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escritura e ao pensamento a tarefa de pôr em ação e mesmo potencializar certos efeitos, muito
em particular, efeitos de transformação do próprio autor e de seus leitores. Trata-se, pois, da
ideia de que a escritura e o pensamento de Foucault integram-se não apenas ao comunicar
certas verdades ou conteúdos teóricos precisos, mas, sobretudo, porque buscam provocar e
disseminar efeitos de transformação no pensador e naqueles que lêem suas obras, motivo
ético-político que parece ter organizado o estilo e as estratégias discursivas de seus livros,
cursos e entrevistas. Segundo nossa perspectiva, o pensamento-escritura é um dispositivo
expressivo associado à produção de ficções, com as quais Foucault pretendeu questionar
verdades estabelecidas e produzir novos efeitos de verdade ao provocar em si mesmo e em
seus leitores um estranhamento ativo, capaz de engendrar transformações no modo de viver e
pensar.
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não apenas para transmitir certas teorias, conceitos, verdades ou informações, mas que, desde
muito cedo, ele teria reconhecido que a própria transmissão daqueles conteúdos dependia de
um pensamento, de uma fala e de uma escritura ficcionais, capazes de ensejar e produzir
certos efeitos etopoiéticos de transformação de si e dos outros. Neste sentido, o pensamento-
escritura de Foucault seria um dispositivo expressivo no qual a dimensão teórico-
epistemológica não se dissociaria dos efeitos ético-políticos que ela procuraria disseminar, os
quais, por sua vez, devem ser entendidos em sentido amplo, ultrapassando quaisquer
fronteiras disciplinares, definindo-se como abertura de um campo de experiências práticas e
teóricas visando a transformação da maneira de ser e pensar do pensador-escritor e de seus
leitores.
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recorda em recentíssimo ensaio que Foucault definira a função da ficção, em seu texto de
meados dos anos 60 sobre Maurice Blanchot, La pensée du dehors, não como instância
destinada a tornar visível o invisível, mas, pelo contrário, como aquele discurso que seria
capaz de “‘fazer ver quão invisível é a invisibilidade do visível’.” (Paltrinieri 2014, p. 77;
Foucault 1994 a, p. 552)
Você não está seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-
se em relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as objeções
não apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia? Você
se prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo que
em você se critica? Você já arranja a saída que lhe permitirá, em seu
próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora:
não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o
observo rindo.
Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em
escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não
preparasse – com as mãos um pouco febris – o labirinto onde me
aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo
longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam
seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos
que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu, escrevem para
não ter um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para
permanecer sempre o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege
nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.
(FOUCAULT 2004, pp. 19-20)
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para formular teorias e sistemas, mas, acima de tudo, para entregar-se de maneira obstinada e
mesmo devota a um pensamento e a uma escritura destinados a abrir as portas do labirinto em
que o pensador quer se aventurar, quer se perder para talvez então se reencontrar, mas agora já
sendo outro em relação àquele que iniciara a perigosa travessia. Ao conceber o pensamento, a
escrita e a investigação como aventuras das quais o pensador há de sair renovado, portando
novos olhos, Foucault concebia a atividade teórica como experiência capaz de tornar aquele
que pensa irreconhecível para si mesmo e para seus leitores. Escrever para apagar o próprio
rosto não significa, portanto, instalar-se ficcionalmente em um lugar inefável, inatingível, de
onde o pensador poderia rir tranquilamente de seus críticos, mas ser capaz de pensar e dizer
coisas que somente se tornaram possíveis de pensar e dizer uma vez que o pensador-escritor
deslocou seus propósitos teóricos iniciais, abreviando-os, transformando-os, abandonando-os.
Já então Foucault enunciava com todas as letras o leitmotif de sua obra, os traços gerais de seu
pensamento-escritura: escrever é desaparecer, isto é, transformar-se, apagar o próprio rosto
para experimentar a liberdade de não ser sempre o mesmo, motivo que ainda encontraremos
em entrevistas de meados dos anos 80.
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efeitos difusos de transformação no pensador-escritor. Tais efeitos, por sua vez, estando
associados às exigências de uma escrita e de uma reflexão que visam diagnosticar o presente,
geram ainda efeitos suplementares de estranhamento e de transformação no modo mesmo
como os próprios leitores passam a se relacionar com o saber, a razão, a loucura, o crime, a
sexualidade, a ética, a política. Foucault estava bastante consciente a respeito destes efeitos
suplementares de transformação dos outros por meio de seu pensamento-escritura, aspecto
que ele refere diretamente ao caráter ficcional de suas obras, que não se limitariam a produzir
ou reproduzir conhecimentos verdadeiros, mas destinar-se-iam, sobretudo, a promover efeitos
de desbloqueio na maneira como os leitores se relacionam com tudo aquilo que, à primeira
vista, lhes pareceria ser da ordem das evidências naturalizadas. Em uma entrevista de 1979,
Foucault afirmava que a despeito dele não se conceber como um artista ou como um
romancista, ele tampouco se definia como um teórico, isto é, como filósofo ou como
historiador, já que o conteúdo de verdade de suas obras se revelaria de maneira mais evidente
nas repercussões que suas ideias provocariam na atualidade, isto é, em seus leitores:
À primeira vista, poderia parecer que ao admitir o caráter ficcional de seus escritos
Foucault pretenderia escapar às críticas e objeções dos historiadores e filósofos de profissão.
Se isto fosse assim, então Foucault estaria substituindo a verdade pela ficção, e não é disto
que se trata, pois dificilmente encontramos pensador contemporâneo mais preocupado com o
problema da verdade do que Foucault. Por um lado, ele parece admitir que não pode haver
busca da verdade que não contenha em si mesma um elemento ficcional, posto que ao final
das contas se trata de um trabalho de escritura, isto é, de composição, de fabricação, de modo
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que postular uma suposta identidade sem resto entre pensamento e realidade nada mais faria
que varrer para baixo do tapete o fato de que todo aquele que escreve compõe em certa
medida uma ficção. Mas nem mesmo é este o aspecto mais importante desta passagem
reveladora. O que importa é que Foucault não deixa de considerar os efeitos de verdade que
suas próprias ficções teóricas promovem em seus leitores: mais importante do que desvendar
a verdade da loucura, do sexo ou do crime é compreender os efeitos perversos das verdades
estabelecidas por discursos e práticas reiteradas, problematizando-as, desconstruindo-as,
mostrando-as na sua contingência, para assim abrir espaço a novas formas de pensar, a novos
efeitos de verdade. Foucault jamais pretendeu demonstrar que a verdade seria mera
construção ficcional, mas sim o caráter contingente de toda verdade estabelecida pelas
ciências humanas, mostrar, enfim, o caráter não necessário daquilo que viemos a ser, daquilo
em que acreditáramos. Ocorre que ao mostrar o caráter contingente de tantas verdades
recebidas, ao mostrar como se constituíram as verdades que à primeira vista julgaríamos
escapar ao jogo das forças históricas, Foucault simultaneamente abria o caminho para pensar e
agir de outro modo. A bem dizer, Foucault não se preocupou em estabelecer de uma vez por
todas qualquer conjunto de verdades históricas, mas em estabelecer o caráter histórico da
verdade enquanto tal, isto é, ocupou-se em elaborar uma história da verdade e de seus efeitos
políticos duradouros, ora aprisionadores, ora liberadores, em suma, Foucault dedicou-se a
compor uma história política da verdade. Sem jamais negar a verdade enquanto tal, o que lhe
pareceria inócuo e talvez até mesmo contraproducente, Foucault quis pensar os efeitos
políticos da verdade a respeito de discursos e das práticas, efeitos que podem levar ao
assujeitamento ou a processos de liberação e subjetivação autotransformadora. Ao refletir
sobre os procedimentos e campos teóricos próprios à sua obra, certa feita Foucault declarou
que “... o que eu faço, ao final das contas, não é nem história, nem sociologia, nem economia.
Mas é bem qualquer coisa que, de uma maneira ou outra, e por razões simplesmente de fato,
tem que ver com a filosofia, quer dizer, com uma política da verdade, pois não vejo outra
definição da palavra ‘filosofia’ senão aquela”. (FOUCAULT 2004 b, pp.4-5)
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por transformações, de sorte que se ele porventura tivesse de escrever um livro para
“comunicar o que já penso antes de ter começado a escrever, jamais teria a coragem de
empreendê-lo. Escrevo somente porque não sei ainda exatamente o que pensar desta coisa que
eu tanto gostaria de pensar. Cada livro transforma o que eu pensava quando terminei o livro
precedente. Eu sou um experimentador e não um teórico.” (FOUCAULT 1994 d, pp. 41-42)
Nunca é demais insistir que não se tratava, porém, de recusar a teoria, nem tampouco de
recusar a verdade em nome da ficção. Antes, pelo contrário, como afirma corretamente
Paltrinieri, tratava-se de “reafirmar que o termo ficção não designa o contrário da verdade,
mas um regime de produção e de transformação da experiência do escritor como do leitor.”
(PALTRINIERI 2014, p. 77) Neste sentido, Paltrinieri recorda que se para Foucault toda
experiência é da ordem da ficção, isto é, é algo inventado por si mesmo e a partir de cuja
invenção se produzem importantes efeitos de autotransformação, nem por isso a experiência
ela deixaria de ser “algo que somente se pode fazer plenamente na medida em que ela
escapará à pura subjetividade, sendo algo em que outros poderão, não digo retomá-la
exatamente, mas ao menos cruzá-la ou perpassá-la.” (FOUCAULT 1994 d, p. 47)
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os outros que nós tínhamos antes da leitura. O que mostra que no livro se exprime uma
experiência bem mais estendida que a minha.” (FOUCAULT 1994 d, p. 47)
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amarra a totalidade de sua reflexão. Assim, naquele que talvez seja um de seus últimos textos
escritos, o Prefácio ao volume II da História da Sexualidade, texto no qual Foucault justifica
perante seu público leitor as alterações que atrasaram e transformaram o plano inicial da obra,
ele afirma o seguinte:
O motivo que me impulsionou foi, por sua vez, muito simples. Aos
olhos de alguns, espero que ele possa bastar-se por si mesmo. É a
curiosidade; em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a
pena praticar com um pouco de obstinação: não aquela que busca
assimilar o que convém conhecer, mas aquela que permite separar-se
de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa forma e tanto
quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Há momentos na
vida em que a questão de saber se se pode pensar de outra maneira do
que aquela pela qual se pensa, e se se pode perceber de outra maneira
do que aquela pela qual se vê, é indispensável para continuar a olhar e
refletir. (...) Mas o que é a filosofia hoje – quer dizer, a atividade
filosófica – se ela não for o trabalho crítico do pensamento sobre si
mesmo? Se ela não consistir, em lugar de legitimar o que já se sabe,
em tentar saber como e até que ponto não seria possível pensar de
outro modo? (...) O ‘ensaio’ – que é preciso compreender aqui como
experiência modificadora de si mesmo e não como apropriação
simplificadora de outrem – é o corpo vivo da filosofia, ao menos se
ela ainda é agora o que ela foi antes, isto é, uma ‘ascese’, um exercício
de si no pensamento. (FOUCAULT 1994 d, p. 543, minha ênfase)
Neste texto derradeiro já nada resta das pirotecnias retóricas do jovem autor de
Arqueologia do saber, cujo rosto inquieto há muito desapareceu para dar lugar ao semblante
sereno de um pensador que já não mais recusa a filosofia, na esteira de Nietzsche, por causa
de sua tendência à mumificação conceitual carente de sensibilidade histórica. A partir dos
anos 80 Foucault assume para si a filosofia, mas então ele a concebe e a exerce sob a forma do
“ensaio”, isto é, como “exercício filosófico”, como “ascese” ou trabalho de si sobre si que
deve nos permitir “saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar
o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente e pode lhe permitir pensar de outro
modo.” (FOUCAULT 1994 d, p. 544) O surgimento de novos elementos teóricos ao longo de
seus últimos cursos no Collège de France, tais como a concepção da prática filosófica como
exercício ascético que permite transformar o pensamento e o próprio pensador, mostra que se
os interesses teóricos de Foucault se deslocaram em relação às suas preocupações dos anos 60
e 70, nem por isto o dispositivo expressivo do pensamento-escritura sofreu qualquer abalo:
nos anos 80, pensar e escrever continuavam entregues à produção de estranhamentos, ao
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descaminho, visando permitir que o autor se desvencilhasse de si mesmo, se distanciasse
daquilo que pensara até então, diferindo de quem fora até então. Nos anos 80 como nos anos
60 e 70, a tarefa do pensamento e da escritura de Foucault jamais terá se resumido à
acumulação e transmissão de conhecimentos verdadeiros, mas continuava a pôr à prova o
limite de certa maneira de pensar, promovendo, assim, efeitos de desconstrução e
desestabilização nas formas correntes de viver. Não casualmente, portanto, neste texto que
pode ser considerado como o testamento teórico de Foucault, o motivo da crítica é entendido
e posto em ação como o dobrar-se reflexivo do pensamento sobre si mesmo a fim de liberar a
via para que se possa pensar e ser de outro modo.
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O assunto é certamente complexo e não há como conceder-lhe tratamento adequado
agora, mas, de todo modo, gostaríamos de sugerir uma última hipótese de trabalho a ser posta
à prova em pesquisas futuras. Trata-se da hipótese de que o pensamento-escritura de Foucault
aprofundou-se e consolidou-se tomando como ponto de apoio sua persistente crítica ao
humanismo e às ciências humanas, postura teórica que levou seu pensamento até a posição
limítrofe em relação à modernidade e seu humanismo constitutivo. Para Foucault, como se
sabe, é apenas a partir da constituição de uma episteme moderna, no limiar do século XIX,
que o sujeito abstrato do conhecimento clássico dá lugar ao homem como figura de carne e
osso, entendido simultaneamente como sujeito e objeto histórico finito e condicionado
empiricamente, o qual, portanto, assume a “posição ambígua de objeto para um saber e de
sujeito que conhece: soberano submisso, espectador olhado”. (FOUCAULT 1995, p. 238)
Apenas então surge o homem como sujeito que se tematiza e se objetiva, como ser que
delimita uma região de conhecimento a respeito de si mesmo. Na análise foucaultiana,
portanto, o homem como sujeito e objeto do conhecimento nasceu em um território
fundamentalmente fracionado entre o empírico e o transcendental, e as ciências humanas, que
justamente estudam as representações que o homem elabora sobre seu trabalho, sua vida e sua
linguagem estariam condenadas a oscilar perpetuamente entre considerá-lo como um ser
determinado por condições sobre as quais ele não tem controle (o homem não controla as
condições de sua vida, de seu trabalho e de sua linguagem, que lhe são pré-existentes) e como
ser que, em suas próprias limitações, está apto a conhecer-se enquanto ser finito, tornando-se
sujeito e condição de possibilidade de seu auto-conhecimento: “O homem, na analítica da
finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se
tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento”. (FOUCAULT 1995, p. 334)
O homem é, pois, um locus caracterizado por Foucault sob a figura do “quadrilátero
antropológico”, ou seja, ele é a instância onde se entrecruzam o empírico e o transcendental, o
cogito e o impensado, a positividade do saber e a finitude, a busca da origem e seu intrínseco
e indeterminado recuo. Em suma, o homem surge para o pensamento moderno como um ser
perpassado por domínios que ele não pode compreender de maneira absoluta, mas, ao mesmo
tempo, como um ser dotado de inteligência sempre capaz de aumentar gradativamente o
espaço daquilo que se pode esclarecer.
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de seu caráter humanista ou antropológico. Seus questionamentos sobre as ciências humanas
não pretendiam definir quais deveriam ser os contornos de um pensamento do futuro, mas
claramente sugeriam a necessidade de superar o humanismo constitutivo da modernidade a
fim de despertar o pensamento de seu sono antropológico e, assim, instaurar novos modos de
pensar. A conclusão a que Foucault chegou foi que a duplicidade das estratégias modernas de
tematização do homem, este duplo empírico-transcendental que é simultaneamente sujeito e
objeto do conhecimento, levava ao impasse e à estagnação do pensamento, limitando assim
suas possibilidades. Foi nesse sentido que ele pôs em questão a necessidade ou perenidade da
existência do próprio homem, desvendando e questionando o a priori histórico das Ciências
Humanas em seu caráter marcadamente antropológico, o qual portanto, deveria ser destruído
desde seus fundamentos: “Para despertar o pensamento de tal sono ..., para chamá-lo às suas
mais matinais possibilidades, não há outro meio senão destruir, até seus fundamentos, o
‘quadrilátero’ antropológico.” (FOUCAULT 1995, p. 358) O ponto de chegada dessas
reflexões se encontra enunciado já no provocativo prefácio de As palavras e as coisas: o
homem não seria o mais velho tema de questionamento dos saberes ocidentais, mas apenas
uma “brecha na ordem das coisas”, uma configuração das novas formas de conhecimento que
propiciou o surgimento de “todas as quimeras dos novos humanismos” e “todas as facilidades
de uma ‘antropologia’ entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o
homem”. (FOUCAULT 1995, p. 13) E se o homem não é mais do que uma “invenção recente,
uma figura que não tem dois séculos,” então não se deveria imaginar que ele perduraria para
sempre como alvo primeiro e último do conhecimento. Enquanto esse acontecimento ainda
não chega, a tarefa do arqueólogo seria a de promover a desconfiança crítica que se faz
acompanhar do sorriso e do martelo nietzscheanos. Para Foucault, portanto, a superação do
sono antropológico que adormece as ciências humanas e a própria filosofia pós-kantiana
dependeria de uma saudável suspeita em relação à figura do Homem como fundamento de
todo conhecimento possível, requerendo, assim, também a ultrapassagem do paradigma
humanista moderno. (FOUCAULT 1995, p. 359)
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humanismo”. (FOUCAULT 1994 a, p. 516) Para o arqueólogo dos anos 60 seria preciso
conceber uma prática política que recusasse a idéia de homem e a idéia de sua felicidade
enquanto fins últimos e determinantes. Assim, criticar o humanismo não significava assumir
uma posição teórica anti-política ou intelectualista, como por vezes se afirma: tratava-se,
antes, de perceber que a renovação das práticas políticas passava pela exigência de um
pensamento rigoroso. Por isso, nos trabalhos dos anos 60 Foucault opôs a paixão do conceito
e da sistematização teórica à paixão pela existência e pela liberdade, tal como elas eram então
professadas por Sartre. Em suma, seria preciso superar o humanismo como herança
extemporânea do século XIX no século XX, de sorte que o papel do filósofo seria o de
mostrar como a humanidade poderia existir sem precisar de novos mitos. Já então Foucault
considerava ser preciso superar as tentativas de resolução dos problemas fundamentais da
humanidade por meio do recurso a categorias totalizadoras e moralizantes, como alienação,
reconciliação e consciência, as quais prometem um ideal de autenticidade por meio do retorno
do homem a si mesmo.
Referências Bibliográficas
Foucault, Michel. Dits et Écrits, vol. I. Paris: Gallimard, 1994 a.
_____________. Dits et Écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 1994 b.
_____________. Dits et Écrits, vol. III. Paris: Gallimard, 1994 c.
_____________. Dits et Écrits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994 d.
_____________. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. SP:
Martins Fontes, 1995.
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_____________. Arqueologia do Saber. Tradução de Luis Felipe Baeta Neves. RJ:
Graal, 7a ed., 2004 a.
_____________. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard, 2004 b.
Machado, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. RJ: Graal, 2000.
Paltrinieri, Luca. “La ficcion, ou la production de la vérité.” In Dossier Foucault
Inédit, apud Le Magazine Littéraire, Fevereiro de 2014.
Ribas, Thiago Fortes. Arqueologia, Verdade e Loucura. Considerações sobre o
pensamento de Foucault entre 1952-1962. Dissertação de Mestrado defendida no
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná, 2011.
(No prelo da editora da UFPR).
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