GUILHERME DE OCKHAM
GUILHERME DE OCKHAM:
Quodlibeta Septem VI, q. 1 24
Tratado Contra Benedito III, cap. 3 29
Opus Nonagina Dierum, cap. 95 38
3
Quaestio 1 Questão 1
Utrum Deus posset aliter res Se Deus poderia produzir
producere quam facit, vel secundum as coisas diversamente do que faz
ordinem institutum ab eo modo] ou (diversamente do que faz) segundo
a ordem por ele agora instituída]
1. Circa distinctionem 1. Acerca da distinção 44,
quadragesimam quartam primo quaero pergunto, primeiro, se Deus poderia
utrum Deus posset aliter res producere produzir as coisas diversamente do que
quam facit, vel secundum ordinem faz, ou [diversamente do que faz] segundo
institutum ab eo modo. a ordem por ele agora instituída.
Videtur quod non : quia tunc vel Vê-se que não: porque, então, ou
modo vel alias inordinate produceret, agora, ou noutro [instante], produziria
quod est inconveniens. desordenadamente, o que é inconveniente.
2. Item, sua potentia non excedit 2. Ainda, sua potência não excede
suam scientiam, maxime quoad sua ciência, maximamente no que diz
obiecta ; sed secundum suam scientiam respeito aos objetos; ora, segundo sua
non potest scire opposita nec aliter ciência, não pode saber os opostos nem
quam scit, ergo non aliter producere (vel [pode saber] diversamente do que sabe,
opposita) quam producit. portanto, não [pode] produzir
diversamente (ou opostamente) ao que
produz.
3. Item, in aeternitate disposuit 3. Ainda, dispôs na eternidade que
rem fieri secundum ordinem ab eo a coisa seja feita segundo a ordem
institutum. Si ergo potest aliquid aliter instituída por ele. Se, portanto, pode
producere, et non de novo, ergo in produzir algo diversamente, e não como
aeternitate potest habere actus novo, então pode ter dois atos opostos na
oppositos. eternidade.
*
JOHN DUNS SCOTUS, Reportatio I-A : The examined Report of the Paris Lecture - Latin Text and English
Translation. A. B. Wolter & O. V. Bychkov (ed. e trad.). Volume 2 (distinctiones 22-48). St. Bonaventure
(NY): The Franciscan Institute, 2008, p. 531-540. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.
4
acceptat utrumque, quod est salvação para si, mas a vontade divina
indifferentia in terminis. Et sic voluntas aceita ambos1, visto que há indiferença
facit hoc principium vel legem esse nos termos. E assim a vontade faz com
practicam, et istae leges ordinant que esse princípio ou lei seja prática, e
operabilia secundum omnes modos estas leis ordenam os operáveis segundo
agendi debitos. Deus autem potest agere todos os modos de agir devidos. Ora, Deus
omni modo qui non includit pode agir de todo modo que não inclui
contradictionem. Cum igitur multi alii contradição. Portanto, visto que muitos
modi non includant contradictionem, outros modos não incluam contradição,
potest agere aliter quam de potentia pode agir diversamente do que pela
ordinata. potência ordenada.
10. Secundo, quia istae leges 10. Segundo, uma vez que estas
subsunt voluntati divinae – eo quod leis estão sob a vontade divina – visto que
nulla est lex iusta nisi quia voluntas nenhuma lei é justa a não ser porque a
divina acceptat, non autem e converso – vontade divina a aceita, mas não o inverso
, voluntas autem potest contingenter –, a vontade divina pode
quodcumque velle vel nolle, ideo potest contingentemente tudo que quer ou não
statuere aliam legem, ut quod omnis quer, por isso pode estabelecer outra lei,
anima rationalis salvabitur vel aliquid como que toda alma racional será salva ou
huiusmodi. Ergo potentia eius absoluta algo desse modo. Portanto, sua potência
non excedit ordinatam, quia absoluta não excede a ordenada, porque
quaecumque lex a Deo instituatur aliter qualquer lei que seja instituída por Deus
vel alia quam illa quae nunc est, esset diversamente ou outra daquela que há
ordinata. agora, seria ordenada.
[II. – Responsio [II. Resposta
ad primam quaestionem] para a primeira questão]
11. Ad quaestionem ergo 11. Portanto, deve-se dizer para a
dicendum quod est distinguendum questão que se deve distinguir segundo a
secundum compositionem et composição e a divisão; de modo
divisionem ; similiter est distinguendum semelhante, deve-se distinguir a respeito
de ordine sive de lege vel de potestate da ordem ou da lei ou do poder ordenado.
ordinata.
Et patet realis solutio ex dictis, E a solução real é patente do que
unde haec est possibilis : ‘Deus aliter res foi dito, donde esta é possível: “Deus pôde
potuit producere quam secundum produzir as coisas diversamente do que
ordinem dispositum’. [Pro Haec est segundo a ordem disposta”. [Em vez de
falsa… M habet explicando : ‘… vel “Esta é falsa...”, M traz a explicação: “...
1
Segundo a tradução americana (Duns Escoto, 2008, p. 533, nota 6), o “justo e o injusto”. Parece, porém,
que o correto seja: “... ambos [os termos, isto é, ‘justo’ e ‘salvação’].”. N. do T.
7
salvare Iudam. Non tamen simpliciter entanto, não pode simplesmente salvá-lo
potest eum salvare potentia ordinata et pela potência ordenada e universal. Pode,
universali. Potest tamen eum salvare porém, salvá-lo pela ordem particular, se
ordine particulari, si Iudas esset et non Judas fosse e não fosse condenado, porque
esset damnatus, quia possit eum poderia preveni-lo pela graça, assim como
praevenire per gratiam, sicut et Petrum também a Pedro depois do pecado.
post peccatum. Potest igitur contra Portanto, pode contra a ordem universal
universalem ordinem potentia absoluta, pela potência absoluta, mas então não
sed tunc non esset inordinatio, quia haveria desordem, porque estabeleceria
statueret istam legem ordinatam esse. que essa lei fosse ordenada. Donde
Unde iste, praescitus exsistens, licet embora este exista como quem se prevê
damnabitur, tamen potest potentia que há de ser condenado, pode, no
absoluta et potentia ordinata beatificari ; entanto, pela potência absoluta e pela
non tamen Iudas potentia ordinata. potência ordenada, ser beatificado; no
entanto, não Judas pela potência
ordenada.
[III. – Ad argumenta [III. – Para os argumentos
principalia primae quaestionis] principais da primeira questão]
14. Ad argumenta. Ad primum 14. Para os argumentos. Ao
in oppositum dico quod non sequitur primeiro em oposto [supra, n. 1] digo que
quod modo vel alias ageret inordinate, não se segue que agora ou em outro
quia iste ordo secundum quem modo [instante] tenha agido desordenadamente,
producit res non est omnis ordo sibi porque esta ordem, segundo o modo pelo
possibilis nec necessarius. Ergo sic qual produz as coisas, não é toda a ordem
arguendo ‘potest producere res aliter vel possível para ele, nem necessária.
secundum alium ordinem quam modo Portanto, argumentando assim: “pode
producit, ergo inordinate potest produzir as coisas diversamente, ou
producere, vel non secundum ordinem segundo outra ordem do que aquela que
vel contra omnem ordinem’ non produz agora, portanto, pode produzir
sequitur, sed est fallacia consequentis desordenadamente, ou não segundo a
ab inferiori ad superius cum nota ordem, ou contra toda ordem” não se
alietatis, et ita a destructione segue, mas é a falácia do consequente
antecedentis ad destructionem desde o inferior para o superior com a
consequentis, quia alietas includit marca da alteridade, e assim desde a
negationem. refutação do antecedente até a refutação
do consequente, uma vez que a alteridade
inclui a negação.
15. Ad secundum dico quod 15. Ao segundo [n. 2] digo que a
potentia et scientia coaequantur potência e a ciência são igualadas quanto
quantum ad obiecta, quia omne quod aos objetos, porque tudo que pode ser feito
9
potest fieri potest sciri. Sed non oportet pode ser sabido. Mas não é preciso que
quod coaequantur quantum ad omnia et sejam igualadas quanto a tudo e de todo
omni modo. Non oportet enim quod modo. Com efeito, não é preciso que de
cuiuscumque sit unum actualiter, et seja lá o que for haja atualmente uma e
aliud, quia scientia cuiuscumque est outra, porque a ciência de seja lá o que for
eius actualiter, ut actu est, potentia é dele atualmente, como é em ato, ora, a
autem es obiecti possibilis quod non est potência é do objeto possível que não é
actualiter. atualmente.
16. Ad aliud dico quod in 16. Ao outro [n. 3] digo que na
aeternitate possunt fieri opposita eternidade podem ser feitos os opostos
divisim, non coniunctim, et hoc in separadamente, mas não conjuntamente, e
eodem instanti. Patet supra in materia de isto no mesmo instante. É patente acima
futuris contingentibus. quanto à matéria sobre os futuros
contingentes [d. 39-40, n. 39-43].
17. Ad aliud concedo quod non 17. Ao outro [n. 4] concedo que
est scientia simpliciter necessaria, sed ut não há ciência absolutamente necessária,
in pluribus tantum. Permittit enim res ut mas unicamente como em muitos. Com
in pluribus operari secundum motus efeito, permite que as coisas operem como
suos et secundum ordinem ab eo em muitos segundo seus movimentos e
dispositum. Aliquando tamen, segundo a ordem disposta por ele. No
praetermittendo illum ordinem, agit entanto, às vezes, negligenciando aquela
secundum alium ordinem : patet de ordem, age segundo outra ordem: é
statione solis tempore Iosue et de tribus patente sobre a parada do sol no tempo de
pueris in igne et de eclipsi solis in morte Josué e dos três jovens no fogo e sobre o
Christi, quod fuit contra principia eclipse do sol na morte do Cristo, que foi
geometriae. Sic ergo modo respondeo, contra os princípios da geometria. Assim,
sicut heri in quadam quaestione, quod portanto, respondo agora, assim como
non est scientia de contingentibus nisi ontem em certa questão [in d. 42, n. 32],
de facto ut in pluribus. Sed quod sint sic que não há ciência sobre os contingentes a
apta nata ad tales motus, hoc est não ser de fato como em muitos. Mas que
necessarium et sic scitum estejam de tal modo aptos naturalmente
demonstrative. Sed quod modo sint para tal movimento é necessário, e, assim,
aliter mota, ut tempore Iosue vel sabido demonstrativamente. Mas o modo
Ezechiae, vel sicut legitur in vitis pelo qual foram movidos diversamente,
patrum de sole, hoc est contingenter como no tempo de Josué ou de Ezequias,
factum et ideo haec non possunt sciri ou assim como se lê nas vidas dos pais
demonstrative. Sed si habent tales sobre o sol, é algo feito contingentemente,
motus quales deprehensi sunt sol et luna e por isso estes não podem ser sabidos
habere prius, tunc sequitur de demonstrativamente. Mas se o sol e a lua
necessitate scientia. Unde in eodem têm tais movimentos que antes se
10
aspectu se habent sol et luna modo ac si apreendeu que tivessem, então se segue a
non fuisset ibi aliquis novus motus vel necessidade da ciência. Donde o sol e a
nova coniunctio temporibus praedictis. lua se encontrarem agora sob o mesmo
Quod patet quia sicut contra movebatur aspecto, como se não tivesse havido ali
unum corpus, ita totum caelum vel algum movimento novo ou conjunção
corpus motum subito revertebatur ad nova no tempo já mencionado. O que é
locum suum ad habendum patente, porque, assim como um corpo foi
uniformitatem. movido contrariamente, assim todo o céu
ou corpo movido subitamente voltou a seu
lugar para ganhar uniformidade.
18. Ad ultimum dico quod 18. Ao último [n. 8] digo que o
naturalis non dicit plus de igne in tali natural não diz que o fogo seja gerado
parte caeli generari quam in alia, sed antes em tal parte do céu que em outra,
dicit quod approprinquante sole plus mas diz que o sol se aproximando, mais
generatur de igne cui magis fogo é gerado para aquele de que mais se
appropinquat. aproxima.
[Quaestio 2 [Questão 2
Utrum Deus possit Se Deus pode
facere meliora quam fecit] fazer melhores do que fez]
19. Utrum Deus possit facere 19. Se Deus pode fazer melhores
meliora quam fecit. do que fez.
Videtur quod non : Augustinus, Vê-se que não: Agostinho, nas 83
83 Quaestionem, q. 50, probat Deum Questões, q. 502, prova que Deus Pai
Patrem genuisse Filum sibi aequalem, tenha gerado o Filho igual a si, porque se
quia si non, aut quia non potuit, et sic não, ou porque não pôde, e assim foi débil
fuit debilis et infirmus, aut quia noluit et e fraco, ou porque não quis, e, assim,
sic invidus. Eodem modo arguo in invejoso. Do mesmo modo argumento
proposito, et patet. quanto ao proposto, e é patente.
20. Item, Augustinus, III De 20. Ainda, Agostinho, Sobre o
libero arbitrio : Quidquid tibi recta livre arbítrio, livro III3: “Saibas que tudo
ractione occurrat melius, hoc Deus o que, pela reta razão, ocorrer a ti de
fecisse scias’, etc. melhor, isto foi feito por Deus”, etc.
21. Contra : Augustinus, XI 21. Contra: Agostinho, Sobre o
Super Genesim, et ponitur in littera : Gênesis, livro XI4, e é posto literalmente:
Deus potuit fecisse hominem Deus pôde ter feito um homem sem
2
Agostinho, 83 Quaest. q. 50 (CCL 44ª, 77; PL 40, 31-2).
3
Agostinho, De lib. arb. III, c. 5, n. 50 (CCSL 29, 283; PL 32, 1277).
4
Agostinho, De Genesi ad litt. libri XII, XI, c. 7, n. 9 (CSEL 28.1, 340; PL 34, 433; Pedro Lombardo, Sent.
I, d. 44, c. 1, n. 3 (SB IV, 304).
11
impeccabilem, qui numquam pecasset, pecado, que jamais pecasse, e isto teria
et hoc melius esset quam quod modo in sido melhor do que agora se dá nele.
eo est.
[I. – Responsio [I. – Resposta de
Scoti ad secundam quaestionem] Escoto para a segunda questão]
22. Respondeo ad quaestionem 22. Respondo para a questão que
quod Deus potuit fecisse meliora quam Deus pôde ter feito melhores do que fez e
fecit et potest modo facere secundum pode agora fazer segundo toda bondade
omnem bonitatem in re, sive quanto a coisa, seja essencial, seja
essentialem sive accidentalem, et acidental, e, acidental, seja extensiva, seja
accidentalem sive extensivam sive intensiva.
intensivam.
23. Et primo probo quod potuit 23. E, primeiro, provo que pôde
ea fecisse meliore perfectione fazê-la melhor pela perfeição acidental
accidentali intensive. Cum enim omnes intensiva. Com efeito, visto que todas
animae sunt eiusdem speciei, aut ergo almas são da mesma espécie, então, ou são
sunt aequales secundum perfectionem, iguais segundo a perfeição, ou não. Se são
aut non. Si sunt aequales, ergo aequalis iguais, então capazes de igual perfeição.
perfectionis capaces, sed non omnes Ora, nem todas de igual capacidade têm
aequalis capacitatis aequaliter habent igual perfeição acidental, uma vez que
perfectionem aequalem accidentalem, nem todas as almas têm igual bem-
quia non omnes animae habent aventurança essencial, uma vez que não
aequalem beatitudinem essentialem, têm méritos iguais pelos quais responde a
quia nec habent aequalia merita quibus bem aventurança, ainda que sejam iguais
respondet beatitudo, etiam si fuerint na capacidade natural. Portanto, toda
aequales in capacitate naturali. Ergo capacidade natural daquela alma não é
non perficitur tota capacitas naturalis aperfeiçoada por tanta perfeição acidental
cuiuslibet animae tanta perfectione quanto possa receber.
accidentali quantam posset recipere.
24. Similiter, anima Christi 24. De modo semelhante, a alma
habet beatitudinem maiorem quam do Cristo tem bem-aventurança maior que
aliquis angelus, et tamen capacitas a de algum anjo, e, no entanto, a
naturalis cuiuscumque angeli est maior capacidade natural de qualquer anjo é uma
capacitate cuiuscumque animae capacidade maior que a de qualquer alma
naturali. Nullus ergo angelus habet natural. Portanto, nenhum anjo tem tanta
tantam perfectionem quantae est capax. perfeição quanto é capaz.
25. Dices quod non sunt 25. Dizes que o anjo e a alma não
aequales quia non sunt eiusdem speciei são iguais porque não são da mesma
12
angelus et anima sed anima Christi est espécie. Ora, a alma de Cristo é mais
perfectior in gloria quolibet angelo. perfeita na glória que qualquer anjo.
Dico quod ex hoc sequitur Digo que disso se segue o
propositum. Angelus est nobilior proposto. O anjo é mais nobre segundo a
secundum speciem quam anima. Sed in espécie que a alma. Ora, nas espécies
speciebus ordinatis, si una est nobilior ordenadas, se uma é mais nobre que outra
alia essentialiter, quodlibet individuum essencialmente, qualquer indivíduo de
unius speciei est perfectius et nobilius uma espécie é mais perfeito e nobre que
quocumque individuo alteruis speciei qualquer indivíduo de outra espécie mais
ignobilioris ; aliter species tantum ignóbil; outras espécies unicamente terão
haberent ordinem accidentalem. Ergo a ordem acidental. Portanto, qualquer anjo
quilibet angelus est perfectior et é mais perfeito e nobre na natureza que
nobilior in natura quaecumque anima, qualquer alma, mesmo a alma de Cristo, e,
etiam anima Christi, et per consequens consequentemente, tem maior capacidade
habet maiorem capacitatem naturalem natural para vir a ter uma perfeição maior
ad maiorem perfectionem habendam que qualquer alma. Ora, a alma de Cristo,
quam quaecumque anima. Sed anima para ti, é a mais aperfeiçoada para a glória
Christi, per te, plus perficitur gloria que a de qualquer anjo. Portanto, nenhum
quam aliquis angelus. Ergo nullus anjo tem tanta perfeição acidental quanto
angelus habet tantam perfectionem é capaz.
accidentalem quantae est capax.
26. Ex his spiritualibus 26. Destes espirituais conclui-se o
concluditur propositum de corporalibus. proposto sobre os corporais. Pois, se
Nam si illa quae immediate ordinantur aqueles que estão imediatamente
ad Deum, ut ad finem, possunt ordenados para Deus como para o fim
naturaliter magis perfici perfectione podem ser naturalmente mais
finis quam perficiantur, multo magis est aperfeiçoados pela perfeição do fim do
hoc verum de corporalibus (de quibus que são aperfeiçoados, isso é muito mais
est sibi minor cura), quod maioris verdadeiro sobre os corporais (sobre os
perfectionis accidentalis sunt capaces quais há para ele menor cuidado) que são
quam modo habeant. capazes de uma maior perfeição acidental
do que a que têm agora.
27. Secundo digo quod Deus 27. Segundo, digo que Deus pode
potest facere aliqua meliora fazer algum melhores acidentalmente e
accidentaliter et extensive quam facit – extensivamente do que faz – dando várias
dando plures perfectiones quam dedit. perfeições além das dadas.
Patet in spiritualibus. Beati enim É patente nos espirituais. Com
possunt plura cognoscere quam efeito, os bem-aventurados podem
cognoscant : non enim cognoscunt conhecer mais do que conhecem: com
13
dicendum, quia difficilius proposito ser dito aqui, porque mais difícil que o
principali. principalmente proposto.
[II. – Ad argumenta [II. – Aos argumentos
principalia secundae quaestionis] principais da segunda questão]
30. Ad primum in oppositum, 30. Ao primeiro em oposto [n. 19],
dico quod non est invidia in Deo si non digo que não há inveja em Deus se não fez
fecit omnia ita bona sicut potest. Invidia tudo tão bom como pode. Com efeito, há
enim est in subtrahendo ab aliquo inveja em subtrair de algo o bem que a ele
bonum quod est sibi debitum. Deus é devido. Ora, Deus não é devedor de
autem non est debitor alicuius creaturae alguma criatura quanto a alguma
quantum ad aliquam perfectionem in eo, perfeição nele, porque faz tudo de modo
quia mere liberaliter omnia facit. Si puramente liberal. No entanto, se Deus Pai
tamen Deus Pater non produxisset não tivesse produzido o Filho igual a si,
Filium sibi aequalem, fuisset invidus, teria sido invejoso, porque a natureza no
quia debita est natura in Filio sicut in Filho é devida assim como no Pai, e,
Patre, et per consequens omnis condicio consequentemente, toda condição que
quae sequitur naturam, ut aequalitas et segue a natureza, como a igualdade e que
huiusmodi. tais.
31. Ad aliud dico quod ‘quidquid 31. Ao outro [n. 20] digo que (a
recta ratione tibi melius occurerit, hoc afirmação) “saibas que tudo o que, pela
scias Deum fecisse’ verum est, quia reta razão, ocorrer a ti de melhor, isto foi
nihil est melius simpliciter recta ratione feito por Deus” é verdadeira, porque nada
quam in quantum volitum a Deo ; et é absolutamente melhor pela reta razão do
ideo alia ‘quae, si fierent, essent que enquanto querido por Deus; e, por
meliora’ non sunt modo meliora isso, outros “que, se forem feitos, seriam
entibus. Unde auctoritas nihil plus vult melhores” não são agora melhores que os
dicere nisi quod quidquid Deus fecit, entes. Donde a autoridade não ter querido
hoc scias cum recta ratione fecisse. dizer nada além de que tudo o que Deus
Omnia enim quaecumque voluit, fecit, fez, saibas que o fez com a reta razão.
in Psalmis [113, 11], cuius voluntas sit Com efeito, tudo aquilo que quis, fez – no
benedicta. Salmo [113, 11] – aquele cuja vontade
seja bendita.
15
*
JOÃO DUNS ESCOTO, Ordinatio : Opera Omnia, Vol. VI. Civitas Vaticana, Typis Polyglottis Vaticanis,
1963, p. 363-369.445. Tradução: Carlos Eduardo de Oliveira.
6
Falta: o universo.
8
A saber, Pedro Lombardo.
16
agere praeter illam legem vel contra em conformidade com a lei reta), tanto
eam, et in hoc est potentia absoluta, pode agir além daquela lei ou
excedens potentiam ordinatam. Et ideo contrariamente a ela, como nisto
non tantum in Deo, sed in omni agente consiste a potência absoluta, que excede
libere – qui potest agere secundum a potência ordenada. E, por isso, não
dictamen legis rectae et praeter talem somente em Deus, mas em todo agente
legem vel contra eam - est distinguere livre – que pode agir segundo o ditame
inter potentiam ordinatam et absolutam; da lei reta e além de tal lei ou contra ela
ideo dicunt iuristae quod aliquis hoc – deve-se distinguir entre a potência
potest facere de facto, hoc est de ordenada e a absoluta; por isso dizem os
potentia sua absoluta – vel de iure, hoc juristas que alguém pode fazer algo de
est de potentia ordinata secundum iura. fato, isto é, por sua potência absoluta –
ou por direito, isto é, por sua potência
ordenada segundo o direito9.
4. Quando autem illa lex recta – 4. Mas quando aquela lei reta –
secundum quam ordinate agendum est – segundo a qual se deve agir
non est in potestate agentis, tunc ordenadamente – não está em poder do
potentia eius absoluta non potest agente, então sua potência absoluta não
excedere potentiam eius ordinatam pode exceder sua potência ordenada
circa obiecta aliqua, nisi circa illa agat acerca de algum objeto, a não ser que
inordinate; necessarium enim est illam aja desordenadamente acerca dele; com
legem stare – comparando ad tale agens efeito, é necessário que esta lei
– et tamen actionem “non conformatam permaneça – em comparação com tal
illi legi rectae” non esse rectam neque agente – e, contudo, que a ação “não
ordinatam, quia tale agens tenetur agere conformada àquela lei reta” não seja
secundum illam regulam cui subest. reta nem ordenada, porque tal agente
Unde omnes qui subsunt legi divinae, si deveria agir segundo a regra à qual está
non agunt secundum illam, inordinate submetido. Donde todos que estão sob a
agunt. lei divina, se não agem segundo ela,
agem desordenadamente.
5. Sed quando in potestate 5. Mas quando está no poder do
agentis est lex et rectitudo legis, ita agente a lei e a retidão da lei, de modo
quod non est recta nisi quia statu, tunc que não é reta a não ser porque pelo
potest aliter agens ex libertate sua estabelecido, então o agente pode, a
ordinare quam lex illa recta dictet; et partir de sua liberdade, ordenar
tamen cum rectam secundum quam agat diferentemente o que a lei reta ditar; e,
ordinate. Nec tunc potentia sua absoluta contudo, será reta segundo aja
simpliciter excedit potentiam ordenadamente quanto a ela. E, então,
ordinatam, quia esset ordinata sua potência absoluta não excede
9
Isto é, segundo as normas: iura. (N. do T.).
17
contradictionem (et tales sunt multi modo que não inclui contradição (e há
modi alii), ideo dicitur tunc agere muitos outros modos assim), diz-se, por
secundum potentiam absolutam. isso, que então age segundo a potência
absoluta.
8. Unde dico quod multa alia 8. Donde digo que pode fazer
potest agere ordinate; et multa alia muitas outras ações ordenadamente; e
posse fieri ordinate, ab illis quae fiunt que possa fazer muitas outras
conformiter illis legibus, non includit ordenadamente, desde aqueles que são
contradictionem quando rectitudo feitos em conformidade com aquelas
huiusmodi legis – secundum quam leis, não inclui contradição quando a
dicitur quis recte et ordinate agere – est retidão daquela lei – segundo a qual se
in potestate ipsius agentis. Ideo sicut diz que alguém age reta e
potest aliter agere, ita potest aliam ordenadamente – está em poder do
legem rectam statuere, – quae si próprio agente. Por isso, assim como
statueretur a Deo, recta esset, quia nulla pode agir diversamente, pode, então,
lex est recta nisi quatenus a voluntate estabelecer outra lei reta – que se fosse
divina acceptante est statuta; et tunc estabelecida por Deus, seria reta, porque
potentia eius absoluta ad aliquid, non se nenhuma lei é reta senão na medida que
extendit ad aliud quam ad illud quod ao ser aceita pela vontade divina é
ordinate fieret, si fieret: non quidem estabelecida; e, então, sua potência
fieret ordinate secundum istum absoluta para algo, não se estende senão
ordinem, sed fieret ordinate secundum para aquilo que seria feito
alium ordinem, quem ordinem ita posset ordenadamente, se fosse feito:
voluntas divina statuere sicut potest certamente, não seria feito
agere. ordenadamente segundo esta ordem,
mas seria feito ordenadamente segundo
outra ordem, ordem que a vontade
divina poderia estabelecer assim como
pode agir.
9. Advertendum etiam est quod 9. Também cumpre advertir que o
aliquid esse ordinatum et ordinate fieri, algo ser ordenado e o ser feito
hoc contingit dupliciter : ordenadamente se dá de dois modos:
Uno modo, ordine universali, - De um modo, pela ordem
quod pertinet ad legem communem universal, - que pertence à lei comum:
‘omnem finaliter peccatorem esse ‘todo pecador final há de ser
damnandum’ (ut si rex statuat quod condenado’ (como se o rei estabelecesse
omnis homicida moriatur). Secundo que todo homicida há de morrer). Do
modo, ordine particulari, - secundum segundo modo, pela ordem particular, -
hoc iudicium, ad quod non pertinet lex segundo o juízo para o qual não cabe a
in universali, quia lex est de lei para o universal, porque a lei é sobre
19
11
Cf. DUNS ESCOTO, Rep. IC d. 44, q. 1 in corp. (f. 189rb); Rep. IA d. 44 n. 11.
20
7
Ausente na Ordinatio; cf. DUNS ESCOTO, Lectura I, d. 39, n.53-54.
22
esset ita liber (sicut rex) quod possit segundo outra lei, - assim como se fosse
facere legem et eam mutare, tunc posto que alguém seja tão livre (como é
praeter illam legem de potentia sua o rei) que possa fazer a lei e muda-la,
absoluta aliter potest agere, quia potest então pode agir diversamente para além
legem mutare et aliam statuere. daquela lei por sua potência absoluta,
porque pode mudar a lei e estabelecer
outra.
4. Sic Deus se habet in operando, 4. Assim acontece com Deus ao
nam intellectus – ut prior est voluntate – operar, pois o intelecto – dado que seja
non statuit legem, sed offert primo anterior à vontade – não estabelece a lei,
voluntati suae ; voluntas autem acceptat mas a oferece primeiro à sua vontade;
sic oblatum, et tunc statuitur lex ; quia ora, a vontade aceita o que é assim
tamen opposita eorum quae statuta sunt, oferecido, e, então, a lei é estabelecida;
sunt possibilia, ideo potest legem no entanto, porque os opostos àqueles
mutare et aliter agere. Sicut statuit quod que foram estabelecidos são possíveis,
nullus esset glorificandus nisi prius esse pode mudar a lei e agir diversamente.
gratificatus ; operando autem huic lege Assim como estabelece que ninguém há
ordinate, agit secundum potentiam de ser glorificado a não ser que antes
ordinatam, et non potest aliter operari seja agraciado; ora, operando
nisi ordinando et statuendo aliam ordenadamente por esta lei, age
legem, - et hoc potest, quia contingenter segundo a potência ordenada, e não
voluit quod esset illa lex quod omnis pode operar diversamente a não ser que
peccator damnaretur ; unde faciendo ordene e estabeleça outra lei, - e pode
contrarium, statuit aliam legem, isso, porque quis contingentemente que
secundum quam etiam ordinate haja a lei de que todo pecador seja
operetur. condenado, donde ao fazer o contrário,
estabelece outra lei, segundo a qual
também há de operar ordenadamente.
5. Et sic patet quomodo debet 5. E assim é patente de que modo
intelligi quod Deus potest facere de se deve entender que Deus pode fazer
potentia absoluta quod non potest de pela potência absoluta o que não pode
potentia ordinata. pela potência ordenada.
24
GUILHERME DE OCKHAM
Quodlibeta septem
Livro VI
Questão 1*
*
Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1980. Quodlibeta Septem. J. C. Wey (ed.). [= G. de Ockham Opera
Theologica IX]. St. Bonaventure (NY): The Franciscan Institute, p. 585-589, por Carlos Eduardo de
Oliveira.
25
12
Cf. Pedro Lombardo, Sentenças, livro IV, d. 1, c. 7.
26
potest per potentiam Dei absolutam in pode pela potência absoluta de Deus no
actum meritorium. Minor est manifesta. ato meritório. A menor é manifesta.
Maior probatur, quia ubi non est Prova-se a maior, porque onde não há o
simpliciter, ibi non est magis, sicut quod simples, ali não há o mais; assim como
non est album non est magis album; sed o que não é branco não é mais branco;
actus meritorii ad naturam in solis ora, não há nenhuma repugnância do ato
naturalibus constitutam non est aliqua meritório para a natureza constituída
repugnantia; igitur non est maior nos unicamente naturais; portanto, não
repugnantia. há maior repugnância.
Praeterea nihil est meritorium Além disso, não é meritório senão
nisi quod est in potestate nostra; sed illa o que está em nosso poder; ora, aquela
caritas non est in nostra potestate; igitur caridade não está em nosso poder,
actus non est meritorius principaliter portanto, o ato não é meritório
propter illam gratiam sed propter principalmente em razão daquela graça,
voluntatem libere causantem; igitur mas em razão da vontade livre
posset Deus talem actum elicitum a causadora; portanto, Deus pode aceitar
voluntate acceptare sine tali gratia. tal ato produzido pela vontade sem tal
graça.
GUILHERME DE OCKHAM,
Terceiro Livro*
*
Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1956. Tractatus contra Benedictum. R. F. Bennett e H. S. Offler
(curadores). H. S. Offler (ed.). [= G. de Ockham Opera Politica III]. Manchester : Manchester University
Press, p. 230-234, por Carlos Eduardo de Oliveira.
13
Cf. Opus Nonaginta Dierum, cap. 95; Epistola ad Fratres Minores; Contra Ioannem, cap. 22. (O tema
principal dos dois últimos trechos é a alegação de que João XXII nega a distinção entre a potência absoluta
e a ordenada e, como consequência disso, defende que tudo aconteça necessariamente.).
14
Sermão pregado em 1330 “sobre a vitória do rei de Castela contra os Sarracenos” (cf. Ockham, 1956,
Epistola ad Fratres Minores, p. 14, comentário às linhas 22-6).
30
quod nulla creatura potest aliquid facere, por Deus. Do que se segue15
quod non facit; et ita omnia de necessitate evidentemente que nenhuma criatura
eveniunt et nihil penitus contingenter, pode fazer algo que não faz; e assim
sicut quamplures infideles et antiqui tudo acontece necessariamente e nada
haeretici docuerunt, et adhuc occulti de modo completamente contingente,
haeretici et laici et vetulae tenent, saepe assim como ensinaram vários infiéis e
per argumenta sua etiam litteratos viros hereges antigos, e ainda hoje sustentam
et in sacris litteris peritos concertantes. os hereges dissimulados, os leigos e as
Uterque autem errorum praedictorum velhotas que ainda combatem
scripturis divinis repugnat aperte, sicut frequentemente por meio de seus
per quamplurimas auctoritates et rationes argumentos os homens letrados e
posset copiose probari, sed causa peritos das letras sagradas. Cada um dos
brevitatis adducam paucas. erros mencionados repugna
abertamente às escrituras divinas, assim
como se pode provar por meio de várias
autoridades e razões, mas apresentarei
poucas para ser breve.
Quod igitur Deus aliquid potuit et Portanto16, que Deus pôde e pode
posset de potentia absoluta, quod non pela potência absoluta o que não fez
fecit nec facit nec faciet de potentia nem faz nem fará pela potência
ordinata neque de potentia absoluta, ordenada nem pela potência absoluta é
probatur aperte. Hoc enim Christus abertamente provado. Com efeito, o
testatur expresse, qui, ut legitur Matthaei Cristo atestou isto expressamente
xxvi, ait Petro : Converte gladium tuum in quando, como se lê em Mateus 26, 52-
vaginam seu in locum suum ; omnes enim, 54, disse a Pedro: Guarda tua espada na
qui acceperint gladium, gladio peribunt. bainha ou em seu lugar; com efeito,
An putas, quia non possum rogare Patrem todos que tomam a espada, pela espada
meum, et exhibebit mihi plus quam xii perecerão. Pensas acaso que não posso
legiones angelorum ? Quo modo ergo pedir ao meu Pai, e ele me dará mais de
implebuntur Scripturae, quia sic oportet doze legiões de anjos? De que modo,
fieri ? Ex quibus verbis Christi colligitur então, se cumprirão as Escrituras, uma
evidenter quod Deus poterat exhibere vez que é assim que convém acontecer?
Christo plus quam xii legiones Palavras de Cristo a partir das quais se
angelorum ad liberandum eum de manibus colhe evidentemente que Deus poderia
capientium et volentium occidere ipsum : dar a Cristo mais de doze legiões de
et tamen Deus hoc non fecit, neque de anjos para libertá-lo das mãos que o
potentia absoluta neque de potentia prendiam e queriam matá-lo: e, no
ordinata. Hinc Magister Sententiarum, entanto, Deus não fez isso, nem pela
15
Cf. Contra Ioannem, cap. 23.
16
Cf. Opus Nonaginta Dierum, cap. 95.
33
libro primo, di. xliii, ait: Omnipotentis potência absoluta, nem pela potência
voluntas multa potest facere, quae non vult ordenada. Aqui, o Mestre das
nec facit: potuit enim facere, ut xii legiones Sentenças, no livro Primeiro, distinção
contra illos pugnarent, qui Christum 4317, diz: A vontade do onipotente pode
ceperunt: quod tamen non fecit. Item, fazer muitos que não quer nem faz: com
hoc tres viri, Sidrach, Misach et efeito, pôde fazer que doze legiões
Abdenago, qui, ut legitur Danielis iii, de lutassem contra aqueles que prenderam
camino ignis ardentis miraculose liberati o Cristo, o que, porém, não fez. Ainda,
fuerunt, antequam mitterentur in estes três homens, Sidrac, Misac e
caminum testati sunt, dicentes Abdênago, que, como se lê em Daniel 3,
Nabuchodonosor regi: Ecce Deus noster, 17-18, foram libertados milagrosamente
quem colimus, potest eripere nos de do caminho de fogo ardente, antes de
camino ignis ardentis, et de manibus tuis, serem enviados ao caminho
rex, liberare. Quod si noluerit, notum sit testemunharam ao dizer ao rei
tibi, rex, quod deos tuos non colimus. Ex Nabucodonosor: Eis que o nosso Deus,
quibus verbis liquido patet quod isti a quem cultuamos, pode nos tirar do
firmiter crediderunt quod Deus poterat caminho de fogo ardente e libertar de
eos de manibus regis eripere, et tamen an tuas mãos, ó rei. Se ele não o quiser,
eos vellet eripere, nesciverunt. Quare saiba, ó rei, que não veneramos os teus
crediderunt quod Deus poterat aliqua deuses. Dessas palavras é claramente
facere, quae numquam faciet. Item, hoc patente que eles acreditaram
testatur Ioannes Baptista, qui, ut legitur firmemente que Deus poderia tirá-los
Matthaei iii, dixit quod Deus potest de das mãos do rei, e, no entanto,
lapidibus suscitare filios Abrahae, quod ignoravam se os queria tirar. Assim
[non] solum spiritualiter, sed etiam ad acreditaram que Deus poderia fazer
litteram sane potest intelligi: quod tamen algo que jamais fez. Ainda, isto
Deus non facit. Potest ergo Deus multa testemunha João Batista, que, como se
facere, quae non facit: quod Augustinus lê em Mateus 3, 9, diz que Deus pode
testatur, qui, ut recitat Magister suscitar das pedras filhos para Abraão,
Sententiarum, libro primo, di. xliii, ait in o que [não] apenas espiritualmente, mas
libro de Natura et Gratia : Dominus também literalmente pode ser
Lazarum suscitavit in corpore. Numquid corretamente entendido: no entanto,
dicendum est, non potuit ludam suscitare in Deus não o faz. Portanto, Deus pode
mente ? Potuit quidem, sed noluit. Alias fazer muitos que não faz: testemunha-o
plures auctoritates Augustini Magister Agostinho, que, como cita o Mestre das
eadem distinctione xliii et di. xliv allegat Sentenças, no livro primeiro, distinção
ad idem, quibus manifeste asseritur 43, disse no livro Sobre a Natureza e a
Deum posse facere multa, quae non facit. Graça18: o Senhor suscitou Lázaro no
Post quas concludit Magister, dicens : Ex corpo. Acaso deve ser dito que não pôde
17
Citando a Agostinho, Enchiridion, 95, PL 40, 275.
18
Agostinho, De natura et gratia, VII, PL 44, 250.
34
Quod autem creaturae possint facere Ora, que as criaturas possam fazer
multa, quae non faciunt, et omittere, quae muitos que não fazem e omitir que não
non omittuntur, et per consequens non omitem e, consequentemente, nem tudo
omnia eveniunt de necessitate, sed multa acontece necessariamente, mas muitos
contingenter fiunt, auctoritatibus sacrae se dão contingentemente, é
scripturae ostenditur manifeste. De uno manifestamente mostrado pelas
enim iusto legitur in Ecclesiastico : Potuit autoridades da sagrada escritura. Com
transgredi, et non est transgressus ; et facere efeito, lê-se sobre um justo no
mala, et non fecit. Et, ut legitur II Eclesiástico, 31, 10: Pôde transgredir,
Machabaeorum c. vi, dicit Eleazarus e não transgrediu; fazer o mal, e não
scriba, cum esset in tormentis pro fide fez. E, como se lê no capítulo 6, 30, de
Dei: Domine, qui habes sanctam 2º Macabeus, diz o escriba Eleazar
scientiam, manifeste tu scis, quia, cum a quando estava sob tormentos pela fé de
morte possem liberari, duros et corporis Deus: ó Senhor, que tens a santa
sustineo dolores: secundum animam vero ciência, sabes manifestamente que eu,
propter timorem tuum libenter patior ainda que pudesse libertar-me da
haec. Et Matthaei xxvi dicitur de morte, sustento as crueldades e as dores
unguento, quod effudit Maria Magdalena do corpo, pois segundo a alma por teu
super caput Ihesu : Potuit istud temor de bom grado as sofro. E em
unguentum venundari multo, et dari Mateus 26, 9, é dito sobre o unguento
pauperibus : et tamen non fuit que Maria Madalena derramou sobre a
venundatum neque datum pauperibus. Ex cabeça de Jesus: este unguento podia ter
quibus omnibus clarissime patet quod sido vendido por muito e ser dado aos
creaturae multa possunt facere, quae pobres, e, no entanto, nem foi vendido
non facient, et multa omittere, quae non nem dado aos pobres. De todos esses
omittent. Quare non omnia de fica clarissimamente patente que as
necessitate eveniunt, ut publice criaturas podem fazer muitos que não
19
Pedro Lombardo, Sententiarum I, d. 44, cap. 1.
35
praedicavit et docuit loannes XXII, fazem e omitir muitos que não omitem.
appellans quendam tenentem contrarium Assim, nem tudo acontece
propter hoc haereticum. necessariamente, como pregou e
ensinou publicamente João XXII,
chamando, em razão disso, de herético
a quem sustenta o contrário.
Rationes autem Ioannis XXII, quas Ora, as razões de João XXII, que
pro haeresi praedicta adducit, haereticales toma o que foi mencionado por heresia,
sunt et omnino similes rationibus são heréticas e completamente
haereticorum (quas allegat et solvit semelhantes às razões dos heréticos (as
Magister Sententiarum libro primo de quais cita e resolve o Mestre das
diversis distinctionibus), quibus haeretici Sentenças no livro Primeiro sobre
conabantur ostendere quod omnia diversas distinções21), pelas quais os
eveniunt de necessitate, quia heréticos buscavam mostrar que tudo
praescientia Dei falli non potest, et quia ocorre necessariamente, seja porque a
20
Cf. Is 59, 1.
21
Cf. Pedo Lombardo, Sentent. I, d. 38, 2; d. 40, 1.
36
in Deo idem est esse et velle, et quia in presciência de Deus não pode falhar,
Deo scire et praescire et esse sunt idem: seja porque em Deus é o mesmo o ser e
et eodem modo solvi debent. o querer, seja porque em Deus o saber e
o saber previamente e o ser são o
mesmo: e devem ser resolvidas do
mesmo modo.
22
Cap. 5.
37
multa, non obstante quod non sint illa pela potência ordenada (isto é, de fato
multa, quae potest. Potest enim facere jamais fará): de modo que a essência e a
et fecit creaturas, scilicet caelum et potência, e, semelhantemente, o ser e o
terram et alia, et tamen non illa, quae poder, não são diversos em Deus, e, no
fecit, et illa, quae faciet. entanto, Deus pode muitos sem que
obste que aqueles muitos que pode não
sejam. Com efeito, pode fazer e fez as
criaturas, a saber, o céu e a terra e
outros, e, no entanto, não aqueles que
fez e aqueles que fará.
GUILHERME DE OCKHAM
Opus Nonaginta Dierum
(Obra dos Noventa Dias)
Capítulo 95*
*
Traduzido de GUILHERME DE OCKHAM 1963. Opus Nonaginta Dierum: Capitula 7-124. R. F. Bennett e H.
S. Offler (curadores). † J. G. Sikes (ed.). H. S. Offler (rev.). [= G. de Ockham Opera Politica II].
Manchester : Manchester University Press, p. 715-729, por Carlos Eduardo de Oliveira.
39
23
Seguindo a edição latina a partir da qual foi feita esta tradução, iniciamos com a reprodução do trecho da
bula Quia vir reprobus (Porque um homem réprobo) de João XXII que será comentada por Ockham neste
capítulo. Uma versão completa da bula para o inglês está disponível em
http://www.humanities.mq.edu.au/Ockham/wqvr.html (N. do T.).
40
impugnatum hic in duobus errare. falando), dizem, porém, que este com
Quorum primum est quod Christus non quem contendem comete aqui dois
longe ante passionem habuit regnum erros. Dos quais o primeiro é que o
temporale et dominium seu proprietatem Cristo não muito antes da paixão teve o
rerum temporalium. Secundum est quod reino temporal e o domínio ou a
ideo Christus nullo modo potuerit propriedade das coisas temporais. O
renuntiare regno et dominio, quia, si segundo é que, por isso, o Cristo de
fecisset, contra ordinationem Patris nenhum modo teria podido renunciar ao
fecisset. reino e ao domínio, porque, se assim
agisse, agiria contra a ordenação do Pai.
Primum improbatum est prius, ubi O primeiro foi censurado antes24,
ostensum est quod Christus inquantum onde se mostrou que o Cristo enquanto
homo mortalis nunquam habuit regnum homem mortal jamais teve o reino
temporale et universale rerum dominium temporal e o domínio ou a propriedade
seu proprietatem; et per consequens multo universal das coisas; e,
magis ex quo coepit praedicare, non consequentemente, muito mais em
habuit regnum et dominium supradicta. Et razão daquilo que empreendeu pregar,
quod tunc non habuerit regnum et não teve o reino e o domínio
dominium memorata, potest ostendi. supramencionados. E é possível mostrar
Quod tamen non habuerit universale que, então, não teria tido o reino e o
dominium omnium, in sequenti capitulo domínio lembrados. Porém, que não
patebit. Hic vero probatur quod regnum teria tido o domínio universal de tudo,
non habuit temporale. será provado no capítulo seguinte25.
Aqui, de fato, será provado que não teve
o reino temporal.
Hoc enim beatus Augustinus in Com efeito26, o bem-aventurado
quodam sermone de innocentibus testatur Agostinho testemunha expressamente
expresse, qui loquens de regno Christi ait: isso num sermão27 sobre os inocentes,
Putabat se infelix tyrannus Domini no qual, ao falar sobre o reino de Cristo,
Salvatoris adventu regali solio disse: O infeliz tirano considerava que
detrudendum. Sed non ita est. Non ad hoc seria expulso de seu trono real pelo
venerat Christus, ut alienam gloriam advento do Senhor Salvador. Mas não é
invaderet, sed ut suam donaret. Non, assim. O Cristo não tinha vindo para
inquam, ad hoc venerat Christus, ut assaltar a glória alheia, mas para dar a
regnum terrestre praeriperet; sed ut sua. O Cristo, digo, não veio para
caeleste donaret. Non venerat ad arrebatar o reino terrestre, mas para
24
Cap. 93, lin. 206 ss.
25
Cap. 96, lin. 49-153.
26
Ockham cita uma série semelhante de autoridades em Brevilóquio IV, 8; Octo Quaestiones II, 6;
Consultatio de causa matrimonialis.
27
[Augustinus], Sermo suppositus CCXVIII, 3, PL 39, 2150.
41
potestates dignitatesque rapiendas, sed ad dar o celeste. Não veio para pilhar os
contumelias et iniurias perferendas. Non poderes e dignidades, mas para
ad hoc venerat, ut sacrum illud caput ad suportar afrontas e injúrias. Não veio
diadema gemmatum, sed ut ad coronam para preparar aquela cabeça sagrada
spineam praepararet. Non, inquam, para uma diadema incrustrada de
venerat, ut constitueretur supra sceptra pedras preciosas, mas para uma coroa
magnificus ; sed ut crucifigeretur illusus. de espinhos. Não veio, digo, para ser
Item, Leo papa in quodam sermone de constituído nobre sobre os cetros, mas
Epiphania ait: Sed apparet illos, scilicet para ser ultrajado com a crucificação.
ludaeos, carnaliter cum Herode sapuisse Ainda, o Papa Leão, em certo sermão
et regnum Christi commune cum huius sobre a Epifania28, disse: Ora, era
mundi potestatibus aestimasse, ut et isti evidente que eles, a saber, os Judeus,
temporalem sperarent ducem et terrenum carnalmente, junto com Herodes,
metueret ille consortem. Ex hiis verbis tenham entendido e julgado o reino de
clare patet quod regnum Christi non fuit Cristo comum aos poderes deste
tale, quale est regnum terrenorum, nec mundo, dado que tanto estes
Christus fuit dux temporalis ; et per esperassem um líder temporal e
consequens rex fuit minime temporalis. terreno, como aquele temesse um
consorte. Destas palavras aparece
claramente que o reino de Cristo não foi
tal qual é o reino dos que são da terra,
que Cristo não foi líder temporal, e,
consequentemente, tampouco foi rei
temporal.
Item, Augustinus in epistola ad Ainda, Agostinho, na Carta aos
Madaurenses ait: Itaque non Christus Madaurenses, disse: Assim, não o
regno decoratus nec Christus terrenis Cristo ornado com o reino, nem o
opibus dives nec Christus ulla terrena Cristo opulento com as obras terrenas,
felicitate praefulgens ; sed Christus nem o Cristo que resplandece alguma
crucifixus per totum orbem terrarum felicidade terrena, mas por todo o orbe
praedicatur. Item, Gregorius in Pastorali terrestre é pregado o Cristo
ait: Ipse 'Dei et hominum Mediator' crucificado. Ainda, Gregório, na
regnum percipere vitavit in terris, qui Pastoral29, disse: “O Mediador entre
supernorum spirituum scientiam Deus e os homens”, tinha evitado
sensumque transcendens ante saecula apoderar-se do reino na terra; ele que,
regnat in caelis. Qui enim idcirco in carne transcendendo a ciência e o sentido dos
28
Leão Magno, Sermo XXXIV, 2, PL 54, 246.
29
Gregório Magno, Pastoral. I, 3, PL 77, 16, citado por Boaventura, Apologia Pauperum, in Doctoris
Seraphici S. Bonaventurae Opera Omnia, ed. PP. Collegii a S. Bonaventura, VIII, AD Claras Aquas, 1898,
9, p. 297; Miguel de Cesena, Appellatio contra libelum “Quia vir reprobus”. Datada em Munique, 26 de
Março de 1330 Parin, BN cod. Lat. 5154, fos. 179-253v., fo. 191.
42
venerat, ut non solum [nos] per passionem espíritos mais supernos, reina nos céus
redimeret, verum etiam per suam antes dos séculos. Com efeito, aquele
conversationem doceret, exempla que viera à carne, não só para [nos]
sequentibus praebens, rex fieri noluit. Ad redimir pela paixão, mas também para
crucis ergo patibulum sponte pervenit, [nos] ensinar por seu comportamento,
oblatam gloriam culminis fugit, poenam dando exemplos aos seguidores, não
probrosae mortis expetiit, ut membra eius quis se fazer rei. Portanto, dirigiu-se
discerent favores fugere, terrores minime espontaneamente ao patíbulo da cruz,
timere, pro veritate adversa diligere, recusou a glória oferecida no monte,
prospera formidando declinare. Item, experimentou a pena da morte infame,
Augustinus super illud Ioannis, Ergo cum para que seus companheiros
cognovisset quia venturi essent, etc., ait: aprendessem a recusar os aplausos, a
Putare ipsum regnare tunc jamais temer os terrores, a amar os
quemadmodum turbae putabant, erat eum inimigos em favor da verdade, a fugir
rapere, id est indebite trahere ac de ipso com horror das honrarias. Ainda,
aestimare. Ex hiis claret quod qui Agostinho, sobre aquela passagem de
putabant Christum regnare temporaliter, João (6, 15)30: Então, dado que
trahebant Christum indebite, ac de ipso soubesse que viessem, etc., disse:
etiam indebite aestimabant. Considerar que ele reinaria tal como a
multidão pensava, era pilhá-lo, isto é,
tomá-lo e julgá-lo de modo indevido.
Disto aparece que aqueles que
consideravam que o Cristo reinasse
temporalmente, tomavam o Cristo de
modo indevido, e também julgavam-no
de modo indevido.
Sed dicet aliquis quod Christus fuit Mas alguém dirá que o Cristo foi
rex temporalis, quamvis temporaliter non rei temporal, embora não tivesse
regnaret. Sed istam obiectionem confutat reinado temporalmente. Mas o bem-
beatus Augustinus super illud Ioannis, aventurado Agostinho refuta esta
Abiit Ihesus trans mare Galilaeae; qui ait: objeção ao tratar daquela citação de
Venit ipse unus, utramque personam in se João (6, 1)31: Jesus atravessou o mar da
portans sacerdotis et regis : sacerdotis Galileia. Ele diz: Ele veio uno, trazendo
per victimam, quam seipsum obtulit pro em si ambas as pessoas do sacerdote e
nobis Deo ; regis, quia regimur ab eo ; ex do rei: sacerdote pelo sacrifício,
quibus verbis constat aperte quod Christus oferecendo-se a si mesmo por nós para
non dicebatur rex nisi quia rexit; et per Deus; rei porque somos regidos por ele;
consequens quia regnavit. Sed non palavras a partir das quais consta
30
Provavelmente Ockham tinha em mente Agostinho, In Ioann. Evang. tr. XXV, 2, PL 35, 1597 = Cat.
aur. In Ioann. 6, § 2. Mas a citação não é literal.
31
Agostinho, In Ioann. Evang. tr. XXIV, 5, PL 35, 1595.
43
regnavit temporaliter ; ergo non fuit rex abertamente que o Cristo não era
temporalis. Item, glossa super illud chamado rei senão porque reinava; e,
Ioannis xviii, Regnum meum non est de consequentemente, porque reinou. Mas
hoc mundo, ait: Hoc est regnum, quod nos não reinou temporalmente. Portanto,
scire voluit; sed prius vicissim não foi rei temporal. Ainda, na glosa32
interrogando ostendere voluit quae et de sobre aquela passagem de João 18, 36:
regno suo hominum esset opinio, Meu reino não é deste mundo, disse:
Iudaeorum et gentium; qua ostensa aptius Este é o reino que quis que
utrisque respondet: 'Regnum meum non conhecêssemos; mas, ao interrogar
est de hoc mundo', [quasi]:' Decepti estis novamente, quis primeiramente mostrar
; non enim impedio dominationem que havia a dúvida dos homens, tanto
vestram in mundo, ne vane timeatis et judeus como gentios, sobre seu reino, a
saeviatis, sed ad regnum caeleste qual revelada mais aptamente,
credendo venire'. Hiis concordat respondeu a ambas: “Meu reino não é
Ambrosius in hymno Epiphaniae dicens : deste mundo” [como se respondesse]:
‘Estais enganados; com efeito, não
impeço vossa dominação no mundo, e
não temais e vos irriteis em vão, mas
crendo que venha o reino celeste”. Com
isto concorda Ambrósio33, que diz no
hino da Epifania:
Hostis Herodes impie, Impiamente, Herodes, Inimigo,
Christum venire quid times ? o que temes se o Cristo vir?
Non arripit mortalia, Não despoja o que é mortal,
Qui regna dat caelestia. Aquele que dá o reino celestial.
Istis etiam consonat glossa in Também é consoante a estas
principio libri Proverbiorum dicens: palavras a glosa34 para o princípio do
Parabolae graece, latine similitudines : livro dos Provérbios, que diz:
quod vocabulum ideo Salomon huic operi “Parábolas” em grego, “alegorias” em
imposuit, ut non iuxta litteram latim: por isso Salomão intitulou esta
intelligamus, quae dicit. In quo Dominum obra com este vocábulo, para que não
parabolice turbis locuturum significat, entendamos literalmente o que diz. No
sicut et nomine suo regno pacifico, que indica que o Senhor há de falar por
regnum Christi et ecclesiae, de quo parábolas para as multidões, assim
'Multiplicabitur eius imperium', de quo como também com o nome de seu reino
32
Gl. ord. ad Ioann. 18, 36; cf. Augustinus, In Ioann. Evang. tr. CXV, 1-2, PL 35, 1939.
33
Antes, Sedúlio, Hymnus (ad vesperas in Epiphania Domini) II, ed. J. Hümer, Viena, 1885, p. 164-5,
citado por Miguel de Cesena, App. IV, fo. 191.
34
Gl. ord. ad init. libr. Proverbios, citado por Miguel de Cesena, ibidem.
44
dictum est: 'Et regnum eius non erit finis, pacífico, o reino de Cristo e da igreja,
et super solium David et super regnum sobre o qual “será multiplicado seu
eius sedebit'. Ipse etiam Christus filius império”, sobre o qual foi dito: “E seu
David et rex spiritualis Israel. Ex hiis reino não terá fim, e sentará sobre o
aliisque quampluribus colligitur evidenter trono de David e sobre o reino”35. Ele
quod Christus non venit regnum suscipere próprio também o Cristo, filho de Davi,
temporale, nec rex fieri voluit temporalis, e rei espiritual de Israel. Destas
neque dignitates assumere temporales, sed palavras e de várias outras recolhe-se
rex extitit spiritualis Israel. Quomodo evidentemente que o Cristo não veio
autem tempore passionis recognovit se tomar o reino temporal, nem quis se
regem non temporaliter, sed spiritualiter, fazer rei do temporal nem assumir as
est in praecedentibus declaratum. dignidades temporais, mas mostrou-se o
rei espiritual de Israel. Ora, de que
modo reconheceu-se rei, não
temporalmente, mas espiritualmente, no
tempo da paixão, foi declarado
anteriormente.36
Secundum, in quo dicunt istum O segundo em que dizem37 ele
errare, est quod ideo Christus nullo modo errar é que, por isso, o Cristo não pode
potuit renuntiare regno et dominio renunciar de nenhum modo ao reino e
supradictis, quia, si fecisset, contra ao domínio antes mencionados, porque,
ordinationem Patris fecisset. Ad cuius se o fizesse, o faria contra a ordenação
intellectum dicunt esse sciendum quod do Pai. Para que se entenda isso, dizem
iste opinatur quod omnia de necessitate que cumpre saber que este tem a opinião
eveniunt, ita quod contradictionem de que tudo acontece necessariamente,
includit quaecunque aliter evenire quam de modo que há contradição em que,
eveniunt. Cuius ratio fundamentalis est, seja o que for, aconteça diversamente de
quia Deus omnia ab aeterno, quomodo como acontece. A razão fundamental
debeant fieri, ordinavit; contradictionem disso é que Deus, desde a eternidade,
autem includit quod ordinatio divina ordenou de que modo tudo deveria ser
impediatur; ergo contradictionem includit feito. Ora, há contradição em que a
quod quaecunque aliter eveniant quam ordenação divina seja impedida.
eveniunt. Istam rationem generalem ad Portanto, há contradição em que seja o
probandum quod omnia de necessitate que for aconteça diversamente de como
eveniunt ipse hic applicat ad materiam acontece. Essa razão geral para a prova
specialem, scilicet quod Christus non de que tudo acontece necessariamente é
potuit renuntiare regno et dominio aplicada por ele aqui numa matéria
supradictis. Quia Deus Pater ab aeterno determinada, a saber, que o Cristo não
35
Cf. Is 9, 7.
36
Cap. 93, 1254-1316.
37
Cf. Ockham, Dialogus I, 5, 2.
45
38
Por exemplo, o sermão de João XXII: “Tulerunt iusti spolia impiorum” (Sb 10, 19), pregado em 1330.
Cf. Ockham, Contra Ioannem 22-23; Contra Benedictum III, 3.
39
Provavelmente Ockham faz referência a si mesmo.
40
Cf. Tulerunt..., op. cit.
46
quia in Deo idem est essentia et potentia. ordenada, é que se Deus fizesse algo
Sed in Deo non sunt duae essentiae ; ergo pela potência absoluta que não fizesse
nec duae potentiae. pela potência ordenada, Deus poderia
fazer algo que não se ordenou haver de
fazer, e, assim, Deus seria mutável.
Outra razão sua41 é que em Deus a
essência e a potência são o mesmo. Ora,
não há duas essências em Deus.
Portanto, nem duas potências.
Hiis visis, dicunt isti quod iste hic Visto isso, estes dizem que aquele
dogmatizat implicite haeresim proclama, implicitamente, uma heresia
detestandam, scilicet quod omnia que há de ser abominada, a saber, que
eveniunt de necessitate; ideo hic contra tudo acontece necessariamente; por
istum sic proceditur : Primo probant quod isso, assim se procede aqui contra ele:
non omnia eveniunt de necessitate; Primeiro, provam que nem tudo
secundo ostendunt quod nulla quantum ad acontece necessariamente; segundo,
divinam potentiam eveniunt de mostram que nada, no que toca à
necessitate; tertio moliuntur ostendere potência divina, acontece
specialiter quod, si Christus habuit necessariamente; terceiro, empenham-
regnum et dominium supradicta, ipse se em mostrar especialmente que, se o
potuit renuntiare absolute eisdem ; quarto, Cristo teve o reino e o domínio acima
declarant quomodo debet intelligi quod in mencionados, pôde renunciar
Deo est duplex potentia, scilicet absoluta absolutamente a eles; quarto, declaram
et ordinata, et quomodo Deus potest de que modo deve ser entendido que há
aliqua facere de potentia absoluta, quae em Deus uma dupla potência, a saber, a
non facit de potentia ordinata ; quinto ad absoluta e a ordenada, e de que modo
rationes, quae pro haeresi sua tanguntur, Deus pode fazer, pela potência absoluta,
respondent. alguns que não faz pela potência
ordenada; quinto, respondem às razões
que consideram a heresia dele.
Primo igitur probare conantur quod Portanto, primeiro buscam provar
non omnia eveniunt de necessitate, sed que nem tudo acontece
quod aliqua possent aliter evenire. Et necessariamente, mas que alguns
primo sic: Deus potuit et potest multa podem acontecer diversamente. E
facere, quae non fecit nec facit, et posset primeiro assim42: Deus pôde e pode
multa non facere, quae facit; ergo multa fazer muitos, que não fez nem faz, e
potuerunt et possent aliter evenire quam poderia não fazer muitos que faz.
evenerint et eveniant; et per consequens Portanto, muitos puderam e podem
41
Cf. ibidem e o sermão de João XXII “Deus autem rex noster” (Sl 73, 12).
42
Cf. Ockham, Ord. I, d. 43, q. 1.
47
44
Cf. Agostinho, Enchir. 95, PL 40, 276; Pedro Lombardo, Sentent. I, d. 43, q. unica.
45
Agostinho, De natura et gratia 7, PL, 250-1.
46
Pedro Lombado, loc. cit.
47
Agostinho, In Gen. ad litt. 11, 7, PL 34, 433.
51
48
Pedro Abelardo, Introd. ad Theol. III, 4-6, PL 178, 1091 ss.
49
Cf. Hugo de São Vitor, De sacramentis, I, 2, 22, PL 176, 214.
52
dispositione. Item, c. xxviii dicit: Per haec conclui dizendo: Portanto, alguns
autem excluditur quorundam error efeitos não procedem necessariamente
probare nitentium quod Deus non potest da vontade divina, mas de sua livre
facere nisi quod facit, quia non potest disposição. Ainda, no capítulo 28, diz:
facere nisi quod debet. Et post dicit sic : Ora, por isso está excluído qualquer um
Non est autem necessarium, si Deus suam que se esforce por provar o erro de que
bonitatem vult esse, quod Deus velit alia a Deus não pode fazer senão o que faz,
se produci ; et post: Ostensum est quod porque não pode fazer senão o que
Deus produxit res in esse non ex deve. E, depois, diz assim: Ora, não é
necessitate naturae, neque ex necessitate necessário, se Deus quer que sua
scientiae, neque voluntatis, neque bondade seja, que Deus queira que
iustitiae. Nullo igitur modo necessitatis outros diversos de si sejam produzidos.
divinae bonitati est debitum quod res in E, depois: Mostrou-se que Deus
esse producuntur. Item, libro tertio, c. xcv produziu as coisas no ser não a partir
ait: Nichil igitur Deus facere potest, quin da necessidade da natureza, nem da
sub ordine suae providentiae cadat: sicut necessidade da ciência, nem da
non potest aliquid facere quod eius vontade, nem da justiça. Portanto, a
operationi non subdatur. Potest tamen nenhum modo de necessidade da
alia facere quam ea, quae subduntur eius bondade divina é devida a produção
providentiae vel operationi, si absolute das coisas no ser. Ainda, no livro
consideretur eius potestas, sed nec potest terceiro, capítulo 9550, disse: Portanto,
facere aliqua, quae sub ordine Deus não pode fazer nada sem que caia
providentiae ipsius ab aeterno non sob a ordem de sua providência: assim
fuerint, eo quod mutabilis esse non potest. como não pode fazer algo que não se
Hanc autem distinctionem quidam non submeta à sua operação. No entanto,
considerantes, in diversos errores pode fazer outros além destes, que se
inciderunt. Quidam vero immobilitatem submetem à sua providência ou
divini ordinis ad res ipsas, quae ordini operação, se seu poder for considerado
subduntur, extendere conati sunt, dicentes absolutamente, mas não pode fazer
quod omnia necesse est esse [sicut sunt], alguns, que não tenham sido sob a
in tantum quod quidam dixerunt quod ordem de sua providência desde a
Deus non potest alia facere quam quae eternidade, visto que não pode ser
facit. Contra quod est quod habetur mutável. Ora, alguns, ao não
Matthaei xxvi: ' An non possum rogare considerar esta distinção, caem em
Patrem meum, et exhibebit michi plus vários erros. De fato, alguns se
quam duodecim legiones angelorum ?' Ex esforçam por estender a imobilidade da
hiis aliisque quampluribus, quae prima ordem divina às próprias coisas que
parte Summae et super primum librum estão submetidas à ordem, ao dizer que
Sententiarum et aliis locis diversis iste tudo necessariamente tem o ser [assim
50
Contra Gentiles III, cap. 98.
53
doctor determinat, patet expresse quod como o tem], a ponto que alguns
ipse erroneum reputat dicere quod Deus disseram que Deus não pode fazer
non potest alia facere quam facit vel quod outros além dos que faz. Contra isso há
omnia eveniunt de necessitate. o que se tem em Mateus 26, 53: “Acaso
não posso pedir ao meu Pai, e ele me
dará mais de doze legiões de anjos?”
Destas e de várias outras, que este
doutor determina na primeira parte da
Suma e sobre o Primeiro Livro das
Sentenças51 e em outros lugares
diversos, é expressamente patente que
ele considera errôneo dizer que Deus
não pode fazer outros além dos que ele
faz ou que tudo acontece
necessariamente.
Secundo eandem conclusionem, Segundo, a mesma conclusão, de
quod non omnia eveniunt de necessitate, que tudo não acontece necessariamente,
probant praedicti impugnatores sic : os mencionados contendedores provam
Creaturae rationales multa non faciunt, assim: as criaturas racionais não fazem
quae possent facere, ergo non omnia de muito do que podem fazer, portanto,
necessitate eveniunt. Consequentia est nem tudo acontece necessariamente. A
evidens; antecedens auctoritate et ratione consequência é evidente, a antecedente
probatur. Auctoritate primo sic : ii é provada pela autoridade e pela razão.
Machabaeorum c. vi, Eleazarus, qui pro Pela autoridade, primeiro, assim: em 2º
divinis legibus mortem sustinuit, cum Macabeus, cap. 6, 30, aquele que
plagis perimeretur, dixit: Domine, qui sustentou a morte em favor das leis
habes sanctam scientiam, manifeste tu divinas, visto que seria morto a golpes,
scis, quia, cum a morte possem liberari, disse: ó Senhor, que tens a santa
duros corporis sustineo dolores ; ciência, sabes manifestamente que eu,
secundum animam vero propter timorem ainda que pudesse libertar-me da
tuum libenter haec patior. Ex quibus morte, sustento as crueldades, as dores
verbis evidenter colligitur quod iste vir do corpo, pois segundo a alma por teu
sanctus potuisset infidelibus consentire, et temor de bom grado as sofro. Destas
sic a morte liberari; et tamen non palavras evidentemente se recolhe que
consensit; potuit ergo aliquid facere, quod este homem santo poderia ceder aos
non fecit. Item, Ecclesiastici c. xxxi de infiéis, e assim livrar-se da morte. No
beato divite sic scribitur: Qui potuit entanto, não cedeu. Portanto, pôde fazer
transgredi, et non est transgressus ; et algo que não fez. Ainda, Eclesiástico,
facere mala, et non fecit. Hiis verbis cap. 31, 10, sobre a riqueza bem-
51
Suma de Teologia I, q. 19, a. 3; In Sent., d. 43, q. 2, a. 1.
54
clarius dici non posset quod potest quis aventurada, assim se escreve: Aquele
facere aliquid, quod non facit. Item, sicut que pôde transgredir, e não
habetur Matthaei xxvi et Marci xiv, transgrediu; fazer o mal, e não fez. Não
discipuli Christi dixerunt: Ut quid perditio é possível dizer mais claramente com
ista unguenti facta est ? Poterat enim estas palavras que alguém pode fazer
unguentum istud venundari plus quam algo que não faz. Ainda, assim como se
trecentis denariis, et dari pauperibus ; et encontra em Mateus 26, 8-9 e Marcos
tamen non fuit venundatum nec datum 14, 4-5, os discípulos de Cristo
pauperibus ; ergo aliquid potuit fieri, quod disseram: Para que ter desperdiçado
tamen non fiebat. Nec enim Christus de este unguento? Com efeito, podia tê-lo
hoc, quod asseruerunt illud unguentum vendido por mais de trezentos denários,
potuisse venundari et dari pauperibus, e dá-los ao pobres, e, no entanto, não foi
ipsos aliqualiter reprehendit, sed de vendido nem dado aos pobres; portanto,
indignatione ipsorum de effusione pôde ser feito algo que, porém, não foi
unguenti super caput ipsius. Item, feito. Com efeito, não é do que
Matthaei xx, cum Christus interrogaret asseveraram sobre a possibilidade de se
Iacobum et Ioannem: Potestis bibere ter vendido o unguento e dá-lo aos
calicem, quem bibiturus sum ? pobres que Cristo igualmente os
responderunt: Possumus ; non dixerunt ' repreende, mas pela indignação deles
Bibemus '. Ex quo patet quod sciverunt se pelo derramamento de unguento sobre
posse bibere calicem Christi; nescierunt sua cabeça. Ainda, Mateus 20, 22,
tamen an essent bibituri. Item, Genesis quando Cristo interrogou a Tiago e
xxxi dixit Laban ad Iacob : Et nunc valet João: Podeis beber o cálice que haverei
quidem manus mea reddere tibi malum ; de beber? eles responderam: Podemos;
sed Deus patris tui heri dixit michi: Cave não disseram: “Bebemos”. Do que é
ne loquaris cum Iacob quicquam durius. patente que souberam que poderiam
Ex quibus verbis colligitur quod Laban beber o cálice de Cristo, não souberam,
potuit reddere malum Iacob ; et tamen non no entanto, se acaso o beberiam. Ainda,
fecit; ergo potuit aliquid facere, quod em Gênesis 31, 28-29, Labão disse a
minime fecit. Jacó: E agora certamente minha mão
tem como trazer-te o mal, mas Deus, o
teu pai, disse-me ontem: Cuida de não
falar a Jacó nada de mais duro. De
cujas palavras se colhe que Labão pôde
fazer o mal a Jacó e, no entanto, não fez;
portanto, pode fazer algo que jamais
fez.
Hoc etiam ratione probatur: Nam qui Isso também é provado pela razão:
potest mereri et demereri, potest facere pois aquele que pode merecer e
aliquid, quod non facit; nam si non posset desmerecer, pode fazer algo que não
55
aliter facere, non esset in potestate eius faz; pois se não pudesse fazer
aliter facere ; sed per illud, quod non est diversamente, não estaria em seu poder
in potestate alicuius, ipse non meretur nec o fazer diversamente; ora, por meio
demeretur. Sed homo potest mereri et daquilo que não está em poder de
demereri; ergo potest aliter facere et aliud alguém, ele nem mereceria nem
quam facit. Haec ratio confirmatur : Quia desmereceria. Ora, o homem pode
omne meritum est laudabile et omne merecer e desmerecer. Portanto, pode
demeritum est vituperabile. Sed illud, fazer diversamente e além do que faz.
quod non est in nostra potestate, ut Esta razão é confirmada: porque todo
possimus illud facere et non facere, non mérito é louvável e todo demérito é
est laudabile neque vituperabile; ergo vituperável. Ora, aquilo que não está em
omne meritum et demeritum est in nostra nosso poder, para que possamos fazê-lo
potestate, ut possimus illud facere et non e não fazê-lo, não é louvável nem
facere. Maior est evidens ; minor probatur vituperável; portanto, todo mérito e
auctoritate Augustini tertio de Libero demérito está em nosso poder, para que
Arbitrio, qui ait: Motus quo huc atque possamos fazê-lo e não fazê-lo. A maior
illuc voluntas convertitur, nisi esset é evidente; a menor é provada pela
voluntarius atque in nostra potestate, autoridade de Agostinho, no terceiro
neque laudandus cum ad superiora neque livro do Sobre o Livre Arbítrio52, que
culpandus homo esset cum ad inferiora diz: A menos que o movimento que
detorquet quasi quemdam cardinem converte a vontade para cá e para lá
voluntatis ; ex quibus verbis colligitur fosse voluntário e estivesse em nosso
evidenter quod illud, quod non est in poder, o homem, como que certo polo
potestate nostra, et tamen facimus, non est da vontade, nem seria louvado quando
laudabile nec vituperabile. Hiis concordat se voltasse ao que é superior nem
Sapiens mundi, iii Ethicorum, ubi probat culpado quando se voltasse ao que é
quod propter illa, quae non sunt in inferior; palavras das quais se recolhe
potestate nostra, neque laudamur neque evidentemente que aquilo que não está
vituperamur. Patet ergo quod omne em nosso poder e, no entanto, fazemos,
meritum et demeritum est in potestate não é nem louvável nem vituperável.
nostra; et per consequens possumus multa Com isso concorda o Sábio do mundo,
non facere, quae facimus, et similiter em Ética III53, onde prova que em razão
multa facere, quae non facimus. Quare daqueles que não estão em nosso poder,
concluditur evidenter quod non omnia de nem somos louvados nem vituperados.
necessitate eveniunt; aliter enim, ut probat Portanto, é patente que todo mérito e
Philosophus, non oporteret negotiari demérito está em nosso poder.
neque consiliari; quia de illis, quae de Consequentemente, podemos deixar de
necessitate eveniunt, non oportet negotiari fazer muitos que fazemos, e, de modo
neque consiliari. semelhante, fazer muitos que não
52
Agostinho, De libero arbítrio III, 1, PL 32, 1272.
53
Ética a Nicômaco III, 1, 1109b30-35; Tomás de Aquino, In libr. Eth. III, lect. 1, n. 383; lect. 4, n. 431.
56
Solum igitur illud bonum voluntas, para que queira algo outro a partir do
secundum sui rationem, non potest velle que quer a sua vontade, e,
non esse, quo non existente tollitur consequentemente, nenhuma
totaliter ratio boni. Tale autem nullum est necessidade é inerente a ela para que
praeter Deum. Potest igitur voluntas, produza ou conserve qualquer outro. E,
secundum sui rationem, velle non esse abaixo, diz assim: Portanto, a vontade,
quamcunque rem praeter Deum. Ex hiis segundo sua noção própria, apenas não
sequitur quod Deus potest destruere pode querer que não seja aquele bem
omnem rem aliam a se; et per consequens que, se não existir, elimina
respectu Dei nichil evenit de necessitate. completamente a noção de bem. Ora,
Item, prima parte Summae, q. xix, articulo tal nada é se não Deus. Portanto, a
tertio, dicit sic : Cum voluntas Dei sic vontade pode, segundo sua noção
possit esse perfecta sine aliis, cum nichil própria, querer que qualquer coisa
ei perfectionis ex aliis accrescat, sequitur deixe de ser, exceto Deus. Destas se
quod alia a se eum velle non sit segue que Deus pode destruir qualquer
necessarium absolute ; ergo contingenter coisa diversa de si. Consequentemente,
vult quaecunque alia a se. Et ita omnia alia nada acontece necessariamente a
a Deo eveniunt contingenter; et per respeito de Deus. Ainda, na primeira
consequens nulla de necessitate eveniunt, parte da Suma, questão 19, artigo
secundum istum doctorem. terceiro, diz assim: Visto que a vontade
de Deus possa ser tão perfeita sem os
outros, visto que nenhuma perfeição
seja acrescentada a ela a partir dos
outros, se segue que querer outros além
de si não seja absolutamente
necessário. Portanto, quer
contingentemente o que for diverso de
si. E assim tudo que é diverso de Deus
se dá contingentemente.
Consequentemente, nada acontece
necessariamente, segundo este doutor.
Tertio, isti impugnatores probare Terceiro, estes contendedores
conantur quod si Christus habuerit buscam provar que se o Cristo tivesse o
regnum temporale et dominium reino temporal e o domínio tantas vezes
saepedicta, ipse potuit absolute renuntiare mencionados, ele poderia
eisdem. Hoc autem unica ratione ad absolutamente renunciar a eles. Ora, se
praesens nituntur ostendere, quae talis est: esforçam por mostrar isso no presente
Non magis artabatur Christus ad por uma única razão, que é a seguinte:
habendum regnum temporale et Cristo não estava mais constrangido a
dominium universale rerum temporalium, ter o reino temporal e o domínio
58
55
Pedro Lombardo, Sent. I, d. 44, c. 1; cf. Agostinho, De Trinitate XIII, 10, PL 42, 1024.
56
Cap. 1-4.
59
Deo, immo ipsa unica potentia est unica absoluta e a outra ordenada; porque há
essentia. Sed, sicut secundum Magistrum uma única potência em Deus, ou
Sententiarum libro i, di. xlv : Sacra melhor, a mesma potência única é a
scriptura, de voluntate Dei variis modis essência única. Ora, assim como,
loqui consuevit; et non est Dei voluntas segundo o Mestre das Sentenças no
diversa, sed locutio est diversa, ita livro I, distinção 4557, A sagrada
scriptura divina et sanctorum patrum de escritura costumou falar de vários
potentia Dei variis modis loqui consuevit; modos sobre a vontade de Deus; e a
et tamen non est diversa potentia Dei, sed vontade de Deus não é diversa, mas a
locutio est diversa ; quia scilicet, cum per locução é diversa, assim costumou falar
talia vocabula, ' potest', ' possibile ', ' a escritura divina e dos santos pais sobre
potentia ' et consimilia in significatione a potência de Deus, e, no entanto, a
convenientia, scripturae loquuntur de potência de Deus não é diversa, mas a
Deo, huiusmodi vocabula in diversis locis locução é diversa; a saber, porque,
accipiuntur aequivoce. Unde in quando as escrituras falam de Deus
quibusdam locis denotant vel important pelos vocábulos “pode”, “possível”,
omnia illa, quae non repugnant Deo “potência” e semelhantes na
facere. Sic accipitur hoc verbum 'potest' in conveniência da significação, tais
auctoritatibus superius allegatis, et in vocábulos são tomados equivocamente
multis aliis locis. Sic etiam accipitur hoc em diversos lugares. Donde, em alguns
nomen 'omnipotens' Genesis xvii, cum lugares denotam ou fazem referência a
dixit Dominus ad Abraham : Ego Deus tudo aquilo que não repugna a Deus
omnipotens, et in symbolo Apostolorum fazer. Assim esta palavra “pode” é
et etiam in symbolo, quod cantatur in tomada nas autoridades alegadas acima,
missa, cum dicitur : Credo in unum Deum e em muitos outros lugares. Assim
Patrem omnipotentem. Aliter huiusmodi também o nome “onipotente” é tomado
vocabula important vel connotant em Gênesis 17, 1, Eu o Deus onipotente,
solummodo illa, quae ordinavit se tanto no símbolo dos Apóstolos, como
facturum, et non omnia illa, quae potuit et também no símbolo que é cantado na
posset ordinare se facturum. Sic accipitur missa58, quando é dito: Creio em um só
Genesis xviii, ubi dixit Dominus : Num Deus, Pai onipotente. Diversamente,
celare potero Abraham quae gesturus sum estas palavras fazem referência ou
? quasi diceret, 'Non'; et tamen constat conotam unicamente aquilo que se
quod Deus non necessitabatur revelare ordenou haver de fazer, e não tudo
Abraham quae erat facturus ; sed ideo aquilo que pôde e pode se ordenar haver
dixit Num celare potero, etc., quia de fazer. Assim se toma Gênesis 18, 17,
ordinavit se revelaturum Abraham quae em que o Senhor diz: Acaso poderei
facturus erat. Sic accipitur Genesis xix, esconder de Abraão o que hei de fazer?
cum Dominus dixit ad Loth : Festina et como se dissesse: “Não”. No entanto,
57
Cap. 5.
58
Isto é, o Credo Niceno-Costantinopolitano.
60
salvare ibi, quia non potero facere consta que Deus não tinha necessidade
quicquam donec ingrediaris illuc, hoc est, de revelar a Abraão o que havia de
'Non faciam quicquam donec ingrediaris fazer; mas disse: Acaso poderei
illuc'. Sic etiam accipitur Marci vi, cum esconder, etc., por isso: porque
dicitur de Salvatore nostro : Non poterat ordenou-se haver de revelar a Abraão o
ibi virtutem facere ullam, nisi paucos que havia de fazer. Assim se toma
infirmos impositis manibus curavit: et Gênesis 19, 22, quando o Senhor disse
mirabatur propter incredulitatem a Ló: Apressa-te e refugia-te ali, porque
ipsorum ; et tamen constat quod Christo não poderei fazer o que for até que
inquantum erat Deus non erat impossibile entres ali, isto é, “Não farei o que for até
absolute facere ibi virtutem ; sed dicitur que entres ali”. Assim também é tomado
quod non poterat ibi facere virtutem Marcos 6, 5-6, quando é dito sobre o
ullam, quia propter incredulitatem illorum nosso Salvador: Não pudera fazer
noluit ibi facere virtutem. Sic ergo hoc nenhuma virtude ali, curou apenas
verbum 'potest' accipitur aequivoce in poucos enfermos pela imposição das
scripturis de Deo loquentibus: mãos: e admirou-se da incredulidade
quemadmodum idem verbum, cum deles. No entanto, consta que, enquanto
loquimur de hominibus, accipitur era Deus, não era impossível ao Cristo
aequivoce. Uno enim modo dicimur illa fazer absolutamente a virtude ali, mas
posse, quae de iure possumus, et illud disse que não pudera fazer ali nenhuma
dicitur posse fieri, quod licite et debite virtude, porque em razão da
fieri potest. Sic accipitur Genesis xxxix, incredulidade deles não quis fazer a
cum dixit loseph ad Aegyptiam : virtude ali. Desse modo, portanto, a
Quomodo ergo possum hoc malum facere palavra “pode” é tomada
? quasi diceret: 'Licite et de iure non equivocamente nas escrituras ao falar
possum'. Aliter dicimur posse illa, quae sobre Deus, do mesmo modo que, a
absolute possumus sive bene sive male ; mesma palavra, quando falamos sobre
aliter enim nequaquam peccare possemus. os homens, é tomada equivocamente.
Sic ergo hoc verbum 'posse ' accipitur Com efeito, de um modo se diz que
aequivoce in scripturis, cum loquitur de possamos aqueles que podemos por
Deo; unica tamen potentia realiter est in direito, e é dito poder ser feito aquilo
Deo, sed locutio est diversa. Et propter que licitamente e devidamente pode ser
istam diversam locutionem dicitur quod feito. Assim é tomado Gênesis, 39, 9,
Deus potest aliqua de potentia absoluta, quando José diz à egípcia: Como, então,
quae non potest de potentia ordinata, hoc posso fazer este mal? como se dissesse:
est, Deus potest aliqua, accipiendo “Não posso licitamente e por direito”.
verbum 'posse' secundum primam Diversamente, se diz que possamos
significationem eius, quae tamen non aqueles que podemos absolutamente,
potest de potentia ordinata: hoc est, haec seja para o bem, seja para o mal, com
est concedenda : 'Deus non potest illa', efeito, diversamente, jamais
accipiendo hoc verbum: 'posse' in secunda poderíamos pecar. Portanto, assim a
61
59
Supra, no § “O segundo em que dizem ele errar [...]”: “[...] A razão fundamental disso é que Deus, desde
a eternidade, ordenou de que modo tudo deveria ser feito. Ora, há contradição em que a ordenação divina
seja impedida. Portanto, há contradição em que seja o que for aconteça diversamente de como acontece.”.
60
Cap. 2.
61
Pedro Abelardo, Theol. Christ. III, 7, PL 178, 1109 ss.
62
Cap. 1.
63
Cf. [Hugo de São Vitor] (talvez Oto de Lucena), Summa Sentent. I, 12, PL 176, 63.
64
Cf. supra, no mesmo § antes mencionado: “[...]Ora, sua principal razão, pela qual nega a distinção entre
a potência absoluta e a ordenada, é que se Deus fizesse algo pela potência absoluta que não fizesse pela
potência ordenada, Deus poderia fazer algo que não se ordenou haver de fazer, e, assim, Deus seria
mutável.”.
63
*
Ockham geralmente toma a palavra “predestinado” como sinônima de “aquele que há de ser salvo” (N.
do T.).
65
Cap. 1.
64
66
Pedro Lombardo, Sent. I, d. 38, cap. 2.
65
67
Supra, ibidem: “Outra razão sua67 é que em Deus a essência e a potência são o mesmo. Ora, não há duas
essências em Deus. Portanto, nem duas potências.”.
68
Supra: no § “Quarto, declaram de que modo deve ser entendida a distinção dos teólogos[...]”: “e de que
modo Deus pode fazer alguns pela potência absoluta que não pode pela potência ordenada, ao dizer que tal
distinção não deve ser entendida tal como a consideram certos ignorantes, como se houvesse em Deus uma
dupla potência, das quais uma seria absoluta e a outra ordenada; [...]”
66
69
Supra, ibidem: “e, no entanto, a potência de Deus não é diversa, mas a locução é diversa; a saber, porque,
quando as escrituras falam de Deus pelos vocábulos “pode”, “possível”, “potência” e semelhantes na
conveniência da significação, tais vocábulos são tomados equivocamente em diversos lugares. Donde, em
alguns lugares denotam ou fazem referência a tudo aquilo que não repugna a Deus fazer. Assim esta palavra
“pode” é tomada nas autoridades alegadas acima, e em muitos outros lugares. Assim também o nome
“onipotente” é tomado em Gênesis 17, 1, Eu o Deus onipotente, tanto no símbolo dos Apóstolos, como
também no símbolo que é cantado na missa, quando é dito: Creio em um só Deus, Pai onipotente.
Diversamente, estas palavras fazem referência ou conotam unicamente aquilo que se ordenou haver de
fazer, e não tudo aquilo que pôde e pode se ordenar haver de fazer. Assim se toma Gênesis 18, 17, em que
o Senhor diz: Acaso poderei esconder de Abraão o que hei de fazer? como se dissesse: “Não”. No entanto,
consta que Deus não tinha necessidade de revelar a Abraão o que havia de fazer; mas disse: Acaso poderei
esconder, etc., por isso: porque ordenou-se haver de revelar a Abraão o que havia de fazer. Assim se toma
Gênesis 19, 22, quando o Senhor disse a Ló: Apressa-te e refugia-te ali, porque não poderei fazer o que for
até que entres ali, isto é, “Não farei o que for até que entres ali”. Assim também é tomado Marcos 6, 5-6,
quando é dito sobre o nosso Salvador: Não pudera fazer nenhuma virtude ali, curou apenas poucos
enfermos pela imposição das mãos: e admirou-se da incredulidade deles. No entanto, consta que, enquanto
era Deus, não era impossível ao Cristo fazer absolutamente a virtude ali, mas disse que não pudera fazer ali
nenhuma virtude, porque em razão da incredulidade deles não quis fazer a virtude ali. Desse modo, portanto,
a palavra “pode” é tomada equivocamente nas escrituras ao falar sobre Deus, do mesmo modo que, a mesma
palavra, quando falamos sobre os homens, é tomada equivocamente. Com efeito, de um modo se diz que
possamos aqueles que podemos por direito, e é dito poder ser feito aquilo que licitamente e devidamente
pode ser feito. Assim é tomado Gênesis, 39, 9, quando José diz à egípcia: Como, então, posso fazer este
mal? como se dissesse: “Não posso licitamente e por direito”. Diversamente, se diz que possamos aqueles
que podemos absolutamente, seja para o bem, seja para o mal, com efeito, diversamente, jamais poderíamos
pecar. Portanto, assim a palavra “poder” é tomada equivocamente nas escrituras quando se fala de Deus.
No entanto, há uma única potência realmente em Deus, mas a locução é diversa.”.
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