Entrevista com o pesquisador e escritor Dênis de Moraes1
Na condição de grande estudioso do fenômeno das mídias no mundo
contemporâneo, como você avalia hoje a situação do sistema de comunicações no Brasil? Existe no nosso país um sistema de comunicação, incluindo todos os meios que estão em operação, sejam eles digitais ou impressos, dos mais elitistas, anacrônicos, fechados e concentrados nas mãos de poucos grupos empresariais e dinastias familiares. Se nós confrontarmos o sistema brasileiro com a situação atual da América Latina, isso é motivo de vergonha. Em vários dos países vizinhos ao nosso, na América do Sul principalmente, há avanços consideráveis no sentido de reestruturar, atualizar, modernizar, descentralizar e democratizar o sistema de comunicação em termos mais equitativos. O Brasil possui as legislações mais atrasadas do continente: o Código Brasileiro de Telecomunicações é de 1962; a Lei Geral das Telecomunicações é de 1997, sendo que as emendas feitas a esta lei em 2005 são absolutamente laterais, inofensivas, burocráticas e tecnicistas, sem tratar do âmago do sistema geral de comunicações. A legislação de radiodifusão é extremamente importante porque diz respeito à concessão de canais de rádio e televisão. Mas, se ela é anacrônica e tendencialmente privatista, protegendo a formação de grandes grupos empresariais de mídia, mantendo e renovando as mesmas concessões, a população não tem a menor noção de que este sistema é um sistema de concessão temporária, que depende do poder concedente, que é a União. Infelizmente, por um bloqueio perverso, sistemático dos canais de difusão, dos mesmos grupos empresariais que controlam todos os canais de mídia praticamente, o povo brasileiro não sabe que os canais de televisão não pertencem à família Marinho, não pertencem à família Assad, não pertencem à família Abravanel, à família Barbalho no Pará, à família Magalhães na Bahia, Collor de Mello em Alagoas, Sarney no Maranhão, essas dinastias familiares que controlam grande parte dos canais AM e FM de rádio e de televisão. Na verdade, tais canais são apenas concessões por tempo determinado; pertencem ao patrimônio público e comum do povo brasileiro. Inclusive acho
1Dênis de Moraes é autor, entre outros livros, de de Mídia poder e contrapoder;
Prestes, Lutas e Autocríticas; A Esquerda e o Golpe de 1964; O Velho Graça, uma biografia de Graciliano Ramos; Vianinha, Cúmplice da Paixão; Henfil, o‘Rebelde do Traço, dentre outras obras. Sua nova obra, Crítica da mídia e hegemonia cultural, será lançada em março de 2016.) abusiva a duração de 15 anos para cada concessão, assim como também avalia a Relatoria Especial da UNESCO para a Liberdade de expressão. Na América do Sul, nos países que estão renovando democraticamente as legislações de rádio e televisão, o limite máximo de concessão é de dez anos, após o que o desempenho destas concessões deve ser avaliado, como acontece com as empresas de energia elétrica, de água, de gás, etc. Para a população fica a impressão de que o SBT, por exemplo, vai pertencer o tempo inteiro – e talvez isso de fato ocorra, se os governos continuarem a agir do jeito que agem – à família Abravanel. Este não é um processo recente, remonta há décadas em nosso país e foi bastante intensificado durante a ditadura militar pós-1964. Mas não cabe apenas à ditadura a responsabilidade pela implementação de um sistema de concessões de canais de rádio e televisão completamente elitista, porque, antes mesmo do golpe militar, aumentaram os números de concessões de canais de rádio e televisão, numa época em que o país vivia sob regime democrático. Lembro ter sido durante o governo de João Goulart que o Sr. Roberto Marinho obteve, pela primeira vez, a concessão do canal da TV Globo no Rio de Janeiro, num processo de licitação dos canais. A emissora foi implementada após o golpe militar, tendo entrado no ar em 1965, tanto que no ano em que estamos, com um aparato publicitário monstruoso, esse grupo está comemorando 50 anos. Estamos inclusive assistindo ao espetáculo deprimente da Câmara dos Deputados e do Senado da República homenageando os 50 anos da TV Globo, que pertence a um grupo monopólico de mídia privado detentor de concessão temporária de canais de televisão. Na primeira semana de agosto do ano passado tivemos o triste espetáculo em que até senadores pertencentes a partidos de cunho teoricamente mais progressistas participaram de homenagens em plenário e fora dele à família Marinho pelos 50 anos de funcionamento da TV Globo, a exemplo do que fizeram o senador Randolfe Rodrigues, hoje na Rede, dois ou três senadores do PT e do PCdoB, etc, um leque aberto da direita aos que ainda se dizem – teoricamente – de esquerda. O processo foi intensificado durante a ditadura militar, prosseguiu e prossegue no governo da Presidenta Dilma. Prosseguiu no primeiro governo civil, presidido pelo proprietário do maior grupo de comunicação do Maranhão, prosseguiu no governo Collor, igualmente proprietário do maior grupo de comunicação de Alagoas. Nos dois anos de transição política do governo do Presidente Itamar Franco, não houve renovações porque não havia concessões vencendo. Prosseguiu o processo, sem qualquer alteração, nos dois mandatos de FHC, nos dois mandatos de Lula, no primeiro e no atual segundo mandato de Dilma. Pelo contrário, o Presidente Lula renovou por quinze anos as concessões de praticamente todos os grupos monopólicos de televisão durante o seu governo, com os mesmos procedimentos de seus antecessores, isto é, procedimentos cartoriais: encaminha-se o processo de renovação ao Ministério das Comunicações, que faz as verificações administrativas e manda para o Congresso Nacional, que faz audiências públicas nas quais ninguém comparece, pois a sociedade não é convocada para audiência pública alguma e, mesmo que compareçam representantes de entidades que lutam pela democratização da comunicação, o final nós já sabemos qual é: a renovação automática das licenças por mais quinze anos. Como esse processo se dá atualmente nos países vizinhos? Nos demais países da América do Sul, de 1999 para cá, desde que o saudoso Presidente Hugo Chávez ganhou a eleição na Venezuela, ali houve o marco histórico, que foi se desenrolando nos outros anos, com as eleições de governos progressistas na Bolívia, Equador, Argentina, no Uruguai, onde se estabeleceram governos que buscaram enfrentar o problema da concentração da mídia nas mãos de poucos grupos empresariais e dinastias familiares, de maneira democrática e exemplar, chamando a sociedade, na sua complexidade, para discutir o problema da mídia. Depois de consultas e audiências públicas amplas, encaminharam-se os anteprojetos para os Parlamentos, a fim de que fossem debatidas as novas leis de comunicação, com o objetivo de descentralizar o sistema de mídia, combatendo a concentração, os privilégios, as vantagens que esses grupos empresariais sempre tiveram. Ao olharmos para o Uruguai, Bolívia, Equador, Argentina, Venezuela, perceberemos que houve avanços, apesar de todas as dificuldades, obstáculos e resistências que os governos enfrentaram ao tentar elaborar e aprovar leis de democratização da mídia. Resistências que começam pela própria mídia empresarial, reacionária, pois ela não quer perder privilégios, vantagens, não quer se desmembrar. As novas legislações visam a promover o desmembramento desses grandes grupos, que não mais poderão acumular concessõrs de canais de rádio e televisão na mesma cidade, no mesmo Estado, na mesma região. A vitória eleitoral da direita e do neoliberalismo é um grave retrocesso para a Argentina dividida ao meio e para a América Latina progressista. Os avanços sociais alcançados nos 12 anos dos governos de Néstor e Cristina Kirchner estão em sério risco. De qualquer modo, o futuro governo Macri (a quem o próprio pai acusou, em matéria de capa da revista Noticias, de lhe ter roubado a principal empresa da família) não terá maioria na Câmara dos Deputados e no Senado (controlado pelo partido kirchnerista Frente para la Victoria) e certamente enfrentará fortes resistências dos movimentos sociais organizados e do kirchnerismo e setores aliados (que alcançaram 48,6% dos votos), a exemplo das extraordinárias mobilizações que vêm ocorrendo em Buenos Aires, desde o final do ano passado, em defesa da Ley de Medios, ameaçada pelo governo de direita. Como se articula este processo com a questão dos direitos humanos e da luta pela memória? Os grupos monopólicos de mídia agem a todo momento no sentido de interditar o contraditório, de neutralizar as diferenças, de querer silenciar e sufocar os antagonismos e de sempre colocar suas visões, suas percepções, seus valores e juízos na frente do conjunto de diferentes expressões e vozes que se manifestam na sociedade. Esses grupos têm tradição antidemocrática, possuindo estruturas de funcionamento, de controle da informação e da opinião extremamente nocivas à diversidade informativa e cultural, ao pluralismo, à convivência de contrários e diferenças, a própria luta ideológica eles querem sufocar. Não é por outra razão que as questões dos direitos humanos e da luta pela memória encontram, no Brasil, uma forte interdição, não apenas mas em grande medida pela ação neutralizadora dos grandes grupos de mídia. Se observarmos o percurso da Comissão Nacional da Verdade, vamos ver que os grandes antagonistas dos trabalhos da Comissão foram, de um lado, os bolsões militares, que têm culpa no cartório e contas a ajustar com a Justi;ca. Foram principalmente resistentes ao trabalho da Comissão aqueles agentes do Estado que atuaram na polícia, no exército, na marinha, na aeronáutica ou em organismos clandestinos de repressão. A Comissão da Verdade queixou-se, em várias ocasiões, de que comandos militares, que emitiam notas minimizando ou negando a participação de seus agentes em crimes de lesa- humanidade, dificultavam o acesso a quartéis onde haviam funcionado centros de detenção, tortura e extermínio. Isso obrigou a que as Comissões da Verdade (nacional, estaduais ou municipais) tivessem de recorrer judicialmente para exigir o acesso às documentações e aos chamados lugares de memória, da memória do horror. De igual forma, aqueles membros das elites civis, dentro e fora do Parlamento, que têm contas a prestar a Justiça por suas cumplicidade e conivência com os métodos da ditadura não colaboraram com o trabalho das Comissões da Verdade. Numa posição peculiar, também determinados meios de comunicação agiram assim, minimizando ou ocultando o que era investigado e denunciado pelas Comissões. Sabemos que grupos empresariais de mídia ainda precisam ser investigados sobre sua colaboração com o regime ditatorial. Quem sabe possamos seguir o exemplo do Chile, onde atuaram várias Comissões da Verdade ao longo dos anos, e não apenas uma Comissão Nacional da Verdade, como no Brasil, onde a primeira Comissão foi resultante de uma correlação de forças específica e de uma “lei da anistia” que precisa ser revista e modificada, a fim de permitir que os acusados por crimes hediondos durante a ditadura sejam investigados e levados a julgamento, com amplo direito de defesa. Está mais do que evidente que meios de comunicação foram cúmplices, aliados, adeptos da repressão e dos métodos de governar do regime militar. Não é casual que um grande número de concessões de rádio e televisão tenha sido praticada justamente no período de 1964 a 1985, como moeda de troca em nome do apoio, da sustentação política e do suporte ideológico à ditadura. É só consultar as coleções dos jornais para verificar como eram noticiados os casos de prisões, assassinatos, torturas, extermínios, sempre sob o timbre do terrorismo em que os que resistiam eram o tempo inteiro tachados de bandidos, terroristas, criminosos, etc, enquanto as forças do Estado estariam cumprindo o seu dever de combater subversivos e inimigos da pátria. Depois da ditadura, esse processo de tentar discutir o passado encontrou nos meios de comunicação um dos obstáculos mais duros. No governo de FHC, foi criada a Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça, responsável pela publicação do livro de mais de mil páginas “Brasil Nunca Mais”. Durante o governo de Lula, essa comissão continuou funcionando e foi criada a Comissão de Anistia. A Comissão Nacional da Verdade foi criada no governo da Presidenta Dilma. Durante esses anos, sabemos que a correlação de forças na sociedade não se alterou, infelizmente. Com isso, os meios de comunicação continuaram, a cada vez que havia alguma possibilidade de avanço, a bombardear as iniciativas através dos editoriais e, principalmente, por meio do silenciamento, uma das técnicas mais sofisticadas e eficazes de não transformar o acontecimento em fato noticiável e de conhecimento da opinião pública. Ele simplesmente passa a não existir! Ou minimizavam o assunto, tirando do conjunto das pessoas a atenção, a sensibilidade e a percepção acerca daquilo. Houve ao longo desse processo uma sucessão de interdições, de tentativas de sufocamento, de neutralização, assim como no período de atuação da Comissão Nacional da Verdade, das comissões estaduais e municipais. Somente se furava este cerco quando o fato descoberto era absolutamente noticiável, não sendo possível colocar por baixo do tapete, como nos casos do ex-deputado Rubens Paiva e do jornalista e membro do PCB Vladimir Herzog, vítimas do terror ditatorial. Outras vezes, a mídia não pôde deixar de cobrir eventos de maior repercussão social, como visitas feitas pela Comissão da verdade a quartéis do Exército e da Marinha que foram centros de torturas e assassinatos. Não puderam deixar de cobrir, mas minimizaram as matérias, dedicando segundos nos telejornais, geralmente nos telejornais jornais locais e de menor audiência. No Jornal Nacional, quando aparecia algum caso, era uma reportagem diminuta, ou então feita de maneira a que os comandos militares se manifestassem, para dizer que não era bem assim, que houve manipulação, adulteração ou distorção. A luta pela memória envolve vários atores, mas estou dando esse destaque ao papel desempenhado pelos meios de comunicação para chamar atenção da dificuldade que nós, cidadãos e cidadãs, temos de acompanhar e ter mais elementos de informação e análise. Porque não se trata apenas de uma dificuldade individual nossa de acesso às fontes de informação, mas sim por haver uma interdição dos canais e meios (jornais, revistas, rádios, televisões, portais de internet, etc) que poderiam nos fornecer o mínimo de informações verazes. Vivemos um tempo de um bombardeio incomparável de informações, mas quantas informações verazes e de interesse coletivo, social, do interesse das pessoas que sofrem, dos pobres, dos que não têm vozes para se manifestar, podemos retirar do meio deste bombardeio? Onde estão os cotidianos das populações pobres na maioria dos meios de comunicação de nosso país? A luta pela memória, verdade e justiça é fundamental. Envolve atores que estão em conflito, a exemplo dos que escreveram a história do ponto de vista dos supostos vencedores e os que estão escrevendo as histórias dos supostos vencidos, que na verdade são os vencedores. Claramente não são os torturadores, assassinos, genocidas de quem a História irá falar no futuro. De outro lado, há a tentativa de calar ou desqualificar os relatos e testemunhos das vítimas da ditadura, o que não ocorre apenas por parte da mídia, mas também quando certas instituições dificultam o acesso às documentações sob a guarda de órgãos públicos. Mesmo com a vigência da Lei de Acesso à Informação Pública, em várias situações persiste a sonegação à consulta de dados que se referem à história do país. Quando falo das resistências daqueles que não querem que a história seja conhecida plenamente pelas novas gerações, me refiro também à destruição de provas e documentos. Já sabemos que parte ponderável da documentação produzida pelo extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) e de outras áreas do sistema repressivo foi apagada dos registros, principalmente durante o período de transição do governo do general Figueiredo para o governo de José Sarney. Naquele processo de transição, conforme noticiado amplamente pela imprensa, houve a destruição de documentações incriminadoras de atos repressivos, arbitrários e barbáricos praticados em todo o país, nos estados e municípios. A luta pela memória envolve toda uma série de conflitos, como o conflito das versões que se antagonizam, razão pela qual são fundamentais as investigações, baseadas na verificação das documentações, nas acareações, nos testemunhos, num conjunto de provas, fontes e materiais documentais. A luta pela memória inclui o enfrentamento àqueles que não querem a recuperação e a revelação da memória, e sim que seja soterrada, esquecida e apagada, a exemplo do que diziam alguns dos ministros da Justiça tanto de FHC quanto de Lula: “Não se deve mexer mais nisso, porque isso tudo já ficou acomodado pela Lei de Anistia”. Nós sabemos que a Lei de Anistia foi, em primeiro lugar, um tipo de acordo para as circunstâncias específicas de uma época, significando um pequeno e relativo avanço num momento de transição, mas que deixou de lado o principal, ou seja, a investigação dos atos hediondos praticados por torturadores e assassinos, muitos deles agentes do Estado, sem falar nos cúmplices e colaboradores do regime ditatorial, todos eles impunes. As ações que estão em curso na Justiça brasileira, tentando reverter essa impunidade, encontram as maiores resistências por causa da legislação e das interpretações judiciais. Diferentemente de países vizinhos, como na Argentina. Durante o governo neoliberal de Carlos Menem, foi criada a Lei do Ponto Final, que colocava uma pedra em cima do passado ligado à ditadura. Mas o Presidente Néstor Kirchner, usando a sua maioria parlamentar, conseguiu pressionar o Congresso de um lado e a Corte Suprema de outro, para que fosse anulada aquela lei, razão pela qual a Argentina pôde iniciar e dar curso, com direito de defesa, sem recorrer a legislação de exceção, dentro do Estado de Direito democrático, a um processo de profunda investigação e de punição daqueles envolvidos em crimes de lesa-humanidade. São inúmeros os processos que já transitaram em julgado e há vários outros que ainda estão em tramitação na Justiça Federal, como o caso do desaparecimento e sequestro de bebês, que foram retirados das mães presas grávidas, torturadas e assassinadas pela ditadura genocida. Os bebês eram recolhidos, alguns foram dados para famílias adotivas e outros foram simplesmente exterminados. No futuro, espero que possamos ter uma nova Comissão Nacional da Verdade nomeada por um governo efetivamente comprometido com o resgate da memória, da justiça e dos direitos humanos. E aí, que se reabram os trabalhos para se chegar aos responsáveis pelos crimes cometidos pela repressão, entre 1964 e 1985, verdadeiros representantes da barbárie.