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Ludwig Wittgenstein

Título o riginal: The Blue and Brown Books

® Basil Blackwell, 1958


Edição o ri ginal de Basil Blackwell, Limited

Tradução de Jorge Mendes

Revisão de tradução de Dr. Carlos Monrjão

O LIVRO
Revisão tipográfica de Artur Lopes Cardoso

Capa de Edições 70

AZUL
Depósito legal n.° 53.180/92

ISBN — 972-44-0842-6

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Esta obra está protegida pela Lei. Não pode ser rep ro duzida, no todo
ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia
e xerocópia, sem prévia auto ri zação do Editor. Qualquer transgressão à Lei
dos Di re itos de Autor será passível de procedimento judicial. edições 70
NOTA DO EDITOR PORTUGUÊS

O prefácio de R. R., datado de 1958, foi escrito para


a primeira edição do Livro Azul e do Livro Castanho,
publicados num único volume pela editora inglesa Basil
Blackwell . Deve ser, por isso, entendido como uma
introdução àquelas du as obras.
Na edição portuguesa, o Livro Azul e o Livro Castanho
são publicados separadamente. No entanto, pareceu-nos
importante conservar o prefácio, pois permite ao leitor situar
o Livro Azul no percurso seguido por Wi ttgenstein, desde
a publicação do Tractatus até às Investigações Filosóficas.
O Livro Castanho será brevemente publicado pelas
Edições 70.

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PREFÁCIO

Wittgenstein ditou o texto do «Livro Azul» (embora não


lhe desse este nome) aos seus alunos de Cambridge, durante
o ano escolar de 1933-34 e fê-lo policopiar. O texto do
«Livro Castanho» foi ditado a dois dos seus alunos (Francis
Skinner e Alice Ambrose) durante o ano de 1934-35. Deste
texto, apenas foram feitas três cópias dactilografadas e ele
apenas as mostrou a amigos muito próximos e alunos. Mas
as pessoas que as pediram emprestadas fizeram as suas
próprias cópias, que puseram circular. Se Wittgenstein
tivesse atribuído um titulo a estes textos ditados, ter-lhes-
-ia provavelmente chamado «Comentários Filosóficos» ou
«Investigações Filosóficas». Mas o p rimeiro texto tinha uma
capa azul e o segundo uma capa castanha e os títulos
actuais derivam do facto de sempre se ter falado deles
nestes termos.
Ele enviou mais tarde uma cópia do «Livro Azul» a Lord
Russell, d qual juntou uma nota.

Caro Russell
Há cerca de dois anos prometi enviar-lhe um dos
meus manuscritos. O que lhe envio hoje não é esse
manuscrito. Estou ainda ds voltas com ele e sabe
Deus se alguma vez o virei a publicar, quer na sua

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totalidade, quer em parte. Mas há dois anos leccionei excepção feita a um pequeno número de casos em que o
alguns cursos em Cambridge e, para que os meus significado era desfigurado e a correcção óbvia. O que
alunos pudessem dispor de algum mate rial, ditei-lhes damos aqui d estampa são notas que ele ditou aos seus
algumas notas que fiz policopiar. Acabei precisamente alunos e um rascunho para seu próprio uso; nada mais.
de corrigir gralhas e outro tipo de erros, de alguns Para Wittgenstein, a filosofia era um método de inves-
exemplares e ocorreu-me que talvez gostasse de ter tigação, mas a sua maneira de conceber o método estava
um. Por isso, envio-lho. Não é minha intenção que a mudar. Podemos aperceber-nos disso, por exemplo, no
leia as lições; mas no c as o de não ter nada de melhor modo como ele utiliza a noção de «jogos de linguagem».
para fazer, e se elas lhe puderem proporcionar Costumava introduzi-los para afastar a ideia de uma forma
alguma satisfação, ficaria, de facto, muito satisfeito. necessária da linguagem. Esta foi, pelo menos, uma das
(Penso que é difícil compreendê-las, visto que muitos primeiras utilizações que deles fez. É muitas vezes útil
aspectos são apenas aflorados. Elas são destinadas imaginar diferentes jogos de linguagem. A princípio ele
apenas às pessoas que seguiram os cursos.) Como escrevia, às vezes, «diferentes formas de linguagem», como
eu disse, se não as ler isso não terá qualquer se as duas expressões fossem equivalentes; embora o tenha
importância. corrigido por vezes em versões mais recentes. No Livro
Azul ele fala umas vezes de imaginar diferentes jogos de
Sempre seu linguagem, outras vezes de imaginar diferentes notações —
Ludwig Wittgenstein como se isso constituísse o jogo. E parece não ter
distinguido claramente a capacidade de exp rimir, da
O Livro Azul não era de facto mais do que isso: um capacidade de compreender uma notação.
conjunto de notas. O Livro Cast anho era bastante diferente A compreensão do que as pessoas querem dizer pode,
e Wittgenstein encarou-o, durante algum tempo, como o segundo ele, ser alcançada, por exemplo, se alguém explicar
esboço de uma obra a publicar. Mais do que uma vez, os sentidos das palavras. Como se «compreender» e
iniciou uma versão corrigida, em língua alemã. A última «explicar» fossem de certo modo correlativos. Mas, no
tentativa foi feita em Agosto de 1936. Com algumas Livro C as tanho, ele realça que a aprendizagem de um jogo
pequenas alterações e inserções, ela foi levada até ao início de linguagem é anterior a isso, e que o que se mostra
da discussão sobre a acção voluntária. Ele escreveu então necessário é, não a explicação, mas o t re ino — comparável
em traços fortes, «Dieser ganze "Versuch einer Umarbei- ao treino que se daria a um animal. Isto está de acordo
tung" vom (Anfang) bis hierher ist nichts wert». ((Do início com a ideia, por ele realçada nas Investigações, de que
ao fim, esta tentativa de revisão, não tem qualquer valor».) podemos falar e compreender o que é dito —sabendo o que
Foi nessa altura que começou o que vi ria a ser (com significa — sem que isso queira dizer que podemos dizer
pequenas revisões) a primeira parte das Investigações o que significa, nem tão pouco que seja isso aquilo que
Filosóficas. aprendemos. Ele afirma também aí (Investigações, par. 32)
Duvido que ele tivesse publicado o Livro Cas tanho, que «Santo Agostinho descreve a aprendizagem da lingua-
acontecesse o que acontecesse, em inglês, e todos aqueles gem humana como se a criança chegasse a uma terra
que são capazes de ler a sua obra em alemão perceberão desconhecida cuja língua não compreendesse: isto é como
porquê. Em inglês, o seu estilo é, por vezes, desajeitado se ela já tivesse uma língua, mas não esta». Poder-se-ia
e apresenta muitos germanismos. Mas mantivémo-lo assim, verificar se a criança compreende o francês perguntando-

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-lhe o que significam as expressões. Mas não é desta passa com a nossa linguagem quando a falamos, mas que
maneira que podemos saber se uma criança sabe falar, e não podemos perceber até que tenhamos adoptado este
não é isso o que ela aprende quando aprende a falar. método de atravessar a névoa que a encobre. Como se «a
Quando o Livro Castanho fala de diferentes jogos de natureza da asserção, da suposição e da interrogação»
linguagem como «sistemas de comunicação» (Systeme fosse ala mesma e tivéssemos descoberto precisamente uma
menschlicher Verstndigung), não se trata simplesmente de maneira de a tornar transparente. O Livro Castanho,
notações diferentes. Introduz-se, assim, uma noção de porém, nega essa perspectiva e é por isso que Wittgenstein
compreensão, e da relação entre compreensão e linguagem, insiste af no facto de que «não considera os jogos de
que não tem qualquer realce no Livro Azul. Wittgenstein linguagem que descrevemos como partes incompletas de
insiste, por exemplo, no Livro Castanho no facto de a urna linguagem, mas como linguagens completas». De tal
«compreensão» não ser uma coisa única; ela é de espécies modo que, por exemplo, certas funções gramaticais numa
tão diferentes quanto os próprios jogos de linguagem. linguagem não teriam qualquer equivalente numa outra
Poderíamos daí concluir que, quando imaginamos diferen- linguagem; e o «acordo e desacordo com a realidade»
tes jogos de linguagem, não estamos a imaginar partes ou seriam algo de diferente em diferentes linguagens — de
partes possíveis de um sistema geral da linguagem. modo que o seu estudo numa dada linguagem pouco nos
O Livro Azul é menos claro a este respeito. Na página poderá elucidar sobre essa relação numa outra linguagem.
47 ele afirma que «o estudo dos jogos de linguagem é o Essa é a razão que o leva a perguntar no Livro Castanho
estudo de formas primitivas da linguagem ou de linguagens se o sentido da palavra «Tijolo» é o mesmo numa
primitivas». Mas depois prossegue dizendo que «se preten- linguagem primitiva e na nossa; o que está de acordo com
demos estudar os problemas da verdade e da falsidade, do a sua ideia de que a linguagem mais simples não é uma
acordo e desacordo de proposições com a realidade, da forma incompleta da linguagem mais complicada. A dis-
natureza da asserção, da suposição e da interrogação, cussão, sobre se devemos ou não considerar «Tijolo» como
teremos toda a vantagem em examinar as formas primitivas uma frase elíptica é uma parte importante da sua explicação
de linguagem em que estas formas de pensamento surgem, do que são diferentes jogos de linguagem. Mas não
sem o pano de fundo perturbador de processos de pen- encontramos sequer uma antecipação dessa discussão no ,
samento muito complicados. Quando examinamos essas Livro Azul.
formas simples de linguagem, a névoa mental que parece Num dos livros de apontamentos de Wittgenstein encon-
encobrir o uso habitual da linguagem desaparece. Des- tramos um comentário sobre os jogos de linguagem, que
cobrimos actividades, reacções, que são nítidas e transpa- foi provavelmente escrito no início de 1934. Suspeito que
rentes. Por outro lado, reconhecemos, nestes processos seja posterior d passagem da página, que citei anterior-
simples, formas de linguagem que não diferem essencial- mente; em todo o caso, é diferente. «Wenn ich bestimmte
mente das nossas formas mais complicadas. Apercebemo- einfache Sprachspiele beschreibe, so geschieht es nicht, um
-nos da possibilidade de construir as formas complicadas, mit ihnen nach und nach die Vorgãnge der ausgebildeten
pela adição gradual de novas formas a partir das formas Sprache — oder des Denkens — aufzubauen, was nur zu
primitivas». Ungerechtigkeiten führt (Nicod und Russell), — sondem ich
Esta passagem quase parece indicar que tentamos forne- stelle die Spiele als solche hin, und lasse sie ihre aufklãren-
cer algo de semelhante a uma análise da nossa linguagem de Wirkung auf die besonderen Probleme ausstrahlen».
vulgar. Como se pretendêssemos descobrir algo que se («Quando descrevo certos jogos simples de linguagem, não

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o faço com o propósito de construir gradualmente, a partir Os jogos de linguagem não são aí (nas Inves ti gações)
deles, os processos da nossa linguagem desenvolvida — ou menos ainda que no Livro C as tanho estádios na exposição
do pensamento —o que apenas pode conduzir a erros (Nicod de uma linguagem complicada. Mas eles são estúpidos de
e Russell). Limito-me a expor os jogos tal como são, e a uma discussão que se orienta para a «grande questão»
deixá-los lançar a sua luz sobre os problemas parti- sobre o que é a linguagem (par. 65).
culares».) Wittgenstein introdu-los — nas Inves ti gações e também
Eis, segundo penso, uma boa descrição do método no Livro Castanho —para esclarecer o problema da relação
aplicado na primeira parte do Livro C as tanho. Mas também entre as palavras e aquilo que elas representam. Mas nas
se evidencia a grande diferença entre o Livro Castanho Investigações ele está interessado na «concepção filosófica
e as Investigações. do sentido» que encontramos em Santo Agostinho, e mostra
No Livro Castanho a exposição dos diferentes jogos de que esta é a expressão de uma tendência que se manifesta
linguagem não se apresenta directamente como uma dis- muito claramente na teoria dos nomes próprios, de ton
cussão de problemas filosóficos particulares, embora se ponto de vista lógico, que sustenta que os únicos nomes
destine a esclarecê-los. Ela torna claros vários aspectos autênticos são os demonstrativos isto e aquilo. Ele chama
da linguagem, em particular — aspectos que muitas vezes a isto «uma tendência de sublimar a lógica da nossa
nos escapam em virtude, precisamente, das inclinações que linguagem» (die Logik unserer Sprache zu sublimieren)
encontram a sua expressão mais nftida nos problemas da (par. 38) — em parte porque, em comparação com os nomes
filosofia. A discussão sugere, deste modo, onde surgem as próprios do ponto de vista lógico, «tudo o resto a que se
dificuldades que dão origem a esses problemas. chama nome é-o apenas num sentido inexacto e aproxi-
No que ele nos diz, por exemplo, do verbo «poder» e mado». E esta tendência que leva a que se fale de uma
da relação deste corn a «visão do que é comum», levan- natureza última da linguagem, ou de uma gramática
ta-se a questão do que se aprende quando se aprende a lógicamente correcta. Mas, por que motivo cedemos a esta
linguagem; ou do que se sabe quando se sabe o que tendência? A resposta não é simples, mas Wittgenstein esbo-
algo significa. Mas também se levanta a questão sobre ça uma resposta passando d discussão das noções de
o que significaria perguntar como pode a linguagem «simples» e «complexo» e da ideia de análise lógica. (Ele
ser desenvolvida — «dsso ainda tem sentido? Ainda se não faz isto no Livro Castanhoonde, admitindo que o
está a falar, ou trata-se de uma algaraviada incompre- pretendido era lançar luz sobre o funcionamento da
ensível?» E isto pode conduzir d questão sobre «o que po- linguagem, tal seria desnecessário.)
de ser dito», ou ainda, sobre «como poderíamos saber que Toda a ideia de uma análise lógica da linguagem, ou
se tratava de uma proposição»; ou o que é uma pro- de uma análise lógica das proposições, é estranha e
posição, ou o que é a linguagem. A maneira como confusa; e ao expor os seus jogos de linguagem, Wittgen-
Wittgenstein descreve aqui os jogos de linguagem desti-na- stein não se propunha de todo levar a cabo uma tal análise.
se a mostrar que não se é obrigado a levantar estas O facto de os considerarmos linguagens «mais primitivas»
questões, e que sê-lo representaria um equívoco. Mas o ou «mais simples», não significa que eles revelem algo de
problema reside em não podermos deixar de nos interrogar semelhante aos elementos que devem estar presentes numa
sobre o que leva a que as pessoas b façam constantemente. linguagem mais complicada. (Cf. Inves tigações, par. 64.)
As Investigações são, no que respeita a este assunto, Eles são linguagens diferentes — não elementos ou aspectos
diferentes. da «Linguagem». Mas nesse caso poder-se-ia pretender

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saber o que existe neles, que nos leva a afirmar que são poderá ter "permitido" ?») foi responsável por se ter
todos linguagens. O que é que, de facto, faz que algo seja presumido que a lógica determina a unidade da linguagem:
uma linguagem? Esta é a «grande questão» (par. 65) sobre o que pertence e não pertence à linguagem; o que é e não
a natureza da linguagem ou da proposição, que se ocultou é inteligível; o que pode, ou não, ser considerado como
por detrás de todas as considerações anteriores. uma proposição. No Livro Castanho, Wittgenstein afirma,
Poder-se-ia mesmo dizer que a discussão, até à passa- com insistência, que a linguagem não possui esse tipo de
gem referida das Investigações, tinha unicamente como unidade, nem, tão pouco, esse tipo de inteligibilidade. Mas
objectivo a tentativa de revelar o sentido do tratamento dos ele não discute realmente os motivos que levaram a que
problemas filosóficos por referência a jogos de linguagem. se presumisse que ela os possuía.
Ou melhor ainda: o de mostrar como o uso de jogos de Não penso que se possa considerar que ele o tenha feito
linguagem pode tornar claro o que é um problema anteriormente, no Livro Azul. Aí não surge o problema
filosófico. da lógica e da linguagem, ao qual seguramente se faz
No Livro Castanho, por outro lado, Wittgenstein passa alusão no Livro Castanho, ainda que de um modo não muito
da enumeração de exemplos de tipos diferentes de deno- claro. Na página 58 do Livro Azul Wittgenstein afirma que
minação, a uma discussão dos diversos processos de «não utilizamos geralmente a linguagem de acordo com
«comparação com a realidade». Esta é ainda, sem dúvida, regras rigorosas, mas ela também não nos foi ensinada por
uma discussão acerca das relações entre as palavras e meio de regras rigorosas. Nas nossas discussões, pelo
aquilo que elas representam. Mas aqui, ele não se esforça contrário, comparamos constantemente a linguagem com
por revelar a tendência, que se oculta por detrás da maneira um cálculo que obedece a regras exactas.» Quando mais
de encarar as palavras, que tantos problemas originou em à frente, ele pergunta porque o fazemos, responde simples-
mente: «A resposta reside no facto de os problemas que
filosofia.
Nas Investigações, ele prossegue em seguida com uma procuramos eliminar derivarem sempre, precisamente, desta
discussão das relações entre a lógica e a linguagem, o que atitude para com a linguagem». E poder-se-á perguntar
não faz no Livro Castanho — embora essa discussão esteja se isso é uma resposta. O seu ponto de vista, tal como
intimamente relacionada com o que aí refere, em particular o expressa na página 60 por exemplo, é o de que «o homem
com o que diz sobre «poder» e as suas conexões com a que se encontra filosoficamente perplexo descobre uma lei
ideia do que pode ser dito. (((Quando dizemos que isto é na maneira como utilizamos uma palavra, e, ao tentar
ainda linguagem? Quando dizemos que é uma proposição?») aplicar esta lei de modo consistente, confronta-se com...
Sendo assim, sentimo-nos tentados a imaginar um cálculo, resultados paradoxais». E, à primeira vista, isso parece-
e o que nele pode ser dito. Mas Wittgenstein consideraria -se de certo modo com o que ele disse mais tarde, nas
isto como uma má compreensão do que é uma regra da Investigações, sobre uma tendência para realçar a lógica
linguagem e do que é a utilização da linguagem. No modo da nossa linguagem. Mas ele não alude no Livro Azul ao
como falamos habitualmente, não empregamos conceitos que, na utilização ou na compreensão da linguagem, conduz
definíveis com precisão, nem, também, regras precisas. E as pessoas a conceber as palavras nesses termos. Supo-
a inteligibilidade é um tanto diferente da inteligibilidade nhamos que isso acontece em virtude de os filósofos
num cálculo. considerarem a linguagem de um ponto de vista metafísico.
O facto de se ter considerado «o que pode ser dito» Muito bem; mas quando procuramos saber o que os leva
como «o que é permitido num cálculo» («Que outro sentido a fazer isso, a resposta de Wittgenstein no Livro Azul é

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a de que isso se deve a um desejo de generalidade, e ao de uma notação e, por essa razão, não pode tornar comple-
facto de «os filósofos terem sempre presente o método da tamente evidente a natureza da confusão a que se opõe.
ciência e serem irresistivelmente tentados a colocar questões Por outras palavras, Wittgenstein não percebeu clara-
e a responder-lhes da mesma maneira que a ciência» mente no Livro Azul o que representa o problema relativo
(p. 49) por outras palavras, para ele, a origem da metafísica aos requisitos da linguagem, ou d inteligibilidade da
não se encontra em algo que se relacione especificamente linguagem. E por isso que ele afirma, na página, que «a
com a linguagem. Esse é um aspecto muito importante a linguagem vulgar é perfeita», o que é equivalente d
ser aqui salientado e sign ifica que a sua visão do carácter afirmação: «é uma linguagem, perfeito». E isso parece
da perplexidade filosófica não era ainda tão clara como significar que satisfaz as qualidades requeridas. Mas ao
quando escreveu as Investigações. Mas, em todo o caso, exprimir-se nestes tempos, ele é vftima do mesmo tipo de
não é essa tendência para colocar questões e lhes responder confusão que mais tarde denunciou. Falar-se, como o faz
da mesma maneira que a ciência (ou pelo menos, não é aqui Wittgenstein, da «elaboração de linguagens ideais»,
principalmente ela), que leva os filósofos a conceber uma como se esta fosse assimilável d elaboração de jogos de
linguagem ideal ou uma gramática logicamente correcta, linguagem, parece-me obscurecer o designfo das linguagens
quando se encontram perplexos relativamente à linguagem ideais, a intenção dos que as conceberam. Ele não teria
ou d compreensão. Isso acontece por motivos diferentes. falado nestes termos mais tarde.
Wittgenstein afirma muito claramente no Livro Azul que Pode ter sido esta falta de clareza já mencionada, ou
não utilizamos a linguagem de acordo com regras rígidas, algo de semelhante, o que conduz Wittgenstein a referir-
e que não utilizamos as palavras de acordo com leis -se mais do que uma vez, no Livro Azul, ao «cálculo da
semelhantes ds leis científicas. Mas não é muito claro no linguagem» (e. g. p. 81; ou, melhor ainda, p. 113) — embora
que respeita ds noções de «conhecimento do sentido» ou ele tenha também afirmado que apenas utilizamos a
de «compreensão», o que também significa que muita coisa linguagem como um cálculo em casos muito raros. Se não
na noção de «obediência a uma regra» é ainda, para ele, se estabelece a distinção entre uma linguagem e uma
pouco clara. Essa é a razão que o leva a não reconhecer notação, dificilmente se poderá notar qualquer diferença
totalmente o tipo de confusões que podem dar origem d entre a utilização de uma linguagem e a utilização de uma
afirmação de que o conhecimento da linguagem é o notação. Mas nesse caso não se tem justamente uma visão
conhecimento do que pode ser dito. clara das dificuldades respeitantes à relação entre a
«De que pode depender a possibilidade dos sentidos das linguagem e a lógica.
nossas palavras?» Essa é a questão subjacente à ideia de Essas dificuldades tornam-se muito mais nítidas no Livro
sentido, que encontramos na teoria dos nomes próprios de Castanho, embora ele não lhes faça af qualquer referência
um ponto de vista lógico e na análise lógica. Ela é explfcita. Podemos afirmar que elas constituem o tema
inseparável da questão relativa ao que se aprende quando principal das Investigações.
se aprende a linguagem, ou ao que é a aprendizagem da E esse o tema subjacente ds discussões sobre «a visão
linguagem. Wi ttgenstein explica no Livro Azul que as de algo como sendo alguma coisa», bem como às partes
palavras têm os sentidos que lhes damos, e que uma anteriores das Inves tigações. E, de novo, constatamos que
investigação dos seus sentidos reais seria o resultado de Wittgenstein transforma estas discussões numa exposição
uma confusão. Mas ele não distinguiu ainda nitidamente das dificuldades filosóficas, de uma maneira a que não
a aprendizagem de um jogo de linguagem da aprendizagem recorreu no Livro Castanho.

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Durante uma curta época, Wittgenstein interessou-se o é a questão relativa ao que pretendemos dizer, por
pelo problema relativo a saber em que consiste «reconhecer exemplo, quando falamos de «pensar com signos». O que
algo como uma proposição» (mesmo que isso nos seja é isso? E a alusão aos traços feitos com um lápis num
completamente desconhecido), ou reconhecer algo corno papel é de facto proveitosa?
linguagem —por exemplo, o reconhecimento de algo escrito A maior parte destes problemas pode ser resolvida
— independente do reconhecimento do que quer dizer. A acentuando o facto de a escrita e a palavra serem próprias
das relações com outras pessoas. E nesse contexto que os
segunda parte do Livro Castanho decorre deste problema signos adquirem vida, e é por isso que a linguagem não
e mostra que quando tais «reconhecimentos» são correcta-
mente percebidos, não devem conduzir aos tipos de questões é apenas um mecanismo.
formuladas pelos filósofos. As analogias que ele estabelece Mas pode-se objectar que alguém poder fazer tudo isso,
entre a compreensão de uma frase e a compreensão de utilizar correctamente os signos no «jogo» com outras
um tema musical, por exemplo, ou entre a intenção de dizer pessoas e viver sem problemas, mesmo sendo «cego ao
que esta frase significa algo e a intenção de dizer que esta sentido». Wittgenstein usou essa expressão por analogia
forma colorida exprime algo —mostram claramente que não com «cego ds cores» e «surdo ao tom». Se eu pronunciar
se trata do reconhecimento de uma característica geral (a uma palavra ambígua, como por exemplo «vale» e per-
inteligibilidade, possivelmente) susceptível de ser explicada, guntar a alguém qual o sentido que lhe atribui ao ouvi-
tal como não faria sentido a pergunta sobre o que exprime -la, poderá responder-me que pensa numa linda depressão
entre duas montanhas ou talvez num vale telegráfico. Não
a forma colorida.
Mas por que motivo se sentiu a necessidade de falar, será possível imaginar alguém para quem essa pergunta
por exemplo a este propósito, de «metalógica»? O Livro não fosse compreensível? Se perante essa pessoa se pronun-
ciasse unicamente uma palavra, ela não lhe transmitiria
Castanho esboça uma explicação e deixa entrever algo qualquer sentido. E contudo ela poderia «responder com
mais. Mas existe algo na maneira como utilizamos a
linguagem, e na relação entre a linguagem e o pensamento palavras» às frases e outras elocuções, e também a situa-
— o poder de um argumento e, em geral, o poder das ções com que se defrontasse e reagir correctamente. Ou
expressões — que dá a impressão de o seu reconhecimento não será possível imaginar isso? Wittgenstein, segundo pen-
so, não tinha a certeza. Se um homem fosse «cego ao senti-
como urna linguagem ser mesmo muito diferente do seu do», seria ainda capaz de utilizar a linguagem? Ou a
reconhecimento como um lance num jogo. (Como se a
compreensão fosse algo que nada tivesse a ver com os percepção do sentido é independente do uso da linguagem?
signos; e como se qualquer coisa que não é visível no Há qualquer coisa que soa a falso na última pergunta;
próprio sistema de signos fosse necessária para ele ser no próprio facto de a fazer. Mas ela parece revelar que
linguagem.) Wittgenstein tenta levar isto em linha de conta ainda existe algo de pouco claro na nossa noção do «uso
da linguagem».
nas últimas secções das Investigações. Ou se acentuarmos simplesmente, de novo, que os signos
Ele falou de «operações efectuadas com signos», daí o
poder-se dizer «E como se fizéssemos funcionar um são próprios das relações com outras pessoas, o que
mecanismo como outro lado qualquer. Se é apenas disso diremos do papel da «intuição» em relação ds matemáticas
que se trata — de um mecanismo então isso não é uma e d descoberta de provas, por exemplo?
linguagem». É impossível responder a esta objecção em Enquanto presistirem estas dificuldades, continuar-se-á
poucas palavras. Mas o problema é importante. Também a pensar que deverá existir algo como uma interpretação.

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Continuar-se-k a pensar que se algo é linguagem então
deve significar para mim alguma coisa, etc. E por este
motivo — com o fim de tentar compreender qual a natureza
destas dificuldades — foi necessário a Wittgenstein ocupar-
-se desse assunto complicado que é a «visão de algo como
sendo qualquer coisa», do modo como o estava a fazer.
E o método tem de ser aí um tanto diferente. Não se
pode esperar tanto dos jogos de ling, 'igãm.

Março, 1958 R.R.

O que é o sen tido de uma palavra?


Abordemos esta questão perguntando, em primeiro lugar,
o que é uma explicação do sentido de uma palavra; a que
se assemelha a explicação de uma palavra?
Esta questão ajuda-nos de modo análogo ao modo como
a questão «como é que medimos um comprimento?» nos
ajuda a compreender o problema «o que é o comprimento?»
As questões «O que é o comprimento?», «O que é o
sen tido?», «O que é o número um?» etc., causam-nos um
constrangimento mental. Sentimos que para lhes dar res-
postas deveríamos apontar para algo e contudo sentimos
que não podemos apontar para nada. (Enfrentamos uma das
grandes fontes da desorientação filosófica: um subst antivo
faz-nos procurar uma coisa que lhe corresponda.)
Perguntar, em primeiro lugar, «O que é uma explicação
do sentido?» tem duas v an tagens. Num certo sentido, faz
regressar à terra a questão «o que é o sen tido?», porqu anto
para compreender o sen tido de «sentido» dever-se-ia tam-
bém, sem dúvida, comp reender o sen tido de «exp licação
do sentido». Numa palavra: «perguntemos o que é a
explicação do sen tido, visto que seja o que for que ela
explique, isso será o sen tido». O estudo da gramática da
expressão «explicação do sen tido» revelar-nos-á algo sobre

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a gramática da palavra «sentido» e curar-nos-á da tentação Pode opor-se a este argumento o facto de que todas estas
de procurar à nossa volta um objecto a que se pudesse interpretações pressupõem outra li nguagem verbal; e esta
chamar «o sentido». objecção é digna de nota se por «interpretação» p retender-
O que geralmente se chama «explicações do sentido de mos apenas a dizer «tradução numa linguagem verbal».
uma palavra» pode, muito grosseiramente, ser dividido em Farei algumas sugestões que poderão tomar isto mais claro.
definições verbais e ostensivas . Ver-se-á mais tarde em que Interroguemo-nos sobre qual é o nosso critério quando
sentido esta divisão é apen as imperfeita e provisória (e o afirmamos que alguém interp retou a definição ostensiva de
facto de o ser constitui um aspecto importante). A definição um modo particular. Suponhamos que eu dou a um inglês
verbal, visto que nos conduz de uma expressão verbal a a definição ostensiva «isto é o que os alemães chamam
outra, não nos leva, num certo sentido, mais longe. Na "Buch"». Nesse caso, na gr ande maioria dos casos de
definição ostensiva, contudo, parecemos aproximar-nos, de qualquer modo, a palavra inglesa «book» ocorrerá ao
um modo mais efectivo, de conhecimento do sentido. pensamento do inglês. Podemos afirmar que ele interpretou
Uma dificuldade com que nos chocamos consiste no «Buch» como significando «book». As circunstâncias serão
facto de que parece não existi rem definições ostensivas para diferentes se, por exemplo, apontarmos para uma coisa que
muitas palavras na nossa linguagem; e. g. para palavras ele nunca viu antes e dissermos: «isto é um b anjo».
como «um», «número», «não», etc. Possivelmente será nesse caso a palavra «guitarra» que lhe
Questão: Será necessário compreender a própria definição ocorrerá ao pensamento, ou nenhuma palavra m as sim a
ostensiva? — Não poderá a definição ostensiva ser mal imagem de um instrumento semelh an te, ou possivelmente
compreendida? nada. Então no cas o de de eu lhe ordenar «escolhe de entre
Se a definição explica o sentido de uma palavra, não estas coisas um banjo», se ele escolher aquilo a que
é, sem dúvida, essencial que a palavra tenha sido ouvida chamamos um «b anjo» podemos dizer que «ele deu a
anteriormente. Atribuir lhe um sentido é o dever da
-
interpretação correcta à palavra "banjo"»; se ele escolher
definição ostensiva. Exp liquemos, então, a palavra «tove» outro instrumento qualquer, di remos que «ele interpretou
apontan do para um lápis e dizendo «isto é tove». (Em vez "banjo" como significando "instrumento de cordas"».
de «isto é tove» podia aqui ter dito «isto chama-se "tove"». Dizemos que «ele deu à palavra "banjo" esta ou aquela
Chamo a atenção para isto para eliminar, de uma vez por interpretação», e inclinamo-nos a p re sumir um acto deter-
todas, a ideia de que as palavras da definição ostensiva minado de interpretação, para além do acto de escolha.
predicam algo do definido; a confusão entre a frase «isto O nosso problema é análogo ao que se segue:
é vermelho», atribuindo a cor vermelha a qualquer coisa, Se eu der a alguém a ordem: «traz-me uma flor vermelha
e a definição ostensiva «isto chama-se "vermelho"».) Ora daquele prado», como é que ele pode saber qual o tipo
a definição ostensiva «isto é tove» pode ser interpretada de flor que há-de trazer, se eu apen as lhe dei uma palavra?
de múltiplas maneiras. Apresentarei algumas dess as inter- A primeira resposta que se pode alvitrar é a de que foi
pretações utilizando palavras de uso corrente. A definição procurar uma flor vermelha tendo em mente uma imagem
pode pois ser interpretada como significando: vermelha, e comparando-a com as flores para ver qual delas
«Isto é um lápis», tinha a cor da imagem. Ora, de facto, essa maneira de
«Isto é madeira», procurar existe, e não é de modo nenhum essencial que
«Isto é um», a imagem utili zada seja mental. De facto, o processo pode
«Isto é duro», etc. etc. ser o seguinte: levo uma tabela que faça corresponder nomes

26 27
a quadrados coloridos. Quando ouço a ordem «traz-me etc.» tíveis de serem provocados por um mec anismo material.
traço com o meu dedo uma linha, partindo da palavra Assim, por exemplo, um pensamento (que é um processo
«vermelho» até um certo quadrado, e procuro uma flor que mental desse tipo) pode ou não estar de acordo com a
tenha a mesma cor do quadrado. Mas esta não é a única realidade; posso pensar num homem que não está p resente;
maneira de procurar e não é a habitualmente utilizada. sou capaz de o imaginar, de me referir a ele num qualquer
Olhamos à nossa volta, dirigimo-nos para uma flor e comentário a seu re speito, mesmo que ele se encontre a
colhêmo-la sem a comparar com o que quer que seja. Para milhare s de quilómetros, mesmo que esteja mo rto.
verificar que o processo de execução da ordem pode ser «Estranho mec an ismo, o do desejo», poderá dizer-se,
deste tipo, considerem a ordem «imagina uma mancha «que me permite desejar o que nunca acontecerá».
vermelha». Neste caso, não serão tentados a pensar que Apenas existe uma maneira de evitar, pelo menos
antes de a executarem devem imaginar uma mancha parcialmente, a aparência miste riosa dos processos de
vermelha que vos sirva de modelo para a m ancha vermelha pensamento, que é a de subs ti tuir, nestes processos, qualquer
que vos foi pedido que imagin assem. influência da imaginação pelo exame de objectos reais.
Ora poderiam perguntar: interpretamos as palavras antes Deste modo, pelo menos em ce rtos cas os, pode parecer
de executarmos a ordem? E nalguns c asos constatarão que necessário que eu tenha em mente uma imagem vermelha
fazem algo que poderia ser chamado interpretar, antes de para compreender a palavra «vermelho». M as porque não
executar, noutros não. hei-de substituir a m ancha vermelha imaginária pela visão
Certos processos mentais definidos parecem ser inse- de um pedaço de papel vermelho? A imagem visual só
paráveis do funcionamento da linguagem, sendo os únicos poderá ser mais viva. Imaginem um homem que traz semp re
a condicioná-lo. Refiro-me aos processos de compreensão no bolso uma folha de papel na qual os nomes d as cores
e significação. Os signos da nossa linguagem parecem não correspondem a manch as coloridas . Dir-me-ão que é inco-
ter vida sem estes processos mentais; e poderia ter-se a modativo transportar uma tabela desse tipo, e que uti lizamos
impressão de que a única função dos signos é a de induzir sempre , em vez disso, o mecanismo da as sociação. Mas
tais processos e de que estes são, na realidade, as únicas isto é irrevelante, e em muitos casos nem sequer é
coisas em que deveríamos estar interessados. Por con- verdadeiro. Se, por exemplo, vos fosse pedido para pinta rem
seguinte, se vos perguntarem qual é a relação entre um nome uma tonalidade especial de azul, chamada «azul-de-prússia»,
e a coisa que ele designa, sentir-se-ão inclinados a responder poderiam ter de uti lizar uma tabela que vos levasse da
que se trata de uma relação psicológica, e possivelmente palavra «azul-de-prússia» a uma amostra da cor, que servi ria
pensarão especificamente, ao dizerem isto, no mecanismo de modelo.
da associação. Somos tentados a pensar que o mecanismo Poderíamos muitíssimo bem, quando isso se demons-
da linguagem é composto por du as partes; uma parte trasse útil, subs tituir todos os processos de imaginação pela
inorgânica, a manipulação dos signos, e uma parte orgâni- visão de um objecto ou pela pintura, o desenho, ou a
ca, a que podemos chamar a compreensão destes si gnos, modelagem, assim como em vez de se falar para si próprio
a atribuição de sentido a estes signos, a sua interpretação, se poderi a escrever ou falar em voz alta.
o pensamento. Estas últimas ac tividades parecem decorrer Frege ridicularizou a concepção formalista das matemáti-
num meio fora do vulgar, o espírito; e o mecanismo do cas, afirmando que os formalistas confundiam aquilo que
espírito, cuja natureza, segundo parece, não compreen- pouca importância tem, o si gno, com o que é impo rtante,
demos completamente, pode produzir efeitos não suscep- o sentido. De facto, as matemáticas não tratam de símbolos

28 29
tal qual é definido pelas regras do xadrez, em sítio dife- interior e exterior. ( )) 0 indivíduo-experimentador obser-
1

rente daquele que é ocupado pelos diversos pedaços de va uma correlação entre dois fenómenos. Um deles a que,
madeira, que são os reis dos diversos jogos.) — «O possívelmente, chama o pensamento, pode consistir numa
pensamento, dizemos, é sem dúvida algo; ele não é um série de imagens, sensações orgânicas, ou, por outro lado,
"nada"»; e a única resposta que podemos dar a isto é a numa série de experiências visuais, tácteis e musculares
de que a palavra «pensamento» tem o seu uso, que é de variadas, que por ele são sentidas quando escreve ou pro-
um tipo completamente dife re nte do uso da palavra fere uma frase. — A outra experiência corresponde à
«frase». observação do funcionamento do seu cérebro. Ambos os
Ora quererá isto dizer que é absurdo falar de uma fenómenos poderiam ser correctamente chamados «ex-
localização da ocorrência do pensamento? De modo algum. pressões do pensamento»; e seria melhor de modo a impedir
Esta expressão tem sen tido se lhe dermos sen tido. Se a confusão, rejeitar como absurda a questão «onde é que
dissermos: «o pensamento ocorre nas nossas cabeç as» qual se encontra o pensamento?» Se, todavia, usamos a expressão
é, encarando-a seriamente, o sen tido desta expressão? «o pensamento ocorre na cabeça», demos a esta expressão
Presumo que seja o de que certos processos fisiológicos o seu sentido através da desc rição da experiência que
correspondem aos nossos pensamentos de uma forma tal justificaria a hipótese segundo o qual o pensamento ocorre
que se conhecermos a correspondência pode remos, obser- nas nossas cabeças, através da desc rição da experiência a
vando esses processos, descobrir os pensamentos. M as em que chamamos «observação do pensamento no nosso
cérebro».
que sentido se poderá dizer que os processos fisiológicos
corre spondem a pensamentos, e em que sentido se poderá Esquecemos facilmente que a palavra «loca lização» é
dizer que atingimos os pensamentos a partir da observação usada em muitos sen tidos diferentes e que existem tipos
do cérebro? de enunciados muito diferentes sobre uma coisa, a que
Pre sumo que imaginamos que a correspondência foi podemos, num caso particular, de acordo com o uso
verificada experimentalmente. Imaginemos grosseiramente corrente, chamar especificações da loca lização da coisa.
uma tal experiência. Ela consiste em observar o cérebro Assim, disse-se do espaço visual que o seu lugar é na nossa
de um indivíduo enqu anto este pensa. Mas agora podem cabeça e penso que, em parte, esta afirmação foi o resultado
considerar que a razão pela qual a minha exp licação irá de um equívoco gramatical.
falhar re side, sem dúvida, no facto de o experimentador Posso dizer: «vejo, no meu campo visual, a imagem da
apenas conhecer indirectamente os pensamentos do indi- árvore situada à direita da imagem da torre» ou «vejo a
víduo, por intermédio deste, que os expressark de uma imagem da árvore no meio do campo visual». Sentimo-
maneira ou outra. Afastarei esta dificuldade supondo que -nos, neste cas o, inclinados a perguntar, «e onde é que vês
o indivíduo é simultaneamente o experimentador, que olha o campo visual?» Ora se o «onde» supõe a determinação
para o seu próprio cérebro recorrendo por exemplo a um de uma localização, no sentido em que especificámos a
espelho. (O carácter grosseiro desta desc rição não reduz de localização da imagem da árvore, chama ria então a vossa
modo algum a força do argumento.) atenção para o facto de não terem ainda dado sentido a
Nesse caso, pergunto-vos se o indivíduo-experimentador esta questão; isto é, para o facto de se te rem baseado numa
observará uma ou du as coisas ? (Não me digam que ele analogia gramatical, sem terem analisado a analogia deta-
lhadamente.
observ a uma só coisa, do inte rior e do exte rior, visto que
isto não afasta a dificuldade. Fala remos mais tarde de (» Cf. pp. 47 e 83 e segs.

34 35
Ao dizer que a ideia de que o nosso campo visual está Face às afirmações: «este lápis tem doze centímetros de
localizado no nosso cérebro de rivou de um equívoco comprimento» e «sinto que este lápis tem doze centímetros
gramatical, não foi minha intenção afirmar a impossibi- de comprimento», é-nos necessário escla recer a relação
lidade de atribuição de sen tido a uma tal especificação da existente entre a gramática da p rimeira e a da segunda.
localização. Poderíamos, por exemplo, imaginar facilmente Gostaríamos de responder à afirmação «sinto na minha mão
uma experiência que descreveríamos por recurso a esse que a água se encontra a um metro de profundidade»: «Não
enunciado. Suponham que olhávamos para um grupo de sei o que isso significa». Mas o vedor di ria: «Sem dúvida
objectos nesta sala, e que, enqu anto o fazíamos, era intro- que sabes o que significa. Sabes o que significa "um metro
duzida nos nossos cérebros uma sonda, verific ando-se que de profundidade", e sabes o que significa "sinto'!» Ao que
quando a extremidade da sonda atingia um ponto particular eu retorquiria: sei o que uma palavra significa em certos
do cérebro, uma pequena porção do nosso campo visual contextos. Assim eu compreendo frase, «um metro de
desaparecia. Poder-se-ia deste modo estabelecer uma corres- profundidade» quando, por exemplo, ela surge em contextos
pondência entre pontos do cérebro e partes da imagem como: «A medição mostrou que a água se encontra a um
visual, e isto permitir-nos-ia afirmar que o campo visual metro de profundidade», «Se cavarmos a um metro de
se localizava num determinado lugar do cérebro. Se ago- profundidade descobriremos água», «Calculo que a água se
ra se perguntar «Onde é que vês a imagem deste livro?» encontre a um metro de profundidade». Mas o uso da
a resposta poderi a ser (como anteriormente) «À di reita da- expressão «uma sensação n as minhas mãos de que a água
quele lápis», ou «Na parte esquerda do meu campo se encontra a um metro de profundidade» tem ainda de
visual», ou ainda: «Sete centímetros por trás do meu olho me ser explicado.
esquerdo». Poderíamos perguntar ao vedor «como aprendeu o
Mas se alguém nos disser: «Garanto-lhes que sinto que sentido da palavra "um metro"? Supomos que lhe tenham
a imagem visual se encontra cinco centímetros por trás do mostrado objectos com esse comprimento, que os tenha
osso do meu nariz»; — o que lhe poderemos responder? medido e outras coisas do mesmo género. Também o
Diremos que ele não está a dizer a verdade, ou que tal ensinaram a falar de uma sensação de que a água se encontra
sensação é impossível? E se ele nos perguntar «conhecem a um metro de profundidade, uma sensação, por exemplo,
todas as sensações existentes? Como sabem que esta sen- nas suas mãos? Se isso não aconteceu, o que o fez relacionar
sação não existe?» a palavra "um metro" com uma sensação na sua mão?»
E se o vedor nos disser que que quando segura a vara No caso de termos sempre avaliado comprimentos a olho,
sente que a a água se encontra a dois metros de profun- sem nunca os termos medido, como poderíamos avaliar um
didade? Ou que sente que a dois metros de profundidade comprimento em centímetros medindo-o? Isto é, como
existe uma mistura de cobre e ouro? Suponham que face interpretaríamos a experiência da medição em centímetros?
às nossas dúvidas ele re spondia: «Vocês podem avaliar uma O problema é o seguinte: qual a relação existente ent re,
distancia quando a vêem. Por que razão não pode rei eu por exemplo, uma sensação táctil e a experiência da medição
avaliá-la de m aneira diferente?» de uma coisa por recurso a uma vara de metro? Esta relação
Se compreendermos a ideia de uma tal avaliação, mostrar-nos-á o que significa «sentir que uma coisa tem
esclareceremos a natu reza das nossas dúvidas sobre as doze centímetros de comprimento». Admitamos, que o
afirmações do vedor, e do homem que dizia sentir a imagem vedor dizia «nunca ap rendi a correlacionar a profundidade
visual por trás do osso do seu nariz. a que a água se encontra no subsolo com sensações na

36 37
dizagem da avaliação com o acto de avaliar. A importância
minha mão, m as quando sinto uma certa tensão nas minhas
deste exame reside no facto de se aplicar à relação entre
mãos, as palavras "um metro" vêm-me repentinamente ao
espírito». Responderíamos «eis uma excelente exp licação do a aprendizagem do sentido de uma palavra e a u tilização
que quer dizer com "sensação de que a profundidade é de da palavra. Ou, num sentido mais geral, no facto de revelar
as diferentes relações possíveis entre uma dada regra e a
um metro", e a sua afirmação não tem outro sentido para
além daquele que a sua exp licação lhe deu. E se a sua aplicação.
experiência mostrar que a profundidade a que de facto se Consideremos o processo de avaliação da distância a olho
encontra a água concorda semp re com as palavras "n nu: é extremamente importante que tenham consciência da
metros" que lhe vêm ao espírito, a sua sensação será muito existência de muitos processos diferentes, a que chamamos
útil para determinar a profundidade a que encontraremos «avaliação a olho».
água». — Mas, como vêem, o sen tido das palavras «sinto Consideremos os seguintes casos: —
que a água se encontra a uma profundidade de n metros»
(1) Alguém me pergunta «como ava liaste a altura deste
tinha de ser expli cado; não o podíamos compreender se
edifício?» Respondo: «Tem quatro andares, presumo que
o sentido das palavras «n metros» fosse o usual (isto é,
o de contextos habituais). — Não dizemos que o homem cada andar tenha cerca de cinco metros, portanto deve ter
que nos diz sentir a imagem visual cinco centímetros por mais ou menos vinte metros de altura».
trás do osso do seu nariz nos está a mentir ou a dizer (2) Num outro caso: «Sei qual é aproximadamente, a
disparates. Mas afirmamos que não compreendemos o esta distância, a aparência de um metro; port anto deve ter
cerca de quatro metros».
sentido dessa frase. Ela combina palavras bem conhecid as,
mas fá-lo de uma maneira que ainda não comp reendemos. (3) Ou noutro caso: «Um homem alto quase chegaria
A gramática desta frase tem ainda de nos ser explicada. a este ponto; portanto ele deve estar mais ou menos a dois
A importância do exame cuidadoso da resposta do vedor metros do chão».
(4) Ou finalmente: «Não sei, parece ter um metro».
re side no facto de pensarmos frequentemente que demos
um sentido a uma afirmação P somente se declararmos
«sinto (ou creio) que P é o caso». (Referir-nos-emos mais Este último caso é susceptível de nos embaraçar. Se
tarde ( ) à afirmação do professor Hardy de que o teo rema
2
perguntarem «o que aconteceu neste caso quando o homem
de Goldbach é uma proposição porque pode acreditar que avaliou a distância?» a resposta correcta pode ser: «ele olhou
ele é verdadeiro.) Já referimos que a mera explicação do para o objecto e disse "parece ter um metro de compri-
mento"». Pode ter sido apen as isto o que aconteceu.
sentido das palavr as «um metro», da maneira habitual, não
explica ainda o sentido da frase «sensação de que a água Dissemos anteriormente que não nos teríamos sentido
se encontra a um metro etc.» Ora, não teríamos sen tido desorientados com a resposta do vedor se ele nos tivesse
estas dificuldades se o vedor tivesse dito que aprendera dito que aprendera a avaliar a profundidade. Ora a apren-
a avaliar a profundidade a que se encontra a água, por dizagem da avaliação pode, falando de uma maneira geral,
exemplo, escav ando à procura de água semp re que expe- ser considerada segundo duas relações diferentes com o acto
rimentava uma sensação particular e correlacion ando deste de avaliar: ou como uma causa do fenómeno da avaliação,
modo essas sensações com medições de profundidade. ou como proporcionadora de uma regra (uma tabela, um
Devemos então examinar a relação do processo de apren- gráfico, ou algo do mesmo género) que uti lizamos quando
avaliamos.
(2) Wittgenstein não cumpriu esta promessa (N.O.).

38 39
Suponhamos que eu ensino a alguém o uso da palavra avaria seria, nesse caso, aquilo a que chamamos o esqueci-
«amarelo», apontando repetidamente para uma m ancha mento da explicação, ou do sen tido, da palavra. (Será
amarela e pronunciando a palavra. Numa outra ocasião fa- conveniente voltar a abordar o sen tido de «esquecimento
ço-o aplicar o que aprendeu dan do-lhe a seguinte ordem: do sentido de uma palavra» ( )). 3

«escolhe de dentro deste saco uma bola amarela». O que Na medida em que ocasiona a associação, a sensação
se pas sou quando ele obedeceu à minha ordem? Direi que de reconhecimento, etc. etc., o ensino é a causa dos fenó-
«possivelmente pas sou-se apenas isto: ele ouviu as minhas menos de compreensão, da execução de uma ordem, etc.;
palavras e tirou uma bola amarela do saco». Podem imedia- a necessidade do processo de ensino para a produção destes
tamente sentir-se inclinados a pensar que isto não pode ter efeitos é uma hipótese. É concebível, neste sen tido, que
sido tudo o que se passou; e o tipo de coisa que sugeririam todos os processos de compreensão, de execução de uma
é a de que ele imaginou algo amarelo quando compreendeu ordem, etc. pudessem ter acontecido sem que a linguagem
a ordem, tendo em seguida escolhido a bola de acordo com tivesse alguma vez sido ensinada à pessoa (Isto pa rece,
a sua imagem. Para perceber que isto não é necessário precisamente agora, extremamente paradoxal).
lembrem-se de que eu lhe podia ter dado a ordem «Imagina B. O ensino pode ter-nos proporcionado uma regra que
uma mancha amarela». Sentir-se-iam ainda inclinados a está envolvida nos processos de compreensão, execução de
supor que ele imagina em primeiro lugar uma m ancha uma ordem, etc.; «envolvida» significando, contudo, que
amarela, apenas compreendendo a minha ordem, e que em a expressão desta regra faz parte destes processos.
seguida imagina uma m ancha amarela que se assemelhe Devemos fazer a distinção entre o que se poderia chamar
à primeira? (Não quero dizer que isto não seja possível, «um processo em conformidade com uma regra», e, «um
o facto de o apre sentar o desta maneira apenas vos mostra, processo envolvendo uma regra» (no sen tido acima refe-
de imediato, que não é necessário que isto aconteça. Isto, rido).
a propósito, ilustra o método da filosofia.) Tomemos um exemplo. Alguém me ensina a elevar
Se o sentido da palavra «amarelo» nos for ensinado por números ao quadrado. Ele escreve a série:
recurso a uma qualquer espécie de definição ostensiva (uma 1 234,
regra para o uso da palavra) este ensino pode ser conside-
e pede-me para os elevar ao quadrado. (Substituirei de novo,
rado de duas maneiras diferentes. neste cas o, quaisquer processos que ocorram «no espírito»
A. O ensino é uma repe tição. Esta repetição leva-nos
por processos de cálculo no papel). Suponham que eu es-
a associar uma imagem ama rela, coisas amarelas, com a
palavra «amarelo». Assim, quando eu dei a ordem «escolhe crevo então por baixo da primeira série de números, a série:
de dentro deste saco uma bola ama rela», a palavra «ama- 1 4916.
relo» pode ter produzido uma imagem ama rela, ou uma O que eu escrevi está em conformidade com a regra geral
sensação de reconhecimento quando o olhar da pessoa da elevação ao quadrado; mas está também obviamente em
incidiu sobre a bola amarela. Poderia dizer-se, neste caso, conformidade com um gr ande número de outras regras; e
que a repetição do ensino edificou um mecanismo psíquico. não em maior ou menor graus com uma ou outra de entre
Isto, todavia, seria apenas uma hipótese, quando não uma estas. Nenhuma regra esteve aqui envolvida, no sentido a
metáfora. Poderíamos comparar o ensino com a instalação que nos referimos an teriormente do envolvimento de uma
de uma ligação eléctrica entre um interruptor e uma regra num processo. Suponhamos que para obter os meus
lâmpada. O paralelo com a falha da ligação ou com a sua
° Wittgenstein não volta a referir este assunto.

40 41
resultados eu calculei lx1, 2x2, 3x3, 4x4 (isto é, escrevi Suponham que eu apontava para um bocado de papel
neste caso os cálculos); de novo isto estaria em conformi- e dizia a alguém: «chamo "vermelho" a esta cor». Mais
dade com um grande número de regras. Suponhamos, por tarde dava-lhe a ordem: «agora pinta uma m ancha ver-
outro lado, que para obter os meus re sultados eu tinha es- melha». Em seguida perguntava-lhe: «porque é que, ao
crito, por exemplo recorrendo a notação algébrica, o que executares a minha ordem, pintaste precisamente esta cor?»
podem chamar «a re gra da elevação ao quadrado». Neste A sua resposta poderia ser, neste caso: «Esta cor (apontando
caso, esta regra estava envolvida num sentido do qual todas para a amostra que eu lhe tinha mostrado) chamava-se
as outras se encontravam excluídas. vermelho, e a mancha que pintei tem, como pode ver, a
Diremos que a regra está envolvida na compreensão, na cor da amostra». Ele deu-me assim, uma razão para o facto
execução de uma ordem, etc., se como gostaria de dizer, de ter executado a ordem da maneira como o fez. Dar uma
o símbolo da re gra faz parte do cálculo. (Como não estamos razão para algo que se fez ou disse significa mostrar um
intere ssados no local em que os processos do pensamento, caminho que conduz a esta acção. Nalguns c asos significa
do cálculo, ocorrem, podemos imaginar em nosso proveito descrever o caminho que se utilizou; noutro significa
que os cálculos foram feitos na sua totalidade no papel. descrever o caminho que aí conduz e que está em
Não estamos preocupados com a diferença entre interno e conformidade com certas re gras aceites. Assim, quando se
externo.) perguntou à pessoa «porque execut aste a minha ordem
Um exemplo característico do caso B seria o de um ensi- pintan do precisamente esta cor?», ela pode ria ter descrito
no que nos proporcionasse uma tabela que utilizaríamos na o caminho que realmente uti lizara para chegar a este tom
realidade para compreender, executar uma ordem, etc. Se particular de cor. Isso teria acontecido se, ao ouvir a palavra
formos ensinados a jogar xad rez, poderão ensinar-nos re- «vermelho», tivesse segurado a amostra que eu lhe mostrara,
gras. Se depois jogarmos xad re z, estas regras não estarão designada pela palavra «vermelho», e tivesse copiado a
necessariamente envolvidas no jogo. Mas poderão estar. amostra ao pintar a man cha. Por outro lado pode ria tê-la
Imaginem, por exemplo, que as regr as eram express as sob pintado «automaticamente» ou a partir de uma imagem
a forma de uma tabela. Numa coluna estariam representadas guardada na memória, podendo, ainda assim, apontar para
as peças, e numa coluna paralela encontraríamos diagramas a amostra quando lhe fosse pedido que desse uma razão,
que mostrariam a «liberdade» (os movimentos reconhecidos mostrando que ela condizia com a mancha que pintara.
como legítimos) das peç as . Suponham agora que o modo Neste último caso a razão apre sentada teria sido de segundo
como o jogo é jogado envolve a deslocação do dedo do tipo; isto é, uma justificação post hoc.
jogador sobre a tabela, da representação da peça até aos Ora, se se pensar que não seria possível compreender
movimentos possíveis, para depois executar um desses e executar a ordem sem um ensino prévio, o ensino é
movimentos. encarado como proporcion ando uma razão para se fazer
O ensino como histórica hipotética das nossas acções o que se fez; como proporcionando o caminho que se segue.
subsequentes (compreensão, execução de uma ordem, avalia- Existe a ideia de que se uma ordem é comp reendida e
ção de um comprimento, etc.) é posto de parte pelas nossas executada deve haver uma razão para a executarmos como
considerações. A regra que foi ensinada e é subsequente- o fazemos; deve mesmo haver uma cadeia de razões que
mente aplicada apenas nos interessa, na medida em que está remonta até ao infinito. É como se se dissesse: «Esteja onde
envolvida na aplicação. Uma regra, tanto quanto nos inte- estiver, chegou aí vindo de um qualquer outro lugar, e a
ressa, não age à distância. esse outro lugar vindo de um outro lugar; e assim por di ante

42 43
ad infinitum». (Se, por outro lado, tivessem dito «esteja dantes, e a exposição da vossa razão não é uma hipótese.
onde estiver, poderia ter aí chegado vindo de um outro lugar A diferença entre as gramáticas de «razão» e «causa» é
situado a um metro de distância; e a esse outro lugar de bastante semelhante à diferença entre as gramáticas de
um terceiro também a um metro de distância, e assim por «motivo» e «causa». Da causa pode dizer-se que não se
diante ad infinitum», se tivessem dito isto teriam salientado pode conhecê la, mas apenas conjecturk la. Por outro lado
- -

a infinita possibilidade de avançar um p asso. Assim a ideia diz-se frequentemente: «Sem dúvida que sei por que o fiz»
de uma cadeia infinita de razões surge de uma confusão falando do motivo. Quando digo: «apenas podemos con-
semelhan te a esta: que uma linha de um certo comp rimento jecturar a causa mas conhecemos o motivo», esta afirma-
se compõe de um número infinito de partes porque é ção, como veremos mais tarde, é grama tical. O «podemos»
infinitamente divisível; isto é, porque não existe um termo refere-se a uma possibilidade lógica.
para a possibilidade de a dividir.) O duplo uso da palavra «porquê», aplic ando-se tanto à
Se, por outro lado, admitirem que a cadeia de razões causa como ao motivo, juntamente com a ideia de que
reais tem um início, deixarão de sentir aversão pela ideia podemos conhecer e não apenas conjecturar os nossos
de um caso em que não exista qualquer razão para que motivos, dá origem à confusão que nos leva a considerar
a ` ordem seja executada de uma determinada m aneira. o motivo como uma causa de que temos conhecimento
Chegados a este ponto, surge-nos contudo uma outra imediato, uma causa «observada interiormente», ou revelada
confusão: a que se estabelece entre razão e causa. É-se pela experiência. — Dar uma razão é como ap resentar um
levado a esta confusão pelo uso ambíguo da palavra cálculo que tivesse permitido a obtenção de um certo
«porquê». Assim, quando a cadeia de razões chegou a um resultado.
termo e ainda se pergunta «porquê?», sentimo-nos incli- Voltemos à afirmação de que o pensamento consiste
nados a indicar uma causa em lugar de uma razão. Se, por essencialmente em operar com signos. A minha: posição era
exemplo, quando vos é feita a pergunta, «porque é que a de que dizer-se que «o pensamento é uma ac tividade
pintaram precisamente esta cor quando vos disse para mental» nos sujeitava a sermos induzidos em erro. A
pintarem uma mancha vermelha?» responderem: «mos- questão sobre qual o tipo de actividade representada pelo
traram-me uma amostra desta cor e ao mesmo tempo pensamento, é análoga a esta: «Onde ocorre o pensamento?»
pronunciaram a palavra "vermelho"; por conseguinte quan- Podemos responder: num papel, na nossa cabeça, no
do ouço a palavra "vermelho" esta cor vem-me sempre ao espírito. Nenhuma destas afirmações acerca da localização
espírito», o que indicaram é uma causa da vossa acção e fornece a localização do pensamento. O uso de todas estas
não uma razão. especificações é correcto, mas não devemos ser induzidos
A proposição segundo a qual a vossa acção tem uma em erro pela semelhança da sua forma linguística, aceit ando
determinada causa, é uma hipótese. A hipótese terá fun- uma falsa concepção da sua gramática. Como, por exemplo,
damento se um certo número de experiências forem, falando quando dizemos: «A nossa cabeça é sem dúvida o verda-
de uma maneira geral, concordantes, na demonstração de deiro lugar do pensamento». O mesmo se aplica à ideia
que a vossa acção é a consequência habitual de certas do pensamento como uma actividade. É corre cto dizer que
condições que, nesse caso, chamamos causas da acção. Para o pensamento é uma actividade da mão que escreve, da
saber qual a razão para fazerem uma determinada afirmação, lari nge, da nossa cabeça e do nosso espírito, desde que se
para agirem de uma determinada m aneira, etc., não é compreenda a gramática destas afirmações. E é, além disso,
necessário um qualquer número de experiências concor- extremamemnte importante ter consciência de como, pela

44 45
má compreensão da gramática d as nossas expressões, somos contado tira da prateleira um fruto e põe-no num saco. E
levados a pensar numa destas afirmações em particular aqui têm um cas o do uso de palavras. De futuro, chamarei
como indicando a verdadeira sede da actividade do pen- muitas vezes a vossa atenção para aquilo a que chama rei
samento. jogos de linguagem. Estes são maneiras mais simples de
Uma objecção que se pode lev antar à declaração de que usar signos do que as da nossa linguagem altamente
o pensamento é algo de semelh ante a uma actividade da complicada de todos os dias. Os jogos de linguagem são
mão, corre sponde à afirmação de que o pensamento faz as formas de linguagem com que a cri ança começa a fazer
parte da nossa «experiência privada». Não é material, mas uso la s palavras. O estudo dos jogos de linguagem é o
um facto da consciência privada. Esta objecção é expressa estudo de formas primitivas da linguagem ou de linguagens
na questão: «pode uma máquina pensar?» Voltarei a refe- primitiv as. Se pretendemos estudar os problemas da verdade
rir-me a este assunto( 4), e remeter-vos-ei agora apenas para e da falsidade, de acordo e desacordo de preposições com
uma questão análoga: «pode uma máquina ter do res de a realidade, da natureza da asserção, da suposição e da
dentes?» Sentir-se-ão certamente inclinados a responder: interrogação, teremos toda a vantagem em examinar as
«Uma máquina não pode ter dores de dentes». Resta-me, formas primitiv as da linguagem em que estas formas de
neste momento, chamar a vossa atenção para o uso que pensamento surgem, sem o p ano de fundo perturbador de
fizeram da palavra «pode» e perguntar-vos: «Era vossa in- processos de pensamento muito complicados. Qu ando
tenção dizerem que toda a vossa experiência passada examinamos essas formas simples de linguagem, a névoa
mostrou que uma máquina nunca deve ter dores de dentes?» mental que parece encobrir o uso habitual da linguagem
A impossibilidade de que falam é uma impossibilidade desaparece. Descobrimos actividades, reacções, que são
lógica. A questão é: Qual é a relação entre o pensamento nítidas e tran sparentes. Por outro lado, reconhecemos, nestes
(ou a dor de dentes) e o indivíduo que pensa, tem dor de processos simples, formas de linguagem que não diferem
dentes, etc.? De momento nada mais acrescentarei sob re essencialmente das nossas formas mais complicadas. Aper-
este assunto. cebemo-nos da possibilidade de construir as formas com-
Se dizemos que o pensamento é essencialmente uma plicadas pela adição gradual de novas form as a partir das
operação com signos a primeira questão que poderão formas primitivas.
levantar é: «O que são signos?». Em vez de dar a esta O que toma difícil seguir esta linha de investigação é
questão uma qualquer resposta geral, propor-vos-ei um o nosso desejo de generalidade.
exame atento de casos pa rt iculares do que chamaríamos Este desejo de generalidade é resultante de um certo
«operar com signos». Consideremos um exemplo simples número de tendências relacionadas com confusões filosó-
de operação com palavras . Dou a alguém a ordem: «Traz- ficas particulares. Por exemplo:
-me seis maçãs do merceeiro», e descrevo o modo como (a) A tendência para procurar algo de comum a todas
executar essa ordem. As palavr as «seis maçãs» estão escritas as en tidades que geralmente subsumimos num termo geral.
num bocado de papel, o papel é entregue ao merceeiro, — Sentimo-nos por exemplo inclinados a pensar que deve
o merceeiro compara a palavra «maçã» com etiquetas existir algo de comum a todos os jogos, e que esta pro-
existentes em diferentes prateleiras . Ele descobre que a priedade comum é a justificasção para a aplicação do termo
palavra concorda com uma d as etiquetas, conta de 1 até geral «jogo» aos diversos jogos; ao passo que os jogos
ao número escrito na tira de papel, e por cada número formam uma família cujos membros têm parecenças. Alguns
têm o mesmo nariz, outros as mesmas sobr ancelhas e outros
(4
) Ver p. 88 para mais algumas referências a este assunto.

46 47
ainda a mesma maneira de andar; e estas parecenças (d) O nosso desejo de generalidade tem uma outra fonte
sobrepõem-se. A ideia de um conceito geral, como uma importante: a nossa preocupação com o método da ciência.
propriedade comum das suas ocorrências particulares, rela- Refiro-me ao método de reduzir a explicação dos fenómenos
ciona-se com outras ideias primitivas, demasiado simples, naturais ao menor número possível de leis naturais primi-
da estrutura da linguagem. E comparável à ideia de que tivas e, na matemática, de unificação dos diferentes tópicos
as propriedades são ingredientes das coisas que as possuem; por re curso a uma generalização. Os filósofos têm sempre
que a beleza é, por exemplo, um ingrediente de todas as presente o método da ciência e são irresis tivelmente ten-
coisas belas tal como o álcool é um ingrediente da cerveja tados a levantar questões e a responderem-lhes do mesmo
e do vinho, e que por conseguinte poderíamos ter a beleza modo que a ciência. Esta tendência é a verdadeira fonte
pura, sem mistura de algo belo. da metafísica, e leva o filósofo à total obscuridade. Quero
(b) Existe uma tendência enraizada n as nossas formas aqui dizer que nunca teremos como tarefa reduzir seja o
de expressão habituais para pensar que a pessoa que apren- que for a qualquer outra coisa, ou explicar seja o que for.
deu a compreender um termo geral, por exemplo, o termo A filosofia é na verdade «puramente desc ritiva». (Pensem
«folha», está, desse modo, na posse de uma espécie de ima- em questões como «Existirão dados dos sentidos?» e
gem geral de uma folha, em contraste com imagens de fo- perguntem: Qual o método a utilizar para determinar isto?
lhas particulares. Quando ela aprendeu o sen tido da palavra A introspecção?)
«folha» foram-lhe mostradas diferentes folhas apenas como Em vez de «desejo de generalidade», poderia ter também
um meio para atingir a finalidade de produzir «nela» uma referido «a atitude de desprezo para com o c aso particular».
ideia, que imaginamos ser uma espécie de imagem geral. Se, por exemplo, alguém tenta exp licar o conceito de
Dizemos que a pessoa percebe o que é comum a tod as estas número e nos diz que uma determinada definição não é
folhas, e isto é verdadeiro se queremos dizer que elas po- suficiente ou é grosseira porque apenas se ap lica, por
dem, se isso lhe for pedido, referir-nos certas características exemplo, a números finitos, eu responder-lhe-ia que o
ou propriedades que têm em comum. Mas sentimo-nos simples facto de ele ter sido capaz de ap resentar uma tal
inclinados a pensar que a ideia geral de uma folha é algo definição limitada toma esta definição extremamente im-
semelhante a uma imagem visual, mas uma imagem visual portante para nós. (A elegância não é o que procuramos
que apenas contém o que é comum a todas as folhas (a conseguir.) E porque será mais intere ssante para nós o que
fotografia composta de Galion). Isto está de novo relacio- os números finitos e transfmitos têm em comum do que
nado com a ideia de que o sentido de uma palavra é uma o que os distingue? Ou antes, não deveria ter dito «porque
imagem, ou um objecto correlacionados com a palavra. (Isto será mais interessante para nós?» — não o é; e isto
significa, grosseiramente, que consideramos as palavras caracteriza a nossa maneira de pensar.
como se todas elas fossem nomes próprios, e que confundi- A atitude para com o mais geral e o mais particular em
mos, por isso, o objecto nomeado com o sentido do nome.) lógica está relacionada çom o uso da palavra «espécie»,
(c) A ideia que temos do que acontece quando obtemos que é responsável por originar confusões. Falamos de
a ideia geral «folha», «pl anta», etc. etc., está de novo espécies de números, espécies de proposições, espécies de
relacionada com a confusão entre um estado mental, na demonstrações e, também, de espécies de maçãs, espécies
acepção de um estado de um hipotético mec anismo mental, de papel, etc. Num certo sentido, o que define a espécie
e um estado mental na acepção de um estado de consciência são prop riedades como a doçura, a dureza, etc. Noutro
(dor de dentes, etc.). sentido as diferentes espécies são estruturas gramaticais

48 49
difere ntes. Um tratado acerca do pomo pode ser considerado porque levou a que os filósofos rejeitassem como irrele-
incompleto se existirem espécies de maçãs a que ele não vantes os casos concretos, os únicos que poderiam tê-los
faz referência. Temos aqui um padrão de completude ajudado a compreenderem o uso do termo geral. Qu ando
existente na nature za. Suponhamos, por outro lado, que Sócrates faz a pergunta, «O que é o conhecimento?» ele
existia um jogo semelh ante ao xadrez, mas mais simples, nem sequer considera como uma resposta preliminar a
dado que não seriam utilizados peões. Deveríamos consi- enumeração de casos de conhecimento( ). Se eu quisesse
5

derar este jogo incompleto? Ou devere mos considerar um saber o que é a aritmética, deveria sentir-me deveras
jogo mais completo do que o xadrez se de algum modo satisfeito por ter investigado o caso de uma aritmética
contiver o xadrez, mas acrescentando-lhe novos elementos? cardinal finita, porque:
O desprezo na lógica pelo que parece ser o caso menos (a) isto levar-me-ia a todos os casos mais comp licados,
geral deriva da ideia de que ele é incompleto. É de facto (b) uma aritmética cardinal finita não é incompleta, não
originador de confusão falar da aritmética dos números tem lacunas que possam ser p reenchidas pela restante
cardinais como algo de especial em oposição a algo mais aritmética.
geral. A aritmética dos números cardinais não mostra qual- Que acontece, se ent re as 4 e as 4.30, A espera que
quer sinal de incompletude; nem tão pouco isso acontece B venha ao seu quarto? Num certo sen tido em que é
com uma aritmética que é cardinal e finita. (Não existem utilizada, a frase «esperar algo entre as 4 e as 4.30», não
quaisquer distinções sub tis entre as formas lógicas como se refere a um processo ou estado mental que se desenrole
as que existem entre os sabores de diferentes espécies de duran te esse intervalo, mas a um gr ande número de
maçãs.) actividades e estados de espírito diferentes. Se, por exemplo,
Se examinarmos a gramática, por exemplo, das palavras eu espero B para o chá, o que acontece pode ser isto: às
«desejo», «pensamento», «compreensão», «significação», quatro horas olho para a minha agenda e vejo o nome «B»
não ficaremos descontentes quando tivermos descrito vários junto da data de hoje; preparo chá para dois; penso por
casos de desejo, pensamento, etc. Se alguém nos disser «não um momento «será que B fuma?» e ponho cigarros à vista;
é só a isto, com toda a certeza, que chamamos "desejo"», por volta das 4.30 começo a sentir-me impaciente; imagino
responderemos «de facto não, mas pode, se quiser, construir qual será o aspecto de B quando entrar no meu quarto.
casos mais complicados». E, no fim de contas , não existe Tudo isto é considerado «esperar B entre as 4 e as 4.30».
uma categoria definida de características que seja aplicável E existem variantes infindáveis deste processo que descre-
a todos os casos de desejo (pelo menos no sentido em que vemos por recurso à mesma expressão. Se se perguntar o
a palavra é habitualmente utilizada). Se, por outro lado, que têm em comum os dife rentes processos de esperar
pre tendem dar uma definição de desejo, isto é, estabelecer alguém para o chá, a resposta é a de que não há uma úni-
um limite nítido, para o uso da palavra então são liv res ca característica comum a todos eles, embora haja como
de o fazerem como quiserem; m as este limite nunca será que uma sobreposição de muitas características comuns.
inteiramente coincidente com o uso real, visto que este uso Estes casos de expectativa formam uma família; têm
não tem um limite nítido. parecenças familiare s que não se encontram claramente
A ideia de que para tomar claro o sen tido de um termo definidas.
geral era necessário descobrir o elemento comum a todas Existe um uso totalmente dife rente da palavra «expec-
as suas aplicações, estorvou a inves tigação filosófica, não tativa», quando ela se refere a um «sentimento particular».
s6 porque não conduziu a qualquer resultado, mas também (5)
Teeteto 146d-147c.

50 51
Este uso de palavras como «desejo», «expectativa», etc. na expressão «a doença de Bright»( ). Comparem a gra-
6

ocorre facilmente. Existe uma relação óbvia entre este uso mática desta palavra, quando ela denota um tipo particular
e o que foi anteriormente descrito. Não há dúvida de que, de doença, com a da expressão «a doença de Bright»
em muitos casos, se esperamos alguém, no primeiro sen tido, quando esta se refere à doença que Bright tem. Caracteri-
algumas, ou todas, as ac tividades descritas são acompa- zarei a diferença dizendo que a palavra «Bright» no pri-
nhadas por um sentimento peculiar, uma tensão; e é natural meiro caso é um índice no nome complexo «a doença de
utilizar a palavra «expecta ti va» para referir esta experiência Bright»; no segundo c as o chamar-lhe-ei um argumento da
de tensão. função «a doença de x». Pode dizer-se que um índice alude
Coloca-se agora a questão: deverá esta sensação ser a qualquer coisa, e uma tal alusão pode ser justificada
chamada «a sensação de expecta tiva», ou «a sensação de de todas as maneiras possíveis. Nestes termos, chamar a
expectativa pela chegada de B»? No primeiro c as o, dizer uma sensação «a expecta tiva pela chegada de B» é dar-
que nos encontramos num estado de expecta tiva não -lhe um nome complexo e «B» alude possivelmente ao
desc reve totalmente, de modo notório, a situação de estar homem cuja chegada tinha nitidamente sido precedida pela
à espera de que isto ou aquilo aconteça. O segundo caso sensação.
é, com frequência, alvitrado irreflectidamente como uma Podemos de novo utilizar a expressão «expectativa pela
explicação do uso da expressão «esperar que isto ou aquilo chegada de B» não como um nome mas como uma
aconteça», e poderão até pensar que, com esta exp licação, característica de certas sensações. Será possível, por exem-
se encontram em terre no seguro, visto que se pode plo, explicar que se diz que uma certa tensão é uma
re sponder a quaisquer outras questões dizendo que a expectativa pela chegada de B, se ela é sa tisfeita pela
sensação de expectativa é indefinível. chegada de B. Se é as sim que usamos a expressão, então
Nestas circunstâncias não existe qualquer objecção a será correcto afirmar que não sabemos o que esperamos
chamar a uma sensação particular «a expecta tiva pela até que a nossa expectativa tenha sido satisfeita (cf. Russell).
chegada de B». Poderão até existir excelentes razões de Mas ninguém pode acreditar que esta é a única maneira,
ordem prática para usar uma tal expressão. Apenas uma ou mesmo a m aneira mais comum, de usar a palavra
observação: — se explicámos o sen tido da expressão «es- «esperar». Se eu perguntar a alguém «de quem estás à
perar pela chegada de B» desta m aneira, nenhuma frase espera?» e depois de obter a re sposta perguntar de novo
que seja derivada desta, pela substituição de «B» por um «tens a certeza de que não estás à espera de outra pessoa?»,
outro nome, fica, com isso, explicada. Pode dizer-se que então, na maior parte dos casos, esta questão seria consi-
a expressão «esperar pela chegada de B» não é um valor derada absurda e a re sposta seria algo como «devo, sem
de uma função do tipo «esperar pela chegada de x». Para dúvida, saber de quem estou à espera».
compreendere m isto comparem o nosso c as o com o da Pode caracterizar-se o sentido que Russell dá à palavra
função «eu como x». Compreendemos a proposição «eu «desejo» dizendo que ela significa para ele uma espécie
como uma cadeira» embora não nos tenha sido especifi- de fome. Considerar que uma sensação particular de fo-
camente ensinado o sen tido da expressão «comer uma me será sati sfeita pela ingestão de um alimento particular,
cadeira». cons titui uma hipótese. Na m aneira de usar a palavra
O papel que, no nosso c as o presente, é desempenhado «desejo», que é própria de Russell, não faz sentido dizer
pelo nome «B» na expressão «estou à espera de B», pode «desejava uma maçã m as fiquei sa ti sfeito com uma
ser comparado com o que o nome «Bright» desempenha (6)
Cf. Tractatus, 5.02.

52 53
pera»(). Mas, de facto, fazemo-lo às vezes, us ando a primeiro sentimento através de um verbo intransitivo, ou
palavra «desejo» de uma maneira diferente da de Russell. deveria dizer que o meu medo ti nha um objecto embora
Neste sen tido, podemos dizer que a tensão do desejo foi eu não soubesse que isto acontecia? Ambas estas form as
miti gada sem que o desejo tenha sido sa ti sfeito; e também de desc rição podem ser utilizadas. Para comp reende rem isto
que o desejo foi sa ti sfeito sem que a tensão tenha sido examinem o seguinte exemplo: — pode considerar-se útil
mitigada. Isto é, posso, neste sentido, ficar insa ti sfeito sem chamar a um certo estado de apod recimento de um dente,
que o meu desejo tenha sido sa ti sfeito. não acompanhado pelo que geralmente chamamos dor de
Ora, poderíamos sentir-nos tentados a afirmar que a dentes, «dor de dentes inconsciente» e usar num tal caso
diferença de que falamos se re sume simplesmente ao a expressão de que temos dor de dentes, mas não o sabemos.
seguinte: nalguns casos sabemos o que desejamos, noutros É precisamente neste sen tido que a psicanálise fala de
não. Existem, certamente, c as os em que dizemos «sinto um pensamentos inconscientes, actos de vontade, etc. Ora, será
desejo, embora não saiba o que desejo» ou, «sinto um que, neste sentido, é um erro dizer que tenho dor de dentes
receio, mas não sei o que receio», ou ainda: «sinto medo, mas que não o sei? Não há nada de mal nisso, dado que
mas não tenho medo de algo em par ticular». se trata unicamente de uma nova terminologia que pode
Podemos descrever estes casos dizendo que temos cert as ser em qualquer altura traduzida de novo para a linguagem
sensações que não se referem a objectos. A frase «que não comum. Por outro lado a palavra «saber» é obviamente
se referem a objectos» introduz uma distinção grama tical. usada de uma m aneira nova. Se pretendem examinar o
Se, ao caracterizar tais sensações, utilizarmos verbos como modo como esta expressão é usada, será útil perguntarem
«recear», «desejar», etc., estes verbos serão intransitivos; a vocês próprios «com que se parece, neste c as o, o processo
«eu receio» será análogo a «eu choro». Podemos chorar de vir a saber?» «A que chamamos "vir a saber" ou,
por causa de alguma coisa, mas o que nos leva a chorar "descobrir"?»
não é um cons tituinte do processo de choro; isto é, podíamos Não é errado, de acordo com a nossa nova convenção,
descrever o que acontece quando choramos, sem mencio- dizer «tenho uma dor de dentes inconsciente». Que mais
narmos o que nos leva a chorar. poderão exigir da vossa notação, do que a distinção entre
Suponham agora que eu suge ria o uso da expressão um mau dente que não vos provoca dor de dentes e um
«sinto medo», e de expressões semelh antes, apenas de mau dente que o faz? Mas a nova expressão induz-nos em
maneira transitiva. Em lugar de dizermos, como o fazíamos erro, ao evocar imagens e an alogias que nos tornam difícil
an tes, «tenho uma sensação de medo» (intransitivamente), o recurso à nossa convenção. E é ext remamente difícil pôr
diremos agora «tenho medo de algo, m as não sei de quê». de parte estas imagens, a menos que estejamos constan-
Existirá alguma objecção a esta terminologia? temente vigil an tes; particularmente difícil quando, ao filoso-
Podemos dizer: «Não, a não ser que estamos, nesse caso, farmos, contemplamos o que dizemos sobre as cois as .
a utilizar a palavra "saber" de uma m aneira estran ha». Assim, a expressão «dor de dentes inconsciente» pode, ou
Considerem este c as o: — temos um sentimento imp reciso induzi-los erroneamente a pensar que foi feita uma des-
de medo. Mais tarde, acontece algo que nos leva a dizer, coberta formidável, uma descobe rt a que num ce rto sentido
«Agora sei do que tinha medo. Tinha medo de que isto confunde completamente a nossa compreensão; ou então,
e aquilo acontecessem». Será correcto descrever o meu poderão ficar extremamente perplexos com a expressão (a
perplexidade da filosofia) e possivelmente formularão uma
questão do tipo «como será possível uma dor de dentes
rn Cf. Russell, Analysis of Mind, III.

54 55
garganta está inflamada», isto pode ria indicar-nos um Quando falamos da linguagem como um simbo lismo
sintoma da angina. Chamo «sintoma» a um fenómeno cuja usado num cálculo exacto, o que temos em mente pode
coincidência, de uma ou de outra man eira, com o fenómeno ser encontrado na ciência e na matemática. O nosso uso
que cons titui o nosso critério de definição, nos foi revelada comum da linguagem apen as em casos raros se adapta a
pela experiência. Assim, afirmar que «um homem tem este padrão de exac tidão. Por que motivo então compa-
anginas se este bacilo foi nele encontrado» é uma tautologia, ramos constantemente, ao filosofarmos, o nosso uso das
ou é uma m aneira pouco exacta de enunciar a definição palavras com um uso que obedece a regras exactas? A
de «an gina». Mas afirmar, «um homem tem anginas sempre resposta reside no facto de os enigmas que procuramos
que tem a garg anta inflamada» é formular uma hipótese. eliminar derivarem sempre, precisamente, desta a titude para
Na prática, se vos pergunt as sem qual dos fenómenos é com a linguagem.
o critério de definição e qual é um sintoma, se riam na maior Considerem como um exemplo a questão «O que é o
parte dos casos incapazes de re sponder a esta questão tempo?», tal como foi formulada por S anto Agostinho e
excepto tomando uma decisão ad hoc arbitrária. Pode ser outros. À primeira vista, o que esta questão pede é uma
útil definir uma palavra adopt ando como critério de definição, mas, nesse c aso, levanta-se imediatamente a ques-
definição um fenómeno, mas facilmente seremos induzidos tão: «O que ganharíamos com uma defmição, se ela apenas
a definir a palavra recorrendo ao que, de acordo com o nos pode conduzir a outros termos não definidos?» E por
nosso primeiro uso, era um sintoma. Os médicos usam que motivo se deveria ficar perplexo com a falta de uma
nomes de doenças sem nunca decidirem quais os fenómenos definição de tempo, e não com a falta de uma definição
que devem ser considerados como critérios e quais como de «cadeira»? Por que mo tivo não deveríamos ficar per-
sintomas ; e isto não cons titui necessariamente uma falta plexos em todos os casos em que não temos uma definição?
deplorável de clareza. Devem lembrar-se de que não Ora uma definição escla rece com frequência a gramática
utilizamos geralmente a linguagem de acordo com regras de uma palavra. E, de facto, é a gramática da palavra «tem-
rigorosas — ela também não nos foi ensinada por meio de po» que nos deixa perplexos. Nós apenas expre ssamos esta
regras rigorosas. Nós, pelo contrário, nas nossas discussões, perplexidade ao formular um a questão um pouco engana-
comparamos constantemente a linguagem com um cálculo dora, a questão: «O que é...?» Esta questão é uma expressão
que obedece a regr as exactas. de falta de clareza, de mal-estar mental, e é comparável
Esta é uma visão muito parcial da linguagem. Na prática, à questão «porquê?» que as cri an ças repetem tão frequen-
usamos muito raramente a linguagem como um cálculo temente. Também esta é uma expressão de um mal-estar
deste tipo. Não só não pensamos nas regras de uso — nas mental, e não pede necessariamente quer uma causa, quer
definições, etc. — quando utilizamos a linguagem, como uma razão. (Hertz, Princípios de Mecânica.) Ora a perple-
também não somos capazes de, na maior parte dos casos, xidade sobre a gramática da palavra «tempo» provém do
fornecer essas regras quando isso nos é pedido. Somos que se poderi a chamar as contradições aparentes dessa
claramente incapazes de circunsc rever os conceitos que gramática.
utilizamos; rião porque desconheçamos a sua verdadeira Foi uma dess as «contradições» que embaraçou S anto
definição, mas porque não existe qualquer «definição» Agostinho quando argumentou: Como é possível a medição
verdadeira desses conceitos. Supor a sua necessidade seria do tempo? O passado não pode ser medido, porque passou,
como supor que, semp re que as crianç as bri ncam com uma e o futuro não pode ser medido porque ainda não existe.
bola, jogam um jogo de acordo com regras rigorosas. E o presente não pode ser medido porque não tem extensão.

58 59
de que uma palavra não tem um sen tido que lhe tenha sido parece apropriado e, por outro, tem seguramente induzido
dado, por assim dizer, por um poder independente de nós, as pessoas em erro. (Poder-se-ia dizer que o assunto de
para que possa proceder-se a uma espécie de investigação que nos ocupamos é um dos herdeiros do que costumá-
científica sobre o que a palavra verdadeiramente significa. vamos chamar «filosofia».) Os casos em que desejamos
Uma palavra tem o sen tido que lhe foi dado por alguém. particularmente afirmar que alguém é induzido em erro por
Existem palavras com vários sen tidos claramente defi- uma forma de expressão são aqueles em que diríamos: «ele
nidos. É fácil classificar esses sen tidos. E existem palavras não falaria desta m aneira se tivesse , conhecimento desta
das quais se poderia dizer que são usadas de mil m aneiras diferença na gramática de tais e tais palavras, ou se tivesse
diferentes que, gradualmente, se fundem umas n as outras. conhecimento desta outra possibilidade de expressão» e
Não é de admirar que não possamos formular regras precis as assim por diante. Assim, podemos dizer de alguns matemáti-
para o seu uso. cos com inclinações filosóficas que eles não estão evidente-
É um erro afirmar que em filosofia consideramos uma mente cientes da diferença existente entre os muitos diversos
linguagem ideal em contraste com a nossa linguagem co- usos da palavra «demonstração»; e que eles não clarificaram
mum. Isto poderia levar-nos a c rer que podíamos fazer coisa a diferença entre os usos da palavra «espécie», quando falam
melhor que a linguagem comum. Mas a linguagem comum de espécies de números, espécies de demonstrações, como
é perfeita. Sempre que produzimos « linguagens ideais» não se a palavra «espécie» significasse aqui o mesmo que no
o fazemos para substituir a nossa linguagem comum por contexto «espécies de maçãs». Ou podemos dizer que eles
elas, mas apenas para eliminar alguns problemas que decor- não têm conhecimento dos diferentes sentidos da palavra
rem do facto de alguém pensar que en trou na posse do «descoberta», quando num c as o falamos da descoberta da
uso exacto de uma palavra vulgar. É também por esse construção do pentágono e, num ou tro caso, da descoberta
motivo que o nosso método não consiste apen as na enu- do pólo Sul.
meração de usos efectivos de palavras, mas antes na Ora quando dis ti nguimos, um uso transitivo e um uso
invenção deliberada de novos usos, alguns dos quais por intransitivo de palavras como «desejar», «recear», «espe-
causa da sua aparência absurda. rar», etc., dissemos que era possível a alguém tentar
Quan do dizemos que, por recurso ao nosso método, ten- remover as nossas dificuldades dizendo: «a diferença en tre
tamos contrariar o efeito engan ador de certas analogias, é os dois casos consiste simplesmente no facto de que num
importante que compreendam que a ideia da analogia como caso sabemos o que desejamos e nou tro não». Penso que
fonte de erros não é algo nitidamente definido. E impos- quem diz isto não vê, obviamente, que a diferença que
sível precisar com nitidez os casos em que poderíamos di- tentava explicar reaparece quando consideramos cuidadosa-
zer que alguém foi induzido em erro por uma analogia. mente o uso da palavra «saber», no primeiro e no segundo
O uso de expre ssões construídas com base em padrões casos. A expressão «a diferença consiste simplesmente...»
analógicos realça analogias entre cas os frequentemente bas- faz que o caso pareça ter sido anali sado por nós sem revelar
tante distintos. Ao fazê-lo, estas expre ssões podem ser extre- qualquer dificuldade de maior; como quando chamamos a
mamente úteis. E impossível, na maior parte dos casos, atenção para o facto de duas substâncias com nomes muito
mostrar um ponto exacto onde uma analogia começa a indu- diferentes mal se distingui re m no que respeita às suas
zir-nos em erro. Todas as notações particulares realçam um composições.
ponto de vista particular. Se, por exemplo, chamamos às Dissemos, neste cas o, que podíamos utilizar as ex-
nossas investigações «filosofia», este rótulo, por um lado, pressões: «sentimos um desejo» (em que «desejo» é usado

62 63
intransitivamente) e «sentimos um desejo mas não sabemos Regressemos ao exame da gramática das exp ressões
«desejar», «esperar», « an siar por», etc. e consideremos o
o que desejamos». Pode parecer estranho dizer que podemos caso extremamente importan te em que a expressão, «desejo
utilizar correctamente qualquer uma das duas formas de
expressão que parecem contradizer-se, mas tais casos são que isto e aquilo aconteça» é a descrição di recta de um
processo da consciência, isto é, o caso em que nos senti-
muito frequentes.
ríamos inclinados a responder à questão «Tens a certeza
Utilizemos o exemplo que se segue para esclarecer es- de que isto é o que desej as ?» dizendo «Devo certamente
te as sunto. Dizemos que a equação x =-1 tem solução ±
2

saber o que desejo». Compa rem agora esta resposta com


V . Duran te muito tempo afirmou-se que esta equação não
-1

tinha solução. Quer esta afirmação concorde, quer não, com a que a maior parte de nós daria à questão: «Conhecem
o ABC» terá a as serção categórica de que o conhecem, um
a que se referia as soluções, ela não tem seguramente a sentido análogo ao da asserção anterior? De uma certa
sua multiplicidade. M as facilmente lha poderemos dar, maneira ambas as asserções ignoram a questão. Mas a
dizendo que uma equação x +ax+b=0 não tem uma solução,
2

primeira não p retende dizer «sei com toda a certeza uma


mas se aproxima a da solução mais próxima que é B. De
modo análogo, podemos dizer ou que «Uma linha recta coisa tão simples como esta», mas an tes: «a questão que
me colocaste não faz qualquer sen tido». Poderíamos dizer
intercepta semp re um círculo; por vezes em pontos reais,
por vezes em pontos complexos», ou, que «Uma linha recta que adoptámos neste caso um método errado para pôr de
pode, quer interceptar um círculo, quer não, mantendo-se parte a questão. «Evidentemente que o sei» poderia ser aqui
a uma distância a dele». Estas duas afirmações significam substituído por «evidentemente, não há qualquer dúvida»,
exactamente o mesmo. Serão mais ou menos satisfatórias que seria interp retado como querendo dizer que «não faz
de acordo com o ponto de vista com que fo rem consi- qualquer sentido, neste caso, falar de dúvidas». Deste modo,
deradas. Pode pretender-se tornar a diferença entre a inter- a re sposta «evidentemente que sei o que desejo» pode ser
interpretada como um enunciado grama tical.
secção e a não-intersecção tão pouco notada qu anto possível.
O mesmo se pas sa quando perguntamos «este quarto tem
Ou, por outro lado, pode p retender-se realçá-la, sendo quer
um comprimento?», e alguém re sponde: «claro que sim».
uma, quer outra d as tendências justificável, por exemplo A pessoa poderia ter respondido: «não faças pergunt as sem
por razões práticas particulares. Mas esta pode não ser a
razão para a preferência por uma forma de expressão em sentido». Por outro lado «o quarto tem comprimento» pode
detrimento da outra. A preferência por uma forma, ou ser utilizado como um enunciado gramatical. Quererá nesse
cas o dizer que uma frase com a forma «o quarto tem x
mesmo a existência de uma preferência, dependem frequen-
temente de tendências gerais do seu pensamento, profun- metros de comprimento» tem sentido.
Um grande número de dificuldades filosófic as está
damente enraizadas. relacionado com esse sen tido das expre ssões «desejar»,
(Deveríamos dizer que há c as os em que um homem
«pensar», etc., que estamos agora a ter em consideração.
despre za outro e não o sabe; ou deveríamos descrever tais Elas podem ser re sumidas na questão: «como se pode pensar
casos dizendo que ele não o desp reza, mas se comporta
no que não é o c as o?»
não intencionalmente para com ele de uma m aneira — fa-
la-lhe com um tom de voz, etc. — que habitualmente Eis um belo exemplo de uma interrogação filosófica.
Coloca a questão «como se pode...?» e, embora isto nos
manifestaria despre zo? Ambas as formas de expressão estão
correctas, mas podem revelar dife re ntes tendências do tome perplexos, devemos admitir que não há nada mais
fácil do que pensar no que não é o caso. Isto é, isto mostra-
espírito.)

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-nos de novo que a dificuldade com que nos debatemos destruição de todos os objectos vermelhos; m as ser-nos-ia
não deri va da nossa incapacidade para imaginarmos como impossível, por esse motivo, imaginar um objecto verme-
se pensa em qualquer coisa; assim como a dificuldade lho? Suponhamos que se respondia a isto da seguinte forma:
filosófica sobre a medição do tempo não derivava da nossa «Mas certamente que devem ter exis tido objectos vermelhos
incapacidade para imaginarmos como o tempo era na e deve tê-los visto, uma vez que é capaz de os imaginar»?
realidade medido. Refiro isto porque às vezes quase parece — Mas como sabe que as coisas se passam deste modo?
que as nossas dificuldades se resumiam à dificuldade em Suponha que eu lhe dizia «Uma pressão exercida sobre a
nos lembrarmos exactamente do que aconteceu quando sua pupila produz uma imagem vermelha». Não pode ria
pensámos em algo, a uma dificuldade de introspecção, ou ter sido este o modo como inicialmente você se familiarizou
algo desse tipo; quando na realidade elas derivam do facto com a cor vermelha? E por que motivo não terá sido apenas
de olharmos para os factos através de uma forma de imaginando uma mancha vermelha? (A di ficuldade que
expressão enganadora. poderão experimentar aqui terá de ser discu tida mais
«Como se pode pensar no que não é o caso? Se eu penso tarde)( ).
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que o King's College está a arder quando ele não está a Podemos agora sentir-nos inclinados a dizer: «Uma vez
arder, o facto de ele estar a arder não existe. Então como que o facto que tomaria verdadeiro o nosso pensamento,
posso pensá-lo? Como podemos enforcar um ladrão que caso existi sse, nem sempre existe, ele não é o facto que
não existe?» A nossa resposta poderia assumir a seguinte nós pensamos». Mas isto apen as depende do modo como
forma: «não posso enforcá-lo quando ele não existe; mas eu desejo utilizar a palavra «facto». Posso dizer: «Ac redito
posso procurá-lo quando ele não existe». no facto de o colégio estar a arder» é apenas uma maneira
Somos aqui induzidos em erro pelos subst antivos «ob- desajeitada de dizer: «Acredito que o colégio está a arder».
jecto do pensamento» e «facto», pelos dife rentes sentidos Dizer «não é no facto que acreditamos», é o resultado de
da palavra «existir». uma confusão. Pensamos que estamos a dizer algo como:
Falar do facto como um «complexo de objectos» de riva «O que comemos é o açúcar e não a cana-de-açúcar», «o
desta confusão (cf. Tractatus Logico philosophicus). Supo-
-
que está pendurado no corredor é o retrato do sr. Smith
nhamos a pergunta: «Como se pode imaginar o que não e não o próprio sr. Smith».
existe?» A resposta parece ser: «Se o fazemos, imaginamos O passo que nos sentimos tentados a dar de seguida
combinações não existentes de elementos existentes». Um consiste em pensar que, como o objecto do nosso pensa-
centauro não existe, mas a cabeça, o tronco e os braços mento não é o facto, ele é uma sombra do facto. Existem
de um homem e as patas de um cavalo existem. «M as não diversos nomes para esta sombra, v.g. «proposição», «sen-
poderemos imaginar um objecto completamente diferente tido da frase».
de qualquer um existente?» — Sentir-nos-íamos inclinados Mas isto não faz desaparecer a nossa dificuldade. A ques-
a responder: «Não, os elementos, os particulares, devem tão é agora «como é que algo pode ser uma sombra de
existir. Se a vermelhidão, a rotundidade e a doçura não um facto que não existe?»
existissem, não as poderíamos imaginar». Posso expre ssar o nosso embaraço de uma forma
Mas que queremos nós dizer com «a vermelhidão diferente dizendo: «Como podemos saber do que é que a
existe»? O meu relógio existe, se não foi reduzido a sombra é sombra?» — A sombra se ria uma espécie de retrato
bocados, se não foi destruído. A que chamaríamos «destruir e, por conseguinte, posso apresentar de novo o nosso
a vermelhidão»? Poderíamos evidentemente referir-nos à
Isto não será feito (N. Org.).

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problema perguntan do: «O que faz que um retrato seja um se descobrirem que não corre sponde ao modelo; ou talvez
retrato do sr. N?» A primeira re sposta que nos pode ocorrer digam «vou copiar esta elipse» e desenhem apenas uma
ao espírito é: «A semelh ança entre o retrato e o sr. N». elipse igual a ela. Existe uma variedade interminável de
Esta resposta mostra de facto o que tínhamos em mente acções e palavras, que têm entre si uma parecença de família
quando falámos da sombra de um facto. É perfeitamente e a que chamamos «tentar copiar».
claro, contudo, que a semelh ança não constitui a nossa ideia, Suponham que dizíamos que «o facto de uma pintura
porque a possibilidade de se falar de um bom ou de um ser um retrato de um objecto particular consiste em ter sido
mau retrato faz parte da essência desta ideia, por outras obtida a partir desse objecto de uma m aneira específica».
palavras, é essencial que a sombra seja capaz de representar De facto, é fácil descrever o que chamaríamos processos
as coisas como elas, de facto, não são. de obtenção de uma imagem a partir de um objecto (falando
Uma resposta óbvia e correcta para a questão: «O que de uma maneira geral, processos de projecção): m as há uma
faz que o retrato seja o retrato de ful ano?» poderia ser: dificuldade peculiar em admitir que um processo desse tipo
a intenção. Mas, se pretendemos saber o que significa «ter seja o que chamamos «representação intencional», visto que,
a intenção de que este seja o retrato de fulano», vejamos seja qual for o processo (actividade) de projecção que
o que realmente acontece quando temos esta intenção. possamos descrever, existe uma m aneira de reinterpretar
Recordem a ocasião em que falámos do que acontecia quan- esta projecção. Por consequência — é-se tentado a afirmar
do esperávamos alguém das quatro às quatro e meia. Ter — um tal processo nunca pode ser a própria intenção.
a intenção de que uma imagem seja um retrato de fulano Poderíamos sempre ter tido como intenção o oposto, ao
(v.g. da parte do pintor) não é nem um estado de espírito reinterpretar o processo de projecção. Imaginem o seguinte
particular nem um processo mental particular. Mas existe caso: damos a alguém uma ordem para andar numa certa
um grande número de combinações de acções e estados de direcção, apontando ou desenhando uma seta que aponta
espírito a que chamaríamos «ter a intenção de...» Pode ria nessa direcção. Suponham que desenhar setas é a linguagem
ter acontecido que eu lhe tivesse dito para pintar um retrato que utilizamos habitualmente para dar essa ordem. Não
de N, que ele se tivesse sentado em frente de N e executado poderá tal ordem ser interpretada como significan do que
certas acções a que chamamos «copiar a cara de N». Pode- o homem que a recebe deve andar na direcção oposta à
riam pôr-se objecções a isto dizendo que a essência da acção da seta? Isto poderi a obviamente ser feito acrescent ando à
de copiar é a intenção de copiar. Replicaria que existe um nossa seta alguns símbolos a que poderíamos chamar «uma
grande número de processos diferentes a que chamamos interpretação». E fácil imaginar um caso em que, por
«copiar algo». Tomemos um exemplo. Traço uma elipse exemplo para enganar alguém, poderíamos fazer uma com-
numa folha de papel e peço-vos para a copiar. O que binação para que uma ordem fosse executada em sen tido
caracteriza o processo de copiar? É claro que não é o facto oposto ao da sua execução normal. O símbolo que acrescen-
de desenhar uma e lipse semelhante. Poderiam ter tentado ta a interpretação à nossa seta original poderia, por exemplo,
copiá-la sem êxito; ou pode riam ter traçado uma e lipse com ser outra seta. Sempre que interpretamos um símbolo, de
uma intenção completamente dife rente e ocas ionalmente ela uma ou de outra maneira, a interpretação é um novo símbolo•
ser semelhante à que deve riam ter copiado. Então o que acrescentado ao primeiro.
fazem vocês quando tentam copiar a elipse? Bem, olham Poderíamos dizer que, semp re que damos uma ordem
para ela, desenham algo num bocado de papel, talvez a alguém mostrando-lhe uma seta, sem que isso seja feito
meçam o que acabaram de desenhar, talvez o amaldiçoem «mecanicamente» (sem pensarmos), atribuímos um sentido

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à seta. E este processo de atribuição de sentido, seja qual Tudo isto se tornará mais claro se considerarmos o que
for o seu tipo, pode ser representado por outra seta realmente acontece quando dizemos uma coisa e queremos
(apontando no mesmo sentido da primeira, ou em sentido dizer isso mesmo. Perguntemos a nós próprios: se dissermos
contrário). Nesta imagem que apresentamos do «sentido e a alguém «ficaria muito contente por o ver» e que remos
da expressão» é essencial que se imagine a ocorrência, em dizer isso mesmo, serão estas palavras acompanhadas por
duas esferas diferentes, dos processos de expressão e um processo consciente que pode ria, ele próprio, ser
sentido. traduzido em palavras? Muito dificilmente será este algum a
Será, nesse caso, correcto afirmar que nenhuma seta po- vez o caso.
deria ser o sentido, visto que todas as setas podem ser enten- Mas imaginemos um caso em que isso acontece. Supo-
didas como indicando a direcção oposta? — Suponham que nhamos que eu tinha o hábito de acompanhar cada frase
representamos o esquema da expressão e do sen tido por em inglês proferida em voz alta por uma frase em alemão
uma coluna de setas dispostas umas por baixo das outras. dita a mim próprio no íntimo. Se, nesse caso, seja qual
for a razão, chamarem à frase silenciosa o sentido da frase
proferida em voz alta, o processo de significação que
Então, para que este esquema nos possa ser de alguma acompanha o processo de expressão pode ria ele próprio ser
traduzido em signos perceptíveis. Ou, que dizemos a nós
utilidade, deve mostrar-nos qual dos três níveis é o nível
próprios, numa espécie de aparte, o sentido (seja ele qual
do sentido. Eu posso, por exemplo, fazer um esquema com
três níveis em que o nível infe rior será sempre o nível do for) de qualquer frase, antes de a proferirmos em voz alta.
Um exemplo, pelo menos semelh ante ao caso que preten-
sentido. Mas seja qual for o modelo ou esquema que se
adopte, ele terá um nível inferior, e não existirá uma demos, seria dizer uma coisa e ao mesmo tempo ver
interpretação para isso. Dizer, neste caso, que todas as setas mentalmente uma imagem que se ria o sentido e estaria em
podem ainda ser interpretadas apenas significaria que eu acordo ou em desacordo com o que dizemos. Existem casos
deste tipo, ou semelhantes, mas não constituem regras,
poderia sempre fazer um modelo diferente de expressão e
quando dizemos algo que queremos dizer, ou quando
de sentido, com mais um nível do que o modelo que estou
dizemos algo e queremos dizer outra coisa. Existem, claro,
a utilizar.
casos reais em que o que chamamos sentido é um processo
Noutros termos: — o que se pretende dizer é: «todos os
consciente e definido que acompanha, procede, ou se segue
signos são susceptíveis de interpretação; mas o sentir não
deve ser susceptível de interpretação. Eu é a última à expressão verbal e é ele próprio uma expressão verbal
interpretação». Ora vocês encaram o sentir, presumo, como de um qualquer tipo, ou traduzível numa expressão verbal.
um processo que acompanha a expressão, e que é traduzível Um exemplo típico disto é o «aparte» no palco.
e, por isso, equivalente, a um outro signo. Têm, por Mas o motivo por que somos tentados a pensar que o
conseguinte, de me dizer, além disso, o que consideram sentido do que dizemos é um processo essencialmente do
ser a marca dis tintiva entre um signo e o sentido. Se o tipo que descrevemos, é a analogia entre as formas de
fizerem, por exemplo, dizendo que o sentido é a seta que expressão:
imaginam, por oposição a qualquer seta que possam «dizer algo»
desenhar, afirmarão desse modo que não considerarão «querer dizer algo»,
qualquer outra seta como uma interpretação daquela que
imaginaram. que parecem referir-se a dois processos paralelos.

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Um processo que acompanha as nossas palavras e que dizemos «por certo que duas frases de diferentes línguas
se poderia chamar o «processo de lhes confe rir sentido», podem ter o mesmo sen tido»; e argumentamos, «por
é a modulação da voz ou um processo semelhante a este, conseguinte o sentido e a frase são coisas diferentes», e
como o jogo da expressão facial. Estes processos acom- colocamos a questão: «O que é o sen tido?» E transforma-
panham as palavras faladas, não da maneira como uma frase mo-lo num ser irreal, um dos muitos que criamos quando
em alemão pode acompanhar uma frase inglesa, ou uma desejamos dar sentido a substantivos a que não correspon-
frase escrita pode acompanhar uma frase falada, mas no dem quaisquer objectos materiais.
sentido em que a música de uma canção acompanha a sua Uma outra fonte da ideia de uma sombra enquanto
letra. Esta música corresponde ao «sentimento» com que objecto do nosso pensamento é a seguinte: imaginamos a
proferimos a frase. E quero chamar a atenção para o facto sombra como uma imagem cuja intenção não pode ser posta
de este sentimento ser a expressão com que a frase é em dúvida, isto é, uma imagem que não interpretamos para
proferida, ou algo semelhante a esta expressão. a compreendermos, mas que compreendemos sem a inter-
Voltemos à nossa questão: «Qual é o objecto de um pretarmos. Ora, devemos dizer que existem imagens que
pensamento?» (por exemplo, quando dizemos, «Penso que interpretamos para as compreender, isto é, que traduzimos
o King's College está a arder»). numa espécie diferente de imagem; e imagens que com-
A questão tal como a apresentamos já é a expressão de preendemos imediatamente sem qualquer interpretação
várias confusões. Isto é revelado pelo simples facto de mela suplementar. Se virem um telegrama esc rito em cifra, e
quase nos soar como se fosse uma questão da física; como conhecerem a chave para este código, não dirão, em geral,
se perguntasse: «Quais são os elementos básicos constituin- que compreendem o telegrama antes de o terem traduzido
tes da matéria?» (É uma questão tipicamente metafísica, para a linguagem vulgar. Evidentemente, apenas substi-
sendo a sua característica a de que exprimimos uma tuiram um tipo de símbolo por outro e, contudo, se lerem
incerteza sobre a gramática, sobre a forma de um problema agora o telegrama na vossa língua, não haverá qualquer
científico.) outro processo de interpretação. — Ou antes, poderão agora,
Uma das origens da nossa questão é o uso ambivalente em certos casos, traduzir de novo este telegrama, por
da função proposicional «eu penso x». Nós dizemos «penso exemplo numa imagem, mas nesse caso apenas voltaram
que isto e aquilo vai acontecer» ou «que isto e aquilo é a substituir um conjunto de símbolos por outro.
o caso», e também «penso exactamente o mesmo que ele»; A sombra, tal como a concebemos, é uma espécie de
e dizemos «eu espero-o», e também «espero que ele venha». imagem; é, de facto, algo de muito semelh ante a uma
Comparem «eu espero-o» e «eu disparo sobre ele». Não imagem que nos vem ao espírito; e isto mais uma vez é
podemos disparar sobre ele se não es tiver presente. E assim algo não muito diferente de uma representação pintada, no
que a questão surge: «Como podemos esperar algo que não sentido habitual. Uma fonte da ideia de sombra é segu-
é o caso?», «Como podemos esperar um facto que não ramente o facto de, em alguns casos, pronunciar, ouvir ou
existe?» ler uma frase nos trazer imagens ao espírito, imagens que
A maneira de fugirmos a esta dificuldade parece ser esta: corrrespondem mais ou menos rigorosamente à frase, e que
o que esperamos não é o facto, m as uma sombra de facto; são por consequência, num certo sentido, traduções desta
a coisa que lhe é mais próxima. Dissemos que isto repre- frase numa linguagem pictórica. — Mas é absolutamente
senta apenas um adiamento de solução. São várias as o rigens essencial para a imagem que imaginamos que a sombra seja,
para esta ideia de uma sombra. Uma delas é a que se segue: que ela seja o que chamarei uma «imagem por semelh ança».

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Não quero com isto dizer que seja uma imagem semelhante poderíamos desejar que acontecesse precisamente isto, se
ao que se tem a intenção que represente, mas que é uma isto não estivesse precisamente presente no nosso desejo?
imagem que é correcta apenas quando é semelh ante ao que É correcto dizer-se: a mera sombra não é suficiente, visto
representa. Poderia empregar-se a palavra «cópia» para este que se fica perante o objecto e nós queremos que o desejo
tipo de imagem. Falando de uma maneira geral, as cópias contenha o próprio objecto. — Queremos que o desejo de
são boas quando facilmente se confundem com o que que o sr. Smith entre neste quarto se refira precisamente
representam. ao sr. Smith, e não a um substituto, e à sua entrada no
Uma projecção plan a de um hemisfério do globo terrestre meu quarto, e não a algo que faça as vezes disto. M as
não é uma imagem por semelh ança ou uma cópia neste isto é exactamente o que dissemos.
sentido. Seri a concebível que eu retratasse alguém num A nossa confusão poderia ser descrita desta maneira: de
bocado de papel, projectando a face dessa pessoa de uma acordo com a nossa forma usual de expressão pensamos
maneira fora do vulgar (embora correcta de acordo com no facto que desejamos como uma coisa que ainda não está
a regra de projecção adoptada), de tal modo que ninguém aqui, e para a qual, por consequência, não podemos apontar.
poderia chamar à projecção «um bom retrato de ful ano» Ora para compreendermos a gramática da expressão «ob-
porque ela não se parecia minimamente com ele. jecto do nosso desejo» conside remos apenas a resposta que
Se tivermos pre sente a possibilidade de uma imagem que, damos à questão: «Qual é o objecto do seu desejo?» A
embora correcta, não tem qualquer semelh ança com o seu resposta a esta questão é evidentemente «Desejo que isto
objecto, a interpolação de uma sombra ent re a frase e a e isto aconteça». Ora, qual seria a resposta se continuás-
realidade deixa de ter qualquer sentido. Nestas circuns- semos a perguntar: «E qual é o objecto deste desejo?» Ela
tâncias, a própria frase pode servir como sombra. A frase poderia apenas consistir numa repetição da nossa anterior
é exactamente essa representação, que não tem a menor expressão do desejo, ou então numa tradução para uma outra
semelhança com o que representa. Se tínhamos dúvidas forma de expressão. Poderíamos, por exemplo, exprimir o
sobre o modo como a frase «O King's College está a arder» que desejávamos por outras palavras, ou ilustrando-o por
pode ser uma repre sentação do King's College a arder, recurso a uma imagem etc., etc. Ora, quando temos a
apenas necessitamos de perguntar a nós próprios: «Como impressão de que aquilo a que chamamos o objecto do nosso
explicaríamos o que a frase significa?» Tal exp licação desejo é, por assim dizer, um homem, que ainda não entrou
poderi a consistir em definições ostensivas. Diríamos, por no nosso quarto e, por conseguinte, não pode ainda ser visto,
exemplo, «Isto é o King's College» (apontando para o imaginamos que qualquer exp licação do que desejamos é
edifício), «isto é um fogo» (apontando para um fogo). Isto apenas o que há de melhor depois da exp licação que
revela-nos o modo como as palavr as e as coisas podem mostraria o facto real — que, receamos, não pode ainda
estar relacionadas. ser mostrado visto que ainda não entrou. É como se eu
A ideia de que aquilo que desejamos que aconteça deve dissesse a alguém «estou à espera do sr. Smith», e ele me
estar presente, como uma sombra, no nosso desejo, está perguntasse «quem é o sr. Smith?», e eu respondesse, «não
profundamente enraizada nas noss as formas de expressão. lho posso mostrar agora, visto que ele não está aqui. Tudo
Mas, de facto, poderíamos dizer que ela é quase tão absurda o que lhe posso mostrar é um retrato dele». E como se
quanto a ideia mais absurda que gostaríamos realmente de nunca pudesse explicar o que desejava, até que isso viesse
dizer. Se não fosse tão absurda, diríamos que o facto que realmente a acontecer. Mas evidentemente isto é um eng ano.
desejamos deve estar pre sente no nosso desejo. Como A verdade é que não preciso de ser capaz de dar uma

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as espécies de imagens e experiências, que num ce rto existir uma espécie de gravação dessa música em disco,
sentido se encontram estreitamente relacionadas, devem a partir da qual ela é tocada?
estar pre sentes em simultâneo no nosso espírito. Se can Considerem o seguinte exemplo: uma arma é disparada
-tarmosucnçãqeabmosdcr,uiemos na minha presença e eu digo: «Este barulho não foi tão
alfabeto, as notas e as letras parecem manter-se unidas e forte quanto eu esperava». Alguém me pergunta: «Como
cada uma parece arras tar a que se lhe segue, como se fossem é isso possível? Houve na tua imaginação um barulho mais
um colar de pérolas numa caix a, e ao tirar para fora uma forte do que o da arma?» Devo confessar que nada disso
pérola se tirasse a que se lhe segue. aconteceu. Então a pessoa diz-me: «Nesse c aso não estav as
Não há qualquer dúvida de que, tendo p resente a imagem realmente à espera de um barulho mais forte, mas,
visual de um colar de pérolas a ser tirado para fora de uma possivelmente, do eco de um barulho mais forte. E como
caixa através de um buraco na tampa, nos sentiríamos sabias que era o eco de um barulho mais forte?» Vejamos
inclinados a dizer: «Todas estas pérolas devem ter estado o que, num tal caso, pode ter de facto acontecido.
juntas na caixa». Mas é fácil ver que isso é formular uma Possivelmente ao esperar pela detonação ab ri a boca,
hipótese. A imagem teria sido a mesma se as pérolas se agarrei-me a algo para me man ter firme e talvez tenha dito:
tivessem gradualmente materializado no buraco da tampa. «Isto vai ser terrível». Depois, quando tudo terminou, disse:
Facilmente descuramos a distinção entre a descrição de um «Afinal não foi muito barulhento». — Ce rtas tensões no meu
acontecimento mental consciente e a formulação de uma corpo relaxaram. Mas qual é a relação entre estas tensões,
hipótese sobre o que se poderia chamar o mec anismo do o abrir a boca, etc., e um barulho real mais forte? Talvez
espírito, tanto mais que tais hipóteses ou rep resentações do esta relação se tenha estabelecido quando, ao ouvirmos um
funcionamento do nosso espírito se encontram incorporadas barulho assim, tivemos as experiências mencionad as.
em muitas das formas de expressão da nossa linguagem Examinem expre ssões como «ter uma ideia em mente»,
diária. O pretérito imperfeito «referia» na frase «eu refe- «analisar a ideia que nos vem ao espírito». Para não se rem
ria-me ao homem que ganhou a batalha de Austerlitz» faz induzidos em erro por elas, vejam o que realmente acontece
parte de uma representação assim, em que ō,' espírito é quando, por exemplo, ao escreve rem uma carta, procuram
concebido como um lugar no qual guardamos, armaze- palavras que expre ssem correctamente a ideia que «nos veio
namos, aquilo de que nos lembramos, antes de o expres- ao espírito». Dizer que estamos a tentar exp ressar a ideia
sarmos. Se eu assobio uma música que conheço bem e sou que nos veio ao espírito é empregar uma metáfora, que
interrompido a meio e se em seguida alguém me perguntar se insinua de modo muito natural, e que é perfeitamente
«sabias como continuar?» responderia: «sim, claro». Que válida desde que não nos induza em erro quando filoso-
tipo de processo é este saber como continuar? Toda a famos, visto que, quando evocamos o que de facto se passou
continuação da música teria, aparentemente, de estar pre em tais casos, encontramos uma grande variedade de
-sent,om quesabicomntur. processos mais ou menos aparentados uns aos outros.
Coloquem a vocês próprios a seguinte questão: «Quanto Poderíamos sentir-nos inclinados a dizer que, em todos esses
tempo leva a saber como continuar?» Ou será um processo casos, de qualquer modo, somos guiados por algo que nos
instantâneo? Não estaremos a cometer um erro do mesmo vem ao espírito. Mas, nesse cas o, as palavras «guiados»
género que o da confusão entre uma gravação em disco e «coisa que nos vem ao espírito» são u tilizadas em sentidos
de uma música e a própria música? E não estaremos a tão diversos quanto as palavras «ideia» e «expressão de uma
presumir que sempre que ouvimos uma música deverá ideia».

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A frase «expre ssar uma ideia que nos vem ao espírito» é a seguinte: a expressão da crença, do pensamento, etc.,
sugere que o que estamos a tentar expre ssar por palavras é apenas uma frase; — e a frase só tem sentido no quadro
já foi expresso, mas numa linguagem diferente; que esta de um sistema de linguagem; enqu anto a expressão no seio
expressão nos veio ao espírito; e que o que fazemos é de um cálculo. Ora, somos tentados a imaginar este cálculo,
traduzi-la de uma linguagem mental para uma linguagem por assim dizer, como um p ano de fundo permanente para
verbal. Na maior parte dos casos a que chamamos «expres- cada frase profe rida e a pensar que, embora a frase escrita
sar uma ideia, etc.», acontece algo de muito diferente. num bocado de papel, ou dita, se apre sente isolada, no acto
Imaginem o que acontece em casos como este: procuro mental do pensamento o cálculo está presente na sua
hesitantemente uma palavra. São-me suge ridas várias pala- totalidade. O acto mental parece realizar de maneira mila-
vras e eu rejeito-as. Finalmente propõem-me uma e eu digo: grosa o que não poderia ser realizado por qualquer acto
«Eis o que eu queria dizer!» de manipulação de símbolos. Quando desaparece a tentação
(Deveríamos sentir-nos inclinados a afirmar que a e pensamos que, num certo sentido, a totalidade do cálculo
demonstração da impossibilidade da trisecção do ângulo deve estar presente ao mesmo tempo, deixa de ter qualquer
com régua e compasso analisa a nossa ideia da trisecção interesse postular a existência de um tipo peculiar de acto
de um ângulo. Mas a demonstração dá-nos uma nova ideia mental que acompanha a nossa expressão. Isto, evidente-
trisecção, que não tínhamos antes de a demonstração a ter mente, não significa que tenhamos mostrado que as ex-
produzido. A demonstração indicou-nos um caminho que pressões dos nossos pensamentos não sejam acomp anhadas
nos sentíamos inclinados a seguir; mas levou-nos para longe por actos peculia res da consciência! Simplesmente, já não
de onde estávamos, e não nos mos trou claramente o lugar dizemos que eles devem acompanhá-las.
onde tínhamos estado até aí.) «Mas a expressão dos nossos pensamentos pode semp re
Regre ssemos ao momento em que dissemos que nada faltar à verdade, visto que podemos dizer uma coisa
lucrávamos ao presumir que urna sombra deve intervir entre querendo significar outra». Imaginem as várias coisas dife-
a expressão do nosso pensamento e a realidade a que o rentes que acontecem quando dizemos uma coisa e que-
nosso pensamento diz respeito. Dissémos que, se quisés- remos referir-nos a outra! — Façam a seguinte experiência:
semos uma representação da realidade, a própria frase seria digam a frase «está calor neste quarto», querendo dizer «está
essa representação (embora ela não fosse uma imagem por frio». Observem atentamente o que fazem.
semelhança). Poderíamos facilmente imaginar sere s que pensam em
Tentei, através de tudo o que foi dito anteriormente, privado por meio de «apartes» e que mentem dizendo algo
afastar a tentação de pensar que «deve existir» o que se em voz alta, ao mesmo tempo que, num aparte, dizem o
chama um processo mental de pensamento, esper ança, oposto.
desejo, querença, etc. independente do processo de ex- «Mas a significação, o pensamento, etc., são experiências
pressão de um pensamento, de uma esperança, de um privadas. Não são ac tividades como escrever, falar, etc.»
desejo, etc. Quero agora apre sentar-vos o seguinte método — Mas por que motivo não poderiam eles ser as experiências
empírico: se se sentirem perplexos acerca da natureza do privadas específicas da escrita — as sensações musculares,
pensamento, da crença, do conhecimento e outras coisas visuais, tácteis da escrita e da fala?
afms, substituam o pensamento pela expressão do pensa- Façam a seguinte experiência: digam e intencionem uma
mento, etc. A dificuldade que encontramos nesta substi- frase, por exemplo «provavelmente choverá amanhã».
tuição e, simultaneamente, o interesse que temos em a fazer, Agora pensem de novo o mesmo, conse rvem a intenção

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inicial, mas sem dizerem seja o que for (quer em voz alta, peculiar. As form as de expressão estabelecidas já não nos
quer para vocês próprios). Se pensar que choverá amanhã impedem o reconhecimento de que a experiência do pensa-
acompan hava o dizer que choverá amanhã, então dedi- mento pode ser apenas a experiência da fala, ou pode
quem-se apenas às primeira actividade e omitam a segunda. consistir nesta experiência em conjunto com outras que a
— Se pensar e falar compartilhavam a relação das palavras acompan ham. (Será útil também examinar o seguinte caso:
e da melodia de uma canção, poderíamos omitir o f alar supõe que uma multiplicação faz parte de uma frase;
e continuar a pensar, tal como podemos c antar a canção pergunta a ti próprio o que será dizer 7x5=35. E pensá-
sem as palavras. -lo, e, por outro lado, dizê-lo sem o pensar.) O exame
Mas não será possível de al gum modo falar e omitir minucioso da gramática de uma palavra enfraquece a
o pensamento? Sem dúvida — mas obse rvem o que fazem posição de certos padrões fixos da nossa expressão que nos
quando falam sem pensar. Observem em primeiro lugar que tinham impedido de ver os factos sem quaisquer ideias pré-
o processo a que poderíamos chamar «falar e intencionar -concebidas. A nossa investi gação procurou afastar estes
o que se diz» não é necessa riamente distinto do processo preconceitos, que nos forçam a pensar que os factos se
de falar irreflectidamente em função do que se p assa na devem conformar a determinadas apresentações impl antadas
altura em que se fala.. O que distingue os dois processos na nossa linguagem.
pode muito bem ser o que se p assa antes ou depois de «Sentido» é uma das p alavras das quais se pode dizer
se falar. que desempenham «tarefas ocasionais» na nossa linguagem.
Suponham que eu tentava, deliberadamente, falar sem São estas palavras que provocam a maior parte dos
pensar; — O que faria eu de facto? Pode ria ler uma fra- problemas filosóficos. Imaginem uma instituição cujos
se de um livro, tentando fazê-lo automaticamente, isto é, membros, na sua maioria, desempenham certas funções
tentando não acompanhar a frase com imagens e impres- habituais que podem facilmente ser desc ritas, por exemplo,
sões que, caso contrário, ela produziria. Uma m aneira de nos estatutos da instituição. Existem, por outro lado, alguns
o fazer seria concentrar a minha atenção noutra coisa membros que desempenham tarefas ocasionais as quais
diferente enquanto proferisse a frase, por exemplo, belis- todavia podem ser extremamente importantes. — O que
cando-me com força enqu anto falas se. Poderíamos dizer que provoca a maior parte dos problemas em filosofia é o facto
pronunciar uma frase sem pensar consiste em dizê-la se- de nos sentirmos tentados a desc rever o uso de p alavras
parando-a de certos processos que acompanham o acto de importantes «para tarefas ocasionais», como se elas fossem
falar. Pergunta agora a ti próprio: Será que pensar uma fra- palavras com funções habituais.
se sem a dizer consiste em fazer exactamente o contrário, O que me levou a adiar a referência à experiência pes-
isto é, consiste em manter os processos que acompanha- soal foi o facto de que pensar sobre este tópico faz apare-
vam as palavras omitindo estas? Tenta pensar os pen- cer uma multidão de dificuldades filosóficas, que ameaçam
samentos de uma frase sem a frase e vê se é isto o que destruir as nossas noções comummente aceites sobre o que,
acontece. habitualmente, chamaríamos os objectos da nossa expe-
Resumindo: se examinarmos minuciosamente os usos riência. E, se fôssemos ass altados por esses problemas,
que fazemos de p alavras como «pensamento», «sentido», poderia parecer-nos que tudo o que dissemos sobre os si-
«desejo», etc., libertar-nos-emos da tentação de procurar um gnos e sobre os vários objectos a que fizemos referência
acto peculi ar do pensamento, independente do acto de nos nossos exemplos poderia ter de sofrer uma reforma
expressão dos nossos pensamentos, e arrumado no meio total.

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A situação é, de certo modo, típica no estudo da filosofia exemplo, em compreender que, quando se juntaram cor-
e foi algumas vezes descrita pela afirmação de que nenhum rectamente dois livros, tal não significa que eles se
problema filosófico pode ser resolvido até que todos os encontrem nas suas posições definitivas.
problemas filosóficos sejam resolvidos, o que quer dizer Quan do pensamos na relação existente entre os objectos
que, enquan to eles não forem na sua totalidade resolvidos, que nos rodeiam e as nossas experiências pessoais desses
qualquer nova dificuldade toma questionáveis todos os objectos somos por vezes tentados a afirmar que estas
nossos anteriores resultados. Apenas podemos responder experiências pessoais são o material em que consiste a
grosseiramente a esta afirmação, se p retendemos falar sobre realidade. Tomar-se-á mais claro, posteriormente, o modo
a filosofia em termos tão gerais. Cada novo problema que como esta tentação se produz.
se levanta pode pôr em causa a posição que os nossos Quando pensamos deste modo parecemos perder o nosso
resultados parciais anteriore s devem ocupar no quadro final. apoio firme nos objectos que nos rodeiam. Resta-nos, como
Fala-se nesse cas o da necessidade de reinterpretar estes alternativa, uma quantidade de experiências pessoais de
resultados anteriores; e poderíamos dizer: eles têm de ser diferentes indivíduos. Estas experiências pessoais parecem
colocados num meio circundante diferente. vagas e em constante mudança. A nossa linguagem parece
Imaginem que tínhamos de arrumar os livros de uma não ter sido concebida para as descrever. Somos tentados
biblioteca. Quan do começamos, os livros estão em desor- a pensar que, para esclarecer filosoficamente estes assuntos,
dem no chão. São muitas as maneir as de os classificar e a nossa linguagem é muito grosseira e que nos é necessária
de os pôr nos seus lugare s. Uma delas seria agarrar os livros uma linguagem mais subtil.
um a um e pô-los na prateleira nos seus lugares correctos. Parecemos ter feito uma descoberta - que eu pode ria
Por outro lado poderíamos pegar em vários livros e pô- descrever dizendo que o terreno em que nos encontrávamos
-los em fila numa prateleira, simplesmente para indicar que que parecia ser firme e de confiança, se demonstrou
esses livros devem dispor-se nessa ordem. No decurso da pantanoso e pouco seguro. — Isto é, tal acontece quando
arrumação da biblioteca esta fila de livros terá na sua filosofamos; visto que, logo que regressamos ao ponto de
totalidade de mudar de lugar. Mas seria errado dizer que, vista do senso comum, esta incerteza geral desaparece.
por esse motivo, o facto de eles terem todos sido postos Esta estranha situação pode ser um pouco esclarecida
numa prateleira não representava um processo com vista considerando um exemplo; na realidade, trata-se de uma
à obtenção do resultado final. Neste c aso, de facto, é bastante espécie de parábola que ilustra a dificuldade em que nos
evidente que o termos arrumado numa mesma fila estes encontramos que nos mostra, também, o caminho que nos
livros, como lhes competia, é algo definitivo que con- permitirá toureá-la: certos cientistas, empenhados na vulga-
seguimos, mesmo que tenhamos de mudar toda a fila. Mas rização da ciência, disseram-nos que o chão sob re o qual
algumas das mais importantes realizações da filosofia nos encontramos não é sólido, tal como o senso comum
apenas podem ser comparadas com o facto de pegar em o considera, dado que se descobriu que a madeira consiste
alguns livros, que aparentemente deve riam estar juntos, e de partículas tão esc assamente distribuídas no espaço que
colocá-los em prateleiras diferentes; nada é definitivo senão este poderia praticamente ser considerado vazio. Isto pode
o facto de já não se encontrarem juntos. Alguém que assista desorientar-nos, visto que, de certo modo, sabemos com
e que desconheça as dificuldades da tarefa poderá pensar toda a certeza que o chão é só lido, ou que, se não é sólido,
que nesse caso nada foi alc ançado. — A dificuldade em isso pode dever-se ao facto de a madeira estar apodrecida,
filosofia consiste em não dizer mais do que se sabe, por mas não ao facto de ela ser composta por electrões. Afirmar,

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de acordo com este último ponto de vista, que o chão não sentido para mim? Como poderia eu, justamente, aceder
é sólido é usar correctamente a linguagem. Mesmo que as à ideia da experiência de um outro, se não há possibi lidade
partículas fossem tão gran des como grãos de areia, e de evidência dela?
estivessem tão próximas umas das outras como acontece Mas não terá sido esta uma estr anha pergunta? Não
num monte de areia, o chão não se ria sólido se fosse poderei acreditar que outra pessoa qualquer tem dores? Não
composto por elas no sentido em que o monte de areia será fácil acreditar nisto? — Não se poderá responder que
é composto por grãos de areia. A nossa perplexidade as coisas são como parecem ser ao senso comum? — De
baseou-se numa má compreensão; a imagem do espaço novo constatamos, desnecessário será dizê-lo, que não
escassamente preenchido foi aplicada erradamente. Esta sentimos estas dificuldades na vida quotidiana. Nem será
imagem da estrutura da matéria tinha a intenção de explicar verdadeiro dizer que as sentimos quando examinamos
o próprio fenómeno da solidez. minuciosamente as nossas experiências recorrendo à intros-
Da mesma maneira que, neste exemplo, a palavra pecção, ou as inves tigamos cientificamente. Mas, seja como
«solidez» foi incorrectamente utilizada e parecia que tínha- for, quando as examinamos de uma certa m aneira, a nossa
mos mostrado que nada era realmente sólido, também ao expressão pode ficar confundida. Temos impressão de que
expormos os nossos embaraços sob re a imprecisão geral para fazermos o nosso puzzle, dispúnhamos, ou das peças
da experiência sensorial, e sobre a mudança contínua a que erradas ou da não totalidade das peças. Mas todas as peças
estão sujeitos todos os fenómenos, utilizamos indevidamente estão lá, simplesmente encontram-se misturadas; e existe
as palavras «mudança contínua» e «imprecisão», de uma ainda uma outra analogia entre o puzzle e o nosso caso:
maneira tipicamente metafísica, isto é, sem uma antítese, de nada serve recorrer à força para tentar juntar as peças.
ao passo que no seu uso correcto e quotidiano a imprecisão Tudo o que podemos fazer é examiná-las cuidadosamente
se opõe à clareza, a mudança à estabilidade, a inexactidão e descobrir o modo de as pôr em ordem.
à exactidão, o problema à solução. Poderia dizer-se que Existem proposições das quais podemos dizer que
a própria palavra «problema» é aplicada incorrectamente descrevem factos do mundo mate rial (mundo externo).
quando é utilizada para as nossas dificuldades filosóficas. Falando de uma maneira geral, elas tratam de objectos
Estas dificuldades, se forem consideradas problemas, são físicos: corpos, fluidos, etc.. Não estou a pensar, em
torturantes, e parecem ser insolúveis. particular, nas leis das ciências naturais, mas em proposições
Sinto-me tentado a dizer que a minha própria experiência como «as túlipas do teu jardim floresceram», ou «Smith
é real: «sei que vejo, ouço, sinto do res, etc., mas não sei chegará a qualquer momento». Existem, por outro lado,
se isto acontece com qualquer outra pessoa. Não o posso proposições que desc revem experiências pessoais, como
saber, porque eu sou eu e eles são eles». quando o sujeito descreve numa experiência psicológica as
Por outro lado sinto-me envergonhado por dizer a uma suas experiências sensoriais; por exemplo, a sua experiência
pessoa que a minha experiência é a única experiência real; visual, independentemente dos objectos que se encontrem
e sei que ela me replicará que pode ria dizer o mesmo sobre realmente perante os seus olhos e, notem bem, indepen-
a sua experiência. Isto parece conduzir a um equívoco dentemente também de quaisquer processos que possam
absurdo. Dizem-me também: «Se tens pena de alguém que ocorrer e ser observados na sua retina, nos seus nervos,
tem dores, deves seguramente acreditar pelo menos que no seu cérebro, ou em outras partes do seu corpo. (Isto
essa pessoa tem dore s». Mas como posso eu justamente é, independentemente t anto de factos físicos, como fisio-
acreditar nisto? Como podem estas palavras ter algum lógicos.)

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À primeira vista pode ter-se a impressão (o mo tivo que que o possa fazer. A questão não é semelh ante à que alguém
leva a que isso aconteça só se tornará mais claro poste- poderia ter levantado há uns cem anos: «Será possível a
riormente) de que temos aqui dois tipos de mundos, mundos uma máquina liquefazer um gás?» A dificuldade encontra-
feitos de materiais diferentes; um mundo mental e um -se an tes no facto de a frase «uma máquina pensa (percebe,
mundo físico. O mundo mental, de facto, pode ser ima- deseja)» parecer ser, de certo modo, desprovida de sen tido.
ginado como gasoso ou, mais propriamente, como etéreo. É como se tivéssemos perguntado «O número três tem uma
Mas deixem que vos lembre aqui o singular papel repre- cor?» («Qual poderia ser a cor, visto que é óbvio ele não
sentado em filosofi a pelo gasoso e pelo etéreo, — quando ter qualquer das co res que conhecemos?») visto que, sob re
denotamos que um substantivo não é usado como o que, um aspecto da questão, a experiência pessoal, longe de ser-
em geral, chamamos o nome de um objecto e quando, por o produto de processos físicos, químicos, fisiológicos, pa-
conseguinte, não conseguimos evitar dizer a nós próprios rece ser a própria base de tudo o que dizemos com algum
que ele é o nome de um objecto etéreo. Quero com isto sentido sobre esses processos. Se considerarmos as cois as
dizer, que já conhecemos a ideia de «objectos etéreos», deste ponto de vista, sentimo-nos inclinados a uti lizar a
como um subterfúgio que utilizamos quando estamos em- nossa ideia de um material de construção de uma outra
baraçados com a gramática de certas palavras, quando tudo maneira ainda enganadora e a afirmar que o mundo na sua
o que sabemos é que elas não são utili zadas como nomes totalidade, tanto o mental como o físico, é feito apenas de
de objectos materiais. Isto é uma sugestão sob re como fazer um material.
desaparecer o problema da dualidade do espírito e da Quando consideramos tudo o que conhecemos e pode-
matéria. mos dizer sobre o mundo como se tivesse por base a
Parece-nos algumas vezes que os fenómenos da experi- experiência pessoal, então o que conhecemos pa rece perder
ência pessoal ocorrem de certo modo nas camadas mais uma grande parte do seu valor, segurança e so lidez.
elevadas da atmosfera em contraste com os fenómenos Sentimo-nos, então, inclinados a dizer que tudo é «subjec-
materiais que ocorrem no solo. Existem pontos de vista, tivo» e a palavra «subjec tivo» é usada como carácter
de acordo com os quais estes fenómenos das camadas mais depreciativo, como quando dizemos que uma opinião é
elevadas surgem quando os fenómenos materiais atingem meramente subjectiva, é uma questão de gosto pessoal. Ora,
um certo grau de complexidade. Por exemplo, que os o facto de este aspecto parecer abalar a autoridade da
fenómenos mentais, a experiência sensorial, a volição, etc., experiência e do conhecimento, sugere que a nossa lingua-
aparecem quando se desenvolve uma espécie de organismo gem está aqui a induzir-nos a estabelecer uma analogia
animal de uma certa complexidade. Isto pa rece ser uma enganadora. Isto deveria lembrar-nos do cas o em que o
verdade evidente, visto que a amiba ce rtamente não fala, cientista parecia ter-nos mostrado que o chão sobre o qual
ou escreve, ou discute, ao passo que nós o fazemos. Por nos encontramos não é realmente sólido, porque é consti-
outro lado surge aqui o problema que poderia ser exp resso tuído por electrões.
pela questão: «Será possível a uma máquina pensar?» (Quer Confrontamo-nos com dificuldades provocadas pelo nosso
a acção desta máquina possa ser desc rita e prevista pelas modo de expressão.
leis da física quer, possivelmente, apenas por leis de um Uma outra dessas dificuldades, bastante semelhante, é
tipo diferente, aplicadas ao comportamento de organismos.) expressa na frase: «Apenas posso saber que tenho experiên-
E a dificuldade que é expre ssa nesta questão não consiste cias pessoais, e não que outra pessoa qualquer as tem».
realmente no facto de não dispormos ainda de uma máquina — Chamaremos então à experiência pessoal de qualquer

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outra pessoa uma hipótese desnecessária? — Mas será de uma outra pessoa não estará a contradizer isto. A dificuldade
facto uma hipótese? Como posso formular a hipótese se gramatical com que nos con frontamos só poderá ser
ela transcende toda a experiência possível? Que sentido lhe claramente percebida se nos familiarizarmos com a ideia
atribuiri a? (Não será um pouco como o papel-moeda emi tido de sentir dor no corpo de outra pessoa. De outro modo,
sem uma contrapartida de ouro?) — O facto de alguém nos ao darmos voltas ao miolo por causa deste problema,
dizer que, embora não saibamos se a outra pessoa tem do res estaríamos sujeitos a confundir a nossa proposição metafí-
acreditamos certamente que isso acontece quando, por sica «não posso sentir a dor dele» com a proposição b aseada
exemplo, temos pena dela, em nada nos ajuda. Não teríamos na experiência, «não podemos ter (em regra não temos)
seguramente pena dela se não acreditássemos que ela tinha dores nos dentes de outra pessoa». Nesta proposição a
dore s; mas será que esta é uma crença filosófica, metafísica? palavra «não podemos» é usada da mesma maneira que na
Terá um reali sta mais pena de mim do que um idea lista proposição «Um pre go de ferro não pode riscar o vidro».
ou um solipsista? — De facto o solipsista pergunta: «Como (Podíamos escrever isto sob a forma «a experiência ensi-
podemos acreditar que a outra pessoa tem dores, o que na-nos que um prego de ferro não risca o vidro», pondo
significa acreditar nisto? Como poderá a expressão de tal as sim de parte o «não pode».) Para que se veja como é
suposição fazer sentido?» concebível que uma pessoa tenha do res no corpo de outra
Ora a resposta do filósofo do senso comum — e este, pessoa, toma-se necessário examinar a que espécie de
notem bem não é o homem do senso comum, que se factos chamamos critérios para a localização de uma dor.
encontra tão afastado do realismo como do idealismo — a É fácil imaginar o seguinte c aso: quando vejo as minhas
resposta do filósofo do senso comum é que não . existe mãos nem sempre tenho consciência das su as relações com
certamente qualquer dificuldade na ideia de supor, pensar, o re sto do meu corpo. Quero dizer com isto que vejo
imaginar que alguém tem o que eu tenho. Mas o problema frequentemente a minha mão a mover-se sem ver o braço
com o realista é sempre o facto de ele não resolver as que a liga ao tronco. Nessas alturas, não confirmo neces-
dificuldades que os seus adversários vêem, mas passar-lhes sariamente, por qualquer outro processo, a existência do
por cima embora eles também não sejam bem sucedidos meu braço. Assim a mão, pelo que sei, pode estar ligada
na sua resolução. A resposta realista apenas exibe, do nosso ao corpo de uma pessoa que esteja perto de mim (ou, como
ponto de vista, a dificuldade, visto que quem argumenta é evidente, a nenhum corpo humano). Suponham que eu
desta maneira fecha os olhos à dife rença entre os diversos sinto uma dor que, dada unicamente a evidência da dor,
usos das palavras «ter», «imaginar». «A tem um dente de por exemplo, com os olhos fechados, eu chamaria uma dor
ouro» significa que o dente se encontra na boca de A. Isto na minha mão esquerda. Alguém me pede para tocar o lugar
pode explicar o facto de eu não ser capaz de o ver. Mas doloroso com a minha mão direita. Faço-o e ao olhar em
o caso da sua dor de dentes, que eu digo não ser capaz volta apercebo-me de que estou a tocar na mão de uma
de sentir porque ocorre na boca dele, não é análogo ao pessoa que se encontra perto de mim (uma mão ligada ao
caso do dente de ouro. É a analogia aparente e, de novo, tronco dessa pessoa).
a falta de analogia entre estes casos, que provoca as nossas Coloquem-se a questão: como sabemos para onde
dificuldades. E é a esta característica perturbadora na nossa apontar quando nos pedem para apontarmos para o lugar
gramática que o realista não presta atenção. E concebível que nos dói? Poderá o acto de apontar neste caso ser
que eu sinta dor num dente na boca de outro homem, e comparado ao apontar para uma marca negra numa folha
quem me disser que não pode sentir a dor de dentes de de papel quando alguém diz: «Aponta para a marca negra

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nesta folha»? Suponham que alguém dizia «Apontas para Se eu aponto para o lugar do meu braço que me dói,
este lugar porque já sabes antes de apontar que as do res em que sentido se pode dizer que conhecia a localização
estão ali localizarias»; perguntem a vocês próprios «o que da dor an tes de ter apontado para o lugar? Antes de apontar
significa saber que as dores estão ali localizadas?» A palavra poderia ter dito «a dor localiza-se no meu braço esquerdo».
«ali» refere-se a uma localização; mas em que espaço, isto Suponhamos que o meu braço tinha sido cobe rto por uma
é, a uma «localização» em que sentido? Conhecemos o lugar rede de linhas , numeradas de tal modo que poderia refe-
da dor no espaço euclidiano, de tal modo que, quando rir-me a qualquer lugar na sua superfície. Seria necessário •
sabemos que temos dore s, sabemos qual a distância a que que pudesse ser capaz de descrever o lugar doloroso, através
ele se encontra de duas paredes e do chão? Qu ando tenho destas coordenadas, an tes de poder apontar para ele? O que
uma dor na ponta de um dedo e toco nos dentes com ela, pretendo dizer é que o acto de apontar determina um lugar
a minha dor é, nesse caso, tanto uma dor de dentes como da dor. Este acto de apontar, a propósito, não deve ser
uma dor no dedo? Num certo sentido certamente, pode confundido com o acto de descobrir o lugar doloroso através
dizer-se que a dor se localiza nos dentes. Será que a razão de uma investigação minuciosa. Na realidade os dois podem
pela qual é errado dizer-se, neste caso, que eu tenho dor conduzir a resultados diferentes.
de dentes reside no facto de que, para que a dor fosse nos Podemos imaginar uma enorme variedade de casos em
dentes, ela deveria estar a x milímetros de distância da ponta que diríamos que alguém tem dores no corpo de outra
do meu dedo? Lembrem-se de que a palavra «onde» pode pessoa; ou, por exemplo, num móvel, ou num lugar vazio.
referir-se a localizações em sentidos muito diversos. (Jo- E claro que não nos devemos esquecer de que uma dor
gam-se com esta palavra muitos jogos grama ticais diferen- numa parte particular do nosso corpo, por exemplo, num
tes, que se parecem mais ou menos uns com os outros. dos dentes do maxilar superior, tem uma vizinhança táctil
Pensem nos diferentes usos do número «1».) Posso saber e cinestésica peculiar. Elev ando a nossa mão encontramos,
onde está uma coisa e apontar então para ela em virtude a uma pequena distância, o olho; e as palavras «pequena
disso. O facto de saber onde ela está indica-me para onde distância» referem-se aqui a uma distância táctil ou a uma
apontar. Concebemos aqui o facto de sabermos onde a coisa distância cinestésica, ou a amb as. (E fácil imaginar distân-
está como a condição para apontarmos para ela delibera- cias tácteis e cinestésicas correlacionadas de m aneiras dife-
damente. Assim, pode dizer-se: «posso apontar para o lugar rentes da habitual. A distância da nossa boca ao nosso olho
a que te refere s, porque o vejo», «posso indicar-te o lugar pode parecer muito grande, aos músculos do nosso braço,
porque sei onde fica; viras na primeira à direita, etc.». Tem- quando movemos um dedo da boca até ao olho. Pensem
-se tendência para dizer «tenho de saber onde está uma coisa na dimensão que imaginam ter uma cavidade num dente
an tes de poder apontar para ela». Talvez se sintam menos quando o dentista a está a brocar e a sondar.)
satisfeitos se disserem: «tenho de saber onde está uma coisa Quan do disse que se elevássemos ligeiramente a nossa
an tes de poder olhar para ela». Às vezes, é claro, é correcto mão, encontraríamos o nosso olho, estava apenas a refe-
dizer-se isto. Mas somos tentados a pensar que existe um rir-me à evidência táctil. Isto é, o critério para o toque do
estado ou um acontecimento psíquico particular, conhe- meu dedo no meu olho era apenas o de eu ter a sensação
cimento do lugar, que deve p receder todo o acto de liberado particular que me levaria a dizer que estava a tocar no meu
de apontar, todo o movimento em di recção a algo, etc. olho, mesmo que não dispusesse de qualquer evidência
Pensem no caso análogo: «apenas se pode obedecer a uma visual, e até mesmo se, ao olhar para um espelho, não visse
ordem depois de a ter compreendido». o meu dedo a tocar no meu olho, mas, por exemplo, a

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tocar na minha testa. Exactamente como a «pequena evidência visual é verdadeira e ao mesmo tempo outras
distância» a que me referia era uma distância táctil ou evidências nos levam a dizer que eu não tenho mão. O
cinestésica, também os lugares dos quais disse «ficam a uma nosso modo de expressão habitual obscurece isto. A
pequena distância» eram lugare s tácteis. Dizer que o meu desvan tagem da linguagem comum impõe-se-nos ao termos
dedo se move no espaço táctil e cinestésico do meu dente de descre ver, por exemplo, uma sensação táctil recorrendo
até ao meu olho significa, então, que tenho ess as experiên- a termos para objectos físicos como a palavra «olho»,
cias tácteis e cinestésicas que normalmente temos quando «dedo», etc., quando o que queremos dizer não implica a
dizemos «o meu dedo move-se do meu dente até ao meu existência de um olho ou de um dedo, etc. Temos de usar
olho». Mas aquilo que consideramos como evidência para uma descrição indirecta das noss as sensações. Isto, é claro,
esta última proposição não é, de algum modo, como todos não signifi ca que a linguagem comum seja insuficiente para
o sabemos, apenas táctil e cinestésico. De facto, se eu tivesse os nossos propósitos especiais, m as que é ligeiramente
as sensações tácteis e cinestésicas referidas, poderia não incómoda e às vezes nos leva a conclusões erradas. A razão
obstan te negar a proposição «o meu dedo move-se etc....» para esta peculi aridade da nossa linguagem é, certamente,
em virtude do que via. Essa proposição é uma proposição a coincidência re gular de certas experiências sensoriais.
acerca de objectos físicos. (E não pensem agora que a Assim, quando sinto o meu braço a mover-se, a maior pa rte
expressão «objectos físicos» quer dizer que se tenha a das vezes também o posso ver a mover-se. E se o tocar
intenção de distinguir um objecto de outro tipo de objecto.) com a minha mão, a mão também sente o movimento, etc.
A gramática das proposições a que chamamos proposições (O homem cujo pé foi amputado descreverá uma dor
respeitantes a objectos físicos admite uma variedade de particular como uma dor no seu pé.) Sentimos em tais casos
evidências para cada uma dess as proposições. A gramática uma forte necessidade de uma expressão como: «uma
dessa proposição «o meu dedo move-se, etc.» caracteriza- sensação pas sa da minha face táctil ao meu olho táctil».
-se pelo facto de eu poder considerar as proposições «vejo- Disse tudo isto porque, se tiverem consciência do meio táctil
o mover-se», «sinto-o mover-se», «ele vê-o mover-se», «ele e cinestésico de uma dor, poderão sentir dificuldades em
diz-me que ele se move», etc. como evidências dessa imaginar que se poderia ter uma dor de dentes em qualquer
proposição. Ora, se digo «vejo a minha mão mover-se», outro lugar que não os próprios dentes. M as se imaginarmos
isto parece à primeira vista pressupor que concordo com um caso desse tipo, isso significa simplesmente que
a proposição «a minha mão move-se». M as se considerar imaginámos uma correlação entre experiências visuais,
a proposição «vejo a minha mão mover-se» como uma das tácteis, cinestésicas, etc., dife rente da correlação ordinária.
evidências para a proposição «a minha mão move-se», a Assim podemos imaginar uma pessoa que tenha a sensação
verdade da última não é, certamente, pressuposta na verdade de dor de dentes, mais aquelas experiências tácteis e
da primeira. Poderia, por conseguinte, sugerir-se a expressão cinestésicas que, normalmente, estão associadas com a visão
«parece que a minha mão se está a mover» em vez de da sua mão passando do seu dente ao seu nariz, aos seus
«vejo a minha mão mover-se». Mas esta expressão, embora olhos, etc., mas correlacionadas com a experiência visual
indique que a minha mão pode parecer estar a mover-se, da sua mão em movimento para esses lugares na cara de
sem que realmente isso aconteça, pode ria ainda sugerir que outra pessoa. Ou ainda, podemos imaginar uma pessoa que
no fim de contas deve existi r uma mão para que ela pareça tenha a sensação cinestésica do movimento da sua mão e
estar a mover-se; ao passo que poderíamos facilmente a sensação táctil, nos seus dedos e na sua cara, do
imaginar casos em que a proposição que desc reve a movimento dos seus dedos sob re a sua cara, enqu anto as

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suas sensações cinestésicas e visuais te riam de ser descritas a imagem é correcta. Qu ando imaginamos vividamente que
como corre spondendo às dos seus dedos movendo-se sob re alguém sofre com dore s, intervém frequentemente, na nossa
o seu joelho. Se tivéssemos uma sensação de dor de dentes, imagem, o que se poderia chamar uma sombra da dor,
mais certas sensações tácteis e cinestésicas características sentida no lugar correspondente àquele em que dizemos que
habitualmente do toque no dente que nos dói e nas zonas a sua dor é sen tida. Mas o sentido em que dizemos que
vizinhas da nossa cara, e se estas sensações fossem uma imagem é uma imagem, é determinado pelo modo
acompanhadas pela visão da mão a tocar e a andar de um como a comparamos com a realidade. Poderíamos chamar
lado para o outro na borda da mesa, teríamos dúvidas sob re a isto o método da projecção. Pensem agora na comparação
se deveríamos ou não chamar a esta experiência uma de uma imagem da dor de dentes de A, com a sua dor
experiência de dor de dentes na mesa. Se, por outro lado, de dentes. Como as pode riam comparar? Se me disse rem
as sensações tácteis e cinestésicas descritas es tivessem que o fazem «indirectamente», através do seu comporta-
correlacionadas com a experiência visual da visão da mão mento corporal, responder-lhes-ei que isto significa que não
a tocar um dente e outras partes da cara de uma outra as comparam como comparam a imagem do seu compor-
pessoa, não há dúvida de que chamaria a esta experiência tamento com o seu comportamento.
«dor de dentes num dente de outra pessoa». De novo, quando dizem «terás de admitir que não podes
Disse que o homem que argumentava ser impossível saber quando A tem do res, apenas o podes conjecturar»,
sentir a dor de outra pessoa não desejava por esse meio não vêem a dificuldade que existe nos dife rentes usos das
negar que uma pessoa podia sentir dor no corpo de outra palavras «conjecturar» e «saber». A que tipo de impossi-
pessoa. De facto, ele teria dito: «Eu posso ter esta dor de bilidade se referi am quando disseram que não se podia
dentes no dente de um outro homem, mas não a sua dor saber? Não estariam a pensar num caso análogo àquele em
de dentes». que não se podia saber se o outro homem tinha um dente
Assim as proposições «A tem um dente de ouro» e «A de ouro na boca, visto que a sua boca se encontrava
tem uma dor de dentes» não são usad as an alogamente. fechada? Neste c as o todavia o que não sabiam, pode riam
Diferem nas suas gramáticas onde, à primeira vista, imaginar saber; faria sen tido dizerem que viam aquele dente
poderi am parecer não ser diferentes. embora não o vissem; ou antes, faria sen tido dizerem que
Quan to ao uso da palavra «Imaginar», pode ria dizer-se: não viam o dente dele e por consequência faria também
«existe com toda a certeza um acto definido de imaginar sentido dizerem que o viam. Qu ando, por outro lado, me
a dor de outra pessoa». Não negamos isto, evidentemente, disseram que eu te ria de admitir que um homem não pode
ou qualquer outra afirmação acerca de factos. Mas vejamos: saber se outra pessoa tem do res, não pre tendiam dizer que
se imaginamos a dor de outra pessoa, ap licaremos a imagem na realidade as pessoas não o sabiam, mas sim que não
da mesma maneira que aplicamos, por exemplo, a imagem fazia sentido dizer que sabiam (e por consequência que não
de um olho negro, quando imaginamos que a outra pessoa fazia sentido dizer que não sabiam). Se, por isso, usam o
o tem? Substituamos de novo a imaginação, no sen tido termo «conjectura» ou «c rença» neste caso, não o opõem
habitual, por uma imagem pintada. (Esta pode ria muito bem a «saber». Isto é, não declararam que este saber era um
ser a maneira de imaginar de certos seres.) Suponhamos objectivo que não podiam alc ançar, e que tinham de se
então que alguém imagina desta m aneira que A tem um contentar com conjecturar, ou antes, não há qualquer
olho negro. Uma aplicação muito import ante desta imagem objectivo neste jogo. Da mesma m aneira que, quando se
consistirá na sua comparação com o olho real, para ver se diz «não podes enumerar toda a série dos números

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cardinais», não se enuncia um facto sobre a fragilidade provaria nada, visto que se pode ria anestesiar ou matar um
humana mas sobre uma convenção por nós estabelecida. deles e não obstante o outro continuaria a sentir dor.) Evi-
A nossa declaração não é comparável, se bem que tenha dentemente, se excluirmos a frase «eu tenho a dor de dentes
sempre sido falsamente comparada, a uma declaração como dele» da nossa linguagem, excluímos desse modo também
«é impossível a um ser hum ano atravessar o Atlân tico a «eu tenho (ou sinto) a minha dor de dentes». Uma outra
nado»; mas é análoga a uma declaração, tal como «não forma do nosso enunciado metafísico é a seguinte: «os
há qualquer objectivo numa corrida de resistência». E isto dados dos sentidos de um homem são privados». E esta
é uma das coisas que sente indis tintamente a pessoa que maneira de o expre ssar é ainda mais eng anadora, visto que
não se sati sfaz com a explicação de que, se bem que não se assemelha mais a uma proposição baseada na experiência;
possa saber..., pode conjecturar... o filósofo que afirma isto pode muito bem pensar que está
Se estamos zan gados com alguém que, estando cons- a expressar uma espécie de verdade científica.
tipado, sai à rua num dia de frio, dizemos por vezes: «a Utilizamos a frase «dois livros têm a mesma cor», mas
gripe é tua». E isto pode significar: «eu não so fro com poderíamos perfeitamente dizer: «não podem ter a mesma
a tua constipação». Esta é uma proposição fundada na expe- cor, porque, no fim de contas, este livro tem a sua própria
riência, visto que poderíamos imaginar, por assim dizer, cor, e o outro livro tem também a sua própria cor». Isto
uma espécie de ligação imaterial entre os dois corpos que seria também o enunciado de uma regra gramatical — uma
fizesse que uma pessoa sen tisse dore s de cabeça depois de regra que, a propósito, não está de acordo com o nosso
outra se ter exposto ao frio. Poderia argumentar-se, neste uso habitual. A razão para se pensar nestes dois usos
caso, que as dores são minhas porque são sen tidas na minha diferentes é a seguinte: comparamos o caso dos dados dos
cabeça. Mas suponham que eu e outra pesso as tínhamos sentidos com o de corpos físicos, relativamente ao qual faze-
uma parte dos nossos corpos em comum, por exemplo, uma mos a distinção entre: «esta é a mesma cadeira que eu vi
mão. Imaginem que os nervos e os tendões do meu braço há uma hora» e «esta não é a mesma cadeira, mas outra
e do braço de A tinham sido ligados a esta mão por uma exactamente igual a essa». Aqui faz sen tido dizer, e constitui
operação. Imaginem agora que a mão era picada por uma uma posição baseada na experiência, que «A e B não
vespa. Ambos gritamos, fazemos esgares de dor, damos a podiam ter visto a mesma cadeira, visto que A estava em
mesma descrição da dor, etc.. Diremos, neste c aso, que Londres e B em Cambridge; eles viram duas cadeiras exac-
tivemos a mesma dor ou dore s diferentes? Se num caso tamente semelhantes». (Será útil, neste caso, considerarem
destes disserem: «sen timos dor no mesmo sítio, no mesmo os diferentes critérios do que chamamos a «iden tidade destes
corpo, as nossas descrições são concordantes e, no entanto, objectos». Como aplicamos as expressões: «Este é o mesmo
a minha dor não pode ser a dor dele», suponho que se dia...», «Esta é- a mesma palavra...», «Esta é a mesma oca-
sentirão inclinados a justificá-lo dizendo: «porque a minha sião...», etc.?)
dor é a minha dor e a dor dele é a dor dele». E aqui estão O que fizemos no decurso destas discussões foi o que t
a fazer um enunciado gramatical sob re o uso de uma frase fazemos sempre quando encontramos a palavra «poder»
como «a mesma dor». Vocês dizem que não desejam ap licar numa proposição metafísica. Mostramos que esta proposição
a frase «ele tem a minha dor» ou «ambos temos a mesma esconde uma regra gramatical, isto é, destruímos a seme-
dor», e que em vez disso, possivelmente, aplicarão uma lhança aparente entre uma proposição metafísica e uma
frase do tipo «a dor dele é exactamente idêntica à minha». proposição baseada na experiência e tentamos descobrir a
(E dizer-se que os dois não podiam ter a mesma dor, não forma de expressão que satisfaz um certo desejo do

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metaf sico, que a nossa linguagem vulgar não sa tisfaz e que, expressão semelh antes que são utilizadas noutras áreas da
enquanto não for sati sfeito, produz a perplexidade metafísi- nossa língua. Decidimos não uti lizar a expressão «estão no
ca. Quando afirmo de novo, num sentido metafísico, «devo mesmo lugar»; por outro lado, esta expressão atrai-nos
sempre saber quando tenho dores», isto torna absoluta- fortemente, em virtude da analogia com outras expre ssões,
mente redundante a palavra «saber»; e em vez de «eu sei de tal modo que, num ce rto sentido, temos de a afastar
que tenho dore s», posso simplesmente dizer «tenho dore s». à força. E é por isto que nos pa rece estarmos a rejeitar
A questão será certamente dife rente se dermos sentido à uma proposição universalmente falsa. Construímos uma
frase «dor inconsciente», fixando critérios baseados na expe- imagem como a das cores que se estorvavam mutuamente,
riência para o cas o em que um homem tem dores e não ou a de uma barreira que não permite a uma pessoa aceder
o sabe , e se em seguida dissermos (correcta ou incorrecta- à experiência de outra pessoa, senão através da observação
mente) que, na realidade, nunca ninguém teve dores sem do seu comportamento; mas um exame mais atento reve-
o saber. Quando dizemos «não posso sentir a dor dele», la-nos que não podemos aplicar a imagem que construímos.
ocorre-nos ao espírito a ideia de uma bar reira intransponível. A nossa hesitação entre a impossibi lidade lógica e a
Pensemos imediatamente num caso semelhante: « as cores impossibilidade física leva-nos a fazer declarações como
verde e azul não podem coexistir simultaneamente». Aqui, esta: «se o que sinto é semp re, apenas, a minha dor, o que
a imagem de impossibilidade física que nos ocorre ao poderá significar a suposição de que uma outra pessoa tem
espírito não é, possivelmente, a de uma barreira; temos antes dore s?» A única coisa a fazer em tais casos consiste semp re
a impressão de que cada uma das co res estorva a outra. em ver como as palavras em questão são efectivamente
Qual a origem desta ideia? — Dizemos que três pesso as usadas na nossa linguagem. Em todos esses casos estamos
não podem sentar-se neste banco; não há espaço suficiente a pensar num uso diferente daquele que a nossa linguagem
para que o façam. Ora o caso das cores não é análogo a vulgar faz das palavras. Por outro lado, trata-se de um uso
este; mas é um pouco semelhan te ao da afirmação: «3x40 que, precisamente nessa situação, por qualquer razão nos
centímetros não cabem num metro». Esta é uma regra atrai fortemente. Qu ando algo nos parece estranho relati-
gramatical e expre ssa uma impossibilidade lógica. A pro- vamente à gramática das nossas palavras, isso deve-se ao
posição «três homens não podem sentar-se uns ao lado dos facto de termos tendência para uti lizar uma palavra,
outros num banco com um metro de comprimento» exp ressa alternadamente, de várias m aneiras diferentes. É particular-
uma impossibilidade física; e este exemplo mostra clara- mente difícil descobrir que uma asserção, feita pelo metafísi-
mente o motivo da confusão ent re as duas impossibilidades. co, expre ssa desacordo com a nossa gramática, quando as
(Comparem a proposição «ele é 25 centímetros mais alto palavras desta as serção podem também ser usadas para
do que eu» com «em dois metros há mais 25 centímetros referir um facto da experiência. Assim quando ele diz «a
do que num metro e setenta e cinco». Estas proposições única dor real é a minha dor», esta fr ase poderia significar
são de tipos completamente dife rentes, mas parecem ser que as outras pesso as apenas fingem ter do res. E quando
muito semelhan tes.) A razão por que nestes casos a ideia afirma «esta árvore não existe quando niguém a vê» isto
de impossibilidade física nos ocorre ao espírito reside no poderá significar: «esta árvore desapa rece quando lhe
facto de, por um lado, nos decidirmos contra o uso de uma viramos as costas ». O homem que diz «a única dor real
forma particular de expressão e, por outro, nos sentirmos é a minha dor» não quer com isso dizer que descobriu
fortemente inclinados a usá-la, porque (a) é uma expressão recorrendo aos critérios vulgares — isto é, os critérios que
idiomática inglesa, ou alemã, etc., e (b) existem formas de conferem às nossas palavras os seus sen tidos habituais —

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que as outras pessoas que diziam ter do re s estavam a fingir. psicológicas; que tinham, num certo sentido, descoberto
O que o leva a insurgir-se é o uso desta expressão em pensamentos conscientes que eram inconscientes. Os pri-
conexão com estes critérios, isto é, ele opõe-se ao uso desta meiros poderiam ter exposto as suas objecções dizendo:
palavra da maneira particular como ela é utilizada vulgar- «Não queremos utilizar a expressão "pensamentos incons-
mente. Por outro lado, não tem consciência de se estar a cientes"; queremos reservar a palavra "pensamento" para
opor a uma convenção. Ele imagina uma m aneira de dividir o que chamam "pensamentos conscientes"». M as ao dize-
o país, diferente daquela que é uti lizada no mapa vulgar. rem: «Apenas podem existir pensamentos conscientes e não
Sente-se tentado, por exemplo, a utilizar o nome «Devon- pensamentos inconscientes», eles expõem os seus argumen-
shire» para se referir, não aos limites convencionais do tos incorrectamente, visto que se não que rem falar de
condado, mas a uma região limitada de modo dife rente. «pensamento inconsciente» não deveriam também utilizar
Ele poderia expre ssar esta tendência dizendo: «Não será a expressão «pensamento consciente».
absurdo fazer disto um condado, traçar os limites aqui?» Mas não será correcto dizer que, seja qual for o caso,
mas o que diz é: «Este é o verdadeiro Devonshire ». Podería- a pessoa que fala, tanto de pensamentos conscientes como
mos responder-lhe: «O que p retendes é apenas uma nova de pensamentos inconscientes, usa desse modo a palavra
notação, e uma nova notação não altera os factos da «pensamentos» de duas maneiras diferentes? (Será que
geografia». É verdade, contudo, que nos podemos sentir usamos um martelo de du as maneiras diferentes quando
irresistivelmente atraídos ou repelidos por uma notação. pregamos com ele um prego e, por outro lado, quando
(Esquecemos facilmente o quanto uma notação, uma forma enfiamos uma estaca num buraco? E usá-lo-emos de duas
de expressão, pode significar para nós, e que o facto de maneiras diferentes ou da mesma maneira quando enfiamos
a mudar não é sempre tão fácil como frequentemente o esta estaca neste buraco e, por outro lado, outra estaca
é na matemática e nas ciências. Uma mudança de roupas noutro buraco? Ou apenas nos poderíamos referir a diferen-
ou de nomes pode significar muito pouco, mas também tes usos quando, num c aso, enfiamos algo, numa coisa
pode significar muito.) qualquer e noutro, por exemplo, esmagamos algo? Ou
Tentarei esclarecer o problema discutido pelos realistas, corresponderá tudo isto a um único uso do martelo e apenas
idealistas e solipsistas apresentan do-vos um problema que poderemos referir-nos a uma maneira diferente de o usar
com este se relaciona. E o seguinte: «podemos ter pensa- quando o utilizamos como pisa-papéis?) Em que circuns-
mentos inconscientes, sentimentos inconscientes, etc.?» A tâncias se poderá dizer que uma palavra é utilizada de duas
ideia da existência de pensamentos inconscientes fez que maneiras diferentes e em que circunstância se poderá dizer
muitas pesso as se insurgissem. Outras pessoas, pelo con- que ela é utilizada da mesma. maneira? Dizer que uma
trário, afirmaram que era errado supor-se que apenas palavra é usada de duas (ou mais) maneiras diferentes não
podiam existir pensamentos conscientes e que a psicanálise nos fornece, por si s6, qualquer ideia acerca do seu uso.
tinha descoberto pensamentos inconscientes. Os que se Apenas especifica uma maneira de encararmos este uso,
opunham ao pensamento inconsciente não perceberam que facultando um esquema para a sua descrição com du as (ou
não estavam a opor-se às reacções psicológicas recente- mais) subdivisões. E correcto dizer: «faço duas coisas com
mente descobertas, mas ao modo como el as eram descritas. este martelo; prego um prego nesta tábua e um naquela
Os psicanali stas, por outro lado, foram induzidos em erro tábua». Mas podia também ter dito: «só faço uma coisa
pela sua própria maneira de se expressarem, ao pensarem com este martelo; prego um pre go nesta tábua e outro
que tinham descoberto algo mais do que nov as reacções naquela tábua». São de dois tipos as discussões sobre se

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uma palavra é usada de uma maneira ou de duas m aneiras: nossa vida, mantém o nosso espírito rigidamente, por assim
(a) Duas pessoas podem discutir sobre se a palavra inglesa dizer, numa certa posição e, nesta posição, ele sente-se por
«cleave» é apenas usada para indicar que separamos algo vezes constrangido, manifestando também um desejo por
ou é também usada para indicar que juntamos algo. Esta outras posições. Assim desejamos por vezes uma notação
é uma discussão acerca de um ce rto uso efectivo. (b) Elas que acentue mais fortemente uma diferença, a tome mais
podem discutir se a palavra «altos», que significa tanto óbvia, do que o faz a linguagem vulgar, ou então uma
«profundo» como «alto», é assim usada de duas maneiras notação que, num caso particular, use formas de expressão
diferentes. Esta questão é análoga à questão sobre se a mais semelhantes do que a nossa linguagem vulgar. O nosso
palavra «pensamento» é usada de duas ou de uma maneira, constrangimento mental abranda quando nos são reveladas
quando falamos de pensamento consciente e inconsciente. as notações que satisfazem estas necessidades, que podem
O homem que diz «é evidente que estes dois usos são ser extremamente variadas.
diferentes» já decidiu utilizar um esquema que comporta Ora, o homem a que chamamos um solipsista e que diz
duas subdivisões, e o que disse expressou esta decisão. que só as suas experiências são reais, não discorda, ao dizer
Ora quando o solipsista afirma que só as suas próprias isso, de nós, acerca de qualquer questão prática de facto,
experiências são reais, não serve de nada responder-lhe: não afirma que estamos a simular quando nos queixamos
«porque nos diz isso se não ac redita realmente que o pos- de dores, tem tanta pena de nós como qualquer outra pessoa
samos ouvir?» Ou, em todo o caso, se lhe respondermos e, ao mesmo tempo, deseja restringir o uso do epíteto « real»
desta maneira, não devemos acreditar que resolvemos o seu ao que chamaríamos as suas experiências; e talvez não quei-
problema. Um problema filosófico não admite uma resposta ra chamar às nossas experiências, «expe riências» (de novo
do senso comum. Pode apenas defender-se o senso comum sem discordar de nós acerca de qualquer questão de facto).
contra os ataques dos filósofos resolvendo os enigmas Ele diria que seria inconcebível que outras experiências que
destes, isto é, curando-os da tentação de atacarem o senso não a sua fossem reais. Ele deveria, por conseguinte, utilizar
comum e não através de uma nova apresentação dos pontos uma notação em que uma expressão como «A tem dores
de vista do senso comum. Um filósofo não é um homem de dentes reais» (em que A não é ele) não te ria qualquer
que não está no seu juízo, um homem que não vê o que sentido, uma notação cujas regras excluiriam esta expressão
todos vêem, nem, por outro lado, o seu desacordo com o tal como as regras do xadrez excluem a possibilidade de
senso comum é idêntico ao do cientista, que não aceita o um peão se mover como um cavalo. A sugestão do solipsista
ponto de vista vulgar do homem da rua. Isto é, o seu traz como resultado o uso de uma expressão como «existe
desacordo não se funda num conhecimento de facto mais dor de dentes real» em vez de «Smith (o solipsista) tem
subtil. Temos, por consequência de procurar a fonte desta dor de dentes». E por que motivo não haveríamos de lhe
perplexidade. E apercebemo-nos de que existe perplexidade admitir esta notação? Não é necessário dizer que, para evitar
e mal-estar mental, não apenas quando a nossa curiosidade confusão, ele faria melhor em não uti lizar a palavra «real»
acerca de certos factos não é satisfeita, ou quando não em oposição à palavra «simulada»; o que significa apenas
descobrimos uma lei da natureza que possa dar conta da que teremos de estabelecer a distinção «real»/«simulado»
totalidade da nossa experiência, mas também quando uma de outra maneira. O solipsista que diz «só eu sinto dores
notação nos desagrada — possivelmente por causa de várias reais», «sou eu o único a ver (ou ouvir) realmente» não
associações que evoca. A nossa linguagem vulgar, que de está a expressar uma opinião; e é por esse mo tivo que está
todas as notações possíveis é aquela que atravessa toda a tão certo do que diz. Ele sente-se irresistivelmente tentado

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a usar uma certa forma de expressão; m as resta-nos ainda papel tivesse a cor x». Sem dúvida que o que ele disse
descobrir porquê. justificava, de facto, a sua notação, no sen tido em que uma
A expressão «sou o único a ver realmente» está intima- notação pode ser justificada. Mas ele não nos comunicou
mente relacionada com a ideia expressa na asserção «nunca qualquer nova verdade e não nos mostrou que o que
sabemos o que outra pessoa vê na realidade, quando ela tínhamos dito antes era falso. (Tudo isto relaciona o nos-
olha para uma coisa» ou, «nunca poderemos saber se aquilo so problema presente com o problema da negação. Indi-
a que ele chama "azul" é a mesma coisa a que nós car-vos-ei apenas uma pista, dizendo que se ria possível uma
chamamos "azul"». Podemos, de facto, argumentar: «nunca notação em que, falando em termos grosseiros, uma qua-
poderei saber o que ele vê ou até se vê, visto que tudo lidade tivesse sempre dois nomes, um para o caso em que
aquilo de que disponho são os sinais de vários tipos que se diz que algo a apresenta, o outro para o c aso em que
me revela; por conseguinte, afirmar que vê, é uma hipótese se diz que algo não a apresenta. A negação de «este pa-
totalmente desnecessária. O que é ver, apen as se me dá pel é vermelho» poderi a então ser, por exemplo, «este pa-
conhecer pelo facto do próprio ver; aprendi a palavra "ver" pel não é vermelho». Uma tal notação satisfaria, efectiva-
como significando apenas o que eu faço». E evidente que mente, alguns dos desejos que nos são negados pela nossa
isto não é exactamente verdade, dado que ap rendi clara- linguagem vulgar e que produzem às vezes um constran-
mente um uso diferente e mais complicado da palavra «ver», gimento de perplexidade filosófica acerca da ideia de
do que aquele que aqui reconheço. Esclareçamos a tendência negação.)
que me guiou quando o fiz, recorrendo a um exemplo A dificuldade que expressamos dizendo «não posso sa-
extraído de uma esfera um pouco diferente: Considerem ber o que ele vê quando diz (sem mentir) que vê uma
o seguinte argumento: «Como poderemos desejar que este mancha azul» deriva da ideia de que «saber o que ele vê»
papel seja vermelho se ele não é vermelho? Não quererá significa: «ver aquilo que ele também vê»; não, contudo,
isto significar que eu desejo o que não existe? Por conse- no sentido em que o fazemos quando ambos temos o mesmo
quência o meu desejo só pode conter algo semelhante ao objecto perante os nossos olhos, mas no sentido em que
papel vermelho». Não deveríamos, por conseguinte, usar o objecto visto seria um objecto, por exemplo, na sua
uma outra palavra em vez de «vermelho» quando falamos cabeça, ou, nele. A ideia é a de que o mesmo objecto pode
de desejar que algo fosse vermelho? As imagens do desejo estar perante os olhos dele e os meus, mas eu não posso
mostram-nos seguramente algo menos definido, algo mais penetrar na cabeça dele com a minha (ou no seu espírito
impreciso, do que a realidade do papel vermelho. Por esse com o meu, o que vem a dar no mesmo), de modo que
motivo, deveria dizer, em vez de «desejaria que este papel o objecto real e imediato da sua visão se torne também
fosse vermelho», algo como «desejaria um vermelho pálido o objecto real e imediato da minha visão. Com «eu não
para este papel». Mas se recorrendo à maneira vulgar de sei o que ele vê» queremos dizer, realmente, «eu não sei
falar tivesse dito «desejo um vermelho pálido para este pa- para o que ele olha», em que «aquilo para que ele olha»
pel», tê-lo-íamos pintado de vermelho pálido, para satisfazer está oculto e ele não mo pode mostrar, pois está diante
o seu desejo — e isto não era o que ele desejava. Por outro do espírito. Por esse motivo, para se livrarem deste que-
lado não há qualquer objecção à adopção da forma de bra-cabeças, examinem a diferença gramatical entre as
expressão por ele sugerida, desde que saibamos que usa afirmações «eu não sei o que ele vê» e «eu não sei para
a expressão «desejo um x pálido para este papel», no sen tido onde ele olha», tal como são efectivamente usadas na nossa
do que vulgarmente expressamos por «desejaria que este linguagem.

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Por vezes, a expressão mais convincente do nosso do comportamento, a aparência e o tamanho d as pessoas
solipsismo parece ser esta: «Qu ando algo é visto (realmente sofreriam periodicamente uma alteração completa. Se ria
visto), sou sempre eu que o vejo». vulgar que um homem apresentasse esses dois estados, e
O que nos deveria chamar a atenção nesta expressão é que passasse subitamente de um para o outro. É muito
o «sempre eu». Sempre quem? Dado que, por mais estranho provável que, numa sociedade desse tipo, nos sentíssemos
que pareça, eu não quero dizer «semp re L.W» isto leva- inclinados a baptizar cada indivíduo com dois nomes, e
-nos a ter em consideração os critérios para a identidade possivelmente a referir-nos ao par de pessoas existentes no
de uma pessoa. Sob que circunstâncias diremos: «esta é a seu corpo. Ora, seriam o Dr. Jekyll e o Sr. Hyde duas
mesma pessoa que vi há uma hora»? O nosso uso efec tivo pessoas, ou tratar-se-ia de uma mesma pessoa que simples-
da expressão «a mesma pessoa» e do nome de uma pessoa, mente mudava? Podemos optar pela resposta que mais nos
baseia-se no facto de que muitas características que utili- agradar. Não somos forçados a falar de uma dupla
zamos como critérios para a identidade serem coincidentes personalidade.
na grande maioria dos casos. Sou, regra geral, reconhecido Existem muitos usos da palavra «personalidade» que nos
pela aparência do meu corpo. O meu corpo muda muito podemos sentir inclinados a adoptar, todos eles mais ou
pouco de aspecto e apenas de um modo gradual, tal como menos aparentados. O mesmo se aplica quando definimos
a minha voz, os meus hábitos característicos, etc., apenas a identidade de uma pessoa recorrendo às suas memórias.
mudam lentamente e dentro de limites definidos. Sentimo- Imaginem um homem cujas memórias nos dias pares da
-nos inclinados para usar nomes próprios da m aneira que sua vida incluíssem todos os acontecimentos de todos os
o fazemos, unicamente como consequência destes factos. dias pares, omitindo completamente o que tinha acontecido
Poderá compreender-se isto melhor imaginando casos fictí- nos dias ímpares. Por outro lado, ele lembra-se num dia
cios que nos mostrem quais as diferentes «geometri as» que ímpar do que aconteceu em dias ímpares anteriores, mas
nos sentiríamos inclinados a usar se os factos fossem a sua memória omite, nesse caso, os dias pares, sem
diferentes. Imaginem, por exemplo, que todos os corpos qualquer sensação de descontinuidade. Se o quisermos,
humanos existentes eram idênticos e que, por outro lado, poderemos também supor que ele ap resenta aspectos e
se encontravam distribuídos, por estes corpos, dife rentes características alternadas nos dias ímpares e pares. Seremos
conjuntos de características. Num caso poderíamos ter, por obrigados a afirmar que existem duas pessoas no mesmo
exemplo, a brandura, em conjunto com uma voz de tom corpo? Isto é, será correcto dizer que elas existem e errado
muito elevado e movimentos lentos, num outro, um dizer que não existem, ou vice-versa? Nem uma coisa nem
temperamento colérico, uma voz profunda e movimentos outra. Com efeito, o uso vulgar da palavra «pessoa» é o
bruscos, e assim por diante. Nestas circunstâncias, embora que se poderia chamar um uso misto, apropriado em
fosse possível atribuir nomes aos corpos, sentir-nos-íamos circunstâncias vulgares. Se eu supuser, como faço de facto,
tão pouco inclinados a fazê-lo como nos sen timos para que estas circuntâncias são modificadas, a aplicação do
atribuir nomes às cadeiras da nossa sala de jantar. Por outro termo «pessoa» ou «persona lidade» será, desse modo,
lado, poderia ser útil dar nomes aos conjuntos de caracterís- alterada; e se desejar preservar este termo e dar-lhe um uso
ticas e o uso destes nomes corresponderia então, aproxi- análogo ao seu uso uso inicial, pode rei escolher entre muitos
madamente, aos nomes próprios da nossa linguagem actual. usos, isto é, entre muitos tipos diferentes de analogia. Pode-
Ou imaginem que era habitual os se res humanos terem ria dizer-se, num tal caso, que o termo «persona lidade» não
duas maneiras de ser, da seguinte forma: as características tem apenas um herdeiro legítimo. (Este tipo de consideração

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é de grande importância na filosofia da matemática. Consi- vou de uma confusão, correspondente à confusão entre o
derem o uso das palavras «demonstração», «fórmula» e que chamaremos «o olho geométrico» e «o olho físico».
outras. Considerem a questão: «por que mo tivo deverá o Darei a conhecer sucintamente o uso destes termos: se um
que fazemos aqui ser chamado "filoso fia"? Por que motivo homem tenta obedecer à ordem «aponta para o teu olho»,
deverá ser considerado como o único herdeiro legítimo de ele pode fazer coisas muito diferentes e existem muitos
diferentes actividades que outrora receberam este nome?») critérios diferentes que aceitará para o ter apontado para
Perguntemo-nos agora qual é a espécie de identidades o seu olho. Se estes critérios, como habitualmente acontece,
de personalidade a que nos referimos, quando dizemos que coincidem, posso usá-los alternadamente e em combinações
«quando algo é visto, sou sempre eu que vejo». O que será diferentes para mostrar a mim próprio que toquei no meu
que considero que todos estes casos de visão têm de ter olho. Se eles não coincidirem, terei de distinguir dife rentes
em comum? Como resposta terei de confessar a mim pró- sentidos da expressão «toquei no meu olho» ou «movo os
prio que não é a minha aparência corporal. Nunca vejo uma meus dedos em direcção ao meu olho». Se, por exemplo,
parte do meu corpo, quando vejo qualquer coisa. E não os meus olhos estão fechados, posso, não obstante, ter no
é essencial que o meu corpo, se se encontrasse entre as meu braço a experiência cinestésica característica, a que
coisas que vejo, tivesse sempre o mesmo aspecto. Na chamaria a experiência cinestésica de levantar a minha mão
realidade, não pre sto atenção às mudanças que o meu corpo até ao meu olho. Reconhecerei o facto de ter sido bem
sofre, assim como às mudanças sofridas por todas as suas sucedido ao fazê-lo, pela sensação táctil pecu liar de tocar
propriedades, pelas características do meu comportamento, no meu olho. Mas se o meu olho estivesse atrás de uma
e até mesmo pelas minh as memórias. — Quando penso um placa de vidro de tal modo fixada que me impedisse de
pouco mais sobre isso, apercebo-me de que aquilo que exercer pressão sobre ele com o meu dedo, continuaria
desejava dizer era: «Semp re que algo é visto, algo é visto». ainda a existir um critério de sensação muscular que me
Isto é, o que permanecia idêntico em todas as experiências levaria a dizer que nesse momento o meu dedo se
de visão não era uma entidade particular «eu», mas a própria encontrava em frente do meu olho. Quanto aos critérios
experiência da visão. Isto pode tomar-se mais claro se visuais, existem dois que posso adoptar. Por um lado a
imaginarmos o homem que faz a nossa declaração solipsista experiência vulgar de ver a minha mão lev antar-se e
a apontar para os seus olhos enqu anto diz «eu». (Possivel- deslocar-se até ao meu olho, e esta experiência, evidente-
mente porque deseja ser exacto e p retende dizer expres- mente, é diferente da visão de du as coisas que se encontram,
samente quais os olhos que pertencem à boca que diz «eu» por exemplo, duas pontas de dedos. Por outro lado, posso
e às mãos que apontam para o seu próprio corpo.) Mas utilizar como critério respeitante ao movimento do meu
para o que é que ele aponta? Para estes olhos particula res dedo em direcção ao meu olho, aquilo que vejo quando
com a identidade de objectos físicos? (Para compreende rem olho para um espelho e vejo o meu dedo a aproximar-se
esta frase, devem lembrar-se de que a gramática de palavras do meu olho. Se esse lugar do meu corpo que, segundo
que dizemos representarem objectos físicos se caracteriza dizemos, «vê», tem de ser determinado pelo movimento do
pelo modo como usamos a expressão «o mesmo tal e tal», meu dedo em direcção ao meu olho, de acordo com o
ou «o tal e tal idêntico», em que «tal e tal» designa o objecto segundo critério, então é concebível que possa ver com o
físico.) Dissemos anteriormente que ele. não desejava, de que, de acordo com outros critérios, é a ponta do meu na riz,
maneira nenhuma, apontar para um objecto físico particular. ou outros lugares na minha testa; ou poderia desta maneira
A ideia de que tinha feito uma declaração com sentido deri- apontar para um lugar exterior ao meu corpo. Se pretendo

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que uma pessoa aponte para o meu olho (ou para os seus mas notem que é essencial que todos aqueles a quem eu
olhos) de acordo unicamente com o segundo critério, ex- digo isto não possam compreender-me. E essencial que o
pressarei o meu desejo dizendo: «Aponta para o teu olho meu interlocutor não possa compreender «o que eu real-
(ou olhos) geométrico». A gramática da palavra «olho geo- mente quero dizer», embora, na prática, possa fazer o que
métrico» mantém com a gramática da palavra «olho físico» eu desejava, concedendo-me uma posição excepcional na
a mesma relação que a gramática da expressão «os dados sua notação. Mas pretendo que seja logicamente impossí-
visuais de uma árvore» mantém com a gramática da expres- vel que ele me compreenda, quer dizer, que não tenha
são «a árvore física». Em qualquer dos casos, será motivo sentido, e não que seja falso, dizer que ele me compreende.
de confusão dizer «são duas espécies diferentes de objec- Assim, a minha expressão é uma das muitas que, em vá-
tos»; porque aqueles que dizem que um dado dos sentidos rias ocasiões, são usadas pelos filósofos e que, supostamen-
e um objecto físico são espécies diferentes de objectos te, comunicam algo à pessoa que a diz, embora sejam essen-
compreendem mal a gramática da palavra «espécie», exac- cialmente incapazes de comunicar algo a qualquer outra
tamente como aqueles que dizem que um número e um pessoa. Ora, se para que uma expressão comunique um
numeral são espécies diferentes de objectos. Eles pensam sentido, tal significa que deve ser acomp anhada por, ou pro-
estar a fazer uma declaração do mesmo tipo de «um dnzir, certas experiências, a nossa expressão pode ter os
comboio, uma estação de caminho de ferro e uma carrua- sentidos mais diversos e não desejo dizer seja o que for
gem são objectos de espécies diferentes», ao passo que a sobre eles. Mas somos, na realidade, induzidos em erro ao
declaração é análoga a «um comboio, um acidente de com- pensarmos que a nossa expressão tem um significado no
boio, e um regulamento do caminho de ferro são espécies sentido em que o tem uma expressão não-metafísica; visto
diferentes de objectos». que comparamos indevidamente o nosso caso com um caso
Poderia também ter sucumbido à tentação do que me em que uma pessoa não pode compreender o que dizemos
levou a dizer «sou sempre eu que vejo quando algo é visto», porque lhe falta uma certa informação. (Esta observação
dizendo: «sempre que algo é visto, é isto que é visto», e pode tornar-se clara se comp reendermos a relação entre a
acompanhando a palavra «isto» com um gesto que abarcasse gramática, o sentido e a ausência de sentido.)
o meu campo visual (mas não me referindo, com a palavra O sentido que tem para nós uma expressão é caracteriza-
«isto», aos objectos particulares que visse naquele momen- do pelo uso que dela fazemos. O sentido não é um acompa-
to). Poderia dizer-se, «estou a apontar para o campo visual nhamento mental da expressão. Por consequência, a ex-
em si mesmo, não para algo que nele se encontre». E isto pressão «penso que quero dizer algo com isto», ou «tenho
apenas serve para exibir a ausência de sen tido da primeira a certeza de que quero dizer algo com isto», empregue tão
expressão. frequentemente em discussões filosóficas para justificar o
Ponhamos de parte o «sempre» da nossa expressão. Pos- uso de uma expressão, não constitui para nós qualquer
so ainda exprimir o meu solipsismo dizendo «só é realmente justificação. Perguntamos: «O que quer dizer com isso?»,
visto o que eu vejo (ou: vejo no momento p resente)». Aqui isto é, «Como é que usa esta expressão?» Se alguém me
sinto-me tentado a dizer: «Embora eu não me refira com ensinar a palavra «banco» e me disser que põe às vezes
a palavra "eu" a L.W., se outros a entenderem como refe- ou sempre um traço por cima — da seguinte forma: «banco»
rindo-se a L.W., isso será correcto, se neste preciso mo- — e que isto significa algo para ele, eu di rei: «Não sei que
mento eu for de facto L.W.» Poderia também expressar espécie de ideia associa a este traço, mas não me interessa
a minha pretensão dizendo: «Sou o receptáculo da vida»; a não ser que me mostre que há um uso para o traço num

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tipo de cálculo em que pretende utilizar a palavra "banco"». em vez de «L.W. vê ful an o», etc., etc. O que, contudo,
— Quero jogar xadrez e um homem põe uma coroa de pa- está errado, é pensar que posso justificar esta escolha de
pel no rei branco, sem alterar o uso da peça, m as dizen- notação. Quando disse, do fundo do meu coração, que era
do-me que a coroa significa algo para ele no jogo, que o único a ver, sentia-me também inclinado a dizer que, com
é incapaz de expre ssar através de regras. Digo: «desde que «eu», não queria realmente referir-me a L.W., embora, em
não altere o uso da peça, não tem aquilo a que chamo sen- proveito dos meus semelh antes, pudesse dizer «neste mo-
tido». mento é L.W. que vê realmente», embora não fosse isso
Ouve-se por vezes dizer que uma expressão do tipo «isto o que de facto queria dizer. Quase poderi a dizer que, com
está aqui», quando, enqu anto a digo, aponto para uma parte «eu», me referia a algo que habita, precisamente neste
do meu campo visual, tem para mim uma espécie de sentido momento, L.W., algo que os outros não conseguem ver.
primitivo, embora não possa comunicar informação a (Referia-me ao meu espírito, mas apen as o podia indicar
qualquer outra pessoa. através do meu corpo.) Não há nada de errado em sugerir
Quando digo «apenas se pode ver isto», esqueço-me de que os outros me deveri am atribuir um lugar excepcional
que uma frase pode tornar-se o que há de mais natural para na sua notação; mas a justificação que pretendia dar para
nós, sem ter qualquer uso no nosso cálculo da linguagem. isso, a saber, que este corpo é agora a morada daquilo que
Pensem na lei da identidade, «a=a», e no modo como ten- realmente vive, não tem qualquer sen tido, dado que isto
tamos, dificilmente por vezes, apreender o seu sentido, vi- não afama, confessadamente, algo que no sen tido vulgar
sualizá-lo, olhando para um objecto e repetindo para nós seja uma questão de experiência. (E não pensem que é uma
próprios uma frase do tipo «esta árvore é a mesma coisa proposição baseada na experiência, apen as susceptível de
que esta árvore». Os gestos e as imagens com que aparen- ser por mim conhecida, porque só eu me encontro na
temente dou sentido a esta frase são muito semelh antes posição de ter a experiência particular.) Ora, a ideia de qt}e
àqueles que uso no caso de «apenas isto é realmente visto». o verdadeiro eu vive no meu corpo está relacionada cqm
(Para nos libertarmos dos problemas filosóficos, é útil a gramática peculiar da palavra «eu», e com os equívocos
tornarmo-nos conscientes dos pormenores, aparentemente cuja origem é da responsabilidade desta gramática. Existem
pouco importantes, da situação particular na qual nos dois casos diferentes no uso da palavra «eu» (ou «meu»)
sentimos tentados a fazer uma certa asserção metafísica. As- a que poderia chamar «o uso como objecto» e «o uso como
sim podemos sentir-nos tentados a dizer: «apenas isto é sujeito». São exemplos do primeiro tipo de uso: «O meu
realmente visto» quando olhamos para um ambiente que braço está partido», «Eu cresci doze centímetros», «Eu te-
não se altera, ao passo que não nos senti remos de todo nho um inchaço na testa», «O vento despenteou o meu cabe-
tentados a dizer isto quando olhamos a nossa volta enquanto lo». São exemplos do segundo tipo de uso: «Eu vejo isto
caminhamos.) e isto», «Eu ouço isto e isto», «Eu tento lev antar o meu
Não existe, como o dissemos, qualquer objecção à braço», «Eu penso que vai chover», «Eu tenho dor dentes».
adopção de um simbolismo em que uma certa pessoa ocupe, Pode indicar-se a diferença entre estas duas categorias dizen-
sempre ou temporariamente, o lugar excepcional. E, por do: os casos da primeira categoria envolvem o reconheci-
consequência, se pronuncio a frase «sou eu o único que mento de uma pessoa particular, e existe nestes c asos a
vê realmente», é concebível que os meus semelh antes possibilidade de um erro, ou melhor dizendo providenciou-
adaptem, em consequência disso, a sua notação de modo -se a possibilidade de um erro. A possibilidade de não
a concordarem comigo dizendo «fulano é realmente visível», marcar pontos é prevista num jogo de pinos. Por outro lado,

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se as bolas não surgirem depois de ter posto uma moeda Pensem nas palavras como instrumentos caracterizados
na ranhura da máquina, isso não é um dos acasos do jo- pelo seu uso, e em seguida pensem no uso de um martelo,
go. E possível que, por exemplo, num acidente, sinta uma no uso de um escopro, no uso de um esquadro, de um
dor no braço, veja ao meu lado um braço partido, e pense frasco de cola, e no uso da cola. (Igualmente tudo o que
que é o meu, quando na realidade ele é do meu vizinho. aqui dizemos apenas pode ser compreendido se se com-
E poderia, olhando para um espelho, tomar um inchaço na preender que uma enorme variedade de jogos é jogada com
testa do meu vizinho por um inchaço na minha testa. Por as frases da nossa linguagem: dar ordens e obedecer a
outro lado, não há a menor dúvida de que quando digo ordens; colocar questões e responder-lhes; descrever um
que tenho dor de dentes isso não tem a intenção de acontecimento; contar uma história fictícia; contar uma
identificar uma pessoa. Perguntar «tens a certeza de que anedota; • descrever uma experiência imediata; fazer conjec-
és tu quem tem dore s?» seria absurdo. Ora, quando neste turas sobre acontecimentos no mundo físico; formular
caso nenhum erro é possível, isso deve-se ao facto de a hipóteses e teorias científicas; cumprimentar alguém, etc.,
jogada que nos sentiríamos inclinados a pensar ser um erro, etc.) A boca que diz «eu» ou a mão que se levanta para
uma «má jogada», não fazer pa rte do jogo. (Fazemos a indicar que sou eu que desejo falar, ou eu que tenho dor
distinção no xadre z entre bons e maus lances e, se expu- de dentes, não aponta, ao fazer isso, para alguma coisa.
sermos a rainha a um bispo, chamamos a isso um erro. Se, por outro lado, desejo indicar o lugar da minha dor,
Mas não é um erro promover um peão a rei.) E agora esta aponto. E aqui, de novo, lembrem-se da diferença entre
maneira de expor a nossa ideia ocorre- me ao espírito: que apontar para o lugar doloroso sem ser conduzido pelo olhar
é tão impossível que, ao fazer a afirmação «Eu tenho dor e, por outro lado, apontar para uma cicatriz no meu corpo
de dentes», tenha confundido outra pessoa comigo, como depois de a ter procurado. («Foi aqui que me vacinaram».)
o é gemer de dor por engano, tendo confundido outra pessoa — O homem que grita de dor, ou diz ter dores, não escolhe
comigo. Dizer, «tenho dore s», bem como gemer, não a boca que o diz.
constituem afirmações sobre uma pessoa particular. «Mas No fim de contas, tudo isto equivale a dizer que a pessoa
a palavra "eu" na boca de um homem refere-se certamente de quem dizemos «ele tem dores» é, de acordo com as
ao homem que a diz; indica-o; e muito frequentemente um regras do jogo, a pessoa que grita, que faz esgares de dor,
homem que a diz aponta, de facto, para ele próprio com etc. O lugar da dor — como o dissemos — pode estar no
o seu dedo». Mas era inteiramente supérfluo apontar para corpo de outra pessoa. Se, ao dizer «eu», aponto para o
ele próprio. Poderia apenas afmal ter levantado a mão. Seria meu próprio corpo, utilizo como o padrão, para o uso da
errado dizer que, quando alguém aponta para o sol com palavra «eu», o uso do demonstrativo «esta pessoa» ou
a mão, por ser ele que aponta está a apontar em simultâneo «este». (Esta maneira de tomar semelhantes as duas
para o sol e para si próprio; por outro lado, pode, ao apontar, expressões é um pouco análoga à que por vezes adoptamos
chamar a atenção tanto para o sol como para si. em matemática, por exemplo, na demonstração de que a
A palavra «eu» não significa o mesmo que «L.W.», soma dos três ângulos de um triângulo é igual a 180 graus.
mesmo se eu sou L.W., nem significa o mesmo que a
expressão «a pessoa que está agora a falar». Mas isso não
quer dizer que «L.W.» e «eu» signifiquem coiosas dife-
rentes. Isso significa simplesmente que estas palavras são
instrumentos diferentes da nossa linguagem.

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Dizemos que «a=a', B=B', e y=y». As du as primeiras dos objectos, outras nomes genéricos (como mesa, cadeira,
igualdades são de uma espécie completamente diferente da etc.), outras ainda, nomes de cores, nomes de formas, etc.
da terceira.) Em «eu tenho dores», «eu» não é um pronome Isto é, uma etiqueta s6 teria para nós um sentido desde
demonstrativo. que fizéssemos um uso particular dela. Ora, poderíamos
Comparem os dois cas os: 1. «Como sabes que ele tem facilmente imaginar que ficaríamos imp ressionados com o
dores?» — «Porque o ouço gemer». 2. «Como sabes que mero facto de vermos uma etiqueta numa coisa, esquecendo
tens dores?» — «Porque as sinto». Mas «eu sinto-as» que o que torna estas etiquetas importantes é o seu uso.
significa o mesmo que «eu tenho- as». Por consequência, Deste modo acreditamos, por vezes, que designámos algo
não se trata de uma explicação. Que, contudo, me sinto quando fazemos o gesto de apontar e pronunciamos palavras
inclinado a realçar, na minha resposta, a palavra «sentir» como «isto é...» (a fórmula da definição ostensiva). Dizemos
e não a palavra «eu», indica que, com «eu», não preten- que chamamos a algo «dor de dentes» e pensamos que a
do escolher uma pessoa (de entre várias pesso as). palavra recebeu uma função definida na nossa linguagem
A diferença entre as proposições «eu tenho do res» e «ele quando, sob certas circunstâncias, apontámos para a nossa
tem dore s» não é existente entre «L.W. tem dores» e «Smith bochecha e dissemos: «Isto é dor de dentes». (A nossa ideia
tem dores». Ela corresponde antes à diferença entre gemer é que, quando apontamos e a outra pessoa «apenas sabe
e dizer que alguém geme. — «Mas a palavra "eu", em "eu naquilo para que estamos a apontar», ela conhece o uso
tenho dore s", serve certamente para me distinguir de outras da palavra. E aqui temos presente no espírito o caso especial
pessoas , porque é através do signo "eu" que distingo entre em que «aquilo para que apontamos» é, por exemplo, uma
dizer que tenho dores e dizer que uma outra pessoa as tem». pessoa e «saber que eu aponto» quer dizer, ver para qual
Imaginem uma linguagem em que, em vez de «não das pessoas presentes eu aponto.)
encontrei ninguém no quarto», se dissesse «encont rei o Sr. Temos, por isso, consciência de que, nos c asos em que
Ninguém no quarto». Imaginem os problem as filosóficos «eu» é usado como sujeito, não o utilizamos porque
que surgiriam de uma convenção desse tipo. Alguns filó- reconhecemos uma pessoa particular pelas su as carac-
sofos, educados nesta linguagem, sentiriam provavelmente terísticas corporais; e isto cria a ilusão de que usamos es-
que não gostavam da semelh ança das expressões «Sr. ta palavra para nos referirmos a algo incorpóreo, que,
Ninguém» e «Sr. Smith». Qu ando temos consciência de que todavia, tem a sua morada no nosso corpo. De facto, isto
desejamos eliminar o «eu», em «eu tenho dores», pode di- parece ser o verdadeiro ego, aquele do qual se disse,
zer-se que tendemos para tornar a expressão verbal da dor «Cogito, ergo sum». «Não haverá, nesse caso, um espíri-
semelhante à sua expressão pelos gemidos. Sentimo-nos to, mas apenas um corpo?» Resposta: A palavra «espírito»
inclinados a esquecer que é unicamente o uso particular tem sentido, isto é, tem o uso na nossa linguagem; mas
de uma palavra que dá à palavra o seu sen tido. Pensemos dizer isto não nos diz ainda qual o tipo de uso que dela
no nosso velho exemplo para o uso de palavras: alguém fazemos.
é man dado ao merceeiro com um pedaço de papel onde De facto, pode dizer-se que aquilo com que nos
estão escritas as palavras «cinco maçãs». O uso da palavra, preocupámos nestas inves tigações foi as gramática das
na prktica, é o seu sentido. Imaginem que era habitual os palavras que descrevem o que se chama «ac tividades
objectos que nos rodeiam terem e tiquetas com palavras mentais»: ver, ouvir, sentir, etc.. E, no fim de contas, isto
escritas por meio das quais o nosso discurso se referia aos equivale a dizer que estamos interessados na gramática
objectos. Algumas destas palavras seriam nomes próprios «expressões que descrevem os dados dos sen tidos».

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Os filósofos apre sentam-nos a existência dos dados dos «todos os dados dos sentidos são vagos». Isto leva, igual-
sentidos, como uma opinião ou convicção filosófica. Mas mente, à comparação da gramática de «posição», «movi-
dizer que acredito na existência de dados dos sen tidos mento», e «dimensão», no espaço euclidi ano e visual. Exis-
equivale a dizer que acredito que um objecto pode parecer tem, por exemplo, posição absoluta, movimento absoluto
estar frente aos nossos olhos, mesmo quando de facto não e dimensão, no espaço visual.)
está. Ora, quando se usa a expressão «dados dos sen tidos», Ora, podemos fazer uso de uma expressão como «apontar
deveria ter-se em conta a singularidade da sua gramática, para a aparência de um corpo», ou «apontar para um dado
visto que a ideia, ao introduzir esta expressão foi a de tomar visual dos sentidos». Falando de uma maneira geral, esta
como modelo das expressões referentes à «aparência», as espécie de apontar equivale a fazer ponta ria, por exemplo,
expressões referentes à «realidade». Disse-se que, por com uma arma. Podemos, assim, apontar e dizer: «Eis a
exemplo, se duas coisas parecem ser iguais, devem existir direcção na qual vejo a minha imagem no espelho». Pode
duas coisas que são iguais. O que nada mais significa, também utilizar-se uma expressão como «a aparência, ou
evidentemente, do que o facto de termos decidido usar uma o dado dos sentidos, do meu dedo aponta para o dado dos
expressão como «as aparências destas du as coisas são sentidos da árvore» e outras exp ressões semelhantes. De
iguais», como sinónimo de «estas duas cois as parecem ser entre estes exemplos de apontar devemos, contudo, distin-
iguais». Cas o estranho, a introdução desta nova fraseologia guir aqueles em que aponto na direcção de onde me parece
iludiu as pessoas, levando-as a pensar que tinham descoberto vir um som, ou aqueles em que aponto para a minha testa
novas identidades, novos elementos da estrutura do mundo, de olhos fechados, etc.
como se dizer «e acredito na existência de dados dos Ora, quando digo à m aneira solipsista «Isto é o que é
sentidos» fosse semelhante a dizer «e acredito que a matéria realmente visto», aponto para a minha frente e é essencial
é constituída por electrões». Quando falamos da igualdade que aponte visualmente. Se apontasse para os lados ou para
das aparências ou dos dados dos sentidos, introduzimos um trás de mim — o acto de apontar não teria, nesse caso
novo uso da palavra «igual». É possível que os compri- qualquer sentido para mim; não seria apontar no sentido
mentos A e B possam parecer-nos iguais, que B e C possam em que desejo apontar. Mas isto significa que, quando
parecer-nos iguais, mas que A e C não nos pareçam ser aponto para a minha frente dizendo «isto é o que é real-
iguais. E na nova notação teremos de dizer que embora mente visto», embora faça o gesto de apontar, não aponto
a aparência (os dados dos sen tidos) de A seja igual à de para um objecto por oposição a outros. Passa-se o mesmo
B e a aparência de B igual à de C, a aparência de A não quando ao viajar de carro com pressa de chegar faço
é igual à aparência de C; o que não apresenta qualquer instintivamente força contra algo à minha força como se
inconveniente, se não se importa rem de utilizar a palavra pudesse empurrar o carro a partir do seu inte rior.
«igual» intransitivamente. Quando faz sentido dizer «vejo isto», ou «isto é visto»,
Ora, o perigo que corremos quando adoptamos a notação apontando para o que vejo, faz também sentido «eu vejo
dos dados dos sentidos é o de esquecermos a diferença entre isto», ou «isto é visto», apontando para algo que não vejo.
a gramática e uma declaração sob re dados dos sentidos e Quando fiz a minha afirmação solipsista, apontei, m as
a gramática de uma declaração, exteri ormente semelhante, despojei o acto de apontar do seu sentido, relacionando de
sobre objectos físicos. (A partir daqui, poderia continuar maneira inseparável o que aponta com aquilo para que
a falar-se sobre os equívocos que encontram a expressão aponta. Construí um relógio com todas as suas engrenagens
em frases como: «Não podemos ver um círculo perfeito», e, no final, uni o mostrador ao ponteiro fazendo que ele

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acompanhasse o movimento deste. E desta maneira o «ape- sentido, a frase «estou aqui» deve atrair a atenção para um
nas isto é realmente visto» do solipsista lembra-nos uma lugar no espaço comum. (E há várias maneiras de utilizar
tautologia. esta frase.) O filósofo que pensa que faz sentido dizer para
Evidentemente, uma das razões por que somos tentados si próprio «estou aqui», toma a expressão verbal da frase
a fazer a nossa pseudo-afirmação reside na sua semelhança em que «aqui» é um lugar no espaço comum e pensa em
com a afirmação «só vejo isto», ou «esta é a região que «aqui» como o aqui no espaço visual. Por consequência
vejo», que faço apont ando para certos objectos que me ele diz na verdade algo do mesmo género que «Aqui é
rodeiam, em contraste com outros, ou apontan do numa certa aqui».
direcção do espaço físico (não do espaço visual), em Poderia, contudo, tentar expressar o meu solipsismo de
contras te com outras direcções no espaço físico. E se, ao uma maneira diferente: imagine que eu e outras pessoas
apontar neste sentido, digo «isto é o que é realmente visto», desenhamos ou escrevemos descrições do que cada um de
poder-se-á re sponder-me: «Isto é o que tu, L.W., vês; mas nós vê. Estas descrições são-me apresentadas. Aponto para
não há qualquer objecção à adopção da notação em que a que fiz e digo: «Apenas esta é (ou foi) realmente vista».
o que costumávamos chamar "cois as que o L.W. vê" se Isto é, sinto-me tentado a dizer: «Apen as esta ,descrição
chame "coisas realmente vistas"». Se, contudo, ac redito que, corresponde à realidade (realidade visual)». As outras
ao apontar para a minha gramática, não tenho qualquer poderia chamar «descrições em branco». Poderia também
vizinho, posso comunicar algo a mim próprio (embora não expressar-me dizendo: «Esta desc rição é a única que teve
o faça a outros), faço um erro semelh ante ao de pensar por base a realidade; foi a única que foi confrontada com
que a frase «estou aqui» faz sen tido para mim (e, a pro- a realidade». Agora, o sen tido é claro quando dizemos que
pósito, é sempre verdadeira) sob condições dife rentes este desenho ou descrição é uma projecção, por exemplo,
daquelas condições muito especiais sob as quais faz sen tido. deste grupo de objectos — as árvores para as quais olho
Por exemplo, quando a minha voz e a direcção da qual — ou que foi derivado destes objectos. Mas é necessário
falo são identificadas por outra pessoa. De novo, um c aso examinar a gramática de uma expressão como «esta des-
importante em que podem constatar que uma palavra tem crição deriva dos meus dados dos sentidos». Aquilo de que
sentido pelo uso particular que dela fazemos. Somos como estamos a falar está relacionado com essa tentação singular
pessoas que pensam que bocados de madeira com a forma de dizer: «Nunca sei o que outra pessoa quer dizer com
aproximada das peças de xadre z e das damas e colocadas a palavra "castanho", ou que ela vê realmente quando (sem
num tabuleiro de xadrez constituem um jogo, mesmo que mentir) diz ver um objecto castanho». — Poderíamos propor
nada tenha sido dito sobre o modo de as usar. àquele que diz isto o uso de duas palavras diferentes, em
Dizer «isto aproxima-se de mim» tem sen tido, mesmo vez da palavra única «c astanho»; uma palavra para a sua
quando, falando de um ponto de vista físico, nada se própria impressão particular, a outra palavra com aquele
aproxima do meu corpo; e da mesma maneira que faz sentido que também pode ser compreendido por outras
sentido dizer, «está aqui» ou «alc ançou-me» quando nada pessoas para além dele. Se pensar nesta proposta verá que
alcançou o meu corpo. E, por outro lado, «estou aqui» faz há algo de errado na sua concepção do sen tido e da função
sentido se a minha voz é identificada e é detectado o lugar da palavra «castanho», ou de outras palavras. Ele procura
particular do espaço comum de onde ela provém. Na frase uma justificação da sua descrição, onde não existe nenhuma
«está aqui», o «aqui» era um aqui no espaço visual. Fal ando justificação possível. (Tal como no caso em que um homem
de uma maneira geral, é o olho geométrico. Para fazer acredita que a cadeia de razões não tem fim. Pensem na

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justificação por recurso a uma fórmula geral para a do que a outra. O sen tido da expressão depende inteiramente
resolução de operações matemáticas; e na questão: será que do modo como a usamos. Não imaginemos o sen tido como
esta fórmula nos obriga a usá-la neste caso particular, como uma relação oculta que o espírito estabelece entre uma
o fazemos?) Dizer «derivo esta descrição da realidade vi- palavra e uma coisa, nem que esta relação contém a
sual» não quer dizer o mesmo que: «de rivo uma descrição totalidade dos usos de uma palavra, tal como se pode ria
do que aqui vejo». Posso, por exemplo, ver uma tabela em dizer que a semente contém a árvore.
que um quadrado colorido corresponde à palavra «casta- O cerne da nossa proposição segundo a qual aquele que
nho», e ver também uma mancha da mesma cor num outro tem dores, ou vê, ou pensa, tem uma natureza mental, é
sítio qualquer; e posso dizer: «Esta tabela mostra-me que apenas o facto de a palavra «eu» em «eu tenho dores» não
devo usar a palavra "castanho" para a descrição desta man denotar um corpo particular, dado que não podemos
aneira que possa deduzir qual a palavra-cha».Édestm substituir «eu» pela descrição de um corpo.
necessária na minha descri ção. Mas seria absurdo dizer que
deduzo a palavra «c astanho» da impressão colorida que
recebo.
Perguntemos agora: «Poderá um corpo humano ter FIM DO LIVRO AZUL
dore s?» Tende-se a dizer: «Como pode o corpo ter do res?
O corpo em si próprio é algo inerte; um corpo não tem
consciência!» E também aqui parece que examinámos a
natureza da dor e descobrimos que não está na sua natureza
que um objecto material a possa ter. E é como se tivéssemos
descoberto que o que tem dore s deve ser uma entidade de
uma natureza diferente da de um objecto mate rial; que, na
realidade, deve ser de nature za mental. Mas dizer que o
ego é mental é um pouco como dizer que o número 3 tem
uma natureza mental ou imaterial, quando reconhecemos
que o numeral «3» não é usado como um signo que repre-
senta um objecto físico.
Por outro lado, podemos perfeitamente adoptar a ex-
pressão «este corpo sente dor», e dir-lhe-emos nesse caso,
como o fazemos habitualmente, para ir ao médico, para se
deitar e até mesmo para se lembrar de que da última vez
que teve dores elas pas saram ao fim de um dia. «Mas não
seria esta, uma forma de expressão indirecta?» — Será que
quando dizemos «Esc reve "3" em vez de "x", nesta fór-
mula» em lugar de dizer «Subs titui x por 3», utilizamos
uma expressão indirecta? (Ou, por outro lado, tal como o
pensam alguns filósofos, será di recta apenas a primeira das
duas expre ssões?) Nenhuma das expressões é mais directa

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Composto e paginado por:
Susete Bettencourt
para Edições 70, Lda.
Impresso por:
Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda.
em Fevereiro de 1992

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