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12/03/2019 Pureza e poder

EDIÇÃO 132 | SETEMBRO_2017

questões minoritárias

PUREZA E PODER
Os paradoxos da política identitária
ANTONIO ENGELKE

Se os argumentos forem avaliados a partir da “pureza” de quem fala, em detrimento da sua validade ou consistência interna,
então os próprios discursos subalternos podem perder força FOTO: CARLOS MOSKOVICS_ACERVO INSTITUTO
MOREIRA SALLES_BAILE DE CARNAVAL_C. 1950_RIO DE JANEIRO

Q
uem acompanha as redes sociais no Brasil de hoje provavelmente já
se deparou com a gíria “lacrar”. Dizer que fulano “lacrou” é
expressar admiração por uma ação ou fala que é percebida como o
ponto final, a última palavra sobre um determinado assunto ou situação.
Depois que alguém “lacrou”, supostamente nada resta a ser dito.
É
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É uma imagem que diz muito, em particular sobre o momento político


em que vivemos. Como toda metáfora, além de iluminar um
determinado aspecto da experiência, a ideia de “lacre” também ajuda a
reforçar certas compreensões e comportamentos. Ao acioná-la,
reforçamos a ideia de que debates, em princípio, admitem um
fechamento irrevogável, e não são desprezíveis as consequências disso
para as discussões concretas de que venhamos a tomar parte.

Mas nada justifica essa crença. Debate algum pode ser encerrado por
força de um argumento supostamente último. As constantes mudanças
políticas e comportamentais são prova disso. Tome-se o caso de grupos
subalternos – negros, gays, mulheres –, que historicamente tiveram a voz
anulada, deslegitimada, e hoje conseguem se fazer representar na esfera
pública, ainda que as assimetrias persistam. Por isso mesmo não deixa de
ser curioso que a metáfora do lacre prospere precisamente entre
movimentos políticos que têm nas identidades de gênero, raça e
orientação sexual sua razão de ser.

Não se trata aqui de generalizar, de dizer que todo ativista identitário seja
um “lacrador” de debates – aliás, não são poucas as vozes dentro dos
próprios movimentos identitários a criticar a postura que acompanha a
metáfora. Ademais, é fato que o termo conquistou um sentido que
ultrapassa o campo da política (pode-se “lacrar” ao usar uma roupa
bonita numa festa). Contudo, a frequência com que a metáfora é
empregada pode ter algo a nos dizer não apenas acerca do repertório de
crenças e ações da política identitária, mas também sobre como esse
repertório se coaduna com a paisagem mais ampla da política
contemporânea, a despeito da declarada intenção, por parte desses
movimentos, de subverter essa mesma paisagem.

É difícil exagerar a dimensão e a importância das transformações que os


movimentos sociais baseados em identidades vêm colocando no mundo.
Talvez por isso mesmo seja igualmente difícil criticar alguns dos alicerces
sobre os quais esses movimentos têm, cada vez mais, se apoiado – como,
por exemplo, as noções de “lugar de fala” e “apropriação cultural”.
Tampouco é simples examinar a tensão existente entre, de um lado, a
adoção de posturas combativas, de enfrentamento, por parte da
militância identitária, e, de outro, a necessidade de convencer possíveis

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interlocutores da razão de seus argumentos – dialogando, valendo-se de


esforços “educativos”.

É essa a tarefa a que me proponho neste texto: observar os paradoxos de


uma prática política que tem exigido, com razão, a radicalização da ideia
de democracia, mas que talvez esteja somando forças à crescente onda de
contestação a alguns dos pressupostos dos regimes democráticos –
ataques que vêm tanto da direita quanto da esquerda, de líderes
populistas e de críticos das insuficiências da política representativa, de
representantes da elite e do “mercado”.

V
ejamos a noção de “lugar de fala”. Grosso modo, seu intuito é
chamar a atenção para quem fala, de onde fala, e não somente para
o que está sendo dito. Isto é, a noção de lugar de fala surgiu para
afirmar que o conteúdo de um discurso não pode ser avaliado apenas em
si mesmo, sem que observemos as condições materiais e simbólicas de
sua enunciação. Trata-se de tornar visíveis os mecanismos através dos
quais certos discursos parecem naturalmente dotados de autoridade,
enquanto outros permanecem tacitamente relegados ao descrédito. Não é
pouca coisa: a noção de lugar de fala abre um espaço ao pensamento e à
ação no sentido de questionar privilégios e identificar as formas de
reprodução de assimetrias de poder e hierarquização de vozes.

No debate contemporâneo, entretanto, a noção de lugar de fala ganhou


um sentido diverso. Ela agora tem por base a crença de que a vivência, a
experiência pessoal do sujeito, fundamenta exclusivamente a
compreensão. “Não te cabe julgar uma realidade que você não vive”,
decreta um meme que viralizou nas redes sociais. O argumento tem um
fundo de verdade; pressupõe, entretanto, uma relação inequívoca entre
experiência e compreensão. Mas vivência não implica automaticamente
entendimento, como Freud sabia já no século XIX, quando examinava a
incapacidade de neuróticos e histéricos perceberem de maneira
esclarecida o próprio sofrimento. A experiência é uma condição
necessária, mas não suficiente, para o conhecimento. Há sempre um hiato
entre aquilo que experimentamos e o modo como lhe conferimos
inteligibilidade: nenhuma experiência constitui por si só uma história

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acabada, apenas oferece elementos a partir dos quais podemos tecer sua
significação. Paradoxalmente, a experiência pode ser ao mesmo tempo
uma condição para o conhecimento e um obstáculo à sua obtenção, pois é
também o excesso de proximidade ou familiaridade que introduz
problemas à nossa capacidade de compreensão.

Submetida a essa torção, que transforma vivência pessoal em sinônimo


de conhecimento absoluto, a noção de lugar de fala vem sendo
empregada como lastro da pretensão ao monopólio da legitimidade do
discurso. Evidente deslizamento: o que era antes um instrumento de
questionamento do discurso, e que poderia eventualmente dar ensejo a
uma reivindicação de autoridade sobre uma determinada questão, mas
sem com isso excluir o reconhecimento da validade de outras
perspectivas, transforma-se numa espécie de selo de garantia de um
único discurso legítimo possível, cujo mero questionamento constituiria
uma impropriedade. Longe de superar os termos do poder estabelecido,
tal expediente apenas os reproduz com sinal invertido: se antes os grupos
hegemônicos se valiam de uma pretensão universalista para afirmar a
incapacidade do subalterno de representar a si próprio, pois que lhe
faltaria a objetividade ou a neutralidade científica necessárias, agora
subalternos recorrem ao essencialismo particularista para negar a outrem
a legitimidade do que quer que tenham a dizer sobre eles. Não estou
sugerindo que sejam hábitos de pensamento equivalentes; mas são ambos
verticais, herdeiros de uma moldura cognitiva hierárquica, predisposta à
adesão a respostas imediatas.

O operador dessa transformação parece ter sido a articulação entre o


conceito de lugar de fala e uma concepção bastante particular do modo
como o poder lhe estaria imbricado. Trata-se de um argumento formalista
que procura estabelecer uma relação direta e inescapável entre as
hierarquias sociais e os efeitos de verdade que delas decorrem. “A
constatação desses diferentes efeitos de verdade que variam segundo o
lugar de fala”, escreve o professor da USP Pablo Ortellado num texto
esclarecedor sobre o significado do conceito, “faz com que um discurso
crítico sobre a condição subalterna da mulher, quando enunciado por um
homem, entre numa espécie de contradição performativa – como se ele
negasse, na prática, o seu conteúdo. Isso acontece porque o discurso
feminista enunciado pelo homem pressupõe, e implicitamente referenda,

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a hierarquia dos efeitos de verdade que dá mais autoridade ao homem do


[1]
que à mulher.”

A lógica do argumento é inatacável. Talvez por isso mesmo, por ser tão
persuasiva, ela contribua inadvertidamente para o apagamento da
distinção entre os diversos tipos de interação com o outro. Falar pelo
subalterno é ato carregado de violência simbólica e, a despeito das
intenções do enunciador, exemplifica em toda sua força essa contradição
performativa mencionada por Ortellado. Falar do subalterno supõe um
distanciamento analítico que pode variar desde uma perspectiva crítica
esclarecida sobre o outro – a esquerda materialista argumentando que a
política de identidades dificulta o reestabelecimento da solidariedade de
classe, por exemplo –, até uma postura abertamente hostil, como o
comentarista de internet que descarta com impaciência o debate sobre
apropriação cultural, caracterizando-o como mera frescura. Por fim, falar
com o subalterno pressupõe aquilo que o filósofo Hans-Georg Gadamer
chamava de fusão de horizontes, uma compreensão advinda da
ampliação de nosso horizonte cognitivo em função de uma abertura para
o outro, uma disposição de se deixar afetar pelo outro, embora ciente de
que a qualidade dessa compreensão jamais fará jus à realidade por ele
vivida.

Essas distinções muitas vezes deixam de ser percebidas no uso corrente


da noção de “lugar de fala”. A recusa em manter-se permeável às trocas
desse último tipo de interação, seja por incapacidade de distingui-lo dos
demais, ou pela convicção de que o interlocutor está tão somente
referendando o próprio lugar de fala durante o diálogo, sinaliza o
fechamento autorreferido do indivíduo ou grupo subalterno em torno de
si mesmo.

Há uma diferença entre dizer que o poder importa (para o discurso), e


dizer que o poder é tudo o que importa (no discurso). Interrogar as
condições de possibilidade e efeitos de verdade do discurso é uma coisa;
outra, totalmente distinta, é o descarte automático de argumentos apenas
em função do lugar de fala de quem o enuncia. Tal descarte supõe a
redução do discurso ao elemento de poder que o atravessa e constitui.
Quando certas feministas afirmam que homem algum poderia ter
qualquer coisa a acrescentar ao feminismo, o substrato dessa afirmação
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não é apenas que a falta de vivência condenaria o discurso masculino ao


erro; é que o efeito desse discurso só poderia ser o de conservar o poder
do lugar de fala dos homens. Mas esvaziar completamente o conteúdo
substantivo do discurso, de modo a reduzi-lo a uma questão formal de
poder de quem o enuncia, é um tiro no pé.

Se o poder é o princípio e o fim do discurso, se os argumentos devem ser


avaliados não em função de sua validade ou consistência interna, mas
levando-se em consideração somente as relações de poder que envolvem
seus autores, então os próprios discursos subalternos perdem força, na
medida em que podem ser vistos como mera ferramenta política na luta
por poder, e não como um conjunto de reivindicações cuja validade
intrínseca obrigaria ao reconhecimento por qualquer humanista que se
queira digno do nome. Dito de outro modo: as lutas contra o racismo, o
machismo e a homofobia correm o risco de perder boa parte de sua força
se forem enquadradas e compreendidas não como pressupostos
civilizacionais, mas como movimentos estratégicos da batalha pela
redistribuição do poder.

A
o fazer da vivência pessoal um sinônimo automático de
conhecimento de causa e usar esse conhecimento como esteio da
reivindicação do monopólio da legitimidade do discurso, a política
identitária assume o ideal de pureza como um dos fundamentos de sua
ação. Postura tautológica: somente os puros podem falar, e sua fala é
válida justamente porque falada por puros. Não é trivial, para dizer o
mínimo, estipular o local onde começa e termina essa pureza. A linha que
separa a “verdadeira” pertença a uma identidade sempre poderá ser
convenientemente movida ao sabor da satisfação de critérios atribuídos a
uma suposta essência, que, como toda essência, nunca pode ser
localizada, somente inventada. Assim, a noção de lugar de fala converte-
se num cavalo de batalha, um “supertrunfo” acionado de acordo com a
necessidade de uma demarcação imaginária de fronteiras que separariam
um “nós” legítimo de um “eles” desautorizado a falar.

A realpolitik, entretanto, se encarrega de borrar essas fronteiras, de


conspurcar o ideal de pureza que lhes subjazem. Considere o caso do

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vereador paulistano Fernando Holiday, do Democratas. Negro,


homossexual, filho de um garçom e uma auxiliar de enfermagem,
Holiday é um dos coordenadores nacionais do Movimento Brasil Livre, o
MBL. Crítico do que afirma ser “vitimismo” de grupos subalternos,
Holiday é contra políticas de cotas raciais, por entender que estimulam o
racismo. É igualmente contrário ao Dia Nacional da Consciência Negra,
bem como à Secretaria Municipal de Promoção da Igualdade Racial de
São Paulo, que, na sua visão, não contribui para combater o racismo ou a
homofobia, servindo apenas como cabide de empregos que sustentam
discursos preconceituosos e segregacionistas.

Já se vê o curto-circuito: grupos subalternos têm a expectativa de que


determinadas vivências engendrem visões do mundo, em geral
progressistas, cujos valores lhes sejam aderentes. Ocorre que, na verdade,
mais da metade da população brasileira concorda com a afirmação
“bandido bom é bandido morto”, segundo uma pesquisa Datafolha
divulgada no final do ano passado, e 79% eram contra a legalização do
aborto, de acordo com o Ibope, em levantamento de 2014 (a estatística
não contemplava o corte por gênero, mas 79% é um número alto demais
para imaginar que apenas homens desaprovam o aborto). Não são
poucos os excluídos que desprezam os direitos humanos, bem como
mulheres contrárias ao imperativo “meu corpo, minhas regras”. Se a
legitimidade do discurso depende principalmente do lugar de
enunciação, e não do conteúdo substantivo dos enunciados, então a
política identitária fica sem ter como justificar a superioridade da própria
perspectiva sobre os adversários conservadores que coabitam o lugar de
fala desta ou daquela minoria.

Eis-nos diante de um impasse, bem definido pelo filósofo Ernesto Laclau:


se o particularismo for o único princípio válido, então terá
necessariamente que aceitar particularismos violentos, excludentes ou
opressores. As demandas entre os grupos conflitantes entrarão em
choque, e o único jeito de resolver a disputa é apelando para princípios
de validade geral. Reconhecer a existência de princípios universais não é
algo com o qual boa parte da política identitária parece se sentir
confortável, seja porque isso impõe limites à afirmação de
particularismos, ou porque aproxima sua política do campo liberal.

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Qual a alternativa? Declarar que subalternos não progressistas, como o


vereador Holiday, estão imersos em “falsa consciência”? Evocar a noção
de falsa consciência, espécie de véu ideológico que impediria o sujeito de
enxergar a realidade, tornaria o curto-circuito em que a política
identitária se enreda ainda mais evidente. Se subalternos não
progressistas são autômatos da norma conservadora em que foram
socializados, sendo portanto incapazes de pensar com autonomia, é
porque precisam ser trazidos à verdade por um outro esclarecido – como
as feministas radicais (radfems) argumentando que sexo pago é estupro,
lançando-se em campanhas para criminalizar a prática, a fim de salvarem
prostitutas de si próprias. Então ficamos assim: quem não tem lugar de
fala subalterno não tem o que dizer; e quem tem, mas o contradiz, não
aprendeu a pensar. Seja como for, reduz-se a possibilidade de a política
identitária tomar consciência de suas próprias contradições.

U
ma dessas contradições aparece na discussão sobre “apropriação
cultural”.

Vale esclarecer desde já que apropriação cultural não diz respeito ao


fluxo de trocas, inerente ao mundo globalizado, de pessoas e artefatos,
mas sim a um tipo específico de mecanismo de capturas, simbólicas e
concretas, que contribui para perpetuar relações de poder que subjugam
grupos minoritários. “A cultura negra é popular”, afirma o poeta B. Easy,
“mas as pessoas negras, não.” Para ficar no exemplo racial, há uma
espécie de descolamento entre os produtores da cultura negra e os seus
produtos: estes recebem uma aura fetichista que seduzirá públicos os
mais diversos, enquanto aqueles permanecem relegados a um segundo
plano de visibilidade e reconhecimento.

Grupos subalternos seguem lutando para conquistar autoridade


discursiva sobre sua própria realidade, história passada ou presente, e
aspirações futuras. Nada mais coerente que se mantenham vigilantes ao
modo como são representados, ou às maneiras através das quais a
representação sobre si lhes é usurpada, a apropriação cultural sendo uma
delas. Mas como pensar essa usurpação? A filósofa Djamila Ribeiro
afirma, acertadamente a meu ver, que o problema é sistêmico, e que

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portanto o debate sobre a apropriação cultural não pode girar em torno


do indivíduo. Dizer que um dado problema é sistêmico ou estrutural é
dizer que ele não pode ser compreendido e explicado a partir da ação do
indivíduo. Racismo, por exemplo. Estando encrustado no funcionamento
das instituições políticas, na escrita das legislações, nos sistemas de
produção e circulação de informação e entretenimento, na estética
publicitária, o racismo não pode ser reduzido a eventuais manifestações
individuais, isto é, visto apenas como má escolha de pessoas
preconceituosas, embora isso também seja parte do problema.

Apelar à consciência do indivíduo, no sentido de instá-lo a compreender


as implicações do uso de artefatos culturais, é deslocar o debate sobre
apropriação para o terreno da moralidade. Os marcos analíticos mais
amplos da questão – a relação entre fetiche e consumismo, a lógica de
mercado que os atravessa – ficam escanteados, apagados diante do
imperativo solitário de fazer a coisa certa. Em termos políticos, é
contraproducente fechar o problema exclusivamente no sujeito que se
apropria, quanto mais não seja porque muitas vezes há a tendência a se
exercer a vigilância sobre a apropriação como um fim em si mesmo, não
como parte de uma luta mais ampla contra forças sistêmicas, instituições
e aparelhos do Estado. Do ponto de vista do status quo, nada é mais
conveniente do que uma esquerda empenhada em persuadir o indivíduo
a acreditar que sua correção moral terá impacto significativo na forma
como a diferença cultural é representada.

A ideia de apropriação cultural parte do princípio de que qualquer


utilização exógena de artefatos culturais implica algum tipo de
deturpação ou descaracterização de seu sentido original. Essa alegação
está baseada na premissa de que esses artefatos possuem um significado
essencial estável, uma pureza originária imutável. Sabemos, entretanto,
que culturas são imensas colchas de retalhos continuamente feitas e
refeitas: mosaicos que se expandem enquanto agregam, não museus que
conservam a si próprios ao longo do tempo. E assim como o sentido de
uma frase não está embutido nas palavras que a compõem, só podendo
ser avaliado observando-se o contexto de sua enunciação, também o
sentido do uso de um artefato cultural depende da circunstância em que
ocorre.

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No caso do Carnaval, é frequente o apelo para que foliões não usem


turbantes, cocares, quimonos e hijabs, o que contribuiria para o processo
de estereotipagem das culturas das quais tais artefatos são expressões. O
equívoco está em supor que o artefato cultural, ao ser utilizado como
fantasia carnavalesca, tenha esvaziado o seu significado. Justo o oposto, é
exatamente porque seu significado já é outro que o artefato pode se fazer
fantasia. A primeira afirmação supõe a ideia de perda: havia algo de
originalmente verdadeiro no artefato, que se perdeu em função de seu
uso. A segunda afirmação supõe a ideia de transformação, que dissolve
de antemão a suposta obrigação de adequação a uma verdade tida como
original. Sem transformação – temporária, mais como um travestimento –
não há Carnaval. É a possibilidade de transformar-se naquilo de que se
está fantasiado que liberta a pessoa da obrigação de ser quem ela é. Mas
esse travestimento nunca é completo; ao contrário de um personagem de
cinema ou de novela, casos em que há mais propriedade para a crítica ao
estereótipo, o folião não deve convencer ninguém de que ele é, de fato,
árabe ou pai de santo.

O estereótipo é metonímico, toma uma parte imaginária pelo todo. Nesse


caso, a crítica acerta o alvo: fantasias como “nega maluca”, por exemplo,
são representações de uma cultura opressora, não algo oriundo da
cultura negra, cuja apropriação viria então distorcer. Mas, no geral,
fantasias de Carnaval são alegóricas. Tudo o que elas têm a dizer de
verdadeiro é sobre o sujeito que a encarna, não sobre a cultura ou grupo a
que faz referência.

N
inguém que conheça um pouco da história dos movimentos sociais
deixará de observar a importância da insubordinação, do confronto
aguerrido, no estabelecimento progressivo do sucesso de suas
reivindicações; os exemplos são muitos e por demais conhecidos para que
percamos tempo relembrando-os aqui. A atuação de movimentos sociais
contra-hegemônicos oferece uma ilustração do que Jacques Rancière
qualifica propriamente de política: a luta dos excluídos (“aqueles que não
têm parte”, no jargão do autor), ao se insurgir contra as forças do status
quo, leva aos olhos aquilo que permanecia invisível, transforma em
discurso aquilo que era percebido somente como ruído, enfim, altera a

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própria definição das fronteiras que separam o “dentro” e o “fora” de


uma determinada comunidade política. Nesse sentido, tal luta não seria
um mero complemento que, partindo das margens ou periferias, vem se
somar a um determinado conjunto social já dado, mas sim um
suplemento, cuja ação modifica a estrutura desse conjunto desde o seu
interior.

Para além desse caráter agonístico, tanto em sua inscrição institucional,


por meio da atuação de representantes eleitos, quanto através dos
inúmeros atores individuais que avançam a luta em seus cotidianos, os
movimentos sociais operam também sobre um eixo pedagógico, com a
preocupação de conseguir uma transformação de sensibilidades, por
meio da conscientização e desconstrução de preconceitos. Essa é uma
distinção analítica; na prática, os aspectos “agonístico” e “pedagógico”
misturam-se com frequência. A questão é que, ao invés de convergirem,
de se reforçarem mutuamente, eles parecem na verdade estar se
sabotando, o pedagógico sacrificado em função do agonístico. O trabalho
de persuadir quem pensa diferente de você não fica exatamente mais fácil
quando, em boa parte do tempo, você empenha sua energia na
excomunhão dos impuros. Como estratégia de convencimento, tem
alcance bastante limitado.

A pureza identitária exige um sistema de coerências cujos custos políticos


superam os benefícios. É sintomático que boa parte da energia dos
grupos identitários seja direcionada contra a própria esquerda – pois é
apenas aí, no meio progressista, que a retórica e a moral associadas à
[2]
noção de lugar de fala têm eficácia . Mais ainda, é somente entre uma
parcela da esquerda que o imperativo do “Cale-se e subscreva” pode ter
alguma aderência. Afora o fato de que a cobrança de submissão
incondicional de qualquer potencial aliado trabalha contra a ampliação
da base da luta identitária, há ainda a dúvida acerca do próprio caráter
dessa aderência. O silêncio dos “desconstruídos” que se recolhem ao seu
“lugar de escuta” diante de qualquer discurso subalterno implica em
respeito genuíno ou mero paternalismo? Acatar automaticamente
argumentos por exigência, sem lhes dispensar atenção interessada e
crítica, é um ato de condescendência, portanto desrespeitoso, como
observou o filósofo Charles Taylor. Demandar reconhecimento absoluto
ao que eu digo, somente por eu ser quem sou, é partir do princípio de
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que o conteúdo substantivo da minha fala talvez não baste; a


singularidade e a potência do que tenho a dizer ficam rebaixados,
escondidos atrás da minha identidade, essa sim merecedora de atenção e
respeito.

No interior dos círculos ativistas, os efeitos desse ideal de pureza também


não são exatamente auspiciosos. É que a estrutura do debate sobre
identidade, a moldura dentro da qual essas discussões se dão, fecha-se
numa redoma que asfixia inclusive o dissenso produtivo dentro dos
próprios movimentos. A capacidade de operar mediações, de construir
pontes, anda de mãos dadas com a habilidade de fazer distinções, e são
justamente essas qualidades, indispensáveis à política, que as imposições
da pureza identitária soterram. A fidelidade a esse princípio de pureza
não cessa de mover as fronteiras que demarcam a construção do inimigo,
trazendo-as cada vez mais para o interior do próprio campo progressista.
Não é difícil imaginar, por exemplo, feministas que eventualmente
concordem com alguns dos argumentos aqui expostos sendo acusadas de
“dar biscoito” para um “esquerdomacho” branco e privilegiado.

Mas é na fricção produzida nas interações que ocorrem fora dos círculos
de esquerda que as limitações da política identitária ficam mais nítidas.
Há um hiato entre a justeza das reivindicações mobilizadas por tal
política e a forma através da qual essas reivindicações são atualmente
levadas adiante na esfera pública. Essa forma é parcialmente responsável
pelo fato de a agenda identitária ser cada vez mais percebida como
autoritária, logo ilegítima.

Representantes do segmento mais radical do movimento feminista, as


chamadas radfems têm razão quando criticam o feminismo liberal
(libfem) tanto por sua cegueira quanto à questão de classe, quanto por
seu individualismo metodológico, que reduz tudo – adequação a ideais
de beleza, preferências sexuais, prostituição etc. – a uma mera questão de
escolha pessoal da mulher, como se não houvesse constrangimentos
sistêmicos condicionando de antemão essas escolhas. Mas quando
interagem na base do “Se você não tem um útero, não tem o que opinar
sobre feminismo”, as feministas radicais fornecem material para a criação
do estereótipo de que o machismo necessita para inventar o fantasma que
passará então a lhe prover sustentação imaginária: não mais a mulher

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submissa que “pede” para ser dominada, mas a mulher autoritária que
“pede” para ser combatida, em nome da liberdade. Eis o salvo-conduto
fictício de que o machista necessita para justificar, para si próprio, a
manutenção de seu papel na reprodução do sistema de opressão de que é
parte: ele, homem, “apenas reage à feminazi”.

De modo análogo, há uma diferença significativa entre a crítica aos


mecanismos sistêmicos de apropriação da cultura negra e a vigilância
repressiva sobre a menina branca que usa turbante. Só uma
desonestidade intelectual quase inimaginável poderia negar a validade
de tal crítica; já a patrulha de costumes presta-se facilmente ao tipo de
apropriação ideológica que acabo de descrever. Haveria de ser mera
coincidência a crescente popularidade de uma noção tão estúpida e
falaciosa quanto a de “racismo invertido”?

V
alores não trazem em si a regra de sua aplicação. Mais ainda,
valores são “troféus” políticos, passíveis de serem apropriados por
este ou aquele grupo, e não apenas abstrações independentes de
inscrições mundanas. Se, como observa o teórico da literatura Stanley
Fish, esse troféu tiver sido capturado por uma força política adversária,
não poderá ser mobilizado de um modo que ajude a nossa causa; terá, ao
contrário, se transformado num obstáculo. Parte expressiva da política
identitária ainda não percebeu que é exatamente o que vem acontecendo
com o princípio da liberdade.

Quanto mais vigia e reprime costumes individuais nas ruas e redes


sociais, mais entrega ao adversário a posse desse valor, convertido em
arma política. Quando alguém exige que se abandone o uso de turbantes
ou de fantasias de Carnaval, parece convicto de que sua reivindicação
deve ter prioridade automática sobre a liberdade de seu interlocutor,
mesmo que a ofensa daí advinda seja não intencional. O problema não é
apenas a impossibilidade dessa exigência, dado que, em estados
democráticos de direito, a reivindicação de respeito automático ao
ofendido conflita com o princípio da liberdade. É que a própria exigência
talvez tenha o efeito contrário ao esperado.

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Está suficientemente claro que racistas, machistas, homofóbicos e


preconceituosos em geral usam a liberdade como álibi para seu desejo
nostálgico de voltar ao tempo em que podiam exercer sua opressão
cotidiana sem serem incomodados. Mas se o álibi é uma desculpa
epidérmica construída a fim de esconder algo de inconfessável, então o
desafio está em expor sua verdade subjacente sem interditar o valor (a
liberdade, no caso) do qual se vale para pintar sua fachada. Exibir aquilo
que o álibi pretende ocultar talvez ajude na sua desconstrução; tentar
silenciar o álibi em si, pelo constrangimento, não faz mais do que prover
uma justificativa à sua reprodução. Facilita o trabalho de quem já está
disposto a reduzir o ativismo identitário ao policiamento de liberdades.

Mais que atirar a pedra, é preciso se preocupar com onde ela irá cair. Essa
preocupação, elementar em qualquer estratégia no campo da política,
deveria merecer atenção redobrada por parte de movimentos contra-
hegemônicos. Num texto postado em sua página pessoal no Facebook, o
professor da Universidade de Pernambuco Acauam de Oliveira ilustrou
bem os riscos a que se expõe parte do ativismo identitário, usando como
exemplo a construção simbólica do racismo na linguagem. “As palavras
com referência a claro e branco e afins têm conotação positiva, enquanto
as com referência a escuro e negro e afins têm conotação negativa”, disse
Acauam. Mas essa verdade tem seus limites. “As pessoas tiram a roupa
do varal não porque a nuvem é negra, mas porque vai chover; o buraco
negro não ‘rouba’ nada, e ‘claro’ tem função adverbial na frase ‘falar
mais claro’, e não adjetiva.” O problema é que a generalização desse
argumento sobre o racismo abre espaço para um contra-ataque
igualmente generalizante: a verdade da dimensão simbólica do racismo
na linguagem passa a ser considerada falsa porque alardeada como uma
manipulação (que de fato eventualmente ocorre) tosca da esquerda. “Daí
a se escrever outro ‘Guia politicamente incorreto’ pra desmistificar a
farsa esquerdista”, concluiu Acauam, “é um pulo.”

A paixão que embala a autoimagem de quem se sabe integrante de uma


revolução em andamento tem seus encantos e armadilhas. Por um lado, é
fonte de inspiração indispensável à ação coletiva; por outro, dificulta o
reconhecimento das contradições e limites dessa ação. Ao sujeito
mergulhado na certeza de legitimidade de suas próprias reivindicações, é
fácil perder de vista o fato de que a afirmação “o pessoal é político” é uma

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12/03/2019 Pureza e poder

verdade óbvia somente para o campo progressista. A maioria que


efetivamente decide eleições vê o mundo desde uma perspectiva em que
a repressão direta quanto ao que se pode vestir e dizer aparece não como
um imperativo ético justificado, mas como censura pura e simples, ou
frescura sem razão de ser. De nada adianta dizer que a luta é contra essa
perspectiva: isso deveria ser um motivo a mais, não a menos, para que se
reflita sobre a melhor maneira de avançar essa luta. A vigilância
repressiva de costumes, a desqualificação do interlocutor (e não de seu
argumento), podem até ser moralmente reconfortantes, mas limitam-se a
atacar o sintoma, não o problema em si. Infelizmente, investir contra o
sintoma só faz adensar o nó que o gera.

P
odemos agora dar um passo atrás, abrir o escopo de observação a
fim de inscrever o exame da política identitária dentro da paisagem
mais ampla de nosso tempo. O ideal de pureza, como princípio e
fim da prática política, é o fio invisível que une correntes de direita e
esquerda no ataque ao que vem sendo percebido como o fracasso da
democracia representativa. Talvez haja algum exagero nessa afirmação,
que certamente mereceria um tratamento melhor do que poderei dar
aqui. E é quase desnecessário lembrar que esse ideal comparece de
formas distintas, e com efeitos diferentes, em cada caso. O apelo à pureza
étnica, por exemplo, difere bastante do elogio a líderes carismáticos que
se oferecem como encarnação do “verdadeiro” povo. De qualquer
maneira, é expressivo – e crescente – o desafio atualmente imposto ao
funcionamento da democracia representativa.

A ascensão da democracia à condição de emblema dominante da política


contemporânea caminhou a par do aumento de seu desencanto, o que
não surpreende, dadas as respostas insuficientes que regimes
democráticos vêm oferecendo aos múltiplos desafios com os quais
precisam lidar.

São diversas as questões que fazem com que, aos olhos da opinião
pública, a democracia apareça como incapaz de cumprir suas promessas.
A crise de legitimação do Estado-nação, sua reduzida capacidade de
atendimento às expectativas de populações cada vez mais longevas; o

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ataque frontal da racionalidade neoliberal aos fundamentos da soberania


democrática, visando substituir seus princípios básicos –
constitucionalismo, igualdade legal, liberdade civil e política, autonomia
política e inclusão – por critérios de mercado, como custo/benefício,
eficiência e lucratividade; a oligarquização dos partidos políticos, que,
operando num jogo autorreferido, distanciam-se dos interesses que
supostamente deveriam representar; a transferência progressiva, ao
Poder Judiciário, de atribuições que cabem ao Legislativo; a consolidação
do escândalo como linguagem da política, isto é, a quase incapacidade de
pensar a atividade política fora de um campo semântico constituído por
noções como revolta, desonra, indecência, vergonha, indignação; enfim,
tudo somado, constatamos, aqui e alhures, a erosão da legitimidade da
própria ideia de representação.

Tudo isso está bem documentado, mas a questão que realmente importa
parece ser a altura mínima para o sarrafo das concessões feitas em nome
da governabilidade, a linha que separa o aceitável do repulsivo, seja lá o
que se consiga em troca. A resposta, naturalmente, varia ao gosto do
freguês. E varia muito em função do grau de pureza a partir do qual se
concebe o jogo político. Se você parte do princípio de que a verdadeira
democracia só pode advir do protagonismo de um sujeito político
intrinsecamente virtuoso, sua tolerância a concessões será baixíssima. Se,
por outro lado, e contra inúmeras evidências disponíveis na literatura
sobre o tema, você supõe verdadeiramente democráticos apenas os
sistemas de participação direta, então sua tolerância a concessões típicas
de mecanismos representativos também será baixa. Se, ainda que tendo
boa vontade para com um determinado projeto político, você desconhece
as dinâmicas estruturais de partidos em geral e do nosso
presidencialismo de coalizão em particular, é provável que você acabe
repreendendo-o por haver cometido o pecado de agir de acordo com a
percepção de que a classe média intelectualizada, sozinha, não vence
eleições. Eis algumas ilustrações de como perspectivas calcadas no
princípio da pureza precisam desprezar as complexidades do mundo real
para se fazerem sedutoras.

É nesse contexto que o populismo tem ressurgido como resposta às


insuficiências dos sistemas democráticos. Quando a distância entre a
promessa de “todo poder emana do povo” e a performance concreta do

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jogo representativo se esgarça a ponto de criar um vácuo totalmente


preenchido pela percepção da democracia como processo autorreferido
de negociatas intraoligárquicas, o populismo vem prometer um ideal
renovado de prática política, livre de confabulações partidárias. Contra a
rotina burocrática das instituições, o empoderamento de líderes
carismáticos: o populismo, diz a historiadora Margaret Canovan, é uma
resposta à assimetria entre o excesso da dimensão pragmática da política
(o “toma lá, dá cá” contínuo, que resulta da negociação de interesses
mundanos conflitantes) e o déficit de sua dimensão redentora (a
promessa de resolução desses conflitos, a estabilidade de uma paz
próspera).

Essa resposta admite graus de intensidade variados – desde um governo


compatível com os marcos legais da democracia, até um regime
autoritário, desestabilizador dos processos legislativos –, mas o
importante é o dado de suspeição que ela necessariamente introduz
acerca de qualquer instância de mediação. Enquanto forma de
mobilização de paixões políticas, o populismo tanto pressupõe quanto
reforça o fetiche do vínculo direto. Como observou Jan-Werner Müller
num ensaio publicado aqui na piauí (“Populistas”, edição 124, janeiro), ao
apresentar-se não apenas como porta-voz, mas como a encarnação
mesma do “verdadeiro povo”, o líder populista reivindica para si um
monopólio moral que postula automaticamente todos os adversários
como ilegítimos, desonestos ou corruptos. “Aos olhos dos populistas e de
seus seguidores”, escreve Müller, “toda mediação é distorção.”

Para conservar seu apelo imaginário, o princípio da pureza não pode


admitir qualquer margem de manobra quando aplicado às situações
concretas do mundo, o que por sinal evidencia seu caráter antipolítico. A
impaciência com relação a concessões, o desprezo por processos
institucionalizados de deliberações, o repúdio a qualquer forma de
mediação – não parecem ser esses, cada vez mais, os traços distintivos da
atmosfera política contemporânea? Aos olhos dos segmentos mais
fervorosos da militância identitária, toda concessão não equivaleria à
capitulação, logo à traição? Ao igualar o marcador de identidade à
posição política específica do sujeito, a política identitária não apenas
alimenta o fetiche do vínculo direto, como ainda rebaixa em seu

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horizonte de preocupações a questão da organização da luta política


propriamente dita.

O trabalho árduo de conectar anseios particulares a um projeto coletivo é


substituído pela exigência de lealdade incondicional a uma suposta
essência, o que aliás assinala mais um personagem algo imaginário (uma
“ficção ontológica”, no jargão da filosofia) com o qual os cientistas sociais
terão que lidar. Ao lado do sujeito liberal, o homo oeconomicus auto-
interessado e consciente de suas escolhas, e do sujeito bovino da teoria
política desenvolvida na esteira de Schumpeter, temos agora um sujeito
totalmente subsumido em vínculos de pertença identitária. Não é que tal
sujeito não possa existir aqui e ali, empiricamente; é que o diagnóstico
que lhe toma por base não nos ajuda a compreender questões relevantes
da política atual, como por exemplo as razões que levaram cerca de 30%
dos latinos e mais da metade das mulheres brancas norte-americanas a
votarem num racista e predador sexual assumido nas últimas eleições
presidenciais.

As exigências da pureza evocam a utopia de uma política e um mundo


livre de contradições. O ideal de sujeito pressuposto pela política
identitária é a pessoa que, consciente do imperativo de recolher-se ao seu
lugar de escuta diante do outro subalterno, não apenas se abstém de
emitir juízo acerca de qualquer realidade que não seja a sua própria,
como ainda se curva em deferência absoluta ao discurso desse outro. Não
se tratando propriamente de um interlocutor, mas de um ouvinte
passivo, resta evidente o caráter antidialógico que subjaz a uma tal
utopia. Não é precisamente essa a velha imagem do sonho liberal? Uma
sociedade composta por indivíduos que, absortos nos narcisismos de
suas pequenas diferenças, movimentam-se pela esfera pública somente
sob a condição de causar o mínimo de atrito possível, se possível
[3]
nenhum?

Vista mais de perto, essa é uma concepção de política que já pressupõe


uma capitulação fundamental: uma vez que o ideal republicano de bem
comum teria se provado inatingível – ou pior, um engodo –, o melhor
que teríamos a fazer é investir na defesa ferrenha do (nosso)
particularismo. Essa dicotomia caminha a par com outra, igualmente cara
à política identitária: dado que toda afirmação com pretensão à validade
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universal esconde uma vontade de poder imperialista e subjugante, só


nos restaria a defesa intransigente de nossos próprios pontos de vista.

Pode-se recusar essas dicotomias sem abrir mão do compromisso de lutar


por redistribuição e reconhecimento. Não é porque um ambiente 100%
asséptico seja uma impossibilidade, diz a conhecida metáfora do
antropólogo Clifford Geertz, que iremos realizar cirurgias no esgoto. A
suspeita quanto ao substrato político das alegações de caráter universal
não precisa desaguar num relativismo estéril. Rejeitar a noção de que seja
possível falar sobre o mundo a partir de um lugar desinteressado não nos
obriga a “escolher um lado” e aderir acriticamente a ele. Essa é uma
perspectiva que exige a disposição para ver com bons olhos as
contradições e os paradoxos, os hibridismos e os interstícios, tudo o que
[4]
escapa a qualquer tentativa de ordenação binária da realidade . Tarefa
nada fácil, sobretudo em um ambiente de informação que dá ensejo não
somente à engenharia do consenso – ou seja, a grande mídia pautando a
agenda de debates na esfera pública –, mas à fermentação autorreferida
do dissenso – as bolhas homogêneas nas redes sociais, cada vez mais
surdas à diferença.

A
certa altura do romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o jovem
Adso, aflito com mais uma morte misteriosa no mosteiro em que
vivia, vai ao encontro de seu mestre, Guilherme de Baskerville. O
corpo de um monge, conhecido pela voracidade do apetite, acabara de
ser descoberto; como todos os outros mortos, tinha a língua e o dedo
indicador manchados em coloração escura. Guilherme diz que o glutão
“havia se tornado um puro”, e o rapaz questiona horrorizado: “Mas esta é
a pureza?” “Haverá também as de uma outra espécie”, afirma Guilherme,
“mas, seja qual for, sempre me dá medo.” Adso lhe pergunta o que o
aterrorizava mais na pureza, ao que o mestre responde: “A pressa.”

Sociedade alguma poderá olhar a si própria no espelho e dizer-se justa


enquanto suas estruturas reproduzirem relações de poder que violentem
prática e simbolicamente a vida de seus cidadãos, sobretudo os mais
vulneráveis. Enquanto houver subjugação, discriminação e exploração de
mulheres, negros, homossexuais e minorias, haverá pressa na luta pelo
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direito de existir na diferença e de participar da vida pública em


condições de igualdade. Mas, em política, convém não ignorar as
armadilhas que o imperativo da ação imediata coloca. A pressa dos fins é
mais do que necessária. A pressa dos meios, o dogmatismo dos que
pretendem lacrar o debate político, arrisca a retrair, no interior do próprio
campo progressista, o espaço necessário ao pensamento.

[1]
O texto pode ser lido em
http://esquerdaonline.com.br/2017/01/08/sobre-o-lugar-de-fala/

[2]
Agradeço a Sérgio Martins por haver chamado a minha atenção para
esse ponto.

[3]
Devo o argumento a José Eisenberg.

[4]
O que não significa abraçar de modo ingênuo o elogio da mistura:
quem quer que tenha lido a história que Gilberto Freyre conta sobre a
escravidão brasileira conhece bem os problemas desse elogio.

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