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A música do homem
YEHUDIMENUHIN E CURTIS W OWIS
TRADUÇÃO
Auriphebo Berrance Simões
REVISÃO TÉCNICA
Isaac Karabtschevsky
REVISÃO
Monica S. M. da Silva
Nota ao leitor
Prefácio viii
Agradecimentos xii
1. O palpitar da vida 1
São exam inadas as origens da m úsica desde os tem pos pré-históricos até as
primeiras grandes civilizações da Suméria, Egito e China e o p erto d o clás
sico da Grécia Antiga. O hom em d escobre co m o criar instrumentos musi
cais a partir daquilo que encontra na natureza - ossos, chifres, casca de
salgueiro, vísceras d e animais - e daquilo que ele próprio aprende a criar
- o arco e a flech a , o ferro , o bronze. É descrita a evolução do sentido da
audição e é aplicado o prin cípio da ressonância dos harmônicos.
2. O florescimento da harmonia 44
o crescim ento da m úsica na cultura ocidental é descrito desde a primitiva
m elopéia cristã, con hecida co m o cantochão, até a efusão abundante do
Renascim ento. Os m ouros e os cristãos lutam p ela p osse da Espanha e
form am -se as Cruzadas, que acarretam um ch oq u e de culturas. A música se
tom a uma m escla de muitas vozes, são codificados os prin cípios da har
monia, com eça a orquestração e desenvolve-se a notação musical da
aproxim ação de neumas até o atual sistem a de pauta e notas. A índia
aperfeiçoa a arte da linha musical única decorada.
Bibliografia 311
PREFÁCIO • ix
do que apetites dos quais se usa e abusa em prol do lucro. Inexoravel
mente, desde minha mocidade em San Francisco, tenho assistido à detur
pação do olfato e do paladar, instintivos e naturais, desviados daquilo que
é genuíno para a aceitação de sabores inodoros, das plantas plásticas, do
achatamento total das respostas estéticas, até mesmo para a aceitação da
assustadora distorção do som puro, quando algo que se chama música jorra
através de vários dispositivos mecânicos em um longo gemido adenoidal.
Como é que se distingue o verdadeiro do falso, o bonito do feio, na
música e na vida? Não será talvez naquele momento em que reconhecemos
uma consciência sempre renovada na profundidade crescente de nossos
poderes da mente, do coração, da compaixão, de todos os nossos sentidos?
Quando isso corresponde a nossa comunhão conosco, com nossos irmãos
seres humanos e com a natureza, quando podemos nos movimentar Uvre-
mente entre serenidade e emoção, entre pensamento e ação, sem precon
ceito com relação aos outros e a nós mesmos, então é que conhecemos a
verdade: as eternas verdades de Beethoven, de Bartók, de Sócrates, Buda e
Jesus. Então é que podemos começar a confiar em nós mesmos, como
confiamos, implicitamente, em Shakespeare, Miguel Ângelo e Bach.
Por contraposição, a ciência concerne ao estudo dos fenômenos
objetivos, mensuráveis, de nosso mundo; a arte diz respeito ao domínio
humano, vivente. Einstein, aproximando mais do que nunca a ciência da
metafísica, estabeleceu que a situação humana é para sempre relativa. A
partir dessa percepção, nós nos encontramos numa dimensão diferente.
Tão certo quanto isso é o fato de que, ao escutarmos a H eróica de Beetho
ven, ao observarmos um retrato pintado por Rembrandt, ou ao perceber
mos o ritmo e o significado de um soneto de Shakespeare, estamos em
contato direto com a verdade e o espírito dos criadores. Assim, podemos
nos render à verdade, seja a da ciência, seja a da arte. Mas, ao mesmo
tempo, precisamos defender nossos flancos, combater o falso, o presumido,
o pretensioso, o comercial, a propaganda, como combateríamos o diabo, o
eterno tentador, sempre pronto a nos apanhar desprevenidos e cochilando.
Felizmente, assun como a própria vida, a civilização jamais segue em
linha reta, como uma estrada romana; segue impulsos periféricos, como o
oscilar de um pêndulo, a trilha circular de uma roda ou a órbita elíptica de
um planeta. O progresso pode parecer enganadoramente pequeno, mas é
mensurável. A civilização depende exatamente desses amplos movimentos
oscilatórios livres que constantemente ameaçam romper suas amarras para
regenerar. Só explorando os extremos é que aprendemos a localizar o
centro. Um ciclo de emoções nos é tão vital quanto uma variedade de
alimentos: somos capazes de nos alegrar com os extremos, ansiamos por
nossos opostos, submetemo-nos a testes, ahmentamo-nos de riscos, depen
demos de nossos adversários, assim como o doce precisa do azedo e o
quente necessita do frio.
Quanto a mim, gostaria de conseguir ser a mais improvável e parado
xal das criaturas: o “fanático moderado”. Em outras palavras, gostaria de
ser o tipo de homem que consegue mobilizar intensidade e paixão, com
prometimento e desejo de sacrifício, a fim de defender não algum dogma
X • A MUSICA DO HOMEM
unilateral que vise à destruição de tudo o que esteja fora de sua preciosa
doutrina, mas, sim, a possibilidade de estimular um intercâmbio constru
tivo entre as pessoas que representam todas as variedades e faixas de
opinião e intenção — talvez ajudando unicamente a excluir os extremos
que conduzam à perda de equüíbrio. Creio que os povos e as civilizações
podem sobreviver e, até mesmo, precisar de uma gota efetiva de arsênico
em seus remédios - uma pitada de veneno. Trata-se, simplesmente, de
uma questão de dosagem.
Os governos existem parcialmente para manter a dosagem correta de
veneno na sociedade. A religião, da qual o governo é um reflexo temporal,
também mantém o equüíbrio das sociedades e das almas. O homem é, por
definição, religioso e, pelo mesmo motivo, artista, porque está constante
mente tentando transformar uma visão em realidade, um mistério em
senso comum. Talvez ele jamais tenha êxito completo e, para encontrar
seu equilíbrio interior, talvez precise aceitar suas limitações. Ao mesmo
tempo, jamais deve perder a fé; jamais deve perder seu senso de pertencer
a um propósito maior, a uma realidade mais ampla do que ele jamais
poderá abranger. Fé, confiança e amor são sentimentos da mesma natureza
e a música que chamamos de religiosa é votiva e, por conseguinte, tem
muito em comum com amor e dedicação. A união desses sentimentos na
música é que é realmente uma de suas glórias e uma de suas mais antigas
funções.
Nesta tentativa de explorar a música do homem, minha modesta
intenção foi demonstrar que é a música que junta o espiritual e o sensual,
que pode transmitir êxtase livre de culpa, fé sem dogma, amor como uma
homenagem, e o próprio homem convivendo com a natureza e o infinito.
Yehudi Menuhin
PREFÁCIO • x i
Agradecimentos
x ii • A MÚSICA DO HOMEM
da tradição indiana clássica, e John Blacking, a quem anos vividos entre os
povos africanos deram a qualificação de antropólogo sênior e melhor
conhecedor do assunto na Grã-Bretanha, esclareceu-me grande parte da
complexidade do canto africano.
Outros dos que tão de perto me apoiaram foi o distinto poeta e autor
Christopher Hope, cujo senso infalível da palavra exata e do som de uma
frase foi valiosíssimo na elaboração do diálogo para os scripts (que, como
se pode imaginar, são uma das partes mais compHcadas de um empreendi
mento como esse), pois tais palavras e idéias devem necessariamente brotar
da colaboração. Sou totalmente incapaz de redigir uma única frase que
não contenha pelo menos a origem de minha própria idéia ou do fato tal
como o concebi. Essa minha obstinação deve ter-me tornado um difícil
companheiro de trabalho; e sou grato a Curtis Davis, cuja flexibiUdade e
paciência me possibilitaram fazer todas as alterações necessárias, sempre
que eu sentisse que uma idéia não estava colocada em meus próprios ter
mos ou que um diálogo não representava minha intenção.
Durante toda a longa — e às vezes febril — jornada desta produção,
senti-me cada vez mais próximo dos membros da equipe, todos eles dando
opiniões, sugestões, animando-me quando eu procurava me concentrar em
minhas palavras sob a chuva fria em Rothenburg, sob as lufadas geladas no
Alhambra, no calor entorpecente do Senegal - e desafio qualquer pessoa a
encontrar, em qualquer lugar do mundo, um interior mais úmido e pene
trantemente frio do que o de uma antiga igreja, não aquecida durante oito
séculos, em um canto remoto de Castela.
E ainda assim, sob todas essas circunstâncias, eu percebia apenas leal
dade, interesse e habilidade. Quem poderia desejar felicidade maior, ao
embarcar numa viagem como essa, por mares principalmente não cartogra
fados, sabendo que sua vida dependia da perspicácia e atenção, da simpatia
e do companheirismo de sua tripulação? Da tripulação faziam parte do^
componentes da máxima importância: minha querida e dedicada secretária
Eleanor Hope e meu incansável assistente Phüip Bailey, que trabalharam
muitas noites, incessantemente, redatilografando os rascunhos para cum
prir os prazos. A eles, peço desculpas por ter sido um chefe tão exigente.
Finalmente, dirijo-me aos que me ajudaram a elaborar minha parte
deste livro; eis que, uma vez mais, foi uma tarefa árdua de redução, cortes
e escolha angustiante, facilitada por uma equipe dedicada e imaginativa da
Methuen. Nenhum autor poderia esperar assessoria mais sensata e inte-
Hgente.
Mas, acima de tudo (e contra toda a sua resistência), desejo dizer o
quanto fiquei feliz por ter minha esposa Diana a meu lado durante o tra
balho inteiro. Seu talento literário e experiência de palco foram extrema
mente valiosos, e seu coração juntou-se ao meu em nosso desejo de dar
tudo o que tínhamos em troca da fé que John Barnes teve em nos.
YEHUDI MENUHIN
AGRADECIMENTOS • xiii
Um dia, em agosto de 1974, John Barnes, chefe dos programas musi
cais para a rede de televisão em inglês da Canadian Broadcasting Corpora
tion, convidou-me para desenvolver a concepção de uma grande série para
sua rede, projeto este que já tinha o título A Música d o H om em . Pela
alegria de cinco anos de trabalho totalmente envolvente, sinto-me grato,
em primeiro lugar, a John Barnes, por sua confiança inabalável e ampli
tude de visão.
O encontro com a música dura toda uma vida; tem sido uma parte
central de minha vida, desde quando consigo me lembrar. Três lembranças
antigas me vêm à mente: escutar repetidamente a gravação de Chaliapin da
prece e morte de Boris Godunov enquanto meu pai revivia a cena para
mim, pois tinha visto o grande baixo desempenhar o papel em Moscou, no
Bolshoi; pouco depois dos quarenta anos, com meu professor de violino, ir
a um concerto de Yehudi Menuhin no Carnegie Hall, sabendo que eu
nunca seria um executante; tomar parte em um seminário de composição
com Edgard Varèse, na Columbia University, enquanto ele se queixava de
minhas partituras, dizendo; “Você não pode colocar tudo, pois os sons se
matarão uns aos outros. Você precisa escolher”.
O aspecto mais difícil de A Música do H om em foi a questão da
escolha. Yehudi Menuhin havia frisado que nem a nossa série de televisão
nem este livro poderiam ter a pretensão de ser enciclopédicos. A tentativa
foi de procurar formular questões: O que é música? Por que a inventamos?
Para que serve? Embora muita coisa tenha sido necessariamente omitida,
espero que nossas escolhas sejam estimulantes e representativas desse terri
tório imensamente maior, que toda uma vida de exploração não pôde
exaurir.
A seguir, meus agradecimentos são para meu bom amigo e co-autor
nas fases iniciais de A Música do H om em , Chuck Weir. O esboço concebido
por ele, apresentado pelo produtor da CBC, Raymond MacConnell, a John
Barnes, no início de 1974, tornou-se a gênese do projeto. Chuck Weir é
um escritor de talento, e tem um repertório incomparável de piadas novas.
As muitas sessões de trabalho em conjunto foram para mim uma das
alegrias especiais do empreendimento. Também desejo agradecer ao pro
dutor da CBC, Neil Sutherland, cujos conselhos no início do projeto foram
sábios e esclarecedores.
É difícil expressar exatamente tudo o que Yehudi Menuhin e eu
devemos aos produtores da CBC, Richard Bocking e John Thomson. A
Música do H om em jamais poderia ter sido realizada sem a sua paciência
inesgotável e grande habilidade. Nunca desfrutei tanto de um relaciona
mento pessoal e profissional como com esses dois homens extraordinários.
O Dr. Paul Henry Lang, musicólogo, editor, crítico e meu antigo
professor na Columbia, concedeu-me a grande honra de revisar a primeira
redação deste livro, fazendo, durante o tempo todo, observações pormeno
rizadas. Compreendeu imediatamente nosso objetivo, respondendo às
reflexões pessoais de Yehudi Menuhin com base em meio século de ativi
dade musical; e seus comentários foram tão reasseguradores quanto erudi
tos, no melhor sentido.
AGRADECIMENTOS • XV
São examinadas as origens da música desde os tempos pré-históricos até as primeiras grandes
aviltzações da Suména, Egito e China e o período clássico da Grécia Antiga. O homem desco
bre como criar instrumentos musicais a partir daquilo c}ue encontra na natureza — ossos, chi
fres, casca de salgueiro, vísceras de animais — e daquilo que ele próprio aprende a criar — o
arco e a flecha, o ferro, o bronze. E descrita a evolução do sentido da audição e é aplicado o
princípio da ressonância dos harmônicos.
1. O palpitar da vida
'A música é a nossa mais antiga forma de expressão, mais antiga do que a Há cin co mil anos, um casal
linguagem ou a arte; começa com a voz e com a nossa necessidade pre n obre eg íp cio ouvia a serenata
de um harpista e três cantores
ponderante de nos dar aos outros. De fato, a música é o homem, muito
b aten d o palm as para fa zer
mais do que as palavras, porque estas são símbolos abstratos que transmi o ritmo. Estas figuras d e
tem significado fatual. A música toca nossos sentimentos mais profunda argila eram enterradas entre
mente do que a maioria das palavras e nos faz responder com todo o nosso o s p erten ces d os m ortos,
ser. Este livro discorre a respeito dessa dádiva humana única, criativa e ajudando-os a viajar para o
recreativa, que recorre à nossa capacidade de combinar descoberta e me m undo seguinte (atualm ente
se acham no Museu d o Cairo).
mória. Enquanto a raça humana sobreviver, a música nos será essencial.
Necessitamos da música — creio eu — tanto quanto necessitamos um do
outro.
Toda a minha vida toquei a música de Johann Sebastian Bach, música esta
cuja pureza expressa nossa mais alta ética, nossa mais forte moralidade, D ois m úsicos gimi invocam e
nossos mais nobres sentimentos. Ela nos liberta de nossos eus primitivos, se tom am a flo resta luxuriante
fala-nos do homem em paz consigo mesmo e com Deus, e reflete o ritmo em qu e vivem. Os gimi estôi)
de uma sociedade que estabeleceu sua fé e segurança. É a música que se entre os p ov o s papu as d a Nova
Guiné, e são en con trados a
coloca no apogeu das descobertas e invenções humanas. De fato, eu diria cerca d e oiten ta quilôm etros
que a música é um espelho do próprio processo de pensamento. Os ritmos a o sul da capital provincial de
repetidos e as seqüências de tons ajudaram claramente a estabelecer o G oroka.
O PALPITAR DA VIDA
princípio do reconhecimento e da comparação, recorrendo à memória e ao
ensaio e erro. Todos os vários métodos simbólicos que usamos para inves
tigar a natureza do mundo e de nós mesmos são encontrados dentro da
música. A fuga, por exemplo, é o próprio modelo do pensamento, atuando
por prova e reformulação, analogia e refinamento da memória.
Acredito que essa é a lição de toda música. Buscamos conhecimento
para que possamos controlar o imprevisível, porque em todos nós há uma
necessidade psicológica de reafirmação para que possamos criar ordem e
sentido a partir dos eventos, para dar-lhes foco e direção. Qualquer célula
podfl tornar-se dez milhões, dando seus genes a seus descendentes e, dessa
forma, estabelecendo a repetição do padrão genético. Com o homem, o
processo é consciente, tanto quanto fisiológico; passamos adiante os pro
dutos de nossas mentes e corações, e entre eles está a música. Assim como
o primeiro pulsar involuntário do coração produz o primeiro ritmo de
vida, a música nos devolve o pulsar da vida.
A música levou longo tempo para florescer no Ocidente, más isso não
deixou de ter suas vantagens. O tempo nos permitiu absorver todas as
aquisições das eras passadas e orientá-las para novos propósitos. O Ocidente
dominou a escala e desenvolveu a harmonia de um novo modo, construindo
tanto vertical como horizontalmente, criando uma linguagem inteiramente
nova, que até então jamais se ouvira. Esse processo, no entanto, levou mais
de mil anos. Lentamente, o Ocidente redescobriu que a música é mais do
que carne, ossos e coração, que usamos unicamente como ferramentas
para criar algo de intangível, algo que nos põe em contato com as vibra
ções do universo. Foi esse impulso que foijou o desenvolvimento da música
ocidental durante seus muitos séculos de luta para chegar ao que conhece
mos agora, e que, em grande parte, consideramos como um dado definitivo.
A trajetória para alcançar o nível supremo conseguido por Bach foi longa e
ainda estamos nos esforçando para nos manter nela, ameaçados que somos,
diariamente, por violência e degradação, por um pêndulo que pode, ao
oscilar, ir longe demais. Há mais do que sentimento na música de Bach.
Por mais apaixonada que ela possa se tomar, sempre há forma, equüíbrio,
um processo de lógica, de construção, onde ele alcançou uma perfeição
insuperável. Esta é uma das lições da música de Bach, e de toda música.
O mundo aparentemente sólido que aceitamos como estabelecido
começou no calor tórrido da pedra em fusão e dos gases em turbilhão,
transformando-se durante eras e eras em um cosmo suficientemente frio
para permitir as primeiras manifestações de vida. Neste planeta aparente
mente único (pelo menos em nosso sistema solar), desenvolveu-se um
extraordinário equilíbrio de forças naturais. O pêndulo oscüa do quente
para o frio, das alturas para a profundidade, sem ultrapassar as condições
precisas necessárias à vida. E, no entanto, aquela agitação efervescente nas
profundezas da Terra persiste, enviando-nos terremotos e ondas gigantes
para nos relembrar, desde o momento em que nascemos, de nossa impo
tência diante da natureza.
A MUSICA DO HOMEM
Em nossa era tecnológica passamos a acreditar que a segurança con
siste no controle, no domínio sobre o homem e sobre a natureza. Certa
mente, isto nos trouxe vantagens, mas poderemos dizer que houve pro
gresso se ainda praticamos a pilhagem e matamos sem propósito, como nos
confirmam as muitas guerras deste século? Falhamos porque o homem não
está em paz consigo mesmo, e nem se domina; por isso, procura dominar
os outros.
O PALPITAR DA VIDA • 3
tinham de que o animal era seu primo, partilhando do mesmo mundo e de
seus ciclos de vida interligados. O aborígine australiano ou o bosquímano
africano consideram sua lança como uma ferramenta de caça, não como
arma de guerra. Há um esplêndido provérbio africano que expressa clara
mente esse senso de parentesco: “Antes de atravessar o rio, não xingue a
mão do crocodilo” . Tantos os homens como os animais procuram frutas
silvestres e raízes, melões e nozes, até mesmo enquanto caçam uns aos
outros.
Nas pastagens secas das planícies de Kalahari, na África do Sul, onde
os povos igwi vivem penosamente, a música une a família e a tribo. Lá um
musico canta a eterna busca de alimento e água, e as infindáveis distâncias
que separam os povos. Ele também canta os animais atraídos pelo capim
novo que brota depois de uma queimada, o kudu e o porco-espinho com
que se alimenta, ou a hiena dissimulada que, fingindo-se de pequena, ras
teja entre as pessoas e devora suas roupas.
o arco e a fle c h a passaram a
Na claridade translúcida e no ar das planícies, é possível ouvir ruídos
fa z e r parte d os brinquedos
a quilômetros de distância, sentir o cheiro da tormenta que se aproxima,
das crianças, que imitavam as
a ções de seus pais caçadores. detectar o movimento das feras espreitadoras. A caça torna-se parte da
E ste silvtcola sul-africano sobrevivência, tanto quanto a colheita; e nada alterou com maior rapidez
d ecorou seu arco com o equilíbrio de poder em favor do homem do que a descoberta do arco e
listras coloridas. da flecha, possibilitando ao homem controlar o animal à distância. Para o
4 • A MÚSICA DO HOMEM
caçador, não era ainda uma arma de guerra, mas uma equiparação de
forças; somente a necessidade de alimento tornava adversários o homem e
o animal. Do ritual da caça surgia a música; o arco podia produzir uma
vibração melíflua. Um ponto de vista amplamente defendido é de que o
arco e a flecha são ancestrais do violino.
Nos rituais de coleta de alimento, começávamos por invocar a bênção
dos deuses pelo sucesso da busca. O índio norte-americano cobre-se com
uma pele de urso, convencido de que só poderá ter esperanças de apanhar
um urso se se tornar um em espírito. O esquimó canta com orgulho o
tamanho do enorme peixe ou foca que apanhou, como o pescador que
posa para uma fotografia ao lado do espadarte ou do salmão que conse
guiu pescar.
Cada ritual de que participamos requer sua própria música: nasci
mento, casamento, morte, semeadura e colheita, a mudança das estações
do ano, a chegada da primavera e da fertilidade, os sofrimentos da doença
e a recuperação da saúde. Sem dúvida, nossa primeira música destinava-se Os índios amahuaca d o Peru
à consagração de tais eventos. À medida que a agricultura e a construção são um dos m uitos p ov o s
que desenvolveram o arco de
de abrigos foram se desenvolvendo, a música passou a associar-se ao tra
boca, mas este é tocad o com
balho. E à medida que nossas sociedades cresceram, nasceu a música em arco e n ão tangido, sen do
louvor ao líderes — procissões reais com instrumentos musicais remontam que a cavidade bucal serve
ao Egito e à Suméria. O uso da música com essa finaHdade é natural, pois co m o câmara de ressonância.
O PALPITAR DA VIDA
os líderes nos ajudaram a sair das cavernas para a civilização. Além do
mais, o reconhecimento de nossos líderes é um traço que temos em comum
com todo o mundo animal.
Os seres humanos não são apenas criaturas musicais; somos ruidosos,
conversamos, gritamos, muitas vezes através de grandes distâncias. Durante
muito tempo a música e a fala formavam um contínuo, ambas produzidas
pela voz. Mesmo depois de terem aparecido os primeiros instrumentos, a
música e a fala ainda se superpunham. De acordo com descobertas recentes
no Oriente Próximo, os primeiros símbolos da palavra escrita começaram
a aparecer mais ou menos há dez mil anos, principalmente para facüitar o
comércio. A escrita ajudou a separar a música da fala. As palavras escritas
na argila ou no papiro podiam transmitir rapidamente mensagens simples,
ao passo que a música estava vinculada à expressão de sentimentos com
plexos. Existem lugares no mundo onde subsistem Hnguagens antigas —
Esta dança de silvtcolas é
como na China, no Vietnã e em algumas partes da África — em que a
encontrada no “ Vale da
A rte”, p ró x im o de
inflexão da fala e a da música permanecem inseparáveis, embora não idên
Jam estow n , na província ticas; onde partes de melodias seguem os mesmos altos e baixos que a
sul-africana d o C abo; é uma linguagem e uma mudança na Unha musical pode também alterar o signi
das centenas de pinturas ficado da palavra.
feita s p o r gerações d e artistas Há provas antropológicas de que a música surgiu antes da fala. Os
no decorrer das eras. Algumas
ligamentos que há entre os músculos e os ossos deixam traços no arca
pinturas fo ra m encontradas
em cavernas d o deserto, em
bouço esqueletal que nos dizem muito sobre como esses músculos eram
áreas que, em outros tem pos, usados, e possibüitam reconstruções de criaturas pré-históricas a partir de
devem ter sido férteis poucos elementos. Nosso mecanismo vocal é complexo: para cantar, bas
terras verde jantes. tam os pulmões e as cordas vocais; quando falamos, a boca e a língua
A MUSICA DO HOMEM
entram em ação. Restos de esqueletos humanos mostram indícios de que o
uso da voz para produção da fala remonta a cerca de oitenta mil anos;
sugerem, ao mesmo tempo, que o canto tenha começado, talvez, meio
milhão de anos antes.
A combinação de música e fala na expressão única do canto tem um
poder inigualável, transmitindo sentimentos de grande elevação ou de pun-
gência quase insuportável. Quando nos reunimos para celebrações comuns,
a música ajuda a elevar o compartilhamento de sentimentos a um tal nível
de intensidade que palavras, apenas, não poderiam atingir. A música não
reproduz o mundo que está fora de nds e ao nosso redor, nem mesmo
quando conscientemente imitamos os sons que ouvimos; a música diz E ste cantor da A frica
respeito, em primeiro lugar e acima de tudo, a nós; é nossa identidade. O cidental co lo ca as m ãos
em con cha n os ouvidos a fim
No decorrer, dos milênios, tarefas que antes eram atribuídas à comu
de p erceb er mais claram ente
nidade inteira deram origem a especialistas — os melhores pescadores, a ressonância d e sua voz.
ferramenteiros ou parteiras. Os que possuíam o dote de audição imagina É uma técnica en contrada
tiva e eram hábeis no Hdar com o som também foram reconhecidos. Em entre os cantores d o popu lário
muitas sociedades, todos participavam da música e, nesses grupos, o n o m undo inteiro.
O PALPITAR DA VIDA • 7
músico semiprofissional era raro. Gradualmente, o músico passou a ser
valorizado e recebeu responsabilidades cada vez maiores, porque ele era
capaz de arrebatar as pessoas, falando por elas como, em conjunto, elas
falavam com ele. Com seu auxílio, a música lhes deu força de vontade e
coragem para fazer guerra, defender a propriedade, expressar alegria ou
lamentar suas perdas.
dO homem quase nada inventa. Na maior parte das vezes descobre, recor
rendo à sua experiência do mundo exterior e de seu mundo interior, quer
se trate da descoberta do princípio da roda ou da Teoria da Relatividade.
Ambas foram deduções inspiradas a partir da realidade imediata. Todo o
nosso desenvolvimento se faz, de fato, através de análise, associação de
indícios, observação e reflexão, para chegar, finalmente, à criação de algo
novo. Tais descobertas me parecem estar relacionadas com a capacidade
inata do castor de construir um dique ou das abelhas de construírem uma
colmeia. Mas não tenho a intenção de menosprezar a extraordinária capa
cidade humana para sonhar e, de preferência, eu a definiria através de duas
notáveis criações — a música e a linguagem.
A criação de instrumentos musicais é um dos grandes milagres huma
nos. Lembro-me de ter ouvido, na África, o som de dois tambores ecoando
entre as colinas. Quando perguntei a meu guia que música era aquela, ele
me respondeu simplesmente: “Ah, são dois bons amigos dizendo boa-
-noite”. Essa é uma prática que remonta à origem da música e da fala e a
uma era em que a quietude e o sossego, que agora perdemos, permitiam
aos tambores que ecoavam enviar suas mensagens a uma longa distância
através da calma do anoitecer.
Pascal, o füósofo francês, disse: “O homem não é mais do que uma vergôn-
tea, a mais fraca da natureza, mas é uma vergôntea pensante”. O homem
sente uma infindável curiosidade pelos sons que as coisas produzem; é
assim, em parte, que ele reconhece o que elas são. Essa experimentação
natural levou à moldagem de uma enorme quantidade de ferramentas resso
nantes e vibrantes, os instrumentos musicais. Os vestígios mais antigos de
ferramentas específicas para fazer música vieram de escavações na Sibéria,
e datam de cerca de trinta e cinco mil anos atrás. Incluem um conjunto de
ossos de mamute, as enormes juntas dos quadris e dos ombros, com mar
cações mostrando os locais onde podiam ser obtidas as melhores ressonân
cias. Junto com eles foram encontrados um osso entalhado como uma
baqueta e duas pequenas flautas, também de osso, com quatro orifícios
em cima e dois embaixo, sugerindo que eram seguras pelo polegar e mais
dois dedos de ambas as mãos. Isto já implica a existência de um aprimo
rado sistema de dedilhar e, por extensão, de uma escala musical — a exis
tência de melodias primitivas muito antes da última grande Era Glacial.
Pode ser que esses achados constituam um fragmento da mais antiga
orquestra de que se tem conhecimento, tão tantaüzadora e excitante para
os músicos como para os antropólogos.
Em outros lugares foram encontradas armações de tambores de pedra
8 • A MÚSICA DO HOMEM
entalhada, sobre as quais provavelmente havia peles esticadas. A própria Os ossos das om oplatas e d o
quadril d e um m astodonte,
pedra não vibra, exceto as tiras de pedra entalhadas pelos homens das pri
d escob ertos n o sg e lo s da
mitivas civilizações asiáticas, em escalas afinadas. Usualmente, os materiais Sibéria, são partes d e um
que vibram o suficiente para produzir música são perecíveis, como ma conjunto musical pré-histórico;
deira, tripa e bambu. Mesmo o chifre não dura tanto quanto o osso. Por com eles fo ra m encontradas
tanto, podemos estar certos de que uma grande quantidade de provas duas flautas, e as m arcações
desapareceu. Talvez não consigamos reconstituir um quadro exato da para o s p o n to s de ressonância
música do homem primitivo, mas as provas que temos confirmam que essa ainda são visíveis d ep ois de
35 000 anos.
sociedade não era tão primitiva quanto a princípio se supunha.
Velhos troncos muitas vezes são naturalmente ocos, produzindo um
som ressonante quando percutidos. Em algumas partes da África, do
Extremo Oriente e do Pacífico, a arte de ocar um pedaço enorme de uma
árvore, extraindo quase todo o cerne através de uma única fenda estreita,
era altamente desenvolvida. Era um rito freqüentemente envolto em mis
tério, executado fora do alcance dos olhares curiosos dos não-iniciados.
Também foi constatado que, quando se colocava uma travessa de madeira
através de uma cavidade aberta, ao percuti-la obtinha-se uma ótima resso
nância. Esse foi o primeiro amplificador natural. O arco como apoio no
solo foi uma extensão do tronco sobre uma cavidade. Adicionou-se um
cavalete no ponto intermediário, esticando-se uma corda sobre ele, presa
nas duas extremidades. A corda podia ser de fibra natural ou de tripa de
animais; tanto podia ser tangida como percutida. Há antropólogos que
sustentam que o arco de apoio no solo surgiu antes do arco de caça, lan
çando a teoria de que é possível que o cavalete ficasse solto, impelido de
encontro ao chão pela corda. A conseqüência natural foi fazê-lo portátil.
A afinação de placas de pedra, lascando-as cuidadosamente, também O tam bor falan te é um dos
é muito antiga. Tais pedras afinadas foram encontradas no Vietnã e no mais antigos m éto d o s de
com un icação a longa
Camboja, onde a arte de percutir tiras de madeira, metal e pedra afinadas
distância, na África. Este
continua sendo a base de uma arte musical aprimorada, encontrada nos p ed esta l d e um tam bor ifa é
conjuntos de gamelões no Camboja, Java e Bali. Existem conjuntos chine proveniente da área de
ses de pedras afinadas que sabemos ter mais de três mil anos. Instrumentos Yoruba, na Á frica d o N orte.
O PALPITAR DA VIDA
de tipos semelhantes ao do xilofone surgiram na África, onde se usava
madeira em lugar de pedra. A versão contemporânea é o balafon senegalês,
entre outras. O metal surgiu mais tarde, tanto na África como na Ásia, e
atualmente é a base não só do gamelão como também da sansa, ou piano
de polegar da África, que já era um iastrumento aperfeiçoado na época em
que os primeiros viajantes europeus alcançaram aquele continente.
1 0 • A MÚSICA DO HOMEM
mente, também de galhos e cascas de árvores, embora destas últimas não
haja remanescentes. Na Escandinávia e na Romênia ainda são feitas flautas
de salgueiro pela descorticação cuidadosa de um pedaço inteiriço de um
galho verde. O instrumento proporciona o mais liqüido dos sons e, no
entanto, dura apenas de dois a três dias, até que a casca comece a secar.
As substâncias naturalmente ocas, como o bambu, têm servido de flautas
e tubos de percussão há muito tempo, fazendo parte do conjunto de game-
lões. A argila se tornou uma substância útil para fazer flautas, porque
podia ser moldada e submetida à queima, método descoberto no início
da Idade da Pedra. A ocarina, que se tornou popular desde a passagem do
século, é uma flauta de argila queimada.
A flauta de salgueiro é tocada sem orifício para os dedos; e soprada
através de um bocal ajustado ao tubo, usando-se um dedo para abrir e
fechar a outra extreínidade. O resto se faz por variação da pressão do
fôlego. Essas flautas são encontradas em toda a Europa Oriental e no
Oriente Próximo, muitas vezes sopradas diretamente pela extremidade
aberta, como se fosse uma garrafa. Houve uma época, no final da Idade da
Pedra, em que fileiras de tubos de um único som eram ligadas para formar
uma série ou escala - algumas vezes damos a este instrumento o nome de
flauta de Pã. Os chineses têm uma que se chama sheng-, seus tubos são
dispostos em círculo e acionados através de um orifício central para o
sopro. É possível que a reputação da China como sendo a criadora do pri
meiro órgão tenha origem nesse instrumento. No sul da África existem
sociedades que criaram verdadeiras orquestras de flautas de Pã. Na Romê
nia, a flauta de Pã é chamada de nai, e seus executantes alcançaram extra
ordinário virtuosismo. As flautas também são feitas em pares para um
único executante; algumas vezes são entalhadas na mesma peça de madeira,
e chamadas de macho e fêmea. Com um habilidoso interjogo de mãos, o
executante pode tocar duetos em que cada flauta cobre Uvremente uma
amphtude bem acima de uma oitava. Esses instrumentos continuam sendo
populares entre os árabes.
Com os chifres de animais, a coluna de ar é vibrada pelo uso dos
lábios. A trompa tinha um alto poder de alcance e era amplamente usada
como sinal. A forma da abertura da trompa foi sendo aperfeiçoada durante
muito tempo, até chegar ao ponto de produzir mais do que um ou dois
harmônicos acima dos fundamentais. O chifre do carneiro, conhecido
como shofar, é usado na cerimônia que comemora o Ano Novo judeu. Por
fim, foram acrescentados orifícios para os dedos, como na flauta, a fim de
ampliar o alcance da trompa. As trompas longas são usadas não apenas
para fazer música, mas também como uma forma de telefone ou sinal,
desde os Alpes Suíços até o Tibete, Nova Guiné, Amazonas e Japão - uma
forma esplêndida de comunicação, de montanha para montanha, de vale
para vale. Essas trompas, que algumas vezes chegam a ter de duas a três
vezes o comprimento de um homem, proporcionam um som rico, pro
fundo, que se ergue para harmônicos de grande doçura.
O bocal vibrante de bambu, quase tão velho quanto a flauta e a trom
pa, substitui os lábios ou palheta e faz vibrar a coluna de ar. Os instrumen-
O PALPITAR DA VIDA • 11
o
V
A trom pa, fe it a p e lo hom em ,
ou retirada d o animal, tem
sid o um instrumento musical
desde o s tem pos pré-históricos.
E stes cinco ex em p los (n o
sentido horário) m ostram
duas crianças em S ikkim
tocando trom pas d e um m etro
e oiten ta d e com prim ento,
cujo n om e é narsing, usadas
no N epal para celebrar
casam entos; a trom pa alpina
suíça, q u e servia c o m o um a
fo rm a prim itiva de telefo n e;
um m onge n o so p é d o M onte
E verest ven dendo p rec es; e
um m úsico em G âm bia
tocando no c o m o de
um an tílope.
1 2 • A MÚSICA DO HOMEM
o PALPITAR DA VIDA * 1 3
tos de palheta parecem ter tido origem no Oriente Próximo, talvez em
conseqüência da mudança de clima no final da Era Paleolítica, cerca de
oito ou nove mil anos a.C., que marcou o término da última grande Era
Glacial. Em seu auge, o gelo havia alcançado a Europa Central e a metade
sul da América do Norte. À medida que o gelo foi se afastando, o nível da
água se elevou, cobrindo as terras baixas do Oriente Próximo, formando
alagadiços onde as plantas tubuliformes se multiplicaram. Um pedaço de
uma dessas plantas, achatado com um martelo, pode ter sido a mais antiga
embocadura de um instrumento. Dois pedaços achatados são amarrados
juntos e seguros pelos lábios. Os tocadores descobriram que os caniços
tendiam a se deteriorar com a umidade freqüente; cobriram-nos com um
tubo e um bocal que impediam o contato direto dos lábios com a peça
— uma solução encontrada na charamela e na gaita de fole medievais. Mas
uma outra solução era colocar a peça inteira dentro da boca, colocando os
lábios contra um bocal, como no aulo grego e em muitos instrumentos do
Oriente Próximo.
Não muito depois da Era Paleolítica, podemos começar a usar a
palavra civüização para descrever as atividades de comunidades humanas
aglomeradas nas áreas da Babilônia, Suméria e Egito. Conseguira-se domi
nar uma nova técnica — a de misturar estanho e cobre para formar o
bronze. O fogo ainda era essencial para a sobrevivência nos invernos rigo
rosos, embora seja provável que, na época da culminância da civilização
egípcia, vários séculos mais tarde, o clima do mundo fosse, geralmente,
mais quente do que hoje. O fogo era usado na fabricação de ferramentas
de metal e as técnicas usadas para a produção de copos e cubas de bronze
também serviram para criar instrumentos derivados do chifre de animais.
O mais antigo de que dispomos chama-se lur, nome baseado na antiga
palavra norueguesa para designar chifre. Os celtas o conheciam como
cam yx. O Egito fazia instrumentos de prata e ouro. Duas trombetas de
prata de 1320 a.C. foram encontradas no túmulo de Tutancâmon, em
1924, e uma delas ainda produzia um bom som.
O verdadeiro latão, como o conhecemos, somente foi fundido depois
de 500 d.C. Depois do latão, surgiu mais um tipo de fazedores de ruído,
representado pelos instrumentos de percussão, como o címbalo e o gongo.
Tornaram-se, com os sinos, parte da vida religiosa no Oriente Próximo e
no Extremo Oriente. Esses sons já eram populares no Egito, com o sistro,
uma pequena armação para segurar com a mão, com cabos prendendo
discos de metal de várias formas. O sistro ainda é usado na América Latina.
O címbalo moderno só passou a ter seu som característico depois que a
técnica de trabalhar o latão foi dominada, porque o índice de vibração
natural do latão é muito maior do que a do bronze ou do ferro. O latão é
menos suscetível à deterioração, embora todos esses três metais continuem
sendo amplamente utilizados nos gamelões do sudeste da Ásia.
A reunião de instrumentos em conjuntos parece ter sido do agrado de
algumas culturas, ao passo que outras preferiram o som puro de uma só
família de instrumentos de cada vez, ou até mesmo do solo de um instru
mento. Com a técnica da fabricação veio também a técnica do desempe-
1 4 • A MÚSICA DO HOMEM
nho. O domínio de um único instrumento podia tornar-se a ocupação de
uma vida inteira, pois há no mundo poucas tarefas que sejam mais especia
lizadas. Apesar da suposta devoção de um músico ao seu instrumento, é
surpreendente que saibamos tão pouco a respeito da evolução dos instru
mentos no Ocidente. A razão pode estar, em parte, na mudança de atitude
que se operou desde a época do Império Romano, com uma tendência a
despojar gradualmente os instrumentos de suas reputadas propriedades
mágicas. A música associava-se aos mistérios sagrados, uma coisa dando
status especial à outra. Alguns dos mais antigos instrumentos subsistiram
simplesmente porque foram enterrados juntamente com outros pertences
nos túmulos dos governantes, onde podiam ajudar a abrir o caminho
para o céu.
Tanto a China como a Grécia equiparavam música com moralidade;
esta era um símbolo para o bem no homem. Confúcio, por volta do ano
500 a.C., disse: “O caráter é a espinha dorsal da cultura humana. A música
é o florescimento do caráter”. Os instrumentos que produziam música sob
a condução humana eram considerados como um elo com o divino e o
eterno. Naturalmente, os objetos musicais tinham que ser preservados, em
uma sociedade na qual o culto da tradição e do ancestral desempenhava
um papel central. Possuir um instrumento verdadeiramente antigo era N o Nepal, tanto as trom pas
co m o os co rp os d os tam bores
como possuir um pedaço da alma de um antepassado, tocando com outros
são fe ito s d e bron ze; o
dedos onde os dele haviam tocado. No Ocidente, porém, os instrumentos trabalho nesse m etal continua
musicais passaram lentamente a ser identificados com o imediato e o tran sen do um a arte aprim orada
sitório, e assumiram novos valores. em toda a Asia.
O PALPITAR DA VIDA • 1 5
Já que a música consiste em vibrações audíveis, eu gostaria de analisar
nossos ouvidos, por um momento. Que instrumentos extraordinariamente
exigentes eles são, e como são incansáveis, constantemente buscando satis
fação, jamais repousando. Acho que é simbólico o fato de termos pálpe
bras nos olhos mas não nos ouvidos — não há meio de bloquear ou desligar
todos os ruídos que nos cercam. Nossos ouvidos nos despertam do mais
profundo sono; e é reservado ao surdo — que julgo ser a mais solitária das
pessoas - conceber um mundo de silêncio total. Na melhor das hipóteses,
nossos ouvidos podem detectar sons que vibram a menos de trinta bati
mentos por segundo, continuando em ascensão além de quinze mil por
segundo. Mas esses sons são apenas parte de um contínuo muito mais
longo de vibrações encontradas através do universo, algumas das quais
podemos ouvir como batimentos distintos — por exemplo, o batimento
cardíaco, cuja média é de setenta e dois por minuto —, e algumas que
apenas podemos ver, como as ondas do oceano, o ciclo do dia e da noite,
Durante milênios, a violência as fases da lua, a mudança das estações do ano.
das fo rça s naturais neste Outras vibrações estão além de nossos sentidos conscientes, embora o
planeta não se abrandou de ciclo de onze anos das manchas solares nos afete, dando origem a terre
fo rm a a o ferecer con dições motos, rompendo icebergs, e até influindo — por incrível que pareça —
adequadas à vida. Os ocean os,
sobre os melhores anos dos bons vinhos franceses. O universo nos oferece
ricos em todos os elem en tos
quím icos, fo ra m um m eio ondas muito mais rápidas também, fluindo através da matéria e através de
ideal para este evento nós mesmos como se nada encontrassem, e ondas que se movem tão
m iraculoso. devagar que levam anos para passar através de nós. O som está no núcleo
1 6 • A MÚSICA DO HOMEM
do ciclo de vibrações, começando exatamente onde cessa o tato e termi
nando exatamente antes de começarem as ondas de rádio. Creio profunda
mente que a música nos ajuda a manter contato com todo o mundo de
vibrações e, dessa forma, faz com que nos concentremos em nosso proprio
ser. Quando soam as notas mais graves no grande órgão da igreja, sentimos
as vibrações em todo o nosso corpo; o violino, produzindo sons que vão
até sete oitavas acima, também nos penetra, certamente.
O PALPITAR DA VIDA • 1 7
nervoso, como na agua-viva. A audição so apareceu depois da consciência e
emoções simples, e mostrou-se uma grande mestra, ligada de modo singular
a todos os nossos estados emocionais — à dor e ao prazer, ao acasalamento
e à caça, à exploração e à fuga.
1) .
Muitos animais podem ajustar o ângulo de suas orelhas para captar sons,
do mesmo modo que o gigantesco radio telescópio em Jodrell Bank enfoca
tênues pulsações do espaço longínquo. Isto me leva a mais uma de minhas
teorias idiossincrásicas: a de que toda consciência em tempo-espaço é
simplesmente uma questão de grau. Não é algo que o homem adquire
subitamente, no momento em que nasce; antes, pode ser comparado a
diferentes graus de temperatura, ou à diferença entre um sólido, um
liqüido e um gas. Acredito, também, que a consciência se assemelha a
sensibilidades que podem ser medidas em uma rosa ou até mesmo em uma
pedra. Muito antes de haver vida, os elementos de que o nosso mundo é
feito respondiam a todos os tipos de vibrações — desde as reações quí
micas, as forças magnéticas, até a atração da gravidade, os ciclos de luz e
trevas. Em algum ponto dentro de nos, creio que conservamos uma sensi
bilidade orgânica a essas mesmas ondas. A partir do momento em que
apareceu nosso mais primitivo estado de consciência, ele já se achava
afetado por eâsas forças; o sentido principalmente inconsciente de “eu
sou” é mais do que instinto animal, assim como também é mais do que
intelecto humano. Através dele, julgo que estamos irrevogavelmente vin
culados ao universo - tanto quanto qualquer rocha ou planta. Não consigo
conceber nenhuma outra maneira de entender experiências amplamente
documentadas, como a telepatia e a precognição.
1 8 • A MÚSICA DO HOMEM
querer continuar inteira, mesmo quando se suprime parte de uma folha ou
se amputa um membro; é como se a aura tivesse vontade própria.
A fotografia kirliana mostra que quando uma nova pessoa entra em
uma sala, sua aura e a das pessoas já presentes são submetidas a uma
mudança, ligada aos estados emocionais dos indivíduos. Reagimos aos
outros “sentindo suas vibrações”, assim como o fazemos ao som de uma
voz amiga ou hostil. Profundamente dentro de nós está o som, que nunca
silencia, de nossas próprias vibrações, o qual podemos ignorar, mas que é
o núcleo miísical em todos nós. Vibramos como a corda intocada do
violino que está ao lado de sua vizinha, vibrando por simpatia, embora não
seja tocada pelo arco.
O PALPITAR DA VIDA • 1 9
Utensílios de cozinha 100 decibéis
Segadeira motorizada 107 decibéis
Arrebitador pneumático 118 decibéis
R o ck an d roll amplificado (2 metros) 120 decibéis
Avião a jato (30 metros) 130 decibéis
Essa lista nos faz pensar de modo impressionante no ruído que atualmente
nos cerca, e no paradoxo que é o fato de que as pessoas, exercendo muito
menos esforço físico do que antes, individualmente ainda tenham que
agüentar muito mais ruído.
Schafer tambem fez uma lista de numerosos sons que são apreciados
por uns e detestados por outros, como, por exemplo, os sons da trovoada
ou da noite, que em tantas partes do mundo são considerados como amea
çadores ou agourentos. E, no entanto, na Nova Zelândia, onde nem o risco
do fogo nem a guerra provocada pelo homem são perigos tão imediatos,
esses sons são considerados aceitáveis e até agradáveis. Temos reações
diferentes aos sons industriais: o ruído suave de uma máquina a vapor é
apreciado pela maioria das pessoas — som que atualmente quase desapa
receu - , ao passo que, em geral, o som de um avião não o é. Schafer
mostrou que nossa reação aoS sons pode ser afetada pela eliminação de sua
associação visual. Quando ele fez gravações muito próximas de um moinho
comum de café, a maioria das pessoas o confundiu com o de um instru
mento de tortura. As atuais formas aperfeiçoadas de tortura submetem o
prisioneiro ao som de outras pessoas gemendo em agonia. A imaginação
faz o resto, e muitas vezes a vítima é reduzida a uma rendição abjeta em
uma ou duas horas.
De minha meninice em San Francisco, lembro-me do som baixo das
balsas fazendo seu percurso através da baía no meio da neblina. Eu também
gostava do lamento choroso da locomotiva a vapor, e adorava os maravi
lhosos anunciadores de trens nas estações com sua litania de nomes de
cidades, cantados como rosário ou como as recitações do Talmude ou do
Alcorão. A locomotiva diesel não tem o mesmo atrativo. A serra de cor
rente usada pelos cortadores de troncos pode produzir um nível de ruído
quase igual ao do mais barulhento avião a jato — um som que excede todas
as proporções humanas. O ruído de um castor roendo não é desagradável,
e é natural.
Murray Schafer nos oferece uma nova abordagem do silêncio e dos
sons de fontes inesperadas. Tivemos oportunidade de nos encontrar
durante um dia quase inteiro, ha não muito tempo, e ele havia preparado
uma surpresa para mim em um velho e bonito celeiro, parte de sua casa no
interior, ao norte de Toronto. Murray Schafer é um compositor mas tam
bém concebeu uma nova ciência, uma nova arte, a que dá o nome de
soundscapes (paisagens sonoras). Algumas envolvem executantes, outras,
sons gravados em fita; mas a que me apresentou era inteiramente inespe
rada. Era parte de nossa exploração conjunta da natureza do som e da
audição física e musical. Embora eu ja tivesse ouvido falar das paisagens
sonoras de Murray Schafer, jamais tinha imaginado o quanto podiam ser
interessantes.
2 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Schafer: — Você estava falando da paisagem sonora do campo, do som
bonito que o vento produz em diferentes espécies de árvores.
Menuhin: — Adoro o som dos álamos, porque eles têm tantas folhas. Elas
não são rijas, e cada uma parece sussurrar livremente.
Schafer: — As sempre-verdes são diferentes; elas são muito mais rijas e
fazem uma espécie de movimento de turbina. É o que eu chamo de paisa
gem sonora hi-fi, em que a razão entre sinal e ruído é bastante favorável.
Há poucos ruídos aqui; por isso, cada som pode ser ouvido a uma grande
distância. Em compensação, a cidade é uma paisagem sonora de low-fi. Há
tantos ruídos, que é difícil dizer o que são os sinais.
Menuhin: — O índio norte-americano sabia de tudo isso. Provavelmente
ele era capaz de interpretar os sons melhor do que qualquer outra raça.
Schafer: — Sabe por quê? Porque ele vivia em uma floresta densa como
esta, onde você tem de confiar em seu nariz e ouvidos para captar informa
ções sensoriais de importância vital. Quando você não pode ver o que está
a mais do que dois metros, em qualquer direção, os ouvidos se tornam
terrivelmente importantes.
Menuhin: — Considero uma tragédia o fato de os colonizadores da Amé
rica do Norte se terem privados dessa percepção intuitiva, do senso de
pertencer a este país. Se os colonizadores tivessem se casado com os índios
ao invés de os matarem, se tivessem trocado conhecimentos, teríamos sido
uma civilização mais rica. Mas eles tinham uma concepção de propriedade
diametralmente oposta. O índio achava que a floresta, as campinas e os
rios eram livres, como agora achamos que o ar e a água são livres — perten
centes a toda a humanidade.
Schafer: — É também a questão da diferença entre espaço acústico e
espaço visual. Você pode demarcar linhas de propriedade, mas o espaço
acústico é simplesmente a área pela qual o som passa. Você o tem num
certo momento, mas jamais pode possuí-lo.
Agora, quero mostrar-lhe este riacho, se ainda houver alguma água,
porque é um dos sons mais bonitos. Se você mudar as pedras, mudará tam
bém o som. Um exercício que às vezes dou a meus alunos é fechar os
olhos e procurar descobrir, ouvindo, de quantos lugares diferentes a água
vem ao mesmo tempo. Podemos ouvi-la bem aqui, mas também de muitos
outros lugares mais adiante. Às vezes você pode ouvi-la saindo de quatro
ou cinco pontos diferentes. Faço os alunos procurarem esses pontos.
Menuhin: - A descrição disso, naturalmente levaria à poesia. É preciso
encontrar as palavras que captem a melodia e o ritmo. Os maometanos
usavam a água, para ter o som de uma fonte dentro de casa, correndo
através de suas salas.
Schafer: — Poderíamos usar a água de muitas outras maneiras interes
santes. É inimaginável o que seja uma fonte no centro de uma cidade,
tentando aquietar ou conter o trânsito.
Menuhin: — Sentimo-nos orgulhosos do poder da água, como em Can-
berra, na Austrália, onde há uma fonte enorme — ou no Lago Genebra.
Mas a diferença entre essas fontes e uma queda de água no Yosemite é a
mesma diferença que há entre o dia e a noite.
O PALPITAR DA VIDA • 21
Schafer: - Os jardins da Renascença usavam água, como a Villa d’Este,
por exemplo, com todos aqueles diminutos tanques e pequenos chafarizes
maravilhosos, todos fazendo jorrar água em diferentes tipos de superfície.
Isso era feito por pressão hidráuHca, enchendo um espaço com água que
impelia o ar para fora e corria em tubos que se erguiam para os pássaros e
árvores artificiais.
Menuhin: — Temos grandes sinfonias, música maravilhosa, mas os músi
cos tendem a esquecer sua relação com a natureza, que tem um som que
lhe é próprio. A música deve ter surgido a partir de sons naturais que se
im puseram a n ossos o uvid os, e d aqu eles que ouvim os co m nosso ouvido
interior, em silêncio.
Schafer: - A emoção de dentro e a harmonia de fora. Você percebe,
quando entra nesta floresta de sempre-verdes, como o som se modifica?
Você começa a ouvir não apenas um ciciar, mas um rugir brando que se
transforma quase impetuosamente em um vento forte, muito diferente de
uma floresta de árvores de folhas caducas. Há pássaros por todos os lugares,
uns longe, outros perto. Na cidade, você não ouviria cães latindo tão ao
longe como ouvimos há pouco.
Menuhin; — O que me aborrece quando estou viajando é uma sensação de
distanciamento com relação àquilo que meus olhos e todo o meu ser gosta
2 2 • A MÚSICA DO HOMEM
riam de compartilhar. Vemos montanhas e rios, passamos através de cam
pos adoráveis, mas enquanto não sentimos e não experimentamos o gosto,
a paisagem permanece divorciada, quase como se aparecesse na tela de um
cinema.
Schafer: - Quando eu viajava de trem através das Montanhas Rochosas,
não faz muito tempo, estavam tocando Muzak. Sentei-me no carro-belve-
dere olhando a paisagem esplêndida, e, ouvindo a música de Muzak, era
como se estivesse assistindo a uma conferência filmada sobre uma viagem.
Agora, se você passar por esta velha tábua e ocasionalmente olhar para
baixo, verá que está pisando no desconhecido. (Entram no celeiro.)
Menuhin: - Em Londres e Gstaad eu passeava descalço pelo jardim todas
as manhãs. Gosto de sentir a grama sob os pés. E gosto do cheiro deste
celeiro. Só sinto falta da vaca e do burro. Aqui ainda há traços de seus
antigos habitantes quadrúpedes. Ora, mas o que é isto? É celestial, está
aberto para o céu. As pessoas não compreendem que felicidade é viver
sem paredes.
Schafer: - Originariamente estas paredes eram feitas de toras encaixadas.
Todos os encaixes caíram. Nós as restauramos. Mas, agora, vamos começar.
De onde está vindo este som? Tente imaginar.
Menuhin: — Está lá.
Schafer: - Não. Aquele não é o que você está ouvindo. Aqui está.
Menuhin: - Ah, é claro!
Schafer: - Você pode ouvir o som leve quando o prego bate, depois o
mais pesado. E estes também, um pouco menos, porque todos estão se
mexendo.
Menuhin: - O extraordinário é que eles são ativados somente por um
pequeno puxão nestas cordas.
S c h a fe r: - S o m e n te p elo p ên d u lo . P o rém , h á u m a p arte m ais co m p lica d a .
Está vendo esta gangorra? Por enquanto não suba nela. Apenas movimen
te-a para cima e para baixo, e veja o que acontece.
Menuhin: - Ora, veja só! Eu gosto dos objetos em si; são maravilhosos.
Esta é a apoteose de nossa civilização. É o lugar onde deveriam estar todos
os aros de rodas de automóveis e todo o metal velho enferrujado — cum
prindo sua mais alta função estética.
Schafer: - É seu uso para um fim que jamais se sonhou que fosse pos
sível.
Menuhin: — Um fim muito melhor, creio eu. Aquela é uma serra musical,
não é? Quando a curvamos, obtemos um som aquoso, liqüido.
Schafer: — Veja estas enormes lâminas de serra. Cuidado com a cabeça.
Quando esta bate, aquela se movimenta. Tudo trabalha com a gangorra.
Três arames se movimentam por cima, e quando aquela bate nesta, conse
gue-se um grande efeito de gongo.
Menuhin: - Sempre adorei os gongos.
Schafer: — Depois, há um prego que a arranha, para um efeito posterior.
É uma revitalização.
Menuhin: - A complexidade do ritmo é extraordinária.
Schafer: — Quando iniciamos, foi esse o problema: estabelecer um som e
O PALPITAR DA VIDA • 2 3
acrescentar um segundo como contraponto para o primeiro. Não há mo
tivo para que tudo seja executado de uma só vez. Um objeto é projetado
fixando-se em uma extremidade e, assim, desencadeia algo que começa a
se movimentar suavemente e, com isso, tem início algo mais.
Menuhin: - Há certas coisas que mal posso esperar para ouvir. Acho que
ainda não ouvi o piano.
Schafer: - Bem, estas coisas sobre os fios fazem uma dança sobre o topo
das cordas do piano, ao acaso. Algumas vezes funcionam.
Menuhin: - (rindo) É a melhor maneira que já vi de utilizar um piano.
Schafer: — Era um piano velho.
Menuhin: - E durará para sempre; muito mais do que os que precisam
ser afinados o tempo todo.
Schafer: - Esta serra musical funciona do mesmo modo que a outra; ela
arranha este ponto, movendo-se para cima e para baixo. É estranho como
um velho pedaço de metal como este produz tantos sons. E agora, estes
pequenos sinos, com uma tonalidade bastante forte. Sabe qual é o segredo
para descobrir essas propriedades? Se você simplesmente fosse a um ferro-
-velho e apanhasse coisas como estas, e as batesse umas nas outras, não
conseguiria som algum. É preciso encontrar o nódulo certo na coluna que
vibra. Se você segurar uma extremidade, por exemplo, e bater a sua contra
a minha, perceberá a diferença. A parte intermediária está morta. Há um
aro nos nódulos, e se você ligar arames neles, terá ressonância.
Menuhin: - Isso está longe de ser casual; cada um está fixado no lugar
preciso. É um trabalho de arte.
Schafer: — Trabalhamos arduamente para encontrar esses lugares certos.
Menuhin: — Não é maravilhoso levar uma vida que lhe dê tempo para
fazer coisas assim?
Schafer: - É a restauração das propriedades sonoras originais em ferro-
-velho.
Menuhin: - Ninguém suspeitaria que há uma vida inerente a cada objeto.
É por isso que gosto da atitude dos africanos e dos druidas - acreditam
que cada objeto foi habitado e que não podemos entrar em contato com
ele, se não o escutarmos. Tudo tem uma vibração e, se não podemos entrar
em contato, não nos satisfazemos.
Schafer: - É um belo antídoto para toda a feitiçaria eletrônica.
Menuhin: — Quando menino, em San Francisco, eu adorava os carrilhões
japoneses a vento. As lojas costumavam ter pequenos pedaços de vidro
pendurados nas portas, que produziam um bonito som com a brisa.
Schafer: - Estes aqui giram suavemente, presos pela parte de cima, de
forma a que mal se toquem.
Menuhin: — Para meu horror, uma vez estive em uma fábrica de cordas.
Quase fiquei surdo. Não sei como as pessoas agüentam.
Schafer: - De tudo isso, este gongo é o que produz um dos sons mais
violentos - é muito agressivo. Mas com um prego que apenas o arranha, há
um efeito posterior. Você pode obter dois sons diferentes de uma única
superfície. Assim como o piano.
Menuhin: - Como violinista, sinto um prazer maldoso em ver o piano
2 4 • A MÚSICA DO HOMEM
reduzido a esse som idealizado que não me afoga e que está em perfeita
afinação com o violino — não a horrível escala temperada que o mata.
Schafer: — Existem lugares na Bulgária onde você ouve os pastores can
tando em segundas maiores e menores. Certa vez, um musicólogo búlgaro
me disse que isso também se deve ao fato de ouvirem os cincerros das
vacas e das ovelhas. Eles gostam é do ritmo; captam-no com os ouvidos e
ele ressurge em sua música vocal. Agora, segure este tubo com seus dois
dedos para que possamos encontrar o ponto nodal.
Menuhin: — E se passar vento através dele? Pode-se soprá-lo?
Schafer: — Eu costumava tocar trompete. Quer experimentar?
Menuhin: - Não consigo obter quaisquer outros harmônicos.
Schafer: — Mas você os sente na cabeça toda.
Menuhin: — Até mesmo com o violino, quando se toca delicadamente,
sentem-se as vibrações nos ossos, e você sabe onde deveriam estar.
Schafer: - Você não acha que essa é a diferença entre fazer música e
ouvi-la? Quando você a faz, você se torna um mecanismo que vibra. Isso
não acontece quando você está escutando.
Menuhin: - Agora, o que acontece se uma pessoa se sentar na gangorra?
Schafer: — Começa tudo de uma vez. Vamos nos sentar lá, dar partida ao
impulsor principal. Cuidado com a cabeça. Você senta primeiro. Agora, dê
um pequeno impulso.
Menuhin: - De um certo modo, esta é a parte mais bonita, porque nós
ouvimos os sons individuais pararem quando nós paramos.
Schafer: — Vamos escutar para descobrir qual é o último som que ou
vimos.
Menuhin: — Esta é uma aula sobre escutar, algo que deveria ser ensinado
a todas as crianças.
Schafer: — Na realidade, o que as crianças deveriam fazer é construir um
aparelho destes, porque assim descobririam todas as propriedades do som
inerente aos objetos.
Menuhin: — Isto as ensina a aprimorar sua audição, a tentar compreender.
É uma aula de tolerância e compaixão. Quando foi que você o montou?
Schafer: — Há poucos dias. Preparei-o para você. íamos ter uma entre
vista e, por isso, decidi fazer uma gangorra. Veja a violência naquela extre
midade.
Menuhin: — Gosto do contraste da arvorezinha.
Schafer: - Ainda não a ouvi. Vamos escutar somente a árvore. Sutü, não
é? Devemos arranjar um jeito de colocar aquela árvore para cima, para que
ela possa soar depois. Algumas vezes temos pássaros aqui, as andorinhas
que penetram no celeiro. Talvez elas sejam atraídas pelas altas freqüências.
Elas escutam e fazem sons juntamente com a escultura. É bonito.
Menuhin: — Você treinaria crianças dessa maneira?
Schafer: — Estivemos falando anteriormente sobre a necessidade de ensi
nar as pessoas a “limpar” seus ouvidos. “Claraudiência” é o nome que dou
a isso, ou audição limpa; significando literalmente “ter poderes especiais
de audição” . Pode-se chegar a isso por meio de exercícios. As pessoas
podem ser ensinadas a escutar discriminatoriamente, começando por
O PALPITAR DA VIDA • 2 5
distinguir sons simples: por exemplo, quantos sons você ouve em um dado
momento. É um exercício que dou às crianças muitas vezes.
Menuhin: - Você também as leva ao que chama de “paisagens sonoras”
na cidade.
Schafer: — Levo-as a passeios de escuta, onde um grupo segue como um
bando e, naturalmente, todos falarão. Por isso eu lhes digo: “Quero que
um caminhe atrás do outro, de forma que dê apenas para escutar o ruído
dos passos de quem está à frente”. As crianças gostam de fazer isso -
escutar o ruído dos passos; isso as faz entrar em um casulo particular.
Menuhin: — É uma caminhada indiana, uma fila única. E no final, as
crianças fazem um relato? Você pergunta pelos sons mais altos, mais
baixos, mais intensos, mais bonitos e mais desagradáveis?
Schafer: — Sim, e também faço perguntas como: “Você pode pensarem
três sons que levou consigo no passeio?”. Em outras palavras, alguns sons
no espaço se movimentam ao seu redor, e outros você mesmo coloca no
espaço. Alguns sons se movem e outros são estacionários. Posso perguntar:
“Você consegue pensar em um som que teve origem na janela do segundo
andar acima de você?”. Perguntas deste tipo fazem a pessoa pensar detida
mente sobre o que ouviu. Isso é o começo. Talvez não seja exatamente
educação musical, mas sensorial.
Menuhin: — A sutileza é extraordinária. Aqui você tem objetos metálicos
que fariam um som brutal se fossem percutidos diretamente, mas da ma
neira pela qual estão pendurados, quanto mais livremente girarem, se arra
nharem e se roçarem, mais sutis se tornarão as distinções. Imagino que
cada vez que você constrói algo assim, a coisa cria asas e sai de suas mãos,
pois a cada vez terá um outro caráter.
Schafer: — É como qualquer trabalho de arte. Você tem um gesto hvre;
pode começar com qualquer coisa que deseje. Porém, uma vez que tenha
pendurado uma peça e a tenha percutido, tudo o que se segue vem dessa
escolha. Você se engaja, e a partir de então as coisas acontecem por si.
Menuhin: — Visualmente, as peças pesadas estão no centro: o gongo que
é mais alto e a pedra que dá início ao movimento de tudo. Os sons mais
bonitos se reúnem de um modo curioso. Quando você pensa naquüo que
estas peças de metal enferrujado foram anteriormente - partes brilhantes
de um motor a explosão, ou sabe lá Deus o quê —, acho que ninguém colo
caria objeções a venda de armas e de aviões de caça supersônicos, sabendo
que atingiriam esse estágio de descorporificação. As gerações futuras leva
rão vantagem: escutarão os aviões de caça em velhos celeiros.
Schafer: — Imagino que os canhões, grandes objetos de metal, produzi
riam sons bonitos. Há uma longa história sobre os sinos de bronze das
igrejas sendo refundidos para fazer canhões nos tempos de guerra, e vol
tando a ser sinos de igreja nos tempos de paz. Assim, estamos apenas
fazendo a nossa parte, encontrando a alternativa para a destruição.
Menuhin: — Murray, acabo de ter um pensamento horrível. Você acha
que os ossos de Hitler ou de Stalin poderiam ter produzido um som inte
ressante ?
Schafer: — Um crânio humano! Gostaria de saber.
2 6 • A MÚSICA DO HOMEM
Menuhin: — Esta é uma contribuição das mais construtivas para a educa
ção musical. Assim os africanos abordavam qualquer objeto. Eles não
julgam pelo aspecto visual. Baterão no objeto até ouvirem o que e — uma
árvore, um objeto de metal, seja lá o que for. Adorariam este celeiro.
Schafer: - A sociedade em que os africanos vivem é auditiva. Eles des
confiam do visual. Talvez estejamos voltando ao mesmo tipo de coisa.
Menuhin: — Ativemo-nos durante muito tempo ao aspecto visual material,
onde apenas julgamos as coisas pela aparência e nos desligamos completa
mente de suas emanações. Naturalmente, esta é uma maneira muito mais
pagã de pensar, mas creio que o pagão está retornando, algumas vezes de
forma bastante brutal, mas outras vezes na sua melhor forma, isto é, deste
modo precisamente orgânico.
No ambiente de som que Murray Schafer criou em seu celeiro, seus tilin
tares aparentemente aleatórios trazidos à vida pela ação de percussores e
raspadores, objetos de ferro-velho reanimados como que por algum mágico,
interligados por uma rede de fios que se ligavam novamente à gangorra,
pensei novamente na relação entre os sons naturais e os sons feitos pelo
homem, que no mundo pagão eram tão interligados. Ocorreu-me que o
paganismo moderno também precisa atender ao morador urbano e, já que
passeamos entre arranha-céus, uma obra para solo de violino e ruído de
trânsito poderia ser hoje uma escultura sonora plausível, uma nova forma
de concerto. Afinal, no início deste século, os violinistas imigrantes nas
cidades do Novo Mundo estavam em condições semelhantes. O som de
um violino ao longe, arranhando pela rua abaixo, numa certa época foi
coisa familiar. Ao contrário, lembro-me de quando o ruído acidental de
uma sirene ou do sino dos bombeiros penetrava na sala de ensaios, pare
cendo algumas vezes que entrava na música no momento certo, até mesmo
no tom certo, integrando-se com ela, criando, dessa forma, uma “não-santa
aliança” entre o deliberado e o aleatório ou acidental. A aventura com
Murray Schafer me fez perceber nitidamente que nossos ouvidos estão
constantemente em estado de alerta. Para mim, só a audição é que restaura
a integralidade de nosso ser, e de certa forma, para um músico, contém um
propósito estético e moral.
O PALPITAR DA VIDA • 2 1
relatou que os dois picos mais universalmente reconhecidos eram a música
e o sexo. Naturalmente, ouvir música envolve julgamento, vinculação de
nossos sentimentos com nosso senso estético, o que também evoluiu
muito através dos tempos.
2 8 • A MÚSICA DO HOMEM
Palavras tais como “oitava” e “quinta” também são denominações
ocidentais aproximativas que entraram na linguagem comum em conse
qüência de nossas escalas maiores e menores de sete notas, amplamente
adotadas. Nesse sistema, a nota que vibra com velocidade duas vezes maior
do que uma outra é sempre encontrada oito notas acima na escala. A quinta
já é uma outra questão, porque a escala ocidental é formada de tons intei
ros e semitons, que, uma vez mais, são denominações aproximativas, e a
distância entre quaisquer cinco tons na escala nem sempre é uma quinta
perfeita. Provavelmente nosso sistema de escala foi derivado do círculo de
quintas, e não dos harmônicos, e esse círculo é fechado — quase.
Tanto quanto sabemos, os chineses foram os primeiros a examinar a
relação entre quintas. Os documentos que subsistem, anteriores a 3000 a.C.,
mostram a importância dessas relações. Eles constataram que uma série de
quintas em uma fileira produzirão doze notas distintas antes que estas vol
tem a se repetir. Essas doze notas colocadas em uma série incluem todos
os semitons de nossa escala ocidental. Começando na parte mais grave do
piano, o círculo pode ser tocado (o teclado é suficientemente extenso) e
será encontrada a décima terceira nota no alto, sete oitavas acima, que é a
mesma com que foi iniciado.
A descoberta do círculo de quintas foi gloriosa para os chineses, por
que para eles o número cinco é sagrado, dividindo os elementos básicos em
cinco: terra, fogo, água, madeira e metal; e também reconhecem cinco re
lações humanas básicas e cinco espécies básicas de grãos. Os chineses usa
ram o círculo de quintas para estabelecer a escala de cinco tons (penta-
tônica). A extensão dessa série em mais dois intervalos produziu as notas
necessárias para completar uma escala maior, como conhecemos no Oci
dente. A música baseada nessa escala de sete notas tornou-se popular na
China e, mais tarde, a música chinesa usou uma escala com todos os doze
semitons que conhecemos. Os chineses também desenvolveram uma forma
de notação musical. No entanto, a escala de cinco notas permaneceu sa
grada e foi mantida para a música que expressa os mais altos ideais morais,
éticos ou espirituais, ao passo que a escala de sete notas destinava-se à
música da corte ou da rua.
Para os chineses, a música era uma ferramenta para governar os cora
ções das pessoas. Diz-se na China que quando há música no lar, há afeição
entre pai e füho; e quando a música é tocada em público, há harmonia
entre as pessoas. Sua escala padronizada podia ser reproduzida em muitos
tipos de instrumentos, como por exemplo o kim, parecido com uma citara,
ancestral do k o to japonês, ambos ainda em uso corrente. No século VII
a.C., o poeta chinês Le Ly Kim escreveu: “A virtude é nossa flor predüeta.
A música é o perfume dessa flor”.
O PALPITAR DA VIDA • 2 9
rearranjados em uma série dentro de uma oitava, como por exemplo, Sol,
Lá, Si, Ré, Mi, onde formam a conhecida escala pentatônica chinesa.
Todavia, o círculo de quintas é uma dedução humana, não um fenômeno
natural. A natureza sempre tem suas coisas insóHtas, elementos que acha
mos que são enganos, que simplesmente não deveriam acontecer. Em
nossa arrogância, julgamos que temos que corrigir a natureza, tornando o
círculo quadrado. A beleza da natureza está em haver sempre um elemento
que dá margem a mistério, a desenvolvimento ou a evolução. Assim é com
o círculo de quintas, porque quando voltamos à nota com que iniciamos,
desde que as quintas tenham sido perfeitamente afinadas, constatamos que
essa nota se tornou um pouco sustenida. É um dos mistérios da natureza,
como o sabiam os chineses, por observação. Tivemos de esperar por Pitá-
goras para estabelecer a matemática precisa da diferença, atualmente
conhecida como coma pitagórica. Sua existência é um aspecto importante
da diferença entre a música ocidental e a de grande parte do resto do
mundo — nossa música sempre se baseou em intervalos puros ou naturais
(pelo menos até este século). Como veremos, o surgimento dos instrumen
tos de teclado — o órgão, o cravo e o piano — trouxe uma crise na afinação,
precipitada pelo conflito entre intervalos puros em uma tecla e em outra.
.4 fu sã o d o bron ze estava bem Como acontece com muitas outras coisas na vida ocidental, ajustamos
desenvolvida na China há a afinação a uma combinação incômoda, uma concessão ao teclado, com a
3500 anos, quando f o i
qual a voz e o instrumentista de cordas nunca se ajuntam totalmente.
fu n d id o este sino de tem plo
que agora se acha no Naturalmente, existem partes do mundo onde os intervalos impuros
Museu Britânico. constituem a regra, pelo menos para nosso ouvido, como no caso de Java e
Bali. Por outro lado, os indianos são os músicos que passam mais tempo
afinando. O florescimento da harmonia ocidental é uma de nossas únicas,
gloriosas e imperecíveis contribuições para a música, enquanto, ao mesmo
tempo, nossa capacidade para combinar e experimentar levou às abstrações
da música eletrônica, da música casual e do sistema de doze tons. Aqueles
cuja prática musical se baseia na pureza de intervalos, acabam tendo que
rejeitar os nossos, porque quando nossa harmonia é aplicada à sua música,
ela só produz monstros híbridos. A criação ocidental da escala “tempe
rada” , para a qual Bach tanto contribuiu, é um desses casos em que a incli
nação artística do homem é manifesta, ajustando a natureza para atender a
necessidades estéticas e práticas.
Para que a música nos fale, ela precisa de alguma coisa mais do que
da estrutura de uma escala, de intervalos ou até de nossas emoções. Neces
sita de uma forma reconhecível que corresponda a algo que está em nosso
ser. Freqüentemente tenho pensado que a mais primitiva forma musical
deve ter sido uma repetição simples, uma imagem dupla, mais ou menos
como as metades direita e esquerda de uma folha quando dobradas uma
sobre a outra. Reconhecemos a repetição de duas metades mais ou menos
iguais em um ritmo ou melodia, o que nos dá um senso de segurança e de
complementação, e com essa memória musical começamos a construir.
Uma vez que ouçamos um som podemos repeti-lo, de início criando um
ritmo simples. Quando colocamos alguns sons juntos em grupos ou frases
de tons relacionados, temos um início de melodia, uma combinação de
3 0 • A MÚSICA DO HOMEM
sentimento e lógica. Também podemos virar essas frases ou ritmos de baixo
para cima ou de frente para trás, porque uma das ferramentas básicas do
pensamento conceituai é considerar uma situação em seu inverso. Qual a
aparência do mundo quando estamos de cabeça para baixo? Como é que
nos sentimos andando de costas? As crianças sempre gostam muito de
fazer experiências desse tipo com seus sentidos.
A maravilha da música é que ela organiza nossos sentimentos em uma
ordem lógica. Meu colega Manfred Clynes se refere a essas organizações
como um sentic cycle. Ele escreveu um livro fascinante a respeito de seus
experimentos na mensuração desse ciclo, tanto dentro da música como
dentro de nós [Sentics, Manfred Clynes). Para o Dr. Clynes, o ciclo emo
cional clássico começa com a raiva e prossegue através do ódio, amor, sexo
e alegria, até que, finalmente, alcança reverência. A música pode recorrer
a quaisquer dessas emoções, a quaisquer dessas paixões. Porém, é quando a
música nos transporta através de um ciclo inteiro — afirma Clynes — que
ela dá o máximo de satisfação. Esse senso de tensão e distensão, com
efeito, está diretamente inserido na harmonia ocidental, na alternação entre
o maior e o menor. O acorde maior é o primeiro e único acorde puro que
encontramos nos harmônicos naturais; o maior é geralmente considerado
como alegre, e o menor como triste. Acredito que isso tenha a ver com o
fato de que o menor baixou o intervalo natural da nota intermediária no
acorde em um semitom artificial. Em Dó maior a nota intermediária é Mi, Duas m oças dançando e um
e em Dó menor esta nota se torna Mi bemol, onde colide com o Mi implí cantor são acom panhados
cito. O conflito não é tão forte a ponto de perturbar o vigor do acordé p o r on ze m úsicos sentados,
nesta coleção da Birmânia,
básico de três notas, mas perturba a série de harmônicos naturais que se
dem onstrando o g osto de
segue. E o que é tristeza? É uma divisão, um senso de que as coisas não muitas culturas p e lo som de
estão certas, de que queremos o que não podemos ter, ou deploramos o vários instrum entos diferentes
que não fizemos. Lamentamos a perda de alguma coisa, não estamos inte- tocan do juntos.
O PALPITAR DA VIDA • 31
grados conosco ou com o mundo. No acorde menor, essa perda é a pureza
da nota intermediária, que deseja elevar-se, tornar-se maior, unir-se outra
vez com sua série natural.
Mas não é sensato atribuir tudo o que diz respeito à descoberta da
harmonia, harmônicos e escalas apenas ao homem. Há não muito tempo,
tive uma experiência extraordinária na Ilha de Mykonos, no Mar Egeu, ao
sul do território principal da Grécia. Fora do porto de Mykonos há uma
pequenina Uha, habitada apenas por muitas e muitas abelhas. Há uma pe
quena praia em declive e, no ponto mais alto da ilha, uma pequena capela
de pedra para os raros visitantes. O terreno é um tanto rude, com um alto
penhasco que se eleva abruptamente onde a praia termina. Em um dia
de abril, quando eu estava caminhando pelo topo florido do penhasco,
escutando o zumbido das abelhas em sua faina de fazer mel, ouvi distinta
mente um som, que chamarei de fundamental, e um outro exatamente
uma quinta acima. Quando cheguei mais perto, parecia a meus olhos e
ouvidos que uma abelha maior estava produzindo o som mais baixo e uma
abelha menor o som mais alto. Pareceu-me extraordinário que tal ajusta
mento de sons pudesse ser conseguido por duas abelhas. Depois, a elas
juntou-se mais uma abelha, fazendo um som que caía exatamente entre os
outros dois; era, de fato, uma terceira acima do fundamental, estabele
cendo um acorde maior completo. Fiquei tão surpreso que tive de voltar
à tarde para me certificar; e lá estava ainda o mesmo som.
Diz o Talmude que no céu há um templo que só se abre por meio de can
ção. Uma outra prática antiga era contar histórias utilizando música. A
música ajuda a diminuir as barreiras da palavra e seu significado é realçado.
As grandes lendas épicas, desde as sagas islandesas até a N ibelungenlied e o
rom ancero espanhol, passaram de geração para geração através da palavra
falada, em parte graças à música. O canto ajudava os cantores a se lembra
rem mais facilmente da história. Milhares de versos eram gravados na me
mória pelos muitos poetas cujo trabalho atualmente atribuímos a Homero,
cada um cantando sua versão dos contos de Ulisses, mantendo viva a me
mória de uma civilização. Podemos imaginar o trovador grego sentado no
grande saguão cantando em uma reunião de nobres, enquanto a lareira
aberta conduz os caracóis de fumaça para o telhado. Preservar o passado é
uma função de todas as baladas do populário. Na Finlândia ainda se cantam
os contos do grande herói Lemminkainen do épico nacional, o Kalevala.
Foi graças a seus cantores que a própria língua finlandesa sobreviveu, por
que só depois da metade do século XIX é que ela foi padronizada em
forma escrita.
O astrônomo Harlow Shapley, já falecido, disse certa vez: “Em um
planeta de menor importância, circulando ao redor de um sol de segunda
classe em um pequeno sistema solar, na extremidade menos populosa de
nossa galáxia, longe das áreas densamente ativas do universo, parece-me
improvável que possamos ser o centro de alguma coisa”. Mas os seres
humanos são um grupo vergonhosamente autocentrado, e achamos nossas
histórias tão importantes, que destacamos especialistas para acompanha-
3 2 • A MÚSICA DO HOMEM
rem seus rastros — genealogistas e historiadores. Em algumas partes da
África, essas pessoas são os músicos chamados degríots, que cantam linhas
completas de famílias e histórias com detalhes minuciosos, tarefa para a
qual freqüentemente são bem pagos. Logo depois dos contadores de histó
rias vêm os padres, e a música é usada nos cultos em quase todos os lugares,
mesmo onde o culto é comunitário.
Bem recentemente um músico sírio em Paris, chamado Abed Azrié,
tentou reconstituir a música da antiga Suméria, tão ou mais antiga que a
do Egito. O fato de sua interpretação de tradições perdidas ser correta ou
não parece menos importante do que o fato de Azrié ter feito a tentativa.
Ele compôs um acompanhamento inteiro para o antigo épico oriental
Gilgamesh, provavelmente o mais antigo de todos os poemas épicos que
subsistem. Ele o fez depois de pesquisar extensamente as muitas versões
do poema em diversas línguas arcaicas e os documentos contemporâneos
que descrevem a prática da música naqueles tempos. Também estudou a
escultura e outras provas visuais da música na Suméria. Posteriormente,
Azrié se orientou pela familiaridade com as mais antigas tradições musicais
sobreviventes do Oriente Próximo, algumas das quais ainda preservam
histórias semelhantes às do Rei Gügamesh, que era considerado como um
Lam as sikkim tocam a palheta
semideus, e seu amigo pagão, Enkidu. É animador o fato de atualmente sacra, em um a cultura cujas
existir tanto interesse, mais do que em qualquer outra época da história, origens rem ontam aos tem pos
pela música do passado próximo e distante. pré-históricos.
O PALPITAR DA VIDA • 3 3
dEstamos vivendo em uma época em que começamos a entender que tudo
está ligado por graus. O homem primitivo provavelmente pensava que o
gelo, a água e o vapor eram coisas distintas, assim como, em outros tempos,
pensamos que a música nada tinha a ver com o ruído. Hoje compreende
mos que até mesmo o ruído e a luz têm um denominador comum — vibra
ções de velocidades diferentes. O homem primitivo encontrou música no
A m aior e mais antiga ruído — disso não tenho dúvida. Quando criança, lembro-me de ter ficado
lanterna japon esa de bronze
impressionado pelo ruído do trabalho, vendo os calceteiros quebrar pedras
é esta d o Salão D ourado d o
T em plo Todai-ji, em Nara, da pavimentação das ruas. Era maravilhoso ver como um erguia sua mar
inaugurado em 752 d.C., e reta, enquanto o outro baixava a sua, em uma sincopação natural, e eu
provavelm ente fu n d id a p elo compreendi que escutando os ritmos eles evitavam ferir-se um ao outro.
p rocesso d e cera que se Há uma validade universal nesta espécie de ritmo: é como nossa própria
perdeu. Um bodhisattva toca
corrente sangüínea, como o movimento dos barqueiros com seus remos,
a flauta. Há quatro desses
painéis. Uma única lanterna
ou como as mulheres batendo o trigo em enormes almofarizes, manejando
de bronze ou pedra, era dois ou três grandes pilões. É o ritmo daqueles gregos maravilhosos que
pendurada, habitualm ente, d ançavam sobre o círculo de pedras, ch am ad o aloni, para m acerar o trigo.
na fren te d o salão p rincipal
dos prim itivos tem plos
A vitalidade da música na vida cotidiana dessas civilizações primitivas
budistas n o Ja p ã o .
reflete-se constantemente na freqüência com que ela é utilizada como mo
tivo na decoração de utensílios caseiros. Alguns dos motivos mais bonitos
são encontrados nos vasos e urnas gregos e nos entalhes de túmulos, mesmo
desde o tempo de Homero. Devemos aos gregos algumas das descobertas
N o Kuwait, o grupo fo lc ló ric o
Al Arda canta e dança para teóricas mais fundamentais com respeito à música. O matemático Pitá-
com em orar as glórias passadas goras, cujo trabalho deu uma base científica à teoria musical posterior no
de seu p ov o, juntam ente com Ocidente, estabeleceu a conexão entre a música e a matemática. Seu traba
a vitalidade da cultura atual. lho foi redescoberto e reconhecido na Idade Média.
3 4 • A MÚSICA DO HOMEM
Nenhuma civilização teve a música em tão alta estima como a Grécia
Clássica; a música dominava a vida religiosa, estética, moral e científica. O
próprio termo para designar um homem educado e distinto queria dizer
“homem musical” ; ser chamado de não-musical era ser chamado de igno
rante. Música e poesia eram uma coisa só; poemas recitados eram entoados C ortejos reais acom panhados
e, algumas vezes, associados à dança. Infelizmente, pouco resta da música de instrumentos rem ontam
da Grécia Antiga. Conhecemos o teatro, a escultura, a arquitetura e a polí ao E gito e à Suméria. Na
Nigéria, os guardas d e Erair,
tica, a ciência, a filosofia e a ética, mas não a música. A razão parece ser em K ano, anunciam a
dupla. Primeiro, a música era tradicional, muitas vezes improvisada e trans chegada de um dignitário,
mitida, em grande parte, pelo ouvido. Havia um sistema de notação de fa z en d o um barulho
letras, mas ele era desajeitado em comparação com o que temos agora. esplêndido.
O PALPITAR DA VIDA • 3 5
além de que só era usado para cantigas de grande importância. Temos
algumas dúzias de fragmentos de música grega escrita, de uma época mais
recente que a de Pitágoras. Podemos ter uma idéia de uma melodia ou
frase grega derivando o ritmo parcialmente das palavras, mas a tradição
da execução se perdeu. A segunda razão está ligada ao fato de que essa
música se montava sobre uma prática que durou apenas enquanto a cul
tura se manteve viva. Hoje, a música grega é parcialmente o produto de
séculos de influências turcas e outras do Oriente Próximo, e, salvo em
casos isolados, sua ajuda para se estabelecer a natureza da música na Era
Dourada é muito limitada.
A pintura representando estes
músicos é das mais belas que
Os gregos acreditavam plenamente que o belo e o bom são inseparáveis.
se con hecem d o A ntigo Egito.
E uma das muitas pinturas
Para ambos, tinham uma única palavra: kalokagathia {kalos significando
encontradas no túm ulo de belo, e agathos significando bom). Os preceitos morais pagavam tributo
Zeser-ka-Sonbe, da 1 aos princípios estéticos. O esforço para cultivar um alto propósito moral
dinastia, em Tebas. N esta apolínico era contrabalançado pelo de um outro aspecto igualmente pode
cópia em tam anho original, roso do homem, representado pelos ritos dionísicos. Os gregos se entrega
fe ita em têm pera, os
ram aos anseios extáticos e intoxicantes porque, como todos nós, tinham
instrumentos são a harpa
em arco, o alaúde, o o b o é
duas almas: a que ansiava por clareza, equüíbrio e moderação, e a que era
duplo e a lira. Uma criança extática e orgíaca. Mais tarde, a estrutura pagã foi estraçalhada, quando o
estala os ded os para marcar monoteísmo se tornou poderoso, quando os mandamentos substituíram
ritmo. as tradições e a autoridade derivava da palavra escrita, e não mais da oral.
3 6 • A MÚSICA DO HOMEM
quando Moisés arrancou os Dez Mandamentos de um único Deus. O bem
tornou-se a verdade certa e única; o belo passou a ser a musa para sempre
banida. Na Grécia, por volta do ano 500 a.C., encontramos o florescimento
do homem integral, com todas as suas contradições e paradoxos inatos,
sua tragédia e sua comédia, sua lógica e paixão, sua ciência e arte. Foi a
civilização em que o homem podia esforçar-se para ser um deus, garan
tindo um trânsito de mão dupla entre o céu e a Terra, um fluxo que o
monoteísmo transformou em via de mão única.
O PALPITAR DA VIDA • 3 7
os ritmos se tornam insistentes ninguém pode deixar de mexer o corpo e
bater palmas. O coro, no drama grego, era dançado e mímico, constituindo
um aspecto tão importante dos espetáculos de palco como da idolatria e
das festividades. Ele não era escrito e, portanto, não sabemos a forma
exata pela qual era usado naquele tempo. Tentativas imaginosas de recria
ção estão sendo encenadas atualmente, recorrendo à descrição escrita,
üustrações nas urnas e vasos e a algumas danças do populário que ainda
sobrevivem.
o alaúde era con h ecid o de As danças, no mundo todo, têm uma variedade de nomes, e a Grécia
muitas civilizações, co m o o Antiga não é exceção. Entre as danças que teriam sido conhecidas de
dem onstra esta figura da Sócrates e Aristóteles estão o leitãozinho, a coceira, o ronco, espalhando
dinastia T ’ang da China. a cevada, pondo fogo no mundo, o furto da carne. Achamos que a nossa
3 8 • A MÚSICA DO HOMEM
civilização é mais adiantada, mas nos orgulhamos em poder passar para a
A música na Grécia era bem
posteridade a umbigada, o requebrado e o salto, juntamente com a valsa,
desenvolvida nos tem pos
o samba e o fox -trot. hom éricos, co m o o
Em muitas vilas na Grécia, o terreiro de debulhar, o aloni, é o único dem onstram os achados
lugar grande e plano para a dança comunal. As danças de roda, que ainda entre as Ilhas Ctclades, no
são características da Grécia, podem ser um vestígio da dança comunal, e Egeu. Aqui, um tocador
muitas vilas ao longo do Peloponeso ou espalhadas entre as ilhas do Egeu segura o samvike, um a harpa
mantiveram seus chãos de pedra originais, possivelmente com dois mil anos de quatro cordas. A figura
data aproxim adam ente do
de idade ou mais, em que cerca de setenta gerações fizeram a debulha e an o 2 3 0 0 a.C., e é um a
dançaram. Uma dessas danças é o zervos, da Ilha de Cárpatos, e porque sua das p ou cas figuras masculinas
movimentação se faz para a esquerda, imagina-se que seja uma dança em encontradas nos túmulos
honra às forças do inferno. Uma outra é a serra, uma dança guerreira de das ilhas.
O PALPITAR DA VIDA • 3 9
Pontos, uma das comunidades ao longo da costa sul do Mar Negro que pre
servou fielmente as velhas tradições, e onde é falado um dialeto que ainda
preserva muitas frases do grego antigo. No teatro grego, o aloni passou a
ser a orquestra quase circular, um lugar defronte e abaixo do palco prin
cipal, onde o coro cantava e dançava. Na moderna Grécia urbana, a função
Na Idade de Ouro da
do velho aloni foi transferida para a taverna.
Grécia, a música era um Quando Roma derrotou a Grécia, copiou-lhe a música, juntamente
acom panham en to respeitado, com a arquitetura e a escultura. Mas a importância da música diminuiu
até m esm o na m orte. Nestas muito, porque Roma orientava-se para a palavra, a lei e a espada. Depois
duas escuUuras tumulares
da queda da civilização romana, começou a se impor lentamente uma
d o século V a.C., um jovem
toca a lira e um a m oça toca o outra força na cultura ocidental: e essa força foi a Igreja Cristã. A Igreja
aulo duplo de bam bu (os conseguiu produzir sua grande arte que emanava dos centros em Roma e
originais estão em B oston e Bizâncio, porque havia absorvido as crenças pagãs prevalecentes, transfe
R om a). rindo a adoração dos deuses gregos e romanos para os santos cristãos.
4 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Porém, a influência da Igreja sobre a música foi um processo mais lento;
de fato, passar-se-iam quase mil anos antes que a música que conhecemos
começasse a tomar forma.
O PALPITAR DA VIDA • 41
Os rom anos adaptaram
a música dos p ov os
conquistados, copiando
o corn o dos celtas e o
órgão hidráulico d os
gregos.
4 2 • A MÚSICA DO HOMEM
e num melhor entendimento do repouso —, conduzirão à maior maturi
dade, consciência e equilíbrio em nossa civilização. As palavras podem
ocultar a verdade, mas isso dificilmente é possível no caso da música.
Mesmo quando esta é usada corruptamente, conseguiremos detectar a
insalubridade que contém, se a escutarmos atentamente. Seja como for,
sinto que é papel do músico manter nossa confiança no mundo e a con
fiança do mundo em nós, e ajudar-nos a expressar emoções autênticas.
Quando a música assume essa responsabilidade, ela traz à tona o melhor
esforço humano e é profundamente terapêutica, harmonizando o físico e
o espiritual, o intelectual e o emocional, juntando corpo e alma.
No T em plo de A p oio, em
D elfos, Yehudi Menuhin
reúne-se aos músicos da Ilha
de Cárpatos, cuja música
con tém danças tradicionais
m uito antigas.
O PALPITAR DA VIDA • 43
Ocresamento da música na cultura ocidental é descrito desde a primitiva melopéia cristã, co-
nhecuia como cantochão, até a efusão abundante do Renascimento. Os mouros e os cristãos lu
tam pela posse da Espanha e formam-se as Cruzadas, que acarretam um choque de culturas. Á
musKa se toma uma mescla de muitas vozes, são codificados osprincípios da harmonia, come
ça a orquestração e desenvolve-se a notação musical da aproximação de neur?ias até o attialsis
tema de pauta e notas. A índia aperfeiçoa a arte da linha musical única decorada.
2. O florescimento da harmonia
A civilização, assim como a vida, depende de sua capacidade de regenera Dança de histriões (cerca
ção. Um ciclo de emoções nos é tão vital quanto uma variedade de alimen de 1340).
tos; algumas vezes podemos assumir riscos — bons ou maus — como uma
forma de nos colocarmos a prova. Os governos existem em parte para
evitar que a sociedade caminhe para extremos, e a religião tem sido um
outro guia — embora a própria fé não esteja isenta de excessos e Deus nem
sempre tenha sido uma imagem de benevolência. Nos séculos recentes, a
música ocidental tornou-se, com rapidez espantosa, uma das maiores artes
do homem, e a gênese dessa música só pode ser apreendida se considerar
mos o papel da fé na unificação da sociedade ocidental. A fé proporcionou
à música uma forma escrita codificada e regras de harmonia amplamente
aceitas.
Naturalmente, a vinculação entre a música e a fé não é exclusiva do
Ocidente. O índio norte-americano, solitário nas planícies, invocando a
ajuda divina com o seu canto, não está muito longe do muezim muçul
mano soHtário em sua torre, exaltando Alá e convocando os fiéis à prece.
O cantor tibetano ou mongol, produzindo muitos harmônicos acima de
um tom fundamental cantado gravemente em uma voz única, vivência o
impulso da adoração direta, porque a pureza e a unidade das duas resso
nâncias constituem um elo entre o homem e o Divino. O som do cantochão Página o p o sta:
que se ouve hoje nas igrejas e mosteiros é um vínculo com as origens de A Adoração do Cordeiro é
nossa música ocidental; e esses parentescos fazem lembrar que a música p arte de uma cópia
espanhola (cerca d e 950)
começa dentro de nós e encontra sua expressão mais natural na voz. d o fa m o s o C o m e n tá r io S o b r e
Aqui damos ênfase à voz porque ela ocupa o centro na música o Apocalipse, d e Beatus, que
ocidental que conhecemos melhor. Desde que o cristianismo surgiu no contém um d os m apas mais
Oriente Próximo, local de origem do judaísmo, e mais tarde do islamismo, antigos d o m undo cristão.
os primitivos cantos cristãos recorreram à tradição vocal altamente deco N este caso, os anciãos estão
ao lado d e quatro animais
rada dos povos judeus e árabes.
alados, en qu an to o C ordeiro
de Deus está sobre o M onte
Na tradição judaica, em que fui criado, o canto é uma expressão de fé. Siãó, cercad o de santos que
Pelas circunstâncias, nunca passei pela cerimônia do Bar Mitzvah. Em meu tocam cítaras.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 4 5
décimo terceiro aniversário eu estava em Paris estudando com Georges
Enesco e me preparando para mais concertos. De certo modo, lamento
não ter sido oficialmente declarado adulto; talvez tenha sido por isso que
nunca cresci. Seja como for, jamais cantei em uma cerimônia religiosa
judaica, embora o som da voz chorosa e tocante de meu pai continue
soando em meus ouvidos — uma lembrança da meninice, quando atraves-
savamos a bela Califórnia, de automóvel, seu cantar tão fervoroso, como
se estivesse em uma sinagoga.
Nada e mais tocante do que a entonação do chantre na sinagoga.
Nesse caso, a música não é mero ornamento. Quando o chantre derrama
as alegrias e as dores da fé, é a própria essência do culto, do louvor a Deus.
Seu cantar, ampliando o significado da palavra, é uma expressão apaixo
nada de fé. Jeová não perdoou. Era bem capaz de nos punir, e todos nós
tínhamos em mente que Ele sempre estava com Seus raios prontos. Feliz
mente para mim, graças a minha mãe, que por religião não era cristã, desde
meus primeiros anos Jesus fazia parte daquele panteão de profetas bíblicos,
e acredito que esse modo de pensar me tenha dado um senso mais amplo e
uma consciência maior da contrição contida no cantar do chantre. Seu
cantar deve seguir diretamente para o coração de Deus; mas porque as
palavras primeiramente são defletidas pela mente, o chantre precisa estar
sempre empenhado em evitar esse desvio.
4 6 • A MÚSICA DO HOMEM
entanto, ele conferiu ao cristianismo a legitimidade que este buscava. O
panteão dos deuses romanos foi derrubado. Em 475 d.C., a própria Roma
caiu. Apesar disso, a cultura bizantina não é uma relíquia; continua viva
na linguagem, nos ritos e na música da Eslovênia e do Oriente Próximo.
Apesar de o estilo de canto ornado se destinar a solo, o núcleo do
culto cristão é o uníssono de movimento mais lento do cantar de muitas
vozes. Essa forma de canto, chamada de cantochão, dominou o culto cris
tão durante mil anos e ainda hoje é ouvida nas igrejas ortodoxas, católicas
e anglicanas. O cantochão é um cântico melódico simples de textos sagra
dos, intenso mas devoto e sereno, extraindo seu ritmo da acentuação natu
ral da linguagem, e seu fraseado da extensão da respiração humana.
O cantochão também é conhecido como canto gregoriano, mas o
nome não é inteiramente correto, na medida em que sugere que o Papa
Gregório I de algum modo o tenha criado por si só (muitas ilustrações
medievais posteriores fariam com que acreditássemos nisso). Na verdade,
por volta do ano 600 d.C. ele reformou a liturgia, estabelecendo a Schola
Cantorum e instituindo um novo conceito de atividade missionária. Os
graduados da Schola eram enviados a lugares distantes, como a Grã-Breta-
nha, para ensinar o canto romano. Gregório também quis desenvolver um
sistema de notação adequado, mas isso levou muito mais tempo. O pro
cesso de padronização do cantochão levou várias centenas de anos.
No tempo de Gregório, a música instrumental não tinha qualquer
participação na vida da Igreja Cristã. Os instrumentos estavam excessiva
mente associados com a vida depravada de Roma, tendo perdido seu
mistério e magia. Somente a voz possuía a pureza e a nobreza dignas do
ouvido de Deus. Acima de tudo, o órgão era rejeitado por associar-se ao
combate romano e aos entretenimentos em arenas ao ar livre. O órgão não
voltou às boas graças do Ocidente até o século V III; era, então, um instru
mento desajeitado que ninguém ligaria aos eventos bárbaros anteriores.
Algumas igrejas ortodoxas orientais ainda proíbem instrumentos como
parte do culto.
O cantochão ainda era novo no Ocidente quando surgiu uma outra
ameaça ao cristianismo. No ano 622 d.C., o profeta Maomé proclamou Ala
como o único e verdadeiro Deus e lançou uma campanha para conquistar
o mundo em Seu nome. Os guerreiros do Islame penetraram em direção
ao norte até a França Central e conquistaram toda a Espanha, exceto o
Noroeste. A maré virou sob a liderança de Carlos Magno, que no dia de
Natal de 800 aceitou a coroa de Imperador de Roma das mãos do próprio
Papa Leão III. Esse é um período difícil de reconstituir; escrever era uma
atividade restrita e poucos registros sobreviveram às lutas violentas. A falta
de uma notação musical adequada é um outro problema; essa ausência
ocorre, sem dúvida, porque a música, assim como a linguagem, pertence
essencialmente ao mundo audível.
O sistema feudal, que marcou a Europa durante mil anos, abriu as
portas à música, de uma nova maneira. À medida que várias cortes adqui
riam poder, a inúsica se tornava uma parte cada vez mais importante da
vida secular. Sem dúvida, apreciavam-se os prestidigitadores e acrobatas.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA * 4 7
danças e festins, canto folclórico e baladas de amor. Os músicos viajavam
nas comitivas dos príncipes e nobres, e muitas “letras” obscenas circula
vam entre cozinheiros e cocheiros. A dificuldade que enfrentamos está em
que tão pouco desta música popular ocidental tenha sobrevivido sob qual
quer forma, até depois de 1200: não havia uma forma escrita adequada
para registrá-la; por sua própria natureza, a música era considerada pere
cível. Devemos alguns dos fragmentos subsistentes àqueles monges pacien
tes, tão bem treinados pela Igreja, cujos ouvidos estavam abertos não
apenas para o cantochão, e cuja habilidade para escrever permitiu a preser
vação de algumas canções.
É importante relembrar que uma aura de mistério envolvia a chegada
do primeiro müênio cristão, porque em geral se pensava que o ano 1000
d.C. seria o ano do Apocalipse, da Segunda Vinda de Cristo. Para o mundo
ocidental, a perspectiva do fogo eterno era iminente e real. Dentro de um
espírito de respeito e temor, o povo esperava, tão aterrorizado como nos
sentimos atualmente com relação à aniquilação atômica. O ano chegou e
passou, nada mudou, e o mundo cristão emergiu com renovada fé. No
decorrer do século foram lançadas as devastadoras Cruzadas.
48 A MUSICA DO HOMEM
notável na música da índia, semelhante à do nome da família Bach na
Alemanha.
Desejo apresentar a música da índia neste ponto porque atingimos
uma encruzilhada na história da música européia, um período em que a
voz individual decorada foi em grande parte deixada de lado em favor da
harmonia de muitas vozes. É isto, juntamente com a notação, que marca
claramente a diferença entre as tradições da música oriental e as da música
ocidental. Mesmo em lugares como Java e Bali, onde uma multiplicidade
de instrumentos soam ao mesmo tempo em conjuntos, há um forte senso
da voz em solo, embora o sistema real seja diferente. Os executantes
tocam suas partes em uníssono, não importando o quanto sejam comple O deus hindu Siva é o sen hor
xos o ritmo e as mudanças de cor instrumental. Na índia, a voz em solo das letras, da música e da
atinge seu auge no estilo do cantar kam ático do sul, em muitos instrumen dança, parte d a trindade que
tos complexos de corda, a vina, saranghi, e, acima de tudo, o som do inclui Brahm a e Vishnu.
instrumento que Ravi Shankar tornou famoso, o sitar, que é de importa N este entalhe d e um dos
m uitos tem plos d e Madura,
ção muçulmana, através da Pérsia.
no sul da índia, ele toca uma
Na música, a diferença entre o Oriente e o Ocidente começa até versão prim itiva d o sitar, e
mesmo antes de sua verdadeira execução, porque o método indiano de tam bém aparece algo d o seu
afinar instrumentos absolutamente não se parece com o nosso. Sua con- caráter d e deus destruidor.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 4 9
cepção do significado de uma determinada escala é diferente do nosso. O
povo thai pode tolerar oitavas que para nós parecem desafinadas. Um
indiano que escutasse uma orquestra ocidental pela primeira vez poderia
muito bem considerar a afinação como a parte mais promissora e interes
sante da execução, porque os músicos indianos levam meia hora, ou mais,
afinando. Sua exatidão de timbre é, com efeito, inseparável de sua inspira
ção. Os ouvintes apreciam a preparação, sentindo que já estão comparti
lhando do processo daquilo que virá depois e, por sua vez, a música emerge
imperceptivelmente do processo de afinação. A quinta perfeita apóia as
cordas simpaticas afinadas segundo uma determinada escala ou seqüência
de notas, chamada de raga.
A raga indiana se localiza entre uma escala e uma melodia. Existem
centenas de ragas, cada qual para uma determinada ocasião do dia e da
noite, dessa forma unindo o executante e o ouvinte à natureza e ao tempo
de um modo singular. A raga, em outros tempos puramente votiva, teve
agora de adaptar-se aos gostos ocidentais, diminuindo a ampla margem de
improvisação e desenvolvimento; mas nas mãos de um gênio como Ravi
Durante mais de duas décadas Shankar, não foi devastada, apenas condensada.
Ravi Shankar tom o u a música
Para mmi, a musica indiana e como um rio, sempre fluindo e mu
indiana con hecida e p o p u la r
no m undo inteiro. E dando sutilmente, ao passo que a música européia é como um prédio,
acom pan hado p e lo cuidadosamente estruturado segundo princípios constantes. O indiano vive
brilhante tocador de sua música como parte de seu senso da eterna continuidade da vida. Nós
tabla, Alia R akha. vemos a nossa música como distintamente feita pelo homem, um artefato
5 0 • A MÚSICA DO HOMEM
distinto. Para o indiano, a nota individual, com toda a sua inflexão de
cores, se equipara à idéia de salvação pessoal, de resignação e aceitação. A
índia acolheu, certa vez, a idéia do contraponto, mas embora pudesse
desenvolvê-la, sua füosofia lhe era estranha. Sua música não comporta
contrastes marcados de humor, como a nossa; pode permanecer em um
tom durante uma hora ou mais. Ela visa a criar um estado e não a passar o
ouvinte por um espremedor emocional. Algumas vezes penso que devería
mos incluir tais interlúdios exóticos em nossos próprios concertos. Isso
encorajaria as pessoas a perceberem o que não lhes é próprio, ao mesmo
tempo que fortaleceria seu senso do que é seu. Não estou sugerindo que
devamos apagar ou perder nossa identidade musical, porque embora possa
mos muito bem admirar uma outra cultura, jamais poderemos penetrar em
seu âmago, por mais que a amemos. Há alguma coisa em seu núcleo que é
tão particular, tão única, que a torna indecifrável para os que nasceram
fora dela. A música dessa cultura permanece para sempre além de nosso
alcance.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 51
. AO-VILO
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3 2 • A MÚSICA DO HOMEM
por hospedadas estabelecidas pelos monges do Mosteiro de Cluny, na
parte centro-leste da França. Dizem alguns que esse reinado religioso de
Cluny estendia-se a dois mü locais, mas é provável que o número esteja
abaixo de 350 — o que ainda é um reino considerável para a Europa
daqueles tempos —, e a rota de peregrinação para Santiago era sua espinha
dorsal. Os cristãos passaram a acreditar que uma visita a três lugares —
Jerusalém, Roma e Santiago de Compostela — assegurava permanência na
eternidade. Um dos propósitos das Cruzadas, que tiveram início em 1096
d.C., foi a tomada de Jerusalém. Sua conquista ao fim de três anos causou
um estremecimento de júbilo no Ocidente, especialmente entre os peregri
nos de Santiago, que se tornou o local de inspiração nas guerras entre os
cristãos e os mouros. Ao longo dessa rota ouvia-se uma imensa variedade
de músicas, pois entre as pessoas de todas as partes da cristandade havia
um intercâmbio de canções, cantos, danças. A catedral de Santiago foi
erigida, destruída e erigida novamente.
A catedral que vemos hoje tem uma fachada do final do século XVII,
ocultando a antiga entrada principal do século XII com seus arcos nobres.
Lá encontramos um dos melhores exemplos do papel vital que a música
desempenhava na vida do povo e da igreja. No arco central, conhecido
como Portico de la Gloria, acha-se gravado todo um instrumentário medie
val. No ápice do arco há um primitivo instrumento de teclado portátil para
dois executantes; um virava uma manivela e o outro tocava. Em outros
pontos encontramos tocadores de viola e cordas dedühadas, alguns pare
cendo transfixados por seus próprios sons. Curiosamente, não há instru
mentos de sopro ou metais (a proibição contra instrumentos fazia-se valer
de tempos em tempos). Essa música deve ter tido uma esplêndida resso
nância nessa bela catedral, uma das mais antigas do Período Gótico, e com
certeza ela foi enriquecida pela famosa escola de composição lá estabele
cida na mesma época.
Foi também na Espanha que as três principais religiões monoteístas,
todas originadas no Monte Sinai, se juntaram novamente, uma fusão que
teve muito a ver com o som singular da música espanhola. Os mouros
continuavam tolerantes para com todos os povos que haviam encontrado
na Península Ibérica, porque não havia mouros em número suficiente para
colonizar a área toda. Judeus e cristãos que não desejavam converter-se ao
islamismo tinham permissão para continuar sem serem perturbados, em
bora os mouros habilmente exigissem deles um imposto especial em troca
de sua tolerância. Os cristãos inconversos passaram a ser conhecidos como
moçárabes, que pode ser traduzido como falsos árabes ou árabes imaginá
rios. Sob a influência mourisca, sua antiga forma de cantochão tornou-se
mais ornada e, muito depois que os mouros se foram, os moçárabes agarra
ram-se à sua tradição, resistindo a todas as tentativas para que se confor
massem às práticas de Roma. Seu centro era a cidade de Toledo. Lá ainda
se observa o rito moçárabe até os dias de hoje, na capela da igreja de Santa
Maria la Blanca, pelas poucas famílias ainda remanescentes. Elas nos reme
tem ao tempo em que, há mais de mil anos, o mouro e o cristão aprende
ram a viver lado a lado.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 3 3
As Cruzadas foram mais do que um choque de espadas — foram um
choque de culturas, artes e ciências. Quando os cruzados penetraram na
África do Norte e no Oriente Próximo, entraram em contato com povos
diferentes que seguiam sua própria tradição musical, e os cristãos se sur
preenderam com a força dessa música. O instrumento de palheta dupla, a
charamela, que desde então se desenvolveu dando origem ao oboé e ao
fagote, lá florescia em uma grande diversidade de tamanhos e timbres.
Alguns tinham o volume e a intensidade de um trompete, e a banda mili
tar islâmica, com dúzias desses instrumentos, era capaz de produzir um
som ensurdecedor e terrificante. Os muçulmanos eram um povo diversifi
cado, unificado pelo islamismo, como o cristianismo havia unificado a
Europa. Os mouros marroquinos, por exemplo, consideravam-se completa
o Portico de la Gloria, na mente distintos dos da Espanha, e no ano 800 d.C. já existia um bairro
catedral de Santiago de espanhol na velha capital marroquina de Fez, ocupada pelos mouros
C om postela, na Espanha, é repatriados.
um d os tesouros d e arte e
Não podemos reconstituir o espírito que animou os cruzados, do
música medievais, m ostrando
qu e no fin al d o século XII
mesmo modo que não podemos sentir o esplendor que a música deve ter
p e lo m enos os instrumentos tido para os exércitos que voltavam para casa, nas grandes catedrais góticas
de cordas não eram mais francesas que se erguiam em Saint Denis, Laon e Chartres, e mais tarde nas
considerados pagãos. da Espanha, em Burgos, Leon e Toledo.
S 4 • A MÚSICA DO HOMEM
A Notre Dame de Paris tornou-se o centro da música ocidental,
quando a própria França passou a ser o foco da vida cultural da Europa
medieval. A música da Escola de Notre Dame não é fácü de abordar. Nós
ainda a reconstituímos baseados, em parte, em conjeturas, mas essa música
tem a marca inconfundível da Europa, especialmente nos trabalhos dos
dois primeiros compositores cujos nomes chegaram até nós — Léonin e
Pérotin, que atuavam como mestres de música em Notre Dame entre 1150
e 1236. Sua prática do organum produzia harmonias que podem soar de
maneira estranha a nossos ouvidos; o conceito de harmonia, tal como o
conhecemos, ainda não havia surgido. Mas, mesmo assim, são uma revela
ção, como os raios do sol filtrados através do extraordinário vermelho e
azul dos vitrais da catedral. Pela primeira vez, três e quatro vozes distintas
podiam ser combinadas em partes que não eram improvisadas, mas sim o
produto de um único artista criativo. As harmonias eram controladas por
seu senso de compatibilidade de intervalos e condução de voz. Nessa
música, os únicos intervalos regularmente tolerados eram a oitava, a quinta
e a quarta. As terceiras e as segundas eram admitidas como perturbações
momentâneas, ocasionadas por movimentos independentes das vozes. Em
organum para três ou quatro vozes, cada parte parece ter sido acrescentada
separadamente sobre um cantus firm us, ou canto de acompanhamento,
geralmente extraído do cantochão. Era mais importante que as vozes
acrescentadas combinassem mais plenamente com o canto firme do que
entre si.
O número de vozes distintas usadas no organum parece que estava
relacionado à importância da ocasião no calendário eclesiástico, como por
exemplo o trabalho a quatro vozes de Pérotin, longo e maravilhosamente
elaborado, que começa com as palavras Sederunt Príncipes. Em tal música,
uma única sílaba do cantus firm us pode ser mantida, por um minuto ou
mais, como um suporte, enquanto as outras vozes fazem o bordado.
As cópias escritas que temos da música de Léonin e Pérotin devem
sua sobrevivência à sua fama, porque ela se estendeu para muito além de
Paris. A Escócia, a Itália e a Alemanha têm sido nossas melhores fontes.
Mas o trabalho de cópia deve ter sido feito pelos monges irlandeses, que se
encontravam entre os mais capazes transcritores de música, e que eram
recrutados já no tempo de Carlos Magno para as escolas capitulares no
continente.
Notre Dame, portanto, não era um tesouro antigo; era a estrutura
mais nova e mais alta de Paris, e suas duas torres podiam ser vistas por
toda parte. Dentro da catedral não havia fileiras bem arrumadas de genu-
Verso:
flexórios, mas palha e estrume de animais de passo lento, levados para E m bora m uitos manuscritos
dentro durante o frio do inverno por seus proprietários. Com mau tempo, medievais preservem música e
o mercado na praça em frente à igreja se esvaziava: compradores e vende tex tos sacros, as ilustrações
dores procuravam abrigo e calor sob o teto do templo. dos contos d e cavalaria e
aventura constituem um a de
As regras para a música estabelecidas em Notre Dame baniram todos
nossas mais ricas fo n tes
os intervalos, exceto os mais puros. Porém, ao mesmo tempo, longe dos de in form ação sobre a
esplendores de Paris, ouvia-se um outro som, o de vozes que se movimen natureza da música p op u lar
tavam em terceiras paralelas. Para a rigorosa mente eclesiástica francesa. da época.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 5 5
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5 6 • A MÚSICA DO HOMEM
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O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 5 7
perdeu-se. Mas já na Idade do Ferro sua trompa de metal, o lur, estava
bastante disseminada. Provavelmente, os etruscos trouxeram para a área
a arte de trabalhar o cobre, e as trompas metálicas em pares e grupos já
eram conhecidas no início dos tempos romanos. Esses instrumentos têm
bom som quando tocados ao intervalo de uma terceira. Talvez isso tenha
influenciado a prática musical na canção, particularmente depois da con
quista da Inglaterra, no século XI, onde os duetos de todas as espécies
eram populares, incluindo os instrumentos que se destinavam à dança. Os
mestres de música ingleses foram os primeiros a declarar oficialmente que
o intervalo de uma terceira era aceitável.
Desse período vem um exemplo que continua sendo tão famoso e
que ainda hoje é cantado, o célebre cânone "Sumer Is Icum em In ”. Em
bora o manuscrito que o contém tenha sido escrito por volta de 1260, e o
cânone tenha sido acrescentado duas ou três décadas mais tarde, a música
é bem mais antiga e já era amplamente conhecida. As instruções medievais
dizem que o trabalho deve ser cantado por quatro vozes, cada qual en
trando em uma distância determinada, acompanhada por duas vozes mais
graves e, provavelmente, reforçadas por instrumentos. A maioria das can
ções ou cânones podia ser prontamente transmitida de ouvido, mas isto
era muito difícil, e as variações melódicas muito sutis; era fácil perder o
fio. “Sum er” tinha de ser escrito para garantir que os cantores a reprodu
ziriam corretamente e, dessa forma, o ensino se tornasse mais fácil. Sub
siste como uma obra-prima pela sua engenhosidade técnica e apelo ime
diato e, também, porque sua dificuldade representa um desafio. É preciso
que se note algo crucial com respeito a essa canção: quando todas as suas
vozes soam em conjunto, elas se mesclam em dois acordes alternados,
que contêm a semente de algo extraordinário, o efeito mais poderoso que
conhecemos na harmonia ocidental: a tensão estabelecida entre a nota
tônica e o acorde que serve de porta que conduz a ela. É uma ironia
maravilhosa o fato de uma das provas mais primitivas desta descoberta
musical ter chegado até nós no manuscrito de uma canção popular. Em
muitas áreas da evolução cultural o fato precede o registro; pode ser que
a própria notação tenha detido o progresso harmônico, porque por muito
tempo não conseguiu atender ao desafio de transcrever o que o ouvido
aceitou imediatamente.
A dificuldade de descrever a música desse tempo se torna maior por
que ainda sabemos muito pouco sobre o seu lado popular. As poucas
danças e canções do povo de que temos conhecimento chegaram até nós
quase que por acidente, porque o papel em que foram escritas foi usado
mais tarde como reforço para lombadas de livros. Indubitavelmente, uma
das mais fascinantes coleções de música popular da época é Carmina Bu-
rana, escrita por volta de 1300, contendo letra e música dos dois séculos
anteriores. Inclui canções de amor, de beber, de jogos e peças de Páscoa e
de Natal — uma verdadeira antologia de peças favoritas. A notação é obs
cura e só nos últimos anos é que foi possível reproduzi-la com exatidão
razoável, através de cuidadosa comparação com cópias posteriores de
algumas das mesmas canções. Carmina Burana preserva para nós uma
5 8 • A MÚSICA DO HOMEM
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O FLORESCIMENTO DA HARMONIA * 5 9
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6 0 • A MÚSICA DO HOMEM
H oc F ecit, o que quer dizer, literalmente, “Ghislebert fez isto”. O artista
estava se tornando uma fonte vital de energia movendo a máquina da civi
lização ocidental.
Sob a influência da aprendizagem e das artes, o rígido cimento social
da Idade Média estava se desagregando. A dança é um bom exemplo; ela
tem sido sempre uma das maneiras de expressar mudança. No século XIII,
uma das últimas danças foi a estam pie (conhecida na Inglaterra como
stantipes, e na Itália e Espanha como estam pida). Essa dança viajou por
todas as partes do mundo ocidental quando o dançar social se tornou um
barômetro do gosto social. Sobre a estam pida, disse um erudito medieval:
“ A natureza complexa das extensões desiguais de suas frases afasta de pen
D o Livro da Música das
samentos depravados as mentes daqueles que dançam” . Obviamente, esse
Cantigas de Afonso X, o
crítico percebia o risco que havia em permitir que homens e mulheres Sábio (cerca d e 1275),
dançassem juntos. conservado no M osteiro d o
Trovadores como Bernard de Ventadour introduziram canções de Escoriai, o p alácio real
amor material e apaixonado, como a popular “K alenda Maia”, que se espa espanhol, vem esta imagem
lhou através da Europa. Tornou-se até parte de muitos acompanhamentos dos trovadores tocando o
alaúde e a viola, instrumentos
da Santa Missa, como um cantus firm us secular. Quando as mulheres subi
já lindam ente desenvolvidos
ram de status, sob influência do código de cavalaria, estabeleceu-se o na época.
dueto de amor. Agora era possível um homem e uma mulher se juntarem
para cantar as dores e as recompensas do amor. Usualmente as canções de
amor partiam de um fidalgo para sua “dama” (geralmente não sua esposa).
O fidalgo era forçado pelo código de cavalaria a um casamento arranjado
por razões de propriedade, vínculos de família, ou decreto real. Ele podia
consumar seu amor terreno com uma mulher, ao mesmo tempo que dedi
cava a uma outra sua idéia de amor puro.
Um dos mais férteis compositores dessas baladas de amor foi Jacopo
da Bologna, na metade do século XIV. Seu dueto de amor Non al suo
am ante foi composto para um poema de Petrarca, a quem ele talvez tenha
conhecido pessoalmente. Petrarca endereçava seus poemas de amor à sua
dama, a divina Laura, e desde então eles têm sido levados a sério pelos
amantes. A importância de Petrarca para um músico está em seu ouvido
maravilhosamente afinado para as cadências da língua, que Jacopo enten
dia. Ele podia transformar as inflexões e volteios equilibrados dos versos
de Petrarca em música tão clara e radiante quanto os céus italianos. Na
bibHoteca em Faenza existe uma versão do dueto de Jacopo elaborada
para instrumentos, sendo a voz mais alta engalanada de ornamentos. É a Verso:
música da aurora da Renascença. Entre as imagens mais bonitas
d o p e r ío d o da cavalaria
A peste medieval, a chamada Peste Negra, açoitou a Europa com uma
andante estão as que nos
nova calamidade. A primeira epidemia surgiu em 1348 e durou três anos, chegaram através d e uma
assolando também as terras orientais. A perda de vidas foi sem precedentes. cópia d e 1316 d o Roman de
Petrarca perdeu sua amada Laura. Em algumas cidades quase todas as pes Fauvel, um a alegoria satírica,
soas morreram. A fúria da peste parecia ser dirigida por Deus contra o cujo h eró i era m etad e hom em ,
m etade cavalo. F eito para
homem, sem razão. Ela sacudiu a fé dos cristãos e reapareceu com freqüên
Chaillon d e Pestain, este livro
cia assustadora durante trezentos anos. Uma das maiores irrupções foi em contém m o tetes de Philippe
Londres, em 1665. A peste nos deu a conhecida canção “Ring Around the de Vitry, acom panham en tos
R osies”. A primeira linha arremeda os doentes com suas feridas abertas. de partes d o tex to d a paródia.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 61
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6 2 • A MÚSICA DO HOMEM
“P ocketfu l o f Posies" lembra o perfume das flores usadas para afastar o
miasma da morte. “A ttishoo, a ttish o o ” (nos Estados Unidos passado para
“Ashes, ashes” ) é para os sons rápidos e ofegantes dos moribundos. “All
fa li d o w n ” é a própria morte que se torna então um assunto comum para
a pintura e a música, como o havia sido o amor. A Europa estava em
guerra, mas o inimigo não seria abatido por uma Cruzada.
Para a Europa, com suas grandes igrejas e fortalezas intimidadoras,
suas cidades que cresciam proclamando o gênio do homem, tal redução ao
desamparo era intolerável. Havia freqüentes reações histéricas, alegria e
deboche paradoxais. As pessoas escapavam à contaminação fugindo da
cidade, porque a praga era disseminada principalmente pelos ratos que se
aglomeravam nos esgotos. Pode ser que haja uma ligação entre essa reti
rada para um refúgio seguro e a prática entre os compositores, no final do
século XIV, de levar a música a uma complexidade ainda maior, a contor
ções rítmicas e inflexões melódicas tão difíceis que somente os mais habi-
Udosos podiam executá-la. A nova música foi chamada de Ars Nova por
Phüippe de Vitry, que era um compositor e teórico muito importante.
Porém, o nome mais conhecido a partir dessa época é, sem dúvida, o de
Guülaume de Machaut (cerca de 1300-1377), considerado por muitos
como o primeiro grande compositor ocidental. Um dos melhores poetas
e músicos de todos os séculos, ele trouxe, à música ocidental, a ousadia
rítmica e harmônica e, finalmente, a aceitação do intervalo de uma ter
ceira. Era engenhoso na criação do entrelaçamento de vozes independentes,
mas evitava a complexidade quando esta em nada contribuía. La Messe de
N otre D am e, de sua autoria, é o acompanhamento mais antigo e completo
do texto da Missa, dentre os que conhecemos. Mas foi por suas canções
que Machaut se tornou admirado em sua época, ganhando o título de o
último dos grandes trovadores.
Machaut nos mostra também que a devoção por uma dama não pre
cisa ser uma honra reservada apenas a cavaleiros armados. Ele já tinha
passado dos sessenta anos quando escolheu como sua dama uma jovem
de dezenove anos. Ela admirava suas canções e escreveu-lhe um poema de
elogio, e, embora tivessem se encontrado somente uma ou duas vezes,
Machaut se apaixonou perdidamente pela imagem de Peronelle. O amor da
moça, sem dúvida, acabou mais depressa. Ainda existem muitas das cartas
de Machaut a PeroneUe, e em uma, ele declara:
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 63
Doces são os usos da adversidade.” De fato. Durante a peste reduziu-se o
conflito contínuo entre cristãos e mouros. Em 1348, o ano da primeira
peste européia, foi terminado o mais belo trabalho da arquitetura islâmica,
o Alhambra, o palácio de verão e inverno dos sultãos. Situado nas colinas
que se debruçam sobre Granada, no sudeste da Espanha, com a Serra
Uma gravura da ép o ca da Nevada como pano de fundo, os mouros haviam escolhido o ambiente
Grande Peste de Londres, de
1665, m ostra a fu g a p erto
ideal para sua moradia de conto de fadas. A matemática e a ciência flores
da velha Saint Paul, um ciam juntamente com a música e, ecoando através da graça e leveza dos
esqu ife p reced id o p o r um a arcos em füigrana, concorrendo com os sons da água fluindo das fontes e
sineta p erto de Covent canais, erguiam-se as vozes dos instrumentos musicais, completando uma
Garden, os m ortos en terrados cena maravilhosa. A beleza lânguida, sinuosa e equilibrada da música mou-
em valas comuns, trazidos
risca, que deixou sua marca na Espanha toda, soava não apenas nos jardins
am on toados em carroças.
Morreram cerca de setenta em flor, irrigados por fontes sussurantes, mas também dentro, no harém, e
mil pessoas (perto de quinze especialmente nos banhos. Os músicos tocavam em uma galeria superior,
p o r cen to da p opu lação para o deleite dos que se divertiam embaixo. Já que os banhos estavam
de Londres). entre os lugares mais populares de encontros amorosos, esses músicos infe-
6 4 • A MÚSICA DO HOMEM
lizes eram primeiro cegados e depois emasculados, para que não sofressem
tentações.
A lenda de Tristãb e Isolda
provavelm ente nasceu d o
A música mourisca é essencialmente improvisada, seus executantes sendo p o e m a de um p o e ta anglo-
tão afeitos a decorar o som quanto os arquitetos mouriscos à pedra e -norm ando d o século XII,
reboco. Este princípio atingiu um território enorme, não somente na cham ado Thom as. A história
Europa, mas através do Norte e do Centro da África, à medida que o quase im ediatam ente se
tornou a p red ileta de
islamismo se espalhava. Na Espanha, a prática da invenção espontânea é
trovadores e artistas. N esta
encontrada no flamenco, onde o brilho e a verve do executante são enco miniatura d o século XIII, os
rajados por gritos e palmas dos colegas. Esta música se desenvolveu entre am antes m ostram o espírito
os ciganos que seguiram para a Espanha durante a Renascença, depois que d o cavalheirism o partilhando
os mouros partiram. A forma que agora conhecemos surgiu no século XIX. de um p iqu en iqu e in form al
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 6 5
Depois de 1400 d.C., a Renascença estava em sua glória e os dias dos
mouros na Europa estavam quase terminados. As batalhas finais entre cris
tãos e muçulmanos estiveram muito ligadas ao surgimento da Inquisição.
Em 2 de janeiro de 1492, o último governante mouro na Europa, Boabdil,
foi forçado a render Granada ao Rei Fernando e à Rainha Isabel. A vitória
uniu a Espanha e, mais tarde, nesse mesmo ano, confiantes em seu poder
recém-adquirido, os monarcas financiaram a expedição de Colombo. Em
Uma das duas miniaturas d o
Mestre d e B ocqu etau x, qu e meio século Cartier navegou o rio S. Lourenço, Balboa e Pizarro tomaram
constam no volum e d os o Panamá e o Peru e a tripulação de Magalhães navegou fazendo a volta
trabalhos colecion ad os p o r ao mundo.
Guillaume d e Machaut, Dois músicos da Renascença deram estabilidade à música composta
m ostrando o mestre-
no Ocidente. John Dunstable (cerca de 1400-1453), na Inglaterra, e Guil
-com positor receben d o as
honrarias da realeza e d o
laume Dufay (cerca de 1400-1474), na França, conseguiram dar ordem e
clero. E o prim eiro retrato lógica à escrita de música para vozes múltiplas. Achavam que os choques
co n h ecid o d e um com positor acidentais entre linhas independentes, ainda encontrados em Machaut, não
ocidental. deviam ser tolerados. Formularam regras de harmonia, não por razões eru-
6 6 • A MÚSICA DO HOMEM
ditas, mas por pura necessidade, evitando dissonâncias, salvo onde pudes
sem emprestar maior força de expressão. Há um grande equilíbrio em tra
balhos como o motete de Dunstable Veni Sancti Spiritus e o Lam ento
p o r Constantinopla, de Dufay (a cidade havia caído em mãos dos turcos
em 1453), uma nova estabilidade e controle que impressionaram seus con
temporâneos. O som que atualmente reconhecemos como música ocidental
estava finalmente tomando forma. A extensão dessa reforma musical
torna-se clara através destas palavras escritas em 1474, o ano da morte de
Dufay, pelo compositor e teórico Tinctoris: “Não existe música que tenha
sido escrita antes dos últimos quarenta anos que seja considerada pelos
entendidos como digna de ser ouvida” . Entretanto, a razão principal pela A música fazia parte da
qual a flexibüidade estava dando lugar à ordem não era a crescente sensibi narração de histórias na Id ad e
lidade ocidental à harmonia, mas algo que constitui a maior diferença M édia; aqui, o h erói A bu Zaid
entre a música ocidental e a da maior parte do resto do mundo: a escrita recita os con tos cham ados
musical. Maqàma. Envolvem um
malandro espirituoso que
No tempo de Dufay e Dunstable, finalmente, o sistema de registrar as
envergonha os rivais com
notas no papel havia se tornado confiável. Não se pode reconstituir sua
sua eloqüência. O
evolução sem um pequeno recuo aos dias de Carlos Magno e aos curiosos acom panham en to é fe it o
rabiscos que constituíam a primitiva notação musical ocidental, chamados p o r um alaúde de dez cordas,
de neumas. Os neumas começaram a ser introduzidos nos textos sacros por cuja música tinha a fa m a de
volta do século IX. Um, na Biblioteca Bodleiana, em Oxford, é uma melo tocar os corações das bonitas
donzelas e fa z e r com qu e as
dia para uma Canção para as Musas, em latim, cujas palavras datam do
próprias m ontanhas dançassem
século V - um dos mais antigos exemplos notados da música secular de (d o M aqàm a de Hariri, cópia
que se tem conhecimento. Esses neumas foram desenvolvidos principal d e 1334, provavelm ente
mente nos mosteiros. d o Egito).
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 6 7
6& • A MÚSICA DO HOMEM
Na história do pensamento humano, acho que o claustro era ainda mais
importante do que a igreja com seus ritos sagrados. Nesses quadrüáteros,
com passos medidos entre arcos medidos, o pensamento disciplinado dis
punha de tempo, solidão e paz para dar curso à sua meditação. Foi onde a
melodia, ampliando a palavra, passou a ser escrita pela primeira vez. As
primeiras tentativas registravam aquilo que havia sido uma longa tradição
oral, e simplesmente prolongavam as últimas sílabas das palavras com
alguns símbolos sobre a linha que indicava as oscilações da voz.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA * 6 9
7 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Grandes volumes de liturgia notada, primorosamente escrita e üus-
trada, eram colocados em estantes para que pudessem ser usados por
muitas pessoas ao mesmo tempo. Pequenas estantes serviam a um cantor
de cada vez e eram transportadas de um lugar para o outro. Quando os
melhores métodos de notação se impuseram, os manuscritos mais antigos
foram usados como papel velho, às vezes colados por dentro de um livro,
como reforço, às vezes como guarda interna das encadernações. A idéia de
uma partitura, com as partes dispostas umas sobre as outras em uma
página, ainda não tinha sido posta em prática. As partes eram escritas
em páginas opostas ou em metades superiores e metades inferiores, e os
executantes tinham que ter cuidado para se manterem na linha. Não havia
barras, um refinamento que só passou a ser usado sistematicamente depois
do século XVII. Os acentos se colocavam de acordo com a acentuação da
linguagem, freqüentemente propiciando um maravilhoso ricochete de
ritmos. Os cantores de hoje teriam de treinar muito para dominar essa
técnica.
No início da harmonia ocidental, os compositores não eram diferen N o m osteiro da Espanha
tes dos alquimistas medievais; gostavam de manter seus segredos para si m edieval, em Sylos, on de
estão preservados alguns dos
próprios, a salvo dos concorrentes. Até há pouco tempo pensávamos que
mais p rim orosos e valiosos
os músicos compunham música primeiramente em suas cabeças e depois a m anuscritos musicais, Yehudi
escreviam em partes separadas, jamais vendo o todo em uma unica página. Menuhin contem pla o
Mas, quando as regras da harmonia e do contraponto começaram a se quadrilátero d o claustro.
impor, o processo de escrever cada parte se tornou mais difícil. Ha muito
tempo os historiadores da música suspeitavam que a partir de Dufay os
compositores deviam ter algum tipo de bloco de esboços onde podiam
escrever um trabalho em partituras, transferindo-as depois para livros defi
nitivos, apagando o esboço e voltando a usar o papel. O espesso pergami
nho em que faziam os esboços era chamado de carteia. A utilização desse
processo foi confirmada há alguns anos, com a descoberta de um manus
crito em Milão: uma página em branco encontrada entre os trabalhos de
Cipriano de Rore. Nela estava escrito: “Esta carteia me foi dada por meu
mestre. Nela eu o vi compor o seu Gloria". A nota é do aluno de Rore,
Luzzaschi, e, para os musicólogos, constitui o elo perdido.
A imprensa foi o passo final, possibilitando a reprodução de parti
turas de todos os tipos de música, garantindo sua ampla difusão; a música
deixou de constituir um tesouro, para se colocar à disposição de um mer
cado aberto. Realmente, não muito depois da morte de Rore, em 1565,
seus madrigais foram impressos em uma edição de partituras de bolso.
Durante algum tempo, escrever música à mão era mais barato do que O posto:
imprimir, mas ao fim do século XVI a música impressa já possibüitava que As Cantigas de Santa Maria
amadores e profissionais aprendessem e executassem um repertório muito de Afonso X, o Sábio, relatam
maior de obras de muitos países. A imprensa afetou a história da música detalhadam ente, em cerca de
trezentas páginas ilustradas e
mais ou menos da mesma forma pela qual a Bíblia impressa de Gutenberg
da m aior variedade, a história
fez a alfabetização dar um grande salto. dos en con tros na Ibéria, entre
os m ouros e os espanhóis,
"^Com a escrita da música, acentuou-se a divisão entre compositor e intér durante séculos d e batalhas
prete. Esta é uma distinção que, em nossos dias, voltou a se diluir, com (cerca d e 1275).
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 71
AemH t . P 'i'jpjl v f ^np"' /" /'
p tD cu f d f riÍTtÍpicc<;BlOTuirn- tr CJuatn ,f.j /
ü t u u r r ia ; fe d e f'A c ta u iflr o r ^ fp ^ e tA -
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-f "V ma aactni pcnc rrjp n dcf-
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V iolin e.
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V iolin oi
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P^^flcn te fpii
i^iiíÉÉ
PoíTenteípir e foràiida
E5-
-e -
A reconstituição da evolução da n otação ociden tal nos trans to era vivo, provavelm ente em 1450, em Veneza (e); e, fin al
p orta dos delicados neum as d o sécu lo IX de uma canção em m ente, uma missa de J o h n Tavem er, escrita p o r volta de
latim, Canção para as Musas (a), para os neum as da m etade 1530, em livros de partes separadas (f). A baix o está a prim ei
d o século X I d o fa m o s o Winchester Troper (b ); um breviário ra partitura impressa, a com p osição Orfeo, de Monteverdi,
italiano da m etade d o século X II on de aparece a linha única escrita em 1607, m ostrando o ten or da linha vocal em duas
doh (c); novam ente o Winchester Troper, com pautas de versões, a mais elaborada dando sugestões d o com positor
cin co linhas acrescentadas na m etade d o sécu lo X II (d ); uma para ornam en tação (g).
chanson de Guiüaume D ufay de um m anuscrito f e i t o enquan
7 2 • A MÚSICA DO HOMEM
referência aos grupos p o p e ro ck , que na maioria das vezes executam sua
própria música. Os músicos de jazz, como o executante do populário de
outrora, cuja música era transmitida de ouvido, preferiam inventar à
medida que tocavam ou cantavam. A notação surgiu, em parte, da neces
sidade de muitas pessoas trabalharem em conjunto; e a música refletia
naturalmente esse fato social. Também se pode escrever a música indiana,
mas os indianos são tão treinados em improvisação criativa, que somente
escrevem música nos casos especiais em que necessitam de um lembrete
para uma determinada seqüência. Sua notação é desajeitada e usada unica
mente como referência, como no caso dos neumas medievais. Nossa atual
notação ocidental é um sistema estenográfico flexível, muito mais fácil de
ler, porém com certas limitações. Atualmente tornou-se de tal forma uma
parte de nossas vidas musicais que não podemos imaginar a música sem
ela. Esta mesma notação ajudou a preservar para nós obras-primas dura
douras, que estão além do mundo disponível e renovável, e nossa cultura Os monges e m onjas que
preservaram cuidadosam ente
musical depende tanto delas quanto os livros impressos dependem da lite
uma preciosa biblioteca nos
ratura. Mas, como intérprete, também tenho consciência do quanto preci propiciaram m uito d e nosso
samos continuamente atenuar nossa submissão, de como é essencial ter con h ecim en to sobre os
uma imaginação viva, uma inteligência intuitiva e sensível. Senão, as notas prim eiros d oz e séculos da
registradas no papel assumem uma importância maior do que a própria m úsica cristã ocidental. Esses
monges, dentro da letra C
música que visam a transmitir.
(um a iluminura que com eça
com as palavras Cantate
Durante a Renascença, a música se tornou muito menos incidental, para Domino, ou Cantai para o
constituir mais uma demonstração de instrução, poder e riqueza. Os coros Senhor) lêem um único
das cortes e os grupos instrumentais se tornaram regra. Os compositores livro na estante.
moravam na corte e eram sustentados para compor para os nobres, assim
como os pintores para adornar os palácios da nobreza. A música mais
antiga foi rapidamente deixada de lado, e o músico passou a ser conside
rado não mais um artesão, como os construtores de igrejas góticas, mas um
artista honrado por todos. As habilidades na manufatura de instrumentos
avançaram muito, acompanhando as habilidades de desempenho, na me
dida em que os nobres patronos exigiam qualidade superior.
O significado disso para o músico ocidental é o fato de a música que
conhecemos e amamos ter sido forjada fora da extraordinária pressão do
período. Para muitos, a Renascença significa pintura, escultura, drama,
literatura, arquitetura e, finalmente, música. Essa explosão cultural mal
foi percebida pela maioria das pessoas, que, na época, dificilmente podiam
dar-se ao luxo de usufruir desses produtos. Mas a música impressa podia
viajar, como haviam feito os menestréis, passando a fazer parte até mesmo
do mais humilde dos lares.
Até agora, as atitudes formalizadas quanto à natureza do mundo
tinham sido, em grande parte, de responsabilidade da Igreja, que conti
nuava a insitir em que o mundo era achatado e que o Sol girava em torno
da Terra. Os marinheiros que tomavam parte nas longas viagens marítimas
empreendidas por Vasco da Gama e por Magalhães começaram a pensar de
forma difetente, e assim também os cientistas. A música fornecia uma
outra contribuição vital para nosso processo de pensamento. Quando o
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA 73
A imprensa f o i uma descoberta
tecnológica qu e m odificou
nosso acesso à aprendizagem
com o, talvez, nenhum a outra
coisa desde a invenção da
própria escrita. Na m etade do
século XVI, estabelecim en tos
com o este existiam na
E uropa toda.
O p osto:
A Glorificação da Virgem, de
G eertjen tot Sint Jan s (cerca
de 1465-1493), que trabalhou
no M osteiro d e S ão J o ã o em
Haarlem, Holanda, m ostra
uma riqueza instrumental que
estava m uito além d o aceitável
para a Igreja, apenas alguns
séculos antes.
74 • A MÚSICA DO HOMEM
o FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 75
primeiro homem transformou o som em música, os progressos foram
alcançados pelo método de ensaio e erro, processo agora adotado pela
ciência. A ciência pode não ter estado ao alcance de todos, mas a música
aguçou o sentido analítico, por caminhos imperceptíveis. O canto nos
lares com acompanhamentos improvisados, foi uma grande realização para
o homem ocidental; ele passava a testar e medir suas próprias capacidades
artísticas.
O desafio aberto ao status quo surgiu primeiramente não da ciência
ou do estudo, mas de dentro das fileiras da própria Igreja. Em 1517,
Martinho Lutero pregou suas Noventa e Cinco Teses na porta de sua igreja
em Wittenberg, acusando a Igreja Catóhca Romana de corrupção. Nasceu a
Reforma. Lutero, ele mesmo um bom músico, deixou de lado muito da
antiga música eclesiástica e escreveu novos hinos dos quais o mais conhe
cido, entre dezenas, é “Uma Poderosa Fortaleza É Nosso Deus”. Lutero
era uma espécie de mestre-cantor, e era até mesmo chamado assim. Inven
tava melodias que eram então moldadas segundo a avançada arte da poli
fonia, graças a seu conselheiro e colaborador, Johann Walter. Essas escritas
musicais a quatro partes não eram tão complexas quanto a escrita de
partes desenvolvida por Dufay e outros, porque a intenção de Lutero era
que esses hinos fossem cantados pelo povo, pela congregação inteira,
dando nova voz a seu crescente senso de poder, de direitos individuais;
ao mesmo tempo, essas pessoas poderiam aprender a dominar os elemen
tos da harmonia, que anteriormente eram reservados aos especialistas.
Muitas vezes os artistas prenunciam mudanças sociais. O fato cultural
que marcou a Renascença, mais do que qualquer outro, foi a redescoberta
da concepção clássica grega da forma humana ideal. Os trabalhos de Leo
nardo e Miguel Ângelo refletem isso, e a Europa adquiriu um novo senso
de continuidade com relação a seu próprio passado distante. A qualidade
heróica no espírito grego estava perfeitamente de acordo com uma época
em que o homem seria visto como “a medida de todas as coisas”. O violino
simboliza o “homem medidor”, e na metade do século XVI já havia atin
gido a sua forma atual. Antes da Renascença, o desenho e o uso dos instru
mentos era casual; as partituras eram executadas por quaisquer instrumen
tistas disponíveis, e a voz ainda era suprema. O violino é um líder natural,
o desafio maior para o próprio homem, e os artesãos cujas habilidades
desafiavam os ideais de beleza da Grécia Antiga tornaram-no o rei dos
instrumentos. Todos os instrumentos estavam sendo aperfeiçoados e se
multiplicavam em uma variedade estonteante: primitivos oboés e trom
bones, bombardas e órgãos, fagotes, alaúdes, bandoras e virginais. Muito
poucos datam de antes de 1500; mas há centenas com data posterior a
1500. Pode ser que os músicos tenham tido menos cuidado na Idade Média,
ou tenham desgastado seus instrumentos pelo uso. O acabamento agora
permitia aliar qualidade e quantidade, e os príncipes colecionavam instru
mentos como base para os conjuntos da casa; na realidade, os instrumentos
não pertenciam aos músicos que os tocavam.
Durante a Renascença, o maior de todos os instrumentos de teclado,
o órgão de igreja, atingiu a perfeição. O órgão primitivo, que voltou a en-
7 6 • A MÚSICA DO HOMEM
trar na igreja e na vida da corte depois do século VIII, era ou um pequeno
órgão portátil ou um enorme monstro operado por pesadas alavancas
movimentadas com o punho. Agora estava se tornando o elaborado tipo
de console, do qual ainda encontramos exemplares na Europa, como por
exemplo, em Covarrubias, na Espanha, onde há um instrumento autêntico
da Renascença ainda funcionando bem, produzindo o tipo de som que
provavelmente foi ouvido por Antonio de Cabezon, um dos melhores
compositores para órgão. Nascido em 1510 e cego desde o início da infân
cia, Cabezón mesmo assim dominava tanto o instrumento como a arte da
composição, tornando-se o organista de Carlos V e, depois, de Felipe II.
Cabezón viajou pelo mundo com Felipe II e, onde quer que fosse, deixava
exemplares impressos de sua música. Suas técnicas de teclado influencia
ram outros músicos. Cabezón foi o inventor da forma chamada tema e
variações, que ele denominava differen cía. Também desenvolveu os
tientos, na Itália chamados de ricercare, significando procurar - precurso
res da fuga.
d'A marca característica da música de Cabezón é, para mim, semelhante à
que distingue as três principais religiões que se encontraram na Espanha:
muçulmana, judia e cristã. Essa marca é a sujeição do ato humano à pala
vra escrita. A isenção emocional do canto gregoriano ou cantochão, nem
alegre nem triste, evoluiu aqui para um resultado maravilhosamente ex
pressivo e elaborado. Essa música não está sujeita às pulsações, ritmos e
emoções sensuais do corpo. É profundamente espiritual e suas cadências
seguem a exigência da palavra. O velho cantus firm us é agora o tema,
recordado mentalmente. Podem seguir-se ornamentos após ornamentos A ed u cação universitária
em vozes múltiplas, com o uníssono na oitava, ao final de cada seção. É firm ou raízes na Id ad e Média,
verdadeiramente música do espírito, não ainda mantida dentro de um e, na Renascença, já era uma
arcabouço harmônico ou rítmico tão rigoroso como vamos encontrar mais instituição florescen te.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 1 1
A prim eira bula p ap al em itida tarde em Bach; no entanto, constitui a ponte entre a. voz única e sua elabo
p elo Papa L eã o X contra
ração posterior, no contraponto do Barroco. Ouvir essa música tocada no
Martinho L u tero saiu em
órgão de Covarrubias — com seus tubos horizontais peculiares despren
ju n ho d e 1520 e lhe concedia
sessenta dias para a sua dendo sons semelhantes aos de trombeta, seu tom mais próximo do
réplica a uma com issão, ao temperamento natural do que o órgão moderno —, é ouvir, por mais
m esm o tem po qu e tam bém brevemente que seja, o som da música como realmente ela foi no século
devia retirar-se as acusações. XVI na Europa.
E m cima, à direita:
Longe de retratar-se, em A voz humana ainda não tinha perdido o seu lugar como a força propul
10 de dezem bro d e 1520 sora da música ocidental, que ainda dominava os princípios do fraseado,
Martinho L u tero queim ou mesmo na faixa de uma única linha. O cantar aparecia agora como campo
a bula p ap a l e ou tros de batalha na guerra entre a Reforma e a Igreja Católica. Martinho Lutero
docum entos. E m 3 d e jan eiro
morreu em 1544. Em 1590, a grande catedral de São Pedro, em Roma,
de 1521, ele f o i form alm en te
excom u ngado p o r L eã o X. estava para ser terminada. As forças turcas, sob o comando do sultão
Solimão, já tinham chegado ao vale do Danúbio, alcançando as portas de
O posto:
Viena. A Inglaterra havia rejeitado a autoridade do Papa. A Igreja Católica
A célebre p eça de altar de
desejava reforçar sua posição de liderança e sabia que a música podia
Matthias Grünewald, pin tada
em 1515 em Isenheim , na ajudar. O Vaticano mandou chamar um dos maiores compositores de
Alsácia, é com posta d e três todas as épocas, Giovanni Pierluigi da Palestrina (1524-1594), dando-lhe
painéis, um d os quais é este, a tarefa de reformar a música da Igreja. Ele iniciou, mas nunca chegou a
qu e se denom ina O Concerto completar o seu trabalho. Foram seus acompanhamentos para os textos
dos Anjos. Grünewald sacros e para a Missa que mais impressionaram.
(c. 1475-1528) e sua p eç a
de altar posteriorm en te
Quase toda a música de Palestrina era para ser cantada por vozes
inspiraram a ópera e sinfonia desacompanhadas. Embora a partitura possa causar uma impressão dife
Mathis der Maler, com posta rente (“Demasiadas notas longas” , disse Berlioz), quando ouvimos a
p o r Paul H indemith, em 1934. música, ecoando em espaços enormes, como os de São Pedro, reconhe-
7 8 • A MÚSICA DO HOMEM
o FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 19
THEORICA MVSICE FRANCHINI GAFVTU
LaVDFNSI.c.
8 0 • A MÚSICA DO HOMEM
a coordenação de enormes coros com grupos de sopro, cordas e metais,
colocando-os em galerias opostas na basílica de São Marcos, uma nobre e
venerável construção terminada em 1067. Esses executores trocavam res
postas musicais uns com os outros, e com os dois teclados de órgão que
serviam como base de apoio para as ricas harmonias. Foi um clímax digno
da música da Itália da Renascença e o ponto de passagem para o Barroco,
cujo principal expoente veneziano, um século mais tarde, foi Antonio
Vivaldi. Quando a fama da música de Veneza se espalhou pelo mundo, os
Gabrieli eram seus líderes absolutos. Em 1583 os Doges hospedaram uma Uma gravação de deBry
delegação de príncipes do longínquo Japão, e para esses distintos hóspedes m ostra o s portugueses
divertindo-se entre os nativos
mostraram suas mais elaboradas preciosidades musicais. Quando Andrea
d o Brasil, durante a Segunda
Gabrieli morreu, em 1586, Giovanni passou a ser o líder musical de Viagem às índias, sob o
Veneza, exatamente quando o reinado da voz humana na música ocidental com an d o d e P edro Álvares
começava a decair. Cabral, em 1500.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 81
8 2 • A MÚSICA DO HOMEM
Esse é o momento que marca, na música ocidental, o verdadeiro Os m em bros da A ccadem ia
começo da música instrumental independente, embora as formas vocais M onteverdiana, sob a direção
de Denis Stevens, estão
ainda fossem importantes. Giovanni Gabrieli já usava a técnica chamada
reunidos na catedral de
de baixo contínuo, em que na linha inferior da partitura escrita constam Canterhury para a ex ecu ção
sinais numéricos que indicam as harmonias que devem ser preenchidas de In Eclesiis Domino, de
acima no teclado. Seu conceito de escrita instrumental era preciso e teve Giovanni Gabrieli.
seu efeito em Monteverdi e seus sucessores. A modulação de tom para tom
era adequada à natureza dessa escrita instrumental, e é nessa música que
encontramos o que iria ser de importância vital para a história da música
ocidental nos trezentos anos seguintes: o recém-descoberto poder da disso
nância suspensa.
O FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 83
Icum em In ”, mas que agora se tornou inexorável. A dissonância se apóia
na frase até que a pressão tenha de ser resolvida elevando-se a nota ou
baixando-a para a seguinte. É uma das contribuições mais idiomáticas do
Ocidente para a arte musical. Wagner fez dela um modo de vida. A música
vocal da Renascença a introduziu, mas sua realização não podia perma
necer restrita à voz. Os instrumentos estavam prestes a se tornar a princi
pal fonte de energia das obras-primas da música ocidental dos trezentos
anos seguintes.
A Veneza d o tem p o de
Giovanni G abrieli era m uito
d iferente da cidade tal com o
a con h ecem os hoje. A
madeira, co m o m aterial
de construção, era m uito mais
com um , con form e dem onstra
esta pintura de Carpaccio
(cerca d e 1515).
8 4 • A MÚSICA DO HOMEM
o FLORESCIMENTO DA HARMONIA • 8 5
Monteverdi cria a ópera, Corelli cria a sonata e o concerto, e a cidade de Veneza toma-se a capi
ta/ da música q m ^ o a Renascença dã lugar ao Período Barroco. Tem início a colonização da
África e do Novo Mundo. Á fabricação de violinos alcança a perfeição em Cremona, nas mãos
de Stradwari e Guameri. Quando o poder se desloca para o norte, Lully se toma o mestre de
música de Luts XIV, e Henry Purcell é o últtmo de uma linha de mestres da Renascença ingle
sa, sendo sua influência substituída pela do alemão Handel
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iV ^ a íte K ív j bw^-ítTPMÍb* •
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N o século X V II a França
Quando chegamos ao século XVII, as grandes cidades e cortes da Itália
com eçou a dom inar a
ainda são o símbolo daquela surpreendente explosão de criatividade hu cultura da E uropa; o czar
mana, a Renascença - como o são o poder temporal dos banqueiros, Pedro, o Grande, procurou
comerciantes e políticos, de famílias como os Mediei em Florença e os em ular L uís XIV, e o francês
Gonzaga em Mântua. Nos assuntos humanos, a arte tinha atingido maior se tornou a língua exigida na
corte. Os que falavam russo
poder ainda de conquistar corações, e a eliminação gradual da distância
na presença d o czar tinham
entre a arte e a vida dos homens e mulheres comuns é um dos fatos mais
suas barbas cortadas.
empolgantes do século.^ Não mais se ouvia a harmonia calma e equilibrada
de Palestrina ou dos compositores Tudor, mas uma expressão explosiva de
paixão, como na música de Cario Gesualdo, em que as regras da harmonia
são esticadas até o limite máximo permitido pela época. Uma vez mais, o
artista personifica a sensibilidade humana, a mais alerta para a mudança
social, ajudando-nos a perceber a importância da vida de cada indivíduo.
Por que essa terra, esse povo italiano, teria dado à voz humana sua expres
são mais melódica na canção e na fala? Talvez seja o clima quente, o tem
peramento volúvel que requer eclosões emocionais freqüentes? Ou seria o
senso de que a vida não é mais do que um teatro onde os seres humanos
representam papéis inevitáveis? Qualquer que seja a razão, reconhecemos
que o brilhante Mediterrâneo de céus claros e mares imprevisíveis, junta
mente com a experiência de uma antiga civilização, não estimula ilusões
de perfeição nem uma determinação fanática de criar uma sociedade ideal,
aconteça o que acontecer. De mente e fala claras, os povos latinos da Itália
sempre souberam que haverá governantes e governados, pecadores e absol
vidos, construtores e moradores, e que de tempos em tempos os papéis
podem ser alternados ou trocados. Essa atitude pode não estimular o senso
do dever, mas produz realmente grandes obras de caridade.
Tomado pelo espírito do teatro, possuído pela música, superdotado
em todas as artes e ciências, foi esse povo que tornou possível a Grande
Ópera. A própria missa católica é, de fato, um dramático desempenho
teatral e, entre ela e a ópera, o salto absolutamente não foi tão grande
assim. Acrescentemos à mistura a música do povo — os madrigais, as
canções dos trovadores, as pantomimas populares e as peças de mistério,
88 A MUSICA DO HOMEM
juntamente com as técnicas do contraponto que se desenvolvem rapida
mente —e veremos que seria inevitável que um grande homem, que respira
e sente as emoções de seus iguais, as expressasse nesse novo gênero, a
ópera. Esse homem foi Cláudio Monteverdi.
M onteverdi serviu à fa m ília Nos anos que se seguiram à apresentação de O rfeo de Monteverdi, os
Gonzaga durante mais de teatros de ópera eram construídos pela ItáHa toda, do mesmo modo que
um a década. Este retrato,
fe ito p o r A ndrea Mantegna,
os cinemas, no Ocidente, nas décadas de 1920 e 1930. Em lugar algum
é d o duque Ludovico, avô eram mais numerosos do quê em Veneza, onde a cada ano eram executa
de Vicenzo, p ara quem das dezenas de novas obras, as mais recentes superando as anteriores em
M onteverdi com p ôs Orfeo. esplendor e aclamação popular. A prosperidade dessa cidade e os seus
9 0 • A MÚSICA DO HOMEM
teatros colocaram a ópera ao alcance de um público pagante proveniente
de todas as classes. Já não eram mais sessões restritas aos palácios dos
príncipes e dos duques; pela primeira vez a ópera se tornava um entreteni
mento popular em recinto fechado. A ópera continua sendo um dos entre
tenimentos mais populares na Itália; as platéias são extremamente exi
gentes, particularmente a parte mais alta da galeria, exigindo brüho e
intensidade por parte dos intérpretes. Muitos cantores, nem sempre capa
zes de realizar perfeitamente as acrobacias musicais exigidas, receberam
gritos e vaias de uma platéia desapontada.
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Os fo lh e to s n oticiosos
com eçavam a circular, Infelizmente, os altos padrões musicais estabelecidos por Monteverdi
inicialmente nas terras de não puderam resistir à pressão do gosto popular. O espetáculo podia trans
língua alem ã, e dep ois na formar-se em qualquer coisa, porque essa foi uma época de auge da luta
França e na Inglaterra, à dos figurinistas e cenógrafos contra o diretor de cena e a prima-dona,
m edida qu e a alfabetização
disputando a primazia. As prima-donas eram sempre queridas pelo público,
progredia. Esta p u blicação de
1609 diz: “N otícia: O que e uma soprano podia encomendar uma ópera especificamente para atender
está acon tecen do e se a seu gosto e capacidade. Até Monteverdi escreveu suas linhas melódicas
desenrolando na A lem anha, enganosamente simples para que elas pudessem ser ornamentadas de acordo
Espanha, Holanda, Inglaterra, com a fantasia e a habüidade de cada cantor. Nos trabalhos de Monteverdi
França, Hungria, Áustria,
há algumas indicações que mostram como isto podia ser feito. Na grande
Suécia, Polônia e em todas
as províncias das índias
ária em que Orfeu encanta o barqueiro Caronte, para deixá-lo cruzar o Rio
Orientais e Ocidentais, etc., Estígio, Monteverdi nos dá a melodia em duas versões: a primeira sem
hoje, 15 d e ja n eiro ”. adornos e a outra com os mais elaborados meandros e volteios, notas repe
9 2 • A MÚSICA DO HOMEM
tidas e pontos para respiração. Isto mostra claramente como os puristas
estavam longe da verdade quando insistiam em que a música antiga fosse
executada com simplicidade (embora outros atualmente superdecorem
belas melodias com arabescos absurdos). As ornamentações vocais logo se
tornaram mais importantes do que a melodia.
Desde o início, a ópera foi um espetáculo social, assim como um
drama musical. Os membros da corte e os mercadores mais ricos gostavam
de se exibir, tanto quanto os cantores. O poder musical da ópera era irre
sistível, porque nunca se vira ou ouvira nada tão poderoso no Ocidente.
Diz-se, algumas vezes, que a ópera é a combinação perfeita de todas as
artes; porém para muita gente essa é uma questão em aberto, ainda que
seja pela única razão de que a ópera é tão difícil de ser bem executada.
Até mesmo os entusiastas assíduos falam daquelas poucas e raras noites
miraculosas em que todos os elementos se uniram sem qualquer falha. É
impossível imaginar o efeito daquelas primeiras óperas sobre seu público,
ou recriar seu estilo de desempenho.
A ópera se tornou possível, em parte, em conseqüência da nova segu
rança e riqueza disponível na pequena cidade-Estado italiana, permitindo a
montagem de produções que estariam além dos recursos de um castelo
fortificado isolado. O público da ópera adorava terremotos, enchentes e
incêndios no palco. Não era muito pedir que aparecesse a corte inteira de
Netuno nadando suspensa na água. Os compositores competiam entre si,
agora, para criar veículos que produzissem esses efeitos.
Mas esses efeitos cênicos não estavam restritos aos palcos da ópera.
Ocasionalmente o povo podia ver défilades ao ar Hvre, com figurinos
esplêndidos, procissões com caracteres alegóricos, muitas vezes em caval
gada, ordenadas pela corte, a fim de impressionar os vizinhos (e pagas com
os tributos do povo).
A ópera foi a ponte entre o passado e o futuro, prenunciando o
período daquüo que chamamos de música barroca, um estilo marcado por
formas rigorosas e ornamentação elaborada. De início, os músicos simples
mente inventavam fórmulas e as seguiam; mas, como na maioria dos entre
tenimentos, essas óperas eram criações do momento, que serviam a seus
propósitos e eram rapidamente esquecidas. Todavia, despertaram o gosto
pela novidade, pelo efeito e pelo drama, que transbordaram para a música
instrumental em que a Itália também desempenhou um papel-chave. Foi
no conjunto instrumental do teatro da ópera que se moldou a moderna
orquestra, juntamente com o clássico quarteto de cordas: primeiro e
segundo violinos, viola e ceio, com um ou dois contrabaixos para apoio
extra. Esse conjunto começou a ser usado com outra finalidade, para fazer
da música não um acompanhamento, mas unicamente música pela música.
9 4 • A MÚSICA DO HOMEM
O esb o ç o detalhado da
Tanto a sonata como o concerto se basearam na posição assumida construção d o p a lco
pelo violino como o líder do conjunto instrumental. Já que a Itália conti (anônim o) revela com o
nuava apaixonada pela voz humana, é compreensível que o violino tenha se conseguia este e fe ito
tido um lugar tão importante no desenvolvimento da música pura italiana. im pressionante e caro. E isso
é tanto mais surpreendente
O violino era mais alto e mais flexível do que a maioria dos outros instru
quando se pen sa que esses
mentos. Somente o trompete e, talvez, a trompa podiam encobri-lo mas trabalhos se destinavam
naquele tempo ainda não tinham válvulas, e limitavam-se a séries de a ser apresentados som ente
harmônicos naturais. Havia modelos ou cüindros em todas as tonalidades em um a única tem porada.
96 • A MÚSICA DO HOMEM
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o filó s o fo fran cês R en é tituir o latim como o meio de comunicação da diplomacia internacional
Descartes jà vivia na H olanda
em toda a Europa; desde a Inglaterra até a Rússia de Pedro, o Grande, nin
durante algum tem po quando
escreveu o seu Discurso Sobre guém era considerado instruído se não falasse francês.
o Método, m cidade de
L eyden , em 163 7. E sta capa Os vioUnistas-compositores de Mântua, Veneza, Cremona e outras cidades-
é d a prim eira ed ição inglesa. -Estado viajaram por todo o Ocidente, levando sua música e seus violinos
aperfeiçoados. Um deles foi Giovanni Battista LuUy (na Itália, LuUi). Em
1642, apenas um menino de dez anos, ele seguiu os bandos de artistas
ambulantes em Paris durante o carnaval, onde atraiu a atenção de um
membro da corte real. LuUy tornou-se primeiramente um ajudante de
cozinha de Anne Marie de Montpensier, a prima do rei. Ela admirou seu
talento musical e colocou-o à frente de uma pequena banda de violinos.
Em 1646, o Rei Luís XIV tinha apenas oito anos de idade. Tinha
herdado a coroa com a morte de seu pai, três anos antes. Na época em que
A gravura d e Adriaen van
o rei era adolescente, já estava criando aquela que se tornaria a corte mais
Ostaade, representando uma
cantora, seu acom panhante célebre da Europa. Ficou tão empolgado com a maneira de tocar de LuUy
violinista e um amigo alegre, que o nomeou membro dos Les Vingt-quatre Violons du R oi, o conjunto
data de 1650. real privado. LuUy era apenas seis anos mais velho que o rei. Assumiu o
98 • A MÚSICA DO HOMEM
nome pelo qual o conhecemos, Jean Baptiste LuUy, e dentro de poucos A circulação d o sangue do
anos tinha reorganizado completamente L es Vingt-quatre Violons, aperfei estudo clássico d e William
çoando suas habilidades e tornando-os internacionalmente famosos — o Harvey, Exertatio Anatômica
de Motu Cordis et Sanguinis
que é ainda mais notável pelo fato de Lully ter sido autodidata em compo (1628), representando seu
sição e violino. ex perim en to p ara dem onstrar
Depois do casamento com sua prima, a infanta Maria Theresa de as válvulas nas veias d o braço.
Espanha, em 1660, Luís XIV decidiu tornar sua corte o local mais resplan
decente do mundo ocidental. Tendo assumido o trono tão jovem, dispôs
de sete décadas para realizar seu sonho. Ele próprio se chamava de L e R oi
Soleil, o Rei Sol, e ao seu redor os governantes de outras cortes deviam
girar como planetas. Luís XIV era apreciador incontido de bailados e ele
mesmo tomou parte em muitos. LuUy se tornou mestre e diretor de ballet,
escrevendo muitas das músicas para esses espetáculos, e começou a conso
lidar seu poder enquanto Paris se tornava novamente um brilhante centro O an fiteatro d e ensino de
de cultura. Descartes já tinha produzido seus tratados de Geometria e op erações cirúrgicas na
Universidade d e Pâdua, na
Razão, e firmado a frase “Penso, logo existo”. Racine e Corneille eram os
Itália, é um d os centros
principais dramaturgos do rei. Provavelmente L e Cid, de Corneille, foi a cien tíficos d a R enascença
peça mais influente do século, depois das de Shakespeare. que fo ra m mais p erfeitam en te
LuUy apresentava suas óperas e ballets em Versalhes, ao ar livre. preservados.
1 0 2 • A MÚSICA DO HOMEM
o Senegal é um microcosmo que exemplifica o que aconteceu em muitas
partes da metade norte da África nessa época da colonização. Inicialmente
a área foi povoada pelas tribos serer, wolof e peul. No século XI o Islame
estava firmemente estabelecido na área. Para o leste florescia o reinado
mandingo, e sua capital, Tomboctu, tornou-se célebre por seu saber e
riqueza. O explorador mouro, Ibn Batuta, lá chegou em 1353, proveniente
de Granada. Os mandingos avançaram para o oeste e tomaram o Senegal
pela força, completando a imposição do Alcorão sobre a população. Por
sua vez, os mandingos perderam o seu enorme reinado para o Marrocos,
em 1591.
Entrementes, os portugueses haviam se estabelecido na extremidade
ocidental do rio Casamance, uma área de boas terras e viçosas florestas.
Os franceses procuraram expulsá-los, mas os holandeses e ingleses também
se encontravam na área, em Point Gorée e na embocadura do rio Senegal.
A situação não se resolveu em favor dos franceses até o final do século
XV III, quando eles, por seu turno, avançaram para o leste, tomando final
mente a decadente cidade de Timbocto em 1894. A República Indepen
dente do Senegal foi estabelecida em 1958, e Léopold Sédar Senghor se
tomou seu presidente no ano seguinte. Senghor é reconhecido como um
dos mais eminentes poetas e líderes culturais da África, uma força motora
do conceito de negritude.
^Não existe música que possa ser chamada de senegalesa. Para isso existem
tribos demais na área, cada qual com suas próprias tradições. O kora e o
balafon pertencem mais aos wolof e serer, ao passo que os peul fazem
muita coisa com um simples instrumento com arco chamado riti. O inte
ressante é que o Islame tenha tido tão pouca influência sobre a música
desses povos, apesar de ter sido a religião predominante há quase mil anos.
Atualmente mais de oitenta por cento dos senegaleses são muçulmanos. A
minoria católica está concentrada principalmente na fronteira sul, no dis
trito de Casamance. Entretanto, a influência da música ocidental no Sene
gal inteiro tem sido imensa. Vemos isso na maneira pela qual os instru
mentos são afinados, nos volteios das frases usadas, e às vezes até mesmo
no ritmo. Talvez a explicação esteja no fato de que para o muçulmano a
música está separada do culto rehgioso. A música não tem lugar na mes
quita. O chamado do muezim e o canto do Alcorão não são definidos
pelos muçulmanos como música. A resposta está seguramente na natureza
da harmonia ocidental, cujo poder se espalhou tão rapidamente.
Acredito que o ritmo da música africana jamais se deteriorará sob as
influências ocidentais. Antes da chegada dos colonizadores ocidentais, os
africanos já tinham desenvolvido um sistema harmônico de certo modo
semelhante ao modelo europeu; mas a forma africana de abordar o ritmo
é única. As complexidades do compasso vêm dos padrões estabelecidos
por muitos indivíduos, cada qual se mantendo rigorosamente em sua pró
pria subdivisão de uma dada medida, em geral longa. Uma pessoa toca
num compasso de sete, outra no de onze, outra ainda no de três ou vinte,
todas se encontrando de tempos em tempos no ponto nodal. Os compas
1 0 4 • A MÚSICA DO HOMEM
NOVAS VOZES PARA o HOMEM • 1 0 3
■1
7-4
1 \
Os africanos têm razão: música é magia. Ela nos põe em contato com os
espíritos do passado e, também, do futuro. Criamos à nossa própria ima
gem, e a música é mais autêntica quando reflete verdadeiramente o que
somos e como sentimos. A música pode ser um ato individual - o pastor
tocando para si próprio e para o rebanho. Pode ser um pequeno grupo — a
aldeia estabelecendo uma cerimônia de dança ou uma canção comunal que
a distingue das demais aldeias. Pode ser uma multidão — as marchas dos
direitos civis em Washington, cantando sua determinação e solidariedade,
ou os judeus enfrentando o extermínio nos campos de concentração.
Música é meditação; é também ação, uma expressão pessoal e coletiva.
Sou um violinista, ou antes, um músico ao qual aconteceu ter tocado
violino durante toda a vida. Quando estive no Senegal, tive oportunidade
de tentar tocar o riti, um instrumento de arco do povo peul. E, no entanto,
por mais que me esforçasse, não consegui uma melodia apropriada. Isso foi
extraordinário, porque conheço a técnica perfeitamente bem. É a mesma
que para o violino de quatro cordas, com a diferença de que o executante
também pode usar o polegar da mão esquerda sobre a corda, porque o
braço do instrumento é muito fino. Não creio que a diferença esteja no
fato de as cordas e o arco serem feitos de crina, enquanto nós usamos
cordas de vísceras de animal, ou de metal. O significado da musica do riti
para um músico peul pertence a ele, não a mim. O ritmo e exuberante e
penetrante, e uma melodia em sete compassos chamou particularmente
minha atenção. Foi interessante ver um violino reduzido a seus compo
nentes mais simples — uma caixa de som com um cavalete móvel para
ajustar a afinação, a corda simplesmente amarrada com uma cordoalha, o
arco como um arco medieval do Ocidente, com uma curva alta. Havia no
riti, nos sons que os músicos tiravam dele, uma capacidade para se conten
tar com a u tiliação dos recursos básicos em oposição ao orgulho de exer
cer controle e domínio. Pagamos um alto preço por nossa busca dos efei
tos máximos.
O instrumento de cordas com arco é uma das descobertas singulares
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1 1 8 • A MÚSICA DO HOMEM
Isto nâo quer dizer que não houvesse compositores, porque Thomas Arne,
William Boyce e, naturalmente, Sir Arthur Sullivan, entre muitos, são
conhecidos ainda hoje; mas eles não são do porte de PurceU. Além do
mais, chegava agora à música inglesa George Frideric Handel (a maneira
pela qual sempre se assinou), e por mais de quarenta anos o seu som e o
seu estilo dominariam a vida musical da Inglaterra.
Por essa época, a música na Inglaterra tinha-se tornado mais pública.
Em 1699, os Playford introduziram concertos três vezes por semana em
um café de Londres. Até então, os concertos eram coisas caseiras, destina
das principalmente ao deleite dos executantes. A idéia de um público
pagante para os concertos era nova, embora as óperas estivessem indo bem.
Os concertos em cafés se firmaram, primeiramente na Inglaterra e depois
no continente, e estavam ganhando terreno rapidamente quando Handel
chegou a Londres, em 1711. Nascido em 1685, George Frideric Han
del, assim como PurceU, tinha uma técnica fabulosa, tendo estudado todos
os últimos modelos italianos. Era um violinista capaz, membro da orques
tra da ópera de Hamburgo, sob a regência de Reinhard Keiser, o pai da
ópera alemã. Handel não tinha ainda vinte anos quando lá compôs sua pri
meira ópera, assumindo uma encomenda pela qual Keiser tinha perdido
interesse. Almira obteve tanto sucesso, que Keiser compreendeu rapida
mente que tinha um forte rival entre seus segundos violinos. Ele não preci
sava ter-se preocupado tanto, porque o amor pela Itália logo se fez sentir, e
com vinte e dois anos Handel estava em Florença, cortejando os Mediei,
e depois em Veneza, onde sua ópera Agrippina tomou a cidade de assalto.
Outras mudanças estavam para ocorrer na Europa, e os anos-chave
foram 1714-15. A Rainha Anne havia morrido e a casa britânica dos Stuart
chegara ao fim. George I chegou para estabelecer a casa alemã de Hanover
como governante da Inglaterra. O novo rei mal falava inglês. Depois, na
França, o Rei Luís XIV havia morrido, sendo sucedido por seu bisneto.
Estava sendo preparado o caminho para a Revolução Francesa. A influên
cia alemã na música e nos negócios ingleses não pode ser subestimada, mas
Handel teria sido formidável em qualquer época. Suas costas eram tão
largas que, por assim dizer, ninguém podia enxergar além dele. Handel não
desejava mais do que tornar-se um gentlem an inglês, e logo passou a domi
nar a língua e as maneiras inglesas. Em breve estava recebendo conselhos
de investimento de um dos melhores corretores de títulos de Londres.
Handel não podia deixar de sentir-se impressionado pelo vigor da
tradição coral inglesa. Apossou-se dela e com notável rapidez alterou a
paisagem musical inglesa. Além de produzir quarenta óperas nos trinta
anos seguintes, também escreveu dezenas de sonatas, concertos, cantatas e
duetos, e a Música A quática. A Inglaterra oferecia o tipo de sociedade
capaz de sustentar o pródigo estilo dramático de Handel, e suas óperas
eram muito populares. Handel tinha sido o produtor de suas próprias
óperas e enfrentou dificuldades financeiras quando seu público passou a
preferir a ópera cômica e as melodias picantes de The Beggar’s Opera. Con
seguiu se desembaraçar, através da manipulação astuciosa de suas ações.
Quando a famosa South Sea Company faliu, em 1720, ocasião em que
4 . A eta do compositor
Vimos que a evolução das próprias técnicas através das quais os composi
tores conseguem trabalhar levou diversas centenas de anos, começando
com o florescimento da harmonia durante a Idade Média e a Renascença.
Quando entramos no século XVIII, tanto na música como nos assuntos
mundiais, o período da exploração e explotação de novos territórios pelo
Ocidente estava começando a ceder lugar à consolidação do conhecimento
adquirido e das batalhas que haviam sido ganhas. Foi também uma época
em que as muitas vozes do povo começaram a exigir que fossem ouvidas.
A Inglaterra tinha estabelecido o princípio da monarquia constitucional
com sua Gloriosa Revolução de 1688, e cerca de cem anos mais tarde a
França e a América iriam abolir e repudiar totalmente a monarquia. Du
rante esse período, o compositor começou cada vez mais a falar pelo povo,
fosse através da voz nobre e unificadora de Bach, ou através da voz orgu
lhosa e desafiadora de Beethoven. É também neste século que deixamos N r
para trás uma sociedade construída em tomo de grandes cortes e reinados,
passando para uma sociedade que se apóia na iniciativa individual. É muito
natural que o compositor tenha sido parte integrante desta transformação
gradual.
As sementes da mudança podem ser vistas em Veneza, porque essa
cidade rica e diversificada, cujas bases eram o mar e seu comércio, era um
símbolo do predomínio da Itáha na música ocidental durante a maior
parte da Renascença. Lá pelo fim do século XVII, quando despontava o
Período Barroco, o poder estava se deslocando em direção ao norte, e
Veneza estava no crepúsculo de sua influência mundial. Lá nasceu, em
1678, um dos últimos da longa lista de extraordinários músicos-composi-
tores venezianos, Antonio Vivaldi.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 2 3
Viena, esperando encontrar novo emprego. Logo depois que chegou o
imperador morreu e, no ano seguinte, 1741, Vivaldi também morreu e foi
enterrado em Viena, longe do cenário de seus triunfos. Sua música foi dei
xada de lado durante duzentos anos, até que o gosto pela paixão tempe
rada pela ordem o trouxesse de volta à preferência do público. Foi um
ressurgimento que não teria surpreendido a ninguém mais do que ao pró
prio Vivaldi, porque ele escrevia sua música para consumo imediato e não
para a posteridade, um enfoque que só começou a se modificar com
Beethoven.
O violino e a voz cantada eram os principais meios de expressão de
Vivaldi, tal como o foram durante a longa evolução da música ocidental
desde a Idade Média. Muitos compositores têm uma dívida para com
Vivaldi, começando por Bach, que adaptou e reescreveu muitos de seus
concertos. Mais tarde, Mozart e Mendelssohn reconheceram sua influência.
Vivaldi é o defensor da emoção imediatamente traduzida em melodia pura.
Mas tambem estava se aproximando do fim a liderança do violino na mú
sica ocidental.
Embora o violino dominasse a música do Barroco, como a voz o
fizera na Renascença, o teclado representava um recurso único para o com
positor. Era um instrumento de pesquisa, um meio de testar e medir idéias
musicais. No seculo XVII também se tornou um instrumento para impro
visação de alto nível técnico, especialmente nas mãos de alguns organistas
do Norte, como Pachelbel e Buxtehude. No século XV III, o cravo come
çou a superar a liderança do violino, determinando dinâmica, tempo e
harmonia. Dentro do limite de dez dedos, o executante do teclado man
tinha a gama toda de linhas melódicas distintas, contraponto e ritmo, não
devendo causar admiração o fato de que o compositor ocidental em geral
tambem fosse pianista. Com o advento do teclado, o violinista foi rebai
xado, do ponto de vista intelectual e de criação; e à medida que a influência
política e musical se deslocava para o norte, o teclado ganhava proeminên-
cia, juntamente com a música da cultura alemã, uma música de disciplina
e ordem, premeditação e força.
Agora, a música do Ocidente tinha-se tomado um bem intercam-
biável; músicos e compositores de todos os lugares adotavam estilos uns
dos outros. A música de Handel é uma mescla consumada dos idiomas
alemão, italiano, inglês e até francês. Foi em suas formas populares que a
música das terras alemãs reteve seu sabor local, com graciosas inflexões
de frases, que variavam conforme o dialeto de cada régião. Parece ter sido
uma forma de manter um vínculo com o passado, mesmo num momento
em que começava a emergir um espírito nacional. Ainda podemos ouvir
essa modalidade na música tradicional de dança de alguns distritos da
Suíça, como Appenzell, um dos mais conservadores dessa nação de cantões
acirradamente independentes. Appenzell fica perto de St. GaUen, cujo mos
teiro é uma das mais velhas e eminentes sedes do saber em toda a Europa.
Vimos que o conceito de harmonia evoluiu lentamente a partir das
regras de concordância de vozes distintas. Nenhuma manifestação de har
monia é mais impressionante do que a ressonância de um grande órgão de
1 2 4 • A MÚSICA DO HOMEM
igreja. Nas igrejas paroquiais, desde a província de Casamance no Senegal
até Oka em Quebec, ouve-se esse som singular, o som da harmonia.
1 2 6 • A MÚSICA DO HOMEM
por fim, a diretor de música e educação na Escola de São Tomás em
Leipzig. Obteve o emprego, mas foi a terceira escolha, selecionado somente
depois da recusa de outros dois. Manteve o cargo durante o resto de sua
vida. Para seu teste de admissão, ofereceu aos dirigentes da cidade nada
menos do que a Paixão Segundo São J o ã o , que eles consideraram um
pouco enfadonha e antiquada. De certo modo estavam certos, porque Bach
conhecia e admirava a música de muitos compositores anteriores, notada-
mente Cabezón, Lassus e Palestrina, já então considerados antiquados.
Temos a vantagem de poder olhar para trás; sabemos que com Bach
estamos lidando com um gigante. Não devemos culpar os bons cidadãos
de Leipzig por não terem conseguido reconhecer um müagre. Pelo menos
em sua época, o estüo de Bach era considerado pesado em comparação
com o italiano e o francês. E quando ele foi para a Escola de São Tomás,
grande parte de suas maiores obras ainda estavam por vir. Além disso, era
famoso como executante e erudito, mas como professor era uma incógnita.
O que poderia fazer com cinco dúzias de meninos de onze a dezessete anos,
com os quais ficaria encarregado de executar a música para as cerimônias
religiosas dos domingos, durante o ano todo, em quatro igrejas? Na ver
dade, os dirigentes da cidade não precisariam observar nada além do que
Bach estava fazendo com seus próprios fühos. É aí que sua habüidade para
o ensino é mais evidente. Deu-lhes uma profissão com que podiam ganhar
honestamente a vida e proporcionar prazer a seus empregadores; uma vida
de serviço, em seu melhor sentido. Karl Philipp Emmanuel Bach, o segundo
filho, ligou-se à corte de Frederico, o Grande, em Berlim. Apesar de sua
fama e riqueza, permaneceu dedicado à memória de seu pai e é graças a
seus cuidados que sobrevive uma grande quantidade de partituras de Bach.
Johann Christian Bach, o caçula, tornou-se o querido de Londres, depois
de Handel. Quando Mozart fala pela primeira vez do Grande Sr. Bach, é a
Johann Christian que se refere, pois, quando menino, sentou-se em seus
joelhos para tocar duetos. Christian Bach arruinou-se tentando sustentar
a produção de suas óperas, não possuindo, infelizmente, o grande dom de
Handel para especulações de mercado.
Os filhos de Johann Sebastian Bach ajudaram a treinar uma outra
geração de músicos, como o pai os tinha treinado e a muitos de seus con
temporâneos. Só agora é que está sendo compreendida a importância dos
ensinamentos de Bach. Bach é o exemplo perfeito daquilo que a música
ocidental se propunha alcançar há quinhentos anos. É um compositor-
-executante que pode fazer, com o seu material, tudo o que lhe der von
tade. Pode captar simples ritmos de dança e transformá-los em elaboradas
suítes ou variações. Pode virar seus temas de cabeça para baixo, do avesso
para o direito, de trás para diante, como faz com as fugas. Pode combinar
muitas vozes independentes, cada uma sendo nitidamente ouvida, como
no coro de abertura da Paixão Segundo São Mateus. Pode testar a habili
dade dos melhores executantes em cada instrumento, como nos Concertos
de Brandenburgo. Pode equiparar o órgão à melhor orquestra. Fez o
melhor que pôde para transmitir essas habilidades a seus meninos, na
escola e no lar.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 2 7
Quando nossa música ocidental começou a crescer, nos tempos
medievais, os compositores se contentavam principalmente em adicionar
uma parte melódica de cada vez, usualmente acima e abaixo de um canto
básico tirado do cantochão, ou mesclando um ritmo de dança com uma
letra para produzir uma canção de duas partes. Esse procedimento não é
desconhecido em outros lugares; podemos encontrar seu equivalente na
África, no Oriente Próximo, na Indonésia. No Ocidente, isso levou a um
resultado diferente. Na época em que chegamos a Bach, o processo passara
por um desenvolvimento surpreendente. Não apenas cada uma das partes
isoladas é bonita por si só — como com PurceU —, como também Bach as
interliga para formarem um todo harmonioso completo. Sob este aspecto,
é difícil comparar Bach com qualquer outro músico, pois sua habilidade é
muito superior à dos demais.
1 2 8 • A MÚSICA DO HOMEM
forma tocando os corações das pessoas e disciplinando suas mentes em
uma experiência imperativa e viva no tem po, como jamais havia sido
conseguida antes, em tão grande dimensão e intensidade.
Isso pode ser claramente observado em uma fuga de Bach, uma de suas
mais rigorosas e ao mesmo tempo mais engenhosas disciplinas. Em uma
fuga, o tema aparece repetidamente, cada vez em diferentes registros e
tonalidades, algumas vezes deslocando do maior para o menor ou vice-
-versa. Em sua forma clássica, a idéia temática principal, na maioria das
vezes, é introduzida quatro vezes sucessivamente, nas vozes equivalentes a
soprano, contralto, tenor e baixo, uma a cada vez. Uma vez lançada, cada
uma dessas vozes continua independentemente, ao mesmo tempo que
complementa as outras, à medida que vão entrando. O tema também pode Uma vez na praça, a orquestra
ser invertido ou revertido, e sua velocidade pode ser reduzida à metade ou com eça com “ Viva S olen e ao
dupHcada. As outras vozes enchem o padrão harmônico ao mesmo tempo Velho R eg im e”, prosseguindo
que retêm sua identidade distinta, como se cada voz tivesse um desejo com uma serenata ou
próprio. A forma não tem origem em Bach, porque muitos compositores divertim ento; se esta fo s se
a orquestra de B ach em
a vinham desenvolvendo durante cerca de dois séculos. A fuga deve alguma
Leipzig, a escolh a p od eria
coisa à idéia do tema e variações, como nos tientos de Cabezón, mas ainda ter sid o uma de suas suítes
mais ao cânone, a forma que se tornou popular entre os cantores mesmo ou um Concerto de
antes de “Sumer Is Icum en In ”. Brandenburgo.
1 3 0 • A MÚSICA DO HOMEM
como um bonito desenho abstrato. Bach é também tão frugal, que chega
ao excesso. Quando escreveu suas seis sonatas e partitas para solo de
violino, por exemplo, ao terminar uma peça colossal, começa a peça
seguinte na mesma página. Faz isso até no fechamento da cambaleante
Chaconne em R é M enor, o mais longo de todos os movimentos em seu
conjunto de seis trabalhos para solo de violino. Usei intencionalmente a
palavra “conjunto” porque nessas sonatas e partitas podemos ver que usar
o papel todo não era simplesmente questão de economia. As sonatas são
compostas em uma seqüência de tonaüdades relacionadas: Sol, Si, Lá, Ré,
Dó, Mi. Evidentemente, Bach tinha o conjunto todo planejado desde o
início. Ligar o final de um trabalho ao início do seguinte era um passo
lógico em um processo unificado, um único gesto. O manuscrito de Bach
não tem o ímpeto do turbulento Beethoven; é igualmente forte, porém
mais fluido porque os poderes criativos eram mais disciplinados. Nesses
trabalhos para violino ele nos mostra a minúcia de seu método, jamais
escrevendo notas arpejadas do vioHno como acordes, mas sempre como
vozes individuais. Está constantemente pensando em termos de contra
ponto.
A Chaconne em R é M enor é para um viohnista um dos testes mais
rigorosos que se podem imaginar. Suas dificuldades estão inteiramente
dentro das possibilidades do instrumento, porque Bach foi, durante a vida
toda, um violinista profissional, e é justamente esse conhecimento que lhe
permite explorar ao máximo toda técnica ao alcance do instrumento. A
Chaconne chega no final de um longo trabalho, coroando os quatro movi
mentos precedentes. Tudo o que houve antes foi a preparação para esse
esforço supremo. A forma do movimento é repetitiva, um pouco como a
raga indiana, no sentido de que brota da mesma seqüência subjacente de
notas graves e intervalos. Não sentimos a recorrência, apenas o cresci
mento. Bach ajuda a prender a nossa atenção por começar o padrão rít
mico de muitas variações no compasso final de uma que está justamente
terminando. É como alguns fümes modernos em que ouvimos o som que
pertence à cena seguinte enquanto ainda estamos vendo a ação da presente.
Todos os trabalhos de Bach para solos de cordas usam formas baseadas em
nossa capacidade de fazer uma coisa duas vezes, de repetir um experi
mento, e recorrem a ritmos de dança conhecidos de seus ouvintes: a louré,
a gavota, a bou rrée, a giga, a sarabanda. Acredito que a Chaconne leva seu
ritmo de dança a um nível que nenhum outro compositor atingiu.
Bach procurou durante toda a sua vida proporcionar à música mais uma
ferramenta, cuja utilidade ele antevia claramente. Nós a chamamos de
escala temperada. O que queremos dizer com isso, e por que Bach achava
que era tão importante? Se olharmos o teclado de um piano, veremos que
cada oitava contém sete notas brancas e cinco pretas, formando um con
junto de doze semitons. A seqüência se repete nas sete oitavas do piano.
Essa convenção de desenho levou algum tempo para evoluir. Ora, afinar
qualquer teclado, seja piano, cravo ou órgão, é coisa complicada, porque
as distâncias entre os doze semitons não são iguais em qualquer tonalidade.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 3 1
Se afinamos o teclado para trabalhar melhor em uma tonalidade, não tere
mos problemas, desde que nos atenhamos estritamente a essa tonalidade e
às que lhe são próximas. Mas se o afinarmos, por exemplo, para Dó maior,
e depois tentarmos tocar em Fá sustenido menor, a coisa fica mais ácida
do que limão e vinagre.
Os músicos criaram todas as espécies de ajustamentos, o mais fácil
dos quais era evitar escrever música em quaisquer tonalidades “distantes”,
aquelas com muitos sustenidos ou bemóis na marcação inicial da pauta.
No século XVI, Nicola Vicentino criou o arquicembalo, em que cada tecla
preta tinha uma metade mais aguda e uma mais grave, afinadas para bemóis
ou sustenidos. Isso durou tanto quanto o triplano em aviação. Era muito
fácil as coisas saírem fora de linha, e era muito difícü de lidar. Vicentino,
no entanto, sabia que um Fá sustenido e um Sol bemol não são realmente
a mesma nota, nem um Lá sustenido e um Si bemol. Sua afinação depende
de sua função dentro de uma dada tonalidade. Na realidade, o Fá sustenido
é afinado ligeiramente mais alto do que o Sol bemol. Para acomodar a
diferença, foi introduzido um meio-caminho chamado afinação de tom
médio, conciliando os sustenidos e os bemóis apenas o suficiente para o
teclado incluir todas as teclas comumente usadas. Essa forma de afinação
durou até o século XIX, especialmente para os órgãos de igreja.
1 3 2 • A MÚSICA DO HOMEM
instrumentos, em um volume enorme de música de câmara, e era simples
mente inadmissível que todos tocassem afinadamente, com exceção do
teclado, que era o líder.
Outros sistemas musicais fazem o mesmo. Para permitir que a harmo
nia se tornasse o que hoje é no Ocidente, era indispensável a escala tempe
rada. Foi esse elemento que nos permitiu descobrir como nos movimentar
mos livremente dentro de uma peça, de uma tonalidade para outra, através
de um processo chamado de modulação. Tendemos a esquecer o quanto
tudo isso é recente. E, no entanto, o quanto isso levou rapidamente à har
monia densa de Richard Strauss e ao sistema de doze tons de Schònberg.
Algumas vezes fico a cismar se nosso ouvido irá, algum dia, readquirir a
capacidade para apreciar uma quinta ou quarta pura, ao invés de uma
temperada, como o fizeram claramente os cantores do cantochão; e se isso
acontecer, será que teremos abandonado toda a música que depende de
temperamento igual?
Bach nunca usou de dispositivos técnicos como um fim. Sempre fez
música para comunicar-se através de emoção e imagem. Georges Enesco
explicou-me com clareza o paralelo contido na Chaconne, comparando o
momento em que a música retorna à tonalidade de Ré menor, no final,
com a imagem da Madonna dolorosa, trágica e em pranto, entalhada por
Tilman Riemenschneider, o grande escultor bávaro medieval. Com efeito,
a música de Bach corresponde perfeitamente àqueles arquétipos de tristeza,
fé, dor e resignação presentes em toda a peça do altar do qual a Madonna
faz parte, sendo que essas emoções são para todo o sempre parte da exis
tência humana. A música de Bach é uma ponte subHme entre o eterno e o
cotidiano, entre o sagrado e o temporal.
1 3 4 • A MÚSICA DO HOMEM
entrelaçamento de partes distintas. As pessoas serviam umas às outras com
maior tolerância, e as artes floresciam porque esta era a maneira decretada
pelos Habsburgos. Eles exigiam o melhor, e podiam dar-se a esse luxo — e,
acima de tudo, na música.
Deve-se ressaltar que quatro imperadores sucessivos — Fernando III,
Leopoldo I, José I e Carlos VI, que reinaram entre 1637 e 1740 — foram
hábeis compositores e executantes. De fato, Carlos VI gostava de dirigir
ensaios finais de óperas, e o fazia bem. As obras desses Habsburgos enchem
vários volumes, o que é notável, levando-se em conta as suas funções com
relação ao Estado. É difícil imaginar imperadores carregando cadernos de
um lado para outro. Mas, afinal, um dos lemas dos Habsburgos é: “A lira é
mais poderosa do que a espada” . Graças a esses imperadores, os melhores
músicos se reuniam em Viena, que, na época de Mozart, estava em via de
se tornar a capital musical da Europa.
Foi em Viena que chegaram ao fim as guerras entre muçulmanos e
cristãos, pelo menos em solo europeu. Os mouros tinham saído da Espanha
há quase duzentos anos, mas os turcos ainda estavam de posse de uma
parte importante dos Balcãs e da Grécia. Os exércitos do Império Otomano
alcançaram as portas de Viena pela última vez em 1683, e sua derrota foi
conseguida pela aliança incomum da Polônia, Rússia, Áustria e Veneza,
potências que habitualmente eram adversárias. Não obstante, em Viena os
turcos deixaram suas marcas - do croissant do desjejum, que mais tarde
migrou para a França, dos bolos gelados com creme batido, extremamente
decorados, que não são diferentes dos doces mouriscos encontrados na
Espanha e Portugal, até o som da exótica música turca, pelo qual os
vienenses mantiveram uma paixão durante muitos anos. Encontramos
sua influência na música de Mozart, Haydn, Beethoven e muitos outros
compositores que fizeram de Viena o seu lar, embora os trechos de colo
rido turco, com os pratos e tambores introduzidos por esses mestres, não
tivessem ligação com a verdadeira música turca.
Da derrota da Turquia emergiu, com renovada proeminência, o
mundo de língua alemã (assim como o café). Vale a pena lembrar o rei
alemão George I governando a Inglaterra e Handel governando a música
inglesa. Os concertos nos cafés, que haviam começado no final do século
XVII, agora se espalhavam por todo o mundo alemão. Bach cumpriu seu
papel na casa de café de Zimmerman, em Leipzig. Com efeito, Handel
pode ter dominado a música na Inglaterra, mas, como vimos, o clã inteiro
de Bach tinha uma imensa influência no continente. Os concertos das
casas de café levaram mais tempo para alcançar Paris, onde em 1725 os
Concerts Spirituels começaram a se reahzar aos domingos, quando a
Ópera estava fechada. Em Viena, a influência itahana era grande, havia
uma separação muito menor entre o popular e o refinado, e a ópera era
um entretenimento amplamente aceito, concorrendo algumas vezes com
os bares de vinho e os jardins de cervejaria.
Nesse clima é que vamos encontrar Wolfgang Amadeus Mozart. Em
bora nascido em Salzburgo, em 1756, ele viveu sua maturidade em Viena.
A versatilidade de Mozart é única, embora comparável à de Bach ou Pur-
1 J 6 • A MÚSICA DO HOMEM
do Palácio Mirabell. Mozart acompanhava sua irmã mais velha, Maria Anna,
apeüdada de Nannerl, que tocava violino. Dos sete fühos de Mozart, eram
os dois únicos que haviam sobrevivido à infância. Pode ser que seu início
logo cedo tenha decorrido simplesmente do tino de seu pai para negócios,
reconhecendo imediatamente as propriedades comerciáveis dos filhos. Isso
dá uma medida do quanto o mundo havia caminhado desde o tempo de
PurceU, e da mudança ocorrida na atitude dos pais: o gênio inglês, nascido
apenas um século antes, era quase tão precoce, porém jamais foi comer
cializado.
Com certeza, nenhum prodígio foi mais exibido do que Mozart. Ele
se sentia à vontade tanto com o cravo quanto com o instrumento recém-
-surgido, chamado pianoforte, e era quase tão bom quanto Nannerl no
vioUno. Escreveu sonatas com cinco anos, e sua primeira sinfonia antes dos
dez; com doze anos escreveu sua primeira ópera. Sua música seguia a sólida
tradição alemã; porém, Mozart passou alguns meses cruciais na Itália, dias
que iriam modificar sua vida. Dificilmente poderia haver maior contraste
de ambiente, entre os telhados vermelhos, a cor verde dos álamos de Tos-
cana e a água cor de café com leite do rio Salzach. Como adolescente,
Mozart fez diversas viagens à Itália, e apaixonou-se pelo ritmo daquela
língua especialmente adequada ao canto. Adorava a ópera italiana, e escre
veu algumas das melhores: As B odas d e Fígaro e Don Giovanni. Porém, ele
jamais esqueceu o toque comum austríaco, como atestam suas óperas
alemãs, O R apto d o Serralho e A Flauta Mágica. Deliciava-se quando algu
mas de suas melhores melodias de ópera eram assoviadas nas ruas. A Flauta
Mágica (como sua última ópera, Id om en eo) mostra sua reverência também
para com as óperas de seu grande predecessor, Christoph WiUibald Gluck,
do mesmo modo que com os altos ideais da maçonaria, que Mozart havia
adotado, demonstrando capacidade para viver em dois mundos ao mesmo
tempo.
Poderíamos descrever Mozart como o primeiro músico ocidental/ree-
lance completamente independente, mas isso seria apenas aplicar um rótulo
a uma circunstância inevitável. Mozart conhecia seu valor e não gostava da
idéia de trabalhar para um único patrono. Julgava que as encomendas e
recompensas deviam vir até ele, embora, depois de adulto, fosse quase
mais hábil em cultivar as boas graças dos príncipes do que na administra
ção de suas finanças. Mozart tinha começado a vida na corte do arcebispo
de Salzburgo, onde era um servo humilde em um ambiente pródigo. Du
rante toda a sua vida adulta procurou tornar-se independente de tal servi
dão. Se tivesse vivido tanto quanto Josef Haydn, talvez por fim tivesse
tido sucesso.
A ER A DO COMPOSITOR • 1 3 7
métrica tinha sido um aspecto altamente definido da arte da música oci
dental, já no século XII, e, na época de Monteverdi, trabalhos de grande
complexidade eram executados em ritmos claramente medidos, ainda
quase sem compassos. Aos poucos, durante o século XVIII, em toda a
Europa a música começou a se enquadrar naquilo que considero uma jaula
métrica. A frase melódica flexível, os grupos rítmicos de cinco, sete, onze
ou outros números ímpares de tempos, encontrados com tanta freqüência
na música popular tradicional, desapareceram da música da sala de concer
tos. Isto decorre, em parte, da paixão germânica pela ordem, mas também
tem ligação com o surgimento de danças com ritmo medido como o mi-
nueto e a valsa, ambas em tempo três por quatro, e populares nos dias de
Mozart. Também tem a ver com a necessidade crescente de manter as mui
tas partes de uma partitura funcionando em uma ordem predeterminada, a
fim de garantir coordenação a essa complexidade. Sem um compasso,
como um regente poderia esperar que todos os executantes se mantivessem
em conjunto? Orquestras com cerca de sessenta executantes não eram
incomuns nessa época, e a unidade de cordas tocando em conjunto, conse
guida por orquestras como a de Mannheim, se tornaram a maravilha da
época. Na minha opinião, isso serviu para tornar a música ocidental menos
Em uma gravação colorida
elástica.
de 1 781, vem os Viena co m o a
teria visto M ozart com vinte A música folclórica não-escrita, com apenas alguns músicos tocando
e cin co anos de idade, um ano de ouvido, não tem esse problema, e seus ritmos permaneceram mais
antes de ter com p osto sua livres, menos presos pelas restrições da notação. Assim, encontramos ainda
sinfonia Haffner (nP 35). A na Grécia, no Oriente Próximo, na Europa Central, como nas ragas da
cena é o Graben, o núcleo
índia, melodias baseadas em compassos de cinco ou sete tempos, ou em
com ercial da cidade,
olhando-se em direção ao combinações ainda mais complicadas. A seu modo, esses ritmos também
Kohlmarkt (m ercado de são rígidos, fazendo parte de uma tradição estabelecida há muito tempo.
carvão ). Vamos encontrá-los mais tarde na música de Stravinsky. Mas eles dão a
1 J 8 • A MÚSICA DO HOMEM
L eo p o ld M ozart levou seus
dois filh o s talentosos para
essa música folclórica um desequüíbrio, uma imprevisibilidade, uma quali Viena, em 1 762, on d e fo ra m
recebid os p ela Im peratriz
dade elástica, uma maior latitude para improvisação, que em grande parte
Maria Theresa e o Im perador
a música clássica ocidental perdeu. É uma perda que lamento, porque acho Francisco I, e seus m uitos
que perdemos contato com uma herança importante, parte da música pagã, filh o s (entre os quais Maria
uma Hberdade natural com que todos nós nascemos. É também a imposi A ntonieta, apenas dois m eses
ção daquilo que prazerosamente imaginamos que fosse uma ordem supe mais velha d o qu e Wolfgang).
N este detalhe de uma pintura
rior, sobre um caos inferior.
de M eytens, o com p ositor de
Em Mozart, como nas valsas de Strauss, o que mantém o ritmo vivo seis anos de idade está d e p é
é sua humanidade, sua flexibüidade. Sua música simplesmente precisa em uma frisa com os outros
respirar. O compasso precisa estar pronto para mudar o tempo todo, um músicos, em um con certo
pouco mais rápido aqui, um pouco mais lento ali. Essa suavidade, com- no Palácio Schõnbrunn.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 3 9
preensâo, humor e simpatia são qualidades que marcam Mozart por toda
a sua vida, qualidades que jamais o abandonaram, apesar de seu esforço
para conseguir ganhar dinheiro.
1 4 0 • A MÚSICA DO HOMEM
comumente estendido através do mundo europeu. Naturalmente, cada
grande compositor desenvolve seu próprio estilo, mas PurceU, Bach e
Mozart refletem a era heróica da Igreja, que tanto havia influenciado a
música ocidental em um milênio. Quando começou o Período Romântico,
firmou raízes uma idéia que afetou profundamente a música dos últimos
150 anos. A idéia foi a do estabelecimento de um idioma pessoal para cada
compositor. Ludwig van Beethoven é tanto a semente como o primeiro
florescimento dessa idéia.
Foi Beethoven quem deu à orquestra sinfônica a forma básica final que
conhecemos hoje. Embora tenha herdado a orquestra de Haydn e de
Mozart, ampliou sua dimensão e variedade, acrescentou os trombones, que
eram geralmente reservados para a ópera, e experimentou o uso do piccolo
e do contrafagote. Pode parecer uma contradição buscar a definição da
A ERA DO COMPOSITOR • 1 4 1
Era do Indivíduo nesse corpo musical coletivo, mas essa instituição está
diretamente ligada à idéia de uma linguagem musical pessoal, e Beethoven
encontrou novas maneiras de usá-la para expressar, através da música, a
força do indivíduo.
Beethoven tinha sido aluno de Haydn e esperava estudar com Mozart;
mas na época em que se estabeleceu em Viena, em 1792, Mozart estava
morto. Beethoven tinha então vinte e dois anos, apenas catorze anos mais
moço do que Mozart. Mas que diferença os separa! Mozart deve ter sentido
isso, porque Beethoven também era um pianista brilhante e até um impro-
visador surpreendente, mesmo quando menino. Em sua primeira visita a
Viena, com dezesseis anos, Mozart ouviu-o e disse: “Vigiem esse camarada,
algum dia ele fará um grande barulho no mundo”. Bonito, embora lhe
faltasse graça, Beethoven tornou-se querido de toda Viena. Com o nome
de seu avô, Ludwãg, chefe de música do Eleitor de Bonn, Beethoven foi
Mozart nasceu neste quarto
criado por um pai alcoólatra e por uma mãe que morreu de tuberculose
em 21 de janeiro d e 1 756, e
aqu i Yehudi Menuhin está antes do fdho ter completado dezessete anos. Com dezoito, estava entregue
sen tado ao piano de Mozart, a si mesmo, sem o apoio de pais perceptivos e intehgentes, de que Mozart
so b os olh os vigilantes do havia desfrutado.
p ai d o artista. Foi exatamente nesse momento que uma outra influência se fez sen-
1 4 2 • A MÚSICA DO HOMEM
IVter Giífard JTyf«VW A' PetfT Oiffkrd /T^thillintrtoii tJt oi/’ /'rw/t/y r>/^sr^Ff'rX2>Z.>y”
Thonia» ^ íj '/in ré^ M u P I^ T E u m A t / - ^ m / V y m u t / t
A ERA DO COMPOSITOR • 1 4 3
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que estava escrevendo seria uma das últimas cuja execução ouviria com
razoável clareza. Seus ouvidos estavam se fechando para os sons do mundo
natural. George Marek, em sua esplêndida biografia, declara que durante
algum tempo a surdez de Beethoven era como um véu que ocasionalmente
se descerrava, mas antes dos cinqüenta anos era total.
Sabemos pelo Testamento de Heiligenstadt que Beethoven pensava
seriamente em suicidar-se. Mas em lugar disso, em 1803, passou a compor
uma outra sinfonia, a terceira, hoje conhecida como Heróica. Planejava
dedicá-la a Napoleão, mas quando o general decidiu tornar-se imperador,
e cometeu a afronta de colocar a coroa simbóHca em sua própria cabeça e
com as próprias mãos, raivosamente Beethoven riscou a dedicatória. Até
Quando A Flauta Mágica, de então Napoleão tinha sido, para Beethoven, um defensor dos direitos hu
Mozart, f o i produzida e manos. Dificilmente ele poderia suspeitar que dentro de alguns anos os
p u blicada em Leipzig em exércitos de Napoleão estariam às portas de Viena.
1 794, três anos dep ois de
sua première, o fa lecid o
com positor mal o b tev e uma 'A tragédia de Beethoven tem sido comparada à cegueira em um pintor.
linha na página de rosto, Isso é verdadeiro apenas em parte; o pintor cego pode não ser mais capaz
ab a ix o d o n om e do de pintar, mas os músicos cegos compõem e executam, como Cabezón na
arranjador da nova versão, Espanha. E embora o executante surdo não possa tocar, o compositor
Vulpius. D o libretista original
surdo ainda pode escrever, criando por um processo de concepção interior,
de Mozart, o exuberante
E m m anuel Schikaneder, não recorrendo a imagens auditivas gravadas em sua mente e em seu coração;
há m enção. A figura é o h erói pois a música é, afinal, uma experiência interior, um acontecimento dentro
do popu lário, Papageno. de nós. Beethoven necessitava apenas de seus olhos e de sua mão, e estes
1 4 4 • A MÚSICA DO HOMEM
continuaram a servi-lo bem. E, ainda assim, como podemos avaliar a pro
fundidade da tragédia no imenso desespero desse colosso, enfrentando
uma maldição tão fatal e despedaçadora? Foi como se Beethoven tivesse
sido Prometeu, que roubou o fogo dos deuses e deu-o ao homem; então,
como a Prometeu, os deuses o puniram acorrentando-o a uma rocha, a
rocha de sua surdez.
Para os não-iniciados, as declarações axiomáticas de Beethoven podem
parecer enganosamente simples e óbvias, até que seu simboHsmo seja inter
pretado. O elemento mais poderoso no primeiro movimento de sua Ter
ceira Sinfonia {Heróica} é indubitavelmente a unidade de dois compassos,
dois grandes acordes em Mi bemol, que prendem nossa atenção e impelem J o s e f Haydn era p op u lar em
a ação. A intensidade apaixonada é rapidamente revelada no sexto com Eszterháza co m o com positor
passo, quando a melodia cai para um Dó sustenido contra um acompanha de trabalhos para palco,
mento sincopado, sem fôlego, nos violinos. Mas é o implacável compasso criando mais d e uma dúzia
entre 1762 e 1 783.
básico três por quatro (em breve contestado por uma unidade dois por Costumava reger ao cravo,
quatro dentro dele) tão pronunciado pelos acordes de abertura que, como co m o nesta apresen tação de
a distância medida entre grandes ondas, leva tudo junto consigo. sua óp era L’lnfedelta Delusa,
Quer seja a solenidade da marcha fúnebre épica, quer seja o impulso em 1 773.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 4 5
febril do scherzo, Beethoven nos engolfa em um propósito e direção
torrenciais, o propósito de um único homem, incorporando, simbolizando
as energias agitadas, as emoções, os ideais e as frustrações de toda uma
nação. Jamais a humanidade ouvira antes uma música tão obstinada.
Quanto mais penso em Beethoven, mais ele me lembra um profeta hebreu,
alguma figura do Velho Testamento: irredutível, punitivo, ameaçador,
reivindicador e exigente.
A H eróica foi a mais longa sinfonia composta até então; levou seus
ouvintes a uma viagem para bem além das águas seguras de &uas predeces-
soras. O tema em Mi bemol é como os cromossomos em uma célula viva,
transmitindo informação para a reprodução de outras células, que gradual
mente formam e sustentam a vida de uma entidade única, diferente de
qualquer outra. Certa vez perguntaram a Beethoven o que sua sinfonia
“significava” , e sua resposta foi dirigir-se ao piano e tocar as primeiras oito
notas de seu tema, que simplesmente esboçam a tonalidade de Mi bemol.
Foi essa a resposta que deu.
Por natureza, o homem é um explorador; essa é uma das caracterís
ticas mais constantes da raça humana. Beethoven é um explorador em
busca de causas primeiras. Sua natureza não lhe permitia aceitar, mas sim
contestar, desafiar e questionar. De fato, seus momentos incomparáveis de
extrema serenidade custavam um alto preço, e muitas vezes eram seguidos
por festividade bucólica, pois a celebração do esforço criativo interior leva
à serenidade, gratidão e regozijo. Onde melhor se pode observar isso, em
seu temperamento vulcânico, é nos cadernos de anotações, dos quais
centenas ainda existem. São como os de Leonardo da Vinci, só que sem
sua limpeza e precisão. Beethoven era muito impaciente, lutando constan
temente para reinventar a própria música, trabalhando sob pressão, para
fazer a forma emergir do material recalcitrante. Beethoven começou como
discípulo de Haydn e Mozart, mas em breve já não citava mais os outros,
como um cientista como Darwin citaria idéias e técnicas aprendidas no
decurso do desenvolvimento de uma argumentação. Em última análise,
Beethoven é como Moisés, um intermediário entre a Vontade Divina e
a recalcitrância humana, tirando-nos da servidão para nos levar à Terra
Prometida; um mortal que se tornou imortal, e que já não mais cita os
outros. Talvez Deus o tenha dito primeiro, e Beethoven contentou-se em
citar Deus.
Um dos aspectos mais surpreendentes de Beethoven é o uso que ele
faz do silêncio. Suas pausas estão entre os vazios mais fecundos do uni
verso; como o vazio do espaço, estão cheias do poder das tensões magné
ticas, determinadas pela massa de cada corpo celeste. Essas pausas são
o retrato é anônim o, mas o essenciais à música. Quando as sentimos, vemos que a pulsação nunca está
olhar intenso e intransigente ausente, e a maneira pela qual a música continua é absolutamente maravi
de B eethoven é inesquecível.
lhosa. Se a frase seguinte vem um pouco mais cedo ou um pouco mais
Esta pintura se acha
atualm ente no L iceo Musicale, tarde, perde-se o efeito mágico, porque a extensão do silêncio é predeter
em Bolonha, e provavelm ente minada e fatal.
data de 1810 (ano em que
nasceu Chopin).
A ERA DO COMPOSITOR • 1 4 7
1 4 8 • A MÚSICA DO HOMEM
(um lento e outro rápido), e um final vivaz. Tais trabalhos não são cons
truídos por fórmulas — exceto entre os compositores menores. Os grandes
mestres procedem a partir de um senso intuitivo da continuidade perfeita,
gerado pelo material temático e harmônico. A chave da forma está no
movimento de abertura, que, tradicionalmente, segue a seqüência “exposi-
ção-desenvolvimento-recapitulação”, forma esta designada como sonata. O
compositor expõe sua idéia melódica inicial, levando-a adiante até o ponto
em que estiver pronto para introduzir um tema contrastante. Uma vez
totalmente enunciados, os temas recebem o desenvolvimento mais inven
tivo que o compositor possa criar. No entanto, por mais que avance, o
compositor sabe que sua meta final é voltar para casa, para uma reiteração
asseguradora do tema de abertura. Reconhecemos a paisagem familiar e
somos trazidos de volta a um porto seguro depois da jornada.
A ERA DO COMPOSITOR * 1 4 9
liberdade inusitada — desembocando diretamente no final da explosão
solar que se aproxima rapidamente, onde Beethoven, sempre um hábil
orquestrador, introduz os trombones da ópera pela primeira vez em sua
partitura e na história da orquestra de concertos. É um golpe de mestre,
um raio de luz cujo tema nobre é uma transformação dos temas encon
trados tanto no movimento lento como no scherzo.
A grandeza de alma de Beethoven transcende a habilidade, ao mesmo
tempo que a ilumina. À medida que se tornava cada vez mais encarcerado
em sua surdez, concebia meios elaborados para ajudar a audição, para que
pudesse captar diretamente as vibrações de seu piano, apHcando um bastão
contra a caixa de ressonância e pressionando a outra extremidade direta
mente contra o lado de sua cabeça. O isolamento de Beethoven enfatiza
algo novo na música ocidental: a separação entre o compositor e o exe-
cutante, que tinha começado por volta do século XIX. Os dois sempre
tinham existido separadamente, mas na maioria das vezes os compositores
eram também executantes, até mesmo virtuosos, como Mozart e Bach. A
surdez de Beethoven forçou-o a adotar métodos que lhe permitissem com
por apenas no papel, iniciando um processo que ajudou a levar a uma
dissolução, uma fragmentação da música ocidental, o oposto da herança
que ele esperava passar adiante.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 5 3
Schubert simplesmente não tinha a arte de vender, uma qualidade que
antes não era essencial para os compositores.
Certamente a apresentação em público tem sido uma parte vital da
vida de todo músico, inclusive dos compositores, até nossos dias. Beetho-
ven ainda aparecia como pianista muito depois de sua capacidade auditiva
ter desaparecido, e seus difíceis concertos e sonatas para piano eram escri
tos, em parte, para exibir seus dotes no teclado. Depois de ter perdido
completamente a audição, ainda tentou reger, sendo a última vez na pre-
m ière de sua Nona Sinfonia, tão importante era para ele seu papel público.
Aquele evento, muito divulgado em 1824, era esperado por toda Viena —
como acontecera sete anos antes, na estréia da última sinfonia de Beetho-
ven —, e foi quase um desastre. O espetáculo foi salvo porque um bom
maestro estava atuando discretamente por trás de Beethoven. Os executan-
tes o seguiam ao invés de seguirem Beethoven. E no entanto, o amor de
Viena por esse homem e o impacto da sinfonia foram tais, que o público,
finalmente percebendo que Beethoven não podia ouvir seu aplauso, agitou
para ele um mar de lenços brancos. Pode ser que Schubert, então com
vinte e sete anos, tenha estado naquela platéia. Dentro de cinco anos os
dois homens estavam mortos. Mas o seu legado foi dominar a música
ocidental durante todo o resto do século, avançando no nosso. O compo
sitor havia se tornado indiscutivelmente o sol aquecedor ao redor do qual,
daí por diante, outros planetas musicais iriam girar.
1 S 4 • A MÚSICA DO HOMEM
mund Freud daria atenção ao mesmo lado temeroso do homem, com tanta E m 1? de n ovem bro de 1755,
Dia d e T od os os Santos (e
intuição e concentração. A voz de Schubert é a voz mortal alcançando o
apenas algumas sem anas antes
transcendental e imortal pelo único meio que lhe é conhecido, a canção do d o nascim ento d e Mozart), a
pássaro transformada em prece. Se ele não tivesse morrido com trinta e cidade d e L isboa, em Portugal,
um anos, em 1828, teria conseguido manter esse enlevo? sofreu um devastador
Acho que há alguma coisa constante em todos nós, um senso do terrem oto em que morreram
que é certo, um senso de equilíbrio, de harmonia consigo mesmo e com o m ilhares d e pessoas, muitas
nas próprias igrejas em qu e
mundo em que todos precisamos viver. E no entanto, também necessi cultuavam. A catástrofe
tamos de um senso de esperança por algo que está além de nós, que nos abalou a f é tanto dos
ajude a dar uma dimensão e uma direção a nossas vidas. A música vive p rotestantes com o
e respira para nos dizer exatamente isso: quem somos e o que enfrenta dos catóUcos, e ajudou a
mos. Em Bach, como em Mozart ou Schubert, é um caminho entre nós e apressar a busca de causas
naturais. J á não se p o d ia mais
o infinito. Contudo, desejo terminar este capítulo com a lembrança do
atribuir tudo a Deus.
que, para mim, é um dos mais belos momentos em toda música, o movi
mento lento daquele sublime concerto para violino, de Beethoven. Uma
música como essa é a melhor que há em todos nos, e a que chamamos
humanidade.
A ERA DO COMPOSITOR • 1 3 5
A Era Industrialtraz consigo o moderno grande piano, a enorme orquestra sinfônica, a esplen
dorosa grande ópera. Paganini, Chopin e Lizst tomam-se a personificação do romântico virtuo
so do solo. As cidades crescem, a música popular e folclórica se urbaniza, surge o hino nacio-
nal. Verdt é o herói cultural de uma nação italiana emergente e Wagner solta as amarras da
música ocidental. O nacionalismo assumeforma musical em Tschaikowsky e outros composito
res, e em formas populares, como o flamenco. Brahms mantém o contato com as raízes popu
lares e as valsas de Strauss inundam a Europa.
5. A eia do indivíduo
o Período Romântico, de 1800 até nosso século, algumas vezes é rotulado A fa m ília Schram m el, em
de Sturm und Drang pelos historiadores alemães (aproximadamente, “tor Viena, criou uma literatura e
uma tradição na música
menta e tensão”), um termo geral que abrange cataclismo político, trans
ligeira no in ício d o século
formação cultural e liberação pessoal. As pinturas de Turner e Delacroix XIX, qu e ainda é tocada nos
são características do espírito da época, como o são as novelas de Scott e encantadores bares de vinho
Goethe, os poemas de Blake e Coleridge, as peças teatrais de Schüler, as de Grinzing, nos arredores
óperas de BeUini e Weber. Foi também o momento em que o crescimento da cidade.
industrial começou verdadeiramente no Ocidente; as cidades assumiram
uma importância cada vez maior e as aplicações práticas da máquina a
vapor de James Watt proliferaram. Nessa era de expansão social e artística,
a criação, pelo compositor, de uma linguagem que pertencesse somente a
ele, passou a fazer parte da proclamação de sua identidade, da mesma
forma como a própria língua identifica um povo. Para muitos composi
tores após Beethoven, a orquestra sinfônica tornou-se um campo de bata
lha ideal para testarem seu vigor.
Assim como a ópera, a orquestra sinfônica é um dos conjuntos mais
caros na música ocidental. Sem dúvida, a ópera foi criada para uma era de
aristocracia, onde os ornamentos da encenação no palco correspondiam às
expectativas e à ostentação do público. A orquestra, por sua vez, é mais
contida e mais heróica.
A reunião de muitos instrumentos era uma prática antiga, como O posto:
vimos, mas a orquestra, como um instrumento expressivo por si próprio, O esp írito rom ântico qu e
passou a ser usada durante o século XIX para algumas das músicas mais desabrocha no século XIX é
lindam ente reproduzido p o r
pessoais que se conhecem, as sinfonias e os concertos dos compositores
Joh arm Erdmarm H um m el em
românticos. Essa é a era em que predomina a experiência subjetiva, em uma tela pin tada em 1823,
que a vida individual se toma o centro de interesse para a sociedade e retratando a alegria da
para a arte. prim avera em Nápoles.
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 5 7
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1 S 8 • A MÚSICA DO HOMEM
exigia coesão, objetivos e liderança. A grande orquestra sinfônica é um
microcosmo dessa evolução. Reúne uma massa, poderosa mas informe, de
todos os tipos de sons e ruídos, aos quais é preciso dar forma, textura e
propósito criativo. Essa pode ser uma razão pela qual a orquestra alcançou
aceitação tão vasta e até mesmo popularidade nos Estados Unidos.
A celebração das emoções dos artistas como um fim em si foi a marca Louis A ntoine Ju llien (1812-
registrada do romantismo, e o arsenal da orquestra sinfônica é uma arma -1860) f o i um d os prim eiros
formidável para sua realização. Nas mãos do mestre francês, Hector Ber- astros da regência,
lioz, por exemplo, a orquestra assume um caráter musical que não se con aparecen do prim eiram ente
funde com a música de qualquer outra pessoa, um som cujo esplendor na França e depois, com
grande sucesso, na Inglaterra,
expressa a exultação do indivíduo ante seu próprio poder. Muitos conside
on d e seus con certos n o
ram Berlioz como o pai da orquestra moderna, como da arte de reger, Covent Garden atraíram a
embora, naturalmente, tenha tido muitos precursores. Sua música revelou aten ção d o lUustrated
uma nova visão da sociedade. London News (1846).
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 5 9
Hector Berlioz foi o virtuoso da orquestra, um compositor e regente que
se rejubüava em juntar cento e cinqüenta músicos ou mais. Desenvolveu a
arte da orquestração a um nível raramente atingido até então, em obras
como a Sinfonia Fantástica, a ouverture do Carnaval R om ano, até suas
óperas, especialmente Benvenuto Cellini, que fez sensação em Paris em sua
estréia, a 10 de setembro de 1838. Berlioz preparou o caminho para as
enormes orquestras necessárias aos dramas musicais de Wagner e às sinfo
H ector Berlioz algumas vezes nias de Gustav Mahler.
aumentava o tam anho e os A orquestração, a designação de instrumentos específicos para cada
recursos da orquestra, um
trecho distinto de uma partitura, era uma prática iniciada no final da
p o u c o além daqu ilo qu e seus
con tem porân eos consideravam
Renascença. Já vimos como essa arte floresceu sob os Gabrieü em Veneza.
ad equ ado, co m o fic a claro Na míisica orquestral do Período Barroco, de fato até os dias de Mozart e
na caricatura de Grandville Haydn, as partituras muitas vezes eram escritas atribuindo a principal linha
(1846). melódica aos violinos e usando os outros instrumentos para preencherem a
1 6 0 • A MÚSICA DO HOMEM
harmonia. Em suas últimas sinfonias, Haydn deu aos instrumentos de
sopro de madeira proeminência muito maior, o que conferiu um espírito
e uma centelha particulares a suas partituras. Beethoven ampliou imensa
mente a técnica de orquestração, especialmente em seu manejo dos metais,
percussão e tímpanos. No movimento scherzo de sua. N ona Sinfonia, o uso
de dois tímpanos afinados em uma oitava como instrumentos de solo no
primeiro enunciado do tema, provocou murmúrios de admiração de sua
platéia por ocasião da estréia. Berlioz aprendeu muito com Beethoven e,
por sua vez, passou a outros uma abordagem da orquestra segundo a qual
cada instrumento tem o seu próprio lugar, e nenhum deve ser considerado
subserviente.
Poucos anos depois da morte de Beethoven, a música ocidental em
todas as formas começou a romper com as convenções herdadas dos
Períodos Clássico e Barroco. Berlioz foi um dos muitos músicos a corres
ponder a um novo sentido de liberdade de expressão, uma liberação do
sentimento que trazia consigo uma revolução na ópera, na dança e na
música de concerto. Certamente, o Período Romântico constituía a era
do virtuoso, e se Berlioz era o astro da orquestra, nenhum compositor-
-executante foi mais célebre no primeiro terço do século XIX do que o
vioHnista italiano Nicolò Paganini. Ele era amigo e patrono de Berlioz, e
foi para Paganini que Berlioz compôs sua sinfonia H aroldo na Itália, com
sua parte de solo para viola, o instrumento alternativo de Paganini.
Paganini nasceu em Gênova em 1782, e fez sua estréia como violinista
aos nove anos de idade. Em 1805 tinha-se lançado em uma carreira que
faria dele uma lenda. Com certeza nenhum artista provocou maior sensa
ção através de seu desempenho, nem mesmo Franz Liszt. Não temos grava
ções de Paganini tocando, mas temos a música que ele compôs para si
próprio, e ela nos mostra indiscutivelmente que ele era um dos mais extra
ordinários violinistas da história. Parte da atração de Paganini estava em
sua aparência cadavérica, e ele nada fazia para dissipar os rumores de que
tinha um pacto com Satã, consciente de seu valor promocional. Paganini
era o melhor agente de si mesmo; tratou de sua carreira quase com a
mesma mestria com que tocava. Como o primeiro artista verdadeiramente
comercial, abriu seu caminho por todo o continente europeu, assumindo
um compromisso após outro, deslocando-se de triunfo em triunfo como um
grande general ou lutador de boxe. Tuberculoso, esquelético, inteiramente
vestido de preto, com suas enormes mãos desmentindo a delicadeza do
instrumento que escolhera, era uma figura dramática. Schubert deve tê-lo
ouvido tocar. A primeira vez que Paganini tocou em Viena foi em março
de 1828, um semestre antes da morte de Schubert, ganhando mais em um
concerto do que aquilo que Schubert recebia por uma série inteira. Paga
nini tinha apenas cinqüenta e oito anos quando morreu, destroçado por
muitas doenças, completamente sem voz.
A ERA DO in d iv íd u o •161
Entre esses objetos, há um retrato francês pintado quando Paganini tinha
trinta anos, mostrando um homem sensível, seguro e ainda assim visio
nário, sem dúvida sempre inventando efeitos e barreiras para violinistas de
menor porte. Uma outra tela, profundamente comovente, pintada na
Inglaterra quando Paganini tinha cinqüenta e seis anos, mostra um homem
velho, sofrendo de câncer da garganta e próximo da morte.
Entre todas as suas obras, incluindo os muitos concertos longos para
violino e viola e as variações sobre árias populares, talvez a mais importante
realizada para violino seja o conjunto de Vinte e Quatro Caprichos, o vade
m ecum do vioHnista. A imaginação técnica de Paganini não tinha prece
dentes e, entre muitos outros efeitos, desenvolveu o uso dos harmônicos
artificiais ou parados do violino a um grau surpreendente. Essa é uma
técnica em que um dedo (primeiro ou segundo) da mão esquerda se apóia
sobre uma corda em um ponto, e um outro dedo (o terceiro ou quarto)
toca-a levemente a uma distância crítica além, permitindo que o arco faça
N icolò Paganini é visto em vibrar a corda em diversas seções e não como um todo — da mesma forma
1812, com trinta anos, n o
que a corda de pular, já mencionada anteriormente. Um harmônico de
auge de sua carreira, e em
1838, com cinqüenta e seis, cada vez não bastava para Paganini: ele tocava harmônicos em duas cordas
dois anos antes de sua m orte de uma só vez, encurtando-as com os dois primeiros dedos e tocando-as
p o r câncer e outras moléstias. ligeiramente com os outros dois, a distâncias certas. Os harmônicos de
1 6 2 • A MÚSICA DO HOMEM
violino têm uma ressonância misteriosa, semelhante à da flauta, um som
de assovio com que Paganini adorava transfixar suas platéias.
Paganini era também um habilidoso guitarrista e gostava de combinar
as técnicas dos dois instrumentos, beliscando a harmonia acompanhante
com alguns dos dedos da mão esquerda (geralmente com o mínimo) ao
mesmo tempo em que articulava a melodia com os outros. É um artifício
difícil, mas não tanto quanto parece, se o trabalho for habüidosamente
composto. Um bom exemplo é, do próprio Paganini, Variações sobre “N el
cor piu non m i s e n to ”. O soar simultâneo das notas beliscadas e fricciona-
das é um efeito sensacional no violino, e contribuiu para que se espalhasse
o boato de que Paganini, de algum modo, tinha ligação com o diabo.
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 6 3
Paganini viveu uma vida de herói popular romântico. Seu vício de jogar
custou-lhe muitos prejuízos, mas não foi por jogatina que ganhou um
Stradivarius, e sim por ter tocado um concerto difícil à primeira vista, sem
cometer um só erro. Foi como se nos 250 anos de destaque da Itália na
manufatura de violinos, a partir de Amati, e também na execução (porque
seu papel era bem ensaiado), tudo tivesse sido preparado para ele. De certo
modo, Paganini era escravo de sua própria fama. Amava a música de câmara
que usualmente tocava em casa, com os amigos. Também amava o Con
certo para Violino, de Beethoven, mas não o fez constar de seu repertório
regular, já que suas platéias esperavam exibição e fogos de artifício.
1 6 4 • A MÚSICA DO HOMEM
que remonta a Handel e Corelli. De Mozart em diante, ao solista é dada
uma oportunidade de exibir sua habilidade de improvisar. Se fazia um
trabalho brilhante, o retomo à melodia principal poderia parecer, figura-
damente falando, como uma reverência do compositor ao solista. Habi
tualmente, compositor e solista eram a mesma pessoa. Porém, mais tarde,
quando o virtuoso se tornou uma raça à parte, foi iniciado o desafio para a
supremacia. Se a cadenza deixasse de agradar, a superioridade de invenção
do compositor se tornaria clara para todos. O solista tinha de tentar vencer
o compositor em seu próprio jogo, porque nesse momento que antecede o
fim, o compositor já tinha jogado suas cartadas e o solista podia mostrar
truques no instrumento que poucos compositores saberiam como colocar
no papel.
Até meu mestre, Georges Enesco, um esplêndido compositor, não teria Quando a riqueza privada
pensado em improvisar todas as cadenzas — não mais do que um grande aum entou, aparecer e ser
solista, como Joseph Joachim, que compôs cadenzas para os concertos visto nos m elhores lugares
tom ou-se im portante p ara um
de violino de Beethoven, Brahms e Mozart. Os violinistas viajavam pela
círculo cada vez maior. Um
Europa de ponta a ponta, aperfeiçoando seus desempenhos, inclusive d os even tos da tem porada na
todas as suas cadenzas — que, muitas vezes, poder-se-ia desconfiar que Inglaterra p ara as jovens e
fossem tomadas de empréstimo. Poucas pessoas da platéia conseguiriam seus dândis era o Hunt Bali.
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 6 3
lembrar-se, de uma audição para a outra, de como fora uma determinada
cadenza e, por isso, geralmente o solista estava garantido. À medida que
essa música se tornou mais conhecida, as melhores cadenzas passaram a
predominar. No entanto, quando as composições se tornaram totalmente
integradas e predeterminadas — e, concomitantemente, o executante
menos criativo —os compositores começaram a escrever as suas. Beethoven
fez isso para seu último concerto de piano, o Im perador. Por fim, pouco
sobrava para a imaginação do executante e a atinência escravizada à nota
impressa tornou-se excessivamente aprisionadora. Em nossos dias, estamos
aprendendo a respirar outra vez, a experimentar nossas asas.
No século XX, o público está cada vez mais familiarizado com uma
grande quantidade de música. Por isso, tudo depende da qualidade do
executante, apesar de que hoje até um trabalho mal tocado pode muito
bem elevar a auto-estima de um público exigente e crítico. Conhecemos o
trabalho muito bem para reconhecer que ele terminará dentro de um certo
Foram criados lugares tempo, e não nos sentimos empalados para sempre na ponta de uma lança
privados para reuniões com o,
musical. Acontece exatamente o oposto quando escutamos a música
p o r ex em p lo, o Grand Salon,
m antido em Paris p ela fa m ília indiana à qual devemos nos entregar quando seguimos os executantes
Frascati, aqui retratado na através dos vôos criativos da fantasia. Se eles não improvisam criativamente
d écada de 1820. e de um modo que prenda, confiando mais nas seqüências convencionais
1 6 6 • A MÚSICA DO HOMEM
pré-fabricadas aprendidas de cor, a música se torna intolerável. O ouvinte
reconhece infalivelmente que a originalidade e a beleza são, no final, mais
arrebatadoras do que qualquer desempenho perfeito, executado mecânica
e rotineiramente.
A música romântica dos séculos X IX e XX é ainda a que se executa
com maior freqüência nas salas de concerto de todo o mundo. Em época
alguma da história da música, a música antiga se manteve tão atual. Com
preendo perfeitamente a frustração dos compositores de nossos dias diante
desse fato. É inútil dizer-lhes que nos tempos de Beethoven ou de Paganini
isso não teria sido tolerado; o fato é que, então, a idéia nem ao menos teria
surgido. Bach estava certo: a música era uma fonte que se auto-renovava
constantemente, assim como os rios absorvem a fusão das neves a cada
primavera — que algumas vezes vem em torrentes. Durante um tempo
extraordinariamente longo temos vivido em um intenso passado musical.
Todavia, precisamos apenas recordar Bartók e Stravinsky, entre outros,
para compreender que os gigantes musicais não estão confinados a eras
passadas.
O que é, para nós, este fascínio pelo passado? O fato é que, simples
mente, buscamos as fontes que dão vida à música, como respiramos
oxigênio ou bebemos água, rejeitando substitutos. Acredito que grande
parte da música ocidental se tornou sintética, experimental, arbitrária,
superintelectualizada, talvez gloriosa para os iniciados, mas indecifrável
para os demais. Como um reflexo fiel de nossos tempos, ela é barulhenta,
agressiva, desengonçada e, freqüentemente, feia. No entanto, florescem a
música exótica e a contemporânea, particularmente entre os mais jovens
— e não podemos, mais do que as gerações anteriores, selecionar as obras-
-primas da pletora de música “montada”, derivada ou da moda, da qual
alguma coisa pode ser cativante e até útü, mas não de valor duradouro.
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 6 7
vimento da criança. Uma outra manifestação é o andar, uma harmoniza
ção infinitamente mais sutil dos hemisférios esquerdo e direito do corpo
e do cérebro. E quanto à audição, os testes realizados por F. L. King e
D. Kimura, em 1972, mostram que a dominância do lado direito do cére
bro parece aplicar-se a todos os sons não-verbais, como o riso e o pranto.
Outros testes feitos em 1974, por T. G. Bever e R. J . Chiarello, demonstra
que os ouvintes não-treinados, de forma geral, percebem a melodia princi
palmente no hemisfério direito do cérebro, ao passo que os ouvintes
experientes envolvem o hemisfério esquerdo na análise de conjuntos de
relações. De fato, esses testes também mostram que os músicos treinados
reconhecem melodias simples mais facümente com o ouvido direito do que
com o esquerdo, apresentando dominância do lado esquerdo do cérebro,
já que a trÜha nervosa do ouvido direito é para essa área. A função analítica
Em 1851, a Rainha Victoria, converte a música em uma linguagem para esses profissionais; o ouvinte
com trinta e um anos de sem treinamento continua a dar-se melhor com o ouvido esquerdo.
idade, já reinava n o Im pério
Estes e outros testes semelhantes demonstraram que a capacidade de
Britânico há quatro anos,
quando presidiu oficialm en te
reconhecer música também pode ser suprimida, do mesmo modo que a
à inauguração de um de seus capacidade para lidar com a fala. Esta última condição, chamada afasia,
p ro jetos favoritos, o Palácio é conhecida em pessoas que sofreram um derrame que afetou o hemisfério
de Cristal. esquerdo do cérebro. Algo que é muito menos observado, embora exista.
1 6 8 • A MÚSICA DO HOMEM
é a amusia, ou seja, a perda de discriminação musical por pessoas que
sofreram dano no hemisfério direito do cérebro. Por ser uma perda menos
crítica, tem sido negligenciada. Se o lado direito do cérebro for aneste
siado, isso produzirá amusia, isto é, o desaparecimento da capacidade para
reconhecer ou cantar uma seqüência de notas; a melodia passa a ser uma
monotonia. A fala em geral permanecerá —pelo menos para os ocidentais.
Existem línguas africanas e orientais, que dependem da diferenciação de
tonalidade, que poderiam ser mais seriamente afetadas. Se o processo for
repetido no lado esquerdo, o sujeito não poderá articular palavras, embora
possa cantar uma melodia. De fato, ele absolutamente não poderá falar,
Na m etade d o século XIX o
nem mesmo reconhecer a linguagem. Parece que a linguagem silábica é teatro de óp era estava se
uma estrutura independente de timbre para a maior parte das pessoas, e tom an d o o f o c o d a vida da
assim independente de surdez a tom. classe social mais alta em
Parte do prazer com a música está nessa síntese de direita e esquerda, todas as principais cidades
de emoção e análise. Na música ocidental, o compositor primeiramente européias. As colunatas
dentro e fo r a eram lugares
escreve as notas que combinam a expressão com sua habilidade para mani
ideais para se ex ibir instrução
pular os materiais escolhidos. O executante contribui com sua parte. Para e m odas caras. M uitos eram
ambos, o equilíbrio entre direita e esquerda é a síntese de forma e signifi construídos em grandes
cado. Ela penetra nos níveis mais profundos de nossa percepção. Essa é a praças, co m o em Dresden,
parte que torna a execução da música tão estimulante, porque a mensagem na A lem anha.
A ERA DO INDIVmUO • 1 6 9
tem de ser transmitida em ambos os níveis. A música passa a ser tanto do
executante como do compositor; e no século X IX esse emparelhamento de
habilidades de indivíduos distintos produziu obras que finalmente estabe
leceram a música ocidental como uma das maiores realizações do homem.
Í 7 0 • A MÚSICA DO HOMEM
tempo, executar subdivisões rítmicas complexas com o esquerdo. As crian
ças que fizeram o curso Dalcroze conseguem fazer a mesma coisa. Há
ainda outros regentes que usam o braço e a mão esquerdos apenas para
virar as páginas e limpar o suor da testa.
Procuro ajudar meus alunos de violino a se tornarem conscientes
destas “adesões” e romper com elas. Criei numerosos exercícios especiais
para a cabeça, tronco, braços e mãos, que estimulam a liberdade e a inde
pendência, bem como a coordenação das partes. Os violinistas, quando o
braço direito leva o arco sobre a corda ou para o ar, têm tendência a pre
parar um movimento para baixo, a virar a cabeça ou até mesmo a curvar
um pouco o corpo a fim de encontrar o braço em movimento. Acho útü
experimentar fazer o contrário. A cabeça equilibra o violino na clavícula,
ajustando, com o auxílio do polegar e dos outros dedos, o ângulo de seu
nível para a posição da mão esquerda ao longo das cordas. Esses exercícios
dão ao executante um controle mais seguro, porque os reflexos automá
ticos errados já não interferem na ação do braço ou do dedo. É igualmente
importante trabalhar a partir dos dedos para trás, através do braço, das
omoplatas, o caminho todo até os artelhos, assim como fazer isso em
sentido oposto.
Há não muito tempo gravei alguns programas para a televisão francesa
sobre o papel do violino na Europa Oriental. Fümamos uma troupe de
músicos ciganos em Budapest, e lembro-me de como achei fascinante a
“respiração” coordenada dentro da música por parte do conjunto inteiro.
Seu controle era total; conseguiam acelerar e retardar simultânea e instan
taneamente dentro de cada frase. O violinista principal, Lajos Boros, esta
belecia o ritmo, e a faixa e cor de seu vibrato e deslizamentos com a mão
esquerda eram até mais notáveis do que o arco relampejante da direita.
Boros executou algumas das melodias que Brahms usou nas Danças Hún-
garas. Toco essa música desde que era menino, mas ainda a toco em estilo
de concerto, as notas todas em seus lugares com o sentido e o som mais ou
menos certos. Esse violinista empenhou-se em uma surpreendente execução
do original, como o próprio Brahms talvez nunca tenha ouvido, comple-
tando-a com a mais rica e extravagante ornamentação, e com mudanças de
ritmo rápidas como o relâmpago. A única maneira pela qual talvez eu
pudesse discernir o que ele estava fazendo seria passar tudo por um com
putador, ou tornar a execução cinco vezes mais lenta. Estava simplesmente
fora de minha dimensão mental, e provinha de um impulso completamente
diferente do meu.
Em sua execução de czardas, em que os que dançam começam lenta
mente e terminam rodopiando rapidamente — a dança usada por Brahms,
e também por Pablo Sarasate, o violinista virtuoso do final do século XIX
— desenvolvera uma técnica intuitiva a fim de satisfazer à visão e dar-lhe
expressão exuberante. Foi uma técnica criada durante centenas de anos. O
cigano Lajos Boros me disse que ele pertencia à última geração de uma
família de violinistas, um pouco como os Bach. Mostrou-me a maneira
pela qual seu pai tocava certas melodias, aliás, uma maneira bem diferente
da que ele, Lajos, preferia.
A ERA DO INDIVÍDUO • 1 7 1
o artista desenvolve aquilo de que necessita, quer deseje pintar ou
esculpir ou tocar um instrumento. A execução de música clássica para
cordas no Ocidente se formou através de muitos séculos de prática e trei
namento. Nós, que fomos treinados dessa maneira, não podemos penetrar
em um mundo cigano, assim como o cigano não pode penetrar em nosso
mundo, por mais que possamos apreciar um ao outro. Creio que a distân
cia tem tudo a ver com a diferença entre o escrito e o não-escrito. (Quanto
perdemos com a partitura escrita ou impressa!) No tocar do cigano havia
uma inflexão de mistério que, com certeza, perderíamos no momento em
que seguíssemos a notação. É uma sutileza de expressão que somente pode
ser comparada com um tocador do sarangi indiano, com todas as suas
cordas em simpatia, certamente um dos instrumentos de arco mais difíceis
de serem dominados.
1 7 2 • A MÚSICA DO HOMEM
nobres. À medida que o apetite pela música crescia, muitos compositores
escreviam melodias populares, expressamente para entretenimento leve;
em Viena, Joseph Lanner e Johann Strauss, Pai, eram rivais. Mais tarde,
Mendelssohn e Brahms iriam contribuir com sua parte.
Música fácü, alegre, para dançar e para conversação iria ser ouvida através
das terras de língua alemã, sob muitas formas, e seria imprescindível em
qualquer comemoração ou evento social. Na Suíça, uma de suas formas
mais atraentes é encontrada em distritos como o de Appenzell, onde
foram compostas danças tradicionais por músicos locais durante mais de
duzentos anos. Deve-se dizer que havia uma distinção muito menos arbi
trária (na época) entre a música popular e a clássica. Os grandes composi
tores sabiam que a música folclórica pertencia organicamente ao todo e,
de boa vontade, tomavam-na de empréstimo. Johannes Brahms utilizou
ritmos de dança em suas sinfonias, tanto nos movimentos intermediários
mais suaves como nos finais vivazes. Anteriormente, o minueto fizera
parte das sinfonias de Mozart e Haydn.
Na tradição germânica do século XIX, a composição de uma grande
sinfonia era uma das mais nobres tarefas a que um compositor poderia
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 7 3
V
A ERA DO i n d i v í d u o • 175
do piano, e dois anos mais tarde estabeleceu-se em Paris. Na realidade,
Chopin preferia o Broadwood inglês, mais antigo, mas a música que criou
sobreviveu esplendidamente em nossa época do grande concerto. Isso se
deve em parte, ao fato de ele ter descoberto o segredo de fazer o piano
cantar como uma orquestra, ao mesmo tempo que sustentava um harmô
nico inteiro como base. Deve-se também à sua grande imaginação har
mônica. Beethoven pode ter sido ousado em um trabalho como a sonata
Appassionata, onde criou um drama extraordinário a partir das variações
sutis entre Fá menor. Dó maior e Sol bemol maior. Mas até ele não con
seguiu ultrapassar o feitiço sutü de Chopin, que conseguia fazer os ouvin
tes sentirem a ambigüidade das notas, as quais podiam a um só tempo ter
duas funções diferentes, levando-as de um lugar para outro, fazendo variar
o significado de Dó sustenido para Ré bemol, durante o tempo todo sus
o salão de ex p o siçã o d o tentados pelos dedos ou pelo pedal. Esta era a arte da modulação enarmô-
fabrican te de p ian os de nica, para a qual Bach havia preparado o caminho, tão minuciosamente,
Leipzig, Blüthner, oferecia a com seu Cravo Bem Tem perado.
oportunidade para m ostrar Chopin, quase que sozinho, transfigurou a técnica de escrever música
instrumentos cujo brilho e
pianística, conferindo-lhe expressão romântica. Naturalmente, havia con
acabam en to o s tom am
com paráveis aos Cadillacs e temporâneos como Sigismond Thalberg e o irlandês John Field (que se
R olls R o y ces de nossa estabeleceu em São Petersburgo), porém nenhum tinha o efeito instan
própria época. tâneo de Chopin. Se é que a música escrita por Chopin pode ser tomada
1 7 6 • A MÚSICA DO HOMEM
como modelo confiável para sua execução, pode-se dizer que ele possuía
uma técnica extraordinariamente fluida, embora não tivesse o vigor ou a
força de Franz Liszt, conseguindo seus efeitos mais por sombreamento de
tom e cor.
A habilidade de Paganini serviu como exemplo para Chopin; o violi
nista foi também o primeiro músico a impressionar profundamente Franz
Liszt. Liszt começou sua carreira solística em Viena, com dez anos de
idade, em 1821, depois precedeu Chopin em Paris em oito anos; já era um
favorito adorado quando o polonês expatriado chegou, e tornaram-se
amigos. A nova e pesada artüharia do teclado era idealmente adequada a
Liszt, porque nele estava o verdadeiro pianista, equivalente a Paganini,
uma figura carismática cultuada e admirada em todas as grandes capitais
da Europa. Liszt embelezou suas grandiosas composições para piano com
efeitos de coloratura tão surpreendentes como os de qualquer diva. Outros
virtuosos tentaram segui-lo, e os fabricantes de piano se viram forçados a
melhorar e reforçar seus instrumentos para que pudessem suportar esses
ataques sem precedentes.
Os húngaros consideram Liszt como propriedade sua, mas isso não
pode ser feito pela história da música, embora ele não tenha escapado à
influência da Hungria, como atestam suas muitas Rapsódias Húngaras. F rederic Chopin f o i um
pianista suprem o, mas m uito
Liszt nasceu em Raiding, atualmente na Áustria, e apesar de a área perten
mais um son hador p o é tic o d o
cer então à Hungria, a escola onde Liszt foi educado era de língua alemã e qu e o explosivo virtuoso
ele nunca aprendeu húngaro. Como esse mundo austríaco em crescimento d o teclado. A qu i ele toca
adorava os festejos e espetáculos! Descansava-se na sexta-feira para estar p ara o Príncipe Radziw ill e
disposto no sábado, e folgava-se na segunda-feira para se recuperar do suas duas filh as, Elise (d e p é)
e Wanda (sentada, em
domingo. Uniformes engomados, botões polidos, trajes a rigor compu
prim eiro p la n o ), em sua casa
nham um conjunto bem adequado à nova música popular urbana, as valsas em Berlim , p o r volta de
de Johann Strauss, pai e füho, que juntos, entre 1800 e 1900, arrebataram 1 8 3 0 .0 p rín cip e era tam bém
Viena e, com efeito, a Áustria toda. cantor, ceÜsta e com positor.
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 7 7
Na metade do século X IX , o camponês e o mercador estavam sendo apa
nhados pela maré crescente de nacionalismo, época em que o longo domí
Com seus abundantes cachos
nio dos duques e dos príncipes começava a ser eliminado. A valsa de
verm elhos e o fe itiç o de seus
dedos, Ignaz J a n Paderew ski Strauss tinha sido chamada de hino nacional da Áustria, mas não se tratava
f o i afig u ra mais tanto de uma música nacionalista; era mais a expressão do prazer pela
rom anticam ente atraente vida, pela beleza e bom gosto. Ela tem muito mais liberdade de ritmo do
do fin al d o século XIX. que a maior parte da música alemã, e toma de empréstimo um pouco
Mais tarde, Paderew ski
do fluxo e refluxo dos ciganos. Assim como as czardas, a valsa se torna
tom ou-se um patriota
p olon ês e em 1917 f o i mais apressada e mais lenta, de maneira bastante rápida, dentro da mesma
n om ead o prim eiro-m inistro frase. A valsa tem aquela curiosa antecipação do segundo tempo e o atraso
de sua nação recém -libertada. do terceiro, que dão tanto encanto àquilo que, caso contrário, seria um
1 7 8 • A MÚSICA DO HOMEM
simples compasso três por quatro. O Império Austro-Húngaro pode ter
desaparecido, mas seu perfume permanece.
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 7 9
O orgulho e honra nacionais receberam sua expressão musical mais
amplamente reconhecida sob uma forma vastamente aceita na metade do
século XIX, o hino nacional. Isso não quer dizer que anteriormente não
houvesse hinos. Haydn havia escrito um para a Áustria, quando o país
enfrentava as forças de Napoleão; mais tarde a Alemanha se apropriou
dele com novas palavras, como D eutschland üher Alies. O G od Save the
King da Grã-Bretanha é conhecido em numerosas versões que remontam
ao século XVII, assumindo a forma que conhecemos hoje em dia, por volta
de 1745. Sem ter de elevar sua voz, o hino afirma o orgulho da Grã-Breta
nha, como uma prece e como uma proclamação nacional, sustentando a
longa tradição de um monarca profundamente respeitado. Surpreendente
mente, essa mesma melodia serviu também como o primeiro hino de uma
Alemanha unida, dos Estados Unidos como My Country ’tis o f Thee, e
Uma co n cep ção rom ântica da como hino nacional da Dinamarca e da Suíça. É em tempo três por quatro
prim eira vez em qu e R ou get lento, e não pode ser utilizada como marcha. O mesmo ocorre com The
de Lisle cantou a canção Star Spangled Banner, adotado como o hino nacional oficial dos Estados
patriótica La Marseillaise Unidos somente em 1931, embora rapidamente se tenha tornado popular,
f o i pintada p o r Isidore Pib,
mais ou m en os na ép o ca em
logo depois de ser escrito em 1814. Francis Scott Key enxertou suas pala
que a canção f o i oficialm en te vras naquüo que fora uma alegre canção para beber, em três por quatro:
adotada co m o o hino To A nacreon, in H eav’n, de John Stafford Smith, um inglês. Essa melodia,
nacional da França. por sua vez, derivou de uma balada do século XVIII dos Enniskillen Fusi-
Originariamente cham ada liers da Irlanda do Norte. Tais são os caminhos tortuosos que as nações
Chant de Guerre Pour
podem seguir para proclamarem seu espírito em música.
l’Armée du Rhin, adquiriu
seu n om e atual quando O hino nacional que contrasta mais flagrantemente com os anteriores
cantada em Paris pelas nasceu diretamente da revolta. La Marseillaise, da França, é em dois por
tropas de Marselha. quatro, claramente adequado para marchar. A origem da melodia pode ser
1 8 0 • A MÚSICA DO HOMEM
buscando numa ária da ópera T hésée, de Gossec. Rouget de Lisle, autor do
hino, era um jovem engenheiro e compositor do exército, membro de uma
família aristocrática realista, presa durante a Revolução de 1789. É evi
dente que a melodia de Gossec penetrou no subconsciente de Lisle, por
que quando escreveu o seu hino, em 1792, ele não imaginou que fosse de
outra pessoa. Le Comte de Lisle modificou um pouco a melodia e a har
monia, combinando-as com uma série de versos retóricos altamente infla
mados, dos quais o primeiro conclui:
Às armas, cidadãos! Formai os batalhões!
Marchemos, marchemos
Para que o sangue impuro irrigue nossa terra!
Os hinos em dois por quatro podem servir como marchas, mas o hino do
Canadá, O Canada, e a melodia de Haydn para a Áustria, por exemplo,
tendem a soUcitar um tempo lento demais para poder ser algo mais do que
uma marcha morta. Em seu esforço para impressionar, alguns hinos nacio
nais chegaram ao absurdo, mesmo aqueles compostos por estrangeiros para
nações recém-surgidas. Quanto menor o país, mais alto e mais longo o
hino. Os suíços, porém, têm uma concepção que lhes é toda própria. Lá,
cada um dos cantões tem sua própria canção “nacional” : por exemplo, o
hino de AppenzeU, que fala de um orgulho tranqüilo pelas montanhas e
vales férteis, de paz e independência, de um forte senso de patriotismo.
Na realidade não me agrada muito a música a serviço do nacionalismo.
Na Idade Média, as fronteiras na Europa eram muito mais livres e as pes
soas podiam ir de um lado para o outro com maior facüidade. Os passapor
tes e fronteiras erguem barreiras, glorificam nações, e põem em risco muita
coisa que é local. Pode ser que o patriotismo, como a religião, funcione
para a satisfação de nossas necessidades de grandes propósitos; mas quando
as barreiras são impostas artificialmente, elas se tornam um reflexo de
nações que aumentam seus domínios arbitrariamente. Os colonizadores
europeus decidiram dividir a África e a América Latina, muitas vezes
separando famílias humanas tão selvagemente como o Muro de Berlim
divide os alemães.
A ERA DO in d iv íd u o •181
Convencionalmente, tendemos a considerar Beethoven ou Brahms como
sendo alemães, Paganini ou Bellini como italianos. Na realidade, antes da
década de 1860 essas nações não eram conhecidas com esses nomes. A
tendência à unificação começou com a necessidade de derrotar Napoleão.
Seu exemplo, não obstante, inspirou outros, porque ele deu coesão à
legislação e à administração da França, aspecto em que a Revolução tinha
falhado em decorrência de dissensões internas. Evidentemente, Napoleão
não poderia ter realizado o que realizou sem o amparo de uma nação
unificada.
Quando se olha para trás, às vezes o século X IX parece estrondar
como um vulcão em erupção constante. No turbilhão da década de 1840,
duas nações se esforçavam valentemente para nascer: a Itália e a Alemanha.
Bem cedo, dois compositores de ópera se identificaram com esse processo:
Giuseppe Verdi e Richard Wagner.
Grande parte da terra italiana, ao norte, ainda estava sob o controle
dos Habsburgos. Verdi, nascido em 1813, era um ardente partidário da
independência e da unidade nacional, e sua música inicial deve sua popula
ridade a esse fato, tanto quanto a seu vigor. Um exemplo é a estréia, em
A sobriedade suíça 1842, de sua ópera N abucco, composta quando Verdi tinha vinte e nove
prevalecente é am enizada p ela anos. O coro dos hebreus no exílio canta seu anseio pela pátria na nobre
vivacidade de seu popu lário melodia “ Va, Pensiero, sulVAli D orati” — “Voa, Pensamento, em Asas
e música de dança, aqu i Douradas” . O canto de “ Fcj, Pensiero”, naquela noite, provocou uma
ex ecu tados p elo s m úsicos de
grande manifestação; a platéia chegou quase a invadir o palco.
A ppenzell, um dos mais
conservadores d e todos os Verdi tornou-se o herói da época; seu nome era escrito nas paredes da
cantões da Suíça, e um dos cidade como grafito, não somente por causa de sua música, mas pela feliz
mais orgulhosos. coincidência de que seu nome V-E-R-D-I correspondia à sigla Vittorio
1 8 2 • A MÚSICA DO HOMEM
I !' V - Y »*' r
A ERA DO i n d i v í d u o • 1 8 3
que se podia ser preso por cantar “The Wearing o f the Green”. Em nossos
dias, hinos como “ We Shall O vercom e” e “B low in’ in the Wind” se torna
ram estímulos e símbolos. Muitas vezes os artistas são apanhados pelo
turbühão da política, como em 1956, quando Zoltán Kodály inadvertida
mente se tornou um herói no breve levante húngaro contra os Sovietes.
Verdi, por sua vez, foi forçado pelos censores italianos a mudar o local de
ação de sua ópera Un Bailo in M aschera, cujo ambiente era a corte do Rei
Augusto III, da Suécia. Foi instado a substituí-la por uma terra pequena e
distante no tempo e no espaço, para que a Suécia não se sentisse ofendida.
Verdi escolheu Massachusetts no tempo dos Puritanos.
Enquanto a Itália estava em revolta, o povo alemão também estava
clamando por unificação. Wagner, já famoso pelo Navio Fantasma, Rienzi
e Tannhãuser, acabou tão envolvido com os revolucionários, em 1849, que
teve de fugir, indo primeiramente para junto de seu amigo Liszt, em Wei-
A pós a u nificação da Itália, mar, e de lá para Paris e para a Suíça. Esse exílio durou treze anos. Na
Giuseppe G aribaldi f o i
Suíça, ele completou Lohengrin, e começou a esboçar um texto para sua
recebid o com o h erói em sua
entrada em Nápoles, em 1860 única ópera cômica, Die Meistersinger. Levou quase duas décadas para
(d o relato de um jornal terminar a música. Por essa ocasião, a Alemanha havia se unido sob Bis-
contem porân eo). marck para formar uma única nação.
1 8 4 • A MÚSICA DO HOMEM
Nascido em Leipzig, em 1813, Wagner era obcecado pela história da
raça alemã, desde os mitos da Antigüidade. Foi igualmente influenciado
pelo exemplo de Carl Maria von Weber, cuja ópera D er Freischütz tinha
transformado o gosto do público em 1821. Para Die Meistersinger von
N ümherg, Wagner tomou como seu herói um trovador, Hans Sachs, um
fabricante de sapatos, e canções do século XVI. Sachs tinha vivido em
Nuremberg, um dos centros da primitiva vida musical alemã. Membro da
corporação dos mestres-cantores, era um hábil compositor e um bom
poeta. Existem mais de seis mil de seus poemas, tendo alguns sobrevivido
com suas melodias. Wagner usou uma dessas melodias como tema principal
de abertura de sua ópera. Ela é sempre retomada, e forma o coro final
do povo.
Quando Wagner escreveu o texto de Die Meistersinger, ele estava
preocupado com a necessidade de preservar e defender a arte e a cultura
alemãs contra a ameaça de intrusão alienígena, de dentro e de fora. Profe
ticamente fez com que seu herói admoestasse e exortasse o povo a lembrar-
-se de seu dever de honrar tudo o que é alemão. No final da ópera, Hans
Sachs, para sua surpresa, recebe a coroa de louros da vitória na competição
de canções dos mestres cantores. Não há dúvida de que Wagner, secreta
mente, via-se como Sachs, miticamente coroado de louros, merecedor de
elogio e de glória. Como é irônico o fato de ter sido Wagner a levar a seu
povo essa mensagem conservadora. O que Wagner não podia prever era que
seu gênio inegável ajudaria a acelerar a dissolução dos laços que uniam a
música clássica ocidental.
Embora isso possa parecer uma afirmação radical, o experimento
harmônico de Wagner teve profundas conseqüências. O impulso para isso
já é encontrado na música de Chopin, uma dívida que em geral não é
reconhecida. Liszt e Berlioz são citados com freqüência muito maior como
precursores de Wagner, e é verdade que em termos de orquestração e exal
tação heróica os dois homens contribuíram muito para o espírito de
Wagner. Mas em termos de harmonia pura, Chopin é a influência maior;
ele teve a habilidade de modular de acorde suspenso para acorde suspenso,
evitando firmar-se em qualquer tonalidade clara. Ocasionalmente evitava
até voltar à tonalidade básica. Essas técnicas afetaram profundamente o
pensamento de Wagner.
A ERA DO in d iv íd u o • 185
Siegfríed e Die Gõtterdãm m erung. Trabalhou no texto e na música durante
quase vinte e cinco anos. A lenda é o épico medieval do povo germânico
que arrebatara a imaginação de Wagner na meninice. Talvez não haja outro
exemplo de uma energia criativa tão grande, que se tenha mantido por tão
longo tempo a serviço de uma única obsessão. Wagner tinha chegado à
música do segundo ato de Siegfríed quando interrompeu o trabalho para
concentrar-se em sua maior descoberta harmônica, Tristan und Isolde,
completando a música no prazo surpreendentemente curto de um ano.
Constitui toda uma peça e não se parece com qualquer outra música com
posta até então, mesmo por Wagner, apesar de sua notável influência sobre
grande parte daquilo que viria a seguir.
Em 1862, Wagner recebeu anistia e regressou à Baviera. No ano
seguinte, a Ópera de Viena tentou produzir Trístan, mas teve de abandonar
o intento depois de vinte e sete ensaios, considerando a ópera inexeqüível.
Foi somente em 1864, em Munique, graças ao apoio entusiástico do Rei
Ludwig II da Baviera, que Trístan foi reprogramada e, por fim, produzida
A fu n d ação d o Im pério
A lem ão f o i oficialm en te
em 1865. Imediatamente deu origem a comentários violentos: Eduard
proclam ada n o Dia de A no Hanslick, o principal crítico musical, disse que a ópera lembrava uma
N ovo, em 1871, e, duas pintura italiana de um mártir cujos intestinos estão sendo retirados do
semanas depois, os oficiais e corpo. Gioacchino Rossini, ainda reverenciado como compositor de cerca
delegações dos batalhões de trinta espirituosas comédias operísticas, talvez tenha dito a última
e distritos vizinhos se
palavra. Disse ele: “Wagner tem bons momentos, mas maus quartos de
reuniram n o Salão d os
E spelhos, em Versalhes, para hora”.
saudar o Kaiser Wilhelm I Nenhum compositor jamais recebeu comentários tão violentos da
co m o Im perador. crítica de seu tempo quanto Wagner; suas óperas eram maiores e mais
1 8 6 • A MÚSICA DO HOMEM
longas do que as de qualquer outra pessoa, salvo, talvez, Meyerbeer. Usou
uma enorme orquestra e as exigências que impunha à capacidade das vozes
não tiveram precedente. Hoje já não achamos mais sua linguagem musical
tão estranha, e o teatro da ópera que ele planejou e supervisionou em
Bayreuth, ao norte da Baviera, tomou-se o templo dos apreciadores de
Wagner. A Festspielhaus foi paga pelo Rei Ludvwg, apesar das objeções
de seu tesoureiro. O rei tinha apenas dezoito anos e, provavelmente, já
era louco; com certeza estava neuroticamente obcecado pela música de
Wagner.
O teatro de Wagner em Bayreuth continua sendo uma maravilha em
termos de acústica, e seu golpe de mestre é um enorme poço de orquestra
profundamente abaixo do palco, inteiramente separado da platéia. Nesse
poço podem sentar-se mais de cem executantes; as muitas trompas, trom
bones e trompetes estão na parte de trás, ao lado de quatro harpas, dois
conjuntos de tímpanos, com dúzias de instrumentos de sopro e sessenta
cordas na frente. Todo o espaço orquestral abaixo do palco atua como
uma caixa de som: o som conjunto da orquestra se mistura com as vozes e
é projetado para o anfiteatro em forma de leque, como uma vasta trompa.
Os cantores dizem que sentem as eclosões da orquestra em seus pés, quase
fazendo-os levitar, quando os executantes liberam sua força máxima.
d
/ Esta casa rompeu com as convenções e tradições elegantes do teatro ita
liano e francês, tão em moda nos principados alemães. Hoje permanece
como um símbolo, tanto do poder e vigor da música de Wagner como do
profundo impacto emocional das idéias que expressou. Para mim é sur
preendente que nenhum teatro tenha imitado Bayreuth desde que Wagner
o concebeu e o construiu. Talvez a expHcação seja simplesmente a invisibi
lidade do regente. Wagner sentava-se ou permanecia de pé em seu podiu m ,
elevando-se acima de sua orquestra, sua cabeça e ombros visíveis para os
cantores apenas quando ele ficava de pé, e para os metais de trás quando
ele se sentava. Mas a platéia não podia vê-lo de modo nenhum, oculto que
ficava por trás da alta rampa da orquestra, como uma sinistra salsicha
preta. Wagner queria que seus espectadores se concentrassem no drama
musical. Era a realização do sonho do compositor. Porém, os regentes dos
dias de hoje têm muitas objeções à forma dos teatros de ópera e, sem
dúvida, sendo exibicionistas por definição, dificilmente tolerariam ser
reduzidos a uma mera presença musical.
O que Wagner fez pela música foi fundamental; desde Mozart e Bach a
força impulsora da música ocidental apoiava-se na idéia de uma tonalidade
básica. Uma peça musical, um movimento de uma sonata ou sinfonia,
eram anunciados em uma tonalidade escolhida, o porto seguro para o qual
a música devia sempre retornar, independentemente do quanto se distan
ciasse. Richard Wagner mudou tudo isso, porque sua música da maturi
dade não apresenta tonalidade básica permanente, embora permaneça
tonal — mesmo nas modulações febris de Tristan, chamadas por um eru
dito, com muita adequação, de “a crise de nosso sistema harmônico”. O
1 8 8 • A MÚSICA DO HOMEM
cutantes como do público. O símbolo do herói, Siegfried, traído e morto,
e o da deusa Brünnhilde, que no final deu a vida por ele, não se perderam
na Alemanha. Em 1883 Wagner morreu, menos de uma década após ter
completado o ciclo de O Anel. Sua morte — em Veneza — parece estranha,
porque as cores latinas e a elegante imoralidade daquela cidade destoam da
paranóia dos mitos nebulosos do drama musical wagneriano.
Naturalmente, a música não mudou toda de uma vez, porque muitos
dos vínculos antigos ainda eram fortes. As sinfonias de Anton Bruckner
são prova disso, como o são seus trabalhos para órgão. Simplesmente não
era possível ao velho mundo europeu abandonar tão facilmente séculos de
expectativas acumuladas. Quando escutamos Bruckner, podemos ouvir
técnicas instrumentais de que Wagner foi pioneiro, mas também ouvimos
impulsos musicais que têm raízes em Bach, e até antes, na Renascença.
Bruckner foi organista no velho e magnífico mosteiro de St. Florian, na
Áustria, e, embora discípulo e admirador de Wagner, sua natureza era
completamente diferente. Homem simples, de uma fé desenfreada, suas
nove longas sinfonias e muitas missas têm uma característica campestre,
uma pureza elegíaca. Essa música tem raízes no som do órgão, porque
Bruckner era realmente capaz de fazer daquele nobre instrumento a voz
anônima de Deus.
A explosão de harmonia em um grande coral-prelúdio de Bach ou em
uma fuga de Bruckner tocada no órgão é uma coisa esplêndida, demons
trando uma imensa versatilidade, com um poder e amplitude únicos, do
mais baixo que se possa ouvir à mais alta das freqüências, e uma rica mis
tura de harmônicos. Para mim, o som do órgão é como o som da própria
natureza, afinado para as leis pré-humanas da proporção, um vasto alento
que preenche prodigamente as abóbadas vazias. Dizem alguns que o órgão
nos convulsiona fisicamente para nos impressionar com o poder de Deus.
Outros dizem que ele brada para que Deus possa nos ouvir mais claramente
e ter piedade. Bruckner continua a tradição de Bach, do compositor como
servo de Deus, e suas sinfonias são em parte uma extensão dos recursos do
grande órgão do século X IX com seus teclados e registros múltiplos.
A ERA DO in d iv íd u o •189
completamente livre de afetação. É a essência do estilo musical romântico,
a união entre o compositor, o intérprete e o público.
?Há, também,
,
nessa música, um extraordinário senso de controle sobre a
passagem do tempo; um certo momento será mantido em silêncio como se
houvesse uma suspensão, e depois, será liberado, com uma corrida. Einstein
nos disse que o tempo é relativo, flexível e elástico; percebi isso todas as
vezes que tentei tocar conforme o batimento do metrônomo. Ele literal
mente muda de ritmo. Algumas notas parecem mais longas e outras mais
curtas, embora eu saiba, racionalmente, que a batida desse instrumento
é automática e constante. Na música, a memória governa o sentido de
tempo, desde as notas individuais até a frase, até o contorno global. Viver
Fascinado p o r ex p o siçõ es de
na música é como viver em uma família cujas relações de tempo corres
máquinas extravagantes e pondem aos estados físicos do corpo e às emoções. Para o intérprete, essa
enorm es, o p o v o acorreu para comunicação com o ouvinte é uma das experiências mais satisfatórias da
a E xposition Universelle de vida, porque se for estabelecido um clima de aceitação serena, uma platéia
Paris, em 1889, on d e a Torre pode ser mantida nele durante quatro ou cinco minutos, como no movi
E iffe l era uma grande
mento lento do C oncerto para Violino de Beethoven. Quanto maior a
novidade, e on de o telefon e
de A lexander Graham B ell e o
platéia, mais intensa a sensação. Não acho que sou responsável pela música
fo n ó g ra fo de T hom as Edison que, de certo modo, se dirige aos ouvintes e os impele; sou, sim, o meio
eram a grande sensação. pelo qual se torna possível uma meditação comum.
1 9 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Como sempre, não existe ação sem reação. Uma das evoluções musicais
mais flagrantes do final do século XIX foi a emergência de um elemento
nacional reconhecível na música clássica. Algumas partes da Europa Orien
tal estavam começando a despertar da Idade Média, e compositores como
Dvorák e Smetana fizeram para os tchecos e eslovacos o que Grieg realizou
para a Noruega e, mais tarde, Sibelius para a Finlândia. Usaram ampla
mente melodias nativas e ritmos de dança em seus trabalhos. Em lugar
algum esse orgulho nacional era mais forte em sua voz musical do que na
Rússia, onde muitas e diferentes raças viviam há tanto tempo. A tradição
musical russa é muito antiga e muito profunda, e nessa época ainda era
dividida nas duas mesmas camadas básicas, como a Europa Ocidental no
tempo do cantochão — a elite cultural e o povo. Entre o povo, havia as
canções folclóricas e as danças camponesas, vigorosas e variadas. Havia
também a música da Igreja Ortodoxa Oriental, que tinha tomado forma Os con certos d e música leve
ao ar livre eram uma atração
no tempo de Carlos Magno e, desde então, pouco tinha mudado. O inex-
popu lar em toda a E uropa
tinguível espírito russo sobrevive na música de sua fé, com suas profundas no fin a l d o século XIX, sendo
vozes masculinas cantando com ansiedade e paixão, a união com Cristo q u e as despesas geralm ente
e Deus. eram pagas p ela consum ação
A Rússia não vivenciara os ímpetos urbanos de refinamento da Renas de alim entos e bebidas. O
“ V auxhall”, em N ápoles,
cença, e agora corria para um encontro com o mundo moderno. A primeira
tentava imitar o fa m o s o local
onda de cultura ocidental já tinha chegado à Rússia sob Pedro, o Grande, d o jardim d e con certos em
no final do século XVII. Ele admirava profundamente Luís XIV, e o L on dres (d e Illustrazione
francês era a língua oficial de sua corte. Italiana, 1878).
A ERA DO i n d i v í d u o • 191
A paixão russa pela elegância francesa também se estendia à dança. O czar
Pedro tinha importado mestres de bailado e músicos diretamente da corte
de Versalhes. Mais tarde, mestres e músicos vieram para Moscou, da Ingla
terra e da Itália. Por volta de 1860, um coreógrafo e bailarino de Marselha,
Marius Petipa, chegou para formar o BaUet Imperial Russo no Teatro
Maryinsky, em São Petersburgo. Ele o transformou em uma das melhores
companhias do mundo, e através da Rússia começou, por fim, a fazer
incursões no Ocidente. A Rússia sempre havia produzido bailarinos extra
ordinários. Seu vigor ainda hoje nos surpreende, em companhias que
fazem tou m ées, como o Ballet Moiseyev. Nas vüas agrícolas da Rússia a
tradição da exuberante dança folclórica ainda continua.
Enquanto Wagner dividia a música ocidental em dois campos, o
impacto da Rússia era sentido através da música de Peter llyitch Tschaiko-
wsky, que escreveu muitas partituras para Petipa, entre elas O Quebra-
-nozes, Bela A dorm ecida e, talvez a mais conhecida, Lago do Cisne. A
disciplina dos bailarinos russos exige deles uma capacidade para trabalhar
longas horas sem interrupção ou queixas, uma característica nacional. Seu
padrão na dança continua sendo um modelo, e foi levado à América por
Georges Balanchine, o último e talvez o maior dos coreógrafos de Dia-
ghilev, cuja grande sensibilidade musical se aliava aos seus olhos de pintor
A Ópera em São Petersburgo e sua visão de poeta.
era a sede d os ballets clássicos Lembro-me bem, com a idade de cinco anos, de minha primeira
apresentados para os russos experiência de amor inatingível. Aconteceu quando vi a inimitável Anna
p o r Marius Petipa, um Pavlova dançando em San Francisco, um milagre de leveza no papel prin
ex-bailarino de Marselha,
cipal de The Califórnia P oppy. Ela permaneceu meu ideal, minha Dulci-
cujo reinado durou quase
cinqüenta anos, até sua m orte néia, até que foi substituída por minha esposa Diana, uma bailarina trei
em 1910. nada na tradição russa na Inglaterra. A melodia do pas de deu x do cisne
1 9 2 • A MÚSICA DO HOMEM
ii
A ER A DO in d iv íd u o •193
Isso me ajudou a entender o violinista cigano para quem fazer as pessoas
dançarem é o fruto ideal de seu trabalho.
A dança pode ter sido importada primeiramente da França, mas a
Rússia dela se apropriou. Não existe flor sem raiz, e para que floresça ela
precisa ser alimentada com algo forte e firme. A música ocidental foi
alimentada durante mü anos por uma tradição folclórica ricamente inven
tiva, desde lugares distantes como a MongóHa. Esse elemento sempre foi
forte na Rússia, onde o povo conserva um grande senso de identidade com
a terra, senso que a maioria de nós já perdeu.
1 9 4 • A MÚSICA DO HOMEM
cedendo terreno a novas forças, liberadas pelas lutas entre nações e pela
busca constante de renovação pelo artista. A escolha era entre a santidade
da vida e o medo do homem, entre o controle total e a liberdade total,
tanto na música como em nossas vidas.
! É uma sorte que eu esteja escrevendo em uma época em que nos liberta
mos da inclinação para ideaUzar e romantizar as tendências e eventos
históricos, simplesmente porque eles pertencem a nossos antecedentes. E,
embora tenhamos nossas inevitáveis cegueiras e preconceitos, pelo menos
conseguimos ver que a revolução muitas vezes não é mais bonita ou sagrada
do que a repressão. É apenas uma reação provocada por energia acumulada.
Um Napoleão não é mais iluminado do que um Frederico, o Grande, e a
regra da maioria pode estar tão sujeita a excessos e miopia quanto a regra
da minoria. O que conta são qualidades, não rótulos; conteúdo, não forma.
A ERA DO in d iv íd u o • 193
Os imigrantes — voluntários, da Europa, e involuntários, da Africa — tomam-se a população
da América do Norte, onde uma nova música começa a tomarforma. As canções de Stephen
Foster, os rags de Scott Joplin, as marchas de John Philip Sousa são parte da conquista da
maioridade ^ América. O cinematógrafo e ofonógrafo, inventados por Edison, revoluàonam
aformação do gosto musical. Na Europa, as antigas convenções desmoronam sob o impacto do
impressionismo de Debussy, dos esplerulores de Strauss e Mahler. Charles Ives prenuncia o
inevitável e Igor Stravinsky desencadeia a revolução da música com A Sagração da Primavera.
- __
'^Será a sina de todas as civilizações tornarem-se exercícios de abstração? Na década de 1880, a pianola
Nossa cultura é como um tecido, que por sua vez é uma abstração de estava se tom an d o um
nosso primitivo pêlo animal — como uma casa é uma abstração de uma acessório perm an ente nas
feiras, tavernas, e logo seria
caverna e a lei é uma abstração de um código prático de conduta. Equa
acom panhada p e lo violino
ções matemáticas “descrevem” o inferno provocado pela fusão do hidro m ecân ico; p o r fim , estes
gênio solar. Todas essas abstrações estão relacionadas a realidades verificá instrumentos passaram a
veis; e, no entanto, há um perigo, porque quando os imperativos humanos constituir orquestras
se revestem de códigos e dogma, podemos, na realidade, legitimar os pró mecânicas.
prios impulsos que procuramos controlar. Foi Winston Churchül, falando
na Câmara dos Comuns, em 1947, quem declarou: “Já se disse que a
democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras
formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”.
A totalidade da história do homem é uma conquista gradual da matu
ridade; os conflitos, internos e externos, dizem respeito à assunção ou
rejeição de responsabilidades, ao exercício da autoridade. A Bíblia pode
ser um nobre e glorioso registro da história humana, mas tem sido usada
para justificar certos comportamentos questionáveis. Os gregos — a mais
elevada civilização pagã — combateram arduamente e conseguiram, por
fim, manter a unidade e a integrahdade do homem, garantindo que o bom
O posto:
e o belo, o corpo e a alma, jamais se separariam. Todas as artes constituíam A oficin a de Paris d o escultor
uma disciplina ampla e única. F rédéric Auguste B artholdi
Hoje há muitos sinais de que estamos emergindo de uma era de con era um lugar de m uito
flito, na medida em que buscamos integralidade, uma consciência da eco trabalho em 1883, quando se
logia da natureza, do quanto nossa vida depende dos mais insignificantes p roced ia à construção da
Estátua da L iberd ad e; a
insetos e plantas — assim como muitos outros reconhecem o espectro da
França pagou a estátua e os
alternativa possível: a aniquüação. A continuidade da vida na Terra é E stados Unidos o pedestal. A
responsabilidade nossa. Essa continua sendo a mensagem da democracia, inauguração f o i em 1886, dez
uma idéia poderosa, tangível embora intangível, que no Novo Mundo anos d ep ois da data marcada.
1 9 8 • A MÚSICA DO HOMEM
na África pelos colonizadores e missionários, dominava a música do Novo
Mundo; os franceses a levaram para o Canadá e os espanhóis e portugueses
a levaram para o México, para a América Latina, e para as ilhas idílicas das
índias Ocidentais, onde dividiam o espaço com os franceses e os ingleses.
Hoje, na Jamaica, os passos da quadrilha francesa são dançados pelos
descendentes de escravos, ainda com cadência e ritmo de corpo inconfun
divelmente espanhóis. Os escravos se cruzaram com os índios caraíbas A corda tocada a arco fazia
p arte da vida musical d o
nativos da área, e embora a população indígena local tivesse sido eliminada,
índio apache, com o o
alguns fragmentos de sua cultura ainda sobrevivem, preservados pelos dem onstra esta foto g rafia
descendentes desses casamentos. tirada p o r A. F. Randall, no
Ao largo da costa do Senegal está a diminuta Ilha de Gorée, onde o in ício da d écad a de 1880. A
complexo de prédios e celas de prisão serve como um memorial dos dias música d os am ericanos
da escravidão. Suas paredes ulceradas, correntes e argolas, contam muda nativos era quase uma
tradição p erd id a p o r volta
mas implacavelmente a sua história dura e terrível. Lá os navios franceses, da d écad a de 1920, mas
ingleses e espanhóis recolhiam a sua carga humana: centenas de milhares con heceu um notável
passavam pelos apertados blocos de celas — primeiramente os que eram ressurgimento em nossos dias.
2 0 2 • A MÚSICA DO HOMEM
STEPH S*^
' n i V y ü R K . P j E U S hEO FIR TH .PO KD fc C ? ! FRANMIN SO-
fiTisBu«a«,ti-KLe»eR. ÜT. lOj»s, a. wtBi
prestidigitando e dançando na praça de cada cidade; nos Estados Unidos, De Oh! Susannah em 1848, a
ele se tornou a homenagem do homem branco aos pretos que partilhavam Beautiful Dreamer em 1864,
dessa nova terra, uma coexistência desconfortável que se tornava simbólica, Stephen F oster com p ôs mais
de duzentos canções,
porque o espírito e a personalidade do mundo negro estavam penetrando
incluindo Camptown Races
na cultura branca muito antes que os próprios pretos fossem admitidos (18S0), My Old Kentucky
na sociedade branca. Stephen Foster sentiu isso e aproveitou a oportuni Home (1853), Jeannie with
dade para compor algumas de suas mais belas inspirações; suas canções the Light Brown Hair (1854),
eram vendidas em milhares de folhetos. Porém, sempre extravagante, Old Black Jo e (1860).
2 0 8 • A MÚSICA DO HOMEM
cípio, a matéria da qual a própria vida é feita, e a música de Debussy tam
bém possuiu essa qualidade. O Prélude, La Mer, e os N octurnes para
orquestra, os extraordinários trabalhos para solo de piano, até mesmo sua
última obra, a sublime Sonata para Violino e Piano, não apresentam as
melodias, harmonias, ritmos e estruturas a que a música de concerto se
acostumara. Nesses trabalhos, Debussy escreve sons pelos sons em si mes
mos. Devemos lembrar que Debussy era um admirador do cantochão e da
música vocal de Lassus e Palestrina. Ele também era admirador dos com
positores franceses do teclado, do tempo de Luís XIV, especialmente de
François Couperin. E devemos lembrar também que esta música nos
conduz aos experimentos de Edgard Varèse, jovem amigo e discípulo de C la u d e D e b u s s y e r a t a m b é m
Essa música reflete um gosto que pode ser comparado com o rico vinho
doce feito com as últimas uvas da estação, as que são deixadas na vinha
para amadurecerem até pouco antes da primeira geada. Elas já começaram
a enrugar, a secar, mas ainda se mantêm. Seria fácil imaginar que elas pu
dessem ficar dependuradas na parreira para sempre, tornando-se melhores,
mais maduras, mais doces. Mas se o vinhateiro não as colher no momento
2 1 4 • A MÚSICA DO HOMEM
e com certeza foi tocado lá, especialmente no famoso distrito da luz
vermelha no veUio bairro francês. Os músicos podiam encontrar trabalho
seguro com boa remuneração nas casas elegantes das ruas Rampart e Beale.
Mas a música de rag não surgiu originalmente em Nova Orleans. Surgiu em
numerosos lugares, viajando para baixo e para cima pelos rios Mississippi e
Missouri, onde quer que houvesse um piano. Muitos dos pianistas-composi-
tores virtuosos surgiram em St. Louis, Kansas City e Sedalia. Quando sua
fama se espalhou, uns desceram para Nova Orleans. Outros seguiram para
leste, em direção a Chicago, entre eles Scott Joplin. Cada músico de rag-
time se empenhava por superar seu rival, como nos dias de Chopin e Liszt,
e J oplin fazia seus rags para se ajustarem a seu próprio estilo de tocar.
As origens do ragtime podem ter sido consideradas questionáveis,
mas este se tomou a música das salas de visitas dos brancos, da classe
média dos Estados Unidos e, depois, graças aos folhetos de música e logo
depois às gravações, se alastrou pelo mundo, na passagem do século. Todos
queriam aprender a tocar rags — eram ousados, corajosos, otimistas, como
as marchas de Sousa ou o fenômeno do vôo (os Irmãos Wright finalmente
tinham realizado o feito em 1903). O popular sempre foi uma das forças
de equilíbrio na música. Na Idade Média, as melodias de dança e baladas
relembravam tanto os músicos como as pessoas de que o propósito da
música é comunicação. No início da década de 1900, a música tocada no
lar, por amigos que se entretinham juntos, preenchia a mesma necessidade,
e o ragtime era a música de dança dos jovens. O s m is s io n á r io s o c id e n ta is
O ragtime partühava o campo musical popular com muitas outras le v a v a m o liv r o d e h in o s e o
2 1 6 • A MÚSICA DO HOMEM
•it
2 1 8 • A MÚSICA DO HOMEM
cido em partes do mundo onde nunca se ouviu falar de Jesus Cristo”. O
que o cinema fez por Chaplin, o fonógrafo fez por Enrico Caruso. Para
grande parte do mundo, o nome e a voz do lendário tenor ainda são sinô
nimos de ópera. Embora ele tenha morrido em 1921, milhões de pessoas
ainda conseguem identificar sua voz. Caruso foi o primeiro artista do
mundo que teve uma carreira marcada pelo sucesso na venda de discos, e
é em grande parte graças a ele que a Victor Talking Machine Company
teve êxito. O surgimento de cinemas em todos os quarteirões e a introdu
ção das árias de ópera em todas as salas de visita revolucionaram irrevoga-
velmente nossa forma de abordar a música.
Estão entre as músicas mais avançadas jamais escritas por qualquer com P o r tu g a l, D in a m a r c a , N o r u e g a ,
B é lg ic a e B u lg á r ia , o
positor ocidental. Sua ousadia corresponde à de Gesualdo ou da Ars Nova
a r q u id u q u e F r a n z F e r d in a n d ,
do século XIV. Na época, a música de Ives parecia muito estranha para ser d a Á u s tr ia , o p r í n c i p e
levada a sério, pois ele experimentou ritmos múltiplos e a politonahdade c o n s o r te d a H o la n d a e,
muito antes do que qualquer outro compositor. Conseqüentemente, escre f e c h a n d o o d e s file ,
2 2 4 • A MÚSICA DO HOMEM
a
^Por que A Sagração da Primavera é, indubitavelmente, a obra mais célebre
de Stravinsky? Simplesmente porque irrompeu como uma tormenta,
demolindo a barreira entre o Leste e o Oeste, com uma explosão cujas
repercussões ainda podem ser ouvidas e sentidas em todos os tipos de
música, até mesmo em partituras para filmes e conjuntos de rock. De suas
origens na Rússia, aquela misteriosa terra bizantina ainda muito desconhe
cida, esse mundo de sensualidade e fogo, de cor e novo som, veio com o
Ballet Diaghüev para Paris e Londres. Minhas raízes ancestrais são russas,
e creio que sei como Stravinsky se sentiu. Todas as vezes que olho uma
partitura pela primeira vez, o que quero descobrir principalmente é
uma mensagem e, somente depois, a estrutura.
Para compreendermos melhor Stravinsky, deveríamos comparar sua
música com a da valsa: perceberemos a diferença entre a linha orgânica
flexível, que responde a mudanças de temperatura, pressão e ânimo, tudo
dentro de um compasso igual onde as inflexões e variações sutis da veloci
dade fazem com que a música se torne viva, e a unidade métrica simples e
invariável, como o compasso de grande parte da música africana. A imagi
nação de Stravinsky abrigou-se em uma mente matemática precisa; um
homem de mão fechada com seu dinheiro; em seus ritmos, também não
existe “dar” . Assim como os modernos tijolos duros e friáveis, que nunca
cedem ou se ajustam, como o fazem as velhas paredes (nos séculos passa
dos, a argila era misturada com esterco e palha), ou como a unidade mé
trica inflexível e imutável do compasso musical africano. Os ritmos de
Stravinsky são muitas vezes complexos e assimétricos. Diferentemente do
laissez-faire austríaco na valsa e no Lãndler, eles não se dobram. A agudeza
e a precisão de Stravinsky em espaçamento e instrumentação de intervalos
são incríveis, e a organização das forças complexas à sua disposição não
foi tarefa simples.
A maneira mais fácü de reger uma grande sociedade é reduzir seus
membros a unidades idênticas que não se possam mais distinguir umas das
outras e que, dessa forma, possam ser processadas mais facümente. Entre
tanto, se as pessoas são autodisciplinadas e compreendem a importância da
imaginação e da cooperação, elas podem manter um grau muito alto de
individualidade através de sua disposição para se ajustarem. Essa é mais
uma das diferenças entre a música da África e da Europa. O africano tem
canções individuais com bonitas melodias, mas quando ele se reúne aos
outros, o ritmo tende a enfeixar o todo. Stravinsky também tem essa
qualidade. Existem outros ritmos mais simples, feitos pela distorção e
adaptação humanas, e acredito que esse seja o caso da música de Bartók
e de Beethoven.
Para muitos, a música do jovem Stravinsky ainda soa desgovernada,
dissonante, difícil, apesar de agora ter setenta anos de idade. Em grande
parte, acontece o mesmo com as pinturas de antes da guerra, de Picasso,
Braque, Kandinsky. A resistência ao novo é comum na história da arte.
Ainda assim, é incomum que um trabalho importante leve tanto tempo
para ser aceito por um grande público. Talvez seja porque ainda estamos
2 2 6 • A MÚSICA DO HOMEM
A p r o d u ç ã o o r ig in a l d e
S t r a v in s k y d e A S a g ra çã o
d a P rim a v e r a / o í c o n c e b i d a
p o r N ijin s k y c o m o u m a
c e le b r a ç ã o ru ssa d a
fe r t ilid a d e d a terra , su rg in d o
d a s n e v e s á r tic a s p a r a o c a lo r
d a s n o ite s b ran cas.
P o s te r io r m e n te a p r o d u ç ã o
f o i in t e ir a m e n te r e d e s e n h a d a
p o r L e o n i d M a s s in e , p o r q u e
as rou pas d esen h ad as p o r
N ic h o la s R o e r ic h e ra m
m u ito p e s a d a s e in c ô m o d a s .
1. O conheddo e o desconhecido
' r '''
d ■ ■
Primeira Guerra Mundial varreu um mundo conhecido, mudando nossas C o m s e is a n o s d e id a d e
atitudes tanto quanto mudou muitas fronteiras nacionais. Tudo parece ter ( 1 9 2 2 ) , Y e h u d i M e n u h in j á
v is a v a a u m a c a r r e ir a d e
acontecido muito rapidamente. O Império Austro-Húngaro, reunindo
v io lin is ta . N o a n o s e g u in te ,
terras do Oriente e do Ocidente, estava dissolvido, fragmentado nas partes
f e z s u a e s tr é ia c o m a
que o constituíam. Algumas antigas nações, como a Hungria e a Polônia, S in fô n ic a d e S a n F r a n c is c o
reclamavam terras que historicamente lhes pertenciam, ao passo que outras r e g id a p o r A lfr e d H erz ,
foram juntadas para formar nações que anteriormente nunca haviam exis e x e c u t a n d o a S in fo n ia
Mesmo nos tempos mais duros, a música consegue sempre nos transmitir
sua mensagem de ânimo, especialmente quando brota de raízes profundas.
Aprendi isso não exatamente através do meu amor pelo violino, esse ins
trumento cantante italiano, mas através de dois grandes artistas que
tiveram uma influência inicial decisiva em minha vida: Fritz Kreisler e
Georges Enesco. Ambos eram violinistas e compositores e uma ponte
entre o antigo e o novo. Para eles, como para o rabequista na dança da
praça, fazer música era tão essencial quanto o sopro de vida.
No Ocidente, poucos continuam a fazer música, exceto talvez na
igreja ou na escola. A maioria das pessoas vive nas cidades, tem seu traba
lho e se contenta em deixar que os outros façam música para elas. Feliz
mente, para mim, faço parte daqueles outros, dos músicos praticantes.
Quando eu tinha cerca de três anos, não muito depois da Grande Guerra,
meus pais começaram a levar-me a concertos em San Francisco. Apaixo-
nei-me imediatamente pelo som doce que o primeiro violinista conseguia
produzir quando tocava só. Eu não sabia ainda que ele era o que se cha
mava spalla, e nem que seu nome era Louis Persinger, nem que ele iria ser
meu primeiro professor. Sabia apenas que eu mesmo tinha de produzir
aqueles mesmos sons. Naturalmente, muitos outros sempre responderam
à música da mesma maneira e, felizmente, ainda o fazem, optando instinti
vamente por dedicar suas vidas a esta arte nobre, extática.
Eu associava o violino especialmente ao som encantador e terno de
L iebesleid, composta e tocada por Fritz Kreisler. Apaixonei-me por sua
gravação quando tinha apenas cinco anos. Eu nunca tinha visto Kreisler
e passar-se-iam ainda três anos antes que eu o ouvisse tocar pessoalmente,
ocasião em que ele já fazia parte de minha vida. Eu ansiava poder expres-
sar-me com ele, penetrar seu mundo. Suas frases aristocráticas, equüibra-
das, comovidas, respondiam a todas as aspirações de meu jovem coração.
Era uma época em que as gravações ainda eram feitas por processo acús
tico. O executante postava-se diante de uma trompa com forma de mega
fone, ao invés de um microfone, e as vibrações físicas de sua execução
eram transmitidas diretamente para a membrana.
2 3 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Fritz Kreisler para mim não era lenda, já que eu podia ouvi-lo no
fonógrafo em minha casa. Tornamo-nos amigos. Ele tinha o gosto tipica
mente austríaco por tudo quanto a vida tinha a oferecer, bem como a
profunda musicalidade austríaca. Suas qualidades particulares de suavi
dade e cadência rítmica, quase que como a fala humana com suas entona
ções vivamente acentuadas, falavam uma linguagem universal, compreen
sível para toda humanidade. Encontrei-me com Kreisler em Berlim quando
lá fiz minha estréia sob a regência de Bruno Walter, em 1929, e tive o
F r itz K r e is le r (1 8 7 5 -1 9 5 9 )
privilégio de ouvi-lo tocar o C oncerto de Beethoven. Diferentemente do n ã o s e p a r e c ia a b s o lu ta m e n te
que acontece com a maioria das imagens da meninice, que se abalam c o m o e s b e lto id e a l d e u m
diante da realidade, sua presença somente gravou mais nítida e claramente jo v e m v ir tu o s o q u a n d o e s t e
a imagem que eu tinha. Ele tinha uma relação natural com seu instrumento r e tr a to f o i tir a d o , p o r v o lta
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 3 1
pudesse tirar a florescência do desempenho — não que isso acontecesse
necessariamente, desde que a pessoa mantivesse separados trabalho e
desempenho.
O próprio Kreisler era querido tanto por seus colegas violinistas como
por seu público — um tributo muito grande. Ele era quase igualmente bem-
-dotado como compositor e pianista, e seus amplos interesses eram o com
bustível que alimentava o fogo de sua arte. Seu desempenho notavelmente
calmo, seguro e intenso do C oncerto de Beethoven ainda pode ser ouvido
em gravações. Nesse concerto, Fritz Kreisler nos proporciona um dos últi
mos exemplos do executante inspirado, oferecendo-nos suas próprias
cadenzas ao invés daquelas de Joachim, que a maioria dos violinistas usa.
Sua cadenza para o primeiro movimento, em particular, é um trabalho
arredondado, autocontido, melódico e rico em expressão, em cuja parte
final ele introduz dois dos temas principais que se combinam de uma
forma das mais felizes, para o deleite do executante e dos ouvintes.
Ainda se discute se é preferível ouvir uma cadenza pessoal do intér
prete a ouvir a melhor cadenza disponível. A originalidade é melhor para
a estimulação do executante, mas um possível risco para os ouvintes. Eu
mesmo já escrevi minhas próprias cadenzas, sempre que as disponíveis não
me atraíram, como, por exemplo, para os concertos de Mozart. Se não fiz
o mesmo com Beethoven e Brahms, foi porque não acreditei que pudesse
melhorar as cadenzas feitas por Kreisler.
Agora, já há muito tempo, desde a Revolução Russa e a Primeira
Guerra Mundial, a imagem popular do virtuoso de violino tem sido a do
judeu russo: por exemplo, os ídolos de minha juventude, Mischa Elman,
Jascha Heifetz, e depois, mais recentemente, meu caro amigo David Ois-
trakh. Nascido em Nova Iorque, eu mesmo sou de origem russo-judaica. Há
uma boa razão para explicar a imagem do virtuoso russo-judeu: os judeus
foram desterrados tantas vezes, que o violino, fácil de ser transportado em
viagens, tornou-se seu companheiro reconfortador. O judeu também é
profundamente cônscio de sua herança. Seu tradicional respeito pela Lei
Sagrada toma-o um estudante e intérprete dedicado, boas qualidades para
um violinista. Na Rússia, o judeu era, tradicionalmente, o violinista da
aldeia, pertencendo-lhe do mesmo modo que o violino cantante italiano
pertencia à sua terra de origem; no final do século X IX também já havia
diversos conservatórios musicais excelentes nas principais cidades russas,
proporcionando aos jovens estudantes talentosos uma oportunidade para
igualarem ou até superarem os padrões de Berlim, Paris ou Londres. Leo-
pold Auer, o extraordinário professor de violino de São Petersburgo, era
o te m p e r a m e n to s e n s ív e l e
p o é t ic o d e K r e is le r é r e v e la d o um judeu russo para quem Tschaikowsky havia escrito seu C oncerto para
n e s t a lit o g r a fia d o a r tis ta Violino. Entre os alunos de Auer estavam Heifetz e Elman e muitos dos
in g lês E d m o n d K a p p , f e i t a extraordinários mestres da geração seguinte. Além do mais, os russos gos
e m 1 9 1 4 . K r e is le r
tam de cantar e, por isso, sua adoração pelo violino é tão grande quanto a
p e r m a n e c e u , a trav és d e su a
de qualquer italiano ou cigano. Mas o violino não é russo, nem austríaco,
lo n g a v id a , c o m o u m
e x e m p lo n ã o s ó p a ra o s nem italiano: sempre pertenceu ao mundo inteiro.
v io lin is ta s c o m o t a m b é m Quando eu tinha nove anos, ouvi Georges Enesco tocar pela primeira
p a r a o u t r o s a r tis ta s . vez, e quando tinha onze, tornei-me seu aluno. O que encontrei em Enesco,
2 3 4 • A MÚSICA DO HOMEM
romeno. Por mais disciplinado que fosse seu conhecimento de composição,
nunca perdeu aquele elemento mágico de improvisação. Queria comunicar
o fogo sagrado. Em sua Terceira Sonata para Violino e Piano, que minha
irmã Hephzibah e eu muitas vezes executávamos, cada nota, sombreado,
cor e acento se acham escritos, de modo que qualquer violinista treinado,
ainda que idiota, acaba conseguindo tocar como um verdadeiro cigano.
Para seu crédito devo acrescentar que, notando que eu nunca usava o
mesmo dedilhar duas vezes, ele me aconselhou a adotar a escolha final
como a mais prudente e segura para desempenho em público, e sugeriu
que eu também poderia travar conhecimento com o metrônomo.
O insight que Enesco transmitia era uma fusão orgânica de razão e
intuição. Em minha experiência, nenhum músico conseguiu como ele uma
síntese tão definida e cinzelada. Uma vez, quando eu tinha quinze anos,
depois de ter estudado, a conselho de Enesco, com Adolf Busch, ele me
perguntou por que tinha começado a Fuga em Lá M enor de Bach tão
fortemente, com tanta autoridade. Já que eu tinha assumido a opinião de
Busch, respondi que todas as fugas tinham de começar fortemente porque
o tema estava sendo anunciado e agora seria desenvolvido. Enesco foi
paciente e passou a explicar que enquanto alguns temas de fuga podiam,
de fato, ser enunciados de modo autoritário, havia outros, como este, que
começavam um pouco hesitantemente em menor, embora com um ritmo
seguro. Ele achava que o próprio Bach havia iniciado essa fuga em um
estado de espírito de procura, lançando o grande desenho apenas com
um fio, não esperando que ele agüentasse o peso daquüo que, por fim, se
tornaria uma tapeçaria. Sendo uma criança obstinada, não capitulei ime
diatamente, nem tampouco desejava trair Adolf Busch. Enesco simples
mente sugeriu que eu pensasse a respeito e decidisse por mim mesmo.
Naturalmente, ele estava certo.
A música de Bach é, de fato, extraordinariamente elástica. Pode-se
tocá-la de uma dúzia de maneiras diferentes, e ela continuará a propor
cionar sua magia. Enesco tinha essa capacidade para evocar cada nota
como se tivesse sido recém-criada. Muitos anos mais tarde aconteceu de
eu lhe mencionar as óperas de Mozart. Ele disse: “Talvez agora você
aprenda a tocar Mozart como ele deve ser tocado, e compreenda que cada
nota que ele compôs foi como uma sílaba, um gesto definido, significando
alguma coisa muito específica”. Quando menino, aprendi com Enesco que
todos os trabalhos de um mestre têm uma ligação uns com os outros. Não
podemos parar enquanto não tivermos dominado a própria maneira de
pensar e de sentir do compositor, tomando-a nossa.
Como prova da memória fenomenal de Enesco, equivalente à sua
capacidade para aprender, não posso pensar em nada melhor do que o
incidente que iria presenciar em 1927, logo depois que comecei meus
estudos com ele. Maurice Ravel chegou ao apartamento de Enesco sem se
anunciar, interrompendo nossa aula. Trazia consigo o manuscrito de sua
nova Sonata para Violino e Piano, a tinta ainda úmida, por assim dizer, e
ele queria ensaiá-la imediatamente. Os editores de Ravel, Durand et Fils,
no francês correto que então ainda era costumeiro, desejavam ouvir o
2 3 6 • A MÚSICA DO HOMEM
que tornava o ato de executar música tão compensador para todos os parti
cipantes. Os seres humanos necessitam de beleza tanto quanto de ordem e
significado, conforme Kreisler e Enesco me ensinaram. Afmavam seus
sentidos pela longa herança de seu povo, e através deles aprendi que a
arte é comunicação, porque através de sua arte conheci seu povo. É
também uma lição que vale a pena lembrar, quando consideramos que a O O r ig in a l D i x i e l a n d “J a s s "
B a n d , r e c r u ta d o e o r g a n iz a d o
música é uma chave vital para o entendimento do povo de nossa época.
p e l o m ú s ic o e p r o m o t o r d e
N o v a O r le a n s , P a p a J a c k L a in e ,
Por volta da metade deste século, a música no Ocidente estava quase que e m 1 9 1 7, t o m o u - s e o
dividida em duas, ou talvez em quatro, mudanças que afetaram a música p r im e ir o ]3 zz band
do resto do mundo. Embora os termos clássico ou sério muitas vezes se a m p la m e n te a c e it o n a
A m é r ic a e n a E u ro p a ,
aplicassem à música, também é verdade que a vanguarda tinha-se distan
g r a v a n d o e v ia ja n d o m u ito .
ciado firmemente do tradicional. Isso também aconteceu no campo popu
N o e n t a n t o , d u r a n t e a lg u m
lar. O jazz tradicional, a música folclórica e as melodias para espetáculos t e m p o , a reg ra e m m ú s ic a e r a
estão a uma grande distância do hard rock, pu n k rock, astro rock. Os “s e p a r a d a m a s ig u a l”.
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 3 7
- ''a;:.
2 3 8 • A MÚSICA DO HOMEM
década de 1920 estabeleceram uma tendência que continuaria até a década
de 1930. Artistas brühantes no solo atraíam um séquito de devotos, nota-
damente Louis Armstrong, cujas improvisações de trompete se tornaram
célebres no mundo inteiro, tanto em pessoa como em suas primitivas
gravações com King Oliver. As origens vocais do jazz eram mantidas por
extraordinárias intérpretes de blues, como, por exemplo, Bessie Smith.
Desde o início, o jazz foi uma arte que uniu os americanos do Norte e do
Sul, e logo ele enxotou as baladas sentimentais da passagem do século,
transformando a música popular com tanta rapidez quanto o rock alterou
a música de nossos dias.
Assim como os rags, a energia que impulsionou o jazz proveio igual
mente de músicos negros e brancos. Mas houve a necessidade de um grupo
inteiramente branco, o Original Dixieland Jazz Band, em 1917, para come
çar a difundir a palavra em plano comercial. Suas gravações continuam
sendo os primeiros verdadeiros discos de jazz, apesar dos rumores da
existência de cilindros pelo lendário trompetista Buddy Bolden, cujo som
penetrante podia ser ouvido em Nova Orleans até meio-caminho da traves
sia do Lago Pontchartrain, segundo dizem. Parte do fascínio do jazz está
no fato de que ele restaura para a música a liberdade de improvisação,
elevando essa habüidade a um nível em que se torna o tema da música.
Mozart e Beethoven se contentavam em restringir os vôos livres de seus
executantes às cadenzas de seus concerti. No jazz, todos os executantes
apanham a melodia básica e bordam sua harmonia e melodia tão livre
mente quanto possível, sem jamais perderem o senso de conjunto.
O grupo clássico de jazz consiste em clarinete, trompete, trombone,
piano e percussão. É um conjunto cujas convenções estão tão bem firma
das quanto as do consorte medieval. Algumas vezes o trombone tem sido
chamado de portinhola de fundo, já que os primitivos grupos de jazz
freqüentemente viajavam em caminhões rasos para tocar em festas, e o
trombonista sentava-se com as pernas penduradas sobre a portinhola
baixada a fim de obter apoio para seu instrumento mais pesado. Às vezes,
um banjo, um contrabaixo ou um saxofone podiam enriquecer o conjunto,
mas o quinteto-padrão de jazz é tão clássico quanto o quarteto de cordas.
Naturalmente, em uma certa época o jazz foi considerado ousado,
experimental e perigoso. Foi denunciado nos púlpitos das igrejas e pelos
jornais como um corruptor dos jovens, assim como o fora a valsa um
século antes, e a música rock mais recentemente. Tanto o rock como o
jazz têm o mesmo “molejo” que o ragtime, de onde vieram. O ragtime e
o jazz golpearam duramente a Europa. Até mesmo Igor Stravinsky escreveu
peças com toques de rag, como sua Circus Polka. Em um país após o outro,
as pessoas aderiram ao jazz aos milhões, para tocá-lo, para dançá-lo, para
comprar suas gravações. O jazz se tornou a principal exportação cultural,
juntamente com as fitas de cinema e alguns escritores expatriados; mas o
jazz parecia ser exatamente aquüo de que as pessoas necessitavam para
ajudá-las a esquecer os maus tempos.
O jazz subiu ao palco de concertos graças ao talento de George
Gershwin, um jovem intenso e febrü que jamais se sentia realmente con
2 4 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Orquestra, escritas no final da primeira década do novo século, ele oferecia
um sistema harmônico inteiramente novo, deixando a harmonia tal como
a conhecíamos muito para trás.
que ele tanto honrava em Bach e em toda a tradição austro-alemã que ser co m p ara d a à d e M ozart
o u d e S c h u b e r t; d e p o is d e
remontava ao século XVII. Partindo do teclado com temperamento igual,
P org y and B e ss e le p a r e c ia
o princípio de Bach da igualdade de todas as teclas, ele o aplicou a todos esta r às v esp era s d e u m a
os doze semitons. Foi algo como nosso ideal democrático de igualdade ir r u p ç ã o e m u m n o v o
perante a Lei. Ele decidiu que todas estas notas deviam ser intercambiáveis, te r r itó r io .
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO * 2 4 1
/
livres para serem dispostas em qualquer padrão que ele escolhesse, sem
levar em consideração relações harmônicas e tonais anteriores. Construiu
seu novo sistema com base no princípio do que chamava de série ou
seqüência de tons.
Uma série de tons é uma disposição de doze semitons em uma deter
o retra to d e A m o ld minada seqüência. De acordo com as regras de Schónberg, nenhuma nota
S chón berg, fe ito p o r em uma série poderia ser repetida até que todas as doze tivessem sido
E dm on d K app em 1931, usadas. As melodias eram derivadas dessa série, e o eram também as har
s u g e r e u m l a d o m a is s u a v e
monias. Tudo isto soa como um jogo tolo. Por fim, composições inteiras
d o m e s t r e v ie n e n s e , a o
podiam ser construídas de uma única série. A primeira assim construída
m esm o te m p o q u e m ostra
seu m o d o in c o m u m d e
foi a Suíte para Piano op. 25, de Schónberg, escrita em 1924. Poder-se-ia
seg u rar a b a tu ta d e supor que essa noção se baseasse na idéia de que cada nota tem o direito
reg en te. E n tr e 1 9 1 3 e de perseguir a feHcidade, que o controle harmônico global estava sendo
1921 o c o m p o s ito r rejeitado. A pura democracia, assim como o puro comunismo, implica
c o n serv o u -se e m s ilê n c io
ausência de qualquer estrutura social, uma anarquia benigna em que se
to ta l, e n q u a n t o c o n c e n tr a v a
t o d a a s u a e n e r g ia n a
tem como certo que tudo encontrará seu nível próprio e igual. Mas preci
f o r m u la ç ã o d o s is te m a samos ter cuidado para não confundir o vocabulário da liberdade com o das
d e d o z e to n s . notas. Melhor seria compararmos as notas com o alfabeto. Pode ser extra
2 4 2 • A MÚSICA DO HOMEM
ordinário que o homem tenha conseguido expressar tanto com vinte e seis
letras (mais, nas línguas asiáticas), mas nem mesmo o poeta elevou o alfa
beto ao nível da linguagem, nem decidiu que cada letra tenha igual uso.
O sistema dodecafônico de Schõnberg parece-me oferecer uma pro
posição semelhante, que podemos aceitar para fins de argumentação. Foi
uma aventura extraordinária, porque Schõnberg estava formulando as
questões mais fundamentais sobre a natureza da música no Ocidente desde
a invenção da harmonia, há quase mil anos. Sua música madura faz exigên
cias sem precedentes ao ouvido humano. A estrutura emerge mais clara
mente por análise visual. Sei que houve períodos similares na música em
épocas passadas, e Tristão, de Wagner, muitas vezes é citada como sendo
comparável, porque de início foi abandonada como sendo impossível de
ser executada. No entanto, pela década de 1880, vinte anos após sua
estréia, foi aceita, fazendo parte, regularmente, do repertório de óperas
na Alemanha, França, Inglaterra e Estados Unidos. A meu ver, a palavra
alemã Augenmusik, significando música para os olhos, pode ser aplicada a
grande parte da música de Schõnberg. Acho que o verdadeiro compositor
conhece de antemão o som que planeja produzir, assim como o autor
imagina previamente suas palavras. O uso do papel, do esboço e da revisão,
é um uso dos olhos para ajudar o ouvido, não para substituí-lo. Não excluo
a possibüidade de que muitos compositores dodecafônicos realmente
escrevam o que “ouvem”, mas eu já me deparei com o inverso com fre
qüência suficiente para acreditar que a dificuldade é generalizada. Eviden
temente, o púbHco, de modo geral, não se dispõe a fazer o esforço neces
sário para compreender a música dodecafônica desde que, há cerca de
sessenta anos, Schõnberg introduziu o seu sistema.
Tudo isto é tanto mais notável quando examinamos um trabalho como sua
Suíte para Piano op. 25. A série sobre a qual se baseia termina com quatro
notas, que inscreveríamos como Si (B), Ré (C), Lá (A), Si (B) bemol. Na
forma alemã de inscrição musical, onde B se torna H e B bemol se torna B,
uma prática que remonta à Idade Média, estas quatro notas são soletradas
como H, C, A, B. Colocando-as em ordem inversa, teremos “B-A-C-H” . É
um gesto muito comovente, incluído como um talismã, como se Schõn
berg estivesse procurando a bênção de Bach. O dispositivo de assinatura
foi muitas vezes usado pelo próprio velho mestre, assim como ele costu
mava praticar seus temas de trás para a frente ou de cima para baixo. É
confortador que Schõnberg tenha estado tão ansioso por nos fazer perce
bê-lo como parte dessa tradição, acreditando ao mesmo tempo que ele
tinha encontrado a solução para o dilema da harmonia ocidental. Em
1923, Schõnberg escreveu:
F r a n c a m e n te , a té a g o r a , p e la p r im e ir a v e z , n ã o e n c o n t r e i e n g a n o e o s is te m a
p a r e c e c r e s c e r p o r si p r ó p r i o , s e m q u e e u f a ç a c o is a a lg u m a p a r a is s o . C o n s id e r o
is t o c o m o u m b o m s in a l. D e s t a f o r m a , e n c o n t r o - m e p o s i t i v a m e n t e c a p a c it a d o
p a r a c o m p o r t ã o liv re e f a n t a s t i c a m e n t e c o m o , e m g e r a l, s ó o fa z u m a p e s s o a n a
ju v e n t u d e , e fic o , não o b s ít a n t e , s u je i t o a u m a d is c ip lin a e s t é t i c a d e f i n í v e l,
p r e c is a .
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 4 3
Como isso é auto-assegurador e dogmático, ao mesmo tempo que
pretende ser verdade para o sonho de todo artista!
2 4 4 • A MÚSICA DO HOMEM
direito de compor o que quiser. A música emerge e ela é sua. Regras não
fazem um trabalho de arte”. Varèse caminhou muitos passos à frente de
Debussy, quase reinventando o próprio som musical. Em sua primeira
entrevista à imprensa americana, Varèse disse:
N o s s o a l f a b e t o m u s i c a l p r e c i s a s e r e n r i q u e c i d o . P r e c i s a m o s d e n o v o s in s t r u m e n
t o s e e le s p r e c i s a m n o s l e m b r a r d e c o is a s q u e j á o u v i m o s u m a c e n t e n a d e v e z e s .
A fin a l d e c o n t a s , o s in s tr u m e n to s sã o a p e n a s m e io s te m p o r á r io s d e e x p re s s ã o .
O s m ú s ic o s d e v e m e x a m in a r e s t a q u e s tã o s e r ia m e n te , c o m o a u x ílio d o s e s p e c ia
lis t a s d e m a q u i n a r i a .
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 4 5
e A m eriques. Estes enunciados sucintos são uma lei por si sós, construídos
o fr e n e s i d e c a d e n t e d e B e r lim
n a d é c a d a d e 1 9 2 0 está
a partir de nenhum passado, seja harmônico, melódico ou rítmico. Embora
e s p le n d id a m e n te c a p ta d o tenha vivido até 1967, Varèse foi mais produtivo entre trinta e cinco e
n e s t a p i n t u r a d e O t t o D ix , cinqüenta e um anos de idade (1921-1937). Daí por diante, seu período
p a r t e d e u m tr íp tic o , de quase silêncio é comparável ao de Sibelius, que passou mais de trinta
ev oca n d o o am arg or e a
anos sem compor, ou Rossini, que permaneceu quase mudo durante qua
d e s ilu s ã o q u e s e to m a r a m
p a r t e d o s m u s ic a is d e K u r t
renta anos. O que podemos dizer a respeito de Varèse é que sua música
W e ill e B e r t o l t B r e c h t . aguda, amarga, incisiva, penetra até a medula da civilização. É uma música
2 4 6 • A MÚSICA DO HOMEM
adequada aos canyons envidraçados de nossas cidades modernas, pergun-
tando-nos quem somos e o que é música, de um modo tão fundamental
quanto a música de Schônberg. Varèse é considerado por uma geração
mais jovem de compositores de vanguarda, de Cage a Stockhausen, como
o pai da música realmente nova de nosso tempo. A linguagem musical de
Stravinsky, por mais radical que pudesse parecer na época, agora é vista
como permanecendo dentro da tradição, ao passo que a de Varèse, como
a de Ives, não tem precedentes.
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 4 7
cando-o com o gosto dos outros. Se o gosto é válido somente para o indi
víduo, rapidamente pode tornar-se preconceito, quer por parte do artista,
quer por parte do público. Algumas vezes todos nós temos dificuldade de
nos abrirmos para novas experiências, mas precisamos aprender a aceitar
uma certa música, até que a conheçamos melhor. Sempre procurei conhe
cer música com a qual não estejamos familiarizados, através daqueles que
mais a amam. Não somos obrigados a gostar de toda música, ou de toda
arte, mas o amor é o sentimento humano mais intenso e, quando o encon
tramos, devemos dar-lhe atenção.
O dilema de nosso tempo complexo é o conflito entre o intelectual
mente abstrato e o organicamente sensual. Rendemo-nos a qualquer dos
dois ou lutamos por uma síntese, substituindo a energia por equüíbrio. O
ideal é algum ponto intermediário. A Europa é um campo delta, constan
temente misturando mente e coração. Em Freud, Schõnberg e Einstein,
encontramos um máximo de disciplina junto a um máximo de intuição.
O controle real está na identificação total, mas o excesso de análise pode
toldar as fontes intuitivas, um problema com o qual a música contempo
rânea vem lutando há mais de meio século. Para mim, a música de van
guarda avançou demais na direção da análise, da mensuração e estrutura,
em detrimento da verdadeira liberdade, ao passo que o p o p rock caiu no
extremo oposto, buscando puro impacto sensual sem um desenvolvimento
adequado. Em ambos os casos são as nuanças mais sutis do sentimento que
acabam sendo prejudicadas.
Fazendo justiça aos artistas, cujo papel sempre foi o de romper bar
reiras, até mesmo as construídas por eles, devo dizer que neste século a
idéia do público mudou radicalmente. Hoje, supõe-se que as artes perten
cem a todos. Em princípio, não é má idéia, só que todas as habilidades se
aperfeiçoam com a prática, e uma compreensão ampla de qualquer arte
não pode ocorrer sem a apHcação de algum esforço. “Não sei nada a esse
respeito, mas sei do que gosto!”; se examinarmos essa proposição mais de
perto, veremos que ela é dúbia. Quero dizer que o púbHco pode saber do
que gosta, mas não pode saber do que p od eria gostar, e é aí que a integri
dade do provedor entra em jogo. Todos nós precisamos ser receptivos a
novas experiências que enriqueçam nossas antigas preconcepções e às
vozes que se originam do nosso meio. Os artistas em todos os níveis há
muito reconheceram que faz parte de nossa função, como seres humanos,
fazer o melhor uso possível daquilo que encontramos ao nosso redor.
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 4 9
nados para servir ao entretenimento popular, só que desta vez não era o
original, mas um pastiche.
Escrever música para fümes é uma tarefa altamente profissional, uma
disciplina para a qual nem todos os compositores têm os dotes necessários.
A música de cinema também tem sido considerada como trabalho de baixo
nível, do mesmo modo que escrever um roteiro cinematográfico pode ser
visto como menos digno do que escrever um bom romance. Financeira
mente é compensador, mas é considerado como espiritualmente mais
pobre. Talvez seja essa a razão pela qual tão poucos dos grandes composi
tores foram atraídos para o cinema. Copland, Prokofiev, Walton e Vaughan
Williams são exceções notáveis. A maioria não quer perder o tempo neces
sário para dominar as técnicas, e os produtores de filmes não se animam a
dar-lhes oportunidade, sabendo que será difícü acompanhar seus padrões.
Poucos compositores daqueles que se consideram como fazendo parte da
tradição de Beethoven e Bach têm facilidade de corresponder á idéia de
que devem realizar “dezessete segundos de medo crescente” em uma parte
e “um minuto e dez de um romance entre jovens com um toque de amar
E m H o lly w o o d , L e o p o ld gura” em outra. Compositores como LuUy e PurceU não teriam dificul
S t o k o w s k i e n c o n t r o u W a lt dade com a tarefa porque, em certo sentido, foi o que fizeram para viver.
D is n e y , q u e a c h o u q u e s e r ia
Quanto a Wagner, seus dramas musicais são escritos como filmes, atri
in t e r e s s a n te c o l o c a r o
buindo temas a cada personagem, refletindo cada mudança da tensão emo
c a m u n d o n g o M ic k e y
c o m o astro d e u m d e se n h o cional, e suas técnicas de composição ter-se-iam adaptado bem ao cinema.
a n im a d o d e c u r ta -m e tr a g e m
b a s e a d o e m O A p r e n d iz d e Algumas vezes fico surpreso ao notar que o púbhco aceita o estilo da
F e it ic e ir o . I s s o f o i e m 1 9 3 8 .
música clássica ocidental em fümes, quando algumas vezes resiste a aceitá-
D o is a n o s d e p o is , la n ç a r a m
-la em sua forma original. Naturalmente, isso está ligado à noção de cultura
F a n ta s ia , o m a is
r e v o lu c io n á r io fi l m e m u s ic a l
para todos. Não acredito que seja necessário a todo apreciador de música
já p r o d u z id o . A q u i o s d o is subir as encostas da Chaconne de Bach, ou até se banhar em Rachmani-
m estres se en co n tra m e m u m noff; no entanto, durante este século, os filmes mostraram que um púbhco
e x e r c í c i o d e fo o tb o a rd . enorme pode se ligar a uma Unguagem musical que não é diretamente
2 S 0 • A MÚSICA DO HOMEM
popular. Isso, porém, não impediu que o hiato se ampliasse, nem que o
lado popular da indústria se concentrasse na produção do último sucesso
enquanto tantos compositores sérios continuam sem ser ouvidos pelo
grande público.
É agora que nos defrontamos com uma outra mudança em nosso século,
o conceito de cultura para todos. Por mais que a vanguarda tenha evitado
deliberadamente ter contato com o púbHco em geral, a definição de pú
blico estava passando por uma grande transformação em todos os lugares
do mundo, com o auxilio dos veículos de massa. Dois músicos, regentes de
primeira categoria, contribuíram particularmente para o papel que o rádio
e o cinema iriam desempenhar na vida musical americana: Leopold Stoko-
wski e Arturo Toscanini. O conhecimento de Stokovifski a respeito de
técnicas de gravação era muito maior do que o de seus colegas. Constante
mente fazia experiências com a colocação de sua orquestra na sala de con
certos, bem como no estúdio de gravação. Em 1936 Stokowski deixou a
Orquestra de Filadélfia e mudou-se para Hollywood para fazer sua carreira
em filmes - “uma tendência mais elevada”, dizia ele. Levou consigo uma
grande experiência, constituindo um desafio para os melhores homens de
estúdio de som, muitas vezes para desgosto deles. Stokowski apareceu em
The Big B roadcast o f 1937 e depois estrelou em um filme notável com
Deanna Durbin, Cem H om ens e Uma Menina.
A maior aventura cinematográfica de Stokowski, muito mais ousada
em suas implicações, continua merecendo até hoje o estudo dos críticos e
dos cineastas. Foi sua colaboração com Walt Disney na criação de Fantasia.
Sob certos aspectos os resultados também podem ser questionáveis, mas
continua sendo uma realização notável, em grande parte pela sua forma de
tratar a reprodução da música de cinema, muito antes da época do som
estéreo e quadrifônico.
Stokowski conhecia o valor visual do regente, tanto para o público
como para os executantes. Em Fantasia ele aparecia em silhueta, só, em
um podiu m alto, no início e no encerramento de cada obra. Seu gesto de
coroamento para Hollywood aconteceu quando o camundongo Mickey,
como O Aprendiz de F eiticeiro, apareceu no epílogo, subindo os degraus
do podiu m para apertar as mãos de Stokowski. Na primeira metade do
século, Leopold Stokowski representou para a maioria dos americanos o
modelo de aparência e comportamento de um regente sinfônico, e ele
ajudou muito a popularizar a orquestra sinfônica na América do Norte.
Se Stokowski foi sui generis transcrevendo os trabalhos de Bach para
uma orquestra straussiana, colocando-os sob uma prensa hidráulica, Arturo
Toscanini deve ser descrito como uma força da natureza. Ele já tinha
setenta e um anos quando assumiu a Sinfônica NBC em 1937, confessando
seu receio de ser muito idoso para o cargo. Manteve o posto até os oitenta
e sete anos.
A história dos anos de Toscanini na NBC é memorável por muitas
razões. A rede americana de rádio mal tinha uma década de existência
quando ele chegou, e a Depressão ainda dominava o pais. Quando Tosca-
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 5 1
nini se aproximou de sua nova orquestra para seu primeiro ensaio, estava
nervoso como um principiante e suava abundantemente. A irradiação
inaugural na noite de Natal foi ouvida por milhões de pessoas — um dos
ouvintes era o presidente Franklin D. Roosevelt, que estava então para
A s pou cas p essoas qu e
c o n s eg u ira m o b t e r o s
iniciar seu segundo mandato. Foi o golpe artístico e de relações púbUcas
p r e c io s o s c o n v ite s p a r a a s na indústria de radiodifusão.
tr a n s m is s õ e s d e A r t u r o Em uma época em que o transistor impera e os rádios portáteis são
T o s c a n i n i rux S i n f ô n i c a N B C , carregados para os piqueniques na praia, em escaladas de alpinismo e
e n tr e 1 9 3 7 e 1 9 5 4 , ja m a is
safáris no deserto, não é fácü reconstituir a época em que os aparelhos de
p od erã o esqu ecer a
in t e n s id a d e tr a n q ü ila e
rádio eram peças imponentes que faziam parte da mobília da sala de estar,
p r e c is a d e seu m o d o oráculos entronizados — exatamente como, atualmente, os aparelhos de
s u til d e reg er. TV —, ocupando um lugar tão importante quanto o que outrora foi
2 5 2 • A MÚSICA DO HOMEM
ocupado pela lareira. Haveria algo mais fácü do que pendurar um micro
fone defronte a um espetáculo, e transmiti-lo para a nação? As principais
redes na Europa e nos Estados Unidos tinham orquestras permanentes de
cerca de cinqüenta músicos para apoiar os dramas ou realizar breves inter
lúdios. Mas somente a NBC tinha Toscanini.
Tem-se dado tanta ênfase à presença visível do regente que é difícil
transmitir a força da personalidade de Toscanini, levada pelo rádio aos
ouvintes. Mas lá estava ela, inegavelmente, todos os domingos das 17 às
18 horas. A regência é uma forma de expressão intensamente pessoal e
é por isso que a mesma orquestra soará de modo diferente, conforme o
regente. Na década de 1930, Stokowski e Toscanini tentaram, sem sucesso,
uma troca de podium s entre Filadélfia e Nova Iorque. As duas orquestras
tinham-se tornado extensões dessas personalidades opostas.
O fato de o regente sinfônico ser objeto de veneração é bastante
recente. Sua origem foi no século XIX, na Era do Indivíduo, quando as
orquestras começaram a aumentar de tamanho. Considera-se, em geral,
que a regência por parte de um virtuoso começou na França com François
Habeneck, Louis JuUien e Hector Berlioz, todos eles atuando em Paris e
Londres, de 1816 a 1869. Mas a arte floresceu plenamente na Alemanha
e na Áustria-Hungria. Na parte final do século X IX e no início do século
XX, quatro nomes se sobressaem. Richard Wagner e Franz Liszt, e seus
seguidores mais jovens, Hans Richter e Arthur Nikisch. Richter e Nikisch
passaram a dominar o estÜo orquestral na Europa na passagem do século.
Richter cultuava a partitura escrita. Nikisch era mais livre, e foi um dos
primeiros a reger sem partitura. Leopold Stokow^ski, que tinha substituído
Nikisch em Paris em 1908, seguiu o estilista elegante, abandonando o uso
da batuta. Arturo Toscanini foi um regente dentro dos moldes de Richter,
empenhando-se em lutar com a orquestra a fim de ganhar a batalha para
o compositor, aquecendo o volátil temperamento latino até a incandes-
cencia.
A cultura para todos é uma idéia nobre, mas nem sempre se pensou
nas artes dessa maneira. As catedrais de Ghislebert podem ter servido ao
povo, mas mesmo assim foram feitas de acordo com especificações dos
senhores da Igreja. Miguel Ângelo pintou o teto da Capela Sistina para seus
clientes. Monteverdi criou suas óperas para a nobreza de Mântua e para os
patrícios de Veneza. Mozart e Beethoven escreveram para uma elite em
Viena, e Chopin para um círculo de pessoas instruídas em Paris. Até
pouco tempo sua música só estava ao alcance dos que podiam dar-se ao
Os f i l m e s m u s ic a is d a d é c a d a
luxo de presenciar suas execuções, muitas vezes em ricas residências parti d e 1 9 3 0 o fe r e c ia m u m a fu g a ,
culares ou em caras salas de concerto. A única alternativa era a pessoa e o s íd o lo s d a te la ( m u ito s
aprender a tocar música. Já por essa época, há bastante tempo os ventos a g o ra e s q u e c id o s , c o m o ,
2 5 4 • A MÚSICA DO HOMEM
e têm nomes curiosos, como anklung. Geralmente uma orquestra de game-
lão compreende pelo menos um dúzia de executantes, mas o seu número
pode chegar a mais de trinta. A identidade de um povoado indonésio está
profundamente ligada à sua orquestra de gamelão, como a das cidades
americanas a suas equipes de beisebol.
Culturalmente, as ühas ainda mantêm Hgações com o continente,
como revela a própria decoração dos instrumentos gamelões. Bali demons
tra um amor particular por essa arte, comparável à mais elaborada arte de
decoração de alaúdes e virginais da Renascença Ocidental. Os suportes dos
gongos e das barras afinadas são dourados e entalhados com as mais fanta
siosas formas de animais e plantas. A música de Bali é notável pelo contra
ponto rítmico, uma arte sutil, passada adiante por exemplo cuidadoso e
paciente. Os martelos de metal deHcadamente curvos, correm como relâm E m m u i t a s v ila s b a l i n e s a s ,
pagos entre as barras, tão rapidamente que é difícil acompanharmos o t o d o s o s h o m e n s p a r t ic ip a m
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 5 7
Menuhin: — Os compositores sempre necessitaram de raízes, de um elo
com seu ambiente, seu passado, seu povo. Quais foram as raízes que você
encontrou e que lhe permitiram compor uma música de sabor tão ameri
cano?
Copland: — Antes de mais nada, nasci no Brooklyn. Isso já é um começo.
Menuhin: — Eu nasci no Bronx. O B é uma letra reverenciada no alfabeto
musical: Bach, Beethoven, Brahms, Bartók — e agora Brooklyn.
Copland: — Talvez não tenha sido um início brühante. Mas coloquei em
minha cabeça que um dos grandes atributos da música francesa era o fato
de soar francesa, a música alemã soava alemã, a música que os russos escre
viam soava russa. No início da década de 1920 parecia-me esquisito que
um país como os Estados Unidos, com seu próprio tipo de vida e sua pró
pria civilização, não pudesse escrever uma música que refletisse meu país
do mesmo modo.
Menuhin: — Mas os russos estavam em seu solo já há muito tempo. Os
alemães desenvolveram um modo de pensar que caminhava com sua litera
tura e seu modo de vida; o mesmo acontecia com os franceses. Mas os
Estados Unidos ofereciam uma estonteante variedade de culturas.
Copland: — Lembre-se de Walt Whitman e Emerson, figuras tipicamente
americanas nas artes.
Menuhin: — Mas esse não foi um fenômeno da Nova Inglaterra? E no en
tanto você compôs El Salon M exico.
Copland: — Isso foi uma outra fase do mesmo desejo. Depois de usar as
melodias folclóricas americanas, parecia fácil tratar do material mexicano
ou espanhol.
Menuhin: — Mas será que o espanhol é mais americano do que elizabe-
tano ou apaiachiano?
Copland: — O apaiachiano está mais perto do Brooklyn, e eu podia me
sentir mais natural com ele. Ora, Walt Whitman não poderia ter sido euro
peu, ou não poderia ter escrito como escreveu se não tivesse nascido neste
país. Ele viveu no Brooklyn durante muito tempo.
Menuhin: — Como você definiria “sentir-se americano” ?
Copland: — Basta perguntar a qualquer americano. Uma certa vivacidade,
um frescor de temperamento, talvez.
Menuhin: — Não será também a capacidade para identificar-se com pes
soas de outras o r ig e n s ?
2 5 8 • A MÚSICA DO HOMEM
Copland: — Passei três anos inteiros com ela, e quando a encontrei eu me
senti um jovem de muita sorte.
Menuhin: — Eu estava pensando em Ernst Bloch, que também procurou
ser americano. Ele passou muito tempo estudando os cantos nativos dos
índios, e carinhosamente pensou tê-los colocado em sua sinfonia Am erican.
Creio que elas são melodias judias, embora pudessem ser eslavas, mouriscas
ou outras.
Copland: — Bem, ele não nasceu no Brooklyn.
Menuhin: — Existe um outro aspecto da essência americana que devería
mos considerar, que é a tecnologia imaginativa, quase agressiva que se
tomou de tão amplo alcance. Nossas melhores cabeças trabalham mais em
tecnologia do que em arquitetura.
Copland: — Temos jovens trabalhando em música eletrônica, gravando-a
em fita.
Menuhin: — Neste momento, para mim, isso é como lidar com um novo
brinquedo, sem entendê-lo.
Copland: — Você está querendo trabalho bem rápido. O negócio de pro
duzir sons eletrônicos que parecem música é terrivelmente novo. Creio que
o principal seja estimular o público a manter a mente aberta. Ele se abas
tece de um segmento relativamente pequeno da grande música do mundo.
Há muito espaço para aumentar seu repertório. Creio que o público está
se saturando das grandes obras-primas.
Menuhin: — Penso da mesma maneira. Os Estados Unidos estão crescendo
tão rapidamente que às vezes eu penso que a música de Beethoven e de
Brahms é quase uma anomalia.
Copland: — Na realidade, você não pode dizer isso. Eu não iria tão longe
assim.
Menuhin: — Não obstante, é música de um período diferente da história
do homem, uma concepção de vida totalmente diferente. Até que ponto é
válida?
Copland: — É válida para o tempo em que foi escrita. Se não fosse, não
nos interessaria.
Menuhin: — Os povos que a vivem estão escapando à sua civilização?
Copland: - Eles podem não estar em sintonia, mas o campo da música é
muito maior do que alguns querem admitir, e eles cometem um grande
erro.
Menuhin: — Na realidade, creio que encontramos uma grande dose de boa
vontade. Uma noite destas eu toquei a sonata que Bartók escreveu para
mim. Eu estava em uma pequena cidade de Long Island. Um amigo meu
ouviu alguém dizer: “Acho que deveríamos gostar disto”. Mas gostaram
muito mais da sonata Kreutzer, de Beethoven.
Copland: — É uma velha doença. Dependemos de uma minoria mais
instruída para escutar com os dois ouvidos, para tentar ouvir com fascina
ção o que os novos compositores estão fazendo. Não podemos ter a espe
rança de que o grande público fique conosco, mas gradualmente a lingua
gem musical se modifica.
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO * 2 5 9
Menuhin: — Em certos círculos existe a moda de escutar a música que não
se compreende. Nem sempre isso é compensador.
Copland: — Não pode ser sempre compensador. Se você vai se meter com
o que não conhece, quase certamente obterá alguma coisa que não vale
nada. Aqueles que gostam da busca, estão dispostos a se arriscar.
Menuhin: — Não se pode ter as duas coisas ao mesmo tempo. Quando
ouvimos o chinês pela primeira vez, o poema mais bonito talvez não nos
diga coisa alguma.
Copland: — Se você se sente Hvre para usar um idioma que lhe pareça
natural, para dizer coisas que não são tão óbvias, se você escreve uma
coisa realmente difícil que dura meia hora, você sabe de antemão que
essa coisa não poderá ter uma grande audiência. Existem trechos de Bee-
thoven que são mais difíceis para o público entender. Imagino que nós,
compositores, distinguimos em nossas mentes os trechos que agradam ao
grande público e os que atingem um ouvinte mais preparado. Natural
mente, gostamos de estimular nossos ouvintes a se cultivarem. Escrevi um
livro chamado What to Listen f o r in Music (O Que Escutar em Música) e
fiquei contente quando percebi que tinha ajudado alguém a se aproximar
da música. Cada pessoa tem sua própria capacidade; todos temos os nossos
limites.
Menuhin: — Existem trabalhos contemporâneos que, quando ouço pela
primeira vez — ou talvez pela segunda ou terceira — não consigo captar
inteiramente.
Copland: — Eu poderia facilmente citar alguns para os quais tenho a
mesma reação.
Menuhin: — Você evita a tríade, a harmonia tradicional?
Copland: — Céus, não! Mas não existe razão para você ater-se só a elas, já
que a musica tem-se desenvolvido tão amplamente. Percorremos um longo
caminho nos últimos duzentos anos, e eu gostaria de tirar plena vantagem
disso. Stravinsky e Schônberg inventaram realmente uma nova espécie de
linguagem que ampHou nossa compreensão do que poderia ser a música.
Menuhin: — E, no entanto, Stravinsky tem apelo popular, talvez não de
início, mas não levou tanto tempo assim. Estou certo de que se Bartók
tivesse vivido mais alguns anos, ele teria desfrutado de popularidade.
Copland: — Ele era um homenzinho triste. Passei uma tarde com ele e
saí um tanto deprimido.
Menuhin: — Ele só se comunicava com o seu semelhante, o homem,
através da música. Sentia um desprezo quase violento pelo comum. Tudo
o que ele dizia ou fazia era essencial. Talvez tenha sido sua doença que o
deixou tão econômico. Agora, o que é que você pensa da atual música
p o p , daquele barulho gritante e ensurdecedor que atrai um público tão
vasto?
Copland: — Não precisamos nos preocupar com ela, porque é temporária.
Chegará alguma outra coisa em seu lugar.
Menuhin: — Nos últimos anos vimos, cada vez mais, diferentes tipos de
público se voltarem para a música séria, em contraposição à popular. Exis
tem algumas pontes?
2 6 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Copland: — Muitos jovens vêm a meus concertos, e pelo seu entusiasmo
posso concluir que eles estão habituados à música mais ligeira, mas isso
não impede seu amor pela música séria. Não se esqueça de que qualquer
pessoa, ao ligar o rádio, pode ouvir música que jamais pensou que existisse.
A música está ao alcance dos jovens, o que não ocorria quando eu tinha
dezoito anos.
Menuhin: — Existe algum trabalho pelo qual você gostaria de ser conhe
cido?
Copland: — Já me perguntaram isso antes, e é como perguntar a uma mãe:
“Qual é o seu filho predileto?” . Você poderia saber, mas não seria justo
para os outros filhos dizer qual é. Parece que o trabalho que atraiu mais
gente é o ballet que escrevi para Martha Graham, Appalachian Spring. M u ito s f o r a m o s c r ia d o r e s d e
g ran d es o rq u estra s d e d a n ç a
Menuhin: — Mas talvez não seja aquela a que você dá mais valor.
m a s n e n h u m f o i m a is
Copland: — Não. Eu gostaria de pensar que foi minha Piano Fantasy. A im p o r ta n te d o q u e B e n n y
sua execução dura meia hora sem pausa, o que é um longo tempo. Eu G ood m an , qu e co m gran de
gostaria que fosse da mesma categoria, mas sei por sua natureza que isso é a r t e m e s c lo u s e u s b r ilh a n te s
esperar demais. Gostamos de nossas obras por diferentes razões: de algu s o lo s d e c la r in e t e c o m o s
ex ecu ta n tes, e m ca d a s eç ã o
mas, porque todos parecem gostar, e você se junta a eles; de outras porque
d e su a o rq u estra . E n tre o s
são como um filho deixado de lado, por quem ninguém sente o entusiasmo
qu e com eçaram com
que você esperaria que se sentisse. São aquelas por quem você sente mais G o o d m a n esta v a m G en e
carinho. K ru p a, L io n e l H a m p to n ,
Menuhin: — Que resposta encantadora. T e d d y W ils o n e H a r r y J a m e s .
2 6 2 • A MÚSICA DO HOMEM
Reconhecem-se indícios recorrentes de harmonia em suas mais rigorosas
partituras dodecafônicas, como, por exemplo, em sua Lyric Suite para
quarteto de cordas, onde ele cita os temas de Tristão de Wagner. Em suas
duas óperas, W ozzeck e L m /m , ele usa os métodos tradicionais de constru
ção, como a forma de sonata, de passacalhe, tema e variações. Seu último
trabalho musical foi um C oncerto para Violino, terminado em 1935. Berg
dedicou a obra à memória de uma jovem que acabava de morrer e a quem
queria muito. É um adeus maior ao mundo que ele amava, não suspei
tando que o deixaria dentro de poucas semanas.
Levei algum tempo para entrar em acordo com o concerto de Berg. Quando
o experimentei pela primeira vez, pude sentir sua importância histórica e
uma legítima sinceridade de propósito. Mas havia também o artifício na
coda onde ele usa repetidamente a melodia coral de Bach “Es ist genug”
(Basta). De início eu não gostei de ouvir aquele nobre coral, com sua
harmonização incomum de uma melodia que começa por alcançar uma
quarta aumentada, usado dessa maneira. Eu não concordava com todo
aquele sistema dodecafônico, sentindo que Berg o havia usado, a fim de
fugir a seu próprio caráter romântico que ele já não podia mais suportar,
impondo-o à sua música como um anteparo, para tornar-se algo que ele não
era. Com o decorrer dos anos, passei a sentir de um modo um pouco dife
rente e, embora o trabalho não seja meu favorito, acho mais fácil alcançar
seu espírito do que antes, especialmente depois que o toquei com Anser-
met e Pierre Boulez. Sempre achei que, quando uma pessoa não entende
alguma coisa, deve dirigir-se primeiramente a alguém que goste dessa coisa,
para então descobrir o que ela é. A lb a n B erg m o rr e u n a v ésp era
O CONHECIDO E O DESCONHECIDO • 2 6 3
Lixo ou fertilizante, eis a questão: a música perdeu seu caminho ou voltará a florescer? John
Cage questiona a validade da própria música, Steve Reich trata-a como um processo, Muzak
toma-a recheio subliminar. A tecnologia transforma tanto a composição como o marketing da
música. O pianista canadense Glenn Gould argumenta que a gravação substituiu a sala de
concertos. A música popular se transforma das baladas sentimentais de Sinatra, no compasso
arrebatador de Presley, na intensidade emocional dos Beatles e na rudeza de rua dos Rolling
Stones. Os jovens começam a redescobrir a música do passado mais distante e de outras cultu
ras; e o papel da emoção retoma tanto à música clássica como ã popular. Béla Bartók é a síntese
do artista intransigente que, no entanto, não perde contato com suas raízes, no solo e no povo.
8. Som ou não-som
Vivemos sob o perigo constante de destruição; cada geração deve rede A sede de lançam ento de
tantos fog u etes, inclusive das
finir o termo para si mesma, medindo ansiosamente os riscos e vantagens
alunissagens controladas,
crescentes do progresso, comparando-os ao preço que pagamos por eles. atualm ente está caindo em
Também vivemos em uma época de sensações incrementadas artificial desuso, à m edida que a
mente e, conseqüentemente, estamos sujeitos, mais do que nunca, à ex p loração d o esp aço
manipulação. As civilizações passadas consideravam a música como sendo cam inha para a fa se seguinte
sagrada; proporcionava um sentido de beleza que o homem podia vislum de estações espaciais e viagens
in terp lane tárias.
brar, uma perfeição à qual podia aspirar. Em nossa época, a música perdeu
grande parte desse papel, tornando-se parte do processo generalizado de
exploração.
Há certas coisas que para mim continuam sendo sagradas. Sei que
para uma abelha a rosa não é um objeto de beleza, mas uma fonte de
alimento; e, no entanto, tanto para a abelha como para mim, a rosa é
sagrada, se por sagrado entendermos uma dádiva a ser apreciada e da qual
dependemos. No mesmo sentido, a música para mim é beleza. O valor da
verdadeira música está em sua capacidade de nos integrar como seres totais. David B ow ie é fu n d ad or e
FeUzmente, a natureza não permitirá que exploremos seu domínio astro perdurável d o
m ovim ento con h ecid o co m o
indefinidamente; antes de destruirmos a última árvore e o oceano, sem
glitter rock, fen ô m en o
dúvida já nos teremos aniquilado e o ciclo da natureza recomeçará. Do duradouro em um cam po que
mesmo modo, destruiremos nosso sentido de audição antes de destruirmos se caracteriza p ela rápida
a música. A experiência extática é necessária, mas a natureza tem meios de passagem d o entusiasm o d o
prevenir o excesso. O dervixe rodopiante cai em transe, parando por falta p ú blico d e um íd o lo para o
seguinte. Sua música mais
de ox^ênio antes de se exaurir totalmente, e desperta refeito. É parte de
recente m ostra interesse p o r
seu ritual, de seu encontro com o êxtase. estilos qu e vão d esde os
reggae das índias Ocidentais
Enquanto você lê estas Unhas, em algum lugar do espaço, uma coleção a o bater d o s tam bores da
de músicas do mundo, a música do homem, está viajando a bordo do Á frica.
SOMOUNÃO-SOM • 2 6 5
Voyager I e do Voyager II. Esses foguetes mensageiros foram lançados do
Cabo Canaveral na Flórida em 1977, e levam a bordo não apenas instru
mentos, mas também gravações de filmes e sons da Terra e de seu povo,
com instruções elaboradas sobre a operação do equipamento de repro
dução, escritas inteiramente em sinais pictográfícos, tão universalmente
compreensíveis quanto nossa invenção permite. Depois que esses satélites
artificiais passarem por Júpiter e Saturno, enviando de volta dados sobre
os enormes companheiros da Terra, a enorme atração gravitacional desses
planetas os arremessará em direção ao vazio. É conveniente que a bordo
haja uma mensagem humana, um gesto semelhante à garrafa do náufrago
boiando no mar. Daqui a cinqüenta mil, ou talvez daqui a um milhão de
anos, os Voyager I e II podem ser interceptados por uma outra forma
de vida inteUgente. Podemos especular sobre as reações dos ouvintes a
amostras do cantochão, dos ritmos de Chuck Berry, de uma fuga de Bach,
de uma sinfonia de Beethoven, de uma flauta de nariz, de A Sagração da
Primavera de Stravinsky ou da R hapsody in Blue de Gershwin, enviadas
para o espaço como representativas da música do homem.
Todas as tecnologias que nos permitem lançar nossa mensagem atra
vés do universo foram desenvolvidas nos últimos cem anos. Essas tecnolo
gias estão vinculadas à visão, à audição e à nossa modalidade linear de
pensamento. Não sabemos se outras formas de vida em planetas distantes
serão sensíveis às mesmas vibrações. Nossa mensagem partiu para um
receptor desconhecido, inimaginável.
2 6 6 • A MÚSICA DO HOMEM
cadas de 1950 e 1960 em centros na Alemanha, França e Estados Unidos,
embora seu conteúdo estético algumas vezes pareça o de uma folha de
impressão de dados de um computador. Vale a pena ressaltar que os qua
tro músicos que tocam no Canadian Ensemble eram habilidosos intrumen-
tistas de metais antes de se tornarem sintetizadores.
SOMOUNÃO-SOM * 2 6 7
No centro de computadores da Universidade de Toronto, estão sendo
pesquisados instrumentos usados para notação de música eletrônica. É
notável ver uma peça de equipamento que mostra todos os símbolos da
escrita da música ocidental, que permite sua seleção e disposição em
seqüências à escolha do compositor, e sua reprodução imediata com todas
as características de timbre e amplitude que foram indicadas. A música
ocidental vem lutando desde a Idade Média com o problema de fazer
coincidir a notação com o som. Em nosso século, temos estruturas visuais
cujas complexidades estonteantes parecem ter pouca ou nenhuma relação
com os sons que se espera que gerem.
O que o computador não pode fazer é respirar, já que as notas no
papel não respiram. É preciso que o executante lhes dê vida. O computa
dor é como uma pianola mecânica, talvez com uma faixa maior de cores,
mas apenas capaz de devolver aquilo que lhe foi fornecido. Além disso, o
som não vibra naturalmente, como o faz uma coluna de ar em um tubo;
um alto-falante é ativado através de impulsos elétricos diretos. É um som
sem calor humano. Os compositores podem julgá-lo uma ferramenta útil
para conferir combinações tonais, e ainda podem desenvolver instrumen
tos cuja capacidade espontânea se iguale à da orquestra moderna. Mas o
instrumento é apenas tão bom quanto o executante.
?
A tecnologia não só está aprendendo a manipular os elementos do som
abstrato e da notação, como também é capaz de reproduzir sinteticamente
qualquer som musical que possamos produzir naturalmente, exceto, é
claro, o elemento mais crucial e importante - a força vital entre (e du
rante) cada nota. Os instrumentos eletrônicos se encontram no mesmo
estágio ou condição que todos os instrumentos de teclado, incluindo o
órgão, o cravo e o piano, em relação ao violino ou à voz humana. Seus
projetistas são engenhosos, mas até agora foram incapazes de criar um
meio de transmitir um impulso vibrante, que se altera constantemente.
Esses instrumentos podem ser operados, mas no momento são impermeá
veis à expressão humana. Ainda temos de perguntar: “Onde está Bach?”.
2 6 8 • A MÚSICA DO HOMEM
Mais recentemente, Cage fez uma apresentação em Cambridge, Massa-
chusetts, de um evento que chamou de Harvard Square. Colocou um piano
em uma ilha para pedestres no centro da praça, e logo se formou uma
multidão. Cage acionou um cronômetro, fechou o piano e cruzou as mãos.
A multidão esperou. Depois de um certo tempo, determinado pela consulta
ao I Ching — um livro chinês que relaciona sabedoria e filosofia prática a
números e ao oculto — ele abriu a tampa do teclado e ficou de pé. O
público aplaudiu enquanto Cage se curvava agradecendo. E o que foi apre
sentado? Nada mais do que o ambiente de som do trânsito de Harvard
Square, conversas casuais, passos e outros ruídos.
Se alguém assumisse esse comportamento em outra época e em outro
lugar, seria submetido a tratamento médico, seria preso pela polícia ou se O stop-motion p o d e nos
fariam preces comunais pela salvação de sua alma. Mas John Cage não revelar configurações de
se desanima com as controvérsias que às vezes causa, e sua alma permanece duração inimaginável, m uito
cheia de alegria. rápidas para serem p ercebid as
a o lh o nu, desde a fo rm a
í escultural de um pingo de
Suponho que John Cage esteja realmente tentando abrir nossos ouvidos,
leite que cai até o estouro
ensinar-nos a escutar o tempo não estruturado. O tempo parece fluir de uma bexiga, desenrolando-
rápida ou vagarosamente: quando estamos esperando que aconteça alguma s e ao redor d o p róp rio ar
coisa, pode parecer interminável, mas acelera-se assustadoramente quando que mantivera com prim ido.
SOMOUNÃO-SOM • 2 6 9
nos vemos em meio a um evento que não podemos controlar. Cada evento
tem seu próprio tempo, que nem sempre é imediatamente perceptível.
Algumas vezes o próprio tempo é a barreira, do mesmo modo que não
podemos ver a nós mesmos com a perspectiva do futuro. O crescimento
de uma flor é imperceptível, ao passo que a beleza de uma gota de leite
caindo em um prato, ou o bater das asas do beija-flor, são muito rápidos
para serem registrados a olho nu. Mas a câmera cinematrográfica pode
expandir ou contrair o tempo, acomodando-o a nossos sentidos limitados,
permitindo-nos contemplar o âmago das coisas.
Quando escutamos ou tocamos música, uma de nossas satisfações
está no reconhecimento de sua estrutura. Os eventos na natureza ocorrem
em seu próprio tempo, mas com a música o compositor esculpe o tempo,
dando-lhe forma e peso, fazendo-o fluir mais rápido ou mais lento, impon-
do-o a nós. Quer seja um simples ritmo de dança ou o grande arcabouço de
uma sinfonia, ou uma raga indiana, a música nos leva a seu próprio tempo,
incorporando-se em nós como um espírito, um alter ego. A música de
dança nos toma leves e nos eleva; uma marcha fúnebre pesa sobre nós. A
música assume o controle; tornamo-nos seus cativos. Pelo menos essa
passou a ser nossa expectativa. Mas um compositor como John Cage não
está simplesmente nos estimulando a escutar mais de perto. Ele nos desafia
perguntando se nós e a música que fazemos e, de fato, se todas as realiza
ções humanas, não são simplesmente eventos acidentais em um universo
aleatório. Não posso aceitar essa visão passiva da vida; mas não há dúvida
de que Cage está realmente nos forçando a reexaminar a música, assim
como estamos reexaminando nosso sentido de audição. Ele nos leva a
perguntar: “A música é som ou não-som?”.
2 7 0 • A MÚSICA DO HOMEM
tempo, textura, timbre, ritmo e dinâmica. Aparentemente a música casual
chegou ao ponto de ter uma pauta de agudos pintada em um aquário,
enquanto o executante tentava soar as notas inspirado pelo peixe que
nadava ao acaso. Já pensei em pulgas ou feijões saltitantes em papel de
música; todavia, julgo essa rejeição da consciência e do passado inteira
mente estranha. Acho que devemos levar em conta hoje, com satisfação,
o que conhecemos ou vivenciamos ontem, senão tudo sempre nos tomará
de surpresa, e não poderemos ter a mais remota idéia do que será, possivel
mente, o futuro. A mente tem uma grande capacidade para proteger-se,
para sobreviver a um acidente ou choque, não se lembrando dos momen
tos de medo ou dor, mas essa é uma questão completamente diferente. O
som moldado é um eco da existência humana, a música é um eco da mente
e do coração, e os dois se combinam por um ato de vontade. A música
casual é, em grande parte, uma abdicação de responsabilidade artística,
embora seja um jogo fascinante e, além do mais, pode ser interessante
descobrir exatamente o quanto dela é realmente “casual” .
SOMOUNÃO-SOM • 27í
simplesmente, sempre repetidas. Escutando-se com mais atenção, torna-se
claro que ligeiras mudanças vão sendo introduzidas por cada executante, à
medida que a música prossegue. Técnicas semelhantes fazem parte da
música da Indonésia e do tocador de riti no Senegal.
Steve Reich estudou percussão africana de tambores em Gana e a
música balinesa de gamelão na Universidade de Washington. Diariamente
ele gravava e voltava a tocar suas aulas, algumas vezes com metade ou um
quarto da velocidade, afim de transcrever os padrões aprendidos, tomando
o pianista canadense, Oscar cada ritmo e cada linha à parte. S m Music f o r Mallet Instruments, Voices
Peterson, representa uma and Organ, escrita em 1973, nos mostra os resultados. A música de pro
tradição de im provisação de cesso não é fácü de ser aceita pelos que foram formados na tradição euro-
jazz que fe z p arte da música
peia, mas, felizmente, a música no mundo não pode jamais ser governada
da A m érica d o N orte durante
mais de cinqüenta anos, e o
por uma única estética.
pad rão alcançado p o r ele tem Uma forma diferente da música eletrônica, da música casual ou da
recebid o m erecidos elogios de música de processo teve origem na França depois da Segunda Guerra Mun
tod os os críticos. dial: chama-se musique concrète. Aí, os esforços foram no sentido de,
SOMOUNÃO-SOM •273
O ruído feito pelo homem destrói as proporções relativas do som
do homem na natureza, tornando-nos impermeáveis aos ciclos naturais; a
conversação morre; o ruído mata o conteúdo natural da mente. A música
pode mudar para acompanhar o ritmo de um estilo de vida mais rápido,
mas felizmente não podemos escutar música mais rápida ou lentamente do
que seu próprio ritmo — porque ela não nos deixará.
A ampHficação eletrônica obviamente chegou para ficar, e não é
necessariamente um mal, porque, na verdade, sem ela não seria tão fácil
ouvir música em casa. Já tive ocasião de tocar violino utilizando um micro
fone, o que pode dar uma ressonância indescritível ao ar livre ou em um
salão cuja acústica não seja boa. A verdadeira proeza não está no impacto
Elvis Presley co m eço u a fa z e r cru do som, mas na capacidade de um único fio fazer com que milhares de
film es com en redo logo pessoas prendam a respiração. De fato, já descobri que se uma pessoa está
depois dos vinte anos. Esta perdendo seu público (um fato que poucos intérpretes admitem), é melhor
cena de Loving You f l 95 7j
tocar mais suavemente ainda. Os músicos p o p , na verdade, tocam suave
m ostra sua fen om en a l
capacidade para seduzir mente uma grande parte do tempo e deixam que os alto-falantes façam
audiências d e jovens. o resto.
2 7 4 • A MÚSICA DO HOMEM
Há quem diga que a arte é supérflua para a vida, e também há quem
Os Beatles sempre mantiveram
defenda o ponto de vista de que a vida não tem significado sem a arte. um fo r te senso d e teatralidade,
Minha opinião é de que vida é arte, e viver é, realmente, a maior e a mais e puderam até dar-se ao luxo
difícil das artes. Talvez os músicos tenham uma ligeira vantagem, porque de "satirizar” sua própria
eles mesmos têm de se escutar e ser escutados. É importante que aquilo imagem ( com o o fizeram nos
que digam seja sábio e reconfortante, forte e brando. Nessa concepção que film es A Hard Day’s Night e
The Yellow Submarinej. A qui
considera viver como sendo uma arte, não há absolutos, mas há padrões; e eles posam na entrada dos
é tentando alcançá-los que encontramos nossas maiores satisfações, nossas escritórios d e sua em presa,
melhores aspirações. A p p le Corporation.
SOMOUNÃO-SOM • 2 7 3
O estabelecimento de um padrão elevado na música de concerto remonta a
centenas de anos atrás, mas foi no campo do jazz que passou a fazer parte
da música popular, especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial. O
jazz é uma forma de música particularmente democrática, em que cada
indivíduo dá sua própria contribuição espontânea, unindo-se aos outros
numa estrutura comum. A invenção é a essência dessa arte, e a virtuosi
dade desenvolvida nas décadas de 1920 e de 1930 leva agora a desenvolvi
mentos surpreendentes. Solistas como John Birks “Dizzy” Gülespie no
trompete e Charlie “Yardbird” Parker no saxofone alto estiveram entre os
que ouviram um som interior e criaram o b eb o p , pai do jazz progressivo;
Ella Fitzgerald foi a estrela vocal desse estilo. Outros, como Thelonius
Monk, Cecil Taylor e Dave Brubeck no piano, Miles Davis no trompete e
Archie Shepp no saxofone, aprenderam indiretamente, dos experimentos
da música de concerto, desde o impressionismo até a atonalidade. Grandes
conjuntos orquestrais como os liderados por Woody Herman e Stan Ken-
ton aumentaram a virtuosidade da execução do grande conjunto.
O constante cruzamento da forma popular com a forma séria da mú
sica remonta à Idade Média. Usualmente, o fluxo se faz das raízes popula
res para o híbrido exótico. No jazz, desde a guerra o fluxo tem sido o
inverso. Um indício importante foi Benny Goodman executando o Quin
o crescim ento da nova teto para Clarinete de Mozart com os membros do Quarteto de Budapeste,
consciência coletiva da
já em 1937, depois contratando Béla Bartók em 1941 para compor-lhe os
geração mais jov em culminou
no Festival de W oodstock de
Contrasts, e Aaron Copland para criar-lhe o C oncerto para Clarinete, em
1969, cujos reflexos se fa z em 1946. Depois da guerra, a fraternidade dos executantes de jazz era muito
sentir até hoje. mais cosmopolita, misturando-se prontamente com músicos clássicos e
SOM OUNÃO-SOM • 2 7 7
principal, provavelmente garantirá sua longevidade. Os Beatles estavam
mais próximos dos adolescentes hippies da Califórnia, oferecendo como
atrativo companheirismo e compreensão, mais do que sexo. Elvis, por
Ron IVoocí e M ick Jagger d os outro lado, aponta diretamente para Mick Jagger e os Rolling Stones,
Rolling Stones ex p lod em exigindo rendição mais do que seduzindo. A distância entre Here, There
em ação durante suas
and Everyw here pelos Beatles e I Can’t G et No Satisfaction pelos Stones
extravagantes apresentações
públicas, levando tod o o
é estonteante.
p ú blico a um fren esi Muitos concordarão em que os Beatles continuam exercendo a
sem elhante. influência mais profunda no fenômeno mundial da música rock. Suas
2 7 8 • A MÚSICA DO HOMEM
canções entraram no repertório geral, um tributo que se deve a poucos
outros, exceto Presley. Assim como o de Presley, o som inicial dos Beatles
era cru; mais tarde, as baladas líricas de Paul McCartney e a energia
propulsora de John Lennon, de Please Please Me, The Yellow Submarine,
a E lean or Rigby e Sgt. P ep p er’s Lonelyhearts Club Band, alteraram a
direção da música popular. Grupos americanos como The Jefferson Air-
plane e Grateful Dead, nos anos sessenta em San Francisco, sob a direção
do promotor-empresário BiU Graham, jamais pensariam em ignorar as
contribuições inventivas dos Beatles para um veículo cada vez mais mutá
vel. Ringo Starr trouxe um elemento de bom humor cínico e autocaçoísta;
George Harrison ligou-se ao sitar, com o qual os concertos do grupo em
benefício de Bangladesh ajudaram a criar uma onda de interesse pelos
indianos entre os jovens ocidentais.
Atualmente, o rock tem quase uma geração de idade, e apesar do
rompimento dos Beatles nos anos setenta, os estilos e canções que criaram
continuam a influenciar o desenvolvimento do rock. Na Inglaterra, seus
seguidores psicodéUcos incluem Pink Floyd, Cream e The Who, e seus
talentos narrativos tiveram continuidade através da Incredible String
Band. Até os RoUing Stones, arquétipos do movimento de contracultura
agressiva nos Estados Unidos, passaram por um período em que sua música
derivou do estilo mais cálido e amoroso dos Beatles. Provavelmente não
será injusto dizer que sem eles não haveria punk rock, glitter-rock ou
astro-rock, assim como não teria havido Altamont ou Woodstock, onde
centenas de milhares de pessoas se reuniram em 1969; e, com certeza, sem
o exemplo dos filmes e dos estüos de vida pessoais dos Beatles, não teria
havido as extravagâncias de concertos de rock com a prodigalidade de
cenários e costumes dos últimos anos.
Parte do atrativo do rock and roll está em seu senso de participação
coletiva. Os jovens, como sempre, necessitam da segurança que lhes dá a
presença de seus semelhantes — em baües, em lojas de discos e, acima de
tudo, em espetáculos públicos, onde a histeria da adulação faz parte de seu
modo de expressão. Há muito tempo isso acontecia no caso das divas da
ópera que tinham suas claques, que, muitas vezes, eram pagas. No século
XIX, jovens aristocratas da moda faziam o que podiam para homenagear
baüarinas como Marie Taglioni e Fanny Elssler. A multidão de fãs em um
concerto de rock é uma proclamação evidente de identidade coletiva.
SOMOUNÃO-SOM * 2 7 9
nados a fingir que somos o que não podemos ser. Se eles fossem capazes
de perdoar seus antepassados, estariam dando o primeiro passo em direção
à honestidade. Pode ser que os jovens saibam o que querem, mas talvez
tenham pouca idéia daquilo de que gostariam, se tivessem a oportunidade
de saber.
A única vez em que vivenciei alguma coisa parecida com a adulação
de uma multidão de cerca de duzentas mil pessoas — companheiros judeus
— foi em Bucareste, logo depois da Segunda Guerra Mundial, onde fui não
só como discípulo do adorado Georges Enesco da Romênia, mas também
como americano e judeu. Nessa ocasião havia em Bucareste cerca de qua
trocentos mil judeus que haviam fugido para a Romênia, provenientes de
todas as partes da Europa. O Rei Michael ainda estava no trono, embora
por trás dos bastidores a Rússia estivesse trabalhando para derrubar a velha
ordem. Havia comida e vinho em abundância, um aperto de carros nas
o violinista country ruas, uma sensação de bem-estar que retornava. Porém, aquilo de que me
franco-canadense, Jea n lembro mais vivamente é da multidão que me esperava na rua, particular
Carignan, vem sen do um astro mente quando caminhava até a sinagoga próxima. Dificilmente conseguía
da ex ecu ção há quarenta anos.
mos abrir caminho, sempre, a qualquer hora do dia ou da noite. O povo
Rivalizando com o que
Nashville produziu de m elhor, estava cheio de afeição e calor, mas a situação estava se tornando real
é uma fo n te de orgulho para mente insustentável. Finalmente, a administração colocou uma barreira
o seu p o v o em Q uebec. policial. Odiei aquilo. Mas, assim como deve acontecer com os astros do
2 8 0 • A MÚSICA DO HOMEM
ro ck , senti que o limite entre admiração e o desejo de contato estava se
dissolvendo; aí, o impulso dos fãs para tirar um pedaço de alguma coisa
pessoal como lembrança pode, de repente, transformar-se em tumulto.
Já tive um encontro direto com os Rolling Stones. Em 1976 recebi
a notícia de que havia à minha disposição cem ingressos para o espe
táculo de abertura dos Stones em EarPs Court, para serem vendidos em
benefício de minha escola. Achei que seria a ocasião certa para ver como
eram os Stones, e desejava agradecer-lhes o gesto. Chegamos a EarPs Court
depois da hora, quando os grupos de aquecimento estavam terminando.
Já me haviam contado muita coisa a respeito da atmosfera que cerca os
Stones, que tipo de gente era. Chegamos em grande estilo, em um enorme
carro preto que fora arranjado para nós, entrando diretamente na garage
atráâ de EarPs Court, onde nos juntamos a outros carros igualmente extra
vagantes. Embora estivéssemos a uma boa distância do salão, eu ouvia algo
que soava para mim como uma premonição do inferno.
Subimos apertadamente as escadas estreitas para a “arena” , enquanto
o som crescia como o de uma trovoada. Eu queria escutar o conteúdo
musical, mas para mim o simples volume tornava isso impossível. Pela
primeira vez senti uma verdadeira dor física ao ouvir música. Das notas,
timbres, desenho musical, eu pouco conseguia distinguir. Parecia-me muito
diferente da música dos Beatles, cuja melodia tinha uma qualidade real, ao
passo que esta era um horror: uma simples parede de som. Diante de um
alarde tão forte, compreendi o quanto a loucura toda é deliberadamente
programada. Ela visa a entorpecer todos os sentidos conscientes, não
deixando outra escolha para a pessoa, senão a de se render e participar.
Não fiz nenhuma das duas coisas — saí depois de dez minutos. Os Rolling
Stones tentam desesperadamente gerar e lilserar emoção, mas como sabem
pouco dos processos e estruturas através dos quais as emoções são trans
formadas em arte, só podem gerar histeria. Sua música parece mais elimi
nação de estrutura, fazendo tudo voltar ao barro cru. É uma forma de
autoglorificação, demonstrando o quanto as pessoas precisam afogar suas
identidades.
Pode ser que eu tenha dificuldade em compreender o rock, mas sou
americano e há um toque de jazz em meu sangue. Nos últimos anos tive
o imenso prazer de tocar com Stéphane GrappeUi, o francês cuja atuação
com o violino já o tinha tomado uma lenda entre os europeus amantes de
jazz. GrappeUi é um artista excelente, já imortalizado por suas gravações
com o guitarrista cigano Django Reinhardt (O Terceiro H om em ) e com o
Quinteto do Hot Club o f France. Quanto aos músicos de jazz que fazem
parte do conjunto de GrappeUi, estão entre os melhores. Juntos tocamos
Gershwin, Cole Porter, Jerome Kern, reunindo talentos complementares
em execuções que proporcionaram grande prazer a todos nós.
Sempre me atraiu a idéia de unir mundos musicais que antes eram
considerados como se estivessem separados por um Muro de Berlim.
Minhas apresentações com GrappeUi me deram tanto prazer como as que
fiz com Ravi Shankar. Ainda mais recentemente, para a série de televisão
The Music o f Man, tive o prazer de me encontrar com o violinista country
SOMOUNÃO-SOM • 2 8 1
franco-canadense, Jean Carignan, em um trabalho composto para ele por
André Gagnon. Nesse dueto, as frases vivaldescas que me cabiam lembra
ram-me a maneira pela qual os construtores de épocas passadas usavam
materiais de antigas construções, como pedaços de coluna, fachadas de
mármore, para a montagem de outras novas. É uma “recuperação” cultu
ral que Bach provavelmente teria sancionado, porque ele se apropriou da
música de Vivaldi e de outros. Algum dia eu gostaria de poder tocar com o
pianista canadense Oscar Peterson, certamente um dos músicos mais notá
veis de qualquer época, cuja virtuosidade inventiva causa inveja a seus
pares; ele é único no domínio puro e compreensão sutü de seu instru
mento. Representa o auge de uma tradição que perdurou na América do
Norte através deste século.
A música em nossa época tem sido ameaçada de diversos lados, dos quais
os mass-media e os experimentos de vanguarda são dois exemplos. Os
pianos e órgãos eletrônicos são comuns, alguns usados por grupos de rock
a níveis que desafiam nossos nervos. Walter Carlos produziu sua gravação
de sucesso Sw itched-on B ach, com o sintetizador Moog — uma verdadeira
orquestra eletrônica, uma seção de cada vez. Talvez a mais horrorosa
dessas criações seja o “adoçador” eletrônico, usado na realização de grava
ções de música p op. Ele simula artificialmente o som de uma dúzia de
vioHnos tocando um obbligato de sacarina em um registro mais agudo
sobre o ritmo condutor.
2 8 2 • A MÚSICA DO HOMEM
extraordinária engenhosidade humana, capaz de transformar quase qual
quer superfície que produza alguma forma de ressonância em instrumen
tos de música, é um processo tão vivo hoje quanto no tempo em que os
homens das cavernas da Sibéria faziam flautas e percussões dos ossos de
mamute. O segredo da fabricação do tambor de metal é uma história
de ensaio e erro coletivo, cujos detalhes se tornaram imprecisos, por reivin
dicações e contra-reivindicações. O processo foi aperfeiçoado até o ponto
de poder ser formalmente ensinado, como na Pan Unlimited School em
Port of Spain, Trinidad.
A banda de tambores de aço passou a ser não apenas um entreteni
mento popular, mas estáinextricavelmente vinculada à tradição do calipso.
De início, a música era feita apenas por e para os pobres — um trovador
das índias Ocidentais poderia cantar para obter seu alimento e abrigo —, e
não era considerada muito respeitável. Essas canções também expressavam
as atitudes do povo para com o mundo colonial, o custo de vida, os even
tos mundiais, ou eram simples rimas sem sentido. Glenn G ould e Yehudi
Durante a Segunda Guerra Mundial as índias Ocidentais foram usadas Menuhin se encontram
sobre o en orm e p ain el de um
como base para reabastecimento de combustível de navios de guerra e, por
m odern o estúdio d e gravação,
isso, os tambores de aço existiam em abundância. Os barris de óleo vazios so b o olh ar vigilante do
teriam enferrujado como sucata inútil se não fosse a curiosidade e a enge p rod u tor da CBC Jo h n
nhosidade humanas. Desde então, essa música espontânea difundiu-se Thom son.
SOMOUNÃO-SOM • 2 8 3
quase tanto quanto o jazz americano. Ouvimos um pouco de sua cadência
contagiante na música reggcte, agora popular; e os jovens ocidentais se
dedicaram ao tambor de aço quase tão avidamente quanto o africano ou o
latino-americano ao tambor bongo.
Mais recentemente, os músicos não hesitaram em se apossar dos
recursos oferecidos pela tecnologia, particularmente das melhorias impres
sionantes na qualidade do som gravado. Quando o audiotape se tornou o
veículo-padrão, depois de sua introdução no final da década de 1940, a
possibilidade de fazer gravações perfeitas através da emenda de fitas tor-
nou-se uma realidade prática. Nas décadas de 1950 e 1960, indubitavel
mente essa aquisição técnica foi usada com excessos, e algumas gravações
feitas dessa maneira começaram a adquirir um sabor sintético. Na década
de 1970, a indústria da gravação tentou deslocar-se, pelo menos no campo
clássico, para as sessões de long take, em que movimentos inteiros de
sinfonias ou sonatas, atos inteiros de óperas, são gravados sem interrupção,
a fim de preservar o fluxo vivo do desempenho.
)
Isso até já aconteceu quando eu gravava as Sonatas nP^ 7 e 10 de Beetho-
ven com minha irmã Hephzibah: de manhã tocamos cada uma delas três
vezes, sem interrupção, como uma execução de concerto, e fizemos o
mesmo à tarde. Depois que terminamos, simplesmente dissemos ao produ
tor que escolhesse a melhor interpretação. Para mim, as gravações feitas
dessa maneira têm algo de imediato e de cativante, que falta nas gravações
feitas pedaço por pedaço. O audiotape é uma maravilhosa rede de segu
rança, mas os acrobatas não são recontratados para a temporada seguinte
se só conseguirem cair e subir novamente. Naturalmente, um engano óbvio
deve ser corrigido, porque ele pode ser tolerado na sala de concertos como
um contratempo passageiro, mas se fosse perpetuado em disco, já não
pareceria acidental.
Entre os artistas que têm lutado com o problema de gravação, nenhum
o fez com resultados mais brilhantes e sugestivos do que o pianista cana
dense Glenn Gould. Agora que se aposentou do palco (sua última apresen
tação pública foi em 1964), ele se dedica a uma carreira singular, nos
veículos de gravação, rádio e televisão. Sua integridade artística e espírito
de busca são de um alto nível, a que cada músico deveria aspirar. Ao
mesmo tempo, freqüentemente Gould tem assumido posições contrárias
às de muitos de seus colegas com respeito a questões artísticas, referentes
tanto a formas de interpretação como a técnicas de gravação. Já tive o
prazer de tocar com Glenn Gould inúmeras vezes no estúdio de gravação,
e conversamos, há não muito tempo, sobre a difícü questão da realidade
versus verossimilhança em gravações.
2 8 4 • A MÚSICA DO HOMEM
e a perfeição, ou o relacionamento das vozes, que são sua maneira inerente
de tocar.
Gould: — O caso é que, se eu tivesse de tocar esta peça na sala de concer
tos, como já fiz muitas vezes — e, de fato, era uma de minhas peças predi
letas — eu não teria Hberdade para escolher a perspectiva que acabamos de
ouvir; ela representa uma visão rigorosa, clínica, como uma radiografia
desse trabalho, precisa e ao mesmo tempo íntima, que me permite dissecá-
-la de um modo especial. No, concerto, eu seria forçado a aceitar uma pers
pectiva transigente — que fosse mais ou menos igualmente aceitável para
o ouvinte que estivesse à boca do palco e para o que estivesse de pé, lá em
cima, na galeria. Não preciso dizer que, por fim, terminamos com uma
perspectiva que só é adequada — se é que o conseguimos — ao ouvinte da
fila L a partir da orquestra.
Menuhin: — Não tendo a sua extensa experiência com o estúdio de grava
ção, eu simplesmente toco e a sala faz o resto. Mas será que toda esta
tecnologia de gravação quadrifônica não pressupõe que o ponto ideal de
escuta, em casa, seja em algum ponto no meio da sala? Logo que você
tenha três pessoas escutando, duas delas estarão no lugar errado.
Gould: — É uma trama absurda você pensar nisso, porque significa impli
citamente que na Alemanha o pai terá o assento ótimo, na América será a
mãe e na França a amante.
Menuhin: — Concordo em que há uma certa música escrita hoje que
requer a metamorfose conseguida por você nesses interessantes painéis,
para que ela possa sobrevivei. Mas a música que me interessa, o violino de
voz única, ainda que eu algumas vezes toque duas cordas ou até três, não é
materialmente afetada pelas escolhas disponíveis nesse painel.
Gould: — Já conversamos sobre isso antes, Yehudi, e desconfio que o que
o impede de fazer pleno uso da tecnologia é o fato de ela obrigar o exe-
cutante a passar um pouco do controle ao ouvinte — situação que, por
sinal, acho estimulante e encantadora, para não dizer que é esteticamente
apropriada e moralmente certa.
Menuhin: — Você tem de admitir que o pianista começa com um instru
mento que até certo ponto está distante dele. O som é produzido através
de conexões mecânicas; por conseguinte, o lado eletrônico é uma manipu
lação mecânica, o que é aceitável, considerando-se o vasto espectro que o
pianista controla. Mas a abordagem do violinista é íntima, pessoal, e esta
maquinaria parece ser quase uma intromissão. Acredito que as duas ati
tudes sejam válidas. Emendar fita, por exemplo, é o que você acha que lhe
permite conseguir perfeição.
Gould: — A cho que toda essa questão de emendar é um disfarce; creio
que tudo se tornou misturado — e impropriamente — com a idéia de
“honestidade” e “integridade”. Naturalmente, isso é antitético ao pro
cesso de concerto, onde você vai da primeira nota à última, mas essa abor
dagem antiquada nada tem a ver com os principais perceptos da tecnologia.
A mim não importa se estou tendo êxito criando um desempenho através
de uma tomada, ou se o obtenho com 262 emendas de fita. A questão
simplesmente não é importante.
SOMOUNÃO-SOM • 2 8 5
Menuhin: — Você está construindo uma estrutura que corresponde à sua
visão, e qualquer coisa que ajude é legítima. Mas veja os Beatles, que
começaram a tocar em público espontaneamente; quando eles se acostu
maram aos apoios que lhes permitiam gravar trühas separadamente e colo-
cá-las em conjunto, a acrescentar notas e suprimi-las, não puderam mais
tocar em público, porque este esperava algo mais, tendo-se acostumado a
essa forma de criação gravada.
Gould: — De certa forma, foi o que me aconteceu. Constatei que estava
competindo com minhas próprias gravações, o que realmente ninguém
pode fazer. Minhas gravações representam meus melhores pensamentos.
Menuhin: — Recuso-me a acreditar nisso. Já ouvi você tocar e sei que se
você quisesse poderia realizar numa sala de concertos um desempenho tão
estupendo quanto em qualquer gravação que você faça no estúdio.
Gould: — Mas tudo não se resume a isso? Se um ator deseja apresentar
um “Ser ou não ser”, ele pode fazê-lo no contexto da peça Ham let, ou
fazê-lo em uma montagem em que lê excertos, como costumava fazer
Sir John Gielgud. De qualquer forma, ele não tem de passar os dois
primeiros atos em sua cabeça para encontrar o tom apropriado para aquele
solilóquio.
Menuhin: — O caso é que ele precisa conhecer a obra como um todo
dentro de si próprio, saber como é que ele se sente, ainda que nunca a
desempenhe. Além disso há um outro ponto: algumas vezes me satisfaço
mais lendo uma partitura do que ouvindo uma execução. Você tem de
ouvi-la em sua mente antes de poder tocá-la.
Gould: — Mas como você explica a noção estranha de que o músico, que
algumas vezes acontece ser um artista de gravação, seja submetido a leis
diferentes do ator teatral que, ocasionalmente, possa aparecer em filmes?
É legítimo que um ator de cinema tenha uma série de momentos de emo
ção que pareçam acontecer numa situação real. O interior pode ser filmado
em um estúdio de Hollywood, se é que tais coisas ainda existem, e o exte
rior na Tierra dei Fuego, e ainda assim a relação entre as cenas é vista
como perfeitamente lógica. E, no entanto, se você explica às pessoas que
isto é precisamente o que você faz em uma gravação que satisfaça ao
que você concebe como sendo a execução mais perfeita de uma obra, elas
pensam que é falsidade, fraude.
Menuhin: — Creio que se trata de uma confusão de dois mundos diferen
tes. Um está acostumado a vivenciar a coisa inteira, que é o resultado final
que o público quer e considera real. Os que usam técnicas para melhorar o
efeito dramático considerariam o desempenho em concerto como fora de
moda, não aproveitando os meios disponíveis e talvez de segunda classe,
porque as pessoas se satisfazem com algo menos do que o perfeito. Diga
mos que um filme sobre um alpinista possa ser feito em partes, podendo
ser usada uma montanha artificial. O ator pode ficar tranqüüo e, provavel
mente, ele não desejaria fazer a escalada. Mas há um outro risco, o perigo
para o alpinista que realmente escala a montanha e não pode fazê-lo aos
poucos e aos pedaços. Ele tem de fazer a coisa toda como um esforço
consecutivo.
2 8 6 • A MÚSICA DO HOMEM
Gould: — Sim, mas parece-me, Yehudi, que a tecnologia diz respeito à
eliminação de risco e perigo. Desconfio que é nesse ponto que realmente
nos separamos, porque eu não acredito que uma pessoa deva cultivar deli
beradamente situações que têm elementos intrínsecos de risco e perigo, se
estes puderem ser eliminados por uma tecnologia superior. Este é o pro
blema da sala de concertos, onde as coisas podem cair aos pedaços, a
trompa pode rachar, e assim por diante.
Menuhin; — A tecnologia terá reduzido realmente o risco e o perigo? Não
há o risco de perder o sentido da vida, o sentido do próprio risco?
Gould: — Obviamente, a tecnologia tem seus próprios perigos, mas creio
que o propósito dela seja o de dar aparência de vida.
Menuhin: — Você se sente satisfeito somente com aparência de vida?
Gould: — Bem, um desempenho gravado não é exatamente vida real.
Menuhin: — Então temos de viver em dois níveis diferentes. Quando
satisfazemos a um anseio natural, não o podemos fazer em partes e peda
ços. Ele tem seu termo intrínseco. Você só pode prolongá-lo ou reduzi-lo
até um certo ponto.
Gould: — Não posso concordar. Se o seu “Ser ou não ser” ideal é algo
que você leva por aí em sua cabeça, você poderia muito bem repeti-lo para
si mesmo, uma Unha de cada vez. Por que, então, você não haveria de
montá-lo como um composto de várias partes, tirando vantagem da com
placência que a tecnologia oferece, o manto de caridade que ela lança
sobre tudo o que você faz?
Menuhin: — Duvido que esse manto de caridade pudesse fazer alguém,
que não você, reahzar no piano uma execução como a sua, apesar de toda
a ajuda que possa dar.
Gould: — Pondo de lado os cumprimentos, por que você resiste à idéia
de que é possível recortar uma nota particular e dizer: “Este é o ânimo, o
teor, a emoção por trás da nota?”. Isso na realidade necessita apenas do
contexto que uma pessoa leva por aí em sua cabeça.
Menuhin: — Por outro lado, uma vez que tenha feito a gravação, tem a
certeza de que, até certo ponto, não está ignorando seu ouvinte? Tem
a certeza de que ele está escutando a gravação com a mesma devoção e
concentração que teria em uma sala de concertos? Ele poderia ser inter
rompido pelo barulho do toucinho fritando. Na sala de concertos há algo
de premente; além disso, certos tipos de música são experiências de comu
nhão, como, por exemplo, a Paixão Segundo São Mateus. A intenção era
de que a congregação inteira sentisse e reagisse como uma só.
Gould: — “Quando dois ou três se reúnem”, suponho. Mas parece-me que
não há maior comunhão de espírito do que entre o artista e o ouvinte em
casa, comungando com a música. Chego até a dizer que a coisa mais
importante que a tecnologia faz é liberar o ouvinte para participar por
vias que, anteriormente, eram governadas pelo executante. Isso abre
opções que anteriormente ele não tinha.
Menuhin: — Isso não invalida a sala de concertos, cuja experiência é
essencial, e permanece como o padrão em relação ao qual tudo o mais
é julgado.
SOMOUNÃO-SOM • 287
Gould: — Insensatez, Yehudi. Foi o padrão, até que alguma outra coisa
chegou para substituí-lo, e é exatamente isso que a gravação fez; e, com
certeza, a gravação agora é o padrão em relação ao qual o concerto deve
ser julgado.
Menuhin: — Se ninguém nunca mais escalar uma montanha, e tivermos de
nos satisfazer com fümes sobre o assunto, como ficaremos?
Gould: — Ficaremos sem pessoas que possam escalar montanhas, o que
penso que seja uma coisa muito boa. Isso salvará numerosas vidas por ano.
Menuhin: — Não, você não deve dizer isso. Em vez disso, haverá mortes
terríveis nas estradas.
Gould: — Se eu dispusesse de tecnologia para impedir isso também, eu
o faria. E estou certo de que essa tecnologia surgirá. Mas o ponto é que o
ouvinte se torna algo mais do que um consumidor; torna-se um partici
pante. Por exemplo, venho fazendo algumas gravações de solo de piano,
quando o repertório é apropriado, não com duas ou quatro trilhas, mas
com oito. A idéia é encontrar um modo de fundir muitas perspectivas,
todas elas passadas simultaneamente pelo microfone, mas subseqüente
mente diferenciadas, e sujeitas a técnicas quase cinematográficas. Por
exemplo, uma perspectiva poderia envolver uma tomada tirada de dentro
do piano, em estilo de jazz, com os microfones virtualmente sobre as
cordas, enquanto um outro poderia relacionar-se a uma tomada envol
vendo o ambiente detrás do salão. A vantagem é que você pode combinar
essas perspectivas em uma espécie de coreografia acústica e fazê-lo, além
do mais, após o fato, quando você já colocou a maior distância possível
entre você e a sessão de gravação. Depois, você prepara um plano-piloto
— igual a uma Usta de filmagens de um diretor de cinema — e, na música
certa — Scriabin, por exemplo — isso funciona extremamente bem. Estou
certo de que Scriabin, com suas teorias místicas a respeito de uma união
perfumada das artes, a respeito das experiências transcendentes de pico de
montanha e tudo o mais, não desaprovaria.
Menuhin: — É verdade que ao piano faltam algumas coisas que um estú
dio pode lhe emprestar. O piano tem uma qualidade em toda a sua ampli
tude, ao passo que o cravo pode dar pelo menos três ou quatro combina
ções. O violino tem quatro cordas. Bartók, em sua M elodya, começa na
corda de Sol, depois a frase seguinte é em Ré, depois em Lá, depois em
Mi. Ele eleva e depois volta para baixo. Cada uma dessas cordas tem uma
qualidade totalmente diferente. Aumentar ainda mais o contraste entre
essas cordas seria como dourar um lírio. Mas com o piano, admito que
você necessite de técnicas que dêem a cada seção de uma obra uma pers
A i canções d e B o b Dylan
explodiram n os anos sessenta pectiva diferente.
e o crítico R alph Gleason Gould: — Eu não estava pensando principalmente nisso, embora o que
cham ou-o d e “uma das você diz sobre a relação entre os dois instrumentos certamente seja ver
grandes vozes d e advertência dade. Eu estava pensando, no entanto, que sempre supomos que um piano
de nossa é p o c a ”. Ju n tam en te se coloca, em termos de gravação, a meio-caminho entre o alto-falante
com a cantora J o a n Baez, ele
esquerdo e o direito. Muitas vezes já me ocorreu que ninguém, inclusive os
representa o artista que se
com p rom eteu a procurar que trabalham em “quadrifonia”, jamais pensou muito sobre a questão de
transform ar sua sociedade. perspectiva. Admito que talvez não fosse apropriado usar técnicas de pers-
'D aí por diante, Glenn Gould passou a executar dois prelúdios de Scriabin,
op. 57, L e Désir e Caresse D ansée, daquele modo impecável que lhe é O celista russo Mstislav
único, nota perfeita e soberbamente evocativa. Se eu tiver que escolher R ostropovich tom ou-se um
entre um bonito desempenho com um engano tolerável, e um que seja sím b o lo d o ex erc ício de
perfeito mas não tenha aquela vitalidade elétrica, escolherei sempre o pri consciência d o artista, e f o i
expulso p elo s sovietes p o r seu
meiro. Mas meu encontro com Glenn Gould me fez perceber mais do que
ap oio ao escritor A lexander
nunca os aspectos da técnica do microfone que se desenvolveram no último Solzhenitsyn. Aqui, f o i
século, e a diferença entre gravação e desempenho real. A solução simples, representado p o r E dm on d
e ainda a melhor, era pendurar um microfone no meio da sala e, se a acús Kapp, em 1965.
SOMOUNÃO-SOM • 2 8 9
tica fosse boa, os resultados algumas vezes poderiam ser supreendentes,
como ainda podemos ouvir nos excertos do inesquecível Boris Godunov
cantados por Fyodor Chaliapin, gravados durante uma apresentação ao
vivo no Covent Garden em Londres, em 1928. E, no entanto, essa mesma
gravação demonstra uma de minhas crenças, isto é, que o desempenho ao
vivo jamais pode desaparecer. O público vem para ver e ouvir a execução
que se realiza naquele momento, incandescente e galvanizante. Lembro-me
bem do Boris de Chaliapin. O que nenhuma gravação pode transmitir, nem
mesmo a gravação maravilhosa de Chaliapin, é o cheiro de enxofre. Sim
plesmente não há o mesmo tipo de envolvimento com o desem penho da
música, embora a experiência m.usical possa, não obstante, ter grande
intensidade.
2 9 0 • A MÚSICA DO HOMEM
Wind”, escrito e cantado por Bob Dylan, um intérprete cuja carreira tinha
começado nos cafés de Greenwich Village:
Quantas estradas um homem tem de trilhar
Antes que possamos chamá-lo de homem?
Quantos mares a pomba branca tem de cruzar
Antes que possa ir descansar na areia?
. . . A resposta está flutuando no vento.
SOMOUNÃO-SOM • 2 9 1
A carreira de Martha Graham
com o bailarina e coreógrafa
Já disse anteriormente que, certa vez, ouvi um oratório para Lenine
abrange mais de m eio século,
a partir de 193 0, quando ela em Moscou, celebrando-o como um santo. No oratório o narrador descre
dançou na p ro d u çã o de via fatos da vida de Lenine, e um, particularmente, chamou minha atenção.
L eon id Massine A Sagração O barítono cantava uma ocasião em que Lenine entrou em uma fábrica e
da Primavera. F elizm en te ela uma operária ficou tão empolgada que desmaiou; e, no entanto, era tão
resolveu recriar m uitos de ardente sua admiração, que ela se recuperou em tempo para dar-lhe flores
seus m aiores trabalhos para
quando ele se retirou. Tudo era perfeitamente sério, com coros ao estilo
os artistas mais jovens, que
transmitirão sua tradição a de Bach, a mesma aura de reverência por um símbolo, como se fosse uma
uma outra geração. apresentação bíbHca. É verdade que Bach usou movimentos de cantata e
2 9 2 • A MÚSICA DO HOMEM
oratório, com outras palavras, como música de ocasião para casamentos na
corte ou como odes a príncipes que retornavam, e Handel transferiu todas
as suas técnicas de composição operística para a criação de seus oratórios
dramáticos, celebrando personagens e eventos do Velho Testamento, ao
invés de governantes romanos ou deuses míticos da Antiga Grécia. Mas
esses compositores tributavam homenagem a um passado distante ou a
uma presença viva. A mistura dos dois no oratório para Lenine impressio
nou-me pela sua ingenuidade tocante, embora a própria música fosse
construída profissionalmente, e não fosse tão má assim.
Dentro do mesmo espírito, os comunistas chineses vêm usando a Yehudi Menuhin e Benjamin
música para vender uma visão heróica da missão de seu povo. Muito do Britten caminham ju ntos na
Alemanha, em 1945, na
“ moderno” teatro e ballet da China é fraco e pretensioso, despido de origi ép o ca de seus concertos
nalidade. É o que minha esposa Diana gosta de chamar “Spartacus de conjuntos para os prisioneiros
porão”, referindo-se ao heroísmo daquele lamentável trabalho criado pelo liberados dos cam pos de
Ballet Bolshoi, que consegue ultrapassar os épicos de Cecü B. de Müle. No concentração.
SOMOUNÃO-SOM • 293
entanto, por trás disso tudo jaz uma idéia que tem um valor legítimo, ou
seja, que ninguém deve considerar-se superior ao gosto e à mentalidade do
povo. Com o tempo, novamente os chineses produzirão a grande arte, mas
não enquanto ela for montada por coletivos e comitês, ou ditada por polí
tica infalível, para glorificar a chegada da energia elétrica ou dar graças
pela conclusão de um usina hidrelétrica. É a isso que se deve o espalhafato
de grande parte da música ideológica. É feita por políticos, que reprodu
zem aquilo que imaginam que o povo apreciará, da mesma forma pela qual
as redes de TV do Ocidente produzem comédias de circunstância e dramas
policiais.
2 9 4 • A MÚSICA DO HOMEM
cia. É um dos muitos compositores que se inspiraram nos estilos oriental,
indonésio e japonês, mas o trabalho de toda a sua vida foi dedicado à
música que deu pouca ou nenhuma atenção a tendências ou modas passa
geiras. A voz que ouvimos em Peter Grimes, a ópera com que pela primeira
vez ele obteve aclamação mundial, pode ser mais jovial e flamejante do
que aquela que rumina em sua última ópera, M orte em Veneza, mas, indis
cutivelmente, é a mesma voz, apaixonada, consoladora, ávida.
Tive o prazer memorável de participar de muitos concertos com este
músico devotado e homem sensível. Benjamin Britten é fruto da Inglaterra
e da história e tradição da música e do povo desse país, assim como Bee-
thoven é fruto da Alemanha e Bartók da Hungria. E um compositor para
quem as palavras e as idéias são da máxima importância, e sua voz é a voz
de seu povo. Encontrei-o pela primeira vez na véspera de uma tou m ée que
eu estava fazendo pelos antigos campos de concentração da Alemanha,
incluindo Belsen. O cadinho da Segunda Guerra Mundial fez uma contri
buição indelével para os artistas, colocando-os em contato com experiên
cias que os afetaram profundamente (como eles afetaram todas as nossas
vidas). O cataclismo traumatizante da guerra teve um profundo impacto
sobre mim, pois, arrancado da rotina de um artista de concertos, entreguei-
-me a uma vida em que o inesperado e o improvisado se tornaram a regra,
fazendo arder em mim um novo entusiasmo e estímulo.
Ben estava tão ansioso para ir para a Alemanha comigo que, natural
mente, concordei, pois era uma oportunidade para eu fazer música com
uma das mais brilhantes e sensíveis mentes musicais jamais surgidas nas
fileiras da humanidade. Nunca ensaiamos, mas levamos uma pilha de músi
cas — sonatas, concertos e pequenas peças. Nunca ninguém no mundo
acompanhou voz ou violino como Ben, e com ele eu sentia o poder da
música quando ela destrancava os corações daqueles a quem os nazistas
tinham tentado reduzir a níveis animalescos. Pela primeira vez em muitos
anos essa gente se sentia humana, e no decorrer dos anos recebi as mais
extraordinárias cartas daqueles que nos escutaram naquela época.
Em Benjamin Britten vejo sobreviver o mesmo espírito que moldou
Purcell, os madrigalistas elizabetanos, remontando a Dunstable e “Sumer
Is Icum en In ”. Trata-se de um profundo amor pela voz humana, o respirar
natural da linha musical, o sentido de organização do ritmo. Durante uma
carreira ativa de compositor, que durou quarenta anos, sua produção foi
prodigiosa, em uma época em que a quantidade é suspeita. Jamais vacilou
em sua convicção de que o propósito de sua arte era a comunicação do
sentimento humano. Faz parte do ressurgimento da música inglesa a partir
de Sir Edward Elgar, um fenômeno do século XX do qual todos os britâ
nicos se orgulham, o que se justifica plenamente quando se contemplam as
obras de Vaughan Williams, Walton, Tipett e, mais recentemente, Edwin
Roxburgh, Peter Maxwell Davis e Lennox Berkeley, para mencionar
apenas alguns dos nomes mais notáveis.
Ao iniciar este livro, fiz referência ao trabalho do Dr. Manfred Clynes,
cujo livro Sentics li com profundo prazer, pelas inúmeras novas questões
que levanta. Ele e Murray Schafer lamentam a brutalização do ouvido e
SOMOUNÃO-SOM • 2 9 5
dizem, como digo também eu, que precisamos chegar a um acordo com
nossos sentimentos, cada um dos quais, segundo o Dr. Clynes, tem uma
forma mensurável; memorizamos não só idéias, mas sensações também, e
estas incluem nossas emoções. Ele nos ajuda a restaurar nossas faculdades
intuitivas e indica a maneira pela qual funcionam como resposta aos traba
lhos dos compositores de que gostamos. Trabalhou elaborando gráficos de
formas “essênticas” puras para cada emoção e cada compositor, e seu
trabalho prova que os grandes compositores conheciam instintivamente os
ciclos “sênticos”, reorganizando o que era essencial para o ser humano e
dando-lhe forma. Estou respondendo às conclusões do Dr. Clynes, e estou
ansioso por saber mais a respeito daquilo que ele promete revelar sobre as
emoções que reprimimos.
Nos anos setenta houve, por parte dos jovens, um enorme aumento da
demanda pela música de todos os períodos e lugares. Muitas vezes, a cul
tura viva da época tem crescido a partir do amador, uma palavra a ser
usada em seu verdadeiro sentido, significando aquele que ama. Pela ampli
dão de seus interesses, os jovens têm a oportunidade de desenvolver um
sentido de valores menos comercial e uma maior consciência da economia
da vida em um planeta onde a coexistência com as criaturas na terra, nos
mares e no ar é essencial.
Uma manchete recente do New York Times dizia: “O Sentimento
Ensaia um Retorno ao Mundo P o p ”, e intérpretes como Nick Lowe e David
Edmunds introduziram um vivo senso de humor e paródia em seu som
direto e sem complicações. Do outro lado da cerca musical, o compositor
americano George Rochberg, nascido em 1926, que já foi um seguidor
devotado da escola dodecafònica pós-Schõnberg, recentemente escreveu
um concerto de violino para Isaac Stern, perfeitamente adequado a um
virtuoso, uma resposta contemporânea aos grandes modelos do século XIX.
O Terceiro Quarteto de Cordas, do mesmo compositor, uma longa obra
eclética, recorre tão livremente a Mahler como a Stravinsky, ao mesmo
tempo que mantém um tom pessoal. Rochberg disse que esse trabalho
marcou seu ponto de retorno: “Em 1972 eu tinha chegado à possibüidade
não só de uma reaproximação real e pessoal com o passado (o que se tor
nara de importância fundamental), mas também da combinação de dife
rentes gestos e linguagens dentro do arcabouço de uma única obra”. Na
Finlândia, Aulis Sallinen, nascido em 1933, havia escrito uma Terceira
Sinfonia distintiva, que demonstra que a geração mais jovem de composi
tores naquele país não precisa mais deixar-se intimidar pelo espectro de
Sibelius. A experimentação musical das décadas de 1950 e 1960 parece
estar cedendo lugar a um retorno à música do coração.
Agora que há uma variedade musical tão grande à disposição, o reper
tório clássico europeu pode parecer uma mansão decadente, que já foi
bonita, mas agora está coberta de musgo e cheia de teias de aranha. E, no
entanto, os músicos continuam a interpretar essa herança suprema com
compreensão e paixão. Pode ser que tenhamos abusado da música do
homem, comercializando-a, forçando-a a moldes estranhos; mas ela está
2 9 6 • A MÚSICA DO HOMEM
sempre presente, esperando nossa resposta, lembrando-nos de que a sobre
vivência da civilização exige comedimento.
Existem muitos centros universitários na América do Norte, Ingla
terra e no continente europeu em que inúmeros estudantes estão apren
dendo não só a dominar a música de nosso passado mais distante, como
também, melhor ainda, estão voltando ao costume de fazerem, eles mes
mos, os instrumentos. O ressurgimento da primitiva flauta doce tornou-a
um amigo famüiar, especialmente na Inglaterra. Mas a esse instrumento
simples somou-se, agora, uma série de instrumentos de sons exóticos,
como a rackett, a buzina e o ferMmm/zom, juntamente com o alaúde, ban- O coral fo r m a d o p e lo
dora e viola, que atualmente são ouvidos na grande profusão de festivais Tenente Ju lien Jo u g a em
de música, no verão. Os grupos competem entre si tão avidamente quanto Dacar, Senegal,
quaisquer membros da Sociedade para a Preservação e Encorajamento do freqü en tem en te tem
excursionado p e lo p aís, e já
Quarteto Cantante da Barbearia na América. Os grupos vocais interpretam
se apresentou em Paris e em
Ockeghem, Binchois, Victoria e John Dowland, cujas canções doce-amar- ou tros centros europeus,
gas conservam seu extraordinário atrativo. Os membros do Toronto Con- surgindo tam bém em
sort mantêm um programa de verão onde os estudantes podem entrar em gravações.
S O M O U N Ã aS O M •297
contato direto com as raízes de sua música, e muitos grupos de música
primitiva estão em atividade em Londres, encontrando algum meio de
sobreviver durante o ano todo.
SOMOUNÃO-SOM • 2 9 9
exaltado que imediatamente chamou alguns amigos para demonstrar o
que havia conseguido. Disso surgiu o grupo que Hykes chama de The
Harmonics Choir, que ele treinou como havia treinado a si mesmo. O som
místico de seus harmônicos mesclados tem um encanto único, que é
exclusivo deles.
)
Através de todo este livro ressaltei a relação paralela e recíproca que existe
entre a música folclórica e a musique savante, entre a música improvisada
ou tradicional, de um lado e, do outro, a música composta, estruturada.
Na dissolução das linhas de demarcação nesta era do jato, da televisão e
dos satélites de exploração do espaço, vivemos uma mistura do Oriente
e do Ocidente, do clássico e do popular. A carga de tanto conhecimento
que nos foi imposto pela alfabetização, pela educação e pelas comuni
cações modernas, forçou-nos a nos tornarmos curadores do repositório
das civüizações do mundo, como um vigia noturno cansado que guarda
um museu repleto de tesouros mortos. É imprescindível estabelecermos
uma ligação com o momento vivo que brota do próprio passado, encon
trando uma expressão que seja uma fusão do passado, do presente e ante
cipação do futuro. A música é parte da criação, assim como o é o oceano,
intangível, mas ainda assim tangível, visível, audível. Assim como o mar,
flui dentro de nós, falando por nossa alma.
Em ninguém este cruzamento é mais pronunciado do que em Béla
Bartók, o último dos grandes compositores românticos. Profundamente
arraigado e vinculado à sua terra natal, a Hungria, amplamente versado na
música folclórica quase que de cada uma das vüas, com suas canções tradi
cionais que remontam a centenas de anos, bem como nas tradições folcló
ricas, ritmos e melodias de todos os países balcânicos, da Turquia e da
costa norte da África, ele foi o mais disciplinado e o mais erudito dos
homens e músicos. Intelectual e estruturalmente suas composições se
igualam às maiores da história da música e, ao mesmo tempo, jamais
perdem o imediatismo, a pungência, a mensagem, toda aquela gama de
emoções humanas, que são a herança das gerações atuais. Orgulho, dor,
prazer, serenidade, meditação, humor — encontramos tudo isso intensa
mente expresso na música de Bartók, desde a obra mais curta e concisa,
de alguns compassos, até as obras mais extensas de música sinfônica e
de câmara.
O coração e a mente de Bartók pertencem a toda a humanidade; ao
final de seu exílio auto-imposto nos Estados Unidos, incapaz de suportar
o regime totalitário fascista que se instalara na Hungria, ele estava prestes
E m um canto rem oto da a iniciar um estudo dos índios do Noroeste dos Estados Unidos, o que te
E uropa Central, em 1908, ria enriquecido incrivelmente a música norte-americana. Isso também teria
B éla B artók escuta uma dado aos índios um sentido vivo de sua própria cultura, cujos elementos
a ld eã cantar música fo lcló rica mais valiosos teriam renovado sua auto-estima e o seu senso de dignidade
em seu gravador Edison de
humana.
cilindro. E le passou o resto
de sua vida transcrevendo Em seu C oncerto para Orquestra, composto durante seus últimos
essas gravações anos em Nova Iorque, Bartók incluiu, no último movimento, uma animada
cuidadosam ente preservadas. melodia de jazz. Era um homem curioso e analisava profundamente, sem
3 0 0 • A MÚSICA DO HOMEM
preconceitos, cada aspecto da expressão humana. Ainda mais do que
Delius, na Flórida, trouxe para os Estados Unidos uma contribuição
que marcou profundamente os músicos americanos, mas que atingiu
apenas uma fração do que ele poderia ter realizado se tivesse vivido mais
tempo. Ao mesmo tempo que compunha, trabalhava na Universidade de
Columbia, na tarefa gigantesca de classificar todo o seu material folcló
rico, obra que agora foi publicada. Seu espírito era adequado tanto ao
trabalho penoso de compüar seu volumoso catálogo quanto à criação ardo
rosa: era tão erudito quanto vigoroso.
Foi um grande privilégio eu conhecer Béla Bartók durante os três
últimos anos de sua vida. Com efeito, ele tencionava passar o último verão
comigo na Califórnia, em 1945; mas pouco antes de vir teve de abandonar
a idéia, porque estava muito doente, com leucemia, e não teve permissão
para viajar. O conhecimento que tive de Bartók me deixou a sensação de
que através de sua música e sem quaisquer palavras, seu coração me foi
revelado. As primeiras palavras que trocamos foram depois de meu acom
O jov em B éla B artók, no
panhante e eu termos tocado para ele o primeiro movimento de sua Sonata
in ício d e sua d ifícil e
Número Um para Piano e Violino. Eu queria que ele me ouvisse antes que extraordinária carreira,
eu tocasse em Nova Iorque e tinha combinado esse encontro. Bartók, fo to g ra fa d o p o r volta de
homem de poucas palavras, já estava sentado com a partitura na mão, 1905.
SOMOUNÃO-SOM •301
diante do piano, e com um lápis suspenso no ar, como um terrível mestre-
-escola esperando para captar um erro.
Naquelas circunstâncias, não podia haver troca de palavras. Embora
pareça imodesto, gosto de me lembrar de suas palavras quando termina
mos o primeiro movimento: “Eu não pensava que as obras pudessem ser
tocadas assim até muito depois da morte do compositor”. Os composi
tores não revelam seu verdadeiro coração para os vivos. É só através de sua
música que se tornam conhecidos e compreendidos, e se sua música é uma
linguagem pessoal, leva muito tempo para que os intérpretes penetrem o
verdadeiro núcleo de seu significado.
Ousei pedir a Bartók que escrevesse para mim uma sonata para violino
solo. Eu poderia ter pedido um grande concerto ou uma sonata com piano,
mas queria dar-lhe o mínimo de trabalho. Era a única maneira de ajudá-lo
financeiramente; ele era muito orgulhoso para ser auxiliado, a não ser que
desse alguma coisa de si. Sem dúvida, essa sonata é a maior obra para o
violino solo, desde Bach.
A Sonata para Violino Solo é difícil, e embora Bartók estivesse pre
sente quando a executei pela primeira vez no Camegie Hall, no final de
1944, lamento não ter sido capaz de lhe permitir que a ouvisse em uma
interpretação verdadeiramente acabada, porque no decorrer dos anos essa
música passou a falar para mim, e acredito, para todos nós, em termos
mais profundamente espirituais. O primeiro movimento está marcado
tem po di ciaccona, e nele Bartók retoma a um dos monumentais trabalhos
de Bach para violino solo, traduzindo-o em idioma húngaro, livre, mas
disciplinado. Segue-se a fuga, talvez a música mais agressiva e brutal que eu
jamais iria tocar. Vem depois a serena m elodya, e no final há o presto —
rápido, como uma dança, ardüoso. Fiz algumas sugestões a Bartók sobre
o fraseado, o dedilhado, as arcadas e outros problemas técnicos, muitas
das quais ele aceitou. Mas quando, em um certo ponto, perguntei-lhe se
alteraria um acorde especialmente desajeitado para se tocar, ele respondeu:
“Não!”.
Quando jovem, Bartók viajou por toda a Hungria desde os primeiros anos
do século até a década de 1920. Na época em que iniciou sua busca, a
maioria desses territórios era governada pelo Império Austro-Húngaro.
Bartók levava consigo um simples gravador Edison de cilindro, com o qual
registrava canções folclóricas sérvias, croatas, eslovênias e húngaras, ano
tando-as depois penosamente, com sua escrita fina como uma teia. O que
Bartók aprendeu nessas excursões ele colocou em sua música, que sempre
se manteve arraigada na vida do povo. É o espírito presente em todos os
trabalhos que escreveu nos Estados Unidos, e mais do que em nenhum no
Terceiro C oncerto para Piano, escrito nos seus últimos meses de vida, para
a esposa, a pianista Ditta Pasztory, e terminado menos de dois dias antes
de sua morte. Foi um gesto só comparável ao de Miguel Ângelo, que, aos
noventa anos, remodelava sua última Pietâ, quase concluída, forçado a
deixar o cinzel apenas algumas semanas antes de abandonar a própria vida.
A orquestração dos dezessete compassos finais do concerto foi terminada
3 0 2 • A MÚSICA DO HOMEM
pelo amigo e discípulo dedicado, Tibor Serly, um músico de grande habili
dade e intuição, que executou uma tarefa ainda maior salvando do esque
cimento os esboços de um C oncerto para Viola que Bartók havia abando
nado em favor do último presente à sua esposa e companheira. Depois de
terminado por Tibor Serly, o Concerto para Viola entrou no repertório
de concertos como uma obra-prima totalmente madura.
SOMOUNÃO-SOM • 3 0 3
índice das ilustrações
Dürer: Casal Cam ponês D ançando (Me M úsico de G âm bia (Arthur Tress, Photo
tropolitan Museum o f Art, Nova Ior Researchers, Nova Iorque), 13.
que, Fundo Fletcher, 1919), i. M úsicos n o N epal (John Launois, Black
Cânone em F orm a de um a R osa (Denis Star, Nova Iorque), 15.
Stevens, Accademia Monteverdiana, Onda d o Mar (Globe Photos, Nova Ior
Santa Barbara, Calif.), ii. que), 16.
Yehudi Menuhin em D esem pen ho (Fo Murray Schafer e Yehudi Menuhin (Fo
tografia de Kenneth Gregg, CBC), iv. tografias de Fred Phipps, CBC), 22.
Sino de B ronze Chinês (Fotografia de
Kenneth Gregg, CBC), 30.
Músicos e Dançarinos Birm aneses (Me
CAPITULO UM tropolitan Museum o f Art, The Cros-
Dois Músicos G im i (Photo Researchers, by Brown CoUection, 1889), 31.
Nova Iorque), xvi. Lam as S ikkim T ocan do Palheta Sacra
Músicos E gípcios (Frederico Borromeo/ (Alice Kandell, Photo Researchers,
/SCALA/EPA, Nova Iorque), 1. Nova Iorque), 33.
M enino Silvtcola (CyrU Toker, FPG, Lanterna Ja p o n esa (Museu Nacional de
Nova Iorque), 4. Nara, Nara, Japão), 34.
ín d io A m ahuaca com A rco d e B oca Dançarinos Populares no Kuw ait (Tor
(Comell Capa, Magnum Photos, Nova Engeland, Black Star, Nova Iorque),
Iorque), 5. 34.
Pintura d e Caverna de Silvtcola A frican o C ortejo R eal na Nigéria (Bruno Barbey,
(The Bettman Archive, Nova Iorque), Magnum Photos, Nova Iorque), 35.
6. Quadro E g íp cio (Metropolitan Museum
Cantor da Á frica O cidental (Arthur o f Art, Nova Iorque), 36.
Tress, Magnum Photos, Nova Iorque), Harpista Sum ério (Fotografia de John
7. S eale,C B C ),Í7 .
Ossos de M astodonte Siberiano (Corte T ocador de A laúde Chinês (Metropoli
sia do Ministério da Cultura da tan Museum o f Art, Nova Iorque,
URSS), 9. Fundo Rogers, 1947), 38.
E ntalhe de M adeira de T am bor Falante Harpista Cicládico (Metropolitan Mu
(Museu de Artes Populares, Museu seum o f Art, Nova Iorque, Fundo
Estadual Prussiano, Berlim Ociden Rogers, 1947),
tal), 9. Jo v e m Grego T ocan do Lira (Museum o f
Crianças S ikkim T ocan do Trom pas Fine Arts, Boston, Fundo Residual
(Alice Kandell, Photo Researchers, H. L. Pierce), 40.
Nova Iorque), 12. M oça Grega T ocan do A ulo (EPA, Nova
T ocador de Narsing n o N epal (Fannell Iorque), 41.
Grehan, Photo Researchers, Nova Primitivo Órgão Hidráulico Grego (Fo
Iorque), 12. tografia de Kenneth Gregg, CBC), 41.
T ocad or de Trom pa A lpina (Fotografia M íisicos R om an os (Landesmuseum,
de Kenneth Gregg, CBC), 13. Trier, Alemanha Ocidental), 42.
Monge n o M onte Everest {Jam es Lester, T em plo de A p oio, D elfos (Fotografia
Photo Researchers, Nova Iorque), 13. de John Seale, CBC),
ik D IC E DAS ILUSTRAÇÕ ES • 3 0 7
Paganini em 1833 (Coleção de Yehudi Yehudi Menuhin à Pianola (Fotografia
Menuhin), 162. de Kenneth Gregg, CBC), 197.
Caricaturas d e Paganini (Coleção de O T ráfico d e Escravos no Brasil (Cole
Yehudi Menuhin), 163. ção Mansell, Londres), 198.
O B aile Hunt (Culver Pictures, Nova Ior Um M úsico A pache (Arquivos Antropo
que), 165. lógicos Nacionais, Smithsonian Insti-
O Salão Frascati (Culver Pictures, Nova tution, Washington, DC), 199.
Iorque), 166. Cerimônia P u eblo d e M oagem d o Milho
O Palácio de Cristal (Culver Pictures, (Museu de Arte Moderna, Nova Ior
Nova Iorque), 168. que), 200.
A Ópera de Dresden (Coleção particu Reunião Cam pal (Frederic Lewis, Nova
lar), 169. Iorque), 201.
A rnold: Música em Casa d e Bettina von Um M enestrel (American Antiquarian
A m im (Freies Deutsches Hochstift, Society, Worcester, Mass.), 202.
Frankfurt), 1 70. Capa d e uma Canção de Stephen F oster
Degas: A Orquestra (SCALA/EPA, Nova (Biblioteca Púbüca de Nova Iorque),
lorque/Florença), 174, 203.
M ineração de Carvão em H etton (Hul- O F isk Ju b ile e Singers (Culver Pictures,
ton Picture Library, Londres), 1 75. Nova Iorque), 205.
Salão de E x p osição d o Frabricante de Centro de R ecep çã o da Ellis Island
Pianos Blüthner (Biblioteca da Uni (Fotografia de Michael Sheldon),
versidade, Kiel, Alemanha Ocidental), 206.
176. Imigrantes para Q uebec (Arquivos Públi
Frederic Chopin (Culver Pictures, Nova cos do Canadá, Ottawa), 207.
Iorque), 1 77. H. M. S. Pinafore (Biblioteca Pierpont
P aderew ski (Biblioteca Pública de Nova Morgan, Nova Iorque), 208.
Iorque), 1 78. Claude D ebussy (G. D. Hackett, ASMP),
O Trio Neruda (Coleção Haags Gemeen- 209.
temuseum, Haia, Holanda), 179. Um Parque em Paris (Culver Pictures,
A M arselhesa (EPA, Nova Iorque), 180. Nova Iorque), 210.
Músicos S u íços d e A ppenzell (Fotogra M anet: B ois de Boulogne (Galeria Nacio
fia de Kenneth Gregg, CBC), 182. nal, Londres), 211.
T um er: The Fighting Tem eraire (Galeria Castelo Newschwanstein (Hermann Ei-
Nacional, Londres), 183. senbeiss, Photo Researchers, Nova
G aribaldi E ntrando em N ápoles (Culver Iorque), 213.
Pictures, Nova Iorque), 184. Um P úblico de C oncerto (Biblioteca
O Kaiser Proclam ando o Im p ério A le Estadual e Universitária, Gõttingen,
m ão (Culver Pictures, Nova Iorque), Alemanha Ocidental), 214.
186. Missionários n o C eilão (Culver Pictures,
O H erói S iegfried (Coleção particular), Nova Iorque), 215.
188. The O phelia Rag (Biblioteca Pública de
A E x posição d e Paris, 1889 (EPA, Nova Nova Iorque), 216.
Io r q u e ), 190. Uma Corrida de A u tom óvel e Avião
O Vauxhall em N ápoles (Biblioteca Es (Smithsonian Institution, Washing
tadual Bávara, Munique), 191. ton, DC), 21 7.
Ópera de São Petersburgo (Culver Pic Um Cinem a M udo (Culver Pictures, No
tures, Nova Iorque), 192. va Iorque), 218.
Karen Kain em O Lago d o Cisne (Foto Uma Primitiva F ábrica d e F on óg rafos
grafia de Harold Whyte, CBC), 193. (The Bettman Archive, Nova Iorque),
219.
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3 1 4 • A MÚSICA DO HOMEM
índice remissivo
Afinação de lajes de pedra, 9 BaU, música de, 254-256 Bruckner, Anton, 189
África: Barra de compasso, importância no sé 10
B u llr o a r e r ,
atitude para com os objetos, 24 culo X V llI, 137-138
g r i o t , 33, 104-105 Barroco, 80, 83, 93, 123-124 Cabezón, Antonio de:
música, 104-106, 107, 225 Bartók, Béla, 226, 259-260, 300-304 características da música, 77, 129
Alaúde, 59 colecionador de música folclórica, como inventor, 77
Alhambra, 64 302 C a d e n z a , 164-166, 232, 270
Amati, Andrea, 109-110 C o n c e r t o p a r a O r q u e s t r a , 300 Cage, John, experimentações musicais,
América Latina, música da, 199, 277 C o n c e r t o p a r a V i o l a , 303 268-270
Amplificação, 274 espírito da música, 303 Canadian Electronic Ensemble, 266-267
Apocalipse, 48 M e l o d y a , 288 Canção, combinação de música e fala,
Apoio, 37 mescla de música floclórica e estru 7 ,3 3
Appenzell (música do cantão suíço turada, 300 Canções de amor, primitivas, 63
de), 124, 173, 181 S o n a t a p a r a V i o l i n o S o l o , 301-302 Canto gregoriano, 47, 77
A p p o g i a t u r a , 83, 185 T e r c e i r o C o n c e r t o p a r a P i a n o , 302 Cantochão, 45, 47, 53, 77, 209. Ver
Arco e flecha, importância para o Bayreuth, teatro, 187-188 também C a n t o g r e g o r i a n o
caçadòr, 4-5 Beatles, 282-285 no Senegal, 102
Armstrong, Louis, 239 Beethoven, Ludwig van, 124, 135, C a n t u s f i r m u s , 55, 63, 77
A r s N o v a , 63 , 141-155, 157, 166, 245, 247 Carignan, Jean, 282
Audição: como explorador da música, 146 Carlos Magno, 47, 52, 55
desenvolvimento, 19-20 C o n c e r t o p a r a V i o l i n o , 147, 190, Carlos, Walter, 282
importância primitiva, 4 232-233 C a r m i n a B u r a n a , 58-59
A u d i o t a p e , 284 e orquestra sinfônica, 142-144 C a r te lla , 7 1
ÍNDICE REMISSIVO • 3 1 5
Cohan, George M., 229 O e d ip u s , 236 Gonzaga, Vicenzo, quarto duque de
Colonização, 102-103, 113, 198-199 T e r c e ir a S o n a ta p a r a V io lin o e P ia Mântua, 89
Compositor, 168-169 n o , 235 Goodman, Benny, 257, 276
como empresário, 154 Era Glacial, 1, 9, 14 Gorée, 199
falando pelo povo, 123 Era Romântica: Gottschalk, Louis Moreau, 204
Computadores e música, 268 celebração das emoções dos artistas, Gould, Glenn:
Concerto, 94-95, 164-166 160 e gravações, 284-289
Concertos, desenvolvimento, 94-95, mudanças culturais, 158-159 virtuoso do piano, 289-290
117, 135, 143 música da, 167 Graham, Martha, efeito sobre a dança
Consortes, 110, 200 retorno no século XX , 20, 199-200 e a música, 294
Constantino, Imperador, 46 significado para a música ocidental, Grappelli, Stéphane, 281
Contraponto, 87, 121 141 Gravação de música, 218-219
inícios do, 71 Escala pentatônica, 30 e música ao vivo, 290
Copland, Aaron, e cultura americana, Escalas: conversa com Glenn Gould, 284-
248, 258-262 convenção social, 29 -289
Cordas tocadas com arco, 108, 110 dodecafônica, 241-243 Grécia, 15, 33
Corelli, Arcangelo, 96-97, 110 origens, 9 civilização, 37-43, 197
Covarrubias, órgão em, 78, 80 temperada, 31, 132-133 dança, 40-42
Cruzadas, 48-49, 51, 54 Escravidão, 101, 104, 199-200 importância da música para a Era
influência musical do Oriente Pró Espanha: Clássica, 37
ximo, 55 flamenco, 194 Gregório I, Papa, música em seu tem
mudanças na música, 51 idioma nacional, 194 po, 47
Cultura americana: mudanças musicais na, 53 G r i o t e seu papel, 33, 104-105
cinema, 218-219, 248, 250-251, E s ta m p ie , 61
Guarneri dei Gesú, Giuseppe, 109-110,
253 Exploração, 69, 76, 88 163
como transplante, 202
rádio, 253-256 Fé e música, 45, 48, 53
Cultura nativa americana, 198 Fé na civilização ocidental, 45 Handel, George Frideric, 119-121
Czardas, 171, 178 Flamenco, 194 O Messias, 120
Flauta, 11 trabalhos de ópera, 119, 121
Dança, como exemplo de mudança, Flautas de Pã, 11 Harmonia. Ver tam bém Dissonância:
61, 172-173 Fonógrafo, 218, 220 começo no tempo das Cruzadas, 51-
Debussy, Claude, 207-209 impacto sobre a música, 220-221 -52
P r é l u d e à V A p r è s M i d i d ’u n F a u n e , Forma, 31-32 como realização musical, 125-126
207, 209, 294 Foster, Stephen, 202-204 crescimento com a notação, 71, 73,
D é fila d e s , 93 Franck, César, 189 76-77
Diaghilev, Serge, 224-225 Fuga, 2, 129-131, 189, 235 e escala temperada, 133
e Ballet Russe, 224, 294 e fé, 45
Dissonância, 69, 84, 88, 116. Ver tam em maior e em menor, 31
Gabrieli, Andrea, 81 no Novo Mundo, 198-199
bém S c h ó n b e r g e m ú s i c a m o d e m a
Gabrieli, Giovanni, 81, 83 ocidental, 31, 241-242
Dufay, Guillaume, 69, 84
Conceito de escrita instrumental, primeiras tentativas em Notre Da-
L a m e n t o p o r C o n s t a n t i n o p l a , 67
83 me, 55
Dunstable, John , 67
Gagnon, André, 282 Harmônicos, 28, 29, 32, 299
V e n i S a n c t i S p i r i t u s , 67
Galileo, 97 Haydn, Josef, 140-142
Dylan, Bob, 290-291
Gamelões: Hinos nacionais, crescimento no século
^ ' B l o w in ’ in t h e W i n d ” , 291
afinação de, 10 X IX , 19, 180-182
aulas de, 299 Homero, 33
Egito, civilização primitiva, 14 música de, 254-255 Hucbald, 69
Einstein, Albert, 257 na Exposição de Paris de 1889, 208 Hykes, David, e a música da Mongólia
Emigração americana, 201, 206 onde são encontrados, 10, 14 e do Tibete, 299
Emigração para o Novo Mundo, 201, Gershwin, George, 239-240, 258
206 Gesualdo, Cario, 87, 116, 221
Enesco, Georges, 46, 133, 136, 161, Ghislebert, arquiteto medieval, 61 Idade Média:
165, 230, 233-236 G i l g a m e s h , 34 instrumentos, 61
como um músico soberbo, 234-236 G o d S a v e t h e K i n g , 180 mudanças na, 61
3 1 6 • A MÚSICA DO HOMEM
música popular, 59 Jerusalém, 53 influência de Georges Enesco, 233-
Igreja Católica, confronto na, 78 Joplin, Scott, 214-215 -237
Igreja Cristã: Jouga, JuÜen, coro no Senegal, 298 início de vida, 229, 231
cisão, 78 Judaísmo, 46 russo-judeu, 232
força da, 43 canção, 46 Miguel Ângelo, 76, 302
codificadora inicial da música, 48 violino como símbolo, 232 Modulação, 83, 133, 187, 189
Igwi, povo, 4 Monteverdi, Cláudio, 89-92
Impressão de música, 73, 76, 83 Kain, Karen, 193 Mouros, 52-53
índia: King, Dr. Martin Luther, Jr., 290 estilo musical, 53, 66
diferenças da música ocidental, 49- “ W e S h a l l O v e r c o m e ” , 290 Moussorgsky, Modest, 194, 207
-51 Kirlian, Semyon, fotografia, 19 B o r is G o d u n o v , 194, 207, 224,
música da, 49-51, 167 K o r a , 11, 102-103, 298 290
notação musical, 73 como se toca, 107 Mozart, Wolfgang Amadeus, 135-140,
rag a, 51 Korngold, Erich Wolfgang, 249-250 146, 153
Shankar, Ravi, 49-51 Kreisler, Fritz, 230-232, 237 criança prodígio, 136-137
índio norte-americano, 5, 21, 45, 198 influência sobre Yehudi Menuhin, e a Era Romântica, 136
Indonésia, 259-261 230-232 e c a d e n z a , 162
Industrialização, 157 L i e b e s í e i d , 230 estilo musical, 136-137
Instrumentos: flexibilidade, 138
criação de, 8 Latão: influência italiana sobre a música
da Idade Média, 61 instrumentos primitivos, 14 de, 137
eletrônicos, 268 proibição do uso de instrumentos óperas, 137
importância, 84 de, 53-54 Música:
Renascença, 77 L a M a r s e i l l a i s e , 180 a mais antiga forma de expressão, 1
traços mais antigos, 8, 9 Léonin, 55, 57 aleatória, 269-270
volta à feitura de, 296-297 Linguagem e música, 28 combinação de sentimento e pensa
Instrumentos de corda, 99-108 Liszt, Franz, 177, 184-185 mento, 28
tocados com arco, 108-110 influência sobre Claude Debussy, como reflexo dos tempos, 229
Instrumentos de palheta, 14 208 de processo, 271
Instrumentos de sopro, proibição, 53- Luís XIV, 98-99, 101, 114, 119 desenvolvimento no Ocidente, 2
-54 Lully, Jean Baptiste (Giovanni Bat- distinção entre fala e, 19-20
Instrumentos de teclado, 124-125 tista), c o m p o s ito r-v io lin is ta de e educação, 256
afinação, 131-132 Luís XIV, 97-100 e fé, 45, 48, 53
Instrumentos, evolução na civilização monopolizador da ópera e do b a l l e t e o cérebro, 167-169
ocidental, 15
franceses, 100-101 e ruído, 273
Instrumentos musicais. Ver I n s t r u m e n
Lutero, Martinho, 76, 78 e tempo, 190-191
to s
e trabalho, 36
Intervalo de terças, 58
Machaut, Guillaume de, 63, 66, 83 eletrôrúca, 267-268
aceitação, 64
Maeterlinck, Maurice, 207 provas arqueológicas, 1
Islame, penetração, 48
como místico, 208 forma, 31
Ives, Charles, 150, 220-221, 229
P e l l e a s e t M é l i s a n d e , 207 m u s i q u e c o n c r è t e , 271
música inovadora de, 221
Mahler, Gustav, 212-213 na era espacial, 265-266, 267
comparação com Richard Strauss, no sistema feudal, 48
Jacopo da Bologna, 63 213 reconhecimento de padrão, 269
Java, 31, 50, 255, 256 interesse por Charles Ives, 222 reflexo de pensamento, 2
Jazz, 202 C a n ç ã o d a T e r r a , 213 rituais associados com, 5-6
altos padrões erfi música popular, Mallarmé, Stéphane, 207 vibrações na, 16-17
276 como simboüsta, 208 Música alemã, 125, 135
como música popular urbana, 237, L ’A p r è s M i d i d ’u n F a u n e , 207 Música americana. Ver B l u e s , R a g t i m e ,
238-239 Maomé, 47 Jazz
conjunto de, 239 Maslow, Abraham, 28 como parte da educação pública,
cruzamento, 276-277 Menuhin, Yehudi: 204
improvisações, 238 Escola, 257 contribuições européias, 204-205
origens, 237-238 influência de Fritz Kreisler, 230- desenvolvimento da, 201
progressivo, 277 -231 diversidade da, 202
ín d ic e REMISSIVO • 3 1 7
espetáculos de menestréis, 202-203, origem chinesa, 11 R aga, 50
203-204 perfeição na Renascença, 78 R ebab, 59
música de protesto, 290-291 primitiva rejeição, 47 R a g t i m e , 202
música popular, 230 Oriente Médio, tradições musicais, 34 como música da cidade, 214, 215
orquestra de dança, 261 Oriente Próximo: crescimento do, 215-216
Música casual, 269-270 instrumentos musicais, 14 Rainer, Priaulx, 247
Música de processo, 271 símbolos de palavras do, 6 Ravel, Maurice, 235-236
Música eletrônica, 267-268 Origens e tradições bizantinas, 46-47 Reforma, 76, 80
Música folclórica, 138, 173 Original Dixieland Jazz Band, 239 Regentes, 159, 251-253
e música composta estruturada, Orquestra, desenvolvimento, 91, 92, Renascença, 65, 80
299-300 142, 159, 174, 204 desenvol\£Ímento de instrumentos,
Música inglesa, 114, 118-119, 295 Ouvido: 76-77
presença alemã na, 120-121 desenvolvimento da audição, 17-18 desenvolvimento musical na, 73
Música pura: sensitividade, 19 mudanças culturais, 76, 87
concertos de, 96 perfeição do órgão, 77
significado de, 94, 95 redescobrimento das teorias clássi
Músico: Paganini, Nicolò, 110, 161-164, 177
cas gregas, 76
origem, 8 Palestrina, Giovanni Perluigi da, 78, Reich, Steve, 271, 272
papel na sociedade, 43 87, 127, 209
Reuniões campais, 200-201
Muzak, 282 Pascal, Blaise, 8
Richter, Hans, 253
Pavlova, Anna, 192
“ R i n g A r o u n d t h e R o s i e s ” , 61
Peregrinos, 198 R i t i , como é tocado, 107
Nacionalismo, 180. Ver também S é
Pérotin, 55, 57
c u lo X IX Ritmo como expressão do povo, 179
Peste Negra, 63
elemento na música clássica, 191 Robeson, Paul, 290
Peterson, Oscar, 281
Napoleão, 143, 144, 180, 181 “N o b o d y K now s th e T r o u b l e I ’v e
Petipa, Marius, 192
Neumas, 69, 71. Ver também Noíafab S een ” , 290
Petrarca, 63
Nijinsky, Vaslav, 224, 294 Rochberg, George, 296
Piano:
Nikisch, Arthur, 253 R o c k a n d r o l l , 239, 277-279
Notação: desenvolvimento no século XIX, Rolling Stones, 279, 281
c a r te lla , 71
174-175 concerto em Earl’s Court, 280-281
e Chopin, 175-176 Roma, civilização de, 40
divisão entre executante e composi
tor com a, 71 importância no século XV III, 121 R o m a n c e r o , 32
instrumento do Novo Mundo, 215 Romênia, experiência de Yehudi Me-
evolução, 49, 58, 59, 67
líder de orquestra, 132-133 nuhin depois da guerra, 279-281
importância do claustro, 67, 69
símbolo na primitiva sociedade Rore, Cipriano de, 71
métodos modernos, 73
americana, 202 Rossini, Gioacchino, 186
neumas, 67, 71
Pianolas, 218 Roxburgh, Edwdn, 267, 295
Notre Dame:
Pitágoras, 30 Ruído, efeito sobre a audição, 273-
centro da música ocidental, 55
Platão, 37 -274
estabelecimento de regras para a
Playford, John, editor, 115 Rússia, 192-194, 224-225
música, 58
P o l o n a i s e , 179 dança na, 192
Novo Mundo, 198
P o p r o c k , 279 música da, 191, 225
emigração para, 200, 207
Porter, Cole, 249 oratórios para Lenine, 262, 292
Presley, Elvis, 279-280
O C a n a d a , 181
Primeira Guerra Mundial, mudanças
Ópera, 182-183 Sallinen, Aulis, 296
desde a, 221, 226
como ponte para o Barroco, 92 Saio, Gasparo dà, 109
Público:
criação da, 88 Santiago de Compostela:
conceito no século XIX, 172
importância do espetáculo, 91, 92, catedral, 53
moderno, 247-253
157 local da guerra entre cristãos e mu
Purcell, Henry, 115-119, 141
popularidade, 88-89 çulmanos, 53
como compositor inconvencional,
Oráculo de Delfos, 38 local do túmulo de São Tiago, 52
116-117
O r f e o , a primeira ópera, 88-90 música e sua importância, 53
D i d o a n d A e n e a s , 119
O r g a n u m , 51, 52, 54 Schafer, Murray:
Órgão: análise do conteúdo de ruído, 20
instrumento de Deus, 191-192 Quarteto de Barbearia, 217 “claraudiência”, 25
3 1 8 • A MÚSICA DO HOMEM
e orquestra sinfônica, 204 forma, 187 importância musical, 82
paisagens sonoras, 21-26 Sousa, John Philip, 205 Verdi, Giuseppe, 182-183
respostas ao som, 20 S p ir itu a l: Vibrações, 16-17, 18
T u n in g o f t h e W o r ld , 1 9 desenvolvimento, 200, 201 fenômeno do harmônico, 28
Schõnberg, Arnold, 133, 222, 229, S ta r S p a n g le d B a n n er , 180 Viena, 134-135
240-244, 247, 262 Stockhausen, Karlheinz, 270, 273 encruzilhada musical, 134
e sistema dodecafônico, 243-244 Stokowski, Leopold, 251-253 fim da guerra entre cristãos e mu
S u í t e p a r a P i a n o o p . 2 5 , 242-243 F a n t a s i a , 251 çulmanos, 135
Schubert, Franz, 150-152, 154-155, Stradivari, Antonio, 109, 111, 112, S c h r a m m e l m u s i k , 173
161 113 Vikings, 57, 198
atração para todos, 154-155 Strauss, Johann, 174, 177, 211 Vinci, Leonardo da, 76, 146
e Stephen Foster, 204 valsas, 177 Violino, 108-113
humanidade de sua música, 174, Strauss, Richard, 133, 209-214 comparado com o r i t i , 107
181 como amante do som, 209-210 feitura do instrumento, 113
Schumann, Robert, 174 e Gustav Mahler, 214 imagem popular do violinista vir
Scriabin, Alexander, 289 ressonância sinistra, 211 tuoso, 232
Século XVII: poema sinfônico, 210 intrumento da Renascença, 76
desenvolvimento científicico, 96 Q u a t r o Ú l t i m a s C a n ç õ e s , 213 instrumento de música pura, 94
importância do crescimento do Stravinsky, Igor, 222, 223-226 papel na música barroca, 124
indivíduo, 87 como músico russo singular, 224- parte da vida no Novo Mundo, 113
músicos no, 115-116 -225 sistema de coordenação para tocar,
realizações musicais, 119-120 compreensão de seu trabalho, 225 170-171
Século XVIII, mudanças, 123 sensação criada pela S a g r a ç ã o d a som, 109-110
Século X IX : P r i m a v e r a , 224-225 tocado por Paganini, 162-163
crescimento do nacionalismo, 180, " S u m er Is Icu m en In " : Viotti, Jean Baptiste, 109, 164
181 importância para a música ociden Virtuoso, chegada no século XIX, 164-
cultura na Europa, 208 tal, 58-59, 83-84, 129, 295 -165
Era do Indivíduo, 157-159 Suméria: Vitry, Philippe de, 63
música, 167 reconstrução da música da, 33 Vivaldi, Antonio, 81, 123-124
síntese do compositor e executante, Voyager I e Voyager II, 265-266
169-170 Tagore, Rabindranath, 41 Voz:
Segunda Guerra Mundial, 280, 282- Talmude, 32 central para a música ocidental, 45,
-283, 295 Tambor de aço e tradição do calipso, 47
música depois da, 272, 273, 276 283 complexidade, 6
Senegal, 102, 199, 298 Tschaikowsky, Peter Ilytch, 193, 194 ferramenta de autopreservaçâo, 3
história, 101-104 Tecnologia para uso em música, 268 ópera, 88
influência da múáca ocidental, 103 Terceiras paralelas, 57 perda de importância, 80, 84
instrumentos, 101, 102, 103 Toscanini, Arturo, 251-253
Série (fila) de tons, 242 Tom básico, 187
Shankar, Ravi, 4 8 ^ 9 , 50 Wagner, Richard, 84, 184, 185-189,
Tons maior e menor, 31, 84
208, 211, 250
Shostakovich, Dmitri, 291 Tradições bizantinas, 48
D i e M e i s t e r s i n g e r , 185
Sibelius, Jan, 247 Trompa, origens, 10
Silvícola africano, 4 estilo harmônico, 189
Trovadores, 61
O A n e l d o s N i b e l u n g o s , 32, 185
Sinfonia:
T r i s t ã o e I s o l d a , 186, 187, 243
crescimento, 174 Varèse, Edgard, 209, 244-245, 246,
“ W e S h a l l O v e r c o m e ” , 290
forma, 147, 149 247
do século X IX , 157, 159 Weber, Carl Maria von, 185
P o è m e e l e c t r o n i q u e , 2 1 'ò
Sintetizadores, 266-267 Webern, Anton, 222, 223, 262
Veneza:
Smith, Bessie, 239 Weill, Kurt, 248, 249
centro da ópera, 90
Sonata, 94 declínio de importância, 123
espécies de, 96 estado independente, 80 Xenakis, Yannis, 270
ÍNDICE REMISSIVO • 3 1 9
Impresso em off-set por
G RÁ FIC A EDITORA H AM BURG LTDA.
Rua Apeninos, 294 — São Paulo — Brasil
Fones: 278-2648 278-1620 279-2765
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^ 1• a A música, mais do que as
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outras formas de arte,
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A MÚSICA DO HOMEM
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que interpretam e que
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V perspectiva histórica e
social sempre clara e bem
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««íã-í ycn^áS^naí ao leitor nâo especiali
zado com o aos que pos
ww ^ <8ftrf«?qtolga^j|gp>cnocVami suem um conhecim ento
mais profundo sobre a
matéria.
Leva-nos numa cam inhada fascinante através do m undo maravUhoso do som , do can to, da harmonia e
da m úsica instrumental, bem com o pelos lugares mais afastados e surpreendentes de nosso planeta. Per-
mite-nos conhecer os grandes com positores do passado: Beethoven, Bach, Purcell, Schubert, M ozart,
Wagner. Evoca os mitos imortais de nosso tem po: Presíey, os Beatles e os Rolling Stones até Stra-
vinsky, Glenn Gould e Jo h n Cage. Todos eles tom am vida, conform e a música avança desde suas
origens, passando depois por um período rom ântico até alcançar, finalmente, a era dos com putadores,
do pop-rock e do disco.
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