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In Cruce Salus

ANTIGA ORDEM MARTINISTA

Leituras preliminares para Postulantes


ALQUIMIA
CRISTA
Denis Labouré
PREFACIO

I. À SUA IMAGEM E À SUA SEMELHANÇA♦


O QUE É A ALMA IMORTAL? ♦ O CORPO É A FORMA SOB
A QUAL A ALMA APARECE ♦ À SUA IMAGEM ♦ A SUA
SEMELHANÇA ♦ A IMAGEM É INALTERÁVEL, A
SEMELHANÇA DEVE SER RESTAURADA ♦ A REALIDADE
DO HOMEM ENCONTRA-SE NO ARQUÉTIPO ♦ As
TÚNICAS DE PELE ♦ O HOMEM ADORMECIDO ♦ O
ESTADO DE CONSTATAÇÃO ACTIVA
II. DEUS FEZ-SE HOMEM PARA QUE O HOMEM SE
TORNASSE DEUS
TORNAMO-NOS NO QUE SOMOS ♦ O VERBO É FAZEDOR
DE DEUSES ♦ A PEDAGOGIA DIVINA ♦ A SÍNTESE DE
NlCOLAU CABASILAS ♦ O CORPO DE GLÓRIA ♦ A
SENSAÇÃO DOS OSSOS ♦ O SEU ROSTO RESPLANDECIA
♦ O QUE A MORTE DESTRÓI ♦ Vi UM NOVO CÉU E UMA
NOVA TERRA ♦ A CRIAÇÃO GEME E SOFRE AS DORES
DE PARTO
III. COMO FAZER?
a) A ABERTURA ÀS ENERGIAS DIVINIZANTES
♦ COMO EMPREENDER ESTA AVENTURA? ♦ AS
FERRAMENTAS DISPONÍVEIS ♦ A ÁGUA, O SANGUE E A
CARNE ♦ O BAPTISMO ♦ A EUCARISTIA ♦ O SENTIDO
LITERAL E O SENTIDO ESPIRITUAL ♦ As CHAVES
INTERPRETATIVAS LEGADAS PELOS PADRES ♦ A
GERMINAÇÃO DO HOMEM INTERIOR ♦ AS CONDIÇÕES

PRÉVIAS
ORAR? ♦ ♦A As PALAVRAS
ORAÇÃO: SÃO
PARA ENGANADORAS
QUÊ? ♦ ONDE
♦ COMO FAZER? ♦A
ORAÇÃO INSISTENTE ♦ ORAÇÕES CURTAS ♦ O LUGAR
DO CORAÇÃO ♦ CALOR E FOGO (O DESEJO) ♦ O FIM DAS
COISAS ♦
B). AS TÉCNICAS PSICOSSOMÁTICAS

♦ TORNAR-NOS APTOS A RECEBER ♦ As PAIXÕES


VIRADAS DO AVESSO ♦ NA ORIGEM, UM
ENVENENAMENTO ♦ A PASSAGEM AO ALIMENTO ♦
O QUE DEVE O HOMEM COMER? ♦ A ABOLIÇÃO DAS
PROIBIÇÕES ALIMENTARES ♦ SABER CALAR-SE PARA
ESCUTAR ♦ O DOMÍNIO DA LÍNGUA ♦ O SILÊNCIO DA
ALMA ♦ O SILÊNCIO OBJECTIVO ♦ O SILÊNCIO
ESPIRITUAL ♦ DO SOPRO DE DEUS AO RESPIRO DO
HOMEM ♦ A IRRUPÇÃO DO TEMPO ♦ QUANDO O
SACERDOTE SE TORNA UM ACTOR ♦ O GESTO JUSTO ♦
O ESPAÇO SAGRADO ♦ COMO LIMPAR O
INCONSCIENTE? ♦ O SEGREDO DAS LÁGRIMAS
IV. A REGENERAÇÃO DA CARNE
ESOTERISMO E CRISTIANISMO ♦ REGENERAÇÃO E
SUBSTÂNCIAS DO CORPO♦ A DEMANDA DO GRAAL ♦ A
OBRA DE REGENERAÇÃO ♦ PAI NOSSO QUE ESTAIS NOS
CÉUS ♦ O SANGUE, ANTÍDOTO UNIVERSAL
V. "E QUE SURJA A ESTRELA D'ALVA EM NOSSOS
CORAÇÕES"
A GRAVIDEZ DA ALMA ♦ O EMBRIÃO DE
IMORTALIDADE ♦ E QUE SURJA A ESTRELA D’ ALVA
EM NOSSOS CORAÇÕES
PREFÁCIO
Numa óptica sociológica, toda a religião assume-se como
omniabarcante e exclusivista, enquanto institucionalizada sobre
uma sistematização teológica de valores e vectores padronizantes
de uma mensagem ordenadora da dinâmica evolutiva do Cosmos
e resgatante do percurso ético do Homem, numa perspectiva de
autoridade tutelar absoluta face à relação com a dimensão
transcendente do Divino.
O desenvolvimento histórico de todo o fenómeno religioso etno-
culturalmente diferenciado evidencia de forma clara a sua
fragmentação ou individualização em segmentos independentes
que se reclamaram igualmente da mesma exclusividade
cosmológica e soteriológica, sempre pretendendo representar a
legitimidade única da Fé identificada.
No contexto civilizacional da Tradição religiosa do Ocidente, a
evolução histórica do Cristianismo, desde a sua génese até à
actualidade, corresponde clara e exemplarmente à análise atrás
apontada, de tal modo que a generalidade das suas denominações
sempre negou, em consequência, a presença intencional de
qualquer conteúdo hermético na transmissão pedagógica do
Cristo, enquanto codificada nas Escrituras neotestamentárias
canónicas ou apócrifas.
Nesta obra notável e acessível, como um manual de síntese, o
astrólogo e hermetista francês Denis Labouré aborda
desenvolvida e aprofundadamente - numa dupla perspectiva
srcinal de explanação teórica e aplicação prática - a dimensão
alquímica do esoterismo cristão, expressa na transfiguração
redentora do Homem e do Universo e conducente à fusão unitiva
com Deus, muito para além do conformismo burguês ou do
militantismo socialcivilização
religiosa da nossa tão característicos
ocidental. da realidade sociológico-
Segundo a Gnose cristã, a cosmovisão espiritual da Vida consiste
essencialmente na divinização do mundo e não na sua exaltação,
nem na sua contestação - enquanto atitudes polarizadas e
extremadas de suposta transformação -, e de que aqui não
podemos enunciar senão uma exígua síntese caracterizante.
Esta cosmovisão gnóstica da espiritualidade cristã, central na
Teologia das Igrejas do Oriente (entenda-se Médio Oriente
asiático), assenta no desiderato criterioso da deificação do
Homem - enquanto objectivo soteriológico (quanto à salvação
espiritual humana) e escatológico (quanto ao devir material do
Universo) - partindo de três postulados básicos: a criação do Ser
humano à imagem e à semelhança do Criador, a encarnação do
Verbo de Deus e a capacidade de comunhão sacramental do
Homem com o Pai no Espírito Santo.
Assim, o objectivo deste extraordinário ensaio pedagógico de
Teosofia - ou Teologia esotérica - cristã consiste na relevância
efectiva de uma transmissão sacramental canónica da Gnose
cristã, desde a génese histórica apostólica até ao seu devir
confessional contemporâneo, independente de quaisquer
confissões eclesiásticas institucionalizadas e cuja tónica assenta
justamente no carácter iniciático do Cristianismo (enquanto
distinto da Cristandade) e gnóstico da Igreja, como esposa mística
do Cristo e Mãe comunitária dos seus discípulos.
Páscoa da Ressurreição de 2005
Jorge de Matos
I.
À SUA IMAGEM E À SUA SEMELHANÇA
O homem enquanto imagem de Deus Deus disse: "Façamos o
homem à nossa imagem, como à nossa semelhança, e que eles
dominem, sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a
terra". Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele
o criou, homem e mulher ele os criou.
Gn 1, 26-27

É A ALMA IMORTAL?

Dum lado está o espírito, doutro lado está a matéria. Se algo não
pertence ao espírito, pertence à matéria. Se não pertence à
matéria, pertence ao espírito. O homem é composto de dois
elementos distintos: o corpo e a alma. Quando a morte ocorre,
apenas o corpo se desagrega na terra, enquanto que a alma,
liberta, continua a viver junto de Deus. Eis o que pensa a maioria
das pessoas.
Ora, esta visão segundo a qual a alma está presa num corpo como
um pássaro numa gaiola é de srcem platónica. Ela não se aplica
nem ao judaísmo nem ao cristianismo, ainda que algumas frases
da Bíblia, influenciadas pela filosofia grega, pareçam adoptá-la.

O CORPO É A FORMA SOB A QUAL A ALMA APARECE


Na Bíblia, as noções de alma e de corpo não têm o sentido que
lhes atribuímos habitualmente. Para isto ser compreendido, não
devemos ler a Bíblia com os óculos do homem do Sec. XX. Na
Bíblia, a carne está unida à alma. O que conta, antes de tudo, é o
ser humano. Do ponto de vista da nossa existência concreta, a
palavra "alma" designa o sujeito humano enquanto pólo espiritual,
por oposição ao pólo material chamado "corpo". A alma é o
princípio imanente de informação e unificação do nosso corpo
material. O corpo é o fenómeno da alma, o rosto sob o qual a
alma aparece quando está imersa no mundo da matéria; não é
outra coisa qualquer, não é uma outra substância qualquer. O
corpo é a forma espácio-temporal da alma.
A experiência seguinte ajudar-vos-á a perceber a relação entre o
corpo e a alma. Ponham a mão entre os vossos olhos e uma
lâmpada eléctrica. Segurem uma folha de papel entre os olhos e a
mão. A vossa mão representa a alma, a sombra no papel
representa o corpo. Reflictamos nesta situação. Não temos uma
mão
temosespiritual
uma mão(alma) e uma
perfeita mãonuma
inserida material
mão(corpo). Também
imperfeita. não
Também
não há uma mão imortal encerrada numa mão mortal da qual se
escaparia aquando da morte. Há apenas uma mão.
À SUA IMAGEM
O Eterno fez o homem não apenas à sua imagem mas também à
sua semelhança: façamos o homem à nossa imagem, como à
nossa semelhança... (Gn 1, 26-27). Os investigadores mais
recentes recusam-se a estabelecer uma distinção entre "imagem" e
"semelhança". Sentem-se confortados pelo texto hebreu inicial, as
duas palavras tselem e demouth sendo essencialmente sinónimas.
Mas este extracto do relato da criação vem desenvolvido no livro
da Sabedoria, escrito em grego por volta dos meados do Io século
antes da nossa era. Aí encontramos uma paráfrase do Façamos o
homem à nossa imagem que atribui à vocação do homem a
incorruptibilidade: Deus criou o homem para a incorruptibilidade
(2, 23). Esta incorruptibilidade está em conformidade com a
natureza de Deus: e o fez imagem da sua própria natureza1 (2,
23). Ou, segundo uma outra versão do mesmo versículo, ele fê-lo
à imagem da sua própria eternidade.

A expressão à nossa imagem, como à nossa semelhança não é


desenvolvida se nos ficarmos apenas pelo Antigo Testamento.
Alguns teólogos protestantes, alegando uma influência grega,
tentaram excluir do cristianismo a "teologia da imagem". Na
redacção dos livros do Antigo Testamento, poucas coisas
permitem efectivamente fundar uma antropologia religiosa sobre
a noção da imagem de Deus. Citemos no entanto SI 8, 6,
lembrado em Hb 2, 6: E o fizeste pouco menos do que um deus.
Ora, pela Incarnação, que constitui o facto fundamental do
cristianismo, "imagem"
estreitamente ligadas que a eexpressão
"teologia" encontram-se
"teologia da imagem" tão
se
torna quase um pleonasmo. O Novo Testamento dá-nos a chave
desse Antigo Testamento que São Paulo considerava como a
sombra dos bens futuros, e não a substância própria das
realidades" (Hb 10, 1). O Cristo é a "imagem do Deus invisível
(Cl 1, 15), ele é a imagem de Deus (2 Cor 4, 4). Um pouco mais à
frente, na mesma Epístola aos Colossenses, o apóstolo fala na
renovação do homem à imagem do Deus criador. O Cristo é a
efígie da sua substância (Hb 1, 3) tal como o é a marca exacta que
deixa um selo. O que é manifestado pela imagem não é a pessoa
do Pai, mas a sua natureza, idêntica no Filho. A esta imagem, o
homem pode assemelhar-se, pode renovar-se (Cl 3, 10; Rm 8, 29;
ICor 15, 49).
No entanto, a imagem de Deus não é algo que está dentro do
homem. E o homem todo que está à imagem de Deus. Santo
Ireneu escreveu que a imagem de Deus no homem compreende a
alma e o corpo
O ofício humano,datambém
dos mortos Igrejaele formadoafirma
ortodoxa à imagem
quedeoDeus3.
corpo
humano é também à imagem de Deus: eu choro e gemo quando
vejo deitada no túmulo a nossa beleza criada à imagem de Deus.
A SUA SEMELHANÇA
Se nós nos compararmos ao homem criado "à imagem e à
semelhança de Deus", somos forçados a constatar que alguma
coisa se perdeu. Assim, os Padres da Igreja distinguiram as duas
noções, a imagem e a semelhança. Com a queda, perdemos a
semelhança, mas a imagem de Deus permanece inteira, imanente.
Comparemos a situação com uma gravura colorida. Subitamente,
perdeu cores e luz. Resta apenas o traço, uma pequena fotografia
incolor. Ele ainda representa a mesma coisa. A imagem
permanece, mas a semelhança apagou-se. Devemos restaurá-la.

A IMAGEM É INALTERÁVEL, A SEMELHANÇA DEVE SER


RESTAURADA
Sendo Deus incompreensível, necessariamente a sua imagem
também o é. Ela não está sujeita a qualquer alteração. A sua
existência é independente da nossa vontade, razão pela qual ela
permanece em todos os homens. Todos os esforços humanos não
conseguiriam privar Deus da sua própria imagem! Ela exprime-se,
difunde-se, como o faria a projecção dum prisma situado no foco
da existência humana. Mas está habitualmente reduzida ao
silêncio e foi tornada inoperante.
Se a imagem está presente, já realizada, a semelhança é apenas
potencial ou virtual. A semelhança tem de ser reencontrada pois
todo o homem é à imagem de Deus, mas eventualmente também à
sua semelhança4. Desde o instante da sua criação, o homem
estava destinado a aproximar-se do seu modelo srcinal
deificando-se, restaurando a semelhança. Efectivamente, o
homem foi criado com o poder e o dever de se tornar conforme e
semelhante a Deus, de se tornar Deus. Já no Séc. II, Clemente de
Alexandria desenvolve o tema da criação do homem à imagem de
Deus, devendo o homem adquirir livremente a semelhança
aperfeiçoando-se pela prática das virtudes, atingindo assim a
assimilação com Deus. Basílio o Grande diz que o homem é um
ser criado que recebeu o mandamento de se tornar Deus5. O
homem criado "à imagem" é a pessoa capaz de manifestar Deus,
na medida em que a sua natureza se deixe penetrar pelas energias
divinas incriadas (a graça). Assim, a imagem pode tornar-se
semelhante ou dissemelhante até aos últimos limites. No melhor
dos casos, ela acede à união com Deus quando o homem, uma vez
divinizado, mostra nele, pela graça, o que Deus é pela sua
natureza. No pior, ele cai na degradação extrema a que Plotino
chamava de "lugar da dissemelhança", situando-o no tenebroso
abismo do Hades.
Segundo Gregório Palamas, o homem é o reflexo das energias
divinas incriadas. Todavia, sob uma condição: que a sua imagem
criada se encontre em comunhão ininterrupta com as energias
incriadas da natureza incriada de Deus. Dito de outra forma, o
homem é a imagem e semelhança de Deus quando vive em livre e
estreita sinergia com Deus. Basílio o Grande comenta assim a
palavra bíblica: Criamos o homem à nossa imagem e à nossa
semelhança. Já possuímos uma (a imagem) pela criação;
adquirimos a outra (a semelhança) pela vontade. Na primeira
estrutura, é-nos dado nascer à imagem de Deus, pela vontade
forma-se em nós o ser à semelhança de Deus. O que depende da
vontade, a nossa natureza possui-o em potencial, mas é pela acção
que o obtemos... dando-nos a nós próprios o poder de nos
assemelharmos a Deus... assim... ele deixou-me o cuidado de me
tornar à semelhança de Deus...6. Isto realiza-se quando a
liberdade da imagem de Deus, que é o homem, coopera
livremente com as energias do seu protótipo, que é o Cristo.
A REALIDADE DO HOMEM ENCONTRA-SE NO
ARQUÉTIPO
As consequências são consideráveis. Elas implicam que a
realidade profunda do homem não se encontra nele próprio, se
entendermos com isto um ser autónomo. Pois trago a imagem de
Deus: se Ele quiser contemplar-se, apenas o pode fazer em mim,
em quem a Ele se assemelha7. A realidade profunda do homem
não se encontra nas suas particularidades naturais e físicas, como
o afirmam as teorias materialistas. Não reside na alma ou na parte
superior desta, como o supunham muitos dos antigos filósofos.
Não está toda contida na personalidade do homem, como o
afirmam os sistemas psicológicos contemporâneos. Esta verdade
encontra-se no Arquétipo, na imagem de Deus cuja semelhança é
overdadeiro
reflexo alterado. Vistodeterminado
ser não está que o homem é imagem,
pela matéria o seua
da qual
imagem é feita, tal como a identidade dum busto esculpido não
reside no bloco de mármore.
AS TÚNICAS DE PELE
Antes da queda8, o homem vestia roupas tecidas por Deus: O seu
corpo não estava submetido (...) à corrupção; semelhante a uma
estátua que se retira da fornalha e que brilha do mais vivo
esplendor, não sofria de nenhuma das enfermidades que lhe
notamos hoje5. Este vestuário psicossomático era tecido com a
luz e a glória10 de Deus. Os primeiros seres criados estavam
revestidos da glória do alto (...) ou antes, a glória do alto
envolvia-os de toda uma roupagem11. Sobre essa roupagem
brilhava a semelhança com o divino. Depois, o homem caiu.
Procedendo do espiritual, ele passou ao biológico. Então Iahweh
Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu.
(Gn 3,21).
Essas túnicas de pele não são um invólucro no qual a alma foi
presa, como se prende um ser humano numa camisa-de-forças ou
num escafandro. Não é o corpo, mas o estado actual, caído do
corpo, que c o resultado da queda. Estas túnicas de pele não são
uma imagem do corpo físico no qual a alma está presa e do qual
se liberta com a morte. Devemos antes concebê-las como um ser
(corpo e alma) de luz densificada, congelada, endurecida. O que
constitui o homem "à imagem", é o corpo com a alma; não a alma
sem o corpo, e nem o corpo sem a alma, mas o composto
inseparável duma alma e dum corpo. O "à imagem" estende-se à
totalidade psicossomática do ser humano. As túnicas de pele
exprimem a mortalidade com que o homem se revestiu após a
queda, como uma segunda natureza, uma situação nova na qual se
encontra, isto é, uma vida na morte. Esta mortalidade abraça todo
o organismo psicossomático do homem e não se limita ao corpo,
pois as funções psíquicas também se tornaram corporais. Elas
formam com o corpo o véu do coração (...), as vestes carnais do
velho homem12. É o homem que o apóstolo Paulo chama de
"carnal" ou "psíquico" por oposição ao homem "espiritual". Estas
túnicas de pele não são uma sanção ou um castigo infligido ao
homem por ter desobedecido a um deus autoritário e
megalómano. Representam certamente um obscurecimento do "à

imagem", umauma
um remédio, violência feita ao vestidooferecida
nova possibilidade de luz. Mas
por também são
Deus. Estas
túnicas de pele oferecem-lhe a possibilidade de sobreviver algum
tempo no próprio seio da morte até reencontrar e ultrapassar a
roupagem inicial.

O sonho de Adão
Então Yahweh Deus fez cair um torpor sobre o homem, e ele
dormiu. Gn2, 21)
O HOMEM ADORMECIDO
Várias passagens da Bíblia comparam a existência mortal a um
sono do qual precisamos despertar: Ó tu, que dormes, desperta e
levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará. (Ef 5,
14)13. No jardim das Oliveiras, enquanto o seu mestre orava pela
última vez, os discípulos dormiam! Na vida corrente, constatamos
que o homem vive ausente de si próprio. Ele vive nos seus
sonhos: sonhos nocturnos, sonhos diurnos. Tudo isto começou há
muito tempo, com este torpor enigmático que caiu sobre ele no
segundo relato da criação: Então Yahweh Deus fez cair um torpor
sobre o homem, e ele dormiu, (Gn 2, 21). Boehme resume assim a
situação: contempla e considera o sono e encontrarás tudo. O
sono não é mais do que ter sido subjugado1*. Para ele, o sono é a
paragem do contacto com a verdadeira imaginação (o facto de ser
"à imagem"), uma separação da realidade por um virar do avesso,
um mergulho no abismo da falsa imaginação. Ele fala do grande
mistério da separabilidade, de onde provêm as criaturas...15. Esta
separabilidade implica necessariamente o sono, pois o sono é um
esquecimento pelo homem da sua própria natureza. O sono em si
próprio não é nocivo pois ...onde há sono, aí se esconde o poder
divino no centro16.
O sono prolongado durante uma vida inteira equivale à morte: "Já
chegou a hora de acordar..." (Rm 13, 11). A própria doença é uma
forma de sono que nos dá a chave da cura espiritual. Quando
Simão-Pedro cura o coxo, eis como ele se lhe dirige: Em nome de
Ieshouah o Messias, o Nazareu, desperta, caminha!"Ele tomou-o
pela mão direita e despertou-o. Então a planta e os tornozelos dos
pés endureceram...17 (At 3, 6-7).
Se os homens lêem os Evangelhos sem ver que estes falam do
despertar em cada página, é porque o lêem a dormir. Não
compreendem que tais chamamentos devem ser tomados à letra.
Para o perceberem, deveriam despertar um pouco, ou pelo menos
tentar fazê-lo.
O ESTADO DE CONSTATAÇÃO ACTIVA
Somos, então, convidados ao despertar. Um despertar que não é
um estado psicológico ou um estado superior de consciência. Não
se trata, para o homem, de obter a sensação de estar mais
consciente no seio da sua existência mortal. O retomar do
contacto com a verdadeira imaginação é um novo nascimento.
Podemos renascer, nesta vida, através desta imaginação
verdadeira. O nascimento do Verbo, ou despertar, desvela a nossa
natureza srcinal. O verdadeiro despertar é sinónimo de
imortalidade.
Enquanto cristãos, não devemos ceder ao sono que acaba de ser
descrito: Portanto, não durmamos, a exemplo dos outros, mas
vigiemos... (1 Ts 5, 5-7). Quando oramos, devemos adoptar uma
atitude vigilante, de constatação activa que não deixe a nossa
mente divagar em todos os sentidos a pretexto de meditação:
Levai pois uma vida de autodomínio e de sobriedade, dedicada à
oração. (1 Pd 4, 7), ...orai em todo tempo, no Espírito, e para isso
vigiai com toda a perseverança... (Ef 6, 18), perseverai na oração,
vigilantes... (Cl 4, 2).
Constatar significa reconhecer o estado de uma coisa ou de um
fenómeno, estabelecer um facto, sem aplicar qualquer
consideração pessoal. A constatação consiste numa luta contra a
influência da sonolência mental. Podemos olhar sem ver. É a
característica da maioria das nossas impressões visuais: Agora
vemos em espelho
face a face. Agora oe meu
de maneira confusa,
conhecimento mas, depois,
é limitado, mas, veremos
depois,
conhecerei como sou conhecido. (1 Cor 13, 12). Podemos olhar e
ver; ou seja observar. Há já aqui um progresso, pois há o
envolvimento da atenção. Mas a atenção não chega, pois na
atenção o objecto ainda nos pode seduzir ao ponto de nos fazer
perder a consciência de nós próprios. É quando observamos
aplicando um esforço consciente dirigido simultaneamente para o
exterior e o interior que chegamos à verdadeira constatação.
Apenas ela produz um efeito regenerador. A observação desta
regra geral da atenção dupla é permanentemente exigida ao longo
da via. E o esforço constante da vigília, segundo o preceito de
Jesus aos discípulos: E o que vos digo, digo a todos: vigiai! (Mc
13, 37). E trabalhando ininterruptamente, em espiral, que o
homem pode escapar ao sono e chegar ao segundo nascimento.

A constatação compreende dois grupos de exercícios:


- a constatação dita exterior, quando observamos um ou mais
objectos exteriores, incluindo nós próprios, quando olhamos, por
assim dizer, de fora;
- a constatação dita interior, quando observamos um ou mais
traços, factos ou fenómenos da nossa própria vida interior.
A constatação exterior pode ser passiva. Ela incide então sobre
objectos que se apresentam a nós, sobre o filme exterior dos
acontecimentos, sem que exerçamos uma escolha entre eles. Pode,
pelo contrário, ser activa. Escolhe então o objecto sobre o qual
incide. A tradição cristã conhece uma forma de constatação
exterior activa, que usa amplamente. Trata-se da oração perpétua,
mais particularmente a "oração de Jesus" à qual voltarei.
Notas:
1 É a versão escolhida pelos tradutores da Bíblia de
Jerusalém.
2 É a tradução escolhida por André Chouraqui.
3 Santo Ireneu, Contra Haereses V, 6,1.
4 Gregório Palamas, Deuxième Lettre à Bariaam 48 ;
Gregório Palamas, Oeuvres, tomo 1, pag.287 (em grego).
5 Cf. São Gregório o Teólogo, RG. 36,560.
6 Citado por Jevtic, Athanase, Théologie ascétique, Institut de
Théologie

Orthodoxe Saint-Serge, Paris, 1986.


7 Angelus Silesius, Le Pélerin Chérubinique (I, 105)
8 "Antes" significa "no princípio" e não "na srcem dos
tempos". O tempo e
o espaço pertencendo à criação, estes conceitos não têm qualquer
sentido para além dessa criação.
9 João Crisóstomo, Homélies sur les statues, XI, 2.
10 O que é a "glória" de Deus? Os tradutores gregos traduzem
por doxa a palavra hebraica kabod. O verbo correspondente a
kabod orienta o pensamento para o peso de qualquer coisa.
Aplicado a Deus, a palavra faz antes pensar no seu esplendor
natural, superior a tudo o que possam sugerir as suas criaturas.
Trata-se do seu próprio ser. O canto da liturgia divina que relata a
visão de Isaías: "Santo, santo, santo é Yawheh dos Exércitos, a
sua glória enche toda, a leira." (Is 6, 3). Este contexto semítico
colora, na Bíblia grega, o sentido da palavra doxa que conotava
antes o "renome". Acaba assim por evocar o esplendor
incomparável da santidade de Deus, uma glória de que a terra está
cheia (Ap 4, 8).
11 João Crisóstomo, Sur la Génese.
12 Gregório de Niceia, Commentaire du Cantique des
Cantiques.
13 Várias passagens comparam também a morte com um sono,
como Mt 9, 24; Mc 5, 39 e Lc 8, 52.
14 Des Trois Príncipes de Vessence divine.
15 De VÉlection de la Grâce.
16 Des Trois Príncipes de Vessence divine.

17
sono Utilizo aqui a tradução
e de despertar está de Andréda
ausente Chouraqui,
traduçãopois
da aBíblia
noção de
de
Jerusalém.
II.
DEUS FEZ-SE HOMEM PARA QUE O HOMEM SE
TORNASSE DEUS
A deificação do homem
Por elas nos foram dadas as preciosas e grandíssimas promessas
a fim de que assim vos tornásseis participantes da natureza
divina depois de vos libertardes da corrupção que prevalece no
mundo como resultado da concupiscência (2 Pd 1, 4)

TORNAMO-NOS NO QUE SOMOS


O homem é criado à imagem do Deus infinito. É chamado a
ultrapassar os limites da criação e a tornar-se ele próprio infinito.
Ser "à imagem" representa ao mesmo tempo um dom e um
objectivo. O "à imagem" é uma potencialidade, um germe que
nunca deixou de estar presente. Esta possibilidade de deificação
diz respeito ao homem em todos as suas componentes, dos
estratos somáticos e psíquicos mais superficiais até ao âmago do
seu ser.
O VERBO É FAZEDOR DE DEUSES
O tema da deificação está presente em várias correntes filosóficas
e religiosas da Antiguidade, em particular no orfismo, no
platonismo, no estoicismo, e no hermetismo. Apoiando-se nas
Escrituras1, o cristianismo definiu-o assim: Deus fez-se homem
para que o homem se tornasse Deus. Encontramos pela primeira
vez estas poderosas palavras em Ireneu2. No Ocidente, elas foram
recuperadas por Santo Agostinho3. Orígenes qualifica o Verbo de
fazedor de deuses4, o Verbo possibilitando àqueles que fora d'Ele

são deuses
aquilo com (...)
que sequedeificam...5.
se tornem deuses buscandodejunto
Para Clemente de Deuso
Alexandria,
Logos tornou-se homem para que fosse um homem a ensinar
como pode um homem tornar-se Deus6. Ele gratifica-nos com a
herança paterna, realmente grande, divina e inadmissível,
divinizando o homem por um ensinamento celeste1. O homem
torna-se Deus, retoma Máximo, tanto quanto Deus se torna
homem. Segundo Atanásio, O Verbo de Deus fez-se homem para
que nos tornássemos deuses8, o próprio Verbo de Deus veio para
que, sendo a imagem do Pai, pudesse recriar o homem segundo a
imagem. Gregório Nazareno exprime-se de forma ainda mais
radical: o Verbo fez-se homem por causa de ti, para que tu te
tornes Deus por causa d'Ele9. Para Gregório de Niceia, Deus
misturou-se com a natureza perecível, para que, graças à sua
mistura com o divino, o nosso ser pudesse tornar-se divino.10
Cirilo de Alexandria apresenta a deificação como finalidade da
Incarnação: o Verbo fez-se daquilo que nós somos para que nos
tomemos participantes daquilo que Ele é.u Atanásio12, Gregório
Nazianzeno13, Gregório de Niceia14, Basílio o Grande e muitos
outros Padres da Igreja fizeram deste princípio um adágio comum
da teologia. Os Padres e os teólogos da Igreja do Oriente15 repeti-
lo-ão ao longo dos séculos, com mais insistência do que os da
Igreja do Ocidente. Não deixaram de lembrar a essência mesma
do cristianismo: uma descida de Deus até aos limites do nosso

estado
homenspresente,
uma viaaté
de àascensão,
morte. Mas esta
abre osdescida de Deus
horizontes abre aos
ilimitados da
união dos seres criados com a Divindade. Neste contexto,
Gregório Palamas define a Igreja como uma "comunidade de
deificação".

A PEDAGOGIA DIVINA
Deus confiou ao homem inúmeros pontos de referência na sua
caminhada para a deificação.
A primeira revelação
Vários filósofos da Antiguidade, as velhas religiões de Mistérios,
os construtores de catedrais, os alquimistas da Renascença e os
teósofos cristãos insistiram neste ponto: o universo que nos rodeia
é ele próprio uma Revelação. Deus estendeu à nossa volta o
mundo dos corpos para que encontremos no sensível algo pelo
qual possamos voltar para ele. O universo é uma imagem sensível
de Deus para que toda a obra denote o seu autor. Num quadro de
pintura, um perito reconhece o pintor pois o quadro exprime algo
do seu criador. Também o mundo que percepcionamos revela o
seu Criador pois a grandeza e a beleza das criaturas fazem, por
analogia, contemplar seu Autor (Sb 13, 5).
Cada coisa é então um sinal em que Deus se dá a conhecer a nós.
Eis a carta do simbolismo medieval, em teologia, em filosofia e
até na arte decorativa das catedrais. O universo teofânico de Scoto
Erígeno, o liber creaturarum de Guilherme d'Auvergne e de
Boaventura, o simbolismo dos Lapidados e dos Bestiários, sem
esquecer o que orna os pórticos das nossas catedrais ou
resplandece nos seus vitrais, são outras tantas testemunhas desta
confiança cristã na translucidez dum universo, onde o mais
pequeno dos seres é um indício da presença de Deus. Sendo as
criaturas imitações de Deus, as suas propriedades fundamentais e
as relações dessas propriedades entre elas ajudam-nos a conhecer
as de Deus.
Segundo Scoto Erígeno, todos os seres criados são luzes, e cada
coisa, até a mais humilde, não é, no fundo, senão um círio onde
flameja, ainda que fracamente, a luz divina. Composta por um
enorme número de pequenas luzes, a criação é uma iluminação
destinada a mostrar Deus. O universo cessaria se Deus deixasse
de brilhar.
Numa tese sobre a obra de Karl von Eckhartshausen, Antoine
Faivre comenta esta revelação natural, recorrendo às personagens
nascidas da pena do teósofo alemão: É olhando para as folhas
duma flor que Aglais descobre a existência de Deus; os perfumes
da primavera, as vagas que o vento faz nos campos de trigo
convencem-no da Sua bondade. A natureza prova que Deus
existe: tal é o título dum dos seus escritos, no qual ele descreve
complacentemente os encantos da primavera e as carícias duma
jovem esposa. Aliás, como entender Deus sem a natureza?...
Eloas, "sacerdote da natureza", ensina ao seu discípulo Sophron
que tudo o que nos rodeia é a manifestação de Deus, a letra viva
do Seu esplendor, pela qual Ele se revela... Conhecer a natureza,
segundo ensina Sophron, permite elevar-se por patamares até ao
conhecimento do sobrenatural graças às marcas divinas, pois não
há nada de invisível no espírito de Luz que não tenha uma sombra
visível e palpável aqui em baixo.16
O Universo fala-nos de Deus. Deus conhece-se pelas suas obras,
afirma o Evangelho de João. O mundo é um espelho no qual Deus
se pode contemplar. O Invisível manifesta o seu Ser e o seu Poder
no universo visível: Os céus cantam a glória de Deus, e o
firmamento proclama a obra das suas mãos (SI 19, 2). E "a
realidade invisível de Deus - o seu eterno poder e a sua divindade
- tornaram-se visíveis desde a criação do mundo para aqueles que
reflectem nas suas obras (Rm 1, 20). Orígenes compara os astros
a caracteres de escrita e o céu à Bíblia. Através do estudo do
Livro do Mundo, podemos aceder ao seu autor. Os três magos que
não eram reis, como bons astrólogos, alcançaram o presépio
apenas pela observação e, sobretudo, pela interpretação da
estrela17. Eles ilustram a religião natural que se apoia nesta
primeira Revelação.

A segunda revelação
Esta primeira Revelação é apenas uma introdução, uma
preparação a duas outras Revelações. Deus escolheu um povo
eleito no seio do qual suscitou profetas e mestres, e produziu
acontecimentos milagrosos. Deu-lhe uma Lei escrita, vinda para
apoiar os ensinamentos da criação.
A terceira revelação
Por fim, e isto é o mais importante, Deus fez-se homem afim de
mostrar até onde Ele nos levaria... para que, tornado Filho do
Homem, e partilhando a sua mortalidade, ele levasse os homens à
sua perfeição de filhos de Deus e os fizesse participar da
imortalidade divina...18. O Verto de Deus fez-se carne, e a carne
fez-se Verbo, sem que nenhum dos dois abandonasse a sua íntima
natureza19. A carne do Cristo, corpo do Verbo de Deus feito
homem, constitui o ponto de contacto do homem com Deus. Em
Cristo, o céu e a terra uniram-se. Na pessoa do Cristo, a pessoa
humana existia integralmente, divinizada pela sua união com o
Verbo de Deus. Por isso, a natureza humana assim assumida
recebeu a plenitude da energia divina. Desde então, a
possibilidade da sua deificação está assegurada para todos os
seres humanos que para tal se esforçam. A srcem dos homens a
partir de Adão implicava um laço com as suas antigas raízes,
entre as quais a mortalidade. 0 seu enxerto sobre uma nova árvore
autoriza a sua regeneração. Falando claramente, o Cristo não veio
para nos ajudar a melhor suportar o pesadelo desta existência,
veio sim para nos permitir sair dela: Caríssimos, desde já somos
filhos de Deus, mas o que nós seremos ainda não se manifestou.
Sabemos que por ocasião desta manifestação seremos
semelhantes a ele, porque o veremos tal como ele é (1 Jo 3, 2).
A SÍNTESE DE NlCOLAU CABASILAS

Nicolau
renascer Cabasilas propõe
e ressuscitar: tal é,uma
desdesíntese.
a idadeOapostólica,
homem tem por dos
a lição fim
Padres, da qual ele já discerne um resumo nos antigos mistérios.
As energias contidas no corpo glorificado do Cristo são
comunicadas aos seus iniciados e asseguram a sua deificação.
Esta comunicação efectua-se, entre outros meios, pelos
sacramentos, a que a tradição oriental chama de "Mistérios". São
os pontos do espaço e do tempo onde a vida divina reencontra a
vida humana e a transfigura; são celebrações e procedimentos
pelos quais se realiza a deificação. O baptismo e o crisma
restauram a semelhança no próprio acto, libertando a imagem cuja
irradiação se torna perceptível nos santos e nas crianças. A
eucaristia alimenta esta divinização.
O CORPO DE GLÓRIA
Para aqueles que nada sabem da experiência espiritual, o mundo é
uma prisão infinita onde tudo é solidão, frio e trevas. Se
consideramos que a natureza se basta a si própria, que ela é um
conjunto de cegas operações, então ela nada significa e a morte
tem sempre a última palavra. O próprio homem, enquanto ser
natural, não tem nem sentido nem profundidade. Parcela
infinitesimal da natureza, está condicionado por ela, e a sua
consciência está entregue à contingência. Se não revestirmos as
vestes fulgurantes dos anjos encontrados no início da aurora
pascal pelas Santas Mulheres (Lc 24,1-8), o nosso corpo é apenas
amálgama de sangue e de lágrimas20, e a grande palidez da
carne21 torna-se o nosso destino inelutável. Enquanto não
renascermos da água e do espírito, somos comparáveis a velas
apagadas.
O corpo de glória, de que a alva branca é o símbolo, instaura-se
quando frutifica o germe baptismal. O corpo terrestre será
transformado em corpo de glória (Fl 3, 21), em corpo espiritual (1
Co 15, 44) incorruptível, que nos fará trazer a imagem do homem
celeste (15, 49). A deificação será o resultado, se o homem
colaborar na sua própria transformação. Ao longo deste processo,
o homem é transfigurado, deificado a partir do coração que é ao
mesmo tempo o centro da pessoa e do corpo, lugar eficaz e
simbólico da presença divina. Há uma assunção do corpo pela
alma, na luz.
Mesmo deificados, os corpos não se identificarão com a natureza
divina. Guardarão a sua identidade natural e pessoal. 0 ar não
deixa de ser ar só porque a luz do sol o ilumina de tal forma que
parece ser ele que ilumina e não que é iluminado. O ferro ao rubro
permanece ferro, apesar de parecer transformado em fogo.
A deificação do homem, apesar de o transformar, deixa subsistir a
sua natureza com a sua pessoa: Pedro permanece Pedro, Paulo
permanece Paulo e Filipe permanece Filipe. Cada um permanece
na sua natureza e na sua pessoa, cheio do Espírito. Mas se
disseres que a natureza se dissolve, já não há nem Pedro nem
Paulo, mas em todo o lado e por todos os lados já não há senão
Deus. E neste caso, os que vão para a Geena não sentem o seu
castigo, e os que vão para o Reino de Deus não têm consciência
da benesse recebida.22 Usando uma comparação frequentemente
utilizada, Macário explica como é que o homem é deificado pela
participação e não por natureza: ... assim como o ferro colocado
no meio do fogo não deixa de ser ferro, e que inflamado pelo seu
violento contacto com o fogo, ele recebe nele próprio toda a
natureza do fogo epela cor e pela acção se transforma
emfogo...2A. O ferro participa da energia do fogo. No entanto,
apesar de aquecido, ele não se torna fogo, pois possui nele uma
energia própria alheia ao fogo. Esta imagem do ferro e do fogo
não é uma simples metáfora. Gregório de Niceia retoma-a com
uma conotação ainda mais carnal: Tal como o ferro posto em
contacto íntimo com o fogo, toma imediatamente a cor deste,
assim a natureza da carne, depois de nela ter recebido o Logos
divino, incorruptível e vivificante, não permanece na mesma
condição, mas sim se torna isenta de corrupção24.
No Séc. XII, no mundo latino, Guilherme de Saint Thierry, evoca
este esboço do corpo de glória que será completado na vida
futura. Faz alusão à "linguagem angélica" que serve de
comunicação aos sábios cujo corpo de glória já está realizado no
plano terrestre. Nomeando os sete graus da alma na contemplação
da Verdade, esclarece que o sétimo não é um grau, mas um
estado25. O corpo de ressurreição encontra-se aí realizado.
A SENSAÇÃO DOS OSSOS
O Logos assumiu a humanidade, o homem no seu todo. Assim, a
alma e o corpo devem ser consumidos pelo fogo divino. A
deificação estáda
transformação ligada
luz eàpela
recepção
luz. Ada luz divina.
"chama viva" Ela
e osresulta
rios deduma
água
viva que saem do seu ventre (Jo 7, 3) devem ser tomados tanto no
seu sentido literal e corporal como no seu sentido espiritual. São
apenas as aras do Corpo de Luz. Deveremos transformar-nos
tanto fisiologicamente como psicologicamente a fim de aceder a
estes novos céus e a esta nova terra prometidos por Pedro, Paulo e
João. Deveremos transformar-nos de corpo e alma, pois as Águas
Vivas penetram, regando-os, o corpo e a alma que são as partes
inferiores e superiores segundo afirma S. João da Cruz26.
Os Padres gregos evocam uma iluminação que é ressentida até
aos ossos. A sensação de Deus é acompanhada da "sensação dos
ossos", isto é da sensação de Deus nos ossos. S. João da Cruz
explica assim: Por vezes a unção do Espírito Santo brota deste
bem da alma no corpo, e toda a parte sensitiva goza dessa
sensação, bem como todos os membros, os ossos e medulas -não
deforma leve, como acontece normalmente, mas com um
sentimento de grande deleite
às últimas articulações dos pése ededas
grande glória,
mãos... que sesente
E o corpo senteuma
até
tão grande glória nesta glória da alma, que ele exalta Deus à sua
maneira: sentindo-o nos ossos, conforme o que dizia David: Meus
ossos todos dirão: lahweh, quem é igual a ti...? (SI 34, 10). E
porque tudo o que possamos dizer ainda é pouco, é por isso que
basta dizer, tanto daquilo que se passa no corpo como daquilo que
se passa no espírito, que ele sente a vida eterna27. É porque eles
têm consciência da transfiguração simultânea do corpo e da alma
que os cristãos têm um imenso respeito pelas relíquias dos santos.
A graça de Deus, actuante nos corpos dos santos durante as suas
vidas, continua nas suas relíquias, das quais Ele faz instrumentos
de cura.
A pedra vulgar é assim transformada em pedra preciosa. O cristal
penetrado pela luz torna-se luz, o ferro levado ao fogo torna-se
fogo.
Para Basílio de Cesareia, O poder divino apareceu através do
corpo humano, como uma luz através das membranas
transparentes, brilhantes, para aqueles que têm o coração
purificado.
Este processo de deificação confere ao homem um corpo novo, o
corpo de Luz prometido aos eleitos para a eternidade (Mt 13, 43).
Mas estes podem revesti-lo sem que tenham deixado esta terra. O
corpo terrestre é transformado em corpo de glória (Fl 3, 21), num
corpo espiritual (1 Co 15, 44) incorruptível, que nos faz revestir a
imagem do Adão Celeste (15, 49). Substitui-se ao corpo natural, a
esta túnica de pele com que o homem foi revestido na aurora dos
tempos. Então osjtistos brilharão como o sol no Reino de seu Pai
(Mt 13, 43).
O SEU ROSTO RESPLANDECIA
Na abordagem desta questão da deificação, é preciso evitar um
primeiro erro, frequente nos meios esotéricos. O corpo glorioso
do Cristo ressuscitado ou do homem deificado não é um
intermediário entre o corpo dito "grosseiro" e a alma. Não é um
fantasma branquejante, uma teia de aranha de toque glacial, como
nos desdobramentos. Não é um empilhamento de corpos subtis
(aura, corpo etérico, etc) que se desdobram do corpo de carne sem
se confundir com ele. O nosso corpo glorioso, geralmente
chamado corpo espiritual, será um corpo que se pode tocar:
Apalpai-me e entendei que um espírito não tem carne, nem ossos,
como estais vendo que eu tenho (Lc 24, 39-40).
Evitemos um segundo erro, simétrico ao precedente, e frequente
nos meios cristãos. A vida mística não é uma transformação
exclusivamente moral. Ao longo da nossa ascensão ascética, a
alma transfigura-se e transforma-se. Mas como na antropologia
bíblica, corpo ecom
conjuntamente almaa são um alma.
nossa só, o Até
nossomesmo
corpo éo deificado
corpo se
transforma, se torna espiritual. O homem renova-se por inteiro,
morre e ressuscita. Evágrio chama a isto uma "pequena
ressurreição". Para S. João Clímaco, o próprio corpo, atingindo a
apatheia torna-se incorruptível, ou antes imputrescível. Gregório
Palamas confirma: se nos tempos futuros, o corpo é chamado a
partilhar indizíveis felicidades com a alma, é certo que deve desde
agora, tanto quanto possível, ter a sua parte.
Nesta vida, alguns santos experimentaram as premissas desta
visível glorificação do corpo. Nos cadernos dos Irmãos
Karamazov, Dostoievsky escreve: A vossa carne será
transfigurada (a luz do Tabor)... A luz do Tabor distingue o
homem da matéria da qual ele faz o seu alimento. Tais afirmações
têm a sua raiz no Antigo Testamento: Quando Moisés desceu da
montanha do Sinai, trazendo nas mãos as duas tábuas do
Testemunho, sim, quando desceu da montanha, não sabia que a
pele do seu rosto resplandecia porque havia falado com ele.
Olhando Aarão e todos os filhos de Israel para Moisés, eis que a
pele do seu rosto resplandecia; e tinham medo de aproximar-se
dele... Quando Moisés terminou de lhes falar, colocou um véu
sobre a face. Quando Moisés entrava diante de lahweh para falar
com ele, retirava o véu, até o momento de sair... os filhos de Israel
viam resplandecer o rosto de Moisés. Depois Moisés colocava o
véu sobre a face, até que entrasse para falar com ele. (Ex 34, 29-
35) O que era a excepção no Antigo Testamento, tornou-se quase
uma regra no Novo.
Quanto aos relatos dos ascetas que tocam a luz, eles são
inumeráveis. Seguem-se alguns exemplos. Os discípulos de
Arsénio o Grande viram-no enquanto ele orava todo ele como
fogo,,28 Acerca dum outro Padre do deserto, relata-se o seguinte:
Havia um padre, chamado Pambo, do qual se dizia que havia
orado a Deus
a terra". durante
Mas Deus três anos etanto
glorificou-o que dizia: "dá-me apodia
que ninguém glóriaolhar
sobreo
seu rosto por causa do brilho que dele emanava29; "dizia-se de
abba Pambo que assim como Moisés tinha recebido a figuração
da glória de Adão, quando o seu rosto foi glorificado, também o
rosto de abba Pambo brilhava como o relâmpago e ele era como
um rei no seu trono30;
Assim eram também abba Silvano e abba Sisoes31; Contava-se
de abba Sisoes: antes da sua morte, quando os padres estavam
sentados à sua volta, o seu rosto pôs-se a brilhar como o sol. E ele
disse aos padres: "abba António". Pouco depois, disse ainda: "Eis
o coro dos Profetas". E o brilho do seu rosto aumentou. Depois
disse: "Eis que vejo o coro dos Apóstolos". A irradiação do seu
rosto redobrou, e ele conversava com alguém. Então os Padres
interrogaram-no: "Com quem estás tu a falar?" Ele respondeu:
"Eis que os anjos vieram para me levar, mas estou a pedir para
que me deixem mais algum tempo para a minha contrição". Os
outros disseram-lhe: "Pai, tu não precisas de contrição". Ele
respondeu-lhes: "Sim, estou certo que ainda não comecei o meu
arrependimento". E todo o mundo sabia que ele era perfeito.
Subitamente, o seu rosto voltou a brilhar como o sol. Foram todos
tomados por um grande pavor, mas ele disse-lhes. "Vede, eis o
Senhor"... Ele disse: "tragam-me o vaso eleito do deserto"; Sisoes
expirou imediatamente e estava luminoso como o relâmpago.
Toda a cela se encheu de perfume"32; "Um dos monges contava:
uma pessoa encontrara abba Silvano e vendo que, de rosto e de
corpo, ele era luminoso como um anjo, prostrou-se por terra. Ele
dizia que alguns outros padres possuíam este dom33; Um irmão,
tendo chegado ao convento, dirigiu-se à célula de abba Arsénio,
olhou pela porta e viu que o padre estava como que ígneo. Este
irmão tinha sido tornado digno desta visão. Quando ele bateu à
porta, o starets34 saiu, e apercebendo-se que o outro estava
transtornado, ele perguntou-lhe "Bateste durante muito tempo?
Viste alguma coisa aqui?" O irmão respondeu: "Não". Após terem
conversado, o padre despediu-se.35
Entre os exemplos contemporâneos, citemos uma passagem do
relato de Nicolau Motovilov sobre a conversa com São Serafim
de Sarov. O autor não compreendia o que significava a fórmula de
Serafim, seu pai espiritual, para quem o objectivo da vida cristã
era a obtenção do Espírito Santo. Então o velho monge se revelou
a ele transfigurado e fê-lo entrar na mesma plenitude: Imaginai no
meio do sol, no esplendor dos raios do meio-dia, o rosto dum
homem que vos fala, relata Motovilov. Vedes o movimento dos
seus lábios, a expressão cambiante dos seus olhos, ouvis o som da
sua voz, sentis a pressão das suas mãos sobre os vossos ombros,
mas ao mesmo tempo não vos apercebeis nem das suas mãos,
nem do seu corpo, nem do vosso, apenas uma luz cintilante que se
propaga à volta, a uma distância de vários metros, iluminando a
neve que cobre a pradaria e que cai sobre o starets e eu
próprio36... A luz aqui não é um oceano impessoal no qual nos
devemos fundir. Nada falta ao movimento da boca, à sua palavra,
à expressão dos olhos; mas o rosto, como o do Cristo sobre o
monte Tabor, encontra-se no meio do sol. Ele irradia este outro
sol.
A transfiguração do mundo

Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de


parto até ao presente. (Rm 8, 22)
O QUE A MORTE DESTRÓI
O que a morte destrói é o cativeiro da vida num mundo onde tudo
é transformação, nascimento e morte. E é depositando na
corrupção, pela morte, aquilo que recebeu deste mundo, que o
homem se liberta. A morte torna-se o modo pelo qual o corpo
humano penetra até as profundezas da terra e alcança as entranhas
da criação. Pela morte, o homem aproxima-se dos limites do
universo, torna-se ar e água, luz, matéria: O pó retorna à terra,
como já era (Ecl 12, 7). Mas este pó já não é somente matéria. Ele
adquiriu a "razão" e a "forma" do homem. É assim que a criação
material - que havia introduzido a sua corrupção no homem -
reveste por sua vez, desde o seu interior e duma forma também
orgânica, o corpo do homem, capaz de incorruptibilidade.
VI UM NOVO CÉU E UMA NOVA TERRA
A palavra "mundo" cobre duas realidades. Este "mundo" é ilusão,
uma rede temporária de hipnoses e idolatrias, o sono no qual
Adão está mergulhado. Do ponto de vista humano, ele possui uma
existência real e concreta com a qual chocamos. A sua inteira
consistência é no entanto relativa. Pois o "mundo" designa
também a criação de Deus, fundamentalmente bela e boa. A sua
verdadeira matéria é luminosa, diáfana à luz incriada,
incandescente.
Para o Oriente cristão, cuja tradição foi verificada pela
experiência ascética e espiritual, o mundo empírico tem apenas
um sentido alusivo. É do mundo espiritual que ele recebe
incessantemente a existência, para que através destes arquétipos
vivos, destas "palavras", o Logos se exprima, se simbolize no
mundo. O novo céu e a nova terra (Ap 21, 1) já estão aqui, em
toda a sua perfeição. Esta perfeição é visível para o ser que
reveste o "novo homem". Os Padres gregos, os grandes teólogos
místicos de Bizâncio, os filósofos religiosos russos, recusaram
qualquer opacidade do sensível.
Com a ressurreição de Cristo, toda a humanidade, e através dela,
toda a criação são susceptíveis de transfiguração. Se o
cristianismo sublinha a realidade própria do universo criado, ele
insiste
homem,igualmente
às energias sobre
divinas:a Vi
suaentão
transparência possível,
um novo céu pelo
e uma nova
terra - pois o primeiro céu e a primeira terra se foram... (Ap 21,
1). Um grande número de santos conheceu as premissas deste
novo céu e desta nova terra. Próximo está o estado paradisíaco, e
as feras sentem no sábio ou no santo o perfume que era o de Adão
antes da queda; elas caminham para ele em paz.37
A CRIAÇÃO GEME E SOFRE AS DORES DE PARTO

O homem é o centro espiritual do universo. Ele é o seu resumo


enquanto microcosmo. Mas enquanto imagem de Deus, ele
transcende-o, contém-no e qualifica-o. Ele constitui a articulação
entre o divino e o terrestre. A partir dele, a graça pode difundir-se
sobre toda a criação.
O Cristo revestiu-se de carne, de algo de ordem material. Tornou
possível a metamorfose de toda a criação, não apenas do mundo
imaterial, mas também do mundo físico. A humanidade deificada
não é arrancada
glorificada ao resto
com ela: Pois adacriação
criação,
emmas a criaçãoanseia
expectativa deve pela
ser
revelação dos filhos de Deus... é com a esperança de ela também
ser liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da
glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira
geme e sofre as dores de parto até ao presente. (Rm 8, 19-22). À
volta do santo, a natureza transforma-se, e o milagre atesta por
vezes que ele percebe cada ser e cada coisa duma outra forma. As
crianças, os animais ferozes, até mesmo as plantas comungam
com ele. S. Francisco de Assis fraternizava com os animais. Um
eremita de Patmos, no início do Sec. XX dava a beber às cobras
venenosas pequenas taças com leite e nada temia delas. Estas
histórias são inumeráveis.

Notas
1 "Esta doutrina possui um vasto fundo escriturístico neo-
testamentário (relativo aos textos do Novo Testamento) que
aparece na continuidade do ensinamento veterotestamentário
(relativo aos textos do Antigo Testamento). Esta continuidade
manifesta-se de forma mais clara em Jo 10, 34, onde a fórmula do
Salmo 81,6 é recuperada por Cristo: "Eu disse: sois deuses." O
mesmo Salmo no seu primeiro versículo proclama: "Deus se
levanta no conselho divino, em meio aos deuses ele julga. "A
afirmação, repetida por duas vezes pelo apóstolo Paulo, faz eco a
estas fórmulas: "Porque somos também da sua raça (...) nós
somos de raça divina" (At 17, 28-29). Uma outra afirmação
essencial é a do apóstolo Pedro: pela glória e virtude de Deus "nos
foram dadas as preciosas e grandíssimas promessas afim de que
assim vos tomásseis participantes da natureza divina" (2 Pd 1, 4).
Outras fórmulas atestam duma assimilação ao Cristo: "Pois todos
vós que fostes baptizados em Cristo, vos vestistes de Cristo " (Gl
3, 27); "Já não sou eu que vive, mas Cristo que vive em mim " (Gl
2, 20). À temática da divinização do homem devem ser ligadas as
da criação do homem à imagem e à semelhança de Deus (cf. Gn
1, 26-27; Sb 2, 23), da adopção filial (Dt 14,1; SI 81,6; 88,27-28;
Sb 2,18;5,5;Mt6,9;Rm8,14-17;G1 3,26; 4,4-7), da imitação de
Deus até nos tornarmos perfeitos como Ele é (cf. Mt 5, 48), da
promessa duma condição futura onde o fiel participará da
incorruptibilidade e da imortalidade divinas (cf. Sb 2,23; 5,15-16;
6,18; ICo 15, 53), onde ele encontrará a perfeição na visão de
Deus que o assimilará a Ele (Uo 3, 2), onde ele será glorificado na
Sua luz (Cf. Mt 13, 43)." (Jean-Claude Larchet, La divinisation de
Vhomme selou Maxime le Confesseur).
2 Contre les hérésies, V, praef. (PG, t. 7, col. 1120).
3 "Factus est Deus homo ut homo fieret Deus", Sermo 128,
PL, t. 39, col. 1997;
trata-se dum sermão de Natal. 45e/./n£z.,I,3,PG13,769B.
5 Com. In Io., II, 17, SC 120, pag. 218.
6 Protreptique I, 8,4, SC 2, pag. 63.
7 Protreptique XI, 114,4, SC 2, pag. 183.
8Deinc. Verb., 54,SC 199,pag.458. 13-14.
9 Or., XL, 45, SC 358, PAG. 306.
10 Or. Cot., XXV, 2, Méridier, pag. 118.
11 OÍÍ: t/w., SC 97, pag. 238.
12 IDiscours contre lesAriens, c. 54 (PG, t. 25, col. 192 B).
13 Poentes dogmatiques, 1,10,5-9 (PG, t. 37, col. 465).
14 Grande oraison catéchétique, C. 25 (PG, t. 45, col. 65 D).
15 O império romano foi outrora separado em duas partes: o
império de Ocidente e o império de Oriente, cujas capitais eram
respectivamente Roma e Constantinopla (mais tarde Bizâncio).
Chama-se "Igreja de Ocidente" à Igreja das terras de língua latina,
e "Igreja de Oriente" à Igreja das terras de língua grega. A esta
última, é conveniente juntar a das terras de língua aramaica,
situada nos territórios que compuseram outrora a Mesopotâmia
(Iraque, Síria, etc).
16 Eckhartshausen et la théosophie chrétienne, Paris, 1969, pag.
263-264.
17Mt2,2.
18 Gregório Palamas, Homélie 16 (PG 151,201 D-204 B).
19 Tome synodal 1,9 (PG 151,683 B).

20 Gabriela Mistral, Êxtase.


21 Gabriela Mistral, Gouttesdefiel.
22 Macário, Hom. (Coll. III), III, 3,3, SC 275, pag. 92.
23 Adv. Eunom., III, 2, SC 305, pag. 152-154.
24 Hom. Parsch., XVII, PG 77,785D-788A.
25 De natura corporis etanimae. Ed. M.-M. Davy, Paris, 1953.

26 Viveflamme, III estr., vers. 3, pag. 1031.


27 Viveflamme, II, 5.
28 Les sentences des Peres du désert, collection alphabétique,
ed. Dom Lucien
Regnault, Solesmes 1981, pag. 29 (Apophthegmata PG 65)
Arsénio 27.
29 Dites mémorables sur Vascétisme des saints pères, trad.
russo, São
Petersburgo, 1871, pag. 320,1.
30 Pambo 12 (ed. cit. Pag. 264-265); Sisoès 14 (ed. cit. pag.
286) e Sylvain 12 (ed.
cit. pag. 299). Epifânio, na sua obra sobre a vida de Sérgio de
Radonège, declara que, após a sua morte, o corpo do santo
resplandecia de glória.
31 lã. pag. 324,12.
32 Id. pag. 355,12
33 Id. pag. 372,12
34 Na Igreja do Oriente o starets é o mestre espiritual.

35 Id. pag. 25,27.


36 Trad. In Irina Gorairoff, Séraphin de Sarov, col. Spiritualité
orientale, n° 11,
Bellefontaine, pag. 209.
37 Isaac o Sírio, Traités ascétiques, 20° tratado, ed. Spanos,
Atenas, 1895, trad. fr.
Oeuvres spirituelles, Paris, 1981, pag. 78. "
III.
COMO FAZER?
a. A abertura às energias divinizantes
COMO EMPREENDER ESTA AVENTURA?
Leiamos de novo a parábola do trigo e do joio (Mt 13, 24-30): o
joio cresce sem que tenhamos necessidade de o cultivar. Em
contrapartida, a boa semente exige, para que frutifique, um
trabalho considerável. É preciso lavrar a terra, adubá-la, semeá-la
cuidadosamente, gradá-la, etc. Se a colheita não for ceifada, e for
deixada onde cresceu, não encontraremos ao fim de alguns anos
senão o joio, planta natural que abafa o trigo e o centeio, frutos da
cultura humana.
Teófano ensina que as energias divinas não agem em nós se não
fizermos esforços para as obter. Os esforços humanos, por si só,
não podem produzir nada de estável e permanente. Os resultados,
diz ele, obtêm-se pela conjugação dos esforços e da graça. Este é,
aliás, um comentário autorizado do texto do Apocalipse: Eis que
estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta,
entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo (3, 20). Deus
exerce sobre nós uma pressão constante. Mas somos nós que
temos de ouvir a sua voz e abrir-lhe a porta.
As FERRAMENTAS DISPONÍVEIS
Algumas ferramentas facilitam o processo de regeneração, último
termo dum cenário que começa com a criação, prolonga-se com a
queda e suas consequências, terminando com uma deificação que
dá todo o seu sentido aos temas que já examinámos. Neste
processo de deificação, examinemos a parte que depende das
energias divinas, e a que cabe ao homem. De forma (demasiado)
esquemática, repartamos em duas categorias os meios na
realização desta Grande Obra.
Por um lado, trata-se das portas que abrem directamente o
caminho às energias divinizantes. Três delas têm lugar de honra e
não podem ser utilizadas correctamente umas sem as outras. São
os sacramentos (especialmente a eucaristia), o estudo das
Sagradas Escrituras com as chaves dadas pelos Padres da Igreja, e
a oração. Por outro lado, trata-se das técnicas psíquicas e físicas
que purificam e preparam a matéria bruta que nós somos, para
que ela possa ser trabalhada. Elas favorecem uma atitude do corpo
e da alma que torna o homem receptivo às energias divinizantes.
À imagem do profeta Ezequiel (Ez 8, 3), que foi elevado ao céu
segurado por um tufo do seu cabelo, elas favorecem a docilidade
àescrito
acçãoapócrifo
divinizadora do Espírito.
composto antes do O Evangelho
final dosilustra
do Sec. II, Hebreus,
este
ponto: Ainda há pouco a minha Mãe, o Espírito Santo, me tomou
por um dos meus cabelos e transportou-me até à grande
montanha, o Tabor.1 Todas estas técnicas têm por objectivo a
transformação das paixões, isto é, das pulsões e dos instintos.
Entre elas citemos o jejum, a linguagem gestual (posturas físicas e
mentais, a participação activa na liturgia, o canto), o puro desejo,
o silêncio e a constatação activa que conduzem à verdadeira
oração. Citemos também eventuais procedimentos e exercícios
que agem directamente sobre o sangue e outras substâncias
corporais. Por fim, não esqueçamos que as lágrimas participam
desta alquimia e que elas são um banho2, este admirável
terapeuta0 cantado pelos Padres da Igreja.
Os Mistérios
Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece
em mim e eu nele (Jo 6, 5-6)
A ÁGUA, O SANGUE E A CARNE
As energias contidas no corpo glorificado do Cristo são
comunicadas aos seus iniciados e asseguram a sua deificação.
Esta comunicação efectua-se, entre outros meios, pelos
sacramentos, a que a tradição oriental chama "Mistérios". Na sua
principal acepção, a palavra grega mysterion não significa
"secreto", "oculto", "escondido". Designa em primeiro lugar uma
realidade transcendente, que pode, sem dúvida, ser objecto de
velamento, mas que pode também ser objecto duma revelação,
sem por vinte
aparece isso perder
e umao vezes
seu nome
em S.de Paulo,
mysterion. Estavezes
quatro palavra
no
Apocalipse, três vezes nos Evangelhos sinópticos numa passagem
paralela.
Soprando o Espírito onde e quando quer, tentar indicar o número
de sacramentos existentes é revelador duma vaidosa
racionalidade, desconhecida dos Padres da Igreja. Mas dois deles,
o baptismo (seguido do crisma) e a eucaristia, formam os
principais Mistérios de que depende a deificação do homem. Na
pregação realizada a respeito da ferida feita pelo soldado romano
a Jesus na cruz, S. João Crisóstomo resume: Não é apenas por
acaso que dois jactos jorraram, mas é porque a Igreja se formou
das duas; e os que são iniciados sabem que foram regenerados
pela água e alimentados pelo sangue e pela carne. Esta é a srcem
dos Mistérios*.
O BAPTISMO

O baptismo
energias introduz
incriadas. no homem
Ou mais o princípio
exactamente, divinizante
ele introduz das
o homem
neste princípio divinizante: Como o ramo não pode dar fruto por
si mesmo, se não permanece na videira, assim também vós, se não
permanecerdes em mim. Eu sou a videira e vós os ramos. (Jo 15,
4-5). As águas do baptismo regeneram o homem por dentro,
assim como o fermento leveda toda a massa. Ele ilumina o "à
imagem" e restaura-o imediatamente no seu esplendor inicial.
Abre-lhe a possibilidade de se tornar "à semelhança" em germe,
para que ele a possa de seguida cultivar. O crisma5 intensifica
estas energias e a sua acção. Traçando o sinal da cruz e dizendo o
selo do dom do Espírito Santo, o sacerdote unge sucessivamente
com o santo crisma a fronte, os olhos, as narinas, os lábios, as
orelhas, o peito, as mãos e os pés do baptizado. Cada uma das
faculdades do homem, simbolizadas por estes órgãos corporais,
recebe a energia vivificante, iluminadora e deificante do Fogo
celeste.
A EUCARISTIA
Em todas as religiões existem refeições rituais. Aí se consomem,
entre outras coisas, a carne dos animais sacrificados. Mas nunca é
feita menção de "comer o deus"; este é um aspecto particular do
cristianismo.
Quem examinar o texto do pai-nosso, nos srcinais gregos de
Lucas e Mateus, apercebe-se de que aquilo que é traduzido
normalmente por pão-nosso de cada dia pode igualmente ler-se
pão supersubstancial ou pão sobrenatural de cada dia. O pão deste
dia não visa apenas o alimento quotidiano que os nossos corpos
reclamam, mas o maná que os Hebreus recolhiam no deserto (Ex
16). Uma rigorosa exegese mostra que Dai-nos hoje significa que
devemos pedir hoje o pão do fim dos tempos (a eucaristia). Os
primeiros cristãos comungavam em todas as reuniões ou missas.
Perseveravam em participar na fracção do pão (At 2, 42). A
frequência das reuniões que se tornou quotidiana srcinou a
comunhão quotidiana do "pão-nosso de cada dia". A partir do
Sec. III, os textos mostram que a comunhão, o contacto com o
Corpo do Cristo, era quotidiana. Do Vo ao VIIIo século, constata-
se uma quebra na prática, em parte por causa duma especial
severidade. Os leigos casados deviam abster-se durante três noites
antes da recepção do sacramento. Ao longo dos séculos, o cristão
acabará por questionar-se se é digno de comungar. Apesar do
aviso de muitos místicos, a eucaristia, inicialmente entendida
como um remédio, transformou-se em recompensa.
Os Padres traduziram admiravelmente o ensinamento das srcens
quando, nas suas pinturas e nos escritos, representaram a
eucaristia sobre a forma de leite. O leite é o alimento natural que
se adapta à idade da criança, para nela manter a vida e fazê-lo
chegar à idade do homem.
Se o baptismo ilumina o "à imagem", a eucaristia estende a sua
obra até à semelhança. Cada missa é como um batimento do
coração do Cristo no seu corpo que é a igreja, como que uma
nova injecção de sangue divino-humano em todos os seus
membros. Pela eucaristia, o homem participa dum fogo que
transfigura mas não consome: Por esse sacramento, Deus se
mistura com a nossa natureza, perecível a fim de deificar a
humanidade fazendo-a partilhar da sua divindade escreve
Gregório de Niceia6. Eis a razão pela qual Ele se distribui como
uma semente por todos os crentes, seguindo o plano da graça,
nesta carne composta de pão e de vinho, e Se mistura com o corpo
(dos crentes) para permitir ao homem participar da
incorruptibilidade, graças à união com o corpo imortal1. Ligando
o relato da Ceia e o sacrifício da Cruz, os teólogos ocidentais
viram no pão e no vinho o corpo e o sangue de Cristo imolado,
morto e sepultado sobre o altar, que representa a cruz e o túmulo.
Pela eucaristia,
e adquire o ser humano une-se
a incorruptibilidade à carne divinizada
partilhando-a. A Igreja dodeOriente
Cristo
insiste sobre o facto que o Espírito está também ele presente neste
mistério. E por vezes chamado de "Fogo" pela tradição síria.
Quando os fiéis recebem o corpo e o sangue de Cristo, eles
recebem também o Espírito Santo. A pedido do celebrante,
pedido esse a que se dá o nome de "epiclese", o Espírito vem
incorporar-se nestes oblatos, que representam Cristo sepultado. Aí
se opera uma restauração, uma recriação análoga àquela que se
efectuou na manhã de Páscoa no corpo do Salvador. Transforma-
os em princípio de vida capaz de deificar a assembleia que os
recebe pela comunhão: é o Pão da vida que muda, transforma,
assimila aquele que o come* Há uma permanência de Cristo no
cristão e do cristão no Cristo: Aquele que come a minha carne e
bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele (Jo 6, 5-6). Esta
recepção do Espírito pela eucaristia é igualmente afirmada por
Isaac de Antioquia (Sec. Vo). Para exortar os fiéis a
aproximarem-se da mesa eucarística, ele clama: Vinde beber,
comer a chama que vos fará anjos de fogo, e provai (pela vossa
boca) o sabor do Espírito Santo para que os vossos nomes sejam
inscritos entre as potências espirituais.9 Poderíamos multiplicar
estes testemunhos. Eles provêm não somente dos Padres da
Igreja, mas também dos textos litúrgicos. Este, tirado das Matinas
do segundo domingo após Pentecostes, celebradas na Igreja de

Antioquia, indica
à presença do fogoa num
presença doEis
forno: Espírito
que ona eucaristia
corpo e compara-a
e o sangue são um
forno no qual o Espírito Santo é o Fogo.10
Na celebração, onde o Espírito Santo actualiza e manifesta a
morte e a ressurreição de Cristo, o "corpo de morte" satura-se
pouco a pouco com eternidade, esboçando a sua metamorfose em
"corpo de glória"; A matéria... recebe nela a força de Deus.11 A
modalidade decaída da natureza é reabsorvida na sua modalidade
glorificada.
O estudo das Escrituras
Então perguntou-lhe:
- Entendes o que estás lendo?
- Como o poderia, disse ele, se alguém não me explicar?
(At 8, 30-31)
O SENTIDO LITERAL E O SENTIDO ESPIRITUAL
A Bíblia introduziu na história um dinamismo secreto. Ela
comporta-se como um verdadeiro fermento. Mas a sua simples
leitura, ainda que assistida por todas as ferramentas intelectuais da
exegese é insuficiente. Faltam-nos as chaves da leitura. É a
própria Bíblia que nos adverte. Citemos o episódio de Filipe que
persegue uma carruagem a pedido expresso de Deus e do seu
Espírito: O Anjo do Senhor disse a Filipe: "Levanta-te e vai, por
volta do meio-dia, pela estrada que desce de Jerusalém a Gaza. A
estrada está deserta". Ele se levantou e partiu. Ora, um etíope,
eunuco e alto funcionário de Candace, rainha da Etiópia, que era
superintendente do seu tesouro, viera a Jerusalém para adorar e ia
voltando. Sentado na sua carruagem, estava lendo o profeta Isaías.
Disse então o Espírito a Filipe:"Adianta-te e aproxima-te da
carruagem. Filipe correu e ouviu que o eunuco lia o profeta Isaías.
Então perguntou-lhe: 'Entendes o que estás lendo?" Como o
poderia, disse ele, se alguém não me explicar Convidou então
Filipe a subir e sentar-se com ele (At 8, 26-31).
Para compreender esta existência dum duplo - ou triplo -sentido
das Escrituras, sigamos Orígenes. Deus concede o seu dom àquele
que o busca com paciência onde ele se esconde: na sua Palavra.
Mas desta Palavra, apenas conhecemos a Escritura. Sem os signos
com que se reveste, não conheceríamos esta palavra de Deus.
Estes signos, a letra da Escritura, formam o corpo desta Palavra:
Eis como deves compreender as Escrituras: como o corpo único e
perfeito do Verbo12. Ora, o Logos de Deus veio ao mundo
revestido de carne. E se a sua carne era uma visão oferecida a
todos, ao alcance da experiência humana, a sua divindade não o
era. As vestes da carne velavam o corpo de luz. O privilégio de
perceber a divindade foi por vezes concedido a alguns, como no
episódio da Transfiguração. Havia dois graus no conhecimento de
Cristo: tal como dois planos em que o primeiro recobria o
segundo.
A Escritura apresenta uma dualidade similar. O Logos agia no
mundo muito antes do nascimento de Jesus entre os homens:
pelos profetas e legisladores. Por eles já se exprimia a mesma
palavra de Deus que se manifestou mais tarde num corpo nascido
de Maria. Assim,
revestimento proferida
apropriado: querna pela
história,
carne,esta palavra
quer toma um
pela Escritura,
uma vez que a palavra oral transmitida aos homens se tornou
palavra escrita nos livros sagrados. Assim esta comparação
prevalece: o mesmo Logos de Deus, assim como está incarnado
num corpo, está incorporado na Escritura.
- Por um lado, a carne do Logos e a divindade que ela
envolve.

- Por outro lado, o véu da letra e o sentido espiritual que ela


esconde.
As Escrituras são assim dotadas dum duplo sentido:
- Um sentido literal, segundo a letra (ou a história), evidente
a todos;
- Um sentido espiritual, que apenas pode entender o homem

interior.
Alguns teólogos negaram este duplo - ou triplo - sentido das
Escrituras. No entanto, a própria Escritura nos afirma este
princípio. Não voltemos às passagens do Antigo Testamento que
anunciavam o Cristo de forma velada (Lc 24, 13-32 e 44-46), e
que Jesus aplicou a si próprio. São Paulo, na sua epístola aos
Gálatas, lembra a história de Sara, a mulher livre, e de Agar, a
serva, que, ambas, deram um filho a Abraão (Gn 16 e 21). Ele
ensina que se trata duma alegoria (emprega essa palavra) das duas
alianças: a de Moisés e a de Cristo, a da sinagoga e a da Igreja, a
das duas Jerusalém. A primeira é servil e carnal, a segunda livre e
espiritual.
As CHAVES INTERPRETATIVAS LEGADAS PELOS
PADRES
Se necessitamos percorrer os Livros santos desta forma, é porque
eles não são claros; foram voluntariamente velados para que as
pérolas não fossem deixadas aos porcos. Este véu pudico cobre
todas as Revelações autênticas. O estudo das Escrituras
compreende a descodificação do texto a partir das chaves que lhes
abrem o sentido, que alguns Padres da Igreja expuseram nos seus
comentários, na sequência das escolas rabínicas anteriores13.
Numa interpretação da multiplicação dos pães (Mt 14, 13-21),
Orígenes compara a Escritura a estes pães que devem ser partidos
para alimentar os fiéis. O pão assim partido e comido pela
assembleia vai multiplicar-se.
A GERMINAÇÃO DO HOMEM INTERIOR
Os Padres insistem na necessidade de ler e reler as Escrituras a
fim de recolher a medula interior viva dissimulada nos ossos das
palavras. O estudo das Escrituras compreende igualmente a
meditação do texto, a sua ruminação, a sua descida à vida prática
ebrotar
quotidiana. Esta
uma água vivamanducação da palavra
no coração daquele que divina
busca opode fazer
seu Deus:
Não ardia o nosso coração quando ele nos falava pelo caminho,
quando ele nos explicava as Escrituras? (Lc 24, 32). A palavra
exterior, lida e meditada, suscita como que um eco no homem
interior e faz ressoar a sua irmã, a palavra que jaz no fundo de
qualquer homem. A meditação da Escritura é um fogo brando que
faz germinar o homem interior. E são precisamente este homem
interior, esta palavra, este Verbo, este Cristo interior chamado a
desenvolver-se em nós que nos permitirão ler espiritualmente os
Livros santos.
A oração
"Orai sem cessar"
(1 Ts 5, 17)
AS CONDIÇÕES PRÉVIAS
Em matéria de oração, a situação é paradoxal. Na catequese, foi-
nos constantemente repetido que se deve orar. Mas ninguém nos
ensinou a fazê-lo. O problema não é novo pois não sabemos pedir
como convém (Rm 8, 26). Encaremos o problema de frente
deixando de lado a oração de pedido, a mais atestada em Jesus.
Não nos preocupemos também com os louvores ou com a oração
litúrgica, que são orações essencialmente comunitárias. Todas
estas formas de oração são legítimas à luz do Novo Testamento,
mas os seus fins não entram no quadro desta exposição, dedicada
à oração permanente.
AS PALAVRAS SÃO ENGANADORAS
Devemos analisar os textos dos Padres da Igreja, lembrando-nos
todavia que, tendo sido alterado o sentido associado a certas
palavras, corremos o risco de falhar a sua mensagem. Tomemos
por exemplo a palavra "meditação". "Meditar" no seu sentido
srcinal significa "repetir" e não "cogitar", remoer pensamentos
ou redigir uma dissertação. Em latim como em grego,
"meditação" exprime a ideia dum exercício. Primeiramente, esta
palavra servia para designar toda a espécie de exercício físico ou
intelectual, toda a prática destinada a preparar-se e a tornar-se
mais flexível. Mas mais tarde, a língua acabou por reservar
exercere para os exercícios físicos e meditari para os exercícios
do espírito. A meditação é um exercício análogo às repetições dos
soldados e dos músicos. Este exercício não consiste em variações
sobre um tema conhecido, mas numa repetição contínua com vista
a uma perfeita execução.
ONDE ORAR?
Onde orar? Claro que Paulo nos recomenda Quero, portanto, que
os homens orem em todo lugar (lTm 2, 8). Mas poder orar em
todo lugar é mais um objectivo do que um ponto de partida.
Recorramos então ao Evangelho: Tu, porem, quando orares, entra
no teu quarto e, fechando a tua porta, ora ao teu Pai que está lá, no
segredo... (Mt 6,6). O termo grego para "quarto" designa, na casa,
a divisão mais retirada, protegida contra os ladrões, reservada
para as provisões, onde ninguém penetra. Aí, aquele que ora está
sozinho com Deus. A palavra "quarto" pode também ser
entendida como o coração do homem. Tanto quanto possível, a
oração deve ser recitada na obscuridade completa ou com os
olhos fechados, e não com os olhos abertos diante dum ícone
iluminado por uma luz. O Starets Silouane do Monte Atos,
quando se entregava à "oração do coração", fechava o seu
despertador num armário de maneira a não ouvir o seu tic-tac, e
depois puxava o seu capuz de monge, espesso e lanoso, de forma
a tapar os olhos e os ouvidos.
A ORAÇÃO: PARA QUÊ?14

A união do
vontade homemmas
humana, a Deus
sim edons
a suagratuitos
deificação
da não sãoÉfrutos
graça. da
ela que
produz a divinização. A oração não é capaz de produzir a união
do homem com Deus, nem a sua deificação, mas torna-lo apto a
recebê-la. Um colírio farmacêutico não é a luz mas um meio para
alumiar os olhos do corpo pois torna-los capaz de receber a luz.
Dionísio Areopagita propõe a imagem do marinheiro que se
encontra numa embarcação. Para o socorrer, uma corda é-lhe
lançada. Puxando a corda, ele não puxa o rochedo até ele. E ele
que se aproxima do rochedo com o seu barco. Esta imagem ilustra
a passagem na qual Dionísio expõe o seu ensinamento:
Esforcemo-nos então pelas nossas orações por elevar-nos até ao
cimo destes raios divinos e benéficos, da mesma forma que se
agarrássemos com as duas mãos alternadamente uma corrente de
luz infinita que estivesse pendurada no céu, teríamos a impressão
de a puxar para baixo, mas na verdade o nosso esforço não a
poderia mover, pois estaria toda ela presente em cima e em baixo,
e seriamos então nós que nos elevaríamos aos mais altos
esplendores duma emanação perfeitamente luminosa15. Assim,
aquele que está em oração não faz descer Deus, que está presente
em todo lado, mas eleva-se ele próprio para Ele até atingir este
estado de oração pura, em que o homem se encontra a si próprio
ao mesmo tempo que encontra Deus: Quando o noús, escreve
Evágrio, vendo despido o velho homem, tiver revestido o homem

com a graça,
oração, entãoà verá
semelhante o safira
cor da seu próprio estado
ou do céu, no as
a que momento da
Escrituras
chamam de Lugar de Deus que foi visto pelos Antigos sobre a
montanha do Sinai16.
Que o queira ou não, que disso se dê conta ou o ignore, o homem
move-se em Deus e asfixia-se fora de Deus. Eis porque os nossos
contemporâneos mostram um rosto triste, torturado, duma vida
que perdeu todo o sentido. A oração restabelece este laço que une
as criaturas ao seu criador11. É claro que esse laço já foi
estabelecido através da recepção dos sacramentos: em especial
através do baptismo, do crisma e da eucaristia. Estes restituem
potencialmente ao homem o primeiro esplendor da imagem de
Deus e restabelecem-no na sua semelhança. Cabe ao cristão
assimilar pessoalmente a graça recebida, a crescer nela e por ela.
E é pela oração que ele pode estabelecer uma relação pessoal com
Deus presente nele, dar o seu livre consentimento à transformação
que Ele opera, tornar-se colaborador consciente e voluntário da
divinização que Ele realiza.
Para quê estabelecer um tal laço? Para fazer com que o fogo desça
do Céu. Não há intervenção celeste nesta terra que não seja
assinada pelo fogo. Aquando da Aliança com Abraão, ...eis que
uma fogueira fumegante e uma tocha de fogo passaram entre os
animais divididos. (Gn 15, 17). Lembremos a sarça-ardente (Ex 3,
2),
ou aa coluna
chama de fogo (Ex(Ex
devoradora 13, 24,
21);17).
o Sinai fumegante
Quando Gedeão(Ex 19, 18)
pediu um
primeiro sinal, ele recebeu um sinal ígneo: Então o Anjo de
lahweh estendeu a ponta do cajado que tinha na mão e tocou a
carne e os pães sem fermento. O fogo se ergueu da pedra e
devorou a carne e os pães sem fermento (Jz 6, 21). Mais ainda,
quando anunciou o nascimento de Sansão, a Manué e sua mulher,
Ora, subindo a chama do altar para, o céu, subiu nessa chama o
Anjo de lahweh (Jz 13, 20). David invocou o Eterno e lahweh lhe
respondeu fazendo cair fogo do céu sobre o altar dos holocaustos
(Cr 21, 26). O seu filho Salomão orou, aquando da dedicação do
Templo de Jerusalém e desceu fogo do céu, que consumiu o
holocausto... (2Cr 7, 1). Porquê tantos holocaustos, tantas vítimas
queimadas, e tantos sacrifícios de odor agradável antes do culto se
ter tornado interior? Todos estes actos apenas têm sentido
profundo se não nos esquecermos que as oferendas são queimadas
para que tudo se reintegre pelo fogo, no mundo sobrenatural.
Tornar sagrado, eis o sentido verdadeiro da palavra "sacrifício",
oriunda do latim sacer e facere. Todos estes sacrifícios ígneos -
desde o primeiro de Abel: "...lahweh se agradou de Abel e de sua
oferenda" (Gn 4, 4) - são figuras anunciadoras da transfiguração
final pelo fogo: os céus, ardendo em chamas, se dissolverão e os
elementos, consumidos pelo fogo, se fundirão para serem
substituídos por novos céus e uma nova terra (2Pd 3, 12-13).
Esta luz, Deus envia-a e ela parte, Ele a chama e ela lhe obedece
tremendo (Hab 3, 3). Nas Escrituras, Deus é um fogo devorador
(Dt 4, 24. Ml 3, 23. Hb 12, 29. Ap 21, 27). Vemos Deus
responder à oração através dum fogo transcendente que queima e
consome o holocausto de Aarão (Nm 11, 1-3) ou o altar de Elias,
ou ainda que devora os cismáticos de Core (Nm 16, 35), e por
duas vezes os cinquenta homens de Ocozias (2 Rs 1, 9 e
seguintes). O relâmpago electrocutará os dois imprudentes filhos
de Aarão sem
Abinadab. no entanto queimar
A deslumbrante as suastorna-se
luz da Glória túnicas,inofensiva
ou o filhopara
de
Saulo de Tarso, contentando-se em deitá-lo por terra e amarrar-
lhe os sentidos durante um êxtase de três dias. Por fim, sem cegar,
Deus pode dar-se a conhecer numa teofania que magnifica, pela
Luz do Céu, a Sua criação aos nossos olhos.
COMO FAZER?
Como fazer orações que orem por si próprias em nós e por nós, e
não dessas orações que somos obrigados a escorar de todos os
lados, buscando-as em fórmulas ou em pueris e escrupulosos
hábitos181! A técnica da oração, em toda a sua pureza, foi-nos
transmitida por Cassiano (360-445) nas Instruções e nas
Conferências. Ele sabia que há uma arte da oração, que deve ser
ensinada e aprendida. Recorrendo ao abade Germano, colocou
assim o problema: acreditamos que esta arte divina que nos ensina
a manter-nos inseparavelmente ligados a Deus, tem também os
seus princípios e os seus fundamentos que é necessário
estabelecer e firmar... Acreditamos que estes fundamentos
consistem em manter algum objecto ou alguma ideia que
preencha a nossa memória, e que nos sirvam para conceber Deus
e a manter-nos na sua presença, e em buscar, de seguida, como
fixar-se nessa ideia. Acreditamos, meu Pai, que tudo está contido
nestes dois princípios. É visível, observará ele ainda, que a
presença de Deus nos escapa: que a nossa atenção afrouxa e
dissipa-se... que caímos todos nesta desordem e nesta confusão
porque não temos nada que proponhamos como objecto fixo e
imóvel, ao qual possamos rapidamente fazer voltar o nosso
espírito depois dessa dissipação. Em resposta, o santo Abade
Isaac revela-lhe este segredo: um segredo que nos deixaram, por
tradição, um pequeno número dos mais antigos dos nossos Padres
que ainda, viveram no nosso tempo, e que
comunicávamos, também, a um pequeno número de pessoas que
o desejavam com muito ardor. Trata-se de ter sempre na boca, e
sobretudo no coração, o primeiro versículo do Salmo 69: "Deus,
salva-me!". Tal é, aliás, o ensinamento constante de Paulo (Ef 6,
18; Cl 4, 2; lTm 5, 17; 2Tm 3, 10; lTm 5, 5; 2Tm 1, 3; etc). O
abade Isaac continua: acostumai-vos a dizer esse versículo, a
meditá-lo incessantemente, quer estejais a trabalhar com as vossas
mãos, quer estejais nos vossos exercícios ou em viagem. Dizei-o e
cantai-o continuamente. Pensai nele até a dormir, pensai nele

quando comerdes
Esta repetição vosepreservará...
até nas maisvos
baixas necessidades
purificará... da natureza.
para vos elevar à
contemplação das coisas celestes e invisíveis e vos fazer subir,
pouco a pouco, até à oração ardente e inefável, que é conhecida
de tão poucas pessoas... Que todos os dias o sono vos feche os
olhos na consideração destas santas palavras, até que a vossa alma
esteja delas tão possuída que delas se lembre durante a noite.
Escreveu Louis-Claude de Saint-Martin: A oração é a respiração
da nossa alma. Podemos nós conceber um ser que permaneça vivo
respirando apenas uma hora por ano, por mês ou por semana?
A ORAÇÃO INSISTENTE
Tal como é lembrado no episódio de Jacob lutando com Deus até
que este o abençoe (Gn 33, 27), Cassiano sabe que obtemos o que
desejamos Dele importunando Deus, que nos exorta a pressioná-
lo pelas nossas violências20. Porque a paixão foi dada aos
violentos para que dela se sirvam para forçar as portas do Reino.
Estamos no Oriente, junto de Padres que sabem que Deus é
oriental, e que Daniel orou e insistiu vinte e um dias antes de ser
atendido (Dt 10, 1).
Repitamos: Deus gosta de ser importunado. E para Ele uma prova
de amor e de fidelidade. Deus não se parece com o homem
ocupado que diz no seu escritório "O vosso tempo é precioso, o
nosso também". Voltemos a ler Lc 11, 5-9 à luz da oração
insistente!
Assim que nos sentirmos contrariados nas nossas acções, ou que
as nossas forças diminuem, temos o direito de interpelar com as
suas próprias palavras aquele que nos disse que queria fundar a
sua Igreja sobre nós: temos o direito de o lembrar que as suas
palavras não podem passa?"21 O próprio Cristo nos recomenda
esta atitude: Contou-lhes ainda uma parábola para mostrar a
necessidade de orar sempre, sem jamais esmorecer. "Havia numa
cidade um juiz que não temia a Deus e não tinha consideração
para com os homens. Nessa mesma cidade, existia uma viúva que
vinha a ele dizendo: "Faz-me justiça contra o meu adversário!
Durante muito tempo ele se recusou. Depois pensou consigo
mesmo: Embora eu não tema a Deus, nem respeite os homens,
contudo, já que essa viúva está me dando fastio, vou fazer-lhe
justiça, para que não venha por fim esbofetear-me. E o Senhor
acrescentou: Escutai o que diz esse juiz iníquo. E Deus não faria
justiça a seus eleitos que clamam a ele dia e noite, mesmo que os
faça esperar? Digo-vos que lhes fará justiça muito em breve... (Lc
18, 1-8).
ORAÇÕES CURTAS
É dito nas Instituições de Cassiano: Os mestres da vida espiritual
pensam que mais vale fazer orações curtas e repeti-las mais vezes.
Multiplicando essas orações, ligar-nos-emos mais intimamente a
Deus, e, tornando-as curtas, evitaremos melhor as flechas que o
demónio lança, sobretudo nessas ocasiões, contra nós22. Assim,
diz ele noutro texto, devemos fazer orações curtas mas frequentes,
com medo de que, se forem longas, o inimigo tenha tempo de
lançar algumas distracções no nosso coração23. Segundo esses
mestres, a oração breve é mais facilmente pura, porque é isenta de
distracções. E para chegarmos à união com Deus, eles achavam
muito eficazes esses rápidos lampejos que partiam do coração.
Recuai tão atrás quanto quiserdes, encontrareis Set, o substituto
de Abel, que foi o primeiro a invocar o nome de lahweh (Gn 4,
26). Isaac fez o mesmo (Gn 26, 25). Encontrareis também os
Apóstolos, tal como nos relatam Clemente de Alexandria,
Cassiano ou João Crisóstomo: Dizei em vós mesmos: Tem
piedade de mim, meu Deus e assim tereis acabado a vossa oração.
Santo Agostinho repetia "Deo gratias" e falava de orações
frequentes mas muito breves e como que rapidamente lançadas
(quodammodo jaculatas), o que deu srcem à expressão oração
jaculatória. Ignácio utilizava O Beata Trinitas enquanto que
Francisco Xavier preferia O Sanctissima trinitas. Um rico
habitante de Assis convidou São Francisco a passar a noite na sua
casa para poder espiar as suas orações. Ouviu-o repetir com fervor
toda a noite estas palavras: Meu Deus e meu Tudo. Não -há
nenhuma necessidade de variar as invocações, pois: As árvores
que são muitas vezes transplantadas não têm raízes24. Uma única
frase de adoração chega para que a vontade mantenha o fogo de
amor, sem nenhum esforço mental. Muito pelo contrário, o
entendimento virá, com o seu automatismo - como em todos os
nossos exercícios mentais, desde a linguagem à escrita, do cálculo
à música - em socorro da vontade se esta se desviar por um
instante do seu Deus. O gesto perfeito só surge após o
esquecimento, ao ponto que aquele em quem este acontece se
espanta. A oração deve antes assemelhar-se ao chilreio simples e
repetitivo duma criança do que a um discurso sábio e subtil.
A oração perpétua não é uma máquina para dizer a mesma coisa o
maior número de vezes possível no mais curto espaço de tempo. É
um meio de permanecer em Deus, com toda a serenidade, sem
imagens e sem conceitos, e de lutar contra as distracções, com o
menor esforço possível. Ambrósio de Milão chama ao verdadeiro
silêncio
Gregórionegotiosum silentiumconceito
de Niceia, qualquer ou silêncio activoa Deus,
relativo e criativo. Para
a fortiori
os seus nomes, é um simulacro, um ídolo. Para ele, há apenas um
nome para expressar a natureza divina. É a admiração que invade
a alma quando esta se une a Deus. Trata-se duma experiência.
Teófano explica que a força desta oração não reside nas palavras.
As palavras podem ser modificadas. O poder da evocação, diz ele,
reside na disposição do espírito e do coração daquele que busca,
na constatação do seu estado de decadência face ao Cristo no seu
estado de perfeição. Este esforço de constatação activa simultânea
abre o coração à recepção do fogo.
É a oração mental sem o ruído das palavras, desconhecida até à
época de Samuel (1 S 1, 12). Pode ser dita mentalmente
demasiado depressa; nunca pode ser dita demasiado lentamente.
O ritmo que convém a cada um apenas pode ser encontrado por si
próprio. Esta oração faz com que o espírito, como que admirado,
retenha os sentidos suspensos pois a oração não é perfeita, se o
homem tiver consciência de si próprio e se aperceber de que está
a orar25. A esse nível, a oração torna-se apenas um murmúrio
mental, ao passo que a extremidade da alma se encontra, por uns
instantes, no silêncio de Deus. Isto traduz-se pela sensação duma
descida de Deus no mais profundo da alma, que os místicos
situam no seu peito, no coração, e simultaneamente por um voo
do espírito que passa as nuvens até repousar no seio do Pai. Na
prática da oração perpétua, o homem contenta-se com uma ascese
intelectual pela vontade. Apenas uma coisa lhe é pedida: ser um
homem de desejo. E qual é o monge sábio e fiel, que conservou
sem deixá-lo extinguir este ardor e que, até ao fim da sua vida não
deixa de reavivar cada dia este fogo no fogo, este ardor no ardor,
este zelo no zelo e este desejo no desejo?26. A sua oração deve
exprimir o seu verdadeiro querer e não um capricho do momento.
Ele deve ser capaz de continuidade, de liberdade, capaz de se
libertar das múltiplas servidões humanas: o tabaco, ou lembranças
obcecantes, o hábito do devaneio ou das palavras inúteis, as
tentações com a inquietude do amanhã: As mãos ao trabalho, o
intelecto com Deus, lembra Teófano. Quanto ao resto, é Deus que
faz tudo, A oração, é Deus que faz tudo em tudo27. Quando o
nosso espírito e o nosso coração estão assim ligados, Deus une-se
a nós, o Nome é trazido ao coração. Deus preenche o homem, seu
templo, transmutando-o, cristificando-o. Ele ora nele duma forma
impossível de descrever. É a experiência de Paulo: E porque sois

filhos, enviou
que clama: Deus
Abba, Pai!aos
(Glnossos corações
4, 6). Ou ainda: oJáEspírito
não sou do seu vivo,
eu que Filho,
mas o Cristo que vive em mim (Gl 2, 20). Os Padres oravam de
pé, as mãos estendidas em direcção ao céu, na atitude clássica do
orante das civilizações mediterrânicas. Neste aspecto, eram
duma outra têmpera do que nós. Pragmaticamente, Richard
Rolle observa que: O alto amor do Cristo revela-se de três
maneiras: pelo calor, a doçura e o canto, e estou convencido que
estes três não podem subsistir muito tempo se não observarmos
um grande repouso... assim escolhi ficar sentado para a
contemplação. Sei muito bem porquê: se um homem permanece
de pé ou caminha durante muito tempo, o seu corpo cansa-se e a
sua alma perturba-se e de algum modo se aflige sob o fardo; deixa
assim de estar na alta quietude, que parte para a perfeição. Mais
tarde, os monges deixaram de temer orarem sentados, ou até
mesmo deitados como os Cartuxos. O que é uma vantagem. É
Francisco de Osuna (1497-1542), que revelou Teresa de Ávila a
ela própria, que no-lo diz. No seu Tercer Abecedario, publicado
em Toledo em 1527, ela trata das relações entre a oração e o sono:
É coisa certa e experimentada por todos aqueles que se entregam
à oração de recolhimento que quanto mais tiverem orado antes do
sono, mais depressa regressarão à vigília. E também acontece
outra coisa apenas crível: antes de despertar, a alma regressa à
oração; por vezes acontece que é a ela que cabe decidir de acordar
ou não, e isto porque começar a despertar interiormente é bem
diferente do que despertar exteriormente. Então, a alma está em si
própria como a água viva sob a camada de gelo, ou como a
galinha que vive no ovo antes de ter quebrado a casca ou ainda
como o profeta Jonas que estava no ventre da baleia e daí
conseguia orar ao Senhor. Eu dormia, mas o meu coração velava
(Ct 5, 2).
A tradição pura foi transmitida pelas Rússias e popularizada pelos
Relatos dum peregrino russo*. O texto foi publicado pela primeira
vez em Kazan, em 1870, e depois em 1881. Depois da revolução
de 1917, os Relatos foram impressos em Paris, em 1930. São
recordações autênticas, postas no papel por um religioso que
provem do meio de Optino, uma ermida solitária que foi
frequentada sucessivamente por Gogol, Dostoievski, Vladimir
Soloviev, Leão Tolstoi e muitos outros. Para se guiar, o nosso
peregrino tem apenas dois livros: a Bíblia e a Filocália, uma
recolha de textos que remonta aos Padres do Deserto, aos monges
do Sinai e do Monte Atos. O peregrino, um camponês recebe do
seu pai espiritual a oração: "Senhor Jesus Cristo, tem piedade de
mim" (Lc 18, 13 e 18, 38), para repetir 3000 vezes por dia. Pôs-se
à obra. Durante dois dias, tive algumas dificuldades, depois
tornou-se tão fácil que quando eu não dizia a oração, sentia o
desejo de retomá-la e ela corria com facilidade e ligeireza, sem as
dificuldades do início. Depois, durante uma semana permaneci
numa cabana solitária recitando todos os dias as minhas 6000
orações sem me preocupar com mais nada e sem ter que lutar
contra os pensamentos... O que aconteceu? Habituei-me tão bem à
oração que se eu parasse por um curto instante, sentia um vazio,
como se tivesse perdido alguma coisa; assim que retomava a
minha oração, sentia-me de novo leve e feliz. Quando encontrava
alguém, não tinha vontade de falar, desejava apenas estar só e
recitar a oração, tão habituado me sentia ao fim de uma semana.
Depois passou para 12000: Passei todo o verão a recitar
incessantemente a Oração de Jesus e estive perfeitamente
tranquilo. Durante o meu sono, sonhava por vezes que recitava a
oração. E durante o dia, se acontecesse encontrar pessoas,
pareciam-me tão amáveis como se fossem da, minha família. A
oração passou depressa "para o seu coração", tendo apenas que
contar as batidas deste para verificar o seu número.
Esta oração não é apenas oriental ou eslava. Praticando a oração
contínua, Richard Rolle (1290-1349) explica-nos que ao fim de
três anos, menos três ou quatro meses, as portas do céu se abriram
para ele: Estava sentado numa capela e enquanto me encantava
com a doçura da oração, senti de repente um calor alegre e
desconhecido. Mas antes fiquei perturbado, interrogando-me
durante muito tempo sobre o que isso poderia ser. Estava certo de
que isso não vinha duma criatura mas sim do meu Criador, pois
tornava-se cada vez mais quente e cada vez mais alegre. Na
verdade, meio ano, três meses e algumas semanas passaram neste
calor odorante, sensível e inesperado até que eu recebesse o som
celeste e sobrenatural, o qual pertence ao carinho da oração
perpétua e à doçura da melodia desconhecida, pois ela apenas
pode ser conhecida ou ouvida por aquele que, estando purificado
e separado da terra, a pode receber". "Enquanto estava sentado
nessa mesma capela, à noite antes da ceia, cantei os Salmos tanto
quanto me foi possível. Ouvi por cima da minha cabeça como que
um barulho de pessoas que liam, ou antes, cantavam. Continuei a
orar ao céu com um desejo ardente e, de repente, não sei como,
senti em mim o som do canto e recebi uma melodia que parecia
celeste e que permaneceu em mim no meu espírito. Então, desde
logo, o meu pensamento foi transformado num canto de louvor
contínuo. Tinha estes louvores na minha meditação e enquanto
recitava as minhas orações e os meus Salmos, murmurava o
mesmo som. Desde então, numa abundância de suavidade
interior, expandia-me cantando o que antes apenas recitava em
privado, quando me encontrava a sós com o meu Criador. O
eremita de Hampole parece ter sido conduzido, por uma
iluminação, à oração perpétua, ainda que já praticasse a "oração
ao Nome de Jesus"28. Penso que nenhum homem pode receber
(uma tal graça) se não amar particularmente o Nome de Jesus e o
honrar de tal modo que nunca o deixe sair do seu espírito, senão
enquanto dormir. Estou convencido de que aquele a quem é dado
fazer isto chegará ao mesmo resultado. Resume a sua experiência

mística
fenómenosnaprovocados
fórmula: pela
Calor, Dulçor,
oração Canor
perpétua: traduzindo
O Fogo, a Doçuraose
os Cantos dos Anjos que permitem entender a srcem
sobrenatural dos cantos gregoriano e bizantino.
Na mesma época, no Sec. XIV, apareceu The Cloud of
Unknowing (a nuvem do não saber) escrito por um místico não
identificado. Para ele, a oração resume-se a uma só sílaba:
"Deus", "Fogo", "Falta" lançada com força através da nuvem de
desconhecimento que nos separa do céu. A oração do humilde
penetra as nuvens onde Deus habita (Eclo 35, 17).
O LUGAR DO CORAÇÃO
O homem do passado considerava o coração, e não o cérebro,
como a sede do pensamento. Jesus repete-o. Mas trata-se do
coração entendido como centro do peito, e não do órgão. O
homem estava consciente dos pensamentos que tocavam no
diafragma ou nas entranhas. A palavra grega phren, que significa
espírito, é a raiz da palavra diafragma. O "coração" constitui o
centro do homem. Ele é a sede das violentas conflagrações entre
toda a espécie de desejos que nos obrigam a fazer o que não
queremos. É também aí que se pode abrir um céu interior mais
vasto que o universo pois a transcendência enche-o com a sua
irradiação: O país espiritual do homem que tem a alma purificada
está dentro dele. O sol que brilha nele é a luz da Trindade... ele
admira
esplendora beleza
solar. Éque
aí ovêReino
nele,decem vezes
Deus que mais luminosa dentro
está escondido que o
de nós, segundo a palavra do Senhor29. O coração profundo é
como uma espécie de "supra-consciente" que aspira a se abrir
sobre o abismo da luz divina. O coração é o corpo no mais
profundo do corpo30, isto é o germe do corpo de glória:
Apoiando a tua barba, contra o teu peito, dirige o olho do corpo
ao mesmo tempo que o teu espírito sobre o centro do teu ventre,
isto é, o teu umbigo, comprime a aspiração de ar que passa pelo
nariz (...) e examina mentalmente o interior das tuas entranhas na
busca do lugar do coração, aí onde todos os potências da alma
gostam de se reunir. (...) Assim que o espírito tiver encontrado o
lugar do coração, ele verá o firmamento que aí se encontra...31. A
Regeneração consiste em fazer desaparecer a casca que mantém
preso o coração divino. Devemos aprender a descer no nosso
coração, a penetrar progressivamente na espessura de Deus. A
fórmula de invocação mais usada neste processo é Senhor Jesus
Cristo, tem piedade de mim, pecador no sentido de "toma-me na
tua presença misericordiosa". Esta fórmula pode ser:
-Quer, como recomenda Nicodemos o Hagiorita32, pronunciada
por inteiro, sobre a inspiração que é seguida da retenção do sopro
em que se estabelece o silêncio, a expiração sendo rápida para não
distrair a atenção pois é pela inspiração (e a retenção) que o
intelecto regressa à sua própria profundeza;
- Quer, como era explicado no século passado no Peregrino
Russo33, sincronizado sobre a inspiração com "Senhor Jesus
Cristo, Filho de Deus", e depois na expiração com "tem piedade
de mim, pecador"; sincronização posta ao serviço duma outra,
fundamental, que visa o ritmo do coração: cada palavra da oração
é pronunciada sobre uma batida do coração. Estas duas
sincronizações só se podem harmonizar se abrandarmos a
respiração, de maneira a que a duração da expiração corresponda
pelo
Jesus menos
Cristo, atem
três batidasde (para
piedade mim, apecador")
fórmula ou
abreviada: "Senhor
a quatro ou cinco
(para a fórmula acima indicada).
Pouco a pouco, a oração torna-se "espontânea", "ininterrupta", e o
coração, que primeiro estremece furtivamente sob os toques dum
fogo de extrema doçura, inflama-se, transforma-se em luz e num
olho capaz de ver a luz. A invocação, já sem ser pronunciada,
identifica-se às batidas do coração. Ao acto de oração sucede-se
um estado de oração: Quando o Espírito estabelece a sua morada,
num, homem, este não pode mais parar de ora?] o Espírito não
cessa de orar nele. Que durma ou vigie, a oração não se separa da
sua alma. Enquanto ele bebe, come ou quando está deitado ou a
trabalhar, o perfume da oração exala da sua alma. Doravante,
eleja não ora em momentos determinados, mas sim todo o tempo.
Os movimentos da inteligência purificada são vozes mudas que
cantam, em segredo, uma salmodia ao invisível34.
CALOR E FOGO (O DESEJO)
O estado natural do nosso coração é estar inflamado. Ora, no
homem actual, adormecido, "caído", mas que se considera
normal, o coração já não arde. Na melhor das hipóteses, o fogo
permanece tranquilamente sob as cinzas. A fricção que se produz
na vida corrente não é suficientemente intensa para que surja um
fogo interior susceptível de transfigurar todo o ser, que lhe
permita vencer a morte. Mas é amplamente suficiente para esgotar
totalmente a reserva das forças vitais e trazer a morte.
Ora, o coração deve arder, e logo, inflamar-se. Um calor efectivo
nasce em nós quando a fricção interior se torna suficientemente
intensa. Isto produz-se da mesma forma como se produz o calor
que surge da fricção de dois pedaços de madeira seca. O facto de
sentir este calor indica que nos encontramos no bom caminho. A
doçura que ele traz não é saciável. Este calor pode ser favorecido
pelas circunstâncias, por exemplo quando o discípulo,
confrontado com um meio hostil, procura constantemente a
atitude justa com que deve responder. Mas este calor pode
também ser provocado pela oração. A fricção vem então no meio
dum acto de presença, da confrontação consciente entre os fogos
celeste e terrestre. A força da oração depende da intensidade do
sentimento que nasce desta oposição, sentida graças ao carácter
dualista do nosso centro emotivo. O orgulho, ou mesmo apenas
um rasto de orgulho, torna esta confrontação inoperante: Deus
resiste aos soberbos mas concede a sua graça aos humildes (Tg 4,
6 e lPd 5,5); "Pois todo aquele que se exalta será humilhado, e
quem se humilha será exaltado (Lc 14, 11).
É certo que não temos a iniciativa da descida do fogo celeste. Mas
para que o processo funcione, o homem deve estar animado pelo
desejo, um fogo terrestre que surge das suas entranhas. Ele deve
ser movido pelo maior ardor (do latim ardere, queimar, estar em
brasa), pelo mais vibrante entusiasmo (do grego En Theos, estar
em Deus, e depois do latim entheus, cheio de um deus), pelo
aguilhão do desejo, por um erotismo divino. Ele deve ser,
utilizando a expressão de Louis-Claude de Saint-Martin, um
"homem de desejo". Aqui ressoam as palavras do Apocalipse:
Conheço a tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio
ou quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou
para te vomitar de minha boca. (3, 15-16). O coração inflama-se
por si próprio quando a fricção liberta um calor suficientemente
forte, como no caso dos dois pedaços de madeira seca. É um
"fogo místico". Daí se expande pelas veias. Boris Mouravieff
recorda esta máxima tradicional: "quando o fogo se acende no
sangue, a própria composição do sistema nervoso muda de
essência". E o sangue torna-se "azul"35.
O FIM DAS COISAS
Assim que a oração perpétua se tornou para a alma tão natural
quanto a respiração, o homem pode caminhar sem muito esforço
na presença de Deus, como Abraão (Gn 17, 1). E se caminhar
assim com Deus, colocando-se sempre diante da sua Face, ele
será "arrebatado" como Henoc (Gn 5, 24; Eclo 44, 16 e Hb 11, 5)
ou Elias (2Rs 2, 11 e Eclo 48, 9). Então .. .cumprir-se-á a palavra
da Escritura: A morte foi absorvida na, vitória. Morte, onde está a
tua vitória? Morte, onde está o teu aguilhão? (ICo 15, 54-55).
b. As técnicas psicossomáticas
Preparar o vaso
Não se põe vinho novo em odres velhos; caso contrário, estouram
os odres, o vinho se entorna, e os odres ficam inutilizados. Antes
o vinho novo se põe em odres novos; assim ambos se conservam,
(Mt 9, 17)
TORNAR-NOS APTOS A RECEBER
Elevámo-nos até ao mais alto grau do homem-animal refinado.
Não produzimos a deificação, pois ela está acima da nossa
natureza. Assim, para receber eficazmente o fogo regenerador, o
homem que recorre aos Mistérios deve manter-se como um vaso
capaz de o receber. Um vaso aquecido lentamente poderá receber
água quente sem estourar.
AS PAIXÕES VIRADAS DO AVESSO
Para os Padres, a ascese consiste na aquisição duma energia nova
e melhor que permitirá ao corpo, tal como ao espírito, de
participar na deificação. Gregório Palamas afirma que se o corpo
deve participar com a alma noS bens inefáveis (e futuros), é certo
que
corpoeletem
deve participar agora
a experiência na medida
das coisas do quando
divinas possível...
as Pois
forçaso
passionais da alma não são mortificadas mas sim transformadas e
santificadas. Assim, virar as paixões do avesso consiste em
transformar as paixões em virtudes e não em tentar suprimi-las, o
que acabaria por reforçá-las. Trata-se de repor o equilíbrio da
alma humana, de restabelecer as forças psíquicas no seu
funcionamento natural. Não há lugar a mortificações, mas sim a
uma justa reorientação do conjunto do mecanismo psíquico.
Assim, o amor por si próprio tornar-se-á em amor pelos outros, o
desejo num ímpeto direccionado para Deus, a cólera numa santa
cólera, a agitação numa acção em direcção à verdade. Tudo
participa do Bem, quer seja orgulho ou ciúme. Repressão ou
recalcamento não estão no programa, pois apenas a integração e a
metamorfose são frutuosas. Não se trata de destruir o vaso, mas
de lhe devolver a sua função.
Nas condições de trabalho do convento, nas células, e ainda mais
no deserto, em solidão, os Padres propõem uma via. Para alem da
frequência do ofício, os seus preceitos podem ser resumidos em
alguns pontos:
- A abdicação total da vontade em favor do mestre, ao ponto
recomendado por João Clímaco: Se algum pensamento de
julgamento ou de condenação te vier à mente, foge dela como da
fornicação. Jamais deixes a essa serpente qualquer liberdade de
acção, qualquer lugar, qualquer entrada, qualquer iniciativa; mas
diz ao dragão: 'O enganador, não me cabe julgar o meu superior,
mas a ele de me julgar. Não fui eu que fui nomeado como seu juiz
mas ele o meum. Isto exige a pobreza de espírito que, convidando
ao total largar das amarras, permite o nascimento de Deus em nós.
"Felizes os corações puros, pois verão a Deus (Mt 5,8);
- O jejum;
- O silêncio absoluto;
- O domínio da energia sexual;
- O domínio do corpo: luta contra o sono e a fome, genuflexões,
prosternações, respiração controlada.
Através destas práticas, sobretudo graças ao silêncio, o monge
fecha as torneiras pelas quais, de outra forma, teria sido
desperdiçada a sua energia psíquica. Daí a acumulação de grandes
reservas assim poupadas. Desta forma fortalecido, o discípulo
pratica a Oração de Jesus tal como ela é descrita no capítulo
anterior. Se ele conseguir, através do treino, respeitar as
prescrições enumeradas, a sua oração adquire uma força
insuspeita. E, tal como uma flecha flamejante, ela fura a nuvem
de desconhecimento.
Este método é dito "real" porque é directo, forte e espontâneo.
Não exige nenhuma erudição prévia que, nestas condições, não
serviria para nada. Ele resume-se em duas palavras: arder e servir.
Certamente, é inoperante e até nocivo nas condições da vida e de
trabalho no mundo actual. Mas há alguns aspectos do jejum, do
silêncio, do respiro e do desejo dos quais qualquer pessoa pode
tirar proveito.
O jejum
Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda
a superfície da terra, e todas as árvores que dão fruto que dão
semente: isso será o vosso alimento.
(Gn 1, 29)
NA ORIGEM, UM ENVENENAMENTO
Certamente, os Padres da Igreja entenderam os laços profundos da

nutrição comdas
alimentares, a vida psíquica
formas mais ebanais
espiritual. Os comportamentos
até aos comportamentos
extremos como a bulimia e a anorexia, são significativos quanto à
relação que o homem mantém com o seu corpo, e logo com o
mundo e com Deus. Absorver pela boca, devorar, é o símbolo
fundamental de toda a captação (P. Regamey).
A PASSAGEM AO ALIMENTO
Existe uma ligação entre a alimentação e a queda do homem,
como repararam aqueles médicos que colocaram a verdadeira
questão: como é que, concretamente, um ser imortal, imagem e
semelhança de Deus, se pode tornar mortal e sujeito à morte?
Vejamos como é que Eckhartshausen apresenta a sua resposta.
Segundo ele, Adão envenenou-se de tal maneira que o seu ser
imortal se refugiou no interior da sua pessoa, de tal forma que o
aspecto exterior foi recoberto com um elemento mortal. O corpo
inorgânico de luz escureceu, o que obrigou a matéria a fechar-se
nela própria de tal maneira que o corpo de luz se materializou e se
tornou divisível. A energia luminosa que estava em Adão foi
morta. O corpo celeste tornou-se num corpo de carne e de sangue,
a forte energia adâmica foi substituída por ossos. Assemelhou-se
a um ferro incandescente que arrefeceu. No seu Aurum Potabile,
o médico astrólogo Nicholas Culpeper (1616-1654) constata: Eles
sabem que o jardim do Éden, no qual Adão foi criado... era feito
de elementos puros, não corrompidos, igualmente e
harmoniosamente proporcionados, iguais na sua mais alta
perfeição. E que aí onde o homem vivia, toda substância era pura,
feita de elementos puros, e não de elementos “elementados”
como o resto do mundo, que o Senhor tinha feito para que as
bestas aí vivessem. E, se não havia corrupção no jardim, como
poderia haver a mortalidade?... Entendemos que os antigos
filósofos esclareceram a causa dessa mudança; como é que o
homem, sendo imortal, veio a revestir a mortalidade. Eis o que
eles encontraram: após o homem ter pecado, Deus conduziu-o ou
pô-lo fora do Jardim para que vivesse entre os animais no mundo
corruptível que era composto, não de elementos puros, mas de
elementos “elementados”, desigualmente proporcionados em
matéria de calor, de frio, de secura e de humidade. Estando aí,
vendo que não poderia viver sem se alimentar, foi forçado a
procurar o seu alimento na alimentação corrompida, através da
qual os elementos puros de que era feito foram infectados

gradativamente
incorrupção para a(ainda queatélentamente),
corrupção, declinando
que por fim, uma da
qualidade37
excedesse a outra no seu corpo, tal como no alimento que tomava
para sobreviver. Assim, o seu corpo tornou-se sujeito à corrupção,
e depois da corrupção tornou-se sujeito à enfermidade e à doença,
e depois da doença, tornou-se sujeito à morte.
O QUE DEVE O HOMEM COMER?
No Jardim do Éden, o Eterno havia prescrito um certo regime
alimentar
que estão ao homem:
sobre toda aEusuperfície
vos dou todas as ervas
da terra, queasdão
e todas semente,
árvores que
dão frutos que dão sementes: isso será o vosso alimento (Gn 1,
29). É apenas após o dilúvio que o homem se alimenta de carne,
sem sangue (Gn 9, 3-4). Até ao dilúvio, homems e animais vivem
em paz sem se devorar mutuamente. Depois, a ética alimentar
degenerou numa infinidade de prescrições esparsas e
inverosímeis. Nas Stromates VII (Cap. VI), Clemente de
Alexandria sugere que Sem dúvida que um gnóstico se absterá de
comer carne.... Testemunhando o esforço do monge em recrear o
Paraíso, o consumo de carne é proibido nos mosteiros ortodoxos.
Os laicos abstêm-se dela durante a Quaresma. Tal como o escreve
André Borrely, imaginar-se-á Francisco de Assis, o Cura DArs,
São Serafim de Sarov ou São João de Cronstadt degolando um
carneiro ou um coelho, ou ainda dar um tiro no crânio dum
cavalo?
A ABOLIÇÃO DAS PROIBIÇÕES ALIMENTARES
Se as proibições alimentares do Antigo Testamento foram
abolidas pelo Novo, o jejum é todavia frequentemente
mencionado na Bíblia. Vários jejuns longos são aí relatados, tais
como o de Moisés, quarenta dias (Ex 24, 18 Ex 34, 28); o de
Elias, quarenta dias (lRs 19, 8); David, sete dias (2Sm 12, 20);
Jesus, quarenta dias (Mt 4, 2); Lucas, eu jejuo duas vezes por
semana (Lc 18, 12); um jejum em toda a Judeia (2Cr 20, 3). A
Bíblia previne contra o jejum feito apenas com o objectivo da
notoriedade. Aconselha àqueles que jejuam a não sucumbirem às
atitudes tristes (Mt 6, 16), mas, pelo contrário, a encontrarem
prazer no jejum e a cumprirem o seu trabalho (Is 58, 3), devendo
alguns jejuns serem jejuns de alegria (Zc 8, 19). Os Evangelhos
afirmam que, juntamente com a oração, o jejum é a arma suprema
contra os demónios; Esta espécie não pode sair senão pelo jejum e
pela oração (Mc 9, 29). Na cristandade latina, os quatro jejuns,
chamados de "Quatro Tempos", repartem o ano em quatro
estações: o Inverno, a Primavera, o Verão, o Outono. Existiam
outrora em Bizâncio.
O jejum prepara o corpo tornando-o mais leve e obriga o homem
a constatar nele próprio o funcionamento das suas paixões. Tal
como o trabalho, a vigília e a continência, tem por objectivo fazer
fendas na carapaça humana pelas quais o fogo celeste pode
penetrar. E acima de tudo, Adão comeu o fruto proibido. Aquele
que se abstém de comer apaga simbolicamente o acto nele.
O silêncio
"Uma voz, um silêncio subtil"38 (1 Rs 19, 12)
Saber calar-se para escutar

O DOMÍNIO DA LÍNGUA
Todos os ensinamentos espirituais autênticos apresentam a
exigência do silêncio; silêncio exterior e silêncio interior. Fazer
um vazio em si próprio, isto é tornar-se uma taça virginal, é uma
condição capital. Para o homem comum, o silêncio é uma tortura
insuportável. Apesar de prometer o silêncio absoluto sobre o que
viu e ouviu, ele falará. Ora, o homem que fala demais, tanto para
os outros como para si próprio, é apenas o altifalante daquilo que
não digeriu psiquicamente. Ele matou a profundeza nele. As
palavras cristalizam as ideias. Calar-se torna-nos atentos e
favorece o discernimento. Nunca haveis visto um mestre loquaz:
Aquele que não peca no falar é realmente um homem perfeito,
capaz de refrear todo o seu corpo. Quando pomos freio na boca
dos cavalos, a fim de que nos obedeçam, conseguimos dirigir todo
o seu corpo. Notai que também os navios, por maiores que sejam,
e impelidos por ventos impetuosos, são, entretanto, conduzidos
por um pequeno leme para onde quer que a vontade do timoneiro

os dirija.doAssim
membro corpo,também
se jactaadelíngua, embora
grandes feitos!seja umcom,o
Notai pequeno
um
pequeno fogo incendeia uma floresta imensa. Ora, também a
língua é um fogo. Como o mundo do mal, a língua está posta
entre os nossos membros maculando o corpo inteiro e pondo em
chamas o ciclo da criação, inflamada como está pela geena. Com
efeito, toda espécie de feras, de aves, de répteis e de animais
marinhos é domada e tem sido domada pela espécie humana. Mas
a língua, ninguém consegue domá-la: ela é um mal irrequieto e
está cheia de veneno mortífero (Tg 3, 2-8).
A tradição prescreve o silêncio, mas seria errado ver aí um
verdadeiro voto de silêncio. Calar-se quer dizer falar dentro de
limites bem definidos. O homem deve dizer o que deve, quando o
deve e a quem deve.
Na prática, a regra do silêncio é apenas obrigatória no princípio
do treino, salvo talvez nos meios monásticos. Em breve, e em
virtude dos seus esforços conscientes, o Homem de Desejo
progride. Ele constata a futilidade das relações mundanas.
Descobre que o silêncio exterior é uma preparação ao silêncio
interior. Se observarmos as pessoas que participam numa
conversa, constatamos que, em vez de escutarem para si próprias
e de falarem para os outros, cada um fala para si e escuta os
outros apenas por boa educação. Cada um quer colocar as suas
ideias e procura a ocasião propícia para o fazer. Enquanto
esperam que esta se apresente, escutam com mais ou menos
paciência o que é dito. Uma conversa conduzida desta maneira é
um diálogo de surdos, do qual, duma maneira geral, não se
aprende nada. Cada um dos participantes, no momento da
separação, leva a bagagem com que veio, com a diferença, no
entanto, de que este tipo de conversa provoca uma perda
considerável de energias subtis.
O SILÊNCIO DA ALMA
O homem pode aparentemente viver na solidão, abster-se de
proferir qualquer palavra e estar interiormente inquieto e agitado.
Citemos as palavras de Abba Poemen: Há um homem que parece
calar-se, mão o seu coração condena os outros; um homem destes
fala incessantemente. Mas há um outro que fala de manhã à noite,
e no entanto guarda o silêncio, isto é, não diz nada que não tenha
utilidade para os outrosm. Numa das suas respostas, João de Gaza
distinguiu claramente silêncio interior de silêncio exterior. Um
irmão que vivia em comunidade achava que a sua tarefa de
carpinteiro do mosteiro era uma fonte de perturbação e de
distracção. Pediu para se tornar eremita a fim de praticar o
silêncio de que falam os Padres. João recusou este pedido: Tal
como
falam aosmaioria,,
Padres.tuOnão percebes
silêncio nãoo que significa
consiste em oguardar
silêncio adeboca
que
fechada. Um homem que pronuncia dezenas de milhar de palavras
pode permanecer no silêncio ao passo que aquele que pronuncia
uma palavra inútil deve lembrar-se que infringe o mandamento do
Senhor: "No dia do Julgamento, prestarás contas de cada palavra
inútil saída da tua boca"40.
O SILÊNCIO OBJECTIVO

Este discernimento não se resume a separar as ideias justas ou


boas das ideias erróneas ou más. Visa reconhecer a srcem, a
natureza e a finalidade dos germens "passionais", sugestões
fugazes, impulsões obcecantes subidas do subconsciente. Só deste
modo é possível permanecer diante de Deus com a mente no
coração e ficar assim na Sua presença incessantemente, dia e
noite. O neófito deve saber calar-se com a boca e com os
pensamentos, quer durma, quer vigie. Tal como Ulisses tapando
as orelhas para não ceder à sedução das sereias, a sua alma deve
permanecer insensível a todas as vozes e a todos os rumores da
grande sugestão humana. Por esta ascese, a alma purificada deixa
de ser um campo de batalha entre os pensamentos conflituais que
agitam o homem comum. Pouco a pouco, o espaço entre os
pensamentos alarga-se. Estabelece-se uma divisão entre a
consciência e a agitação mental. Torna-se possível ouvir a voz
interior que falava sem ser escutada, pois o homem profano presta
apenas ouvido ao seu próprio chilreio.
O activismo é uma outra forma de ruído. Tal como a tagarelice,
pode perturbar o silêncio no qual Deus se faz ouvir pela alma. O
activismo coloca, nos dias de hoje, um problema ainda mais
delicado que o da palavra. Pela dispersão das energias, pela
identificação com aquilo que se desenrola à nossa volta, pelas
preocupações que o acompanham, o activismo destrói o
recolhimento. Torna
a vida quotidiana a oração
ao ponto impossível.
de não A actividade
deixar lugar ultrapassa
para a oração. Este
activismo encobre-se com muitas e nobres desculpas:
necessidades da vida, deveres urgentes, trepidação da ambiência
em que este se insere, alegria da acção que dele brota e se
expande, etc.
O SILÊNCIO ESPIRITUAL
Mas este silêncio ainda é um silêncio subjectivo, que consiste em
eliminar progressivamente a linguagem e os conceitos. Ele deve
acabar num silêncio objectivo, que é o que qualifica a própria
experiência de Deus. Para Hesíquio de Batos (Sinai), O silêncio, é
ter ultrapassado completamente todos os discursos, é a liberdade
em relação a todas imagens, sensíveis e intelectuais: a alma deve
estar totalmente isenta de imagens41. O "retorno em si próprio" é
descrito por Basílio o Grande e Isaac o Sírio: Quando o espírito já
não se dissipa entre as coisas exteriores e já não se espalha pelo
mundo por meio dos sentidos, retorna a si próprio e efectua pelos
seus próprios meios a ascensão em direcção ao pensamento de
Deus42. Quando Iawheh se dirige a Elias, o que ouve ele depois
do vento e do fogo, que não são mais do que sinais precursores?
Uma voz, um silêncio subtil (1 Rs 19, 12). É a mais elevada e
rigorosa expressão que pode ser dada do encontro com Deus. É do
domínio da audição, mas está para além dos sentidos auditivos:
Está em paz com a tua própria alma e assim o céu e a terra estarão
em paz contigo. Penetra com fervor na câmara dos tesouros
dissimulada na tua alma e descobrirás assim as coisas que
permanecem nos céus, pois existe apenas um único acesso para
ambos. A escada que conduz ao Reino está escondida na tua alma.
Foge do pecado, mergulha em ti mesmo, e descobrirás na tua
alma os degraus com que iniciarás a tua ascensão*3.
É no centro da alma que Deus vive, age e realiza as operações
divinizantes. Que importam
desde que o silêncio o barulho
reine nestas e aOactividade
regiões! exteriores
silêncio interior éo
mais importante. O silêncio exterior apenas tem valor na medida
em que o favorece.
O respiro
"Todo o ser que respire louve a Iawheh!" (SI 150, 6)
Do SOPRO DE DEUS AO RESPIRO DO HOMEM

Para adquirir a união com Deus, dois ritmos são utilizados: o da


respiração e o do sangue. O ritmo da respiração parece ser o único
que possamos utilizar voluntariamente. Os relatos da Criação no
livro do Génesis sublinham a correspondência simbólica entre o
Sopro de Deus - o Espírito - e o sopro vital do homem: Então
Iawheh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou
em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser
vivente (Gn 2, 7). Também a teologia trinitária sublinha esta
correspondência: o Espírito, no seio do absoluto, é o Sopro que
enuncia o Verbo44; assim, quando o sopro humano, na oração
dita "de Jesus", enuncia o Nome do Verbo incarnado, une-se ao
Sopro de Deus, torna-se o seu veículo simbólico: pouco a pouco,
o homem começa a "respirar o Espírito"45. Se a respiração não
for correcta, o homem está em desordem, no seu todo. Qualquer
desregramento da respiração mostra um desregramento que influi
sobre tudo o que ele é e tudo o que ele faz. A respiração certa é o
grande movimento da vida que com uma batida se dá, e com outra
batida se recebe. Vivido conscientemente durante a oração, este
movimento apropria-se pouco a pouco do homem para o
transformar através duma morte e renascimento contínuos,
incessantemente aprofundados.
Os Padres aconselham a inserir a oração de Jesus na respiração:
Que a lembrança de Jesus e o teu sopro sejam uma única coisa, e
assim conhecerás
pronuncia a primeiraa metade
utilidade do Hesicasmo46.
durante a inspiração e O monge
a segunda
metade durante a expiração. Lembra assim a injunção do rei
David: Todo o ser que respire louve a Iawheh! (SI 150, 6).
A IRRUPÇÃO DO TEMPO
O tempo é uma condição da estruturação progressiva da matéria
física (a génese do universo) mas também uma causa de
degenerescência. Nós não conhecemos em nenhum momento o
"presente" do mundo. Percebemo-lo apenas sob a forma dum
incessante devir. O conhecimento do presente escapa-nos. O
homem é esquartejado entre um futuro inexistente e um passado
irremediavelmente revoluto. Apenas a sua memória e a lentidão
das reacções do seu organismo lhe dão o sentimento dum tempo
presente em que se vivem as suas sensações e se desenrolam os
seus actos.
Escutemos o que nos ensina o Mestre Eckhart sobre este eterno
presente: Os seus
absoluta, duma dons que
perfeição - denãoDeus - são
padece duma simplicidade
de qualquer divisão; são
fora do tempo, eternos. Estou disso tão certo quanto estou certo
de viver. Para acolher o que ele nos concede, devemos estar na
eternidade, devemos ultrapassar o tempo. Na, eternidade, toda
coisa nos é presente: o que está acima de mim é-me assim tão
próximo e presente quanto aquilo que está ao meu lado; é aí e
então que recebemos de Deus o que devemos receber dele4S. O
ser do estudante cresce, e não apenas a sua existência no mundo
que passa. Ele reencontra as condições do instante intemporal no
qual se desenrola o primeiro relato da Criação.
A transparência do corpo
"Com, efeito, é necessário que este ser corruptível revista a
incorruptibilidade e que este ser mortal revista a imortalidade."
(1 Co 15, 53)
QUANDO O SACERDOTE SE TORNA UM ACTOR
Imaginai uma escola onde os mestres dariam as suas aulas e
fariam as suas demonstrações sem saber do que estão a falar ou o
que estão a demonstrar. E em que os alunos ou assistentes
tomariam essas mesmas aulas e demonstrações como cerimónias
iguais a tantas outras. Na medida em que o sentido se perde,
lições e demonstrações tornam-se enfadonhas tanto para os
professores como para os alunos. Cada um se põe a fazer provas
de imaginação para tornar mais atraente aquilo que se está a
passar. Demasiadas vezes nas igrejas paroquiais, o altar é um
palco. O liturgo é um actor. Faz o que pode para captar a atenção
do seu público. E quando o discurso ultrapassa o Mistério, quando
o ministério do sacerdote desaparece por trás do espectáculo do
animador, quando a procura da unanimidade emocional suplanta o
sacrifício sacramental, alguma coisa se perdeu. O sacerdote
esqueceu a sua vocação de mediador entre Deus e os homens (He
5, 1).
O GESTO JUSTO
Outrora, os movimentos desenvolviam-se no coro, e era
importante que o sacerdote vivesse a cerimónia nos mínimos
gestos e até às pontas dos dedos, como uma dança sagrada, pois o
cumprimento da liturgia exige um certo número de movimentos.
O sacerdote aprende a executar cada um deles com perfeição, e
depois, a encadeá-los todos. Executado numa posição de
constatação activa, isto permite, não somente para aquele que o
vê, mas para aquele que o vive, a possibilidade dum contacto com
o Divino. Quando o sacerdote se submete durante meses ao rigor
dos exercícios de relaxamento, de respiração, da atitude justa e do
gesto puro, da colocação da voz e do treino do canto, ele
compreende que deve entrar plenamente no rito; de corpo, alma e
espírito.
forma uma Cada liturgia pode até transformar o seu corpo e dar à sua
transparência.
O ESPAÇO SAGRADO
Ninguém consegue escutar uma sinfonia ou admirar um quadro
numa sala onde reine um odor a gás insuportável. Na igreja, tudo
está ligado. A arquitectura tem em conta um efeito tão discreto
quanto o das volutas de fumo do incenso ondulando sobre os
frescos e enlaçando os pilares. Essas volutas alargam os espaços
arquitectónicos da igreja, atenuando a secura e o rigor das linhas,
parecendo insuflar-lhes movimento e vida. Lembremo-nos do
ritmo dos celebrantes, dos jogos de luzes sobre as dobras dos
tecidos preciosos, os perfumes de incenso, a atmosfera tão
particular ionizada pelas chamas de milhares de círios.
COMO LIMPAR O INCONSCIENTE?
A participação na liturgia envolve o cristão na totalidade da sua
pessoa, e pode ir muito longe na sua profundidade, na medida em
que este estiver pronto a entregar-se totalmente, e a deixar o seu
eu pequenino de fora, quando for convidado a prosternar-se, a
submeter-se duma forma autêntica Àquele que está acima dele.
Torna-se então humilde, capaz de deixar não apenas uma fachada
exterior, a vontade de ter, de saber e de poder, mas também
muitas coisas interiores. Um ser profundamente religioso dá-se
conta de todas as mentiras escondidas por trás da máscara e, sob a
acção do sopro divino, muitos nós se desatam. A verdadeira
religiosidade é o melhor instrumento para limpar o inconsciente.
O SEGREDO DAS LÁGRIMAS
Nos seus Capítulos Teológicos, Simeão descreve a experiência
confrangedora do baptismo da água e do espírito. O verdadeiro
baptismo de que o primeiro é apenas uma figura, são as lágrimas
sem dor que brotam espontaneamente e nos purificam sob a acção
da luz divina: Durante a noite, os nossos olhos corporais levam-
nos apenas ao lugar onde, eventualmente, nós acendemos a
lâmpada que dá luz, e o resto do mundo não é para nós senão
noite. Assim, para aqueles que dormem na noite do pecado, e por
considerar a sua fraqueza, o nosso bom mestre aparece apenas
como uma luz fugaz, ele que é o Deus que o Universo não pode
conter. É então que erguendo os olhos subitamente e
contemplando a natureza dos seres como jamais a houvera visto, o
homem se consterna e lágrimas espontâneas que o purificam
brotam sem dor, conferindo-lhe o segundo baptismo, esse
baptismo de que fala Nosso Senhor no evangelho: "Se alguém não
renasce da água e do Espírito, não entrará no Reino dos Céus. Ou
ainda: "Se alguém não renascer do Alto", dizendo "do Alto" o
Senhor significou o nascimento do Espírito. No primeiro
baptismo, a água é símbolo das lágrimas e o óleo da unção
prefigura a unção interior do Espírito; mas o segundo baptismo
não é mais a figura da verdade, é a própria verdade. Uma vez
compreendida a verdadeira natureza do sacramento, alguns gestos
não nos surpreendem mais. Quando alguns monges gregos
recebem o dom das lágrimas, recolhem uma delas e depositam-na
na língua do noviço. Sem ousar expressá-lo, talvez tenham
percebido que a Grande Obra deve poder ser realizada nu em
pleno deserto. Não depende de acessórios exteriores.

Notas
1 Trata-se duma alusão ao Monte Tabor, onde a tradição situa
o episódio da Transfiguração (Mateus 17, 9; Marcos 9, 2-10;
Lucas 9, 28-36).
2 João Clímaco, Uéchelle sainte, 4, 9.
3 João Clímaco, Uéchelle sainte, 4, 13.

4 Homélie sur Jean 85, 3 (PG 59, 463).


5 Praticada segundo um rito diferente, a confirmação é o
equivalente, na Igreja Romana, ao crisma das Igrejas orientais.
6 Discours caléchétique, 37
7 Or. Cat., XXXVI, 2, Méridier, pag. 172.
8 Nicolau Cabasilas, La vie en Christ, IV, 37.

9 Bickel, S. Isaac Antiocheni, II, pag. 32.


10 Fanqít, sexto volume (Pars Aestiva prior), pag. 337 a.
11 Gregório de Niceia, In bapt. Christi, P.G.46, 581B.
12 Orígenes, In ler., fragmento, PG, t.13, col. 544c.
13 Aí se situa o esoterismo cristão claramente evocado por
Clemente de Alexandria, Orígenes e outros Padres.
14 Neste capítulo, farei muitas vezes apelo às obras de Jean G.
Bardet citadas em bibliografia.
15 Les Noms Divins III, 1.
16 Prakticos I, 71 PG, t. XL, col. 1244 A.
17 Gregório Palamas, Trois chap.,
18 La prière, ap. Oeuvres posthumes, Tours, Létourmy, 1807.
l9 Pensées tirées d'unm,anuscrit deMr. St. Martin, ap. Oeuvres
posthumes, Tours, Létourmy, 1807.
20 Gerónimo e Orígenes interpretaram igualmente este relato
como imagem do combate espiritual e da eficácia duma oração
insistente.
21 Louis-Claude de Saint Martin, L´homme de désir, Lyon,
1790.
22 Institulions II, 10.
23 Coll. IX, cap. 36.
24 Gregório o Sinaíta, Sur la tranquilité et la prière, 2.
26 Cassiano, Confer. ; IX, 31.
26 João Clímaco, citado por Georges Florovsky, in Les pires
byzantins du Vº au VIIIº siècles, Institut de Théologie Orthodoxe
Saint-Serge, Paris,
1997.
27 Gregório o Sinaíta, Chapitres, 113.
28 A Igreja romana tem uma festa do Santo Nome de Jesus.
Desde Pio Xº, esta festa é celebrada no domingo situado entre o
Io de Janeiro e a Epifania ou, por defeito, a 2 de Janeiro. A missa
e o ofício da festa foram compostos por Bernardino dei Busti (+
1500) e aprovados pelo papa Sixto IV. Inicialmente confinada aos
conventos franciscanos, a festa foi mais tarde estendida a toda a
Igreja. Sabemos também com que devoção foi rodeado o
monograma IHS. Este não significa, como é muitas vezes dito
Jesus Hominum Salvator, mas representa simplesmente uma
abreviação do nome de Jesus. O grande propagador da devoção ao
nome de Jesus durante a baixa Idade Média foi Bernardino de
Siena (J 380-1444). Ele recomendava que se trouxessem
tabuinhas onde estivesse inscrito o signo IHS. Mas foi Bernardo
de Claraval, no Sec. XII, que mais foi inspirado pelo nome de
Jesus. Que se leia sobretudo o seu sermão XV sobre o Cântico
dos Cânticos. Assimilando o nome de Jesus ao óleo derramado
evocado pelo Cântico, ele desenvolve a ideia de que o Nome
sagrado, assim como o óleo ilumina, alimenta, unge.
29 Isaac, o Sírio, op. cit., 43° tratado, pag. 177.
30 Gregório Palamas, citado por Jean Meyendorff,
Introduction à 1'étude de Grégoire Palamas, Paris, 1959, pag. 247.
31 Petite Philocalie de la prière du coeur, tr. e intr. de J.
Gouillard, Livres de vie n° 83-84, pag. 161.
32 Enrichidion, em I. Hausherr, La wéthode d'oraison
hésychaste, Roma, 1927, pag. 106-111.
33 Récits d'un pélerin russe, tr. fr.., Paris, 1975.
34 Petite Philocalie de la prière du coeur, tr. e intr. de J.
Gouillard, Livres de vie n° 83-84, pag. 82.
35 A interpretação tradicional de « sangue azul » está ligada ao
poder transformador do Espírito Santo descendo no sangue
daqueles que se tornam dignos de o receber, como por exemplo
no armamento cavaleiresco, na unção sacerdotal ou na sagração.
36 João Clímaco, Uéchelle sainte, 4, 8.
37 Trata-se das primeiras qualidades com que são formados
todos os corpos: o quente, o frio, o seco e o húmido.
38 Recorro aqui à tradução de André Chouraqui, pois, aí onde
reina um silêncio subtil, a Bíblia de Jerusalém ouve "o barulho
duma brisa ligeira"! O texto hebreu tem Qol dernamah daqqah, a
voz dum silêncio penetrante. Qol não é um barulho, nem mesmo
um som, mas uma voz. Aliás, palavra volta logo quando Yahweh
fala: " LTma voz diz-lhe: que fazes tu aqui, Elias?" Dernamah
significa um silêncio, segundo o sentido mesmo da raiz damant.
Daqqah significa o que corta, em bocados, logo ténue,
impalpável, como o pó dum objecto pulverizado.
39 Les apophtegmes des Peres du Désert (Poemen 27, pag. 222),
Textes de spiritualité orientale, Bégrolles, 1966.
40 Barsanúfio e João, Qaest. et resp., § 554
41 Citado por Georges Florovsky, in Les pires byzantains du Vº
au VIIIº siècles, Institut de Théologie Orthodoxe Saint-Serge,
Paris, 1997.
42 Basílio, Ep. 2 (P.G.32,228 A).
43 Myslic Treatises by Isaac ofNineveh, tradução inglesa do
texto de Bedjan em siríaco, por A.J. Wensinck (Amesterdão,
1923) pag. 8 (tradução adaptada).
44 João Damasceno, Defid. ortk., P.G. 95, 60 D.
46 De la vie comtemplative, dans Petite Philocalie de la prière du
coeur, tr. e intr. de J. Gouillard, Livres de vie n° 83-84, pag. 185.
46 João Clímaco, Uéchelle sainte, 27, 62.
47 Angelus Silesius, Le pèlerin chérubinique, 1, 92.

48 Uamour nous fait devenir ce que nous aim,ons, Mille et une


nuits (Fayard), Paris, 2000. 861
IV. A REGENERAÇÃO DA CARNE
A memória do sangue
"Porque três são os que testemunham: o Espírito, a água e o
sangue, e os três tendem ao mesmo fim" (1 Jo 5, 7-8)
ESOTERISMO E CRISTIANISMO
Quando o corpo é transfigurado, tem de se passar algo de
tangível. E se alguma coisa se passa, esse processo,
provavelmente, já foi descrito por certos homens que a viveram.
No Ocidente, a descrição desse processo e das técnicas que o
favorecem tornou-se o arcano dos arcanos, o grande segredo dos
cenáculos iniciáticos válidos1. Estes cenáculos fechados não
teriam existido se a theosis tivesse sido claramente ensinada pelo
cristianismo latino.
Mais ou menos habilmente, a doutrina da deificação forma a
ossatura das obras de Jacob Boehme, do pensamento
rosacruciano, dos textos alquímicos, dos teósofos cristãos do Sec.
XVIII e de alguns contemporâneos. Nos meios cristãos, o cerne
destes ensinamentos iniciáticos foi magistralmente resumido por
Robert Amadou2: O iniciado reintegra-se, e para melhor,
enquanto o seu corpo de glória se edifica pela liturgia, secundada
pela magia e pela alquimia, seguindo o protocolo astrológico.
Cada dia desta vida, o seu homem interior é renovado: semeado
psíquico, ele transfigura-se em espiritual, enquanto que a sua alma
se corporifica. O corpo não é a carnes e a ressurreição é a do
morto no seu todo. O iniciado recebe desde já as amarras da sua
vida futura. Transmuta igualmente a própria matéria do mundo.
REGENERAÇÃO E SUBSTÂNCIAS DO CORPO
Voltemos à divinização do corpo. Já evocámos as lágrimas.
Poderíamos também tratar da saliva que muda de natureza e de
consistência sob o efeito da oração e da eucaristia. O episódio
relatado por Marcos (Mc 7, 33) reflecte uma realidade física
compreendida por aqueles que a viveram. Não esqueçamos que o
Seu suor se (lhe) tornou semelhante a espessas gotas de sangue
que caíam por terra. (Lc 22,44). Quanto ao sangue, para sabermos
mais, devemos recorrer aos monges orientais ou à experiência de
teósofos cristãos como Paracelso (1493-1541), Jacob Boehme
(1575-1624), Johann Georg Gichtel (1628-1710), Friedrich
Christoph Oetinger (1702-1782), Angelus Silesius (1624-1677),
Karl von Eckhartshausen (1752-1803) e alguns contemporâneos.
Entre estes últimos, tomemos ao poeta Milosz (1877-1939) o seu
desenvolvimento quanto ao sangue. Em anexo, complementá4o-ei
com vários documentos subordinados ao mesmo tema.

A DEMANDA DO GRAAL
O sangue é a lâmpada da vida, o suporte da alma. O homem,
assassino ou sacrificador, espalha o sangue. O simbolismo do
sangue assenta na sua consistência. É líquido como a água. O
paladar assemelha-se pois é salgado como a água do mar. Pela sua
cor e pelo seu calor pois é vermelho e quente como o fogo.
Lembra o simbólico oceano primordial sobre o qual pairava o
Espírito, o pássaro de fogo (Gn 1, 2). No simbolismo bíblico
interpretado pela alquimia, o sangue é o Mar Vermelho que é
preciso atravessar para sair do Egipto, isto é, do corpo. Mais
profundamente, o sangue é a espada da chama da espada
fulgurante que guarda o caminho da Árvore da Vida.3
Em consequência da queda de Adão e Eva, uma certa substância
celeste primordial desapareceu do sangue humano.
No seu lugar, instalou-se um fermento de corrupção a que
Eckhartshausen chamou de "glúten". O Cristo derrama um sangue
vivificante
nós. Água para a salvaçãododos
pneumatizada seus homicidas,
baptismo, ou seja, de todos
sangue pneumatizado da
eucaristia que é "Espírito e Fogo", dizem os textos litúrgicos
siríacos. "Um soldado perfurou-lhe o lado com a sua lança e dele
logo jorrou sangue e água", de que a terra foi o misterioso
receptáculo, verdadeiro Graal cósmico. Neste sentido, a demanda
do Graal é a demanda do sangue divino que, apenas ele, pode
assegurar a imortalidade e restaurar o estado primordial. O que
equivale a purificar a alma humana, veiculada pelo sangue, do seu
fermento de corrupção. De certa forma, a obra alquímica pode ser
entendida como uma transmutação do sangue.
A Bíblia atribui a alma espiritual (o grego pneuma, o hebraico
rouach) ao sangue. Do seio de Cristo, brotaram a água e o sangue.
Esta água e este sangue possuem o poder do primeiro instante da
criação. Não estão contaminados pela queda.
A OBRA DE REGENERAÇÃO
A regeneração é um renascimento, uma nova transfiguração. Esta
restauração depende da maneira como apagamos aquilo que
ensombra a nossa verdadeira natureza e nos mantém afastados da
nossa srcem. O homem é semelhante a um fogo concentrado e
fechado num grosseiro envelope. Está separado do fogo
primordial ao qual aspira a unir-se. Este fogo queimará o
envelope que nos envolve. Consumará o que é impuro, modificará
o corpo, torná-lo-á receptivo a Deus, restituindo-lhe a sua
dignidade real.
Com a água e o sangue, o Espírito é o obreiro desta deificação:
Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo, não com a
água somente mas com a água e o sangue. E é o Espírito que
testemunha, porque o Espírito é a Verdade. Porque três são os que
testemunham: o Espírito, a água e o sangue, e os três tendem ao
mesmo fim. (Uo 5, 6-8). Espírito, água e sangue formam o agente
transmutador, a pedra filosofal dos alquimistas cristãos:
Eu próprio sou metal, o Espírito é o fogo e o forno, o Messias é a
tintura, que aureola o corpo e a alma.4 Este agente pode agir
sobre o nosso próprio sangue e renová-lo, restaurá-lo: No último
dia da festa, o mais solene, Jesus, de pé, disse em alta voz: Se
alguém tem sede, venha a mim e beba, aquele que crê em mim!
Conforme a palavra da Escritura: Do seu seio jorrarão rios de
água viva. (Jo 7, 37-38).
Doravante, o sangue, humano e divino, mistura-se com o nosso. O
nosso sangue e a nossa carne serão finalmente transformados em
substância divina: Com, efeito, é necessário que este ser
corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal
revista a imortalidade. (ICo 15, 53). Angelus Silesius faz eco
desta forma: Deus é o meu espírito, o meu sangue, a minha carne
e os meus ossos. Como não seria eu deificado completamente?5
PAI NOSSO QUE ESTAIS NOS CÉUS
Cada ser humano situa-se na extremidade duma linha de tempo
que se estende por quinze biliões de anos. Este ser comanda
aquilo que será o resultado da sua linhagem. O seu tempo de vida
terrestre dá-lhe espaço para a escolha. O sangue azul não passa de
pai para filho em cada geração pois é o atributo dos seres duas
vezes nascidos. Trata-se, para nós, de mudar de filiação. Cada
célula do nosso corpo deve cessar de ser o produto do património
genético dos nossos pais e duma linhagem ancestral velha de
vários milhões de anos. Tal como Tiago e João seguiram Jesus
deixando o seu pai no barco, devemos trocar a nossa filiação
horizontal por uma filiação vertical: Um pouco adiante, viu Tiago,
filho de Zebedeu, e João, seu irmão, eles também no barco,
consertando as redes. E logo os chamou. E eles, deixando o pai
Zebedeu no barco com os empregados, partiram em seu
seguimento. (Mc 1, 19-20). Para cada fibra da nossa carne, Deus
deve tornar-se: Pai nosso que estás nos céus (Mt 6, 9). E quando
nos dirigimos a Ele chamando-Lhe "Pai Nosso", deve tratar-se
duma constatação, e não dum voto piedoso: A ninguém na terra
chameis "Pai", pois um só é o vosso Pai, o celeste. (Mt 23, 9). Em
duas palavras, ousemos confrontar-nos com a injunção: Segue-me
e deixa que os mortos enterrem seus mortos (Mt 8, 22).
Pode o sangue vencer a morte ?
Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos
ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que
transfigurará o nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu
corpo glorioso (F13, 21)
O SANGUE, ANTÍDOTO UNIVERSAL
Segundo O.V. de L. Milosz, todo o universo corre em ti
(Memoria). Ele lembra a presença no sangue duma substância
primordial, iluminadora da consciência e antídoto universal ao
mesmo tempo. Interroga, meu caro menino, este sangue que, da
consistência à cor, te aparece como uma tão celeste substância.
Confirma-o no Cântico do conhecimento: ...aprendi que o corpo
do homem encerra nas suas profundezas um remédio para todos
os males e que o conhecimento do ouro é também o da luz e do
sangue. Este remédio é da mesma natureza que o sangue de Cristo
e não possuímos dele senão os fragmentos. Ele é o sangue do
sangue, a essência do sangue. Graças a esta essência, a
consciência total está contida no sangue. O cérebro tem por papel,
não o de elaborar essa consciência mas de a inibir e de a filtrar
para que ela não nos cegue. Pois se tivéssemos acesso a ela, não
poderíamos mais seleccionar os seus aspectos úteis à vida prática
e encontrar-nos-íamos imobilizados em contemplação. Eis como
Milosz desenvolve esta ideia: O teu coração é um sol anatómico,
propulsor do teu microcosmo sanguíneo. E se o cérebro... é... a
lua hermética,
apenas o satélitenão é apenasEle
do coração. porapenas
analogia da cor.
recebe, O ecérebro
filtra, restitui éa
luz de afirmação que lhe envia o coração na sua radiação
espiritual. Lua e cérebro são receptores e ordenadores de luz, eles
humanizam o sobre-humano, tornam acessível aos nossos frágeis
olhos o deus ofuscante. (Ars Magna)6
A consciência do sangue do Cristo contém todo o poder do
primeiro instante da Criação. Pela oração, ela revela-se pouco a
pouco. Se o homem se situa nesse lugar - nesse estado - onde ele
aquiesce à vontade divina, essa consciência restaura o nosso
corpo e a nossa alma: O nosso sangue perpetua o instante da
primeira emissão, e toda a consciência do propulsor espiritual está
ainda nele, sempre pronta a desvelar progressivamente às
inteligências que, com a arma mágica da oração,
reconquistaram o lugar absoluto da afirmação. Neste ponto, o
espaço perdeO atempo
movimento. sua volta
extensão para se naresolver
a centrar-se apenas no
instantaneidade. O
sangue é o lugar onde isto se efectua. Tal como o afirma a
antropologia bíblica, o sangue é o ponto de junção entre os dois
mundos. Todo o sangue cósmico está ainda no ímpeto da primeira
ejaculação; móbil inicial, ele ensina-nos a situar todas as coisas do
espaço no único movimento, e todas as coisas do tempo na única
instantaneidade. Está aí o segredo dos velhos mestres e a srcem
celeste do seu duplo conceito da unidade da matéria e da
identidade dos dois mundos. Não resta senão situar-se aquém do
movimento deste sangue. O antídoto do sangue corrompido pela
queda opera então a verdadeira transmutação. O homem recupera
a consciência total, o sol da memória, anterior a qualquer
corporeidade. Uma vez admitida a transmutação como princípio
fundamental, o progresso da minha obra sobre a deles deveria
limitar-se a uma simples extensão, pois não me restava senão,
depois de Boehme, Sendivogius e Paracelso, identificar a matéria
com o tempo e o espaço, e, tendo-os captados aos três no
movimento, a caçar o próprio movimento do seu lugar (o qual,
como há pouco o aprendi e aqui o revelo, é o sangue), para fazer
com que recaia tudo na imóvel instantaneidade do sol da
memória. Na Memoria, o mesmo autor relembra a natureza do
agente transformador; é o sangue que, por trás das aparências,
veicula o corpo e o sangue do Cristo, o pão e vinho da Última
Ceia. Este sangue te revelará, por fim, o segredo da universal
transmutação, pois ele é o Alquimista que, sob o vestido rubi,
dissimula o pão e o vinho da Última Ceia.
Mas tal como nos é dito na dedicatória do Cântico do
conhecimento: Dirijo-me apenas aos espíritos que reconheceram a
oração como o primeiro entre todos os deveres do homem. Não se
brinca com estas coisas, e não existe alquimia laica. Imaginar que
nos possamos elevar em direcção aos céus puxando-nos a nós
mesmos conduz-nos
sem os colocar numaà catástrofe.
perspectivaMultiplicar
espiritual treinos
é, na emelhor
exercícios
das
hipóteses, estéril. Pela morte, tudo está perdido. A autonomia, o
autismo das alquimias internas conduz seguramente ao fracasso
pois toda a predisposição à criação intelectual não sustentada pela
oração, acaba por repudiar o acto procriador. (Memoria)
Notas
1 Destes teósofos cristãos alemães à Alta Maçonaria egípcia
de Cagliostro, esta alquimia dita "interna" foi preservada ao longo
dos séculos.
2 Amadou, Robert, De la Sainte Science, IV, 1.
3 Hippolyte, Philosophoumena, VI, 17
4 Angelus Silesius, Le pèlerin chérubinique, (1, 103).
5 Angelus Silesius, Le pèlerin chérubinique, (1, 216).

6capítulo
Salvo menção em
são extraídas dessecontrário,
texto. as citações seguintes deste
V.
"E QUE SURJA A ESTRELA-D'ALVA EM NOSSOS
CORAÇÕES"

O nascimento do menino interior


"Meus filhos, por quem eu sofro de novo as dores do parto, até
que Cristo seja formado em vós." (Gl 4, 19)
A GRAVIDEZ DA ALMA
A deificação efectua-se em várias etapas, ilustradas nos textos por
palácios, mansões, vales, metais ou partes do corpo. Os Padres
comparam esta lenta transformação à busca da Terra Prometida
ou à subida de Moisés ao Sinai. A imagem mais adequada, pois
directamente tomada do Novo Testamento, é a do menino interior.
Reencontramos o sopro divino no alvorecer do cristianismo. O
Espírito impregna o seio da Virgem para nele tomar consistência
e aí se corporificar. Quando o Cristo atingiu o tamanho perfeito e
voltou para o pé do Pai, enviou a luz do Espírito. Esta deve tomar
forma no cristão de maneira a que a imagem de Deus seja aí
plenamente restituída na sua semelhança.
Quando Nicodemos o interrogou, Jesus respondeu: Em verdade,
em verdade te digo. Quem não nascer do alto não verá o Reino
dos Céus (Jo 3, 3). Nicolau Cabasilas compara a vida presente à
vida na obscuridade e na noite que vive o embrião no seio
materno, preparando-se para o nascimento: pois assim como a
natureza prepara o embrião, enquanto ainda está numa vida
obscura e nocturna, para a vida na luz - e é afeiçoado sobre o
modelo da vida que recebe - assim épara os santos (...) É na dor

que estepor
criado mundo
Deus,engendra o novo homem
e este, modelado interior,
e afeiçoado aquele
aqui que foié
em baixo,
gerado perfeito para um mundo perfeito e eternamente jovem (...).
Tudo isto termina com um novo nascimento. Foi isto que o
apóstolo Paulo escreveu aos Gálatas: Meus filhos, por quem eu
sofro de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em
vós. (Gl 4, 19). O Cristo cria um novo organismo através do qual
o homem vive a sua vida espiritual: Se o espirito de Deus te toca
com a sua essência, nasce em ti o menino eterno assim resume
Angelus Silesius1. Ele dá-lhe olhos espirituais, ouvidos
espirituais. Este organismo é o novo homem, e não está sujeito à
corrupção. Sobreviverá após a sua morte. Se não tivermos este
organismo e estes sentidos, pergunta Nicolas Cabasilas, com que
olhos veremos o "Sol de justiça" que brilhará no mundo
vindouro? Como comungaremos à Mesa que Ele nos preparará?
Sem este organismo, a nossa existência será uma existência de
morte.
Para Orígenes, há no corpo um "Logos espermático", uma "razão
seminal" que é o germe do ressuscitado. Ele insiste no nascimento
do Cristo em cada um, tal como em Maria, desse Cristo que
cresce na alma de cada um como cresceu em Maria. Simeão o
Novo Teólogo ensina que os santos se casam como Deus e
concebem o Logos nas suas entranhas. A propósito da fecundação
da Virgem, ele escreve: Que todos os santos concebam neles
próprios o Logos de Deus um pouco corno a Mãe de Deus;
engendram-no, é engendrado neles e são engendrados por ele2.
Para os Padres da Igreja do Oriente, para Paracelso e para os
teósofos cristãos do Ocidente, a verdadeira teologia é a que trata
deste novo nascimento. Quem não nascer do alto não pode ver o
Reino de Deus diz Jesus a Nicodemos (Jo 3, 3). Ainda que Cristo
nasça mil vezes em Belém, se não nascer em ti, estás perdido para
todo o sempre afirma também Angelus Silesius3. Na mesma obra
este autor afirma: Tenho que ser MARIA, e dar à luz Deus4.
Louis Claude de Saint Martin exorta: Trabalhemos para que
façamos renascer em nós o corpo do Senhor, e ele nos trará luz,
força e vida5. Mais recentemente, René Schwaller de Lubicz
escreveu um texto que termina com a colocação neste mundo,
pela Virgem Maria, do Cristo que é a pedra filosofal do ocidente.
O EMBRIÃO DE IMORTALIDADE
São Paulo explica aos Colossenses que o Cristianismo centra-se
no corpo de glória cujo germe está no homem. A missão do
apóstolo é a de anunciar que este germe, chamado Cristo, está no
homem. Este germe espiritual, deixado no coração do homem,
deve desenvolver-se até que revista toda a criatura humana. Deve
crescer em glória para se tornar perfeito, teleios em grego, que é
um termo técnico da linguagem iniciática para designar o último
grau da iniciação. São Paulo é então encarregado de revelar: O
mistério escondido desde os séculos e desde as gerações, (...) a
riqueza da glória deste mistério, que é Cristo em, vós, a esperança
da glória! Esse Cristo nós o anunciamos, advertindo os homens e
instruindo-os em toda sabedoria, a fim de apresentá-los todos,
perfeitos (teleios) em Cristo (Cl 1, 26-28). Todo o mistério está
aí; trata-se da operação mais concreta que possa existir: despertar
esta semente em nós, fazê-la germinar até à incorruptibilidade, até
ao corpo de glória.

No Antigo Testamento, a palavra "germe" é uma imagem do


Messias: Eis que dias virão - oráculo de Iahweh - em que
suscitarei a Davi um germe justo; um rei reinará e agirá com
inteligência e exercerá na terra o direito e a justiça (Jr 23,5). Esta
palavra tornar-se-á num nome próprio designando o Messias: Eis
que vou introduzir o meu servo "Germe" e afastarei a iniquidade
desta terra em um único dia (Zc 3, 8) Assim disse Iahweh dos
Exércitos: eis um homem cujo nome é "Germe"; de onde ele está
germinará... (Zc 6, 12).
O Messias é igualmente representado por um astro nascente.
Assim, no Antigo Testamento: Um astro procedente de Jacó se
torna chefe (Nm 24, 17). Mas para vós que temeis o meu nome,
brilhará o sol de justiça, que tem a cura em seus raioss(MÍ 3, 20),
Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelo qual nos
visita o Astro das alturas, para iluminar os que jazem nas trevas e
na sombra da morte (Lc 1 78-79). Em grego, anatolé, astro
nascente, provém do verbo anatelo, anatelein que significa
"levantar-se" quando se fala dum astro. É o astro que traz a sua
luz levantando-se. Mas esta palavra grega designa também uma
planta que cresce. No contexto do Benedictus (Lc 1 78-79), é um
astro que germina, que se ergue nas entranhas de Maria. Assim,
este astro deve também germinar e levantar-se em nós: Temos,
também, por mais firme a palavra dos profetas à qual fazeis bem
em recorrer como uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie
o dia e surja a estrela d'alva em nossos corações. (2 Pd 1, 19). E se
esta frase permanece misteriosa enquanto não tivermos feito a
experiência, o Apocalipse confirma que Jesus é esse astro
luminoso: "Eu, Jesus, enviei meu Anjo para vos atestar estas
coisas a respeito das Igrejas. Eu sou o rebento da estirpe de Davi,
a brilhante estrela da Manhã" (Ap 22, 16). São Paulo afirma o
objectivo: Porquanto o Deus, que disse: "do meio das trevas

brilhe a luz!",
(2 Co 4, 6). foi Ele mesmo quem reluziu em nossos corações...
E QUE SURJA A ESTRELA-D'ALVA EM NOSSOS
CORAÇÕES
O nosso corpo luminoso reside sempre em nós como uma
semente pronta a germinar. O homem pode ter a esperança que
um dia reencontrará esse belo corpo clarificado, quando todas as
coisas estiverem consumidas e transformadas pelo agente divino
que escolhe o minério. O corpo do Cristo constrói-nos um outro
corpo enquanto regenera o nosso corpo físico. E, a partir deste
mundo temporal, o corpo físico acede em parte à glória. Entre
esses dois corpos, nenhuma oposição. Eles crescem juntos. Os
nossos actos ajudam à arquitectura do corpo de glória no céu.
Simeão o Novo Teólogo comenta esta experiência: Examinemos
bem se o astro nascente iluminou o nosso coração, ou se
continuamos nas trevas da ignorância. Lutemos para que este fogo
divino cresça em nós9. Na pessoa do cristão, é o próprio Cristo
que vive e age. Simeão descreve a desolação daqueles que não
possuem o Cristo neles e que são habitados pelos sonhos ilusórios
deste mundo: Vejamos então, irmãos, examinemo-nos
exactamente e instruamo-nos do estado das nossas almas. Estará o
selo em nós? Reconhecemos se o Cristo está em nós pelas marcas
que dissemos. Escutai, por favor, irmãos cristãos, despertai e
observai
grande luzsedo
a luz iluminou os se
conhecimento, vossos corações.
o astro nascenteSevos
contemplastes
visitou vindoa
do alto, manifestando-se a nós que estávamos sentados nas trevas
da morte. Rendemos glória e acções de graça infindáveis à
bondade do mestre que nos fez este dom, e lutemos para alimentar
e fazer crescer em nós, pela prática dos mandamentos, o fogo
divino graças ao qual a luz divina toma cada vez mais brilho e
força. Nos seus Hinos, ele testemunha deste astro nascente que
surge no seu coração, nele próprio: 'Este fogo levanta-se em mim,
de dentro do meu pobre coração, tal o sol ou tal o disco solar. Ele
mostra-se esférico, luminoso, sim, tal uma chama. Eu não sei,
repito, o que dele posso dizer, e calar-me-ia se pudesse. Mas a
temível maravilha faz saltar o meu coração, e abrir a minha boca,
a minha boca conspurcada, e apesar de mim, faz-me falar e
escrever. Ele denuncia aqueles que crêem possuir esta experiência
e que negam a sua possibilidade neste mundo: Tu que te ergueste
agora no meu coração escurecido, tu que mostraste maravilhas
que os meus olhos ainda não tinham visto, tu que descestes até
mim como no último de todos, tu que me fizestes discípulo e filho
dum apóstolo, eu que o terrível dragão homicida retinha outrora
como obreiro e instrumento de toda a iniquidade, tu o sol de antes
todos os séculos que brilhou nos infernos, e que depois iluminou a
minha alma mergulhada nas trevas e me fez dom dum dia sem
declínio, coisa difícil de crer para os cobardes e preguiçosos da
minha espécie, tu que prendastes com todos os bens a miséria que
me habitava, tu mesmo, dá-me uma voz, dá-me palavras para
contar a todos as tuas obras espantosas e aquilo que operas ainda
hoje em nós, os teus servos; afim de que aqueles que dormem nas
trevas da negligência e aqueles que dizem aos pescadores ser
impossível salvarem-se e encontrarem misericórdia, como Pedro e
os outros apóstolos, santos, bem-aventurados e justos; afim de
que esses, esses que dizem isso, conheçam e aprendam que, para
uma bondade tal como a tua, isso era fácil, ainda o é e será; e
aqueles que crêem possuírem-te, tu, a luz do mundo inteiro, e que
dizem não te verem, não estarem na tua luz, não estarem
iluminados, não te contemplarem incessantemente, ó Salvador,
que saibam que não iluminastes os seus pensamentos nem
habitastes os seus corações conspurcados, saibam que fazem mal
em regozijarem-se com vãs esperanças, imaginando que verão a
tua luz após a sua morte. Não, é desde este mundo, é aqui mesmo
que, tu Salvador, dás o sinal e o selo às ovelhas colocadas à tua

direita.
após o Com efeito, nada
falecimento se para
há todos nóspara
a fazer a morte fechadea nós,
nenhum porta,e se
se
nenhum pode a partir de então agir mal ou bem, ó meu Salvador,
então cada um permanecerá tal como for encontrado.
Noutra obra, Simeão descreve o processo de geração do Cristo
interior ou do corpo de glória: Façamos comparecer diante de vós
o bem-aventurado Paulo que diz: "Meus filhos, por quem eu sofro
de novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós.
(Gl 4, 19). Onde então, em que lugar ou parte do corpo se forma o
Cristo segundo ele? Sobre a fronte, pensais vós, ou ainda sobre o
rosto, ou sobre o peito? Certamente não, mas sim no interior, no
vosso coração... Assim como a mulher conhece claramente quanto
é que está grávida, quando é que a criança mexe em seu próprio
seio, e não poderia ignorar que o carrega nela, assim também
aquele que tem o Cristo formado nele conhece os seus
movimentos, dito de outra forma, as suas iluminações, e também
não ignora os seus estremecimento"s, ou seja os seus lampejos, e
se dá conta da, sua formação nele10. Um contemporâneo, Louis
Cattiaux, fez eco desse ensinamento na sua obra Le Message
Retrouvé: Ó mistério da vida, eis que estamos semeados e
fecundados do Todo-Poderoso a partir do nosso aniquilamento
diante do seu esplendor; ejá estremecemos da sua vida
maravilhosa enquanto esperamos a hora do nosso renascimento na
sua luz imperecível e gloriosa (306, 102). Sabemos que o teu dia
está próximo pois sentimos a tua luz mexer em nós como uma
criança que vai nascer (31, 54).

Notas:
1 Le Pélerin chérubinique (2, 103).
2 Hymnes.

3 Le Pélerin chérubinique (1, 61).


4 Le Pélerin chérubinique (1, 23).
5 Saint Martin a Vialetes d'Aignan, 5 de Janeiro 1787, ap.
Saint Martin, Théosophie
et Téologie, Documents martinistes, 1980, pag. 65.
6 Para a desenvolver com exactidão, tomarei a maior parte das
informações que
seguem duma comunicação de Jean-Marie d'Ansembourg,
extraída dum ciclo de conferências; 1'Évangile commentépar les
Peres, actualmente publicadas na revista Lefil d'Ariane.
8 Utilizo aqui a tradução de André Chouraqui, pois na Bíblia
de Jerusalém, as
asas transformam-se milagrosamente nuns raios!
9 Catéchèse.
10 EthiqueX, 870.
DOCUMENTO 1: CONVERSA DE N.A. MOTOVILOV
COM SERAFIM DE SAROV
Entre os testemunhos quase contemporâneos do processo de
deificação, citarei uma passagem do relato de N. A. Motovilov
sobre a visita feita a Serafim de Sarov, no início do Inverno de
1831. Este santo explica então a Motovilov que o objectivo da
obra cristã consistia em obter o Espírito Santo. Motovilov
pergunta como se pode reconhecer que se está no Espírito Santo.
Eis o relato da conversa entre N.A. Motovilov e São Serafim de
Sarov tal como nos é trazido pela obra de Paul Florensky, La
colonne et le fondement de la Vérité.
O padre Serafim tomou-me então pelos ombros, com muita força,
e disse-me:
Estamos agora os dois no Espírito Santo, contigo!... Porque não
me olhas?
Eu respondi: - Não posso olhar-vos, pois há como que faíscas que
saem dos vossos olhos. O vosso rosto tornou-se mais claro que o
sol, e doem-me os olhos!
O Padre Serafim disse: - Não vos assusteis, vossa Teofilia!
Também vós agora vos tornastes tão luminoso quanto eu próprio.
Também vós estais na plenitude do Espírito de Deus, pois sem
isso não me poderíeis ver como me vedes.
E inclinando a sua cabeça sobre mim, disse-me docemente ao
ouvido: - agradecei então ao senhor pela sua bondade indizível
para convosco. Vistes que nem me tinha benzido, nada fiz senão
rogar em mim mesmo ao Senhor e dizer dentro de mim: "Senhor,
torna-o digno de ver claramente, com os seus olhos carnais, a
descida do Espirito Santo com que tornas dignos os Teus

servidores,
admirável". quanto
E assim,te meu
dignas aparecer
menino, na luzinstantaneamente
o senhor da Tua glória
acedeu ao pedido do pobre Serafim... Como não agradecê-lo por
este dom indescritível que Ele nos concedeu a ambos? É que, meu
menino, nem aos grandes eremitas do deserto, o Senhor revela
sempre a sua bondade. Mas a graça de Deus quis consolar o vosso
coração aflito, como uma mãe que ama, pela intercessão da
própria mãe de Deus... Então, meu menino, porque não me
olharíeis nos olhos? Olhai simplesmente e não tenhais medo,
Deus está connosco!
Depois destas palavras, ergui o meu olhar em direcção ao seu
rosto e fui tomado por um grande temor divino ainda mais forte.
Imaginai, no centro do sol, no brilho mais poderoso dos seus raios
do meio-dia, o rosto dum homem que vos fala. Vedes o
movimento dos lábios, a expressão cambiante dos seus olhos,
ouvis a sua voz,
não somente nãosentis
vedesque
as alguém segura
suas mãos os vossos
como não vosombros;
vedes amas
vós
próprios nem vedes o outro, apenas vedes uma luz que cega, que
se estende longe à volta, e que faz espelhar com o seu brilho a
neve que recobria a clareira e os flocos que caíam sobra as nossas
cabeças... Será possível representar o estado no qual eu me
encontrava então!
- O que sentis agora? perguntou-me o padre Serafim.

- Um bem-estar extraordinário! disse eu.


- Mas como? O que sentis exactamente? Eu respondi: - Sinto
uma tal serenidade e uma tal paz na minha alma que não saberia
dizê-la!
- É a paz, Vossa Teofilia, da qual o Senhor disse aos seus
discípulos: "Dou-vos a minha paz, não como o mundo vo-la dá: se
vós fôsseis do mundo, o mundo amaria o que é seu; mas porque
vós sois escolhidos do mundo, o mundo odeia-vos por causa di
so. Mas tenham coragem, pois eu venci o mundo". E a essas
gentes, odiadas pelo mundo, mas eleitas pelo Senhor, que Deus dá
a paz que sentis agora em vós... E o que sentis mais? Perguntou-
me o padre Serafim.
- Uma doçura extraordinária! Respondi eu.

Ele continuou:
- É a doçura de que falam as Santas Escrituras: "Eles saciam-
se com as riquezas da tua casa, e Tu os deleitas com a torrente da
tua doçura". São as delícias que enchem de novo os nossos
corações e que se expandem por todos os nossos vasos num
contentamento indizível. Os nossos corações fundem, por assim
dizer, nesta doçura, e somos ambos penetrados por uma tal
beatitude que nenhum idioma o poderia expressar... E que sentis
ainda?
- Uma alegria extraordinária em todo o meu coração!
O padre Serafim continuou: - quando o Espírito de Deus se digna
descer junto do homem e o preenche com a plenitude da sua vida,
a alma do homem enche-se dum júbilo inefável, pois o Espírito de
Deus transforma tudo o que toca em alegria. É a alegria de que o
Senhor fala no seu Evangelho: "Quando a mulher está em
trabalho de parto, ela está em dor, porque a sua hora chegou; mas
quando ela dá a luz do dia à criança, ela não se lembra mais da
dor por causa da alegria dum homem ter nascido neste mundo.
Sereis tristes no mundo, mas quando eu vos verei, o vosso
coração se rejubilará e ninguém se apropriará da, vossa alegria".
Mas por mais consoladora que seja a alegria que sentis
actualmente no vosso coração, ela não é nada ao lado daquela de
que o próprio Senhor falou pela boca do seu apóstolo que
"Ninguém havia visto, nem ouvido, nem nunca ao coração do
homem tinham chegado os bens que Deus preparou para aqueles
que o amam" O que sentis ainda, vossa Teofilia?
Eu respondi: - Um estranho calor!
- Como assim? Estamos na floresta. É Inverno, há neve sob os
nossos pés, temos por cima de nós mais de uma polegada de neve
e os flocos continuam a cair-nos em cima... Como é que poderia
fazer calor?
- É como nos banhos termais, quando se deita água sobre as
pedras quentes e que o vapor se escapa delas em, volutas ...
- E o odor? perguntou-me ele, É o mesmo que nas termas?
- Não, respondi eu, não há nada na terra de semelhante.
Quando, em vida de minha mãe, eu gostava de dançar, ia ao baile
e frequentava os saraus dançantes; a minha mãe, por vezes,
aspergia-me de perfume que ela comprava nas melhores lojas de
Kazan; mas mesmo esse perfume não espalhava um odor assim
como este... E o padre Serafim disse-me então, com um bondoso
sorriso:
- Sei-o tão bem quanto vós, meu menino, e é de propósito que
vos pergunto o que sentis. É totalmente verdade, vossa Teofilia!
Nenhuma fragrância terrestre pode alguma vez ser comparada
àquilo que sentimos neste momento, pois é o perfume do Espírito
Santo de Deus que nos envolve. O que poderia haver na terra de
comparável?... Notai, Vossa Teofilia, que me dissestes que à
nossa volta, está tanto calor quanto nas termas; no entanto, olhai:
nem sobre vós nem sobre mim, nem sob os nossos pés a neve
derrete. Este calor não está portanto no ar, ele está em nós. É esse
mesmo calor pelo qual o Espírito Santo nos obriga a clamar ao
Senhor com as palavras da oração: "Pelo calor do teu Espírito
Santo, aquece-me!" Aquecidos por este calor, os eremitas do
deserto, homens e mulheres, não temiam o gelo do Inverno, pois
estavam cobertos como que por uma pele quente, das vestes da
graça tecidas pelo Espírito Santo. E assim deve ser, a graça de
Deus deve habitar em nós, no nosso coração, pois o Senhor disse:
"O Reino dos Céus está em vós!" Por reino, o Senhor entendia a
graça do Espírito Santo. Eis aqui este Reino de Deus, agora
dentro de nós, e a graça de Deus enche-nos e aquece-nos também
por fora, enchendo de múltiplos odores o ar ambiente Ele alegra
os nossos sentidos com delícias celestes, penetrando o nosso
coração com uma alegria inefável...
DOCUMENTO 2: COMO ACENDER UMA CHAMA
CONTÍNUA NO SEU CORAÇÃO
Para acender o fogo em si próprio, eis algumas instruções de
Teófano Recluso (1815-1894). Elas são extraídas dum texto que
tem por título os "frutos da oração", reproduzido em "L'art de la
prière", uma obra editada por 1'Abbaye de Bellefontaine. De 1847
a 1854, Teófano explorou as bibliotecas do Médio-Oriente e
particularmente as da Palestina, herdeiras dos Padres do deserto.
Tornou-se bispo em 1859, depois eremita em 1866. O seu
principal legado é a sua correspondência, parcialmente publicada
em 10 volumes.
Vou agora explicar-vos como podereis acender no vosso coração
um foco de calor contínuo. Lembrai-vos como pode ser produzido
o calor no mundo físico: esfregam-se dois pedaços de madeira um
contra o outro, e o calor vem, e depois o fogo; ou então expõe-se
um objecto ao sol: ele aquece e, se concentrarmos suficientemente
os raios sobre ele, ele acaba por inflamar-se. Da mesma forma se
produz o calor espiritual. A fricção necessária é a luta e a tensão
da vida ascética; a exposição aos raios de sol é a oração interior
dirigida para Deus.
O fogo pode ser aceso no coração pelo esforço ascético, mas esse
esforço por si só não inflama facilmente o coração. Muitos
obstáculos surgem nesta via. É a razão pela qual, outrora, homens
que desejavam ser salvos, experimentados na vida espiritual,
movidos pela inspiração divina, e sem abandonar o seu combate
ascético, descobriram um outro meio de aquecer o coração. Eles
transmitiram-nos a, sua experiência. Esse meio parece simples e
fácil, mas de facto, não é sem dificuldades que se chega a bom
porto. Este atalho para chegar ao nosso objectivo, é a oração
interior que dirigimos, com todo o nosso coração, ao nosso
Senhor e Salvador. Eis como ela deve ser praticada: permanecei
com o vosso intelecto e a vossa atenção no coração, persuadidos
de que o senhor está próximo e vos ouve, e suplicai-o com fervor:
"Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim,
pecador". Fazei isto constantemente, quer estejais na igreja, em
casa, em viagem, no trabalho, à mesa ou na cama; numa só
palavra, desde o momento em que abris os olhos até que os
fecheis para dormir. Será exactamente como se mantivésseis um
objecto sob o sol, pois sois vós próprios que vos mantendes diante
da face do Senhor, que é o sol do mundo espiritual. No início,
devereis fixar-vos um, momento bem determinado, de manhã, e à
noite, e dedicá-lo exclusivamente a essa oração. Depois
descobrireis que a oração começa a trazer frutos, porquanto se
apoderará do vosso coração e se enraizará profundamente nele.

Quando
o Senhortudo
olhaisto se servo
o seu faz com zelo,
com sem negligência
misericórdia nem
e acende umomissão,
fogo no
seu coração; e esse fogo atesta com certeza de que a vida
espiritual despertou no mais íntimo do vosso ser e que o Senhor
reina em vós.
O traço distintivo deste estado no qual o Reino de Deus nos é
revelado, ou o que dá no mesmo - no qual a chama, espiritual arde
incessantemente no coração, é que o ser todo ele se concentra na
sua vida interior. Toda a consciência se recolhe no coração e aí
permanece na presença de Deus. Espalhamos diante dele todos os
nossos sentimentos, prosternamo-nos na sua presença com um
humilde arrependimento, dispostos a consagrar toda a nossa vida
ao seu único serviço. A alma permanece nesse estado dia após
dia, desde o despertar até ao momento do recolher; isto continua
pelas diversas actividades do dia até que o sol feche os nossos
olhos. Uma vez esta ordem estabelecida em nós, as desordens que
no passado dominavam as nossas vidas, cessam.
A impressão de insatisfação e de frustração que nos perturbavam
antes desta chama ter sido acesa em nosso coração, a
vagabundagem de espírito de que sofríamos, tudo isso agora
cessou. A atmosfera da alma aclarou-se, tornou-se sem nuvens.
Não permanece aí senão um só pensamento e uma só lembrança,
o pensamento e a lembrança de Deus. A claridade reina por todo
lado em nós, e, nessa claridade, cada movimento é reconhecido e
apreciado segundo o seu valor na luz espiritual que emana do
Senhor que contemplamos. Todo mau pensamento, todo mau
sentimento que assalta o coração é perseguido vitoriosamente
desde o seu aparecimento. Se alguma coisa oposta a Deus se
esgueira em nós, apesar de tudo, isso é logo humildemente
confessado ao Senhor e lavado pelo arrependimento interior ou
pela confissão exterior, de tal forma que a consciência permanece
sempre pura na presença de Deus. Em recompensa por toda esta
luta interior, obtemos a audácia de nos aproximarmos de Deus
numa oração que arde incessantemente no coração. Este calor
constante da oração é a verdadeira respiração desta vida, de tal
forma que o progresso da nossa peregrinação interior cessa, tal
como a vida do corpo termina quando cessa a respiração natural.
DOCUMENTO 3: A NUVEM SOBRE O SANTUÁRIO
O conselheiro Karl Von Eckhartshausen (1752-1803) exprimiu-se
de forma mais explícita sobre as relações entre "o estado de
doença da humanidade" e o sangue, por um lado, e por outro lado,
sobre o papel essencial do sangue na regeneração do homem.
Salvo indicação contrária, as citações são extraídas de Karl Von
Eckhartshausen, La nuée sur le sanctuaire, Paris, 1948. Para
redigir esta breve síntese, tomei alguns comentários à obra de
Antoine Faivre, Eckhartshausen et la théosophie chrétienne, Paris,
1969.
O HOMEM É UM DOENTE HEREDITÁRIO
O homem considerado hoje como normal é um doente hereditário.
O seu estado é patológico, sobretudo se o compararmos com o
equilíbrio adâmico. Este equilíbrio foi interrompido na sequência
do envenenamento simbolizado pela manducação do fruto
proibido: O estado de doença dos homens é um verdadeiro
envenenamento; o homem comeu do fruto da árvore na qual o
princípio corruptível e material predominava, e envenenou-se
com esse prazer. O primeiro efeito desse veneno foi de que o
princípio incorruptível, a que poderíamos chamar de corpo de
vida tal como a matéria do pecado é o corpo de morte, e cuja
expansão formava a perfeição de Adão, se concentrou no interior
e abandonou o exterior à governação dos elementos. É assim que
uma matéria mortal cobriu rapidamente a essência imortal e as
consequências naturais da perda da luz foram a ignorância, as
paixões, a dor, a miséria e a morte. A causa dessa doença deve ser
procurada na matéria destrutível, com que o homem é composto
desde o seu envenenamento; este fez aparecer no seu sangue um
fermento de corrupção endógena, que corrompe a alma e do
corpo, e que é hereditariamente transmissível. Esse fermento é:
uma matéria pegajosa (chamada "glúten") escondida, que tem um
parentesco mais aproximado com a animalidade do que com o
espírito. Por um lado, esta matéria obnubila as nossas funções

mentais
Por outroe lado
espirituais intoxicando
é a causa cronicamente
principal da o nosso
corruptibilidade cérebro.
da carne, os
agentes exógenos da destruição vindo apenas depois dela.
O QUE FAZER?
O homem é infeliz, pois está doente de corpo e de alma, e não
possui nenhum verdadeiro remédio, nem para o corpo, nem para a
alma. Todavia, a possibilidade de reaver o nosso corpo luminoso
reside sempre em nós como uma semente pronta a germinar. Este
germe, bem real, anuncia o anjo futuro. Como fazê-lo crescer? A
Regeneração não é mais do que uma dissolução e um afastamento
desta matéria impura e corruptível, que mantém ligado o nosso
ser imortal e mantém mergulhada num sono de morte a vida das
forças activas oprimidas. Pela vontade e pela ascese, o homem
pode vir a dominar esse fermento de corrupção que está nele, mas
não está ao seu alcance o poder de o aniquilar. A causa da
corrupção física e moral encontrando-se na nossa natureza
substancial, o remédio não pode ser unicamente moral: Há
séculos que se moraliza e o mundo é sempre o mesmo. O doente
não se tornará convalescente se o médico não fizer algo mais do
que moralizar junto ao seu leito. Como nos desembaraçar desse
fermento de corrupção? Assim, deve necessariamente haver um
meio real de procurar esse fermento venenoso que ocasiona em
nós a infelicidade, e de libertar em nós as forças retidas.

EM QUE DIRECÇÃO PROCURAR O REMÉDIO?


A cura da humanidade só é possível pela destruição em nós desse
fermento do pecado; por isso temos necessidade dum médico e
dum remédio. Que remédio restabeleceria o nosso estado de
glória? Certamente não seria um remédio tomado aos reinos
mineral, animal ou vegetal que são tão perecíveis quanto nós. Um
vez lembrada esta evidência, temos forçosamente de constatar que
... apenas o Indestrutível pode tornar o destrutível indestrutível;
apenas o que é vivo pode animar o que está morto. Por isso, não
se deve procurar o médico e o meio da cura na natureza
destrutível, onde tudo é morte e corrupção. Deve procurar-se o
Médico e o remédio na natureza superior, onde tudo é perfeição e
vida. Apenas um intermediário ao mesmo tempo divino e
humano, uma energia luminosa expressa e provinda do Pai, nos
pode socorrer. Cada palavra que eu pronuncio é o receptáculo dos
meus pensamentos. Cada pensamento contém-me. Assim também
o Cristo é o receptáculo de todas as faculdades divinas expressas
através d'Ele. Deus exprime um sol espiritual que liga o finito
com o infinito. Aqueles que o recebem podem tornar-se filhos da
luz.
O ANTÍDOTO
Sejamos mais concretos. Eis como Karl Von Eckhartshausen
assimila o medicamento universal a um contraveneno: quando o
homem, pela fruição dum fruto corruptível, que trazia nele o
fermento da morte, foi envenenado de tal forma que tudo o que
estava à volta dele se tornou mortal e destrutível, a misericórdia
divina estabeleceu um contraveneno que pode, da mesma forma,
ser absorvido, e que contem nele a substância que tudo vivifica,
afim de que, pela fruição desse alimento imortal, o Homem
envenenado e sujeito à morte possa ser curado e liberto da sua
miséria.
Assim como o homem se tornou mortal provando dum fruto
mortal, assim também ele recuperará a sua imortalidade,
provando dum fruto imortal. Também esse remédio não deve ser
procurado na natureza, mas na corporeidade divina que tudo
irriga. Foi necessário haver um homem, que escapou ao
envenenamento geral hereditário, e que foi ao mesmo tempo
revestido de matéria corruptível como os outros, que se desse a
conhecer como sendo a substância pura da qual tudo foi feito. E
foi necessário que ele depois consentisse em verter fora do seu
invólucro carnal o seu sangue que continha a substância
incorruptível perdida pelos outros, única capaz de os regenerar
operando lentamente uma dissolução do veneno corruptor: ...era
necessário também, que essa forma humano-divina fosse morta,
afim de que a substância divina e incorruptível contida no seu
sangue pudesse penetrar no mais interior da terra e operar uma
dissolução progressiva da matéria corruptível.... Este antídoto,
Eckhartshausen localiza-o no sangue de Jesus Cristo, ileso de
qualquer envenenamento, e também naquilo a que ele chama de
força tintorial desse sangue.
Donde tira este antídoto o seu poder? A Palavra de Deus não é um
conceito abstracto. É uma substância viva, real, à qual a Escritura
atribui o nome grego sophia, em português "Sabedoria". Duma
certa maneira, os sete Espíritos que rodeiam o Trono de Deus são
sete construtores que fazem dessa substância o fundamento da
criação. O Corpo de Luz de Jesus Cristo, e a fortiori o seu sangue,
é composto dessa substância. E possível ao homem beber desse
sangue, desse sal, dessa essência de Luz.
A PARTICIPAÇÃO NECESSÁRIA DO HOMEM
Esta regeneração pode ser entendida não apenas como a
integração
do ponto dedos homens
vista no corpo
da biologia, místico
como do Cristo,
uma síntese, emmas
cadatambém,
homem
vivo, das substâncias químicas ligadas às virtudes do corpo e do
sangue de Jesus Cristo. Esta síntese é obtida pela oração, pela
eucaristia e por uma imitação assídua e inteligente para pedir,
permitir e favorecer a acção da graça até ao plano somático. Esta
participação voluntária dos homens na vida do seu modelo, assim
como a comunicação que esse modelo lhes dá da sua substância e
do seu poder permitem a todo homem, que para isso se esforce
convenientemente, de realizar em si mesmo, no seu próprio
sangue, o antídoto regenerador.
A ALQUIMIA INTERNA
O homem é semelhante a um fogo concentrado e encerrado num
invólucro grosseiro. Está separado do fogo primordial ao qual
aspira a unir-se. O segredo da Regeneração assenta no
desaparecimento da casca que mantém prisioneiro o coração
divino, a faísca no mais profundo do homem, a imagem de Deus,
o Reino dos Céus perdido desde a queda. Para tal, é preciso
queimar o invólucro que nos recobre, fazer de maneira a que este
fogo em nós não se reduza apenas a uma pequena chispa. Ele
consumará o que é impuro, modificará o corpo, torná-lo-á
receptivo a Deus. Quando todas as coisas terão sido consumidas e
transformadas pelo agente divino que escolhe o minério, o
homem poderá então ter a esperança de reencontrar este belo
corpo clarificado. O objectivo a atingir é a re-divinização dos
filhos de Adão, conferindo ao corpo a perfeição astral, à alma a
perfeição celeste, e ao espírito a perfeição angélica. É isto a que
se chama a grande construção do Templo no qual Deus, a
natureza e o homem serão unidos para sempre.
Os três símbolos alquímicos - o sal, o mercúrio e o enxofre -dão-
nos a mesma chave. Este antídoto regenerador, esta pedra
filosofal contém emNo
espírito (mercúrio). unidade a água
homem, (sal),
a terra deveo sangue (enxofre)
ser virada eo
do avesso
ou regenerada, isto é, a substância luminosa que está ligada deve
dominar a substância "sal". O mercurial (espírito volátil) deve ser
tornado essencial, o enxofre (o terrestre) deve tornar-se espiritual.
Dito de outra forma, o espírito corporiza-se enquanto o corpo se
espiritualiza.
A TRANSFIGURAÇÃO DO MUNDO

A natureza actual, tal como o homem, não é senão uma


preparação a um novo céu e uma nova terra. Pela sua morte, o
Cristo tingiu a terra. A força tintorial do seu sangue penetrou
intimamente esta terra, ressuscitou os mortos, quebrou os
rochedos, foi a causa dum eclipse total do sol no momento em
que todas as partes tenebrosas que estavam no centro da terra
foram empurradas para a circunferência. A luz penetrou nesse
centro, posando o fundamento da glorificação futura do mundo: a
força tintorial, que verteu do Seu Sangue jorrado, penetrou no
íntimo da terra, ressuscitou os mortos, quebrou os rochedos e
ocasionou o eclipse total do sol, quando empurrou, do centro da
terra na qual a luz penetrara, todas as partes das trevas para a
circunferência, e posou a base da glorificação futura do mundo"
Desde esse instante, a força divina assim descida no centro da
terra trabalha incessantemente para a sua exteriorização. A
essência luminosa trabalha incansavelmente na natureza para
trazer todas as coisas para a sua alta perfeição. Quando a
harmonia for restabelecida entre os mundos sensíveis e invisíveis,
a natureza terá sido levada a tal grau de inalterabilidade que
qualquer corrupção se tornará impossível: Desde a morte de
Jesus, a força divina, instilada no centro da terra através do Seu
Sangue vertido, trabalha constantemente para se exteriorizar e
tornar todas as substâncias gradualmente capazes do grande
constrangimento que está guardado para o mundo.
EM CONCLUSÃO
Para o nosso estudo sobre a deificação do homem, Karl Von
Eckhartshausen propõe duas chaves sobre as quais insiste no final
da sua quinta carta. A primeira chave lembra-nos que Na clara
compreensão da Carne e do Sangue de Jesus Cristo reside o
verdadeiro e puro conhecimento da efectiva regeneração do
homem. A segunda chave afirma o que a teologia ocidental finge
não saber: O mistério da união com Jesus Cristo, não apenas
espiritualmente mas também corporalmente, é o supremo mistério
da Igreja Interior. Esta última frase contém três palavras
explosivas: mas também corporalmente.
DOCUMENTO 4: A MEMORIA DO SANGUE
Estas citações dum artigo de Argos {alias Georges-Auguste
Thomas, 1884-1966), Du sang et de quelques-uns de ses
mystères, foram publicados na revista Le Voile d'Isis n° 142, Out.
1931,
d'Isis, pag. 582-586.
Georges Antigo
Tamos chefe
tinha de redacção
assistido da revista Le Voile
Charbonneau-Lassay no
efémero restabelecimento da Fraternidade do Paracleto, a 10 de
Setembro 1938. Esta fraternidade havia sido fundada ou
transformada em ordem de cavalaria, entre 1500 e 1510.
Nestas linhas, são desenvolvidas úteis considerações sobre a
questão da herança pelo sangue. Nelas encontramos o verdadeiro
significado do "sangue azul", próprio da nobreza cristã tornada
instrumento do plano divino. A marca inapagável que confere a
sagração ou o sacerdócio, assim como certas práticas mágicas
menos recomendáveis, encontram nelas o seu lugar exacto.
Os nossos pecados imprimem-se no nosso sangue e nós
transmitimo-los aos nossos filhos assim como lhes transmitimos
as doenças hereditárias, e isto é ainda hoje bastante ignorado. Os
nossos antepassados, mesmo os mais afastados, estão aqui, no
nosso sangue, com as suas qualidades e defeitos, e muitas vezes
os nossos impulsos irracionais não são mais do que surtos
repentinos de ancestralidade, com os quais nos batemos. No
caminho da ascese, esta é uma das mais curiosas experiências que
espera o místico; aquela em que, quando o seu sangue, o sangue
de toda a sua linhagem que corre através dele, sofre a
transformação necessária, ele vê surgir desse sangue todos os
ancestrais que o levaram até ele; ou pelo menos, todos aqueles
que pelo seu esforço juntaram alguma... qualidade a esse sangue;
todos aqueles, por fim, que por essas qualidades vão ter direito
numa certa medida à ascensão do asceta. Pois, e isso é algo ainda
menos conhecido: quem perfaz a ascese arrasta consigo, ainda
que num grau menor, todos os da sua linhagem que disso foram
dignos. "Eu vi o quadro da minha vida antes do meu nascimento,
ou antes, o dos meus antepassados" diz Catherine Emmerich. Esta
experiência da santa espera mais cedo ou mais tarde aquele que
procura avançar no caminho, e que compreende então aquilo que
alguns chamaram "o despertar da memória hereditária". É ainda
por isso que Catherine Emmerich pôde ver "que as almas dos
verdadeiros nobres têm mais influência sobre os seus
descendentes que as outras almas"; é também por isso que em
Zanoni se pode ler que não é permitido recusar a iniciação a
qualquer descendente de iniciado, mesmo quando o iniciador
prevê os perigos que essa iniciação constitui para o postulante.
Mas nestes dois últimos casos uma influência externa veio juntar-
se, da qual convém dizer algumas palavras. Qualquer sagração,
qualquer unção, qualquer iniciação recebida imprime-se no
sangue, impregna-se na substância viva: é por isso que é dito,
aquando da sagração dos príncipes e dos reis: "que por esta unção,
o poder do Espírito Santo penetre através do vosso sangue até ao
vosso coração", e esse sangue, uma vez marcado, assim
permanece por gerações e gerações. É aqui que a realeza
hereditária encontra o seu ponto de apoio e onde as pretensões da
nobreza, entendo por nobreza aquela em que um ancestral recebeu
uma unção, foi sagrado príncipe, duque ou conde, ou aquando
duma cerimónia especial, foi sagrado cavaleiro segundo o ritual
adequado, é aqui que as pretensões dessa nobreza em possuir um
sangue especial, um "sangue azul" encontra a sua realidade... E se
se pudesse mostrar como é que ainda hoje certos sangues, nos
quais permanece ainda a "memória hereditária" duma antiga
sagração, como é que esses sangues se procuram duma maneira

que
o é, poderia
para separecer
uniremtotalmente inconsciente
e reformarem pela suae que
uniãonoeentanto, não
pelos seus
descendentes uma nova classe nobre, hoje em que poderia parecer
que as castas não existem mais, ver-se-ia que há coisas muito
poderosas por detrás dessa lei do sangue. E ver-se-ia também que
tudo o que se imprime no sangue aí se imprime de forma
indelével e não mais pode ser apagado, senão por duro trabalho de
ascese, ou nalguns raros casos por mãos ou substâncias altamente
santificadas. E chamo aqui aqueles que, tendo recebido as ordens,
tendo recebido a unção sacerdotal, pretenderam de seguida voltar
"para o século", para que nos digam se eles se sentem realmente
seres "como os outros", se não têm, no mais íntimo deles, no seu
sangue, qualquer coisa, aliás de que sofrem, qualquer coisa que os
diferenciam, que tão bem sentem, mal se aproximam deles, os
seres sensitivos. Quanto à iniciação dada em modo humano, a
marca ou a transformação que ela imprime no sangue, na
substância viva, pode ser de várias formas segundo a força ou o
grau de iniciação recebida. Mas aqui um novo factor intervém: a
pessoa do iniciador. Se, aquando da sagração, da unção
sacerdotal, é o poder do Espírito Santo que cobre ou deveria
cobrir o postulante com a sua sombra, e se a pessoa do Pontífice
tem um papel secundário na maior parte das iniciações, esse papel
secundário é todavia primordial... Mas então uma conclusão se
impõe. Quando o iniciador é um Moisés ou um Elias,
participando efectivamente do Espírito divino, se é realmente um
sábio ou um santo, tudo está bem; mas haverá ainda muitos
Moisés ou Elias? E se o iniciador, se o Guru for limitado nos seus
poderes, se o seu sangue ainda estiver entrevado com o "glúten"...
o que acontece com o sangue, a substância viva do iniciado? Ele
saberá, claro está, aquilo que sabe o iniciador, e poderia aqui fazer
um reparo que poucos sem dúvida tiveram ocasião de fazer; é que
quando um ser participa do espírito e do poder dum outro, as suas
palavras ou os seus escritos são de tal forma o eco dos escritos e

das palavras
difícil do espírito Entre
ver a diferença... que oaqueles
assombra,
que que é por dos
ao longo vezes muitose
tempos
proclamaram ou deixaram entender que eram autênticos iniciados,
notam-se por vezes algumas diferenças sérias, tanto nos seus
ensinamentos como nas acções; e se alguns se mostram como
sábios perfeitos, outros aparecem como menos recomendáveis... e
não falo aqui dos iniciados da "mão esquerda". É porque o manto
que foi pousado sobre os seus ombros não era de linho fino; e
aqui é que está o perigo. Foi por saberem isso que um
Eckhartshausen e todos aqueles a quem podemos chamar de
verdadeiros Hermetistas Cristãos, sempre proclamaram: "É o
Cristo, o Verbo e apenas Ele que deve ser o mestre, que deve ser
o iniciador". "E apenas Deus e o seu Espírito Santo que vos
podem dar a verdade perfeita, mas é preciso pedi-la
humildemente". "Deus dá a Sabedoria e espalha-a largamente
sobre aqueles que o amam... mas recusa-a ao orgulho e à
soberba"... E o que é preciso saber, é que quando o sangue,
quando a substância viva dum ser foi marcada como o lacre dum
selo, e isto com o seu consentimento, ser-lhe-á quase impossível,
se mais tarde reconhecer que o selo tem defeitos, apagar essa
impressão. Apenas o poderá fazer aceitando uma impressão ainda
mais forte, revestindo-se duma armadura mais poderosa, e isto
não será sem grandes lutas e grandes choques. Poderíamos
encontrar mais do que um exemplo. Por vezes, mesmo aquele que
foi aceite segundo os ritos, que é membro duma confraria
iniciática ou oculta, poderosa, paga imediatamente com a sua vida
a falta de querer, não trair a confraria, mas apenas deixá-la. Não
se brinca impunemente com as misteriosas leis do sangue. Cabe
ao postulante escolher bem. Tudo isto diz respeito àquilo a que
chamei iniciações em modo humano, iniciações em suma...
secundárias.É igualmente no sangue e pelo sangue que operam,
como já o assinalei antes, por um lado as bênçãos e por outro
lado, felizmente apenas até à quarta geração, as maldições, os

feitiços,
maldito etc. ...poisoso filho,
segundo o neto,
ritos ou dumo ser
bisneto
que dumfoi ser que foi
enfeitiçado
plenamente e com razão, carregarão ainda o peso dessa maldição
ou desse feitiço. Trata-se aqui duma lei terrível, lei essa que é um
dos aspectos daquela que visa os males de transmissão hereditária
mas aqui em modo psíquico e... 'magnético...
... É precisamente porque, pelo seu sangue, o homem participa da
natureza tenebrosa ao mesmo tempo que participa da luz, porque
está no limite entre a luz e as trevas, que ele pode agir pela magia
tanto para o bem como para o mal; é porque o sangue contém os
dois poderes, porque pode chamar a ele as forças de baixo como
as forças de cima, que ele é a "matéria" principal, senão a única
de toda a magia cerimonial, o suporte, o condensador nas
evocações mágicas tanto dos seres de cima como dos de baixo...
Céu - Homem - Terra... Mas é também ele, este sangue que com a
sua irmã gémea água das fontes que brotam da terra, água dos
poços sagrados aos pés das virgens negras, que é a substância
empregue nos baptismos e purificações. 'Aquele que venceu o
Mundo - diz São João - é Jesus Cristo, que veio com a água e o
sangue". E compreender-se-á, julgo eu... porque é que foi
necessário, para resgatar o sangue de Adão faltoso, que a própria
Luz feita "carne" viesse derramar um "sangue divino" no mais
profundo da substância entrevada, e porque é que existe para o
homem e para o seu sangue um verdadeiro Mistério Eucarístico,
que é talvez mais transcendente que aquilo que se entende
normalmente pela expressão de "mistério da Eucaristia".

Uso interno

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