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DIREITO SUBJETIVO —

BASE ESCOLÁSTICA DOS


DIREITOS HUMANOS*

Isabel de Assis Ribeiro de Oliveira

Apresentação garantia dos “direitos sociais”, também chamados


de “direitos de segunda geração”.
Este artigo apresenta uma leitura do campo Tal conflito inexistia no momento em que se
discursivo onde se originou a formulação do con- formula o conceito de direito subjetivo; retornar a
ceito de direito subjetivo, visando identificar mais este princípio de justiça holístico que instaura a
cuidadosamente o contexto que propicia a formu- legitimidade da liberdade de ação individual, com
lação da idéia de que cada um de nós é portador de vistas a determinar os termos em que tal relação é
direitos inalienáveis. Amplamente disseminada em estabelecida de forma harmônica, é o objetivo
nossa cultura política, esta idéia está expressa de central deste artigo. Se o argumento aqui apresen-
forma mais completa na linguagem dos Direitos tado for convincente, fica em questão a presunção
Humanos, onde ocupa lugar central (cf. Villey, neoliberal de que a liberdade individual é antitéti-
1983; Haakonsen, 1996; Tuck, 1979; Hart, 1955; ca ao conceito de “justiça social”.
Lafer, 1995). A análise que se segue está voltada para a
Os motivos que me levaram a desenvolver descrição deste modo de pensar a justiça, desen-
este ensaio são de duas ordens. Ao localizar o volvido no âmbito da Segunda Escolástica, escola
momento de constituição do conceito, penso po- de pensamento dominante na Península Ibérica
der contribuir para a desnaturalização da idéia de nos séculos XVI e XVII. Imediatamente anterior à
que existam direitos inalienáveis, apontando desta
forma para seu caráter propriamente ideológico.
Em segundo lugar, ao mostrar que o conceito de * Este artigo é uma versão modificada de trabalho apre-
sentado no seminário Justiça, Direitos e Desigualdades
direito subjetivo se desenvolveu no âmbito de uma — Perspectivas Normativas, produto parcial da pesquisa
representação holística de justiça, acredito estar Concepções de direitos na formulação de políticas
abrindo mais uma perspectiva analítica para o públicas, que realizo no âmbito do Núcleo Interdiscipli-
nar de Estudos sobre as Desigualdades (NIED)/PRO-
entendimento das declarações contemporâneas
NEX/MCT. Agradeço a Catherine Larrère, José Maurício
dos direitos humanos, onde encontramos um con- Domingues, Luiz Eduardo Soares, Octávio de Souza e
flito entre a proteção dos direitos individuais e a Peter Fry a leitura atenta e os comentários críticos.

RBCS Vol. 14 no 41 outubro/99


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conceituação plena da idéia de direito subjetivo diferença. Por exemplo, que o resgate de um
(que permitirá a enunciação da primeira Declara- prisioneiro deva ser uma mina, ou que se deva
ção dos Direitos Humanos), a Neo-Escolástica tem sacrificar um ganso, e não duas ovelhas [...] (Aris-
sido desvalorizada, seja por conter elementos que tóteles, 1987, p. 124; tradução livre)
rompem com a tradição escolástica (posição assu-
mida, entre outros, por Villey), seja por não rejeitar Para compreender esta distinção é preciso
plenamente a tradição (tese muito bem apresenta- retomar o conceito aristotélico de natureza, este
da por Morse). Mas, como suspeito que a enunci- que permite dizer que “a justiça natural tem a
ação dos “direitos sociais”, já em meados do século mesma força em todos os lugares”, não sendo
XIX, opera como um “retorno do recalcado”, en- mera “aparência” ou opinião. Concebendo a na-
tendo que uma compreensão mais completa da tureza como algo que tem em si mesmo o seu
Segunda Escolástica possa ajudar no desenvolvi- “princípio de movimento”, Aristóteles distingue-a
mento de uma linguagem menos confusa sobre daquilo que é artificial por ser capaz de realizar-
direitos no contexto contemporâneo. se, de atualizar sua potencialidade, conferindo à
Este artigo está organizado em três partes, matéria sua “forma perfeita”. A natureza é, por-
seguidas de uma conclusão. Na primeira apre- tanto, teleológica, buscando o fim que lhe é pró-
sento o conceito de justiça que se desenvolve no prio (não devendo, pois, ser entendida como o
âmbito da Escolástica. A seguir, faço uma síntese que é original ou primitivo). Quando Aristóteles
da filosofia do conhecimento que Occam começa diz que o Estado existe por natureza, ele não está
a desenvolver, o nominalismo, pois é aí que tem afirmando que o Estado seja um “dado” da natu-
lugar a elaboração da noção de direito subjetivo. reza, e sim que o Estado expressa uma forma
Por fim, examino a relação entre holismo e direi- natural de desenvolvimento das associações hu-
to subjetivo, tal como estabelecida pela escola de manas, o mesmo aplicando-se à sociabilidade
pensamento identificada como a Segunda Esco- natural do homem.
lástica. Compreendida nestes termos a natureza po-
lítica da vida social, a justiça estará expressa em um
certo tipo de ordenação da pólis em que os
A concepção de justiça no âmbito da
indivíduos podem manifestar plenamente sua
Escolástica
igualdade de cidadãos. Mas, por contemplar tam-
Tomo, como é de costume, o pensamento de bém sua diversidade, esta comunidade deverá ser
Tomás de Aquino para expor, de forma sucinta, a politicamente ordenada, algo que não se faz pela
teoria de justiça própria à Escolástica, ponto de imposição de uma regra geral, como bem acentua
partida para a análise subseqüente da Segunda Strauss (1986, pp. 147-149). Tal ordenamento obe-
Escolástica. No entanto, como o pensamento to- decerá, isto sim, às estratégias consideradas mais
mista é tributário da tradição aristotélica, penso ser apropriadas a assegurar a realização de determina-
importante, de início, atentar, ainda que breve- dos fins, tomados como invariáveis. É neste senti-
mente, para a maneira pela qual a justiça foi tratada do que a justiça contempla tanto este ordenamento
por Aristóteles. da pólis, quanto a administração da partilha de
A idéia central de Aristóteles a propósito da bens, esta última variando de cidade para cidade.1
justiça está exposta nas Éticas ao Nicômaco: Essa conceituação de justiça, plenamente
compatível com a teoria política desenvolvida por
Parte da justiça política é natural e parte é legal. Tomás de Aquino, será por este modificada com a
Natural, a que tem a mesma força em todos os postulação de uma “lei divina” a conferir substrato
lugares, e não existe por que as pessoas dizem isto à natureza, bem como com uma outra nomeação
ou aquilo. A justiça convencional, no entanto, dos fins últimos da política. Mas o que importa
concerne isto que, originalmente, é indiferente, ressaltar aqui é uma outra transformação sobre o
mas que uma vez determinado, passa a fazer a legado aristotélico. Aquino irá associar a lei à
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razão, entendida esta última como uma faculdade (1983, pp. 33 e ss.) considera, entretanto, inapro-
que ordena a ação e a reflexão humanas com vistas priado derivar desta idéia de Cícero a existência da
à realização de um fim. A lei, portanto, passa a ser noção de um direito. Argumenta que a formulação
uma ordenação da razão com vistas a alcançar o da idéia de direito, na Roma Clássica, é tributária da
bem comum, estabelecida e promulgada por aque- tradição grega, equivalendo o termo jus, derivado
le a quem compete dirigir a comunidade. Sendo de justitia, ao termo grego dikaionsuné, que abar-
Deus o príncipe da comunidade universal, a pri- ca ao mesmo tempo as noções de direito e de
meira lei, “lei eterna”, é uma prescrição da razão justiça. O primeiro ponto que Villey enfatiza é o de
divina, que regula tudo que existe, sujeitando o que a idéia de direito é solidária da idéia de justiça,
mundo à Providência Divina. Todos os seres parti- e que não compreende qualquer noção de “igual-
cipam, de certo modo, dessa lei, impressa por Deus dade em liberdade e dignidade”, central no concei-
em toda a criação, e esta lei inclina tudo que existe to de direito subjetivo. A justiça trata da partilha de
a executar os atos que lhes são próprios, atingindo “coisas exteriores”: funções públicas, honra, bens
assim seus próprios fins. Enquanto criatura racio- materiais, obrigações. O “direito de cada um” será
nal, o homem é capaz de prever as conseqüências o produto da divisão, e não será o mesmo para
de seus atos e dos movimentos dos outros, parti- todos. Não que inexista uma idéia de “isonomia”,
cipando desta lei de um modo mais perfeito, e é a mas o ison não deve ser traduzido por igualdade,
esta participação que Aquino dá o nome de “lei e sim por eqüidade. A aequitas expressa melhor
natural” (Bigongiari, 1953, pp. 3-7). esta idéia de proporção justa, que se obtém na
É a partir desta concepção de justiça, aqui distribuição de certas quantidades de coisas em
brevemente exposta, que a Segunda Escolástica vai função da qualidade das pessoas.
produzir uma outra visão da relação desejável dos Para Villey, portanto, o direito romano nada
indivíduos em sociedade. Nesta operação, a refle- tem a ver com o direito natural, que tem sua origem
xão que se desenvolve acerca do direito subjetivo na Segunda Escolástica, na moral cristã estóica, no
parece ser o fator crucial de renovação do pensa- nominalismo, no liberalismo de Hobbes e Locke e
mento sobre a justiça. É disto que trata a seção no racionalismo de Liebniz. Não é que a expressão
seguinte. “direito natural” não fosse usada: o “jus naturale”
consta dos Institutos de Gaius (século II) mas
refere-se não a um conjunto coerente de regras,
O surgimento do conceito de direito
tirado da razão subjetiva do homem, designando,
subjetivo
isto sim, um conjunto de relações jurídicas entre
A literatura especializada reconhece duas todos os seres vivos (inclusive animais).
grandes fontes de reflexão sobre a justiça que estão Tuck (1979) discorda desta interpretação,
de alguma forma conectadas com a formulação do sustentando que, se a palavra jus (e aqui ele
conceito de direito subjetivo, a saber: a tradição concorda com Villey) não significava para os roma-
jurídica romana e o nominalismo. Mas a primeira nos o mesmo que significará para a Escolástica,
não goza do mesmo consenso que a segunda, esta diferença é insuficiente para rejeitar a tese de
cabendo, portanto, apresentar inicialmente uma que o conceito de direito subjetivo se origina neste
síntese desta primeira interpretação. contexto. Ao contrário, Tuck argumenta que é algo
a) Strauss (1986) sustenta que Cícero, ao muito próximo a este conceito de que se fala
associar a tradição socrática à tradição estóica, quando, no âmbito do direito romano, regulam-se
admitirá que haja em cada um de nós como que as relações que os indivíduos estabelecem entre si.
uma centelha divina. A lei natural que rege as Tal regulação seria impossível se não houvesse a
relações humanas emana, portanto, da razão reta idéia de que os indivíduos possuem um direito
da qual todos são dotados. Mas, como somos (Tuck, 1979, pp. 8 e ss.).
livres, como temos vontade, podemos nos harmo- Meu interesse por esta polêmica incide, en-
nizar ou não com o fim que nos é dado. Villey tretanto, menos sobre os termos em que é posta
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por um e outro intérprete dos direitos humanos, do tem o sentido de denotar as possibilidades da ação
que na resolução proposta por Brett (1997, pp. 25 humana livre. Este espaço, para Buridan, é um
e ss.). Tanto Villey quanto Tuck concordam com a espaço lícito, isto é, correto mas não regulado pela
leitura de Strauss segundo a qual a tradição lei, pelas ordenações que constituem o domínio do
romana (estóica) conferia destaque à liberdade direito.
individual, a ser exercida na esfera não jurídica da b) Ao posicionar-se na “polêmica sobre os
vida social. Sua regulação opera-se, portanto, em universais” e na disputa entre a Ordem Franciscana
um âmbito externo ao domínio do jus (do direito). e o Papado, Guilherme de Occam (1285-1349)
Brett desenvolve precisamente este ponto em seu acabará por propiciar uma conceituação bastante
Liberty, right and nature. Em particular, ele chama clara da idéia corrente de um direito individual,
a nossa atenção para o fato de que a sociedade civil subjetivo, inalienável. Se a disputa sobre univer-
era percebida como constituída de tal forma que sais, que ocupou um espaço central no pensamen-
cada dominum era soberano em seu próprio to escolástico (principalmente no final do século XI
território, assignado segunda a máxima “a cada um e início do XII), não estava referida a uma discus-
o seu” (Brett, 1997, pp. 25 e ss.). são sobre a justiça, o conceito escolástico de justiça
Mas Brett assinala também que Buridan, es- será significativamente afetado pelo desdobramen-
crevendo já em plena Escolástica, ao identificar a to nominalista desta disputa que, de certa maneira,
justiça do dominus, que o dirige para ordenar a coloca nela um ponto final.
vida coletiva tendo em mente o bem de seus Em termos sucintos, a polêmica versava so-
subjectum, reconhece uma justiça própria a estes, bre a existência ou inexistência, bem como sobre a
que os dirige para obedecer tais ordenações. Com maneira de conhecer e operar com essa “essência”.
este reconhecimento, Buridan desenvolverá o raci- Esse debate, no âmbito da Escolástica, iniciou-se
ocínio que distingue a justiça do direito: “a justiça com a “prova ontológica” da existência de Deus,
do senhor antecede o que é direito, enquanto a dos desenvolvida por Anselmo, ocupado em estabele-
que a ele se sujeitam é posterior ao estabelecimen- cer a articulação entre fé e razão. Esta prova levaria
to do que é direito” (Brett, 1997, p. 100). Ou seja, à conclusão de que Deus — o maior ser existente
o regime de obrigações é justo quando o senhor é — estaria em todos os domínios, pois se não
justo; e o senhor é justo quando ordena em vista do estivesse seria possível às nossas mentes pensar
bem de todos, o que constitui boa razão para a em alma maior que Deus, o que seria uma contra-
obediência. Esta tese é relevante para a nossa dição. O raciocínio de Anselmo, assentado em
questão porque aqui o direito não é mais algo que conceitos, estava permeado pela visão agostiniana
tenha a ver com a assignação de coisas, como (e platônica, neste aspecto) da verdade, no sentido
interpreta Villey (seguindo Aquino e Aristóteles), de que Anselmo concebia a existência de uma
passando a ser tomado como algo que se origina “verdade” da qual tudo que fosse verdadeiro de-
na vontade do senhor. Compreende, portanto, penderia. Está aqui posto o “realismo extremo”,
uma subjetividade, por contraste com o caráter em sua raiz,2 pois, desta perspectiva, o termo que
objetivo da justiça. Mas se há pleno reconhecimen- se refere ao conjunto de particulares, como os
to da subjetividade individual, o texto de Buridan termos homem, casa, cão, teria seu corresponden-
a propósito do jus politicum de Aristóteles, longa- te real: uma “coisa” (res) universal estaria presente
mente citado por Brett, não permite falar em em cada homem, em cada casa ou em cada animal.
direito. Nesta passagem, Buridan legitima a liber- Roscelin de Compiègne (circa 1125) foi o
dade individual de adquirir bens, cujo limite é primeiro a reagir a este “realismo extremo” então
dado por efeitos perniciosos que possam advir em voga, sendo famosa sua afirmação de que o
para a comunidade. Brett tem clareza, entretanto, universal nada mais é do que o flatus vocis (o sopro
de que, apesar de defender este espaço de liberda- da voz) empregado para a classificação dos seres
de, Buridan não efetiva, a partir daí, conexões com individuais. Abelardo (1079-1142) também reagiu
a linguagem do direito. Pois direito aqui ainda não ao “realismo extremo”, mas sem aceitar o nomina-
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lismo de Roscelin, seu mestre. Irá reorganizar a ticulares (individuais) e universais, Abelardo dirá
disputa sobre os universais obedecendo ao proce- que o universal é aquilo que pode ser predicado
dimento posto por Boécio (480-524), que já havia de muitos termos devido à sua intenção (cf.
estabelecido a dicotomia “palavra/coisa”. Para tra- Schoedinger, 1996, p. 531). Dado que muitos
tar do assunto, Boécio havia organizado o tema nomes podem ser aglutinados por uma só pala-
com estas três questões: (a) os gêneros e as vra, o que o universal descreve é a unidade do
espécies existem ou são construtos mentais?; (b) se significado.
existem, têm existência corpórea ou incorpórea?; Trata então de indicar a razão pela qual
(c) os universais existem separadamente das coisas conferimos um nome universal a certas coisas.
sensíveis, ou nas coisas sensíveis? Abelardo dirá que o que leva a isto é o fato de que
Boécio teria respondido a estas questões tais coisas têm “algo” em comum, um status,4 antes
considerando que, se para Platão os universais que essência, que não é, entretanto, uma coisa.
eram reais e incorpóreos, e se para Aristóteles eram Aqui, o “flatus vocis” está sendo qualificado: os
conceitos, desde que o universal é comum a vários universais são palavras, uma representação da
indivíduos, não pode ele mesmo ser um indivíduo mente, que é menos indistinta que a coisa repre-
e, portanto, não pode ser uma substância sensível. sentada, pois que omite o que não for comum ao
Mas como o universal existe, não é simplesmente gênero ou à espécie.
uma palavra, ele corresponde a alguma realidade. Occam concorda que a mente humana efeti-
Então, Boécio afirma que o universal resulta de um vamente formula termos universais, mas a estes
trabalho da mente sobre os sentidos, subsistindo termos não correspondem seres, não tendo, pois,
em seres materiais, apesar de ser ele mesmo existência efetiva. Para ele, a coisa individual é a
imaterial. Boécio sutenta, pois, que o universal é única realmente existente; portanto, só ela pode
uma coisa. ser conhecida (Leff, 1968, p. 281), o que coloca em
Abelardo retomará estas questões3 sustentan- questão até mesmo a validade das inferências
do que o universal não é uma coisa, uma Forma, empíricas. Vejamos isto mais detidamente.
como querem os realistas, porque se o fosse, não Occam privilegia o conhecimento intuitivo
seria possível distinguir instâncias deste universal, que, envolvendo uma consciência imediata de
como Pedro e Paulo. Para evitar a alternativa um objeto, permite-nos atestar a existência de
nominalista, desenvolverá sua teoria da abstração. uma coisa. O conhecimento abstrato, por contras-
Tomando o entendimento como uma ativi- te, visa à compreensão, ao entendimento do que
dade (sensorial e intelectual), Abelardo dirá que foi constatado, lidando com proposições. Aqui,
a mente é capaz de distinguir entre matéria e estamos no campo da especulação, que não
forma, ainda que estas não existam em separado. pode levar a uma certeza como no primeiro tipo
É disto que trata a abstração, que é um sermone de conhecimento. Assim, não é possível conhe-
ou sermo, um conceito, similar à coisa entendida. cer, propriamente dizendo, os universais porque
A mente abstrai, toma algumas características da os universais não são uma coisa, mas um concei-
coisa que são idênticas a outras coisas do mesmo to. O conceito não tem existência objetiva, sendo
grupo, e produz sua expressão (cf. Knowles, uma “qualidade da mente”, apesar de guardar
1996, p. 103). Se a proximidade com Aristóteles é uma relação de semelhança com a coisa que é
notável, o termo universal, quando por ele utili- por ele representada.
zado, referia-se a algo que pudesse ser predicado Muito resumidamente, a argumentação de
de muitos termos e muitas coisas. Abelardo ques- Occam pode ser posta nos seguintes termos. Admi-
tiona esta definição, sustentando que os univer- tindo, como teriam afirmado Aristóteles e Averro-
sais só podem se referir a termos, posto que es, que toda substância é singular, Occam irá
“coisas” não podem ser predicados de muitos. Se sustentar que antes mesmo da adoção de palavras,
os gramáticos dividem os nomes em próprios e o intelecto contém noções de coisas que refletem
apelativos, se os dialéticos os distinguem em par- os objetos que conhece. Estas noções são os signos
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das coisas, como a idéia de homem, ou cão; “o individual e singular, e o processo de conheci-
signo pelo qual compreendo o homem é o signo mento é puramente intuicional.”
natural para homens, tal como a fumaça significa Seja como for, se os “universais” só existem
fogo, os lamentos, dor, ou o riso, o apreciar, na mente do homem (o que, de qualquer forma, é
gostar. Este signo significa homem, na proposição bem mais do que o “sopro da voz”), eles serão
mental, da mesma forma que a palavra pode tomados por Occam como os termos ou elementos
significar a coisa, na proposição falada” (cf. senten- essenciais da linguagem. Pensar, para Occam, é
ças 1, 2 e 7, apud Leff, 1968, p. 183). “Uma coisa ordenar estes signos. Assim, o universal deixa de
individual, uma rosa, um cão, evoca na mente ser um termo que expressa aquilo que existe por si
humana um sinal (‘signum naturale’) que é o para ser um objeto do pensamento, um artefato
mesmo em todos os homens, como um riso ou um mental. A palavra que usamos (rosa, cão) é o sinal
grito.” (Leff, 1968, p. 295). que conectamos à nossa intuição, e que a chama
Entendidos como as palavras que designam de volta. Com Occam, perde portanto significado
os atributos comuns a indivíduos, os universais são a idéia do ser como algo universal e abstrato, bem
termos exclusivamente mentais, são conceitos sem como toda a ciência do ser, a metafísica.
nenhuma realidade extra-mental (diferentemente Esse seu modo de pensar tem pelo menos
das palavras que designam este ou aquele indiví- duas conseqüências importantes (cf. Leff, 1968, pp.
duo, e que tem, portanto, como que um substrato 284 e ss.). A primeira delas é colocar em questão
empírico). Existem universais referidos aos signos inferências causais, exceto quando empiricamente
naturais e universais por convenção. Em quaisquer “corroboradas”. A “essência” torna-se inseparável
dos casos, o universal nada mais é do que uma da existência, uma vez que a matéria não mais é
intenção da alma: nada, nenhuma substância fora vista como potencialidade e sim como ato de
da alma é, neste sentido, um universal. Mas quan- existir. A segunda conseqüência é que, sendo o
do tomamos um universal por convenção, seu mundo composto de objetos discretos, não há
nome é simplesmente um signo cujo significado é como sustentar a representação aristotélica do
relativo às diversas realidades que designa, confor- universo. Segundo Libera (1998, p. 428), as únicas
me o ponto de vista daquele que o usa. relações admissíveis para Occam são as que se dão
De acordo com Libera (1998, p. 429), é entre os objetos naturais, como as de proximidade
possível para Occam passar do conhecimento in- ou afastamento espaço-temporal, causalidade, se-
tuitivo para o conhecimento conceitual porque o melhança etc. Assim, não seria mais possível dizer
conhecimento intuitivo de uma coisa singular se o universo é ou não finito, é ou não governado
produz, simultaneamente, seu conhecimento em por um Deus, eterno ou não, e mesmo se haveria
sua singularidade e seu conhecimento como um só ou muitos mundos. Essas incertezas, entre-
membro de uma espécie. Assim, “[a] intuição do tanto, não implicavam ceticismo, pois onde a razão
singular é simultaneamente empírica e eidética parava começava a potência divina, esta sim, abso-
(ao ver este homem vejo um homem)”. Passa-se, luta. Knowles chama a atenção para o fato de que
desta forma, do singular para a série, representa- Occam insistia em uma visão da ciência e da lógica
da pelo conceito. Já para Knowles, ao definir e como válidas em sua própria esfera, que não é a
justificar o que considerava ser o conhecimento, esfera das coisas que realmente existem, mas dos
Occam teria abandonado não apenas qualquer termos pelos quais elas se fazem representar em
forma de realismo, como qualquer forma de abs- nossas mentes.
tração intelectual. A mente do homem, sintetiza Para melhor compreender essa segunda con-
Knowles (1996, p. 293; grifo meu), “não abstrai seqüência, cabe retomar o argumento de Occam.
essência ou natureza da coisa conhecida porque Diz ele (caps. 15 e 16 da Summa logicae, apud
não é possível demonstrar a existência nem do Schoedinger, 1996, pp. 604-607): há quem diga
processo mental de abstração, nem de qualquer que o universal está fora da alma do indivíduo,
natureza a ser abstraída. Tudo que é conhecido é ainda que dela se distinga apenas formalmente.
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Assim, em Sócrates a natureza humana estaria as à sua vida. Para demonstrar a possibilidade do
“contraída” em uma diferença individual, que não ato que não é justo nem injusto, Occam recorre à
se distingue realmente mas formalmente da noção de virtude (coisas que são boas mas que não
natureza. Mas, argumenta, quem afirma a existên- são, em si, nem justas nem injustas, como, por
cia desta exterioridade está sustentando que a exemplo, a castidade) e à noção de que existem
diferença individual é própria e que o universal é atos lícitos que não são, propriamente falando,
comum. Ora, uma mesma coisa não pode, simulta- justos.
neamente, ser comum e própria; portanto, o uni- A partir daí, Occam desenvolve a idéia de um
versal não é a mesma coisa que a diferença indivi- jus in rebus, o direito às coisas, mais especifica-
dual. Conclui então que a diferença individual é mente o simplex usus (cf. Brett, 1997, pp. 16-18).
não apenas própria (e não comum), como é a Para formulá-la, irá conferir um sentido original ao
própria natureza, posto que esta não é formalmen- jus naturale, afirmando que o direito de posse (ius
te distinta da diferença individual. Em uma subs- utenti) é natural e positivo, e que é o direito de
tância particular não há nada substancial, exceto a posse positivo, um direito jurídico, que os francis-
forma e a matéria particular, ou sua junção. canos não têm. O direito natural de usar, que é
É nessa demonstração que Occam deixará comum a todos os homens, por natureza e não por
claro que o termo “natureza humana” não deve ser qualquer convenção subseqüente (Brett, 1997, p.
tomado como um atributo dos homens, seres 64), é irrenunciável, sendo intrínseco à vida de
singulares. O individualismo que aqui está exposto todos os mortais. No entanto, clarifica Brett, este
é um individualismo radical: a ciência gravita em direito deve ser acionado apenas em situações
torno do indivíduo, pois só ele é dotado de extremas. É neste sentido que há uma licença para
existência real, sendo, portanto, nosso único obje- usar coisas que não pertencem aos franciscanos,
to de conhecimento. Occam introduz uma maneira licença que não é direito.
de raciocinar que elimina qualquer possibilidade A tese central de Villey (1964, p. 117) é a de
de postulação da existência de sistemas de rela- que Occam faz aqui uma revolução na ciência
ções ou teias interativas próprias à concepção jurídica, transformando o significado do termo
holística da justiça. É este o ponto que me leva a direito, que deixa de designar o bem propiciado
dar tanto destaque ao nominalismo em sua contri- pela justiça, para designar o poder que temos sobre
buição para a conceituação do direito subjetivo. um determinado bem. E este poder está claramen-
Não parece haver uma conexão imediata te especificado: não é a licença, a permissão, mas
entre esta reflexão de cunho propriamente filosó- aquilo do qual o homem não pode ser privado sem
fico e o tipo de argumentação desenvolvida por seu consentimento.
Occam para defender a Ordem Franciscana das Se classicamente a lei tinha o sentido de
contestações postas ao elogio da pobreza pelo evocar “a ordem do mundo”, Occam (aqui seguin-
papado. No entanto, como sustenta Villey (1964), do Duns Scottus) dirá que a lei é um comando
os dois movimentos guardam entre si enorme voluntário da autoridade. Faz, portanto, uma outra
afinidade. Fundada em 1209, a Ordem Franciscana leitura dos textos sagrados, acrescentando-lhes um
estava comprometida com a renúncia à proprieda- impulso personalista e libertário. Essa apreensão
de, à riqueza e ao poder (dominium) (cf. Brett, individualizada do direito natural, este que está
1997, p. 13). Occam enfrentava então o desafio de inscrito no coração dos homens, implica um corte
se contrapor à bula do Papa João XXII (1320), que radical com a concepção clássica de justiça natural.
sustentava que, sendo todo ato humano justo ou Enquanto pertinente à consciência humana, o
injusto, se os franciscanos não fossem proprietários direito deixa de referir-se à noção de justiça como
dos bens que usavam estariam sendo injustos ao “boa ordem” para ser algo a ser construído artifi-
se apropriarem deles para seu sustento. Tratava-se, cialmente.
portanto, de estabelecer a propriedade de usar Assim, à diferença de Tomás de Aquino,
coisas que não lhes pertenciam, aquelas necessári- Occam dirá que existem leis preceptivas (ame a
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Deus e ao próximo), leis interditivas (não rouba- do sua organização à vontade humana, antes que
rás, não matarás), e leis permissivas (onde não há a um desígnio divino. Se o corte com a visão
preceito ou interdição, cabe a liberdade ordenada medieval da sociedade é muito claro, ao conferir à
pela razão). Está aqui o fundamento da idéia de razão e à vontade humanas a capacidade de
direito subjetivo. A resultante dessa transformação ordenar a vida política, independentemente da
é a afirmação de que a lei positiva deriva do poder ordenação divina, a Segunda Escolástica manterá,
delegado do legislador, representante da multipli- basicamente, o conceito tomista de lei natural.
cação ilimitada de direitos subjetivos (Villey, 1964, Os primeiros princípios da lei natural seriam
p. 124). Posto que Occam não admite a existência o de fazer o bem, evitar o mal, e não fazer aos
de uma ordem supra-individual, não tendo a soci- outros o que não se quer que a si se faça. Destes
edade uma realidade efetiva, a noção clássica de princípios seriam derivados outros, de segunda
justiça desaparece. ordem, do tipo não matar, não roubar, e ainda os
Posto isto, podemos agora entrar na Segun- de terceira ordem, como os que especificam em
da Escolástica, propriamente dita, destacando a que circunstâncias a guerra, por exemplo, é justa.
maneira peculiar como esta escola de pensamen- Próximo do que seria razoável, costumeiro ou
to preserva uma perspectiva holista, conciliando normal, sua existência generalizada provaria seu
o conceito clássico de justiça com a liberdade caráter natural (Hamilton, 1963, p. 12). Mas os
individual, intrínseca ao conceito de direito sub- principais expoentes desta escola também questio-
jetivo. navam a tradição tomista: o bem e o mal eram
intrínsecos à natureza das coisas, e enquanto tal
necessários, ou definidos pela vontade divina, que
A Segunda Escolástica: o acordo entre
poderia ter feito tudo de outro modo? Tratava-se de
lei natural e direito subjetivo
uma lei divina positiva, chamada de natural apenas
A referência clássica para o exame da Segun- porque estava de acordo com a natureza, tal qual
da Escolástica segue sendo o trabalho de Gierke ela se apresentava? A razão humana era suficiente
(1934). Avaliando os esforços empreendidos por para sua apreensão?
Vitória, Soto, Suarez e Molina, dentre outros, Gier- Para Vitória (1485-1546), o que surge “da
ke sugere que os novos escolásticos teriam manti- própria coisa” é natural e necessário, como a
do, com um jeu d’ésprit engenhoso, a premissa capacidade de rir e de pensar é natural para o
individualista numa concepção de universitas. As homem (Brett, 1997, p. 126). Soto (1494-1560) dirá
teorias da lei natural que desenvolvem entre 1500 que a lei natural é mais facilmente apreendida pelo
e 16505 têm como característica central, sustenta instinto (e assim, da lei natural ninguém pode
Gierke, o fato de romperem com uma representa- alegar desconhecimento), sendo sua racionaliza-
ção do Estado como totalidade compreendida por ção propiciada pela lei humana positiva (Hamilton,
uma totalidade mais englobadora, que o define, 1963, pp. 14-15). A lei natural leva o homem a
para representá-lo como instituição auto-explicá- mover-se para seu fim, que é a sua liberdade: “[...]
vel. Ao mesmo tempo em que essas teorias perdem e isto é a lei natural, estes princípios que, sem
seu teor teocrático, muda também o foco analítico. raciocínio discursivo, são aparentes per se, por
Não se trata mais de tomar a humanidade como iluminação natural” (Brett, 1997, p. 142). Além
objeto da filosofia política, mas de analisar o desse conhecimento inato do fim a ser buscado por
Estado como unidade formada pela união de indi- suas ações, o ser humano tem uma inclinação
víduos, em obediência aos ditames da lei natural para realizar o seu próprio bem (a virtude) que o
(Gierke, 1934, p. 40). conforma com a lei eterna. Assim, “[...] tanto de
O que está sendo dito aqui é que, para os acordo com seu conhecimento, quanto de [acordo
novos escolásticos, o Estado é uma instituição que com] sua propensão para o bem — ambos neces-
se desenvolve naturalmente, dada a tendência sários para o movimento livre —, as ações huma-
associativa própria aos seres humanos, obedecen- nas estão sujeitas à lei eterna” (Brett, 1997, p. 143).
DIREITO SUBJETIVO — BASE ESCOLÁSTICA DOS DIREITOS HUMANOS 39

Suarez (1548-1617) concordará com Soto, personalidade. A idéia era a de que, para que o
argumentando que, se não fosse assim, os não- povo pudesse transferir para o governante o po-
cristãos estariam excluídos da participação na or- der, tinha de ser possuidor de direito, portanto, um
dem eterna, já que, por definição, desconhecem as “sujeito de direito”.6 Essa personalidade jurídica
“escrituras”. De sua contribuição ao debate, cabe era concebida como uma personalidade coletiva
ressaltar a distinção que estabelece entre a lei ou, mais precisamente, corporativa. Mas, se os
natural e a causalidade, que lhe permite especificar novos escolásticos pensavam o povo como perso-
a qualidade moral do ser humano. Sustenta Suarez nalidade corporativa (em consonância com a visão
que a lei natural se expressa no julgamento, na da sociedade como universitas), também pensa-
avaliação das alternativas a que o indivíduo proce- vam a comunidade como associação de indivíduos
de com vistas a orientar sua vontade (Haakonsen, que mantêm entre si relações recíprocas de deve-
1996, p. 19). É nesse sentido que deve ser compre- res e obrigações. A Segunda Escolástica concebia a
endida sua afirmação de que “a lei implica uma sociedade, portanto, como união de homens livres,
relação moral com o que deva ser feito e só a mas união que não podia deixar de ocorrer, dada
inteligência é capaz deste governo” (Suarez, De a sociabilidade natural. Daí que o träger dos
legibus, apud Hamilton, 1963, p. 21). Por sua vez, direitos ora é o povo, ora o conjunto dos indivídu-
Molina (1536-1617) dirá que, se a lei natural co- os. Se estas representações eram contraditórias,
manda ou proíbe por si mesma as paixões huma- delas era possível extrair a idéia de um sujeito
nas, o caráter intrincado daquilo que se quer grupal, distinto da soma de seus membros.7 Por
conhecer e, finalmente, a preguiça, a incultura, em esta razão, o enfoque da Segunda Escolástica
suma, defeitos do sujeito do conhecimento são as incidirá menos sobre a liberdade e mais sobre o
fontes possíveis de erro em sua apreensão (Hamil- bem-estar das pessoas.
ton, 1963, pp. 18-19). Vejamos agora como a idéia do direito subje-
Ao desenvolverem este tipo de raciocínio, es- tivo se desenvolve dentro desta perspectiva. Asso-
ses novos escolásticos estão também respondendo à ciando ao direito a noção de obrigação (pois o
Reforma, insistindo que, no homem, preserva-se uma direito natural indica a necessidade que os indiví-
“graça interior” que o habilita a alcançar a justiça exer- duos têm de viver em sociedade), Vitória teria
cendo sua liberdade ao mesmo tempo em que obe- usado o termo “direito subjetivo” para referir-se ao
dece à lei divina. Ao fazê-lo, acabam por reelaborar a direito de pertencer a uma comunidade política,
concepção tomista de justiça, atribuindo um signifi- sendo a civitas imprescindível para remediar as
cado bem mais decisivo à razão, em sua concepção deficiências humanas.8
de lei natural. Mas o universo social segue sendo visto Mas Vitória conferiu ao termo um segundo
como inscrito num contexto natural de obrigações significado ao conectar o direito subjetivo ao
mútuas; mesmo afirmando que todos os homens são domínio. O domínio pode ser apreendido como
livres, iguais e independentes (Skinner, 1996, p. 433), uma certa eminência ou superioridade e, neste
a Segunda Escolástica não os toma como seres na- caso, não é o mesmo que o direito, dado que, por
turalmente solitários. A conceituação dos homens exemplo, a mulher tem direito, mas não domínio,
como zoon politikon continua sendo a conceituação sobre o marido. Mas domínio e direito podem ser
dominante, seguindo Aquino e Aristóteles. Conforme entendidos como termos equivalentes, quando a
Vitória, “é de fato essencial ao homem jamais viver so- ênfase recai no poder da vontade: é direito o que o
zinho” (Skinner, 1996, p. 434). A comunidade políti- dominus decide. O que está sendo destacado aqui
ca, portanto, é apreendida organicamente, não ha- é a liberdade própria à pessoa independente,
vendo lugar para a idéia de subordinação dos indiví- capaz de exercer seu poder sobre coisas e pessoas.
duos ao Estado, e sim de todos à lei natural. Vitória teria reservado, portanto, um espaço, por
Gierke esclarece essa maneira de conceber a assim dizer, dentro da civitas, da cidade, para o
sociedade política. Até Hobbes, nos diz ele, admi- exercício deste direito. Mais do que isto, ao definir
tia-se que o povo, base da soberania, possuía a conservação da vida humana como um direito,
40 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

que provém da lei natural, Vitória sustentará que o garras e chifres que o defenda e que precisa da
poder do governante é poder consentido pelo sociabilidade. A passagem onde Soto indica como
povo. Está aqui uma representação radicalmente a comunidade política se constitui deixa claro que
democrática de governo, com base individualista, a reunião de todos sob um mesmo governo res-
mas desenvolvida no contexto de um concepção ponde a uma sociabilidade natural, a uma impos-
holística da vida política. Esta representação, entre- sibilidade de sobreviver isoladamente; não há aqui
tanto, não se faz sem tensão. a fria (calculista) lógica do pacto.
Na medida em que essa liberdade é perce- Mas é com Molina e Suarez, jesuítas que
bida como um direito, cria-se uma tensão entre rivalizavam com Vitória e Soto, que o conceito de
os dois tipos de “direitos”: viver em uma comuni- direito subjetivo ganha momento. Molina tinha
dade política, cumprir seus ordenamentos, e vi- uma concepção de vontade que lhe levava a
ver livremente. No âmbito da (primeira) Escolás- definir o direito como uma faculdade de se portar
tica não havia conflito, pois se a noção de liber- livremente, o que será reafirmado por Suarez: “a
dade ocupava um lugar de centralidade, por ser liberdade é um assunto do direito natural [...]
uma noção imprescindível à idéia de ação meri- posto que a natureza confere ao homem o verda-
tória, de salvação, o espaço da liberdade era deiro domínio de sua liberdade” (cf. Tuck, 1979,
entendido como um espaço distinto daquele pró- p. 56). A justiça não se refere apenas ao que é
prio à sociedade organizada. A tensão instaura-se certo, mas indica também “uma certa capacidade
quando a liberdade de agir passa a ser ordenada moral que todos possuem”; diz respeito, portan-
pela esfera jurídica, que deverá conciliar direitos to, a um direito, no sentido de “ter-se um direito
individuais e corporativos. em relação a determinada coisa” (cf. Suarez, Tra-
De acordo com Brett, a obra de Soto, princi- tado das leis e de Deus legislador, apud Skinner,
pal discípulo de Vitória,9 pode ser compreendida 1996, p. 452). O direito subjetivo passa a ocupar,
como voltada para a resolução dessa tensão. Soto nesta construção discursiva, o lugar daquilo que
teria reconciliado os dois sentidos conferidos por deve ser garantido para que os fins, determina-
Vitória ao direito, como parte de um projeto mais dos pela lei natural, sejam realizados. E esse di-
amplo de harmonizar as demandas de uma socie- reito implica o poder ou domínio sobre nós mes-
dade política orgânica com a liberdade individual mos (a liberdade), sobre os bens do mundo (a
(Brett, 1997, p. 8). Usando criticamente a metáfora propriedade) e sobre outros, instituídos por qua-
do corpo, do qual o soberano seria a cabeça, Soto si-contratos. Assim, Molina e Suarez, mesmo to-
insiste que, à diferença de um membro do corpo mando o povo como corporação, tenderão para
humano, que de fato não existe por si, fora do sua representação como societas. O povo vai-se
corpo, as pessoas existem fora da comunidade e dissolvendo em um sistema de direitos e obriga-
que, portanto, são passíveis de serem prejudicadas ções individuais recíprocas à medida que a von-
pela ação do soberano. Além disso, o soberano tade comum se vai decompondo em um acordo
não tem direitos sobre a propriedade das pessoas, de vontades individuais (Gierke,1934, pp. 45 e
à diferença da mente que, supostamente, é dona 245).
de seu corpo. Se, como membro da sociedade, o O final dessa controvérsia é bem conhecido.
indivíduo deve atuar de acordo com o direito Grotius irá ajustar o texto aristotélico à sua pers-
público, como indivíduo ele tem de exercer seu pectiva individualista e radical do direito natural,
próprio controle: deve ser “sui iuris, ter domínio abandonando posteriormente a teoria de justiça de
sobre si e sua liberdade” (cf. Brett, 1997, p. 159). Aristóteles ao relacionar a justiça diretamente ao
E isto vai até o ponto em que a comunidade direito (ainda que mantenha um comunitarismo,
política não pode obrigar um indivíduo a “cortar na forma da “caridade interpretativa”). Selden com-
sua perna para se salvar”: só o indivíduo é respon- pleta a perspectiva individualista e hedonista da
sável pela maneira como preserva sua própria vida. obrigação moral, permitindo a obra central de
Mas Soto insiste também que o homem não tem Hobbes. Ao eliminar a possibilidade de um duplo
DIREITO SUBJETIVO — BASE ESCOLÁSTICA DOS DIREITOS HUMANOS 41

contrato, Hobbes elimina a figura da “personalida- como mais uma evidência do caráter histórico e
de corporativa”. E “ao fazer do indivíduo um particular dos direitos humanos.
sujeito onipotente, força-o a que se destrua com- No entanto, gostaria de situá-lo fora, por
pletamente, entronizando o poder absoluto do assim dizer, dos marcos dessa polêmica. Uma
Estado” (Gierke,1934, p. 61). observação atenta da “cultura” dos direitos huma-
nos permite notar que seu ideário ainda encontra-
se em plena articulação. Cabe, pois, refletir sobre
Conclusão
ele não como uma doutrina, mas como um espaço
Identificado o contexto intelectual que propi- possível de constituição de consenso para legiti-
cia a formulação do conceito de direito subjetivo, mação da autoridade governamental. Neste senti-
creio ter exposto a base que permite a enunciação do, importa menos o caráter universal ou particular
dos direitos inalienáveis do ser humano, alicerça- da conceituação da “natureza humana”, e mais o
da, à diferença de nosso saber contemporâneo, em princípio de universalização aí contido. Em outras
um leitura holística da justiça. palavras, o que interessa compreender são as
Este ensaio não pretendeu ser, exclusiva- condições que permitem generalizar o campo de
mente, um relato do movimento de idéias, ainda validade das proposições aí enunciadas. Se exami-
que tenha sido praticamente dedicado a isto. Se narmos os textos que declinam, especificando, os
procurei seguir tão cuidadosamente quanto possí- direitos individuais e sociais, considerados todos
vel a reflexão sobre justiça que desembocou na direitos humanos inalienáveis, encontraremos, em
formulação de um direito subjetivo, é porque en- uma mesma “declaração”, a defesa radical da liber-
tendi que o esforço de reflexão ali empreendido dade de apropriação dos bens coletivos e o direito
ainda hoje pode ser válido para uma melhor de todos usufruírem destes bens, algo só possível
compreensão dos dilemas com os quais nos de- se tais bens forem infinitos. Enfatiza-se a igualdade
frontamos ao desenvolver nossas próprias concep- entre todos e o direito à diferenciação, propostas
ções de justiça. que, se implementadas, não propiciam a justiça
Investigando a linguagem em que se ex- mas a anomia. Ao retomar um momento da filoso-
pressa o debate contemporâneo acerca dos direi- fia política em que a liberdade individual estava
tos humanos, dois temas (interligados) revelaram- garantida numa representação holística da socieda-
se recorrentes na literatura especializada. O pri- de, estou também mostrando a possibilidade de
meiro deles centra-se na questão do caráter uni- articular tais direitos em outras bases, que evitem
versal destes direitos. Se a maneira como este este tipo de dificuldade.
debate se organiza deriva da problemática do Se o que foi exposto acerca da Segunda
“relativismo cultural”, posta pela Antropologia, o Escolástica permite vislumbrar uma ordem política
que está subjacente à discussão em curso é a na qual a compreensão da sociedade a ser por ela
conceituação da natureza humana. Para que seja regida abriga um espaço considerável de liberdade
possível declinar os direitos do indivíduo, é pre- individual, o que fica em questão não é tanto a
ciso admitir o valor intrínseco de cada ser huma- maneira como estão articulados os direitos indivi-
no, independentemente de sua construção pela duais e sociais, mas a representação da sociedade
cultura específica à qual pertence. A “dignidade como emanando exclusivamente da vontade sobe-
da pessoa humana”10 é inquestionável, sustentam rana dos indivíduos. Neste sentido, talvez possa-
os universalistas, porque cada indivíduo da espé- mos tomar a passagem dos direitos de primeira
cie humana tem um valor moral inviolável. A para segunda geração como um retorno a uma
perspectiva culturalista contra-argumentará que o noção forte de sociedade, contemporânea do
conceito de indivíduo moral não é um conceito saber sociológico, que marca o século em que
universal, e que esta presunção universalista re- estes direitos buscam se universalizar, pelo menos
vela apenas o vigor das crenças iluministas. O como referência obrigatória em toda justificação
argumento aqui apresentado pode ser tomado do poder do Estado.
42 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 14 No 41

NOTAS sociedade dependia do julgamento arbitrário de “reis


primitivos”, enquanto que no segundo dependia de leis.
A passagem de uma para a outra far-se-ia com base na
1 No mesmo veio interpretativo, Yack (1990) especifica eloqüência, a capacidade de bem raciocinar (Tuck,
que os cidadãos consideram que seus atos são justos ou 1979, pp. 33 e 37).
injustos tendo em vista os acordos que estabeleceram
entre si ou os méritos intrínsecos à ação. Nesta última 9 À diferença de seu mestre, Soto escreve muito, tendo
modalidade de julgamento há algo que é natural, mas lançado 27 edições de seu livro sobre a justiça antes de
que não se deve prestar ao mal-entendido de achar, com findar o século XVI.
Aristóteles, que a natureza nos daria um padrão ineren- 10 De acordo com Brett, é na reflexão de Denis le Char-
temente correto para julgar. De acordo com a leitura treux (início do século XV) acerca da justiça que se
feita por Yack, Aristóteles está dizendo outra coisa. Ele encontra a primeira menção à “dignidade humana”.
está simplesmente sustentando que “a necessidade que Denis define a justiça como a virtude da vontade de dar
os cidadãos sentem de julgar e desenvolver uma argu- a cada um o que lhe é devido. Mas isto que é devido é
mentação neste julgamento a respeito do valor intrinse- também uma dignitas. Pois o que cada um merece é
camente justo de suas ações é algo que se desenvolve aquilo que é digno de receber (cf. Brett, 1997, p. 106).
naturalmente dentro das comunidades políticas”. O que Aqui, a noção de direito já está muito próxima da do
a natureza nos daria seria a capacidade de formar direito subjetivo, no sentido de que a dignidade já é
comunidades políticas onde dependemos uns dos outros quase um atributo do sujeito. Mas ainda não está
quanto aos julgamentos acerca dos méritos intrínsecos estabelecida, na medida em que de forma alguma a
de nossas ações. Yack nos adverte, assim, do equívoco idéia de um poder individual está presente.
de assimilar esta idéia fundamental de Aristóteles a suas
referências ao caráter natural da escravidão ou do
paternalismo, entre outras. BIBLIOGRAFIA
2 Identificar o “realismo extremo” com o idealismo, como
se faz hoje em dia, seria, de qualquer forma, despropo- ARISTÓTELES. (1987), The Nicomachean ethics.
sitado. É melhor usar o termo “fundamentalismo”, por- Oxford, Oxford University Press.
que aqui está indicada a particularidade dessa filosofia
que busca fundamento (sólido, eterno se possível for) BIGONGIARI, Dino. (1953), The political ideas of
para nossa representação do mundo. St.Thomas Aquinas. Representative selections.
Hafner Press.
3 Abelardo agrega mais uma questão, quanto à perma-
nência ou não do significado de um universal caso seu BRETT, Annabel S. (1997), Liberty, right and nature.
referente deixasse de existir, que não interessa conside- Cambridge, Cambridge University Press.
rar dado o uso que estou fazendo desta problemática.
EWALD, F. (1985), L’État providence. Paris, Grasset.
4 Leff (1968, p. 110) esclarece: o status lida apenas com
as características gerais presentes nas impressões senso- GIERKE, Otto. (1934), Natural law and the theory of
riais e abstraídas de um certo número de indivíduos. society — 1500 to 1800. Cambridge, Cambrid-
Esta impressão, uma vez em nossa mente, não represen- ge University Press.
ta mais qualquer indivíduo particular e pode sobreviver
às mudanças no objeto. HAAKONSEN, Knud. (1996), Natural law and moral
5 O corte em 1650 corresponde ao texto hobbesiano que philosophy. From Grotius to the Scottish enli-
radicaliza estas teorias, ameaçando, no dizer de Gierke, ghtment. Cambridge, Cambridge University
a própria sobrevivência de uma lei pública genuína. Press.
6 De resto, era este poder popular, que não era o poder de HAMILTON, Bernice. (1963), Political thought in XVI
cada indivíduo, que permitia legitimar a resistência à century, Spain. Oxford, Oxford University
tirania.
Press.
7 Creio que essa idéia poderia ser recuperada para iden-
tificar o “sujeito” dos direitos sociais, questão problema- HART, H.Lª. (1955), “Are there any natural rights?”, in
tizada por Ewald (1985), cuja resolução pareceu-me J. Waldron (ed.), Theories of rights, Oxford,
precária (Oliveira, 1997). Oxford University Press.
8 Aqui fica claro um dos principais legados do humanis- HOLT, R. (1997), Wittgenstein, politics and human
mo renascentista para a Segunda Escolástica, nesta rights. Londres, Routledge.
ênfase concedida à capacidade de a legislação remediar
os “males” da vida em sociedade. Os renascentistas, KNOWLES, D. (1996), The evolution of medieval thou-
apoiando-se no De inventione, de Cícero, ao distingui- ght. Londres, Longman.
rem “vida civilizada” da barbárie, caracterizavam como
a principal diferença entre o ius gentile e o ius civile o LAFER, Celso. (1995), “A soberania e os direitos
fato de que, no âmbito do primeiro, o governo da humanos”. Lua Nova, São Paulo, Cedes, 35.
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