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Elcio Cecchetti1
Resumo:
No decorrer das últimas décadas, se acentuou a reflexão sobre a questão da diferença, o que
ocasionou uma reação crítica à teoria tradicional e hegemônica, que defende uma natureza
humana universal, com normas generalizáveis, tradições e padrões comuns de valores.
Historicamente, esta teoria parece ter sido também adotada pela cultura da escola. As teorias e
movimentos reacionários discutem a produção do diferente, construído a partir dos jogos de
poder, que (re)produzem identidades dominantes através de relações desiguais. O texto que
segue descreve a possibilidade de um processo de resistência na cultura da escola, onde as
práticas rotineiras, os fatos, as relações e a linguagem com seus ditos e não-ditos necessitam
ser analisadas, questionadas e desconfiadas, a fim de que se tome o ponto de vista daqueles
que estão sujeitados como diferentes, objetivando promover o resgate do encontro com o
Outro.
Introdução
Nas últimas décadas, a discussão sobre a “diferença”, bem como a questão relativa ao
Outro, tem causado muitas reflexões no campo educativo. Isso se deve em parte pela
contribuição das teorias pós-estruturalistas na crítica dos discursos unificadores e
“universais”.
Por outro lado, o surgimento de uma certa tendência política, que permite que os
diferentes grupos e movimentos sociais discutam as suas singularidades perante o discurso
homogeneizante moderno - que enfatiza necessidades e interesses comuns - também tem
influenciado esta discussão.
Por isso, nos últimos tempos houve uma reação a esta corrente tradicional que
defende uma natureza humana universal, normas generalizáveis, tradições e padrões comuns
de valores, pelas perspectivas teóricas do feminismo, multiculturalismo, do pós-colonialismo
e do pós-modernismo. 2
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC e graduado em Ciências da Religião –
Licenciatura Plena em Ensino Religioso pela FURB/SC - e-mail: elcio.educ@bol.com.br.
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Nesse contexto, também a diferença, segundo Burbules (2003, p. 160) começou a ser
vista e entendida como parte da vida interior de cada sujeito, retirando “dos ombros de muitos
indivíduos a carga de freqüentemente ter de justificar a não conformidade com normas ou
identidades convencionais e dominantes”.
Para Louro (1997, p.47) esses embates em que ocorrem atribuições das diferenças
estão sempre implicadas com relações de poder: “a diferença é nomeada a partir de um
determinado lugar que se coloca como referência”.
Michel Foucault trouxe muitas contribuições para as discussões sobre a questão das
relações de poder. Ele desorganiza “(...) as concepções convencionais – que usualmente
remetem à centralidade e à posse do poder – e propõe que observemos o poder sendo exercido
em muitas e variadas direções, como se fosse uma rede que, ‘capilarmente’, se constitui por
toda a sociedade” (Louro, 1997, p.38).
O poder é praticado pelos sujeitos, e por isso está implicado com os efeitos de suas
ações. “Torna-se central pensar no exercício do poder; exercício que se constitui por
‘manobras’, ‘técnicas’, ‘disposições’, as quais são, por sua vez, resistidas e contestadas,
respondidas, absorvidas, aceitas ou transformadas” (Louro, 1997, p. 39).
As relações de poder e saber, segundo Huber (2004, p.15), engendram as práticas da
sociedade, articulam o seu funcionamento, comandam corpos e mentes. “Determinam os
lugares das coisas, o proibido e o permitido no espaço e no tempo.”
Assim, os diferentes sujeitos, através das suas diversas práticas, constituem relações,
trocas, negociações, combinados, avanços, recuos, alianças, revoltas... São “jogos” em que os
participantes estão sempre em atividade. Geralmente o Outro, é aquele que freqüentemente
foi/foram “manobrados” pelo poder da identidade hegemônica, sendo colocados em situação
de subordinação e submissão. Mas, mesmo nesta situação, não deixam de serem sujeitos:
“Onde há poder há resistência” afirmava Foucault.
Os sujeitos não são apenas construídos através de mecanismos de repressão ou
censura, eles se fazem, também, através de práticas e relações que instituem gestos, modos de
ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir, condutas e posturas tidas como
“apropriadas” e mais “corretas”.
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Estes termos utilizados por diversos autores para designar estas novas teorias, também são termos gerais e que
não dão conta de abarcar todas as contribuições e contradições existentes, sob risco de um certo reducionismo.
No entanto, empregamos estes termos aqui para facilitar a compreensão, mesmo sabendo da necessidade de se
fazer profundas reflexões sobre esta questão posteriormente.
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Em vista disso, Huber (2004, p. 25) afirma que o sujeito moderno não é senão “uma
ficção, uma fábula, uma fantasia configurada de identidade, segundo a qual os indivíduos
ocidentais têm constituído aquilo que são, aquilo que sabem, aquilo que podem e anseiam”.
Para Foucault, tanto o poder quanto o sujeito (se é que de fato ele existe) são
constituídos e constituintes, seja por processos de subjetivação ou objetivação, seja pela
repressão ou pela resistência:
É no interior das “redes de poder”, pelas trocas e jogos que constituem o seu exercício,
que são instituídas e nomeadas as diferenças e desigualdades:
“dentro”, ela também dividiu, classificou, ordenou. Separou adultos de crianças, católicos de
protestantes, ricos de pobres, meninos de meninas.
Criada para acolher alguns, mas não todos, ela foi lentamente requisitada por aqueles
que estavam de “fora”. Ao tornar-se pública e de acesso a quase “todos”, ela passou por
transformações em suas configurações. Por detrás desta intenção, segundo Enguita (1989)
escondeu-se uma ideologia. Não se ofereceria educação gratuita a troco de nada. Qual
educação dar ao povo?
Os pensadores da burguesia em ascensão recitaram durante longo
tempo a ladainha da educação para o povo. Por um lado, necessitavam
recorrer a ela para preparar ou garantir seu poder, para reduzir o da
igreja e, em geral, para conseguir a aceitação da nova ordem. Por
outro, entretanto, temiam as conseqüências de ilustrar
demasiadamente aqueles que, ao fim e ao cabo, iam continuar
ocupando os níveis mais baixos da sociedade, pois isto poderia
alimentar neles ambições indesejáveis. (Enguita, 1989, p. 110).
É neste contexto, que nascem as escolas no seio da sociedade capitalista. Era só uma
questão de tempo para que os patrões compreendessem os belos e lucrativos frutos que podia
oferecer uma educação popular “bem feita”:
Mas, apesar da escola ter passado por muitas mudanças e inovações desde esta época,
não se anularam os regulamentos, avaliações, proibições, distinções: de forma explicita ou
implícita, continuou produzindo diferenças entre os sujeitos:
É na cultura da escola3 que os sentidos precisam estar afiados para que se tenha a
capacidade de ver, ouvir e sentir as múltiplas formas de constituição dos sujeitos implicadas
na concepção, na organização e no fazer do cotidiano escolar. Através de um longo
aprendizado, a escola acaba por colocar cada um em seu lugar. Suas imposições acabam por
penetrar nos sujeitos. “Gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e
incorporados por meninos e meninas, tornando-se parte de seus corpos. Ali se aprende a olhar
e a se olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir” (Louro, 2004, p.62).
Alguns sentidos são treinados, fazendo com que cada um aprenda os sons, sabores e
cheiros “bons”, e rejeite os outros; se desenvolve algumas habilidades, em detrimento de
outras... aprende-se a posição física dos membros do corpo... produz-se enfim, identidades e
diferenças.
Huber (2004), expõem que, na escola, o que projeta a diferença é o que mais realça
suas características não correspondentes a um “bom aluno”: notas baixas, indisciplina, má
aparência, isolamento, falta de vontade...
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O termo “cultura da escola” utilizado até agora, provém de Forquim (1993, p.167), que usa esta expressão para
designar que “a escola constituiu um ‘mundo social’, que têm características próprias, seus ritmos e seus ritos,
sua linguagem, seu imaginário, seus modos próprios de regulação e de transgressão, seu regime próprio de
produção e de gestão de símbolos”.
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Ainda de acordo com Burbules (ibid), a diferença pode ser tanto uma oportunidade
quanto um problema na escola. Oportunidade porque aceita encontros entre diversos grupos,
permitindo explorar um leque de possibilidades que se expressam na cultura e na história
humana, bem como abre caminho para ensinar formas alternativas de vida e de
relacionamento com a diversidade, como uma das virtudes da cultura cívica democrática (tão
necessária nos tempos atuais).
A diversidade pode ser uma dificuldade, porque pode provocar conflitos e
entendimentos equivocados, porque certas diferenças são às vezes tomadas como “normas”
ou “normais”, dividindo/excluindo pelo jogo do poder, e por que as diferenças podem revelar
o imenso limite da (in)capacidade de compreensão. Sendo assim, “o pressuposto da
semelhança ou normalidade freqüentemente significa apenas expectativa de conformidade a
uma série de modelos dominantes (...)” (Burbules, 2003, p. 162).
Existe também, na visão de Burbules (2003), uma posição pluralista de tolerância à
diversidade, que em geral apenas acomoda as características da diferença dadas pelos modelos
dominantes, ignorando ou negligenciando outras espécies de diferença. O discurso de “(...)
celebrar a diversidade muitas vezes significa apenas a exorcização da diferença, do Outro,
como algo exótico, fascinante ou curioso - mas ainda visto e avaliado em função de um ponto
de vista dominante” (Burbules, 2003, p.163).
Moreira, em seu artigo ‘currículo, diferença cultural e diálogo’, afirma que
reconhecer a diferença cultural na sociedade e na escola traz como primeira implicação, para a
prática pedagógica, o abandono de uma perspectiva monocultural:
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O texto de Skliar, por ser de outra língua, quando citado nesta obra, será traduzido pelo autor deste texto, a fim
de facilitar a leitura.
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Mas, o que ocidente tem feito com essa dupla figura do Outro, segundo Skliar (2006),
não é mais do que reduzir todo o outro radical ao outro próximo; e mais do que isso,
pretendeu eliminá-lo, extinguí-lo para acabar com toda a diferença radical.
Devido à perda do Outro como Outro radical, e frente a este jogo de poder onde o
“Outro deve ser o mais parecido comigo”, este Outro, diferente, representou, uma ameaça a
toda construção da identidade “harmônica” ocidental, pois “aquele outro que foi normalizado
- ou que foi pensado, imaginado e desejado normalizá-lo, pode se despertar a qualquer
momento” (Skliar, 2006, p. 64).
Essa eliminação do Outro radical é algo virtual, fictício, pois na aceitação do Outro
próximo está sempre presente um resto, um resíduo: no Outro se esconde uma alteridade que é
inesgotável, irredutível, e irremediável. Pois o Outro se revela infinitamente Outro, não
podendo ser aprisionado totalmente, manifestando-se sempre com surpresa e novidade.
A questão é que o Outro começou a estar ausente, a faltar, o que resultou no
empobrecimento da relação face-a-face, rosto-rosto, eu-outro. Perdeu-se a proximidade, e por
conseqüência, a responsabilidade do eu pelo outro.
Assim, segundo Skliar, é possível dizer que vivemos em uma época de produção do
Outro, de fabricação do Outro:
Considerações finais
Postas as reflexões dessa forma, cabe perguntar: por que se importar com tudo isso?
Por que observar/questionar a construção do diferente? O que isso tem a ver com a cultura da
escola? Uma das possíveis respostas consiste na conclusão de que a instituição da diferença
como diferente, é uma construção social ligada ao jogo das relações de poder. Portanto, isso
tudo isso não foi dado, mas produzido; e isso traz consigo a constatação de que as coisas
poderiam ter sido feitas de outra forma e de maneiras diversas.
Isso permite desestabilizar as divisões e problematizar a conformidade de que tudo
seja “natural”. Essas reflexões ajudam as pessoas a se tornarem mais conscientes das
diferenças que podem ter sido ocultadas e não verbalizadas.
Na cultura da escola, estas reflexões fornecem condições para que pessoas/grupos
oprimidas/os possam entender como se criou a situação desvantajosa em que foram colocadas,
e que esta opressão/dominação, constituem também construções histórico-sociais produzidas
por outros sujeitos, possíveis, portanto, de serem questionadas e transformadas. Essa
compreensão pode possibilitar a desnaturalização dos critérios usados para justificar a
superioridade de certos indivíduos/grupos em relação a outros.
Portanto, precisamos de uma educação que não privilegie ou exclua sujeitos devido as
suas diferenças, tendo reflexões e práticas que contemplem e valorizem o Outro em sua
alteridade. Mas, como encontrar/reconhecer este Outro na diversidade presente na cultura da
escola?
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Referências bibliográficas
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? In: TADEU DA SILVA, Tomaz (org.)
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, Vozes, 2000, p. 103-
133.
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Graduação em Educação: Universidade Federal de Santa Catarina.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-
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MOREIRA, A.F.B., Currículo, diferença cultural e diálogo. In: Revista educação &
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PELIZZOLI, Marcelo Luiz. A relação ao outro em Husserl e Lévinas. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1994.
SKLIAR, Carlos. La Relación, siempre la relación, con el otro. In: Revista Separata: La
educación (que es) del otro: nota acerca del desierto argumentativo en educación.
Universidad de Antioquia – Facultad de educación, 2006, p. 61-82.