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DE LUTERO
A OTTO Ciência da Religião
o Protestantismo e a
191 p.
ISBN 978-85-7822-638-1
CDU 2
Zwinglio M. Dias
A dialética entre Lei e Evangelho quinhentos anos depois: 94
uma releitura em chave kierkegaardiana
Jonas Roos
Rudolf Otto e o mistério de seu legado para as ciências da religião 109
Carlos Eduardo B. Calvani
A especificidade e a autonomia da religião em Rudolf Otto 131
Frederico Pieper
De naturalismo e religião a o sagrado: contribuições do pen- 153
samento de Rudolf Otto em duas épocas de mentes seculariza-
das
Sobre os autores
Joe Marçal G. Santos (Organizador)
Professor do Núcleo de Ciências da Religião da Universidade Federal
de Sergipe, associado ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião e ao Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema da
mesma Universidade. Bacharel em Teologia pela Faculdade Luterana de
Teologia (1997), com o título integralizado em 2009, pela Escola Superior
de Teologia. Mestre (CNPq) e Doutor (CAPES) em Teologia pelo Instituto
Ecumênico de Pós Graduação. Pós-doutor (PDJ-CNPq) no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), na linha de pesquisa Antropologia da
Religião. Área de interesses: Teologia da Cultura e Filosofia da Religião em
Paul Tillich; Interfaces entre Religião, Cinema e Literatura; temas teórico-
metodológicos na Pesquisa em Ciências da Religião.
E-mail: jmgsantos@yahoo.com.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5359207133765624.
Eduardo Gross
Possui graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia de São
Leopoldo, RS (1989) e doutorado em Teologia também pela Escola
Superior de Teologia (1997), tendo realizado parte dos estudos do
doutorado na Lutheran School of Theology at Chicago (EUA). Atualmente
é professor titular da Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua tese
para promoção a professor titular da UFJF, Proposta de Edição Crítica e
Tradução dos Loci Theologici (Tópicos Teológicos) de Filipe Melanchthon,
de 1521, foi aprovada em banca pública em fevereiro de 2017. É professor
permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião
da UFJF desde 1998, tendo sido coordenador do programa entre 2007 e
2010. Desde 2017, é professor permanente também no Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFJF. Atua ainda, desde 2014, como professor
colaborador no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da
Universidade Federal de Sergipe. Na graduação, ensina primordialmente
no Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas e na graduação
em Ciência da Religião da UFJF. Tem experiência nas áreas de Teologia,
Ciência da Religião e Filosofia, com ênfase em Religião e Hermenêutica,
atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia da religião, religião
e hermenêutica, religião e literatura, religião e cultura.
E-mail: eduardo.gross@ufjf.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2654429053268264.
Jonas Roos
Possui Licenciatura Plena em Filosofia – Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (1999), Mestrado em Teologia – Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
das Faculdades EST (2003), Doutorado em Teologia – IEPG/EST (2007) com
doutorado sanduíche (CNPq) realizado no Søren Kierkegaard Research
Centre, Copenhague, Dinamarca, e Pós-Doutorado em Filosofia – Unisinos
(2009), com bolsa do CNPq. Professor Adjunto do Departamento de Ciência
da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora. Tem experiência nas
áreas de Filosofia e Teologia, com ênfase em Filosofia da Religião, Teologia
Sistemática e Antropologia Filosófica.
E-mail: jonas.roos@ufjf.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1088757246032009.
Frederico Pieper
Possui graduação em História e em Filosofia pela Universidade de São Paulo
e graduação em Teologia pelo Instituto Concórdia de São Paulo. Mestrado
(2003) e doutorado (2007) em Ciências da Religião pela Universidade
Metodista de São Paulo e especialização na Harvard University –Cambridge
(MA). É também doutor em Filosofia pela a Universidade de São Paulo
(USP). É professor do Programa de Pós-gaduação em Ciência da Religião da
Universidade Federal de Juiz de Fora, na área de Filosofia da religião. Tem
experiência na área de Filosofia com ênfase em filosofia contemporânea e
filosofia da religião.
E-mail: fredericopieper@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4770309851004817.
:: 8 :: De Lutero a Otto
Prefácio
Antes de tudo, quero agradecer pelo convite de escrever este prefácio e
parabenizar os autores pela unidade temática e metodológica da obra.
Trata-se da contribuição da tradição protestante aos estudos de religião no
Brasil. Todo mundo sabe que sou um tillichiano inveterado e que Tillich
tirou da tradição da Reforma um dos seus principais conceitos operatórios:
o princípio protestante, princípio crítico semelhante ao princípio profético
do Velho Testamento. Aliás, dos nove autores do livro, seis participaram
de algum modo das atividades e das produções da Associação Paul Tillich
do Brasil. Alguns continuam firmes e é significativo que um dos grupos
de pesquisa que patrocinaram a publicação esteja parcialmente focado
no pensamento de Paul Tillich. Aliás, vários autores do livro remetem
explicitamente à interpretação tillichiana da Reforma, em relação com a
modernidade e a secularização.
Autores como Ernst Troeltsch e Max Weber, entre outros, entendem o
nascimento do mundo moderno (inclusive as ciências modernas, às quais
pertence incontestavelmente a ciência da religião) como estreitamente
relacionado à Reforma Protestante do século XVI. Paul Tillich dedicou-
se também ao estudo das relações entre protestantismo e modernidade,
protestantismo e humanismo.
Sempre gostei do termo “protestante” e do potencial de protesto que
ele contém e me considerei, durante muito tempo, como um “católico
protestante”. No Brasil de hoje, ninguém mais quer ser protestante e
todos preferem ser chamados de “evangélicos”, como se o Evangelho
fosse apenas característico de uma parte dos cristãos, a parte melhor
evidentemente. O protestantismo brasileiro, na sua grande maioria, só
remete indiretamente à Reforma do século XVI, e ficou pouco sensibilizado
pela comemoração dos quinhentos anos (em 2017), salvo os meios mais
intelectuais.
Pela sua origem eclesiástica e sua ascendência, a maioria dos autores situa-
se na tradição acadêmica germânica oriunda da Reforma luterana, em
primeiro lugar, e um pouco da Reforma calvinista. Seria interessante se,
no futuro, alguém se dedicasse também à tradição reformada do domínio
francês e à piedade popular protestante. Pensamos, em particular, aos
:: 10 :: De Lutero a Otto
3 Ibid., p. 39-40.
:: 15 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
4 TILLICH, Paul. Teologia sistemática. 5.ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 68.
5 Doutor em Ciências da Religião. Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Professor visitante na
Universidade Federal de Juiz de Fora. Presidente da Associação Paul Tillich do Brasil.
:: 16 :: De Lutero a Otto
Apresentação
O presente livro6 sela uma parceria entre dois grupos de pesquisa: o
Núcleo de Estudos em Protestantismos e Teologias (NEPROTES), do
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade
Federal de Juiz de Fora, MG, e o Grupo de Pesquisa Correlativos –
Estudos em Cultura e Religião (GPCOR), do Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Religião da Universidade Federal de Sergipe. Ambos com
interesses que convergem em torno do repensar o Ocidente (ou aquilo que
nos ocidentaliza) a partir do tema da religião – aproveitando, em 2017, o
ensejo da comemoração dos 500 anos da Reforma religiosa na Europa.
Mais que comemorar, trata-se de refletir e reconhecer na religião e na
teologia cristãs elementos que tecem essa grandeza tão difusa chamada
modernidade, cujo um dos traços mais significativos justamente tem sido
querer-se distinta, separada, emancipada da religião. Refazer esses
itinerários significa reconstruí-los. Porque temos poucas chances de
sustentar um discurso teoricamente responsável acerca do mundo em que
vivemos, recorrendo à confortável visão binária do século XIX, em que a
emergência do Estado sugeria fronteiras institucionais duras e objetivas
com a religião.
Algo sintomático é, portanto, reconhecer o locus em que tais questões são
postas – desde o qual os autores reunidos nessa obra tem desenvolvido
suas pesquisas sobre religião, Cristianismo e Protestantismo, a saber, o
Brasil desses 500 anos depois, que são também outros 500. É oportuno
lembrar que a herança teológica, ética e política da Reforma do século
XVI chega ao Brasil aos atropelos, assim como a modernidade. Os
Huguenotes franceses no Rio de Janeiro, em 1557, mal se estabeleceram,
foram perseguidos e expulsos sem deixar marcas significativas; na Bahia e
em Pernambuco, entre 1624 e 1654, protestantes holandeses tiveram cerca
de três décadas para deixar sementes, antes de sua expulsão por Portugal
e Espanha. Depois disso, apenas a partir de 1811 (e ao longo do século
XIX) foi aceita a presença herética em terras brasileiras, disciplinada
por regras de sutileza (templos sem torre e sino, por exemplo), pela
própria restrição linguística e, em alguns casos, por certo confinamento
6 Reunião de textos baseados nas conferências do evento De Lutero a Otto: perspectivas
protestantes para a Ciência da Religião, realizado nos dias 19 e 20 de abril de 2017, na
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, MG.
:: 17 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Introdução
O ano de 2017 comportou duas datas significativas no contexto dos estudos
do protestantismo: os 500 anos da Reforma e os 100 anos da publicação
do livro Das Heilige, de Rudolf Otto. Tais datas são também significativas
para a Ciência da Religião enquanto disciplina acadêmica.
Em 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero (1987)
publicava, em Wittenberg, Alemanha, sua Disputatio pro declaratione
virtutis indulgentiorum: as 95 teses, como se tornou conhecido o texto.
Nele, Lutero criticava ideias e práticas que envolviam a venda de
indulgências por parte da cúria romana. Apareciam no debate temas como
a penitência, a autoridade eclesiástica, a autoridade papal e a doutrina
dos sacramentos. Ainda que originalmente Lutero pretendesse apenas
esclarecer algumas ideias que afligiam a piedade das pessoas cristãs
em sua paróquia e na Alemanha, as 95 teses causaram grande comoção
e ulteriormente acarretaram aquilo que Steven Ozment (1992) entendeu
como “o nascimento de uma revolução”.
A partir dali, cindida em seu centro, a igreja como uma unidade sob o papa
não seria mais possível. Lutero, Zwinglio, Calvino e a ala radical da Reforma,
constituem nuances de um movimento que ganhou o mundo. Autores
como Ernst Troeltsch (1983) e Max Weber (2000), entre outros, entendem o
nascimento do mundo moderno como estreitamente relacionado à Reforma
Protestante do século XVI.
Ao passo que o indivíduo fez-se autônomo em sua relação com Deus, o
que se concretiza na doutrina do sacerdócio universal de todos os crentes,
e passou a encontrar sua vocação religiosa em cada atividade cotidiana – a
ascese intramundana de Weber (2000) – também a religião pôde tornar-se,
paulatinamente, um campo de estudos independente, o que se evidencia
na própria história de diversas faculdades, cadeiras ou departamentos de
Teologia, Ciência(s) da Religião e Estudos de Religião em universidades
na Europa e na América do Norte.
De fato, relativamente ao campo da Ciência da Religião, a constituição da
disciplina traz as marcas do protestantismo. É reconhecida, nesse sentido,
a formação de uma tradição interpretativa compreensiva da religião que
remonta a Friedrich Schleiermacher. De Martinho Lutero a Rudolf Otto
:: 19 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Referências
ELIADE, Mircea. Origens: história e sentido da religião. Lisboa: Edições
70, 1989.
LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol. 1. Porto Alegre: Concórdia,
São Leopoldo: Sinodal, 1987.
OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo: EST/Sinodal, Petrópolis: Vozes, 2007.
OZMENT, Steven. The birth of a revolution. New York: Doubleday, 1992.
SMART, Ninian. Worldviews: crosscultural explorations of human
beliefs. 2ª ed. New Jersey: Prentice Hall, 1995.
TILLICH, Paul. A dinâmica da fé. São Leopolodo: Sinodal, 1985.
TROELTSCH, Ernest. El Protestantismo y el mundo moderno. México:
Fondo de Cultura Económica, 1983.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Pioneira, 2000.
Conexões de sentido e
horizontes entre a reforma,
o protestantismo e a ciência
da religião como meio de
humanização
Arnaldo Érico Huff Júnior
:: 27 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Introdução
Tratar das conexões entre a Reforma, o protestantismo e a Ciência da
Religião é levantar um assunto que pode ser espinhoso. O problema de
fundo é o da relação entre religião e ciência, subentendidas como esferas
independentes e sem contato, o que constitui uma das questões mais
naturalizadas e fundantes da modernidade. Tal polêmica, neste texto,
pode se instaurar, ao passo que o tema tratado pretende indicar e, nesse
caso, acolher justamente os pontos de contato entre ciência e religião.
É bem conhecido o argumento que sustenta que a Ciência da Religião é a
“filha emancipada da Teologia”. Trata-se de ideia propalada e comumente
aceita de modo acrítico. A afirmação indica o desejo de que a Ciência da
Religião seja ciência, não religião. A exacerbação de tal ponto de vista gera
uma postura de distanciamento ante a religião, entendida como objeto
empírico, talvez mesmo de pretensa neutralidade. Uma das consequências
de tal entendimento, e seu consequente foco na leitura da “realidade
objetiva”, é a absoluta multiplicação fragmentada de trabalhos analítico-
empíricos, concomitante à quase inexistência de esforços de síntese
interpretativa. Estes demandam envolvimento, não distanciamento. Falta
a pergunta: “o que significa isso em termos humanos? O que hoje significa,
por exemplo, o crescimento e o vulto sociológico que toma o pentecostalismo
ao redor do mundo?”. Os trabalhos se concentram em interesses de voto,
bancada evangélica, intolerância etc. São questões importantes, sem
dúvida. Mas quem fará a pergunta pelo sentido da religião? Pergunta
que teima em se impor sempre novamente. Tal tarefa poderia ser em
parte cumprida pela Ciência da Religião. Ao se aproximar dessa questão,
obviamente, a isenção religiosa pretendida pela cientificidade da Ciência
da Religião encontra suas fronteiras borradas. Assim também, quanto mais
próximo das fronteiras, mais se impõe a questão da relação da Ciência da
Religião com a Teologia.7
Partimos, notadamente, de um entendimento de religião como um algo
anterior às religiões e religiosidades, às tradições religiosas e às culturas.
Acompanhando Tillich (2009, p. 83), estamos interessados na substância
religiosa que fundamenta as expressões religiosas culturais. Olhar a
7 Refiro-me aqui à teologia acadêmica, não àquela determinada por interesses eclesiásticos
e institucionais.
:: 28 :: De Lutero a Otto
8 Note-se a questão posta por Rubem Alves (1984b, p. 37): “A secularização não foi a morte
dos deuses mas antes a promoção, ao status de deuses, de certos fatores do nosso mundo
que se pretendiam secularizados. Será possível tomar o lugar dos deuses sem se tornar um
deus? Ora, foi isto exatamente que a ciência, a tecnologia e certas ideologias fizeram”.
:: 31 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
9 Friedrich Schleiermacher (1990); Rudolf Otto (2007); Paul Tillich (2009); Rubem Alves (1984b).
:: 32 :: De Lutero a Otto
12 Greschat nomeia as duas esferas de atividade como “trabalho com o específico” e “trabalho
com o geral”.
:: 35 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Conclusão
Estudar religião, fazer Ciência da Religião, é pensar religião. E pensar
religião é pensar sobre a humanidade. Também sobre a própria
humanidade de quem pensa. O pesquisador da religião, interpelado
pelo símbolo religioso, para além da atividade analítica e descritiva – por
certo importante, como um primeiro momento – está também convidado
a uma experiência. Ulteriormente, essa dinâmica pode conduzir ao
aprofundamento e à expansão do gênio humano. Conhecimento,
razão, sabedoria, intuição, imaginação e criatividade são elementos
permanentemente ativos nesse movimento. Disso, espera-se que nos
tornemos melhores como seres humanos.
De Lutero a Otto, passando por Schleiermacher, e de lá a Tillich e
Eliade, a Shaull e a Rubem Alves, vai, assim, se erigindo um horizonte
de interpretação compreensiva da religião. Compreender, aqui, significa
envolver-se, acolher a situação existencial que se está interpretando, bem
como a urgência da questão do sentido para a humanidade. O legado da
Reforma e do protestantismo, por um lado, traz à Ciência da Religião uma
grande independência ante formas institucionais pertencentes ao passado
que insistem em barrar o que é novo, verdadeiro e urgente. Por outro,
aponta o caminho da interpretação criativa da religião como forma de
aventar novos horizontes de convivência humana.
:: 41 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Referências
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CEDI, 1984a.
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DIAS, Zwinglio M. O movimento ecumênico: história e significado.
Numen, Revista de Estudos e Pesquisa da Religião, v. 1, n. 1, p. 127-163,
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EBELING, Gerhard. O pensamento de Lutero: uma introdução. São
Leopoldo: Sinodal, 1988.
ELIADE, Mircea. Crise e renovação. In: ELIADE, Mircea. Origens: história e
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KRÜGER, Hanfried. Soderblöm, Nathan, In: LOSSKY, Nicholas; BONINO,
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WEBB, Pauline (Ed.). Dictionary of the Ecumenical Movement. Geneva:
WCC Publications, Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing
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LEHMANN, Paul. Ethics in a Christian context. Louisville/London:
Westminster John Knox Press, 2006.
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América
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NOBEL PRIZE. Nathan Söderblom – Biographical. Disponível em: http://
www.nobelprize.org/nobel_prizes/peace/laureates/1930/soderblom-bio.html.
Acesso em: 07 abril 2017.
SCHLEIERMACHER, Friedrich. Brief outline of the study of theology.
Edinburgh: T&T Clark, 1850.
. Sobre la religión. Madrid: Tecnos, 1990.
:: 42 :: De Lutero a Otto
Introdução
Parece consenso associar a tradição de pensamento da Reforma
Protestante ao espírito crítico à religião pelo qual a modernidade tem sido
caracterizada. O quincentenário da Reforma Protestante, comemorado
este ano, sob diferentes aspectos, evoca essa percepção, com Lutero
figurando “pai e precursor” – atributo em si mesmo ambíguo, pelo que
sugere de “mérito” para uns e “culpa” para outros.
Mas essa relação merece uma análise atenta: seja em função de uma
adequada compreensão de Lutero, sua obra e seu efetivo papel para
a formação da modernidade, seja para preservar uma compreensão
adequada também desta última. Além disso, tal análise repercute no
tema que aqui nos reúne: entre Martinho Lutero e Rudolf Otto há um
itinerário do qual emerge o Protestantismo, sua reivindicação da herança
teológica da Reforma e, ao mesmo tempo, seu papel no quadro histórico
da modernidade consolidada na Europa do século XVII ao XIX. É
deste cenário que surgem as bases das teorias da religião com as quais
lidamos em Ciência da Religião atualmente, seja na convergência ou na
divergência.14
O título acima – protestantismo, em teoria religião – evoca essas questões por
motivos ambíguos e correlacionados. Vale mencionar, como sintoma, no
clima de comemorações, a publicação quase concomitante de Comentários
a Romanos, de Karl Barth, e do texto programático de Paul Tillich, A ideia
de uma Teologia da Cultura, em 1919 – cada qual a seu modo marcado
pelo Das Heilige, de Otto, de 1917. A concomitância é sugestiva: são três
obras de referência do pensamento protestante, e todas protestam – cada
qual a seu modo – contra o liberalismo teológico do século XIX: Barth
reivindicando a radical distinção entre fé e religião; Tillich defendendo
a síntese entre ambas; e Otto requerendo que a dimensão irracional da
religião seja tomada também como objeto de pensamento.
No que segue, então, a minha intenção é explorar a função crítica inerente
ao protestantismo – o que para Tillich é o princípio protestante – como uma
qualidade criativa dessa face do Cristianismo, cujo aspecto moderno e
14 Martin Kahler, segundo Tillich, afirmara que “a ortodoxia dos séculos dezesseis e dezes-
sete era o alicerce em que repousavam os pilares da ponte de toda a teologia protestante
posterior” (TILLICH, 1986, p. 37).
:: 45 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
O tema da subjetividade
A inquietação de Lutero, sua angústia e suas lutas pessoais mesclando-se
a seus escritos teológicos são aspectos sintomáticos dentre todo interesse
biográfico que já lhe foi dedicado, seja acadêmico ou artístico.16 O mérito
da biografia de Lucien Febvre, Martim Lutero: um destino, publicada em
1928, é emblemático, ao ter destacado justamente o aspecto pessoal,
existencial e espiritual da trajetória do reformador. É o que evidenciam
as palavras finais do capítulo que apresenta o atormentado monge Lutero
ante a sua “descoberta”, em meados de 1512:
Seria então um sistema de conceitos teológicos ordenados de maneira
mais ou menos lógica que lhe traria o apaziguamento? Não, mas uma
certeza profunda a ancorar-se, a enraizar-se sempre mais forte em seu
coração. E só havia um homem que poderia legitimamente fornecer
essa certeza a Lutero: o próprio Lutero (FEBVRE, 2012, p. 68).
Há uma ressalva a ser feita ao que ganhou traços de um culto ao herói nessa
imagem trágica e romantizada do justo/pecador que vive pela fé – porque
também o objeto desta fé confundiu-se com a própria germanidade no
discurso teológico liberal do século XIX e XX. Oswald Bayer dá relevo a
essa questão na introdução de sua “atualização” da teologia de Lutero,
citando o comentário à epístola aos Gálatas, numa dentre famosas
declarações de Lutero: “Esta é a razão por que a nossa teologia é certa:
porque ela nos arranca de dentro de nós mesmos e nos coloca fora de nós
mesmos” (LUTERO apud BAYER, 2007, p. 6).17
grave doença de Frederico, o Sábio, eleitor da Saxônia e seu protetor, intitulado Catorze
Consolações para os que sofrem e estão onerados, de setembro de 1519. O tema do mal é
evidenciado, como fonte de sofrimento, sendo que “não pode haver na pessoa sofrimento
tão grande que seja o pior dos males que estão dentro dela. Os males que há dentro dela
são muito mais numerosos e maiores do que aqueles que ela sente. Porque se sentisse o
seu mal, sentiria o inferno, pois ela tem o inferno dentro si” (OS, v.2, p. 17).
16 Em 1871, quando o Kulturprotestantismus de Albrecht Ritschl ostentava sua repercussão no
contexto alemão, o poeta suíço Conrad Ferdinand Meyer dedica, no poema épico Os últimos
dias de Hutten, a seguinte imagem a Lutero: “O seu espírito é campo de batalha entre duas
épocas; não me admiro que ele veja demônios” (MEYER apud BAYER, 2007, p. 1).
17 Sob essa anotação, entende-se melhor aquela outra em que Lutero alude à experiência “da
torre”, quando da descoberta do evangelho durante a tradução da epístola aos Romanos,
como experiência que também se deveu a suas modestas meditações no banheiro...(FEB-
VRE, 2012, p. 327, nota 1).
:: 49 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
(TILLICH, 2007, p. 281). E a isso soma-se o Iluminismo que, com sua base
mística associando a razão a um princípio de iluminação interior (que
pressupunha um significativo investimento axiomático na subjetividade),
alinhava-se à crítica contra a Ortodoxia teológica em favor de sua luta pela
racionalização da moral e da política, bem como de sua defesa nacionalista
contra o império, cuja legitimação não deixava de se valer da religião.
O Romantismo, por sua vez, se torna decisivo nesse cenário: considerando
o itinerário de Lutero a Otto, teve consequências diretas sobre a teorização
teológico-filosófica da religião empreendida pela tradição protestante. Em
síntese, a crítica romântica à tradição teológica objetivante, introduz uma
fissura intransponível entre sujeito e objeto. Terry Eagleaton o define,
lembrando que, em oposição aos idealistas, para românticos
O absoluto não deve ser apreendido discursivamente, mas
intuitivamente, esteticamente ou no próprio ato da autorreflexão (...)
o Absoluto, como o self, só pode ser apreendido negativamente, numa
espécie de incessante nostalgia (EAGLEATON, 2016, l. 1612-15).
E sintetiza: “o romantismo é uma espécie de teologia negativa, perdida
em algum ponto entre uma fé assegurada, por um lado, e a morte de
Deus, por outro” (EAGLEATON, 2016, l. 1619).
Com essa percepção, Eagleaton, remete ao impasse nostálgico sugerido
em nosso título: protestantismo, em teoria religião – com o qual quero apontar
ao que, assim me parece, é comum à teorização da religião que evocamos
no quadro histórico da Reforma e do Protestantismo. E para onde aponta
essa teoria? A uma ontologia crítica que Tillich definiu nos termos de um
princípio protestante, cujo elemento fundamental recupera uma noção de
Deus marcadamente luterana, especialmente em função do paradoxo nele
implicado entre Deus Absconditus e Deus Revelatus, em correlação com uma
compreensão crítico-negativa da subjetividade humana. Daí que, para
Tillich, a religião não é boa nem má, mas ambígua e, se por vocação tem
a função de orientar à incondicionalidade de sentido, ao mesmo tempo, é
vocacionada à idolatria. Numa palavra, identifico nesses elementos uma
entre as mais importantes contribuições que a perspectiva protestante
subjacente e presente na Ciência da Religião pode dar atualmente ao
quadro mais amplo das Ciências Humanas.
:: 54 :: De Lutero a Otto
Referências
BAYER, Oswald. A teologia de Martin Lutero: uma atualização. Tradução de
Nélio Schneider (Martin Luthers Theologie, 2004). São Leopoldo: Sinodal, 2007.
CARNEIRO, Henrique. A guerra dos trinta anos. In. MAGNOLI, Demétrio.
História das guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, , p. 163-188, 2006.
EAGLETON, Terry. A morte de Deus na cultura. Tradução de Clóvis
Marques (Culture and the Death of God, 2014). Rio de Janeiro: Record, 2016.
Recurso eletrônico. Kindle edition.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Tradução de Dorothée
de Bruchard. São Paulo: Três Estrelas, 2012.
GILLESPIE, Michael Allen. The theological origins of modernity.
Critical Review, v.13, n.1-2, p. 1-30, 1999. Disponível em: http://dx.doi.
org/10.1080/089138199008443520. Acesso em: 22 agosto 2016.
. Beyond Secularism: the inevitable entanglement of
religion and political life. [S.l.: s.n., s.d.]. Disponível em: https://www.
academia.edu/4388867/The_Inevitable_Entanglement_of_Religion_and_
Politics. Acesso em: 16 dezembro 2016
HÄGGLUND, Bengt. História da teologia. Tradução de Mário L. Rehfeldt
et al. 4ª ed. Porto Alegre: Concórdia, 1989.
LUTERO, Martinho. Martinho Lutero. Obras selecionadas. V. 1. Os
primórdios – Escritos de 1517 a 1519. Tradução de Annemarie Höhn et al.
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. Martinho Lutero. Obras selecionadas. V. 2. O programa
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São Leopoldo: Sinodal, Porto Alegre: Concórdia, Canoas: Ulbra, 2011.
TILLICH, Paul. História do pensamento cristão. Tradução de Jaci C.
Maraschin. 4ª ed. São Paulo: ASTE, 2007.
. Perspectivas da teologia protestante nos séculos XIX e
XX. Tradução de Jaci C. Maraschin. São Paulo: ASTE, 1986.
O ideal humanista como base
para compreensão da Ciência
da Religião e reflexões
relacionadas à obra de Filipe
Melanchthon
Eduardo Gross
:: 56 :: De Lutero a Otto
Introdução
A relação de afinidade e contraponto entre o movimento da Reforma
e o humanismo renascentista tem sido debatida constantemente. É
inegável, entretanto, que o ideal de formação humana que os humanistas
propuseram foi um elemento importante no desenvolvimento cultural,
por exemplo, a partir das reformas pedagógicas e universitárias que se
seguiram à Reforma. Particularmente o papel de Filipe Melanchthon
merece menção nesse sentido. Assume-se aqui a proposta de Mircea
Eliade, para quem o estudo da religião deve ser compreendido dentro dos
moldes da formação humanista; assume-se também a afirmação de Hans-
Georg Gadamer, para quem as ciências do espírito, assim como definidas
por Wilhelm Dilthey, não se fundamentam em um método próprio,
mas pressupõem a tradição dos estudos humanistas. Nesse sentido,
alude-se à importância da contribuição da tradição da Reforma para o
desenvolvimento desta longa tradição humanista de que os estudos da
religião fazem parte, ao mesmo tempo que se mostra a possibilidade de um
estudo crítico desta tradição a partir de uma perspectiva não cientificista
e nem fragmentadora, exemplificada na abordagem de Ernst Troeltsch.
Filipe Melanchthon
Entretanto, antes de tudo é necessário fazer uma apresentação de
Melanchthon e da sua importância histórica. Isso porque Melanchthon é
praticamente um desconhecido no Brasil, até mesmo no âmbito da tradição
luterana, da qual ele é um dos principais promotores (para o que segue, cf.
SCHEIBLE, 2013; MELANCHTHON, 1965, p. vii-xxiii; SCHÜLER, 1997;
ALBRECHT, 2013). Muitas vezes ele é representado meramente como
um ajudante de Lutero. Melanchthon nasceu como Filipe Schwarzerdt
em fevereiro de 1497. Após ficar órfão, teve a educação propiciada pelo
renomado humanista João Reuchlin, importante conhecedor do grego e do
hebraico, que também foi responsável pela adoção da tradução grega do
nome que significa “terra preta”. Melanchthon concluiu o Bacharelado em
Artes em 1511 em Heidelberg, e tornou se mestre em 1514 em Tübingen,
período em que se ocupou das diversas disciplinas que compunham a
formação na época, mas associando isso a estudos profundos de latim,
grego e hebraico, e desenvolvendo leituras dos principais clássicos da
Antiguidade. Em 1518 assumiu a cátedra de grego na Universidade
de Wittenberg, onde também se formou em teologia, em 1519. Na sua
carreira acadêmica, lecionou e publicou obras em diversos ramos do
conhecimento, como línguas (uma gramática latina e uma grega, por
exemplo), literatura (comentários e edições de clássicos da Antiguidade),
lógica (principalmente comentários a Aristóteles), ética (comentários a
Aristóteles e Cícero), teologia (destacando-se inúmeras edições dos Loci
Theologici, comentários bíblicos, documentos confessionais, escritos de
controvérsia, manuais), educação, além de astronomia e astrologia. Foi
responsável por reformas escolares e universitárias em territórios que
:: 65 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Reuchlin cortou relações com ele; mas, por outro lado, Melanchthon
manteve a correspondência com Erasmo, entre outras coisas tentando
alguma mediação entre este e Lutero. Desenvolveu com os demais adeptos
da Reforma uma teologia que promulga a primazia irrenunciável das
Escrituras em relação ao pensamento filosófico e à tradição escolástica,
mas simultaneamente foi o formulador de uma sistematização teológica
que, por um lado, possuía antecedentes na tradição escolástica e em certa
apropriação de Aristóteles e, por outro lado, com sua elaboração teórica
da relação entre lei e evangelho, abriu espaço para o domínio que a re-
apropriação de Aristóteles exerceu no período em que se desenvolveu a
ortodoxia protestante.
Em segundo lugar, a posição que Melanchthon ocupa na história do
luteranismo é igualmente emblemática da ambiguidade de sua situação
existencial. Por um lado, Melanchthon é um dos principais redatores
de escritos confessionais fundamentais, que vão determinar o que será
considerado o luteranismo ortodoxo. Por outro lado, desde a sua época
até hoje ele é censurado por muitos por se afastar de Lutero, suavizar a
radicalidade da mensagem reformatória e ser excessivamente tolerante
com os antagonistas21. Como o próprio Melanchthon modificou em alguns
pontos a redação original da Confissão de Augsburgo, ele simultaneamente
foi quem estabeleceu uma das principais balizas da confessionalidade
luterana e é visto por muitos como um de seus primeiros hereges. Também,
por seu constante diálogo com representantes do que veio a ser a tradição
calvinista e mesmo com teólogos católicos, há quem queira nele enxergar
um tipo de prenúncio do ecumenismo, apesar de ser um dos principais
organizadores da igreja luterana enquanto instituição própria.
Loci Theologici
Os Loci Theologici de Melanchthon possuem uma longa história editorial.
Em função, primeiro, de seu sucesso e, depois, das necessidades constantes
de aprimoramentos em função de novas questões que foram se tornando
importantes no contexto da Reforma, só a história das reedições desta
obra já daria um objeto de estudo imenso. A primeira edição de 1521 já
21 Confirir, por exemplo, HEINRICH, 2003; uma narrativa com deliciosos tons irônicos sobre
esta situação se encontra em SCHÜLER, 1997.
:: 67 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Conclusão
De uma forma geral, aqui se mesclaram duas intenções. Propôs-se
o ideal humanista como horizonte para a compreensão do papel da
Ciência da Religião como disciplina particular em conexão com o mesmo
horizonte postulado para o conjunto das disciplinas das humanidades.
Simultaneamente, apresentou-se elementos nucleares do pensamento
de Filipe Melanchthon como exemplo da tensão complementar entre o
humanismo renascentista e a espiritualidade que se expressa na teologia
da Reforma.
Diante de um panorama geral não otimista quanto à importância do papel
das ciências humanas em geral e do diagnóstico do caráter auto-corrosivo
da reduções da Ciência da Religião a uma disciplina de caráter explicativo,
naturalista, historicista e (ou) metodologicamente delimitada, a lembrança
do ideal renascentista como horizonte constitutivo do saber acadêmico
ocidental se mostra não como uma receita simples, a partir da volta ao
passado, para fundamentar teórica e muito menos metodologicamente
a Ciência da Religião enquanto ciência. A lembrança deste ideal mostra,
entretanto, que o desenvolvimento do pensamento não precisa (e não
deve!) ir necessariamente na direção de uma fundamentação metodológica
cientificista, nem abraçar sem crítica a perspectiva da fragmentação do
saber, particularmente nas ciências humanas.
Com a apresentação de algumas ideias presentes na interpretação de
Troeltsch sobre o desenvolvimento posterior que as formulações de
Melanchthon possibilitaram, se exemplifica como o conhecimento
aprofundado de uma tradição de reflexão possibilita uma compreensão
simultaneamente bem articulada e crítica, através de hipóteses que
elencam elementos considerados centrais para o desenvolvimento cultural
posterior. A figura de Ernst Troeltsch é em si mesma paradigmática nesse
sentido. Trata-se de um teólogo, filósofo e cientista da religião. É uma
personalidade que representa o contraponto a uma visão que privilegia a
fragmentação do saber disciplinar.
O mesmo se pode dizer do objeto de estudo de Troeltsch aqui apresentado.
Filipe Melanchthon é não só um teólogo reformador da igreja, com
um viés anti-humanista, mas também um intelectual polivalente
profundamente inspirado pelo ideal humanista. Este objeto de estudo, para
a Ciência da Religião, mostra muito bem que não se pode compreendê-lo
de maneira adequada se ele for analisado simplesmente em sua dimensão
:: 75 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Referências
ALBRECHT, Paulo Samuel. Filipe Melanchthon (1497-1560): vida,
teologia e figura do outro reformador de Wittenberg. Dissertação de
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GRUHN. Reinhart. Philipp Melachthon: Humanist, Reformator,
Aufklärer zum 450. Todesjahr. Kempten: VHS, 2010.
:: 76 :: De Lutero a Otto
24 Texto publicado originalmente sob o título O Calvino desconhecido (DIAS, 2009; cf. tam-
bém DIAS, 2017, p. 23-41).
Toda a história moderna ocidental teria sido irreconhecivelmente
distinta sem a perpétua influência de Calvino. (J. T. Mc Neill)
Introdução
Dizem que Karl Marx, ao ler um texto de apresentação do que se reputava
como marxismo, ficou muito frustrado e declarou que se aquilo fosse
marxismo ele não seria jamais marxista! Este incidente ilustra muito bem o
fato de que quase sempre os seguidores ou reduzem ou vão além daquele
a quem dizem seguir ou representar. Penso que Calvino dificilmente
se identificaria completamente com a maioria dos “calvinismos” que
surgiram depois dele, incluindo aqueles das primeiras horas, seja porque
tenham tergiversado aspectos importantes de seu pensamento ou de
suas propostas, seja porque não tenham entendido com clareza detalhes
significativos de sua percepção global.
Além disso, é importante sublinhar que as rápidas mudanças históricas,
ocorridas por meio da introdução de novos conceitos teológicos e seus
resultados práticos na reestruturação social da igreja e da sociedade
genebrina, foram transformando muito rapidamente a conjuntura
socioeconômica e política daquela cidade-estado. E isto demandava um
esforço permanente de ajuste dos conceitos ou, caso se prefira, de uma
permanente hermenêutica da realidade à luz da Palavra de Deus. É isso
o que explica a contínua revisão de seu texto teológico fundamental, As
Institutas..., que alcançou 5 diferentes edições, como a busca continuada
de interpretação das Escrituras por meio dos comentários bíblicos e sua
exposição pública semanal. A Venèrable Compagnie des Pasteurs, mais
os leigos interessados, se reunia a cada sexta-feira para os chamados
“Colóquios” de Genebra, ainda que sua exata designação fosse: Les
Congregations. Dado que um elemento central da teologia de Calvino tenha
sido o exercício da fé, pessoal e explícita, com sua incidência em todas as
dimensões da vida cotidiana, isto implicava a discussão permanente, a
partir do texto bíblico, de questões de ordem política, econômica, social
e pessoal, que envolviam a vida dos cidadãos genebrinos. Em outras
palavras, o exercício daquilo que, em termos atuais, chamamos de análise
periódica do desenvolvimento da conjuntura socioeconômica e política
para caracterizar a real situação, de modo a detectar comportamentos
desviantes/equivocados, no plano concreto da vida, e corrigir o rumo do
testemunho da comunidade de fiéis sob a luz da Palavra.
:: 80 :: De Lutero a Otto
que a Eucaristia devia ser celebrada pelo menos uma vez por semana,
acompanhada da pregação do Evangelho. Mas, neste particular, ele não
teve como impor-se nem em Genebra, onde terminou por se estabelecer,
contra sua vontade, a celebração eucarística uma vez ao mês. Isso tinha
a ver com o costume romano estabelecido de celebrar a eucaristia para o
povo uma vez ao ano. E isso foi assim por séculos, havendo se arraigado
profundamente no imaginário popular. Ulrich Zwinglio encontrou uma
solução intermediária estabelecendo a celebração 4 vezes ao ano. Calvino
não se contentou com isso, pois lhe parecia que assim o sermão se tornaria
o centro da liturgia, e ele buscava justamente restabelecer o equilíbrio
que se havia perdido com a prática romana. Mas foi, não obstante seus
intentos, vencido pelo costume do povo.
Como pastor, Calvino foi, sobretudo, mestre e educador, demonstrando
uma enorme preocupação com a formação de seus paroquianos. Assim,
o ensino foi um marco muito significativo em seu ministério, ao ponto de
exigir do governo civil da cidade a criação de escolas, sendo responsável
pelo estabelecimento da primeira escola gratuita e obrigatória da Europa.
A experiência com os estudos bíblicos semanais dos chamados Colóquios
de Genebra formaram a base para a criação da Academia de Genebra,
embrião da futura Universidade. Por outro lado, cabe anotar que o tom
pedagógico e didático que atravessa todos seus escritos se enquadra
nessa preocupação pastoral de levar o povo à compreensão do verdadeiro
sentido da presença da igreja no mundo.
Para Calvino, além de a igreja ser o resultado concreto dentro da história,
da articulação de uma fé dinâmica, ela possui um caráter sagrado, é
resultado da vontade divina significando a continuação da encarnação,
ou seja, ela é o corpo de Cristo presente como testemunho de Deus entre
suas criaturas e antecipação do Reino vindouro de Cristo.
Na realidade, não é suficiente ter em mente que Deus preserva seus eleitos,
caso não levemos em conta também a unidade da Igreja, de modo que
estejamos verdadeiramente persuadidos de que pertencemos a ela. Pois se
não estivermos unidos aos outros membros sob o Cristo Cabeça, nenhuma
esperança de herança futura nos resta [...] De tal modo os eleitos de Deus estão
unidos em Cristo que, assim como dependem todos de uma única Cabeça, do
mesmo modo constituem um só corpo, unidos por ligaduras semelhantes
:: 85 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Genebra já era uma cidade protestante antes de sua chegada ali. Pode-
se dizer que o êxito de seu trabalho se deve, em grande medida, à
situação experimentada pela cidade, que vivia um intenso processo de
transformação sócio-política e cultural-religiosa desde os inícios da
década de trinta. Sua relação com o Conselho político dirigente jamais foi
fácil ou pacífica. Ao contrário, cheia de conflitos e contradições em função
do interesse do Conselho de controlar a igreja, mesmo fazendo parte dela.
É bom recordar que Genebra havia adotado a Reforma em 1536 e Calvino
somente regressa à Genebra e assume, de fato, seu grande ministério
nessa cidade no ano de 1541, depois de haver estado ali por dois anos
como professor de Teologia na catedral de São Pedro até ser expulso pelo
Conselho, juntamente com Farel, no ano de 1538. Até seu falecimento em
1564, Calvino trabalhou em Genebra na condição de Ministro da Palavra
(ministre de la Parole). Recusou, sistematicamente, qualquer outro cargo
civil ou estatal.
Sua visão das relações entre Igreja e Estado vai determinar sua posição
como cristão, cidadão e político. Em sua perspectiva, estas três qualificações
são simultâneas e inseparáveis. Ou seja, o cristão está, enquanto cidadão
deste mundo e partícipe do povo de Deus, definitivamente envolvido no
processo de ordenamento da vida da comunidade humana, ou seja, na
política. Tudo isto advém da compreensão do sentido da vocação cristã
no mundo e das relações entre a comunidade cristã e a comunidade civil.
Devedor de Agostinho, principalmente de sua obra A cidade de Deus,
onde este desenvolve a ideia da história humana sendo atravessada
pela tensa relação entre as duas cidades, a divina e a humana, Calvino
retoma e modifica a noção luterana dos dois reinos. Enquanto que para
o Reformador alemão estes dois reinos são esferas completamente
separadas, para Calvino eles são compreendidos como dois âmbitos
distintos, mas igualmente ordenados por Deus. Escreve ele:
Porque, ao examinar os problemas atinentes ao ofício dos magistrados,
minha intenção não foi a de lhes ensinar quais são as suas obrigações,
mas mostrar ao público qual é a natureza e a finalidade para a qual o
Senhor as instituiu. Vemos, pois, que os magistrados são constituídos
como tutores e mantenedores da tranquilidade, da ordem, da
:: 88 :: De Lutero a Otto
Para Calvino, o reinado de Cristo sobre a história ou seu domínio sobre ela
significa que toda vida é uma só, que toda ela pertence a Deus, onde o sagrado
e o secular não são compartimentos estanques, fechados sobre si mesmos, mas
simplesmente espaços distintos sob uma só direção do Espírito de Cristo.
“Ninguém, portanto, deve duvidar de que o poder civil é uma vocação,
não somente santa e legítima diante de Deus, mas também a mais sagrada e
honrosa entre todas as vocações” (CALVINO, 2009, 879). Como demonstrou
Abraham Kuyper, nesta perspectiva de Calvino, “a vida toda está consagrada
ao serviço de Deus” (1931, p. 53). Um exemplo disso foi o envolvimento
direto do reformador genebrino no confronto político-religioso que marcou
o desenvolvimento do calvinismo na França. Escrevendo sobre esse trágico
episódio da história do protestantismo o teólogo mexicano Rubén Arjona
Mejía além de descrever com minúcias os baldados esforços diplomáticos e
pastorais de Calvino procurando garantir a liberdade de expressão para os
calvinistas franceses destaca o apoio concreto da “Companhia dos Pastores”
e do próprio Reformador, em homens, armas e dinheiro, ao movimento
revolucionário protestante comandado por Luís de Bourbón, Príncipe de
Condé (MEJÍA, 2001, p. 66-69).
É sob este pano-de-fundo de uma filosofia cristã da história que se pode
entender a profunda preocupação e o acendrado interesse de Calvino pelas
coisas deste mundo, sua ojeriza aos espiritualismos psicoemocionais (sua
resistência às ideias anabatistas, por exemplo), desencarnados e de costas
viradas para os problemas concretos do povo. De igual forma seu rechaço às
leituras descontextualizadas, literais e especulativo-racionalistas da Bíblia,
que deixam de levar em conta as necessárias mediações histórico-críticas.
:: 89 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Fiel a esta perspectiva hermenêutica vai estar sempre atento ao que se passa
na sociedade em seu redor. Ocupa-se de temas sociais, culturais, políticos
e econômicos que dizem respeito à vida da comunidade genebrina e,
também, ao mundo europeu como um todo. Mais que Lutero, a quem se
referia como seu muito honrado Pai (très honoré Père), Calvino se dava conta
de que se encontrava no olho-do-furacão de formidáveis mudanças que
sacudiam as velhas estruturas da Europa. Sentia que um novo mundo
estava nascendo e procurava respostas, biblicamente iluminadas, para este
novo estado de coisas que começava a aparecer no horizonte da história.
Como seus concidadãos, ele mesmo se debatia entre as contradições
geradas pelo choque entre antigos valores e comportamentos e as novas
demandas e novos valores que buscavam espaço para impor-se. E isto
ocorria em todas as dimensões da vida.
Sensível a tudo isto, Calvino se revela como um pensador criativo,
buscando na erudição acumulada e no exercício de um inquieto espírito
reflexivo estabelecer novas pautas para processar uma nova e rigorosa
releitura da Bíblia sob os sinais do novo tempo que ele tem que viver. Dentre
suas produções originais está a discussão, em outros termos, das relações
entre ricos e pobres. Assim, sob a percepção bíblica de que o Evangelho
foi primeiramente dirigido aos pobres, ele desenvolve, por um lado, o
conceito do mistério do pobre, e, por outro, o do ministério dos ricos, sendo
estes vistos como provedores daqueles, a fim de que a justiça se estabeleça
na sociedade. Na mesma perspectiva teológica se ocupa de temas como
a natureza do trabalho, a importância do comércio, o desenvolvimento
econômico, a questão da cobrança de juros nos empréstimos. Sobre este
último, chega a proferir um sermão na catedral sob o título Longo sermão
sobre os juros! Com a mesma ênfase se ocupa com a educação da infância
e da juventude, tomando iniciativa a partir da própria igreja e exigindo
do Conselho dirigente da cidade a criação e manutenção de escolas, casas
para anciãos e órfãos desvalidos e medidas de proteção para os asilados
político-religiosos. Ou seja, a agenda de trabalho de Calvino era ditada
pelos grandes temas da vida cotidiana do povo que, por sua vez, eram
entendidos sob a luz da revelação bíblica.
:: 90 :: De Lutero a Otto
Conclusão
Calvino foi um homem excepcional que soube reunir em sua pessoa, em
mútuo diálogo e interdependência interior, a capacidade crítica e analítica
do teólogo, a preocupação e o desvelo do pastor com a vigilante militância do
cidadão, politicamente comprometido com o bem-estar de seu povo. Com
humildade, mas também com firmeza, tomou decisões muito importantes,
mesmo que, às vezes, trágicas, lamentáveis e equivocadas, que marcaram
para sempre a vida e o desenvolvimento da comunidade genebrina, com
repercussões que alcançaram o mundo. Foi um homem íntegro que intentou
plasmar sua vida segundo as coordenadas do Evangelho, conforme ele o
pôde compreender. Os conteúdos de seus achados bíblico-teológicos, mas
nem sempre suas formulações, se constituem, até hoje, uma fonte importante
para a vida da igreja e para a atualização de nossas experiências, enquanto
testemunhas idôneas do Evangelho.
Depois de 1564, data de sua morte, sua experiência sofreu transformações
muito profundas que lhe retiraram o brilho e a força da novidade
evangélica que até então fazia pulsar a vida genebrina. É quando começa
a nascer o Calvinismo ou o exercício da proposta de vida de Calvino para
a igreja e a sociedade por parte de seus companheiros, seguidores e
admiradores da mesma Genebra e de outras partes do mundo europeu.
Calvino faleceu um ano depois do término do Concílio de Trento (1545-
1563), com a igreja romana disposta a rechaçar radicalmente as doutrinas
protestantes. Com isso a segunda geração de reformados se sentiu
obrigada a se empenhar na defesa da autoridade da Bíblia com os mesmos
argumentos aristotélico-tomistas usados pelos romanos para justificar a
autoridade da igreja. Não foi, pois, uma decisão livre, mas uma imposição
do paradigma filosófico dominante, uma sujeição ao espírito da época.
Semelhantemente ao luterano Melanchton, Theodor Beza, que trabalhou
com Calvino dirigindo a Academia de Genebra e, depois, o sucedeu
na direção da igreja, começou a sistematizar a obra do Reformador nos
termos do molde filosófico aristotélico. Com isso, ele e seus sucessores
deram origem a um Calvinismo escolástico que significou a elaboração
de um sistema teológico racionalista e absolutista que, se por um lado
correspondia ao espírito da época, no que se refere à ênfase na especulação
racional que, em grande parte, abandona a exegese do texto bíblico, por
outro, representava a negação da abordagem agostiniana que estava no
âmago do método teológico de João Calvino. Quer dizer, seus discípulos
:: 91 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Referências
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DIAS, Zwinglio Mota. A reinvenção do protestantismo reformado no
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perspectivas para os desafios da atualidade. São Paulo: Pendão Real, 1993.
TAWNEY, Richard H. A religião e o surgimento do capitalismo. São
Paulo: Perspectiva, 1971.
A dialética entre Lei e
Evangelho quinhentos anos
depois: uma releitura em
chave kierkegaardiana
Jonas Roos
:: 94 :: De Lutero a Otto
A releitura de Kierkegaard
A releitura kierkegaardiana
da dialética entre lei e evangelho
Em um pequeno texto intitulado Sobre minha obra como autor, publicado em
1851, Kierkegaard reflete sobre sua posição e sua tática comunicativa na
cristandade dinamarquesa. Nesse texto, ainda pouco estudado, percebe-
27 É uma situação análoga à nossa do século XXI: todo o nosso aparato tecnológico nos dis-
ponibiliza uma grande quantidade de informação onde eventualmente se articulam termos
técnicos e científicos. Faz-se o uso dessa linguagem, que se encontra sempre à mão, mesmo
sem entender os fundamentos e relações lógico-argumentativas que regem essas relações, o
que nos dá a ilusão de que somos científicos e, portanto, inteligentes! Para além disso, contu-
do, também com relação à religião temos uma relação linguística complicada. Usa-se termos
religiosos, embora muitas vezes sem compreender as articulações conceituais implicadas
naquilo que tais termos representam. O mau uso que normalmente se faz do conceito de fé,
muitas vezes também em ambientes e textos acadêmicos, é um bom exemplo disso.
:: 98 :: De Lutero a Otto
A releitura de Kierkegaard
e o nosso contexto
Desespero e ausência de sentido
Para definir desespero, Kierkegaard parte do pressuposto de que o ser
humano se constitui como uma síntese de infinitude e finitude e de
seus desdobramentos: anímico e corpóreo, eterno e temporal, possível e
necessário (KIERKEGAARD, 1980).
Este pressuposto é certamente teológico. Mas, embora teológico, tal
pressuposto não falará também de algo humano, demasiadamente
:: 102 :: De Lutero a Otto
O que Tillich entende por protestante nesse contexto tem a ver com salientar
a distância infinita entre Deus e ser humano. Acentua[r] a finitude
humana, a morte, mas, acima de tudo, a separação de nosso
ser verdadeiro e a escravidão às forças demoníacas – forças de
autodestruição (TILLICH, 2009, p. 114).
Referências
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diretamente dos originais. Direção editorial: Tiago Giraudo; Coordenação
editorial: José Bortolini. Nova edição, revista. 6ª reimpressão. São Paulo:
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LA ROCHEFOUCAULD, François de. Reflexões ou sentenças e máximas
morais. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Penguin Classics
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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é.
Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
:: 107 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
(Émile Durkheim)
:: 110 :: De Lutero a Otto
Introdução
A recepção do pensamento de Rudolf Otto no Brasil é marcada por alguns
problemas que prejudicam a abordagem de seu pensamento. Embora a
obra de Otto tenha inegavelmente marcado época nos estudos de religião,
a mesma aos poucos foi questionada e gradativamente desacreditada
por parte de alguns pesquisadores. Em alguns contextos, mais ligados a
teologias confessionais ou a tendências esotéricas como a “nova era”, Otto
é imediatamente invocado a partir do pressuposto que seu mais conhecido
livro – Das Heilige – abre portas para que a transcendência invada a
imanência; em outros contextos, Otto é imediatamente desqualificado
e denunciado como traficante de conceitos teológicos em uma obra
supostamente fenomenológica.
Essas discrepâncias são compreensíveis. No Brasil, alguns conceitos de
Otto foram rapidamente abraçados e utilizados de modo apressado, como
se já estivessem suficientemente esclarecidos. Tal fato chamou a atenção
de pesquisadores alemães que trabalharam ou ainda trabalham no Brasil,
como Hermann Brandt e Frank Usarski. Este sintetizou uma série de críticas
desenvolvidas à fenomenologia da religião na Alemanha, associando
Otto a essa corrente e rotulando sua obra como uma “criptoteologia”
(USARSKI, 2004). O artigo de Usarski recebeu uma forte réplica da parte
de Ribeiro (2006), que oferece de modo pontual, uma clara distinção entre
a obra de Otto e a fenomenologia da religião. O texto de Ribeiro, porém,
muito longe de defender Otto, também o desqualifica como referencial
para as ciências da religião.
Usarski e Ribeiro estão corretos na identificação de um problema – o abuso
que se faz da obra de Otto, especialmente a utilização de seus principais
conceitos – o sagrado e o numen (ou numinoso) – para camuflar um
discurso teológico de matriz cristã, operando uma espécie de contrabando
teológico infiltrado em um conceito aparentemente neutro. Essa avaliação
não é de modo algum leviana, pois em muitas faculdades de teologia,
principalmente ligadas a igrejas evangélicas, Otto é utilizado para
fundamentar cursos de missiologia conversionista e apologética e não
são poucos os estudantes que utilizam a expressão “o sagrado” como um
equivalente mais nobre para “Deus”, tentando encontrar uma maneira
de infiltrar nas universidades o deus no qual o grupo professa crer. Este
:: 111 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
estudantes brasileiros, Otto permanece como autor de uma obra só, o que
prejudica uma avaliação mais precisa de seu pensamento. Certamente,
Das Heilige marca o momento mais significativo de sua carreira. Porém,
muitos estudantes no Brasil que se apressam em citá-lo, apenas decoraram
a pronúncia de conceitos-chave e algumas noções gerais. Muitos, porém,
não conhecem outras obras de Otto ou a extensão de seus interesses teóricos
que passam pela teologia de Lutero e Schleiermacher, a filosofia de Kant
e do neokantiano Jakob Fries, o conceito de graça no cristianismo e no
hinduísmo, estudos sobre a experiência mística, comentários ao Bhagavad-
Gita, cristologia e história das religiões. A riqueza dessa produção não pode
ser negligenciada e ela nos impede de emitir juízos tão severos e apressados
sobre um autor pouco conhecido no Brasil. Como afirmarei adiante,
o problema não é a obra de Otto, mas em que lugar a situamos – como
fenomenologia, teologia ou filosofia da religião, bem como seu potencial
enquanto referencial teórico para os estudos de religião.
a religião por outras variantes, que não suas próprias, permanece como
um sério desafio teórico.
Essa ponderação nos leva a alçar novas perguntas. Se Otto não é apenas
filósofo da religião, mas também teólogo e sua filosofia é religiosa, o debate
em torno de seu legado assume outros contornos. Torna-se um debate
sobre o lugar da teologia em meio ao conjunto de disciplinas que dão
forma à(s) ciência(s) da religião. No Brasil há vozes que, seguindo Greschat
advogam uma separação total entre teologia e ciência da religião, o que
permitiria a teólogos ocuparem-se tão somente de religiões diferentes
daquela na qual foram educados ou que os constituíram enquanto
pessoas. Para Greschat, somente esse distanciamento permitiria um olhar
mais objetivo sobre a religião concreta a ser pesquisada e examinada.
Outros preferem definir teologia como a compreensão da linguagem de
fé de um determinado grupo religioso, um esforço hermenêutico sem
a preocupação de se perguntar se essa linguagem é positiva, assertiva
ou mero “jogo de linguagem”. Otto é ameaçador porque não está em
nenhuma dessas áreas. Ele sabe que é teólogo e não renuncia a esse
dado. O problema central da simpatia ou antipatia a Otto é seu declarado
posicionamento teológico e confessional. Mas isso nos leva a questionar
também os nossos – teísta, ateísta, panteísta, agnóstico etc. Otto, no fundo,
sem desejar fazê-lo, nos pergunta: “e então, estudiosos da religião – quais
suas premissas? As minhas são essas!”
Essa questão assume contornos metateóricos sobre o estatuto
epistemológico da(s) ciência(s) da religião no Brasil. A própria confusão
em relação ao plural é sintomática, e talvez nos leve, no futuro, a discutir
com mais propriedade o que entendemos por “ciência”. Por isso, Huff
pergunta: “assumiremos, após toda a crise moderna da teologia e pós-
moderna da produção de conhecimento, a visão de mundo já canônica
de matriz relativista-laicista-moderna da qual está imbuída a perspectiva
antiessencialista?” (HUFF, 2012, p. 37)
Eduardo Gross, por sua vez, observa que,
infelizmente, a consciência da necessidade do conhecimento das questões
teológicas fundamentais colocadas no âmbito da discussão filosófica
tradicional ainda não faz parte de todos os currículos dos programas
de ciência da religião. Por não querer lidar com questões metafísicas,
:: 123 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
estas são tratadas como se não fossem questões. Nesse sentido, não é
necessária aqui uma distinção nítida entre teologia e filosofia da religião.
Esta última se desenvolveu, ao menos no ocidente, particularmente no
âmbito da discussão teológica. Assim como a crítica da religião por parte
da filosofia se expressou como filosofia crítica da tradição teológica. De
modo que é difícil separar de modo estrito onde inicia a filosofia da
religião e onde começa a teologia. (GROSS, 2012, p.23)
Considerações finais
Vários comentaristas já observaram que Das Heilige foi tão calorosamente
recebido em 1917 em virtude do clima de insegurança e instabilidade
motivado pela guerra e pelas constantes e crescentes críticas acumuladas
à religião desde Marx, Feuerbach, Freud e Nietzsche, o que favorecia uma
atmosfera de ateísmo lógico na Europa – ou seja, concluímos que Deus
não existe, que não há transcendência, nem fundamentos. Nesse caso, o
texto de Otto traria certo alívio e esperança para leitores indispostos a
acompanhar a teologia neo-ortodoxa de Barth com seu “positivismo da
revelação” (Bonhoeffer). Ou seja, entre o barthianismo e o materialismo, o
texto de Otto representaria uma terceira via. É uma teoria bem razoável,
posto que as turbulências da época (Otto redige e publica seu texto
em 1917, durante a guerra) faziam com que o irracional saltasse aos
:: 126 :: De Lutero a Otto
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constituição e seus desafios”. In: OLIVEIRA, K., REBLIN, I. , SCHAPER,
:: 128 :: De Lutero a Otto
Introdução
Um dos objetivos deste livro é pensar sobre um texto clássico da área de
Ciência da Religião. Aliás, se Lutero é um nome que desperta interesse por
sua personalidade e biografia (além, é claro, por sua obra), Otto nos afeta
enquanto autor de um texto: O sagrado. Se após 100 anos ainda encontram-
se lugares onde se discute tal texto, isso parece ser uma evidência de que
não estamos diante de um livro dentre outros, mas que já foi elevado à
categoria de uma obra clássica.
Uma obra clássica é aquela que, de um lado catalisa os grandes temas,
angústias e questões de seu tempo. Assim, alguns entendem a euforia em
torno de O sagrado a partir da onda irracionalista que tomou conta da
Alemanha após a Primeira Guerra Mundial28. Entrementes, o que confere
vivacidade à obra não é aquilo que ela arregimenta de sua época, mas os
horizontes que abre para além do contexto mais imediato. Ela se insere
em sua época, mas, por diversos motivos, ilumina o horizonte por vir,
apontando por caminhos passíveis de serem trilhados. Essas sendas são
acenadas não tanto pelas soluções que uma obra clássica postula, mas
também pelas questões que levanta.
Por isso mesmo, nem sempre obras que recebem esse reconhecimento são
prontamente aceitas consensualmente. Aliás, no caso da obra em questão,
ela se inseriu numa zona complexa. De um lado, parecia comprometida
por demais com a tradição teológica protestante, o que denuncia os
limites de se tomá-la como chave de leitura do fenômeno religioso em
sentido mais amplo29. Já teólogos como Rudolf Bultmann julgavam-na
28 Vale lembrar que o texto de Otto logo foi traduzido para muitos idiomas, o que permite
questionar esta explicação de caráter mais circunscrito do grande sucesso de O sagrado.
Poucos anos depois, em 1929, era publicada sua 22ª edição. Para análise mais detalhada
deste tema, mostrando a relação do pensamento de Otto com este momento de crise na
Alemanha, cf. Gooch (2000, 2000, p. 132-159).
29 Quase um século depois, esse problema ainda persiste. Uma constatação encontramos na
equivocada interpretação de G. Agamben: “Aqui [em O sagrado], uma teologia que havia
perdido toda experiência da palavra revelada e uma filosofia que havia abandonado toda
sobriedade perante o sentimento celebram sua união em um conceito de sagrado que a
este ponto coincide totalmente com os conceitos de obscuro e impenetrável. Que o religio-
so pertença integralmente à esfera da emoção psicológica, que ele tenha essencialmente a
ver com calafrios e arrepios, eis as trivialidades que o neologismo numinoso deve revestir
de uma aparência de cientificidade” (AGAMBEN, 2007, p. 86, grifo nosso).
:: 133 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
30 Cf. Bultmann (1997, p. 89-90). No início do século XX, muitas das concepções de Otto
foram incorporadas pela teologia dialética, especialmente a afirmação de Deus como “to-
talmente outro” e sua crítica à concepção moral de religião (Sobre isso, cf. BARTH, 1959,
p. 390-391.). Mas isso não significou que as distâncias não tenham sido cuidadosamente
mantidas. Para Bultmann, identificar Deus com o irracional é problemático, uma vez que
revela a confusão entre nossa existência e Deus. O irracional do numinoso diz mais sobre
a consciência que temos de nossa existência do que propriamente de Deus.
31 O sagrado foi recebido com entusiasmo por Edmund Husserl, que recomendara a Heide-
gger fazer uma resenha crítica do livro. Ele diz: “Estou lendo com grande interesse o livro
de Otto O sagrado, uma tentativa de fato de uma fenomenologia da consciência de Deus
(...) É uma pena que você não tenha tempo de escrever uma (aprofundada) resenha sobre
ele” (HUSSERL, 1944, p. 135–6). Era tida pelo fundador da fenomenologia filosófica como
primeiro passo na construção de uma fenomenologia da religião, iniciando com a abor-
dagem da consciência de Deus. Heidegger chega a fazer algumas notas, mas a resenha
propriamente dita nunca veio a lume.
:: 134 :: De Lutero a Otto
diz respeito à relação entre racional e irracional. A segunda, por sua vez,
se refere à fundamentação transcendental.
Para tratar desses temas com a devida justiça, vamos retomar a obras
publicadas antes de 1917, ampliando o que usualmente se faz no Brasil,
com a tendência de se restringir o pensamento de Otto a apenas O sagrado.
Ainda que seguramente seja o livro mais importante do autor, uma obra
clássica não surge repentinamente. É fruto de anos de empenho, exigindo
tempo para o devido amadurecimento das ideias. Além disso, como grande
parte dos grandes textos do século XX, ele é fragmentário. Não se trata de
um sistema, organizado a partir de uma tese central, em torno da qual se
levantam argumentos, com uma estrutura bem definida, com começo, meio
e fim. Há insights e ideias instigantes que obrigam o leitor a reconstruir as
linhas argumentativas. De modo geral, há três perguntas que a dirigem:
1) O que é religião?; 2) Em que categoria ela se funda?; 3) Qual a relação
entre essa categoria e o empírico? – velho problema para quem segue pelas
sendas da filosofia transcendental. Nesse texto, vamos nos deter mais na
segunda questão por entender que aqui se encontra um importante elo.
Religião e naturalismo
A obra de 1917, O sagrado, deve ser lida dentro de um momento específico
da produção de Otto, no qual procura dar visibilidade ao aspecto irracional
do sagrado. Quando ficamos apenas nessa obra, há o imenso risco de se
perder de vista algo fundamental. Se o irracional constitui o núcleo da
religião, ele não deve ser confundido com o todo da religião. Otto nos
lembra disso no decorrer das páginas desse mesmo livro. No entanto, como
sua atenção está voltada para o irracional no sagrado, muitos intérpretes
foram conduzidos a identificar, muito apressadamente, é verdade, certa
promoção de irracionalismo. No entanto, um breve recurso a outras obras
pode mostrar que não é bem disso que se trata. As páginas iniciais de
Visão de mundo naturalista e religiosa, obra escrita em1904, já assinalam:
Nenhuma forma de religião existente é inteiramente feita de “sentimento”,
“subjetividade” ou “comportamento”, que pode renunciar a quaisquer
suposições e convicções em relação à natureza. De fato, toda forma,
num exame mais próximo, revela um conjunto mais ou menos fixo de
:: 135 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
chegar ao mais essencial. Por isso mesmo, já ao final da obra, Otto diz
que: “Nossa tarefa deve ser mostrar que a religião mantém sua validade
e liberdade por causa da verdade e da independência do espírito e sua
superioridade em relação à natureza” (OTTO, 1907, p. 282).
Fundamentação transcendental do
religioso: o diálogo com Jakobi Fries
Ao final da sua obra sobre naturalismo e religião, Otto esboça uma tarefa:
mostrar como a religião mantém sua liberdade e validade a partir da
afirmação da independência do espírito. Ou seja, a validade e autonomia
da religião remetem para e dependem da autonomia do espírito, uma vez
que a religião se funda aqui, numa subjetividade. Mas, qual o sentido de
se colocar uma tarefa como esta no fim do livro, quando já se encaminha
para as conclusões?
Uma suposição que fazemos é a seguinte: nesse momento, Otto ainda
se mostra muito dependente das ideias de Schleiermacher. No entanto,
apesar de assentir com as ideias de seu predecessor, Otto reconhece
a necessidade de fundamentá-las. A intuição de Schleiermacher é
producente, mas pouco rigorosa. Por isso mesmo, anos depois, Otto inicia
seu livro Filosofia da religião baseada em Kant e Fries (1909 – grifo nosso)
dizendo: “Fries é bem original, e um estudo mais atento prova que ele
é superior [ a Schleiermacher] em compreensão, em profundidade e
solidariedade”(OTTO, 1931, p. 15). Com isso, fica claro que o caminho é
a fundamentação transcendental da religião. É justamente isso que Fries
traz de novidade em relação a Schleiermacher.
Nessa obra, percebemos o mesmo procedimento adotado anteriormente
na afirmação da autonomia da religião. Ela se fundamenta no espírito
humano. Nesse sentido, a teoria do conhecimento de Jakob Fries se
constitui como ferramenta imprescindível. Mas, novamente, o específico
da religião não é encontrado apoiado em si mesmo, mas a partir dos
limites de outro âmbito. Nesse caso, para além do conhecimento teórico,
situa-se o sentimento/intuição – campo propício para a religião.
:: 138 :: De Lutero a Otto
A fundamentação da religião na
categoria a priori do sagrado
O sagrado compreende elementos racionais e irracionais da religião. Mais
do que isso, “contra todo o sensualismo e contra todo o evolucionismo,
porém, é preciso afirmar com todo o rigor que em ambos os aspectos se
trata de uma categoria estritamente a priori” (OTTO, 2007, p. 150).
A afirmação do a priori é um meio de encontrar uma fundamentação para
a religião que, ao mesmo tempo, esteja para além da história, mas em
relação com ela, garantindo a especificidade da religião. Por isso mesmo,
esta fundamentação não pode ser de qualquer tipo. Não se trata, por
exemplo, de encontrar um fundamento empírico, no mundo ou mesmo
meramente teórico para a religião.
Como observamos, já na primeira obra mencionada, Otto afirmava que
a religião não retira sua validade e liberdade da ciência ou da natureza.
Portanto, para legitimar a especificidade da religião, é preciso encontrar
um fundamento que forneça certa “segurança”. Em regime transcendental,
isso significa que não se reduza à contingência do empírico. A restrição
a meras descrições de estados psicológicos (como em W. James, por
exemplo) mostra-se insuficiente para fundamentar o religioso. Afinal,
descrever a religião ainda não é fazer Ciência da Religião. Por isso, a fim
de evitar o reducionismo do religioso aos ventos de estados psicológicos
ou socioculturais, a religião deve ser assentada em uma categoria própria.
Uma consequência disso é que dessa perspectiva, por exemplo, uma
escultura pode ser considerada sagrada não porque tem uma função social
ou psicológica. Não é a função que a faz objeto ser reverenciado, mas por se
inserir no sagrado que ela desempenha certa função social. Não é a função
que confere a um objeto ou a uma coisa a inserção no âmbito do sagrado.
Antes, é o seu reconhecimento como partícipe do sagrado que lhe permite
exercer determinada função na sociedade ou num sistema religioso.
Mas, além disso, essa fundamentação há de garantir a especificidade
do que se pretende fundamentar. Por essa razão, O sagrado é bastante
enfático no sentido de mostrar que a religião pode gerar moral, mas não
se deixa confundir com ela. A religião tem seu âmbito próprio e deve
ser entendida a partir de si mesma e não como variante dependente de
:: 142 :: De Lutero a Otto
Perspectivas sobre
o pensamento de Otto
No entanto, se a afirmação do sagrado como categoria a priori busca
assegurar a autonomia da religião, ela não está isenta de problemas. Em
parte, isso se deve ao modo como a especificidade da religião é constituída.
Já foi observado que o específico da religião é sempre indicado como
aquilo que vai além do limite do âmbito científico, conceitual ou racional.
Nesse ponto, penso que vale a pena levantar uma suspeita. Mais do que
um interesse em entender a religião, o que marca mais profundamente o
projeto do autor de O sagrado não é a tentativa de defender a religião de seus
críticos? Em temos mais afirmativos, é válido supor que essa conclusão a
que chega deve muito à postura “apologética” (sem conotação pejorativa)
que assume? A sua defesa da autonomia da religião não complica a
:: 144 :: De Lutero a Otto
plausibilidade do estudo da religião? Por vezes, parece que Otto está mais
preocupado em defender a autonomia e legitimidade da religião frente a
seus delatores do que propriamente em descrevê-la. E, nesse sentido, nada
mais certeiro para calar seus oponentes no ambiente intelectual alemão do
começo do século XX do que buscar uma fundamentação transcendental.
Reconstruindo os argumentos de Otto a partir dessa perspectiva, a coisa
se configura da seguinte maneira. Ele assume os julgamentos e censuras
feitos à religião. Não se trata de simplesmente negá-los. No entanto, essas
críticas nunca chegam ao que é essencial, uma vez que se prendem a um
efeito de superfície na medida em que se restringem aos aspectos racionais
da religião. Aliás, ele mesmo admite que os discursos sobre os atributos
divinos são categorias humanas hipostasiadas, de modo que é possível
reduzir os aspectos racionais na ideia de divindade à experiência humana.
No entanto, de maneira a limitar o alcance dessas críticas, Otto acentua
que o núcleo essencial da religião está para além da expressão conceitual,
livrando assim a religião das garras da crítica. Ou seja, reconhece a
validade do juízo ácido do acusador, mas situa o cerne da religião numa
zona que não é alcançável pela crítica racional e científica. Desse modo, a
crítica da religião não atinge aquilo que é mais profundamente religioso.
O crítico fica sempre nas margens, no inessencial. Não se nega a crítica.
No entanto, ela não alcança aquilo que é propriamente religioso. Não seria
essa a reedição do modus operandi protestante para defender a legitimidade
da religião num contexto de pleno avanço da ciência?
De início, cabe ressaltar com Heidegger, que o irracional não é caracterizado
a partir de si mesmo, mas sempre negativamente e em relação ao racional.
É sempre o que escapa do racional e não se deixa subsumir ao científico,
ao conceitual ou ao racional. Portanto, para acenar o específico da religião,
ele tem de mostrar os limites desses âmbitos. Uma consequência desse
modo de construir o argumento é a conclusão de que o mais íntimo da
religião escapa da linguagem. Aquilo que é distintivo da religião é pré-
hermenêutico, indizível, inefável. Ele pode ser conhecido, mas de modo
bem peculiar: pelo sentir. Nas palavras de Otto: “O objeto permanece na
indestrinçável escuridão da experiência não-conceitual, do puro sentir,
não podendo ser interpretado, mas apenas insinuado pela partitura dos
ideogramas interpretativos (...) . Sendo ‘totalmente outro’, ele é totalmente
indizível.” (OTTO, 2007, p. 98).
:: 145 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
que havia um tigre no quarto ao lado: você saberia que estava em perigo e provavelmente
sentiria medo. Mas se fosse dito, ‘Há um fantasma no quarto ao lado’, e você acreditasse,
você sente, de fato, o que é muitas vezes chamado de medo, mas de um tipo diferente. Não
seria baseado no conhecimento do perigo, pois ninguém tem medo de um fantasma pelo
que ele pode fazer, mas pelo simples fato de que é um fantasma. É ‘estranho’ ao invés de
perigoso, é um tipo especial de medo que excita e que pode ser chamado de temor. Com
o estranho, chegou-se às margens do numinoso. Agora, suponha que lhe foi dito simples-
mente: ‘Existe um espírito poderoso na sala’ e você acreditou. Seus sentimentos seriam
então ainda menos do que um mero temor do perigo: mas a perturbação seria profunda.
Você poderia sentir admiração e sentir-se encolhido [shrinking]. . . [Que] pode ser descrito
como temor, e o objeto que o provoca como o numinoso”. (LEWIS, 2001, p. 05-06).
:: 147 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
por seu caráter particular ou inexprimível. No seu próprio texto, para falar
sobre ele, Otto faz referências a textos, sejam eles sagrados, de testemunho,
poéticos etc. Com isso, o que se tem é uma análise da experiência como
tal ou uma análise do modo como essa experiência ganha expressão? Se
tomamos os pressupostos de Otto, não podemos ignorar que há um hiato
que separa experiência e expressão, de modo que não podemos tomá-las
como idênticas. Uma coisa é a experiência. Outra é o que o fiel pode dizer
sobre ela. Se é assim, não se tem muito mais uma análise de discursos
religiosos, de modo que o irracional como tal deixa de se configurar como
objeto sobre o qual se constitui a Ciência da Religião?
Mas, deixemos esses argumentos que nos enveredam para uma
abordagem hermenêutica para outra ocasião. Voltemos a Otto e seu solo
transcendental. No Brasil, Otto tem sido lido como representante da
fenomenologia da religião e como um importante teórico na constituição
da área de Ciência da Religião. No entanto, aqui também não nos
deparamos com uma instigante questão? Consideremos com Otto que o
numinoso não pode ser definido, apenas aludido, afinal é categoria sui
generis. Além do mais, ele se situa no âmbito do irracional. Em que sentido,
entretanto, pode-se constituir um saber, uma Ciência da Religião, a partir
de um elemento que se furta à definição? Que se esvai e se esconde num
âmbito inacessível, obtuso, “na noite escura da alma”? Assim como na
época de Kant, esse desejo da religião de se furtar a dar suas razões não
levanta mais suspeitas do que mostra sua força? Com isso, não pretendo
discutir se há ou não esse âmbito do indizível. O ponto é: em que medida
ele pode ser considerado elemento fundamental de uma área de estudos?
Traduzindo isso nos termos do nosso problema. O crucial não reside em
se partimos ou não de concepções normativas de religião. Nós sempre
temos noções normativas. A questão é em que medida somos capazes
de oferecer argumentos válidos que sustentem essas visões normativas.
Como fazê-lo se concebemos o específico do nosso objeto como aquilo
que se furta ao debate público? Ao discurso inteligível? A uma gramática
compartilhada? No fundo, o argumento de que a religião é o “outro da
razão” não gera justificadas desconfianças?
Assim, por exemplo, recomendar que quem não teve uma experiência
religiosa não continue a leitura de um livro, não é um tipo de proposição
:: 149 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
35 Vale ampliar um pouco mais o debate, ainda que não se pretenda desenvolver aqui essa
questão. Mas, há algum tempo, principalmente em língua inglesa, têm sido publicados
textos críticos sobre a influência do protestantismo liberal nos estudos de religião. Muitos
dizem que a área ainda não libertou da teologia protestante (especialmente do séc. XIX),
sendo ainda espécie de apologética disfarçada ou de ecumenismo. O conceito de religião,
muitas vezes aceito tranquilamente, é concebido como plasmado a partir de referências
religiosas protestantes (FRITZGERALD, 2000; DUBUISSON, 2003). Para esses críticos, o
acento no “saber fazer”, no aspecto prático da religião ainda não foi o suficiente para diri-
mir os pressupostos protestantes e essencialistas na disciplina. Thomas Fritzgerald (2000,
p. 7-8), por exemplo, argumenta que o conceito de religião plasmado sob os auspícios da
teologia liberal tem tido como consequência a legitimação da ideologia moderna do libe-
ralismo, capitalismo e individualismo. Talal Asad (1993) segue na mesma direção, pergun-
tando-se em que medida o conceito de religião não atende aos interesses do liberalismo do
século XIX, com sua concepção bem própria de mundo.
:: 150 :: De Lutero a Otto
Conclusão
R. Otto pertence à classe de pensadores que são mais criticados do que
efetivamente lidos. Com isso, não se pretende dizer que a compreensão
de sagrado de Otto não tenha seus impasses. No entanto, não raras vezes
se observa muita pressa no julgar e pouca paciência no compreender,
gerando leituras superficiais, unilaterais e indevidas do autor.
Otto fez uma contribuição metodológica importante. Ao chamar a atenção
para a especificidade do religioso, ressalta que o objeto com o qual
lidamos não é um mero objeto que se deixa reduzir totalmente a outros.
Ele possui contornos e dificuldades próprias, que não se deixam engolir
tão facilmente por outras esferas sociais (ética, estética, ciência etc.), ainda
que esteja muito próxima delas. Na verdade, ele parece ser o reino da
confusão, que mistura essa cartografia das fronteiras. Por seu caráter sui
generis e “arredio”, essa dimensão da experiência humana exige uma
aproximação bem própria. A meu ver, isso quer dizer que para estudar
religião, não basta ficar nas suas externalidades, naquilo que da religião se
manifesta mais clara e prontamente nas instituições, nos ritos, mitos etc.
Há algo na religião que mobiliza essas manifestações.
O reconhecimento do mérito, no entanto, não nos exime de nos
perguntarmos se o modo como ele constrói essa autonomia e especificidade
do religioso não acaba se deparando com limites: preserva-se a autonomia
e a peculiaridade da religião retirando-a do alcance da razão, mas o
aspecto pessoal e inefável da religião impõe limites na constituição de um
discurso sobre o religioso.
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De naturalismo e religião a
o sagrado: contribuições do
pensamento de Rudolf Otto
em duas épocas de mentes
secularizadas
Humberto Araujo Quaglio de Souza
:: 153 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Introdução
Há algo que historiadores contemporâneos, principalmente aqueles
ligados à escola dos Annales, chamam de mentalidade quando se referem,
por exemplo, à história das mentalidades. Há também algo que os filósofos
chamam de espírito de uma época, ou Zeitgeist, termo cujo uso se tornou
comum no romantismo, a partir do final do século XVIII. Seja sob a
perspectiva dos filósofos, seja sob a dos historiadores, esses termos podem
ser usados para se referir a um conjunto de ideias, opiniões, impressões
e até mesmo preconceitos que se difundem e se tornam comuns nas
mentes de indivíduos de qualquer época, tornando-se parte de uma
cosmovisão predominante ou, pelo menos, significativa e representativa
de um período histórico. Já o termo secularização faz evidente referência
a século, palavra que por vezes é utilizada para se referir ao âmbito das
coisas temporais, mundanas e históricas, em oposição às coisas divinas e
sagradas, situadas fora do tempo. Tudo isso torna possível que se estabeleça
uma compreensão da expressão mente secularizada, em um sentido
amplo, como aquela se afasta de considerações sobre ideias ou temas
identificados como direta ou explicitamente ligados à religião. Em muitos
casos, uma mente secularizada pode caracterizar-se por simplesmente
ignorar questões de natureza religiosa, ou seja, temas comumente ligados
à religião sequer passam pela cabeça do sujeito. Em outros casos, porém,
uma mente secularizada se manifesta por um repúdio ou até mesmo
hostilidade diante de qualquer coisa que seja ligada à religião.
Seria possível afirmar que o tempo presente é uma época de mentes
secularizadas? É certamente incorreto dizer que mentes completamente
secularizadas sejam uma realidade universal no presente, pois há
muitas pessoas, provavelmente a maior parte delas, para as quais temas
e ideias religiosas são elementos significativos em suas existências. Há
muitas pessoas para as quais a religião é o centro de suas vidas, aquilo
que lhes dá sentido, e há também aquelas que ocasionalmente pensam
em termos religiosos quando questionadas sobre temas que não ocupam
seus pensamentos com frequência, mas que são parte do cotidiano de
quem lida com filosofia ou ciência da religião, como questões metafísicas
ligadas à cosmogonia. Contudo, é muito provável que poucas mentes
sejam completamente infensas àquilo que se poderia chamar, também
:: 154 :: De Lutero a Otto
Muitos séculos mais tarde, David Hume já dizia que livros sobre
“divindade ou metafísica” que não contivessem “qualquer raciocínio
abstrato sobre quantidade ou número”, ou “qualquer discursos
experimental sobre matéria de fato e de existência” deveria ser lançados
ao fogo, pois só conteriam “sofismas e ilusão” (HUME, 1952, p. 509). E
assim, seguindo a mesma tendência, chegou-se ao século em que Neurath
combatia a metafísica aos berros nos cafés de Viena.
A positivação lógico-
metafísica do mistério
Em seu livro de 1904, Otto procura justamente debater com essa cosmovisão
materialista, defendendo a validade da religião e a possibilidade de se
refletir sobre as coisas do espírito sem reduzi-las todas ao âmbito do
material e do corpóreo. Em outras palavras, para Otto, “a visão religiosa
do mundo não pode pretender derivar-se das ciências naturais, e nem
estas podem pretender invalidar a religião com base em seus próprios
avanços no conhecimento da natureza” (QUAGLIO DE SOUZA, 2014, p.
:: 162 :: De Lutero a Otto
43). Mesmo ciente de que vivia em uma época na qual a secularização das
mentalidades avançava a ponto de pretender varrer a própria metafísica
para fora do cenário cultural, Otto não deixava de pensar e de argumentar
em termos metafísicos. Conforme bem observou Melissa Raphael, Rudolf
Otto “estava muito menos interessado na taxonomia e observação dos
fenômenos religiosos do que nos valores metafísicos que os sustentavam”
(RAFHAEL, 2004, p. 16). E Rudolf Otto, em meio às várias ideias que expõe
na discussão sobre as relações entre religião e naturalismo, apresenta
um interessante argumento de caráter eminentemente metafísico para
sustentar a validade do objeto da religião. Esse argumento, simples
e elegante, pode ser lido como uma demonstração lógica, puramente
racional, do mistério como elemento sem o qual não se pode pensar a
própria realidade, especialmente a physis. O argumento está presente
tanto no livro de 1904 quanto em outra obra importante que Otto publicou
poucos anos depois, em 1909, A Filosofia da Religião baseada em Kant e Fries,
e o que se tentará mostrar aqui é a importância de tal argumento como
uma das premissas para o desenvolvimento que o teólogo deu à ideia de
mistério, em 1917, em sua obra mais conhecida, O sagrado.
Uma exposição desse argumento deve começar pela crítica que Otto faz à
afirmação de que “tudo deve ter uma causa e, portanto, o mundo também
deve ter” (OTTO, 1907, p. 61). A crítica de Otto se desenvolve assim:
Isto não é absolutamente correto. Por exemplo, se o mundo fosse
constituído de tal maneira que fosse impossível para ele não existir,
que a necessidade de sua existência e a inconcebivilidade de sua não-
existência fossem ao mesmo tempo explícitas e óbvias, então não teria
sentido em se perguntar por uma causa. No que diz respeito a uma coisa
“necessária”, se houver algo assim, nós não podemos perguntar: “por
que, e a partir de que causa, isto existe?” Se a coisa fosse necessária, isto
implica que pensar nela como não existindo seria ridículo e lógica ou
metafisicamente impossível. Infelizmente, não há coisas “necessárias”,
e então não podemos ilustrar o caso com exemplos. Mas há, pelo menos,
verdades necessárias que se distinguem de verdades contingentes
(OTTO, 1907, p. 61-62).
Otto observa que, mesmo que não haja coisas necessárias, há verdades
necessárias. Otto exemplifica tal contraste colocando lado a lado
afirmações do tipo “a menor distância entre dois pontos em um plano
é uma linha reta”, pertencente à geometria euclidiana, e “a terra gira em
torno do sol” (OTTO, 1907, p. 62), pertencente à teoria copernicana. Com
esses exemplos, fica bastante claro o que o teólogo quer dizer. Se alguém
perguntar o porquê da afirmação copernicana, a pergunta não soará
ridícula. É o tipo de pergunta que cientistas formulam todo o tempo. É
uma pergunta pela causa de cada coisa observada no mundo, na natureza.
Mas se alguém perguntar pelo porquê da afirmação euclidiana, a pergunta
carecerá de sentido, pois trata-se de uma verdade necessária da razão.
No entanto, a physis não é um conjunto de verdades necessárias, mas sim
de coisas contingentes que existem no tempo, ainda que em conformidade
com verdades da razão, como as dadas pela geometria. Tudo no mundo
natural tem sua causa, tudo está ligado por relações de causalidade.
Mesmo assim, a razão não se contenta com uma infinita sucessão de
coisas contingentes causando outras coisas contingentes. A inteligência
pergunta por uma causa acerca da própria sucessão de coisas contingentes
observadas no mundo natural. Mesmo que alguém apresente a hipótese
de que a physis é uma sucessão infinita de causas e efeitos contingentes,
a razão fará emergir a pergunta pela causa dessa sucessão infinita. Um
matemático poderia expressar esse problema da seguinte maneira. Se
a sucessão infinita de causa e efeito fosse representada pelo símbolo de
infinito, aquele que se parece com o algarismo oito na posição horizontal,
e se esse símbolo compusesse um conjunto unitário, ainda seria possível
perguntar: qual a causa disto? O que Otto tenta mostrar é que a contingência
deve ser eliminada. Busca-se uma causa para a própria contingência, e ela
não pode ser algo contingente. Nas palavras do teólogo:
O elemento de contingência deve ser afastado; elas [as coisas
contingentes] devem ser mostradas como resultantes de causas
suficientes. Isto equivale a dizer nada menos que elas devem se
remeter a alguma necessidade. Pois esta é uma das curiosas convicções
fundamentais da nossa razão, e uma convicção na qual toda a
investigação científica tem suas raízes últimas, de que aquilo que
é “contingente” só o é aparentemente, e na realidade está, de uma
:: 164 :: De Lutero a Otto
Otto percebe que o ser humano, ao se perguntar pelas origens de seu próprio
mundo, vê nele a maior contingência de todas, e se a existência do mundo
não se dá por necessidade, a physis deve ter uma causa necessária que seja
seu fundamento e que não tem causa justamente por ser necessária. Mas esta
causa necessária é inalcançável pelos métodos das ciências naturais, pois
o objeto delas é justamente esse conjunto de relações causais contingentes
que chamamos de natureza. É a partir daí que Otto imagina uma objeção
que poderia surgir no contexto da mentalidade de sua época:
Se alguém dissesse: “bom, nós devemos apenas nos contentar com o
reconhecimento da natureza essencialmente ‘contingente’ da existência,
pois nunca seremos capazes de ir além dela”, esse alguém estaria certo
quanto à segunda afirmação. Ir além dela e ver o que há lá – o eterno
e necessário em si mesmo – que se situa no fundamento deste mundo
de “contingência” é, de fato, impossível. Mas ele estaria errado quanto
à primeira parte de sua fala, pois ninguém irá “se contentar” com isso
(OTTO, 1907, p. 64-65).
mundo natural. Mas isto que é posto, que é positivado, é para a razão um
mistério, algo que lhe escapa. De certo modo, alguém poderia dizer que,
absurdamente, Otto faz a positivação de um negativo. Talvez seja assim, mas
esse negativo só é negativo diante da razão humana, limitada por sua
própria natureza, finita e contingente.
Em 1909, Otto publicou, como já dito acima, outra obra importante, A
Filosofia da Religião baseada em Kant e Fries. Ao expor o mesmo argumento
no livro de 1909, Otto já fala dessa causa primeira em termos mais
teológicos, como Deus:
O princípio geral “tudo deve ter uma causa” está errado, se ele quiser
dizer “uma causa fora de si mesmo”. (Pois nesse caso, Deus teria,
por necessidade, uma causa externa; esta causa, outra causa; e assim
por diante ad infinitum). Digamos, em vez disso, que o conceito de
necessidade contém em si mesmo, apenas em si mesmo, uma existência
que tem sua causa dentro de si mesma. Certamente há um vínculo entre
isso e a razão geral pela qual há Algo em vez de Nada, e porque esta
coisa é assim e não de outro jeito. Mas essa razão deve existir naquilo
que é, por si mesmo, e desconhecido para nós (OTTO, 1931, p. 86-87 –
grifos do original).
O teólogo, então, se refere a Deus, o objeto da religião, mas deixa claro que
ele é o desconhecido. Alguém poderia dizer que, nessas ideias de Otto, há
muito mais metafísica do que teologia ou filosofia da religião propriamente
dita. Uma mentalidade moderna poderia pensar assim. O espírito do
tempo presente, tendo atrás de si toda a história da filosofia, poderia assim
classificar o pensamento de Otto. Curiosamente, porém, nessas ideias,
Otto enfrenta exatamente um dos problemas mais importantes para a
metafísica de Aristóteles: o da causa primeira. Aristóteles considerava
este um problema do âmbito da “protofilosofia”, a filosofia primeira, que
ele chamava justamente de teologia (ARISTÓTELES, 2006, p. 171). Então,
Otto, formado na cultura luterana, curiosamente retorna a um problema
enfrentado por aquele que Lutero chamou de fabulador, aquele contra
cuja autoridade se levantaram reformadores e cientistas quinhentistas
e seiscentistas. E isso é um indício histórico de que a humanidade não
consegue deixar de pensar no problema da causa de tudo, e que tal
problema sempre escapará das tentativas puramente materialistas de
:: 167 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Por essa defesa de Otto é possível então fazer a crítica ao que Eliade
falou sobre o teólogo alemão. O pensador romeno reconhece, com toda
justiça, a originalidade de Otto. Contudo, não é certo que ele não tenha
estudado a ideia de Deus, ainda que o foco de O sagrado tenha sido, de
fato, a experiência religiosa. Todas as considerações sobre o mistério
envolvem a ideia de Deus, de causa necessária, uma teologia no sentido
mais aristotélico do termo. Também não é correto dizer que ele tenha
negligenciado o lado racional e especulativo da religião. Ao contrário, ele
precisou estabelecer bem esse lado para poder tratar do irracional.
Mas como poderiam as mentes secularizadas daquela época perceber
tudo isso com clareza? No espírito do início do século XX, as ciências
a natureza já estavam estimulando parte da intelectualidade da época
a rejeitar toda a metafísica, e muitos daqueles que ainda pensavam em
termos metafísicos queriam afirmar a racionalidade, mais do que isso, a
razoabilidade, da investigação das coisas que não podem ser apreendidas
pela empiria. É compreensível, portanto, que o falar de um componente
irracional intrinsecamente ligado ao racional tenha gerado tal resistência.
Mas essa resistência, como visto neste texto, pode ser dissipada com um
exame em conjunto das obras de 1904 e de 1909, para depois se chegar à
leitura do livro de 1917.
O espírito da época, porém, talvez ainda não estivesse preparado para
uma recepção mais calorosa da obra de Otto. Seu impacto se fez sentir,
com certeza, entre os estudiosos de religião e entre seus pares, os teólogos.
Mas as mentes do início do século XX, que trilhavam o caminho, aberto
desde o século XVI, de uma crescente secularização, foram em grande
parte refratárias a esse tipo de estudo. Contudo, o impacto de O sagrado,
ainda que circunscrito aos diversos tipos estudiosos de religião, foi muito
forte. Em campos específicos ligados à reflexão sobre o fenômeno religioso,
já era possível vislumbrar que ali estava um texto que não deixaria de
ser debatido nesse meio. Mas poderia esse impacto repercutir e estender
:: 170 :: De Lutero a Otto
Conclusão
O século XXI ainda é um tempo de mentes secularizadas. Bom, pelo
menos é o que se pode dizer do mundo ocidental. A Europa ainda é
predominantemente cristã, mas esse cristianismo europeu, na maior
parte dos casos, não se manifesta em cosmovisões que colocam a religião
no centro da existência da maioria das pessoas. Em outras palavras, há
mais pessoas frequentando regularmente universidades do que igrejas.
As ciências da natureza continuam a inspirar fascínio, e muitas pessoas
tornam-se convencidas de que cosmovisões materialistas, como as dos
chamados céticos contemporâneos ou neo-ateus são firmemente comprovadas
pelos avanços da física, da química e da biologia. A rejeição a qualquer
tipo de metafísica parece ser o caminho mais lúcido ou razoável a se
seguir. O quadro cultural que Otto encontrou nos meios acadêmicos de
seu tempo tem muito em comum com o que há hoje. Os fatos psicológicos
que são antecedentes daquela mentalidade são também antecedentes da
mentalidade hodierna.
Aquela esperança expressada por Otto em 1904, de que a mitografia
não mais seria confundida com a historiografia, pelo menos nos meios
cultos, não parece ter se concretizado totalmente. Se for considerado,
por exemplo, o quadro específico da cultura norte-americana, com seus
debates entre criacionistas e evolucionistas, vê-se que, lamentavelmente,
as mentes envolvidas nessa discussão parecem ainda refletir muito do
espírito dos séculos XVI e XVII. Falam de Darwin e da religião em termos
idênticos aos das discussões que Galileu ou Copérnico travaram com o
establishment religioso de suas épocas, confrontando duas perspectivas
diferentes sobre a própria physis, em vez de considerar a distinção
de âmbitos que a teologia, a filosofia e a ciência da religião já estavam
estabelecendo desde o século XIX, e para a qual Otto deu uma valiosa
contribuição. A mentalidade secularizada de nosso tempo contamina
os próprios religiosos. O quadro anglo-saxão mencionado acima é um
:: 171 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Lectures on the Philosophy of History,
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:: 172 :: De Lutero a Otto
Introdução 37
A teoria evolucionista de hoje tem todo o direito de
tentar “explicar” o fenômeno chamado religião, pois
esta é de fato a tarefa da ciência da religião. Mas para
poder explicar, é preciso ter um dado primeiro a partir
do qual se possa explicar. Do nada, nada se explica
(OTTO, 2007, p. 151-152).
Teoria da religião – ou, para melhor descrevê-la condizente com sua
polivalência de perspectivas: teorias da religião – não constitui assunto
simplesmente circunscrito à esfera da Ciência da Religião e suas
subdisciplinas. Ele remete a um debate mais abrangente que inclui outras
áreas como a Filosofia da Religião e a Teologia, podendo ampliar este
leque até para questões de Filosofia da Ciência, Filosofia da Linguagem
etc. De ser assim, discutir teoria da religião se converte num desafio
para a pesquisadora ou o pesquisador da religião, sobretudo dada a
especialização que caracteriza os estudos contemporâneos. Com razão, o
estudioso profissional receia não estar em posição de lidar com bem mais
do que apenas sua própria área de formação e sua expertise. Contudo, se
um objeto científico também recebe atenção de outras disciplinas, faz-se
necessário considerá-las no tocante à delimitação epistemológica, visto que
outras áreas também se dedicam ao estudo da religião ou, genericamente
falando, dos fenômenos e/ou fatos religiosos.
Esta implicação não passou despercebida, por exemplo, para o cientista
da religião holandês, falecido recentemente, Jean J. Waardenburg (1930-
2015). Em uma conferência proferida já na década de setenta do século
passado (1973), na Universidade de Boston, o autor ressaltou o fato de que
discussões sobre “método e teoria no estudo e interpretação da religião”
constituem o lugar de encontro entre cientistas da religião, filósofos e
teólogos (WAARDENBURG, 1978, p. 9)38. Para tanto, o teórico da religião
é impelido a ir além de seus limites epistêmicos mais imediatos, sem
que o cientista da religião precise abandonar seu compromisso com a
pesquisa empírica, ou o filósofo descarte sua abordagem racional dos
conteúdos religiosos vis-à-vis sua pretensão de validade, ou o teólogo
37 Pesquisa financiada pela CAPES através do Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD)
do Departamento de Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas
Gerais.
38 Todas as traduções são de nossa autoria, salvo quando houver referências explícitas a ver-
sões em português.
:: 175 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Teoria da religião
na Ciência da Religião
Para a Ciência da Religião contemporânea, ocupar-se com teoria da religião
não tem significado deter-se necessariamente em definições de religião,
mas familiarizar-se com a ciência que investiga tal objeto, suas premissas e
:: 176 :: De Lutero a Otto
45 Esta obra não se encontra traduzida para o português, mas cuja influência se pode rastrear
em autores da área no Brasil.
:: 180 :: De Lutero a Otto
temos, a rigor, uma teoria da religião, mas uma teoria geral do homem e do
mundo a partir da qual se deduz teoremas sobre a religião. Por um lado,
uma teoria deste tipo consiste numa tautologia, só que jamais se pode
extrair dedutivamente de um axioma o que ele próprio não contém por
princípio. Ainda que os autores aleguem a possibilidade de correção dos
axiomas pela realidade empírica, os teoremas sobre religião dependem
formalmente dos axiomas. Por outro lado, do ponto de vista filosófico,
caberia ainda uma pergunta mais fundamental, a saber: por que razão os
conceitos de mundo e de homem seriam mais óbvios que os de religião?46
46 Michael Stausberg tem sido um dos principais expoentes da discussão teórica da religião
que, a nosso ver, leva realmente a sério o debate sobre o objeto religião. Sugeriu, recente-
mente, quatro críterios básicos para medir a discussão teórica da religião contemporânea:
ela deveria perguntar-se pela (1) especificidade da religião, (2) pelas condições para sua
emergência, (3) para o modo como se relaciona com outros domínios, (4) pelo mecanismo
de arranjo de suas dimensões (STAUSBERG, 2009). Não trataremos de sua abordagem no
detalhe porque pressuporia uma discussão que excederia os limites desta contribuição.
:: 182 :: De Lutero a Otto
face dos antigos. Nestes casos, infelizmente, torna-se manifesto não tanto
o empenho pela fundamentação epistemológica, senão o desejo de virar
as costas para debates filosóficos e teológicos, deixando de considerar seus
possíveis contributos para a discussão teórica sobre religião. Na recusa
destes debates, porém, nem se prova o desserviço da Fenomenologia da
Religião, sequer se torna plausível a supressão da metafísica.
Na tentativa de consolidar as críticas supramencionadas é comum
encontrarmos um mapeamento dualista e bastante artificial acerca
da questão do método que costuma dividir duas classes de teóricos,
respectivamente: cristãos e seculares, crentes e não-crentes, teólogos
(religiosos) e naturalistas, perspectivas internas (inside) e externas
(outside). Por exemplo, Michael Stausberg (2009, p. 11) aborda a distinção
entre “teorias transcendentalistas” e “não-transcendentalistas” da
religião. Para teorias transcendentalistas, a religião seria resultado da
intervenção de uma realidade transcendente, sobrehumana e sobrenatural
– uma hierofania, por exemplo. Para teorias não-transcendentalistas,
tratar-se-iam de posturas imanentes que buscam explicar a posição
trancendentalista sem explanar algo sobre tal fundamento transcendente,
restringindo-se a termos humanos. Logo, teorias transcendentalistas
não podem ser testadas empiricamente, falseadas ou verificadas, sendo
puramente dedutivas. Ao passo que as teorias não-transcendentalistas
gozariam de todas as virtudes negadas às primeiras.
A partir do debate norte-americano da teoria da religião, Steven Engler
(2004, p. 27) sintetizou três objeções centrais contra conceitos genéricos
de religião, subentendendo, ao que parece, que generalizações sejam um
vício de fenomenólogos. Em primeiro lugar, por razões epistemológicas,
ele argumentou sobre a dificuldade de se garantir a correspondência entre
conceitos genéricos (como o de sagrado) e os dados específicos, como,
por exemplo, um templo taoísta ou um relicário católico etc. Em segundo
lugar, por razões semânticas, ele remeteu ao problema da capacidade de
nossas proposições atingirem o sagrado, já que ele seria um dado não-
racional, ao passo que nossas línguas se estruturam racionalmente. Em
terceiro e último lugar, ele ressaltou a dimensão ideológica que permanece
sempre subjacente à discussão religiosa, não obstante a alegação de que se
tratasse de uma esfera apolítica e a-histórica.
:: 184 :: De Lutero a Otto
sanctus e sacer. Por sua vez, Otto derivou do verbete latino nūmĕn47 o
neologismo alemão das Numinöse (o numinoso), para demarcar uma
dimensão irracional presente no sagrado, portanto, um componente que
não se subtrai aos elementos racionais e éticos da ideia de Deus ou do
divino (OTTO, 1963, p. 6-7).
Este traço numinoso do sagrado foi descrito como “sentimento de criatura”
(Kreatürgefühl). Neste particular, Otto reinterpretou a tese do sentimento de
dependência (Abhängigkeitsgefühl) de Friedrich Schleiermacher (1768-1834).
Mas pretendia sublinhar nesta experiência, mais do que acreditava ter sido
feito por Schleiermacher, a nítida referência a um objeto fora do sujeito. Na
história da religião, por exemplo, tal sentimento correspondeu à experiência
de Abraão quando ousou falar com Deus, conforme Gênesis 18, 27: “Tive
a ousadia de falar contigo, eu que não passo de pó e cinza” (OTTO, p.
1963, p. 10). Por se tratar de uma experiência ambivalente, antitética, que
simultanemante atrai e repele, Otto (1963, p. 13) descreveu-a como mysterium
tremendum et facinans. O sentido religioso de mistério demarcaria a experiência
do numinoso como “totalmente outro” (das Ganz Andere), na medida em que
ele não se permite domesticar pela razão, sendo desconcertante e fora do
domínio do habitual e do familiar (OTTO, 1963, p. 31).
Cumpre notar, todavia, que temos certamente uma teoria da religião,
mas de nenhum modo uma filiação explícita e necessária à disciplina da
Fenomenologia da Religião, pelo menos não àquela disciplina filosófica
desenvolvida a partir de Edmund Husserl (1859-1938), Ideen zu einer
reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie (1913). Por isso, o
verbete Religionsphänomenologie do célebre Dicionário Histórico de Filosofia,
a cargo de G. Lanczkowski (1998, p. 32410-32412), sequer cita Otto como
autor desta disciplina. Somente graças à obra de Gerardus van der Leeuw
(1890-1950) surgiu propriamente uma Fenomenologia da Religião stricto
sensu, em seu escrito Einführung in der Phänomenologie der Religion, do ano
de 192548.
Portanto, o que se pode afirmar é que Das Heilige contribuiu certamente
para o desenvolvimento da disciplina fenomenológica no contexto da
47 Otto se aproveita do sentido religioso que o termo nūmĕn carrega consigo, enquanto von-
tade ou poder divinos (LEWIS; SHORT, 1879).
48 A expressão fenomenologia da religião foi utilizada pela primeira vez por Pierre Daniël Chan-
tepie de la Saussaye (1842-1920), como seção sistemática de seu livro Lehrbuch der Religions-
geschichte, do ano de 1887, mas ela não fora utilizada como método de estudo da religião.
:: 187 :: o Protestantismo e a Ciência da Religião
Considerações finais
O recrudescimento das investigações metateóricas na Ciência da Religião
não tem impulsionado, ao mesmo tempo, estudos aprofundados de sua
correlação com a Filosofia da Religião e com a Teologia, de modo que
autores caros à própria tradição da Ciência da Religião continuam a ser
isolados dos intercâmbios filosóficos e teológicos, sem os quais, mesmo
ressaltando as diferenças específicas de cada área, o debate teórico da
religião permanece insuficiente. Este descompasso é motivado geralmente
pela necessidade, a um só tempo epistêmica e institucional, de afirmação
da autonomia da Ciência da Religião diante destas outras áreas.
Deste modo, se a Ciência da Religião costuma resistir aos problemas
travados pela sua própria tradição, assim o faz mediante o receio de
imiscuir-se em questões especulativas ou apologéticas. Conforme se
procurou sublinhar até aqui, existe uma lacuna na discussão da teoria
da religião contemporânea, na exata medida em que carecemos de um
diálogo qualificado com as abordagens filosóficas e teológicas. Se esta
hipótese estiver correta, devemos averiguar até que ponto tal lacuna não
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:: 190 :: De Lutero a Otto