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Vestígios da

Amazônia
pré-colonial
Por Eduardo Góes Neves

Escavação de áreas com terra preta revela aldeias antigas


maiores e mais complexas do que se imaginava

E
m 1542, “no domingo depois da Ascensão de Nosso
Senhor”, na primeira viagem de navegação realizada por
europeus pelo rio Amazonas, frei Gaspar de Carvajal,
cronista da expedição chefiada por Francisco de Orellana,
narra que chegaram os expedicionários famintos a uma aldeia locali-
zada no alto de uma barranca, que, por parecer pequena, foi por eles
saqueada. Nessa aldeia, de acordo com Carvajal, “havia muita louça
de diversas feituras, tanto jarros como vasos enormes de mais de
vinte e cinco arrobas, e outras vasilhas pequenas com pratos, tigelas
e candeeiros dessa louça da melhor que já se viu no mundo, porque
a de Málaga não se iguala a ela. (...) Ela é toda alisada e esmaltada de
todas as cores, tão vivas que espantam”.
A chamada “aldeia da louça” deveria estar localizada às margens
do rio Solimões, em algum ponto entre a atual cidade de Coari e a foz
do rio Negro. A descrição indica que a louça que Carvajal comparou
favoravelmente à de Málaga pertence ao que os arqueólogos chamam
de tradição policroma da Amazônia. Cerâmicas da tradição policroma
são encontradas em uma ampla área que vai, com interrupções, desde a
ilha de Marajó até o sopé dos Andes, na Colômbia, Peru e Equador.
Cerâmicas policromas (ver foto ao lado) são de impressionante
EDUARDO G. NEVES

ARQUEÓLOGO fotografa trincheira escavada no sítio Hatahara, em Iranduba, AM. Nas paredes
vêem-se inúmeros cacos de cerâmica e terra preta. Esses fragmentos foram depositados ali
para a construção de uma tumba há cerca de mil anos

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URNA COM DECORAÇÃO policroma e tampa, fase
Guarita, coletada na Amazônia central (acervo do
Instituto Histórico e Geográfico do Amazonas). Data
provavelmente do século X ao XVI. Vasos policromos
são encontrados em diferentes partes da Amazônia,
desde a ilha do Marajó até o sopé dos Andes. Foram
produzidos entre os séculos IV e XVI.
As cerâmicas mais conhecidas com essas
características são as marajoaras. É provável
também que a ilha de Marajó tenha sido o
centro de origem dessa tradição

FERNANDO CHAVES

U p d a te d f r o m th e D e c e m b e r 199 6 i s s u e 55
EDUARDO G. NEVES

AS DUAS FOTOS FORNECEM UMA COMPARAÇÃO entre depósitos arqueológicos. O provável é de cerca de 1.600 anos. Terras pretas surgem na Amazônia central a
depósito sem terra preta (esq.) está localizado no sítio Açutuba, às margens do partir do século IV, estando relacionadas ao aparecimento de aldeias sedentárias e
rio Negro, e foi datado em cerca de 2 mil anos. O depósito com terra preta (dir.) ocupadas por populações mais numerosas. Mais a direita, o exemplo do mapeamento
foi escavado no sítio Hatahara, localizado às margens do rio Solimões. Sua idade feito por arqueólogos em uma área de terra preta no Sítio Lago Grande.

beleza, com grande diversidade de formas resultantes, por exemplo, da manipula- periferia da bacia, em áreas distantes da
e de padrões decorativos, que variam de ção de informações para a obtenção de calha principal do rio Amazonas, em
acordo com a região. Como conseqüência, recursos nas metrópoles européias, para regiões como alto Xingu e alto rio Negro.
coleções com essas cerâmicas compõem que realizassem novas expedições. O Paradoxalmente, as áreas adjacentes ao
acervos de importantes museus nacionais exemplo maior desse tipo de manipu- rio Amazonas – atualmente ocupadas por
e estrangeiros. Conhecemos, porém, ain- lação seria a própria lenda das mulheres povos caboclos descendentes de índios e
da muito pouco sobre o modo de vida das guerreiras contra as quais Orellana e seu de imigrantes que vieram do Nordeste
sociedades que produziram tais objetos. grupo teriam lutado, as amazonas, que para a região na época da borracha – estão
Os dados históricos são escassos: as pou- acabaram por dar nome ao rio. lotadas de sítios arqueológicos, alguns dos
cas descrições disponíveis para os séculos Outros arqueólogos tendem a aceitar quais de grande porte.
XVI e XVII indicam que as margens do os relatos dos cronistas como retrato fiel Para tentar compreender melhor essa
rio Amazonas e alguns de seus afluentes do modo de vida local. Para esses arqueó- questão, uma equipe formada por arque-
eram ocupados por populações densas logos, a Amazônia era densamente ocu- ólogos brasileiros e americanos iniciou,
que viviam em grandes aldeias com até pada nessa época, sendo que o processo em 1995, o Projeto Amazônia Central
alguns milhares de pessoas. de colonização européia teria levado em (PAC). A área de pesquisa apresenta
De acordo com tais fontes, essas algumas décadas a um drástico declínio grande diversidade paisagística, sendo
sociedades estavam integradas regional- demográfico, resultante da propagação de marcada por dois tipos básicos de ecos-
mente por extensas redes de comércio e doenças, da guerra e da escravidão.
tinham um padrão de organização po- Prova maior desse declínio demográ- EDUARDO GÓES NEVES, doutor em arqueologia
O AUTOR

lítica hierarquizado. Essas informações fico seria o fato de que – com exceção dos pela Universidade de Indiana, é professor do Mu-
não são, no entanto, aceitas por todos povos tikuna que vivem no alto Solimões seu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
os arqueólogos. Para alguns autores, os – a maior parte das terras indígenas na de São Paulo. Trabalha no Amazonas desde 1990
e coordena desde 1995 o Projeto Amazônia
relatos dos cronistas seriam exagerados, Amazônia brasileira está localizada na Central.

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EDUARDO G. NEVES

EDUARDO G. NEVES

sistema: rios de águas pretas e rios de da bacia Amazônica já eram habitadas, ciadas a grupos que produziam cerâmica,
águas brancas (ver quadro na pág. XX). incluindo locais próximos às planícies há cerca de 2.500 anos. O significado
Os levantamentos e escavações reali- aluviais dos grandes rios, mas também desse hiato não está ainda claro: seria ele
zadas até o momento indicam que a região áreas de terra firme, distantes dos rios resultante de um viés de amostra, que
é ocupada há cerca de 8.500 anos. As principais, como a serra dos Carajás. As estaria impedindo a localização de sítios
datas foram obtidas no sítio Dona Stella, poucas evidências disponíveis indicam ocupados nesse período? Uma possibi-
onde artefatos de pedra lascada, incluindo que os primeiros habitantes tinham um lidade para esse viés seria que os sítios
uma ponta de projétil, foram localizados modo de vida organizado em economia relativos a esses períodos encontram-se
em meio a depósitos arenosos enterrados diversificada, baseada na caça, pesca e agora submersos, devido a oscilações
a mais de 1 metro de profundidade. Essas coleta. Análises pedológicas (do solo) e nos níveis dos rios durante o Holoceno.
informações são compatíveis com dados paleobotânicas em andamento, juntamen- Ou, por outro lado, refletiria de fato uma
provenientes de outras partes da Amazô- te com o levantamento de outros sítios interrupção duradoura no processo de
nia, onde o início da ocupação humana se enterrados em areais, procuram entender ocupação humana na área?
deu há pelo menos 11 mil anos. a extensão e o aspecto econômico dessas Uma característica notável da arqueo-
ocupações mais antigas. logia amazônica é o início precoce da
Ocupação Descontinuada Após as evidências iniciais de ocu- produção cerâmica, com datas que estão
AS OCUPAÇÕES INICIAIS foram caracte- pação, há aparentemente um grande entre as mais antigas da América do Sul,
rizadas por uma rápida colonização de hiato cronológico, com duração de alguns recuando a mais de 5.500 anos, ou mesmo
diversos tipos de ambiente, de modo que, milhares de anos, só interrompido pelo 7 mil anos, nos sambaquis litorâneos e
há cerca de 8 mil anos, diferentes partes súbito aparecimento de ocupações asso- fluviais do Pará, nas regiões do estuário

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mais profunda, relativa a modos de abor-
dar a relação entre populações humanas e
o meio físico na Amazônia pré-colonial.
Os autores que trabalham com a
hipótese de reocupações sucessivas
seguem a premissa de que há, e houve,
na Amazônia, limites ambientais para o
crescimento demográfico, incluindo baixa
fertilidade do solo, pouca disponibilidade
de proteína animal, imprevisibilidade nos
regimes de cheia dos rios e ocorrência de
fenômenos extremos de mudança climá-
tica no passado.
Os autores que aceitam as evidências
indicando processos de ocupação de
longa duração seguem a premissa oposta,
isto é, de que não houve na Amazônia
pré-colonial limites ambientais ao cres-
cimento demográfico e que, em casos
onde tais limitações possam ter ocorrido,
atividades de manejo contribuíram para
aumentar a capacidade de suporte do
meio ambiente.

Terra de Histórias
NA ÁREA DE PESQUISA do PAC, a ma-
nifestação mais visível de modificações
antrópicas ocorridas no passado são o
EDUARDO G. NEVES

solo de terra preta (ver quadro na pág.


56). Normalmente, o solo na região é
GRUPO DE URNAS FUNERÁRIAS alinhadas, no sítio Hatahara. As urnas foram depositadas após o início do amarelado, pouco fértil e ácido. As terras
processo de formação de terra preta pretas, ao contrário, são bastante férteis,
escuras, ricas em matéria orgânica e com
e baixo Amazonas. Nessas áreas, apa- brasileiro. O aspecto mais visível dessas pH tendendo a neutro. Terras pretas são
rentemente, não se notam interrupções mudanças é o aumento no tamanho, den- quase que invariavelmente associadas
de seqüência cronológica tão marcantes sidade e duração de ocupação nos sítios a sítios arqueológicos, podendo ocorrer
como as identificadas na Amazônia cen- arqueológicos, ou seja, o tamanho dos tanto em locais com solo arenoso como em
tral. De qualquer modo, é a partir de cerca sítios aumenta, os sítios mostram sinais locais argilosos. A terra preta é surpreen-
de 2.500 anos atrás que mudanças nos de terem sido ocupados por períodos dentemente estável ao longo do tempo,
padrões de organização social, econômica mais longos e, talvez, por populações sendo capaz de manter alta quantidade de
e política tornam-se notáveis no registro mais numerosas. nutrientes ao longo de séculos. Normal-
arqueológico da Amazônia central. Tais evidências não são, no entanto, mente, na Amazônia, o intenso processo
É também a partir dessa época que aceitas por todos os arqueólogos. Para erosivo, as chuvas torrenciais e a intensa
manifestações duradouras e visíveis de alguns, a ocorrência de grandes sítios evaporação fazem com que o solo tenha
modificações paisagísticas começaram seria apenas a manifestação arqueológica baixa capacidade de retenção de nutrien-
a se formar. Elas se inseriram em um de eventos de reocupação sucessiva dos tes. Uma prova disso é a degradação por
contexto mais amplo, relacionado a mesmos locais por diferentes populações, que passam muitas áreas na Amazônia
mudanças sociopolíticas que ocorreram o que eventualmente levaria à formação de após o desmatamento, quando se tornam
nesse período na Amazônia e em outras grandes sítios. As divergências interpreta- impraticáveis para a agricultura ou mesmo
partes do que é atualmente o território tivas são a manifestação de uma diferença para a regeneração da floresta.

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Em busca das grandes aldeias
O PROJETO AMAZÔNIA CENTRAL (PAC) fez o levantamento de menos nas áreas já abertas para o cultivo. Os sítios arqueológicos
cerca de 100 sítios arqueológicos, e a escavação e mapeamento de são normalmente caracterizados pela alta densidade de fragmentos
seis deles, em uma área de pesquisa de cerca de 900 km2, locali- cerâmicos em superfície e também pela associação desses fragmen-
zada junto à confluência dos rios Negro e Solimões, no Amazonas. tos a um tipo de solo escuro e bastante fértil, conhecido em toda a
Em linhas gerais, o objetivo é: verificar se, de fato, a ocupação hu- Amazônia como terra preta de índio.
mana da Amazônia pré-colonial foi caracterizada pela ocorrência de O trabalho mais delicado é sem dúvida o de escavação. Uma esca-
adensamentos demográficos significativos em aldeias de grande vação arqueológica pode ser comparada a uma cirurgia: só deve ser
porte; estabelecer a antigüidade da ocupação humana na região e, realizada se, de fato, não houver outra maneira de tratar o paciente.
finalmente, compreender melhor os processos de interação entre O “paciente” nesse exemplo é o próprio sítio arqueológico. Ao realizar
as populações humanas e o meio ambiente ao longo do processo de uma escavação, os arqueólogos estão destruindo o sítio. Vestígios
ocupação da região. que estão depositados há séculos ou milênios são retirados para o
A bacia Amazônica é rica em sítios arqueológicos e isso vale estudo em laboratório, causando impacto irreversível. A demora e o
também para a área de pesquisa do PAC. Sendo assim, a localização rigor empregados nos trabalhos de escavação explicam por que, no
de sítios em si não é uma tarefa necessariamente complexa, pelo caso da área de pesquisa do PAC, há uma grande diferença entre o
total de sítios identificados e o total de sítios escavados.
Os dois ecossistemas – rios de águas pretas e rios de águas bran-
cas – têm diferentes características quanto à produtividade primária:
os de água branca são mais produtivos do que os de águas pretas.
As planícies aluviais adjacentes ao rio Solimões – um clássico rio de
águas brancas – formam várzeas compostas por diferentes hábitats,
incluindo lagos sazonalmente inundados, meandros abandonados,
canais em diferentes tipos de atividade, restingas (cordões arenosos
com pequena elevação), praias e ilhas.
A cobertura vegetal inclui capinzais, igapós (florestas inundá-
veis) e florestas de terra firme. Como em outras partes da Amazônia,
a várzea é também tradicionalmente um local preferencial para
agricultura e criação de gado. A bacia do rio Negro, por outro lado,
não forma várzeas. Sua planície de inundação é menos desenvolvida,
coberta por matas de igapó ou por praias de areia branca. Ao contrário
das várzeas dos rios de águas brancas, matas de igapós são anual-
mente inundadas pelas águas ácidas e pobres em nutrientes dos rios
de águas pretas. A carga de sedimento arenoso trazida por esses rios
também é depositada, formando as extensas praias de areia branca.
Em locais adjacentes às planícies de inundação do Solimões e
do Negro, há altos barrancos expondo depósitos cretáceos da forma-
ção geológica Alter do Chão erodidos pela ação fluvial. Sobre esses
barrancos é comum a ocorrência de sítios arqueológicos. As áreas
distantes dos dois grandes rios são compostas por colinas e morros
– com encostas de inclinação variável - periodicamente cortados por
igarapés. O levantamento arqueológico realizado nesses locais indica
LOCALIZAÇÃO DOS PRINCIPAIS sítios de terra preta encontrados na área de que o topo das colinas eram áreas preferenciais para a ocupação
confluência dos rios Negro e Solimões humana pré-colonial. O solo da região é majoritariamente amarelo e
argiloso, com pH ácido e baixa aptidão agrícola. – E.G.N.

Não está ainda claro por que as terras física, uma vez que, por exemplo, a cronológica na qual esses solos parecem
pretas são tão estáveis, mas é provável presença de milhares de fragmentos surgir por toda a região a partir de cerca
que tal estabilidade resulte da associação cerâmicos nos depósitos diminui tanto de 2 mil anos atrás. A única exceção
entre fatores naturais – o próprio solo – e a velocidade de percolação como a ve- vem do atual estado de Rondônia, onde
fatores culturais – fragmentos de cerâmi- locidade de evaporação da água, além depósitos de terra preta foram datados
cas, carvão resultante de fogueiras, ossos de criar uma espécie de “esqueleto” que em cerca de 4 mil anos.
de animais em restos de comida – nas mantém a estrutura do solo. Manchas de Poucos trabalhos foram realizados
matrizes dos sítios arqueológicos. terra preta podem variar desde poucos com o objetivo de entender o ritmo e uma
Essa combinação entre fatores na- metros quadrados até centenas de hecta- eventual direção no processo de formação
turais e culturais é de certo modo uma res. Do mesmo modo, sua profundidade de sítios com terra preta ali. As informa-
síntese da própria Amazônia e promove, pode variar desde 30 cm até 200 cm. ções disponíveis até o momento parecem,
por um lado, a fertilização do solo, que é A distribuição das terras pretas é bas- no entanto, indicar que esses sítios surgem
enriquecido por carbono, fosfato, cálcio tante ampla na Amazônia. Os dados da concomitantemente na parte central e
EDUARDO G. NEVES

e outros elementos químicos, ao mesmo Amazônia central, combinados com os no baixo Amazonas, sendo difícil ainda
tempo em que garante sua estabilidade de outras áreas, indicam uma tendência determinar se houve ou não uma área

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Uma aldeia bem defendida
O MAPA ACIMA, À ESQUERDA, mostra o sítio
arqueológico de Lago Grande, na bacia do rio
Solimões. A aldeia que ocupava a área é uma das
poucas que deixaram vestígios sobre sua estrutura.
Os montículos de terra fértil encontrados no
sítio provavelmente eram áreas onde as famílias
depositavam lixo junto às casas. Das habitações em
si quase não resta vestígio – em certos sítios há
alguns raros buracos de estaca. É provável que as
casas em Lago Grande tivessem disposição circular,
ao redor de uma área central de convivência, como
sugere a disposição dos montículos.
O sítio de Lago Grande está posicionado no alto de
um platô, e o único acesso fácil, que não requer a
escalada de um barranco próximo, é pelo norte. A
passagem, que já era restrita, foi estreitada ainda
mais com a escavação de uma vala, provavelmente
para limitar o acesso de estranhos à aldeia. Esse
tipo de preocupação defensiva, de acordo com uma
das hipóteses, pode ser reflexo do adensamento de
população da Amazônia central, promovendo maior
contato entre grupos rivais.
A foto na página à direita mostra uma trincheira

EDUARDO G. NEVES
cavada por arqueólogos para fazer uma secção
transversal da vala. A linha que divide os montes
de terra é o indício de que a topografia original do
território foi alterada pelos índios.

de origem. No alto Amazonas, as datas lo VIII ao X. Esses dados indicam que o da região. A hipótese mais plausível
parecem ser um pouco mais recentes, processo de formação de depósitos de terra para explicar essa mudança seria uma
indicando que tais processos ocorreram preta não foi uniforme, variando de acordo transformação no modo de vida das po-
ali posteriormente. com a intensidade da ocupação, o grau pulações, ligada à adoção de economia
Apesar de estar intimamente asso- de sedentarismo e a própria densidade mais dependente da agricultura. De fato,
ciada à ação humana, a formação inicial demográfica dos assentamentos. embora o início do processo de domesti-
de solos de terra preta não foi um pro- Na Amazônia central, sítios com terra cação de plantas tenha ocorrido bem cedo
cesso deliberado, mas sim resultado de preta surgiram há cerca de 1.600 anos, em na América do Sul, há quase 10 mil anos,
ocupação humana em assentamentos áreas cuja ocupação humana se estabele- é comum que apenas muito depois desse
sedentários por longos períodos de tem- ceu muito antes. Levantamentos realiza- período inicial a agricultura tenha ocupa-
po. A deposição constante de refugos dos em áreas de campinarana (campina do papel preponderante como atividade
orgânicos, restos de comida, carvão etc. parcialmente coberta por mata) mostram produtiva, inclusive na Amazônia.
pode ter sido o mecanismo responsável a ocorrência de sítios pré-cerâmicos,
pela formação dos depósitos. associados a artefatos de pedra bifaciais, Ambiente Fatídico
No sítio Osvaldo, localizado junto ao datados em 8 mil anos. Posteriormente, há AS EVIDÊNCIAS DE FORMAÇÃO de terra
lago do Limão, entre os rios Solimões e cerca de 2.300 anos, surgem evidências preta na Amazônia oferecem elementos
Negro, na Amazônia central um depósito de ocupações associadas a grupos que para que se critiquem algumas das pre-
de cerca de 70 cm de espessura, associado produziam cerâmica em estilo semelhante missas do determinismo ambiental. Em
a uma grande quantidade de fragmentos ao encontrado no baixo Amazonas. Tais primeiro lugar, indicam a ocorrência de
cerâmicos, formou-se durante um período ocupações são, no entanto, menores e sítios sedentários, ocupados por dezenas
de algumas gerações no século VII. menos densas quando comparadas às dos ou centenas de anos, ao contrário do
Processo mais rápido foi observado no sítios com terra preta. padrão de mobilidade de assentamentos
sítio Lago Grande, localizado na várzea O surgimento dos sítios com terra previsto pelas hipóteses deterministas.
do rio Solimões (ver mapa acima), onde a preta representa uma mudança de escala Em segundo lugar, a grande densidade
formação de terras pretas ocorreu do sécu- e intensidade no processo de ocupação de vestígios cerâmicos, verificada, por

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meados e no final do primeiro milênio ce, ainda que modificada, e compõe o rico
d.C. A região, no entanto, continuou a registro arqueológico da região.
ser ocupada até o século XVI. Atualmente, a arqueologia amazônica
É óbvio, portanto, que os grupos que passa por uma fase de avanço, com a
ali viviam estavam cientes da ocorrência formação de novos profissionais atuando
de áreas de terra preta. Afinal, esses locais em diferentes setores. No entanto, áreas
têm características bastante peculiares: fundamentais para o entendimento da
solo bastante fértil, presença abundante ocupação pré-colonial da região são
de fragmentos cerâmicos na superfície ainda muito pouco conhecidas, como é
e, provavelmente, ocorrência de tipos o caso dos estados de Roraima, Acre e
de vegetação de capoeira, distintos das Rondônia. A área de Roraima era pro-
matas altas de terra firme. vavelmente um elo de ligação entre as
Nesse último aspecto, o exame do sociedades assentadas ao longo da calha
perfil estratigráfico nos sítios escavados do Amazonas e Negro e as sociedades do
mostra um padrão bastante regular de litoral das Guianas.
deposição dos fragmentos cerâmicos, o Já as populações assentadas no Acre
que sugere que não houve ação expressi- e Rondônia provavelmente mantinham
va de raízes profundas na movimentação algum tipo de contato indireto com as
desses fragmentos. Isso é interpretado sociedades andinas. Recentemente, um
como sinal de que não houve o desen- grupo de arqueólogos finlandeses relatou
EDUARDO G. NEVES

volvimento de vegetação de grande porte ter identificado cerâmicas incas em uma


sobre os sítios arqueológicos. Ao redor do fortificação localizada na cidade de Ribe-
ano 1000, portanto, a paisagem da área ralta, na Bolívia, próximo à fronteira com
de confluência dos rios Solimões e Negro o Brasil. Essa hipótese, embora interes-
compunha um imenso mosaico, com sante, necessita ser testada.
exemplo, no perfil estratigráfico das significativa contribuição antrópica. A maior ameaça ao patrimônio arqueo-
escavações, indica também que tais lógico da Amazônia tem sido o rápido e
sítios foram ocupados por populações Patrimônio em Risco desenfreado crescimento que ali se verifica
numerosas, com centenas ou talvez até NA AMAZÔNIA CENTRAL do século X, as nos últimos anos. Na periferia da cidade
milhares de indivíduos. informações ainda fragmentárias trazidas de Manaus, que hoje tem quase dois mi-
Finalmente, a ocorrência de solos de pela arqueologia permitem que se vislum- lhões de habitantes, é comum a destruição
terra preta mostra que, na Amazônia, os brem aspectos do significado simbólico de sítios arqueológicos antes mesmo que
eventuais limites impostos pelo meio físico das paisagens da região, que eram com- tenham sido registrados e estudados.
à ocupação humana, tais como a escassez de postas, dentre outras coisas, por aldeias O desmatamento em larga escala, a mi-
solo fértil, foram superados através do ma- de tamanho variável, roças em diferente neração sem controle, o turismo predatório
nejo ambiental. Feitas essas considerações estágio de cultivo, cemitérios, áreas de e o contrabando de antigüidades apresen-
gerais, é importante explorar com um pouco terra preta cobertas por capoeira, trilhas tam também ameaças. A destruição desse
mais de detalhe os dados da Amazônia conectando esses locais, matas altas de patrimônio é trágica, pois impede que pos-
central, para verificar o que revelam sobre terra firme, campinaranas, lagos, mean- samos conhecer como, no passado, outras
práticas pré-coloniais e contemporâneas de dros abandonados etc. O nome desses sociedades lidaram com as oportunidades e
ocupação humana na Amazônia. lugares, as qualidades a eles associadas, desafios que a ocupação da Amazônia ofe-
Um dos aspectos pouco estudados na seus atributos, tudo isso desapareceu. Sua rece. Tais lições poderiam, talvez, ser úteis a
arqueologia dos sítios de terra preta diz constituição física, no entanto, permane- sociedade brasileira contemporânea.
respeito ao entendimento do que ocorre
nesses locais após seu abandono, antes PARA CONHECER MAIS
mesmo do início da colonização européia.
Unknown Amazon: culture in nature in ancient Brazil. C. McEwan, C. C. Barreto, e E. Neves. British
Na Amazônia central, dos quatro sítios Museum Press (Londres), 2001.
escavados e mapeados com mais detalhe, Amazonian dark earths: explorations in space and time. Bruno Glaser e William I. Woods (eds.).
três certamente foram abandonados bem Springer (Heidelberg), 2004.
antes do início do período colonial, em Arqueologia brasileira. André Prous. Editora UnB, 1992.

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