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Publicado pela primeira vez em 1950,

com a intenção de decifrar os mitos


mexicanos, o livro mereceu do autor o LABIRINTO DA SOLIDÃO E POST SCRIPTUM
um pós-escrito, aqui incluído, após os
violentos acontecimentos de 1968 no
México. Trata-se talvez da mais
importante tentativa de situar o homem
Tradução de Eliane Zagury
latino-americano dentro da história
mundial, levando-se em consideração
seu universo mental e 4ª Edição

a realidade mundial.

"No fundo da psique humana existem


realidades encobertas pela história e
pela vida moderna. Realidades ocultas,
mas presentes. Um exemplo é nossa
imagem da autoridade política. É
evidente que nela há elementos pré-
colombianos e também restos de crenças
hispânicas, mediterrâneas e muçulmanas.
Por detrás do respeito ao senhor
Presidente está a imagem tradicional do
pai de família que é
uma realidade muito poderosa. É o lar no
sentido original da palavra: centro
e reunião dos vivos e dos mortos, ao
mesmo tempo altar, cama onde se faz
amor, fogão onde se cozinha, anjo que
enterra os antepassados. A família
mexicana tem atravessado quase incólume
vários séculos de calamidades e somente
agora começa o desintegrarse nas cidades.
© Octavio paz
Octavio Paz
Traduzido do original em espanhol El laberinto de la so1edad e postdata
Revisão: Cleber Felix

Capa

Direção de Arte: Elifas Andreato Projeto


gráfico e ilustrações: Chico Nunes o LABIRINTO DA SOLIDÃO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
E POST SCRIPTUM
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Paz, Octavio.
O labirinto da solidão e post scriptum; tradução de Eliane Zagury,
P3681 Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984
Do original em espanhol: Ellaberinto de la soledad e postdata.
Apêndice: A dialética da solidão:
1. Antropologia social - México 2. México - História I. Título
II. Série
CDD - 301.2972
972 CDU - o outro não existe: esta é a fé racional, a crença
76-0342
39(72) 972 incurável da razão humana. Identidade = realidade,
como se, afinal de contas, tudo tivesse de ser, absoluta
e necessariamente, um e o mesmo. Mas o outro não se
deixa eliminar; subsiste, persiste; é o osso duro de roer
onde a razão perde os dentes. Abel Martin, com fé
poética, não menos humana que a fé racional,
acreditava no OUt1'O, na "essencial heterogeneidade do
ser", como se disséssemos na incurável outridade que o
EDITORA PAZ E TERRA SI A um padece.
Rua do Triunfo, 177
Antonio Machado
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2006
I
o PACHUCO
E OUTROS EXTREMOS

Para todos nós, em algum momento, nossa existência se revela


como alguma coisa de particular, intransferível e preciosa. Quase
sempre esta revelação se situa na adolescência. A descoberta de nós
mesmos se manifesta como um saber que estamos sós; entre o mundo
e nós surge uma impalpável, transparente muralha: a da nossa
consciência. É verdade que, mal nascemos, sentimo-nos sós; mas as
crianças e os adultos podem transcender a sua solidão e esquecer-se
o LABIRINTO de si mesmos por meio da brincadeira ou do trabalho. Em
compensação, o adolescente, vacilante entre a infância e a juventude,
DA SOLIDÃO fica suspenso um instante diante da infinita riqueza do mundo. O
adolescente se assombra com ser. E ao pasmo segue-se a reflexão:
inclinado para o rio de sua consciência pergunta-se se este rosto que
aflora lentamente das profundezas, deformado pela água, é o seu. A
singularidade de ser _ mera sensação na criança - transforma-se em
problema e pergunta, em consciência inquisidora.
Aos povos em transe de crescimento ocorre alguma coisa
parecida. Seu ser se manifesta como interrogação: o que somos e
como realizaremos isto que somos? Muitas vezes as respostas que
damos a estas perguntas são desmentidas pela história, talvez porque
isto que chamam o "gênio dos povos" seja apenas um complexo de
reações mediante um estímulo dado; diante de cir-
cunstâncias diversas, as respostas podem variar e, com elas, o caráter Mas, assim como o adolescente não pode esquecer de si mesmo
nacional, que tinha a pretensão de ser imutável. Apesar da natureza - pois mal o consegue deixa de sê-lo -, nós não podemos resistir à
quase sempre ilusória dos ensaios de psicologia nacional, parece-me necessidade de nos interrogarmos e contemplarmos. Não quero dizer
reveladora a insistência com que em certos períodos os povos se que o mexicano seja crítico por natureza, mas sim que atravessa uma
voltam para si mesmos e se perguntam. Despertar para a história etapa reflexiva. É natural que, depois da fase explosiva da
significa adquirir consciência da nossa singularidade, momento de Revolução, o mexicano se recolha para dentro de si mesmo e, por um
repouso reflexivo antes de nos entregarmos ao fazer. "Quando momento, se contemple. As perguntas que todos nós nos fazemos
sonhamos que sonhamos está próximo o despertar", diz Novalis. Não agora provavelmente serão incompreensíveis dentro de cinqüenta
tem importância, então, se as respostas que demos às nossas anos. Novas circunstâncias talvez produzam reações novas.
perguntas forem logo corrigidas pelo tempo; o adolescente também Nem toda a população que habita o nosso país é objeto das
ignora as futuras transformações desse rosto que vê na água: minhas reflexões, mas apenas um grupo concreto, constituído pelos
indecifrável à primeira vista, como uma pedra sagrada coberta de que, por razões diversas, têm consciência do seu ser, como
talhos e signos, a máscara do velho é a história de algumas feições mexicanos. Ao contrário do que se pensa, este grupo é bastante
amorfas que um dia emergiram confusas, vagamente captadas por um reduzido. Em nosso território, convivem não só raças e línguas
olhar absorto. Em virtude deste olhar as feições se fizeram rosto e, diferentes, mas também vários níveis históricos. Há os que vivem
mais tarde, máscara. significação, história. antes da história; outros, como os otomis, deslocados por invasões
A preocupação com o sentido das singularidades do meu país, sucessivas, vivem à sua margem. E, sem acudir a estes extremos,
que partilho com muitos, parecia-me há tempos supérflua e perigosa. várias épocas se defrontam, se ignoram ou se entredevaram, numa
Em vez de perguntarmo-nos a nós mesmos, não seria melhor criar, mesma terra ou separadas por apenas alguns quilômetros. Sob um
trabalhar sobre uma realidade que não se entrega àquele que a mesmo céu, com heróis, costumes, calendários e noções morais
contempla, mas sim àquele que é capaz de nela mergulhar? O que diferentes, vivem "católicos de Pedro, o Ermitão, e jacobinos da era
pode nos diferençar do resto dos povos não é a sempre duvidosa terciária". As épocas ancestrais não desaparecem nunca e todas as
originalidade do nosso caráter - fruto, talvez, das circunstâncias feridas, mesmo as mais antigas, ainda minam sangue. As vezes, como
sempre mutantes -, mas sim a de nossas criações. Pensava que uma as pirâmides pré-cortesianas que quase sempre escondem outras,
obra de arte ou uma ação concreta definem mais o mexicano - não só numa única cidade ou numa única alma misturam-se e superpõem-se
porque o expressam, mas porque, expressando-o, recriam-no - que a noções e sensibilidades inimigas ou distantes 1.
mais penetrante das descrições. Minha pergunta, como a dos outros,
surgia então como um pretexto do meu medo de enfrentar a realidade;
e todas as especulações sobre o pretenso caráter dos mexicanos
seriam hábeis subterfúgios da nossa impotência criadora. Acreditava,
como Samuel Ramos, que o sentimento de inferioridade influi na 1 Nossa história recente abunda em exemplos desta superposição c

nossa predileção pela análise e que a escassez das nossas criações se convivência de diversos niveis históricos: o neofeudalísmo porfirista (uso
este termo enquanto espero o historiador que por fim elassifique, na sua
explica, não tanto por um crescimento das faculdades críticas às
originalidade, as nossas etapas histórieas), servindo-se do positivismo,
expensas das criadoras, quanto por uma desconfiança instintiva em filosofia burguesa, para justificar-se historicamente; Caso e Vasconcelos -
relação às nossas capacidades. precursores intelectuais da Revolução -, utilizando as idéias de Boutroux e
de Bergson para combater o positivismo porfi; rista; a educação socialista
num pais de capitalismo incipiente; os murais revolueionários nas paredes
governamentais... Todas estas apa-

14 15
A minoria de mexicanos que possui consciência de si não Alguma coisa semelhante acontece com os mexicanos que encontramos
constitui uma classe imóvel ou fechada. :e a única ativa - diante da pela rua. Embora estejam vivendo ali há muitos anos, usando a mesma roupa,
inércia indo-espanhola do resto - e também, cada dia mais, modela o falando o mesmo idioma e sentindo vergonha da sua origem, ninguém os
país à sua imagem. Cresce, conquista o México. Todos podem chegar
confundiria com os norte-americanos autênticos. E não se pense que os traços
a se sentir mexicanos. Basta, por exemplo, passar a fronteira para,
físicos sejam assim tão determinantes quão vulgarmente se acredita. O que me
confusamente, fazer-se as mesmas perguntas que se fez Samuel
parece distingui-los do resto da população é seu ar furtivo e inquieto, de seres
Ramos em EI perfil del hombre y la cultura en México. E devo
que se fantasiam, de seres que temem o olhar alheio, capaz de despi-los e deixá-
confessar que muitas das reflexões que fazem parte deste ensaio
los nus em pêlo. Quando fala-
nasceram fora do México, durante dois anos que passei nos Estados
. mos com eles, notamos que sua sensibilidade parece com a do pêndulo, um
Unidos. Lembro-me de que, cada vez que me inclinava sobre a vida
pêndulo que perdeu a razão e que oscila com violência e sem compasso. Este
norte-americana, desejoso de encontrar sentido para ela, encontrava a
minha imagem inquisidora. Esta imagem, destacada do fundo estado de espírito - ou de ausência de espírito - originou o que se deu de chamar o
reluzente dos Estados Unidos, foi a primeira e talvez a mais profunda "pachuco". Como se sabe, os "pachucos" são bandos de jovens, geralmente de
resposta que este país deu às minhas perguntas. Por isso, ao tentar origem mexicana, que vivem nas cidades do Sul e que se singularizam tanto por
explicar a mim mesmo alguns traços do mexicano de nossos dias, sua vestimenta quanto por sua conduta e sua linguagem. Rebeldes instintivos,
começo com estes para quem sê-lo é um problema verdadeiramente contra eles já se refestelou, mais de uma vez, o racismo norte-americano. Mas os
vital, um problema de vida ou morte. "pachucos" não reivindicam a sua raça nem a nacionalidade dos seus antepassa-
dos. Apesar de sua atitude revelar uma obstinada e quase fanática vontade de ser,
esta vontade não afirma nada de concreto a não ser a decisão - ambígua, conforme
Ao iniciar minha vida nos Estados Unidos, residi algum tempo veremos - de não ser como os outros que os cercam. O "pachuco" não quer voltar
em Los Angeles, cidade habitada por mais de um milhão de pessoas à sua origem mexicana; também - pelo menos na aparência - não deseja fundir-se
de origem mexicana. A primeira vista, o que surpreende o viajante - à vida norte-americana. Tudo nele é impulso que se nega a si mesmo, nó de
além da pureza do céu e da feiúra das construções suntuosas e contradições, enigma. E o primeiro enigma é o seu próprio nome: "pachuco",
dispersas - é a atmosfera vagamente mexicana da cidade, impossível vocábulo de filiação incerta, que não diz nada e diz tudo. Estranha palavra, que
de apreender com palavras ou conceitos. Esta mexicanidade - gosto não tem significado preciso ou que, mais exatamente, está carregáda, como todas
pelos adornos, descuido e fausto, negligência, paixão e reserva - as criações populares, de uma pluralidade de significados! Queiramos ou não,
flutua no ar. E digo que flutua porque não se misturá nem se funde estes seres são mexicanos, são um dos extremos a que pode chegar o mexicano.
com o outro mundo, o mundo norteamericano, feito de precisão e
Incapazes de assimilar uma civilização que, além do mais, os recusa, os
eficácia. Flutua, mas não se opõe; balança, embalada pelo vento, às
"pachucos" não encontraram outra resposta à hostilidade ambiente senão esta
vezes desgarrada como uma nuvem, outras vezes erguida como um
foguete que sobe. Arrastase, dobra-se, expande-se, contrai-se, dorme exasperada afirmação de sua persona-
ou sonha, formosura esfarrapada. Flutua: não acaba de ser, nem acaba
de desaparecer.

rentes contradições exigem um novo exame da nossa história e da nossa


cultura, ronfluência de muitas correntes e épocas.
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lidade 2. Outras comunidades reagem de modo diferente; os negros, tual, É, simplesmente, uma moda. Como todas as modas, é feita de
por exemplo, perseguidos pela intolerância racial, esforçamse por novidade - mãe da morte, dizia Leopardi - e imitação.
"ultrapassar a barreira" e ingressar na sociedade. Querem ser como os A novidade do traje reside no seu exagero. O "pachuco" leva a
outros cidadãos. Os mexicanos sofreram uma repulsa menos violenta, moda às últimas conseqüências e a torna estética. Ora, um dos
mas, longe de tentar uma problemática adaptação aos modelos princípios que regem a moda norte-americana é a comodidade; ao
ambientes, afirmam suas diferenças, ressaltamnas, procuram torná-las tomar estético o traje normal, o "pachuco" o torna "imprático". Nega
notáveis. Por meio de um dandismo grotesco e de uma conduta assim os próprios princípios em que seu modelo se inspira. Daí a sua
anárquica, apontam não tanto a injustiça ou a incapacidade de uma agressividade.
sociedade que não conseguiu assimilálos quanto a sua vontade pessoal Esta rebeldia não é mais que um gesto vão, pois é um exagero
de continuar sendo diferente. dos modelos contra os quais pretende se rebelar e não uma volta aos
Não importa conhecer as causas deste conflito e ainda menos atavios de seus antepassados - ou uma invenção de novas roupagens.
saber se têm remédio ou não. Em muitos lugares existem minorias que Geralmente, os excêntricos sublinham com suas roupas a decisão de
não gozam das mesmas oportunidades que o resto da população. O se separarem da sociedade, seja para constituir grupos novos e mais
característico do fato reside neste obstinado querer ser diferente, nesta fechados, seja para afirmar sua singularidade. No caso dos
angustiosa tensão com que o mexicano desvalido .- órfão de valedores "pachucos", nota-se uma ambigüidade: por um lado, a roupa os isola
e de valores - afirma suas diferenças diante do mundo. O "pachuco" e distingue; por outro, esta mesma roupa constitui uma homenagem à
perdeu toda a sua herança: língua, religião, costumes, crenças. Resta- sociedade que pretendem negar.
lhe apenas um corpo e uma alma à intempérie, inerme diante de todos A dualidade anterior expressa-se também de outra maneira,
os olhares. Seu disfarce o protege e, ao mesmo tempo, o destaca e talvez mais profunda: o "pachuco" é um "clown" impassível e si-
isola: esconde-o e exibe-o. nistro, que não tenta fazer rir, mas sim procura aterrorizar. Esta
Com seu traje - deliberadamente estético e sobre cujas sig- atitude sádica se alia a um desejo de auto-humilhação, que me parece
nificações óbvias não é necessário que nos detenhamos _ não constituir o próprio fundo do seu caráter: sabe que sobressair é
perigoso e que sua conduta irrita a sociedade; mas não se importa,
pretende manifestar sua adesão a nenhuma seita ou grupo. O "pa-
procura e atrai a perseguição e o escândalo. Só assim poderá
chuquismo" é uma sociedade aberta - num país onde abundam
estabelecer uma relação mais viva com a sociedade que provoca:
religiões e atavios tribais, destinados a satisfazer o desejo do norte-
vítima, poderá ocupar um posto nesse mundo que até pouco tempo o
americano médio de se sentir parte de alguma coisa mais viva e ignorava; delinqüente, será um de seus heróis malditos.
concreta que a abstrata moralidade do "american way of life", O traje A irritação do norte-americano procede, no meu entender, de
do "pachuco" não é um uniforme nem uma roupagem ri- ver no "pachuco" um ser mítico e, portanto, virtualmente perigoso.
Sua periculosidade nasce da sua singularidade. Todos coincidem em
ver nele alguma coisa híbrida, perturbadora e fascinante. À sua volta
se cria uma constelação de noções ambivalentes: sua singularidade
2 Nos últimos anos surgiram nos Estados Unidos muitos bandos de jovens parece nutrir-se de poderes alternadamente nefastos ou benéficos.
que lembram os "paehucos" de pós-guerra. Não poderia ser de outra forma: Uns lhe atribuem virtudes eróticas pouco comuns; outros, uma
por um lado, a sociedade norte-americana se fecha para o exterior; por
outro, internamente, se- petrifica. A vida não consegue penetrar nela; perversão que não exclui a agressividade. Figura portadora do amor e
rejeitada, torna-se excrescente e corre paralela, sem finalidade própria. Vida da felicidade ou' do horror e da abo-
à margem, realmente informe, mas vida que procura sua verdadeira forma.

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minação, o "pachuco" parece encarnar a liberdade, a desordem, o Se isto acontece com pessoas que há muito tempo abandonaram
proibido. Alguma coisa, em suma, que deve ser suprimida; alguém, sua pátria, que praticamente não falam mais o idioma de seus
também, com quem só é possível ter um contato secreto, às escuras. antepassados e para quem estas raízes secretas que atam o homem à
Passivo e desdenhoso, o "pachuco" deixa que se acumulem so- sua cultura já secaram quase por completo, que dizer dos outros? Sua
bre sua cabeça todas estas representações contraditórias até que, não reação não é tão doentia, mas, passado o primeiro deslumbramento
sem uma dolorosa auto-satisfação, venham eclodir numa briga de bar, que produz a grandeza desse país, todos se colocam de forma
numa batida policial ou num tumulto. Então, na perseguição, atinge instintiva numa atitude crítica, nunca numa atitude de entrega.
sua autenticidade, o seu verdadeiro ser, a sua nudez suprema de pária, Lembro-me de que uma amiga, a quem fazia not~r a beleza de
de homem que não está de nenhum lado. O ciclo, que começa com a Berkeley, me dizia: "Sim, isto é muito bonito, mas não consigo
provocação, fecha-se: ele já está pronto para a redenção, para a compreendê-lo totalmente. Aqui até os pássaros falam inglês. Como é
entrada na sociedade que o recusava. Foi o seu pecado e o seu que você quer que eu goste das flores, se não conheço o seu nome
escândalo; agora, que é vítima, é por fim reconhecido como o que é: verdadeiro, o seu nome inglês, um nome que já se fundiu às cores e às
seu produto, seu filho. Encontrou por fim novos pais. pétalas, um nome que já é a própria coisa? Se eu digo buganvílea,
Por caminhos secretos e arriscados o "pachuco" tenta ingressar você pensa nas que viu em sua aldeia, subindo por um freixo, roxas e
na sociedade norte-americana. Mas ele mesmo veda este acesso. litúrgicas, ou sobre um muro, certa tarde, sob uma luz prateada. E a
Desligado da sua cultura tradicional, o "pachuco" se afirma um buganvílea faz parte do seu ser, é uma parte da sua cultura, é isso de
momento como solidão e desafio. Nega a sociedade da qual procede e que você se lembra depois de ter esquecido. Isto é muito bonito, mas
a norte-americana. O "pachuco" se lança para o exterior, não para se não é meu, porque o que a ameixeira e os eucaliptos dizem não dizem
fundir com o que o cerca, mas para desafiar. Gesto suicida, pois o para mim, nem a mim dizem nada".
"pachuco" não afirma nada, não defende nada, exceto a sua Sim, fechamo-nos em nós mesmos, tomamos mais profunda e
exasperada vontade de não ser. Não é uma intimidade que se exacerbada a consciência de tudo o que nos separa, nos isola e nos
derrama, mas sim uma chaga que se mostra, uma ferida que se exibe. diferencia. E nossa solidão aumenta porque não procuramos os
Uma ferida que é também um adorno bárbaro, caprichoso e grotesco; nossos compatriotas, seja por temer nos contemplarmos neles,
uma ferida que ri de si mesma e que se enfeita para ir à caça. O
"pachuco" é a presa que se enfeita para chamar a atenção dos
caçadores. A perseguição o redime e quebra-lhe o solidão: sua
salvação depende do acesso a esta mesma sociedade que ele aparenta
negar. Solidão e pecado, comunhão e saúde, transformam-se em nem ianque. Quando cheguei à França, em 1945, observei com assombro
termos equivalentes 3. que a. moda dos rapazes e moças de certos bairros - principalmente de
estudantes e "artistas" - lembrava a dos "pachucos" do sul na Califórnia.
Seria uma rápida e imaginária adaptação do que esses jovens, isolados
durante anos, pensavam que era a moda norte-americana? Perguntei a
várias pessoas. Quase todas me disseram que essa moda era exclusivamente
francesa e que tinha sido criada no fim da ocupação. Alguns chegavam até
3 Sem dúvida, na figura do "pachueo" há muitos elementos que não a considerá-la como uma das formas da "Resistênéia"; sua fantasia e seu
aparecem nesta descrição. Mas, o hibridismo de sua linguagem e o de sua barroquismo eram uma resposta à ordem dos alemães. Embora não exclua a
atitude parecem-me reflexo indubitável de uma oscilação psíquica entre possibilidade de uma imitação mais ou menos indireta, a coincidência me
dois mundos irredutíveis, que em vão deseja conciliar e superar: o norte- parece notável e significativa.
americano e o mexicano. O "pachueo" não quer ser mexicano,

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seja por um penoso sentimento defensivo da nossa intimidade. O ga a todas estas forças em que se manifesta a vida. Por isto grita ou cala,
mexicano, fácil de cair em efusões sentimentais, foge delas. Vivemos apunhala ou reza, põe-se a dormir cem anos.
ensimesmados, como aqueles adolescentes taciturnos - e, de passagem, A história do México é a do homem que procura a sua filiação, a
direi que praticamente não encontrei esta espécie entre os jovens norte- sua origem. Sucessivamente aírancesado, hispanisla, indigenista,
americanos - donos de não se sabe quê segredo, guardado por uma "pocho", atravessa a história como um cometa de jade, que de vez em
aparência áspera, mas que só espera o momento propício para se revelar. quando relampagueia. Na sua excêntrica carreira, o que persegue? Corre
Não gostaria de me estender na descrição destes sentimentos, nem atrás da sua catástrofe: quer voltar a ser sol, voltar ao centro da vida de
no surgimento, muitas vezes simultâneo, de estados deprimidos ou onde um dia - na Conquista ou na Independência? - foi desligado. Nossa
frenéticos. Todos eles têm em comum o fato de serem irrupções solidão tem as mesmas raízes que o sentimento religioso. B uma
inesperadas, que rompem um equilíbrio difícil, feito da imposição de orfandade, uma confusa consciência de que fomos arrancados do Todo, e
formas que nos oprimem ou mutilam. A existência de um sentimento de uma ardente busca: uma fuga e um regresso, tentativa de restabelecer os
real ou suposta inferioridade diante do mundo poderia explicar, laços que nos uniam à criação.
parcialmente pelo menos, a reserva com que o mexicano se apresenta aos Nada mais afastado deste sentimento que a solidão do norte-
demais e a violência inesperada com que as forças reprimidas quebram americano. Neste país o homem não se sente arrancado do centro da
essa máscara impassível. Entretanto, mais vasta e profunda que o criação nem suspenso entre forças inimigas. O mundo foi construído por
sentimento de inferioridade, jaz a solidão. B impossível identificar ele e feito à sua imagem: é o seu espelho. Mas já não se reconhece nesses
ambas as atitudes: sentir-se só não é sentir-se inferior, mas sim diferente. objetos inumanos, nem nos seus semelhantes. Como o aprendiz de
O sentimento de solidão, por outro lado, não é uma ilusão - como às feiticeiro, suas criações já não o obedecem. Está só entre suas obras,
vezes é o de inferioridade -, e sim a expressão de um fato real: somos, na perdido num "ermo de espelhos", como disse José Gorostiza.
verdade, diferentes. E, na verdade, estamos sós. Alguns acham que todas as diferenças entre os norte-americanos e
Não é o momento de analisar este profundo sentimento de solidão - nós são econômicas, isto é, que eles são ricos e nós somos pobres, que
que se afirma e se nega, alternadamente, na melancolia e no júbilo, no eles nasceram na democracia, no capitalismo e na Revolução Industrial e
silêncio e no alarido, no crime gratuito e no fervor religioso. Em nós nascemos na Contra-Reforma, no monopólio e no feudalismo. Por
qualquer lugar o homem está só. Mas a solidão do mexicano, sob a mais profunda e determinante que seja a influência do sistema de
grande noite de pedra da Altiplanura, ainda povoada de deuses produção na criação da cultura, recuso-me a acreditar que bastará
insaciáveis, é diferente da do norte-americano, extraviado num mundo possuirmos uma indústria pesada e vivermos livres de qualquer
abstrato de máquinas, concidadãos e preceitos morais. No Vale do imperialismo econômico para que desapareçam as nossas distinções
México, o homem se sente suspenso entre o céu e a terra e oscila entre (espero bem mais o contrário, e nesta possibilidade vejo uma das
poderes e forças contrárias, olhos petrificados, bocas que devoram. A grandezas da Revolução). Mas para que ir procurar na história uma
realidade, isto é, o mundo que nos cerca, existe em si, tem vida própria e resposta que só nós p0- demos dar? Se somos nós que nos sentimos
não foi inventado pelo homem como nos Estados Unidos. O mexicano se diferentes, o que nos faz diferentes e em que consistem estas diferenças?
sente atrancado do seio desta realidade, ao mesmo tempo criadora e Vou ensaiar uma resposta que talvez não seja satisfatória de todo.
dClJh:oidol'a, mãe e túmulo. Esqueceu o nome, a palavra que o li- Com ela não pretendo mais do que esclarecer a mim mesmo

22 23
Por outro lado, tinham-me falado do realismo americano e,
o sentido de algumas experiências; admito que talvez não tenha outro também, da sua ingenuidade, qualidades que, ao que parece, se
valor senão o de constituir uma resposta pessoal para uma pergunta excluem. Para nós, um realista sempre é um pessimista. E uma
pessoal. pessoa ingênua não pode sê-lo por muito tempo se verdadeiramente
Quando cheguei aos Estados Unidos, assombrou-me acima de contemplar a vida com realismo. Não seria mais exato dizer que os
tudo a segurança e a confiança das pessoas, sua aparente alegria e sua norte-americanos não desejam conhecer a realidade tanto quanto
aparente conformidade com o mundo que as cercava. Esta satisfação desejam utilizá-la? Em alguns casos - por exemplo, em relação à
não impede, é claro, a crítica - uma crítica válida e decidida, que não morte - , não só não querem conhecê-la como também visivelmente
é muito freqüente nos países do Sul, onde prolongadas ditaduras nos evitam a sua idéia. Conheci algumas senhoras de idade que ainda
fizeram mais cautelosos para expressar os nossos pontos de vista. tinham ilusões e faziam planos para o futuro, como se este fosse
Mas esta crítica respeita a estrutura dos sistemas e nunca desce até as inesgotável. Desmentiam assim aquela frase de Nietzsche que
raízes. Lembrei-me então daquela distinção que Ortega y Gasset fazia condena as mulheres a um ceticismo precoce, porque "enquanto os
entre os usos e os abusos, para definir o que chamava de "espírito homens têm ideais, as mulheres só têm ilusões". Assim, pois, o
revolucionário". O revolucionário é sempre radical, isto é, não deseja realismo americano é de um tipo muito particular e sua ingenuidade
corrigir os abusos, mas sim os próprios usos. Quase todas as críticas não exclui a dissimulação e até mesmo a hipocrisia. Uma hipocrisia
que escutei de lábios norte-americanos eram de caráter reformista: que, se é um vício do caráter, também é uma tendência do
deixavam intacta a estrutura social ou cultural e só tendiam a limitar pensamento, pois consiste na negação de todos aqueles aspectos da
ou a aperfeiçoar estes ou aqueles procedimentos. Pareceu-me então - realidade que nos parecem desagradáveis, irracionais ou repugnantes.
e ainda continua me parecendo - que os Estados Unidos são uma A contemplação do horror, e mesmo a familiaridade e a com-
sociedade que quer realizar seus ideais, que não deseja trocá-los por placência no seu trato, constituem, pelo contrário, um dos traços mais
outros e que, por mais ameaçador que lhe pareça o futuro, tem notáveis do caráter mexicano. Os Cristas ensangüentados das igrejas
confiança na sua sobrevivência. Não gostaria de discutir agora se este aldeãs, o humor macabro de certas manchetes de jornal, os velórios, o
sentimento se acha justificado pela realidade ou pela razão; queria costume de comer no dia 2 de novembro pães e doces em forma de
apenas apontar a sua existência. Esta confiança na bondade natural da ossos e caveiras, são hábitos, herdados de índios e de espanhóis,
vida, -ou na infinita riqueza de suas possibilidades, não se encontra, é inseparáveis do nosso ser. Nosso culto à morte é culto à vida, da
verdade, na literatura norte-americana mais recente, que se compraz mesma forma que o amor, que é fome de vida, é desejo de morte. O
mais na pintura de um mundo sombrio, mas era visível na conduta, gosto pela autodestruição não deriva só de tendências masoquistas,
nas palavras e mesmo no rosto de quase todas as pessoas com quem mas também de uma certa religiosidade.
eu conversava 4. E não acabam aqui as nossas diferenças. Eles são crédulos e nós
crentes; amam os contos de fadas e as histórias policiais, e nós os
mitos e as lendas. Os mexicanos mentem por fantasia, por desespero
ou para superar sua vida sórdida; eles não mentem, mas substituem a
4 Estas linhas foram escritas antes de' que a opinião pública percebesse
verdade verdadeira, que é sempre desagradável, por uma verdade
claramente o perigo do aniquilamento universal que traziam em si as armas
nucleares. A partir daí, os norte-americanos perderam seu otimismo, mas não
social. Embebedamo-nos para nos confessarmos; eles para esquecer.
sua confiança, uma confiança feita de resignação e obstinação. Na realidade, São otimistas; nós niilistas - só que o nosso niilismo não é intelectual,
embora muitos afirmem da boca para fora, ninguém acredita - ninguém quer mas sim uma reação instintiva: portanto é irre-
acreditar - que a ameaça é real e imediata.

Z5
I) li.
futável. Os mexicanos são desconfiados; eles são abertos. Nós somos ça no homem como uma criatura capaz de ser modificada essen-
tristes e sarcásticos; eles são alegres e humorísticos. Os norte- cialmente por estes ou aqueles instrumentos pedagógicos ou sociais.
americanos querem compreender; nós queremos contemplar. São O homem não é apenas fruto da história e das forças que a
ativos; nós somos quietistas: desfrutamos das nossas chagas como movimentam, como se pretende agora; nem a história é o resultado
eles dos seus inventos. Acreditam na higiene, na saúde, no trabalho, apenas da vontade humana - presunção em que se fundamenta,
na felicidade, mas talvez desconheçam a verdadeira alegria, que é implicitamente, o sistema de vida norte-americano. O homem,
uma embriaguez e um torvelinho. No alarido da noite de festa, nossa parece-me, não está na história: é história.
voz estoura em luzes, e vida e morte se confundem; a vitalidade deles O sistema norte-americano só quer ver a parte positiva da
se petrifica num sorriso: nega a velhice e a morte, mas imobiliza a realidade. Desde a infância, homens e mulheres são submetidos a um
vida. inexorável processo de adaptação; certos princípios, contidos em
E qual a raiz de atitudes tão contrárias? Parece-me que para os fórmulas breves, são repetidos sem cessar pela imprensa, pelo rádio,
norte-americanos o mundo é alguma coisa que se pode aperfeiçoar; pelas igrejas, pelas escolas e por estes seres bondosos e sinistros que
para nós, é alguma coisa que se pode redimir. Eles são modernos. são as mães e esposas norte-americanas. Presos nestes esquemas,
Nós, como os seus antepassados puritanos, acreditamos que o pecado e como a planta num vaso que a sufoca, o homem e a mulher não
a morte constituem o fundo derradeiro da natureza humana. Só que o crescem nem amadurecem nunca. Semelhante confabulação só pode
puritano identifica a pureza com a saúde. Da o ascetismo que purifica provocar violentas rebeliões individuais. A espontaneidade se vinga
e suas conseqüências: o culto ao trabalho pelo trabalho, a vida sóbria de mil formas, sutis ou terríveis. A máscara benevolente, atenta e
- a pão e água -, a inexistência do corpo como possibilidade de deserta, que substitui a mobilidade dramática do rosto humano, e o
perder-se - ou encontrar-se em outro corpo. Todo contato contamina. sorriso que a fixa quase dolorosamente mostram até que ponto a
Raças, idéias, costumes, corpos estranhos trazem em si germes de intimidade pode ser devastada pela árida vitória dos princípios sobre
perdição e de impureza. A higiene social completa a da alma e a do os instintos. O sadismo subjacente em quase todas as formas de
corpo. Em Compensação, os mexicanos, antigos e modernos, relação da sociedade norte-americana contemporânea talvez seja
acreditam na comunhão e na festa; não há saúde sem contato. apenas uma maneira de fugir à petrificação que a moral da pureza
TIazoltéotl, a deusa asteca da imundície e da fecundidade, dos asséptica impõe. E o mesmo para as religiões novas, as seitas. a
humores terrestres e humanos, era também a deusa dos banhos de embriaguez que libera e abre as portas da "vida". E surpreendente a
vapor, do amor sexual e da confissão. E não mudamos tanto: o significação quase fisiológica e destrutiva desta palavra: viver quer
catolicismo também é comunhão. dizer exceder-se, quebrar normas, ir até o fim (de quê?),
Ambas as atitudes me parecem irreconciliáveis e, no seu estado "experimentar sensações". Coabitar é uma "experiência" (por isto
atual, insuficientes. Mentiria se dissesse que vi alguma vez o mesmo unilateral e frustrada). Mas não é o objetivo destas linhas
sentimento de culpa transformado em outra coisa que não fosse o descrever estas reações. Basta dizer que todas elas, como as opostas
rancor,° desespero solitário ou a cega idolatria. A religiosidade do mexicanas, parecemme reveladoras da nossa incapacidade comum
nosso povo é muito profunda - tanto quanto sua imensa miséria e para nos reconciliarmos com o fluir da vida.
desamparo -, mas seu fervor o que faz é girar uma nora já exausta há
séculos. Mentiria também se dissesse que acredito na fertilidade de
uma sociedade fundamentada na imposição de certos princípios Um exame dos grandes mitos humanos, relativos à origem da
modernos. A história contemporânea invalida a cren- espécie e ao sentido da nossa presença na terra, revela que toda
cultura - entendida como criação e participação comum de va-

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Iores - parte da convicção de que a ordem do universo foi quebrada dos os tempos e em todos os países, uma atmosfera propícia ao
ou violada pelo homem, este intruso. Pelo "buraco" ou abertura da extraordinário, a tudo aquilo que ultrapassa a condição humana e
ferida que o homem infligiu na carne compacta do mundo, pode rompe o círculo de solidão que rodeia cada homem. Mas naqueles
irromper de novo o caos, que é o estado antigo e, por assim dizer, rostos - rostos obtusos e obstinados, brutais e grosseiros, semelhantes
natural da vida. A volta "da antiga desordem original" é uma ameaça aos que, sem complacência e com um realismo talvez encarniçado,
que obceca todas as consciências em todos os tempos. Hõlderlin nos deixou a pintura espanhola - havia alguma coisa como um
expressa em vários poemas o pavor diante da fatal sedução que desespero esperançoso, alguma coisa muito concreta e ao mesmo
exerce sobre o universo e sobre o homem a grande boca vazia do tempo muito universal. Não vi depois rostos parecidos.
caos: Meu testemunho pode ser tachado de ilusório. Considero inútil
deter-me nesta objeção: esta evidência já faz parte do meu ser. Pensei
. .. se, fora do caminho reto, então - e continuo pensando - que naqueles homens amanhecia "outro
como cavalos furiosos, desembestarem os Elementos homem". O sonho espanhol - não por ser espanhol, mas por ser
cativos e as antigas
universal e, ao mesmo tempo, por ser concreto, porque era um sonho
leis da Terra. E um desejo de voltar ao informe
brota incessante. Há muito de carne e osso e olhos atônitos foi logo quebrado e manchado. E os
que defender. Há que ser fieIS. rostos que vi voltaram a ser o que eram antes de que se apoderasse
deles aquela alvoroçada segurança (de quê: da vida ou da morte?):
Há que ser fiel, porque há muito que defender. O homem co- rostos de gente humilde e rude. Mas sua lembrança não me abandona.
labora ativamente para a defesa da ordem universal, ameaçada sem Quem já viu a esperança não se esquece dela. Procura-a sob todos os
cessar pelo informe. E quando ela se desmoronar, deve haver outra céus e entre todos os homens. E sonha que um dia vai encontrá-la de
nova, desta vez sua. Mas o exílio, a expiação e a penitência devem novo, não sabe onde, talvez entre os seus. Em cada homem lateja a
preceder à reconciliação do homem com o universo. Nem mexicanos possibilidade de ser ou, mais exatamente, de tornar a ser, outro ho-
nem norte-americanos conseguimos esta reconciliação. E, o que é mem.
mais grave, temo que tenhamos perdido o próprio sentido de
qualquer atividade humana: assegurar a vigência de uma ordem em
que coincidam a consciência e a inocência, o homem e a natureza. Se
a solidão do mexicano é a das águas paradas, a do norte-americano é
a do espelho. Deixamos de ser fontes.
E possível que o que chamamos de pecado seja apenas a ex-
pressão mítica da consciência de nós mesmos, da nossa solidão.
Lembro-me de que na Espanha, durante a guerra, tive a revelação de
"outro homem" e de outro tipo de solidão: nem fechada nem
maquinal, mas aberta à transcendência. Sem dúvida, a proximidade
da morte e a fraternidade das armas produzem, em to-

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fraqueza ou uma traição. O mexicano pode se curvar, se humilhar, se agachar,
mas não pode "se abrir", isto é, permitir que o mundo externo penetre na sua
intimidade. O indivíduo "dado" não é de muita confiança, é um traidor ou um
homem de fidelidade duvidosa, que conta os segredos e é incapaz de enfrentar
II os perigos como se deve. As mulheres são seres inferiores porque, ao se
entregarem, se abrem. Sua inferioridade é constitucional e reside no seu sexo,
na sua "abertura", ferida que não cicatriza nunca.
O hermetismo é um recurso do nosso receio e da nossa des-
confiança. Mostra que instintivamente consideramos perigoso o meio
MÁSCARAS MEXICANAS que nos cerca. Esta reação se justifica se pensarmos no que foi a nossa
história e no caráter da sociedade que criamos. A dureza e a hostilidade
do ambiente - e esta ameaça, oculta e indefinível, que sempre flutua no ar
Coração apaixonado - obrigam a que nos fechemos para o que é externo, como estas plantas
dissimula. tua tristeza da chapada que acumulam seus sumos debaixo de uma casca espinhenta.
Mas' esta conduta, legítima na origem, transformou-se num mecanismo
Canção popular
que funciona sozinho, automaticamente. Para a simpatia e a doçura,
nossa resposta é a reserva, pois não sabemos se esses sentimentos são
Velho ou adolescente, crioulo ou mestiço, general, operário ou
verdadeiros ou simulados. Além disso, nossa integridade masculina corre
bacharel, o mexicano surge como um ser que se fecha e se preserva:
tanto perigo diante da benevolência quanto diante da hostilidade. Toda
máscara, o rosto, e máscara, o sorriso. Plantado na sua arisca solidão,
abertura de nosso ser traz em si uma demissão da nossa hombridade.
espinhoso e cortês ao mesmo tempo, tudo lhe serve para que se defenda:
o silêncio e a palavra, a cortesia e o desprezo, a ironia e a resignação. Nossas relações com os outros homens também estão tintas de
Tão ciumento de sua intimidade como da alheia, não se atreve sequer a receio. Cada vez que o mexicano confia num amigo ou num conhecido,
roçar com os olhos o vizinho: um simples olhar pode desencadear a cada vez que "se abre", abdica. E teme que o desprezo do confidente
cólera destas almas carregadas de- eletricidade. Atravessa a vida siga-se à entrega. Por isso, a confiança desonra e é perigosa tanto para
esfolado: tudo pode feri-lo, palavras e suspeita de palavras. Sua quem a faz quanto para quem a escuta; não nos afogamos na fonte que
linguagem está cheia de suspensões, figuras e alusões, reticências; em nos reflete como Narciso, mas sim a estancamos. Nossa cólera não se
seu silêncio há dobras, matizes, nuvens, arco-íris súbitos, ameaças inde- nutre do medo de sermos utilizados por nossos confidentes - medo geral
cifráveis. Até mesmo na discussão prefere a expressão velada à injúria: de todos os homens -, mas sim da vergonha de ter renunciado à nossa
"para bom entendedor meia palavra basta". Em suma, entre a realidade e solidão. Aquele que se confia a alguém se aliena; "me he vendido con
sua pessoa, estabelece uma muralha invisível, mas não menos Fulano", dizemos quando nos confiamos a alguém que não o merece. Isto
intransponível, de impassibilidade e distância. O mexicano está sempre é, "nos abrimos", alguém penetrou no castelo forte. A distância que vai
longe, longe do mundo e dos outros. E longe também de si mesmo. de homem a homem, criadora do respeito mútuo, e da se-
A linguagem popular reflete até que ponto nos defendemos do que
é externo: o ideal da hombridade consiste em nunca falar demais. Os que
"se abrem" são covardes. Para nós, ao contrário do que acontece com
outros povos, abrir-se com alguém é uma

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gurança mútua, desapareceu. Não só estamos à mercê do intruso,
como também abdicamos. venção contínua que exige uma sociedade livre. Talvez o nosso
Todas estas expressões revelam que o mexicano considera a vida °
tradicionalismo - que é uma das constantes do nosso ser e que traz
como luta, concepção que não o distingue do resto dos homens coerência e antiguidade para o nosso povo - parta do amor que
modernos. O ideal de hombridade para outros povos consiste numa professamos à forma.
aberta e agressiva disposição para o combate; mas nós acentuamos o As complicações rituais da cortesia, a persistência do huma-
caráter defensivo, prontos para repelir o ataque. O macho é um ser nismo clássico, o gosto pelas formas fechadas na poesia (o soneto e a
hermético, fechado em si mesmo, capaz de resguardar-se e de guardar décima, por exemplo), nosso amor pela geometria nas artes
o que lhe é confiado. A hombridade é medida pela invulnerabilidade decorativas, pelo desenho e pela composição na pintura, a pobreza do
diante das armas inimigas ou diante dos impactos do mundo externo. nosso Romantismo em contraste com a excelência da nossa arte
O estoicismo é a mais nobre das nossas virtudes guerreiras e políticas. barroca, o formalismo das nossas instituições políticas e, finalmente, a
Nossa história está cheia de frases e episódios que revelam a perigosa inclinação que demonstramos pelas fórmulas - sociais,
indiferença de nossos heróis à dor e ao perigo. Desde crianças somos morais e burocráticas - são outras tantas expressões desta tendência
ensinados a sofrer com dignidade as derrotas, concepção esta que não do nosso caráter. O mexicano não só não se abre; também não se
carece de grandeza. E, se nem todos somos estóicos e impassíveis - derrama.
como Juárez ou Cuauhtémoc -, pelo menos procuramos ser
resignados, pacientes e sofridos. A resignação é uma das nossas Às vezes as formas nos sufocam. Durante o século passado, os
virtudes populares. Mais que o brilho da vitória nos comove a liberais tentaram em vão submeter a realidade do país à camisa-de-
inteireza em face da adversidade. força da Constituição de 1857. Os resultados foram a ditadura de
Porfírio Díaz e a Revolução de 1910. Em certo sentido, a história do
A preferência pelo fechado em vez do aberto não se manifesta apenas
México, como a de cada mexicano, consiste numa luta entre as
como impassibilidade ou desconfiança, ironia e receio, mas também
formas e fórmulas em que pretendem encerrar nosso ser e as
como amor à Forma. Esta contém e encerra a intimidade, impede os
explosões com as quais nossa espontaneidade se vinga. Poucas vezes
seus excessos, reprime as suas explosões, separa e isola, preserva-a. A
a forma tem sido uma criação original, um equilíbrio atingido não às
dupla influência indígena e espanhola se conjugam na nossa
expensas de, mas sim graças à expressão dos nossos instintos e
predileção pela cerimônia, pelas fórmulas e pela ordem. O mexicano,
vontades. Pelo contrário, nossas formas jurídicas e morais com
ao contrário do que supõe uma interpretação superficial da nossa
freqüência mutilam o nosso ser, impedem que nos expressemos e
história, aspira a criar um mundo ordenado de acordo com princípios
negam a satisfação de nossos apetites vitais.
claros. A agitação e o ódio das nossas lutas políticas provam até que
ponto as noções jurídicas desempenham um papel importante na nossa A preferência pela forma, inclusive a vazia de conteúdo, ma-
vida pública. E, na de todos os dias, o mexicano é um homem que se nifesta-se ao longo da história de nossa arte, desde a época pré-
esforça por ser formal e que muito facilmente se transforma em cartesiana até nossos dias. Antonio Castro Leal, em seu excelente
formulista. E explicável. A ordem - jurídica, social, religiosa ou estudo sobre Juan Ruiz de Alarcón, mostra como a reserva diante do
artística - constitui uma esfera segura e estável. Dentro do seu âmbito, romantismo -, que é, por definição, expansivo e aberto - já se
basta ajustar-se aos modelos e' princípios que regulamentam a vida; expressa entre nós no século XVII, isto é, antes de que tivéssemos
ninguém, para se manifestar, precisa recorrer à in- sequer consciência de nacionalidade. Os contemporâneos de Juan
Ruiz de Alarcón tinham razão ao acusá-lo de intrometido, embora se
referissem mais à defon:nidade do seu corpo

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que à singularidade de sua obra. Com efeito, a parte mais característica do mundo burguês imporá. Não expressam a nossa espontaneidade, nem
seu teatro nega o de seus contemporâneos espanhóis. E sua negação resolvem os nossos conflitos; são formas que não criamos nem sofremos,
contém, em suma, a que o México sempre opôs à Espanha. O teatro de máscaras. Somente em nossos dias fomos capazes de confrontar ao sim
Alarcón é uma reposta à vitalidade espanhola, afirmativa e deslumbrante espanhol um sim mexicano e não uma afirmação intelectual, vazia de
nessa época, que se expressa por meio de um grande sim à história e às particularidades nossas. A Revolução mexicana, ao descobrir as artes
paixões. Lope exalta o amor, o heróico, o super-humano, o incrível; populares, deu origem à pintura moderna; ao descobrir a linguagem dos
Alarcón opõe a essas virtudes desmedidas outras mais sutis e burguesas: a mexicanos, criou a nova poesia.
dignidade, a cortesia, um estoicismo melancólico, um pudor sorridente.
Se, na política e na arte, o mexicano aspira a criar mundos
Os problemas morais pouco interessam a Lope, que ama a ação, como
fechados, na esfera das relações cotidianas procura fazer imperar o pudor,
todos os seus contemporâneos. Mais tarde, Cald.erón demonstrará o
o recato e a reserva cerimoniosa. O pudor, que nasce da vergonha diante
mesmo desdém pela psicologia; os conflitos morais e as oscilações,
da. nudez alheia ou própria, é um reflexo quase físico entre nós. Nada
quedas e mudanças da alma humana são apenas metáforas para um drama
mais afastado desta atitude que o medo do corpo, característico da vida
teológico cujos dois personagens são o pecado original e a graça divina.
norte-americana. Não temos medo nem vergonha do nosso corpo;
Nas comédias mais representativas de Alarcón, em compensação, o céu enfrentamo-lo com naturalidade e o vivemos com certa plenitude - ao
pouco conta, tão pouco quanto o vento passional que arrebata os inverso do que ocorre com os puritanos. Para nós o corpo existe; traz
personagens 10- pescos. O homem, diz o mexicano, é um composto, e o gravidade e limites ao nosso ser. Sofremo-lo e gozamo-lo; não é uma
mal e o bem sutilmente se misturam em sua alma. Em lugar de proceder roupa que estamos acostumados a habitar, nem alguma coisa alheia a nós:
por síntese, utiliza a análise: o herói se torna problema. Em várias somos o nosso corpo. Mas os olhares estranhos nos sobressaltam, porque
comédias coloca o problema da mentira: até que ponto o mentiroso mente o corpo não vela a intimidade, e sim a revela. O pudor, assim, tem um
mesmo, propõe-se mesmo a enganar? não é ele a primeira vítima de seus caráter defensivo, como a muralha chinesa da cortesia ou as cercas de
enganos e não é a si mesmo que engana? O mentiroso mente para si cardos e cactos no campo, que separam os casebres dos camponeses. E,
mesmo: tem medo de si. Ao colocar o problema da autenticidade, Alarcón por isso, a virtude que mais estimamos nas mulheres é o recato, como nos
antecipa um dos temas constantes de reflexão do mexicano, que mais homens a reserva. Elas também devem defender sua intimidade.
tarde Rodolfo Usigli desenvolverá em El gesticulador.
Sem dúvida, na nossa concepção de recato feminino, intervém a vaidade
No mundo de Alarcón não triunfam nem a paixão nem a graça;
masculina do senhor - que herdamos dos índios e dos espanhóis. Como quase
tudo se subordina ao razoável; seus arquétipos são os da moral que sorri
todos os povos, os mexicanos consideram a mulher como um instrumento, ou
e perdoa. Ao substituir os valores vitais e românticos de Lope pelos
abstratos de uma moral universal e razoável, não se estará evadindo de si dos desejos do homem, "i ou dos fins que lhe atribuem a ki, a sociedade ou a
mesmo, escamoteando o seu próprio ser? Sua negação, como a do moral. Fins, '" é preciso dizer, para os quais nunca lhe foi pedido o consenti-
México, não afirma a nossa singularidade em confronto com a dos mento e de cuja realização só participa passivamente, como depositária de
espanhóis. Os valores postulados por Alarcón pertencem a todos os
certos valores. Prostituta, deusa, senhora, amante, a mulher transmite ou
homens e são uma herança greco-romana, assim como uma profecia da
conserva, mas não cria, os valores e as energias que lhe confiam a natureza ou
moral que o
a sociedade. Num mundo

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feito à imagem dos homens, a mulher é apenas um reflexo da vontade capricho, é ser infiel a si mesma. Bem mais livre e pagão que o
e do amor masculinos. Passiva, transforma-se em deusa, amada, ser espanhol - como herdeiro que é das grandes religiões naturalistas pré-
que encarna os elementos estáveis e antigos do universo: a terra, mãe colombianas -, o mexicano não condena o mundo natural. Nem o
e virgem. Ativa, é sempre função, meio, canal. A feminidade nunca é amor sexual se apresenta tinto de luto e horror, como na Espanha. A
um fim em si mesma, como é a hombridade. periculosidade não está no instinto, mas sim em assumi-lo
Em outros países, estas funções são realizadas pelo consenso pessoalmente. Reaparece assim a idéia de passividade: deitada ou de
público e com brilho. Em alguns, reverenciam-se as prostitutas ou as pé, nua ou vestida, a mulher nunca é ela mesma. Manifestação
virgens; em outros, as mães são premiadas; em quase todos, a senhora indiferenciada da vida, é o canal do apetite cósmico. Neste sentido,
é adulada e respeitada. Nós preferimos esconder estas graças e não tem desejos próprios.
virtudes. O segredo deve acompanhar a mulher. Mas, a mulher não As norte-americanas também proclamam a ausência de instintos
deve apenas se esconder, e sim, além disso, oferecer certa e desejos, mas a raiz do que afirmam é diferente e até contrária. A
impassibilidade sorridente ao mundo exterior. Em face da corte norte-americana esconde ou nega certas partes de seu corpo - e, com
erótica, deve ser "decente"; em face da adversidade, "sofrida". Em mais freqüência, da sua psique: são imorais e, portanto, não existem.
ambos os casos, sua resposta não é instintiva nem pessoal, mas sim de Ao se negar, reprime a sua espontaneidade. A mexicana
acordo com um modelo genérico. E este modelo, como no caso do simplesmente não tem vontade. Seu corpo dorme e só se acende se
macho, tende a ressaltar os aspectos defensivos e passivos, numa série alguém o despertar. Nunca é pergunta, mas sim resposta, matéria fácil
que vai do pudor e a "decência" até o estoicismo, a resignação e a e vibrante que a imaginação e a sensualidade masculinas esculpem. À
impassibilidade. atividade que desenvolvem as outras mulheres que desejam cativar os
A herança hispano-árabe não explica totalmente esta conduta. A homens, por meio da agilidade do espírito ou do movimento do
atitude dos espanhóis em relação às mulheres é muito simples e se corpo, a mexicana opõe um certo hieratismo, um repouso feito ao
expressa, com brutalidade e concisão, em dois ditados: "la mujer en mesmo tempo de espera e desdém. O homem voluteia a seu redor,
casa y con la pata rota" (mulher, em casa e de perna quebrada) e corteja-a, canta-a, faz seu cavalo dançar, ou sua imaginação. Ela se
"entre santa y santo, pared de cal y canto" (entre a santa e o santo, embuça no recato e na imobilidade. fi um ídolo. Como todos os
uma parede de pedra e cal). A mulher é uma fera doméstica, ídolos, é dona de forças magnéticas, cuja eficácia e poder crescem à
libidinosa e pecadora de nascença, que é preciso subjugar à força de medida que o foco emissor é mais passivo e secreto. Analogia
chicote e conduzir com o "freio da religião". Daí que muitos cósmica: a mulher não procura, atrai. E o centro de sua atração é seu
espanhóis considerem as estrangeiras - principalmente as que sexo, escondido, passivo. Imóvel sol secreto.
pertencem a países de raça ou religião diferentes das suas - como Esta concepção - bastante falsa se pensarmos que a mexicana é
presa fácil. Para os mexicanos, a mulher é um ser confuso, secreto e muito sensível e inquieta - não a transforma em mero objeto, em
passivo. Não lhe são atribuídos maus instintos: pretende-se que ela coisa. A mulher mexicana, como todas as outras, é um símbolo que
nem sequer os tenha. Melhor dito, que eles não são seus e sim da representa a estabilidade e a continuidade da raça. À sua significação
espécie; a mulher encarna a vontade da vida, que é em essência cósmica alia-se a social: na vida diária, sua função consiste em fazer
impessoal, e neste fato se fundamenta a sua impossibilidade de ter imperar a lei e a ordem, a piedade e a doçura. Todos nós tomamos
uma vida pessoal. Ser ela mesma, dona do seu desejo, da sua paixão cuidado para que ninguém "falte com o respeito às senhoras", noção
ou do seu universal, sem dúvida, mas

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que no México é levada até as últimas conseqüências. Graças a ela, verso da "mãe abnegada", da "noiva que espera" e do ídolo hermético, a
suavizam-se muitas das asperezas das nossas relações de "homem para "à-toa" vai e vem, procura os homens, abandona-os. Por um mecanismo
homem". Naturalmente, seria necessário perguntar às mexicanas a sua análogo ao descrito mais acima, sua extrema mobilidade a torna
opinião; este "respeito" é às vezes uma maneira hipócrita de subjugá-las invulnerável. Atividade e impudicícia nela se aliam e acabam por
e impedi-las de se expressarem. Talvez muitas preferissem ser tratadas petrificar sua alma. A "à-toa" é dura, ímpia, independente, como o
com menos' "respeito" (que, além do mais, só lhes é concedido em mocho. Por caminhos diferentes, ela também transcende a sua fisiologia
público) e com mais liberdade e autenticidade. Isto é, como seres e se fecha para o mundo.
humanos e não como símbolos ou funções. Mas, como vamos consentir :e significativo, por outro lado, que o homossexualismo masculino
que elas se expressem, se toda nossa vida tende a se paralisar numa seja considerado com certa indulgência, no que se refere ao agente ativo.
máscara que esconda a nossa intimidade? O passivo, pelo contrário, é um ser degradado e abjeto. O jogo dos
Nem a modéstia adequada, nem a vigilância social, tornam a "albures" - isto é, o combate verbal feito de alusões obscenas e de duplo
mulher invulnerável. Tanto pela fatalidade de sua anatomia "aberta" sentido, que tanto se pratica na cidade do México - demonstra esta
quanto por sua situação social - depositária da honra, à espanhola -, está concepção ambígua. Cada
exposta a todo tipo de perigo, contra os quais nada podem a moral um dos interlocutores, por meio de armadilhas verbais e de engenhosas
pessoal ou a proteção masculina. O mal se fundamenta nela mesma; por combinações lingüísticas, procura arrasar seu adversário; o vencido é o
natureza é um ser "aberto". Mas, em virtude de um mecanismo de que não consegue responder, o que engole as palavras do inimigo. E
compensação facilmente explicável, de sua fraqueza original, se faz uma estas palavras estão matizadas de alusões sexualmente agressivas; o
virtude e se cria o mito da "sofrida mulher mexicana". O ídolo - sempre perdedor é possuído, violado pelo outro. Sobre ele caem as piadas e o
vulnerável, sempre às portas de se transformar em ser humano faz-se escárnio dos espectadores. Assim, pois, o homossexualismo masculino é
vítima, mas vítima endurecida e insensível ao sofrimento, calejada à tolerado, sob a condição de que se trate de uma violação do agente
força de sofrer. (Uma pessoa "sofrida" é menos sensível à dor que as que passivo. Como no caso das relações heterossexuais, o importante é "não
mal foram tocadas pela adversidade.) Por obra do sofrimento, as se abrir" e, simultaneamente, arrombar, ferir o outro.
mulheres tornam-se como os homens: invulneráveis, impassíveis e
estóicas.
Dir-se-á que, ao transformarmos em virtude uma coisa gue deveria
ser motivo de vergonha, pretendemos apenas desencarregar nossa
consciência e encobrir com uma imagem uma realidade atroz. ~ verdade, Parece-me que todas estas atitudes, por mais diversas que sejam
mas também o é que, ao atribuir à mulher a mesma invulnerabilidade a suas raízes, confirmam o caráter fechado de nossas reações face ao
mundo ou em face de nossos semelhantes. Mas não bastam para nós os
que aspiramos, recobrimos com uma imunidade moral a sua fatalidade
mecanismos de preservação e defesa. A simulação? que não deriva de
anatômica, aberta ao exterior. C tlllÇ"" o sofrimento e à sua capacidade de
nossa passividade, mas, pelo contrário, exige uma invenção ativa e se
resistência a ele, sem piTlIÜ~hol", 11 mulher transcende sua condição e
adquire os mes mO" fHtlIJIlIII~ 1111 luuncm.
recria a si mesma a cada instante, é uma de nossas formas de conduta
habituais. Mentimos por prazer e fantasia sim, como todos os povos
fi nllh'~[l 1101111 '1"1' n imagem da "mulher à-toa" quase llll!iiprl1 11['1
imaginativos, mas também para nos escondermos e nos colocarmos ao
nWf1Rtlilll'II_"111p.11I11lIda da idéia de atividade. Ao in-
abrigo dos intrusos. A mentira tem uma importância decisiva em nossa
vida cotidiana, na política, no amor, na amizade. Com ela não pre-

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tendemos absolutamente enganar os outros, mas sim a nós mesmos. seu verdadeiro ser, substitui-o por uma imagem. Subtrai sua inti-
Daí sua fertilidade e o que diferencia as nossas mentiras das midade, que se refugia nos seus olhos que são apenas contemplação e
grosseiras invenções dos outros povos. A mentira é um jogo trágico, piedade de si mesmo. Transforma-se na sua imagem e no olhar que a
em que arriscamos parte do nosso ser. Por' isso, sua denúncia é contempla.
estéril.
Em todos os tempos e em todos os climas, as relações humanas -
O simulador pretende ser o que não é. Sua atividade reclama principalmente as amorosas - correm o risco de se tornarem
uma improvisação constante, um ir sempre adiante, entre areias equívocas. Narcisismo e masoquismo não são tendências exclusivas
movediças. A cada minuto é preciso refazer, recriar, modificar o do mexicano. Mas é notável a freqüência com que as canções
personagem que fingimos, até que chega um momento em que populares, os ditados e as condutas cotidianas aludem ao amor como
realidade" e aparência, mentira e verdade se confundem. De trama de falsidade e mentira. Quase sempre elidimos os riscos de uma relação
invenções para deslumbrar o próximo, a simulação se converte em nua por meio de um exagero, na origem sincero, dos nossos
forma superior, porque artística, da realidade. Nossas mentiras sentimentos. Também é revelador como o caráter combativo do
refletem, simultaneamente, nossas carências e nossos apetites, o que erotismo se acentua entre nós e se furta. O amor é uma tentativa de
não somos e o que desejamos ser. Simulando, aproximamo-nos do penetrar em outro ser, mas só pode ser realizado sob a condição de
nosso modelo e, às vezes, conforme viu com profundidade Usigli, o que a entrega seja mútua. Em todos os lugares é difícil este abandono
gesticulador se funde com os seus gestos, torna-os autênticos. A de si mesmo; poucos coincidem na entrega e menos ainda conseguem
morte do professor Rubio o transforma no que desejava ser: o general transcender esta etapa possessiva e gozar o amor como o que
Rubio, um revolucionário sincero e um homem capaz de impulsionar realmente é: um descobrimento perpétuo, uma imersão nas águas da
e purificar a revolução estancada. Na obra de Usigli, o professor realidade e uma recriação constante. Concebemos o amor como
Rubio se inventa a si mesmo e se torna general; sua mentira é tão conquista e como luta. Não se trata tanto de penetrar na realidade,
verdadeira que Navarro, o corrupto, não tem outro remédio senão através de um corpo, quanto de violá-la. Daí que a imagem do amante
tornar a matar nele o seu antigo chefe, o general Rubio. Vem a matar, feliz herança, talvez, do Don Juan Espanhol - confunda-se com a do
nele, a verdade da revolução. homem que se vale de seus sentimentos - reais ou inventados - para
Se, pelo caminho da mentira, podemos chegar à autenticidade, obter a mulher.
um excesso de sinceridade pode levar-nos a formas refinadas de A simulação é uma atividade parecida com a dos atores e pode
mentira. Quando nos apaixonamos, nos "abrimos", mostramos nossa ser expressa por tantas formas quantos personagens fingimos ser.
intimidade, pois uma velha tradição leva quem sofre de amor a exibir Mas o ator, se o é realmente, entrega-se a seu personagem e o encarna
suas feridas diante da amada. Mas, ao descobrir suas chagas de amor, plenamente, embora depois, terminada a representação, abandone-o
o apaixonado transforma seu ser numa imagem, num objeto que como a serpente à pele. O simulador nunca se entrega nem se esquece
entrega à contemplação da mulher e de si mesmo. Ao mostrar-se, de si, pois deixaria de simular se se fundisse com a sua imagem. Ao
convida a que o contemplem com os mesmos olhos piedosos com que mesmo tempo, essa ficção se torna uma parte inseparável - e espúria -
ele se contempla. O olhar alheio já não o despe; cobre-o de piedade. do seu ser: está condenado a representar a vida inteira, porque entre
E ao se apresentar como espetáculo e pretender que o olhem com os ele e seu personagem estabeleceu-se uma cumplicidade que não pode
mesmos olhos com que ele se vê, ele se evade do jogo erótico, põe a ser quebrada por nada, exceto pela morte ou pelo sacrifício. A men-
salvo o

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tira se instala no seu ser e se transforma no fundo último de sua é, de uma maneira concreta e particular, confunde-se com um objeto
personalidade. determinado.
Reger Caillois observa que o mimetismo nem sempre implica numa
tentativa de proteção contra as ameaças virtuais que pululam no mundo
Simular é inventar ou, melhor, aparentar e assim elidir a nossa externo. As vezes os insetos "se fazem de mortos" ou imitam as formas
condição. A dissimulação exige maior sutileza: quem dissimula não da matéria em decomposição, fascinados pela morte, pela inércia do
representa, mas sim quer se tornar invisível, passar despercebido - sem espaço. Esta fascinação - força de gravidade, diria eu, da vida - é comum
renunciar ao seu ser. O mexicano excede no dissímulo de suas paixões e a todos os seres e o fato de expressar-se como mimetismo confirma que
de si mesmo. Temente do olhar alheio, contrai-se, reduz-se, faz-se não devemos considerá-lo exclusivamente como um recurso do instinto
sombra e fantasma, eco. Não anda, desliza; não propõe, insinua; não vital para fugir ao perigo e à morte.
replica, resmunga; não se queixa, sorri; até quando canta - se não
Defesa contra o externo ou fascinação pela morte, o mimetismo não
explode e abre o peito - fá-lo entre dentes e à meia voz, dissimulando o
consiste tanto em mudar de natureza quanto em mudar de aparência. };;
seu canto:
revelador que a aparência escolhida seja a da morte ou a do espaço
inerte, em repouso. Propagar-se, confundirse com o espaço, ser espaço, é
uma maneira de recusar as aparências, mas é também uma maneira de
E é tanta a tirania
desta dissimulação
ser s6 aparência. O mexicano tem tanto horror às aparências quanto o
que mesmo se de estranhos desejos amor que lhes professam os seus demagogos e dirigentes. Por isso
cresce o meu coração, dissimula a sua própria existência até se confundir com os objetos que o
tenho olhares de desafio cercam. E assim, por medo das aparências, torna-se apenas Aparência.
e voz de resignação. Aparenta ser outra coisa e até prefere a aparência da morte ou do nãoser
a abrir sua intimidade e mudar. A dissimulação mimética, enfim, é uma
Talvez a dissimulação tenha nascido durante a Colônia. 10- dics e das tantas manifestações do nosso hermetismo. Se o gesticulador acode
mestiços tinham, como no poema de Reyes, de cantar mudo, pois "entre ao disfarce, os demais queremos passar despercebidos. Em ambos os
dentes ainda se ouvem palavras de rebelião". O mundo colonial casos, escondemos nosso ser. E às vezes o negamos. Lembro-me de que
desapareceu, mas não o medo, a desconfiança e o receio. Agora uma tarde, como ouvisse um leve ruído no quarto vizinho ao meu,
dissimulamos não só a nossa cólera, mas também a nossa ternura. perguntei em voz alta: "Quem está andando por aí?" E a voz de uma
Quando pede desculpas, a gente do campo costuma dizer "O senhor criada recém-chegada de seu povoado respondeu: "Não é ninguém,
dissimule". E dissimulamos. Dissimulamos com tanto afinco que quase patrão, sou eu".
não existimos.
Não só dissimulamos a nós mesmos e nos tornamos transparentes e
Nas suas formas radicais, a dissimulação atinge o mimetismo.
fantasmais; também dissimulamos a existência de nossos semelhantes.
O índio se funde na paisagem, se confunde com a cerca branca em que
Não quero dizer que os ignoremos ou que façamos pouco deles, atos
se apóia durante a tarde, com a terra escura onde se deita ao meio-dia,
estes deliberados e soberbos. Dissimulamolos de maneira mais definitiva
com o silêncio que o cerca. Dissimula tanto a sua singularidade humana
e radical: nenhumamos. A nenhumação é uma operação que consiste em
que acaba por aboli-la; e se transforma em pedra, em árvore, em muro,
fazer de Alguém, Nenhum.
em silêncio: espaço. Não quero dizer que comungue com o todo, à
maneira panteísta, nem que numa árvore apreenda todas as árvores, màs
sim que, efetivamente, isto

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o nada de repente se individualiza, toma corpo e olhos, transforma-
se em Nenhum.
O Sr. Ninguém, pai espanhol de Nenhum, possui senhoria,
ventre, honra, conta no banco e fala com voz forte e segura. O Sr. III
Ninguém enche o mundo com a sua vazia e palradora presença. Está
em toda parte e em todos os lugares tem amigos. f: banqueiro,
embaixador, homem de empresa. Passeia por todos os salões, é
condecorado na Jamaica, em Estocolmo e em Londres. O Sr. Nin- TODOS OS SANTOS,
guém é funcionário ou pessoa influente e tem uma agressiva e or- DIA DE FINADOS
gulhosa maneira de não ser. Nenhum é silencioso e tímido, resignado.
f: sensível e inteligente. Sempre sorri. Sempre espera. E cada vez que
quer falar, tropeça num muro de silêncio; se cumprimenta, encontra
um voltar de costas glacial; se suplica, chora ou grita, seus gestos e
gritos se perdem no vazio que o Sr. Ninguém cria com o seu vozeirão.
Nenhum não se atreve a não ser: oscila, tenta outra vez e mais outra
ser Alguém. Por fim, entre gestos vãos, perde-se no limbo de onde o solitário mexicano ama os feriados e as festas públicas. Tudo
surgiu. é ocasião para reunir-se. Qualquer pretexto é bom para interromper a
Seria um erro pensar que os outros o impedem de existir. marcha do tempo e celebrar, com festejos e cerimônias, homens e
Simplesmente dissimulam sua existência, agem como se não existisse. acontecimentos. Somos um povo ritual. E esta tendência beneficia
Nulificam-no, anulam-no, nenhumam. f: inútil que Nenhum fale, tanto a nossa imaginação quanto a nossa sensibilidade, sempre
publique livros, pinte quadros, coloque-se à cabeça. Nenhum é a afinadas e despertas. A arte da Festa, aviltada em quase todos os
ausência dos nossos olhares, a pausa da nossa conversa, a reticência lugares, conserva-se intacta entre nós. Em poucas regiões do mundo
do nosso silêncio. f: o nome que sempre esquecemos por uma é possível viver um espetáculo parecido com o das grandes festas
estranha fatalidade, o eterno ausente, o convidado que não religiosas do México, com suas cores violentas, ácidas e puras, suas
convidamos, o vazio que não enchemos. f: uma omissão. Entretanto, danças, suas cerimônias, seus fogos de artifício, suas vestimentas
Nenhum está sempre presente. f: o nosso segredo, o nosso crime e o insólitas e sua inesgotável cascata de surpresas, feita de frutas, doces
nosso remorso. Por isso, o Nenhumador também se nenhuma; ele é a e objetos, que são vendidos nesses dias, nas praças e nos mercados.
omissão de Alguém. E se todos somos Nenhum, não existe nenhum Nosso calendário está cheio de feriados. Certos dias, igual-
de nós. O círculo se fecha e a sombra de Nenhum se estende sobre o mente nos lugares mais afastados e nas grandes cidades, o país
México, asfixia o Gesticulador e o cobre totalmente. Em nosso inteiro reza, grita, come, embriaga-se e mata, em honra à Virgem de
território, mais forte que as pirâmides e os sacrifícios, que as igrejas, Guadalupe ou ao general Zaragoza. Todo ano, no dia 15 de setembro
as rebeliões e as canções populares, volta a imperar o silêncio, às onze horas da noite, em todas as praças do México, celebramos a
anterior à História. Festa do Grito; e uma multidão excitada efetivamente grita pelo
espaço de uma hora, talvez para se calar melhor durante o resto do
ano. Durante os dias que precedem o 12 de dezembro, o tempo
suspende a sua carreira, faz alto e, em vez de

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nos empurrar para um amanhã sempre in alcançável e mentiroso, mana se dissolva e se resgate simultaneamente. No entanto, co~o poderia
oferece-nos um presente pleno e perfeito, de dança e farra, comunhão e viver um pobre mexicano sem estas duas ou três festas anuais que o
comilança, com o que há de mais antigo e secreto no México. O tempo compensam de sua estreiteza e de sua miséria? As festas são o nosso
deixa de ser sucessão e volta a ser o que foi e é, originariamente: um único luxo; elas substituem, talvez com vantagem, o teatro e as férias, o
presente onde o passado e o futuro por fim se reconciliam. "week-end" e o "cocktail party" dos saxões, as recepções da burguesia e
Mas não são suficientes os feriados que a Igreja e a República o café dos mediterrâneos.
oferecem a todo o país. A vida de cada cidade e de cada povoado é regida Nestas cerimônias - nacionais, locais, paroquiais ou familiares - o
por um santo, que é festejado com devoção e regularidade. Os bairros e mexicano se abre para ° exterior. Todas elas lhe dão ocasião de se
as paróquias também têm as suas festas anuais, as suas cerimônias e as revelar e dialogar com a divindade, com a pátria, com os amigos ou com
suas quermesses. E, por fim, cada um de nós - ateus, católicos ou os parentes. Durante esses dias, o silencioso mexicano assobia, .grita,
indiferentes - possuímos o nosso santo, a quem honramos todos os anos canta, solta foguetes, descarrega a pistola no ar. Descarrega a alma. E seu
*. São incalculáveis as festas que celebramos e os recursos e o tempo que grito, como os fogos de que que tanto gostamos, sobe ao céu, estoura
gastamos em festejar. Lembro-me de que há, anos atrás perguntei ao numa explosão verde, vermelha, azul e branca e cai vertiginoso,
prefeito municipal de um povoado vizinho de Mitla: "A quanto montam deixando uma cauda de chispas douradas. Nessa noite, os amigos, que
as rendas do Município em contribuições?" "A mais ou menos três mil durante meses não pronunciaram outras palavras senão as ordenadas pela
pesos anuais. Somos muito pobres. Por isso, o Senhor Governador e a cortesia indispensável, embebedam-se juntos, fazem-se confidências,
Federação nos ajudam todo ano a cobrir nossos gastos". "E como utiliza choram as mesmas dores, descobrem-se irmãos e, às vezes, para o
estes três mil pesos?" "Quase tudo nas festas. Pequeno como o senhor demonstrar, matam-se entre si. A noite é povoada de canções e uivos. Os
está vendo, o povoado tem dois santos padroeiros". apaixonados acordam as moças com serenatas. Há diálogos e
brincadeiras de varanda a varanda, de calçada a calçada. Ninguém fala
Esta resposta não é de assombrar. Nossa pobreza pode muito bem
em voz baixa. Atiram-se chapéus no ar. Os palavrões e as piadas caem
ser medida pelo número e pela suntuosidade das festas populares. Os
como cascatas de moedas de prata. As guitarras florescem. Algumas
países ricos têm poucas: não há tempo, nem humor. E não são
vezes, realmente, a alegria acaba mal: há brigas, injúrias, tiros, facadas.
necessárias; as pessoas têm outras coisas para fazer e quando se divertem
Mas isto também faz parte da festa. Porque o mexicano não se diverte:
o fazem em pequenos grupos. As grandes massas modernas são
quer se ultrapassar, pular o muro da solidão que durante o resto do ano o
aglomerações de solitários. Nas grandes ocasiões, em Paris ou em Nova
torna incomunicável. Todos são possuídos pela violência e pelo ar-
Iorque, quando o público se congrega em praças ou estádios, é notável a
rebatamento. As almas explodem como as cores, as vozes, os senti-
ausência de povo: vêem-se casais e grupos, mas nunca uma comunidade
mentos. Será que eles se esquecem de si mesmos e mostram a verdadeira
viva, onde a pessoa hu-
face? Ninguém sabe. O importante é sair', abrir passagem, embriagar-se
de barulho, de gente, de cor. O México está em festa. E esta festa,
cruzada por relâmpagos e delírios, é como o avesso brilhante do nosso
silêncio e da nossa apatia, da nossa reserva e da nossa aspereza.
Alguns sociólogos franceses consideram a Festa como um gasto
• Em vários países de formação cultural espanhola, como na própria ritual. Graças ao esbanjamento, a coletividade se coloca ao
Espanha, é usual que se festeje, em lugar do aniversário do indivíduo, o dia
do santo de mesmo nome. Assim, todos os Josés festejam o mesmo dia,
todos os Antônios, todos os Franciscos, e assim por diante. (N.T.)

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abrigo da inveja celeste e humana. Os sacrifícios e as oferendas mimos com elas responsabilidades singulares. Aliviamo-nos da nossa
acalmam ou compram ou deuses e os santos padroeiros; as dádivas e carga de tempo e de razão.
os festejos acalmam ou compram o povo. O excesso no gasto e no Em certas festas, desaparece a própria noção de ordem. O caos
desperdício de energia afirmam a opulência da coletividade. Este luxo retorna e reina a licença. Tudo é permitido: desaparecem as
é uma prova de saúde, uma exibição de abundância e poder. Ou uma hierarquias habituais, as distinções sociais, os sexos, as classes, as
armadilha mágica. Porque, com o esbanjamento, se espera atrair, por paróquias. Os homens se fantasiam de mulher, os senhores de es-
contágio, a verdadeira abundância. Dinheiro chama dinheiro. A vida cravo, os pobres de rico. Ridiculariza-se o exército, o clero, a ma-
que é regada dá mais vida; a orgia, gasto sexual, é também uma gistratura. Governam as crianças ou os loucos. Cometem-se pro-
cerimônia de regeneração genésica; e o desperdício fortalece. As fanações rituais, sacrilégios obrigatórios. I) amor se torna promíscuo.
cerimônias de fim de ano, em todas as culturas, significam um pouco As vezes, a festa se transforma em missa negra. Violamse
mais que a simples comemoração de uma data. Esse dia é uma pausa; regulamentos, hábitos, costumes. O indivíduo respeitável lança fora a
efetivamente, o tempo acaba, extingue-se. Os ritos que celebram sua máscara de carne e a roupa escura que o isola e, vestido de cores
extinção estão destinados a provocar seu renascimento: a festa de berrantes, esconde-se atrás de outra máscara que o libera de si
final de ano é também a do ano novo, a do tempo que começa. Tudo mesmo.
atrai o seu contrário. Em suma, a função da festa é mais utilitária do Assim, a festa não é apenas um excesso, um desperdício ritual
que se pensa; o desperdício atrai ou provoca a abundância e é um
dos bens penosamente acumulados durante o ano inteiro; é também
investimento como qualquer outro. Só que aqui o lucro não se mede,
uma revolta, uma súbita imersão do informe, na vida pura. Por meio
nem conta. Trata-se de adquirir potência, vida, saúde. Neste sentido, a
da festa, a sociedade se libera das normas que se impôs. Ri de seus
festa é uma das formas econômicas mais antigas, como a dádiva e a
deuses, de seus princípios e de suas leis: negase a si mesma.
oferenda.
A festa é uma revolta, no sentído literal da palavra. Na confusão
Esta interpretação sempre me pareceu incompleta. Inscrita na que origina, a sociedade se dissolve, sufoca, como organismo regido
órbita do sagrado, a festa é antes de tudo o advento do insólito. por certas regras e princípios. Mas se afoga em si mesma, no seu caos
Regem-na regras especiais, privativas, que a isolam e fazem dela um ou liberdade original. Tudo se comunica; misturam-se o bem e o mal,
dia de exceção. Com ela se introduz uma lógica, uma moral, e até o dia e a noite, o santo e o maldito. Tudo convive, perde forma,
uma economia, que freqüentemente contradizem as de todos os dias. singularidade e volta à mole primordial. A festa é uma operação
Tudo acontece num mundo encantado: o tempo é outro tempo cósmica: a experiência da desordem, a reunião dos elementos e
(situado num passado mítico ou numa atualidade pura); o espaço em princípios contrários para provocar o renascimento da vida. A morte
que ocorre muda de aspecto, desliga-se do resto da terra, enfeita-se e ritual provoca o renascer; o vômito, o apetite; a orgia, estéril em si
se transforma num "local de festa" (em geral se escolhem lugares mesma, a fecundidade das mães ou da terra. A festa é um regresso a
especiais ou pouco freqüentados); os personagens que intervêm um estado remoto e indiferenciado, pré-natal ou pré-social, por assim
abandonam sua classe humana ou social e se transformam em vivas, dizer. Regresso que é também um começo, como requer a dialética
embora efêmeras, representações. E tudo acontece como se não fosse inerente aos fatos sociais.
verdade, como nos sonhos. Aconteça o que acontecer, nossas ações O grupo sai purificado e fortalecido deste banho de caos.
possuem maior leveza, uma gravidade diferente: adquirem Mergulhou para dentro de si mesmo, na própria entranha de onde
significações diversas e assu- saiu. Dizendo de outra maneira, a festa nega a sociedade como
conjunto orgânico de formas e princípios diferenciados, mas a afir-

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ma como fonte de energia e criação. f: uma verdadeira recrt e/i)ação, nosso hermetismo fecha as nossas vias de comunicação com o
ao contrário do que acontece com as férias modernas, que não trazem mundo. Conhecemos o delírio, a canção, o uivo e o monólogo, mas
rito ou cerimônia alguma, que são individuais e estéreis como o não o diálogo. Nossas festas, como nossas confidências, nossos
mundo que as inventou. amores e nossas tentativas de reordenar nossa sociedade, são rupturas
A sociedade comunga consigo mesma na festa. Todos os seus violentas com o antigo ou com o estabelecido. Cada vez que
membros voltam à confusão e à liberdade originais. A estrutura social tentamos nos expressar, precisamos romper conosco. E a festa é
se desfaz e criam-se novas formas de relação, regras inesperadas, apenas um exemplo, talvez o mais típico, de ruptura violenta. Não
hierarquias caprichosas. Na desordem geral, cada um se abandona e seria difícil enumerar outros, igualmente reveladores: o jogo, que é
atravessa situações e lugares que habitualmente lhe estavam vedados. sempre um ir aos extremos, freqüentemente mortal; nossa prodi-
As fronteiras entre espectadores e atores, oficiantes e assistência, se galidade no gastar, reverso da timidez de nossos investimentos e de
apagam. Todos fazem parte da festa, todos se dissolvem no seu nossas empresas econômicas; nossas confissões. O mexicano, ser
torvelinho. Qualquer que seja a sua índole, o seu caráter, o seu áspero, fechado em si mesmo, de repente explode, abre o peito e se
significado, a festa é participação. Este traço a distingue finalmente exibe, com certa complacência e detendo-se nos meandros
de outros fenômenos e cerimônias: leiga ou religiosa, orgia ou vergonhosos ou terríveis da sua intimidade. Não somos francos, mas
saturnal, a festa é um fato social baseado na participação ativa da nossa sinceridade pode chegar a extremos que horrorizariam um
assistência. europeu. A maneira explosiva e dramática, às vezes suicida, como
Graças às festas, o mexicano se abre, participa, comunga com nos despimos e nos entregamos, quase inermes, revela que alguma
os seus semelhantes e com os valores que dão sentido à sua exis- coisa nos asfixia e coíbe. Alguma coisa nos impede de ser. E porque
tência religiosa ou política. E é significativo que um país tão triste não nos atrevemos ou não podemos encarar nosso ser, recorremos à
como o nosso tenha tantas festas e tão alegres. Sua freqüência, o festa. Ela nos lança ao vazio, embriaguez que se queima a si mesma,
brilho que atingem, o entusiasmo com que todos participamos, parece tiro no ar, fogo de artifício.
revelar que, sem elas, arrebentaríamos. Elas nos liberam, mesmo que
só momentaneamente, de todos esses impulsos sem saída e de todas
essas matérias inflamáveis que guardamos no nosso interior. Mas, A morte é um espelho que reflete as gesticulações vãs da vida.
diferentemente do que ocorre em outras sociedades, a festa mexicana Toda esta matizada fusão de atos, omissões, arrependimentos e
não é absolutamente um regresso a um estado original de tentativas - obras e sobras - que é cada vida, encontra na' morte,
indiferenciação e liberdade; o mexicano não tenta regressar, e sim senão o sentido ou a explicação, o fim. Diante dela nossa vida se
sair de si mesmo, ultrapassar-se. Entre nós, a festa é uma explosão, desenha e imobiliza. Antes de desmoronar e fundir-se ao nada, é
um estouro. Morte e vida, júbilo e lamento, canto e uivo se juntam esculpida e toma forma imutável: já não nos modificaremos, a não
nos nossos festejos, não para se recriarem ou se reconhecerem, mas ser para desaparecer. Nossa morte ilumina a nossa vida. Se a nossa
sim para se entredevorarem. Não há nada mais alegre que uma festa morte carece de sentido, também a nossa vida não o teve. Por isso,
mexicana, mas também não há nada mais triste. A noite de festa é quando alguém morre de morte violenta, costumamos dizer: "estava
também noite de luto. procurando". E é verdade, cada qual tem a morte que procura, a
Se, na vida diária, escondemo-nos de nós mesmos, no rede- morte que constrói para si mesmo. Morte cristã ou morte de cachorro
moinho da festa nos arrojamos. Mais que abrir-nos, nos dilaceramUI!. são maneiras de morrer que refletem maneiras de viver. Se a morte
Tudo termina em alarido e dilaceramento: o canto, o amor, u nos trai e morremos de uma maneira ruim, todos se lamentam: é
nmlvude. A violência dos nossos festejos mostra até que ponto o preciso morrer como se viveu. A

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morte é intransferível, como a vida. Se não morremos como vivemos, na. Nascer num dia qualquer era pertencer a um espaço, a um tempo,
é porque realmente não foi nossa a vida que vivemos: não nos a uma cor e a um destino. Tudo estava previamente traçado.
pertencia, como não nos pertence, a má sorte que nos mata. Dize-me Enquanto nós dissociamos espaço e tempo, meros cenários que
como morres e dir-te-ei quem és. nossas vidas atravessam, para eles havia tantos "espaçostempos"
Para os antigos mexicanos a oposição entre morte e vida não era quantas combinações possuía o calendário sacerdotal. E cada um era
tão absoluta quanto para nós. A vida se prolongava na morte. E o dotado de uma significação qualitativa particular, superior à vontade
inverso. A morte não era o fim natural da vida, mas sim outra fase de humana.
um ciclo infinito. Vida, morte e ressurreição eram estágios de um A religião e o destino regiam a vida deles, como a moral e a
processo cósmico, que s·e repetia insaciável. A vida não tinha função liberdade presidem a nossa. Enquanto nós vivemos sob o signo da
mais nobre que desembocar na morte, seu contrário e complemento; e liberdade e tudo - mesmo a fatalidade grega e a graça dos teólogos - é
a morte, por sua vez, não era um fim em si; o homem alimentava com escolha e luta, para os astecas o problema se reduzia a pesquisar a
sua morte a voracidade da vida, sempre insatisfeita. O sacrifício nem sempre clara vontade dos deuses. Daí a importância das práticas
possuía um duplo objetivo: por um lado, o homem acedia ao processo divinatórias. Os únicos livres eram os deuses. Eles podiam escolher -
criador (pagando aos deuses, simultaneamente, a dívida feita pela e portanto, num sentido profundo, pecar. A religião asteca está cheia
espécie); pelo outro, alimentava a vida cósmica e a social, que se de grandes deuses pecadores - Quetzalcóatl, é o exemplo máximo -,
nutria da primeira. deuses que enfraquecem e podem abandonar os seus devotos, da
Possivelmente, o traço mais característico desta concepção é o mesma forma como os cristãos às vezes renegam o seu deus. A
sentido impessoal do sacrifício. Do mesmo modo que a vida não lhes conquista do México seria inexplicável sem a traição dos deuses, que
pertencia, sua morte carecia de qualquer propósito pessoal. Os mortos renegam seu povo.
- inclusive os guerreiros tombados em combate e as mulheres mortas O advento do catolicismo modifica radicalmente esta situação.
no parto, companheiros de Huitzilopochtli, o deus solar - O sacrifício e a idéia da salvação, que antes eram coletivos, tornam-
desapareciam ao fim de algum tempo, ou para retornar ao país se pessoais. A liberdade se humaniza, encarna nos homens. Para os
indiferenciado das sombras, ou para fundir-se com o ar, com a terra, antigos astecas o essencial era assegurar a continuidade da criação; o
com o fogo, com a substância animadora do universo. Nossos sacrifício não trazia em si a salvação extraterrena, mas sim a saúde
antepassados indígenas não acreditavam que a sua morte lhes cósmica; o mundo, e não o indivíduo, vivia graças ao sangue e a
pertencia, como jamais pensaram que sua vida fosse realmente "sua morte dos homens. Para os cristãos, é o indivíduo que conta. O
vida", no sentido cristão da palavra. Tudo se conjugava para mundo - a história, a sociedade - está condenado de antemão. A
determinar, desde o nascimento, a vida e a morte de cada homem: a morte de Cristo salva cada homem em particular. Cada um de nós é o
classe social, o ano, o lugar, o dia, a hora. O asteca era tão pouco Homem e em cada um estão depositadas as esperanças e as
responsável por seus atos como por sua morte. possibilidades da espécie. A redenção é obra pessoal.
Espaço e tempo estavam ligados e formavam uma unidade
inseparável. A cada espaço, a cada um dos pontos cardeais e ao Ambas as atitudes, por mais opostas que pareçam, possuem uma
centro onde se imobilizavam, correspondia um "tempo" particular. E nota comum: a vida, coletiva ou individual, está aberta à perspectiva
este complexo de espaço-tempo possuía virtudes e poderes próprios, de uma morte que é, a seu modo, uma nova vida. A vida só se
que influíam e determinavam profundamente a vida huma- justifica e transcende quando se realiza na morte. E esta também é
transcendência, além, pois consiste numa nova vida. Pa-

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ra os cristãos, a morte é um trânsito, um salto mortal entre duas na sua atitude talvez haja tanto medo quanto na dos outros; mas pelo
vidas, a temporal e a extraterrena; para os astecas, a maneira mais menos não se esconde nem a esconde; contempla-a cara a cara com a
profunda de participar da regeneração contínua das forças criadoras, . impaciência, desdém ou ironia: "se vão me matar amanhã, que me
sempre em perigo de se extinguirem, se não forem providas de matem de uma vez".
sangue, alimento sagrado. Em ambos os sistemas, vida e morte A indiferença do mexicano em relação à morte nutre-se da sua
carecem de autonomia; são as duas caras de uma mesma realidade. indiferença em relação à vida. O mexicano postula não só a
Toda a sua significação provém de outros valores, que a regem. São intransferência de morrer, mas também a de viver. Nossas canções,
referências e realidades invisíveis. ditados, festas e reflexões populares demonstram de uma maneira
A morte moderna não possui nenhuma significação que a inequívoca que a morte não nos assusta porque "a vida já nos curou
transcenda ou se refira a outros valores. Em quase todos os casos é, dos horrores". Morrer é natural e até desejável; quanto mais cedo,
simplesmente, o fim inevitável de um processo natural. Num mundo melhor. Nossa indiferença diante da morte é a outra face da nossa
de fatos, a morte é um fato a mais. Mas, como é um fato indiferença diante da vida. Matamos porque a vida, nossa e alheia,
desagradável, um fato que coloca em xeque todas as nossas carece de valor. E é natural que assim aconteça: vida e morte são
concepções e o próprio sentido da nossa vida, a filosofia do progresso inseparáveis, e cada vez que a primeira perde o significado a segunda
(progresso para onde e vindo de onde?, pergunta-se Scheler) pretende sé torna intranscendente. A morte mexicana é o espelho da vida dos
escamotear sua presença. No mundo moderno, tudo funciona como se mexicanos. Em face de ambas o mexicano se fecha, ignora-as.
a morte não existisse. Ninguém conta com ela. Tudo a suprime: os O desprezo pela morte não entra em choque com o culto que lhe
discursos dos políticos, os anúncios dos comerciantes, a moral professamos. Ela está presente em nossas festas, em nossos jogos, em
pública, os costumes, a alegria a baixo preço e a saúde ao alcance de nossos amores e em nossos pensamentos. Morrer e matar são idéias
todos, que nos oferecem os hospitais, as farmácias e os campos de que poucas vezes nos abandonam. A morte' nos seduz. O fascínio que
esporte. Mas a morte, já não como trânsito, e sim como uma grande exerce sobre nós talvez nasça do nosso hermetismo e da fúria com
boca vazia que nada sacia, habita tudo o que empreendemos. O que o rompemos. A pressão da nossa vitalidade, constrangida a se
século da saúde, da higiene, dos anticoncepcionais, das drogas expressar em formas que a traem, explica o caráter mortal, agressivo
milagrosas e dos alimentos sintéticos, é também o século dos campos ou suicida, das nossas explosões. Quando estouramos, além disso,
de concentração, do Estado policial, da ex terminação atômica e da atingimos o ponto mais alto da tensão, roçamos o vértice vibrante da
"murder story". Ninguém pensa na morte, na sua própria morte, como vida. E então, à altura do arrebatamento, sentimos a vertigem: a
queria Rilke, porque ninguém vive uma vida pessoal. A matança morte nos atrai.
coletiva é apenas o fruto da coletivização da vida. Por outro lado, a morte nos vinga da vida, despe-a de todas as
Também para o mexicano moderno a morte carece de sig- vaidades e pretensões e a transforma no que é: alguns ossos limpos e
nificação. Deixou de ser trânsito, acesso a outra vida mais vida que a um esgar horrível. Num mundo fechado e sem saída, onde tudo é
nossa. Mas a intranscendência da morte não nos leva a eliminá-la da morte, o único valioso é a morte. Mas afirmamos uma coisa negativa.
nossa vida diária. Para o habitante de Nova York, Paris ou Londres, a Caveiras de açúcar ou de papel de seda, esqueletos coloridos de fogos
morte é a palavra que nunca é pronunciada, porque queima os lábios. de artifício, nossas representações populares são sempre zombaria da
O mexicano, pelo contrário, freqüentaa, ri dela, a acaricia, dorme vida, afirmação da ninharia e insignificância da humana existência.
com ela, festeja-a - é um dos seus brinquedos favoritos e seu amor Enfeitamos nossas casas com
mais permanente. Na verdade,

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caveiras; no dia de Finados, comemos pães que imitam ossos e nos o culto à vida, se na verdade é profundo e total, é também culto à
divertimos com canções e anedotas em que a morte pelada ri, mas toda morte. Ambas são inseparáveis. Uma civilização que nega a morte \
esta familiaridade fanfarrona não nos dispensa da pergunta que todos acaba por negar a vida. A perfeição dos criminosos modernos não é
fazemos: o que é a morte? Não inventamos uma resposta nova. E cada absolutamente uma conseqüência do progresso da técnica moderna, mas
vez que perguntamos por ela, encolhemos os ombros: que me importa a sim do desprezo à vida inexoravelmente implícito em toda escamoteação
morte, se a vida não me importa? voluntária da morte. E poderíamos acrescentar que a perfeição da técnica
O mexicano, obstinadamente fechado para o mundo e para os seus moderna e a popularidade da "murder story" são apenas frutos (como os
semelhantes, abre-se diante da morte? Adula-a, festeja-a, cultiva-a, campos de concentração e o emprego de sistemas de exterminação
abraça-se a ela, definitivamente e para sempre, mas não se entrega. Tudo coletiva) de uma concepção otimista e unilateral da existência. Assim, é
está longe do mexicano, tudo lhe é estranho e, em primeiro lugar, a inútil excluir a morte das nossas representações, das nossas palavras,
morte, a estranha por excelência. O mexicano não se entrega à morte, porque ela acabará por nos suprimir a todos e, em primeiro lugar, aos
porque a entrega traz em si o sacrifício. E o sacrifício, por sua vez, exige que a vivem ignorando ou fingindo que a ignoram.
que alguém dê e alguém receba. Isto é, que alguém se abra e encare a Quando o mexicano mata - por vergonha, prazer ou capricho -,
realidade que o transcende. Num mundo intranscendente, fechado sobre mata uma pessoa, um semelhante. Os criminosos e estadistas modernos
si mesmo, a morte mexicana não dá nem recebe; consome-se em si não matam: eliminam. Fazem experiências com seres que já perderam a
mesma e a si mesma se satisfaz. Assim, pois, nossas relações com a sua qualidade humana. Nos campos de concentração, primeiro o homem
morte são íntimas - mais íntimas, talvez, que as de qualquer outro povo -, é degradado; uma vez transformado em objeto, é exterminado em massa.
mas despidas de significação e desprovidas de erotismo. A morte O criminoso típico da grande cidade - além dos móveis concretos que o
mexicana é estéril, não engendra, como a dos astecas e a dos cristãos. impulsionam - realiza em pequena escala o que o caudilho moderno faz
em grande. Também experimenta, a seu modo: envenena, desmancha
Nada mais oposto a esta atitude que a dos europeus e norteamericanos.
cadáveres com ácidos, incinera despojos, transforma sua vítima em
Leis, costumes, moral pública e privada tendem a preservar a vida
objeto. A antiga relação entre vítima e sacrificador, que é a única coisa
humana. Esta proteção não impede que apareçam cada vez com mais que humaniza o crime, a única coisa que o torna imaginável,
freqüência engenhosos e refinados assassinos, eficazes produtores do desapareceu. Como nos romances de Sade, só há carrascos e objetos,
crime perfeito e em série. O reiterado aparecimento de criminosos instrumentos de prazer e destruição. E a inexistência da vítima torna
profissionais, que amadurecem e calculam seus assassinatos com uma mais intolerável e total a infinita solidão do sacrificador. Para nós, o
precisão inacessível a qualquer mexicano; o prazer com que narram suas crime ainda é uma relação - e neste sentido possui o mesmo significado
experiências, suas satisfações e seus procedimentos; o fascínio com que o liberador da festa ou da confissão. Daí seu dramatismo, sua poesia e por
público e os jornais acolhem suas confissões; e, finalmente, a reconhe- que não dizer? - sua grandeza. Graças ao crime, ascendemos a uma
cida ineficácia dos sistemas de repressão com que se pretende evitar efêmera transcendência.
novos crimes, mostram que o respeito à vida humana de que tanto se
orgulha a civilização ocidental é uma noção incompleta ou hipócrita.

Nos primeiros versos da Oitava elegia do Duino, Rilke diz que a


criatura - o ser na sua inocência animal - contempla

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o Aberto, ao contrário de nós, que nunca olhamos para diante, para o de um velho lugar-comum: todos nós somos pó e ao pó voltaremos.
absoluto. O medo nos faz virar o rosto, dar as costas à morte. E, ao nos Acredito, pois, que o poeta deseja encontrar na morte (que é, com efeito,
negarmos à sua contemplação, fatalmente nos fechamos para a vida, que a nossa origem) uma revelação que a vida temporal não lhe deu: a da
é uma totalidade que a traz em si. O Aberto é o mundo onde os verdadeira vida. Ao morrer
contrários se reconciliam e a luz e a sombra se fundem. Esta concepção
tende a devolver à morte seu sentido original, que nossa época lhe o ponteiro dos segundos
arrebatou: morte e vida são contrários que se complementam. Ambas são percorrerá o seu quadrante
metades de uma esfera que nós, sujeitos ao tempo e ao espaço, só tudo caberá num instante
podemos vislumbrar. No mundo pré-natal, morte e vida se confundem; e será possível talvez
no nosso, se opõem; no além, tornam a se reunir, não mais na cegueira viver, depois de ter morrido.
animal, anterior ao pecado e à consciência, mas sim como inocência
reconquistada. O homem pode transcender a oposição temporal que as Regressar à morte original será voltar à vida de antes da vida, à
cinde - e que não reside nelas, e sim na sua consciência - e percebê-las vida de antes da morte: ao limbo, às entranhas maternas.
como uma unidade superior. Este conhecimento só se opera por meio de Muerte sin fín, o poema de José Gorostiza, talvez seja o mais alto
um desprendimento: a criatura deve renunciar à vida temporal e à testemunho que possuímos, os hispano-americanos, de uma consciência
nostalgia do limbo, do mundo animal. Deve-se abrir para a morte, se verdadeiramente moderna, inclinada sobre si mesma, presa em si, na sua
quiser se abrir para a vida; então "será como os anjos". própria claridade cegante. O poeta, ao mesmo tempo lúcido e
Assim, diante da morte há duas atitudes: uma, para a frente, que a exasperado, deseja arrancar a máscara em face da existência, para
concebe como criação; outra, de regresso, que se expressa como fascínio contemplá-la em sua nudez. O diálogo entre o mundo e o homem, velho
pelo nada ou como nostalgia do limbo. Nenhum poeta mexicano ou como a poesia e o amor, transforma-se no da água com o copo que a
hispano-americano, com exceção, talvez, de César Vallejo, se aproxima cinge, no do pensamento com a forma como se verte e à qual acaba por
da primeira destas duas concepções. Em compensação, dois poetas corroer. Preso nas aparências - árvores e pensamentos, pedras e
mexicanos, José Gorostiza e Xavier Villaurrutia, encarnam a segunda emoções, dias e noites, crepúsculos, não apenas metáforas, fitas
destas duas diretrizes. Se, para Gorostiza, a vida é "uma morte sem fim", coloridas -, o poeta adverte que o sopro que infla a substância modela-a
um contínuo abismar-se em direção ao nada, para Villaurrutia, a vida é e a erige em forma, é o mesmo que a carcome e enruga e destrona. Neste
apenas "nostalgia da morte". drama sem personagens, pois todos não são nada além de reflexos,
A feliz imagem que dá título ao livro de Villaurrutia, Nostalgia de fantasias de um suicida que dialoga consigo mesmo numa linguagem de
la muerte, é mais que um acerto verbal. Com ela, o autor quer apontar o espelhos e ecos, também a inteligência não é outra coisa senão reflexo,
significado último de sua poesia. A morte como nostalgia e não como forma, e a mais pura, da morte, de uma morte apaixonada por si mesma.
fruto ou fim da vida equivale a afirmar que não viemos da vida, mas sim Tudo se abisma na própria claridade, tudo submerge em seu fulgor, tudo
da morte. O antigo e original, as entranhas maternas, são a cova, e não o se dirige para esta morte transparente: a vida é apenas uma metáfora,
útero. Esta asseveração corre o risco de parecer um paradoxo vão ou a uma invenção com que a morte - ela também! - se quer enganar. O
reiteração poema é o desenvolvimento tenso do velho tema de Narciso - a que, por
outro lado, não se alude uma só vez no texto. E

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não é só a consciência que se contempla a si mesma em suas águas lidão, vive-a como uma prova e como uma promessa de comunhão.
transparentes e vazias, espelho e olho ao mesmo tempo, como no O mexicano, conforme se viu nas descrições anteriores, não
poema de Valéry: o nada, que mente forma e vida, respiração e peito, transcende sua solidão. Pelo contrário, nela se fecha. Habitamos
que finge corrupção e morre, acaba por se despir e, já vazio, também nossa solidão como Filoctetes a sua ilha, não esperando, mas sim
se inclina sobre si mesmo: apaixona-se por ele mesmo, cai dentro de temendo voltar ao mundo. Não suportamos a presença dos nossos
si, incansável morte sem fim. companheiros. Fechados dentro de nós mesmos, quando não
dilacerados e alienados, depuramos uma solidão sem referências a
um além redentor ou a um aquém criador. Oscilamos entre a entrega
e a reserva, entre o grito e o silêncio, entre a festa e o velório, sem
Em suma, se na festa, na bebedeira ou na confidência, nos que nos entreguemos nunca. Nossa impassibilidade cobre a vida com
abrimos, fazemo-lo com tal violência que nos dilaceramos e aca- a máscara da morte; nosso grito estraçalha essa máscara e sobe ao
bamos por nos anular. E diante da morte, como diante da vida, damos céu até se distender, quebrar e cair, como derrota e silêncio. Por
de ombros e oferecemos um silêncio ou um sorriso desdenhoso. A ambos os caminhos o mexicano se fecha para o mundo: para a vida e
festa e o crime passional ou gratuito revelam que o equilíbrio de que para a morte.
nos gabamos é apenas uma máscara, sempre em perigo de ser
estraçalhada por uma. súbita explosão da nossa intiinidade.
Todas estas atitudes demonstram que o mexicano sente, em si
mesmo e na carne do país, a presença de uma mancha, difusa mas
não menos viva, original, indelével. Todos os nossos gestos tendem a
esconder esta chaga, sempre fresca, sempre pronta a se incendiar e
arder sob o sol do olhar alheio.
Ora, todo desprendimento provoca uma ferida. Não indagando
como, nem em que momento se produziu esse desprendimento, devo
notar que qualquer ruptura (conosco mesmo ou com o que nos cerca,
com o passado ou com o presente), origina um sentimento de solidão.
Nos casos extremos - separação dos pais, da matriz ou da terra natal,
morte dos deuses ou consciência aguda de si mesmo -, a solidão se
identifica com a orfandade. E ambas se manifestam geralmente como
consciência do pecado. As penalidades e a vergonha que o estado de
separação inflige podem ser consideradas, graças à introdução das
noções de expiação e redenção, como sacrifícios necessários, prendas
ou promessas de uma futura comunhão que porá fim ao exílio. A
culpa pode desaparecer, a ferida cicatrizar, o exílio resolver-se em
comunhão. A solidão adquire assim um caráter purgativo,
purificador. O solitário ou isolado transcende sua so-

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1
IV E tudo que se encontra distanciado do centro da sociedade aparece como
estranho e indecifrável. Os camponeses, remotos, ligeiramente arcaicos em
seu modo de vestir-se e falar, parcos, adeptos de expressar-se em forma e
fórmulas tradicionais, exercem sempre certa fascinação sobre o homem
urbano. Em todos os lugares representam sempre o elemento mais antigo e
OS FILHOS DA MALINCHE* secreto da sociedade. Para todos, exceto para si mesmos, encarnam o oculto,
o escondido, o que só dificilmente se entrega, tesouro enterrado, espiga que
amadurece nas entranhas terrestres, velha sabedoria oculta entre as
saliências do solo.
A mulher, outro entre os seres que vivem à margem, também é figura
enigmática. Para melhor dizê-lo, é o Enigma. À semelhança do homem de
raça ou de nacionalidade estranha, atrai e repele. ~ a imagem da
fecundidade, mas também a da morte. Em quase todas as culturas as deusas
da criação são também deidades da destruição. Cifra viva da estranheza do
A estranheza que o nosso hermetismo provoca criou a legenda do mexicano, universo e de sua radical heterogeneidade, a mulher: oculta a morte ou a
ser insondável. Nossa desconfiança provoca a distância. Se a nossa cortesia vida? Em que pensa? Por acaso pensa? Sente, de fato? B igual a nós? O
atrai, nossa reserva gela. E as inesperadas violências que nos dilaceram, o sadismo se inicia como vingança diante do hermetismo feminino ou como
esplendor convulso ou solene de nossas festas, o culto à morte, findam por tentativa desesperada para obter uma resposta de um corpo que tememos -
desconcertar o estrangeiro. A sensação que causamos não é diferente da que seja insensível. Porque, como diz Luís Cernuda, "o desejo é uma pergunta
produzem os orientais. Também eles, chineses, indianos ou árabes, são cuja resposta não existe". Apesar de sua nudez - redonda, cheia -, nas
herméticos e indecifráveis. Também eles arrastam atrás de si, em farrapos, formas da mulher há sempre algo que desvelar:
um passado ainda vivo. Há um mistério mexicano, como há um mistério
amarelo ou negro. O conteúdo concreto dessas representações depende de
cada espectador. Mas todos coincidem em fazer a nosso respeito uma
imagem ambígua, quando não contraditória: não somos gente de confiança e
nossas respostas, assim como nossos silêncios, são imprevisíveis, inespe- Eva y Cipris concentran el misterio
rados. Traição e lealdade, crime e amor, ocultam-se no fundo de nosso olhar. del corazón del mundo.
Atraímos e repelimos.
Para Rubén Darío, como para todos os grandes poetas, a mulher não é
Não é difícil compreender as origens desta atitude. Para o europeu, o
apenas um instrumento de conhecimento, e sim o próprio conhecimento. O
México é um país à margem da história universal.
conhecimento que jamais possuiremos, a súmula de nossa definitiva
ignorância: o mistério supremo.
Notável é que nossas representações da classe operária não estejam
carregadas de sentimentos semelhantes, apesar de que ,~sla também viva
• Este capítulo foi traduzido por Sebastião Uchoa Leite. Texto gentilmente distanciada do centro da sociedade - inclusive fisicamente, recolhida em
cedido pela Editora Perspectiva, que o publicou na coleção de ensaios de bairros e cidades especiais. Quando um romancista contemporâneo introduz
Octavio Paz Signo8 em Rotação. um personagem que simbo-

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liza a salvação ou a destruição, a fertilidade ou a morte, não escolhe, mas uma função. Assim, a sua obra não o distingue dos outros
como se poderia esperar, um operário, que encerra em sua figura a homens, tal como acontece com o médico, o engenheiro ou o
morte da velha sociedade e o nascimento de outra. D.H. Lawrence, carpinteiro. A abstração que o qualifica - o trabalho medido pelo
que é um dos críticos mais violentos e profundos do mundo moderno, tempo -, não o separa, mas liga-o a outras abstrações. Daí sua
descreve em quase todas as suas obras as virtudes que fariam do ausência de mistério, de problematicidade, daí a sua transparência,
homem fragmentário de nossos dias um homem de verdade, senhor de que não é diversa da de qualquer instrumento.
uma visão total do mundo. Para encarnar essas virtudes cria
A complexidade da sociedade contemporânea e a especialização
personagens de raças antigas e não européias. Ou inventa a figura de
que requer o trabalho estendem a condição abstrata do operário a
Mellors, um guarda florestal, um filho da terra. .f; possível que a
outros grupos sociais. Vivemos em um mundo de técnicos, diz-se.
infância de Lawrence, transcorrida entre as minas de carvão inglesas,
Apesar das diferenças de salários e de nível de vida, a situação desses
explique essa deliberada ausência. Sabe-se que detestava os operários
técnicos não difere essencialmente da dos operários: também são
tanto quanto os burgueses. Mas, como explicar que em todos os
grandes romances revolucionários tampouco apareçam os proletários assalariados e tampouco têm consciência da obra que realizam. O
como heróis e sim apenas como tela de fundo? Em todos, o herói é governo dos técnicos, ideal da sociedade contemporânea, seria assim
sempre o aventureiro, o intelectual ou o revolucionário profissional. O o governo dos instrumentos. A função substituiria a finalidade, o
homem à parte, que renunciou à sua classe, à sua origem ou à sua meio, ao criador. A sociedade caminharia com eficácia, mas sem
pátria. Herança do romantismo, sem dúvida, que faz do herói um ser destino. E a repetição do mesmo gesto, característica da máquina,
anti-social. Além disso, o operário é demasiado recente. E parece-se conduziria a uma forma desconhecida da imobilidade: a do
com os seus senhores: todos são filhos da máquina. mecanismo que avança de parte alguma para nenhum lado.
O operário moderno carece de individualidade. A classe é mais Os regimes totalitários nada fizeram senão estender e gene-
forte do que o indivíduo e a pessoa se dissolve no genérico. Porque ralizar, por meio da força ou da propaganda, esta condição. Todos os
essa é a primeira e a mais grave mutilação que o homem sofre ao homens submetidos ao seu império sofrem-na. Em certo sentido
converter-se em assalariado industrial. O capitalismo despoja-o de sua trata-se de uma transposição à esfera social e política dos sistemas
natureza humana - coisa que não ocorreu com o escravo -, já que econômicos do capitalismo. A produção em massa se consegue
reduz todo o seu ser à força de trabalho, transformando-o só por este através da confecção de peças soltas que a seguir são reunidas em
fato em objeto. E como todos os objetos, em mercadorias, em coisa oficinas especiais. A propaganda e a ação política totalitária, assim
susceptível de compra e venda. O operário perde, bruscamente, e em como o terror e a repressão, obedecem ao mesmo sistema. A
razão mesmo de seu estado social, toda relação humana e concreta propaganda difunde verdades incompletas, em série e em peças
com o mundo: nem são seus os instrumentos que manipula, nem é seu soltas. Mais tarde esses fragmentos se organizam e se convertem em
o fruto de seu trabalho. Sequer chega a vê-lo. Na realidade, não é um teorias políticas, verdades absolutas para as massas. O terror obedece
operário, já que não produz obras ou não tem consciência de que as ao mesmo princípio. A perseguição começa contra grupos isolados -
produz, perdido em determinado aspecto da produção. .f; um traba- raças, classes, dissidentes, suspeitosos -, até que gradualmente
lhador, nome abstrato, que não designa uma tarefa determinada, alcança a todos. Ao iniciar-se, uma parte do povo contempla com
indiferença o extermínio de outros grupos sociais ou contribui para a
sua perseguição, pois os ódios internos são exasperados. Todos se
tomam cúmplices

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e o sentimento de culpa se estende a toda a sociedade. O terror se traordinário de nossa situação reside no fato de que não somente somos
generaliza: só existem agora pers-eguidores e perseguidos. O enigmáticos para os estranhos, como para nós mesmos. Pois bem, nada
perseguidor, por outro lado, transforma se muito facilmente em mais simples do que reduzir todo o complexo grupo de atitudes que nos
perseguido. Basta um giro da máquina política. E ninguém escapa a esta caracteriza - e em particular a que consiste em sermos um problema para
dialética feroz, nem os próprios dirigentes. nós mesmos - ao que se poderia chamar de "moral de escravo", não
O mundo do terror, como o mundo da produção em série, é um mundo de apenas em oposição à "moral de senhor", como também à moral
objetos, de utensílios. (Donde a vaidade da disputa sobre a vali dez moderna, proletária ou burguesa.
histórica do terror moderno.) E os utensílios nunca são misteriosos ou A desconfiança, a dissimulação, a reserva cortês que fecha a
enigmáticos, pois o mistério provém da indeterminação do ser ou do passagem para o estrangeiro, a ironia, enfim, todas as oscilações
objeto que o contém. Um anel misterioso se desprende imediatamente do psíquicas com que ao eludir-se ante a contemplação alheia nos eludimos
gênero anel; adquire vida própria, deixa de ser um objeto. Em sua forma a nós mesmos, são traços de gente dominada, que teme e finge diante do
jaz, oculta, prestes a saltar, a surpresa. O mistério é uma força ou uma senhor. É revelador que a nossa intimidade jamais aflore de maneira
virtude oculta, que não nos obedece e que não sabemos a que hora e natural, sem o estímulo da festa, do álcool ou da morte. Escravos, servos
como vai manifestar-se. Mas os instrumentos não ocultam nada, e nada ou raças submetidas apresentam-se sempre cobertos por uma máscara,
nos indagam, nem respondem. São inequívocos e transparentes. São sorridente ou austera. E unicamente a sós, nos grandes momentos,
simples prolongações de nossas mãos, não possuem outra vida a não ser a atrevem-se a manifestar-se tal como são. Todas as suas relações estão
que lhes outorgamos pela vontade. Servem-nos. E logo, gastos, velhos, envenenadas pelo medo e pelo receio. Medo ao senhor e receio diante de
nós os lançamos sem pensar à lata de lixo, ao cemitério de automóveis, seus iguais. Cada um observa o outro, porque cada companheiro pode ser
ao campo de concentração. Ou os trocamos, com nossos aliados ou também um traidor. Para sair de si mesmo o servo necessita saltar
inimigos, por outros objetos. barreiras, esquecer sua condição. Viver a sós, sem testemunhas. Apenas
Todas as nossas faculdades, e também todos os nossos defeitos, na solidão atreve-se a ser.
opõem-se a esta concepção do trabalho como esforço impessoal, repetido A indubitável analogia que se observa entre certas de nossas
em iguais e vazias porções de tempo: a lentitude e cuidado na tarefa, o atitudes e as dos grupos submetidos ao poder de um senhor, uma casta ou
amor pela obra e por cada um dos detalhes que a compõem, o bom gosto, um estado estrangeiro, poderia resolver-se nesta afirmação: o caráter dos
já inato, à força de ser uma herança milenar. Se não fabricamos produtos mexicanos é um produto das circunstâncias sociais imperantes em nosso
em série, sobressaímos na arte difícil, delicada e inútil de vestir pulgas. O país; a história do México, que é a história dessas circunstâncias, contém
que não quer dizer que o mexicano seja incapaz de converter-se no que a resposta a todas as perguntas. A situação do povo durante o período
se chama de um bom operário. colonial seria assim a raiz de nossa atitude fechada e instável. Nossa his-
Tudo é questão de tempo. E nada, exceto uma mudança histórica tória como nação independente contribuiria também para perpetuar e
cada vez mais remota e impensável, impedirá que o mexicano deixe de tornar mais nítida esta psicologia servil, já que não logramos suprimir a
ser um problema, um ente enigmático, e converta-se em mais uma miséria popular nem as exasperantes diferenças sociais, apesar de século
abstração. e meio de lutas e experiências constitucionais. O emprego da violência
Enquanto não chega este momento, que resolverá, aniquilando-as, como recurso dialético, os
todas as nossas contradições, devo assinalar que o ex-

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abusos de autoridade dos poderosos - vício que ainda não desa- matéria plástica e com elas se funde. Ao esculpi-las, esculpe-se a si
pareceu -, e finalmente o ceticismo e a resignação do povo, hoje mais mesmo.
visível do que nunca devido às sucessivas desilusões pós- Se não é possível identificar nosso caráter com os dos grupos
revolucionárias, completariam esta explicação histórica. submetidos, não se pode também negar seu parentesco. Em ambas as
O defeito de interpretações como a que acabo de esboçar reside, situações o indivíduo e o grupo lutam, simultânea e
precisamente, em sua simplicidade. Nossa atitude diante da vida não contraditoriamente, para ocultar-se e revelar-se. Mas uma diferença
está condicionada pelos fatos históricos, ao menos da maneira nos separa. Servos, criados ou vítimas de um poder estranho qualquer
rigorosa com que, no mundo da mecânica, a velocidade ou a trajetória (os negros norte-americanos por exemplo) estabelecem um combate
de um projétil encontra-se determinada por um conjunto de fatores com uma realidade concreta. Nós, ao contrário, lutamos com
conhecidos. Nossa atitude vital - que é um fator que jamais entidades imaginárias, vestígios do passado ou fantasmas
conheceremos totalmente, pois mudança e indeterminação são as engendrados por nós mesmos. Esses fantasmas e vestígios são reais,
únicas constantes de seu ser - também é história. Quer dizer, os fatos ao menos para nós. Sua realidade é de uma espécie sutil e atroz,
históricos não são simplesmente fatos, mas estão embebidos de porque é uma realidade fantasmagórica. São intocáveis e invencíveis,
humanidade, isto é, de problematicidade. Tampouco são o simples pois não estão fora de nós, e sim dentro de nós mesmos. Na luta que
resultado de outros fatos que os tenham causado, mas de uma vontade contra eles sustenta a nossa vontade de ser, contam com um aliado
singular, capaz de reger sua fatalidade dentro de certos limites. A secreto e poderoso: nosso medo de ser. Porque tudo que é o mexicano
história não é um mecanismo e as influências entre os diversos atual, como já se viu, pode reduzir-se a isto: o mexicano não quer ou
componentes de um fato histórico são recíprocas, como tantas vezes não se atreve a ser ele mesmo.
já foi dito. O que distingue um fato histórico dos outros é o seu Em muitos casos estes fantasmas são vestígios de realidades
caráter histórico. Ou seja, que é por si mesmo e em si mesmo uma passadas. Originaram-se das lutas na Conquista, na Colônia ou na
unidade irredutível a outras. Um fato histórico não é o produto dos Independência ou nas guerras sustentadas contra os ianques e os
chamados fatores da história, mas uma realidade indissolúvel. As franceses. Outros refletem nossos problemas atuais, mas de uma
circunstâncias históricas explicam nosso caráter na medida em que maneira indireta, ocultando ou disfarçando a sua verdadeira natureza.
nosso caráter também as explica. Ambos são o mesmo. Por isso toda Não é extraordinário que desaparecidas as causas persistam os
explicação puramente histórica é insuficiente, o que não equivale a efeitos? E que os efeitos ocultem as causas? Nesta esfera é
dizer que seja falsa. impossível cindir causas e efeitos. Na realidade, não há causas e
efeitos, mas um complexo de reações e tendências que se penetram
Basta uma observação para reduzir a suas verdadeiras pro-
mutuamente. A persistência de certas atitudes e a liberdade e
porções a analogia entre a moral dos servos e a nossa: as reações independência que assumem diante das causas que se originaram
habituais do mexicano não são privativas de uma classe, raça ou levam-nos a estudá-las na carne viva do presente, c não nos textos
grupo isolado, em situação de inferioridade. As classes ricas também históricos.
se fecham ao mundo exterior e também se dilaceram cada vez que Em suma, a história poderá esclarecer a origem de muitos de
tentam abrir-se. Trata-se de uma atitude que ultrapassa as nossos fantasmas, mas não os dissipará. Somente nós podere- 1l10S
circunstâncias históricas, embora sirva-se delas para manifestar-se e enfrentá-los. Ou, dizendo de outro modo: a história nos auxilia a
se modifique ao seu contato. O mexicano, como todos os homens, ao compreender certos traços de nosso caráter, com a condição de que
servir-se das circunstâncias converte-as em sejamos capazes de isolá-los e denunciá-los pre-

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viamente. Somente nós podemos responder às perguntas que nos
fazem a realidade e o nosso próprio ser. México, filhos da Cbingada!" Verdadeiro grito de guerra, carregado
de uma eletricidade especial, esta frase é um repto e uma afirmação,
Em nossa linguagem cotidiana há um grupo de palavras um disparo, dirigido contra um inimigo imaginário, e uma explosão
proíbidas, secretas, sem conteúdo claro e a cuja mágica ambi- no ar. Novamente, com certa patética e plástica fatalidade, apresenta-
güidade confiamos a expressão das mais grosseiras ou sutis de nossas se a imagem do foguete que sobe aos céus, dispersa-se em faíscas e
emoções e reações. Palavras malditas, que só pronunciamos em voz cai obscuramente. Ou do uivo com que terminam as nossas canções e
alta quando não estamos senhores de nós mesmos. Confusamente, que possui a mesma ressonância ambígua; alegria rancorosa,
refletem a nossa intimidade: as explosões de nossa vitalidade as dilacerada afirmação que abre o peito e consome-se a si mesma.
iluminam e as dqpressões de nosso ânimo as obscurecem. Linguagem Com esse grito, que é obrigatório soltar-se em cada 15 de
sagrada, como a das crianças, da poesia ou das seitas secretas. Cada setembro, aniversário da Independência, afirmamo-nos e afirmamos a
letra e cada sílaba estão animadas de uma dupla vida, ao mesmo tempo nossa pátria, diante, contra e apesar dos outros. E quem são os
luminosa e obscura, que nos revela e oculta. Palavras que não dizem demais? São os "hijos de la Chingada": os estrangeiros, os maus
nada e dizem tudo. Os adolescentes, quando querem passar por mexicanos, nossos inimigos, nossos rivais. Em todo caso, os "outros".
homens, as pronunciam com voz rouca. Repetem-nas as senhoras, seja E esses outros não se definem a não ser enquanto filhos de uma mãe
para dar a entender a sua liberdade de espírito, seja para revelar a tão indeterminada e vaga como eles mesmos.
verdade de seus sentimentos. Pois estas palavras são definitivas, Quem é a Chingada? Antes de tudo, é a Mãe. Não uma mãe de
categóricas, apesar de sua ambigüidade e da facilidade com que variam carne e osso, mas uma figura mítica. A Cbingada é uma das
de significado. São as palavras más, única linguagem viva em um representações mexicanas da Maternidade, como a "Llorona" ou a
mundo de vocábulos anêmicos. A poesia ao alcance de todos. "sofrida mãe mexicana" que festejamos no dia 1 O de maio. A
Chingada é a mãe que sofreu, metafórica ou realmente, a ação
Cada país tem a sua. Na nossa, em suas breves sílabas, desgarradas,
corrosiva e infamante implícita no verbo que lhe dá o nome. Vale a
agressivas e faiscantes, semelhantes à luz momentânea de um punhal
pena deter-se no significado deste vocábulo.
quando descarregado contra um corpo opaco e duro, condensam-se
todos os nossos apetites, iras e entusiasmos e os desejos que se Em Anarquia dei lenguage en la América Espaiiala, Dario R
embatem no fundo de nosso ser, inexpressados. Essa palavra é a nossa ubio examina a origem desta palavra e enumera as significações que
imagem e senha. Por ela e nela nos reconhecemos entre estranhos e lhe são emprestadas por todos os povos hispano-americanos. Sua
dela nos socorremos cada vez que aflora aos nossos lábios a condição procedência asteca é provável: chingaste é xinachtli (semente do
de nosso ser. Conhecê-Ia, usá-la, lançando-a ao ser como. um fogo de hortaliça) ou xinaxtli (hidromel fermentado). O vocábulo e IICllS
artifício vistoso ou fazendo-a vibrar como uma arma afiada, é uma derivados se usam, em quase toda a América e em algumas n'Aiõcs
maneira de afirmar a nossa mexicanidade. da Espanha, associados às bebidas, alcoólicas ou não: chlngaste são os
resíduos que ficam no, copo, na Guatemala e em Salvador; em
Toda a angustiosa tensão que nos habita expressa-se em uma
Oaxaca chamam chingaditos aos restos do café; em 111<10 o México se
frase que nos vem à boca quando a cólera, a alegria ou o entusiasmo
chama chinguere - ou, significativamente, JII"tlNe (picada) - à bebida
nos levam a exaltar a nossa condição de mexicanos: "Viva
alcoólica; no Chile, no Peru e no I''t"lldor a chingada é a taberna; na
Espanha, chingar equivale

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a beber muito, a embriagar-se; e em Cuba um chinguirito é um trago violência sobre o outro. g um verbo masculino, ativo, cruel: pica,
de bebida. fere, mancha, dilacera. E provoca uma amarga e ressentida satisfação
Chingar também implica a idéia de fracasso. No Chile e na em quem o executa.
Argentina, um petardo (fogo de artifício) se chinga "quando se frustra O chingado é o passivo, o inerte e aberto, por oposição ao que
ou não tem efeito". E as empresas que fracassam, as festas que se chinga, que é ativo, agressivo, fechado. O chingón é o macho,
desmancham, as ações que não atingem o seu objetivo, se chingam, Na  que abre. A chingada, a fêmea, a passividade pura, inerme ante
Colômbia chingar-se é ser vítima de um logro, de um engano. Na exterior. A relação entre ambos é violenta, determinada pelo poder
região do Prata um vestido rasgado é um vestido chingado. Em quase cínico do primeiro e a impotência da outra. A idéia de violação rege
todos os lugares chingar-se é ser enganado, fracassar. Do mesmo obscuramente todos os significados. A dialética do "fechado" e do
modo, emprega-se chingar em alguns lugares da América do Sul como "aberto" cumpre-se' assim com uma precisão quase feroz.
sinônimo de incomodar, censurar, enganar. g um verbo agressivo, O poder mágico da palavra se intensifica por seu caráter
como se pode ver por todas estas significações: cortar a cauda dos proibido. Ninguém a diz em público. Somente um excesso de cólera,
animais, troçar, atiçar os galos, burlar, prejudicar, deitar a perder, uma emoção ou um entusiasmo delirante justificam sua expressão
frustrar. franca. g um vocábulo que só se ouve entre homens ou nas grandes
No México, os significados da palavra são inumeráveis. g um festas. Ao gritá-lo, rompemos um véu de pudor. de silêncio ou de
vocábulo mágico. Basta uma mudança de tom, uma simples inflexão, hipocrisia. Manifestamo-nos tais como somos. As palavras torpes
para que o sentido varie. Há tantos matizes quanto entonações: tanto fervem em nosso interior como fervem os nossos sentimentos.
os significados como sentimentos. Pode-se ser um chingôn; um Gran Quando saem, fazem-no brusca, brutalmente, em forma de alarido, de
Chingón (nos negócios, na política, no crime, com as mulheres), um desafio, de ofensa. São projéteis ou punhais. Dilaceram.
chingaquedito (silencioso, dissimulado, urdindo intrigas na sombra, Os espanhóis também abusam das expressões fortes. Diante
avançando cauteloso para dar o golpe), um chingonclto, Mas a deles o mexicano é singularmente pulero. Mas enquanto os espanhóis
pluralidade de significações não Impede que a idéia de agressão - em se comprazem na blasfêmia e na escatologia, nós nos especializamos
todos os graus, desde o simples de incomodar, picar, humilhar, até o na crueldade e no sadismo. O espanhol é simples: insulta a Deus
de violar, dilacerar e matar - apresente-se sempre como significado porque acredita nele. A blasfêmia, diz Machado, 6 uma oração ao
último. O verbo denota violência, sair de si mesmo e penetrar no outro inverso. O prazer que experimentam muitos espanhóis, inclusive
pela força. E também ferir, rasgar, violar - corpos, almas, objetos _, alguns de seus mais altos poetas, quando uludem aos detritos e
destruir. Quando algo se quebra, dizemos: se chingou, Quando misturam a merda com o sagrado, parece-se um pouco com o das
alguém executa um ato desmedido e contra as regras, comentamos: crianças que brincam com a lama. Existe, ulérn do ressentimento, o
"fez uma chingadera", gosto pelos contrastes que gerou o estilo hurroco e a dramaticidade da
A idéia de romper e de abrir reaparece em quase todas as grande pintura espanhola. S6 um espanhol pode falar com autoridade
de Onã e Don Juan. Nas expressões mexicanas, ao contrário, não se
expressões. O vocábulo está carregado de sexualidade, mas não é
adverte a dualidade cspnnhola simbolizada pela oposição do real e do
sinônimo do ato sexual; pode-se chingar uma mulher sem possuí-la. E
ideal, os IDÍSIkus e os pícaros, o Quevedo fúnebre e o escatológico,
quando se alude ao ato sexual, a violação e a sedução lhe emprestam
mas a
um matiz peculiar. O que chinga jamais o faz com o consentimento da
chingada. Em suma, chingar é exercer

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dicotomia entre o fechado e o aberto. O verbo chingar indica o e da fricção de lábios coléricos ou entusiasmados, termina por gastar-
triunfo do fechado, do macho, do forte, sobre o aberto.
se, por esgotar seus conteúdos e desaparecer. :a uma palavra oca. Não
A palavra chingar, com todas essas múltiplas significações, define quer dizer nada. :a o Nada.
grande parte de nossa vida e qualifica nossas relações com O resto de
Após esta digressão, pode-se responder à pergunta: Que é a
nossos amigos e compatriotas. Para o mexicano a vida é uma
Chingada? A Chingada é a Mãe aberta, violada ou seduzida pela
possibilidade de chingar ou de ser chingado, Quer dizer, de humilhar,
força. O "filho da Chingada" é o fruto da violação, do rapto e da
castigar e ofender. Ou o inverso. Esta concepção da vida social como
burla. Se se compara esta expressão com a espanhola "hijo de puta",
combate gera fatalmente a divisão da sociedade em fortes e fracos. Os
fortes - os chingones sem escrúpulos, duros e inexoráveis - rodeiam-se adverte-se imediatamente a diferença. Para o espanhol a desonra
de fidelidades ardentes e interessadas. O servilismo diante dos consiste em ser filho de uma mulher que voluntariamente se entrega,
poderosos - particularmente na casta dos "políticos", isto é, dos uma prostituta; para o mexicano, em ser fruto de uma violação.
profissionais dos negócios públicos - é uma das deploráveis Manuel Cabrera faz-me observar que a atitude espanhola reflete
conseqüências desta situação. Outra, não menos degradante, é a uma concepção histórica e moral do pecado original, enquanto que a
adesão às pessoas e não aos princípios. Com freqüência os nossos do mexicano, mais profunda e genuína, transcende a ética e a
políticos confundem os negócios públicos com os privados. Não anedota. De fato, toda mulher, ainda que se entregue voluntariamente,
importa. Sua riqueza ou sua influência na administração permite-lhes é dilacerada, chingada pelo homem. Em certo sentido todos somos, só
sustentar uma mesnada que o povo chama, muito propriamente, de pelo fato de nascermos de mulher, filhos da Chingada, filhos de Eva.
lambiscones (de lamber). Mas o característico do mexicano reside, em "meu entender, na
O verbo chingar - maligno, ágil e saltitante como um animal de violenta, sarcástica humilhação da mãe e na não menos violenta
rapina - gera muitas expressões que fazem de nosso mundo uma afirmação do Pai. Uma amiga minha ~ as mulheres são mais
selva: há tigres nos negócios, águias nas escolas ou nos presídios, sensíveis à estranheza da situação observava-me que a admiração
leões entre os amigos. O suborno se chama "morder", Os burocratas pelo Pai, símbolo do fechado e do agressivo, capaz de chingar e abrir,
roem os seus ossos (os empregos públicos), E em um mundo de transparece em uma expressão que empregamos quando queremos
chingones, de relações duras, presididas pela violência e pelo receio, impor a outro a nossa superioridade: "Eu sou teu pai". Em resumo, a
no qual ninguém se abre nem se rompe e todos querem chingar, as questão da origem é o centro secreto de nossa ansiedade e angústia.
idéias e o trabalho contam pouco. O único que vale é a hombria (a Vale a pena deter-se um pouco no sentido que tudo isto tem para nós.
macheza), o valor pessoal, capaz de impor-se. Estamos sós. A solidão, de cuja profundidade brota a anI;ústia,
O vocábulo tem, além disso, outro significado mais restrito. começou no dia em que nos despedimos do âmbito materno e caímos
Quando dizemos "vai para a Chingada", enviamos nosso interlocutor em um mundo estranho e hostil. Caímos; e esta queda, este saber que
a um lugar distante, vago e indeterminado. Ao país das coisas gastas, caímos, nos toma culpados. De quê? De um delito sem nome: o de ter
arruinadas. País cinzento, que não está em nenhuma parte, imenso e nascido. Estes sentimentos são comuns a todos os homens e não há
vazio. E não somente por simples associação fonética o comparamos nada neles que seja específí•.• unente mexicano; sendo assim, não se
com a China, que é também imensa e remota. A Chingada, à força de trata aqui de repetir uma .lrscrição que já foi feita muitas vezes, e sim
uso, de significações contrárias de assinalar alguns

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traços e emoções que iluminam com uma luz particular a condição mossexuais, como o uso e o abuso da pistola, símbolo fálico portador
universal do homem. da morte e não da vida, o gosto pelas confrarias cerradamente
Em todas as civilizações a imagem do Deus Pai - que logo masculinas etc. Mas qualquer que seja a origem dessas atitudes, o
destrona as divindades femininas - apresenta-se como uma figura fato é que o atributo essencial do "macho", a força, manifesta-se
ambivalente. Por um lado, seja Jeová, Deus Criador ou Zeus, rei da quase sempre como capacidade de ferir, romper, aniquilar, humilhar.
criação, regulador cósmico, o Pai encarna o poder genérico, origem da Nada mais natural, portanto, do que sua indiferença diante da prole
vida; por outro lado, é o princípio anterior, o Uno, de onde tudo nasce que gera. Não é o fundador de um povo; não é o patriarca que exerce
e onde tudo desemboca. Mas, além disso, é o senhor do raio e do
a patria potestas; não é rei, juiz, chefe do clã. :B o poder, isolado em
látego, o tirano e o ogre devorador da vida. Este aspecto - Jeová
sua própria potência, sem relação nem compromisso com o mundo
colérico, Deus da ira, Saturno, Zeus violador de mulheres - é o que
exterior. :B a incomunicação pura, a solidão que se devora a si mesma
aparece quase exclusivamente nas representações populares que o
e devora a tudo que toca. Não pertence a nosso mundo, não é de
mexicano faz para si mesmo do poder viril. O "macho" representa o
pólo masculino da vida. A frase "eu sou teu pai" não tem qualquer nossa cidade, não vive em nosso bairro. Vem de longe, está sempre
sabor paternal, nem se diz para proteger, resguardar ou conduzir, e sim :e
longe. :B o Estranho. impossível não perceber a semelhança entre a
para impor-se uma superioridade, isto é, para triunfar. Seu significado figura do "macho" com a do conquistador espanhol. Esse é o modelo
real não é distinto do verbo chingar e alguns de seus derivados. O - mais mítico do que real - que rege as representações feitas pelo
"Macho" é o Gran Chingón. povo mexicano dos poderosos: caciques, senhores feudais, políticos,
Uma palavra resume a agressividade, impassibilidade, invul- generais, capitães de indústria. Todos eles são "machos", chingones.
nerabilidade, uso descarnado da violência e demais atributos do O "macho" não tem qualquer contrapartida heróica ou divina.
"macho": poder. A força, mas desligada de toda noção de ordem: o Hidalgo, o "pai da pátria", como é costume chamar-se no jargão
poder arbitrário, a vontade sem freios e sem limites. ritual da República, é um ancião inerme, mais encarnação do povo
A arbitrariedade acrescenta um elemento imprevisto à figura do desvalido diante da força do que imagem do poder e da cólera do pai
"macho". :B um humorista. Suas brincadeiras são enormes, terrível. Entre os numerosos santos patronos dos mexicanos
descomunais e desembocam sempre no absurdo. :B conhecida a tampouco aparece algum que ofereça qualquer semelhança com as
anedota daquele que, para "curar" a dor de cabeça de um com- divindades masculinas. Finalmente, não existe uma veneração
panheiro de pândegas, esvaziou a pistola em seu crânio. Certo ou não, especial pelo Deus pai da Santíssima Trindade, figura um tanto
o sucedido revela com que inexorável rigor a lógica do absurdo se indistinta. Em compensação é muito freqüente e constante a devoção
introduz na vida. O "macho" faz chingaderas, isto é, atos imprevistos e a Cristo, o Deus filho, o Deus jovem, sobretudo como vítima
que produzem a confusão, o horror, a destruição. Abre o mundo; ao redentora. Nas igrejas das aldeias são abundantes ns imagens de
abri-lo, dilacera-o. O dilaceramento provoca um grande riso sinistro. Jesus - na cruz ou coberto de chagas e feridas
A seu modo, é justo: restabelece o equilíbrio, põe as coisas em seu , Das quais o realismo herdado dos espanhóis se alia ao simbo-
lugar, isto é, as reduz a pó, miséria, nada. O humorismo do "macho" é llsmo trágico dos índios: as feridas são flores, prendas da ressurrelção,
um ato de vingança. por um lado, e também reiteração de que a vida é a másl'llI a dolorosa
Um psicólogo diria que o ressentimento é o fundo de seu da morte.
caráter. Não seria difícil perceber também certas inclinações ho-

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o fervor do culto ao Deus filho poderia explicar-se, à primeira vista, um desenlace: ignora-se o lugar do túmulo de Cuauhtémoc. O
como herança das religiões pré-hispânicas. De fato, quando os mistério do destino de seus restos é uma de nossas obsessões.
espanhóis chegaram, quase todas as grandes divindades masculinas - Encontrá-lo significa nada menos do que voltar à nossa origem,
com exceção de Tláloc, criança e velho simultaneamente, divindade reatar nossa filiação, romper com a solidão. Ressuscitar.
das mais antigas - eram deuses filhos, como Xipe, deus do maiz Interrogando-se a terceira figura da tríade, a Mãe, escutaremos
(milho) ainda novo, e Huitzilopochtli, o "guerreiro do sul". Talvez uma dupla resposta. Não é segredo para ninguém que o catolicismo
não fosse ocioso lembrar que o nascimento de Huitzilopochtli oferece mexicano concentra-se no culto à Virgem de Guadalupe. Em
várias analogias com o de Cristo: também é concebido sem contato
primeiro lugar: trata-se de uma Virgem índia. Em seguida, o . lugar
carnal; o mensageiro divino também é um pássaro (que deixa cair
de sua aparição (diante do índio Juan Diego) é uma colina que foi
uma pena no regaço de Coatlicue); e, finalmente, também o infante
antes santuário dedicado a Tonantzin, "nossa mãe", deusa da
Huitzilopochtli tem de escapar à perseguição de um Herodes mítico.
Contudo, seria abusivo utilizar estas analogias a fim de explicar a fertilidade entre os astecas. Como se sabe, a Conquista coincide com
devoção a Cristo, como também o seria atribuí-la a uma mera o apogeu do culto a duas divindades masculinas: Ouetzalcóatl, o deus
sobrevivência do culto aos deuses jovens. O mexicano venera o Cristo do auto-sacrifício (cria o mundo, segundo o mito, lançando-se à
ensangüentado e humilhado, golpeado pelos soldados, condenado fogueira em Teotihuacán) e Huitzilopochtli, o jovem deus guerreiro
pelos juízes, porque nele vê a imagem transfigurada de seu próprio que sacrifica. A derrota deste deuses - pois isto foi a Conquista para o
destino. E é isto que também o leva a reconhecer-se em Cuauhtémoc, mundo índio: o fim de um ciclo cósmico e a instauração de um novo
o jovem imperador asteca destronado, torturado e assassinado por reinado divino - produziu entre os fiéis uma espécie de regresso às
Cortés. antigas divindades femininas. Este fenômeno de volta às entranhas
Cuauhtémoc quer dizer "águia que cai". O chefe mexicano maternas, bem conhecido dos psicólogos, é sem dúvida uma das
ascende ao poder ao iniciar-se o sítio de México- Tenochtitlán, causas determinantes da rápida popularidade do culto à Virgem. Pois
quando os astecas foram sucessivamente abandonados pelos seus bem, as deidades índias eram deusas da fecundidade, ligadas aos
deuses, seus vassalos e seu aliados. Ascende só para cair, como um ritmos cósmicos, os processos de vegetação e os ritos agrários. A
herói mítico. Inclusive sua relação com a mulher se ajusta ao Virgem católica é também uma Mãe (Guadalupe- Tonantzin, como
arquétipo do herói jovem, ao mesmo tempo amante e filho da Deusa. ainda a chamam alguns peregrinadores índios), mas seu atributo
Assim, Lópes Velarde diz que Cuauhtémoc sai ao encontro de Cortés, principal não é o de velar pela fertilidade da terra, e sim ser o refúgio
isto é, para o sacrifício final, "desprendendo-se do peito curvo da dos desamparados. A situação mudou: já não se trata de assegurar as
Imperatriz". B um guerreiro, mas também é uma criança. Só que o colheitas e sim de encontrar um regaço. A Virgem é o consolo dos
ciclo heróico não se fecha: hetói caído, ainda espera a sua pobres, o escudo dos fracos, o amparo dos oprimidos. Em.suma, 6 a
ressurreição. Não é surpreendente que, para a maioria dos mexicanos, Mãe dos órfãos. Todos os homens nasceram deserdados e nossa
Cuauhtémoc seja o "jovem avô", a origem do México: o túmulo do verdadeira condição é a orfandade, mas isto é particularmente certo
herói é o berço do povo. Tal é a dialética dos mitos e Cuauhtémoc, para os índios e os pobres do México. O culto à Virgem reflete não
antes de ser uma figura histórica, é um mito. E aqui intervém outro só a condição geral dos homens como também uma situação histórica
elemento decisivo, analogia que faz desta história um verdadeiro concreta, tanto no plano espiritual como no material. E ainda há mais:
poema em busca de Mãe universal, a Virgem é também a in-

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termediária, a mensageira entre o homem deserdado e o podei são os partidários de que o México se abra ao exterior: os verdadeiros
desconhecido, sem rosto: o Estranho. filhos da Malinche, que é a Chingada em pessoa. De novo surge o
Em contraposição a Guadalupe, que é a Mãe virgem, a Chingada é a cerrado por oposição ao aberto.
Mãe violada. Nem nela nem na Virgem encontramse vestígios dos Nosso grito é uma expressão da vontade mexicana de viver
atributos sombrios da Grande Deusa: lascívia de Amaterasu e fechados ao exterior, sim, mas sobretudo fechados em relação ao
Afrodite, crueldade de Ártemis e Astartéia, magia funesta de Circe, passado. Neste grito condenamos a nossa origem e renegamos o
amor pelo sangue de Kali. Trata-se de figuras passivas. Guadalupe é a nosso hibridismo. A estranha permanência de Cortés e da Malinche
receptividade pura e os benefícios que produz são da mesma ordem: na imaginação e na sensibilidade dos mexicanos atuais revela que são
consola, serena, tranqüiliza, enxuga as lágrimas, acalma as paixões. A algo mais do que figuras históricas: são símbolos de um conflito
Chingada é ainda mais passiva. Sua passividade é abjeta: não oferece secreto, que ainda não resolvemos. Ao repudiar a Malinche - Eva
resistência à violência, é um montão inerte de sangue, ossos e pó. Sua mexicana, tal como a representa José Clemente Orozco em seu mural
mancha é constitucional e reside, conforme já foi dito acima, em seu da Escola Nacional Preparatória -, o mexicano rompe suas ligações
sexo. Esta passividade aberta ao exterior a leva a perder a sua com o passado, renega a sua origem e penetra sozinho na vida
identidade: é a Chingada. Perde seu nome, já não é mais ninguém, histórica.
confunde-se com o nada, é o Nada. E, contudo, é a atroz encarnação O mexicano não quer ser nem índio, nem espanhol. Tamum
da condição feminina. conjunto de gestos, atitudes e tendências no qual já se torna difícil
distinguir o espanhol do índio. Por isso a tese hispanista, que nos faz
Se a Chingada é uma representação da Mãe violada, não me parece descender de Cortés com a exclusão da Malinche, é patrimônio de
forçado associá-la à Conquista, que foi também uma violação, não alguns poucos extravagantes, que nem sequer são brancos puros. E
somente no sentido histórico como na própria carne das índias. O outro tanto pode dizer-se da propaganda indigenista, que também é
símbolo da entrega é dona Malinche, a amante de Cortés. ~ verdade sustentada pelos crioulos e mestiços maníacos, sem que jamais os
que ela se entrega voluntariamente ao Conquistador, mas este, mal ela índios lhes tenham prestado atenção.
deixa de ser-lhe útil, a esquece. Dona Marina se converteu em uma O mexicano não quer ser nem índio, nem espanhol. Tampouco
figura que representa as índias, fascinadas, violadas ou seduzidas quer descender deles. Nega-os. E não se anima em sua condição de
pelos espanhóis. E do mesmo modo que a criança não perdoa à sua mestiço, mas só como abstração: é um homem. Tornase filho do
mãe porque a abandona para ir em busca de s-eu pai, o povo nada. Começa em si mesmo.
mexicano não perdoa à Malinche a sua traição. Ela encama o aberto, o Esta atitude não se manifesta em nossa vida diária, mas no curso
chingado, em relação aos nossos índios, estóicos, impassíveis, de nossa história, que em certos momentos chegou a ser uma
fechados. Cuauhtémoc e doiia Marina são assim dois símbolos encarniçada vontade de desenraizamento. Causa pasmo que um país
antagônicos e complementários. E se não é surpreendente o culto que com um passado tão vivo, profundamente tradicional, tão pobre em
todos professamos ao jovem Imperador - "único herói à altura da história moderna quanto rico em antiguidade legendária, só possa
arte", imagem do filho sacrificado -, muito menos será estranha a conceber-se como negação de sua origem.
maldição que pesa contra a Malinche. Daí o êxito do adjetivo Nosso grito popular nos despe e revela qual seja esta chaga que
depreciativo "malinchista", recentemente posto em circulação pelos alternativamente mostramos ou escondemos, mas não nos indica
periódicos para denunciar a todos os contagiados pelas tendências quais foram as causas dessa separação e negação da Mãe, nem
estrangeiras. Os malinchistas quando se realizou a ruptura. Com o propósito de examinar mais

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detidamente o problema, pode adiantar-se que a Reforma liberal de
meados do século passado parece ser o momento em que o mexicano
se decide a romper com a sua tradição, o que é uma maneira de
romper consigo mesmo. Se a independência corta os laços políticos
que nos uniam à Espanha, a Reforma nega que a nação mexicana,
v
enquanto projeto histórico, possa continuar a tradição colonial. Juárez
e sua geração fundam um Estado cujos ideais são distintos dos que
animavam a Nova Espanha ou as sociedades pré-cortesíanas, O CONQUISTA E COLÔNIA
Estado mexicano proclama uma concepção universal e abstrata do
homem: a República não é composta de crioulos, índios e mestiços,
tal como, com grande amor pelos matizes e respeito pela natureza
heteróclita do mundo colonial, especificavam as Leys de Indias, mas
somente por homens, nada mais. E sem mais ninguém.
A Reforma é a grande ruptura com a Mãe. Esta separação era
um ato fatal e necessário, porque toda vida verdadeiramente
autônoma se inicia COmo ruptura com a família e o passado. Mas Qualquer contato com o povo mexicano, mesmo fugaz, mostra
ainda nos dói esta separação. Ainda respiramos pela ferida. Daí que o que debaixo das formas ocidentais ainda palpitam as antigas crenças e
sentimento de orfandade seja o fundo constante de nossas tentativas costumes. Estes despojos, vivos ainda, são testemunho da vitalidade
políticas e de nossos conflitos íntimos. México está tão só como cada das culturas pré-cortesianas, Depois das descobertas dos arqueólogos
um dos seus filhos. e historiadores, já não é mais possível referir-se a estas sociedades
O mexicano e a mexicanidade se definem como ruptura e como tribos bárbaras ou primitivas. Para além do fascínio ou do
negação. E portanto como busca, como vontade de transcender esse horror que nos produzam, é preciso admitir que os espanhóis, ao
estado de exílio. Em resumo, como viva consciência da solidão, chegar ao México, encontraram civilizações complexas e refinadas.
histórica e pessoal. A história, que não nos podia dizer nada sobre a A América MediaI, isto é, o núcleo do que seria mais tarde a
natureza de nossos sentimentos e de nossos conflitos, pode mostrar- Nova Espanha, era um território que compreendia o centro e o sul do
nos agora como se realizou a ruptura e quais foram as nossas México atual e uma parte da América Central. Ao norte, nos desertos
tentativas para transcender a solidão. e nas planícies incultas, vagavam os nômades - os chichimecas, como,
de maneira genérica, sem distinguir a nação, eram chamados os
bárbaros habitantes do Planalto Central. As fronteiras entre uns e
outros eram instáveis, coma as de Roma. Os últimos séculos da
América Mediai podem ser reduzidos, um pouco sumariamente, à
história do encontro entre as levas de caçudores nortistas, quase todos
pertencentes à família nahuatl, e as populações sedentárias. Os astecas
são os últimos a se estabelecerem no Vale do México. O trabalho
prévio de erosão de seus predecessores e o desgaste dos recursos
íntimos das velhas cultu-

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ras locais tornou possível que realizassem a empresa extraordinária de e noutras, diversas tradições e heranças culturais se misturam e acabam
fundar o que Arnold Toynbee chama um Império Universal, erigido por se fundir. A homogeneidade cultural contrasta com as discórdias
sobre os restos das antigas sociedades. Os espanhóis, pensa o historiador perpétuas que os dividem.
inglês, não fizeram mais que substituílos, resolvendo numa síntese
No mundo helenístico, a uniformidade foi atingida por meio do
política a tendência à desagregação que ameaçava o mundo
predomínio da cultura grega, que absorve as culturas orientais. E difícil
mesamericano.
determinar qual foi o elemento unificador das sociedades indígenas.
Quando refletimos no que era o nosso país, na época da chegada de Uma hipótese, que não tem outro valor senão o de se apoiar numa
Cortés, surpreende-nos a pluralidade de cidades e culturas, que contrasta simples reflexão, faz pensar que o papel realizado pela cultura grega no
com a relativa homogeneidade de seus traços mais característicos. A mundo antigo foi cumprido na América Medial pela cultura, ainda sem
diversidade dos núcleos indígenas e as rivalidades que os dilaceravam nome próprio, que floresceu em Tula e Teotihuacán, e à qual, com certa
indica que a América Medial era constituída por um conjunto de povos, inexatidão, chamase "tolteca", A influência das culturas do Planalto
nações e culturas autônomas, com tradições próprias, exatamente como o Central no sul, principalmente na área ocupada pelo chamado segundo
Mediterrâneo e outras áreas culturais. Por si mesma, a América Medial Império maia, justifica esta idéia. B notável que não exista influência
era um mundo histórico. maia em Teotihuacán. Chichén-Itzá, pelo contrário, é uma cidade "tol-
Por outro lado, a homogeneidade cultural desses centros mostra teca". Tudo parece indicar, então, que em certo momento as formas
que a singularidade primitiva de cada cultura tinha sido substituída, em culturais do centro do México terminaram por se estender o predominar.
época talvez não muito remota, por formas religiosas e políticas De um ponto de vista muito geral, descreveu-se a América MediaI
uniformes. Com efeito, as culturas mães, no centro e no sul, tinham-se como uma área histórica uniforme, determinada pela presença constante
extinto há vários séculos já. Seus sucessores tinham combinado e de certos elementos comuns a todas as culturas: agricultura do milho,
recriado toda aquela variedade de expressões locais. Esta tarefa de calendário ritual, jogo de bola, sacrifícios humanos, mitos semelhantes,
síntese culminara com a edificação de um modelo, o mesmo, com leves solares e da vegetação etc. .. Dizse que todos estes elementos são de
diferenças, para todos. origem sulista e que foram assimilados algumas vezes pelas imigrações
Apesar do justo descrédito em que caíram as analogias históricas, nortistas. Assim, a cultura mesamericana seria o fruto de diversas
das quais se abusou com tanto brilho quanto leviandade, é impossível não criações do Sul, recolhidas, desenvolvidas e sistematizadas por grupos
comparar a imagem que nos oferece a América Medial, no começo do nômades. Este esquema esquece a originalidade de cada cultura local. A
século XVI, com a do mundo helenístico, no momento em que Roma semelhança que se observa entre as concepções religiosas, políticas e
inicia a sua carreira de potência universal. A existência de vários grandes míticas dos povos indo-europeus, por exemplo, não nega a originalidade
Estados e a persistência de um grande número de cidades independentes, de cada um deles. De qualquer maneira, além da originalidade particular
principalmente na Grécia insular e continental, não impedem, mas sim de cada cultura, é evidente que todas elas, decadentes ou enfraquecidas,
ressaltam, a uniformidade cultural desse universo. Selêucidas, estavam a ponto de serem absorvidas pelo Império asteca, herdeiro das
ptolomaicos, macedônios e muitos outros pequenos e efêmeros estados civilizações do planalto.
não se distinguem entre si pela diversidade e originalidade de suas Aquelas sociedades estavam impregnadas de religião. A prólida
respectivas sociedades, mas sim pelas rixas que fatalmente os dividem. sociedade asteca era um Estado teocrático e militar. Assim,
Outro tanto pode ser dito das sociedades mesamericanas. Numas

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a unificação religiosa antecedia, completava ou correspondia, de alguma a entender todos os textos que temos sobre este acontecimento grandioso
maneira, à unificação política. Com diferentes nomes, em línguas e sombrio.
diversas, mas com cerimônias, ritos e significações muito parecidos, cada Por que Moctezuma cede? Por que se sente estranhamente
cidade pré-cortesiana adorava deuses cada vez mais semelhantes entre si. fascinado pelos espanhóis e experimenta diante deles uma vertigem que
As divindades agrárias - os deuses do solo, da vegetação e da fertilidade, não é exagero chamar de sagrada - a vertigem lúcida do suicida diante do
como Tláloc - e os deuses nórdicos - celestes, guerreiros e caçadores, abismo? Os deuses o abandonaram. A grande traição que inicia a história
como Tezcatlipoca, Huitzilopochtli, Mixcóatl - conviviam num mesmo do México não é a dos tlaxcaltecas, nem a de Moctezuma e seu grupo,
culto. O traço mais marcante da religião asteca no momento da mas sim a dos deuses. Nenhum outro povo se sentiu tão totalmente
Conquista é a incessante especulação teológica que refundia, desamparado quanto se sentiu a nação asteca em face dos avisos, das
sistematizava e unificava crenças dispersas, próprias e alheias. Esta profecias e dos signos que anunciaram sua queda. Corremos o risco de
síntese não era o fruto de um movimento religioso popular, como as não compreender o sentido que tinham estes signos e profecias para os
religiões proletárias que se difundem no mundo antigo, ao iniciar-se o índios, se esquecermos sua concepção cíclica do tempo. Conforme
cristianismo, mas sim a tarefa de uma casta, colocada no pináculo da acontece com muitos outros povos e civilizações, para os astecas o
pirâmide social. As sistematizações, adaptações e reformas da casta tempo não era uma medida abstrata e vazia de conteúdo, mas sim algo de
sacerdotal refletem que na esfera das crenças também se procedia por concreto, uma força, substância ou fluido que se gasta e consome. Daí a
superposição - característica das cidades pré-hispânicas. Do mesmo necessidade dos ritos e sacrifícios destinados a revigorar o ano ou o
modo como uma pirâmide asteca às vezes recobre um edifício mais século. Mas o tempo - ou mais exatamente: os tempos -, além de
antigo, a unificação religiosa só afetava a superfície da consciência, constituir algo de vivo que nasce, cresce, decai, renasce, era uma
deixando intactas as crenças primitivas. Esta situação prefigurava a que sucessão que regressa. Um tempo acaba; outro volta. A chegada dos
introduziria o catolicismo, que também é uma religião superposta a um espanhóis foi interpretada por Moctezuma - pelo menos no princípio -
fundo religioso original e sempre vivente. Tudo preparava a dominação não tanto como um perigo "externo", mas sim como o acabar interno de
espanhola. uma era cósmica e o princípio de outra. Os deuses vão embora porque
seu tempo acabou; mas volta outro tempo e com ele outros deuses, outra
A conquista do México seria inexplicável sem estes antecedentes.
era.
A chegada dos espanhóis parece uma liberação para os povos submetidos
aos astecas. As diversas cidades-estados se aliam aos conquistadores ou Torna-se mais patética esta deserção divina quando se pensa na
contemplam com indiferença, quando não com alegria, a queda de cada juventude e no vigor do nascente Estado. Todos os velhos impérios,
como Roma e Bizâncio, sentem a sedução da morte no final de sua
uma de suas rivais, particularmente da mais poderosa: Tenochtitlán. Mas
história. Os cidadãos sacodem os ombros quando chega, sempre tardio, o
nem o gênio político de Cortés, nem a superioridade técnica - ausente em
golpe final do estranho. Há um cansaço imperial e a servidão parece
feitos de armas decisivos como a batalha de Otumba -, nem a deserção
carga leve para quem sente o cansaço do poder. Os astecas
de vassalos e aliados, teriam conseguido a ruína do império asteca, se
experimentam o calafrio da morte em plena Juventude, quando
este não tivesse sentido logo um desfalecimento, uma dúvida Íntima que caminhavam para a maturidade. Em suma, a conquista do México é um
o fez vacilar e ceder. Quando Moctezuma abre as portas de Tenochtitlán fato histórico onde intervêm muitas e drvcrsas circunstâncias, mas
aos espanhóis e recebe Cortés com presentes, os astecas perdem a freqüentemente se esquece a que me p.irece mais significativa: o suicídio
partida. Sua luta final é um suicídio, e assim dão do povo asteca. Lembremo-

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nos de que o fascínio pela morte não é tanto um traço de maturidade responde ao ideal de uma das frações principais da classe dirigente" 1.
ou de velhice quanto de juventude. Meio-dia e meia-noite são horas A dualidade da religião asteca, reflexo da sua divisão teocrático-
de suicídio ritual. Ao meio-dia, durante um instante, tudo se detém e militar e do seu sistema social, corresponde também aos impulsos
vacila; a vida, como o sol, pergunta-se a si mesma se vale a pena contraditórios que habitam cada ser e cada grupo humano. O instinto
continuar. Neste momento de imobilidade, que é também de da morte e o da vida brigam em cada um de nós. Estas tendências
vertigem, na metade do caminho, o povo asteca ievanta o rosto: os profundas impregnam a atividade de classes, castas e indivíduos e,
nos momentos críticos, manifestam-se em toda a sua nudez. A vitória
signos celestes lhe são adversos. E sente a atração da morte:
do instinto da morte revela que o povo asteca perde logo a
consciência do seu destino. Cuauhtémoc luta sabendo da derrota.
Nesta íntima e ousada aceitação da derrota fundamenta-se o caráter
Je pense, sur le bord doré de l'univers
trágico do seu combate. E o drama desta consciência que vê
A ce goút de périr qui prend la Pythonise En qui
mugit l'espoir que le monde tinisse. desmoronar-se tudo à sua volta, e em primeiro lugar os seus deuses,
criadores da grandeza do seu povo, parece presidir a nossa história
Uma parte do povo asteca desfalece e procura o invasor. A inteira. Cuauhtémoc e o seu povo morrem s6s, abandonados por
amigos, aliados, vassalos e deuses. Na orfandade.
outra, sem esperança de salvação, traída por todos, escolhe a morte.
Diante da mera presença dos espanhóis, produz-se uma cisão na A queda da sociedade asteca precipita a do resto do mundo
sociedade asteca, que corresponde ao dualismo de seus deuses, de índio. Todas as nações que o compunham estão presas do mesmo
seu sistema religioso e de suas castas superiores. horror, que se expressou quase sempre como uma fascinada aceitação
da morte. Poucos documentos são tão impressionantes como os
A religião asteca, como a de todos os povos conquistadores, ela uma
escassos que nos restam sobre essa catástrofe, que abismou numa
religião solar. No sol, o deus que é fonte de vida, o deus pássaro, e na imensa tristeza muitos seres. Eis o testemunho maia, conforme o
sua marcha que rompe as trevas e .se fixa no centro do céu como um relato de Chilam Balam de Chumayel: "No dia 11 de Ahan Katun
exército vencedor no meio de um campo de batalha, o asteca chegaram os estrangeiros de barbas louras, os filhos do sol, os
condensa todas as aspirações e empresas guerreiras do seu povo. Pois homens de cor clara. Ah, entristeçamo-nos porque chegaram! ... A
os deuses não são meras representações da natureza. Encarnam bordoada do branco descerá, virá do céu, por todos (lI! lados virá ...
também os desejos e a vontade da sociedade, que se autodiviniza Triste estará a palavra de Hunab-Ku, Única deidade para nós, quando
neles. Huitzilopochtli, o guerreiro do sul, "é o deus tribal da guerra e se estender por toda a terra a palavra do Deus dos céus ... " E mais
do sacrifício. .. e começa a sua carreira com uma matança. adiante: "Será o começo dos enforcamentes, o trovejar do raio no
Ouetzalcôatl-Nanauatzin é o deus-sol dos sacerdotes, que vêem no extremo do braço dos brancos" (as nunas de fogo) . .. "quando cair
auto-sacrifício voluntário a mais alta expressão da sua doutrina do sobre os Irmãos o rigor da batallm, quando pesar-lhes o tributo, na
mundo e da vida: Ouetzalcóatl é um rei-sacerdote, respeitoso dos ritos grande entrada do cristianis-
e dos decretos do destino, que não combate e que se dá morte para
renascer. HuitzilopochtIi, pelo contrário, é o sol-herói dos guerreiros,
que se defende, que luta e que triunfa, invictus sol que abate seus
inimigos com as chamas do seu xiucoatl. Cada uma destas
personalidades divinas cor- I.r Beques Soustelle, La pensée coemoloçique des anciens mexicains. "lIr1a,
1940.

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mo, quando se fundar o princípio dos Sete Sacramentos, quando empresa foram as Cruzadas, acontecimento histórico de signo di-
começarem os muitos trabalhos nas aldeias e a miséria se estabe- ferente da conquista da América. O primeiro foi um resgate; o
lecer na terra". segundo, uma descoberta e uma fundação. Enfim, muitos dos
conquistadores - Cortés, Jiménez de Quesada - são figuras in-
concebíveis na Idade Média. Tanto os seus gostos literários quanto o
A natureza da Conquista é igualmente complexa, da perspectiva
seu realismo político, tanto a consciência da obra que realizam
que nos oferecem os testemunhos legados pelos espanhóis. Tudo é
quanto o que Ortega y Gasset chamaria de o "seu estilo de vida", têm
contraditório aí. Como a Reconquista, é uma empresa privada e uma
pouca relação com a sensibilidade medieval.
façanha nacional. Cortés e o Cid guerreiam, por sua conta, sob a sua
Se a Espanha se fecha para o Ocidente e renuncia ao futuro, no
responsabilidade e contra a vontade dos seus senhores, mas em nome
momento da Contra-Reforma, não o faz sem antes adotar e assimilar
e proveito do rei. São vassalos, rebeldes e cruzados. Na sua
quase todas as formas artísticas do Renascimento: poesia, pintura,
consciência e na dos seus exércitos, combatem noções opostas: os
romance, arquitetura. Estas formas - como também out~as filosóficas
interesses da monarquia e os individuais, os da fé e os do lucro. E
cada conquistador, cada missionário e cada burocrata é um campo de e políticas -, misturadas a tradições e instituições espanholas de fundo
batalha. Se, isoladamente considerados, cada um representa os medieval, são transplantadas para o nosso continente. E é
grandes poderes que disputam a direção da sociedade - o feudalismo, significativo que a parte mais viva da herança espanhola na América
a Igreja e a monarquia absoluta _, no seu interior lutam outras seja constituída por estes elementos universais que a Espanha
tendências. As mesmas que distinguem a Espanha do resto da Europa assimilou num período também universal da sua história. A ausência
e que a tornam, no sentido literal da palavra, uma nação excêntrica. de casticismo, tradicionalismo e espanholismo - no sentido medieval
A Espanha é a defensora da fé, e seus soldados, os guerreiros de que se quis dar à palavra: crosta e casca da casta Castela - é um traço
Cristo. Esta circunstância não impede que o imperador e seus permanente da cultura hispano-americana, sempre aberta ao exterior
sucessores mantenham polêmicas encarniçadas com o Papado, que o e com vontade de universalidade. Nem Juan Ruiz de Alarcón, nem
Concílio de Trento não faz cessar completamente. A Espanha é uma Sor Juana, nem Darío, nem Bello, são espíritos tradicionais castiços.
nação ainda medieval, e muitas das instituições que erige na Colônia e A tradição espanhola que nós, os bispano-americanos, herdamos é a
muitos dos homens que as estabelecem são medievais. Ao mesmo que na própria Espanha foi vista com desconfiança ou desdém: a dos
tempo, a descoberta e a conquista da América são uma empresa heterodoxos, abertos para a Itália ou para a França. Nossa cultura,
renascentista. Assim, a Espanha também participa do Renascimento - como uma parte da espanhola, é escolha livre de uns tantos espíritos.
a menos que se pense que suas façanhas ultramarinas, conseqüência Assim, conforme observava Jorge Cuesta, define-se como uma
da ciência, da técnica e mesmo dos sonhos e das utopias liberdade diante do passivo tradicionalismo de nossos povos. B uma
renascentistas, não fazem parte desse movimento histórico. forma, às vezes superposta ou indiferente à realidade que a mantém.
Neste caráter fundamenta-se a sua grandeza e também, em alguns
Por outro lado, os conquistadores não são mais repetições do
casos, a sua vacuidade ou a sua impotência. O crescimento da nossa
guerreiro medieval, que luta contra mouros e infiéis. São aventureiros,
lírica - que é por natureza diálogo entre o poeta e o mundo - e a
isto é, gente que se interna nos espaços abertos e se arris~:II Jlcln
relativa pobreza de nossas formas épicas e dramáticas residem talvez
desconhecido, traço também renascentista. O cavaleiro !Íltdl'- ',JII ,,!'In
neste caráter alheio, desprendido da realidade, da nossa tradição.
contrário, vive num mundo fechado. Sua grande

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A disparidade de elementos e tendências observada na Conquista não foi uma ordem aberta. E esta circunstância, assim como as modalidades
turva sua clara unidade histórica. Todos eles refletem a natureza do da participação dos vencidos na atividade central da nova sociedade e
Estado espanhol, cujo traço mais notável consistia em ser uma criação religião, merecem um exame detido. A história do México, e mesmo a de
artificial, uma construção política no mais estrito significado da palavra. cada mexicano, provém precisamente desta situação. Assim, o estudo da
A monarquia espanhola nasce de uma violência: a que os reis católicos e ordem colonial é imprescindível. A determinação dos pontos mais
seus sucessores impõem à diversidade de povos e nações submetidos ao relevantes da religiosidade colonial - seja em suas manifestações
seu domínio. A unidade espanhola foi, e continua sendo, fruto da vontade populares ou na de seus espíritos mais representativos - nos há de
política do Estado, alheia à dos elementos que a compõem. (O catolicis- mostrar o sentido da nossa
mo espanhol sempre viveu em função desta vontade. Daí, talvez, seu tom cultura e a origem de muitos dos nossos conflitos posteriores.
beligerante, autoritário e inquisitorial.) A rapidez com que o Estado
espanhol assimila e organiza as conquistas que os particulares realizam
mostra que uma mesma vontade, perseguida com certta Inflexibilidade A presteza com que o Estado espanhol - eliminando ambições de
coerente, anima as empresas européias e as de ultramar. As colônias colonos, infidelidades de ouvidores e rivalidades de toda índole - recria
atingiram em pouco tempo uma complexidade e uma perfeição que as novas possessões à imagem e semelhança da metrópole é tão
contrastam com o lento desenvolvimento das fundadas por outros países. assombrosa como a solidez do edifício social que
A existência prév.ia de sociedades estáveis e maduras facilitou, sem constrói. A sociedade colonial é uma ordem feita para durar. Quero
dúvida, a tarefa dos espanhóis, mas é evidente a vontade hispânica de dizer, uma sociedade regida de acordo com princípios jurídi-
criar um mundo à sua imagem. Em 1604, menos de um século depois da cos, econômicos e religiosos plenamente coerentes entre si e que es-
queda de Tenochtitlán, Balbuena dá a conhecer a Grandeza Mexicana. tabeleciam uma relação viva e harmônica entre as partes e o todo. Um
Em resumo, contemple-se a Conquista da perspectiva indígena ou mundo suficiente, fechado para o exterior, mas aberto para o
extraterreno.
da espanhola, este acontecimento é expressão de uma vontade unitária.
:B muito fácil rir da pretensão extraterrena da sociedade colonial. E
Apesar das contradições que a constituem, a Conquista é um fato
mais fácil ainda denunciá-la como uma forma vazia, destinada a encobrir
histórico destinado a criar uma unidade, da pluralidade
os abusos dos conquistadores ou a justificá-los
cultural e política pré-cortesiana. Diante da variedade de raças, línguas, diante de si mesmos e diante de suas vítimas. Sem dúvida, isto é
tendências e Estados do mundo pré-hispânico, os espanhóis postulam um verdade, mas também o é que esta aspiração extraterrena não era um
único idioma, uma única fé, um único senhor. Se o México nasce no simples aposto, e sim uma fé viva e que mantinha, como a raiz à árvore,
século XVI, é preciso convir que é filho de uma dupla violência imperial fatal e necessariamente, outras formas culturais e econômicas. O
e unitária: a dos astecas e a dos espanhóis. catolicismo é o centro da sociedade colonial, porque verdadeiramente é a
O império que Cortês funda, sobre os restos das velhas culturas fonte de vida que nutre as atividades, as paixões, as virtudes e até os
aborígenes, era um organismo subsidiário, satélite do sol hispânico. A pecados de servos e senhores, funcionários e sacerdotes, comerciantes e
sorte dos índios poderia ter sido, assim, a de tantos po~ vos que vêem militares. Graças à religião, a ordem colonial não é uma mera
humilhada a sua cultura nacional, sem que a nova 1\1 clm.. - mera superposição de novas formas históricas, e sim um organismo vivo. Com
superposição tirânica - abra suas portas à par- 11111"1\"11 ,Iol! dominados. a chave do batismo, o catolicismo abre as portas da sociedade e a
Mas ° Estado fundado pelos espanhóis transforma numa ordem universal, aberta a todos os habitantes. Ao falar
em Igreja Catóuca, não me refiro absolutamente à obra apostólica dos
missioná-

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rios, mas sim ao seu corpo inteiro, com os seus santos, os seus lismo que os Índios chamavam os missionários de "ta tas" e a Virgem
prelados rapaces, os seus eclesiásticos pedantes, os seus juristas de Guadalupe de "madre".
apaixonados, as suas obras de caridade e o seu entesouramento de A diferença das colônias saxônicas é radical. A Nova Espanha
riquezas. conheceu muitos horrores, mas pelo menos ignorou o mais grave de
E verdade que os espanhóis não exterminaram os índios por- todos: negar um lugar, mesmo que seja o último na escala social, aos
que necessitavam da mão-de-obra nativa para o cultivo dos enormes homens que a compunham. Havia classes, castas, escravos, mas não
feudos e para a exploração mineira. Os índios eram bens que não havia párias, gente sem condição social determinada ou sem Estado
convinha desperdiçar. E difícil que a esta consideração se tenham jurídico, moral ou religioso. A diferença do mundo das modernas
misturado outras de caráter humanitário. Semelhante hipótese fará
sociedades totalitárias também é decisiva.
sorrir qualquer um que conheça a conduta dos colonos para com os
E verdade que a Nova Espanha, afinal uma sociedade satélite,
indígenas. Mas, sem a Igreja, o destino dos índios teria sido muito
não criou uma arte, um pensamento, um mito ou formas de vida
diverso. E não penso somente na luta empreendida para dulcificar
originais. (As únicas criações realmente originais da América - e
suas condições de vida e organizá-los de maneira mais justa e cristã,
naturalmente não excluo os Estados Unidos - são as précolombianas.)
mas sim na possibilidade que o batismo lhes oferecia de fazer parte,
Também é verdade que a superioridade técnica do mundo colonial e a
pela virtude da consagração, de uma ordem e de uma Igreja. Pela fé
introdução de formas culturais mais ricas e complexas que as
católica, os índios, em situação de orfandade, rompidos os laços com
suas antigas culturas, mortos tanto os seus deuses quanto as suas mesamericanas não bastam para justificar uma época. Mas a criação
cidades, encontraram um lugar no mundo. Esta possibilidade de de uma ordem universal, feito extraordinário da Colônia, chega a
pertencer a uma ordem viva, ainda que na base da pirâmide social, foi justificar esta sociedade e li redime de suas limitações. A grande
desapiedadamente negada aos nativos, pelos protestantes da Nova poesia colonial, a arte barroca, as Leis das lndias, os cronistas,
Inglaterra. Esquecemos com freqüência que pertencer à fé católica historiadores e sábios e, enfim, a arquitetura neo-hispânica, onde
significava encontrar um lugar no cosmos. A fuga dos deuses e a tudo, mesmo os frutos fantásticos e os delírios profanos, harmoniza-
morte dos chefes deixou o indígena numa solidão tão completa se sob uma ordem tão rigorosa quanto ampla - são apenas reflexos do
quanto difícil de imaginar, para um homem moderno. O catolicismo equilíbrio de uma sociedade em que também todos os homens e todas
fá-lo reatar seus laços com o mundo e o além-mundo. Devolve o as raças encontravam lugar, justificação e sentido. A sociedade era
sentido à sua presença na terra, alimenta suas esperanças e justifica regida por uma ordem cristã nada diferente da que admiramos em
sua vi- templos e poemas.
da e sua morte. Não pretendo justificar a sociedade colonial. A rigor, enquanto
subsista esta ou aquela forma de opressão, nenhuma sociedade se
E desnecessário acrescentar que a religião dos índios, como a de
justifica. Aspiro compreendê-la como uma totalidade viva e, por isso,
quase todo o povo mexicano, era uma mistura das novas e das antigas
contraditória. Do mesmo modo, nego-me a ver nos sacrifícios
crenças. Não podia ser de outro modo, pois o catolicismo foi uma
humanos dos astecas uma expressão isolada de crueldade, sem
religião imposta. Esta circunstância, da mais alta transcendência de
relação com o resto desta civilização: a extração de corações e as
outro ponto de vista, carecia de interesse imediato para os novos
pirâmides monumentais, a escultura e o canibalismo ritual,
crentes. O essencial era que suas relações sociais, humanas e
religiosas com o mundo circundante e com o Sagrado se tinham a poesia e a "guerra florida", a teocracia e os mitos grandiosos são
restabelecido. Sua existência particular estava inserta numa ordem um todo indissolúvel. Negar isto é tão infantil quanto negar a arte
mais vasta. Não foi por mera devoção ou servi- gótica ou a poesia provençal, em nome da situação dos servos
medievais, ou negar Esquilo porque havia escravos em Ate-

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nas. A história tem a realidade atroz de um pesadelo; a grandeza do biliza na Europa, na defensiva. A escolástica se defende mal, como as
homem consiste em fazer obras belas e duráveis com a substância pesadas naus espanholas, presas das mais leves, de holandeses e
real deste pesadelo. Ou, dito de outro modo: transfigurar o pesadelo ingleses. A decadência do catolicismo europeu coincide com o seu
em visão, liberar-nos, mesmo que por um só instante, da realidade apogeu híspano-americano: estende-se para terras novas, no momento
em que deixa de ser criador. Oferece uma filosofia feita e uma fé
disforme, por meio da criação.
petrificada, de modo que a originalidade dos novos crentes não
encontra ocasião de se manifestar. Sua adesão é passiva. O fervor e a
profundidade da religiosidade mexicana contrastam com a relativa
Durante séculos a Espanha digere e aperfeiçoa as idéias que lhe
pobreza de suas criações. Não possuímos uma grande poesia
tinham dado o ser. A atividade intelectual não deixa de ser criadora,
religiosa, como não temos uma filosofia original, nem sequer um
mas apenas na esfera da arte e dentro dos limites conhecidos. A
único místico ou reformador de importância.
crítica - que nestes séculos, em outros lugares, é a mais
Esta situação paradoxal - e nem por isso menos real - explica boa
alta forma de criação - quase não existe, neste mundo fechado e
parte da nossa história e é a origem de muitos dos nossos conflitos
satisfeito. Há, sim, a sátira, a discussão teológica e uma atividade
constante em aumentar, aperfeiçoar e tornar mais sólido o edifí- psíquicos. O catolicismo oferece um refúgio aos descendentes
cio que abrigava tantos e tão diversos povos. Mas os princípios que daqueles que tinham visto o extermínio de suas classes dirigentes, a
regem a sociedade são imutáveis e intocáveis. A Espanha já não destruição de seus templos e manuscritos e a supressão das formas
inventa, nem descobre: dilata-se, defende-se, recria-se. Não quer superiores de sua cultura, mas, em razão mesmo da sua decadência
mudar, e sim durar. E o mesmo acontece com suas possessões européia, nega-lhes qualquer possibilidade de expressar a sua
ultramarinas. Superada a primeira época de borrascas e distúrbios, a singularidade. Assim, reduziu a participação dos fiéis à mais
Colônia padece crises periódicas - c?mo a que atravessam Sigüenza e elementar e passiva das atitudes religiosas. Poucos po_ diam ãlcançar
Góngora e Sor Juana -, mas nenhuma delas toca as raízes do regime uma compreensão mais global de suas novas crenças. E a imobilidade
ou põe em xeque os princípios em que se fun- destas, assim como a do mofado instrumental escolástico, tornava
damenta. mais -difícil qualquer participação criadora. Junte-se a isso o fato de
O mundo colonial era projeção de uma sociedade que já tinha que o conjunto dos crentes descendia das classes inferiores da antiga
atingido sua maturidade e estabilidade na Europa. Sua originalidade é sociedade. Por esta razão, eram gente de tradição cultural pobre (os
escassa. A Nova Espanha não procura, nem inventa: aplica e adapta. depositários do saber mágico e religioso, guerreiros e sacerdotes,
Todas as suas criações, inclusive a do seu próprio ser, são reflexos tinham sido exterminados ou espanholizados). Em suma, a criação
das espanholas. E a permeabilidade com que lentamente as formas
religiosa estava vedada aos crentes, em conseqüência das
hispânicas aceitam as modificações que a realidade neo-hispânica
circunstâncias que determinavam sua participação. Daí a relativa
lhes impõe não nega o caráter conservador da Colônia. As sociedades
infecundidade do catolicismo colonial, sobretudo se nos lembrarmos
tradicionais, observa Ortega y Gasset, são realistas: desconfiam dos
da sua fertilidade entre bárbaros e romanos, cristianizados no
saltos bruscos, mas mudam devagar, aceitando as sugestões da
realidade. A "Grandeza Mexicana é a de um sol imóvel, meio-dia momento em que a religião era a única força viva do mundo antigo.
prematuro que já não tem nada que conquistar, a não ser a própria Não é difícil, pois, que a nossa atitude anti tradicional e a
decomposição. ambigüidade da nossa posição em face do catolicismo se originem
A especulação religiosa cessara há vários séculos. A doutriUIL deste fato. Religião e tradição ofere-
estava feita e tratava-se sobretudo de vivê-la. A Igreja se imo-

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ceram-se-nos sempre como formas mortas, inservíveis, que mutilam No relato do chamula, caso extremo e portanto exemplar, é
ou asfixiam nossa singularidade. visível a superposição religiosa e a presença marcante dos mitos
Não surpreende, nestas circunstâncias, a persistência do fundo indígenas. Antes do nascimento de Cristo, o sol - olho de Deus - não
pré-cortesiano, O mexicano é um ser religioso e sua experiência do esquenta. O astro é um atributo da divindade. Daí que o chamula
Sagrado é muito verdadeira, mas, quem é o seu Deus: as antigas repita que graças à presença de Deus a natureza se movimenta. Não é
divindades da terra, ou Cristo? Uma invocação chamula*, verdadeira esta uma versão, muito deformada, do formoso mito da criação do
prece, apesar da presença de certos elementos mágicos, responde com mundo? Em Teotihuacán os deuses também enfrentam o problema do
clareza a esta pergunta: astro-fonte-de-vida. E só o sacrifício de Ouetzalcóatl põe o sol em
movimento e salva o mundo do
Santa terra, santo céu; Deus Senhor, Deus Filho, Santa Terra, Santo incêndio sagrado. A persistência do mito pré-cortesiano coloca em
céu, santa glória, encarregue-se de mim, represente-me; veja o meu
relevo a diferença entre a concepção cristã e a indígena. Cristo salva
trabalho, veja a minha faina, veja o meu sofrer. Grande Homem, grande
Senhor, grande pai, grande petome··, grande espírito de mulher, ajude- o mundo, porque nos redime e lava a mancha do pecado original.
me. Em suas mãos coloco o tributo; aqui está a reposição do seu chulel. Quetzalcóatl é menos um deus redentor que recriador. A noção de
Pelo meu incenso, pelas minhas velas, espirito da lua, virgem mãe do pecado para os índios ainda está ligada à idéia de saúde e doença,
céu, virgem mãe da terra; Santa Rosa, pelo seu primeiro filho, pela sua pessoal, social e cósmica. Para o cristão, tratase de salvar a alma
primeira glória, veja o seu filho sacrificado no seu espírito, no seu chulel. individual, desprendida do grupo e do corpo. O cristianismo condena
o mundo; o índio s6 concebe a salvação pessoal como parte da do
Em muitos casos, o catolicismo apenas encobre as antigas cosmos e da sociedade.
crenças cosmogônicas. Eis como o mesmo chamula, Juan Pérez Nada transformou a relação filial do povo com o Sagrado, força
Jolote, nosso contemporâneo segundo o Registro Civil, nosso an- constante que dá permanência à nossa nação e profundidade à vida
tepassado se atentarmos para as nossas crenças, descreve a imagem afetiva dos desprivilegiados. E nada também conseguiu torná-la mais
de Cristo numa igreja do seu povoado, explicando o que significa desperta e fecunda, nem mesmo a mexicanização do catolicismo,
para ele e para a sua raça: nem mesmo a Virgem de Guadalupe. Por isso, os melhores não
vacilaram em se desprender do corpo da Igreja e
"Este que está no altar é o Senhor São Manuel; chama-se também air à intempérie. Lá, na solidão e na nudez do combate espiritual,
Senhor São Salvador, ou Senhor São Mateus; é quem cuida do povo, das respiraram um pouco desse "ar religioso fresco" que pedia Jorge
crianças. A ele pedimos que cuide de nós em casa, nos caminhos, na Cuesta.
t&rra. Este outro que está na cruz li também o Senhor São Mateus; está
ensinando, está mostrando como se morre na cruz, para nos ensinar a
respeitar .•. antes de que nascesse São Manuel, o sol era frio como a lua.
Na terra viviam os pukujeB, que comiam gente. O sol começou a A época de Carlos 11 é uma das mais tristes e vazias da história
esquentar quando nasceu o menino Deus, que é filho da Virgem, o da Espanha. Todas as suas reservas espirituais tinham sido devoradas
Senhor São Salvador" 2. pelo fogo de uma vida e de uma arte dinâmicas, retesadas pelos
extremos e pelas antíteses. A decadência da cultura es-
• o. chamulas são um povo indígena mexicano. (N.T.) panhola na península coincide com o seu meio-dia na América. A arte
tom •• okulel são palavras do idioma chamula. (N.T.) barroca atinge um mo~ento de plenitude neste período. Os melhores
, A., JUGn Pére. Jolote. Autobiografía tU un t.ot.ü, , 1l)6~. não escrevem só poesia. Interessam-se pela astronomia, pela física ou
pela antiguidade americana. Espíritos despertos numa

98 99
sociedade imobilizada pela formalidade pressagiam outra época e vidava, mas que não acertava em expressar sua intimidade por meio de
outras preocupações, ao mesmo tempo que levam até as últimas formas petrificadas. A ordem colonial foi uma ordem imposta de cima
conseqüências as tendências estéticas do seu tempo. Em todos eles se para baixo; suas formas sociais, econômicas, jurídicas e r.eligiosas
esboça uma certa oposição entre as concepções religiosas e as eram imutáveis. Sociedade regida pelo direito divino e pelo
exigências de sua curiosidade e rigor intelectuais. Alguns em- absolutismo monárquico, tinha sido criada em todas as suas peças
preendem uma síntese impossível. Sor Juana, por exemplo, em- como um imenso e complicado artefato, destinado a durar, mas não a
preende a composição do Primer sueiio, tentativa de conciliar ci- se transformar. Na época de Sor Juana os melhores espíritos começam
ência e poesia, barroquismo e iluminismo. a mostrar - ainda que de forma apagada e tímida - uma vitalidade e
Seria inexato identificar o drama desta geração com o que uma curiosidade intelectual em contraste marcante com a anemia da
dilacera seus contemporâneos europeus e que o século XVIII tornará Espanha negra de Carlos 11 (significativamente apelidado a
patente. a conflito que neles habita - e que acaba por reduzi-los ao Enfeitiçado). Sigüenza y Góngora se interessa pelas antigas
silêncio - não é tanto o da fé e da razão quanto o da civilizações índias e, com Sor Juana e alguns outros, pela filosofia de
petrificação de algumas crenças que tinham perdido toda a frescura e Descartes, a física experimental, a astronomia. A Igreja vê com receio
fertilidade e que, portanto, eram incapazes de satisfazer o que seu todas estas curiosidades; O' poder temporal, por outro lado, torna
apetite espiritual pedia. Edmundo- O'Gorman assim coloca os termos extremo o isolamento político, econômico e espiritual de suas
do conflito: "estado intermediário em que a razão faz estragos na colônias, até transformá-las; em recintos fechados. Nos campos e nas
calma e em que já não basta o consolo da religião". Mas não basta o cidades há distúrbios, reprimidos implacavelmente. Nesse mundo
consolo da fé, porque se trata de uma fé imóvel e seca. A crítica da fechado, a geração de Sor Juana se faz certas perguntas - mais
razão virá, na América, mais tarde. O'Gorman explicita a natureza da insinuadas que formuladas, mais pressentidas que pensadas - para as
disjuntiva como se segue: "ter fé em quais sua tradição espiritual não oferecia resposta. (As respostas já
Deus e na razão ao mesIJ10 tempo é viver com o ser arraigado, dila- tinham sido dadas fora, ao ar livre da cultura européia.) Isto explica,
cerado se preferirmos, na possibilidade real, única, extremada e talvez, que, apesar de sua ousadia, ninguém dentre eles empreenda a
contraditória, cons.tituída por dois possíveis impossíveis do existir crítica dos princípios que fundamentavam a sociedade COlonial nem
humano'". Esta penetrante descrição é válida, se atenuarmos os pólos proponha outros. Quando o crise se declara, esta geração abdica. Fin-
destas impossíveis possibilidades. Pois não se pode negar a dou a sua luta ambígua. Sua renúncia - que não tem nada que ver com
autenticidade dos sentimentos religiosos desta geração, nem a sua uma conversão religiosa - desemboca no silêncio. Não se entregam a
imobilidade e o seu cansaço. E, no que se refere ao outro termo da Deus, mas sim negam-se a si mesmos. Esta negação é a do mundo
disjuntiva, não se deve exagerar o racionalismo de Sigüenza ou de colonial, que se fecha sobre si mesmo. Não há saída, exceto pela
Sor Juana, que nunca tiveram plena consciência do problema que ruptura.
começava a cindir os espíritos. Parece-me que a luta se trava entre Ninguém como Juana de Asbaje encarna tão bem a' dualidade
sua vitalidade intelectual, sua ânsia de saber e penetrar em mundos deste mundo, embora a superfície de sua obra, como a de sua vida,
mal explorados, e a ineficácia dos instrumentos que proporcionavam não denuncie qualquer fissura. Tudo nela corresponde ao que, no seu
a teologia e a cultura neo-hispânica. Seu conflito deixa transparecer o tempo, poder-se-ia pedir a uma mulher. Ao mesmo tempo, e sem
da sociedade colonial, que também não du- contradição profunda, Sor Juana era poetisa e freira [crônima, amiga da
Condessa de Paredes e autora dramática. Seus devaneios amorosos, se
é que os teve ou se são apenas inflama-
3 Edmundo O'Gorman, CriBi8 y porvenir de la. ciencia hi8tórica, México,
1947.

100 101
das invenções retóricas, seu amor pela conversa e pela música suas telectual", A visão que nos entrega o Primer sueno é a do sonho da
tentativas literárias e até as tendências sexuais que alguns lhe noite universal, em que o mundo e o homem sonham e são sonhados,
atribuem não se opõem, mas sim exigem o seu fim exemplar. Sor cosmos que se sonha até quando sonha que desperta. Nada mais
Juana afirma o seu tempo tanto quanto o seu tempo se afirma nela. afastado da noite carnal e espiritual dos místicos que esta noite
Mas, duas de suas obras, a Respuesta a Sor Filotea e o Primer sueiio, intelectual. O poema de Sor Juana não tem antecedentes na poesia de
lançam uma estranha luz sobre sua figura e sobre o seu tempo. língua espanhola e, conforme insinua Vossler, prefigura o movimento
Tornam-na exemplar, num sentido muito diferente do que pensam os poético da Ilustração alemã. Mas, o Primer sueiío é mais uma tentativa
seus panegirístas católicos. que uma realização, ao contrário do que ocorre com as Soledades,
Comparou-se o Primer sueiio às Soledades. Com efeito, o poema embora seu autor não as tenha terminado. E não podia ser de outro
de Sor Juana é uma imitação do de D. Luis de Góngora. Não obstante, modo, pois no poema de Sor Juana, como na sua própria vida, há uma
as diferenças profundas são maiores que as semelhanças externas. zona neutra, de vazio: a que produz o choque das tendências opostas
Menéndez y Pelayo reprovava em Góngora o seu vazio. Se que a devoravam e que não conseguiu conciliar.
substituirmos este termo pela palavra "superficial", estaremos mais Sor Juana nos deixou um texto revelador, ao mesmo tempo
próximos da concepção poética de Góngora, que pretende apenas declaração de fé na inteligência e renúncia ao seu exercício: a
construir - ou, como dizia Bernardo Balbuena: contrafazer - um Respuesta a Sor Filotea. Defesa do intelectual e da mulher, a Respuesta é
mundo de aparências. A trama das Soledades pouco conta; a também a história de uma vocação. Se formos dar crédito às suas
substância filosófica - se existe alguma - importa menos ainda. Tudo confissões, quase não houve ciência que não a tentasse. Sua
é pretexto para descrições e digressões. Cada uma delas se dissolve; curiosidade não é a do homem de ciência, mas sim a do homem culto
por sua vez, em imagens, antíteses e figuras retóricas. Se alguma que aspira integrar numa visão coerente todas as particularidades do
coisa caminha no poema de G6ngora, não é precisamente o náufrago, conhecimento. Pressentia um engaste oculto entre todas as verdades.
nem o seu pensamento, mas sim a imaginação do poeta. Pois, como Referindo-se à diversidade de seus estudos, adverte que suas
ele mesmo diz no prólogo, seus versos "pasos de un peregrino son contradições são mais aparentes que reais, "pelo menos no formal e
errante". E este som peregrino, este peregrino que canta, detém-se especulativo". As ciências e as artes, por mais contrárias que sejam,
numa palavra ou numa cor, acaricia-a e a prolonga e faz de cada não só não atrapalham a compreensão geral da natureza, "mas sim a
período uma imagem e de cada imagem um mundo. O discurso ajudam, trazendo luz e abrindo caminho umas às outras, por variações
poético flui lento, bifurcase em "parênteses frondosos", que são ilhas e ocultos enlaces... de maneira que parece que se correspondem e
garbosas, e continua errante entre paisagens, sombras, luzes, estão unidas com admirável travação e concerto" ...
realidades que redime e imobiliza. A poesia é gozo puro, recriação Se não era mulher de ciência, também não era um espírito fi-
artificial de uma natureza ideal, conforme indica Dámaso Alonso. losófico, porque carecia do poder que abstrai. Sua sede de conhe-
Assim, não há conflito entre substância e forma, porque G6ngora faz cimento não briga com a ironia e a versatilidade; em outros tempos
de tudo forma, tudo é superfície cristalina ou trêmula, lisa ou ondeada teria escrito ensaios e críticas. Assim, não vive para uma idéia, nem
.. cria idéias novas: vive as idéias, que são a sua atmosfera e o seu
Sor Juana utiliza o procedimento de Góngora, mas empreende alimento natural. :a um intelectual: uma consciência. Não é possível
um poema filosófico. Quer penetrar na realidade, não transmudála em duvidar da sinceridade de seus sentimentos religiosos, mas
deliciosa superfície. As obscuridades do poema são duplas: as
sintáticas e mitológicas e as conceituais. O poema, diz Alfonso
Reyes, é uma tentativa de atingir "uma poesia de pura emoção in-

102 103
onde um espírito devoto encontraria provas da presença de Deus ou do mo um problema ou como um enigma que como um local de salvação ou
seu poder, Sor Juana encontra ocasião para formular hipóteses e perdição. Isto traz ao seu pensamento uma originalidade que merecia
perguntas. Embora repita com freqüência que tudo vem de Deus, procura alguma coisa além dos elogios dos seus contemporâneos ou das
sempre uma explicação racional: "Estavam na minha presença duas reprovações do seu confessor. Mesmo em nossos dias, solicita um juízo
meninas brincando com um pião e mal eu vi o movimento e a figura, mais profundo e um exame mais ousado.
quando comecei, com esta minha loucura, a considerar o fácil motu da "Como é possível que sons tão grávidos de futuro saiam de repente
forma esférica ... " de um convento de freiras mexicanas?", pergunta-se Vossler. E responde:
Estas declarações contrastam com as dos escritores espanhóis da "sua curiosidade pela mitologia antiga e pela física moderna, por
época - e até mesmo com as dos escritores das gerações posteriores. Para Aristóteles e Harvey, pelas idéias de Platão e a lanterna mágica de
nenhum deles o mundo físico é um problema: aceitam a realidade tal Kircher. .. não teria prosperado nas universidades pedantes e
qual é, ou a condenam. Além da ação, existe apenas a contemplação, temerosamente dogmáticas da Velha Espanha". Também não prosperou
parece dizer-nos a literatura espanhola dos séculos de ouro. Entre no México durante muito tempo. Depois das revoltas de 1692, a vida
aventura e renúncia, movimenta-se a vida histórica espanhola. Nem intelectual rapidamente se apaga. Sigüenza y Góngora abandona
Gracián nem Quevedo, para não falar dos escritores religiosos, mostram bruscamente seus entusiasmos históricos e arqueológicos. Sor Juana
interesse pelo conhecimento em si. Desdenham a curiosidade intelectual renuncia a seus livros e morre pouco depois. A crise social, faz notar
e todo o seu saber se refere à conduta, à moral ou à salvação. Estóicos ou Vossler, coincide com a dos espíritos.
cristãos, como se disse, ignoram a atividade intelectual pura. Fausto é Apesar do brilho de sua vida, do patetismo de sua morte e da
impensável dentro desta tradição. A inteligência não lhes proporciona admirável geometria que preside suas melhores criações poéticas, há na
nenhum prazer; é uma arma perigosa: serve para derrotar os inimigos, vida e na obra de Sor Juana alguma coisa irrealizada e desfeita. Adverte-
mas também pode fazer com que se perca a alma. A solitária figura de se a melancolia de um espírito que nunca conseguiu ter perdoados o seu
Sor Juana se isola ainda mais, neste mundo feito de afirmações e atrevimento e a sua condição de mulher. Nem sua época oferecia os
negações, que ignora o valor da dúvida e do exame. alimentos intelectuais que sua avidez necessitava, nem ela pôde - quem
A Respuesta não é apenas um auto-retrato, e sim a defesa de um poderia? - criar um mundo de idéias com as quais vivesse a sós. Sempre
espírito sempre adolescente, sempre ávido e irônico, apaixonado e foi muito viva para ela a consciência da sua singularidade: "Que
reticente. Sua dupla solidão, de mulher e de intelectual, condensa um podemos saber nós, as mulheres, a não ser filosofia de cozinha?" -
conflito também duplo: o da sua sociedade e o da sua feminidade. A pergunta com um sorriso. Mas a ferida dói: "Quem não acreditará, vendo
Respuesta a sor Fllotea é uma defesa da mulher. Fazer esta defesa e aplausos tão gerais, que. naveguei de vento em popa sobre as palmas das
atrever-se a proclamar o seu entusiasmo pelo pensamento desinteressado aclamações comuns?" Sor Juana é uma figura de solidão. Indecisa e
fazem dela uma figura moderna. Se, na sua afirmação do valor da sorridente, movimenta-se entre duas luzes, consciente da dualidade de
experiência, não é ilusório ver uma reação instintiva contra o sua condição e do impossível do seu empenho. B muito freqüente
pensamento tradicional da Espanha, na sua concepção do conhecimento - escutarmos reprovações lançadas contra homens que estiveram abaixo do
que não confunde com a erudição, nem identifica com a religião - há seu destino - como não lamentarmos a sorte de uma mulher que esteve
uma defesa implícita da consciência intelectual. Tudo leva a conceber o acima da sua sociedade e da sua cultura?
mundo mais co-

104 105
Sua imagem é a de uma solitária melancólica que sorri e cala.
O silêncio, diz ela mesma em algum lugar, está povoado de vozes. E
o que nos diz seu silêncio? Se na obra de Sor Juana a sociedade
colonial se expressa e se afirma, no seu silêncio esta mesma VI
sociedade se condena. A experiência de Sor Juana, que acaba em
silêncio e abdicação, completa assim o exame da ordem colonial.
Mundo aberto à participação e, portanto, ordem cultural viva, sim,
DA INDEPENDENCIA
A

mas implacavelmente fechada a qualquer expressão pessoal, a


qualquer aventura. Mundo fechado ao futuro. Para sermos nós À REVOLUÇÃO
mesmos, tivemos de romper com esta ordem sem saída, mesmo sob o
risco de ficarmos na orfandade. O século XIX será o século da
ruptura e, ao mesmo tempo, o da tentativa de criar novos laços com
outra tradição, se mais longínqua, não menos universal que a que nos
ofereceu a Igreja católica: a do racionalismo europeu.

As reformas que a dinastia dos Bourbon, principalmente Carlos


IH, empreende saneiam a economia e tornam mais eficaz o termo dos
negócios, mas acentuam o centralismo administrativo e transformam
a Nova Espanha numa verdadeira colônia, isto é, num território
submetido a uma explotação sistemática e estreitamente vinculado ao
poder central. O absolutismo da casa da Áustria tinha outro sentido:
as colônias eram reinos donos de certa autonomia e o Império se
assemelhava a um sistema solar. A Nova Espanha, sobretudo nos
primeiros tempos, girava em tomo da Casa como um astro menor,
porém dono de luz própria, como as outras possessões e reinos. Os
Bourbon transformaram a Nova Espanha, reino vassalo, em mero
território ultramarino. A criação das Intendências, o impulso que se
deu à pesquisa científica, o desenvolvimento do humanismo, a
construção de obras monumentais de serviço público, nem, enfim, o
bom governo de vários vice-reis, chegaram a reanimar a sociedade
colonial. A colônia, como a metrópole, já era apenas forma, corpo
desabitado. Desde o final do século XVII, os laços que uniam Madri
às suas possesões tinham deixado de ser os harmoniosos liames que
unem entre si as partes de um organismo vivo. O império sobrevive a
si mesmo, graças à perfeição e à complexidade de sua estrutura, à sua
grandeza física e à inércia. Graças também às rixas que dividem

106 107
seus rivais. E a reforma de Carlos 111 mostra até que ponto a mera sobre a decadência espanhola - e a bis pano-americana - que é, mais
ação política é insuficiente, se não for precedida de uma trans- que uma meditação, uma argumentação em favor da independência e
formação da própria estrutura da sociedade e de um exame dos uma procura do nosso destino. O pensamento espanhol volta-se para
pressupostos que a fundamentam. o passado e para si mesmo, para pesquisar as causas da decadência,
Costuma-se repetir que o século XVIII prepara o movimento de ou para isolar, dentre tanta morte, os elementos ainda vivos que
independência. Com efeito, a ciência e a filosofia da época (através tragam sentido e atualidade ao fato, estranho entre todos, de ser
da reforma da escolástica que homens como Francisco Javier espanhol. O hispano-americano principia como uma justificação da
Clavijero tentam, ou do pensamento e da ação de outros, como Benito independência, mas se transforma quase imediatamente num projeto:
Díaz de Gamarra e Antonio Alzate) constituem os necessários a América é menos uma tradição a seguir que um futuro a realizar.
antecedentes intelectuais do "Grito de Dolores". Mas, costuma-se Projeto e utopia são inseparáveis do pensamento bispano-americano,
esquecer que a independência sobrevém quando já nada nos unia à desde o final do século XVIII até nossos dias. Elegia e crítica, são-no
Espanha, exceto a inércia terrível do agonizante, que imobiliza a mão do peninsular - incluindo Unamuno, o poeta elegíaco, e Ortega y
num gesto duro de garra, como que para reter a vida por mais um Gasset, o filósofo crítico.
minuto. Mas a vida o abandona, com um último e brusco movimento. Nos países sul-americanos, é mais perceptível a dualidade
A Nova Espanha, como criação universal, como ordem viva e não anterior. A personalidade dos dirigentes é mais clara, e sua oposição
máscara da ordem, extingue-se quando deixa de ser alimentada por à tradição hispânica, mais radical. Aristocratas, intelectuais e
uma fé. Sor Juana, incapaz de resolver de uma forma criadora e viajantes cosmopolitas não somente conhecem as novas idéias como
orgânica o conflito entre sua curiosidade intelectual e os princípios também freqüentam os homens novos e as novas sociedades.
religiosos da época, renuncia e morre, exemplarmente. Com menos Miranda participa da Revolução Francesa e combate em Valmy.
exemplaridade, a sociedade colonial se arrasta ainda por um século, Bello vive em Londres. Os anos de aprendizagem de Bolívar
defendendo-se com tenacidade estéril. transcorrem nessa atmosfera que prepara os heróis e os príncipes:
A independência oferece a mesma figura ambígua da conquista. desde criança é educado para libertar e governar. A nossa revolução
A obra de Cortés é precedida pela síntese política que realizam na de independência é menos brilhante, menos rica de idéias e frases
Espanha os reis católicos e pela que iniciam na América mediai os universais, e mais determinada pelas circunstâncias locais. Nossos
astecas. A independência se apresenta também como um fenômeno caudilhos, sacerdotes humildes e obscuros capitães, não têm uma
de duplo significado: desagregação do corpo morto do império e noção tão clara de sua obra. Em compensação, possuem um sentido
nascimento de uma pluralidade de novos Estados. Conquista e mais profundo da realidade e escutam melhor o que, a meia voz e
independência parecem ser momentos de fluxo e refluxo de uma cifrado, diz-lhes o povo.
grande onda histórica, que se forma no século XV, estende-se até a Estas diferenças influem na história posterior dos nossos países.
América, atinge um momento de belo equilíbrio nos séculos XVI e A independência sul-americana é iniciada por um grande movimento
XVII e finalmente se retira, desagregando-se antes em mil continental: San Martín liberta metade do continente, Bolívar a outra
fragmentos. metade. Criam-se grandes Estados, confederações, anfictionias.
O filósofo José Gaos confirma esta imagem, quando divide o Pensa-se que a emancipação da Espanha não acarretará o
pensamento moderno de língua espanhola em duas porções: a desmembramento do mundo hispânico. Em pouco tempo, a realidade
propriamente peninsular - que consiste numa longa reflexão faz em pedaços todos estes projetos. O processo de

108 109
desagregação do império espanhol mostrou-se mais forte que a como herdeiras da velha ordem espanhola. Rompem com a Espanha,
clarividência de Bolívar. mas se mostram incapazes de criar uma sociedade moderna. Não
Em suma, no movimento de independência lutam duas ten- podia ser de outro modo, pois os grupos que encabeçaram o
dências opostas: uma, de origem européia, liberal e utópica, que movimento de independência não constituíam novas forças sociais,
concebe a América espanhola como um todo unitário, assembléia de mas sim o prolongamento do sistema feudal. A novidade das novas
nações livres; outra, tradicional, que rompe os laços com a metrópole nações hispano-americanas é enganosa; na verdade, trata-se de
apenas para acelerar o processo de desagregação do império. sociedades em decadência ou em imobilidade forçada, sobrevivência
e fragmentos de um todo desfeito.
A independência hispano-amerícana, como a história inteira dos
O império espanhol dividiu-se numa quantidade de repúblicas,
nossos povos, é um fato ambíguo e de difícil interpretação, porque,
por obra das oligarquias nativas, que, em todos os casos, favoreceram
mais uma vez, as idéias mascaram a realidade em lugar de desvendá-
ou impulsionaram o processo de desintegração. Não se deve
Ia ou expressá-la. Os grupos e classes que realizaram a independência
esquecer, além disso, da influência determinante de muitos dos
na América do Sul pertenciam à aristocracia feudal nativa; eram os
caudilhos revolucionários. Alguns, mais felizes nisto que os
descendentes dos colonos espanhóis, postos em situação de
conquistadores, sua contrafigura histórica, conseguiram "apropriar-se
inferioridade em relação aos peninsulares. A metrópole, empenhada
dos reinos", como se se tratasse de um saque medieval. A imagem do
numa política protecionista, por um lado impedia o livre comércio das "ditador híspano-americano" já aparece, em embrião, na do
colônias e obstruía seu desenvolvimento econômico e social por meio "libertador". Assim, as novas repúblicas foram inventadas por
de entraves administrativos e políticos; por outro, impedia o caminho necessidades políticas e militares do momento, não porque
dos "crioulos" que, com toda a justiça, desejavam ingressar nos expressassem uma verdadeira peculiaridade histórica. Os "traços
empregos importantes e na direção do 'Estado. Assim, a luta pela nacionais" se foram formando mais tarde; em muitos casos, são
independência tendia a libertar os "crioulos" da mumificada apenas conseqüência da prédica nacionalista dos governos. Mesmo
burocracia peninsular, embora, na realidade, não se propusesse a agora, um século e meio depois, ninguém pode explicar
mudar a estrutura social das colônias. Realmente, os programas e a satisfatoriamente em que consistem as diferenças "nacionais" entre
linguagem dos caudilhos da independência lembram a dos argentinos e uruguaios, peruanos e equatorianos, guatemaltecos e
revolucionários da época. Eram sinceros, sem dúvida. Aquela mexicanos. E também nada - salvo a persistência das oligarquias
linguagem era "moderna", eco dos revolucionários franceses e, locais, mantidas pelo imperialismo norte-americano - explica a
sobretudo, das idéias da independência norte-americana. Mas, na existência, na América Central e nas Antilhas, de nove repúblicas.
América saxônica, estas idéias expressavam realmente grupos que se E não é tudo. Cada uma das novas nações teve, no dia seguinte
propunham a transformar o país de acordo com uma nova filosofia à independência, uma constituição mais ou menos (quase sempre
política. E ainda mais: com estes princípios, não tentavam mudar um menos que mais) liberal e democrática. Na Europa e nos Estados
estado de coisas por outro, mas sim, diferença radical, criar uma nova Unidos, estas leis correspondiam a uma realidade histórica: eram a
nação. Com efeito: os Estados Unidos são, na história do século XIX, expressão da ascensão da burguesia, a conseqüência da revolução
uma novidade mundial, uma sociedade que cresce e se expande industrial e da destruição do antigo regime. Na América hispânica, só
naturalmente. Entre nós, em compensação, uma vez consumada a serviam para vestir à moderna as sobrevivências do sistema colonial.
independência, as classes dirigentes se consolidam A ideologia liberal e democrática,

110 111
longe de expressar nossa situação histórica concreta, escondia-a. A o Exército (em que serviam "crioulos" como Iturbide), a Igreja e os
mentira política instalou-se em nossos povos quase constitu- grandes proprietários se aliaram à Coroa espanhola. Estas forças
cionalmente. O dano moral foi incalculável e atinge zonas muito foram as que derrotaram Hidalgo, Morelos e Mina. Um pouco mais
profundas do nosso ser. Movimentamo-nos dentro da mentira com tarde, quase extinto o movimento de insurreição, acontece o
naturalidade. Durante mais de cem anos sofremos regimes de força, a inesperado: os liberais tomam o poder na Espanha, transformam a
serviço das oligarquias feudais, mas que utilizam a linguagem da monarquia absoluta em constitucional e ameaçam os privilégios da
liberdade. Esta situação se prolongou até nossos dias. Daí que a luta Igreja e da aristocracia. Opera-se então uma brusca mudança de
contra a mentira oficial e constitucional seja o primeiro passo de frente; diante deste novo perigo externo, o alto clero, os grandes
qualquer tentativa séria de reforma. Este parece ser o sentido dos proprietários de terras, a burocracia e os militares "crioulos"
atuais movimentos latino-americanos, cujo objetivo comum consiste procuram a aliança com o que restava dos insurretos e consumam a
em realizar, de uma vez por todas, a independência. Ou seja: independência. Trata-se de um verdadeiro ato de prestidigitação: a
transformar os nossos países em sociedades realmente modernas e separação política da metrópole é realizada contra as classes que
não em meras fachadas para demagogos e turistas. Nesta luta, nossos tinham lutado pela independência. O vice-reinado de Nova Espanha
povos enfrentam não só a velha herança espanhola (a Igreja, o transforma-se no império mexicano. Iturbide, o antigo general
exército e a oligarquia), mas também o Ditador, o Chefe com a boca realista, transforma-se em Agustín I. Em pouco tempo, uma rebelião
cheia de fórmulas legais e patrióticas, agora aliado a um poder muito o derruba. Inicia-se a era dos pronunciamentos.
diferente do velho imperialismo hispano: os grandes interesses do
Durante mais de um quarto de século, numa luta confusa que
capitalismo estrangeiro.
não exclui as alianças transitórias, as mudanças de lado e até mesmo
Quase tudo o que foi dito anteriormente é aplicável ao México, as traições, os liberais tentam consumar a ruptura com a tradição
mas com ressalvas decisivas. Em primeiro lugar, nossa revolução de colonial. De certo modo, são os continuadores dos primeiros
independência jamais manifestou as pretensões de universalidade que caudilhos, Hidalgo e Morelos. Entretanto, sua crítica à ordem de
são, ao mesmo tempo, a clarividência e a cegueira de Bolívar. Além coisas não se dirige tanto a mudar a realidade quanto a legislação.
disso, os insurretos vacilaram entre a independência (Morelos) e Quase todos pensam, com um otimismo herdado da Enciclopédia,
formas modernas de autonomia (Hidalgo). A guerra se iniciou que basta decretar novas leis para que a realidade se transforme.
realmente como um protesto contra os abusos da metrópole e da alta Vêem nos Estados Unidos um modelo e acreditam que a sua
burocracia espanhola, mas também, e sobretudo, contra os grandes prosperidade se deve à excelência das instituições republicanas. Daí o
latifundiários nativos. Não foi a rebelião da aristocracia local contra a seu federalismo, em oposição ao centralismo dos conservadores.
metrópole, mas sim a do povo contra a primeira. Daí que os Todos esperam que uma constituição democrática, ao limitar o poder
revolucionários tenham concedido maior importância a determinadas temporal da Igreja e acabar com os privilégios da aristocracia
reformas sociais que à independência propriamente dita: Hidalgo proprietária de terras, produzirá quase automaticamente uma nova
decreta a abolição da escravatura; Morelos, a divisão dos latifúndios. classe social: a burguesia. Os liberais têm de lutar não só contra os
A guerra de independência foi uma guerra de classes e não se conservadores, mas também contra os militares, que mudam de lado
compreenderá bem o seu caráter se ignorarmos que, diferente do que segundo os seus interesses. Enquanto as facções lutam, o país se
ocorreu na América do Sul, foi uma revolução agrária em gestação. desintegra. Os Estados Unidos aproveitam a ocasião e, numa das
Por isso, guerras mais injustas da hist6-

112 113
ria, já em si negra, da expansão imperialista, arrebatam-nos mais da instituições que representavam a continuidade da nossa tríplice herança:
metade do território. Esta derrota produziu, a longo prazo, uma reação as associações religiosas e a propriedade comunal indígena. A separação
saudável, pois feriu de morte o caudilhismo militar, encarnado no ditador da Igreja e do Estado, a desamortízação dos bens eclesiásticos e a
Santa-Ana. (Alternadamente liberal e conservador, guardião da liberdade liberdade de ensino (completada pela dissolução das ordens religiosas
e vendedor do país, Santa-Ana é um dos arquétipos do ditador latino- que o monopolizavam) eram somente o aspecto negativo da Reforma.
americano: no final de sua carreira política, ordena honras fúnebres para Com a mesma violência com que negava a tradição, a geração de 1857
a perna que perdeu numa batalha e se declara Sua Alteza Sereníssima.) A afirmava alguns princípios. Sua obra não consiste absolutamente na
rebelião popular expulsa Santa-Ana e dá o poder aos liberais. Uma nova ruptura com o mundo colonial; é um projeto tendente a fundar uma nova
geração, herdeira de José Maria Mora e Valentín Gómez Farías, mestre sociedade. Isto é, o projeto histórico dos liberais aspirava substituir a
da "inteligência" liberal, dispõe-se a dar novos fundamentos à nação. A tradição colonial, baseada na doutrina do catolicismo, por uma afirmação
primeira pedra seria uma constituição. Com efeito, em 1857, o México igualmente universal: a liberdade da pessoa humana. A nação mexicana
adota uma carta constitucional liberal. Os conservadores apelam para as seria baseada num princípio diferente do hierárquico que animava a
armas. Juárez responde com as leis da Reforma, que acabam com os colônia: a igualdade perante a lei de todos os mexicanos, como seres
privilégios e destroem o poder material da Igreja. Derrotado, o partido humanos, como seres de razão. A Reforma funda o México, negando seu
conservador voltase para o estrangeiro e, apoiado pelas tropas de passado. Rejeita a tradição e procura justificar-se no futuro.
Napoleão 111, instala na capital Maximiliano, segundo imperador do O sentido deste necessário matricídio não escapava à penetração
México. (Nova ambigüidade histórica: Maximiliano era liberal e sonhava dos melhores. Ignacio Ramírez, talvez a figura mais marcante deste
criar um império latino que se opusesse ao poderio ianque. Suas idéias grupo de homens extraordinários, assim termina um de seus poemas:
não tinham relação alguma com as dos obstinados conservadores que o
mantinham.) Os reveses europeus do império napoleônico, a pressão
norte-americana (cujo sentido pode ser tergiversado, se nos esquecermos
de que Lincoln estava no poder) e, enfim, a encarniçada resistência
popular, causa original e determinante da vitória, consumam o triunfo Mãe natureza, já não existem flores onde
republicano. Juárez fuzila Maximiliano, episódio que tem a sua analogia o meu passo vacilante avança; nasci sem
com a execução de Luís XVI: a "razão geométrica" é fortalecida. esperanças nem temores; volto a ti sem
temores nem esperança.
A Reforma consuma a Independência e lhe dá a verdadeira
significação, pois propõe o exame das próprias bases da sociedade
mexicana e dos pressupostos históricos e filosóficos em que se apoiava. Morto Deus, eixo da sociedade colonial, a natureza volta a ser Mãe.
Este exame conclui numa negação tripla: a da herança espanhola, a do Como mais tarde o marxismo de Diego Rivera, o ateísmo de Ramírez se
passado indígena e a do catolicismo que conciliava as duas primeiras resolve numa afirmação materialista, não isenta de religiosidade. Uma
numa afirmação superior. A Constituição de 1857 e as leis da Reforma autêntica concepção científica, ou simplesmente racional, da matéria não
são a expressão jurídica e política deste exame e promovem a destruição pode ver nesta, nem na natureza, uma Mãe. Nem mesmo a madrasta do
de duas pessimista Leopardi, mas sim um processo indiferente, que se faz e se
desfaz, se inventa e se repete, sem descanso, sem memória e sem
reflexão.
Se, como quer Ortega y Gasset, uma nação é constituída não só por
um passado que passivamente a determina, mas pela

114 115
validez de um projeto histórico capaz de movimentar as vontades histórico concreto a não ser o que lhe emprestam as relações sociais,
dispersas e dar unidade e transcendência ao esforço solitário, o conforme apontou Marx. E já sabemos em que se transformou esta
México nasce na época da Reforma. Nela e por ela é concebido, igualdade abstrata e qual foi o significado real desta liberdade vazia.
inventado e projetado. Ora, a Reforma é o projeto de um grupo Por outro lado, ao basear o México numa noção geral do Homem e
bastante reduzido de mexicanos, que voluntariamente se desliga da não na situação real dos habitantes do nosso território, sacrificava-se
grande massa, passivamente religiosa e tradicional. A nação a realidade às palavras e entregava-se os homens de carne à
mexicana é o projeto de uma minoria que impõe seu esquema ao resto voracidade dos mais fortes.
da população, contra outra minoria ativamente tradicional.
Como o catolicismo colonial, a Reforma é um movimento inspirado
numa filosofia universal. As diferenças e semelhanças entre ambos Contra as previsões dos mais lúcidos, a Revolução liberal não
são reveladoras. O catolicismo foi imposto por uma minoria de provocou o nascimento de uma burguesia forte, em cuja ação todos,
estrangeiros, depois de uma conquista militar; o liberalismo, por uma até Justo Sierra, viam a única esperança do México. Pelo contrário, a
minoria nativa, mas de formação intelectual francesa, depois de uma venda dos bens da Igreja e o desaparecimento da propriedade
guerra civil. O primeiro é a outra face da Conquista: destruída a comunal indígena - que resistira, precariamente, a três séculos e meio
teocracia indígena, mortos ou exilados os deuses, sem terra onde de abusos e avanços de colonos e fazendeiros - acentuam o caráter
apoiar-se nem além-mundo para onde emigrar, o índio vê na religião feudal do nosso país. E, desta vez, em proveito de um grupo de
cristã uma Mãe. Como todas as mães, é entranha, repouso, regresso às especuladores, que constituiriam a aristocracia do novo regime. Surge
origens; e também boca que devora, senhora que mutila e castiga: mãe assim uma nova casta latifundiária. A República, sem inimigo pela
terrível. O liberalismo é uma crítica da ordem antiga e um projeto de frente, derrotados os conservadores e imperialistas, encontra-se de
pacto social. Não é uma religião, mas sim uma ideologia utópica; não repente sem base social. Ao romper os laços COm o passado, rompe-
consola, combate; substitui a noção de além pela de um futuro os também COm a realidade mexicana. O poder será de quem se
terrestre. Afirma o homem, mas ignora uma metade do homem: a que atrever a esticar a mão. E Porfírio Díaz se atreve. Era o mais brilhante
se expressa nos mitos, na comunhão, na festa, no sonho, no erotismo. dos generais que a derrota do Império tinha deixado ociosos, pela pri-
A Reforma é, antes de tudo, uma negação - e nisto reside sua meira vez depois de três quartos de século de batalhas e pro-
grandeza. Mas, o que esta negação afirmava os princípios do nunciamentos.
liberalismo europeu - eram idéias de uma beleza precisa, estéril e,
O "soldado do 2 de abril" transforma-se no "herói da paz".
enfim, vazia. A geometria não substitui os mitos. Para que o esquema
Suprime a anarquia, mas sacrifica a liberdade. Reconcilia os me-
liberal se transformasse realmente num projeto nacional, era preciso
xicanos, mas restaura os privilégios. Organiza o país, mas prolonga
conseguir a adesão de todo o país às novas formas políticas. Mas a
um feudalismo anacrônico e ímpio, que nada suaviza (as Leis das
Reforma opunha, a uma afirmação muito concreta e particular - todos
lndias continham preceitos que protegiam os índios). Estimula o
os homens são filhos de Deus, afirmação que permitia uma relação
profunda e verdadeiramente filial entre o cosmos e a critura -, um comércio, constrói estradas de ferro, limpa de dívidas a Fazenda
postulado abstrato: a igualdade dos homens perante a lei. A liberdade Pública e cria as primeiras indústrias modernas, mas abre as portas ao
e a igualdade eram, e são, conceitos vazios, idéias sem outro conteúdo capitalismo norte-americano. Nestes anos, o México inicia sua vida
de país semicoloniaI.

116 117
Apesar do que comumente se pensa, a ditadura de Porfírio Díaz necessitava uma filosofia de ordem. Os intelectuais da época a
é o regresso do passado. Na aparência, Díaz governa inspirado pelas encontraram no positivismo de Comte, com sua lei dos Três Estados
idéias em voga: acredita no progresso, na ciência, nos milagres da e, mais tarde, no de Spencer e no evolucionismo de Darwin. O
indústria e do livre comércio. Seus ideais são os da burguesia primitivo, abstrato e revolucionário princípio da igualdade de todos
européia. É o mais ilustrado dos ditadores hispanoamericanos e seu os homens deixa de reger as consciências, substituído pela teoria da
regime lembra, às vezes, os anos da "belle époque" na França. Os luta pela vida e pela sobrevivência do mais apto. O po_ sitivismo
intelectuais descobrem Comte e Renan, Spencer e Darwin; os poetas oferece uma nova justificativa para as hierarquias sociais. Mas já não
imitam os parnasianos e simbolistas franceses; a aristocracia são o sangue, nem a herança, nem Deus, quem explica as
mexicana é uma classe urbana e civilizada. A outra face da moeda é desigualdades, e sim a Ciência.
muito diferente. Estes grandes senhores amantes do progresso e da A análise de Zea não poderia ser melhor, salvo num ponto.
ciência não são industriais nem homens de empresa: são proprietários É verdade que o positivismo expressa a burguesia européia num
de terras, enriquecidos pela compra dos bens da Igreja ou pelos momento de sua história. Mas, expressa-a de uma maneira natural,
negócios públicos do regime. Em suas fazendas, os camponeses orgânica. No México, serve-se desta tendência uma classe
vivem vida de servo, não muito diferente da do período colonial relativamente nova, no sentido das famílias que a compunham - quase
Assim, do ponto de vista "ideológico", o porfirismo se ostenta como todos tinham conseguido a riqueza e o poder durante o período
o sucessor legítimo do liberalismo. A Constituição de 1857 continua imediatamente posterior à guerra da Reforma -, mas que
vigente em teoria e nada nem ninguém pretende opor às idéias da historicamente só faz herdar e substituir a aristocracia feudal da
Colônia. Portanto, se a função da filosofia positivista é parecida aqui
Reforma princípios diferentes. Muitos, sem excluir os antigos
e lá, a relação histórica e humana que se estabelece entre esta doutrina
liberais, pensam de boa fé que o regime de Díaz prepara a passagem
e a burguesia européia é diferente da que se constitui no México,
do passado feudal à sociedade moderna. Na verdade, o porfirismo é o
entre "neofeudais" e positivismo.
herdeiro do feudalismo colonial: a propriedade da terra se concentra
em poucas mãos e a classe dos proprietários de terras se fortalece. O porfirismo adota a filosofia positivista, não a cria. Assim,
Mascarado, enfeitado com as roupagens do progresso, da ciência e da encontra-se numa situação de dependência mais grave que a dos
liberais e teólogos coloniais, pois nem assume diante dela uma
legalidade republicana, o passado volta, mas já desprovido de
fecundidade. Nada pode produzir, exceto a rebelião. posição crítica nem a abraça com total boa fé. Em alguns casos, trata-
se de um desses atos que Antonio Caso, seguindo Tarde, chamava de
Devemos a Leopoldo Zea uma análise muito completa das
"imitação extralógica": desnecessário, supérfluo e contrário à
idéias deste período 1. Zea observa que a adoção do positivismo como
condição do imitador. Entre o sistema e quem o adota abre-se assim
filosofia oficiosa do Estado corresponde a certas necessidades
um abismo, muito sutil se quisermos, mas que torna impossível
intelectuais e morais da ditadura de Díaz. O pensamento liberal era
qualquer relação autêntica com as idéias, que se transformam às vezes
um instrumento de crítica, ao mesmo tempo que uma construção
em máscaras. O porfirismo, com efeito, é um período de
utópica, e continha princípios explosivos. Prolongar sua vigência
inautenticidade histórica. Santa-Ana muda alegremente de disfarces: é
teria sido prolongar a anarquia. A época de paz
o ator que não acredita no que diz. O porfirismo se esforça em
acreditar, se esforça em fazer suas as idéias adotadas. Simula, em
todos os sentidos da palavra.
1 Leopoldo Zea, El poritiviamo en Mé:t:ico, MéxiC'O, 1942.

118 119
À sua maneira, a Ditadura completa a obra da Reforma.
A simulação porfirista era particularmente grave, pois ao
Graças à introdução da filosofia positivista, a nação rompe os seus
abraçar o positivismo apropriava-se de um sistema que historica- últimos vínculos com o passado. Se a Conquista destrói templos, a
mente não lhe correspondia. A classe latifundiária não constituía o Colônia erige outros. A Reforma nega a tradição, mas nos oferece
equivalente mexicano da burguesia européia, nem sua tarefa tinha uma imagem universal do homem. O positivismo não nos deu nada.
qualquer relação com a do seu modelo. As idéias de Spencer e Stuart Em compensação, mostrou em toda a sua nudez os princípios liberais:
Mill reclamavam como clima histórico o desenvolvimento da grande lindas palavras inaplicáveis. O esquema da Reforma, o grande projeto
indústria, a democracia burguesa e o livre exercício da atividade histórico mediante o qual o México se fundava a si mesmo como uma
intelectual. Baseada na grande propriedade agrícola, no caciquismo e nação destinada a se realizar dentro de certas verdades universais, fica
na ausência de- liberdades democráticas, a ditadura de Díaz não reduzido a sonho e utopia. E seus princípios e leis se transformam
podia fazer suas essas idéias, sem negar-se a si mesmo ou sem numa armadura rígida, que sufoca a nossa espontaneidade e mutila o
desfigurá-las. O positivismo se transforma assim numa superposição nosso ser. Ao fim de cem anos de lutas, o povo se encontrava mais só
histórica bastante mais perigosa que todas as anteriores, porque do que nunca, com sua vida religiosa empobrecida e sua cultura po-
estava fundamentado num equívoco. Entre os proprietários de terras e pular humilhada. Tínhamos perdido a nossa filiação histórica.
suas idéias políticas e filosóficas levantava-se um invisível muro de A imagem que o México nos oferece, ao terminar o século XIX,
má fé. O dilaceramento do porfirismo procede deste equívoco. é a da discórdia. Uma discórdia mais profunda que a rixa política ou a
O disfarce positivista não se destinava a enganar o povo, mas guerra civil, pois consiste na superposição das formas jurídicas e
sim a esconder a nudez moral do regime dos seus próprios usu- culturais que não só expressavam nossa realidade, como também a
fruidores.Porque estas idéias não justificavam as hierarquias sociais asfixiavam e imobilizavam. Ao amparo desta discórdia, medrava uma
para os deserdados (a quem a religião católica reservava um lugar de casta que se mostrava incapaz de se transformar em classe, no sentido
eleição no além e o liberalismo outorgava a dignidade de homens). A estrito da palavra. Vivíamos uma vida envenenada pela mentira e pela
nova filosofia não tinha nada a oferecer aos pobres; sua função esterilidade. Cortados os laços com o passado, impossível o diálogo
consistia em justificar a consciência - a mauvaise conscience - da com os Estados Unidos - que só falavam conosco a linguagem da
burguesia européia. No México, o sentimento de culpabilidade da força ou a dos negócios -, inútil a relação com os povos de língua
burguesia européia coloria-se de um matiz especial, por uma dupla espanhola, enclausurados em formas mortas; estávamos reduzidos a
razão. histórica: os neoíeudais eram ao mesmo tempo os herdeiros do uma imitação unilateral da França - que sempre nos ignorou. Que
liberalismo e os sucessores da aristocracia colonial. A herança restava a nós? Asfixia e solidão.
intelectual e moral dos princípios da Reforma e o usufruto dos bens Se a história do México é a de um povo que procura uma forma
da Igreja tinham que produzir no grupo dominante um sentimento de
que o expresse, a do mexicano é a de um homem que aspira a
culpa muito profundo, Sua gestão social era o fruto de uma usurpação comunhão. A fecundidade do catolicismo colonial residia em ser,
e de um equívoco. Mas o positivismo não remediava nem atenuava antes de tudo e, sobretudo, participação. Os liberais nos ofereceram
esta vergonhosa. condição. Pelo contrário, infectava-a, pois não
idéias. Mas não se comunga com idéias, pelo menos enquanto não
aprofundava suas raízes na consciência dos que o adotavam. Mentira
encarnam e se transformam em sangue, em alimento. A comunhão é
e inautenticidade são, assim, o fundo psicológico do positivismo festa e cerimônia. Ao finalizar o sécu-
mexicano.

120 121
lo XIX, o mexicano, como a nação inteira, asfixia-se num cato- dievais ou os metafísicos do racionalismo. A verdade se encontra
licismo hirto ou no universo sem saída e sem esperança da filosofia repartida nas verdades particulares de cada ciência. Reconstruí-la era
oficiosa do regime. uma das tarefas da época. Sem citá-la, invocava a filosofia, ausente
Justo Sierra é o primeiro que compreende o significado desta do ensino positivista. O positivismo ia enfrentar novas doutrinas.
situação. Apesar de seus antecedentes liberais e positivistas, é o único As palavras do ministro da Instrução Pública inauguravam outro
mexicano de sua época que tem a preocupação e a angústia da capítulo na história das idéias no México. Mas não era ele quem ia
História. A porção mais duradoura e valiosa de sua obra é uma escrevê-lo, e sim um grupo de jovens: Antonio Caso, .José
meditação sobre a história universal e sobre a do México. Sua atitude Vasconcelos, Alfonso Reyes e Pedro Henríquez Urefia. Estes
difere radicalmente das anteriores. Para liberais, conservadores e empreendem a crítica do positivismo e o levam ao descrédito final.
positivistas, a realidade mexicana carece de significação em si Sua inquietação intelectual coincide com uma procura mais dra-
mesma; é algo de inerte que só adquire sentido quando reflete um .mática: a que o país faz de si mesmo na luta civil.
esquema universal. Sierra concebe o México como uma realidade
autônoma, viva no tempo: a nação é um passado que avança,
tortuoso, para um futuro; e o presente está cheio de signos. Em suma,
nem a Religião, nem a Ciência, nem a Utopia nos justificam. Nossa
A Revolução mexicana é um fato que irrompe em nossa história
história, como a de qualquer outro povo, possui um sentido e uma
direção. Talvez sem plena consciência do que fazia, Sierra introduz a como uma verdadeira revelação do nosso ser. Muitos acontecimentos -
filosofia da história como uma possível resposta à nossa solidão e que compreendem a história política interna do país e a história, mais
mal-estar. secreta, do nosso ser nacional - a preparam, mas muito poucas vezes,
Conseqüente nestas idéias, funda a universidade. Em seu dis- e todas elas fracas e apagadas, a antecipam. A Revolução tem
curso de inauguração, expressa que o novo instituto "não tem antecedentes, causas e motivos; carece, num sentido profundo, de
antecedentes nem avós ... , o grêmio e o claustro da Real e Pontifícia precursores. A Independência não é somente fruto de diversas
Universidade do México não é para nós um antepassado, mas sim o circunstâncias históricas, mas sim de um movimento intelectual
passado. Entretanto, dela nos lembramos com certa involuntária universal, que no México é iniciado no século XVIII. A Reforma é o
filialidade; involuntária, mas não destituída de emoção e interesse". resultado da obra e da ideologia de várias gerações intelectuais, que a
Estas palavras mostram até que ponto era profunda para os liberais e preparam, predizem e realizam. f: a obra da "inteligência" mexicana.
seus herdeiros 'a ruptura com a Colônia. Sierra suspeitava a A Revolução se apresenta no princípio como uma exigência de ver-
insuficiência do laicismo liberal e do positivismo, tanto quanto dade e limpeza nos métodos democráticos, conforme se pode ver no
rejeitava o dogmatismo religioso; pensava que a ciência e a razão Plano de São Luís (5 de outubro de 1910). Lentamente, em plena luta
eram as únicas oportunidades do homem e as únicas coisas dignas de ou já no poder, o movimento se encontra e se define. E esta ausência
confiança. Mas imaginava-as como instrumentos. Portanto, deveriam de programa prévio lhe traz originalidade e autencidade populares.
servir ao homem e à nação; só assim "a universidade teria a potência Daí provêm sua grandeza e suas fraquezas.
suficiente para coordenar as linhas diretrizes do caráter nacional. . ." Entre os precursores da Revolução costuma-se citar um grupo
A verdade, diz em outra parte do mesmo discurso, não está feita, disperso e isolado: Andrés Molina Enríquez, Filomeno Mata, Paulino
não é uma coisa dada, como pensavam os escolásticos me- Martínez, Juan Sarabia, Antonio ViIlarreal, Ri-

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cardo e Enrique Flores Mag6n 2. Nenhum deles era verdadeiramente alia-se assim à disc6rdia social. O governo de Díaz já não era um
um intelectual, isto é, um homem que tivesse colocado para si, de um governo de privilegiados, mas sim de velhos que não se resignavam a
modo cabal, a situação do México como um problema e oferecesse ceder o poder. O inconformismo dos jovens se expressava numa
um novo projeto histórico. Molina Enríquez teve uma idéia clara do ânsia de ver, alguma vez, realizados os princípios do liberalismo. Os
problema agrário, mas não creio que suas observações tenham sido primeiros ideais revolucionários são predominantemente políticos.
aproveitadas pelos revolucionários, a não ser tardiamente, numa Pensava-se que o exercício dos direitos democráticos tornaria
época posterior ao Plano de Ayala (25 de novembro de 1911), possível uma mudança de métodos e pessoas.
documento político que condensa as aspirações dos zapatistas. Não se A inquietação da classe média é preciso juntar a da nascente
nota a influência de Fiares Magón, um dos homens mais puros do classe operária. A legislação liberal não previa nenhuma defesa
movimento operário mexicano, em nossas leis operárias. O contra os abusos dos poderosos. Camponeses e operários viviam
anarquismo de Flores Magón estava necessariamente afastado de nossa desamparados em relação a caciques, senhores feudais e industriais.
revolução, embora o movimento sindical mexicano inicie Mas os camponeses mexicanos possuíam uma longa tradição de lutas;
influenciado pelas idéias anarcosindicalistas. os operários é que careciam não só dos direitos mais elementares,
A Independência e, mais acentuadamente, a Reforma são como também de uma experiência ou de uma teoria em que apoiar
movimentos que refletem, prolongam e adaptam ideologias da época. suas demandas e justificar sua luta. A ausência de tradições próprias
Silva Herzog diz a este respeito: "Nossa revolução não teve nada em fazia da classe operária a classe deserdada por excelência. Apesar
comum com a Revolução Russa, nem mesmo na superfície; foi desta situação, rebentaram várias greves, reprimidas sem piedade. E
anterior a ela. Como poderia então tê-la imitado? Na literatura mais tarde os operários decidiriam um dos episódios mais
revolucionária do México, do final do século passado até 1917, não se importantes da luta civil: seus líderes se. aliam a Carranza e assinam
usa a terminologia socialista européia; e é porque o nosso movimento o "Pacto da Casa do Operário Mundial e do Movimento
social nasceu do próprio solo, do coração sangrando do povo e fez-se Constitucionalista" (17 de fevereiro de 1915). Em troca de uma
drama doloroso e ao mesmo tempo criador" 3. A ausência de legislação operária, ligava-se o proletariado a uma das facções em
precursores ideológicos e a escassez de vínculos com uma ideologia que se dividiu o movimento revolucionário. Desde então, a classe
universal constituem traços característicos da Revolução e a raiz de operária dependeu, mais ou menos estreitamente, dos governos
muitos conflitos e confusões posteriores. revolucionários, circunstância de capital importância para entender o
Os antecedentes imediatos do movimento são conhecidos. México de nossos dias, conforme veremos mais adiante.
Em primeiro lugar, a situação política e social do país. A classe média Outra circunstância favorável ao desenvolvimento da Revolução
crescera graças ao impulso adquirido pelo comércio e pela indústria, era a situação internacional do governo de Díaz. Seguindo uma
que, se estavam na sua maior parte em mãos estrangeiras, utilizavam política preconizada por liberais como Lerdo e por quase todo o
pessoal nativo. Surgira uma nova geração, inquieta e que desejava partido conservador, Porfírio Díaz quis limitar a influência
uma mudança. O conflito das gerações econômica norte-americana, acudindo ao capitalismo europeu. "As
relações internacionais despertaram profunda preocupação nos
últimos tempos do governo de Díaz. O apoio concedido ao capital
inglês provocou receios no norte-americano. Houve outras causas de
esfriamento, como a proteção que Díaz ofereceu ao
2 Jesus Silva Herzog, Medii;aciones sobre México, México, 1946. :I
01'. cito

124 125
presidente da Nicarágua, a negativa a conceder uma prorrogação para
ção em favor da especulação filosófica. Dentro dos muros da Escola
que a frota dos Estados Unidos permanecesse na baía Magdalena e a
Preparatória, a velha escola positivista, tornou-se a ouvir a voz da
sentença favorável ao México que ditou um árbitro canadense, no
metafísica, que reclama os seus direitos inalienáveis" 5.
conflito de limites conhecido com o nome de Chamizal" 4. Sem
dúvida, os Estados Unidos toleraram em seu território a ação política Vasconcelos era antiintelectualista. Filósofo da intuição,
dos revolucionários, mas não é possível reduzir a Revolução considera que a emoção é a única faculdade capaz de apreender o
Mexicana, como querem alguns conservadores, a uma conspiração do objeto. O conhecimento é uma visão total e instantânea da realidade.
Vasconcelos elabora mais tarde uma "filosofia da raça ibero-
imperialismo ianque. A intervenção posterior do embaixador norte-
americana", que continua uma corrente muito importante do
americano no golpe contra-revolucionário que derrubou o presidente
pensamento hispano-americano. Mas, a influência deste pensador só
Madero prova até onde se deve limitar a influência estrangeira no
se deixará sentir anos mais tarde, quando ocupa a Secretaria de
desenvolvimento da revolução.
Educação Pública no governo do novo regime.
Se as greves e revoltas camponesas minavam a estrutura social
A crítica do positivismo foi decisiva na história intelectual
da ditadura e a inquietação política nas cidades fazia vacilar a
confiança de Díaz no apoio popular, na esfera das idéias dos jovens, mexicana e é um dos antecedentes imprescindíveis da revolução. Mas
Antonio Caso e José Vasconcelos empreendiam a crítica da filosofia é um antecedente negativo. Caso e seus companheiros destroem a
do regime. Sua obra faz parte da vasta renovação intelectual iniciada filosofia oficiosa do regime sem que, por outro lado, suas idéias
pelo grupo chamado Ateneu da Juventude. ofereçam um novo projeto de reforma nacional. Sua posição
Antonio Caso empreende, em 1909, o exame da filosofia po- intelectual mal teria relação com as aspirações populares e com as
sitivista. No decorrer de sete conferências (as três primeiras dedicadas preocupações do momento. A diferença em relação à geração liberal
a Comte e seus precursores, as quatro restantes ao "po_ sitivismo
é significativa. Esta circunstância não deixaria de
independente", Stuart Mill, Spencer e Taine), expõe a sua ,
desconformidade com a doutrina oficial. No seu exame, utiliza ter conseqüências muito graves na história do México contempo-
sobretudo a filosofia da contingência de Boutroux e algumas idéias de râneo. Despojada de doutrinas prévias, alheias ou próprias, a re-
Bergson. No final das conferências, Caso deu a conhecer sua filosofia volução será uma explosão da realidade e uma busca às cegas da
pessoal. Eis como Henríquez Urefia relata esta profissão de fé: "Caso, doutrina universal que a justifique e englobe na história da América e
diante da iminente invasão do pragmatismo e tendências afins, na do mundo. Mas, se o pensamento de Caso não exerceu influência
postula-se intelectualista... fazendo o elogio dos grandes metafísicos na doutrina da revolução, seu persistente amor ao conhecimento, que
construtores, Platão, Spinoza, Hegel; e ao mesmo tempo declara-se o fez prosseguir as aulas quando as facções se engalfinhavam nas
idealista quanto ao problema do conhecimento. .. sua profissão de fé ruas, transformou-o num belo exemplo do que significava a filosofia:
termina com uma citação ("Tudo é pensamento" ... ) de Henri um amor que nada compra e nada muda.
Poincaré, o sábio pragmatista. .. A conferência final de Caso foi uma Estes são, sumariamente condensados, os antecedentes mais
argumenta- notórios da revolução. Suas causas, mais profundas e menos nu-
merosas, confundem-se com a própria vida do México.

4 Silvio Zavala, Síntesi. de la historio: del pueblo mexicano, in Mé:eico' en la


cultura, México, 1946. 5 Pedro Henríquez Urefia, Horas de estudio, Paris, 1910.

126 127
Nosso movimento se distingue pela carência de um sistema Zapata, figura que possui a bela e plástica poesia das imagens
ideológico prévio e pela fome de terras. Os camponeses mexicanos populares, tenha servido de modelo, uma vez ou outra, aos pintores
fazem a revolução não somente para obter melhores condições de mexicanos. Junto com Morelos e Cuauhtêmoc, é um de nos.sos
vida, mas também para recuperar as terras que, no decorrer, da heróis legendários. Realismo e mito se aliam nesta melancólica,
Colônia e do século XIX, os colonos e os latifundiários lhes tinham ardente e esperançosa figura, que morreu como vivera: abraçado à
arrebatado. terra. Como ela, é feito de paciência e fecundidade, de silêncio e
O "calpulli" era a forma básica de propriedade territorial antes esperança, de morte e ressurreição. Seu programa continha poucas
da Conquista. Consistia este sistema "em dividir as populações em idéias, as estritamente necessárias para fazer ressaltar as formas
vários bairros ou calpulli, caga um deles com uma determinada' econômicas e políticas que nos oprimiam. Os artigos sexto e sétimo
extensão de terras, que não pertenciam individualmente a nenhum do Plano de Ayala, que prevêem a restituição e a repartição das terras,
dos habitantes, mas sim eram ,concedidas a uma família ou tribo... na implicam numa transformação do nosso regime de propriedade
condição de que quem abandonasse o calpulli ou deixasse de cultivar agrária e abrem as portas ao México contemporâneo. Em suma, o
as terras que lhe eram designadas perdia o direito de participar da programa de Zapata consistia na liquidação do feudalismo e na
propriedade comunal" 6. As Leis das lndias protegeram esta instituição de uma legislação que se ajustasse à realidade mexicana.
instituição e são numerosas as disposições destinadas a defender a Toda revolução, diz Ortega y Gasset, é uma tentativa de sub-
propriedade comunal indígena contra abusos e usurpações de meter a realidade a um projeto racional. Daí que o espírito revo-
qualquer índole. Os preceitos admiráveis das Leis das lndias nem lucionário se conceba a si mesmo como uma exigência radical da
sempre foram respeitados e a situação dos camponeses já era razão. Talvez a opinião de Ortega y Gasset seja, por sua vez, radical
desesperadora no final do século XVIII. A atitude de Morelos, um demais, pois observo que quase sempre as revoluções, apesar de se
dos poucos dirigentes mexicanos que tiveram consciência do apresentarem como um convite a realizar certas idéias' num futuro
problema, revela até que ponto o malestar do campo influiu na guerra mais ou menos próximo, baseiam-se na pretensão de restabelecer
de independência. A Reforma comete o erro fatal de dissolver a uma justiça ou uma ordem antigas, violadas pelos opressores. Toda
propriedade comunal indígena, apesar de ter havido quem se revolução tende a estabelecer uma idade mítica. A Revolução
opusesse, como Ponciano Arriaga. Mais tarde, por meio de diversas Francesa baseia a viabilidade do seu programa na crença de que
Leis de Colonização e de Ocupação e Alienação de Terrenos Baldios, bastará reconstituir as condições ideais do Contrato Social para que a
o regime de Díaz acaba com os restos da propriedade camponesa e concórdia se realize. O marxismo também acode à teoria do
"destrói as características que até então tivera o regime de comunismo primitivo como antecedente do regime que promete. O
propriedade no México" 7. "eterno retorno" é um dos pressupostos implícitos em quase toda
Quase todos os programas e manifestos dos grupos revolu- teoria revolucionária.
cionários contêm alusões à questão agrária. Mas apenas a Revolução Todo radicalismo, dizia Marx, é um humanismo, pois o homem
do Sul e seu chefe, Emiliano Zapata, colocam com clareza, decisão e é a raiz da razão e da sociedade. Assim, toda revolução pretende criar
simplicidade o problema. Não é por acaso que um mundo onde o homem, livre enfim das travas do velho regime,
possa expressar-se de verdade e cumprir sua condição humana. O
homem é um ser que só se realizará, que só será ele mesmo, na
6 Gabino Fraga, El dm-echo agrario, in Mé:x;ico en la cultura, México, 1946. sociedade revolucionária. E esta sociedade fundamenta suas
7 Op. cito esperanças na própria natureza do homem, que

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só será ele mesmo na sociedade revolucionária. Esta sociedade dade mexicana, oprimida pelos esquemas do liberalismo, assim como
fundamenta suas esperanças na própria natureza do homem, que não é pelos abusos de conservadores e neoconservadores.
uma coisa dada e estática, mas sim consiste numa série de possibilidades O zapatismo foi uma volta à mais antiga e permanente das nossas
frustradas por um regime que o mutila. Como sabemos que o homem é tradições. Num sentido profundo, nega a obra da Reforma, pois constitui
uma possibilidade de ser, malograda pela injustiça? A noção mítica de um regresso àquele mundo do qual, de um só golpe, quiseram
uma "idade de ouro" intervém aqui: houve uma vez, em qualquer lugar desprender-se os liberais. A revolução se transforma numa tentativa de
do mundo e em algum momento da História, um estado social que reintegração ao nosso passado. Ou, como diria Leopoldo Zea, de
permitia ao homem se expressar e se realizar. Esta idade prefigura e "assimilar a nossa história", de fazer dela uma coisa viva: um passado já
profetiza a nova, que o revolucionário se propõe a criar. Quase sempre a feito presente. Esta vontade de integração e regresso às fontes contrasta
utopia pressupõe a existência prévia, num passado remoto, de uma "idade com a atitude dos intelectuais da época, que não só se mostraram
de ouro" que justifica e torna viável a ação revolucionária. incapazes de adivinhar o sentido do movimento revolucionário, como
A originalidade do Plano de Ayala consiste em que essa "idade de também continuavam especulando com idéias que não tinham outra
ouro" não é mera criação da razão, nem uma hipótese. O movimento função senão a de máscaras.
agrário mexicano exige a restituição das terras por meio de um requisito A incapacidade da "inteligência" mexicana para formular num
legal: os títulos correspondentes. E, se prevê a repartição de terras, fá-lo sistema coerente as confusas aspirações populares tornou-se patente, mal
para estender os benefícios de uma situação tradicional a todos os a revolução deixou de ser um fato instintivo e se transformou num
camponeses e povos que não possuem títulos. O movimento zapatista regime. O zapatismo e o vilhismo - as duas facções gêmeas, a face Sul e
tende a retificar a história do México e o próprio sentido da nação, que já a face Norte - eram explosões populares com escasso poder para integrar
não será o projeto histórico do liberalismo. O México não é concebido suas verdades, mais sentidas que pensadas, num plano orgânico. Eram
como um futuro a realizar, mas sim como uma volta às origens. O radi- um ponto de partida, um signo obscuro e balbuciante da vontade
calismo da Revolução Mexicana consiste na sua originalidade, isto é, em revolucionária. A facção triunfante ~ o carrancismo - tendia, por um
voltar à nossa raiz, fundamento único de nossas instituições. Ao fazer do lado, a superar as . limitações de seus dois inimigos; por outro, a negar a
calpulli o elemento básico da nossa organização econômica e social, o espontaneidade popular, única fonte de saúde revolucionária,
zapatismo não só resgatava a parte válida da tradição colonial, como restaurando o cesarismo. Toda revolução desemboca na adoração aos
também afirmava que toda construção política verdadeiramente fecunda chefes; Carranza, o Primeiro Chefe, o primeiro dos Césares
deveria partir da porção mais antiga, estável e duradoura da nossa nação: revolucionários, profetiza o "culto à personalidade", eufemismo com que
o passado indígena. se designa a moderna idolatria política. (Este culto, continuado por
O tradicionalismo de Zapata mostra a profunda consciência Obregón e por Calles, ainda rege a nossa vida política, embora limitado
histórica deste homem, isolado na sua aldeia e na sua raça. Seu pela proibição de reeleger os presidentes e outros funcionários.) Ao
isolamento, que não lhe permitiu ceder às idéias que os jornalistas e mesmo tempo, os revolucionários que rodeavam Carranza -
bacharéis da época manejavam, em busca de generais a quem assessorar, principalmente Luis Cabrera, um dos homens mais lúcidos do período
solidão de semente escondida, deu-lhe forças e profundidade para tocar revolucionário - esforçam-se em articular e dar coerência às instintivas
na verdade simples. Porque a verdade da revolução era muito simples e reivindicações populares. Nesse momento, tornou-se patente a
consistia na insurreição da reali- insuficiência ideológica da revolução. O resultado foi um compromisso:
a Constituição de

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1917. Era impossível voltar ao mundo pré-cortesíano; impossível, nossa vida histórica. Graças à revolução, o mexicano quer se reconciliar
também, regressar à tradição colonial. A revolução não teve outro com sua história e com sua origem. Daí que o nosso movimento tenha
remédio senão fazer seu o programa dos liberais, embora com certas um caráter ao mesmo tempo desesperado e redentor. Se estas palavras,
modificações. A adoção do esquema liberal foi apenas conseqüência da gastas por tantos lábios, ainda guardam algum significado para nós,
falta de idéias dos revolucionários. As que a "inteligência" mexicana querem dizer que o povo se recusa a qualquer ajuda externa, a qualquer
oferecia não serviam. A realidade fê-las em pedaços antes mesmo de que esquema proposto de fora e sem relação profunda com o seu ser, e se
a história as pusesse à prova. volta para si mesmo. O desespero, o recusar-se a ser salvo por um
A permanência do programa liberal, com sua divisão clássica de projeto alheio à sua história, é um movimento do ser que renuncia a
poderes - inexistente no México -, seu federalismo teórico' e sua cegueira qualquer consolo e se adentra na sua própria intimidade: está só. E nesse
diante da nossa realidade, abriu novamente as portas à mentira e à mesmo instante, essa solidão é resolvida em tentativa de comunhão. No-
inautenticidade. Não é de estranhar, portanto, que boa parte de nossas vamente desespero e solidão, redenção e comunhão, são termos
idéias políticas continuem sendo palavras destinadas a esconder e oprimir equivalentes.
o nosso verdadeiro ser. Por outro lado, a influência do imperialismo :f; notável como, por meio de uma procura muito lenta e pródiga
frustrou em parte a possibilidade de desenvolvimento de uma burguesia em confusões, a revolução se cristaliza. Não é um esquema que um grupo
nativa, que teria mesmo tornado viável o esquema liberal. A restauração impõe à realidade, mas sim esta, como queriam os românticos alemães,
da propriedade comunal trazia em si a liquidação do feudalismo e deveria manifesta-se e começa a adquirir forma em vários locais, encarnando-se
ter determinado o acesso ao poder da burguesia. Nossa evolução teria em grupos antagônicos e em horas diversas. E só agora -é possível ver que
seguido assim os mesmos passos que a da Europa. Mas o nosso caminho é fazem parte de um mesmo processo figuras tão opostas como Emiliano
excêntrico. O imperialismo não nos deixou atingir a "normalidade Zapata e Venustiano Carranza, Luis Cabrera e José Vasconcelos,
histórica" e as classes dirigentes do México não têm outra missão senão a Francisco Villa e Álvaro Obregón, Francisco I, Madero e Lázaro
de colaborar, como administradoras ou associadas, com um poder Cárdenas, Felipe Angeles e Antonio Díaz Soto y Gama. Se compararmos
estranho. E nesta situação de ambigüidade histórica reside o perigo de um
os protagonistas da Reforma com os da Revolução, observaremos que,
neoporfirismo. Banqueiros e intermediários podem se apoderar do Estado.
apesar da clareza de idéias dos primeiros e da confusão dos segundos, a
Sua função não seria diferente da dos latifundiários porfirianos; como
eminência dos liberais não os redime de certa secura, que os fez pessoas
eles, seriam herdeiros de um movimento revolucionário: governariam o
respeitáveis, mas oficiais, heróis de Repartição Pública, enquanto a
país com a máscara da revolução, como Díaz o fez com a do liberalismo.
Só que nesta ocasião seria difícil utilizar-se de uma filosofia que brutalidade e a rusticidade de muitos dos caudilhos revolucionários não
desempenhasse a função do positivismo. Já não há "idéias feitas" em os impediu de se transformarem em mitos populares. Villa ainda cavalga
nosso mundo. no norte, em. canções e romances; Zapata morre em cada feira popular;
Se contemplarmos a Revolução Mexicana à luz das idéias Madero aparece nas sacadas, agitando a bandeira nacional; Carranza e
esboçadas neste ensaio, observaremos que consiste num movimento Obregón ainda viajam naqueles trens revolucionários, num ir e vir por
tendente a reconquistar o nosso passado, assimilá-lo e torná-lo vivo no todo o país, alvoroçando as aglomerações femininas e arrancando os
presente. E esta vontade de regresso, fruto da solidão e do desespero, é jovens da casa paterna. Todos o seguem: para onde? Ninguém sabe. :f; a
uma das fases desta dialética de solidão e comunhão, de reunião e Revolução, a palavra mágica, a palavra
separação, que parece presidir toda a

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que vai mudar tudo e que vai trazer para nós uma alegria imensa e
uma morte rápida. Por meio da Revolução, o povo mexicano entra
dentro de si mesmo, do seu passado e da sua substância, para extrair
da sua intimidade, das suas entranhas, a sua filiação. Daí a sua VII
fertilidade, que contrasta com a pobreza do nosso século XIX. Porque
a fertilidade cultural e artística da Revolução depende da
profundidade com que os seus heróis, os seus mitos e os seus
bandidos marcaram para sempre a sensibilidade e a imaginação de
A IIINTELIGÊNCIA" MEXICANA
todos os mexicanos.
A Revolução é uma súbita imersão do México no seu próprio
ser. Das suas profundezas e entranhas extrai, quase às cegas, os
fundamentos do novo Estado. Volta à tradição, reatamento dos laços
com o passado, rompidos pela Reforma e pela Ditadura, a Revolução
é uma busca de nós mesmos e um regresso à mãe. F, por isso, é
também uma festa: a festa das balas, para empregar a expressão de
Incorreria numa grosseira simplificação quem afirmasse que a
Martín Luis Guzmán. COmo as festas populares, a Revolução é um
cultura mexicana é um reflexo das mudanças históricas operadas pelo
excesso e um gasto, um chegar aos extremes, um estouro de alegria e
movimento revolucionário. Seria mais exato dizer que estas
desamparo, um grito de orfandade e de júbilo, de suicídio e de vida,
mudanças, tanto quanto a cultura mexicana, expressam de alguma
tudo misturado. Nossa Revolução é a outra face do México, ignorada
maneira as tentativas e tendências, às vezes contraditórias, da nação -
pela Reforma e humilhada pela Ditadura. Não a face da cortesia, da
isto é, da parte do México que assumiu a responsabilidade e o gozo da
dissimulação, a forma atingida à força de mutilações e mentiras, mas
mexicanidade. Neste sentido é que podemos dizer que a história de
sim o ros.to brutal e resplandescente da festa e da morte, do alvoroço
e do balaço, da feira e do amor, que é rapto e tiroteio. A Revolução nossa cultura não é muito diferente da de nosso povo, embora esta
mal tem idéias. :B um estouro da realidade: uma revolta e uma relação nem sempre seja estreita. E não é estreita nem fatal, porque
comunhão. um remexer de velhas substâncias adormecidas, um vir à muitas vezes a cultura se adianta à história e a profetiza. Ou deixa de
tona de muitas ferocidades, muitas ternuras e muitas delicadezas expressá-la e a atraiçoa, conforme se observa em certos momentos da
ocultas pelo medo de ser. E com quem comunga o México nesta festa ditadura de Diáz. Por outro lado, a poesia, em virtude de sua própria
sangrenta? Consigo mesmo, com o seu próprio ser. O México se natureza e da natureza do seu instrumento, a palavra, tende sempre à
atreve a ser. A explosão revolucionária é uma festa portentosa em que abolição da história, não porque a desdenhe, mas sim porque a
o mexicano, bêbado de si mesmo, conhece o fim, no abraço mortal, transcende. Reduzir a poesia a seus significados históricos seria como
com outro mexicano. reduzir as palavras do poeta às suas conotações lógicas ou
gramaticais. A poesia escapa à história e à língua, embora ambas
sejam o seu alimento necessário. O mesmo se pode dizer, com as
ressalvas naturais, da pintura, da música, do romance, do teatro e das
demais artes. Mas as páginas que se seguem não têm como tema as
obras de criação, mas sim limitam-se a descrever certas atitudes

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da "inteligência" mexicana, isto é, daquele setor que fez do pen- esquecidas durante séculos; nas escolas e nos salões, tomam-se a
samento crítico a sua atividade vital'. Sua obra, além disso, está cantar as velhas canções; dançam-se as danças regionais, com seus
menos nos livros e nos escritos que em sua influência pública e em movimentos puros e tímidos, feitos de vôo e estática, de reserva e
sua ação política. fogo. Nasce a pintura mexicana contemporânea. Uma parte de nossa
Se a revolução foi uma brusca e mortal imersão em nós mes- literatura volta os olhos para o passado colonial; outra, para o
mos, na nossa raiz e origem, nada nem ninguém encarna melhor este indígena. Os mais valentes encaram o presente: surge o romance da
fértil e desesperado afã que José Vasconcelos, o fundador da revolução. O México, perdido na dissimulação da ditadura, de repente
educação moderna no México. Sua empresa, ao mesmo tempo que é descoberto por olhos atônitos e apaixonados: "Filhos pródigos de
prolonga a tarefa iniciada por Justo Sierra - ampliar a educação ama pátria que nem sequer sabemos definir, começamos a observá-la.
elementar e aperfeiçoar o ensino superior e universitário -, pretende Castelhana e mourisca, listrada de asteca".
basear a educação em certos princípios implícitos em nossa tradição e Membro da geração do Ateneu, participante da luta contra o
que o positivismo tinha esquecido ou ignorado. Vasconcelos pensava positivismo, Vasconcelos sabia que toda educação traz em si uma
que a revolução ia redescobrir o sentido de nossa história, procurado imagem do mundo e reclama um programa de vida. Daí seus esforços
em vão por Sierra. A nova educação basearse-ia "no sangue, na língua para basear a escola mexicana em alguma coisa além do texto do
e no povo". artigo. terceiro da Constituição, que previa o ensino leigo. O laicismo
O movimento educativo possuía um caráter orgânico. Não é a nunca fora neutro. Sua pretensa indiferença diante das questões
obra isolada de um homem extraordinário - embora Vasconcelos o últimas era um artifício que não enganava ninguém. E Vasconcelos,
seja, e em vários aspectos. Fruto da revolução, nutre-se dela; e ao se que não era católico nem jacobino,. também não era neutro. Assim,
realizar, realiza o melhor e mais secreto do movimento quis basear nosso ensino na tradição, do mesmo modo como a
revolucionário. Na tarefa colaboraram poetas, pintores, prosadores, revolução se empenhava em criar uma nova economia a partir da
professores, arquitetos, músicos. Foi uma obra social, mas que exigia propriedade comunal. Basear a escola na tradição significava
a presença de um espírito capaz de se inflamar e de inflamar os formular explicitamente os impulsos revolucionários que até aquele
outros. Filósofo e homem de ação, Vasconcelos possuía esta unidade momento se expressavam como instinto e balbucio. Nossa tradição,
de visão que imprime coerência aos projetos dispersos, e que, se às se realmente estava viva e não era uma forma hirta, iria redescobrir
vezes se esquece de detalhes, também impede que as pessoas se para nós uma tradição universal, na qual a nossa se inseria,
percam neles. Sua obra - sujeita a numerosas, necessárias e nem prolongava e justificava.
sempre felizes correções - não foi a do técnico, mas sim a do Todo retomo à tradição leva a reconhecer que somos parte da
fundador. tradição universal da Espanha, a única que podemos aceitar e
Vasconcelos concebe o ensino como participação viva. Por um continuar, nós, hispano-americanos. Há duas Espanhas: a fechada ao
lado, fundam-se escolas, editam-se cartilhas e clássicos, criamse mundo e a Espanha aberta, heterodoxa, que rompe o cárcere para
intitutos e enviam-se missões culturais aos locais mais afastados; por respirar o ar livre do espírito. Esta última é a nossa. A outra, a castiça
outro, a "inteligência" volta-se para o povo, descobre-o e o transforma e medieval, não nos deu o ser nem nos descobriu, e toda a nossa
no seu elemento superior. Emergem as artes populares, história, como parte da dos espanhóis, foi luta contra ela. Ora, a
tradição universal da Espanha na América consiste, sobretudo, em
1 O leitor poderá encontrar a posição do autor em relação à arte mexicana,
conceber o continente como uma unidade superior, conforme já
principalmente quanto à poesia e à pintura, no livro Las peras del olmo, vimos. Portanto, voltar à tradição espanhola não tem ou-
México, 1956.

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tro sentido senão o de voltar à unidade da Hispano-América. A fi- antecipações, mas não o fundamento de nosso ser, nem o da nossa
losofia da raça cósmica (isto é, do novo homem americano que cultura.
dissolverá todas as oposições raciais e o grande conflito entre Oriente Durante a época em que Lázaro Cárdenas dirige o país, a re-
e Ocidente) era apenas a conseqüência natural e o fruto extremo do volução tende a se realizar com maior amplidão e profundidade. As
universalismo espanhol, filho do Renascimento. As idéias de reformas planejadas pelos regimes anteriores são por fim realizadas.
Vasconcelos não tinham parentesco com o casticismo e o A obra de Cárdenas consuma a de Zapata e a de Carranza. A
tradicionalismo dos conservadores mexicanos, pois para ele, como necessidade de dar ao povo alguma coisa além do laicismo liberal
para os fundadores da América, o continente se apresentava como produz a reforma do artigo terceiro da Constituição: "A educação que
futuro enovidade: "a América espanhola é o novo por excelência, for dada pelo Estado será socialista. .. combaterá o fanatismo e os
novidade não só de território, mas também de alma". O preconceitos, criando na juventude um conceito racional e exato do
tradicionalismo de Vasconcelos não se apoiava no passado: jus- universo e da vida social". Para os próprios marxistas, o texto do
tificava-se no futuro. novo artigo terceiro era defeituoso: como implantar uma educação
A filosofia ibero-americana de Vasconcelos constituía a pri- socialista num país cuja Constituição consagrava a propriedade
meira tentativa de resolver um conflito latente, desde que iniciouse a privada e onde a classe 'operária não possuía a direção dos negócios
revolução. Explosão do instinto, ânsia de comunhão, revelação do públicos? Arma de luta, a educação socialista criou muitas
nosso ser, o movimento revolucionário foi busca e encontro da nossa inimizades inúteis para o regime e provocou as críticas fáceis dos
filiação, interrompida pelo liberalismo. Mas esta tradição redescoberta conservadores. Também se mostrou impotente para superar as
não bastava para alimentar nossa voracidade de país renascido, carências da Revolução Mexicana. Se as revoluções não são feitas
porque não continha elementos universais que nos serVIssem para com palavras, as idéias também não são implantadas com decretos. A
construir uma nova sociedade, já que era impossível voltar ao filosofia implícita no texto do artigo terceiro não convidava à
catolicismo ou ao liberalismo, as duas grandes correntes universais participação criadora, nem fundamentava as bases da nação, como
que tinham modelado a nossa cultura. Ao mesmo tempo, a revolução fizera no seu momento o catolicismo colonial. A educação socialista
não se podia justificar a si mesma porque quase não tinha idéias. Não era uma armadilha em que s6 caíram os seus inventores, com o
restava, pois, nada além da autofagia ou da invenção de um novo regozijo de todos os reacionários. O conflito entre a universalidade
sistema. Vasconcelos resolve o problema ao oferecer sua filosofia da de nossa tradição e a impossibilidade de voltar às formas em que se
raça ibero-americana. O lema do positivismo, "Amor, ordem e havia expresso este universalismo não podia ser resolvido com a
progresso", foi substituído pelo orgulhoso "Por minha raça falará o adoção de uma filosofia que não era, nem podia ser, a do Estado
espírito". mexicano.
Infelizmente, a filosofia de Vasconcelos é antes de tudo uma O próprio conflito dilacera as formas políticas e econômicas
obra pessoal, ao contrário do que ocorria com liberais e positivistas, criadas pela revolução. Em todos os aspectos da vida mexicana,
que continuavam vastas correntes ideológicas. A obra de Vasconcelos encontra-se, ao mesmo tempo que uma consciência muito viva da
possui a coerência poética dos grandes sistemas filos6ficos, mas não o autencidade e da originalidade da nossa revolução, um afã de
seu rigor; é um monumento isolado, que não originou uma escola totalidade e coerência que ela não oferece. O calpulli era uma
nem um movimento. E, como disse Malraux, "os mitos não acodem à instituição econômica, social, política e religiosa que floresceu
cumplicidade da nossa razão, mas sim à dos nossos instintos". Não é naturalmente no centro da vida pré-cortesiana. Durante o período
diíícil encontrar, no sistema vasconceliano, fragmentos ainda vivos, colonial, consegue conviver com outras formas de propriedade,
porções fecundas, iluminações, graças à natureza do mundo fundado pelos espanh6is, or-

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dem universal que admitia diversas concepções da propriedade, da o resto da "inteligência" foi utilizado para fins concretos e imediatos:
mesma maneira como obrigava uma pluralidade de raças, castas e classes. projetos de leis, planos de governo, missões confidenciais, tarefas
Mas, como integrar a propriedade comunal da terra no seio de uma educativas, fundação de escolas e bancos de fomento agrícola etc. .. A
sociedade que inicia a sua etapa capitalista e que de repente se vê lançada diplomacia, o comércio exterior, a administração pública abriram suas
ao mundo das contendas imperialistas? O problema era o mesmo que se portas a uma "inteligência" que vinha da classe média. Logo surgiu um
colocava para escritores e artistas: encontrar uma solução orgânica, total, grupo numeroso de técnicos e especialistas, graças às novas escolas
que não sacrificasse as particularidades do nosso ser à universalidade do profissionais e às viagens de estudo ao estrangeiro. Sua participação na
sistema, como ocorrera com o liberalismo, e que também não reduzisse a gestão governamental tomou possível a continuidade da obra iniciada
nossa participação à atitude passiva, estática, do crente ou do imitador. pelos primeiros revolncionários. Eles defenderam, numa quantidade de
Pela primeira vez, vida e história se colocavam para o mexicano como ocasiões, a herança revolucionária. Mas, nada mais difícil que sua
coisas que é preciso inventar globalmente dos pés à cabeça. Na. situação. Preocupados em não ceder suas posições - das materiais às ideo-
impossibilidade de fazê-lo, nossa cultura e nossa política social vacilaram lógicas -, fizeram do compromisso uma arte e uma forma de vida. Sua
entre diversos extremos. Incapazes de realizar uma. síntese, acabamos obra foi, em muitos aspectos, admirável; ao mesmo tempo, perderam a
aceitando uma série de compromissos, tanto na. esfera da educação independência e sua crítica tornou-se diluída, à força da prudência ou do
quanto na dos problemas sociais. Estes compromissos nos permitiram maquiavelismo. A "inteligência" mexicana, no seu conjunto, não pôde ou
defender o já conquistado, mas seria perigoso considerá-los definitivos. O não soube utilizar as armas próprias do intelectual: a crítica, o exame, o
texto atual do artigo terceiro reflete esta situação. A emenda juízo. O resultado foi que o espírito cortesão - produto natural, pelo visto,
constitucional foi benéfica, mas, acima de qualquer consideração técnica, de toda revolução que se transforma em governo - invadiu quase toda .a
continuam sem resposta certas perguntas: qual o sentido da tradição esfera da atividade pública. Além disso, como acontece sempre com toda
mexicana e qual o seu valor atual? qual o programa de vida que as nossas burocracia, alastrou-se a moral fechada de seita e o culto mágico ao
escolas oferecem aos jovens? As respostas a estas perguntas não podem "segredo de Estado". Os assuntos públicos não são mais discutidos: são
ser obra de um homem. Se não as respondemos, é porque a própria cochichados. Não se deve esquecer, entretanto, que em muitos casos a
história não resolveu este conflito. colaboração foi paga com sacrifícios reais. O demônio da eficácia - e não
o da ambição -, o desejo de servir e de cumprir uma tarefa coletiva, e até
mesmo certo sentido ascético da moral cidadã, entendida como negação
do eu, muito próprio do intelectual, levou alguns à perda mais dolorosa:
.a da obra pessoal. Este drama não é sequer colocado para o intelectual
Uma vez encerrado o período militar da revolução, muitos jovens
europeu. Ora, na Europa e nos Estados Unidos, o intelectual foi tirado do
intelectuais - que não tinham tido idade ou possibilidade de participar da
poder, vive no exílio e sua influência se exerce fora do âmbito do Estado.
luta armada - começaram a colaborar com os governos revolucionários.
Sua missão principal é a crítica; no México, a ação política. O mundo da
O intelectual se transformou no conselheiro, secreto ou público, do
política é, por natureza, o dos valores relativos: o único valor absoluto é a
general analfabeto, do líder camponês ou sindical, do caudilho no poder.
eficácia. A "inteligência" mexicana fez mais que servir o país: defendeu-
A tarefa era imensa, e era preciso improvisar tudo. Os poetas estudaram
o. Foi
economia, os juristas sociologia, os romancistas direito internacional,
pedagogia ou agronomia. Exceção feita aos pintores - que foram
protegidos da melhor maneira possível: tendo a seu cargo os murais
públicos -

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honrada e eficaz, mas não terá deixado de ser "inteligência", isto é, talvez reduzam a significação de suas conclusões. Mas este livro
não terá renunciado a ser a consciência crítica do seu povo? continua sendo o único ponto de partida que temos para nos conhecer.
As oscilações da revolução, a pressão internacional que não Não só a maior parte de suas observações ainda são válidas, como
deixou de se fazer sentir, mal se iniciaram as reformas sociais, a também a idéia central que o inspira continua sendo verdadeira: o
demagogia que logo se transformou numa doença permanente do mexicano é um ser que quando se expressa se esconde; suas palavras
nosso sistema político, a corrupção dos dirigentes, que crescia à e seu.s gestos são quase sempre máscaras. Utilizando um método
medida que era mais notória a impossibilidade de nos realizarmos em diferente do empregado neste estudo, Ramos nos deu uma descrição
formas democráticas à maneira liberal, produziram ceticismo no povo muito penetrante do conjunto de atitudes que faz de cada um de nós
e desconfiança entre os intelectuais. A "inteligência" mexicana, unida um ser fechado e inacessível.
numa empresa comum, também tem GS seus heterodoxos e solitários,
os seus críticos e os seus doutrinários. Alguns pararam de colaborar e Enquanto Samuel Ramos descobre o sentido de alguns gestos nossos
fundaram grupos e partidos de oposição, como Manuel Gómez mais característicos - exploração que seria preciso completar com uma
Morín, ontem autor das leis revolucionárias da Fazenda e hoje chefe psicanálise dos nossos mitos e crenças e um exame da nossa vida
da Ação Nacional, o partido de direita. Outros, como Jesus Silva erótica -, Jorge Cuesta preocupa-se em indagar o sentido da nossa
Herzog, mostraram que a eficácia não está em desacordo com a tradição. Suas idéias, dispersas em artigos de crítica estética e política,
independência espiritual; sua revista Cuaâemos Americanos agrupou possuem coerência e unidade, apesar de seu autor nunca ter tido a
todos os escritores independentes da Hispano-América. Vicente oportunidade de reunir esses trabalhos num livro. Trate-se do
Lombardo Toledano, Narciso Bassols e outros se converteram ao classicismo da poesia mexicana, da influência da França em nossa
marxismo, única filosofia que parecia conciliar para eles as cultura, da pintura mural, ou da poesia de López Velarde, Cuesta
particularidades da história do México com a universalidade da reitera este pensamento: o México é um país que se fez a si mesmo e
revolução. A obra destes homens devnerjulgada sobretudo no campo que, portanto, carece de passado. Melhor dito, o México se fez contra
da política social. Infelizmente, já há muitos anos que sua atividade se o seu passado, contra dois Iocalismos, duas inércias e dois
viciou na docilidade com que seguiram, mesmo nos seus piores casticismos: o índio e o espanhol. A verdadeira tradição do México
momentos, a linha política stalinista.
não continua, mas sim nega a colonial, pois é uma livre escolha de
Ao mesmo tempo que uma parte da "inteligência" se voltava
certos valores universais: os do racionalismo francês. Nosso
para o marxismo - quase sempre na sua forma oficial e burocrática -,
"francesismo" não é acidental, nem fruto de mera circunstância
procurando assim romper a solidão, ao se inserir no movimento
histórica. Na cultura francesa, que também é livre escolha, o mexicano
operário mundial, outros homens iniciaram uma tarefa de revisão e
crítica. A Revolução Mexicana tinha descoberto o rosto do México. se descobre como vocação universal. Os modelos de nossa poesia,
Samuel Ramos pergunta por seus traços, arranca máscaras e inicia um como os que inspiram os nossos sistemas políticos, são universais e
exame do mexicano. Diz-se que El perfil dei hombre y la cultura en indiferentes ao tempo, ao espaço e à cor local: implicam numa idéia
México, primeira tentativa séria de nos conhecer, padece de diversas do homem e tendem e realizá-la, sacrificando nossas particularidades
limitações: o mexicano que suas páginas descrevem é um tipo nacionais. Constituem um Rigor e uma Forma. Assim, nossa poesia
isolado, e os instrumentos de que o filósofo se serve para penetrar !l não é romântica nem nacional, a não ser quando desmaia ou se
realidade - a teoria do ressentimento, mais como foi exposta por atraiçoa. O mesmo acontece com o resto de nossas formas artísticas e
AdIer do que por Scheler - políticas.

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Cuesta desdenha o exame histórico. Vê na tradição espanhola ~ completo ·do regime porfirista. Mas, talvez o melhor e mais es-
apenas inércia, conformismo e passividade, porque ignora a outra face timulante de sua atividade intelectual seja o espírito que anima sua
desta tradição. Omite a análise da influência da tradição indígena, crítica, a desenvoltura de suas opiniões, a independência de seu juízo.
também. E esta nossa preferência pela cultura francesa não é bem mais Seu melhor livro, para mim, é Extremos de América, exame nada
filha de diversas circunstâncias, tanto da história universal quanto da piedoso de nossa realidade, feito com ironia, coragem e uma admirável
mexicana, que de uma suposta afinidade? Influenciado por Julián Benda, impertinência.
Cuesta esquece que a cultura francesa se alimenta da história da França e Cárdenas abriu as portas aos vencidos na guerra da Espanha.
que é inseparável da realidade que a mantém. Entre eles vinham escritores, poetas, professores. A eles se deve em parte
Apesar das limitações de sua posição intelectual, agora mais o renascimento da cultura mexicana, sobretudo no campo da filosofia.
visíveis do que quando o autor as formulou, em esporádicas publicações Um espanhol a quem nós, mexicanos, devemos gratidão é José Gaos, o
jornalísticas, devemos a Cuesta várias observações valiosas. O México, mestre da nova "inteligência". A nova geração está em condições de
com efeito, define-se a si mesmo como negação do seu passado. Seu manejar os instrumentos que qualquer empresa intelectual requeira. Pela
erro, como o dos liberais e positivistas, consistiu em pensar que esta primeira vez, desde a época da Independência, a "inteligência" mexicana
negação significava forçosamente a adoção do radicalismo e do não precisa se formar fora das salas de aula. Os novos professores não
classicismo franceses em política, arte e poesia. A própria história refuta oferecem aos jovens uma filosofia, mas sim os meios e as possibilidades
esta hipótese: o movimento revolucionário, a poesia contemporânea, a para criá-la. Esta é, precisamente, a missão do professor.
pintura e, enfim, o próprio crescimento do país, tendem a impor nossas
Um novo elemento de estímulo é a presença de Alfonso Reyes.
particularidades e a romper a geometria intelectual que a França nos
Sua obra, que agora podemos começar a contemplar nas suas verdadeira
propõe. O radicalismo mexicano, como se procurou mostrar neste ensaio,
dimensões, é um convite ao rigor e à coerência. O classicismo de Reyes,
tem outro sentido.
eqüidistante do academismo de Ramírez e do romantismo de Sierra, não
Para além das diferenças que os separam, adverte-se certo pa- parte das formas já feitas. Em lugar de ser mera imitação ou adaptação de
rentesco entre Ramos e Cuesta. Ambos, em direção contrária, refletem formas universais, é um classicismo que se procura e se modela a si
nossa vontade de nos conhecer. O primeiro representa esta tendência em mesmo, espelho e fonte, simultaneamente, onde o homem se reconhece,
direção à nossa própria intimidade, que a Revolução Mexicana encarnou; é verdade, mas também se ultrapassa.
o segundo, a necessidade de inserir nossas particularidades numa
Reyes é um homem para quem a literatura é mais que uma vocação
tradição universal.
ou um destino: uma religião. Escritor por inteiro, para quem a língua é
Outro solitário é Daniel Cosío Villegas. Economista e historiador, tudo o que pode ser: som e signo, traço inanimado e magia, organismo de
foi o fundador do Fondo de Cultura Económica, empresa editorial não relojoaria e ser vivo. Poeta, crítico e ensaísta, é o Literato: o mineiro, o
lucrativa que teve por primeiro objetivo - e daí o seu nome - artífice, o peão, o jardineiro, o amante e o sacerdote das palavras. Sua
proporcionar aos hispano-americanos os textos fundamentais da ciência obra é história e poesia, reflexão e criação. Se Reyes é um grupo de
econômica, de Smith e dos fisiocratas como Keynes, passando por Marx. escritores, sua obra é uma Literatura. Lição de forma? Não, lição de
Graças a Cosío e a seus sucessores, o Fondo se transformou numa editora expressão. Num mundo de retóricos eloqüentes ou de concentrados
de obras de filosofia, sociologia e história, que renovaram a vida silenciosos, Reyes nos adverte dos perigos e das responsabilidades da lin-
intelectual dos países de língua espanhola. Devemos a Cosío Villegas o guagem. Acusam-no de não nos ter dado uma filosofia ou uma
exame mais sério

144 145
orientação. Mas seus acusadores esquecem boa parte de seus escritos, idioma que já sofreu as experiências de Góngora e de Quevedo, de
destinados a esclarecer muitas situações que a história da América Cervantes e de San Juan, para expressar um homem que não termina
nos coloca. E, além disso, parece-me que a importância de Reyes o seu ser e que não se conhece a si mesmo. Escrever equivale a
reside sobretudo no fato de que lê-lo é uma lição de clareza e desfazer o espanhol e recriá-lo, para que se torne mexicano, sem
transparência. Ao nos ensinar a dizer, ensina-nos a pensar. Daí a deixar de ser espanhol. Nossa fidelidade à língua, em suma, implica
importância de suas reflexões sobre a inteligência americana e sobre em fidelidade ao nosso povo e fidelidade a uma tradição que não é
as responsabilidades do intelectual e do escritor do nosso tempo. totalmente nossa, a não ser por um ato de violência intelectual. Na
O primeiro dever do escritor, diz, estriba na sua fidelidade à escrita de Reyes, vivem os dois termos deste dever extremado. Por
linguagem. O escritor é um homem que não tem outro instrumento isso, nos seus melhores momentos, sua obra consiste na invenção de
senão as palavras. Diferentemente das ferramentas do artesão, do uma linguagem e de uma forma universais e capazes de conter, sem
pintor e do músico, as palavras estão cheias de significaçõeS sufocá-los e sem se dilacerar, todos os nossos conflitos
inexpressados.
ambíguas e até contrárias. Usá-las quer dizer esclarecêlas, purificá-
las, fazê-las realmente instrumentos do nosso pensar e não máscaras Reyes enfrenta a língua como problema artístico e ético. Sua
ou aproximações. Escrever implica numa profissão de fé e numa obra não é um modelo ou uma lição, mas sim um estímulo. Por isso,
atitude que transcende a do retórico e a do gramático; as raízes das nossa atitude diante da língua não pode ser diferente da de nossos
palavras se confundem com as da moral: a crítica da linguagem é predecessores: também a nós, e mais radicalmente que a eles, pois
uma crítica histórica e moral. Todo estilo é mais que uma maneira de temos menos ilusões quanto a algumas idéias que a cultura ocidental
falar: é uma maneira de pensar e, portanto, um juízo implícito ou sonhou como eternas, a vida e a história de nosso povo se apresentam
explícito sobre a realidade que nos cerca. Entre a língua, ser por como uma vontade que se empenha em criar a forma que a expresse e
natureza social, e o escritor, que só cria na solidão, estabelece-se que, sem traí-la, a transcenda. Solidão e comunhão, mexicanidade e
assim uma relação muito estranha: graças ao escritor, a língua universalidade, continuam sendo os extremos que devoram o
amorfa, horizontal, ergue-se e se individualiza; graças à língua, o mexicano. Os termos deste conflito habitam não só a nossa
escritor moderno, impedidas as outras vias de comunicação com o intimidade e colorem com um matiz especial, alternadamente
seu povo e o seu tempo, participa da vida da Cidade. sombrio e brilhante, a nossa conduta privada e as nossas relações com
os demais, mas também jazem no fundo de todas as nossas tentativas
Da obra de Alfonso Reyes pode-se extrair não só uma crítica,
políticas, artísticas e sociais. A vida do mexicano é um contínuo
mas também uma filosofia e uma ética da linguagem. Por esta razão,
retesar-se entre ambos os extremos, quando não é um instável e
não é por acaso que, ao mesmo tempo que defende a transparência do
penoso equilíbrio.
vocábulo e a universalidade do seu significado, defenda uma missão.
Porque, além desta radical fidelidade à linguagem, que define todo
escritor, o mexicano tem alguns deveres específicos. O primeiro de
todos consiste em expressar o que é nosso. Ou, para empregar as Toda a história do México, desde a Conquista até a Revolução,
palavras de Reyes, "procurar a alma nacional". Tarefa árdua e pode ser vista como uma busca de nós mesmos, deformados ou
extrema, pois usamos uma língua pronta e que não criamos, para mascarados por instituições estranhas, e de uma forma que nos
revelar uma sociedade balbuciante e um homem emaranhado. Não expresse. As sociedades pré-cortesianas atingiram criações muito
temos outro remédio senão usar um ricas e diversas, conforme se vê pelo pouco que os espanhóis dei-
xaram de pé e pelas revelações que todos os dias nos fazem os
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arqueólogos e antropólogos. A Conquista destrói estas formas e superpõe uma volta à vida pré-natal, passiva, neutra e satisfeita 2. A minoria, que
a espanhola. Na cultura espanhola, palpitam duas direções, conciliadas tenta sair ao ar livre do mundo, sufoca-se, emudece ou retrocede.
mas não fundidas inteiramente pelo Estado espanhol: a tradição medieval, A Independência, a Reforma e a Ditadura são diferentes.
castiça, viva na Espanha até nossos dias, e uma tradição universal, de que contraditórias fases de uma mesma vontade de dilaceramento. O século
a Espanha se apropria e que toma sua, antes da Contra-Reforma. Por obra XIX deve ser visto como ruptura total com a Forma. E, simultaneamente,
do catolicismo, a Espanha atinge na esfera da arte uma síntese feliz de o movimento liberal se manifesta como uma tentativa utópica, que
ambos os elementos. O mesmo se pode dizer de algumas instituições e provoca a vingança da realidade. O esquema liberal se transforma na
noções de direito político, que intervêm decisivamente na constituição da simulação do positivismo. Nossa história independente, desde que
sociedade colonial e no estatuto outorgado aos índios e a suas começamos a ter consciência de nós mesmos, noção de pátria e de ser
comunidades. Devido ao caráter universal da religião católica que era, nacional, é ruptura e busca. Ruptura com a tradição, com a Forma. E
embora disso se esqueçam com freqüência os fiéis e seus adversários, busca de uma nova forma, capaz de conter todas as nossas
uma religião para todos, principalmente para os deserdados e os órfãos -, particularidades e aberta para o futuro. Nem o catolicismo, fechado ao
a sociedade colonial consegue transformarse, por um momento, numa futuro, nem o liberalismo. que substituía o mexicano concreto por uma
ordem. Forma e substância compactuam. Entre a realidade e as abstração unânime, podiam ser esta forma buscada, expressão de nossos
instituições, o povo e o poder, a arte e a vida, o indivíduo e a sociedade, desejos particulares e de nossos anseios universais.
não há um muro nem um fosso. Tudo se corresponde e os mesmos
A revolução foi uma descoberta de nós mesmos e um regresso às
conceitos e uma mesma vontade regem os ânimos. O homem, por mais
origens, primeiro; em seguida, uma busca e uma tentativa de síntese,
humilde que seja a sua condição, não está só. Nem a sociedade, também.
várias vezes abortada; incapaz de assimilar nossa tradição e oferecer-nos
Mundo e além-mundo, vida e morte, ação e contemplação, são experiên-
um novo projeto salvador, finalmente foi um compromisso. Nem a
cias totais e não atos ou conceitos isolados. Cada fragmento participa da
revolução foi capaz de articular toda a sua explosão salvadora numa
totalidade e esta vive em cada uma de suas partes. A ordem pré-
visão de mundo, nem a "inteligência" mexicana resolveu o conflito entre
cortesiana foi substituída por uma forma universal, aberta à participação e
a insuficiência da nossa tradição e a nossa exigência de universalidade.
à comunhão de todos os fiéis.
Esta recapitulação nos leva a colocar o problema de uma filosofia
A paralisia da sociedade colonial e sua petrificação final, numa
mexicana, levantado recentemente por Ramos e Zea. Os conflitos
máscara piedosa ou feroz, parece ser filha de uma circunstância que
examinados no decorrer deste ensaio tinham permanecido, até pouco
poucas vezes foi examinada: a decadência do catolicismo europeu, como
tempo atrás, escondidos, encobertos por formas e idéias estranhas que, se
manancial da cultura ocidental, coincidiu com a sua expansão e apogeu
serviram para nos justificar, também impediram que nos
na Nova Espanha. A vida religiosa, fonte de criação em outra época,
manifestássemos e mostrássemos a natureza de nossa luta interior. Nossa
reduz-se, para os privilegiados, a participação inerte. E, para
situação era semelhante à do neurótico, para quem os princípios morais e
desprivilegiados, oscilantes entre a curiosidade e a fé, a tentativas
as idéias abstratas não têm ou-
incompletas, jogos de engenho e, no final, a silêncio e tarpor. Ou, para
falar em outros termos: o catolicismo se oferece à imensa massa indígena
como um refúgio. A orfandade que a ruptura da Conquista provoca
resolve-se num regresso às obscuras entranhas maternas, A religiosidade
colonial é

2 Ver Jorge Carri6n, "La ruta psicológica de Quetzalc6atl", in CU4-


demo. AmericCl1to., número 6, México, setembro-outubro de 1949.

148 149
tra função prática senão a defesa de sua intimidade, sistema complicado pentino abrir o peito para encontrar nossa voz mais secreta. Uma filosofia
com o qual se engana e engana os outros, sobre o verdadeiro significado mexicana terá que enfrentar a ambigüidade da nossa tradição e da nossa
de suas inclinações e a natureza de seus conflitos. Mas, no momento em própria vontade de ser, que, se exige plena originalidade nacional, não se
que estes aparecem em plena luz e tal qual são, o doente deve enfrentá- satisfaz com alguma coisa que não implique numa solução universal.
los e resolvê-los por si mesmo. Uma coisa parecida acontece conosco.
Vários escritores se impuseram a tarefa de examinar o nosso
De repente nos encontramos nus, diante de uma realidade também nua.
passado intelectual. Destacam-se neste campo os estudos de Leopoldo
Já nada mais nos justifica e só nós mesmos podemos dar a resposta às
Zea e Edmundo O'Gorman. O problema que preocupa O' Gorman é saber
perguntas que a realidade nos faz. A reflexão filosófica torna-se assim
que tipo de ser histórico é o que chamamos América. Não é uma região
uma tarefa salvadora e urgente, pois não terá mais por objetivo examinar geográfica, também não um passado e, talvez, nem sequer um presente.
o nosso passado intelectual, nem descrever as nossas atitudes É uma idéia, uma invenção do espírito europeu. A América é uma
características, mas sim deverá nos oferecer uma solução concreta, utopia, isto é, é o momento em que o espírito europeu se universaliza,
alguma coisa que traga sentido para a nossa presença na terra. desprende-se de suas particularidades históricas e concebe-se a si mesmo
Como pode ser mexicana uma reflexão filosófica desta natureza? como uma idéia universal que, quase milagrosamente, encarna e se fixa
Como exame da nossa tradição, será uma filosofia da história do México numa terra e num tempo preciso: o futuro. Na América, a cultura
e uma história das idéias mexicanas. Mas, nossa história é apenas um européia se imagina como unidade superior. O'Gorman acerta, quando vê
fragmento da história universal. Quero dizer: sempre, exceto no  nosso continente como a atualização do espírito europeu; mas,
momento da revolução, vivemos nossa história como um episódio da que acontece com a América como ser histórico autônomo, quando
história do mundo inteiro. Também as nossas idéias nunca foram nossas enfrenta a realidade européia? Esta pergunta parece ser o tema essencial
de todo, mas sim herança ou conquista das idéias criadas pela Europa. de Leopoldo Zea. Historiador do pensamento hispano-americano - e
Uma filosofia da história do México seria, pois, apenas uma reflexão também crítico' independente, mesmo no campo da política diária -, Zea
sobre as atitudes que assumimos diante dos temas que a história afirma que, até pouco tempo atrás, a América foi o monólogo da Europa,
universal nos propôs: contra-reforma, racionalismo, positivismo, uma das formas históricas em que encarnou seu pensamento; hoje, este
socialismo. Em suma, a meditação histórica nos levaria a responder esta monólogo tende a se transformar em diálogo. Um diálogo que não é pura-
pergunta: como os mexicanos viveram as idéias universais? mente intelectual, mas sim social, político e vital. Zea estudou a
A pergunta anterior traz em si uma idéia sobre o caráter distintivo da alienação americana, o não sermos nós mesmos e o sermos pensados por
mexicanidade, segundo tema desta projetada filosofia mexicana. Nós, outros. Esta alienação - mais que as nossas particularidades - constitui a
mexicanos, não criamos uma forma que nos expresse. Portanto, a nossa maneira própria de ser. Mas trata-se de uma situação universal,
mexicanidade não pode se identificar com nenhuma forma ou tendência partilhada por todos os homens. Ter consciência disto é começar a ter
histórica concreta: é uma oscilação entre vários projetos universais, consciência de nós mesmos. Com efeito, temos vivido na periferia da
sucessivamente transplantados ou impostos e todos, hoje, inúteis. A história. Hoje, o centro, o núcleo da sociedade mundial, desagregou-se e
mexicanidade, assim, é uma maneira de não sermos nós mesmos, uma todos nos transformamos em seres perí-
reiterada maneira de ser e viver outra coisa. Em suma, às vezes uma
máscara e outras vezes uma súbita determinação de procurar a nós
mesmos, um re-

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féricos, até os europeus e os norte-americanos. Todos estamos à "litro lado, caiu-nos em cima e colocou para nós diretamente muiloa
margem, porque já não há mais centro. problemas e questões que, antes, nossos pais viviam por reIlcxo.
Outros escritores jovens ocupam-se em desentranhar o sentido Apesar de nossas singularidades nacionais - superposição de tempos
das nossas atitudes vitais. Uma grande avidez em conhecermos a nós históricos, ambigüidades de nossa tradição, semicoloniallsmo etc. .. -,
mesmos, com rigor e sem complacência, é o maior mérito de muitos a situação do México já não é diferente da dos outros países. Talvez
destes trabalhos. Entretanto, a maior parte dos componentes deste pela primeira vez na história a crise da nossa cultura seja a própria
grupo - principalmente Emilio Uranga, seu inspirador máximo - crise da espécie. A melancólica reflexão de V aléry diante dos
compreendeu que o tema do mexicano é apenas uma parte de uma cemitérios das civilizações desaparecidas hoje 1I0S deixa indiferentes,
longa reflexão sobre alguma coisa mais vasta: a alienação histórica porque não é a cultura ocidental que amanhã pode desmoronar, como
dos povos dependentes e, em geral, do homem. já aconteceu com os gregos e os lirabes, com os astecas e os egípcios,
Toda reflexão filosófica deve possuir autenticidade, isto é, deve mas sim o próprio homem. A antiga pluralidade de culturas, que
ser um pensar a descoberto num problema concreto. Só assim o postulavam diversos e contrários ideais do homem e ofereciam
objeto da reflexão pode se transformar num tema universal. Nosso futuros diversos e contrários, foi substituída pela presença de uma
tempo parece propício para uma empresa deste nível. Pela primeira única civilização e de um único futuro. Até pouco tempo atrás, a
vez, o México não tem à sua disposição um conjunto de idéias História foi uma reflexão sobre as várias verdades opostas que cada
universais que justifiquem a nossa situação. A Europa, este celeiro de cultura propunha e uma verificação da heterogeneidade radical de
idéias feitas, vive agora como nós: para cada dia. Num sentido cada sociedade e de cada arquétipo. Agora, a História recobrou sua
estrito, o mundo moderno já não tem idéias. Por esta razão, o unidade e volta a ser o que foi na origem: uma meditação sobre o
mexicano situa-se diante de sua realidade como todos os homens homem. A pluralidade de culturas que o historicismo moderno
modernos: sozinho. Nesta nudez encontrará sua verdadeira resgata resolve-se numa síntese: a do nosso momento. Todas as
universalidade, que ontem foi mera adaptação do pensamento civilizações desembocam na ocidental, que assimilou ou arrasou suas
europeu. A autenticidade da reflexão fará com que a mexicanidade rivais. E todas as particularidades têm de responder às perguntas que
desta filosofia resida apenas no sotaque, na ênfase ou no estilo do a História nos faz: as mesmas, para todos. O homem reconquistou sua
filósofo, mas não no conteúdo de seu pensamento. A mexicanidade unidade. As decisões dos mexicanos já afetam a todos os homens e
será uma máscara que, ao cair, deixará ver por fim o homem. As vice-versa. As diferenças que separam os comunistas dos "ocidentais"
circunstâncias atuais do México transformam assim o projeto de uma são bem menos profundas que as que dividiam persas e gregos,
filosofia mexicana na necessidade de pensar por nós mesmos em romanos e egípcios, chineses e europeus. Comunistas e democratas
alguns problemas que já não são exclusivamente nossos, e sim do burgueses esgrimem idéias antagônicas, mas que brotam de uma
todos os homens. Isto é, a filosofia mexicana, se realmente o for, será fonte comum e discutem numa linguagem universal, compreensível
clara e simplesmente filosofia, sem mais. para ambos os lados. A crise contemporânea não se apresenta,
A conclusão anterior pode ser corroborada se examinarmos conforme dizem os conservadores, como a luta entre duas culturas
historicamente o problema. A Revolução Mexicana interditou a nossa diferentes, mas sim como uma cisão no seio da nossa civilização.
tradição intelectual. O movimento revolucionário mostrou que todas Uma civilização que já não tem rivais e que confunde o seu futuro
as idéias e concepções que nos tinham justificado no passado com o do mundo. O destino de cada homem já não é diferente do
estavam mortas ou mutilavam nosso ser. A história universal, por destino do Homem. Portanto, qualquer tentativa de resolver nossos
conflitos a partir da realidade mexicana deverá

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possuir validade universal ou estará de antemão condenada à esterilidade.
A Revolução Mexicana nos fez sair de nós mesmos e nos colocou
diante da História, propondo-nos a necessidade de inventar nosso futuro e
nossas instituições. A Revolução Mexicana morreu sem resolver as nossas
VIII
contradições. Depois da Segunda Guerra Mundial, percebemos que esta
criação de nós mesmos que a realidade exige não é diferente da que uma
realidade semelhante reclama dos outros. Vivemos, como o resto do planeta,
uma conjuntura decisiva e mortal, órfãos do passado e com um futuro a ser
NOSSOS DIAS
inventado. A história universal já é tarefa comum. E o nosso labirinto, o de
todos os homens.

Busca e achado momentâneo de nós mesmos, o movimento revolucionário


transformou o México, fê-lo "outro". Sermos nós mesmos sempre é chegar a
ser esse outro que somos e que trazemos escondido no nosso interior, mais do
que tudo como promessa ou possibilidade de ser. Assim, em certo sentido, a
revolução criou a nação; em outro, não menos importante, estendeu-a a raças e
classes que nem a Colônia nem o século XIX puderam incorporar. Mas,
apesar de sua fecundidade extraordinária, ela não foi capaz de criar uma
ordem vital, que fosse ao mesmo tempo visão do mundo e fundamento de uma
sociedade realmente justa e livre. A revolução não fez de nosso país uma
comunidade, nem sequer uma esperança de comunidade: um mundo em que
os homens se reconhecem nos homens e onde o "princípio de autoridade" -
isto é, a força, qualquer que seja sua origem e justificação - ceda lugar à
liberdade responsável. Realmente, nenhuma sociedade conhecida atingiu um
estado semelhante. Não é acidentaI, por outro lado, que não nos tenha dado
uma visão do homem, comparável à do catolicismo colonial ou à do
liberalismo do século passado. A revolução é, sem dúvida, um fenômeno
nosso, mas muitas de suas limitações dependem de circunstâncias ligadas à
história mundial contemporânea.

154 155
A Revolução Mexicana, é, cronologicamente, a primeira das o trabalho humano (a tarefa de um colhedor de algodão é continuada,
grandes revoluções do século XX. Para compreendê-la inteiramente, é a milhares de quilômetros de distância, por um operário têxtil),
necessário vê-la como parte de um processo geral e que ainda não realizando pela primeira vez, efetivamente e não como postulado
terminou. Como todas as revoluções modernas, a nossa se propôs, em moral, a unidade da condição humana; destruiu as culturas e
primeiro lugar, a liquidar o regime feudal, a transformar o país por civilizações estranhas e fez com que todos os povos girassem ao redor
meio da indústria e da técnica, a suprimir a nossa situação de de dois ou três astros, fontes do poder político, econômico e
dependência econômica e política e, enfim, a instaurar uma verdadeira espiritual. Ao mesmo tempo, os povos assim anexados participaram
democracia social. Em outras palavras: dar o salto com que sonharam apenas de uma maneira passiva no processo: no econômico, eram
os liberais mais lúcidos, efetivamente consumar a Independência e a meros produtores de matérias-primas e de mão-de-obra barata; no
Reforma, fazer do México uma nação moderna. E tudo isto sem trair a político, eram colônias e semicolônias; no espiritual, sociedades
nós mesmos. Pelo contrário, as mudanças revelariam o nosso bárbaras ou pitorescas. Para os povos da periferia, o "progresso"
verdadeiro ser, um rosto ao mesmo tempo conhecido e ignorado, um significava, e significa, não só gozar de certos bens materiais, mas
rosto novo, à força de antiguidade sepultada. A revolução ia inventar também, sobretudo, atingir a "normalidade" histórica: ser, enfim,
um México fiel a si mesmo. "entes de razão". Este é o fundo da Revolução Mexicana e, em geral,
Os países "adiantados", com exceção da Alemanha, passaram do das revoluções do século XX.
antigo regime ao das modernas democracias burguesas, de uma
maneira que poderíamos chamar natural. As transformações políticas, Podemos ver agora com mais clareza em que consistiu a
econômicas e técnicas sucederam-se e entrelaçaramse como inspiradas empresa revolucionária: consumar, a curto prazo e com um mínimo
por uma coerência superior. A história possuía uma lógica; descobrir o de sacrifícios humanos, uma obra que a burguesia européia realizara
segredo do seu funcionamento equivalia a apoderar-se do futuro. Esta em mais de cento e cinqüenta anos. Para consegui-lo, deveríamos
crença, bastante vã, ainda nos faz ver a história das grandes nações previamente assegurar nossa independência política e recuperar
como o desenvolvimento de uma imensa e majestosa proposição nossos recursos naturais. Além disso, tudo deveria ser realizado sem
lógica. Com efeito, o capitalismo passou gradativamente das formas deixar de lado os direitos sociais, principalmente os operários,
primitivas de acumulação para outras cada vez mais complexas, até consagrados pela Constituição de 1917. Na Europa e nos Estados
desembocar na época do capital financeiro e do imperialismo mundial. Unidos, estas conquistas foram o resultado de mais de um século de
O trânsito do capitalismo primitivo para o internacional produziu lutas proletárias e, em boa parte, representavam (e representam) uma
mudanças radicais, tanto na situação interna de cada país quanto na participação nos lucros obtidos pelas metrópoles no exterior. Entre
esfera mundial. Por um lado, ao fim de um século e meio de nós, não havia lucros coloniais a repartir: não eram nossos sequer o
explotação dos povos coloniais e semicoloniais, as diferenças entre petróleo, os minerais, a energia elétrica e as outras forças com as
um operário e seu patrão eram menores que as existentes entre este quais deveríamos transformar o país. Assim, pois, não se tratava de
mesmo operário e um pária hindu ou um peão boliviano. Por outro, a começar do começo, mas sim de antes do começo.
expansão imperialista unificou o planeta: captou todas as riquezas,
A Revolução fez do novo Estado o principal agente da trans-
mesmo as mais ocultas e as atirou à torrente da circulação mundial,
formação social. Em primeiro lugar: devolução e repartição de terras,
transformadas em mercadorias; universalizou
abertura ao cultivo de outras, obras de irrigação, escolas rurais e
bancos de fomento para os camponeses. Os especialistas

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se estendem nos erros técnicos cometidos; os moralistas, na in- A revolução também se propôs, conforme se disse, a recupe-
tervenção maléfica do cacique tradicional e do político rapace. :r;; ração das riquezas nacionais. Os governos revolucionários, prin-
verdade. Também é que, sob formas novas, subsiste o perigo de uma cipalmente o de Cárdenas, decretaram a nacionalização do petróleo,
volta ao monopólio das terras. Ainda é preciso defender o que foi das estradas de ferro e de outras indústrias. Esta política nos colocou
conquistado. Mas, o regime feudal desapareceu. Esquecer isto é frente a frente com o imperialismo. O Estado, sem renunciar ao
esquecer demais. Além de que: a reforma agrária não só beneficiou os reconquistado, teve que ceder e suspender as expropriações. (B
camponeses, mas também, ao quebrar a antiga estrutura social, tornou preciso acrescentar que, sem a nacionalização do petróleo, teria sido
possível o nascimento de novas forças produtivas. Ora, apesar de tudo impossível o desenvolvimento industrial.) A revolução não se limitou
o que foi conseguido - e foi muito -, milhares de camponeses vivem a expropriar: por meio de uma rede de bancos e instituições de
em condições de grande miséria e outros milhares não têm outro crédito, criou novas indústrias estatais, subvencionou outras (privadas
remédio senão emigrar para os Estados Unidos, todos os anos, como ou semiprivadas) e, em geral, tentou orientar de forma racional e em
trabalhadores temporários. O crescimento demográfico, circunstância proveito público o desenvolvimento econômico. Tudo isto - e muitas
que não foi levada em conta pelos primeiros governos revolucionários, outras coisas mais - foi realizado lentamente e não sem tropeços, erros
explica parcialmente o atual desequilíbrio. Embora pareça incrível, a e imoralidades. Mas, embora com dificuldade e retesado por terríveis
maior parte do país padece de superpopulação camponesa. Ou, mais contradições, o rosto do México começou a mudar. Pouco a pouco
exatamente: carecemos de terras cultiváveis. Há, além disso, mais dois surgiu uma nova classe operária e uma burguesia. Ambas viveram à
fatores decisivos: nem a abertura de novas terras para o cultivo foi sombra do Estado e só agora começam a ter vida autônoma.
suficiente, nem as novas indústrias e os centros de produção cresceram A tutela governamental da classe operária iniciou-se como uma
com a rapidez necessária para absorver toda essa massa de população aliança popular: os operários apoiaram Carranza, em troca de uma
restante, condenada, assim, ao subemprego. Em suma, com nossos política social mais avançada. Pela mesma razão, mantiveram
recursos atuais não podemos criar, na proporção indispensável, as Obregón e CalIes. Por sua parte, o Estado protegeu as organizações
indústrias e as empresas agrícolas que poderiam dar ocupação ao sindicais. Mas a aliança se transformou em submissão e os governos
excedente de braços e bocas. B claro que se trata não só de um premiaram os dirigentes com altos postos públicos. O processo se
crescimento demográfico excessivo, mas também de um progresso acentuou e consumou, embora pareça estranho, na época de Cárdenas,
econômico insuficiente. Mas, também é claro que enfrentamos uma o período mais extremista da revolução. E foram precisamente os
situação que ultrapassa as possibilidades reais do Estado e até mesmo dirigentes que tinham lutado contra a corrupção sindical os que
as da nação no seu conjunto. Como e onde obter os recursos entregaram as organizações operárias. Dir-se-á que a política de
econômicos e técnicos? Esta pergunta, que tentaremos responder mais Cárdenas era revolucionária: nada mais natural que os sindicatos a
adiante, não deve ser feita isoladamente, mas sim considerando o apoiassem. Mas, levados por seus líderes, os sindicatos fizeram parte,
problema do desenvolvimento econômico na sua totalidade. A como um setor a mais, do Partido da Revolução, isto é, do partido
indústria não cresce com a velocidade que requer o aumento de governamental. Frustrou-se assim a possibilidade de um partido
população e produz, assim, o subemprego; por outro lado, o operário ou, pelo menos, de um movimento sindical à norte-
subemprego camponês-retarda o desenvolvimento da indústria, pois americana, apolítico sim, mas autônomo e livre de qualquer
não -aumenta o número de consumidores. ingerência oficial. Os únicos a ganhar com isso foram os líderes, que
se transformaram em pro-

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fissionais da política: deputados, senadores, governadores. Nos últimos Nada do que foi conseguido teria sido possível no contexto do
anos, assistimos, entretanto, a uma mudança: com energia crescente, as capitalismo clássico. E ainda mais: sem a revolução e seus governos, nem
agremiações operárias recobram sua autonomia, derrubam dirigentes sequer teríamos capitalistas mexicanos. Na realidade, o capitalismo
corruptos e lutam por instaurar uma democracia sindical. Este nacional não só é conseqüência natural da revolução, mas também, em
movimento pode ser uma das forças decisivas para o renascimento da boa parte, é filho, criação do Estado revolucionário. Sem a repartição de
vida democrática. Ao mesmo tempo, dadas as características sociais de terras, as grandes obras materiais, as empresas estatais e as de
nosso país, a ação operária, se deseja ser eficaz, deve evitar o sectarismo "participação estatal", a política de investimentos públicos, os subsídios
de alguns dos novos dirigentes e procurar a aliança com os camponeses e diretos ou indiretos à indústria e, em geral, sem a intervenção do Estado
com um novo setor, também filho da revolução: a classe média. Até na vida econômica, os nossos banqueiros e "homens de negócios" não
pouco tempo atrás, a classe média era um grupo pequeno, constituído por teriam ocasião de exercer sua atividade ou fariam parte do "pessoal na-
pequenos comerciantes e pelas tradicionais "profissões liberais" tivo" de alguma companhia estrangeira. Num país que inicia seu
(advogados, médicos, professores etc.). O desenvolvimento industrial e desenvolvimento econômico com mais de dois séculos de atraso, era
comercial e o crescimento da Administração Pública criaram uma indispensável acelerar o crescimento "natural" das forças produtivas. Esta
numerosa classe média, rude e ignorante do ponto de vista cultural e "aceleração" se chama: intervenção do Estado, direção - ainda que parcial
político, mas cheia de vitalidade. - da economia. Graças a esta política, nossa evolução é uma das mais
rápidas e constantes da América. Não se trata de bonanças momentâneas
Mais senhora de si, mais poderosa também, a burguesia não só
ou de progressos num setor isolado - como o petróleo na Venezuela ou o
atingiu sua independência, como também tenta imiscuir-se no Estado,
açúcar em Cuba -, mas sim de um desenvolvimento mais amplo e geral.
não mais como protegida, e sim como diretora única. O banqueiro sucede
Talvez o sintoma mais significativo seja a tendência a criar uma
o general revolucionário; o industrial aspira a substituir o técnico e o
"economia diversificada" e uma indústria "integrada", isto é,
político. Estes grupos tendem a transformar o governo, cada vez com
especializada nos nossos recursos.
maior exclusividade, na expressão política de seus interesses. Mas, a
burguesia não forma um todo homogêneo: uns, herdeiros da Revolução Dito isto, devemos acrescentar que ainda não conseguimos, nem
Mexicana (embora às vezes o ignorem), estão empenhados em criar um estamos próximos de atingir, tudo o que era necessário e indispensável.
capitalismo nacional; outros são meros intermediários e agentes do Não temos uma indústria de base, embora contemos com uma siderurgia
capital financeiro internacional. Finalmente, conforme já se disse, dentro nascente; não fabricamos máquinas que fabriquem máquinas, nem sequer
do Estado há muitos técnicos que, através de avanços e retrocessos, fazemos tratores; ainda nos faltam estradas, pontes, ferrovias; demos as
audácias e concessões, seguem uma política de interesse nacional, costas ao mar: não temos portos, marinha e indústria pesqueira; nosso
congruente com o passado revolucionário. Tudo isto exp'ica o caminho comércio exterior se equilibra graças ao turismo e aos dólares que
sinuoso do Estado e seu desejo de "não romper o equilíbrio". Desde a ganham nos Estados Unidos os nossos "braçais" ... E, coisa mais
época de Carranza que a Revolução Mexicana tem sido um compromisso decisiva: apesar da legislação nacionalista, o capital norte-americano é
entre forças opostas: nacionalismo e imperialismo, operarismo e cada dia mais poderoso e determinante nos centros vitais da nossa econo-
desenvolvimento industrial, economia dirigida e regime de "livre mia. Em suma, embora comecemos a contar com uma indústria, ainda
empresa", democracia e paternalismo estatal. somos, essencialmente, um país produtor de matérias-pri-

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mas. Isto significa: dependência das oscilações do mercado mundial, bre as quais o homem tem escassa influência. A verdade é que se
no exterior; e no interior: pobreza, diferenças atrozes entre a vida dos trata da lei da selva.
ricos e a dos desprivilegiados, desequilíbrio. Um dos remédios que mais freqüentemente nos oferecem os
países "adiantados" - principalmente os Estados Unidos é o dos
investimentos privados estrangeiros. Em primeiro lugar, todo mundo
Com certa regularidade discute-se se a política social e eco- sabe que os lucros desses investimentos saem do país, sob a forma de
nômica foi ou não acertada. Sem dúvida, trata-se de alguma coisa dividendos e outros benefícios. Além disso, implicam em
mais complexa que a técnica e que está além dos erros, imprevísões dependência econômica e, a longo prazo, em ingerência política do
ou imoralidades de certos grupos. A verdade é que os recursos de que exterior. Por outro lado, o capital privado não se interessa por
dispõe a nação, na sua totalidade, são insuficientes para "financiar" o investimentos a longo prazo e de escasso rendimento, que são os de
desenvolvimento integral do México e até mesmo para criar o que os que necessitamos; pelo contrário, procura os campos mais lucrativos e
técnicos chamam de "infra-estrutura econômica", única base sólida de que oferecem possibilidades de lucros maiores e mais rápidos. Enfim,
um progresso efetivo. Faltam-nos capitais, e o ritmo interno de o capitalista não pode, nem deseja, submeter-se a um plano geral de
capitalização e reinvestimento ainda é lento demais. Assim, nosso desenvolvimento econômico.
problema essencial consiste, de acordo com o que dizem os Sem dúvida, a melhor - e talvez a única - solução consiste no
especialistas, em obter os recursos indispensáveis para o nosso investimento de capitais públicos, sejam empréstimos governamentais,
desenvolvimento. Onde e como? seja por meio das organizações internacionais. Os primeiros trazem
Um dos fatos que caracterizam a economia mundial é o em si condições políticas ou econômicas, daí que sejam preferíveis os
desequilíbrio que existe entre os baixos preços das matérias-primas e segundos. Como se sabe, as Nações Unidas e seus organismos
os altos preços dos produtos manufaturados. Países como o México - especializados foram fundados, entre outros fins, com o de
isto é, a maioria do planeta - estão sujeitos às mudanças contínuas e impulsionar a evolução econômica e social dos países
imprevistas do mercado mundial. Conforme sustentaram os nossos "subdesenvolvidos". Princípios análogos são postulados pela Carta da
delegados, numa quantidade de conferências ínteramericanas e Organização dos Estados Americanos. Em face da instável situação
mundial - reflexo, fundamentalmente, do desequilíbrio entre os
internacionais, não é possível sequer esboçar programas econômicos a
"grandes" e os "subdesenvolvidos" -, pareceria natural que se tivesse
longo prazo, se esta instabilidade não for suprimida. Por outro lado,
feito alguma coisa realmente apresentável neste terreno. A verdade é
não se chegará a reduzir o desnível, cada vez mais profundo, entre os
que as somas que se destinam a este objetivo são irrisórias, sobretudo
países "subdesenvolvidos" e os "adiantados", se estes últimos não
se pensarmos no que gastam as grandes potências com preparativos
pagarem preços justos pelos produtos primários. Estes produtos são a
militares. Empenhadas em ganhar a guerra de amanhã por meio de
nossa fonte principal de renda e, portanto, constituem a melhor pos-
pactos guerreiros com governos efêmeros e impopulares, ocupadas
sibilidade de "financiamento" do nosso desenvolvimento econômico. com a conquista da Lua, esquecem do que acontece no subsolo do
Por razões conhecidas de sobra, nada ou muito pouco se conseguiu planeta. É evidente que nos encontramos diante de um muro que,
neste terreno. Os países "adiantados" sustentam, imperturbáveis - sozinhos, não podemos pular nem perfurar. Nossa política externa foi
como se estivéssemos vivendo no início do século passado -, que se justa, mas sem dúvida poderíamos fazer mais, se nos uníssemos a
trata de "leis naturais do mercado", so- outros povos com problemas semelhantes aos nossos. A situação do
Méxi-

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co, neste aspecto, não é diferente da situação da maioria dos países dativa do Estado" nos lábios de Stálin e seus sucessores. Naturalmente
latino-americanos, asiáticos e africanos. que não são impossíveis as mudanças na sociedade soviética. Toda
A ausência de capitais pode ser remediada de outra maneira. Existe, sociedade é histórica, vale dizer, condenada à transformação. Mas a
já sabemos, um método de comprovada eficácia. Afinal de contas, o mesma coisa pode ser dita dos países capitalistas. Ora, o característico de
capital é apenas trabalho humano acumulado. O prodigioso ambos os sistemas, neste momento, é sua resistência à mudança, sua
desenvolvimento da União Soviética - o mesmo poderá ser dito, em vontade de não ceder nem à pressão externa nem à interna. E nisto reside
breve, da China - não é mais do que a aplicação desta fórmula. Graças à o perigo da situação: a guerra, preferível à transformação.
economia dirigida, que poupa o desperdício e a anarquia inerentes ao
sistema capitalista, e ao emprego "racional" de uma imensa mão-de-obra,
dirigida para a explotação de recursos também imensos, em menos de
meio século a União Soviética se transformou no único rival dos Estados À luz do pensamento revolucionário tradicional - e mesmo da
Unidos. Mas, nós não temos nem a população nem os recursos, materiais perspectiva do liberalismo do século passado -, é escandalosa a
e técnicos, que exige uma experiência de tais proporções (para não falar existência, em pleno século XX, de anomalias históricas como os países
da nossa vizinhança com os Estados Unidos e de outras circunstâncias "subdesenvolvidos" ou como um império "socialista" totalitário. Muitas
históricas). E, sobretudo, o emprego "racional" da mão-de-obra e a das previsões e até dos sonhos do século XIX se realizaram (as grandes
economia dirigida significam, entre outras coisas, o trabalho excessivo revoluções, os progressos da ciência e da técnica, a transformação da
(stakhanovismo), os campos de concentração, os trabalhos forçados, a natureza etc ... ), mas de uma maneira paradoxal ou inesperada, que
deportação de raças e nacionalidades, a supressão dos direitos desafia a famosa lógica da história. Desde os socialistas utópicos
elementares dos trabalhadores e o império da burocracia. Os métodos de afirmava-se que a classe operária seria o agente principal da história
"acumulação socialista" - como os chamava o finado Stálin revelaram-se mundial. Sua função consistiria em realizar uma revolução nos países
bem mais cruéis que os sistemas de "acumulação primitiva" do capital, mais adiantados e criar assim as bases da libertação do homem. Real-
que com tanta justiça indignavam Marx e Engels. Ninguém duvida de mente, Lênin pensou que era possível dar um salto histórico e confiar à
que o "socialismo" totalitário possa transformar a economia de um país; é
ditadura do proletariado a tarefa histórica da burguesia: o
mais duvidoso que consiga libertar o homem. E este último item é o
desenvolvimento industrial. Acreditava, provavelmente, que as
único que interessa e o único que justifica uma revolução.
revoluções nos países atrasados precipitariam e até mesmo
f: verdade que alguns autores, como Isaac Deutscher, pensam que, desencadeariam a mudança revolucionária nos países capitalistas.
uma vez criada a abundância, iniciar-se-á, quase insensivelmente, o Tratava-se de quebrar a corrente imperialista por seu elo mais fraco. ..
trânsito para o verdadeiro socialismo e a democracia. Esquecem-se de Como se sabe, o esforço que os países "subdesenvolvidos" realizam para
que, enquanto isso, criam-se classes, ou castas, donas absolutas do poder se industrializar é, em certo sentido, antieconômico e impõe grandes
político e econômico. E a história mostra que uma classe nunca cedeu sacrifícios à população. Na verdade, trata-se de um recurso heróico, em
voluntariamente os seus privilégios e os seus lucros. A idéia do "trânsito vista da impossibilidade de elevar o nível de vida dos povos por outros
insensível" para o socialismo é tão fantástica quanto o mito da meios. Ora, como solução mundial, a autarquia é, afinal, suicida; como
"desaparição gra- remédio nacional, é uma experiência cara, paga pelos operários, pelos
consumidores e pelos camponeses. Mas, o nacionalismo dos países
"subdesen-

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volvidos" não é uma resposta lógica, e sim a explosão fatal de uma e a um renascimento geral do nacionalismo em todo o velho con-
situação que as nações "adiantadas" tornaram desesperada e sem tinente. Finalmente, em lugar da rebelião do proletariado organizado
saída. Em compensação, a diretriz racional da economia mundial - democraticamente, o século XX viu o nascimento do "partido", isto é,
isto é, o socialismo - tinha criado economias complementares e não de uma agremiação nacional ou internacional que combina o espírito
sistemas rivais. Se desaparecesse o imperialismo e o mercado mundial e a organização de dois corpos nos quais a disciplina e a hierarquia
de preços fosse regulado, isto é, se fosse suprimido o lucro, os povos são os valores decisivos: a Igreja e o Exército. Estes "partidos", que
"subdesenvolvidos" contariam com os recursos necessários para não se parecem nada com os velhos partidos políticos, foram os
realizar sua transformação econômica. A revolução socialista na agentes efetivos de quase todas as mudanças operadas depois da
Europa e nos Estados Unidos teria facilitado o trânsito - agora, sim, Primeira Guerra Mundial.
de uma maneira racional e quase insensível - de todos os povos
O contraste com a periferia é reveladoro Nas colônias e nos
"atrasados" para o mundo moderno.
países "atrasados" não cessou de se produzir, desde antes da Primeira
A história do século XX faz duvidar, pelo menos, do valor dessas Guerra Mundial, uma série de transtornos e mudanças revolucionárias.
hipóteses revolucionárias e, em primeiro lugar, da função universal da E a maré, longe de baixar, cresce de ano para ano. Na Ásia e na África
classe operária, como encarnação do destino do mundo. Nem com a o imperialismo se retira; seu lugar é ocupado por novos Estados com
melhor boa vontade podemos afirmar que o proletariado foi o agente ideologias confusas, mas que têm em comum duas idéias, ontem
decisivo das mudanças históricas deste sécu]0. As grandes revoluções quase inconciliáveis: o nacionalismo e as aspirações revolucionárias
da nossa época - sem excluir a soviética - foram realizadas em países das massas. Na América Latina, até pouco tempo atrás tranqüila,
atrasados e os operários representaram um segmento, quase nunca assistimos ao ocaso dos ditadores e a uma nova onda revolucionária.
determinante, de grandes massas populares compostas por Em quase todas as partes - trate-se da Indonésia, da Venezuela, do
camponeses, soldados, pequena burguesia e milhares de seres Egito, de Cuba, ou de Ghana -, os ingredientes são os mesmos:
dilacerados pelas guerras e pelas crises. Essas massas informes foram nacionalismo, reforma agrária, conquistas operárias e, no cimo, um
organizadas por pequenos grupos de profissionais da revolução ou do Estado decidido a realizar a industrialização e saltar da época feudal
"golpe de Estado". Até as contra-revoluções, como o fascismo e o para a moderna. Pouco importa, para a definição geral do fenômeno,
nazismo, ajustam-se a este esquema. O mais desconcertante, sem que neste empenho o Estado se alie a grupos mais ou menos pode-
dúvida, é a ausência de revolução socialista na Europa, no próprio rosos da burguesia nativa ou que, como na Rússia e na China, suprima
centro da crise contemporânea. Parece inútil ressaltar as as velhas classes e seja a burocracia a encarregada de impor a
circunstâncias agravantes: a Europa conta com o proletariado mais transformação econômica. O traço distintivo - e decisivo - é que não
culto, mais· bem organizado e com tradições revolucionárias mais estamos diante da revolução proletária dos países "avançados", mas
antigas; também, lá se produziram, uma vez e outra, as "condições sim diante da insurreição das massas c dos povos que vivem na
objetivas" propícias para o assalto ao poder. Ao mesmo tempo, várias periferia do mundo ocidental. Anexados ao destino do Ocidente pelo
revoluções isoladas - por exemplo: na Espanha e, há pouco tempo, na imperialismo, agora se voltam para si mesmos, descobrem sua
Hungria - foram reprimidas sem piedade e sem que efetivamente se identidade e se decidem a participar da história mundial.
manifestasse a solidariedade operária internacional. Em compensação,
Os homens e as formas políticas em que a insurreição das
assistimos a uma regressão bárbara, a de Hitler,
nações "atrasadas" encarnou são muito variados. Num extremo,

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Ghandi; no outro, Stálin; além, Mao Tsé-tung. Há mártires como lar por fim reunidos. Assim, surgiu um tipo de Estado absolutamente
Madero e Zapata, bufões como Perón, intelectuais como Nehru. A novo na história, no qual os traços revolucionários, como a
galeria é muito variada; nada mais diverso entre si que Cárdenas, Tito desaparição da propriedade privada e a economia dirigida, são
e Nasser. Muitos destes homens seriam inconcebíveis, como indistinguíveis de outros arcaicos: o caráter sagrado do Estado e a
dirigentes políticos, no século passado e até mesmo no primeiro terço divinização dos chefes. Passado, presente e futuro: progresso técnico
do que está em curso. O mesmo acontece com sua linguagem, na qual e formas inferiores da magia política, desenvolvimento econômico e
as fórmulas messiânicas se aliam à ideologia democrática e à escravismo sindicalista, ciência e teologia estatal: tal é o rosto
revolucionária. São homens fortes, políticos realistas; mas também prodigioso e aterrador da União Soviética. Nosso século é um grande
são inspirados, sonhadores e, às vezes, demagogos. As massas os caldeirão onde todos os tempos históricos fervem, se confundem e se
seguem e se reconhecem neles... A filosofia política destes misturam.
movimentos possui o mesmo caráter empastelado. A democracia Como é possível que a "inteligência" contemporânea - penso
compreendida à ocidental mistura-se com formas inéditas ou sobretudo na herdeira da tradição revolucionária européia _ não tenha
bárbaras, que vão desde a "democracia dirigida" dos indonésios até o feito uma análise da situação do nosso tempo, não já da velha
idolátrico "culto a personalidade" soviética, não esquecendo a perspectiva do século passado, mas sim diante da novidade desta
respeitosa veneração dos mexicanos à figura do Presidente. realidade que nos salta aos olhos? Por exemplo: a polêmica entre Rosa
Junto ao culto ao líder, está o partido oficial, presente em todos Luxemburgo e Lênin sobre a "espontaneidade revolucionária das
os lugares. As vezes, como no México, trata-se de uma agremiação massas" e a função do Partido Comunista como "vanguarda do
aberta, à qual podem pertencer praticamente todos os que desejam proletariado" talvez se revestisse de outra significação à luz das
intervir na coisa pública e que abarca vastos setores da esquerda e da condições respectivas da Alemanha e da Rússia. Do mesmo modo:
direita. O mesmo acontece na índia, com o Partido do Congresso. E não há dúvida de que a União Soviética parece muito pouco com o
aqui convém dizer que um dos traços mais saudáveis da Revolução que pensavam Marx e Engels sobre o que poderia ser um Estado
Mexicana - devido, sem dúvida, tanto à ausência de uma ortodoxia operário. Entretanto, este Estado existe; não é uma aberração nem um
política quanto ao caráter aberto do partido - é a ausência de terror "equívoco da história". E uma realidade enorme, evidente por si
organizado. Nossa falta de "ideologia" preservou-nos de cair nessa mesma e que se justifica da única maneira como se justificam os seres
tortuosa caça humana em que se transformou o exercício da "virtude" vivos: pelo peso e pela plenitude de sua existência. Um filósofo
política em outros lugares. Tivemos, sim, violências populares, certa eminente como Lukács, que dedicou tanto do seu esforço em
extravagância na repressão, capricho, arbitrariedade, brutalidade, denunciar a "irracionalidade" progressiva da filosofia burguesa, nunca
"mão firme" de alguns generais, "humor negro", mas, mesmo nos tentou seriamente a análise da sociedade soviética, do ponto de vista
seus piores momentos, tudo foi humano, isto é, sujeito à paixão, às da razão. Pode alguém afirmar que o stalinismo era racional? E ra-
circunstâncias e até mesmo ao acaso e à fantasia. Nada mais afastado cional o emprego da "dialética" pelos comunistas? Não se trata,
da aridez do espírito de sistema e da sua moral silogística e policial. simplesmente, de uma racionalização de certas obsessões, como
Nos países comunistas, o partido é uma minoria, uma seita fechada e sucede com outro tipo de neurose? E a "teoria da direção coletiva", a
onipotente, ao mesmo tempo exército, administração e inquisição; o dos "caminhos diversos até o socialismo", o escândalo de Pasternak e
poder espiritual e o braço secu- ... tudo isso é racional? Nenhum intelectual europeu de esquerda,
nenhum "marxólogo", inclinou-se sobre o rosto

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apagadiço e informe das revoluções agrárias e nacionalistas ua deveria ter ocorrido, dizemos para nos consolarmos. Mas somos nós
América Latina e do Oriente para tentar entendê-Ias como são: um os equivocados, não a história. Temos de aprender a olhar de frente a
fenômeno universal que requer uma nova interpretação. Naturalmente realidade. Inventar, se for preciso, palavras novas e idéias novas para
que é ainda mais desolador o silêncio da "inteligência" latino- estas novas e estranhas realidades que atravessaram o nosso caminho.
americana e asiática, que vive no centro do torvelinho. :s claro que Pensar é o primeiro dever da "inteligência". E, em certos casos, o
não sugiro que se abandonem os velhos métodos ou que se negue o único.
marxismo, pelo menos como instrumento de análise histórica. Mas, Enquanto isso, que fazer? Não há mais receitas. Mas há um ponto de
novos fatos - e que contradizem tão radicalmente as previsões da partida válido: os nossos problemas são nossos e constituem
teoria - exigem novos instrumentos. Ou, pelo menos, afiar e aguçar os responsabilidade nossa; entretanto, são também os de todos. A
que possuímos. Com maior humildade e melhor sentido, Trotski situação dos latino-americanos é a da maioria dos povos da periferia.
escrevia, um pouco antes de morrer, que se depois da Segunda Guerra Pela primeira vez, desde há mais de trezentos anos, deixamos de ser
Mundial não surgisse uma revolução nos países desenvolvidos, talvez matéria inerte, sobre a qual se exerce a vontade dos poderosos.
se tivesse de revisar toda a perspectiva histórica mundial. Eramos objetos; começamos a ser agentes das mudanças históricas e
os nossos atos e as nossas omissões afetam a vida das grandes
potências. A imagem do mundo atual como uma luta entre dois
gigantes (o resto composto de amigos, ajudantes, criados e partidários
A Revolução Mexicana desemboca na história universal. por fatalidade) é bastante superficial. O cenário - e, na verdade, a
Nossa situação, com diferenças de grau, sistema e "tempo histórico", própria substância - da história contemporânea é a onda
não é muito diversa da de muitos outros países da América Latina, do revolucionária dos povos da periferia. Para Moscou, Tito é uma
Oriente e da África. Embora nos tenhamos libertado do feudalismo, realidade desagradável, mas é uma realidade. O mesmo se pode dizer
do caudilhismo militar e da Igreja, nossos problemas são, de Nasser ou de Nehru para os ocidentais. Uma terceira frente, um
essencialmente, os mesmos. Estes problemas são imensos e de difícil novo clube de nações, o clube dos pobres? Talvez seja cedo demais.
resolução. Muitos perigos nos espreitam. Muitas tentações, desde o Ou, talvez, tarde demais: a história anda muito depressa e o ritmo de
"governo dos banqueiros" - isto é: dos intermediários - até o expansão dos poderosos é mais rápido que o do nosso crescimento.
cesarismo, passando pela demagogia nacionalista e outras formas Mas, antes de que o congelamento da vida histórica - pois a isso
espasmódicas da vida política. Nossos recursos materiais são escassos equivale o "empate" entre os grandes - se transforme em petrificação
e ainda não aprendemos a usá-los totalmente. Ainda mais pobres são definitiva, há possibilidades de ação combinada e inteligente.
os nossos instrumentos intelectuais. Pensamos muito pouco por conta Esquecemos que há muitos como nós, dispersos e isolados.
própria; tudo, ou quase tudo, vimos e aprendemos na Europa e nos Falta aos mexicanos uma nova sensibilidade diante da América
Estados Unidos. As grandes palavras que deram nascimento aos Latina; hoje estes países despertam: vamos deixá-los sozinhos?
nossos povos têm agora um valor equívoco e já ninguém sabe Temos amigos desconhecidos nos Estados Unidos e na Europa. As
exatamente o que querem dizer: Franco é democrata e faz parte do lutas no Oriente estão ligadas, de alguma maneira, às nossas. Nosso
"mundo livre". A palavra comunismo designa Stálin; socialismo quer nacionalismo, se não for uma doença mental ou uma idolatria, deve
dizer uma reunião de senhores defensores da ordem colonial. Tudo desembocar numa busca universal. f: preciso partir da consciência de
parece um gigantesco equívoco. Tudo ocorreu como não que a nossa situação de alienação é a da maio-

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ria dos povos. Sermos nós mesmos será opor ao avanço das insen- conder, nos desfigura e mutila. Se arrancarmos estas máscaras, se nos
sibilidades históricas o rosto animado do homem. Tanto melhor, se abrirmos, se, enfim, nos enfrentarmos, começaremos a viver e pensar
não tivermos receitas nem remédios patenteados para os nossos de verdade. Aguardam-nos uma nudez e um desamparo. Aí, na
males. Poderemos, pelo menos, pensar e trabalhar com sobriedade e solidão aberta, também nos espera a transcendência: as mãos de
resolução. outros solitários. Somos, pela primeira vez em nossa história,
O objeto da nossa reflexão não é diferente do que tira o sono de contemporâneos de todos os homens.
outros homens e de outros povos: como criar uma sociedade, uma 173
cultura, que não negue a nossa humanidade nem a transforme numa
abstração vã? A pergunta que hoje todos os homens se fazem não é
diferente da que se fazem os mexicanos. Todo o nosso mal-estar, a
violência contraditória de nossas reações, o eclodir da nossa
intimidade e as bruscas explosões da nossa história, que foram
primeiro ruptura e negação das formas petrificadas que n09
oprimiam, tendem a se resolver em busca e tentativa de criar um
mundo onde não imperem mais a mentira, a má fé, a dissimulação, a
avidez sem escrúpulos, a violência e a simulação. Uma sociedade,
também, que não faça do homem um instrumento e uma defesa da
Cidade. Uma sociedade humana.
O mexicano se esconde debaixo de muitas máscaras, que em
seguida arranca num dia de festa ou de luto, do mesmo modo como a
nação arrebentou todas as formas que a asfixiavam. Mas ainda não
encontramos a que venha reconciliar nossa liberdade com a ordem, a
palavra com o ato, e ambos com uma evidência que já não será
sobrenatural, mas sim humana: a dos nossos semelhantes. Nesta
busca, retrocedemos uma vez ou outra, para em seguida avançar com
mais decisão para a frente. E agora, de repente, atingimos o limite:
nuns poucos anos esgotamos todas as formas históricas que a Europa
possuía. Só nos restam a nudez ou a mentira. Seguindo-se a este
desmoronamento geral da Razão e da Fé, de Deus e da Utopia, já não
se erguem novos ou velhos sistemas intelectuais, capazes de abrigar
nossa angústia e tranqüilizar nosso desconcerto; diante de nós não há
nada. Estamos enfim sós. Como todos os homens. Como eles,
vivemos o mundo da violência, da simulação e da "nenhumação": o
da solidão fechada que, se nos defende, nos oprime, e que, ao nos es-

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