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Nessa trajetória tão arduamente palmilhada, os livros são marcas da evolução da viagem. E,
apesar da reiteração de significados, caracteres e situações, cada livro constitui uma nova
experiência, em termos de estrutura narrativa. Cada livro reabre o outro, mas não como
continuidade nem o tomando a partir do ponto em que foi interrompido, mas como se
estivessem todos inacabados, como se o autor estivesse recomeçando sempre a mesma
pesquisa, em um processo obsessivo, que culmina com o texto autobiográfico, mas mesmo
aí sem se fechar. Não é, portanto, por acaso que às Memórias do cárcere falta(m) o(s)
último(s) capítulo(s)." (Hermenegildo Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e
testemunho, p. 15)
"Se a biografia é, como quer Gusdorf, uma segunda leitura da experiênca, e se é mais
verdadeira do que a experiência porque soma à experiência as memórias de um escritor, no
sentido pleno do termo (isto é, não apenas no sentido de que o escrito relembra
acontecimentos significativos da sua vida, mas também no sentido de que ele escreve a
memória da(s) sua(s) obra(s)), são a autoconsciência da sua trajetória literária. Para Hegel,
a consciência de si é o lugar de nascimento da verdade, quando então um novo modo de ser
aparece. Esse modo de ser que antes não existia passa agora a determinar a compreensão
das experiências vividas." (Hermenegildo Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e
testemunho, p. 17)
"A releitura da obra pode se realizar por o autor desdobra-se em personagem e como tal
revive as tramas das suas obras anteriores, quer de modo declarado, por intermédio de
ocmentários, quer veladamente, misturando-as, confundindo-as com a trama das Memórias
do Cárcere. Logo no segundo capítulo da Prieira Parte, o autor comenta o seu processo de
criação referindo-se às dificuldades de escrever Angústia: 'Na casinha de Pajuçara fiquei até
a madrugada consertando as últimas páginas do romance. Os consertos não me satisfaziam:
indispensável recopiar tudo, suprimir as repetições excessivas'." (Hermenegildo Bastos.
Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho, p. 17)
"Aí ressurge, na pele do personagem José, da Colônia Correcional, o moleque José, de
Infância. Não se trata de mera coincidência de nomes, as das condições de vida que são
comuns aos dois e, ao mesmo tempo, do relacionamento deles com o personagem
Graciliano. A condição que une os dois é a opressão. Já o personagem Graciliano vive aí a
dubiedade de quem nutre simpatia pelos oprimidos sem, entretanto, poder estar
efetivamente do seu lado. Essa percepção dos conflitos de classe está presente em todos os
livros de Graciliano Ramos. Como veremos, a lucidez e a sinceridade com que ele descreve
e expõe a sua condição dúbia de classe torna única a sua obra na literatura brasileira."
(Hermenegildo Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho, p. 17-18)
"O outro permanece outro, embora seja um momento do eu. Graciliano Ramos retoma essa
questão (colocada de modo mais ou menos pertinente por vários críticos e mesmo por ele
em entrevistas, cartas, etc.) e reafirma a 'outridade' como condição do eu. Ele não é Luís da
Silva ou Fabiano, mas estes são pedaços dele." (Hermenegildo Bastos. Memórias do
Cárcere: Literatura e testemunho, p. 18-19)
"A literatura é uma questão na obra de Graciliano Ramos desde Caetés. É tratada como
instituição que deve ser combatida como a sociedade da qual faz parte. É dessa forma que
na quase totalidade dos seus romances o protagonista é escritor. Critica-se então o
beletrismo. Ao mesmo tempo, a literatura aparece como algo vital, algo capaz de dar
sentido à vida." (Hermenegildo Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho, p.
22-23)
"Faltara ao autor o tempo necessário para dar os retoques finais, suprimir repetições e
escrever o(s) capítulo(s) final(is). Às vezes, em conseqüência disso, o texto pode dar uma
ideia de desorganização, de imperfeição. Entendemos, porém, que o desdobramento do
testemunho sobre o "fascismo tupinambá", desdobramento em várias outras narrativas,
resulta em uma mistura necessariamente imperfeita na qual os subtextos não perdem suas
especificidades. A aparente desorganização e certas falhas na costura dos textos integram a
estrutura do livro." (Hermenegildo Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho,
p. 25)
"Quanto à tentativa que o PCB fez de censurar as Mc, sabe-se hoje que ela de fato ocorreu e
que foi energicamente repudiada por Graciliano e, após a sua morte, pela família. Filiado ao
PCB logo após sair da prisão, Graciliano sempre manteve o distanciamento necessário à
construção de uma obra independente e crítica, isto é, autônoma. As suas dificuldades dom
partido acentuaram-se a partir de 1948, algum tempo depois de acabada a guerra e já na
fase da Guerra Fria. Como nos conta Dênis Moraes, o endurecimento das relações entre os
Estados Unidos e a União Soviética, antigos aliados na luta contra o nazifascismo, resultou
em uma política cultural maniqueísta, que separava os artistas e os intelectuais em dois
grupos antagônicos e sem conciliação possível. Os escritores comunistas, segundo a
orientação então vigente, deveriam se pautar pela doutrina do realismo socialista, que
legava a arte a segundo plano, estabelecendo o trabalho de conscientização das massas
como meta primordial. A Graciliano interessou sempre a literatura colmo forma superior de
testemunho sobre o homem e a história e, como tal, outra não poderia ser a sua reação que
não a de repulsa a essa orientação. Para ele, importava produzir uma representação da
realidade na perspectiva das massas, mas não de fazer da sua literatura um instrumento de
doutrinação, o que transformaria o discurso literário em discurso político ou pedagógico."
(Hermenegildo Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho, p. 25)
"As Mc são um texto escrito dez (ou onze?) anos após os acontecimentos narrados e vividos
pelo autor. A unidade da narrativa é problemática de qualquer forma, tenha ou não o autor
tido tempo de dar os retoques finais, pois não é uma obra de ficção e sim um livro de
memórias, de lembranças de fatos realmente ocorridos. A distância entre o eu que narra e o
eu que viveu os acontecimentos é já, por si mesma, um problema, insolúvel, de unidade. É
como se alguém estivesse retrabalhando um texto de outrem. Na obra ficcional, pelo
contrário, a identidade do eu é colocada ficcionalmente e assim também resolvida.
Entendemos, assim, que o último capítulo não foi escrito porque não há outro capítulo além
do 27 da Quarta Parte: após este já estava o personagem-autor fora da cadeia..., e seria uma
outra história. Também Clara Ramos entende que não finalizar o livro foi intencional.
Graciliano lançou mão de várias formas de racionalização para não terminar a obra. Ele
necessitava de justificativas 'para deixar o livro inacabado'. Sendo assim, ele ficava
'impedido de dar unidade às quatro partes da obra, limpá-las das repetições'. Assim, as Mc
que conhecemos n;ao resultam de uma impossibilidade de finalizar: o texto é o que é, a
sensação de que falta um fim (assim o leitor irá perceber) é parte dele." (Hermenegildo
Bastos. Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho, p. 27)
"Como se pode observar, a questão da identidade faz-se presente em vários níveis nas Mc,
assim também no conjunto da obra de Graciliano Ramos. inicialmente, a questão da
identidade coloca-se entre Graciliano-autor e Graciliano-personagem, por um lado, e por
outro entre o autor-personagem e os personagens fictícios; em seguida, manifesta-se como
um problema de gênero, a respeito das fronteiras entre ficção e memórias e entre literatura e
testemunho; em terceiro lugar, deparamos com o problema da identidade entre Graciliano-
autor e Graciliano-leitor, uma vez que, para rever sua obra ele se desdobra, avaliando-a,
muitas vezes de maneira extremamente impiedosa; Graciliano-leitor prevê a recepção da
obra, prepara-a, reponde a possíveis questionamentos, etc. Ao lado disso, um outro
problema de identidade é caracterizado, é o conflito de classe vivido pelo leitor-autor,
dividido entre dominantes e dominados, situando-se de modo ambíguo como intelectual em
uma não-posição, em um terreno movediço. Acentuando essa aporia, ele não poupa críticas
à própria obra, por manter-se prisioneira dessa ambivalência. Por fim, as Mc colocam-se de
duplo modo no conjunto da obra, como parte do conjunto e, ao mesmo tempo, como projeto
que dele se formula, elaborado no fim ao invés de no começo. Ele se constrói ao mesmo
tempo que a obra, e só no final, retrospectivamente, se completa." (Hermenegildo Bastos.
Memórias do Cárcere: Literatura e testemunho, p. 29)
"A dor é uma constante na obra do escritor, a dor social e a dor humana, presentes em seus
romances e em sua obra memorialística. Essa presença temática o levou a enveredar pela
confissão, pelos meandros da memória, resgatando suas experiências como criança
(Infância) e como preso político (Memórias do cárcere), passagens que o marcaram
profundamente e foram ficcionalizadas seguindo o princípio de só "expor a coisa observa e
sentida." (Tania Nunes Davi. Subterrâneos do autoristarismo em Memórias do cárcere de
Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, p. 30-31)
"Se a análise de sua obra, em conjunto, deixa entrever o exercício da técnica literária de
escritor, não encobre também o conflito social, a tensão que ocorre entre o homem /
homem, homem / natureza, homem / sociedade. [...] Se o ser humano não é popado, a
sociedade não permanece impune e emerge enquanto geradora das 'lesões humanas'. A
universalidade de sua obra parece sustentar-se justamente sobre essa gama variada da
humanidade [...], obra que coloca em questão a moralidade, a solidariedade e a
sensibilidade humana." (Tânia Reina de Souza. A infância do velho Graciliano. IN: (Tania
Nunes Davi. Subterrâneos do autoristarismo em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos
e Nelson Pereira dos Santos, p. 28-29)
Esse boom ensaístico, apesar de importante, não foi o único filão deste período. Bosi (em
História concisa da literatura brasileira) considera que entre 1930 e 1940, temos a era do
romance brasileiro. Nesses decênios os escritores brasileiros procuraram ultrapassar o
realismo científico e impessoal da narração-documento, dando lugar às interpretações de
vida e história por meio de pesquisa humana e social, propondo-se a expor a fraqueza e a
força do ser humano frente às intempéries sociais, políticas, econômicas e culturais do
Brasil. Preocupações que perpassam os escritos de Graciliano Ramos e o marcam como um
dos grandes representantes do gênero, seja como memorialista (Infância, Memórias do
cárcere) ou romances (Caetés, São Bernardo, Angústia, Vidas secas). (Tania Nunes Davi.
Subterrâneos do autoritarismo em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos e Nelson
Pereira dos Santos, p. 28)
“Podemos perceber que a pretensa objetividade fotográfica, almejada e praticada por alguns
setores da literatura brasileira no começo do século XX, não era total. Ela foi pouco a
pouco perdendo espaço para análises sociológicas, econômicas e históricas. Escritores,
como Graciliano Ramos, romperam com essa estética ao tornar explícito em seus romances,
nos quais a série se opõe ao ciclo, o trabalho de linguagem, “jogando por terra a obsessão
fotográfica e documental dominante no neonaturalismo de trinta. [...] Graciliano foge a
regra. [...] Uma literatura que se afirma como ficção à obsessão fotográfico-documental do
decênio de trinta.” (Flora Sussekind, Tal Brasil, tal romance? IN: Tania Nunes Davi.
Subterrâneos do autoritarismo em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos e Nelson
Pereira dos Santos, p. 29)
“As prisões pelas quais o escritor passou são uma metáfora da sociedade brasileira. Com
elas, Graciliano construiu um microcosmo de um Brasil marcado pelas desigualdades
expressas nos vários tipos humanos encontrados e nos lugares nos quais esteve preso.
Lugares que configuram uma descida de preso de alta classe, passando por prisioneiro
remediado, até ser atirado a enxovia da ralé, na Colônia Correcional de Dois Rios, na Ilha
Grande, litoral do Rio de Janeiro.” (Tania Nunes Davi. Subterrâneos do autoritarismo em
Memórias do cárcere de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, p. 34)
“O primeiro salto para baixo na escala das prisões foi dado durante a transferência no porão
do navio Manaus para o Rio de Janeiro. Nele estavam espremidos cerca de trezentos
prisioneiros detidos no Nordeste sob a acusação real ou suposta de participação na
Intentona Comunista. Todos eles fazendo uma viagem ao sul por conta do governo, num
calhambeque muito vagabundo, insalubre, sem higiene, no qual os pés machucavam coisas
moles, dando a impressão de pisar lesmas, num terrível fedor acrescido do calor da fornalha
e da fumação dos cigarros, formando espesso nevoeiro: uma escuridão brfanca de trevas
luminosas num mar de redes, fardos humanos abatidos pelos cantos, a arquejar no enjoo, a
vomitar. O ato de escrever o salvou de enlouquecer, tanto neste como em outros
momentos.” (Tania Nunes Davi. Subterrâneos do autoritarismo em Memórias do cárcere de
Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, p. 35)
“Como já abordado anteriormente, Graciliano não escreveu sobre sua libertação; Memórias
é uma obra inacabada, mas ainda assim é um dos seus livros mais dolorosamente
construídos, sofridos e tocantes. O leitor se vê envolvido pela história e mal percebe que
trilho quase setecentas páginas de uma das narrativas mais densas sobre a
despersonalização, a violência e o arbítrio cometidos contra seres encarcerados por um
governo autoritário.” (Tania Nunes Davi. Subterrâneos do autoritarismo em Memórias do
cárcere de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, p. 37)
“Graciliano nada tivera com a rebelião de Natal e o levante do 3o Regimento. Também não
é comunista. Nunca fora. Limitara-se a acompanhar com interesse pelos jornais a
Revolução Russa. E, no começo dos anos 30, a dizer ‘cobras e lagartos do fascismo’ no Bar
Central. Os que convivem com ele são unânimes em proclamar seu total alheamento da
militância esquerdista.
A repressão que se abate sobre o país irá, no entanto, eleger o escritor como exemplo. Há
evidente intencionalidade na agressão que lhe preparam.” (Clara Ramos. Mestre Graciliano:
confirmação humana de uma obra. IN: Tania Nunes Davi. Subterrâneos do autoritarismo
em Memórias do cárcere de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos, p. 39)
"Isso nos leva a pensar numa das suas qualidades fundamentais: respeito pela observação e
amor à verdade. Como escritor, era compelido por força invencível a registrar os frutos da
observação segundo os princípios da verdade. Apesar de toda a severidade para com a
própria obra e o pavor vaidoso de lançá-la à publicidade, não pode deixar de escrever,
estilizar ou, mais tarde, registrar o que via. No tremendo porão do navio, na cela, na colônia
correcional quando o horror ou o tédio da situação o levaram ao jejum, à repulsa pelo
mundo, vai anotando a sua experiência febrilmente, sem parar." (Antônio Candido. Ficção e
confissão, p. 57)
"No porão do navio que o traz preso ao Rio de Janeiro, faz a experiência realmente infernal
da imundície, da promiscuidade, à mercê de determinações que ignora, sem noção do
destino que o aguarda. O seu ajuste à situação é eloquente; fecha o corpo, não ingerindo
alimento, nem o eliminando, numa crispação negativa; e, no meio do pandemônio e da
abjeção, redige sem parar notas em que descreve, pesa a situação, embora perdidas depois,
elas formarão o núcleo germinal das Memórias do Cárcere. Resiste, pois, tenazmente ao
meio, nega-se à suas leis e encontra equilíbrio, precário mas decisivo, nas pequenas folhas
de papel em que afirma a sua autonomia espiritual. A literatura é o seu protesto, o modo de
manifestar a reação contra o mundo das normas constritoras. Como em quase todo artista, a
fuga da situação por meio da criação mental é o seu jeito peculiar de inserir-se nele, de nele
definir um lugar." (Antônio Candido. Ficção e confissão, p. 63)
"No entanto, persiste em Memórias do Cárcere o pouco entusiasmo pelos homens, mesmo
quando os admira – pois ao faz~e-lo admira-se igualmente de que sejam dignos disso."
(Antônio Candido. Ficção e confissão, p. 67)
Graciliano Ramos: entre dois mundos.
Exemplo deste último: quando diz que mostrar gestos bons de militares pode dar uma falsa
idéia da cadeia, mas não faze-lo seria faltar com a verdade.
Hermenegildo, p. 32. Interpretação com sentido político. Por que a literatura? Memória é a
arma dos vencidos.