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Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Silas Borges Monteiro (UFMT)
realização:
apoio:
Editoração por SUPERNOVA EDITORA
C122
Caderno de Notas 9: Panorama de Pesquisa em Escrileituras:
Observatório da Educação./ Organizado por Sandra Mara
Corazza, Máximo Daniel Adó e Polyana Olini. Porto Alegre-RS:
UFRGS/ Doisa, 2016
ISBN 978-85-66308-07-5
1.Educação. 2.Escrileituras. 3.Pedagogia. 4.Didática –
Tradução. 5.Formação de Professores. 6.Currículo –
Transcriação. I.Corazza, Sandra Mara (org.). II.Adó, Máximo
Daniel (org.). III.Olini, Polyana (org.). IV.Título.
CDD 370
Apresentação do Panorama ........................................................ 10
Da Pesquisa-Sensação: fragmentos .......................................... 26
Simone Fogazzi
Paola Zordan
Memória e fabulação em
Henri Bergson: considerações sobre a
experiência do tempo no ensino de história ....................... 38
Gabriel Torelly Fraga
Nilton Müllet Pereira
Alfabeto Espiritográfico:
escrileituras em educação ....................................................... 100
Maria Idalina Krause de Campos
Sandra Mara Corazza
A Produção de escrileituras na
problematização do mal-estar docente:
um estudo com os professores da
rede pública estadual de ensino do RS ................................ 112
Clara Lisandra de Lima Silva
Carla Gonçalves Rodrigues
Biografemário de um aprender:
escrileituras em meio à vida ..................................................... 166
Josimara Wikboldt Schwantz
Carla Gonçalves Rodrigues
Timpanização de escrileituras.
Vias marginais para objetos duplos ....................................... 178
Emília Carvalho Leitão Biato
Silas Borges Monteiro
Conexões heterogêneas:
uma Educação Potencial ............................................................ 218
Máximo Daniel Lamela Adó
Sandra Mara Corazza
Epílogo
A filosofia da composição
do Projeto Escrileituras .............................................................. 239
Sandra Mara Corazza
Ester Maria Dreher Heuser
Carla Gonçalves Rodrigues
Silas Borges Monteiro
Apresentação do Panorama
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chamadas Oficinas de Transcriação (OsT) e Ateliês de Pesquisa. Foram, ao
todo, 5.413 diretamente envolvidos com as atividades e programas do
Projeto Escrileituras, incluindo alunos e professores da Educação Básica
e do Ensino Superior, além dos demais membros das comunidades envolvidas,
através de atividades curriculares, extra-curriculares e de extensão, como
familiares e outros trabalhadores da educação; sendo que esse universo de
participantes alcançou o total de 166.406.
As dezenove pesquisas que compõem este Panorama de pesquisa em
escrileituras... são apresentadas pelos autores em sistema de co-autoria
com os respectivos orientadores dos cursos de Mestrado e Doutorado.
Como se verá, abordam vários aspectos do pensamento e da prática
educacional na contemporaneidade, situando suas correspondentes ex-
perimentações, variações e usos de escrileituras, tanto no plano empírico
transcendental como no plano relacional com conceitos, perceptos e afectos
dos autores escolhidos.
Em função da multiplicidade de problemáticas, solos conceituais, pro-
cedimentos, metodologias e resultados das dezenove pesquisas, para incutir
uma coesão ao compósito que resultou neste Caderno de Notas 9, realizamos
agrupamentos por vizinhança temática ou por contágio proximal. Então,
emergiram quatro partes, abertas a cruzamentos e encontros possíveis, quais
sejam: DIFERENÇA E FORMAÇÃO; PEDAGOGIA E ESCRILEITURAS;
DIDÁTICA E TRADUÇÃO; CURRÍCULO E TRANSCRIAÇÃO.
Em sua pluralidade de áreas empíricas e diversidade de zonas teóricas,
os capítulos deste livro carregam em comum a potência de traduzir
acontecimentos, forças e intensidades em novas maneiras de ler e es-
crever, pensar e fabular, viver e educar. Abrem, assim, um panorama
incomum para a criação de novos arranjos, montagens e composições
de escrita e de leitura em educação contemporânea.
Resumo
Defendida em 29 de fevereiro de 2012, dentro do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas constitui um exercício
corpográfico com vias à construção de uma anatomia palimpséstica: a
pesquisa em educação como experimentação de um arranjo polifônico, um
corpo rapsódico de tramas e conspirações entrexpressivas, incansavelmente
tecido, rasurado, reinvestido em meio à arte, à literatura, à filosofia. Nesse
sentido, a Tese insiste no interferencialismo como tática para a delimitação
de um plano no qual o problema de escrever não pode ser pensado a não ser
em relação com forças sonoras e visuais que não apenas o assombram, mas
também o constituem, em uma travessia sinestésica.
Palavras-chave
Corpo. Palimpsestos. Escrileitura. Arte. Educação.
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“Aquilo que ouço são pancadas: ouço aquilo que bate dentro do corpo,
aquilo que bate no corpo, ou melhor: aquele corpo que bate”.
Roland Barthes, Rasch.
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maneira que é justamente na complexidade do conjunto que residem seu
sabor e sua graça. Experimentar um cromatismo textual implica encontrar
outros gostos que não organizações maiores, tais como os autoritarismos
do autor, da obra e do domínio disciplinar em questão. Por essa via e por
seus próprios termos, a escrita avança, faz o giro, roda e retorna não para
a neutralidade de um centro, mas para o contínuo movimento de invenção
e instauração de um espaço. Trata-se de tomar o pensamento, a escritura
como aventura do pensamento, enquanto exercício do concepto, ou seja, de
concepções tópicas (COUTO, 2001), reais agregados polifônicos. Escrever,
portanto, como criação de uma via tópica, concepção textual de visões e
audições outras, um topos contraposto ao repertório de topoi convencionais,
e que por isso exige soluções inventivas: por parte dos olhos, da língua,
dos ouvidos, das avaliações, dos planejamentos e pareceres, de que mais?
Ora, certa dimensão estrutural é obviamente necessária, uma vez que é por
lugares de discurso e de composição que a escrita se movimenta. Não se trata,
porém, de um percurso inofensivo. Que existam diferenças entre sistemas
de criação, que a pintura funcione através de coordenadas diversas das da
música, e que seja através da especificidade dessas coordenadas, em relação
aos problemas que as orientam, aquilo que define o funcionamento de cada
uma das disciplinas criadoras, eis aí uma afirmação sobre a qual já não pode
recair nenhuma dúvida. No entanto, sob uma perspectiva dinâmica, somos
convidados a um perigoso e turbulento passeio comparativista, através do
qual não deixamos de tomar um campo em função de outro, de maneira
que o sabor de um texto, o texto que nos toca, passa a ser necessariamente
sinestésico. Nesse ponto, se existem diferenças, estas são meramente
funcionais, não relacionais e anatômicas: o corpo, enquanto estatuto da
organização palimpséstica, está aquém das divergências formais, e é mesmo
esse corpo, em cada uma de suas posturas ou movimentos ínfimos, a
testemunha do contágio transdisciplinar. Ao avançar nessa direção, a pesquisa
torna-se então inseparável de uma aspiração talvez ainda mais alta, e é com
o timbre de uma tessitura deleuziana que diz da imaginação e do desejo de
se aproximar de um fundo comum ou comparável entre as palavras, os sons,
as linhas e as cores (DELEUZE, 2003). Por certo, a escrita tem seu próprio
calor, mas é ao pensar com a pintura que apreendemos melhor a linha e a
cor de uma frase, como se o quadro realmente comunicasse algo às frases,
da mesma maneira que o material sonoro elaborado pelo compositor irá
movimentar a mão que escreve. De fato, desde que Cézanne delegou a seu
trabalho a tarefa de espantar a cidade com a criação de um novo plano de
realidade (e fazendo isso com as coisas mais triviais, tal como uma simples
maçã ou um vaso ou dois), tornou-se ao menos aceitável admitir a existência
de tarefas bastante semelhantes no que se refere ao ato de criação. Tornar
possível aquilo que não é possível por si mesmo; mostrar e não representar;
tornar visível e não reproduzir; tudo pela atemporalidade pedagógica da
tópica cézanniana, tal como nos foi enunciada, ao modo de confissão
criadora, por Paul Klee (2001). Não se trata, portanto, de um saber absoluto,
seja onde for, mas sim de um verdadeiro saber impossível. É por isso, e não por
outra razão, que não existem assuntos privados no que se refere à criação, e é
também por isso que nós, escrileitores não-músicos, não-pintores, podemos
nos apropriar da música e da pintura, na medida em que elas não têm por
elemento exclusivo e fundamental o som e a imagem, mas sim o conjunto de
elementos de um real não-sonoro, não-pictural, que elas irão ou não tornar
perceptíveis (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Se optarmos por levar a sério
a serialidade e a covariância desses planos, delegando também a nossas
práticas a tentativa de caucionar em cientificidade, mesmo que mínima, a
força de uma vertigem, pisaremos com o mesmo par de sapatos os espaços
das bancadas e dos ateliês, dos consultórios psicológicos, das salas de aula,
conferências e concertos, levando a sujeira como marca nas pegadas de um
para dentro de outro. Tráfego, mas também tráfico, transgrafia tópica. O texto,
em sua dimensão utilitária, sustenta essa espécie de estrabismo metodológico,
jamais isento de impostura: inventar para poder ocupar, e não o inverso;
criar por descolagem; inventariar procedimentos de raspagem; avançar
por sequenciais desorientações de sentido. Inevitavelmente, tudo passa por
pergaminhos conhecidos, lugares de destaque em estantes abarrotadas de
citações em páginas de volumes e saberes enciclopédicos esparramados
sobre bancadas ou protegidos em sagradas gavetas e compartimentos
mais ou menos secretos para o acesso ilimitado e sempre seguro onde se
lê: Verdade. Severa disciplina, o estriamento dos componentes no espaço,
a consequente redundância dos elementos de meio tornando-se paisagem
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e esta incidindo sobre os traços dispersos do corpo, complementaridade e
sobrecodificação: a Educação, por essa forma, introduz-se em seus rostos
e recebe os seus nomes, duplo estrato através do qual poderá orientar seus
movimentos. Arquitetonicamente, no entanto, apostamos em uma igualdade
de distâncias entre os elementos do cenário, de maneira que a arrogância
de uma linearidade cronológica, propriedade maior de todo exercício e
determinismo histórico, encontre-se suspensa. Não acreditamos em uma
neutralidade sagrada da obra, não buscamos uma verdade segura para a
vida e, desse modo, recusamos qualquer indício já dito sobre como orientar
ou levar esta ao encontro daquela. O labor palimpséstico é o testemunho
de incidências e granulações de um corpo transitório, sendo a sua tessitura
anatômica, em cada movimento, o discurso-veduta (COUTO, 2005) de uma
Educação polifônica.
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proliferação: &... &... &... Ligeira noção de hifologia, a ideia generativa do
desaparecimento elocutório do autor face à linguagem, autotélica existência.
Ordem arquitetônica de rastos? Ecce corpus, dialogicamente imperfeito. A
linguagem não é dócil, bem se sabe. Aprendemos com J.L. Austin (1990)
que dizer é fazer, e são os atos expressivos, desse modo, atos do corpo. Dizer
o corpo é fazer o corpo, violência performativa que faz com que quanto
mais sobre ele se fale, menos ele possa existir por si próprio (GIL, 1997).
Seguremos o choro. Há cárceres e há criptas, mas também, sob o solo de
algo organizadamente sagrado, escritas, excriptas por onde um corpo
respira. Um corpo: o que abre, distende, que espaça pés e cabeça, dando-
lhes assim lugar para que um algo se dê: escrever, pensar, esperar (Waits,
Tom): She sends me blue valentines. Acreditamos em poiéticas, em limites
e superfícies: “o futuro, pois, pertence à filofonia” (SATIE, 1992, p. 43).
Acreditamos na voz simultaneamente corpórea e incorporal, no corpo-som
e no corpo-palavra, perdição e reencontro. Acreditamos em grãos sonoros,
nos entremundos sensíveis kleenianos, em grãos de olhar antes dos olhos.
No corpo em obra, na pesquisa enquanto instauração de um possível. Ora,
ser seduzido por um corpo, percorrê-lo, é também participar de sua criação,
operá-lo em arquitetônicas composições palimpsésticas: o jogo polimórfico
entre a escrita original, o corpo figurativo da tradição e o novo. O espaço
palimpsesto: espaço da entre-expressão e coexistência das escritas (COUTO,
1989): complicatio hians. Diríamos: certa arquitetura do próprio corpo, no
recriar-se, portanto – talvez ao modo das orientações colhidas em Umberto
Eco (1997): heurística e suinomancia tópica, o elogio da lupa, do resto,
do riso protopoiético. Arquitetar um corpo: a escrita está na escrita e por
certo a ultrapassa, não só a escrita sobre o corpo, mas efetivamente o traço,
a inscrição efetiva, o autor rasurado, uma vida sobre a qual escrevo e sob
a qual me inscrevo: escrileitura prática. A pesquisa, ela própria o campo
de exercício de uma tópica corpórea, libera-se, pela praxis de um discurso
impuro, do imaginário grosseiro daquele que diz e assina. É o corpo,
portanto, aquilo que fala, que abaixa ou levanta a cabeça, que já explodiu
os tímpanos, já perfurou os olhos, através dos seus estilhaços de linguagem.
É o corpo um isso fibroso, pungido, a policromia e a imprevisibilidade do
casacão de um palhaço (BARTHES, 2003): sonoridade de um vitalismo
próprio, transcriado nas antípodas do discurso obcecado pela finitude, pela
morte, pelo pesadume do sentido.
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corpo de acúmulos superficiais, epidermicamente profundos: corpo riscado
de novo. O construcionismo de pesquisa constitui a articulação dessa
existência rapsódica; afirma, reconhecendo por escrito, a polifonia que
nela se inscreve. Não se trata de rascunhos, de tornar a raspar em busca
de um aperfeiçoamento do corpo e de uma subjetividade deficitária demais
para seguir existindo (LE BRETON, 2003; ANDRIEU, 2004): imperfeito
porque necessariamente incompleto, o corpo está em trânsito, disperso em
meio a pedaços irregulares de teorias, parágrafos, refrões. Palimpsestos, ou
então corporemas e mugshots de poeira: topological slides (não vivemos no
mundo, num mundo, mas em múltiplos polípticos). A pesquisa é, portanto,
estilo, ordem arquitetônica de invenção, criação de topoi, linguagens e
suportes, sendo justamente no seu dimensionamento ético-estético e
construcionista que reside sua honestidade – nós, ladrões honestos, ao
modo bacon-dostoievskiano: o realismo como valor (DOSTOIÉVSKI,
2006; SYLVESTER, 2007). Assim, o corpo: o que senão essa infinidade
de entradas, pulsações, compostas por música, literatura, pintura (vias
tópicas, os caminhos do corpo)? O que senão esse texto estético se
desdobrando entre obras, o tecido de uma contemporaneidade? O corpo:
por golpes de desejo e de necessidade, experimentemos e saibamos criá-
lo, possamos escutá-lo. Ordem de coexistentes ou a coexistência de uma
geometria do intensivo e do orgânico, do caos e da harmonia: é o corpo
essa realidade fibrosa onde o antigo esfola ao ser esfolado, torna-se
persistência e estereofoniza a voz que nele se envolve e diz. Arquitetônicas,
Panóplianatomias: eis o corpo em sua armadura, na atualidade e virtualidade
de seus elementos. Dos gritos, pancadas e granulações do corpo, saibamos:
o inventário não se esgota.
Referências
ANDRIEU, Bernard. A nova filosofia do corpo. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 2004.
AUSTIN, J.L. Quando dizer é fazer. (Tradução Danilo Marcondes de Souza Filhos). Porto
Alegre: Artes Médicas, 1990.
BARTHES, Roland. Image, Music, Text. New York: Hill and Wang, 1977.
_____. Roland Barthes por Roland Barthes. (Tradução Leyla Perrone-Moisés). São Paulo:
Estação Liberdade, 2003.
BARTHES, Roland. O rumor da língua. (Tradução Mario Laranjeira). São Paulo: Martins
Fontes, 2004.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Tradução J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva, 2006.
_____. O óbvio e o obtuso. (Tradução Isabel Pascoal). Lisboa: Edições 70, 2009.
_____. Tópica Estética: Filosofia Música Pintura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
2001.
_____. Deux régimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995. Paris: Minuit, 2003.
_____; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz). Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
_____; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. O ladrão honesto e outras histórias. (Tradução Nina Guerra e Filipe
Guerra). Lisboa: Editorial Presença, 2006.
ECO, Umberto. Como se faz uma tese em ciências humanas. (Tradução Ana Falcão Bastos e
Luís Leitão). Lisboa: Editorial Presença, 2007.
KLEE, Paul. Sobre a arte moderna e outros ensaios. (Tradução Pedro Süssekind). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
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NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. (Tradução Mário da Silva). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
SATIE, Erik. Memórias de um amnésico. (Tradução Alberto Nunes Sampaio). Lisboa: Hiena
Editora, 1992.
SYLVESTER, David. Entrevistas com Francis Bacon. (Tradução Maria Teresa Resende
Costa). São Paulo: Cosac Naify, 2007.
Simone Fogazzi
Paola Zordan
Resumo
Compreendendo a sensação como via da aprendizagem, este trabalho
percorre seu olhar pelos caminhos da Filosofia da Diferença, seus diversos
autores tais como Deleuze, Guattari, Barthes e Corazza, entre outros,
focando na pintura moderna, na arte, nos processos de criação, na docência e
na vida. O trabalho apresenta as ideias que aprender é pensar, que se aprende
pela sensação, que ensinar é criar procedimentos tradutórios e que, para viver
intensamente, é preciso criar uma Vida.
Palavras-chave
Filosofia. Ensino. Sensação. Criação. Arte.
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1. Apresentação ou azul do céu de verão
Há interferências dos e nos planos imanentes das filhas do Caos, as
Caóides: filosofia, arte e ciência. Podem ser interferências extrínsecas,
intrínsecas ou ilocalizáveis, mas sempre interferências que acontecem no
pensamento e que o movem (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 278-279).
No contexto do Projeto Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio a vida
(CORAZZA, 2010/14), que orbita em torno do conceito de escrileitura de
Barthes, um processo “remetido a uma escrita-pela-leitura ou uma leitura-
pela-escrita” (DALAROSA, 2011, p. 15), pode-se pensar nestas zonas de
interferência que movimentam o pensamento na produção de uma escrita
outra, impessoal porque descolada da identidade, intensa por que opera
no tempo intensivo, da arte. Para isso pensou-se em procedimentos que
pudessem induzir o descolarmento necessário da identidade, operando com
intensidades e produzindo singularidades.
Com a linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, da Faculdade
de Educação da UFRGS e com o DIF, esta pesquisa mantém uma relação
com o sentido do termo diferença, que não é o sentido comumente ligado
à palavra, mas o que está ligado à noção de multiplicidade contida em toda
obra de Deleuze, especialmente, sendo: cada um, um novo, em constante
movimento, de maneira que somos múltiplos em nós mesmos.
Com o grupo de orientação M.A.L.H.A., esta pesquisa estabelece uma
relação que engloba a noção de arte (e conceitos orbitais) e de simulação do
fazer artístico ao fazer docente - ao fazer da vida uma obra de arte, tornando
visível a potência do ato criador. 1
O presente texto está calcado na dissertação de mestrado Da Sensação: fragmentos e cromocrônicas de uma
1
professorartista, que apresentou a sensação na arte, na vida e no ensino. Em conformidade às normas desta
publicação foram suprimidas as produções artísticas, tanto as visuais como as textuais, mantendo-se alguns
fragmentos textuais.
A questão que se coloca é se seria possível uma condução da sensibi-
lidade, de forma que o ser pudesse experimentar os diversos níveis, as dife-
rentes modulações da sensação na obra de arte. Se por si só, o ser poderia
participar do acontecimento que é a obra de arte, sem uma mediação que
o conduzisse à percepção.
Questão ética, contrária à moralidade, a condução da sensibilidade é
um processo criativo que encontra analogias no processo criativo artístico
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 136-137). Conduzir a sensibilidade é
o que o professor de arte pode, portanto é poder, é potência própria deste.
Para conduzir a sensibilidade é preciso uma pedagogia da Sensação, é
preciso operar com o incorporal, com o tempo puro, Aion, intensidade.
Uma pedagogia em que a sensação atue, rompendo hábitos cronificados
(Cronos), em que o sentido organize os corpos. É o sentido que vai dar as
formas pedagógicas. A apreensão do mundo é, desta forma, a construção de
sentidos, que direcionam toda a vida e o comportamento.
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Os (múltiplos) indivíduos e os (múltiplos) afetos, não existindo nesta
concepção um Uno e Múltiplos, mas apenas Multiplicidades (ser e extra-
ser). Duas realidades, uma extensa, dos corpos, das formas, e outra intensa,
dos afetos, das intensidades e do vazio, das singularidades (aformais).
Basicamente pode-se dizer, com Ulpiano (2010), que as noções
construídas ligadas ao platonismo são regidas por um filosofia do poder e,
por outro lado, as noções construídas ligadas ao estoicismo são regidas por
uma filosofia da potência. Desta forma, o pensamento guiado pelo poder
está ligado à noção do Uno (e do múltiplo como sua fragmentação) enquanto
o pensamento guiado pela potência está ligado à noção de singularidade,
de multiplicidade, da diferença em si. Há, na primeira, a noção de uma
linguagem articulada com o poder, com o significado das palavras, uma
preocupação em conceituar, medir, delimitar. Já na filosofia da diferença
há uma linguagem fundamentada no sentido, nos signos, na potência das
palavras, há uma preocupação, citando Deleuze, com o “quanto”, o “como”
e o “em que caso” (2006, p. 260).
#sensação# As forças exteriores fazem o corpo vibrar com a sensação. A
vibração sentida ecoa por todo o corpo, percorre fluxos e funda lembranças.
Reminiscências, memórias evocadas pelo corpo que experimenta sensações
semelhantes, trazendo à tona experimentações vividas e tornando-as
presentes, transformando-as na atualidade do instante (BERGSON, 2010,
p. 279-280). Cada sensação experimentada é sempre nova, um novo encontro
e gera mudanças imperceptíveis. Na pintura, as sensações presentes na
obra de arte nos afetam através de traços e cores, formas e fundos, estilos,
tendências, manchas, linhas, composições da matéria e da vida. As ordens
de sensação não operam por oposição, mas por tendência, de forma que
sentimos estas misturadas tendendo ora para uma sensação ligada à carne:
sensação vibrante, desorganizada, intensa, acidentada e problemática; ora
para uma sensação ligada à razão: sensação neutra, organizada, constrita,
extensa, ordenada. Pensando com os termos de O Nascimento da Tragédia,
de Nietzsche, pode-se dizer que quando a sensação se apresenta num
movimento violento, dionisíaco, há uma indiscernibilidade de formas, uma
precisão não-orgânica, ao passo que quando se apresenta num movimento
compassado, apolíneo, há formas precisas.
#arte# Deleuze e Guattari (1997, p. 213) mostram que conservar a
sensação na obra de arte, enquanto durar o material, é o objetivo da arte que
busca capturar a força da Vida. Conservar a vida no sorriso capturado pela
pintura, conservar a potência do sorriso, da carne, do corpo, da paisagem.
Capturar as forças e conservar os conjuntos de sensações (seu corpo, suas
atmosferas) são as ações necessárias para sustentar a obra sem a presença
do artista, para que dure. Um corpo de sensações é uma composição de
afectos e perceptos, que valem por si mesmos, que estouram a percepção e a
afecção, de forma que ganham vida própria.
Os blocos de sensação são seres de sensação, uma vez que conservam a
vida, as forças, no material. As cores são os afectos da pintura, assim como
os traços, a luz, a sombra e os materiais. E os “motivos” são os perfectos, que
escapam da percepção comum, que a estouram, dando-nos uma singular
visão de mundo, uma nova perspectiva (DELEUZE; GUATTARI,1997,
p. 222). Compor um bloco estável, firme, de afectos e perceptos é criar um
ser de sensação, é criar uma obra de arte (DELEUZE; GUATTARI, 1997,
p. 213-214). Na pintura toda a matéria se torna expressiva, na medida que a
cor não é mais colorida, mas colorante, que a linha não delimita, mas pro-
jeta. A arte é uma linguagem que escapa da codificação do signo, criadora
de signos próprios, imateriais, por que não remetem à memória, não tem
explicação (DELEUZE, 2010, p. 37-38). É a linguagem das sensações, que
não tem opinião, que não comunica, mas expressa (DELEUZE;GUATTARI,
1997, p. 228).
#tradução, criação e procedimento# Desviar da memória e da
opinião e ir ao encontro do esquecimento e da sensação (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 218-222) são trajetos necessários aos que querem
traduzir criadoramente as forças que percebem, mesmo que intuitivamente.
Tradução aqui é tida “como um processo criador” (CORAZZA, 2011,
p. 59), que é “obra de gigantes” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 223),
portanto é criação de monumentos de sensações.
Deleuze e Guattari falam que toda obra de arte é um monumento, um
composto de sensações, que não comemora o passado. O ato do monumento
é a fabulação. Ato visionário, diferente da imaginação, a fabulação, segundo
Bergson, é a criação de deuses e mitos, está presente na arte, sendo, também,
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exercida na religião. A fabulação criadora vem a ser uma fábrica de gigantes:
paisagens e personagens, construídos como monumentos, plenos de vida.
Um movimento de saturação do vivido para que a vida, em si, seja sentida.
Porém operar fora da memória leva à loucura, ao caos – então se faz
necessária a têmpera, a exata medida.
Salles (2004) apresenta a ideia de que o ato de criação é um complexo
processo de apropriações, transformações e ajustes – uma trama que engloba
o produto final. Numa arqueologia da criação interessa o movimento
criativo – o ir e vir da mão do criador. Não há insight ou mágica, nem
resultado que não seja fruto de trabalho árduo. Trata-se também de, com
Nietzsche, pensar e operar com o fortalecimento da vontade, ou seja, da
potência, como estratégia para os embates próprios da vida, da crueza da
vida. Podemos dizer que a produção de uma obra vai do caos à carne ou
corpo, ou seja, da imprecisão ao objeto preciso. Um jogo, uma trama, onde
a tendência inclui a matéria, o desejo inclui o meio de expressão e o acaso
não só é constatado – é esperado. O conteúdo da obra se cristaliza durante
o processo, tornando visíveis as forças que a impulsionam, que a moldam.
O conjunto das obras forma a paisagem existencial do criador, são projetos
concretizados. Processos não lineares, labirínticos, que ora completam,
ora confirmam, ora corrigem, ora contradizem – efetuação dos devires do
pensamento, testemunhas da criação única de uma vida. Processos abertos,
indeterminados, indefinidos que carregam uma “sensação de aventura”
(SALLES, 2004, p. 40).
O professor pensa e engendra maneiras de potencializar os encontros, as
aulas. Para que neste encontro de corpos ocorra a aprendizagem. Encontro
que cria subjetividades do espaço “entre” corpos, na sensação. Postura que
seduz, não coage nem convence, mas conduz. Existe uma lógica na sensação
que foi desprestigiada no advento da escolarização, ao se privilegiar o
desenvolvimento da razão no projeto de conhecimento ocidental moderno
(ZORDAN, 2013, p. 165-166), ao se separar mente e corpo no ser humano –
sendo a mente ligada à razão e o corpo às sensações. Na escola, através das
aulas de artes (e suas relações com outras disciplinas), operamos com uma
lógica diferente e necessária à formação integral do educando. Em artes é o
corpo todo que fala, que escreve, que se expressa e comunica. Como docentes
é com o corpo todo que criamos aulas, em um processo criador que se faz,
fazendo. Aulas que não podem romper com o modelo de educação, mas
podem criar rachaduras na estrutura, para entrar o novo na própria escola
e trazer mudanças. Trata-se de criar novos procedimentos, novas maneiras,
novos modos, para experimentar na carne o que se quer ensinar: a pensar.
Uma operação por filamentos que implica observar, analisar e criar novos
pontos de vista sobre a vida. Operar com o movimento do pensamento, com
a criação do novo. Daí a ideia do professor-artista.
Um corpo jamais deixa de ser afetado. Da ordem das paixões pode-se
dizer, com Spinoza, que há duas paixões primárias: alegria e tristeza. Na
alegria, o que nos afeta aumenta nossa potência de agir, expandindo-a. Na
tristeza, ao contrário, nossa potência diminui. Com as artes não é diferente,
porém a violência no pensamento acontece através da sensação. Algo me
toca, me afeta, então algo muda em mim. Não posso voltar a ser o que
era antes, apreendi algo. Não sou mais apenas uma professora, tampouco
artista, sim professorartista. Na escola trata-se de trabalhar com as sensações
e as experimentações, oportunizar a criação de novas afecções e novas
percepções, novos pontos de vista, deslocamentos, em um tempo intensivo,
mesmo que regido pelo cronológico horário escolar.
A arte é poderosa na aprendizagem, não só pelos conhecimentos e
procedimentos precisos de seus territórios, mas por operar transversalmente.
Nos procedimentos de escrileitura (CORAZZA, 2010/14), operando com a
primazia da invenção, com o desrazoável, com o intuitivo, ela permite que
a sensação aja diretamente nos estudantes, nos professores e nas produções
literárias, como se observou nas oficinas do projeto Observatório da Educação,
que a incluíram em seus procedimentos. A Arte provoca brechas nas
estruturas da vida institucionalizada, e por dentro delas é que as provoca,
inserida no cotidiano escolar, entre os horários de aula, nos corredores, salas
e demais espaços.
Pode-se experimentar estes movimentos nas oficinas que utilizaram
o descolarmento como procedimento inventivo e inventado. Para pensar a
criação de outros modos de pensar o já vivido no campo das singularidades,
as professoras pesquisadoras (NODARI e outros, 2012, p. 5), pensaram antes
o procedimento referido. Este procedimento é uma conduta, uma atitude,
32 • 33
uma maneira de potencializar a produção de textos (imagens e palavras).
Um modo de ação para que um escolar descole: das paredes da sala de aula,
das classes e do quadro verde e, assim, deixe de ser escolar, descolarize-se,
crie novos horizontes, ocupe um outro ponto de vista, um outro lugar na
escolarização.
#aprendizagem# Na maior parte do tempo a rotina estabelece uma
confortável situação de repetir o já pensado, de forma que só pensamos
algo novo quando provocados. Pensar não é tornar tudo claro, mas apenas
o suficiente para a ocasião que se apresenta. Desta forma, pensar implica
também em um certo mistério – uma questão de potência do que ainda pode
vir a ser pensado – uma vontade de poder, um movimento infinito que move
o pensamento e a construção de saberes e conhecimento. Uma vontade de
arte, de compor com a matéria.
Aprender é um problema político, uma postura perante a vida, é decifrar
signos e é construir sentidos. Decifrar signos sensíveis e mundanos, que
movimentam o pensamento. E signos da arte, que possibilitam a criação
de pensamento (DELEUZE, 2010, p. 91). Segundo Deleuze, não se sabe
antecipadamente como alguém vai aprender, não há método para aprender,
para passar do não-saber ao saber (2006, p. 237-238). O que é possível, então,
é criar situações que aumentem a potência de aprendizado. Como criar estas
situações? Através de procedimentos abertos, maneiras, estilos de ensinar.
Para um professor de arte é a sedução, através da sensação, que dissolve a
forma rígida do ensino no fluxo da sensação da matéria, da obra de arte, da
experiência de fazer arte. Experimentações de criação de signos artísticos,
assim como a decodificação, sempre provisória, dos signos construídos
por artistas. Neste sentido, a própria semiótica é uma construção, uma
arquitetura de signos, de perceptos, afectos e conceitos (COUTO, 2007,
p. 128).
Decodificar signos é uma operação da razão, da inteligência que
utiliza a lógica e o raciocínio, e que considera os signos como códigos.
Um constructo2, um discernimento linear que leva da abstração ao conceito.
É construção, portanto estabelecimento de referências: eixos e coordenadas. Procura a precisão, busca eliminar o
2
vago e o impreciso.
É buscar o significado da linguagem que se apresenta, considerando as
construções linguísticas. A linguagem é estrutura rígida e constitui-se por
conjuntos referenciais, que homogenizam os dados e produzem narrativas e
mensagens isomórficas. É abstração lógica e estruturada, um código digital.
Um raciocínio que opera com convenção combinatória e que precisa ser
apreendida, relacionado com o sistema filosófico de Aristóteles.
Há, porém, uma lógica presente nos signos da arte que escapa do
imperativo dos signos enquanto códigos. O analógico opera com as relações,
com as similitudes aparentes. É imposição imediata, é presença, é evidência.
Um desvio do simbólico através das conexões de elementos heterogêneos.
Uma modelagem pré-estrutural, que opera nas bordas da lógica. É sensação
colorífica, um aliquid 3, que ziguezagueia no pensamento em busca do sentido.
É apreensão e expressão de singularidades, de enunciados, de intensidades.
Uma transformação do incorporal que opera com a sensibilidade, com a
abertura a domínios sensíveis que escapam da linguagem. A analogia é o
sobrevoo da lógica, uma operação com o assignificante e o não-representa-
tivo, com o sentido das coisas e não com o significado.
Conforme a metafísica, é “algo” no sentido etimológico do termo, quer dizer, é um outro-quê (ali-quid) em relação
3
aos demais quê. Busca semelhanças com outras coisas para apresentar a noção, o sentido.
34 • 35
transcendental; a expressão, onde o sentido é primeiro e os três elementos
da representação - significação, identidade, organismo - sempre provisórios;
a biografemática, como possibilidade de “descolar” da representação,
em direção ao sentido; a criação de procedimentos, como possibilidade
de reinvenção da docência, que circule entre a apreciação crítica e o fazer
responsável, e fazer da vida mesma (da autora) uma obra de arte.
BERGSON, Henri. Matéria e Memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito.
(Tradução Paulo Neves). 4ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
COUTO S. C., Carlos M. Tópica Estética: filosofia, música, pintura. Lisboa: Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2001.
CORAZZA, Sandra. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In: HEUSER,
Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá, EdUFMT,
2011. (Coleção Escrileituras)
36 • 37
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2007.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? 2ª edição. Rio de Janeiro: Ed.
34, 1997.
______. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.1. (Tradução Aurélio Guerra Neto e Celia
Pinto Costa). São Paulo: Ed.34, 1995.
PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da flausura, loucura e desrazão. Apres.
Jurandir Freire Costa. São Paulo: Autêntica, 2000.
SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: processo de criação artística. São Paulo,
FAPESP: Annablume, 2004.
Resumo
A dissertação apresenta rastros de um percurso filosófico e suas crises. Crises
entendidas no sentido de um gesto criador, que leva o filósofo, no caso Henri
Bergson, a passar de um conceito a outro. Da memória à fabulação é todo
um plano de pensamento original que se insinua, suscitando uma nova
modalidade de cálculo dos problemas filosóficos. Situada diante deste novo
cálculo, a escrita da dissertação assume como objetivo tensionar os limites
éticos e estéticos da discursividade atual do ensino de história. Do ponto
de vista de um virtualismo bergsoniano, postula um ensino menos afeito às
estruturas significantes atuais e mais próximo de uma política expressiva
aberta à expansão dos limites da significação.
Palavras-chave
Henri Bergson. Filosofia da Diferença. Memória. Fabulação. Ensino de
História
38 • 39
I. Da problemática e da estratégia
40 • 41
impulsionaram, mais ou menos explicitamente, a renovação dos estudos
bergsonianos no final do século XX e início do XXI. Em primeiro lugar,
a influência da leitura deleuziana, apresentada no Bergsonismo (1966), mas
já esboçada em artigos anteriores, escritos ainda na década de 1950, onde
Deleuze apresentava o pensamento de Bergson como uma “ontologia
da diferença” (2006). Como relembra recentemente François Dosse,
Deleuze formulava sua leitura extremamente original da intuição filosófica
bergsoniana a partir dos conceitos de “duração”, “memória” e “impulso
vital” num tom intencionalmente provocativo, cujo escopo era romper
com as interpretações de caráter ideológico e psicologista sobre a filosofia
de Bergson que dominavam o cenário intelectual do pós-guerra na Europa
ocidental (2010, p. 120).
O outro marco ao qual é importante fazer uma referência em especial
é a publicação da tese de Bento Prado Jr. no Brasil. Publicada tardiamente
em 1989,4 a tese originou um livro chamado “Presença e campo transcendental:
consciência e negatividade na filosofia de Bergson”. Ali, o filósofo brasileiro
demonstrava como de um lado a partir da crítica radical à “infra-estrutura
imaginária da ideia de Nada”, e de outro a partir do conceito de “imagem”
entendido como campo transcendental pré-subjetivo, Bergson fundava uma
metafísica renovada, distante, ao mesmo tempo, da representância platônica, do
cogito cartesiano e dos limites da estética transcendental kantiana. O método
intuitivo poderia emergir então como o “fio metódico” (DELEUZE, 2012,
p. 10), ou como ponto de inflexão “noemático” (SANTOS PINTO, 2010,
p. 11), capaz de tornar pensável uma figura estranha e paradoxal na história
da filosofia: uma metafísica baseada na própria experiência real. A noção de
“campo transcendental das imagens” permitia descolar o pensamento
bergsoniano das filosofias do sujeito, demarcando suas diferenças e
aproximações especialmente em relação à fenomenologia, uma vez que na
leitura de Prado Jr. a experiência não é mais o horizonte de uma subjetividade
constituinte e transcendental, mas o próprio campo de indeterminação a
A tese é redigida e defendida na França no início da década de 1960. Em virtude do exílio sofrido pelo autor no
4
período da ditadura civil-militar brasileira, ela só é publicada e difundida por aqui em 1989 na forma de livro. O
mais interessante é que em 2002 o livro seria traduzido e publicado na França, despertando em território francês
um renovado interesse em torno da filosofia de Bergson.
partir do qual uma subjetividade se desprende como introdução de novi-
dade (PRADO JR., 1989, p. 145-146).
Partindo especialmente das intuições desenvolvidas por esses inter-
cessores, radicalizamos a potência silenciosa da memória ontológica
bergsoniana de maneira a apresentar-lhe como uma hipermemória poética
capaz de guardar a presença de um terceiro que se oferece por diferenciação.
Considerando a problemática da passagem entre a segunda e a terceira
síntese do tempo (DELEUZE, 1988, p. 102-128), ligamos a memória ao
impulso vital, de maneira a encontrar uma solução de continuidade entre
a memória absoluta e o eterno retorno da diferença na própria obra de
Bergson, evidenciado especialmente nos conceitos de criação e impulso
vital presentes n`A Evolução criadora. Desse modo, encontramos em Bergson
não apenas o inventor do “virtual”, mas um verdadeiro “virtualista”, como
queria Pelbart (2011, p. 74). Não satisfeitos com essa pequena engenharia,
surfamos a onda de Deleuze, e fizemos da função fabuladora bergsoniana o
meio expressivo através do qual o impulso vital obriga a memória ontológica
a romper a mudez essencial e diferenciar-se por literalização. A função
fabuladora encerrava a passagem entre os conceitos de duração, memória
e impulso vital que caracterizaram a trajetória dos principais escritos
bergsonianos.
Da duração à memória; da memória ao impulso vital; do impulso vital à
fabulação bergsoniana é todo um novo cálculo dos problemas filosóficos que
se insinua. A introdução, ou intromissão do “terceiro” funciona ao modo
de uma artimanha que sabota os paralelismos clássicos e os jogos duais
travados pela tradição filosófica entre o empirismo e a metafísica. É comum
destacar que a forma encontrada pelo filósofo para escapar ao paralelismo
da tradição resultou numa espécie de monismo metafísico. Em todo caso,
nos parece que o monismo bergsoniano se torna efetivamente uma aposta
filosófica interessante ao revelar sua qualidade de ontologia diferencial; de
recusa do modelo de pensamento movido unicamente pelas multiplicidades
quantitativas – pelo problema do “mais” e do “menos” que abriga em suas
entranhas uma noção inofensiva de alteridade domesticada segundo os
termos de um pluralismo formal. O terceiro que Bergson nos oferece não
é semelhante a nada. Múltiplo selvagem. A analogia definitivamente não é
42 • 43
o seu negócio. Seu estatuto aproximado seria o de um “numeral obscuro”
(LAPOUJADE, 2011, p. 23-46). O outro sem o mesmo. Estranheza que
vaga sem referência imaginária a uma instância unificadora. Uma espécie
de cidadela onde todos são estrangeiros e ninguém pode afirmar algo do
tipo: “Ei, você pertence ao...”.
44 • 45
uma concepção de experiência do tempo concebida pela racionalidade
instrumental sob o signo da dívida do sentido. Categoria operatória
fundamental nas discussões de ordem epistemológica sobre a finalidade
do ensino de história nos dias correntes, a experiência temporal aparece
na dissertação justamente como aquilo que precisa ser arrancado dos
postulados negativos da dívida e do fatalismo metafísico que acompanha
especialmente as soluções de ordem prática e teórica apontadas pela
aparelhagem conceitual da hermenêutica fenomenológica. O tempo aparece
ali sempre como o vulto a ser domesticado ou interpretado pelas grades
metódicas da racionalidade. Nada escapa. Não há excesso. A criatura que
senta nos bancos escolares é por princípio um ser endividado com o sentido.
Nesse caso, o que se revela ao longo do trabalho é uma incompatibilidade
flagrante entre a experiência do tempo concebida pela hermenêutica da
consciência histórica5 e a “duração” bergsoniana. De um lado, a experiência
temporal é o resíduo que deve ser reduzido pela analítica. De outro, ela
aparece como um potencial virtual de significação. A tensão filosófica entre
aquilo que poderíamos chamar de dois métodos distintos de “administração
da alteridade”, como na feliz expressão de Eduardo Viveiros de Castro, foi o
que permitiu visualizar a espessura das “muralhas” erguidas pelo “inimigo”
para em seguida procurar se situar no “interior da exterioridade que lhe é
imanente” (2013, p. 19).
Procurando colocar-se, ao modo bergsoniano, num ponto de obser-
vação anterior à fratura ontológica operada pela linguagem representativa,
postula-se uma aproximação entre a noção de experiência temporal, o
“princípio de criação” e a expressividade radical de um “pensamento do
exterior”.6 A significação ontológica da memória e o processo fabulatório de
criação associam-se assim a um olhar para o ensino de história que se descola
dos mecanismos de validação baseados no juízo exterior e nas estruturas
5
Para uma discussão sobre os fundamentos da categoria geral da “consciência histórica” como instrumental de
pesquisa na área do ensino de história, ver em especial a vasta recepção dos estudos de Jorn Rusen no Brasil.
6
O tempo da “duração” aparece em Bergson como uma concepção de experiência temporal capaz de ensejar uma
articulação não-negativada entre a experiência e o “princípio de criação”. Para conceber o tempo da duração
enquanto positividade de expressão, ou virtualidade de criação, é preciso ter em mente uma noção de experiência
anterior ao divórcio operado pelo racionalismo moderno entre a palavra inspirada e a palavra reflexiva, entre a
“experiência autêntica” e a “experiência estética”.
imaginárias da dívida do sentido e procura afirmar-se como singularidade
expressiva onde o que importa não é a conformação entre o ensino e uma
questão de ordem atual, mas a própria manutenção da inconformidade e do
potencial desprendido de uma força questionante; onde questionar, como
queria Blanchot, “é buscar, e buscar é buscar radicalmente, ir ao fundo,
sondar, trabalhar o fundo e, finalmente, arrancar. Esse arrancar de raiz é o
trabalho da questão. Trabalho do tempo. O tempo se busca e se experimenta
na dignidade da questão” (2010, p. 42).
46 • 47
blema, outro cálculo, aquele capaz de forçar a imaginação a emitir
significações novas, imprevisíveis, de privilegiar, na relação entre o tempo
e o significado, não o conjunto de significados atribuídos, mas a força do
tempo se repetindo como questão. Ao final do trabalho, a imagem que
emerge é a de uma fundamentação teórica que não se contenta em justificar
a importância do ensino de história somente em função da utilidade da
época, mas em função do inumerável conjunto de surpresas guardadas pelo
passado e pela imprevisível pressão que elas exercem sobre a imaginação
dos presentes que não deixam de passar.
A questão não pode ser um pedido de trégua, nem uma carta de
intenções que um general entrega ao adversário para assegurar os termos do
interregno acertado. Mesmo que se trate de um general de biblioteca, a questão
se apresenta como um trabalho de escavação. Questão incontornável, que,
ao se colocar, faz tudo desaparecer. Suspende, congela, embaralha as linhas
entre os ditos e as posições. Torna e retorna. Repete e difere. Carapaça valente
de uma forma em fuga e decomposição. Carrega em sua força questionante
um “tudo mudou”. Decompõe regimes de signos num deslocamento
de pontos brilhantes, como se fogos-fátuos ardessem lentamente para
em seguida se apagar em cadeias abertas de significação que fazem tudo
mudar ao mesmo tempo em que nada muda. Pois as formas fraturam,
desvanecem, dançam, alteram, mas o tempo se repete como questão. Ensinar
o tempo. Como ensinar aquilo que só pode aparecer como signo da própria
questão? É que ensinar história pode muito bem ser um exercício menos
concentrado na obsessiva atribuição da significação adequada à experiência
do tempo, e mais no processo experimental em torno do estado espiralado
da espera que caracteriza o eterno retorno da questão.
Referências
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Coimbra: Editora Almedina, 2005.
_____. A evolução criadora. (Tradução Adolfo Casais Monteiro). São Paulo: Ed. UNESP,
2010.
BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: a palavra plural. Vol.1. (Tradução Aurélio
Guerra Neto). São Paulo: Escuta, 2010.
CORAZZA, Sandra. Didaticário de criação: aula cheia. Porto Alegre: UFRGS. (Coleção
Escrileituras)
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio
de Janeiro: Graal, 1988.
_____. A ilha deserta: e outros textos. Edição preparada por David Lapoujade; organização
da edição brasileira e revisão técnica Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006.
_____. Bergsonismo. (Tradução Luiz. B. L. Orlandi) (2ª Edição). São Paulo: Editora 34,
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DOSSE, François. Gilles Deleuze e Félix Guattari: biografia cruzada. (Tradução Fatima
Murad). Porto Alegre: Artmed, 2010.
FONSECA. Thais Nívia de Lima e. História & ensino de História. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.
JULIA, Dominique. A cultura escolar como objeto histórico. (Tradução Gizele de Souza).
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LAPOUJADE, David. Potencias Del tiempo: versiones de Bergson. 1ª Ed. Buenos Aires:
Cactus, 2011.
PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.
48 • 49
SANTOS PINTO, Tarcísio Jorge. O método da intuição em Bergson e sua dimensão ética e
pedagógica. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
SEFFNER, Fernando. “Comparar a aula de história com ela mesma: valorizar o que acontece
e resistir à tentação do juízo exterior (ou uma coisa é uma coisa outra coisa é outra coisa)”.
Revista Historiae. Rio Grande, v.3, nº1, p. 121-134, 2012.
Resumo
O conteúdo destas linhas é um extrato da dissertação de mestrado “Bifurcações
de Hermes: uma epistemologia do efêmero” defendida em março de 2014, no
Programa de pós graduação em estudos de contemporânea, da Universidade
Federal de Mato Grosso. Produzida no âmbito da Interdisciplinaridade,
a pesquisa discute o próprio movimento interdisciplinar quantos aos seus
aspectos epistêmico e metodológico, motivada, especialmente, pela alteração
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que prevê a implantação
desta modalidade de produção de conhecimento como parâmetro curricular
a ser adotado pelas instituições de Ensino Básico até o ano de 2020. Foi
escrita quando bolsista de mestrado do projeto Escrileituras: um modo de “ler-
escrever” em meio à vida, financiado pela CAPES pelo Edital Observatório da
Educação, 2010.
Palavras-chave
Educação. Interdisciplinaridade. Tradução. Êxodo. Bifurcação
50 • 51
Retalhos
Aliado à filosofia de Michel Serres e de seus personagens Arlequim
e Hermes, a dissertação de mestrado “Bifurcações de Hermes: uma
epistemologia do efêmero” encontrou seu campo experimental em oficinas
de formação de professores, nas quais se pretendeu criar espaços para
experimentações no uso das linguagens e na produção de saberes outros, que,
enquanto processos de subjetivação, transversalizam os conteúdos escolares.
As oficinas produziram a dissertação na medida mesma em que em face
dela foram concebidas. Um processo que pensa a si mesmo na medida em
que se produz. Errantes por excelência, a dissertação e as oficinas, através de
relações entrópicas, como Arlequim, aportaram.
As vestes de Arlequim denunciam que ele vem de muito longe, que
viveu rigores, intempéries e delícias. Feita de tiras com formas irregulares,
mal costuradas, com cores dispostas em desarmonia, repleta de nós e
laços arranjados segundo as circunstâncias e a necessidade, a roupa puída,
dilacerada transcende o viajante e, magnífica, revela o mapa do mundo que
ele percorreu.
Talvez o comediante não saiba oferecer uma definição precisa a cada
um dos mundos pelos quais passou, mas certamente sabe dizer como são,
pois lá seu corpo experimentou vertigens, acidentes e contingências, seus
sentidos provaram sabores, perfumes e consistências que vão desde o firme
ao viscoso, aprendeu línguas e hábitos, mas também deixou algo de si,
dispersou-se pelas veredas que visitou, para retornar mestiço.
Compósitas, tal qual o casaco de Arlequim, as oficinas Bifurcações na
formação de professores7 foram realizadas com o objetivo de constituir um
campo empírico que tenta tornar operatória a filosofia da fluidez e das
passagens. Esfarrapada, ela relaciona projetos, instituições, individuações,
Oficina de formação de professores que organizei e apliquei – com o apoio da linha de pesquisa experimentações
7
em teorias e políticas educacionais, do grupo de Estudos de Filosofia e Formação, do Instituto de Educação desta
universidade – nos dias 23 e 25 de setembro de 2013, durante o Circuito Cultural Setembro Freire. A oficina
inscreveu-se no território interdisciplinar ao articular poesia, dança contemporânea e esta pesquisa acadêmico-
científica. Consistiu na realização de uma leitura corporal do poema gOOl, tema do evento no ano de 2013. Os
professores participantes exercem suas atividades de docência nas Escolas Paciana Torres de Santana e Dom
José do Despraiado, em Cuiabá. A partir das imagens registradas e da pesquisa realizada com esta oficina, foi
produzido também um documentário chamado Bifurcações.
interesses e afetos de proveniências diversas. São estes tantos retalhos que
conferem potência a esta experimentação e encorajam-me a ensaiá-la como
um manto portulano análogo ao do rei da Lua8.
As oficinas-manto pretenderam-se bifurcações e, como tal, operaram
através de relações, estabelecendo conexões entre elementos9 (sejam eles
teóricos ou institucionais), alinhavando farrapos para compor um pano,
que ao final, creio, deixa-nos ver, um esboço topológico e geográfico de tais
encontros. Dentre os agenciadores institucionais encontram-se:
R1: O projeto interinstitucional Escrileituras: um modo de “ler-escrever”
em meio à vida (Edital CAPES/INEP 038/2010), cuja coordenação geral é
realizada pela Prof. Dra. Sandra Mara Corazza, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Em sentido pragmático o projeto atua na busca de
alternativas para a compreensão e superação dos dados apontados pelo
IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), especialmente
aqueles que sinalizam as dificuldades no uso das linguagens.
Aliando a Filosofia da Diferença à educação e em sistemas cooperativos
entre Escolas Estaduais e Municipais e as Universidades: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), visa criar espaços para
experimentações que evidenciem as singularidades, dando lugar ao livre
exercício do pensamento, o que pode desencadear, através da experiência
do inusitado, processos de reinterpretação, de resignificação e de criação de
mundo.
R2: O grupo de Estudos de Filosofia e Formação (EFF, do Instituto de
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), coordenado
pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro) – que neste trabalho comparece
também na condição de “núcleo UFMT”, integrante do projeto acima. Este
percurso investigativo integra a pesquisa realizada pelo Projeto Escrileituras
no “núcleo UFMT” ao inscrever-se entre as atividades de uma das
8
Modo como Michel Serres operacionaliza o personagem da commedia Dell’art na obra O terceiro instruído.
Instituto Piaget, 1993. p. 12.
9
A cada elemento que integra esta composição apresentarei precedido da letra “R” – em alusão à metáfora do
“retalho” –, seguido do número que ocupa na ordem de enumeração.
52 • 53
subdivisões do grupo EFF: a linha de pesquisa “Experimentações em
teorias e políticas educacionais”, cujo trabalho, no ano de 2013, esteve
voltado para a formação de professores.
R3: As Escolas Estaduais Professora Paciana Torres de Santana e Dom
José do Despraiado, que são as duas escolas de ensino básico parceiras
do Projeto Escrileituras na cidade de Cuiabá. Em um regime de parceria
e cooperação entre as Escolas e a Universidade, desde 2010 vem sendo
realizadas atividades que visam o desenvolvimento da educação infantil
e o aprimoramento dos docentes, dos alunos das licenciaturas e dos
pesquisadores.
R4: A Casa de Cultura Silva Freire, organizadora do “Circuito cultural
Setembro Freire”, evento que oportunizou a experimentação da oficina
“Bifurcações”. Evento este realizado em memória do poeta, jurista, ativista
político e professor fundador da Universidade Federal de Mato Grosso,
Benedito Sant’Anna Silva Freire, cujas contribuições excedem o âmbito
regional ao desdobrarem-se em um dos movimentos literários mais
importantes do país, o Intensivismo10.
R5: O Instituto Cultural Voo Livre fundado pelo professor e coreógrafo
Paulo Medina (in memorian), precursor na inserção da dança de expressão
contemporânea no Estado de Mato Grosso, compareceu nesta atividade
acadêmico-pedagógico-cultural através da participação do professor e
coreógrafo Claudiano Crhist, responsável pelo trabalho corporal realizado
com os professores das Escolas citadas.
Via
Mais do que uma moda pedagógica ou um procedimento didático a
Interdisciplinaridade indica uma transformação epistemológica em curso
O Intensivismo é um movimento literário inaugurado em Cuiabá pelo poeta Wladimir Dias-Pino na década de
10
50 do século XX, que tem como principal característica o simbolismo duplo, isto é, outras formas gráficas são
exploradas além da palavra. A manipulação da linguagem, a valorização da visualidade poética, sugestão de
um novo procedimento de leitura, o caráter de experimentação e a negação da tradição por meio da invenção
representam essa nova manifestação literária. Esse movimento possibilita o Concretismo que privilegia o processo
concreto na elaboração do poema, caracteriza-se pela negação de elementos considerados indispensáveis para a
construção literária brasileira, por exemplo, a cultura rural, o intimismo subjetivista; procura uma comunicação
rápida, em formas e estruturas, não em conteúdos. É um movimento de vanguarda, no qual se separa língua
de linguagem, experimentam-se outras formas poéticas e o conteúdo abre espaço para as formas gráficas,
possibilitando a desmontagem dos poemas.
que vem acontecendo à nossa revelia. Independe de sabermos ou não
o que ela é ou se sabemos ou não como produzi-la, seu surgimento ocorre
em virtude das necessidades epistêmicas relacionadas à natureza mesma
dos problemas a serem respondidos pelas áreas do conhecimento. Onto-
logicamente a Interdisciplinaridade liga-se aos processos investigativos que
exigem um olhar transversal, capaz de responder àquilo que o olhar do
observador disciplinar não é capaz de enxergar.
Inserida na LDB11 como perspectiva pedagógica a ser adotada na
estruturação dos projetos político pedagógicos das unidades escolares
responsáveis pela etapa da Educação Básica e no cenário da formação
superior nacional mediante a criação cursos de graduação e pós graduação,
a Interdisciplinaridade passa a ocupar um papel relevante no Sistema
Educacional Brasileiro. Ao que cumpre indagar sobre as condições nas
quais as atividades interdisciplinares vêm se desenvolvendo nas instituições
de ensino.
Bifurcação
Nesse sentido, a dissertação buscou explorar dois aspectos da inserção
da Interdisciplinaridade nas práticas pedagógicas: o primeiro refere-se
a abordagens que reivindicam para a Interdisciplinaridade o estatuto de
paradigma epistemológico contemporâneo12; o segundo diz respeito aos
procedimentos interdisciplinares, já que parece um tanto inadequado
pensar em uma ‘metodologia’ interdisciplinar, sendo que Interdisciplinaridade,
mais propriamente, engendra modos de ampliação dos territórios de
significação.
Excurso
A interdisciplinaridade, nesta perspectiva, comparece como forma de
ampliar o território das coisas cognoscíveis através da prática tradutória
entre os domínios do conhecimento. Cada disciplina tem suas dinâmicas
próprias, a atividade interdisciplinar, tal como os processos de tradução,
Esta discussão encontra-se contemplada no texto original da dissertação. No presente texto priorizo o debate
12
54 • 55
“encontra-se fundada em incompreensões parciais”. Assim como ocorre
com as traduções das línguas naturais, a incompreensão dá lugar à invenção.
Ao que se pode afirmar que o pensamento interdisciplinar fundamenta-se
pela “heurística do erro” e se promove a partir da “fecundidade do desvio”
(POMBO, 2004, p. 156).
Pressupõe criação de relações, a construção de passagens entre as áreas
do saber, as quais são constituídas num plano temporal em que diferem por
ordem topológica e não geométrica, ou seja, se numa concepção linear de
tempo procede-se de acordo com a geometria métrica calculando distâncias
bem definidas e estáveis, numa concepção de tempo amarrotado – oferecida
pelo filósofo e matemático Michel Serres – opera-se pela topologia, des-
cobrindo-se aproximações e distanciamentos, que a princípio parecem
arbitrários.
Por analogia podemos pensar no tempo como se fosse um lenço
que, ao passarmos a ferro torna-se uma superfície lisa na qual podemos,
geometricamente, determinar as distâncias e proximidades, ao passo que
se o amarrotarmos e o colocarmos no bolso, subitamente, os pontos mais
afastados podem ficar muito próximos ou até mesmo sobrepostos, e, no
caso de rasgarmos esse lenço, dois pontos próximos podem ficar topolo-
gicamente muito afastados.
No contexto interdisciplinar, amarrotar o lenço é, por assim dizer, a
criação de uma bifurcação entre disciplinas distintas. Para Serres (1997) a
produção de conhecimento baseia-se nessa criação de passagens entre as
áreas do saber. Para explicar o modo como se dão tais passagens, o autor
utiliza da metáfora de Hermes, o deus da mitologia grega responsável por
realizar a interlocução entre os deuses e os homens; também conhecido
como padroeiro dos viajantes e patrono da comunicação, o deus se desloca
tendo asas nos pés.
O operador de aproximações Hermes assume a figura do mediador
que passeia no tempo dobrado estabelecendo conexões. Todavia, seus
procedimentos não são objetos de conhecimento, mas de imaginação. Não
sabemos como Hermes viaja, é necessário criar a viagem. Sobre isso o autor
acrescenta:
É preciso conceber como é que Hermes voa e se desloca [...] como viajam
os anjos [...] descrever os espaços que se situam entre coisas já balizadas [...]
Entre, uma preposição de importância capital. [...] De resto, acreditamos
sempre que o espaço da enciclopédia ou do conhecimento é plano e orde-
nado: quem nos disse isso? (SERRES, 1997, p. 93-4)
56 • 57
tradicional, esta seria uma relação estável produzida em espaços, homogê-
neos, geometricamente mensuráveis. Enquanto que, nesta perspectiva,
as ligações se dão em meios fluidos e caóticos, que se assemelham com
a realidade.
Podemos imaginar o método como uma via reta, que rapidamente e
em segurança, conduz o viajante ao seu destino; através de uma sequência
de encadeamentos estruturada pela relação de ordem, liberta-o dos perigos
e das estranhezas do caminho. Eis a via cartesiana em suas exigências
elementares: não compreender nada além do que se apresenta de forma
clara e distinta à mente; dividir as dificuldades a fim de compreendê-las;
obedecer à ordem do mais simples ao mais complexo.
A via reta e mais curta chega “ao melhor resultado pelos menores
custos”, máxima que evidencia o triunfo da idade clássica através da es-
tratégia direta tornada razão. Desde então, em todos os tempos e circuns-
tâncias, a razão associada à eficácia torna-se norma, a “moral é transferida
para o conhecimento” para as vias do racional, onde a perturbação e a
flutuação são reduzidas a zero, pois provocam variações neste caminho
que a cultura ocidental nos fez entender como necessário.
Exodo
Tendo a errância como método, a oficina Bifurcações na formação de
professores buscou explorar este espaço intervalar das disciplinas, que é, em
ultima instância um interstício entre as linguagens que as promovem. Assim,
propõe aos professores das Escolas Paciana Torres de Santana e Dom José
do Despraiado, a experimentação de uma leitura corporal do poema Gool,
do poeta Silva Freire.
Espaço escolar e acadêmico: salas com ventiladores ou ares condicio-
nados, quadro negro, giz, datashow, papel, caneta, borracha, cadernos,
livros, post-it, pen drive, e corpos, corpos vertical e rigidamente postos em
carteiras enfileiradas; quiçá uma transgressão: um semicírculo, um palco
italiano onde um mestre professor atua revelando, transmitindo as regras
58 • 59
gerais do saber. Nada disso! A primeira bifurcação é no espaço, a segunda
é nos corpos. Numa encruzilhada da Praça da Mandioca13 o terreno nu
que se abrigava do sol escaldante sob a sombra da tenda branca. Pés
descalços, esparramados no chão procuram, desesperadamente, enraizar-
se para garantir um pouco de estabilidade a corpos que, displicentes e
temerosos, experimentam a vertigem de movimentos pendulares.
Ruídos da rua, música, o falatório à boca miúda do povo. O professor
dançarino lança o convite para o jogo-brinquedo do reconhecimento
dos movimentos banais e cotidianos como possibilidades de um corpo
que experimenta, imita e aprende. Conscientização corporal dir-se-ia
tecnicamente, mas é preferível dizer: condição mesma de produção do
conhecimento objetivo e intersubjetivo. Não se trata de tomar o sensua-
lismo como meio para a elaboração intelectual, mas da afirmação de
que o próprio intelecto é corpo.
Da clausura das salas aos fluxos da rua, dos sistemas fechados aos
sistemas abertos, os corpos oscilam em um ensaio coletivo de ler e esrever
um poema com o corpo. Um quase-objeto flutua entre eles extrapolando
as fronteiras móveis do possível. O território das coisas cognoscíveis
é ampliado quando o passe da bola imaginária cria relações entre “o de
história” e “o de biologia”.
Na corrida, no chute, no compasso da performance, os conteúdos
fósseis e rijos dão lugar à flexibilidade dos músculos que se esticam para
apreender o volátil. Os novos corpos, como avatares, experimentam a
plasticidade da inteligência. Arriscam-se na invenção de reler um poema
com a mão, com o pé, cabeceando-o. Em posição fetal, a defesa. Gritos
de gOOl. Braços e peitos abertos. Abraços. Comemoração.
Processo mimético, repetição, coreografia. Dança para dançar poesia.
Na roda as mãos dadas, mão soltas, pé direito batendo no chão, marcação,
quase transe. “... e sete e oito... de novo”14. É preciso associar coordenação
e memória para encadear os movimentos. Dúvidas. Recomeços, muitos!
13
Praça tradicional do centro histórico de Cuiabá, onde se encontra o terreno da casa em que cresceu o poeta Silva
Freire, local no qual será construída a Casa de Cultura Silva Freire.
14
No jogo de linguagem das aulas de dança esta expressão indica o comando do professor para que o exercício seja
iniciado ou retomado.
Dançarinos sempre erram e repetem. Da falha na repetição, a fala que
tudo resume: “Do erro veio a ideia.”15
Entre
Preposição essencial, cuja função é ligar. Mas ligar o quê? Na língua
portuguesa liga substantivos entre si, mas também estes a verbos,
adjetivos, advérbios e assim por diante. Neste trabalho denota os espaços
interdisciplinares. É pura potencialidade, na qual não se opera senão através
da criação. Mas, como inventar a viagem de Hermes? Como é que se opera
uma bifurcação na formação de professores? Ainda, como se faz isso
aproximando poesia, dança de expressão contemporânea, filosofia e uma
dissertação de mestrado?
Parece-me que pela via que chega ao exterior da via. Ao propor a
produção de uma leitura corporal do poema, num território não acadêmico
e não escolar, isto é, afastado da verticalidade, da rigidez e das disciplinas,
a oficina Bifurcações na formação de professores buscou explorar a fluidez do
pensamento e do corpo, a elaboração de um discurso científico e corte de
epistemologia, fundado na criação de estabilidades singulares em meio aos
fluxos gerais.
Consistiu em uma tentativa de criar conexões, passagens ‘entre’
as disciplinas, mas acima de tudo, foi um esforço de romper com o
modelo canônico dos sistemas fechados das escolas e Universidades,
onde, conjuntamente, professores e alunos produzem violentamente o
desaparecimento do pensamento corporal ao tomarem os corpos como
condutores de cinco canais periféricos. Por que esse horror à carne?
A Oficina Bifurcações na formação de professores foi um exercício
interdisciplinar, uma tentativa de vertigem. Partiu do pressuposto de que o
conhecimento é aumentado na medida em que ensinamos e aprendemos,
de que é acima de tudo experimentação muscular e amorosa. Apenas um
sujeito epistêmico com pensamento ósseo, cardiovascular, passional, é
capaz de ler um poema com o corpo.
Frase dita pela professora ao errar a sequencia de passos criados durante a oficina. A partir do erro da professora
15
60 • 61
Referências
LUCRÉCIO. Da natureza. In: Antologia de textos – Epicuro. Da natureza – Tito Lucécio Caro.
Da república – Marco Túlio Tito. Consolação a minha mãe Hélvia; Da tranqüilidade da alma;
Medéia; Apocoloquintose do divino Caludio – Lucio Aneu Sêneca. Meditações- Marco Aurélio.
(Tradução Agostinho Silva), São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção os Pensadores)
RAMOS, I. N. A. Silva Freire: Um garimpeiro de palavras. In: Revista Crioula, nº 02, nov. 2007.
Disponível em: www.revistas.usp.br/crioula/article/view/53582. Acesso em: 06/08/2013.
SERRES, M. Hermes: uma filosofia das ciências. (Tradução Andréa Daher. Org. Roberto
Machado e Sophie Poirot-Delpech). Rio de Janeiro: Graal, 1990.
_____. As origens da geometria. (Tradução Ana Simões e Maria da Graça Pinhão). Lisboa:
Terramar, 1997.
_____. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo – conversas com Latour. (Tradução
Serafim Ferreira e João Vaz). Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
_____. O terceiro instruído. (Tradução Serafim Ferreira). Lisboa: Instituto Piaget, 1993.
_____. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. (Tradução Eloá Jacobina). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
_____. Variações sobre o corpo. (Tradução Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco).
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
Setembro Freire gOOl 2013: Catálogo./ Casa de Cultura Silva Freire. Cuiabá: Entrelinhas, 2013.
Resumo
A dissertação ocupou-se da ética dos devires presente nas obras de Gilles
Deleuze e Félix Guattari, a qual foi tematizada e problematizada com
professores e estudantes participantes do Projeto IF-Sophia, promovido pelo
Projeto Escrileituras, pelo Instituto Federal do Paraná – Campus Umuarama
e pelo Núcleo Regional de Educação de Umuarama, no qual o seu autor
é coordenador das áreas de Filosofia e Sociologia. Organizada em três
capítulos, primeiro a dissertação apresenta a Filosofia Prática produzida
pelos filósofos e enfatiza os pares conceituais nomadismo e sedentarismo,
desterritorialização e território, molecular e molar; em seguida recorre
aos procedimentos artísticos de Carmelo Bene e de Franz Kafka, os quais
funcionam como ferramentas para a criação do conceito de “menor”,
imprescindível para a invenção do conceito de devir, uma vez que todo devir é
menor; por fim, apresenta uma tipologia dos devires que afirma a imanência
da existência e defende que os tipos escolhidos possibilitam a efetivação de
uma ética dos devires, quais sejam: devir-mulher, devir-criança, devir-animal,
devir-revolucionário e devir-imperceptível.
Palavras-chave
Ética. Devir. Menor. Deleuze. Guattari.
62 • 63
Uma entrada pelo meio, ou, o que pode uma escrileitura?
64 • 65
tante para provocar o seu pensamento e chegar a pensar. Especialmente,
percebemos que para escrever é preciso criar um ethos constituído de hábitos
que não espantem os devires (DELEUZE, 2001a; DELEUZE; PARNET,
1998). Por essa razão, consideramos importante apresentarmos uma versão
da história de duas vidas que se encontraram e que expressa o ethos comum
criado por Deleuze e Guattari o qual, em boa medida, pareceu-nos ter
influenciado a produção de uma ética dos devires vivenciada, também, por
meio da escrileitura feita a quatro mãos.
Um & Outro.
Sr. D.
Sr. G.
D&G.
Um.
Sr. D.: professor na Universidade de Lyon, preparava e ensaiava suas
aulas intensamente até o ponto em que estava impregnado do assunto
do qual, com sua voz singular, falaria aos estudantes. Em início de 69,
quando a antiga tuberculose refratária aos antibióticos voltava, Sr. D.
defendeu a tese de doutorado Diferença e repetição. Isto depois de escrever
muitos livros, alguns de história da filosofia – Hume, Nietzsche, Bergson,
Kant, Spinoza – outros de literatura – Proust, Masoch –, quando já era
mais conhecido no meio filosófico do que três quartos da banca, a qual
reconheceu a “qualidade excepcional do trabalho realizado”. Sr. D. foi um
dos raros professores daquela universidade a declarar publicamente seu
apoio à contestação estudantil iniciada em 68, bem como a participar das
assembleias gerais e das manifestações dos estudantes lyoneses – o único
professor do departamento de filosofia a presenciar o movimento. Depois
da defesa, Sr. D. ficou afastado por um ano dos trabalhos de docência,
em convalescença, pois fora submetido a uma delicada cirurgia em que
teve um dos pulmões retirados – o que o levou a sofrer de insuficiência
respiratória crônica até a morte. Debilidade vital e afastamento obrigatório
da efervescência intelectual e política pós maio de 68. Momento em que
esteve à beira de um outro precipício, o alcoolismo: “Oferece-se o corpo
em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia
suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que
se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar,
para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de
uma ajuda: álcool” (DELEUZE, 2001a [P de Professor; B de Beber]; 1992;
DOSSE, 2010; GIL, 2002).
&
Outro.
Sr. G.: militante revolucionário desde seus 15 anos, quando participou
da criação da rede de Albergues da Juventude, militou no Partido Comunista
Francês (PCF) e logo passou a criar redes de infiltração no interior do
partido, a fim de minar as formas de aparelhamento burocrático. Ao
lado de uma incrível vocação para formar bandos, muito cedo Sr. G. foi
tomado pela necessidade de escrever, adotando a prática do diário no qual
registrou os efeitos que Sartre causava. No diário, registrou que O Ser e o
nada determinou um motivo existencial para sua vida: a busca desenfreada
da felicidade imediata na intensidade do momento. Em suas palavras “é
preciso dar ao mundo a imagem da felicidade, por mais simples que seja
esse rosto, mais desprovido de qualquer esperança” (apud DOSSE, 2010,
p. 34). Felicidade que Sr. G. encontrou no coletivo por meio da multiplicação
de grupos não sectários de estudantes, operários, mulheres, loucos. No
início dos anos 50, com seus 20 e poucos anos, Sr. G. era visto como um
prestigiado especialista em teses lacanianas (não perdia um seminário de
Lacan e, por anos, semanalmente, deitou em seu divã), já havia abandonado
o curso de farmácia, entrado na filosofia da Sorbonne e tinha uma prática
junto ao mundo da loucura com suas atividades na clínica de La Borde16.
A Clínica de La Borde, instituição privada, localizada a 200 quilômetros ao sul de Paris e distante 5 quilômetros
16
da cidade mais próxima, foi instalada em 1953 num castelo circundado por um bosque. Os cem pacientes
(pensionnaires) que a clínica atendia residiam no próprio castelo. Como salienta Jean Oury, diretor clínico
da instituição e iniciador dos trabalhos lá implantados, o esquizofrênico não está em parte alguma: “Todo o
nosso trabalho consiste em fazer com que ele possa estar um pouco, em algum lugar”. O contato de Sr. G.
com a psicanálise se deu em 1953, quando começava a trabalhar na clínica La Borde e passou a assistir aos
seminários bimestrais de Lacan. Durante o período 1962 a 1969, Sr. G. foi analisado por Lacan e ingressou
como membro analista da escola de Lacan, chamada Escola Freudiana de Paris. É importante destacar que,
à época em que Sr. G. passou a estudar a psicanálise esta ainda não era bem recebida na França. Foi apenas
66 • 67
Ali, a revolução e a reflexão deveriam ser permanentes; a loucura não
era percebida como uma mera doença. Na clínica ela estava ligada à aven-
tura intelectual. Considerava-se, por princípio, que há verdade no discurso
do louco e que o próprio delírio é produtivo. Para Sr. G., tido como a “alma
da clínica”, os caminhos da renovação da militância política passavam
por La Borde, onde ele convocava seu bando a se investir nas atividades
coletivas. Já, em 55, em um devir-filósofo, Sr. G. criou a noção de máquina
que viria a ser um dos temas favoritos da dupla D&G. Junto às atividades na
clínica, Sr. G. mantinha os movimentos de militância política de esquerda
e, em 65, viveu sua primeira experiência de escrita a dois, com François
Fourquet, um dissidente do PCF: escreveram as 9 teses da Oposição de
Esquerda. Ali, Sr. G. já era conhecido por escrever de modo ilegível e falar
cristalinamente. Segundo o companheiro, ele “escreve mal, em um jargão
horroroso, ilegível [...] Já quando fala, é cristalino” (DOSSE, 2010, p. 78).
Sr. G., com seu ativismo desenfreado, fazia grupos e os desfazia para cons-
tituir outros. Seus amigos buscavam um meio de acalmá-lo, a fim de que
fosse capaz de realizar aquilo de que tinha vontade, mas não fazia: escrever.
&
Um & Outro: duas galáxias distintas. Um amigo em comum: o Dr.
Jean-Pierre Muyard, que trabalhava na La Borde e não suportava mais a
hiperatividade do Sr. G. – a qual nem mesmo a Ritalina segurava. Apresentá-
a partir dos anos 60, por intermédio das interpretações lacanianas, em especial a aproximação da psicanálise
freudiana da corrente estruturalista de Saussure e da antropologia estruturalista, que a psicanálise venceu a
hostilidade entre os intelectuais franceses. La Borde era um hospital aberto, formado pelo castelo e dois prédios
que serviam de enfermaria, além de inúmeros edifícios pequenos, destinados às atividades dos pacientes. Todas
essas instalações estavam situadas numa paisagem com bosques e um lago. O funcionamento da clínica era de
responsabilidade coletiva dos pacientes e dos que lá trabalhavam: médicos, psicanalistas, monitores, estagiários
e funcionários. As tarefas que mantinham o hospital em operação, como limpeza, cozinha, telefone, recepção,
transportes e outras, eram divididas entre todas as pessoas. Isto porque a clínica estava organizada em 3
princípios evidentemente marxistas: 1) centralismo democrático que assegura a preeminência do grupo gestor;
2) precariedade dos estatutos: toda pessoa deve ser capaz de passar do trabalho intelectual ao trabalho manual
e vice versa (papéis e estereótipos são rompidos, os doentes são considerados passageiros e o corpo médico
é o elemento estável, enraizado e crônico; médicos e enfermeiros trabalham sem jaleco e não se distinguem
dos doentes); 3) organização comunitária com a coletivização das responsabilidades, das tarefas e dos salários
(orientado pelo princípio de polivalência das tarefas, Sr. G. gostava de deslocar as pessoas, de pôr em ato o que,
posteriormente, D&G proporiam: “embaralhar os códigos” – organizava a grade de tarefas para que médicos
trabalhassem na área administrativa e os psicólogos ele punha a lavar louças (GOLBERG, 1991; DOSSE, 2010).
lo ao Sr. D. foi o estratagema encontrado, a fim de que ele canalizasse sua
força para a escrita. Foi justamente ela, a escrita, o motor dessa amizade
que durou até 1992, quando se deu o desaparecimento de Sr. G.. Durante
todo esse tempo, trataram-se mutuamente de senhor, mantendo uma curiosa
distância manifesta – o que justifica, para além de nossa escolha de tom
kafkiano, apresentarmos os autores da maneira que o fizemos. Desde os
primeiros encontros, pessoais ou por cartas, “uma operação alquímica
funcionou” (DOSSE, 2010, p. 15) e um amor nasceu. Nas palavras do Sr.
D. essa operação é assim manifesta: “a maneira como nós nos entendemos,
completamos, despersonalizamos um no outro, singularizamo-nos um
através do outro, em suma, nos amamos (DELEUZE, 1992, p. 16); na
perspectiva do Sr. G., que em uma missiva da primavera de 69 também
testemunhou a amizade nascente: “Caro amigo, nem tenho palavras para
lhe dizer o quanto fiquei tocado com a atenção que o senhor teve a gentileza
de dedicar aos diversos artigos que lhe enviei (...) Encontrá-lo, quando isso
for possível para o senhor, constitui para mim um acontecimento já presente
retroativamente a partir de várias origens” (DOSSE, 2010, p. 15). Por fim, na
narrativa do amigo em comum, Dr. Muyard, a respeito de um dos encontros
entre aqueles Srs., encontro que ele chama de “cena primitiva”: “Félix e
Deleuze criam, intensamente. Deleuze toma notas, ajusta, critica, remete à
história da filosofia as produções de Félix. Em suma, as coisas funcionam”
(DOSSE, 2010, p. 15). O que se passava nesta “cena primitiva” testemunhada
por Muyard era o debate do conteúdo daquilo que, três anos depois, em 1972,
viria a ser a obra O Anti-Édipo, escrita a quatro mãos, principalmente por via
epistolar (DELEUZE, 1992, p. 24). Obra que produziu um agenciamento
entre os Srs. D. e G., doravante, nesta escritura, D&G.
***
68 • 69
(DOSSE, 2010, p. 25). Avesso às discussões em grupo, Deleuze submeteu
Guattari à ascese solitária, a fim de que seus problemas de escrita fossem
superados. Diariamente, Guattari enviava a Deleuze suas ideias, as quais
eram polidas, arranjadas e aprimoradas, tendo em vista a versão final.
Deleuze costumava dizer que “Félix era o descobridor de diamantes e que
ele era o trabalhador” (apud DOSSE, 2010, p. 17). Por seu lado, na criação
deste ethos comum, desta arte de viver a dois pela escrita, Deleuze afirma
que “viveu um segundo período que não teria nunca começado e conseguido
sem Félix” (apud ESCOBAR, 1991, p. 9); foi quando pôde realizar aquilo
que anunciara no prólogo de Diferença e repetição (1988, p. 18-19):
Filosofia prática
Tratar de uma ética dos devires pressupõe abordar uma Filosofia
prática que implica destacar o privilégio que é dado ao movimento ao invés
do repouso, à variação contínua em detrimento da forma determinada e
da estrutura, aos vazamentos que sempre estão em vias de dissolver a
organização e a estabilidade das estruturas enrijecidas, ao indefinido sobre
o já acabado; primazia do informal e ilimitado sobre o equilíbrio das formas
e a medida dos limites, o nomadismo ao sedentarismo, a desterritoriali-
zação ao território, as molecularidades às molaridades. Tal privilégio se
justifica porque, as organizações, as estruturas e as constantes de qualquer
tipo, sejam elas políticas e sociais, cósmicas e físicas, são meras ilusões,
névoas que nos impedem de perceber que a força da criação, em todas as
esferas, é exclusivamente o movimento.
Não que aquelas ilusões não tenham existência, a ilusão está em
acreditarmos que elas são primeiras, ou seja, em crermos que primeiro há a
ordem, a essência, a molaridade, o território, para só depois delas decorrer
a desordem, o devir, a molecularidade, a desterritorialização. A partir desta
compreensão, também a teoria da ação política e ética, assim pensada,
não escapa da primazia das intensidades móveis, moleculares e não codifi-
cadas, ainda que de tais ações resultem na produção de molaridades e
códigos. Na Filosofia prática de D&G importa que um pensamento ético,
que é sempre avaliativo e criativo, seja promovido a fim de avaliar os modos
de vida que são os nossos (também aqueles modos de ler-escrever), bem
70 • 71
como para abrir possibilidades, caminhos, meios e modos de vida, de
leitura e de escrita até então não experimentados.
72 • 73
viver, de pensar e de mover-se que transitam nas obras de D&G. Esta
tipologia dos devires, que não se quis exaustiva, tem o sentido ético daquilo
que Deleuze define em Espinosa: filosofia prática, a saber: a Ética é “uma
tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a Moral, que rela-
ciona qualquer existência a valores transcendentes. A moral é o julgamento
de Deus, o sistema de Julgamento. Mas a Ética inverte o sistema do julgamento”
(2002, p. 29 [grifos do autor]). A tipologia dos desvires foi produzida sem
pretensão de universalidade porque não se trata de uma representação para
todos, nem com pretensão essencialista, pois não afirma que estes tipos sejam
uma essência para todos, menos ainda que sejam os únicos componentes
de uma tipologia dos devires. Ao contrário, por não aspirar universalidade
nem essencialidade, os tipos apresentados são regionais, perspectivistas e
não totalizantes, logo, não são os mesmos para todos. Os tipos escolhidos
tiveram como critério a maior insistência na obra dos filósofos, são eles que,
em nossa perspectiva, possibilitam a efetivação de uma ética dos devires a
qual nos propusemos evidenciar nesta pesquisa, quais sejam: devir-mulher,
devir-criança, devir-animal, devir-revolucionário e devir-imperceptível.
Tratar dessa tipologia implicou em pôr em operação a própria
multiplicidade e não se referir a reduções formatadas de modos de viver.
Ainda que o devir não se oponha a uma forma, também não se trata de
um estado transitório entre uma condição e outra, uma vez que, por meio
dele, não se tem como telos atingir uma forma definitiva. Podemos afirmar
que os referidos tipos são tendências de um ser que desliza molecularmente,
constituindo-se com diferentes alianças afetivas, rizomáticas, que inventam
formas a partir de partículas que escapam das políticas identitária e dos
moldes pré-postos, agenciando-se nas margens, constituindo multiplicidades,
desenhando fronteiras entre zonas de vizinhança. Devir, no sentido que
tentamos abordar na dissertação, nunca se conclui ou se concretiza em uma
forma de ser, é, ao invés disso, um conceito que pode ser definido como
movimento em si mesmo, como processo e passagem que atravessa de
um estado a outro, que se opõe a contextos fixos e majoritários. Mesmo
os tipos de devires não são subjetividades fixas, mas maneiras singulares
de existência, que pensam e movem-se na tentativa de produzir outros
modos de vida.
O Projeto Escrileituras está orientado pela lógica do devir (CORAZZA,
2011): não detém forma feita, nem pressupõe modos fixos e determi-
nados de viver, de ler e de escrever; habita as fronteiras entre a filosofia,
a arte e as ciências e se faz ao caminhar. O Escrileituras está aberto a
experimentações diversas, cada um dos atores que com ele se envolve é
potencializado e afetado por partículas advindas dos diferentes reinos,
podendo, assim, devir por meio da escrita e da leitura. Isto porque, como
afirma Corazza, por meio de uma “arte menor e de um planejamento da
desnaturação” as Oficinas de Escrileituras “constituem um campo artistador
de variações múltiplas, que produz ondas e espirais; compõe linhas de vida
e devires reais; promove fugas ativas e desterritorializações afirmativas”
(2011, p. 41). Escrever, nessas condições, implica abrir-se para a variação
contínua da força de existir de alguém, e, portanto, ao devir, o que implica
abandonar suas seguranças, seus preconceitos e desconstruir verdades
até então tidas como absolutas, é dar lugar a agenciamentos transversais
que ultrapassam todo e qualquer mundo já vivido.
Referências
CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In.: HEUSER, Ester Maria Dreher. Caderno de notas 1:
projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: UFMT, 2011. (Coleção Escrileituras)
DELEUZE, Gilles. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1992.
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Daniel Lins e Fabien Pascal Lins). São Paulo: Escuta, 2002.
DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São
Paulo: Escuta, 1998.
74 • 75
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.
_____. Kafka: por uma literatura menor. (Tradução Júlio Castañon Guimarães). Rio de
Janeiro: Imago, 1977.
DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre:
Artmed, 2010.
ESCOBAR, Carlos Enrique de. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991.
FOUCAULT, Michel. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. In: ESCOBAR,
Carlos Henrique. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991.
_____. (1977). Introdução à vida não fascista. In: DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix.
Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press. Tradução de
Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em: http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/
foucault/vidanaofascista.pdf. Acesso em: 15 abr. 2011.
GIL, José. Ele foi capaz de introduzir no movimento dos conceitos o movimento da vida:
entrevista com José Gil. In.: Educação & Realidade – v. 27, n. 2 (jul/dez). Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 205-224.
Resumo
O presente texto descreve o percurso de pesquisa da tese de doutorado
em educação intitulada: Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico.
Nesse sentido, apresenta a composição de elementos teórico-conceituais que
matizaram a escritura e a problemática inicial dessa tese. Entre tais elementos,
está o pensamento filosófico do primeiro Nietzsche, período da vida em que
o filósofo se dedica ao estudo do sentimento trágico Grego. Por meio desse
pensamento, experimenta dispositivos narrativos a fim de positivar a escola
básica e seus problemas. Assim, procura aliviar a tensão cotidiana, afirmar o
valor da relação docente e, acima de tudo, cativar a criação estética no seio
das ciências da educação.
Palavras-chave
Estética. Tragédia Grega. Pathos. Vontade. Dionísio.
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Trata-se de falar, pensar, ler e escrever em direção ao inusitado da
palavra. Ora, partilhar do inusitado da palavra significa afastar-se do
discurso comum, sobretudo daquele que, em específico, trata da formação
de professores. Nesse sentido, é de conhecimento que, invariavelmente, os
programas de formação reproduzem retóricas salvacionistas, palavras de
ordem, dinâmicas improváveis sobre o ensino e sua arte. Então, trata-se de
refutar as pedagogias da consciência, mesmo que elas sejam herdeiras das
antigas concepções judaico-cristãs e se espalhem por séculos de história da
educação. Simplesmente porque não se trata de confessar algo a alguém,
mas potencializar a palavra vida no caminho da formação. É fato que,
antes de tudo, procura-se evitar os percalços de uma crítica improdutiva
que se reduza a apontar os acusados pela queda da Bastilha. Além disso,
falar, ler e escrever sobre a pedagogia não devem significar que seu autor
está absolutamente fechado para as transformações das ideias clássicas.
Ao contrário, essas transformações exigem certo grau de atualização de
acordo com a máscara usada num momento específico, mas apenas nesse
momento, pois, em outras ocasiões, outras máscaras tendem a assumir o
formato do rosto. Então, há de se entrar em colóquio com um Platão em
seu tempo, desfilando pelos bares da Cidade Baixa; ou encontrar-se com
um Rousseau e sua maravilhosa peruca de cachos, transitando pelas bancas
do Mercado Público. Impossível esquecer-se de Nietzsche e seus grandes
bigodes, olhando silenciosamente as árvores da Redenção. Eles estão aí.
Por todos os lados, ouvimos vozes que reivindicam seu quinhão de
expressão. Elas exigem espaço no texto-tese que recolhe cacos de solidões
que, por ora, são densamente povoadas. Assim, o inusitado da palavra
partilha da escuta que ouve e interpreta a voz oracular. Essa voz molda,
dá tom e sentido às palavras que vagam desconexas pelo céu da primavera.
Ora, no céu da primavera está a grande inspiração desse texto-tese,
que versa sobre a estética trágica da pedagogia. E, se invoca a era das tra-
gédias gregas, não é apenas para jogar trocadilhos com os versos de
Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mas para embriagar-se do fundo poético que
brota de tais versos e, assim, diluir-se no texto. Por isso, procura exercitar
o estilo, a forma e o conteúdo de maneira que seu ator-autor possa repre-
sentar-se nas personagens; porém, não como a figura de um indivíduo
personificado, mas como o produto de forças, de vozes que insistem
(e se desdobram) para compor a teia da escritura. Nessa teia, cada parte
(ou capítulo) assume a máscara que lhe apraz, ou seja, as referências
textuais ganham forma na composição de um mosaico original que,
inicialmente, parece não seguir nenhum ordenamento sequencial. No
entanto, as ideias ganham força e sentido quando confrontadas com a linha
de pensamento que lhe serviu de matriz conceitual. Tal linha de pensamento
considera, sobretudo, o desfecho da interpretação trágica realizada pelo
primeiro Nietzsche e, por consequência, sua demarcação precisa em re-
lação aos eventos filosóficos e literários na Alemanha do século XIX. Ou
seja, o exercício compreensivo que se configura na originalidade do texto
leva a marca da experimentação estética, de uma escuta aos tambores de
Dionísio, de um sentimento trágico que carrega as lições do tempo, da vida
e da alegria. Com isso, não se quer dizer que esse texto-tese abandona o
compromisso com os problemas do campo pedagógico propriamente
dito, mas os trata sob outra perspectiva, qual seja, a perspectiva vitalista
que considera o acréscimo (ou decréscimo) de potência como matéria
constitutiva do próprio texto-tese. Então, deixa-se tocar pela atmosfera dos
autores e obras, sobretudo daqueles que pensam e escrevem sobre o conceito
de ‘trágico’ em Nietzsche. Desse modo, seu autor alimenta as linhas
produzidas a partir das matérias (de conteúdo e expressão) cuja inspiração
brota da energia pulsante da physis.
Nesse sentido, é evidente que procura explorar e interpretar o fundo
dionisíaco da filosofia de Nietzsche. A temática das máscaras vem dessa
possibilidade de lidar com problemas que não evidenciam apenas uma
condição lógica do discurso, mas que se atêm ao cultivo da voz e do tom
das palavras. Imaginamos, por exemplo, Nietzsche e seus textos como uma
hidra de várias cabeças cujas falas se entrecruzam, dialogam, se contra-
dizem umas com as outras, na busca da afirmação original. Por isso, ‘Eu’,
Eles’ ou ‘Nós’, no texto do filósofo, compõem as personae de uma voz que
clama pela autossuperação da razão humana (num esforço de estilo e
sensibilidade). É como se ele mesmo tivesse que se autorretratar num estado
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de dispersão dionisíaca e, a cada momento, reencontrar-se em meio ao
caos. Entretanto, isso não significa uma maneira específica de dramatizar
as condições da própria vida, mas o exercício de multiplicar as vozes, os
pontos de vista sobre o objeto (alvo do conhecimento). As máscaras surgem
desse artifício de duplicar as palavras, os sentidos, uma vez que a vontade
de verdade se constitui num esforço pela modulação tonal da linguagem,
ou seja, ela é peremptória e produtiva de acordo com o grau de potência
investido (legado do antigo teatro grego). É nessa direção que podemos
afirmar: “Sem uma máscara, não se tem nenhum rosto para apresentar;
e é somente através das máscaras que se pode falar bem alto o que se
aprendeu” (HAYMAN, 2000, p. 35). Isso quer dizer que a verdade está
num esforço pelo investimento da superfície, não da profundidade, uma vez
que dificilmente se pode retirar uma máscara sem que outra esteja em seu
lugar, ou seja, ela é a única forma do rosto. As máscaras são análogas às
células da pele humana, que, durante anos, se regeneram com o tempo,
com os impactos da exterioridade, renovando nossa percepção do mundo
e da vida. E é provável que, na maior parte das vezes, escrevemos não
para revelar algo a alguém, mas para extravasar o sentimento de estranha-
mento que está em nós. Ora, se Dionísio é o deus estrangeiro que
chega para tripudiar o logos da religião oficial, também as palavras nunca
dizem a verdade sobre o ser da sensação, mas erigem metáforas da reali-
dade.
E é como metáfora do cabedal docente, das práticas pedagógicas,
da formação de professores e, sobretudo, da vida nas escolas que provo-
camos a escrita desta tese. É claro que o título oscilou na sua metamorfose
essencial, carregando palavras-chave e clichês professorais. Talvez o texto
constituído, mas nunca em definitivo, tenha oferecido estilhaços semânticos
cujos sinais divagavam por um apanhador de sonhos. Entre uma passagem
e outra desse apanhador, a experiência residual comportou a descrição de
um título possível: Pedagogia das Máscaras: aprender com o trágico. Poderíamos,
inclusive, sem prejuízo aos seus elementos constitutivos, manifestar um
‘aprender com Dionísio’, com o dionisíaco de Nietzsche. No entanto,
entendemos que o ‘trágico’ é o elemento formador desta filosofia e, como
tal, oferece pressupostos didático-pedagógicos para se repensar a noção
de ação/produção (práxis/poiesis) no interior da dinâmica escolar (porém,
isso já compete à problemática da tese). Antes disso, é preciso localizar
o território de pesquisa de onde brotaram suas primeiras experimen-
tações. Com efeito, a tese surgiu no PPGEDU da UFRGS, na linha de
pesquisa 09 (Filosofia da Diferença e Educação), e foi defendida em ja-
neiro de 2012, sob orientação da profa. Dra. Sandra Mara Corazza. O
BOP (Bando de Orientação e Pesquisa) foi o coro de vozes que encenou
sua leitura, contribuindo nos desafios da escritura. Assim, como metáfora
da condição docente, apaixonada pela mitologia grega, pelos escritos de
Nietzsche, pela perspicácia e genialidade de sua orientadora, é que esta tese
nasceu.
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aos eventos da Grécia antiga, sua constituição filosófica e literária. É nessa
direção que podemos pontuar duas interpretações acerca da releitura
dos clássicos gregos, sobretudo dos antigos tragediógrafos (Ésquilo,
Sófocles e Eurípedes). Por um lado, uma vertente clássico-romântica que
supervaloriza a historiografia como método na tentativa de reconstruir as
raízes do autêntico espírito alemão (o próprio Hegel, mas também Goethe,
Winckelmann, Schiller, Schelling, Schlegel, Fichte e, em certo sentido,
Schopenhauer e Wagner). Por outro lado, uma interpretação vitalista,
centrada no fenômeno trágico (embora a tragédia grega tenha sido estudada
em ambas as vertentes), uma vez que a preocupação recai nos fundamentos
estético, musical e religioso da arte na Grécia. Não seria exagero afirmar
que tal interpretação permaneceu, durante anos, como a via marginal de
compreensão da tragédia. Estão nessa via o poeta Hölderlin e o filósofo
Friedrich Nietzsche. Ao divergir das interpretações célebres do período,
Hölderlin e Nietzsche recriam o fenômeno trágico, evidenciando sua
capacidade regenerativa e, por que não dizer, criativa. Não se trata apenas
de repetição, tradução, mas transcriação dos versos e da poética essencial
que norteou a arte grega. Se Nietzsche, por meio do Nascimento da tragédia,
afirma a tese fundamental de que: “[...] só como fenômeno estético podem
a existência e o mundo justificar-se eternamente [...]” (1992, §5, p. 47);
Hölderlin, por sua vez, tanto no Hipérion quanto na Morte de Empédocles
(ou em notas isoladas), produz reflexões originais sobre o drama trágico:
“A poesia mais elevada é também aquela em que o não poético se torna
poético porque, no todo da obra de arte, se diz no tempo e no lugar
oportunos.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 25). Portanto, é como se afirmassem
que existe uma poética vital (poiesis), produzida como resultado das ações
cotidianas e, acima de tudo, motivada por um pathos afirmativo capaz de
sobreviver aos percalços de qualquer niilismo pedagógico. Essa possibi-
lidade animou o caminho da pesquisa e a textualidade da Pedagogia das
máscaras.
No entanto, a filiação teórica da estética trágica (como pensamos e
entendemos o problema de pesquisa) é própria da filosofia do primeiro
Nietzsche. Nesse sentido, da Introdução à tragédia de Sófocles até o Nascimento
da tragédia, percebemos que a noção de trágico muda de direção. Se,
em Sófocles, inicialmente, a tragédia edipiana ainda carrega traços de
ressentimento e piedade, sem contar com a progressiva extinção do coro,
Nietzsche precisa retornar às origens do mito. Nesse retorno, descobre a
potência indestrutível do dionisismo, um poder avassalador que cons-
trange a moral e a religião do homem moderno. Então, o herói esqui-
liano torna-se a encarnação das forças titânicas da natureza e, assim,
reproduz o conjunto paradoxal do sentimento trágico num misto de
sofrimento e alegria. Além disso, o coro em Ésquilo tem papel fundamental:
“O coro das Oceânides acredita ver efetivamente à sua frente o titã Prometeu
e considera a si próprio tão real como o deus na cena.” (NIETZSCHE, 1992,
§7, p. 53). O coro não é apenas uma personagem da cena, mas uma força
afirmativa capaz de mudar o destino do herói. Diferentemente de um arti-
fício da consciência humana que julga as ações do herói, o coro trágico
estimula a possibilidade do ‘querer’, ou seja, uma forma de arrebatamento
das pulsões vitais sem a qual não pode haver nenhuma escuta do que nos
ultrapassa. Essa forma de afecção do herói foi o que os gregos chamaram
de pathos. Portanto, ela é de matriz irracional, ilógica, atemporal e, assim
como o movimento das paixões que motivam o coração humano, as vozes
que ressoam do coro manifestam o poder para a transcriação da obra. É
por isso que não se trata de uma ação como reprodução, mas de uma ação
como produção desejante. Além do mais, ouvir, ver, falar e fazer constituem
as operações de um fundamento ético marcado pela sensibilidade e pela
compreensão da physis. O problema central e os problemas secundários do
texto-tese da Pedagogia das máscaras estão mergulhados nessas proposições,
objetivando positivar a ação docente a partir da autoformação, da
experimentação e da expressão estética.
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cuja precisão depende da motivação interna do ventríloquo que a põe
em movimento. Com isso, o filósofo define seu conceito de ‘Vontade’
enquanto Wille zum Lebem (Vontade de viver), o que, para Nietzsche, é
insuficiente na superação do pessimismo. Por isso, Nietzsche enxerta
no conceito schopenhauriano o componente estético dionisíaco, deno-
minando-o de Wille zur Macht (Vontade de poder). Ora, as linhas que
enxertam esta tese são semelhantes ao corpo da marionete, que ganha
vida própria a partir das motivações internas de seu autor. Mas não
apenas isso, pois o tecido que recobre as máscaras é matizado pela
cor ambiente que o envolve. É como se as afecções do texto, objeto de
estudo, provocassem a escritura da tese numa direção e num sentido
inusitados até o instante da produção. Por exemplo: cada parte, seção
ou capítulo (no total são nove capítulos, divididos em seções menores)
apresenta uma conotação própria, procurando se aproximar da forma de
conteúdo original do texto. A cada três capítulos, compõe-se um bloco
específico (são três blocos: 1. O Trágico e a pedagogia; 2. Mascaradas e
3. Patéticas). A motivação dos três primeiros capítulos do primeiro bloco
é rousseauniana, pois procura aproximações com o tom intimista das
Confissões (Aprender com o trágico, Dionísio-educador e Ressonâncias
rousseaunianas, exatamente nessa ordem). No segundo bloco, cada
capítulo é atravessado por um pathos específico. É assim que o texto
intitulado ‘Sala de aula: cenas de uma tragédia anunciada’, inspirado
nos textos das tragédias clássicas (tanto antigas quanto modernas) e na
criatividade de Júlio Cortázar, procura encenar a escola e seus problemas.
Em seguida, ‘Bestiário das tipologias do educador’ é inspirado nas
tipologias do Zaratustra de Nietzsche e, sobretudo, no Nietzsche de Deleuze.
Os diálogos platônicos motivam o capítulo que encerra o segundo bloco:
‘Diálogo entre Teofrasto e Didascálio’. O terceiro bloco é composto
por pequenos ensaios e tentativas de aforismos. Não há uma inspiração
única, nem estilo que prevaleça, apenas a preocupação estética em
compor a definição da máscara primeira (quando outras já perdem
força e sentido). Estão nessa condição: ‘Ensaios em migalhas’, ‘Frag-
mentos de escola’ e ‘No curso da estética trágica: o adeus das dionisíacas’,
que, por sua vez, encerra os contornos do teatro trágico da escritura.
Ela é agora um corpo-tese, assim como o corpo da marionete, em
que, vez por outra, puxamos um fio, esticamos e verificamos onde
vai dar.
Não existe um método-padrão de escrita e pesquisa que possa ser
utilizado à revelia dos resultados. Portanto, os procedimentos de pes-
quisa são uma construção particular do pesquisador. Eles delineiam
um caminho, mas não a direção que devemos seguir. Muitas vezes não
temos certeza do resultado, ou melhor, nenhuma certeza, pois o que
fica há de ser superado por outro erro, quiçá menos grosseiro do que o
primeiro. E, de erro em erro, assumimos a condição de verdade, feita
de metáforas da realidade e de dissabores da vida. O que se aprende
é produto do fluxo trágico e, por isso, intenso, sofrível, prazeroso. Se há
uma pragmática da vontade em relação aos eventos da pesquisa, ela não
pode ser premeditada de antemão, tampouco descrita como um arcabouço
lógico de opiniões e sentenças. Existe uma afecção inicial que contagia o
corpo do autor, uma ideia-força que lhe provoca o desejo de transcriar o
texto. Sem esse sentimento de alheamento de si não há como prosseguir
no universo da pesquisa. Mesmo a sala de aula é uma invenção: “A poesia
e a música são estímulos que, indiscutivelmente, seduzem para a magia
do infinito, do ilimitado. Nesse sentido, a aula é pura fabulação.” (2012,
p. 140). É como fabulação da aula que produzimos esta tese. Estávamos
em cada palavra, em cada personagem, em cada texto. Sendo assim, a
metodologia mais provável e adaptável nesse contexto teórico responde
por uma indicação cênica em cada trecho, como as didascálias do roteiro
teatral. Importa saber que as marcas não são visíveis no texto definitivo mas
elas acenam ao leitor em cada página. No entanto, servem apenas para o
autor vivificar as matérias de escrita, experimentá-las na leitura silenciosa
ou na gestualidade do corpo. Ao leitor, importa criá-las como lhe convém.
Agora, se nada importa e se nada interessa para quem a ler, também não
sofreremos por isso. Ela sai de cena, retira-se do palco. Entretanto, algo
ficou no ar: assim como o Deus ex machina do teatro grego, ela marcou
um tempo e um lugar. Evoé, Baco!
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Referências
HAYMAN, Ronald. Nietzsche: Nietzsche e suas vozes. (Tradução Scarlett Marton). São
Paulo: Editora Unesp, 2000.
NICOLAY, Deniz Alcione. Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico. Tese de
doutorado em educação. Faculdade de Educação da UFRGS, Porto alegre: 2012.
Polyana Olini
Silas Borges Monteiro
Resumo
A arte do estilo toma do corpo do autor sua escritura. Refere-se à diversidade
de seus estados internos e, consequentemente, às possibilidades de expressá-
los textualmente. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se entendia
até então como linguagem. A variação contínua presente na escritura e no
estilo é o que permite pensar aqui os projetos filosóficos e as vivências como
formação de si mesmo, e portanto como constituintes de maneiras subjetivas
e plurais de cultivar e de afirmar a própria vida. Diante dessas questões, este
capítulo trata da devoração escrileitural de autores, noções e conceitos que
compõem a dissertação intitulada “Estilo, Vida e Constituição de Si: a arte
do estilo”, defendida no segundo ano do projeto Escrileituras: um modo de ler-
escrever em meio à vida, no núcleo da Universidade Federal de Mato Grosso.
Palavras-chave
Escritura. Estilo. Constituição de si. Otobiografia.
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1. Sobre vidas escritas: o duplo inquietante
A escritura derridiana, desde o final dos anos 1960 até os dias de
hoje, continua originando quase tanta controvérsia quanto o pensamento
nietzschiano. O próprio interesse de Derrida em Nietzsche oferece um
ponto particularmente impressionante de partida, para perguntar como um
autor assume a responsabilidade das opções do pensamento de um outro
autor, quando seu trabalho se torna objeto de interpretações conflitantes.
O estilo resultante do interesse por Nietzsche e também, talvez em
menor gama, por outros pensadores como Freud e Lacan, demonstra mais
maturidade do pensamento derridiano do que se possa imaginar, sem maior
aproximação à obra, é claro. Embora o filósofo francês frequentemente
movimente as contradições em um texto particular, representativo ou
sintomático, é notável que seu projeto está situado em implicações mais
amplas do “mundo real” ou na análise de qualquer fenômeno. Assim, por
exemplo, Gramatologia não é primeiramente sobre os textos de Rousseau, é
um livro que aborda a repressão da escritura em benefício da fala.
Derrida quer abordar a impressão deixada por certos pensadores
na história do pensamento, com base na impressão com a qual estes o
marcaram. Ressalvam-se muitas dessas marcas que Derrida mobiliza e que
se caracterizam pela ambivalência à tradição filosófica. Tanto o pharmakóm
de Platão, em A farmácia de Platão, como o suplemento de Rousseau, em
Gramatologia, apontam para o jogo entre bem e mal, remédio e veneno,
mais e menos, escrita e phoné, dentro e fora, acidente e essência.
2. Estilo e escritura
É importante observar as semelhanças e diferenças entre Nietzsche e
Derrida, com o intuito de começar a explorar as conexões entre o que vai
ser abordado como escritura ao pensarmos filosofia e educação e, fundado
nisso, desenvolver os elementos conceituais que circundam a escritura,
como estilo, morte, vida, otobiografia, etc.. Desde já, busca-se movimentar a
filosofia de Nietzsche, as leituras desta filosofia – principalmente as feitas
por Derrida – e as implicações disso para pensar as relações entre filo-
sofia, educação e constituição de si. A exemplo de Nietzsche, Derrida
favorece leituras ativas, nas quais a filosofia desempenha papel dinâmico
na criação de valores, assim como na afirmação e transvaloração da vida.
Toma-se, na dissertação, o conceito de escritura trabalhado por Derrida
ao longo de seu projeto filosófico, com ênfase nos textos do início de sua
obra, como Gramatologia. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se
entendia até então por Linguagem, porque rompe com a relação metafísica
que a última pressupõe. Dessa forma, Derrida defende uma visão inovadora
sobre o tema, apontando para a criação de nova concepção de escritura,
através da qual é possível operar a desconstrução das oposições de caráter
binário, permitindo a articulação (o jogo da diferença) da fala e da escrita.
Derrida anuncia a liberação da escritura, dizendo: “(…) tudo aquilo
que – há pelo menos uns vinte séculos – manifestava tendência e conseguia
finalmente reunir-se sob o nome de linguagem começa a deixar-se deportar
ou pelo menos resumir sob o nome de escritura” (DERRIDA, 2008, p. 8).
Certamente, há uma noção de que Derrida (1971; 2008) se porta de
forma inquieta com relação ao discurso filosófico tradicional e, desde seus
primeiros trabalhos, podemos ver uma gradual “radicalização do estilo”,
por esta via. Conforme Jones Irwin (2010, p. 17-19), é metodologica-
mente isto o que desperta seu interesse em um pensador como Artaud,
que nos fala do solo da vanguarda poética.
Como Nietzsche, Derrida é um grande defensor da transição e da
transformação. Über; différance. É neste sentido que se faz aqui a aproximação
entre eles: Nietzsche transvalora, Derrida desconstrói. Nos labirintos da
escritura, o texto nunca terá um significado único. A convicção de que a
linguagem pode ser uma generalização estável e “total” é perigosa, assim
como equivocada. Em seu texto Esporas: os estilos de Nietzsche, Derrida (1981)
sustenta que não há uma verdade de Nietzsche ou do texto nietzschiano. E
isso compõe os estilos de Nietzsche. A linguagem é um meio que congela
conceitos úteis, uma ferramenta ilusória, como as de verdade e conhe-
cimento. Não importa se elas são verdadeiras ou não, porque os seres
sociais precisam delas.
A dissenção com alguns temas clássicos da filosofia caracteriza uma
consequência necessária para escrita filosófica, em ambos os pensadores.
Mesmo com estranheza ao pensamento ocidental, conservam a paixão
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da filosofia pela busca da verdade – como coloca Platão –, ao mesmo
tempo em que a própria filosofia é posta em suspeita. Nem Derrida nem
Nietzsche abandonam o desejo de buscar a verdade, apenas demonstram
a impossibilidade de chegar a uma imagem, singular e transparente da
“verdade”.
Tanto em Nietzsche como em Derrida, a questão do estilo está
indissoluvelmente ligada com o conteúdo do texto, selecionando e sedu-
zindo o leitor. Nietzsche afirma não conhecer “outro modo de lidar com
grandes tarefas senão o jogo: este é, como indício de grandeza, um pressu-
posto essencial. A menor constrição, o ar sombrio, um tom duro na gar-
ganta são objeções a um homem, mais ainda à sua obra!...” (NIETZSCHE,
1995, § 10).
O jogo ao qual Nietzsche dá destaque nesta seção, é o jogo com
estilo. Exige que o leitor se torne tão atento ao ritmo e tom da escritura,
quanto a seu conteúdo. Não é inesperado, então, que Nietzsche cons-
tantemente faça alertas para que os leitores prestem atenção a quem lhes
fala, quase que como uma intimação para que seus textos sejam escu-
tados com os ouvidos corretos. Ainda que ajustar os próprios ouvidos
para ler Nietzsche seja, provavelmente, uma das tarefas mais desafiadoras,
pois “os livros de Nietzsche são mais fáceis de ler, porém mais difíceis
de entender do que os de qualquer outro pensador” (KAUFMANN, 1974,
p. 72). Seu tom muda, propositadamente, de um grito a um sussurro
dentro de um único aforismo. Muitas vezes curtos, os aforismos de Nietzsche
são formatos que rompem padrões convencionais da filosofia moderna,
escritos entre suas caminhadas, como monumentos às suas crises de dores
de cabeça, consolidando seus meios particulares de apresentação – dispo-
sições gráficas, itálicos, aspas e reticências ganham usos característicos.
Evidentemente, estas questões não se ausentaram em Derrida, leitor
de Nietzsche, que percebe haver um limite no discurso que chamamos
de filosofia; esse limite precisa encontrar uma maneira de gesticular em
direção a seus lados, como que a um exterior quase impossível de alcançar,
tornando-se uma margem sem centros de controle e referência. E para que
esse discurso não volte a marchar rumo a qualquer limite, para que haja
a superação deste, ao ler e escrever é preciso se envolver com vários estilos
e registros de uma vez, isto é, devemos ser constantemente atravessados
pelos sentidos.
Enquanto Nietzsche ressalta, em suas obras, para a multiplicidade e
duplicidade de sentido que expõe o perspectivismo, Derrida enfatiza a
necessidade estrutural de o significado não ser capaz de chegar ao destino
desejado, a uma margem vazia, como condição de possibilidade para
desconstrução do logocentrismo e da metafísica da presença, entre um monte de
outros temas e aspectos. Esse fracasso do significado, tal qual o pensamento
ocidental sempre temeu, é que deixa ocorrer a contradição na perspectiva
de que das contradições emergem a possibilidade da remarcação do texto/
escritura, como dobra que nega a prescrição de um pensar metafísico.
As obras de Nietzsche, constantemente, expressam a necessidade de
escapar a metafísica, assim como as de Heidegger depois dele. Derrida se
junta a seus antecessores em perseguir as mesmas perguntas, mas ressalta
a impossibilidade de escapar do que ele chama de metafísica da presença. Já
que não há como escapar a linguagem da presença, Derrida nos chama a
atenção para a precisão de aprender a colocar a linguagem para trabalhar
de outra forma através do estilo e do registro.
Derrida afirma que a autobiografia se distingue do que se entende
frequentemente, nas definições literárias. O autobiográfico deve nos fazer
reconsiderar o lugar do “autos”, pois toda escritura autobiográfica é singular
e põe em movimento de cooperação o “auto” de sua “autoidentidade”;
determinando a inevitabilidade deste movimento, que o autor, diz ser
psicanalítico, na margem de todo texto e discurso, para além dos limites
tradicionais da escrita.
3. Do que é praxe
Os pontos e argumentos expostos até aqui, com toda a concessão da
fantasia e das fabulações, não como oposição ao real ou a verdade mas
sim como reconhecimento da potência da multiplicidade, permitem a
apresentação das escolhas e os estabelecimentos em que a dissertação está
inserida.
Com Deleuze, o pensamento passa por encontros múltiplos. Pesquisar
trata de criar um deserto que possa ser atravessado por acontecimentos,
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velocidades, afetos, sensações, multiplicidades e devires. Inspirada pelas
provocações de Deleuze, Sandra M. Corazza apresenta a pesquisa do
acontecimento como possibilidade de “novos meios de expressão”, em
que o direito à singularidade e o pensar diferente se movimentam nos
campos da filosofia, da arte e da ciência. Estas suas afirmações, de certo
modo, atravessam todo o pensamento deste estudo, “assim, para a Pesquisa
do Acontecimento, escrever não é impor uma forma de expressão a uma
matéria vivida, mas trata-se de um procedimento informe, de um processo
inacabado, de uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”
(CORAZZA, 2008, p. 250).
A questão que enfeixa a elaboração da dissertação: a proposta de
constituição de si, poetizada por Píndaro na sentença: “Homem, torna-
te no que és”. Assumida por Nietzsche como uma de suas grandes tarefas,
principalmente em Ecce homo, e discutida por Derrida, quando toma o
estilo filosófico de Nietzsche como forma de ensino fundado, nas vivências,
em Otobiografias. Também se trata de tomar tal proposta como principal
objetivo, buscando justificar novas perspectivas sobre as experiências de
vida que deixam marcas, que geram concepções, que desenvolvem crenças,
que levam à tomada de atitudes. Ou, talvez, nada disso, a não ser “suas
insignificantes vivências diárias” (NIETZSCHE, 2000, § 627), que, no
entanto, produzem texto escritura. Ainda mais. Aspira à compreensão de
temas geralmente desprezados pela filosofia e pela educação: refiro-me a
sinalizar casuísticas do egoísmo como operadores conceituais da consti-
tuição de si.
A tessitura do trabalho procura abordar o que entende por si a partir
do perspectivismo nietzschiano, que está diretamente relacionado com
sua noção de si mesmo como uma espécie de multiplicidade subjetiva,
que entende nossa experiência do mundo diante de uma experiência
multifacetada. Dessa forma, “o sujeito unitário (...), protótipo das demais
ficções erigidas pela longa tradição metafísica, torna-se obsoleto perante as
rigorosas exigências de um pensamento que procura acolher, sem restrições,
a plenitude e a inocência do vir a ser” (ONATE, 2003, p. 19). Como as
seções Dos que desprezam o corpo e Do domínio de si do Assim falou Zaratustra
bem retratam, Nietzsche (2008) revela um compromisso com a impor-
tância e o valor do corpo e da vida para o conhecimento e o domínio
de si, em sua forma nietzschiana mais elevada, isto é, criando para nós
mesmos uma moderação de instintos.
Como caminho para pensar como tornar-se o que se é, ligamos as noções
de (auto)formação e estilo, que aparecem no decorrer da obra de Nietzsche
e são tomadas de forma fértil e particular por filósofos como Foucault,
Deleuze e Derrida.
Foucault concebe os apontamentos para uma hermenêutica do sujeito
em sua determinação histórica e ética. Pelo retorno aos helênicos e
romanos, apresenta o “cuidado de si” como forma de “substituir o princípio
da transcendência do ego pela busca das formas da imanência do sujeito”
(FOUCAULT, 2004, p. 636). Para pensar um sujeito em movimento é preciso
que o sujeito se constitua na imanência de sua ação. Assim, Foucault propõe
formas não normalizadoras de constituir aquilo que somos. Na escrita de
si “é sua própria alma que é preciso criar no que se escreve (...), também é
bom que se possa perceber, no que ele escreve, a filiação dos pensamentos
que se gravaram em sua alma” (FOUCAULT, 2004, p. 152-153). Trata-se
da experiência de escrever como contribuição para as práticas artísticas
de viver e constituir-se.
Dessa maneira, recorremos ao pensamento da diferença para investigar
a constituição de si. Pois bem, tomar este tema (também é um desafio) da
filosofia e da educação – de decifrar e constituir o si mesmo – é reconhecer
a nova forma de filosofia que se concebe através da aposta de entender
vida e escritura como possibilidades de experimentação e de pensamento.
Certamente, trata-se de questão metodológica: experimentar o tema da
constituição de si, perseguindo as ideias de escritura, (auto)biografia, (auto)
formação, adotando as perspectivas da suspeita e da desconstrução, visto
que retrata o método como criação.
A primeira seção visa trazer reflexões sobre as implicações do pro-
blema filosófico que envolve o jargão “Vida e Obra”, passando pelo
estruturalismo e o pós-estruturalismo. Apresenta uma perspectiva de leitura
para escritos (auto)biográficos ou não, ao se empenhar no que diz Nietzsche
em Para além de bem e mal: “gradualmente foi se revelando para mim o que
toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor,
94 • 95
uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (NIETZSCHE,
1992, § 6).
Na segunda seção, tratamos a vida como o principal ponto de apro-
ximação da escritura na filosofia nietzschiana. Nessa medida “são os estilos
de vida – escreve DELEUZE (1992, p. 126) –, que estão sempre implicados
nos gestos e nas palavras, que nos constituem como este ou aquele”. Neste
sentido, encontramos um intenso diálogo entre filosofia, vida e escritura
por meio de reflexões sobre o debate que Deleuze empreende acerca da
literatura e da questão do estilo. Assim, o capítulo retrata também que a
renovação da filosofia, no período moderno, está ligada à questão da escrita.
Na terceira seção, abordamos questões relativas ao tema da morte e sua
relação com a escritura. Em Derrida, a escritura da vida se revela como
escritura da morte; ao narrar e assinar sua vida, o autor (signatário e vivente
de seu próprio texto) adianta sua morte. Derrida, em certa harmonia com
Barthes (2004), também segue as vias de dissolução da noção de autoria,
quando também decreta a morte do autor (falante e escritor) e toda esta
sua prevalência. Ambos libertam a escrita dessa herança metafísica que a
aprisiona em favor de uma máquina autônoma de escritura. No entanto,
procuramos atentar para o fato de que Derrida sempre associou a
problemática da morte com a afirmação da vida, em sentido nietzschiano.
Na quarta e última seção, pela elaboração de um sistema, pensamos
Como tornar-se o que se é pela trilha da arte do estilo. E, portanto, uma
possibilidade de pensar escritura como força constitutiva do escritor/vi-
vente/signatário, apesar das proteções de suposta racionalidade científica
presente em muitos escritos.
Vem daí a insistência de Derrida, que sucede Nietzsche, ao defender
a conquista do caráter autobiográfico também nos escritos filosóficos em
geral. Na escritura autobiográfica, o nome do autor, seu corpo, sua posição
no espaço e no tempo são, paradoxalmente, fatos e ficções que devem ser
tomados pela filosofia como “uma descrição mais ou menos viva de sua
própria escritura” (DERRIDA, 2007, p. 337). Em Otobiografias: o ensino de
Nietzsche e a política do nome próprio, Derrida também investe nas discussões
clássicas sobre autobiografia. Declara que, muitas vezes, pormenorizam
a autobiografia de um filósofo, “como um corpus de acidentes empíricos
deixando um nome e uma assinatura fora de um sistema que seria, ele,
oferecido a uma leitura filosófica imanente, a única que seja tida como
filosoficamente legítima (...)” (DERRIDA, 2009, p. 31).
Ainda na última seção, procuramos entreabrir alguns apontamentos
para o gesto otobiográfico. Com Derrida “tudo se enrola, vocês o sabem, na
orelha de Nietzsche, nos motivos do seu labirinto” (2009, p. 57). Silas B.
Monteiro (2007) estabelece a otobiografia como um tipo de investigação
de escritos, na qual sua busca por perspectivas sustentadas em vivências-
escuta-estilo-escritura justifica o interesse e o comprometimento desta
dissertação com o que foi apresentado em sua tese de doutoramento
como conceito derridiano, suas possibilidades metodológicas e a propo-
sição de um método-labirinto.
96 • 97
contemporânea. Desse modo, os textos de Derrida caracterizam uma
resistência à tradicionalização do registro filosófico ou do registro literário,
“eles se comunicam, assim (...), com outros textos que tenham efetuado uma
certa ruptura, não se chamam mais ‘filosóficos’ ou ‘literários’” (DERRIDA,
2001, p. 78). Esse movimento de desconstrução do registro é inspirado em
textos que, embora denominados literários, avançam “às artes, à poética,
à retórica e à filosofia”. Derrida cita como exemplo os textos de Artaud,
Bataille, Mallarmé e Sollers. Deleuze, por sua vez, considera autores e
artistas estrangeiros em sua própria língua, refere várias vezes Kafka,
Beckett, Godard e Gherasim Luca como portadores de um procedimento
de variação, uma experiência cromática que excede o limite da linguagem.
Esta é uma política do estilo, encarar a literatura como escrileitura
singular. E por ela, o estilo vem a ter força de lei da singularidade, do
outro, de nós e nossas leituras. Aquilo que faz da experiência de escrever-
e-ler uma experiência de posse, isto é, que torna um texto evidentemente
meu, pela assinatura ou pelo reconhecimento de um estilo próprio, afirma-
se a ação de assinar, em outras palavras, uma política do nome próprio.
É aí que podemos perceber a potência da ação da escritura, vista em
todos os aspectos da vida.
Referências
BARTHES. A morte do autor. In: O rumor da língua. (Tradução Mário Laranjeira). São
Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção Roland Barthes).
DELEUZE. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). Rio de Janeiro: Ed. 34. 1992.
_____. Espolones: los estilos de Nietzsche. (Tradução M. Arranz Lázaro). Valencia: Pre-
textos, 1981.
98 • 99
DERRIDA. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. (Tradução Ana Valéria Lessa
e Simone Perelson). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
_____. Gramatologia. (Tradução Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro). São Paulo:
Perspectiva, 2008. (Coleção Estudos).
IRWIN, Jones. Derrida and the writing of the body. Ireland: Dublin City University, 2010.
LAÊRTIOS, Diôgines. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. (Tradução Mário da Gama
Cury). Brasília: EdUNB, 2008.
MONTEIRO, Silas B. Otobiografia como escuta das vivências presentes nos escritos. In:
Educação e Pesquisa, vol. 33, n. 3, São Paulo: Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo, 2007.
NIETZSCHE. Além do bem e do mal: prelúdio de uma filosofia do futuro. (Tradução Paulo
Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_____. Ecce homo: como alguém se torna o que é. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São
Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
_____. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. (Tradução Paulo Cezar
de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_____. A gaia ciência. (Tradução Paulo Cezar de Souza). São Paulo: São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
_____. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução Mario
Ferreira dos Santos). Rio de Janeiro: Vozes, 2º Edição, 2008. (Coleção Textos Filosóficos)
Resumo
Este texto é atravessado pela pergunta: o que pode um espírito escrileitor?
Trata sobre compor espiritografias em meio à vida mutante, tendo como
campos exploratórios potenciais a educação, a filosofia e a literatura;
propondo uma entrada para inventar saídas de novos fluxos de pensamento
esboçados via escrita. Para desde modo compor um Alfabeto Espiritográfico:
Escrileituras em Educação atividade de pesquisa, leitura da realidade, que
opera com a noção de espiritografia, pensando a partir de duas vertentes
da Filosofia da Diferença: Gilles Deleuze e Paul Valéry. Coloca em ação o
método de dramatização na comédia do intelecto, que permite ao espírito
atuar e planejar sua própria trajetória autoconsciente através de leituras, de
composições de textos, que são criados como pretexto de dizer-se, e assim,
autoeducar-se. Operações experimentais, propostas em oficinas promovidas
pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida do Observatório
da Educação/CAPES/INEP-2010.
Palavras-chave
Escrileitura. Alfabeto. Espiritografia. Valéry. Deleuze.
100 • 101
Movimento disparador
O movimento disparador desta pesquisa se deu durante as aulas do
Seminário Avançado O método de dramatização na comédia do intelecto: Valéry
& Deleuze17. Necessitava de um campo empírico, além da pesquisa, para
colocar a espiritografia em ação, o que foi possível através das oficinas
promovidas pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida
Observatório da Educação CAPES/INEP. Grupo de pesquisa coordenado pela
Profa. Dra. Sandra Corazza. Dentre as ações do projeto, foram oferecidas
Oficinas de Transcriações no cotidiano, entre 07 de junho a 25 de agosto de 2011,
na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
As Oficinas de Transcriações operam como atividade de pesquisa, leitura
da realidade, que permite ao espírito andarilho atuar e planejar sua própria
trajetória autoconsciente. Constrói no exercício escrileitor seu próprio
canteiro de experimentações, seu alfabeto, arquiteturas apaixonadas,
informes possibilidades, que são criados como pretexto de dizer-se, e assim,
autoeducar-se. Prima pela elaboração de circuitos espirituais variantes que
atravessam o vivível, mesclando elementos dos detalhes, do inusitado, para
a produção de composições de escrita, oriundas do desejo e da necessidade
espiritual que transborda e escorre, entre outros espíritos investigados nos
campos potenciais da educação, da filosofia e da literatura. Capturando as
forças do pensamento para uma nova escrita do por vir.
Como fazer?
O fazer pressupõe percorrer caminhos, e os eleitos para me fazer
companhia nesta trajetória pedagógica de pesquisa são Valéry e Deleuze,
os quais, com seus conteúdos teóricos, possibilitam criar uma série de
procedimentos para investigação.
Uma pesquisa pós-crítica, pois o método espiritográfico é informe, ou
seja, interroga-se e varia durante todo o processo, não possuindo regras fixas
e rígidas, o que mataria o prazer do inusitado. O método é o de capturas
método Valéry-Deleuze, coordenado pela pesquisadora Dra. Sandra Mara Corazza. Pós-Graduação em
Educação / Faculdade de Educação/UFRGS.
de forças dos textos, das imagens, das musicalidades, de tudo que devém
em vida potente, e construir um alfabeto espiritográfico em educação.
Onde – em uma oficina de filosofia, provocadora de sentidos e produtora
de conceitos – se experimentam sensações, afectos, desejos e se busca es-
crever o indizível em um texto que é tecido da escrita.
Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação é o título de minha
dissertação de mestrado18 e traz neste ensaio as operações espirituais que
possibilitaram sua composição. O Alfabeto de Paul Valéry me chegou
naquela fase de pesquisa tempestuosa, estava em concentração, em meio
a transformações e a um amadurecimento espiritual urgente para tentar
dissipar um pouco as incertezas e planejar um novo caminho no próprio
caminhar da pesquisa, para encontrar meios, e com eles, escrever e viver.
A leitura do Alfabeto foi à inspiração necessária para sair do crítico período,
e um novo desafio também.
Alfabeto
O Alfabeto valéryano é um livro de horas e estações – feito por en-
comenda em 1924, pelo editor René Hilsum – que deveria conter vinte e
quatro poemas em prosa, que acompanhariam pinturas de Louis Jou, sem
as letras K e W (VALÉRY, 2009). Para colocar em ação esses processos,
Valéry inaugura um caderno rosa onde desenha em preto o título ABC,
seguido de suas iniciais: P.V. Na parte direita desse caderno, ele registra
“um determinado estado dos poemas”; na página esquerda, “alguma notas
esparsas e aquarelas” (VALÉRY, 2009). Esse conjunto de apontamentos
passa por várias revisões, lentas e sucessivas na busca pelo sentido do texto.
Valéry busca uma composição formal, com rigorosas leis de fun-
cionamento, uma unidade fechada e singular que trata de C.E.M: corpo,
espírito, mundo. Um macrocosmo próprio uma totalidade fechada, que
encontra no Alfabeto o campo propício e fértil para dizer-se, expor as
tramas espirituais, sem determinações únicas que imitam a realidade, mas
que valorizam o instante, o possível, em meio à diversidade do mundo
e da vida, que se apresentam ao espírito a cada momento.
Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação, título da dissertação de mestrado defendida em janeiro 2013 no
18
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A primeira palavra de cada um dos verbetes começa com uma das
iniciais do Alfabeto, e são páginas de textos breves de uma prosa elegante.
Sua escrita destaca as manifestações e a compreensão de Valéry sobre
assuntos como: o sono, o acordar, o banho, o almoço, as tramas do jogo
amoroso. Esses assuntos de existência singular tornam-se objeto para
definições poéticas, em que o visível devora o que é visto, a cada hora,
sendo estados de ocupação que a alma dispõe.
O Alfabeto, na medida em que se faz, é uma história de auto-
consciência na qual “[...] o que vejo, o que penso “disputam entre si o que
sou” (VALÉRY, 2009, p. 41). Bem como cada objeto, por sua vez, pede um
novo sentido de si, num esforço novo de consciência de si. O renascimento
de cada dia é também renascimento do espírito, da vida que escorre, neste
mundo incompreensível, lírico, um completo drama. A inteligência que “Eu
sou” perpassa este drama e tem na escrita o poder de dizer: “estou aqui”.
Movimentos investigativos
Para que esses movimentos investigativos ocorram, é preciso ter ciência
de como Valéry e Deleuze tratam do tema. Paul Valéry trata o espírito
como o Eu funcional inseparável da matéria, dotado de uma consciência
e inteligência mutável que utiliza seu trânsito pela existência e pensa-se.
Diferentemente de René Descartes, que afirma: Penso, logo existo, Valéry tem
como foco: O que é que em nós está pensando, quando pensa (VALÉRY,
1996)? Um Eu como função do próprio pensamento, Eu não como essência
“Ego”, mas como atividade funcional para pensar. Um espírito operador
que compõe uma comédia do intelecto à medida que se mostra a si mesmo à
luz do dia. Um Eu operador consciente, Eu puro como Leonardo Da Vinci,
que “guarda, esse espírito simbólico, a mais vasta coleção de formas, um
tesouro sempre claro às atitudes da natureza, um poder sempre iminente
e que cresce de acordo com a extensão de seu domínio” (VALÉRY, 1998,
p. 55).
Valéry tem apreço pela presença da voz ou vozes na escrita literária.
Dos personagens dos textos literários, volta-se para os mecanismos do
pensamento-palavra, os quais possibilitam jogos e trocas que quebram
os silêncios, abrindo espaço para a criação espiritual e seus ecos poéticos
e epistemológicos. Interessa a Valéry, também, a arquitetura da forma
do texto, seus métodos de composição, nos quais o meio de ocorrência
textual é mais importante do que um fim ou meta. Daí sua reinvenção
do estilo diálogo platônico, em que coloca nas vozes dos personagens
não a busca por uma verdade, mas um meio fecundo aberto a contra-
dições e polêmicas de um espírito que experimenta para melhor ser. Eu
consciente que dialoga se multiplicando em outros “eus”, que produzem
novas imagens mentais de instantes espiritográficos ecoantes.
Utilizando-se da forma diálogos em A Alma e a Dança, Valéry passa a
discutir sobre a arte, tendo na dança seu objeto empírico e o foco voltado
para as relações entre espírito e corpo na dança da vida. Espírito que se
diz na fala de um Eu puro, sem medo, despersonalizado, que se torna
consciência pelo olhar. Sabe, como Monsieur Teste, que entre o Eu claro e
o Eu turvo, entre o Eu justo e o Eu culpado, existem velhos ódios e velhos
acertos, velhas renúncias e velhas súplicas. E que esse olhar necessita de um
método, uma disciplina, ética de trabalho, pensar com rigor aquilo sobre o
que vamos escrever. Um interesse pelo espetáculo do mundo, onde somos
todos espíritos e marionetes de um teatro cômico, tenebroso e, por vezes,
ridículo. “– Sabes, querido Outro, que eu sou um espírito da mais tenebrosa
espécie” (VALÉRY, 1997).
Em Deleuze, o cérebro é o espírito, faculdade de criação, onde “os
conceitos se alocam, se deslocam, mudam de ordem e de relações, se
renovam e não param de criar-se” (DELEUZE; GUATTARI, 1992). As
excitações que movimentam esse espírito recortam o caos formando um
“plano de imanência”. A junção de três “caóides” – arte, ciência e filoso-
fia – desenha mapas mentais ricos em conexões que reagem umas sobre
as outras “e que conduzem ao pleno mar”, repleto de ondas de sensações,
funções e conceitos. Não há porto seguro, mas navegações possíveis na
fenda aberta ardente, onde criar é compartilhar visões extraindo os instantes
fugidios do caos febril, das gélidas sombras, e preparar o espírito como
gatilho para o próximo salto no firmamento.
Sujeitos que, como enfatiza Deleuze (1972-1990, p. 134), “[...] são grãos
dançantes na poeira do visível, e lugares móveis num murmúrio anônimo”.
Espíritos que passam a acompanhar essas danças dramáticas em meio à
104 • 105
vida com Deleuze (1997, p. 11), que afirma que “a literatura está do lado
do informe, ou do inacabamento [...]”. No qual: “Escrever é um estado de
devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se [...]. É um processo,
ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”. Um
exercício vampiresco, imagético do pensamento, colocando-se com gozo
filosófico no lugar de um ser espiritual com o qual me ocupo.
Dissipando neblinas
Trata-se de um exercício noológico, investigando imagens do pen-
samento, dissipando neblinas transcendentais ilusórias, pois não há um
começo constitutivo, um modelo para copiar. Sabendo que “a subjetividade
empírica se constitui no espírito sob efeito dos princípios que o afetam; o
espírito não tem as qualidades próprias de um sujeito prévio” (DELEUZE,
2001, p. 20). Em sua obra Conversações, Deleuze fala em noologia como
“estudos das imagens do pensamento”. Uma imagem do pensamento como
um sistema de coordenadas, dinamismos, orientações – o que significa
pensar e “orientar-se no pensamento” –, a qual tem variado muito ao longo
da história (DELEUZE, 1990). Pensando com Deleuze, a noologia faz
aparecer à imagem do pensamento, que permite pensar nesta ou naquela
direção; imagem como horizonte, reservatório, relação de forças sensíveis
para a construção de mapas do pensamento. Em que o tempo filosófico
é de coexistência que não exclui o antes e o depois, mas se superpõe
numa ordem estratigráfica.
O texto então desliza entre operações de espíritos criadores e compõe
um método espiritográfico, que efetua mergulhos na água da vida, através
de exercícios de linguagem. Água viva que transborda, “[...] massa
indiferenciada, a infinidade dos possíveis, contêm todo o virtual, todo o
informal” (CHEVALIER, 1998), reservatório de energia de um espírito
que age diretamente por si mesmo, enquanto lê e escreve. Tem na escrilei-
tura uma infinidade dos possíveis de uma composição do pensar andarilho,
rico em virtualidades errantes. Desafios entre correntes de escrita e leitura
como um tiquetaquear que pulsa veias, do sangue que bombeia coração e
intelecto, imenso reservatório de energia vital.
Fome antropofágica
O Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação é também composto
de vinte e seis letras que tratam do conceito espírito, servindo como mola
propulsora ao espírito escrileitor e para suas produções espiritográficas
possíveis. Há neste processo uma fome antropofágica de um pensar
circulovicioso, como o da serpente que morde seu próprio rabo. Um
“serpensamento”, uma forma de pensar (CAMPOS, 1984) que por vezes
torna-se protagonista voraz e satânica e que serpenteia nos labirintos do
espírito mordendo o que pode. Fato que gera alterações de vozes: mais
suave, indignada, persuasiva, delicada, irônica sem descuidar da leveza,
como nos lembra Italo Calvino, ao falar em Valéry: “É preciso ser leve
com o pássaro, e não como a pluma”. Escrita espiritográfica variante em
“busca da leveza como uma reação ao peso de viver” (CALVINO, 1990,
p. 28). Escritas tecidas em alinhavos, nas oficinas promovidas pelo Projeto
Escrileituras. Seus desdobramentos, sua construção e arquitetura em meio
à vida, movimentos e formas operatórias na educação e também na filo-
sofia e na literatura.
Aludindo novamente a Valéry, quando fala em Descartes e seu pen-
samento vivo, não se trata de uma doutrina que pretende ensinar qualquer
coisa da qual não sabemos absolutamente nada, mas um método que opera
“[...] transformações sobre aquilo que já sabemos algumas partes, para daí
extrair ou compor tudo quanto do assunto podemos saber” (VALÉRY, 1952,
p. 27). Uma aventura do espírito humano, dedicada a pensar o ser espiritual
que elabora conceitos e a analisar a inventividade das matérias textuais
e da vida como processo de geração das paixões da inteligência.
A própria criação do processo espiritográfico enquanto ele se faz
fluxo de escrita afirmativa, mais do que espíritos e conceitos relacionados
facilmente identificáveis, trata-se de fases – palavra valéryana – que se
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descobrem, momentos que se revelam pela proximidade à disposição de
forças do sujeito que lê e escreve. Estados de existência compositiva, tendo
na grafia da palavra regada, no conceito dramatizado, um valor potencial
de uma escritura que emerge do punho, da mão que rabisca, expressando
os pensamentos de um espírito amante que atravessando desertos, encara
mistérios, transmutações, sonhos e percepções insones. São tramas – como
alude Valéry – que se apresentam ao espírito, uma diversidade em meio
à qual não há uma determinação única e ilusória que imita o real, mas o
possível-a-cada-instante de um texto que se compõe.
Os movimentos do espírito procuram decifrar o que está além de o que é
espírito. Para tanto, evoco Gilles Deleuze e o seu método de dramatização
(DELEUZE, 2006) que se junta a Paul Valéry na construção do alfabeto
espiritográfico. Assim, ampliam-se os campos exploratórios mais vastos
para um conjunto de “[...] coordenadas múltiplas que correspondem às
questões quanto? quem? como? e quando?” (DELEUZE, 2006, p. 112). Isso,
para investigar como opera um espírito nos campos pedagógicos, filosóficos
e literário, nos quais o já criado nesses três domínios transcende e afirma
uma nova composição, e com ela faz dos exemplos empíricos de escrita
uma aventura do informe, em que “É do ‘aprender’, e não do saber, que as
condições transcendentais do pensamento devem ser extraídas” (DELEUZE,
2006, p. 238). Acompanha este andar aventureiro – que possui e é possuído
– as sedes de conhecer, o pensar imediato, as alegrias de perceber, de
“[...] sentir iluminar-se pouco a pouco um reino de inteligência – reaviva
indefinidamente cinzas secretas da alma. Cada aurora é primeira. A ideia
que chega cria um homem novo” (VALÉRY, 2009, p. 47).
As Oficinas de Transcriação, promovidas pelo Projeto Escrileituras
tornaram-se um meio de efetivação dessas efervescências espirituais.
Momentos de capturas férteis, de encontros de vida num campo pro-
cessual mesclado de pesquisa, criação e inovação. Um laboratório-oficina,
um ateliê de experimentações espirituais e operatórias que primam pela
elaboração do pensar, junção de três caóides – filosofia, ciência, arte – em
ação dialógica e co-criativa. E nesse movimento potencial compositivo,
costura e tece pensamentos enquanto investiga: o que pode um espírito
escrileitor?
Conatus-Encontros
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Labirintos espirituais
Referências
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. (Tradução Ivo Barroso). São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: A serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
CORAZZA, Sandra Mara. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In:
HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá,
EdUFMT, 2011b. (Coleção Escrileituras)
DELEUZE, Gilles. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, 1972-
1990.
______. Diferença e repetição. (Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de Janeiro:
Graal, 2006.
______. Crítica e clínica. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, 1997.
______. Lógica do Sentido. (Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes). São Paulo: Ed.
Perspectiva, 2003.
______. A ilha deserta e outros textos. Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo:
Iluminuras, 2006 (Org. Luiz B. L. Orlandi).
110 • 111
DELEUZE, Gilles. Désir et plaisir. Magazine Littéraire. Paris, n. 325, oct., 1994, p. 57-65.
______; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
______; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Ed.
Escuta, 1998.
MILLER, Henry. Trópico de capricórnio. (Tradução Aydano Arruda). São Paulo: IBRASA,
1974.
SPINOZA, Benedictus de. Ética. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2007.
VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. (Tradução Marcelo Coelho). Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
______. Monsieur Teste. (Tradução Cristina Murachco). São Paulo: Ática, 1997.
______. O pensamento vivo de Descartes. (Tradução Maria de Lourdes Teixeira). São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1952.
______. Alfabeto. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
A Produção de escrileituras na
problematização do mal-estar docente:
um estudo com os professores da rede
pública estadual de ensino do RS
Resumo
O presente trabalho trata de uma investigação realizada com os professores
da rede pública estadual de ensino do RS, sobre a temática mal-estar docente
(ESTEVE, 1999). Por meio de abordagem metodológica mista, procurou-
se averiguar a incidência do fenômeno, bem como problematizá-lo a partir
de Ateliês de escrileituras (CORAZZA, 2010). Neste texto, enfocam-se os
resultados qualitativos produzidos por intermédio da produção de escrileituras,
os quais indicaram outras possibilidades para conceber o mal-estar docente,
tais como a relação com um discurso depreciativo sobre a docência e a
existência de satisfação no exercício da profissão.
Palavra-chave
Educação. Mal-estar docente. Filosofias da Diferença. Escrileituras.
112 • 113
Uma pesquisa sobre o mal-estar docente
114 • 115
se insere em um conjunto maior, o Programa Observatório da Educação
(EDITAL 38, 2010), sendo fomentado pelos órgãos Federais Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). No
decorrer dos seus quatros anos de desenvolvimento, fortaleceu-se como uma
maneira de se fazer educação, cultivando as escritas autorais e inventivas,
rompendo com os modelos que pautam os processos educacionais.
Integram o projeto universidades19 que compõem os chamados Núcleos
de Escrileituras. O Núcleo UFPel, especialmente, do qual esta pesquisa
fez parte, planeja e desenvolve Ateliês formados pela combinação de
dispositivos filoliterários, oferecidos ao público educacional, em âmbito
geral. Dessa forma, o plano para o decorrer desses encontros baseou-se na
ideia de agenciamento (SILVA; CORAZZA, 2004, p. 158), pela qual há
“[...] o arranjo, a combinação de elementos heterogêneos, díspares, fazendo
surgir algo novo, que não pode resumir a nenhum dos elementos isolados
que o compõem [...]”. Contou-se, assim, com a eficácia de um conjunto de
subsídios múltiplos, tendo como ponto de partida o tema em estudo, para
produzir intensidades e outras existências.
19
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT) e Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
20
É o nome dado ao arquivo de áudio digital utilizado como recurso tecnológico.
Filosofia é difícil, a gente trabalhar com Filosofia... Assim... É engraçado. Primeiro
porque de alguma forma mexeu comigo, daí eu comecei a anotar e anotar. [...] Então,
de alguma forma aquilo mexeu comigo, me produziu um sentimento, me provocou,
mas é claro que eu não pude ficar até o fim. Tal estranhamento provavelmente
se faça presente por experienciarem uma prática de linearidade e
homegeneidade curricular, normalmente observada nos planos existentes
em ambientes escolares,
Logo de início, após a apresentação da proposta escrileituras e da
pesquisa acerca do mal-estar docente, o primeiro subsídio21 utilizado
causou desconfortos, vigores e conversações. Evidenciou-se que a saga
metamorfoseada demonstrada na ficção teceu provocações na vida do-
cente, pela ênfase dada em situações de descaso, abandono e confor-
mação demonstrados no personagem principal, Gregor. Um dos educa-
dores, entretanto, manifestou-se destacando que se está em uma situação,
sempre inconformado com ela, alertando para o fato de que nem todos os
profissionais estão conformados com a realidade em que vivem ou que
lhes é imposta.
Na continuação, ao apresentar fragmentos do vídeo Café Filosófico
(TIBURI, 2012; MACHADO, 2012) complementados por trechos do filme
“Quando Nietzsche chorou” (2012), abordaram-se os conceitos filosóficos
de Corpo, Alma e Potência de Vida (SPINOZA, 2007) e de Eterno Retorno
(NIETZSCHE, 2009). Esses enfoques levaram à problematização das
maneiras com que recebem a exterioridade educacional, lidando de forma
potencial ou não com o contexto. Nesse sentido, um participante escreve
que a energia que se troca com o aluno também influencia o conjunto, enquanto
outro questiona: Que ser humano é este, que tem uma profissão digna, vem para
escola e fica doente? Precisamos ser felizes no dia a dia, não só na aposentadoria.
Pensa-se que as forças que emanam do ambiente educacional atravessam
a corporeidade constantemente, formando subjetividades (GUATTARI,
116 • 117
1992), por vezes, desanimadoras e adoentadas. O subjetivo é, então,
construído e reconstruído, tendo em vista o nível de afetação que a energia
dos elementos circulantes à volta provoca. Sejam valores, palavras, coisas
e sentidos dados ao que afeta. Portanto, dependendo da maneira como o
profissional lida com o efeito cumulativo desses aspectos, o desconforto
professoral pode torna-se permanente, incidindo na sua forma de viver.
No percurso do Ateliê, os professores destacaram, em meio à produção
de escrileituras, que há uma cultura formada, de que se é culpado (pelos fracassos
educacionais). Esse é o discurso que chega até nós, estando nos ditos da mídia, da
Universidade e sociedade. Tais dizeres depreciativos da profissão ganham
força na repetição, sendo instituídos como verdades absolutas, o que foi
considerado pelos partícipes como um fortalecedor do mal-estar docente.
Na medida em que o profissional passa a crer nesse conteúdo, tem sua
autoestima afetada e menos ânimo para o exercício da profissão. Salienta-
se que a linguagem pode ser constitutiva de um pensamento, nesse caso,
desanimador da docência.
Quanto aos poldcasts produzidos por meio do arranjo de variadas
escrileituras realizadas ao longo do Ateliê, destaca-se “A vaca”, apresentado
no final do encontro. Esse conferiu aos educadores uma representação
pejorativa da categoria, a qual se insere no discurso antes mencionado.
Em uma escrita provocativa, o relato compara o profissional ao animal,
retratando as falas dos alunos quando desagradados pelas atitudes docentes:
Aquela vaca me rodou, me botou na rua, não me deu dois décimos [...]. Percebe-
se que o ato de escrileiturar, aqui, efetivou-se a partir das intensidades
produzidas no Ateliê atrelado a arranjos com a própria profissão, fazendo
pensar sobre qual imagem o educador faz de si, como presume que o veem
e, mais ainda, como que isso pode fortalecer sintomas de desconforto no
exercício da atividade docente.
O segundo Ateliê, Rabiscos de sensações na produção de um corpo crian-
ceiro, conjugou atividades e brincadeiras do mundo infantil, também,
com aportes literários e filosóficos distribuídos em circuitos. No decorrer,
foram realizadas escrileituras professorais, finalizadas na elaboração de
um livro coletivo. A vivência nesse encontro pareceu aos professores
menos densa do que a experiência proposta no Conatus, demonstrada,
por exemplo, na fala da professora sobre aquilo que lhe passou durante o
Ateliê, possuindo caráter lúdico de ativação de um estado crianceiro na vida
cotidiana: eu posso me expor, eu posso brincar, eu posso cantar, eu sou desengon-
çada. Certo! Eu posso ser mais autêntica.
No circuito inicial, os sujeitos de pesquisa experimentaram um conjunto
de brincadeiras22 do mundo infantil que, ao mesmo tempo em que trouxeram
leveza à rotina escolar, desestabilizaram momentaneamente a corporeidade
dos participantes. Dando continuidade, o ciclo seguinte possibilitou aos
professores o contato com alguns tipos23 de brinquedos, além da apresentação
de subsídios literários (BARROS, 2012; BARROS, 2012; CORTÁZAR,
2009). Acreditou-se que, ao vivenciar essas etapas do Ateliê, os educadores
tenham sido capturados pelos signos (DELEUZE, 1992) que tais dispositivos
provocaram, escrevendo: busca-se aguçar o imaginário, brincar com as coisas do
mundo, vendo a vida de um jeito crianceiro; ou ainda: só os poetas brincam com as
palavras? Claro que não, quanta pretensão, os professores brincam com as palavras.
A apresentação de trechos do Abecedário (DELEUZE; PARNET, 1997),
além da projeção do vídeo ‘Pensamento infantil’ (2012) e do livro ‘Mania
de explicação’ (FALCÃO, 2001) compôs o último circuito de atividades.
Ao final, os professores foram convidados a elaborar um livro coletivo que,
dentre as escritas, trouxe a seguinte: antes caminhava sozinho, sem rumo, sem
destino, mas com o tempo fui encontrando mais colegas e, assim, a caminhada ficou
mais alegre, descobrindo muito mais. Tal percepção reporta que o encontro
com o próximo institui um momento de troca de singularidades (ESTEVE,
1999), seja ela sobre a problemática escolar, acerca de assuntos pessoais
ou constituída desde a participação em cursos ou eventos, no caso desta
investigação, em Ateliês de escrita e leitura.
Túnel de tecido, bola, elástico, bolinha de sabão, futebol de mesa, bonecas e outros.
23
118 • 119
Escrileituras em meio à vida: desterritorializando
o mal-estar docente
CORTÁZAR, J. Discurso do Urso. Tradução Leo Cunha Rio de Janeiro: Alerinha Record,
2009.
_____. A literatura e a vida. In: Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. Disponível em:
<http://books.google.com.br>. Acesso em: 28 nov. 2013.
_____. Sobre a filosofia. In: Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
ESTEVE, J. M. O mal-estar docente: a sala de aula e a saúde dos professores. 3. ed. Bauru:
Edusc, 1999.
120 • 121
QUANDO NIETZSCHE CHOROU. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?
v=h8kjJUPvOmw>. Acesso em: 24 set. 2012.
Resumo
A partir dos estudos de Michel Foucault, nessa dissertação analisou-
se de que modo as escolas atuam enquanto dispositivos de poder-saber
que, configurados como estratégias e táticas, constituem os indivíduos
sequestrados por elas, as crianças, por meio de uma ideia de infância.
Decorrente disso investigou-se a que objetivo histórico tal investimento
atende. Para tanto estudou-se o conceito foucaultiano de dispositivo, nas
perspectivas disciplinar e de segurança, e como ele atua na constituição
dos indivíduos. Após, analisou-se as considerações do filósofo acerca das
instituições escolares e algumas práticas escolares de duas instituições de
ensino do Estado do Paraná, uma delas vinculada ao Projeto Escrileituras.
Para tal análise o dispositivo de infantilidade cunhado por Corazza teve
centralidade, o qual investe os pequenos para constituí-los como um povo por
vir, o que pode ser observado nas práticas das escolas paranaenses. Por fim,
a pesquisa apontou possibilidades de a escola atuar enquanto um dispositivo
no qual se exerce ações sobre as ações das crianças, no sentido de afetarem
seus pensamentos para que produzam novas formas de existência, novos
valores para si, o que parece ser algo possível se forem observadas as práticas
na escola de Toledo na qual funciona o Projeto Escrileituras.
Palavras-chave
Dispositivo. Poder-saber. Escola. Infantilização. Foucault. Corazza.
122 • 123
Dispositivos
124 • 125
escolas Hypólita Nunes, em Guarapuava e Andre Zênere em Toledo, na
qual funciona o Projeto Escrileituras. Constatou-se que ambas as instituições
educacionais possuem aspectos dos dispositivos disciplinares e de
segurança. Na perspectiva disciplinar vê-se que as crianças da população
são sequestradas para o interior delas e passam a ser alunas: assim, elas
ocupam determinado lugar planejado (salas de aulas, anos/séries escolares);
possuem seu tempo controlado (lhes dão determinadas atividades em certos
tempos para que as executem); aprendem os conteúdos de forma gradativa
(aprendem a segurar o lápis, depois a desenhar, em seguida a escrever); as
funções que seus corpos executam estão em relação com as dos demais
alunos para que o aprendizado lecionado nessas instituições tenha efeito.
Em virtude disso, pode-se vigiar as crianças no cumprimento de seus deveres
e no seu modo de agir; pode-se avaliá-las de modo a edificar saberes sobre
cada uma delas (com a ajuda de outros dispositivos que também produzem
novas formas de comparação do ser humano, tais como o médico, a família);
a partir das avaliações que dizem sobre quem ela é, quando constatado que
não alcançam o índice instituído como normal, recebem castigos que visam
corrigi-las tais como aulas de reforço, a repetição das lições, entre outros.
As escolas também possuem características de dispositivos de segu-
rança: nos estudos de Foucault, assim como nas práticas das escolas
paranaenses observadas, percebe-se que elas atuam diretamente no aspecto
biológico da população que atendem: educam as crianças visando sua saúde,
como por exemplo, na perspectiva da sexualidade – que não devem fazer uso
de seu sexo –; e no controle de doenças – cuidar para que possíveis doenças
não se espalhem na população de modo que o índice de normalidade
desfavorável sobressaia ao aceitável.
As crianças são educadas nas escolas por dispositivos que partem de
saberes considerados verdadeiros. Significa que se constituiu para esses
pequenos, um modo de ser e de agir, o qual fora configurado como uma
ideia, a infância. Nessa ideia elas foram consideradas fracas, débeis,
dependentes de adultização correta e, a partir disso, são educadas, laboradas
e constituídas como sujeitos: isso implica a edificação de determinada
população planejada para o futuro a fim de atender a urgência local que
se impõem.
As escolas e o dispositivo de infantilidade
126 • 127
fazê-las viver. Corazza também defende a tese de que se trata de vida-
morte da infância o procedimento de adultização das crianças na medida
em que busca-se tirá-las da condição de dependentes, pois as inserem na
vida adulta.
Quando Corazza analisa as Casas da Roda, instituições nas quais se
abandonavam as crianças, percebe-se que as práticas sobre os corpos dos
pequenos entram num aspecto disciplinar e biopolítico o que permite
instrumentalizá-los: os expostos abandonados na Roda eram batizados,
enviados a outras famílias que eram pagas para cuidá-los e quando
retornavam à Roda, ainda eram enviados a arsenais de guerra (no caso dos
meninos) e para, trabalharem como domésticas (no caso das meninas): essas
medidas visavam aproveitar as forças desses corpos de modo a bem utilizá-
los, como por exemplo, para que aumentassem as forças internas do Estado
que habitavam com seu trabalho; para que formassem famílias nucleares,
no âmbito burguês o que implicaria numa população moralizada que não
usasse seu sexo de forma desregrada e disseminasse crianças que poderiam
ser novas expostas.
Isso significa dizer duas coisas: a primeira é que foi constituída para
a infância, um modo de ser e que, a partir dele, se instrumentaliza esses
indivíduos. Também, significa dizer que nessa forma de infância, educam
as crianças de três formas: quanto ao sexo, pois, seus corpos foram
concebidos nessas relações que muitas vezes eram ilegítimas – induziam-
nos a formação de família nuclear, ao casamento –; adultizando-as
biologicamente – controlando o crescimento de acordo com saberes
verdadeiros – e disciplinando-as para que se governem nos modos de
vida considerados corretos.
As escolas participam desse contexto de infância, com vistas a constituir
sujeitos que formem uma população planejada. Elas educam as crianças
nessa ideia, mas também, as retiram da condição de infantil, tornando-
as, adultas, ou seja, essas instituições atuam no indecidível da vida-da-
morte da infância. Educar as crianças nesse conceito de infância permite
instrumentalizá-las para uma necessidade histórica que impõe: induzem-
nas a participar do modo de vida burguês pré-estabelecido, assumido como
verdadeiro pelo Estado. Sendo assim, as escolas, ao servirem ao Estado,
visam educar o sexo, bem adultizar e tornar cada pequeno capaz de se
governar na moral pré-estabelecida. As escolas paranaenses observadas
operam o dispositivo de infantilidade nesses três campos: visa-se bem
adultizar as crianças, controlando seu desenvolvimento biológico quando
regulam merendas, quando impõem atividades nas quais desenvolvem
coordenação motora; almeja-se o controle de seu sexo, o que mostra que
não poderão praticá-lo nessa idade; e também, a partir de processos discipli-
nares, instituem formas de conduta consideradas corretas, pelas quais as
crianças deverão guiar-se, ou seja, elas aceitam essas formas como verda-
deiras e se monitoram nelas, sem que haja a necessidade do dispositivo
que as vigiam. Guiando-se nessa moral, sobretudo sexual, sendo bem
adultizada, forte capaz de esperados desempenhos, as crianças se en-
quadram na perspectiva de adultez que propicia a manutenção do tipo de
vida burguês, o qual implica a manutenção das forças estatais.
Após este estudo, questiona-se: se as escolas, são dispositivos que, ao
operarem o dispositivo de infantilidade, participam da instrumentalização
das crianças de modo que partilhem de uma mesma moral de um tipo
de vida pré-estabelecido, significa que essa instituição não permite outras
possibilidades de vida? Não, exatamente. Há instituições escolares
como a escola Andre Zênere em que funcionam projetos como o Escri-
leituras, o qual, por meio de Oficinas de Transcriação visa afetar os alunos
de forma que seus pensamentos não se limitem a atos de recognição, que
apenas reconhecem os valores morais e forma de vida pré-estabelecida, mas
que produzam novas formas de se viver, que deem novos significados às
coisas. Se, como diz Foucault, todos se encontram nas malhas do poder
e onde se passa, exerce-se e sofre seu exercício pelas ações, as ações dos
oficineiros do Escrileituras atuam sobre as das crianças, atuando como
violência positiva na medida em que afetam seus pensamentos movendo-os
a produzirem novos significados e novas formas de vida.
Em suma, conclui-se que, se um dispositivo escolar investe as crianças
no conceito de infância para que se constitua numa população moralizada
e com corpos saudáveis para certos desempenhos que mantenham o
Estado, se por essa instituição, visa-se educar as crianças em saberes e
morais instituídos como verdadeiros, há, também, nos aparatos escolares,
128 • 129
brechas que possibilitam produzir estratégias como essas das oficinas do
Projeto Escrileituras que saem dos moldes da disciplina dura da instituição:
significa que as escolas, apesar de muita resistência, permitem a produção
de perspectivas nas quais os alunos constituam-se como sujeitos criadores,
que inventem aberturas para outros modos de vida. Deste estudo, que se deu
entre livros e escolas, em meio à vida, produziu-se questões que impelem
a pesquisa a seguir adiante, quais sejam: como as escolas poderiam atuar
enquanto dispositivo que permite aos sujeitos constituírem-se enquanto tais,
fora dos moldes do poder-saber enrijecido? Faz sentido pensar as escolas
enquanto dispositivos que propiciam forças que violentem positivamente
o pensamento das crianças, provocando-as a produzirem novas formas de
existência? Como o exercício de poder poderia atuar nessa perspectiva?
Estas são questões a serem abordadas num estudo posterior.
Referências
CORAZZA, S. M. História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância
sem fim. 1998. 619f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 1998.
_____. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 34. ed. Petrópolis, Vozes, 2007.
DIdática
& tradução
A voz acena: a presença da
voz na cena da aula
Resumo
A voz do professor, na cena da aula, tem um protagonismo e é utilizada como
parte fundamental para desenvolver os procedimentos envolvidos no ensino.
Sob a expectativa de que algo seja comunicado, marca a presença. Na cena
da aula o comando é da voz. Nela, tem-se a impressão de que o professor
fala para seus ouvidos, para ouvir a sua voz, para si, para emitir a voz. Ele
precisa de audiência e não necessariamente de ouvintes. A regência dessa
cena pela voz foi aqui estranhada e desterritorializada pela discussão que se
faz na filosofia da diferença de fonte derridiana. Do projeto Escrileituras: um
modo de ler-escrever em meio à vida OBEDUC/CAPES/INEP/UFMT, a partir
da Oficina de Biografemas, uma forma de intervenção, resultou a construção
de um Phonodidaticário.
Palavras-chave
Voz. Aula. Cena. Escrileituras. Phonodidaticário.
132 • 133
Do começo
134 • 135
alunos. Esta comunicação desencadeia uma gama rumorosa de vozes:
thorubos. “Rumor da multiplicidade de vozes” (COSTA, 2011, p. 13). A boca
professoral que fala e a “orelha ouvinte” do aluno: ambiente para colocar
em funcionamento o método glótico24.
A voz e a cena: a cena da aula está incrustada do tempo cotidiano, o
qual a viu nascer. E neste tempo, a voz do professor é atenuada pela escuta
criativa do aluno. Esta relação glote-timpânica precisa ser pensada naquilo
que sugere, esconde, dissimula, neste espaço performativo.
O ritornelo desta oficina foi pensar a voz e o seu uso pelo professor
como uma forma de atravessar e problematizar os caminhos deste trajeto
(ou seria manejo?) pedagógico, através de um deslocamento deste lugar,
dito por Nietzsche, como marcado por ser do professor, o lugar daquele
que fala, cabendo ao aluno ser aquele que escuta. O professor necessaria-
mente precisa ser o detentor do direito da fala?
Do roteiro:
Rubricas: do Projeto Escrileituras. Foi concebido, como sendo dispa-
rador de cenários que pensam a Educação com e na vida e, “[...] como
um território vivo de procedimentos, que atualizam e que ressoam o
problema na leitura e na escrita.” (DALAROSA, 2011, p. 12).
Atos: modalidades de oficinas: filosofia, teatro, lógica, música, bio-
grafema e artes visuais. Cada tipo de oficina compreende uma aborda-
gem procedimental diferente em relação à leitura e a escrita.
Meio: biografema como uma possibilidade de experimentar a voz
através de escritas vividas. Corazza (2010, p. 86) atenta para o fato de
que este método “[...] não pode ter por objeto, senão a própria lingua-
gem [...]”, na “[...] medida que serve para baldar todo o discurso que
pega”.
Fim: construir, através de Oficinas de Transcriação do tipo Biografemá-
ticas, um Phonodidaticário para colocar a voz do professor para bailar
na aula.
Para dar conta desta intenção, usei como apoio, um recurso criado para a discussão que realizo na dissertação: A
24
136 • 137
inscrevendo o percurso da vibração das pregas vocais à vibração do tímpano.
Trata-se, portanto, de uma filosofia da voz, associada a uma política da
escuta.
Marcia: “Se não há quem diga o que e como fazer, só nos resta
inventar”.
Magna: “Aula não é uma lição sobre determinado conteúdo, onde se
usa a experiência para ensinar?”.
Jairo: “Para facilitar o conteúdo a ser aprendido, ajuda trazer a aula
para o mais próximo da realidade dos alunos”.
Lucineide: “Eu aconselho muito, falo muito das minhas experiências
para ensinar para os meus alunos.”.
138 • 139
“A aula se dá igualmente como uma série de conselhos, de pre-
ceitos. Em outras palavras, como um conjunto de regras de conduta.”
(DERRIDA, 1999, p. 25).
140 • 141
Golpe – na glote. O professor ao senti-lo emudece, e se tiver
juízo o usa como material didático.
Histeria – sinal que o recreio vem por ai. É a fome que grita.
Joia – o aluno mudo, que não atrapalha.
Lamento – recurso vocal didático. O professor adora a ele recorrer.
Limite – sempre o da voz e até onde ela aguenta.
Louco – o aluno que o professor fala, fala, fala e não aprende.
Medida – do currículo, do plano, da didática. Resolve “tudo” na teoria,
mas quando comanda a aula, fala pouco.
Mastigação – a voz do professor morde a aula.
Nudez – do professor quando sustenta “uma” verdade.
Ouvidos – dos alunos. “Parecem ter ficado desobedientes”
Orelha – encostada na carteira, mostra que a aula não funcionou.
Peculiar – as barreiras verbais que cada um tem. São os
“então”, “daí”, Ra -rã”.
Quente – a garganta no final da aula.
Razão – pirotecnia que explode a aula.
Sacrifício – homilia da voz que faz a aula parecer uma igreja.
Aconselho: extirpe da sua sala para a voz funcionar.
Talento – presente no aluno que faz tudo o que o professor quer.
Umbigo – ligação dos alunos à voz do professor.
Verdade – mentira que Platão inventou para manter a
sua voz a seu serviço. Fique esperto!
Vertigem – torpor que sugere a proximidade com a criação.
Xingamento – para o velho hábito que amortece nossas
quedas e impede a voz de mudar.
Zunido – do thorubos, na aula.
Referências
AZEVEDO, Alessandra Christina Arantes Abdala. A voz acena: a presença da voz na
cena da aula. 2013, 155 p. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação,
Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2013.
BARTHES, Roland. O grão da voz. (Tradução Anamaria Skinner). Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1988.
CORAZZA, Sandra Mara; AQUINO, Julio Groppa (Orgs.). Dicionário das ideias
feitas em educação. Ilustrações Mayra Martins Redin. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2011.
_____. Introdução ao método biografemático. In: FONSECA, Tania Mara Galli, COSTA,
Luciano Bedin da (Orgs.) Vidas do fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2010.
COSTA, Luciano Bedim da. Estratégias biográficas: o biografema com Barthes, Deleuze,
Nietzsche e Henry Muller. Porto Alegre: Sulina, 2011.
_____. A farmácia de Platão. (Tradução Rogério da Costa). São Paulo: Iluminuras, 1991.
_____ No escribo sin luz artificial. Valladoliz: Ediciones Mauricio Jalón, 1999.
_____ Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004). (Org. Ginette
Michaud, Joana Masó, Javier Bassas; Tradução Marcelo Jacques de Moraes; Revisão técnica
João Camillo Penna). Florianópolis: Ed. da UFSC, 2012.
142 • 143
MONTEIRO, Silas Borges. Notas/Siglas/Sons. In: Heuser, Ester Maria Dreher (Org.).
Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. (Coleção
Escrileituras)
Wagner Ferraz
Samuel Edmundo Lopez Bello
Resumo
Essa pesquisa se desenvolve no campo da Educação atravessada pela dança na
perspectiva das Filosofias da Diferença de Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Com isso, pensa-se um movimento infinito que pode se dar entre a educação
e criação de corpos como possibilidade de educar a si mesmo nos instantes
de uma vida dançante. Para com isso compor o conceito “corpo a dançar”
se utilizando do Método Coreográfico para produzir movimento na pesquisa
coreografo os intercessores que no encontro com o pensamento colocam
este a pensar, constituindo um texto coreografia. Movimentos “entre”, como
condição para o vir a ser de muitos corpos, para a criação, para produzir
diferença, para colocar o pensamento a dançar, seja no campo da educação
ou no campo da dança. Sendo um corpo de e, e, e, e...
Palavras-chave
Corpo, Filosofias da Diferença, Dança, Criação, Educação.
144 • 145
Essa pesquisa... em movimento...
Para pensar uma vida de encontros e de movimentos que aqui são
tomados como dançantes, para pensar uma vida que vai se constituindo
de constante pesquisa, de aprendizados, de acumulação dos conhecimentos
adquiridos em experimentações que dão condições para pensar o que
fazer, como fazer, onde fazer, para que fazer, quando fazer... e ao mesmo
tempo se dá em acontecimentos. Para assim, pensar um corpo que
acumula memórias, experiências, vivências, marcas que o constituem
como um corpo de determinadas práticas25. Até que algo nos acontece, algo
pode se dar em acontecimento.
“... Foucault entende por práticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem
25
(‘sistemas de ação na medida em que são habituados pelo pensamento’), que têm um caráter sistemático (saber,
poder, ética) e geral (recorrente) e, por isso, constituem uma ‘experiência’ ou um ‘pensamento’” CASTRO, 2009,
p. 338.
E assim vive-se educando um corpo para ser “útil” (FOUCAULT,
1987, p. 118) e potente para determinadas práticas e ao mesmo tempo
criando corpos nesse mesmo corpo educado, como possibilidade de vir
a ser outro, de viver movimentos, de sentir a vida deslizar, saltar, girar,
curvar, flutuar... Se tornando o que nomeio aqui de “corpo a dançar”,
vindo a ser um corpo de “e, e, e, e, e...”, uma potência, composições:
um corpo dócil (FOUCAULT, 1987, p. 119) e um corpo que se faz outro
e um corpo que se afeta e um corpo que se movimenta com os modos
aprendidos e um corpo que faz o que nunca fez e um corpo que guarda
marcas e um corpo que se põe a vazar e um corpo que escapa e um
corpo da “multiplicidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 16) e
corpo de “intensidades” (DELUZE, 2006, p. 314) e...
Essa pesquisa se desenvolve no campo da Educação atravessada
pela dança na perspectiva das filosofias da diferença com Gilles Deleuze
e Michel Foucault. A aproximação com essa perspectiva se deu pelo
envolvimento com o projeto Escrileituras: um modo de ler/escrever em meio
à vida, coordenado pela Profª Sandra Mara Corazza, através de oficinas
realizadas no ano de 2011 na Faculdade de Educação da UFRGS. Assim, ao
ingressar no mestrado do PPGEDU/UFRGS, na linha de pesquisa Filosofias
da Diferença e Educação, mantive aproximação com o Projeto Escrileituras
durante o ano de 2012 participando de encontros semanais, eventos,
seminários, demais atividades realizadas. Desse modo, experimentando,
estudando, discutindo, observando diferentes ações nessa perspectiva,
foi possível pensar na possibilidade de coreografar o corpo de minha pes-
quisa, realizando movimentos para produzir diferença, produzir uma
escrita de modo dançante.
26
Com esse corpo quero destacar a possibilidade de criação de corpo que será tratada posteriormente com Deleuze
com o ato de pensar/criação.
27
Quando digo “em um mesmo” corpo me refiro ao corpo materialidade, como superfície de inscrição com
Foucault, onde há possibilidade de criar diferentes corpos de intensidade.
146 • 147
se aprende é para se tornar um corpo fixo, estável, uma representação,
uma imagem de corpo pré-estabelecida, reduzida a imagens anatômicas
e a condições de “adestramento” que dizem quem pode ou não viver
determinadas práticas – uma representação. Como viver a potência dos
diferentes corpos que se pode criar, que se constituem, que se tornam,
sem ficar focado em discursos e conhecimentos que reduzem um corpo a
condições biológicas, estruturais, organismos e seus sistemas inventados
para serem tomados como verdades que dizem o que é um corpo? Talvez
vivendo movimentos infinitos, vivendo um corpo que dança, vivendo um
“corpo a dançar” quando este acontece, para assim se tornar um corpo
que possa dançar, correr, pular, escrever, cantar, falar...
Com isso podemos pensar uma educação que se dá no corpo, que
indica possibilidades de conduzir a si mesmo, constituindo um corpo entre
os processos educativos e processos de criação, pensando uma educação
criadora que se dá “no corpo, com o corpo e pelo corpo” (FERRAZ;
BELLO, 2013, p. 255).
Para isso, foi traçado como objetivo compor o conceito “corpo a
dançar”, para tentar dar conta dessas questões que emergem entre a edu-
cação e criação de corpos, entre corpos/sujeitos e corpos/subjetivação,
entre corpos mensuráveis e imensuráveis, entre representações e
acontecimentos... Corpos (i)numeráveis. Possibilidades de constituir um
si/corpo em movimento/dançante. Pensar a criação de um conceito
que possa se tornar potente para a produção de movimentos infinitos
na educação de corpos.
A numeração ou não, classificação ou não, a (i)mensurabilidade
que atravessa essa pesquisa, penso com a noção de numeramentalidade/
numeramentalização como uma “expressão que designe a combinação
entre artes de governar e as práticas de numerar, medir, contabilizar,
seriar e que, num viés normativo, orientariam a produção enunciativa
de práticas sociais contemporâneas” (BELLO, 2012, p. 93). Então,
para tratar da educação de corpos, utilizarei o termo “mensurável” para
indicar as possibilidades de classificar e, para tratar da criação de cor-
pos, utilizarei “imensurável”, para referir o que se não tem como classi-
ficar.
Entre educação e criação de corpos
148 • 149
No primeiro livro de Gilles Deleuze, “Empirismo e Subjetividade: Ensaio
sobre a Natureza Humana segundo Hume” (2012), o autor já aponta para o
“entre” e o “encontro”, e pensa o empirismo de Hume como o encontro
com dados empíricos onde “uma faculdade é forçada a forjar uma resposta,
a interpretar e a compreender aquilo que lhe afeta (GALLINA, 2007,
p. 123-124)”. Aqui encontro algumas pistas para pensar o “Corpo
a Dançar”, um corpo que se dá a partir dos encontros, criando a si
mesmo nas relações, nas inferências em meios aos acontecimentos. Torna-
se variação de si mesmo nos encontros com o infinito de possibilidades,
um corpo serial que possibilitará a criação daquilo que o próprio corpo se
tornará.
O “corpo serial” (SANCHOTENE, 2013, p. 57) é utilizado para pensar
o infinito de possibilidades, o “entre”, que se dá no ato de pensar. Nessas
possibilidades imensuráveis se dão acontecimentos e o corpo se torna
infinito, sendo sempre possível criar novas possibilidades de corpos nos
instantes em que se dão as experiências no pensamento. Isso faz parte do
que vem a compor o “corpo a dançar”. O corpo serial possibilita pensar o
infinito de possibilidades que pode existir entre o 0 e o 1.
Antes mesmo buscar as referências citadas até aqui, ao ingressar
no mestrado em educação, realizei uma ação dançante intitulada “Não
venha me assistir: Talvez seja uma dança”, com o intuito de me colocar
a pensar corpo, educação e criação com essa experiência. Com essa ação
se produzia desencontros e incertezas planejadas, com “roteiro”, local
e horário (in)determinados. O espectador deveria procurar o artista em
locais e horários “entre”, pois tudo acontecia sempre entre um horário e
outro e entre um ponto e outro da cidade onde se realizou. O que estava
em jogo era a produção de uma presença, de corpos que se dava no trajeto
como uma experiência de si. Posteriormente percebi que deveria usá-la
como “disparadora” (ZORDAN, 2011, p. 4247) para a criação conceitual
proposta.
Com isso tudo que foi traçado até aqui, busquei reunir pistar para
compor o conceitualmente “o corpo a dançar”, para isso se fez necessário
olhar para o conceito de conceito. Deleuze e Guattari dirão que “todo
conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus compo-
nentes” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 23). De Platão a Bergson
encontra-se a ideia de que o conceito é questão de articulação, corte e
superposição, um todo, pois totaliza seus componentes, mas um todo
fragmentário. Os conceitos remetem a problemas, e são esses que lhes dão
sentido e indicam condição para pensar possíveis soluções. Conceituar,
o “corpo a dançar”, certamente, não se trata de produzir uma definição
fechada, fixa, estática, identitária e ordenada, mas se trata de pensar um
corpo que se dá em movimento, entre tudo o que se torna e as possibilidades
do vir a ser. “Para a criação de conceitos, a noção de encontro é muito
importante para Deleuze” (LA SALVIA, 2010, p. 10), pois o novo, o
diferente, o acontecimento que se experimenta num encontro que dá o
que pensar.
Para isso é necessário fazer os planos (de imanência) e os problemas,
assim como é necessário criar os conceitos. “Certamente, os novos
conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos, com
nossa história e, sobretudo com nossos devires” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 36). O plano de imanência “envolve movimentos infinitos que
o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de
movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios
componentes” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 45). Então não se
pode confundir os dois, só existe conceito no plano e só há plano
povoado por conceito. “Os conceitos são acontecimentos, mas o plano é
o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de aconteci-
mentos puramente conceituais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 46).
Método coreográfico
Usar um método coreográfico em uma dissertação, levando em
consideração que parte dela é estruturada, dura, fixa, e outras partes tentam
dançar, se movimentar... Como colocar a dançar algo que não é de ordem
dançante? Decidi coreografar o corpo dessa pesquisa, da mesma maneira
que se coreografa um corpo que dança. Lançando questões para que esse
corpo tenha condições de afetar quem assiste/lê essa dissertação, pensando
nos leitores dessa pesquisa como público que busca arte, que quer se
movimentar.
150 • 151
Uma coreografia (GIL, 2004, p. 67) pode ser composta de diferentes
modos, flui em algumas de suas partes, é repleta de sentidos. Algumas
possuem tema e título, exploram níveis, direções, referências. Têm,
muitas vezes, tempo cronológico determinado, trabalham com repetições
de cenas, de ações e de movimentos, como Pina Bausch28. Uma coreografia
é feita de momentos que prendem, que dão condições de pensar a partir
dela, de outros que cansam, travam, enroscam, às vezes não tem fim
definido. E como fazer isso com a escrita do texto? Aí está o desafio: criar,
compor, variar, produzir movimentos infinitos, dançar por uma escrita em
um campo científico, buscando na filosofia condições para pensar questões
nesse campo e compor com as artes dançantes de outras formas que
não sejam uma coreografia cênica.
Pina Bausch, coreógrafa alemã, ficou conhecida pelo trabalho desenvolvido com o Wuppertal Dança-Teatro.
28
Umas das características de seu processo de criação é repetição e transformação: “A repetição característica
da pulsão de vida é a repetição diferencial, que ao contrário da reprodução, da qual resultaria um estereótipo,
torna-se uma fonte de constantes transformações. É um movimento de criação que implica no novo, tendo como
imagem a horizontalidade, o desenvolvimento”. (CAMPOS, 2008, p. 06).
disparados por situações vividas no decorrer da pesquisa.. 5) Texto do
“entre” (essa coluna não está dada, mas pode ser criada) – entre todos esses
textos, nos espaços da folha, os leitores podem criar seus próprios textos
durante a leitura.
E como pensar a efetuação de uma pesquisa sem pensar sujeito e objeto?
Com o que foi apresentado até agora na perspectiva do pensamento da
diferença, pensando uma pesquisa do acontecimento, que não pesquisa
“estados de coisas, proposições, objetos, sujeitos, matérias, corpos e
representações” (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004, p. 138-139).
Pesquisar o acontecimento é produzir uma pesquisa no próprio movimento
do pesquisar, é colocar a dançar conceitos, palavras, artigos, livros/leituras,
autores, imagens, pensamentos... Então como manter essa pesquisa em
movimento? Com Método Coreográfico ou de Composição Coreográfica.
Não há um modelo único a ser seguido. Consiste em compor movimentos,
selecionar códigos dançantes, traçar linhas no espaço, estabelecer direções,
níveis, fluxos, fazer escolhas, escorregar no acaso, aproveitar o erro,
codificar movimentos e improvisar outros... “A coreografia materializa
um traço” (MUNHOZ, 2009, p. 18), um texto, uma pesquisa... Para isso
resolvi coreografar intercessores, e com estes o pensamento é colocado
no movimento infinito de um giro no ar. E os intercessores disparam,
no encontro com o pensamento, outros movimentos.
Com Deleuze (1992), podemos pensar os intercessores no científico,
artístico ou filosófico, pode ser também um conceito, uma obra de arte,
um dispositivo técnico, mas é preciso fabricar os intercessores. “Os
intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento
saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores
não há criação, sem eles não há pensamento” (VASCONCELLOS, 2005,
p. 1223). Produzir intercessores é criar possibilidades de movimentos em
devir. Apresento os intercessores criados para essa pesquisa:
1) Artes: Ação dançante29 “Não venha me assistir – Talvez seja uma
dança”. 2) Artes: Texto “Rastros genealógicos de dança: para pensar um
Utilizo o termo ação dançante, pois não se trata de uma coreografia ou espetáculo de dança, mas, sim, de um
29
152 • 153
corpo a dançar”; 3) Filosofia – O conceito de experiência de si de Foucault.
4) Filosofia – conceitos Criação e Acontecimento de Deleuze. 5) Filosofia:
A obra “Empirismo e Subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo
Hume”, de Deleuze. 6) Filosofia: Conceito de Conceito e Plano de Imanência
de Gilles Deleuze e Félix Guatarri. 7) Ciência: Corpo Serial de Sanchotene.
8) Ciência: A educação, classificada como área da ciência, busco pensar
tanto a possível formatação, docilização e regramento da e na materiali-
dade corporal como as possibilidades de criação de intensidades corpóreas.
Com isso se foi pensando, vivendo, experimentando a pesquisa e o
texto foi tomando corpo num processo dançante. O conceito “corpo a
dançar” foi composto como algo que pode ser melhor vislumbrado nos
movimentos de diferentes ordens, na variação da vida e na variação do
corpo, num infinito tornar-se.
CAMPOS, Márcia R. Bozon de. Recordar, repetir, criar: intensidades pulsionais na obra de
Pina Bausch. São Paulo, 2008. Disponível em: < http://www.ip.usp.br/laboratorios/lapa/
versaoportugues/2c71a.pdf>. Acesso em: 29 jul. 2014.
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbert. São Paulo: Ed. 34, 1992.
_____. Espinosa: filosofia prática. (Tradução Daniel Lins e Eduardo Diatahy Bezerra de
Meneses). São Paulo: Escuta, 2002.
_____. Diferença e repetição. 2ª ed. (Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de
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_____. Cinema II: A imagem-tempo. (Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro). São Paulo:
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_____. ; GUATARRI, Félix. O Que é a filosofia? (Tradução Br. Bento Prado Junior e Alberto
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FERRAZ, Wagner; BELLO, Samuel Edmundo Lopez. Estudar o Corpo: do que (não) se
trata. In. FERRAZ, Wagner; MOZZINI, Camila (Orgs.). Estudos do Corpo: Encontros
com Artes e Educação. INDEPIn: Porto Alegre, 2013. Disponível em: <http://issuu.com/
indepininstituto/docs/estudos_do_corpo_encontros_com_arte>. Acesso em: 12 ago. 2014.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 33ª ed. Tradução Raquel
Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
154 • 155
GALLINA, Simone Freitas da Silva. Deleuze e Hume: experimentação e pensar. Revista
PHILÓSOPHOS. V. 12, n. 1, jan./jun. 2007. P. 123-144. Disponível em: <http://www.
revistas.ufg.br/index.php/philosophos/article/view/3388/0#.Ut7uR7RTsdV>. Acesso em:
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GIL, José. Movimento Total: O corpo e a dança. São Paulo: Iluminuras, 2004.
LA SALVIA, André Luis. Por uma pedagogia do conceito. Revista SABERES, Natal/RN,
v. 2, m.5, ago. 2010. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/saberes/Numero5/
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20PEDAGOGIA%20DO%20CONCEITO_7-17.pdf>. Acesso: 02 ago. 2014.
RODRIGUES, Carla Gonçalves. Por uma pop’escrita acadêmica educacional. Porto Alegre:
FACED/UFRGS, 2006. 180 f. Tese (Doutorado em Educação), 2006.
TADEU, Tomaz; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte:
Autêntica, 2004.
ZORDAN, Paola. Disparos e excesso de arquivo. In: 20o. Encontro Nacional da Associação
Nacional de Pesquisa em Artes Plásticas, 2011, Rio de Janeiro/RJ. Anais do Encontro
Nacional da ANPAP (Online). Rio de Janeiro (RJ): ANPAP, 2011. Disponível em: <http://
www.anpap.Org.br/anais/2011/pdf/cpa/paola_zordan.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2014.
Resumo
A pesquisa de mestrado Um modo de ler e escrever na EJA – oficinas biografemáticas
realizada entre os anos de 2012 e 2014 no Núcleo UFRGS aconteceu na
proposição de oficinas biografemáticas, na infiltração e contaminação, nos
movimentos dentro, entre, e, nos desdobramentos do Projeto Escrileituras.
Por tratar-se de um projeto composto por quatro núcleos proponentes, os
movimentos acontecem, como teria de ser, em muitos e diversos territórios,
em diferentes rincões, que se abrem e se articulam em possibilidades
inverossímeis com a arte, a literatura, a música, o teatro, o cinema, fantasias
e fruições. Os integrantes do Projeto Escrileituras encontram potência no ato
de criação textual. Inventam afinidades entre texto e leitores, fazem da leitura
lugar de encontros. Seus integrantes estabelecem ações compartilhadas e
trabalham com o conceito de Escrileitura. O conceito de Escrileitura insere
este Projeto na dimensão imaginativa de toda a escritura ou texto de fruição.
E, como exercício imaginativo, lida com os modos de produção através de
experimentações, tentativas e invenções. O ano de 2012, ano em que iniciei a
minha pesquisa de mestrado, marca o meio do Projeto, que se encaminhava
para um final programado, que procedia em movimentos que mesmo que
descontínuos davam prosseguimento ao desassossego que deu início ao
Escrileituras em 2010.
Palavras-Chave
Educação de Jovens e Adultos. Biografemática. Escrileituras.
156 • 157
“Viver importa mais do que o escrever, a não ser que escrever, seja
– como tão poucas vezes – um viver.”
Cortázar, 2013. p. 58
Para que eu possa dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de
outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne ausente e a
aniquile. A palavra me dá o ser, mas, ele me chegará privado de ser. Ela é a
ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o
único fato que ele não é. (BLANCHOT, 2011, p. 331).
Trocadilho entre inconnu (“desconhecido”) e méconnu (desconhecido, mal conhecido, mal apreciado). (N. de T.)
30
158 • 159
morte”, em uma ambiguidade feminina que não dá ouvidos ao “clamor pela
unidade, sabe que desde o princípio dos tempos foi múltipla.” (CORAZZA,
2002, p. 85). Com as três mulheres – Lou, Anaïs e Marina – e um grupo
de alunos da Educação de Jovens e Adultos do Colégio de Aplicação da
UFRGS31, lançou-se a professora-pesquisadora, tendo, como plano de
contágio e movimento (CORAZZA, 2010), como modo, gesto, insinuação e
infiltração (COSTA, 2011) de pesquisa, as Oficinas Biografemáticas. Entendeu
que esse empreendimento de pesquisa exigiria a articulação do “oficinar” e
do “biografematizar” sem as indicações pessoais, sem conjugações. Oficinar
no infinitivo do traduzir, no infinitivo do inventar. De muitas e distintivas
formas propostas pelos que antes se ocuparam com os biografemas no grupo
de pesquisa, as oficinas foram pensadas de modo a “lidar com a biografia sem
se limitar à história referenciada.” (FEIL, 2010, p. 82). As experimentações
com os textos escolhidos eram propostas no intuito de inventariar com os
alunos “os traços biografemáticos e com eles e sem garantias, lançar-se à
imprevisível produção de biografemas.” E, enquanto prática de pesquisa,
(tentou) “imitar e simular a individuação rítmica da vida, na sua implicação
com a potencialidade de criação e fabulação de vidas novas” (OLIVEIRA,
2010, p. 20; p. 52). Na “tentativa de sustentar alguma forma provisória ao
condenado a desaparecer, ao prestes a ser fuzilado pelos acontecimentos
ditos importantes.” (COSTA, 2011, p. 15).
A pesquisa procurou afastar-se dos campos de conhecimento que
situam a leitura e a escrita próximas ao pesadume de habilidades adquiridas
e as circundam nas searas tristes das dificuldades de aprendizagem e as
classificavam como instrumentos familiares e de possibilidades restritas.
A Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRGS atualmente conta com cerca
31
de 100 alunos no Ensino Médio e séries iniciais. Alguns destes alunos fazem parte do quadro de servidores da
Universidade e atuam em diversas áreas; outros trabalham para empresas, onde desempenham funções variadas,
e alguns são autônomos. A modalidade EJA trabalha por componentes curriculares e não por disciplina, na
busca pelo ensino multidisciplinar e não compartimentalizado. A metodologia utilizada contempla aulas práticas
e expositivas, privilegiando o conhecimento prévio que o aluno adulto já possui. Os professores instigam o
diálogo, o qual promove a inserção do aluno na sua própria construção do conhecimento. As quatro turmas
EM1, EM2, EM3 e EF3, que correspondem aos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio e 4º e 5º anos das séries iniciais,
são frequentadas por alunos que moram no entorno do CAp, com destaque para a Vila Santa Isabel, algumas
regiões de Viamão, outros na Ilha da Pintada e Alvorada, mas o maior número ainda pertence ao município
de Porto Alegre. A faixa etária destes alunos varia entre 18 e 70 anos, e eles buscam o aprimoramento de seus
conhecimentos, além da conclusão do Ensino Médio.
Ao efetuar-se, o texto retomou a leitura e a escrita problematizando-as,
reforçando-as, enfatizando suas estranhezas, sabendo que delas nada é
dado, e suspeitou de tudo que delas escrevia ou lia. Aproximou-se do que
podia servir para encurralar a leitura e a escrita em suas próprias arma-
dilhas, tentou o que pôde para desmontá-las, para em seguida inventar,
com elas, outras relações e possibilidades. Com os alunos das turmas de
EJA que participavam das oficinas, a pesquisa Oficinas biografemáticas – um
modo de ler e escrever na EJA enveredou nos traços, no detalhe “insignificante
que constitui os espaços silenciosos de uma vida” (COSTA, 2012, p. 54).
Tentando desviar-se do estabelecido, “do que deixava de produzir novos
sentidos, tentou encontrar-se em ressonância com uma perspectiva de
contínua liberação e produção do novo.” (COSTA, 2012, p. 54) alinhou-
se ao Projeto Escrileituras naquilo que dá a pensar em Educação, com o
que aí já está de sobra, mas que, sempre, ainda é insuficiente. Fantasiou com
Corazza (2002), um currículo que conjugasse lugares, que incorporasse várias
línguas, que fosse um trabalho em processo, uma estrada em andamento,
um mar a fluir, que combatesse o pensamento que não experimenta, não
prolonga, não abala a confiança da arbitrariedade da língua.
O pensamento da Educação foi tomado como o impensável, que
variava sob as fendas que se criam no próprio pensamento, que fabulava
deslocando e invertendo as possibilidades que hoje são oferecidas na Educação,
sob os mais diversos nomes com que se operam e se instrumentalizam os
conceitos, em todos os níveis e modalidades. O pensamento tomado como
modos de perversão e experimentação, a fim de inventar outros limites
das formas da Educação, outros pensamentos que só dizem o que são ao
dizerem o que fazem. Com Deleuze (2006), considerou o pensamento, em
sua faculdade particular definida, como o que nasce nele próprio e extrai
suas condições transcendentais “não no saber, e sim, do aprender que une
sem mediar a diferença à diferença, a dessemelhança à dessemelhança”
nesse aprender que aqui se conta e se aprende. A pesquisa tentou encontrar
as condições sob as quais algo de novo é produzido, no encontro com os
problemas que surgiam na leitura, inicialmente com os textos das três
autoras e nas ressonâncias destes nos textos dos alunos e, depois, na multipli-
cidade de autores que se aproximaram e de textos que foram produzidos.
160 • 161
Uma pesquisa biografemática
162 • 163
lançar-se em outro texto que vivifica o texto lido sem confundir-se com
ele. Dessa forma, a pesquisa experimentou-se em uma “Biografemática
Frontal” (COSTA, 2011) ao impor o autor como podemos vê-lo em seu
diário íntimo, “o escritor menos a sua obra” (BARTHES, 2003). “Nutrida
pelo imaginário de pegarmos ou sermos pegos pela frente” (COSTA,
2011), trouxe para a visada “os gestos ínfimos, as imagens incongruentes,
as sonoridades inaudíveis”, permitindo-lhe uma “respiração própria”
(PELBART, 2011), um “respiro que atinge corpos” e “desenha máscaras
trocadas e identifica ardis romanescos que subjazem ocultos nas franjas do
vivido” (CORAZZA, 2013).
Na Biografemática Frontal, nas escolhas efetuadas no texto amado,
do que se ama de seu autor, era preciso anotar as minúcias, as que
despertaram e embaralharam os sentidos, como aquelas que de um
sonho lembramos: “senti o cheiro da sala, vi a luz penetrar. ” (NIN,
2011, p. 372). As escritas fizeram-se a partir do desgaste, dos detalhes e
das minúcias, do desmembramento dos textos biográficos que ofereciam
matéria para a escrita, “abertos à criação de novas possibilidades de se
dizer e, principalmente, de se viver uma vida” e “nesse escrever sobre a
vida, havia um inscrever-se sob ela mesma.” (COSTA, 2011). A cada novo
encontro, o biografema ganhava, nas explicações de seus participantes,
outras versões de si mesmo, e algumas imagens eram recorrentes, “como
quando dois carros se arranham, e um fica com a tinta do outro, mas
o espelho retrovisor não cai” (J.C.R., aluno da E.M2, Oficina realizada
em maio de 2013) ou, “ é aquilo que toca a gente, que mesmo diferente
poderia ser da gente” (C.S.F., aluna da E.M1, Oficina realizada em maio
de 2013) e, ainda, “é como escutar a música e ouvir uma coisa no meio
que ninguém escutou antes” (V., aluna da E.M3, Oficina realizada em
maio de 2013). A aposta era em uma escrita feita em fragmentos, com
pedaços de diários, com os textos de alunos, sem ranços ou apegos, escrita
em composições desestruturadas. Os fragmentos como escrita de ruptura,
“na qual o enigma da escrita se liberta da intimidade de seu segredo, para
assim expor-se como próprio enigma que mantém a escrita” (BLANCHOT,
2007, p. 135). “O fragmento como um estraga prazer” (BARTHES, 1995,
p. 234), na medida em que disparava descontínuos pulverizados em
frases e imagens, proliferando pensamentos sem viscosidade, “obtidos
em um tempo, ou em um mundo, sob uma pressão, ou graças a uma
temperatura da alma.” (VALÉRY, 2012, p. 81). Na escrita que não se
apegou à linha cronológica de seus fragmentos, abrindo com eles escavação
para tempos outros, previu-se alguns riscos. Entre os tantos riscos que uma
leitura oferece, a possibilidade dos fragmentos serem lidos como peças
soltas, que não compõem uma totalidade enquanto escrita acadêmica.
Efetivamente não se procurou a totalidade: a escrita reconheceu seus
limites, sabia que alguns de seus fragmentos seriam as únicas versões
de si mesmos. Procurou-se, entre os textos dos alunos e autoras, uma
coexistência, alguns acasos felizes, mesmo que breves e fugazes, para
que com eles, provisoriamente dominados, se pudesse terminar.
Referências
BARTHES, Roland. O Grão da Voz. (Tradução: Anamaria Skinner). Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1995.
_____. Roland Barthes/ por Roland Barthes. (Tradução: Leyla PerroneMoisés). São Paulo:
Estação Liberdade. 2003
_____. Como viver junto. (Tradução Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Martins Fontes,
2003.
_____. O prazer do texto. (Tradução de J. Guinsburg). 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.
_____. A conversa infinita 1: a palavra plural. (Tradução: Aurélio Guerra Neto). São Paulo:
Escuta, 2001.
CORAZZA, Sandra Mara. Para uma filosofia do inferno na educação: Nietzsche, Deleuze
e outros malditos afins. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
_____. Introdução ao método biografemático. In: FONSECA, Tânia Maria Galli; COSTA,
Luciano Bedin. Vidas do Fora: habitantes do silêncio. Porto Alegre: UFRGS, 2010.
_____. Cáoides. In: MONTEIRO, Silas Borges (Org). Caderno de Notas 2: rastros de
escrileituras. Canela: UFRGS, 2011. (Coleção Escrileituras)
CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópio. (Tradução Davi Arriguci Jr, João Alexandre
Barbosa). CAMPOS, Haroldo de; ARRIGUCCI Jr, Davi. São Paulo: Perspectiva, 2013.
164 • 165
COSTA, Luciano Bedin da. Estratégias Biográficas: biografema com Barthes, Deleuze,
Nietzsche, Henry Miller. Porto Alegre: Sulina, 2011.
_____. Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com Nietzsche, Deleuze,
Barthes e Henry Miller. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação.
Programa de Pós-Graduação em Educação. Tese de Doutorado, 2010.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. (Tradução Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio
de Janeiro: Graal, 2006.
NIN, Anaïs. Fogo: de um diário amoroso: o diário completo de Anaïs Nin,1934 - 1937; com
introdução de Rupert Pole e notas biográficas e anotações de Gunther Stuhlmann. (Tradução
Guilherme da Silva Braga). Porto Alegre: L&PM, 2011.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Barthes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
SALOMÃO, Waly. Hélio Oiticica: Qual é o Parangolé e outros escritos. Rio de Janeiro:
Rocco, 2003.
Resumo
Este texto se ocupa da passagem do vivido pelas escrituras. Uma professora
planifica seus trajetos aos afectos, dando consistência nas maneiras de
avaliar um aprender pelas escrileituras. Desenvolve a pesquisa em torno de
seu biografemário. Opera estudos sobre o aprender na perspectiva filosófica
deleuziana (DELEUZE, 1988; 2003). Teve por objetivo cartografar as
transformações subjetivas dispostas na relação de um aprender, relacionando
a Oficina Filodança [realizada pelo Núcleo UFPel em uma escola pública da
cidade de Pelotas/RS] a outras Oficinas do Projeto Escrileituras. Diante da
questão – Como são realizados os processos do aprender de uma professora
e dos estudantes junto às Oficinas de Escrileituras? – é possível afirmar um
aprender em Escrileituras na possibilidade de compor, em textos e mapas, a
trajetória da própria vida.
Palavras-chave
Educação. Aprender. Filosofias da diferença. Projeto Escrileituras.
Biografemário.
166 • 167
– Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?
– Depende bastante de para onde quer ir, respondeu o Gato.
– Não me importa muito para onde, disse Alice.
– Então não importa que caminho tome, disse o Gato.
– Contanto que eu chegue a algum lugar, Alice acrescentou à guisa de explicação.
– Oh, isso você certamente vai conseguir, afirmou o Gato, desde que ande bastante.
Carroll, 2009, p. 76-77.
32
Os planos cartográficos foram traduzidos a partir da obra de Jazzberry Toronto Blue e Science photo library em
Abstract Woman’s body.
33
Caderno que tem por propósito a escritura a partir do olhar do ínfimo de uma vida e do processo por onde se
efetiva o aprender. Material que suporta as composições escriturais em torno do que se constituiu a pesquisa.
Inspirado no conceito de biografema de Roland Barthes a partir de Costa (2010).
processos de um aprender constituídos a partir de uma Oficina realizada
no ano de 2013 em uma escola pública na cidade de Pelotas/RS agenciada
às experiências estéticas nos modos de ler e escrever que aconteceram
no período de execução do Projeto Escrileituras (CORAZZA, 2011a).
A professora propõe um trabalho em Escrileituras, pois é a partir
dessa configuração conceitual que inicia a investigação apresentada.
Empreendimento que a encontrou e produziu coisas nela. Um Projeto
inventivo, audacioso, adaptável. Nunca sai sem deixar um pouquinho de
si e levar outro tanto de todos. Um Projeto atemporal, não localizável, que
se situa em todos os espaços e em nenhum ao mesmo tempo. Circula pelas
superfícies. Cria passagens de vida, nas leituras e escrituras que produziu,
nos diversos lugares por que passou.
Ele escolhe seus próprios teóricos. Tem vida própria. Um bando se
junta a ele e ele aceita. Implica ensinar e aprender a partir do ato de criação
textual, no agenciamento de três áreas do conhecimento: Arte, Filosofia e
Educação. É espalhado. Se amplia e se alastra como fogo. Já não é possível
mais alcançá-lo em um número estatístico. Ele surge da invenção de
Sandra. De outros e tantos. Da Filosofia. Dos alunos. Da Literatura.
Dos problemas. De Nietzsche. De Deleuze. Do poético. Da negação aos
clichês. De Guattari. Da Arte. De Barthes. Da Universidade. Das ideias. Do
pensamento. Da Ciência. De Foucault. Da vida.
Para compor a dissertação de mestrado desenvolvida no ano de 2013
e de 2014 a professora apostou na temática do aprender ao acionar uma
perspectiva filosófica da diferença, mais especificamente, nas obras de
Deleuze (1988; 2003). De acordo com o autor (DELEUZE, 2003), tudo
aquilo que ensina algo emite signos que não são incididos de abstrações,
pelo contrário, são objetos de um tempo real e presente. Só há aprendi-
zagem na medida em que se constroem os próprios problemas, produ-
zindo um pensamento.
Aprender requer essencialmente a ação de interpretar signos, pois
é ele o objeto do encontro e que exerce uma força sobre aqueles que o
interpretam, “o acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo
que é pensado” (DELEUZE, 2003, p. 15). O que força a pensar são os
signos. É deles que emanam as forças que violentam o pensamento no
embate com alguma matéria. Não há como significá-los. Eles só podem
168 • 169
ser sentidos, pois “nem existem significações explícitas nem ideias claras,
só existem sentidos implicados nos signos” (DELEUZE, 2003, p. 91).
A professora acredita na possibilidade de articular conceitos que
contribuirão para pensar nas estratégias de enfrentamento dos problemas
vivenciados na educação no que tange aos modos com que são realizados os
processos do aprender docente e estudantil. Tem como objetivo cartografar
a transformação disposta na relação de um aprender. Traz como problema
de pesquisa uma questão: Como são realizados os processos do aprender
de uma professora e dos estudantes junto às Oficinas de Escrileituras? Os
caminhos tracejados no mapa servem de matéria prima na composição das
linhas de uma vida docente que aprende, pois há ali um ato de decifração.
As trajetórias percorridas pela professora, em cada curva alcançada, a
cada aventura desbravada nesta empreitada, são emissores de signos.
Foi escolhida uma Oficina de cada um dos Núcleos do Projeto Escrileituras realizada com crianças no ano de
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2011para a composição da pesquisa: Oficina Cores, sabores e texturas [Núcleo UFMT]; Oficina Filoescritura com
Kafka [Núcelo UFRGS]; Oficina Vida! Hoje tem espetáculo [Núcleo Unioeste]. Oficinas estão disponibilizadas no
Caderno de notas 5 (RODRIGUES, 2013). A Oficina Filodança [Núcleo UFPel] não está disponível no Caderno de
notas 5, pois foi um trabalho efetivado em 2013.
Lispector foi apresentada a eles. Houve a experimentação de leitura para
discutir sobre A vida íntima de Laura (LISPECTOR, 2013).
A história de Lispector é movimentada por muitos questionamentos
realizados ao leitor. Esse movimento fez com que os alunos participassem
com mais curiosidade ao trabalho. Em conversa coletiva, após a leitura, as
crianças foram sendo questionadas: Quem era Laura? Porque a autora quer
contar a vida íntima de uma galinha chamada Laura? Quais eram os pensamentos
de Laura? Neste momento, elas participaram respondendo às questões que a
autora e os oficineiros realizavam.
Dois movimentos foram planejados para a produção de escrituras
como tentativa de operacionalizar as escrileituras no instante da Oficina.
O primeiro se deu a partir da ideia de escrever uma carta à galinha.
Algumas crianças ficaram animadas com a proposta feita. Dos 25 alu-
nos, 16 se propuseram a participar. Uma folha foi disponibilizada. Seis
deles utilizaram desenhos para representar a galinha, além de expressar-
se em pequenas frases.
Considerando que, para Deleuze (2003), o ato de pensar vai além do
representar, não há dúvidas em relação ao ato recognitivo e representa-
cional realizado por alguns dos estudantes diante da proposta de escritura
epistolar direcionada à personagem principal do livro. Esse movimento
demonstrou a frágil capacidade, ainda, de invenção pelas crianças ao
modificar a realidade em questão a partir da escritura. Neste primeiro
movimento da Oficina, foi percebida uma resistência à fabulação, fato
ocasionado pela pouca exploração da escrita para determinado fim.
170 • 171
p. 243), sabe-se “que o problema não é dirigir, nem aplicar metodicamente
um pensamento preexistente por natureza e de direito, mas fazer com
que nasça aquilo que ainda não existe [...]”.
Dessa maneira, fez pensar em como foram criados os problemas
durante o planejamento da Oficina, pois não causaram a implicação
desejada: a produção do pensamento a partir de algo que o force a pensar.
Mostra-se importante olhar com atenção para este aspecto de como
produzir perguntas de maneira a alcançar um aprender. Os problemas não
são dados, mas devem ser constituídos e investidos em campos simbó-
licos que lhes são próprios, de modo que violente o pensamento. Um
problema não existe fora de suas soluções, mas está intimamente im-
plicado com o sentido que é dado a elas, de acordo com as circunstâncias
estabelecidas (DELEUZE, 1988).
A professora percebeu, nos escritos de alguns dos estudantes, aquilo
que para eles ficou mais evidente após a história ter sido contada: a
relação com a comida. Um fato que chamou a atenção dos oficineiros foi
a constante “mania de comer” que as crianças tinham, tal qual Laura. A
todo o momento das atividades, eles estavam mastigando algo, além de
dois intervalos para refeições, um cedido pela escola e outro para aqueles
que levavam seu próprio lanche. Tratou-se de uma ocasião pouco explorada
pelos oficineiros que desenvolveram a Oficina, não aproveitando esse
espaço para experimentar o corpo ao alimento, de maneira a observar o
acontecimento derivado desta ação, indo ao encontro da ideia trabalhada
na Oficina de Escrileituras Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em
cena (BIATO, 2013, p. 99).
Em razão de um questionamento35 movido pelos pensamentos da
professora-que-aprende, de acordo com as palavras da oficineira que
conduziu o trabalho acima, detecta que o aprender está relacionado à
percepção. Uma maneira possível de transcriar a saúde ao corpo, afirmando
a relevância de operar uma escrita de si como “produção de si, de estilos
de individuação” [resposta de Biato ao questionamento da professora].
Retornando à análise sobre os escritos dos estudantes participantes
da Oficina Filodança, pode-se considerar a matéria comida como um signo
Questionamento realizado via e-mail: De que maneira(s) se constituiu (constituíram) a(s) aprendizagem(ns)
35
do ler e do escrever na Oficina de Escrileituras denominada Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena?
sensível potente, pois é da ordem dos sentidos [sabor] que causa um efeito
de alegria, também possibilitando a relação entre memória involuntária
e a própria imaginação. O aprender é movido nesta circunstância em razão
de que há um encontro com a comida e Laura de maneira que estes objetos
“faz realmente nascer a sensibilidade no sentido [...]. Não é uma qualidade,
mas um signo. Não é um ser sensível, mas o ser do sensível (DELEUZE,
1988, p. 231) oferecendo a possibilidade de escrever.
A Oficina Filodança tentou favorecer essa percepção, de um corpo que,
ao se movimentar, é suscitado a escrever pelas forças advindas do meio,
um processo de escrileituras. Não há paradas obrigatórias [para ler; para
escrever; para pensar] nem fluxos contínuos, mas escrituras intermitentes
que se movimentam em um tempo que é redescoberto (DELEUZE, 2003),
pela invenção de problemas que deem a pensar, alcançando um aprender a
partir de um corpo à espreita. Esse processo de escuta ao corpo remeteu à
Oficina de Escrileituras Vida! Hoje tem espetáculo!36 (BRACHT, 2013).
As máscaras produzidas durante a Oficina Vida! emitiram signos
aos estudantes no momento em que serviu como “disparador do
autoconhecimento e do conhecimento do outro, fazendo nascer momentos
de registros escritos informais e formais [...]” (BRACHT, 2013, p. 225).
Assim é possível verificar a alternativa de criar, não somente em meio ao
teatro, à dança e às artes, mas pelas escrileituras, um sentido a si mesmo,
desmascarando as identidades incrustadas no corpo-aprendiz que lê e
escreve a partir daquilo que lhe toca.
Na continuidade da Oficina Filodança dentro da sala de aula, ao
terminarem suas escrituras direcionadas à galinha Laura, as crianças se
prepararam para a assistir um fragmento do filme Billy Elliot37. Uma ten-
tativa de demonstrar como a dança pode modificar o modo de pensar
sobre o mundo e se relacionar com ele, colocando o corpo em movimento
a partir de uma potência que vibra dentro de cada um. As classes retiradas
de seus lugares e o chão constituíam o local disponível naquele instante.
Antes de saírem para o recreio, cada participante retirou, de uma caixa,
pequenas frases recortadas do material literário (LISPECTOR, 2013) e dos
36
Oficina de Escrileituras realizada em 2011 pelo Núcleo Unioeste. Disponível no Caderno de notas 5 da Coleção
Escrileituras (RODRIGUES, 2013).
37
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=jXd967T6mno>.
172 • 173
conceitos filosóficos discutidos (NIETZSCHE, 2006; SPINOZA, 2007).
Cedeu-se um espaço para o aluno que quisesse ler sua pequena frase. Apenas
dois estudantes realizaram a leitura com certa dificuldade no próprio ato de
ler, mas compreendendo a proposta de retomar o que tinham trabalhado no
primeiro momento da Oficina. Alguns alunos manifestavam a rejeição ao
trabalho afirmando com palavras firmes: “eu não leio direito” ou, até mesmo,
“eu não sei ler”. Esta inibição ao realizar a tarefa de leitura leva a considerar
o postulado evidenciado por Deleuze (1988) sobre o “negativo do erro”.
O erro é visto como um desvio do correto a se pensar, uma falha do bom
senso. O que se desvia desses moldes é tido como loucura, besteira.
Com o retorno do recreio algumas dificuldades foram encontradas
em retomar o trabalho, pois as crianças estavam muito dispersas. O que
se percebia, naquele momento, era uma necessidade do corpo expressar-
se, como o grito por um espaço em que ele pudesse respirar, articular-se,
misturar-se àquele ambiente. O corpo discente escolar pedia passagem a
essa liberdade no instante em que se apropriava do novo espaço da sala
de aula e, também, ao desejar não estar mais naquele ambiente, pelo menos,
no tempo em que foi definido para se estar lá [quatro horas por turno] e o
que se aproveita em matéria de aprendizagem, nesta ocasião. Há transfor-
mação de um corpo que reage. Uma metamorfose.
A Oficina de Escrileituras denominada Filoescrituras com Kafka: expe-
rimentações no ensino fundamental (SCHULER, 2013, p. 17) é incitada neste
instante, por transcender aprendizagens à professora. Em razão de outro
questionamento38 movido pelos pensamentos da professora-que-aprende,
agora direcionado à oficineira Betina Schuler, é possível detectar, de
acordo com as palavras dela, que conduziu o trabalho acima, que o ato
de ler e escrever é tomado por uma experiência intensiva a partir de uma
apropriação das forças que se expressam nos textos construídos. Dessa
forma, ela afirma um aprender em escrileituras passando por três funções:
política [que busca atravessar toda uma maquinaria na linguagem que é
tomada por representação]; ética [que problematiza os modos de subjeti-
vação na contemporaneidade]; estética [que produz outras possibilidades
de vida e pensamento].
Questionamento realizado via e-mail: De que maneira(s) se constituiu (constituíram) a(s) aprendizagem(ns) do ler
38
e do escrever na Oficina de Escrileituras denominada Filoescritura com Kafka: experimentações no ensino fundamental?
Na metamorfose de um corpo que reage, volta-se à Oficina Filodança.
Os estudantes entraram para a sala. O prosseguimento daquilo que tinham
trabalhado no período anterior ao intervalo tornou-se importante para ativar
o processo de produção do conhecimento. Dessa forma, questionou-se: O
que isso que eu li, a partir daquilo que estudei, me faz pensar e me faz escrever?
Nenhum aluno respondeu. A passividade, movida pela dispersão, unida
à falta de vontade de participar preocupou os oficineiros. No entanto, fez
pensar que esse silêncio possa ter sido o gerador de um pensamento em
torno da questão realizada, como possibilidade não de respondê-la, mas
de sair dela. Para Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1998), há devires que
atuam em silêncio; portanto, tornam-se imperceptíveis. Um devir “é jamais
imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou
de verdade [...]” (Ibid., p. 10).
Seguindo, como atividade final, convidaram-se os discentes a criar um
dicionário de novos sentidos, a partir de palavras selecionadas em torno de
alguns conceitos que tinham trabalhado e discutido na Oficina, consolidando-
se o segundo movimento de escrileitura. Abertura, também, à condição de
Transcriação (CORAZZA, 2011b), que opera um texto que é traduzido e
composto a uma nova língua na própria língua. Um movimento de expressão
escritural que abarca a possibilidade de criação sobre um texto existente
que, ao ser traduzido, sofre transformações, desvinculando-se do original.
Palavras eleitas foram usadas para a composição escritural [dicionário]
das crianças, a partir daquilo que estudaram durante a Oficina: corpo; alma;
escrever; palavra; criança; íntimo, pensamento, si. Para auxiliar na compreensão
de como operacionalizar a atividade final, a leitura do livro Girafa não serve
pra nada (ARAGÃO, 2000) foi praticada. Este material literário cintilou
afecções nos estudantes e favoreceu a produção de escrituras.
Foi possível perceber, a partir da escritura de uma criança para o
dicionário, a estreita relação feita diante do sentido de escrever. Para eles,
esse trabalho é movido pela intensidade com que copiam “coisas” do quadro
e dos livros didáticos:
174 • 175
(2003) diante da obra de Proust, a angústia é um efeito causado pelos
signos amorosos. A faculdade que interpreta esse signo é a inteligência,
que é suscitada a acalmar esse sofrimento, sendo preciso transmutar em
alegria.
“Alma é uma coisa que está dentro da gente. Quando uma pessoa morre não é a
alma que morre é o corpo que para de se mexer” (Sophia).
Dos signos emitidos aos efeitos que levaram alguns estudantes a es-
crever, havia potência na leitura realizada em torno das matérias agen-
ciadas ao ato de escrileiturar. As ressonâncias produzidas em torno de um
aprender configuraram as transformações de uma escritura. Aprenderam
na medida em que o processo se movimentou na busca por uma verdade
que cada um interpretou a sua maneira. A concepção filosófica de Deleuze
(1988; 2003) se mostra potente, também, por sensibilizar o olhar do
professor diante dos signos emergidos em uma sala de aula, por exemplo.
E, propiciar, pelo agenciamento de matérias, a redescoberta de um tempo
que reúne o sentido e o signo, alcançando um aprender que menos se faz
por métodos, mas pela necessidade de construção de verdadeiros problemas,
na perspectiva teórica adotada.
Aprender em Escrileituras
Um aprender em Escrileituras é possível porque o Projeto apostou na
potência das passagens de vida como matéria de escritura. Um aprender,
igualmente, pela experiência que serve de condição para escriler. Um
aprender que é processado no próprio texto, no momento em que escreve
pelos pensamentos que são acionados na realização dos agenciamentos
possíveis que cada um faz. Um aprender pelas Escrileituras é possível, pois
o texto criado é composto por uma heterogeneidade de elementos, de gente
e de vidas que são lidos e escritos, necessitando ser traduzido de variadas
formas.
Não se aprende em Escrileituras por um método linear e pragmático,
aprende-se de modo artistador, um método tipo rizoma, que corre por
fluxos, por linhas que se cruzam e enxergam as forças emanadas do tra-
balho efetivado. É por meio dos experimentos realizados, durante os
quatro anos de pesquisa no Projeto Escrileituras, que a professora aposta no
estudante-que-experimenta-e-aprende sendo capaz de criar suas próprias
composições textuais, com seus estilos singulares, a partir dos agencia-
mentos alcançados.
A constituição de dois planos [extensivo e intensivo] apresentados no
mapa marca o território de alguém que aprendeu. Processam-se menos por
uma linearidade de conceitos, saberes ou fases de desenvolvimento que
transformam uma professora em muitas outras. Em que elas se diferenciam?
Pelo tanto que cada uma caminha, em trajetórias escolhidas por ela mesma,
ou pelas circunstâncias da vida. Diferenciam-se por aquilo que se deixam
afetar, o roçar-se do mundo em si, um roçar-se da educação em si, também,
pois são professoras. O processo do aprender se constituiu de forma
intensiva na conjugação daquilo que deslocou o percurso de um ponto a
outro, envolvendo-se com e no mundo, não deixando nada de fora de seu
delírio constante.
Por fim, a professora se vê em caminhos que são desenhados diante de
uma vida. Descobre a aprendizagem nos lugares todos, na intensidade de
um plano que se faz pelos afectos agenciados a partir das trajetórias e das
matérias oferecidas e dispostas para um aprender na Arte, na Filosofia e
na Ciência. A trajetória afeta diretamente uma professoralidade, pois esta
176 • 177
escolha está relacionada ao lugar que se deseja chegar e isso acarretará uma
série de encontros, potencialidades e causalidades, bem como Alice [no País
das Maravilhas] se depara em cada caminho que elege como seu.
Referências
ARAGÃO, José Carlos. Girafa não serve pra nada. São Paulo: Paulinas, 2000.
BIATO, Emília Carvalho Leitão. Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena. In:
RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, educação,
filosofia. Oficinas produzidas em 2011. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção
Escrileituras)
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice
encontrou por lá. (Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges). Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
_____. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.).
Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras)
COSTA, Luciano Bedin da. Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com
Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: UFRGS, 2010.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de
Janeiro: Graal, 1988.
_____. Proust e os signos. (Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.
_____.; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. (Tradução de Ciro Mioranza). Série
Filosofar. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, edu-
cação, filosofia. Oficinas produzidas em 2011. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção
Escrileituras)
SPINOZA, Benedictus de. Ética. (Tradução e notas de Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2007.
Timpanização de escrileituras.
Vias marginais para objetos duplos
Resumo
Este estudo se insere no desenvolvimento do Projeto Escrileituras no núcleo
UFMT. Surge da proposição de duas Oficinas de Transcriação tematizadas por
corpo e saúde (Fantasias em cores, sabores e texturas e Cartas). Tem, como
objetivo, ensaiar um método de tomada do texto que se configura como
duplo, de modo a fugir das generalizações e das representações, um método
de timpanização. Timpanizar parece ser ação de movimentar o pensamento
e descrevê-lo em bases novas: filosofar com um martelo. Num ensaio de
timpanização, para o qual propusemos três gestos indissociáveis: tatear
escombros, disseminar sentidos e criar cadeias suplementares. Apresenta-se
como uma perspectiva de preparação do professor/profissional da saúde para
o ensinar e aprender que privilegiam as forças plásticas, potências de criação
da vida. Alternativa às condutas massificadoras de observar e analisar e de
desenvolver atividades educativas.
Palavras-chaves
Timpanização. Escrileituras. Saúde. Margens. Duplos.
178 • 179
1. Apresentação
Este estudo se insere no movimento de abertura a experimentações,
provocações, opções inusitadas e exorbitâncias, em processos educativos
que envolvem a leitura e a escritura como práticas indissociáveis.
Com foco nas artes visuais, nos biografemas, em filosofia, lógica, música
e corpo ou teatro, desenvolvemos, no projeto, Oficinas de Transcriação (OsT),
que se põem a ligar o tempo ordinário à produção do novo (DALAROSA,
2011).
Propusemos, entre outras, duas OsT tematizadas pelo corpo e saúde
(Fantasias em cores, sabores e texturas e Cartas), e as realizamos, em momentos
diferentes, com alunos da Escola Estadual Paciana Torres de Santana,
participante do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida,
núcleo UFMT, que se vincula ao Grupo Estudos de Filosofia e Formação
(EFF).
Uma das linhas de pesquisa criadas pelo Prof. Silas Borges Monteiro no
contexto do EFF é chamada de Diferença e normalização em educação e saúde,
e tem a perspectiva de promover estudos de característica desconstrutora,
agenciados pelas filosofias da diferença e suas discussões. Abordamos, nesta
linha, conceitos relevantes para a compreensão dos campos da saúde e da
educação em suas interfaces, com abertura à singularidade, às potências
criadoras, à experimentação do corpo e aos estilos de individuação.
Neste sentido, num desvencilhamento em relação a posições prescri-
tivas e até imperativas, que podem envolver a ação educativa em saúde, o
que se propõe nas OsT discutidas aqui, é que a criação e a poética sejam
priorizadas na produção de saúde e vida de cada um, que aqui ganha a
forma de escrileituras. Tanto os textos dos autores consagrados (da filosofia,
do teatro e da saúde), quanto os textos vindos das oficinas de transcrição
nos serviram de empiria para a elaboração da problemática e desenvolvi-
mento dessa pesquisa, que se configura como um estudo sobre o método
de tomada das escrileituras da saúde.
2. Problemática
– Eu vou fazer uma amarração para o braço, aqui, as tiras, e com os pés...
E vêm os anjos e me levam em cima, a certa altura, e dizem: pai, arrasaram
o mundo em fogo Arthur Bispo do Rosário (apud Hidalgo, 2012,
p. 231-232).
180 • 181
no quarto ano durante a primeira etapa da OsT Fantasias. Como tomar a
escrileitura de Benevides dos Santos Neto, sem despregar suas amarrações,
diante da indagação nietzschiana “Como separar vida e obra, saúde e
doença” (NIETZSCHE, EH, Posfácio)? Quais as vias de aproximação
à produção dos oficinantes? Como tomá-las sem nos embrenharmos em
percursos hermenêuticos de causa e efeito? O rosto-limão parece vivência
do corpo em movimento de tornar-se. Como captar e inventar o tornar-se?
Que gestos seriam necessários à chegada à nervura de escrita autobiográfica
de saúde e doença?
Este trabalho tem, como objetivo, ensaiar um método de tomada do
texto que se configura como duplo, de modo a fugir das generalizações e
das representações. Propor, como via de pesquisa e de ação educativa, o
encontro com forças em combate que constituem modos de efetivação de
vida e saúde.
3. Apontamentos teóricos
3.1. Escrileituras
O corpo curtido de suas intimidades, da fruição da vontade e de seus
duplos, é traçado no texto, e, de acordo com o cumprimento do que se
dispõe a fazer, conserva a sua assinatura e pontua sua “escrita performativa”
(DERRIDA, 2009, p. 12). Dizer da escritura é dizer, então, do duplo: traçado
do combate de forças em luta e confissão da vontade povoada de pensamento
e sentimento, e que quer mais vida. É tomar o corpo que abriga o múltiplo e
se movimenta como “escrita transbordante” (COSTA, 2010), o que Derrida
chamaria de “escrita bífida” (DERRIDA, 2001, p. 49), disseminativa
de infinitos sentidos. Se por um lado, o corpo-escritura performatiza as
vivências, como se pudéssemos enxergar os traços e os sentidos dos vetores
em plena luta, por outro, ele expõe o biográfico carregado do thanatográfico.
Consideramos, ainda, que a escrileitura se associa ao prazer de es-
crever de si para si mesmo, como exercício de autoafecção, relação dionisíaca
com a existência, de quem se deleita e experimenta os excessos de sua
própria letra, na culpabilidade e no prazer; ao mesmo tempo, este mesmo
material é enviado para alguém, porém, já começa seu percurso em desvio
e, assim, toma seu trajeto errante: escrileitura em envio e este como
destinerrance. É nestes termos que o remetente/autor assina seu texto. E
que o destinatário errante o recebe.
3.3. Timpanização
O discurso da filosofia é tema da obra Margens da Filosofia (DERRIDA,
1991), e se caracteriza por afirmar-se a partir do estabelecimento de limites,
inclusive seus próprios. Num movimento para assegurar a permeabilidade
da prática discursiva da filosofia, não mais estabelecendo-a em seus espaços
dentro e fora, Jacques Derrida deseja superar os limites, refletir sobre
desbordamentos.
Timpanizar parece ser ação de colocar-se às margens, movimentar o
pensamento e descrevê-lo em bases novas: filosofar com um martelo. O
martelo, por um lado, dá as pancadas no tímpano, como o batuque num
tambor (e não é à toa que o verbete membrana timpânica no Dictionary of
Health Education (2010) traz o termo “ear drum”, como drums: tambores).
Por outro lado, o martelo é órgão que amortece as vibrações e evita que
o tímpano sofra as dores da violência das vibrações sonoras. De caráter
182 • 183
duplo, as marteladas rasgam e amortecem a membrana. A timpanização
é recital de batuques.
Para ler os textos produzidos nas Oficinas de Transcriação, em expressões
de vivências que alimentam instintos sempre em luta, é preciso uma intensa
percussão capaz de fazer vibrar o tecido do pensamento em timpanização,
num jogo de encadeamentos, no qual “tramar é (...) furar, atravessar,
trabalhar de um lado e do outro da cadeia” (DERRIDA, 1991, p. 30). É
preciso enfrentar as margens – “comer a margem, luxando o tímpano”
(DERRIDA, p. 27). Se o tímpano virgem e estirado recebe a impressão da
verdade, aqui, o tecido enrodilhado e perfurado vibra a vida mesma, no
que ela se caracteriza como trama inventada, manifesta como o indecidível
característico das lutas de forças.
É assim que procuramos entrar nos textos, no movimento de escriler.
Não perscrutamos o pensamento, nem mesmo o querer-dizer ou repre-
sentar. Somos, como pesquisadores, de algum modo, afetados pelo texto
do outro e impregnados de vivências singulares, e aguçamos os ouvidos
aos rastros do autor.
4. Vias do estudo
As Oficinas de Transcriação Cartas (com estudantes do 9º ano da Educação
Básica) e Fantasias em cores, sabores e texturas (com estudantes do 5º ano) foram
constituídas de abordagem e aproximação de obras de autores, pintores,
artista – como Ziraldo, Giuseppe Archimboldo, Rochelle Costi na OsT Fan-
tasias e Artaud, Van Gogh e Nietzsche na OsT Cartas –, com função ins-
piradora e mobilizadora de vida. Foram escolhidos, para as oficinas, temas
relacionados à experimentação do corpo e à saúde: a alimentação e os usos
dos alimentos; a dor, a privação, as sensações do adoecimento e da loucura.
O movimento proposto para as OsT, de leitura pregada à escritura,
acaba por ser misturado ao método do estudo: se, por um lado, o partici-
pante da oficina traduz transcriando o oficinado, o pesquisador se envolve
num movimento de transcriação, numa tentativa de “chegada à fruição
pela coabitação das linguagens” (BARTHES, 1987, Seção 7). Claro está,
portanto, que a neutralidade do pesquisador, neste processo, é impossível
e nem é requerida.
Tomamos, neste trabalho, trechos de escrileituras das crianças par-
ticipantes e realizamos a escrileitura desses trechos, num ensaio de
timpanização, para o qual propusemos três gestos indissociáveis: tatear
escombros, disseminar sentidos e criar cadeias suplementares.
184 • 185
(SANTIAGO, 1976, p. 88). O suplemento não complementa, pois não falta
simplesmente; seria complemento. Num aforismo sobre a grande saúde
(NIETZSCHE, GC § 382), Nietzsche a apresenta como um excesso de
forças plásticas, que se rearranjam em seus triunfos e não lamentam e nem
evitam a dor: “transbordante abundância e potência”.
Na cadeia de suplementos há uma plenitude que enriquece outra
plenitude, o que estabelece o embate. O escrevente não é mais sujeito, no
sentido da origem, da paternidade do texto; a escritura não é represen-
tação e nem mesmo intermediária da significação do texto; não existe um
limite entre a vida real e a escritura, entre as cenas de dentro e de fora do
texto. Na criação da cadeia suplementar, fica mais evidente o papel do
pesquisador, também como escrileitor, num exercício de mescla de tecidos
escriturários.
5. Resultados
Escrileitura 1:
“Estava pensando aqui. Será que vou conseguir tirar isso de dentro
de mim? Então, parei de pensar e comecei a sentir o porquê de tudo estar
assim” (Lima, 2013).
Tatear escombros: Tomamos, do trecho, a noção de que a doença entra
e sai do corpo, que parece ser pincelada na escrileitura, como que inserida
no contexto das ideias circulantes acerca do tema, valorativa de que há um
mal que precisa ser afastado.
Disseminar sentidos: Num exercício de pulverizar os sentidos, em
rompimento com a lógica das representações, é possível pensar sobre a
definição de condutas direcionadas à retirada do mal que acomete os
corpos, tal qual a pintura de Bosch, A extração da pedra da loucura: diante de
mazelas, a vida precisa ser redefinida e saúde e doença se colocam como dois
estados fixos e opostos, decorrentes da forma de ajuizar o funcionamento
orgânico. Encontramos a valoração de bens e males, num processo de
generalização e de afirmação da força de rebanho.
Criar uma cadeia suplementar: De indesejadas sensações a explicações
sobre “tudo”, instâncias do corpo múltiplo, que sofre e pensa. Seria preciso
parar de pensar para começar a sentir? O “sentir o porquê”, como potência
do pensar, se acresce como pleno a outro pleno. O que não desejo, me
acomete. O sentimento de vida contrariada entra em combate, o que me
leva à busca pelo cuidado de alguém fora de mim, que me atende. De fora,
pode vir o fim dessa que me “sobe reptante” (CORTÁZAR, 2014, p. 60),
disso que está dentro. Jogo de dentros e foras, bem e mal-estar, pensa-
mentos e sentimentos e explicações, como elementos que se mancham e
misturam. Morte dos limites.
Escrileitura 2:
Trecho do dicionário inventado:
“Alimentos - são coisas que a gente come no dia-a-dia, como verduras,
legumes, frutas, carne… Fome - Quando as pessoas não têm nada na barriga
e precisam comer, é porque estão com fome. Comer - É degustar o alimento,
sentir o sabor do que você está comendo” (Santos Neto, 2011).
Trecho da história sobre o sabor das letras:
“Será que todas as palavras que começam com P têm um gosto bom?
… Eu não gosto da letra P… mas deve ter gosto de chocolate ou baunilha.
Será?” (SANTOS NETO, 2012).
Trecho do texto sobre a OsT:
“Quando eu tenho fome, eu como alimentos…. na minha casa tem
muitas toalhas de mesa com desenhos de frutas” (SANTOS NETO, 2012).
Tatear escombros: Junto aos estudantes nas OsT, fomos questionados
em relação ao número de linhas, às quantidades e às formas do texto
proposto. A folha em branco parece desalojar. Diante da possibilidade de
inventar um dicionário, a primeira tentativa parece ser a de seguir pela
trilha mais conhecida, o que se experimenta no “dia-a-dia”. Um pouco
mais desinstalado, vemos o “degustar” e o “não ter nada na barriga”,
estabelecendo uma dupla circunstância.
Disseminar sentidos: O branco da folha oferece espaçamentos como
possibilidade de se ocuparem os vazios com o inusitado. Quando diz do
pensamento que faltava a Artaud em seus primeiros livros, Blanchot (2005)
parece encaminhar a escritura a que não se preocupe com seus ocos e
que se despoje de tentativas de tratar do todo. Aos participantes das OsT
(pesquisadores e estudantes) era esperado que abraçassem as possibili-
186 • 187
dades múltiplas e ilimitadas da transcriação: não ter nada na barriga, não
ter o que escrever, não saber. “Deve ter o gosto de…”
Criar uma cadeia suplementar: Imagens de frutas podres nas fotos de
Costi, na escola. Toalhas de mesa, em casa. Escola suplemento da casa.
Acrescem-se e cobrem a mesa, apoio de alimentos, que me vêm quase
simultaneamente à chegada da fome. A intensidade da fome, em sua
plenitude, acresce-se da comida. O que eu gosto se articula ao que eu não
gosto. Categorizo na boca, no estômago, na multiplicidade que me constitui.
Também as letras, as palavras, o que eu escrevo, o que eu leio. Eu degusto
quando como, eu experimento e rumino. O sabor das frutas, cores e texturas
em tecido. Vivências alimentam. O vazio é lugar de plenitude, quando do
dilaceramento se produz arte. “Será?… Quando eu… eu”.
6. Considerações finais
Frente ao borbulhar de questões surgidas do planejamento e do
movimento das oficinas de transcriação, ensaiamos, com elementos teóricos
e com exercícios, um modo de proceder à escrileitura a partir das escri-
leituras dos oficinantes. Postamo-nos na orla, nem dentro, nem fora d’água,
em espaço mole. A timpanização efetiva a desconstrução, rompimento
com a saturação das oposições binárias. Dos textos, movimentamos
noções circulantes dos campos da Educação, da Saúde, das práticas edu-
cativas e do senso comum, de modo a vislumbrar seus valores; multiplicamos
os sentidos do que é dito e escrito de singular, com o não dito, absolutamente
despojados do desejo de alcançar o “querer dizer”. Ainda, tecemos
entrelaçamentos em urdiduras frouxas, ao assumirmos que a origem do texto
não se inscreve, quando se estabelece o “escrever com”. Assim, escrevemos
com as crianças, que haviam escrito conosco, com as leituras oficinadas.
Os gestos de timpanizar nos ofereceram nuanças das forças em luta
que, simultaneamente, constituem a escrita (traços do vivido na produção
de si) e compõem o processo de individuação. Destacamos, nas escrileituras,
o entrelaçamento suplementar de vida e obra.
Escutar às margens exige a mobilização de múltiplos sentidos, que
têm em vista a entrada num percurso errante em direção ao singular.
Ainda que este fim de linha não chegue, ele se anuncia como potência de
criação e de proposição de modos para a pesquisa e para o processo edu-
cativo: apresenta-se como uma perspectiva de preparação do professor/
profissional da saúde para o ensinar e aprender que privilegiam as forças
plásticas, potências de criação da vida. Alternativa às condutas massifica-
doras de observar e analisar e de desenvolver atividades educativas.
Neste percurso, não podemos fazer afirmações definitivas a respeito
dos escritos; mas encontramos interlocução de traços e espaçamentos, dobras
de suplementos e jogos, já que tomamos textos enviados em destinerrance.
Não nos detivemos nas críticas e na detecção dos problemas da escola
e dos trabalhos educativos - em saúde ou não. Embora não as tenhamos
ignorado, posto que nos envolvemos em seus espaços. Ensaiamos, destarte,
um método que serve ao estudo dos duplos que permeiam as práticas
escolares de leitura e escritura, como as escrileituras tematizadas pela saúde,
e nos achegamos, agora com maior contundência, à abertura para tomar a
produção dos estudantes em suas potências transcriadoras.
Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Tradução J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva,
1987.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (Tradução Leyla Perrone-Moysés). São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
CORTÁZAR, Júlio. Bestiário. 2ª ed. (Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman), Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
COSTA, Luciano Bedin. O destino não pode esperar ou o que dizer de uma vida. In:
FONSECA, Tânia Mara Galli; COSTA, Luciano Bedin (Orgs.). Vidas do fora: Habitantes
do silêncio. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2010, p. 47-68.
188 • 189
de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. p. 15-29. (Coleção
Escrileituras).
_____. Posições. (Tradução Tomaz Tadeu da Silva). Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução,
notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
_____. A gaia ciência. (Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza). – São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
_____. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. (Tradução Paulo César de
Souza), São Paulo: Companhia das letras, 2005.
_____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução, notas e
posfácio: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Resumo
Esta dissertação se constitui como pesquisa conceitual operatória dentro do
projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. A partir da bibliografia
produzida ao longo do próprio projeto, a pesquisa experimenta a noção de
que toda a didática pensada em meio à filosofia da diferença é possível como
experimentação do pensamento, escritura e leitura (escrileitura), e operada
enquanto didática da tradução. A pesquisa contempla a tese corazziana de
que o professor é, por sua função, um tradutor, ele cria e transcria conteúdos
em aula. O trabalho experimenta a escrileitura de conceitos oriundos do
processo cinematográfico para serem transcriados e transmutados em
conceitos didáticos, procurando um exercício de tradução intersemiótico.
Palavras-chave
Cinema. Didática. Escrileitura. Tradução. Transcriação.
190 • 191
A didática, enquanto passível de criação, é Didática-Artista
(CORAZZA, 2012), e ao transpor formas, conteúdos e forças, faz tradução.
Pensar a didática em meio à Filosofia da Diferença, enquanto campo de
estudo das possibilidades tradutórias do ato educacional, é teorizar sobre
as potencialidades da tradução criativa e da transcriação de composições
didáticas contemporâneas.
192 • 193
Cinematizações
Didática da Montagem
Este trabalho destaca algumas teorias sobre montagem do cineasta
soviético Sergei Eisenstein, um dos maiores nomes nas técnicas inaugurais
de montagem (edição do todo) e de processos de decupagem (planejamento
da filmagem em planos e cenas e como estes se encadearão através de
cortes), elementos até hoje presentes na composição cinematográfica.
A montagem de Eisenstein sugere cortes bruscos por oposição e saltos
qualitativos que provoquem o choque. O cinema deveria produzir um
choque no pensamento que levasse os homens a pensar. Mas, estas técnicas
de cortes e por choque, somente possibilitam o pensar, não sendo, ainda,
pensamento de fato (DELEUZE, 1990).
O cinema depende das técnicas de encadeamento das imagens para
forçar o pensamento. Deleuze (1983) diz, que para Eisenstein, a própria
montagem é o todo do filme. A forma como ocorrem as mudanças do
tempo no filme (duração) só podem ser apreendidas indiretamente, já
que relacionam e sobrepõem as imagens-movimento que as exprimem. A
montagem é essa operação que extrai das imagens-movimento um todo,
uma ideia (DELEUZE, 1983). Na didática da montagem, construída por
cortes e estímulos em choque do raciocínio, a expectativa do professor é
extrair conteúdo como o todo de uma história, ele deseja compor no tempo
intercortado o todo. Desta montagem decorrem grandes criações e não
apenas operações práticas como de conceitos teóricos (DELEUZE, 1983):
uma nova concepção do primeiro plano, concepção de montagem ace-
lerada, montagem vertical, montagem de atrações e montagem intelectual.
Esta última, quando pensada no plano da educação, arranca o ritmo de
operação unicamente empírico ou recognitivo, pois há exercício e provo-
cação do pensar. As imagens-movimento em sala de aula fazem o todo
adquirir um novo sentido.
“Costuma-se dizer que Eisenstein extrai dos movimentos ou das
evoluções certos momentos de crise dos quais ele faz o objeto por
excelência do cinema.” (DELEUZE, 1983, p. 13). A didática da montagem
por oposição seleciona ápices, acontecimentos e gritos, e os faz colidir
trazendo a aula ao limite. “A montagem, enquanto instância articulatória
de significantes, antecede o próprio cinema, advém de outros universos
como a literatura, a pintura, o teatro e a fotografia.” (AUGUSTO, 2004,
p. 53). Neste sentido, ela é processo, e todo o pensamento, na sua origem,
é montagem. A operacionalização dessa didática da montagem articulada
ao currículo-roteiro se dá na encenação da aula. “‘Cena de docência’ – na
sala de aula – na qual o professor dá parâmetros, o procedimento é des-
locado para outras ordens, desadequadas.” diz Soares (2012) ao se referir
194 • 195
à oficina 7 minutos, integrante do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever
em meio à vida e realizada em 2011. A didática da montagem em sala de
aula, como atividade técnica responsável pela capacidade inventiva do
professor, produz movimento vibratório dos signos potencializando força
poética no ato de educar. Adó e Testa (2012, p. 70) reafirmam, de certo
modo, a didática da montagem por cortes no texto Como ‘dar’ uma aula
‘contemporânea’:
Opere por cortes. Cortes que recaem, ao mesmo tempo, sobre o fio da
duração e o contínuo da extensão. Para operar por cortes, aja de modo
intempestivo e interrompa, destaque, separe, na duração, um instante;
fracione, recorte, capte, na extensão, uma porção. Neste corte único e
singular de espaços-tempos, temos uma aula contemporânea [...] Uma
aula contemporânea opera por cortes e por uma compulsão por repetição,
arriscando tudo a cada novo corte-jogo-cena-aula.
196 • 197
emoção criativa interior que distingue a obra patética do simples enun-
ciado lógico dos acontecimentos” (MARTIN, 2005, p. 203).
Professor-Cineasta e o Currículo-Roteiro
O professor-cineasta transforma matéria, transmuta o papel, conteúdo
ou currículo-roteiro em imagem, cria blocos de movimento e duração
(DELEUZE, 2003). “[...] realizar um filme é verdadeiramente um trabalho
de alquimia, de transmutar papel em filme. Transmutação. Transformar a
própria matéria.” (CARRIÈRE, 1995, p. 146).
O conceito de professor-cineasta das cenas de aula é da ordem do
“docente artistador” (CORAZZA, 2006), dirige alunos e cenários. O
professor-cineasta é exigente na composição de sua arte, mas cria com os
alunos também artistas, personagens do real, “artistas porque, definindo-
se como sensíveis, fazem a mesma coisa que a Arte” (CORAZZA, 2013,
p. 21).
198 • 199
pensar e criar, de estudar e escrever, de ensinar e aprender, de ser professor
e professora. (CORAZZA, 2013, p. 97).
Referências
ADÓ, Máximo Daniel Lamela & TESTA, Letícia. Para “Dar” uma Aula “Contemporânea”.
In: CORAZZA, Sandra Mara. Caderno de Notas 3: Didaticário de Criação – Aula Cheia.
Porto Alegre: Supernova Editora, 2012. (Coleção Escrileituras)
CALVINO, Italo. Seis Propostas para o Próximo Milênio: Lições Americanas. (Tradução
Ivo Barroso). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
_____. Caderno de Notas 3: Didaticário de Criação – Aula Cheia. Porto Alegre: Supernova
Editora, 2012. (Coleção Escrileituras)
200 • 201
CORAZZA, Sandra Mara. O Que Se Transcria em Educação? Porto Alegre: Supernova
Editora, 2013.
DELEUZE, Gilles. A ilha deserta: e outros textos. (Organizador Luiz B. L. Orlandi). São
Paulo: Iluminuras, 2006.
DELEUZE, Gilles. Deux Régimes de Fous. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.
Resumo
O Procedimento Erótico é aqui apresentado em três possíveis variações. O
Procedimento I descreve a crise existencial que leva o Educador, primeiro,
à destruição e, em seguida, a um novo nascimento. O Procedimento II
coloca como condição do Ensino a possibilidade do ato de ensinar envolver
prazer. O Procedimento III mostra que é mais livre aquele que se desvia dos
caminhos postos, não importando se os desvios consideram ou não a Moral.
Os três Procedimentos são instigados pela seguinte problemática: de que
modo fazer, em Educação, outra coisa com as Formas educacionais? Por fim,
o Procedimento Erótico resulta em pelo menos quatro projetos: o Libertino
(sádico), o da Humilhação Redentora (masoquista), o do Prazer do Ensino e
o do personagem Klóvis. Todos, de algum modo, constituem-se em projetos
educacionais.
Palavras-chave
Erotismo. Libertinagem. Sadismo. Masoquismo. Educação.
204 • 205
1 Apresentação
Por Frei N
1.1 descrição
À guisa de apresentação desta Escritura, eu, Frei N, Vos descrevo a
minha impressão. A todos que a lerem, eu, mísero servo de Deus, desejo
saúde e sobriedade. Vós deparareis com três Procedimentos; entretanto,
acredito que, em verdade, trata-se de apenas um, o Procedimento Erótico,
em três possíveis variações.
O Procedimento I, denominado Formação, entende que a destruição é
pressuposto dos processos formativos: “A destruição é uma das primeiras
leis da natureza, e deve, por isso, ser considerada não como um crime,
mas como uma necessidade natural”, diz o personagem Educador. Aliás,
esse primeiro Procedimento é o procedimento desse personagem; digo,
supostamente, criado por ele. O Educador não poupa nada; descreve a crise
existencial que lhe leva, primeiro, à destruição e, em seguida, a um novo
nascimento.
Sobre o Procedimento II, denominado Ensino: entendo que um educador,
aquele que se incumbe do ofício de tornar bons os outros, deve, primeiramente,
ser ele mesmo bom, deve ele mesmo ter a bondade como hábito. Distante
desse princípio está Aquela-que-aceitou-ensinar (personagem protagonista
desse segundo Procedimento): ela coloca como condição do seu ensinar o
fato de sentir prazer com o Ensino. Ora, respondei: como alguém poderia
ensinar a virtude tendo o vício como hábito? E mesmo que o prazer seja
tomado como um modo para se alcançar a Divindade, ainda assim ele é um
vício, pois, egoísta. Aliás, parece-me que o Erotismo desses Procedimentos
(não apenas desse segundo) almeja a Divindade, porém, uma divindade
completamente desvirtuada.
A respeito disso, eu poderia organizar o Procedimento Erótico a partir
dessa dissimulação da Divindade – devo essa organização a William Blake
(2011):
Quando o homem é capaz de exceder a Alma, alcança a ordem divina, que lhe concede
uma soberania. É preciso considerar que somente há soberania onde há independência
em relação aos sentimentos pessoais, pois embora ela esteja em toda parte, é preciso
exceder as pessoalidades para que seja tocada de verdade.
1) É exatamente quando deixamos de ser, quando o Eu sai de cena, mesmo que
somente por um breve instante, que as relações eróticas aparecem. É quando as
Formas são desintegradas, quando as luzes são apagadas, quando o álcool faz
efeito, quando o Demônio toma conta, quando o surto acontece.
2) Se a Moral é o que possibilita o Eu, o Erotismo é o que possibilita a sua reinvenção,
que é sempre divina, sagrada, justamente porque acontece numa ordem superior.
3) Tornar-se soberano, divino, sagrado, porém, não é adquirir o controle da situação,
pelo contrário, ilusão de controle é o que temos na ordem das Formas; tornar-se
soberano é precisamente livrar-se do peso dessas Formas.
206 • 207
Antes de dar por encerrado esta Apresentação, vejo como urgente
a necessidade de Vos chamar a atenção, pontualmente, para algumas
atrocidades cometidas, em especial, pela Educação Libertina. Frágeis
Irmãos, eu espero que não tenhais a ingenuidade de encontrar nesta
Escritura um Livro de Educação para Vossos filhos. 1) Trata-se de uma
prática de vida que recusa os processos que induzem à obediência cega em
relação ao que chega, pela tradição, até nós. (Até aqui nenhum problema,
afinal, Vós sabeis que nós, franciscanos, também nos recusamos a obedecer,
cegamente, à tradição. Entretanto, o problemático é o que agora se segue...).
2) Essa recusa implica uma clara hierarquia entre aqueles que mandam
e aqueles que obedecem. 3) O principal, que é a Libertinagem em si,
funciona somente para aqueles que mandam, que ordenam, que criam os
seus próprios procedimentos, ou seja, funciona somente para os professores
libertinos. 4) Em vez de se ocupar com o ensinar a Liberdade, a Educação
Libertina se ocupa em dar lições para a Libertinagem. 5) O Povo jamais se
torna Libertino: ou se nasce livre de espírito ou se é escravo para sempre.
6) Em vez de se relacionar com os movimentos populares, a Educação
Libertina está envolvida, substancialmente, ao estilo de vida dos nobres
ligados à Monarquia (acima, inclusive, da Burguesia). 7) É uma organização
que se basta por si mesma. 8) Não tem responsabilidades sociais e traça
um universo paralelo, onde a realidade ordinária aparece somente como
objeto a ser pervertido, ou seja, como matéria de perversão. 9) A Educação
Libertina ocupa-se dos pobres apenas para aproveitar-se dos seus espíritos
frágeis.
Considerai e vede que se aproxima o dia em que o crime poderá ser
concebido como virtude e a virtude como tolice. Peço-Vos que leiais esses
Procedimentos sem Vos afastardes dos mandamentos do Senhor. Pois se
Vós os desconsiderais, sereis amaldiçoado. Quanto mais próximo estivérdes
desses Procedimentos e mais afastados estiverdes dos Mandamentos, mais
tormentos enfrentareis.
Por isso aconselho-Vos, meus Leitores, que deixeis de lado esses
Procedimentos caso escolheis o lado do Senhor. Os que levarem consigo
essa Escritura saibam que serão abençoados por alguns instantes, porém,
sofrerão por toda a Eternidade.
Vós quem? Quem sois Vós? A quem me dirijo? Mesmo que os Pro-
cedimentos talvez prefiram os devassos, os sem freios e sem obstáculos, eu
escrevo para Vós, os desavisados, os sonhadores, os humanizadores. É Vós
que desejo que leiais essa Escritura. Se dei mostras do contrário, fazendo
advertências, foi apenas no sentido de instigar-Vos, no sentido de resgatar o
que resta de energia vital em Vosso corpo!
1.2 relação com o Projeto Escrileituras, com a linha 09, com o grupo de
orientação BOP e com o grupo de pesquisa DIF
Por Frei N
Conto-Vos sobre esta Escritura apenas porque tal proximidade minha
com uma das cenas narradas mostra o quanto esses Procedimentos estão
próximos da humanidade comum. É isto que me preocupa: não se trata de
aventuras distantes, mas, ao contrário, de aventuras que invadem o mais
banal dia a dia. Aliás, é isto que torna os Procedimentos tão perigosos: eles
podem sempre lidar com os mesmos assuntos lidados em outros contextos,
eles podem até usar as mesmas palavras, porém, não fazem isso sem se
afastar dos sentidos frequentes.
É justamente essa peculiaridade que deixa o Educador (personagem
do primeiro Procedimento) ainda mais ameaçador, pois sinaliza que ele
tem acesso às coisas do Povo. Quando eu pensava na existência de uma
sociedade libertina e secreta, sempre imaginava que quem as compunha
eram pessoas monstruosas, demoníacas, facilmente identificáveis em meio à
multidão, e não homens que pudessem circular normalmente pelos eventos
sociais. Eis que me deparo com um homem (ainda que não religioso e nem
pai de família) que sempre perambulaou pela nossa sociedade, servindo-se
dela normalmente.
Sem dúvida, melhor seria se os Procedimentos estivessem limitados às
obscenidades, pois assim qualquer um poderia, facilmente, distingui-los dos
livros bem intencionados.
2 Problemática
Por Aquela-que-aceitou-ensinar
Ainda que não de maneira formal e ainda que não sem experimentar
inflexões, os três Procedimentos são instigados pela seguinte problemática:
208 • 209
de que modo fazer, em Educação, outra coisa com as Formas educacionais?
Não se trata, portanto, de, simplesmente, fazer uma Educação diferente,
mas de fazer com que a própria Forma Educação entre em colapso em seu
próprio território.
3 Teorização
Por Educador
A fim de elucidar o Procedimento Erótico, eu, Educador, apresento
alguns elementos constitutivos da consistência teórica envolvida.
O plano como condição: é curioso como se repete entre os eróticos o fato de
todos traçarem um plano: seja via contrato, via projeto ou via pacto. Não se
trata de uma mera coincidência, o plano é a condição para que o erotismo de
que tratamos se realize. O objetivo último desse erotismo jamais se encontra
na obscenidade, mas sempre no diluir os papéis prontos. O conteúdo erótico
não funciona como um fim, mas como a consistência de uma estratégia
que visa outra coisa. Se o erotismo fosse um fim, não seria necessário um
plano, bastaria uma linguagem obscena por si só. É precisamente aí que os
pornólogos se distinguem dos pornográficos (DELEUZE, 1983). Estes têm
o erotismo como fim; aqueles não visam o erotismo, visam outra coisa. A
estrutura seria esta: 1) O conteúdo erótico funciona chamando a atenção e
preparando os corações. 2) O enredo, às vezes sendo uma narrativa, funciona
como uma estratégia, uma engenhoca. 3) O novo (o novo nascimento) é o
fim, é o visado. 4) O erotismo, propriamente dito, é o procedimento, que
envolve os três elementos anteriores.
Os planos eróticos, portanto, não formam um gênero, o gênero erótico,
pois o erotismo não funciona, ao menos para os pornólogos, como um
gênero, mas como um modo de proceder. O erotismo é um procedimento,
que dilui as Formas em função de uma suspensão. Em A arte da palmada
(ENARD; MANARA, 1991), por exemplo, o erotismo não se encontra na
narrativa, por mais obscena e provocadora que possa mostrar-se, mas se
encontra na estratégia usada pelo conquistador para forçar a personagem
a agir de outra maneira, que não a sua ordinária. A narrativa funciona
fisgando a personagem (e o leitor também), a tal ponto que esta passa a se
interessar pela arte da palmada, transformando-se na responsável pela tarefa
de multiplicar essa estranha atividade, no sentido de divulgá-la às pessoas.
O erotismo dessa obra não se constitui num fim; seria isto se o erotismo se
restringisse à narrativa.
Tese do imediatamente nu: o erotismo como procedimento (um pro-
cedimento não sobre o erotismo, mas o próprio erotismo se constituindo
num procedimento) não funciona como o erotismo ordinário. A função da
roupa nos romances e nos contos de Sade, em que os libertinos se encontram
imediatamente nus, já é um elemento suficiente para distinguir o erotismo
de função superior do erotismo comum, no qual a grande graça se encontra
no jogo de esconder e descobrir as partes interessantes, reduzindo o erotismo
ou ao conteúdo obsceno ou à narrativa. O obsceno, quando sozinho, não
passa de um conteúdo grosseiro, que quer se impor independentemente
de uma expressão.
Sobre o erotismo não se confundir com a obscenidade: a fim de mostrar a
diferença entre o erótico e o obsceno, faço um paralelo entre o erotismo-
obscenidade e o barroco-caricatura. Diz Borges (1989, p. XXIII): “o barroco
é aquele que deliberadamente esgota (ou pretende esgotar) suas possibili-
dades e faz limite com a própria caricatura”. Diria eu que sim, o barroco é
aquele que esgota, mas, acrescentaria, é também aquele que esconde. Esgota
não porque mostra, mas porque, com o exagero da caricatura, esconde o
que somente deve aparecer no momento certo, e somente para os videntes
certos. É como um projeto, o qual faz do exagero a sua estratégia. Ainda que
o erotismo não funcione como o barroco, o seu procedimento aproxima-se
do procedimento barroco quando o que está em questão é a existência de
uma estratégia. Quero dizer que o erotismo usa a obscenidade (ou qualquer
assunto vinculado ao sexo e à sexualidade), no papel que, no barroco, é o
da caricatura. A obscenidade, no erotismo, serve somente para ludibriar,
enganar, retardar; o importante vem, sempre, depois. A obscenidade é
somente um passo dentro de um procedimento muito mais sofisticado. A
obscenidade não esgota, não pode esgotar o erotismo, assim como o exagero
não resume o barroco. No mesmo parágrafo, Borges complementa: “eu diria
que é barroco a fase final de toda arte, quando ela exibe e exaure os seus
recursos”. Digo que é erótica a fase final de todo processo, quando este
atinge um ponto de ebulição, exibindo os seus efeitos e os seus recursos.
210 • 211
Um, dentre os recursos usados pelos escritores da Literatura Erótica,
tem sido a obscenidade. “Quando a obscenidade se revela na arte, e mais
particularmente na literatura, manifesta-se, sempre ou quase, como um
dispositivo técnico” (MILLER, 1991, p. 49).
Impulso e instituição: o Procedimento Erótico não quer, simplesmente,
desorganizar tudo, pelo contrário, quer instituir uma ordem. O procedimento
é uma instituição, no sentido de colocar ordem nos impulsos. “Certas coisas”,
já disseram, “devem estar em seus lugares, é preciso ter o plano organizado
para que ele escape” (COSTA, 2007, p. 126). A questão, a grande questão, é
criar uma ordem aos impulsos de tal maneira que estes não sejam negados,
mas afirmados.
4 Metodologia
Por Educador
O próprio Procedimento Erótico é uma metodologia, contando,
inclusive, com um manual:
A noção de procedimento aqui em questão não funciona como um mero
protocolo, mas como um empreendimento de desmontagem, que visa uma
variação. “O procedimento é o próprio processo da psicose” (DELEUZE,
1997, p. 19), o que quer dizer: uma invenção descompromissada com as
intenções e com as regras ditas normais. Ele é, nesse sentido, a via alternativa
em relação ao manual de conduta ou ao manual de comportamento. O
procedimento é aqui usado como um modo de extrair das Formas algo de
estrangeiro, sob a condição de não negar as Formas anteriores.
1) Se capazes, inventemos os nossos próprios procedimentos, ou seja,
nossas próprias maneiras de deixar de ser o que somos.
2) O procedimento é um interrogatório que parte do vazio, fantasiado de
lista universal de respostas. Deve, portanto, ser usado observando a sua
verdadeira face.
3) Se, em algum momento, o procedimento parecer ser contrário à religião,
rever os teus conceitos: saiba que não tem nada contra ela, apenas teima
com a sua obsessão em querer que sejamos sempre os mesmos, com a
sua soberba em nos penalizar se acaso desejarmos não permanecer os
mesmos.
4) O procedimento gosta de ser vazio em matéria de conteúdo. Cabe a cada
um, que dele se apropriar, envolver aquele conteúdo que achar mais
interessante.
5) O procedimento é uma invenção, mas uma invenção que deve ser
praticada efetivamente na vida.
6) Não interessa qual é o ponto de partida: pode ser o Eu, a Formação
educacional, o Ensino, o Currículo, uma fotografia, um livro, uma
instituição, a linguagem, a escrita etc. O que importa é a invenção de
procedimentos que extraem, das Formas, linhas sem Formas.
7) O procedimento é, primeiramente, uma maneira de ocupar o vazio
provocado pelas Formas doentes. Depois, é uma maneira de recuperar
o vazio. Em suma, o procedimento é uma maneira de preencher o vazio
sem se desfazer dele.
8) A tarefa de inventar procedimentos pode não interessar à maioria, pois a
ela interessa somente a pequena fatia do mundo que lhes é apresentada.
O procedimento importa somente àqueles que querem ver mais, embora
no clímax não haja mais nada para se enxergar.
9) O procedimento não deve ser usado para fugir da realidade, pelo
contrário, deve ser usado para alargar a realidade.
10) A linha do procedimento, por excelência, não é a de fuga e muito menos
a molar, mas é a molecular, aquela que nos disponibiliza algum tipo de
controle sobre ela, a partir da sua flexibilidade. A linha de fuga é a meta
do procedimento, aquela que somente dá o ar de sua graça em caso de
êxito.
5 Resultados/efeitos
Por Frei N
Todos os sopros aqui se misturam, de tal modo que fica difícil iden-
tificar qual é o resultado do Procedimento Erótico. Pelo o que pude
entender, há, como efeito, ao menos quatro projetos eróticos: o Libertino
(sádico), o da Humilhação Redentora (masoquista), o do Prazer do Ensino
e o do personagem Klóvis. Por outro lado, também posso dizer que esses
quatro projetos são, além de efeitos, elementos constitutivos do Livro.
212 • 213
São efeitos na medida em que são apresentados pelos três Procedi-
mentos; mas também são elementos constitutivos porque dão os passos
que acabam por compor os mesmos três Procedimentos. Mas o que real-
mente choca é que todos eles são – de alguma maneira – projetos educa-
cionais.
214 • 215
6) O projeto não se preocupa com a seguinte questão: quem está no
poder, a mulher ou o homem? A sua verdadeira questão é esta: o projeto
em função da suspensão da ordem estabelecida, do já formado. O
interesse está na hesitação e nos dilemas.
7) O inventor/educador/masoquista destrói a si mesmo, e essa é a grande
pornografia. O prazer está em fazer a si mesmo agonizar: apanha-se
para redistribuir-se.
8) O contrato envolvido ao projeto não é neurótico, é esquizo: inventa
uma nova realidade que se sustenta em pé sozinha.
9) As Formas são as inimigas, porém, em vez do projeto se inclinar
sobre elas de modo destruidor, inclina-se ao modo de Kafka: sofrendo
com elas e mesmo amando-as (BATAILLE, 1989, p. 147).
Referências
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. (Tradução Suely Bastos). Porto Alegre: L&PM,
1989.
BORGES, Jorge Luis. História universal da infâmia. (Tradução Flávio José Cardozo). São
Paulo: Globo, 1989.
COSTA, Cristiano Bedin da. Matérias de escrita. 2007. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 1
volume. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2007.
216 • 217
DELEUZE, Gilles.. Louis Wolfson ou o Procedimento. ______. Crítica e Clínica. (Tradução
Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, p. 1997.
ENARD, Jean Pierre; MANARA, Milo. A arte da palmada. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
Resumo
Trata-se de um resumo de Tese defendida no PPGEDU da UFRGS em
janeiro de 2013. A mesma tem como enfoque o dimensionamento de
um meio prático e relativamente autônomo para um fazer na Educação.
Tal fazer é nomeado na Tese como: Educação Potencial. A concepção
de autonomia, assim como a de potência não estão relacionadas a uma
essência, mas à intensidade imanente e material de sua prática que, por sua
vez, inclui-se a uma composição de síntese relacional com a divergência.
Envereda pelo gosto de fomentar relações que escolham antes o diferencial
do que o referencial. Preocupa-se com a noção de que deve agir de modo a
desestimular modelos e estimular a proliferação daquilo que ainda não se
sabe. Desta maneira a própria escrita da Tese atua performativamente por
uma composição fragmentária e digressiva. Escolhe a selfvariance valéryana
e a literatura borgeana e oulipiana como modos de proceder com a palavra
escrita e, a sua vez, incorpora esse processo na Educação.
Palavras-chave
Autocomédia. Intelecto. Literatura. Filosofia. Valéry.
218 • 219
A Tese assumiu, desde o resumo, que o conjunto toma a forma de um
textotese; palavra composta que visa explicitar que a Tese antes, durante e
depois de ser Tese é texto. Essa fórmula varia podendo assumir a composição
contrária, ou seja, de tesetexto. Isso ocorre, pois ao considerar que a Tese
antes, durante e depois de ser Tese é texto se considera, também, que este
se torna Tese e se retroalimenta por aquilo que ele mesmo é, tese e texto.
O que faz com que se afirme, em explicitação epigráfica, que o textotese é
composto mediante restrita, estrita e estreita relação com a realidade. Trata-
se, evidentemente, da realidade textual; de uma vivência pela palavra. De
palavra vivente.
Na abertura de seu conjunto há um aviso: Este textotese pressupõe
leitura acelerada. A rapidez do leitor ou a velocidade da leitura importa
como um modo de impor ao conteúdo, mais que um valor de sentido, um
efeito de presente. Um convite a uma leitura errada, por errática e, por isso
mesmo, implicar o leitor como escritor. No entanto, um escritor que toma a
palavra em sua superfície e não faz dela a efígie de uma identidade.
1. Perigrafia
Não se pode ter certeza de quantas são as entradas. Não há entradas.
A coesão ou unidade se faz dispersa. As fronteiras não estão fortificadas.
Os subúrbios, arrabaldes ou periferias são permanentemente retrojetados
e permanecem em discórdia com relação às suas identidades ou posições
marginais.
2. Anúncio
A criação é vista como um ato de composição. Um artifício da forma.
O textotese atenta para processos, leis, regras, restrições; autoimplica-se na
produção de imagens sem semelhanças. Tudo isso na espreita de exercícios
que se entreveem em uma escritura como potência de ação alegre, ou
seja, de um aumento do grau de potência em educação. Trata-se de uma
autofabricação que procura agir como um dínamo para compor relações
combináveis, composições de corpo-corpus; um catálogo compositivo que
mistura elementos ditos da realidade e da ficção. Assume fazer coisas
com as palavras.
3. Advertência
4. Preâmbulo
A tarefa é infindável. Tanto é assim que não coube iniciá-la no tex-
totese, pois, se é infindável assim o é por não ter fim nem começo. Não
traçamos linhas de um ponto a outro por existir, naquilo que compõe a
linha, um ponto inicial e um final pelos quais possamos figurar o mundo
por essa redução inteligível. Traçamos linhas para visualizar nessa es-
peculação a metáfora de uma extensão de continuidade. A linha – expli-
cação figurada – traduz-se como valores contínuos e está para conceber
uma ordem no caos; conceber um fimcomeçoemordem.
5. Prolegômeno
Devo considerar, de chofre, que o que se deseja desenvolver aqui, é uma
ação voluntária tendo uma ação exterior como fim. Essa ação voluntária é
o movimento da escritura. E tal movimento tem como objetivo uma ação
exterior que age como uma oscilação que coloca em jogo a ideia de que a
pobreza da linguagem deve tornar-se a sua própria riqueza (DELEUZE,
2006, p. 100).
6. Prelúdio
A autocomédia do intelecto não se interessa por uma história da
verdade; mas por uma narrativa de sua própria potência como contingência
de composição. Um escrever que funcione, apenas, como experimento do
trabalho de alguém que escreve.
A autocomédia do intelecto aposta na literatura como um meio da
Educação Potencial; atividade libertária, nietzschiana, de começar a partir
de si mesmo, pelo esquecimento, pelo jogo da roda que gira sobre si, na
220 • 221
afirmação, na superfície, na afecção alegre e no riso. Não o riso triste
que pode surgir pelo ódio e desprezo, lamento das ações humanas, que é
também um riso de escárnio, sátira e depreciação, mas o riso que ques-
tiona a morte e as regras do bem e do mal por se expor como potência
de vida. A vida como um modo eterno de ser, em todos os seus atributos,
e o riso como um desses atributos.
7. Prólogo
Talvez como a exemplo de um escritor como Xavier de Maistre
(1998) – ao dizer-nos que os inconvenientes da vida social e da solidão
destroem-se mutuamente e assim esses dois modos de existência se
embelezam um pelo outro – o Educador, um Educador, encontre na
espontaneidade de sua própria determinação a de um Outro que o
afeta como num paradoxo do sentido íntimo ao dizer: eu sou um outro.
Representando para si a atividade do próprio pensamento. Ele faz assim,
uma reflexão representacional antes e ao mesmo tempo de colocar o
próprio pensamento na ação como pensamento. No entanto, paciente
leitor, pressupomos, ao escrever este texto, que o pensamento não se
elabora quando não passa de uma violência do tipo interrogatório. Uma
violência que introduz previamente o que pretende encontrar, pois isso
constrange a própria fisiologia de um pensamento.
8. Prefácio
Este prefácio é míope, sua disfunção obriga que enxergue, sem dis-
torções, apenas aquilo que está muito próximo; este prefácio obriga-se
a não usar subterfúgios ao reescrever uma frase falseada de Robbe-Grillet
(1998, p. 139): Este texto não é nem significado, nem absurdo, nem pródigo,
nem exemplar, nem frouxo ou celibatário, nem potente ou risível, nem
enfadonho, nem delirante, nem é; ele se escreve somente.
9. Precondição
Escrever como uma máquina de agenciamentos que funciona como
literária e em conexão a uma multiplicidade que chamo Educação. Es-
crever atento às próprias regras de escritura. Escrever, pois, é disso que
se trata, experimentar a Educação como superfície de inscrição auto-
variante.
10. Exodiário
No teatro romano (antigo), um exodiário é o ator do êxodo, sendo o
êxodo ou exodus a parte final de uma comédia ou, ainda (quando se trata
de uma peça trágica), uma passagem do trágico para o cômico. Eis que
este textotese se veste de exodiário. Busca trazer à cena uma aversão
resistente às forças explosivas do trágico. Agir como potência de liberação
por meio de afecções alegres. Fugir, ao modo nietzschiano, de estados
de tristezas, opressões, depressões, ressentimentos venenosos que nos
envergonham da menor felicidade. Não ser arrestado pelas forças trágicas,
mas tomá-las como matérias para preencher potências de liberação,
como na malignidade spinoziana (DELEUZE, 2005, p. 291), que opera em
função da valoração de forças, agindo com aversão à resistência anunciada
por um pensamento da negação e da contradição.
11. Prestatário
O empréstimo é constante. Procedimento econômico. Um dispêndio
de palavras e coisas. Muitas. Ocorre como um duplo movimento de
fabricação ao modo de um golpe, uma pancada quiasmática escrileitora.
Emprestar da escritura uma instrumentalidade de retroalimentação, fazer
da mesma uma autocomédia intelectual que, a sua vez, empresta a uma
Educação Potencial um modo de induzir ambiguidades. Modo intransitivo
que procura não dar atenção a um significado, mas à produção. São os
empréstimos em processo de retroalimentação constante. Não há nada
além de empréstimos, empréstimos de empréstimos, empréstimos de em-
préstimos de empréstimos. Escrileitura.
12. Prolepse
O privilégio é o do paradoxo que refuta por antecipação qualquer
objeção, pois todas as objeções serão aceitas e retrojetadas ao jogo. Um
jogo que convida a atuar como Laurence Sterne em seu Tristam Shandy
(CALVINO, 2000); ter como procedimento de escritura se expor como
222 • 223
estrutura que desautomatiza o modo de ler; usa a digressão como maneira
de protelar qualquer conclusão, pois toda conclusão está associada à morte.
E a questão, aqui, é essa: procurar procedimentos que auxiliem a refutar
a morte por antecipação. A refutar a conclusão antes que ela nos refute.
13. Restrições
Entende-se que uma restrição é uma condição que impõe certos limites
e os limites são sempre inventados.
224 • 225
Desse modo o poder intervém como um poder dos antagonismos e
via uma solução antagonista (DELEUZE, 1993), dito isto não é preciso
destacar que se trata de uma postura dualista e, portanto dicotômica, ou
seja, tratando a presença como uma verdade dada pela representação.
Pergunto, não seria este o lugar da Educação que conhecemos nas
práticas institucionais? A Educação como o lugar de um poder de mediação
via uma concepção jurídica do mundo e para o mundo e não em-o-mundo?
Uma Educação como sendo: a Educação; instituição que medeia ou se quer
a mediadora das relações de uma vida aos modos do conhecimento?
Quando falo Educação Potencial e uso da palavra Educação estou
preocupado em manter, de certo modo, apenas seu costume lexicológico
e não o axiológico. Falo de uma Educação rasurada, ao modo derridiano
da rasura (DERRIDA, 2002), o que fica é apenas um arquitraço, pois sua
marca política de aparato jurídico e de potestas (poder) não se nutre (não
quer que se nutra). Por isso o que se quer com uma Educação Potencial é a
presença da potentia como o conatus spinoziano (potência via uma doutrina
dos afetos ou um esforço de autoperseveração no ser) afirmando uma
produtividade possível sem mediação.
Uma posição, possivelmente, naturalista, pois de certa forma aposta
na crença de que existe nesse ente que a antropologia filosófica escolheu
denominar de homem um princípio natural e que, tal princípio, se efetiva
nos seres vivos microscópicos que constituem o seu organismo enquanto
potência (conatus) e impulso dinâmico, mas, claro, interessa-me observar e
chamar atenção que esse princípio natural extrapola o humano. Ao modo
nietzschiano não se privilegiaria uma identificação antropomórfica com
um Deus como um criador ilimitado (HAAR, 1993). Promovendo, de
certo modo, por meio de um amor dei intellectualis spinoziano, um caráter
necessário ao que se efetiva.
Daí, dessa concepção, temos uma Educação que não atua como
mediação, mas se assume como potência positiva e produtiva, criadora,
portanto. Pois não se dirige a um objeto em particular ou age por uma
finalidade ou teleologia. Atua de modo deliberadamente anacrônico,
digressivo, desorientado, ou orientado a seu modo; agencia-se na composição
de singularidades, ou seja, agencia singularidades para produzir novas
singularidades. Essa é sua restrição; inventar por meio da inovação que
se estabelece como invenção ao se apropriar de uma inovação anterior
ou, ainda, futura. Apropriar-se do que está por vir e fazer disso o seu
modo de disposição. Um estar-lançado. Uma Educação que não se preocupa
pela satisfação de algo ou alguém e, tampouco, com o preenchimento de
algum vazio. O seu sentido está em seu ato como o uso da materialidade
mundo em conjunção e composição para um aumento de seus graus de
potência de ação.
Uma Educação Potencial se configura como um lugar que não visa
produzir deciframentos ou apresentar resultados. Se, por algum acaso, ela
se erige em um espaço dito de educação ao modo de fazer de si experimento
de uma potência educacional, parecendo com isso intervir com algum
procedimento sistemático, assim o faz sem ter por ação um método
heurístico, mas um método de invenção. Tem a si mesma e à sua linguagem
como objeto na medida em que procura inutilizar todo discurso que por
ela atravessa e, com isso, fazer de tudo ficção, sua ficção.
226 • 227
pode a Educação ao modo de querer provocar um riso ético, um riso de um
homem dito livre, um riso benevolente vindo de uma ação de alegria.
É importante chamar a atenção para a ideia de que uma ação de
alegria está diretamente relacionada ao que Deleuze chama, via a leitura
de Spinoza, de “linha melódica da variação contínua constituída pelo
afeto” (DELEUZE, 2009, p. 27), essa linha é constituída por dois polos
denominados, por Spinoza, de paixões fundamentais, esses polos são:
alegria e tristeza. “A tristeza será toda paixão, qualquer paixão, que envolva
uma diminuição de minha potência de agir; e a alegria será toda paixão que
envolva um aumento de minha potência de agir” (DELEUZE, 2009, p. 27).
Uma Educação Potencial, para que possa ser uma Educação que
aumente a potência de agir terá de eleger modos de ser atravessada, em
especial, pelo polo da alegria. Nessa linha contínua do afeto39 – constitutivo
pelas paixões fundamentais – como força da variação de existir de alguém
(neste caso esse alguém seria a ideia de uma Educação Potencial), e sendo
que esta variação é decidida e motivada pelas ideias que este alguém tem,
ou seja, essa ideia que o atravessa, aumenta e diminui a sua potência de
agir, uma Educação Potencial assoma-se a querer o cultivo de ideias que
promovam a inteligência e a vivacidade. Então, o que pode a Educação?
Lembro que estou utilizando a palavra afeto para a noção de affectus spinoziano. O afeto em Spinoza é uma
39
capacidade de afetar e ser afetado, não denota um sentimento pessoal, mas uma intensidade pré-pessoal que
corresponde à passagem de um estado de experiência a outro. Isto implica na diminuição ou aumento de agir de
um corpo.
ou diga ou hesite ou marche ou espere ou ou, mas mais mais? Podemos
inventar uma Educação fragmento feita de cacos, relâmpagos das festas do
intelecto, festas dos corpos; das festas todas que nos sugiram isto e aquilo,
coisas compositivas; uma Educação Potencial?
Há muitas coisas nesse nome, nessa identidade Educação. Seria
necessário contaminá-la, fazê-la variar de modo que não consiga mais ser
idêntica a si. Esgotar o seu nome como o lugar que a faz repousar em uma
pessoalidade imperativa e conciliadora de contrários; fazer desse nome uma
potência de diferença positiva; fazê-lo variar por um movimento virótico
que se autoimplica em uma reciprocidade assimétrica.
A Educação Potencial é isso; um modo de festejar conexões hetero-
gêneas; uma tentativa de esgotar o lugar do consenso para a Educação.
A Educação Potencial se concebe como potência para a especulação de
si como existência que difere; diferença intensiva. A Educação Potencial
atua como um convite para se chegar alhures.
“Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões.” (ANDRADE, 1955)
Referências
ADÓ, Máximo Daniel Lamela. Educação Potencial: autocomédia do intelecto. Porto
Alegre, 2013. Projeto de Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.
ANDRADE, Mário de. Obras completas de Mário de Andrade II: Poesias completas. São
Paulo: Martins Editora, 1955.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: Lições americanas. (Tradução Ivo
Barroso.) São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_____. Raymond Roussel ou o horror do vazio. (Tradução Hélio Rebello Cardoso Júnior.)
In: ORLANDI, Luiz B.L. (Org.). A Ilha Deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006,
p. 99-101.
228 • 229
DELEUZE, Gilles. La univocidad del Ser y la diferencia como grados de potencia. Sobre
Spinoza. (Tradução Equipo editorial Cactus.) In.: DELEUZE, Gilles. Derrames entre el
capitalismo y la esquizofrenia. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2005, p. 281-292.
_____. Prefácio. In. NEGRI, Antônio. A anomalia selvagem: poder e potência em Spinoza.
(Tradução Raquel Ramalhete.) Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993, p. 7-9.
MAISTRE, Xavier de. Viagem ao redor de meu quarto. (Tradução Armindo Trevisan.) Porto
Alegre: Mercado Aberto, 1998.
SANTIAGO, Homero. Superstição e ordem moral do mundo. In. MARTINS, André (Org.).
O mais potente dos afetos: Spinoza e Nietzsche. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 171-212.
SPINOZA, Baruch. Ética. (Tradução Tomaz Tadeu - Edição Bilíngue). Belo Horizonte:
Autêntica, 2007.
Sou Pedagogo, Didata,
Curriculista, escrevo.
Resumo
Este “Sou pedagogo, didata, curriculista, escrevo”, doa um modo de orga-
nização textual e mostra como a pesquisa se desloca em suas páginas. Tal
escolha visa aludir ao estudo praticado no texto que se apresenta como
Tese, impelindo o leitor a uma imanência estrutural que acompanha
o problema de pesquisa que se escreve. Por sua vez, a impessoalidade
deliberadamente afastada é grafada na marca da primeira pessoa do singular
(índice notório e desavergonhado da autoria e da ordem original) que, ao
insistir com frases explicativas, visa criar um efeito de leitura que perfaça
certa duplicidade perfeita entre texto e autor: estranho artifício que explicita
a obliteração de toda origem e do próprio pensamento enquanto original,
visto que o duplo é sempre fruto de traição.
Palavras-chave
Criação. Aula. Pedagogia. Didática. Currículo.
230 • 231
Há muito insisto nos temas comuns às pesquisas em educação –
sobremodo na inflexão que educatio comporta em sua possível tradução por
criação. No Mestrado em Educação, escrevi um educador e o cotidiano
via uma prática biografemática de pesquisa (OLIVEIRA, 2010). E foi,
talvez, tal Dissertação que tenha possibilitado a formulação e necessidade
de um projeto inicial de pesquisa para o Doutorado sobre uma Didática
Neobarroca40, instada pela prática de “transcriação” ou “pedagogia ativa”
de Haroldo de Campos, pelo “neoBarroco” de Gilles Deleuze e pelo
“texto” de Roland Barthes (sendo, por sua vez, “texto” e “neoBarroco”
noções incorporadas em variação por Haroldo de Campos). Dessa
formulação e composição inicial e dessa insistência decorre a Tese que
hoje apresento neste Caderno de Notas, marcada por um viso das pesquisas
escritas na linha de pesquisa “Filosofia da diferença e educação”, do
Programa de Pós-Graduação em Educação e em especial por aquelas
que acompanho de perto em suas artesanias do pensar e escrever, sob
orientação da Profª Drª Sandra Mara Corazza. É sob esse registro que
apresento a tese desta Tese, em algumas de suas variações – bem como
uma visada sobre seus temas e sua estruturação textual.
Tomado por questões simples, tais como “O que é a pedagogia?” (ao
modo de Deleuze e Guattari, ao grafarem “O que é a filosofia?”), “O que
faço ou tento fazer quando digo que faço pedagogia?”, “É possível ter ideias
em pedagogia?”, “É possível ser didático e ter estilo?”, “Como funciona
um currículo?”, reúno uma série de operadores pedagógicos diferenciais,
marcados pela grafia do nome de alguns autores tornados, aqui, pedagogos:
Roland Barthes, Haroldo de Campos, Gilles Deleuze, Osman Lins (somente
para abrir a lista ou inventário breve). E é com eles, da maneira mais rápida
que consigo, de pronto, que defino: a pedagogia como atividade de criação
de didáticas; que se atualizam em currículos; sendo a didática um modo
de operar deslocamentos, e um currículo o dinamismo dramático desta
didática.
Notadamente, nesta formulação, Gilles Deleuze é o operador mais
presente e talvez o mais traído. É dele que tomo o método de dramatização
40 “Didática Neobarroca” é o anteprojeto de Tese que apresentei, no ano de 2009, por ocasião da seleção para
ingresso no Curso de Doutorado em Educação (com início no ano de 2010).
(1976; 2006a; 2006b; 2010) para dizer algo a respeito de uma ideia em
pedagogia, o que é análogo a dizer algo sobre uma criação pedagógi-
ca – e é neste ponto, então, que me aproprio das formulações mais
tardias de Deleuze acerca da filosofia, da arte e da ciência enquanto
atividades – específicas – de criação (1987; DELEUZE; GUATTARI, 1997),
fazendo uma leitura de sobrevoo em sua obra e mergulhando em textos
e fragmentos escolhidos por atração (àquilo que me faz escrever) e dis-
tração (àquilo que me faz ponderar, deixar para depois o texto: a Obra
deleuziana enquanto objeto de especialistas). Assim, o título da Tese,
“Método de dramatização da aula: o que é a pedagogia, a didática, o
currículo?”, marca bem seus intercessores iniciais: as conferências “O
Método de dramatização” (apresentada em 1967) e “O que é o ato de
criação?” (pronunciada em 1987), e o livro “O que é a filosofia?”, escrito
com Félix Guattari (em 1991). É a própria implicação de tais textos, as pri-
meiras linhas ou guias iniciáticos que atravessam meu problema (qual
seja: o que faço ou tento fazer quando digo que faço pedagogia?), que me
faz leitor de uma tradição inventada para a pedagogia “a operar como
contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glo-
rioso” (CAMPOS, 2006, p. 237), ou apenas uma linhagem incomum
de pedagogos – entendidos, desde já, como criadores de didáticas. E é
desta forma que eles surgem no texto, como esboços (potencialmente)
permanentes ou atos de personagens larvares em constante formação –
única possibilidade, para mim, de praticar “a ruptura, em lugar do traçado
linear”, uma “historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva,
antes do que como homologação tautológica do homogênio” (CAMPOS,
2006, p. 237).
Gilles Deleuze, pedagogo. E outros também. Como Roland Barthes e
Haroldo de Campos, principalmente no que diz respeito às coordenadas
textuais da pedagogia como atividade de criação – um ensino escritural
(com Barthes) e uma pedagogia ativa do texto (com Campos). E Osman
Lins, dos pedagogos presentes (e incertos) aquele que de forma menos
sutil é homenageado e traído, pois é dele que tomo a (fantasia de) estrutura
da Tese, valendo-me do seu grande empenho em criar um percurso sin-
gular e em fuga, em seu livro “Avalovara”.
232 • 233
É o modo de deslocamento, ou o estilo pedagógico do “Avalovara”
de Lins que resolvo recriar, fantasiando tal texto (a Tese) como o meu
próprio ato pedagógico. É a variação e o fragmento, múltiplos, porém
conduzidos, que me permitem deslocar constantemente meu problema
de pesquisa ou minha tese inicial – ou seja: dramatizar minha própria de-
finição compartilhada anteriormente, colocando-a em crise ou à prova
diante de suas próprias engendrações, escrevendo dinamismos catastróficos,
uma barafunda calculada em termos de deslizamentos e rotações distintas.
Por isso transcrio o palíndromo latino SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS, guia ou condutor da narrativa em “Avalovara”, atualizando
dramaticamente um ato didático específico: O Pedagogo a Caminho
Está (minha maneira concreta de efetuar o palíndromo, de voltar à ação
do percurso, correr outra vez, de re-imaginá-lo de maneira singular, mas
não mais preso na recursividade infinita de seu vai-e-vem). É desta forma,
então, seguindo a figura da variação, a espiral, que retorno a cada um dos
componentes de meu problema (em sua versão mais concentrada, outra vez
mais: o que é a pedagogia?), na forma de quadrículas temáticas, cada uma
correspondente a uma das oito letras do palíndromo-guia, e comportando
uma dimensão imprescindível para a própria criação de tal problema.
Desta forma, de modo indiciário, assim se apresenta a composição
da Tese – onde cada temática (pois não se tratam, por funcionamento, de
capítulos e seus assuntos; de modo mais preciso, seriam – aproveitando os
sentidos de – temas e direções de um fragmento melódico), cada quadrícula
temática, se apresenta de modo fragmentado, obedecendo, ao mesmo
tempo, a uma rigorosa disposição textual e a um impulso “rebelionário”
(non serviam, não servil) no trato de suas matérias (portanto, não assuntos:
direções). A pesquisa encarna suas temáticas, e toda minúcia de sua
estruturação textual deve ser aprendida na própria leitura do texto, de
modo que o seu funcionamento mostrar-se-á facilmente para aqueles que
a ele atentarem (o título de cada quadrícula entre colchetes, abrindo e
reaparecendo em cada fragmento; e cada fragmento, por sua vez, marcado
por uma indicação específica, escrita à margem, grafada em itálico). Por
isso, quase nenhuma benevolência para com a inteligência do texto nesta
nota sobre a Tese, apenas indicações, faíscas indiciárias:
1) “O que é a pedagogia?”, dispõe a dimensão predominantemente
dissertativa da Tese. Busca apresentar, mesmo sem desenvolver
completamente, as diferentes dimensões do meu problema – apontando
os diversos cruzamentos conceituais e os autores implicados em sua
formulação. É responsável por tentar um “efeito de tese”, ou seja, marcar o
ponto inicial do texto, ser um disparador – irradiação e ressonância dizem
de seu efeito para os demais temas. Por isso, sua extensão é longa; e por sua
vontade textual, sua tendência à aliança, é a quadrícula temática que menos
se aproxima do fragmento, necessidade formal (de expressão) da Tese.
2) “Virgiliano, diz o pedagogo.”: a frase é uma chamada no Ulisses
de James Joyce (2007) e, aqui, é responsável pelas coordenadas de cons-
trução da Tese, reverberando as demais quadrículas em uma nova disposição
ou ênfase de leitura: possui, claramente, um caráter meta-temático, pois
informa o leitor sobre o intento de cada um dos temas, inclusive do seu,
em minúcias que não trato neste texto. A quadrícula mantém em sua
paisagem a seguinte passagem joyciana: “Você acha minhas palavras
obscuras. A escuridão está em nossas almas você não acha?” (p. 78). Trata-
se, definitivamente, de um guia; porém, sem abdicar de um fundo obscuro
– que aposta no tom introdutório ou de apresentação, cujo efeito de parada
propõe uma reescrita tanto dos fragmentos que lhe antecederam quanto
daqueles aos quais se antecipa.
3) Em “O Drama da Aula”, seus fragmentos referem-se aos “Retratos
Pedagógicos” de modo distinto: duplos, como biografemas didáticos,
escritos em primeira pessoa, trazem a dramatização da aula para alguns
pedagogos (aqui, professores): ao modo de Paul Valéry e seu “Meu Fausto”
(2010), tais pedagogos não representam os papéis que lhes designo, mas
emplois que lhes atribuo de acordo com seu estilo pedagógico.
4) “O Drama do Currículo de Pedagogia”, comporta a tomada do
Currículo de Licenciatura em Pedagogia, presencial, da UFRGS, pelo método
de dramatização. O intento é: tomar cada um dos oito eixos articuladores
de tal Currículo e submetê-lo aos movimentos crítico-genealógico e
experimental-exploratório presentes em tal método (CORAZZA, 2010b;
2011; 2012a; 2012b). Desta forma, a pesquisa ganha uma inflexão para o
problema já apresentado na quadrícula “O que é a pedagogia?”, de modo
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que sua tese é confrontada com uma outra matéria, desta vez documental,
extroversa, que incide no referente – um modo de resolver, à sua maneira,
o próprio choque do quadrado com a espiral. Se meu problema de pesquisa
ganha oito temas, arbitrários – alguém poderá dizer –, é preciso notar que
para formar um pedagogo via um currículo institucional específico, oito
eixos foram inscritos – correspondendo, a seu turno, a um outro problema,
encarnando sob seus termos um outro drama.
5) “Didática da Transcriação”, trabalha, sobremodo, as minúcias da
transcriação do palíndromo incrustado no quadrado mágico e rasurado pela
espiral. Aproveita, em sua feitura, para ressaltar a dimensão didática de tal
pedagogia ativa da tradução, mostrando onde e quando chamo Haroldo de
Campos, a partir desta Tese, de didático, e como o trato por pedagogo – com
olhos e ouvidos que furam sombras.
6) Em “Tópicos Curriculares”, a variação do tema é que a constitui;
porém seu funcionamento é regular, funcionando como um lugar de
divergência, acolhendo notas – principalmente conceituais – sobre algo que
mereça algum reparo ou insistência. Tentando aplainar algumas arestas, tais
“Tópicos Curriculares”, paragens rápidas do deslocamento pela Tese, visam
dar velocidade a temas que estiverem lentos, servindo como uma espécie
de mola. A consistência de seus fragmentos é pretensamente explicativa,
de modo que posso afirmar tais tópicos como referenciais ou enquanto
verdadeiros portadores de referência. Como escrito por um pedagogo no
quadro negro, cada tópico é sempre assinalado com a distinção “Sobre...”,
vindo, então, o prometido e futuro tema variável a ocupar o espaço dos três
pontos – variando, por certo, não mais que os próprios pontos a cada pulsar
da espira.
7) “Retratos Pedagógicos”, ao modo de um pintor que, por respeito à
cor e ao pintar, dedica-se ao retrato (como um modo prudente de tornar-
se atento aos signos ou digno de sua atividade), esta quadrícula temática
escreve retratos pedagógicos de pedagogos, pequenas cenas breves, inflexões
de suas aulas (onde, diante de cada retrato, pode-se dizer: há currículo
aí). Cada retrato afirma textualmente um currículo como “biografema
derradeiro” (CORAZZA, 2009, p. 46) e pode ser dito pelo burburinho
impessoal de um “diz-se” sobre suas aulas.
8) “O Plano de Aula Escritural”, onde ensinar e escrever incidem sobre
a aula (com planos e ementas desatinadas). Trata-se de um experimento de
concreção textual. Possui seus atratores específicos: um “ensino escritural”
barthesiano ou “uma pedagogia dos efeitos”; bem como: uma didática
da concreção em Haroldo de Campos e o entendimento deleuziano da
aula enquanto um espaço-tempo especial – margeando Deleuze quando
afirma que no horizonte de toda atividade de criação está a constituição de
espaços-tempos específicos.
Texto de um pensamento da diferença em Educação, a Tese escreve a
tese de que a pedagogia pode ser afirmada como uma atividade de criação.
Define o que é ter uma ideia pedagógica; afirma a didática enquanto
criação em um plano pedagógico; e o currículo como atualização de uma
ideia em pedagogia. Escrita com o método de dramatização de Gilles
Deleuze, ela enfatiza o drama e não o logos. E dramatiza: o Currículo de
Licenciatura em Pedagogia da UFRGS; uma linhagem de pedagogos que
inclui, entre outros, Osman Lins, Roland Barthes, Haroldo de Campos;
e a aula como espaço-tempo de criação. Texto de um pedagogo, didata e
curriculista, a Tese escreve: planos e dramas de aulas; didáticas escriturais,
de transcriação e neobarrocas; retratos pedagógicos; modos de deslocamento
por planos pedagógicos; e dramas curriculares. A Tese, tal como a imagino,
funciona como dramatização de uma ideia em pedagogia, que consiste
em afirmar tal atividade como criadora de didáticas, que se atualizam em
currículos.
Desta forma, o empenho do texto, da pesquisa, é o de oferecer uma
Tese de Doutorado em Educação imediatamente pedagógica, de modo
que o seu volume possa ser lido como um objeto de aprendizagem.
Referências
BARTHES, Roland. Aula. 13. ed. (Tradução de Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Cultrix,
2007.
236 • 237
CAMPOS, Haroldo de. Barrocolúdio deleuzeano. In: ALLIEZ, Éric. (Org.) Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 525-533.
_____. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo:
Perspectiva, 2006.
CORAZZA, Sandra Mara. Currículo. In: AQUINO, J.G.; CORAZZA, S.M. (Orgs.).
Abecedário: educação da diferença. Campinas: Papirus, 2009, p. 40-46.
_____. O drama do currículo: pesquisa e vitalismo de criação. In: IX ANPED SUL. 2012a.
Disponível em: <http://www.ucs.br/etc/conferencias/index.php/anpedsul/9anpedsul/
paper/viewFile/128/786>.
_____. A Dobra: Leibniz e o barroco. (Tradução de Luiz B. L. Orlandi). São Paulo: Papirus,
1991.
_____. O Método de dramatização. In: A ilha deserta: e outros textos. Org. e revisão técnica
da edição brasileira de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Iluminuras, 2006b.
_____. Nietzsche e a filosofia. (Tradução de Edmundo Fernandes Dias e Ruth Joffily Dias).
Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, Gilles. Qu’est ce que l’acte de Création? – Conférence donné dans le
cadre dês “ Mardis de la Fondation ”, le 17 mars 1987. Disponível em: <youtube.com/
watch?v=oAH6wLW6W2k>. Acesso em: 16 jun. 09, às 13 h.
_____.; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? (Tradução de Bento Prado Jr. e Alberto
Alonso Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. 2ª Edição.
VALÉRY, Paul. “Meu Fausto” (Esboços). Introdução, tradução e notas de Lídia Fachin e
Silvia Maria Azevedo. Cotia: Ateliê Editorial, 2010.
238 • 239
Epílogo: A filosofia da
composição do Projeto Escrileituras
240 • 241
cara à tradição crítica, que é a do poeta como um ser inspirado. Daí nasce
o texto referido – A filosofia da composição – em que mostra o modus operandi
pelo qual a sua mais conhecida obra poética O corvo se completou, com
precisão e sequência rígida, tal como se fosse um problema matemático;
desde que a sua intenção era compor um poema que agradasse, ao mesmo
tempo, tanto ao gosto do público quanto o da crítica.
Mesmo que se trate, neste texto de Poe, segundo alguns, de uma
provocação literária, na qual ele teria rido, ao afirmar que o seu mais famoso
poema era escrito ao revés, de trás para diante, e que ele teria começado
pelo fim; longe de considerar tal atitude uma burla, um charlatanismo
literário ou uma provocação, dirigida especialmente aos críticos, seguimos
Haroldo de Campos (1996, p. 9) afirmando que tivemos “a contraprova
por meio da poética contemporânea, moderna, sobretudo através dos
trabalhos de Roman Jakobson”; além de que o problema estava sendo
enfrentado, por Poe, “até no nível micrológico da fatura fônica do poema,
uma vez que raven (corvo) é o avesso de never”; ou seja, Campos confirma a
probabilidade da tese de Poe, pelo expediente usado de tomar como refrão
do poema (raven) o seu próprio nome ao contrário (never).
Sem entrar no maior ou menor mérito de cada um dos polos dessa
discussão (ABRAMO, 2011), para nós, pesquisadores participantes e
coordenadores dos núcleos do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever
em meio a vida, interessa responder, ainda que sucintamente, aos desafios
lançados por Poe, na introdução do seu A filosofia da composição, ou seja:
acerca daquilo que está em cena na realização desse trabalho – de pesquisa,
orientação, ensino e extensão – que aconteceu durante mais de quatro anos
em três estados do Brasil: quais foram os seus percursos; quais suas rudezas
vacilantes e espinhosas do pensamento; como se deram os processos de
seleção e rejeição de ideias e oficinas; como realizamos pesquisas que
lidaram com a empiria do projeto e também com as teorias que o ampa-
raram, realizando algo que tentou se aproximar de um empirismo
transcendental (DELEUZE, 1988)?
Assim, como Poe, afirmamos que a realidade do Projeto Escrileituras
não foi um objeto mágico, fruto da intuição de vários educadores e grupos
de pesquisa, tomados por uma fina inspiração; mas sim o resultado
do trabalho produzido artisticamente por mãos humanas, por meio de
um processo inteligível de pensamento e de sensibilidades; o qual foi,
ampla e publicamente, apresentado em todas as escolas e universidades
onde aconteceu, bem como em muitos eventos regionais, nacionais e
internacionais; onde fizemos questão de, sempre, mostrar as peças, as
engrenagens e o funcionamento da maquinaria, que acabou por constituir
o Escrileituras. Isso porque, desde o início, valorizamos, em primeiro lugar,
o processo do trabalho e, só posteriormente, o seu resultado (CORAZZA,
2011, p. 48).
Assim como um problema matemático, o Escrileituras não foi, desde o
início, um objeto de arte já dado. Ao contrário, consistiu em uma situação
de resposta ao Edital 2010 do Observatório da Educação, que demandou
solução, por via da elaboração e obediência a certas regras e procedi-
mentos. Como a poesia de Poe, o Escrileituras acabou formando suas próprias
leis e teoremas, tributárias da filosofia da diferença, teorias de tradução
literária e poética, bem como de formulações didáticas e curriculares
contemporâneas; de modo que os movimentos da rede, formada pelos quatro
Núcleos, compreenderam modos plurais de intervenção, nas formas de
ensinar e de aprender a ler e a escrever; modalidades de planejar, organizar
e desenvolver as Oficinas; criação de espaços-tempos para encontros,
pragmáticos e críticos, que passaram pela escrita-e-leitura e configuraram
uma determinada epistemologia educacional.
Essas leis e teoremas não se mostraram como transcendentes, mas
foram produzidos de acordo com as necessidades e as circunstâncias
que se apresentavam e impulsionavam a produção do que hoje podemos
considerar um grande arquivo, constituído por dissertações, teses, ar-
tigos, relatos de experiências já publicados; mas, sobretudo, pelo esforço
editorial na criação da Coleção Escrileituras, composta por nove Cadernos
de Notas, publicados por editoras universitárias, que apostaram nesse
gênero, que não é nem um livro em sua forma clássica, nem um relatório
de pesquisa, mas algo híbrido que se dispõe a pormenorizar o trabalho,
a mostrar o passo a passo dos processos de composição daquilo que
inventamos e que cabe neste imenso guarda-sol em que se transformou o
Projeto Escrileituras.
242 • 243
Atualmente, tomando como matéria empírica de composição ensaís-
tica o arquivo do Projeto Escrileituras, ressaltamos a necessidade que se
nos apresentou, após o encerramento do mesmo, em 2015, pela CAPES,
de trabalhar a genealogia dos atos curriculares e procedimentos didáticos
tradutórios, experimentados e desenvolvidos pelos diversos núcleos,
grupos, bolsistas e pesquisadores. De tal necessidade nasceu o Grupo de
Pesquisa Escrileituras da diferença em filosofia-educação, cujos pesquisadores,
docentes e escrileitores passaram a olhar para “os apetrechos de mudança
no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco” (POE, 2009, p. 114); a
fim de problematizá-los e perceber suas potências e impotências, para
que possamos avaliar e potencializar as ideias e os procedimentos capazes
de continuar criando modos de ler e escrever em meio à vida.
Referências
ABRAMO, Claudio Weber. O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar
Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011.
CAMPOS, Haroldo de. Sobre Finismundo: a última viagem. Rio de Janeiro: Sette Letras,
1996.
CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de
Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011.
POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios.
Tradução Oscar Mendes, Milton Amado. São Paulo: Globo, 2009, p. 113-128.
Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso, Integrante
do EFF/IE/UFMT - Grupo de Pesquisa Estudos de Filosofia e Formação.
Possui graduação em Fonoaudiologia pela Universidade do Sagrado Coração.
Especialista em Linguagem pela Universidade Católica Dom Bosco. Email:
alessandraabdala@terra.com.br
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Cristiano Bedin da Costa
Heterotopologista; Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM); Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS); Docente no Centro Universitário Univates. Interessa-se
pelas relações entre Arte, Literatura e Filosofia, tomadas como intercessores
do pensamento em Educação e Psicologia; Com Foucault, Deleuze, Nietzsche
e Barthes, pesquisa estratégias de criação em meio às formações curriculares
contemporâneas. Email: cristianobedindacosta@hotmail.com
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Maria Idalina Krause de Campos
Doutoranda em Educação PPGEDU/ UFRGS. Bolsista do Observatório da
Educação CAPES/INEP. Membro integrante do BOP – Bando de Orientação
e Pesquisa; da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferença e Educação; e do
Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações - Diretório do CNPq.
E-mail: idalinakrause@yahoo.com.br
Paola Zordan
Professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Articuladora do
M.A.L.H. A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos.
Trabalha com performances, escultura social e micropolíticas. Doutora e Mestre
em educação pela UFRGS, coordena a Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença
e Educação, desenvolvendo temas que envolvem historiografia da arte, formação
de professores e esquizoanálise. E-mail: paola.zordan@gmail.com
Polyana Olini
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, com pesquisa na Linha Filosofias da Diferença e Educação;
Bolsista CAPES. E-mail: polyanaolini@gmail.com
Samuel Edmundo Lopez Bello
Professor do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-
graduação (PPGEDU) da UFRGS. E-mail: samuelbello40@gmail.com
Wagner Ferraz
Mestre em Educação - PPGEDU/UFRGS. Dançante, performer e professor.
E-mail: wagnerferrazc3@yahoo.com
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supernovaedit@gmail.com
Porto Alegre/RS – Fone: (51) 3386 1984