-se em apenas alfabetizá-la, cuidando somente da
parte pedagógica, Freire (2009, p. 18) ressalta que se assim o fosse se condenaria
eternamente a ser pobre como instituição e não atenderia as necessidades globais
da criança, pois nessa faixa etária a criança tem uma aprendizagem muito mais
emocional, sensitiva e motora do que o intelecto pelo intelecto.
Diante disso agora podemos discutir o objetivo da educação infantil, o que
ela é de fato. Le Boulch (1986, p. 17) acredita que a educação infantil deve favore-
cer um desabrochar humano que permita a ele se situar e agir no mundo através
de um melhor conhecimento e aceitação de si mesmo, uma melhor compreensão
e valorização da conduta moral e também uma verdadeira autonomia e a obten-
ção de uma responsabilidade social.
Segundo a LDB 9394/96 a educação infantil tem a finalidade de desenvol-
ver integralmente a criança até seis anos de idade. Deve trabalhar os aspectos físi-
cos, psicológicos, intelectuais e sociais da criança, completando a ação da família
e da comunidade, tem a necessidade de enxergar a criança como um ser pleno e
não fragmentado. Precisamos ressaltar que em nenhum momento a educação fa-
miliar será substituída, o objetivo da educação infantil não é o de sobrepor uma a
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 241
EDUCAÇÃO INFANTIL?

outra. A família tem um papel importantíssimo na educação da criança e a escola


irá apenas complementar e integrar a ação dela e da comunidade nesse processo.
Negrine (1994) recomenda que o profissional para se trabalhar na educa-
ção infantil deve compreender as teorias que tratam o desenvolvimento infantil e
ainda saber a diferença entre elas e deve também entender como que se dá cada
processo do desenvolvimento na teoria e na prática do seu trabalho. Precisa ainda
lembrar sempre que é um modelo e uma referência para ela, pois a criança esta-
belece vínculos afetivos com todos que convive, portanto tudo que ela faz ou diz é
porque viu ou ouviu em algum lugar. (1994, p. 26-28)
Esse mesmo autor ainda ressalta que a educação infantil deve permitir que
a criança experimente as mais diversas formas de exteriorização corporal, precisa
oferecer experiências diversas, como gráfica, verbal, gestual, corporal musical, ar-
tística, cultural e recreativas para que a criança construa seu vocabulário corporal
e solidifique seus alicerces em várias abordagens significativas que favoreçam a
construção do indivíduo como pessoa. (1994, p. 22-29)
Borges (2009, p. 17) pode acrescentar que o objetivo geral da pré-escola
(educação infantil) é desenvolver de forma geral e harmônica todas as valências
psicomotoras da criança, ou seja, os aspectos físicos/motores, afetivos/emocio-
nais, sociais, psicológicos/cognitivos e intelectuais, pois, a escola faz parte das
suas necessidades intrínsecas e extrínsecas. Além de compensar, também, algum
possível atraso no desenvolvimento da criança ocasionado pela carência cultural
e também quando as pessoas mais próximas a ela não estimulam as suas capaci-
dades psicomotoras efetivamente.
Souza e Cordeiro (2016, p. 50-57) diz que a educação física estuda o movi-
mento nos seus aspectos fisiológicos, psicológicos, culturais, sociais, biológicos,
educacionais e outros, portanto o conhecimento do profissional de educação físi-
ca rompe as barreiras da esportivização, é muito mais do que apenas futebol, han-
debol, voleibol, basquetebol, eles são pesquisadores e especialistas no movimento
humano e a criança da educação infantil atua no mundo por meio do movimento.
Para Batista (2014, p. 12) a psicomotricidade tem por objetivo o desenvolvi-
mento funcional do ser humano e que suas experiências corporais serão essenciais
para a ampliação de suas aprendizagens e demais potencialidades. Jean-Claude
Coste (apud BATISTA, IBIDEM) ressalta que a psicomotricidade é o cruzamento
de diversos pontos de vista de várias ciências como a biologia, sociologia, linguís-
tica, psicologia e psicanálise.
242 Mayara Pereira dos Santos

A Educação Física Na Educação Infantil

Desconhecida por muitos, praticada por alguns e defendida por poucos, a edu-
cação física vem através dos anos procurando a oportunidade de integrar o pro-
cesso educacional como atividade curricular regular. Bela na sua forma, rica no
seu conteúdo e expressiva na sua utilização, esta atividade tem tudo para se tor-
nar, quando convenientemente ministrada, um eficiente processo de educação
da nossa juventude e também das nossas crianças. (FRAUSINO, 2004, p. 163)

A educação física é rica na sua essência, lida com o primeiro conhecimento


que adquirimos, o corporal. Ela nos ensina a tomar consciência do nosso corpo
e a viver corporalmente. Antes mesmo de aprender a linguagem oral a criança
conta os seus segredos mais ocultos, suas angustias e medos pela linguagem cor-
poral, visto que é através do corpo que a criança aprende a primeira linguagem e
então descobre o mundo, a si mesma, as suas capacidades, o outro e aprende a se
expressar.
Gonçalves (2016, p. 15) diz que a criança faz uso da linguagem corporal
muito antes de qualquer outro tipo de comunicação, portanto a educação física
deve se utilizar dessa linguagem para produzir aprendizagem. A criança aprende
a ter algumas noções nessa faixa etária através do seu corpo em movimento e o
professor deve levar isso em consideração como um fator motivador e facilitador
para que ela aprenda outros conteúdos.
Mariani (2009, p. 17-18) acredita que a educação física na educação infantil
deve estabelecer-se como um ambiente onde a criança irá brincar com o corpo,
com a linguagem corporal e com o movimento para se comunicar com o mundo
e com os outros construindo vínculos afetivos e sociais, se apropriando da cultura,
transformando a aprendizagem corporal em pensamento e mais para frente em
linguagem oral e escrita, desenvolvendo assim seu aspecto cognitivo.
A criança na educação infantil precisa ser estimulada integralmente, isso
quer dizer que deve haver um estímulo de todos os aspectos, físico, motor, afetivo,
social e cognitivo. A educação física irá contribuir para que isso de fato aconteça,
preparando a criança para os desafios a que será exposta nos variados ambientes em
que ela transitará, além de poder criar uma base sólida dos aspectos motores para
que a criança aprenda conteúdos mais complexos. (GONÇALVES, 2016, p. 16-17)
Hurtado e Guillermo (1996, p. 14) esclarece que:

...a vida é movimento, que o gesto humano é uma das primeiras manifestações
de expressão e, por conseguinte, de comunicação entre o ser e o meio em que
vive. A realização de atividades motoras pelo aluno, além de exercer papel pre-
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 243
EDUCAÇÃO INFANTIL?

ponderante no seu desenvolvimento somático e funcional, estimula e desen-


volve as suas funções psíquicas. Daí a razão de ser da educação do corpo como
fator de equilíbrio orgânico.
A educação em geral está estreitamente ligada à Educação Física, pois essa últi-
ma diz respeito à atividade[...] de movimento[...] que caracteriza o ser humano,
seja no trabalho do dia-a-dia, seja na atividade desportiva ou recreativa.

O movimento é nato no ser humano, seja nas suas atividades do cotidiano,


nas suas atividades de lazer e até mesmo no seu trabalho, portanto, é ele que o
caracteriza. As atividades motoras tem um papel relevante no desenvolvimen-
to corporal e funcional, além de desenvolver consideravelmente as suas funções
psíquicas. A educação de corpo inteiro irá estabelecer um equilíbrio orgânico das
funções corporais, afetivas, sociais e cognitivas, fazendo com que esse sujeito se
localize na sociedade onde vive e estabeleça vínculos com o ambiente e com as
pessoas. Podemos afirmar que as atividades corporais da educação física contri-
buem para o desenvolvimento global do sujeito, pois trabalha diretamente com as
questões motoras para que se desenvolva a cognição e a afetividade.
Esses mesmos autores fazem uma importante ponderação, de que não é
porque a educação física lida com o conhecimento corporal que ela é inferior a
qualquer outra disciplina da escola que trabalha com o conhecimento científico
seja em qualquer fase da educação básica, além de também não deixar de lado a
preocupação com os demais aspectos do processo educativo, até porque o pensa-
mento e a cognição nascem do movimento, o aperfeiçoamento das funções moto-
ras constitui a base de qualquer outro conhecimento.
Ayoub (2001, p. 57) acrescenta que:

A educação física na educação infantil pode configurar-se como um espaço em


que a criança brinque com a linguagem corporal, com o corpo, com o movi-
mento, alfabetizando-se nessa linguagem. Brincar com a linguagem corporal
significa criar situações nas quais a criança entre em contato com diferentes
manifestações da cultura corporal[...] sobretudo aquelas relacionadas aos jo-
gos e brincadeiras... sempre tendo em vista a dimensão lúdica como elemento
essencial para a ação educativa na infância. Ação que se constrói na relação
criança/adulto e criança/criança e que não pode prescindir da orientação do(a)
professor(a).

Essa autora nos acrescenta que a criança precisa se alfabetizar na lingua-


gem corporal e essa alfabetização consiste em propiciar a criança o máximo de
vivências motoras/corporais possíveis não só a de atividades e de exercícios, mas
também o de jogos, brincadeiras e manifestações da cultura corporal, é importan-
244 Mayara Pereira dos Santos

te salientar que nessa fase as atividades educativas precisam ter um cunho lúdico
e devem sempre passar pela orientação de um professor.
Para Borges (2009, p. 18) podemos citar nove objetivos da educação física
na educação infantil. O primeiro é “Desenvolvimento corporal harmônico”, isso
quer dizer que na educação infantil a educação física deve auxiliar as outras áreas
do conhecimento a desenvolver de forma equilibrada todos os aspectos, motor,
cognitivo, afetivo e social. Em segundo ele apresenta “A aquisição do controle
corporal”, que é a disciplina, saber o momento de falar, de brincar, de ficar quieta,
a educação física também deve ensinar nas suas aulas o momento de relaxar, de
voltar à calma, além de constituir-se no movimento deve do mesmo modo se
constituir do não movimento. O terceiro é o “Desenvolvimento de habilidades
motoras” que consiste em desenvolver os movimentos básicos e voluntários do
corpo visando um objetivo.
Continuando, o quarto objetivo é o “Condicionamento dos sistemas orgâ-
nicos” que significar auxiliar e garantir o bom funcionamento do corpo humano,
sabemos que o corpo humano nasceu para a atividade física, portanto seu funcio-
namento efetivo se dá na prática dela. O quinto diz assim “Assunção de responsa-
bilidade crescente, no seu próprio bem-estar”, isto é, assumir a responsabilidade
sobre o seu próprio corpo, seus desejos, vontades levando em consideração o seu
bem estar, físico, mental e social. O sexto se remete ao “Desenvolvimento da habi-
lidade de utilização do movimento, como instrumento de comunicação e expres-
são” que consiste na consciência da utilização do seu corpo e do movimento como
um meio de comunicação e expressão. (BORGES, 2009, p. 18)
Prosseguindo, temos o sétimo objetivo que fala da “utilização sadia das ho-
ras de lazer”, logo é a utilização consciente e saudável do seu tempo livre, do tem-
po em que você não tem nada marcado, do seu tempo ocioso. O oitavo consiste
na “Aquisição de comportamentos e valores referentes ao ajustamento pessoal e
social” que tem como objetivo conscientizar a criança dos seus direitos e deve-
res perante a sociedade e remete também as questões morais. O nono e último
objetivo é o “Desenvolvimento de atitudes favoráveis à atividade física”, portan-
to, desenvolve na criança uma consciência de que a atividade física é importante
para o seu bem estar que irá ajudar na manutenção e na regulação do seu corpo.
(BORGES, 2009, p. 18)
Gonçalves (2016, p. 25) pode nos acrescentar que:

Antes de se pensar numa prática esportiva, seja ela qual for, recomenda-se o cui-
dado em educar e desenvolver o sujeito de maneira que ele responda a qualquer
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 245
EDUCAÇÃO INFANTIL?

estímulo e desafio que lhe seja apresentado. Para isso, busca-se a total consciên-
cia e domínio do eu corporal em relação ao seu espaço/tempo próprio, dos ou-
tros e dos objetos. Com a utilização das linguagens do movimento presentes na
Educação Física, visa-se propor um desenvolvimento global, fazendo com que
toda estrutura corpo/mente/emoção da criança, trabalhe para que a ação seja
precisa, econômica e harmoniosa, isto é, práxica. Esta competência é essencial
para o desenvolvimento... do sujeito, pois estimula a confiança, eleva a auto-es-
tima, aumenta a produtividade e facilita a aprendizagem.

Antes de começar a ensinar uma prática esportiva é necessário que a criança


aprenda a sua base, ou seja, aprenda os movimentos básicos para que ela não pule
etapas, esse é um dos motivos pelos quais a educação física deve estar presente na
educação infantil e não o ballet, as lutas, os esportes. As práticas corporais fazem
parte da educação física, mas antes de se ensinar uma prática ampla com regras
distintas, é necessário ensinar a criança o mais básico dos conhecimentos, deve-se
ensiná-la a ser corpo, a viver o seu corpo nas suas mais diversas possibilidades.
Rodrigues e Moraes (2016) nos contribui dizendo que a disciplina de edu-
cação física na educação infantil necessita ter nas suas práticas jogos e brincadei-
ras, pois estas estimulam a inteligência, a imaginação e a criatividade, além de
contribuir para o exercício da concentração e atenção, pode promover também
um estilo de vida mais ativo e saudável conduzindo a criança para uma vida cor-
poral de qualidade satisfatória. (2016, p. 4)

A Psicomotricidade E Suas Intervenções

É por meio da atividade motora que a criança vai construindo um mundo men-
tal cada vez mais complexo, não apenas em conteúdo, mas também em estru-
tura. O mundo mental da criança, devido às ações e interações com o mundo
natural e social, acaba por apresentar essas realidades por meio de sensações
e imagens dentro de seu corpo e de seu cérebro. Primeiro pela intervenção de
outras pessoas, que atuam como mediadoras entre a criança e o mundo; depois
pelos sucessos e insucessos da sua ação, ela vai adquirindo experiências que
virão a ser determinantes no seu desenvolvimento psicológico futuro. (FON-
SECA, 2004, p. 131)

É pelo movimento que a criança conhece a si mesma, conhece os objetos,


as pessoas e o mundo a sua volta, é por ele que ela age no mundo estabelecen-
do vínculos. O conhecimento cognitivo é fundamentado na função motora e é
com a aprendizagem gradativa do movimento que o intelecto vai se aprimorando,
portanto, quanto mais estimulada no aspecto motor for à criança, maior será a
246 Mayara Pereira dos Santos

base para o desenvolvimento da cognição. A psicomotricidade acredita que um


depende do outro, não sendo possível separá-los, em alguns casos ocorre o des-
membramento apenas para intuito de estudos.
Gonçalves (2016, p. 85) diz que a psicomotricidade é uma ciência que es-
tuda o indivíduo por meio do seu movimento e a ação desse movimento com-
preende o aspecto motor, afetivo e cognitivo, sendo ainda o resultado da relação
do sujeito com o seu meio social, isto posto, o ato de movimentar-se é a junção e
concretização dos aspectos psicomotores. Ela ainda acrescenta que a psicomotri-
cidade enxerga o sujeito em sua totalidade, não existindo a possibilidade de sepa-
ração do corpo (cinestésico), sujeito (relacional), a afetividade e o social, por isso
ela busca estabelecer um equilíbrio por meio do movimento entre a organização
motora, cognitiva e sócio-afetiva do sujeito, oferecendo possibilidades para que
ele se localize no ambiente, que encontre o seu espaço e por ultimo se identifique
com o meio onde está inserido.
Duarte (2015, p. 22) considera que a psicomotricidade:

é a ciência que estuda o homem através do seu corpo em movimento e em rela-


ção ao seu mundo interno e externo e, de suas possibilidades de perceber, atuar
e agir com o outro, com os objetos e consigo mesmo[...] está relacionada com o
processo de maturação, onde o corpo é a origem das aquisições cognitivas, afeti-
vas e orgânicas. [...] Através da experiência motora que a criança irá adquirindo
noções como forma, tamanho, impressões táteis, visuais, auditivas, etc.

Então, é pela experiência motora que a criança explora, conhece e assimila


as questões internas e externas ao seu corpo, que vai desde as questões orgânicas/
fisiológicas até afetivas/sociais. É pelo movimento que ela adquire noção espaço-
-temporal, estabelecendo conceitos através dos órgãos sensitivos, paladar, olfato,
visual, auditivo e o tato, sendo que o desenvolvimento dos aspectos psicomotores
acontece de forma gradativa, de acordo com o processo de maturação a criança
vai adquirindo conceitos mais complexos.
Gonçalves (2016, p. 23) nos diz que a psicomotricidade é um meio de auxi-
liar a criança quanto às dificuldades psicomotoras, além de auxiliá-las a superá-las,
pois proporciona condições físicas e materiais para que isso aconteça e completa
abordando que a educação psicomotora pode agir na prevenção dessas dificulda-
des, trabalhando lado a lado com a educação (escola), oferecendo condições para
o bom desenvolvimento global da criança, além de poder atuar na reeducação,
interferindo desde os mais leves atrasos psicomotores, até os mais severos através
de sessões de psicomotricidade em instituições e escolas responsáveis por isso.
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 247
EDUCAÇÃO INFANTIL?

Negrine (2002, p. 141) considera que a psicomotricidade de cunho edu-


cativo deve ser oferecida a criança desde o primeiro ano de vida, o estímulo dos
aspectos psicomotores deve acontecer, então, as crianças desde a creche até a pré-
-escola, ou seja, as crianças da educação infantil, pois ela se constitui em uma
ação que objetiva favorecer a comunicação corporal, a expressão corporal e a vi-
vência simbólica, que é o imaginário, o representativo, o mundo de faz-de-conta
da criança.
Sobre esse assunto Le Boulch afirma que 75% do desenvolvimento psico-
motor estrutura-se na fase da educação infantil, que compreende crianças de 0 a 6
anos de idade, portanto, o estímulo adequado e consolidado irá facilitar o proces-
so de aprendizagem posterior a essa fase (1985, p. 221)
Segundo Negrine (2002, p. 138):

A psicomotricidade no início esteve direcionada a crianças rotuladas como sen-


do portadoras de problemas psicomotores. [...] Foi pela vertente reeducativa que
a psicomotricidade como prática pedagógica passa a tomar corpo. É preciso
explicar ao leitor porque se fala da psicomotricidade como prática pedagógica.
Ocorre que do surgimento do termo até se constituir em prática corporal, levou
algum tempo. Houve um momento em que a psicomotricidade esteve resumida
muito mais a diagnósticos do que a uma prática pedagógica propriamente dita,
ou seja, ficava restrita a aplicação de baterias exaustivas de testes psicomotores
para avaliação do perfil da criança. A criança que apresentasse qualquer dificul-
dade de aprendizagem e que tivesse desenvolvimento psicomotor não compa-
tível com a idade cronológica, era indicada para fazer reeducação psicomotriz.

À vista disso, a psicomotricidade nasceu como reeducação, vinculada in-


clusive a área médica, se fortaleceu como ciência atuando com crianças que tem
o desempenho psicomotor abaixo do nível esperado, com crianças que demons-
tram dificuldades de aprendizagem na escola e ainda que apresentam distúrbios
psicomotores, já que inclusive explica os motivos dessas alterações no desenvol-
vimento psicomotor através da avaliação psicomotora e ainda sugere como deve
ser o processo de intervenção. Fortificou-se como área de conhecimento e passou
a intervir também na educação, ajudando a identificar com mais rapidez os pro-
blemas nos aspectos psicomotores das crianças na própria escola, se constituindo
como um fator importantíssimo para a não fragmentação do conhecimento e até
mesmo do próprio corpo da criança, além de estimular para que a maturação dos
aspectos psicomotores aconteça de forma gradativa e no momento certo.
Negrine (2002) nos acrescenta afirmando que a psicomotricidade cria con-
dições favoráveis para a construção de um vocabulário psicomotor amplo e diver-
248 Mayara Pereira dos Santos

sificado sem padronizar os movimentos, ele diz que ela até faz isso na reeducação
com os testes psicomotores, mas na educação ela atua com os movimentos es-
pontâneos induzidos pelos professores. Negrine acredita que a psicomotricidade
tem três finalidades, a primeira é a experimentação corporal múltipla e variada,
a exploração do próprio corpo e a experimentação de diversos movimentos seja
sozinhos, com objetos, móveis variados e ainda aparelhos ou implementos, a se-
gunda é o estímulo, a vivência simbólica, a subjetividade do gesto, da mímica,
o imaginário, e no terceiro a comunicação como elemento de intervenção pe-
dagógica, de socialização e de exteriorização da criança, tudo que ela produz é
um meio de comunicação, seja pelas expressões, movimentos, brincadeiras e até
desenhos. (2002, p.64)
Fonseca (2008, p. 9) já é um pouco mais abrangente, dizendo que:

A psicomotricidade pode ser definida como o campo transdisciplinar que estu-


da e investiga as relações e as influências recíprocas e sistêmicas entre o psiquis-
mo e a motricidade. O psiquismo nessa perspectiva, é entendido como sendo
constituído pelo conjunto do funcionamento mental, ou seja, integra as sensa-
ções, as percepções, as imagens, as emoções, os afetos, os fantasmas, os medos,
as projeções, as aspirações, as representações as simbolizações, as conceitualiza-
ções, as ideias as construções mentais, etc., assim como a antecede as aquisições
evolutivas ulteriores.

O conceito de transdisciplinaridade no contexto psicomotor significa que a


psicomotricidade colabora com outras disciplinas, não podendo ser usada apenas
por uma ciência, mas sim por várias, ela também se apropria de vários outros co-
nhecimentos como dito na introdução deste artigo. Há uma reciprocidade entre o
psiquismo e a motricidade, portanto podemos dizer que o movimento representa
a personalidade de cada indivíduo, pois há uma integração desses dois aspectos,
além de ter muita afetividade nesse movimento que se estabelece socialmente.
Batista (2014, p. 15) entende que a psicomotricidade na educação infantil
não oferece apenas um trabalho com os aspectos psicomotores (motor, cognitivo,
afetivo e social), mas também propicia a oportunidade de ampliar e desenvolver
os elementos psicomotores como a tonicidade, o esquema corporal, a imagem
corporal, o equilíbrio, a lateralidade, a coordenação global e a fina, que são ele-
mentos primordiais para a aquisição da aprendizagem da leitura e da escrita.
Para que aconteça a aprendizagem de fato (corporal ou não), a psicomo-
tricidade se estrutura em três pilares que são o querer fazer (emoção), o poder
fazer (motor) e o saber fazer (cognitivo). O primeiro se dá na afetividade que é a
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 249
EDUCAÇÃO INFANTIL?

reação do sujeito frente a uma sensação diante de uma determinada atividade ou


situação, resumindo é a motivação. O segundo é a motricidade, o movimento é
a interação com o meio, a sensação gerou um movimento e por último temos o
aspecto cognitivo a memória que permite ao sujeito responder com uma ação as
solicitações do meio. (GONÇALVES, 2016, p. 88)
E por fim temos o conceito de psicomotricidade da Associação Brasileira de
Psicomotricidade que diz que ela “é um termo empregado para uma concepção de
movimento organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo sujeito
cuja ação é resultante de sua individualidade, sua linguagem e sua socialização.”

Afinal, Existe Um Duelo Ou Uma Parceria?

A educação é um processo através do qual os indivíduos passam suas experiên-


cias e conhecimentos para as crianças, fornecendo a elas sua sabedoria ao mes-
mo tempo em que depositam, nesse processo de troca, suas aspirações de um
mundo melhor, pois a educação objetiva fazer o outro crescer, tendo o sentido
de guiar pelo caminho do crescimento para a vida. (SOUZA, 2009, p. 20)

Para Souza (2009, p. 7-8) a educação é um elemento fundamental na for-


mação da criança, ela é um dos pilares que irá contribuir para a formação de uma
personalidade plena e consciente e na educação infantil a autora acrescenta que
a brincadeira é uma atividade essencial para as crianças dessa faixa etária, já que
ela contribui para o aspecto cognitivo, além de ajudar no processo de socialização
fazendo com que a criança aprenda sobre convivência, regras e desenvolvendo
relacionamentos e o senso de companheirismo.
Percebemos pelo decorrer desse artigo que a brincadeira é essencial para de-
sempenhar um bom trabalho com as crianças da educação infantil, é por ela que a
criança vai desenvolver os aspectos e os conhecimentos importantes para uma qua-
lidade de vida corporal satisfatória, mas qual seria a mais interessante para a criança,
um brincar pela educação física ou um brincar pela psicomotricidade?
Antes de qualquer tendência precisamos nos atentar as palavras de Ayoub
(2001), que nos diz assim: precisamos “tomar a criança como ponto de partida”,
isso significa que na hora de pensar se uma ou outra é mais importante, precisa-
mos prioritariamente pensar na criança, pois ela é o sujeito dessa aprendizagem.
Ela ainda nos acrescenta que o currículo da educação infantil deve contemplar
diferentes linguagens, abranger a multiplicidade de expressões e também as várias
formas de manifestações existentes, como a oralidade, a gestualidade, a leitura, a
escrita, a musicalidade, a dança. (2001, p. 54)
250 Mayara Pereira dos Santos

Vivemos atualmente na era da transdisciplinaridade e segundo Ferreira


não seria tão inteligente se fixar somente em uma área de conhecimento, apoian-
do o seu trabalho apenas em uma das abordagens, a transdisciplinaridade é o
cruzamento dos conhecimentos de duas ou mais áreas colaborando para se chegar
a um objetivo comum, entendendo que o sujeito não é fragmentado, portanto o
conhecimento também não deverá ser. (2006, p. 2)
O objetivo desse estudo não é o de menosprezar uma área de conhecimento
e enaltecer outra, muito pelo contrário é o de reconhecer que as duas áreas têm
sua importância, cada uma com a sua singularidade e além de terem um trabalho
relevante e eficaz na educação infantil as duas tem conhecimentos válidos e efi-
cientes para a aprendizagem e para o desenvolvimento integral das crianças.
Ferreira (2006) nos diz que:

Acreditamos que existem três formas de utilização das abordagens propostas


pelos educadores. Há os que acreditam não ser possível minimizarem o impacto
entre o conflito das duas abordagens, pois há uma ligação destas com o modo
próprio de ver o mundo de cada abordagem, portanto o pesquisador deve uti-
lizar uma delas. Há, ainda uma segunda postura, a da tolerância ao trabalho
com os dois métodos, utilizando-se em uma abordagem Psicomotora, recursos
da Educação Física ou o inverso. Uma terceira postura é a liberdade de utiliza-
ção de conceitos, sem a presença de dualismo, articulando as duas abordagens.
Desta forma, a utilização destas abordagens dependerá do construto do pesqui-
sador. (2006, p. 2)

Percebemos aqui, que existe um duelo entre as duas áreas de conhecimento,


nas duas primeiras formas de utilização uma tenta prevalecer à outra, apenas na
terceira há um trabalho mútuo, de parceria entre as duas e podemos notar tam-
bém nessa terceira utilização a liberdade que o profissional pode ter em utilizar
uma ou a outra. Ambas as áreas desenvolvem um trabalho corporal, pensando em
um desenvolvimento integral da criança e, sobretudo não aceitam a fragmentação
do corpo.
Segundo Freire e Scaglia (2007) a educação física sofre um preconceito pelo
seu próprio nome e então se vê comprometida por esse simples detalhe. Infe-
lizmente quando pensamos no nome educação física, ele nos remete apenas ao
corpo físico, por isso desde o seu surgimento é interpretada como se trabalhasse
apenas o corpo. A prática escolar também nos sugere isso, todas as disciplinas são
trabalhadas dentro da sala de aula, com quadro e giz, às vezes um data-show ou
uma televisão, já a educação física vai para a quadra, para o pátio ou para um es-
paço aberto vivenciar as suas práticas. Apesar do senso comum acreditar nisso, ela
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 251
EDUCAÇÃO INFANTIL?

é uma área que cresceu por dentro, independente de qualquer conteúdo aplicado
pela educação física seu objetivo é somente um, contribuir para se viver melhor
em sociedade, ensinando a criança a ser corpo, a viver corporalmente, colaboran-
do para o desenvolvimento dos aspectos físicos (motor), cognitivo (intelectual),
afetivo (emocional) e social. (2007, p. 10-11)
Para Le Boulch apud Ferreira (2006) a psicomotricidade surgiu por uma
oposição à educação física que na época não conseguiu corresponder às expec-
tativas de uma educação de corpo inteiro, era frágil, pois desenvolvia seu traba-
lho somente pelos esportes propondo apenas movimentos técnicos e mecânicos,
visando o aprimoramento da técnica para um determinado esporte. (2006, p. 4)
Le Boulch foi bem severo nas suas afirmações, mas precisamos nos atentar a
data em que ele publicou esses dizeres, foi escrito em 1984. De lá em diante, como
já foi dito a educação física cresceu por dentro, deixou de olhar para o esporte como
início, meio e fim, passou a utilizar outras áreas de conhecimento nas suas práti-
cas pedagógicas, mudou a sua essência, passou a acreditar em um sujeito único de
corpo inteiro, não apenas corpo e mente, mas um corpo integrado pelos aspectos
motores, cognitivos, emocionais e sociais. Bracht apud Mariani diz que a psicomo-
tricidade exerceu uma grande influência na educação física brasileira nos anos 70 e
80, portanto a educação física utiliza a psicomotricidade nas suas práticas e a psico-
motricidade se opondo a educação física se apropria de alguns elementos dela para
construir parte do seu embasamento teórico e prático. (2009, p. 14)
Souza e Cordeiro nos acrescenta sobre esse relacionamento que:

[...] a busca por ferramentas de auxílio na aprendizagem escolar tem se tornado


uma constante multidisciplinar, na qual a Educação Física e o conhecimento
da psicomotricidade nas aulas abrangem a relação desenvolvimento motor e
intelectual da criança. Percebemos então que a psicomotricidade permite aju-
dar a criança a abrir-se para a comunicação e a dimensão simbólica e que por
meio das atividades lúdicas, ela estabelece suas vinculações com o mundo e em
função das experiências desfrutadas, passa a construir suas representações de
si, e do outro e da realidade apreensível em seu contexto sócio histórico-afetivo.
[...] Portanto a educação física e psicomotricidade estão ligados um ao outro por
meio da relação do movimento corporal e reconhecimento do espaço em que o
cerca. (2016, p. 55 e 56)

Batista diz que precisamos nos atentar ao propósito do trabalho na educa-


ção infantil que deve ser o de estimular a criança e favorecer a vivência de diversas
experiências corporais para que ela se identifique no espaço onde está inserida
e também se reconheça como eixo norteador desse processo, a partir disso ela
252 Mayara Pereira dos Santos

precisa utilizar o seu corpo como ponto de partida e de referência para novas
aprendizagens (2014, p. 13).
É preciso ressaltar que essas experiências corporais não podem ser frag-
mentadas que é o caso da professora generalista e da professora especialista citada
por Ayoub (2001, p. 53-54), agora é a aula de educação física, depois de psicomo-
tricidade, depois ballet, jazz, inglês, lutas, artes, informática... Precisamos pen-
sar o ensino de forma integrada, não podemos fragmentar os conhecimentos, na
corrida para uma educação de qualidade e por se opor ao nome educação física
que não tem nada de muito sugestivo para se vender, fragmentou-se as práticas
corporais, o que não contribui de forma alguma para uma educação integral, ao
invés de propormos uma transdisciplinaridade, aconteceu o contrário, o ensino, o
conhecimento continuou sendo fragmentado e em consequência a aprendizagem
da criança também.
Para finalizar este raciocínio vamos utilizar os dizeres de Ayoub.

De “mãos dadas” temos um longo caminho a construir em busca de centros de


educação infantil nos quais o educador e o cuidar estejam sempre presentes nas
relações com as crianças; centros de educação infantil nos quais as crianças este-
jam vistas no tempo presente, como seres humanos em constituição, e não como
futuros alunos do ensino fundamental e/ou como futuros adultos no mercado
de trabalho; centros de educação infantil nos quais as crianças possam desco-
brir-se, descobrir o outro, descobrir o mundo e suas múltiplas linguagens por
meio do brincar; enfim, centros de educação infantil nos quais seja realizado
um trabalho efetivamente de parcerias (entre os(as) profissionais, as crianças, os
familiares e a comunidade) que contribua para uma educação verdadeiramente
humana, na qual haja espaço para o diálogo, para o lúdico, para a vida. (2001,
p. 59)

É preciso pensar o ensino de forma integrada, proporcionando as crianças


da educação infantil várias vivências e experimentações, mas de maneira alguma
o conhecimento deve ser fragmentado, fracionado. Todas as partes (diversos pro-
fessores, familiares e a comunidade) devem se sentir envolvidas nesse processo,
dialogando, sempre refletindo e buscando a qualidade na educação infantil que
tanto se procura.

Conclusão

Percebemos então que o duelo entre as duas áreas de fato existe, por isso
há uma disputa para definir qual das abordagens irá atuar na educação infantil.
EDUCAÇÃO FÍSICA X PSICOMOTRICIDADE: UM DUELO OU UMA PARCERIA PARA SE TRABALHAR NA 253
EDUCAÇÃO INFANTIL?

Alguns professores utilizam às abordagens da psicomotricidade e outros as abor-


dagens da educação física, logo esses professores ainda não acreditam na pos-
sibilidade de um trabalho mútuo, preferem se apoiar e embasar o seu trabalho
em apenas uma das abordagens, defendem que uma é o suficiente para um bom
trabalho na educação infantil.
A educação física nasceu no esporte, seus conhecimentos iniciais eram tec-
nicistas, biologicistas e até militares, mas é uma área que não se acomodou com
o tempo e mudou a forma de olhar para o ser humano, deste modo enxerga ele
hoje de forma globalizada. Atualmente as aulas de educação física não prioriza
a técnica pela técnica ou a técnica apenas para se ensinar algum esporte, mas se
vivencia as práticas corporais para ser e viver o corpo, criando uma qualidade de
vida corporal satisfatória, ou seja, experimentou diversas formas de movimentos.
A psicomotricidade por outro lado, nasceu para auxiliar crianças com di-
ficuldades de aprendizagem, com distúrbios psicomotores e ainda com desempe-
nho psicomotor abaixo do esperado, foi reeducação e terapia até se formar como
área pedagógica e passar a intervir também na área da educação, se opondo a
educação física, inclusive pela forma de enxergar o corpo, desde o seu surgimento
acredita em um ser humano global, integrado e impossível de ser dissociado.
Enquanto a educação física destacava as crianças com facilidade e me-
nosprezava as crianças com dificuldade motora a psicomotricidade se fortalecia
atuando com crianças com problemas psicomotores e acreditava tanto na criança
com dificuldade quanto na criança com facilidade. Isso aconteceu até a educação
física passar a utilizar a psicomotricidade nas suas práticas e mudar a forma de
enxergar o ser humano.
As duas áreas nasceram diferentes e pode até parecer opostas, mas seus
objetivos e suas crenças são as mesmas, ambas enxergam o ser humano da mesma
forma, portanto existe sim a possibilidade de parceria, de forma que uma possa
colaborar com a outra, uma troca mútua, até porque hoje as áreas do conheci-
mento precisam se cruzar, entrelaçar os seus conhecimentos para construir a sua
prática, ninguém vive sozinho no mundo, assim também é com o conhecimento,
ele não sobreviverá se acreditar apenas nele mesmo.
O trabalho pedagógico na educação infantil deve ter como ponto de par-
tida a criança, ela precisa ter contato e vivenciar várias práticas, expressões e
linguagens corporais para construir as suas experiências corpóreas. Precisamos
lembrar sempre que é pelo movimento que a criança se conhece, conhece o outro
e conhece o mundo a sua volta, portanto a psicomotricidade e a educação física
trabalhando juntas ou o professor tendo a liberdade de escolher qual o momento
254 Mayara Pereira dos Santos

utilizar uma ou a outra, a criança só tem a melhorar o seu rendimento e a sua


aprendizagem.

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Em apoio à sustentabilidade, à
preservação ambiental, Pronto Editora
Gráfica/ Kelps, declara que este livro foi
impresso com papel produzido de floresta
cultivada em áreas degradadas e que é
inteiramente reciclável.

Este livro foi impresso na oficina da Pronto Editora


Gráfica/ Kelps, no papel: Off Set LD 75g/m2,

Dezembro, 2018

A revisão final desta obra é de responsabilidade


dos autores

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