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Conselho Editorial

Betina Schuler (UCS/EMEF Rincão/PM-POA)


Dóris Helena de Souza (SMED/POA)
Gláucia Maria Figueiredo (UNIOESTE)
Karen Nodari (UFRGS/Colégio Aplicação)
Luciano Bedin da Costa (UFRGS/SETREM)
Ludmila de Lima Brandão (UFMT)
Maria Amélia Santoro Franco (Universidade Católica de Santos)
Nadja Maria Acioly-Regnier (Université Claude Bernard Lyon1)
Vânia Dutra de Azeredo (PUC/Campinas)

Comitê Editorial
Carla Gonçalves Rodrigues (UFPel)
Ester Maria Dreher Heuser (UNIOESTE)
Silas Borges Monteiro (UFMT)

realização:

apoio:
Editoração por SUPERNOVA EDITORA

Capa por Leonardo Garbin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C122
Caderno de Notas 9: Panorama de Pesquisa em Escrileituras:
Observatório da Educação./ Organizado por Sandra Mara
Corazza, Máximo Daniel Adó e Polyana Olini. Porto Alegre-RS:
UFRGS/ Doisa, 2016

ISBN 978-85-66308-07-5

1.Educação. 2.Escrileituras. 3.Pedagogia. 4.Didática –
Tradução. 5.Formação de Professores. 6.Currículo –
Transcriação. I.Corazza, Sandra Mara (org.). II.Adó, Máximo
Daniel (org.). III.Olini, Polyana (org.). IV.Título.
CDD 370

Ficha catalográfica elaborada pelo Bibliotecário Douglas Rios (CRB 1/1610)


PANORAMA DE PESQUISA EM ESCRILEITURAS:
OBSERVATÓRIO DA EDUCAÇÃO
SANDRA MARA CORAZZA · MÁXIMO DANIEL ADÓ · POLYANA OLINI | ORGS.
SUMÁRIO

Apresentação do Panorama    ........................................................ 10

PARTE I – DIFERENÇA & FORMAÇÃO


Paideuma quadríptico de um corpo
em obra: palimpsestos, arquitetônicas    .................................. 14
Cristiano Bedin da Costa
Sandra Mara Corazza

Da Pesquisa-Sensação: fragmentos    .......................................... 26
Simone Fogazzi
Paola Zordan

Memória e fabulação em
Henri Bergson: considerações sobre a
experiência do tempo no ensino de história    ....................... 38
Gabriel Torelly Fraga
Nilton Müllet Pereira

Bifurcações na formação de professores    ............................ 50


Hilda Regina P. M. Olea
José Carlos Leite

Deleuze & Guattari: uma ética dos devires    .......................... 62


Altair de Souza Carneiro
Ester Maria Dreher Heuser

PARTE 2 – pedagogia & escrileituras


A pedagogia das máscaras: vozes e sentidos    ....................... 78
Deniz Alcione Nicolay
Sandra Mara Corazza
Sobre escritura e arte do estilo:
aproximações otobiográficas    .................................................... 88
Polyana Olini
Silas Borges Monteiro

Alfabeto Espiritográfico:
escrileituras em educação    ....................................................... 100
Maria Idalina Krause de Campos
Sandra Mara Corazza

A Produção de escrileituras na
problematização do mal-estar docente:
um estudo com os professores da
rede pública estadual de ensino do RS    ................................ 112
Clara Lisandra de Lima Silva
Carla Gonçalves Rodrigues

Dispositivos, escolas e infantilidade:


um estudo foucaultiano em Escrileituras    ......................... 122
Eduardo Alexandre Santos de Oliveira
Ester Maria Dreher Heuser

PARTE 3 – DIdática & tradução


A voz acena: a presença da voz na cena da aula    ............. 132
Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo
Silas Borges Monteiro

Corpo a dançar: entre


educação e criação de corpos    ................................................. 144
Wagner Ferraz
Samuel Edmundo Lopez Bello

Modos de ler e escrever na EJA    ................................................ 156


Larisa da Veiga Vieira Bandeira
Sandra Mara Corazza

Biografemário de um aprender:
escrileituras em meio à vida    ..................................................... 166
Josimara Wikboldt Schwantz
Carla Gonçalves Rodrigues
Timpanização de escrileituras.
Vias marginais para objetos duplos    ....................................... 178
Emília Carvalho Leitão Biato
Silas Borges Monteiro

Didática Cinemática: escrileituras


em meio à filosofia-educação    .................................................. 190
Ana Carolina Acom
Sandra Mara Corazza

PARTE 4 – currículo & transcriação


Procedimento erótico,
na Formação, Ensino, Currículo    .............................................. 204
Gabriel Sausen Feil
Sandra Mara Corazza

Conexões heterogêneas:
uma Educação Potencial    ............................................................ 218
Máximo Daniel Lamela Adó
Sandra Mara Corazza

Sou Pedagogo, Didata,


Curriculista, escrevo.    .................................................................. 230
Marcos da Rocha Oliveira
Sandra Mara Corazza

Epílogo
A filosofia da composição
do Projeto Escrileituras    .............................................................. 239
Sandra Mara Corazza
Ester Maria Dreher Heuser
Carla Gonçalves Rodrigues
Silas Borges Monteiro
Apresentação do Panorama

A publicação dos Cadernos de Notas, componentes da Coleção Escri-


leituras, integra o projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida,
desde o seu primeiro ano de desenvolvimento (2011). Nesse contexto de
produção, o presente livro, Caderno de Notas 9, intitulado Panorama de pesquisa
em escrileituras: Observatório da Educação, é composto pela apresentação de
resenhas de teses e dissertações defendidas durante a duração do projeto.
Financiado pelo Programa Observatório da Educação (OBEDUC),
na parceria entre Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e a Secretaria de Educação Con-
tinuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério
da Educação do Brasil (MEC), o Escrileituras estabeleceu uma rede de
estudo e trabalho entre instituições públicas de ensino superior, quais
sejam: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – uni-
versidade sede –, Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT),
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Universidade do Oeste do
Paraná (UNIOESTE). Cada uma dessas universidades constitui um
Núcleo do Escrileituras, articulado a institutos e centros federais, escolas
de educação básica e secretarias de educação, movimentos sociais e
civis, municipais e estaduais, outras universidades e órgãos públicos.
Durante o período de 2011/1 a 2015/1, o Escrileituras atuou nos
campos do ensino, da pesquisa e da extensão, principalmente por meio
da proposição e do desenvolvimento de Oficinas de Escrileituras, também

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chamadas  Oficinas de Transcriação (OsT) e Ateliês de Pesquisa. Foram, ao
todo, 5.413 diretamente envolvidos com as atividades e programas do
Projeto Escrileituras, incluindo alunos e professores da Educação Básica
e do Ensino Superior, além dos demais membros das comunidades envolvidas,
através de atividades curriculares, extra-curriculares e de extensão, como
familiares e outros trabalhadores da educação; sendo que esse universo de
participantes alcançou o total de 166.406.
As dezenove pesquisas que compõem este Panorama de pesquisa em
escrileituras... são apresentadas pelos autores em sistema de co-autoria
com os respectivos orientadores dos cursos de Mestrado e Doutorado.
Como se verá, abordam vários aspectos do pensamento e da prática
educacional na contemporaneidade, situando suas correspondentes ex-
perimentações, variações e usos de escrileituras, tanto no plano empírico
transcendental como no plano relacional com conceitos, perceptos e afectos
dos autores escolhidos.
Em função da multiplicidade de problemáticas, solos conceituais, pro-
cedimentos, metodologias e resultados das dezenove pesquisas, para incutir
uma coesão ao compósito que resultou neste Caderno de Notas 9, realizamos
agrupamentos por vizinhança temática ou por contágio proximal. Então,
emergiram quatro partes, abertas a cruzamentos e encontros possíveis, quais
sejam: DIFERENÇA E FORMAÇÃO; PEDAGOGIA E ESCRILEITURAS;
DIDÁTICA E TRADUÇÃO; CURRÍCULO E TRANSCRIAÇÃO.
Em sua pluralidade de áreas empíricas e diversidade de zonas teóricas,
os capítulos deste livro carregam em comum a potência de traduzir
acontecimentos, forças e intensidades em novas maneiras de ler e es-
crever, pensar e fabular, viver e educar. Abrem, assim, um panorama
incomum para a criação de novos arranjos, montagens e composições
de escrita e de leitura em educação contemporânea.

Sandra Mara Corazza


Máximo Daniel Lamela Adó
Polyana Olini
(Orgs.)
DIFERENÇA
& FORMAÇÃO
Paideuma quadríptico de um corpo em obra:
palimpsestos, arquitetônicas

Cristiano Bedin da Costa


Sandra Mara Corazza

Resumo
Defendida em 29 de fevereiro de 2012, dentro do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Corpo em obra: palimpsestos, arquitetônicas constitui um exercício
corpográfico com vias à construção de uma anatomia palimpséstica: a
pesquisa em educação como experimentação de um arranjo polifônico, um
corpo rapsódico de tramas e conspirações entrexpressivas, incansavelmente
tecido, rasurado, reinvestido em meio à arte, à literatura, à filosofia. Nesse
sentido, a Tese insiste no interferencialismo como tática para a delimitação
de um plano no qual o problema de escrever não pode ser pensado a não ser
em relação com forças sonoras e visuais que não apenas o assombram, mas
também o constituem, em uma travessia sinestésica.

Palavras-chave
Corpo. Palimpsestos. Escrileitura. Arte. Educação.

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“Aquilo que ouço são pancadas: ouço aquilo que bate dentro do corpo,
aquilo que bate no corpo, ou melhor: aquele corpo que bate”.
Roland Barthes, Rasch.

I. O corpo, o que se não esse grãos rítmicos que


o espaçam, fazendo-nos umedecer os lábios, assoprar
os dedos e levantar a cabeça?
A pesquisa como corpografia, o corpo como palimpsesto: estratos
de uma composição impura, derivada de uma construção anterior: por
justaposição, contágio, transposição e transcriação. Tais pergaminhos
polifônicos – há tempos revisitados, raspados, reescritos – não escondem o
traçado das inscrições precedentes, de modo que o antigo permanece sendo
encontrado sob o novo, um gesto d’obra, em apaixonada persistência. Toda
matéria de escrita, bem-dita seja, faz parte de uma linguagem específica
que a ela é imanente, um suporte singular em relação a qualquer outro. Em
simultâneo, o mal-dito da obra erra pelo espaço dialogal das interferências,
do Entre, o meio da hibridação e do axadrezamento das linguagens. Assim,
um texto pode sempre ler um outro e assim a perder de vista, o ensaio de
segunda, terceira ou qualquer outra mão que se queira, geometrizando-
se sobre a superfície em policromática transtextualidade: o corpo rebenta
pelas suas costuras, e por entre tantas ressonâncias sucessivas, superpostas
através leitura, da visão, da audição, o texto não apenas expõe, mas
também está exposto à regra, tomando a perfusão escritural como método
de pesquisa ou, se preferirmos, como uma determinada maneira de viver e
pensar a Educação – aqui entendida como prática inventiva, destacada o
tanto possível dos exercícios exaustivos do comentário, do monólogo e da
repetição. Trata-se, portanto, do pensamento como ressonância, da inscrição
efetiva de zonas de contaminação. É em meio a esse percurso que se pode
tomar a Educação, com os discursos, as práticas e as imagens do pensamento
que a constituem. Enquanto prática de pesquisa, a escrita funciona como
uma espécie de câmara de ecos (BARTHES, 1977), de maneira a dar a
ouvir e a ver o jogo das forças que nela concorrem. Por essa via, o trabalho
da tese é o trabalho do texto, ou seja, da garantia de uma estereofonia
vocal, da economia possível de um corpo disperso e necessariamente em
trânsito. Seja como fragmento de um discurso amoroso e desejante, seja
como objeto de infinitas leituras, de um verdadeiro plural de encantos, ou
então sem órgãos, catatônico, esquizo, espasmático ou figural, intensivo e
atonal, a arte, a literatura, cada uma ao seu modo, não deixa de plasmar
a Educação com seus clamores e sopros corpóreos, imagens e gritos de
um real imperfeito, visto que sempre incompleto. Não tomemos, portanto,
nada por definitivo, não nos limitando a uma forma apenas: em última
instância, de pensamento. Ao ocuparmo-nos desse plural, constituímos
topicamente a anatomia expressiva de um corpo-palimpsesto.

II. A anatomia palimpséstica


À sua maneira, o palimpsesto é o plano de composição próprio da
bricolagem, o domínio das dissonâncias e dos contrapontos rítmicos, da
saborosa complexidade relacional entre elementos provenientes de estru-
turas diversas. Essa duplicidade do objeto, inserida na lógica das relações
textuais, só é possível através de um procedimento sutil de raspagem, pelo
qual vemos, sobre um mesmo plano, um texto sobrepondo-se a outro,
de maneira que não o dissimule completamente, mas deixe-o falar por
transparência, em um verdadeiro jogo cromático. Obviamente, tal regi-
me lúdico cobra seu preço. Primeiro, uma prática palimpsestuosa é
necessariamente um exercício indevido, no sentido de que trata e faz uso
de um determinado elemento de maneira não programada – tal como refere
Gérard Genette (2010), o verdadeiro jogo comporta sempre alguma me-
dida de perversão. Da mesma maneira, utilizar um objeto para fins exteriores
ao seu programa inicial é não só um modo de operá-lo enquanto elemento
em relação, mas também de jogar dentro dele, o que talvez torne as coisas
ainda mais arriscadas, uma vez que a Educação coloca os pés ou ao menos
a ponta do nariz em celebrações para as quais não é exatamente convidada.
Seja como for, pagar o preço já é aceitar o risco, afirmar a pesquisa como
um agregado, cluster de imagens-sons-escrituras sobrepondo-se às fronteiras
disciplinares. Verdadeira zona de contágio, o palimpsesto é um misto cuja
demarcação de propriedade é por condição absolutamente limitada, de

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maneira que é justamente na complexidade do conjunto que residem seu
sabor e sua graça. Experimentar um cromatismo textual implica encontrar
outros gostos que não organizações maiores, tais como os autoritarismos
do autor, da obra e do domínio disciplinar em questão. Por essa via e por
seus próprios termos, a escrita avança, faz o giro, roda e retorna não para
a neutralidade de um centro, mas para o contínuo movimento de invenção
e instauração de um espaço. Trata-se de tomar o pensamento, a escritura
como aventura do pensamento, enquanto exercício do concepto, ou seja, de
concepções tópicas (COUTO, 2001), reais agregados polifônicos. Escrever,
portanto, como criação de uma via tópica, concepção textual de visões e
audições outras, um topos contraposto ao repertório de topoi convencionais,
e que por isso exige soluções inventivas: por parte dos olhos, da língua,
dos ouvidos, das avaliações, dos planejamentos e pareceres, de que mais?
Ora, certa dimensão estrutural é obviamente necessária, uma vez que é por
lugares de discurso e de composição que a escrita se movimenta. Não se trata,
porém, de um percurso inofensivo. Que existam diferenças entre sistemas
de criação, que a pintura funcione através de coordenadas diversas das da
música, e que seja através da especificidade dessas coordenadas, em relação
aos problemas que as orientam, aquilo que define o funcionamento de cada
uma das disciplinas criadoras, eis aí uma afirmação sobre a qual já não pode
recair nenhuma dúvida. No entanto, sob uma perspectiva dinâmica, somos
convidados a um perigoso e turbulento passeio comparativista, através do
qual não deixamos de tomar um campo em função de outro, de maneira
que o sabor de um texto, o texto que nos toca, passa a ser necessariamente
sinestésico. Nesse ponto, se existem diferenças, estas são meramente
funcionais, não relacionais e anatômicas: o corpo, enquanto estatuto da
organização palimpséstica, está aquém das divergências formais, e é mesmo
esse corpo, em cada uma de suas posturas ou movimentos ínfimos, a
testemunha do contágio transdisciplinar. Ao avançar nessa direção, a pesquisa
torna-se então inseparável de uma aspiração talvez ainda mais alta, e é com
o timbre de uma tessitura deleuziana que diz da imaginação e do desejo de
se aproximar de um fundo comum ou comparável entre as palavras, os sons,
as linhas e as cores (DELEUZE, 2003). Por certo, a escrita tem seu próprio
calor, mas é ao pensar com a pintura que apreendemos melhor a linha e a
cor de uma frase, como se o quadro realmente comunicasse algo às frases,
da mesma maneira que o material sonoro elaborado pelo compositor irá
movimentar a mão que escreve. De fato, desde que Cézanne delegou a seu
trabalho a tarefa de espantar a cidade com a criação de um novo plano de
realidade (e fazendo isso com as coisas mais triviais, tal como uma simples
maçã ou um vaso ou dois), tornou-se ao menos aceitável admitir a existência
de tarefas bastante semelhantes no que se refere ao ato de criação. Tornar
possível aquilo que não é possível por si mesmo; mostrar e não representar;
tornar visível e não reproduzir; tudo pela atemporalidade pedagógica da
tópica cézanniana, tal como nos foi enunciada, ao modo de confissão
criadora, por Paul Klee (2001). Não se trata, portanto, de um saber absoluto,
seja onde for, mas sim de um verdadeiro saber impossível. É por isso, e não por
outra razão, que não existem assuntos privados no que se refere à criação, e é
também por isso que nós, escrileitores não-músicos, não-pintores, podemos
nos apropriar da música e da pintura, na medida em que elas não têm por
elemento exclusivo e fundamental o som e a imagem, mas sim o conjunto de
elementos de um real não-sonoro, não-pictural, que elas irão ou não tornar
perceptíveis (DELEUZE; GUATTARI, 1992). Se optarmos por levar a sério
a serialidade e a covariância desses planos, delegando também a nossas
práticas a tentativa de caucionar em cientificidade, mesmo que mínima, a
força de uma vertigem, pisaremos com o mesmo par de sapatos os espaços
das bancadas e dos ateliês, dos consultórios psicológicos, das salas de aula,
conferências e concertos, levando a sujeira como marca nas pegadas de um
para dentro de outro. Tráfego, mas também tráfico, transgrafia tópica. O texto,
em sua dimensão utilitária, sustenta essa espécie de estrabismo metodológico,
jamais isento de impostura: inventar para poder ocupar, e não o inverso;
criar por descolagem; inventariar procedimentos de raspagem; avançar
por sequenciais desorientações de sentido. Inevitavelmente, tudo passa por
pergaminhos conhecidos, lugares de destaque em estantes abarrotadas de
citações em páginas de volumes e saberes enciclopédicos esparramados
sobre bancadas ou protegidos em sagradas gavetas e compartimentos
mais ou menos secretos para o acesso ilimitado e sempre seguro onde se
lê: Verdade. Severa disciplina, o estriamento dos componentes no espaço,
a consequente redundância dos elementos de meio tornando-se paisagem

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e esta incidindo sobre os traços dispersos do corpo, complementaridade e
sobrecodificação: a Educação, por essa forma, introduz-se em seus rostos
e recebe os seus nomes, duplo estrato através do qual poderá orientar seus
movimentos. Arquitetonicamente, no entanto, apostamos em uma igualdade
de distâncias entre os elementos do cenário, de maneira que a arrogância
de uma linearidade cronológica, propriedade maior de todo exercício e
determinismo histórico, encontre-se suspensa. Não acreditamos em uma
neutralidade sagrada da obra, não buscamos uma verdade segura para a
vida e, desse modo, recusamos qualquer indício já dito sobre como orientar
ou levar esta ao encontro daquela. O labor palimpséstico é o testemunho
de incidências e granulações de um corpo transitório, sendo a sua tessitura
anatômica, em cada movimento, o discurso-veduta (COUTO, 2005) de uma
Educação polifônica.

III. A escrileitura e o corpo aqui


Feito uma figura baconiana, o escrileitor é aquele que está estrutural-
mente isolado: afastado dos demais por linhas de escrita, não deixa de ser
trabalhado e dito pela matéria que o rodeia, tal como um pintor é pressionado
pelas formas e pelas cores que usa (WILLEMART, 2009). Antes de qualquer
outra coisa, o ato de criação diz aquilo que somos, de maneira que nosso
passado, o jogo dos dias e então as razões de aspirações e esperanças futuras
estão necessariamente submetidas à linguagem e aos materiais utilizados: a
carne, que é termômetro, também é feltro, o emaranhado de linhas sonoras,
picturais, os capítulos compondo a cinematografia nômade das horas, o
homem no rasto dos anos, enfim: corpos tendas, corpos yurts. No entanto,
esse é um isolamento extremamente povoado. Não tanto de sonhos ou
de fantasias, mas sim de encontros: com pessoas (mesmo sem nunca tê-
las visto), com movimentos, com ideias, com a força de um pensamento
(DELEUZE; PARNET, 1998). Nada disso depende do relógio ou do
calendário, e tudo isso depende de um efeito, de um “algo se passa entre
nós”, de um “tem alguma coisa aí”, de um ziguezague desconcertante.
É nesse sentido que um encontro é sempre um duplo-roubo, uma dupla-
captura: eu & outro. Justamente aí: nunca apenas eu, nunca apenas o outro.
O arrancado de mim com o arrancado do outro. Pedaço com pedaço.
1 + 1 = dzum. Um naco estranho, carnudo, feltroso. Nada a ver só comigo.
Nada a ver só com o outro. Arquitetônica de zonas mistas: para uma prática
de pesquisa alquímica e transcriadora (CORAZZA, 2008), sempre foram
imprescindíveis os cutelos. É nesse sentido que, frente à superficialidade
do corpo em sua condição dita pós-moderna, a pesquisa, ao seguir o fio
condutor do corpo (NIETZSCHE, 2003), talvez possa também funcionar
enquanto um testemunho de sua existência efetiva, a inscrição de suas
pancadas, de seus sopros, de suas indecisões. Corpográfica, a pesquisa é
isso onde o corpo reflui sobre si, onde pode, fora de toda dispersão, fazer-
se efetivamente presente. Palimpséstico, o corpo, apesar de tudo, está aqui
(FOUCAULT, 2014). Nesse sentido, pode-se dizer que existem (ao menos)
dois textos: o texto que se recebe via leitura (e poderemos mesmo dizer: via
visões e audições libertadas do empírico, capazes de ver o invisível e ouvir o
inaudível) e o texto que se executa via escritura. Por certo, ambos os textos
são corporais: ler é também “fazer o nosso corpo trabalhar” (BARTHES,
2004, p. 27), assumir certas posturas, ter preguiça, suspiros ou arrepios
inconfessáveis. Ler é querer sair correndo. E sair. E cortar, parar, querer
mais ou querer menos. Posturas essas, aliás, que permitem ao autor manter-
se vivo, encontrar novas paisagens, tornar-se parte do contemporâneo. Tal
como nos lembra Barthes (2006), etimologicamente, texto que dizer tecido,
véu epidérmico de entrelaçamento contínuo, no qual o sujeito se desfaz ao
mesmo tempo em que constitui sua teia, o seu território, o seu próprio modo
de dizer eu. Ou seja, para quem experimenta o prazer do texto, é por ele que
se compõe a tessitura dos dias. Se ativo e passivo não são categorias válidas,
é porque o que irá definir a especificidade do texto que se escreve, este tipo
específico de texto segundo, é a sua condição manual, condição essa que
faz com que ele seja, dessa forma, muito mais sensual. Trata-se de um texto
prático, evidentemente, mas isso não é tudo: é ele aquele que efetivamente
tocamos, queremos e podemos usar, operar por lambuzos. É a ele que
ousamos propor a dança. É nesse sentido que ele será ativo: pela aceitação
de nosso toque, pela aceitação do contágio, pela assepsia tornada vã. Se a
leitura, a pintura ou a música podem apontar o dedo, me invadir e sair de
mim ilesas, a escrileitura é ato de acasalamento em si. Núpcias inter-reinos.
Roubo e não trapaça, onde nenhuma violência há. Sensualidade, sedução e

20 • 21
proliferação: &... &... &... Ligeira noção de hifologia, a ideia generativa do
desaparecimento elocutório do autor face à linguagem, autotélica existência.
Ordem arquitetônica de rastos? Ecce corpus, dialogicamente imperfeito. A
linguagem não é dócil, bem se sabe. Aprendemos com J.L. Austin (1990)
que dizer é fazer, e são os atos expressivos, desse modo, atos do corpo. Dizer
o corpo é fazer o corpo, violência performativa que faz com que quanto
mais sobre ele se fale, menos ele possa existir por si próprio (GIL, 1997).
Seguremos o choro. Há cárceres e há criptas, mas também, sob o solo de
algo organizadamente sagrado, escritas, excriptas por onde um corpo
respira. Um corpo: o que abre, distende, que espaça pés e cabeça, dando-
lhes assim lugar para que um algo se dê: escrever, pensar, esperar (Waits,
Tom): She sends me blue valentines. Acreditamos em poiéticas, em limites
e superfícies: “o futuro, pois, pertence à filofonia” (SATIE, 1992, p. 43).
Acreditamos na voz simultaneamente corpórea e incorporal, no corpo-som
e no corpo-palavra, perdição e reencontro. Acreditamos em grãos sonoros,
nos entremundos sensíveis kleenianos, em grãos de olhar antes dos olhos.
No corpo em obra, na pesquisa enquanto instauração de um possível. Ora,
ser seduzido por um corpo, percorrê-lo, é também participar de sua criação,
operá-lo em arquitetônicas composições palimpsésticas: o jogo polimórfico
entre a escrita original, o corpo figurativo da tradição e o novo. O espaço
palimpsesto: espaço da entre-expressão e coexistência das escritas (COUTO,
1989): complicatio hians. Diríamos: certa arquitetura do próprio corpo, no
recriar-se, portanto – talvez ao modo das orientações colhidas em Umberto
Eco (1997): heurística e suinomancia tópica, o elogio da lupa, do resto,
do riso protopoiético. Arquitetar um corpo: a escrita está na escrita e por
certo a ultrapassa, não só a escrita sobre o corpo, mas efetivamente o traço,
a inscrição efetiva, o autor rasurado, uma vida sobre a qual escrevo e sob
a qual me inscrevo: escrileitura prática. A pesquisa, ela própria o campo
de exercício de uma tópica corpórea, libera-se, pela praxis de um discurso
impuro, do imaginário grosseiro daquele que diz e assina. É o corpo,
portanto, aquilo que fala, que abaixa ou levanta a cabeça, que já explodiu
os tímpanos, já perfurou os olhos, através dos seus estilhaços de linguagem.
É o corpo um isso fibroso, pungido, a policromia e a imprevisibilidade do
casacão de um palhaço (BARTHES, 2003): sonoridade de um vitalismo
próprio, transcriado nas antípodas do discurso obcecado pela finitude, pela
morte, pelo pesadume do sentido.

IV. Panóplianatomias ou então o corpo e sua imagem adúltera


A música, a literatura, a filosofia, a pintura: não vive-las a não ser em
seus acentos, ou seja, pelo corpo em estado de música, literatura, filosofia,
pintura (estratos para uma semiologia segunda, longe dos sistemas das
notas, dos tons, dos acordes, do sistema das cores e dos conceitos, e assim
comprometida em aperceber e seguir o formigamento das pancadas do
corpo, no corpo, pelo corpo). Palimpsestos, arquitetônicas: não é o corpo,
por necessidade, também o corpo do outro? Não sou eu, ao encontrá-lo,
aquele que o executa, escreve, rasga a carne? Corpo: “todo pensamento,
toda comoção, todo interesse suscitados no sujeito amoroso pelo corpo
amado” (BARTHES, 2007, p. 93). Sublinhemos: é por amor (e não por um
simples assim querer) que vasculho e percorro o corpo do outro, e então
sou eu aquele que se inscreve nesses dobramentos – um corpo que primeiro
se enovela e tece, espreguiça-se e então acorda, pica, rutila sombriamente,
retesa-se, estende-se, fala, declara, lava, desloca, treme sobe e corre, canta e
bate, diz, soletra, entusiasma e canta, ressoa, dança e a pancadas retumba
(BARTHES, 2009). Seria preciso dizer: vão aqueles que amamos mais
longe que os ouvidos, os olhos, a aprendizagem. São eles aqueles que
correm pelo corpo, nos músculos e nas vísceras, pelo bater do ritmo. São
eles aqueles de quem se pode dizer pertencerem a uma só pessoa, a um
só corpo, este corpo que os encontra: o verdadeiro pianista schumanniano,
o verdadeiro amoroso barthesiano, o verdadeiro pintor baconiano, vivem
neste corpo, compõem essa presença contemporânea na qual habito. O
corpo arquitetado em um meio, por incontáveis meios, entre-Vistas. O
corpo: “um simples plural de encantos, lugar de pormenores sutis [...] canto
descontínuo de amabilidades” (CORAZZA, 2010, p. 88); corpo pulsional,
“que se empurra e volta a empurrar, passa para outra coisa – pensa noutra
coisa” (BARTHES, 2009, p. 288); corpo embriagado e suficientemente
distraído, estonteado e ardente; corpo de intermezzos, que muda de sítio,
muda de postura, impede que o discurso se agarre, engrosse, espalhe-se e
desenvolva-se; corpo que se agita e que incomoda a palavra; corpo raso,

22 • 23
corpo de acúmulos superficiais, epidermicamente profundos: corpo riscado
de novo. O construcionismo de pesquisa constitui a articulação dessa
existência rapsódica; afirma, reconhecendo por escrito, a polifonia que
nela se inscreve. Não se trata de rascunhos, de tornar a raspar em busca
de um aperfeiçoamento do corpo e de uma subjetividade deficitária demais
para seguir existindo (LE BRETON, 2003; ANDRIEU, 2004): imperfeito
porque necessariamente incompleto, o corpo está em trânsito, disperso em
meio a pedaços irregulares de teorias, parágrafos, refrões. Palimpsestos, ou
então corporemas e mugshots de poeira: topological slides (não vivemos no
mundo, num mundo, mas em múltiplos polípticos). A pesquisa é, portanto,
estilo, ordem arquitetônica de invenção, criação de topoi, linguagens e
suportes, sendo justamente no seu dimensionamento ético-estético e
construcionista que reside sua honestidade – nós, ladrões honestos, ao
modo bacon-dostoievskiano: o realismo como valor (DOSTOIÉVSKI,
2006; SYLVESTER, 2007). Assim, o corpo: o que senão essa infinidade
de entradas, pulsações, compostas por música, literatura, pintura (vias
tópicas, os caminhos do corpo)? O que senão esse texto estético se
desdobrando entre obras, o tecido de uma contemporaneidade? O corpo:
por golpes de desejo e de necessidade, experimentemos e saibamos criá-
lo, possamos escutá-lo. Ordem de coexistentes ou a coexistência de uma
geometria do intensivo e do orgânico, do caos e da harmonia: é o corpo
essa realidade fibrosa onde o antigo esfola ao ser esfolado, torna-se
persistência e estereofoniza a voz que nele se envolve e diz. Arquitetônicas,
Panóplianatomias: eis o corpo em sua armadura, na atualidade e virtualidade
de seus elementos. Dos gritos, pancadas e granulações do corpo, saibamos:
o inventário não se esgota.

Referências
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24 • 25
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WILLEMART, Philippe. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São


Paulo: Editora Perspectiva, 2009.
Da Pesquisa-Sensação: fragmentos

Simone Fogazzi
Paola Zordan

Resumo
Compreendendo a sensação como via da aprendizagem, este trabalho
percorre seu olhar pelos caminhos da Filosofia da Diferença, seus diversos
autores tais como Deleuze, Guattari, Barthes e Corazza, entre outros,
focando na pintura moderna, na arte, nos processos de criação, na docência e
na vida. O trabalho apresenta as ideias que aprender é pensar, que se aprende
pela sensação, que ensinar é criar procedimentos tradutórios e que, para viver
intensamente, é preciso criar uma Vida.

Palavras-chave
Filosofia. Ensino. Sensação. Criação. Arte.

26 • 27
1. Apresentação ou azul do céu de verão
Há interferências dos e nos planos imanentes das filhas do Caos, as
Caóides: filosofia, arte e ciência. Podem ser interferências extrínsecas,
intrínsecas ou ilocalizáveis, mas sempre interferências que acontecem no
pensamento e que o movem (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 278-279).
No contexto do Projeto Escrileitura: um modo de ler-escrever em meio a vida
(CORAZZA, 2010/14), que orbita em torno do conceito de escrileitura de
Barthes, um processo “remetido a uma escrita-pela-leitura ou uma leitura-
pela-escrita” (DALAROSA, 2011, p. 15), pode-se pensar nestas zonas de
interferência que movimentam o pensamento na produção de uma escrita
outra, impessoal porque descolada da identidade, intensa por que opera
no tempo intensivo, da arte. Para isso pensou-se em procedimentos que
pudessem induzir o descolarmento necessário da identidade, operando com
intensidades e produzindo singularidades.
Com a linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, da Faculdade
de Educação da UFRGS e com o DIF, esta pesquisa mantém uma relação
com o sentido do termo diferença, que não é o sentido comumente ligado
à palavra, mas o que está ligado à noção de multiplicidade contida em toda
obra de Deleuze, especialmente, sendo: cada um, um novo, em constante
movimento, de maneira que somos múltiplos em nós mesmos.
Com o grupo de orientação M.A.L.H.A., esta pesquisa estabelece uma
relação que engloba a noção de arte (e conceitos orbitais) e de simulação do
fazer artístico ao fazer docente - ao fazer da vida uma obra de arte, tornando
visível a potência do ato criador. 1

2. Problemática ou amarelo canário


Quanto mais potente um corpo, mais sensível ele é, ou seja, mais apto
a afetar e ser afetado e por um número maior de forças (MERÇON, 2009,
p. 37). Significa que quanto mais sensível, maior é o poder de percepção
do pensamento.

O presente texto está calcado na dissertação de mestrado Da Sensação: fragmentos e cromocrônicas de uma
1

professorartista, que apresentou a sensação na arte, na vida e no ensino. Em conformidade às normas desta
publicação foram suprimidas as produções artísticas, tanto as visuais como as textuais, mantendo-se alguns
fragmentos textuais.
A questão que se coloca é se seria possível uma condução da sensibi-
lidade, de forma que o ser pudesse experimentar os diversos níveis, as dife-
rentes modulações da sensação na obra de arte. Se por si só, o ser poderia
participar do acontecimento que é a obra de arte, sem uma mediação que
o conduzisse à percepção.
Questão ética, contrária à moralidade, a condução da sensibilidade é
um processo criativo que encontra analogias no processo criativo artístico
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 136-137). Conduzir a sensibilidade é
o que o professor de arte pode, portanto é poder, é potência própria deste.
Para conduzir a sensibilidade é preciso uma pedagogia da Sensação, é
preciso operar com o incorporal, com o tempo puro, Aion, intensidade.
Uma pedagogia em que a sensação atue, rompendo hábitos cronificados
(Cronos), em que o sentido organize os corpos. É o sentido que vai dar as
formas pedagógicas. A apreensão do mundo é, desta forma, a construção de
sentidos, que direcionam toda a vida e o comportamento.

3. Objetivos ou verde bandeira


Trazer mais vida, movimentar o pensamento, através da análise-
deglutição da vida mesma. Dar potência ao ato criador na docência para
ir além, ultrapassando métodos e instrumentalizando o docente para uma
criação responsável no território da educação. Ir de uma leitura crítica ao
fazer responsável (ao tomar para si a responsabilidade de criar aulas atra-
vessadas pela ética e pela estética) para que a escola possa ser transformada
através das forças da arte. Fazer com que o docente torne-se autor da pró-
pria docência, com ética e estética, para apreender e conhecer as operações
da sensação na aprendizagem.

4. Teorização ou vermelho carmim


#diferença# Os filósofos da diferença olharam a concepção filosófica
estoicista como ponto de partida para a criação de outros modos de ver o
mundo, uma vez que o infindável é aceito nesta concepção – questão não
mais de “aprofundamento” de uma verdade, mas de “alargamento” de uma
superfície, de um campo de saber, de um território. Crisipo, estoicista, fez
uma filosofia do ser e do extra-ser, ou seja, dos corpos e dos incorporais.

28 • 29
Os (múltiplos) indivíduos e os (múltiplos) afetos, não existindo nesta
concepção um Uno e Múltiplos, mas apenas Multiplicidades (ser e extra-
ser). Duas realidades, uma extensa, dos corpos, das formas, e outra intensa,
dos afetos, das intensidades e do vazio, das singularidades (aformais).
Basicamente pode-se dizer, com Ulpiano (2010), que as noções
construídas ligadas ao platonismo são regidas por um filosofia do poder e,
por outro lado, as noções construídas ligadas ao estoicismo são regidas por
uma filosofia da potência. Desta forma, o pensamento guiado pelo poder
está ligado à noção do Uno (e do múltiplo como sua fragmentação) enquanto
o pensamento guiado pela potência está ligado à noção de singularidade,
de multiplicidade, da diferença em si. Há, na primeira, a noção de uma
linguagem articulada com o poder, com o significado das palavras, uma
preocupação em conceituar, medir, delimitar. Já na filosofia da diferença
há uma linguagem fundamentada no sentido, nos signos, na potência das
palavras, há uma preocupação, citando Deleuze, com o “quanto”, o “como”
e o “em que caso” (2006, p. 260).
#sensação# As forças exteriores fazem o corpo vibrar com a sensação. A
vibração sentida ecoa por todo o corpo, percorre fluxos e funda lembranças.
Reminiscências, memórias evocadas pelo corpo que experimenta sensações
semelhantes, trazendo à tona experimentações vividas e tornando-as
presentes, transformando-as na atualidade do instante (BERGSON, 2010,
p. 279-280). Cada sensação experimentada é sempre nova, um novo encontro
e gera mudanças imperceptíveis. Na pintura, as sensações presentes na
obra de arte nos afetam através de traços e cores, formas e fundos, estilos,
tendências, manchas, linhas, composições da matéria e da vida. As ordens
de sensação não operam por oposição, mas por tendência, de forma que
sentimos estas misturadas tendendo ora para uma sensação ligada à carne:
sensação vibrante, desorganizada, intensa, acidentada e problemática; ora
para uma sensação ligada à razão: sensação neutra, organizada, constrita,
extensa, ordenada. Pensando com os termos de O Nascimento da Tragédia,
de Nietzsche, pode-se dizer que quando a sensação se apresenta num
movimento violento, dionisíaco, há uma indiscernibilidade de formas, uma
precisão não-orgânica, ao passo que quando se apresenta num movimento
compassado, apolíneo, há formas precisas.
#arte# Deleuze e Guattari (1997, p. 213) mostram que conservar a
sensação na obra de arte, enquanto durar o material, é o objetivo da arte que
busca capturar a força da Vida. Conservar a vida no sorriso capturado pela
pintura, conservar a potência do sorriso, da carne, do corpo, da paisagem.
Capturar as forças e conservar os conjuntos de sensações (seu corpo, suas
atmosferas) são as ações necessárias para sustentar a obra sem a presença
do artista, para que dure. Um corpo de sensações é uma composição de
afectos e perceptos, que valem por si mesmos, que estouram a percepção e a
afecção, de forma que ganham vida própria.
Os blocos de sensação são seres de sensação, uma vez que conservam a
vida, as forças, no material. As cores são os afectos da pintura, assim como
os traços, a luz, a sombra e os materiais. E os “motivos” são os perfectos, que
escapam da percepção comum, que a estouram, dando-nos uma singular
visão de mundo, uma nova perspectiva (DELEUZE; GUATTARI,1997,
p. 222). Compor um bloco estável, firme, de afectos e perceptos é criar um
ser de sensação, é criar uma obra de arte (DELEUZE; GUATTARI, 1997,
p. 213-214). Na pintura toda a matéria se torna expressiva, na medida que a
cor não é mais colorida, mas colorante, que a linha não delimita, mas pro-
jeta. A arte é uma linguagem que escapa da codificação do signo, criadora
de signos próprios, imateriais, por que não remetem à memória, não tem
explicação (DELEUZE, 2010, p. 37-38). É a linguagem das sensações, que
não tem opinião, que não comunica, mas expressa (DELEUZE;GUATTARI,
1997, p. 228).
#tradução, criação e procedimento# Desviar da memória e da
opinião e ir ao encontro do esquecimento e da sensação (DELEUZE;
GUATTARI, 1997, p. 218-222) são trajetos necessários aos que querem
traduzir criadoramente as forças que percebem, mesmo que intuitivamente.
Tradução aqui é tida “como um processo criador” (CORAZZA, 2011,
p. 59), que é “obra de gigantes” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 223),
portanto é criação de monumentos de sensações.
Deleuze e Guattari falam que toda obra de arte é um monumento, um
composto de sensações, que não comemora o passado. O ato do monumento
é a fabulação. Ato visionário, diferente da imaginação, a fabulação, segundo
Bergson, é a criação de deuses e mitos, está presente na arte, sendo, também,

30 • 31
exercida na religião. A fabulação criadora vem a ser uma fábrica de gigantes:
paisagens e personagens, construídos como monumentos, plenos de vida.
Um movimento de saturação do vivido para que a vida, em si, seja sentida.
Porém operar fora da memória leva à loucura, ao caos – então se faz
necessária a têmpera, a exata medida.
Salles (2004) apresenta a ideia de que o ato de criação é um complexo
processo de apropriações, transformações e ajustes – uma trama que engloba
o produto final. Numa arqueologia da criação interessa o movimento
criativo – o ir e vir da mão do criador. Não há insight ou mágica, nem
resultado que não seja fruto de trabalho árduo. Trata-se também de, com
Nietzsche, pensar e operar com o fortalecimento da vontade, ou seja, da
potência, como estratégia para os embates próprios da vida, da crueza da
vida. Podemos dizer que a produção de uma obra vai do caos à carne ou
corpo, ou seja, da imprecisão ao objeto preciso. Um jogo, uma trama, onde
a tendência inclui a matéria, o desejo inclui o meio de expressão e o acaso
não só é constatado – é esperado. O conteúdo da obra se cristaliza durante
o processo, tornando visíveis as forças que a impulsionam, que a moldam.
O conjunto das obras forma a paisagem existencial do criador, são projetos
concretizados. Processos não lineares, labirínticos, que ora completam,
ora confirmam, ora corrigem, ora contradizem – efetuação dos devires do
pensamento, testemunhas da criação única de uma vida. Processos abertos,
indeterminados, indefinidos que carregam uma “sensação de aventura”
(SALLES, 2004, p. 40).
O professor pensa e engendra maneiras de potencializar os encontros, as
aulas. Para que neste encontro de corpos ocorra a aprendizagem. Encontro
que cria subjetividades do espaço “entre” corpos, na sensação. Postura que
seduz, não coage nem convence, mas conduz. Existe uma lógica na sensação
que foi desprestigiada no advento da escolarização, ao se privilegiar o
desenvolvimento da razão no projeto de conhecimento ocidental moderno
(ZORDAN, 2013, p. 165-166), ao se separar mente e corpo no ser humano –
sendo a mente ligada à razão e o corpo às sensações. Na escola, através das
aulas de artes (e suas relações com outras disciplinas), operamos com uma
lógica diferente e necessária à formação integral do educando. Em artes é o
corpo todo que fala, que escreve, que se expressa e comunica. Como docentes
é com o corpo todo que criamos aulas, em um processo criador que se faz,
fazendo. Aulas que não podem romper com o modelo de educação, mas
podem criar rachaduras na estrutura, para entrar o novo na própria escola
e trazer mudanças. Trata-se de criar novos procedimentos, novas maneiras,
novos modos, para experimentar na carne o que se quer ensinar: a pensar.
Uma operação por filamentos que implica observar, analisar e criar novos
pontos de vista sobre a vida. Operar com o movimento do pensamento, com
a criação do novo. Daí a ideia do professor-artista.
Um corpo jamais deixa de ser afetado. Da ordem das paixões pode-se
dizer, com Spinoza, que há duas paixões primárias: alegria e tristeza. Na
alegria, o que nos afeta aumenta nossa potência de agir, expandindo-a. Na
tristeza, ao contrário, nossa potência diminui. Com as artes não é diferente,
porém a violência no pensamento acontece através da sensação. Algo me
toca, me afeta, então algo muda em mim. Não posso voltar a ser o que
era antes, apreendi algo. Não sou mais apenas uma professora, tampouco
artista, sim professorartista. Na escola trata-se de trabalhar com as sensações
e as experimentações, oportunizar a criação de novas afecções e novas
percepções, novos pontos de vista, deslocamentos, em um tempo intensivo,
mesmo que regido pelo cronológico horário escolar.
A arte é poderosa na aprendizagem, não só pelos conhecimentos e
procedimentos precisos de seus territórios, mas por operar transversalmente.
Nos procedimentos de escrileitura (CORAZZA, 2010/14), operando com a
primazia da invenção, com o desrazoável, com o intuitivo, ela permite que
a sensação aja diretamente nos estudantes, nos professores e nas produções
literárias, como se observou nas oficinas do projeto Observatório da Educação,
que a incluíram em seus procedimentos. A Arte provoca brechas nas
estruturas da vida institucionalizada, e por dentro delas é que as provoca,
inserida no cotidiano escolar, entre os horários de aula, nos corredores, salas
e demais espaços.
Pode-se experimentar estes movimentos nas oficinas que utilizaram
o descolarmento como procedimento inventivo e inventado. Para pensar a
criação de outros modos de pensar o já vivido no campo das singularidades,
as professoras pesquisadoras (NODARI e outros, 2012, p. 5), pensaram antes
o procedimento referido. Este procedimento é uma conduta, uma atitude,

32 • 33
uma maneira de potencializar a produção de textos (imagens e palavras).
Um modo de ação para que um escolar descole: das paredes da sala de aula,
das classes e do quadro verde e, assim, deixe de ser escolar, descolarize-se,
crie novos horizontes, ocupe um outro ponto de vista, um outro lugar na
escolarização.
#aprendizagem# Na maior parte do tempo a rotina estabelece uma
confortável situação de repetir o já pensado, de forma que só pensamos
algo novo quando provocados. Pensar não é tornar tudo claro, mas apenas
o suficiente para a ocasião que se apresenta. Desta forma, pensar implica
também em um certo mistério – uma questão de potência do que ainda pode
vir a ser pensado – uma vontade de poder, um movimento infinito que move
o pensamento e a construção de saberes e conhecimento. Uma vontade de
arte, de compor com a matéria.
Aprender é um problema político, uma postura perante a vida, é decifrar
signos e é construir sentidos. Decifrar signos sensíveis e mundanos, que
movimentam o pensamento. E signos da arte, que possibilitam a criação
de pensamento (DELEUZE, 2010, p. 91). Segundo Deleuze, não se sabe
antecipadamente como alguém vai aprender, não há método para aprender,
para passar do não-saber ao saber (2006, p. 237-238). O que é possível, então,
é criar situações que aumentem a potência de aprendizado. Como criar estas
situações? Através de procedimentos abertos, maneiras, estilos de ensinar.
Para um professor de arte é a sedução, através da sensação, que dissolve a
forma rígida do ensino no fluxo da sensação da matéria, da obra de arte, da
experiência de fazer arte. Experimentações de criação de signos artísticos,
assim como a decodificação, sempre provisória, dos signos construídos
por artistas. Neste sentido, a própria semiótica é uma construção, uma
arquitetura de signos, de perceptos, afectos e conceitos (COUTO, 2007,
p. 128).
Decodificar signos é uma operação da razão, da inteligência que
utiliza a lógica e o raciocínio, e que considera os signos como códigos.
Um constructo2, um discernimento linear que leva da abstração ao conceito.

É construção, portanto estabelecimento de referências: eixos e coordenadas. Procura a precisão, busca eliminar o
2

vago e o impreciso.
É buscar o significado da linguagem que se apresenta, considerando as
construções linguísticas. A linguagem é estrutura rígida e constitui-se por
conjuntos referenciais, que homogenizam os dados e produzem narrativas e
mensagens isomórficas. É abstração lógica e estruturada, um código digital.
Um raciocínio que opera com convenção combinatória e que precisa ser
apreendida, relacionado com o sistema filosófico de Aristóteles.
Há, porém, uma lógica presente nos signos da arte que escapa do
imperativo dos signos enquanto códigos. O analógico opera com as relações,
com as similitudes aparentes. É imposição imediata, é presença, é evidência.
Um desvio do simbólico através das conexões de elementos heterogêneos.
Uma modelagem pré-estrutural, que opera nas bordas da lógica. É sensação
colorífica, um aliquid 3, que ziguezagueia no pensamento em busca do sentido.
É apreensão e expressão de singularidades, de enunciados, de intensidades.
Uma transformação do incorporal que opera com a sensibilidade, com a
abertura a domínios sensíveis que escapam da linguagem. A analogia é o
sobrevoo da lógica, uma operação com o assignificante e o não-representa-
tivo, com o sentido das coisas e não com o significado.

5. Metodologia ou terra siena queimada


A pesquisa teve por estratégias: a adoção de fragmentos como potência de
texto; a simulação como forma de apresentação de imagens de pensamento
e os fazeres da pesquisadora (artista-professora-mulher), como simulações
do ato criativo; a antropofagia como economia ou política de devoração
dos autores para extrair a potência do pensamento gerado pela afecção dos
encontros; o perspectivismo a serviço da criação, com a prevalência da
multiplicidade de sentidos, como movimento infinito, que se faz, fazendo-
se; a indução e a intuição, onde o texto, das imagens e das palavras, é
apresentação e não representação das noções presentes na obra; a analogia
onde a lógica é da ordem da proporção; o diagrama, onde a estrutura
sustém o movimento; um método geométrico, de condução; a mistura de
corpos, onde a fenomenologia é transcendida em acontecimentos e, com os
estóicos, alarga seus horizontes até a filosofia do extra-ser, num empirismo

Conforme a metafísica, é “algo” no sentido etimológico do termo, quer dizer, é um outro-quê (ali-quid) em relação
3

aos demais quê. Busca semelhanças com outras coisas para apresentar a noção, o sentido.

34 • 35
transcendental; a expressão, onde o sentido é primeiro e os três elementos
da representação - significação, identidade, organismo - sempre provisórios;
a biografemática, como possibilidade de “descolar” da representação,
em direção ao sentido; a criação de procedimentos, como possibilidade
de reinvenção da docência, que circule entre a apreciação crítica e o fazer
responsável, e fazer da vida mesma (da autora) uma obra de arte.

6. Efeitos ou tons de branco


As forças que atuam nos corpos chegam até nós como sensação. A
pintura tem a tarefa de capturar estas com os elementos de que dispõe. É
uma “tradução pictórica” como afirma Pelbart (2000, p. 104), uma tradução
pois torna visíveis as forças presentes de uma maneira outra, pictoricamente.
Tradução criativa esta, que não representa, mas apresenta. Através de
atitudes, de procedimentos que operam com o próprio Fora presente na
vida. O Fora é um nome, segundo Pelbart, para fazer “entrar na ordem do
discurso aquilo que não tem ordem, substância, nem unidade” (PELBART, 2000,
p. 181). Para Nietzsche é o Caos, forças intensas, descontínuas, sem começo
ou fim, coexistindo em um corpo que é criação do acaso, sem sentido nem
intenção, apenas intensivo. Para que seja possível viver, este corpo cria
para si um corte no Caos, no Fora, e estabelece aí um plano seguro para se
abrigar. O pensamento do Fora para Pelbart (2000, p. 182-183), é um jogo
entre a razão e a desrazão, que coloca o corpo num frágil equilíbrio entre a
razão extrema e a loucura total, onde a dureza de uma e a liquidez da outra
impedem que a vida prossiga, só sendo possível viver como matéria plástica,
maleável, plasmática, no entre. É preciso mergulhar na sensibilidade da carne
e da poesia para capturar o Caos. Um encontro que necessita de rituais e
racionalidades febris para experenciar este encontro e dele sair, retornar à
existência consciente e carregar parte deste Caos, trazer parte do Fora para a
vida. Um “remo” intelectual se pensarmos como parte de um ponto de vista
platônico, onde se casam “emoção e razão, instinto e rigor” (PELBART,
2000, p. 15), mas um avanço no pensamento na direção de variedades, do
novo em si, pois é a única possibilidade na criação.
Também na docência é possível pensarmos nestes mergulhos no Caos,
no Fora para possibilitar a criação. Planejar aulas exige emoção, razão,
instinto e rigor. Há, ainda, similitudes nos rituais (PELBART, 2000, p. 181)
da pintura, da docência e da vida – os rituais para iniciar uma aula, uma
pintura, um projeto – entrar na sala de aula, na tela e na vida, e os rituais
para de lá sair, sair do lugar-comum, dos clichês, e poder criar algo para si
e para os outros. É um movimento que se faz, fazendo-se, por isso não se
pode prever exatamente o que fará alguém mover-se, mas podemos seduzir
para o encontro. Na pintura, tornar-se artista é movimento, é devir-animal
que constrói sua obra, mundos possíveis, em matilha e/ou isolado. Criação
de um estilo artístico. Na docência, movimento de tornar-se professora,
devir-animal, que compõe, que planeja seu território, a aula, em matilha
e/ou como docente isolada. Criação de um estilo professoral. Na vida é
movimento de tornar-se o que se é, devir-animal que compõe, constrói sua
vida , com o que o torna potente e livre (do hábito). Ora adotando estilos de
vida coletivos, que o afetam, ora solitariamente, num estilo singular. Criação
de um estilo de vida aberto a novas perspectivas, doador de potência.

7. Referências ou laranjas elétricos


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Memória e fabulação em Henri Bergson:
considerações sobre a experiência do
tempo no ensino de história

Gabriel Torelly Fraga


Nilton Müllet Pereira

Resumo
A dissertação apresenta rastros de um percurso filosófico e suas crises. Crises
entendidas no sentido de um gesto criador, que leva o filósofo, no caso Henri
Bergson, a passar de um conceito a outro. Da memória à fabulação é todo
um plano de pensamento original que se insinua, suscitando uma nova
modalidade de cálculo dos problemas filosóficos. Situada diante deste novo
cálculo, a escrita da dissertação assume como objetivo tensionar os limites
éticos e estéticos da discursividade atual do ensino de história. Do ponto
de vista de um virtualismo bergsoniano, postula um ensino menos afeito às
estruturas significantes atuais e mais próximo de uma política expressiva
aberta à expansão dos limites da significação.

Palavras-chave
Henri Bergson. Filosofia da Diferença. Memória. Fabulação. Ensino de
História

38 • 39
I. Da problemática e da estratégia

Quando completavam cem anos da publicação de Evolução Criadora


(2007), um grupo bastante amplo e heterogêneo de pesquisadores brasi-
leiros lançava uma coletânea de artigos intitulada “Imagens da imanência:
escritos em memória de Henri Bergson”. Além de apresentar ali a diversidade de
elementos que demonstram a atualidade de alguns problemas enfrentados
pela filosofia bergsoniana na virada do século XIX para o XX, os autores
elegeram como um dos seus pontos de interesse as interfaces entre o
pensamento de Bergson e a Educação (LECERF; BORBA; KOHAN,
2007). Na dissertação aqui apresentada procurou-se dar conta justamente
de uma dupla interrogação que se inscreve nessa mesma intercessão: a) De
que modo os principais temas discutidos por Bergson se apresentam na
linguagem da filosofia contemporânea? b) Que tipo de problematizações a
releitura contemporânea da filosofia bergsoniana pode provocar no campo
da Educação, mais especificamente, no ensino de história?
Antes de abordar os dois aspectos acima referidos, uma breve consi-
deração sobre a estratégia metodológica envolvida na escrita do trabalho.
Se for correto afirmar que toda tradução carrega consigo os germes de
uma traição inevitável, também é relevante o fato de que antes de trair é
preciso sustentar uma rigorosa relação de coincidência com a coisa traída
(VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 15; CORAZZA, 2013, p. 188-189).
Ao trair um autor, procurando extrair de seus escritos uma dimensão
contemporânea, deixa-se para trás os momentos de labor silencioso nos
quais nos entregamos em segredo, aceitando provisoriamente os termos que
eram ditados alhures simplesmente para que o jogo pudesse continuar. Tudo
se abandona para coincidir com o que se apresenta. Essa é mesmo uma
dimensão ética e pedagógica que se pode ler no encontro radical promovido
pelo pensamento de Henri Bergson entre a teoria do conhecimento, a
metafísica e a experiência do tempo. Ali, conhecer é expor-se ao ritmo
da coincidência, e a “duração” é o vazamento do sujeito e do objeto do
conhecimento a um só tempo para fora das grades da racionalidade
instrumental e da ilusão do Nada metafísico (BERGSON, 2006, p. 24; 2010,
p. 300-315).
Essa coincidência, que é da ordem das relações amorosas, acaba por
desatar eventualmente o cordão das intenções, traindo o pacto intersub-
jetivo e a moral da similitude; rompendo os vínculos de reciprocidade
imaginários que sustentam o efeito de verossimilhança entre o original e
a cópia; introduzindo, portanto, o lapso de hesitação aonde se aloja um
terceiro: frágil, precário, de natureza fragmentária e fugaz, contudo, um
terceiro. Mesmo nas maiores alturas dos sonhos binários, o terceiro é
o espectro de um precursor que assombra os interstícios relacionais. Daí
a iminência de um resíduo diferencial que pressiona nas fronteiras da
intencionalidade. Daí o risco de desatar o liame das relações de semelhança
e apresentar rastros de uma figura monstruosa, efeitos de linguagem de uma
pressão que é da ordem do exterior. O pensamento contemporâneo lança
o seu desafio aos fundamentos analógicos da maquinaria binária: não há
motivos para escrever sobre alguma coisa que não ameace uma posição
de sujeito ou não seja capaz de apresentar o presente como uma sorte de
animal invertebrado – instável, móvel, flexível. Nesse caso, pensar é ins-
talar-se num limiar de turbulência pré-subjetivo, não-individuado, onde
suportar o silêncio de nossas disposições é o que propicia condições para
seguir adiante. O animal que interessa não é aquele que se esconde na
fortaleza sintética do cogito, nem numa escalada ascética de sublimação,
mas o trânsfuga literário, “desincorporador de sentido” (RANCIÈRE, 2009,
p. 59-61), perseguidor de uma significação movente em contínuo estado
de expansão e abertura. Escorregadio, saltitante, charadista de si mesmo,
o tempo é a sua questão, o movimento a sua realidade. É sob tal ótica que
dimensionamos o caráter contemporâneo da filosofia bergsoniana ao longo
da pesquisa.

II. Leituras de Henri Bergson


Quanto ao primeiro aspecto desenvolvido na dissertação, é importante
notar algumas linhas “mestras” que conduziram a retomada do interesse
pelos estudos bergsonianos no Brasil. Embora as interpretações e leituras
imanentes da obra do filósofo, que procuram apresentar o seu pensamento
o mais próximo possível da “letra fria” do original, não tenham deixado de
preocupar os pesquisadores, é possível apontar dois marcos em especial que

40 • 41
impulsionaram, mais ou menos explicitamente, a renovação dos estudos
bergsonianos no final do século XX e início do XXI. Em primeiro lugar,
a influência da leitura deleuziana, apresentada no Bergsonismo (1966), mas
já esboçada em artigos anteriores, escritos ainda na década de 1950, onde
Deleuze apresentava o pensamento de Bergson como uma “ontologia
da diferença” (2006). Como relembra recentemente François Dosse,
Deleuze formulava sua leitura extremamente original da intuição filosófica
bergsoniana a partir dos conceitos de “duração”, “memória” e “impulso
vital” num tom intencionalmente provocativo, cujo escopo era romper
com as interpretações de caráter ideológico e psicologista sobre a filosofia
de Bergson que dominavam o cenário intelectual do pós-guerra na Europa
ocidental (2010, p. 120).
O outro marco ao qual é importante fazer uma referência em especial
é a publicação da tese de Bento Prado Jr. no Brasil. Publicada tardiamente
em 1989,4 a tese originou um livro chamado “Presença e campo transcendental:
consciência e negatividade na filosofia de Bergson”. Ali, o filósofo brasileiro
demonstrava como de um lado a partir da crítica radical à “infra-estrutura
imaginária da ideia de Nada”, e de outro a partir do conceito de “imagem”
entendido como campo transcendental pré-subjetivo, Bergson fundava uma
metafísica renovada, distante, ao mesmo tempo, da representância platônica, do
cogito cartesiano e dos limites da estética transcendental kantiana. O método
intuitivo poderia emergir então como o “fio metódico” (DELEUZE, 2012,
p. 10), ou como ponto de inflexão “noemático” (SANTOS PINTO, 2010,
p. 11), capaz de tornar pensável uma figura estranha e paradoxal na história
da filosofia: uma metafísica baseada na própria experiência real. A noção de
“campo transcendental das imagens” permitia descolar o pensamento
bergsoniano das filosofias do sujeito, demarcando suas diferenças e
aproximações especialmente em relação à fenomenologia, uma vez que na
leitura de Prado Jr. a experiência não é mais o horizonte de uma subjetividade
constituinte e transcendental, mas o próprio campo de indeterminação a

A tese é redigida e defendida na França no início da década de 1960. Em virtude do exílio sofrido pelo autor no
4

período da ditadura civil-militar brasileira, ela só é publicada e difundida por aqui em 1989 na forma de livro. O
mais interessante é que em 2002 o livro seria traduzido e publicado na França, despertando em território francês
um renovado interesse em torno da filosofia de Bergson.
partir do qual uma subjetividade se desprende como introdução de novi-
dade (PRADO JR., 1989, p. 145-146).
Partindo especialmente das intuições desenvolvidas por esses inter-
cessores, radicalizamos a potência silenciosa da memória ontológica
bergsoniana de maneira a apresentar-lhe como uma hipermemória poética
capaz de guardar a presença de um terceiro que se oferece por diferenciação.
Considerando a problemática da passagem entre a segunda e a terceira
síntese do tempo (DELEUZE, 1988, p. 102-128), ligamos a memória ao
impulso vital, de maneira a encontrar uma solução de continuidade entre
a memória absoluta e o eterno retorno da diferença na própria obra de
Bergson, evidenciado especialmente nos conceitos de criação e impulso
vital presentes n`A Evolução criadora. Desse modo, encontramos em Bergson
não apenas o inventor do “virtual”, mas um verdadeiro “virtualista”, como
queria Pelbart (2011, p. 74). Não satisfeitos com essa pequena engenharia,
surfamos a onda de Deleuze, e fizemos da função fabuladora bergsoniana o
meio expressivo através do qual o impulso vital obriga a memória ontológica
a romper a mudez essencial e diferenciar-se por literalização. A função
fabuladora encerrava a passagem entre os conceitos de duração, memória
e impulso vital que caracterizaram a trajetória dos principais escritos
bergsonianos.
Da duração à memória; da memória ao impulso vital; do impulso vital à
fabulação bergsoniana é todo um novo cálculo dos problemas filosóficos que
se insinua. A introdução, ou intromissão do “terceiro” funciona ao modo
de uma artimanha que sabota os paralelismos clássicos e os jogos duais
travados pela tradição filosófica entre o empirismo e a metafísica. É comum
destacar que a forma encontrada pelo filósofo para escapar ao paralelismo
da tradição resultou numa espécie de monismo metafísico. Em todo caso,
nos parece que o monismo bergsoniano se torna efetivamente uma aposta
filosófica interessante ao revelar sua qualidade de ontologia diferencial; de
recusa do modelo de pensamento movido unicamente pelas multiplicidades
quantitativas – pelo problema do “mais” e do “menos” que abriga em suas
entranhas uma noção inofensiva de alteridade domesticada segundo os
termos de um pluralismo formal. O terceiro que Bergson nos oferece não
é semelhante a nada. Múltiplo selvagem. A analogia definitivamente não é

42 • 43
o seu negócio. Seu estatuto aproximado seria o de um “numeral obscuro”
(LAPOUJADE, 2011, p. 23-46). O outro sem o mesmo. Estranheza que
vaga sem referência imaginária a uma instância unificadora. Uma espécie
de cidadela onde todos são estrangeiros e ninguém pode afirmar algo do
tipo: “Ei, você pertence ao...”.

III. Bergson, a educação e o problema da


experiência do tempo no ensino de história
Quanto ao segundo aspecto abordado na dissertação, algumas
considerações preliminares de ordem metodológica se impõem. Embora
Bergson não estivesse distante dos debates de sua época em torno da
Educação, o fato é que o filósofo não dedicou nenhum livro em especial ao
tema, e mesmo que haja, aqui e ali, de maneira esparsa, algumas indicações
específicas, é preciso admitir que passados cerca de cem anos a problemática
educacional alterou-se substancialmente. Desse modo, mais interessantes
nos parecem os esforços que não se detêm somente numa busca filológica
dos textos, mas que realizam uma leitura de conjunto, procurando discutir
os principais matizes da intuição filosófica do autor, para dali extrair enfim
uma “dimensão pedagógica” (SANTOS PINTO, 2010). Também não fez
parte dos objetivos da dissertação propor algum tipo de “aplicação” da
filosofia bergsoniana à práxis educacional. Trata-se, de outro modo, de
partir da intuição filosófica presente nos conceitos formulados por Bergson
para tensionar os limites entre a dizibilidade e a visibilidade que compõem
hoje os fundamentos da teoria e da metodologia do ensino de história.
Partindo especialmente de uma discussão acerca dos conceitos de
memória e fabulação, nossa perspectiva converge em direção a um plano
de pensamento onde o acontecimento educacional reúne em torno de si os
problemas da indeterminação e da introdução de novidade, plano este em
que os postulados sociológicos e os axiomas culturais da “reprodução”, da
“transposição” e da “recepção” do conhecimento não são simplesmente
negados, mas parcialmente suspensos para dar lugar a um outro tipo de
cálculo dos problemas, cálculo intuitivo (DELEUZE & GUATTARI,
2012, p. 162; p. 175), articulado aos desdobramentos éticos e estéticos
de uma “Educação potencial” (LAMELA ADÓ, 2013). Foi o interesse
pelos “procedimentos pré-racionais” e por uma certa arte de manipulação
do acaso que introduziu a cada vez novos movimentos na pesquisa
(CORAZZA, 2012, p. 26-27). Nessa perspectiva, o interesse na memória
é justificado pela significação ontológica que ela assume em Bergson,
a partir da qual é possível ler na diferença do passado não o fantasma de
uma percepção enfraquecida, mas um potencial virtual de indeterminação.
Da mesma maneira, a medida do interesse na “faculdade fabuladora” não
é o sentido moralizante ou edificante que se pode atribuir às representações
que são por ela criadas nos limites das “sociedades fechadas” (BERGSON,
2005), mas antes o processo de criação ao qual ela se encontra indissociavel-
mente articulada. Tomada nesse registro, a problemática envolvida na
dissertação se insere na perspectiva, desenvolvida pelo Projeto Escrileituras
e pela Linha 09, de pesquisar a dimensão educacional do Acontecimento
situando-se nos marcos teóricos da filosofia da diferença.
As pesquisas na área do ensino de história têm apontado exaustiva-
mente para a insuficiência das problematizações que se contentam em
registrar o cotidiano escolar como o espaço das “faltas” e das “carências”
(JULIA, 2001; FONSECA, 2004; SEFFNER, 2012). O que significa que
uma aula de história da escola básica não deve ser avaliada, nem descrita,
somente a partir de critérios de validação e verificação de ordem exterior.
Sua verdade última não está contida nas “novidades” da historiografia, nem
na adequação formal ao desenvolvimento de uma “ética cidadã” voltada
unicamente para o presente. A aula é aquilo que acontece, e neste acontecer
está implicado um misto de ciência, arte e acaso que se desenrola enquanto
materialidade expressiva singular. É preciso que entre a inteligência e o acaso
desenrole-se um modo de fazer, como que uma ponte lançada entre a região
dos conceitos e do saber e uma zona de não conhecimento marcada pela
imprevisibilidade. É tendo em vista essa perspectiva, que afirma na força
da partícula “E” ao mesmo tempo a irredutibilidade e a coexistência entre
essas diferentes problemáticas, que uma pesquisa pode interrogar os novos
meios de expressão do que acontece numa aula de história (PEREIRA;
MARQUES, 2013).
Do ponto de vista teórico-metodológico dos fundamentos do ensino
de história, procurou-se ao longo da pesquisa apontar os limites de

44 • 45
uma concepção de experiência do tempo concebida pela racionalidade
instrumental sob o signo da dívida do sentido. Categoria operatória
fundamental nas discussões de ordem epistemológica sobre a finalidade
do ensino de história nos dias correntes, a experiência temporal aparece
na dissertação justamente como aquilo que precisa ser arrancado dos
postulados negativos da dívida e do fatalismo metafísico que acompanha
especialmente as soluções de ordem prática e teórica apontadas pela
aparelhagem conceitual da hermenêutica fenomenológica. O tempo aparece
ali sempre como o vulto a ser domesticado ou interpretado pelas grades
metódicas da racionalidade. Nada escapa. Não há excesso. A criatura que
senta nos bancos escolares é por princípio um ser endividado com o sentido.
Nesse caso, o que se revela ao longo do trabalho é uma incompatibilidade
flagrante entre a experiência do tempo concebida pela hermenêutica da
consciência histórica5 e a “duração” bergsoniana. De um lado, a experiência
temporal é o resíduo que deve ser reduzido pela analítica. De outro, ela
aparece como um potencial virtual de significação. A tensão filosófica entre
aquilo que poderíamos chamar de dois métodos distintos de “administração
da alteridade”, como na feliz expressão de Eduardo Viveiros de Castro, foi o
que permitiu visualizar a espessura das “muralhas” erguidas pelo “inimigo”
para em seguida procurar se situar no “interior da exterioridade que lhe é
imanente” (2013, p. 19).
Procurando colocar-se, ao modo bergsoniano, num ponto de obser-
vação anterior à fratura ontológica operada pela linguagem representativa,
postula-se uma aproximação entre a noção de experiência temporal, o
“princípio de criação” e a expressividade radical de um “pensamento do
exterior”.6 A significação ontológica da memória e o processo fabulatório de
criação associam-se assim a um olhar para o ensino de história que se descola
dos mecanismos de validação baseados no juízo exterior e nas estruturas

5
Para uma discussão sobre os fundamentos da categoria geral da “consciência histórica” como instrumental de
pesquisa na área do ensino de história, ver em especial a vasta recepção dos estudos de Jorn Rusen no Brasil.
6
O tempo da “duração” aparece em Bergson como uma concepção de experiência temporal capaz de ensejar uma
articulação não-negativada entre a experiência e o “princípio de criação”. Para conceber o tempo da duração
enquanto positividade de expressão, ou virtualidade de criação, é preciso ter em mente uma noção de experiência
anterior ao divórcio operado pelo racionalismo moderno entre a palavra inspirada e a palavra reflexiva, entre a
“experiência autêntica” e a “experiência estética”.
imaginárias da dívida do sentido e procura afirmar-se como singularidade
expressiva onde o que importa não é a conformação entre o ensino e uma
questão de ordem atual, mas a própria manutenção da inconformidade e do
potencial desprendido de uma força questionante; onde questionar, como
queria Blanchot, “é buscar, e buscar é buscar radicalmente, ir ao fundo,
sondar, trabalhar o fundo e, finalmente, arrancar. Esse arrancar de raiz é o
trabalho da questão. Trabalho do tempo. O tempo se busca e se experimenta
na dignidade da questão” (2010, p. 42).

IV. Considerações finais: o terceiro e a experiência do tempo


O terceiro é um trânsfuga sem origem ideal. Não pode retornar ao fa-
miliar. Ele não é filho de um corte aleatório compulsoriamente transfor-
mado em pátria. Ele é filho do que se move. Simulacro independente, sem
vínculo parental a não ser com o peito aberto do mundo. Viajante sem
passado. Ou melhor, com um passado tão remoto que muda a cada nova
cidade que chega para conquistar. Fardo abandonado – forasteiro fabulado:
este é o seu jogo. Fabular é sempre um delito monstruoso praticado contra
o peso subjetivo de nossas lembranças pessoais. É a nuvem carregada de
um esquecimento potencial que recobre a práxis e o circuito fechado entre
as memórias empíricas e o impulso mecânico finalista para guardar algo de
natureza diversa: a radicalidade do tempo, do tempo enquanto questão e
morada do intempestivo. É por isso que a fabulação não pode ser um exercício
feito em nome de uma identidade formada. Ela guarda uma dimensão larvar
que desconhece os cânones da representação e antecede os seus efeitos
antropológicos. Ao apagar lugares de sujeito, oferece silêncio e risco. Que
tipo de risco? De provocar uma estranha coincidência entre história e devir,
entre o empírico e o transcendental, produzir um expatriado, encurvando-se
até o ponto de romper uma costura demasiadamente apertada e produzir
por excesso outra linha de expressão.
Pensar conceitualmente a relação entre a função fabulatória e a
dimensão poética da memória bergsoniana não implica de modo algum
abdicar da inteligência histórica, nem mesmo do trabalho interpretativo
capaz de formar uma consciência histórica através da atribuição gradual
de significado à experiência temporal, mas de formular outro tipo de pro-

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blema, outro cálculo, aquele capaz de forçar a imaginação a emitir
significações novas, imprevisíveis, de privilegiar, na relação entre o tempo
e o significado, não o conjunto de significados atribuídos, mas a força do
tempo se repetindo como questão. Ao final do trabalho, a imagem que
emerge é a de uma fundamentação teórica que não se contenta em justificar
a importância do ensino de história somente em função da utilidade da
época, mas em função do inumerável conjunto de surpresas guardadas pelo
passado e pela imprevisível pressão que elas exercem sobre a imaginação
dos presentes que não deixam de passar.
A questão não pode ser um pedido de trégua, nem uma carta de
intenções que um general entrega ao adversário para assegurar os termos do
interregno acertado. Mesmo que se trate de um general de biblioteca, a questão
se apresenta como um trabalho de escavação. Questão incontornável, que,
ao se colocar, faz tudo desaparecer. Suspende, congela, embaralha as linhas
entre os ditos e as posições. Torna e retorna. Repete e difere. Carapaça valente
de uma forma em fuga e decomposição. Carrega em sua força questionante
um “tudo mudou”. Decompõe regimes de signos num deslocamento
de pontos brilhantes, como se fogos-fátuos ardessem lentamente para
em seguida se apagar em cadeias abertas de significação que fazem tudo
mudar ao mesmo tempo em que nada muda. Pois as formas fraturam,
desvanecem, dançam, alteram, mas o tempo se repete como questão. Ensinar
o tempo. Como ensinar aquilo que só pode aparecer como signo da própria
questão? É que ensinar história pode muito bem ser um exercício menos
concentrado na obsessiva atribuição da significação adequada à experiência
do tempo, e mais no processo experimental em torno do estado espiralado
da espera que caracteriza o eterno retorno da questão.

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(Tradução Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa) (2ª Edição). São Paulo: Editora 34, 2012.

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48 • 49
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SEFFNER, Fernando. “Comparar a aula de história com ela mesma: valorizar o que acontece
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VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de


antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 5ªed., 2013.
Bifurcações na formação de professores

Hilda Regina P. M. Olea


José Carlos Leite

Resumo
O conteúdo destas linhas é um extrato da dissertação de mestrado “Bifurcações
de Hermes: uma epistemologia do efêmero” defendida em março de 2014, no
Programa de pós graduação em estudos de contemporânea, da Universidade
Federal de Mato Grosso. Produzida no âmbito da Interdisciplinaridade,
a pesquisa discute o próprio movimento interdisciplinar quantos aos seus
aspectos epistêmico e metodológico, motivada, especialmente, pela alteração
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional que prevê a implantação
desta modalidade de produção de conhecimento como parâmetro curricular
a ser adotado pelas instituições de Ensino Básico até o ano de 2020. Foi
escrita quando bolsista de mestrado do projeto Escrileituras: um modo de “ler-
escrever” em meio à vida, financiado pela CAPES pelo Edital Observatório da
Educação, 2010.

Palavras-chave
Educação. Interdisciplinaridade. Tradução. Êxodo. Bifurcação

50 • 51
Retalhos
Aliado à filosofia de Michel Serres e de seus personagens Arlequim
e Hermes, a dissertação de mestrado “Bifurcações de Hermes: uma
epistemologia do efêmero” encontrou seu campo experimental em oficinas
de formação de professores, nas quais se pretendeu criar espaços para
experimentações no uso das linguagens e na produção de saberes outros, que,
enquanto processos de subjetivação, transversalizam os conteúdos escolares.
As oficinas produziram a dissertação na medida mesma em que em face
dela foram concebidas. Um processo que pensa a si mesmo na medida em
que se produz. Errantes por excelência, a dissertação e as oficinas, através de
relações entrópicas, como Arlequim, aportaram.
As vestes de Arlequim denunciam que ele vem de muito longe, que
viveu rigores, intempéries e delícias. Feita de tiras com formas irregulares,
mal costuradas, com cores dispostas em desarmonia, repleta de nós e
laços arranjados segundo as circunstâncias e a necessidade, a roupa puída,
dilacerada transcende o viajante e, magnífica, revela o mapa do mundo que
ele percorreu.
Talvez o comediante não saiba oferecer uma definição precisa a cada
um dos mundos pelos quais passou, mas certamente sabe dizer como são,
pois lá seu corpo experimentou vertigens, acidentes e contingências, seus
sentidos provaram sabores, perfumes e consistências que vão desde o firme
ao viscoso, aprendeu línguas e hábitos, mas também deixou algo de si,
dispersou-se pelas veredas que visitou, para retornar mestiço.
Compósitas, tal qual o casaco de Arlequim, as oficinas Bifurcações na
formação de professores7 foram realizadas com o objetivo de constituir um
campo empírico que tenta tornar operatória a filosofia da fluidez e das
passagens. Esfarrapada, ela relaciona projetos, instituições, individuações,

Oficina de formação de professores que organizei e apliquei – com o apoio da linha de pesquisa experimentações
7

em teorias e políticas educacionais, do grupo de Estudos de Filosofia e Formação, do Instituto de Educação desta
universidade – nos dias 23 e 25 de setembro de 2013, durante o Circuito Cultural Setembro Freire. A oficina
inscreveu-se no território interdisciplinar ao articular poesia, dança contemporânea e esta pesquisa acadêmico-
científica. Consistiu na realização de uma leitura corporal do poema gOOl, tema do evento no ano de 2013. Os
professores participantes exercem suas atividades de docência nas Escolas Paciana Torres de Santana e Dom
José do Despraiado, em Cuiabá. A partir das imagens registradas e da pesquisa realizada com esta oficina, foi
produzido também um documentário chamado Bifurcações.
interesses e afetos de proveniências diversas. São estes tantos retalhos que
conferem potência a esta experimentação e encorajam-me a ensaiá-la como
um manto portulano análogo ao do rei da Lua8.
As oficinas-manto pretenderam-se bifurcações e, como tal, operaram
através de relações, estabelecendo conexões entre elementos9 (sejam eles
teóricos ou institucionais), alinhavando farrapos para compor um pano,
que ao final, creio, deixa-nos ver, um esboço topológico e geográfico de tais
encontros. Dentre os agenciadores institucionais encontram-se:
R1: O projeto interinstitucional Escrileituras: um modo de “ler-escrever”
em meio à vida (Edital CAPES/INEP 038/2010), cuja coordenação geral é
realizada pela Prof. Dra. Sandra Mara Corazza, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Em sentido pragmático o projeto atua na busca de
alternativas para a compreensão e superação dos dados apontados pelo
IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), especialmente
aqueles que sinalizam as dificuldades no uso das linguagens.
Aliando a Filosofia da Diferença à educação e em sistemas cooperativos
entre Escolas Estaduais e Municipais e as Universidades: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) e
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), visa criar espaços para
experimentações que evidenciem as singularidades, dando lugar ao livre
exercício do pensamento, o que pode desencadear, através da experiência
do inusitado, processos de reinterpretação, de resignificação e de criação de
mundo.
R2: O grupo de Estudos de Filosofia e Formação (EFF, do Instituto de
Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), coordenado
pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro) – que neste trabalho comparece
também na condição de “núcleo UFMT”, integrante do projeto acima. Este
percurso investigativo integra a pesquisa realizada pelo Projeto Escrileituras
no “núcleo UFMT” ao inscrever-se entre as atividades de uma das

8
Modo como Michel Serres operacionaliza o personagem da commedia Dell’art na obra O terceiro instruído.
Instituto Piaget, 1993. p. 12.
9
A cada elemento que integra esta composição apresentarei precedido da letra “R” – em alusão à metáfora do
“retalho” –, seguido do número que ocupa na ordem de enumeração.

52 • 53
subdivisões do grupo EFF: a linha de pesquisa “Experimentações em
teorias e políticas educacionais”, cujo trabalho, no ano de 2013, esteve
voltado para a formação de professores.
R3: As Escolas Estaduais Professora Paciana Torres de Santana e Dom
José do Despraiado, que são as duas escolas de ensino básico parceiras
do Projeto Escrileituras na cidade de Cuiabá. Em um regime de parceria
e cooperação entre as Escolas e a Universidade, desde 2010 vem sendo
realizadas atividades que visam o desenvolvimento da educação infantil
e o aprimoramento dos docentes, dos alunos das licenciaturas e dos
pesquisadores.
R4: A Casa de Cultura Silva Freire, organizadora do “Circuito cultural
Setembro Freire”, evento que oportunizou a experimentação da oficina
“Bifurcações”. Evento este realizado em memória do poeta, jurista, ativista
político e professor fundador da Universidade Federal de Mato Grosso,
Benedito Sant’Anna Silva Freire, cujas contribuições excedem o âmbito
regional ao desdobrarem-se em um dos movimentos literários mais
importantes do país, o Intensivismo10.
R5: O Instituto Cultural Voo Livre fundado pelo professor e coreógrafo
Paulo Medina (in memorian), precursor na inserção da dança de expressão
contemporânea no Estado de Mato Grosso, compareceu nesta atividade
acadêmico-pedagógico-cultural através da participação do professor e
coreógrafo Claudiano Crhist, responsável pelo trabalho corporal realizado
com os professores das Escolas citadas.

Via
Mais do que uma moda pedagógica ou um procedimento didático a
Interdisciplinaridade indica uma transformação epistemológica em curso

O Intensivismo é um movimento literário inaugurado em Cuiabá pelo poeta Wladimir Dias-Pino na década de
10

50 do século XX, que tem como principal característica o simbolismo duplo, isto é, outras formas gráficas são
exploradas além da palavra. A manipulação da linguagem, a valorização da visualidade poética, sugestão de
um novo procedimento de leitura, o caráter de experimentação e a negação da tradição por meio da invenção
representam essa nova manifestação literária. Esse movimento possibilita o Concretismo que privilegia o processo
concreto na elaboração do poema, caracteriza-se pela negação de elementos considerados indispensáveis para a
construção literária brasileira, por exemplo, a cultura rural, o intimismo subjetivista; procura uma comunicação
rápida, em formas e estruturas, não em conteúdos. É um movimento de vanguarda, no qual se separa língua
de linguagem, experimentam-se outras formas poéticas e o conteúdo abre espaço para as formas gráficas,
possibilitando a desmontagem dos poemas.
que vem acontecendo à nossa revelia. Independe de sabermos ou não
o que ela é ou se sabemos ou não como produzi-la, seu surgimento ocorre
em virtude das necessidades epistêmicas relacionadas à natureza mesma
dos problemas a serem respondidos pelas áreas do conhecimento. Onto-
logicamente a Interdisciplinaridade liga-se aos processos investigativos que
exigem um olhar transversal, capaz de responder àquilo que o olhar do
observador disciplinar não é capaz de enxergar.
Inserida na LDB11 como perspectiva pedagógica a ser adotada na
estruturação dos projetos político pedagógicos das unidades escolares
responsáveis pela etapa da Educação Básica e no cenário da formação
superior nacional mediante a criação cursos de graduação e pós graduação,
a Interdisciplinaridade passa a ocupar um papel relevante no Sistema
Educacional Brasileiro. Ao que cumpre indagar sobre as condições nas
quais as atividades interdisciplinares vêm se desenvolvendo nas instituições
de ensino.

Bifurcação
Nesse sentido, a dissertação buscou explorar dois aspectos da inserção
da Interdisciplinaridade nas práticas pedagógicas: o primeiro refere-se
a abordagens que reivindicam para a Interdisciplinaridade o estatuto de
paradigma epistemológico contemporâneo12; o segundo diz respeito aos
procedimentos interdisciplinares, já que parece um tanto inadequado
pensar em uma ‘metodologia’ interdisciplinar, sendo que Interdisciplinaridade,
mais propriamente, engendra modos de ampliação dos territórios de
significação.

Excurso
A interdisciplinaridade, nesta perspectiva, comparece como forma de
ampliar o território das coisas cognoscíveis através da prática tradutória
entre os domínios do conhecimento. Cada disciplina tem suas dinâmicas
próprias, a atividade interdisciplinar, tal como os processos de tradução,

Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei n° 9.394/96.


11

Esta discussão encontra-se contemplada no texto original da dissertação. No presente texto priorizo o debate
12

concernente aos procedimentos interdisciplinares.

54 • 55
“encontra-se fundada em incompreensões parciais”. Assim como ocorre
com as traduções das línguas naturais, a incompreensão dá lugar à invenção.
Ao que se pode afirmar que o pensamento interdisciplinar fundamenta-se
pela “heurística do erro” e se promove a partir da “fecundidade do desvio”
(POMBO, 2004, p. 156).
Pressupõe criação de relações, a construção de passagens entre as áreas
do saber, as quais são constituídas num plano temporal em que diferem por
ordem topológica e não geométrica, ou seja, se numa concepção linear de
tempo procede-se de acordo com a geometria métrica calculando distâncias
bem definidas e estáveis, numa concepção de tempo amarrotado – oferecida
pelo filósofo e matemático Michel Serres – opera-se pela topologia, des-
cobrindo-se aproximações e distanciamentos, que a princípio parecem
arbitrários.
Por analogia podemos pensar no tempo como se fosse um lenço
que, ao passarmos a ferro torna-se uma superfície lisa na qual podemos,
geometricamente, determinar as distâncias e proximidades, ao passo que
se o amarrotarmos e o colocarmos no bolso, subitamente, os pontos mais
afastados podem ficar muito próximos ou até mesmo sobrepostos, e, no
caso de rasgarmos esse lenço, dois pontos próximos podem ficar topolo-
gicamente muito afastados.
No contexto interdisciplinar, amarrotar o lenço é, por assim dizer, a
criação de uma bifurcação entre disciplinas distintas. Para Serres (1997) a
produção de conhecimento baseia-se nessa criação de passagens entre as
áreas do saber. Para explicar o modo como se dão tais passagens, o autor
utiliza da metáfora de Hermes, o deus da mitologia grega responsável por
realizar a interlocução entre os deuses e os homens; também conhecido
como padroeiro dos viajantes e patrono da comunicação, o deus se desloca
tendo asas nos pés.
O operador de aproximações Hermes assume a figura do mediador
que passeia no tempo dobrado estabelecendo conexões. Todavia, seus
procedimentos não são objetos de conhecimento, mas de imaginação. Não
sabemos como Hermes viaja, é necessário criar a viagem. Sobre isso o autor
acrescenta:
É preciso conceber como é que Hermes voa e se desloca [...] como viajam
os anjos [...] descrever os espaços que se situam entre coisas já balizadas [...]
Entre, uma preposição de importância capital. [...] De resto, acreditamos
sempre que o espaço da enciclopédia ou do conhecimento é plano e orde-
nado: quem nos disse isso? (SERRES, 1997, p. 93-4)

Por esta via de entendimento, temos em cada um dos polos, disciplinas


que investigam o mesmo universo mediante linguagens distintas. A ação
interdisciplinar propõe-se a realizar a tradução entre os domínios, assumindo
não só o risco de realizar o transporte, mas também o risco da falibilidade,
pois pode se enganar ao aventurar-se no ‘entre’, ao explorar as possibilida-
des da bifurcação, ao criar conexões. Mas, assim como a luz de Hermes,
mais que claridade, a interdisciplinaridade traz velocidade,

eis realmente o método de Hermes: ele exporta e importa, atravessa; inventa


e pode enganar-se, por causa da analogia; perigosa e mesmo, mais exata-
mente, interdita, mas não se conhece outra via de invenção. O efeito de
estranheza do mensageiro advém dessa contradição, que o transporte é a
melhor e a pior das coisas, a mais clara e a mais negra, a mais louca e mais
certa. (SERRES, 1997, p. 95)

Buscando ainda outro modo de explicitar a possibilidade de apro-


ximações entre as áreas do conhecimento, pode-se enfatizar que para
Serres o ‘entre’ é o volume interdisciplinar que permanece inexplorado. É
pura potencialidade, na qual não se opera senão através da criação. Não
sabemos como Hermes viaja, não conhecemos os espaços que percorre,
é preciso imaginar o deslocamento e o espaço. De modo análogo ocorre
nas realizações interdisciplinares. É preciso criar as conexões, as passagens
entre as disciplinas.
De um modo geral, a atitude interdisciplinar está vinculada a uma
ideia de comunicação – no sentido de passagem, transporte, transferência
e tradução. Curiosamente, as ciências utilizam a palavra interface com
muita frequência, mas incorrem em simplificações a respeito dos espaços
atravessados durante as aproximações. Numa concepção epistemológica

56 • 57
tradicional, esta seria uma relação estável produzida em espaços, homogê-
neos, geometricamente mensuráveis. Enquanto que, nesta perspectiva,
as ligações se dão em meios fluidos e caóticos, que se assemelham com
a realidade.
Podemos imaginar o método como uma via reta, que rapidamente e
em segurança, conduz o viajante ao seu destino; através de uma sequência
de encadeamentos estruturada pela relação de ordem, liberta-o dos perigos
e das estranhezas do caminho. Eis a via cartesiana em suas exigências
elementares: não compreender nada além do que se apresenta de forma
clara e distinta à mente; dividir as dificuldades a fim de compreendê-las;
obedecer à ordem do mais simples ao mais complexo.
A via reta e mais curta chega “ao melhor resultado pelos menores
custos”, máxima que evidencia o triunfo da idade clássica através da es-
tratégia direta tornada razão. Desde então, em todos os tempos e circuns-
tâncias, a razão associada à eficácia torna-se norma, a “moral é transferida
para o conhecimento” para as vias do racional, onde a perturbação e a
flutuação são reduzidas a zero, pois provocam variações neste caminho
que a cultura ocidental nos fez entender como necessário.

Um método traça um percurso, um caminho, uma via. Aonde vamos,


de onde partimos e por onde passamos, questões de teoria ou de prática a
serem colocas para conhecer e viver.” (SERRES, 2001, p. 265)

Em sentido cartesiano, entre o ponto de partida e ponto de chegada há


o meio por onde passa a “dicotomia que a filosofia platônica canonizou,
onde a articulação procura a economia”. Mas a despeito da habilidade do
marinheiro na Odisseia, a navegação escapa da via normal e é assim que o
conquistador de Tróia “descobre terras desconhecidas, é assim que inventa
quando a astúcia fracassa”. Destarte, alerta Serres, o caminho da Odisséia
não pode ser considerado um método, mas êxodo. “Êxodo no sentido do
caminho que se afasta do caminho, em que a via ganha o exterior da via”.
Neste tipo de percurso a estabilidade das extremidades não faz parte do
caminho, o que conta é o próprio êxodo, o ‘entre’ que se afasta do meio, do
equilíbrio, do metódico (SERRES, 2001, p. 265-88).
Serres lembra-nos de que, das narrativas homéricas, as crianças gregas
– entre elas o menino Platão – aprenderam a história, a geografia, a cultura
e suas técnicas. Com os mitos aprendiam não uma ciência arcaica, mas o
mais refinado saber, que lamentavelmente a pedagogia transformara em
esquema enciclopédico que, assim como o método, corre pela via mais
curta. A Odisséia “não desenha uma enciclopédia, mas uma escalenopédia”,
em alusão o triângulo escaleno, que descreve um caminho “capenga”,
“tortuoso”, “complicado”. As rotas de Ulisses são escalenas, inventadas e
por isso escapam da redundância dos modelos preconcebidos. Nesse sentido,
Serres faz do discurso do êxodo o seu logos a cerca da episteme:

Já não conto para nosso divertimento, a história de um velhinho, pior, de


um velhinho cego. Sustento um discurso científico, um discurso em ruptura
de epistemologia, um discurso científico não epistemológico; ele rompe com
dois milênios de método. Ou antes, esse velho diz-que-diz está saturado de um
saber diferente e prodigioso. Novo. Não um diz-que-diz e não uma história,
mas o discurso do êxodo que procuro e, muito exatamente o divertimento,
a via da diversão do muito astucioso Ulisses que guardava em seu saco o
conjunto das voltas e reviravolta da nova ciência, a teoria do conhecimento
cego, ou da evidência não visível, dessas evidências escondidas por vários
séculos de método inútil. Inútil em vista ao novo. (SERRES, 2001, p. 268-9).

Exodo
Tendo a errância como método, a oficina Bifurcações na formação de
professores buscou explorar este espaço intervalar das disciplinas, que é, em
ultima instância um interstício entre as linguagens que as promovem. Assim,
propõe aos professores das Escolas Paciana Torres de Santana e Dom José
do Despraiado, a experimentação de uma leitura corporal do poema Gool,
do poeta Silva Freire.
Espaço escolar e acadêmico: salas com ventiladores ou ares condicio-
nados, quadro negro, giz, datashow, papel, caneta, borracha, cadernos,
livros, post-it, pen drive, e corpos, corpos vertical e rigidamente postos em
carteiras enfileiradas; quiçá uma transgressão: um semicírculo, um palco
italiano onde um mestre professor atua revelando, transmitindo as regras

58 • 59
gerais do saber. Nada disso! A primeira bifurcação é no espaço, a segunda
é nos corpos. Numa encruzilhada da Praça da Mandioca13 o terreno nu
que se abrigava do sol escaldante sob a sombra da tenda branca. Pés
descalços, esparramados no chão procuram, desesperadamente, enraizar-
se para garantir um pouco de estabilidade a corpos que, displicentes e
temerosos, experimentam a vertigem de movimentos pendulares.
Ruídos da rua, música, o falatório à boca miúda do povo. O professor
dançarino lança o convite para o jogo-brinquedo do reconhecimento
dos movimentos banais e cotidianos como possibilidades de um corpo
que experimenta, imita e aprende. Conscientização corporal dir-se-ia
tecnicamente, mas é preferível dizer: condição mesma de produção do
conhecimento objetivo e intersubjetivo. Não se trata de tomar o sensua-
lismo como meio para a elaboração intelectual, mas da afirmação de
que o próprio intelecto é corpo.
Da clausura das salas aos fluxos da rua, dos sistemas fechados aos
sistemas abertos, os corpos oscilam em um ensaio coletivo de ler e esrever
um poema com o corpo. Um quase-objeto flutua entre eles extrapolando
as fronteiras móveis do possível. O território das coisas cognoscíveis
é ampliado quando o passe da bola imaginária cria relações entre “o de
história” e “o de biologia”.
Na corrida, no chute, no compasso da performance, os conteúdos
fósseis e rijos dão lugar à flexibilidade dos músculos que se esticam para
apreender o volátil. Os novos corpos, como avatares, experimentam a
plasticidade da inteligência. Arriscam-se na invenção de reler um poema
com a mão, com o pé, cabeceando-o. Em posição fetal, a defesa. Gritos
de gOOl. Braços e peitos abertos. Abraços. Comemoração.
Processo mimético, repetição, coreografia. Dança para dançar poesia.
Na roda as mãos dadas, mão soltas, pé direito batendo no chão, marcação,
quase transe. “... e sete e oito... de novo”14. É preciso associar coordenação
e memória para encadear os movimentos. Dúvidas. Recomeços, muitos!

13
Praça tradicional do centro histórico de Cuiabá, onde se encontra o terreno da casa em que cresceu o poeta Silva
Freire, local no qual será construída a Casa de Cultura Silva Freire.
14
No jogo de linguagem das aulas de dança esta expressão indica o comando do professor para que o exercício seja
iniciado ou retomado.
Dançarinos sempre erram e repetem. Da falha na repetição, a fala que
tudo resume: “Do erro veio a ideia.”15

Entre
Preposição essencial, cuja função é ligar. Mas ligar o quê? Na língua
portuguesa liga substantivos entre si, mas também estes a verbos,
adjetivos, advérbios e assim por diante. Neste trabalho denota os espaços
interdisciplinares. É pura potencialidade, na qual não se opera senão através
da criação. Mas, como inventar a viagem de Hermes? Como é que se opera
uma bifurcação na formação de professores? Ainda, como se faz isso
aproximando poesia, dança de expressão contemporânea, filosofia e uma
dissertação de mestrado?
Parece-me que pela via que chega ao exterior da via. Ao propor a
produção de uma leitura corporal do poema, num território não acadêmico
e não escolar, isto é, afastado da verticalidade, da rigidez e das disciplinas,
a oficina Bifurcações na formação de professores buscou explorar a fluidez do
pensamento e do corpo, a elaboração de um discurso científico e corte de
epistemologia, fundado na criação de estabilidades singulares em meio aos
fluxos gerais.
Consistiu em uma tentativa de criar conexões, passagens ‘entre’
as disciplinas, mas acima de tudo, foi um esforço de romper com o
modelo canônico dos sistemas fechados das escolas e Universidades,
onde, conjuntamente, professores e alunos produzem violentamente o
desaparecimento do pensamento corporal ao tomarem os corpos como
condutores de cinco canais periféricos. Por que esse horror à carne?
A Oficina Bifurcações na formação de professores foi um exercício
interdisciplinar, uma tentativa de vertigem. Partiu do pressuposto de que o
conhecimento é aumentado na medida em que ensinamos e aprendemos,
de que é acima de tudo experimentação muscular e amorosa. Apenas um
sujeito epistêmico com pensamento ósseo, cardiovascular, passional, é
capaz de ler um poema com o corpo.

Frase dita pela professora ao errar a sequencia de passos criados durante a oficina. A partir do erro da professora
15

o coreografo cria um novo passo e incorpora-o à coreografia.

60 • 61
Referências
LUCRÉCIO. Da natureza. In: Antologia de textos – Epicuro. Da natureza – Tito Lucécio Caro.
Da república – Marco Túlio Tito. Consolação a minha mãe Hélvia; Da tranqüilidade da alma;
Medéia; Apocoloquintose do divino Caludio – Lucio Aneu Sêneca. Meditações- Marco Aurélio.
(Tradução Agostinho Silva), São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Coleção os Pensadores)

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Dez anos de PROMAT. Intervenções, Lisboa: A.P.M., 1996.

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Humanismo, Universidade. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2003. Disponível
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_____. Interdisciplinaridade: ambições e limites. Lisboa: Relógio D’água, 2004.

_____.; GUIMARAES, H.; LEVY, T. Interdisciplinaridade: reflexão e experiência. Lisboa:


Ed. Textos, 1993.

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2/2012. Diário Oficial da União, Brasília, 31 de janeiro de 2012, Seção 1, p. 20.

RAMOS, I. N. A. Silva Freire: Um garimpeiro de palavras. In: Revista Crioula, nº 02, nov. 2007.
Disponível em: www.revistas.usp.br/crioula/article/view/53582. Acesso em: 06/08/2013.

SERRES, M. Hermes: uma filosofia das ciências. (Tradução Andréa Daher. Org. Roberto
Machado e Sophie Poirot-Delpech). Rio de Janeiro: Graal, 1990. 

_____. As origens da geometria. (Tradução Ana Simões e Maria da Graça Pinhão). Lisboa:
Terramar, 1997.

_____. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo – conversas com Latour. (Tradução
Serafim Ferreira e João Vaz). Lisboa: Instituto Piaget, 1997.

_____. O nascimento da física no texto de Lucrécio - Correntes e turbulências. (Tradução


Péricles Trevisan). São Paulo: Editora UNESP; São Carlos: EdUFSCAR, 2003.

_____. O terceiro instruído. (Tradução Serafim Ferreira). Lisboa: Instituto Piaget, 1993.

_____. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. (Tradução Eloá Jacobina). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

_____. Variações sobre o corpo. (Tradução Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco).
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.

Setembro Freire gOOl 2013: Catálogo./ Casa de Cultura Silva Freire. Cuiabá: Entrelinhas, 2013.

SILVA, R. R.; LIMA, E. P. Ultraje Vanguardista: Wladimir Dias Pino e o Poema-Processo.


In: Revista Virtual de Letras, v.04, nº 01, jan,/jul, 2012. Disponível em: www.revlet.com.br/
artigo/140, acesso em: 06/08/2013
Deleuze & Guattari: uma ética dos devires

Altair de Souza Carneiro


Ester Maria Dreher Heuser

Resumo
A dissertação ocupou-se da ética dos devires presente nas obras de Gilles
Deleuze e Félix Guattari, a qual foi tematizada e problematizada com
professores e estudantes participantes do Projeto IF-Sophia, promovido pelo
Projeto Escrileituras, pelo Instituto Federal do Paraná – Campus Umuarama
e pelo Núcleo Regional de Educação de Umuarama, no qual o seu autor
é coordenador das áreas de Filosofia e Sociologia. Organizada em três
capítulos, primeiro a dissertação apresenta a Filosofia Prática produzida
pelos filósofos e enfatiza os pares conceituais nomadismo e sedentarismo,
desterritorialização e território, molecular e molar; em seguida recorre
aos procedimentos artísticos de Carmelo Bene e de Franz Kafka, os quais
funcionam como ferramentas para a criação do conceito de “menor”,
imprescindível para a invenção do conceito de devir, uma vez que todo devir é
menor; por fim, apresenta uma tipologia dos devires que afirma a imanência
da existência e defende que os tipos escolhidos possibilitam a efetivação de
uma ética dos devires, quais sejam: devir-mulher, devir-criança, devir-animal,
devir-revolucionário e devir-imperceptível.

Palavras-chave
Ética. Devir. Menor. Deleuze. Guattari.

62 • 63
Uma entrada pelo meio, ou, o que pode uma escrileitura?

Todos estes verbos indicam ação e operação em movimentos de vir a


ser que podem produzir outros modos de existência. Modos provocados
pela experiência de um mestrado que nos forçou a tornarmo-nos escrilei-
tores. Como afirma Corazza, para o escrileitor escrever é dar passagem à
vibração dos sentidos e daquilo que é pensado, do modo de viver e de olhar,
de experimentar o mundo, é “ter olhos na ponta dos dedos, para tocar a
vida com a vida” (2011a, p. 25). Neste neologismo “escrileitura”, criado
por Corazza (2008), que traz em si o inseparável duplo escrita-leitura,
percebemos uma força que possibilita reinvenções de si e de outros modos
de se relacionar com o que foi produzido pelo pensamento em meio à vida
e por nós herdado. Neologismo que nos possibilitou pensar a multipli-
cidade de perspectivas diferentes entre si, pois a potência que ele carrega
está no próprio processo de sua infindável constituição, um construir-se
no meio, em movimentos contínuos de pensamento conceitual, afectivo e
perceptivo. Movimentos que passaram a ser capitais para nossa relação com
a leitura e a escrita filosóficas, que rompeu com a centralidade do verdadeiro
e do falso, para dar lugar ao notável, ao importante e ao interessante. Para
usar uma expressão de alta importância para Deleuze e para o Projeto
Escrileituras, a partir dessa experiência, texto, leitor e escritor tornam-
se “simulacros”, uma vez que estão sempre diferindo de si e do modelo.
Embora suscetível a regimes de ações estáveis – assim como acontece em um
mestrado em Filosofia – o Escrileituras toma qualquer obra como produção
sempre aberta, distante do equilíbrio e do apaziguamento e, ainda quando
estabiliza suas ações, rizomatiza-se, a fim de ingressar em novos regimes
de instabilidade (CORAZZA, 2011a).
Para nós, o Escrileituras teve e tem a potência de provocar a produção
de devires a cada um que dele participa, de (re)inventar outras formas de
estar no mundo, em meio à vida. Experimentações “escrileiturais”, pode-
se dizer, atravessaram nossa tentativa de pôr em evidência uma ética dos
devires presente na filosofia de Deleuze e Guattari. Evidenciá-la foi também
um modo de “escrileiturar-se”, de ensaiar um estilo próprio de escrita, ainda
que bastante próximo das formas dissertativas acadêmicas, de fazer da
escrita um processo de movimento variante, de cortes, de fluxos, de rupturas
e de devir. Compreendemos que nossa dissertação comunga com o Projeto
Escrileituras justamente porque a ética proposta por Deleuze e Guattari é
uma ética da vida, da imanência e da reinvenção de vidas.
Pensar a variação no ato instituído do ler-escrever é possibilitar per-
correr caminhos desconhecidos e traçar outros modos de existência
nos interstícios da educação formal, das relações sociais e pedagógicas
enrijecidas pelas políticas molares e legitimadas. Para nós, passar pelas
experimentações de leitura-escrita da filosofia deleuze-guattariana,
bem como pelos textos teatrais e literários que esta nos lançou, a fim de
produzir a referida dissertação, implicou na vivência de experiências de
estranhamento e problematização daquilo que até então consistia para
nós a própria produção filosófica; bem como possibilitou-nos a produção
de outras maneiras de ver, ler, escrever, ensinar, aprender filosofia e a agir
no mundo, daí podermos afirmar que outra perspectiva frente à existência
se fez. Isto, evidentemente, não poderia ter acontecido isoladamente, sem
vizinhanças, sem matilhas, sem agenciamentos, e sem encontros, daí a
relevância do Projeto Escrileituras e do trabalho que realizamos junto aos
professores do Núcleo Regional de Educação de Umuarama/PR e aos
professores e estudantes que participaram do IF-Sophia em parceria com
o Instituto Federal Tecnológico do Paraná – Campus de Umuarama.
Em meio ao Escrileituras passamos a perceber que os escritos de um
filósofo são atravessados por seu modo de vida, impulsionados pelos
problemas de seu tempo, por aquilo que ele seleciona como o mais impor-

64 • 65
tante para provocar o seu pensamento e chegar a pensar. Especialmente,
percebemos que para escrever é preciso criar um ethos constituído de hábitos
que não espantem os devires (DELEUZE, 2001a; DELEUZE; PARNET,
1998). Por essa razão, consideramos importante apresentarmos uma versão
da história de duas vidas que se encontraram e que expressa o ethos comum
criado por Deleuze e Guattari o qual, em boa medida, pareceu-nos ter
influenciado a produção de uma ética dos devires vivenciada, também, por
meio da escrileitura feita a quatro mãos.

Um & Outro.
Sr. D.
Sr. G.
D&G.

Um.
Sr. D.: professor na Universidade de Lyon, preparava e ensaiava suas
aulas intensamente até o ponto em que estava impregnado do assunto
do qual, com sua voz singular, falaria aos estudantes. Em início de 69,
quando a antiga tuberculose refratária aos antibióticos voltava, Sr. D.
defendeu a tese de doutorado Diferença e repetição. Isto depois de escrever
muitos livros, alguns de história da filosofia – Hume, Nietzsche, Bergson,
Kant, Spinoza – outros de literatura – Proust, Masoch –, quando já era
mais conhecido no meio filosófico do que três quartos da banca, a qual
reconheceu a “qualidade excepcional do trabalho realizado”. Sr. D. foi um
dos raros professores daquela universidade a declarar publicamente seu
apoio à contestação estudantil iniciada em 68, bem como a participar das
assembleias gerais e das manifestações dos estudantes lyoneses – o único
professor do departamento de filosofia a presenciar o movimento. Depois
da defesa, Sr. D. ficou afastado por um ano dos trabalhos de docência,
em convalescença, pois fora submetido a uma delicada cirurgia em que
teve um dos pulmões retirados – o que o levou a sofrer de insuficiência
respiratória crônica até a morte. Debilidade vital e afastamento obrigatório
da efervescência intelectual e política pós maio de 68. Momento em que
esteve à beira de um outro precipício, o alcoolismo: “Oferece-se o corpo
em sacrifício. Por quê? Porque há algo forte demais, que não se poderia
suportar sem o álcool. A questão não é suportar o álcool, é, talvez, o que
se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que, para poder suportar,
para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de
uma ajuda: álcool” (DELEUZE, 2001a [P de Professor; B de Beber]; 1992;
DOSSE, 2010; GIL, 2002).

&
Outro.
Sr. G.: militante revolucionário desde seus 15 anos, quando participou
da criação da rede de Albergues da Juventude, militou no Partido Comunista
Francês (PCF) e logo passou a criar redes de infiltração no interior do
partido, a fim de minar as formas de aparelhamento burocrático. Ao
lado de uma incrível vocação para formar bandos, muito cedo Sr. G. foi
tomado pela necessidade de escrever, adotando a prática do diário no qual
registrou os efeitos que Sartre causava. No diário, registrou que O Ser e o
nada determinou um motivo existencial para sua vida: a busca desenfreada
da felicidade imediata na intensidade do momento. Em suas palavras “é
preciso dar ao mundo a imagem da felicidade, por mais simples que seja
esse rosto, mais desprovido de qualquer esperança” (apud DOSSE, 2010,
p. 34). Felicidade que Sr. G. encontrou no coletivo por meio da multiplicação
de grupos não sectários de estudantes, operários, mulheres, loucos. No
início dos anos 50, com seus 20 e poucos anos, Sr. G. era visto como um
prestigiado especialista em teses lacanianas (não perdia um seminário de
Lacan e, por anos, semanalmente, deitou em seu divã), já havia abandonado
o curso de farmácia, entrado na filosofia da Sorbonne e tinha uma prática
junto ao mundo da loucura com suas atividades na clínica de La Borde16.

A Clínica de La Borde, instituição privada, localizada a 200 quilômetros ao sul de Paris e distante 5 quilômetros
16

da cidade mais próxima, foi instalada em 1953 num castelo circundado por um bosque. Os cem pacientes
(pensionnaires) que a clínica atendia residiam no próprio castelo. Como salienta Jean Oury, diretor clínico
da instituição e iniciador dos trabalhos lá implantados, o esquizofrênico não está em parte alguma: “Todo o
nosso trabalho consiste em fazer com que ele possa estar um pouco, em algum lugar”. O contato de Sr. G.
com a psicanálise se deu em 1953, quando começava a trabalhar na clínica La Borde e passou a assistir aos
seminários bimestrais de Lacan. Durante o período 1962 a 1969, Sr. G. foi analisado por Lacan e ingressou
como membro analista da escola de Lacan, chamada Escola Freudiana de Paris. É importante destacar que,
à época em que Sr. G. passou a estudar a psicanálise esta ainda não era bem recebida na França. Foi apenas

66 • 67
Ali, a revolução e a reflexão deveriam ser permanentes; a loucura não
era percebida como uma mera doença. Na clínica ela estava ligada à aven-
tura intelectual. Considerava-se, por princípio, que há verdade no discurso
do louco e que o próprio delírio é produtivo. Para Sr. G., tido como a “alma
da clínica”, os caminhos da renovação da militância política passavam
por La Borde, onde ele convocava seu bando a se investir nas atividades
coletivas. Já, em 55, em um devir-filósofo, Sr. G. criou a noção de máquina
que viria a ser um dos temas favoritos da dupla D&G. Junto às atividades na
clínica, Sr. G. mantinha os movimentos de militância política de esquerda
e, em 65, viveu sua primeira experiência de escrita a dois, com François
Fourquet, um dissidente do PCF: escreveram as 9 teses da Oposição de
Esquerda. Ali, Sr. G. já era conhecido por escrever de modo ilegível e falar
cristalinamente. Segundo o companheiro, ele “escreve mal, em um jargão
horroroso, ilegível [...] Já quando fala, é cristalino” (DOSSE, 2010, p. 78).
Sr. G., com seu ativismo desenfreado, fazia grupos e os desfazia para cons-
tituir outros. Seus amigos buscavam um meio de acalmá-lo, a fim de que
fosse capaz de realizar aquilo de que tinha vontade, mas não fazia: escrever.

&
Um & Outro: duas galáxias distintas. Um amigo em comum: o Dr.
Jean-Pierre Muyard, que trabalhava na La Borde e não suportava mais a
hiperatividade do Sr. G. – a qual nem mesmo a Ritalina segurava. Apresentá-

a partir dos anos 60, por intermédio das interpretações lacanianas, em especial a aproximação da psicanálise
freudiana da corrente estruturalista de Saussure e da antropologia estruturalista, que a psicanálise venceu a
hostilidade entre os intelectuais franceses. La Borde era um hospital aberto, formado pelo castelo e dois prédios
que serviam de enfermaria, além de inúmeros edifícios pequenos, destinados às atividades dos pacientes. Todas
essas instalações estavam situadas numa paisagem com bosques e um lago. O funcionamento da clínica era de
responsabilidade coletiva dos pacientes e dos que lá trabalhavam: médicos, psicanalistas, monitores, estagiários
e funcionários. As tarefas que mantinham o hospital em operação, como limpeza, cozinha, telefone, recepção,
transportes e outras, eram divididas entre todas as pessoas. Isto porque a clínica estava organizada em 3
princípios evidentemente marxistas: 1) centralismo democrático que assegura a preeminência do grupo gestor;
2) precariedade dos estatutos: toda pessoa deve ser capaz de passar do trabalho intelectual ao trabalho manual
e vice versa (papéis e estereótipos são rompidos, os doentes são considerados passageiros e o corpo médico
é o elemento estável, enraizado e crônico; médicos e enfermeiros trabalham sem jaleco e não se distinguem
dos doentes); 3) organização comunitária com a coletivização das responsabilidades, das tarefas e dos salários
(orientado pelo princípio de polivalência das tarefas, Sr. G. gostava de deslocar as pessoas, de pôr em ato o que,
posteriormente, D&G proporiam: “embaralhar os códigos” – organizava a grade de tarefas para que médicos
trabalhassem na área administrativa e os psicólogos ele punha a lavar louças (GOLBERG, 1991; DOSSE, 2010).
lo ao Sr. D. foi o estratagema encontrado, a fim de que ele canalizasse sua
força para a escrita. Foi justamente ela, a escrita, o motor dessa amizade
que durou até 1992, quando se deu o desaparecimento de Sr. G.. Durante
todo esse tempo, trataram-se mutuamente de senhor, mantendo uma curiosa
distância manifesta – o que justifica, para além de nossa escolha de tom
kafkiano, apresentarmos os autores da maneira que o fizemos. Desde os
primeiros encontros, pessoais ou por cartas, “uma operação alquímica
funcionou” (DOSSE, 2010, p. 15) e um amor nasceu. Nas palavras do Sr.
D. essa operação é assim manifesta: “a maneira como nós nos entendemos,
completamos, despersonalizamos um no outro, singularizamo-nos um
através do outro, em suma, nos amamos (DELEUZE, 1992, p. 16); na
perspectiva do Sr. G., que em uma missiva da primavera de 69 também
testemunhou a amizade nascente: “Caro amigo, nem tenho palavras para
lhe dizer o quanto fiquei tocado com a atenção que o senhor teve a gentileza
de dedicar aos diversos artigos que lhe enviei (...) Encontrá-lo, quando isso
for possível para o senhor, constitui para mim um acontecimento já presente
retroativamente a partir de várias origens” (DOSSE, 2010, p. 15). Por fim, na
narrativa do amigo em comum, Dr. Muyard, a respeito de um dos encontros
entre aqueles Srs., encontro que ele chama de “cena primitiva”: “Félix e
Deleuze criam, intensamente. Deleuze toma notas, ajusta, critica, remete à
história da filosofia as produções de Félix. Em suma, as coisas funcionam”
(DOSSE, 2010, p. 15). O que se passava nesta “cena primitiva” testemunhada
por Muyard era o debate do conteúdo daquilo que, três anos depois, em 1972,
viria a ser a obra O Anti-Édipo, escrita a quatro mãos, principalmente por via
epistolar (DELEUZE, 1992, p. 24). Obra que produziu um agenciamento
entre os Srs. D. e G., doravante, nesta escritura, D&G.

***

D&G criaram um com o outro um ethos, um modo de vida, que passava,


necessariamente, pela escrita. A respeito disso, Guattari afirmou que o
encontro com Deleuze foi a maneira de juntar os quatro modos de vida
“um pouco dilacerados” que ele vivia na agitação e pluralidade de lugares
e discursos; quais sejam, a Via Comunista e depois a oposição de esquerda,
a clínica La Borde, a formação lacaniana e sua paixão pelos esquizos

68 • 69
(DOSSE, 2010, p. 25). Avesso às discussões em grupo, Deleuze submeteu
Guattari à ascese solitária, a fim de que seus problemas de escrita fossem
superados. Diariamente, Guattari enviava a Deleuze suas ideias, as quais
eram polidas, arranjadas e aprimoradas, tendo em vista a versão final.
Deleuze costumava dizer que “Félix era o descobridor de diamantes e que
ele era o trabalhador” (apud DOSSE, 2010, p. 17). Por seu lado, na criação
deste ethos comum, desta arte de viver a dois pela escrita, Deleuze afirma
que “viveu um segundo período que não teria nunca começado e conseguido
sem Félix” (apud ESCOBAR, 1991, p. 9); foi quando pôde realizar aquilo
que anunciara no prólogo de Diferença e repetição (1988, p. 18-19):

Aproxima-se o tempo em que já não será possível escrever um livro de


Filosofia como há muito tempo se faz: “Ah! O velho estilo...” A pesquisa
de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche e deve
prosseguir, hoje, relacionada à renovação de outras artes, como, por exemplo,
o teatro ou o cinema. A este respeito, podemos, desde já, levantar a questão
da utilização da História da Filosofia. Parece-nos que a História da Filosofia
deve desempenhar um papel bastante análogo ao da colagem numa pin-
tura. A História da Filosofia é a reprodução da própria Filosofia. Seria pre-
ciso que a resenha em História da Filosofia atuasse como um verdadeiro
duplo e que comportasse a modificação máxima própria do duplo.

O Anti-Édipo é, pois, este duplo anunciado, produzido a partir de uma


prática de escrita em dupla, entre D&G, na qual um impelia o outro a uma
fronteira. Foi a primeira experimentação de uma nova estilística que seria
ampliada posteriormente em outras obras. Em tal experimentação, per-
cebe-se o funcionamento de uma máquina de escrita produtora de mul-
tiplicidade movida pela força do E:

O E não é nem um nem o outro, é sempre entre os dois, é a fronteira; sempre


há uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, mas que não se vê, porque
ela é o menos perceptível. E, no entanto, é sobre essa linha de fuga que as
coisas se passam, os devires se fazem, as revoluções se esboçam. ‘As pessoas
fortes não são as que ocupam um campo ou outro, é a fronteira que é potente’
(DELEUZE, 1992, p. 61).
Defendemos que os procedimentos para a criação de um estilo de
vida contrário a todas as formas de fascismo, como afirmou Foucault
(1977), e o modo de pensamento expressos na escrita produzida entre-dois
criaram uma “ética dos devires” na medida em que abriram “o humano
a devires não-humanos que implicariam novos modos de individuação”
(PELLEJERO, 2010, p. 139). Tal ética, contudo, não se restringe ao âmbito
do privado, à moralidade subjetiva, mas, pelo contrário, mantém-se ao lado
da esfera do político. Compreendemos que pensar a ética e, em necessária
relação, a política, com D&G, não é possível senão vinculada à literatura, a
uma determinada leitura que ambos fazem dela.

Filosofia prática
Tratar de uma ética dos devires pressupõe abordar uma Filosofia
prática que implica destacar o privilégio que é dado ao movimento ao invés
do repouso, à variação contínua em detrimento da forma determinada e
da estrutura, aos vazamentos que sempre estão em vias de dissolver a
organização e a estabilidade das estruturas enrijecidas, ao indefinido sobre
o já acabado; primazia do informal e ilimitado sobre o equilíbrio das formas
e a medida dos limites, o nomadismo ao sedentarismo, a desterritoriali-
zação ao território, as molecularidades às molaridades. Tal privilégio se
justifica porque, as organizações, as estruturas e as constantes de qualquer
tipo, sejam elas políticas e sociais, cósmicas e físicas, são meras ilusões,
névoas que nos impedem de perceber que a força da criação, em todas as
esferas, é exclusivamente o movimento.
Não que aquelas ilusões não tenham existência, a ilusão está em
acreditarmos que elas são primeiras, ou seja, em crermos que primeiro há a
ordem, a essência, a molaridade, o território, para só depois delas decorrer
a desordem, o devir, a molecularidade, a desterritorialização. A partir desta
compreensão, também a teoria da ação política e ética, assim pensada,
não escapa da primazia das intensidades móveis, moleculares e não codifi-
cadas, ainda que de tais ações resultem na produção de molaridades e
códigos. Na Filosofia prática de D&G importa que um pensamento ético,
que é sempre avaliativo e criativo, seja promovido a fim de avaliar os modos
de vida que são os nossos (também aqueles modos de ler-escrever), bem

70 • 71
como para abrir possibilidades, caminhos, meios e modos de vida, de
leitura e de escrita até então não experimentados.

Procedimentos artísticos para a produção de novas


potencialidades: o devir-menor em ato

No segundo capítulo mostramos que D&G recorreram ao teatro de


Carmelo Bene e à literatura de Franz Kafka a fim de que funcionassem como
ferramentas que possibilitassem a criação do conceito de menor, o qual é
imprescindível para a invenção do conceito de devir, uma vez que qualquer
devir é sempre menor (DELEUZE; GUATTARI, 1977; CORAZZA, 2011).
No teatro de Carmelo Bene, Deleuze percebe a experimentação do devir-
menor através da transformação/variação de elementos maiores do teatro
tradicional, representantes do poder, em elementos menores que dão a ver
potências que até então passavam despercebidas numa perspectiva maior.
Nesta invenção, Bene dá visibilidade a personagens de menor expressão
nas peças teatrais clássicas, como mulheres e crianças. Deleuze dá a ver
que a obra de Bene é marcada pela variação contínua dos seus personagens
tanto na língua quanto nos gestos: “ele detesta qualquer princípio de
constância ou de eternidade, de permanência do texto” (DELEUZE, 2010,
p. 31). O minoritário se efetiva como elemento de variação que substitui a
representação dos conflitos, ele se desvia do modelo, do padrão para criar
novos modos de sentir e de pensar. A função do teatro em Bene é a de
construir figuras que efetivem uma consciência minoritária, a qual remete
à potência do devir, ao processo de escapar de toda forma enrijecida de
poder e de dominação.
Já em Kafka: por uma literatura menor, D&G trazem à tona a mais forte
expressão do tema “menor”, o qual é construído a partir do conceito de
literatura menor, obra literária de uma minoria, de um povo que falta,
de uma raça inferior, de um povo bastardo. Este é o caso da comunidade
Checa judaica a que Kafka pertencia. Uma minoria que se constituiu entre
o povo superior, aquele do poder, de uma língua e literatura maiores. Em
Praga, no início do Século XX, esta comunidade era obrigada a escrever
na língua alemã e dentro de uma tradição literária construída sobre os
grandes mitos do cristianismo. D&G “situam-se resolutamente no campo
da experimentação e se erguem contra a literatura que permanece nos
limites estreitos dos cânones consagrados pela tradição, opondo a ela a
força criativa de uma literatura dita menor” (DOSSE, 2010, p. 203). Para
eles, Kafka faz da literatura um caso coletivo e menor que funciona como
uma comunidade para a sua própria língua estrangeira. Uma minoria e
uma maioria, no entanto, não se medem pela quantidade, pelo número
ou por qualquer outro método de separação, mensuração ou classificação.
O que define uma maioria é a força normalizadora de um modelo, como
por exemplo: homem, europeu, macho, adulto, inteligente, hetero, urbano,
branco (DELEUZE, 1992). Por sua vez, uma minoria não tem padrão,
não tem modelo, está em construção contínua, em processo, ela designa
um estado no qual qualquer um pode estar; implica em processos que se
constroem no “entre”, na singularidade de cada um, sejam negros, mulheres,
homens, índios, animais. Podemos compreender minoria como “um
devir no qual nos engajamos”, como “a potência de um devir, enquanto
maioria designa o poder ou a impotência de um estado, de uma situação”
(DELEUZE, 2010, p. 63-64). Deste modo, a noção de minoria refere-se a
traços de singularidades que se articulam num processo criador, rompendo
com as estratificações predominantes. O minoritário está em movimento
constante de potencialização frente a uma segmentaridade dura, molar que
é sempre segunda; menor aqui é a própria linha de fuga que é primeira em
qualquer processo. D&G apontam ainda a dimensão clínica da escrita de
Kafka, eles afirmarão que o escritor, na medida em que apresenta variados
modos de existência, não só humanos, faz da literatura um problema de
saúde, um “delírio saudável”. Para D&G, a escrita kafkiana é inseparável
do devir e tem mais a ver com o acaso e o caos do que com a necessidade e
a ordem. A partir da obra Kafka: por uma literatura menor, o devir em D&G
ganha uma conotação com forte relevância ética e política e seu movi-
mento é revolucionário, porque se torna abertura do ser para modalidades
inéditas de existência, para além das formas jurídicas do pensamento.

Tipologia dos devires e escrileituras


Por fim, no terceiro capítulo, apresentamos uma tipologia dos devires
concebida como a exposição de tipos criativos de modos singulares de

72 • 73
viver, de pensar e de mover-se que transitam nas obras de D&G. Esta
tipologia dos devires, que não se quis exaustiva, tem o sentido ético daquilo
que Deleuze define em Espinosa: filosofia prática, a saber: a Ética é “uma
tipologia dos modos de existência imanentes, substitui a Moral, que rela-
ciona qualquer existência a valores transcendentes. A moral é o julgamento
de Deus, o sistema de Julgamento. Mas a Ética inverte o sistema do julgamento”
(2002, p. 29 [grifos do autor]). A tipologia dos desvires foi produzida sem
pretensão de universalidade porque não se trata de uma representação para
todos, nem com pretensão essencialista, pois não afirma que estes tipos sejam
uma essência para todos, menos ainda que sejam os únicos componentes
de uma tipologia dos devires. Ao contrário, por não aspirar universalidade
nem essencialidade, os tipos apresentados são regionais, perspectivistas e
não totalizantes, logo, não são os mesmos para todos. Os tipos escolhidos
tiveram como critério a maior insistência na obra dos filósofos, são eles que,
em nossa perspectiva, possibilitam a efetivação de uma ética dos devires a
qual nos propusemos evidenciar nesta pesquisa, quais sejam: devir-mulher,
devir-criança, devir-animal, devir-revolucionário e devir-imperceptível.
Tratar dessa tipologia implicou em pôr em operação a própria
multiplicidade e não se referir a reduções formatadas de modos de viver.
Ainda que o devir não se oponha a uma forma, também não se trata de
um estado transitório entre uma condição e outra, uma vez que, por meio
dele, não se tem como telos atingir uma forma definitiva. Podemos afirmar
que os referidos tipos são tendências de um ser que desliza molecularmente,
constituindo-se com diferentes alianças afetivas, rizomáticas, que inventam
formas a partir de partículas que escapam das políticas identitária e dos
moldes pré-postos, agenciando-se nas margens, constituindo multiplicidades,
desenhando fronteiras entre zonas de vizinhança. Devir, no sentido que
tentamos abordar na dissertação, nunca se conclui ou se concretiza em uma
forma de ser, é, ao invés disso, um conceito que pode ser definido como
movimento em si mesmo, como processo e passagem que atravessa de
um estado a outro, que se opõe a contextos fixos e majoritários. Mesmo
os tipos de devires não são subjetividades fixas, mas maneiras singulares
de existência, que pensam e movem-se na tentativa de produzir outros
modos de vida.
O Projeto Escrileituras está orientado pela lógica do devir (CORAZZA,
2011): não detém forma feita, nem pressupõe modos fixos e determi-
nados de viver, de ler e de escrever; habita as fronteiras entre a filosofia,
a arte e as ciências e se faz ao caminhar. O Escrileituras está aberto a
experimentações diversas, cada um dos atores que com ele se envolve é
potencializado e afetado por partículas advindas dos diferentes reinos,
podendo, assim, devir por meio da escrita e da leitura. Isto porque, como
afirma Corazza, por meio de uma “arte menor e de um planejamento da
desnaturação” as Oficinas de Escrileituras “constituem um campo artistador
de variações múltiplas, que produz ondas e espirais; compõe linhas de vida
e devires reais; promove fugas ativas e desterritorializações afirmativas”
(2011, p. 41). Escrever, nessas condições, implica abrir-se para a variação
contínua da força de existir de alguém, e, portanto, ao devir, o que implica
abandonar suas seguranças, seus preconceitos e desconstruir verdades
até então tidas como absolutas, é dar lugar a agenciamentos transversais
que ultrapassam todo e qualquer mundo já vivido.

Referências
CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In.: HEUSER, Ester Maria Dreher. Caderno de notas 1:
projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: UFMT, 2011. (Coleção Escrileituras)

_____. Os cantos de Fouror: escrileitura em filosofia-educação. Porto Alegre: Sulina, 2008.

_____. Projeto de Pesquisa: Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. Plano


de Trabalho. Observatório da Educação. Edital 038/2010. Fomento a estudos e pesquisa em
Educação – CAPES/INEP. Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS, Setembro
de 2010b.

DELEUZE, Gilles. Conversações. (Tradução Peter Pál Pelbart). São Paulo: Editora 34, 1992.

_____. Spinoza: philosophie pratique. Ed. br., Espinosa: Filosofia Prática. (Tradução de
Daniel Lins e Fabien Pascal Lins). São Paulo: Escuta, 2002.

_____. O abecedário de Gilles de Deleuze. Vídeo. Editado no Brasil pelo Ministério da


Educação, “TV Escola”, 2001a.

_____. Sobre o Teatro: um manifesto de menos; O Esgotado. (Tradução Fátima Saadi,


Ovídio de Abreu, Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.

DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São
Paulo: Escuta, 1998.

74 • 75
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Rio de
Janeiro: Imago, 1976.

_____. Kafka: por uma literatura menor. (Tradução Júlio Castañon Guimarães). Rio de
Janeiro: Imago, 1977.

DOSSE, François. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre:
Artmed, 2010.

ESCOBAR, Carlos Enrique de. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991.

FOUCAULT, Michel. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. In: ESCOBAR,
Carlos Henrique. Dossier Deleuze. Rio de Janeiro: Hólon, 1991.

_____. (1977). Introdução à vida não fascista. In: DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix.
Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, New York, Viking Press. Tradução de
Wanderson Flor do Nascimento. Disponível em: http://vsites.unb.br/fe/tef/filoesco/
foucault/vidanaofascista.pdf. Acesso em: 15 abr. 2011.

GIL, José. Ele foi capaz de introduzir no movimento dos conceitos o movimento da vida:
entrevista com José Gil. In.: Educação & Realidade – v. 27, n. 2 (jul/dez). Porto Alegre:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 205-224.

PELLEJERO, Eduardo. Mil cenários: Deleuze e a redefinição da filosofia. (Tradução Susana


Guerra e Revisão de Marisa Mourinha). 2010. (Texto digitado).
pedagogia
& escrileituras
A pedagogia das máscaras:
vozes e sentidos

Deniz Alcione Nicolay


Sandra Mara Corazza

Resumo
O presente texto descreve o percurso de pesquisa da tese de doutorado
em educação intitulada: Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico.
Nesse sentido, apresenta a composição de elementos teórico-conceituais que
matizaram a escritura e a problemática inicial dessa tese. Entre tais elementos,
está o pensamento filosófico do primeiro Nietzsche, período da vida em que
o filósofo se dedica ao estudo do sentimento trágico Grego. Por meio desse
pensamento, experimenta dispositivos narrativos a fim de positivar a escola
básica e seus problemas. Assim, procura aliviar a tensão cotidiana, afirmar o
valor da relação docente e, acima de tudo, cativar a criação estética no seio
das ciências da educação.

Palavras-chave
Estética. Tragédia Grega. Pathos. Vontade. Dionísio.

78 • 79
Trata-se de falar, pensar, ler e escrever em direção ao inusitado da
palavra. Ora, partilhar do inusitado da palavra significa afastar-se do
discurso comum, sobretudo daquele que, em específico, trata da formação
de professores. Nesse sentido, é de conhecimento que, invariavelmente, os
programas de formação reproduzem retóricas salvacionistas, palavras de
ordem, dinâmicas improváveis sobre o ensino e sua arte. Então, trata-se de
refutar as pedagogias da consciência, mesmo que elas sejam herdeiras das
antigas concepções judaico-cristãs e se espalhem por séculos de história da
educação. Simplesmente porque não se trata de confessar algo a alguém,
mas potencializar a palavra vida no caminho da formação. É fato que,
antes de tudo, procura-se evitar os percalços de uma crítica improdutiva
que se reduza a apontar os acusados pela queda da Bastilha. Além disso,
falar, ler e escrever sobre a pedagogia não devem significar que seu autor
está absolutamente fechado para as transformações das ideias clássicas.
Ao contrário, essas transformações exigem certo grau de atualização de
acordo com a máscara usada num momento específico, mas apenas nesse
momento, pois, em outras ocasiões, outras máscaras tendem a assumir o
formato do rosto. Então, há de se entrar em colóquio com um Platão em
seu tempo, desfilando pelos bares da Cidade Baixa; ou encontrar-se com
um Rousseau e sua maravilhosa peruca de cachos, transitando pelas bancas
do Mercado Público. Impossível esquecer-se de Nietzsche e seus grandes
bigodes, olhando silenciosamente as árvores da Redenção. Eles estão aí.
Por todos os lados, ouvimos vozes que reivindicam seu quinhão de
expressão. Elas exigem espaço no texto-tese que recolhe cacos de solidões
que, por ora, são densamente povoadas. Assim, o inusitado da palavra
partilha da escuta que ouve e interpreta a voz oracular. Essa voz molda,
dá tom e sentido às palavras que vagam desconexas pelo céu da primavera.
Ora, no céu da primavera está a grande inspiração desse texto-tese,
que versa sobre a estética trágica da pedagogia. E, se invoca a era das tra-
gédias gregas, não é apenas para jogar trocadilhos com os versos de
Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, mas para embriagar-se do fundo poético que
brota de tais versos e, assim, diluir-se no texto. Por isso, procura exercitar
o estilo, a forma e o conteúdo de maneira que seu ator-autor possa repre-
sentar-se nas personagens; porém, não como a figura de um indivíduo
personificado, mas como o produto de forças, de vozes que insistem
(e se desdobram) para compor a teia da escritura. Nessa teia, cada parte
(ou capítulo) assume a máscara que lhe apraz, ou seja, as referências
textuais ganham forma na composição de um mosaico original que,
inicialmente, parece não seguir nenhum ordenamento sequencial. No
entanto, as ideias ganham força e sentido quando confrontadas com a linha
de pensamento que lhe serviu de matriz conceitual. Tal linha de pensamento
considera, sobretudo, o desfecho da interpretação trágica realizada pelo
primeiro Nietzsche e, por consequência, sua demarcação precisa em re-
lação aos eventos filosóficos e literários na Alemanha do século XIX. Ou
seja, o exercício compreensivo que se configura na originalidade do texto
leva a marca da experimentação estética, de uma escuta aos tambores de
Dionísio, de um sentimento trágico que carrega as lições do tempo, da vida
e da alegria. Com isso, não se quer dizer que esse texto-tese abandona o
compromisso com os problemas do campo pedagógico propriamente
dito, mas os trata sob outra perspectiva, qual seja, a perspectiva vitalista
que considera o acréscimo (ou decréscimo) de potência como matéria
constitutiva do próprio texto-tese. Então, deixa-se tocar pela atmosfera dos
autores e obras, sobretudo daqueles que pensam e escrevem sobre o conceito
de ‘trágico’ em Nietzsche. Desse modo, seu autor alimenta as linhas
produzidas a partir das matérias (de conteúdo e expressão) cuja inspiração
brota da energia pulsante da physis.
Nesse sentido, é evidente que procura explorar e interpretar o fundo
dionisíaco da filosofia de Nietzsche. A temática das máscaras vem dessa
possibilidade de lidar com problemas que não evidenciam apenas uma
condição lógica do discurso, mas que se atêm ao cultivo da voz e do tom
das palavras. Imaginamos, por exemplo, Nietzsche e seus textos como uma
hidra de várias cabeças cujas falas se entrecruzam, dialogam, se contra-
dizem umas com as outras, na busca da afirmação original. Por isso, ‘Eu’,
Eles’ ou ‘Nós’, no texto do filósofo, compõem as personae de uma voz que
clama pela autossuperação da razão humana (num esforço de estilo e
sensibilidade). É como se ele mesmo tivesse que se autorretratar num estado

80 • 81
de dispersão dionisíaca e, a cada momento, reencontrar-se em meio ao
caos. Entretanto, isso não significa uma maneira específica de dramatizar
as condições da própria vida, mas o exercício de multiplicar as vozes, os
pontos de vista sobre o objeto (alvo do conhecimento). As máscaras surgem
desse artifício de duplicar as palavras, os sentidos, uma vez que a vontade
de verdade se constitui num esforço pela modulação tonal da linguagem,
ou seja, ela é peremptória e produtiva de acordo com o grau de potência
investido (legado do antigo teatro grego). É nessa direção que podemos
afirmar: “Sem uma máscara, não se tem nenhum rosto para apresentar;
e é somente através das máscaras que se pode falar bem alto o que se
aprendeu” (HAYMAN, 2000, p. 35). Isso quer dizer que a verdade está
num esforço pelo investimento da superfície, não da profundidade, uma vez
que dificilmente se pode retirar uma máscara sem que outra esteja em seu
lugar, ou seja, ela é a única forma do rosto. As máscaras são análogas às
células da pele humana, que, durante anos, se regeneram com o tempo,
com os impactos da exterioridade, renovando nossa percepção do mundo
e da vida. E é provável que, na maior parte das vezes, escrevemos não
para revelar algo a alguém, mas para extravasar o sentimento de estranha-
mento que está em nós. Ora, se Dionísio é o deus estrangeiro que
chega para tripudiar o logos da religião oficial, também as palavras nunca
dizem a verdade sobre o ser da sensação, mas erigem metáforas da reali-
dade.
E é como metáfora do cabedal docente, das práticas pedagógicas,
da formação de professores e, sobretudo, da vida nas escolas que provo-
camos a escrita desta tese. É claro que o título oscilou na sua metamorfose
essencial, carregando palavras-chave e clichês professorais. Talvez o texto
constituído, mas nunca em definitivo, tenha oferecido estilhaços semânticos
cujos sinais divagavam por um apanhador de sonhos. Entre uma passagem
e outra desse apanhador, a experiência residual comportou a descrição de
um título possível: Pedagogia das Máscaras: aprender com o trágico. Poderíamos,
inclusive, sem prejuízo aos seus elementos constitutivos, manifestar um
‘aprender com Dionísio’, com o dionisíaco de Nietzsche. No entanto,
entendemos que o ‘trágico’ é o elemento formador desta filosofia e, como
tal, oferece pressupostos didático-pedagógicos para se repensar a noção
de ação/produção (práxis/poiesis) no interior da dinâmica escolar (porém,
isso já compete à problemática da tese). Antes disso, é preciso localizar
o território de pesquisa de onde brotaram suas primeiras experimen-
tações. Com efeito, a tese surgiu no PPGEDU da UFRGS, na linha de
pesquisa 09 (Filosofia da Diferença e Educação), e foi defendida em ja-
neiro de 2012, sob orientação da profa. Dra. Sandra Mara Corazza. O
BOP (Bando de Orientação e Pesquisa) foi o coro de vozes que encenou
sua leitura, contribuindo nos desafios da escritura. Assim, como metáfora
da condição docente, apaixonada pela mitologia grega, pelos escritos de
Nietzsche, pela perspicácia e genialidade de sua orientadora, é que esta tese
nasceu.

A canção do bode expiatório da Pedagogia (ou o bode como


problema)

É corriqueiro procurarmos sempre um culpado pelos problemas da


educação pública brasileira. Eles são de toda ordem: desde questões de
infraestrutura das escolas até políticas de formação docente. Dá a impressão
de que existe um complexo de forças reativas que desanimam a vida
nas escolas. É como se paredes fictícias se erguessem aqui e acolá, ime-
diatamente e sem direção, toda vez que algo foge do controle e segue a
contrarregra do pensar educacional. A Pedagogia das máscaras não ensina
regras, nem métodos, tampouco força o juízo a fim de resolver os problemas
de ensino-aprendizagem. Ela segue as pegadas de Dionísio e, por isso,
ensina a paixão pela natureza, pela vida cotidiana dos seres. De maneira
específica, torna-se coerente pontuar que tudo aquilo que moraliza as
relações docentes nas mais diversas esferas, também acaba por bloquear o
sentido estético da docência. Mas o que entendemos por ‘sentido estético
da docência’? Ou, de modo preciso, de que estética estamos falando?
Ora, a estética como disciplina filosófica nasceu no século XVIII com
Baumgarten, Hegel e Kant. No século posterior, mais precisamente na
Alemanha do século XIX, a estética passou a demarcar o campo de es-
tudos cuja temática retorna ao passado da civilização ocidental, ou seja,

82 • 83
aos eventos da Grécia antiga, sua constituição filosófica e literária. É nessa
direção que podemos pontuar duas interpretações acerca da releitura
dos clássicos gregos, sobretudo dos antigos tragediógrafos (Ésquilo,
Sófocles e Eurípedes). Por um lado, uma vertente clássico-romântica que
supervaloriza a historiografia como método na tentativa de reconstruir as
raízes do autêntico espírito alemão (o próprio Hegel, mas também Goethe,
Winckelmann, Schiller, Schelling, Schlegel, Fichte e, em certo sentido,
Schopenhauer e Wagner). Por outro lado, uma interpretação vitalista,
centrada no fenômeno trágico (embora a tragédia grega tenha sido estudada
em ambas as vertentes), uma vez que a preocupação recai nos fundamentos
estético, musical e religioso da arte na Grécia. Não seria exagero afirmar
que tal interpretação permaneceu, durante anos, como a via marginal de
compreensão da tragédia. Estão nessa via o poeta Hölderlin e o filósofo
Friedrich Nietzsche. Ao divergir das interpretações célebres do período,
Hölderlin e Nietzsche recriam o fenômeno trágico, evidenciando sua
capacidade regenerativa e, por que não dizer, criativa. Não se trata apenas
de repetição, tradução, mas transcriação dos versos e da poética essencial
que norteou a arte grega. Se Nietzsche, por meio do Nascimento da tragédia,
afirma a tese fundamental de que: “[...] só como fenômeno estético podem
a existência e o mundo justificar-se eternamente [...]” (1992, §5, p. 47);
Hölderlin, por sua vez, tanto no Hipérion quanto na Morte de Empédocles
(ou em notas isoladas), produz reflexões originais sobre o drama trágico:
“A poesia mais elevada é também aquela em que o não poético se torna
poético porque, no todo da obra de arte, se diz no tempo e no lugar
oportunos.” (HÖLDERLIN, 1994, p. 25). Portanto, é como se afirmassem
que existe uma poética vital (poiesis), produzida como resultado das ações
cotidianas e, acima de tudo, motivada por um pathos afirmativo capaz de
sobreviver aos percalços de qualquer niilismo pedagógico. Essa possibi-
lidade animou o caminho da pesquisa e a textualidade da Pedagogia das
máscaras.
No entanto, a filiação teórica da estética trágica (como pensamos e
entendemos o problema de pesquisa) é própria da filosofia do primeiro
Nietzsche. Nesse sentido, da Introdução à tragédia de Sófocles até o Nascimento
da tragédia, percebemos que a noção de trágico muda de direção. Se,
em Sófocles, inicialmente, a tragédia edipiana ainda carrega traços de
ressentimento e piedade, sem contar com a progressiva extinção do coro,
Nietzsche precisa retornar às origens do mito. Nesse retorno, descobre a
potência indestrutível do dionisismo, um poder avassalador que cons-
trange a moral e a religião do homem moderno. Então, o herói esqui-
liano torna-se a encarnação das forças titânicas da natureza e, assim,
reproduz o conjunto paradoxal do sentimento trágico num misto de
sofrimento e alegria. Além disso, o coro em Ésquilo tem papel fundamental:
“O coro das Oceânides acredita ver efetivamente à sua frente o titã Prometeu
e considera a si próprio tão real como o deus na cena.” (NIETZSCHE, 1992,
§7, p. 53). O coro não é apenas uma personagem da cena, mas uma força
afirmativa capaz de mudar o destino do herói. Diferentemente de um arti-
fício da consciência humana que julga as ações do herói, o coro trágico
estimula a possibilidade do ‘querer’, ou seja, uma forma de arrebatamento
das pulsões vitais sem a qual não pode haver nenhuma escuta do que nos
ultrapassa. Essa forma de afecção do herói foi o que os gregos chamaram
de pathos. Portanto, ela é de matriz irracional, ilógica, atemporal e, assim
como o movimento das paixões que motivam o coração humano, as vozes
que ressoam do coro manifestam o poder para a transcriação da obra. É
por isso que não se trata de uma ação como reprodução, mas de uma ação
como produção desejante. Além do mais, ouvir, ver, falar e fazer constituem
as operações de um fundamento ético marcado pela sensibilidade e pela
compreensão da physis. O problema central e os problemas secundários do
texto-tese da Pedagogia das máscaras estão mergulhados nessas proposições,
objetivando positivar a ação docente a partir da autoformação, da
experimentação e da expressão estética.

A didascália como método


Existe, na obra O mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer,
uma passagem em que o filósofo tenta explicar o conceito de ‘Vontade’
por meio da metáfora das marionetes. Ou seja, mesmo parecendo autô-
noma as suas motivações, a marionete é conduzida por fios externos

84 • 85
cuja precisão depende da motivação interna do ventríloquo que a põe
em movimento. Com isso, o filósofo define seu conceito de ‘Vontade’
enquanto Wille zum Lebem (Vontade de viver), o que, para Nietzsche, é
insuficiente na superação do pessimismo. Por isso, Nietzsche enxerta
no conceito schopenhauriano o componente estético dionisíaco, deno-
minando-o de Wille zur Macht (Vontade de poder). Ora, as linhas que
enxertam esta tese são semelhantes ao corpo da marionete, que ganha
vida própria a partir das motivações internas de seu autor. Mas não
apenas isso, pois o tecido que recobre as máscaras é matizado pela
cor ambiente que o envolve. É como se as afecções do texto, objeto de
estudo, provocassem a escritura da tese numa direção e num sentido
inusitados até o instante da produção. Por exemplo: cada parte, seção
ou capítulo (no total são nove capítulos, divididos em seções menores)
apresenta uma conotação própria, procurando se aproximar da forma de
conteúdo original do texto. A cada três capítulos, compõe-se um bloco
específico (são três blocos: 1. O Trágico e a pedagogia; 2. Mascaradas e
3. Patéticas). A motivação dos três primeiros capítulos do primeiro bloco
é rousseauniana, pois procura aproximações com o tom intimista das
Confissões (Aprender com o trágico, Dionísio-educador e Ressonâncias
rousseaunianas, exatamente nessa ordem). No segundo bloco, cada
capítulo é atravessado por um pathos específico. É assim que o texto
intitulado ‘Sala de aula: cenas de uma tragédia anunciada’, inspirado
nos textos das tragédias clássicas (tanto antigas quanto modernas) e na
criatividade de Júlio Cortázar, procura encenar a escola e seus problemas.
Em seguida, ‘Bestiário das tipologias do educador’ é inspirado nas
tipologias do Zaratustra de Nietzsche e, sobretudo, no Nietzsche de Deleuze.
Os diálogos platônicos motivam o capítulo que encerra o segundo bloco:
‘Diálogo entre Teofrasto e Didascálio’. O terceiro bloco é composto
por pequenos ensaios e tentativas de aforismos. Não há uma inspiração
única, nem estilo que prevaleça, apenas a preocupação estética em
compor a definição da máscara primeira (quando outras já perdem
força e sentido). Estão nessa condição: ‘Ensaios em migalhas’, ‘Frag-
mentos de escola’ e ‘No curso da estética trágica: o adeus das dionisíacas’,
que, por sua vez, encerra os contornos do teatro trágico da escritura.
Ela é agora um corpo-tese, assim como o corpo da marionete, em
que, vez por outra, puxamos um fio, esticamos e verificamos onde
vai dar.
Não existe um método-padrão de escrita e pesquisa que possa ser
utilizado à revelia dos resultados. Portanto, os procedimentos de pes-
quisa são uma construção particular do pesquisador. Eles delineiam
um caminho, mas não a direção que devemos seguir. Muitas vezes não
temos certeza do resultado, ou melhor, nenhuma certeza, pois o que
fica há de ser superado por outro erro, quiçá menos grosseiro do que o
primeiro. E, de erro em erro, assumimos a condição de verdade, feita
de metáforas da realidade e de dissabores da vida. O que se aprende
é produto do fluxo trágico e, por isso, intenso, sofrível, prazeroso. Se há
uma pragmática da vontade em relação aos eventos da pesquisa, ela não
pode ser premeditada de antemão, tampouco descrita como um arcabouço
lógico de opiniões e sentenças. Existe uma afecção inicial que contagia o
corpo do autor, uma ideia-força que lhe provoca o desejo de transcriar o
texto. Sem esse sentimento de alheamento de si não há como prosseguir
no universo da pesquisa. Mesmo a sala de aula é uma invenção: “A poesia
e a música são estímulos que, indiscutivelmente, seduzem para a magia
do infinito, do ilimitado. Nesse sentido, a aula é pura fabulação.” (2012,
p. 140). É como fabulação da aula que produzimos esta tese. Estávamos
em cada palavra, em cada personagem, em cada texto. Sendo assim, a
metodologia mais provável e adaptável nesse contexto teórico responde
por uma indicação cênica em cada trecho, como as didascálias do roteiro
teatral. Importa saber que as marcas não são visíveis no texto definitivo mas
elas acenam ao leitor em cada página. No entanto, servem apenas para o
autor vivificar as matérias de escrita, experimentá-las na leitura silenciosa
ou na gestualidade do corpo. Ao leitor, importa criá-las como lhe convém.
Agora, se nada importa e se nada interessa para quem a ler, também não
sofreremos por isso. Ela sai de cena, retira-se do palco. Entretanto, algo
ficou no ar: assim como o Deus ex machina do teatro grego, ela marcou
um tempo e um lugar. Evoé, Baco!

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Referências
HAYMAN, Ronald. Nietzsche: Nietzsche e suas vozes. (Tradução Scarlett Marton). São
Paulo: Editora Unesp, 2000.

HÖLDERLIN, Friedrich. Reflexões. (Tradução Márcia de Sá Cavalcante e Antonio


Abranches). Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

NICOLAY, Deniz Alcione. Pedagogia das máscaras: aprender com o trágico. Tese de
doutorado em educação. Faculdade de Educação da UFRGS, Porto alegre: 2012.

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. (Tradução


J. Guinsburg). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Sobre escritura e arte do estilo:
aproximações otobiográficas

Polyana Olini
Silas Borges Monteiro

Resumo
A arte do estilo toma do corpo do autor sua escritura. Refere-se à diversidade
de seus estados internos e, consequentemente, às possibilidades de expressá-
los textualmente. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se entendia
até então como linguagem. A variação contínua presente na escritura e no
estilo é o que permite pensar aqui os projetos filosóficos e as vivências como
formação de si mesmo, e portanto como constituintes de maneiras subjetivas
e plurais de cultivar e de afirmar a própria vida. Diante dessas questões, este
capítulo trata da devoração escrileitural de autores, noções e conceitos que
compõem a dissertação intitulada “Estilo, Vida e Constituição de Si: a arte
do estilo”, defendida no segundo ano do projeto Escrileituras: um modo de ler-
escrever em meio à vida, no núcleo da Universidade Federal de Mato Grosso.

Palavras-chave
Escritura. Estilo. Constituição de si. Otobiografia.

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1. Sobre vidas escritas: o duplo inquietante
A escritura derridiana, desde o final dos anos 1960 até os dias de
hoje, continua originando quase tanta controvérsia quanto o pensamento
nietzschiano. O próprio interesse de Derrida em Nietzsche oferece um
ponto particularmente impressionante de partida, para perguntar como um
autor assume a responsabilidade das opções do pensamento de um outro
autor, quando seu trabalho se torna objeto de interpretações conflitantes.
O estilo resultante do interesse por Nietzsche e também, talvez em
menor gama, por outros pensadores como Freud e Lacan, demonstra mais
maturidade do pensamento derridiano do que se possa imaginar, sem maior
aproximação à obra, é claro. Embora o filósofo francês frequentemente
movimente as contradições em um texto particular, representativo ou
sintomático, é notável que seu projeto está situado em implicações mais
amplas do “mundo real” ou na análise de qualquer fenômeno. Assim, por
exemplo, Gramatologia não é primeiramente sobre os textos de Rousseau, é
um livro que aborda a repressão da escritura em benefício da fala.
Derrida quer abordar a impressão deixada por certos pensadores
na história do pensamento, com base na impressão com a qual estes o
marcaram. Ressalvam-se muitas dessas marcas que Derrida mobiliza e que
se caracterizam pela ambivalência à tradição filosófica. Tanto o pharmakóm
de Platão, em A farmácia de Platão, como o suplemento de Rousseau, em
Gramatologia, apontam para o jogo entre bem e mal, remédio e veneno,
mais e menos, escrita e phoné, dentro e fora, acidente e essência.

2. Estilo e escritura
É importante observar as semelhanças e diferenças entre Nietzsche e
Derrida, com o intuito de começar a explorar as conexões entre o que vai
ser abordado como escritura ao pensarmos filosofia e educação e, fundado
nisso, desenvolver os elementos conceituais que circundam a escritura,
como estilo, morte, vida, otobiografia, etc.. Desde já, busca-se movimentar a
filosofia de Nietzsche, as leituras desta filosofia – principalmente as feitas
por Derrida – e as implicações disso para pensar as relações entre filo-
sofia, educação e constituição de si. A exemplo de Nietzsche, Derrida
favorece leituras ativas, nas quais a filosofia desempenha papel dinâmico
na criação de valores, assim como na afirmação e transvaloração da vida.
Toma-se, na dissertação, o conceito de escritura trabalhado por Derrida
ao longo de seu projeto filosófico, com ênfase nos textos do início de sua
obra, como Gramatologia. A escritura se caracteriza por exceder aquilo que se
entendia até então por Linguagem, porque rompe com a relação metafísica
que a última pressupõe. Dessa forma, Derrida defende uma visão inovadora
sobre o tema, apontando para a criação de nova concepção de escritura,
através da qual é possível operar a desconstrução das oposições de caráter
binário, permitindo a articulação (o jogo da diferença) da fala e da escrita.
Derrida anuncia a liberação da escritura, dizendo: “(…) tudo aquilo
que – há pelo menos uns vinte séculos – manifestava tendência e conseguia
finalmente reunir-se sob o nome de linguagem começa a deixar-se deportar
ou pelo menos resumir sob o nome de escritura” (DERRIDA, 2008, p. 8).
Certamente, há uma noção de que Derrida (1971; 2008) se porta de
forma inquieta com relação ao discurso filosófico tradicional e, desde seus
primeiros trabalhos, podemos ver uma gradual “radicalização do estilo”,
por esta via. Conforme Jones Irwin (2010, p. 17-19), é metodologica-
mente isto o que desperta seu interesse em um pensador como Artaud,
que nos fala do solo da vanguarda poética.
Como Nietzsche, Derrida é um grande defensor da transição e da
transformação. Über; différance. É neste sentido que se faz aqui a aproximação
entre eles: Nietzsche transvalora, Derrida desconstrói. Nos labirintos da
escritura, o texto nunca terá um significado único. A convicção de que a
linguagem pode ser uma generalização estável e “total” é perigosa, assim
como equivocada. Em seu texto Esporas: os estilos de Nietzsche, Derrida (1981)
sustenta que não há uma verdade de Nietzsche ou do texto nietzschiano. E
isso compõe os estilos de Nietzsche. A linguagem é um meio que congela
conceitos úteis, uma ferramenta ilusória, como as de verdade e conhe-
cimento. Não importa se elas são verdadeiras ou não, porque os seres
sociais precisam delas.
A dissenção com alguns temas clássicos da filosofia caracteriza uma
consequência necessária para escrita filosófica, em ambos os pensadores.
Mesmo com estranheza ao pensamento ocidental, conservam a paixão

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da filosofia pela busca da verdade – como coloca Platão –, ao mesmo
tempo em que a própria filosofia é posta em suspeita. Nem Derrida nem
Nietzsche abandonam o desejo de buscar a verdade, apenas demonstram
a impossibilidade de chegar a uma imagem, singular e transparente da
“verdade”.
Tanto em Nietzsche como em Derrida, a questão do estilo está
indissoluvelmente ligada com o conteúdo do texto, selecionando e sedu-
zindo o leitor. Nietzsche afirma não conhecer “outro modo de lidar com
grandes tarefas senão o jogo: este é, como indício de grandeza, um pressu-
posto essencial. A menor constrição, o ar sombrio, um tom duro na gar-
ganta são objeções a um homem, mais ainda à sua obra!...” (NIETZSCHE,
1995, § 10).
O jogo ao qual Nietzsche dá destaque nesta seção, é o jogo com
estilo. Exige que o leitor se torne tão atento ao ritmo e tom da escritura,
quanto a seu conteúdo. Não é inesperado, então, que Nietzsche cons-
tantemente faça alertas para que os leitores prestem atenção a quem lhes
fala, quase que como uma intimação para que seus textos sejam escu-
tados com os ouvidos corretos. Ainda que ajustar os próprios ouvidos
para ler Nietzsche seja, provavelmente, uma das tarefas mais desafiadoras,
pois “os livros de Nietzsche são mais fáceis de ler, porém mais difíceis
de entender do que os de qualquer outro pensador” (KAUFMANN, 1974,
p. 72). Seu tom muda, propositadamente, de um grito a um sussurro
dentro de um único aforismo. Muitas vezes curtos, os aforismos de Nietzsche
são formatos que rompem padrões convencionais da filosofia moderna,
escritos entre suas caminhadas, como monumentos às suas crises de dores
de cabeça, consolidando seus meios particulares de apresentação – dispo-
sições gráficas, itálicos, aspas e reticências ganham usos característicos.
Evidentemente, estas questões não se ausentaram em Derrida, leitor
de Nietzsche, que percebe haver um limite no discurso que chamamos
de filosofia; esse limite precisa encontrar uma maneira de gesticular em
direção a seus lados, como que a um exterior quase impossível de alcançar,
tornando-se uma margem sem centros de controle e referência. E para que
esse discurso não volte a marchar rumo a qualquer limite, para que haja
a superação deste, ao ler e escrever é preciso se envolver com vários estilos
e registros de uma vez, isto é, devemos ser constantemente atravessados
pelos sentidos.
Enquanto Nietzsche ressalta, em suas obras, para a multiplicidade e
duplicidade de sentido que expõe o perspectivismo, Derrida enfatiza a
necessidade estrutural de o significado não ser capaz de chegar ao destino
desejado, a uma margem vazia, como condição de possibilidade para
desconstrução do logocentrismo e da metafísica da presença, entre um monte de
outros temas e aspectos. Esse fracasso do significado, tal qual o pensamento
ocidental sempre temeu, é que deixa ocorrer a contradição na perspectiva
de que das contradições emergem a possibilidade da remarcação do texto/
escritura, como dobra que nega a prescrição de um pensar metafísico.
As obras de Nietzsche, constantemente, expressam a necessidade de
escapar a metafísica, assim como as de Heidegger depois dele. Derrida se
junta a seus antecessores em perseguir as mesmas perguntas, mas ressalta
a impossibilidade de escapar do que ele chama de metafísica da presença. Já
que não há como escapar a linguagem da presença, Derrida nos chama a
atenção para a precisão de aprender a colocar a linguagem para trabalhar
de outra forma através do estilo e do registro.
Derrida afirma que a autobiografia se distingue do que se entende
frequentemente, nas definições literárias. O autobiográfico deve nos fazer
reconsiderar o lugar do “autos”, pois toda escritura autobiográfica é singular
e põe em movimento de cooperação o “auto” de sua “autoidentidade”;
determinando a inevitabilidade deste movimento, que o autor, diz ser
psicanalítico, na margem de todo texto e discurso, para além dos limites
tradicionais da escrita.

3. Do que é praxe
Os pontos e argumentos expostos até aqui, com toda a concessão da
fantasia e das fabulações, não como oposição ao real ou a verdade mas
sim como reconhecimento da potência da multiplicidade, permitem a
apresentação das escolhas e os estabelecimentos em que a dissertação está
inserida.
Com Deleuze, o pensamento passa por encontros múltiplos. Pesquisar
trata de criar um deserto que possa ser atravessado por acontecimentos,

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velocidades, afetos, sensações, multiplicidades e devires. Inspirada pelas
provocações de Deleuze, Sandra M. Corazza apresenta a pesquisa do
acontecimento como possibilidade de “novos meios de expressão”, em
que o direito à singularidade e o pensar diferente se movimentam nos
campos da filosofia, da arte e da ciência. Estas suas afirmações, de certo
modo, atravessam todo o pensamento deste estudo, “assim, para a Pesquisa
do Acontecimento, escrever não é impor uma forma de expressão a uma
matéria vivida, mas trata-se de um procedimento informe, de um processo
inacabado, de uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”
(CORAZZA, 2008, p. 250).
A questão que enfeixa a elaboração da dissertação: a proposta de
constituição de si, poetizada por Píndaro na sentença: “Homem, torna-
te no que és”. Assumida por Nietzsche como uma de suas grandes tarefas,
principalmente em Ecce homo, e discutida por Derrida, quando toma o
estilo filosófico de Nietzsche como forma de ensino fundado, nas vivências,
em Otobiografias. Também se trata de tomar tal proposta como principal
objetivo, buscando justificar novas perspectivas sobre as experiências de
vida que deixam marcas, que geram concepções, que desenvolvem crenças,
que levam à tomada de atitudes. Ou, talvez, nada disso, a não ser “suas
insignificantes vivências diárias” (NIETZSCHE, 2000, § 627), que, no
entanto, produzem texto escritura. Ainda mais. Aspira à compreensão de
temas geralmente desprezados pela filosofia e pela educação: refiro-me a
sinalizar casuísticas do egoísmo como operadores conceituais da consti-
tuição de si.
A tessitura do trabalho procura abordar o que entende por si a partir
do perspectivismo nietzschiano, que está diretamente relacionado com
sua noção de si mesmo como uma espécie de multiplicidade subjetiva,
que entende nossa experiência do mundo diante de uma experiência
multifacetada. Dessa forma, “o sujeito unitário (...), protótipo das demais
ficções erigidas pela longa tradição metafísica, torna-se obsoleto perante as
rigorosas exigências de um pensamento que procura acolher, sem restrições,
a plenitude e a inocência do vir a ser” (ONATE, 2003, p. 19). Como as
seções Dos que desprezam o corpo e Do domínio de si do Assim falou Zaratustra
bem retratam, Nietzsche (2008) revela um compromisso com a impor-
tância e o valor do corpo e da vida para o conhecimento e o domínio
de si, em sua forma nietzschiana mais elevada, isto é, criando para nós
mesmos uma moderação de instintos.
Como caminho para pensar como tornar-se o que se é, ligamos as noções
de (auto)formação e estilo, que aparecem no decorrer da obra de Nietzsche
e são tomadas de forma fértil e particular por filósofos como Foucault,
Deleuze e Derrida.
Foucault concebe os apontamentos para uma hermenêutica do sujeito
em sua determinação histórica e ética. Pelo retorno aos helênicos e
romanos, apresenta o “cuidado de si” como forma de “substituir o princípio
da transcendência do ego pela busca das formas da imanência do sujeito”
(FOUCAULT, 2004, p. 636). Para pensar um sujeito em movimento é preciso
que o sujeito se constitua na imanência de sua ação. Assim, Foucault propõe
formas não normalizadoras de constituir aquilo que somos. Na escrita de
si “é sua própria alma que é preciso criar no que se escreve (...), também é
bom que se possa perceber, no que ele escreve, a filiação dos pensamentos
que se gravaram em sua alma” (FOUCAULT, 2004, p. 152-153). Trata-se
da experiência de escrever como contribuição para as práticas artísticas
de viver e constituir-se.
Dessa maneira, recorremos ao pensamento da diferença para investigar
a constituição de si. Pois bem, tomar este tema (também é um desafio) da
filosofia e da educação – de decifrar e constituir o si mesmo – é reconhecer
a nova forma de filosofia que se concebe através da aposta de entender
vida e escritura como possibilidades de experimentação e de pensamento.
Certamente, trata-se de questão metodológica: experimentar o tema da
constituição de si, perseguindo as ideias de escritura, (auto)biografia, (auto)
formação, adotando as perspectivas da suspeita e da desconstrução, visto
que retrata o método como criação.
A primeira seção visa trazer reflexões sobre as implicações do pro-
blema filosófico que envolve o jargão “Vida e Obra”, passando pelo
estruturalismo e o pós-estruturalismo. Apresenta uma perspectiva de leitura
para escritos (auto)biográficos ou não, ao se empenhar no que diz Nietzsche
em Para além de bem e mal: “gradualmente foi se revelando para mim o que
toda grande filosofia foi até o momento: a confissão pessoal de seu autor,

94 • 95
uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (NIETZSCHE,
1992, § 6).
Na segunda seção, tratamos a vida como o principal ponto de apro-
ximação da escritura na filosofia nietzschiana. Nessa medida “são os estilos
de vida – escreve DELEUZE (1992, p. 126) –, que estão sempre implicados
nos gestos e nas palavras, que nos constituem como este ou aquele”. Neste
sentido, encontramos um intenso diálogo entre filosofia, vida e escritura
por meio de reflexões sobre o debate que Deleuze empreende acerca da
literatura e da questão do estilo. Assim, o capítulo retrata também que a
renovação da filosofia, no período moderno, está ligada à questão da escrita.
Na terceira seção, abordamos questões relativas ao tema da morte e sua
relação com a escritura. Em Derrida, a escritura da vida se revela como
escritura da morte; ao narrar e assinar sua vida, o autor (signatário e vivente
de seu próprio texto) adianta sua morte. Derrida, em certa harmonia com
Barthes (2004), também segue as vias de dissolução da noção de autoria,
quando também decreta a morte do autor (falante e escritor) e toda esta
sua prevalência. Ambos libertam a escrita dessa herança metafísica que a
aprisiona em favor de uma máquina autônoma de escritura. No entanto,
procuramos atentar para o fato de que Derrida sempre associou a
problemática da morte com a afirmação da vida, em sentido nietzschiano.
Na quarta e última seção, pela elaboração de um sistema, pensamos
Como tornar-se o que se é pela trilha da arte do estilo. E, portanto, uma
possibilidade de pensar escritura como força constitutiva do escritor/vi-
vente/signatário, apesar das proteções de suposta racionalidade científica
presente em muitos escritos.
Vem daí a insistência de Derrida, que sucede Nietzsche, ao defender
a conquista do caráter autobiográfico também nos escritos filosóficos em
geral. Na escritura autobiográfica, o nome do autor, seu corpo, sua posição
no espaço e no tempo são, paradoxalmente, fatos e ficções que devem ser
tomados pela filosofia como “uma descrição mais ou menos viva de sua
própria escritura” (DERRIDA, 2007, p. 337). Em Otobiografias: o ensino de
Nietzsche e a política do nome próprio, Derrida também investe nas discussões
clássicas sobre autobiografia. Declara que, muitas vezes, pormenorizam
a autobiografia de um filósofo, “como um corpus de acidentes empíricos
deixando um nome e uma assinatura fora de um sistema que seria, ele,
oferecido a uma leitura filosófica imanente, a única que seja tida como
filosoficamente legítima (...)” (DERRIDA, 2009, p. 31).
Ainda na última seção, procuramos entreabrir alguns apontamentos
para o gesto otobiográfico. Com Derrida “tudo se enrola, vocês o sabem, na
orelha de Nietzsche, nos motivos do seu labirinto” (2009, p. 57). Silas B.
Monteiro (2007) estabelece a otobiografia como um tipo de investigação
de escritos, na qual sua busca por perspectivas sustentadas em vivências-
escuta-estilo-escritura justifica o interesse e o comprometimento desta
dissertação com o que foi apresentado em sua tese de doutoramento
como conceito derridiano, suas possibilidades metodológicas e a propo-
sição de um método-labirinto.

4. Aos pretendentes a Penélope


Entende-se que Nietzsche assumiu duas tarefas para se constituir.
A primeira foi unir absolutamente tudo o que foi confrontado com os
eventos peculiares, somente a ele. Suas vivências e os acidentes empíricos,
tais como nascimento e saúde, crescimento e doenças, constituindo um
todo único e unificado que ele podia afirmar. A segunda tarefa, pressuposta
pelo esforço de tornar-se quem se é, foi dar estilo, como se dá a um texto,
a essas vivências, de modo a ser significativamente diferente de todos
os outros. Quanto a tornar-se quem se é, trata-se de projeto que envolve
afirmar e reconhecer que atitudes e experiências, instintos e desejos têm
contribuído para a própria constituição, independentemente do orgulho
ou decepção que esse reconhecimento pode inspirar. Para tornar-se o que se é
“uma coisa é necessária. – ‘Dar estilo’ a seu caráter – uma arte grande e rara!”
(NIETZSCHE, 2001, § 290).
Com Nietzsche e Derrida, palavra escrita e palavra falada se misturam,
ultrapassam essas oposições binárias, constituem a escritura neste jogo de
diferenças e se encontram no corpo do leitor/escritor/vivente.
A figura do duplo gesto entre os gêneros do discurso filosófico e lite-
rário no período moderno, principalmente após Nietzsche, aponta
a emergência da questão da escritura. Na perspectiva da filosofia da
diferença, a escritura é especialmente marcada em torno desta urgência

96 • 97
contemporânea. Desse modo, os textos de Derrida caracterizam uma
resistência à tradicionalização do registro filosófico ou do registro literário,
“eles se comunicam, assim (...), com outros textos que tenham efetuado uma
certa ruptura, não se chamam mais ‘filosóficos’ ou ‘literários’” (DERRIDA,
2001, p. 78). Esse movimento de desconstrução do registro é inspirado em
textos que, embora denominados literários, avançam “às artes, à poética,
à retórica e à filosofia”. Derrida cita como exemplo os textos de Artaud,
Bataille, Mallarmé e Sollers. Deleuze, por sua vez, considera autores e
artistas estrangeiros em sua própria língua, refere várias vezes Kafka,
Beckett, Godard e Gherasim Luca como portadores de um procedimento
de variação, uma experiência cromática que excede o limite da linguagem.
Esta é uma política do estilo, encarar a literatura como escrileitura
singular. E por ela, o estilo vem a ter força de lei da singularidade, do
outro, de nós e nossas leituras. Aquilo que faz da experiência de escrever-
e-ler uma experiência de posse, isto é, que torna um texto evidentemente
meu, pela assinatura ou pelo reconhecimento de um estilo próprio, afirma-
se a ação de assinar, em outras palavras, uma política do nome próprio.
É aí que podemos perceber a potência da ação da escritura, vista em
todos os aspectos da vida.

Talvez a meditação paciente e a investigação rigorosa em volta do que


ainda se denomina provisoriamente de escritura, em vez de permanecerem
aquém de uma ciência da escritura ou de a repelirem por uma reação
obscurantista, deixando-a – ao contrário – desenvolver sua positividade ao
máximo de suas possibilidades, sejam a errância de um pensamento fiel e
atento ao mundo irredutivelmente por vir que se anuncia no presente, para
além da clausura do saber. O futuro só se pode antecipar na forma de perigo
absoluto (DERRIDA, 2008, p. 4).

Mesmo com um tom que parece expressar certo agouro em


torno da questão da escritura, quando a denomina como um “perigo
absoluto”, Derrida parece traçar, já nas primeiras páginas de Grama-
tologia, que o limite ou possibilidade de conhecimento passarão no futuro
a ter uma relação inevitável com “a experiência de escrever” e toda a
individuação que tal experiência implica. As afirmações citadas acima, no
entanto, também acarretam que a escritura tem substituído a morte, como
a fronteira que guarda o silêncio absoluto e a finitude. Depois desta obra, é
certamente difícil descartar a questão da escritura, mais difícil ainda abordar
a experiência de escrever ingenuamente.
O gesto otobiográfico denuncia que as produções filosóficas, literárias
e formativas sem vida consistem em metafísicas da presença. Concepções ou
práticas presas nas abordagens dos significantes polarizados, separados ou
exercendo imposição um sobre o outro. A vida em oposição à morte. (Auto)
biografia em oposição à ficção. Fala em oposição à escrita.
No tempo bio-thanatográfico, costuman-se criar ideais de conquista.
Nietzsche insiste em nos alertar contra os ideais, pois costumam fazer com
que soframos do mal – ou bem – que tomou os adversários de Odisseu. Todo
esforço que fizeram garantiu-lhes a conquista das escravas, menos de sua
esposa. Conforme Laêrtios (2008, Livro II, §79), Arístipo (aproximadamente
435-350 a.C.), discípulo de Sócrates, criou uma espécie de categoria de
pessoas assim: àqueles que possuem currículo, mas abandonam a filosofia,
serão sempre ditos como pretendentes a Penélope. O sofista, discípulo do
anti-sofista, tem vivências para afirmar isto. De acordo com Michel Onfray
(2009), ele sabia gozar o instante presente, vivia com uma jovem cortesã.
Seu prazer estava em uma boa mesa, na gula e na diversão. Costumava
dançar em festas vestido de mulher – aí está o antecedente estético de Ed
Wood. Apreciava também os perfumes. Para o filósofo, mesmo os sentidos
de origem “vergonhosa” são bons meios de conhecer.

Referências
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Paulo: Martins Fontes, 2004. (Coleção Roland Barthes).

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_____. Espolones: los estilos de Nietzsche. (Tradução M. Arranz Lázaro). Valencia: Pre-
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98 • 99
DERRIDA. O cartão postal: de Sócrates a Freud e além. (Tradução Ana Valéria Lessa
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_____. Assim falava Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução Mario
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ONATE, Alberto Marcos. Entre eu e si, ou a questão do humano na filosofia de Nietzsche.


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Stahel). São Paulo: Martins Fontes, Vol. 1, 2009.
Alfabeto Espiritográfico:
escrileituras em educação

Maria Idalina Krause de Campos


Sandra Mara Corazza

Resumo
Este texto é atravessado pela pergunta: o que pode um espírito escrileitor?
Trata sobre compor espiritografias em meio à vida mutante, tendo como
campos exploratórios potenciais a educação, a filosofia e a literatura;
propondo uma entrada para inventar saídas de novos fluxos de pensamento
esboçados via escrita. Para desde modo compor um Alfabeto Espiritográfico:
Escrileituras em Educação atividade de pesquisa, leitura da realidade, que
opera com a noção de espiritografia, pensando a partir de duas vertentes
da Filosofia da Diferença: Gilles Deleuze e Paul Valéry. Coloca em ação o
método de dramatização na comédia do intelecto, que permite ao espírito
atuar e planejar sua própria trajetória autoconsciente através de leituras, de
composições de textos, que são criados como pretexto de dizer-se, e assim,
autoeducar-se. Operações experimentais, propostas em oficinas promovidas
pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida do Observatório
da Educação/CAPES/INEP-2010.

Palavras-chave
Escrileitura. Alfabeto. Espiritografia. Valéry. Deleuze.

100 • 101
Movimento disparador
O movimento disparador desta pesquisa se deu durante as aulas do
Seminário Avançado O método de dramatização na comédia do intelecto: Valéry
& Deleuze17. Necessitava de um campo empírico, além da pesquisa, para
colocar a espiritografia em ação, o que foi possível através das oficinas
promovidas pelo projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida
Observatório da Educação CAPES/INEP. Grupo de pesquisa coordenado pela
Profa. Dra. Sandra Corazza. Dentre as ações do projeto, foram oferecidas
Oficinas de Transcriações no cotidiano, entre 07 de junho a 25 de agosto de 2011,
na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
As Oficinas de Transcriações operam como atividade de pesquisa, leitura
da realidade, que permite ao espírito andarilho atuar e planejar sua própria
trajetória autoconsciente. Constrói no exercício escrileitor seu próprio
canteiro de experimentações, seu alfabeto, arquiteturas apaixonadas,
informes possibilidades, que são criados como pretexto de dizer-se, e assim,
autoeducar-se. Prima pela elaboração de circuitos espirituais variantes que
atravessam o vivível, mesclando elementos dos detalhes, do inusitado, para
a produção de composições de escrita, oriundas do desejo e da necessidade
espiritual que transborda e escorre, entre outros espíritos investigados nos
campos potenciais da educação, da filosofia e da literatura. Capturando as
forças do pensamento para uma nova escrita do por vir.

Como fazer?
O fazer pressupõe percorrer caminhos, e os eleitos para me fazer
companhia nesta trajetória pedagógica de pesquisa são Valéry e Deleuze,
os quais, com seus conteúdos teóricos, possibilitam criar uma série de
procedimentos para investigação.
Uma pesquisa pós-crítica, pois o método espiritográfico é informe, ou
seja, interroga-se e varia durante todo o processo, não possuindo regras fixas
e rígidas, o que mataria o prazer do inusitado. O método é o de capturas

Seminário relacionado ao Projeto de Pesquisa: Dramatização do infantil na comédia intelectual do currículo:


17

método Valéry-Deleuze, coordenado pela pesquisadora Dra. Sandra Mara Corazza. Pós-Graduação em
Educação / Faculdade de Educação/UFRGS.
de forças dos textos, das imagens, das musicalidades, de tudo que devém
em vida potente, e construir um alfabeto espiritográfico em educação.
Onde – em uma oficina de filosofia, provocadora de sentidos e produtora
de conceitos – se experimentam sensações, afectos, desejos e se busca es-
crever o indizível em um texto que é tecido da escrita.
Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação é o título de minha
dissertação de mestrado18 e traz neste ensaio as operações espirituais que
possibilitaram sua composição. O Alfabeto de Paul Valéry me chegou
naquela fase de pesquisa tempestuosa, estava em concentração, em meio
a transformações e a um amadurecimento espiritual urgente para tentar
dissipar um pouco as incertezas e planejar um novo caminho no próprio
caminhar da pesquisa, para encontrar meios, e com eles, escrever e viver.
A leitura do Alfabeto foi à inspiração necessária para sair do crítico período,
e um novo desafio também.

Alfabeto
O Alfabeto valéryano é um livro de horas e estações – feito por en-
comenda em 1924, pelo editor René Hilsum – que deveria conter vinte e
quatro poemas em prosa, que acompanhariam pinturas de Louis Jou, sem
as letras K e W (VALÉRY, 2009). Para colocar em ação esses processos,
Valéry inaugura um caderno rosa onde desenha em preto o título ABC,
seguido de suas iniciais: P.V. Na parte direita desse caderno, ele registra
“um determinado estado dos poemas”; na página esquerda, “alguma notas
esparsas e aquarelas” (VALÉRY, 2009). Esse conjunto de apontamentos
passa por várias revisões, lentas e sucessivas na busca pelo sentido do texto.
Valéry busca uma composição formal, com rigorosas leis de fun-
cionamento, uma unidade fechada e singular que trata de C.E.M: corpo,
espírito, mundo. Um macrocosmo próprio uma totalidade fechada, que
encontra no Alfabeto o campo propício e fértil para dizer-se, expor as
tramas espirituais, sem determinações únicas que imitam a realidade, mas
que valorizam o instante, o possível, em meio à diversidade do mundo
e da vida, que se apresentam ao espírito a cada momento.

Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação, título da dissertação de mestrado defendida em janeiro 2013 no
18

PPGEDU/FACED/UFRGS. Versão completa disponível em http://www.lume.ufrgs.br/.

102 • 103
A primeira palavra de cada um dos verbetes começa com uma das
iniciais do Alfabeto, e são páginas de textos breves de uma prosa elegante.
Sua escrita destaca as manifestações e a compreensão de Valéry sobre
assuntos como: o sono, o acordar, o banho, o almoço, as tramas do jogo
amoroso. Esses assuntos de existência singular tornam-se objeto para
definições poéticas, em que o visível devora o que é visto, a cada hora,
sendo estados de ocupação que a alma dispõe.
O Alfabeto, na medida em que se faz, é uma história de auto-
consciência na qual “[...] o que vejo, o que penso “disputam entre si o que
sou” (VALÉRY, 2009, p. 41). Bem como cada objeto, por sua vez, pede um
novo sentido de si, num esforço novo de consciência de si. O renascimento
de cada dia é também renascimento do espírito, da vida que escorre, neste
mundo incompreensível, lírico, um completo drama. A inteligência que “Eu
sou” perpassa este drama e tem na escrita o poder de dizer: “estou aqui”.

Movimentos investigativos
Para que esses movimentos investigativos ocorram, é preciso ter ciência
de como Valéry e Deleuze tratam do tema. Paul Valéry trata o espírito
como o Eu funcional inseparável da matéria, dotado de uma consciência
e inteligência mutável que utiliza seu trânsito pela existência e pensa-se.
Diferentemente de René Descartes, que afirma: Penso, logo existo, Valéry tem
como foco: O que é que em nós está pensando, quando pensa (VALÉRY,
1996)? Um Eu como função do próprio pensamento, Eu não como essência
“Ego”, mas como atividade funcional para pensar. Um espírito operador
que compõe uma comédia do intelecto à medida que se mostra a si mesmo à
luz do dia. Um Eu operador consciente, Eu puro como Leonardo Da Vinci,
que “guarda, esse espírito simbólico, a mais vasta coleção de formas, um
tesouro sempre claro às atitudes da natureza, um poder sempre iminente
e que cresce de acordo com a extensão de seu domínio” (VALÉRY, 1998,
p. 55).
Valéry tem apreço pela presença da voz ou vozes na escrita literária.
Dos personagens dos textos literários, volta-se para os mecanismos do
pensamento-palavra, os quais possibilitam jogos e trocas que quebram
os silêncios, abrindo espaço para a criação espiritual e seus ecos poéticos
e epistemológicos. Interessa a Valéry, também, a arquitetura da forma
do texto, seus métodos de composição, nos quais o meio de ocorrência
textual é mais importante do que um fim ou meta. Daí sua reinvenção
do estilo diálogo platônico, em que coloca nas vozes dos personagens
não a busca por uma verdade, mas um meio fecundo aberto a contra-
dições e polêmicas de um espírito que experimenta para melhor ser. Eu
consciente que dialoga se multiplicando em outros “eus”, que produzem
novas imagens mentais de instantes espiritográficos ecoantes.
Utilizando-se da forma diálogos em A Alma e a Dança, Valéry passa a
discutir sobre a arte, tendo na dança seu objeto empírico e o foco voltado
para as relações entre espírito e corpo na dança da vida. Espírito que se
diz na fala de um Eu puro, sem medo, despersonalizado, que se torna
consciência pelo olhar. Sabe, como Monsieur Teste, que entre o Eu claro e
o Eu turvo, entre o Eu justo e o Eu culpado, existem velhos ódios e velhos
acertos, velhas renúncias e velhas súplicas. E que esse olhar necessita de um
método, uma disciplina, ética de trabalho, pensar com rigor aquilo sobre o
que vamos escrever. Um interesse pelo espetáculo do mundo, onde somos
todos espíritos e marionetes de um teatro cômico, tenebroso e, por vezes,
ridículo. “– Sabes, querido Outro, que eu sou um espírito da mais tenebrosa
espécie” (VALÉRY, 1997).
Em Deleuze, o cérebro é o espírito, faculdade de criação, onde “os
conceitos se alocam, se deslocam, mudam de ordem e de relações, se
renovam e não param de criar-se” (DELEUZE; GUATTARI, 1992). As
excitações que movimentam esse espírito recortam o caos formando um
“plano de imanência”. A junção de três “caóides” – arte, ciência e filoso-
fia – desenha mapas mentais ricos em conexões que reagem umas sobre
as outras “e que conduzem ao pleno mar”, repleto de ondas de sensações,
funções e conceitos. Não há porto seguro, mas navegações possíveis na
fenda aberta ardente, onde criar é compartilhar visões extraindo os instantes
fugidios do caos febril, das gélidas sombras, e preparar o espírito como
gatilho para o próximo salto no firmamento.
Sujeitos que, como enfatiza Deleuze (1972-1990, p. 134), “[...] são grãos
dançantes na poeira do visível, e lugares móveis num murmúrio anônimo”.
Espíritos que passam a acompanhar essas danças dramáticas em meio à

104 • 105
vida com Deleuze (1997, p. 11), que afirma que “a literatura está do lado
do informe, ou do inacabamento [...]”. No qual: “Escrever é um estado de
devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se [...]. É um processo,
ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido”. Um
exercício vampiresco, imagético do pensamento, colocando-se com gozo
filosófico no lugar de um ser espiritual com o qual me ocupo.

É a imaginação que atravessa os domínios [psicológico, orgânico, químico],


as ordens e os níveis, abatendo as divisórias, co-extensiva ao mundo, guiando
nosso corpo e inspirando nossa alma, apreendendo a unidade da natureza
e do espírito, consciência larvar, indo sem parar da ciência ao sonho e
inversamente (DELEUZE, 1988, p. 352-353).

Dissipando neblinas
Trata-se de um exercício noológico, investigando imagens do pen-
samento, dissipando neblinas transcendentais ilusórias, pois não há um
começo constitutivo, um modelo para copiar. Sabendo que “a subjetividade
empírica se constitui no espírito sob efeito dos princípios que o afetam; o
espírito não tem as qualidades próprias de um sujeito prévio” (DELEUZE,
2001, p. 20). Em sua obra Conversações, Deleuze fala em noologia como
“estudos das imagens do pensamento”. Uma imagem do pensamento como
um sistema de coordenadas, dinamismos, orientações – o que significa
pensar e “orientar-se no pensamento” –, a qual tem variado muito ao longo
da história (DELEUZE, 1990). Pensando com Deleuze, a noologia faz
aparecer à imagem do pensamento, que permite pensar nesta ou naquela
direção; imagem como horizonte, reservatório, relação de forças sensíveis
para a construção de mapas do pensamento. Em que o tempo filosófico
é de coexistência que não exclui o antes e o depois, mas se superpõe
numa ordem estratigráfica.
O texto então desliza entre operações de espíritos criadores e compõe
um método espiritográfico, que efetua mergulhos na água da vida, através
de exercícios de linguagem. Água viva que transborda, “[...] massa
indiferenciada, a infinidade dos possíveis, contêm todo o virtual, todo o
informal” (CHEVALIER, 1998), reservatório de energia de um espírito
que age diretamente por si mesmo, enquanto lê e escreve. Tem na escrilei-
tura uma infinidade dos possíveis de uma composição do pensar andarilho,
rico em virtualidades errantes. Desafios entre correntes de escrita e leitura
como um tiquetaquear que pulsa veias, do sangue que bombeia coração e
intelecto, imenso reservatório de energia vital.

Fome antropofágica
O Alfabeto espiritográfico: Escrileituras em educação é também composto
de vinte e seis letras que tratam do conceito espírito, servindo como mola
propulsora ao espírito escrileitor e para suas produções espiritográficas
possíveis. Há neste processo uma fome antropofágica de um pensar
circulovicioso, como o da serpente que morde seu próprio rabo. Um
“serpensamento”, uma forma de pensar (CAMPOS, 1984) que por vezes
torna-se protagonista voraz e satânica e que serpenteia nos labirintos do
espírito mordendo o que pode. Fato que gera alterações de vozes: mais
suave, indignada, persuasiva, delicada, irônica sem descuidar da leveza,
como nos lembra Italo Calvino, ao falar em Valéry: “É preciso ser leve
com o pássaro, e não como a pluma”. Escrita espiritográfica variante em
“busca da leveza como uma reação ao peso de viver” (CALVINO, 1990,
p. 28). Escritas tecidas em alinhavos, nas oficinas promovidas pelo Projeto
Escrileituras. Seus desdobramentos, sua construção e arquitetura em meio
à vida, movimentos e formas operatórias na educação e também na filo-
sofia e na literatura.
Aludindo novamente a Valéry, quando fala em Descartes e seu pen-
samento vivo, não se trata de uma doutrina que pretende ensinar qualquer
coisa da qual não sabemos absolutamente nada, mas um método que opera
“[...] transformações sobre aquilo que já sabemos algumas partes, para daí
extrair ou compor tudo quanto do assunto podemos saber” (VALÉRY, 1952,
p. 27). Uma aventura do espírito humano, dedicada a pensar o ser espiritual
que elabora conceitos e a analisar a inventividade das matérias textuais
e da vida como processo de geração das paixões da inteligência.
A própria criação do processo espiritográfico enquanto ele se faz
fluxo de escrita afirmativa, mais do que espíritos e conceitos relacionados
facilmente identificáveis, trata-se de fases – palavra valéryana – que se

106 • 107
descobrem, momentos que se revelam pela proximidade à disposição de
forças do sujeito que lê e escreve. Estados de existência compositiva, tendo
na grafia da palavra regada, no conceito dramatizado, um valor potencial
de uma escritura que emerge do punho, da mão que rabisca, expressando
os pensamentos de um espírito amante que atravessando desertos, encara
mistérios, transmutações, sonhos e percepções insones. São tramas – como
alude Valéry – que se apresentam ao espírito, uma diversidade em meio
à qual não há uma determinação única e ilusória que imita o real, mas o
possível-a-cada-instante de um texto que se compõe.
Os movimentos do espírito procuram decifrar o que está além de o que é
espírito. Para tanto, evoco Gilles Deleuze e o seu método de dramatização
(DELEUZE, 2006) que se junta a Paul Valéry na construção do alfabeto
espiritográfico. Assim, ampliam-se os campos exploratórios mais vastos
para um conjunto de “[...] coordenadas múltiplas que correspondem às
questões quanto? quem? como? e quando?” (DELEUZE, 2006, p. 112). Isso,
para investigar como opera um espírito nos campos pedagógicos, filosóficos
e literário, nos quais o já criado nesses três domínios transcende e afirma
uma nova composição, e com ela faz dos exemplos empíricos de escrita
uma aventura do informe, em que “É do ‘aprender’, e não do saber, que as
condições transcendentais do pensamento devem ser extraídas” (DELEUZE,
2006, p. 238). Acompanha este andar aventureiro – que possui e é possuído
– as sedes de conhecer, o pensar imediato, as alegrias de perceber, de
“[...] sentir iluminar-se pouco a pouco um reino de inteligência – reaviva
indefinidamente cinzas secretas da alma. Cada aurora é primeira. A ideia
que chega cria um homem novo” (VALÉRY, 2009, p. 47).
As Oficinas de Transcriação, promovidas pelo Projeto Escrileituras
tornaram-se um meio de efetivação dessas efervescências espirituais.
Momentos de capturas férteis, de encontros de vida num campo pro-
cessual mesclado de pesquisa, criação e inovação. Um laboratório-oficina,
um ateliê de experimentações espirituais e operatórias que primam pela
elaboração do pensar, junção de três caóides – filosofia, ciência, arte – em
ação dialógica e co-criativa. E nesse movimento potencial compositivo,
costura e tece pensamentos enquanto investiga: o que pode um espírito
escrileitor?
Conatus-Encontros

O que pode um espírito escrileitor? Os espíritos com quem travamos


relações intensas e que atravessaram os corpos de olhar atento, permitindo-
nos investigar suas obras e os atos vitais de uma criatura do pensamento,
já carregam agora outro espírito. As afecções são inevitáveis e há uma
ética e um direito natural nisto tudo. Aludindo a Spinoza, espírito (mente)
e corpo são uma só coisa, e “[...] a ordem das ações e das paixões de
nosso corpo é simultânea, por natureza, à ordem das ações e das paixões
da mente” (SPINOZA, 2007, p. 167). De nossa passividade ou atividade
advirão nossas alegrias e dores. Dependendo, então, teremos de nos
autoinvestigar na busca por uma resposta. E aqui não se procura um ideal
moral platônico, mas uma avaliação do que suporta potencialmente um
espírito escrileitor.
O espírito escrileitor pensa o que lhe afeta o ânimo, que “[...] não
pode existir se não existir, no mesmo indivíduo, ideia da coisa amada,
desejada” (SPINOZA, 2007, p. 81). Assim, um corpo escrileitor encontra
outro corpo que se compõe ao seu com alegria, pois ama e deseja. Caso esta
relação não se componha com a sua – um corpo que o afeta de tristeza –,
ele faz tudo aquilo que está em seu poder para afastar a tristeza ou destruir
esse corpo.
É disso que trata este método espiritográfico aqui exposto, ou seja,
dar oportunidades aos espíritos escrileitores para que seus corpos tenham
a oportunidade de manter novas relações que convenham à sua própria
natureza. E o termo conatus nos serve, pois o conatus é a procura do que
nos é útil, nos alegra, nos faz bem, a cada instante desta procura por uma
prática espiritográfica.
Com ele, temos o direito e o poder de preservar nossas existências,
e com isso, marcar encontros com os espíritos que nos são caros. E isto
requer esforço, luta, pôr em ação nossas potências de conhecer, de pensar e
de exprimir pensamentos, e com esses pensamentos, quem sabe remodelar
a visão ética do mundo e ir um pouco mais longe do o que nos impõe o
senso-comum. Através de uma filosofia gaia que aumente nossa potência de
agir, longe da tristeza, geradora de desesperança e do medo.

108 • 109
Labirintos espirituais

Uma espiritografia então passa pela busca metódica dos labirintos


espirituais dos quais nos ocupamos, escolhemos por paixão e necessidade.
Um jogo labiríntico como o de Miller (1974, p. 183): “O labirinto é
meu campo de caça preferido, e quanto mais fundo eu cavo na confusão,
melhor me oriento”. E no jogo co-criamos, experimentamos novos es-
tados poéticos, composições de vida que proliferam através de exercícios
inventivos de pensamento. Espírito inseparável da matéria corpo, inteligência
criadora – sempre em processo aventureiro, seguindo fronteiras, margeando
superfícies – que investiga e experimenta o pensado em nós, em que “o mais
profundo é a pele”, expressão considerada sábia por Deleuze (DELEUZE,
2003, p. 11), pensando com Valéry.
Pensar com renovação é crucial como processo de uma espiritografia,
fazer uso de uma obra de arte, de uma obra literária ou científica e operar
sobre elas. Produzindo um drama ou uma comédia do intelecto, no qual
a criação tem valor espiritual, pois pulsa e move pensamentos e os torna
arte por oscilar, fazer variar os fluxos espirituais e saltar de um assunto a
outro em self-variance, sabendo que nada há neste processo de permanente.
Promovendo um encontro de espíritos que pensam e experimentam,
em meio à vida, com seus estados poéticos, suas loucuras e seus delírios
procurando responder “à questão mais simples do mundo: Que pode um
homem?” (VALÉRY, 1996, p. 115).
E assim, são retiradas as algemas da imaginação; a louca da casa
condenada passa a ser bem-vinda, adotada como companheira de novos
nomadismos espirituais. Espírito observador curioso, aventureiro que
se propõe viajar por lugares inexplorados. Ciente de que “[...] a única e
verdadeira viagem, como observou Proust, não seria viajar por centenas
de diferentes países com o mesmo par de olhos, e sim ver a mesma terra
através de uma centena de diferentes olhos” (LAING, 1989, p. 28).
O projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida Observatório
da Educação CAPES/INEP “serve como disparador de cenários que pensam
a Educação com e na vida”, um processo escrileitor, de uma “escrita-pela
leitura ou da leitura-pela-escrita” (DALAROSA, 2011), processo aberto a
interferências variadas na medida em que é produzido como processo de
pensamento. Movimentos extratores de forças que favorecem, como diz
Corazza, “as culturas do dissenso” para reinventar novas formas, novas
“significações de indivíduos e de grupos” (CORAZZA, 2011).
As experimentações apresentadas aqui são frutos das pesquisas e
trazem a espiritografia como movimento escrileitor o Alfabeto Espiritografico:
Escrileituras em educação, produz contágios, emitindo convites aos novos
pensares que têm na invenção imaginativa uma abertura onde ressoam
forças embrionárias de escritura. E assim treinar honestamente o espírito
para planejar a navegação em águas plurais. Navegação que não pode ser
estabelecida previamente, senão no próprio navegar. É disso que se trata!

Referências
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Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CAMPOS, Augusto. Paul Valéry: A serpente e o pensar. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,


figuras, cores, números) /Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, com colaboração de: André
Barbault... [et al.]; coordenação Carlos Sussekind; tradução Vera da Costa e Silva... [et al.]. –
12. Ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

CORAZZA, Sandra Mara. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In:
HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá,
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(Tradução Luiz B. L. Orlandi). São Paulo: Ed. 34, 2001.

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Muñoz). Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.

______; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Ed.
Escuta, 1998.

DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida:


Observatório da Educação/CAPES/INEP. In: HEUSER, Ester Maria (Org.) Caderno de
Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá, EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras)

LAING, Roland David. O eu e os outros: O relacionamento interpessoal. (Tradução Aurea


Brito Weissenberg). Petrópolis. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

MILLER, Henry. Trópico de capricórnio. (Tradução Aydano Arruda). São Paulo: IBRASA,
1974.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2007.

VALÉRY, Paul. A alma e a dança e outros diálogos. (Tradução Marcelo Coelho). Rio de
Janeiro: Imago, 1996.

______. Introdução ao método de Leonardo da Vinci. (Tradução Geraldo Gérson de Souza).


São Paulo: Ed. 34, 1998.

______. Monsieur Teste. (Tradução Cristina Murachco). São Paulo: Ática, 1997.

______. O pensamento vivo de Descartes. (Tradução Maria de Lourdes Teixeira). São Paulo:
Livraria Martins Editora, 1952.

______. Alfabeto. (Tradução Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.
A Produção de escrileituras na
problematização do mal-estar docente:
um estudo com os professores da rede
pública estadual de ensino do RS

Clara Lisandra de Lima Silva


Carla Gonçalves Rodrigues

Resumo
O presente trabalho trata de uma investigação realizada com os professores
da rede pública estadual de ensino do RS, sobre a temática mal-estar docente
(ESTEVE, 1999). Por meio de abordagem metodológica mista, procurou-
se averiguar a incidência do fenômeno, bem como problematizá-lo a partir
de Ateliês de escrileituras (CORAZZA, 2010). Neste texto, enfocam-se os
resultados qualitativos produzidos por intermédio da produção de escrileituras,
os quais indicaram outras possibilidades para conceber o mal-estar docente,
tais como a relação com um discurso depreciativo sobre a docência e a
existência de satisfação no exercício da profissão.

Palavra-chave
Educação. Mal-estar docente. Filosofias da Diferença. Escrileituras.

112 • 113
Uma pesquisa sobre o mal-estar docente

A experiência docente fez perceber que a rotina educacional provoca,


em alguns casos, sensações de um esgotamento recorrente, atrelado ao
contexto em que se exerce a docência e de como se lida com a dinâmica
de forças despotencializadoras, ou não, da vida, advindas desse cenário.
Observações empíricas detectaram que o profissional tenta driblar o dia a
dia professoral com um viver saudável, imerso em burocracias que dizem
dos modos de ser professor e em meio a sinais que estabelecem o tempo de
um ensinar e aprender. Por um lado, educadores que não se deixam abater,
fazendo de suas práticas um processo prazeroso de renovação constante;
por outro, professores cansados que se afastam do ambiente de trabalho,
alegando mal-estares de ordem física e/ou mental.
Tais considerações levaram à realização desta pesquisa, propulsoras
para estudar um fenômeno denominado, atualmente, de mal-estar docen-
te. O termo refere-se aos “[...] efeitos permanentes de caráter negativo
que afetam a personalidade do educador, como resultado das condições
psicológicas e sociais em que se exerce a docência” (ESTEVE, 1999).
Está relacionado a isso o absentismo trabalhista e, por vezes, em situações
mais graves, o adoecimento. A temática refere-se, ainda, às maneiras de
ser professor, suas satisfações e/ou incômodos atrelados à rotina laboral.
Acreditou-se, ainda, na relevância do assunto pensando no quanto a sua
compreensão e problematização poderiam compor outras formas de pensar
o referido fenômeno, abrindo brechas no que está posto sobre o tema.
Nessa perspectiva, a investigação foi orientada a partir de um enfoque
misto, adotando-se os seguintes instrumentos metodológicos: revisão
bibliográfica, documental, questionário, intervenção baseada em Ateliês de
escrileituras e a realização de entrevistas, estando o procedimento de análise
em coerência com o método utilizado. Os sujeitos de pesquisa correspondem
aos professores da rede pública estadual de ensino, atuantes em uma cidade
da região sul do Rio Grande do Sul.
Cabe salientar que participaram da pesquisa 23 educadores de uma
determinada instituição escolar da localidade. A escolha dos sujeitos
deu-se em função de observações empíricas relacionadas à ausência dos
profissionais na escola a cada três dias, justificada extraoficialmente aos
gestores ou legalmente, por meio de atestados médicos. A esse conjunto,
agregaram-se os diálogos mantidos pelos professores referentes a uma
constante insatisfação com o cenário educacional e suas correlações.
Sobressaíram-se, nesse âmbito, o excesso de trabalho, reponsabilidades e o
baixo nível de aprendizagem dos alunos.
Considerando tais dados, fortaleceu-se a ideia de utilizar como
intervenção Ateliês de escrileituras (CORAZZA, 2010), tendo como intenção
inicial propor aos educadores um espaço aberto à comunicação (ESTEVE,
1999), na tentativa de ponderar sobre o fenômeno e as vivências professorais.
No entanto, para além disso, a produção de escritas e leituras ou leituras e
escritas ganharam força desde a vivência em um conjunto teórico-prático
que fez provocações nos jeitos lineares de pensar, tendo como base teórica
as Filosofias da Diferença (DELEUZE, 1988). Assim, vinculou-se o ato de
escriler ao mal-estar docente, buscando linhas de fuga para as concepções
pré-prontas que o determinam, que partissem do vivível, da variação do
pensamento dos professores que dessa experimentação fizeram parte.
Compreendeu-se, também, que o escrever pode estar relacionado à
saúde dos sujeitos, sendo empreendido como promotor da potência de vida.
Nesse sentido, “a neurose, a psicose não são passagens de vida, mas estados
em que se cai quando o processo é interrompido, impedido, colmatado. A
doença não é processo, mas parada no processo [...]” (DELEUZE, 1997,
p. 13). Logo, ao desenvolver Ateliês de escrileituras para os sujeitos de uma
investigação sobre o tema, apostou-se na produção de escrituras como uma
maneira de colocar em movimento o pensar, alertando para um estado
saudável e concebendo alternativas valorativas da docência.
A proposta respaldou-se no projeto de pesquisa, ensino e extensão
Escrileituras: um modo de “ler - escrever” em meio à vida (CORAZZA, 2010). Este

114 • 115
se insere em um conjunto maior, o Programa Observatório da Educação
(EDITAL 38, 2010), sendo fomentado pelos órgãos Federais Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). No
decorrer dos seus quatros anos de desenvolvimento, fortaleceu-se como uma
maneira de se fazer educação, cultivando as escritas autorais e inventivas,
rompendo com os modelos que pautam os processos educacionais.
Integram o projeto universidades19 que compõem os chamados Núcleos
de Escrileituras. O Núcleo UFPel, especialmente, do qual esta pesquisa
fez parte, planeja e desenvolve Ateliês formados pela combinação de
dispositivos filoliterários, oferecidos ao público educacional, em âmbito
geral. Dessa forma, o plano para o decorrer desses encontros baseou-se na
ideia de agenciamento (SILVA; CORAZZA, 2004, p. 158), pela qual há
“[...] o arranjo, a combinação de elementos heterogêneos, díspares, fazendo
surgir algo novo, que não pode resumir a nenhum dos elementos isolados
que o compõem [...]”. Contou-se, assim, com a eficácia de um conjunto de
subsídios múltiplos, tendo como ponto de partida o tema em estudo, para
produzir intensidades e outras existências.

Encontro máquina de guerra para uma existência contemporânea


Foram projetados e realizados dois momentos dentro do Encontro
Máquina de Guerra para uma existência contemporânea. O primeiro deles
foi o Ateliê denominado Conatus, o qual utilizou elementos da filosofia e da
literatura para fazer ler e escrever, originando programas de rádio gravados
em podcast20. Percebeu-se que o conjunto proposto nesse Ateliê gerou
estranhamento nos participantes, expresso, por exemplo, na fala da pro-
fessora de Educação Física, sujeito dessa investigação: Na primeira oficina,
o nosso grupo não estava preparado para aquela atividade, porque trabalhar com

19
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade
Federal do Mato Grosso (UFMT) e Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE).
20
É o nome dado ao arquivo de áudio digital utilizado como recurso tecnológico.
Filosofia é difícil, a gente trabalhar com Filosofia... Assim... É engraçado. Primeiro
porque de alguma forma mexeu comigo, daí eu comecei a anotar e anotar. [...] Então,
de alguma forma aquilo mexeu comigo, me produziu um sentimento, me provocou,
mas é claro que eu não pude ficar até o fim. Tal estranhamento provavelmente
se faça presente por experienciarem uma prática de linearidade e
homegeneidade curricular, normalmente observada nos planos existentes
em ambientes escolares,
Logo de início, após a apresentação da proposta escrileituras e da
pesquisa acerca do mal-estar docente, o primeiro subsídio21 utilizado
causou desconfortos, vigores e conversações. Evidenciou-se que a saga
metamorfoseada demonstrada na ficção teceu provocações na vida do-
cente, pela ênfase dada em situações de descaso, abandono e confor-
mação demonstrados no personagem principal, Gregor. Um dos educa-
dores, entretanto, manifestou-se destacando que se está em uma situação,
sempre inconformado com ela, alertando para o fato de que nem todos os
profissionais estão conformados com a realidade em que vivem ou que
lhes é imposta.
Na continuação, ao apresentar fragmentos do vídeo Café Filosófico
(TIBURI, 2012; MACHADO, 2012) complementados por trechos do filme
“Quando Nietzsche chorou” (2012), abordaram-se os conceitos filosóficos
de Corpo, Alma e Potência de Vida (SPINOZA, 2007) e de Eterno Retorno
(NIETZSCHE, 2009). Esses enfoques levaram à problematização das
maneiras com que recebem a exterioridade educacional, lidando de forma
potencial ou não com o contexto. Nesse sentido, um participante escreve
que a energia que se troca com o aluno também influencia o conjunto, enquanto
outro questiona: Que ser humano é este, que tem uma profissão digna, vem para
escola e fica doente? Precisamos ser felizes no dia a dia, não só na aposentadoria.
Pensa-se que as forças que emanam do ambiente educacional atravessam
a corporeidade constantemente, formando subjetividades (GUATTARI,

Adaptação em quadrinhos (CORREIA, 2012) do texto “A Metamorfose” de Kafka.


21

116 • 117
1992), por vezes, desanimadoras e adoentadas. O subjetivo é, então,
construído e reconstruído, tendo em vista o nível de afetação que a energia
dos elementos circulantes à volta provoca. Sejam valores, palavras, coisas
e sentidos dados ao que afeta. Portanto, dependendo da maneira como o
profissional lida com o efeito cumulativo desses aspectos, o desconforto
professoral pode torna-se permanente, incidindo na sua forma de viver.
No percurso do Ateliê, os professores destacaram, em meio à produção
de escrileituras, que há uma cultura formada, de que se é culpado (pelos fracassos
educacionais). Esse é o discurso que chega até nós, estando nos ditos da mídia, da
Universidade e sociedade. Tais dizeres depreciativos da profissão ganham
força na repetição, sendo instituídos como verdades absolutas, o que foi
considerado pelos partícipes como um fortalecedor do mal-estar docente.
Na medida em que o profissional passa a crer nesse conteúdo, tem sua
autoestima afetada e menos ânimo para o exercício da profissão. Salienta-
se que a linguagem pode ser constitutiva de um pensamento, nesse caso,
desanimador da docência.
Quanto aos poldcasts produzidos por meio do arranjo de variadas
escrileituras realizadas ao longo do Ateliê, destaca-se “A vaca”, apresentado
no final do encontro. Esse conferiu aos educadores uma representação
pejorativa da categoria, a qual se insere no discurso antes mencionado.
Em uma escrita provocativa, o relato compara o profissional ao animal,
retratando as falas dos alunos quando desagradados pelas atitudes docentes:
Aquela vaca me rodou, me botou na rua, não me deu dois décimos [...]. Percebe-
se que o ato de escrileiturar, aqui, efetivou-se a partir das intensidades
produzidas no Ateliê atrelado a arranjos com a própria profissão, fazendo
pensar sobre qual imagem o educador faz de si, como presume que o veem
e, mais ainda, como que isso pode fortalecer sintomas de desconforto no
exercício da atividade docente.
O segundo Ateliê, Rabiscos de sensações na produção de um corpo crian-
ceiro, conjugou atividades e brincadeiras do mundo infantil, também,
com aportes literários e filosóficos distribuídos em circuitos. No decorrer,
foram realizadas escrileituras professorais, finalizadas na elaboração de
um livro coletivo. A vivência nesse encontro pareceu aos professores
menos densa do que a experiência proposta no Conatus, demonstrada,
por exemplo, na fala da professora sobre aquilo que lhe passou durante o
Ateliê, possuindo caráter lúdico de ativação de um estado crianceiro na vida
cotidiana: eu posso me expor, eu posso brincar, eu posso cantar, eu sou desengon-
çada. Certo! Eu posso ser mais autêntica.
No circuito inicial, os sujeitos de pesquisa experimentaram um conjunto
de brincadeiras22 do mundo infantil que, ao mesmo tempo em que trouxeram
leveza à rotina escolar, desestabilizaram momentaneamente a corporeidade
dos participantes. Dando continuidade, o ciclo seguinte possibilitou aos
professores o contato com alguns tipos23 de brinquedos, além da apresentação
de subsídios literários (BARROS, 2012; BARROS, 2012; CORTÁZAR,
2009). Acreditou-se que, ao vivenciar essas etapas do Ateliê, os educadores
tenham sido capturados pelos signos (DELEUZE, 1992) que tais dispositivos
provocaram, escrevendo: busca-se aguçar o imaginário, brincar com as coisas do
mundo, vendo a vida de um jeito crianceiro; ou ainda: só os poetas brincam com as
palavras? Claro que não, quanta pretensão, os professores brincam com as palavras.
A apresentação de trechos do Abecedário (DELEUZE; PARNET, 1997),
além da projeção do vídeo ‘Pensamento infantil’ (2012) e do livro ‘Mania
de explicação’ (FALCÃO, 2001) compôs o último circuito de atividades.
Ao final, os professores foram convidados a elaborar um livro coletivo que,
dentre as escritas, trouxe a seguinte: antes caminhava sozinho, sem rumo, sem
destino, mas com o tempo fui encontrando mais colegas e, assim, a caminhada ficou
mais alegre, descobrindo muito mais. Tal percepção reporta que o encontro
com o próximo institui um momento de troca de singularidades (ESTEVE,
1999), seja ela sobre a problemática escolar, acerca de assuntos pessoais
ou constituída desde a participação em cursos ou eventos, no caso desta
investigação, em Ateliês de escrita e leitura.

Batatinha 1, 2, 3, estátua, massinha de modelar e escravos de Jó.


22

Túnel de tecido, bola, elástico, bolinha de sabão, futebol de mesa, bonecas e outros.
23

118 • 119
Escrileituras em meio à vida: desterritorializando
o mal-estar docente

A participação nos Ateliês fez com que os professores vivenciassem


um espaço produtivo de leituras e escritas, no qual se pode pensar sobre
as experiências pessoais e profissionais de bem ou mal-viver, vislumbrando
outras possibilidades de existências educacionais. Nesse âmbito, o
deslocamento de concepções preestabelecidas acerca do mal-estar docente
formou-se em fissuras de pensamento na medida em que o educador tenha
se sentido provocado por um plano de trabalho baseado na diferença
(DELEUZE, 1988). Assim demonstra um professor, ao ser perguntado
sobre a participação na ação intervencionista, dizendo que os ateliês foram
interessantes porque me ajudaram a voltar pra mim mesmo. [...] Eu estou em um
processo de reconstrução pessoal e profissional. Eu sinto a necessidade de encontrar
novas narrativas atento a mim mesmo. Eu hoje estou procurando outra narrativa,
além da historiográfica, para tentar me referenciar, para tentar auto-referenciar,
novamente.
Dessa forma, a partir das escrileituras produzidas em meio à vida passou-
se a considerar que, além das obviedades do senso comum que dizem
de uma categoria adoentada, existem profissionais que não se sentem
incluídos nessa representatividade. Por um lado, eles desconfiam das
totalidades relacionadas ao mal-estar docente, garantindo que há satisfação
e vivências saudáveis no exercer da profissão. Além disso, apontam que os
pedidos de afastamento do ambiente de trabalho nem sempre dizem res-
peito a acometimentos por enfermidades, mas que podem ter relação
com as demandas pessoais do educador. Por outro lado, no entanto,
levantam à hipótese de que a repetição de um discurso depreciativo re-
ferente à docência possa relacionar-se ao fenômeno, formando subjetividades
que afetam negativamente a rotina profissional, considerando, assim, o
mal-estar docente, também, como algo imposto a uma classe que se deixa
influenciar.
Referências
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CORTÁZAR, J. Discurso do Urso. Tradução Leo Cunha Rio de Janeiro: Alerinha Record,
2009.  

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120 • 121
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Dispositivos, escolas e
infantilidade: um estudo
foucaultiano em Escrileituras

Eduardo Alexandre Santos de Oliveira


Ester Maria Dreher Heuser

Resumo
A partir dos estudos de Michel Foucault, nessa dissertação analisou-
se de que modo as escolas atuam enquanto dispositivos de poder-saber
que, configurados como estratégias e táticas, constituem os indivíduos
sequestrados por elas, as crianças, por meio de uma ideia de infância.
Decorrente disso investigou-se a que objetivo histórico tal investimento
atende. Para tanto estudou-se o conceito foucaultiano de dispositivo, nas
perspectivas disciplinar e de segurança, e como ele atua na constituição
dos indivíduos. Após, analisou-se as considerações do filósofo acerca das
instituições escolares e algumas práticas escolares de duas instituições de
ensino do Estado do Paraná, uma delas vinculada ao Projeto Escrileituras.
Para tal análise o dispositivo de infantilidade cunhado por Corazza teve
centralidade, o qual investe os pequenos para constituí-los como um povo por
vir, o que pode ser observado nas práticas das escolas paranaenses. Por fim,
a pesquisa apontou possibilidades de a escola atuar enquanto um dispositivo
no qual se exerce ações sobre as ações das crianças, no sentido de afetarem
seus pensamentos para que produzam novas formas de existência, novos
valores para si, o que parece ser algo possível se forem observadas as práticas
na escola de Toledo na qual funciona o Projeto Escrileituras.

Palavras-chave
Dispositivo. Poder-saber. Escola. Infantilização. Foucault. Corazza.

122 • 123
Dispositivos

Estiveram em jogo nessa dissertação os dispositivos escolares e sua


participação nas estratégias de infantilização. As questões que orientaram
a pesquisa foram: como as escolas atuam enquanto dispositivos? Como
essas instituições investem nos corpos das crianças, a partir de uma ideia
de infância? A qual objetivo tal empreendimento atende? Para responder
a tais questões investigou-se, primeiro, a concepção de dispositivos apre-
sentada por Foucault. Esses atendem determinada necessidade histórica
organizando uma coletividade local de modo que se tenha uma população
planejada para o futuro: as prisões do século XVIII, por exemplo, atuavam
de tal maneira. Elas capturavam indivíduos considerados improdutivos e,
por meio de processos disciplinares, os educavam a corresponderem ao
mercado de trabalho, pois, assim, os malfeitores se sustentariam de forma
que não colocassem as vidas de outros membros da população em risco.
Essas instituições se pautavam em saberes considerados verdadeiros, os
quais justificavam o poder que esculpe os indivíduos à determinada urgência.
O saber justifica o poder. O poder é, segundo Foucault, o exercício de
ações sobre ações: na prisão, há a ação dos agentes carcerários sobre as dos
detentos, na família, há a ação dos pais sobre as dos filhos. São ações que
se pautam num determinado saber considerado verdadeiro que constituem
sujeitos: no caso dos exércitos do século XVIII, por exemplo, os comandantes
aplicam exercícios que deixam os soldados com as cochas grossas, canelas
finas, ombros largos. Essas são ações que se pautam no saber de que tais
características pertenciam ao corpo que melhor desempenha funções para
o ofício militar. Isso é observado, também, na instituição escolar: quando
um aluno espirra sem cobrir a boca com um lenço, o professor o adverte
verbalmente, dizendo que agira de modo errado. Essa repressão do mestre
é uma ação sobre a ação irregular do aluno que está orientada por um
saber considerado verdadeiro, como nesse caso, que a gripe é transmitida,
também, pelo ar.
O poder e o saber são reproduzidos nos dispositivos. Foucault apre-
senta duas formas de dispositivos: o disciplinar e o de segurança. O pri-
meiro, sobretudo em Vigiar e punir (2007), funciona a partir de quatro
técnicas e três formas de exercer ações sobre as dos indivíduos: coloca-
se um indivíduo numa posição, controla-se seu tempo e suas atividades,
labora-se sobre ele gradativamente e dá-lhe uma função de modo que entre
em consonância com os demais corpos que executam outras atividades
nesse dispositivo. A partir disso, é permitido vigiá-lo e avaliá-lo em torno
de uma média: caso não se enquadre nela, aplicam-lhe determinada sanção
que atua como medida corretiva.
Já o dispositivo de segurança, em Segurança, território e população (2008),
está ligado ao biopoder, o qual regula traços biológicos de indivíduos de
uma população a ponto de forjá-la para o futuro através da medicalização,
da prevenção de contração de doenças, do controle da sexualidade, do
consumo de alimentos: os dispositivos de segurança calculam e racionalizam
uma população a partir de seus modos de vida já constituídos. Significa
que ele é diferente do dispositivo disciplinar: o disciplinar impõe, delimita,
determina como os indivíduos deverão se comportar, se conduzir, ou seja,
ele estabelece um padrão de normalidade; enquanto o de segurança calcula
a população e institui o normal a partir de seus traços naturais. Os saberes de
segurança invadem os dispositivos disciplinares e os transformam fazendo-
os trabalhar na função da segurança da população, ou seja, a disciplina
atua de modo tático para a estratégia de edificação de um povo.

Como funcionam as escolas enquanto um dispositivo?


Na segurança, ou na disciplina, um dispositivo atua de modo tático
e estratégico para constituir sujeitos. A partir disso, pergunta-se: como as
escolas funcionam enquanto dispositivos de poder-saber? Percebe-se que
essas instituições caracterizam-se como dispositivos, pois, reproduzem
poder, formam saberes sobre os indivíduos sequestrados por ela, atendem
urgências históricas que se cristalizaram numa forma de moralização
burguesa e contribuem para a formação de indivíduos que atendam a
perspectiva capitalista. Para evidenciar isso, investigou-se, nos próprios
escritos de Foucault, como as escolas atuam enquanto tais, no aspecto
da segurança e disciplinar. Nossa pesquisa, no entanto, não se limitou
a permanência dos registros bibliográficos foucaultianos, analisou-se,
também, as práticas de duas escolas do estado do Paraná, quais sejam, as

124 • 125
escolas Hypólita Nunes, em Guarapuava e Andre Zênere em Toledo, na
qual funciona o Projeto Escrileituras. Constatou-se que ambas as instituições
educacionais possuem aspectos dos dispositivos disciplinares e de
segurança. Na perspectiva disciplinar vê-se que as crianças da população
são sequestradas para o interior delas e passam a ser alunas: assim, elas
ocupam determinado lugar planejado (salas de aulas, anos/séries escolares);
possuem seu tempo controlado (lhes dão determinadas atividades em certos
tempos para que as executem); aprendem os conteúdos de forma gradativa
(aprendem a segurar o lápis, depois a desenhar, em seguida a escrever); as
funções que seus corpos executam estão em relação com as dos demais
alunos para que o aprendizado lecionado nessas instituições tenha efeito.
Em virtude disso, pode-se vigiar as crianças no cumprimento de seus deveres
e no seu modo de agir; pode-se avaliá-las de modo a edificar saberes sobre
cada uma delas (com a ajuda de outros dispositivos que também produzem
novas formas de comparação do ser humano, tais como o médico, a família);
a partir das avaliações que dizem sobre quem ela é, quando constatado que
não alcançam o índice instituído como normal, recebem castigos que visam
corrigi-las tais como aulas de reforço, a repetição das lições, entre outros.
As escolas também possuem características de dispositivos de segu-
rança: nos estudos de Foucault, assim como nas práticas das escolas
paranaenses observadas, percebe-se que elas atuam diretamente no aspecto
biológico da população que atendem: educam as crianças visando sua saúde,
como por exemplo, na perspectiva da sexualidade – que não devem fazer uso
de seu sexo –; e no controle de doenças – cuidar para que possíveis doenças
não se espalhem na população de modo que o índice de normalidade
desfavorável sobressaia ao aceitável.
As crianças são educadas nas escolas por dispositivos que partem de
saberes considerados verdadeiros. Significa que se constituiu para esses
pequenos, um modo de ser e de agir, o qual fora configurado como uma
ideia, a infância. Nessa ideia elas foram consideradas fracas, débeis,
dependentes de adultização correta e, a partir disso, são educadas, laboradas
e constituídas como sujeitos: isso implica a edificação de determinada
população planejada para o futuro a fim de atender a urgência local que
se impõem.
As escolas e o dispositivo de infantilidade

Modos de fabricar as crianças a partir dessa ideia de infância foi


parte do estudo de Corazza em História da infantilidade: a-vida-a-morte e
mais-valia de uma infância sem fim (1998) que também se recorreu nesta
pesquisa. Nele, a pesquisadora remonta à história da infância e concebe
um dispositivo que infantiliza: trata-se do dispositivo de infantilidade,
que é disseminado na sociedade e investe as crianças no poder-saber da
infantilidade. A infância, assim, torna-se algo estratégico, elemento pelo
qual se pode empreender os pequenos sob diversas técnicas.
Embora se perceba que a função estratégica da infância seja abordada
com vistas à população, Corazza evidencia que as técnicas utilizadas sobre
os corpos das crianças são antigas na história da infantilidade: desde a
antiguidade, submetiam-se os corpos das crianças a práticas que, ao mesmo
tempo em que começam a fabricar a infância e as crianças, as destrói: é
aquilo que a pesquisadora denomina em sua tese (1998), como “indecidível
da-vida-da-morte” desse dispositivo, o que pode ser observado em três
instantes. Num primeiro momento, nas antigas Grécia e Roma, as crianças
eram consideradas amáveis quando estavam dormindo ou mortas, já,
quando acordadas poderiam ser tidas como crianças-estorvo e, quando se
tratava do direito dos pais, eles poderiam, inclusive, matá-las. Tais práticas
conviveram com medidas dos pais que visavam protegê-las de males que
poderiam consumir as vidas dos pequenos. Num segundo momento,
percebem-se técnicas de imobilização das crianças, o enfaixamento, na qual
enfaixavam-se os membros das crianças a ponto de lhes dar uma forma
humana e de protegê-las de si mesmas. Essa técnica pode ser considerada
tanto a favor da vida, na medida em que a protegia, mas também, de morte,
pois muitas crianças morriam nesse enfaixamento. Já no terceiro mo-
mento, havia a técnica do afastamento, na qual se distanciava as crianças
do convívio familiar para serem amamentadas e criadas por amas.
Quando retornavam eram mantidas afastadas da família, para aprenderem
determinadas formas de se tornarem adultas: trata-se de vida-morte da
criança no sentido biológico pelo fato de enviarem-nas ao aleitamento
terceirizado, pois muitas morriam contraindo doenças, embora se visasse

126 • 127
fazê-las viver. Corazza também defende a tese de que se trata de vida-
morte da infância o procedimento de adultização das crianças na medida
em que busca-se tirá-las da condição de dependentes, pois as inserem na
vida adulta.
Quando Corazza analisa as Casas da Roda, instituições nas quais se
abandonavam as crianças, percebe-se que as práticas sobre os corpos dos
pequenos entram num aspecto disciplinar e biopolítico o que permite
instrumentalizá-los: os expostos abandonados na Roda eram batizados,
enviados a outras famílias que eram pagas para cuidá-los e quando
retornavam à Roda, ainda eram enviados a arsenais de guerra (no caso dos
meninos) e para, trabalharem como domésticas (no caso das meninas): essas
medidas visavam aproveitar as forças desses corpos de modo a bem utilizá-
los, como por exemplo, para que aumentassem as forças internas do Estado
que habitavam com seu trabalho; para que formassem famílias nucleares,
no âmbito burguês o que implicaria numa população moralizada que não
usasse seu sexo de forma desregrada e disseminasse crianças que poderiam
ser novas expostas.
Isso significa dizer duas coisas: a primeira é que foi constituída para
a infância, um modo de ser e que, a partir dele, se instrumentaliza esses
indivíduos. Também, significa dizer que nessa forma de infância, educam
as crianças de três formas: quanto ao sexo, pois, seus corpos foram
concebidos nessas relações que muitas vezes eram ilegítimas – induziam-
nos a formação de família nuclear, ao casamento –; adultizando-as
biologicamente – controlando o crescimento de acordo com saberes
verdadeiros – e disciplinando-as para que se governem nos modos de
vida considerados corretos.
As escolas participam desse contexto de infância, com vistas a constituir
sujeitos que formem uma população planejada. Elas educam as crianças
nessa ideia, mas também, as retiram da condição de infantil, tornando-
as, adultas, ou seja, essas instituições atuam no indecidível da vida-da-
morte da infância. Educar as crianças nesse conceito de infância permite
instrumentalizá-las para uma necessidade histórica que impõe: induzem-
nas a participar do modo de vida burguês pré-estabelecido, assumido como
verdadeiro pelo Estado. Sendo assim, as escolas, ao servirem ao Estado,
visam educar o sexo, bem adultizar e tornar cada pequeno capaz de se
governar na moral pré-estabelecida. As escolas paranaenses observadas
operam o dispositivo de infantilidade nesses três campos: visa-se bem
adultizar as crianças, controlando seu desenvolvimento biológico quando
regulam merendas, quando impõem atividades nas quais desenvolvem
coordenação motora; almeja-se o controle de seu sexo, o que mostra que
não poderão praticá-lo nessa idade; e também, a partir de processos discipli-
nares, instituem formas de conduta consideradas corretas, pelas quais as
crianças deverão guiar-se, ou seja, elas aceitam essas formas como verda-
deiras e se monitoram nelas, sem que haja a necessidade do dispositivo
que as vigiam. Guiando-se nessa moral, sobretudo sexual, sendo bem
adultizada, forte capaz de esperados desempenhos, as crianças se en-
quadram na perspectiva de adultez que propicia a manutenção do tipo de
vida burguês, o qual implica a manutenção das forças estatais.
Após este estudo, questiona-se: se as escolas, são dispositivos que, ao
operarem o dispositivo de infantilidade, participam da instrumentalização
das crianças de modo que partilhem de uma mesma moral de um tipo
de vida pré-estabelecido, significa que essa instituição não permite outras
possibilidades de vida? Não, exatamente. Há instituições escolares
como a escola Andre Zênere em que funcionam projetos como o Escri-
leituras, o qual, por meio de Oficinas de Transcriação visa afetar os alunos
de forma que seus pensamentos não se limitem a atos de recognição, que
apenas reconhecem os valores morais e forma de vida pré-estabelecida, mas
que produzam novas formas de se viver, que deem novos significados às
coisas. Se, como diz Foucault, todos se encontram nas malhas do poder
e onde se passa, exerce-se e sofre seu exercício pelas ações, as ações dos
oficineiros do Escrileituras atuam sobre as das crianças, atuando como
violência positiva na medida em que afetam seus pensamentos movendo-os
a produzirem novos significados e novas formas de vida.
Em suma, conclui-se que, se um dispositivo escolar investe as crianças
no conceito de infância para que se constitua numa população moralizada
e com corpos saudáveis para certos desempenhos que mantenham o
Estado, se por essa instituição, visa-se educar as crianças em saberes e
morais instituídos como verdadeiros, há, também, nos aparatos escolares,

128 • 129
brechas que possibilitam produzir estratégias como essas das oficinas do
Projeto Escrileituras que saem dos moldes da disciplina dura da instituição:
significa que as escolas, apesar de muita resistência, permitem a produção
de perspectivas nas quais os alunos constituam-se como sujeitos criadores,
que inventem aberturas para outros modos de vida. Deste estudo, que se deu
entre livros e escolas, em meio à vida, produziu-se questões que impelem
a pesquisa a seguir adiante, quais sejam: como as escolas poderiam atuar
enquanto dispositivo que permite aos sujeitos constituírem-se enquanto tais,
fora dos moldes do poder-saber enrijecido? Faz sentido pensar as escolas
enquanto dispositivos que propiciam forças que violentem positivamente
o pensamento das crianças, provocando-as a produzirem novas formas de
existência? Como o exercício de poder poderia atuar nessa perspectiva?
Estas são questões a serem abordadas num estudo posterior.

Referências
CORAZZA, S. M. História da infantilidade: a-vida-a-morte e mais-valia de uma infância
sem fim. 1998. 619f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 1998.

FOUCAULT, M. Segurança, território e população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

_____. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 34. ed. Petrópolis, Vozes, 2007.
DIdática
& tradução
A voz acena: a presença da
voz na cena da aula

Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo


Silas Borges Monteiro

Resumo
A voz do professor, na cena da aula, tem um protagonismo e é utilizada como
parte fundamental para desenvolver os procedimentos envolvidos no ensino.
Sob a expectativa de que algo seja comunicado, marca a presença. Na cena
da aula o comando é da voz. Nela, tem-se a impressão de que o professor
fala para seus ouvidos, para ouvir a sua voz, para si, para emitir a voz. Ele
precisa de audiência e não necessariamente de ouvintes. A regência dessa
cena pela voz foi aqui estranhada e desterritorializada pela discussão que se
faz na filosofia da diferença de fonte derridiana. Do projeto Escrileituras: um
modo de ler-escrever em meio à vida OBEDUC/CAPES/INEP/UFMT, a partir
da Oficina de Biografemas, uma forma de intervenção, resultou a construção
de um Phonodidaticário.

Palavras-chave
Voz. Aula. Cena. Escrileituras. Phonodidaticário.

132 • 133
Do começo

“Mas para começar do “começo” não se começou exatamente no


começo, tudo já tinha sido começado.” O início estava destraçado
(BENNINGTON, 1996, p. 22-33).
Ao dizer sim ao problema – “a voz acena“, “a presença da voz na cena
da aula”, fui tomada pelo desejo de questionar este caráter central de re-
gência que a voz do professor apresenta nesta cena, onde todos convergem
a ela, todos se posicionam em seu entorno. A voz me interessa porque
ela sempre diz algo, e sob o nome de uma expectativa, que algo seja
comunicado. A voz marca a presença e é essa presença que está em questão
no fenômeno da voz que pretendi pesquisar.
Na cena da aula a voz do professor parece funcionar como um cordão
umbilical, que “conecta” e “nutre” os ouvidos dos alunos. O maquinário
que opera na aula, voltado para a transmissão do conhecimento, parece
saltar de uma boca que fala para ouvidos que a escutam.
Derrida se atenta para a centralidade da voz nesta cena e discute que
a filosofia, e o estilo de docência magistral da fala como representante da
verdade, nasceu com Sócrates que fala e não escreve. A fala se sobrepõe
à escrita, porque a fala, na perspectiva socrática, é a representante da
essência do fazer da docência. Neste ponto, provoca uma torção: há uma
lógica centrada na fala, uma razão-fala que dá centro à filosofia, ou um
discurso racional centrado no fonocentrismo e logocentrismo. Tece críticas
à centralidade da palavra apoiada no logos, das ideias, dos sistemas de
pensamentos a serem entendidos como matéria inalterável, fixadas no
tempo; presentes sobre uma forma de verborreia do modo como a cultura
ocidental se estruturou.
Esta pesquisa cujo elo imagético repousou na voz, foi criando e sendo
criada no tempo cronológico do mestrado, realizado no Instituto de
Educação da UFMT, gestada no Grupo Estudos de Filosofia e Formação
(EFF), sob a regência do Prof. Silas Borges Moteiro. Exatos 24 atos que
desembocaram em uma dissertação, cujo protagonismo girou sobre o
relato de uma experiência empírica, fruto do projeto Escrileituras: um modo
de “ler-escrever” em meio à vida. Foram realizadas Oficinas de Transcriação do
tipo biografemas, com professores da Escola Estadual Paciana Torres de
Santana, parceira do projeto em Mato Grosso. A partir desta experiência,
construiu-se um Phonodidaticário, destinado a colocar a voz a bailar em
cena.

A voz guarda uma relação intrínseca com a educação


O trabalho docente é uma atividade que se constitui com profundos
vínculos ligados à cultura e a tradição. Ao falar da tradição, Sócrates assume
status de protagonista, pois com ele parece ser inaugurada uma experiência
do pensamento e da palavra, com valor educativo e político que recebe o
nome de filosofia. Sócrates funcionou como um elemento de reflexão
para Nietzsche e Derrida, por se tratar de um dos personagens centrais da
tradição do pensamento metafísico. A voz na aula é tida como portadora do
logos, do ser enquanto presença, produtora da verdade, pois não necessita
de intermediários, ela está presente à consciência mesma. A voz assume
a extensão imediata de quem a articula, na proximidade absoluta de sua
presença. Seu sopro é escutado pelo aluno. Ciência é a presença da razão no
comando de uma lógica científica, que se faz por argumentos exteriorizados
pela voz que proclama e clama. Seu uso foi tão propalado, considerado
veículo da racionalidade, logo, arauto da ciência.

Argumentos para uma oficina


Da voz: “Viria em primeiro lugar.” (DERRIDA, 1999, p. 86).
Da orelha: “É preciso acreditar para ouvir, é preciso esticar a orelha
com uma fé sempre sem garantia.” (DERRIDA, 2012, p. 261).
O uso da voz pelo professor nas instituições de ensino se apresenta
como o primeiro lugar. Sua fala serve a lei, a ordem, à ciência e é vista
como representante da verdade.
O aluno ”deve”, para ouvir a aula, esticar sua orelha e acreditar na
verdade proferida. “O ensino parece operar através do discurso, precisa-
mente porque no discurso é onde se aloja o saber.” (JERUSALINSKY,
2011, p. 125).
A cena: território da “sala de aula” é quadrado. O quadrado da aula
é atravessado, encetado, esporeado, pelos discursos do professor e dos

134 • 135
alunos. Esta comunicação desencadeia uma gama rumorosa de vozes:
thorubos. “Rumor da multiplicidade de vozes” (COSTA, 2011, p. 13). A boca
professoral que fala e a “orelha ouvinte” do aluno: ambiente para colocar
em funcionamento o método glótico24.
A voz e a cena: a cena da aula está incrustada do tempo cotidiano, o
qual a viu nascer. E neste tempo, a voz do professor é atenuada pela escuta
criativa do aluno. Esta relação glote-timpânica precisa ser pensada naquilo
que sugere, esconde, dissimula, neste espaço performativo.
O ritornelo desta oficina foi pensar a voz e o seu uso pelo professor
como uma forma de atravessar e problematizar os caminhos deste trajeto
(ou seria manejo?) pedagógico, através de um deslocamento deste lugar,
dito por Nietzsche, como marcado por ser do professor, o lugar daquele
que fala, cabendo ao aluno ser aquele que escuta. O professor necessaria-
mente precisa ser o detentor do direito da fala?

Do roteiro:
Rubricas: do Projeto Escrileituras. Foi concebido, como sendo dispa-
rador de cenários que pensam a Educação com e na vida e, “[...] como
um território vivo de procedimentos, que atualizam e que ressoam o
problema na leitura e na escrita.” (DALAROSA, 2011, p. 12).
Atos: modalidades de oficinas: filosofia, teatro, lógica, música, bio-
grafema e artes visuais. Cada tipo de oficina compreende uma aborda-
gem procedimental diferente em relação à leitura e a escrita.
Meio: biografema como uma possibilidade de experimentar a voz
através de escritas vividas. Corazza (2010, p. 86) atenta para o fato de
que este método “[...] não pode ter por objeto, senão a própria lingua-
gem [...]”, na “[...] medida que serve para baldar todo o discurso que
pega”.
Fim: construir, através de Oficinas de Transcriação do tipo Biografemá-
ticas, um Phonodidaticário para colocar a voz do professor para bailar
na aula.

Para dar conta desta intenção, usei como apoio, um recurso criado para a discussão que realizo na dissertação: A
24

voz acena: a presença da voz na cena da aula, “batizado” de método glótico.


Do cenário:

Escola Estadual Paciana Torres De Santana, parceira do Projeto


Escrileituras no núcleo UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), na
cidade de Cuiabá.
Dos protagonistas: Professores. No total, oito. Todos do Ensino
Fundamental I.
Do registro: Da boca do fonema para a ponta do grafema: construção de
verbetes para o Phonodidaticário.
Dos ritmistas: Derrida, Nietzsche, Barthes. Potentes percussionistas que
com suas penas colocam a voz em suspeição. Seus textos, servidos para a
experimentação escrileitora.
Diapasão: Monteiro (2011, p. 103) salienta que a voz cria múltiplos
inaudíveis, para si e para outros. Em suas palavras: “[...] a voz, assunto da
linguagem, assunto da fisiologia, assunto da física, começa a ser vista por
nós como condição de possibilidade da criação de sentido, de autopoiese.”.

Um “aparte” sobre o método


Da glote será a imagem e dela virá a articulação para movimentar este
texto. Batizado de “método glótico”, criado para engendrar uma articulação
que precisa abarcar um duplo: uma filosofia da voz não funcionaria sem a
política da escuta. Glote e tímpano. Zonas de acesso. Pontos de passagem.
Constrição. O estranhamento causado pelos conceitos mobilizados de
Nietzsche e articulados por Jacques Derrida a partir de dois textos: O
primeiro deles intitula-se Esporas – os estilos de Nietzsche, publicado em 1979;
e o segundo, Otobiografias, La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre
próprio. Para consolidá-lo, recorro também aos textos de Nietzsche sobre
a Educação, sobretudo sua crítica ao método acroamático, ao texto de
Derrida A Pharmácia de Platão, e aos conceitos cunhados por ele do fonocen-
trismo e logocentrismo.
Em face da Fisiologia a serviço da Filosofia, elenquei a glote e suas forças
aerodinâmicas e mioelásticas em ressonância com o ouvido, como modelo
dialógico em que articularão os escritos feitos a marteladas por Nietzsche,
retinidos e pressurizados na caneta timpânica de Derrida, escrevendo e

136 • 137
inscrevendo o percurso da vibração das pregas vocais à vibração do tímpano.
Trata-se, portanto, de uma filosofia da voz, associada a uma política da
escuta.

Atos e cenas de uma oficina


Primeiro movimento – 2 encontros - tempo de “fono-fisio-filosofia”.
Segundo movimento – 4 encontros – voz em sala de aula, a Didática e
o seu protagonismo. Sócrates (através do hálito nietzschiano), e Platão pelo
gesto desconstrucionista de Derrida, indicaram o caminho para o método
glótico: iluminação para a presença do Logos e sua característica pluriforme.
Terceiro movimento – 4 encontros – tempo de desconstrução: da cena,
da voz, da orelha. Gesto otobiográfico – elaborado por Monteiro a partir de
Derrida, como recurso da política da escuta. Associo-o à crítica de Nietzsche
sobre o método acroamático.

Resultados dos ensaios coreográficos


A voz ensina. Professores tem essa premissa como certa. Na formação,
registram as vozes de seus professores – e as selecionam com seus ouvidos
– e nela se embasam, primeiramente, quando assumem o seu próprio
protagonismo. Mas ao se depararem com a questão “como dar uma aula”
esperam, ambicionam encontrar uma voz que aponte caminhos e diga como
atingir o ouvido do aluno. Na preparação da aula a orelha do professor
também é tomada por uma falação: “mesmo estando do lado da fala.”
(BARTHES, 1988, p. 313).
O professor pensa a aula e escuta o thorubos. Ao comprimir a glote,
mascar palavras, ouvir a didática, ver o aluno, de A a Z, também sofre com
toda a sorte de rumores: anseia arfa bebe boceja compassa contrai deseja
despeja encena encerra fala fastia gagueja golpeia higieniza hesita indigere
joga junta lamenta lê mede muda nasce nega ouve planta pede queixa
raciocina remói sacrifica santifica teima utiliza vê veda xinga zune.
Ao pensar a aula, pensa a voz. A voz do aluno também divide a cena.
Essa voz magistral, professoral, contendedora da verdade, detentora do
logos e “chave de acesso” para o mundo das essências, não funciona com a
mesma efetividade que funcionava.
Magna: “Antes a voz do professor valia mais. Hoje, não tem o mesmo
respeito”.
Dulce: “A voz do professor ‘morde’ a aula”.
Maria: “Sem voz, o professor não vale nada”.
Jairo: “Se reconhece quem é bom professor pela voz”.
Ana: “O professor mais fala do que escreve, porque foi ‘moldado’ para
dar aula”.
Mirian: O professor “dá” aula escutando a voz do professor que está ao
seu lado, em outra sala. “Às vezes, a gente compete pra ver quem fala
mais alto”.
Ema: “São muitas as vozes que vivem em uma escola.”.
Bete: “A hora de escutar a voz do aluno é após a explicação, para tirar
suas dúvidas”.
Josiane: “A didática do professor é a voz”.
Lucineide: “A voz não resolve mais como resolvia antes. Não sei o que
se passa com este ‘novo tipo de aluno’”.

Na cena da voz que acena na aula, uma tensão de forças cresce


sem cessar, produzindo um desalojamento, um desconforto, oposto ao
estado de plenitude, de superabundância de vida, que explode em ações
criadoras.

Marcia: “Se não há quem diga o que e como fazer, só nos resta
inventar”.
Magna: “Aula não é uma lição sobre determinado conteúdo, onde se
usa a experiência para ensinar?”.
Jairo: “Para facilitar o conteúdo a ser aprendido, ajuda trazer a aula
para o mais próximo da realidade dos alunos”.
Lucineide: “Eu aconselho muito, falo muito das minhas experiências
para ensinar para os meus alunos.”.

138 • 139
“A aula se dá igualmente como uma série de conselhos, de pre-
ceitos. Em outras palavras, como um conjunto de regras de conduta.”
(DERRIDA, 1999, p. 25).

Ana: “Quantas vezes eu já falei e vocês não aprendem?”.


Silas: “É o ouvido do outro que monta a cena”.
Lucineide: “Então, até para Nietzsche tudo que acontece na aula é de
voz e de ouvido?”.
Jairo: “Parece que os alunos estão surdos”.
Maria: “Não escutou nada do que falei, por isso foi tão mal nas provas”.
Magna “Eu canso de falar e não me escutam”.
Bete: “Parece que não quer aprender, porque não fica quieto”.
Jairo: “Nietzsche dá azia”.

Fim. A convicção de que o percurso da oficina atingiu o estômago,


fica ressoando. Sem receita, sem solução para a voz. Em cada aula, uma
partitura para golpe a golpe, cindi-la, com a convicção de que a voz “outra”
que acena na sala de aula se arrisque a viver sob a linha feiticeira da criação
e com isso “[...] fabricar o que ainda não existiu nem existe.” (CORAZZA,
2009, p. 143).

Dos vestígios deixados


A partir destes encontros foram construídos verbetes coletivos que
passamos a chamar de Phonodidaticário. A gênese desta ideia é creditada
a professora Sandra Mara Corazza, cuja forma peculiar e lúdica de tratar
as palavras nos envolveu na oficina, a partir do seu Dicionário das ideias
feitas em educação: Lugares-comuns, chavões, clichês, jargões, máximas, bordões,
estereótipos, palavras de ordem, fórmulas, besteiras, ideias herdadas, convencionais,
medíocres, estúpidas e afins, escrito em parceria com Julio Groppa Aquino Os
assuntos agenciados não seguiram uma ordenação. Mesclavam-se em áreas:
saúde, comportamento, ensino. Optou-se, por sonoridade e humor, manter
a ordenação temporal baseada no alfabeto. De A a Z, com toda sorte de
apontamentos.
Phonodidaticário para os ouvidos dos professores, feito em passos para
evitar deixar a voz mancar a cena e tropeçar a aula

Aquecimento – manobras para soltar, despregar, transpirar os modelos


que balizam a voz na aula. A aula é minha, logo a voz...
Afonia – Ausência de voz. Oportunidade para repensar
o uso da presença.
Acroamático – Isso que a gente continua fazendo: o professor
fala e o aluno escuta.
Bochichos – acontecem na aula paralela. Não os ignore nem silencie.
A alegria como fagulha para a aula funcionar pode estar lá.
Berreiro – modus primitivo no controle de uma espécie racional.
Cabeça – dor causada pela falta de empréstimo do
ouvido do aluno.
Clichê – de que o professor e sua voz são “uns coitados”.
Dar – doar, entregar, oferecer, produzir, ceder, conceder a aula?
Didática – sem receitas de técnicas e direção. A saúde da aula
recomenda: faça uso da criação.
Disfonia – sinal de que a voz não está lá àquelas coisas...
Empatar – quando o professor permite que a voz do
aluno seja ouvida. Ganhar, jamais! Vire o jogo.
Escutar – dever do aluno. Até quando?
Fadiga – sinal de que o automático, o platônico, assumiu
a rédea da aula.
Fala – soldado raso da voz, cedro da presença e ainda direito
régio do professor na sala de aula.
Gagueira – repetição involuntária que acontece na fala, quando o
professor é pego “com a boca na botija” e se sente despreparado para
oferecer a resposta.

140 • 141
Golpe – na glote. O professor ao senti-lo emudece, e se tiver
juízo o usa como material didático.
Histeria – sinal que o recreio vem por ai. É a fome que grita.
Joia – o aluno mudo, que não atrapalha.
Lamento – recurso vocal didático. O professor adora a ele recorrer.
Limite – sempre o da voz e até onde ela aguenta.
Louco – o aluno que o professor fala, fala, fala e não aprende.
Medida – do currículo, do plano, da didática. Resolve “tudo” na teoria,
mas quando comanda a aula, fala pouco.
Mastigação – a voz do professor morde a aula.
Nudez – do professor quando sustenta “uma” verdade.
Ouvidos – dos alunos. “Parecem ter ficado desobedientes”
Orelha – encostada na carteira, mostra que a aula não funcionou.
Peculiar – as barreiras verbais que cada um tem. São os
“então”, “daí”, Ra -rã”.
Quente – a garganta no final da aula.
Razão – pirotecnia que explode a aula.
Sacrifício – homilia da voz que faz a aula parecer uma igreja.
Aconselho: extirpe da sua sala para a voz funcionar.
Talento – presente no aluno que faz tudo o que o professor quer.
Umbigo – ligação dos alunos à voz do professor.
Verdade – mentira que Platão inventou para manter a
sua voz a seu serviço. Fique esperto!
Vertigem – torpor que sugere a proximidade com a criação.
Xingamento – para o velho hábito que amortece nossas
quedas e impede a voz de mudar.
Zunido – do thorubos, na aula.
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cena da aula. 2013, 155 p. Dissertação (Mestrado em Educação) Faculdade de Educação,
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Sobrinho). Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2004.
Corpo a dançar: entre educação
e criação de corpos

Wagner Ferraz
Samuel Edmundo Lopez Bello

Resumo
Essa pesquisa se desenvolve no campo da Educação atravessada pela dança na
perspectiva das Filosofias da Diferença de Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Com isso, pensa-se um movimento infinito que pode se dar entre a educação
e criação de corpos como possibilidade de educar a si mesmo nos instantes
de uma vida dançante. Para com isso compor o conceito “corpo a dançar”
se utilizando do Método Coreográfico para produzir movimento na pesquisa
coreografo os intercessores que no encontro com o pensamento colocam
este a pensar, constituindo um texto coreografia. Movimentos “entre”, como
condição para o vir a ser de muitos corpos, para a criação, para produzir
diferença, para colocar o pensamento a dançar, seja no campo da educação
ou no campo da dança. Sendo um corpo de e, e, e, e...

Palavras-chave
Corpo, Filosofias da Diferença, Dança, Criação, Educação.

144 • 145
Essa pesquisa... em movimento...
Para pensar uma vida de encontros e de movimentos que aqui são
tomados como dançantes, para pensar uma vida que vai se constituindo
de constante pesquisa, de aprendizados, de acumulação dos conhecimentos
adquiridos em experimentações que dão condições para pensar o que
fazer, como fazer, onde fazer, para que fazer, quando fazer... e ao mesmo
tempo se dá em acontecimentos. Para assim, pensar um corpo que
acumula memórias, experiências, vivências, marcas que o constituem
como um corpo de determinadas práticas25. Até que algo nos acontece, algo
pode se dar em acontecimento.

Ele (o acontecimento) não é o que aconteceu nem o que está na iminência


de acontecer, ele está entre ambos, é as duas coisas ao mesmo tempo, o
inatural entre-dois, em simultâneo o que vai ocorrer e o que ocorreu já num
tempo próprio, sem presente, num tempo infinito não cronológico. (DIAS,
1995, p. 15).

E quando os conhecimentos aprendidos nas experiências de vida não


dão conta do que nos acontece? E o que fazer quando algo nos escapa?
Quando as experiências de vida acumuladas no corpo são rachadas e o
hábito/costume não dá conta de assegurar o que pode acontecer? E quando
esse corpo, imensurável, que não se aprende a ser, e que também não se
educa, movimenta a vida como possibilidade de produzir diferenças? Dá
condições para...
Pensar um corpo que educa a si mesmo no ato de sua constituição,
naqueles momentos em que vive determinadas situações, quando o
acontecimento se dá no corpo, vem a ser pensar um corpo que se educa
para os instantes. Seja em uma dança, escrita, desenho, na experimentação
do novo, há uma educação que não fixa condutas no corpo, uma educação
criadora que se da com o imprevisível e com impensado.

“... Foucault entende por práticas a racionalidade ou a regularidade que organiza o que os homens fazem
25

(‘sistemas de ação na medida em que são habituados pelo pensamento’), que têm um caráter sistemático (saber,
poder, ética) e geral (recorrente) e, por isso, constituem uma ‘experiência’ ou um ‘pensamento’” CASTRO, 2009,
p. 338.
E assim vive-se educando um corpo para ser “útil” (FOUCAULT,
1987, p. 118) e potente para determinadas práticas e ao mesmo tempo
criando corpos nesse mesmo corpo educado, como possibilidade de vir
a ser outro, de viver movimentos, de sentir a vida deslizar, saltar, girar,
curvar, flutuar... Se tornando o que nomeio aqui de “corpo a dançar”,
vindo a ser um corpo de “e, e, e, e, e...”, uma potência, composições:
um corpo dócil (FOUCAULT, 1987, p. 119) e um corpo que se faz outro
e um corpo que se afeta e um corpo que se movimenta com os modos
aprendidos e um corpo que faz o que nunca fez e um corpo que guarda
marcas e um corpo que se põe a vazar e um corpo que escapa e um
corpo da “multiplicidade” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 16) e
corpo de “intensidades” (DELUZE, 2006, p. 314) e...
Essa pesquisa se desenvolve no campo da Educação atravessada
pela dança na perspectiva das filosofias da diferença com Gilles Deleuze
e Michel Foucault. A aproximação com essa perspectiva se deu pelo
envolvimento com o projeto Escrileituras: um modo de ler/escrever em meio
à vida, coordenado pela Profª Sandra Mara Corazza, através de oficinas
realizadas no ano de 2011 na Faculdade de Educação da UFRGS. Assim, ao
ingressar no mestrado do PPGEDU/UFRGS, na linha de pesquisa Filosofias
da Diferença e Educação, mantive aproximação com o Projeto Escrileituras
durante o ano de 2012 participando de encontros semanais, eventos,
seminários, demais atividades realizadas. Desse modo, experimentando,
estudando, discutindo, observando diferentes ações nessa perspectiva,
foi possível pensar na possibilidade de coreografar o corpo de minha pes-
quisa, realizando movimentos para produzir diferença, produzir uma
escrita de modo dançante.

Um corpo – um problema para uma pesquisa em educação


Como viver a constituição de diferentes corpos26 (intensidade corpórea)
em um mesmo corpo27 (materialidade corporal)? Quando muito do que

26
Com esse corpo quero destacar a possibilidade de criação de corpo que será tratada posteriormente com Deleuze
com o ato de pensar/criação.
27
Quando digo “em um mesmo” corpo me refiro ao corpo materialidade, como superfície de inscrição com
Foucault, onde há possibilidade de criar diferentes corpos de intensidade.

146 • 147
se aprende é para se tornar um corpo fixo, estável, uma representação,
uma imagem de corpo pré-estabelecida, reduzida a imagens anatômicas
e a condições de “adestramento” que dizem quem pode ou não viver
determinadas práticas – uma representação. Como viver a potência dos
diferentes corpos que se pode criar, que se constituem, que se tornam,
sem ficar focado em discursos e conhecimentos que reduzem um corpo a
condições biológicas, estruturais, organismos e seus sistemas inventados
para serem tomados como verdades que dizem o que é um corpo? Talvez
vivendo movimentos infinitos, vivendo um corpo que dança, vivendo um
“corpo a dançar” quando este acontece, para assim se tornar um corpo
que possa dançar, correr, pular, escrever, cantar, falar...
Com isso podemos pensar uma educação que se dá no corpo, que
indica possibilidades de conduzir a si mesmo, constituindo um corpo entre
os processos educativos e processos de criação, pensando uma educação
criadora que se dá “no corpo, com o corpo e pelo corpo” (FERRAZ;
BELLO, 2013, p. 255).
Para isso, foi traçado como objetivo compor o conceito “corpo a
dançar”, para tentar dar conta dessas questões que emergem entre a edu-
cação e criação de corpos, entre corpos/sujeitos e corpos/subjetivação,
entre corpos mensuráveis e imensuráveis, entre representações e
acontecimentos... Corpos (i)numeráveis. Possibilidades de constituir um
si/corpo em movimento/dançante. Pensar a criação de um conceito
que possa se tornar potente para a produção de movimentos infinitos
na educação de corpos.
A numeração ou não, classificação ou não, a (i)mensurabilidade
que atravessa essa pesquisa, penso com a noção de numeramentalidade/
numeramentalização como uma “expressão que designe a combinação
entre artes de governar e as práticas de numerar, medir, contabilizar,
seriar e que, num viés normativo, orientariam a produção enunciativa
de práticas sociais contemporâneas” (BELLO, 2012, p. 93). Então,
para tratar da educação de corpos, utilizarei o termo “mensurável” para
indicar as possibilidades de classificar e, para tratar da criação de cor-
pos, utilizarei “imensurável”, para referir o que se não tem como classi-
ficar.
Entre educação e criação de corpos

Para Foucault (2010) não se pode escapar dessa superfície de inscrição,


pois todos os dias acordamos no corpo. Então o que nos resta em educação é
docilizá-lo? Docilizar (FOUCAULT, 1987, p. 119) para assim evitar tudo que
não vai ao encontro das regras de conduta, para produzir uma materialidade
que atenda às regras morais, institucionais, culturais, sociais, educacionais...
Um corpo, com Foucault, pode ser pensado como disciplinado, submisso,
dócil, otimizado e útil para a economia do próprio corpo. Mas ao mesmo
tempo, também destacamos, a experiência de si, pois, quando se pratica,
quando se vive, quando se experimenta algo, se experimenta a si mesmo.
Para pensar possibilidades para criar, conceitualmente, um “corpo a
dançar”, escolhi pensar um corpo na perspectiva foucaultiana, com torções
de inspiração deleuzeana, para produzir um corpo no pensamento da
diferença, que se constitui no movimento de vida. Pois para Deleuze “cada
corpo existente caracteriza-se por certa relação de movimento e repouso”
(DELEUZE, 2002, p. 98). E é esse movimento que varia em si mesmo
que produz diferença, que coloca o corpo como condição para criar o
novo, para fazer dançante uma vida e assim movimentar o pensamento.

O corpo não é mais o obstáculo que separa o pensamento de si mesmo,


aquilo que deve superar para conseguir pensar. É, ao contrário, aquilo em
que ele mergulha ou deve mergulhar, para atingir o impensado, isto é, a vida.
(DELEUZE, 2007, p. 227)

É no pensamento, para Deleuze, se dá o ato de pensar como criação


de novas imagens. Em “Nietzsche e a Filosofia”, Deleuze escreve sobre a
nova imagem do pensamento; em “Proust e os Signos” e em “Diferença e
Repetição”, apresenta o pensar destacando que não se trata do pensamento
enquanto representação, mas do pensamento violentado por signos que
colocam o próprio pensamento a pensar, potência criadora. “O pensamento
que pensa as imagens e os signos é perturbação, ruptura, experimentação,
processo de criação, singularidade, diferença, fluxo nômade, viagem.”
(CORAZZA, 2012a, 04). O pensar se da por encontros...

148 • 149
No primeiro livro de Gilles Deleuze, “Empirismo e Subjetividade: Ensaio
sobre a Natureza Humana segundo Hume” (2012), o autor já aponta para o
“entre” e o “encontro”, e pensa o empirismo de Hume como o encontro
com dados empíricos onde “uma faculdade é forçada a forjar uma resposta,
a interpretar e a compreender aquilo que lhe afeta (GALLINA, 2007,
p. 123-124)”. Aqui encontro algumas pistas para pensar o “Corpo
a Dançar”, um corpo que se dá a partir dos encontros, criando a si
mesmo nas relações, nas inferências em meios aos acontecimentos. Torna-
se variação de si mesmo nos encontros com o infinito de possibilidades,
um corpo serial que possibilitará a criação daquilo que o próprio corpo se
tornará.
O “corpo serial” (SANCHOTENE, 2013, p. 57) é utilizado para pensar
o infinito de possibilidades, o “entre”, que se dá no ato de pensar. Nessas
possibilidades imensuráveis se dão acontecimentos e o corpo se torna
infinito, sendo sempre possível criar novas possibilidades de corpos nos
instantes em que se dão as experiências no pensamento. Isso faz parte do
que vem a compor o “corpo a dançar”. O corpo serial possibilita pensar o
infinito de possibilidades que pode existir entre o 0 e o 1.
Antes mesmo buscar as referências citadas até aqui, ao ingressar
no mestrado em educação, realizei uma ação dançante intitulada “Não
venha me assistir: Talvez seja uma dança”, com o intuito de me colocar
a pensar corpo, educação e criação com essa experiência. Com essa ação
se produzia desencontros e incertezas planejadas, com “roteiro”, local
e horário (in)determinados. O espectador deveria procurar o artista em
locais e horários “entre”, pois tudo acontecia sempre entre um horário e
outro e entre um ponto e outro da cidade onde se realizou. O que estava
em jogo era a produção de uma presença, de corpos que se dava no trajeto
como uma experiência de si. Posteriormente percebi que deveria usá-la
como “disparadora” (ZORDAN, 2011, p. 4247) para a criação conceitual
proposta.
Com isso tudo que foi traçado até aqui, busquei reunir pistar para
compor o conceitualmente “o corpo a dançar”, para isso se fez necessário
olhar para o conceito de conceito. Deleuze e Guattari dirão que “todo
conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus compo-
nentes” (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 23). De Platão a Bergson
encontra-se a ideia de que o conceito é questão de articulação, corte e
superposição, um todo, pois totaliza seus componentes, mas um todo
fragmentário. Os conceitos remetem a problemas, e são esses que lhes dão
sentido e indicam condição para pensar possíveis soluções. Conceituar,
o “corpo a dançar”, certamente, não se trata de produzir uma definição
fechada, fixa, estática, identitária e ordenada, mas se trata de pensar um
corpo que se dá em movimento, entre tudo o que se torna e as possibilidades
do vir a ser. “Para a criação de conceitos, a noção de encontro é muito
importante para Deleuze” (LA SALVIA, 2010, p. 10), pois o novo, o
diferente, o acontecimento que se experimenta num encontro que dá o
que pensar.
Para isso é necessário fazer os planos (de imanência) e os problemas,
assim como é necessário criar os conceitos. “Certamente, os novos
conceitos devem estar em relação com problemas que são os nossos, com
nossa história e, sobretudo com nossos devires” (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 36). O plano de imanência “envolve movimentos infinitos que
o percorrem e retornam, mas os conceitos são velocidades infinitas de
movimentos finitos, que percorrem cada vez somente seus próprios
componentes” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 45). Então não se
pode confundir os dois, só existe conceito no plano e só há plano
povoado por conceito. “Os conceitos são acontecimentos, mas o plano é
o horizonte dos acontecimentos, o reservatório ou a reserva de aconteci-
mentos puramente conceituais.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 46). 

Método coreográfico
Usar um método coreográfico em uma dissertação, levando em
consideração que parte dela é estruturada, dura, fixa, e outras partes tentam
dançar, se movimentar... Como colocar a dançar algo que não é de ordem
dançante? Decidi coreografar o corpo dessa pesquisa, da mesma maneira
que se coreografa um corpo que dança. Lançando questões para que esse
corpo tenha condições de afetar quem assiste/lê essa dissertação, pensando
nos leitores dessa pesquisa como público que busca arte, que quer se
movimentar.

150 • 151
Uma coreografia (GIL, 2004, p. 67) pode ser composta de diferentes
modos, flui em algumas de suas partes, é repleta de sentidos. Algumas
possuem tema e título, exploram níveis, direções, referências. Têm,
muitas vezes, tempo cronológico determinado, trabalham com repetições
de cenas, de ações e de movimentos, como Pina Bausch28. Uma coreografia
é feita de momentos que prendem, que dão condições de pensar a partir
dela, de outros que cansam, travam, enroscam, às vezes não tem fim
definido. E como fazer isso com a escrita do texto? Aí está o desafio: criar,
compor, variar, produzir movimentos infinitos, dançar por uma escrita em
um campo científico, buscando na filosofia condições para pensar questões
nesse campo e compor com as artes dançantes de outras formas que
não sejam uma coreografia cênica.

(...) a dança da escrita faz-se em movimento quase invisível à sensibilidade


justificada que tudo quer explicar através do uso de palavras encadeadas
sustentadas por uma lógica racional de correspondência representacional
entre o visto e o dito. A escrita que dança se instala entre o visível e o dizível,
movendo-se com eles. O pensamento trepida diante dos gestos divergentes
produzidos pelas séries dançadas, potencializando algum desequilíbrio tanto
na sintaxe e na gramática que orienta a língua, como na escrita que surge
desses abalos, desde as percepções produzidas e as sensações experimentadas.
(RODRIGUES, 2006, p. 65-66)

Começamos pela distribuição do texto, na dissertação, que se dá em


quatro colunas: 1) um texto principal onde são apresentados conceitos,
revisões, detalhes, definições e dúvidas da pesquisa e demais considerações.
2) uma coluna composta de citações de diferentes autores e pode ser lida
independentemente, como um texto “aforístico”. 3) Notas de rodapé – além
de apresentar informações sobre as citações, também apresenta explicações
sobre determinados conceitos. 4) Exemplos de Corpos Criados – textos

Pina Bausch, coreógrafa alemã, ficou conhecida pelo trabalho desenvolvido com o Wuppertal Dança-Teatro.
28

Umas das características de seu processo de criação é repetição e transformação: “A repetição característica
da pulsão de vida é a repetição diferencial, que ao contrário da reprodução, da qual resultaria um estereótipo,
torna-se uma fonte de constantes transformações. É um movimento de criação que implica no novo, tendo como
imagem a horizontalidade, o desenvolvimento”. (CAMPOS, 2008, p. 06).
disparados por situações vividas no decorrer da pesquisa.. 5) Texto do
“entre” (essa coluna não está dada, mas pode ser criada) – entre todos esses
textos, nos espaços da folha, os leitores podem criar seus próprios textos
durante a leitura.
E como pensar a efetuação de uma pesquisa sem pensar sujeito e objeto?
Com o que foi apresentado até agora na perspectiva do pensamento da
diferença, pensando uma pesquisa do acontecimento, que não pesquisa
“estados de coisas, proposições, objetos, sujeitos, matérias, corpos e
representações” (TADEU; CORAZZA; ZORDAN, 2004, p. 138-139).
Pesquisar o acontecimento é produzir uma pesquisa no próprio movimento
do pesquisar, é colocar a dançar conceitos, palavras, artigos, livros/leituras,
autores, imagens, pensamentos... Então como manter essa pesquisa em
movimento? Com Método Coreográfico ou de Composição Coreográfica.
Não há um modelo único a ser seguido. Consiste em compor movimentos,
selecionar códigos dançantes, traçar linhas no espaço, estabelecer direções,
níveis, fluxos, fazer escolhas, escorregar no acaso, aproveitar o erro,
codificar movimentos e improvisar outros... “A coreografia materializa
um traço” (MUNHOZ, 2009, p. 18), um texto, uma pesquisa... Para isso
resolvi coreografar intercessores, e com estes o pensamento é colocado
no movimento infinito de um giro no ar. E os intercessores disparam,
no encontro com o pensamento, outros movimentos.
Com Deleuze (1992), podemos pensar os intercessores no científico,
artístico ou filosófico, pode ser também um conceito, uma obra de arte,
um dispositivo técnico, mas é preciso fabricar os intercessores. “Os
intercessores são quaisquer encontros que fazem com que o pensamento
saia de sua imobilidade natural, de seu estupor. Sem os intercessores
não há criação, sem eles não há pensamento” (VASCONCELLOS, 2005,
p. 1223). Produzir intercessores é criar possibilidades de movimentos em
devir. Apresento os intercessores criados para essa pesquisa:
1) Artes: Ação dançante29 “Não venha me assistir – Talvez seja uma
dança”. 2) Artes: Texto “Rastros genealógicos de dança: para pensar um

Utilizo o termo ação dançante, pois não se trata de uma coreografia ou espetáculo de dança, mas, sim, de um
29

trabalho artístico em dança produzindo movimentos tomados como dançantes.

152 • 153
corpo a dançar”; 3) Filosofia – O conceito de experiência de si de Foucault.
4) Filosofia – conceitos Criação e Acontecimento de Deleuze. 5) Filosofia:
A obra “Empirismo e Subjetividade: Ensaio sobre a natureza humana segundo
Hume”, de Deleuze. 6) Filosofia: Conceito de Conceito e Plano de Imanência
de Gilles Deleuze e Félix Guatarri. 7) Ciência: Corpo Serial de Sanchotene.
8) Ciência: A educação, classificada como área da ciência, busco pensar
tanto a possível formatação, docilização e regramento da e na materiali-
dade corporal como as possibilidades de criação de intensidades corpóreas.
Com isso se foi pensando, vivendo, experimentando a pesquisa e o
texto foi tomando corpo num processo dançante. O conceito “corpo a
dançar” foi composto como algo que pode ser melhor vislumbrado nos
movimentos de diferentes ordens, na variação da vida e na variação do
corpo, num infinito tornar-se.

Se tivesse que concluir: apresentando alguns efeitos


Com a criação do conceito “corpo a dançar” conseguimos dizer que
este não é visível, palpável, quantificável. Não se encontra em um deter-
minado lugar. Não se produz com um planejamento em que se siga uma
ordem e que se chegue a um resultado. Não se dá por um treinamento,
um esforço de qualquer ordem, por uma leitura, por um cálculo, por uma
dança. Não tem características para que se possa identificá-lo, classificá-lo,
apreendê-lo, representá-lo... Não há uma receita para chegar a ele, nem se
pode aprender como fazê-lo.
O “corpo a dançar” não acaba com a educação de corpos, nem é
pra isso que ele “serve”. Pois é, nos próprios corpos educados que os
encontros, o ato de pensar, e o movimento produzem vazamentos... O que
se pode afirmar é que ele se dá no “entre”, que dá condições para o vir a
ser de muitos corpos, para a criação, para produzir diferença, para manter
o movimento infinito, para colocar o pensamento a dançar. Pensando o
“corpo a dançar” como um motor, como um furacão, como intensidade
que potencializa determinados movimentos de vida, e tendo isso como
possibilidades de pesquisa... Um corpo que educa a si mesmo como modo
de criar a si num movimento infinito, criar sua própria vida dançante, seja no
campo da educação ou no campo da dança. Sendo um corpo de e, e, e, e...
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Modos de ler e escrever na EJA

Larisa da Veiga Vieira Bandeira


Sandra Mara Corazza

Resumo
A pesquisa de mestrado Um modo de ler e escrever na EJA – oficinas biografemáticas
realizada entre os anos de 2012 e 2014 no Núcleo UFRGS aconteceu na
proposição de oficinas biografemáticas, na infiltração e contaminação, nos
movimentos dentro, entre, e, nos desdobramentos do Projeto Escrileituras.
Por tratar-se de um projeto composto por quatro núcleos proponentes, os
movimentos acontecem, como teria de ser, em muitos e diversos territórios,
em diferentes rincões, que se abrem e se articulam em possibilidades
inverossímeis com a arte, a literatura, a música, o teatro, o cinema, fantasias
e fruições. Os integrantes do Projeto Escrileituras encontram potência no ato
de criação textual. Inventam afinidades entre texto e leitores, fazem da leitura
lugar de encontros. Seus integrantes estabelecem ações compartilhadas e
trabalham com o conceito de Escrileitura. O conceito de Escrileitura insere
este Projeto na dimensão imaginativa de toda a escritura ou texto de fruição.
E, como exercício imaginativo, lida com os modos de produção através de
experimentações, tentativas e invenções. O ano de 2012, ano em que iniciei a
minha pesquisa de mestrado, marca o meio do Projeto, que se encaminhava
para um final programado, que procedia em movimentos que mesmo que
descontínuos davam prosseguimento ao desassossego que deu início ao
Escrileituras em 2010.

Palavras-Chave
Educação de Jovens e Adultos. Biografemática. Escrileituras.

156 • 157
“Viver importa mais do que o escrever, a não ser que escrever, seja
– como tão poucas vezes – um viver.”
Cortázar, 2013. p. 58

Modos de ler e escrever na EJA


De parte de escritas três mulheres: Lou Andreas-Salomé, Anaïs Nin
e Marina Tsvetáieva, dos fragmentos que chegaram até aqui, com o que
delas escapou da destruição, com as possibilidades que essas mulheres
propagaram ao retomar o que já foi escrito, fez-se na pesquisa um trabalho
polifônico, de recorte, de dispersão, em proveito de um trabalho do
descontínuo, do pulverizado, de operação de ultrapassagem (BARTHES,
1995). A escrita dessas três mulheres, da inquietude de suas escritas, esse
ponto – entre – que oscila, antecede, percorre e desdobra é o ponto de partida
da pesquisa. As três mulheres foram reunidas pelos laços de leitura com
a leitora comum, com a professora-pesquisadora. Laços que não foram
suficientemente estreitos, ou apertados, que não permitissem que outras
tantas e outros tantos, pudessem aqui estar em efervescência e turbilhão.
Os laços de leitura com as três mulheres eram também um ímã de seduções
sutis; seus textos, de atrações arrebatadoras e inquietudes silenciosas,
engendravam encontros escusos com estrangeiros e íntimos fragmentos de
outros textos, que em dispersão se emprestavam para a invenção.
Para compor o trabalho de pesquisa foram escolhidos textos escritos
entre 1870 e 1937, diários, cartas, fragmentos, além de notas autobiográficas.
A escolha dessas três autoras e as seis décadas em que esses livros foram
escritos são os primeiros de uma série de recortes, justaposições, variações,
que deram espessura, língua e conexão aos afetos que pediram passagem.
No caso de Marina Tsvetáieva, textos que foram organizados, selecionados
e prefaciados por Todorov, alguns deles inéditos e resgatados de seus
manuscritos. No título dessa seleção, a centelha primeira da pesquisa:
Vivendo sob o fogo. Tsvetáieva referia-se ao anonimato da criação feminina,
quando uma mulher escreve, não escreve só por ela, ela o faz por todas as
que se calaram e as que se calarão, e, ainda assim, não são as mulheres, é uma
mulher, sempre a mesma, é o grande anonimato, “o imenso desconhecido,
o imenso mal conhecido”30 (TSVETÁIEVA, 2008, p. 481). De Anaïs foi
tomado o livro Fogo – de Um diário Amoroso – o Diário completo de Anaïs Nin
(1934 – 1937). Esses textos são fiéis à cronologia dos fatos, e à gramática da
autora, desejo expresso por ela a Rupert Pole, que se tornou seu executor
testamentário e publicou o que era impublicável durante a vida de Anaïs.
Com a sua morte nomeava-se, então, o inominável, como indica Blanchot:

Para que eu possa dizer: essa mulher, é preciso que de uma maneira ou de
outra eu lhe retire sua realidade de carne e osso, que a torne ausente e a
aniquile. A palavra me dá o ser, mas, ele me chegará privado de ser. Ela é a
ausência desse ser, seu nada, o que resta dele quando perdeu o ser, isto é, o
único fato que ele não é. (BLANCHOT, 2011, p. 331).

O livro escolhido de Lou Andreas-Salomé foi Minha Vida, uma coletânea


de obras póstumas editadas por Ernst Pfeiffer. O primeiro título pensado
por Lou Andreas-Salomé para o livro era: Esboço de algumas lembranças de
vida – exceto daquelas que não se deixaram privar do direito de solidão. Enquanto
essa pesquisa se fez, extraindo consistência na dissipação dos textos dessas
mulheres, suas práticas de trabalho foram interrogadas, exigindo atenção
aos indícios que deixaram, alguns gostos de escritura e criação e assim

contribuir para derrubar esse velho mito que continua a apresentar a


linguagem como o instrumento de um pensamento, de uma interioridade, de
uma paixão, ou o que mais, e a escritura, por conseguinte, como uma simples
prática instrumental (BARTHES, 1995, p. 199).

Três mulheres, indiscerníveis, impensáveis, que em proximidade infernal,


disparam “um pensamento que se metamorfoseia em diferentes níveis de
argumentação e que funciona como máquina de guerra para combater
os aparelhos que capturam o pensar educacional.” (CORAZZA, 2002, p.
32). Para que outras vidas fossem possíveis, para as vidas que se iniciavam,
na “ambivalência fundamental diante daquela que dá a vida e anuncia a

Trocadilho entre inconnu (“desconhecido”) e méconnu (desconhecido, mal conhecido, mal apreciado). (N. de T.)
30

158 • 159
morte”, em uma ambiguidade feminina que não dá ouvidos ao “clamor pela
unidade, sabe que desde o princípio dos tempos foi múltipla.” (CORAZZA,
2002, p. 85). Com as três mulheres – Lou, Anaïs e Marina – e um grupo
de alunos da Educação de Jovens e Adultos do Colégio de Aplicação da
UFRGS31, lançou-se a professora-pesquisadora, tendo, como plano de
contágio e movimento (CORAZZA, 2010), como modo, gesto, insinuação e
infiltração (COSTA, 2011) de pesquisa, as Oficinas Biografemáticas. Entendeu
que esse empreendimento de pesquisa exigiria a articulação do “oficinar” e
do “biografematizar” sem as indicações pessoais, sem conjugações. Oficinar
no infinitivo do traduzir, no infinitivo do inventar. De muitas e distintivas
formas propostas pelos que antes se ocuparam com os biografemas no grupo
de pesquisa, as oficinas foram pensadas de modo a “lidar com a biografia sem
se limitar à história referenciada.” (FEIL, 2010, p. 82). As experimentações
com os textos escolhidos eram propostas no intuito de inventariar com os
alunos “os traços biografemáticos e com eles e sem garantias, lançar-se à
imprevisível produção de biografemas.” E, enquanto prática de pesquisa,
(tentou) “imitar e simular a individuação rítmica da vida, na sua implicação
com a potencialidade de criação e fabulação de vidas novas” (OLIVEIRA,
2010, p. 20; p. 52). Na “tentativa de sustentar alguma forma provisória ao
condenado a desaparecer, ao prestes a ser fuzilado pelos acontecimentos
ditos importantes.” (COSTA, 2011, p. 15).
A pesquisa procurou afastar-se dos campos de conhecimento que
situam a leitura e a escrita próximas ao pesadume de habilidades adquiridas
e as circundam nas searas tristes das dificuldades de aprendizagem e as
classificavam como instrumentos familiares e de possibilidades restritas.

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio de Aplicação (CAp) da UFRGS atualmente conta com cerca
31

de 100 alunos no Ensino Médio e séries iniciais. Alguns destes alunos fazem parte do quadro de servidores da
Universidade e atuam em diversas áreas; outros trabalham para empresas, onde desempenham funções variadas,
e alguns são autônomos. A modalidade EJA trabalha por componentes curriculares e não por disciplina, na
busca pelo ensino multidisciplinar e não compartimentalizado. A metodologia utilizada contempla aulas práticas
e expositivas, privilegiando o conhecimento prévio que o aluno adulto já possui. Os professores instigam o
diálogo, o qual promove a inserção do aluno na sua própria construção do conhecimento. As quatro turmas
EM1, EM2, EM3 e EF3, que correspondem aos 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio e 4º e 5º anos das séries iniciais,
são frequentadas por alunos que moram no entorno do CAp, com destaque para a Vila Santa Isabel, algumas
regiões de Viamão, outros na Ilha da Pintada e Alvorada, mas o maior número ainda pertence ao município
de Porto Alegre. A faixa etária destes alunos varia entre 18 e 70 anos, e eles buscam o aprimoramento de seus
conhecimentos, além da conclusão do Ensino Médio.
Ao efetuar-se, o texto retomou a leitura e a escrita problematizando-as,
reforçando-as, enfatizando suas estranhezas, sabendo que delas nada é
dado, e suspeitou de tudo que delas escrevia ou lia. Aproximou-se do que
podia servir para encurralar a leitura e a escrita em suas próprias arma-
dilhas, tentou o que pôde para desmontá-las, para em seguida inventar,
com elas, outras relações e possibilidades. Com os alunos das turmas de
EJA que participavam das oficinas, a pesquisa Oficinas biografemáticas – um
modo de ler e escrever na EJA enveredou nos traços, no detalhe “insignificante
que constitui os espaços silenciosos de uma vida” (COSTA, 2012, p. 54).
Tentando desviar-se do estabelecido, “do que deixava de produzir novos
sentidos, tentou encontrar-se em ressonância com uma perspectiva de
contínua liberação e produção do novo.” (COSTA, 2012, p. 54) alinhou-
se ao Projeto Escrileituras naquilo que dá a pensar em Educação, com o
que aí já está de sobra, mas que, sempre, ainda é insuficiente. Fantasiou com
Corazza (2002), um currículo que conjugasse lugares, que incorporasse várias
línguas, que fosse um trabalho em processo, uma estrada em andamento,
um mar a fluir, que combatesse o pensamento que não experimenta, não
prolonga, não abala a confiança da arbitrariedade da língua.
O pensamento da Educação foi tomado como o impensável, que
variava sob as fendas que se criam no próprio pensamento, que fabulava
deslocando e invertendo as possibilidades que hoje são oferecidas na Educação,
sob os mais diversos nomes com que se operam e se instrumentalizam os
conceitos, em todos os níveis e modalidades. O pensamento tomado como
modos de perversão e experimentação, a fim de inventar outros limites
das formas da Educação, outros pensamentos que só dizem o que são ao
dizerem o que fazem. Com Deleuze (2006), considerou o pensamento, em
sua faculdade particular definida, como o que nasce nele próprio e extrai
suas condições transcendentais “não no saber, e sim, do aprender que une
sem mediar a diferença à diferença, a dessemelhança à dessemelhança”
nesse aprender que aqui se conta e se aprende. A pesquisa tentou encontrar
as condições sob as quais algo de novo é produzido, no encontro com os
problemas que surgiam na leitura, inicialmente com os textos das três
autoras e nas ressonâncias destes nos textos dos alunos e, depois, na multipli-
cidade de autores que se aproximaram e de textos que foram produzidos.

160 • 161
Uma pesquisa biografemática

A Pesquisa Oficinas Biografemáticas: um modo de escrever e ler na EJA


fez-se em “operações efetivas”, “com um certo direto” seguindo um rumo
de “traçados excêntricos de possibilidades”, “que precisava e devia ser
colocado para que assim houvesse um indireto, um desvio” (PERRONE-
MOYSÉS, 2012). Deslocou-se nos rumos e desvios com Barthes (1995,
2003, 2004, 2005, 2010), Corazza (2010, 2013), Perrone-Moysés (2012),
Costa (2010, 2011), Costa (2012), Feil (2010), Oliveira (2012), Dalarosa
(2012). Apostou nas oficinas e em tudo que nelas foi propulsado, com
textos submetidos a critérios que foram inventados para a sua escolha e
seleção, e, nos encontros destes com um grupo de alunos da modalidade
Educação de Jovens e Adultos (EJA), do Colégio de Aplicação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (CAP/UFRGS), no último
período das noites de sexta-feira, nos dois semestres de 2013 e primeiro
semestre de 2014.
Os textos foram tomados como a “lista aberta dos fogos” da linguagem,
“esses fogos vivos, essas luzes intermitentes, esses traços vagabundos
dispostos no texto como sementes que substituem as noções comuns, as
assunções fundamentais da antiga filosofia.” (BARTHES, 2010, p. 24). Ao
convocar seus integrantes à postura da produção, o projeto Escrileituras:
um modo de ler-escrever em meio à vida produz outros textos na reinvenção
do eu que escreve com o autor do texto lido. Atentos a essa convocação
do projeto, os alunos e pesquisadora lançaram-se aos Biografemas, às vias
possíveis do insignificante, ao chão comum que foi repisado de tantas e
diversas formas, às folhas dos diários e às vidas das autoras, e com o que
delas, em dispersão infinita, pode tocar alguma outra vida. As cartas e
diários de autoras que nunca se viram, mas que se encontraram, nas sextas-
feiras, na sala de aula, foram a matéria, as minúcias e sobre as quais os
alunos se debruçaram e se inventaram como criadores e fabuladores.
Por se tratar de um procedimento de pesquisa que servia aos inte-
ressados em “Vida e Obra” (CORAZZA, 2010), e na criação de uma
“metonímia desejante”, se deveria estar atento aos riscos da memória, e
aos da inércia nos vínculos estabelecidos entre estas, se deveriam cuidar
especialmente das armadilhas fáceis que surgiram através de junções,
e nos arranjos que procuravam suas causas e efeitos. A pesquisa aven-
turou-se enquanto método na leitura e escrita de textos já lidos, sabendo
apenas que “escrever é gozo, escrever é deflorar, ler é gozo, ler é deflorar”
(SALOMÃO, 2003, p. 97) e tomou a leitura como gesto do corpo que
induzia a escrita. Com Corazza (2010), apreciou os diálogos descontínuos,
desvinculando-se dos pensamentos rígidos, ousando indagar pelas forças e
pela vontade de potência que atribuíam sentidos a uma vida.
Como procedimento de pesquisa, a Biografemática deu-se na escritura,
na produção de vidas, “ocupava-se dos procedimentos de reinvenção
de um autor, ocupava-se da biografia como material de criação” (FEIL,
2010, p. 82) e, ao tomar do texto o objeto desejável, tentou a “produção de
movimentos que colocavam o autor, o texto e o leitor em constante variação
inscreveu-se na proliferação de existências e de mundos implicando na
potencialidade de criação e de fabulação de novas vidas.” (OLIVEIRA,
2010, p. 52). O fluxo consistiu em desafiar à construção criativa de unidades
mínimas de biografias, que convidasse os participantes das oficinas à
composição de um outro texto, que é, “ao mesmo tempo, do autor amado
e dele mesmo-leitor” (PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 15) e experimentar
com eles o prazer do Texto que se realizava de maneira mais profunda (e
é então que se podia dizer que havia texto): quando o texto “literário” (o
livro) transmigrava para dentro de nossa vida. “Quando outra escritura
(a escritura do Outro) chegava a escrever fragmentos da nossa própria
cotidianidade, enfim, quando se produzia uma coexistência.” (BARTHES,
2005). Consistia em viver com um autor, esse “corpo impessoal que lança
um eu” (CORAZZA, 2013), o que não significava, necessariamente, que
se cumprisse em nossa vida o programa traçado nos livros desse autor;
“tratava-se de fazer passar para a nossa cotidianidade fragmentos do
texto admirado (admirado justamente porque se difundia bem) tratava-
se de falar esse texto” (BARTHES, 2005), não de o agir, deixando-lhe a
distância de uma citação, a força de irrupção de uma palavra bem cunhada,
de uma verdade de linguagem. Para a pesquisa biografemática, nada de
uma vida é indiferente ou desnecessário: as minúcias, as trivialidades, são
intensificadas, habitam os interstícios de onde, a cada instante, podem

162 • 163
lançar-se em outro texto que vivifica o texto lido sem confundir-se com
ele. Dessa forma, a pesquisa experimentou-se em uma “Biografemática
Frontal” (COSTA, 2011) ao impor o autor como podemos vê-lo em seu
diário íntimo, “o escritor menos a sua obra” (BARTHES, 2003). “Nutrida
pelo imaginário de pegarmos ou sermos pegos pela frente” (COSTA,
2011), trouxe para a visada “os gestos ínfimos, as imagens incongruentes,
as sonoridades inaudíveis”, permitindo-lhe uma “respiração própria”
(PELBART, 2011), um “respiro que atinge corpos” e “desenha máscaras
trocadas e identifica ardis romanescos que subjazem ocultos nas franjas do
vivido” (CORAZZA, 2013).
Na Biografemática Frontal, nas escolhas efetuadas no texto amado,
do que se ama de seu autor, era preciso anotar as minúcias, as que
despertaram e embaralharam os sentidos, como aquelas que de um
sonho lembramos: “senti o cheiro da sala, vi a luz penetrar. ” (NIN,
2011, p. 372). As escritas fizeram-se a partir do desgaste, dos detalhes e
das minúcias, do desmembramento dos textos biográficos que ofereciam
matéria para a escrita, “abertos à criação de novas possibilidades de se
dizer e, principalmente, de se viver uma vida” e “nesse escrever sobre a
vida, havia um inscrever-se sob ela mesma.” (COSTA, 2011). A cada novo
encontro, o biografema ganhava, nas explicações de seus participantes,
outras versões de si mesmo, e algumas imagens eram recorrentes, “como
quando dois carros se arranham, e um fica com a tinta do outro, mas
o espelho retrovisor não cai” (J.C.R., aluno da E.M2, Oficina realizada
em maio de 2013) ou, “ é aquilo que toca a gente, que mesmo diferente
poderia ser da gente” (C.S.F., aluna da E.M1, Oficina realizada em maio
de 2013) e, ainda, “é como escutar a música e ouvir uma coisa no meio
que ninguém escutou antes” (V., aluna da E.M3, Oficina realizada em
maio de 2013). A aposta era em uma escrita feita em fragmentos, com
pedaços de diários, com os textos de alunos, sem ranços ou apegos, escrita
em composições desestruturadas. Os fragmentos como escrita de ruptura,
“na qual o enigma da escrita se liberta da intimidade de seu segredo, para
assim expor-se como próprio enigma que mantém a escrita” (BLANCHOT,
2007, p. 135). “O fragmento como um estraga prazer” (BARTHES, 1995,
p. 234), na medida em que disparava descontínuos pulverizados em
frases e imagens, proliferando pensamentos sem viscosidade, “obtidos
em um tempo, ou em um mundo, sob uma pressão, ou graças a uma
temperatura da alma.” (VALÉRY, 2012, p. 81). Na escrita que não se
apegou à linha cronológica de seus fragmentos, abrindo com eles escavação
para tempos outros, previu-se alguns riscos. Entre os tantos riscos que uma
leitura oferece, a possibilidade dos fragmentos serem lidos como peças
soltas, que não compõem uma totalidade enquanto escrita acadêmica.
Efetivamente não se procurou a totalidade: a escrita reconheceu seus
limites, sabia que alguns de seus fragmentos seriam as únicas versões
de si mesmos. Procurou-se, entre os textos dos alunos e autoras, uma
coexistência, alguns acasos felizes, mesmo que breves e fugazes, para
que com eles, provisoriamente dominados, se pudesse terminar.

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Prosa)
Biografemário de um aprender:
escrileituras em meio à vida

Josimara Wikboldt Schwantz


Carla Gonçalves Rodrigues

Resumo
Este texto se ocupa da passagem do vivido pelas escrituras. Uma professora
planifica seus trajetos aos afectos, dando consistência nas maneiras de
avaliar um aprender pelas escrileituras. Desenvolve a pesquisa em torno de
seu biografemário. Opera estudos sobre o aprender na perspectiva filosófica
deleuziana (DELEUZE, 1988; 2003). Teve por objetivo cartografar as
transformações subjetivas dispostas na relação de um aprender, relacionando
a Oficina Filodança [realizada pelo Núcleo UFPel em uma escola pública da
cidade de Pelotas/RS] a outras Oficinas do Projeto Escrileituras. Diante da
questão – Como são realizados os processos do aprender de uma professora
e dos estudantes junto às Oficinas de Escrileituras? – é possível afirmar um
aprender em Escrileituras na possibilidade de compor, em textos e mapas, a
trajetória da própria vida.

Palavras-chave
Educação. Aprender. Filosofias da diferença. Projeto Escrileituras.
Biografemário.

166 • 167
– Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?
– Depende bastante de para onde quer ir, respondeu o Gato.
– Não me importa muito para onde, disse Alice.
– Então não importa que caminho tome, disse o Gato.
– Contanto que eu chegue a algum lugar, Alice acrescentou à guisa de explicação.
– Oh, isso você certamente vai conseguir, afirmou o Gato, desde que ande bastante.
Carroll, 2009, p. 76-77.

Eis aqui a instalação de um mapa32 que demonstra o percurso anda-


rilhado por uma professora-que-aprende ao escrever em seu biografemário33.
Plano que deu consistência, coexistindo e combinando os trajetos aos
afectos, de maneira a avaliar um aprender. Dessa forma, ela escreve
observando-se enquanto aluna, pesquisadora, oficineira. Conta sobre os

32
Os planos cartográficos foram traduzidos a partir da obra de Jazzberry Toronto Blue e Science photo library em
Abstract Woman’s body.
33
Caderno que tem por propósito a escritura a partir do olhar do ínfimo de uma vida e do processo por onde se
efetiva o aprender. Material que suporta as composições escriturais em torno do que se constituiu a pesquisa.
Inspirado no conceito de biografema de Roland Barthes a partir de Costa (2010).
processos de um aprender constituídos a partir de uma Oficina realizada
no ano de 2013 em uma escola pública na cidade de Pelotas/RS agenciada
às experiências estéticas nos modos de ler e escrever que aconteceram
no período de execução do Projeto Escrileituras (CORAZZA, 2011a).
A professora propõe um trabalho em Escrileituras, pois é a partir
dessa configuração conceitual que inicia a investigação apresentada.
Empreendimento que a encontrou e produziu coisas nela. Um Projeto
inventivo, audacioso, adaptável. Nunca sai sem deixar um pouquinho de
si e levar outro tanto de todos. Um Projeto atemporal, não localizável, que
se situa em todos os espaços e em nenhum ao mesmo tempo. Circula pelas
superfícies. Cria passagens de vida, nas leituras e escrituras que produziu,
nos diversos lugares por que passou.
Ele escolhe seus próprios teóricos. Tem vida própria. Um bando se
junta a ele e ele aceita. Implica ensinar e aprender a partir do ato de criação
textual, no agenciamento de três áreas do conhecimento: Arte, Filosofia e
Educação. É espalhado. Se amplia e se alastra como fogo. Já não é possível
mais alcançá-lo em um número estatístico. Ele surge da invenção de
Sandra. De outros e tantos. Da Filosofia. Dos alunos. Da Literatura.
Dos problemas. De Nietzsche. De Deleuze. Do poético. Da negação aos
clichês. De Guattari. Da Arte. De Barthes. Da Universidade. Das ideias. Do
pensamento. Da Ciência. De Foucault. Da vida.
Para compor a dissertação de mestrado desenvolvida no ano de 2013
e de 2014 a professora apostou na temática do aprender ao acionar uma
perspectiva filosófica da diferença, mais especificamente, nas obras de
Deleuze (1988; 2003). De acordo com o autor (DELEUZE, 2003), tudo
aquilo que ensina algo emite signos que não são incididos de abstrações,
pelo contrário, são objetos de um tempo real e presente. Só há aprendi-
zagem na medida em que se constroem os próprios problemas, produ-
zindo um pensamento.
Aprender requer essencialmente a ação de interpretar signos, pois
é ele o objeto do encontro e que exerce uma força sobre aqueles que o
interpretam, “o acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo
que é pensado” (DELEUZE, 2003, p. 15). O que força a pensar são os
signos. É deles que emanam as forças que violentam o pensamento no
embate com alguma matéria. Não há como significá-los. Eles só podem

168 • 169
ser sentidos, pois “nem existem significações explícitas nem ideias claras,
só existem sentidos implicados nos signos” (DELEUZE, 2003, p. 91).
A professora acredita na possibilidade de articular conceitos que
contribuirão para pensar nas estratégias de enfrentamento dos problemas
vivenciados na educação no que tange aos modos com que são realizados os
processos do aprender docente e estudantil. Tem como objetivo cartografar
a transformação disposta na relação de um aprender. Traz como problema
de pesquisa uma questão: Como são realizados os processos do aprender
de uma professora e dos estudantes junto às Oficinas de Escrileituras? Os
caminhos tracejados no mapa servem de matéria prima na composição das
linhas de uma vida docente que aprende, pois há ali um ato de decifração.
As trajetórias percorridas pela professora, em cada curva alcançada, a
cada aventura desbravada nesta empreitada, são emissores de signos.

Signos que passaram na Oficina de Escrileituras


A Oficina Filodança foi realizada pelo núcleo UFPel com uma turma de
terceiro ano do ensino fundamental de uma escola da cidade de Pelotas/
RS em 2013. Este trabalho é apresentado em sua forma extensiva, na
composição que o fizeram acontecer. Uma tentativa de demonstrar como
se constitui um aprender dos estudantes junto ao Projeto Escrileituras. Se
aprender é criar os próprios problemas a partir de um encontro que emite
signos, de que forma a Oficina promoveu encontros e aprendizagens?
Como outras Oficinas34, também, produziram aprenderes?
A Oficina Filodança deu-se em razão das necessidades de se investigar
as potências do corpo e sua influência no ato de ler e de escrever por uma
criança estudante. Considerando o corpo como sendo tudo (NIETZSCHE,
2006) e entendendo-o como um produtor de intensidades, foi pertinente
pensá-lo como um lugar de problematização que se relaciona com os
escritos e questiona o mundo. Houve encontro com as ideias sobre corpo
em Spinoza (2007) e em Nietzsche (2006). A biografia da autora Clarice

Foi escolhida uma Oficina de cada um dos Núcleos do Projeto Escrileituras realizada com crianças no ano de
34

2011para a composição da pesquisa: Oficina Cores, sabores e texturas [Núcleo UFMT]; Oficina Filoescritura com
Kafka [Núcelo UFRGS]; Oficina Vida! Hoje tem espetáculo [Núcleo Unioeste]. Oficinas estão disponibilizadas no
Caderno de notas 5 (RODRIGUES, 2013). A Oficina Filodança [Núcleo UFPel] não está disponível no Caderno de
notas 5, pois foi um trabalho efetivado em 2013.
Lispector foi apresentada a eles. Houve a experimentação de leitura para
discutir sobre A vida íntima de Laura (LISPECTOR, 2013).
A história de Lispector é movimentada por muitos questionamentos
realizados ao leitor. Esse movimento fez com que os alunos participassem
com mais curiosidade ao trabalho. Em conversa coletiva, após a leitura, as
crianças foram sendo questionadas: Quem era Laura? Porque a autora quer
contar a vida íntima de uma galinha chamada Laura? Quais eram os pensamentos
de Laura? Neste momento, elas participaram respondendo às questões que a
autora e os oficineiros realizavam.
Dois movimentos foram planejados para a produção de escrituras
como tentativa de operacionalizar as escrileituras no instante da Oficina.
O primeiro se deu a partir da ideia de escrever uma carta à galinha.
Algumas crianças ficaram animadas com a proposta feita. Dos 25 alu-
nos, 16 se propuseram a participar. Uma folha foi disponibilizada. Seis
deles utilizaram desenhos para representar a galinha, além de expressar-
se em pequenas frases.
Considerando que, para Deleuze (2003), o ato de pensar vai além do
representar, não há dúvidas em relação ao ato recognitivo e representa-
cional realizado por alguns dos estudantes diante da proposta de escritura
epistolar direcionada à personagem principal do livro. Esse movimento
demonstrou a frágil capacidade, ainda, de invenção pelas crianças ao
modificar a realidade em questão a partir da escritura. Neste primeiro
movimento da Oficina, foi percebida uma resistência à fabulação, fato
ocasionado pela pouca exploração da escrita para determinado fim.

“A Laura tinha muita mania de comer” (Alice).


“Laura tinha filhinhos, ela gostava de comer porque ela tinha mania” (Dorothy).
“Laura gostava de comer porque tinha mania. Laura é feliz do seu jeito.
Beijo Laura” (Ruth).

É possível considerar estas escrituras a partir de algo que inflama


este movimento analítico: o efeito das questões realizadas pelos ofici-
neiros após a leitura do texto de Lispector. Os problemas criados se
tornaram frágeis em razão daquilo que se queria propor: um pensamento.
A significação foi o efeito ocasionado em razão das perguntas direcio-
nadas como, por exemplo, Quem era Laura? De acordo com Deleuze (1988,

170 • 171
p. 243), sabe-se “que o problema não é dirigir, nem aplicar metodicamente
um pensamento preexistente por natureza e de direito, mas fazer com
que nasça aquilo que ainda não existe [...]”.
Dessa maneira, fez pensar em como foram criados os problemas
durante o planejamento da Oficina, pois não causaram a implicação
desejada: a produção do pensamento a partir de algo que o force a pensar.
Mostra-se importante olhar com atenção para este aspecto de como
produzir perguntas de maneira a alcançar um aprender. Os problemas não
são dados, mas devem ser constituídos e investidos em campos simbó-
licos que lhes são próprios, de modo que violente o pensamento. Um
problema não existe fora de suas soluções, mas está intimamente im-
plicado com o sentido que é dado a elas, de acordo com as circunstâncias
estabelecidas (DELEUZE, 1988).
A professora percebeu, nos escritos de alguns dos estudantes, aquilo
que para eles ficou mais evidente após a história ter sido contada: a
relação com a comida. Um fato que chamou a atenção dos oficineiros foi
a constante “mania de comer” que as crianças tinham, tal qual Laura. A
todo o momento das atividades, eles estavam mastigando algo, além de
dois intervalos para refeições, um cedido pela escola e outro para aqueles
que levavam seu próprio lanche. Tratou-se de uma ocasião pouco explorada
pelos oficineiros que desenvolveram a Oficina, não aproveitando esse
espaço para experimentar o corpo ao alimento, de maneira a observar o
acontecimento derivado desta ação, indo ao encontro da ideia trabalhada
na Oficina de Escrileituras Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em
cena (BIATO, 2013, p. 99).
Em razão de um questionamento35 movido pelos pensamentos da
professora-que-aprende, de acordo com as palavras da oficineira que
conduziu o trabalho acima, detecta que o aprender está relacionado à
percepção. Uma maneira possível de transcriar a saúde ao corpo, afirmando
a relevância de operar uma escrita de si como “produção de si, de estilos
de individuação” [resposta de Biato ao questionamento da professora].
Retornando à análise sobre os escritos dos estudantes participantes
da Oficina Filodança, pode-se considerar a matéria comida como um signo

Questionamento realizado via e-mail: De que maneira(s) se constituiu (constituíram) a(s) aprendizagem(ns)
35

do ler e do escrever na Oficina de Escrileituras denominada Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena?
sensível potente, pois é da ordem dos sentidos [sabor] que causa um efeito
de alegria, também possibilitando a relação entre memória involuntária
e a própria imaginação. O aprender é movido nesta circunstância em razão
de que há um encontro com a comida e Laura de maneira que estes objetos
“faz realmente nascer a sensibilidade no sentido [...]. Não é uma qualidade,
mas um signo. Não é um ser sensível, mas o ser do sensível (DELEUZE,
1988, p. 231) oferecendo a possibilidade de escrever.
A Oficina Filodança tentou favorecer essa percepção, de um corpo que,
ao se movimentar, é suscitado a escrever pelas forças advindas do meio,
um processo de escrileituras. Não há paradas obrigatórias [para ler; para
escrever; para pensar] nem fluxos contínuos, mas escrituras intermitentes
que se movimentam em um tempo que é redescoberto (DELEUZE, 2003),
pela invenção de problemas que deem a pensar, alcançando um aprender a
partir de um corpo à espreita. Esse processo de escuta ao corpo remeteu à
Oficina de Escrileituras Vida! Hoje tem espetáculo!36 (BRACHT, 2013).
As máscaras produzidas durante a Oficina Vida! emitiram signos
aos estudantes no momento em que serviu como “disparador do
autoconhecimento e do conhecimento do outro, fazendo nascer momentos
de registros escritos informais e formais [...]” (BRACHT, 2013, p. 225).
Assim é possível verificar a alternativa de criar, não somente em meio ao
teatro, à dança e às artes, mas pelas escrileituras, um sentido a si mesmo,
desmascarando as identidades incrustadas no corpo-aprendiz que lê e
escreve a partir daquilo que lhe toca.
Na continuidade da Oficina Filodança dentro da sala de aula, ao
terminarem suas escrituras direcionadas à galinha Laura, as crianças se
prepararam para a assistir um fragmento do filme Billy Elliot37. Uma ten-
tativa de demonstrar como a dança pode modificar o modo de pensar
sobre o mundo e se relacionar com ele, colocando o corpo em movimento
a partir de uma potência que vibra dentro de cada um. As classes retiradas
de seus lugares e o chão constituíam o local disponível naquele instante.
Antes de saírem para o recreio, cada participante retirou, de uma caixa,
pequenas frases recortadas do material literário (LISPECTOR, 2013) e dos

36
Oficina de Escrileituras realizada em 2011 pelo Núcleo Unioeste. Disponível no Caderno de notas 5 da Coleção
Escrileituras (RODRIGUES, 2013).
37
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=jXd967T6mno>.

172 • 173
conceitos filosóficos discutidos (NIETZSCHE, 2006; SPINOZA, 2007).
Cedeu-se um espaço para o aluno que quisesse ler sua pequena frase. Apenas
dois estudantes realizaram a leitura com certa dificuldade no próprio ato de
ler, mas compreendendo a proposta de retomar o que tinham trabalhado no
primeiro momento da Oficina. Alguns alunos manifestavam a rejeição ao
trabalho afirmando com palavras firmes: “eu não leio direito” ou, até mesmo,
“eu não sei ler”. Esta inibição ao realizar a tarefa de leitura leva a considerar
o postulado evidenciado por Deleuze (1988) sobre o “negativo do erro”.
O erro é visto como um desvio do correto a se pensar, uma falha do bom
senso. O que se desvia desses moldes é tido como loucura, besteira.
Com o retorno do recreio algumas dificuldades foram encontradas
em retomar o trabalho, pois as crianças estavam muito dispersas. O que
se percebia, naquele momento, era uma necessidade do corpo expressar-
se, como o grito por um espaço em que ele pudesse respirar, articular-se,
misturar-se àquele ambiente. O corpo discente escolar pedia passagem a
essa liberdade no instante em que se apropriava do novo espaço da sala
de aula e, também, ao desejar não estar mais naquele ambiente, pelo menos,
no tempo em que foi definido para se estar lá [quatro horas por turno] e o
que se aproveita em matéria de aprendizagem, nesta ocasião. Há transfor-
mação de um corpo que reage. Uma metamorfose.
A Oficina de Escrileituras denominada Filoescrituras com Kafka: expe-
rimentações no ensino fundamental (SCHULER, 2013, p. 17) é incitada neste
instante, por transcender aprendizagens à professora. Em razão de outro
questionamento38 movido pelos pensamentos da professora-que-aprende,
agora direcionado à oficineira Betina Schuler, é possível detectar, de
acordo com as palavras dela, que conduziu o trabalho acima, que o ato
de ler e escrever é tomado por uma experiência intensiva a partir de uma
apropriação das forças que se expressam nos textos construídos. Dessa
forma, ela afirma um aprender em escrileituras passando por três funções:
política [que busca atravessar toda uma maquinaria na linguagem que é
tomada por representação]; ética [que problematiza os modos de subjeti-
vação na contemporaneidade]; estética [que produz outras possibilidades
de vida e pensamento].

Questionamento realizado via e-mail: De que maneira(s) se constituiu (constituíram) a(s) aprendizagem(ns) do ler
38

e do escrever na Oficina de Escrileituras denominada Filoescritura com Kafka: experimentações no ensino fundamental?
Na metamorfose de um corpo que reage, volta-se à Oficina Filodança.
Os estudantes entraram para a sala. O prosseguimento daquilo que tinham
trabalhado no período anterior ao intervalo tornou-se importante para ativar
o processo de produção do conhecimento. Dessa forma, questionou-se: O
que isso que eu li, a partir daquilo que estudei, me faz pensar e me faz escrever?
Nenhum aluno respondeu. A passividade, movida pela dispersão, unida
à falta de vontade de participar preocupou os oficineiros. No entanto, fez
pensar que esse silêncio possa ter sido o gerador de um pensamento em
torno da questão realizada, como possibilidade não de respondê-la, mas
de sair dela. Para Deleuze (DELEUZE; PARNET, 1998), há devires que
atuam em silêncio; portanto, tornam-se imperceptíveis. Um devir “é jamais
imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de justiça ou
de verdade [...]” (Ibid., p. 10).
Seguindo, como atividade final, convidaram-se os discentes a criar um
dicionário de novos sentidos, a partir de palavras selecionadas em torno de
alguns conceitos que tinham trabalhado e discutido na Oficina, consolidando-
se o segundo movimento de escrileitura. Abertura, também, à condição de
Transcriação (CORAZZA, 2011b), que opera um texto que é traduzido e
composto a uma nova língua na própria língua. Um movimento de expressão
escritural que abarca a possibilidade de criação sobre um texto existente
que, ao ser traduzido, sofre transformações, desvinculando-se do original.
Palavras eleitas foram usadas para a composição escritural [dicionário]
das crianças, a partir daquilo que estudaram durante a Oficina: corpo; alma;
escrever; palavra; criança; íntimo, pensamento, si. Para auxiliar na compreensão
de como operacionalizar a atividade final, a leitura do livro Girafa não serve
pra nada (ARAGÃO, 2000) foi praticada. Este material literário cintilou
afecções nos estudantes e favoreceu a produção de escrituras.
Foi possível perceber, a partir da escritura de uma criança para o
dicionário, a estreita relação feita diante do sentido de escrever. Para eles,
esse trabalho é movido pela intensidade com que copiam “coisas” do quadro
e dos livros didáticos:

“Escrever é como copiar” (Willy).


Uma resistência ao escrever, permeada de angústia, foi percebida
de imediato. Tomando-se por base a análise apresentada por Deleuze

174 • 175
(2003) diante da obra de Proust, a angústia é um efeito causado pelos
signos amorosos. A faculdade que interpreta esse signo é a inteligência,
que é suscitada a acalmar esse sofrimento, sendo preciso transmutar em
alegria.

“Alma: vento que controla o corpo” (Manoel).


No momento em que a proposta foi destituída de uma “avaliação
final”, as escrituras foram acontecendo, sem qualquer exigência de uma
gramática “correta” da Língua Portuguesa. Mais uma vez a destituição de
uma imagem dogmática que só reconhece o erro como uma “desventura do
pensamento” (DELEUZE, 1988, p, 244). O signo amoroso foi interpretado
pelos oficineiros na medida em que manifestou uma escritura possível, de
maneira que “seu sentido se encontra na contradição daquilo que revelam
e do que pretendem esconder” (DELEUZE, 2003, p. 80). Desse modo,
a escritura apresenta uma incongruência entre aquilo que foi afirmado
pelos estudantes, “Não sei escrever”, e o que de fato revelaram, ao inventar
palavras no dicionário, enfrentando as dificuldades apresentadas no
primeiro momento da Oficina quando escreviam uma carta à galinha
Laura, personagem do material literário de Lispector.

“Alma é uma coisa que está dentro da gente. Quando uma pessoa morre não é a
alma que morre é o corpo que para de se mexer” (Sophia).
Dos signos emitidos aos efeitos que levaram alguns estudantes a es-
crever, havia potência na leitura realizada em torno das matérias agen-
ciadas ao ato de escrileiturar. As ressonâncias produzidas em torno de um
aprender configuraram as transformações de uma escritura. Aprenderam
na medida em que o processo se movimentou na busca por uma verdade
que cada um interpretou a sua maneira. A concepção filosófica de Deleuze
(1988; 2003) se mostra potente, também, por sensibilizar o olhar do
professor diante dos signos emergidos em uma sala de aula, por exemplo.
E, propiciar, pelo agenciamento de matérias, a redescoberta de um tempo
que reúne o sentido e o signo, alcançando um aprender que menos se faz
por métodos, mas pela necessidade de construção de verdadeiros problemas,
na perspectiva teórica adotada.
Aprender em Escrileituras
Um aprender em Escrileituras é possível porque o Projeto apostou na
potência das passagens de vida como matéria de escritura. Um aprender,
igualmente, pela experiência que serve de condição para escriler. Um
aprender que é processado no próprio texto, no momento em que escreve
pelos pensamentos que são acionados na realização dos agenciamentos
possíveis que cada um faz. Um aprender pelas Escrileituras é possível, pois
o texto criado é composto por uma heterogeneidade de elementos, de gente
e de vidas que são lidos e escritos, necessitando ser traduzido de variadas
formas.
Não se aprende em Escrileituras por um método linear e pragmático,
aprende-se de modo artistador, um método tipo rizoma, que corre por
fluxos, por linhas que se cruzam e enxergam as forças emanadas do tra-
balho efetivado. É por meio dos experimentos realizados, durante os
quatro anos de pesquisa no Projeto Escrileituras, que a professora aposta no
estudante-que-experimenta-e-aprende sendo capaz de criar suas próprias
composições textuais, com seus estilos singulares, a partir dos agencia-
mentos alcançados.
A constituição de dois planos [extensivo e intensivo] apresentados no
mapa marca o território de alguém que aprendeu. Processam-se menos por
uma linearidade de conceitos, saberes ou fases de desenvolvimento que
transformam uma professora em muitas outras. Em que elas se diferenciam?
Pelo tanto que cada uma caminha, em trajetórias escolhidas por ela mesma,
ou pelas circunstâncias da vida. Diferenciam-se por aquilo que se deixam
afetar, o roçar-se do mundo em si, um roçar-se da educação em si, também,
pois são professoras. O processo do aprender se constituiu de forma
intensiva na conjugação daquilo que deslocou o percurso de um ponto a
outro, envolvendo-se com e no mundo, não deixando nada de fora de seu
delírio constante.
Por fim, a professora se vê em caminhos que são desenhados diante de
uma vida. Descobre a aprendizagem nos lugares todos, na intensidade de
um plano que se faz pelos afectos agenciados a partir das trajetórias e das
matérias oferecidas e dispostas para um aprender na Arte, na Filosofia e
na Ciência. A trajetória afeta diretamente uma professoralidade, pois esta

176 • 177
escolha está relacionada ao lugar que se deseja chegar e isso acarretará uma
série de encontros, potencialidades e causalidades, bem como Alice [no País
das Maravilhas] se depara em cada caminho que elege como seu.

Referências
ARAGÃO, José Carlos. Girafa não serve pra nada. São Paulo: Paulinas, 2000.

BIATO, Emília Carvalho Leitão. Cores, sabores e texturas. Fantasias do corpo em cena. In:
RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, educação,
filosofia. Oficinas produzidas em 2011. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção
Escrileituras)

CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no País das Maravilhas; Através do Espelho e o que Alice
encontrou por lá. (Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges). Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

CORAZZA, Sandra Mara. Projeto de pesquisa: Escrileituras: um modo de “ler-escrever” em


meio à vida. Plano de trabalho. OBS da Educação. Edital 038/2010. CAPES/ INEP. Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFRGS, setembro de 2011.

_____. Notas para pensar as Oficinas de Transcriação (OsT). In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.).
Caderno de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. (Coleção Escrileituras)

COSTA, Luciano Bedin da. Biografema como estratégia biográfica: escrever uma vida com
Nietzsche, Deleuze, Barthes e Henry Miller. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-
Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: UFRGS, 2010.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. (Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado). Rio de
Janeiro: Graal, 1988.

_____. Proust e os signos. (Tradução de Antonio Piquet e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003.

_____.; PARNET, Claire. Diálogos. (Tradução de Eloisa Araújo Ribeiro). São Paulo: Escuta, 1998.

LISPECTOR, Clarice. A vida íntima de Laura. Online. Disponível em: <http://portugues.seed.


pr.gov.br/arquivos/File/ClariceLispector(1).pdf>. Acesso em: nov. 2013.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. (Tradução de Ciro Mioranza). Série
Filosofar. São Paulo: Escala Educacional, 2006.

RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, edu-
cação, filosofia. Oficinas produzidas em 2011. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção
Escrileituras)

SCHULER, Betina. Filoescritura com Kafka: experimentações no ensino fundamental. In:


RODRIGUES, Carla Gonçalves (Org.). Caderno de notas 5. Oficina de Escrileituras: arte, edu-
cação, filosofia. Pelotas: Editora Universitária UFPel, 2013. (Coleção Escrileituras)

SPINOZA, Benedictus de. Ética. (Tradução e notas de Tomaz Tadeu). Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2007.
Timpanização de escrileituras.
Vias marginais para objetos duplos

Emília Carvalho Leitão Biato


Silas Borges Monteiro

Resumo
Este estudo se insere no desenvolvimento do Projeto Escrileituras no núcleo
UFMT. Surge da proposição de duas Oficinas de Transcriação tematizadas por
corpo e saúde (Fantasias em cores, sabores e texturas e Cartas). Tem, como
objetivo, ensaiar um método de tomada do texto que se configura como
duplo, de modo a fugir das generalizações e das representações, um método
de timpanização. Timpanizar parece ser ação de movimentar o pensamento
e descrevê-lo em bases novas: filosofar com um martelo. Num ensaio de
timpanização, para o qual propusemos três gestos indissociáveis: tatear
escombros, disseminar sentidos e criar cadeias suplementares. Apresenta-se
como uma perspectiva de preparação do professor/profissional da saúde para
o ensinar e aprender que privilegiam as forças plásticas, potências de criação
da vida. Alternativa às condutas massificadoras de observar e analisar e de
desenvolver atividades educativas.

Palavras-chaves
Timpanização. Escrileituras. Saúde. Margens. Duplos.

178 • 179
1. Apresentação
Este estudo se insere no movimento de abertura a experimentações,
provocações, opções inusitadas e exorbitâncias, em processos educativos
que envolvem a leitura e a escritura como práticas indissociáveis.
Com foco nas artes visuais, nos biografemas, em filosofia, lógica, música
e corpo ou teatro, desenvolvemos, no projeto, Oficinas de Transcriação (OsT),
que se põem a ligar o tempo ordinário à produção do novo (DALAROSA,
2011).
Propusemos, entre outras, duas OsT tematizadas pelo corpo e saúde
(Fantasias em cores, sabores e texturas e Cartas), e as realizamos, em momentos
diferentes, com alunos da Escola Estadual Paciana Torres de Santana,
participante do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida,
núcleo UFMT, que se vincula ao Grupo Estudos de Filosofia e Formação
(EFF).
Uma das linhas de pesquisa criadas pelo Prof. Silas Borges Monteiro no
contexto do EFF é chamada de Diferença e normalização em educação e saúde,
e tem a perspectiva de promover estudos de característica desconstrutora,
agenciados pelas filosofias da diferença e suas discussões. Abordamos, nesta
linha, conceitos relevantes para a compreensão dos campos da saúde e da
educação em suas interfaces, com abertura à singularidade, às potências
criadoras, à experimentação do corpo e aos estilos de individuação.
Neste sentido, num desvencilhamento em relação a posições prescri-
tivas e até imperativas, que podem envolver a ação educativa em saúde, o
que se propõe nas OsT discutidas aqui, é que a criação e a poética sejam
priorizadas na produção de saúde e vida de cada um, que aqui ganha a
forma de escrileituras. Tanto os textos dos autores consagrados (da filosofia,
do teatro e da saúde), quanto os textos vindos das oficinas de transcrição
nos serviram de empiria para a elaboração da problemática e desenvolvi-
mento dessa pesquisa, que se configura como um estudo sobre o método
de tomada das escrileituras da saúde.

2. Problemática
– Eu vou fazer uma amarração para o braço, aqui, as tiras, e com os pés...
E vêm os anjos e me levam em cima, a certa altura, e dizem: pai, arrasaram
o mundo em fogo Arthur Bispo do Rosário (apud Hidalgo, 2012,
p. 231-232).

Em minúcias da visão divina, Bispo do Rosário trata de sua condição


humana e proclama acontecimentos por vir. Leitura e escritura de
intensidades e vanidades das vivências tramam a vida em expansão, como
vir-a-ser, expressão da vontade de potência. É indiscernível a divisão entre
um e outro movimento. Amarração de braços e pernas: corpo, minúsculas
células que levam o tornar-se. Corazza pondera com Deleuze que o
escrever é um processo, é um inacabamento, “sempre em vias de fazer-se”
(DELEUZE apud CORAZZA, 2006, p. 26). O fazer-se é exercício do texto e
exercício de si: o escrever como percurso incessante do tornar-se o que se é.
O termo escrileituras, portanto, vincula-se a um modo de dizer do ler
e do escrever como gestos que vazam um no outro: um duplo gesto. As
escrileituras se configuram pelo livre circular entre obra lida e obra escrita,
em movimentos indissociáveis. A vida, como vir-a-ser interminável carrega
seu cadáver, ao que a escrita produzida em meio à vida ganha caráter
biográfico e é, simultaneamente, escrita thanatográfica.
De modo análogo ao da leitura-escritura biothanatográfica, a saúde
parece carregar as contradições de ser, simultaneamente, doença. Saúde que
Nietzsche chama de “uma tal” (ZA, § 2), que não permite afirmar “eu tenho”,
pois sempre se perde e sempre se adquire. Vida que abrange a sanidade e a
patologia, como vontade de potência que se efetiva em multiplicidade de
forças sempre em combate umas com as outras.
Esta noção de coexistência se materializa no pensamento sobre o
duplo, mas não como uma contradição solucionável em uma síntese. A
base em “dois” está no método estruturalista de abordagem das narrativas,
e é característico do pensamento metafísico ocidental. Em busca pelo
rompimento com esta noção, optamos por tentar entender o duplo a partir
da filosofia desconstrutora do francês Jacques Derrida, filósofo do século
XX (1930 a 2004) e leitor de Friedrich Nietzsche.
O trecho “Meu rosto é lindo, maravilhoso. É um limão. Os olhos são duas
uvas; o cabelo é um cacho de uvas. É um menino muito triste….” (SANTOS
NETO, 2011), é um recorte do que foi escrito pelo estudante que estava

180 • 181
no quarto ano durante a primeira etapa da OsT Fantasias. Como tomar a
escrileitura de Benevides dos Santos Neto, sem despregar suas amarrações,
diante da indagação nietzschiana “Como separar vida e obra, saúde e
doença” (NIETZSCHE, EH, Posfácio)? Quais as vias de aproximação
à produção dos oficinantes? Como tomá-las sem nos embrenharmos em
percursos hermenêuticos de causa e efeito? O rosto-limão parece vivência
do corpo em movimento de tornar-se. Como captar e inventar o tornar-se?
Que gestos seriam necessários à chegada à nervura de escrita autobiográfica
de saúde e doença?
Este trabalho tem, como objetivo, ensaiar um método de tomada do
texto que se configura como duplo, de modo a fugir das generalizações e
das representações. Propor, como via de pesquisa e de ação educativa, o
encontro com forças em combate que constituem modos de efetivação de
vida e saúde.

3. Apontamentos teóricos
3.1. Escrileituras
O corpo curtido de suas intimidades, da fruição da vontade e de seus
duplos, é traçado no texto, e, de acordo com o cumprimento do que se
dispõe a fazer, conserva a sua assinatura e pontua sua “escrita performativa”
(DERRIDA, 2009, p. 12). Dizer da escritura é dizer, então, do duplo: traçado
do combate de forças em luta e confissão da vontade povoada de pensamento
e sentimento, e que quer mais vida. É tomar o corpo que abriga o múltiplo e
se movimenta como “escrita transbordante” (COSTA, 2010), o que Derrida
chamaria de “escrita bífida” (DERRIDA, 2001, p. 49), disseminativa
de infinitos sentidos. Se por um lado, o corpo-escritura performatiza as
vivências, como se pudéssemos enxergar os traços e os sentidos dos vetores
em plena luta, por outro, ele expõe o biográfico carregado do thanatográfico.
Consideramos, ainda, que a escrileitura se associa ao prazer de es-
crever de si para si mesmo, como exercício de autoafecção, relação dionisíaca
com a existência, de quem se deleita e experimenta os excessos de sua
própria letra, na culpabilidade e no prazer; ao mesmo tempo, este mesmo
material é enviado para alguém, porém, já começa seu percurso em desvio
e, assim, toma seu trajeto errante: escrileitura em envio e este como
destinerrance. É nestes termos que o remetente/autor assina seu texto. E
que o destinatário errante o recebe.

3.2. Corpo e Saúde


Os corpos dos soldados russos se deixavam quedar na neve, entregues
à morte, como valentes guerreiros que se apegam à vida estritamente
do modo como esta se faz. A hibernação parece a opção mais atraente
diante da dor que se experimenta: redução de movimentos, limitação do
funcionamento orgânico ao mínimo requerido para a garantia das funções
vitais. Se tomarmos o corpo como multiplicidade de forças sempre em
luta, a denominação de fraqueza e doença direcionada ao que sofre a
dor seria, para dizer pouco, simplista. São elementos de combinações de
forças que querem mais vida.
A grande saúde de Nietzsche inclui a morte como instante de vida,
que, vista desse modo, pode ser tomada como um duplo. Destarte, a saúde
inclui a doença e é tomada sob a lei da adição (e doença, e dor, e alegria,
e…); não é simplesmente consensuada histórica e sistematicamente:
ela desdobra-se em si mesma, formando um feixe de possibilidades con-
ceituais.

3.3. Timpanização
O discurso da filosofia é tema da obra Margens da Filosofia (DERRIDA,
1991), e se caracteriza por afirmar-se a partir do estabelecimento de limites,
inclusive seus próprios. Num movimento para assegurar a permeabilidade
da prática discursiva da filosofia, não mais estabelecendo-a em seus espaços
dentro e fora, Jacques Derrida deseja superar os limites, refletir sobre
desbordamentos.
Timpanizar parece ser ação de colocar-se às margens, movimentar o
pensamento e descrevê-lo em bases novas: filosofar com um martelo. O
martelo, por um lado, dá as pancadas no tímpano, como o batuque num
tambor (e não é à toa que o verbete membrana timpânica no Dictionary of
Health Education (2010) traz o termo “ear drum”, como drums: tambores).
Por outro lado, o martelo é órgão que amortece as vibrações e evita que
o tímpano sofra as dores da violência das vibrações sonoras. De caráter

182 • 183
duplo, as marteladas rasgam e amortecem a membrana. A timpanização
é recital de batuques.
Para ler os textos produzidos nas Oficinas de Transcriação, em expressões
de vivências que alimentam instintos sempre em luta, é preciso uma intensa
percussão capaz de fazer vibrar o tecido do pensamento em timpanização,
num jogo de encadeamentos, no qual “tramar é (...) furar, atravessar,
trabalhar de um lado e do outro da cadeia” (DERRIDA, 1991, p. 30). É
preciso enfrentar as margens – “comer a margem, luxando o tímpano”
(DERRIDA, p. 27). Se o tímpano virgem e estirado recebe a impressão da
verdade, aqui, o tecido enrodilhado e perfurado vibra a vida mesma, no
que ela se caracteriza como trama inventada, manifesta como o indecidível
característico das lutas de forças.
É assim que procuramos entrar nos textos, no movimento de escriler.
Não perscrutamos o pensamento, nem mesmo o querer-dizer ou repre-
sentar. Somos, como pesquisadores, de algum modo, afetados pelo texto
do outro e impregnados de vivências singulares, e aguçamos os ouvidos
aos rastros do autor.

4. Vias do estudo
As Oficinas de Transcriação Cartas (com estudantes do 9º ano da Educação
Básica) e Fantasias em cores, sabores e texturas (com estudantes do 5º ano) foram
constituídas de abordagem e aproximação de obras de autores, pintores,
artista – como Ziraldo, Giuseppe Archimboldo, Rochelle Costi na OsT Fan-
tasias e Artaud, Van Gogh e Nietzsche na OsT Cartas –, com função ins-
piradora e mobilizadora de vida. Foram escolhidos, para as oficinas, temas
relacionados à experimentação do corpo e à saúde: a alimentação e os usos
dos alimentos; a dor, a privação, as sensações do adoecimento e da loucura.
O movimento proposto para as OsT, de leitura pregada à escritura,
acaba por ser misturado ao método do estudo: se, por um lado, o partici-
pante da oficina traduz transcriando o oficinado, o pesquisador se envolve
num movimento de transcriação, numa tentativa de “chegada à fruição
pela coabitação das linguagens” (BARTHES, 1987, Seção 7). Claro está,
portanto, que a neutralidade do pesquisador, neste processo, é impossível
e nem é requerida.
Tomamos, neste trabalho, trechos de escrileituras das crianças par-
ticipantes e realizamos a escrileitura desses trechos, num ensaio de
timpanização, para o qual propusemos três gestos indissociáveis: tatear
escombros, disseminar sentidos e criar cadeias suplementares.

4.1. Tatear escombros


Para que seja possível luxar os tímpanos, é preciso haver uma nu-
trição com as forças encontradas no discurso a ser desconstruído, uma vez
que o objeto da desconstrução serve de substrato para o procedimento:
propõe-se, portanto, a manipulação dos elementos que parecem prontos
na linguagem, com a apropriação do envio do emissor. Bem, mas não
caberia nesta matriz de pensamento, que fosse requerido do pesquisador
uma retomada das origens do texto enviado. O que se espera desse “tatear”
é que se notem os jogos de forças, sem tentar encerrá-los e solucioná-los:
que se deixe o enigma sublinhado (BARTHES, 2005).

4.1. Disseminar sentidos


Gesto que o oficinante como escrileitor dissemina e o que o professor
e o pesquisador disseminam, ou seja, declaram como linguagem de fuga
às familiaridades; verdades do instante. É uma operação de indecidíveis.
A polissemia já se configura como um progresso em relação à
linearidade da escrita e à tutela dos sentidos. Bem, mas a polissemia cabe
no pensamento dialético, a partir da consideração de contextos históricos e
culturais. O indecidível se apresenta como movimento de maior intensidade
na radicalização do pensamento que rompe com a metafísica: a força da
disseminação na escrita bífida (afastamento) tem uma ação explosiva do
horizonte semântico. Há, neste gesto, a produção de um número não finito
de efeitos semânticos, sem possibilidade de retomada da origem e nem
mesmo de definição de seu fim.

4.3. Criar cadeias suplementares


A noção de duplo se insere na lógica do suplemento. Este se configura
como “uma adição, um significante disponível que se acrescenta para suprir
uma falta do lado do significado e fornecer o excesso de que é preciso”

184 • 185
(SANTIAGO, 1976, p. 88). O suplemento não complementa, pois não falta
simplesmente; seria complemento. Num aforismo sobre a grande saúde
(NIETZSCHE, GC § 382), Nietzsche a apresenta como um excesso de
forças plásticas, que se rearranjam em seus triunfos e não lamentam e nem
evitam a dor: “transbordante abundância e potência”.
Na cadeia de suplementos há uma plenitude que enriquece outra
plenitude, o que estabelece o embate. O escrevente não é mais sujeito, no
sentido da origem, da paternidade do texto; a escritura não é represen-
tação e nem mesmo intermediária da significação do texto; não existe um
limite entre a vida real e a escritura, entre as cenas de dentro e de fora do
texto. Na criação da cadeia suplementar, fica mais evidente o papel do
pesquisador, também como escrileitor, num exercício de mescla de tecidos
escriturários.

5. Resultados
Escrileitura 1:
“Estava pensando aqui. Será que vou conseguir tirar isso de dentro
de mim? Então, parei de pensar e comecei a sentir o porquê de tudo estar
assim” (Lima, 2013).
Tatear escombros: Tomamos, do trecho, a noção de que a doença entra
e sai do corpo, que parece ser pincelada na escrileitura, como que inserida
no contexto das ideias circulantes acerca do tema, valorativa de que há um
mal que precisa ser afastado.
Disseminar sentidos: Num exercício de pulverizar os sentidos, em
rompimento com a lógica das representações, é possível pensar sobre a
definição de condutas direcionadas à retirada do mal que acomete os
corpos, tal qual a pintura de Bosch, A extração da pedra da loucura: diante de
mazelas, a vida precisa ser redefinida e saúde e doença se colocam como dois
estados fixos e opostos, decorrentes da forma de ajuizar o funcionamento
orgânico. Encontramos a valoração de bens e males, num processo de
generalização e de afirmação da força de rebanho.
Criar uma cadeia suplementar: De indesejadas sensações a explicações
sobre “tudo”, instâncias do corpo múltiplo, que sofre e pensa. Seria preciso
parar de pensar para começar a sentir? O “sentir o porquê”, como potência
do pensar, se acresce como pleno a outro pleno. O que não desejo, me
acomete. O sentimento de vida contrariada entra em combate, o que me
leva à busca pelo cuidado de alguém fora de mim, que me atende. De fora,
pode vir o fim dessa que me “sobe reptante” (CORTÁZAR, 2014, p. 60),
disso que está dentro. Jogo de dentros e foras, bem e mal-estar, pensa-
mentos e sentimentos e explicações, como elementos que se mancham e
misturam. Morte dos limites.

Escrileitura 2:
Trecho do dicionário inventado:
“Alimentos - são coisas que a gente come no dia-a-dia, como verduras,
legumes, frutas, carne… Fome - Quando as pessoas não têm nada na barriga
e precisam comer, é porque estão com fome. Comer - É degustar o alimento,
sentir o sabor do que você está comendo” (Santos Neto, 2011).
Trecho da história sobre o sabor das letras:
“Será que todas as palavras que começam com P têm um gosto bom?
… Eu não gosto da letra P… mas deve ter gosto de chocolate ou baunilha.
Será?” (SANTOS NETO, 2012).
Trecho do texto sobre a OsT:
“Quando eu tenho fome, eu como alimentos…. na minha casa tem
muitas toalhas de mesa com desenhos de frutas” (SANTOS NETO, 2012).
Tatear escombros: Junto aos estudantes nas OsT, fomos questionados
em relação ao número de linhas, às quantidades e às formas do texto
proposto. A folha em branco parece desalojar. Diante da possibilidade de
inventar um dicionário, a primeira tentativa parece ser a de seguir pela
trilha mais conhecida, o que se experimenta no “dia-a-dia”. Um pouco
mais desinstalado, vemos o “degustar” e o “não ter nada na barriga”,
estabelecendo uma dupla circunstância.
Disseminar sentidos: O branco da folha oferece espaçamentos como
possibilidade de se ocuparem os vazios com o inusitado. Quando diz do
pensamento que faltava a Artaud em seus primeiros livros, Blanchot (2005)
parece encaminhar a escritura a que não se preocupe com seus ocos e
que se despoje de tentativas de tratar do todo. Aos participantes das OsT
(pesquisadores e estudantes) era esperado que abraçassem as possibili-

186 • 187
dades múltiplas e ilimitadas da transcriação: não ter nada na barriga, não
ter o que escrever, não saber. “Deve ter o gosto de…”
Criar uma cadeia suplementar: Imagens de frutas podres nas fotos de
Costi, na escola. Toalhas de mesa, em casa. Escola suplemento da casa.
Acrescem-se e cobrem a mesa, apoio de alimentos, que me vêm quase
simultaneamente à chegada da fome. A intensidade da fome, em sua
plenitude, acresce-se da comida. O que eu gosto se articula ao que eu não
gosto. Categorizo na boca, no estômago, na multiplicidade que me constitui.
Também as letras, as palavras, o que eu escrevo, o que eu leio. Eu degusto
quando como, eu experimento e rumino. O sabor das frutas, cores e texturas
em tecido. Vivências alimentam. O vazio é lugar de plenitude, quando do
dilaceramento se produz arte. “Será?… Quando eu… eu”.

6. Considerações finais
Frente ao borbulhar de questões surgidas do planejamento e do
movimento das oficinas de transcriação, ensaiamos, com elementos teóricos
e com exercícios, um modo de proceder à escrileitura a partir das escri-
leituras dos oficinantes. Postamo-nos na orla, nem dentro, nem fora d’água,
em espaço mole. A timpanização efetiva a desconstrução, rompimento
com a saturação das oposições binárias. Dos textos, movimentamos
noções circulantes dos campos da Educação, da Saúde, das práticas edu-
cativas e do senso comum, de modo a vislumbrar seus valores; multiplicamos
os sentidos do que é dito e escrito de singular, com o não dito, absolutamente
despojados do desejo de alcançar o “querer dizer”. Ainda, tecemos
entrelaçamentos em urdiduras frouxas, ao assumirmos que a origem do texto
não se inscreve, quando se estabelece o “escrever com”. Assim, escrevemos
com as crianças, que haviam escrito conosco, com as leituras oficinadas.
Os gestos de timpanizar nos ofereceram nuanças das forças em luta
que, simultaneamente, constituem a escrita (traços do vivido na produção
de si) e compõem o processo de individuação. Destacamos, nas escrileituras,
o entrelaçamento suplementar de vida e obra.
Escutar às margens exige a mobilização de múltiplos sentidos, que
têm em vista a entrada num percurso errante em direção ao singular.
Ainda que este fim de linha não chegue, ele se anuncia como potência de
criação e de proposição de modos para a pesquisa e para o processo edu-
cativo: apresenta-se como uma perspectiva de preparação do professor/
profissional da saúde para o ensinar e aprender que privilegiam as forças
plásticas, potências de criação da vida. Alternativa às condutas massifica-
doras de observar e analisar e de desenvolver atividades educativas.
Neste percurso, não podemos fazer afirmações definitivas a respeito
dos escritos; mas encontramos interlocução de traços e espaçamentos, dobras
de suplementos e jogos, já que tomamos textos enviados em destinerrance.
Não nos detivemos nas críticas e na detecção dos problemas da escola
e dos trabalhos educativos - em saúde ou não. Embora não as tenhamos
ignorado, posto que nos envolvemos em seus espaços. Ensaiamos, destarte,
um método que serve ao estudo dos duplos que permeiam as práticas
escolares de leitura e escritura, como as escrileituras tematizadas pela saúde,
e nos achegamos, agora com maior contundência, à abertura para tomar a
produção dos estudantes em suas potências transcriadoras.

Referências
BARTHES, Roland. O prazer do texto. (Tradução J. Guinsburg). São Paulo: Perspectiva,
1987.

_____. A preparação do romance. (Tradução Leyla Perrone-Moisés). São Paulo: Martins


Fontes, 2005.

BEDWORTH, David; BEDWORTH, Albert. Dictionary of Health Education. New York:


Oxford University Press, 2010.

BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. (Tradução Leyla Perrone-Moysés). São Paulo:
Martins Fontes, 2005.

CORAZZA, Sandra Mara. Artistagens – filosofia da diferença e educação. Belo Horizonte:


Autêntica, 2006.

CORTÁZAR, Júlio. Bestiário. 2ª ed. (Tradução Paulina Wacht e Ari Roitman), Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

COSTA, Luciano Bedin. O destino não pode esperar ou o que dizer de uma vida. In:
FONSECA, Tânia Mara Galli; COSTA, Luciano Bedin (Orgs.). Vidas do fora: Habitantes
do silêncio. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2010, p. 47-68.

DALAROSA, Patrícia Cardinale. Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida.


Observatório da educação CAPES/INEP. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.) Cadernos

188 • 189
de notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011. p. 15-29. (Coleção
Escrileituras).

DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. (Tradução de Joaquim Torres Costa e António


M. Magalhães). Campinas/SP: Papirus, 1991.

_____. Posições. (Tradução Tomaz Tadeu da Silva). Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

_____. Otobiografías. La enseñanza de Nietzsche y la política del nombre propio. Buenos


Aires: Amorrortu, 2009.

HIDALGO, Luciana. Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto. Rio de Janeiro:


Rocco Digital, 2012. (Formato ePub).

LIMA, Caroline. Escrileituras produzidas durante a Oficina de transcrição Cartas, na Escola


Estadual Paciana Torres de Santana. Cuiabá, 2013 (Texto digitado).

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução,
notas e posfácio: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

_____. A gaia ciência. (Tradução, notas e posfácio Paulo César de Souza). – São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.

_____. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. (Tradução Paulo César de
Souza), São Paulo: Companhia das letras, 2005.

_____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. (Tradução, notas e
posfácio: Paulo César de Souza). São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SANTIAGO, Silviano. Glossário de Derrida. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves


Editora, 1976.

SANTOS NETO, Benevides Bispo dos. Escrileituras produzidas durante a Oficina de


transcrição Fantasias em cores, sabores e texturas, na Escola Estadual Paciana Torres de
Santana. Cuiabá, 2011/2012 (Texto digitado).
Didática Cinemática:
escrileituras em meio à
filosofia-educação

Ana Carolina Acom


Sandra Mara Corazza

Resumo
Esta dissertação se constitui como pesquisa conceitual operatória dentro do
projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever em meio à vida. A partir da bibliografia
produzida ao longo do próprio projeto, a pesquisa experimenta a noção de
que toda a didática pensada em meio à filosofia da diferença é possível como
experimentação do pensamento, escritura e leitura (escrileitura), e operada
enquanto didática da tradução. A pesquisa contempla a tese corazziana de
que o professor é, por sua função, um tradutor, ele cria e transcria conteúdos
em aula. O trabalho experimenta a escrileitura de conceitos oriundos do
processo cinematográfico para serem transcriados e transmutados em
conceitos didáticos, procurando um exercício de tradução intersemiótico.

Palavras-chave
Cinema. Didática. Escrileitura. Tradução. Transcriação.

190 • 191
A didática, enquanto passível de criação, é Didática-Artista
(CORAZZA, 2012), e ao transpor formas, conteúdos e forças, faz tradução.
Pensar a didática em meio à Filosofia da Diferença, enquanto campo de
estudo das possibilidades tradutórias do ato educacional, é teorizar sobre
as potencialidades da tradução criativa e da transcriação de composições
didáticas contemporâneas.

[...] se alguma didática, em meio à diferença, é possível – como experimen-


tação de pensamento, escritura e leitura (escrileitura) – podemos dela falar
como uma didática da tradução. (CORAZZA, 2015, p. 2).

O conceito de “tradução criativa” ou “transcriação”, apresentado nesta


pesquisa, lida com a impossibilidade tradutória plena entre línguas, e,
portanto, expõe o processo que re-cria textos e formas. A partir da teoria
da tradução transcriadora de Haroldo de Campos (2011), podemos pensar
a tradução para além da tradução de textos de uma língua para outra. A
tradução transcriadora permite pensarmos o que cada área ou disciplina
traduz em suas funções e como podemos pensar a tradução re-criadora de
conceitos de uma área a outra.
Este trabalho realiza uma experimentação tradutória de conceitos do
cinema para o campo da educação, isto é, um exercício de transposição dos
processos de composição de imagens do cinema para as imagens na cena
de aula, o que pode ser pensado como “tradução intersemiótica” (PLAZA,
2003).
A pesquisa tem como pano de fundo conceitual a filosofia cinematográ-
fica deleuziana, no princípio de que o cinema pensa. Se no prefácio de
Diferença e Repetição, Deleuze (2006) já afirma estarem esgotados os antigos
modos de expressão em filosofia, e sugere uma renovação das pesquisas
filosóficas relacionadas a outras artes e expressões, este trabalho apresenta
o cinema como intercessor na busca por outras formas de se pesquisar
educação. Partindo da noção de que o cinema pensa em seus procedimentos
de cortes, planos e montagens (DELEUZE, 1983; 1990), propõe-se esta
tradução experimental de alguns conceitos que inventam e combinam os
domínios da educação e do cinema.
Um filme já faz, por si só, tradução através da montagem, traduz um
drama, uma história, no todo montado. A dramatização de conceitos na
aula cinemática é composta pela montagem, conforme o “efeito Kuleshov”,
no qual o cinema se move, e que o cineasta Alfred Hitchcock chamou de
“pura cinemática”; que é justamente a montagem das cenas e de como
suas alterações funcionam para suscitar diferentes ideias, conforme suas
sequências. As cenas de aula e mesmo os planos, unidades menores em
movimento desta mesma cena, só adquirem sentido na cabeça do aluno,
se fizerem parte de um todo. Ou seja, de um objetivo maior que ganha vida
na relação desses conteúdos para formar o “todo educacional”, o conceito
apreendido. É deste modo que a “pura cinemática” se faz aprendizado na
diferença, capaz de suscitar uma ideia, fazer pensar com o conjunto das cenas
de aula. A Didática Cinemática deve se atualizar na transdisciplinaridade e
no conjunto, substituindo qualquer noção fragmentária ou segmentada de
aprendizagem.
A força que o conceito de montagem ganha nesta pesquisa devém de
sua importância como característica do próprio cinema, que necessita da
pós-produção em edição de imagens para completar uma obra. No exercício
de montagem e na visualização das muitas camadas de imagens e sons de
um filme na ilha de edição, observamos o pensamento material audiovisual
sendo composto na formação do todo. Este processo de montagem e edição
de conteúdo é o processo de execução do professor em aula, que seleciona
textos, cenas e atuações dele mesmo e do aluno, a fim de traduzir um conteúdo
que resulte deste conjunto, no todo montado. Através das próprias atuações
da autora deste estudo: como docente, pesquisadora em educação-cinema-
filosofia e dos diferentes trabalhos de edição de imagens desenvolvidos, nos
três anos de estudos na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e Educação, e
nos vídeos do Projeto Escrileituras, esta pesquisa é uma pesquisa-docência
desdobrada em uma metalinguagem escrileitora. Os estudos e atuações
docentes se reescrevem como textos da cena de aula e em conteúdos escritos
em forma de dissertação. A escrileitura em tradução transcriadora surge como
modo de escrever o trabalho, mas também no devir docente em aula. Assim,
o professor-tradutor enquanto escrileitor-cineasta compõe a cena de aula e
busca uma transposição escrita desta didática que originou a dissertação.

192 • 193
Cinematizações

A transcriação didática (CORAZZA, 2013) pode ser pensada como a


tradução da aula por linguagens artísticas, e neste processo transcriador com
o cinema podemos adotar o termo vinculado por Renato Cunha (2007):
“cinematização”.
Cinematizar seria um: “vocábulo autônomo que, no âmbito das rela-
ções entre palavra e imagem, reflita a noção de transcriação assim como
‘teatralizar’ faz nas artes cênicas” (CUNHA, 2007, p. 12). Cinematizar é o
ato de adaptar um texto à cena, fazer um filme a partir de um romance ou
peça teatral, previamente roteirizados. O processo de cinematização permeia
a cena de aula em imagens, desde um currículo-roteiro até a composição
destas imagens.
Na aula cinematizada ou cinemática, as imagens trazidas pelo pro-
fessor-cineasta, de alguma forma ou de outra, passaram pelo texto escrito,
enquanto currículo-roteiro. Em um primeiro momento de decupagem, o
texto fora lido mentalmente em imagens por este professor que dirigirá a
cena de aula. No cinema, o próximo passo seria reconstruir sua corpo-
reidade num set, para ser finalmente fixada em fotogramas de um filme
(CUNHA, 2007). A aula ou um conjunto de aulas, que devem formar o
todo educacional, perpassam por uma sucessão de momentos, materiais e
imateriais, nos quais as imagens ganham formas; nesse processo, o ‘cinema
mental’ da imaginação tem papel tão estimado quanto o das etapas de
realização efetiva das sequências da aula ou de conteúdos projetados. “Esse
‘cinema mental’ funciona continuamente em nós – e sempre funcionou,
mesmo antes da invenção do cinema – e não cessa nunca de projetar imagens
em nossa tela interior.” (CALVINO, 2010, p. 99).

Didática da Montagem
Este trabalho destaca algumas teorias sobre montagem do cineasta
soviético Sergei Eisenstein, um dos maiores nomes nas técnicas inaugurais
de montagem (edição do todo) e de processos de decupagem (planejamento
da filmagem em planos e cenas e como estes se encadearão através de
cortes), elementos até hoje presentes na composição cinematográfica.
A montagem de Eisenstein sugere cortes bruscos por oposição e saltos
qualitativos que provoquem o choque. O cinema deveria produzir um
choque no pensamento que levasse os homens a pensar. Mas, estas técnicas
de cortes e por choque, somente possibilitam o pensar, não sendo, ainda,
pensamento de fato (DELEUZE, 1990).
O cinema depende das técnicas de encadeamento das imagens para
forçar o pensamento. Deleuze (1983) diz, que para Eisenstein, a própria
montagem é o todo do filme. A forma como ocorrem as mudanças do
tempo no filme (duração) só podem ser apreendidas indiretamente, já
que relacionam e sobrepõem as imagens-movimento que as exprimem. A
montagem é essa operação que extrai das imagens-movimento um todo,
uma ideia (DELEUZE, 1983). Na didática da montagem, construída por
cortes e estímulos em choque do raciocínio, a expectativa do professor é
extrair conteúdo como o todo de uma história, ele deseja compor no tempo
intercortado o todo. Desta montagem decorrem grandes criações e não
apenas operações práticas como de conceitos teóricos (DELEUZE, 1983):
uma nova concepção do primeiro plano, concepção de montagem ace-
lerada, montagem vertical, montagem de atrações e montagem intelectual.
Esta última, quando pensada no plano da educação, arranca o ritmo de
operação unicamente empírico ou recognitivo, pois há exercício e provo-
cação do pensar. As imagens-movimento em sala de aula fazem o todo
adquirir um novo sentido.
“Costuma-se dizer que Eisenstein extrai dos movimentos ou das
evoluções certos momentos de crise dos quais ele faz o objeto por
excelência do cinema.” (DELEUZE, 1983, p. 13). A didática da montagem
por oposição seleciona ápices, acontecimentos e gritos, e os faz colidir
trazendo a aula ao limite. “A montagem, enquanto instância articulatória
de significantes, antecede o próprio cinema, advém de outros universos
como a literatura, a pintura, o teatro e a fotografia.” (AUGUSTO, 2004,
p. 53). Neste sentido, ela é processo, e todo o pensamento, na sua origem,
é montagem. A operacionalização dessa didática da montagem articulada
ao currículo-roteiro se dá na encenação da aula. “‘Cena de docência’ – na
sala de aula – na qual o professor dá parâmetros, o procedimento é des-
locado para outras ordens, desadequadas.” diz Soares (2012) ao se referir

194 • 195
à oficina 7 minutos, integrante do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever
em meio à vida e realizada em 2011. A didática da montagem em sala de
aula, como atividade técnica responsável pela capacidade inventiva do
professor, produz movimento vibratório dos signos potencializando força
poética no ato de educar. Adó e Testa (2012, p. 70) reafirmam, de certo
modo, a didática da montagem por cortes no texto Como ‘dar’ uma aula
‘contemporânea’:

Opere por cortes. Cortes que recaem, ao mesmo tempo, sobre o fio da
duração e o contínuo da extensão. Para operar por cortes, aja de modo
intempestivo e interrompa, destaque, separe, na duração, um instante;
fracione, recorte, capte, na extensão, uma porção. Neste corte único e
singular de espaços-tempos, temos uma aula contemporânea [...] Uma
aula contemporânea opera por cortes e por uma compulsão por repetição,
arriscando tudo a cada novo corte-jogo-cena-aula.

A montagem, como organização finita e sequencial, é um meio para


a construção de cada partícula de fragmento cinematográfico. Nesta
justaposição de fragmentos, operam feixes de ideias perturbadoras ou
‘atrações intelectuais’ descontínuas, materializadas pelo princípio de
contradição (AUGUSTO, 2004). A noção eisensteiniana de uma mon-
tagem, que expõe o raciocínio ou o método de pensar, está relacionada às
convicções deste cineasta quanto à montagem, a qual torna-se uma operação
do processo do pensamento (XAVIER, 2005).
A didática da montagem por oposição parte de uma exposição por
oposição, onde da transformação dos opostos deve nascer um conceito –
se no cinema nos referimos ao “penso cinematográfico” – em educação
esse choque de imagens deve despertar as condições de possibilidade para
a gênese do pensamento. “Pensamento sensorial, próximo a uma lógica
do pensamento primitivo, guiado por uma série de figuras: metonímias,
metáforas, fusões, inversões.” (AUGUSTO, 2004, p. 72).
O fenômeno suturador de cortes é a característica particular do
processo de montagem, e constitui o principal elemento criador na Didá-
tica Cinemática.
Ao se valorizarem as ideias, manifestas pela criação, o caráter seletivo da
atividade levaria a determinadas escolhas que possibilitariam o momento no
qual a montagem procede às suturas necessárias para que possam emergir
associações novas e originais. (LEONE, 2005, p. 24).

Na montagem há criação através de cortes e junções, assim, ela age


como transformadora de materialidades. A possibilidade de unir planos
para compor uma cena de aula e unir as cenas de aula para compor um
todo maior, instaura uma modalidade artística didática. Este processo de
montagem deve ser percebido como parte da construção dramática, e a partir
deste fazer artístico espera-se proporcionar uma experiência de produção na
aprendizagem significativa para o educando, personagem da cena. Trazendo
o “Método de Dramatização” deleuziano (DELEUZE, 2006) para essa
encenação cinemática da aula almeja-se:

[...] produzir um movimento de pensar, capaz de colocar o espírito fora de


toda representação; fazer desse movimento uma obra, sem interposição;
substituir os signos diretos pelas representações mediadas; inventar
vibrações, rotações, gravitações, que atinjam diretamente o espírito [...] é isso
o que significa drama: performar as Ideias, quase encobertas pela ação. O
método visa pôr em destaque o caráter dramático de todo acontecimento.
(CORAZZA, 2013, p. 173).

A montagem transforma, dramaticamente, os planos evidenciando


espaço/tempo/movimento, fazendo de cada transição entre planos, drama.
É através do corte que a narrativa adquire força e avança o drama proposto
(LEONE, 2005). “A extração do pensar do domínio do senso comum e da
generalização pelo conceito é o que a dramatização objetiva.” (CORAZZA,
2013, p. 175).
Através da montagem transdisciplinar em sala de aula, o professor-
cineasta apresenta uma visão pessoal de mundo, que exige participação ativa
do aluno, exige que o aluno se insira no processo de criação. O princípio da
montagem, ao contrário do princípio da representação, obriga o “espectador
a criar e é graças a essa criação que se atinge no espectador essa força de

196 • 197
emoção criativa interior que distingue a obra patética do simples enun-
ciado lógico dos acontecimentos” (MARTIN, 2005, p. 203).

Professor-Cineasta e o Currículo-Roteiro
O professor-cineasta transforma matéria, transmuta o papel, conteúdo
ou currículo-roteiro em imagem, cria blocos de movimento e duração
(DELEUZE, 2003). “[...] realizar um filme é verdadeiramente um trabalho
de alquimia, de transmutar papel em filme. Transmutação. Transformar a
própria matéria.” (CARRIÈRE, 1995, p. 146).
O conceito de professor-cineasta das cenas de aula é da ordem do
“docente artistador” (CORAZZA, 2006), dirige alunos e cenários. O
professor-cineasta é exigente na composição de sua arte, mas cria com os
alunos também artistas, personagens do real, “artistas porque, definindo-
se como sensíveis, fazem a mesma coisa que a Arte” (CORAZZA, 2013,
p. 21).

Docência que, ao modo de seu artífice, poderia ser chamada “artística”.


Que, ao se exercer, cria e inventa. Docência que “artista”. Que, ao educar,
reescreve os roteiros rotineiros de outras épocas. Desenvolve a “artistagem”
de práticas pedagógicas ainda inimagináveis e, talvez, nem mesmo possíveis
de serem ditas. Práticas que desfazem a compreensão, a fala, a visão e a
escuta das mesmas coisas, dos mesmos sujeitos, dos mesmos conhecimentos.
(CORAZZA, 2001).

O docente-artistador que movimenta-se a partir de uma didática


cinemática, uma didática que opera montagem, construindo drama em
aula, o faz através da tradução. O professor é por excelência um tradutor
e ao encenar suas traduções opera ora como diretor de cinema, montador
na mesa de edição, ou teatrólogo; sempre adaptando um texto escrito à
cena. Este transporte do texto dramático à cena de aula é tradução, o
professor-cineasta deve dramatizar o currículo, conteúdo específico ou
texto. “A tradução de um conjunto de palavras dispostas num espaço, que
antes era o do papel, com vistas a uma concretização audiovisual, requer uma
nova espécie de signo.” (GUINSBURG, 2009, p. 121). As construções entre
texto escrito e encenado, embora tragam o mesmo conteúdo, estabelecem
uma outra constelação de signos concretamente materializados. “Daí a
exigência de uma tradução, que é criação, na medida em que o texto sempre
propõe possibilidades interpretativas.” (GUINSBURG, 2009, p. 121).
O currículo, traduzido por uma didática do cinema, é um currículo-
roteiro, definido pelo que pensou o roteirista Jean-Claude Carrière (1995)
quando se referiu ao roteiro como objeto estranho, escrito e, muitas vezes,
“fadado a desaparecer, que uma metamorfose indispensável o espera”
(CARRIÈRE, 1995, p. 147). O currículo-roteiro é onde o autor-curriculista
trabalha sobre algo destinado a mudar de forma, quando executado em
cena. No entanto, a escrita deste permite a reestruturação mental das
ações dramáticas e construções das aulas, da atuação do professor, dos
personagens, e do tempo e espaço, que dão corpo à cena, fazendo com
que as traduções imagéticas se manifestem previamente. A potencialidade
de tradução estética do currículo-roteiro é definida na medida em que
ele é levado a outros aportes, poéticos e cinemáticos. Na roteirização de
um currículo, são pensadas formas de as palavras se expressarem como
imagens em movimento, isto é, uma forma de currículo a ser cinematizado.

[...] a elaboração se liga ao roteirista e ao diretor: o primeiro cria e organiza


a estrutura do roteiro, possibilitando pela palavra as diversas formas de
tradução imagética; o segundo realiza, por meio da construção do olhar, a
escritura fílmica. (CUNHA, 2007, p. 29).

A natureza discursiva do currículo-roteiro é ficcional, sua ficção


elabora um modo de formular e interpretar o mundo e atribuir-lhe sentidos
(CORAZZA, 2001). Seu campo discursivo é constituído por um “ato poético,
enquanto criação de um domínio específico de objetivação” (CORAZZA,
2001, p. 15).
O professor-cineasta cria cenas de aula em imagens, o que se torna:

um exercício, cada vez mais consciente, de formas possíveis de modificar a


mesmice da formação e da ação docentes, diante da repetição quase secular
da prática pedagógica; transformando-se em trampolim para um outro
nível de educação; e colocando em funcionamento uma outra máquina de

198 • 199
pensar e criar, de estudar e escrever, de ensinar e aprender, de ser professor
e professora. (CORAZZA, 2013, p. 97).

A arte da encenação e aprendizagem em aula é potencializada na


“cultura dramática” referida por Corazza (2013). E se a autora demonstra
que há drama no currículo, a didática que lida com conceitos do cinema
e da composição de imagens, propõe um currículo-roteiro a ser encenado,
dramatizado em sala de aula, e constituindo drama na aula. Os dramas
“colocam em cena forças e potências que agem nos acontecimentos, em
detrimento daquilo que aparece na superfície do pensar.” (CORAZZA,
2013, p. 175). O drama é a performance das ideias, que a ação pode encobrir.
Há sempre “um ‘drama’ sob todo logos.” (DELEUZE, 2006, p. 139).
A Didática Cinemática converge para o que definiu Deleuze (2006a)
em sua conferência O Método de Dramatização, apresentada em 1967 diante
dos membros da Sociedade Francesa de Filosofia. Os conceitos devêm da
dramatização e são eles dramatizados. “Os conceitos são diferençados
graças a procedimentos que não são exatamente conceituais, que remetem,
sobretudo, a Ideias.” (DELEUZ, 2006a, p. 142). A dramatização, constituída
na montagem, “são dinamismos, determinações espaço-temporais dinâmicas
[...] que têm por ‘função’ atualizar Ideias...” (DELEUZ, 2006a, p. 145).
A aula cinemática dramatiza informação, dramatiza conceitos. O drama
se constitui na montagem, conforme o “efeito Kuleshov” (AUMONT;
MARIE, 2003), ou seja, como o aluno assimila o jogo de ação e reação
entre imagens distintas. O cineasta russo e teórico do cinema Lev Kuleshov
mostrou que o “significado de uma sequência de planos pode depender
apenas da relação subjetiva” (AFONSO, 2010) que cada um estabelece
entre as imagens que vieram antes ou virão depois, isoladamente, essas
imagens não possuem qualquer significação. Conteúdos isolados de aula,
que não se relacionam com algo maior, nem anterior ou posterior, não
podem ser inseridos na cena de aula. Pois se referem a imagens isoladas
e independentes, que não dizem nada ao educando, desligadas de um
todo complexo, não possuem significações para o aluno, o qual não pode
assimilar qualquer narração sem relação com a vida, com seu repertório
escolar ou de fora dela.
O espaço e tempo serão atualizados em aula através do movimento
do professor-cineasta, em seus cortes e junções de material. O tempo será
condicionado pela velocidade da percepção e pela duração dos elementos
selecionados para apresentação da ação. Ação esta, que ocorre no tempo e
espaço vinculados ao processo de montagem, “sob a dramatização, a Ideia
encarna-se ou atualiza-se, vem a diferençar-se”. Pela junção dos diferentes
conteúdos pré-selecionados pelo professor-cineasta que cria “espaços e
tempos particulares” (DELEUZE, 2006, p. 130). As partes do conteúdo
são projetadas pelo professor-cineasta em uma ordem que forme ações
com sentidos que vão se tornando conceitos.

Referências
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In: CORAZZA, Sandra Mara. Caderno de Notas 3: Didaticário de Criação – Aula Cheia.
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AFONSO, Victor. O “Efeito Kuleshov”. Disponível em: <http://ohomemquesabiadema


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AUGUSTO, Maria de Fátima. A Montagem Cinematográfica e a Lógica das Imagens. São


Paulo: Annablume, 2004.

AUMONT, Jacques; Michel, MARIE. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. (Tradução


Eloisa Araújo Ribeiro). Campinas: Papirus, 2003.

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_____. O que quer um currículo? – Pesquisas Pós-Críticas em Educação. Petrópolis: Vozes,


2001

200 • 201
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CUNHA, Renato. Cinematizações: Ideias sobre Literatura e Cinema. Brasília: Círculo de


Brasília, 2007.

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DELEUZE, Gilles. Deux Régimes de Fous. Paris: Les Éditions de Minuit, 2003.

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GUINSBURG, Jacó. A Cena em Aula: Itinerários de um Professor em Devir. São Paulo:


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LEONE, Eduardo. Reflexões sobre a Montagem Cinematográfica. Belo Horizonte: Editora


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MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. (Tradução Lauro António e Maria


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SOARES, Olívia de Andrade. Imagem e Movimento do Vazio no Cinema de Ozu:


Traduções em Educação. In: IX ANPED SUL, 2012. Disponível em: <http://www.ucs.br/
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XAVIER, Ismail. O Discurso Cinematográfico: a Opacidade e a Transparência. São Paulo:


Paz e Terra, 2005.
currículo
& transcriação
Procedimento erótico,
na Formação, Ensino, Currículo

Gabriel Sausen Feil


Sandra Mara Corazza

Resumo
O Procedimento Erótico é aqui apresentado em três possíveis variações. O
Procedimento I descreve a crise existencial que leva o Educador, primeiro,
à destruição e, em seguida, a um novo nascimento. O Procedimento II
coloca como condição do Ensino a possibilidade do ato de ensinar envolver
prazer. O Procedimento III mostra que é mais livre aquele que se desvia dos
caminhos postos, não importando se os desvios consideram ou não a Moral.
Os três Procedimentos são instigados pela seguinte problemática: de que
modo fazer, em Educação, outra coisa com as Formas educacionais? Por fim,
o Procedimento Erótico resulta em pelo menos quatro projetos: o Libertino
(sádico), o da Humilhação Redentora (masoquista), o do Prazer do Ensino e
o do personagem Klóvis. Todos, de algum modo, constituem-se em projetos
educacionais.

Palavras-chave
Erotismo. Libertinagem. Sadismo. Masoquismo. Educação.

204 • 205
1 Apresentação
Por Frei N
1.1 descrição
À guisa de apresentação desta Escritura, eu, Frei N, Vos descrevo a
minha impressão. A todos que a lerem, eu, mísero servo de Deus, desejo
saúde e sobriedade. Vós deparareis com três Procedimentos; entretanto,
acredito que, em verdade, trata-se de apenas um, o Procedimento Erótico,
em três possíveis variações.
O Procedimento I, denominado Formação, entende que a destruição é
pressuposto dos processos formativos: “A destruição é uma das primeiras
leis da natureza, e deve, por isso, ser considerada não como um crime,
mas como uma necessidade natural”, diz o personagem Educador. Aliás,
esse primeiro Procedimento é o procedimento desse personagem; digo,
supostamente, criado por ele. O Educador não poupa nada; descreve a crise
existencial que lhe leva, primeiro, à destruição e, em seguida, a um novo
nascimento.
Sobre o Procedimento II, denominado Ensino: entendo que um educador,
aquele que se incumbe do ofício de tornar bons os outros, deve, primeiramente,
ser ele mesmo bom, deve ele mesmo ter a bondade como hábito. Distante
desse princípio está Aquela-que-aceitou-ensinar (personagem protagonista
desse segundo Procedimento): ela coloca como condição do seu ensinar o
fato de sentir prazer com o Ensino. Ora, respondei: como alguém poderia
ensinar a virtude tendo o vício como hábito? E mesmo que o prazer seja
tomado como um modo para se alcançar a Divindade, ainda assim ele é um
vício, pois, egoísta. Aliás, parece-me que o Erotismo desses Procedimentos
(não apenas desse segundo) almeja a Divindade, porém, uma divindade
completamente desvirtuada.
A respeito disso, eu poderia organizar o Procedimento Erótico a partir
dessa dissimulação da Divindade – devo essa organização a William Blake
(2011):

Os homens ordinários têm cometido os seguintes erros:


1) Que o homem possui um Corpo e uma Alma.
2) Que os sopros, considerados como sendo o Mal, provêm unicamente do Corpo.
E a razão, denominada Bem, deriva tão somente da Alma.
3) Que Deus atormentará o homem pela eternidade por dar chance aos sopros.

O Procedimento Erótico, por outro lado, afirma que:


1) O homem não tem uma Alma distinta do Corpo, pois aquilo que denominamos
Alma não passa de sopros apreendidos.
2) Os sopros são a única força vital e emanam do Corpo. A razão é apenas a
codificação deles.
3) Os sopros nos movem.

Quando o homem é capaz de exceder a Alma, alcança a ordem divina, que lhe concede
uma soberania. É preciso considerar que somente há soberania onde há independência
em relação aos sentimentos pessoais, pois embora ela esteja em toda parte, é preciso
exceder as pessoalidades para que seja tocada de verdade.
1) É exatamente quando deixamos de ser, quando o Eu sai de cena, mesmo que
somente por um breve instante, que as relações eróticas aparecem. É quando as
Formas são desintegradas, quando as luzes são apagadas, quando o álcool faz
efeito, quando o Demônio toma conta, quando o surto acontece.
2) Se a Moral é o que possibilita o Eu, o Erotismo é o que possibilita a sua reinvenção,
que é sempre divina, sagrada, justamente porque acontece numa ordem superior.
3) Tornar-se soberano, divino, sagrado, porém, não é adquirir o controle da situação,
pelo contrário, ilusão de controle é o que temos na ordem das Formas; tornar-se
soberano é precisamente livrar-se do peso dessas Formas.

É nesse sentido que a redenção do Procedimento Erótico é uma mostra


de soberania. Aliás, é isto que os personagens desses Procedimentos querem:
tornarem-se soberanos, divinos.
É verdade que o Procedimento III, denominado Currículo, não fala
em Liberdade, mas, se bem o entendi, diz que é mais livre aquele que,
mais e melhor, desvia-se dos caminhos postos, criando os seus próprios,
não importando se esses desvios consideram ou não a Moral. Parece-me
que há, nesse Procedimento, ênfase demasiada no aspecto trágico, e tal
ênfase acaba por suprimir o aspecto humano da vida.

206 • 207
Antes de dar por encerrado esta Apresentação, vejo como urgente
a necessidade de Vos chamar a atenção, pontualmente, para algumas
atrocidades cometidas, em especial, pela Educação Libertina. Frágeis
Irmãos, eu espero que não tenhais a ingenuidade de encontrar nesta
Escritura um Livro de Educação para Vossos filhos. 1) Trata-se de uma
prática de vida que recusa os processos que induzem à obediência cega em
relação ao que chega, pela tradição, até nós. (Até aqui nenhum problema,
afinal, Vós sabeis que nós, franciscanos, também nos recusamos a obedecer,
cegamente, à tradição. Entretanto, o problemático é o que agora se segue...).
2) Essa recusa implica uma clara hierarquia entre aqueles que mandam
e aqueles que obedecem. 3) O principal, que é a Libertinagem em si,
funciona somente para aqueles que mandam, que ordenam, que criam os
seus próprios procedimentos, ou seja, funciona somente para os professores
libertinos. 4) Em vez de se ocupar com o ensinar a Liberdade, a Educação
Libertina se ocupa em dar lições para a Libertinagem. 5) O Povo jamais se
torna Libertino: ou se nasce livre de espírito ou se é escravo para sempre.
6) Em vez de se relacionar com os movimentos populares, a Educação
Libertina está envolvida, substancialmente, ao estilo de vida dos nobres
ligados à Monarquia (acima, inclusive, da Burguesia). 7) É uma organização
que se basta por si mesma. 8) Não tem responsabilidades sociais e traça
um universo paralelo, onde a realidade ordinária aparece somente como
objeto a ser pervertido, ou seja, como matéria de perversão. 9) A Educação
Libertina ocupa-se dos pobres apenas para aproveitar-se dos seus espíritos
frágeis.
Considerai e vede que se aproxima o dia em que o crime poderá ser
concebido como virtude e a virtude como tolice. Peço-Vos que leiais esses
Procedimentos sem Vos afastardes dos mandamentos do Senhor. Pois se
Vós os desconsiderais, sereis amaldiçoado. Quanto mais próximo estivérdes
desses Procedimentos e mais afastados estiverdes dos Mandamentos, mais
tormentos enfrentareis.
Por isso aconselho-Vos, meus Leitores, que deixeis de lado esses
Procedimentos caso escolheis o lado do Senhor. Os que levarem consigo
essa Escritura saibam que serão abençoados por alguns instantes, porém,
sofrerão por toda a Eternidade.
Vós quem? Quem sois Vós? A quem me dirijo? Mesmo que os Pro-
cedimentos talvez prefiram os devassos, os sem freios e sem obstáculos, eu
escrevo para Vós, os desavisados, os sonhadores, os humanizadores. É Vós
que desejo que leiais essa Escritura. Se dei mostras do contrário, fazendo
advertências, foi apenas no sentido de instigar-Vos, no sentido de resgatar o
que resta de energia vital em Vosso corpo!

1.2 relação com o Projeto Escrileituras, com a linha 09, com o grupo de
orientação BOP e com o grupo de pesquisa DIF
Por Frei N
Conto-Vos sobre esta Escritura apenas porque tal proximidade minha
com uma das cenas narradas mostra o quanto esses Procedimentos estão
próximos da humanidade comum. É isto que me preocupa: não se trata de
aventuras distantes, mas, ao contrário, de aventuras que invadem o mais
banal dia a dia. Aliás, é isto que torna os Procedimentos tão perigosos: eles
podem sempre lidar com os mesmos assuntos lidados em outros contextos,
eles podem até usar as mesmas palavras, porém, não fazem isso sem se
afastar dos sentidos frequentes.
É justamente essa peculiaridade que deixa o Educador (personagem
do primeiro Procedimento) ainda mais ameaçador, pois sinaliza que ele
tem acesso às coisas do Povo. Quando eu pensava na existência de uma
sociedade libertina e secreta, sempre imaginava que quem as compunha
eram pessoas monstruosas, demoníacas, facilmente identificáveis em meio à
multidão, e não homens que pudessem circular normalmente pelos eventos
sociais. Eis que me deparo com um homem (ainda que não religioso e nem
pai de família) que sempre perambulaou pela nossa sociedade, servindo-se
dela normalmente.
Sem dúvida, melhor seria se os Procedimentos estivessem limitados às
obscenidades, pois assim qualquer um poderia, facilmente, distingui-los dos
livros bem intencionados.

2 Problemática
Por Aquela-que-aceitou-ensinar
Ainda que não de maneira formal e ainda que não sem experimentar
inflexões, os três Procedimentos são instigados pela seguinte problemática:

208 • 209
de que modo fazer, em Educação, outra coisa com as Formas educacionais?
Não se trata, portanto, de, simplesmente, fazer uma Educação diferente,
mas de fazer com que a própria Forma Educação entre em colapso em seu
próprio território.

3 Teorização
Por Educador
A fim de elucidar o Procedimento Erótico, eu, Educador, apresento
alguns elementos constitutivos da consistência teórica envolvida.
O plano como condição: é curioso como se repete entre os eróticos o fato de
todos traçarem um plano: seja via contrato, via projeto ou via pacto. Não se
trata de uma mera coincidência, o plano é a condição para que o erotismo de
que tratamos se realize. O objetivo último desse erotismo jamais se encontra
na obscenidade, mas sempre no diluir os papéis prontos. O conteúdo erótico
não funciona como um fim, mas como a consistência de uma estratégia
que visa outra coisa. Se o erotismo fosse um fim, não seria necessário um
plano, bastaria uma linguagem obscena por si só. É precisamente aí que os
pornólogos se distinguem dos pornográficos (DELEUZE, 1983). Estes têm
o erotismo como fim; aqueles não visam o erotismo, visam outra coisa. A
estrutura seria esta: 1) O conteúdo erótico funciona chamando a atenção e
preparando os corações. 2) O enredo, às vezes sendo uma narrativa, funciona
como uma estratégia, uma engenhoca. 3) O novo (o novo nascimento) é o
fim, é o visado. 4) O erotismo, propriamente dito, é o procedimento, que
envolve os três elementos anteriores.
Os planos eróticos, portanto, não formam um gênero, o gênero erótico,
pois o erotismo não funciona, ao menos para os pornólogos, como um
gênero, mas como um modo de proceder. O erotismo é um procedimento,
que dilui as Formas em função de uma suspensão. Em A arte da palmada
(ENARD; MANARA, 1991), por exemplo, o erotismo não se encontra na
narrativa, por mais obscena e provocadora que possa mostrar-se, mas se
encontra na estratégia usada pelo conquistador para forçar a personagem
a agir de outra maneira, que não a sua ordinária. A narrativa funciona
fisgando a personagem (e o leitor também), a tal ponto que esta passa a se
interessar pela arte da palmada, transformando-se na responsável pela tarefa
de multiplicar essa estranha atividade, no sentido de divulgá-la às pessoas.
O erotismo dessa obra não se constitui num fim; seria isto se o erotismo se
restringisse à narrativa.
Tese do imediatamente nu: o erotismo como procedimento (um pro-
cedimento não sobre o erotismo, mas o próprio erotismo se constituindo
num procedimento) não funciona como o erotismo ordinário. A função da
roupa nos romances e nos contos de Sade, em que os libertinos se encontram
imediatamente nus, já é um elemento suficiente para distinguir o erotismo
de função superior do erotismo comum, no qual a grande graça se encontra
no jogo de esconder e descobrir as partes interessantes, reduzindo o erotismo
ou ao conteúdo obsceno ou à narrativa. O obsceno, quando sozinho, não
passa de um conteúdo grosseiro, que quer se impor independentemente
de uma expressão.
Sobre o erotismo não se confundir com a obscenidade: a fim de mostrar a
diferença entre o erótico e o obsceno, faço um paralelo entre o erotismo-
obscenidade e o barroco-caricatura. Diz Borges (1989, p. XXIII): “o barroco
é aquele que deliberadamente esgota (ou pretende esgotar) suas possibili-
dades e faz limite com a própria caricatura”. Diria eu que sim, o barroco é
aquele que esgota, mas, acrescentaria, é também aquele que esconde. Esgota
não porque mostra, mas porque, com o exagero da caricatura, esconde o
que somente deve aparecer no momento certo, e somente para os videntes
certos. É como um projeto, o qual faz do exagero a sua estratégia. Ainda que
o erotismo não funcione como o barroco, o seu procedimento aproxima-se
do procedimento barroco quando o que está em questão é a existência de
uma estratégia. Quero dizer que o erotismo usa a obscenidade (ou qualquer
assunto vinculado ao sexo e à sexualidade), no papel que, no barroco, é o
da caricatura. A obscenidade, no erotismo, serve somente para ludibriar,
enganar, retardar; o importante vem, sempre, depois. A obscenidade é
somente um passo dentro de um procedimento muito mais sofisticado. A
obscenidade não esgota, não pode esgotar o erotismo, assim como o exagero
não resume o barroco. No mesmo parágrafo, Borges complementa: “eu diria
que é barroco a fase final de toda arte, quando ela exibe e exaure os seus
recursos”. Digo que é erótica a fase final de todo processo, quando este
atinge um ponto de ebulição, exibindo os seus efeitos e os seus recursos.

210 • 211
Um, dentre os recursos usados pelos escritores da Literatura Erótica,
tem sido a obscenidade. “Quando a obscenidade se revela na arte, e mais
particularmente na literatura, manifesta-se, sempre ou quase, como um
dispositivo técnico” (MILLER, 1991, p. 49).
Impulso e instituição: o Procedimento Erótico não quer, simplesmente,
desorganizar tudo, pelo contrário, quer instituir uma ordem. O procedimento
é uma instituição, no sentido de colocar ordem nos impulsos. “Certas coisas”,
já disseram, “devem estar em seus lugares, é preciso ter o plano organizado
para que ele escape” (COSTA, 2007, p. 126). A questão, a grande questão, é
criar uma ordem aos impulsos de tal maneira que estes não sejam negados,
mas afirmados.

4 Metodologia
Por Educador
O próprio Procedimento Erótico é uma metodologia, contando,
inclusive, com um manual:
A noção de procedimento aqui em questão não funciona como um mero
protocolo, mas como um empreendimento de desmontagem, que visa uma
variação. “O procedimento é o próprio processo da psicose” (DELEUZE,
1997, p. 19), o que quer dizer: uma invenção descompromissada com as
intenções e com as regras ditas normais. Ele é, nesse sentido, a via alternativa
em relação ao manual de conduta ou ao manual de comportamento. O
procedimento é aqui usado como um modo de extrair das Formas algo de
estrangeiro, sob a condição de não negar as Formas anteriores.
1) Se capazes, inventemos os nossos próprios procedimentos, ou seja,
nossas próprias maneiras de deixar de ser o que somos.
2) O procedimento é um interrogatório que parte do vazio, fantasiado de
lista universal de respostas. Deve, portanto, ser usado observando a sua
verdadeira face.
3) Se, em algum momento, o procedimento parecer ser contrário à religião,
rever os teus conceitos: saiba que não tem nada contra ela, apenas teima
com a sua obsessão em querer que sejamos sempre os mesmos, com a
sua soberba em nos penalizar se acaso desejarmos não permanecer os
mesmos.
4) O procedimento gosta de ser vazio em matéria de conteúdo. Cabe a cada
um, que dele se apropriar, envolver aquele conteúdo que achar mais
interessante.
5) O procedimento é uma invenção, mas uma invenção que deve ser
praticada efetivamente na vida.
6) Não interessa qual é o ponto de partida: pode ser o Eu, a Formação
educacional, o Ensino, o Currículo, uma fotografia, um livro, uma
instituição, a linguagem, a escrita etc. O que importa é a invenção de
procedimentos que extraem, das Formas, linhas sem Formas.
7) O procedimento é, primeiramente, uma maneira de ocupar o vazio
provocado pelas Formas doentes. Depois, é uma maneira de recuperar
o vazio. Em suma, o procedimento é uma maneira de preencher o vazio
sem se desfazer dele.
8) A tarefa de inventar procedimentos pode não interessar à maioria, pois a
ela interessa somente a pequena fatia do mundo que lhes é apresentada.
O procedimento importa somente àqueles que querem ver mais, embora
no clímax não haja mais nada para se enxergar.
9) O procedimento não deve ser usado para fugir da realidade, pelo
contrário, deve ser usado para alargar a realidade.
10) A linha do procedimento, por excelência, não é a de fuga e muito menos
a molar, mas é a molecular, aquela que nos disponibiliza algum tipo de
controle sobre ela, a partir da sua flexibilidade. A linha de fuga é a meta
do procedimento, aquela que somente dá o ar de sua graça em caso de
êxito.

5 Resultados/efeitos
Por Frei N
Todos os sopros aqui se misturam, de tal modo que fica difícil iden-
tificar qual é o resultado do Procedimento Erótico. Pelo o que pude
entender, há, como efeito, ao menos quatro projetos eróticos: o Libertino
(sádico), o da Humilhação Redentora (masoquista), o do Prazer do Ensino
e o do personagem Klóvis. Por outro lado, também posso dizer que esses
quatro projetos são, além de efeitos, elementos constitutivos do Livro.

212 • 213
São efeitos na medida em que são apresentados pelos três Procedi-
mentos; mas também são elementos constitutivos porque dão os passos
que acabam por compor os mesmos três Procedimentos. Mas o que real-
mente choca é que todos eles são – de alguma maneira – projetos educa-
cionais.

Do Projeto Libertino (sádico), posso fazer as seguintes afirmações:


1) Quem experimenta o novo não é o inventor, mas é o envolvido no
projeto. Ou seja, não é o professor libertino, mas o aluno.
2) O inventor do projeto (sempre um libertino) é um decorador, um diretor
de teatro. A sua utopia não está tanto no que ele diz (seja na aula ou fora
dela), mas no modo em que dirige a sua vida cotidiana e a dos demais
envolvidos. Portanto, para identificar um libertino, basta identificar
quem é que detém a direção da cena.
3) Um libertino é valorizado por sua engenhosidade e intelectualidade,
e não por deixar tudo acontecer. O libertino recebe esse nome por ser
adepto não da liberdade/bagunça, mas da liberdade de criar novos
modos de ordenações.
4) Esse projeto não se coloca contra códigos/regras; coloca-se contra estes
somente quando se referenciam em classes morais. Ou seja, nenhum
problema quando códigos são definidos no interior da Sociedade
Libertina. A lei, nesse sentido, somente é repudiada quando substitui a
arte de julgar, quando ela mesma julga pelo homem.
5) Os valores morais são entendidos como pertencentes a uma segunda
natureza, que deve ser ultrapassada para que se retorne à primeira.
Toda lei humana contraria a natureza primeira, merecendo, por isso, o
desprezo.
6) Um professor deve debochar da natureza humana; mostrar ao aluno
o quão ridículos são os seus preconceitos; chocar o aluno, violentá-
lo; mostrar que há somente uma maneira de a Educação se mostrar
vantajosa: se ela for suficientemente perversa.
7) A ultrapassagem da natureza inferior à natureza superior implica no
esforço em fazer instituir, sobretudo, uma Sociedade Libertina, que faz
degenerar as leis, os costumes, os valores, colocando-se acima disso
tudo.
8) Para o Projeto Libertino, o bom aluno é aquele que sabe seguir o mestre,
e o bom mestre é aquele que se delicia com a ingenuidade de seu aluno.
É que o prazer libertino se encontra na destruição daquilo que quer
parecer tão puro.
9) O aluno perfeito é aquele que se excita com as perversões do mestre, após
ter os seus valores terrivelmente destruídos.
10) Esse projeto implica um professor que ensina, mas que não forma. Ou
seja, o inventor/professor/libertino vive sempre da mesma maneira,
dedicando-se somente a transformar a vida dos alunos, mas jamais a
dele mesmo.

Do Projeto da Humilhação Redentora (masoquista), posso fazer as seguintes


afirmações:
1) O inventor do projeto experimenta a sensação de sofrer golpes em vez
de golpear. E faz isso sozinho, não no interior de uma sociedade.
2) O inventor (com doses masoquistas) deve ser humilhado pela última
pessoa que gostaria que lhe visse humilhado. Mas como fazer com
que tal pessoa aceite essa estranha missão? Este é o desafio educacional
da vez: formar a própria carrasca.
3) Implica a convicção de que somente aquele que cria o projeto tem,
efetivamente, o prazer de um segundo nascimento. Quem renasce é o
próprio inventor.
4) O sofrimento pode ser considerado um pressuposto da tarefa; ele é
positivado. Somente se torna num mau problema, quando o doente não
sabe lidar com o seu sofrer. O inventor se torna um doutor da sua própria
doença, que, neste caso, é o Eu.
5) Em vez do educador (inventor do projeto) se envolver com os alunos se
postando como um exemplo a ser seguido, posta-se como um exemplo
a ser traído: o aluno é persuadido a agir não como já age e muito menos
como o seu educador, mas de um outro jeito, de um terceiro jeito.

214 • 215
6) O projeto não se preocupa com a seguinte questão: quem está no
poder, a mulher ou o homem? A sua verdadeira questão é esta: o projeto
em função da suspensão da ordem estabelecida, do já formado. O
interesse está na hesitação e nos dilemas.
7) O inventor/educador/masoquista destrói a si mesmo, e essa é a grande
pornografia. O prazer está em fazer a si mesmo agonizar: apanha-se
para redistribuir-se.
8) O contrato envolvido ao projeto não é neurótico, é esquizo: inventa
uma nova realidade que se sustenta em pé sozinha.
9) As Formas são as inimigas, porém, em vez do projeto se inclinar
sobre elas de modo destruidor, inclina-se ao modo de Kafka: sofrendo
com elas e mesmo amando-as (BATAILLE, 1989, p. 147).

Do Projeto do Prazer do Ensino, seleciono as seguintes máximas:


1) É possível ensinar o que não se sabe.
2) O ensino implica a invenção de uma fantasia.
3) A graça da sala de aula está nas crises.
4) Uma aula não é nem um espetáculo, nem uma convenção e nem
uma luta.
5) A preferência é pela aula magistral.
6) A aula envolve um contrato e distribuição de funções.
7) A aula é movida pela sedução e pelo envolvimento.
8) A aula vale mais pela sua preparação do que pela sua realização.

Do Projeto de Klóvis, seleciono as seguintes máximas:


1) As Formas flutuam sempre, mas tal flutuação pode ser intensificada
ou não.
2) Aquele que evita os costumes a todo custo não está tão distante daquele
outro que neles se agarra até a morte.
3) A agonia é positiva, mas desde que não se perpetue.
4) A obsessão pode ser sinal de seriedade, controle e sobriedade; mas
também pode ser sinal de insegurança.
5) Há uma impossibilidade de permanecer indiferente diante da ação
erótica.
6) O homem superior é, simplesmente, aquele dos atos consistentes.
7) O Erotismo violenta as Formas pretensamente acabadas. É por isso que
quem ama o Erotismo deve dizer: “dê-me ao menos UMA Forma”.
8) As Formas acabadas não existem, são ilusórias.
9) A combinação erótica é inusitada.
10) Uma nova presença envolve uma nova fórmula ou até um novo projeto.
11) Na medida em que envelhecemos mais a perversão se faz necessária.
12) A perversidade do Erotismo aparece justamente quando se quer negá-la.
13) Educadores e educandos devem ser extemporâneos.
14) Há uma impossibilidade de o gesto condizer com o que a alma planeja.
15) Tomar decisões com elegância implica não mostrar que está assim
procedendo.

Saúde, Leitores, para cantar todos os sopros!

Referências
BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. (Tradução Suely Bastos). Porto Alegre: L&PM,
1989.

BLAKE, William. O casamento do céu e do inferno. In: _____. O casamento do céu e do


inferno e outros escritos. (Tradução Alberto Marsicano). Porto Alegre: L&PM, 2011.

BORGES, Jorge Luis. História universal da infâmia. (Tradução Flávio José Cardozo). São
Paulo: Globo, 1989.

COSTA, Cristiano Bedin da. Matérias de escrita. 2007. Porto Alegre: UFRGS, 2007. 1
volume. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2007.

DELEUZE, Gilles. Apresentação de Sacher-Masoch: o frio e o cruel. (Tradução Jorge


Bastos). Rio de Janeiro: Taurus, 1983.

216 • 217
DELEUZE, Gilles.. Louis Wolfson ou o Procedimento. ______. Crítica e Clínica. (Tradução
Peter Pál Pelbart). São Paulo: Ed. 34, p. 1997.

ENARD, Jean Pierre; MANARA, Milo. A arte da palmada. São Paulo: Martins Fontes,
1991.

MILLER, Henry. Obscenidade e reflexão. (Tradução Pedro Alvim). [S.l.]: Vega; Passagens,


1991.
Conexões heterogêneas:
uma Educação Potencial

Máximo Daniel Lamela Adó


Sandra Mara Corazza

Resumo
Trata-se de um resumo de Tese defendida no PPGEDU da UFRGS em
janeiro de 2013. A mesma tem como enfoque o dimensionamento de
um meio prático e relativamente autônomo para um fazer na Educação.
Tal fazer é nomeado na Tese como: Educação Potencial. A concepção
de autonomia, assim como a de potência não estão relacionadas a uma
essência, mas à intensidade imanente e material de sua prática que, por sua
vez, inclui-se a uma composição de síntese relacional com a divergência.
Envereda pelo gosto de fomentar relações que escolham antes o diferencial
do que o referencial. Preocupa-se com a noção de que deve agir de modo a
desestimular modelos e estimular a proliferação daquilo que ainda não se
sabe. Desta maneira a própria escrita da Tese atua performativamente por
uma composição fragmentária e digressiva. Escolhe a selfvariance valéryana
e a literatura borgeana e oulipiana como modos de proceder com a palavra
escrita e, a sua vez, incorpora esse processo na Educação.

Palavras-chave
Autocomédia. Intelecto. Literatura. Filosofia. Valéry.

218 • 219
A Tese assumiu, desde o resumo, que o conjunto toma a forma de um
textotese; palavra composta que visa explicitar que a Tese antes, durante e
depois de ser Tese é texto. Essa fórmula varia podendo assumir a composição
contrária, ou seja, de tesetexto. Isso ocorre, pois ao considerar que a Tese
antes, durante e depois de ser Tese é texto se considera, também, que este
se torna Tese e se retroalimenta por aquilo que ele mesmo é, tese e texto.
O que faz com que se afirme, em explicitação epigráfica, que o textotese é
composto mediante restrita, estrita e estreita relação com a realidade. Trata-
se, evidentemente, da realidade textual; de uma vivência pela palavra. De
palavra vivente.
Na abertura de seu conjunto há um aviso: Este textotese pressupõe
leitura acelerada. A rapidez do leitor ou a velocidade da leitura importa
como um modo de impor ao conteúdo, mais que um valor de sentido, um
efeito de presente. Um convite a uma leitura errada, por errática e, por isso
mesmo, implicar o leitor como escritor. No entanto, um escritor que toma a
palavra em sua superfície e não faz dela a efígie de uma identidade.

1. Perigrafia
Não se pode ter certeza de quantas são as entradas. Não há entradas.
A coesão ou unidade se faz dispersa. As fronteiras não estão fortificadas.
Os subúrbios, arrabaldes ou periferias são permanentemente retrojetados
e permanecem em discórdia com relação às suas identidades ou posições
marginais.

2. Anúncio
A criação é vista como um ato de composição. Um artifício da forma.
O textotese atenta para processos, leis, regras, restrições; autoimplica-se na
produção de imagens sem semelhanças. Tudo isso na espreita de exercícios
que se entreveem em uma escritura como potência de ação alegre, ou
seja, de um aumento do grau de potência em educação. Trata-se de uma
autofabricação que procura agir como um dínamo para compor relações
combináveis, composições de corpo-corpus; um catálogo compositivo que
mistura elementos ditos da realidade e da ficção. Assume fazer coisas
com as palavras.
3. Advertência

O textotese possui valor transitório e considera, também, desneces-


sário afirmar seu valor de transitoriedade. Qualquer texto que se apre-
sente como um sistema estanque carrega na sua clausura de suposta
estabilidade a responsabilidade de uma promessa. Estamos cercados de
textos promessas.

4. Preâmbulo
A tarefa é infindável. Tanto é assim que não coube iniciá-la no tex-
totese, pois, se é infindável assim o é por não ter fim nem começo. Não
traçamos linhas de um ponto a outro por existir, naquilo que compõe a
linha, um ponto inicial e um final pelos quais possamos figurar o mundo
por essa redução inteligível. Traçamos linhas para visualizar nessa es-
peculação a metáfora de uma extensão de continuidade. A linha – expli-
cação figurada – traduz-se como valores contínuos e está para conceber
uma ordem no caos; conceber um fimcomeçoemordem.

5. Prolegômeno
Devo considerar, de chofre, que o que se deseja desenvolver aqui, é uma
ação voluntária tendo uma ação exterior como fim. Essa ação voluntária é
o movimento da escritura. E tal movimento tem como objetivo uma ação
exterior que age como uma oscilação que coloca em jogo a ideia de que a
pobreza da linguagem deve tornar-se a sua própria riqueza (DELEUZE,
2006, p. 100).

6. Prelúdio
A autocomédia do intelecto não se interessa por uma história da
verdade; mas por uma narrativa de sua própria potência como contingência
de composição. Um escrever que funcione, apenas, como experimento do
trabalho de alguém que escreve.
A autocomédia do intelecto aposta na literatura como um meio da
Educação Potencial; atividade libertária, nietzschiana, de começar a partir
de si mesmo, pelo esquecimento, pelo jogo da roda que gira sobre si, na

220 • 221
afirmação, na superfície, na afecção alegre e no riso. Não o riso triste
que pode surgir pelo ódio e desprezo, lamento das ações humanas, que é
também um riso de escárnio, sátira e depreciação, mas o riso que ques-
tiona a morte e as regras do bem e do mal por se expor como potência
de vida. A vida como um modo eterno de ser, em todos os seus atributos,
e o riso como um desses atributos.

7. Prólogo
Talvez como a exemplo de um escritor como Xavier de Maistre
(1998) – ao dizer-nos que os inconvenientes da vida social e da solidão
destroem-se mutuamente e assim esses dois modos de existência se
embelezam um pelo outro – o Educador, um Educador, encontre na
espontaneidade de sua própria determinação a de um Outro que o
afeta como num paradoxo do sentido íntimo ao dizer: eu sou um outro.
Representando para si a atividade do próprio pensamento. Ele faz assim,
uma reflexão representacional antes e ao mesmo tempo de colocar o
próprio pensamento na ação como pensamento. No entanto, paciente
leitor, pressupomos, ao escrever este texto, que o pensamento não se
elabora quando não passa de uma violência do tipo interrogatório. Uma
violência que introduz previamente o que pretende encontrar, pois isso
constrange a própria fisiologia de um pensamento.

8. Prefácio
Este prefácio é míope, sua disfunção obriga que enxergue, sem dis-
torções, apenas aquilo que está muito próximo; este prefácio obriga-se
a não usar subterfúgios ao reescrever uma frase falseada de Robbe-Grillet
(1998, p. 139): Este texto não é nem significado, nem absurdo, nem pródigo,
nem exemplar, nem frouxo ou celibatário, nem potente ou risível, nem
enfadonho, nem delirante, nem é; ele se escreve somente.

9. Precondição
Escrever como uma máquina de agenciamentos que funciona como
literária e em conexão a uma multiplicidade que chamo Educação. Es-
crever atento às próprias regras de escritura. Escrever, pois, é disso que
se trata, experimentar a Educação como superfície de inscrição auto-
variante.

10. Exodiário
No teatro romano (antigo), um exodiário é o ator do êxodo, sendo o
êxodo ou exodus a parte final de uma comédia ou, ainda (quando se trata
de uma peça trágica), uma passagem do trágico para o cômico. Eis que
este textotese se veste de exodiário. Busca trazer à cena uma aversão
resistente às forças explosivas do trágico. Agir como potência de liberação
por meio de afecções alegres. Fugir, ao modo nietzschiano, de estados
de tristezas, opressões, depressões, ressentimentos venenosos que nos
envergonham da menor felicidade. Não ser arrestado pelas forças trágicas,
mas tomá-las como matérias para preencher potências de liberação,
como na malignidade spinoziana (DELEUZE, 2005, p. 291), que opera em
função da valoração de forças, agindo com aversão à resistência anunciada
por um pensamento da negação e da contradição.

11. Prestatário
O empréstimo é constante. Procedimento econômico. Um dispêndio
de palavras e coisas. Muitas. Ocorre como um duplo movimento de
fabricação ao modo de um golpe, uma pancada quiasmática escrileitora.
Emprestar da escritura uma instrumentalidade de retroalimentação, fazer
da mesma uma autocomédia intelectual que, a sua vez, empresta a uma
Educação Potencial um modo de induzir ambiguidades. Modo intransitivo
que procura não dar atenção a um significado, mas à produção. São os
empréstimos em processo de retroalimentação constante. Não há nada
além de empréstimos, empréstimos de empréstimos, empréstimos de em-
préstimos de empréstimos. Escrileitura.

12. Prolepse
O privilégio é o do paradoxo que refuta por antecipação qualquer
objeção, pois todas as objeções serão aceitas e retrojetadas ao jogo. Um
jogo que convida a atuar como Laurence Sterne em seu Tristam Shandy
(CALVINO, 2000); ter como procedimento de escritura se expor como

222 • 223
estrutura que desautomatiza o modo de ler; usa a digressão como maneira
de protelar qualquer conclusão, pois toda conclusão está associada à morte.
E a questão, aqui, é essa: procurar procedimentos que auxiliem a refutar
a morte por antecipação. A refutar a conclusão antes que ela nos refute.

13. Restrições
Entende-se que uma restrição é uma condição que impõe certos limites
e os limites são sempre inventados.

13.1 Educação Potencial


Uma Educação para um pensamento do não-específico, do genérico,
do informe e da infâmia. Uma Educação que afirma as diferenças dos
seres, unicamente, pelos seus graus de potência. Uma Educação que
procura esquecer as concepções de gêneros e espécies na medida em que se
ocupa em operar com uma concepção a respeito dos agenciamentos dos
quais cada ser é capaz de entrar.
Uma Educação Potencial funciona como uma Educação sem me-
diação e sem finalidades; é ela mesma o seu propósito na medida em
que atua como um agente de composições heterogêneas. Se há restrições
é nelas que temos de observar certa liberdade. Escandir as imputações
dadas pelas restrições e atribuir às mesmas um movimento para exercer a
potência necessária do intelecto. Via intelecto, direcionamos nossa atenção
ao mais potente dos afetos, o conhecimento.
A liberdade, aqui, não pode ser associada à vontade ou livre-arbítrio.
A liberdade tem um tom spinoziano e nietzschiano. Alcançar liberdade
seria um meio de reforçar o presente com certa determinação do porvir.
Levar a imaginação a produzir conexões necessárias e que dependem
somente de nossa potência e que se apoiam em relações ainda ignoradas
por nós (CHAUI, 2009, p. 59-79). Abandonar a ideia de livre-arbítrio é o
mesmo que abandonar um modo de vida amedrontada, uma ordem moral
do mundo. Mas tal abandono não é facilmente praticado. Percebe-se a
ordem moral do mundo com muita dificuldade. A ordem moral do mundo
está travestida em nossos hábitos e costumes, hábitos do raciocínio que
procuram vestir-se de liberdade.
Na Proposição 48 da Segunda parte de Ética, Spinoza explicita que
“não há, na mente, nenhuma vontade absoluta ou livre: a mente é
determinada a querer isto ou aquilo por uma causa que é, também ela,
determinada por outra, e esta última, por sua vez, por outra, e assim até
o infinito” (SPINOZA, 2007, p. 145). Desta proposição ele comenta
que a mente é um modo definido e determinado do pensar e, por esta
razão, não pode ser causa livre de suas ações. Não possui a faculdade
livre de querer ou não. Não havendo na mente uma faculdade absoluta
do compreender, desejar ou amar, estas são faculdades fictícias ou entes
metafísicos universais que formamos a partir de coisas particulares. Os
homens se acham livres, pois pressupõem que todas as coisas naturais
agem tal como eles próprios, tal afirmação spinoziana está desenvolvida
no Apêndice da Primeira parte de Ética (SPINOZA, 2007, p. 63-75). E é
desse tipo de pressuposição humana que surgem definições de uma ordem
moral do mundo e se originam “[...] os preconceitos sobre o bem e o mal,
o mérito e o pecado, o louvor e a desaprovação, a ordenação e a confusão,
a beleza e a feiura, e outros do mesmo gênero” (SPINOZA, 2007, p. 65).
Tais preconceitos se tornam superstições que explicam causas de ganhos
futuros possíveis. Faz com que um desejo de liberdade se torne servidão à
superstição que comanda via um modelo de vida que atua como potência
triste. Um modelo que traduziu platonismo em cristianismo e, nesse
mesmo processo, alguns aspectos da modernidade filosófica são derivados
de uma laicização da moral cristã.
Tal laicização ganha voz, via metanarrativas, como Jean-François
Lyotard (2011) soube chamar atenção. Uma ordem moral do mundo
é inseparável de uma questão de poder (SANTIAGO, 2009, p. 176). A
potência que evocamos aqui pertence ao potencial, mas não o poder. O poder
atua no campo da mediação, por uma simetria associada a uma finalidade
ou teleologia, trata-se de uma política, ou melhor, está associado a uma
concepção jurídica do mundo. Nessa concepção uma relação de forças
tem origem no individual e privado, tem de ser socializada para gerar
uma reação apropriada que lhe corresponda, tem de ser mediada, ou seja,
funciona por intermédio de um Poder e sua perspectiva se dá inseparável de
uma noção de crise gerada e geradora por e de antagonismos.

224 • 225
Desse modo o poder intervém como um poder dos antagonismos e
via uma solução antagonista (DELEUZE, 1993), dito isto não é preciso
destacar que se trata de uma postura dualista e, portanto dicotômica, ou
seja, tratando a presença como uma verdade dada pela representação.
Pergunto, não seria este o lugar da Educação que conhecemos nas
práticas institucionais? A Educação como o lugar de um poder de mediação
via uma concepção jurídica do mundo e para o mundo e não em-o-mundo?
Uma Educação como sendo: a Educação; instituição que medeia ou se quer
a mediadora das relações de uma vida aos modos do conhecimento?
Quando falo Educação Potencial e uso da palavra Educação estou
preocupado em manter, de certo modo, apenas seu costume lexicológico
e não o axiológico. Falo de uma Educação rasurada, ao modo derridiano
da rasura (DERRIDA, 2002), o que fica é apenas um arquitraço, pois sua
marca política de aparato jurídico e de potestas (poder) não se nutre (não
quer que se nutra). Por isso o que se quer com uma Educação Potencial é a
presença da potentia como o conatus spinoziano (potência via uma doutrina
dos afetos ou um esforço de autoperseveração no ser) afirmando uma
produtividade possível sem mediação.
Uma posição, possivelmente, naturalista, pois de certa forma aposta
na crença de que existe nesse ente que a antropologia filosófica escolheu
denominar de homem um princípio natural e que, tal princípio, se efetiva
nos seres vivos microscópicos que constituem o seu organismo enquanto
potência (conatus) e impulso dinâmico, mas, claro, interessa-me observar e
chamar atenção que esse princípio natural extrapola o humano. Ao modo
nietzschiano não se privilegiaria uma identificação antropomórfica com
um Deus como um criador ilimitado (HAAR, 1993). Promovendo, de
certo modo, por meio de um amor dei intellectualis spinoziano, um caráter
necessário ao que se efetiva.
Daí, dessa concepção, temos uma Educação que não atua como
mediação, mas se assume como potência positiva e produtiva, criadora,
portanto. Pois não se dirige a um objeto em particular ou age por uma
finalidade ou teleologia. Atua de modo deliberadamente anacrônico,
digressivo, desorientado, ou orientado a seu modo; agencia-se na composição
de singularidades, ou seja, agencia singularidades para produzir novas
singularidades. Essa é sua restrição; inventar por meio da inovação que
se estabelece como invenção ao se apropriar de uma inovação anterior
ou, ainda, futura. Apropriar-se do que está por vir e fazer disso o seu
modo de disposição. Um estar-lançado. Uma Educação que não se preocupa
pela satisfação de algo ou alguém e, tampouco, com o preenchimento de
algum vazio. O seu sentido está em seu ato como o uso da materialidade
mundo em conjunção e composição para um aumento de seus graus de
potência de ação.
Uma Educação Potencial se configura como um lugar que não visa
produzir deciframentos ou apresentar resultados. Se, por algum acaso, ela
se erige em um espaço dito de educação ao modo de fazer de si experimento
de uma potência educacional, parecendo com isso intervir com algum
procedimento sistemático, assim o faz sem ter por ação um método
heurístico, mas um método de invenção. Tem a si mesma e à sua linguagem
como objeto na medida em que procura inutilizar todo discurso que por
ela atravessa e, com isso, fazer de tudo ficção, sua ficção.

14. Possest – as coisas são a potência


Em um curso sobre Spinoza, ministrado em 09 de dezembro de 1980,
em Vincennes, Gilles Deleuze menciona Nicolau de Cusa como o criador do
termo possest. Deleuze afirma ser possest uma palavra-valise, uma corruptela
de duas palavras latinas, uma criação verbal elaborada por Nicolau de
Cusa. “Possest é feita de ‘posse’ que é o infinitivo do verbo ‘poder’, e ‘est’,
que é a terceira pessoa do verbo ‘ser’ no presente: ‘ele é’. Ele [Nicolau de
Cusa] corrompeu as duas e isto dá ‘possest’. O ‘possest’ será precisamente a
identidade da potência e do ato pelo qual defino alguma coisa. Então eu não
definirei alguma coisa por sua essência, aquilo que é, eu a definirei por esta
noção bárbara, o ‘possest’, aquilo que ela pode. Ao pé da letra: aquilo que ela
pode em ato” (DELEUZE, 2009, p. 83).
Com essa noção elaboramos uma questão: o que pode a Educação?
O que interessa é o que ela pode e não o que ela é, pois sua existência se
dá por meio de suas práticas. Então, o que interessa, também, – ao gosto
do que pretendemos chamar de Educação Potencial – é empreender uma
atenção ao que pode a Educação como ação de inteligência, ou seja, o que

226 • 227
pode a Educação ao modo de querer provocar um riso ético, um riso de um
homem dito livre, um riso benevolente vindo de uma ação de alegria.
É importante chamar a atenção para a ideia de que uma ação de
alegria está diretamente relacionada ao que Deleuze chama, via a leitura
de Spinoza, de “linha melódica da variação contínua constituída pelo
afeto” (DELEUZE, 2009, p. 27), essa linha é constituída por dois polos
denominados, por Spinoza, de paixões fundamentais, esses polos são:
alegria e tristeza. “A tristeza será toda paixão, qualquer paixão, que envolva
uma diminuição de minha potência de agir; e a alegria será toda paixão que
envolva um aumento de minha potência de agir” (DELEUZE, 2009, p. 27).
Uma Educação Potencial, para que possa ser uma Educação que
aumente a potência de agir terá de eleger modos de ser atravessada, em
especial, pelo polo da alegria. Nessa linha contínua do afeto39 – constitutivo
pelas paixões fundamentais – como força da variação de existir de alguém
(neste caso esse alguém seria a ideia de uma Educação Potencial), e sendo
que esta variação é decidida e motivada pelas ideias que este alguém tem,
ou seja, essa ideia que o atravessa, aumenta e diminui a sua potência de
agir, uma Educação Potencial assoma-se a querer o cultivo de ideias que
promovam a inteligência e a vivacidade. Então, o que pode a Educação?

Tentativa de esgotar um lugar da Educação


Podemos nos interrogar sobre aquilo que nos é tão próximo, mas,
a cada vez, nos é tão distante? Somos capazes de nos surpreender com a
maquinaria que modelou nossos modos de surpreender-nos? Talvez haja
um lugar na Educação que, me parece, esteja cansado; precisamos
tentar esgotá-lo? Seria, a nossa, uma Educação acomodada em um lugar
conhecido como o consenso? Podemos esgotar os recantos desse lugar cheio
de promessas harmônicas, virtudes, finalidades, deveres, estatutos, passados
e futuros? Podemos inventar uma Educação nossa; que sim, no meio; da
excursão, do delírio, do necessário, do absurdo, que nem comece ou termine

Lembro que estou utilizando a palavra afeto para a noção de affectus spinoziano. O afeto em Spinoza é uma
39

capacidade de afetar e ser afetado, não denota um sentimento pessoal, mas uma intensidade pré-pessoal que
corresponde à passagem de um estado de experiência a outro. Isto implica na diminuição ou aumento de agir de
um corpo.
ou diga ou hesite ou marche ou espere ou ou, mas mais mais? Podemos
inventar uma Educação fragmento feita de cacos, relâmpagos das festas do
intelecto, festas dos corpos; das festas todas que nos sugiram isto e aquilo,
coisas compositivas; uma Educação Potencial?
Há muitas coisas nesse nome, nessa identidade Educação. Seria
necessário contaminá-la, fazê-la variar de modo que não consiga mais ser
idêntica a si. Esgotar o seu nome como o lugar que a faz repousar em uma
pessoalidade imperativa e conciliadora de contrários; fazer desse nome uma
potência de diferença positiva; fazê-lo variar por um movimento virótico
que se autoimplica em uma reciprocidade assimétrica.
A Educação Potencial é isso; um modo de festejar conexões hetero-
gêneas; uma tentativa de esgotar o lugar do consenso para a Educação.
A Educação Potencial se concebe como potência para a especulação de
si como existência que difere; diferença intensiva. A Educação Potencial
atua como um convite para se chegar alhures.
“Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões.” (ANDRADE, 1955)

Referências
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Alegre, 2013. Projeto de Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em
Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2013.

ANDRADE, Mário de. Obras completas de Mário de Andrade II: Poesias completas. São
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capitalismo y la esquizofrenia. Buenos Aires: Editorial Cactus, 2005, p. 281-292.

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LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. (Tradução Ricardo Corrêa Barbosa.) Rio de


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SPINOZA, Baruch. Ética. (Tradução Tomaz Tadeu - Edição Bilíngue). Belo Horizonte:
Autêntica, 2007.
Sou Pedagogo, Didata,
Curriculista, escrevo.

Marcos da Rocha Oliveira


Sandra Mara Corazza

Resumo
Este “Sou pedagogo, didata, curriculista, escrevo”, doa um modo de orga-
nização textual e mostra como a pesquisa se desloca em suas páginas. Tal
escolha visa aludir ao estudo praticado no texto que se apresenta como
Tese, impelindo o leitor a uma imanência estrutural que acompanha
o problema de pesquisa que se escreve. Por sua vez, a impessoalidade
deliberadamente afastada é grafada na marca da primeira pessoa do singular
(índice notório e desavergonhado da autoria e da ordem original) que, ao
insistir com frases explicativas, visa criar um efeito de leitura que perfaça
certa duplicidade perfeita entre texto e autor: estranho artifício que explicita
a obliteração de toda origem e do próprio pensamento enquanto original,
visto que o duplo é sempre fruto de traição.

Palavras-chave
Criação. Aula. Pedagogia. Didática. Currículo.

230 • 231
Há muito insisto nos temas comuns às pesquisas em educação –
sobremodo na inflexão que educatio comporta em sua possível tradução por
criação. No Mestrado em Educação, escrevi um educador e o cotidiano
via uma prática biografemática de pesquisa (OLIVEIRA, 2010). E foi,
talvez, tal Dissertação que tenha possibilitado a formulação e necessidade
de um projeto inicial de pesquisa para o Doutorado sobre uma Didática
Neobarroca40, instada pela prática de “transcriação” ou “pedagogia ativa”
de Haroldo de Campos, pelo “neoBarroco” de Gilles Deleuze e pelo
“texto” de Roland Barthes (sendo, por sua vez, “texto” e “neoBarroco”
noções incorporadas em variação por Haroldo de Campos). Dessa
formulação e composição inicial e dessa insistência decorre a Tese que
hoje apresento neste Caderno de Notas, marcada por um viso das pesquisas
escritas na linha de pesquisa “Filosofia da diferença e educação”, do
Programa de Pós-Graduação em Educação e em especial por aquelas
que acompanho de perto em suas artesanias do pensar e escrever, sob
orientação da Profª Drª Sandra Mara Corazza. É sob esse registro que
apresento a tese desta Tese, em algumas de suas variações – bem como
uma visada sobre seus temas e sua estruturação textual.
Tomado por questões simples, tais como “O que é a pedagogia?” (ao
modo de Deleuze e Guattari, ao grafarem “O que é a filosofia?”), “O que
faço ou tento fazer quando digo que faço pedagogia?”, “É possível ter ideias
em pedagogia?”, “É possível ser didático e ter estilo?”, “Como funciona
um currículo?”, reúno uma série de operadores pedagógicos diferenciais,
marcados pela grafia do nome de alguns autores tornados, aqui, pedagogos:
Roland Barthes, Haroldo de Campos, Gilles Deleuze, Osman Lins (somente
para abrir a lista ou inventário breve). E é com eles, da maneira mais rápida
que consigo, de pronto, que defino: a pedagogia como atividade de criação
de didáticas; que se atualizam em currículos; sendo a didática um modo
de operar deslocamentos, e um currículo o dinamismo dramático desta
didática.
Notadamente, nesta formulação, Gilles Deleuze é o operador mais
presente e talvez o mais traído. É dele que tomo o método de dramatização

40 “Didática Neobarroca” é o anteprojeto de Tese que apresentei, no ano de 2009, por ocasião da seleção para
ingresso no Curso de Doutorado em Educação (com início no ano de 2010).
(1976; 2006a; 2006b; 2010) para dizer algo a respeito de uma ideia em
pedagogia, o que é análogo a dizer algo sobre uma criação pedagógi-
ca – e é neste ponto, então, que me aproprio das formulações mais
tardias de Deleuze acerca da filosofia, da arte e da ciência enquanto
atividades – específicas – de criação (1987; DELEUZE; GUATTARI, 1997),
fazendo uma leitura de sobrevoo em sua obra e mergulhando em textos
e fragmentos escolhidos por atração (àquilo que me faz escrever) e dis-
tração (àquilo que me faz ponderar, deixar para depois o texto: a Obra
deleuziana enquanto objeto de especialistas). Assim, o título da Tese,
“Método de dramatização da aula: o que é a pedagogia, a didática, o
currículo?”, marca bem seus intercessores iniciais: as conferências “O
Método de dramatização” (apresentada em 1967) e “O que é o ato de
criação?” (pronunciada em 1987), e o livro “O que é a filosofia?”, escrito
com Félix Guattari (em 1991). É a própria implicação de tais textos, as pri-
meiras linhas ou guias iniciáticos que atravessam meu problema (qual
seja: o que faço ou tento fazer quando digo que faço pedagogia?), que me
faz leitor de uma tradição inventada para a pedagogia “a operar como
contravolução, como contracorrente oposta ao cânon prestigiado e glo-
rioso” (CAMPOS, 2006, p. 237), ou apenas uma linhagem incomum
de pedagogos – entendidos, desde já, como criadores de didáticas. E é
desta forma que eles surgem no texto, como esboços (potencialmente)
permanentes ou atos de personagens larvares em constante formação –
única possibilidade, para mim, de praticar “a ruptura, em lugar do traçado
linear”, uma “historiografia como gráfico sísmico da fragmentação eversiva,
antes do que como homologação tautológica do homogênio” (CAMPOS,
2006, p. 237).
Gilles Deleuze, pedagogo. E outros também. Como Roland Barthes e
Haroldo de Campos, principalmente no que diz respeito às coordenadas
textuais da pedagogia como atividade de criação – um ensino escritural
(com Barthes) e uma pedagogia ativa do texto (com Campos). E Osman
Lins, dos pedagogos presentes (e incertos) aquele que de forma menos
sutil é homenageado e traído, pois é dele que tomo a (fantasia de) estrutura
da Tese, valendo-me do seu grande empenho em criar um percurso sin-
gular e em fuga, em seu livro “Avalovara”.

232 • 233
É o modo de deslocamento, ou o estilo pedagógico do “Avalovara”
de Lins que resolvo recriar, fantasiando tal texto (a Tese) como o meu
próprio ato pedagógico. É a variação e o fragmento, múltiplos, porém
conduzidos, que me permitem deslocar constantemente meu problema
de pesquisa ou minha tese inicial – ou seja: dramatizar minha própria de-
finição compartilhada anteriormente, colocando-a em crise ou à prova
diante de suas próprias engendrações, escrevendo dinamismos catastróficos,
uma barafunda calculada em termos de deslizamentos e rotações distintas.
Por isso transcrio o palíndromo latino SATOR AREPO TENET OPERA
ROTAS, guia ou condutor da narrativa em “Avalovara”, atualizando
dramaticamente um ato didático específico: O Pedagogo a Caminho
Está (minha maneira concreta de efetuar o palíndromo, de voltar à ação
do percurso, correr outra vez, de re-imaginá-lo de maneira singular, mas
não mais preso na recursividade infinita de seu vai-e-vem). É desta forma,
então, seguindo a figura da variação, a espiral, que retorno a cada um dos
componentes de meu problema (em sua versão mais concentrada, outra vez
mais: o que é a pedagogia?), na forma de quadrículas temáticas, cada uma
correspondente a uma das oito letras do palíndromo-guia, e comportando
uma dimensão imprescindível para a própria criação de tal problema.
Desta forma, de modo indiciário, assim se apresenta a composição
da Tese – onde cada temática (pois não se tratam, por funcionamento, de
capítulos e seus assuntos; de modo mais preciso, seriam – aproveitando os
sentidos de – temas e direções de um fragmento melódico), cada quadrícula
temática, se apresenta de modo fragmentado, obedecendo, ao mesmo
tempo, a uma rigorosa disposição textual e a um impulso “rebelionário”
(non serviam, não servil) no trato de suas matérias (portanto, não assuntos:
direções). A pesquisa encarna suas temáticas, e toda minúcia de sua
estruturação textual deve ser aprendida na própria leitura do texto, de
modo que o seu funcionamento mostrar-se-á facilmente para aqueles que
a ele atentarem (o título de cada quadrícula entre colchetes, abrindo e
reaparecendo em cada fragmento; e cada fragmento, por sua vez, marcado
por uma indicação específica, escrita à margem, grafada em itálico). Por
isso, quase nenhuma benevolência para com a inteligência do texto nesta
nota sobre a Tese, apenas indicações, faíscas indiciárias:
1) “O que é a pedagogia?”, dispõe a dimensão predominantemente
dissertativa da Tese. Busca apresentar, mesmo sem desenvolver
completamente, as diferentes dimensões do meu problema – apontando
os diversos cruzamentos conceituais e os autores implicados em sua
formulação. É responsável por tentar um “efeito de tese”, ou seja, marcar o
ponto inicial do texto, ser um disparador – irradiação e ressonância dizem
de seu efeito para os demais temas. Por isso, sua extensão é longa; e por sua
vontade textual, sua tendência à aliança, é a quadrícula temática que menos
se aproxima do fragmento, necessidade formal (de expressão) da Tese.
2) “Virgiliano, diz o pedagogo.”: a frase é uma chamada no Ulisses
de James Joyce (2007) e, aqui, é responsável pelas coordenadas de cons-
trução da Tese, reverberando as demais quadrículas em uma nova disposição
ou ênfase de leitura: possui, claramente, um caráter meta-temático, pois
informa o leitor sobre o intento de cada um dos temas, inclusive do seu,
em minúcias que não trato neste texto. A quadrícula mantém em sua
paisagem a seguinte passagem joyciana: “Você acha minhas palavras
obscuras. A escuridão está em nossas almas você não acha?” (p. 78). Trata-
se, definitivamente, de um guia; porém, sem abdicar de um fundo obscuro
– que aposta no tom introdutório ou de apresentação, cujo efeito de parada
propõe uma reescrita tanto dos fragmentos que lhe antecederam quanto
daqueles aos quais se antecipa.
3) Em “O Drama da Aula”, seus fragmentos referem-se aos “Retratos
Pedagógicos” de modo distinto: duplos, como biografemas didáticos,
escritos em primeira pessoa, trazem a dramatização da aula para alguns
pedagogos (aqui, professores): ao modo de Paul Valéry e seu “Meu Fausto”
(2010), tais pedagogos não representam os papéis que lhes designo, mas
emplois que lhes atribuo de acordo com seu estilo pedagógico.
4) “O Drama do Currículo de Pedagogia”, comporta a tomada do
Currículo de Licenciatura em Pedagogia, presencial, da UFRGS, pelo método
de dramatização. O intento é: tomar cada um dos oito eixos articuladores
de tal Currículo e submetê-lo aos movimentos crítico-genealógico e
experimental-exploratório presentes em tal método (CORAZZA, 2010b;
2011; 2012a; 2012b). Desta forma, a pesquisa ganha uma inflexão para o
problema já apresentado na quadrícula “O que é a pedagogia?”, de modo

234 • 235
que sua tese é confrontada com uma outra matéria, desta vez documental,
extroversa, que incide no referente – um modo de resolver, à sua maneira,
o próprio choque do quadrado com a espiral. Se meu problema de pesquisa
ganha oito temas, arbitrários – alguém poderá dizer –, é preciso notar que
para formar um pedagogo via um currículo institucional específico, oito
eixos foram inscritos – correspondendo, a seu turno, a um outro problema,
encarnando sob seus termos um outro drama.
5) “Didática da Transcriação”, trabalha, sobremodo, as minúcias da
transcriação do palíndromo incrustado no quadrado mágico e rasurado pela
espiral. Aproveita, em sua feitura, para ressaltar a dimensão didática de tal
pedagogia ativa da tradução, mostrando onde e quando chamo Haroldo de
Campos, a partir desta Tese, de didático, e como o trato por pedagogo – com
olhos e ouvidos que furam sombras.
6) Em “Tópicos Curriculares”, a variação do tema é que a constitui;
porém seu funcionamento é regular, funcionando como um lugar de
divergência, acolhendo notas – principalmente conceituais – sobre algo que
mereça algum reparo ou insistência. Tentando aplainar algumas arestas, tais
“Tópicos Curriculares”, paragens rápidas do deslocamento pela Tese, visam
dar velocidade a temas que estiverem lentos, servindo como uma espécie
de mola. A consistência de seus fragmentos é pretensamente explicativa,
de modo que posso afirmar tais tópicos como referenciais ou enquanto
verdadeiros portadores de referência. Como escrito por um pedagogo no
quadro negro, cada tópico é sempre assinalado com a distinção “Sobre...”,
vindo, então, o prometido e futuro tema variável a ocupar o espaço dos três
pontos – variando, por certo, não mais que os próprios pontos a cada pulsar
da espira.
7) “Retratos Pedagógicos”, ao modo de um pintor que, por respeito à
cor e ao pintar, dedica-se ao retrato (como um modo prudente de tornar-
se atento aos signos ou digno de sua atividade), esta quadrícula temática
escreve retratos pedagógicos de pedagogos, pequenas cenas breves, inflexões
de suas aulas (onde, diante de cada retrato, pode-se dizer: há currículo
aí). Cada retrato afirma textualmente um currículo como “biografema
derradeiro” (CORAZZA, 2009, p. 46) e pode ser dito pelo burburinho
impessoal de um “diz-se” sobre suas aulas.
8) “O Plano de Aula Escritural”, onde ensinar e escrever incidem sobre
a aula (com planos e ementas desatinadas). Trata-se de um experimento de
concreção textual. Possui seus atratores específicos: um “ensino escritural”
barthesiano ou “uma pedagogia dos efeitos”; bem como: uma didática
da concreção em Haroldo de Campos e o entendimento deleuziano da
aula enquanto um espaço-tempo especial – margeando Deleuze quando
afirma que no horizonte de toda atividade de criação está a constituição de
espaços-tempos específicos.
Texto de um pensamento da diferença em Educação, a Tese escreve a
tese de que a pedagogia pode ser afirmada como uma atividade de criação.
Define o que é ter uma ideia pedagógica; afirma a didática enquanto
criação em um plano pedagógico; e o currículo como atualização de uma
ideia em pedagogia. Escrita com o método de dramatização de Gilles
Deleuze, ela enfatiza o drama e não o logos. E dramatiza: o Currículo de
Licenciatura em Pedagogia da UFRGS; uma linhagem de pedagogos que
inclui, entre outros, Osman Lins, Roland Barthes, Haroldo de Campos;
e a aula como espaço-tempo de criação. Texto de um pedagogo, didata e
curriculista, a Tese escreve: planos e dramas de aulas; didáticas escriturais,
de transcriação e neobarrocas; retratos pedagógicos; modos de deslocamento
por planos pedagógicos; e dramas curriculares. A Tese, tal como a imagino,
funciona como dramatização de uma ideia em pedagogia, que consiste
em afirmar tal atividade como criadora de didáticas, que se atualizam em
currículos.
Desta forma, o empenho do texto, da pesquisa, é o de oferecer uma
Tese de Doutorado em Educação imediatamente pedagógica, de modo
que o seu volume possa ser lido como um objeto de aprendizagem.

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DELEUZE, Gilles. Qu’est ce que l’acte de Création? – Conférence donné dans le
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Ovídio de Abreu e Roberto Machado). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2010.

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Alegre, 2014. Tese (Doutorado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação,
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Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/94750>.

VALÉRY, Paul. “Meu Fausto” (Esboços). Introdução, tradução e notas de Lídia Fachin e
Silvia Maria Azevedo. Cotia: Ateliê Editorial, 2010.

238 • 239
Epílogo: A filosofia da
composição do Projeto Escrileituras

Sandra Mara Corazza


Ester Maria Dreher Heuser
Carla Gonçalves Rodrigues
Silas Borges Monteiro
(Coordenadores Instituticionais do Projeto Escrileituras)

No ensaio intitulado A filosofia da composição, publicado em 1846, na


revista Graham’s Magazine da Filadélfia, acerca do próprio processo de
montagem e execução do poema The Raven (O corvo), o poeta, contista e
ensaísta norte-americano Edgar Allan Poe (2009, p.113) atribui ao escritor
britânico Charles Dickens uma nota, na qual este teria dito que o mecanismo
do seu romance histórico Barnaby Rudge começara pelo epílogo: “Só tendo
o epílogo constantemente em vista, poderemos dar a um enredo seu
aspecto indispensável de consequência, ou casualidade, fazendo com que os
incidentes e, especialmente, o tom da obra tendam para o desenvolvimento
de sua intenção”. 
Poe afirma também que, após escolher um assunto, prefere começar
por um efeito vivo: “Eu prefiro começar com a consideração de um
efeito” (POE, 2009, p. 114). Assim como para o poeta, tratou-se, para nós,
participantes do Projeto Escrileituras – que também escrevemos e lemos
–, de escolher entre os inúmeros efeitos ou impressões advindos da vida
mesma; aqueles capazes de despertar a sensibilidade e a inteligência, a
imaginação e a memória, bem como outras faculdades que não são mais
do que a composição entre as forças no homem e aquelas que advêm de
fora (DELEUZE, 1991, p. 132). Foram esses efeitos que nos interessaram
como disparadores de escrituras e leituras; efeitos que estão contidos na
vitalidade, tanto dos incidentes habituais de uma vida, como nos tons
especiais dos autores que amamos, e que escolhemos para serem nossos
intercessores no Projeto. Intercessores que funcionaram durante as
pesquisas que resultaram em teses e dissertações, expostas nesse Caderno
de Notas 9, ou na realização das diversas Oficinas de Transcriação, que
desenvolvemos junto a estudantes de todas as idades e professores das redes
públicas de ensino. 
Ora, Poe espanta-se em face da raridade com que são dados a conhecer
os processos, por meio dos quais cada escritor atinge o ponto de acabamento
do seu texto, afirmando que não sabe explicar os motivos pelos quais não
é dada ao mundo uma revista, ou outra publicação que se ocupasse desses
procedimentos, na qual os autores explicitam o passo a passo de suas
composições. Ainda que existam dificuldades de detalhar como se deu a
produção de uma obra – seja um livro, um poema, um texto, uma música,
uma peça, ou outra criação humana –, a reconstituição do percurso que
um autor seguiu até atingir as suas conclusões é omitida “muito mais por
vaidade do que por qualquer outra coisa” (POE, 2009, p. 114). Qualquer
que seja a intenção de um autor – no caso literário, criar uma obra no campo
da beleza, ou, caso filosófico, da verdade –, o seu objetivo só poderá ser
alcançado por meio de rigor técnico e nunca de uma intuição estática ou
de um sutil frenesi. No entanto, pondera Poe, ele sabe que uma publicação
desse tipo dificilmente aconteceria, devido justamente a uma autorial
vanity (vaidade autoral), diretamente relacionada com a necessidade da
manutenção da imagem do poeta inspirado, que interessa especialmente
ao mercado editorial.
Para discutir essa posição, Poe é incisivamente crítico: assim como uma
obra literária não cai do céu, também não surge sozinha no papel; mas,
ao contrário, ela é produto de um processo longo, cansativo, nem sempre
prazeroso para o autor – embora, a vaidade dos poetas (seus contemporâneos,
mas podemos incluir nessa lista também filósofos, romancistas, cientistas e
pesquisadores acadêmicos) não queira deixar que o mundo saiba que não
é a pura inspiração que os move, mas muito trabalho que jamais chega ao
conhecimento dos leitores.
Como toda crítica que vale a pena, a de Poe é propositiva, já que ele
próprio faz com uma de suas obras aquilo que aponta faltar entre os seus
contemporâneos: mostra o que está por trás dos bastidores, aquilo que é
parte inseparável do trabalho do artista, e acaba por atacar uma concepção

240 • 241
cara à tradição crítica, que é a do poeta como um ser inspirado. Daí nasce
o texto referido – A filosofia da composição – em que mostra o modus operandi
pelo qual a sua mais conhecida obra poética O corvo se completou, com
precisão e sequência rígida, tal como se fosse um problema matemático;
desde que a sua intenção era compor um poema que agradasse, ao mesmo
tempo, tanto ao gosto do público quanto o da crítica.
Mesmo que se trate, neste texto de Poe, segundo alguns, de uma
provocação literária, na qual ele teria rido, ao afirmar que o seu mais famoso
poema era escrito ao revés, de trás para diante, e que ele teria começado
pelo fim; longe de considerar tal atitude uma burla, um charlatanismo
literário ou uma provocação, dirigida especialmente aos críticos, seguimos
Haroldo de Campos (1996, p. 9) afirmando que tivemos “a contraprova
por meio da poética contemporânea, moderna, sobretudo através dos
trabalhos de Roman Jakobson”; além de que o problema estava sendo
enfrentado, por Poe, “até no nível micrológico da fatura fônica do poema,
uma vez que raven (corvo) é o avesso de never”; ou seja, Campos confirma a
probabilidade da tese de Poe, pelo expediente usado de tomar como refrão
do poema (raven) o seu próprio nome ao contrário (never).
Sem entrar no maior ou menor mérito de cada um dos polos dessa
discussão (ABRAMO, 2011), para nós, pesquisadores participantes e
coordenadores dos núcleos do projeto Escrileituras: um modo de ler-escrever
em meio a vida, interessa responder, ainda que sucintamente, aos desafios
lançados por Poe, na introdução do seu A filosofia da composição, ou seja:
acerca daquilo que está em cena na realização desse trabalho – de pesquisa,
orientação, ensino e extensão – que aconteceu durante mais de quatro anos
em três estados do Brasil: quais foram os seus percursos; quais suas rudezas
vacilantes e espinhosas do pensamento; como se deram os processos de
seleção e rejeição de ideias e oficinas; como realizamos pesquisas que
lidaram com a empiria do projeto e também com as teorias que o ampa-
raram, realizando algo que tentou se aproximar de um empirismo
transcendental (DELEUZE, 1988)?
Assim, como Poe, afirmamos que a realidade do Projeto Escrileituras
não foi um objeto mágico, fruto da intuição de vários educadores e grupos
de pesquisa, tomados por uma fina inspiração; mas sim o resultado
do trabalho produzido artisticamente por mãos humanas, por meio de
um processo inteligível de pensamento e de sensibilidades; o qual foi,
ampla e publicamente, apresentado em todas as escolas e universidades
onde aconteceu, bem como em muitos eventos regionais, nacionais e
internacionais; onde fizemos questão de, sempre, mostrar as peças, as
engrenagens e o funcionamento da maquinaria, que acabou por constituir
o Escrileituras. Isso porque, desde o início, valorizamos, em primeiro lugar,
o processo do trabalho e, só posteriormente, o seu resultado (CORAZZA,
2011, p. 48).
Assim como um problema matemático, o Escrileituras não foi, desde o
início, um objeto de arte já dado. Ao contrário, consistiu em uma situação
de resposta ao Edital 2010 do Observatório da Educação, que demandou
solução, por via da elaboração e obediência a certas regras e procedi-
mentos. Como a poesia de Poe, o Escrileituras acabou formando suas próprias
leis e teoremas, tributárias da filosofia da diferença, teorias de tradução
literária e poética, bem como de formulações didáticas e curriculares
contemporâneas; de modo que os movimentos da rede, formada pelos quatro
Núcleos, compreenderam modos plurais de intervenção, nas formas de
ensinar e de aprender a ler e a escrever; modalidades de planejar, organizar
e desenvolver as Oficinas; criação de espaços-tempos para encontros,
pragmáticos e críticos, que passaram pela escrita-e-leitura e configuraram
uma determinada epistemologia educacional.
Essas leis e teoremas não se mostraram como transcendentes, mas
foram produzidos de acordo com as necessidades e as circunstâncias
que se apresentavam e impulsionavam a produção do que hoje podemos
considerar um grande arquivo, constituído por dissertações, teses, ar-
tigos, relatos de experiências já publicados; mas, sobretudo, pelo esforço
editorial na criação da Coleção Escrileituras, composta por nove Cadernos
de Notas, publicados por editoras universitárias, que apostaram nesse
gênero, que não é nem um livro em sua forma clássica, nem um relatório
de pesquisa, mas algo híbrido que se dispõe a pormenorizar o trabalho,
a mostrar o passo a passo dos processos de composição daquilo que
inventamos e que cabe neste imenso guarda-sol em que se transformou o
Projeto Escrileituras.

242 • 243
Atualmente, tomando como matéria empírica de composição ensaís-
tica o arquivo do Projeto Escrileituras, ressaltamos a necessidade que se
nos apresentou, após o encerramento do mesmo, em 2015, pela CAPES,
de trabalhar a genealogia dos atos curriculares e procedimentos didáticos
tradutórios, experimentados e desenvolvidos pelos diversos núcleos,
grupos, bolsistas e pesquisadores. De tal necessidade nasceu o Grupo de
Pesquisa Escrileituras da diferença em filosofia-educação, cujos pesquisadores,
docentes e escrileitores passaram a olhar para “os apetrechos de mudança
no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco” (POE, 2009, p. 114); a
fim de problematizá-los e perceber suas potências e impotências, para
que possamos avaliar e potencializar as ideias e os procedimentos capazes
de continuar criando modos de ler e escrever em meio à vida.

Referências
ABRAMO, Claudio Weber. O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar
Allan Poe. São Paulo: Hedra, 2011.

CAMPOS, Haroldo de. Sobre Finismundo: a última viagem. Rio de Janeiro: Sette Letras,
1996.

CORAZZA, Sandra Mara. Notas. In: HEUSER, Ester Maria Dreher (Org.). Caderno de
Notas 1: projeto, notas & ressonâncias. Cuiabá: EdUFMT, 2011.

DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1991.

DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado.


Rio de Janeiro: Graal, 1988.

POE, Edgar Allan. A filosofia da composição. In: POE, Edgar Allan. Poemas e ensaios.
Tradução Oscar Mendes, Milton Amado. São Paulo: Globo, 2009, p. 113-128.
Alessandra Christina Arantes Abdala Azevedo
Mestre em Educação pela Universidade Federal do Mato Grosso, Integrante
do EFF/IE/UFMT - Grupo de Pesquisa Estudos de Filosofia e Formação.
Possui graduação em Fonoaudiologia pela Universidade do Sagrado Coração.
Especialista em Linguagem pela Universidade Católica Dom Bosco. Email:
alessandraabdala@terra.com.br

Altair de Souza Carneiro


Possui Mestrado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do
Paraná – UNIOESTE – TOLEDO/PR, graduação em Filosofia pela Faculdade
Padre João Bagozzi e graduação em Letras Português Inglês pela Universidade
Paranaense. É especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira pela
Universidade Paranaense. Atualmente é Professor da Universidade Paranaense
– UNIPAR, de Filosofia e Ética; de Língua portuguesa e Técnico Pedagógico da
Educação Básica de Filosofia e Sociologia do Núcleo Regional da Educação de
Umuarama – Paraná. Email: altair@unipar.br

Ana Carolina Cruz Acom


Mestre em Educação pela UFRGS, na linha da pesquisa Filosofias da Dife-
rença e Educação. Graduada em Filosofia pela UFRGS (licenciatura e
bacharelado) e Especialista em Moda, Criatividade e Inovação pelo SENAC/
RS. Atualmente é professora de Semiótica e Produção de Moda no Curso de
Design de Moda da UDC (Centro Universitário Dinâmica das Cataratas – Foz
do Iguaçu). Email: anacarolinaacom@gmail.com

Carla Gonçalves Rodrigues


Doutora em Educação – UFRGS. Professora Adjunta do Departamento de
Ensino da Faculdade de Educação da UFPel. Coordenadora do Núcleo
Escrileituras da UFPel. E-mail: cgrm@ufpel.edu.br

Clara Lisandra de Lima Silva


Mestre e Especialista em Ensino de Ciências e Matemática – UFPel. Douto-
randa do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPel. Professora de
Biologia da rede estadual de ensino. E-mail: clislima@hotmail.com

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Cristiano Bedin da Costa
Heterotopologista; Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM); Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS); Docente no Centro Universitário Univates. Interessa-se
pelas relações entre Arte, Literatura e Filosofia, tomadas como intercessores
do pensamento em Educação e Psicologia; Com Foucault, Deleuze, Nietzsche
e Barthes, pesquisa estratégias de criação em meio às formações curriculares
contemporâneas. Email: cristianobedindacosta@hotmail.com

Deniz Alcione Nicolay


Doutor em educação pela UFRGS. Membro do DIF. Professor da área de
Fundamentos da Educação na UFFS (Universidade Federal da Fronteira Sul).
E-mail: deniznicolay@uffs.edu.br

Eduardo Alexandre Santos de Oliveira


Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE. Graduado em Filosofia (Licenciatura Plena) pela Universidade
Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Possui Especialização em For-
mação de Professores para Docência no Ensino Superior pela Universidade
Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Atualmente é Professor na Uni-
versidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO. Atua com pesquisas
filosóficas sobre Educação e Política. Email:

Emília Carvalho Leitão Biato


Possui graduação em Odontologia pela Universidade Federal Fluminense,
mestrado em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba e doutorado
em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso. Atualmente é professora
do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso.
Trabalha com Ciências Humanas em Saúde, principalmente com os temas:
educação em saúde e filosofia da diferença. E-mail: emiliaclbiato@me.com

Ester Maria Dreher Heuser


Professora-pesquisadora adjunta C da UNIOESTE, Campus Toledo (PR), nos
cursos de Filosofia - Licenciatura, Mestrado e Doutorado. Pesquisa, publica
e leciona em torno da Filosofia de Deleuze e seus intercessores, Filosofia da
Educação e do Ensino de Filosofia. Graduada em Filosofia e mestre em Educação
pela UNIJUÍ. Doutora em Educação, linha de pesquisa Filosofia da diferença e
educação (2008), pela UFRGS. Coordenadora do Núcleo UNIOESTE do projeto
Escrileituras: um modo de ler e escrever em meio à vida. E-mail: esterheu@hotmail.com

Gabriel Torelly Fraga Corrêa da Cunha


Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre
em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul na linha de pesquisa Filosofias da Diferença e
Educação. Professor de História no Colégio Israelita do Brasil (CIB) e no Projeto
Educacional Alternativa Cidadã (PEAC). Email: gabrieltorelly@gmail.com

Gabriel Sausen Feil


Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS);
professor na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) – Campus São Borja.
E-mail: gabriel.sausen.feil@gmail.com

Hilda Regina P. M. Olea


Estudante de doutorado do Programa Pós-Graduação em Estudos de cultura
contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso – ECCO UFMT.
E- mail: re.olea@yahoo.com.br

José Carlos Leite


Professor do Programa Pós-Graduação em Estudos de cultura Contemporânea
da Universidade Federal de Mato Grosso – ECCO UFMT. E-mail: jcleite343@
gmail.com

Josimara Wikboldt Schwantz


Pedagoga. Mestre em Educação e Doutoranda em Educação pelo Programa
de Pós-Graduação em Educação da UFPel. Email: josiwikboldt@hotmail.com

Larisa da Veiga Vieira Bandeira


Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Mestre em Educação e estudante de doutoranda pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Email:
lvvbandeira@gmail.com

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Maria Idalina Krause de Campos
Doutoranda em Educação PPGEDU/ UFRGS. Bolsista do Observatório da
Educação CAPES/INEP. Membro integrante do BOP – Bando de Orientação
e Pesquisa; da Linha de Pesquisa 09 Filosofias da Diferença e Educação; e do
Grupo de Pesquisa DIF – artistagens, fabulações, variações - Diretório do CNPq.
E-mail: idalinakrause@yahoo.com.br

Máximo Daniel Lamela Adó


Doutor em Educação (UFRGS). Mestre e Literatura (Teoria literária) e
Licenciado em Ciências Sociais (UFSC). Professor da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: maximo.lamela@ufrgs.br

Nilton Mullet Pereira


Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mestre
em Educação e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, da área de Ensino de História. Pesquisa o papel do uso de fontes no
ensino da História, através do projeto Vestígios do Passado: as fontes no ensino
de História. E-mail: nilton.mullet@ufrgs.br

Paola Zordan
Professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Articuladora do
M.A.L.H. A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos.
Trabalha com performances, escultura social e micropolíticas. Doutora e Mestre
em educação pela UFRGS, coordena a Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença
e Educação, desenvolvendo temas que envolvem historiografia da arte, formação
de professores e esquizoanálise. E-mail: paola.zordan@gmail.com

Polyana Olini
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, com pesquisa na Linha Filosofias da Diferença e Educação;
Bolsista CAPES. E-mail: polyanaolini@gmail.com
Samuel Edmundo Lopez Bello
Professor do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-
graduação (PPGEDU) da UFRGS. E-mail: samuelbello40@gmail.com

Sandra Mara Corazza


Professora titular do Departamento de Ensino e Currículo da Universidade
Federal do Rio Grane do Sul. Líder dos Grupos de Pesquisa, cadastrados no
Diretório CNPQ, 1) DIF - Artistagens, Fabulações, Variações; 2) Escrileituras
da diferença em filosofia-educação. Coordenadora Geral do projeto Escrileituras:
um modo de Ler-Escrever em meio à vida. E-mail: sandracorazza@terra.com.br

Silas Borges Monteiro


Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do
Departamento de Teorias e Fundamentos da Educação do Instituto de Educação
da Universidade Federal de Mato Grosso; Coordenador do Núcleo UFMT do
projeto Escrileituras: um modo de ler e escrever em meio à vida. E-mail: silas@terra.
com.br

Simone Vacaro Fogazzi


Artista e Professora. Mestra em Educação, pela linha de pesquisa Filosofias da
Diferença e Educação FACED/UFRGS; Especialista em Museologia-Patrimônio
Cultural – IA/UFRGS; Licenciada em Educação Artística habilitação Artes
Plásticas IA/UFRGS; Docente de Artes Visuais do Departamento de Expressão
e Movimento do Colégio de Aplicação/UFRGS. Como artista visual pesquisa
processos criativos nas poéticas da memória e do tempo. E-mai: simone.fogazzi@
ufrgs.br

Wagner Ferraz
Mestre em Educação - PPGEDU/UFRGS. Dançante, performer e professor.
E-mail: wagnerferrazc3@yahoo.com

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supernovaedit@gmail.com
Porto Alegre/RS – Fone: (51) 3386 1984

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