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A Pa l a v ra d o E d i t o r

Aconselhe a Palavra

D a v i d A . Po w l i s o n 1

“Ó Senhor, Tu atingiste meu coração com revela Aquele que fala, Aquele que lhe diz o
a Tua Palavra e eu Te amei”. que você precisa fazer para se arrepender e
Agostinho expressou desta maneira a aprender a confiar nEle, amá-lO e obedecê-
experiência de todo crente verdadeiro. A lO. Quando acolhida, a Palavra provoca
Palavra de Deus é viva e ativa: ela atinge mudanças em você — o bom solo produz
o âmago da questão, convencendo-o de bom fruto. Quando rejeitada ou i­gnorada,
pecado, convencendo-o da graça de Deus a Palavra também produz mudanças em
em Cristo Jesus. Esta Palavra é eficaz para você — o coração torna-se cada vez mais
despertar o seu amor e poderosa para renovar duro, cego e surdo.
a sua mente. Ela o guia, protege e pastoreia As Coletâneas de Aconselhamento Bíblico
sabiamente ao longo do caminho. dedicam-se a aplicar a Palavra de Deus ao
Por que a Palavra é tão poderosa? Ela aconselhamento. Isso lhe parece uma decla-
tem poder porque é a “Tua Palavra, ó Se- ração de propósito inusitada? Se eu tivesse
nhor”. A Palavra não é uma nobre filosofia apresentado uma revista dedicada a “aplicar
humana. Não é um encantamento mágico. A a Palavra de Deus à pregação”, você teria
Palavra é aquilo que Deus diz a respeito dEle franzido a testa e me dirigido um olhar in-
mesmo e da Sua vontade, a respeito de você dagador: “O que você quer dizer? O conteúdo
e do mundo em que você vive. A Palavra da pregação é a Palavra de Deus aplicada à
nossa vida. Qualquer conteúdo alternativo é
1
Tradução e adaptação de Counsel the Word. Publicado uma religião falsa e uma invenção humana!
em The Journal of Biblical Counseling v. 11, n.2, Winter O que você quer dizer com ‘aplicar a Palavra
1993, p. 2-3. de Deus à pregação’?”.
David Powlison é editor de The Journal of Biblical A área do aconselhamento tem se divor-
Counseling, cujos artigos estão traduzidos para o ciado da Palavra. Na mente da maioria das
português e reunidos nas Coletâneas de Aconselhamento
Bíblico. pessoas, aconselhamento é algo essencial-

2 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


mente diferente da pregação. As verdades Em primeiro lugar, há muitos cristãos
e os métodos usados no aconselhamento que aconselham uma mensagem que provém
são raramente concebidos como o minis- claramente de outras fontes que não a Bíblia.
tério da Palavra dirigida sob medida a um A psiquiatria e as psicologias atuais geraram
indivíduo. um número sem fim de variações novas de
A maioria daqueles que acreditam na erros antigos. As pesquisas científicas saíram
Bíblia diria com facilidade “prega a Palavra”. em busca do pote de ouro no fim do arco-
Eles se levantariam revoltados diante de uma íris: as teorias que reivindicam a descoberta
pregação cujo conteúdo fosse qualquer ou- de uma base biológica amoral para o com-
tro que não a Palavra. Em geral, os crentes portamento humano desfilam uma após a
concordam que a verdade revelada de Deus outra. E os psicoterapeutas nunca deixam
deve controlar o púlpito. A Palavra é verda- de ter clientes perturbados e crédulos, que
deira e suficiente para o ministério dirigido vão de neuróticos a portadores de baixa auto-
às multidões. estima, de sofredores a codependentes. Os
Entretanto, não é natural dizermos: cristãos aproveitam em seu aconselhamento
“aconselhe a Palavra”. A maioria daqueles cada teoria nova que surge no horizonte
que acreditam na Bíblia rende-se diante de contradizendo a Palavra, e fazem mau uso de
conselhos não-bíblicos. A Palavra é apenas versículos bíblicos em busca de confirmação
um recurso entre vários recursos possíveis, e apoio para tais teorias.
tanto nos livros de auto-ajuda como na Em segundo lugar, com certa freqüência,
sala de aconselhamento ou ao redor da os cristãos interpretam e aplicam a Bíblia
mesa da cozinha. A Palavra tende a ter um erradamente. Alguns usam a Bíblia como
papel claramente secundário, adicionada a algo mágico: “Leia dois versículos ao dia,
uma mensagem que lhe é alheia. Ou talvez repita-os constantemente em sua mente, e
não tenha mesmo papel algum, tida como conversaremos na semana que vem”. Há os
insuficiente para lidar com os problemas que ensinam arrependimento e fé em desa-
das pessoas. cordo com o ensino da Palavra: “O segredo
Aconselhe a Palavra. O conteúdo do da vida cristã é uma experiência definitiva
aconselhamento não deve ser a Palavra de quebrantamento e entrega”. Outros
de Deus aplicada à nossa vida? Qualquer ensinam obediência em desacordo com o
conteúdo alternativo não seria uma religião ensino bíblico: “Basta dizer ‘não’ e fazer o
falsa e uma invenção humana? Jay Adams que é certo com maior força de vontade”.
expressou bem esta questão: “A Palavra deve Alguns ensinam a respeito de Satanás em
ser ministrada no aconselhamento com tanta desacordo com a Palavra: “Você é escravo do
prontidão quanto na pregação”. demônio do medo, da ira ou da compulsão”.
O alvo das Coletâneas de Aconselhamento Mas a abordagem bíblica de mudança não
Bíblico é encorajar e capacitar os crentes para é supersticiosa nem pietista, nem moralista
a tarefa de “aconselhar a Palavra” e aplicar a nem demonista.
Bíblia com sabedoria aos problemas da vida. De um modo ou de outro, a mensagem
Quais são os obstáculos? Destacamos aqui errada e o método errado têm controlado o
dois grupos que exercem influência para aconselhamento “cristão”. O primeiro grupo
minar este alvo. aponta para a superficialidade evidente do

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 3


segundo grupo como justificativa para se do. Aqueles que zombam da Palavra serão
voltar às “abordagens profundas” da psico- desafiados. O simples, que faz mau uso da
logia, distanciando-se de uma Bíblia que pa- Palavra e acredita na persuasão da estultícia,
rece fraca, de segunda categoria, geralmente será edificado. Aqueles que amam a Palavra, e
irrelevante e até um tanto esquisita para o já costumam usá-la com sabedoria, crescerão
aconselhamento. O segundo grupo proclama em sabedoria (Pv 9).
em altos brados o secularismo evidente do Aconselhar a Palavra é um projeto de vida.
primeiro grupo, porém a sua abordagem Aplicar a Palavra à vida real com sabedoria é um
peca pelo mau uso da Bíblia. trabalho árduo, para ser realizado com oração e
No entanto, existe um caminho melhor. seriedade. Os primeiros versículos de Provérbios
A Palavra de Deus não está calada a esse 2 dizem que precisamos ter ouvidos atentos à
respeito, mas clama ao homem para que lhe sabedoria, precisamos clamar por entendimen-
dê ouvidos: to, precisamos buscar e desenterrar a sabedoria
Grita na rua a Sabedoria, nas como a tesouros escondidos.
praças, levanta a voz; do alto dos As Coletâneas de Aconselhamento Bíblico
muros clama, à entrada das portas dedicam-se à tarefa de aconselhar a Palavra.
e nas cidades profere as suas pala- É uma revista para pastores, útil em seu
vras: ministério. É uma revista para leigos e todos
Até quando, ó néscios, amareis quantos procuram aconselhar a Palavra, em
a necedade? situações formais e informais. Sabedoria é a
E vós, escarnecedores, desejareis qualificação para aconselhar. Esta sabedoria
o escárnio? é uma questão de caráter, verdade e habi-
E vós, loucos, aborrecereis o lidade para ajudar pessoas: “possuídos de
conhecimento? bondade, cheios de todo o conhecimento,
Atentai para a minha repreen- aptos para vos admoestardes uns aos outros”
são; eis que derramarei copiosamen- (Rm 15.14).
te para vós outros o meu espírito e “Ó Senhor, Tu atingiste meu
vos farei saber as minhas palavras. coração com a Tua Palavra e eu Te
(Pv 1.20-23) amei”.
Se os autores dos artigos das Coletâneas Dê ouvidos ao Senhor. Ame ao Senhor
de Aconselhamento Bíblico cumprirem bem e também aquilo que Ele diz. Aconselhe a
a sua tarefa, o grito da Sabedoria será ouvi- Palavra.

4 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Bases do Aconselhamento Bíblico

Mantenha a Verdade Viva

Jo h n B e t t l e r 1

Certa vez, recebi um telefonema de Se Melville tivesse tido acesso a esta ma-
uma companhia de pesquisa de marketing ravilhosa ferramenta, Moby Dick teria sido
perguntando-me sobre determinado pro- um campeão de vendas enquanto ele ainda
grama de televisão. Fiquei curioso, visto estava vivo. Mas é evidente que teriam sido
que minha família costumava assistir com necessárias algumas alterações. O início da
freqüência ao programa. Mas o encaminha- história poderia ficar inalterado, mas o nome
mento das perguntas desapontou-me, e logo teria que mudar. “Meu nome é Lance” ou “A
fiquei irritado. Não fizeram perguntas sobre tempestade” soaria melhor, você não acha?
o enredo, o crescimento dos personagens O capitão Ahab passaria a ser um velho ma-
no desenrolar da história ou a interação rujo rabugento com um coração de ouro, e
do programa com a sociedade atual. Pelo os marinheiros de Pequod participariam de
contrário, o entrevistador queria saber quais uma expedição para salvar as baleias. A não
os personagens de que gostávamos e se passa- ser estes detalhes, o restante da obra poderia
ríamos a gostar ainda mais do programa se muito bem ficar exatamente como está. E
determinado personagem fosse eliminado ou claro que sua mensagem perderia o sentido.
então tivesse seu papel ampliado. Não haveria uma verdade, do ponto de vista
Fascinante! Uma história escrita de do autor, transmitida em forma de drama.
acordo com a pesquisa de mercado. Des- Mas seria um sucesso de venda! Proporcio-
cubra o que agrada ao público e escreva. naria entretenimento e faria o leitor se sentir
bem consigo mesmo, sujeito a um mínimo
de estresse.
1
Tradução e adaptação de Keep theTruth Alive.
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. v. 15,
n.2, Winter 1997, p. 2-4.
Ganância, necessidades emocio-
John Bettler é um dos fundadores e diretor executivo
nais e ausência da verdade.
da Christian Counseling and Educational Foundation em Minha breve incursão no mundo da
Glenside, Pennsylvania. pesquisa de mercado e das artes oferece

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 5


apenas um exemplo do consumismo que realização. Do ponto de vista dos negócios,
permeia nossa sociedade e alimenta seus ca- esta pressuposição cultural é um sonho a se
prichos subjetivos. O poder do consumismo tornar realidade.
associa-se à psicologia popular, um outro
poderoso formador de valores na socieda- O consumismo e a igreja
de americana do século XX. A psicologia O cristão, no entanto, pode perceber
popular colhe as reflexões enigmáticas da os danos provocados pela maneira como o
psicologia acadêmica e as mastiga de tal consumismo tem sutilmente furtado a ver-
forma que possam ser facilmente engolidas. dade dentro da igreja:
Entretanto, enquanto o consumismo apela ŠŠUm seminarista reclama das matérias
para a ganância, a psicologia popular age em exigidas no curso de teologia porque
favor da necessidade emocional. “elas são irrelevantes no que diz res-
As pessoas são vistas como essencial- peito ao meu desejo de ministrar às
mente necessitadas e dependentes de outras pessoas no contexto da igreja”.
para supri-las de amor, aceitação ou signifi-
ŠŠMuitos seminários evangélicos de
cado. Quando não são correspondidas con-
destaque reduzem o número de ma-
forme o esperado, enfrentam todo tipo de
térias bíblicas e teológicas, e eliminam
dificuldades psicológicas. Estas necessidades
as matérias de línguas originais para
são “definidas no íntimo”, isto é, cada um
estudantes de graduação na área de
decide o perfil das suas necessidades e o que
aconselhamento bíblico. A razão disto
pode satisfazê-las (se é que existe algo que as
é que os pregadores talvez precisem de
satisfaça). A experiência de vida é traduzida
grego e hebraico, mas os conselheiros
em significado pessoal que, por sua vez, mo-
não. Eles precisam apenas saber como
dela a visão de mundo, os relacionamentos
“ajudar” as pessoas.
e a moralidade. O “eu” subjetivo define
a verdade, e não há uma verdade externa ŠŠUm líder de um ministério para-ecle-
absoluta que defina o “eu”. siástico que treina líderes de pequenos
O “eu” ganancioso e o “eu” necessitado grupos fala sobre a busca de seu “eu”
florescem em um mundo que perdeu o seu autêntico: “A peregrinação em que
centro moral. Tempos atrás, Deus e a Bíblia estou... relaciona-se muito mais com
eram o coração da moralidade ocidental, tentar descobrir quem sou do que ten-
mas hoje há tantas verdades quantas são as tar conhecer as Escrituras e a teologia...
pessoas e estas verdades, no final das contas, Pessoas que conhecem as Escrituras,
são obscuras porque estão baseadas em uma mas não conhecem a si mesmas, são
experiência pessoal subjetiva. inúteis para mim”.
Em um mundo como este, o consu-
ŠŠUm psicólogo cristão de renome diz
mismo faz todo sentido. Ofereça tantos
que em sua experiência de prestar
produtos quantos puder; supra tantas
ajuda às pessoas “...o espiritual, com
necessidades subjetivas quantas puder.
freqüência, vem por último...”.
Providencie uma verdadeira abundância de
possíveis supridores de necessidade, pois o ŠŠUma pesquisa entre pastores de mega-
consumismo prepara o terreno para a auto- igrejas mostrou que eles viam o treina-

6 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


mento teológico proporcionado pelo O problema fundamental no mun-
seminário como um preparo desneces- do evangélico atual não é a técnica
sário para o ministério. inadequada, a organização insufi-
ciente ou a música antiquada... O
Observe o tema presente nestes exem-
problema fundamental no mundo
plos: a teologia e o estudo bíblico não são
evangélico atual é que Deus é visto
essenciais para o ministério. A verdade é
pela igreja de modo irrelevante. Sua
irrelevante para a prática. A verdade entra
verdade está muito distante, Sua graça
em cena somente depois que todo o trabalho
é muito corriqueira, Seu julgamento é
prático foi feito ou então é definida como
muito benigno, Seu evangelho é muito
uma necessidade pessoal sentida.
fácil, e Seu Cristo é muito comum.
David Wells capta o espírito da era da
(ênfase própria).
“não-verdade” e a ameaça que esta constitui
para a igreja.
O distanciamento dos padrões de
Umas das características marcantes Deus
na vida da igreja contemporânea A igreja toda deveria dar ouvidos a
são as muitas tentativas de curar a este aviso. Mas aqueles entre nós que estão
igreja mexendo em sua estrutura, envolvidos em “ministérios de ajuda” como
seus cultos e sua imagem exterior. aconselhamento, treinamento em discipu-
Esta é uma evidência clara de que lado ou liderança de grupos de apoio talvez
a modernidade tem sido bem suce- devessem estar especialmente atentos a ele,
dida em impingir a nós um de seus pois se defrontam tão freqüentemente com
maiores enganos, convencendo-nos o sofrimento humano que se apressam em
de que a Pessoa de Deus é secundária ajudar sem antes consultar ao Senhor e per-
à organização e imagem da igreja, e guntar: “Este conselho é bíblico?” ou “Este
que a saúde da igreja repousa mais método agradará ao Deus da verdade?”. No
em seu organograma e naquilo entanto, as advertências de Deus contra as
que ela pode oferecer, do que em tentativas de fazer separação entre a ajuda
sua vida interior, na autenticidade prática e a verdade são claras e diversificadas.
espiritual, na firmeza de seus pro- Uzá estendeu a mão para firmar a arca da
pósitos morais e no entendimento aliança que balançava e foi repentinamente
do que significa possuir a Palavra morto por um Deus irado (2 Sm 6.6-7).
de Deus neste mundo. Aqueles que Davi levantou o censo do povo para contar
não atentam para esta questão não as bênçãos recebidas, e Deus matou 70 mil
estão em sintonia com as realidades homens em Israel (1 Cr 21). Ezequias cons-
profundas de vida... Os assuntos do truiu um reservatório de água para abastecer
coração, ou os assuntos de Deus, a cidade, e não encontrou o perdão de Deus
não são suscetíveis a uma alteração até o dia de sua morte (Is 22.11-14). Fervor
cosmética. Os negócios do mundo e religioso, governo responsável e atos de mise-
os negócios de Deus são duas coisas ricórdia não significam muito quando Deus
diferentes. não os aceita. Uzá, Davi e Ezequias estariam

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 7


perfeitamente à vontade em um mundo “manejar bem a palavra da verdade” no mi-
“amigável”, mas mereceram julgamento e nistério cristão. Sabemos que Deus se revelou
não bênção no mundo onde a Palavra de pessoalmente de modo definitivo em Jesus
Deus estabelece o padrão. Cristo (“o caminho, a verdade, e a vida”) e
Esse problema “moderno” certamente é de modo pressuposicional nas Escrituras.
tão antigo quanto o Éden. Com a pergunta Visto que o julgamento final tem como base
“É assim que Deus disse?”, Satanás afastou “O que diz o Senhor?”, esforçamo-nos para
qualquer preocupação com a verdade defini- sermos especialistas na Palavra de Deus e
da por Deus. Uma vez varrida a verdade do treinarmos outros para que também o se-
meio do caminho, o restante foi simples: ofe- jam. Fazer menos do que isso é falhar como
recer o pecado, apelando para as necessidades evangelista da verdade.
emocionais e a ganância. “Vendo a mulher Estou escrevendo este artigo depois de
que a árvore era boa para se comer, agradável ter lido a trágica história de um Seminário
aos olhos e... desejável para dar entendimento, que inicialmente defendia a verdade, mas
tomou-lhe do fruto... e comeu”. que agora, em nome da eficácia ministerial,
Esta é a razão por que, em todas as épo- cedeu naquilo que antes sustentava com
cas, Deus chama Seu povo para ser defensor tanta veemência. Homens impenitentes
da verdade. Considere a ordem que Paulo como Davi, Ezequias e Uzá são produtos
deu a Timóteo: dos esforços de escolas como essa com tanta
Pois haverá tempo em que não su- freqüência quanto o são homens como
portarão a sã doutrina; pelo contrá- Paulo e Timóteo. Não estou mencionando
rio, cercar-se-ão de mestres segundo um exemplo isolado. Ossos mortos, restos
as suas próprias cobiças, como que daquilo que no passado eram ministérios
sentindo coceira nos ouvidos; e se cheios de vida, maculam o cenário da
recusarão a dar ouvidos à verdade, igreja. Profundamente perturbado diante
entregando se às fábulas. Tu, porém, disso, sinto-me impulsionado a proteger o
sê sóbrio em todas as coisas, suporta movimento de aconselhamento bíblico de
as aflições, faze o trabalho de um um futuro semelhante. Apresento, portanto,
evangelista, cumpre cabalmente o os seguintes padrões de ministério como
teu ministério (2 Tm 4.3-5). aqueles que devemos sustentar para manter
a verdade viva.
Conselheiros bíblicos:
evangelistas da verdade Excelência exegética
Aqueles entre nós que estão compro- O ensino e o aconselhamento devem
metidos com o aconselhamento bíblico de- estar inteiramente baseados em uma com-
vem ministrar a um mundo relativista como preensão precisa e minuciosa das Escrituras.
evangelistas da verdade de Deus. Trabalha- Para evitar o erro de usar a Bíblia como
mos, ensinamos e estudamos para manter confirmação de idéias pré-concebidas, os
a verdade viva. Cremos que Deus santifica conselheiros bíblicos devem saber como
(transforma) Seu povo “na verdade” e que manuseá-la (de preferência, nas línguas
a “Sua Palavra é a verdade”. Esforçamo-nos originais) e devem ser capazes de estabelecer
para ajudar a igreja a ser “coluna e baluarte uma conexão entre o significado original do
da verdade”, treinando o povo de Deus para texto e sua aplicação na vida cristã.

8 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Vigor teológico torna-se vulgar e prejudicial. Quando se
Todo erro tem um elemento da verdade estabelece uma separação entre teologia e
que foi isolado de modo impróprio de outros ministério (quando teólogos falam apenas a
ensinos bíblicos e assumido como verdade outros teólogos), a teologia torna-se elitista
única. O aconselhamento bíblico deve evitar e farisaica. A verdade vive somente quando
este tipo de problema encorajando o pleno penetra no coração de pessoas de carne e
entendimento não só dos textos bíblicos osso que estão lutando com os problemas
em seus detalhes, mas também da relação reais da vida. Portanto, o aconselhamento
de cada texto com o restante da Palavra. Os bíblico deve manter a verdade viva, pratican-
teólogos costumam chamar isto de teologia do o estudo e o ensino em um contexto de
sistemática, ou seja, uma disciplina que sus- ministério pessoal com vínculos vitais com
tenta a abrangência e unidade da verdade a igreja local.
bíblica. Estes padrões ministeriais posicionam
o aconselhamento bíblico bem no centro
Conscientização apologética de uma guerra cultural. Com freqüência, o
Sabendo que o incrédulo “muda a aconselhamento é visto erradamente como
verdade de Deus em mentira”, o aconse- um encontro privado, um-a-um. Em certos
lhamento bíblico deve continuar a traçar a aspectos isto é uma verdade, mas o aconse-
antítese entre a verdade de Deus e a mentira lhamento é também um campo de batalha
de Satanás, analisando cuidadosamente to- onde as vítimas da mais recente sedução
dos os “ministérios de ajuda” pelos padrões enganosa da cultura lutam para sobreviver,
divinos. Nosso estudo das Escrituras deve ser o que faz com que o aconselhamento seja to-
relevante frente às tendências culturais que talmente público e potencialmente universal.
levantam “verdades” substitutas e ameaçam Quando usa a verdade para combater o erro
seriamente aqueles ministérios da igreja que em vidas deprimidas, temerosas ou iradas, o
têm, infelizmente, recebido seus ensinos. conselheiro não presta ajuda apenas a um in-
Nossa metodologia de aconselhamento e divíduo. Ele envia um soldado de volta para
discipulado deve sempre se erguer como uma o campo de batalha para juntar-se ao exército
alternativa ao erro do mundo, e não como que luta pela verdade em uma cultura pronta
uma acomodação a ele. a render-se à mentira.
Oremos para que possamos suportar as
Ajuda ministerial aflições como bons soldados de Jesus Cristo
Quando se estabelece uma separação (2 Tm 2.3) e receber graça para manter a
entre ministério e verdade, o ministério verdade viva.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 9


A Interpretação da Bíblia e
o Aconselhamento

Ja y E . A d a m s 1

Alguém que não sabe interpretar devi- O mau uso das Escrituras
damente a Palavra de Deus não sabe acon- Se você não está ainda bem certo a
selhar biblicamente. É errado identificar-se respeito daquilo de que estou falando, julgue
como conselheiro bíblico e ao mesmo tempo por si mesmo. Aqui estão alguns exemplos.
não levar em consideração um estudo sério Um conselheiro cristão citou uma declara-
da Palavra. Usar a Bíblia de modo superfi- ção de Oscar Pfister, o confidente de Freud:
cial e simplista, deixando muitas vezes de “Diga-me o que você encontra na Bíblia, e
representar corretamente o que Deus diz eu lhe direi quem você é”. E acrescentou: “A
na passagem a que nos referimos, é indes- Bíblia é um espelho no qual a pessoa projeta
culpável. Mas será que este problema de fato os conceitos de si mesma, para então recebê-
acontece? Minha resposta é “sim”. Se você já los de volta refletidos”. Ele disse ser esta a
leu umas poucas páginas da literatura evan- sua interpretação de Tiago 1.22-24. O que
gélica disponível na área de aconselhamento ele fez, na verdade, foi transformar a Bíblia
(estou falando da literatura evangélica de em um teste de Rorschach.
“aconselhamento cristão”, que se diz baseada Mais um exemplo: “Deus quer que
na Bíblia), você sabe que há problemas na amemos em nós mesmos a pessoa que Ele
maneira como a Bíblia é usada. criou à Sua imagem”. Você acredita que
Deus quer que você ame a pessoa que Ele
criou em você? Para que Deus o criou à Sua
1
Tradução e adaptação de Biblical Interpretation anal imagem? Para que você ame a Ele, e não a
Counseling. Publicado em The Journal of Biblical si mesmo! Se eu lhe entregar uma fotografia
Counseling v. 16, n.3, Spring 1998, p. 5-9. de minha esposa e lhe disser “Esta é minha
Jay Adams foi o primeiro portavoz do movimento de esposa”, qual será minha reação se você a
aconselhamento bíblico. Foi um dos fundadores da rasgar, jogar aos pedaços no chão, cuspir e
Christian Counseling and Educational Founda-tion,
em 1968, e atualmente é membro emérito do comitê
pisar? Faça isso e você se dará mal! Por quê?
diretivo. Será que o papel fotográfico é tão precioso?

10 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Não. Você se dará mal porque a fotografia se e creram foram as primeiras de muitas
representa aquilo que você insultou, atacou e respostas à oração de Jesus. Perdão não foi
tentou destruir — minha esposa. A imagem concedido sem arrependimento e fé. Aquele
de Deus no homem é importante por causa autor não entendeu corretamente o texto
dAquele a cuja imagem fomos criados, não bíblico.2
por você ou por mim, que somos apenas o Quantas vezes você ouviu uma ex-
papel fotográfico. plicação do texto que lemos em Romanos
Em busca de apoio para sua idéia de 8.15, 16 — “o Espírito testifica com o nosso
“cura de memórias”, outro conselheiro faz espírito” — atribuindo-lhe o significado de
mau uso da afirmação de Jeremias de que que o Espírito testifica ao nosso espírito?
Deus não se lembrará de nossos pecados Um breve estudo em um bom comentário
(31.34) — como se Deus pudesse esque- é suficiente para esclarecer que a preposição
cer alguma coisa. Este conselheiro igualou grega usada no texto (sun) não significa ao.
erradamente não lembrar com esquecer. Ele Significa junto com. O Espírito testifica com
foi longe demais em sua interpolação não- o nosso espírito. A idéia aqui é claramente a
bíblica, a ponto de escrever: “Talvez o pró- de duas testemunhas, como pedido pela lei
prio Deus tenha passado por algum tipo de de Deus. Não é o Espírito testemunhando
cura de Suas memórias”. Se isso não é fazer a nós, mas junto conosco.
um mau uso das Escrituras e insultar o nosso Quando foi a última vez que você
Deus, não sei dizer o que é. Por onde anda a ouviu alguém fazer um mau uso de 1 Tes-
teologia deste autor? Ele tem uma doutrina salonicenses 5.22? Paulo nos exorta a evitar
formada a respeito de Deus? toda aparência do mal. Quase todos os bons
O advogado de um conselheiro famoso comentários explicam que Paulo não está
chamou o processo bíblico de exclusão da dizendo: “Evite coisas que parecem más,
igreja, descrito em 1Coríntios 5.5 como mas não são más”. Ele está dizendo: “Evite
uma entrega da pessoa a Satanás, de “ritual o genuíno mal qualquer que seja a forma
satânico”. E quase inacreditável! em que ele se apresente, e sempre que ele se
Escrevendo um livro sobre perdão, apresentar”.
outro conselheiro disse: “Cristo concedia Recentemente, em um programa de
perdão mesmo antes que houvesse um pe- televisão, alguém estava tentando vender um
dido de perdão. Ele orou: `Pai, perdoa lhes, tônico a base de hissopo: “A Bíblia ensina
porque não sabem o que fazem’. Isso é perdão que devo ‘purifica-me com hissopo’ e isso,
— não solicitado, imerecido, e ainda assim
concedido livremente”. Mas até mesmo uma
exegese superficial revela que não houve per-
2
NdT. Em seu livro The Christlan Counselor’s New
Testament, Jay Adams esclarece a questão com base
dão concedido na cruz. A oração de Cristo
nos textos de Marcos 11.25, Mateus 6.12-15 e Lucas
foi um pedido para que Deus os perdoasse e 17.3. “No seu coração, o cristão deve perdoar, e
não uma expressão de perdão já concedido deve expressar diante de Deus sua disposição para
àqueles que o crucificavam. Deus respondeu conceder perdão. Nenhum rancor pode ser guardado.
a esta oração? Sim. Ele a respondeu no dia de Mas perdão é na verdade concedido a outra pessoa no
momento em que ela se arrepende (cf. Lc 17)”. (p.
Pentecostes, e em outras ocasiões posteriores, 129). Para um tratamento mais detalhado do assunto,
por meio da pregação de Pedro. Aqueles que consulte também A Theology of. Christian Counseling:
pela misericórdia de Deus arrependeram- More than Redemption (Zondervan, 1986).

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 11


com certeza, é fato”. E acrescentou: “Você portância que Ele atribuiu a esta questão.
precisa beber este tônico de hissopo para que Jesus disse: “Ai de vós, intérpretes da Lei!
ele purifique internamente o seu organismo”. Porque tomastes a chave da ciência; contudo,
Qualquer pessoa que tenha um treinamento vós mesmos não entrastes e impedistes os
bíblico mínimo sabe que limpar ou purifi- que estavam entrando” (Lc 11.52). É uma
car com hissopo refere-se nas Escrituras a questão séria. Eles não apenas corriam risco
aspergir sangue em pessoas e objetos usando diante de Deus, mas colocavam outros igual-
como instrumento esta planta. Em Êxodo mente em perigo porque lhes apontavam
12.22 lemos: “Tomai um molho de hisso- uma direção errada.
po, molhai no sangue que estiver na bacia
e marcai a verga da porta e suas ombreiras A necessidade de estudo
com o sangue que estiver na bacia”. Em He- Pedro falou sobre a seriedade deste
breus 9.19 nos é dito que Moisés “tomou o problema em 2Pedro 3.16-18. Referindo-se
sangue dos bezerros e dos bodes, com água, aos escritos de Paulo, Pedro disse que aquelas
e lã tinta de escarlate, e hissopo e aspergiu cartas continham “certas coisas difíceis de
não só o próprio livro, como também todo entender, que os ignorantes e instáveis de-
o povo”. Não há nada a respeito de tônico de turpam, como também deturpam as demais
hissopo capaz de purificar os órgãos internos Escrituras, para a própria destruição deles.
do nosso corpo. Vós, pois, amados, prevenidos como estais
de antemão, acautelai-vos; não suceda que,
A chave da ciência arrastados pelo erro desses insubordinados,
À luz do que acabamos de ver, eu lhe descaiais da vossa própria firmeza”. É peri-
pergunto: É necessário aprender a interpre- goso, diz Pedro, seguir aqueles que torcem
tar a Bíblia para que você possa aconselhar e deformam as Escrituras. É importante
biblicamente? Não lhe parece que você tem reconhecer que há porções das Escrituras que
um trabalho grande pela frente? são mais difíceis de entender do que outras.
Não estou falando em dedicar um É necessário tempo, esforço, oração e estudo
esforço superficial à tarefa de interpretação, adicionais para interpretá-las corretamente.
mas em estudar a Palavra tão profundamente De fato, Paulo, assim como outros, nem
que lhe permita conhecer o significado real sempre escreveu coisas fáceis de entender.
de cada passagem que você usa. Será que A Bíblia não é um livro para ser lido
Deus abençoa o uso de Sua Palavra indepen- informalmente, como um jornal. É um livro
dentemente de como a usamos? Deus tem sobre o qual você deve se debruçar em estudo
o direito de fazer o que Lhe agrada com Sua com seu coração e suas habilidades, até que
Palavra. Com certeza, Ele é gracioso para co- possa extrair os grandes tesouros que Deus
nosco mais do que nós somos uns para com depositou ali. Deus não procura dificultar a
os outros. Mas isso não é desculpa para que tarefa, mas algumas partes são certamente
usemos a Palavra de Deus indevidamente, mais difíceis de interpretar que outras. Visto
sem a correta compreensão e interpretação. que somos tão estultos, pecadores, pregui-
As palavras de Jesus aos conselheiros çosos e cegos, com frequência temos dificul-
que estavam desviando outros por meio dade para extrair as verdades esparsas. Uma
de interpretações errôneas da lei do Antigo leitura superficial da Bíblia não é suficiente.
Testamento nos dão uma indicação da im- Devemos fazer um estudo sério.

12 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Incomoda-me a palavra devocional. que a Bíblia seja invariavelmente deturpada
Quando as pessoas mencionam um estudo para se ajustar à psicologia quando a inter-
devocional da Bíblia, não sei o que estão pretação é feita por alguém com doutorado
querendo dizer. Receio que frequentemente em psicologia e um conhecimento bíblico
queiram dizer: “Vou fechar minha mente rudimentar adquirido na escola dominical.
para aquilo que a passagem possa significar Nestas condições, é impossível estudar devi-
ou que todos os comentários possam me damente a Bíblia. Quando as Escrituras são
ajudar a entender. Vou me limitar a permitir distorcidas e deformadas, Pedro ensina que
que as palavras penetrem lentamente em o resultado é destruição, tanto para aquele
meu ser, e então filtrar algo que possa ser que atua como para aqueles que ouvem. A
útil para mim. Seja ou não aquilo que Deus deturpação das Escrituras arruína a vida de
tencionava de fato dizer, de alguma maneira conselheiros e aconselhados.
me fará bem”. De acordo com Pedro, o que leva as
Quero encorajá-lo a um estudo devo- pessoas a deturparem as Escrituras? Por que
cional da sua Bíblia, em lugar de fazer um há tanta interpretação errônea da Palavra de
uso meramente superficial das Escrituras. Deus? Por que as pessoas tratam a Palavra
Quando for à Palavra de Deus, você nunca de Deus com tanta superficialidade? 2Pedro
deve fechar a mente ao estudo. Pelo con- 3.16 põe o dedo na questão: os maus intér-
trário, deve ir com toda sua perspicácia e pretes são pessoas ignorantes e instáveis.
habilidade para entender o verdadeiro âma- Deus não confere prêmio à ignorância.
go da passagem. Invista tempo pensando Ele quer ver pessoas sábias, cheias de conhe-
no significado do texto bíblico. Insista até cimento. O primeiro capítulo de Provérbios
conseguir. Então agradeça a Deus pelo en- ensina que entendimento, discernimento
tendimento e aplique-o à sua vida de modo e conhecimento são partes da vontade de
a aumentar sua devoção a Deus. Faça um Deus para a nossa vida. A Bíblia foi-nos dada
estudo devocional da Bíblia dedicando-se a para que pudéssemos ter conhecimento. “O
um estudo intensivo dela. temor do SENHOR é o princípio do saber”.
Os conselheiros que não têm conhecimento
Deturpando as Escrituras da Bíblia estão neste estado porque gastam
No livro de Provérbios, o escritor fala seu tempo estudando as psicologias e não
em habilidade “para entender provérbios e as Escrituras.
parábolas, as palavras e enigmas dos sábios”.
Há coisas difíceis de entender em Provérbios, A última onda
mas o livro tem o propósito de instruir. É Recentemente foi publicado um livro
necessário esforço, oração e trabalho para ex- secular com o título Fad Surfing (Surfando
trair a verdade que torna o homem sábio. nas Ondas do Modismo). Seu foco está nas
Infelizmente, o que vemos com certa empresas que seguem uma onda após a outra
frequência no chamado aconselhamento de idéias da re-engenharia para melhorar seus
bíblico é o uso da Bíblia de acordo com a negócios e operar melhor. Mas com onda
própria conveniência. Muitos deturpam as após onda e após onda, a administração
Escrituras, torcem e deformam a Palavra de destas organizações está agora desgastada,
Deus para encaixar idéias previamente en- gerando instabilidade na vida de pessoas e
contradas em livros seculares. É de se esperar empresas. Muitos estão tombando na ressaca

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 13


das ondas. Minha opinião é que o mesmo exegese, termos que vou logo mais expli-
se aplica muito bem ao desenvolvimento car. Procure orientação séria para o estudo
daquilo que é hoje chamado de aconselha- bíblico. Se você não puder frequentar um
mento cristão. curso, meu livro What To Do On Thursday
Quando comecei a aconselhar, Freud (O Que Fazer na Quinta-feira) pode orientá-
era muito popular. Depois veio Rogers, e lo. O importante é aprender a interpretar as
tomou-se mais importante que Freud. De- Escrituras.
pois de Rogers veio Skinner; e mais tarde O mau uso das Escrituras não aconte-
Skinner saiu de cena. Uma avalanche de toli- ce apenas porque as pessoas são ignorantes.
ces os sucederam. “Eu estou ok, você está ok” Pedro diz que são também instáveis, sem
entrou em cena. Mas hoje não está mais ok! raízes profundas. Elas se curvam a cada ven-
Depois disso veio a ênfase na auto-estima. to de doutrina. Esta “onda de modismo” é
Quando morei na Califórnia, a questão da constante em determinados círculos devido
auto-estima permeava cada aspecto dos sis- à instabilidade das pessoas. Em vez de apro-
temas educacional e governamental. Certa fundarem e aperfeiçoarem seu conhecimento
vez, eu estava dirigindo acima do limite de bíblico a respeito de como viver para Deus
velocidade permitido e fui parado por um com alegria, elas adotam um sistema de
policial que se aproximou e disse: “Nós não aconselhamento após outro e logo em se-
acreditamos que você seja um mau sujeito guida os lançam ao mar. Jamais chegam ao
porque está correndo, mas você vai ganhar conhecimento da verdade (cf. 2Tm 3.7).
uma multa!”. Eu pouco me importava com Não creio que eu conseguiria ir muito
o fato dele pensar ou não que eu fosse um longe por este caminho. Por exemplo, se eu
mau sujeito! O que me importava mesmo tivesse investido meu tempo em “Eu estou
era ter que pagar a multa! Mas o seu comen- ok, você está ok” para depois descobrir que
tário tinha a finalidade de manter a minha já estava fora de moda e que eu precisaria
auto-estima. Tais esforços caíram em desuso adquirir ferramentas de outro sistema,
quando as pessoas finalmente foram forçadas aprender seu jargão e estratégias, eu não
a reconhecer que eles não acrescentavam ficaria satisfeito. Ao descobrir que este tipo
nada de bom. de reciclagem seria necessário diante de
As pessoas que promovem uma onda cada uma das sucessivas ondas de teorias de
após outra de novas soluções psicológicas aconselhamento novas, eu logo ficaria can-
nunca aprenderam a interpretar as Escritu- sado. Eu começaria a colocar em dúvida se
ras. Não são sábias em extrair das Escrituras estas pessoas encontraram de fato a resposta
o que Deus depositou ali. Gastam seu tempo e concluiria, a tempo, que os conselheiros,
lendo livros sobre aconselhamento enquanto em sua maior parte, são instáveis. Tiago diz
seu entendimento das Escrituras permanece que tais pessoas são como as ondas do mar.
superficial. Você pode ver uma onda, mas quando você
se aproxima para tocá-la, ela já se foi! Ela é
Aprendendo a interpretar as instável. Muda constantemente de forma,
Escrituras posição e cor. Está em movimento contínuo.
O que você precisa fazer para ser Eu não seria capaz de aconselhar pessoas
diferente? Se possível, frequente um curso se estivesse continuamente em mudança.
de interpretação bíblica, hermenêutica ou Você seria?

14 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


A Palavra de Deus é estável. Os con- bem intencionadas. Outras, como diz Pedro,
selheiros que alicerçam sua fé com firmeza não têm princípios morais. Algumas reco-
sobre a Palavra tornam-se estáveis, arraigados nhecem o vazio daquilo que estão fazendo,
e fundamentados em algo que não muda. À mas foi tamanho o investimento feito que
medida que seu conhecimento se aprofunda, elas seguem adiante fingindo, praticando e
é claro que haverá certa mudança. Mas visto propagando suas idéias, embora não estejam
que as Escrituras permanecem como a fonte de fato ajudando outras pessoas.
e o referencial para tudo quanto crêem e
fazem no aconselhamento, eles nunca pre- Três elementos de interpretação
cisarão fazer uma reciclagem para adotar um Deus nos chama a concentrar a atenção
modelo inteiramente novo. Eles aprenderão no conhecimento bíblico e crescer na graça
mais a respeito daquilo em que já se firma- e no conhecimento de nosso Senhor e Sal-
ram. Mudança será um aprofundamento do vador Jesus Cristo. Há três termos que são
entendimento, algo edificado sobre o mesmo importantes para a interpretação da Bíblia.
fundamento. Que diferença isso faz! Você Hermenêutica é o primeiro deles. A
não precisa desanimar. Pode ter a certeza de palavra deriva do nome de um personagem
que assumir uma posição ao lado da Palavra da mitologia grega, Hermes, o suposto men-
de Deus e gastar seu tempo aprendendo sageiro dos deuses gregos e intérprete de suas
mais e mais a respeito dela é investir em algo mensagens. Em nossos dias, a palavra perdeu
sólido e digno de valor. sua conotação religiosa, mas ainda traz a
Há uma outra bênção que precisa ser idéia de um mensageiro que interpreta uma
mencionada. Você está estudando a Palavra mensagem para outra pessoa. Ela significa
do Deus vivo, logo é impossível fazer isto simplesmente explicar, interpretar. Em Lucas
sem que resulte em benefício para você — 24.27, lemos: “E, começando por Moisés,
sem que o desafie e o conduza ao arrependi- discorrendo por todos os Profetas, [Jesus]
mento, a um maior entendimento de como expunha-lhes o que a seu respeito constava
viver com outras pessoas, como lidar com em todas as Escrituras”. Jesus estava fazendo
os aconselhados e como resolver os proble- hermenêutica. Ele estava explicando.
mas. É maravilhoso investir seu tempo na Utilizamos hoje a palavra hermenêutica
Palavra de Deus, aprendendo mais e mais com referência à ciência da interpretação e
do que ela diz. E algo de grande benefício. explicação da Bíblia. Ela inclui, em seu uso
Considero um enorme privilégio estudar mais comum, as teorias, os princípios e as
a Palavra para pregar e aconselhar, e não práticas da interpretação da Palavra de Deus.
consigo entender por que alguém gastaria O exercício de colocar estes princípios em
tempo procurando sabedoria em outro lugar ação durante o estudo da Bíblia é identi-
a não ser na Bíblia. ficado por outra palavra, exegese. Este é o
Mas de acordo com Pedro, o erro é algo segundo termo com o qual precisamos nos
que contamina. “Vós, pois, amados, preveni- familiarizar. É uma forma da expressão gre-
dos como estais de antemão, acautelai-vos; ga que significa levar ou conduzir para fora.
não suceda que, arrastados pelo erro desses Refere-se ao ato de extrair das palavras de
insubordinados, descaiais da vossa própria um escritor o seu pensamento. Na exegese,
firmeza” (2Pe 3.17). Algumas destas pessoas você extrai os pensamentos do autor usando
são desprovidas e mal-informadas, embora ferramentas da hermenêutica, de acordo com

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 15


os princípios da hermenêutica. Você colhe Ministrar a Palavra durante uma sessão
estes pensamentos e os transporta para seu de aconselhamento é explicar uma passagem
coração e sua mente, de modo a ser capaz de bíblica a alguém para que possa dizer em seu
apresentar aos outros as verdades da Palavra coração e em voz alta: “Ah! Eu entendo o que
de Deus. isso quer dizer!”. Mais tarde, os aconselhados
Em outras palavras, o que fazemos não dirão: “Esta é uma idéia do conselheiro”.
ao praticar uma boa exegese é aplicar os Dirão: “Eu entendo que isso é o que Deus
princípios de interpretação (a hermenêuti- está me falando em Sua Palavra. O conse-
ca) de modo a extrair da Bíblia aquilo que lheiro abriu essa passagem para mim de tal
Deus colocou na Bíblia. Não derramamos maneira que pude saber o que Deus está me
primeiramente algumas de nossas idéias na dizendo”. Isto contrasta com o uso superfi-
Bíblia para depois puxá-las dali. Vamos ao cial de um trecho das Escrituras, quando
poço com um cântaro vazio; queremos saber um conselheiro (figurativa ou literalmente)
o que Deus tem a nos dizer. À medida que entrega um versículo a alguém e diz: “Leia
mergulhamos na verdade de Deus, o que três vezes ao dia, acompanhado de oração”.
vem à tona são as águas vivas da Palavra. Isto não é ministrar a Palavra. O bom acon-
Isto é exegese. selhamento implica fazer primeiramente
Calvino escreveu: “A primeira tarefa de um estudo pessoal da Palavra de Deus para
um intérprete é permitir que o autor diga compreendê-la. Depois, com o aconselhado
aquilo que de fato diz, em lugar de atribuir sentado à nossa frente, abrimos a passagem
a ele o que pensamos que ele deveria dizer”. diante dele para que ele possa reconhecer que
Isto é exegese. Em outras palavras, exegese a autoridade daquilo que estamos dizendo
envolve todo o entendimento, toda a expe- não vem de nós, mas de Deus — ele pode
riência e toda a ajuda que possam estar dis- perceber isto por meio da Palavra aberta.
poníveis para extrair da Palavra o significado Sempre que as Escrituras são plenamente
e a intenção do Espírito Santo ao escrever o expostas, os aconselhados não podem des-
texto original. culpar a si mesmos encolhendo os ombros
Um outro termo não-técnico, mas e dizendo: “Muito bem, isso é apenas o que
que nos ajuda a entender a questão, é abrir o conselheiro pensa”. Se virarem as costas a
ou expor. Ele completa nossa lista tríplice. uma ordem bíblica, eles o farão com pleno
Esta palavra aparece em Lucas 24.32, 45, e conhecimento.
seu sentido é o de abrir a Palavra e explicar.
Você se lembra de como Jesus se referiu aos Os alvos do intérprete
fariseus dizendo que haviam tomado a chave Uma vez estabelecido que o alvo é
do conhecimento, trancado a porta e lançado entender os pensamentos e intenções do Es-
fora a chave? Isso impedia que as pessoas pírito Santo expressos por meio dos escritos
entrassem e ganhassem conhecimento. Em inspirados de homens escolhidos por Deus,
contraste, abrir é colocar a chave na fechadu- os objetivos do intérprete devem ser três: (1)
ra e escancarar a porta do conhecimento da nada adicionar nem subtrair aos pensamen-
Palavra de Deus diante das pessoas. É dizer: tos e intenções do Espírito Santo, mas (2)
“Aqui está o que Deus diz em Seu Livro”, e reproduzi-los com exatidão em palavras que
explicar isso aos outros. sejam plenamente compreensíveis (3) pelo

16 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


intérprete e por aqueles que ele aconselha. que um conselheiro precisa fazer. Isaías diz
Este é um pré-requisito para o verdadeiro que um conselheiro normalmente orienta as
aconselhamento bíblico. pessoas. Segundo, ele informa. Terceiro, ele
Por que isso é importante? Por causa dá entendimento ou discernimento. Quarto,
daquilo que Deus diz ser a tarefa de um ele ensina. Mais adiante, em Isaías 41.28,
verdadeiro conselheiro. Em Isaías 40.13, 14, ele acrescenta que um conselheiro oferece
Ele nos lembra que não cabe aos homens respostas. Um conselheiro, portanto, orienta,
aconselhar o Espírito de Deus. Deus não informa, dá entendimento, ensina e oferece
precisa ser aconselhado! Todavia, no decurso respostas às perguntas que lhe são feitas. Se você
de seu argumento, Isaías lista aquilo que pretende cumprir este papel biblicamente, você
um conselheiro normalmente faz e aquilo precisa saber como interpretar a Bíblia.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 17


Biopsiquiatria

D a v i d Po w l i s o n 1

Por cerca de dez anos, até a metade da veram best-sellers defendendo que a dor e o
década de 90, para qualquer lado que você vazio emocionais desempenham um papel
se voltasse no mundo do aconselhamento primordial e determinante em nossa alma:
ou em uma livraria, você ouviria mencionar por exemplo, Inside Out (De Dentro para
como causa dos problemas da vida as expe- Fora, 1987) de Larry Crabb e Love is a Choice
riências penosas de ser usado e abusado por (O Amor é uma Escolha, 1989) de Robert
outras pessoas. As emoções desagradáveis Hemfelt, Frank Minirth e Paul Meier.2
e os comportamentos destrutivos eram O centro de ação estava nas experiên-
estimulados e orientados por um senso de cias da infância. Visto que as nossas famílias
mágoa e vazio proveniente de maus relacio- eram disfuncionais, encenávamos o papel de
namentos. Os livros Codependent No More um perdedor por nascença e de uma vítima
(Não Mais Codependente, 1987) de Melody infeliz - até que pudéssemos encontrar cura
Beattie e Homecoming (De Volta ao Lar, interior e satisfação emocional. “Por que meus
1990) de John Bradshaw foram amplamente pensamentos, sentimentos e comportamen-
vendidos. No mundo evangélico, as clínicas tos são maus? Eu sofri abuso. Meu pai é o
psiquiátricas particulares, que ofereciam responsável. Providencie relacionamentos de
também tratamentos com internação, cura para mim e ajude-me a ter pensamentos
prosperaram propondo essencialmente esta a meu respeito que promovam a cura”. Estes
mesma teoria: as clínicas Minirth-Meier foram os dias de glória do “ambiente em que
e Rapha, e o New Life Treatment Center fui criado” e, conseqüentemente, os dias de
(Centro de Tratamento Vida Nova). Os
psicólogos e psiquiatras evangélicos escre- 2
Inside Out é diferente de Love is a Choice em aspectos
que contam a favor de Crabb. Mas ambos ensinam
1
Tradução e adaptação de Biological Psychiatry Publicado que o mecanismo subjacente da alma é o coração
em The Joumal of Biblícal Counseling v. 17, n.3, Spring necessitado, ferido, cheio de anseios e vazio, que foi
1999, p. 2-8. vitimado e não é devidamente satisfeito por meio dos
relacionamentos.

18 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


glória da psicoterapia e dos grupos de apoio. tica tornaram-se a causa eficiente da nossa
Se a condição básica de um indivíduo era de personalidade, das inclinações e problemas:
imersão no organismo social, então manter um temperamento alegre ou melancólico,
ao seu redor pessoas melhores contribuiria tendências para violência, alcoolismo, comer
para ele melhorar. em excesso, preguiça, distração ou timidez,
E então o mundo mudou. escolha de um comportamento homossexual
O eu interior necessitado e ferido, tão ou promíscuo. E a causa eficiente é sempre
marcado e desfigurado pelas experiências a causa mais interessante, e aquela com a
traumáticas vividas, desapareceu no pano qual você deve lidar para realmente alcançar
de fundo. Ao longo da segunda metade mudanças. Ou se algo não pode ser mudado,
da década de 90, todos descobriram que pois é parte da compleição genética, temos
eram os genes, os hormônios e o cérebro os razão para aceitar um comportamento como
verdadeiros causadores dos problemas da normal e amoral.
vida. Nosso corpo era disfuncional, e não a Visto que nosso corpo é disfuncional,
família. As tecnologias de diagnóstico por somos marionetes que dançam suspensas por
imagem - tomografia computadorizada e fios de neurônios, ao som de uma melodia
outras mais - permitiram examinar atenta- programada por nossos genes e a droga
mente o interior do cérebro para observar certa pode acalmar quando a dança torna-
as descargas elétricas dos neurônios, traçar se espástica. “Por que meus pensamentos,
os mecanismos padrão e identificar o lugar sentimentos e comportamentos são maus?
onde os estados emocionais e as escolhas Eu sou vítima de uma malformação. Meu
de comportamento acontecem. O Projeto corpo é o responsável. Providencie medica-
Genoma Humano está gerando um relato mentos para me acalmar ou me animar para
após outro sobre o fundamento genético dos que eu possa sentir-me melhor e funcionar
pecados comuns. melhor”. Estamos vivendo agora os dias de
Em It’s Nobody’s Fault (Não é Culpa glória da “ciência” e, consequentemente, os
de Ninguém,1997), Harold Koplewicz diz dias de glória da biopsiquiatria. Se o indi-
que as crianças indóceis sofrem de uma víduo é uma máquina com partes que não
deficiência nos neurotransmissores, e não funcionam bem, um mero organismo, então
há nada de errado com elas como pessoas qualquer coisa que faça as partes funciona-
ou com a maneira como foram criadas. Em rem melhor contribuirá para melhorá-lo.
Listening to Prozac (Ouvindo o Prozac, 1993), Evidentemente, eu simplifiquei de
Peter Kramer diz que entramos na era da modo exagerado nosso contexto histórico
“psicofarmacologia cosmética”. Podemos para ressaltar meu argumento. As coisas
agora tentar um ajuste químico do cérebro nunca são perfeitamente distintas: as clínicas
de pessoas deprimidas ou ansiosas, acanha- Minirth-Meier também prescreviam Prozac
das ou agressivas: “Prozac pode transformar para todos os seus codependentes feridos.
um pessimista em otimista, um solitário em Teorias passageiras podem ter os seus quinze
extrovertido”.3 A química cerebral e a gené- minutos de fama antes de sair de cena, mas
geralmente levam um longo tempo para
3
KRAMER, Peter. Lístening to Prozac: a psychiatrist desaparecer completamente. O conceito
explores antidepressant drugs and the remaking of the self. de necessidades psicológicas e de feridas
USA: Viking, 1993. emocionais ainda está entre nós e não desva-

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 19


necerá tão cedo. Mas sem dúvida, o mundo Não há esperança de que Freud ou
mudou na segunda metade da década de Adler, Maslow ou Skinner, Kohut ou Satir
90. O campo de ação está agora no corpo. possam estar de fato certos. Ninguém espera
O que importa é o que você recebeu de seus que no novo milênio possa aparecer algum
pais, e não aquilo que eles fizeram a você. gênio com talento para inovação e também
O entusiasmo está nas funções do cérebro, para a grande síntese. Ninguém espera que
e não nas disfunções da família. O foco está desponte alguém com a verdadeira psicolo-
na pesquisa sólida das ciências médicas e na gia. Desta forma, “ecletismo” não é mais uma
psiquiatria, e não nas psicologias maleáveis palavra feia. Tempos atrás significava falta de
que enfatizam a dor e a filosofia de vida. rigor intelectual e coragem, e uma atuação
A psiquiatria está de volta. A partir da pragmática. Agora, na era do ceticismo
década de 60, os psiquiatras afastaram-se teórico, tornou-se o único curso de pensa-
de forma contínua do tratamento da vida mento e ação honesto: os terapeutas prezam
cotidiana. Face às novas e numerosas alterna- pela variedade de métodos e os teóricos pelo
tivas profissionais no campo da psicoterapia, ecletismo fundamentado. As microteorias e
eles pararam de conversar com as pessoas e micropesquisas são o que resta para oferecer:
armaram sua barraca no terreno biomédico. “reações de tristeza em lésbicas hispânicas
Agora a biologia está repentinamente em na faixa de trinta anos” não têm relaciona-
alta, e a psiquiatria está abrindo caminho mento teórico com “reações de alegria em
e varrendo de sua frente toda oposição. As adolescentes jogadores de futebol americano
companhias de seguro gostam disso porque campeões estaduais em Massachusetts”.
as drogas psicotrópicas têm aparência de Não há uma perspectiva unificada. A
“medicina”, parecem ser mais baratas que pluralidade dissipa qualquer possibilidade
uma conversa e prometem resultados mais do “um”. A pós-modernidade e o multicul-
previsíveis. Os profissionais psicoterapeutas turalismo martelam o prego final no caixão:
estão na defensiva, temerosos de ter que en- já que tudo não passa de uma questão de
contrar outra profissão, aflitos por descobrir interpretação pessoal sua ou minha, então
um meio de sobrevivência no mundo das tudo se reduz a relações de poder. Sendo as-
“profissões de ajuda”, caindo vagamente em sim, as profissões relacionadas à psicoterapia
descrédito intelectual e vendo passar o brilho legitimam a si mesmas apenas pelo status de
da década dourada de 80. um registro profissional e por serem pagas, e
Enquanto a biopsiquiatria atua hoje não porque possuem boa qualidade, verdade
em uma posição de força intelectual, as ou eficácia demonstráveis. A “psicologia”,
psicologias atuam em posição de fraqueza. no singular, está enfrentando um problema
As psicologias estão pagando agora o preço fundamental, visto que ninguém nem mais
da confusão cognitiva em que caíram por acredita que exista tal coisa. O que resta são
décadas. À medida que as teorias conti- “psicologias”.
nuaram a proliferar, a possibilidade de Mas o que é verdadeiro para as psicolo-
uma Grande Teoria Unificada da natureza gias e psicoterapias não é para a psiquiatria.
humana tornou-se apenas lembrança, uma No conjunto das profissões de ajuda que
velha idéia impraticável da primeira metade se dirigem aos problemas pessoais, o único
do século vinte. candidato viável para a Grande Teoria Uni-

20 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


ficada não é exatamente uma “psicologia”, do homem é... o cristianismo. As pessoas
mas a biopsiquiatria. A “psichê” torna-se psicologizadas procuram explicar e consertar
um subproduto do corpo. A medicina está vidas por meio de alguma interpretação da
pronta para reivindicar a personalidade vida humana que exclui Deus, o pecado,
humana. Sigmund Freud, fisiologista por Cristo, a santificação e o restante da ver-
formação, sonhou com o dia quando o dade bíblica. Mas é tempo de atualizarmos
drama da vida humana seria compreendido um pouco nossa linguagem. Atualmente,
biologicamente e curado pela medicina. Ele a biopsicologização da vida humana está
teceu seus mitos em meio à falta de habi- surtindo um efeito amplo, tanto na cultura
lidade da ciência médica para desvendar o como na igreja. Ministramos a um número
pensamento consciente, o comportamento, cada vez maior de pessoas biopsicologizadas,
o desejo, a consciência e a emoção, entre que vêem a si mesmas, seus cônjuges e filhos
outros. Mas Freud acreditava que algum dia como corpos que enlouqueceram.
a ciência penetraria no cérebro que opera em Um artigo publicado recentemente
e por meio do id, ego e superego. pela revista The Economist coloca bem a ques-
A dança que acontece em público e no tão: “Muito do conhecimento novo vindo da
semiprivado - a mente consciente e incons- genética, biologia molecular e ciências neu-
ciente - seria um dia explicada pelo cérebro. rológicas é esotérico. Mas seu impacto cultu-
São muitos os que acreditam que agora ral já está indo adiante da ciência. As pessoas
chegou a hora de poder colocar suas mãos começam a ver a si mesmas não mais como
no pote de ouro. O sonho do materialismo um todo com um centro moral, mas como
reducionista parece, de modo tantálico, mui- resultado da ação combinada de partes pelas
to perto de se tornar realidade. Em nossos quais elas têm pouca responsabilidade”.4 A
dias, somente a biopsiquiatria (além da fé base de conhecimento pode estar exagerada
bíblica) pode reivindicar de modo plausível ou mesmo subdesenvolvida, mas o sistema
uma Grande Teoria Unificada do funciona- de valores está evidente: logicamente, você
mento humano. não é VOCÊ no momento de assumir algu-
Foi estupidez e suicídio social dizer ma responsabilidade por aquilo que há de
que todos eram vítimas de abuso. É também errado com você, mas é apenas uma máquina
desagradável dizer que somos pecadores cujas partes não estão funcionando.5 A práti-
diante do Deus e Pai de Jesus Cristo o úni- ca também tende a correr muito adiante do
co Redentor. As pessoas querem dizer que conhecimento: o que não está funcionando
somos essencialmente corpo, porque assim pode ser substituído, reinstalado, atualiza-
podemos consertar o que nos aflige. Este
é o monstro assolador que tenta esmagar 4
ANDERSON, Alun. Are you a machine of many parts?
tanto a psicologia e a psicoterapia como o In: The World in 1999, London: The Economist, 1999.
cristianismo. p. 109-110.
Durante anos os conselheiros bíblicos 5
Talvez não deva nos surpreender que as pessoas
desafiaram a psicologização da vida humana, tenham a tendência de ver a si mesmas como máquinas
argumentando que os seres humanos são apenas quando as coisas não estão indo bem. Muitas
pessoas, inclusive cientistas, ainda recebem crédito por
básica e profundamente relacionais - vivem suas realizações, habilidades, escolhas bem sucedidas e
diante de Deus e em relacionamento com opiniões, exatamente como faziam quando as famílias
Ele. A grande síntese de todos os fatos acerca disfuncionais eram o auge da moda!

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 21


do ou lubrificado, mesmo que ainda não verdade verdadeira, uma verdade confiável.
compreendamos totalmente o mecanismo O que a Bíblia diz a respeito do homem
subjacente. nunca será destruído por nenhuma desco-
A igreja está um pouco atrás do modo berta neurológica ou genética. A Bíblia é
de pensar da cultura. Mas ela já está sendo uma bigorna que tem desgastado milhares
afetada profundamente pelo sistema de va- de martelos. A neurologia e a genética estão
lores e prática da biopsiquiatria. Se algo está descobrindo uma grande quantidade de
estragado, ou se apenas não está funcionando fatos interessantes. As novas descobertas
com excelência, pode ser consertado de fora permitirão que os médicos curem algumas
para dentro por uma droga psicotrópica: doenças, o que é algo genuinamente bom e
melhora da qualidade de vida pela química. que beneficiará a todos. Mas a biopsiquiatria
Em seu ministério e em sua igreja, você já não pode explicar, nem jamais explicará, o
está provavelmente enfrentando este sistema que de fato somos. Todo homem é criado à
de valores e práticas. Tanto nos bancos da semelhança de Deus, com um corpo e uma
igreja como no púlpito, muitos estão debaixo alma que dependem de Deus. A própria
do efeito de drogas que alteram a mente, o habilidade para traçar o genoma humano
humor e o comportamento. Cada vez mais, ou uma tomografia computadorizada é dada
todos nós lidamos com as idéias e as reivin- por Deus.
dicações do conhecimento. A revista Time Além isso, todos os homens são moral-
começa a informar em reportagem de capa mente loucos pelo efeito do pecado, vivendo
sobre os questionamentos e escolhas com que como se fossem deuses, ainda que Deus res-
os cristãos se deparam na vida diária. Por fim, trinja a manifestação lógica do pecado. Esta
tais idéias alcançam o sistema educacional é a razão por que as implicações, aplicações e
em forma de sabedoria da cultura com que esperanças das descobertas da neurobiologia
se deve discipular a geração seguinte. combinam aquilo que é bom com o que é
Este artigo é limitado na abordagem aterrador e perverso. Os biopsiquiatras e
do problema. Minha descrição não é mais pesquisadores da microbiologia interpretam
do que uma pincelada superficial. Darei suas descobertas e determinam as implica-
agora dois argumentos breves em respos- ções de um ponto de vista deformado pelo
ta a este desafio à fé cristã. O primeiro é pecado. As pressuposições e esperanças que
baseado em “pressuposições” e o segundo, motivam a biopsiquiatria são tão mitológicas
em “evidências históricas”. O primeiro é de quanto as crenças de um hindu que se incli-
longe o mais importante, mas não irei além na ante o deus Kali, ávido de sangue, ou o
de enunciá-lo, pois tem sido tratado muitas deus Shiva, dado à perversão sexual. Tanto
vezes e por muitos antes de mim. O segundo a biopsiquiatria como o hinduísmo servem
é somente um argumento auxiliar, mas ele a uma visão fantasiosa da realidade da vida
oferece o conforto peculiar da perspectiva humana. Como preço por curar a poucos, os
de um grande quadro - se construído sobre biopsiquiatras induzirão muitos ao erro. Eles
o primeiro argumento. não agem conforme o previsto pela sua teo-
Em primeiro lugar, o que Deus disse ria - como máquinas ou meros organismos.
a respeito da natureza humana, dos nossos Eles agem como pessoas criadas à imagem de
problemas e do único Redentor é verdade. E Deus e enganadas pelo pecado. “Seja Deus

22 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


verdadeiro, e mentiroso todo homem” (Rm senvolvida por Ivan Pavlov na década de
3.4). E eles podem ser redimidos, tanto no 1890 foi uma tentativa inicial de reduzir
aspecto pessoal como intelectual e prático. a existência do homem a um mosaico de
Os filhos de Deus estão em Cristo, e atividade neuroelétrica no córtex. Suas
aprendem a amar a Cristo em um processo experiências também ofereceram uma de-
de mudança gradual da loucura para a sabe- monstração tosca de que o comportamento
doria. Este é o argumento pressuposicional. e as funções glandulares podem às vezes ser
As pressuposições bíblicas não contrariam os manipulados. O mentor de Pavlov, Seche-
fatos da neurobiologia, assim como não con- nov, havia definido sua filosofia materialista
trariam os fatos do sofrimento, socialização, com a seguinte afirmação pragmática a
guerra, sexualidade, emoções ou história. O que seu discípulo se agarrou: “O cérebro
cristianismo é a grande “síntese”, a “teoria” segrega pensamento”. Esta é uma metáfora
unificadora, a verdade. espantosa que demonstra a força e a lógica da
Isso conduz ao meu segundo argumen- cosmovisão biologizadora. A primeira onda
to contra a biopsicologização da existência biopsicológica desvaneceu-se à medida que
humana: “Isso, também, passará”. É útil suas práticas significativas provaram ser limi-
ganharmos um pouco de perspectiva his- tadas ou pouco mais do que bom senso. Seu
tórica, reconhecendo que estamos no meio fracasso como cura para a condição humana
da terceira maior onda biopsiquiatrica dos ficou óbvio a todos, e algo mais atraente e
últimos 130 anos. Em cada caso, um pe- abrangente surgiu.
queno acréscimo de conhecimento ou uma A psicologia freudiana irrompeu
nova prática extrapolou em uma esperança trazendo a primeira “cura pela fala” ou
enorme de resolver os males da humanida- psicoterapia, com o behaviorismo e a te-
de. Em cada caso, a biopsiquiatria fez um rapia behaviorista seguindo logo de perto.
bem pequeno e deixou muita desilusão. A Contudo, a primeira onda não desapareceu
primeira onda durou do fim da Guerra Civil completamente. Ocasionalmente, ainda se
Americana (1865) até por volta de 1910. O ouve uma pessoa idosa mencionar que fulano
conhecimento neurológico novo - p. ex., a está com “esgotamento nervoso”, um eco do
localização de determinadas funções cere- eufemismo dos anos de 1880 para pecados
brais devido aos efeitos de lesões cerebrais como ansiedade e murmuração.
ocorridas durante a guerra - foi generalizado A segunda onda biológica, nas décadas
na tentativa de definir os problemas da vida de 40 e 50, foi edificada sobre a eficácia de
pelo modelo médico e tratar a vida pelos três novos tratamentos médicos para pessoas
recursos médicos. A “neurastenia” ou o “es- perturbadas descobertos na época: a terapia
gotamento nervoso” tornaram-se explicação eletroconvulsiva e a lobotomia nos anos 40,
vulgar para qualquer ansiedade, depressão, e as drogas do grupo das fenotiazinas nos
perda de propósito na vida, irritabilidade ano 50. Usando o eletrochoque, destruindo
e vício. Várias maneiras de fortalecimento as células do cérebro ou administrando
dos nervos foram usadas: descanso, dieta, medicação estabilizadora da mente, os mé-
caminhadas ao ar livre, trabalho em fazendas, dicos puderam tentar um ajuste do sistema
prevenção do estresse, medicamentos. elétrico do corpo, uma vez localizadas as
Por um ângulo um pouco diferente, funções cerebrais e identificada sua química.
a abordagem fisiológica da psicologia de- Os processos do humor, comportamento

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 23


e pensamento foram atingidos. Mas esta funções. De novo, há certo conhecimento
onda biopsiquiátrica enfraqueceu à medida real e fascinante aqui. Mas é o mesmo tipo
que as grandes esperanças foram frustradas de conhecimento das ondas anteriores,
pelas realidades impossíveis de tratar. Alguns moldado e com suas proporções ampliadas
sintomas foram aliviados, mas as pessoas não por mitos semelhantes. A esperança de que
estavam realmente mudadas... e os efeitos entenderemos e curaremos o que nos aflige,
colaterais eram terríveis. Nos anos 60, com o localizando as funções do cérebro, ajustando
surgimento das novas psicoterapias e campos o sistema neuroelétrico e a química cerebral,
profissionais ligados à psicoterapia - aborda- não morre. A biopsiquiatria curará algumas
gem sistêmica da família, terapia da realida- coisas, pelo que devemos louvar o Deus da
de, terapia de grupo etc. - a biopsiquiatria graça comum. Mas ao longo do tempo, os
saiu da cena pública. Os tratamentos com efeitos colaterais indesejados e imprevistos
eletro­choque e drogas psicotrópicas do grupo estarão unidos a uma desilusão enorme. Os
fenotiazinas subsistem, mas ninguém mais benefícios nunca cumprirão as promessas. E
deposita grande esperança neles. Fazem parte a vida de inúmeras pessoas, cujos problemas
de um arsenal da psiquiatria que está dispo- normais da vida estão sendo agora medica-
nível para quando nada mais funciona. dos, não sofrerá mudança qualitativa nem
A terceira onda está acontecendo agora. mudança de rumo.
Ela reluz com o mesmo brilho de esperança Somente o arrependimento com en-
de suas antecessoras, embora certamente tendimento, a fé viva e a obediência palpável
pareça muito mais sofisticada. (Semelhan- transformam o mundo. Usando os eufemis-
temente, as fenotiazinas pareciam muito mos da década de 90, dizemos de alguém
sofisticadas em comparação à “cura pelo “tem” transtorno do déficit de atenção / hi-
descanso” e à lobotomia.) Mais uma vez, o peratividade, “sofre de depressão clínica” ou
conhecimento novo é gerado pela descoberta “é” bipolar. Sem de forma alguma minimizar
de novas habilidades para localizar as funções a realidade dos comportamentos, emoções e
do cérebro: agora são as ressonâncias magné- processos mentais desordenados a que esta
ticas que nos ensinam, e não mais as sequelas nomenclatura é atribuída, precisamos dizer
dos ferimentos por bala. As novas drogas não que estes supostos diagnósticos têm a mesma
têm os efeitos colaterais incômodos e visíveis substância de “esgotamento nervoso”.
que costumavam deixar os pacientes com A terceira onda também passará, em-
a boca seca, rígidos e dopados. Ninguém bora ela pareça ter potencial de conservação
mais introduz pela órbita ocular um instru- para um prazo de validade considerável, pois
mento pontiagudo gelado e o movimenta tem ciência de boa qualidade misturada com
ao redor do córtex cerebral (assim era feita moda e mito. Mas porque a vida humana é
a lobotomia). mais do que isso, nenhuma biopsiquiatria
O cérebro pode não ser uma glândula jamais poderá ser satisfatória em questão
que segrega o pensamento, mas ele é um de explicação nem cura. Algumas teorias
órgão eletroquímico que produz pensamen- novas conquistarão a opinião pública - pro-
tos, emoções e comportamentos. Ouvimos vavelmente, uma psicoterapia pela fala, uma
falar agora em estruturas genéticas, química psicologia ou um sistema que faça sentido.
cerebral e drogas formuladas para influenciar Suponho que será algo “espiritual” ou “so-
determinados neurotransmissores e as suas cial”. Na cultura ocidental do século vinte,

24 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


o interesse nas religiões orientais e ocultismo o nossos clones passarem a nos odiar... os
também tem se manifestado em forma de pecadores descobrirão que Cristo é Aquele
ondas, semelhantes às da biopsiquiatria, de quem necessitam.
crescendo e depois desvanecendo. Sabemos que apenas a fé cristã é capaz
Um movimento neojunguiano, sofisti- de fazer a grande síntese, unindo o todo da
cado e erudito, poderia atualizar a pluralida- vida: o corpo em sua dimensão física, os
de confusa da Nova Era e o sentimentalismo relacionamentos, os pensamentos, o sofri-
do Gaia para uma psicologia espiritualizada. mento, as emoções... Biopsiquiatria? Depois
Mas também estamos na expectativa de uma de descobrir algumas maravilhas, fazer algu-
nova teoria ou terapia comportamental, ma coisa boa e causar muito dano, além de
alguma psicologia social cheia de vigor, que absorver muito tempo, atenção, dinheiro e
volte suas energias intelectuais e práticas ao energia, isso também passará.
condicionamento sócio cultural: educação, Quero concluir com um desafio para
mídia, recreação, lazer, família, comunidade todos nós. Desde o início do movimento de
e política serão os centros de ação. Não sou aconselhamento bíblico, há mais de trinta
um profeta, mas confio - tanto por pressu- anos, os conselheiros bíblicos assumiram
posição como por evidências históricas - que uma posição sobre o relacionamento entre
se esperarmos poucos anos ou décadas o foco os problemas biopsiquiátricos e os problemas
não será mais a biologia, assim como não é morais-espirituais, que se manteve ao longo
mais o trauma de infância nem a influência do tempo. Provavelmente, a diretriz prática
do seu autopapo sobre a sua autoestima. mais comum era “Procure um médico para
Mas a onda está atualmente em plena tratar do seu corpo. Procure o seu pastor ou
força. O Projeto Genoma Humano tem em outros conselheiros bíblicos e amigos sábios
sua equipe alguns divulgadores maravilho- para tratar de seu coração, alma, mente,
samente competentes que nos alimentam a força, estilo de vida e maneira de lidar com
todos com uma torrente de informações de o sofrimento”.
cunho tantálico, carregadas de implicações Jay Adams freqüentemente instigou
fantásticas. Na semana passada, li um artigo os pastores a trabalharem “ombro a ombro”
que falava sobre a possibilidade de sermos com os médicos. Aqueles a quem ele acon-
capazes de reverter o processo de envelheci- selhava passavam em primeiro lugar por
mento e viver para sempre! Era um material um exame médico para detectar problemas
hilariante, acompanhado pelas devidas con- orgânicos identificáveis. Mas ele também
siderações sobre as implicações éticas. Não destacou que o alcance desta diretriz prática
posso discutir com os elementos de ciência era limitado. Esta medida não respondia a
citados, mas aqui é que a história tem seu todas as ambigüidades: “a linha divisória
papel em nos ativar a lembrança. Quando entre os problemas causados por fatores
o mapeamento dos genes estiver completo, orgânicos e não-orgânicos é geralmente
quando as pessoas que estão sendo tratadas tênue”. Ela também não descrevia o papel
com Prozac continuarem a não poder con- que o ministério de aconselhamento sempre
viver bem com o cônjuge, quando a água desempenha no lidar com o orgânico: o tra-
da fonte da juventude demorar para chegar balho do conselheiro cristão “envolve cons-
até nós engarrafada, quando o dinheiro e tantemente a dimensão orgânica” porque os
as realizações não satisfizerem, e quando sofredores precisam de conselhos e oração ao

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 25


lado de qualquer outra forma de ajuda que ou aquilo outro que os cristãos chamam de
seja adequada (Tg 5.13-20).6 “pecado”? Não poderemos mais dizer: “Passe
Os médicos que participaram nos pri- por um exame médico para descobrir se há
meiros trinta anos do movimento de acon- uma causa orgânica para esta ansiedade,
selhamento bíblico operaram com base na depressão ou maneira distorcida de pensar”.
pressuposição gerada pelo bom senso de que Haverá esta causa, por definição, em todos
os bons diagnósticos podem geralmente dis- os casos. Uma pretensa causa fisiológica para
tinguir entre os problemas que são verdadeira tudo significará um tratamento médico para
e decididamente fisiológicos e aqueles que tudo, uma droga psicotrópica formulada
são morais e espirituais, independentemente para fazer tudo quanto for necessário para
destes últimos aparecerem claramente ou que você se sinta e funcione de forma exce-
estarem disfarçados de sintomas psicosso- lente. Nem mais haverá problemas “psicos-
máticos. Sempre houve um espírito humilde somáticos”, porque os problemas relativos às
diante da complexidade com que Deus criou emoções, à motivação, aos comportamentos,
este todo psicossomático com um centro relacionamentos e pensamentos registrados
moral. E em todo tempo houve uma firme em sintomas físicos serão identificados como
confiança de que o aconselhamento bíblico tendo uma causa física! Eles serão somato-
pode sempre oferecer esperança e direção, psicossomáticos; portanto, para que se
tanto no caso dos problemas orgânicos tra- incomodar com a variável do meio?
táveis pela medicina como no caso daqueles Os conselheiros bíblicos que têm
que permanecem ambíguos, sem tratamento escrito sobre estas questões sempre deixam
disponível ou são terminais. espaço para uma “área cinzenta” entre o
Mas o que acontece quando os médicos fisiológico e o moral-espiritual. Jay Adams
e os pesquisadores da medicina passam a descreveu causas orgânicas, causas morais e
dizer que as emoções, os comportamentos “outras” causas ambíguas ou “uma combi-
e os pensamentos são em sua verdadeira es- nação de ambas” como aquilo que produz
sência fenômenos biológicos identificáveis? padrões de pensamento e comportamento
Que todos os problemas da vida, ou os mais bizarros ou “esquizofrênicos”. Desta forma,
significativos, podem ser reduzidos à biolo- o aconselhamento (sempre indicado) e o
gia? Que nosso corpo determina o coração, tratamento médico (algumas vezes exigido)
a alma, a mente, a força? Que uma droga combinaram flexibilidade em diferentes pro-
psicotrópica pode de fato consertar aquilo porções.7 Adams e outros sempre se opuse-
ram ao uso indiscriminado de medicamentos
e deixaram um certo espaço cuidadosamente
6
Veja ADAMS, Jay E. Conselheiro capaz. São Paulo: Fiel, reservado aos medicamentos como ajuda
1982. p. 37ss. nos problemas com base orgânica. Adams
_____. Ready to restore. Phillipsburg, NJ: Presbyterian ratificou o uso estratégico de antidepressivos:
& Reformed, 1981. p. 32 “O médico pode descobrir alguns dos casos
_____. O manual do conselheiro cristão. São Paulo: Fiel,
1982. p. 437ss.
A discussão em O Manual do Conselheiro Cristão 7
ADAMS, Jay. The Christian approach to schizophrenia.
trabalha bem as sutilezas e ambiguidades no
In: The Journal of Bíblical Counseling, v. 14, n.1, Fall 1995,
relacionamento entre os problemas morais e orgânicos
p. 27-33.
e, consequentemente, entre médicos e pastores.

26 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


pouco freqüentes de depressão com causa pela graça comum e também resistir a nos
química, e em casos graves ele pode ajudar deixar colonizar.
o pastor a engajar-se em um aconselhamento Temos trabalho a ser feito. Precisamos
significativo administrando temporariamen- desenvolver de maneira mais completa a
te antidepressivos”.8 nossa teologia prática para saber lidar com
Ed Welch distingue aqueles pro- as controvérsias atuais e prover direção para
blemas que podem ter um componente o povo de Deus que estará aflito, frequen-
orgânico misturado a fatores morais (p. temente confuso e algumas vezes enganado.
ex., algumas crianças hiperativas e algumas De várias maneiras, era “mais fácil” resistir ao
depressões) daqueles que não são biologi- modelo da família codependente e disfun-
camente determinados (p. ex., alcoolismo cional do fim da década de 80 ou às terapias
e homossexualidade).9 Mas o que acontece rogerianas com um toque de psicanálise das
quando a biopsiquiatria chega e diz: “Eureca! décadas de 50 e 60. Aquelas eram apenas
Identificamos o gene da esquizofrenia e da psicologias ruins que ficavam aquém quan-
depressão bipolar. Localizamos a parte do do contrapostas à boa psicologia de que a
cérebro que produz o transtorno obsessivo- fé cristã toma conhecimento por meio da
compulsivo. Achamos o neurotransmissor Bíblia: a dinâmica da natureza humana,
que produz todos os estados depressivos o significado de toda sorte de sofrimento
e formulamos a droga psicotrópica que etc. Mas a biopsiquiatria é medicina, que
transforma todo desânimo em bom ânimo quando contraposta à fé cristã faz com que
otimista. Encontramos os genes que deter- esta pareça ser apenas mais uma “psicologia”
minam tanto a homossexualidade (é uma a ser eliminada com uma retroescavadeira
variação genética normal) como o alcoolismo pelo reducionismo biológico triunfante.
(podemos identificá-lo em um teste pré-natal Quando protestamos: “Mas nós podemos
e alterá-lo com terapia genética)”? Em tal aconselhar pessoas iradas e ansiosas para que
situação, nós que procuramos aconselhar se arrependam e aprendam a viver em fé e
biblicamente precisamos dizer algo mais. amor”, parece que estamos dizendo algo do
E precisamos falar com cuidado, clareza, gênero “Expulse o demônio do câncer” ou
coragem e persistência. Quando a medicina “E só crer em Jesus e você pode jogar fora
parecia ocupar-se dos seus interesses dentro seus óculos”. Quando a ira e a ansiedade são
do estilo antigo, a diretriz prática funcionou. vistas como doenças do corpo tratáveis pela
Mas quando a medicina alcança alguns medicina, parecemos pessoas bizarras que
conhecimentos novos e opera de modo espiritualizam a vida mesmo para aqueles
imperialista, precisamos de diagnósticos e que estão nos bancos das igrejas ou em outros
prescrições mais perspicazes se queremos púlpitos. Temos muito trabalho a fazer para
aproveitar aquilo que há de bom na medicina proteger e edificar o corpo de Cristo.

8
ADAMS, Jay. Depressão. In: The encyclopedia of
Christíanity. Marshlton, DE: The National Foundation
for Christian Education, 1972, v. 3. p. 362-3.
WELCH, Edward. Blame ir on lhe brain. Phillipsburg,
9

NJ: P&R, 1999.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 27


Prática do Aconselhamento Bíblico

Abrindo Olhos Vedados:


outra visão da coleta de dados

Pa u l D . Tr i p p 1

Célia viera se aconselhar para “receber pessoal que precisavam ser penetradas, ou
ajuda em relacionamentos”. Ela se sentia “re- Célia jamais estaria na posição de uma
jeitada por todos” e, em lágrimas, descreveu verdadeira aconselhada. Ela estava ferida,
sua incapacidade de encontrar sequer um frustrada e exausta, mas por causa da sua
“amigo fiel”. Deus parecia bem distante, mas falta de visão, ela ainda não estava à procura
ainda assim Célia mantinha firme a idéia de de melhorar.
que não era uma pessoa “tão má”; com certe- Um dos efeitos trágicos da queda é a
za, ela não era ruim o suficiente para receber cegueira pessoal do coração. É um efeito
os “pontapés” que havia recebido. universal e um dos fatores que fazem o
Apesar de compadecer-me de Célia, eu aconselhamento bíblico ser tão difícil. Ela
também procurei fazê-la olhar para si mes- altera radicalmente o processo de coleta de
ma. Já que rejeição era o tema de sua vida, dados.
sugeri que deveríamos perguntar se ela estava Visto que o pecado é enganoso e as
fazendo alguma coisa que contribuísse para pessoas caídas são naturalmente cegas aos
o problema. Célia imediatamente tornou-se assuntos que dizem respeito a elas mesmas,
irritadiça e defensiva. Como conselheiro, o a coleta de dados deve sempre ter dois ob-
que eu deveria fazer em seguida? Eu preci- jetivos. Primeiro, o processo precisa dar ao
sava conhecer mais sobre ela; porém, mais conselheiro a informação necessária para
importante ainda, Célia precisava saber mais prover um aconselhamento bíblico sábio.
sobre si mesma. Havia paredes de cegueira Entretanto, um propósito ainda mais fun-
damental é que sejamos instrumentos do
Messias para abrir olhos que estão cegos há
1Tradução e adaptação de Opening Blind Eyes. Another
tanto tempo.
Look at Data Gathering. Publicado em The Journal of
Biblical Counseling. v. 14, n.2, Winter 1996, p. 6-11. Dar vista aos cegos é o coração da
Paul Tripp é diretor do ministério Changing Lives da missão messiânica de Cristo. Ansiando pela
Christian Counseling and Educational Foundation. vinda do Messias, lsaías disse: “então se abri-

28 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


rão os olhos dos cegos, e se desimpedirão os enxergar com clareza e profundidade bíblicas
ouvidos dos surdos” (Is 35.5). A promessa os pensamentos e motivações do coração.
de Deus vai além: “Guiarei os cegos por Este é o primeiro de três artigos que
um caminho que não conhecem, fá-los-ei focalizam o “abrir de olhos” por meio da
andar por veredas desconhecidas; tornarei coleta de dados. Examinaremos a natureza
as trevas em luz perante eles, e os caminhos da cegueira que todos os pecadores experi-
escabrosos, planos. Estas coisas farei, e jamais mentam e olharemos para o que precisamos
os desampararei” (Is 42.16). incluir em nosso papel de instrumentos de
O Messias é o Único capaz de abrir Deus.
os olhos dos pecadores cegos e fazê-los ver.
Isaías descreve assim o pecador: “Por isso As máscaras da cegueira
está longe de nós o juízo, e a justiça não nos ­espiritual
alcança; esperamos pela luz, e eis que há só A diferença entre a cegueira física e a
trevas; pelo resplendor, mas andamos na es- espiritual é que a primeira é extremamente
curidão. Apalpamos as paredes como cegos, óbvia e a segunda, geralmente, passa desper-
sim, como os que não têm olhos andamos cebida. Uma pessoa cega fisicamente é ime-
apalpando; tropeçamos ao meio-dia como diatamente confrontada com sua condição e
nas trevas”. (Is 59.9, 10 a) as limitações que ela acarreta. Já a pessoa cega
No Sermão do Monte, Cristo nos espiritualmente, além de não reconhecer
comissiona a ser parte da Sua missão mes- muitas vezes sua cegueira, está convencida
siânica, fazendo brilhar a luz da verdade na de que tem uma excelente visão. Uma parte
escuridão do pecado. Isto é exatamente o que fundamental de ser espiritualmente cego é
devemos procurar fazer no aconselhamento. ser cego à própria cegueira.
Nosso objetivo não é somente expor a escu- Cegueira espiritual é a condição de
ridão que existe nos relacionamentos e nas todo pecador, todo aconselhado. Ainda as-
diferentes situações, mas expor a escuridão sim, poucos deles percebem o impacto desta
do coração para que o evangelho possa ser condição na visão que têm de si mesmos, de
aplicado. Deus, dos outros e de seus problemas. Eles
Todos os nossos aconselhados estão, de são como os homens descritos em Romanos
alguma maneira, “apalpando as paredes.... 1, que pensam que são sábios quando, na
como os que não têm olhos”. Nossa coleta realidade, são tolos. Eles presumem que
de dados deve considerar tal necessidade pensam corretamente, mas seus corações são
seriamente. Quero ajudar o aconselhado caracterizados por tolice e futilidade.
a ver a si mesmo no espelho da Palavra de A cegueira espiritual é enganosa. Como
Deus. Para tanto, farei perguntas que ele João escreveu à igreja em Laodicéia, “pois
nunca faria e sondarei em lugares a que ele dizei: Estou rico e abastado, e não preciso de
não saberia chegar. Minhas questões fluirão cousa alguma, e nem saber que tu és infeliz;
de uma perspectiva bíblica acerca das pessoas sim, miserável, pobre, cego, e nu.” (Ap 3.17).
e seus problemas. Quando procuro por um A cegueira espiritual é enganosa porque
fim ao tatear no escuro, eu retrato o Messias. faz-se passar por outras coisas. Se vamos ser
Não estou simplesmente anunciando minhas instrumentos de Deus para dar visão aos
conclusões, mas ajudando os olhos cegos a cegos, temos que reconhecer as máscaras

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 29


típicas que essa cegueira usa. As seguintes sofrido nas mãos de outros. Mas quando
constituem uma lista representativa. Célia passava o filme da sua história de vida,
ela nunca estava ativa no enredo! O foco
A máscara do senso acurado de si dominante era o comportamento dos outros
mesmo para com ela.
Célia acreditava que conhecia a si mes- Não há uma metáfora mais poderosa
ma. Ficou ofendida com a simples sugestão para descrever como a cegueira espiritual usa
de que poderia ter alguma responsabilidade a máscara do senso de ser vítima do pecado
pelo que estava acontecendo em sua vida. de outros como a do “argueiro e a trave”, em
Uma pessoa consegue ver a si mesma como Mateus 7. Imagine uma pessoa literalmente
realmente é somente quando se contempla obsessiva por um cisco no olho de alguém,
atentamente no espelho perfeito das Escri- enquanto anda por aí com uma trave saltan-
turas (Tg 1.22-25). A maioria de nossos do de seu próprio olho! Seu senso de vítima
aconselhados têm uma visão distorcida de si é muito mais absorvente do que seu senso de
mesmos porque os espelhos nos quais estão ser pecadora. A mudança necessária parece-
se olhando são como espelhos de circo: re- lhe ser externa a ela.
fletem o real, mas com distorção. O espelho
de circo faz com que você aparente ter um A máscara de provações e testes
dorso longo e pequenos tocos de pernas ou Célia não tinha um senso acurado dela
uma cabeça bem grande e um corpo minús- mesma e do seu pecado; por isso, ela tendia
culo. Você está se vendo, mas não como é a chamar de provações as consequências na-
na realidade. turais de suas escolhas e ações. Paulo disse:
Assim é também com muitos dos nos- “não vos enganeis: de Deus não se zomba;
sos aconselhados. O senso que eles têm de pois aquilo que o homem semear, isso tam-
si mesmos foi desenvolvido mirando-se nos bém ceifará. Porque o que semeia para sua
espelhos deformadores de opiniões diversas, própria carne, da carne colherá corrupção,
de uma visão cultural de sucesso, da psicolo- mas o que semeia para o Espírito, do Espírito
gia popular ou de experiências passadas. E a colherá vida eterna” (Gl 6.7-8).
lista poderia continuar. O aconselhado não Já que a maioria dos nossos aconselha-
se dá conta de que tem um senso de si mes- dos não têm esta “mentalidade de colheita”,
mo distorcido. Embora tenha a Palavra de eles tendem a olhar aquilo que colhem não
Deus, ele a usa mais como uma enciclopédia como resultado do que plantam, mas como
do pensamento religioso ou uma ferramenta provações dolorosas que não merecem. Além
devocional. Mesmo ouvindo a Palavra pre- disso, porque os pecadores tendem a “mudar
gada, ele perde a revelação dele mesmo ali a verdade em mentira, adorando e servindo
contida; ouve as histórias ou os princípios a criatura, em lugar do Criador” (Rm 1.25),
expostos, mas não se enxerga espelhado nas tendem também a perder as coisas boas que
passagens bíblicas. o Criador opera por meio de cada situação.
O foco está voltado à perda de “algo criado”.
A máscara de ter sido vítima do Uma provação é provação para mim porque
pecado de outros põe em perigo algo que me é valioso. O maná
Célia era capaz de contar detalhada- que caía do céu tornou-se uma provação para
mente as histórias do constante “abuso” os israelitas porque eles não estavam focando

30 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


o amor fiel demonstrado pela provisão de importante para uma pessoa, descubra as
alimento a cada manhã, mas sim o gosto do necessidades que ela sente. Valores tornam-
alimento comparado ao cardápio do Egito! se desejos, desejos tornam-se exigências, e
Os aconselhados, em sua cegueira, exigências são expressas no aconselhamento
chamam de “provação” as conseqüências do como “necessidades”.
seu comportamento e de “provas” as boas Célia estava cega ao fato de que ela se
coisas recebidas das mãos de Deus. Eles estão colocava no centro do seu universo e via cada
cegos ao fato de que Deus manda provações aspecto da vida do ponto estratégico daquilo
com propósito redentor. Ao invés de verem que convinha para ela. Ela estava cega ao fato
a si mesmos como amados por Deus e em de que carregava essa perspectiva de necessi-
processo de serem conformados à imagem de dade aonde quer que fosse, e isso formatava
Seu Filho por meio das circunstâncias, vêem todas as situações e relacionamentos. Ela
a si mesmos preteridos pelas dificuldades. adentrava as situações cheia de exigências
Para eles, a vida não é justa. Sofrimento não silenciosas, e respondia com crítica irada
tem propósito redentor; é um sinal de que a qualquer um que parecesse ignorar a sua
Deus não os ama. pessoa ou as suas necessidades. Pensava
que seu senso de necessidade era prova do
A máscara das necessidades egoís­mo e falta de prontidão de todos ao seu
Célia via a si mesma como uma pessoa redor quando, na verdade, demonstrava a
necessitada, que passou a maior parte de sua profundidade de seu problema de centrar-se
vida carente de alguma coisa. Ela sempre em si mesma.
dizia: “se apenas tivesse_______, então eu
seria capaz de _______”. Seu entendimento A máscara do conselho sábio
de “necessidades” era tão obscuro quanto o Como todos os nossos aconselhados,
da cultura a seu redor. Mesmo assim, sua Célia tinha muitas vozes ao seu redor. À
interpretação da vida apoiava-se em grande semelhança de Jó, muitos dos conselhos
parte neste termo. Em essência, ela estava que ela recebia não ajudavam em nada; e
dizendo que os problemas na sua vida eram o não ajudavam porque não eram bíblicos.
resultado direto de seu senso de necessidades. Mesmo assim, Célia achava conforto nas
Ela carregava consigo a clássica interpretação palavras de seus conselheiros, ainda que por
da vida “se apenas...”. pouco tempo.
O que Célia não via era que seu estado Embora estivesse engajada no processo
de necessitada era o efeito trágico do pecado, de aconselhamento, Célia sempre me repetia
que nos transforma de adoradores de Deus a “sabedoria” que ela absorvera ao seu redor.
em pessoas que vivem “fazendo a vontade Mas Célia citava somente pessoas que con-
da carne e dos pensamentos” (Ef 2.3). Sua cordavam com sua visão de vida e apoiavam
carência revelava muito mais o que ela era as decisões que ela tomava. Ela não citava
do que aquilo que realmente lhe faltava. ninguém que discordasse dela.
O senso de necessidade de Célia revelava a Outro termo bíblico para cegueira
cobiça do seu coração mais do que a traição espiritual é “tolice”. Os conselhos sábios
de outros. E o que ela realmente necessitava que Célia recebia eram realmente tolices.
nunca foi objeto dos seus anseios - Deus. Pareciam sábios para ela porque estava cega
Se você quer realmente entender o que é às questões reais da sua vida.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 31


Provérbios 17:16 diz que o tolo não fé. Ainda assim, nada disso estava óbvio para
deseja a sabedoria. Célia pensava estar em Célia, porque a cegueira frequentemente usa
busca de conselhos sábios, mas na verdade uma máscara de discernimento.
procurava apoio para seu ponto de vista.
A máscara do senso de valores
A máscara de discernimento Célia pensava que sabia o que era
pessoal importante, mas quanto mais eu a ouvia,
Célia, como todos os seres humanos, mais ficava convencido de que aquilo que
estava sempre procurando compreender a a motivava não eram coisas de primeira
sua vida. Ela queria organizá-la em categorias importância. Mais uma vez, Célia estava
que ajudassem a entender os acontecimentos cega. Ela havia avaliado sua situação e agido
e o que fazer a respeito deles. Ela passava de maneira consistente com seus valores;
boa parte de seu tempo analisando os fatos e ainda assim, seus problemas persistiam. Isso
encontrava utilidade nisso. No entanto, se eu a deixava confusa e frustrada.
começasse a questionar suas interpretações, Todos os “tesouros” que motivavam
logo surgiria um clima de tensão na sala. Célia tinham a ver com relacionamento
A cegueira espiritual pode até parecer humano. Ela via a amizade, o respeito,
sabedoria! Ser brilhante intelectualmente e a aceitação e o amor como de extrema
analítico ativo não significa necessariamente importância, e fazia tudo que podia para
ser sábio. A verdadeira sabedoria começa evitar a rejeição, a solidão, e a baixa autoi-
com humildade: o reconhecimento de que magem, que dizia serem o resultado. Mas
eu não tenho em mim tudo quanto necessi- quanto mais Célia examinava as pessoas e
to. Preciso ser alguém que busca a verdade suas reações, mais ela tentava agradá-las
que é encontrada somente na Palavra de e mais zangada ela ficava. Ela começava
Deus. Discernimento real não é resultado seus relacionamentos com uma longa lista
de ser analítico, mas de ser bíblico. Veja de exigências silenciosas, mas não toma-
as palavras do salmista: “Os teus manda- va conhecimento de como julgava e não
mentos me fazem mais sábio que os meus perdoava os outros quando falhavam em
inimigos; porque aqueles eu tenho sempre viver de acordo com elas. Mateus 6 diz que
comigo. Compreendo mais do que todos aquilo que for o meu tesouro, controlará
os meus mestres, porque medito nos teus meu coração; e o que controlar meu cora-
testemunhos. Sou mais entendido que os ção, controlará meu comportamento. Em
idosos porque guardo os teus preceitos” (Sl outras palavras, eu vivo para obter, manter
119.98-100). e desfrutar aquelas coisas que são de valor
Célia estava cega ao fato de que seu para mim.
senso de discernimento revelava mais sobre Os valores de Célia eram o seu proble-
seu coração do que sobre a situação. Seu ma. Ela havia colocado sua identidade nas
discernimento nascia dos desejos que distor- mãos das pessoas. Vivia frustrada e fracassada
ciam sua interpretação do que estava acon- porque o mesmo Deus que a havia chamado
tecendo à sua volta. Tratava-se mais de uma para Ele estava ocupado com outras coisas. O
perspectiva impulsionada pelo desejo do que foco de Deus não estava tanto nos relaciona-
de uma análise objetiva. Desta maneira, era mentos, mas em conformar Célia à imagem
mais uma expressão de idolatria do que de de Seu Filho.

32 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Os aconselhados normalmente não havia feito o melhor”. Portanto, a causa de
reconhecem sua cegueira porque ela está seu problema tinha que estar fora dela. Seu
mascarada por um senso falso do que é certo conhecimento obscurecia sua responsabili-
ou errado. O homem irado que feriu sua dade pessoal e convicção de pecado.
família durante anos com reações violentas O fato era que Célia não havia sido
reconhece aquilo que perdeu apenas quan- capaz de aplicar sua teologia no dia-a-dia de
do é separado da família. Para ele, o que é uma maneira que fizesse sentido nas suas di-
importante é o seu direito de ver os filhos ficuldades. Era uma senhora sem sabedoria,
e morar na casa que sustenta. Ele sempre cega ao fato de que ela não era espiritualmen-
repete no aconselhamento: “Isto não está te madura. Maturidade espiritual resulta de
certo, não está certo”. Ainda assim, está cego praticar a verdade na vida diária, e não de
às mudanças que precisa fazer para que sua conhecer a verdade intelectualmente (Hb
família seja restaurada apropriadamente. 5.11-14). Mas Célia estava convencida de
O foco de uma esposa é a frieza e que o que havia de errado com todos os seus
distância de seu marido. Ela quer que o conselheiros cristãos era o fato de ficarem
conselheiro o transforme em um marido repetindo coisas que ela já sabia.
carinhoso, mas está cega para as constantes Junto com este senso de adequação teo-
críticas que o afastaram dela. Ela fica furiosa lógica, estava a tendência de fazer as perguntas
quando o conselheiro começa a focar nela erradas. As perguntas de Célia não a condu-
como alguém que necessita de mudança. ziam a um entendimento mais profundo da
Está totalmente cega para as coisas de valor sua situação, a uma esperança mais completa
eterno que Deus quer trabalhar nela. em Deus nem a um plano prático de mudan-
ça. Há um princípio aqui que consideraremos
A máscara do conhecimento mais a fundo em um dos próximos artigos.
­teológico É o seguinte: as pessoas de discernimento
Célia conhecia bastante as Escrituras têm discernimento não porque possuem as
e as doutrinas da fé. Apenas poucos termos respostas certas, mas porque fizeram as per-
teo­lógicos e bíblicos não lhe eram familia- guntas certas. Se você não fizer as perguntas
res. certas, nunca terá as respostas certas. Célia
Infelizmente, o conhecimento teológi- encontrava-se constantemente em um beco
co de Célia fez quatro coisas por ela. Primei- sem saída analítico, que a levava a perder a
ro, produziu um certo nível de confiança na esperança e lutar contra a depressão.
própria interpretação da vida. Ela presumia Aqui está um exemplo das perguntas
que suas idéias e ações fluíam de sua crença. erradas de Célia. Ela costumava dizer: “Eu
Segundo, produziu um reconhecimento oro e oro, leio minha Bíblia, mas Deus não
pessoal de maturidade. Célia achava-se me tem ajudado. Ele não responde às minhas
uma crente madura e se ofendia se alguém a orações”. Em seguida, vinha a pergunta: “Por
tratasse como necessitada de ensino bíblico que Deus não está trabalhando na minha
básico. Terceiro, no aconselhamento, seu vida?” Pergunta ruim, baseada em pressu-
conhecimento conferia-lhe uma atitude de posição não-bíblica, que não pode levar a
“eu já sabia isso e já tentei”. Quarto, pro- uma direção certa.
duzia a idéia de que não era culpada pelos A pergunta de Célia a levava a dois
seus problemas; ela “sabia o que era certo e tipos de resposta. Às vezes, ela concluía que

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 33


Deus não agia em sua vida porque simples- ser executado. O que Célia enfatizava não
mente não a amava. Ele tinha coisas me- requeria confiança em Cristo - eram padrões
lhores para fazer além de se preocupar com comportamentais que não exigiam nada do
sua vida insignificante. Em outras ocasiões, coração. Célia via o Evangelho relacionado
concluía que Deus não agia porque ela era apenas com céu e inferno. Ela não sentia
uma pecadora miserável, e a inatividade de necessidade alguma do poder transforma-
Deus era uma punição para a maldade dela. dor de Cristo atuando no presente em sua
Respostas ruins a uma pergunta ruim produ- vida, pois a “justiça” que havia atingido era
zem uma colheita de frutos maus. Como os humanamente alcançável.
conselheiros infames de Jó, Célia não cons- Célia enfatizava constantemente o me-
truía pontes entre a sua teologia e as situações nos importante e se orgulhava de realizá-lo,
da vida que lhe permitissem interpretações enquanto ignorava as questões mais elevadas
bíblicas consistentes da sua vida. da lei. Orgulhava-se da casa arrumada, pon-
Para formular a pergunta de Célia de tualidade, lembrança dos aniversários dos
uma maneira bíblica, é preciso começar amigos, leitura de livros cristãos, controle
com a seguinte pressuposição bíblica: Deus financeiro e disposição para servir. Ainda
está sempre ativo na minha vida (Sl 46; Rm assim, ela era ciumenta, zangada, dada a
8.18-39). Perguntar porque Ele não está julgamentos, amarga, vingativa e sem com-
trabalhando é presumir alguma coisa que paixão.
não é verdade. Conclusões verdadeiras não Cristo disse a Seus discípulos: “porque
podem vir de pressuposições falsas. Uma vos digo que, se a vossa justiça não exceder
maneira melhor de fazer a pergunta é: “Deus em muito a dos escribas e fariseus, jamais
está ativamente efetuando o processo de entrareis no reino dos céus” (Mt 5.20). Aos
santificação na minha vida; portanto, o que fariseus, Ele disse: “ai de vós, escribas e fa-
Ele está fazendo e por que eu não reconheço riseus, hipócritas! Porque dais o dízimo da
isto?”. Esta pergunta pode levar a um discer- hortelã, do endro e do cominho, e tendes
nimento maior, mudança bíblica e colheita negligenciado os preceitos mais importantes
de frutos bons. da lei, a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis,
porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas”
A máscara da santidade pessoal (Mt 23.23). A justiça dos escribas e fariseus
Apesar de Célia não falar de si mesma não era suficiente porque não era justiça. Era
usando uma linguagem bíblica que descre- vil, orgulhosa, justiça própria, humana. Esse
vesse santidade, era precisamente isto que ela tipo de justiça sempre enfatiza o que é huma-
pensava possuir. Ela cria que queria as coisas namente possível de ser feito e ignora o que
certas e fazia as coisas certas, e não podia só pode ser alcançado pela graça abundante
imaginar o porquê de tudo dar tão errado. de Cristo.
Sua crença na própria santidade repousava Talvez este seja o epicentro da cegueira
em uma justiça própria legalista que não espiritual. Na sua essência, ser espiritual-
tinha nada a ver com o chamado de Deus a mente cego significa pensar que se é justo
ser “santo como Eu sou Santo”. quando a realidade é outra. Isto coloca fora
Célia estava cega ao fato de que se de questão a graça de Deus e a necessidade
assemelhava a um fariseu. Ela reduzira a Lei de mudança. Se eu sou justo (de acordo com
de Deus a um padrão humano possível de o que penso), não preciso de Cristo nem de

34 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


mudança. Isto é claramente demonstrado A vida de Célia não produzia fruto do
em Lucas 18 com o relato dos dois homens arrependimento. Primeiro, ela não estava se
no templo. O fariseu colocou-se em pé no tornando uma pessoa pronta a dar partida
templo e disse a Deus que não precisava em mudanças. Continuava na prática de
dEle. Estava lá para proclamar sua aprova- comportamentos pecaminosos e destruti-
ção, distanciando-se dos demais pecadores vos apesar de termos falado a respeito deles
e listando seus “atos de justiça” diante de muitas vezes. Quando confrontada, admitia
Deus. seu erro de má vontade, mas suas confissões
De modo semelhante, Célia costumava raramente resultavam em novas maneiras
vir para o aconselhamento e listar suas boas de reagir. Segundo, Célia permanecia na
ações, pedindo-me para aprová-la em tudo. defensiva e continuava a ter dificuldade
Deixando passar as questões importantes do para receber minha avaliação bíblica sobre
coração e enfatizando os comportamentos de ela. Acusava-me de não compreendê-la, não
possível realização, ela se via limpa, embora acreditar nela ou tomar partido de outros.
por dentro fosse “ossos mortos”. Terceiro, Célia não tinha um espírito ensi-
nável. Era difícil ela admitir sua necessidade
A máscara do arrependimento de ser instruída pelas Escrituras e aprender a
Célia, como muitos aconselhados, aplicá-las em sua vida. Ela costumava debater
pensava que só o fato de procurar aconselha- minha teologia, a interpretação de uma pas-
mento já era um ato de arrependimento. Isso sagem ou a aplicação de um princípio bíblico
nem sempre é verdade. Muitos aconselhados em sua vida. Quarto, Célia completava sua
acham que conversar sobre seus problemas tarefa de aconselhamento com indiferença,
equivale a confissão e permanecer no acon- sem entusiasmo e discernimento, e também
selhamento equivale a arrependimento. Para sem alcançar as mudanças que eram o alvo
Célia, o aconselhamento assemelhava-se da tarefa.
mais a uma forma de penitência. Ela estava Mas ela percebia muito pouco de tudo
cega ao fato de que, na verdade, participava isso. Célia estava cegada pelo compareci-
de um ato de autoexpiação. Eu chamo isso mento legalista ao aconselhamento, o desejo
de “absolvição protestante”. O aconselhado de discutir questões pessoais e o estudo de
confessa, examina as questões envolvidas, passagens bíblicas designadas. Infelizmente,
participa de um processo de discussão sobre todas estas coisas (que ela pensava indicar
si mesmo e a situação, semana após semana, arrependimento) serviam de máscara para a
e chega ao fim de cada encontro de acon- amargura e a justiça própria que controlavam
selhamento sentindo-se absolvido, limpo, o coração de Célia.
justo. Mas tudo isso acontece sem mudança O arrependimento é apresentado na
substancial de coração nem comportamento. Bíblia como uma mudança radical do co-
O aconselhado vê a si mesmo envolvido ração, que resulta em mudança radical da
em um processo de arrependimento, mas maneira de viver. Ao mesmo tempo que o
na realidade há ocasiões em que o aconse- coração muda e se move em direção nova,
lhamento constitui-se em uma maneira de o mesmo acontece com a vida. Qualquer
evitar trabalhar as questões que estão no coisa aquém disso simplesmente não é
plano de Deus. arrependimento. Muitas pessoas vêm ao

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 35


aconselhamento em busca de autoexpiação, mais chocante que possa parecer, a cegueira
apesar de não perceberem isso e desejarem espiritual pode até usar a máscara de arre-
apoio para o que estão fazendo. Elas querem pendimento!
se sentir bem consigo mesmas e acham que É de vital importância lembrar o
conseguem se sentir melhor após o encontro profundo efeito que a cegueira espiritual
com o conselheiro. E então continuam a vir, causa em cada pecador e sua visão da vida.
apesar de não terem se submetido a Deus em Nossa coleta de dados precisa ser motivada
arrependimento profundo. Não estão oran- por aquilo que o aconselhado precisa ver.
do de acordo com o Salmo 139: “Sonda-me, Além disso, precisamos lembrar que as
ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me pessoas cegas espiritualmente não acham
e conhece os meus pensamentos ; vê se há em que estão cegas, pois sua cegueira usa mui-
mim algum caminho mau, e guia-me pelo tas máscaras. Precisamos reconhecer tais
caminho eterno” (S1 139.23-24). máscaras e adotar um processo de coleta
“Ir ao aconselhamento” manteve Célia de dados que abra os olhos do aconselhado
cega à sua teimosia e falta de arrependi- para quem ele realmente é. Nós nos com-
mento. Ela pensava que havia confessado prometemos a ser instrumentos de Deus
tudo o que tinha para confessar. Ela via a para abrir esses olhos que estão cegos e
si mesma como arrependida. “Por que mais considerar isso como função necessária
eu estaria me aconselhando?”, ela diria. Por da coleta de dados.

36 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Coleta de Dados:
como o conselheiro contribui para o processo

Pa u l D . Tr i p p 1

Em nosso artigo anterior, tratamos do enganoso facilmente me faz cego aos meus
problema da cegueira espiritual e seu poder pecados, preciso de outros crentes que me
para enganar. Vimos que as pessoas que estão amem o suficiente para mostrar minha vida
cegas espiritualmente não reconhecem seu sob a perspectiva de Deus. E eles precisam
estado de cegueira. Portanto, nós conselhei- que eu faça o mesmo com relação a eles. A
ros, devemos estar familiarizados com as natureza humana requer que cada um dos
várias máscaras que a cegueira espiritual usa. nossos relacionamentos tenha em vista o
A cegueira espiritual é sempre um elemento propósito de santificação.
presente no processo de aconselhamento e, Hebreus 3.12,13 resume a questão des-
como conselheiros bíblicos, precisamos estar ta maneira: “Tende cuidado irmãos, jamais
preparados para lidar com ela. aconteça haver em qualquer de vós perverso
Mas é importante lembrar que este não coração de incredulidade que vos afaste do
é um problema que diz respeito somente aos Deus vivo; pelo contrário, exortai-vos mu-
aconselhados. Quando prestamos atenção à tuamente cada dia, durante o tempo que se
admoestação bíblica de que todos nós somos chama Hoje, a fim de que nenhum de vós
por natureza pecadores e espiritualmente seja endurecido pelo engano do pecado”.
cegos, percebemos o quanto nós, como Note que, de acordo com esta pas-
conselheiros, precisamos da mutualidade sagem, o que me move a este ministério
do ministério de uns aos outros que o Novo interpessoal diário não é uma situação, ou
Testamento destaca como parte essencial seja, um pecado ou problema que exija
da vida da igreja. Visto que o meu coração mudança e que eu observei em você. Antes,
o que determina meu envolvimento é uma
condição - o pecado que habita no homem e
1
Tradução e adaptação de Data Gathering. Part 2: What
seu poder para cegar e endurecer o coração.
the Counselor Brings to the Process. Publicado em The
Journal of Biblical Counseling. v. 14, n.3, Spring 1996, Enquanto o pecado perdurar, a cegueira es-
p. 8-14. piritual existirá e continuará a exigir de nós

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 37


relacionamentos que promovam ministério neste ponto que a objetividade bíblica do
mútuo, honesto e em amor. conselheiro é essencial.
A questão é especialmente importante Quando o conselheiro entra no mundo
para aqueles cujo ministério é o aconselha- de um aconselhado, sua visão não está cega-
mento bíblico. Os aconselhados contam da pelos interesses egoístas que dominam o
conosco para penetrar seu mundo com uma aconselhado, desde que ele tenha se subme-
perspectiva divina que os ajude a vencer a tido ao ministério discipulador da Palavra
própria cegueira espiritual. Jamais estaremos e dos irmãos em Cristo. Ele está apto para
aptos para lhes oferecer o que esperam, a não “restaurar” seu aconselhado porque não foi
ser que tenhamos submetido nossa própria “pego” na mesma armadilha espiritual (Gl
vida à luz reveladora das Escrituras, guiados 6.1). Ele pode falar com objetividade bíbli-
por irmãos e irmãs em Cristo que possam ca. Em contraste, um aconselhado que está
nos ajudar a conhecer corretamente nosso espiritualmente cego perdeu a perspectiva
coração. Os conselheiros comprometidos objetiva, se é que algum dia ele a teve. Ele
com o processo de vencer a própria cegueira está preso a uma perspectiva não-bíblica e
espiritual desenvolvem várias qualidades esse ponto de partida afeta a maneira como
essenciais para ajudar seus aconselhados. vivencia tudo quanto lhe acontece.
Para a maioria dos aconselhados, o
Você pode contribuir com ponto de partida é a própria experiência. Eles
­objetividade tendem a ver cada aspecto da vida por meio
Muitos aconselhados estão cegados por das lentes da sua história pessoal, pressupo-
sua subjetividade - sua cosmovisão é molda- sições e desejos. A interpretação que fizeram
da por aquilo que desejam. Não conseguem da própria vida até esta altura determinará
perceber quando as suas exigências têm uma também todas as interpretações futuras, além
raiz egoísta. Estão desatentos a seu tom de de dar a cor até mesmo à maneira de enten-
voz, à expressão facial e a como sua versão der a Bíblia! A pessoa que interpreta a vida
do que acontece é sutilmente formatada pelas lentes de sua experiência pessoal faz o
pelo que desejam. Não percebem quando mesmo com a Palavra de Deus. A experiência
criticam outros por coisas que desculpam em pessoal é o que controla sua cosmovisão, e
sua própria vida nem quando se recusam a não as Escrituras.
perdoar pecados de outros e são defensivos ao Essa pessoa precisa de alguém que esteja
serem confrontados. Se estiverem absorvidos em posição diferente, alguém que comece
em uma mentalidade de vítima, não perce- com as Escrituras para depois se mover em
berão seu egoísmo. Também não perceberão direção à vida. A Bíblia precisa se tornar
quando seus atos forem manipuladores, a base para a interpretação da vida, e não
expondo diante de outros (mas deixando vice-versa. Como conselheiro bíblico, você
de reconhecer) a falta de fé que alimenta seu quer trazer essa perspectiva bíblica para o seu
estilo de vida. aconselhado, pois você sabe que a vida muda
Como conselheiro, não endureça seu quando a verdade de Deus se torna a lente pela
coração para com essas pessoas. Se não fosse qual tudo é examinado. No aconselhamento
a graça de Deus, você estaria no lugar delas! de casais, por exemplo, o conselheiro pode
Seus aconselhados necessitam de ajuda para quebrar o perene “Ele disse / Ela disse” com
enxergarem a si mesmos com clareza. É “O que Deus disse?”.

38 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Rafael e Sandra estavam casados há vida cristã demonstrava que eles tinham uma
quinze anos. Haviam chegado a um ponto visão limitada daquilo que Deus tencionava
de seu relacionamento em que lhes era quase alcançar por meio de tudo quanto Ele permi-
impossível discutir alguma coisa sem que tia na vida do casal. Deus estava procurando
a conversa não se tornasse uma guerra de conformá-los à imagem de Cristo.
acusações. Sandra estava convencida de que Finalmente, quanto aos seus desejos,
o melhor de seus anos fora roubado pelo fato eles precisavam perguntar: “O que Deus
de Rafael deixar de tratar certas questões e quer que busquemos de todo coração?”.
estar disposto a fazer concessões ao mundo. Rafael ansiava por “apenas um pouco de
Rafael via Sandra como severa, pronta a respeito”. Esta era sua exigência silenciosa
julgar e tomada de justiça própria. Em suas a cada interação com Sandra. Por sua vez,
conversas, lançavam um contra o outro as Sandra ansiava por “ter um marido que
granadas de amargura que haviam estocado quisesse servir ao Senhor o mesmo tanto
em seus corações ao longo dos anos. Estavam que ela”. Perguntas baseadas em Tiago 4.1-
presos a visões opostas da vida conjugal e 10, Filipenses 3.1-16, e Colossenses 3.1-17
incapazes de resolver seus problemas. Sandra revelaram o jogo “ele quer / ela quer” ca-
e Rafael precisavam da intervenção radical de racterístico do seu relacionamento. Esta era
uma perspectiva bíblica em três níveis. a fonte da sua incapacidade de resolver os
Quanto ao comportamento, precisa- problemas conjugais.
vam perguntar: “O que Deus diz a respeito Sandra e Rafael precisavam da ajuda de
de como falamos um ao outro?”. Seu estilo alguém que partisse do ponto de vista estra-
de comunicação não promovia amor, en- tégico das Escrituras para interpretar o que
tendimento, esperança e soluções. Pelo con- estava acontecendo no seu relacionamento.
trário, era um dos seus maiores problemas. Precisavam de alguém para dar exemplos de
Há princípios claros de comunicação em como fazer as perguntas corretas (ou seja, bí-
Efésios 4.25-5.2 que, se obedecidos, podem blicas), que levariam às soluções que podem
trazer não só uma perspectiva nova para esse ser encontradas somente quando alguém
problema, mas uma mudança permanente examina seu comportamento, os pensamen-
também. tos e os desejos à luz das Escrituras.
Quanto aos seus pensamentos, Sandra Quando procedo à coleta de dados,
e Rafael precisavam fazer a seguinte pergun- tento estruturar as perguntas de uma manei-
ta: “O que Deus disse ser o Seu alvo para nós ra completamente nova para o aconselhado,
como Seus filhos?”. O Novo Testamento, em pois mesmo as perguntas mais profundas
passagens como Romanos 8.28.29, Gálatas feitas pelo aconselhado ainda estão sob o
5.16-26, Colossenses 3.1-14 e 2 Pedro 1.3-9, impacto de sua cegueira. Há certas perguntas
ensina que o alvo de Deus para Sandra e que ele nunca formularia, mas que devem
Rafael é maior que o desejo de Sandra de ser feitas. Há certas perguntas que ele fará a
ver um ministério pessoal sendo realizado respeito de outras pessoas, mas que precisa
e o desejo de Rafael de ter uma esposa res- fazer a respeito de si mesmo. Quando faço
peitosa. O alvo de Deus é torná-los cada vez perguntas, quero lidar com o mesmo con-
mais participantes da Sua natureza divina. junto de fatos com que meus aconselhados
Rafael e Sandra estavam cegos ao fato de que lidam, mas de modo que eles aprendam a
a maneira como brigavam pelas questões da pensar biblicamente sobre sua vida.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 39


Você pode contribuir com mento. Ele traz confiança na Palavra de Deus
­sabedoria (e submissão a ela), que revela e penetra a
Na Carta aos Romanos, Paulo fala cegueira do aconselhado. A sabedoria bíblica
sobre o coração insensato e obscurecido dos que ele oferece é pura, pacífica, indulgente,
pecadores. O insensato é alguém espiritual- tratável, plena de misericórdia e de bons
mente cego. Ele pensa que vê, que é sábio, frutos, imparcial, sem fingimento (Tg 3.17).
que entende, quando na realidade é cego, Resumindo, pela graça de Deus, ele é exata-
tolo e confuso. A descrição do insensato em mente o oposto do insensato.
Provérbios retrata alguém que: Muitos daqueles a quem aconselhamos
ŠŠestá convencido de estar no caminho revelam sua insensatez por meio de um senso
certo (12.15); de valores distorcido. Não possuem um sis-
tema bíblico de valores que possa ajudá-los,
ŠŠrevela rapidamente sua ira (12.16);
na prática, a saber o que é de fato importante
ŠŠé temperamental e imprudente e o que não é. Somente as Escrituras podem
(14.16); ajudar o aconselhado a entender como os
diferentes aspectos da sua vida relacionam-se
ŠŠdespreza a disciplina e a correção
uns com os outros.
(15.5);
O conselheiro pode fazer perguntas
ŠŠdesperdiça dinheiro (17.16); que levem o aconselhado a olhar a vida de
uma perspectiva que não está limitada pela
ŠŠdeleita-se em dar a própria opinião
sua subjetividade habitual. Ele pode per-
(18.2);
guntar o que realmente é importante e qual
ŠŠé rápido para entrar em contendas a verdadeira relação entre os vários aspectos
(20.3); da sua vida, do ponto de vista de Deus. Tais
perguntas podem desafiar a antiga visão de
ŠŠzomba da sabedoria (23.9)
vida, familiar ao aconselhado, encorajando-o
ŠŠé sábio aos próprios olhos (26.5) a se submeter à visão de Deus.
Vamos olhar de novo para Rafael e San-
ŠŠconfia em si mesmo (28.26)
dra. Rafael está convencido de que Sandra é
ŠŠenfurece-se e zomba, não há paz ao seu seu problema, e todas as perguntas que ele
redor (29.9); faz provêm dessa interpretação. Sandra está
convencida de que Rafael é o seu problema,
ŠŠdá total vazão à sua ira (29.11).
e todo seu diagnóstico foi feito a partir dessa
O insensato precisa da intervenção da perspectiva. Ambos compartilham a crença
Palavra de Deus porque suas escolhas, res- de que o problema é serem muito diferentes
postas, perspectivas, ações e atitudes mani- um do outro na abordagem da vida e em seus
festam a todos que ele é cego. Ele precisa das alvos. Entretanto, os princípios de Provér-
lentes da sabedoria bíblica para ajudá-lo a ver bios mostram que a ira e a falta de união e de
e entender a vida à semelhança de Deus. esperança que Rafael e Sandra experimentam
O conselheiro bíblico pode oferecer não são resultado de serem diferentes, mas
a perspectiva sábia de Deus por meio das resultado da maneira insensata com que
Escrituras. Ele traz mais do que apenas lidaram com suas diferenças. As Escrituras
opiniões e pesquisas, experiência ou treina- ainda nos dizem que essas reações fluem dos

40 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


desejos do coração que eles trazem consigo antigo sistema de valores e da paralisia, da
sempre que se encontram. Mesmice e con- confusão ou do entusiasmo mal direcionado
cordância não são os ingredientes essenciais que este sistema de vida geralmente produz.
de unidade, mas sim o amor (a Deus acima Desta forma, quando Rafael aprender a ver as
de tudo, e ao próximo como a mim mesmo) situações biblicamente, poderá identificar as
que nos faz humildes, mansos, pacientes e novas opções para mudança e não ficar mais
capazes de suportar a diferença e as provo- preso à própria subjetividade. Ele não mais
cações (Ef 4.1,2). crerá que está atolado em um casamento
Se Rafael, por exemplo, começasse a derrotado e sem saída, mas começará a ver os
fazer sua própria coleta de dados, fazendo pensamentos e desejos do coração que estão
perguntas a respeito de si mesmo com base na raiz dos seus problemas. Mais adiante,
na descrição do insensato em Provérbios verá como esses desejos moldavam cada
(listada acima), ele desenvolveria um novo reação que tinha para com Sandra, em qual-
esquema para resolver seus problemas con- quer situação. Também não se julgará mais
jugais. preso em uma armadilha ou sempre o dono
Aqui estão alguns exemplos de per- da verdade. Pelo contrário, poderá ver com
guntas que Rafael poderia fazer a si mesmo. clareza o que deve abandonar e o que deve
Em quê ele se firmava para ficar tão conven- colocar em seu coração e comportamento
cido de estar certo, a ponto de não ouvir a para transformar o casamento.
perspectiva de Sandra nem reexaminar seus
próprios pontos de vista? Qual era seu modo Você pode contribuir com a
típico de reagir quando seus pensamentos claridade do evangelho
e decisões eram desafiados por Sandra (Pv As pessoas são intérpretes por natureza,
12.15)? Em quais situações ele tendia a se sempre procurando compreender o sentido
irritar e a se aborrecer rapidamente, respon- da vida. Não é difícil os aconselhados se sen-
dendo impulsivamente com raiva? Qual o tirem muito confusos quando são incapazes
impacto que esta demonstração de ira tinha de entender o que está acontecendo, por que
sobre Sandra e seu desejo de continuar a está acontecendo e o que fazer.
manter um diálogo aberto e sincero (Pv 12.6, Há também muitos aconselhados con-
14.6, 15.1)? O que ele queria de Sandra que fusos que não sabem que estão confusos! Eles
não estava recebendo e o deixava tão bravo? pensam que suas próprias interpretações são
Quais eram os “tesouros” pelos quais ansiava ricas de insight e que suas ações são lógicas.
e que pensava que Sandra estivesse rouban- O problema é que eles não vêem a si mesmos
do dele (Mt 6.19; Tg 4.1)? Estas perguntas nem a sua situação com clareza.
levariam Rafael a encarar a si mesmo diante Uma das áreas mais significativas de
de Deus, a reconhecer sua necessidade da cegueira espiritual que observo no aconse-
misericórdia de Jesus, e a buscar essa miseri- lhamento é a cegueira à realidade do evan-
córdia. Ele começaria a identificar as muitas gelho na vida de um aconselhado. A pessoa
coisas diferentes que poderia fazer para ver está confusa e paralisada porque deixou
uma mudança concreta acontecer. fatos significativos fora do seu sistema de
A pessoa que desenvolve uma pers- interpretação.
pectiva bíblica, ampla e constante da vida, Há três perspectivas essenciais que o
pode escapar da falta de esperança do seu evangelho nos dá sobre as lutas humanas.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 41


Sem o entendimento prático proporcionado todas as coisas (mesmo as aparentemente
por tais perspectivas, a vida não fará sentido caóticas e sem propósito) para o meu be-
ou será entendida de maneira não-bíblica e, nefício (Ef 1.22,23). Ele está operando em
portanto, incorretamente. O evangelho nos cada situação para me livrar da escravidão
dá a verdadeira noção de nós mesmos, de dos pecados do coração, para me ajudar a
Deus e do processo em que estamos. experimentar as riquezas da graça que Ele
derramou sobre mim em Cristo, e para me
A noção de si mesmo conformar à imagem de Seu Filho (Rm
Nossa reação diante de qualquer situ- 8.28 e Ef 1.3-7). Ele é o Deus que perdoa,
ação está sempre baseada no entendimento o Reconciliador, Libertador, Restaurador e
que temos da nossa identidade. Consequen- Aquele que conforta.
temente, precisamos do evangelho para nos Por causa de Sua atividade santificadora
informar e corrigir nossa definição de quem incessante, cada situação da vida - mesmo
realmente somos e quais são as nossas lutas aquelas que são escuras, confusas, e que
verdadeiras. O que o evangelho me ensina é me causam medo - é santificada, cheia de
que minha luta é mais profunda do que os significado, propósito e esperança.
problemas do meu passado, as dificuldades Os aconselhados, frequentemente, têm
nos meus relacionamentos e as situações pouca noção do Deus do evangelho, que
do cotidiano. Pedro diz que a corrupção reina sobre o mundo de tal maneira que Ele
no mundo é causada pelos desejos maus não está longe de cada um de nós e que a
do coração. Este é o lugar onde a mudança qualquer momento podemos procurá-lO,
precisa acontecer. alcançá-lO e encontrá-lO (At 17.26, 27).
Muitas das pessoas que aconselho têm Sem esta noção, os aconselhados tendem a
pouca noção da presença e poder do pecado ter pouca esperança quando chegam ao fim
que habita em nós. Têm pouca noção dos de sua sabedoria e força própria. Seu Deus
pensamentos, desejos, e escolhas do cora- funcional é pequeno, fraco, desinteressado
ção que estão na raiz de suas dificuldades e distante - não é alguém a quem confiar o
pessoais. Portanto, continuam a culpar que há de mais precioso e frágil em sua vida
pessoas e situações, cegas à luta do coração pessoal. Suas reações à vida, e a confusão em
que está presente em todas as situações da que se encontra, estão diretamente relacio-
vida. O evangelho apresenta a luta interior nadas à noção de quem é Deus.
(Romanos 7 e Tiago 4) como o primeiro
alvo do processo de santificação de Deus A noção do processo
(2Pe 1.3,4). O evangelho não apenas declara que
Deus está ativo, mas descreve o que Ele
A noção de Deus está fazendo e como Ele está operando.
Aqui também fico impressionado ao É esta noção do processo de santificação
ver como meus aconselhados têm pouca que falta a muitas pessoas que aconselho.
noção do Deus do evangelho - o Redentor Elas não têm um modelo da santificação
sempre presente e ativo, o Todo-poderoso, progressiva para compreender melhor sua
cumpridor de promessas. A Bíblia apresenta vida atual e os problemas.
Deus como meu ajudador sempre presente Deus instituiu um processo com o alvo
em todos os problemas (Sl 46), que controla de “que o vosso amor aumente mais e mais

42 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


em pleno conhecimento e toda percepção, tinha para com aqueles que falhavam com
para aprovardes as cousas excelentes e serdes ela. Ela não percebia que sufocava outros
sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo, com suas necessidades. Seus amigos eram
cheios do fruto de justiça, o qual é mediante seus deuses funcionais, de quem dependia
Jesus Cristo, para a glória e louvor de Deus” para viver. Quando procurou ajuda, sentia-se
(Fp 1.9-11). O alvo principal de Deus não sozinha, esquecida por Deus e pelos amigos.
é que eu experimente felicidade pessoal no Confusa e incapaz de compreender porque
presente. Seu alvo não é nada menos que tudo aquilo estava acontecendo, ela se tor-
eu me torne participante da Sua natureza nou cada vez mais absorta em si mesma e
divina (2Pe 1.4). Além disso, os próprios depressiva. Não via nenhuma esperança de
relacionamentos com os quais luto e as si- mudança duradoura. De onde estava, via
tuações difíceis de que gostaria de me livrar apenas que tudo de bom que tentava fazer
são os instrumentos que Ele usa para pro- acabava se voltando contra ela.
duzir a mudança fundamental do coração, Sílvia falou sobre como Deus possi-
que resultará em uma vida frutífera para a velmente a odiava. Ela disse que não era tão
Sua glória. má pessoa, e não podia entender porque as
O sofrimento não deveria ser uma pessoas “usavam e abusavam” dela. Havia
surpresa nem deveria ser recebido como in- parado de ler sua Bíblia e de orar, e sua fre-
dicação de distância de Deus e falta do Seu quência à igreja era esporádica. Acreditava
cuidado. O sofrimento é instrumento propo- ter sido injustamente escolhida para sofrer.
sital do amor santificador de Deus. Para que Tudo o que ela queria é que aquelas situações
entendam biblicamente os seus problemas, tivessem um fim.
nossos aconselhados precisam cultivar a O evangelho não fazia sentido para
confiança no processo ativo e progressivo de a vida de Sílvia, que também não tinha
santificação estabelecido por Deus. noção funcional do Deus do evangelho que
Sem o entendimento do pecado que é soberano, santo, perdoador, restaurador,
habita em nós e da luta que o acompanha, reconciliador, sempre presente, sempre ativo,
e sem compreender a presença, o caráter e a reinando sobre todas as coisas para o seu
atividade de Deus, bem como seu processo bem, e que derramava sobre ela a riqueza da
santificador, a vida não faz sentido. O acon- Sua graça em Cristo Jesus (Ef 1.3-9).
selhado fica confuso porque lhe falta sabedo- Ela não via a si mesma como uma
ria, discernimento e entendimento prático pecadora a quem o evangelho foi dirigi-
para estabelecer propósitos que resultam de do, e também não via a idolatria do seu
uma visão de si mesmo e das circunstâncias coração que a fazia entrar em situações e
do ponto de vista do evangelho. relacionamentos repletos de expectativas
Silvia vivia em função de ser aceita pelas egoístas e exigências silenciosas. Ela não
pessoas, mas não foi isso o que a trouxe para via como todas essas expectativas idólatras
o aconselhamento. Ela veio porque estava determinavam o desapontamento constante
deprimida devido a vários relacionamentos que ela experimentava, e também não tinha
quebrados. Entretanto, Sílvia estava cega às noção do sistema de vingança declarada ou
suas exigências, ao seu medo e à maneira disfarçada com o qual reagia às pessoas que
como manipulava as pessoas. Também estava a faziam sofrer. Não percebia que assumia o
cega às reações de vingança e condenação que papel de deus como legisladora e juíza.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 43


Finalmente, Sílvia não tinha noção imagem do Seu Filho, suprindo tudo quanto
do processo de santificação progressiva. precisamos para fazer aquilo que Ele nos
Não reconhecia a mão de Deus nas suas chamou para fazer. Portanto, não devemos
circunstâncias. Deus estava operando com cair na falsa esperança de nos tornarmos por
propósito santificador em cada situação e nós mesmos indivíduos fortes, saudáveis,
relacionamento, mas Ele não estava com- entendidos e felizes. Tudo quanto fazemos
prometido em dar a Sílvia a aceitação pela e esperamos está enraizado no fato de que
qual ela tanto ansiava. Deus estava ativo em somos vasos de barro, frágeis, mas cheios
suas experiências dolorosas para expor seu do poder infinito da presença de Deus.
coração e comportamento pecaminoso, e Olhamos para o futuro com esperança,
por meio dessas experiências conformá-la preparando-nos para um tempo quando
à imagem de Cristo. Aquelas mesmas cir- não haverá mais doenças, tristeza, pecado
cunstâncias que serviam de exemplo para ou morte, pois estaremos com Ele e seremos
a “infidelidade” de Deus eram, na verdade, como Ele eternamente. Eis a razão por que,
administradas por Seu cuidado e amor fiel mesmo nos dias escuros de sofrimento neste
que operavam para o bem de Sílvia. Ela es- mundo caído, não perdemos a esperança
tava confusa porque excluiu da avaliação da (2Co 4.7-18).
sua vida os fatos essenciais, ou seja, os fatos Não se pode “descristianizar” os prin-
do evangelho. cípios das Escrituras sem violentá-los. Tudo
Sílvia representa todos aqueles que o que Deus nos chama para fazer baseia-se
aconselhamos. Se seus olhos estão cegos às naquilo que Ele está fazendo. Se o evangelho
realidades de quem são como pecadores, ao não estiver no centro do sistema interpreta-
caráter e atividade de Deus, à herança que tivo do aconselhado, os princípios bíblicos
têm como Seus filhos e ao processo de reden- não farão sentido para ele, e ele não reagirá
ção (santificação) que está em andamento, de maneira apropriada.
não há como nossos aconselhados interpre- A claridade que trazemos para a vida
tarem corretamente o que está acontecendo. do aconselhado é o próprio evangelho. O
Não há como eles se comportarem de uma evangelho é o que queremos que ele veja,
maneira bíblica apropriada. talvez pela primeira vez. Todo problema
Este é o distintivo central do aconse- pode ser enfrentado por meio da provisão
lhamento bíblico. Os conselheiros bíblicos multiforme de Cristo. Considere a oração
não vêem a Bíblia como uma enciclopédia de Paulo pelos efésios:
de princípios de vida que apenas precisam ser Iluminados os olhos do vosso cora-
seguidos para se ter uma existência feliz. Pelo ção, para saberdes qual é a esperança
contrário, as Escrituras nos dão uma visão do seu chamamento, qual a riqueza
radical da vida com raízes no evangelho; toda da glória da sua herança nos santos,
perspectiva e princípio das Escrituras têm e qual a suprema grandeza do seu
raízes no evangelho. poder para com os que cremos,
A perspectiva bíblica é que somos segundo a eficácia da força do seu
pessoas escolhidas por um Deus soberano e poder; o qual exerceu ele em Cristo,
amoroso que, em Cristo, perdoa-nos e nos ressuscitando-o dentre os mortos, e
adota em Sua família. Ele está trabalhando fazendo-o sentar à sua direita nos
em cada situação para nos conformar à lugares celestiais, acima de todo

44 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


principado, e potestade, e poder, viverão como Deus os chamou para viver
e domínio, e de todo nome que se estiverem cegos ao poder e à presença
se possa referir não só no presente de Cristo que opera em suas vidas. Em vez
século, mas também no vindouro. E disso, suas vidas serão “inativas e infrutuosas”
pôs todas as cousas debaixo dos seus (2Pe 1.8,9).
pés e, para ser o cabeça sobre todas Esta claridade do evangelho deve dar
as cousas, o deu à igreja, a qual é o forma à nossa coleta de dados à medida
seu corpo, a plenitude daquele que que também oramos para que “os olhos
a tudo enche em todas as cousas. do coração (do nosso aconselhado) sejam
(Ef 1.18-23) iluminados”. Faremos, então, perguntas
Paulo orou que esses cristãos vissem a que procedem do evangelho, levando nossos
si mesmos e toda sua vida pelo ângulo das aconselhados a orientarem o olhar para as
verdades radicais do evangelho. Sua oração coisas que não viam antes. À medida que
é que fossem capazes de ver o poder e a responderem a essas perguntas, a claridade
riqueza que lhes pertenciam como herança do evangelho começará a afastar as nuvens
em Cristo. Nossos aconselhados também não da confusão.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 45


Coleta de Dados:
estratégias para abrir olhos vedados

Pa u l D . Tr i p p 1

O Salmo 36.2-4 retrata poderosamente a ver com cegueira, ou seja, o fato de não
a realidade da cegueira espiritual e seu efeito ver o que precisa ser visto para que eu possa
na maneira de viver de uma pessoa: viver como Deus me chamou para viver. O
Porque a transgressão o lisonjeia a pecador é ao mesmo tempo intencionalmente
seus olhos e lhe diz que a sua ini- cego e cegamente intencionado. Sendo assim,
quidade não há de ser descoberta nós conselheiros estamos sempre lidando
nem detestada. As palavras de sua com a cegueira espiritual no nosso aconse-
boca são malícia e dolo; abjurou o lhamento, quer o percebamos ou não.
discernimento e a prática do bem. O Salmo 36 tem muito a nos ensinar a
No seu leito maquina a perversida- este respeito. Primeiro, dá-nos uma noção de
de, detém-se em caminho que não é como a cegueira espiritual funciona: “Porque
bom, não se desapega do mal. a transgressão o lisonjeia a seus próprios
Esta realidade do coração humano olhos e lhe diz que a sua iniquidade não há
leva o conselheiro bíblico a ver o processo de ser descoberta”. O indivíduo espiritu-
de coleta de dados não apenas como meio almente cego “pensa de si mesmo além do
de conhecer o aconselhado, mas também que deveria pensar”, e sua justiça própria faz
de ajudar o aconselhado para que comece com que fique cego ao pecado em sua vida.
a ver a si mesmo com uma clareza bíblica Ele não odeia o seu pecado porque não se
nova. O pecado não é apenas intencional, ou considera capaz de praticar tais coisas. Em
seja, um passo consciente além dos limites vez disso, defende-se, desculpa-se, racionali-
traçados por Deus. O pecado também tem za, reformula e justifica seu pecado. Alguém
espiritualmente cego não tem sensibilidade
bíblica ou aversão ao pecado.
1
Tradução e adaptação de Strategies for Opening O Salmo 36 também mostra que se eu
Blind Eyes: Data Gathering Part3.
Publicado em The Journal of Biblical Counseling não for sensível a meu pecado, odiando-o
v. 15, n.l, Fall 1996, p. 42-51. e abandonando-o, persistirei nele cada vez

46 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


mais. A cegueira espiritual nos deixa sem ne- espiritual daqueles que aconselho. Falando
nhum sistema interno de restrição do peca- sobre seus alvos ministeriais, Paulo diz:
do. Em minha cegueira, continuarei a mentir Porque, embora andando na carne,
e enganar. Viverei na insensatez e não farei não militamos segundo a carne. Porque
bem algum. Mesmo nos meus momentos as armas da nossa milícia não são carnais,
de meditação na Palavra, meus pensamentos e, sim, poderosas em Deus, para destruir
serão dirigidos para coisas que escapam à fortalezas; anulando sofismas e toda altivez
vontade de Deus para mim. O resumo do que se levante contra o conhecimento de
salmista é: a pessoa espiritualmente cega Deus, levando cativo todo pensamento à
não rejeitará o que é errado. Isto é verdade obediência de Cristo.
para todos os pecadores. Todos nós lutamos Meu propósito não é fazer uma exe-
com áreas de cegueira espiritual, na qual não gese profunda deste texto, que tem sido
vemos, não odiamos nem rejeitamos nosso muitas vezes aplicado à batalha espiritual e
próprio pecado. apologética, mas observar implicações im-
É esta realidade espiritual significativa portantes para aquilo que pensamos sobre
que temos considerado nos dois artigos cegueira espiritual e estratégias práticas para
anteriores. O primeiro artigo propôs que mudança.
a cegueira espiritual é enganosa porque se
esconde atrás de máscaras. Pessoas cegas Localize as fortalezas
espiritualmente são cegas à sua cegueira! Isto Em primeiro lugar, a metáfora de
exige que o conselheiro bíblico conheça as uma fortaleza é muito útil. Uma fortaleza
máscaras características da cegueira espiritual é um lugar fortificado contra ataques. Ela
para poder ser usado por Deus no expor a foi construída com solidez e é defendida
cegueira e abrir os olhos do aconselhado. ativamente, sendo particularmente difícil
O segundo artigo considerou nossa destruí-la. Quero dar um exemplo de como
constante necessidade do ministério mútuo isto se manifesta na vida do aconselhado.
para que possamos viver com os olhos aber- Susana não via a si mesma como pe-
tos biblicamente. Se nos submetermos à luz cadora, mas como uma pessoa necessitada,
perscrutadora das Escrituras e ao ministério cujas necessidades eram constantemente
fiel e diário de irmãos e irmãs em Cristo, insatisfeitas. A idéia de ser uma pessoa neces-
vamos trazer para a interação com nossos sitada constituía a sua fortaleza, provendo-
aconselhados os frutos desse ministério. Isto lhe a segurança de não ter que enfrentar as
nos capacitará a ajudá-los a ultrapassar sua responsabilidades características de uma
cegueira espiritual. vida nos moldes bíblicos, dando-lhe uma
Este artigo descreve algumas das estra- desculpa para seu estilo de vida e permitindo
tégias que o conselheiro bíblico pode usar que Susana constantemente transferisse a
para atingir esse alvo. culpa para outras pessoas. Era nesta fortale-
za bem construída que Susana se escondia
Três estratégias na habitualmente.
coleta de dados Algo mais precisa ser dito aqui. Susana
2Coríntios 10.3-5 fornece a estrutura não somente se escondia atrás da idéia de
para o uso que faço do processo de coleta ser uma pessoa necessitada, mas a defendia
de dados como meio de expor a cegueira ativamente, ficando irada e defensiva sempre

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 47


que era levada a crer que eu estivesse “atacan- que preciso saber, e como Deus quer que eu
do” sua perspectiva de vida. Ela se defendia saiba. Meu mundo passa a ser moldado por
acusando-me de falta de amor e cuidado, mentiras, e não pelo conhecimento de Deus
e de reagir como todos os outros homens que dá vida, liberdade e sabedoria. Paulo zela
insensíveis que ela conhecia. Sua noção de por colocar um fim ao domínio e reino da
necessitada era uma fortaleza fortificada falsidade na vida daqueles a quem escreve.
e defendida ativamente, que precisava ser Ele também é zeloso em expor e demolir a
derrubada. Ao defendê-la, Susana estava incredulidade e a fé falsa.
sendo intencionalmente cega. Todo pecador No aconselhamento, lidamos constan-
tem fortalezas de cegueira espiritual, lugares temente com sofismas - coisas que parecem
onde a cegueira é fortificada, lugares que ser verdades, mas, de fato, são fundamental-
providenciam um esconderijo e são ativa- mente falsas. As necessidades de Susana eram
mente defendidos. Nestes lugares, a cegueira um sofisma. Tinham a aparência de verdade
estrutura toda a maneira de pensar e agir validada por uma experiência de vida em
daquela pessoa. que outros pecavam contra ela, e pareciam
A primeira coisa que quero fazer na razoáveis também pelo reforço da cultura
minha coleta de dados é localizar tais for- “psicologizada” que a cercava. Mas crendo
talezas. Onde esta pessoa está deixando de de maneira não-bíblica que o seu problema
ver o que Deus quer que ela veja? Qual o mais básico era a sua noção de necessitada
efeito que isto tem sobre como ela lida com e não o seu pecado original, Susana estava
Deus, consigo mesma, com outros e com as cegamente intencionada.
circunstâncias? As fortalezas de cegueira, assim como a
justiça própria e a atitude defensiva que ro-
Destrua os sofismas deiam estas fortalezas, têm seu fundamento
Em segundo lugar, Paulo diz que ele nas mentiras plausíveis e enganosas que se
procura “destruir fortalezas; anulando so- levantam contra a verdade. Esta é a razão
fismas e toda altivez que se levante contra por que a segunda estratégia que deve ser
o conhecimento de Deus”. O que é um usada na coleta de dados é expor e demolir
sofisma? É uma alegação plausível, algo que esses sofismas. Trabalhamos para descobrir
parece ser verdadeiro, mas que na realidade e destruir as mentiras.
é falso. A cegueira espiritual envolve acre-
ditar no que é falso como se, de fato, fosse Traga todo pensamento cativo
verdadeiro. A cegueira espiritual significa Em terceiro lugar, Paulo diz que seu alvo
crer em mentiras. é “trazer todo pensamento cativo a Cristo”. Esta
Paulo diz que estes sofismas se levantam frase retrata o aspecto instrutivo e corretivo da
contra a verdade de Deus. Quando acredito coleta de dados. Nosso alvo não é apenas ajudar
em uma mentira, não estou mais aberto à as pessoas a reconhecerem que estão cegas, mas
verdade. A mentira no Jardim do Éden não também ajudá-las a ter visão bíblica. A coleta de
foi apenas uma opinião alternativa; ela se le- dados pode ser maravilhosa e relevantemente
vantou contra a verdade que Deus havia fala- corretiva à medida que a pessoa ouve nossas
do para Adão e Eva. Mentiras posicionam-se perguntas, aprende a fazer perguntas certas a
sempre contra a verdade. Quando aceito uma si mesma, e aprende a pensar biblicamente a
mentira, fico incapacitado para saber aquilo respeito da vida. Somos chamados a libertar

48 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


pessoas das fortalezas e sofismas da cegueira 4. Ele vê os problemas de sua vida como
espiritual para que possamos capturá-las para resultado direto de ser alguém neces-
Cristo, e ter cada um de seus pensamentos sitado.
submisso a Ele e à verdade dEle. 5. Ele pensa que é sábio e que recebeu
A mente de Susana, antes controlada muito conselho sábio.
pelas mentiras que ela defendia ativamente, 6. Ele analisou sua vida e crê que tem
tornou-se cada vez mais controlada pela verdade discernimento sobre o que está acon-
de Cristo. Ela se tornou mais e mais sensível a tecendo e o porquê.
sofismas sutis, à atitude defensiva e à justiça 7. Ele pensa que tem uma noção clara do
própria. A coleta de dados foi usada por Deus que é valioso e importante.
para capturar e transformar a mente e o coração 8. Ele vê a si mesmo como alguém com
de Susana. Todos os pecadores precisam deste conhecimento maduro das Escrituras
ministério. e da teologia.
Em resumo, são três as coisas que faço na 9. Ele vê a si mesmo como santo; isto é,
coleta de dados para conhecer o aconselhado alguém que quer e faz aquilo que é
e abrir seus olhos para que ele conheça a si certo.
mesmo. 10. Ele já vê a si mesmo como arrepen-
1. Localizo as fortalezas funcionais de dido.
cegueira espiritual e identifico como Em cada caso, o aconselhado crê que
elas costumam ser defendidas. sua avaliação é verdadeira quando, na rea-
2. Exponho as mentiras (sofismas) e iden- lidade, não é. Entretanto, poucos aconselha-
tifico como elas parecem plausíveis ao dos terão todas essas fortalezas de cegueira
aconselhado. espiritual presentes em sua vida ao mesmo
3. Ajudo o aconselhado a estabelecer uma tempo.
perspectiva de vida cativa a Cristo, e Como, então, localizar estas áreas em
reconheço a necessidade que tenho que a cegueira espiritual é particularmente
de ser modelo para o aconselhado e forte e influente no comportamento da pes-
ensiná-lo a pensar biblicamente. soa, e também muito bem defendida? Presto
As estratégias específicas que uso para atenção a várias coisas.
alcançar estes alvos serão tratadas no decorrer
deste artigo. Presto atenção àqueles assuntos
que fazem o aconselhado ficar
Como localizar as fortalezas irado ou defensivo durante a
No primeiro artigo desta série, listei coleta de dados.
as dez máscaras características da cegueira Em que momento o aconselhado sente-
espiritual que afeta o aconselhado: se acusado por uma pergunta que, na verda-
1. O aconselhado acredita que tem uma de, é aberta e requer que ele seja transparente,
noção exata de si mesmo. mas não traz uma acusação implícita? Pode
2. Ele vê o fato de ser vítima do pecado de ser que o aconselhado se sinta “apontado” ou
outros como o seu principal problema. acusado porque a pergunta tocou em uma
3. Ele vê as dificuldades em sua vida como fortaleza da qual ele não quer se desfazer,
provações, e não como consequências mesmo que ele não esteja ciente de sua
de suas escolhas e comportamento. atitude defensiva. Considero esses momen-

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 49


tos cruciais. São ocasiões em que Deus está e desconfortáveis no aconselhamento são os
trabalhando para revelar o coração enganoso. melhores para mudança. Eles tendem a ser os
Não me apresso com a coleta de dados; paro, momentos em que Deus está colocando sobre
e procuro ajudar o aconselhado a perceber a mesa as questões do coração, para que possam
sua ira ou atitude defensiva. Procuro ajudá-lo ser vistas. Não são momentos que devem ser
a descobrir o que está querendo proteger e evitados, mas oportunidades transformadoras
como isso se encaixa na sua vida. que devem ser usadas criativamente.
Susana ficava aflita quando eu lhe fazia
perguntas sobre seu passado. Logo no início, Segundo, fico atento aos mo-
ela disse: “Por que eu haveria de esperar que mentos em que a pessoa está fe-
você fosse diferente dos demais conselheiros chada ou protegendo a si mesma
que tive? Ninguém leva a sério o que acon- durante a coleta de dados.
teceu comigo”. A esta altura, eu nada tinha Note as perguntas para as quais você es-
comentado sobre seu passado e, com certeza, peraria uma resposta pronta do aconselhado,
também não tinha feito nenhuma acusação. mas que ele luta para responder, ficando em
Eu entendi, entretanto, que a afirmação dela silêncio, falando que não sabe o que dizer, ou
revelava alguma coisa muito importante. dando uma resposta que não esclarece nada
Parei, e alertei Susana para o fato de a respeito de si mesmo ou da situação.
que eu não havia feito nenhuma acusação. Preste atenção, também, em como a
À medida que fiz mais perguntas sobre sua pessoa conta sua história. Uma das maneiras
reação defensiva, questões importantes mais sutis de auto-proteção é como as pes-
para o aconselhamento começaram a sur- soas contam o que lhes aconteceu. Tenho
gir - coisas que eu precisava saber e Susana observado que as pessoas geralmente estão
precisava ver. Ela compreendia a si mesma ausentes da própria história de suas vidas! O
como uma pessoa que era forçada a viver que quero dizer é que sua narrativa contém
com necessidades muito significativas não muito do comportamento de outros e das
satisfeitas. Esta perspectiva fazia uma coisa dificuldades da situação, mas não descortina
muito importante por ela: isentava-a da muito sobre seus próprios pensamentos,
responsabilidade pelas coisas erradas que desejos, escolhas e ações.
fazia e pelas consequências que provocava Para esclarecer este fato aos aconse-
na vida de outras pessoas. E por ser algo tão lhados, costumo fazer a seguinte analogia:
importante em sua vida, Susana defendia- “Estamos assistindo ao filme da sua história,
se ativamente quando desafiada por quem e notei uma coisa interessante: você não
quer que fosse, e acusava a pessoa de falta de está nela! A câmera fixa-se nos outros e na
amor e compreensão. Mas agora, na coleta situação difícil, mas nunca em você. Eu
de dados, Deus começou a mostrar-lhe a gostaria de voltar e falar sobre os mesmos
realidade desta fortaleza. relacionamentos e situações, só que desta
Como conselheiros, precisamos ser bons vez eu quero fixar a câmera em você. Que-
ouvintes e bons observadores enquanto fazemos ro focalizar o que você estava pensando,
perguntas. Precisamos perceber os momentos querendo e fazendo enquanto essas coisas
de raiva ou atitude defensiva e mostrá-los estavam acontecendo”.
ao aconselhado para que possamos ajudar a Tenho aprendido que é importante
desembrulhá-los. Às vezes, os momentos tensos eu não preencher os silêncios quando as

50 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


pessoas estão lutando para responder. Deixo Terceiro, procuro identificar
que saibam que estou disposto a esperar, ocasiões em que o aconselhado
e que é importante que elas respondam. culpa outros pelo próprio com-
Paro, e as ajudo a entender o porquê da sua portamento.
dificuldade. Deus usa estes momentos para Uma das fortalezas mais poderosas da
expor dados. cegueira espiritual é a da culpa. Todos nós
Também tenho aprendido a não ficar encontramos maneiras criativas de culpar
satisfeito com respostas vagas. Em amor, digo outros pelo que fizemos - da criança que ao
às pessoas que suas respostas não me disse- ser corrigida diz “Ele fez primeiro!” ao ho-
ram nada. Então reformulo as perguntas e as mem que diz ter cometido adultério porque
faço novamente, pois meu alvo é expor o co- sua esposa não lhe dava a atenção devida.
ração que se esconde atrás da autoproteção. Nós pecadores tendemos a nos esconder na
Geralmente faço duas coisas quando uma fortaleza do pecado alheio. Também justifi-
pessoa não é transparente ao falar sobre sua camos com todo vigor nosso próprio pecado,
vida. Primeiro, costumo usar um estudo de alegando os maus-tratos recebidos.
caso. Traço, em linhas gerais, uma situação Nessas ocasiões, eu paro para pergun-
problemática ou um relacionamento difícil tar: “Você está realmente dizendo que ...?”
e pergunto o que o aconselhado pensaria se Quero que a pessoa encare as implicações de
fosse a pessoa em questão. Pergunto quais suas palavras. Pergunto ao homem adúltero:
seriam os seus alvos e o que faria para os “Você está dizendo que há uma conexão di-
alcançar. Então tento estabelecer conexões reta entre a negligência da sua esposa e a sua
entre as respostas ao estudo de caso e a infidelidade?” Ou peço-lhe: “Explique-me a
vida diária do aconselhado. Este exercício ligação que você vê entre o seu adultério e
costuma ser extremamente útil para expor a atitude da sua esposa para com você”. Ou
o coração. ainda: “Quais são as outras respostas que
Em seguida, dou uma tarefa destinada você poderia ter dado à conduta ofensiva de
a revelar para mim e para o aconselhado as sua esposa?”. Quero que meu aconselhado
motivações do coração. (No final do artigo, pare de se esconder atrás do pecado de outros
dou uma amostra para você adaptar aos seus para que possa começar a ter ações e atitudes
aconselhados.) Peço ao aconselhado que leia construtivas.
os textos bíblicos, responda às perguntas, e
traga as respostas por escrito no encontro Quarto, presto atenção a quan-
seguinte. Quando nos vemos novamente, do o aconselhado ergue clara-
pergunto à pessoa o que ela aprendeu sobre mente uma defesa lógica do seu
si mesma. Há temas que apareceram vez ponto de vista e ações.
após vez? Conversamos, então, sobre estes As pessoas que procuram aconselha-
temas que surgiram das respostas dadas na mento nem sempre estão prontas a submeter
tarefa. Isto é muito útil para abrir os olhos suas atitudes e ações a uma avaliação bíblica.
do conselheiro e do aconselhado. Em tudo Com frequência, elas vêm pedir ajuda sem
isso, o conselheiro está procurando maneiras realmente querer ajuda, e buscam conselhos
de tirar a pessoa da “trincheira” da auto- aos quais viram as costas, rejeitando. Muitas
proteção. são como o fariseu que estava no templo

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 51


orando a Deus e dizendo-Lhe que, na reali- que a escraviza. Expor as mentiras plausíveis
dade, não precisava dEle. não deve ser um exercício sonoro, duro ou
Ouço com atenção quando uma pessoa insensível. Devemos sempre falar a verdade
revela seus pensamentos ou ações não com a em amor. Ao mesmo tempo, devemos odiar
intenção de compreendê-los, mas apresentando fortemente a falsidade e a safra de destruição
argumentos para defendê-los e discutindo ativa- que ela traz à vida das pessoas que acreditam
mente quando questionada. Com frequência, nela.
as pessoas vêm ao aconselhamento armadas de A mentira plausível tende a distorcer a
defesas bem ensaiadas. Elas podem argumentar perspectiva que um indivíduo tem da vida
com base em experiências passadas, citar uma (sua teologia funcional) em três pontos
passagem ou uma história bíblica, citar um livro chaves: a visão de si mesmo, de Deus e da
ou artigo, fazer referência ao que ouviram de situação. Se o aconselhado acreditou em uma
um especialista ou argumentar simplesmente mentira em qualquer destas três áreas, isso
que já pensaram muito a respeito do assunto e afetará radicalmente sua reação à situação
estão convencidas de que estão certas. na qual Deus o colocou soberanamente.
Tento alcançar três coisas com a minha Procuro identificar evidências de falta de fé
resposta. Primeiro, procuro ajudar a pessoa a funcional, incredulidade ou falsidade em
perceber que argumentar não é uma atitude cada uma dessas três áreas. À medida que uso
própria de quem busca ajuda, mas uma maneira a coleta de dados para localizar as áreas em
de defender o que já fez. Segundo, incentivo a que a pessoa está cegamente rebelde, procedo
pessoa para que se disponha a expor todas as da seguinte forma:
áreas de sua vida a um exame bíblico. Deus
usará isso como meio de bênção, e não de con- Procuro descobrir evidências de
denação. Terceiro, faço perguntas para ajudá-la uma visão de ­
a examinar seus pensamentos e ações de acordo si mesmo distorcida.
com a perspectiva das Escrituras. Pecadores tendem a não ter uma visão
acurada acerca de quem são. Sua tendência
Como expor e destruir sofismas é pensar de si mesmos além do que são na
Paulo usou uma linguagem forte em realidade. O orgulho é muito mais endêmico
2Coríntios 10.3-5 porque ele entendia o que a aversão a si mesmo. Portanto, procuro
poder da mentira plausível. Para muitos pe- identificar aquelas áreas nas quais a visão que
cadores, é uma parte significativa do sistema o aconselhado tem de si mesmo simples-
de incredulidade. Todos nós já acreditamos mente não coincide com as atitudes que ele
em mentiras, e a maioria delas parece ter expressa nem com as suas ações.
um halo de verdade. A falsidade é sedutora
simplesmente porque se veste de verdade. Procuro expor essas distorções de
Afinal, o inimigo de nossas almas é chamado duas maneiras primárias.
de “pai da mentira”, e seu trabalho básico é Primeiro, descobri que um diário
seduzir-nos com mentiras disfarçadas. com foco dirigido pode ser usado por Deus
Um esclarecimento importante precisa para abrir os olhos da pessoa que tem uma
ser feito aqui. Paulo não nos diz para destruir visão distorcida de si mesma. Não peço ao
a pessoa a quem fomos chamados por Deus aconselhado que anote tudo quanto está
para ministrar, mas o sistema de mentiras acontecendo. Para muitos, isto intimidaria

52 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


de tal forma que a tarefa nunca seria feita. relacionamentos marcados pela irritação com
Estabeleço um foco para o diário, ou seja, a maioria dos seus colegas de trabalho.
peço aos aconselhados que registrem somen- A visão que Raquel tinha de si mesma
te determinadas situações importantes e que não incluía ira, de modo que havia vários
respondam a cinco perguntas específicas: aspectos de sua vida que ela não havia enca-
1. O que estava acontecendo naquela rado. O diário foi penetrante para Raquel.
situação? Depois de três semanas, eu o li. Na ocasião,
2. O que você estava pensando e sentin- eu não tinha em mãos um marcador de
do? texto. Tinha uma caneta vermelha, com que
3. O que você fez em resposta? sublinhei cada ocorrência de ira e amargura
4. O que você queria ou o que procurava no diário de Raquel. As páginas ficaram
conseguir com o que fez? literalmente vermelhas de ira. No encontro
5. Qual foi o resultado? seguinte com Raquel, pedi que ela lesse o
Peço ao aconselhado que mantenha o seu diário, explicando o que eu havia feito.
diário por duas ou três semanas e, então, eu Depois de completar cerca de metade da
o leio atentamente procurando identificar leitura, Raquel começou a chorar. Ela olhou
temas e padrões de comportamento. Em para cima e disse: “Eu sou uma mulher irada
seguida, pego um marcador de texto e iden- - muito mais irada do que jamais pensei!”.
tifico onde estes temas aparecem. Durante A mentira plausível da visão imprecisa que
um encontro com o aconselhado, devolvo tinha de si mesma havia sido exposta.
o diário e peço-lhe que leia, naquele mo- Aquilo que chamo de “momento
mento, prestando atenção aos pontos que real” na coleta de dados também pode
foram destacados. Finalmente, pergunto ao expor a visão imprecisa que o aconselhado
aconselhado o que aprendeu a respeito de si tem de si mesmo. Na sessão de acon-
mesmo enquanto relia seu diário. Deus tem selhamento, chego a conhecer a pessoa
usado muito este exercício para abrir olhos como ela de fato é. A pessoa controladora
vedados. Parece ser particularmente efetivo tenderá a controlar no aconselhamento.
porque o aconselhado não está reagindo A pessoa irada tenderá a expressar sua ira
às minhas opiniões, mas às suas próprias a certa altura. A pessoa que tem justiça
palavras! própria tenderá a ser defensiva e não
Raquel era uma mulher muito irada ensinável. A pessoa medrosa lutará para
que estava completamente cega à sua ira. ter confiança. Descobri que é muito im-
Ela acreditava ser essencialmente bondosa, portante fazer o aconselhado examinar a
paciente, e compreensiva. Vivia com sua dinâmica de seu relacionamento comigo.
avó idosa, de quem cuidava; portanto, via Durante o encontro comigo, é mais difícil
a si mesma como uma serva amável. Mas que consigam se esconder, pois eu estou
Raquel estava muito amarga por essa tarefa participando daquele momento com
ter sido colocada sobre seus ombros. Acusava eles. Peço-lhes que sejam bem honestos a
seus irmãos, que nunca lhe ofereciam ajuda. respeito de suas lutas no relacionamento
Ela se considerava paciente e compreensiva comigo, e eu sou muito honesto sobre
porque havia trabalhado no mesmo empre- minha experiência no relacionamento
go, com os mesmos colegas, por 12 anos. com eles. Enquanto desembrulhamos a
Mas tinha rusgas regulares com seu chefe e dinâmica do nosso relacionamento e os

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 53


temas despontam, as mentiras plausíveis por alguma razão, abandona alguns de Seus
em que a pessoa acreditava sobre si mesma filhos. Ela não contribui para que aquele
são expostas. que a faz adquira um melhor entendimento
da situação ou uma fé bíblica mais robusta
Procuro descobrir as distorções e prática.
funcionais na perspectiva que o Minha estratégia foi a seguinte: à me-
aconselhado tem de Deus. dida que Joel fazia perguntas a respeito de
As pessoas desenvolvem uma teologia Deus, eu o ajudei a ver as pressuposições fal-
com base na experiência, que lhes parece sas em que estas perguntas estavam baseadas.
plausível porque vem de sua interpretação Aqui estão algumas delas: os sentimentos são
dos fatos da vida. Quanto mais esta in- um indicador confiável da presença de Deus;
terpretação - e não as Escrituras - molda a o sofrimento é um sinal de punição divina;
perspectiva que elas têm de Deus, maior é se eu não vejo evidência da mão de Deus
a distância entre a teologia que confessam operando em minha vida, isto significa que
(oficial) e a sua teologia funcional (do dia- Ele não está respondendo às minhas orações;
a-dia). Ainda assim, a sua teologia funcional Deus está distante de mim, e não próximo.
parecerá ter um halo de lógica e verdade Ajudei Joel a perceber a natureza não-bíblica
porque se encaixa em sua visão da vida. de suas perguntas fazendo as mesmas per-
Por exemplo, o Deus de Joel mantinha- guntas, mas reformulando-as com pressupo-
se distante, sem envolvimento em sua vida. sições bíblicas. Por exemplo: “Deus declara
Joel disse que nos seus momentos de maior que Ele está presente, Joel; por que Ele lhe
depressão, quando mais ele precisava de parece estar tão distante?” ou “Joel, Deus
Deus, ele nunca sentia que Deus estava está operando em sua vida; o que o impede
próximo. Ele disse que sabia que Deus de ver isto?” ou ainda “Joel, vamos dar uma
operava milagres, mas lutava com a falta de olhada nas coisas pelas quais você orou e ver
respostas de Deus às suas orações. Joel via como Deus respondeu”. Cada uma destas
Deus como um juiz duro, pronto a aplicar perguntas lida com a preocupação de Joel,
doses de consequências a todos quantos mas cada uma delas foi reformulada com
“fazem bobagens na vida”. Mesmo assim, base em pressuposições bíblicas, expondo as
Joel dizia-se crente. mentiras plausíveis acerca de Deus nas quais
Como eu cheguei a conhecer o con- Joel acreditava e destacando, em seu lugar, a
teúdo da teologia funcional de Joel e como verdadeira fé bíblica.
eu o ajudei a ficar ciente da distância entre Escute aquilo que seus aconselhados
o que ele dizia acreditar e aquilo em que ele falam a respeito de Deus. Escute as pergun-
realmente acreditava? Prestei atenção a como tas que fazem a respeito da Pessoa de Deus
Joel fazia perguntas a respeito de Deus, e o e de Sua obra. Procure identificar mentiras
ajudei a entender o impacto destas perguntas teológicas plausíveis. Poucos rejeitarão re-
na sua maneira de viver. Por exemplo, Joel pentinamente o Deus das Escrituras para se
costumava dizer: “Eu não entendo. Por que tornarem ateus declarados. Todavia, muitos
Deus não opera em minha vida’?” (Este caem em um cinismo teológico frio e dis-
problema tem sido levantado por muitos dos tante à medida que o Deus da sua teologia
meus aconselhados.) Esta pergunta baseia-se funcional não mais é digno de adoração e
em uma pressuposição não-bíblica: Deus, respeito.

54 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Procuro evidências de que a pessoa Pergunta: Quando você foi tentado
tenha deixado de lado os meios de graça a se sentir preso em uma armadilha,
e crescimento cristão como, por exemplo, sem nenhum recurso possível para lidar
tempo devocional diário, participação nas com a situação?
ocasiões em que o corpo de Cristo está reu- Esta é uma tarefa orientada para revelar
nido, amizade e comunhão cristãs, ensino ao conselheiro e ao aconselhado as mentiras
da Palavra e adoração em conjunto com o sobre a Pessoa e a obra do Senhor, nas quais
corpo. Procuro compreender por que ela se o aconselhado acredita.
afastou, esperando expor e entender as men-
tiras que têm levado a um enfraquecimento Procuro descobrir distorções
da fé em Deus e à perda da motivação para naquilo que a pessoa pensa a
buscar uma comunhão mais profunda com respeito da situação.
Ele e Seu povo. À medida que você prossegue na coleta
1Coríntios 10.13 pode ser a base para de dados, tenha em mente que a pessoa não
uma tarefa prática útil para expor as menti- está fazendo uma recitação mecânica e ob-
ras que o aconselhado abraçou a respeito de jetiva de sua situação. Ela não está relatando
Deus e Sua obra. Por meio de quatro decla- meros “eventos, lugares e pessoas”. Visto
rações a respeito de Deus e Sua obra, Paulo que cada ser humano é um intérprete, cada
parece tratar de quatro mentiras plausíveis a aconselhado procurou compreender aquilo
respeito de Deus, nas quais somos tentados que aconteceu em sua vida. Cada um tem
a acreditar. Costumo montar a tarefa da uma visão própria a respeito da vida e das
seguinte maneira: circunstâncias em que está envolvido, inde-
1. Declaração: “Não lhe sobreveio tenta- pendentemente de estar ou não ciente disso.
ção que não fosse comum” Na verdade, é impossível a alguém contar
Pergunta: Em que circunstância você com isenção uma história ou dar um resu-
foi tentado a pensar que a sua situação mo do que está acontecendo no momento.
é única e que você foi separado para Sempre haverá uma visão personalizada dos
sofrer de modo especial? fatos. Portanto, preciso saber o que devo
2. Declaração: “Deus é fiel” ouvir. A seguir, dou alguns dos indicadores
Pergunta: Em que momento você foi mais comuns de uma perspectiva distorcida
tentado a crer que Deus está sendo (mais uma vez, as mentiras plausíveis).
infiel nas promessas feitas a você? Procuro identificar interpretações —
3. Declaração: “Ele não permitirá que os momentos em que o aconselhado diz: “Eu
você seja tentado além das suas for- acho que isso significa tal coisa”. Nenhum
ças” aconselhado interrompe o que está falando
Pergunta: Em que momento você para dizer: “Bom, Dr. Tripp, eu agora vou
pensou que estivesse passando por algo compartilhar com o senhor a noção que
maior do que aquilo com que pode li- formei a respeito deste acontecimento”. As
dar ou que as fortes pressões da situação interpretações vêm em meio à conversa, e
fossem a causa de você pecar? numa variedade infinita. Você precisa estar
4. Declaração: “Ele proverá livramento, alerta e de ouvidos atentos. Por exemplo,
de sorte que você possa suportar a se alguém diz: “Eu pensei a esse respeito
tentação”. e decidi que devo...”, esta pessoa está lhe

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 55


dando uma interpretação. Pare, investigue e seus “tesouros” e como estes tesouros mol-
procure entender. Alguém pode dizer: “Eu dam a sua maneira de responder. Faça per-
sei exatamente por que isso aconteceu comi- guntas que exijam que o aconselhado pense
go...” Mais uma vez, não estamos recebendo em motivações e responda de coração.
fatos puros, mas uma interpretação que pode Procuro identificar doutrina ou teo-
revelar distorções naquilo que a pessoa pensa logia. Não quero dizer com isso que veri-
a respeito da vida. fico se a pessoa leu recentemente a Teologia
Também procuro identificar avalia- Sistemática de Berkhof. Procuro identificar
ções em todos os julgamentos de bom e declarações formais e informais que revelam
ruim, certo ou errado, verdadeiro ou falso, aquilo que ela crê. Procuro identificar a
importante ou sem importância, bem- teologia funcional do aconselhado. Ouço
sucedido ou mal-sucedido, possível ou com muito cuidado cada vez que ele cita
impossível. Faço constantemente perguntas um texto bíblico. (Como ele usa o texto?
que procuram extrair as avaliações do acon- Que sentido dá ao texto?). Ouço com
selhado. Posso perguntar: “O que você acha muito cuidado cada vez que ele se refere a
que seria certo fazer em tal situação?” ou uma questão de doutrina. (Como ele está
“O que você considerou mais importante entendendo esta verdade bíblica, e como a
quando tal coisa aconteceu?” ou “O que você está aplicando à sua situação?) Ouço com
identificou como verdadeiro ou mentiroso muito cuidado cada vez que o aconselhado
naquilo que lhe disseram?” ou ainda “O faz alusão a uma história bíblica. (Como ele
que o levou a pensar que tal situação fosse está se identificando na narrativa bíblica?
impossível?”. Cada uma destas perguntas Que ligação está estabelecendo com a sua
investiga as avaliações que são base para as situação?) Ouço com muito cuidado quando
decisões e ações do aconselhado. Estas per- ele cita um pregador, um professor ou autor
guntas têm a intenção de revelar o coração cristão. (O que ele extraiu dali que o ajudou
que está por trás das reações às diferentes a compreender a própria vida?)
situações enfrentadas. Todos dão interpretações teológicas
Em seguida, procuro identificar pro- às suas situações de vida, embora a maioria
pósitos e objetivos. O que a pessoa quer das pessoas não esteja ciente do que faz! E a
conseguir em meio a esta situação ou por maioria dos aconselhados não fará observa-
meio dela? Qual o alvo que ela tem? Procure ções teológicas diretas. Estas virão em meio
identificar o propósito. Procure identificar às histórias contadas e, portanto, precisamos
os objetivos. Procure afirmações que lhe ouvir com cuidado e fazer perguntas que
digam o que o aconselhado está procurando extraiam este material.
alcançar - todos estão vivendo em função de Procuro identificar emoções. É impor-
alguma coisa. Faça perguntas que cheguem tante notar os sentimentos expressos quando
aos objetivos do aconselhado na situação. Ve- o aconselhado fala sobre a situação. Alegria,
rifique se são de fato os objetivos de Deus. ira, medo, esperança, desânimo, frustração,
Por exemplo, quando o aconselhado tristeza, gratidão, amargura, desespero e
nos conta o que ele fez ou como reagiu, pre- contentamento são janelas que permitem ver
cisamos perguntar o que ele estava tentando o coração. Todas precisam ser abertas, pois se
alcançar com aquele comportamento. Peça relacionam a como o indivíduo interage com
ao aconselhado que identifique quais são os aquilo que Deus coloca em sua vida. Tenho o

56 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


hábito de parar e comentar a respeito de uma guntas que procedem de uma perspectiva
emoção assim que o aconselhado a expressa. de vida distintamente bíblica, exigimos
Em seguida, com o aconselhado, eu a “tiro da que nossos aconselhados pensem sobre si
embalagem” para que eu possa entendê-la e mesmos como nunca pensaram antes. Ao
ele possa ver como aquela emoção relaciona- fazermos as perguntas que eles não haviam
se à sua maneira de ver a vida. feito e de uma maneira que eles não haviam
À medida que procuro identificar feito, Deus pode nos usar para quebrar os
emoções, pergunto a mim mesmo se elas muros da cegueira espiritual e promover
são apropriadas. Ou seja, estas emoções entendimento bíblico.
procedem de uma maneira de pensar bíblica Lembro-me de uma mulher que, após
a respeito da situação? Por exemplo, quan- responder a uma série de perguntas, disse:
do os israelitas murmuraram a respeito do “Estou aprendendo muito a respeito de mim
maná providenciado por Deus e olharam mesma, de Deus e das escolhas que tenho
para trás ansiando pela comida do Egito, feito!”. Eu não tinha usado minha Bíblia para
suas emoções não eram apropriadas. Elas instruí-la formalmente. Seu aprendizado re-
não procediam de fé e confiança em Deus sultou da coleta de dados. O processo havia
nem de uma perspectiva da vida moldada confrontado sua cegueira espiritual, e foi o
pela Sua Palavra. Uma das maneiras mais ponto de partida para levar seus pensamentos
fáceis de expor as mentiras plausíveis que cativos a Cristo.
um indivíduo abraçou é prestar atenção às A cegueira espiritual tenta enxergar sem
suas emoções e fazer perguntas que revelem Cristo, o que é tão impossível quanto tentar
os seus sentimentos. enxergar fisicamente sem os olhos. Paulo diz
Nós pecadores somos indivíduos ce- em Colossenses 2.8: “Cuidado que ninguém
gamente intencionados. Nossa tendência vos venha a enredar com sua filosofia e vãs
é crer em mentiras plausíveis. Há sofismas sutilezas, conforme a tradição dos homens,
encravados na vida de cada um de nós que conforme os rudimentos do mundo e não
precisam ser descobertos e destruídos. Este segundo Cristo”. Se os meus pensamen-
era um dos alvos centrais do ministério de tos acerca de mim mesmo, de outros, de
Paulo, e deve ser um dos nossos alvos tam- minha situação e de Deus não são levados
bém. À medida que procuramos conhecer cativos a Cristo, eles estão cativos à filosofia
o aconselhado por meio da coleta de dados, vã e enganosa do mundo. Quando os seus
também devemos nos envolver na missão de aconselhados perceberem esta verdade e
trazer à luz todas as mentiras sutis do inimigo virem padrões de pensamento específicos
que seduzem as pessoas para que se afastem que precisam ser renovados, eles serão mais
do caminho de Deus. receptivos ao seu ensino e confrontação. Eles
entenderão como as soluções bíblicas são
Como levar cada pensamento realmente apropriadas para os problemas
cativo a Cristo que eles enfrentam.
Este é o resumo final que Paulo faz de Perceba como Paulo descreve a filosofia
seu ministério: “levamos cativo todo pensa- do mundo: “vã e enganosa”. Ela é enganosa.
mento à obediência de Cristo”. Este deve ser Ela parece certa. Ela parece atraente, com
o alvo de tudo quanto nós também fazemos bons argumentos e lógica rigorosa. Ela
no ministério. Quando fazemos boas per- parece ter base firmada em anos de estudo

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 57


e pesquisa. Ainda assim, é vã. Ela não tem pensam que vêem, mas são cegos, pensam
substância. Ela não oferece respostas reais. que entendem, mas suas percepções são vãs
Ela não leva a uma percepção verdadeira. e enganosas.
Ela não dá aquilo que oferece. Ela é vazia. Por esta razão é que procuramos expor
Por quê? Porque ela não está submissa a e destruir as fortalezas da cegueira espiritual.
Cristo. Tudo quanto ela pode oferecer é bem fortificadas e ativamente defendidas
aquilo que indivíduos vêem - indivíduos Procuramos revelar e demolir os sofismas.
que são pecadores e lutam com a cegueira aquelas mentiras plausíveis que iludem todo
espiritual - e esta é a razão por que ela sempre pecador. E feito isto, ainda não acabamos
estará aquém. No fim, ela sempre se mostrará Nosso alvo principal é levar o intencional-
deficiente. mente cego e o cegamente intencionado
No aconselhamento, reconhecemos cativos a Cristo, para que possam ver com
que “todos os tesouros da sabedoria e do claridade bíblica e viver em obediência por
conhecimento estão ocultos em Cristo” e gratidão a Ele. Quando dependemos dEle.
procuramos levar todo pensamento cativo Deus pode usar nossas perguntas para expor
a Ele. Reconhecemos que toda a visão ver- e invadir a escuridão espiritual, capturando
dadeira começa com Jesus, mas também os pensamentos dos nossos aconselhados
sabemos que aqueles que aconselhamos para que possam obedecer a Cristo.

58 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


“Como águas profundas são os propósitos do coração do homem,
mas o homem de inteligência sabe descobri-los” (Pv 20.5).

Como ajudar os aconselhados a ficarem


cientes das inclinações que orientam sua vida
(Descobrindo os propósitos do coração)

Perguntas que revelam o coração (em busca de temas comuns e padrões de comportamento)

As Escrituras nos ajudam a ganhar entendimento sobre o coração e aquilo que controla o
seu funcionamento. Damos aqui alguns exemplos. Estas perguntas têm o propósito de ajudar
os aconselhados a examinar os temas comuns em seus pensamentos, motivações e desejos para
que comecem a reconhecer o(s) verdadeiro(s) tesouro(s) de seu coração e como esses tesouros
moldam a maneira de reagir a Deus, outras pessoas e situações da vida.

1. Quais as ocasiões em que o aconse- 8. Em que circunstâncias e quando o AC


lhado (AC) costuma ter medo ou tende a duvidar das verdades da Palavra
lutar com preocupação e ansiedade (Rm 1.25)?
(Mt 6.19-34)?
9. Qual é o propósito real do AC com relacão
2. Em que circunstâncias o AC luta com a outras pessoas? Como ele define um
desapontamento (Pv 13.12,19)? bom relacionamento? Quais as suas ex-
pectativas com relação aos outros? Quais
3. Quais as situações em que o AC luta exigências ele coloca silenciosamente so-
com ira (Tg 4.1,2; Pv 11.23)? bre as pessoas ao seu redor (Tg 4.1,2)?
4. Em que situações de relacionamen- 10. Em que áreas da vida o AC luta com
to o AC enfrenta problemas amargura (Ef 4.31; Pv 18.19)?
(Tg 4.1-10)?
11. Em que situações o AC luta com re-
5. Que situações da vida o AC consi- morso, sendo tentado a dizer “Se ao
dera particularmente difíceis menos...”?
(1Co 10.13, 14)? 12. Quais experiências do passado o AC
6. O que o AC tem o costume de pro- reluta em deixar para trás?
curar evitar? Quais os seus hábitos 13. Quando o AC tende a ter problemas em
neste sentido? sua vida de oração e adoração pessoal a
Deus (Tg 4.3,4)?
7. Em que circunstâncias o AC experi-
menta com regularidade problemas 14. Em que situações o AC tende a lutar
em sua vida espiritual ou em seu com inveja? O que ele costuma desejar
relacionamento com Deus (Sl 73)? ardentemente (Pv 14.30)?

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 59


Tarefas Práticas no
Aconselhamento Bíblico:
uma base teórica para sua formulação e uso

Pa u l D . Tr i p p 1

Uma das marcas metodológicas do porque seu uso é motivado pelas doutrinas
aconselhamento bíblico é o uso frequente centrais das Escrituras. Para o conselheiro
de tarefas práticas. Tarefas bem preparadas bíblico, teologia não é apenas uma questão
e apropriadas podem desempenhar um de conteúdo de fé e prática. A teologia bíblica
papel significativo no aconselhamento e no e exegeticamente fundamentada também
processo de mudança. Jay Adams escreveu: trata do processo de mudança de crenças e
“Os conselheiros bíblicos descobriram que comportamentos no que diz respeito tanto
as tarefas práticas são uma das forças mais aos métodos de aconselhamento (do ponto
vitais e eficazes que eles têm a seu dispor no de vista do conselheiro) como à santificação
aconselhamento”.2 Mas por que usar tarefas progressiva (do ponto de vista do aconse-
práticas? Certamente não encontramos tex- lhado). Os métodos de aconselhamento
tos bíblicos que ordenem diretamente o seu bíblico têm seu alicerce em uma teologia
uso. Jesus não disse ao jovem rico para listar bíblica. O que o conselheiro bíblico faz no
seus erros diários durante uma semana e aconselhamento - e pede ao aconselhado
voltar na semana seguinte! Será que o uso de para fazer - deve ter a mesma consistência
tarefas práticas não passa da mera descoberta bíblica daquilo que ele diz. As tarefas são
de uma técnica pragmática? uma extensão lógica e prática das crenças
Tarefas práticas têm sido uma ênfa- que distinguem o aconselhamento bíblico
se constante no aconselhamento bíblico dos demais sistemas de aconselhamento.
Neste artigo, trato de cinco doutrinas
que nos incitam ao uso de tarefas práticas.
Tradução e adaptação de Homework and Biblical
1 Uma vez estabelecida a base teórica para
Counseling. Publicado em The Journal of Biblical o uso e a formulação de tarefas, em outro
Counseling v. 11, n.2, Winter 1993, p. 21-25. artigo trabalharei tipos específicos de tarefas
2
ADAMS, Jay E. Ready to restore. Phillpsburg, N.J.: apropriadas para as diferentes fases do pro-
Presbyterian and Reformed, 1981, p. 72. cesso de aconselhamento e mudança.

60 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


1. A doutrina das Escrituras são bíblica de si mesmo e dos seus problemas,
João, um membro bastante antigo à luz de quem Cristo é: “Mesmo quando
da igreja, está enfrentando dificuldades meu coração está partido, Ele, meu Consola-
ultimamente: sua esposa morreu após uma dor, socorre a minha alma”.4 A compreensão
longa enfermidade; sua farmácia está tendo bíblica conduz à ação, ou seja, a fazer aquilo
problemas com a concorrência; uma antiga que é biblicamente apropriado em cada si-
lesão na perna, herança do campo de fute- tuação. E o que as tarefas práticas têm a ver
bol, voltou a se manifestar e o deixou meio com isso? O conselheiro bíblico esforça-se
manco; a igreja comprometeu-se com um desde o início para promover uma imersão
projeto de construção, votando contra a do aconselhado na Palavra de Deus, de modo
posição verbalmente expressa por ele. João que aquilo que o aconselhado planeja alcan-
foi ficando cada vez mais mal-humorado, à çar com o aconselhamento seja cada vez mais
medida que a vida não lhe era favorável. Ele condizente com o plano bíblico. João talvez
está amargurado, desiludido, triste, cheio de quisesse desabafar suas queixas e provar para
queixas, de mal com Deus, com os vizinhos si mesmo e para você que não há esperança
e com as circunstâncias. Como ajudar João? na vida. Mas Deus quer que João se arrepen-
Que papel podem ter as tarefas práticas? da de suas murmurações e viva para a glória
Por definição, os conselheiros bíblicos dEle, mesmo em tempos difíceis.
estão comprometidos com a autoridade e As tarefas práticas permitem que o
suficiência das Escrituras. Com base neste aconselhado sonde as riquezas das Escritu-
compromisso, eles procuram olhar de um ras em busca de entendimento, convicção,
ponto de vista bíblico para os inúmeros pro- promessas e orientação. Quando concebidas
blemas atuais do ser humano. Por exemplo, biblicamente, elas dão ao conselheiro a
a Palavra de Deus trata detalhadamente do oportunidade maravilhosa de surpreender
problema de João em várias passagens sobre o aconselhado com a sabedoria prática das
a “murmuração” motivada por aquilo que Escrituras que lida singularmente com os
desejamos ardentemente ou tememos em detalhes da vida pessoal - vamos olhar para
situações de tensão.3 Consequentemente, pessoas que passaram por dificuldades, e
os conselheiros bíblicos querem ajudar seus ver como foram tentadas a reagir (Nm 11-
aconselhados a pensar biblicamente sobre as 21); vamos ver o que Deus fez em meio a
questões da vida. A mente de João precisa dificuldades que levaram pessoas a perceber
ser renovada. Ele precisa trabalhar diferente- a fragilidade de sua vida (Dt 8); vamos aten-
mente as dificuldades que está enfrentando, tar para o que Deus quer que façamos para
de acordo com o capacitação de Deus. lidar com a murmuração e o distanciamento,
O conselheiro bíblico oferece muito retornando a Ele (Fp 2.1-16).
mais que um ouvido atento e palavras de As tarefas práticas bíblicas exigem
conforto ou compreensão. Ele ouve. Ele é compromisso por parte do aconselhado.
compreensivo diante de um homem como Desde o início do aconselhamento, elas
João - “tentado, provado e falho”. Mas ele o colocam sob a autoridade de Deus, por
também conduz o aconselhado à compreen- meio das Escrituras. Todos os caminhos de

Números 11-21; Filipenses 2.14-16 etc.


3
Versos de Jesus, What a Friend for Sinners! (Jesus, que
4

Amigo para os Pecadores). Tradução livre.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 61


Deus são retos e todas as Suas palavras são de mim com a intenção de assumir o papel
verdadeiras, de modo que as tarefas práticas de aconselhado. Olhavam um para o outro
convocam o aconselhado a aprender a testar como o problema. Cada um dizia que tudo
cada questão à luz das Escrituras. Isso requer ficaria acertado se o outro mudasse.
por parte dos aconselhados um investimento Esta é uma situação difícil para um
sólido no estudo bíblico, que resulta em conselheiro, pois é como se não houvesse
uma sabedoria bíblica funcional a respeito um aconselhado na sala. Nem um nem
dos problemas da vida. As tarefas práticas outro está pronto a assumir a responsabi-
chamam o aconselhado a deixar de lado lidade pelos problemas no relacionamento
uma interpretação pessoal da vida e assumir ou pelas mudanças que devem acontecer. O
a interpretação de Deus. Isso requer que o aconselhamento não vai a lugar nenhum, a
aconselhado tenha uma vida motivada e menos que cada um deles comece a aceitar
moldada pelos princípios bíblicos e não mais a responsabilidade pelos problemas exis-
pelas emoções e desejos pessoais. tentes e mudanças necessárias. Como as
Em resumo, as tarefas práticas aplicam tarefas práticas podem ajudar a dar uma
a doutrina da autoridade e suficiência da Pa- nova orientação para a maneira de pensar
lavra à vida do aconselhado. Elas convidam dos aconselhados?
a pensar e agir em compatibilidade com Obviamente, a questão da responsabi-
os ensinos das Escrituras. Nossa doutrina lidade pessoal é de suma importância para
das Escrituras requer tarefas práticas que o aconselhamento bíblico. A Bíblia diz que
levem os aconselhados à Bíblia. cada um de nós é responsável perante Deus
e prestará contas de toda palavra e ação.
2. A doutrina da Deus nos chama ao autoexame, confissão e
responsabilidade do homem arrependimento honestos. Ele também nos
Quando Antônio e Francisca entraram chama a participar integralmente de Sua
em meu escritório, este era o quadro: Antô- obra de mudança. As Escrituras convocam
nio mantinha-se rígido e distante, enquanto cada um de nós a estar mais preocupado
Francisca já estava em prantos antes mesmo com a trave que há no próprio olho do que
que eu lhes dirigisse a primeira pergunta. com o cisco no olho do irmão. Deus pede
Passei os olhos no Inventário de Dados Pes- que substituamos o ato de apontar o dedo
soais5, apresentei-me e fiz minha primeira por um exame do próprio coração.
pergunta. “Digam-me o que os trouxe aqui Se a doutrina das Escrituras requer
hoje; o que pensam ser o problema?” Ambos tarefas práticas que levem os aconselhados a
pronunciaram ao mesmo tempo uma palavra ouvir a Deus, a doutrina da responsabilidade
apenas que resumia sua avaliação do pro- humana envolve um outro gênero de tarefa:
blema conjugal. Antônio disse: “Francisca”; olhar para si mesmo. Tarefas práticas têm a
Francisca disse: “Antônio”. Como conse- função de orientar o foco do aconselhamen-
lheiro, eu me deparava com um problema! to. O autoexame apropriado dá uma nova
Nem Antônio nem Francisca estavam diante direção, tirando o foco de atenção de sobre
as ações dos outros e orientando-o para a
5
NdT. Ficha de dados pessoais preenchida pelos
reação do próprio aconselhado diante das
aconselhados antes do primeiro encontro com o circunstâncias. As tarefas práticas conduzem
conselheiro. o foco de atenção para longe do aconselha-

62 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


mento “profissional” e da crença mágica a estas vozes, já tão divulgadas entre nós, a
de que a mudança acontece supostamente inclinação natural do coração pecaminoso
durante aquela hora de encontro semanal. para construir argumentos bem desenvol-
As tarefas práticas fazem com que Antônio vidos para desculpar a si mesmo e culpar a
e Francisca assumam responsabilidade pela outros, fechando os olhos aos próprios erros.
participação no processo de mudança a cada Você começará, então, a entender quão im-
momento, a cada dia. portantes as tarefas práticas podem ser para
As tarefas práticas dão uma nova que o aconselhado envolva-se ativamente
orientação à esperança. Elas afastam a espe- no autoexame e em mudanças com base na
rança de que outras pessoas ou circunstâncias esperança e dependência em Deus. Nossa
mudarão e farão com que a vida se torne doutrina da responsabilidade do homem
mais fácil. Elas afastam a esperança de que requer tarefas práticas que induzam os
o conselheiro terá uma atuação poderosa aconselhados a pararem para avaliar a si
que resultará em mudança. Olhar para a res- mesmos apropriadamente.
ponsabilidade pessoal focaliza a atenção na
esperança em Deus e no poder do evangelho 3. A doutrina de Deus
para mudar o aconselhado. Jane estava com a voz trêmula ao reco-
As tarefas práticas requerem que o nhecer sua ansiedade a respeito de “tentar,
aconselhado, já nos primeiros estágios do mais uma vez, um aconselhamento. Estou
aconselhamento, comece a compreender uma pilha de nervos. Já consultei oito te-
a si mesmo diante de Deus, confie nEle e rapeutas. Fui hospitalizada e submetida a
caminhe responsavelmente diante dEle. Elas eletrochoque. Já tomei mais medicamentos
ajudam a manter o aconselhado responsável do que posso me lembrar. Já experimentei
por mudanças que precisam acontecer no fazer biofeedback. Tentei tomar decisões de
relacionamento com Deus e com o próximo. ano novo. Tirei férias. Tentei me ocupar em
O aconselhado não vem ao aconselhamento empregos na esperança de que isso fosse
para se sentar passivamente diante de um ajudar. Já participei de grupos de apoio.
guru. Pelo contrário, o conselheiro é um Também participei de encontros de cura
guia, um mestre que indica ao aconselhado interior para ver se conseguiria encontrar
a parte que lhe cabe no processo de mu- cura espiritual para minhas feridas interiores.
dança. Fui tão chata com meus amigos, que queimei
Os seres humanos são responsáveis, e todas as amizades. Tentei...” Como as tarefas
desta verdade resultam boas tarefas práticas. práticas poderiam ajudar Jane?
É algo importante a considerar, visto que Os conselheiros bíblicos distinguem-se
a força motriz da queda do homem e da de todos os demais conselheiros por acredi-
cultura atual caminha em direção oposta. tarem que Deus é quem opera mudança nos
Antônio e Francisca vivem em uma cultura aconselhados. O que distingue o aconselha-
que institucionalizou a transferência da cul- mento bíblico é a confiança em um Deus
pa. A “criança interior”, a “codependência”, Redentor que tem poder para transformar
a “família disfuncional”, o “filho-adulto de radicalmente o coração do homem. O con-
pais problemáticos” são sistemas que lançam selheiro bíblico vê a si mesmo não como o
sobre outros a culpa pelas atitudes e com- gerador de mudança, mas como um mero
portamentos do aconselhado. Acrescente instrumento nas mãos dAquele que é capaz

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 63


de gerar mudança além do que qualquer da dependência no conselheiro e levam-na a
conselheiro ou aconselhado poderia pedir uma dependência de Deus cada vez maior e
ou imaginar. mais profunda. Esta noção de Deus permite-
O problema é que as pessoas perdem de lhe enfrentar sem medo os próprios erros, sua
vista a Deus em meio às pressões circunstan- fraqueza e incapacidade, pois a sua esperança
ciais e ao egocentrismo de seu coração. Este está em Deus. Livre da ansiedade, Jane está
não é um fenômeno novo. Israel, acampado apta para disciplinar sua atenção para aquilo
diante do Mar Vermelho, ficou aterrorizado que Deus a chamou para fazer e confiar em
quando percebeu que o exército egípcio o Deus com respeito àquilo que ela é incapaz
estava perseguindo. Israel perdeu de vista a de fazer.
Deus, Seu controle amoroso e Seu propósito Os nossos aconselhados precisam ver
redentor. Os primeiros versos de Êxodo 14 a Deus de acordo com quem Ele realmente
deixam evidente que a situação não escapara é. Jane precisa entender o envolvimento de
ao controle de Deus, que Israel não estava Deus em sua vida e o Seu plano para ela
entregue a si mesmo e que Deus tinha um como Sua filha. A existência e a atuação de
propósito em toda aquela circunstância. Deus devem se tornar a base principal para o
Jane não era diferente do povo de Is­ aconselhado interpretar a experiência pesso-
rael. Como os israelitas, ela perdeu de vista al. Os estudos bíblicos que contribuem para
a Deus, Seu senhorio sobre as circunstâncias formar uma perspectiva correta de Deus são
e Seu poder para capacitá-la na execução de vitais, incluindo aspectos como:
tudo quanto Ele a havia chamado a fazer em 1. quem é Deus: Seu caráter e Seus atri-
meio à situação que ela estava enfrentando. butos;
Com frequência, os aconselhados deixam de 2. como Deus opera: o processo de san-
interpretar as circunstâncias pela perspectiva tificação, Seu controle soberano, Sua
bíblica básica: Deus existe e Ele mantém graça e perdão;
todas as coisas sob Seu controle amoroso e 3. o relacionamento do aconselhado com
redentor. Por deixarem de olhar para a situ- Deus: identidade em Cristo e adoção
ação do ponto de vista de Deus, Seu caráter como filhos; como encontrar-se com
e Sua obra, eles respondem ao que está acon- Deus; como servir a Deus pela capaci-
tecendo como se estivessem sozinhos. O fato tação do Espírito Santo;
de ignorarem a Deus molda seu pensamento 4. estudos de caso nas Escrituras: Deus
e seu comportamento. operando em favor de Seu povo e Deus
As tarefas práticas oferecem uma opor- como cumpridor de Suas promessas.
tunidade maravilhosa para trazer Deus de As tarefas práticas que focalizam estas
volta à lembrança. As tarefas que apontam verdades a respeito de Deus colocam as
para Deus e Sua obra em favor de Seu povo circunstâncias e problemas do aconselhado
dão a Jane uma interpretação radicalmente dentro de uma perspectiva bíblica apro-
diferente das circunstâncias. As tarefas que priada.
a levam a estar ciente da presença de Deus A verdade dirige os olhos do aconse-
ajudam-na a perceber com clareza quais lhado para longe dos dilemas do momento
aspectos da situação são de sua responsabi- e leva-o a olhar com confiança e esperança
lidade e quais ela deve entregar a Deus. As para Aquele que é o Autor e Consumador
tarefas centradas em Deus tendem a afastá-la da fé. É importante fazer algo mais que sim-

64 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


plesmente falar sobre estas verdades com os cia, compulsão, personalidade borderline,
aconselhados. Eles precisam se envolver no transtorno de controle dos impulsos, filhos-
processo de examinar as Escrituras para que adultos de pais problemáticos, e assim por
a presença poderosa de Deus fique marcada diante. Há problemas mais profundos que
para sempre em seus corações. Nossa dou- hábitos, ações, palavras e autopapo. O con-
trina de Deus requer tarefas práticas que selheiro bíblico preocupa-se com muito mais
conduzam os aconselhados a um encontro que a mera substituição de comportamentos,
com Deus. sentimentos ou pensamentos. O conselheiro
bíblico preocupa-se em alcançar a raiz do
4. A doutrina do pecado problema do aconselhado.
Quando Jorge e Maria procuraram-me A preocupação com o “coração”,
para um aconselhamento conjugal, ficou conforme definido pela Bíblia, é própria do
evidente que os problemas com que estavam conselheiro bíblico. Trata-se de uma ênfase
lidando não eram novos. Seu casamento radical diante de uma cultura que nem
sempre fora caracterizado por conflitos. Jorge mesmo acredita na existência do coração. Na
era um trabalhador inveterado, exigente e psicologia moderna, o termo “coração” é um
perfeccionista, que via o fracasso como uma anacronismo. Nas psicologias cristianizadas,
maldição e as horas vagas como um sinal o termo “coração” vem carregado de todo
de irresponsabilidade. Seu hábito era exigir tipo de bagagem secular: ouvimos falar em
muito de Maria e julgá-la severamente sem- “coração ferido” ou “coração necessitado”, e
pre que o trabalho dela não resultasse em um no coração como um “depósito de feridas re-
sucesso tremendo. Suas conversas com Maria primidas e memórias traumáticas”. Nenhu-
e os filhos eram negativas e cínicas. ma destas definições é verdadeira. A causa
Maria era uma mulher que nutria dos problemas do homem é inevitavelmente
muita ira e relembrava diariamente os erros mal diagnosticada quando as categorias se-
cometidos contra ela por Jorge. Ela era capaz culares controlam o diagnóstico.
de lembrar estes incidentes nos mínimos Os nossos aconselhados certamente
detalhes. Em sua maneira de agir, ela travava estão debaixo da influência do atual debate
uma guerra diária contra Jorge e o atacava cultural a respeito do “problema” do homem.
repetidamente. Mesmo assim, Maria não Se queremos que uma mudança profunda
se considerava uma pessoa irada. Ela não e duradoura aconteça, o aconselhado pre-
via erro em si mesma, e se considerava uma cisa entender o problema biblicamente. O
vítima desamparada que suportava uma vida aconselhado precisa chegar a uma definição
infernal. Como entender o problema de Ma- bíblica de pecado, e esta definição não
ria? Como as tarefas práticas contribuiriam pode deixar de incluir uma abordagem do
para uma melhor compreensão do problema coração.
por parte de Maria e do conselheiro? As Escrituras declaram que a raiz dos
Os problemas dos aconselhados vão problemas do homem está no coração. As
além do mero comportamento. São mais raízes do pecado estão lá. São as raízes do
profundos que os sentimentos. São mais coração (Hb 4.12; Gn 6.5) que produzem
profundos que os rótulos que nossa cultura os frutos que vemos em ações e palavras.
lhes atribui: baixa autoestima, codependên- Aquilo que controla o coração molda o

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 65


comportamento. Aquilo que controla o a estes desejos “acampados” no coração,
coração influencia cada aspecto da vida de as pessoas lutam umas contra as outras. É
uma pessoa. vital que o aconselhado reconheça e assuma
Cristo expressou essa verdade em lin- responsabilidade pelos pensamentos e inten-
guagem clara e simples: o bem vem daquilo ções do seu coração, pois estes determinam
que há de bom no coração, e o mal procede a maneira como ele responde à vida. Como
daquilo que há de mau no coração. Os podemos criar tarefas práticas específicas a
problemas evidentes nos frutos estão direta- partir da doutrina do pecado?
mente relacionados a problemas nas raízes. Pedi a Maria para registrar num diário
Ainda assim, poucos aconselhados vêm a nós as suas interações com Jorge. Eu lhe disse que
com intenção de examinar o coração. Na queria que ela fizesse as anotações durante
maioria das vezes, planejam lidar apenas com algumas semanas, e depois eu ficaria com o
o exterior. Eles querem que o “problema” diário por uma semana para estudá-lo. Eu sa-
circunstancial seja removido ou contornado bia que a ira seria um dos temas registrados,
para que possam voltar a ser felizes. Ou talvez e eu estava certo. Peguei o diário e marquei
planejem lidar com o interior apenas para em vermelho todos os lugares onde a ira
remover sentimentos desagradáveis. era evidente. O diário ficou, literalmente,
Ezequiel 14.5 diz que a intenção de vermelho de ira. Enquanto Maria estava
Deus é diferente: “apanhar o próprio co- fazendo suas anotações, eu lhe pedi para
ração” daqueles que se afastam dEle. Deus estudar Ezequiel 14.1-5, Lucas 6.43-44 e
recaptura o coração daqueles que Lhe per- Tiago 4. Ela começou a olhar para o próprio
tencem para que O sirvam, e O sirvam com coração, e perceber a ira que a dominava e
exclusividade. O conselheiro bíblico deve ter como esta ira moldava seu comportamento
em mente esta mesma intenção. para com Jorge.
Mais uma vez, as tarefas práticas assu- Os registros cuidadosos num diário,
mem papel de importância. As Escrituras associados ao estudo bíblico sobre o cora-
funcionam como um espelho. À medida ção, despertam e orientam o aconselhado
que o aconselhado olha atentamente para a para que assuma responsabilidade por uma
Palavra, ele vê a si mesmo como de fato é. mudança profunda na raiz do problema. Eles
Hebreus 4.12 diz que a Palavra é o melhor atuam corrigindo as falsas pressuposições
instrumento para revelar os mistérios do culturais a respeito da causa do problema
coração. Ela é capaz de penetrar e expor os e dissipam a cegueira causada pelo engano
pensamentos e intenções que há no coração do pecado.
e que moldam o comportamento do acon- O pecado é identificado à luz de suas
selhado. alternativas: retidão, ação pacificadora, amor,
O aconselhado precisa reconhecer obediência e solução de problemas. À medi-
que seu coração interage com tudo quanto da que Maria identificava o que estava errado
acontece ao seu redor, e se seu coração estiver (despojar-se), ela também começava a ver o
controlado por algo que não seja Deus, ele que Deus queria que ela fizesse (revestir-se),
não responderá às circunstâncias conforme acolhendo o evangelho de Cristo. As tare-
Deus ordena. Por exemplo, Tiago apresenta fas práticas lidaram especificamente com
os desejos que militam no coração como a habilidade de ser pacificadora: buscar o
causa dos conflitos interpessoais. Devido perdão, aprender a confrontar com amor e

66 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


humildade e praticar atos tangíveis de amor o chamado do corpo de Cristo ao ministério
mesmo quando o próximo estivesse agindo pessoal.
como inimigo. O que tudo isso tem a ver com as
As tarefas práticas são ocasião para tarefas práticas? Elas oferecem uma oportu-
planejar aquelas “boas obras, as quais Deus nidade para que o aconselhado compreenda
de antemão preparou para que andássemos o propósito divino de santificação e participe
nelas” em situações específicas. Nossa dou- deste processo. As tarefas fazem com que
trina do pecado requer tarefas práticas o aconselhado seja ativo nas disciplinas da
que ajudem os aconselhados a repensar a santificação, particularmente o estudo da
maneira de compreenderem seus proble- Palavra, a consistência no aplicar a Palavra
mas, e os dirijam a mudanças específicas em atos de fé e obediência, e a submissão
em sua vida. ao ministério de edificação, encorajamento
e admoestação do corpo de Cristo.
5. A doutrina da santificação As tarefas práticas ensinam ao aconse-
progressiva lhado que o crescimento na graça não vem
Josué disse: “Mas eu tenho tentado, eu por meio de raios, trovões e encontros mila-
tenho feito tudo quanto Deus manda fazer grosos, mas pela aplicação humilde, honesta,
para lidar com a cobiça, e nada funciona. Já obediente e prática da Palavra de Deus a
me arrependi. Orei e me submeti totalmente detalhes específicos da vida diária. No pro-
ao Senhor. Eu já repreendi Satanás. Às vezes cesso de santificação, Deus chama Seus filhos
penso que o problema está resolvido, de uma a nada mais que seguir, permanecer firmes,
vez por todas, e um mês depois acabo caindo abandonar, confiar, despojar-se e revestir-se,
de novo”. O conselheiro fez mais perguntas correr, obedecer, mortificar, estudar, fugir,
sobre aspectos diversos: as circunstâncias que resistir etc. As tarefas práticas aplicam este
envolviam as quedas de Josué na imoralida- chamado de Deus a situações específicas da
de, o quanto Josué já havia compartilhado vida do aconselhado. Elas transportam de
as suas lutas com algum cristão maduro, e um plano abstrato para um plano concreto
se ele estava à procura de uma solução de- a ordem para resistir, abandonar, seguir e
finitiva. As respostas eram previsíveis. Josué revestir-se. No contexto de uma situação
não conhecia praticamente nada sobre o pessoal, as tarefas práticas levam o aconse-
andamento da vida cristã e os meios de graça lhado a fazer aquilo que Deus o chamou a
que Deus usa. fazer como participante de Sua misericórdia
Quais são os meios que Deus usa para santificadora.
a santificação de Seus filhos? Os três que As tarefas práticas também combinam
mais se destacam no Novo Testamento são: bem com a natureza prolongada do processo
a Palavra de Deus, a providência de Deus e o de santificação. As metáforas de santificação
ministério de edificação do corpo de Cristo. nas Escrituras - participar de uma corrida,
O aconselhamento nada mais é que isto: o deixar de ser uma criança para ser um adul-
ministério da Palavra, de crente para crente, to, e desenvolver-se de semente para planta
no contexto daquilo que Deus está operando madura - retratam a santificação como um
em cada situação pessoal. O aconselhamento processo demorado. Na realidade, é um pro-
bíblico reconhece a autoridade da Palavra, a cesso que se estende ao longo de toda a nossa
soberania de Deus sobre as circunstâncias e vida. As tarefas práticas ajudam a afastar o

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 67


aconselhado da esperança de uma “solução Nossa doutrina da santificação progressiva
instantânea”. Elas ajudam o aconselhado a requer tarefas práticas que encorajem os
abraçar o processo divino de mudança passo- aconselhados no processo de mudança e
a-passo. As tarefas práticas mapeiam cada que os leve a interagir com outras pessoas
passo significativo dado pela graça de Deus, ao longo do percurso.
colocando marcos para os quais o aconselha-
Resumo
do pode voltar a olhar em espírito de louvor
ŠŠNossa doutrina das Escrituras requer
a Deus. Um diário ou caderno de tarefas
tarefas práticas que levem os aconse-
funciona como um registro encorajador do
lhados à Bíblia.
progresso alcançado à medida que Deus usa
o aconselhamento para dar continuidade à ŠŠNossa doutrina da responsabilidade do
Sua obra santificadora. homem requer tarefas práticas que in-
Por último, as tarefas práticas desa- duzam os aconselhados a pararem para
fiam a atitude de “direito à privacidade” avaliar a si mesmos apropriadamente.
que muitos crentes procuram defender na
ŠŠNossa doutrina de Deus requer tarefas
vida cristã. Com frequência, a santificação
práticas que conduzam os aconselhados
é vista como uma questão particular, en-
a um encontro com Deus.
tre a pessoa e Deus. Mas é impossível ler
Efésios 4 e 1Coríntios 12 e concluir que a ŠŠNossa doutrina do pecado requer
santificação é uma preocupação individu- tarefas práticas que ajudem os aconse-
al. A natureza das tarefas práticas requer lhados a repensar a maneira de compre-
prestação de contas e submissão a outro enderem seus problemas, e os dirijam a
crente, exigindo que o aconselhado seja mudanças específicas em sua vida.
honesto diante de Deus e também diante
ŠŠNossa doutrina da santificação progres-
de um dos Seus instrumentos de reden-
siva requer tarefas práticas que enco-
ção - o conselheiro. Um ótimo exemplo
rajem os aconselhados no processo de
é o livro devocional de Jay Adams, Four
mudança e que os leve a interagir com
Weeks with God and Your Neighbor (Qua-
outras pessoas ao longo do percurso.
tro Semanas com Deus e seu Próximo),
planejado para ser usado pelo aconselhado Tarefas práticas são uma parte essencial do
durante a semana e compartilhado com o aconselhamento bíblico. Usá-las é coerente com
conselheiro no encontro. Sua leitura cha- as doutrinas que constituem o fundamento do
ma o aconselhado a abandonar o orgulho e aconselhamento verdadeiramente bíblico, con-
o medo que fazem com que ele se esconda forme ilustrei com os cinco exemplos acima. As
daqueles que Deus levantou para o aju- tarefas práticas são oportunidade para que estas
dar, ser honesto e agradecer a Deus pelos doutrinas passem a ser princípios operantes na
recursos de ajuda que Ele providenciou. vida diária de cada aconselhado.

68 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Tarefas Práticas no
Aconselhamento Bíblico:
exemplos de tarefas práticas para
diferentes fases do processo de aconselhamento

Pa u l D . Tr i p p 1

O medo controlava a vida de Sílvia. No final de nosso primeiro encontro, eu


Quando ela procurou aconselhamento, con- pedi a Sílvia que lesse este Salmo várias vezes
tou que havia eliminado de sua casa as facas, durante a semana seguinte e perguntasse a
pois tinha muito medo de se levantar como si mesma: “O que Deus está me dizendo?”.
sonâmbula e ferir seu marido ou os filhos. Durante as semanas que se seguiram, o Sal-
Ela estava constantemente preocupada com mo 37 forneceu-me um instrumento para
contrair alguma doença fatal. Alimentava entrar no mundo de medo em que Sílvia
uma desconfiança irracional com relação vivia e construir um relacionamento para o
ao marido. Temia ter dito ou feito alguma aconselhamento. Tarefas posteriores sobre
coisa para ferir, irritar ou afastar seus poucos este Salmo acabaram com as experiências
amigos. Ela estava com medo do aconselha- de medo de Sílvia, confrontando-as com
mento porque “ninguém entenderá aquilo as promessas de Deus. Ela lidou de frente
que estou passando” e “eu serei internada”. com a causa de seus medos destrutivos: a sua
Como as tarefas práticas poderiam penetrar maneira de reagir aos pecados das pessoas
neste pesadelo e ajudar Sílvia a aprender a ao seu redor revelava os próprios pecados e
confiar em Deus e em seu conselheiro? a falta de fé de Sílvia.
O Salmo 37 oferece aos aflitos e teme- Nem Francisca nem Antônio procu-
rosos Alguém em quem confiar, Alguém cujo raram aconselhamento para serem acon-
cuidado excede seus problemas. O Salmo selhados.2 No primeiro encontro, quando
37 fala abertamente sobre circunstâncias de lhes perguntei o que viam de errado em
vida amedrontadoras, e desafia as pessoas seu casamento, eles imediatamente falaram
temerosas para que examinem a própria vida. o nome um do outro. Ambos vieram ao

Tradução e adaptação de Homework and Biblical


1 2
Francisca e Antônio foram apresentados no artigo
Counseling: Parte 2, Publicado em The Journal of Biblical anterior, Tarefas Práticas no Aconselhamento Bíblico: uma
Counseling. v. 11, n.3, Spring 1993, p. 5-18. Base Teórica para sua Formulação e Uso.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 69


meu escritório para me dizer como mudar sobre relacionamentos: Tiago 4.1-6; Efésios
o outro. Como poderiam as tarefas práticas 4.25-32; 1 Coríntios 13. Eu já sabia o que
direcionar nosso levantamento de dados e abrir Juliana havia descoberto naquela semana; a
caminho em meio à acusação mútua e a uma verdade de Deus havia trabalhado em sua
atitude defensiva? vida. Eu podia ouvir em suas palavras uma
Durante nosso segundo encontro, fala- humildade nova e uma esperança renovada;
mos sobre o “princípio da trave e do cisco”, eu podia ver em seu rosto e ouvir em sua voz
a graça de Deus e o arrependimento.3 Pedi a que as palavras não eram meras palavras.
cada um deles que fizesse uma lista de “tra- Roberto fora ignorado por sua família
ves”: o que você está fazendo de errado que durante muitos anos. Ao longo do aconse-
prejudica a união que Deus ordenou para seu lhamento, sua amargura e a indiferença fria
casamento? Francisca e Antônio fizeram a cederam à graça de Deus. Como as tarefas
tarefa. Naquela semana, ambos começaram a práticas deram partida às mudanças no coração
assumir a posição de aconselhados-discípulos e na atitude de Roberto? Como tarefa prática,
do Senhor Jesus Cristo. Nos encontros que ele escreveu uma carta de reconciliação para
se seguiram, a solução dos problemas deu- sua mãe, com quem ele não tivera contato
se a partir de suas listas e dos princípios das por mais de dez anos. Eu lhe pedi que não
Escrituras envolvidos. enviasse a carta, mas que a trouxesse ao nosso
“Você não acredita o que eu descobri encontro seguinte para que a avaliássemos
na minha tarefa prática esta semana!”. Estas juntos. Roberto e eu queríamos estar certos
foram as primeiras palavras de Juliana no de que aquela carta expressasse o plano de
início de nosso quinto encontro. Eu havia mudança de Deus para o relacionamento
pedido que Juliana fizesse um diário do de Roberto com a família, mudanças que
relacionamento com seu marido. Seu casa- procediam da mudança do relacionamento
mento era um campo de batalha, e Juliana de Roberto com Deus.
estava convencida de que a única causa era Você viu nestas histórias quatro exem-
“a resposta tipicamente egoísta que João dá plos de tarefas práticas, uma bem diferente
a praticamente tudo”. Juliana tinha orado da outra, cada uma buscando alcançar um
“durante anos, sem ver nenhuma mudança”. propósito diferente. A tarefa que dei a Sílvia
Como as tarefas práticas ajudaram Juliana a era um meio para derrubar os muros de auto-
olhar para si mesma biblicamente? proteção e construir seu relacionamento com
Juliana registrou em seu diário todas Deus e comigo. Para Francisca e Antônio, a
as discussões entre ela e João, olhando espe- tarefa foi o instrumento principal para orien-
cificamente para o que ela estava pensando, tar o processo de levantamento de dados. A
desejando, sentindo e fazendo em cada tarefa de Juliana foi autoreveladora: contri-
ocasião. Juliana foi fiel em suas anotações buiu para que ela pudesse ver a si mesma no
durante três semanas. Na quarta semana, espelho das Escrituras. A tarefa de Roberto
sua tarefa foi ler o diário várias vezes, pro- foi um exemplo de aplicação concreta do
curando identificar hábitos de pensamento, plano de Deus no cotidiano.
motivação e comportamento. Ela comparou As tarefas práticas são mais que um
suas descobertas com passagens bíblicas estudo bíblico dirigido, reforçando o as-
pecto de ensino do aconselhamento. Para o
Mateus 7.1-5; Lucas 6.37-42
3 conselheiro bíblico, as tarefas práticas não

70 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


se limitam a uma única direção e propósito. Boas-vindas
Quando concebidas criativamente e usadas Alvo: construir um relacionamento
apropriadamente, elas auxiliam em cada de compreensão e confiança com o acon-
fase do aconselhamento. Bem usadas, as selhado, e também firmar a esperança em
tarefas práticas não funcionam como um Deus.
adendo ao processo de aconselhamento, Aconselhamento é um relacionamento
mas como parte integral deste. Cada passo entre duas (ou mais) pessoas. Aconselhamen-
do processo de aconselhamento tem pros- to é um relacionamento que Deus, em Sua
seguimento, mesmo quando o conselheiro soberania, proporcionou para alcançar Seu
e o aconselhado não estão juntos, porque a propósito santificador.
boas tarefas práticas mantêm o andamento O quanto são importantes no aconse-
do processo. lhamento a vida e o amor do conselheiro?
O conselheiro bíblico deve perguntar Preste atenção no exemplo de Cristo, o
durante cada fase do aconselhamento: “Que Maravilhoso Conselheiro. Ele entrou em
tipo de tarefa é apropriada e útil? Como a nosso mundo e se familiarizou intimamente
tarefa poderia reforçar, apoiar e levar adian- com a nossa experiência. Ele se tornou nosso
te aquilo em que estamos trabalhando no Sumo Sacerdote compassivo e compreensi-
momento?”. vo, sensível às nossas fraquezas, tentações
Para o propósito deste artigo, quero e sofrimentos. Podemos nos achegar a Ele
dividir o processo de aconselhamento em com confiança porque sabemos que Ele
quatro “fases”. É evidente que estas fases será misericordioso e gracioso em nossos
nunca são tão distintas nas situações reais de momentos de necessidade.4 Preste atenção
aconselhamento como parecem ser aqui. As ao exemplo de Paulo: seu amor evidente por
quatro fases do aconselhamento que orien- aqueles a quem ministrou e a honestidade
tam a minha argumentação são: com que ele viveu diante das pessoas con-
1. Boas-vindas: construir um relaciona- feriram integridade e força de persuasão ao
mento cristão com o aconselhado. ministério da Palavra.5
2. Entendimento: colher dados orien- Em poucas palavras, o que é acon-
tados às questões do coração. selhamento bíblico? Podemos responder:
3. Confrontação e consolo: ajudar o “Seguindo a verdade em amor, cresçamos
aconselhado a olhar para si mesmo biblica-
mente e a abraçar as promessas de Deus.
4. Ação: colocar em prática na vida 4
Hebreus 4.14-5.9 é uma passagem marcante que
cotidiana mudanças de acordo com o pro- motiva à confiança em Cristo pela identificação dEle
pósito de Deus. conosco.
Para cada fase darei um alvo e exemplos 5
2Coríntios 1.2-2.4; 1Tessalonicenses 2.1-20 e Atos
de tarefas que derivam deste alvo. Meu pro- 20.17-38 são três passagens em que o amor e a
pósito com este artigo é abrir seu apetite para honestidade pessoal foram base para um ministério
efetivo da Palavra. Paulo construiu constantemente o
boas tarefas práticas. Cabe a você desenvolver relacionamento com seus ouvintes, mesmo naquelas
um cardápio completo e diversificado para o epístolas que são relativamente mais “impessoais” e
seu ministério de aconselhamento. “
objetivas” (p. ex. Efésios, Colossenses, Romanos).

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 71


em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”.6 Se forem bem trabalhadas pelo conse-
Os aconselhados precisam saber que você lheiro, as portas de entrada com frequência
está falando a verdade de Deus. Eles preci- conduzem a problemas mais fundamen-
sam saber que podem confiar em você, pois tais. Por exemplo, Sílvia, cuja vida estava
você está a favor deles. Se você quer que os se desintegrando pelo medo, precisava de
aconselhados comecem a colocar em suas uma garantia inicial: seus problemas eram
mãos aquilo que lhes é precioso, você pre- compreensíveis; ela não estava louca; Deus
cisa demonstrar compaixão, entendimento se importa; o aconselhamento bíblico pode-
e humildade à semelhança de Cristo. Será ria ajudá-la. Mais adiante, problemas mais
que os aconselhados sabem que o conselho elementares vieram à tona: ira, exigências,
que recebem vem de alguém que entende temor do homem, egoísmo, perfeccionis-
seu mundo e se compadece de sua fraqueza? mo e falta de fé. Desde o início, criamos
Isso atrai os aconselhados a uma participação um contexto de confiança e verdade que,
confiante no processo de aconselhamento. mais adiante, permitiu-nos lidar com estas
Como isso se relaciona com tarefas questões.
práticas? Um dos alvos das tarefas práticas Quando planejo e dou tarefas práticas
durante a fase inicial do aconselhamento é para lidar com as questões de entrada, que-
construir relacionamentos que sejam canais ro transmitir duas coisas aos aconselhados.
da graça transformadora. Eu quero que o Primeiro, “Eu ouvi o que você me disse e
aconselhado saiba desde o início que “Deus estou procurando entender aquilo que você
fala às minhas lutas”. Quero que o aconse- está enfrentando para que eu possa ajudá-
lhado saiba desde o início que “o conselheiro lo”. Segundo, “Deus se importa com você;
me ouviu e entende a minha luta”. você pode depositar nEle a sua esperança”.
Quando começo a aconselhar, procuro Com frequência, os aconselhados vêm ao
portas de entrada que permitam que meu aconselhamento com pouca ou nenhuma
retorno inicial e as tarefas práticas sejam re- esperança. Tarefas práticas que dão esperança
levantes. As portas de entrada costumam ser oferecem um caminho de entrada natural
aqueles “problemas imediatos” com os quais para o relacionamento com o aconselhado e
o aconselhado está lutando no momento. estimulam a confiança em Deus.
Podem não ser a questão central com a qual Sara era uma moça solteira, beirando
finalmente teremos de lidar, mas abrem uma os trinta anos. Ela descreveu a si mesma na
porta de acesso à vida da pessoa. As portas de Folha de Informações Pessoais7 como “uma
entrada precisam ser trabalhadas se queremos gorda solitária e introvertida”. Sara odiava
que o aconselhado se comprometa com mu- o seu trabalho, sentia-se pouco à vontade
dança e se torne participante do processo de e incompreendida em sua igreja, rejeitada
discipulado. Eu me pergunto: “Com o que pela família. Ela disse que seu amigo mais
esta pessoa está lutando neste momento? chegado era seu gato! Ela estava convicta de
Que tarefa prática posso dar para alcançá-la que sua vida era terrível, que ela era “um dos
em sua luta?” Exemplos de portas de entrada erros de Deus”, e que não havia outra saída
são: medo, falta de ânimo, ira, amargura,
solidão e falta de esperança. 7
Um exemplo de Folha de Informações Pessoais pode
ser encontrado no livro de Jay Adams O Manual do
Efésios 4.15
6
Conselheiro Cristão (São Paulo: Fiel, 1982. p. 395-7).

72 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


senão a morte. Que tarefa prática poderia sofrimentos e dificuldades. Por exem-
encorajar Sara mostrando que tanto Deus plo, estude Romanos 5.1-11; 8.18-39;
como o seu conselheiro a compreendiam? Tiago 1.2-27; 1Pedro 1.1-2.3.
Pedi que ela fizesse uma tarefa sobre espe- 2. Concentre a atenção em seus recursos e
rança, baseada em 1Coríntios 10.13 (veja na sua identidade como filho de Deus. Por
página seguinte). exemplo, estude o livro de Efésios e o
Antes que o aconselhado possa fazer significado de estar “em Cristo”.
esta tarefa, é preciso que o conselheiro o 3. Estude narrativas bíblicas que enfatizam
prepare com cuidado para o trabalho. Isso a importância de ver a Deus na sua
implica estudar o texto de 1Coríntios 10.1- situação. Por exemplo, Êxodo 13-14;
14 com o aconselhado durante o encontro Números 11, Números 20, 1Samuel
em que a tarefa será pedida. O texto fala 17 destacam ocasiões em que o povo
a pessoas que estão passando por prova- de Israel esqueceu-se ou lembrou-se de
ções, identifica reações pecaminosas que Deus. Faça as seguintes perguntas a res-
são comuns diante das provações e fala de peito das narrativas: Que dificuldades
como Cristo o Senhor está presente para eles estão enfrentando? O que as pes-
abençoar em meio à tentação.8 O que esta soas pensavam a respeito da situação?
tarefa realizou na vida de Sara? Em primeiro Quais eram seus sentimentos? Como
lugar, ajudou-me a entrar na experiência de elas reagiram? O que queriam? O que
Sara. Em segundo lugar, ajudou Sara a ver Deus estava fazendo? Quais eram as
que sua falta de esperança tinha uma causa indicações de que Deus estava envolvi-
identificável: estava associada àquilo que ela do na situação? Como aquelas pessoas
pensava a respeito de Deus, de si mesma e teriam reagido diferentemente se tives-
da situação, e estava também intimamente sem “visto a Deus” na situação?
ligada à sua maneira de reagir. E em terceiro 4. Estude a vida de personagens bíblicos
lugar, ajudou Sara a começar a reinterpretar que ficaram desanimados como, por
as lutas que ela estava enfrentando. À medida exemplo, Elias em 1Reis 19, Samuel
que ela passou a olhar para seus problemas em 1Samuel 8, Moisés em Números
biblicamente, sua esperança cresceu. Aplique 11. Concentre-se em três perguntas:
esta tarefa a você mesmo. Faça cópias do Qual foi a causa do desânimo? Qual
original e use em seus aconselhamentos, ou foi a resposta de Deus em meio ao
faça adaptações. desânimo? Qual foi a solução para o
Há outras tarefas práticas que servem desânimo?
como porta de entrada e ajudam a construir 5. Lide com o medo e a ansiedade como
relacionamento. experiências comuns ao homem. Estu-
1. A esperança cresce ao identificar o que de Filipenses 4.4-10, Salmo 37, Salmo
Deus está operando em meio a seus 46 e responda às seguintes perguntas:
O que causa o medo? Quais os resul-
tados do medo na vida de uma pessoa?
Quais os resultados do medo na sua
8
Esta folha de tarefa pode ser útil em combinação
com o livreto de jay Adams Seus Problemas e Cristo
vida? Que soluções estas passagens
(Brasília: Refúgio, 1985), que faz uma exposição de oferecem para o medo? Como o seu
1 Coríntios 10.13. relacionamento com Deus afeta o seu

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 73


1 Coríntios 10.13
A Mentira do Inimigo A Verdade de Deus
“Seus problemas são singulares, “Você está lidando com tentações
maiores e mais difíceis que os de comuns”
outras pessoas” (Liste as tentações diárias que você enfrenta
(Liste problemas em sua vida a respeito dos que não são diferentes das que outras pessoas
quais você está pensando assim). enfrentam.).

“Deus esqueceu-se de você” “Eu sou fiel”


(Liste os momentos em que você tende a se (Liste evidências da fidelidade de Deus
sentir esquecido). em sua vida).

“Você tem mais problemas do que “Eu não permitirei que você seja ten-
pode suportar” tado além do que pode suportar”
(Em que ocasiões você se sentiu sobrecarre- (Quais os recursos para lidar com os proble-
gado?). mas que estão presentes em sua vida?).

“Você está preso em uma armadilha “Eu darei um meio de escape para
e não há meio de escape” que você possa permanecer firme”
(Liste os problemas que você está enfrentan- (Identifique mudanças pessoais que podem
do e que lhe parecem não ter solução). capacitá-lo para lidar com aspectos difíceis em
sua situação).

74 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


medo? O que seria diferente em sua Segundo, a coleta de dados focaliza a
vida se você estivesse livre do medo? atenção naquilo que é de fato importante.
Você encontrará na vida dos aconselha- Ela proporciona uma oportunidade natu-
dos questões que servem de porta de entrada e ral de ensino interativo. Quando eu faço
ao redor das quais é possível construir tarefas perguntas que surgem de uma perspectiva
práticas. Este tipo de tarefa comunica ao bíblica das pessoas e seus problemas, os
aconselhado: “Eu ouvi a sua luta. Eu levei aconselhados são forçados a pensar com
você a sério. Estou procurando entender maior precisão bíblica a respeito de si mes-
aquilo com que você está lidando. Deus está mos e das situações que enfrentam. Meu
envolvido. NEle é possível encontrar espe- alvo aqui é levar o aconselhado a uma au-
rança e auxílio”. Quando Sara foi embora, topercepção bíblica. À medida que a coleta
ao término de nosso encontro, ela se sentia de dados prossegue, o aconselhado já deve
compreendida e encorajada porque a tarefa estar aprendendo coisas novas mesmo antes
prática a atingiu em suas lutas. que algum ensino propriamente dito tenha
lugar. Não estou apenas coletando dados
Entendimento para descobrir quais mudanças precisam
Alvo: Conhecer o aconselhado, a acontecer. Pelo contrário, a coleta de dados,
situação em que Deus o colocou, como quando bem feita, torna-se parte do processo
ele está respondendo à situação e quais de mudança. A coleta de dados é uma forma
questões do coração moldam estas res- de instrução, visto que perguntas bem for-
postas, e ser usado por Deus para trazer muladas começam a ensinar o aconselhado
ao aconselhado uma maior percepção de a organizar, interpretar e explicar o mundo
si mesmo. biblicamente.
As tarefas práticas devem servir ao alvo Quero que as tarefas práticas, durante
duplo da fase de coleta de dados: ganhar esta fase do aconselhamento, projetem estes
conhecimento em primeira mão e dirigir a dois propósitos para além dos encontros
atenção para aquilo que de fato é importante. semanais. Uma das melhores ferramentas
Primeiro, é vital obter um entendimento para coletar dados é um diário. Seria pesado
detalhado da pessoa e da situação em que ela e contra produtivo pedir que o aconselhado
está envolvida. Pecado e obediência nunca registrasse toda e qualquer ocorrência do
são algo genérico. Eles são sempre respostas seu dia. Mas pode ser muito útil pedir que
específicas a situações específicas em que ele faça registros específicos. Vou dar um
Deus coloca determinada pessoa. O acon- exemplo de como planejei isto com Juliana,
selhamento bíblico tem como alvo aplicar a a aconselhada que pensava que todos os
Palavra de Deus de modo específico. Isso o seus problemas eram resultado de falhas do
distingue da pregação. O conselheiro colhe marido.
dados para entender suficientemente bem o 1. Pedi que ela comprasse um caderno de
aconselhado como pessoa e os detalhes de sua tamanho tal que pudesse caber em seu
situação, e então poder fazer aplicações con- bolso ou em sua bolsa. Esse caderno
cretas das Escrituras. A coleta de dados tem serviria para fazer anotações rápidas
a ver com entrar no mundo do aconselhado, para consulta posterior. Eu queria
familiarizar-se com os detalhes deste mundo que Juliana tivesse o caderno às mãos
e ser tocado por suas realidades. o tempo todo. Ela poderia rabiscar

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 75


poucas palavras que, no fim do dia, ŠŠo livro de Wayne Mack Tarefas Práticas
quando ela se sentasse para redigir o para Uso no Aconselhamento Bíblico9
diário, poderiam ajudá-la a lembrar a inclui várias tarefas muito úteis para
situação. a avaliação do relacionamento con-
2. Pedi a Juliana que focalizasse o seu diá­ jugal.
rio nas situações de conflito com seu
Uma redação costuma ser útil para fa-
marido, João.
zer com que as pessoas descrevam e avaliem
3. Pedi que ela respondesse cinco pergun-
sua vida:
tas a respeito de cada incidente:
ŠŠEstou descontente com minha vida
- O que aconteceu?
porque...
- O que você sentiu?
- O que você estava pensando? ŠŠAquilo que considero mais importante
- O que você queria? em minha vida agora é...
- O que você fez?
ŠŠMinha infância em casa foi...
4. Pedi que ela fizesse anotações em seu
diá­rio durante três semanas. Terminado ŠŠMeu casamento seria melhor se...
este prazo, Juliana leu seu diário como
ŠŠAquilo que eu mais temo na vida é...
tarefa, procurando temas e padrões que
se repetiam. No encontro seguinte, Use estes exemplos e crie tarefas sob
comparamos aquilo que ela descobriu medida para as pessoas com as quais você
com o que as Escrituras dizem. está trabalhando.
O diário de Juliana forneceu-me todo Para alguns aconselhados, histórias e
tipo de dados detalhados a respeito dela e desenhos permitem comunicar dados que
de suas lutas. Ele também ajudou Juliana a eles teriam tido dificuldade para expressar
parar e começar a pensar devidamente sobre em palavras. Quando estou colhendo dados
sua situação e como ela estava interagindo do passado, com frequência peço ao aconse-
com esta situação. lhado que escreva a respeito de sua família de
Há muitos outros tipos de tarefas prá- origem em forma de história “Minha vida na
ticas úteis para coletar dados. Por exemplo, Família ______”. Desenhos também podem
costumo usar com frequência listas e ques- ser úteis. Por exemplo, peça ao aconselhado
tionários que guiam o aconselhado a uma que desenhe um quadro que represente o
autoavaliação: relacionamento em sua família de origem.
ŠŠlistas de “traves”, conforme mencionei Durante o encontro seguinte, ele pode ex-
no caso de Francisca e Antônio, no plicar e interpretar o quadro.
início do artigo; Uma de minhas tarefas preferidas para
ŠŠ“Que mudanças eu gostaria de ver no colher dados é aquilo que chamo de “O
meu casamento”; Grande Quadro” (veja na página seguinte).
Como introdução a esta tarefa prática,
ŠŠ“Meios que tenho identificado para abro com o aconselhado Lucas 6.43-45 e
lidar com este problema”; apresento-lhe o conceito de “fruto e raízes”.
ŠŠ“Se eu pudesse apertar um botão mági-
co e minha vida passasse a ser do jeito 9
MACK, Wayne. Tarefas práticas para uso no aconselhamento
que eu quero, como ela seria?”; bíblico. 2. ed. São José dos Campos, SP: Fiel, 1992.

76 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Lucas 6.43-45

“O Grande Quadro”
SITUAÇÃO:
O QUE ESTÁ ACONTECENDO? (Circunstâncias, comportamento de outras pessoas)

FRUTO:
COMO VOCÊ ESTÁ RESPONDENDO À SITUAÇÃO? (emoções, ações, reações)

RAÍZES:
O QUE VOCÊ PENSA A RESPEITO DA SITUAÇÃO? (o que pensa a respeito de Deus, de você
mesmo, de outros, da vida)

O QUE VOCÊ QUER? (alvos, desejos, exigências)

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 77


Esclareço que não quero que o aconselha- meiro passo para a mudança: “Eu sou uma
mento se concentre em olhar apenas para pessoa irada. Como posso mudar?”.
as situações e as dificuldades, para outras As tarefas práticas oferecem oportuni-
pessoas ou para o comportamento. Quero dade para manter a continuidade da coleta
que guardemos distância e olhemos para o de dados, mesmo fora do escritório de acon-
grande quadro: situação, fruto e raízes. Para selhamento. Elas envolvem o aconselhado
isso, peço que o aconselhado responda às em um processo ativo de autoexame. As
quatro perguntas que aparecem na folha da tarefas práticas mantêm o aconselhado en-
tarefa prática. Você pode fazer cópias desta volvido no aconselhamento, não apenas no
página ou adaptar às necessidades do seu processo de ser conhecido por outra pessoa,
aconselhado. mas assumindo responsabilidade por um
Escrever uma carta pode ser um ins- autoexame e aprendendo a ver a si mesmo
trumento de ajuda para fazer com que o sob uma nova perspectiva bíblica.
aconselhado expresse honestamente o que
está acontecendo. Não se trata de uma carta Confrontação e consolo
para enviar a alguém. Ela é escrita unicamen- Alvo: ajudar o aconselhado a olhar
te com o propósito de coletar dados. É um para si mesmo biblicamente e acolher as
meio de fazer com que o aconselhado colo- promessas de Deus.
que no papel os seus planos, e funciona bem Devido ao engano do pecado, todos
quando ele está lutando com determinado nós precisamos ser confrontados. Devido ao
relacionamento. Eu lhe peço que escreva “a poder do pecado e ao estado de culpa e mi-
carta dos seus sonhos”, sendo honesto acerca séria a que ele conduz, todos nós precisamos
de seus pensamentos e sentimentos com do consolo que há em Cristo. Precisamos
respeito àquele relacionamento. Por razões de pessoas que levem a sério o chamado
óbvias, é muito importante que esta carta de Deus para “falar a verdade em amor”.
não seja enviada. Ela é de uso do conselheiro Confrontação passou a ser um nome feio
e do aconselhado como meio de coletar da- em nossa cultura, ganhando a conotação
dos sobre os verdadeiros desejos e intenções de aspereza. Mas as Escrituras apresentam a
do aconselhado. confrontação como um ato de amor: palavras
Cláudio, um rapaz solteiro de vinte amorosas, perceptivas e sinceras, motivadas
anos, bastante irado, escreveu uma carta para pela necessidade do meu próximo e não pela
sua mãe conforme lhe pedi. Foi uma carta de minha conveniência.
dez páginas! A carta foi muito útil para mim Semelhantemente, consolo e encora-
como instrumento para eu conhecer o que jamento adquiriram conotações enganosas:
motivava Cláudio. Mas algo mais aconteceu: tolerância irrestrita, relatividade, afirmação
Cláudio passou a se conhecer melhor quando plena, reforço de autoestima, aceitação
viu algumas coisas escritas no papel. A carta incondicional. Mas o consolo bíblico é
e algumas perguntas que eu lhe fiz a partir cheio de verdade, baseado no evangelho do
daquele texto começaram a abrir janelas para Salvador crucificado e no poder do Espírito
que Cláudio conhecesse melhor a si mesmo Santo para nos transformar.
e ganhasse algumas convicções. A tarefa de Três aspectos de como falar a verdade
coleta de dados conduziu Cláudio ao pri- biblicamente devem guiar o seu pensamento

78 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


a respeito do processo confrontação-consolo no aconselhamento podem se beneficiar do
e do uso de tarefas práticas como parte deste modelo interativo de Natã.
processo. Primeiro, promova o engajamento O segundo aspecto do processo bíbli-
de seu aconselhado. Segundo, mostre e ofe- co de confrontação-consolo é encontrado
reça a Palavra de Deus. Terceiro, coloque à no primeiro capítulo de Tiago: mostre os
prova as questões do coração bem como as padrões de Deus e ofereça as promessas de
de comportamento. Deus. O texto de Tiago 1.22-24 compara
Em primeiro lugar, como podemos as Escrituras a um espelho, descrevendo
engajar o aconselhado, visto que ele pode maravilhosamente o papel da confrontação
ser alguém que resiste à verdade? 2Samuel no aconselhamento bíblico. Na fase do acon-
12.1-25 nos fornece um exemplo. O profeta selhamento em que “falo a verdade”, quero
Natã confrontou Davi por seu adultério e ajudar os aconselhados para que possam ver
homicídio. Preste atenção à metodologia a si mesmos refletidos com exatidão na Pa-
que Natã usou para confrontar: ele estabe- lavra de Deus. Com frequência, eles têm se
leceu primeiramente um diálogo, em lugar olhado em espelhos deformadores, espelhos
de colocar Davi imediatamente na área de do autoengano ou da opinião de outros.
defesa. Sua história engajou a consciência Desta forma, têm uma visão distorcida de
de Davi, penetrando os muros do autoen- si mesmos. A confrontação coloca diante do
gano e proteção. Natã, então, disse: “Você aconselhado o espelho da Palavra de Deus
é o homem”. Esta confrontação franca e para que ele possa ver a si mesmo como de
oportuna não encontrou uma atitude de- fato é. Os conselheiros bíblicos efetivos nem
fensiva nem desculpas. Os Salmos 32 e 51 sempre precisam usar palavras de repreensão.
retratam a dinâmica interior da resposta de Eles levantam o espelho, usando as Escrituras
Davi expressando arrependimento diante da de forma tal que a Palavra de Deus penetre a
confrontação habilidosa de Natã. cegueira e convença. Um autoconhecimento
Natã foi um confrontador habilidoso, verdadeiro conduz ao arrependimento ver-
em tempo oportuno. Ele não ofereceu a Davi dadeiro e à confissão.
uma mensagem de aceitação incondicional, Tiago 1 contém também consolo em
tolerância ou desenvolvimento da autoes- abundância.11 O âmago do consolo bíblico
tima. Mas ele amou Davi e levou a ele a não é uma afirmação humana para elevar
esperança de Deus: “o SENHOR te perdoou a autoestima— um substituto fraudulento
o teu pecado; não morrerás”. Davi creu de do mundo: “Estou a seu favor. Eu acredito
todo coração. Mais tarde, Natã entregou a em você. Você está ok”. O consolo, assim
Davi outra mensagem de consolo da parte como a confrontação, vem de Deus. Se a
de Deus: “O SENHOR ama Salomão”. confrontação levanta o espelho de Deus, o
Portanto, Salomão ganhou um segundo consolo oferece as promessas de Deus. “Se
nome, Jedidias, “amado do SENHOR”.10 alguém de vós necessita de sabedoria — se a
Os Salmos 32 e 51 retratam a fé de Davi nas sua estultícia e o pecado vêm a tona quando
promessas de graça que Natã lhe ministrou. você é provado — peça sabedoria a Deus,
A confrontação e o consolo que você oferece que dá generosamente e não o repreende

10
2Samuel 12.24-25 11
Por exemplo, versículos 2-5, 12, 17, 18, 25

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 79


por precisar da ajuda que apenas Ele pode to deve se dirigir ao coração bem como ao
dar.” Esta é uma promessa que os aconselha- comportamento.
dos podem acolher como encorajamento e O aconselhamento precisa ser intera-
colocar em ação. tivo, bíblico e penetrante. Como as tarefas
O terceiro aspecto crucial da fase práticas podem ajudar? As tarefas que peço
do aconselhamento que chamamos de nesta fase do aconselhamento pertencem a
confrontação-consolo também está presente duas categorias: tarefas de instrução e tarefas
em Tiago 1. Os versículos 14 e 15 mostram de autoconhecimento. Vou tratar de ambas,
como os desejos pecaminosos geram um e dar alguns exemplos.
estilo de vida pecaminoso, que resulta na Uso as tarefas de instrução porque
miséria da maldição de Deus. Sílvia, Fran- muitos dos meus aconselhados não recebe-
cisca e Antônio, Juliana e Roberto, todos eles ram ensino suficiente. Eles não conhecem
experimentaram tristeza e confusão. Todos ou não entendem conceitos fundamentais,
eles se expressaram por meio de pecados es- categorias, princípios, mandamentos e
pecíficos em suas atitudes, ações e palavras. promessas da Palavra de Deus. Entender a
Todos eles se afastaram de Deus em seu verdade é vital para que o aconselhado in-
coração, servindo a crenças falsas e à cobiça terprete e responda à vida biblicamente, por
da carne. Você precisa expor estas questões isso preciso ensinar à medida que confronto
do coração bem como os comportamentos e ofereço consolo.
resultantes. A tarefa “O Que é a Vida Cristã?” (veja
Qual o plano de Deus para estas vidas? na página seguinte) é um exemplo de tarefa
Considere Joel 2.12-13: prática que instrui o aconselhado. Ela é espe-
Convertei vos a mim de todo o cialmente encorajadora em seu ensino e tam-
vosso coração; e isso com jejuns, bém desafia sugestivamente os aconselhados.
com choro e com pranto. Rasgai o Na verdade, o aconselhamento bíblico não
vosso coração, e não as vossas vestes, faz uma grande divisão entre confrontação e
e convertei vos ao SENHOR, vosso consolo; os dois trabalham lado a lado para
Deus, porque ele é misericordioso, completar os propósitos de Deus.
e compassivo, e tardio em irar se, e Por que um estudo como este pode ser
grande em benignidade. útil? Muitos aconselhados não entendem os
O profeta refere-se ao costume do pontos básicos do processo de santificação
Antigo Testamento de rasgar suas roupas em progressiva: “Deus está operando em sua
sinal de luto. Vestimentas rasgadas eram um vida. O discípulo percorre um caminho
sinal exterior de uma resposta do coração. de transformação progressiva — ele não é
Deus não quer “arrependimento” apenas no ainda perfeito, pode errar, mas está sempre
comportamento, mas arrependimento que crescendo na fé e na obediência”. Poucos
começa com e flui do coração que retorna entendem que a vida cristã é um processo
a Ele. Deus quer reconquistar e controlar de mudança, não de perfeição nem derrota.
o coração do seu aconselhado, mudando Muitos aconselhados procuram algum “se-
o estilo de vida. O consolo oferecido pelo gredo” da vida cristã para remover a luta,
aconselhamento convida as pessoas a vol- enquanto simplesmente desistem de mudar
tarem ao Deus misericordioso de todo seu e se entregam a um caminho de pecados e
coração. A verdade falada no aconselhamen- miséria. Enquanto alguns nunca ouviram

80 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


O Que é a Vida Cristã?
1. Estas perguntas refletem diferentes perspectivas da vida cristã:
a. Você acredita na existência de um “segredo” para a vida cristã, que põe fim às
lutas e faz com que a vida corra mais facilmente?
b. Você já se resignou com o fato de ser um fracasso como cristão, pois lhe parece
muito difícil mudar?
c. Você já se tornou um “discípulo”, alguém que está mudando de modo cons-
ciente, aprendendo a pensar e a agir à semelhança de Cristo em cada situação
da vida?
d. Quando você se torna ciente de falhas em sua vida, você as trata como uma
grande crise, seja para se desculpar, para se desesperar ou para procurar perfeição
e livramento instantâneos?
2. Leia esta descrição da vida cristã normal:
Esta vida, portanto, não é retidão,
mas crescimento em retidão,
não é saúde, mas cura,
não é ser, mas se tornar,
não é descanso, mas exercício.
Ainda não somos o que viremos a ser,
mas estamos crescendo nesta direção;
o processo ainda não está concluído,
mas em andamento;
este não é o fim, mas o caminho.
Nem tudo já refulge em glória,
mas tudo está sendo purificado.
Martinho Lutero

a. A que se assemelha a vida?


b. Quais as promessas reafirmadas para o presente e o futuro?
c. Esta visão condiz com a sua visão da vida cristã? No que você foi desafiado? De
que forma foi encorajado?
d. Em que pontos específicos você precisa mudar?
3. Lutero escreveu estas palavras como resultado de seu estudo da Palavra. Estude as
seguintes passagens das Escrituras: Tiago 1.2-5; Filipenses 1.6, 1.9-11, 2.12-13;
2Pedro 1.3-11. Para cada um dos texto, faça as mesmas perguntas que fez para a
citação de Lutero.
a. A que se assemelha a vida?
b. Quais as promessas reafirmadas para o presente e o futuro?
c. Esta visão condiz com a sua visão da vida cristã? No que você foi desafiado? De
que forma foi encorajado?
d. Em que pontos específicos você precisa mudar?

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 81


que o senhorio de Cristo abrange todos feito sobre as verdades cruciais que precisam
os crentes, e não apenas uma elite que deu ser discutidas durante nosso tempo juntos e
um segundo passo de consagração, outros incorporadas em sua vida.
ainda nunca compreenderam que Deus nos O segundo tipo de tarefa prática de
salvou não apenas da condenação do pecado confrontação-consolo que costumo usar são
(justificação), mas também do domínio do tarefas de autopercepção. Elas focalizam as
pecado (santificação e discipulado). A citação questões do coração, visto que o coração mo-
de Lutero e os textos bíblicos são simulta­ dela o comportamento. A luta com o engano
neamente um chamado a despertar, um do pecado acontece no interior do homem,
desafio e um encorajamento. Use a folha “O bem o como o arrependimento e a fé.
Que é a Vida Cristã” para um estudo pessoal Uma tarefa que dou com frequência
e também para auxiliar as pessoas que você vem de Tiago 4.1-6. Tiago afirma que os
aconselha, ou adapte as perguntas para que conflitos interpessoais têm como causa os
sejam apropriadas a cada caso. desejos que governam o coração - as pessoas
Os sistemas de pensamento não- dirigem-se uma às outras com determina-
bíblicos devem ser substituídos por uma da intenção, com exigências expressas ou
visão da vida distintamente bíblica. Costumo não. Peço ao aconselhado que responda
pedir como tarefa, vez após vez, o seguinte por escrito à seguinte pergunta: “O que eu
estudo: realmente quero obter na vida?” ou “O que
1. O que as Escrituras dizem a respeito realmente quero das pessoas ao meu redor?”
do coração? (Pv 4.23; Lc 6.43ss.; Tg Em seguida, peço-lhe que liste como estes
4.1-5) desejos têm afetado os seus relacionamentos.
2. O que é idolatria? (Ez 14.1-6; Rm 1.18- Uma forma de fazer a pergunta é: “Como as
32; 1Co 10.1-14; Ef 5.3-7) intenções do seu coração (desejos domina-
3. Qual é a sua nova identidade em Cristo? dores) moldaram a sua maneira de sentir e
(Rm 6.1-14; Efésios; 2Pe 1.3-9) agir para com outros?”.
4. Quem é Deus e como Ele está agindo? Obviamente, o alvo desta tarefa é levar
(Sl 34; Sl 46; Is 40; Rm 8) o aconselhado a reconhecer os ídolos do
5. Como você deve entender as provações coração que persistem em distanciá-lo do
e o sofrimento? (Rm 5.1-5; Tg 1.1-8; comportamento que Deus exige. Muitos
1Pedro) aconselhados não discutem a lógica do seu
6. O que você deve fazer quando outros comportamento. Na verdade, eles nem
pecam contra você? (Mt 5; Mt 18.15- pensam que o comportamento tem um
35; Rm 12.9-21) sentido, ou seja, que nossas ações expressam
Esta lista não esgota o assunto, mas os pensamentos e intentos do coração. Por
exemplifica o tipo de tarefa prática instru- isso, costumam pensar que não têm escolha
tiva que pode ser pedida durante a fase de a não ser fazer aquilo que estão fazendo.
confrontação-consolo. Estas tarefas permi- Quando os aconselhados entendem que
tem usar o tempo do aconselhamento com há escolha, a promessa de Tiago 4.6 ganha
maior eficiência, pois o aconselhado já vem sentido: “Antes, ele dá maior graça; pelo que
ao nosso encontro com o estudo dirigido diz: Deus resiste aos soberbos, mas dá graça

82 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


aos humildes”. O conhecimento de si mesmo deve fazer duas listas com os seguintes títu-
e o conhecimento de Deus conduzem a um los: “Se eu amar a Deus verdadeiramente,
encontro com Deus (Tg 4.7-10). acima de tudo mais, eu irei...” e “Se eu amar
Quero ajudar os aconselhados a pensar ao meu próximo verdadeiramente, como a
nas motivações. Quero ajudá-los para que se- mim mesmo, eu irei...” Na semana seguinte,
jam capazes de falar a partir do coração. Um conversamos sobre as listas e as mudanças
instrumento para isso é a tarefa “Respostas específicas que elas exigem.
às Situações da Vida” (página seguinte), em O alvo da fase de confrontação-consolo
que escrevo um parágrafo ilustrativo de um é o verdadeiro arrependimento que inclui
problema enfrentado pelo aconselhado e, pensamentos, motivações e comportamen-
em seguida, peço ao aconselhado que reaja tos. O conselheiro bíblico precisa traçar ta-
à minha ilustração, listando cinco possíveis refas que engajem o aconselhado no processo
respostas acompanhadas da razão por que de autoexame à luz da Palavra, conduzindo
alguém escolheria cada uma delas. Esta a uma confissão sincera a Deus, à aceitação
última parte da tarefa ajuda-o a reconhecer de Cristo como modelo e mudanças práticas
a natureza estratégica do comportamento. no estilo de vida.
Peço-lhe então que aponte para as caracte-
rísticas da sua resposta a uma determinada Ação
situação com que estamos lidando no acon- Alvo: Ajudar o aconselhado a aplicar
selhamento e examino o que isso revela sobre às situações específicas da vida as verda-
os desejos e propósitos do seu coração. des aprendidas a respeito de Deus, de si
O estudo de narrativas bíblicas pode mesmo e de outros, fazendo as correções
ser de ajuda nisto, e pode ser facilmente necessárias com base na Bíblia e adquirin-
incluído na tarefa “Respostas às Situações do novos hábitos bíblicos.
da Vida”. Peço ao aconselhado que examine O aconselhamento não acaba no mo-
a resposta de um personagem bíblico diante mento em que o aconselhado adquire insight
de determinada situação - Jonas; Moisés em sobre a situação. A percepção que ele ganha
Números 11; Gideão em Juízes 6; Pedro em de si mesmo à luz da Palavra de Deus é a base
Gálatas 2; Herodes em Marcos 6; Ester em para as mudanças fundamentais que devem
Ester 4-5 - e depois procure pistas do que acontecer em sua vida. As Escrituras têm
estaria motivando tal resposta. Esta tarefa um propósito funcional: que o aconselhado
prepara o terreno para o desafio de responder seja “perfeitamente habilitado para toda boa
de modo piedoso, motivado por gratidão a obra”. O conselheiro bíblico precisa perma-
Deus e preocupação com a glória de Deus. necer alerta à medida que o aconselhado co-
Outra tarefa que uso com frequência meça a aplicar o que aprendeu às realidades
a esta altura do aconselhamento baseia-se frequentemente duras da vida diária.
em Mateus 22.37-40. Costumo preparar o A esta altura do aconselhamento, várias
aconselhado conversando sobre o texto bíbli- coisas significativas já foram aprendidas e
co durante o encontro. Peço ao aconselhado precisam ser aplicadas. A descrição de tra-
que medite nos dois grandes mandamentos balho do conselheiro é variada. Primeiro, ele
e em como eles estabelecem um plano para funciona como um guia espiritual, ou pastor
lidar com as diversas situações de vida e os de almas, dirigindo o aconselhado no proces-
relacionamentos diários. Em seguida, ele so de aplicar verdades que talvez sejam novas

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 83


Respostas às Situações da Vida
Leia cuidadosamente a história abaixo.
(O conselheiro escreve uma história ilustrativa, relacionada a uma situ-
ação vivida pelo aconselhado).

Liste cinco possíveis reações que alguém poderia ter à situação acima e,
para cada resposta, estabeleça uma razão ou o propósito a alcançar.

REAÇÃO RAZÃO
1. 1.

2. 2.

3. 3.

4. 4.

5. 5.

COMO VOCÊ REAGIU QUANDO ______________________________?

O QUE ISSO LHE REVELA A RESPEITO DOS DESEJOS E PROPÓSITOS


DO SEU CORAÇÃO?

84 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


para ele. Em seguida, o conselheiro funciona aprimoramento do plano para que o acon-
como um amigo, oferecendo consolo, apoio selhado o coloque em prática.
e encorajamento enquanto o aconselhado Outra maneira de ajudar um aconse-
procura lidar com as velhas pressões de um lhado a manter o foco certo na fase de ação
modo novo. Terceiro, o conselheiro funcio- do aconselhamento bíblico é trabalhar aspec-
na como pastor, chamando o aconselhado à tos do despojar-se e revestir-se. Quero que
responsabilidade diante dos padrões de Deus o aconselhado pergunte a si mesmo: “Que
nos momentos em que surge a tentação de aspectos de minha vida — hábitos pessoais,
voltar atrás ou desistir. Quarto, o conselhei- relacionamentos e situações do cotidiano
ro funciona como uma sentinela, ciente da — precisam ser abandonados? O que não
realidade da tentação, advertindo o aconse- estou fazendo, mas agora preciso me com-
lhado dos ataques do inimigo e ajudando a prometer a fazer?”. Peço esta tarefa prática
traçar meios de defesa contra as estratégias ao aconselhado porque quero que ele assuma
inimigas. Quinto, o conselheiro funciona responsabilidade por esse tipo de autoexame
como professor. As aulas não acabam quando bíblico e planejamento. Planos específicos
o discípulo ganha novos insights bíblicos. A conduzem a obediência específica.
vida real é a aula prática, o laboratório. O Definir as responsabilidades também é
professor precisa reforçar com continuidade muito importante. Vários aconselhados estão
as verdades que foram aprendidas. confusos sobre quais são ou deixam de ser as
Quero lançar mão destas cinco funções suas responsabilidades. Para esclarecer esta
como estrutura para que examinemos os questão, uso a tarefa prática “Esclarecendo
tipos de tarefa prática apropriados para a as Responsabilidades” (veja na página se-
fase de ação no aconselhamento. guinte), baseada no chamado de Deus para
“confiar e obedecer”. A maioria das pessoas às
1. Guia espiritual quais aplico esta tarefa reconhecem sua utili-
O aconselhado deve traçar um Plano dade. Para apresentar o assunto de maneira
Pessoal bíblico. Primeiro, eu peço que ele simples, costumo dizer: “Na vida de cada
estabeleça alvos em áreas onde precisam um de nós é possível identificar dois círculos
ocorrer mudanças. O aconselhado precisa — um círculo limitado de responsabilidades
perguntar a si mesmo: “Onde Deus está e um círculo mais amplo de preocupações.
querendo ver mudanças na minha vida di- Nosso círculo de responsabilidades contém
ária?” (por exemplo, mudança em hábitos, todas as coisas que Deus nos manda fazer e
mudança nos relacionamentos, mudança em às quais cabe-nos simplesmente obedecer.
situações específicas da vida). Segundo, peço Não podemos transferir estas responsabili-
ao aconselhado que liste abaixo de cada alvo dades para mais ninguém. São ordens que
maneiras específicas de alcançá-lo, criando recebemos de Deus nas situações em que Ele
uma lista de tarefas estratégicas. As mudan- nos coloca pela Sua soberania. O segundo
ças a serem instituídas têm um propósito: círculo é o das preocupações. Este reúne
aproximar o aconselhado dos alvos de Deus. coisas que são importantes para nós e parte
Terceiro, peço ao aconselhado que priorize das nossas preocupações diárias, mas que não
os alvos e as tarefas listadas debaixo de cada são nossa responsabilidade em termos de exe-
alvo. No encontro seguinte, trabalhamos no cução nem estão debaixo do nosso controle.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 85


Esclarecendo as Responsabilidades
Preocupações que fazem parte de minha Responsabilidades que Deus atribui a
vida, mas que escapam à minha esfera mim e que, portanto, não podem ser
de responsabilidade. Estas coisas eu devo transferidas para ninguém mais.
entregar a Deus.

1 1

2 2

3 3

4 4

5 5

6 6

7 7

8 8

9 9

10 10

Mudanças que preciso fazer:

86 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


São coisas que precisamos entregar a Deus. geral, peço que o aconselhado faça estudos
Quero que você considere tudo quanto faz dirigidos de passagens das Escrituras que
parte da sua vida e coloque cada aspecto no destacam sua identidade como filho de Deus,
círculo apropriado”. a esperança do evangelho, as promessas de
Este método tem-se provado simples Deus, os recursos que Deus providenciou, o
e útil para esclarecer as questões de respon- poder que Deus deu para mudar e obedecer,
sabilidade. Ele também esclarece a causa de o ministério atual do Espírito Santo, uma
pecados como ira, ansiedade, medo, mani- perspectiva das lutas atuais tendo em vista
pulação, passividade e outros mais: tentar a eternidade, e o poder de Deus sobre o
controlar aquilo que somos chamados a maligno. Preparo as tarefas de acordo com
entregar e fracassar em agir onde somos as necessidades específicas de cada acon-
chamados a obedecer resulta em toda sorte selhado, entrego a ele para que leve para
de problemas. casa e trabalhe durante a semana, e então
Uma das maneiras de preparar o acon- discutimos juntos o assunto no início do
selhado para esta tarefa é orientá-lo no estu- encontro seguinte.
do de Romanos 12.17-21. Paulo fala sobre as
circunstâncias em que outros pecam contra 3. Pastor
nós, e faz uma distinção entre a responsabi- Em Hebreus 13, o pastor é descrito
lidade de Deus e a nossa: não é nossa tarefa como alguém que “vela” pelo rebanho de
pagar mal por mal, pois a vingança pertence Deus “como quem deve prestar contas”.
a Deus. Nossa tarefa é vencer o mal com o Aconselhar é mais que advertir. Aconselhar
bem. Paulo diz: “Dê lugar à ira de Deus”. tem uma função pastoral. Devo prestar con-
O que ele está dizendo é: “Não tente fazer tas pessoalmente perante Deus das pessoas
o trabalho de Deus; fique fora disso. Entre- que ele colocou sob os meus cuidados. O
gue a vingança a Deus e faça aquilo que Ele pastor não apenas oferece a verdade ao povo
claramente exige de você”. Paulo também de Deus, mas ele chama à responsabilidade
diz: “O quanto depender de você, tenha paz de crer e obedecer. No papel de pastor, cos-
com todos os homens”. Sua tarefa é ser um tumo pedir dois tipos de tarefas práticas. A
pacificador, mas você não é responsável por primeira é uma tarefa de avaliação:
mudar as outras pessoas ou transformar um ŠŠO que aprendi (a respeito de Deus,
inimigo em amigo. Você precisa entregar a da minha pessoa, de outros, da vida,
Deus o resultado dos seus esforços — sejam do evangelho, da minha situação de
estes resultados bons ou maus. Este texto bí- vida etc.).
blico provê uma maneira simples de preparar
ŠŠO que preciso aprender (áreas de dú-
o aconselhado para a tarefa de identificação
vida ou confusão).
de responsabilidades. Use a tarefa conforme
proposta ou adapte-a àqueles que você está ŠŠO que já mudou (mudanças específicas
aconselhando. que aconteceram).
ŠŠO que ainda precisa mudar.
2. Amigo
A ênfase aqui é encorajar e apoiar o ŠŠO que estou fazendo para atingir
aconselhado com a verdade bíblica durante aqueles pontos da minha vida onde
o trabalho árduo de aplicação prática. Em mudanças ainda são necessárias.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 87


Mais uma vez, uso o formato de juntos, peço que ele escreva os elemen-
tarefa-discussão-ação que já mencionei tos mais importantes em cartões que
várias vezes. possa carregar consigo e ter disponível
A segunda tarefa que uso é o diário. nos momentos de tentação. O plano
Apresento a tarefa ao aconselhado com as inclui três aspectos:
mesmas cinco perguntas que descrevi an-
- Coisas para pensar (textos e conceitos
teriormente. Elas funcionam muito bem,
bíblicos importantes, advertências);
tanto para a avaliação como para a prestação
- Ações a cumprir (coisas que precisam
de contas. Comparar este diário com aquele
ser feitas para alcançar vitória sobre a
que foi feito no início do aconselhamento
tentação);
resulta em encorajamento. O aconselhado
- Uma pessoa a quem recorrer (alguém
pode louvar de coração a Deus e reconhecer a
que concordou em estar disponível
necessidade de constância, disciplina e ainda
para apoio e encorajamento nos mo-
outras mudanças.
mentos em que for preciso).
4. Sentinela 5. Professor
Aqui o conselheiro tem duas funções
Finalmente, assumo o papel de um
principais. Primeiro, a sentinela adverte.
professor que se movimenta em meio aos
Quero manter o aconselhado alerta aos ata-
alunos reunidos ao arredor de uma mesa em
ques do inimigo. Segundo, a sentinela pro-
um laboratório de ciências para guiar no tra-
tege. Quero ajudar o aconselhado a planejar
balho aplicativo. O professor faz perguntas e
uma defesa apropriada contra estes ataques.
observações que poderiam passar desperce-
Aqui está um exemplo de tarefa prática para
bidas aos alunos. E até mesmo ensina coisas
estas funções:
novas, quando apropriado. Desta forma,
ŠŠAdvertência - uma tarefa que dou com
como um “especialista no assunto”, continuo
frequência é listar os pontos de pressão.
a ensinar meus aconselhados à medida que
Quero que o aconselhado identifique
eles aplicam aquilo que já aprenderam. Que-
onde as lutas estão acontecendo, e em
ro mencionar dois tipos de tarefas práticas
que ele está sendo tentado a ceder. E
ligadas ao ensino.
quero que ele considere a razão de
Em primeiro lugar, temos a “tarefa
ser particularmente vulnerável nesses
de interpretação bíblica”. O propósito desta
pontos. A discussão que resulta desta
tarefa não é apenas ajudar o aconselhado a
tarefa é muito útil para planejar a tarefa
pensar biblicamente a respeito da vida, mas
seguinte.
ajudá-lo também a aprender a desenvolver
ŠŠProteção - uma vez completada a tarefa um entendimento e uma interpretação bíbli-
de identificação dos pontos de pressão, ca válidos a respeito daquilo com que deve
costumo pedir ao aconselhado que lidar diariamente. Identificamos situações
trace um plano para enfrentar a tenta- que ainda geram dúvidas e lutas. Encontra-
ção naqueles pontos onde os ataques mos passagens relevantes das Escrituras que
costumam acontecer. Com frequência, resultam em tarefas. Peço ao aconselhado
depois que o aconselhado fez a tarefa e que faça quatro perguntas diante de cada
tivemos oportunidade de aprimorá-la texto bíblico:

88 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


ŠŠComo Deus descreve esta situação? É difícil exagerar quanto à importância
que as tarefas práticas tiveram no aconselha-
ŠŠQual o propósito de Deus nesta
mento de pessoas que Deus colocou no meu
situação?
caminho como Sílvia, Francisca e Antônio,
ŠŠO que Deus quer que eu faça? Juliana e João. As tarefas práticas não são
artigo supérfluo. Não são um acréscimo ao
ŠŠQuais os recursos que Deus me dá
processo normal de aconselhamento, mas
para isso?
uma parte vital do aconselhamento bíblico
Uma vez feita a tarefa, lanço mão efetivo. Seja para construir relacionamentos,
daquilo que ele aprendeu nas Escrituras e o coletar dados, confrontar o pecado, oferecer
ajudo a usar este conteúdo para interpretar consolo ou fazer aplicações concretas, as ta-
a situação que ele está vivendo. refas práticas são úteis. Elas mantêm o acon-
O segundo tipo de tarefa prática que selhado ativo e com o foco nas Escrituras;
dou no papel de professor é a “tarefa assunto elas chamam o seu coração ao engajamento
novo”. Esta tarefa resulta da identificação e o fazem responsável pelo próprio com-
de determinados assuntos que o aconse- portamento. As tarefas práticas fazem com
lhado não entende biblicamente. Estes que o aconselhado tenha participação ativa
assuntos podem ser finanças, sexo, trabalho durante todas as fases do aconselhamento.
e profissão, igreja local, criação de filhos, Elas reforçam o trabalho do conselheiro à
comunicação, vida devocional etc. Preparo medida que o aconselhado leva o conselheiro
estudos dirigidos apropriados à maturidade consigo para casa na forma de tarefas práticas
do aconselhado, e quero que ele tenha algum produtivas, sábias e que honram a Deus. Jay
trabalho de pesquisa antes de olharmos jun- Adams, falando sobre tarefas práticas disse:
tos para o assunto. Desde o começo eles (os aconselhados)
O alvo final do aconselhamento é agir, são exortados a fazer o que Deus espera deles,
ou seja, fazer de fato o que Deus me chamou à luz das Escrituras, e na dependência do
a fazer no lugar em que Ele soberanamente poder do Espírito Santo. O conselheiro não
me colocou. Para o conselheiro, agir significa faz o trabalho em lugar dos aconselhados.
ser um guia espiritual, ser amigo, pastorear, Ele os treina; ele é um pastor que conduz as
proteger e ensinar. As tarefas práticas são suas ovelhas. Os aconselhados é que fazem o
uma das ferramentas que o conselheiro trabalho. O conselheiro insiste em que eles
bíblico deve usar para alcançar seus alvos, aprendam a “desenvolver a própria salvação”
e as razões para tanto deveriam estar claras. (solução), mediante obediência a Deus e
Se o aconselhamento deve se mover em dependência de Sua ajuda. A tarefa prática
direção à ação, as tarefas práticas produzem coloca a ênfase onde ela realmente cabe — na
justamente isso. Elas exigem ação por parte responsabilidade do aconselhado diante de
do aconselhado. Elas exigem que ele assuma Deus e do próximo.12
responsabilidade pelas mudanças em sua
vida, e faça um trabalho árduo de investiga-
ção, estude, avalie, faça e refaça. Ao longo
do processo, o aconselhado fortalece seus ADAMS, Jay E. The Christian counselors manual. USA:
12

músculos espirituais e adquire disciplina. Presbyterian & Reformed, 1973. p. 306-7.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 89


Palavras que Edificam

Pa u l D . Tr i p p 1

Eu estava no segundo grau e em meu Inclui não apenas as palavras que dizemos,
primeiro emprego quando, pela primeira mas também aquelas que deixamos de dizer.
vez, enfrentei um grande problema fora do O falar que edifica diz respeito a estarmos
contexto familiar. Meus colegas de trabalho preparados para usar as palavras certas, no
estavam roubando e causando prejuízos à fir- momento certo, praticando domínio pró-
ma. Eu sabia quem era o culpado, mas meu prio. É não deixarmos que nosso discurso
chefe não sabia. Eu não queria me envolver seja dirigido pela impulsividade e pelos
com o que estava acontecendo e, muito me- desejos pessoais, mas comunicarmos tendo
nos, queria ser culpado de algo que eu não em vista os propósitos divinos. É colocarmos
havia feito. Embora eu soubesse que preci- em prática a fé necessária para ser parte
sava falar com meu chefe e, possivelmente, da obra que Deus está realizando naquele
com meus colegas de trabalho, eu estava com momento.
medo. Tomei coragem para conversar com
meu pai sobre o que estava acontecendo e ele Quando as palavras destroem
admitiu que eu precisava falar com as pessoas Embora João e Beatriz fossem pessoas
envolvidas. “Seja cuidadoso, filho. Escolha bastante perceptivas, eles nunca tinham sido
as suas palavra com cuidado”, foi o que meu capazes de resolver os problemas em seu
pai me disse. Uma maneira amável de dizer relacionamento. Na época em que come-
que eu precisava comunicar com propósito çamos a nos encontrar, as brigas conjugais
definido e domínio próprio. eram intensas. Nos últimos dois anos, João
O falar que edifica tem tudo a ver com havia saído de casa três vezes, por períodos
a escolha cuidadosa das nossas palavras. que variaram de duas semanas a um mês.
Beatriz havia saído uma vez para “férias
1
Tradução e adaptação de Speaking Redemptively prolongadas” na casa dos pais. Eu tinha
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. v. 16, diante de mim dois cristãos, casados há
n.3, Spring 1998, p. 10-18. vinte anos, com uma compreensão sólida

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 81


das Escrituras e boa percepção mútua, mas crítico e legalista. Beatriz presenciou sua
que ainda assim não sabiam resolver seus mãe sendo agredida verbalmente à mesa
problemas pessoais. do jantar, noite após noite, quando o pai
Quando nos encontramos pela pri- criticava os trabalhos domésticos, a comida,
meira vez, a tensão estava a ponto de gerar o vocabulário, a aparência, e mesmo a sua
faíscas. Ou melhor, poderia mesmo provocar voz (“esta ladainha estridente”). Várias noites
um incêndio! João estava tão irado que se Beatriz chorou até pegar no sono ou ficou
levantou imediatamente após minha oração pensando em como dar o troco ao pai por
e disse: “Eu não sei o que estou fazendo aqui! aquilo que ele fazia.
Sei exatamente o que há de errado em nosso No início do namoro, João percebeu
relacionamento. Já falei isso para Beatriz cen- que Beatriz tendia a ser extremamente sen-
tenas de vezes. Ela se recusa a ouvir e se faz sível e isto, algumas vezes, o irritava. Mas
de vítima. Eu não tenho interesse algum em havia outras características em Beatriz que
sentar-me aqui e repassar mais uma vez todas ele admirava, e então João tentou passar por
as coisas horríveis que aconteceram entre nós cima deste aspecto. Ele não tinha uma idéia
dois nos últimos vinte anos! Eu simplesmen- muito clara de que estava se unindo a uma
te não posso fazer isso!”. Com estas palavras, mulher amargurada, autoprotetora, medrosa
ele saiu. Eu pedi licença a Beatriz e segui João e determinada a fazer o que quer que fosse
até o carro para convencê-lo a voltar. para se manter a salvo do “inferno” vivido
Havia muita verdade no que João dis- pela mãe.
se. Ele realmente tinha uma boa percepção Os pais de João, por outro lado, tinham
dos problemas do seu casamento, e já havia um relacionamento maravilhoso e expres-
falado várias vezes com Beatriz sobre coisas savam regularmente o seu apreço um pelo
que ela simplesmente se recusava a ouvir. outro. Quando discutiam, eles costumavam
Ela costumava assumir o papel de vítima pedir perdão não somente um ao outro, mas
nos momentos de confrontação. João tinha também aos filhos que tivessem presenciado
sido forçado, vez após vez, a repassar cenas o desentendimento. Na família de João, os
horríveis ocorridas no relacionamento con- erros não eram considerados o fim do mun-
jugal. E ainda assim, com toda esta análise do, mas havia encorajamento para erguer-se
e conversa, ele estava bem longe de ser um e começar de novo. João sempre alimentou
instrumento de mudança na vida de Beatriz. a esperança de ter um casamento como o de
Na verdade, o fruto das palavras de João era seus pais. Ele sonhava com aqueles bons mo-
uma esposa cada vez mais amargurada e que mentos ao redor da árvore de Natal e, desta
se fazia de vítima. Apesar de toda a sua per- vez, ele estaria no papel de pai. Ele se casou
cepção, ele nunca atuava como participante com Beatriz com esta idéia em mente.
naquilo que Deus estava procurando fazer O casamento de João com Beatriz não
na vida de Beatriz. Muito pelo contrário, ele foi um erro da soberania de Deus. Usar o
atrapalhava a ação do Senhor e dava grandes relacionamento entre eles como canteiro de
oportunidades para que Satanás agisse. obras para o processo contínuo de santifica-
Tanto Beatriz quanto João haviam ção era parte do propósito sábio e redentor
trazido para o casamento uma bagagem de Deus. No contexto deste relacionamento,
que contribuía para seus problemas. O pai os corações seriam expostos e transformados.
de Beatriz era um homem tremendamente Mas João não se casou tendo em vista o plano

82 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


redentor de Deus; seus olhos estavam volta- Para começar, vamos olhar para o que
dos para os próprios sonhos. Beatriz também há de errado com João e Beatriz. Nossa fer-
não se casou tendo em vista o plano redentor ramenta de diagnóstico é o texto de Gálatas
de Deus; seus olhos estavam voltados para os 5.13-15.
próprios temores. Sendo assim, quando João Porque vós, irmãos, fostes chamados
viu seu sonho desmoronar e Beatriz começou à liberdade; porém não useis da
a ver seus temores se concretizarem, eles não liberdade para dar ocasião à carne;
reagiram com pensamentos nem palavras sede, antes, servos uns dos outros,
edificantes. pelo amor. Porque toda a lei se
Sim, João sabia que Beatriz estava cumpre em um só preceito, a saber:
sempre pronta a identificar críticas em suas Amarás o teu próximo como a ti
palavras, mesmo quando ele não as fazia. E mesmo. Se vós, porém, vos mordeis
Beatriz sabia que João estava sempre desa- e devorais uns aos outros, vede que
pontado porque a família real não condizia não sejais mutuamente destruídos.
com a família dos seus sonhos. Mas apesar de As três partes em que este texto se
toda a percepção que tinham do problema, divide podem nos ajudar a entender o que
a situação entre os dois foi se agravando no há de errado no relacionamento entre João
decorrer dos anos. A conversa que girava e Beatriz, particularmente na área de co-
em torno das dificuldades conjugais não fez municação.
nada além de acrescentar barreiras e maior
sofrimento. Ao invés de exigir mudanças na 1. “Não useis da liberdade para
vida um do outro, João e Beatriz precisavam dar ocasião à carne; sede, an-
aprender o que significava falar de modo tes, servos uns dos outros pelo
edificante frente ao desapontamento, à dor, amor”.
aos erros e ao pecado em experiências corri- Se você perguntasse a João e Beatriz se o
queiras neste mundo caído. relacionamento entre eles baseava-se em dar
ocasião à carne, ambos responderiam com
Por que as palavras destroem? um forte “NÃO”, mas estariam inteiramente
Como podemos entender a falta de errados. O relacionamento e a comunicação
habilidade de João e Beatriz para resolver entre eles não eram moldados pela lei do
os problemas em seu relacionamento? Qual amor. Faltava-lhes muito da postura de servo
é o caminho de mudança para eles? O que recomendada neste texto.
significa para eles, e também para nós, “es- Eles não costumavam perguntar a
colher as palavras certas” e falar “palavras Deus como poderiam ser um instrumento
que edificam”? útil para encorajar um ao outro ou apoiar a
Há um texto na Epístola aos Gálatas obra de Deus na vida um do outro. Eles não
que nos explica com clareza o relaciona- pensavam em como “estimular um ao outro
mento entre João a Beatriz. Este texto é ao amor e às boas obras” (Hb 10.24) nem
seguido por outro que aponta o caminho procuravam consolar, encorajar, admoestar
de mudança. Ambos definem o que significa e ensinar um ao outro. Eles não encaravam
escolher nossas palavras para que façamos as dificuldades como oportunidades para
parte daquilo que o Senhor está operando ministrar a graça divina nem buscavam
na nossa vida e na de outros. ajudar um ao outro a carregar os fardos

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 83


pessoais. Eles não escolhiam palavras que Cobiçais e nada tendes.” O relacionamento
encorajassem unidade, amor e ministério deste casal era um conflito constante porque
mútuo. João e Beatriz simplesmente bus- o coração de ambos estava governado pelos
cavam ser servidos - ele queria concretizar desejos da natureza pecaminosa. Tiago fala
seus sonhos, enquanto ela queria distância sobre desejos que lutam no nosso interior,
de seus medos. Desta forma, nenhum dos desejos que militam para estabelecer controle
dois estava procurando servir. sobre pessoas, recursos, “territórios”. A ba-
A esta altura, o texto de Gálatas é par- talha entre o desejo de uma família perfeita
ticularmente proveitoso, pois nos fala que e o desejo de autoproteção tomava conta
o oposto de servir em amor não é falta de do casamento de João e Beatriz. De acordo
amor e falta de serviço, mas a prática de dar com a descrição de Tiago, o resultado eram
ocasião à natureza pecaminosa! Temos duas contendas contínuas.
opções: vivemos como servos do Senhor,
aceitando o Seu chamado para servir aqueles 2. “Porque toda a lei se ­cumpre
que estão ao nosso redor ou vivemos para em um só preceito, a saber:
satisfazer os desejos da natureza pecaminosa, Amarás o teu próximo como a ti
esperando que os outros também colaborem mesmo”.
para nossa satisfação. Embora discordassem Este versículo também oferece insights
inicialmente deste ponto de vista, João e significativos para o caso de João e Beatriz.
Beatriz chegaram à compreensão de que O problema no relacionamento do casal
tinham entrado no relacionamento conjugal não era essencialmente horizontal (pessoa/
centrados em desejos egoístas. pessoa), mas vertical (pessoa/ Deus).
João estava correndo atrás do alvo de Se alguém considera o viver para a gló-
ter uma esposa e uma família perfeitas. Com ria de Deus como um alvo de vida mais im-
isso, ele logo ficou nervoso e desapontado portante do que buscar a realização pes­soal,
quando percebeu que Beatriz era um obs- e se o seu amor a Deus está acima do amor
táculo que o impedia de alcançar seu alvo. a qualquer outra pessoa ou coisa e também
Beatriz casou-se tendo como alvo pessoal do amor a si mesmo, então o seu objetivo
a autoproteção. O relacionamento e a co- prático será duplo: agradar a Deus em tudo
municação com João eram constantemente quanto fizer e falar tudo quanto Ele mandar.
dominados pelo foco voltado para si mesma E um fruto garantido deste compromisso
- “Como estou sendo tratada?”. Movida de coração com o Senhor é amar ao próxi-
por este alvo de autoproteção, ela analisava mo como a si mesmo. O primeiro grande
tudo quanto João dizia ou fazia e sempre mandamento sempre precede e determina o
conseguia encontrar algo que julgava ser cumprimento do segundo - ninguém pode
insensível, crítico, negligente ou “abusivo”. amar a seu próximo como a si mesmo se não
Desapontada, ela despejava então sua raiva amar acima de tudo a Deus.
contra João. Mais uma vez, o capítulo quatro de
Tiago 4.1-2 explica como os desejos de Tiago pode-nos ser útil. No versículo 4, em
João e Beatriz afetavam a dinâmica de seu meio à sua argumentação sobre as causas
relacionamento: “De onde procedem guerras e a solução do conflito humano, Tiago
e contendas que há entre vós? De onde, senão apresenta o conceito de adultério espiritual.
dos prazeres que militam na vossa carne? O adultério ocorre quando o amor que foi

84 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


prometido a uma pessoa é dado a outra. O necessária quanto uma mudança radical
adultério espiritual se dá quando o amor que em seu coração. Esta última é que alteraria
pertence a Deus é dirigido para algum outro profundamente a maneira de falarem um
aspecto do mundo criado (cf. Rm 1.25). com o outro.
Tiago diz algo extremamente proveitoso A questão principal não era o fato de
para que entendamos o relacionamento entre terem entrado no casamento com problemas.
João e Beatriz: os conflitos humanos têm Isto acontece com todos nós e, além do mais,
suas raízes no adultério espiritual! Quando o problemas fazem parte do próprio projeto de
desejo de determinada coisa assume o lugar Deus para o casamento. O mais importante
de Deus como força que controla o coração, dentre os relacionamentos humanos existe
o resultado será conflito em nossos relacio- primeiramente não para o nosso prazer, mas
namentos. Os conflitos têm raízes verticais como instrumento do processo contínuo
que frutificam na dimensão horizontal em de santificação que Deus está operando em
lutas e contendas. O amor a Deus que nos nós, a fim de sermos para o louvor da Sua
faz desejar cumprir a Sua lei sempre resulta glória. Não é por acaso que o relacionamento
em uma expressão prática de amor para com humano mais significativo (o casamento)
o próximo. acontece em meio ao processo mais impor-
tante da vida (a santificação). Deus planejou
3. “Se vós, porém, vos mordeis que fosse assim, para a Sua glória e para o
e devorais uns aos outros, vede bem de Seus filhos!
que não sejais mutuamente Seria um erro dizer que o casamento
destruídos”. de João e Beatriz chegou a este estado la-
Está última parte do capítulo 5 de mentável porque sobrevieram dificuldades
Gálatas é uma descrição bem apropriada fora do comum. O problema não estava
da comunicação diária entre João e Beatriz. em terem problemas. O âmago da questão
Eles mordiam e devoravam um ao outro era como os desejos do coração ditavam sua
com palavras. Seu diálogo nunca era cons- maneira de reagir um ao outro em meio
trutivo, fortalecedor ou encorajador. Muito aos problemas. Por estarem vivendo para si
pelo contrário, eles tinham habilidade para mesmos e não para Deus, eles mordiam e
ferir um ao outro. João conhecia os pontos devoravam um ao outro até quase o ponto
fracos e vulneráveis de Beatriz e atacava jus- de se destruírem. João estava expressando
tamente estes pontos sempre que olhava para dúvidas sobre a fidelidade e o amor de Deus,
Beatriz como obstáculo no caminho para a e Beatriz tinha deixado completamente de
realização de seu sonho. Beatriz sabia como ir à igreja. A fé de ambos jazia ferida sob os
ferir João: ela conseguia destruir a alegria ou destroços do conflito.
esperança do esposo com algumas poucas Hebreus diz que a Palavra é eficaz “para
palavras sagazes. discernir os pensamentos e propósitos do
As palavras do casal eram cheias de coração” (Hb 4.12). Gálatas 5 tem exata-
crítica e condenação, manipuladoras, amea- mente este papel na vida de João e Beatriz,
çadoras, carregadas de julgamento, egoísmo, revelando que seu relacionamento não era
malícia, exigência, aspereza e vingança. Elas governado pela lei do amor, mas pelos dese-
revelavam que uma mudança radical no jos da natureza pecaminosa. Visto Deus não
vocabulário de João e Beatriz não era tão estar no controle, eles viviam cada situação

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 85


procurando satisfazer os próprios sonhos, o reino de Deus os que tais coisas
desejos e exigências. Irados e desapontados praticam. Mas o fruto do Espírito é:
um com o outro, eles agrediam verbalmente amor, alegria, paz, longanimidade,
um ao outro. Suas palavras dilaceravam o benignidade, bondade, fidelidade,
relacionamento porque a fé em seus corações mansidão, domínio próprio. Con-
estava dilacerada. tra estas coisas não há lei. E os que
são de Cristo Jesus crucificaram a
O uso de palavras edificantes em carne, com as suas paixões e concu-
um mundo pecaminoso piscências. Se vivemos no Espírito,
João e Beatriz ajudam-nos a perceber andemos também no Espírito. Não
que falar de modo edificante não é apenas nos deixemos possuir de vanglória,
uma questão de escolha superficial de pala- provocando uns aos outros, tendo
vras certas, mas de um coração fundamen- inveja uns dos outros. Irmãos, se
talmente comprometido com a escolha de alguém for surpreendido nalgu-
palavras que promovam a obra de Deus em ma falta, vós, que sois espirituais,
determinada situação. Eles tinham perdido corrigi-o com espírito de brandura;
de vista a verdadeira batalha por trás das e guarda te para que não sejas tam-
contendas humanas. Pensando que sua ba- bém tentado. Levai as cargas uns dos
talha fosse contra carne e sangue, lutavam outros e, assim, cumprireis a lei de
um contra o outro para concretizar os sonhos Cristo. (Gl 5.16-6.2)
que haviam conquistado o domínio do seu Esta passagem provê, passo a passo, um
coração. Suas armas principais eram as pala- guia para descobrir o que significa o falar
vras. O que representaria para João e Beatriz que edifica. Lembre-se de que dizer palavras
falar de modo edificante nesta situação? que edificam não significa desconsiderar os
Gálatas 5 oferece-nos ainda outras problemas práticos da vida. Seria impossível
respostas proveitosas: ignorá-los, pois estão diante de nós diaria-
Digo, porém: andai no Espírito e mente. Pelo contrário, dizer palavras que
jamais satisfareis à concupiscência edificam significa lidar com estes problemas
da carne. Porque a carne milita con- de forma que promova os interesses do Rei,
tra o Espírito, e o Espírito, contra a conforme veremos a seguir.
carne, porque são opostos entre si;
para que não façais o que, porven- 1. Falar o que edifica tem início
tura, seja do vosso querer. Mas, se com o reconhecimento da luta
sois guiados pelo Espírito, não estais que há dentro de nós
sob a lei. Ora, as obras da carne são (veja versículos 16 e 17).
conhecidas e são: prostituição, im- Enquanto o pecado ainda habitar em
pureza, lascívia, idolatria, feitiçarias, nós, haverá uma guerra em nosso coração
inimizades, porfias, ciúmes, iras, (Rm 7.7-15; Ef 6.10-20; Tg 4.1-10). De-
discórdias, dissensões, facções, in- vemos estar sempre cientes deste conflito,
vejas, bebedices, glutonarias e coisas pois esquecer a presença e o poder do pecado
semelhantes a estas, a respeito das que habita em nós leva-nos imediatamente a
quais eu vos declaro, como já, ou- problemas em nosso falar. Este é o conflito
trora, vos preveni, que não herdarão verdadeiro, a base de qualquer outra batalha

86 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


que combatemos. Nunca devemos dar lugar Falar o que edifica significa dizer não
à idéia de que nossa guerra principal é contra para qualquer comunicação que flua destes
a carne e o sangue (veja Ef 6.10-12). desejos. O falar edificante não começa pela
Nunca devemos nos permitir olhar avaliação da situação, das necessidades da(s)
para nosso cônjuge, pai, mãe, filho, irmão pessoa(s) com quem precisamos falar nem de
ou amigo como o inimigo. Quando agimos trechos das Escrituras que possam nos dar
desta forma, nosso alvo logo passa a ser a discernimento quanto àquilo que devemos
vitória sobre quem está ao nosso lado, e o dizer. Não. Falar o que edifica tem início
falar que edifica sai de cena. Há somente um com um autoexame.
inimigo que está conspirando, manipulando,
tentando, enganado e usando disfarces para 3. Falar o que edifica signifi-
nos fazer esquecer da batalha verdadeira ca recusar-se a dizer qualquer
e para nos tentar a ceder aos desejos da palavra que seja contrária ao
natureza pecaminosa. Derrotamos a obra que o Espírito está procurando
deste inimigo quando falamos uns com os produzir em mim e nos outros
outros motivados por uma consciência ativa (veja versículos 16-18).
da verdadeira batalha espiritual em nosso Como cristão, o que há de mais impor-
interior. tante em minha vida é a conclusão da obra
de Deus em mim e nos outros “para o louvor
2. Falar o que edifica signifi- da Sua glória”. Em momento algum eu quero
ca nunca ceder aos desejos da impedir a obra de edificação de Deus nos
natureza pecaminosa em nossa menores detalhes da vida. Reconheço que,
conversação (veja versículo 16). no final das contas, estes momentos não per-
Todos nós lutamos contra uma varie- tencem a mim, mas a Ele. São laboratórios
dade de desejos conflitantes. Quando algo onde Ele opera a Sua obra de santificação.
dá errado, podemos ter o desejo de encontrar Minha tarefa é ser um instrumento útil nas
uma solução apropriada, de acordo com mãos dAquele que produz a edificação. To-
o propósito de Deus. Mas outros desejos das as vezes que eu falo com base nos meus
também estão atuando. Talvez queiramos desejos pecaminosos, estou comunicando de
avaliar de quem é a culpa ou nos afastar da modo contrário àquilo que o Espírito Santo
responsabilidade. Pode ser que sejamos leva- está procurando produzir em mim.
dos pelo desejo de relembrar todas as outras
vezes em que aquela pessoa falhou conosco 4. Falar o que edifica envolve
ou fazer com que a pessoa sofra tanto quanto disposição para examinar como
nós. Talvez queiramos compartilhar os erros as obras da carne estão presentes
desta pessoa com outra pessoa. Pode ser que na minha fala (veja versículos
fiquemos com ciúmes, achando que alguém 19-21).
mais está roubando a atenção que julgamos Se estou procurando viver de modo
merecer. Podemos nos sentir amargurados e coerente com a obra do Espírito em mim,
cheios de ódio para com alguém que tenha sem dar lugar ao inimigo, eu devo estar dis-
o costume de falhar conosco regularmente. posto a examinar minha fala com o espelho
Podemos ficar cheios de raiva. da Palavra de Deus. Quero que “as palavras

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 87


da minha boca e o meditar do meu coração” pessoas da igreja como obstáculo para aquilo
sejam agradáveis aos olhos do Senhor (Sl que eu queria, ao invés de vê-las como objeto
19.14). Procuro identificar as palavras de do chamado que eu havia tão alegremente
inveja, ciúme, orgulho, facção, dissensão recebido do Senhor. Posso me lembrar de
e divisão. Também procuro identificar as ocasiões em que recebia telefonemas e per-
palavras de cólera, raiva, malícia e ódio, e guntava à minha esposa “Quem é agora?!”.
ainda as palavras de egoísmo, justiça própria, Mas em seguida, respondia com um “Alô”
autoproteção e defesa, bem como aquelas amigável e pastoral.
que evidenciam impaciência, irritação, falta Um sábado à tarde, eu estava em casa
de perdão, longanimidade e bondade. Pro- com minha esposa e filhos, gozando momen-
curo identificar um falar que seja ríspido ou tos de descontração, quando recebi uma liga-
materialista. ção de um jovem desesperado. Ele já andava
Não examino a mim mesmo com uma desesperado há muito tempo e parecia ter
atitude de autocrítica mórbida que tende o dom de me ligar nos momentos errados.
ao desalento. Eu me examino com alegria, Estava sempre desanimado, sempre pedindo
reconhecendo que pela presença do Espírito ajuda, embora sempre oferecesse resistência
Santo que habita em mim, eu não sou obri- ao auxílio que lhe era oferecido. Nada pare-
gado a viver debaixo do controle da natureza cia funcionar para ele; dizia ter tentado de
pecaminosa (Rm 8.5-11). Com alegria, eu tudo, sem obter benefício algum. Ele estava
busco agradá-lO em todos os aspectos, em agora em um dos hotéis de baixa categoria
todas as situações! Quero falar de modo dig- da cidade, dizendo que daria fim à sua vida
no da vocação a que fui chamado (Ef 4.1). de uma vez por todas e cometeria suicídio
antes do fim dia a não ser que encontrasse
5. Falar o que edifica significa uma razão para viver. Eu descobri onde ele
dizer “não” a qualquer raciona- estava, pedi a minha esposa que orasse, e
lização, transferência de culpa entrei no carro para ir falar com ele.
ou discussão egoísta que possa Orei pelo caminho, e sabia que
servir de desculpa para um fa- minha esposa estava orando, mas havia
lar contrário à obra do Espírito uma batalha dentro de mim. Meus dese-
Santo ou que possa fazer com jos eram conflitantes! Eu realmente não
que este falar pareça apropria- gostava daquele rapaz - não gostava da sua
do ou aceitável para um crente postura, da voz lamurienta, da necessidade
(veja versículos 19-20). que ele tinha de ser o centro das atenções.
Eu era um jovem pastor de uma pe- Eu odiava o modo como ele havia des-
quena congregação que lutava para sobrevi- prezado cada conselho que eu havia lhe
ver, necessitada de muito aconselhamento. oferecido, e estava ressentido do tempo
Parecia-me impossível ter um momento que ele havia roubado da minha família e
quieto em casa sem que alguém não me de outras áreas do meu ministério. Agora
telefonasse em meio à maior e mais recente eu estava com raiva de ter que ir ajudá-lo
crise. Eu temia ouvir o telefone tocar à noite mais uma vez. Enquanto eu dirigia, meus
e temia ainda mais ouvir as palavras “Paul, é pensamentos agitavam-se em uma guerra
para você”. Embora eu não percebesse isto, entre preocupação pastoral e ressentimen-
cada vez mais eu olhava para determinadas to pessoal.

88 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Cheguei ao hotel, e nos sentamos em momento em que ela disse estas palavras, eu
um cômodo com aspecto sujo, cheirando a percebi com clareza minhas racionalizações
cigarro e suor. Ele despejou a ladainha de autoprotetoras e fiquei tomado de remorso.
reclamações costumeiras, e eu comecei a Mais tarde, Deus usou a confissão do meu
responder com verdades bíblicas. Foi então pecado e o conflito com aquele homem para
que ele me interrompeu e disse: “Você não começar a transformá-lo.
vai pregar o mesmo sermão de novo, não é Deus quer que atentemos não só para
mesmo? Você não tem nada novo para me o falar que se opõe à obra do Espírito, mas
dizer?”. Eu não podia acreditar no que estava também para as racionalizações pecaminosas
ouvindo. Lá estava eu, preocupado com ele que utilizamos para fazer com que o nosso
a ponto de dispor do tempo que teria com discurso seja aceitável à consciência.
minha família, e ele zombava do meu esfor-
ço para auxiliá-lo, sem mostrar nenhuma 6. Falar o que edifica significa
consideração! Perdi o controle, dei lugar à “andar no Espírito” no que diz
raiva que eu havia alimentado por semanas respeito às nossas palavras
e o agredi verbalmente, arrasando-o. Eu (veja versículo 25).
disse a ele exatamente o que eu e a igreja Andar no Espírito significa estar com-
pensávamos a seu respeito. Lancei sobre ele prometido com falar de modo coerente com
tanta culpa quanto pude e disse-lhe que devia a Sua obra em mim e que encoraje a Sua
acordar daquela mesmice e finalmente fazer obra em outras pessoas. Neste texto, a obra
algo de bom. Orei por ele (!) e saí. Eu estava do Espírito é apresentada com clareza. O
fervilhando enquanto voltava para casa. Espírito trabalha para produzir em nós um
No caminho para casa, não demorou fruto correspondente ao caráter de Cristo:
muito para que eu começasse a me condenar. amor, alegria, paz, longanimidade, benig-
Também não demorou muito para que eu nidade, bondade, fidelidade, mansidão e
começasse a racionalizar e criar argumentos domínio próprio. Andar no Espírito no que
para me desculpar. Chegando em casa, eu diz respeito ao falar significa que, por um ato
estava convencido de que havia falado como de fé e submissão, eu elevo o meu falar ao
um dos profetas do Antigo Testamento, padrão do fruto do Espírito e olho para as si-
proclamando um “assim diz o Senhor” em tuações difíceis da vida como oportunidades
meio ao pecado e à rebeldia. Eu havia me concedidas soberanamente por Deus para o
convencido de que Deus usaria aquele mo- amadurecimento deste fruto em mim, pela
mento dramático de revelação da verdade Sua graça. Dificuldades não são obstáculos
para gerar uma mudança permanente na para o desenvolvimento do fruto do Espírito,
vida daquele homem. Quando entrei em mas oportunidades para vê-lo crescer.
casa, minha esposa, que estivera orando, Anos atrás, havia um homem em nossa
perguntou-me o que havia acontecido. igreja que era particularmente crítico em
Contei-lhe que eu havia falado tão duro com relação ao meu ministério. Eu travava uma
aquele rapaz quanto eu nunca havia falado luta interior todas as vezes que via aquele
antes no meu ministério. Certifiquei-me homem ou mesmo pensava nele. Posso
de usar a analogia do profeta com minha lembrar-me de como ficava aliviado quando
esposa. Ela imediatamente disse: “Parece- chegava a alguma programação da igreja e
me mais que você ficou irado e falhou”. No descobria que ele não estava lá. Eu também

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 89


estava ciente de que ele não guardava consigo em primeiro lugar comigo mesmo, examinar
mesmo as suas opiniões. Ele havia começado o meu coração, confessar o pecado que estava
a reunir ao redor de si pessoas que concor- lá e decidir falar de modo condizente com
davam com ele. Nossa igreja não era grande, o fruto que o Espírito estava trabalhando
e assim o descontentamento foi ficando em mim.
cada vez mais evidente. Eu decidi que já era À medida que examinei meu coração,
tempo de pedir àquele homem para termos encontrei mais coisas que precisavam de
uma conversa. Contei a minha esposa que mudança do que eu havia imaginado. Meu
eu estava planejando falar com Pedro (nome problema não era apenas ódio e ira, mas
fictício), e ela imediatamente perguntou-me pecados ainda mais profundos. Boa parte da
o que eu estava pretendendo dizer. Enquanto minha motivação para o ministério não era a
eu compartilhava meus pensamentos com obra do Senhor, mas meu sonho pessoal.
ela, pude perceber que ela estava reagindo Eu sonhava ir para um campo ministe-
negativamente, e então perguntei o que havia rial difícil e ser bem sucedido como ninguém
de errado. Ela disse: “Antes de você lidar com mais. Eu sonhava ser altamente respeitado
ele, Paul, você precisa lidar consigo mesmo. por uma igreja em crescimento contínuo e,
Parece-me que você odeia este homem. Eu em pouco tempo, pela comunidade evangé-
não creio que algo bom possa resultar de uma lica inteira. Eu sonhava ver um crescimento
confrontação do erro de Pedro até que você numérico, construir instalações amplas e
lide com as próprias atitudes”. modernas e liderar a igreja mais dinâmica da
Eu queria crer que Luella, minha espo- região. Mais que tudo, eu sonhava ser visto
sa, fosse apenas mais uma entre as pessoas como a figura central em tudo isso.
que estavam me entendendo mal e julgando Eu odiava aquele homem porque ele
erradamente; mas não era de fato assim. estava certo! A maneira pela qual ele lidava
Ninguém havia dito palavras tão verdadeiras com suas preocupações a respeito do meu
quanto as dela. Eu odiava aquele homem. ministério não era correta, mas ele estava cer-
Odiava o efeito controlador que ele exercia to na percepção que tinha do meu orgulho.
sobre mim e também odiava o fato de ele ter Sim, eu gostava de estar no centro de cada
influenciado outros contra mim. Odiava o programação. Sim, eu queria ter a palavra
quanto a sua crítica provocava uma reavalia- final em cada assunto. Sim, eu ficava frustra-
ção constante de tudo quanto eu fazia como do quando as pessoas eram obstáculos para
pastor! Ainda odiava a maneira pela qual ele meus planos. Eu odiava o quanto as coisas
havia destruído meu sonho de ministério e andavam devagar e o quanto as pessoas eram
nossa igreja, bem como odiava o sorrisinho negativas. E eu lutava com Deus por ter-me
arrogante no seu rosto. Na verdade, eu não colocado em um ministério tão árduo.
queria lidar com ele. Eu simplesmente queria Aquele homem que eu odiava começou
vê-lo longe de mim! a ser um instrumento de resgate nas mãos
Luella tinha razão. Eu não estava em do Senhor. Por meio de Pedro, meus sonhos
condições de ser um instrumento do Espí- egoístas e arrogantes foram expostos e come-
rito na vida de Pedro. O meu falar não seria çaram a morrer. Sob o calor desta provação,
edificante. Eu decididamente não estava Deus revelou-me o pecado em meu coração
andando no Espírito no que dizia respeito a de uma maneira nova. À medida que gastei
este relacionamento, e precisava de fato lidar vários dias examinando a mim mesmo e a

90 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


situação, comecei a ser grato pelo homem que ele desse apoio aos meus sonhos. Mesmo
que eu havia odiado. Não se tratava de uma como pastor de Pedro, a última coisa que eu
gratidão pelo pecado de Pedro, mas por queria era ser um instrumento de edificação
como Deus o havia usado em minha vida. na vida dele. Até o momento da conversa
Assim que desenvolvi gratidão, comecei a com Luella, eu nem mesmo tinha conside-
ouvir o que Pedro tinha dito a meu respeito rado a possibilidade de ser um instrumento
e como ele havia falado. Percebi que havia útil ao Espírito para produzir fruto bom na
coisas que Deus queria que eu aprendesse vida de Pedro.
mesmo por meio daquele mensageiro irri- Afinal, quando a conversa com Pedro
tante. Finalmente, à medida que atentei para aconteceu, eu tinha uma disposição radical-
como ele comunicava seus pensamentos, mente diferente daquela que eu havia revelado
descobri muitas semelhanças entre ele e eu. inicialmente à minha esposa. Eu não queria
Pedro era orgulhoso, opinioso, pronto a falar mais “vencer”. Eu não queria mais que ele se
e impaciente. Eu odiava todas estas coisas, calasse e concordasse com os meus sonhos. Eu
mas descobri que elas estavam presentes em realmente desejava ser usado por Deus para
mim também. produzir o fruto do Espírito em Pedro. Ele
Naqueles dias, Deus me deu um amor chegou para a nossa conversa pronto para a
genuíno e pastoral por Pedro. Quando con- luta. Estava evidente que ele havia preparado
versamos, eu fui capaz de comunicar com ele as suas armas e ensaiado a defesa. Mas não
de modo paciente, amoroso, bondoso, paci- houve batalha. Eu lhe disse que estava agra-
ficador e com domínio próprio. À medida decido por suas percepções; que por meio
que refleti no bem que o Espírito havia feito dele o Espírito tinha de fato exposto o meu
em mim por meio de Pedro, eu até mesmo coração, e lhe pedi perdão. Antes mesmo que
fui capaz de estar alegre com a oportunidade eu tivesse oportunidade de falar a respeito
de ter aquela conversa difícil. dele, ele disse: “Paul, eu também errei. Para
Andar no Espírito quanto ao falar não ser honesto, eu deveria dizer que odiei você
significa somente falar de maneira consis- e que procurei oportunidades para criticá-lo
tente com o que o Espírito está fazendo diante dos outros. Eu estava irado com você
em mim; significa também falar de maneira e irado com Deus por ter-nos colocado nesta
que encoraje o crescimento do fruto na ou- igreja. Eu lhe peço perdão”.
tra pessoa. Sinceramente, eu não estava me Aquela noite, pela primeira vez em
importando com o fato de Deus me usar na muito tempo, Pedro e eu andamos no Espí-
vida de Pedro até que Luella mencionou isso rito em nosso falar, e o Espírito produziu um
para mim. Apenas duas coisas importavam novo crescimento em nós. Mas não deixe que
para mim: eu queria provar que Pedro estava a questão central passe despercebida: tudo
errado, e depois eu queria que ele saísse da começou com alguém que me confrontou
nossa igreja e me deixasse em paz! Eu tinha e encorajou a examinar o próprio coração
me deixado levar pela idéia de que a minha antes de confrontar Pedro. Andar no Espírito
luta era contra “carne e sangue” (Ef 6.10-12). quanto ao falar significa separar tempo para
Eu via Pedro com o inimigo a ser derrotado, ouvir, examinar, refletir e preparar. Significa
e tinha perdido de vista a batalha espiritual comunicar com base no compromisso de
que acontecia abaixo da superfície. Eu não participar da obra contínua do Espírito na
queria ser um servo para Pedro; eu queria nossa vida e na de outros.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 91


7. Falar o que edifica significa de Cristo desapontados que difamam seus
não dar lugar às paixões e aos líderes, todos estes estão dando lugar às
desejos da natureza pecaminosa paixões e desejos da natureza pecaminosa.
(veja versículos 24 e 16). O resultado é uma colheita de fruto mau:
Preste bastante atenção às palavras do relacionamentos quebrados, problemas não
versículo 24: “E os que são de Cristo Jesus resolvidos e complicações adicionais.
crucificaram a carne, com as suas paixões e Falar palavras moldadas pela emoção e
concupiscências”. Repare que este texto não por desejos da natureza pecaminosa é negar
está na voz passiva. Ele diz que quando acei- a promessa que Cristo fez de nos libertar do
tamos a Cristo, nós crucificamos as paixões domínio do pecado e também negar o nosso
e os desejos da natureza pecaminosa. Este compromisso de viver como pessoas que per-
texto leva-nos a considerar um aspecto do tencem a Ele. Falar de modo edificante significa
evangelho que com frequência é omitido. falar com base na capacidade de domínio
O evangelho é uma mensagem gloriosa que próprio concedida a nós por Cristo, Aquele
fala de consolo, perdão dos pecados, livra- que quebrou as cadeias de nossa escravidão ao
mento da condenação, restauração do rela- pecado e nos deu o dom de Seu Espírito que
cionamento com Deus, dádiva do Espírito habita em nós. Nossa boca pode ser instrumen-
e garantia da eternidade. Mas o evangelho to de justiça! Podemos dizer “não” às emoções
é também um apelo a abandonar a vida em e desejos da natureza pecaminosa.
conformidade com os anseios da natureza
pecaminosa para que possamos viver para 8. Falar o que edifica significa
Cristo. A salvação, no sentido mais amplo, ver os relacionamentos como
não se resume em receber consolo; ela inclui meio de restauração
também a resposta ao apelo de santidade. (veja capítulo 6, vs. 1 e 2).
O compromisso assumido de uma vez por Paulo diz:
todas com uma vida piedosa, crucificando as “Irmãos, se alguém for surpreendido
paixões e os desejos da natureza pecaminosa, nalguma falta, vós, que sois espirituais,
deve ser vivido em todos os nossos relaciona- corrigi-o com espírito de brandura”. Ele está
mentos e circunstâncias de vida, pelo poder mencionando uma condição que diz respeito
de Cristo em nós. a todos nós aqui na terra. Somos “surpreen-
Não há lugar onde este compromisso didos” em ira, orgulho, autocomiseração,
seja mais necessário que na área da comu- inveja, vingança, justiça própria, amargura,
nicação. Se formos humildes e honestos, cobiça, egoísmo, medo e falta de fé. Muitas
admitiremos que muito do que dizemos é vezes não estamos cientes de que caímos
guiado pelas paixões e desejos da natureza em pecado, nem mesmo sabemos como nos
pecaminosa e não por um compromisso com livrar. Há pecados aos quais somos cegos ou
a vontade e a obra de Cristo. Os maridos que constituem nosso campo de batalha em
que lançam em direção às esposas palavras particular. Haverá um dia em que as ciladas
de crítica carregadas de ira, as esposas que cairão por terra e estaremos com Cristo para
se entregam à murmuração e às queixas, sempre! Mas até aquele dia, precisamos re-
as crianças que explodem em ira contra os conhecer que nós, como pecadores, caímos
pais, os pais frustrados que agridem seus facilmente no pecado. Por isso precisamos
filhos com palavras, os membros do corpo uns dos outros.

92 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Paulo diz: “vós, que sois espirituais, responder como um restaurador que quer
corrigi-o com espírito de brandura”. Quando ser um instrumento nas mãos do grande
“andamos no Espírito” (verso 25), estamos Restaurador.
em condições de ser um dos instrumentos Quando um casal discorda mais uma
de restauração de Deus. vez a respeito daquele assunto já tão batido, é
Falar o que edifica significa permitir que hora de fazer algo mais que lamentar um ca-
esta disposição restauradora controle nossos samento que não funciona ou queixar-se do
relacionamentos. Todos nós somos tentados cônjuge que nunca se define. Eles precisam
a pensar que nossos relacionamentos nos descobrir onde estão sendo “surpreendidos”
pertencem. Tendemos a olhar para as outras e precisam reagir um ao outro não com uma
pessoas como se elas nos pertencessem. Os disposição de fazer exigências, mas de res-
pais caem nesta armadilha com seus filhos; taurar. A maior tarefa nos relacionamentos
mais tarde, na adolescência, quando os filhos humanos não é a procura da felicidade do
são mal-sucedidos, os pais são incapazes de homem, mas a reconciliação com Deus e a
superar a própria ira e dor para serem agen- restauração da imagem de Seu Filho.
tes de restauração daquilo que eles mesmos
promoveram! Maridos e esposas acreditam 9. Falar o que edifica significa
que é responsabilidade do cônjuge fazê-los falar com humildade e brandura
feliz. A vida passa a se constituir de uma série (veja capítulo 6, versículo 1).
de testes em que as pessoas são julgadas de Diante da fraqueza do próximo, da
acordo com a maneira de reagir a nós e com tentação e do pecado, as palavras ásperas
base em como elas nos afetam. Procuramos (“Por que você não dá um jeito na vida?”, “Se
receber respeito, amor, apreciação, aceitação você acha que vou arrumar a sua bagunça,
e honra adequados, e descobrimos que é di- está muito enganado!”) e orgulhosas (“No
fícil dar continuidade a um relacionamento meu tempo” ou “Não posso me relacionar
quando estas coisas não existem. com alguém que faz isso!”) simplesmente
Paulo está nos chamando a algo com- contradizem a mensagem do evangelho.
pletamente diferente. Esta nova disposição Nossa reação natural quando vemos
nos relacionamentos tem suas raízes no re- um irmão seduzido pelo pecado deve ser
conhecimento básico de que nossos relacio- de brandura. Devemos reconhecer que,
namentos não pertencem a nós, mas a Deus. não fosse pela graça de Deus, estaríamos
Uma vez que começamos a conceber nossos onde ele está. E então devemos responder
relacionamentos desta forma, percebemos com a mesma graça que recebemos. Deus
também a necessidade de restauração ao nos amou quando não éramos merecedo-
nosso redor. Por exemplo, quando você está res de amor. Ele nos perdoa a despeito de
em viagem de férias e as crianças começam pecarmos repetidas vezes. Na verdade, é
a discutir no banco de trás, há algo mais Seu amor que nos leva das trevas para a
acontecendo do que o simples fato de suas Sua maravilhosa luz. Mesmo enquanto
férias tão preciosas estarem sendo arruinadas! ainda lutamos com a realidade do peca-
A necessidade de restauração está se fazendo do, é vital que a nossa comunicação uns
sentir. Você pode reagir a esta situação como com os outros seja reflexo do amor de
um pai irritado, cujos filhos estão rouban- Cristo que nos constrange. Ele é nossa
do as férias dos seus sonhos, ou você pode única alegação persuasiva, nossa única

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 93


esperança. Apenas Ele é capaz de mudar 10. Falar o que edifica signifi-
nosso coração. Queremos falar de modo ca viver e comunicar tendo os
tal que leve as pessoas a depositarem es- outros como centro da atenção
perança nEle. (veja Gálatas 6.2).
Também estamos livres para falar A ilustração aqui é de pessoas cami-
com brandura porque abrimos mão com- nhando. Elas não estão fixando o olhar
pletamente da esperança de que o coração apenas naquilo que precisam carregar, mas
possa ser transformado por pressão, lógica olhando ao redor para identificar aqueles
e poder humanos. Em momento algum é que precisam de ajuda. Com as palavras
o volume da nossa voz, o poder das nossas “levai as cargas uns dos outros”, Paulo
palavras, o drama da situação, a criativi- apresenta-nos a sua intimação. Ele nos
dade das nossas ilustrações, a força do chama a olhar além do conforto, sucesso
nosso vocabulário, o fantasma das nossas e vantagens pessoais, de modo que enxer-
ameaças, a majestade dos nossos gestos o guemos as pessoas que estão lutando para
que provoca mudança nas pessoas. A bran- carregar seus fardos e dividamos com elas
dura flui do conhecimento da verdadeira o peso. Este é o método de Cristo.
fonte do poder. Deus pode usar palavras Também somos intimados a falar uns
pronunciadas em voz baixa para produzir com os outros movidos por esta mentali-
uma convicção tremenda em um coração. dade de “carregadores de fardos”. Quando
Sim, queremos pensar e falar adequada- vemos alguém que luta com sua fraqueza,
mente, mas somente porque queremos ser apontamos para a força que há em Cristo.
instrumentos úteis nas mão dAquele que Ao ignorante falamos com palavras de
produz de fato a mudança, e não porque verdade que transmitem sabedoria; ao te-
depositamos confiança na nossa habilida- meroso falamos do Deus que está sempre
de para produzir mudança. presente nas dificuldades; ao aflito pro-
Palavras de brandura não vêm de curamos oferecer palavras de conforto; ao
uma pessoa que está irada e querendo desencorajado procuramos levar palavras
decidir o placar. Vêm de uma pessoa que de esperança; ao solitário acolhemos com
está falando motivada não por aquilo que expressões do nosso amor e da presença
quer de você, mas por aquilo que quer de Cristo; ao irado apontamos um Deus
para você. Sou capaz de falar com bran- de retidão, vingança e justiça; ao que está
dura somente quando não falo motivado envolvido em conflitos procuramos falar
por dor, ira e amargura pessoal, mas por como pacificadores e reconciliadores; ao
um amor sacrificial que visa edificação. ansioso apontamos para o descanso que
Eu me dirijo a você não porque o seu Cristo deu aos Seus.
pecado me atingiu, mas porque ele está Falar de modo edificante significa
prendendo você em uma armadilha e eu escolher nossas palavras com cuidado,
desejo vê-lo livre deste laço. Não estou sem dar lugar às paixões e aos desejos da
em missão de confrontação egoísta, mas natureza pecaminosa. Não queremos in-
de resgate amoroso. E eu sei que, de certa duzir outros ao pecado por meio da nossa
forma, todos nós precisamos deste resgate própria vaidade e inveja. Também não
diariamente. queremos morder e devorar uns aos outros

94 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


com palavras, antes estamos comprometi- Que reavivamento, reconciliação e
dos em servir uns aos outros em amor por restauração radical aconteceriam em nossas
meio das nossas palavras. Queremos falar igrejas, lares e amizades se respondêssemos
em consonância com aquilo que o Espírito a esta intimação em cada relacionamento e
está procurando produzir em nós e nos situação! Quão diferentes as coisas seriam
outros, de modo compatível como Seu se estivéssemos firmemente comprometidos
fruto e que encoraje o crescimento deste com falar de modo edificante! Quão diferen-
fruto em outros. Finalmente, queremos te teria sido o relacionamento entre João e
falar em humildade e brandura, como Beatriz se eles tivessem atendido ao apelo de
agentes de restauração, como carregadores Deus para falarem um com o outro usando
de fardos comprometidos com viver pela palavras que edificam! Como é importante
lei do amor de Cristo. para nós a boa escolha das nossas palavras!

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 95


Cuidado com suas Palavras

E . B ra d l e y B e e v e r s 1

Recentemente, assisti a um filme de eu tivesse dito, um comentário impensado,


Disney chamado Aladim. Como bom expec- talvez feito sem intenção hostil, mas pecami-
tador, coloquei-me no lugar do herói. Mais noso, maldoso - ou até mesmo tolo. Se você
tarde, pensando sobre o filme, perguntei tivesse um cupom que lhe desse direito a ter
a mim mesmo o que eu pediria a Deus se um desejo atendido no final do dia, quantas
pudesse ter três desejos realizados. Imedia- vezes você o usaria para “desdizer” palavras
tamente, a história do sonho de Salomão que saíram da sua boca? Você poderia usar
veio-me à mente. Deus deu oportunidade esse cupom em diversas situações. Por exem-
ao rei para expressar um desejo, e ele pediu plo, digamos que você estava conversando
sabedoria para governar Israel. Será que eu informalmente e soltou uma piada boba ou
também teria desejado sabedoria? Mas eu um comentário que ofendeu outra pessoa.
não tenho a responsabilidade de governar Ou talvez você estava nervoso e acabou fa-
Israel como ele, pensei. Talvez eu desejasse lando demais. Ou então você estava em casa,
santidade. Por fim, acabei descartando da irritado, e se expressou de modo agressivo
minha mente estes pensamentos. com um colega, com o cônjuge ou as crian-
No entanto, alguns dias mais tarde, ças. Ou depois de cometer um erro, você
a idéia do “desejo” voltou-me à mente. Eu tentou se explicar; mas quanto mais você
havia pensado em algo que poderia pedir. falou, pior ficou a situação. A lista poderia
Desejei poder retirar alguma palavra que não ter fim. Como Tiago está certo em dizer
que “... se alguém não tropeça no falar é
perfeito varão, capaz de refrear também todo
1
Tradução e adaptação de Watch your Language! o seu corpo” (Tg 3.2)!
Publicado em The Journal of Biblical Counseling. v.12,
n.3, Spring 1994, p. 24-30.
As Escrituras advertem-nos quanto
a levar a sério as nossas palavras. Trata-se
E. Bradley Beevers dirige um centro de discipulado
e é candidato a PhD no Westminster Theological de uma batalha contínua, ao longo da vida
Seminary. cristã. Jesus descreveu o dia do julgamento

96 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


final como aquele dia em que os homens torpe; no seu significado correto, refere-se
darão conta “de toda palavra frívola que pro- a um ato divino. Deus condena o perver-
ferirem...” (Mt 12.36). O uso que fazemos so. Quando o mundo usa esta palavra no
das nossas palavras, disse Jesus, estabelece a sentido imprecatório, banaliza e zomba do
diferença entre o salvo e o perdido. “Porque, julgamento divino. Outro exemplo poderia
pelas tuas palavras, serás justificado e, pelas ser o uso que os crentes fazem dos termos
tuas palavras, serás condenado” (Mt 12.37). “Deus”, “Senhor” ou “Jesus” em expressões
As palavras são muito importantes, pois elas vulgares de surpresa ou irritação.
revelam quem de fato somos. As árvores Escolhi, deliberadamente, dois exem-
boas produzem frutos bons, enquanto que plos que esclarecem como uma cosmovisão
as más, frutos maus. Cada um revela o que pervertida faz de uma expressão comum uma
há no seu interior: “... a boca fala do que está imprecação. “Maldito” ou “Deus” são pala-
cheio o coração” (Lc 6.45). Por conseguinte, vras que podem ser usadas indevidamente ou
Paulo exorta aqueles que se despiram do de maneira correta. No entanto, a maioria
velho homem para que não deixem sair da das palavras obscenas ou expressões vulgares
sua boca “nenhuma palavra torpe, e, sim, não são tão flexíveis assim; elas são sempre
unicamente a que for boa para edificação, blasfemas ou pervertidas. Carregam uma
conforme a necessidade, e assim transmita cosmovisão “embutida” nelas mesmas. Tais
graça aos que ouvem” (Ef 4.29). expressões comunicam por si só rebeldia e
Conversa torpe não consiste apenas incredulidade - não naquilo que descrevem,
em falar quando você deve ficar calado ou mas na interpretação implícita na descrição.
em dizer alguma coisa da qual venha a se Por exemplo, a maioria das expressões obs-
arrepender logo em seguida. Algumas coisas cenas expressam hostilidade e/ou atitudes
que dizemos são más por outras razões. Por imorais por meio de termos baseados nas
exemplo, em algumas conversas, determina- funções naturais do corpo humano. Aquilo
mos o que é bom ou mau perguntando-nos que descrevem foi criado por Deus; a inter-
quando, para quem, em que circunstâncias, pretação maldosa avilta e perverte aquilo que
com que tom de voz falamos alguma coisa. Deus criou. Não há como usar corretamente
Por outro lado, fazemos distinção entre uma estas palavras. Elas devem ser simplesmente
“conversa obscena” e outros tipos de conver- evitadas. As Escrituras reconhecem esta
sa. A “conversa obscena” é intrinsecamente cosmovisão pervertida: “Ninguém que fala
má. Não é uma questão de dizer algo na pelo Espírito de Deus diz: Jesus seja amal-
hora errada ou à pessoa errada. Este tipo de diçoado.” (1Co 12.3)2. Há exemplos que
“conversa torpe” é sempre errada e deve ser talvez nem devam ser mencionados, pois
sempre evitada pelo crente. “o que eles fazem em oculto, o só referir é
Pense nisto. A linguagem obscena é vergonha” (Ef 5.12). Os cristãos, em geral,
torpe, sempre, e os cristãos estão certos em identificam este vocabulário como expressão
evitar o seu uso. Mas afinal, o que faz esta de uma cosmovisão incrédula e, corretamen-
linguagem ser torpe? Não é o fato dela se re- te, consideram o seu uso pecaminoso.
ferir a coisas que não deveríamos mencionar.
Ela é torpe porque expressa uma cosmovisão
pervertida, blasfema ou fortuita. Por exem- 2
O Novo Testamento. Nova Versão Internacional da
plo, “maldito” não é sempre uma palavra Sociedade Bíblica Internacional.

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 97


Mas palavras “obscenas” não são as úni- baseado em uma visão mundana contrária
cas expressões baseadas em uma cosmovisão ao cristianismo. Mas agora vamos lidar com
incrédula. Muitas das nossas descrições e de- um caso um pouco menos óbvio: como as
finições mais comuns concordam sutilmente pessoas usam as palavras para diminuir a
com a maneira de pensar do incrédulo. responsabilidade por seu comportamento.
Assim como as imprecações, os eufemismos Primeiro, considere como o mundo costu-
também trazem uma cosmovisão implíci- ma se referir aos pecados óbvios. Vivemos
ta. Quando o mundo chama adultério de em uma sociedade onde gastar demais é
“caso”, será que não está torcendo a descrição comum. No entanto, dificilmente usamos
para eliminar qualquer avaliação moral e a palavra cobiça para descrever este tipo de
indignação? E a palavra substituta não foi comportamento. Trata-se simplesmente de
pega por acaso no dicionário. Adultério um estilo de vida “confortável”. Padrões de
lembra pecado; caso lembra quase um di- desobediência são “problemas”, e não peca-
vertimento. O mundo está constantemente dos. Reclamar ou murmurar são maneiras
procurando uma maneira de fazer com de dizer “o que eu estou sentindo” ou de
que o seu comportamento pareça normal, “ser honesto”. Às vezes, até mesmo na igreja,
aceitável e correto. Substituindo fornicação falamos mal de alguém e chamamos isso de
por “transa”, ele elimina qualquer senso de “compartilhar” ou “pedir um conselho”, em
desaprovação. “Sexualmente ativo” sugere vez de maledicência ou calúnia.
que abstinência é sinônimo de passividade Compreenda o que está acontecendo
ou fraqueza. O que antes era sodomia (men- aqui. Palavras não apenas descrevem, mas
cionada inicialmente em Gênesis 19) veio a interpretam. Quando usamos uma palavra
ser “homossexualidade”, em seguida “gay”, como maledicência, muitas imagens e exor-
e depois uma mera “preferência sexual” ou tações bíblicas vêm à nossa mente - e é certo
“estilo de vida alternativo”. Atualmente, que venham! Quando tentamos descrever a
até mesmo a indignação moral contra estas mesma atividade de maneira mais “neutra”,
perversões é rotulada pejorativamente de o que fazemos, na verdade, é uma descrição
“homofobia”. não-bíblica. As categorias descritivas de
Deus não são neutras. Uma mente cienti-
Um passo à frente ficamente orientada pode nos condicionar
Esses exemplos são bem conhecidos a pensar na neutralidade como apropriada.
e o preconceito que expressam para com a Mas não é assim que deve ser. Vivemos em
Bíblia é obvio. Os cristãos devem vigiar as um universo que ecoa a voz de Deus. Tudo
suas palavras (e frequentemente o fazem) quanto Ele criou e governa expressa a Sua
para que não reforcem a perspectiva mun- glória e manifesta a Pessoa de Deus. Na
dana nem se rendam sutilmente a ela. Mas verdade, “neutralidade” é uma rendição à
vamos dar um passo à frente. Todas as áreas incredulidade. É uma recusa a falar e pensar
em que a rebeldia e a incredulidade são de acordo com a perspectiva de Deus. Falar
expressas em forma de palavras devem ser com “neutralidade” é falhar na proclamação
igualmente confrontadas. Até aqui, eu não da verdade de Deus a um mundo perdido
ataquei aspectos sutis do linguajar. Aquilo e deixar de convocá-lo ao arrependimen-
que definimos como expressões blasfemas to. Será que não estamos proclamando a
e “politicamente corretas” está obviamente verdade de Deus e Sua perspectiva quando

98 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


usamos o termo adultério ou fornicação em (esvaziada de valor em termos descritivos)
lugar de usar uma linguagem mais neutra como “abalo emocional”. Padrões pecami-
com um colega de trabalho? Ou será que o nosos que geram contendas são chamados
termo “estilo de vida alternativo” não tem a de “conflitos de personalidade” (a respeito
função de suavizar a consciência e silenciar dos quais nada se pode fazer). Hábitos
a condenação de Deus? O nosso falar deve escravizadores pecaminosos são chamados
afirmar a interpretação de Deus, opondo-se de “doenças”, “compulsões” (irresistíveis),
ao pensamento rebelde do mundo. Não “vícios”. Tais termos ignoram a perspectiva
somos “neutros”; somos a favor de Deus. Os de Deus acerca destas experiências humanas,
incrédulos também não são “neutros”; eles e fazem com que a maneira de pensar do
são contra Deus. O nosso falar deve refletir mundo sobre emoções, ações ou opiniões
esta verdade de tal maneira que “quer comais, pareça normal ou mesmo natural. Os passos
quer bebais, ou façais outra cousa qualquer, para o distanciamento de uma perspectiva
fazei tudo para a glória de Deus”. bíblica são frequentemente sutis. Eu só
A linguagem do mundo subestima a estava “mal-humorado” - não fui grosseiro
responsabilidade pessoal quando descreve nem expressei ódio ou falta de amor. Estou
padrões emocionais e de comportamento. “desencorajado” - não perdi a verdadeira
Estes são assuntos importantes que têm perspectiva nem vacilei na fé. Estes exemplos
recebido a atenção popular. Mas quando mostram claramente que não há como falar
descreve um comportamento sexual, o mun- de maneira neutra. Procurando ser neutro, o
do muda os termos para que a atenção não incrédulo está na verdade tentando justificar
recaia sobre a responsabilidade pessoal e o o seu comportamento pecaminoso. A assim
pecado. Primeiro, o mundo desvia a atenção chamada neutralidade é um pretexto para
da responsabilidade pessoal falando como se ódio e rebeldia para com Deus.
a situação, e não a pessoa, fosse responsável Mas espere um pouco. Nós ouvimos
pela ação. “Isso me deixou muito irado”. “O expressões semelhantes a estas não só no
comportamento dele deixou-me amargurado”. trabalho, mas na igreja também. Preci-
“Você é tão irritante”. “O sofrimento intenso samos saber mais a esse respeito. Por que
tirou-me o desejo de seguir a Deus”. Suposta- esses termos são tão populares? O que há
mente, nada podemos fazer quanto às nossas de atraente neles? Uma possível explicação
reações. Desde que elas são resultados diretos é que as descrições neutras são atraentes aos
da situação, elas se tornam parte da própria incrédulos porque elas justificam sua rebel-
situação. Não há como escapar. dia. Elas fazem o pecado parecer normal.
Segundo, o mundo desvia a atenção da Naturalmente, essa dinâmica pecaminosa
pecaminosidade da situação buscando uma atrai também o crente. Ela alimenta desejos
descrição “neutra” da experiência. Por exem- carnais de autocomiseração e justiça própria.
plo, os cristãos reconhecem a diferença entre Mas há uma outra razão a ser considerada.
falta de esperança, tristeza, culpa, medo, ira Frequentemente, fatores circunstanciais,
e aflição. Biblicamente, são distintos. Cada lutas pessoais, tentações, pensamentos,
descrição refere-se a algo específico, e cada desejos, anseios e experiências podem ser
uma destas emoções pode ser facilmente descritos em detalhes vívidos. “Sexta-feira
inserida em um contexto moral. O incrédu- à tarde, após uma semana estressante, meu
lo as reúne todas em uma categoria neutra chefe chamou-me em seu escritório. Em

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 99


cinco minutos eu estava despedido, sem amargura, a ira e a frustração; poderia fugir;
muitas explicações. Eu não sabia bem o que deixar o emprego sem mais falar com ele;
fazer. Nem mesmo me lembro do momen- poderia alimentar em meu coração amargura
to em que saí da sala. Eu queria sair dali e ódio. Ou então eu poderia fazer o que
correndo; eu queria bater nele. Eu queria Jesus teria feito: ser gentil, retribuir o mal
desistir de tudo. Eu simplesmente sentei à com o bem, orar por ele. Eu poderia voltar
minha mesa em estado de choque. Eu estava na segunda-feira, bem disposto, e limpar a
transtornado. Que ousadia! Passei os três minha mesa”.
dias seguintes dividido entre o desânimo e o Qual a diferença básica entre as duas
desejo de matá-lo. Eu não conseguia dormir. descrições? Você já sabe. A primeira preten-
Não conseguia pensar em nada mais. Foi dia ser neutra, mas na verdade expressou
um tremendo choque. Eu precisava parar de as tendências da carne. Ela ignorou tudo
pensar nele, pois cada vez que isso acontecia quanto diz respeito à vida cristã: o propó-
eu ficava ensaiando o que eu deveria ter dito sito de Deus, Sua perspectiva, a natureza
a ele, e eu tremia de raiva”. espiritual da tentação, a luta em busca de
Ouvimos esta descrição e pensamos: esperança e da resposta correta, a solução
“Foi assim mesmo!”. A precisão é impres- para o problema. No processo, a primeira
sionante. Mas cuidado! “Esse homem de descrição sutilmente justificou a ira e a
fato entende o que significa passar por isso!” depressão, fazendo-as parecer naturais. E
Cuidado! Estas descrições são seletivas. As de certa forma, tais reações são muito natu-
respostas naturais ou carnais são retratadas rais. Mas desde que Cristo nos salvou, não
em grandes detalhes. As lutas espirituais não. somos mais como o “homem natural” que
Detalhes vívidos não são neutros; eles trazem não entende as coisas do Espírito de Deus.
uma visão secular implícita. Uma descrição precisa é importante; as lutas
A descrição daquela sexta-feira à tarde espirituais precisam ser descritas em detalhes
poderia ter sido muito diferente. “Quando vívidos para que o nosso ensino seja prático e
eu saí daquele escritório, fui tentado a extra- reflita a realidade da vida. No entanto, uma
vasar a ira como nunca antes nos três anos descrição exata inclui uma interpretação exa-
em que trabalhei lá. Eu estava em estado ta. Precisamos compreender corretamente o
de choque. Lembro-me vagamente de ter quadro todo.
balbuciado uma oração pedindo ajuda, ao
mesmo tempo que eu repassava em minha Um exemplo para estudo:
mente aquilo que ele havia dito e lutava com “Estou mal”.
minha ira. De repente, as passagens bíblicas Como você pode começar a identificar
que eu havia memorizado vieram à minha a linguagem torpe e se arrepender de seu uso?
mente de maneira clara: ‘Deus não permitirá Comece um passo por vez. Vamos trabalhar
que sejais tentados além das vossas forças; um exemplo específico. Os cristãos deveriam
pelo contrário, juntamente com a tentação, usar a expressão “estou mal?”. “Estar mal”
vos proverá livramento, de sorte que a possais é uma maneira neutra de expressar tristeza
suportar’. A situação ficou clara aos meus ou depressão, que pode ser traduzida como
olhos, como se o Senhor tivesse acendido a falta de esperança ou fé, como uma maneira
luz em um quarto escuro. Eu sabia que estava de focalizar em situações desagradáveis em
em uma encruzilhada. Eu poderia nutrir a vez de se concentrar no cuidado soberano

100 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


de Deus, ou ainda como uma murmuração. específicos nos dão informações cruciais
“Estou mal” tira qualquer indício de que haja sobre a pessoa, permitindo-nos saber como
uma problema moral envolvido na emoção. melhor lidar com a situação dentro de uma
A maioria de nós ficaria muito surpreso se perspectiva bíblica. O mundo não tem essa
um amigo nos dissesse que deveríamos nos visão. Quando alguém “está mal”, o mundo
arrepender quando compartilhamos que não pode oferecer nada além de inúmeras
“estamos mal”! No conceito popular, não expressões de compaixão e um fraco “tudo
ficamos “mal” porque há alguma coisa errada vai dar certo” na melhor das hipóteses. Não
conosco. Nós simplesmente ficamos desse há esperança de mudança verdadeira de vida
jeito. Algo está errado na situação; nós esta- nem de uma melhora futura.
mos reagindo normalmente. Isso vale para Será que a Bíblia não fala da expe-
todos nós, quando falamos com pessoas que riência de “estar mal” focalizando especi-
“estão mal”. Costumamos perguntar “O que ficamente a pessoa, Deus e aquilo que é
aconteceu?”, em vez de perguntar “Por que certo, em vez de olhar simplesmente para a
você está reagindo assim à situação?”. situação? Observe, por exemplo, os Salmos
Há outras coisas a considerar sobre 42 e 43. Quando o salmista está “abatido” e
esse termo. Primeiro, ele é vago. As emoções “perturbado”, não é porque ele parou de ir à
descritas são amplas - depressão, ira, falta de casa de Deus com a multidão de adoradores.
esperança, tristeza, aflição, ressentimento, Não é porque ele está sendo oprimido pelos
culpa, autocomiseração. Segundo, a expli- inimigos, homens fraudulentos ou injustos.
cação do porquê nos sentimos dessa ma- Essas coisas estão acontecendo. Mas a causa
neira é inadequada. O foco recai quase que da angústia é que a sua alma não está es-
exclusivamente sobre a situação; nenhuma perando em Deus. Ele não descreveria a si
atenção é dada aos demais pensamentos ou mesmo como alguém que “está mal”. Ele vê
sentimentos que nos levaram a “estar mal”. a situação de maneira mais clara: “Por que
Poderíamos traçar o seguinte diagrama: estás abatida, ó minha alma? ...Espera em
Situação  Emoção. O termo central e cru- Deus”. O foco do Salmo é que o salmista
cial é omitido: Situação  Pessoa  Ação. tem sede de Deus assim como a corça suspira
Mais uma vez, isso é neutralizar! Quando por água corrente.
omitimos o termo “pessoa”, não faz dife- Que quadro diferente do quadro de
rença se a situação atinge um crente ou um transferência de culpa e autocomiseração da
incrédulo, o próprio Senhor Jesus ou o pior linguagem do mundo! O vocabulário que
dos pecadores. Certo ou errado deixam de o salmista usa indica um estudo cuidadoso
ser categorias relevantes. Mas isso não é nem do seu coração, a descoberta do verdadeiro
de longe verdadeiro no que diz respeito aos problema e a busca de uma solução em
termos mais específicos que listamos ante- Deus. Esse vocabulário deve ser o seu alvo!
riormente. Quando uma pessoa diz que está O seu falar deve não apenas evitar a lamú-
triste por causa da morte de seu pai, sabemos ria desagradável do mundo, mas expressar
que ela está triste porque sofreu uma perda. com precisão a sua situação espiritual e sua
A reação é boa. Se aquela pessoa dissesse reação. Já descrevi esse tipo de atitude em
estar sem esperança, deprimida ou imersa alguns exemplos que mencionei acima. Mas
em autocomiseração por causa dessa morte, este é apenas o começo! Precisamos de um
nossa reação deveria ser diferente! Termos vocabulário completamente cristão; devemos

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 101


agir como cristãos em cada detalhe da vida. que as nossas palavras, assim como as nossas
Isso não quer dizer que inventamos e inter- ações, apliquem os ensinos da Bíblia.
nalizamos uma atitude de “super-crentes” Vejamos um exemplo. Roberto e Su-
que nos faz menos acessíveis ao mundo. sana saem para uma caminhada no campo.
Nosso alvo é usar palavras que proclamam a Sem querer, esquecem um dos cantis no
verdade de Deus a respeito de nós mesmos e carro. O dia está quente e a trilha é difícil.
do Seu universo - uma linguagem que evita a Depois de aproximadamente uma hora e
maneira enganosa de falar do mundo. meia, a água disponível acaba. Eles conti-
nuam a caminhada na montanha, mas não
Um outro exemplo para estudo: há nenhuma bica à vista. Eles prosseguem
“Porque”. por mais uma hora e avistam uma placa de
Porque. Trata-se de uma palavra tão sinalização. Roberto descobre, então, que ele
simples, mas de muito conteúdo. Usamos deixou passar a entrada de retorno há cerca
esta palavra quando queremos falar sobre o de 45 minutos. Susana diz: “Ótimo. Que di-
que causa o nosso comportamento ou nos vertido! Obrigada por ter-me trazido aqui”.
motiva a fazer algo. Por que eu fiz aquilo? Roberto, um pouco surpreso com o sarcasmo
Eu fiz porque ... A Bíblia fala alguma coisa dela, decide não responder. Susana percebe o
sobre o porquê agimos como agimos? Ela que disse e tenta se explicar: “Desculpe-me.
nos ensina o que causa nossas reações? Sem Eu disse isso apenas porque...
dúvida que sim. Nossas ações revelam as ŠŠestou muito cansada. Não ligue para
motivações que há no nosso coração. Se os isso”.
pensamentos e as intenções do coração são
ŠŠeu sou assim mesmo. Às vezes sou
maus, então nosso falar e comportamento
um pouco ríspida. E apenas minha
refletirão isso; se o nosso coração for puro,
maneira de me relacionar. Não é nada
nossas ações serão puras. Embora eu esteja
com você”.
dando um resumo rápido, tudo o que a Bí-
blia diz sobre causas e motivações encaixa-se ŠŠeu sempre fui tratada assim na minha
nesta estrutura. família, e agora faço o mesmo”.
Esta é a questão básica. Todas as nossas
ŠŠmeu dia está péssimo hoje. Esse é o
palavras, assim como todas as nossas ações,
problema”.
refletem obediência ou desobediência a
Deus. Linguagem torpe é aquela que comu- ŠŠé horrível ficar sem água, sentir calor e
nica o que é falso ou impiedoso. As palavras estar perdida. Eu só estou chateada”.
retratam uma cosmovisão e expressam (ou
ŠŠsó estou falando o que eu sinto”.
nos traem ao expressar) o que acreditamos
na prática. Nossas ações revelam aquilo em É possível até imaginar estas respostas
que acreditamos. Lucas 6.45 ensina-nos cla- sendo dadas. Mas qual delas está certa? Qual
ramente a este respeito: “O homem bom do delas você esperaria receber de um crente
bom tesouro do coração tira o bem, e o mau, naquela situação? Dê uma olhada novamente
do mau tesouro tira o mal; porque a boca fala para a lista. Quais respostas são razoáveis?
do que está cheio o coração”. Não podemos A resposta correta é nenhuma delas. Por
nos esconder; as nossas palavras revelam quê? Porque nenhuma oferece uma explica-
quem somos. A nossa tarefa é fazer com ção bíblica adequada para o comportamento

102 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


de Susana. A maneira ríspida com que Susa- água, então sairá água. O mesmo acontece
na dirigiu-se a Roberto é errada; é pecado. com o crente. Se você está cheio da vida
Talvez o cansaço, o pano de fundo familiar de Cristo, você responde às circunstâncias
ou os hábitos de relacionamento possam desagradáveis de maneira que evidencia a
ser fatores de influência. Eles certamente Cristo. Se você está cheio de desejos egoístas
moldam as tentações específicas que Susana e mundanos, o seu comportamento reflete
enfrentou. Mas eles não explicam o porquê tais desejos. 2Coríntios 4.6-18 ensina isto
ela respondeu com frustração. Susana é certa- com clareza. Temos o tesouro da luz do
mente singular em seu cansaço, no calor, na conhecimento da glória de Deus que brilha
família de origem ou no “dia péssimo”. Mas nos nossos corações, um tesouro contido
em termos bíblicos, nenhum desses fatores em vasos de barro. Visto que contamos
causam o seu comportamento pecaminoso. abundantemente com o poder de Deus,
Nenhum deles nos dá o porquê dela ter sido quando somos “pressionados”, não ficamos
ríspida. Portanto, ela não deveria dizer “Eu angustiados, desamparados nem destruídos.
agi assim porque...,” e completar a frase com Antes, a vida de Jesus revela-se em nosso
razões que na verdade são desculpas. corpo mortal. Não ficamos desanimados,
Lembre-se de que vimos que o sal- pois embora o nosso exterior se desgaste, o
mista refletiu sobre o seu comportamento nosso interior renova-se a cada dia. Os nossos
e estudou o que estava acontecendo. Tente problemas leves e momentâneos produzem
imitá-lo. Tente ver a situação de Roberto e eterno peso de glória, pois aguardamos
Susana de um ponto de vista cristão. O que ansiosamente pelas coisas eternas que agora
“causou” o comportamento? Você se lem- não vemos.
bra do nosso diagrama? Situação Pessoa As circunstâncias espremem a esponja,
 Ação (no diagrama anterior, o terceiro e a tinta sai. Por quê? Há duas possíveis res-
item era emoção; neste, comportamento). postas: (1) porque a esponja foi espremida (a
A Bíblia nos ensina que o comportamento razão da tinta sair); ou (2) porque havia tinta
de Susana não procede da situação, mas da na esponja (a razão de sair tinta). A resposta
pessoa que reage à situação. Sendo assim, a bíblica à pergunta “por quê?” é a segunda.
pergunta “por quê” não deve ser respondida Deus está interessado no porquê saiu tinta,
com referência à situação, mas com referên- em vez de sair alguma outra coisa. E Ele tem
cia à pessoa. Por que Susana expressou seu uma boa razão! Ele está interessado na ques-
mau-humor com sarcasmo? Não é porque ela tão central a respeito de Susana. A questão
estava com calor ou sede. É porque ela não não é saber o porquê Susana reagiu. Sabemos
queria o transtorno e o incômodo de estar que ela reagiu porque é um ser humano vivo
com calor e sede. que se expressa! Mas a questão real é saber o
Quero dar uma ilustração simples que porquê Susana reagiu daquela maneira. Por
aprendi quando criança, na escola dominical. que aquilo foi exteriorizado? As explicações
Uma pessoa é como um esponja; as circuns- de Susana, listadas acima, são várias maneiras
tâncias da vida espremem a esponja. O que de dizer “a tinta saiu porque eu fui pressio-
sai de uma esponja quando você a espreme? nada”. A explicação bíblica é sempre “a tinta
Bem, isso depende daquilo em que ela está saiu porque havia tinta lá dentro”. Palavras
banhada. Se a esponja estiver ensopada de duras e pouco amáveis não têm como causa
tinta, sairá tinta; se ela estiver ensopada de o calor excessivo, a falta de água, o cansaço,

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 103


o pano de fundo familiar ou o fato do casal Deus. Guarda os mandamentos do
ter-se perdido por culpa de Roberto. A causa Senhor teu Deus, para andares nos
é um coração não consagrado. seus caminhos, e o temeres.
Que situação difícil! E o propósito de
Sofrimento, comportamento e Deus em usar o deserto como “cenário” era
linguagem humilhar, testar e ensinar o Seu povo. O
Essa abordagem levanta uma questão texto continua:
bíblica ainda mais ampla. Qual é a relação Porque o Senhor teu Deus te faz
entre as situações difíceis, dolorosas (ou de- entrar numa boa terra, terra de
sagradáveis) e o comportamento? A resposta ribeiros de águas, de fontes, de
mais clara é que a situação é como o cenário mananciais profundos, que saem
de uma peça teatral. Ela é o palco, mas não dos vales e das montanhas; terra de
a ação. Se alguém disser que a cena se dá em trigo e cevada, de vides, figueiras
uma estação de trem, isso ainda não nos diz e romeiras; terra de oliveiras, de
muito a respeito do enredo! Este poderia ser azeite e mel; terra em que comerás
alegre, triste ou de terror. O mesmo acontece o pão sem escassez, e nada te faltará
com as nossas situações. “Eu cresci em uma nela; terra cujas pedras são ferro, e
família marcada por abuso” poderia dar iní- de cujos montes cavarás o cobre.
cio a uma história que destaca a fidelidade e Comerás e te fartarás, e louvarás ao
o livramento de Deus, ou poderia dar início Senhor teu Deus pela boa terra que
a uma história centrada em autocomiseração te deu. Guarda-te não te esqueças do
e murmuração. Cada situação tem suas ten- Senhor teu Deus, não cumprindo os
tações próprias, mas a trama é encenada pelo seus mandamentos, os seus juízos e
coração. Olhe para Deuteronômio 8.2-6: os seus estatutos, que hoje te ordeno;
Recordar-te-ás de todo o caminho, para não suceder que, depois de teres
pelo qual o Senhor teu Deus te comido e estiveres farto, depois de
guiou no deserto estes quarenta haveres edificado boas casas, e mora-
anos, para te humilhar, para te pro- do nelas; depois de se multiplicarem
var, para saber o que estava no teu os teus gados e os teus rebanhos, e se
coração, se guardarias ou não os seus aumentar a tua prata e o teu ouro,
mandamentos. Ele te humilhou, e e ser abundante tudo quanto tens,
te deixou ter fome, e te sustentou se eleve o teu coração e te esqueças
com o maná, que tu não conheceste, do Senhor teu Deus, que te tirou da
nem teus pais o conheceram, para terra do Egito... Não digas, pois, no
te dar a entender que não só de pão teu coração: A minha força e o poder
viverá o homem, mas de tudo o que do meu braço me adquiriram estas
procede da boca do Senhor, disso riquezas. (Dt 8.7-14, 17).
viverá o homem. Nunca envelheceu Esta situação é diferente; completa-
a tua veste sobre ti, nem se inchou mente oposta à primeira. Mas o foco de
o teu pé nestes quarenta anos. Sabe, Deus ainda está no coração. Ambas as cir-
pois, no teu coração que, como cunstâncias constituem testes para o povo
um homem disciplina a seu filho, de Deus, embora sejam testes diferentes.
assim te disciplina o Senhor teu Dificuldades no deserto (p. ex., Roberto e

104 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Susana caminhando na trilha sem água!) cia nossa, de nós outros sobre quem
pressionam-nos por um lado. O que virá à os fins dos séculos tem chegado,.
tona - murmuração ou fé? A terra prometida Aquele, pois, que pensa estar em pé,
(p. ex., Roberto e Susana de volta ao carro veja que não caia. Não vos sobreveio
com um cantil de água fresca) pressionam- tentação que não fosse humana; mas
nos por outro lado. Eles esquecerão de Deus Deus é fiel, e não permitirá que se-
ou lembrarão de agradecê-lO? A questão é jais tentados além das vossas forças
sempre se o povo de Deus responderá de pelo contrário, juntamente com a
maneira justa ou pecaminosa. O que Deus tentação, vos proverá livramento, de
diz é que a situação é o cenário, mas Ele está sorte que a possais suportar.
interessado na trama. Ele quer saber se a Há lições profundas aqui. Pense nesta
pessoa responderá corretamente ou não. situação! Coloque-se no lugar do povo de
Vamos olhar para um outro relato Israel. Como você reagiria se tivesse somente
bíblico sobre essa época da história do povo uma muda de roupa (que nunca se gastou!),
de Israel - 1Coríntios 10.1-13: não tivesse abrigo permanente, estivesse
Ora, irmãos, não quero que ignoreis incerto quanto ao futuro, em meio a calor,
que nossos pais estiveram todos sob areia e vizinhos hostis, ficasse frequente-
a nuvem, e todos passaram pelo mar, mente sem água e não houvesse qualquer
tendo sido todos batizados, assim na variação na dieta alimentar ou na rotina?
nuvem, como no mar, com respeito Isso é duro! É de se esperar que aquele povo
a Moisés. Todos eles comeram de lutasse com descontentamento. Sentimo-nos
um só manjar espiritual, e beberam inclinados a ser compreensivos com alguém
da mesma fonte espiritual; porque que murmurasse em tal situação. Você po-
bebiam de uma pedra espiritual deria imaginar como seria o compartilhar de
que os seguia. E a pedra era Cristo. um grupo pequeno de oração no deserto?
Entretanto, Deus não se agradou da Eles acabavam de se acomodar, ajeitando as
maioria deles, razão por que ficaram tendas confortavelmente, e então a nuvem
prostrados no deserto. Ora, estas movia-se repentinamente e tudo tinha que
cousas se tornaram exemplos para ser removido! Isso é dureza.
nós, a fim de que não cobicemos as Mas qual é o foco de Deus no relato
cousas más, como eles cobiçaram. de 1Coríntios? Ele ignora completamente as
Não vos façais, pois, idólatras, como “circunstâncias atenuantes”. Ele olha apenas
alguns deles; porquanto está escrito; para a murmuração, para o ato de colocá-lO
‘O povo assentou-se para comer e à prova, a prática da imoralidade, os desejos
beber, e levantou-se para divertir- maus e a idolatria. Ele nem mesmo mencio-
se’. E não pratiquemos imoralida- na as dificuldades que o povo enfrentava. E
de, como alguns deles o fizeram, com uma boa razão: Deus está interessado
e pereceram pelas mordeduras das na trama. Ele adverte os coríntios - e nós
serpentes. Nem murmureis como também - para que não voltemos a represen-
alguns deles murmuraram, e foram tar esta trama em nosso cenário particular.
destruídos pelo exterminador. Estas O cenário não tem importância. A mesma
cousas lhes sobrevieram como exem- trama poderia ser montada em um cenário
plos, e foram escritas para advertên- totalmente diferente do Sinai. Ela pode ser

Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2 105


encenada em sua vida. Deus sabe disso, e afirmações sobre causas e motivações são
a advertência que Ele faz coloca o cenário um ataque à verdade de Deus. Desculpamos
no devido lugar: as circunstâncias são ir- parcialmente a nós mesmos e deixamos de
relevantes para a causa do comportamento nos arrepender devidamente. Apontando
pecaminoso. Talvez sejamos mais predis- para as circunstâncias em lugar de apontar
postos à murmuração quando as coisas são para nós mesmos, deixamos de crer que as
difíceis ou à arrogância quando as coisas coisas podem realmente ser diferentes. As cir-
vão bem; mas estamos sempre propensos a cunstâncias podem voltar a ser desagradáveis.
cometer esses pecados porque eles não são Susana não tem nenhuma garantia de que ela
causados pela situação. Tanto a murmuração e Roberto não se perderão em uma caminha-
como a arrogância procedem de um coração da futura (ou mesmo no caminho de volta).
pecaminoso. Se foi esse o motivo que a levou a ser ríspida,
Com frequência, somos tentados a poderá acontecer de novo. Mas em Cristo ela
pensar nestas reações pecaminosas como tem uma esperança real e magnífica. O evan-
causadas por um coração pecaminoso e por gelho pode transformá-la. É possível que
circunstâncias difíceis. Esta é a tentação sutil Roberto e ela se percam novamente. Mas
da justiça própria: reconhecer a própria cul- se ela estiver sendo transformada pelo Es-
pa, mas apenas parcialmente; assumir parte pírito Santo, Roberto não precisará temer
da responsabilidade, mas apenas parte. Pense as mesmas palavras ríspidas nem mesmo
novamente no relato que Deus faz sobre a a frustração interior e falta de amor ante-
peregrinação de Israel no deserto. Não há riormente expressadas! O alvo de Deus é
sequer uma alusão a essa responsabilidade que em uma situação semelhante, no fu-
“compartilhada”. Na verdade, como poderia turo, Susana esteja pronta para reagir com
haver? Confira novamente Deuteronômio 8. alegria, paz, perseverança e amor. Talvez
Podemos presumir que Israel certamente te- ela rirá da situação e até mesmo apreciará
ria entrado na terra prometida não fossem os a caminhada de volta! Ou talvez encarará
inimigos, a fome e a sede, e se a jornada tives- a situação pacientemente e sem murmurar
se sido curta. Mas Deus diz que Ele mandou e, no final da caminhada, beberá água com
as dificuldades para testar Israel, “para saber gratidão a Deus.
o que estava no teu coração”. Se dissermos O caminho de Deus é reto. Os nos-
que Israel murmurou porque era um povo sos caminhos são insensatos. Precisamos
de pecadores e porque as circunstâncias eram cultivar e dirigir a vida em todas as suas
difíceis, dividimos a responsabilidade entre áreas de acordo com a verdade dEle. O
Israel e Deus. Isso não pode ser! O povo de uso de “porque” é algo pequeno. Mas a
Israel não pôde entrar na terra prometida prática de desculparmo-nos parcialmente,
por uma só razão: eles pecaram. de arrependermo-nos superficialmente, de
Por que isso é importante? Porque termos uma fé pequena porque o nosso
somos todos parecidos com Susana. Nossa objetivo é conforto e não a semelhança
tendência é explicar o comportamento pe- com Cristo - estes são problemas maiores,
caminoso falando da situação. Dizemos que e muito comuns. Treinar os nossos lábios
fizemos algo porque... e não admitimos que pode nos ajudar, de maneira específica,
o nosso coração é a única causa. Será que a lidar com os assuntos mais sérios do
isso é tão mau? Sim! É algo sutil, mas estas coração.

106 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2


Aqui está o meu desafio. Vigie os seus Conclusão
lábios nas próximas duas semanas; observe Ao seu redor, há forças invisíveis que
como você usa “estou mal” e outras catego- querem impedir que você se conforme à
rias enganosas para descrever suas emoções. imagem de Jesus Cristo: o mundo, a carne
Pense naquilo que você está sentindo, e o diabo. A Bíblia o adverte para que você
pensando e fazendo, à luz do contexto do lute contra as influências destas forças: não
que está acontecendo entre você e Deus. se conforme com o mundo, mortifique os
Observe como você usa a palavra “porque”. desejos da carne, revista-se de toda a arma-
Quando você se pegar falando sobre como as dura de Deus contra as forças espirituais
circunstâncias eram “difíceis” ou “dolorosas”, do mal. Deus também nos adverte que a
pare e dirija o seu foco para obediência e batalha é travada particularmente no nosso
desobediência. O restante é apenas o cenário. falar. As atitudes do coração são reveladas
Se você precisar falar sobre situações difíceis, por meio daquilo que você fala. À medida
use a expressão “embora” em vez de “porque” que você procura andar na justiça, deve dar
- uma expressão que mantém o foco nas uma atenção especial às suas palavras, pois
questões importantes do coração. Mas depois elas são a melhor maneira de transparecer o
destas duas semanas iniciais, deixe que esses que realmente está em seu coração. Quando
exemplos venham a ser dois entre muitos estiver travando batalhas espirituais, você
outros à medida que você, como o salmista, deve ser diligente na análise de como os seus
aprender a considerar e analisar as suas pa- inimigos procuram distorcer o seu linguajar,
lavras. Que as palavras dos nossos lábios e fazendo com que maneiras rebeldes de falar
o meditar do nosso coração sejam aceitáveis pareçam “normais”. Ser santo no seu falar
diante de Deus. E que Deus conceda graça não é fácil. Tiago nos adverte que embora
para que “quer comais, quer bebais ou façais possa domar animais selvagens de várias
outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória espécies, o homem não consegue domar
de Deus” (1Co 10.31). sua língua - ela é “mal incontido, carrega-
Não fique com medo nem se deixe do de veneno mortífero” (Tg 3.8). Assim
abater pelo processo. Se você avaliar as suas como em outras situações, aqui também o
palavras e identificar pecado por todo lado, que é impossível para o homem é possível
este é um primeiro passo encorajador! A para Deus. A sabedoria que vem do alto,
menos que tenhamos uma experiência de concedida liberalmente por Deus, faz com
pecado abundante, nossa experiência de que nossa língua seja uma fonte que jorra
graça não poderá ser superabundante. A água fresca.
graça é muito mais abundante onde uma
conscientização elevada de pecado nos leva Estudo Pessoal
a um arrependimento mais profundo e a 1. De que maneira você e as pessoas ao
uma apreciação maior do poder tremendo seu redor usam termos neutros para
de Cristo para nos libertar, perdoando-nos e descrever experiências emocionais?
transformando-nos. Para o cristão, Romanos (p. ex., “estou chateado”, “estou mal”,
8.9 deve oferecer a interpretação para Gálatas “meu dia está péssimo”).
5.16-25; 1Coríntios 1.30, para Provérbios 2. Que termos neutros você e as pesso-
12.18-19 ou Mateus 12.37. as ao seu redor usam para descrever

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comportamentos pecaminosos? (p. ex., adequados para cada uma das frases
“caso”, “conflitos de personalidade”, acima.
“baixa autoestima”, “desabafo”). 5. Busque a Cristo em arrependimento,
3. Que termos neutros você e as pessoas e cultive a esperança e a fé bíblicas de
ao seu redor usam para descrever as que Ele o transformará. Medite sobre
razões para certos comportamentos quem você é nEle e como essa união o
e emoções? (p. ex., “Porque ele/ ela libertará.
fez...”, “Eu sinto necessidade de...”, “Eu 6. Diga a outras pessoas como você quer
tenho vontade de...”). mudar o seu falar. Peça a elas que
4. A palavra de Deus não é neutra. Deus orem pelo poder do Espírito e prati-
define o que é bom, mau, verdadeiro quem uma cobrança cristã durante o
e falso. Encontre termos bíblicos mais processo.

108 Coletânea de Aconselhamento Bíblico  Volume 2

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