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RICARDO VENTURA SANTOS

MARIA CÁTIRA BORTOLINI


MARCOS CHOR MAIO

No fio da
navalha: raça,
genética e
identidades
RICARDO VENTURA
SANTOS é professor da
Universidade Federal do
Rio de Janeiro, da Escola
Nacional de Saúde Pública
e da Fundação Oswaldo
Cruz (Rio de Janeiro).

Agradecemos a Carlos E. A. Coim- MARIA CÁTIRA


bra Jr. e a Lilia Schwarcz pela leitura
BORTOLINI é professora
e pelos valiosos comentários.
do Departamento de
Genética da Universidade
Federal do Rio Grande
do Sul.

MARCOS CHOR MAIO


é professor da Casa de
Oswaldo Cruz da Fundação
Oswaldo Cruz (Rio de
Janeiro).

22 REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 22-35, dezembro/fevereiro 2005-2006


U
INTRODUÇÃO

ma recente matéria do jornal New


York Times 1 aborda a febre que se
se tornou a utilização de testes de DNA para fins
de obtenção de informações sobre ancestrali-
dade por afro-americanos nos EUA, um negócio
que está se expandindo rapidamente. Um dos
casos descritos é o de uma senhora negra de
64 anos que, durante boa parte de sua vida,
ouviu comentários, inclusive de amigos afro-
americanos, quanto a sua pele muito clara.
Ela decidiu se submeter a um teste e recebeu,
com grata satisfação, o resultado de que sua
ancestralidade materna é, de fato, africana,
remontando há 150.000 anos. Sentenciou ela:
1 Amy Harmon, “Blacks Pin Hope
“Na minha cor há alguma brancura, mas sob a on DNA to Fill Slavery’s Gaps
in Family Trees”, in New York
pele sou profundamente África”. Um segundo Times, 25/7/2005.

caso é o de uma mulher que estava em busca


de descobrir a “identidade” do seu bisavô, que
ela sabia ter nascido como escravo no sul dos
EUA. O resultado do teste revelou uma ances-
tralidade paterna de origem européia. A mulher
comentou com a jornalista que, quando buscava
na Internet dados que coincidissem com os de
sua ancestralidade, não era sem preocupação
que estava se preparando para, eventualmente,
encontrar os “novos” membros de sua família.
Um terceiro caso é o de um enfermeiro negro de
sobrenome Hawkins. Ele enviou um e-mail para
um homem (branco), de mesmo sobrenome, cujo
marcador de ancestralidade genômica descobriu
ser semelhante ao seu. Em um primeiro momento
o homem contatado mostrou-se entusiasmado.
A interação esvaeceu depois que o enfermeiro
enviou o endereço na Internet com fotos de sua
família.

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Essas situações falam-nos de encontros, práticas e ideologias (Lindee et al., 2003).
tensões e distanciamentos de pessoas com Sobre as inter-relações entre o desenvolvi-
si mesmas e com outras de seu entorno, de mento de tecnologias genéticas, sociedade
um modo ou de outro mediados pela bio- e construção de identidades no mundo
tecnologia. Ademais, referem-se a corpos contemporâneo, Browdin (2002, p. 324)
(ou partes dele) que são, simultaneamente, comenta: “Traçar nossa ancestralidade –
biológicos e sociais, individualizados e re- através da análise de um conjunto específico
lacionais (Rodrigues, 2005). Em estruturas de alelos ou de mutações no cromossomo
do corpo são procuradas marcas de socia- Y e no DNA mitocondrial – tornou-se não
bilidade. Ao contrário do que estamos mais somente uma técnica de laboratório, mas um
acostumados, não são atributos inscritos no ato político”. No contexto de valorização
corpo macroscópico, na cor e textura dos da genética, padrões de identidade histori-
cabelos, no tom da pele, no formato dos camente reconhecidos podem ganhar ainda
olhos, ou nas características das vestimen- mais legitimidade ou ser negados pelos
tas e das formas de falar, rir e gesticular. O resultados de seqüenciamentos e genotipa-
agente produtor de identidades nos casos gens, bem como outras proposições que até
descritos acima é uma molécula (DNA), e então não eram socialmente reconhecidas
como tal invisível a olhos nus. Não obstante podem emergir.
microscópico, é produtor de símbolos iden- Neste ensaio estamos interessados em re-
titários de extrema proeminência cultural e fletir acerca de uma emergente aplicação da
tecnocientífica. tecnologia do DNA, que é a obtenção de in-
Como amplamente reconhecido, a “nova formações sobre a ancestralidade biológica
genética” (ou genômica) está adentrando no âmbito individual e populacional, e suas
nos mais diversos domínios do mundo relações com a produção de identidades.
contemporâneo, gerando mudanças tec- Especificamente, pretendemos explorar o
noculturais associadas aos genes que têm que parece ser, a princípio, uma contradição:
transformado tecnologias, instituições, é da genética, uma área do conhecimento

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que teve um papel vital na crítica nas últi- o indivíduo, mas ainda o grupo racial a que
mas décadas ao conceito de raça, que vêm pertença o seu portador” (Bastos de Ávila,
sendo derivadas tecnologias que têm sido 1935, p. 153).
utilizadas, por indivíduos e grupos sociais, Duas décadas depois, em 1958, Bastos de
para reforçar perspectivas de pertencimento Ávila publicou seu Manual de Antropologia
étnico-racial. Conforme veremos, o cená- Física. O último capítulo (“Classificação
rio é complexo, havendo a necessidade de das Raças”) é um tratamento pormenori-
compreender o que os chamados “marca- zado dos sistemas de classificação racial.
dores informativos de ancestralidade” e os Após revisar várias propostas, como as de
“marcadores de linhagens” significam no Blumenbach (caucásica, mongólica, etío-
âmbito da variabilidade biológica humana, e pe, americana e malaia), Wilser (Homo
também como se relacionam à raça enquanto europeus, Homo brachycephalus e Homo
categoria explicativa da diversidade bioló- niger) e de Haeckel (Homo primigenius,
gica de nossa espécie. Além disso, faz-se Homo phaeodermus, Homo melanodermus,
necessário ponderar que o conhecimento e Homo xanthodermus e Homo lecuodermus),
as tecnologias genéticas, e aqui reside um Bastos de Ávila se atém na classificação de
ponto fundamental, são apropriados pela J. Deniker. Esse autor propôs uma classi-
sociedade por vezes (e muitas vezes) com ficação extremamente detalhada das raças
nuanças próprias, atreladas a processos humanas, com seis grandes grupos e 29
sociopolíticos e culturais particulares. variedades.
A classificação de Deniker é particu-
larmente ilustrativa do esforço de buscar,
através da análise de características físicas,
UM POUCO DE HISTÓRIA aspectos identificadores de ancestralidade
biológica e geográfica de indivíduos e
Em 1935, o antropólogo físico Bastos populações. Como se vê na Figura 1, que
de Ávila, anteriormente ligado ao Museu reproduz parte da proposta de Deniker,
Nacional e na ocasião vinculado ao Servi- os atributos estão arranjados na forma
ço de Antropometria do Departamento de de uma chave classificatória, semelhante
Educação do Distrito Federal, no Rio de àquelas utilizadas por botânicos e zoólogos
Janeiro, publicou um pequeno livro intitu- na identificação de espécies de plantas e
lado Questões de Anthropologia Brasileira. animais. No primeiro nível predomina a
No capítulo “Considerações em Torno de cor da pele; no segundo, características
Alguns Caracteres Raciais”, Bastos de como estatura, formato do nariz, textura
Ávila apresentou um panorama dos procedi- do cabelo, dentre outras; finalmente, no
mentos de classificação racial, que incluíam terceiro, vê-se a classificação propriamen-
análises de características como arquitetura te (as “variedades das raças”), notando-se
do crânio, tipo de cabelo e forma do nariz, um componente de alocação geográfica
dos lábios e dos olhos. O autor oscilava entre (por exemplo, melanésio, etíope, europeus
a possibilidade de identificar as origens e o atlanto-mediterrâneos, ibéricos, ocidentais,
pertencimento racial dos indivíduos, com o adriáticos, nórdicos, orientais, etc.). O autor
reconhecimento acerca das limitações que do Manual não estava alheio aos problemas
os procedimentos impunham: “[…] pode-se desses esquemas classificatórios, incluindo
dizer que em todos os pontos da Terra, so- o de Deniker:
brevêm as mais variáveis formas de cabeça.
Mas, também, não é menos verdadeiro que a “Até hoje, não se conseguiu estabelecer
análise acurada dessas mensurações mostra com segurança a árvore genealógica dos
nítidas diferenças regionais entre os resul- hominídeos. Isso por causa da deficiência
tados colhidos” (Bastos de Ávila, 1935, pp. de conhecimentos de certos pontos capi-
148-9). Sobre o nariz foi mais enfático: “O tais. Mas, mesmo assim, tem-se procurado
nariz, pode-se dizer, identifica não somente organizar classificações raciais, que, pelo

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menos, têm o mérito de ministrarem infor- Nesse momento pré-Darwin, várias das
mes interessantes em torno dos povos que classificações das raças humanas, como
habitam a face da Terra” (Bastos de Ávila, a de Lineu, são ilustrativas do esforço de,
1958, p. 289). através da ciência, compreender o que havia

FIGURA 1
Classificação racial de J. Deniker (detalhe)
(apud Bastos de Ávila, 1958, p. 291).

Bastos de Ávila não estava escrevendo sido o plano divino da Criação. Presente
no vácuo. Como é bem conhecido pela nessas formulações estava a premissa de
história das ciências, seu esforço classi- que a variabilidade biológica da espécie
ficatório era herdeiro de um longo pro- humana estaria compartimentalizada em
cesso, que se acentuou com a expansão categorias claramente discerníveis (como
colonial do Ocidente a partir do século tipos e raças), podendo-se, a partir da
XV (Hannaford, 1996). Foi a partir desse identificação dos marcadores apropriados,
período que, crescentemente, os europeus chegar a esquemas classificatórios cienti-
se defrontaram não somente com plantas ficamente robustos.
e animais desconhecidos, como também O apogeu dos esforços classificatórios
com homens e mulheres com características aconteceu na segunda metade do século
que lhes pareciam bastante diferenciadas. XIX, quando, de forma crescente e já à luz

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do evolucionismo darwiniano, buscou-se outros marcadores em populações de diver-
a objetivação dos procedimentos classi- sas partes do mundo, que aproximadamente
ficatórios da diversidade humana através 90% da variação biológica é encontrada den-
de métodos científicos. Em larga medida, tro (intra) dos chamados “grupos raciais”,
o projeto intelectual da antropologia física e não entre eles, como pressupunham as
nesse período foi o de gerar aparatos teóricos explicações clássicas baseadas em aborda-
e metodológicos (ou seja, instrumentos) gens tipológico-raciais para a diversidade
que permitissem a classificação racial de biológica humana. Em outras palavras, as
indivíduos e grupos humanos. Esse foi um diversas populações humanas são, do ponto
período em que a antropometria (a mensu- de vista biológico, muito menos diferentes
ração das partes do corpo) recebeu grande do que se imaginava através das lentes da
atenção, com o desenvolvimento de uma raciologia, contendo em si porcentagem
pletora de instrumentos para a medição significativa da diversidade biológica da
dos comprimentos, larguras, perímetros, espécie humana como um todo. Parte da
ângulos e outras características. A estrutura explicação reside no fato de que o Homo
corporal mais merecedora de atenção era sapiens é uma espécie muito “jovem”, de
o crânio, não somente tido como marca- não mais do que 150-200 mil anos. Utilizan-
dor de diferenças morfológicas entre as do uma imagem que remonta à Guerra Fria,
raças, como também por ser o invólucro quando esses estudos pioneiros sobre a parti-
do cérebro. No bojo da antropologia física ção da diversidade biológica humana foram
e disciplinas correlatas como “história na- realizados, se ocorresse uma hecatombe que
tural da espécie humana”, o século XIX e viesse a dizimar a maior parte da espécie
o começo do XX foram palcos de debates humana, com exceção talvez de um conjunto
acerca das similaridades e distâncias, no de 1-2 mil indivíduos em regiões remotas da
plano moral e intelectual, entre as raças, Amazônia ou Papua Nova-Guiné, a maior
buscando-se, na leitura do físico, subsídios parte da variabilidade biológica da espécie
para compreender dinâmicas mais abran- humana seria preservada (Cavalli-Sforza,
gentes, como as possibilidades de vários 2003; Relethford, 2003).
grupos humanos alcançarem o estágio de No último quarto do século XX, a genéti-
civilização (Gould, 1991; Santos, 1996; ca tem produzido uma importante revolução
Schwarcz, 1993). acerca de nossos (des)entendimentos sobre
Ao longo do século XX, aconteceu uma raça e diversidade biológica humana. Ela
revolução na compreensão sobre a diver- nos informa que os nossos sentidos não
sidade biológica da espécie humana. Se se podem perceber o que é a complexidade de
começou os anos 1900 apostando no valor nossa variabilidade biológica. A olho nu,
heurístico de raça, findou-se o século com estão constantemente a nos “pregar peças”:
o conceito largamente esvaziado em sua ao tomarmos contato com os marcadores
acepção biológica2. externos dessa diversidade (cor da pele, 2 Essa inflexão não aconteceu
As críticas quanto à aplicação do concei- formato do nariz, etc.), minimizamos o que sem contradições e sem uma
substancial quantidade de
to de raça para a espécie humana vieram a na verdade são semelhanças extremamente debates, como se apreende a
se acumular a partir das décadas de 1960 e pronunciadas, que nos dão a identidade partir da análise do processo
de elaboração das Declarações
70, com a rápida expansão das pesquisas em como espécie. A genética tem contribuído sobre Raça da Unesco no final
dos anos 1940 e no início dos
genética de populações3. Essas pesquisas, para mostrar que as manifestações fenotí- anos 1950 (ver Maio, 2002;
de modo crescente, apóiam-se na análise picas que indicam tais diferenças corres- Santos, 1996).

de grupos sangüíneos, enzimas e outros pondem a somente uma ínfima porção de 3 Na perspectiva de muitos
cientistas, os usos de conceitos
marcadores biológicos, distanciando-se dos um genoma de aproximadamente 25-30 mil genéticos no âmbito de certos
enfoques baseados na morfologia. genes. Diferentemente do que ocorre com regimes políticos, que, como
se sabe, contribuíram para
Um trabalho clássico desse momento foi outras espécies de mamíferos que apresen- grandes atrocidades cometidas
no século XX, fazem com que
publicado pelo geneticista norte-americano tam grandes distribuições geográficas, nossa os geneticistas tenham especial
Richard Lewontin (1972), que demonstrou, espécie apresenta pouca variação biológica responsabilidade ao expor e
fazer uso de seus conhecimentos
a partir da análise de grupos sangüíneos e (REGWG, 2005; Templeton, 1999). (REGWG, 2005).

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antepassada e não sobre as demais. Analo-
MARCADORES GENÉTICOS DE gamente, os polimorfismos do cromossomo
Y fornecem informações sobre um único
LINHAGENS E INFORMATIVOS DE antepassado na linhagem masculina.
Nos últimos anos têm sido realizados
ANCESTRALIDADE vários estudos no Brasil que, utilizando po-
limorfismos de DNA, seja de cromossomos
Existem vários tipos de polimorfismos autossômicos, mtDNA ou cromossomo Y,
genéticos no DNA, classificados de acordo vêm buscando recuperar, a partir de ferra-
com a sua natureza molecular e localização mentas genéticas, a história de formação
no genoma. Aqueles presentes em cromos- do povo brasileiro.
somos autossômicos podem se configurar Em um recente estudo sobre as caracte-
em “marcadores informativos de ancestra- rísticas genéticas da população da cidade de
lidade” (MIAs) de indivíduos ou popula- São Luís, Ferreira et al. (2005) investigaram
ções, desde que a diferença nas freqüências 177 indivíduos para quatro marcadores de
alélicas entre as populações parentais (ou DNA. Observaram uma maior contribuição
seja, daquelas a partir das quais descendem de genes de origem européia (42%), segui-
os indivíduos ou grupos sob investigação) dos pelos de origem ameríndia (39%) e
seja superior a 45%. Já os marcadores uni- africana (19%). Trata-se de uma expressiva
parentais materno (DNA mitocondrial ou contribuição ameríndia, em um nível próxi-
mtDNA) e paterno (determinadas regiões do mo daquele observado na região amazônica,
cromossomo Y) caracterizam-se por serem e na cidade de Belém em particular, apesar
marcadores de linhagens. Nos sistemas uni- de o Maranhão se situar geopoliticamente
parentais (ou seja, transmitidos somente da na Região Nordeste.
mãe para o filho(a) ou do pai para o filho), No outro extremo do país, Marrero et al.
não há trocas entre segmentos genômicos, (2005) realizaram um estudo no qual com-
de modo que os haplótipos transmitidos às pararam marcadores genômicos (mtDNA e
gerações seguintes permanecem inalterados cromossomo Y) em indivíduos classificados
nas patrilinhagens e matrilinhagens até que como “brancos” de várias cidades do Rio
ocorra uma mutação4. Grande do Sul. Em uma das localidades
As mutações no DNA que ocorreram investigadas (Veranópolis), tanto as matri-
após a dispersão protagonizada pela espécie linhagens como as patrilinhagens mostra-
humana de aproximadamente 150-200 mil ram-se quase que na totalidade de origem
anos atrás até o presente geraram variações européia. Já em outras cidades, o perfil ge-
nos haplótipos que podem servir como nômico foi mais heterogêneo, com frações
marcadores de linhagem por serem geo- significativas de ancestralidade ameríndia
gráfico-específicas. Tanto o cromossomo (36%) e africana (16%), considerando o
Y quanto o mtDNA fornecem informações genoma mitocondrial. Os autores destacam
complementares que podem alcançar deze- que, mesmo em regiões específicas do país,
nas de gerações no passado, o que permite pode haver grandes variações na composi-
resgatar a história de uma população ou de ção genética da população.
um povo através dos movimentos de homens Se esses dois estudos exemplificam a
e mulheres, respectivamente. Embora os utilização de marcadores moleculares para
haplótipos do mtDNA nos forneçam infor- a reconstrução da história genética em con-
mações genealógicas importantes, eles se textos regionais particulares, tem havido
constituem numa parcela muito pequena da também esforços no sentido de análises em
contribuição genética global dos antepassa- escala nacional.
dos de um indivíduo, o qual possui quatro Carvalho-Silva et al. (2001) demons-
4 Para revisões recentes sobre o avós, oito bisavós, 16 trisavós e assim por traram que a maioria dos cromossomos Y
uso de marcadores genéticos de diante. Os estudos com o mtDNA revelam, presentes em uma amostra da população
ancestralidade, ver: Bamshad et
al., 2003; Pfaff et al., 2004. dessa forma, informações sobre uma única brasileira autoclassificada como “branca”

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é de origem européia, mais especificamente Vale mencionar que os efeitos desses
portuguesa. Já a classificação da ancestra- achados não têm passado despercebidos na
lidade da amostra de indivíduos a partir esfera pública, no contexto em que se debate
das características moleculares do DNA a adoção de políticas de ação afirmativa
mitocondrial mostrou um resultado bastante com recorte racial (Maio & Santos, 2005a,
distinto daquele encontrado com marcado- b). Não por acaso os estudos genômicos
res do Y: considerando o Brasil como um sobre ancestralidade são vistos, por certos
todo, 33%, 28% e 39% das linhagens eram segmentos sociais, como instrumentos de
de origem ameríndia, africana e européia, desestabilização de identidades. Isso se dá
respectivamente, havendo importantes dife- no momento em que a pertença étnico-racial
renças a depender da região do país (Alves- é alçada à condição de estratégia funda-
Silva et al., 2000). Tomados em conjunto, mental para se alcançar justiça distributiva
esses estudos filogeográficos revelam que em face das grandes iniqüidades sociais
a imensa maioria das patrilinhagens da presentes na sociedade brasileira (Santos
população brasileira é européia, enquanto a & Maio, 2004, 2005).
maioria das matrilinhagens (cerca de 60%) Esses estudos genéticos da população
é ameríndia ou africana, muito embora brasileira a partir de marcadores de DNA
possa haver marcadas diferenças dentro e sinalizam as diferenças nas contribuições de
entre as várias regiões do país. Esses re- ancestralidade européia, africana e amerín-
sultados revelaram também um padrão de dia em cada região, e têm ajudado a resgatar
reprodução assimétrico (homem europeu os eventos sócio-históricos e demográficos
com mulheres indígenas e africanas), o qual relacionados ao povoamento e colonização
está de acordo com o que sabemos sobre o do país. Um ponto fundamental a se frisar,
povoamento pós-contato no Brasil (Salzano e que nos interessa particularmente, é que
& Bortolini, 2002). os marcadores genéticos usados nesse tipo
A partir das freqüências regionais de de abordagem são justamente escolhidos
haplogrupos mitocondriais africanos, e por apresentarem características especiais,
levando-se em conta as proporções po- dentre as quais a de mostrar diferenças sig-
pulacionais das várias regiões do país, nificativas em suas freqüências nos grupos
Pena e Bortolini (2004) calcularam que há ancestrais que deram origem à população
aproximadamente 28 milhões de “afrodes- sob investigação. Tais diferenças nas dis-
cendentes” (no sentido genético) em bra- tribuições alélicas e haplotípicas refletem
sileiros autoclassificados como “brancos” as particularidades vivenciadas por grupo
(de um total de 91 milhões). Para tornar geográfico específico, considerando sua
essa contabilidade mais abrangente, esses história demográfica e evolutiva a partir
autores também estimaram a proporção de da dispersão do homem moderno da Áfri-
linhagens africanas em brasileiros “pretos” ca. Além disso, a maioria dos marcadores
e “pardos”, utilizando para tal informações genéticos utilizados nesse tipo de estudo
derivadas de um estudo conduzido por Bor- estão localizados em regiões extragênicas,
tolini et al. (1997). Chegou-se à conclusão ou seja, porções do genoma que são seleti-
de que aproximadamente 89 milhões de vamente neutras. Se viéssemos a escolher
pessoas, ou seja, 52% dos brasileiros, são aleatoriamente qualquer um dos milhares
“afrodescendentes” pelo lado materno. Se as de genes que compõem o genoma humano,
estimativas são feitas a partir de marcadores para a ampla maioria deles não seria pos-
biparentais, tais como os MIAs, e se forem sível evidenciar diferenças e, dessa forma,
considerados como afrodescendentes toda padrões de ancestralidade não poderiam
pessoa com mais de 10% de ancestralidade ser mensurados. Portanto, os marcadores
africana, a cifra é ainda mais impressio- genéticos de linhagens e informativos de
nante: alcança aproximadamente 87% dos ancestralidade não têm qualquer significado
brasileiros, ou seja, em torno de 146 milhões no contexto mais amplo do genoma humano
(Pena & Bortolini, 2004). funcional. Além disso, mesmo que revelem

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padrões claros de ancestralidade geográfica, Shriver e Kittles (2004) abordam aspec-
não significa que corroborem a noção de tos científicos, sociais e éticos envolvidos
raça em sua acepção biológica (ainda que na utilização desses testes de ancestralidade
por vezes esses estudos sejam referidos na genômica em larga escala. Argumentam
literatura como pesquisas sobre “mistura que, à luz do grande interesse presente em
racial”). Como já mencionado, a espécie hu- países como os EUA, em relação às pes-
mana, do ponto de vista genético, apresenta quisas genealógicas, a tecnologia do DNA
muito pouca diferenciação se comparada a vem sendo crescentemente empregada
outras espécies de mamíferos com ampla nesse âmbito. Conforme observam eles, as
distribuição geográfica5. implicações são profundas:
Para fins de ilustração, tomamos acima
alguns exemplos relacionados à aplicação de “[…] HGP [histórias genéticas pessoais]
“marcadores informativos de ancestralidade” podem desempenhar um papel no cálculo
no contexto brasileiro. Pesquisas utilizando de risco médico, no mapeamento de mis-
procedimentos similares têm sido realizadas turas, em investigações forenses […] e na
em muitas outras regiões do mundo com o avaliação de ancestralidade para fins socio-
intuito de também reconstruir, a partir da ge- políticos (por exemplo, nos casos de acesso
nômica, processos de constituição biológica a registros de adoção, nos de qualificações
e sociodemográfica de populações humanas. para ações afirmativas, nos de afiliação
Nesse sentido, um trabalho pioneiro foi tribal de nativos americanos)” (Shriver &
desenvolvido por Parra et al. (1998), que Kittles, 2004, p. 611).
analisou a contribuição genética de origem
européia em amostras de afro-americanos No contexto norte-americano, o inte-
residentes em dez cidades nos EUA (ver tam- resse pelos testes de ancestralidade genô-
bém Relethford, 2003, pp. 207-33). Várias mica é particularmente proeminente
das pesquisas realizadas no Brasil em anos entre os afro-americanos. Através deles,
recentes, inclusive algumas das apontadas, indivíduos e coletividades têm buscado
guardam proximidade metodológica com identificar suas raízes africanas. Ou seja, a
esses trabalhos da literatura internacional. biotecnologia é acionada como elemento de
recuperação e/ou fortalecimento identitário
em processos fortemente impregnados por
aspectos históricos e sociopolíticos. Shriver
GENETIZANDO A CULTURA, e Kittles (2004, p. 612) reproduzem alguns
dos argumentos usualmente utilizados na
5 Com a crescente visibilidade CULTURALIZANDO A GENÉTICA justificativa dos testes de ancestralidade
pública da genética, há a genômicos:
preocupação, por parte de
geneticistas e educadores em ci- Os marcadores informativos de ancestra-
ência, quanto a buscar explicar
as interfaces da variabilidade
lidade (MIAs) já não são utilizados unica- “Entre aproximadamente 1619 e 1850, de-
biológica da espécie humana mente em pesquisas acadêmicas. Através de zenas de milhões de indígenas da África
com os processos de percepção
e produção de diferenças. uma rápida consulta na Internet é possível ocidental e central de sete regiões costeiras
Argumenta-se que o ponto identificar companhias que comercializam […] foram seqüestrados e transportados
central não está na menor ou
maior proporção das diferen- esses testes. Apresentam designações como para as Américas. Esse processo levou ao
ças biológicas encontradas na
espécie humana, mas sim no Herança pelo DNA, Árvore dos Genes, Raí- desaparecimento, para as gerações futu-
processo de hierarquização zes da Realidade, Ancestralidade Africana, ras, de aspectos significativos da história
da diversidade. Nessa linha de
raciocínio, mais importante do dentre muitos outros6. A partir do envio e da cultura dos africanos escravizados.
que salientar as similaridades,
é desenvolver o respeito pelas
de material obtido pelo esfregaço da parte Registros de nascimentos e mortes durante
diferenças. interna da bochecha, tal como fizeram os o período da escravatura estão aquém dos
6 Shriver e Kittles (2004) apre- três personagens da matéria do New York padrões ou inexistentes na maioria dos
sentam uma tabela na qual
estão listadas algumas dessas Times mencionada anteriormente, recebe-se casos. A informação genética tem provado
empresas, especificando tam- em casa os resultados acerca da “história ser um modo útil de complementar esses
bém que marcadores genéticos
investigam. genética individual”. documentos históricos inadequados”.

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Nessa cada vez mais complexa arena FIGURA 2
que é o uso individual e coletivo das tec-
nologias biológicas para fins de obtenção Imagens relativas à África disponíveis em African
de informações sobre ancestralidade, são Ancestry (http://www.africanancestry.com)
candentes as articulações entre genética
e raça. De forma exploratória, podemos
melhor compreender essas imbricações a
partir de uma breve etnografia de um site na
Internet que comercializa esses testes. Nossa
escolha recaiu sobre um chamado African
Ancestry ou “Ancestralidade Africana”
(http://www.africanancestry.com)7.
A página da Internet de African Ances-
try tem como chamada principal “Analise
o seu DNA. Encontre as suas origens”.
Destina-se primordialmente a pessoas que
se identificam como afro-americanos nos
EUA. Logo na abertura do site lê-se: “Você
tem dúvidas acerca de qual parte da África
você compartilha a sua ancestralidade? Nós
podemos lhe dizer”8.
Ao invés de uma profusão de imagens
sobre temas tecnocientíficos (sobre DNA,
ambientes de laboratório, equipamentos,
etc.), o site é povoado por alusões à África,
na forma de máscaras, casas de aldeias,
rostos pintados e adornados com búzios,
homens altos e esguios (como se nilóticos)
pescando, entre outros elementos de forte visitado vários países na África e me in-
apelo étnico-racial (Figura 2). Portanto, em dagado sobre minha identidade. Agora eu
um site cujo objetivo primordial é comer- sei. Obrigado por criar um mecanismo para
cializar tecnologia genética de ponta, ultra- me ajudar a encontrar uma parte importante
moderna, o que predomina são referências a de mim”.
uma África primitiva, primordial, intocada,
distante no tempo. “Se passou somente uma semana desde que
Através dos marcadores genéticos, apre- recebi a carta indicando que meu DNA,
ende-se, nas entrelinhas das imagens e por parte de minha mãe, se assemelha com
textos do site, que se propõe algo como o do povo mende de Serra Leoa. Esses
uma “viagem” no tempo, com o encontro acontecimentos recentes mudaram fun-
dos indivíduos (ou seja, daqueles que estão damentalmente minha vida e minha visão
adquirindo o produto) com seu passado. sobre mim mesmo e minha família. Essas 7 Todas as informações relativas
a sites na Internet indicadas
Essa dimensão de “viagem”, de contato com informações me lançaram numa viagem de neste trabalho foram obtidas em
um tempo imaginário e distante, de encontro exploração… Hoje estou mais em paz. Ando outubro-novembro de 2005.

consigo mesmo (da “verdadeira” identida- em frente, com minha cabeça erguida, pois 8 Segundo indicado na página
da Internet, o preço do teste é
de), mediado pelas tecnologias genômicas, sei quem eu sou”. de 349 dólares para análise
de matrilinhagens e de igual
faz-se bastante presente nos comentários de custo para patrilinhagens.
clientes que realizaram os testes9: “Quero agradecer… por terem preparado 9 Em 28 de outubro de 2005 ha-
os relatórios dos testes… sobre a ances- via doze comentários postados
no site de African Ancestry. Em
“Obrigado por me ajudar a descobrir uma tralidade de meu sogro… Já conseguimos geral, tendem a valorizar os
parte muito importante de minha herança. reconhecer a genealogia das duas pessoas resultados dos testes genéticos
para fins de fortalecimento de
Durante muitos dos últimos anos tenho que foram escravizadas na África e levadas identidades.

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para a América, embora ainda não saibamos testes para identificação racial. Raça é uma
seus nomes. Saber das possíveis origens construção social que não é geneticamente
desses dois indivíduos acrescenta muito à determinada. De modo similar, etnicidade é
genealogia de minha esposa”. mais cultural que biológica”. Portanto, mes-
mo com as múltiplas sinalizações quanto
A estrutura narrativa presente no site às inter-relações entre biologia (testes de
não somente africaniza, de forma mítica DNA) e simbologias de raça/etnia/cultura,
e genérica, o contexto sociocultural dos em certos momentos frisa-se a dissociação.
testes, como também sinaliza para expec- Não é pouca a ambigüidade.
tativas quanto à ancestralidade biológica
dos interessados. Na parte chamada de
“centro de aprendizagem” (learning cen-
ter), é apresentada uma árvore genealógica, NO FIO DA NAVALHA
com quatro gerações, na base da qual está
o indivíduo potencialmente interessado no Em nosso complexo e tumultuado
teste (Figura 3). As faces dos oito bisavós, mundo, se raça perdeu grande parte de sua
quatro avós e dois pais estão em tom mar- credibilidade como conceito científico, no
rom, como se a expectativa fosse de que plano das relações culturais, econômicas e
todos os ancestrais fossem fenotipicamente políticas permanece como importante eixo
negros/ africanos. Nota-se, portanto, uma norteador. Seja nos países altamente indus-
ênfase em “pureza”. trializados, como aqueles da América do
Norte ou da Europa, ou da América Latina
A despeito de toda essa forte carga e Ásia, passando pelo continente africano,
simbólica, na seção sobre as “perguntas raça, enquanto constructo social, impregna
mais freqüentes” (FAQ) do site, além de os mais diversos planos da vida cotidiana.
detalhes sobre os procedimentos e precisão A crítica ao conceito de raça a partir
dos testes, está indicado: “Pode a análise da genética de populações data de muitas
de DNA identificar minha identidade ra- décadas. Sua influência esteve presente,
cial ou étnica?”. Resposta: “Não existem por exemplo, por ocasião da elaboração das

FIGURA 3
Genealogia disponível em African Ancestry (http://www. africanancestry.com).
Note-se que todos os ancestrais da pessoa potencialmente interessada em
realizar o teste genético (Me) estão indicados como fenotipicamente negros.

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primeiras declarações sobre raça da Unesco, científico do conceito de raça –, seguindo
ainda nos anos 1950. Mais recentemente, a tradição universalista que marcou uma
análises baseadas em informações genômicas significativa parcela das pesquisas sobre
têm fortalecido a crítica à raça, demonstrando variabilidade biológica humana ao longo da
que é um conceito heuristicamente pouco segunda metade do século XX, e a apropria-
satisfatório para descrever a variabilidade ção desse saber como meio de reificação de
biológica das populações humanas. Con- identidades culturais e políticas. Vê-se que
comitantemente, o estudo dos processos a recepção dos estudos sobre ancestralidade
evolutivos na espécie humana e em espécies genômica é pautada pelo jogo das constru-
evolutivamente próximas ganhou notável ções identitárias e pelas especificidades dos
impulso com a difusão das tecnologias de diversos contextos socioculturais.
seqüenciamento do DNA. Atualmente, dis- Como já colocado no clássico estudo
põe-se de potentes métodos para averiguar o de Oracy Nogueira (1955), em contraponto
papel de fatores demográficos, sociais e eco- e em escala mais acentuada que no caso
lógicos na dinâmica evolutiva de uma dada brasileiro, nos EUA a etnicidade é parte
população, o que tem constituído parcela fundante e constitutiva da dinâmica so-
importante das pesquisas sobre diversidade cietária. Ela é uma forma através da qual
biológica humana. os diversos atores se inscrevem primor-
As sociedades humanas estão em dialmente no mundo, atribuindo-se assim
constante processo de ressignificação de notável valor à origem, à descendência e
conceitos e categorias. Se raça foi pro- à diferença. Nesse cenário, os marcadores
fundamente ressignificada pela ciência genéticos de ancestralidade, mesmo que
nas últimas décadas, perdendo seu status na narrativa genômica da variabilidade
epistemológico de categoria explicativa da biológica correspondam a uma fração ex-
variabilidade biológica humana, verifica-se tremamente reduzida da herança biológica,
que certos segmentos sociais e étnicos têm adquirem papel de relevo ao possibilitar
buscado em tecnologias genéticas de ponta uma suposta certificação microscópica de
reforço para ideais de pertencimento étnico pertença “racial”. Nesse sentido, longe de
e racial. Desde longa data a história e a se constituir em uma contradição, o conhe-
sociologia da ciência vêm demonstrando cimento gerado pela “nova genética” e sua
que, ao invés de apartadas da cultura e da apropriação por parte de diversos atores da
sociedade, ciência e tecnologia são também sociedade norte-americana se inserem em
entidades culturais e sociais. Transformam um contexto cultural e político marcado por
a sociedade, ao mesmo tempo que são im- ênfase em “origens”.
10 Há diversos outros sites que co-
pregnadas por ela. Nas várias situações que abordamos mercializam testes de ancestra-
lidade genômica com os quais
Neste ensaio, após uma breve descri- neste trabalho está a questão da valoriza- poderíamos realizar exercícios
ção de como os marcadores genéticos têm ção da biologia no campo da delimitação similares. Oxford Ancestors
(http://www.oxfordancestors.
sido utilizados em pesquisas em genética dos parâmetros de identidades. Trata-se com) é voltado para o público
de populações, nos detivemos em desdo- de um terreno movediço (Lee et al., 2001; europeu, havendo nele alusões
simbólicas expressivas, como
bramentos extremamente recentes, que é Shriver & Kittles, 2005; Winston & Kittles, de pertencimento a tribos e
clãs ou de descendência a
o emprego desses marcadores, inclusive 2005). Ao mesmo tempo que os testes ge- partir de múltiplas Evas e Adões,
em escala comercial, para fins do conheci- néticos, à luz das expectativas dos sujeitos, vikings, etc. Trace Genetics
(http://www.tracegenetics.
mento de ancestralidades no plano indivi- podem gerar resultados “reconfortantes e com) comercializa testes de
ancestralidade ameríndia, sen-
dual. Tomando o caso do African Ancestry, fortalecedores”, podem trazer elementos do seu site, comparado aos
buscamos evidenciar como os resultados que, frontalmente, questionam premissas demais, aparentemente menos
“etnicizado”. No caso brasilei-
genéticos são racializados e etnicizados, sobre identidades social e culturalmente ro, há o exemplo do Laboratório
tendo como pano de fundo dinâmicas identi- construídas desde longa data (ou uma “faca Gene (http://www.gene.com.
br), no qual se nota uma certa
tárias particulares10. A princípio, sugerimos de dois gumes”, na expressão de Rotini, ênfase na dimensão de miscige-
nação. Nele lê-se que os testes
a existência de uma aparente contradição 2003). Lee et al. (2001, p. 50) argumentam de ancestralidade permitem ave-
entre a produção do conhecimento no cam- que perspectivas que buscam, a partir de riguar a “proporção genômica
de ancestralidades européia,
po da genética – crítica quanto ao estatuto testes genéticos, fortalecer as identidades ameríndia e africana”.

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dos afro-americanos nos EUA aderem à ros (Pena et al., 2000; Pena & Bortolini,
perspectiva do “one drop rule”11, colocando 2004; Santos & Maio, 2004, 2005).
um peso excessivo na biologia para fins da Genética, raça e identidades, com suas
construção das identidades, que passam a diversas interseções, caminham no fio da
ser “geneticizadas”, com ênfase em noções navalha. A depender do contexto histórico
de “pureza biológica”. e sociopolítico, os resultados genéticos
Deve-se destacar que o peso e o papel podem vir a ser culturamente “ressignifica-
das “identidades biológicas” evidenciadas dos” e atrelados a perspectivas essencializa-
a partir dos testes genômicos de ancestra- das e tipológicas de raça. Ao mesmo tempo,
lidade como elementos fortalecedores (ou os argumentos genéticos constituem uma
questionadores) de “identidades étnico-po- das linhas de frente dos questionamentos
líticas” tornam-se questões que abrangem, da noção de raça em sua acepção bioló-
a cada dia e para além dos afro-americanos, gica, com desdobramentos importantes
um maior número de agentes e segmentos sobre as políticas de identidade. Residem
sociais, como se evidencia a partir dos de- nesses múltiplos planos, profundamente
11 “One drop rule”, cuja tradução
literal é “regra de uma gota
bates sobre a “identidade genética” de gru- imersos na cultura, algumas das facetas
[de sangue]”, refere-se a leis pos tão diversos como os judeus (Azoulay, mais ricas e instigantes de como os novos
implementadas em alguns esta-
dos dos EUA segundo as quais 2003; Parfitt, 2003), os maoris da Polinésia conhecimentos e tecnologias biológicos
bastava a pessoa, mesmo que (Murray-McIntosh et al., 1998; Relethford, adentram nas experiências individuais e
mestiça, ter um ancestral negro
para ser considerada negra. 2003, pp. 167-85) ou dos próprios brasilei- coletivas humanas.

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