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:: 1 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

DE LUTERO
A OTTO Ciência da Religião
o Protestantismo e a

Joe Marçal G. Santos


Arnaldo Érico Huff Júnior
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
REITOR
Angelo Roberto Antoniolli
VICE-REITORA
Iara Maria Campelo Lima
COORDENADOR DO PROGRAMA EDITORIAL
Péricles Morais de Andrade Júnior
COORDENADORA GRÁFICA
Germana Gonçalves de Araújo
CONSELHO EDITORIAL
Antônio Martins de Oliveira Junior
Aurélia Santos Faroni
Fabiana Oliveira da Silva
Germana Gonçalves de Araujo
Luís Américo Bonfim
Mackely Ribeiro Borges
Maria Leônia Garcia Costa Carvalho
Martha Suzana Nunes
Péricles Morais de Andrade Júnior (Presidente)
Rodrigo Dornelas do Carmo
Samuel Barros de Medeiros Albuquerque
Sueli Maria da Silva Pereira
PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Alisson Vitório de Lima
CAPA
Mikael de Andrade Marques

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL


UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

Santos, Joe Marçal G.

S237d De Lutero a Otto : o protestantismo e a ciência da


religião [recurso eletrônico] / Joe Marçal G. Santos,
Arnaldo Érico Huff Júnior. – São Cristóvão, Se : Editora
UFS, 2018.

191 p.

ISBN 978-85-7822-638-1

1. Religião. 2. Protestantismo. 3. Lutero, Martinho, 1483-1546. 4.


Otto, Rudolf, 1869-1937. I. Huff Júnior, Arnaldo Érico. II. Título.

CDU 2

Cidade Universitária Prof. José Aloísio de Campos


CEP 49.100 - 000 – São Cristóvão - SE. Telefone: 3194 - 6922/6923. E-mail: editora.ufs@gmail.com. Site:www.edi-
tora.ufs.brEste livro, ou parte dele, não pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorização escrita da Editora.
Este livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, adotado no Brasil em 2009.
São Cristóvão-SE, 2018
UFS
Sumário
Prefácio 10
Apresentação 17
Introdução 19
Conexões de sentido e horizontes entre a reforma, o protes- 27
tantismo e a ciência da religião como meio de humanização

Arnaldo Érico Huff Júnior


Protestantismo: em teoria, religião 44
Joe Marçal G. Santos
O ideal humanista como base para compreensão da Ciência da 56
Religião e reflexões relacionadas à obra de Filipe Melanchthon
Eduardo Gross
Calvino antes do calvinismo: alguns apontamentos sobre 78
João Calvino antes do calvinismo ou a reinvenção da igreja
na perspectiva calviniana

Zwinglio M. Dias
A dialética entre Lei e Evangelho quinhentos anos depois: 94
uma releitura em chave kierkegaardiana

Jonas Roos
Rudolf Otto e o mistério de seu legado para as ciências da religião 109
Carlos Eduardo B. Calvani
A especificidade e a autonomia da religião em Rudolf Otto 131
Frederico Pieper
De naturalismo e religião a o sagrado: contribuições do pen- 153
samento de Rudolf Otto em duas épocas de mentes seculariza-
das

Humberto Araujo Quaglio de Souza


Teoria da religião: questões epistêmicas e traços históricos 174
Davison Schaeffer de Oliveira
:: 5 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Sobre os autores
Joe Marçal G. Santos (Organizador)
Professor do Núcleo de Ciências da Religião da Universidade Federal
de Sergipe, associado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião e ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema da
mesma Universidade. Bacharel em Teologia pela Faculdade Luterana de
Teologia (1997), com o título integralizado em 2009, pela Escola Superior
de Teologia. Mestre (CNPq) e Doutor (CAPES) em Teologia pelo Instituto
Ecumênico de Pós Graduação. Pós-doutor (PDJ-CNPq) no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), na linha de pesquisa Antropologia da
Religião. Área de interesses: Teologia da Cultura e Filosofia da Religião em
Paul Tillich; Interfaces entre Religião, Cinema e Literatura; temas teórico-
metodológicos na Pesquisa em Ciências da Religião.
E-mail: jmgsantos@yahoo.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5359207133765624.

Arnaldo Érico Huff Júnior (Organizador)


Possui graduação em Teologia pelo Seminário Concórdia (1993), mestrado
pela Escola Superior de Teologia (1996), graduação em História pela
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (2001),
doutorado em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora
(2006), com período sanduíche no Departamento de Antropologia da Vrije
Universiteit Amsterdam, e doutorado em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (2012). Atua na área de Ciência da Religião, com
foco nos seguintes temas: protestantismo, teoria da religião e religião e arte.
É professor no Departamento de Ciência da Religião (graduação e pós-
graduação) e no Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora. Coordenador do NEPROTES, Núcleo
de Estudos em Protestantismos e Teologias.
E-mail: arnaldo.huff@ufjf.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1338130517240143.
:: 6 :: De Lutero a Otto

Eduardo Gross
Possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São
Leopoldo, RS (1989) e doutorado em Teologia também pela Escola
Superior de Teologia (1997), tendo realizado parte dos estudos do
doutorado na Lutheran School of Theology at Chicago (EUA). Atualmente
é professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua tese
para promoção a professor titular da UFJF, Proposta de Edição Crítica e
Tradução dos Loci Theologici (Tópicos Teológicos) de Filipe Melanchthon,
de 1521, foi aprovada em banca pública em fevereiro de 2017. É professor
permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
da UFJF desde 1998, tendo sido coordenador do programa entre 2007 e
2010. Desde 2017, é professor permanente também no Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFJF. Atua ainda, desde 2014, como professor
colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Federal de Sergipe. Na graduação, ensina primordialmente
no Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas e na graduação
em Ciência da Religião da UFJF. Tem experiência nas áreas de Teologia,
Ciência da Religião e Filosofia, com ênfase em Religião e Hermenêutica,
atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia da religião, religião
e hermenêutica, religião e literatura, religião e cultura.
E-mail: eduardo.gross@ufjf.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2654429053268264.

Zwinglio Mota Dias


Possui graduação em Teologia pela Faculdade Evangélica de Teologia
de Buenos Aires, Argentina(1963) e doutorado em Teologia – Universitat
Hamburg, Alemanha (1978). Professor associado da Universidade Federal
de Juiz de Fora, aposentado em 2011. Exerce atualmente suas atividades
docentes e de pesquisa na condição de professor-convidado do Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Tem experiência na área de
Teologia, com ênfase em Missiologia, atuando principalmente nos seguintes
temas: teologia, política, ecumenismo, direitos humanos, eclesiologia e
pentecostalismo. Coordenador do NEPROTES, Núcleo de Estudos em
Protestantismos e Teologias. Pastor-emérito da Igreja Presbiteriana Unida
do Brasil e colaborador de “KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço”.
E-mail: zwli@powerline.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1271353912950240.
:: 7 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Jonas Roos
Possui Licenciatura Plena em Filosofia – Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (1999), Mestrado em Teologia – Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
das Faculdades EST (2003), Doutorado em Teologia – IEPG/EST (2007) com
doutorado sanduíche (CNPq) realizado no Søren Kierkegaard Research
Centre, Copenhague, Dinamarca, e Pós-Doutorado em Filosofia – Unisinos
(2009), com bolsa do CNPq. Professor Adjunto do Departamento de Ciência
da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência nas
áreas de Filosofia e Teologia, com ênfase em Filosofia da Religião, Teologia
Sistemática e Antropologia Filosófica.
E-mail: jonas.roos@ufjf.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1088757246032009.

Carlos Eduardo Calvani


Possui graduação em Teologia pelo Seminário Teológico de Londrina e
pela Faculdade Unida de Vitoria (ES), Mestrado em Ciências da Religião
pela Universidade Metodista de São Paulo (1993) com dissertação sobre
o movimento evangelical no protestantismo brasileiro. Doutorado pela
Universidade Metodista de São Paulo (1998) com tese sobre Teologia e
MPB a partir do referencial de Paul Tillich. Tem experiência na área de
Ciências da Religião e Teologia. Atualmente pesquisa as relações entre
Teologia, Cultura e Artes, o Protestantismo histórico no Brasil e as
influências da filosofia de Schelling no pensamento de Paul Tillich.
E-mail: cecalvani@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7850710818370320.

Frederico Pieper
Possui graduação em História e em Filosofia pela Universidade de São Paulo
e graduação em Teologia pelo Instituto Concórdia de São Paulo. Mestrado
(2003) e doutorado (2007) em Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo e especialização na Harvard University –Cambridge
(MA). É também doutor em Filosofia pela a Universidade de São Paulo
(USP). É professor do Programa de Pós-gaduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora, na área de Filosofia da religião. Tem
experiência na área de Filosofia com ênfase em filosofia contemporânea e
filosofia da religião.
E-mail: fredericopieper@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4770309851004817.
:: 8 :: De Lutero a Otto

Humberto Araújo Quaglio de Souza


Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2001),
licenciado em História pela Universidade de Uberaba (2009) e licenciado
em Filosofia pelo Centro Universitário Claretiano (2015). Pós-graduado
(especialização) em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade
Estácio de Sá (2002), pós-graduado (especialização) em Ciência da
Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010). Mestre em
Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2013),
tendo sido bolsista do CNPq durante o mestrado. Doutor em Ciência da
Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2017), tendo sido
bolsista da CAPES durante o doutorado. Fellow da Hong Kierkegaard
Library, St. Olaf College, Northfield, MN, Estados Unidos da América
(2014) e pesquisador visitante na Universidade de Copenhague (Søren
Kierkegaard Forskningscenteret ved Københavns Universitet), Dinamarca
(2016). Foi professor substituto no Departamento de Filosofia do Instituto
de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora entre
agosto de 2016 e dezembro de 2017. Atualmente é professor adjunto A,
Nível 1, no Departamento de Ciência da Religião do Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora.
E-mail: hquaglio@terra.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3086534580687197.

Davison Schaeffer de Oliveira


Possui licenciatura em Filosofia (2007) e doutorado em Ciência da Religião
(2015), na área de concentração em Filosofia da Religião, ambos realizados
na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais. Durante
o doutorado realizou pesquisa na Alemanha em duas oportunidades:
primeiro, como pesquisador visitante na Humboldt-Universität em
Berlim (DAAD/2012); em seguida, realizou estágio doutoral (sanduíche)
na Martin-Luther-Universität em Halle (CAPES/2014). Concluiu
recentemente pesquisa de Pós-doutorado (PNPD/CAPES) no Programa
de Pós-graduação em Ciência da Religião da UFJF (2016-17). É membro da
Internationale Schleiermacher-Gesellschaft, da Associação Brasileira de
Filosofia da Religião (ABFR), assim como integra o Núcleo de Pesquisas
sobre Filosofia Clássica Alemã (NUFCAL / UFJF). Tem experiência,
sobretudo, nas seguintes áreas: filosofia da religião, teoria da religião e
epistemologia da ciência da religião.
E-mail: davisonschaeffer@yahoo.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9341691846588745.
:: 9 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Prefácio
Antes de tudo, quero agradecer pelo convite de escrever este prefácio e
parabenizar os autores pela unidade temática e metodológica da obra.
Trata-se da contribuição da tradição protestante aos estudos de religião no
Brasil. Todo mundo sabe que sou um tillichiano inveterado e que Tillich
tirou da tradição da Reforma um dos seus principais conceitos operatórios:
o princípio protestante, princípio crítico semelhante ao princípio profético
do Velho Testamento. Aliás, dos nove autores do livro, seis participaram
de algum modo das atividades e das produções da Associação Paul Tillich
do Brasil. Alguns continuam firmes e é significativo que um dos grupos
de pesquisa que patrocinaram a publicação esteja parcialmente focado
no pensamento de Paul Tillich. Aliás, vários autores do livro remetem
explicitamente à interpretação tillichiana da Reforma, em relação com a
modernidade e a secularização.
Autores como Ernst Troeltsch e Max Weber, entre outros, entendem o
nascimento do mundo moderno (inclusive as ciências modernas, às quais
pertence incontestavelmente a ciência da religião) como estreitamente
relacionado à Reforma Protestante do século XVI. Paul Tillich dedicou-
se também ao estudo das relações entre protestantismo e modernidade,
protestantismo e humanismo.
Sempre gostei do termo “protestante” e do potencial de protesto que
ele contém e me considerei, durante muito tempo, como um “católico
protestante”. No Brasil de hoje, ninguém mais quer ser protestante e
todos preferem ser chamados de “evangélicos”, como se o Evangelho
fosse apenas característico de uma parte dos cristãos, a parte melhor
evidentemente. O protestantismo brasileiro, na sua grande maioria, só
remete indiretamente à Reforma do século XVI, e ficou pouco sensibilizado
pela comemoração dos quinhentos anos (em 2017), salvo os meios mais
intelectuais.
Pela sua origem eclesiástica e sua ascendência, a maioria dos autores situa-
se na tradição acadêmica germânica oriunda da Reforma luterana, em
primeiro lugar, e um pouco da Reforma calvinista. Seria interessante se,
no futuro, alguém se dedicasse também à tradição reformada do domínio
francês e à piedade popular protestante. Pensamos, em particular, aos
:: 10 :: De Lutero a Otto

panfletos ilustrados que, na época de Lutero, atacavam o catolicismo e


defendiam a nova visão da fé, e na iconografia de Lucas Cranach, pai e
filho, e Albrecht Dürer.
Uma das maiores contribuições da Reforma, em articulação com os
estudos históricos e filológicos dos humanistas, foi ter liberado o estudo
autônomo da religião, começando com a hermenêutica bíblica, que se
abriu, aos poucos, à abordagem histórico-crítica. O ideal humanista, com
o qual a Reforma não rompeu, é uma das bases da compreensão da ciência
da religião. Desse modo, na época de Rudolf Otto, já não havia mais, nos
meios acadêmicos, identificação da verdade subjacente à linguagem mítica
da Escritura com os fatos históricos. A hermenêutica bíblica aparece assim
como uma pedagogia em vista da hermenêutica generalizada na teologia
e na ciência da religião. É preciso relacionar isso ao grande interesse
manifestado pelos Reformadores – tanto Lutero quanto Calvino – e pelos
seus sucessores, pela fundação e organização de escolas e universidades
em vista do estudo não baseado nas “autoridades”, da Escritura e da
Teologia. Tive a felicidade de passar um ano na Faculdade de Teologia
protestante de Marburg, fundada por Lutero com o auxílio do Landgrave
Philipp de Hessen. A tradição da Reforma contribuiu vigorosamente para
o desenvolvimento da longa tradição humanista da qual os estudos de
religião fazem parte. Um grande número de intelectuais de formação
protestante estará na origem da ciência e da fenomenologia da religião.
Eles representarão um ideal de formação humana que não fragmenta o
ser humano a partir de perspectivas disciplinares parciais, exclusivamente
naturalistas ou explicativas.
O livro todo se apresenta como um grande exercício hermenêutico aplicado
à tradição protestante. Estamos no processo infinito da interpretação, de
recepção em recepção, “De Lutero a Otto”, com uma volta à anterioridade
do humanismo renascentista e um prolongamento nos comentários a
favor e contra o pensamento de Rudolf Otto, desembocando na situação
dos estudos de religião no Brasil de hoje. A hermenêutica bíblica e
teológica da Reforma já era criativa e imaginativa, fundada na atualização
presente. Ela fazia parte de uma renovada interpretação da relação entre
Deus e o ser humano, que, por sua vez, se desenvolve em uma economia
simbólica e na apropriação crítica (sob protesto) da própria tradição
cristã. A tradição interpretativa protestante remete a uma ontologia crítica
:: 11 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

negativa, de estranhamento entre a vontade humana e a vontade divina,


definida nos termos de um princípio protestante. O absoluto só pode ser
apreendido negativamente, daí a ambiguidade essencial de todo fenômeno
religioso. Da perspectiva crítica ensejada pela Reforma nascerá uma teoria
moderna da religião, marcada pela incerteza a respeito do próprio objeto
e pelo caráter problemático do conceito de religião. Afinal, é possível a
generalização dos fenômenos religiosos? Um dos autores chega a afirmar
que não temos, a rigor, uma teoria da religião, mas uma teoria geral do ser
humano e do mundo, a partir da qual se deduz teoremas sobre a religião.
Assim, a história/ciência da religião será uma hermenêutica total, chamada
a decifrar e explicar todo tipo de encontro do ser humano com o sagrado,
da pré-história até os nossos dias. A hermenêutica é própria das ciências
humanas em geral e da ciência da religião em particular. Aliás, ela é própria
da linguagem humana. A busca do sentido é a tarefa essencial das ciências
hermenêuticas, enquanto a ciência hermenêutica da religião procura o sentido
da religião, isto é, o sentido além de todos os sentidos. Assim como escrevia
algum tempo atrás: “A noção atual de ciência não pode mais se restringir
às ciências dedutivas, nem às ciências empírico-formais, mas abrange
também as ciências hermenêuticas, que envolvem, de modo essencial, a
categoria de ‘sentido’.”1 As ciências humanas, às quais pertence a ciência
da religião – incluindo aqui a filosofia da religião e a teologia -, são ciências
hermenêuticas. “Isto é, a chave de compreensão dos objetos com os quais
elas se ocupam encontra-se num significado ou num sistema de significados.
Parte-se do pressuposto que a ação humana e os objetos produzidos por ela
contêm intenções significantes e que o esforço de compreensão que lhes diz
respeito só pode consistir em reconstituir essas intenções.”2 O sentido surge
do diálogo entre a intencionalidade do autor e as intenções dos receptores.
Segue-se uma transformação da vida do intérprete.
Além disso, o processo hermenêutico encontrado no protestantismo está
articulado com uma visão humanista da realidade e do ser humano e está
intencionalmente orientado para a humanização. Deve ser um incentivo
para a retomada dos ideais humanistas pelos cientistas da religião. Desse

1 HIGUET, Etienne A.. A teologia em programas de ciências da religião. Correlatio, n. 9,


mai. 2006, p. 38.
2 Ibid., p. 38-39.
:: 12 :: De Lutero a Otto

modo, pode-se falar numa ciência prática da religião, que desemboca


numa ação orientada, crítica, comunicativa, político-social.
A hermenêutica pertence necessariamente às ciências da religião, como
pré-requisito e como síntese compreensiva dos resultados das disciplinas
de orientação mais empírica. Ela se opõe ao monopólio das leituras
explicativas e historicistas inspiradas nas ciências naturais. Assim, as
diversas perspectivas hermenêuticas abertas pelos autores, a partir de
Lutero, Melanchton, Calvino, Schleiermacher, Kierkegaard, Troeltsch e
Otto, entre outros, auxiliam na constituição de uma ciência da religião da
qual nem a filosofia nem a teologia poderiam ser excluídas. A partir da
Reforma interpretada como evento linguístico, em razão da polissemia
dos textos e dos fenômenos religiosos, cada releitura é uma recriação.
Entramos assim num processo de interpretação infinita.
Nesse sentido, a tradição interpretativa protestante está se relendo
constantemente, às vezes na própria existência do pensador, ao reescrever
a sua obra principal ao longo da vida: “Uma vida reformulando um
texto”. É o caso de Melanchton, de Calvino, de Otto. O próprio Lutero
reformulou várias vezes o seu pensamento sobre vários assuntos.
“O caráter racionalista, humanista e moralista da mentalidade de
Melanchton se contrapõe à intuições originárias de Lutero, cujo caráter
era antinomista, místico (Gross).” Do mesmo modo, “o desenvolvimento
do pensamento de Melanchton por Ernst Troeltsch constitui um exemplo
da contribuição de um exercício compreensivo no estudo da religião, no
âmbito da tradição protestante” (Gross). Por sua vez, Calvino demonstra
um “esforço permanente de ajuste dos conceitos às novas conjunturas
socioeconômicas e políticas” (Zwinglio). Trata-se de uma hermenêutica
permanente da realidade à luz da Palavra de Deus, sendo ela mesma
objeto de interpretação, que incide, no caso de Calvino, continuamente
em seu texto teológico fundamental, as Institutas.
Nesse sentido, é emblemática a referência à dialética Lei e Evangelho, no
texto de Jonas Roos. Podemos seguir uma linha que vai de Paulo a Lutero,
de Lutero a Kierkegaard e de Kierkegaard ao autor do capítulo. Trata-se de
uma hermenêutica que coloca um tema paulino no centro do cristianismo,
tema que entra num processo de ressignificação e reapropriação na tradição
teológica protestante. O que é preciso compreender é uma dialética, uma
distinção sem separação, a dupla face de uma mesma relação. A leitura
se faz sempre em função do contexto: Lutero, no contexto do surgimento
carismático da Reforma; Kierkegaard no contexto da institucionalização
:: 13 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

da Reforma na Dinamarca do século XIX; aplicação pelo autor da dialética


Lutero-kierkegaardiana ao nosso contexto. O autor estabelece uma
analogia esclarecedora entre duas dialéticas: Lei e Evangelho em Lutero,
Ironia e Subjetividade em Sócrates. Kierkegaard insere o método socrático
da ironia dentro de uma plataforma luterana de pensamento. O autor
aplica ao nosso contexto a dialética existencial Lutero-Kierkegaardiana do
finito e do infinito. Face ao desespero e à ausência de sentido, o sentido
dos sentidos que se oferece é o símbolo da graça. A religião aparece assim
como constituição de sentido no âmbito do simbólico, a partir de uma
situação de ruptura, cisão, alienação, desespero e falta de sentido. O que
é protestante aqui é a consciência da distância infinita entre Deus e o ser
humano e da negatividade da vida humana. A partir dessa consciência, o
infinito penetra no finito, o eterno irrompe no tempo. Acessamos a essência
compreensiva da religião, que o filósofo e o cientista da religião devem
levar em conta. A hermenêutica abre para nós alguns dos muitos mundos
abertos pelo texto bíblico e pelos textos dos Reformadores. De Lutero e
Kierkegaard até os nossos dias, o autor ainda acrescentou a mediação de
Paul Tillich, que encontra o caráter negativo e protestante na obra Guernica
de Pablo Picasso, fora do âmbito histórico do protestantismo.
Todos os autores preconizam uma abordagem compreensiva do objeto da
ciência da religião: a religião. Essa abordagem integrará os resultados das
abordagens empíricas. Nesse sentido, gostaria de remeter a um texto meu,
também releitura de outros textos:
É preciso superar a polêmica entre a perspectiva das ciências sociais,
tida por muitos como enfoque reducionista do fenômeno religioso, e
aqueles que defendem o caráter irredutível da religião, sua inadequação
aos critérios explicativos das ciências sociais. Na realidade, olhar
externo e olhar interno, dimensão explicativa e dimensão compreensiva
ou hermenêutica se completam em todas as análises da religião, em
proporções variáveis. O estudo exclusivamente empírico tende a
abordar a religião a partir do que ela não é, privilegiando elementos
externos como funções e instituições sociais. A metodologia precisa
dar conta do “resquício mítico” da religião, do seu referencial à
transcendência como aspecto central e incontornável do fenômeno
religioso. É preciso partir do caráter concreto do evento simbólico que
caracteriza toda experiência religiosa como algo realmente vivido pelo
sujeito religioso e que como tal é performativo de suas atitudes e de
:: 14 :: De Lutero a Otto

seu ser no mundo. É preciso compreender a religião a partir de seus


argumentos e sentidos internos, levando em conta a compreensão que
os sujeitos, as instituições e as culturas religiosas têm de si mesmos. O
estudo da religião a partir das ciências sociais, por outro lado, prioriza
o distanciamento crítico em relação ao fenômeno estudado, opta pelo
estranhamento e a suspeita, e assim descobre dimensões que um
método puramente dialogal não captaria.3
Fazendo isso, nos situaremos no coração da tradição interpretativa
protestante. Ao contrário, como insistem vários autores, dar o monopólio
à explicação contra a compreensão levaria à destruição das ciências
humanas e da própria ciência da religião. A verdade se encontra na
relação íntima com uma tradição, num processo de fusão de horizontes
(Gadamer) e na unidade da compreensão e da explicação (Ricoeur).
Com Rudolf Otto, estamos frente a um conflito de interpretações. As
polêmicas levantadas a respeito da obra dele manifestam uma compreensão
ou interpretação insuficiente do seu pensamento, tanto da parte dos seus
defensores quanto da parte dos seus detratores. É o caso do seu método
pretensamente fenomenológico e dos seus principais conceitos: o sagrado
e o numen ou numinoso, o mysterium tremendum et fascinosum. Será ele um
“criptoteólogo”? Um fenomenólogo? Será que existe uma interpretação
“certa”? Estamos, antes, novamente num processo hermenêutico infinito.
O trabalho da interpretação passa por um exercício de compreensão da vida
de Otto, de suas motivações, de sua fundamentação teórica e da repercussão
ou recepção da sua obra. E a leitura deve ser feita a partir do conjunto
da obra. Com certeza, ele se inscreve na tradição protestante de Lutero e
Schleiermacher (pietismo e romantismo), quando pratica uma “espécie de
generalização perceptiva e transcendental, inteiramente protestante, da
subjetividade cristã, através da experiência da criatura” (Calvani).
Para Otto, “a essência da religião não é pensamento, dogma ou atividade
prática, mas intuição e sentimento” (Tillich). As fontes da religião se
encontram em um a priori irracional, místico, presente numa unidade
original da consciência, anterior à razão teórica e prática. “A sua intenção
é mais de sentido que de significado, ou seja, não busca concordância com
a realidade, mas com a experiência (Calvani)”. Contudo, “a religião não
se resume ao sentimento, mas constitui uma interpretação sobre o mundo
e seu destino, bem como o lugar do ser humano (Pieper)”. Ela pertence

3 Ibid., p. 39-40.
:: 15 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

a uma região que não se deixa objetivar pelo conhecimento científico,


caracterizada de modo mais negativo do que propositivo, mas exigida
pela razão. Nesse sentido, Tillich fala em “autotranscendência da razão”
ou “razão extática.”4
O sagrado é uma categoria a priori que contém elementos racionais e
irracionais. Assim, o que é mais profundamente religioso é um sentir
pré-hermenêutico, indizível, inefável, mas é um pré-requisito da
interpretação. Muitos não concordam com o caráter inefável do sagrado.
Para Eliade, como também para Tillich, o sagrado se manifesta de modo
simbólico. Assim, não seria necessário recorrer ao inefável para defender a
autonomia da religião. O importante aqui é perceber que o objeto religioso
não se deixa reduzir totalmente a objetos naturais ou mundanos. Contra
o reducionismo, Otto preconizava uma “positivação lógico-metafísica do
mistério (Souza)”.
Otto sempre foi teólogo, mas isso não é motivo para excluir a sua
contribuição para a ciência da religião. Por outro lado, não era um
fenomenólogo da religião. O seu conceito de intuição estético-religiosa, ou
intuição subjetiva da totalidade, não acessível à ciência procede da corrente
neo-kantiana. Ele procurou compreender o fenômeno religioso a partir de
uma aproximação entre filosofia e teologia, isto é, de uma filosofia religiosa
da religião, ou de uma teologia filosófica, o que constitui uma hermenêutica
perfeitamente legítima para fundamentar a ciência da religião. A ciência da
religião torna-se assim um empreendimento filosófico, baseado na natureza
racional-intelectual do espirito humano. Por outro lado, Otto defendia a
possibilidade de harmonizar uma interpretação naturalista do mundo com
uma interpretação religiosa, superando assim o conflito de interpretações.
Reiterando os meus parabéns aos autores, concluo este breve prefácio,
tecido com muitas das frases tiradas dos nove capítulos do livro, a partir
da minha própria pré-compreensão do que seriam hermenêutica, filosofia
da religião, teologia e ciência(s) da religião. Afinal, o que apresentei não é
nada mais que uma das possíveis leituras do livro. Possa o leitor chegar a
formar a sua própria opinião.
Etienne Alfred Higuet5
São Paulo, SP, fevereiro de 2018

4 TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 68.
5 Doutor em Ciências da Religião. Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Professor visitante na
Universidade Federal de Juiz de Fora. Presidente da Associação Paul Tillich do Brasil.
:: 16 :: De Lutero a Otto

Apresentação
O presente livro6 sela uma parceria entre dois grupos de pesquisa: o
Núcleo de Estudos em Protestantismos e Teologias (NEPROTES), do
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG, e o Grupo de Pesquisa Correlativos –
Estudos em Cultura e Religião (GPCOR), do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe. Ambos com
interesses que convergem em torno do repensar o Ocidente (ou aquilo que
nos ocidentaliza) a partir do tema da religião – aproveitando, em 2017, o
ensejo da comemoração dos 500 anos da Reforma religiosa na Europa.
Mais que comemorar, trata-se de refletir e reconhecer na religião e na
teologia cristãs elementos que tecem essa grandeza tão difusa chamada
modernidade, cujo um dos traços mais significativos justamente tem sido
querer-se distinta, separada, emancipada da religião. Refazer esses
itinerários significa reconstruí-los. Porque temos poucas chances de
sustentar um discurso teoricamente responsável acerca do mundo em que
vivemos, recorrendo à confortável visão binária do século XIX, em que a
emergência do Estado sugeria fronteiras institucionais duras e objetivas
com a religião.
Algo sintomático é, portanto, reconhecer o locus em que tais questões são
postas – desde o qual os autores reunidos nessa obra tem desenvolvido
suas pesquisas sobre religião, Cristianismo e Protestantismo, a saber, o
Brasil desses 500 anos depois, que são também outros 500. É oportuno
lembrar que a herança teológica, ética e política da Reforma do século
XVI chega ao Brasil aos atropelos, assim como a modernidade. Os
Huguenotes franceses no Rio de Janeiro, em 1557, mal se estabeleceram,
foram perseguidos e expulsos sem deixar marcas significativas; na Bahia e
em Pernambuco, entre 1624 e 1654, protestantes holandeses tiveram cerca
de três décadas para deixar sementes, antes de sua expulsão por Portugal
e Espanha. Depois disso, apenas a partir de 1811 (e ao longo do século
XIX) foi aceita a presença herética em terras brasileiras, disciplinada
por regras de sutileza (templos sem torre e sino, por exemplo), pela
própria restrição linguística e, em alguns casos, por certo confinamento
6 Reunião de textos baseados nas conferências do evento De Lutero a Otto: perspectivas
protestantes para a Ciência da Religião, realizado nos dias 19 e 20 de abril de 2017, na
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG.
:: 17 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

geográfico. Apenas a partir do fim do século XIX e no decorrer do século


passado, por meio da empresa missionária norte-americana e europeia,
vamos ter um protestantismo dando as bases do ethos evangélico que hoje
ganha corpo em nosso país – que já tem, evidentemente, suas próprias
distâncias daqueles elementos fundantes do Protestantismo forjado nos
séculos XVIII e XIX.
Daí que o protestantismo abordado nessa obra dista significativamente do
que representa ao senso comum (também no âmbito acadêmico) a noção de
protestantismo no Brasil. Para dois Grupos de Pesquisa situados no Sudeste
e no Nordeste brasileiros, essa percepção não é gratuita. De modo geral, a
tradição da Reforma é completamente ignorada na Universidade, ainda que
essa mesma tradição esteja na base de pensamento das Ciências Humanas!
Uma ressalva que bem poderia ser examinada em profundidade, mas aqui
se basta como mera nota metodológica. Os capítulos que seguem falam
por si mesmos. Basta notar suas referências, que passeiam numa literatura
fundamentalmente em língua alemã, cujas suas próprias referências vêm
desde o século XVI. Trata-se da repercussão, tradução e interpretação da
Reforma e seus desdobramentos (guerras religiosas do século XVII, Paz
de Vestefália, Iluminismo e Idealismo alemão etc.) no que constituiu a
modernidade. Isso, no mínimo, aponta a uma estrutura de pensamento
particular, talvez algo estranho às referências canônicas das Ciências
Humanas que atualmente se pratica.
Os textos aqui reunidos, por sua vez, consideram de modo significativo
a recepção dessa tradição teológica e filosófica no Brasil e na América
Latina, especificamente relativa à área da(s) Ciência(s) da Religião. Nesse
sentido, dão testemunho de uma reflexão em profundidade, feita a um
modo nosso, acerca das bases do pensamento moderno (também pós-
moderno). E nisso está a contribuição mais significativa dessa coletânea.
Se ela não estabelece, de imediato, relação com a empiria religiosa de nosso
contexto, é justamente nessa condição mediativa que provê deslocamentos
e distanciamentos importantes. De certo modo, estamos lidando aqui com
uma primeira alteridade. Algo do que somos e, ao mesmo tempo, com
que temos estranhamentos constitutivos. Nisso reside seu limite e seu
potencial heurístico.
Joe Marçal G. Santos
Aracaju, SE, julho de 2017
:: 18 :: De Lutero a Otto

Introdução
O ano de 2017 comportou duas datas significativas no contexto dos estudos
do protestantismo: os 500 anos da Reforma e os 100 anos da publicação
do livro Das Heilige, de Rudolf Otto. Tais datas são também significativas
para a Ciência da Religião enquanto disciplina acadêmica.
Em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero (1987)
publicava, em Wittenberg, Alemanha, sua Disputatio pro declaratione
virtutis indulgentiorum: as 95 teses, como se tornou conhecido o texto.
Nele, Lutero criticava ideias e práticas que envolviam a venda de
indulgências por parte da cúria romana. Apareciam no debate temas como
a penitência, a autoridade eclesiástica, a autoridade papal e a doutrina
dos sacramentos. Ainda que originalmente Lutero pretendesse apenas
esclarecer algumas ideias que afligiam a piedade das pessoas cristãs
em sua paróquia e na Alemanha, as 95 teses causaram grande comoção
e ulteriormente acarretaram aquilo que Steven Ozment (1992) entendeu
como “o nascimento de uma revolução”.
A partir dali, cindida em seu centro, a igreja como uma unidade sob o papa
não seria mais possível. Lutero, Zwinglio, Calvino e a ala radical da Reforma,
constituem nuances de um movimento que ganhou o mundo. Autores
como Ernst Troeltsch (1983) e Max Weber (2000), entre outros, entendem o
nascimento do mundo moderno como estreitamente relacionado à Reforma
Protestante do século XVI.
Ao passo que o indivíduo fez-se autônomo em sua relação com Deus, o
que se concretiza na doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes,
e passou a encontrar sua vocação religiosa em cada atividade cotidiana – a
ascese intramundana de Weber (2000) – também a religião pôde tornar-se,
paulatinamente, um campo de estudos independente, o que se evidencia
na própria história de diversas faculdades, cadeiras ou departamentos de
Teologia, Ciência(s) da Religião e Estudos de Religião em universidades
na Europa e na América do Norte.
De fato, relativamente ao campo da Ciência da Religião, a constituição da
disciplina traz as marcas do protestantismo. É reconhecida, nesse sentido,
a formação de uma tradição interpretativa compreensiva da religião que
remonta a Friedrich Schleiermacher. De Martinho Lutero a Rudolf Otto
:: 19 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

há uma gama de intelectuais protestantes que foram fundamentais para


o surgimento do que Ninian Smart (1995, p. 20) chamou de “moderno
estudo da religião”.
É internacionalmente reconhecida a influência por sobre a Ciência da
Religião da ideia de sagrado, como formulada por Otto (2007). Mircea
Eliade afirmou alhures que “um bom livro de história das religiões deveria
produzir no leitor uma ação de despertamento” como a produzida pela
leitura de O sagrado, equiparando o escrito de Otto e o poema “Os deuses
da Grécia”, de Friedrich Schiller (ELIADE, 1989). Conceitos formulados
por Otto, como numinoso e mysterium tremendum et fascinans, tornaram-se
estruturantes à nascente disciplina. Quer seja para apropriar-se de tais
conceitos, quer seja para afastar-se deles ou superá-los, o cientista da
religião deverá passar pelo sagrado de Otto.
Na primeira metade do século XX, em busca de distanciamento da antiga
teologia liberal, a chamada teologia dialética, eventualmente também
adjetivada como neo-ortodoxa, enfrentou em novos termos os problemas
de seu tempo. Karl Barth, Emil Brunner, Dietrich Bonhoeffer, Reinhold
Niebuhr e Paul Tillich, os grandes nomes desse período, a seu modo,
buscaram responder às questões do mundo moderno e secularizado
desde a teologia cristã. Foram todos, também, fundamentais nos
processos de formação do movimento ecumênico internacional, matriz
do atual Conselho Mundial de Igrejas. Particularmente Tillich (1985), com
sua definição de religião como uma “preocupação última”, constitui-se
como referência necessária para os estudos de religião no extra-muros da
teologia eclesiástica institucional. A pesquisa sobre religião beneficiou-se
de todos esses processos.
No Brasil, o fenômeno de alguma forma se repete. A constituição da área
passa, no país, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Metodista de São Paulo que, concomitante às articulações
na PUC-SP, nos anos 1980, aglutinou um grupo de pesquisadores
protestantes do calibre de Jaci Maraschin, Antonio Mendonça, Julio de
Santa Ana, Prócoro Velasques Filho e Milton Schwantes. Merece menção
também a luterana Escola Superior de Teologia, de São Leopoldo, cujo
programa de pós-graduação tem ajudado a formar quadros de inúmeras
instituições de ensino superior, inclusive do departamento de Ciência da
:: 20 :: De Lutero a Otto

Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e, mais recentemente,


do Núcleo de Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe.
Temos, assim, um escopo de temas que envolvem a herança protestante da
Ciência da Religião. As datas comemorativas em questão ensejam, nesse
sentido, um interessante debate. Dois tipos de questões emergem à vista.
De um lado, elas demandam a compreensão das conexões entre a teologia
da Reforma Protestante e o estudo acadêmico da religião na modernidade.
De outro, convidam a pensar criativamente, em diálogo com essa tradição,
novos horizontes para o estudo da religião na universidade.
Considerando, ainda, o recorrente argumento de que a Ciência da Religião
é a filha emancipada da Teologia, que acarreta o mais das vezes a simples
negação materna, como se a Teologia fosse uma dinossáurica habitante da
pré-modernidade, compreender tais processos pode colaborar na construção
lúcida da identidade do cientista da religião, em um processo criativo,
hermenêutico e dialógico com uma das influentes correntes intelectuais que
formaram a disciplina.
O esforço conjunto desta obra se constrói nesse horizonte. Nos dias
19 e 20 de abril de 2017, reuniu-se, em Juiz de Fora, MG, um grupo de
pesquisadores vinculados aos programas de pós-graduação em Ciência da
Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora e em Ciências da Religião
da Universidade Federal de Sergipe, em um simpósio que teve como tema
“De Lutero a Otto: perspectivas protestantes para a Ciência da Religião”.
O evento foi organizado pelo Núcleo de Estudos em Protestantismos e
Teologias (NEPROTES/UFJF) e pelo Grupo de Pesquisa Correlativos:
Estudos em Cultura e Religião (GPCOR/UFS). Os textos apresentados nas
mesas do simpósio estão reunidos neste volume.
Os primeiros cinco capítulos tratam de temas mais diretamente conexos
à questão da Reforma e de seu significado hodierno, principalmente para
a reflexão acerca da religião no contexto da universidade. Os capítulos
finais, por sua vez, lidam com a questão da obra de Otto, o contexto de
sua produção e tratam de seus limites e possibilidades para a pesquisa em
Ciência da Religião.
No texto de abertura, “Conexões de sentido e horizontes entre a Reforma,
o Protestantismo e a Ciência da Religião como meio de humanização”,
:: 21 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Arnaldo Huff levanta a questão da liberdade de investigação da religião, no


contexto da Reforma, aliada a um profundo entranhamento nos problemas
mais prementes de então. O surgimento da Ciência da Religião na Europa
do século XIX é, em alguma medida, consequência da possibilidade
do estudo autônomo da religião no ambiente da universidade, que foi
potencializado no contexto da Reforma. O vigor atual da Ciência da
Religião, todavia, queda prejudicado pela timidez dos pesquisadores
e seu foco quase exclusivo nos esforços de análise, em detrimento das
sínteses. A ideia de humanização é, então, desenvolvida pelo autor, a fim
de apontar rumos para a recuperação do sentido no estudo acadêmico da
religião, animando seu potencial imaginativo, criativo e transformador.
Em seguida, o prof. Joe Marçal dos Santos, no texto “Protestantismo: em
teoria, religião”, trata da dimensão propriamente religiosa da Reforma
em seu legado à modernidade – distanciando-se das apropriações que
simplesmente creditam à Reforma o nascimento da individualidade
moderna. A antropologia luterana supõe, nesse sentido, um sujeito em
arrependimento (methanoia) ante uma instância absoluta. Tal conexão
com uma exterioridade constitui uma subjetividade em relação, não
simplesmente autônoma. É o que Lutero chamava de vontade cativa, cativa
da palavra de Deus, algo distinto da aspiração autônoma moderna. Trata-
se de uma vontade que supera as formas de heteronomia, mas que possui
um referencial externo, o qual serve como critério de julgamento das
realidades humanas e como horizonte para a ação. Tal instância substantiva
constitui-se como simultaneamente misteriosa e revelada (absconditus e
revelatus) e permite, nas palavras de Santos, uma compreensão “crítico-
negativa da subjetividade humana”.
O terceiro capítulo comporta, por sua vez, o texto do prof. Eduardo Gross,
“O ideal humanista como base para compreensão da Ciência da Religião
e reflexões relacionadas à obra de Filipe Melanchthon”. Gross parte do
ideal humanista do Renascimento e, a partir dele, constata a fragmentação
atual das Ciências Humanas, também da Ciência da Religião, e a perda
que se impõe à medida que as mesmas assumem um viés explicativo
e historicista, inspirado nas Ciências Naturais. O ímpeto de retorno às
fontes originárias do estudo da religião no contexto humanista leva Gross
à vida e obra de Filipe Melanchthon. Após breves notas biográficas, Gross
concentra-se nos Loci Theologici de Melanchthon, contextualizando as
:: 22 :: De Lutero a Otto

transformações do texto em suas várias edições, pela revisão crítica do


próprio autor. Em um passo seguinte, trata da leitura e da apropriação
que Ernst Troeltsch fez em Razão e revelação em Johann Gerhard e Melachthon.
A intenção de Gross, a partir de Troeltsch, é demonstrar o fôlego de um
intelectual que era ao mesmo tempo teólogo, filósofo e historiador das
religiões, debruçado sobre um período importante da história da teologia
protestante. O esforço de Troeltsch sobre Melanchthon, simultaneamente
crítico e compreensivo, indica caminhos para a retomada dos ideais
humanistas por parte dos cientistas da religião.
O capítulo seguinte é dedicado a João Calvino. Em “Calvino antes do
Calvinismo”, o prof. Zwinglio Mota Dias elenca, a partir principalmente
das “Institutas da Religião Cristã”, três faces olvidadas do reformador
genebrino, por parte de um calvinismo recente de matizes fundamentalistas.
Segundo Dias, Calvino como teólogo afirmou, primeiramente, um Deus
“totalmente outro”, impossível de ser apreendido pelos seres humanos;
um Deus soberano que, todavia, revela-se em Cristo aos humanos, no que
se sublinha a fragilidade da vida terrena. Calvino foi, ademais, também
pastor. Assumia, porém, a distinção entre a igreja dos cristãos, histórica,
visível e a igreja como “a verdadeira esposa de cristo”, comunidade
invisível, conhecida apenas por Deus. Na igreja visível, a fim de que seja
reconhecida como tal, deve haver a pregação da Palavra de Deus e a correta
administração dos sacramentos. Na condução dessa igreja visível, todavia,
“a severidade deve ser moderada pela misericórdia”, afirmava Calvino.
Por fim, Dias destaca ainda Calvino como homem público. Segundo o autor,
a visão calviniana assegurava a participação do cristão na vida pública
como parte de sua vocação no mundo. Calvino, nesse sentido, buscou
responder às grandes mudanças que abalaram o velho mundo, tratando
sobre temas sociais diversos. Para Dias, justamente esta verve atenta à
história foi perdida por uma teologia compreendida como ciência abstrata,
especulativa e técnica. A crítica, transportada da igreja para a academia, é
válida também para a Ciência da Religião.
A dialética entre lei e evangelho é abordada pelo prof. Jonas Roos no
capítulo que segue, a partir de uma chave kierkegaardiana. O autor
sustenta que a relação entre lei e evangelho constitui, em Lutero, um
modo de ler o texto bíblico, de pensar o cristianismo e de fazer teologia,
sendo, portanto, fundamental para entender sua teologia. Em seu texto,
Roos, após estabelecer os contornos da relação entre lei e evangelho em
:: 23 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Lutero, trata da apropriação que dela fez Kierkegaard, no século XIX.


Em destaque, a analogia entre a dialética luterana de lei e evangelho
e a relação socrática entre ironia e subjetividade: para que surja a
subjetividade/graça, a ironia/lei tem um papel fundamental. A própria
obra de Kierkegaard é passível de apreensão nessa mesma duplicidade.
Por fim, Roos, aproximando o tema de nosso contexto, lança mão de outro
paradoxo fundamental, a saber, a questão do desespero e da ausência
de sentido em sua relação com a graça e a construção de sentido. Para
o autor, em sua convergência entre Lutero e Kierkegaard, o sentido se
dá, se oferece, trata-se de algo substancial que permite a fundamentação
dos sentidos particulares. Extraindo consequências para se pensar um
conceito de religião, o autor assegura que é nessa dinâmica simbólica
paradoxal que a religião desafia à compreensão do eterno no temporal,
do infinito no finito.
O prof. Carlos Calvani, no capítulo seguinte, abrindo a sequência de
textos voltados à obra de Otto, trata do que chama de “o mistério do
legado de Otto para as ciências da religião”. Calvani principia levantando
a polêmica instaurada na recepção de Otto no Brasil, inclusive a acusação
de criptoteologia que lhe é dirigida e sua inadvertida associação à
fenomenologia da religião. Sustenta, nesse contexto, que, embora o nome
de Otto seja famoso, o conjunto de sua obra é pouco conhecido no Brasil.
A questão passa, para Calvani, por onde se situa a obra de Otto, se na
teologia, na filosofia ou na fenomenologia da religião. Para o autor, o que
Otto faz é uma filosofia religiosa da religião. Era teólogo e seus interesses
filosóficos passavam por questões de ordem religiosas e existenciais. A
contribuição de Otto é melhor apreendida nessa chave. Nesse sentido, a
repulsa à teologia existente nos meios acadêmicos dificulta a recepção e a
compreensão das ideias de Otto. Para Calvani, todavia, Otto ainda tem o
que dizer àqueles interessados no estudo da religião. Afinal, questiona o
autor, se recusamos o específico da religião, seu a priori, qual o sentido de
se estudar os fenômenos religiosos?
Em sequência, no capítulo intitulado “A especificidade e autonomia da
religião em R. Otto”, o prof. Frederico Pieper Pires desvela o contexto das
ideias centrais de Das Heilige em sua relação com obras de Otto não tão
conhecidas no Brasil. A partir da análise de Naturalismo e Religião, obra
escrita em 1904, e de Filosofia da religião baseada em Kant e Fries, de 1909,
Pieper aclara a construção, em Otto, da relação entre racional e irracional
:: 24 :: De Lutero a Otto

na religião, as apropriações que faz de Schleiermacher, Kant e Fries, o


traço transcendental de sua filosofia, bem como a noção de a priori. Tece,
por fim, suas considerações críticas a Otto, perguntando pela validade de
sua filosofia para a constituição da Ciência da Religião.
O prof. Humberto Quaglio, no texto que segue, trata do desenvolvimento
do pensamento de Otto, considerando o período que se estende da
publicação do texto de 1904 (Naturalismo e Religião, tratado por Pieper
no capítulo anterior) até a publicação de Das Heilige, em 1917. Conforme
Quaglio, entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX,
asseverou-se o espírito de confiança nas ciências da natureza, entendidas
como instrumento principal para a compreensão do mundo. Tal ambiente
favoreceu a secularização das mentalidades, o que pode ser percebido até
os dias atuais. Também as cosmovisões materialistas tomaram assento
nesse contexto, instaurando uma percepção segundo a qual o fenômeno
religioso torna-se algo sem relevância. De fato, Naturalismo e Religião foi
escrito em um ambiente de aversão à metafísica e constitui um debate do
autor com seu entorno intelectual. Otto, todavia, acreditava ser possível
harmonizar as duas concepções de mundo. Não havia, para ele, uma cisão
de princípio entre o racional e o irracional. Em Das Heilige, todavia, o lado
irracional da experiência religiosa ganha maior atenção, sublinhando-
se os limites da razão nesse âmbito. Conforme Quaglio, em sintonia,
portanto, com os capítulos que o precedem neste livro, o pensamento de
Otto é melhor compreendido quando suas outras obras são conhecidas e
consideradas.
Encerra esta coletânea o texto “Teoria da religião: questões epistêmicas
e traços históricos”, de autoria do prof. Davison Schaeffer de Oliveira.
O capítulo discute o papel da teoria da religião para a Ciência da Religião,
considerando tanto aspectos epistemológicos, quanto traços históricos
da formação da disciplina. Partindo do locus da teoria da religião na
Ciência da Religião, o autor dedica-se à recorrente controvérsia acerca da
definição de seu objeto, para então conectar tal discussão com a questão
da fenomenologia da religião. Surge, como nos capítulos precedentes,
o problema da resistência em relação à teologia e à filosofia no tocante
ao estudo da religião, por parte daqueles que pretendem diminuir o
risco de interferências teológico-apologéticas no trabalho científico. O
argumento levanta, por fim, a discussão em torno do uso do conceito de
sagrado, particularmente com referência a Rudolf Otto. Segundo o autor, a
:: 25 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

diluição do fenômeno religioso em conceitos como os de cultura, homem,


sociedade, espiritualidade, igualmente problemáticos e genéricos, não
resolve a questão e aponta para a renovada necessidade de se repensar o
objeto de nossa disciplina: a religião.
O conjunto dos textos aqui elencados dispõe, assim, abordagens que,
por um lado, permitem discutir as conexões genéticas entre a Reforma, o
protestantismo e o surgimento da Ciência da Religião; e que, por outro,
vislumbram novas possibilidades para a disciplina em diálogo com
interpretações protestantes da religião. O leque de autores discutidos
vai de Lutero, Melanchthon e Calvino, passando por Kierkegaard,
Schleiermacher, Otto e Tillich, até Richard Shaull e Rubem Alves,
compondo, assim, um panorama amplo de ideias protestantes acerca da
religião, de seu estudo e de seu lugar na vida humana. Espera-se que as
ideias aqui convergidas possam de alguma forma colaborar no necessário
debate acerca da constituição e dos fundamentos de nossa disciplina.
Arnaldo Érico Huff Júnior
Juiz de Fora, MG, julho de 2017

Referências
ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido da religião. Lisboa: Edições
70, 1989.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol. 1. Porto Alegre: Concórdia,
São Leopoldo: Sinodal, 1987.
OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo: EST/Sinodal, Petrópolis: Vozes, 2007.
OZMENT, Steven. The birth of a revolution. New York: Doubleday, 1992.
SMART, Ninian. Worldviews: crosscultural explorations of human
beliefs. 2ª ed. New Jersey: Prentice Hall, 1995.
TILLICH, Paul. A dinâmica da fé. São Leopolodo: Sinodal, 1985.
TROELTSCH, Ernest. El Protestantismo y el mundo moderno. México:
Fondo de Cultura Económica, 1983.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Pioneira, 2000.
Conexões de sentido e
horizontes entre a reforma,
o protestantismo e a ciência
da religião como meio de
humanização
Arnaldo Érico Huff Júnior
:: 27 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Introdução
Tratar das conexões entre a Reforma, o protestantismo e a Ciência da
Religião é levantar um assunto que pode ser espinhoso. O problema de
fundo é o da relação entre religião e ciência, subentendidas como esferas
independentes e sem contato, o que constitui uma das questões mais
naturalizadas e fundantes da modernidade. Tal polêmica, neste texto,
pode se instaurar, ao passo que o tema tratado pretende indicar e, nesse
caso, acolher justamente os pontos de contato entre ciência e religião.
É bem conhecido o argumento que sustenta que a Ciência da Religião é a
“filha emancipada da Teologia”. Trata-se de ideia propalada e comumente
aceita de modo acrítico. A afirmação indica o desejo de que a Ciência da
Religião seja ciência, não religião. A exacerbação de tal ponto de vista gera
uma postura de distanciamento ante a religião, entendida como objeto
empírico, talvez mesmo de pretensa neutralidade. Uma das consequências
de tal entendimento, e seu consequente foco na leitura da “realidade
objetiva”, é a absoluta multiplicação fragmentada de trabalhos analítico-
empíricos, concomitante à quase inexistência de esforços de síntese
interpretativa. Estes demandam envolvimento, não distanciamento. Falta
a pergunta: “o que significa isso em termos humanos? O que hoje significa,
por exemplo, o crescimento e o vulto sociológico que toma o pentecostalismo
ao redor do mundo?”. Os trabalhos se concentram em interesses de voto,
bancada evangélica, intolerância etc. São questões importantes, sem
dúvida. Mas quem fará a pergunta pelo sentido da religião? Pergunta
que teima em se impor sempre novamente. Tal tarefa poderia ser em
parte cumprida pela Ciência da Religião. Ao se aproximar dessa questão,
obviamente, a isenção religiosa pretendida pela cientificidade da Ciência
da Religião encontra suas fronteiras borradas. Assim também, quanto mais
próximo das fronteiras, mais se impõe a questão da relação da Ciência da
Religião com a Teologia.7
Partimos, notadamente, de um entendimento de religião como um algo
anterior às religiões e religiosidades, às tradições religiosas e às culturas.
Acompanhando Tillich (2009, p. 83), estamos interessados na substância
religiosa que fundamenta as expressões religiosas culturais. Olhar a
7 Refiro-me aqui à teologia acadêmica, não àquela determinada por interesses eclesiásticos
e institucionais.
:: 28 :: De Lutero a Otto

religião “de fora” permanece, é claro, uma alternativa válida e acadêmica.


Talvez necessária em diversos sentidos e momentos. Não é este, porém,
o caminho aqui tomado. Posicionamo-nos no limite, perguntando pelas
origens teológicas da Ciência da Religião a fim de aventar, a partir destas,
horizontes para o estudo e a pesquisa na disciplina. A aposta deste texto
é de que a aproximação hermenêutica da religião, interessada na questão
do sentido, instaura um processo pedagógico de humanização.

O estudo da religião no contexto


da Reforma e alguns desdobramentos
para a Ciência da Religião
Três pontos serão aqui, inicialmente, destacados: a independência e a
liberdade no estudo da religião no ambiente da Reforma; sua conexão com
as questões mais prementes de seu tempo; e os fundamentos de um estudo
compreensivo da religião construídos no contexto do protestantismo.
Gerhard Ebeling, em seu livro sobre o pensamento de Lutero, entende
a atividade do reformador como um acontecimento linguístico. Foi,
afinal, o trato e o cuidado com a palavra por parte de Lutero que gerou
o movimento reformatório. Ebeling (1988, p. 13) não titubeia em concluir
que “nunca na história das universidades, o mundo foi tão direta e
amplamente atingido e modificado pela atividade conjugada de escritório
e sala de aula”. Por isso mesmo, continua, “se a Universidade quer refletir
sobre as suas potencialidades máximas, ela é remetida a Lutero”. Nessa
perspectiva, colocar a Ciência da Religião em diálogo com a Reforma e o
protestantismo indica uma expectativa no sentido de contribuir, por um
lado, para a compreensão da constituição da Ciência da Religião enquanto
disciplina acadêmica e, por outro lado, para a ampliação do entendimento
de seu lugar no mundo.
A primeira questão que merece destaque no contexto da Reforma,
seguindo Ebeling, é o traço constitutivo, em relação ao movimento como
um todo, do mandato do Dr. Lutero na Universidade de Wittenberg.
Este foi, na verdade, a sustentação de todas as demais esferas em que
esteve envolvido. “Durante tal atividade docente, perdi o papado”, é o
:: 29 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

que dizia o próprio Lutero, sublinhando o traço acadêmico da Reforma


(EBELING, 1988, p. 11). Naquele contexto, a atividade acadêmica, e com
ela a teologia, estiveram diretamente conectados com a vida comum e os
rumos sociais. Aliás, talvez orgânica seja uma boa palavra para definir a
atividade acadêmica da Reforma.
De fato, às voltas de 1517, as principais dinâmicas do movimento que
abalaria a cristandade estiveram umbilicalmente ligadas à Universidade
de Wittenberg. Lutero, Melanchthon e Karlstadt eram lá professores. O
traço acadêmico da teologia protestante pode, na verdade, ser percebido
ainda nos dias atuais. E considere-se que algumas das mais tradicionais
universidades do mundo possuem background protestante: Marburg,
Genebra, Amsterdam, Leiden, Oxford, Cambridge, Harvard, Princeton,
Columbia, dentre outras.
Na verdade, um dos significativos resultados da Reforma foi a
reestruturação do ensino. Isso significa que a Reforma foi também uma
reforma universitária, implicando na reorganização do currículo da
universidade e no despertamento de um novo espírito acadêmico. O
estudo da Bíblia, de Agostinho e dos demais pais da Igreja deveria, para
Lutero, ter precedência a Aristóteles (EBELING, 1988, p. 13). Tratava-
se, portanto, das implicações, para a Reforma, do espírito humanista de
retorno às fontes.
Vislumbra-se, assim, o surgimento de um tipo de estudo autônomo da
religião no ambiente universitário, não mais subjugado à autoridade
papal e eclesiástica romana, porém buscando seus próprios fundamentos.
Nesse sentido, a possibilidade de uma Ciência da Religião universitária
deve algo à ruptura eclesiástico-institucional que a Reforma instaurou.
Movimentos posteriores internos ao protestantismo representaram
retrocessos nesse sentido, como se pode notar em certas apreensões
ortodoxas e fundamentalistas já institucionalizadas da Bíblia. A despeito
disso, todavia, como bem indicou Tillich, a liberdade de Lutero levou o
protestantismo a aceitar o tratamento histórico da literatura bíblica. E,
por conseguinte, a “aplicação do método histórico aos livros sagrados de
qualquer religião” (TILLICH, 2000, p. 242).
Mas esse já é, como se sabe, o contexto da modernidade, à qual o
surgimento da Ciência da Religião esteve obviamente amarrado. Em
:: 30 :: De Lutero a Otto

termos sociológicos, as implicações dizem respeito ao que Weber (2004,


p. 96) chamou de desencantamento do mundo e Berger (1985, p. 117)
de processo de secularização. E novamente estamos às voltas com o
protestantismo. Ou seja, à medida que o universo protestante deixou
de ser perpassado por seres e forças sagradas, a radical transcendência
sobrenatural de Deus foi contraposta a um mundo imanente, despido
de seus atributos sagrados. Nessa cosmovisão, o homem, terrenal,
aparece como dependente da intervenção sobrenatural de Deus e dos
céus. O protestantismo, nesse sentido, antecipou arquetipicamente a
secularização. Berger inclusive assevera, sublinhando o traço linguístico
do processo, que
o protestantismo reduziu o relacionamento do homem com o sagrado ao
canal, excessivamente estreito, que ele chamou de Palavra de Deus (que
não se deve identificar com uma concepção fundamentalista da Bíblia,
mas com a excepcional ação redentora da graça de Deus – a sola gratia das
confissões luteranas). [...] bastava romper esse estreito canal de mediação
para se abrirem as comportas da secularização (BERGER, 1985, p. 125).

Com o processo de secularização, setores da cultura se tornam mais


independentes dos símbolos e instituições religiosas, assim também a
universidade. A religião, por sua vez, que passou a ser entendida como
uma das esferas da cultura, tornou-se um campo cada vez mais livre para
o estudo e a investigação acadêmica. A conformação do estudo da religião
na universidade do século XIX aconteceu em meio a esses processos.
Pensando retrospectivamente, essa saída de cena dos símbolos e
instituições religiosas para um papel coadjuvante constituiu uma situação
de crise, cujo resultado que aqui mais interessa foi justamente a busca
por uma percepção da religião em novos termos e a pergunta acerca de
seu lugar no mundo moderno.8 Se tomarmos a publicação, em 1799, de
Über die Religion, Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern (Sobre a
Religião, discursos aos cultos dentre seus menosprezadores) de Friedrich
Schleiermacher (1768-1834), como um marco de uma nova percepção da
religião, a questão queda mais clara. Ante os desprezadores esclarecidos

8 Note-se a questão posta por Rubem Alves (1984b, p. 37): “A secularização não foi a morte
dos deuses mas antes a promoção, ao status de deuses, de certos fatores do nosso mundo
que se pretendiam secularizados. Será possível tomar o lugar dos deuses sem se tornar um
deus? Ora, foi isto exatamente que a ciência, a tecnologia e certas ideologias fizeram”.
:: 31 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

da religião, dentre os quais tinha seu próprio círculo de amizades,


quando capelão de um hospital reformado em Berlin, Schleiermacher
afirmava sua compreensão da religião como uma intuição integradora
do todo, do universo e, portanto, anterior e maior que Deus e que as
culturas, tradições e instituições religiosas. A percepção da religião que
se instaurava possibilitava novamente a discussão significativa sobre o
sentido da religião na modernidade.
Assim, ao que parece, as noções de religião como “sentimento e intuição
do universo”, de Schleiermacher; como “experiência do numinoso”, de
Rudolf Otto (1869-1937); como “preocupação última”, de Paul Tillich
(1886-1965); como “presença da ausência”, de Rubem Alves (1933-2014);9
constituem um campo de entendimento da religião que lega à Ciência
da Religião uma apreensão compreensiva do fenômeno religioso e que
busca seu espaço no mundo moderno. Em comum, pode-se argumentar,
tais perspectivas possuem a ideia de que a religião está relacionada a
uma experiência pessoal de (re)conexão com Deus, com o sagrado, com o
fundamento do ser etc., e que perpassa a vida espiritual da humanidade.
Assim, em termos modernos, a estrutura de fundo do problema não era,
todavia, estranha à Reforma do XVI – basta pensar, em Lutero, a relação
feita entre graça, palavra e fé.
De qualquer forma, não parece ser coincidência a presença maciça de
intelectuais de formação protestante nas dinâmicas que envolveram o
nascimento da Ciência da Religião. Sabe-se que o surgimento de uma tal
tradição compreensiva da religião deve algo a Schleiermacher, e desde
lá a Otto e a Tillich, por exemplo. Ligados à Ciência da Religião de modo
mais direto estariam ainda Cornelils Tiele (1830-1902); Pierre Chantepie de
la Saussaye (1848-1920), Ernst Troeltsch (1865-1923), Nathan Söderblom
(1866-1931), Gerhardus van der Leeuw (1890-1950), Friedrich Heiler
(1892-1967) e Joachim Wach (1898-1955), alguns dentre os renomados
estudiosos da religião de pertença protestante, na virada para o século
XX. Também o que chamamos de fenomenologia da religião, à medida
que pressupõe algo essencial que se manifesta na forma religiosa e que
requer empatia para ser apreendido, aproxima-se desse mesmo ambiente
de interesses e de estudo.

9 Friedrich Schleiermacher (1990); Rudolf Otto (2007); Paul Tillich (2009); Rubem Alves (1984b).
:: 32 :: De Lutero a Otto

Afirmar, nessa perspectiva, que a Ciência da Religião surge na modernidade


e se produz em certa medida sobre bases de alguma maneira relativas à
Reforma e ao protestantismo, significa sublinhar o fato de que intelectuais
que participaram de sua formação estavam lidando com algo que lhes
dizia respeito fundamentalmente, uma questão ontológica. A essência da
religião, afinal, como dizia Rubem Alves (1984b, p. 39), “não é um objeto,
mas uma relação”.
Vejamos, a título de exemplo, um pouco da biografia do sueco Nathan
Söderblom (1866-1931), teólogo luterano e arcebispo de Uppsala,
pioneiro do movimento ecumênico internacional e historiador das
religiões – praticamente desconhecido à Ciência da Religião brasileira.
Filho de pastor, Söderblom advinha da formação pietista, ainda que a
teologia liberal o tivesse levado a outros horizontes. Estudou teologia na
Universidade de Uppsala, foi ordenado pastor em 1893 e, em 1901, obteve
seu doutorado em teologia na Sorbonne, com tese sobre a religião persa
antiga. Em Paris, durante os estudos de doutorado, também pastoreou
uma igreja sueca. Entre 1901 e 1912, Söderblom ensinou na Escola de
Teologia da Universidade de Uppsala, pesquisando e publicando nas
áreas de história das religiões, psicologia e filosofia da religião; momento
em que aquela universidade experimentou uma intensificação dos estudos
de religião e teologia. Entre 1912 e 1914, atuou como professor de História
das Religiões na Universidade de Leipzig. Seu interesse acadêmico girava
ao redor da relação entre religião e revelação, de uma leitura cristã das
religiões não-cristãs e dos estudos da vida e da obra de Lutero. Em 1914, foi
surpreendido com a indicação de seu nome para o arcebispado da Igreja
Luterana da Suécia, atividade que exerceria ao longo dos dezessete anos
seguintes, até seu falecimento. Internacionalmente, Söderblom tornou-
se mais conhecido como militante do movimento ecumênico. Participou
do movimento estudantil cristão, esteve à frente da Conferência de
Vida e Ação e colaborou com a Comissão de Fé e Ordem, peças-chave
na fundação do Conselho Mundial de Igrejas, em 194810. Pouco antes de
morrer, em 1930, Söderblom foi ainda agraciado com o Prêmio Nobel da
Paz (KRÜGER, 1991, p. 938-939).11 Vejamos o que Jacques Waardenburg
compreendeu do esforço intelectual de Söderblom.

10 Mais sobre a formação do movimento ecumênico internacional e o CMI em Zwinglio M.


Dias (1998).
11 Tb. em NATHAN SÖDERBLOM – BIOGRAPHICAL, disponível em: http://www.nobelpri-
ze.org/nobel_prizes/peace/laureates/1930/soderblom-bio.html.
:: 33 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Em sua atividade acadêmica, Söderblom recusou-se a se confinar a


uma explicação ou a uma teoria acerca da origem da crença humana em
Deus, mas, utilizando um método tipológico, pretendeu demonstrar
que o animismo, a crença no ‘mana’ e a crença no ‘Deus superior’ eram
três tipos diferentes e paralelos de experiência e desenvolvimento
religioso. Acentuava a importância da categoria do sagrado [holiness]
como sendo chave no estudo da religião mesmo antes de Otto.
Arquitetou uma tipologia da religião antes de Heiler, distinguindo
religião étnica, misticismo do infinito e revelação profética. Em toda
sua obra sublinhou a luta e a busca religiosa comum à humanidade
(WAARDENBURG, 1999, p. 381).

Note-se a proximidade desta com as perspectivas até aqui elencadas


acerca do estudo da religião. Mas este não é um texto comemorativo
ou laudatório. Para lá de apontar algumas conexões genéticas entre
a Reforma, o protestantismo e o nascimento da Ciência da Religião,
pretendo problematizar uma questão específica, a saber, a da relação da
vida universitária, e nesse caso específico da Ciência da Religião, com a
vida comum e os rumos da humanidade. É nesse sentido que a obra de
Söderblom é aqui evocada, junto aos demais intelectuais mencionados. É
claro que as fronteiras entre ciência e religião nesse caso não são aquelas
esperadas por certo realismo ou cientificismo moderno.

Uma perspectiva de humanização


para Ciência da Religião
Experimentamos atualmente uma erosão e uma encruzilhada de sentido. O
avultamento de tendências conservantistas, por exemplo, é visível e ganha
força ao redor do mundo. A situação é, novamente, de crise. A universidade,
por sua vez, e com ela a Ciência da Religião, pode exercer, como na
Reforma, um papel fundamental na reconfiguração das formas de pensar a
vida humana. Para isso, todavia, precisa vencer sua situação fragmentária,
bem como alguns dualismos que se lhe tornaram estruturantes: ciência vs.
religião; razão vs. fé; Estado vs. Igreja; política vs. religião etc.
Retomemos um texto conhecido de Mircea Eliade, Crise e renovação, em que
lamenta a timidez dos historiadores da religião de seu tempo. Conforme
:: 34 :: De Lutero a Otto

ele, em digressão, a expectativa de um “segundo Renascimento” gerado


pelo conhecimento da espiritualidade indiana através da atividade de
Max Müller fora frustrado por duas razões: (I) a eclipse da metafísica e
o triunfo de ideologias materialistas e positivistas e (II) a concentração
da primeira geração de indianistas na edição de textos, vocabulários e
nos estudos filológicos e históricos, tendo como consequência a ausência
de trabalhos de síntese (ELIADE, 1989, p. 74). Tal contexto ajudaria a
entender a inexpressividade cultural da História das Religiões – talvez
também nos ajude atualmente.
Vale notar que o que Eliade entende por História das Religiões é o que
no Brasil e em outros países, como a Alemanha e a Holanda, chamamos
ciência(s) da religião. Em suas palavras:
Entende-se geralmente por “história das religiões” ou “religião
comparativa” o estudo integral das realidades religiosas, quer dizer, as
manifestações históricas de um tipo particular de “religião” (tribal, étnica,
supranacional) bem como as estruturas específicas da vida religiosa
(formas divinas, concepções da alma, mitos, rituais etc.; instituições etc.;
tipologia das experiências religiosas etc.) (ELIADE, 1989, p. 73).

A formulação é originalmente atribuída a Joachim Wach, que separava


em dois momentos a atividade da Ciência da Religião, um histórico e
um sistemático, e tornou-se conhecida no Brasil através da publicação do
livro de Hans-Jurgen Greschat (2005), O que é Ciência da Religião.12 Aliás,
compreender o que é “História das Religiões” para Eliade como sendo o
que chamamos “Ciência da Religião” ajuda a evitar uma série de erros
e críticas mal formuladas, que partem da confusão entre a História das
Religiões de Eliade e a História enquanto disciplina acadêmica. Eliade
mesmo, sublinhando o problema que pretendo destacar, indica que,
enquanto disciplina independente:
A história das religiões não é uma mera disciplina histórica como,
por exemplo, a arqueologia ou a numismática. É igualmente uma
hermenêutica total, já que é chamada a decifrar e explicar todo o
tipo de encontro do homem com o sagrado, da pré-história até aos
nossos dias. Ora, por razões de modéstia, ou talvez por uma timidez

12 Greschat nomeia as duas esferas de atividade como “trabalho com o específico” e “trabalho
com o geral”.
:: 35 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

excessiva (provocada acima de tudo pelos excessos dos seus eminentes


predecessores), os historiadores das religiões hesitam em valorizar
culturalmente os resultados das suas investigações. De Max Müller
e Andrew Lang a Frazer e Marett, de Marett a Lévy-Bruhl e de Lévy-
Bruhl aos historiadores das religiões dos nossos dias nota-se uma
progressiva perda de criatividade acompanhada de uma perda de
sínteses culturais interpretativas em favor da investigação analítica
fragmentada (ELIADE, 1989, p. 77-78).

A superação da situação de falta de criatividade e de fragmentação analítica,


na direção de trabalhos de síntese, se dá, portanto, através da formulação
da ideia de uma hermenêutica total. “A mente humana só funciona desta
maneira compartimentada à custa da sua própria criatividade”, afirmava
Eliade (1989, p. 79). Por sua vez, a construção de uma disciplina humanista
que aceita o desafio do esforço de síntese imbrica-se na atividade
hermenêutica. Segundo Eliade, todavia, no tocante à História das Religiões
a questão é mais complexa, visto que não se trata apenas de compreender
e interpretar os fatos religiosos, uma vez que, “em razão da sua natureza,
estes fatos religiosos constituem um material sobre o qual se pode pensar –
ou até se deve pensar – e pensar de uma maneira criativa” (ELIADE, 1989,
p. 79-80), como o fizeram Montesquieu, Voltaire, Hegel e Nietzsche, quando
se puseram a pensar sobre as instituições e a história humana.
Nesses termos, estamos muito próximos à frustração do “segundo
renascimento” dos tempos de Max Müller. A fragmentação analítica nos
cobra o preço da criatividade. O horizonte comunicativo da Ciência da
Religião é ainda uma promessa. À medida que se adequa à “cientificidade”
de certa apreensão realista das ciências sociais, a Ciência da Religião
incorre em timidez, o que se atesta na enxurrada de trabalhos analíticos
mais ou menos “curiosos” sobre os “nossos nativos”. Seguindo Eliade,
isso, todavia, não precisa ser assim. As disciplinas humanistas não devem
se conformar à logica das ciências naturais.
Antes disso, as fontes dinâmicas da cultura nos são ainda facultadas à luz
da atividade hermenêutica. Na Grécia antiga, no Renascimento italiano, na
Reforma e na Contra-reforma algumas das mais significativas dinâmicas
foram fundamentalmente hermenêuticas (ELIADE, 1989, p. 80). Nessa
perspectiva, a hermenêutica desvela significados outrora não percebidos,
:: 36 :: De Lutero a Otto

colocando-os de modo que a consciência não pode mais ser a mesma


depois de conhecê-los. “No final, a hermenêutica criativa muda o homem;
é mais do que instrução; é também uma técnica espiritual susceptível de
modificar a qualidade da própria existência. Isto é verdadeiro, sobretudo
para a hermenêutica histórico-religiosa” (ELIADE, 1989, p. 81). Ao desvelar
situações religiosas que correspondem a situações existenciais antes
desconhecidas, o historiador das religiões põe em movimento forças de
transformação humana. Ele mesmo sofre, nesse sentido, as consequências
de sua atividade hermenêutica. Na percepção de Eliade, a História das
Religiões, assim compreendida, afirma-se como uma pedagogia, porque
é capaz de causar transformação, como uma fonte de criação de valores
culturais. Mas admite que tanto cientistas quanto teólogos podem encarar
esse potencial com suspeição.
Demos a esse potencial de transformação criativa o nome de
“humanização”. Essa expressão foi, na verdade, também evocada por
Udo Tworuschka ao elucidar sua compreensão do que chama de “Ciência
Prática da Religião”, na seção dedicada à Ciência da Religião Aplicada no
Compêndio de Ciência da Religião, editado pelos profs. João Decio Passos e
Frank Usarski. Para Tworuschka (2013. p. 579), a expressão ciência prática
da religião refere-se a “um modelo de Ciência da Religião ilimitado, inter
e transdisciplinar, que incentiva e promove uma ação orientada, crítica,
comunicativa, político-social da Ciência Prática da Religião”. Com isso,
segundo o autor, pretende-se “facilitar ‘melhores’ realidades no futuro”.
A Ciência da Religião, nessa perspectiva, assume o papel de mediação nos
processos de comunicação, com interesses marcadamente “pacificadores,
humanizadores e conciliadores”. Avalizando sua construção teórica,
além de remeter ao já mencionado Eliade, Tworuschka refere-se também
à participação de Otto na Liga Religiosa das Nações, bem como ao Projeto
Ética Mundial de Hans Küng, como exemplos de mesma intenção prática.
A ideia de humanização aliada à Ciência da Religião Aplicada abre um
novidadeiro e interessante horizonte de discussão; ainda que não seja
desejável limitar o uso da ideia de humanização ao interesse de aplicação
prática da Ciência da Religião.13

13 Note-se, por exemplo, que Schleiermacher (1850), ao tratar da configuração disciplinar da


teologia, indica que toda ela deveria voltar-se à vida da igreja, não apenas o nascente cam-
po da teologia prática.
:: 37 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Para desenvolver a ideia pensando nos horizontes da Ciência da Religião,


pedirei o auxílio de outros dois eminentes protestantes: Richard Shaull
e Rubem Alves. Seus nomes, quando colocados assim lado a lado, são
normalmente usados para referir à face protestante do que Michel
Löwy (2000) chamou de “cristianismo da libertação”. Shaull, inclusive, é
lembrado, às vezes, como uma espécie de “avô da teologia da libertação”.
No que aqui nos interessa, todavia, notaremos que há em ambos uma
apreensão semiótica da religião, um entendimento de que teologia e
religião são linguagens, sem, todavia, reduzi-las ao conceito antropológico
de cultura. Shaull, em seus textos dos anos 1950-60 pretendia colaborar na
construção de uma linguagem teológica para a revolução à luz do Reino
de Deus. A ideia de presença da ausência de Rubem Alves, por sua vez, é
eminentemente simbólico-religiosa. E aqui mantemos a inspiração daquela
interpretação da Reforma como evento linguístico em seu estrondoso
impacto: a relevância da Ciência da Religião, nessa perspectiva, depende
também de estar formulada significativamente.
Vamos ao assunto. O eticista estadunidense Paul Lehmann, que exerceu
forte influência sobre Shaull e Alves, dizia que humanização tem a ver
com a pergunta sobre “O que é preciso para tornar e manter humana a
vida humana?” (LEHMANN, 2006. p. 86). Richard Shaull e Rubem Alves
buscaram responder à pergunta. Em uma série de textos de 1963, escritos
para um evento da Associação Cristã de Acadêmicos de São Paulo e
depois publicados pela União Cristã de Estudantes do Brasil, Shaull assim
colocava a questão:
Por humanização, entendemos aquela visão de vida realmente humana
para todos os homens. Assim, falamos da humanização da sociedade.
Aliás, esta concepção de humanização pode ser usada por nós, os
cristãos, para falar com tôda a clareza e com certa exatidão do que
significa o cristianismo para o mundo, do objetivo que o cristão tem no
mundo, e, diria ainda mais, para falar do que é a essência do evangelho.
Porque, afinal de contas, o evangelho tem que ver com o fato de Deus
se tornar homem para restaurar a vida do homem à imagem de Deus.
E se lemos o Novo Testamento, lemos da obra de Cristo em termos da
criação do nôvo homem, de uma nova criatura, o reino de Deus como
uma nova ordem total de vida (SHAULL, 1964, p. 3).
:: 38 :: De Lutero a Otto

À luz do Reino de Deus, o processo de criação do novo homem era, para


Shaull, primeiramente político. Nessa perspectiva, a ação para mudar
as estruturas da sociedade era o primeiro passo para a humanização da
vida. Amor ao próximo, para ele, tinha que ver com política. Tratava-se
de assumir um lugar de luta. Lutar pela humanização era “lutar contra
as forças de desumanização na vida e na sociedade” (SHAULL, 1964, p.
310). Nesse sentido, além de redefinir a linguagem religiosa, dando novos
significados a termos antigos, Shaull (1964, p. 319) indicava a urgência
do envolvimento concreto, da constante conversação entre a situação
vivida e a tradição da teologia, o que necessariamente o levava a falar das
realidades da fé em termos seculares.
A perspectiva de Shaull comportava, portanto, um entendimento
escatológico da ação e da vida em sociedade. Tratava-se, afinal, de uma
ética pensada à luz da ideia de Reino de Deus. Os símbolos cristãos atuavam
assim em forma de antecipação, tornando presentes as esperanças, as
utopias, que fundavam o sentido da vida em comum. A política por si só
não produz sentido, não é capaz de penetrar no mistério da vida. Carece
de símbolos que a fundamentem. A criação de uma casa conjunta para os
humanos demanda uma estrutura simbólica consistente.
Rubem Alves, que foi aluno de Shaull e partia de um mesmo fundamento
teológico, assumindo, porém, um tom mais palatável ao público
secularizado, colocava a questão nos termos da relação entre imaginação
e criatividade. Assim, isso de que o “‘homem velho’ pereça a fim de que
surja um novo”, isso que tem de ver com um “novo nascimento”, está na
essência do ato criativo (ALVES, 1986, p. 78). Na percepção de Rubem
Alves, o que havia de ser superado era, nesse caminho, a antropologia e
a metafísica do realismo, ou seja, as ideias de que o sistema é a medida
de tudo (metafísica) e de que o homem é uma função da estrutura social
(antropologia). Analisando tal contexto, dizia ainda no começo dos anos
1970, em Tomorrow’s child:
Apenas uma coisa foi esquecida: que isto chamado realidade é uma
criação humana. É o homem o criador. O sistema social é tão somente
a criatura. Portanto é o homem, e não o sistema, a medida de todas as
coisas. Não é o homem que deve ser julgado tomando-se por base o
sistema. O sistema é que está sob julgamento humano. Por conseguinte,
a imaginação não pode ser declarada desequilibrada por não concordar
com os fatos da “realidade”. É a realidade que deve ser declarada louca
quando não concorda com as aspirações da imaginação. A moderna
:: 39 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

inversão daquela ordem que deveria ser a apropriada (inversão esta


que constitui a essência do realismo) é exatamente uma espécie de
amnésia quanto às origens do mundo humano. Ela ignora totalmente o
fato de que o mundo humano é o resultado de atos criativos. E não há ato
criativo sem imaginação. Como pode a criatura se rebelar contra o seu
criador? Não é esta a essência da idolatria? (ALVES, 1986, p. 83)
Nessa ótica, uma ciência humana que assuma contornos realistas, ou como
dissemos antes, cientificistas, parte de pressupostos não humanizadores,
porém apequenantes de seu potencial imaginativo e de sua humanidade.
À medida que a Ciência da Religião assume perspectivas apenas analítico-
descritivas, que se furtam às sínteses e ao trabalho hermenêutico criativo
e que não acolhem sua dimensão pedagógica, pode estar favorecendo um
processo de desumanização. A ciência não pode se tornar um fim em si
mesma, sob pena de idolatria. Quando o sistema se transforma em um fim,
“as necessidades humanas se transformam em meios” (ALVES, 1984b, p.
107). Ou seja, o homem deixa de ser um participante criativo para assumir
uma função no sistema.
Sem preocupar-se em estabelecer um fundamento para a Ciência da
Religião, Rubem Alves, em sua interpretação da religião, sublinha seu
potencial humanizador. Ou seja, ao instaurar a imaginação e a criatividade,
a religião abre as portas para o novo homem, para o renascimento. Como
isso acontece? Nas dinâmicas da linguagem simbólico-religiosa. Um
sacramento, dizia, é o “sinal visível de uma ausência”. Ou, ainda de outra
forma, “Deus mora na saudade, ali onde o amor e a ausência se assentam”
(ALVES, 1984a , p. 8, 19).
O sinal visível religioso, ato simbólico-expressivo humano, presença
da ausência, o corpo em desejo, indicam que “através da imaginação o
homem transcende a facticidade bruta da realidade que é imediatamente
dada e afirma que o que é não deveria ser, e que o que ainda não é deverá
ser” (ALVES, 1984b, p. 47). A religião, assim, corporifica o desajustamento
do homem ante a situação dada, material. Pede para que sejam satisfeitas
as aspirações do coração. É nesse sentido que a esperança bíblica do Reino
de Deus atua por sobre a imaginação e a criatividade, possibilitando o
nascimento de um novo ser humano. A ideia de religião como presença
de uma ausência é também, portanto, profundamente escatológica:
Nas linhas de Ernst Bloch, temos então de afirmar que onde quer que
exista a esperança, ali existe a religião, porque aí se revela a nostalgia
:: 40 :: De Lutero a Otto

pelo reino de Deus, o grande projeto utópico que a humanidade


não cessa de sonhar mesmo quando, de olhos abertos, ela não tenha
condições para ver (ALVES, 1984b, p. 82).

Em Rubem Alves não se trata, todavia, apenas de olhar para religião


desde fora e dela depreender todo este sistema teórico. Como já dissemos,
religião demanda participação; ela nos põe em relação. O próprio ato da
escrita comprometida de Richard Shaull e Rubem Alves instaura uma
compreensão humanista da religião e da vida. Trata-se de enfrentar
a reflexão sobre a situação existencial que representa a religião. Um
processo hermenêutico-criativo está aí em movimento. Por isso sempre
aprendemos muito com autores que assumem esse mesmo desafio.

Conclusão
Estudar religião, fazer Ciência da Religião, é pensar religião. E pensar
religião é pensar sobre a humanidade. Também sobre a própria
humanidade de quem pensa. O pesquisador da religião, interpelado
pelo símbolo religioso, para além da atividade analítica e descritiva – por
certo importante, como um primeiro momento – está também convidado
a uma experiência. Ulteriormente, essa dinâmica pode conduzir ao
aprofundamento e à expansão do gênio humano. Conhecimento,
razão, sabedoria, intuição, imaginação e criatividade são elementos
permanentemente ativos nesse movimento. Disso, espera-se que nos
tornemos melhores como seres humanos.
De Lutero a Otto, passando por Schleiermacher, e de lá a Tillich e
Eliade, a Shaull e a Rubem Alves, vai, assim, se erigindo um horizonte
de interpretação compreensiva da religião. Compreender, aqui, significa
envolver-se, acolher a situação existencial que se está interpretando, bem
como a urgência da questão do sentido para a humanidade. O legado da
Reforma e do protestantismo, por um lado, traz à Ciência da Religião uma
grande independência ante formas institucionais pertencentes ao passado
que insistem em barrar o que é novo, verdadeiro e urgente. Por outro,
aponta o caminho da interpretação criativa da religião como forma de
aventar novos horizontes de convivência humana.
:: 41 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Referências
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. Creio na ressurreição do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro:
CEDI, 1984a.
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BERGER, Peter. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 1985.
DIAS, Zwinglio M. O movimento ecumênico: história e significado.
Numen, Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, v. 1, n. 1, p. 127-163,
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Protestantismo:
em teoria, religião
Joe Marçal G. Santos
:: 44 :: De Lutero a Otto

Introdução
Parece consenso associar a tradição de pensamento da Reforma
Protestante ao espírito crítico à religião pelo qual a modernidade tem sido
caracterizada. O quincentenário da Reforma Protestante, comemorado
este ano, sob diferentes aspectos, evoca essa percepção, com Lutero
figurando “pai e precursor” – atributo em si mesmo ambíguo, pelo que
sugere de “mérito” para uns e “culpa” para outros.
Mas essa relação merece uma análise atenta: seja em função de uma
adequada compreensão de Lutero, sua obra e seu efetivo papel para
a formação da modernidade, seja para preservar uma compreensão
adequada também desta última. Além disso, tal análise repercute no
tema que aqui nos reúne: entre Martinho Lutero e Rudolf Otto há um
itinerário do qual emerge o Protestantismo, sua reivindicação da herança
teológica da Reforma e, ao mesmo tempo, seu papel no quadro histórico
da modernidade consolidada na Europa do século XVII ao XIX. É
deste cenário que surgem as bases das teorias da religião com as quais
lidamos em Ciência da Religião atualmente, seja na convergência ou na
divergência.14
O título acima – protestantismo, em teoria religião – evoca essas questões por
motivos ambíguos e correlacionados. Vale mencionar, como sintoma, no
clima de comemorações, a publicação quase concomitante de Comentários
a Romanos, de Karl Barth, e do texto programático de Paul Tillich, A ideia
de uma Teologia da Cultura, em 1919 – cada qual a seu modo marcado
pelo Das Heilige, de Otto, de 1917. A concomitância é sugestiva: são três
obras de referência do pensamento protestante, e todas protestam – cada
qual a seu modo – contra o liberalismo teológico do século XIX: Barth
reivindicando a radical distinção entre fé e religião; Tillich defendendo
a síntese entre ambas; e Otto requerendo que a dimensão irracional da
religião seja tomada também como objeto de pensamento.
No que segue, então, a minha intenção é explorar a função crítica inerente
ao protestantismo – o que para Tillich é o princípio protestante – como uma
qualidade criativa dessa face do Cristianismo, cujo aspecto moderno e
14 Martin Kahler, segundo Tillich, afirmara que “a ortodoxia dos séculos dezesseis e dezes-
sete era o alicerce em que repousavam os pilares da ponte de toda a teologia protestante
posterior” (TILLICH, 1986, p. 37).
:: 45 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

contemporâneo está relacionado com suas características mais marcantes:


a evocação de sua fonte reflexiva literária básica – a Bíblia – a partir de
uma renovada hermenêutica da relação entre Deus e ser humano que,
por sua vez, se desdobra na economia simbólica e na apropriação crítica
(porque sob protesto) da própria tradição cristã.

Aspectos modernos em Lutero:


uma teologia crítica à religião
A teologia de Lutero tem lugar singular, segundo Michael Allen Gillespie
(1999), no processo histórico-filosófico que define as bases do pensamento
político moderno, segundo as quais se dão as “origens teológicas da
modernidade”. Para o autor, a ruína do Escolasticismo – que representa
aqui a arquitetura do mundo medieval – se dá pelo Nominalismo, que
é fundamentalmente orquestrada pela “navalha de Occam”: o princípio
que põe abaixo o realismo transcendente dos universais e dá relevo à
singularidade das coisas, resultando em uma nova e desafiante visão de
mundo, tão ou menos marcado pelo princípio de ordem que pelo de caos.
A pedra que teria amolado o fio dessa navalha revela a “origem teológica”
que o autor quer evidenciar: trata-se da radical problematização nominalista
da noção de Deus (GILLESPIE, 1999, p. 5-6). Assim, todo o histórico que
segue, de Occam a Bacon, Descartes, Hobbes, Locke e Hume passam
por esse “buraco da agulha”: o princípio ordenador de onipotência e
liberdade divina, levado ao limite pelo nominalismo, dá à luz a um Deus
absolutamente imprevisível e, por princípio, indiferente ao ser humano e
à “ordem” em sua criação. Decorre desta visão uma crítica radical a toda
relação positiva e racionalmente assegurada entre Deus e ser humano (e
realidade), tal como a que era defendida pela Escolástica e hipostasiada
pela Igreja medieval. Resulta disso a redução tipicamente franciscana da via
de salvação, assentada menos na razão e mais na vontade: a imitação de Cristo.
Se o Humanismo foi uma primeira tentativa de responder à profunda
questão (e revolução) implicada em tal noção de Deus, a partir da idealização
de um “novo ser humano suficientemente seguro de si no caótico mundo
nominalista” (GILLESPIE, 1999, p. 14-15), a Reforma Luterana foi a
segunda tentativa mais decisiva. Esta se valeu do princípio de um “retorno
:: 46 :: De Lutero a Otto

às fontes”, mas em franca oposição ao retorno humanista à antiguidade


clássica. Lutero retorna às Escrituras (e a Agostinho), e com isso, a dinâmica
se inverte: a teologia abandona a especulação e surge, com Lutero, de uma
renovada pergunta acerca da relação entre Deus e ser humano.
Seguindo o raciocínio do autor, a superação humanista do Nominalismo
teria se valido da antropologia que este último inaugura, cuja ideia central
para a compreensão do ser humano e sua relação com Deus é a vontade,
não mais a razão (GILLESPIE, 1999, p. 11-12). A razão especulativa
tipicamente escolástica, no Nominalismo, torna-se alvo de suspeita e é
circunscrita à particularidade das coisas. A vontade torna-se instância
decisiva, fundamentada em uma estreita diferença ontológica entre
Deus e ser humano (GILLESPIE, 1999, p. 13-14): porque permanece uma
analogia entre vontade divina e humana – de onde certa “positividade”,
já que a salvação dependerá agora do agir humano “ajudado” pela
graça na imitação de Cristo. Dessa positividade vale-se o Humanismo,
para engendrar a noção de uma nova humanidade expressa no ideal de
indivíduo superior, heróico e virtuoso.
Mas a crítica ao Humanismo está presente na novidade que a Reforma traz
nesse processo e incide justamente na antropologia subjacente à teologia
de Lutero. Vale ressaltar que a análise de Gillespie foca nas origens
teológicas do pensamento político moderno. Seria até compreensível se
ele, enquanto filósofo político, ressaltasse motivos supostamente morais
e políticos para a Reforma – interpretando modernamente a crítica de
Lutero contra a corrupção da Igreja como uma crítica primariamente
moral e política, tipicamente iluminista. Contudo, a análise de Gillespie
concorda que a crítica luterana contra a prática de indulgências, a despeito
de suas consequências políticas, tem motivação antes de tudo teológica
(GILLESPIE, 1999, p. 16): ele põe em sua mira a positividade pressuposta
no mérito das obras da vontade, e tal crítica está assentada na mesma
polêmica contra a qual Lutero está às voltas naqueles dias de outubro de
1517: contra a Escolástica.
Vale lembrar que Lutero promove uma disputatio contra a Escolástica
semanas antes ao 31 outubro da publicação das 95 Teses contra a prática de
indulgências. Para tal disputa, Lutero redige 97 teses que evidenciam, logo de
saída, referências tanto à Bíblia quanto a Agostinho, em contraste com notas
:: 47 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

polêmicas à via moderna. O contraste se dá em torno do ponto central do debate,


exposto já nas primeiras teses e de forma sintética na quarta e sétima teses:
4 - Por isso, é verdade que o ser humano, sendo árvore má [em
referência a Mt. 7.17], não pode senão querer e fazer o mal; (...)
7 - Na verdade, sem a graça de Deus, a vontade suscita necessariamente
um ato desconforme e mau (OS, v.1, p. 15).
É mister, para Lutero, colocar a vontade humana sob uma diferença
negativa e insuficiente em relação à vontade divina, boa e justa: mas com
que intenção? Para Joachim Fischer, Lutero “percebeu que a teologia
estava acorrentada no cativeiro da escolástica, impossibilitada de articular
adequadamente a questão essencial da fé cristã, ou seja, graça e justificação”
(OS, v.1, p. 13), que se tornam categorias chave para a compreensão da
relação entre Deus e ser humano. Esta, para Lutero, contraria totalmente
à lógica de analogia, complementação e compensação entre Deus e ser
humano. Onde isso vai se revelar é no debate contra as indulgências,
cujo ponto fulcral é a teologia que subjaz o “esquema” da penitência, que
contradiz ao arrependimento em sentido neotestamentário, a methanoia –
conforme vemos em seu Sermão sobre a indulgência e a graça, de 1518:
Afirmo, entretanto, que não se pode provar, a partir da Escritura, que a
justiça divina deseja ou exige do pecador qualquer pena ou satisfação,
mas sim unicamente sua contrição ou conversão sincera e verdadeira,
com o propósito de, doravante, carregar a cruz de Cristo e praticar
as obras acima mencionadas (mesmo que não estejam prescritas por
ninguém) (OS, v.1, p. 32).

Em síntese, a vontade, tal como Lutero apreendera com seus professores


nominalistas e como vivera nos anos de convento, continua no foco de sua
antropologia, mas repousa sobre outra ontologia, marcadamente crítico-
negativa, de estranhamento entre vontade humana e divina. Por isso, a
exterioridade das obras não apenas deixa de ser decisiva, como passa a ser
obstáculo para o que efetivamente interessa, que é a autenticidade de uma
“vontade justa”, o “querer corretamente”: o coração humano arrependido.
Esta se torna ideia central de sua antropologia e assenta papel determinante
na dimensão subjetiva da fé, por sua negatividade (juízo) e seu caráter de
possibilidade (graça) mediante retorno e dependência de Deus.15
15 Em outro contexto, essa questão está muito presente no escrito de Lutero por ocasião da
:: 48 :: De Lutero a Otto

O tema da subjetividade
A inquietação de Lutero, sua angústia e suas lutas pessoais mesclando-se
a seus escritos teológicos são aspectos sintomáticos dentre todo interesse
biográfico que já lhe foi dedicado, seja acadêmico ou artístico.16 O mérito
da biografia de Lucien Febvre, Martim Lutero: um destino, publicada em
1928, é emblemático, ao ter destacado justamente o aspecto pessoal,
existencial e espiritual da trajetória do reformador. É o que evidenciam
as palavras finais do capítulo que apresenta o atormentado monge Lutero
ante a sua “descoberta”, em meados de 1512:
Seria então um sistema de conceitos teológicos ordenados de maneira
mais ou menos lógica que lhe traria o apaziguamento? Não, mas uma
certeza profunda a ancorar-se, a enraizar-se sempre mais forte em seu
coração. E só havia um homem que poderia legitimamente fornecer
essa certeza a Lutero: o próprio Lutero (FEBVRE, 2012, p. 68).

Há uma ressalva a ser feita ao que ganhou traços de um culto ao herói nessa
imagem trágica e romantizada do justo/pecador que vive pela fé – porque
também o objeto desta fé confundiu-se com a própria germanidade no
discurso teológico liberal do século XIX e XX. Oswald Bayer dá relevo a
essa questão na introdução de sua “atualização” da teologia de Lutero,
citando o comentário à epístola aos Gálatas, numa dentre famosas
declarações de Lutero: “Esta é a razão por que a nossa teologia é certa:
porque ela nos arranca de dentro de nós mesmos e nos coloca fora de nós
mesmos” (LUTERO apud BAYER, 2007, p. 6).17

grave doença de Frederico, o Sábio, eleitor da Saxônia e seu protetor, intitulado Catorze
Consolações para os que sofrem e estão onerados, de setembro de 1519. O tema do mal é
evidenciado, como fonte de sofrimento, sendo que “não pode haver na pessoa sofrimento
tão grande que seja o pior dos males que estão dentro dela. Os males que há dentro dela
são muito mais numerosos e maiores do que aqueles que ela sente. Porque se sentisse o
seu mal, sentiria o inferno, pois ela tem o inferno dentro si” (OS, v.2, p. 17).
16 Em 1871, quando o Kulturprotestantismus de Albrecht Ritschl ostentava sua repercussão no
contexto alemão, o poeta suíço Conrad Ferdinand Meyer dedica, no poema épico Os últimos
dias de Hutten, a seguinte imagem a Lutero: “O seu espírito é campo de batalha entre duas
épocas; não me admiro que ele veja demônios” (MEYER apud BAYER, 2007, p. 1).
17 Sob essa anotação, entende-se melhor aquela outra em que Lutero alude à experiência “da
torre”, quando da descoberta do evangelho durante a tradução da epístola aos Romanos,
como experiência que também se deveu a suas modestas meditações no banheiro...(FEB-
VRE, 2012, p. 327, nota 1).
:: 49 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Se a personalidade de Lutero não lhe era absolutamente de seu interesse


(BAYER, 2007, p. 6-7), não significa que seja possível compreender sua
teologia sem considerar a dimensão do sujeito implicado. É este, aliás, o
argumento que Bayer aponta quando esquadrinha a definição básica de
teologia dada por Lutero:
Nós estamos habituados a perguntar: “O que é teologia?” e pensamos
poder perguntar, desse modo, pela “coisa em si”. Lutero, contudo,
pergunta primeiro pelo teólogo, ou seja, pela personalidade, localização,
individualidade e ocasionalidade precisas da história de vida. (...) Se
quisermos ir fundo na questão “O que é um teólogo?”, “O que é uma
teóloga?”, teremos de transforma-la na seguinte pergunta: “Quem é
você?” (...) A fé dá o que pensar: não só para o teólogo profissional (...),
mas a cada uma e a cada um. “Quem é você?” Resposta: Sou aquele a
quem foi dito: “Eu sou o Senhor, teu Deus”. Eu sou aquele que deve
unicamente a essa palavra a sua criação (BAYER, 2007, p.13).

Bayer segue seu comentário identificando aqui uma “compreensão


luterana da constituição do sujeito”, e a coloca em oposição à compreensão
moderna cartesiana, que toma a subjetividade como “um fato dado”, um
“ponto de partida” desde o qual o sujeito gesta sua dúvida. Para Lutero,
segundo Bayer, “o sujeito se recebe de maneira sempre renovada a partir
de uma alocução dirigida a ele”, de modo que “o sujeito e sua liberdade
devem ser caracterizados como respostas e não, suponhamos, como
espontaneidade absoluta” (BAYER, 2007, p. 14).
Aqui, porém, uma segunda ressalva. A comparação de Bayer entre a
subjetividade supostamente inaugurada por Lutero e aquela pressuposta
por Descartes precisa considerar um elemento importante, cuja observação
faz Gillespie (1999, p. 19-20):
Embora o foco humanista sobre a individualidade auto-determinada
e a ideia de Deus de Lutero tenham desempenhado um papel
importante no desenvolvimento intelectual posterior, estes não podem
simplesmente ser reduzidos à noção de subjetividade e autonomia,
mesmo que estas noções, tal como as conhecemos, sejam inconcebíveis
:: 50 :: De Lutero a Otto

sem estes desenvolvimentos prévios. Em resposta ao desafio posto pelo


Deus nominalista, tanto o humanismo quanto a teologia da reforma
definiram uma nova imagem de Deus e do ser humano. Nenhum deles,
contudo, colocou seu foco na ordem ou na desordem da criação. Ao
passo que foi essa questão que Bacon, Galileu, Hobbes e Descartes
tomaram para si; e de suas investigações resulta a típica consciência
moderna como uma realidade distintivamente nova.

Assumindo essa ponderação, que relativiza consideravelmente a


relação de Lutero com a modernidade, quero destacar dois elementos
da antropologia teológica luterana que, assim me parece, nos são
significativos nesse debate: primeiro, o aspecto de estranhamento consigo
mesmo, expresso no tema do arrependimento, que assenta a autonomia
e a liberdade do sujeito sob uma premissa crítico-negativa; em segundo
lugar, a despeito de preparar a noção moderna de autonomia, como vimos
acima, o aspecto de gratuidade constitutivo da antropologia luterana, que
aponta a uma autonomia significativamente diferente daquela humanista
e iluminista, pois que assentada numa relação constitutiva e afirmativa do
sujeito com uma “palavra” e “instância” absoluta que lhe é exterior.
Desse modo, a despeito de traços modernos que possam ser atribuídos
à teologia de Lutero, aqui destacamos sua centralidade no ser humano.
Contudo, sem tomá-lo como grandeza ideal, e sim como indivíduo cuja
subjetividade não está dada e entregue a si mesma Antes, aquilo que o torna
ser o que é, é algo recebido e, portanto, aberto e processualmente construído.
A crítica luterana à religião, nesse sentido, é motivada por um cuidado e
simultaneamente uma suspeita fundamental: Quem eu sou e que tipo de ser
humano minha piedade gera? Que subjetividades são produzidas e reforçadas por
essa e aquela prática religiosa? Assim, a noção de arrependimento como uma
atitude interior combinada à noção de fé, esta como atitude receptiva a
uma impostação na qual o sujeito é afirmado apesar de si mesmo, são noções
que tanto convergem com uma perspectiva ética contemporânea, quanto
se mostram refratárias a uma generalizada e ingênua moralidade positiva
com qual se toma a face (vontade) religiosa da vida humana.
:: 51 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Conclusão: legado protestante


Vamos convergir agora ao problema sugerido inicialmente. Em traços
gerais, uma teologia da Reforma só surge após o evento Lutero, com a
decisiva contribuição de Melanchthon. Na Ortodoxia Protestante e sua
consolidação institucional, seja luterana ou reformada, no século XVII, o
legado da Reforma também se afirma como Protestantismo, a partir do
que se pluraliza mais e mais, em caminhos que as tendências críticas à
Ortodoxia – o Pietismo, o Iluminismo e o Romantismo – desenham na
Europa e a partir dela.
Se acima aludimos ao elemento crítico presente em Lutero (que submente
o critério subjetivo da vontade cativa ao critério objetivo da justificação
pela fé e da Palavra de Deus), aqui vale destacar a densidade teórica do
protestantismo como legado da sua elaboração escolástica no período
que segue ao século XVI.18 Uma leitura interessante é considerar como
tal retorno à escolástica ofereceu ao Protestantismo uma metafísica mais
adequada, que “baseava seu conceito universal de mundo num princípio
religioso: é Deus a realidade suprema (...) e também o fundamento e o alvo
de todas as outras realidades” (HÄGGLUND, 1989, p. 260). Isso permitiu
situar a teologia na modalidade de discurso que inaugura a modernidade,
orientando a teologia protestante a um princípio de “objetividade” e
“ordem”, mesmo que em franca tensão e oposição com a objetividade que
empreendiam os modernos (e sua respectiva subjetividade).
É mister ter em mente que a preocupação pela objetividade e a ordem na
Ortodoxia Protestante atende às condições do contexto, da passagem do
século XVI ao XVII numa Europa solapada por conflitos entre católicos e
protestantes, cujo ápice é tanto a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), quanto
a consignação da Paz de Westfália.19 Nessas condições, a Ortodoxia, como
reitera Tillich (2007, p. 273), “teve também importância política, uma vez que

18 O próprio Melanchthon, sob auspício de Lutero, reconciliaria a teologia da Reforma


com Aristóteles ao longo das edições de suas Loci communes rerum theologicarum, de
1521/1535/1543 (HÄGGLUND, 1986; TILLICH, 2007). Isso denota o quanto a polêmica de
Lutero contra a filosofia escolástica dava-se mais em razão do nominalismo e sua recepção
de Aristóteles do que contra o Estagirita como tal.
19 Esta, por sua vez, determinará a concepção de uma “ordem européia moderna em que a ‘razão
de Estado’ sobrepõe-se aos princípios religiosos medievais da soberania universal do Papado,
que haviam sido a base das grandes monarquias nacionais” (CARNEIRO, 2006, p. 164).
:: 52 :: De Lutero a Otto

era necessário definir o status da religião na atmosfera política do período


imediatamente depois da Reforma”, considerando que “todos os problemas
teológicos da época relacionavam-se com problemas legais”. Daí que
o elemento doutrinário tornou-se muito mais importante para a
ortodoxia do que para a Reforma, na qual o elemento espiritual sempre
teve mais valor do que as doutrinas fixas (TILLICH, 2007, p. 274).

Aqui encontramos os elementos fundamentais das teorias da religião


advindas desse contexto. Por um lado, a objetividade do sistema,
amparada numa reflexividade que já se vale, ao seu modo, de uma
impostação da realidade própria àquela que se tornaria normativamente
“moderna” – daí, por exemplo, o tema da natureza orientando e/
ou dialogando com a concepção de religião. Por outro lado, em tensão
opositiva e criativa, a instância subjetiva implicada nessa reflexividade:
embora tenha sido colocada em segundo plano ou mesmo negligenciada
pela Ortodoxia Protestante, essa instância tornou-se o principal vetor das
críticas à teologia protestante de acento objetivo, jurídico e totalizante,
encaminhando seu desenvolvimento para o que, no século XVIII e XIX,
ganha as feições do liberalismo teológico de Albert Ritschl, Adolf von
Harnack, Ernst Troelsch e especialmente Friederich Schleiermacher.
Numa palavra, é desse emaranhado crítico que nasce uma teoria moderna da
religião em perspectiva protestante.
O Pietismo, em primeira mão, protestou pela dimensão subjetiva ao
reivindicar a possibilidade única da teologia reginitorum, que Tillich traduz
em termos contemporâneos como uma teologia que necessariamente tinha
de ser “existencial” em oposição àquela que não implica na “experiência
existencial” do sujeito – posição esta defendida pela Ortodoxia, como
prevenção contra o risco que a subjetivação da religião implicava num
contexto tão turbulento. Não se tratava, contudo, no caso do Pietismo,
de puro e generalizado subjetivismo espiritualista: é digno de nota que
a proposta de Philip J. Spener em Pia desideria, tomando a teologia, na
esteira de Lutero, como “modo de vida”, era muito mais consequente do
ponto de vista ético-político do que a crítica liberal compreendera. E mais
que isso, o elemento subjetivo do Pietismo mostrou-se mais pertinente
na medida em que correspondia às tendências da época e se mantinha
crítico “do estrito objetivismo e do autoritarismo dos séculos XVI e XVII,
favorecendo o princípio de autonomia surgido nos séculos XVIII e XIX”
:: 53 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

(TILLICH, 2007, p. 281). E a isso soma-se o Iluminismo que, com sua base
mística associando a razão a um princípio de iluminação interior (que
pressupunha um significativo investimento axiomático na subjetividade),
alinhava-se à crítica contra a Ortodoxia teológica em favor de sua luta pela
racionalização da moral e da política, bem como de sua defesa nacionalista
contra o império, cuja legitimação não deixava de se valer da religião.
O Romantismo, por sua vez, se torna decisivo nesse cenário: considerando
o itinerário de Lutero a Otto, teve consequências diretas sobre a teorização
teológico-filosófica da religião empreendida pela tradição protestante. Em
síntese, a crítica romântica à tradição teológica objetivante, introduz uma
fissura intransponível entre sujeito e objeto. Terry Eagleaton o define,
lembrando que, em oposição aos idealistas, para românticos
O absoluto não deve ser apreendido discursivamente, mas
intuitivamente, esteticamente ou no próprio ato da autorreflexão (...)
o Absoluto, como o self, só pode ser apreendido negativamente, numa
espécie de incessante nostalgia (EAGLEATON, 2016, l. 1612-15).
E sintetiza: “o romantismo é uma espécie de teologia negativa, perdida
em algum ponto entre uma fé assegurada, por um lado, e a morte de
Deus, por outro” (EAGLEATON, 2016, l. 1619).
Com essa percepção, Eagleaton, remete ao impasse nostálgico sugerido
em nosso título: protestantismo, em teoria religião – com o qual quero apontar
ao que, assim me parece, é comum à teorização da religião que evocamos
no quadro histórico da Reforma e do Protestantismo. E para onde aponta
essa teoria? A uma ontologia crítica que Tillich definiu nos termos de um
princípio protestante, cujo elemento fundamental recupera uma noção de
Deus marcadamente luterana, especialmente em função do paradoxo nele
implicado entre Deus Absconditus e Deus Revelatus, em correlação com uma
compreensão crítico-negativa da subjetividade humana. Daí que, para
Tillich, a religião não é boa nem má, mas ambígua e, se por vocação tem
a função de orientar à incondicionalidade de sentido, ao mesmo tempo, é
vocacionada à idolatria. Numa palavra, identifico nesses elementos uma
entre as mais importantes contribuições que a perspectiva protestante
subjacente e presente na Ciência da Religião pode dar atualmente ao
quadro mais amplo das Ciências Humanas.
:: 54 :: De Lutero a Otto

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O ideal humanista como base
para compreensão da Ciência
da Religião e reflexões
relacionadas à obra de Filipe
Melanchthon
Eduardo Gross
:: 56 :: De Lutero a Otto

Introdução
A relação de afinidade e contraponto entre o movimento da Reforma
e o humanismo renascentista tem sido debatida constantemente. É
inegável, entretanto, que o ideal de formação humana que os humanistas
propuseram foi um elemento importante no desenvolvimento cultural,
por exemplo, a partir das reformas pedagógicas e universitárias que se
seguiram à Reforma. Particularmente o papel de Filipe Melanchthon
merece menção nesse sentido. Assume-se aqui a proposta de Mircea
Eliade, para quem o estudo da religião deve ser compreendido dentro dos
moldes da formação humanista; assume-se também a afirmação de Hans-
Georg Gadamer, para quem as ciências do espírito, assim como definidas
por Wilhelm Dilthey, não se fundamentam em um método próprio,
mas pressupõem a tradição dos estudos humanistas. Nesse sentido,
alude-se à importância da contribuição da tradição da Reforma para o
desenvolvimento desta longa tradição humanista de que os estudos da
religião fazem parte, ao mesmo tempo que se mostra a possibilidade de um
estudo crítico desta tradição a partir de uma perspectiva não cientificista
e nem fragmentadora, exemplificada na abordagem de Ernst Troeltsch.

A religião estudada a partir


do ideal humanista
Desde a criação, na Universidade Federal de Juiz de Fora, do curso de
Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas, muito ativamente
apoiada pelo departamento de Ciência da Religião, despertou a
necessidade de se refletir sobre a integração do estudo da religião no
âmbito das humanidades. Isso não só como uma divisão particular.
Como as unidades acadêmicas na universidade estão divididas em
departamentos, era natural que antes de existir um curso interdisciplinar
pouco se colocasse a questão sobre o papel do estudo da religião no
âmbito das ciências humanas. Agora, sendo a própria nomenclatura de
ciências humanas uma herança da visão positivista, o engajamento ativo e
dedicado em um tal curso exigia pensar uma alternativa que fosse além
de uma participação meramente pragmática da Ciência da Religião nas
ciências humanas.
:: 57 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Uma inspiração para esta reflexão é o período do humanismo renascentista.


Trata-se de uma época sui-generis na história ocidental. A busca por
transcender as limitações do passado imediato levaram os expoentes
da alta cultura de então a buscar idealmente num passado remoto –
identificado com a época clássica da Antiguidade – as fontes para o que
seria a formação ideal da pessoa humana. Este humanismo renascentista
ainda não sofria da especialização em disciplinas estanques. Na verdade,
ainda não apresentava nem uma divisão entre ciências humanas e
ciências ditas exatas – nomenclatura que, por contraste, já implica que as
humanas sejam inexatas, no que o viés positivista dessa perspectiva fica
bem evidente, apesar de muitas vezes isso passar desapercebido em nosso
contexto. O ideal de formação humana renascentista é, pois, um ideal
que não fragmenta o ser humano a partir de perspectivas disciplinares.
As disciplinas do conhecimento existem, mas são elas em conjunto que
possibilitam uma consciência humana integral. É nesse sentido que o
humanista do Renascimento filosofa, cultiva o gosto e o exercício das artes,
pesquisa a natureza, busca o aprimoramento moral e o desenvolvimento
espiritual. É o período da formação do ideal de universidade.
Evidentemente não se pode ignorar os limites daquele ideal.
Houve idealização extrema da Antiguidade clássica; houve falta
de reconhecimento da importância que o lento desenvolvimento
cultural ocorrido no que depois ficou conhecido como Idade Média
teve para o próprio Renascimento; houve sínteses apressadas entre
tradições especulativas e esotéricas de vários tipos; houve carência de
sistematizações formais cuidadosas. Além disso, também não se pode
desconsiderar as impossibilidades práticas para uma reedição dos ideais
renascentistas: a especialização do conhecimento é hoje um pressuposto
inevitável; a aplicação técnica é uma necessidade que só tende a crescer; o
saber difuso tende ao diletantismo.
Mesmo assim, a partir de nosso mundo atual, confusamente pós-moderno
como chamam alguns, é fato que se pode aprender muito da época da
confusão criativa que foi a do humanismo renascentista. Ainda mais
do que isto, quando simplesmente se desiste completamente daquele
ideal de formação integral da pessoa humana, quando não se mantém
esse ideal minimamente como ideal, perde-se algo de essencial. Aqui é
deliberado o uso desse vocábulo, essencial, que às vezes é tratado como
palavrão nos nossos dias. Caso não se pense o ser humano como uma
:: 58 :: De Lutero a Otto

integralidade, perde-se aquilo que o ser humano é. É verdade que o ser


humano não é uma integralidade pronta. Ele se constrói. Mas se ele for, em
princípio, encarado simplesmente como um ajuntamento de perspectivas,
a perseguição daquele ideal de integralidade perde a sua motivação.
Ninguém é uma pessoa pronta, e ninguém nunca estará pronto. Mas
aquele ideal de que o verdadeiro ser humano é o que reflete, o que se
aprimora moralmente, o que exercita o seu gosto artístico, o que pesquisa
os mistérios da natureza e desenvolve maravilhas tecnológicas a partir
dela, o que desenvolve o seu espírito – esse ideal não deve ser perdido
pelo assumir da nossa fragmentação prática como algo definitivo.
A perda do ideal humanista, por sua vez, acarreta uma autodestruição nas
ciências humanas. A falta de exatidão com que elas são definidas a partir
de fora se expressa em uma luta renhida pela demonstração da correção
das opções metodológicas particulares de cada disciplina e, ainda mais
duramente, pelas opções das respectivas escolas, tendências ou outras
subdivisões em que cada disciplina se divide. O desenvolvimento das muitas
ciências humanas é necessário, mas a absolutização dos particularismos é
suicida, pois leva à perda de finalidade das humanidades. O estudo das
humanidades não pode ser meramente prático. Este é um estudo que visa
formar aquilo que o ser humano é, a partir de um horizonte ideal, o ideal
da integralidade que ele deve ser.
Esta perspectiva permite compreender o estudo da religião no âmbito das
humanidades. O conhecimento crítico sobre a religião é essencial para a
compreensão do que o ser humano é. No mínimo porque na religião tem-
se um âmbito em que o espírito humano se expressa de modo manifesto
e variado. Não que na religião necessariamente se expresse exclusivamente
o espírito humano – afirmar isso seria assumir como dado uma ontologia
naturalista; mas, necessariamente o espírito humano aí se manifesta. E o
estudo da religião é paradigmático no que se refere ao ideal de uma não
fragmentação do conhecimento. Sendo expressão do humano, a religião
exige que se aplique para sua compreensão não simplesmente métodos
particulares. Cada método e seu rigor específico será necessário, mas
ainda não se compreenderá a religião, assim como não se compreende
o humano, simplesmente com uma soma de perspectivas. É por isso que
só uma abordagem humanista ideal permite compreender a religião. Ela
permite visualizar na religião aquilo que o ser humano é, o que não é, o
que quer ser e o que deve ser.
:: 59 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

A situação da Ciência da Religião


na era da falta de importância das
humanidades – um contraponto aos
ideais humanistas herdados
do Renascimento
O debate sobre a natureza, a finalidade, a existência e o exercício prático
da Ciência da Religião está agora na ordem do dia. Talvez sempre tenha
estado, desde que esta vertente de pesquisa surgiu. O próprio nome
desta disciplina e desta área de pesquisa, por si só, já causa estranheza
ao ouvido da pessoa dotada de senso comum: a Ciência da Religião não
parece poder ser algo muito científico (para uma argumentação filosófica
nesse sentido, cf. SIQUEIRA, 2008, p. 228-234). Evidentemente, mostra-se
aqui de modo imediato a necessidade de se superar compreensões tidas
como mais ou menos assentadas, tanto de ciência quanto de religião. E aí
o debate inicia, remando contra a corrente do senso comum de cientistas e
de religiosos. Isso é tão inusitado que não é raro ver cientistas da religião
assumindo vocabulário dito pós-moderno e decretando a não existência
de Ciência da Religião. Se não assumem isso explicitamente, muitas vezes
encaminham seus argumentos exatamente na direção pela qual se deve
chegar a tal conclusão.
Um autor que pode aqui ser trazido como exemplo nesse sentido é Russel
McCutcheon. Ele é trazido aqui porque é um conhecedor profundo
da matéria e bom argumentador, é alguém que é coerente – leva até às
últimas consequências a perspectiva da fragmentação crítica da pesquisa
sobre religião. Em sua representação da história da disciplina, ele visa
demonstrar que o período eliadiano da mesma foi (ou já deveria ter sido)
superado. McCutcheon é um autor cativante, possui uma retórica
demolidora e consegue impressionar bem com seu conhecimento de
detalhes e capacidade de relacioná-los com suas teses. Mas o mais
importante, no que concerne ao presente texto, é sua crítica a quatro pontos
que ele acentua como pretensões dos cientistas da religião eliadianos já
superados: a) a defesa da autonomia que representa o dado do estudioso da
religião em relação à dimensão sócio-política (para mim uma generalização
:: 60 :: De Lutero a Otto

extremamente imprecisa); b) a afirmação de que são necessários métodos


compreensivos, em detrimento dos explicativos no estudo da religião
(eu: evidente reducionismo deste autor, mas é o ponto fundamental
para a reflexão que seguirá abaixo); c) a pretensão de que são necessárias
instituições autônomas para desenvolver tais estudos; d) a reivindicação
de que o estudioso da religião tem um privilégio para atuar na esfera sócio-
cultural (para mim, uma tremenda injustiça diante da falta prática de poder,
inclusive nas instituições acadêmicas, dos estudiosos da religião em relação
aos demais cientistas) (McCUTCHEON, 2003, p. 54-55). Como adiantado,
se o estudo da religião não tiver o mínimo de autonomia em relação às
teses que reduzem a religião à dimensão histórica (e sócio-política), se a
ênfase estiver em métodos explicativos, se não são necessárias instituições
autônomas e, agora minimizando bem aquilo que McCutcheon afirma
que seria a reivindicação dos cientistas da religião, se estes estudiosos não
têm um espaço próprio para atuar na esfera sócio-cultural, então não é
só a “antiga e superada ciência da religião eliadiana” que se deixa para
trás, mas de fato se destrói efetivamente a base para uma valorização do
estudo acadêmico da religião. McCutcheon combate, paradoxalmente, o
fato de que a Ciência da Religião é uma disciplina construída a partir destes
quatro pressupostos – ele que personifica a crítica genealógica da Ciência
da Religião, parece até não reconhecer que todas disciplinas acadêmicas
são construções histórico-culturais. É a partir daí que a sua proposta de
um estudo naturalista da religião (McCUTCHEON, 2003, p. 57-58) se
contraponha àquilo que no momento se tornou lugar comum entre muitos
cientistas da religião considerados “críticos”: essencialismo, conceitos
como “fé” e “experiência religiosa”, mistificações e binarismos – como
entre “sagrado” e “profano” (McCUTCHEON, 2003, p. 55-57).
Esta problematização do lugar da Ciência da Religião no âmbito acadêmico,
entretanto, não é monopólio desta disciplina particular. O que ela faz é
deixar transparecer um desconforto muito mais amplo entre a noção de
ciência e a especificidade dos estudos que se fazem nas humanidades em
geral. Ocorre apenas uma radicalização deste desconforto, à medida que o
senso comum do que seja ciência é agredido mais frontalmente pelo nome
assumido por esta disciplina. Se as teses demolidoras de McCutcheon
forem aplicadas a outros âmbitos dos estudos humanistas, como a crítica
literária, o estudo da música, da história ou do direito, por exemplo, a
:: 61 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

consequência é a mesma. Todas estas não serão áreas científicas. Aqui


se poderia argumentar que o uso do termo ciência em inglês é distinto
do uso em português. Mas isso não importa aqui, uma vez que ele está
justamente criticando a disciplina dos Estudos de Religião, em inglês. Por
isso, a perspectiva fundamental que é adotada aqui é de que, apesar de
alguns exageros retóricos e analíticos feitos por McCutcheon, há de fato
em sua posição um elemento muito correto: a de que a compreensão da
disciplina da Ciência da Religião em termos estritamente naturalistas e
o privilégio das metodologias explicativas em relação às compreensivas
efetivamente levam à destruição da Ciência da Religião – assim como das
humanidades em geral.
Foi na virada do século XIX para o século XX que a discussão sobre a
peculiaridade das humanidades se estabeleceu. O século XIX tinha visto
o ponto alto do desenvolvimento da metodologia científica. Mais do que
isso, foi ali que se chegou à síntese ótima entre a ciência e a tecnologia.
Quando se olha para trás no tempo, ciência e tecnologia nunca tinham
estado em um tal grau de simbiose. Foi com um merecido orgulho que o
saber ocidental se inflamou com esta conquista inusitada. Mas, como todo
orgulho, também este manifestava o perigo da arrogância. A denúncia
desta arrogância ocorreu em diversos campos, mas aqui interessa aquela
das mentes que perceberam que uma unilateralidade na definição do que
seja ciência poria a perder o acúmulo de um tipo de saber que é igualmente
fundamental para a vida, para além do conhecimento tecnológico: aquele
das humanidades. Merecem destaque nessa percepção Wilhelm Dilthey
e Edmund Husserl. O primeiro tentou estabelecer as bases para uma
fundamentação das ciências humanas, pretendendo que a hermenêutica,
o saber compreensivo, fornecesse tal fundamentação. Husserl, por outro
lado, desenvolveu os princípios do método fenomenológico, que para
ele não se restringiria às ciências humanas. Para Husserl, noções como
intuição eidética e vivência não se limitavam às humanidades, mas
descreviam um tipo de empirismo superior que levaria adiante das
restrições que a compreensão positivista de ciência acarretava. O fato é
que, apesar da intenção expressa de Husserl, o método fenomenológico
não conseguiu superar o círculo das ciências humanas.
Hans-Georg Gadamer oferece um diagnóstico muito significativo a respeito
das razões para Dilthey não ter conseguido estabelecer a cientificidade
:: 62 :: De Lutero a Otto

das Ciências Humanas a partir da hermenêutica. Talvez a reflexão de


Gadamer seja oportuna também para, por analogia, se entender por que
a fenomenologia de Husserl não chegou a ser aceita como um método
universalizável para todos os âmbitos das ciências.
Pode até ser que Dilthey tenha batalhado muito a favor da independência
teorético-cognitiva das ciências do espírito – o que se denomina
método na ciência moderna é algo único e o mesmo por toda parte e
só especialmente nas ciências da natureza cunha-se como modelar.
Não existe nenhum método específico para as ciências do espírito. Mas
certamente pode-se indagar, como Helmholtz, quanto significa aqui o
método, e se as outras condições, sob as quais se encontram as ciências
do espírito, não serão, para sua forma de trabalhar, quem sabe muito
mais importantes do que a lógica indutiva. [... Mas em que] consiste
um tal tato? Como podemos adquiri-lo? Será que, ao cabo, o que há de
científico nas ciências do espírito depende mais do tato do que de sua
metodologia? (GADAMER, 1999 p. 45)20.

A partir disso, Gadamer passa a enumerar alguns conceitos-guia da tradição


humanista, que ele afirma serem a base efetiva para o desenvolvimento
das ciências humanas: As noções de “formação”, de “senso comum”, de
“juízo” e de “gosto” (GADAMER, 1999, p. 47-92). Conjugue-se com isso
a noção geral que Gadamer apresenta nesta sua obra, de que a verdade
não se encontra pela submissão a um método, mas pelo exame atento de
uma tradição, e assim torna-se possível perceber em que o diagnóstico
de Gadamer implica. Para ele, as tentativas de se estabelecer princípios
metodológicos que servirão de base para as ciências humanas tendem ao
fracasso porque a própria noção de método se contrapõe à tarefa mais
fundamental deste âmbito do saber, que é basicamente compreensivo. É
por isso que ele recorre àquelas quatro noções que encontra na tradição
humanista como modos de se buscar a verdade que esta tradição quis
resguardar. A formação da pessoa humana em sua integralidade como
objetivo, o que inclui não só o pensamento abstrato, mas também a
capacidade de responsabilidade ética e a vivência espiritual. O senso comum
que reconhece a presença da razão não só em conhecimentos teóricos, mas
no âmbito geral da vida. O juízo enquanto necessidade de um saber que
significa sempre um risco prático na sua aplicação, sem certezas teóricas
20 Para a fonte de Hermann Helmholtz, cf. GADAMER, 1999, p. 41, nota 3.
:: 63 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

absolutas. A dimensão do gosto que perpassa a apreciação não só da arte,


mas de tudo o que diz respeito à sensibilidade e não pode, portanto, ser
desconsiderado enquanto uma dimensão do conhecimento.
Talvez o acento forte que Gadamer colocou na busca da verdade se torne
mais adequado com a correção proposta por Ricoeur, ao introduzir uma
dimensão explicativa no arco hermenêutico. Isso possibilita que o tipo de
juízo crítico explicativo, que é um patrimônio também das humanidades,
não deixe de se fazer presente neste âmbito particular das ciências
(RICOEUR, 1986, p. 365). Entretanto, se as ciências humanas não atentam
para a sua tarefa eminentemente compreensiva, se elas não resguardam a
busca da verdade em meio às lacunas em que esta se manifesta na história
traditiva, elas simplesmente se destroem por auto-corrosão.
Isso vale também (talvez principalmente!) para a Ciência da Religião.
Evidentemente que isso não significa abordagens acríticas. Não são
caricaturas, no sentido de que a busca da verdade numa tradição seria
sempre algo simplesmente conservador – conforme a crítica de Habermas
a Gadamer no final da década de 1960, e que encontra uma analogia no
que McCutcheon faz em relação a Eliade quando relembra o passado
fascista deste último –, não são essas caricaturas que devem nos desviar
do que está efetivamente em questão. Por mais elementos explicativos,
críticos, suspeitas (na linguagem de Ricoeur) que inserimos na Ciência
da Religião, se esta não preservar como característica fundamental a sua
dimensão compreensiva, se esta disciplina não afirmar por princípio
(essencialmente!) que na religião se encontra sentido e verdade, esta
disciplina de fato não terá razão de existir. Porque não é uma disciplina útil,
aplicável, instrumental, como na verdade não o são, em última instância,
as humanidades em geral. Em suma, é preciso partir do reconhecimento
de que o domínio unilateral da noção instrumental (tecnológica) do saber
é a razão da presente crise das ciências humanas e, por extensão, mas
como um exemplo privilegiado, dos dilemas da Ciência da Religião.
A perspectiva de uma retomada do ideal do humanismo renascentista leva
a buscar conhecer um pouco melhor o pensamento de Filipe Melanchthon.
No caso específico do presente texto, trata-se de apontar a aproximação
que Ernst Troeltsch faz do desenvolvimento do pensamento deste autor
como um exemplo de contribuição de um exercício compreensivo no
:: 64 :: De Lutero a Otto

estudo da religião, no âmbito da tradição protestante. O fato de que


Troeltsch é ele mesmo herdeiro do protestantismo, particularmente
de sua faceta humanista, e aborda o desdobramento de concepções
fundamentais de Melanchthon, visa mostrar como no seu caso se encontra
uma abordagem compreensiva da própria tradição que de maneira
nenhuma é simplesmente apologética ou acrítica. Ao mesmo tempo, com
este exemplo, se mostra como o trabalho crítico de um teólogo pode ser
extremamente valioso para o estudo de um tema de Ciência da Religião.

Filipe Melanchthon
Entretanto, antes de tudo é necessário fazer uma apresentação de
Melanchthon e da sua importância histórica. Isso porque Melanchthon é
praticamente um desconhecido no Brasil, até mesmo no âmbito da tradição
luterana, da qual ele é um dos principais promotores (para o que segue, cf.
SCHEIBLE, 2013; MELANCHTHON, 1965, p. vii-xxiii; SCHÜLER, 1997;
ALBRECHT, 2013). Muitas vezes ele é representado meramente como
um ajudante de Lutero. Melanchthon nasceu como Filipe Schwarzerdt
em fevereiro de 1497. Após ficar órfão, teve a educação propiciada pelo
renomado humanista João Reuchlin, importante conhecedor do grego e do
hebraico, que também foi responsável pela adoção da tradução grega do
nome que significa “terra preta”. Melanchthon concluiu o Bacharelado em
Artes em 1511 em Heidelberg, e tornou se mestre em 1514 em Tübingen,
período em que se ocupou das diversas disciplinas que compunham a
formação na época, mas associando isso a estudos profundos de latim,
grego e hebraico, e desenvolvendo leituras dos principais clássicos da
Antiguidade. Em 1518 assumiu a cátedra de grego na Universidade
de Wittenberg, onde também se formou em teologia, em 1519. Na sua
carreira acadêmica, lecionou e publicou obras em diversos ramos do
conhecimento, como línguas (uma gramática latina e uma grega, por
exemplo), literatura (comentários e edições de clássicos da Antiguidade),
lógica (principalmente comentários a Aristóteles), ética (comentários a
Aristóteles e Cícero), teologia (destacando-se inúmeras edições dos Loci
Theologici, comentários bíblicos, documentos confessionais, escritos de
controvérsia, manuais), educação, além de astronomia e astrologia. Foi
responsável por reformas escolares e universitárias em territórios que
:: 65 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

aderiram à Reforma Protestante. Seu papel na constituição do sistema


escolar público na Alemanha motivou a atribuição a ele do título praeceptor
germaniae. Era uma das principais lideranças no movimento da Reforma,
tendo redigido importantes textos que balizaram a confessionalidade
luterana, destacando-se a Confissão de Augsburgo em 1530. Sua habilidade
diplomática lhe possibilitou ser um dos principais interlocutores nos mais
variados debates entre as inúmeras tendências que existiam em meio aos
grupos reformistas naquele período conturbado, assim como entre estes
e os representantes do Catolicismo Romano. Com o desenvolvimento
da inevitabilidade da divisão do Cristianismo ocidental, tornou-se uma
referência na estruturação das igrejas luteranas.
Entre a Reforma e o Humanismo renascentista, entretanto, não há uma
confluência, até porque há tendências bem distintas internas aos reformistas
e também aos humanistas. Além disso, há uma explicitação bastante forte de
críticas ao ideal irênico dos humanistas e à sua idealização da capacidade da
razão humana por parte dos partidários da Reforma. O famoso debate entre
Lutero e Erasmo de Roterdã é paradigmático em relação a isso. Por outro
lado, seria também impossível compreender o movimento da Reforma à
parte do Humanismo renascentista. O Renascimento em geral expressava
uma ânsia generalizada por uma transformação tanto da vivência
espiritual quanto das estruturas eclesiásticas; nesse sentido, surgia um
emaranhado de perspectivas, em parte concorrentes e em parte sincréticas,
de ideias esotéricas, neoplatônicas, místicas e naturalistas, por exemplo. O
desenvolvimento dos estudos clássicos, por outro lado, possibilitou uma
redescoberta de textos, manuscritos e originais da tradição cristã. O ideal
humanista renascentista, da volta às fontes originais, foi apropriado pela
Reforma na afirmação da primazia da Bíblia em relação à tradição teológica
e ao magistério eclesiástico. A disseminação do conhecimento das línguas
antigas também promoveu a renovação da interpretação bíblica, assim
como possibilitou a tradução da Bíblia às línguas vernáculas – o que foi
especialmente significativo no âmbito alemão.
A pessoa de Melanchthon é particularmente expressiva desta relação
tensa e ambígua entre o Humanismo e a Reforma. Em primeiro lugar,
porque ele participa existencialmente das duas coisas. Foi formado na
tradição humanista desde a infância, e simultaneamente é um expoente
do movimento da Reforma. Consta que quando se aproximou de Lutero,
:: 66 :: De Lutero a Otto

Reuchlin cortou relações com ele; mas, por outro lado, Melanchthon
manteve a correspondência com Erasmo, entre outras coisas tentando
alguma mediação entre este e Lutero. Desenvolveu com os demais adeptos
da Reforma uma teologia que promulga a primazia irrenunciável das
Escrituras em relação ao pensamento filosófico e à tradição escolástica,
mas simultaneamente foi o formulador de uma sistematização teológica
que, por um lado, possuía antecedentes na tradição escolástica e em certa
apropriação de Aristóteles e, por outro lado, com sua elaboração teórica
da relação entre lei e evangelho, abriu espaço para o domínio que a re-
apropriação de Aristóteles exerceu no período em que se desenvolveu a
ortodoxia protestante.
Em segundo lugar, a posição que Melanchthon ocupa na história do
luteranismo é igualmente emblemática da ambiguidade de sua situação
existencial. Por um lado, Melanchthon é um dos principais redatores
de escritos confessionais fundamentais, que vão determinar o que será
considerado o luteranismo ortodoxo. Por outro lado, desde a sua época
até hoje ele é censurado por muitos por se afastar de Lutero, suavizar a
radicalidade da mensagem reformatória e ser excessivamente tolerante
com os antagonistas21. Como o próprio Melanchthon modificou em alguns
pontos a redação original da Confissão de Augsburgo, ele simultaneamente
foi quem estabeleceu uma das principais balizas da confessionalidade
luterana e é visto por muitos como um de seus primeiros hereges. Também,
por seu constante diálogo com representantes do que veio a ser a tradição
calvinista e mesmo com teólogos católicos, há quem queira nele enxergar
um tipo de prenúncio do ecumenismo, apesar de ser um dos principais
organizadores da igreja luterana enquanto instituição própria.

Loci Theologici
Os Loci Theologici de Melanchthon possuem uma longa história editorial.
Em função, primeiro, de seu sucesso e, depois, das necessidades constantes
de aprimoramentos em função de novas questões que foram se tornando
importantes no contexto da Reforma, só a história das reedições desta
obra já daria um objeto de estudo imenso. A primeira edição de 1521 já

21 Confirir, por exemplo, HEINRICH, 2003; uma narrativa com deliciosos tons irônicos sobre
esta situação se encontra em SCHÜLER, 1997.
:: 67 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

é um aprofundamento de um comentário à carta de Paulo aos Romanos


que Melanchthon estava fazendo em uma disciplina, e que foi publicado
sem o consentimento do autor. Como o próprio Melanchthon afirma na
dedicatória que introduz o texto, lhe pareceu melhor aprimorar aquele
esboço e publicar uma versão autorizada, já que não era mais possível
deter a circulação do que anteriormente tinha sido impresso. Ou seja,
mesmo esta primeira edição já tem uma pré-edição pirata. A última edição
publicada em vida de Melanchthon é de 1559. Tornou-se praticamente
consensual a divisão em três épocas (aetates) que Georg Theodor Strobel,
em 1776, propôs das edições dos Loci, sendo que cada uma delas
representaria uma certa unidade de conteúdo mais homogênea. A edição
das obras de Melanchthon feita por Carl Gottlieb Bretschneider e Heinrich
Ernst Bindseil em 1854 (p. 59-72; 241-242; 591-594), relaciona para a
primeira época (1521-1525) três edições e quatorze reimpressões; para a
segunda época (1535-1541) sete edições e sete reimpressões; para a terceira
época (1542-1559) dezoito edições ainda em vida do autor com dezesseis
reimpressões (sendo que ao menos dez destas reimpressões foram feitas
após sua morte). As edições originais latinas das três épocas elencadas
pelos editores do século XIX totalizam vinte e oito edições e trinta e sete
reimpressões. Além disso, foram publicadas várias traduções dos originais
latinos para o alemão, destacando-se a de Jorge Espalatino na primeira
época, a de Justus Jonas na segunda época e a do próprio Melanchthon
na terceira época. Quanto às traduções para o alemão, estas não refletem
exatamente uma edição latina específica, pois como os tradutores eram
colaboradores próximos em contato direto com o autor, eram utilizados
textos que reproduziam a formulação textual daquele momento particular
(MELANCHTHON, 1965, p. xxiii-xxiv). Cabe mencionar ainda, dentre
várias traduções para outras línguas, a tradução para o francês – que
alguns atribuem a Calvino, que em todo caso escreveu um prólogo para
ela. Estes elementos são apresentados aqui no sentido de oferecer um
quadro geral da complexidade que implica um trabalho minucioso do
estudo do desenvolvimento do pensamento de Melanchthon. Ao mesmo
tempo, só este panorama já demonstra a importância da obra em questão
para a disseminação do pensamento de Melanchthon e da Reforma em
geral. Além disso, também se verifica aí a importância que a obra tem na
vida do seu autor: a primeira edição é publicada quando ele tem 24 anos,
a última em vida quando ele está com 62 anos, um ano antes de falecer.
:: 68 :: De Lutero a Otto

Ao lado de todas as outras atividades, também de publicação, trata-se de


uma vida reformulando um texto. É assim que, ao final, a obra tem quatro
vezes o tamanho da publicação da primeira edição.
Na edição dos Loci Theologici de 1521 se expressa primordialmente o
polo anti-humanista de Melanchthon. Trata-se da primeira versão do
escrito, elaborada num momento particularmente denso, complexo e
exaltado. O jovem professor universitário de 24 anos está nesse momento
profundamente influenciado por Lutero. Este último havia, no ano anterior,
escrito obras particularmente expressivas do período mais revolucionário
de sua atividade: Da liberdade cristã, À nobreza alemã acerca do melhoramento
do estado cristão, Do cativeiro babilônico da igreja, Das boas obras. Além disso,
Lutero recentemente havia sido excomungado pelo papa e, logo a seguir,
proscrito pelo imperador, estando ausente de Wittenberg e escondido. Ao
mesmo tempo, o movimento radical dos iconoclastas estava irrompendo
nessa cidade. O texto de 1521 expressa uma veemência anti-filosófica e
anti-escolástica que o torna um expoente da faceta não-humanista de
Melanchthon e, por extensão, uma referência da Reforma protestante.
Mas o conhecimento deste texto é fundamental justamente porque ele é o
ponto de partida para a compreensão do processo dinâmico presente no
pensamento de Melanchthon. Só a comparação com edições posteriores
e com outros textos possibilita ver isso em toda sua extensão. Mas é
importante sinalizar tal fato, porque a importância dos Loci Theologici de
1521 está em ser um texto imprescindível para compreender a dinâmica
do desenvolvimento do pensamento de seu autor. É isso que torna este
personagem um objeto de estudo cativante. Aqui se encontra não uma
personalidade inflexível, mas um pensador em processo de reflexão.
As principais modificações que vão ocorrendo no processo de reedição dos
Loci Theologici dizem respeito a elementos da doutrina do livre arbítrio, à
valorização da razão e à importância da ética. Questões oriundas de debates
internos dos grupos luteranos também foram motivando novas ênfases e
reformulações. Além disso, temas já tradicionais de textos sistemáticos
cristãos não tratados na primeira versão foram reintroduzidos. Em relação
à questão do livre arbítrio, em 1521 Melanchthon rejeita a própria expressão
como não sendo de origem cristã. Já nesta edição, entretanto, está presente
o elemento mais fundamental de sua concepção que continuará sempre
sendo o princípio fundamental no tratamento da questão: a distinção
entre a liberdade no que se refere à dimensão exterior do ser humano
:: 69 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

e o limite de uma liberdade pessoal em relação ao relacionamento com


Deus. No desenvolvimento que ocorre nas versões posteriores dos
Loci, entretanto, Melanchthon introduz uma novidade ao afirmar que a
justificação só ocorre se a pessoa não rejeitar a dádiva divina. No que diz
respeito à apreciação da razão, os elementos mais virulentos da retórica
que Melanchthon utiliza em 1521 vão sendo suavizados sensivelmente. A
impressão que se tem é que a retórica utilizada para a admoestação relativa
ao perigo representado pela razão na primeira edição se aproxima bastante
da que comumente se encontra em Lutero. Entretanto, mesmo em 1521 já
está presente o núcleo a partir do qual se desenvolverá posteriormente
toda a compreensão da função das ciências em geral e da filosofia em
particular. Este se encontra na forma de apresentação da dinâmica entre lei
e evangelho tal como ela é elaborada por Melanchthon. Note-se que já em
1521 ele afirma a possibilidade da existência de uma lei natural impressa
no coração humano, lei esta que fundamenta a indesculpabilidade dos
que praticam o mal. Por mais obscurecida que esta lei natural esteja, em
função do pecado original, ainda assim ela é o ponto de apoio a partir
do qual Melanchthon vai desenvolver posteriormente os rudimentos
de uma possibilidade de conhecimento natural de Deus, chegando até a
discutir então argumentos relativos à existência de Deus. Em 1521, este
alcance longo do tema da lei ainda é explicitamente rejeitado, uma vez
que representa uma pretensão desmedida da razão diante do Deus que a
transcende. A importância da ética é outro elemento que passa a receber
mais ênfase nas edições posteriores. Não muda a noção fundamental, de
que as obras humanas não têm caráter meritório. Mas três razões podem
ser apontadas para a diferença de ênfase posterior em relação à exposição
de 1521, onde se tem quase a impressão de que a prática das obras esteja
submissa a um determinismo em relação à justificação. Primeiro, sendo
a ética uma das disciplinas de que Melanchthon estava encarregado na
universidade, ele continuou pesquisando e burilando a exposição do
tema. Segundo, era necessário fazer frente à crítica externa de que os
luteranos não valorizavam as boas obras. Terceiro, era preciso também
enfrentar o surgimento de concepções antinomistas no meio luterano.
Uma série de outros temas, ausentes em 1521, passaram a ser tratados
posteriormente. Por um lado temas já tradicionais, como a doutrina da
Trindade e a cristologia. Estes temas, curiosamente, aparecem arrolados
no início do texto de 1521 como tópicos que até merecem ser tratados
num texto dogmático, mas logo depois são evitados pelo perigo que uma
:: 70 :: De Lutero a Otto

discussão puramente especulativa como essa poderia acarretar. O fato de


que eles são reintroduzidos mais tarde, em edições subsequentes, aponta
para a inevitabilidade de se lidar com certos temas que já se estabeleceram
anteriormente no padrão dos escritos dogmáticos. Por outro lado,
vários outros temas passam a ser introduzidos posteriormente porque a
construção da nova cultura religiosa exigia novos tipos de respostas para
as dúvidas que envolvem a vida nessa nova ordem. Assim, por exemplo,
vão sendo desenvolvidos detalhamentos sobre a natureza do casamento e
sobre a ordem política.
Os juízos dos intérpretes sobre este conjunto de mudanças normalmente
apontam para uma retomada de elementos do humanismo juvenil e para
uma readaptação a uma configuração filosófica aristotélica porque não
haveria alternativa disponível para quem não desprezava a razão. Algumas
vezes esses juízos avaliam este processo de modo bastante negativo, no
sentido de que ele representa um enfraquecimento ou mesmo uma traição
de alguns dos mais renovadores impulsos que o pensamento de Lutero
significava. Outras vezes esses juízos se mostram mais complacentes,
no sentido de afirmar a inevitabilidade deste processo. Seja como for, a
intenção aqui é acentuar nesse momento o que se mostra de mais positivo.
Melanchthon é um pensador que não se manteve estático. Assumiu o risco
de revisar suas próprias formulações e teve a coragem de fazê-lo, algumas
vezes, em meio a críticas explícitas de que estaria traindo a herança do
patrono da Reforma, Lutero.

A apreciação de Troeltsch quanto a


Melanchthon e os desenvolvimentos
posteriores de algumas de suas ideias
A partir da síntese histórica e sistemática exposta, podem ser elaboradas
algumas hipóteses sobre os efeitos que tiveram as formulações teológicas
de Melanchthon. Particularmente, o intuito é aqui apontar a importância
dos Loci Theologici como um escrito cuja análise pode fomentar possíveis
pesquisas crítico-compreensivas. Neste momento, será dada prioridade
à exposição de algumas ideias apresentadas por Ernst Troeltsch em
sua tese de habilitação, Vernunft und Offenbarung bei Johann Gerhard und
:: 71 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Melanchthon (Razão e revelação em Johann Gerhard e Melanchton) de


1891. Alguns pressupostos gerais da exposição de Troeltsch são:
a) A tarefa da sistematização teológica (dogmática) implica uma perda
em relação à experiência religiosa fundante, de modo que a dogmática
não promove o aprofundamento da vivência da fé; mas esta tarefa de
sistematização é inevitável e mesmo necessária, à medida que a vivência
religiosa precisa ser coordenada com os demais âmbitos da vida e do
conhecimento; nesse sentido, a tarefa do estudioso da religião é a de examinar
[...] as lacunas e as costuras entre ambas [entre as intuições geradas
pela experiência religiosa e os elementos filosóficos e racionais que
pretendem dar conta delas], examinar as tentativas complicadas de
unir a ambos ou de confrontá-los de modo seguro, examinar os esforços
angustiosos relativos a “fé e razão” – uma pesquisa que naturalmente
não propicia o deleite de grandes atos sublimes, mas propicia a
percepção de um dos mais empenhados trabalhos do espírito humano
(TROELTSCH, 1891, p. 85-86)22.

b) O caráter racionalista, humanista e moralista da mentalidade de


Melanchthon se contrapõe às intuições fundamentais originais de Lutero,
cujo caráter era antinomista, místico (no sentido da experiência subjetiva
da presença da graça divina, experiência esta de liberdade interior) e
privilegiava a predestinação (TROELTSCH, 1891, p. 331).
c) O terceiro pressuposto é que a intenção de Troeltsch, enquanto um liberal
moderno, é apontar para o descompasso que a concepção sobrenaturalista
de revelação cria entre o desenvolvimento científico e a reflexão teológica.
O estilo da apresentação de Troeltsch ironiza a cosmovisão exposta por
Johann Gerhardt, por exemplo, que é um amálgama da cosmologia e da
antropologia aristotélicas com elementos cristãos (TROELTSCH, 1891, p.
133-137), e este seria um exemplo paradigmático do caminho iniciado por
Melanchthon no sentido de propor a base a partir da qual a ortodoxia
luterana se edificaria (TROELTSCH, 1891, p. 89)23.
A elaboração sistemática da dinâmica entre lei e evangelho levada a efeito
por Melanchthon nos Loci Theologici teria modificado o caráter radical do
22 Na mesma obra (p. 120), tratar-se-ia de uma lei geral do desenvolvimento da religião.
23 Em acordo com a noção de ciência aristotélica presente já nos Loci de 1521, de que toda
ciência parte de certos axiomas fundamentais, aplicada à noção de revelação escriturística.
:: 72 :: De Lutero a Otto

antinomismo de Lutero e na prática teria dado um lugar proeminente à lei


(e, com isso, a um intelectualismo). A lei não teria, como em Lutero, uma
função simplesmente aterrorizadora da consciência, mas seria também
uma dimensão constitutiva da realidade – à medida que a lei já estaria pré-
estabelecida divinamente, configurando-se como uma estrutura racional e
moral à qual a pessoa humana deveria se adequar. Isso se fundamentaria
como uma ideia prática: “As duas esferas [lei e evangelho], que no que
diz respeito aos temas doutrinários estão separadas por um dualismo
rigoroso, estão unidas como um todo e relacionadas entre si por uma
ideia prática” (TROELTSCH, 1891, p. 306). Tal compreensão da lei teria
possibilitado desenvolver toda a noção de conhecimento natural da lei
moral e, a partir daí, do próprio Deus (cf. TROELTSCH, 1891, p. 309-310).
Esta configuração geral da noção de lei, por sua vez, teria sido o espaço
encontrado para abrigar todo o conhecimento que não diz respeito ao
âmbito teológico no sentido estrito. Afinal, o conhecimento teológico
seria derivado da revelação que se encontra nas Escrituras. A revelação,
entretanto, não trataria dos elementos que a racionalidade humana
desenvolve. Exemplo disso, nas áreas de estudo do próprio Melanchthon,
seriam a lógica e a ética; mas já na reforma universitária por ele promovida,
e principalmente depois de Melanchthon, sob sua inspiração direta, todas
as disciplinas não teológicas teriam sido entendidas como pertencentes ao
âmbito da lei (TROELTSCH, 1891, p. 330).
Derivação semelhante se encontraria na compreensão da dimensão social.
As estruturas sociais, e especialmente o Estado (exemplificado no conceito
de autoridade), seriam compreendidas a partir desta dimensão da lei. Daí
o caráter fundamentalmente estático da compreensão luterana ortodoxa
do Estado, que se sistematizaria na teoria e na ética dos estamentos.
Esta compreensão da lei teria sido a base teórica que permitiu a re-
apropriação do aristotelismo pela ortodoxia luterana. A dinâmica entre
lei e evangelho cumpriria um papel análogo à da relação entre natureza
e graça no tomismo (TROELTSCH, 1891, p. 325). E essa analogia se
exemplificaria na prática em dois casos:
a) Primeiro, no fato de que, embora teoricamente a lei seria a dimensão profana
enquanto o evangelho, a dimensão propriamente teológica, na verdade, toda
a estrutura desta dinâmica já seria teológica por princípio. Deste modo, a
:: 73 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

dimensão do conhecimento natural seria ela mesma também resultado de


uma determinada perspectiva teológica metafísica da realidade.
b) Segundo, esta analogia se exemplificaria também no paralelo que se
encontraria entre a concepção sobrenatural da igreja no catolicismo e na
concepção da revelação escriturística no luteranismo ortodoxo. Troeltsch
(1891, p. 116) cita a propósito disso a afirmação de Johann Gerhardt,
representante exemplar da ortodoxia: “Breviter quod illis est pontifex ex
cathedra pronuntians, id nobis Spiritus S. in scripturis loquens” (Em suma,
o que para eles é o pontífice se pronunciando ex cathedra, isto para nós é o
Espírito Santo falando nas Escrituras) (TROELTSCH, 1891, p. 116-118.)
Tudo isso que Troeltsch enumera não o impede de reconhecer uma devoção
profunda e sincera presente na ortodoxia, apesar do intelectualismo que
caracteriza esta perspectiva, contrapondo-se à visão simplista de que a
secura espiritual da ortodoxia teria sido motivo para o florescimento do
pietismo (TROELTSCH, 1891, p. 123, nota 69). Assim, o instigante das
teses que Troeltsch desenvolve quanto à compreensão do processo que
vai de Melanchthon até a ortodoxia é que elas vão além de uma simples
acusação, quase moral e sempre depreciativa, de volta ao catolicismo por
parte deste segmento da Reforma, como muitas vezes se diz. O que ele
faz é propor este processo como um exemplo de desenvolvimento que
é recorrente na história da religião, além de mostrar sobre que bases
conceituais teológicas ele se deu, no caso, a dinâmica entre lei e evangelho
(TROELTSCH, 1891, p. 120). Ao mesmo tempo, as teses de Troeltsch
permitem vislumbrar a ambiguidade intrínseca ao processo reflexivo de
Melanchthon no que se refere à apreciação do tema da liberdade em sua
obra. Porque, como foi exposto anteriormente, o caráter intelectualista e
a preocupação com a ética que Melanchthon apresenta fizeram com que,
no desenvolvimento posterior que se expressou nas edições subsequentes
dos Loci Theologici, fosse concedido um espaço bem maior para a liberdade
do arbítrio humano. Para Troeltsch, entretanto, há uma outra dimensão
da liberdade que justamente se colocou em perigo neste processo, que é
a da liberdade espiritual acentuada por Lutero: “Daí principalmente que
recua na teologia de Melanchthon em todos sentidos o caráter espiritual,
isto é, a noção da liberdade interior e da imanência do bem absolutas n[o
ato d]a confiança em Deus” (TROELTSCH, 1891, p. 311-312.)
:: 74 :: De Lutero a Otto

Conclusão
De uma forma geral, aqui se mesclaram duas intenções. Propôs-se
o ideal humanista como horizonte para a compreensão do papel da
Ciência da Religião como disciplina particular em conexão com o mesmo
horizonte postulado para o conjunto das disciplinas das humanidades.
Simultaneamente, apresentou-se elementos nucleares do pensamento
de Filipe Melanchthon como exemplo da tensão complementar entre o
humanismo renascentista e a espiritualidade que se expressa na teologia
da Reforma.
Diante de um panorama geral não otimista quanto à importância do papel
das ciências humanas em geral e do diagnóstico do caráter auto-corrosivo
da reduções da Ciência da Religião a uma disciplina de caráter explicativo,
naturalista, historicista e (ou) metodologicamente delimitada, a lembrança
do ideal renascentista como horizonte constitutivo do saber acadêmico
ocidental se mostra não como uma receita simples, a partir da volta ao
passado, para fundamentar teórica e muito menos metodologicamente
a Ciência da Religião enquanto ciência. A lembrança deste ideal mostra,
entretanto, que o desenvolvimento do pensamento não precisa (e não
deve!) ir necessariamente na direção de uma fundamentação metodológica
cientificista, nem abraçar sem crítica a perspectiva da fragmentação do
saber, particularmente nas ciências humanas.
Com a apresentação de algumas ideias presentes na interpretação de
Troeltsch sobre o desenvolvimento posterior que as formulações de
Melanchthon possibilitaram, se exemplifica como o conhecimento
aprofundado de uma tradição de reflexão possibilita uma compreensão
simultaneamente bem articulada e crítica, através de hipóteses que
elencam elementos considerados centrais para o desenvolvimento cultural
posterior. A figura de Ernst Troeltsch é em si mesma paradigmática nesse
sentido. Trata-se de um teólogo, filósofo e cientista da religião. É uma
personalidade que representa o contraponto a uma visão que privilegia a
fragmentação do saber disciplinar.
O mesmo se pode dizer do objeto de estudo de Troeltsch aqui apresentado.
Filipe Melanchthon é não só um teólogo reformador da igreja, com
um viés anti-humanista, mas também um intelectual polivalente
profundamente inspirado pelo ideal humanista. Este objeto de estudo, para
a Ciência da Religião, mostra muito bem que não se pode compreendê-lo
de maneira adequada se ele for analisado simplesmente em sua dimensão
:: 75 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

religiosa. Compreender a obra de Melanchthon exige compreender o seu


pensamento na confluência e nas tensões entre religião e saber humano no
sentido mais amplo.
Para além do que no presente estudo foi apresentado, vislumbram-se
também várias outras possibilidades de aprofundamento no estudo da obra
de Melanchthon que não chegaram a ser tocadas aqui. Cabe mencionar,
nesse sentido, alguns âmbitos nos quais a pesquisa sobre ele ainda merece
se desenvolver muito mais em nosso contexto: a) o estudo de elementos
religiosos e teológicos privilegiados por Melanchthon; b) a hermenêutica
bíblica por ele utilizada e os desenvolvimentos que ela sugeriu para a
hermenêutica posterior; c) a importância da sua reapropriação da filosofia
para o desenvolvimento da cultura acadêmica posterior – particularmente
na ética, no conhecimento da natureza e na lógica; d) suas concepções
pedagógicas e seu papel na reforma educacional; e) a valorização que
sua obra propagou em relação ao conhecimento dos autores clássicos da
literatura, conjugando a valorização da arte com a formação integral da
pessoa humana.

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:: 76 :: De Lutero a Otto

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Theologie und Religionsphilosophie (1888-1902) 2009, p. 73-338.
Calvino antes do calvinismo:
alguns apontamentos sobre
João Calvino antes do
calvinismo ou a reinvenção
da igreja na perspectiva
calviniana24
Zwinglio M. Dias

24 Texto publicado originalmente sob o título O Calvino desconhecido (DIAS, 2009; cf. tam-
bém DIAS, 2017, p. 23-41).
Toda a história moderna ocidental teria sido irreconhecivelmente
distinta sem a perpétua influência de Calvino. (J. T. Mc Neill)

Não é de todo fantasioso dizer que, em um palco menor, mas com


armas não menos formidáveis, Calvino fez pela bourgeoisie do século
XVI o que Marx fez pelo proletariado do século XIX... (R. H. Tawney)

Se queremos demonstrar nossa obediência a nosso Senhor e Mestre


Jesus Cristo devemos nos unir numa pia conspiratio e cultivar a paz
entre nós. (João Calvino)

Ecclesia reformata et semper reformanda est. (Gisbertus Voetius)


:: 79 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Introdução
Dizem que Karl Marx, ao ler um texto de apresentação do que se reputava
como marxismo, ficou muito frustrado e declarou que se aquilo fosse
marxismo ele não seria jamais marxista! Este incidente ilustra muito bem o
fato de que quase sempre os seguidores ou reduzem ou vão além daquele
a quem dizem seguir ou representar. Penso que Calvino dificilmente
se identificaria completamente com a maioria dos “calvinismos” que
surgiram depois dele, incluindo aqueles das primeiras horas, seja porque
tenham tergiversado aspectos importantes de seu pensamento ou de
suas propostas, seja porque não tenham entendido com clareza detalhes
significativos de sua percepção global.
Além disso, é importante sublinhar que as rápidas mudanças históricas,
ocorridas por meio da introdução de novos conceitos teológicos e seus
resultados práticos na reestruturação social da igreja e da sociedade
genebrina, foram transformando muito rapidamente a conjuntura
socioeconômica e política daquela cidade-estado. E isto demandava um
esforço permanente de ajuste dos conceitos ou, caso se prefira, de uma
permanente hermenêutica da realidade à luz da Palavra de Deus. É isso
o que explica a contínua revisão de seu texto teológico fundamental, As
Institutas..., que alcançou 5 diferentes edições, como a busca continuada
de interpretação das Escrituras por meio dos comentários bíblicos e sua
exposição pública semanal. A Venèrable Compagnie des Pasteurs, mais
os leigos interessados, se reunia a cada sexta-feira para os chamados
“Colóquios” de Genebra, ainda que sua exata designação fosse: Les
Congregations. Dado que um elemento central da teologia de Calvino tenha
sido o exercício da fé, pessoal e explícita, com sua incidência em todas as
dimensões da vida cotidiana, isto implicava a discussão permanente, a
partir do texto bíblico, de questões de ordem política, econômica, social
e pessoal, que envolviam a vida dos cidadãos genebrinos. Em outras
palavras, o exercício daquilo que, em termos atuais, chamamos de análise
periódica do desenvolvimento da conjuntura socioeconômica e política
para caracterizar a real situação, de modo a detectar comportamentos
desviantes/equivocados, no plano concreto da vida, e corrigir o rumo do
testemunho da comunidade de fiéis sob a luz da Palavra.
:: 80 :: De Lutero a Otto

Os tempos eram muito difíceis. A guerra político-religiosa, se manifestava


por todos os lados. Roma era, todavia, bastante forte e ainda dispunha
de muito poder. Genebra se havia transformado, rapidamente, em uma
cidade-refúgio para protestantes, humanistas e descontentes com as
políticas dos governos regionais e aliados da igreja romana. Calvino
mesmo era um refugiado. Foi, pois, em meio a essa situação de inquietude,
de incerteza, de ausência de paz e tranquilidade, ou seja, em uma situação-
limite, onde tudo estava por ser feito, que Calvino empregou seu gênio
organizativo e normativo, revelando-se um grande condutor do povo.
Organizou e dirigiu a comunidade reformada de Genebra durante 23
anos, até sua morte precoce, aos 55 anos em 1564, e somente pôde gozar
de certa paz e tranquilidade nos últimos 10 anos de sua vida. Ao ler seus
textos e conhecer suas, muitas vezes, discutíveis decisões, há que se levar
em alta conta o contexto sócio-histórico no qual tinha que se mover.
Com isso não queremos desculpá-lo por seus exageros e equívocos, mas
chamar a atenção para o fato de que estamos diante de um homem em
luta permanente, cercado de inimigos, em plena batalha...

Calvino como teólogo


É incrível pensar que foi em meio a uma situação tão mutável e confusa que
este jovem cristão desenvolveu um pensamento ordenado e claro acerca
do que deveria ser a sociedade e, nela, a comunidade cristã. Assim, num
tempo de transformações profundas que tocavam todas as dimensões da
experiência humana, o movimento conduzido por este jovem francês de
frágil aparência consolidou algumas conquistas teológicas que tiveram um
enorme impacto no desenvolvimento de todo o protestantismo posterior,
dando forma a um ethos e a uma visão de sociedade humana que ressoam
até nossos dias e deixando marcas indeléveis em muitas culturas.
Importa destacar que o Deus de Calvino é o Totalmente Outro, distinto e
impossível de ser apreendido pelos seres humanos. Trata-se do Mistério
inefável no qual nos encontramos imersos. Criador de tudo o que existe
é radicalmente distinto e separado de suas obras, de sorte que somente
por sua decisão soberana suas criaturas lhe podem ter acesso; é um Deus
que se revela atuando, movendo-se dinamicamente ao interior de sua
criação. Se vamos a Ele é porque Ele veio primeiro a nós. Portanto, é Ele
:: 81 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

mesmo quem provoca e suscita em nossa experiência a percepção e o


sentimento de sua presença no mundo. Sozinhos, os humanos não têm
condições de aproximar-se dele e acolher sua glória, ainda que Ele tenha
deixado vestígios ou sinais de sua presença em tudo aquilo que fez. Mas,
os humanos não o podem reconhecer até que Ele mesmo se lhes revele.
Como disse o próprio Calvino:
Por certo, sua essência é incompreensível, de tal modo que sua deidade
escapa a todos os sentidos humanos. Mas ele imprimiu, em cada uma
de suas obras, certas marcas de sua glória, e tão claras e insignes que
está excluída qualquer desculpa de ignorância aos incultos e aos rudes.
(CALVINO, 2008, p. 51).

Baseado em seu profundo conhecimento da literatura e da filosofia clássica,


assim como do conteúdo das Escrituras, Calvino vai dar ênfase ao caráter
misericordioso, clemente e justo do Deus que se revela a Israel, e, depois,
de modo muito significativo e exemplar, na pessoa de Jesus Cristo. Por
sua clemência e misericórdia ele se torna pequeno, se acomoda, se adapta
aos limites da criatura, para assumir a condição humana no homem Jesus
que se torna, então, a revelação plena de sua glória e verdade. Daí que,
por causa de nossas limitações de criaturas, só podemos vislumbrar o que
Deus é, de fato, na pessoa de Jesus Cristo. E isto sob a unção do Espírito
e a graça do Pai. Aqui Calvino faz eco às formulações de Agostinho que,
por sua vez, ressoa a compreensão eclesiológica de Paulo.
Esta perspectiva acerca da soberania de Deus que se revela ao mundo e aos
seres humanos o faz colocar a majestade e a glória divinas como o centro
da vida dos humanos. Sua intenção era destacar a fragilidade e os limites
da condição humana, condenar a auto-centralização de cada indivíduo
e sua hybris, e, além disso, prover-lhe um espaço para sua regeneração
enquanto criatura de Deus. Como apontou Tawney:
“a redenção... é obra não do mesmo homem, que em nada pode
contribuir para ela, mas de um poder objetivo. O esforço humano, as
instituições sociais, o mundo da cultura, na melhor das hipóteses, são
irrelevantes para a salvação, e, na pior, perniciosos. Apartam o homem
da verdadeira meta de sua existência e fomentam a confiança em quem
não a merece (TAWNEY, 1971, p. 114).”
:: 82 :: De Lutero a Otto

Daí que a igreja, ou a comunidade dos servidores(as) de Deus, seja por


ele entendida como a reunião daqueles e daquelas que amam a Deus
acima de todas as coisas e, por isso, são capazes de retirar os olhos de
cima de si mesmos e, olhando para Deus, ver, sentir e servir a seus
semelhantes. O desenvolvimento da vita christiana é o grande objetivo
de Calvino como teólogo e reconstrutor da igreja. Para isso ele se voltou
às Escrituras e à vivência da comunidade cristã em seus primeiros
momentos. Fundamentado na experiência e na reflexão dos Pais da
igreja, especialmente Agostinho e Crisóstomo, vai rechaçar e contradizer
a especulação filosófica de corte aristotélico que desde o século XIII
dominava a teologia romana a partir da obra de Tomás de Aquino. Nunca
percebeu a reflexão teológica como ciência abstrata (scientia), mas como
conhecimento da fé, sabedoria (sapientia), que somente pode aflorar do
trato direto com as Escrituras. Este modo de ler e interpretar os textos,
com sua consequente reflexão aplicada à situação concreta de seus dias,
vai marcar a experiência eclesiológica da comunidade genebrina durante
sua vida. O que se segue depois, infelizmente, será outra coisa.

Calvino como pastor


Para Calvino, a igreja é um dos resultados da ação do Espírito de Deus
no mundo. Ela é formada por aqueles e aquelas que se têm rendido à
proposta de Jesus de Nazaré, ou seja, por aqueles que aceitaram, pela fé,
a graça de Deus oferecida na vida, morte e ressurreição de Jesus. Como
expressão da fé dos constrangidos por Cristo, a igreja se constitui num
momento segundo da aventura da fé, pois é a reunião daqueles que já
estão em Cristo, para fazer memória aqui da expressão de Paulo. Porque
a igreja é um dos instrumentos de Deus para o testemunho dos valores
do Reino de Cristo, isto é, da nova ordem proposta ao mundo por Jesus,
Calvino vai prestar muita atenção e gastar grande parte do seu esforço
para defini-la, organizá-la e mantê-la dentro dos padrões que lhe pareciam
os mais consoantes com a compreensão de Paulo. Vai dedicar 19 dos 20
capítulos do livro IV das Institutas para expor com precisão e amplitude
seu pensamento.
Ele estava de acordo com a distinção, estabelecida anteriormente por
Ulrich Zwinglio, entre a igreja dos cristãos concretos, históricos, e a
:: 83 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

“verdadeira esposa de Cristo”, “cujo número de membros está vedado aos


olhos humanos”. Estes dois sentidos de igreja são muito caros a Calvino.
Um se refere à igreja que os seres humanos podem ver, sentir, se alegrar
ou sofrer com ela. O outro é a igreja que só Deus conhece, que só Deus vê.
Sobre isto escreve ele:
Por Igreja entende-se frequentemente toda a multidão dos homens que,
dispersos no mundo, honram a Deus e a Cristo; que foram iniciados
na fé pelo batismo; que atestam sua união na verdadeira doutrina e
na caridade pela participação na ceia. Consentem, ademais, na Palavra
do Senhor e conservam, o ministério da pregação instituído por
Cristo. Nessa Igreja, aos bons estão misturados os hipócritas, os quais
nada têm de Cristo, exceto o nome: muitos, ambiciosos, avarentos,
invejosos e maledicentes; muitos têm hábitos ainda piores, mas são
tolerados por algum tempo, seja porque não podem ser condenados
por juízo legítimo, seja porque nem sempre vigora o necessário vigor
da disciplina. Assim, pois, do mesmo modo como é necessário crer na
Igreja que nos é invisível mas é conhecida por Deus, assim nos manda
que a honremos, a Igreja visível, e nos mantenhamos em comunhão
com ela (CALVINO, 2009, p. 473-474).

É bem conhecida a formulação oferecida pelo Reformador para a


identificação histórica da igreja e que insistimos em reproduzir:
Eis então de que modo a face da Igreja se manifesta ante nossos olhos:
onde a Palavra de Deus é sinceramente pregada e ouvida, e vemos que
os sacramentos são administrados segundo a instituição de Cristo, não
podemos de modo algum duvidar de que ali está uma igreja de Deus.
Pois não pode falhar a promessa que Cristo nos fez: “Onde dois ou três se
congregarem em meu nome, aí estou entre eles” (Mt 18, 20) (CALVINO,
2009, p. 474).
Nesta definição Calvino destaca, como marca fundamental da
comunidade dos seguidores de Jesus, a pregação do Evangelho e a
celebração dos Sacramentos. Para ele, estes dois acontecimentos não
podem estar separados. Se a Pregação é a Palavra viva de Deus sendo
dinamizada na vida da comunidade pelo testemunho interno do Espírito
Santo, e não simplesmente as palavras escritas em um livro sagrado, a
Eucaristia completaria o anúncio do Evangelho. Por isso ele insistia
:: 84 :: De Lutero a Otto

que a Eucaristia devia ser celebrada pelo menos uma vez por semana,
acompanhada da pregação do Evangelho. Mas, neste particular, ele não
teve como impor-se nem em Genebra, onde terminou por se estabelecer,
contra sua vontade, a celebração eucarística uma vez ao mês. Isso tinha
a ver com o costume romano estabelecido de celebrar a eucaristia para o
povo uma vez ao ano. E isso foi assim por séculos, havendo se arraigado
profundamente no imaginário popular. Ulrich Zwinglio encontrou uma
solução intermediária estabelecendo a celebração 4 vezes ao ano. Calvino
não se contentou com isso, pois lhe parecia que assim o sermão se tornaria
o centro da liturgia, e ele buscava justamente restabelecer o equilíbrio
que se havia perdido com a prática romana. Mas foi, não obstante seus
intentos, vencido pelo costume do povo.
Como pastor, Calvino foi, sobretudo, mestre e educador, demonstrando
uma enorme preocupação com a formação de seus paroquianos. Assim,
o ensino foi um marco muito significativo em seu ministério, ao ponto de
exigir do governo civil da cidade a criação de escolas, sendo responsável
pelo estabelecimento da primeira escola gratuita e obrigatória da Europa.
A experiência com os estudos bíblicos semanais dos chamados Colóquios
de Genebra formaram a base para a criação da Academia de Genebra,
embrião da futura Universidade. Por outro lado, cabe anotar que o tom
pedagógico e didático que atravessa todos seus escritos se enquadra
nessa preocupação pastoral de levar o povo à compreensão do verdadeiro
sentido da presença da igreja no mundo.
Para Calvino, além de a igreja ser o resultado concreto dentro da história,
da articulação de uma fé dinâmica, ela possui um caráter sagrado, é
resultado da vontade divina significando a continuação da encarnação,
ou seja, ela é o corpo de Cristo presente como testemunho de Deus entre
suas criaturas e antecipação do Reino vindouro de Cristo.
Na realidade, não é suficiente ter em mente que Deus preserva seus eleitos,
caso não levemos em conta também a unidade da Igreja, de modo que
estejamos verdadeiramente persuadidos de que pertencemos a ela. Pois se
não estivermos unidos aos outros membros sob o Cristo Cabeça, nenhuma
esperança de herança futura nos resta [...] De tal modo os eleitos de Deus estão
unidos em Cristo que, assim como dependem todos de uma única Cabeça, do
mesmo modo constituem um só corpo, unidos por ligaduras semelhantes
:: 85 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

àquelas que há nos membros do corpo humano. Feitos verdadeiramente


um, vivendo pelo Espírito de Deus, da mesma fé, esperança e caridade são
também chamados à mesma herança da vida eterna e a participação da glória
de Deus e de Cristo (CALVINO, 2009, p. 467).
Além disso, o Reformador, fiel à herança da igreja primitiva, não hesita
em recuperar aspectos relativos à natureza da igreja que, segundo sua
percepção, não devem ser esquecidos. Por isso, como parte de suas
funções, Calvino explicita que a igreja tem um papel importante e único
na obra de salvação. Como um entusiasmado membro da igreja ele afirma
a igreja como a mãe dos fiéis. Diz ele:
Sendo agora meu propósito discorrer sobre a Igreja visível, comecemos
pelo título de ‘mãe’ considerando quão útil e necessário nos é conhecê-
lo se considerarmos que não há outro meio de entrar na vida eterna se
a igreja não nos tiver concebido em seu seio, dado à luz, amamentado,
e, depois, nos tiver mantido sob sua guarda e autoridade até que,
despojados de nossa carne mortal, formos semelhantes aos anjos (Mt
20, 30) (CALVINO, 2009, p. 468-469).

Dando muita ênfase à necessidade da comunhão interna, da solidariedade


permanente entre os membros da comunidade da fé, a sanctorum
communio, o reformador se ocupou em chamar a atenção para as atitudes
autocentradas das pessoas que podem pôr em perigo a unidade da
comunhão dos santos. Disse ele:
Seja como for, onde a pregação do Evangelho é reverentemente ouvida
e os sacramentos não são negligenciados, ali aparece com o tempo, sem
falácia e ambiguidade, a face da Igreja, e a ninguém é lícito lhe contestar
a autoridade, repudiar suas admonições, discutir as decisões e zombar
das censuras: muito menos será lícito dela se separar e romper sua
unidade. Porque o Senhor tem em tal conta a comunhão de sua Igreja,
que considera desertor da religião todo aquele que, de modo contumaz,
afasta-se de uma congregação cristã na qual estão presentes o ministério
da Palavra e dos sacramentos (CALVINO, 2009, p. 475-476).

Como pastor preocupado com a convivência de seus paroquianos,


Calvino não estabeleceu um comportamento nem radical nem árduo,
como muitas vezes se pensa. Para ele a diversidade de opiniões com
:: 86 :: De Lutero a Otto

respeito às questões não essenciais não deveria ser motivo de desunião


entre as igrejas. O mesmo no que diz respeito aos usos e costumes do
povo. Fazendo abundante uso de exemplos retirados da experiência de
Paulo, Calvino recomenda a indulgência, a clemência e a misericórdia de
todos para com todos. Combate o perfeccionismo de alguns e aponta com
precisão a não existência de uma igreja pura, sem manchas nem pecados.
Usa como exemplo maior os relatos de Paulo relativos à igreja de Corinto.
Quando introduz o tema da disciplina eclesiástica, o faz, basicamente, no
sentido da recuperação ou restauração por meio do arrependimento.
Portanto, ainda que a disciplina proíba a frequentação e a familiaridade
com os excomungados, devemos, na medida do possível, nos esforçar
para que eles se convertam a uma vida melhor e sejam reintegrados na
comunhão da Igreja, como nos ensina o Apóstolo: “Não o tenhais por
inimigo, mas repreendei-o como irmão”. (2 Ts 3, 15). Caso não se zele
por esse trato humano, tanto em particular como em público, corre-
se o risco de que a disciplina converta-se rapidamente em carnificina
(CALVINO, 2009, p. 658).

Além disso, ele acrescenta: “a severidade da disciplina deve ser temperada


pela clemência” (CALVINO, 2009, p. 660).
Como pastor e pedagogo da comunidade cristã reformada, ele se ocupou
com a formação doutrinária e teológica do conjunto dos participantes da
igreja, produzindo catecismos, ordenanças, confissões, hinário, decretos e
um esmagador conjunto de comentários bíblicos.

Calvino como homem público


Nosso Reformador passou à história como se tivesse sido uma espécie de
homem-forte, ditador ou líder absoluto desta cidade-estado. Nada mais
falso e equivocado. É verdade que teve uma influência esmagadora entre
seus concidadãos, que sempre foi ouvido pelo Conselho civil que dirigia a
cidade (formado por cerca de 200 vereadores que nem sempre estiveram
de acordo com ele ou aceitaram suas sugestões) e que ele esteve à frente
de uma série de inovações em diferentes âmbitos da vida pública.
:: 87 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Genebra já era uma cidade protestante antes de sua chegada ali. Pode-
se dizer que o êxito de seu trabalho se deve, em grande medida, à
situação experimentada pela cidade, que vivia um intenso processo de
transformação sócio-política e cultural-religiosa desde os inícios da
década de trinta. Sua relação com o Conselho político dirigente jamais foi
fácil ou pacífica. Ao contrário, cheia de conflitos e contradições em função
do interesse do Conselho de controlar a igreja, mesmo fazendo parte dela.
É bom recordar que Genebra havia adotado a Reforma em 1536 e Calvino
somente regressa à Genebra e assume, de fato, seu grande ministério
nessa cidade no ano de 1541, depois de haver estado ali por dois anos
como professor de Teologia na catedral de São Pedro até ser expulso pelo
Conselho, juntamente com Farel, no ano de 1538. Até seu falecimento em
1564, Calvino trabalhou em Genebra na condição de Ministro da Palavra
(ministre de la Parole). Recusou, sistematicamente, qualquer outro cargo
civil ou estatal.
Sua visão das relações entre Igreja e Estado vai determinar sua posição
como cristão, cidadão e político. Em sua perspectiva, estas três qualificações
são simultâneas e inseparáveis. Ou seja, o cristão está, enquanto cidadão
deste mundo e partícipe do povo de Deus, definitivamente envolvido no
processo de ordenamento da vida da comunidade humana, ou seja, na
política. Tudo isto advém da compreensão do sentido da vocação cristã
no mundo e das relações entre a comunidade cristã e a comunidade civil.
Devedor de Agostinho, principalmente de sua obra A cidade de Deus,
onde este desenvolve a ideia da história humana sendo atravessada
pela tensa relação entre as duas cidades, a divina e a humana, Calvino
retoma e modifica a noção luterana dos dois reinos. Enquanto que para
o Reformador alemão estes dois reinos são esferas completamente
separadas, para Calvino eles são compreendidos como dois âmbitos
distintos, mas igualmente ordenados por Deus. Escreve ele:
Porque, ao examinar os problemas atinentes ao ofício dos magistrados,
minha intenção não foi a de lhes ensinar quais são as suas obrigações,
mas mostrar ao público qual é a natureza e a finalidade para a qual o
Senhor as instituiu. Vemos, pois, que os magistrados são constituídos
como tutores e mantenedores da tranquilidade, da ordem, da
:: 88 :: De Lutero a Otto

moralidade e da paz pública (Rm 13, 3), e que devem ocupar-se do


bem-estar e da paz comum (CALVINO, 2009, p. 883-884).

Como apontou Donald K. McKim:


Para Calvino, portanto, os contornos da história são moldados tanto
por forças “seculares” como “espirituais”. Elas, porém, não são
independentes umas das outras; ambas estão submetidas a uma
interpretação providencial da história, que se vê caminhando em
direção a sua consumação definitiva no Reino de Deus ou no Reino de
Cristo (McKIM, 1998, p. 327).

Para Calvino, o reinado de Cristo sobre a história ou seu domínio sobre ela
significa que toda vida é uma só, que toda ela pertence a Deus, onde o sagrado
e o secular não são compartimentos estanques, fechados sobre si mesmos, mas
simplesmente espaços distintos sob uma só direção do Espírito de Cristo.
“Ninguém, portanto, deve duvidar de que o poder civil é uma vocação,
não somente santa e legítima diante de Deus, mas também a mais sagrada e
honrosa entre todas as vocações” (CALVINO, 2009, 879). Como demonstrou
Abraham Kuyper, nesta perspectiva de Calvino, “a vida toda está consagrada
ao serviço de Deus” (1931, p. 53). Um exemplo disso foi o envolvimento
direto do reformador genebrino no confronto político-religioso que marcou
o desenvolvimento do calvinismo na França. Escrevendo sobre esse trágico
episódio da história do protestantismo o teólogo mexicano Rubén Arjona
Mejía além de descrever com minúcias os baldados esforços diplomáticos e
pastorais de Calvino procurando garantir a liberdade de expressão para os
calvinistas franceses destaca o apoio concreto da “Companhia dos Pastores”
e do próprio Reformador, em homens, armas e dinheiro, ao movimento
revolucionário protestante comandado por Luís de Bourbón, Príncipe de
Condé (MEJÍA, 2001, p. 66-69).
É sob este pano-de-fundo de uma filosofia cristã da história que se pode
entender a profunda preocupação e o acendrado interesse de Calvino pelas
coisas deste mundo, sua ojeriza aos espiritualismos psicoemocionais (sua
resistência às ideias anabatistas, por exemplo), desencarnados e de costas
viradas para os problemas concretos do povo. De igual forma seu rechaço às
leituras descontextualizadas, literais e especulativo-racionalistas da Bíblia,
que deixam de levar em conta as necessárias mediações histórico-críticas.
:: 89 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Fiel a esta perspectiva hermenêutica vai estar sempre atento ao que se passa
na sociedade em seu redor. Ocupa-se de temas sociais, culturais, políticos
e econômicos que dizem respeito à vida da comunidade genebrina e,
também, ao mundo europeu como um todo. Mais que Lutero, a quem se
referia como seu muito honrado Pai (très honoré Père), Calvino se dava conta
de que se encontrava no olho-do-furacão de formidáveis mudanças que
sacudiam as velhas estruturas da Europa. Sentia que um novo mundo
estava nascendo e procurava respostas, biblicamente iluminadas, para este
novo estado de coisas que começava a aparecer no horizonte da história.
Como seus concidadãos, ele mesmo se debatia entre as contradições
geradas pelo choque entre antigos valores e comportamentos e as novas
demandas e novos valores que buscavam espaço para impor-se. E isto
ocorria em todas as dimensões da vida.
Sensível a tudo isto, Calvino se revela como um pensador criativo,
buscando na erudição acumulada e no exercício de um inquieto espírito
reflexivo estabelecer novas pautas para processar uma nova e rigorosa
releitura da Bíblia sob os sinais do novo tempo que ele tem que viver. Dentre
suas produções originais está a discussão, em outros termos, das relações
entre ricos e pobres. Assim, sob a percepção bíblica de que o Evangelho
foi primeiramente dirigido aos pobres, ele desenvolve, por um lado, o
conceito do mistério do pobre, e, por outro, o do ministério dos ricos, sendo
estes vistos como provedores daqueles, a fim de que a justiça se estabeleça
na sociedade. Na mesma perspectiva teológica se ocupa de temas como
a natureza do trabalho, a importância do comércio, o desenvolvimento
econômico, a questão da cobrança de juros nos empréstimos. Sobre este
último, chega a proferir um sermão na catedral sob o título Longo sermão
sobre os juros! Com a mesma ênfase se ocupa com a educação da infância
e da juventude, tomando iniciativa a partir da própria igreja e exigindo
do Conselho dirigente da cidade a criação e manutenção de escolas, casas
para anciãos e órfãos desvalidos e medidas de proteção para os asilados
político-religiosos. Ou seja, a agenda de trabalho de Calvino era ditada
pelos grandes temas da vida cotidiana do povo que, por sua vez, eram
entendidos sob a luz da revelação bíblica.
:: 90 :: De Lutero a Otto

Conclusão
Calvino foi um homem excepcional que soube reunir em sua pessoa, em
mútuo diálogo e interdependência interior, a capacidade crítica e analítica
do teólogo, a preocupação e o desvelo do pastor com a vigilante militância do
cidadão, politicamente comprometido com o bem-estar de seu povo. Com
humildade, mas também com firmeza, tomou decisões muito importantes,
mesmo que, às vezes, trágicas, lamentáveis e equivocadas, que marcaram
para sempre a vida e o desenvolvimento da comunidade genebrina, com
repercussões que alcançaram o mundo. Foi um homem íntegro que intentou
plasmar sua vida segundo as coordenadas do Evangelho, conforme ele o
pôde compreender. Os conteúdos de seus achados bíblico-teológicos, mas
nem sempre suas formulações, se constituem, até hoje, uma fonte importante
para a vida da igreja e para a atualização de nossas experiências, enquanto
testemunhas idôneas do Evangelho.
Depois de 1564, data de sua morte, sua experiência sofreu transformações
muito profundas que lhe retiraram o brilho e a força da novidade
evangélica que até então fazia pulsar a vida genebrina. É quando começa
a nascer o Calvinismo ou o exercício da proposta de vida de Calvino para
a igreja e a sociedade por parte de seus companheiros, seguidores e
admiradores da mesma Genebra e de outras partes do mundo europeu.
Calvino faleceu um ano depois do término do Concílio de Trento (1545-
1563), com a igreja romana disposta a rechaçar radicalmente as doutrinas
protestantes. Com isso a segunda geração de reformados se sentiu
obrigada a se empenhar na defesa da autoridade da Bíblia com os mesmos
argumentos aristotélico-tomistas usados pelos romanos para justificar a
autoridade da igreja. Não foi, pois, uma decisão livre, mas uma imposição
do paradigma filosófico dominante, uma sujeição ao espírito da época.
Semelhantemente ao luterano Melanchton, Theodor Beza, que trabalhou
com Calvino dirigindo a Academia de Genebra e, depois, o sucedeu
na direção da igreja, começou a sistematizar a obra do Reformador nos
termos do molde filosófico aristotélico. Com isso, ele e seus sucessores
deram origem a um Calvinismo escolástico que significou a elaboração
de um sistema teológico racionalista e absolutista que, se por um lado
correspondia ao espírito da época, no que se refere à ênfase na especulação
racional que, em grande parte, abandona a exegese do texto bíblico, por
outro, representava a negação da abordagem agostiniana que estava no
âmago do método teológico de João Calvino. Quer dizer, seus discípulos
:: 91 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

e seguidores vão sucumbir à perspectiva dominante de seus opositores


(ainda firmemente ancorados no paradigma medieval) assumindo, em
oposição a Calvino, as categorias metodológicas do tomismo racionalista
do período anterior à Reforma.
Esta alteração conceitual-metodológica teve consequências muito
profundas para o desenvolvimento do ethos calvinista subsequente, na
medida em que a teologia passou a ser entendida como uma ciência
abstrata, especulativa e técnica. Exatamente o contrário do que ela
significava para Calvino, como já vimos. Com isso, o rigor lógico e
a precisão tomaram o lugar da piedade agostiniano-calvinista. Este
escolasticismo, que predomina nos ambientes reformados durante
todo século XVII, vai encontrar em Francisco Turretini, que assumiu a
cátedra de Teologia da Universidade de Genebra em 1664, seu grande
sistematizador. Na elaboração de sua obra fundamental, Institutio
Theologiae Elencticae... (Introdução a uma Teologia Refutacional...), ele
adotou o método teológico da Summa de Tomás de Aquino e, quando
da fundamentação de sua doutrina da Escritura, vai citar 175 teólogos e
autoridades eclesiásticas, mas sem mencionar nem uma única vez a João
Calvino (ROGERS, 1998, 42)!
A ortodoxia que se constrói a partir da sistematização, em termos
escolásticos, da experiência calvinista, é que vai dar forma e conteúdo
à cosmovisão reformada que se consolida no interior da cultura anglo-
saxã em ambos os lados do Atlântico. Seus ingredientes teológicos mais
significativos estão presentes na maioria das “Confissões, Declarações ou
Princípios de Fé” de muitas igrejas Presbiterianas ou Reformadas que se
constituíram desde então.
Infelizmente, como muitas vezes acontece com várias outras importantes
figuras da história humana, nosso Calvinismo, na grande maioria de suas
expressões, contribuiu muito mais para ocultar que para revelar a João
Calvino, como mais uma grande testemunha de Jesus de Nazaré no século
XVI. Sobre ele escreveu Karl Barth:
Calvino é uma catarata, um bosque primaveral, um poder demoníaco,
algo que desceu diretamente do Himalaia, absolutamente chinês,
estranho, mitológico; careço completamente dos meios, das ventosas,
para falar de ou para apresentá-lo adequadamente [...] Poderia, alegre
e com proveito submergir-me e dedicar o resto de minha vida a Calvino
(BARTH apud CERVANTES-ORTIZ, 2009).
:: 92 :: De Lutero a Otto

Referências
CERVANTES-ORTIZ, Leopoldo. Calvino e suas diversas heranças na
tradição reformada. Tempo & Presença, digital, ano IV, n. 17, Rio de
Janeiro, 2009.
CALVINO, João. A Instituição da Religião Cristã. 2 vol. Tradução de
Carlos Eduardo de Oliveira (Livros I e II), Tomo II, livro III de Elaine C.
Sartorelli; capítulos 1 a 13 e 20 do livro IV, Omayr J. de Moraes Jr.; capítulos
14 a 19 do livro IV, Elaine C. Sartorelli. São Paulo: Editora UNESP, 2009.
DIAS, Zwinglio Mota. A reinvenção do protestantismo reformado no
Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2017.
. O Calvino desconhecido. Tempo e Presença, v. 4, n. 17, 2009.
Disponível em: http://www.koinonia.org.br/tpdigital/detalhes.asp?cod_
artigo=338&cod_boletim=18&tipo=Artigo. Acesso em: 21 julho 2017.
KUYPER, Abraham. Lectures on Calvinism. Grand Rapids: Wm. B.
Eerdmanns Publishing Company, 1931.
ROGERS, Jack B. Autoridade e interpretação da Bíblia na tradição
reformada. In: McKIM, Donald K. (Ed.). Grandes temas da tradição
reformada. São Paulo: Pendão Real, 1998, p. 35-49.
MEJÍA, Rubén J. Arjona. De la sumisión a la revolución. México: Centro
Basilea de Investigación y Apoyo, 2001.
SHAULL, Richard. A reforma protestante e a teologia da libertação:
perspectivas para os desafios da atualidade. São Paulo: Pendão Real, 1993.
TAWNEY, Richard H. A religião e o surgimento do capitalismo. São
Paulo: Perspectiva, 1971.
A dialética entre Lei e
Evangelho quinhentos anos
depois: uma releitura em
chave kierkegaardiana
Jonas Roos
:: 94 :: De Lutero a Otto

A dialética entre lei e evangelho não se constitui apenas como um tema


importante na teologia de Lutero, mas como uma dialética fundamental
que ilumina a relação do teólogo para com o texto bíblico e, portanto,
ilumina os diversos temas da teologia. Ou seja, mais do que mero
assunto isolado, tal dialética constitui um olhar, um modo de pensar o
cristianismo e constituir a teologia. É justamente por isso, por constituir
uma hermenêutica, que essa relação tem um alcance tão grande e que,
portanto, merece ser discutida quinhentos anos depois. A proposta deste
texto é a de reler esta dialética e mostrar sua relevância e atualidade para
pensar o cristianismo e a religião. Para isso, o texto inicia estabelecendo
rapidamente os contornos da relação entre lei e evangelho em Lutero.
Numa segunda parte será mostrada a apropriação que Kierkegaard, já
no século XIX, fará daquela dialética, a relendo e ressignificando. Numa
terceira parte, a releitura que Kierkegaard faz de Lutero será aproximada
de nosso contexto e, nas conclusões, serão extraídas algumas consequências
desta dialética para se pensar um conceito de religião.

Notas sobre Lei e Evangelho em Lutero


De modo bastante sintético, pode-se dizer que Lutero entende a lei como
tudo aquilo que Deus, em sua santidade, exige do ser humano, seja amor,
justiça, bondade. Já o evangelho constitui aquilo que Deus oferece e
concede em sua graça e amor. É claro que lei e evangelho se manifestam
ao ser humano de formas bastante distintas, e é por isso que é possível
distinguir esses dois termos com clareza. A distinção, entretanto, não
pode significar separação. Lei e evangelho não podem ser separados
porque constituem duas faces de uma mesma relação. Para Lutero, Deus
se relaciona com o ser humano com lei e evangelho. É por isso que ele
percebe a palavra de Deus sempre como simultaneamente lei e evangelho,
o aspecto da exigência que não é cumprida e seu consequente juízo, e o
aspecto gracioso do evangelho enquanto boa nova da salvação (WEGNER,
2005, p. 142).
A lei, no entendimento de Lutero, pode ser dividida em seu sentido civil e
político, por um lado, e em seu sentido teológico, por outro. Este segundo
sentido tem basicamente duas funções. A primeira é a de revelar o ser
:: 95 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

humano como pecador e colocá-lo à mercê do juízo de Deus. A segunda


função, decorrente desta, é a de funcionar como pedagogo que conduz o
ser humano a Cristo.25 Ou seja, ao revelar o pecado e suas consequências, a
lei revela simultaneamente a necessidade humana da benevolência divina,
estabelecendo como que uma ponte que conduz ao amor do Cristo. Portanto,
lei e evangelho são duas esferas que, embora não possam ser confundidas,
são inseparáveis na compreensão luterana da palavra de Deus.
Kierkegaard compreende tão bem essa lógica que a usa como uma lente
para interpretar seu contexto teológico. Mas não só isso, essa mesma
lente é usada para criticar e elaborar respostas também aos problemas de
seu contexto filosófico e de seu contexto social. Curiosamente, contudo,
Kierkegaard não foi um estudioso da obra de Lutero. A influência de
Lutero no pensamento de Kierkegaard é bastante indireta, mas nem
por isso menos importante, e se este é um dos casos em que se aplica
o princípio de Heráclito de que a conexão oculta é mais forte do que a
aparente, é algo que poderemos julgar26.
Ainda que não se possa estabelecer exatamente a medida da influência do
pensamento de Lutero e do luteranismo no pensamento de Kierkegaard,
é inegável que esta influência seja marcante. Embora se possa afirmar
com correção que Kierkegaard é um grande crítico da cristandade
dinamarquesa no século XIX, ele demonstra ter compreendido tão bem
a tradição à qual pertencera e seus elementos fundamentais que, por
isso mesmo, pôde criticá-la, ao mais das vezes, em nome da própria
compreensão luterana do evangelho.

25 Cf. Gálatas 3.24.


26 Nessa influência indireta do pensamento de Lutero sobre Kierkegaard e, especialmente de
sua dialética entre lei e evangelho, deve ser considerado que Kierkegaard: 1) crescera indo
aos cultos da igreja luterana e, portanto, recebendo a influência desta teologia presente na
liturgia, hinos, prédicas ou estudado o catecismo na própria escola; 2) tenha recebido uma
forte influência teológica luterana e pietista de seu pai; 3) tenha estudado teologia em uma
faculdade luterana; 4) tenha presenciado discussões filosófico-teológicas na casa de seu
pai, onde era frequente a presença do bispo Mynster; 5) tenha feito leituras meditativas dos
sermões de Lutero; 6) tenha lido autores fortemente influenciados por Lutero, como, por
exemplo, Johann Georg Hamann (Cf. ROOS, 2007, p. 126).
:: 96 :: De Lutero a Otto

A releitura de Kierkegaard

O contexto de Kierkegaard e o nosso


Pode-se afirmar, assim como o faz Hegel na Filosofia da História, que a
reforma é “o sol que tudo ilumina, e que se segue àquela aurora do final da
Idade Média” (HEGEL, 2008, p. 343). É possível que Kierkegaard também
aplaudisse a reforma, mas certamente não pelos mesmos motivos que
Hegel. O problema do dinamarquês está na institucionalização da Reforma
em seu país, numa espécie de estatização da religião. Na Dinamarca de
seu contexto, ser cristão e ser dinamarquês são equivalentes. A religião
perde aquilo que tem de mais caro, seu potencial de construção de sentido
existencial e a existência passa a ser regida pela exterioridade. A pergunta
individual pelo sentido da vida passa a ser respondida pela cultura
pequeno-burguesa da Dinamarca do século XIX e seus desdobramentos:
o Estado, a religião institucionalizada, a imprensa.
Nesse contexto Kierkegaard percebe que as pessoas vivem em categorias
estéticas. Mais do que isso, a questão do sentido da vida é ancorada em
categorias estéticas: o prazeroso, o belo, o agradável, o interessante... Ora,
como todos sabemos, não é preciso muita filosofia para compreender
que, do ponto de vista da vida, o estético pode estar completamente
em ordem, a vida pode estar abundante em termos de prazer, beleza,
sensações agradáveis etc. e, ainda assim, a vida pode simplesmente não
fazer sentido. A vida pode estar completamente cheia de estética e o tédio,
a angústia e o desespero podem estar corroendo internamente. A questão
existencial precisa ser encaminhada em outro âmbito que aquele da mera
estética e de suas sensações.
Naquele contexto, contudo, as pessoas aparentemente não se davam conta
de pautar suas existências a partir do estético. O problema é que, embora
vivessem restritas a concepções estéticas, as pessoas se articulavam em
palavras religiosas ou ético-religiosas, mas destituídas de sentido. Falava-
se em amor, fé, salvação, indivíduo, mas sem a devida reflexão sobre as
:: 97 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

consequências de articular tais conceitos.27 Usa-se palavras religiosas, mas


vive-se em conceitos estéticos.
Kierkegaard percebe uma conexão entre, uma cultura onde todos são
cristãos, e onde a vida, no limite, está determinada por um tipo de ambiente, ou
seja, pela exterioridade, e, um contexto filosófico onde a vida é explicada a partir
de categorias necessárias, incluindo aí o próprio tempo e, consequentemente, a
mudança. Ora, está correto que num sistema lógico as relações se articulem
por necessidade. A existência, contudo, é o âmbito do imponderável. A
existência é o âmbito onde temos que tomar decisões sem nunca reunir
nem totalmente e nem de modo objetivo todos os critérios. E ainda assim,
inevitavelmente decidimos, quer nos aproximando de nossa liberdade
na decisão, quer nos afastando dela. O problema é que a mudança, do
ponto de vista da existência, nunca pode ser uma categoria da ordem
da necessidade, seja ela entendida logicamente ou entendida a partir de
determinações socioculturais. A consequência disso é que a vida havia
perdido seu caráter dinâmico, seu caráter de risco e paixão. Para esse
contexto que, com a introdução das categorias da necessidade no âmbito
da vida, grosso modo, perdera o movimento na existência, Kierkegaard
procurou resgatar e ressignificar justamente a dialética de lei e evangelho,
como aprendera no contexto luterano de sua formação.

A releitura kierkegaardiana
da dialética entre lei e evangelho
Em um pequeno texto intitulado Sobre minha obra como autor, publicado em
1851, Kierkegaard reflete sobre sua posição e sua tática comunicativa na
cristandade dinamarquesa. Nesse texto, ainda pouco estudado, percebe-

27 É uma situação análoga à nossa do século XXI: todo o nosso aparato tecnológico nos dis-
ponibiliza uma grande quantidade de informação onde eventualmente se articulam termos
técnicos e científicos. Faz-se o uso dessa linguagem, que se encontra sempre à mão, mesmo
sem entender os fundamentos e relações lógico-argumentativas que regem essas relações, o
que nos dá a ilusão de que somos científicos e, portanto, inteligentes! Para além disso, contu-
do, também com relação à religião temos uma relação linguística complicada. Usa-se termos
religiosos, embora muitas vezes sem compreender as articulações conceituais implicadas
naquilo que tais termos representam. O mau uso que normalmente se faz do conceito de fé,
muitas vezes também em ambientes e textos acadêmicos, é um bom exemplo disso.
:: 98 :: De Lutero a Otto

se claramente como o autor concebe a sua obra no interior da dialética de


lei e sua exigência infinita, de um lado, e o evangelho e a graça, de outro:
O cristianismo é tão suave quanto rigoroso, tão suave, ou seja,
infinitamente suave. Quando a exigência infinita é escutada e afirmada,
é escutada e afirmada em toda a sua infinitude, então a graça é oferecida,
ou a própria graça se oferece, com relação à qual o indivíduo singular,
cada um individualmente, pode recorrer, assim como eu mesmo faço; e
então tudo funciona bem. Contudo, não é um exagero para a exigência
do infinito, a exigência infinita, ser apresentada – infinitamente (isso
também no interesse da própria graça). De outro modo, constitui um
exagero apenas quando a exigência é apresentada sozinha e não se
introduz a graça (KIERKEGAARD, 1998, p. 16. Grifos no original).

A exigência infinita posta pela lei, portanto, precisa necessariamente


estar articulada com a apresentação da graça, e é precisamente nesses
termos que Kierkegaard define a estratégia de sua obra, o ponto de vista,
a moldura na qual quer que sua obra seja lida. Uma grande quantidade
de citações de Kierkegaard poderia ser apresentada para sustentar este
ponto. Para nossos propósitos aqui, e considerando o contexto em que o
referido texto de Kierkegaard é publicado, ou seja, o de procurar sanar
mal-entendidos com relação a leituras de sua própria obra, creio que já
temos o suficiente.

Lutero e Sócrates ou a analogia entre


lei e evangelho e ironia e subjetividade
A plataforma teológica na qual a obra de Kierkegaard se desenvolve é
inequivocamente luterana. Entretanto, como vimos, em seu contexto
as pessoas já se entendiam como cristãs por razões culturais. Ninguém
entendia que devia se tornar cristão. Este problema teológico específico
será analisado sob diferentes perspectivas. A mais importante é que
perder a perspectiva do tornar-se com relação ao cristianismo significa
perder a perspectiva do tornar-se si mesmo, do tornar-se um indivíduo
singular existente na história, com suas escolhas, erros, acertos e riscos.
O problema religioso e o problema existencial são definidos no mesmo
âmbito. Entender o problema de todos serem cristãos por nascimento
:: 99 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

significa, para Kierkegaard, entender que o horizonte de sentido da


vida já está posto de antemão, como se a religião e a cultura pudessem
responder adequadamente à pergunta quem sou eu. Esta, contudo, só pode
ser adequadamente respondida em primeira pessoa. Toda outra resposta
será necessariamente falsa.
Mas como, então, instigar as pessoas a tornarem-se cristãs e tornarem-
se indivíduos se todas entendem que já o são? Kierkegaard se dá conta
que o seu problema é análogo ao de Sócrates: como tirar da ignorância
aquele que pensa que é sábio? Parece que não há outra alternativa do que
a ironia, a ironia que se coloca numa posição de ignorância, de dúvida e
distanciamento e, então, provoca o interlocutor. Eu não sei nada, você,
que sabe, me diga... Eu não sou cristão, você, que é, me diga...
Kierkegaard, então, insere o método socrático da ironia dentro de uma
plataforma luterana de pensamento e, assim, constrói sua obra relendo e
ressignificando a dialética do reformador. E Kierkegaard percebe aqui uma
clara analogia entre Sócrates, de um lado, e a dialética de lei e evangelho,
de outro. Aquilo que para o cristianismo funciona como a lei, que exige
perfeição sem nada oferecer, é análogo à ironia de Sócrates, que esvazia
o indivíduo de conteúdo sem nada oferecer. Por outro lado, aquilo que
na dialética luterana funciona como evangelho e graça, aquilo que se
oferece depois de se ter passado pelo crivo da lei, é análogo à subjetividade
socrática. Em sua tese Sobre o conceito de ironia, Kierkegaard escrevera:
[...] assim como nos judeus, que afinal eram o povo da promessa, o
ceticismo da lei teve de abrir caminhos, precisou, com sua negatividade,
por assim dizer, consumir e provar pelo fogo o homem natural, a fim de
que a graça não fosse tomada em vão, assim também nos gregos, povo
que no sentido mundano bem pode ser chamado de escolhido, povo
afortunado, cuja pátria era a terra da harmonia e da beleza, povo em cujo
desenvolvimento o puramente humano percorreu suas determinações,
povo da liberdade, assim também nos gregos em seu mundo intelectual
despreocupado o silêncio da ironia tinha de ser aquela negatividade que
impedia que a subjetividade fosse tomada em vão. Pois a ironia é, assim
como a lei, uma exigência e a ironia é uma exigência enorme, pois ela
desdenha a realidade e exige a idealidade. É claro que a idealidade já
está presente neste desejo, mesmo que apenas como possibilidade, pois
:: 100 :: De Lutero a Otto

no aspecto espiritual o desejado já está sempre no desejo, já que o desejo


é visto como as moções mesmas do desejado no desejante. E assim como
a ironia recorda a lei, assim também os sofistas recordam os fariseus, que
operavam no terreno da vontade exatamente da mesma maneira que
os sofistas no do conhecimento. O que Sócrates fez com os sofistas foi
dar-lhes o instante seguinte, no qual a verdade momentânea se dissolvia
em nada, quer dizer, ele fazia a infinitude engolir a finitude. Mas a
ironia de Sócrates não estava dirigida apenas contra os sofistas, estava
dirigida contra todo o subsistente, de tudo isto ele exigia a idealidade,
e esta exigência era o juízo que julgava e condenava o helenismo. Mas
sua ironia não é o instrumento que ele usava a serviço da ideia, a ironia
é seu ponto de vista, e mais ele não tinha. Se ele tivesse possuído a ideia,
sua atividade aniquiladora jamais teria sido tão penetrante. Aquele que
proclamava a lei não era o que também trazia a graça; o que fazia valer
a exigência em todo o seu rigor não era aquele que podia satisfazer a
exigência. Entretanto é preciso lembrar que entre a exigência de Sócrates
e seu preenchimento não havia um abismo tão profundo como entre a lei
e a graça. Na exigência de Sócrates o preenchimento estava contido
potencialmente (KIERKEGAARD, 1991, p. 165-166).

Kierkegaard compreende, então, que a negatividade da ironia tem de


desempenhar um papel crucial para um contexto onde todos já têm a
positividade como algo dado de antemão. Todos são, ninguém se torna.
E, por isso, tanto graça quanto subjetividade são tomadas em vão. E a
religião acaba por se transformar naquela instância que deixa as pessoas
pesadas, duras, auto-satisfeitas, acomodadas. A exemplo de Sócrates, que
fora chamado de mutuca de Atenas, Kierkegaard começa a incomodar
seus contemporâneos.

A duplicidade da obra de Kierkegaard


A fim de inserir a ironia socrática em uma plataforma de pensamento que se
constitui pela dialética entre lei e evangelho, Kierkegaard inicia duas linhas
simultâneas e articuladas de publicação. De um lado publica obras assinadas
por pseudônimos, onde a existência e sua falta de sentido é posta à tona.
Ao mesmo tempo, contudo, ou, para usarmos um termo tão caro a Lutero,
simultaneamente, publica aquilo que chama de discursos edificantes, onde
:: 101 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

passagens bíblicas são discutidas em seu sentido existencial. Essa dialética


é o que Kierkegaard chama de duplicidade da obra.
Em Ponto de Vista, Kierkegaard afirma que “esta duplicidade [...] é
algo que o autor conhece melhor do que ninguém, ela é a qualificação
dialética essencial de toda a obra e tem como consequência uma base mais
profunda” (KIERKEGAARD, 1998, p. 29). Sobre esta duplicidade, com
relação a Ou-ou, obra de 1843, e os discursos publicados paralelamente,
Kierkegaard afirma:
Embora Ou-ou absorvesse toda a atenção e ninguém reparasse nos Dois
discursos edificantes, estes significavam, todavia, que o caráter edificante
era exatamente o que deveria ser realçado, que o autor era um autor
religioso que, por essa razão, ele próprio jamais escreveu algo de ordem
estética, mas recorreu a pseudônimos para todas as obras estéticas, ao
passo que os Dois discursos edificantes eram assinados pelo Magister
Kierkegaard (KIERKEGAARD, 1998, p. 30-31).
Em uma de suas obras pseudônimas Kierkegaard coloca como epígrafe a
seguinte frase de Lichtenberg: Tais obras são espelhos, se um macaco olhar
para dentro, não será um apóstolo a olhar de volta (KIERKEGAARD, 1988,
p. 8). As obras pseudônimas, então, revelam aquilo que se é e, nesse sentido,
funcionam como lei. Mas aqui Kierkegaard ressignifica o modelo luterano e
coloca as obras pseudônimas revelando não apenas o quão distante se está
da moralidade da lei, mas mostra o quão distante estamos de nós mesmos e
o quão iludidos eventualmente podemos estar quanto à questão do sentido
da existência. Esse distanciamento de si mesmo, e todas as consequencias
que daí advêm, é o que Kierkegaard chama de desespero. Com isso, a
dialética entre lei e evangelho vai sendo adaptada e ressignificada.

A releitura de Kierkegaard
e o nosso contexto
Desespero e ausência de sentido
Para definir desespero, Kierkegaard parte do pressuposto de que o ser
humano se constitui como uma síntese de infinitude e finitude e de
seus desdobramentos: anímico e corpóreo, eterno e temporal, possível e
necessário (KIERKEGAARD, 1980).
Este pressuposto é certamente teológico. Mas, embora teológico, tal
pressuposto não falará também de algo humano, demasiadamente
:: 102 :: De Lutero a Otto

humano? Quando falamos de nossas identidades pessoais, no limite,


recorremos a que ordem de categorias? Às categorias do atemporal, para
dizer o mínimo. Por que você faz o que faz? Pensa como pensa? Persegue
certos ideais e recusa outros? Por que matamos ou geramos novas vidas?
Cometemos crimes ou amamos? Para falar de tais questões é sempre
preciso falar de projetos e sonhos. Tais projetos transcendem a mera
imediatidade e, então, parece que a vigília é regida pelos sonhos, não o
contrário. Assim que precisamos falar do âmbito do eterno, do infinito,
do inexplicável, daquilo que é o sentido de todo o sentido e que, por isso
mesmo, não pode ser explicado.
Mas se o infinito nos habita, o problema do desespero é precisamente o de
que relacionamos mal finitude e infinitude. Frequentemente, por exemplo,
atribuímos valor infinito àquilo que é finito. Ou então nos aferramos ao
corpóreo em detrimento do anímico ou, por outro lado, esquecemos do
corpo e damos valor apenas ao anímico. Ou entendemos a realidade como
necessidade pura, ou como possibilidade pura. Todas essas são diferentes
formas de desespero e de perder a si mesmo. Com tal conceituação,
Kierkegaard acaba por mostrar que o desespero pode habitar as situações
cotidianas e corriqueiras da vida. Às vezes as pessoas mais bem sucedidas
em certos âmbitos são aquelas que se aferram à finitude, negando a
infinitude e, portanto, vivendo em desequilíbrio consigo mesmas, em
desespero. Por outro lado, a pessoa que nega a finitude em virtude de um
aferrar-se ao infinito, seria tão desesperada quanto a primeira. A questão
é que somos constituídos por todas essas polaridades e, portanto, só
podemos ser nós mesmos quando as articulamos adequadamente.
Entretanto, não conseguimos articular racionalmente esta síntese. O que
pensamos, pensamos a partir de situações concretas e determinadas
e não podemos, no limite de nossa finitude histórica, compreender
adequadamente a infinitude. Mas se essa infinitude é parte integrante
da síntese que constitui o ser humano, segue-se daí que não podemos
compreender nem a nós mesmos e nem o próprio sentido de nossas vidas.
Entramos aqui, necessariamente, no terreno do simbólico, daquilo que se
oferece e que tanto Lutero quanto Kierkegaard chamam de graça.
:: 103 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Graça e construção de sentido


O que pensamos e fazemos está determinado pela nossa situação
histórica e, necessariamente, circunscrita, limitada, como disse acima.
Mas não apenas isso. Nossos pensamentos e ações acontecem dentro da
situação de desespero na qual nos colocamos. Mesmo em nossas melhores
intenções agimos a partir do desequilíbrio da síntese que nos constitui.
É nesse sentido específico que Kierkegaard gosta de citar aquela famosa
frase de Agostinho, que as virtudes dos pagãos são vícios brilhantes. Ou seja,
nos colocamos em uma situação de perda de nossa liberdade, da qual
não temos como sair. Nesse ponto, é óbvio o paralelo entre o conceito de
desespero em Kierkegaard e o conceito de pecado em Lutero. Kierkegaard,
contudo, procura tirar as consequências dessa noção de lei e de sua função
para o problema do sentido da existência.
Avançando mais um ponto no argumento, devemos dizer que é justamente
porque o ser humano age a partir de dentro de sua situação de desespero,
age a partir do desequilíbrio da síntese, que não tem por si mesmo como
recuperá-la. A única saída para o ser humano, nesses termos, parece ser a
de recorrer a uma possível constituição de sentido no âmbito do simbólico.
Entretanto, mesmo esse sentido simbólico é construído a partir de uma
situação de desespero. Como, a partir da concretude e do desequilíbrio
de minha situação eu produzo um sentido que dê unidade à minha
existência? Como se produz sentido para a existência? Como se produz
autenticidade? Como se produz individualidade? Buscar autenticidade já
não seria, em si, uma atitude inautêntica?
O encaminhamento de Kierkegaard é o de abrir-se ao sentido que é dado.
E antes que alguém levante a mão e me acuse de sub-repticiamente ter
introduzido o dogma da graça num texto que se pretende filosófico, eu
volto a perguntar: não estaremos aqui falando de questões humanas,
demasiadamente humanas? Tanto Lutero quanto Kierkegaard ou uma
pessoa anti-religiosa poderiam concordar que eu não o produzo, mas o
encontro, ou sou encontrado por ele. Eu só produzo sentidos particulares
quando há um sentido geral que é anterior ao sentido particular. E, mutatis
mutandis, é uma questão tanto teológica quanto filosófica a percepção de
que eu não produzo esse sentido prévio. O sentido é anterior à minha
produção. O sentido se dá, se oferece.
:: 104 :: De Lutero a Otto

Conclusão: algumas consequências


para pensar o conceito de religião
Paul Tillich afirmara que a Guernica, de Picasso, é uma obra protestante.
Se considerarmos a Guernica de Picasso como um exemplo – talvez o
mais extraordinário – da expressão humana em nossa época, veremos
que seu caráter negativo e protestante é óbvio. Picasso põe diante de
nós, com tremenda força, a questão do ser humano num mundo de
culpa, angústia e desespero (TILLICH, 2009, p. 114).

O que Tillich entende por protestante nesse contexto tem a ver com salientar
a distância infinita entre Deus e ser humano. Acentua[r] a finitude
humana, a morte, mas, acima de tudo, a separação de nosso
ser verdadeiro e a escravidão às forças demoníacas – forças de
autodestruição (TILLICH, 2009, p. 114).

E continua com uma afirmação importante: “a incapacidade de nos


libertar dessas prisões inspirou os reformadores a elaborar a doutrina de
nossa reunião com Deus na qual somente ele toma a iniciativa e nós a
recebemos” (TILLICH, 2009, p. 114).
A partir de tal perspectiva protestante, que está em Lutero, em Kierkegaard,
em Tillich, em Picasso ou onde quer que seja – e por muitas vezes não
está no protestantismo – entende-se que nossas ações são realizadas a
partir de uma situação de ruptura e alienação. Para isso podemos usar
a conceituação de desespero de Kierkegaard e, de certo modo, tornar
plástico tal conceito com a Guernica.
Esta perspectiva nos leva a perceber os limites de nossas ações. La
Rochefoucauld resume suas máximas morais nisso: “nossas virtudes são
apenas, no mais das vezes, vícios disfarçados” (LA ROCHEFOUCAULD,
2014, p. 11). Uma perspectiva protestante para pensar a religião nos fornece
elementos para pensá-la levando a sério um La Rochefoucauld ou um
Pascal, quando afirma que nunca somos tão maus como quando o somos por
motivos religiosos. É nesse contexto de ruptura, cisão, alienação, desespero
e falta de sentido que se age moralmente, que se vive, morre e faz religião.
:: 105 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Entretanto, é nesse mesmo contexto, que a religião nos desafia a perceber


a penetração do infinito na finitude, a penetração do eterno no tempo, a
construção de uma esperança contra toda expectativa. Aqui chegamos na
margem do filosofar. Não há paper ou Summa que ensine a fazer isso. E,
mesmo assim, é nisso que a religião insiste e deve insistir. Naquele mesmo
texto em que analisa o aspecto protestante da Guernica, Tillich afirma que
aquele processo no qual Deus toma a iniciativa e o ser humano a recebe
não é possível se ficarmos passivos, pois ela exige enorme coragem para
a aceitação do seguinte paradoxo: ‘o pecador é justificado’, isto é, nossa
angústia, culpa e desespero são objetos da aceitação incondicional de
Deus (TILICH, 2009, p. 113-114).

E aí estamos no âmbito do simbólico, da fé, da graça, que talvez seja mais


universal do que pareça à primeira vista.
O que tentei mostrar é que esta questão teológica específica pode fornecer
um paradigma para pensar a questão da construção, ou desconstrução, de
sentido na religião. Kierkegaard percebera com clareza que seu problema
com a igreja estatal da Dinamarca era um problema que dizia respeito à
questão do sentido da vida. À medida que se articula com o simbólico, tal
sentido pode ser produzido somente até certo ponto. É necessário que o
símbolo, e o próprio sentido que ele articula, se dê, se entregue.
A esse respeito, vale a pensa ouvir Nietzsche:
Tudo ocorre de modo sumamente involuntário, mas como que em um
turbilhão de sensação de liberdade, de incondicionalidade, de poder,
de divindade... A involuntariedade da imagem, do símbolo, é o mais
notável; já não se tem noção do que é imagem, do que é símbolo, tudo
se oferece como a mais próxima, mais correta, mais simples expressão.
Parece realmente, para lembrar uma palavra de Zaratustra, como se
as coisas mesmas se acercassem e se oferecessem como símbolos
(– “aqui todas as coisas vêm afagantes ao encontro da tua palavra, e
te lisonjeiam: pois querem cavalgar no teu dorso. Em cada símbolo
cavalgas aqui até cada verdade. Aqui se abrem para ti as palavras e
arcas de palavras de todo o ser; todo o ser quer vir a ser palavra, todo o
vir a ser quer contigo aprender a falar” –). Esta é a minha experiência de
inspiração [...] (NIETZSCHE, 1995, p. 86).
:: 106 :: De Lutero a Otto

Referências
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Tradução do texto em língua portuguesa
diretamente dos originais. Direção editorial: Tiago Giraudo; Coordenação
editorial: José Bortolini. Nova edição, revista. 6ª reimpressão. São Paulo:
Edições Paulinas, 1993.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Filosofia da História. Tradução de
Maria Rodrigues e Hans Harden. 2. Ed. Reimpressão. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2008.
KIERKEGAARD. Søren. The Point of View: On my Work as an Author
– The Point of View for my Work as an Author – Armed Neutrality. Ed. e
Tradução com introdução e notas de Howard V. Hong e Edna H. Hong.
New Jersey: Princeton University Press, 1998.
______. O Conceito de Ironia: constantemente referido a Sócrates.
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______. Stages on Life’s Way: Studies by Various Persons. Ed. e Tradução
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Princeton University Press, 1988.
______. The Sickness unto Death. Ed. e Tradução com introdução e notas
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LA ROCHEFOUCAULD, François de. Reflexões ou sentenças e máximas
morais. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2014.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é.
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
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:: 107 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

PASCAL, Blaise. Pensamentos. Tradução de Sérgio Millet. São Paulo:


Abril Cultural, 1979.
ROOS, Jonas. Tornar-se cristão: O Paradoxo Absoluto e a existência sob
juízo e graça em Søren Kierkegaard. 2007. 247 f. Tese (Doutorado em
Teologia) – Escola Superior de Teologia, Instituto Ecumênico de Pós-
Graduação em Teologia, São Leopoldo, 2007.
TILLICH, Paul. Teologia da Cultura. Tradução de Jaci Maraschin. São
Paulo: Fonte Editorial, 2009.
WEGNER, Uwe. A dialética entre lei e evangelho à luz do Novo
Testamento: inferências homiléticas. Estudos Teológicos. São Leopoldo,
ano 45, n. 2, p. 141-165, 2005.
Rudolf Otto e o mistério
de seu legado para
as ciências da religião
Carlos Eduardo B. Calvani
:: 109 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Terei eu anunciado ou falado alguma coisa digna de Deus?

Na verdade eu apenas desejei falar;

mas se falei, não disse o que desejaria ter dito.

O que sei a respeito, a não ser que Deus é inefável?

Se o que eu disse foi inefável, então eu não o poderia ter dito.

Por causa disso Deus não poderia ser considerado


inefável, pois quando eu falei dele eu disse alguma coisa.

E então criou-se certa contradição, posto que é inefável


o que não pode ser dito, resultando daí que não será
inefável o que chamamos de inefável.

Esta contradição deve ser suplantada pelo silêncio


em vez de ser resolvida verbalmente. (Agostinho)

Há na Religião algo de eterno destinado a sobreviver


a todos os símbolos particulares nos quais o
pensamento religioso se envolveu sucessivamente.

(Émile Durkheim)
:: 110 :: De Lutero a Otto

Introdução
A recepção do pensamento de Rudolf Otto no Brasil é marcada por alguns
problemas que prejudicam a abordagem de seu pensamento. Embora a
obra de Otto tenha inegavelmente marcado época nos estudos de religião,
a mesma aos poucos foi questionada e gradativamente desacreditada
por parte de alguns pesquisadores. Em alguns contextos, mais ligados a
teologias confessionais ou a tendências esotéricas como a “nova era”, Otto
é imediatamente invocado a partir do pressuposto que seu mais conhecido
livro – Das Heilige – abre portas para que a transcendência invada a
imanência; em outros contextos, Otto é imediatamente desqualificado
e denunciado como traficante de conceitos teológicos em uma obra
supostamente fenomenológica.
Essas discrepâncias são compreensíveis. No Brasil, alguns conceitos de
Otto foram rapidamente abraçados e utilizados de modo apressado, como
se já estivessem suficientemente esclarecidos. Tal fato chamou a atenção
de pesquisadores alemães que trabalharam ou ainda trabalham no Brasil,
como Hermann Brandt e Frank Usarski. Este sintetizou uma série de críticas
desenvolvidas à fenomenologia da religião na Alemanha, associando
Otto a essa corrente e rotulando sua obra como uma “criptoteologia”
(USARSKI, 2004). O artigo de Usarski recebeu uma forte réplica da parte
de Ribeiro (2006), que oferece de modo pontual, uma clara distinção entre
a obra de Otto e a fenomenologia da religião. O texto de Ribeiro, porém,
muito longe de defender Otto, também o desqualifica como referencial
para as ciências da religião.
Usarski e Ribeiro estão corretos na identificação de um problema – o abuso
que se faz da obra de Otto, especialmente a utilização de seus principais
conceitos – o sagrado e o numen (ou numinoso) – para camuflar um
discurso teológico de matriz cristã, operando uma espécie de contrabando
teológico infiltrado em um conceito aparentemente neutro. Essa avaliação
não é de modo algum leviana, pois em muitas faculdades de teologia,
principalmente ligadas a igrejas evangélicas, Otto é utilizado para
fundamentar cursos de missiologia conversionista e apologética e não
são poucos os estudantes que utilizam a expressão “o sagrado” como um
equivalente mais nobre para “Deus”, tentando encontrar uma maneira
de infiltrar nas universidades o deus no qual o grupo professa crer. Este
:: 111 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

“deus” específico, agora disfarçado de conceito científico, ganharia uma


nova nomenclatura e estaria pronto para ser invocado como a essência
oculta de todos os fenômenos religiosos.
A crítica de Usarski é correta nesse ponto; porém um tanto injusta em
relação às motivações de Otto e ao conjunto de sua vida e obra. Ou seja, o
julgamento é válido em relação ao modo como os conceitos de Otto foram
apropriados por um ramo específico de estudiosos da religião. Afinal, a
expressão “o sagrado”, parece estar um tanto inflacionada, na medida em
que é utilizada como um carimbo para autenticar preocupações diversas.
Assim, “o sagrado” aparece em títulos de livros e artigos associados a
pesquisas em torno de literatura, música popular, cinema, pintura, dança,
teatro, carnaval etc., mas pouco é evocado em pesquisas empíricas ou
em estudos de instituições e discursos religiosos. Aparentemente, há por
parte de alguns, um anseio por identificar “o sagrado” muito mais em
manifestações artísticas e culturais que propriamente em instituições ou
fenômenos autodeclarados como religiosos. Tal avaliação não desqualifica a
pesquisa de colegas com esses interesses teóricos, até porque eu também me
incluo no grupo daqueles que perguntam pela religião ou seus resíduos em
âmbitos tradicionalmente avessos ou refratários a qualquer sistema religioso
institucionalizado. A questão é outra – quando nos servimos dos termos
“sagrado” ou “numen”, temos em mente exatamente o mesmo que Otto?
Por isso um simpósio dedicado ao pensamento de Otto à luz dos 100 anos
de publicação de Das Heilige é bastante promissor. Por um lado, a temática
anuncia que, de modo algum, a obra de Otto está totalmente superada
ou defasada. Ela ainda reclama de nós uma séria reflexão em torno dela
mesma e não apenas em torno dos que utilizam seus conceitos. Não se trata,
certamente, de uma “volta a Otto” a fim de resgatar seu projeto particular,
mas do exercício de compreender Otto, sua vida, suas motivações, sua
fundamentação teórica, a repercussão de sua obra até o início dos anos
50, os motivos do declínio de interesse pela mesma no pós-guerra e uma
crescente revitalização nos estudos ottonianos em anos recentes.
O presente texto pretende apenas sugerir alguns pontos que me estimulam
a propor uma reflexão mais profunda sobre a obra de Otto, bem como
alguns desafios que ela ainda nos lança.
:: 112 :: De Lutero a Otto

O legado intelectual da obra


de Otto ainda não está esgotado
Servindo-me de uma metáfora extraída da economia brasileira atual,
eu diria que a herança de Otto permaneceu oculta em uma espécie de
conta inativa na qual ainda há algum crédito a ser resgatado. Nos anos
seguintes à publicação de Das Heilige, o conceito central foi utilizado por
autores como Gerardus van der Leeuw, Joachim Wach, Friedrich Heiler e
outros. Seus resíduos atingiram Jung e Eliade. Contudo, inadvertidamente
ou apressadamente, Otto foi associado à fenomenologia da religião e
a abordagens posteriores que extrapolaram o núcleo essencial de seu
pensamento. A forte reação da escola italiana de história das religiões
contra a fenomenologia, aliada ao fortalecimento da teoria da secularização
contribuiu para que Otto aos poucos fosse considerado antiquado e
superado. Nos anos posteriores à 2ª guerra, havia certa segurança de que
os discursos religiosos não mais interfeririam na política mundial e nos
ideais de progresso e civilização da modernidade. Tudo isso contribuiu
para que a obra de Otto fosse aos poucos acumulando poeira nas
bibliotecas. O foco de muitos cientistas da religião nos anos 60 em diante
deslocou-se para estudos empíricos, históricos, à efervescência de surtos
religiosos em sociedades secularizadas ou às relações entre religiosidades
e política. Era mais importante compreender as religiões concretas e sua
especificidade, deixando de lado preocupações sobre o que se quer dizer
realmente com a palavra “religião”.
Essa fase coincide com o surgimento das ciências da religião no Brasil,
e que envolveu considerável número de teólogos associados de algum
modo à teologia da libertação. Alguns desencantados com suas instituições
religiosas de origem, mas ainda motivados a perguntar pelo papel da
religião e da teologia em uma sociedade em transformação, elegeram a
sociologia, a economia ou a política como principais interlocutoras da
teologia. Consequentemente, nossa área no Brasil sempre foi marcada por
uma ênfase mais empírica. Preocupações teológicas ou metafísicas foram
suspensas em prol do que se anunciava como mais urgente: refletir sobre
a utilidade das religiões concretas, considerar a influência das ideologias
políticas nos discursos religiosos e na prática das igrejas, compreender
a religiosidade popular e suas trocas simbólicas etc. Essa característica
:: 113 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

imprimiu sobre a ciência da religião no Brasil um “componente militante”


(GROSS, 2012, p. 19) com referenciais analíticos extraídos do diálogo com
as ciências sociais (GROSS, 2012, p. 20) e certo distanciamento da teologia,
da filosofia da religião e da fenomenologia da religião. Tal situação indica
que “a ciência da religião no Brasil ainda não se defrontou profundamente
com a questão do objeto que é seu tema” (GROSS, 2012, p. 22).
Em outros contextos, porém, alguns setores – minoritários, é verdade
– continuaram a refletir sobre o significado desse termo tão vago –
“religião”. Em 1996, Thomas Idinopulos e Edward Yonan editaram
uma coletânea reunindo ensaios que discutem a viabilidade da ideia do
sagrado em geral e do conceito do numinoso em particular como recurso
para os estudos contemporâneos de religião. Recentemente uma revisão
de literatura foi empreendida por Stuart Sarbacker (2016). Após mapear
a utilização do conceito de numinoso nas obras de Jung, Eliade e Ninian
Smart, o autor enumera pesquisas recentes indicando que o vocabulário
de Otto continua muito presente em pesquisadores de uma nova geração
com interesses diversos, desde as religiosidades orientais e a “nova
era” à nebulosa área da mística, passando pela revisão da consistência
filosófica da teoria de Otto. A bibliografia é vasta, mas podemos lembrar
ao menos estudos importantes como os de Philip Almond (1983, 1984),
Gregory Alles (1996, 2014), Alonda Oubré (1997), Todd Gooch (2000),
e até mesmo estudos feministas de Melissa Raphael (1997). O próprio
Sarbacker é pesquisador das religiosidades hindus e indo-tibetanas e alia-
se àqueles que compreendem que a teoria de Otto conserva possibilidades
teóricas ainda não suficientemente exploradas para uma aproximação
mais compreensiva de certas formas de religiosidade em novos contextos.
Sarbacker conclui que:
o estudo das teorias de Otto permanece, senão vibrante, ao menos
altamente viável para debates sobre teoria e método no estudo da
religião, particularmente no que diz respeito às discussões sobre a
experiência religiosa e a concepção da religião como algo sui generis,
único e irredutível a análises reducionistas (SARBACKER, 2016, p. 14).

No Brasil, uma nova geração de estudantes tem defendido dissertações e


teses concentradas na obra de Otto ou que, de algum modo, resvalam em
seu pensamento (SANTOS, 2012; SOUZA, 2013). Ainda assim, para muitos
:: 114 :: De Lutero a Otto

estudantes brasileiros, Otto permanece como autor de uma obra só, o que
prejudica uma avaliação mais precisa de seu pensamento. Certamente,
Das Heilige marca o momento mais significativo de sua carreira. Porém,
muitos estudantes no Brasil que se apressam em citá-lo, apenas decoraram
a pronúncia de conceitos-chave e algumas noções gerais. Muitos, porém,
não conhecem outras obras de Otto ou a extensão de seus interesses teóricos
que passam pela teologia de Lutero e Schleiermacher, a filosofia de Kant
e do neokantiano Jakob Fries, o conceito de graça no cristianismo e no
hinduísmo, estudos sobre a experiência mística, comentários ao Bhagavad-
Gita, cristologia e história das religiões. A riqueza dessa produção não pode
ser negligenciada e ela nos impede de emitir juízos tão severos e apressados
sobre um autor pouco conhecido no Brasil. Como afirmarei adiante,
o problema não é a obra de Otto, mas em que lugar a situamos – como
fenomenologia, teologia ou filosofia da religião, bem como seu potencial
enquanto referencial teórico para os estudos de religião.

Uma avaliação justa de Otto


passa pela compreensão de seus
interesses teológicos
Grande parte das críticas a Otto sustenta-se na acusação de que ele
faz teologia, não propriamente fenomenologia da religião, e que seu
pensamento está eivado de uma experiência protestante. Gasbarro assim
a resume: “a teoria de R. Otto é de derivação teológica, ou melhor, é
uma espécie de generalização perceptiva e transcendental, inteiramente
protestante, da subjetividade cristã, através da experiência da criatura”
(GASBARRO, 2013, p. 81). De fato, Otto nunca negaria tais vínculos
afetivos. Afinal, nenhum pensador elabora seus conceitos, artigos e livros
no vácuo, pressupondo-se como uma tábula rasa imune a quaisquer
influências familiares e vivenciais dadas em sua história particular. Por
mais que se busque um pensamento asséptico e depurado de influências
da vida pessoal ou da história, certas situações inevitavelmente deixam
marcas e cicatrizes no pensamento. Reconhecer esse fato é importante
para humanizar qualquer pesquisa, pois sempre que nos dedicamos
a compreender um autor, nunca estamos diante de um “pensamento
:: 115 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

abstrato ambulante”. Imaginar isso é incorrer em um idealismo fraco com


pretensões de generalizações fortes. Para evitar uma extensa e cansativa
seção histórico-biográfica, resumo aqui o que me parece mais importante
destacar de sua vida.
Otto era protestante-luterano como também o foram muitos filósofos
da época. Sua vinculação religiosa, porém, era bem mais que um dado
cultural. Era um forte dado existencial que sinalizava não apenas para
uma fé crida (fide quae), mas para uma fé pela qual se crê (fide qua), e
que se tornou um componente vigoroso de sua personalidade. Ele teve
formação pietista em uma época de ascensão do romantismo alemão. É
desnecessário comentar o que esses dois movimentos representaram para
a cultura alemã. Basta lembrar que o romantismo reagiu aos excessos da
exaltação da razão por parte dos iluministas, reclamando a força da paixão,
do sentimento, da vitalidade e da sensibilidade estética. Na mesma época,
tais demandas também eram reivindicadas no campo religioso pelo
pietismo, cansado e saturado daquilo que consideravam aridez religiosa
na ortodoxia luterana. O movimento pietista – Tillich já o demonstrou –
longe de ser mero sentimentalismo, desenvolveu um salutar protesto à
redução das questões religiosas à moral ou à capitulação intelectual ao
dogma. A síntese desse pano-de-fundo romântico e do vigor religioso
pietista se encontra na obra de Schleiermacher, uma das principais fontes
teóricas de Rudolf Otto.
Otto sempre quis ser pastor. As questões teológicas para ele nunca foram
apenas teóricas, mas absolutamente sérias. Foi licenciado, colaborou em
atividades pastorais e foi membro do parlamento prussiano na República
de Weimar. Após um conflito que lhe rendeu uma disciplina eclesiástica,
tentou pastorear uma comunidade alemã na França. As portas se fecharam,
mas ele ousou ainda mais: voluntariou-se a ser missionário na China e
pediu a seu amigo Ernst Troeltsch, que na época fazia parte da diretoria
de uma sociedade missionária, para interceder em seu favor. Troeltsch
demoveu-o dessa ideia e o incentivou a prosseguir carreira acadêmica
como professor de teologia sistemática ou de filosofia da religião. Hanna
Tillich, em sua autobiografia comenta que em Marburg, Rudolf Otto e
Paul Tillich esboçaram projetos para renovação litúrgica nas igrejas
luteranas. Hanna não afirma, mas imagino que ambos acompanhavam
o fortalecimento do movimento litúrgico da época, liderado por Odo
Casel e Dom Gregory Dix e que muitos frutos renderam ao movimento
ecumênico e ao Vaticano II. Ao final da vida, participou de um projeto para
a criação de um museu de objetos religiosos na Universidade de Marburg
:: 116 :: De Lutero a Otto

doando várias obras adquiridas em suas viagens ao Oriente. Rudolf Otto


não pode ser compreendido sem esse pano de fundo. Os limites da sua
linguagem são os limites do seu mundo.
Dentre suas primeiras preocupações teóricas dois nomes se destacam:
Lutero e Schleiermacher. Sua primeira obra mais consistente foi o estudo
sobre a concepção do Espírito Santo em Lutero (1899). No mesmo ano, foi
o responsável pela reedição de Über die Religion, obra comemorativa dos
100 anos da primeira edição do texto de Scheleirmacher e escreveu uma
introdução ao livro. Em 1903 publicou um artigo no qual se perguntava
“Como Schleiermacher redescobriu a Religião?”. Trago esse destaque em
virtude do fato de que, na época, a legitimidade de uma atitude religiosa
frente ao mundo já recebia ataques de vários flancos. Se Lutero é adotado
como critério teológico, o interesse por Schleiermacher é motivado pelo
conceito de Gefühl (sentimento de dependência). No artigo de 1903,
Otto fundamenta-se no argumento de que a essência da religião não é
pensamento, dogma ou atividade prática, mas intuição e sentimento. O
que a religião aspira é outra coisa – intuir o universo, observá-lo de modo
piedoso e reverente em suas próprias manifestações, ser impressionada
e plenificada por uma magnitude inatingível às limitações da razão.
Tillich (2000, p. 259) observou que Otto não inventou arbitrariamente o
conceito de “numen”, mas que o recuperou de Calvino. Possivelmente
via Schleiermacher que, ao contrário do que muitos pensam, não era
luterano, mas reformado-calvinista. De fato, Calvino utiliza “numen”
nos comentários aos livros de II Tessalonicenses e Êxodo. Há, porém,
uma significativa diferença – em Calvino “numen” tem peso negativo,
equivalente a “ídolo”, enquanto Otto, por sua vez, esforça-se por conferir-
lhe um toque de neutralidade.
Porém, após o contato com a filosofia neokantiana de Jakob Fries,
especialmente o conceito de intuição estético-religiosa, Otto passa
a considerar Schleiermacher insuficiente, embora não o abandone
totalmente. Smith observa que:
a relação de Otto com o pensamento do Friedrich Schleiermacher é
complexa. De um lado, Otto foi claramente influenciado pelos escritos
de Schleiermacher [...] Por outro lado, a mais famosa obra de Otto, O
Sagrado, contem significativas criticas acerca da consciência religiosa
elaborada por Schleiermacher (SMITH, 2009, p. 187).
:: 117 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Sua progressiva tentativa de superação de Schleiermacher deriva-se do


encontro com a obra de Jakob Fries, para quem a compreensão humana
poderia ser dividida em três partes independentes, mas inter-relacionadas:
o conhecimento científico (Wissen), a fé racional (Glaube) e a intuição estético-
religiosa (Ahnung), termo vago que poderia também ser traduzido como
“impressão intuitiva que se tem por alguma coisa”. Dessas, as duas últimas
seriam formas mais superiores que o conhecimento científico, pois esse é
particularizado enquanto as demais intuem, subjetivamente, a totalidade e
a unidade que se encontra fragmentada no conhecimento científico.
Combinando Schleiermacher e Fries, Otto passará a afirmar que Gefühl
não é apenas um sentimento de dependência, mas de criaturalidade,
capaz de provocar um conhecimento imediato (ou seja, sem mediações)
de um mundo independente de nossas percepções, e de certo modo
inalcançável ao conhecimento empírico. Otto, porém, concordará com
Fries na tese de que, embora esse conhecimento intuitivo, imediato e
puramente racional seja superior ao conhecimento científico, não é um
conhecimento propriamente positivo. Ou seja, intuitivamente somos
capazes de perceber como as coisas são, mas não propriamente o que são.
Almond (1983) sugere que esse conhecimento racional, mas negativo, abre
enormes caminhos para a reflexão atual sobre a mística ou sobre a teologia
negativa. Se Kant estabelece os limites da razão e enquadra a religião na
moral, Otto seguindo a linha de Schleiermacher e Fries insistirá ainda
no irracional como espaço fundacional de autonomia e legitimidade da
religião. Sem o elemento irracional não há religião empírica e histórica a
ser estudada. Certamente o irracional não é tudo porque a religião só é
conhecida quando o irracional e o racional se fundem. Mas ainda assim, o
irracional é fundacional.
Nessa época a escola da historia das religiões comparadas era muito
vigorosa. Otto assume alguns de seus pressupostos metodológicos e
busca, em muitas viagens ao Oriente, testemunhos ou comprovação
empírica para sua teoria. Contudo, a experiência de campo o conduz a
uma nova fase, na qual tentará ir além do próprio Fries, pois o contato
com as religiões em seus contextos vivos nem sempre coincidia com a
moldura a priori de Fries. Ainda assim, em sua curta autobiografia de
1931, Otto escreve que:
uma combinação dos princípios de Fries com os de De Wette e de
Schleiermacher pareceu oferecer uma solução, que embora não me
pareça uma declaração oracular final, proporcionou-me um ponto
:: 118 :: De Lutero a Otto

arquimediano, um solo no qual ainda posso descansar (OTTO apud


ALMOND 1983, p. 59).

De todos esses embates teóricos, um núcleo permanece: a insistência de


que a religião não pode ser reduzida à ética, à estética, ao dogma e nem
mesmo à metafísica, e que suas fontes se encontrariam em um a priori
irracional, refratário aos alcances da razão pura, em uma unidade original
de consciência da qual procedem a razão teórica e prática. Em linhas
gerais, a religião não pode ser explicada por categorias alheias ou que
se encontrem fora dela, mas só pode ser devidamente compreendida a
partir “de dentro”. Pensar que se pode entender a religião, reduzindo-a
a conceitos derivados das ciências naturais ou sociais é perder
completamente o foco. As origens da religião estariam envoltas em um
misto de intuição-sentimento de criaturalidade e insignificância, em um
ponto-cego à razão, em uma espécie de vácuo permeado por forças muito
dinâmicas, potências à espera de atualização.
Ao longo do tempo Otto recebeu várias críticas de diferentes flancos.
Alguns filósofos o acusavam de não ter compreendido corretamente
o esquematismo kantiano; teólogos, por sua vez, já impactados pela
teologia barthiana questionavam seu interesse pela mística ou pela
história comparada das religiões, referindo-se a suas aulas como um
“templo pagão”. Alguns diziam ser impossível compreendê-lo por seu
estilo de escrita e atribuíam isso a um complexo derivado de sua teoria da
“faculdade de adivinhação”. De fato, seu estilo literário, algumas vezes é
um tanto hermético. Os biógrafos informam que sua personalidade tinha
traços bipolares que o levavam a estados de profunda angústia e depressão,
alternados por momentos radiantes como se ele mesmo estivesse acabado
de se encontrar com “o numen”. Hanna Tillich comenta sobre sua gentileza,
amabilidade e sobre seu prazer por caminhadas em trilhas e por escaladas
em montes. Em uma dessas escaladas fraturou o fêmur. As fortes dores
eram tratadas com morfina que lhe causaram uma dependência química.
Nos últimos anos de vida, foi acometido por complicações diversas de
saúde, aliadas ao desejo de viver uma experiência espiritual arrebatadora
como a de Paulo no caminho de Damasco. Joachim Wach escreveu que
“às vezes era como se, quando falava, ele visse algo que outros não viam”
e o considerou “impressionante em sua retidão, como um verdadeiro
místico” (WACH, 1951, p. 201 apud MOK, Daniel, 2012, p. 13).
:: 119 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Essa declaração de Wach nos ajuda a compreender o estilo da escrita de


Otto – às vezes de uma clareza quase ingênua e infantil, outras vezes
impenetravelmente confuso, como se escrevesse envolto no impacto de
uma forte experiência, motivado por uma tentativa racional de explicar o
inexplicável, de esclarecer o que para ele mesmo já era tão luminoso que
o cegava, pela necessidade de escrever algo, mas sem encontrar palavras
para dizer o que não pode ser dito e que, para ser coerente consigo
mesmo não poderia ser elucidado. O próprio Otto, examinando o que ele
denomina “sensação do mysterium tremendum”, a associa a
uma suave maré a invadir nosso ânimo num estado de espírito a
pairar em profunda devoção meditativa (...) mas também pode eclodir
do fundo da alma em surtos e convulsões. Pode induzir estranhas
excitações, inebriamento, delírio, êxtase. Tem suas formas selvagens
e demoníacas. (...) Dizemos isso para pelo menos dizer alguma coisa.
Imediatamente, porém, fica evidente que com isso, a rigor, não estamos
dizendo coisa alguma (OTTO, 2007, p. 44-45).

Aí reside o fascínio e a ambiguidade de toda mística – se a experiência


mística se dá com o que é indefinível, inconcebível, incompreensível e
incomunicável, nada poderia ser dito, escrito ou cantado. Conforme o
próprio Otto, “nem mesmo a mística, ao chamá-lo de árreton [inefável]
queria dizer que ele não seria apreensível, senão ela só poderia consistir
em silêncio. Mas justo a mística geralmente foi bastante loquaz” (OTTO,
2007, p. 34).
Essa verborragia dos místicos dá-se porque a mística responde a
uma intenção mais de sentido que de significado, ou seja, não busca
concordância com a realidade, mas com a experiência. Otto continua a
nos desafiar e a nos perguntar se ele não deveria ser lido com outros olhos
– alguém que, por circunstâncias diversas, tornou-se teólogo e filósofo da
religião, mas para quem era impossível separar e esterilizar o pensamento
teórico de uma forte e positiva experiência religiosa. Talvez por isso Otto
nos desafie tanto: ele nos coloca diante de uma quase-aporia no campo
das ciências humanas – nosso drama é tentar fazer ciência em torno de um
“objeto” que fala (por si ou por outros), ou seja, por discursos religiosos
redigidos por pessoas motivadas por experiências e que ao longo de anos
se reinterpretam, ora se contradizendo ora se reafirmando. Na década
:: 120 :: De Lutero a Otto

seguinte à publicação de Das Heilige, Tillich observará que o problema


fundamental da filosofia da religião é defrontar-se com um “objeto” que
resiste a ser tornado objeto da filosofia. (TILLICH, 1987, p. 117).
Em resumo, Otto de fato é teólogo. Seus interesses filosóficos decorrem de
motivações teológicas e existenciais. Essas, porém, não são particulares
a ele. Se o fossem, seu nome sequer seria lembrado ao longo dos anos.
Porém, suas preocupações reverberam e ecoam ainda hoje porque apesar
de a ciência, na modernidade, ter se afirmado como o conhecimento
seguro e definitivo, muitas pessoas continuam a se perguntar por sentido,
por um conhecimento com sabedoria, por uma ciência que seja também
sapientia, e se recusam a admitir que a palavra “vida” e tudo o que ela
implica se reduza a simples conexões químico-biológicas.

A herança de Otto para a teologia


e as ciências da religião no Brasil
A recusa por parte de alguns de nossos colegas a considerar Otto um
fenomenólogo da religião é justa. Para o futuro da clareza conceitual
em nossa área, é preciso desvincular Rudolf Otto da fenomenologia da
religião. Essa associação foi muito apressada, mas o próprio Otto nunca
afirmou estar desenvolvendo uma fenomenologia da religião, embora
certamente no seu horizonte e nos seus ouvidos ecoassem os debates em
torno de Husserl e as primeiras obras de seu colega Heidegger.
De fato Otto não faz uma fenomenologia da religião. Com as limitações
de seu tempo e os condicionamentos de sua personalidade e formação,
sentiu-se desafiado no plano teórico a compreender o fenômeno religioso
a partir de uma aproximação entre filosofia e teologia. Porém, sua filosofia
da religião traz inequívocas marcas teológicas impossíveis de serem
eliminadas. Tomar os textos de Otto e tentar isolar como que quimicamente
em dois tubos de ensaio o que é filosófico e o que é teológico resultaria em
total desfiguração de sua proposta, tornando-a irreconhecível. E ainda que
isso pudesse ser realizado, o mesmo “método”, por assim dizer, deveria ser
também aplicado a outros pensadores do século XX. Tenho em mente os
pressupostos jesuítas de Heidegger, a raiz judaica de Lévinas e Derrida, o
pano-de-fundo cristão de René Girard e Vattimo, a declarada vinculação de
Gadamer ao protestantismo alemão (GADAMER, 200, p. 221) ou de Roger
:: 121 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Bastide e Pierre Verger ao candomblé. Todos esses autores são altamente


respeitados, mas Otto é sempre acusado de “criptoteologia”. Por que a
acusação de “falta de neutralidade” ou de “objetividade” é tamanha para
com Otto e não para com outros autores? Talvez isso se dê por alguma
espécie de neurose ou teofobia para com pesquisadores que não afastam
in totum et totaliter a hipótese religiosa ou transcendental. Chamo aqui
de “teofobia” as reações inconscientes que se operam primeiramente no
irracional perante qualquer menção a pesquisadores que mantém ao menos
como uma suposição, a hipótese do divino ou premissas e argumentos
teológicos. Huff bem o expressa – “Trata-se da busca por uma ciência laica,
bem ao gosto de certo laicismo franco-brasileiro, que supostamente conduz
à neutralidade. Ou seja, para se estudar religião não é possível assumir
a hipótese religiosa, mas sim o projeto moderno racionalista. Esta seria a
premissa da cientificidade (...) Irracionalismo aqui talvez traduza o medo
da categoria sagrado (HUFF, 2012, p. 36).
Particularmente, a acusação de “criptoteologia” contra Otto é até suave
porque sua filosofia da religião não é de modo algum “criptoteológica”.
Trata-se claramente de uma filosofia religiosa da religião, à semelhança
da filosofia de Schelling, ou seja, uma filosofia que assume pressupostos
religiosos como um desafio teórico e autocrítico altamente comprometido
e apaixonado. Embora reconheça todas as críticas a Otto, não estou
convencido de que o fato de ser protestante, luterano e pietista, o
torne indigno de dizer algo relevante sobre a religião. Certamente tais
condicionamentos podem – e devem – ser relativizados, mas a premissa
geral desse argumento é muito frágil.
Dentre as muitas críticas dirigidas a Otto ressalto aquela que o acusa de
buscar o que já tem ou o que já espera encontrar. Ou seja, sua experiência
particular é seu critério de verificabilidade. Desse modo, tudo o que ele
encontra deve passar por um crivo, e o controle de qualidade é dado
por sua própria tradição cristã, tendo Lutero como referencial. De fato, é
muito difícil contestar essa crítica. Tudo indica que ela é válida. A questão,
porém, é se perguntar até que ponto a eleição desse critério protestante-
luterano inviabiliza ou desqualifica o ponto fulcral do pensamento de
Otto – o elemento irracional. Ou seja, Otto pode ser acusado, sim, de
extrapolar os limites de seu próprio método, mas sua insistência em um a
priori irracional como espaço fundacional e na impossibilidade de explicar
:: 122 :: De Lutero a Otto

a religião por outras variantes, que não suas próprias, permanece como
um sério desafio teórico.
Essa ponderação nos leva a alçar novas perguntas. Se Otto não é apenas
filósofo da religião, mas também teólogo e sua filosofia é religiosa, o debate
em torno de seu legado assume outros contornos. Torna-se um debate
sobre o lugar da teologia em meio ao conjunto de disciplinas que dão
forma à(s) ciência(s) da religião. No Brasil há vozes que, seguindo Greschat
advogam uma separação total entre teologia e ciência da religião, o que
permitiria a teólogos ocuparem-se tão somente de religiões diferentes
daquela na qual foram educados ou que os constituíram enquanto
pessoas. Para Greschat, somente esse distanciamento permitiria um olhar
mais objetivo sobre a religião concreta a ser pesquisada e examinada.
Outros preferem definir teologia como a compreensão da linguagem de
fé de um determinado grupo religioso, um esforço hermenêutico sem
a preocupação de se perguntar se essa linguagem é positiva, assertiva
ou mero “jogo de linguagem”. Otto é ameaçador porque não está em
nenhuma dessas áreas. Ele sabe que é teólogo e não renuncia a esse
dado. O problema central da simpatia ou antipatia a Otto é seu declarado
posicionamento teológico e confessional. Mas isso nos leva a questionar
também os nossos – teísta, ateísta, panteísta, agnóstico etc. Otto, no fundo,
sem desejar fazê-lo, nos pergunta: “e então, estudiosos da religião – quais
suas premissas? As minhas são essas!”
Essa questão assume contornos metateóricos sobre o estatuto
epistemológico da(s) ciência(s) da religião no Brasil. A própria confusão
em relação ao plural é sintomática, e talvez nos leve, no futuro, a discutir
com mais propriedade o que entendemos por “ciência”. Por isso, Huff
pergunta: “assumiremos, após toda a crise moderna da teologia e pós-
moderna da produção de conhecimento, a visão de mundo já canônica
de matriz relativista-laicista-moderna da qual está imbuída a perspectiva
antiessencialista?” (HUFF, 2012, p. 37)
Eduardo Gross, por sua vez, observa que,
infelizmente, a consciência da necessidade do conhecimento das questões
teológicas fundamentais colocadas no âmbito da discussão filosófica
tradicional ainda não faz parte de todos os currículos dos programas
de ciência da religião. Por não querer lidar com questões metafísicas,
:: 123 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

estas são tratadas como se não fossem questões. Nesse sentido, não é
necessária aqui uma distinção nítida entre teologia e filosofia da religião.
Esta última se desenvolveu, ao menos no ocidente, particularmente no
âmbito da discussão teológica. Assim como a crítica da religião por parte
da filosofia se expressou como filosofia crítica da tradição teológica. De
modo que é difícil separar de modo estrito onde inicia a filosofia da
religião e onde começa a teologia. (GROSS, 2012, p.23)

A apreciação de Gross é correta, embora só mencione a crítica da religião


por parte da filosofia, não aludindo à crítica da filosofia ou da ciência
por parte da religião, presente já nas 95 teses de Lutero, em Barth, Tillich
e outros autores ocidentais e orientais. A persistência da religião em
sociedades ditas “secularizadas” e científicas continua a ser incômoda
e, ao mesmo tempo, desafiadora. O conceito de ciência, tal como se
desenvolveu na modernidade e no positivismo, com sua profunda aversão
à metafísica e a tudo o que não seja empírico, calculável e previsível, limita
o conhecimento humano à materialidade e tem extremas dificuldades
em compreender a antiguidade e permanência da premissa religiosa em
todas as culturas. Essa premissa é imediatamente anulada e considerada
como impura ou indigna de figurar, ao menos como hipótese, para aquilo
que constitui as ciências humanas – o próprio ser humano, com todas as
suas contingências, buscas, anseios, necessidades e provisórias certezas.
Hermann Brandt, ao comparar as diferentes percepções sobre
fenomenologia da religião na Alemanha e no Brasil, percebe que esse
assunto evoca uma questão crucial: “é possível ocupar-se da religião
de forma científica e, ainda assim, continuar sendo religioso? E o que se
vai dizer da plausibilidade de uma investigação científica de fenômenos
religiosos in vitro, ou seja, sem identificação emocional?” (BRANDT, 2006,
p. 135), e conclui que:
as discussões controvertidas sobre a fenomenologia da religião
mostram justamente isto: não é possível pesquisar seu “objeto” – a(s)
religião(ões) que se nos mostram – sem prestar contas dos pressupostos
próprios de cada projeto de pesquisa e sobre os motivos condutores das
pesquisadoras e pesquisadores (BRANDT, 2006, p. 149).
:: 124 :: De Lutero a Otto

É como se Otto, sem o desejar, tenha carimbado os estudos de religião


com um enorme ponto de interrogação cuja tinta até hoje não se dissolveu
– quando falamos de religião, estamos falando, afinal, de quê?
Muitos que trabalham com ciências da religião no Brasil têm sua
formação inicial na teologia. Porém, o ambiente acadêmico brasileiro
é tradicionalmente avesso à teologia por entendê-la apenas como um
discurso eclesial, dogmático ou pastoral; ou seja, compreendem a palavra
teologia da mesma maneira que o senso comum o faz. Há colegas de
outras áreas no mundo acadêmico que enxergam os teólogos e as teólogas
como indesejáveis intrusos que conseguiram encontrar alguma brecha
para penetrar em um ambiente que não lhes pertence. Já ouvi insinuações
de que a exigência de formação em teologia e/ou ciências da religião em
um edital de concurso público em Universidade é indício de um projeto
teocrático para o Brasil.
Meu questionamento é se essa insistência em depurar as ciências
da religião de qualquer vestígio teológico e afirmá-la como ciência
puramente empírica e posteriormente sistemática, mas sem preocupações
metafísicas, ou indiferente aos dados da experiência sensível e racional
não nos conduzirá ao próprio esvaziamento do sentido de ser de nossa
área. Essa observação foi muito bem explicitada por Gross:
o uso de definições puramente operacionais acarreta a diluição do
objeto, o que implica a destruição da própria área de estudo. Estudos
sociológicos apresentam a religião enquanto uma função da sociedade,
estudos psicológicos enquanto função da psique, estudos históricos
enquanto função do contexto. Mas qual o sentido, então, de se estudar a
religião enquanto tal? Na verdade, volta-se à situação antiga, em que as
ciências positivas analisam o seu objeto específico, que ocasionalmente
pode envolver a questão religiosa. A religião se dilui em suas várias
facetas. O que não é um problema para um pesquisador de áreas de
estudo particulares. Mas se torna um problema para a constituição de
uma área própria de pesquisa, que deixa de ter uma finalidade se seu
objeto não for específico. (GROSS, 2012, p. 24)

Corroborando a mesma perspectiva, Huff questiona a recepção apressada


e pouco reflexiva de modismos pós-modernos ou pós-estruturalistas
nos estudos de religião, e assevera: “o resultado desse fenômeno é a
:: 125 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

percepção da religião como algo outro: política, mercado, ideologia,


discurso etc. Nessa perspectiva, o cientista da religião deve entender mais
deste “outro” que da tradição ou tema religioso que se propõe a estudar”
(HUFF, 2012, p. 28)
É evidente que tais observações não podem ser invocadas para
desqualificar o trabalho sério de colegas dedicados às pesquisas de
campo, à historiografia, à sociologia da religião ou à antropologia da
religião. Mas uma das provocações deixadas por Otto é justamente esta –
se ignorarmos o dado propriamente religioso, o que resta para as ciências
da religião? É claro que ainda será possível reconstruir detalhes da história
de uma instituição religiosa, de seus discursos, do caráter ideológico e
das consequências políticas e sociais dos mesmos, bem como elucidar os
conflitos de classe envoltos na religiosidade popular ou em instituições
religiosas. Mas se nos recusamos a perguntar pelo propriamente religioso,
pelo a priori disso tudo, pela essência das motivações e das reações
religiosas, qual o sentido em estudar os fenômenos religiosos?
Finalmente, devo dizer que não é meu propósito defender Otto. Ele não
precisa de minha defesa. Sua obra tem valor suficiente para nos incomodar
mesmo 100 anos depois da publicação de Das Heilige e quase 120 anos da
publicação de seus primeiros estudos sobre Lutero e Scheleiermacher.

Considerações finais
Vários comentaristas já observaram que Das Heilige foi tão calorosamente
recebido em 1917 em virtude do clima de insegurança e instabilidade
motivado pela guerra e pelas constantes e crescentes críticas acumuladas
à religião desde Marx, Feuerbach, Freud e Nietzsche, o que favorecia uma
atmosfera de ateísmo lógico na Europa – ou seja, concluímos que Deus
não existe, que não há transcendência, nem fundamentos. Nesse caso, o
texto de Otto traria certo alívio e esperança para leitores indispostos a
acompanhar a teologia neo-ortodoxa de Barth com seu “positivismo da
revelação” (Bonhoeffer). Ou seja, entre o barthianismo e o materialismo, o
texto de Otto representaria uma terceira via. É uma teoria bem razoável,
posto que as turbulências da época (Otto redige e publica seu texto
em 1917, durante a guerra) faziam com que o irracional saltasse aos
:: 126 :: De Lutero a Otto

olhos. A tematização do irracional atingia também as artes através do


expressionismo na pintura e em certas ênfases de Kafka na irracionalidade
(A Metamorfose) e no absurdo de uma personagem processada e condenada
por forças desconhecidas (O Processo, embora só publicado após a morte
do autor, foi escrito entre 1914 e 1915).
Essa percepção da atmosfera cultural europeia da época levou Guacaneme
(2010) a sugerir, a partir do famoso trecho que inicia o capítulo 3 de Das
Heilige – quando Otto convida o leitor a evocar uma experiência de forte
excitação religiosa, e desestimula a continuidade da leitura para quem
nunca tenha experimentado tais momentos (OTTO, 2007, p. 40) – que
Otto não pretendia apenas oferecer uma resposta ao ateísmo teórico, mas
a algo mais preocupante – o niilismo e o ateísmo prático e sentimental –
não apenas “saber” ou concluir que Deus não existe, mas sentir que não há
fundamentos, que só nos resta o niilismo ou o absurdo e o nada.
Ao invocar o “fundo da alma” (fundus animae), conceito oriundo da
literatura mística e assumido por van der Leeuw (“o fundus animae é o
lugar onde Deus e a alma são uma só coisa, a única e a mesma. O fundo
da alma é a última representação possível”, LEEUW, 1975, p. 151), Otto
ousa, para horror da teologia neo-ortodoxa da época, dar lugar para uma
mística unitiva e apontar para um abismo fundamental. Se é abismo, não
tem fundamento, não tem fundo, não tem fim. É buraco-negro, mistério
total, a nadificação extrema do nada. Mas exatamente aí reside o mistério
do irracional e das religiões – como é possível, algo brotar do nada? Como
é possível tamanha criatividade religiosa nas religiões concretas com
todas as suas ambiguidades, se elas se fundamentam em nada ou se nada
as fundamenta? Creatio ex-nihilo diria a teologia cristã? Não sei, e duvido
de quem afirme já saber ou já tenha respostas prontas.
Otto, no fundo nos coloca diante do mistério da experiência religiosa da
qual emergem as religiões concretas.
Mysterium Tremendum. Mysterium fascinans.
:: 127 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

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A especificidade e a autonomia
da religião em Rudolf Otto
Frederico Pieper
:: 131 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

“Quando eu terei explorado toda a história santa,

Que ainda me restará?

Ó dogmas, porque sois tão claros”

(Murilo Mendes. O novo céu e a nova terra)

“A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem


que submeter-se.

A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua


majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas
então suscitam contra ela justificadas suspeitas e não
podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede
a quem sustentar o seu livre e público exame”

(KANT, Crítica da razão pura, AXII).


:: 132 :: De Lutero a Otto

Introdução
Um dos objetivos deste livro é pensar sobre um texto clássico da área de
Ciência da Religião. Aliás, se Lutero é um nome que desperta interesse por
sua personalidade e biografia (além, é claro, por sua obra), Otto nos afeta
enquanto autor de um texto: O sagrado. Se após 100 anos ainda encontram-
se lugares onde se discute tal texto, isso parece ser uma evidência de que
não estamos diante de um livro dentre outros, mas que já foi elevado à
categoria de uma obra clássica.
Uma obra clássica é aquela que, de um lado catalisa os grandes temas,
angústias e questões de seu tempo. Assim, alguns entendem a euforia em
torno de O sagrado a partir da onda irracionalista que tomou conta da
Alemanha após a Primeira Guerra Mundial28. Entrementes, o que confere
vivacidade à obra não é aquilo que ela arregimenta de sua época, mas os
horizontes que abre para além do contexto mais imediato. Ela se insere
em sua época, mas, por diversos motivos, ilumina o horizonte por vir,
apontando por caminhos passíveis de serem trilhados. Essas sendas são
acenadas não tanto pelas soluções que uma obra clássica postula, mas
também pelas questões que levanta.
Por isso mesmo, nem sempre obras que recebem esse reconhecimento são
prontamente aceitas consensualmente. Aliás, no caso da obra em questão,
ela se inseriu numa zona complexa. De um lado, parecia comprometida
por demais com a tradição teológica protestante, o que denuncia os
limites de se tomá-la como chave de leitura do fenômeno religioso em
sentido mais amplo29. Já teólogos como Rudolf Bultmann julgavam-na

28  Vale lembrar que o texto de Otto logo foi traduzido para muitos idiomas, o que permite
questionar esta explicação de caráter mais circunscrito do grande sucesso de O sagrado.
Poucos anos depois, em 1929, era publicada sua 22ª edição. Para análise mais detalhada
deste tema, mostrando a relação do pensamento de Otto com este momento de crise na
Alemanha, cf. Gooch (2000, 2000, p. 132-159).
29  Quase um século depois, esse problema ainda persiste. Uma constatação encontramos na
equivocada interpretação de G. Agamben: “Aqui [em O sagrado], uma teologia que havia
perdido toda experiência da palavra revelada e uma filosofia que havia abandonado toda
sobriedade perante o sentimento celebram sua união em um conceito de sagrado que a
este ponto coincide totalmente com os conceitos de obscuro e impenetrável. Que o religio-
so pertença integralmente à esfera da emoção psicológica, que ele tenha essencialmente a
ver com calafrios e arrepios, eis as trivialidades que o neologismo numinoso deve revestir
de uma aparência de cientificidade” (AGAMBEN, 2007, p. 86, grifo nosso).
:: 133 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

insuficiente do ponto de vista teológico30. Desse modo, ela não encontra


um lugar já estabelecido para se inserir.
Aliás, é correto dizer que ela busca criar esse lugar onde possa habitar.
Não é gratuita a motivação da obra em fundamentar a autonomia do
religioso bem como descrever sua especificidade. Aqui me parece que se
encontra um dos elementos que a coloca para além de sua época. Otto
está preocupado em garantir a autonomia do religioso, mas não apenas de
maneira intuitiva, por isso recorre a um processo de fundamentação desse
religioso numa categoria a priori.
Mas, no mesmo lugar onde está sua força, encontramos sua fraqueza.
Observa-se no pensamento de Otto a tentativa de fundamentar o religioso
no espírito humano reconhecendo seus contornos próprios. No entanto, à
medida que conduz essa tarefa situando o religioso para além da ciência, de
abordagens conceituais e do racional, ele acaba criando certas dificuldades
que aparecem mais claramente quando defende o sagrado como categoria a
priori. É em torno dessa questão que se estrutura este capítulo.
Para pensar essas questões gostaria de partir de um trecho de algumas
notas redigidas por Heidegger tendo em vista a escrita de uma resenha31.
Nela Heidegger diz o seguinte: “O irracional é considerado sempre ainda
como contraposição [Gegenwurf] ou limite, mas jamais é considerado em
sua originariedade e constituição própria; por isso, a concessão de algum
privilégio à razão ou ‘à crítica da razão’” (HEIDEGGER, 2010, p. 316).
Como se pode notar por essa citação, há duas questões aqui. A primeira

30 Cf. Bultmann (1997, p. 89-90). No início do século XX, muitas das concepções de Otto
foram incorporadas pela teologia dialética, especialmente a afirmação de Deus como “to-
talmente outro” e sua crítica à concepção moral de religião (Sobre isso, cf. BARTH, 1959,
p. 390-391.). Mas isso não significou que as distâncias não tenham sido cuidadosamente
mantidas. Para Bultmann, identificar Deus com o irracional é problemático, uma vez que
revela a confusão entre nossa existência e Deus. O irracional do numinoso diz mais sobre
a consciência que temos de nossa existência do que propriamente de Deus.
31 O sagrado foi recebido com entusiasmo por Edmund Husserl, que recomendara a Heide-
gger fazer uma resenha crítica do livro. Ele diz: “Estou lendo com grande interesse o livro
de Otto O sagrado, uma tentativa de fato de uma fenomenologia da consciência de Deus
(...) É uma pena que você não tenha tempo de escrever uma (aprofundada) resenha sobre
ele” (HUSSERL, 1944, p. 135–6). Era tida pelo fundador da fenomenologia filosófica como
primeiro passo na construção de uma fenomenologia da religião, iniciando com a abor-
dagem da consciência de Deus. Heidegger chega a fazer algumas notas, mas a resenha
propriamente dita nunca veio a lume.
:: 134 :: De Lutero a Otto

diz respeito à relação entre racional e irracional. A segunda, por sua vez,
se refere à fundamentação transcendental.
Para tratar desses temas com a devida justiça, vamos retomar a obras
publicadas antes de 1917, ampliando o que usualmente se faz no Brasil,
com a tendência de se restringir o pensamento de Otto a apenas O sagrado.
Ainda que seguramente seja o livro mais importante do autor, uma obra
clássica não surge repentinamente. É fruto de anos de empenho, exigindo
tempo para o devido amadurecimento das ideias. Além disso, como grande
parte dos grandes textos do século XX, ele é fragmentário. Não se trata de
um sistema, organizado a partir de uma tese central, em torno da qual se
levantam argumentos, com uma estrutura bem definida, com começo, meio
e fim. Há insights e ideias instigantes que obrigam o leitor a reconstruir as
linhas argumentativas. De modo geral, há três perguntas que a dirigem:
1) O que é religião?; 2) Em que categoria ela se funda?; 3) Qual a relação
entre essa categoria e o empírico? – velho problema para quem segue pelas
sendas da filosofia transcendental. Nesse texto, vamos nos deter mais na
segunda questão por entender que aqui se encontra um importante elo.

Religião e naturalismo
A obra de 1917, O sagrado, deve ser lida dentro de um momento específico
da produção de Otto, no qual procura dar visibilidade ao aspecto irracional
do sagrado. Quando ficamos apenas nessa obra, há o imenso risco de se
perder de vista algo fundamental. Se o irracional constitui o núcleo da
religião, ele não deve ser confundido com o todo da religião. Otto nos
lembra disso no decorrer das páginas desse mesmo livro. No entanto, como
sua atenção está voltada para o irracional no sagrado, muitos intérpretes
foram conduzidos a identificar, muito apressadamente, é verdade, certa
promoção de irracionalismo. No entanto, um breve recurso a outras obras
pode mostrar que não é bem disso que se trata. As páginas iniciais de
Visão de mundo naturalista e religiosa, obra escrita em1904, já assinalam:
Nenhuma forma de religião existente é inteiramente feita de “sentimento”,
“subjetividade” ou “comportamento”, que pode renunciar a quaisquer
suposições e convicções em relação à natureza. De fato, toda forma,
num exame mais próximo, revela um conjunto mais ou menos fixo de
:: 135 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

convicções, suposições teóricas e suposições sobre o homem, o mundo e


a existência: isto é, uma teoria, ainda que simples, do universo (OTTO,
1907, p. 2).

Desse modo, a religião não se resume a sentimento, mas constitui uma


interpretação sobre o mundo e seu destino, bem como o lugar do ser humano.
Se ela é também uma visão de mundo, isso não significa subordiná-la ou
confundi-la com o científico, que também constrói sua visão de mundo
peculiar. Aliás, a tensão entre naturalismo32 e religião é um dos grandes
temas dessa obra. É no contexto deste embate que a autonomia da religião
é discutida. A religião (e a dimensão do espírito como tal – que envolve as
atividades criativas humanas, como a arte, a ética etc.) surge como reação
à tentativa do naturalismo de reduzir tudo, inclusive o espírito humano, a
processos biológicos e mecânicos. Se essa perspectiva se aplica à explicação
da natureza, ela não se mostra suficiente para abordar a subjetividade
humana. Portanto, preservar a dimensão religiosa não diz respeito, a
princípio, somente à garantia da religião. Preservar essa dimensão é, antes
de tudo, prescrever uma delimitação clara para o alcance da explicação
naturalista com sua tendência mecanicista. É, no limite, preservar uma
região que não se deixa objetivar pelo conhecimento científico, de modo
que nem tudo pode ser quantificado, medido e esquadrinhado segundo o
modo de proceder da ciência.
Para Otto, portanto, a base da religião não se encontra na natureza ou no
mundo. Não faz sentido, assim, recorrer ao velho modelo de demonstração
da existência de Deus a partir do conhecimento do mundo. Aliás, desde
a filosofia crítica de Kant, não se tem autorização para inferir as causas
últimas a partir da noção de mundo ou de natureza. É justamente esse
motivo que leva Otto a buscar as fontes da religião em outro lugar. E,
“essas fontes estão fundo no espírito humano e tem uma longa história”
(OTTO, 1907, p. 8).
Se a religião não se baseia no conhecimento do mundo, mas no espírito
humano, como ela se relaciona com os demais âmbitos? Seria a visão
de mundo religiosa próxima à poesia ou ao sonho? Ainda que se

32 Otto concebe naturalismo em dois sentidos. No naturalismo ingênuo, há negação do sobre-


natural, mas ainda perdura certa concepção mística da natureza. A concepção de natureza de-
senvolvida por Goethe exemplifica essa tendência. Já o naturalismo moderno adota uma visão
mecanicista, explorando a natureza a partir de pressupostos puramente teóricos e científicos.
:: 136 :: De Lutero a Otto

assemelhem, há algo que as distancia: para a poesia, não importa se o


que diz é verdadeiro ou falso. Mas, para a religião, a verdade de suas
proposições é decisiva. A visão de mundo religiosa, apesar de se legitimar
diferentemente da ciência e próxima à estética, pretende se firmar como
verdadeira. Mesmo que sejam ideias (no sentido de conceitos sem
correspondentes na intuição), o fiel é capaz de morrer por elas, uma vez
que são convicções que se mostram cercadas de certeza.
Por outro lado, a verdade religiosa, diferentemente da verdade científica,
não emerge de um estudo teórico e objetivo das coisas. A religião, ainda que
construa uma visão de mundo, não quer explicar a totalidade das coisas,
mas tem uma pretensão bem mais modesta, ainda que existencialmente
mais relevante: lançar luz sobre nosso ser, nosso lugar e destino, o sentido
para existência (OTTO, 1907, p. 14). Portanto, ainda bem proximamente
a Schleiermacher, Otto entende que a religião é a consciência da total
dependência e condicionalidade de todas as coisas, inclusive de nossa
existência (OTTO, 1907, p. 38). Daqui, depreende-se uma importante
consequência para a relação entre religião e naturalismo: um dos pontos
de maior conflito não é a afirmação naturalista de que o ser humano
descenda de símios ou a negação da legitimidade de suas narrativas.
O essencial reside na asserção da independência e autossuficiência da
natureza que afronta diretamente isso que constitui o mais específico da
religião: o sentimento de dependência.
Para nossa argumentação, é importante ter atenção para o modo como
Otto constrói sua interpretação: o caráter específico da perspectiva
religiosa se coloca mais negativamente do que de forma propositiva. Ele
nos diz mais o que ela não é e como ultrapassa o naturalismo do que
propriamente o que compõe seus contornos próprios. E mesmo quando
ele descreve alguns elementos que constituem o religioso, ele sempre
pressupõe a ciência como referência. Aqui já se antevê algo que marca
o modo como Otto constrói a especificidade do religioso: chega-se a ela
via delimitação do alcance de outros âmbitos da experiência. Aqui, por
exemplo, é ao apontar as fronteiras do científico que Otto chega ao que
constitui o específico do âmbito religioso e ao mistério que nos rodeia. A
autonomia do espírito humano e da religião surge onde as explicações
mecanicistas e biologizantes se mostram insuficientes. As proposições
naturalistas alcançam certos fenômenos, mas se revelam incapazes de
:: 137 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

chegar ao mais essencial. Por isso mesmo, já ao final da obra, Otto diz
que: “Nossa tarefa deve ser mostrar que a religião mantém sua validade
e liberdade por causa da verdade e da independência do espírito e sua
superioridade em relação à natureza” (OTTO, 1907, p. 282).

Fundamentação transcendental do
religioso: o diálogo com Jakobi Fries
Ao final da sua obra sobre naturalismo e religião, Otto esboça uma tarefa:
mostrar como a religião mantém sua liberdade e validade a partir da
afirmação da independência do espírito. Ou seja, a validade e autonomia
da religião remetem para e dependem da autonomia do espírito, uma vez
que a religião se funda aqui, numa subjetividade. Mas, qual o sentido de
se colocar uma tarefa como esta no fim do livro, quando já se encaminha
para as conclusões?
Uma suposição que fazemos é a seguinte: nesse momento, Otto ainda
se mostra muito dependente das ideias de Schleiermacher. No entanto,
apesar de assentir com as ideias de seu predecessor, Otto reconhece
a necessidade de fundamentá-las. A intuição de Schleiermacher é
producente, mas pouco rigorosa. Por isso mesmo, anos depois, Otto inicia
seu livro Filosofia da religião baseada em Kant e Fries (1909 – grifo nosso)
dizendo: “Fries é bem original, e um estudo mais atento prova que ele
é superior [ a Schleiermacher] em compreensão, em profundidade e
solidariedade”(OTTO, 1931, p. 15). Com isso, fica claro que o caminho é
a fundamentação transcendental da religião. É justamente isso que Fries
traz de novidade em relação a Schleiermacher.
Nessa obra, percebemos o mesmo procedimento adotado anteriormente
na afirmação da autonomia da religião. Ela se fundamenta no espírito
humano. Nesse sentido, a teoria do conhecimento de Jakob Fries se
constitui como ferramenta imprescindível. Mas, novamente, o específico
da religião não é encontrado apoiado em si mesmo, mas a partir dos
limites de outro âmbito. Nesse caso, para além do conhecimento teórico,
situa-se o sentimento/intuição – campo propício para a religião.
:: 138 :: De Lutero a Otto

Otto reconhece no sentimento o lugar específico do religioso. É importante


ressaltar isso por duas razões. Em primeiro lugar, o recurso a Fries o ajuda a
estabelecer esse lugar com mais clareza. Aqui, já podemos vislumbrar algo
que será retomado em O sagrado. Uma vez que seu núcleo mais essencial se
relaciona com o sentimento, a religião se encontra para além da expressão
conceitual. Quer dizer, com a adoção de Fries, Otto aprofunda a intuição já
anunciada anteriormente de que religião tem a ver com sentimento e, por
isso mesmo, não pode ser delimitada por formas de expressão conceituais.
Não porque ela se oponha aos conceitos, mas porque se situa para além
deles. Em O sagrado, isso é expresso sob os signos do racional e do irracional.
Mas, vejamos como se chega a essa percepção.
J. Fries amplia a epistemologia racionalista de Kant postulando três
modos distintos de conhecimento. O modelo desenvolvido na Crítica da
razão pura se refere ao conhecimento (Wissen) teórico ou factual. Ele é
produzido a partir da combinação entre categorias e intuição. Este tipo
de cognição é aquele que empregamos com mais recorrência. É também
o parâmetro para o conhecimento científico. Nesse caso, as categorias
precedem a intuição, de modo elas somente podem adquirir sentido a
partir da aplicação das categorias. Assim, por exemplo, eu elaboro um
conceito de movimento uniformemente variável e a partir dele analiso os
dados empíricos.
Se essa forma de conhecimento é a mais recorrente, isso não significa que
seja a única. Ao lado dela, coloca-se o metafísico ou a fé racional (Glaube).
É um tipo de conhecimento que extrapola o empírico. Causa e efeito e as
categorias a priori são exemplos de conhecimentos dessa ordem. Nesse caso,
têm-se as ideias, que são categorias às quais não corresponde nenhuma
intuição sensível. Kant reconhecia o valor das ideias como reguladoras
(enquanto oferecem certos parâmetros), mas não atribuía a elas o caráter
de conhecimento. Fries, por sua vez, nesse processo ampliação, confere
importância às ideias, inclusive recorrendo ao adágio bíblico de que a fé é
a convicção de coisas que não se vê.
Há ainda a terceira forma de cognição: a Ahnung. Se no saber teórico e
na fé racional podemos situar os aspectos racionais da religião, é nessa
terceira forma de conhecimento que Otto se depara com solo propício
:: 139 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

para enraizar a especificidade da religião. Passo, cabe destacar, que não


é dado por Fries. A terceira forma de cognição (Ahnung, intuição), é
entendida como um tipo de sentimento ao qual não corresponde nenhum
conceito sendo, portanto, imediato. Este nível de conhecimento é o
mais fundamental, de modo que a Ahnung proporciona a ligação entre
o espaço-tempo e o imutável-eterno. Isso significa dizer que podemos
conhecer o eterno por meio do e no finito. Por isso mesmo é um tipo de
cognição que permite a apreensão do eterno no temporal. Textualmente,
afirma Otto sobre a Ahnung em Fries: “(...) e então nós entendemos sem
nenhum meio o Eterno no temporal, e o temporal como aparição do Eterno.
Inteligível o suficiente, positivamente, ainda que além de nossos poderes
de expressão, o mundo da fé se manifesta no mundo do conhecimento por
meio da Ahnung” (OTTO, 1931, p. 101, tb. 141).
Novamente, a referência ao específico da religião se dá por meio da
negação da realidade humana ordinária. Essa dimensão é sempre aquilo
que extrapola, que vai além. Há uma razão filosófica para isso. Uma
vez que nossa intuição é finita, ela não pode se aproximar do infinito
em termos positivos. A via negativa se mostra como solução para essa
limitação. Por isso mesmo, é preciso o sentimento ou a intuição (Ahnung).
Aquilo que a compreensão não apreende, o sentimento pode acessar,
mas com importante circunscrição: não pode ser expresso, ao menos
conceitualmente. (OTTO, 1931, p. 100-101).
Nesse momento, Otto ainda não recorre à noção de a priori. Mas, ao situar
o religioso na intuição imediata ele dá o primeiro passo na direção que fora
anunciada em Visões de mundo naturalista e religiosa: encontrar na autonomia
do espírito a autonomia da religião. Além disso, a religião é entendida como
forma de cognição, mas de um caráter bem próprio. É um conhecimento
imediato que, justamente por extrapolar os conceitos do entendimento,
não pode ser expresso. Portanto, quando Otto utiliza o termo “sentimento”
não devemos confundi-lo com emoções. Para ele, sentimento é também
um modo de cognição, um meio de se estabelecer um juízo (OTTO, 1931,
p. 108). Portanto, o recurso ao sentimento amplia-se numa direção: é
possível conhecer o objeto da religião, ainda que não possa ser expresso
conceitualmente. Sendo assim, os limites que Kant havia postulado quanto
:: 140 :: De Lutero a Otto

ao conhecimento são lidos agora não mais como fronteiras do nosso


conhecer, mas como referentes à nossa capacidade de expressão.
Essa tentativa de fundamentação da religião não encontra seu capítulo
final no texto de 1909. De modo muito similar ao debate com o
naturalismo, Otto conclui apontando mais a abertura de novas questões
do que propriamente o fechamento delas. Isso é indicativo de que ainda
vislumbrava tarefas a serem realizadas e não estava totalmente satisfeito
com os resultados. Na conclusão da obra sobre filosofia da religião, afirma:
A Ciência da Religião não é uma descrição das religiões, assim como a
jurisprudência não é uma descrição da lei existente ou da lei em geral.
A história do direito para a jurisprudência é meramente meio para um
fim. A ciência da religião procura a validade da religião e a religião que
é válida. Não pode voltar a padrões sobrenaturais (por razões histórico-
críticas e razões na própria religião); seu procedimento deve, portanto,
ser idêntico ao da ciência moral, da jurisprudência e de todas as ciências
do espírito em geral. Todos são forçados a aplicar-se a um exame da
natureza racional-intelectual do espírito humano, a uma crítica da
razão e da antropologia; eles devem verificar com precisão o que é o
espírito e seus tipos; do que a Mente e o Espírito são capazes, no que
diz respeito à atividade, à experiência, à expressão em várias direções;
assim obtém a concepção geral da ciência, da ética, da estética, da
religião, da experiência religiosa. Este é um empreendimento filosófico,
e sem este trabalho preliminar em filosofia nenhuma ciência da religião
pode ser alcançada, como uma tarefa sólida, metódica e científica em
geral (OTTO, 1931, p. 222).

A partir de pressupostos transcendentais, Otto assegura a necessidade da


filosofia da religião para a Ciência da Religião. Segundo ele, cabe àquela
pensar os fundamentos antropológicos, em chave transcendental, a partir
de onde essa é possível. Esse fundamento é encontrado numa crítica da
razão. Esse passo é completado em O sagrado, por meio da afirmação de
uma categoria a priori para a religião.
:: 141 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

A fundamentação da religião na
categoria a priori do sagrado
O sagrado compreende elementos racionais e irracionais da religião. Mais
do que isso, “contra todo o sensualismo e contra todo o evolucionismo,
porém, é preciso afirmar com todo o rigor que em ambos os aspectos se
trata de uma categoria estritamente a priori” (OTTO, 2007, p. 150).
A afirmação do a priori é um meio de encontrar uma fundamentação para
a religião que, ao mesmo tempo, esteja para além da história, mas em
relação com ela, garantindo a especificidade da religião. Por isso mesmo,
esta fundamentação não pode ser de qualquer tipo. Não se trata, por
exemplo, de encontrar um fundamento empírico, no mundo ou mesmo
meramente teórico para a religião.
Como observamos, já na primeira obra mencionada, Otto afirmava que
a religião não retira sua validade e liberdade da ciência ou da natureza.
Portanto, para legitimar a especificidade da religião, é preciso encontrar
um fundamento que forneça certa “segurança”. Em regime transcendental,
isso significa que não se reduza à contingência do empírico. A restrição
a meras descrições de estados psicológicos (como em W. James, por
exemplo) mostra-se insuficiente para fundamentar o religioso. Afinal,
descrever a religião ainda não é fazer Ciência da Religião. Por isso, a fim
de evitar o reducionismo do religioso aos ventos de estados psicológicos
ou socioculturais, a religião deve ser assentada em uma categoria própria.
Uma consequência disso é que dessa perspectiva, por exemplo, uma
escultura pode ser considerada sagrada não porque tem uma função social
ou psicológica. Não é a função que a faz objeto ser reverenciado, mas por se
inserir no sagrado que ela desempenha certa função social. Não é a função
que confere a um objeto ou a uma coisa a inserção no âmbito do sagrado.
Antes, é o seu reconhecimento como partícipe do sagrado que lhe permite
exercer determinada função na sociedade ou num sistema religioso.
Mas, além disso, essa fundamentação há de garantir a especificidade
do que se pretende fundamentar. Por essa razão, O sagrado é bastante
enfático no sentido de mostrar que a religião pode gerar moral, mas não
se deixa confundir com ela. A religião tem seu âmbito próprio e deve
ser entendida a partir de si mesma e não como variante dependente de
:: 142 :: De Lutero a Otto

outra esfera, especialmente a moral. Ela mantem relações com a ética ou a


estética, mas não se confunde com elas. Disso decorre a ênfase de Otto no
irracional. Se o sagrado é uma categoria composta de elementos racionais
e irracionais, o seu núcleo reside neste último, que se mostra de natureza
distinta de outros âmbitos.
O conceito de irracional é fundamental. Aliás, o subtítulo do livro é: os
aspectos irracionais na noção de divino e sua relação com o racional. Assim, para
Otto, o sagrado é composto de elementos racionais (conceituais) e elementos
não-racionais (intuídos) em todas as suas manifestações. Otto emprega
Irrational, que pode ser compreendido de forma errônea, uma vez que não
pretende constituir um pensamento que seja antirracional33. Seguindo a
tradição protestante inaugurada por Schleiermacher, objetiva garantir certa
região inacessível ao pensamento lógico. Em poucas palavras, o racional
compreende aquilo que pode ser expresso conceitualmente, ao passo que o
irracional se situa no âmbito do inexprimível. Em suas palavras,
Por ‘racional’ na idéia do divino entendemos aquilo que nela pode
ser formulado com clareza, compreendido com conceitos familiares
e definíveis. Afirmamos então que ao redor desse âmbito de clareza
conceitual existe uma esfera misteriosa e obscura que foge não ao nosso
sentir, mas ao nosso pensar conceitual, e que por isso chamamos de ‘o
irracional’ (OTTO, 2007, p. 97-98).

O irracional não se opõe ao racional, mas avança onde o racional reconhece


seus limites. Por este motivo, o irracional se torna acessível por meio do
sentimento (Gefühl). Com isso, percebe-se como Otto articula noções que
vinha trabalhando desde seu primeiro livro.
Um alerta deve ser feito. A ênfase no irracional dada por Otto nesta obra,
entretanto, não deve ofuscar a relevância do racional. A religião também
possui âmbito de clareza com relação ao seu objeto, até mesmo porque,
insistindo mais uma vez, a categoria sagrado é composta tanto por
elementos racionais quanto irracionais. Esta clareza assume expressão por
meio da formulação conceitual que se dá à divindade, especialmente nos
33 A fim de evitar está má-compreensão, a seguinte tradução optou Das Irrationale por não-
-racional (OTTO, R. O sagrado. um estudo do elemento não-racional na idéia de divino e
sua relação com o racional. Tradução de Prócoro Velasques Filho. SBC: Ciências da Reli-
gião, 1985.) No entanto, as outras duas disponíveis em português se mantiveram mais fieis
ao original, traduzindo o termo por irracional.
:: 143 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

atributos que se confere a ela. Mas de onde se originam esses atributos? É


interessante observar o que Otto diz sobre isso. Segundo ele, este aspecto
racional se liga ao modo como “o ser humano o percebe em si próprio de
forma limitada e inibida. No divino, todos esses atributos são pensados
como sendo ‘absolutos’, ou seja, como ‘perfeitos’” (OTTO, 2007, p. 33).
Em relação ao aspecto racional da divindade, Otto não estaria muito
distante de Feuerbach. Os atributos não são mais do que a projeção de
características humanas a um ser supremo.
Mas, o aspecto racional se torna limitado quando se pensa que a
religião se reduz a ele, sendo conferido aos conceitos a capacidade de
dizer totalmente seu objeto. Essa ênfase no aspecto racional ocorre por
parte dos próprios religiosos e dos estudiosos da religião. A ortodoxia
protestante, por exemplo, ao enfatizar sobremaneira a doutrina, excluiu
o aspecto irracional. No âmbito dos estudos sobre a religião, ao abordar
o desenvolvimento de estruturas de pensamento em religiões ditas
“primitivas” como um processo que evolui do simples para o complexo
no decorrer do tempo, o evolucionismo também se prende ao aspecto
racional. Enfim, tanto em um caso como em outro, é o aspecto racional
que comanda a interpretação do fenômeno religioso. Portanto, segundo
Otto, é chegada a hora de se dar a devida atenção ao irracional.

Perspectivas sobre
o pensamento de Otto
No entanto, se a afirmação do sagrado como categoria a priori busca
assegurar a autonomia da religião, ela não está isenta de problemas. Em
parte, isso se deve ao modo como a especificidade da religião é constituída.
Já foi observado que o específico da religião é sempre indicado como
aquilo que vai além do limite do âmbito científico, conceitual ou racional.
Nesse ponto, penso que vale a pena levantar uma suspeita. Mais do que
um interesse em entender a religião, o que marca mais profundamente o
projeto do autor de O sagrado não é a tentativa de defender a religião de seus
críticos? Em temos mais afirmativos, é válido supor que essa conclusão a
que chega deve muito à postura “apologética” (sem conotação pejorativa)
que assume? A sua defesa da autonomia da religião não complica a
:: 144 :: De Lutero a Otto

plausibilidade do estudo da religião? Por vezes, parece que Otto está mais
preocupado em defender a autonomia e legitimidade da religião frente a
seus delatores do que propriamente em descrevê-la. E, nesse sentido, nada
mais certeiro para calar seus oponentes no ambiente intelectual alemão do
começo do século XX do que buscar uma fundamentação transcendental.
Reconstruindo os argumentos de Otto a partir dessa perspectiva, a coisa
se configura da seguinte maneira. Ele assume os julgamentos e censuras
feitos à religião. Não se trata de simplesmente negá-los. No entanto, essas
críticas nunca chegam ao que é essencial, uma vez que se prendem a um
efeito de superfície na medida em que se restringem aos aspectos racionais
da religião. Aliás, ele mesmo admite que os discursos sobre os atributos
divinos são categorias humanas hipostasiadas, de modo que é possível
reduzir os aspectos racionais na ideia de divindade à experiência humana.
No entanto, de maneira a limitar o alcance dessas críticas, Otto acentua
que o núcleo essencial da religião está para além da expressão conceitual,
livrando assim a religião das garras da crítica. Ou seja, reconhece a
validade do juízo ácido do acusador, mas situa o cerne da religião numa
zona que não é alcançável pela crítica racional e científica. Desse modo, a
crítica da religião não atinge aquilo que é mais profundamente religioso.
O crítico fica sempre nas margens, no inessencial. Não se nega a crítica.
No entanto, ela não alcança aquilo que é propriamente religioso. Não seria
essa a reedição do modus operandi protestante para defender a legitimidade
da religião num contexto de pleno avanço da ciência?
De início, cabe ressaltar com Heidegger, que o irracional não é caracterizado
a partir de si mesmo, mas sempre negativamente e em relação ao racional.
É sempre o que escapa do racional e não se deixa subsumir ao científico,
ao conceitual ou ao racional. Portanto, para acenar o específico da religião,
ele tem de mostrar os limites desses âmbitos. Uma consequência desse
modo de construir o argumento é a conclusão de que o mais íntimo da
religião escapa da linguagem. Aquilo que é distintivo da religião é pré-
hermenêutico, indizível, inefável. Ele pode ser conhecido, mas de modo
bem peculiar: pelo sentir. Nas palavras de Otto: “O objeto permanece na
indestrinçável escuridão da experiência não-conceitual, do puro sentir,
não podendo ser interpretado, mas apenas insinuado pela partitura dos
ideogramas interpretativos (...) . Sendo ‘totalmente outro’, ele é totalmente
indizível.” (OTTO, 2007, p. 98).
:: 145 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

É curioso que essa percepção parece se confirmar quando o próprio Otto


descreve sua experiência intelectual. No prefácio da tradução inglesa de
seu livro indica que o Numen inefável é ponto de chegada, depois de ter
trilhado pelos caminhos da razão conceitual.
Este livro, reconhecendo a importância do não-racional para a metafísica,
faz uma séria tentativa de analisar mais exatamente o sentimento que
permanece onde o conceito falha, e introduzir uma terminologia que
não é mais solta ou indeterminada por ter de necessariamente fazer
uso de símbolos. Antes de me aventurar neste campo de investigação
eu gastei muitos anos de estudo sobre o aspecto racional da realidade
suprema que denominamos de ‘Deus’, e os resultados de meu
trabalho estão contidos em meus livros (...) E eu senti que ninguém se
preocuparia com o Numen ineffabile se não tivesse já devotado estudos
sérios e assíduos à Ratio aeterna (OTTO, 1936, p. VIII).

Nesse ponto, percebem-se algumas dificuldades. Em primeiro lugar, a


experiência religiosa em Otto acaba se caracterizando como extremamente
privada e individual. Não são gratuitas as referências que faz incitando o
leitor a se lembrar de alguma experiência religiosa pela qual tenha passado.
Aqui, os movimentos se coadunam: uma vez inefáveis, os sentimentos
se situam na interioridade do sujeito, no recôndito da intimidade da
subjetividade. Portanto, mesmo que a linguagem não descreva o que
acontece no âmbito do racional, ela pode evocar no leitor algo de sua
experiência particular.
No entanto, se o irracional fosse totalmente indizível e privado, como
explicar que Otto tenha escrito um livro com tantas páginas sobre o
que não pode ser dito? Ainda que os místicos sejam aqueles que mais
escrevem sobre o que dizem que não poder ser dito, como entender que a
partir de tão pouco ele possa oferecer descrições tão pormenorizadas da
experiência religiosa como sentimento de mistério, temor e fascínio?
Para sair dessa dificuldade, Otto encontra duas alternativas. A primeira
delas é denominada de associação de sentimentos. Pressupondo que os
sentimentos se atraem, é possível a referência aos sentimentos religiosos
por meio da analogia com sentimentos similares, ainda que de natureza
distinta (OTTO, 2007, p. 83-85)34. Assim, dizer que religião é mistério
34 C. S. Lewis encontrou um modo bem apropriado de dizer isso: “Suponha que a você foi dito
:: 146 :: De Lutero a Otto

que desperta temor e fascínio é apenas um modo analógico de dizer a


experiência. Afinal, o sentimento religioso é de natureza totalmente
distinta do medo e do fascínio que experimentamos em outras vivências.
A arte, especialmente a arquitetura, com destaque para o estilo gótico,
é um meio de expressão desse inefável. Ela nos dá uma ideia sobre a
experiência religiosa, mas não se confunde com ela.
A solução parece soar engenhosa. Afinal, ela preserva a autonomia e
especificidade da religião, mas sem silenciá-la totalmente. Entrementes, há
algo que não fica claro nessa proposta. O caráter inefável dos sentimentos
é uma característica do sentimento religioso ou é algo que se aplica aos
sentimentos em geral? Se o sentimento como tal (seja ele estético, por
exemplo) é também inefável, em que medida é pertinente utilizar a
associação de sentimentos? Não se estaria relacionando um inefável com
outro inefável? Se não é assim, estaria faltando explicitar melhor o caráter
dos sentimentos em geral e dos sentimentos religiosos em particular?
Outra solução do problema é encaminhada com a afirmação da
esquematização. O termo se refere a Kant, que o emprega como forma de
responder à seguinte questão: se categorias e fenômenos são heterogêneos,
como as categorias podem se aplicar aos fenômenos? O esquematismo
permite que a categoria se aplique ao sensível. A imaginação deve ter algo
de sensível e de intelectual, de forma que o esquematismo é construído
sobre o tempo (sentido interno) e pode se aplicar às ideias intelectuais
(KANT, 1994, B101). O esquema é produto da imaginação. Ele é espécie
de “terceiro termo” que promove a mediação entre esses dois elementos
heterogêneos: os conceitos e as intuições sensíveis. Em Kant, portanto,
o esquematismo promove a ligação entre fenômeno e categoria. Assim,
se para o filósofo de Königsberg, o esquematismo é incorporação de um

que havia um tigre no quarto ao lado: você saberia que estava em perigo e provavelmente
sentiria medo. Mas se fosse dito, ‘Há um fantasma no quarto ao lado’, e você acreditasse,
você sente, de fato, o que é muitas vezes chamado de medo, mas de um tipo diferente. Não
seria baseado no conhecimento do perigo, pois ninguém tem medo de um fantasma pelo
que ele pode fazer, mas pelo simples fato de que é um fantasma. É ‘estranho’ ao invés de
perigoso, é um tipo especial de medo que excita e que pode ser chamado de temor. Com
o estranho, chegou-se às margens do numinoso. Agora, suponha que lhe foi dito simples-
mente: ‘Existe um espírito poderoso na sala’ e você acreditou. Seus sentimentos seriam
então ainda menos do que um mero temor do perigo: mas a perturbação seria profunda.
Você poderia sentir admiração e sentir-se encolhido [shrinking]. . . [Que] pode ser descrito
como temor, e o objeto que o provoca como o numinoso”. (LEWIS, 2001, p. 05-06).
:: 147 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

elemento não-racional (intuição) a um conceito racional (categoria), para


Otto, é a agregação de um elemento racional ao que era não-racional. O
esquematismo é a operação das categorias com seus esquemas. Para Otto,
é o esquema que opera sobre as categorias (Cf. RAPHAEL, 1997, 121-126).
O ponto aqui não é medir a maior ou menor fidelidade de Otto aos
princípios da razão pura de Kant. Antes, o central aqui é que com essa
inversão, ele dá a entender que haja sentimentos religiosos descolados dos
conceitos religiosos sem que eles percam seu sentido. Quer dizer, posso
sentir sem recorrer a conceitos. Nesse movimento, tenho contato imediato
com o numinoso. Mas, em que medida se pode sustentar que sentimentos
(com sentido) não dependam de pensamentos ou ideias?
Mesmo se consideramos que Otto faz um uso bastante livre dessa noção
kantiana, as coisas não parecem tão mais claras. Em primeiro lugar, Otto
entende que no esquematismo se estabelecem relações mais duradouras
do que na associação de ideias. Essas relações tendem a se sedimentar
com o tempo, uma vez que no esquematismo há associação essencial entre
sentimentos e ideias. Aquilo que é irracional encontra um corresponde no
racional. No entanto, como essa passagem entre o irracional e o racional se
dá? De que maneira se justifica a afirmação de tal esquematismo?
Esse ponto não é periférico. Afinal, é justamente o esquematismo que
possibilita a unidade da categoria do sagrado nos seus aspectos racionais
e irracionais. E mais: a caracterização positiva do irracional como mistério
tremendo e fascinante depende da esquematização. Nesse momento,
percebe-se que a insistente afirmação do caráter sui generis da religião
construído a partir dos limites do racional produz impasses. O irracional
se encontra tão à parte de outros âmbitos que a tarefa de reconectá-lo
com outras esferas da subjetividade, mesmo aquelas que lhe são mais
próximas, se torna complexa.
Outro elemento que vale a pena questionar é em que medida a referência é
mesmo o irracional enquanto tal. No limite, é esse núcleo que se constitui
como objeto ou o que se diz em relação a ele? Se é assim, o que se analisa
propriamente é o irracional ou um “discurso” sobre o irracional? Uma
vez que é inefável e muito particular, o modo pelo qual se tem acesso a ele
são as alusões indiretas dos símbolos e ideogramas ou os resultados das
esquematizações. Isto é, o irracional como tal permanece inatingível, seja
:: 148 :: De Lutero a Otto

por seu caráter particular ou inexprimível. No seu próprio texto, para falar
sobre ele, Otto faz referências a textos, sejam eles sagrados, de testemunho,
poéticos etc. Com isso, o que se tem é uma análise da experiência como
tal ou uma análise do modo como essa experiência ganha expressão? Se
tomamos os pressupostos de Otto, não podemos ignorar que há um hiato
que separa experiência e expressão, de modo que não podemos tomá-las
como idênticas. Uma coisa é a experiência. Outra é o que o fiel pode dizer
sobre ela. Se é assim, não se tem muito mais uma análise de discursos
religiosos, de modo que o irracional como tal deixa de se configurar como
objeto sobre o qual se constitui a Ciência da Religião?
Mas, deixemos esses argumentos que nos enveredam para uma
abordagem hermenêutica para outra ocasião. Voltemos a Otto e seu solo
transcendental. No Brasil, Otto tem sido lido como representante da
fenomenologia da religião e como um importante teórico na constituição
da área de Ciência da Religião. No entanto, aqui também não nos
deparamos com uma instigante questão? Consideremos com Otto que o
numinoso não pode ser definido, apenas aludido, afinal é categoria sui
generis. Além do mais, ele se situa no âmbito do irracional. Em que sentido,
entretanto, pode-se constituir um saber, uma Ciência da Religião, a partir
de um elemento que se furta à definição? Que se esvai e se esconde num
âmbito inacessível, obtuso, “na noite escura da alma”? Assim como na
época de Kant, esse desejo da religião de se furtar a dar suas razões não
levanta mais suspeitas do que mostra sua força? Com isso, não pretendo
discutir se há ou não esse âmbito do indizível. O ponto é: em que medida
ele pode ser considerado elemento fundamental de uma área de estudos?
Traduzindo isso nos termos do nosso problema. O crucial não reside em
se partimos ou não de concepções normativas de religião. Nós sempre
temos noções normativas. A questão é em que medida somos capazes
de oferecer argumentos válidos que sustentem essas visões normativas.
Como fazê-lo se concebemos o específico do nosso objeto como aquilo
que se furta ao debate público? Ao discurso inteligível? A uma gramática
compartilhada? No fundo, o argumento de que a religião é o “outro da
razão” não gera justificadas desconfianças?
Assim, por exemplo, recomendar que quem não teve uma experiência
religiosa não continue a leitura de um livro, não é um tipo de proposição
:: 149 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

que se furta a oferecer argumentos para sua plausibilidade, colocando-se


de maneira um tanto quanto arbitrária (LEWIS, 2015, p. 59)? Esse modo
de conceber as coisas, que remete para o protestantismo liberal, ao tentar
defender a religião dos seus detratores, não acaba por condenar o estudo
da religião à desconfiança? Nesse caso, não temos um lobo em pele de
cordeiro? Parece argumentar em favor do estudo da religião ao defender
a especificidade de seu objeto, mas em realidade joga contra o estudo
da religião? Vale ressaltar que religião e estudo da religião são temas
relacionados, mas não a mesma coisa35.
Para defender a autonomia da religião esse não é o único caminho. Mircea
Eliade pode cometer outros deslizes, mas não pesa sobre ele esse tipo
de problema. Para afirmar a especificidade da religião, mesmo que de
modo binário, ele parte do pressuposto de que o sagrado se manifesta.
Portanto, não precisa recorrer ao inefável para percorrer a religião “em
escala religiosa” ou mesmo para defender sua autonomia. Ele encontra
outro caminho. O objeto não se retira para uma zona inalcançável, mas se
torna fenômeno. Aqui, pode-se entender sua crítica ao subjetivismo que
percebia na abordagem de Otto (ELIADE, 2001, p. 16).
Enfim, não parece que Otto nos deixa numa encruzilhada? Pois, se
continuamos a fazer Ciência da Religião sobre o aspecto racional,
perdemos o essencial de nosso objeto; por outro lado, como pautar a
Ciência da Religião sobre algo que se furta ao discurso e que, portanto,
não pode dar suas razões?

35 Vale ampliar um pouco mais o debate, ainda que não se pretenda desenvolver aqui essa
questão. Mas, há algum tempo, principalmente em língua inglesa, têm sido publicados
textos críticos sobre a influência do protestantismo liberal nos estudos de religião. Muitos
dizem que a área ainda não libertou da teologia protestante (especialmente do séc. XIX),
sendo ainda espécie de apologética disfarçada ou de ecumenismo. O conceito de religião,
muitas vezes aceito tranquilamente, é concebido como plasmado a partir de referências
religiosas protestantes (FRITZGERALD, 2000; DUBUISSON, 2003). Para esses críticos, o
acento no “saber fazer”, no aspecto prático da religião ainda não foi o suficiente para diri-
mir os pressupostos protestantes e essencialistas na disciplina. Thomas Fritzgerald (2000,
p. 7-8), por exemplo, argumenta que o conceito de religião plasmado sob os auspícios da
teologia liberal tem tido como consequência a legitimação da ideologia moderna do libe-
ralismo, capitalismo e individualismo. Talal Asad (1993) segue na mesma direção, pergun-
tando-se em que medida o conceito de religião não atende aos interesses do liberalismo do
século XIX, com sua concepção bem própria de mundo.
:: 150 :: De Lutero a Otto

Conclusão
R. Otto pertence à classe de pensadores que são mais criticados do que
efetivamente lidos. Com isso, não se pretende dizer que a compreensão
de sagrado de Otto não tenha seus impasses. No entanto, não raras vezes
se observa muita pressa no julgar e pouca paciência no compreender,
gerando leituras superficiais, unilaterais e indevidas do autor.
Otto fez uma contribuição metodológica importante. Ao chamar a atenção
para a especificidade do religioso, ressalta que o objeto com o qual
lidamos não é um mero objeto que se deixa reduzir totalmente a outros.
Ele possui contornos e dificuldades próprias, que não se deixam engolir
tão facilmente por outras esferas sociais (ética, estética, ciência etc.), ainda
que esteja muito próxima delas. Na verdade, ele parece ser o reino da
confusão, que mistura essa cartografia das fronteiras. Por seu caráter sui
generis e “arredio”, essa dimensão da experiência humana exige uma
aproximação bem própria. A meu ver, isso quer dizer que para estudar
religião, não basta ficar nas suas externalidades, naquilo que da religião se
manifesta mais clara e prontamente nas instituições, nos ritos, mitos etc.
Há algo na religião que mobiliza essas manifestações.
O reconhecimento do mérito, no entanto, não nos exime de nos
perguntarmos se o modo como ele constrói essa autonomia e especificidade
do religioso não acaba se deparando com limites: preserva-se a autonomia
e a peculiaridade da religião retirando-a do alcance da razão, mas o
aspecto pessoal e inefável da religião impõe limites na constituição de um
discurso sobre o religioso.

Referências
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:: 151 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

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Tradução de E.B. Dicker. New York: Richard R. Smith, 1931.
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SCHLAM, Leon. “Numinous Experience and Religious Language”.
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De naturalismo e religião a
o sagrado: contribuições do
pensamento de Rudolf Otto
em duas épocas de mentes
secularizadas
Humberto Araujo Quaglio de Souza
:: 153 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Introdução
Há algo que historiadores contemporâneos, principalmente aqueles
ligados à escola dos Annales, chamam de mentalidade quando se referem,
por exemplo, à história das mentalidades. Há também algo que os filósofos
chamam de espírito de uma época, ou Zeitgeist, termo cujo uso se tornou
comum no romantismo, a partir do final do século XVIII. Seja sob a
perspectiva dos filósofos, seja sob a dos historiadores, esses termos podem
ser usados para se referir a um conjunto de ideias, opiniões, impressões
e até mesmo preconceitos que se difundem e se tornam comuns nas
mentes de indivíduos de qualquer época, tornando-se parte de uma
cosmovisão predominante ou, pelo menos, significativa e representativa
de um período histórico. Já o termo secularização faz evidente referência
a século, palavra que por vezes é utilizada para se referir ao âmbito das
coisas temporais, mundanas e históricas, em oposição às coisas divinas e
sagradas, situadas fora do tempo. Tudo isso torna possível que se estabeleça
uma compreensão da expressão mente secularizada, em um sentido
amplo, como aquela se afasta de considerações sobre ideias ou temas
identificados como direta ou explicitamente ligados à religião. Em muitos
casos, uma mente secularizada pode caracterizar-se por simplesmente
ignorar questões de natureza religiosa, ou seja, temas comumente ligados
à religião sequer passam pela cabeça do sujeito. Em outros casos, porém,
uma mente secularizada se manifesta por um repúdio ou até mesmo
hostilidade diante de qualquer coisa que seja ligada à religião.
Seria possível afirmar que o tempo presente é uma época de mentes
secularizadas? É certamente incorreto dizer que mentes completamente
secularizadas sejam uma realidade universal no presente, pois há
muitas pessoas, provavelmente a maior parte delas, para as quais temas
e ideias religiosas são elementos significativos em suas existências. Há
muitas pessoas para as quais a religião é o centro de suas vidas, aquilo
que lhes dá sentido, e há também aquelas que ocasionalmente pensam
em termos religiosos quando questionadas sobre temas que não ocupam
seus pensamentos com frequência, mas que são parte do cotidiano de
quem lida com filosofia ou ciência da religião, como questões metafísicas
ligadas à cosmogonia. Contudo, é muito provável que poucas mentes
sejam completamente infensas àquilo que se poderia chamar, também
:: 154 :: De Lutero a Otto

em sentido amplo, de secularização da cultura, um fenômeno típico da


modernidade, com raízes no fim do Medievo, que ganhou considerável
impulso no Renascimento, especialmente a partir do cinquecento, século de
especial importância na história das ciências naturais, que viu a produção
intelectual e a morte de Copérnico, o nascimento de Galileu, Tycho Brahe
e Kepler, mas que também foi marcado pela Reforma Protestante.
A despeito da clara distinção que filósofos fazem entre racionalismo e
empirismo (e entre razão e empiria) na filosofia moderna, a palavra razão
ganhou evidente prestígio a partir do século XVI e, em certo sentido,
popularizou-se, vulgarizou-se. Desde aquele tempo, torna-se comum
ouvir falar de confiança na razão, ou guiar-se pela razão, especialmente em
questões relacionadas à investigação da physis que avançou rapidamente
depois daquele período em comparação com o milênio precedente.
E discussões em torno da razão também fizeram parte indissociável
do enorme impacto cultural representado pelo pensamento e pelos
escritos de Lutero. O historiador Marc Bloch (2001, p. 157) percebia que
“os fatos históricos são, por essência, fatos psicológicos. É portanto em
outros fatos psicológicos que encontram geralmente seus antecedentes”.
Compreendido sob este viés, o trabalho de Lutero pode ser reconhecido
como um fato psicológico antecedente de toda a história subsequente
da ciência e da filosofia. Afinal, é impossível ignorar o evidente impacto
que a ênfase no uso da razão e na autonomia do indivíduo na leitura e
interpretação das Escrituras teve sobre a cultura ocidental, especialmente
no mundo germanófono, nos séculos seguintes. Como salienta Franz
Lau (1980, p. 57), “aquilo que se sucedeu na Dieta de Worms (abril de
1521) se impregnou profundamente na memória do povo alemão”. Não
é desarrazoado afirmar que o sapere aude de Kant, mais de dois séculos
depois, não teria sido proferido sem aqueles debates ocorridos no início
de século XVI, nos quais Lutero rejeitou “uma retratação enquanto ele
não fosse suplantado pela Sagrada Escritura e por claros argumentos da
razão” (LAU, 1980, p. 57).
A confiança na razão passava a se contrapor cada vez mais intensamente
à reverência diante da autoridade. É certo que Lutero firmava-se na
autoridade das Escrituras ao mesmo tempo em que não confiava totalmente
na razão, a qual chegou certa vez a chamar de “prostituta do diabo”
(EBELING, 1988, p. 112). Contudo, Lutero foi uma das vozes mais sonantes
:: 155 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

no combate que ganhava fôlego em seu tempo contra a autoridade da Igreja


Católica, da escolástica, e de Aristóteles, a quem chamou algumas vezes
de “rançoso” e “fabulador” (EBELING, 1988, p. 68). Sobre o Estagirita e
sua influência sobre a teologia, o reformador chegou até a afirmar: “É um
erro dizer que, sem Aristóteles, ninguém se torna teólogo. [...] Muito pelo
contrário, ninguém se torna teólogo a não ser sem Aristóteles. [...] Em suma,
todo o Aristóteles está para a teologia como as trevas estão para a luz”
(EBELING, 1988, p. 71). De modo semelhante, os investigadores da physis,
os filósofos da natureza que em nosso tempo passaram a ser conhecidos
simplesmente como cientistas, opuseram a autoridade da empiria a da
razão contra a autoridade de Aristóteles. Tanto esses naturalistas quanto
os reformadores estabeleceram, assim, as condições de possibilidade para
o desenvolvimento de novas mentalidades, para as quais o conhecimento
do mundo natural ganhou maior importância. Hegel percebeu essas
relações entre a crescente resistência à autoridade, o legado de Lutero e
o trabalho dos cientistas quinhentistas e seiscentistas. Em suas reflexões
sobre a Reforma e o espírito da época, Hegel constatou que:
A Igreja chegou a um beco sem saída – “até aqui, e não mais adiante!”
Ela separou-se da ciência que avançava, da filosofia e da literatura
humanística. E logo surgiu uma ocasião para que ela declarasse sua
inimizade para com as buscas científicas do período. O celebrado
Copérnico descobriu que a terra e os planetas giram em torno do
sol, mas a Igreja se declarou contra este acréscimo ao conhecimento
humano. Galileu, que havia publicado uma declaração em forma de
diálogo sobre as evidências a favor e contra a descoberta copernicana
(declarando realmente sua própria convicção de que ela era verdadeira)
foi obrigado a implorar perdão de joelhos por essa ofensa. A literatura
grega não foi escolhida como base da cultura e a educação foi confiada
aos jesuítas. E assim, o Espírito do mundo católico em geral afundou-
se, e ficou para trás do Espírito da Época (HEGEL, 1884, p. 436-437).

No século XVII foram publicadas as mais conhecidas obras de Galileu,


e Isaac Newton marcou indelevelmente a história da física. O contínuo
avanço do conhecimento da natureza e do domínio técnico sobre ela
perpassou também todo o século XVIII, dito Século das Luzes, no qual
a oposição à autoridade eclesiástica fortaleceu-se na cultura europeia,
repercutindo mais fortemente na política do que em tempos anteriores,
:: 156 :: De Lutero a Otto

e mesmo o romantismo do início do século XIX, com seus fortes traços


de reação à desmedida confiança iluminista na razão, não retardou o
crescimento do prestígio que as ciências naturais continuaram a ganhar.
E assim caminhou a cultura ocidental por todo o século XIX, de mãos
dadas com isso que se convencionou chamar, em sentido amplo e quase
que popular, de razão: uma espécie de entidade luminosa que, quando
devidamente afagada, desvela para o homem os segredos do mundo
natural e afasta as trevas que reinaram em tempos longínquos. O início
da segunda metade do século XIX viu surgir mais um fato psicológico que
impactou profundamente a cultura em todo o mundo, e cuja repercussão
nas mentalidades se faz sentir até os dias presentes: em 1859, Charles
Darwin publicou seu opus magnum, A Origem das Espécies. O trabalho de
Darwin desempenhou um papel de não pouca relevância na trajetória
intelectual de um teólogo alemão que, em 1898, doutorou-se com uma
tese sobre Lutero e o Espírito Santo (MINNEY, 1990, p. 505). Seu nome
era Rudolf Otto.

Metafísica e materialismo no século XX


O termo materialismo pode ser usado, em sentido lato, para designar toda
cosmovisão que reduz toda a realidade à physis, à natura. E o volume de
informação sobre a natureza ao qual o ser humano do século XXI tem
acesso é incomparavelmente maior do que aquele dos tempos anteriores
à Reforma. É compreensível, então, que esse volume de informação acabe
por inspirar perspectivas filosóficas materialistas. Afinal, o conhecimento
das ciências naturais é capaz de causar fascínio e assombro, e de fazer
com que os sujeitos contemporâneos decidam desconsiderar quaisquer
hipóteses que, mesmo aparentemente, não tenham quaisquer relações com
o âmbito do mundo físico. Essa postura de deslumbramento pelo avanço
do conhecimento da física, que é historicamente situado e, nas palavras
de Marc Bloch, um “fato psicológico”, pode ser considerado causa de
outro “fato psicológico”, que é a emergência de correntes de pensamento
que rejeitam a metafísica. Talvez o mais emblemático desses movimentos
intelectuais do século XX, que se inspiravam nas ciências naturais como
fundamento para uma rejeição da metafísica, tenha sido o positivismo
lógico, ou neopositivismo, do grupo chamado de Wiener Kreis que tinha
:: 157 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

entre seus membros Moritz Schilick, Rudolf Carnap e Otto Neurath, e


que, nas palavras de Giovanni Reale e Dario Antiseri (1991, p. 990), “se
caracterizou pela firme atitude antimetafísica”. Sobre esse Círculo de
Viena os referidos historiadores italianos da filosofia escreveram:
O núcleo básico da filosofia vienense é o princípio da verificação,
segundo o qual só têm sentido as proposições que podem ser verificadas
empiricamente, através do recurso aos fatos da experiência. Foi com base
nesse princípio que os neopositivistas decretaram a insensatez de toda
afirmativa metafísica e teológica (REALE; ANTISIERI, 1990, p. 990).

A aversão à metafísica desses materialistas era tão grande que chegou a


provocar situações cômicas. Reale e Antiseri (1990, p. 995) contam ainda
que Neurath chegava a irritar seus colegas do Círculo ao interromper
as leituras que eles faziam em suas reuniões com exclamações de
metafísica!, como quem grita heresia!, anátema!, ou pega ladrão! O Círculo
de Viena formou-se no período entre guerras, mas o ambiente intelectual
materialista que o preparou já era uma realidade cultural havia décadas.
Foi nesse ambiente, que afirmava a insensatez da teologia, que o teólogo
Rudolf Otto publicou, em 1904, seu livro Naturalismo e Religião. Nessa
obra, Otto deixa clara desde o início sua percepção de que estava se
estabelecendo em sua época uma mentalidade que considerava a religião
e a ciência como logicamente antitéticas. O teólogo Otto discordava dessa
mentalidade e defendeu a possibilidade de harmonizar uma interpretação
naturalista do mundo com uma interpretação religiosa. Sobre essas duas
visões, Otto escreveu logo no primeiro parágrafo do primeiro capítulo de
seu livro, que sua intenção era a de
[...] em primeiro lugar, definir a relação, ou melhor, a antítese, entre
as duas; e em segundo lugar, empreender uma reconciliação das
contradições entre elas e defender, contra as objeções do naturalismo,
a validade e liberdade da perspectiva religiosa. Ao fazê-lo, pressupõe-
se que haja algum tipo de relação entre as duas concepções, e que haja
uma possibilidade de harmonizá-las (OTTO, 1907, p. 1).

A partir dessa citação, considerando o texto de Otto como um documento


histórico e como parte de uma historiografia das mentalidades, já é
possível afirmar que essa mentalidade secularizada que existe hoje, em
2017, representada especialmente por pessoas que se consideram parte
:: 158 :: De Lutero a Otto

de um “movimento cético” ou “neo-ateu”, e que usam a ciência como


instrumento de luta anti-religiosa, já existia e já era culturalmente relevante
há mais de cento e dez anos. O problema que Otto enfrentou nessa obra foi
o seguinte: se for possível demonstrar que não existe uma antítese lógica
entre ciência e religião, será possível demonstrar que não há antagonismo
real entre elas (OTTO, 1907, p. 1). Deve-se salientar, contudo, que Otto
estava mirando um público intelectualmente mais bem preparado, o
que pode-se perceber nas linhas seguintes, em suas afirmações sobre a
teologia de seu tempo:
Com certeza, nós agora já deixamos para trás as expressões primitivas
da visão religiosa ligadas à criação do mundo em seis dias, à formação
de Eva a partir da costela de Adão, a estória do Paraíso e das forças
demoníacas e angelicais e os milagres acessórios e sinais que os
acompanham por meio dos quais o controle divino do mundo deveria
supostamente se manifestar. Nós com certeza aprendemos em nossa
época a distinguir entre as formas simplesmente míticas ou lendárias
de expressão nos arquivos religiosos, e o seu valor espiritual e conteúdo
ético. Nós podemos dar à ciência natural e ao sentimento religioso o
que é devido a cada um, e assim liquidamos para sempre a tediosa
discussão apologética (OTTO, 1907, p. 1).

Historiadores têm tanto a desvantagem quanto o privilégio de poder


avaliar expectativas e impressões de autores do passado não diretamente,
mas à luz dos acontecimentos, dos fatos psicológicos subsequentes. Vê-se
que, no livro de 1904, Otto deixava transparecer sua expectativa de que,
pelo menos entre as pessoas mais instruídas e em discussões em níveis
intelectuais mais elevados, ninguém pressuporia que teólogos ou pessoas
religiosas cultas fariam interpretações literalistas das escrituras, tomando
as narrativas míticas delas como relatos factuais. Em outras palavras,
pode-se dizer que Otto não esperava que, no futuro, mitografia ainda
fosse confundida com historiografia. Porém, infelizmente, não é essa a
mentalidade que predomina no tempo presente. Mas isso será discutido
mais adiante.
Otto, pelo que se pode compreender de sua proposta no livro de 1904,
deixa claro desde o início que as ciências naturais não poderiam mais ser
contrapostas à teologia do início do século XX do mesmo modo que se
:: 159 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

contrapunha nos séculos XVI e XVII. Pelo menos na cultura européia e


germânica na qual ele laborava, não havia mais espaço para confrontos
do tipo que Copérnico e Galileu tiveram que enfrentar com autoridades
teológicas de outrora. Isso já estava superado, e nenhum acadêmico digno
de ser levado a sério no início do século XX se prestaria a defender o
geocentrismo ptolomaico. E Otto vai além desse ponto, tocando em pontos
mais sensíveis, como a criação do mundo em seis dias e a criação do ser
humano, admitindo a natureza mítica e simbólica daquelas narrativas.
A teologia propugnada por Otto mostrava-se receptiva às ideias que as
ciências naturais apresentavam ao mundo, e o teólogo percebia que essa
receptividade permitia um diálogo entre religião e ciência. Mais do que
reconhecer a possibilidade de diálogo, Otto pensava que é impossível à
religião ignorar as contribuições da ciência para a formação de uma visão
de mundo, pois é nesse mesmo mundo que a religião se faz presente.
Sobre isto, escreveu:
Nenhuma forma realmente existente de religião é tão inteiramente feita
de “sentimento”, “subjetividade” ou “disposição de ânimo” a ponto
de poder dispensar todas as pressuposições ou convicções acerca da
natureza e da importância do mundo (OTTO, 1907, p. 2).

Essas pressuposições e convicções incluíam certamente as ciências da


natureza. Para Otto, uma teoria abrangente que pudesse compreender o
mundo, o ser humano e a existência, deveria harmonizar-se com conceitos
e concepções “tais como apresentados para nós na cultura geral do mundo,
nas ciências históricas e naturais, nas ciências particulares, nas teorias do
conhecimento e, talvez, na metafísica” (OTTO, 1907, p. 2).
Se o problema das relações entre ciência e religião continuasse, no século
XX e no século presente, a ser tratado como no século XVI, ele não seria
exatamente um problema de oposição entre conhecimento da natureza
e conhecimento teológico, mas sim uma oposição entre dois modelos
diferentes de physis. Para ilustrar isto, pode-se fazer uma comparação
entre o livro de Otto de 1904 e o diálogo de Galileu sobre os dois sistemas,
ptolomaico e copernicano, de 1632. Já no prefácio do diálogo, Galileu
menciona um édito promulgado por Roma proibindo a discussão da
hipótese pitagórica sobre a mobilidade da Terra (GALILEI, 2001, p. 85).
Ora, daí já se vê que o espírito da época percebia com naturalidade que
a Igreja legislasse sobre questões ligadas ao conhecimento da physis. Não
havia clara distinção entre discussão eminentemente teológica e científica.
:: 160 :: De Lutero a Otto

A contraposição, então, não era exatamente entre teologia e ciência, mas


entre hipóteses sobre a natureza ditadas pelo establishment teológico da
época e hipóteses sobre a natureza formuladas por cientistas. O que Otto
admite em seu livro de 1904 é que essa pretensão da religião de impor
doutrinas sobre o mundo natural já teria sido superada na teologia, ainda
que a teologia não possa ignorar as implicações que o conhecimento da
natureza traz para a religião.
O problema no início do século XX parece inverter-se. Otto fala de dois
tipos de naturalismos. Um deles envolve uma atitude de reverência para
com a natureza, no qual o conhecimento do mundo natural pode até levar a
uma negação da transcendência, mas que acaba por identificar o divino no
mundo natural, levando às vezes ao panteísmo. É o naturalismo “ingênuo
e poético” (OTTO, 1907, p. 24) de Goethe e Herder, diferente do outro, que
envolve “a ideia de uma calculabilidade matemático-mecânica em todo o
sistema da natureza” (OTTO, 1907, p. 22). E ainda que o primeiro possa
chegar a uma negação da transcendência, ele acaba por antagonizar-se
com o segundo justamente porque vê nele uma irreverência “sacrílega e
ultrajante” que disseca e analisa a “Grande Deusa” (OTTO, 1907, p. 24),
a natura. O naturalismo predominante em 1904, porém, era o segundo, e
nele Otto incluiu o pensamento de Darwin36. Otto dedica vários capítulos
de seu livro à discussão de Darwin e de várias correntes evolucionistas
presentes no cenário intelectual de seu tempo, além de analisar a física,
ainda pré-einsteiniana, daquele primeiro quinquênio do século passado.
Otto afirma que o naturalismo de sua época pode ser entendido como “um
empreendimento em uma escala larga que vai atrás de uma consistente
simplificação e gradual redução a termos cada vez menores” (OTTO,
1907, p. 30). Ele percebe que tal compreensão, que envolve uma busca por
uma espécie de princípio simples para a explicação de toda a realidade,
pode levar a uma pretensão de eliminação de tudo aquilo que pareça não
inteligível ou completamente cognoscível:
Olhando retrospectivamente, isso equivale a uma eliminação de todas
as causas incomensuráveis, de todas as “causas finais”, ou seja, de
causas últimas e de “propósitos” que, de um modo não explicável,
36 Contudo, a percepção de que o darwinismo está circunscrito a um naturalismo concebido
como pura calculabilidade matemático-mecânica não é a visão predominante na filosofia
da ciência contemporânea, pois que o pensamento darwiniano lida com questões insepa-
ráveis da contingência da historicidade, ainda que se trate daquilo que se convencionou
chamar de “história natural”.
:: 161 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

trabalham na rede de causas próximas e as controlam, interrompendo


assim sua conectividade, tornando difícil a chegada a um entendimento
claro do “porquê” das coisas (OTTO, 1907, p. 31).

Em outras palavras, Otto percebeu, quase duas décadas antes, os rumos


que essa pretensão do naturalismo pode tomar, chegando a uma negação
da metafísica em nome dos ideais de simplicidade e reducionismo. Para
quê precisaríamos, afinal, pensar em causas finais (ou causas primeiras),
fora do âmbito da physis que estamos, com nosso instrumental mecânico-
matemático, desvelando tão eficientemente? Essa ideia de que toda a
realidade se reduz ao âmbito da physis não é nova, e já existia há milênios
antes de Otto. Platão, em seu diálogo Sofista (246a-b), já falava (pela voz
do Estrangeiro de Eléia) daqueles que
sustentam que “é” apenas aquilo que oferece resistência e contato,
definindo corpo e ser como a mesma coisa, e se alguém lhes afirma que
existem coisas que não são corpos eles o desprezarão em todos os pontos
de vista, e não vão querer nem ouvi-lo (PLATONE, 2008, p. 290).

Muitos séculos mais tarde, David Hume já dizia que livros sobre
“divindade ou metafísica” que não contivessem “qualquer raciocínio
abstrato sobre quantidade ou número”, ou “qualquer discursos
experimental sobre matéria de fato e de existência” deveria ser lançados
ao fogo, pois só conteriam “sofismas e ilusão” (HUME, 1952, p. 509). E
assim, seguindo a mesma tendência, chegou-se ao século em que Neurath
combatia a metafísica aos berros nos cafés de Viena.

A positivação lógico-
metafísica do mistério
Em seu livro de 1904, Otto procura justamente debater com essa cosmovisão
materialista, defendendo a validade da religião e a possibilidade de se
refletir sobre as coisas do espírito sem reduzi-las todas ao âmbito do
material e do corpóreo. Em outras palavras, para Otto, “a visão religiosa
do mundo não pode pretender derivar-se das ciências naturais, e nem
estas podem pretender invalidar a religião com base em seus próprios
avanços no conhecimento da natureza” (QUAGLIO DE SOUZA, 2014, p.
:: 162 :: De Lutero a Otto

43). Mesmo ciente de que vivia em uma época na qual a secularização das
mentalidades avançava a ponto de pretender varrer a própria metafísica
para fora do cenário cultural, Otto não deixava de pensar e de argumentar
em termos metafísicos. Conforme bem observou Melissa Raphael, Rudolf
Otto “estava muito menos interessado na taxonomia e observação dos
fenômenos religiosos do que nos valores metafísicos que os sustentavam”
(RAFHAEL, 2004, p. 16). E Rudolf Otto, em meio às várias ideias que expõe
na discussão sobre as relações entre religião e naturalismo, apresenta
um interessante argumento de caráter eminentemente metafísico para
sustentar a validade do objeto da religião. Esse argumento, simples
e elegante, pode ser lido como uma demonstração lógica, puramente
racional, do mistério como elemento sem o qual não se pode pensar a
própria realidade, especialmente a physis. O argumento está presente
tanto no livro de 1904 quanto em outra obra importante que Otto publicou
poucos anos depois, em 1909, A Filosofia da Religião baseada em Kant e Fries,
e o que se tentará mostrar aqui é a importância de tal argumento como
uma das premissas para o desenvolvimento que o teólogo deu à ideia de
mistério, em 1917, em sua obra mais conhecida, O sagrado.
Uma exposição desse argumento deve começar pela crítica que Otto faz à
afirmação de que “tudo deve ter uma causa e, portanto, o mundo também
deve ter” (OTTO, 1907, p. 61). A crítica de Otto se desenvolve assim:
Isto não é absolutamente correto. Por exemplo, se o mundo fosse
constituído de tal maneira que fosse impossível para ele não existir,
que a necessidade de sua existência e a inconcebivilidade de sua não-
existência fossem ao mesmo tempo explícitas e óbvias, então não teria
sentido em se perguntar por uma causa. No que diz respeito a uma coisa
“necessária”, se houver algo assim, nós não podemos perguntar: “por
que, e a partir de que causa, isto existe?” Se a coisa fosse necessária, isto
implica que pensar nela como não existindo seria ridículo e lógica ou
metafisicamente impossível. Infelizmente, não há coisas “necessárias”,
e então não podemos ilustrar o caso com exemplos. Mas há, pelo menos,
verdades necessárias que se distinguem de verdades contingentes
(OTTO, 1907, p. 61-62).

Justamente pela percepção que todos têm de que o mundo é formado


por coisas causadas, é possível perguntar pela causa do mundo. Mas
:: 163 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Otto observa que, mesmo que não haja coisas necessárias, há verdades
necessárias. Otto exemplifica tal contraste colocando lado a lado
afirmações do tipo “a menor distância entre dois pontos em um plano
é uma linha reta”, pertencente à geometria euclidiana, e “a terra gira em
torno do sol” (OTTO, 1907, p. 62), pertencente à teoria copernicana. Com
esses exemplos, fica bastante claro o que o teólogo quer dizer. Se alguém
perguntar o porquê da afirmação copernicana, a pergunta não soará
ridícula. É o tipo de pergunta que cientistas formulam todo o tempo. É
uma pergunta pela causa de cada coisa observada no mundo, na natureza.
Mas se alguém perguntar pelo porquê da afirmação euclidiana, a pergunta
carecerá de sentido, pois trata-se de uma verdade necessária da razão.
No entanto, a physis não é um conjunto de verdades necessárias, mas sim
de coisas contingentes que existem no tempo, ainda que em conformidade
com verdades da razão, como as dadas pela geometria. Tudo no mundo
natural tem sua causa, tudo está ligado por relações de causalidade.
Mesmo assim, a razão não se contenta com uma infinita sucessão de
coisas contingentes causando outras coisas contingentes. A inteligência
pergunta por uma causa acerca da própria sucessão de coisas contingentes
observadas no mundo natural. Mesmo que alguém apresente a hipótese
de que a physis é uma sucessão infinita de causas e efeitos contingentes,
a razão fará emergir a pergunta pela causa dessa sucessão infinita. Um
matemático poderia expressar esse problema da seguinte maneira. Se
a sucessão infinita de causa e efeito fosse representada pelo símbolo de
infinito, aquele que se parece com o algarismo oito na posição horizontal,
e se esse símbolo compusesse um conjunto unitário, ainda seria possível
perguntar: qual a causa disto? O que Otto tenta mostrar é que a contingência
deve ser eliminada. Busca-se uma causa para a própria contingência, e ela
não pode ser algo contingente. Nas palavras do teólogo:
O elemento de contingência deve ser afastado; elas [as coisas
contingentes] devem ser mostradas como resultantes de causas
suficientes. Isto equivale a dizer nada menos que elas devem se
remeter a alguma necessidade. Pois esta é uma das curiosas convicções
fundamentais da nossa razão, e uma convicção na qual toda a
investigação científica tem suas raízes últimas, de que aquilo que
é “contingente” só o é aparentemente, e na realidade está, de uma
:: 164 :: De Lutero a Otto

maneira ou outra, baseado na necessidade. Portanto, a razão busca


causas para todas as coisas (OTTO, 1907, p. 63).

Otto percebe que o ser humano, ao se perguntar pelas origens de seu próprio
mundo, vê nele a maior contingência de todas, e se a existência do mundo
não se dá por necessidade, a physis deve ter uma causa necessária que seja
seu fundamento e que não tem causa justamente por ser necessária. Mas esta
causa necessária é inalcançável pelos métodos das ciências naturais, pois
o objeto delas é justamente esse conjunto de relações causais contingentes
que chamamos de natureza. É a partir daí que Otto imagina uma objeção
que poderia surgir no contexto da mentalidade de sua época:
Se alguém dissesse: “bom, nós devemos apenas nos contentar com o
reconhecimento da natureza essencialmente ‘contingente’ da existência,
pois nunca seremos capazes de ir além dela”, esse alguém estaria certo
quanto à segunda afirmação. Ir além dela e ver o que há lá – o eterno
e necessário em si mesmo – que se situa no fundamento deste mundo
de “contingência” é, de fato, impossível. Mas ele estaria errado quanto
à primeira parte de sua fala, pois ninguém irá “se contentar” com isso
(OTTO, 1907, p. 64-65).

De certo modo, Otto coloca seus leitores diante de um problema


semelhante ao que Kant percebeu quando tratou das antinomias da razão
pura e afirmou que a razão, diante da síntese objetiva dos fenômenos,
quer impor seu “princípio de unidade incondicionada” (KANT, 1994, p.
379). Compare-se com o que diz Kant:
Dou o nome de conceitos cosmológicos a todas as ideias transcendentais,
na medida em que se referem à totalidade absoluta na síntese dos
fenômenos; em parte, devido a essa mesma totalidade incondicionada
sobre a qual também assenta o conceito de universo, que não é
ele mesmo senão uma ideia; em parte porque apenas se referem à
síntese dos fenômenos, síntese empírica, portanto, ao passo que, em
contrapartida, a totalidade absoluta na síntese das condições de todas
as coisas possíveis em geral dará origem a um ideal de razão pura,
inteiramente diferente do conceito cosmológico, embora em relação
com ele (KANT, 1994, p. 380).
:: 165 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Em suma, o argumento de Otto diz o seguinte: tudo é contingente,


especialmente a natureza, exceto as verdades necessárias sobre as quais
não há sentido perguntar por suas causas. Se as relações de causa e efeito
todas, consideradas em seu conjunto, têm uma causa, esta causa deve ser
externa a ela e, portanto, deve ser uma causa necessária, uma verdade
necessária. Não é possível ao entendimento alcançar plenamente esta
causa, mas também não é possível deixar de pensar nela. É nesse ponto
que Otto pode passar a falar de religião e do objeto da religião. Mas seria
possível dizer que Otto apresentou mais uma prova da existência de
Deus? O próprio Otto responde negativamente a esta questão, refutando
a possibilidade de “provas cosmológicas da existência de Deus” que a
tradição filosófica já havia formulado:
Era certamente errado supor que “Deus” poderia ser provado. Pois há
um longo caminho desde a “ideia de necessidade” até a experiência
religiosa de Deus. E é errôneo, também, supor que alguma coisa poderia
ser “provada”. O que é necessário não pode nunca ser realmente
provado a partir do que é contingente. Mas o reconhecimento da
natureza contingente do mundo é um estímulo que atiça na nossa razão
a ideia do necessário, e é um fato que a razão só encontra descanso
nesta ideia (OTTO, 1907, p. 65).

A partir daqui, já é possível refletir sobre esse argumento em termos


de filosofia da religião ou de teologia. Otto declara expressamente que
não está buscando provar “Deus”, mas há algo que seu argumento
demonstra. Como ele mesmo afirmou, não é possível ir além da natureza
essencialmente contingente da existência, mas pensar esse desconhecido,
que está na base do mundo de contingências que o ser humano experiencia,
é uma exigência da razão, que não se contenta em ficar girando em torno
das coisas contingentes mesmo sabendo que o que está além é inalcançável
a ela. Se Otto não prova Deus, o que ele estabelece então? Certamente,
para a razão, a natureza dessa causa necessária é um mistério. O mistério
é assim logicamente estabelecido. Mas esse estabelecimento lógico é
fundamentalmente metafísico, pois é próprio dele situar-se além da
physis, da qual ele é fundamento. Não seria errado, portanto, chamar esse
argumento de Otto de positivação lógico-metafísica do mistério. Pois ele é uma
positivação. Há algo que é posto, que deve ser levado em consideração e
discutido quando se pretende falar em religião e em suas relações com o
:: 166 :: De Lutero a Otto

mundo natural. Mas isto que é posto, que é positivado, é para a razão um
mistério, algo que lhe escapa. De certo modo, alguém poderia dizer que,
absurdamente, Otto faz a positivação de um negativo. Talvez seja assim, mas
esse negativo só é negativo diante da razão humana, limitada por sua
própria natureza, finita e contingente.
Em 1909, Otto publicou, como já dito acima, outra obra importante, A
Filosofia da Religião baseada em Kant e Fries. Ao expor o mesmo argumento
no livro de 1909, Otto já fala dessa causa primeira em termos mais
teológicos, como Deus:
O princípio geral “tudo deve ter uma causa” está errado, se ele quiser
dizer “uma causa fora de si mesmo”. (Pois nesse caso, Deus teria,
por necessidade, uma causa externa; esta causa, outra causa; e assim
por diante ad infinitum). Digamos, em vez disso, que o conceito de
necessidade contém em si mesmo, apenas em si mesmo, uma existência
que tem sua causa dentro de si mesma. Certamente há um vínculo entre
isso e a razão geral pela qual há Algo em vez de Nada, e porque esta
coisa é assim e não de outro jeito. Mas essa razão deve existir naquilo
que é, por si mesmo, e desconhecido para nós (OTTO, 1931, p. 86-87 –
grifos do original).

O teólogo, então, se refere a Deus, o objeto da religião, mas deixa claro que
ele é o desconhecido. Alguém poderia dizer que, nessas ideias de Otto, há
muito mais metafísica do que teologia ou filosofia da religião propriamente
dita. Uma mentalidade moderna poderia pensar assim. O espírito do
tempo presente, tendo atrás de si toda a história da filosofia, poderia assim
classificar o pensamento de Otto. Curiosamente, porém, nessas ideias,
Otto enfrenta exatamente um dos problemas mais importantes para a
metafísica de Aristóteles: o da causa primeira. Aristóteles considerava
este um problema do âmbito da “protofilosofia”, a filosofia primeira, que
ele chamava justamente de teologia (ARISTÓTELES, 2006, p. 171). Então,
Otto, formado na cultura luterana, curiosamente retorna a um problema
enfrentado por aquele que Lutero chamou de fabulador, aquele contra
cuja autoridade se levantaram reformadores e cientistas quinhentistas
e seiscentistas. E isso é um indício histórico de que a humanidade não
consegue deixar de pensar no problema da causa de tudo, e que tal
problema sempre escapará das tentativas puramente materialistas de
:: 167 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

enfrentá-lo, empurrando o investigador para além da physis, ainda que haja


pessoas como Hume, com sua crítica à própria ideia de causalidade, ou
os neopositivistas vienenses, com seu desesperado credo sola verificatione.

O sagrado e as mentes secularizadas


Há exatamente cem anos, Rudolf Otto publicou sua obra mais conhecida,
O sagrado. O livro de 1917 foi, com justiça, reconhecido como fundamental
para uma nascente fenomenologia da religião, e ciência da religião, de
modo mais geral, pelo menos na maneira como se entende fenomenologia
e ciência da religião na presente época. Um sinal dessa importância é
expresso por Mircea Eliade nos primeiros parágrafos de sua obra O
sagrado e o Profano:
Ainda nos lembramos da repercussão mundial que obteve o livro de
Rudolf Otto, Das Heilige (1917). Seu sucesso deu-se graças, sem dúvida,
à novidade e à originalidade da perspectiva adotada pelo autor. Em
vez de estudar as ideias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se
na análise das modalidades da experiência religiosa. Dotado de grande
refinamento psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de
teólogo e de historiador das religiões, Rudolf Otto conseguiu esclarecer
o conteúdo e o caráter específico dessa experiência. Negligenciando o
lado racional e especulativo da religião, Otto voltou-se sobretudo para
o lado irracional, pois tinha lido Lutero e compreendera o que quer
dizer, para um crente, o “Deus vivo”. Não era o Deus dos filósofos, o
Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma ideia, uma noção abstrata,
uma simples alegoria moral (ELIADE, 2008, p. 15).

Essas palavras de Eliade merecem atenção, pois revelam muito sobre o


modo como Otto foi lido após a publicação de seu livro mais conhecido
em 1917. A “peculiar categoria do sagrado” (OTTO, 2007, p. 37), como o
autor a denominou, foi recebida como loucura por empiristas e escândalo
por racionalistas. Para negadores da validade de qualquer especulação
metafísica, como os do Círculo de Viena, qualquer tipo de consideração
sobre o objeto da religião, por não ser passível de verificação, carecia
de sentido. Sandices, para usar uma expressão popular ligada às coisas
incompreensíveis ditas por loucos. Mas para aqueles que ainda pensavam
em termos que vão além da empiria, essa categoria peculiar, juntamente
:: 168 :: De Lutero a Otto

com seu objeto, o numinoso, era um escândalo. Em primeiro lugar, Otto


afirmou claramente:
O sagrado, no sentido pleno da palavra, é para nós uma categoria
composta. Ela apresenta componentes racionais e irracionais. Contra
todo o sensualismo e contra todo o evolucionismo, porém, é preciso
afirmar com todo o rigor que em ambos os aspectos se trata de uma
categoria estritamente a priori (OTTO, 2007, p. 150).

Escândalo! Como pode alguém expressar-se tão explicitamente em termos


kantianos e falar em categoria a priori com aspecto irracional convivendo
com o racional? A advertência de Otto de que “por ‘irracional’ não
entendemos o vago e néscio, ainda não submetido à razão nem à birra das
pulsões individuais ou das engrenagens do mundo contra a racionalização”
(OTTO, 2007, p. 97), não adiantou. Nem adiantou sua explicação de
que o irracional é aquilo que, ao redor do aspecto racional na ideia de
divino, daquilo que pode ser formulado com clareza, “existe uma esfera
misteriosa e obscura que foge não ao nosso sentir, mas ao nosso pensar
conceitual, e que por isso chamamos de ‘o irracional’” (OTTO, 2007, p.
98). Ironicamente, o meio protestante no qual Otto se formou iria também
fortalecer no espírito das épocas subsequentes à Reforma uma confiança
na razão que sentia estranheza quando, com o uso da própria razão, um
pensador buscava chegar aos seus limites. Kant empreendeu tal tarefa, e
marcou a história da filosofia. Mas Otto ousou demonstrar que irracional
e racional acabam por tornar-se inseparáveis para qualquer pensador que
decida empreender uma investigação sobre o objeto da religião.
Contudo, como visto acima, Otto havia chegado às ideias que pôde
apresentar em 1917 por meio de argumentos racionais e metafísicos,
obedecendo estritamente aos ditames da lógica. E ele mesmo veio a se
defender anos mais tarde, como informa Robert Streetman em seu artigo
sobre o que o próprio Otto veio a dizer sobre sua obra em seus últimos anos:
Diante de várias acusações de irracionalismo, subjetivismo e
psicologismo, ele respondeu: “antes de me aventurar neste campo de
pesquisa, eu despendi muitos anos de estudo sobre o aspecto racional
da suprema Realidade que nós chamamos de ‘Deus’, e os resultados do
meu trabalho estão contidos em meus livros Naturalismo e Religião de
:: 169 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

1904, e A Filosofia da Religião baseada em Kant e Fries de 1909. E eu


sinto que ninguém deveria ocupar-se com o ‘Numen ineffabile’ se já não
tiver devotado sério e assíduo estudo à ‘Ratio aeterna’” (STREETMAN,
1980, p. 367).

Por essa defesa de Otto é possível então fazer a crítica ao que Eliade
falou sobre o teólogo alemão. O pensador romeno reconhece, com toda
justiça, a originalidade de Otto. Contudo, não é certo que ele não tenha
estudado a ideia de Deus, ainda que o foco de O sagrado tenha sido, de
fato, a experiência religiosa. Todas as considerações sobre o mistério
envolvem a ideia de Deus, de causa necessária, uma teologia no sentido
mais aristotélico do termo. Também não é correto dizer que ele tenha
negligenciado o lado racional e especulativo da religião. Ao contrário, ele
precisou estabelecer bem esse lado para poder tratar do irracional.
Mas como poderiam as mentes secularizadas daquela época perceber
tudo isso com clareza? No espírito do início do século XX, as ciências
a natureza já estavam estimulando parte da intelectualidade da época
a rejeitar toda a metafísica, e muitos daqueles que ainda pensavam em
termos metafísicos queriam afirmar a racionalidade, mais do que isso, a
razoabilidade, da investigação das coisas que não podem ser apreendidas
pela empiria. É compreensível, portanto, que o falar de um componente
irracional intrinsecamente ligado ao racional tenha gerado tal resistência.
Mas essa resistência, como visto neste texto, pode ser dissipada com um
exame em conjunto das obras de 1904 e de 1909, para depois se chegar à
leitura do livro de 1917.
O espírito da época, porém, talvez ainda não estivesse preparado para
uma recepção mais calorosa da obra de Otto. Seu impacto se fez sentir,
com certeza, entre os estudiosos de religião e entre seus pares, os teólogos.
Mas as mentes do início do século XX, que trilhavam o caminho, aberto
desde o século XVI, de uma crescente secularização, foram em grande
parte refratárias a esse tipo de estudo. Contudo, o impacto de O sagrado,
ainda que circunscrito aos diversos tipos estudiosos de religião, foi muito
forte. Em campos específicos ligados à reflexão sobre o fenômeno religioso,
já era possível vislumbrar que ali estava um texto que não deixaria de
ser debatido nesse meio. Mas poderia esse impacto repercutir e estender
:: 170 :: De Lutero a Otto

seu alcance ao longo do tempo, vencendo a resistência das mentes


secularizadas e trazendo de volta ao debate acadêmico essas questões
eminentemente religiosas? Como essa repercussão pode ser percebida
hoje, cem anos depois?

Conclusão
O século XXI ainda é um tempo de mentes secularizadas. Bom, pelo
menos é o que se pode dizer do mundo ocidental. A Europa ainda é
predominantemente cristã, mas esse cristianismo europeu, na maior
parte dos casos, não se manifesta em cosmovisões que colocam a religião
no centro da existência da maioria das pessoas. Em outras palavras, há
mais pessoas frequentando regularmente universidades do que igrejas.
As ciências da natureza continuam a inspirar fascínio, e muitas pessoas
tornam-se convencidas de que cosmovisões materialistas, como as dos
chamados céticos contemporâneos ou neo-ateus são firmemente comprovadas
pelos avanços da física, da química e da biologia. A rejeição a qualquer
tipo de metafísica parece ser o caminho mais lúcido ou razoável a se
seguir. O quadro cultural que Otto encontrou nos meios acadêmicos de
seu tempo tem muito em comum com o que há hoje. Os fatos psicológicos
que são antecedentes daquela mentalidade são também antecedentes da
mentalidade hodierna.
Aquela esperança expressada por Otto em 1904, de que a mitografia
não mais seria confundida com a historiografia, pelo menos nos meios
cultos, não parece ter se concretizado totalmente. Se for considerado,
por exemplo, o quadro específico da cultura norte-americana, com seus
debates entre criacionistas e evolucionistas, vê-se que, lamentavelmente,
as mentes envolvidas nessa discussão parecem ainda refletir muito do
espírito dos séculos XVI e XVII. Falam de Darwin e da religião em termos
idênticos aos das discussões que Galileu ou Copérnico travaram com o
establishment religioso de suas épocas, confrontando duas perspectivas
diferentes sobre a própria physis, em vez de considerar a distinção
de âmbitos que a teologia, a filosofia e a ciência da religião já estavam
estabelecendo desde o século XIX, e para a qual Otto deu uma valiosa
contribuição. A mentalidade secularizada de nosso tempo contamina
os próprios religiosos. O quadro anglo-saxão mencionado acima é um
:: 171 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

bom exemplo, pois muitos tentam tratar empiricamente os âmbitos da


realidade que Otto demonstrou que não podem ser objeto de empiria.
Contudo, a esperança de Otto não pode ser considerada completamente
frustrada. Seu trabalho cresceu em influência dentro de seu campo
acadêmico específico. Ainda que criticado, sua imprescindibilidade como
texto fundamental é reconhecida, e um sinal deste reconhecimento é sua
expansão para domínios linguísticos que antes estavam de fora de sua
discussão, como a língua portuguesa, que ganhou uma boa tradução de
Das Heilige neste século XXI. Mesmo que a influência da obra ainda se
restrinja muito à ciência da religião, à teologia e, em menor grau, à filosofia,
o próprio crescimento dessas áreas implica em um crescimento do alcance
das ideias de Otto. Sua contribuição ao debate, porém, poderá se ampliar,
e suas ideias poderão ser mais bem compreendidas por nossas mentes
secularizadas se sua maior obra, hoje centenária, passar a ser estudada
em conjunto com seus outros textos importantes. Afinal, elas mostram
claramente uma evolução e amadurecimento intelectual do autor, e
estabelecem premissas importantes para uma completa compreensão da
“peculiar categoria do sagrado”, de seu objeto, o numinoso, do papel da
ideia de Deus na religião e da própria metafísica. Sim, da metafísica que,
mesmo parecendo agonizar, e mesmo tendo sido condenada tantas vezes
à morte, insiste em manter-se de pé.

Referências
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BLOCH, Marc. Apologia da História ou o ofício do historiador, Rio de
Janeiro: Zahar, 2001.
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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lectures on the Philosophy of History,
Londres: George Bell and Sons, 1884.
:: 172 :: De Lutero a Otto

HUME, David. An Enquiry Concerning Human Understanding, (Great


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LAU, Franz. Lutero. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1980.
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______. The Philosophy of Religion Based on Kant and Fries. New York:
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QUAGLIO DE SOUZA, Humberto Araújo. Fenomenologia da experiência
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STREETMAN, Robert F. Some Later Thoughts of Otto on the Holy. Journal
of the American Academy of Religion. V. 48, n.3, Oxford University
Press, 1980, p. 365-384.
Teoria da religião:
questões epistêmicas
e traços históricos
Davison Schaeffer de Oliveira
:: 174 :: De Lutero a Otto

Introdução 37
A teoria evolucionista de hoje tem todo o direito de
tentar “explicar” o fenômeno chamado religião, pois
esta é de fato a tarefa da ciência da religião. Mas para
poder explicar, é preciso ter um dado primeiro a partir
do qual se possa explicar. Do nada, nada se explica
(OTTO, 2007, p. 151-152).
Teoria da religião – ou, para melhor descrevê-la condizente com sua
polivalência de perspectivas: teorias da religião – não constitui assunto
simplesmente circunscrito à esfera da Ciência da Religião e suas
subdisciplinas. Ele remete a um debate mais abrangente que inclui outras
áreas como a Filosofia da Religião e a Teologia, podendo ampliar este
leque até para questões de Filosofia da Ciência, Filosofia da Linguagem
etc. De ser assim, discutir teoria da religião se converte num desafio
para a pesquisadora ou o pesquisador da religião, sobretudo dada a
especialização que caracteriza os estudos contemporâneos. Com razão, o
estudioso profissional receia não estar em posição de lidar com bem mais
do que apenas sua própria área de formação e sua expertise. Contudo, se
um objeto científico também recebe atenção de outras disciplinas, faz-se
necessário considerá-las no tocante à delimitação epistemológica, visto que
outras áreas também se dedicam ao estudo da religião ou, genericamente
falando, dos fenômenos e/ou fatos religiosos.
Esta implicação não passou despercebida, por exemplo, para o cientista
da religião holandês, falecido recentemente, Jean J. Waardenburg (1930-
2015). Em uma conferência proferida já na década de setenta do século
passado (1973), na Universidade de Boston, o autor ressaltou o fato de que
discussões sobre “método e teoria no estudo e interpretação da religião”
constituem o lugar de encontro entre cientistas da religião, filósofos e
teólogos (WAARDENBURG, 1978, p. 9)38. Para tanto, o teórico da religião
é impelido a ir além de seus limites epistêmicos mais imediatos, sem
que o cientista da religião precise abandonar seu compromisso com a
pesquisa empírica, ou o filósofo descarte sua abordagem racional dos
conteúdos religiosos vis-à-vis sua pretensão de validade, ou o teólogo
37 Pesquisa financiada pela CAPES através do Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD)
do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas
Gerais.
38 Todas as traduções são de nossa autoria, salvo quando houver referências explícitas a ver-
sões em português.
:: 175 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

devesse renunciar seu ponto de partida hermenêutico em conexão com


determinada tradição religiosa. Afinal, como podemos decidir sobre a
especificidade de uma área sem relacioná-la minimamente com outras
que com ela compartilham temas afins?
Este ensaio tenciona refletir sobre teoria da religião ciente de que ela
nos convida a ultrapassar fronteiras epistemológicas, especialmente
em virtude daquilo que consideramos ser seu problema central: a
definição de seu próprio objeto de estudo – religião. Por razões históricas
e sistemáticas, este debate embrenha-se no território da Filosofia da
Religião e da Teologia. Justamente por isso, por motivos históricos,
costuma-se evitar tal entrelaçamento porque existem receios, apenas em
parte convincentes, com respeito aos interesses dogmáticos oriundos da
herança teológico-filosófica cristã no ocidente. Por sua vez, em função de
aspectos sistemáticos, existem receios contra os riscos de confusão e/ou
hibridismo entre perspectivas epistemologicamente autônomas.
Para avaliar o status quaestionis desta discussão, particularmente no
contexto contemporâneo da Ciência da Religião no Brasil, quatro questões-
chave guiarão nossa exposição, a saber: 1) Qual o papel da teoria da religião
para a Ciência da Religião? 2) Como se define seu objeto: religião? 3) Por
que razão se questiona os métodos fenomenológicos? 4) Que dizer ainda
sobre o conceito de sagrado em Rudolf Otto?
Evidentemente, cada uma destas questões só poderão ser avaliadas aqui
em suas linhas gerais. Porém, como pretendemos demonstrar, elas estão
estreitamente conectadas e reportam a controvérsias contemporâneas na
Ciência da Religião. Em todo caso, vale a pena advertir de antemão que
não temos o intento de divulgar uma nova teoria da religião, mas visamos
examinar problemas epistêmicos concernentes ao estudo sistemático
da religião, particularmente sobre o nexo nem sempre admitido, ou
mesmo voluntariamente renunciado, entre teorias da religião e a tradição
filosófico-teológica.

Teoria da religião
na Ciência da Religião
Para a Ciência da Religião contemporânea, ocupar-se com teoria da religião
não tem significado deter-se necessariamente em definições de religião,
mas familiarizar-se com a ciência que investiga tal objeto, suas premissas e
:: 176 :: De Lutero a Otto

seus métodos. Ela visa consolidar e padronizar um ethos para a atividade


acadêmica conforme determinado paradigma de ciência. Por conseguinte,
ela constitui menos uma subdisciplina da Ciência da Religião do que uma
propedêutica para a área – ou seja, uma metateoria que busca ajustar os
parâmetros e as coordenadas da investigação, orientar o modo de seleção
do material para as análises, a escolha dos procedimentos, quais tipos de
hipóteses são passíveis de testes de verificação/falseamento e, não por
último, possibilitar a avaliação dos resultados pela comunidade científica
(GRESCHAT, 2005; USARSKI, 2006).
Todavia, pela mesma razão de clareza teórica, dever-se-ia esperar que
após a apresentação completa da teoria da teoria (metateoria), fôssemos
informados, finalmente, sobre a definição de religião. Pois é neste
momento que normalmente mais de um cientista da religião se sente
desconfortável, quando não manifesta explicitamente suspeita ou aversão
(STAUSBERG, 2009)39. O que não deixa de surpreender, pois se trata do
próprio objeto formal do estudo acadêmico da religião. Deste modo, a
questão que se coloca é a seguinte: priorizar a ciência assegura o objeto,
mesmo sem definições explícitas, sem respostas claras à pergunta por
aquilo que se investiga? Note-se que até este ponto só inquirimos pelas
demarcações epistemológicas, ainda não se fez necessário nenhuma
investigação ontológica sobre se algo transcendente existe ou não.
Obviamente, não se quer dizer com isso que seja tarefa fácil definir
religião para a Filosofia da Religião ou para a Teologia. Em virtude de
sua complexidade, trata-se de um tema desafiador para qualquer área
de estudos, e não só para as teorias que reivindicam para si um recorte
eminentemente empírico. Teorias de recorte mais abstrato, como a filosófica,
ou de recorte intrinsecamente religioso, como a teológica, também não
gozam de unanimidade para suas definições de religião. Porém, nem
de longe outras áreas forjam tantos contratempos e evasivas sobre a
definição de seu objeto. Só que alguma palavra a este respeito não pode ser
preterida. A propósito, não seria razoável supor, pelo contrário, que boas
39 Michael Stausberg (2009, p. 1) chega mesmo a afirmar existir para os estudiosos da área,
por causa de seu treinamento empírico de campo, certa “aversão” e “suspeita” diante de
teorizações e generalizações. Sobre isso, Hans-Jürgen Greschat (2005, p. 122) também
confessa, avaliando a teoria de Rudolf Otto e considerando-o antes teólogo e filósofo da
religião do que propriamente cientista da religião: “Na verdade, os cientistas da religião
não se sentem muito motivados a criar teorias.”.
:: 177 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

definições tenham o potencial de traduzir exemplarmente as premissas de


uma ciência? Se explicitarmos uma proposição geral sobre determinado
objeto de pesquisa, ele não se torna melhor delimitado conceitualmente,
projetado contra o pano de fundo de nossos pressupostos?
O aprimoramento contemporâneo da discussão epistemológica foi muito
bem-vindo para a Ciência da Religião e tem sido o caminho trilhado
pela pesquisa especializada internacional e nacional há décadas. Em
uma conferência do ano de 1972, o renomado estudioso da religião
alemão Kurt Rudolph (1929-) diagnosticou uma “certa crise da Ciência
da Religião”, destacando vários aspectos, dentre os quais, por exemplo:
a incerteza acerca do próprio objeto da disciplina, o abismo crescente
entre orientações históricas e sistemático-fenomenológicas, a ameaça
de fragmentação do trabalho de história da religião pelas disciplinas
particulares e o problema da relação entre Ciência da Religião, Filosofia
da Religião e Teologia (RUDOLPH, 1992, p. 38).
Estas críticas eram incisivas e incômodas, dado que se comemorava,
naquela altura, o centenário da institucionalização da disciplina40, de tal
modo que questões gnosiológicas fundamentais não deveriam ser ainda
motivos de estorvo e embaraço. De lá pra cá, discutir teoria da religião
na Ciência da Religião assumiu geralmente um caráter programático com
duas linhas de frente: de um lado, propõe-se novos paradigmas científicos,
especialmente de viés empírico; de outro, busca-se reiterar as críticas
recorrentes contra a Fenomenologia da Religião. Porém, tornou-se cada vez
mais exígua a tentativa de se definir expressamente religião.
Na época em que se discutiam tais questões lá fora, a Ciência da Religião
ainda era um projeto incipiente na academia brasileira, de modo que
só mesmo sua prática regular e consolidação acadêmico-institucional
haveria de oferecer as condições de possibilidade do aprofundamento
metodológico e teórico, sobretudo a partir da década de noventa do século
XX e com o avanço dos programas de pós-graduação no Brasil. Além
disso, o desdobramento do debate teórico-metodológico conduziu ao
questionamento acerca da debilidade das delimitações subdisciplinares
da própria área da Ciência da Religião, cuja discórdia se revela já no

40 Institucionalmente, a primeira cátedra de Histoire des Religions surge na Suíça, em Gene-


bra, no ano de 1873. Sobre a institucionalização da disciplina (USARSKI, 2006, p. 24-28).
:: 178 :: De Lutero a Otto

debate pelas preferências de nomenclatura da disciplina, as quais refletem


o uso singular de Ciência da Religião41, ou o uso plural de Ciências das
Religiões, ou, ainda, suas variantes intermediárias de Ciência das Religiões
e Ciências da Religião (FILORAMO; PRANDI, 2010; CAMURÇA, 2008)42.
Desde então surgiram importantes coletâneas na primeira década deste
século (TEIXEIRA, 2008; USARSKI, 2007; CRUZ; MORI, 2011)43. Neste
particular, lugar de destaque ocupa, mais recentemente, o Compêndio de
Ciência da Religião, escrito a várias mãos e de grande envergadura, na qual
os organizadores dedicaram uma seção inteira à discussão epistemológica,
intitulada Epistemologia da Ciência da Religião (PASSOS; USARSKI, 2013,
p. 33-183): em outras palavras, segundo Eduardo Cruz (2013, p. 38),
autor que apresenta esta seção, trata-se de “como praticar uma Ciência
da Religião adequada”, mas sobre o conceito de religião, apenas se diz
de que a categoria mal e mal se diferencia de outros aspectos da cultura.
Segurança mesmo apenas com respeito ao status quo ideal da disciplina
que, segundo Usarski (2013, p. 51), “dedica-se de maneira não normativa
ao estudo histórico e sistemático de religiões concretas em suas múltiplas
dimensões, manifestações e contextos socioculturais”44.

Conceito de religião como problema


Se consultarmos importantes manuais introdutórios da Ciência da
Religião, verificamos o estado da arte deste debate, a saber: ou se
defende uma autonomia relativa da religião, na qual religião é explicada
em função de x, sendo x qualquer aspecto captado por uma ciência –
psicológica, sociológica etc. (FILORAMO; PRANDI, 2010); ou se adia
41 Uso que optamos utilizar em nosso texto, mas que remete à área como um todo.
42 Por ora, tem-se firmado certo consenso sobre o uso da nomenclatura Ciências da Religião,
utilizado pela maioria das instituições, bem como por importantes comunidades acadêmi-
cas da área no Brasil, tais como a Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER)
e a Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências da Religião (ANPTE-
CRE).
43 Todavia, nestas três coletâneas, nenhuma seção especial é dedicada à questão da definição
de religião, tratando-se de debate periférico.
44 Excessão para o texto de Roberto H. Pich também presente neste compêndio (2013, p. 143-
160), Religião como forma de conhecimento, mas neste caso o autor se filia explicitamente
a R. Otto e desenvolve, se bem entendemos, uma abordagem mais próxima da Filosofia da
Religião, distanciando-se da linha principal desenvolvida pelos maioria dos outros artigos
e da apresentação dos organizadores.
:: 179 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

programaticamente a definição de religião até os resultados da própria


investigação, definindo-a como “constructo científico” (HOCK, 2010);
ou, até mesmo, abandona-se de vez a definição e privilegia-se expressões
alternativas como “discurso religioso”, com base num pragmatismo
linguístico (KIPPENBERG; VON STUCKRAD, 2003)45. Mas também
em outras publicações de referência propõem-se definições reticentes e
provisórias, tais como “campo religioso” (PYE, 2001), ou “totalidade viva”
(GRESCHAT, 2005), evidenciando, portanto, um horizonte teoricamente
volátil e de relativa indefinição para atender a mutabilidade que o conceito
de religião sofre no tempo e no espaço.
Nestes manuais, o problema do conceito de religião acompanha
basicamente um roteiro que consiste em exibir a polissemia da categoria,
seu condicionamento histórico, sociocultural e linguístico, sua origem
ocidental latina e não correspondência imediata com outras línguas, bem
como os riscos de seu uso ideológico e apologético. Sobre a questão da
definição, somos familiarizados com dois tipos clássicos, o substancialista
– que advoga uma substância ou essência – e o funcional – que opera
segundo papéis socio-psíquicos (FILORAMO; PRANDI, 2010, p. 253-284;
HOCK, 2010, p. 17-30). Salienta-se com razão a precariedade de ambos,
em virtude da unilateralidade ora exclusivista, ora inclusivista.
Este procedimento argumentativo, naturalmente, desencoraja o/a
pesquisador(a) face de tantas tentativas e fracassos. Não se admira, por
conseguinte, que surjam até propostas de conceitos alternativos. Por
exemplo, tem-se atribuído à categoria espiritualidade função heurística
privilegiada nas teorias contemporâneas da religião. Para evidenciar
ainda mais a troca pradigimática, diz-se até de espiritualidades não-religiosas,
título temático de um dossiê da revista Horizonte (2014), cujo intuito é o de
afastar interesses metafísico-institucionais da determinação da religião;
porém, substituir um conceito por outro não supera o problema teórico
básico (OLIVEIRA, 2016, p. 112-133).
Mas se não é possível um absoluto silêncio com respeito ao próprio objeto
de pequisa, a solução encontrada é a de discriminar, pelo menos, certas

45 Esta obra não se encontra traduzida para o português, mas cuja influência se pode rastrear
em autores da área no Brasil.
:: 180 :: De Lutero a Otto

camadas ou dimensões do fenômeno, como se dissessem: “Não sabemos


muito bem o que é, mas importa que seja acessível à pesquisa empírica!”.
Por exemplo, se Hans-Jürgen Greschat propõe-se discutir sobre o objeto da
Ciência da Religião (Capítulo 1: Ciência sobre o quê?), no momento crucial
da definição, contudo, ele recorre a proposições gerais da maneira como
o cientista percebe a religião, a saber: “1- vêem o objeto “religião” como
uma totalidade; 2- reconhecem que essa totalidade apresenta-se de maneira
quádrupla; 3- observam que essa totalidade está viva e que, portanto, não
pára de se transformar.” (GRESCHAT, 2005, p. 24). A imagem plástica a que
Greschat recorre é a da fotografia: o cientista da religião captura, num dado
momento, um conjunto de aspectos comunitários, ritualísticos, doutrinários
e experiênciais, sendo a história da religião uma sucessão destes resgistros
momentâneos que o cientista justapõe num continuum temporal.
Por sua vez, Klaus Hock vai além e argumenta que a religião remete a uma
família de componentes (e não apenas quatro) que são esquematizados
pela própria atuação do cientista da religião, de modo que não se tem
uma definição até o processo final de construção científica, segundo suas
próprias palavras:
[Religião é] um constructo científico que abrange todo um feixe de
definições de caráter funcional de conteúdo, através do qual podem
ser captados, como “religião”, num esquema, elementos relacionados
entre si e formas de expressão, como objeto e área de pequisa científico-
religiosa (e outra) (HOCK, 2010, p. 29).

Com Giovanni Filoramo e Carlo Prandi aprendemos a lição geral: “Afinal,


o que define religião é a validade do método particular que se decide
assumir” (FILORAMO; PRANDI, 2010, p. 20).
Parece-nos um exemplo sintomático da não discussão explícita de
definições objetivas de religião a obra Uma teoria da religião, de Rodney
Stark e William Sims Bainbridge: ela promete uma teoria geral da religião
evadindo-se para “estruturas de explicação formal”, das quais se espera
deduzir então a religião de axiomas e proposições gerais. Mas, como os
próprios autores alegam, “os axiomas da teoria não são afirmações sobre a
religião [mas] (...) acerca do mundo e de como as pessoas se comportam e
interagem” (STARK; BAINBRIDGE, 2008, p. 20). Em outras palavras, não
:: 181 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

temos, a rigor, uma teoria da religião, mas uma teoria geral do homem e do
mundo a partir da qual se deduz teoremas sobre a religião. Por um lado,
uma teoria deste tipo consiste numa tautologia, só que jamais se pode
extrair dedutivamente de um axioma o que ele próprio não contém por
princípio. Ainda que os autores aleguem a possibilidade de correção dos
axiomas pela realidade empírica, os teoremas sobre religião dependem
formalmente dos axiomas. Por outro lado, do ponto de vista filosófico,
caberia ainda uma pergunta mais fundamental, a saber: por que razão os
conceitos de mundo e de homem seriam mais óbvios que os de religião?46

Fenomenologia da Religião em xeque


O debate hodierno em torno da teoria da religião tem cumprido basicamente
o papel de ruptura epistemológica com a Fenomenologia da Religião,
principalmente contra o “programa eladiano de uma Ciência da Religião”,
subitem da contribuição de Eduardo Cruz para a discussão epistemológica
no Compêndio de Ciência da Religião (PASSOS; USARSKI, 2013, p. 38). Este tem
sido um padrão na pesquisa internacional e se tem reivindicado também
para a pesquisa nacional, não obstante a co-existência de expectativas
positivas depositadas na Fenomenologia da Religião praticada no Brasil,
sobretudo para a superação do empirismo e para a consolidação da
interdisciplinaridade (DREHER, 2003; BRANDT, 2006).
Não é fortuito que o ceticismo diante de definições de religião coadune-se
com a crítica radical dirigida contra a Fenomenologia da Religião. Ora,
os manuais da área que ainda arriscam alguma definição mais específica
da religião aproximam-se intelectualmente da tradição fenomenológica,
ainda que reformulando-a. Se J. Waardenburg não propõe um conceito
universal, preferindo definir religião no plano abstrato apenas como
“sistema de orientação”, ainda é capaz de remeter a “traços essenciais”
(wesentliche Merkmale) dos aspectos religiosos de dada sociedade ou

46 Michael Stausberg tem sido um dos principais expoentes da discussão teórica da religião
que, a nosso ver, leva realmente a sério o debate sobre o objeto religião. Sugeriu, recente-
mente, quatro críterios básicos para medir a discussão teórica da religião contemporânea:
ela deveria perguntar-se pela (1) especificidade da religião, (2) pelas condições para sua
emergência, (3) para o modo como se relaciona com outros domínios, (4) pelo mecanismo
de arranjo de suas dimensões (STAUSBERG, 2009). Não trataremos de sua abordagem no
detalhe porque pressuporia uma discussão que excederia os limites desta contribuição.
:: 182 :: De Lutero a Otto

cultura, a despeito das críticas reiteradas contra o essencialismo – por isso,


reconhecendo o valor dos estudos fenomenológicos sobre o sentido e o
significado, o autor defendeu uma Fenomenologia da Religião de Estilo
Novo (WAARDENBURG, 1986).
Mas muitos poucos autores assumem hoje uma definição autônoma
e substantiva de religião, tal como ainda foi possível para Günter
Lanczkowski (1917-1993) no início da década de oitenta do século passado,
como “um fenômeno originário inderivável (unableitbar Urphänomen), uma
grandeza sui generis”, constituída por “uma relação existencial recíproca”
entre divindade e homem, entre a divindade que se manifesta por meio
da experiência e as reações humanas que se dirigem ao incondicionado
através da veneração e da oração, das formas éticas e das práticas cúlticas
(LANCZKOWSKI, 1980, p. 23-24).
Segundo Aldo Natale Terrin, após a morte de Mircea Eliade em 1986,
assinalou-se deliberadamente, da parte de muitos cientistas da religião,
a fase de rompimento na hegemonia metodológica da Fenomenologia
da Religião, que era a principal responsável pela definição de religião
ostensiva e substantiva mediante a categoria do sagrado, acirrando um
debate já presente desde pelo menos a década de setenta entre religionistas,
que estudam o fenômeno religioso em escala religiosa, e os historiadores e
sociólogos, que invocam um “ateísmo metodológico” e um “naturalismo”
(TERRIN, 1998, p. 17).
Dentre as várias censuras proferidas exaustivamente contra a
Fenomenologia da Religião, sobressaem rótulos genéricos de que ela seria
produto epocal já ultrapassado, de conteúdo criptoteológico e de raiz
metafísico-essencialista (DREHER, 2008, p. 51-88). Porém, estas críticas
não costumam cuidar de várias imprecisões conceituais e da existência de
várias escolas diferentes de Fenomenologia da Religião que, se possuem
problemas e tarefas similares, nem por isso propuseram soluções idênticas.
Todavia, ainda mais grave é fazer parecer que substituições de paradigmas
constituam fatos consumados e estanques, como uma espécie de mudança
de apartamento: ou seja, um tipo de troca voluntária entre edifícios
conceituais e axiomáticos com base apenas no consenso inter pares ou no
alegado Zeitgeist pós-moderno e/ou pós-metafísico, sem se levar em conta
mediações dialéticas que caracterizam o surgimento de novos modelos
:: 183 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

face dos antigos. Nestes casos, infelizmente, torna-se manifesto não tanto
o empenho pela fundamentação epistemológica, senão o desejo de virar
as costas para debates filosóficos e teológicos, deixando de considerar seus
possíveis contributos para a discussão teórica sobre religião. Na recusa
destes debates, porém, nem se prova o desserviço da Fenomenologia da
Religião, sequer se torna plausível a supressão da metafísica.
Na tentativa de consolidar as críticas supramencionadas é comum
encontrarmos um mapeamento dualista e bastante artificial acerca
da questão do método que costuma dividir duas classes de teóricos,
respectivamente: cristãos e seculares, crentes e não-crentes, teólogos
(religiosos) e naturalistas, perspectivas internas (inside) e externas
(outside). Por exemplo, Michael Stausberg (2009, p. 11) aborda a distinção
entre “teorias transcendentalistas” e “não-transcendentalistas” da
religião. Para teorias transcendentalistas, a religião seria resultado da
intervenção de uma realidade transcendente, sobrehumana e sobrenatural
– uma hierofania, por exemplo. Para teorias não-transcendentalistas,
tratar-se-iam de posturas imanentes que buscam explicar a posição
trancendentalista sem explanar algo sobre tal fundamento transcendente,
restringindo-se a termos humanos. Logo, teorias transcendentalistas
não podem ser testadas empiricamente, falseadas ou verificadas, sendo
puramente dedutivas. Ao passo que as teorias não-transcendentalistas
gozariam de todas as virtudes negadas às primeiras.
A partir do debate norte-americano da teoria da religião, Steven Engler
(2004, p. 27) sintetizou três objeções centrais contra conceitos genéricos
de religião, subentendendo, ao que parece, que generalizações sejam um
vício de fenomenólogos. Em primeiro lugar, por razões epistemológicas,
ele argumentou sobre a dificuldade de se garantir a correspondência entre
conceitos genéricos (como o de sagrado) e os dados específicos, como,
por exemplo, um templo taoísta ou um relicário católico etc. Em segundo
lugar, por razões semânticas, ele remeteu ao problema da capacidade de
nossas proposições atingirem o sagrado, já que ele seria um dado não-
racional, ao passo que nossas línguas se estruturam racionalmente. Em
terceiro e último lugar, ele ressaltou a dimensão ideológica que permanece
sempre subjacente à discussão religiosa, não obstante a alegação de que se
tratasse de uma esfera apolítica e a-histórica.
:: 184 :: De Lutero a Otto

No entanto, gostaríamos de chamar a tenção não tanto para a suposta


a-historicidade ou incapacidade cognitivo-semântica do método
fenomenológico, ou mesmo para as suas supostas inclinações ideológicas
que bem podem existir. O nítido interesse dos fenomenólogos pelas
religiões históricas haveria de, no mínimo, relativizar a objeção de que se
preterisse o histórico em prol apenas de uma essência metafísica. De igual
maneira, o esforço para interpretar os símbolos religiosos comprovam, na
verdade, o inverso de uma postura de incognoscibilidade radical. Além
do mais, onde existem teorias científicas impérvias à ideologia?
Com efeito, qualquer que seja o método ou a teoria em questão, continuará
a persistir um problema que julgamos ser mais fundamental: o da
possibilidade de generalização dos fenômenos religiosos. Pois este problema
não se restringe aos fenomenólogos. Sob o ponto de vista do entendimento
histórico, encontramos um relativo consenso na Ciência da Religião de que
não existe religião, objeto singular, mas religiões, como fenômenos plurais e
históricos – tal posicionamento vale tanto para críticos da Fenomenologia
quanto seus adeptos (RUDOLPH, 1992, 39; LANCZKOWSKI, 1980, p. 23).
Sobre isso, adverte-nos com razão também K. Hock:
Qualquer que seja nossa resposta, ela não muda nada no problema
básico: em última análise, subsiste uma tensão não dissolúvel que surge
do fato de que nosso termo religião, por um lado, permanece vinculado
ao contexto histórico-cultural do Ocidente, mas que ele, por outro,
sendo um termo universal, tem a pretensão de captar adequadamente
fenômenos correspondentes fora desse contexto histórico-cultural
(HOCK, 2010, p. 22).

Por um lado, trata-se de uma condição histórico-conceitual que não


pode ser obscurecida, dado que implica uma limitação não só categorial,
mas também objetiva: as religiões existem no espaço e no tempo. Mas
a ciência também é praticada no espaço e no tempo. Então, seja qual
for a categoria conceitual e a perspectiva científica, elas não podem
abandonar sua contextualidade. Por outro lado, não se tem teoria sem
uma revindicação de universalidade, ou seja, sem pretensão de validade
geral. Claro que qualquer generalização pressupõe revisões, correções e,
uma vez que as premissas se comprovem obsoletas, abandono em virtude
de teorias melhor fundamentadas. Contudo, sem pretensão de validade
:: 185 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

geral sequer poderíamos avaliar as teorias, compará-las, submetê-las a


críticas, pois mesmo as objeções pressupõem que os axiomas possam ser
reconhecidos também por outros, além das limitações espaços-temporais
e/ou individuais da pesquisadora e do pesquisador.
Ademais, esta limitação epistemológica nem sempre é considerada ainda
sob o seguinte ângulo: o reconhecimento da contextualidade das religiões
e das abordagens científico-religiosas supõem também uma discussão
aberta e franca com a tradição da qual os próprios estudiosos e suas teorias
procederam – o que vale dizer, considerando a tradição ocidental, depende
do diálogo com a Filosofia (da Religião) e com a Teologia. Do ponto de
vista do intercâmbio disciplinar, podemos entender a teoria da religião de
Rudolf Otto como um modelo exemplar em sua época, cujas características
principais buscaremos ressaltar adiante através do conceito de sagrado.

Categoria do sagrado em Rudolf Otto


No âmbito da Ciência da Religião, a pergunta sobre a categoria sagrado
conecta-se, do ponto de vista teórico-disciplinar, com a questão de seu
uso pela Fenomenologia da Religião – ou abuso, na concepção de seus
detratores. O vocábulo tornou-se célebre na primeira metade do século
XX por meio do teólogo luterano Nathan Söderblom (1866-1931) e,
sobretudo, em virtude da obra Das Heilige de Rudolf Otto (1869-1937), cuja
primeira edição é do ano de 1917. Desde o início seu emprego supunha
uma dimensão oposta à esfera profana e esteve atrelado à possibilidade
de fornecer um âmbito objetivo de análise que não se restringisse quer a
conceitos teológicos tradicionais da divindade, quer a modelos evolutivo-
positivistas da etnologia da religião, quer, ainda, a modelos funcional-
reducionistas da sociologia ou da psicologia da religião. O resultado é uma
teoria que concebeu o fenômeno religioso como irredutível e originário, a
fim de fundamentar o estudo comparado das religiões históricas.
Em síntese, Otto propôs a categoria do sagrado dotando-a de valor
especificamente religioso, sui generis, que designa o elemento vivo
presente em todas as religiões e de procedência a priori. Além disso,
ele buscou suporte filológico para a palavra alemã heilig remetendo-a,
respectivamente, ao hebraico qādosh, ao grego hagios e às palavras latinas
:: 186 :: De Lutero a Otto

sanctus e sacer. Por sua vez, Otto derivou do verbete latino nūmĕn47 o
neologismo alemão das Numinöse (o numinoso), para demarcar uma
dimensão irracional presente no sagrado, portanto, um componente que
não se subtrai aos elementos racionais e éticos da ideia de Deus ou do
divino (OTTO, 1963, p. 6-7).
Este traço numinoso do sagrado foi descrito como “sentimento de criatura”
(Kreatürgefühl). Neste particular, Otto reinterpretou a tese do sentimento de
dependência (Abhängigkeitsgefühl) de Friedrich Schleiermacher (1768-1834).
Mas pretendia sublinhar nesta experiência, mais do que acreditava ter sido
feito por Schleiermacher, a nítida referência a um objeto fora do sujeito. Na
história da religião, por exemplo, tal sentimento correspondeu à experiência
de Abraão quando ousou falar com Deus, conforme Gênesis 18, 27: “Tive
a ousadia de falar contigo, eu que não passo de pó e cinza” (OTTO, p.
1963, p. 10). Por se tratar de uma experiência ambivalente, antitética, que
simultanemante atrai e repele, Otto (1963, p. 13) descreveu-a como mysterium
tremendum et facinans. O sentido religioso de mistério demarcaria a experiência
do numinoso como “totalmente outro” (das Ganz Andere), na medida em que
ele não se permite domesticar pela razão, sendo desconcertante e fora do
domínio do habitual e do familiar (OTTO, 1963, p. 31).
Cumpre notar, todavia, que temos certamente uma teoria da religião,
mas de nenhum modo uma filiação explícita e necessária à disciplina da
Fenomenologia da Religião, pelo menos não àquela disciplina filosófica
desenvolvida a partir de Edmund Husserl (1859-1938), Ideen zu einer
reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (1913). Por isso, o
verbete Religionsphänomenologie do célebre Dicionário Histórico de Filosofia,
a cargo de G. Lanczkowski (1998, p. 32410-32412), sequer cita Otto como
autor desta disciplina. Somente graças à obra de Gerardus van der Leeuw
(1890-1950) surgiu propriamente uma Fenomenologia da Religião stricto
sensu, em seu escrito Einführung in der Phänomenologie der Religion, do ano
de 192548.
Portanto, o que se pode afirmar é que Das Heilige contribuiu certamente
para o desenvolvimento da disciplina fenomenológica no contexto da

47 Otto se aproveita do sentido religioso que o termo nūmĕn carrega consigo, enquanto von-
tade ou poder divinos (LEWIS; SHORT, 1879).
48 A expressão fenomenologia da religião foi utilizada pela primeira vez por Pierre Daniël Chan-
tepie de la Saussaye (1842-1920), como seção sistemática de seu livro Lehrbuch der Religions-
geschichte, do ano de 1887, mas ela não fora utilizada como método de estudo da religião.
:: 187 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

Ciência da Religião, especialmente pelos seus alunos, amigos e sucessores


(FILORAMO; PRANDI, 2010, p. 37). Contudo, esta obra não resultou de um
trabalho fenomenológico, embora o próprio Husserl parece tê-la acolido
nestes moldes. Por isso, mais adequado é considerá-la no âmbito geral da
Filosofia da Religião e, mais precisamente, como uma contribuição para a
discussão da Teologia filosófica49, cuja tradição remonta a Schleiermacher e
aos desdobramentos do neokantismo na segunda metade do século XIX50.
A particularidade desta discussão teórica consistiu no fato de que ela não
só estava aberta à pesquisa empírica da Ciência da Religião, como operou
uma síntese entre estudos psicológico-históricos e debates filosófico-
teológicos de sua época.
Se Schleiermacher defendeu a religião contra o desprezo dos esclarecidos
dos fins do século XVIII, em sua obra Über die Religion (1799), Otto pretendia
recuperar a autonomia e a validade da visão de mundo religiosa frente a
visão de mundo naturalista dos fins do século XIX (OTTO, 1904). Além
disso, antes da publicação de Das Heilige, Otto ocupou-se com o debate da
Filosofia da Religião de Immanuel Kant (1724-1804) e de Jakob Friedrich
Fries (1773-1843) (OTTO, 1909). Por fim, o método de Otto visa conjugar
uma esfera geral religiosa a priori com o testemunho vivo do sagrado nas
religiões, assemelhando-se formalmente à proposta disciplinar de uma
Filosofia da Religião esboçada por Schleiermacher nos Prolegomena de sua
principal obra teológica, que se tornou célebre pela designação sucinta
de Glaubenslehre (Doutrina da Fé) (§§ 7-10) (SCHLEIERMACHER, 2003;
OLIVEIRA, 2016, p. 1565-1588).
Porém, descontextualizado de seus pressupostos e da constelação
intelectual supramencionada, bem como dos problemas filosófico-
teológicos que são subjacentes a este debate, a proposta de Otto se torna
especialmente irreconhecível. Este é o caso, por exemplo, da acusação
de “implicações ontológicas” da categoria do sagrado (USARSKI, 2006,
p. 33), que supõe uma espécie de realismo ingênuo supranatural para o
qual Otto apelaria no fim das contas, a despeito do desenvolvimento da
filosofia transcendental no século XIX e início do século XX.
49 Alexandro Ferreira de Souza (2013) defendeu esta interpretação em sua tese, percorrendo
o desenvolvimento intelectual de Rudolf Otto até a publicação de Das Heilige, em 1917,
buscando corrigi-lo das interpretações incorretas como fenomenólogo ou psicólogo da re-
ligião, acompanhando de perto as contribuições de Philip C. Almond (1988).
50 A propósito, nesta tradição também se encontra seu conterrâneo Ernst Troeltsch (1865-
1923) que elaborou a tese do a priori religioso (DREHER, 2012, p. 341-363).
:: 188 :: De Lutero a Otto

Em todo caso, tudo indica que a limitação principal para as teorias


contemporâneas da religião, quando amparadas pela categoria do
sagrado, não seja tanto as implicações ontológicas – pelo menos não para
o caso da teoria desenvolvida por R. Otto – mas, sobretudo, a dificuldade
de correlacionar o sagrado, sistemática e reciprocamente, com outras
esferas não-religiosas e profanas. Por sua vez, o problema inverso consiste
na diluição dos fenômenos religiosos em conceitos, do ponto de vista
filosófico, igualmente problemáticos e genéricos, como os de cultura,
homem, sociedade e espiritualidade – pelo menos, se concebidos como
fatos empíricos mais seguros que, por assim dizer, fatos religiosos. Isso por si
só é razão mais do que suficiente para se repensar o sagrado, mas apenas
na medida em que devemos, uma vez mais, repensar nosso próprio objeto
de estudo: a religião51.

Considerações finais
O recrudescimento das investigações metateóricas na Ciência da Religião
não tem impulsionado, ao mesmo tempo, estudos aprofundados de sua
correlação com a Filosofia da Religião e com a Teologia, de modo que
autores caros à própria tradição da Ciência da Religião continuam a ser
isolados dos intercâmbios filosóficos e teológicos, sem os quais, mesmo
ressaltando as diferenças específicas de cada área, o debate teórico da
religião permanece insuficiente. Este descompasso é motivado geralmente
pela necessidade, a um só tempo epistêmica e institucional, de afirmação
da autonomia da Ciência da Religião diante destas outras áreas.
Deste modo, se a Ciência da Religião costuma resistir aos problemas
travados pela sua própria tradição, assim o faz mediante o receio de
imiscuir-se em questões especulativas ou apologéticas. Conforme se
procurou sublinhar até aqui, existe uma lacuna na discussão da teoria
da religião contemporânea, na exata medida em que carecemos de um
diálogo qualificado com as abordagens filosóficas e teológicas. Se esta
hipótese estiver correta, devemos averiguar até que ponto tal lacuna não

51 A postura consequente para a crítica radical de definições como a do sagrado é sintetizada


sem reservas por Steven Engler, segundo suas próprias palavras: “De uma certa maneira,
a manutenção da disciplina das Ciências da Religião depende da ignorância dos que não
fazem parte da disciplina: os ‘cientistas’ de ‘religião’ não concordam sobre o que estudam, po-
rém é prudente que os administradores universitários não fiquem sabendo disso.” (ENGLER
2004, p. 29, aspas no original).
:: 189 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião

tem comprometido o debate sobre o conceito de religião e restringido sua


fundamentação epistemológica.
A Fenomenologia da Religião foi provavelmente o último grande
empreendimento em matéria de teoria da religião que ofereceu um
conceito substancial de religião, favorecendo a interdisciplinaridade em
várias direções. Reconhecer seus limites e abusos é fundamental, assim
como suas contribuições para a reivindicação de autonomia epistêmica
para a área. Porém, substituí-la por métodos estritamente empíricos, como
de fato tem sido proposto nos debates metateóricos contemporâneos,
não elimina a tarefa de realizar uma pesquisa teórica mais abrangente
que seja capaz de definir religião e propiciar um horizonte comparativo
para os estudos interculturais. Com efeito, trata-se de saber se a estratégia
de exorcizar o método fenomenológico e o conceito de sagrado, fiando-
se apenas numa ciência incólume aos debates filosóficos e teológicos, é
suficiente para refrear a constante ameaça de fragmentação e dissolução
da própria Ciência da Religião.

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