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Belo Horizonte,
2017
1. Introdução
Este trabalho visa estabelecer comparações entre os filmes Orestes (2015) e Que bom te ver
viva (1989), analisando suas semelhanças e diferenças no que tange uma elaboração histórica
e a performance da memória a partir dos procedimentos estudados ao longo do semestre,
como o testemunho, a encenação e, por fim, a utilização de arquivos.
O filme Orestes (2015) – com direção, roteiro e produção de Rodrigo Siqueira – usa a
tragédia grega de mesmo nome para fazer um paralelo entre a ditadura militar (1964-1985) e
a atual violência vivida por jovens negros e periféricos, que possuem suas vidas tiradas sem
nenhuma explicação pela Polícia Militar. Para isso, o filme conta com alguns procedimentos
fílmicos, como o psicodrama, o testemunho, arquivos e a encenação.
Já o filme Que bom te ver viva (1989), da diretora Lúcia Murat, é um longa-metragem
construído por memórias e testemunhos de 8 mulheres que foram presas, torturadas, e/ou
sequestradas pela ditadura militar do Brasil. Além disso, o filme conta ainda com 15
monólogos interpretados pela atriz Irene Ravache, cuja personagem também representa uma
vítima deste contexto histórico. O documentário é, assim, construído pela presença de
testemunhos, arquivos, voz off e encenação.
2. Análise
Começaremos a presente análise tratando do testemunho, procedimento fílmico presente em
ambos os filmes. Em Que bom te ver viva, este testemunho é dado por 8 mulheres que
relatam suas histórias de militância contra a ditadura instalada no Brasil em 1964, sempre em
enquadramentos muito fechados, lembrando um retrato 3x4.
De acordo com Desirée de Lemos Azevedo, “o testemunho é uma das estratégias mais
relevantes dos ‘sobreviventes’ e ‘familiares’ na construção de sua dor pessoal como denúncia
pública” (2013, p. 19). Esse é o recurso mais explorado na construção do documentário em
questão, um dos primeiros a tratar sobre a experiência de mulheres no período ditatorial do
Brasil. Isto, por sua vez, ainda de acordo com a autora, é “influenciado pela emergência do
feminismo entre os movimentos sociais que renasciam no fim da Ditadura, manifestando-se
muito fortemente no processo de luta pela Anistia” (2013, p. 20).
A importância dos testemunhos como forma de elaboração coletiva e individual do trauma
também é discutida no documentário, onde tanto as testemunhas quanto a atriz dos
monólogos questionam-se sobre a política do silenciamento. Segundo Maria Rita Kehl, “não
há reação mais nefasta diante de um trauma social do que a política do silêncio e do
esquecimento, que empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da
história de uma sociedade” (2010, p. 9).
Porém, o que se verifica com Que bom te ver viva é que, muitas vezes, esse silenciamento
não provém apenas dos torturadores e defensores do regime militar, numa tentativa de apagar
o passado com o intuito de não ver suas consequências no futuro. O silenciamento das
vítimas, por vezes, parte das mais diversas camadas da sociedade, em um esforço constante
de não entrar em contato com tamanho sofrimento. É o que relata Estrela Bohadana:
Assim, os esforços do filme de produzir uma elaboração do trauma vivido durante o período
se faz extremamente necessário, visto que, de acordo com Lizandro Carlos Calegari, “o ato de
lembrar envolve um componente político, ou seja, ele se coloca contra o esquecimento e, o
que é o principal nisso tudo, trabalha no sentido de evitar a repetição do que já aconteceu”
(2013, p. 3).
Isso, de forma ainda mais explícita, é vista no docudrama Orestes, cuja obra é construída
baseada nas relações existentes entre a ditadura militar e a violência entranhada atualmente na
polícia. Maria Rita Kehl resume essa situação dizendo que “décadas de práticas abusivas
impunes zeram das polícias brasileiras um verdadeiro educandário a reproduzir
indenidamente a formação de ‘maus elementos’” (2010, p. 13). Essa relação é vista também
em Que bom te ver viva, que, “ao entrelaçar a memória da ditadura a outras formas de
violência, o filme obriga a audiência a pensar criticamente não só sobre o processo de
construção da memória coletiva, mas também sobre os efeitos que a ditadura tem no
momento presente” (BEZERRA, 2014, p. 44).
Para dar conta de tal elaboração, o filme Orestes também utiliza o testemunho como
procedimento fílmico. Assim, este conta com o discurso tanto de vítimas da ditadura quanto
de mães que tiveram seus filhos cruelmente assassinados pela polícia. O que ambos possuem
em comum? O fato de, mesmo tempos depois do ocorrido, ainda não possuírem uma resposta
concreta. Essa “impunidade não produz apenas a repetição da barbárie: tende a provocar uma
sinistra escalada de práticas abusivas por parte dos poderes públicos, que deveriam proteger
os cidadãos e garantir a paz” (KEHL, 2010, p. 7).
Outro procedimento fílmico que contribui para uma elaboração histórica é encenação,
também presente em ambos os filmes. No documentário Que bom te ver viva, este
procedimento é visto em 15 monólogos interpretados pela atriz Irene Ravache, que faz o
papel de uma ex-militante que, assim como as testemunhas, foi presa e torturada durante o
período da ditadura militar no Brasil. De acordo com Desirée de Lemos Azevedo,
A presença de arquivos também faz parte desse esforço de ambos os filmes no que se refere a
elaboração dos traumas vividos pelas vítimas do regime militar. No filme Que bom te ver
viva, fotografias e matérias de jornais do período são exibidas entre os testemunhos. Aqui, o
papel das fotografias está fundado na possibilidade de humanização das mulheres que estão
testemunhando, fazendo com que o espectador consiga elaborar uma imagem mais precisa
daquele contexto histórico.
As reportagens dos jornais – que também aparecem intercalados pelas falas das ex-militantes
–, por sua vez, além de ajudar na construção dessa imagem do que foi o período ditatorial,
apresentam ainda um papel mais histórico, com o objetivo de dar credibilidade e veracidade
ao que é dito pelas testemunhas. Assim, as falas das testemunhas são quase sempre ilustradas
por manchetes que confirmam o que foi dito anteriormente.
Já em Orestes, a presença do arquivo é vista majoritariamente nas fotos de infância mostradas
por Ñsaindy, filha de Soledad, sendo estas as únicas coisas que a ligam com seu passado –
mesmo que incerto, a ponto de não saber sua verdadeira história, total ou parcial. A ausência
da mãe, morta quando Ñsaindy era criança, é vista também nas (faltas de) fotografias. O pai,
por sua vez, está completamente ausente, aparecendo somente em uma foto tirada depois de
morto. “Sua ausência faz-se presente numa foto de Ñsaindy bebê, rasgada pela metade: ali,
um dia, estivera a imagem de seu pai, José Maria Ferreira de Araújo.” (FRANCO, 2016, p.
411)
O testemunho de Ñsaindy com os arquivos em mãos é intercalado por cenas que mostram um
computador fazendo pesquisas sobre Soledad Barrett Vidma, Cabo Anselmo e o Massacre
da Chácara São Bento – arquivos estes que, apesar de não tão nítidos, fazem parte da
construção do filme.
3. Conclusão
Apesar de tratarem do mesmo período histórico, podemos perceber que ambos os filmes
utilizam de maneiras diferentes os procedimentos fílmicos para a elaboração do trauma. Isso,
dentre outros muitos motivos, pode ser explicado pelo fato de que foram produzidos em
momentos diferentes da história. Enquanto Que bom te ver viva foi lançado em 1989, 4 anos
depois do período ditatorial do Brasil, Orestes foi lançado em 2015, 30 anos após seu fim.
Podemos notar também que, com o objetivo de elaboração do trauma, os dois filmes usam
procedimentos fílmicos semelhantes, como a encenação, o testemunho e os arquivos. Além
desses, ambos os filmes apresentam também algumas diferenças e singularidades, como a
presença da locução off no filme Que bom te ver viva e o psicodrama em Orestes.
CALEGARI, Lizandro Carlos. Testemunho, trauma e identidade em Que bom te ver viva,
de Lúcia Murat, Amerika, 2013.
DA COSTA BEZERRA, Kátia. Que bom te ver viva: vozes femininas reivindicando uma
outra história. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, núm. 43, enero-junio, 2014,
pp. 35-48 Universidade de Brasília. Brasília, Brasil.
FRANCO, Paula. O que a tragédia à brasileira nos ensina sobre justiça? Orestes, um
fragmento fílmico da história construída. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v.
8, n. 17, p. 409 - 415. jan./abr. 2016. Resenha de: ORESTES. Produção 7Estrelo Filmes,
direção de Rodrigo Siqueira. Brasil, 2015. 93 min. color.
KEHL, Maria Rita. O preço de uma reconciliação extorquida. In: O que resta da ditadura -
a exceção brasileira, São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.