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Foucault e o pensamento-escritura como experiência transformadora de si e dos outros

André Duarte e Maria Rita César

Em vez de abordar uma questão ou problema teórico específicos, a presente reflexão


quer ensaiar algumas hipóteses para a apreensão de algo quase inapreensível, isto é, a sutileza
e os efeitos daquilo que poderíamos denominar como o gesto intelectual ou a singularidade
do pensamento-escritura de Michel Foucault. Assunto amplo e que abrange a totalidade de
sua obra, assunto difícil e ainda não suficientemente abordado na literatura secundária,
sobretudo no Brasil. Afinal, se já há estudos clássicos a respeito da relação entre o
pensamento de Foucault e a literatura (Machado, 2000), por exemplo, parece-nos que ainda há
muito o que investigar a respeito do modo como Foucault concebeu sua maneira muito
particular de pensar e de escrever. Motivo suplementar para advertirmos que não pretendemos
senão dar início a uma reflexão que se encontra ainda em estágio incipiente, e cujo melhor
desenvolvimento dependerá de esforços intelectuais coletivos. Eis as questões gerais que
orientam nossas considerações: o que é o pensamento-escritura de Foucault? Como
caracterizar a função, os deslocamentos e as conexões internas deste dispositivo expressivo ao
longo de uma obra que se estende por mais de vinte anos? Em qual contexto teórico se
constituiu o dispositivo do pensamento-escritura e como compreender as mutações e nuances
que, mesmo sem alterá-lo profundamente, permitiram que suas manifestações se
transformassem ao longo do tempo?

Ao mencionarmos a noção de pensamento-escritura em Foucault referimo-nos não a


uma determinada démarche teórica, com seus pressupostos metodológicos e os debates
conceituais a eles subjacentes, assim como tampouco buscamos determinar algo como um
estilo particular de escrita. Por hora, cabe perguntar: que tipo de relação entre pensamento e
escrita está em questão quando afirmamos o pensamento-escritura como traço característico
do gesto intelectual de Foucault ao longo de sua obra? No âmbito das filosofias da
representação, a escrita é entendida como veículo que traduz e comunica o pensamento.
Entretanto, não é disto que se trata aqui, pois quando empregamos a noção de pensamento-
escritura como dispositivo expressivo não concebemos a escrita como ferramenta neutra,
destinada a traduzir, representar e veicular determinados conteúdos pensados, facultando sua
compreensão pelos leitores do texto. Por outro lado, o que está em jogo na noção de
pensamento-escritura como dispositivo expressivo é a ideia de que Foucault teria atribuído à

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escritura e ao pensamento a tarefa de pôr em ação e mesmo potencializar certos efeitos, muito
em particular, efeitos de transformação do próprio autor e de seus leitores. Trata-se, pois, da
ideia de que a escritura e o pensamento de Foucault integram-se não apenas ao comunicar
certas verdades ou conteúdos teóricos precisos, mas, sobretudo, porque buscam provocar e
disseminar efeitos de transformação no pensador e naqueles que lêem suas obras, motivo
ético-político que parece ter organizado o estilo e as estratégias discursivas de seus livros,
cursos e entrevistas. Segundo nossa perspectiva, o pensamento-escritura é um dispositivo
expressivo associado à produção de ficções, com as quais Foucault pretendeu questionar
verdades estabelecidas e produzir novos efeitos de verdade ao provocar em si mesmo e em
seus leitores um estranhamento ativo, capaz de engendrar transformações no modo de viver e
pensar.

Ao empregar o conceito foucaultiano de dispositivo para caracterizar seu próprio


modo de pensar e escrever, procuramos levar em consideração a pluralidade de vozes e estilos
que perpassa a obra de Foucault em seus diversos registros, isto é, o dos livros, o dos cursos e
o das entrevistas. Por certo, a escritura e o pensamento de Foucault passam por diversas
transformações estilísticas ao longo do tempo. No entanto, o que nos importa ressaltar é que
essa multiplicidade estilística, que em grande medida corresponde aos temas e objetos
abordados nas diferentes obras do autor, e não a qualquer transformação de profundidade no
registro de seu pensamento, permanece sempre orientada pela exigência de promover efeitos
ético-políticos de transformação de si e dos outros. Assim, mais importante que a riqueza e
complexidade estilísticas do pensamento e da escritura de Foucault é sua maneira original e
instigante de formular perguntas ainda não formuladas, de sugerir respostas que desconcertam
e desconstroem soluções já dadas, bem como sua maneira de definir como problemas dignos
de investigação certos assuntos para os quais a filosofia permanecera reticente até então, como
a sexualidade, as disciplinas, a prisão, a loucura, etc. Em suma, a noção de dispositivo
expressivo visa explicitar que estamos diante de um pensamento e de uma escrita inusitados,
heterogêneos e heterodoxos, caracterizados pela invenção e pela amarração de conceitos e
métodos cujas procedências teóricas são distintas, situando-se numa fronteira jamais
claramente definida entre a filosofia e a história, um pensamento e uma escrita em que a
riqueza e a multiplicidade do diverso se conjugam de maneira harmoniosa ao difundirem
estranhamentos, deslocamentos, questionamentos e mutações nos modos como pensamos,
agimos e nos sentimos em nosso presente, seja com relação a nós mesmos, seja com relação
aos outros e ao próprio mundo. Nossa hipótese, portanto, é que Foucault pensou e escreveu

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não apenas para transmitir certas teorias, conceitos, verdades ou informações, mas que, desde
muito cedo, ele teria reconhecido que a própria transmissão daqueles conteúdos dependia de
um pensamento, de uma fala e de uma escritura ficcionais, capazes de ensejar e produzir
certos efeitos etopoiéticos de transformação de si e dos outros. Neste sentido, o pensamento-
escritura de Foucault seria um dispositivo expressivo no qual a dimensão teórico-
epistemológica não se dissociaria dos efeitos ético-políticos que ela procuraria disseminar, os
quais, por sua vez, devem ser entendidos em sentido amplo, ultrapassando quaisquer
fronteiras disciplinares, definindo-se como abertura de um campo de experiências práticas e
teóricas visando a transformação da maneira de ser e pensar do pensador-escritor e de seus
leitores.

Encontramos ao longo da obra de Foucault inúmeros indícios a respeito do caráter


ficcional de seus livros, embora o próprio autor não os tenha sistematizado. Assim, já em
entrevista de 1967 a respeito da recepção crítica de As palavras e as coisas, Foucault
declarava que seu livro era uma “pura e simples ficção; é um romance, mas eu não o inventei,
ele é a relação entre nossa época e sua configuração epistemológica e toda essa massa de
enunciados.” (FOUCAULT 1994 a, p. 591) Para além do apagamento do autor sob o crivo do
analista que discerne as homologias estruturais subjacentes a discursos distintos em uma
mesma época e, deste modo, nada inventa por si mesmo, cabe ressaltar a coragem com que
Foucault, em uma de suas entrevistas mais densamente teóricas do final dos anos 60, confia a
seu entrevistador o caráter ficcional e romanesco de sua investigação. Como entender essa
afirmação? Tratar-se-ia de mera boutade teórica visando esquivar-se das críticas? Pensamos
que não. Se é certo que tal associação entre teoria e ficção literária não visava borrar ou
mesmo apenas tematizar as fronteiras entre literatura e investigação teórica, nem tampouco
pretendia abolir a verdade em nome da criação ficcional, acreditamos que já então ela dizia
respeito à exigência foucaultiana de promover algo como uma verdadeira etnologia da cultura
ocidental tendo em vista operar mutações no regime estabelecido de verdades, abrindo
caminho desta maneira para transformações ético-políticas em si mesmo e nos outros. Em
uma palavra, o caráter ficcional de sua reflexão seria o meio ou a via pelos quais Foucault
tentou colocar constantemente seu pensamento à prova da realidade contemporânea,
enfrentando-se com ela, desviando-se dela, estranhando-a a fim de multiplicar efeitos de
transformação ético-políticos em si e nos outros. Assim, o traço característico do pensamento-
escritura de Michel Foucault residiria na desnaturalização das evidências, visando tornar
visível aquilo que de tão evidente torna-se invisível. A este respeito, Luca Paltrinieri nos

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recorda em recentíssimo ensaio que Foucault definira a função da ficção, em seu texto de
meados dos anos 60 sobre Maurice Blanchot, La pensée du dehors, não como instância
destinada a tornar visível o invisível, mas, pelo contrário, como aquele discurso que seria
capaz de “‘fazer ver quão invisível é a invisibilidade do visível’.” (Paltrinieri 2014, p. 77;
Foucault 1994 a, p. 552)

À luz das considerações precedentes, ganha novo sabor e relevância a conhecida


passagem do final do prefácio de Arqueologia do saber na qual Foucault se vale da ficção
para explicitar uma concepção a respeito do pensar e do escrever que, segundo cremos,
perduraria em toda sua produção posterior. A passagem se inicia com Foucault emulando o
discurso de inúmeros críticos, certamente ávidos por expressar a ele próprio semelhante
opinião com relação a seus escritos:

Você não está seguro do que diz? Vai novamente mudar, deslocar-
se em relação às questões que lhe são colocadas, dizer que as objeções
não apontam realmente para o lugar em que você se pronuncia? Você
se prepara para dizer, ainda uma vez, que você nunca foi aquilo que
em você se critica? Você já arranja a saída que lhe permitirá, em seu
próximo livro, ressurgir em outro lugar e zombar como o faz agora:
não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o
observo rindo.
Como?! Você pensa que eu teria tanta dificuldade e tanto prazer em
escrever, que eu me teria obstinado nisso, cabeça baixa, se não
preparasse – com as mãos um pouco febris – o labirinto onde me
aventurar, deslocar meu propósito, abrir-lhe subterrâneos, enterrá-lo
longe dele mesmo, encontrar-lhe desvios que resumem e deformam
seu percurso, onde me perder e aparecer, finalmente, diante de olhos
que eu não terei mais que encontrar? Vários, como eu, escrevem para
não ter um rosto. Não me pergunte quem sou e não me diga para
permanecer sempre o mesmo: é uma moral de estado civil; ela rege
nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever.
(FOUCAULT 2004, pp. 19-20)

Do ponto de vista de nossa argumentação, mais importante que toda a finnesse


d’esprit contida na primeira parte deste genial diálogo fictício, que propõe uma crítica
bastante plausível quanto ao modo como o próprio Foucault por vezes costumava responder a
seus críticos, escapando às dificuldades por meio de tiradas sarcásticas, é a resposta que o
texto põe em cena em sua segunda metade, pois ali o autor explicita o que de fato está em
jogo no seu ato de escrever e pensar. Foucault quer pensar e escrever não tanto ou não apenas

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para formular teorias e sistemas, mas, acima de tudo, para entregar-se de maneira obstinada e
mesmo devota a um pensamento e a uma escritura destinados a abrir as portas do labirinto em
que o pensador quer se aventurar, quer se perder para talvez então se reencontrar, mas agora já
sendo outro em relação àquele que iniciara a perigosa travessia. Ao conceber o pensamento, a
escrita e a investigação como aventuras das quais o pensador há de sair renovado, portando
novos olhos, Foucault concebia a atividade teórica como experiência capaz de tornar aquele
que pensa irreconhecível para si mesmo e para seus leitores. Escrever para apagar o próprio
rosto não significa, portanto, instalar-se ficcionalmente em um lugar inefável, inatingível, de
onde o pensador poderia rir tranquilamente de seus críticos, mas ser capaz de pensar e dizer
coisas que somente se tornaram possíveis de pensar e dizer uma vez que o pensador-escritor
deslocou seus propósitos teóricos iniciais, abreviando-os, transformando-os, abandonando-os.
Já então Foucault enunciava com todas as letras o leitmotif de sua obra, os traços gerais de seu
pensamento-escritura: escrever é desaparecer, isto é, transformar-se, apagar o próprio rosto
para experimentar a liberdade de não ser sempre o mesmo, motivo que ainda encontraremos
em entrevistas de meados dos anos 80.

Cabe ressaltar que a produção destes efeitos etopoiéticos também implicavam e


requeriam um pensar e uma escritura que almejassem compreender criticamente o presente,
exigência que Foucault formulou, inicialmente, em termos da definição da tarefa do filósofo
como um diagnosticador da atualidade. Em entrevista de 1967, Foucault afirmava ter
aprendido com Nietzsche que o filósofo não mais poderia esconder-se atrás do laborioso
ofício do historiador das ideias, posto que o que agora lhe competia era a tarefa “bastante mais
fugidia de dizer o que se passa. (...) Pode-se, com efeito, definir o filósofo como uma espécie
de analista da conjuntura cultural, a cultura sendo entendida aqui em sentido amplo, não
apenas enquanto produção de obras de arte, mas enquanto instituições políticas, formas de
vida social, de interditos e de diversas constrições.” (FOUCAULT 1994 a, pp. 581-582) É
ainda neste mesmo sentido que, em 1973, Foucault definirá a filosofia de maneira provocativa
como uma espécie de “jornalismo radical” (FOUCAULT 1994 b, p. 434), para depois
acrescentar, em entrevista de 1978, que o “diagnosticador do presente” é aquele teórico que,
por meio do “pequeno gesto que consiste em desviar o olhar, torna visível o que é visível, faz
aparecer o que está tão próximo, tão imediato, tão intimamente ligado a nós que, por isso
mesmo, nós não o vemos.” (FOUCAULT 1994 c, p. 594)

Podemos agora dar mais um passo na elucidação do dispositivo expressivo do


pensamento-escritura de Foucault. Como vimos até aqui, tal dispositivo opera ao disseminar

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efeitos difusos de transformação no pensador-escritor. Tais efeitos, por sua vez, estando
associados às exigências de uma escrita e de uma reflexão que visam diagnosticar o presente,
geram ainda efeitos suplementares de estranhamento e de transformação no modo mesmo
como os próprios leitores passam a se relacionar com o saber, a razão, a loucura, o crime, a
sexualidade, a ética, a política. Foucault estava bastante consciente a respeito destes efeitos
suplementares de transformação dos outros por meio de seu pensamento-escritura, aspecto
que ele refere diretamente ao caráter ficcional de suas obras, que não se limitariam a produzir
ou reproduzir conhecimentos verdadeiros, mas destinar-se-iam, sobretudo, a promover efeitos
de desbloqueio na maneira como os leitores se relacionam com tudo aquilo que, à primeira
vista, lhes pareceria ser da ordem das evidências naturalizadas. Em uma entrevista de 1979,
Foucault afirmava que a despeito dele não se conceber como um artista ou como um
romancista, ele tampouco se definia como um teórico, isto é, como filósofo ou como
historiador, já que o conteúdo de verdade de suas obras se revelaria de maneira mais evidente
nas repercussões que suas ideias provocariam na atualidade, isto é, em seus leitores:

Eu pratico uma espécie de ficção histórica. De certa maneira, sei


muito bem que o que eu digo não é verdadeiro. Um historiador
poderia muito bem dizer daquilo que escrevi: ‘Isto não é a verdade.’
Para dizer as coisas de outro modo: escrevi muito sobre a loucura no
começo dos anos 60, fiz uma história do nascimento da psiquiatria. Sei
muito bem que o que fiz é, de um ponto de vista histórico, parcial,
exagerado. Talvez tenha ignorado alguns elementos que me
contradiriam. Mas meu livro teve um efeito sobre a maneira pela qual
as pessoas percebem a loucura. E, assim, meu livro e a tese que ali
desenvolvo têm uma verdade na realidade de hoje. Eu tento provocar
uma interferência em nossa realidade e aquilo que sabemos de nossa
história passada. Se sou bem sucedido, esta interferência produzirá
efeitos reais sobre nossa história presente. Minha esperança é que
meus livros assumam sua verdade uma vez escritos, e não antes.
(FOUCAULT 1994 c, p. 805)

À primeira vista, poderia parecer que ao admitir o caráter ficcional de seus escritos
Foucault pretenderia escapar às críticas e objeções dos historiadores e filósofos de profissão.
Se isto fosse assim, então Foucault estaria substituindo a verdade pela ficção, e não é disto
que se trata, pois dificilmente encontramos pensador contemporâneo mais preocupado com o
problema da verdade do que Foucault. Por um lado, ele parece admitir que não pode haver
busca da verdade que não contenha em si mesma um elemento ficcional, posto que ao final
das contas se trata de um trabalho de escritura, isto é, de composição, de fabricação, de modo

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que postular uma suposta identidade sem resto entre pensamento e realidade nada mais faria
que varrer para baixo do tapete o fato de que todo aquele que escreve compõe em certa
medida uma ficção. Mas nem mesmo é este o aspecto mais importante desta passagem
reveladora. O que importa é que Foucault não deixa de considerar os efeitos de verdade que
suas próprias ficções teóricas promovem em seus leitores: mais importante do que desvendar
a verdade da loucura, do sexo ou do crime é compreender os efeitos perversos das verdades
estabelecidas por discursos e práticas reiteradas, problematizando-as, desconstruindo-as,
mostrando-as na sua contingência, para assim abrir espaço a novas formas de pensar, a novos
efeitos de verdade. Foucault jamais pretendeu demonstrar que a verdade seria mera
construção ficcional, mas sim o caráter contingente de toda verdade estabelecida pelas
ciências humanas, mostrar, enfim, o caráter não necessário daquilo que viemos a ser, daquilo
em que acreditáramos. Ocorre que ao mostrar o caráter contingente de tantas verdades
recebidas, ao mostrar como se constituíram as verdades que à primeira vista julgaríamos
escapar ao jogo das forças históricas, Foucault simultaneamente abria o caminho para pensar e
agir de outro modo. A bem dizer, Foucault não se preocupou em estabelecer de uma vez por
todas qualquer conjunto de verdades históricas, mas em estabelecer o caráter histórico da
verdade enquanto tal, isto é, ocupou-se em elaborar uma história da verdade e de seus efeitos
políticos duradouros, ora aprisionadores, ora liberadores, em suma, Foucault dedicou-se a
compor uma história política da verdade. Sem jamais negar a verdade enquanto tal, o que lhe
pareceria inócuo e talvez até mesmo contraproducente, Foucault quis pensar os efeitos
políticos da verdade a respeito de discursos e das práticas, efeitos que podem levar ao
assujeitamento ou a processos de liberação e subjetivação autotransformadora. Ao refletir
sobre os procedimentos e campos teóricos próprios à sua obra, certa feita Foucault declarou
que “... o que eu faço, ao final das contas, não é nem história, nem sociologia, nem economia.
Mas é bem qualquer coisa que, de uma maneira ou outra, e por razões simplesmente de fato,
tem que ver com a filosofia, quer dizer, com uma política da verdade, pois não vejo outra
definição da palavra ‘filosofia’ senão aquela”. (FOUCAULT 2004 b, pp.4-5)

Ao conceber suas obras como ‘livros-experiência’ e não como “livros-verdade” ou


“livros-demonstração” (FOUCAULT 1994d, p. 47) isto é, como compêndios teóricos
destinados a transmitir algum nova verdade, Foucault esclarecia a Duccio Tromabadori, em
entrevista de 1978, que ele se deslocava constantemente de um livro ou de uma investigação a
outra, evitando assim pensar sempre a mesma coisa: “uma experiência é algo de que se sai
transformado.” (FOUCAULT 1994d, p. 41) A cada obra concluída o próprio Foucault passava

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por transformações, de sorte que se ele porventura tivesse de escrever um livro para
“comunicar o que já penso antes de ter começado a escrever, jamais teria a coragem de
empreendê-lo. Escrevo somente porque não sei ainda exatamente o que pensar desta coisa que
eu tanto gostaria de pensar. Cada livro transforma o que eu pensava quando terminei o livro
precedente. Eu sou um experimentador e não um teórico.” (FOUCAULT 1994 d, pp. 41-42)
Nunca é demais insistir que não se tratava, porém, de recusar a teoria, nem tampouco de
recusar a verdade em nome da ficção. Antes, pelo contrário, como afirma corretamente
Paltrinieri, tratava-se de “reafirmar que o termo ficção não designa o contrário da verdade,
mas um regime de produção e de transformação da experiência do escritor como do leitor.”
(PALTRINIERI 2014, p. 77) Neste sentido, Paltrinieri recorda que se para Foucault toda
experiência é da ordem da ficção, isto é, é algo inventado por si mesmo e a partir de cuja
invenção se produzem importantes efeitos de autotransformação, nem por isso a experiência
ela deixaria de ser “algo que somente se pode fazer plenamente na medida em que ela
escapará à pura subjetividade, sendo algo em que outros poderão, não digo retomá-la
exatamente, mas ao menos cruzá-la ou perpassá-la.” (FOUCAULT 1994 d, p. 47)

Se um dos traços que distinguem e caracterizam o dispositivo expressivo do


pensamento-escritura é a concepção de que escrever e pensar é deslocar-se, tornar-se outro,
cabe também observar que esta ideia se associa ainda a uma outra, absolutamente crucial: a
ideia de que pensar é intervir, é instaurar certa distância crítica em relação aos modos de ser,
pensar, sentir e conviver hegemonicamente prevalecentes, de maneira que a experiência do
autor tem de repercutir na experiência dos leitores, ou ao menos, tem de produzir efeitos de
experiência e de transformação nos leitores. Foucault é bastante claro a esse respeito em suas
entrevistas, sobretudo aquelas nas quais ele tematiza a recepção crítica e as lutas e
engajamentos dos quais se derivaram algumas de suas obras. Esse caráter vivo dos livros-
experiência de Foucault somente alcança sua plenitude quando se se consideram os seus
efeitos de transformação no âmbito de sua própria recepção, de modo que a experiência de
transformação do autor tem de completar seu arco ao produzir experiências de transformação
nos leitores. Comentando as reações que Vigiar e Punir despertara em seus leitores, reações
que variaram da adesão incondicional à dúvida e ao rechaço frontais, Foucault afirma que tais
reações estiveram sempre associadas ao fato de que os leitores reconheceram algo deles
mesmos e de seu mundo naquilo que leram: “Sentia-se que alguma coisa de atual era posta
novamente em questão. (...) Leu-se o livro, pois, como uma experiência que muda, que
impede de ser sempre os mesmos, ou de manter o mesmo tipo de relação com as coisas e com

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os outros que nós tínhamos antes da leitura. O que mostra que no livro se exprime uma
experiência bem mais estendida que a minha.” (FOUCAULT 1994 d, p. 47)

Ademais, Foucault também se vale de suas entrevistas para expor questionamentos


que visam justamente provocar transformações no modo de viver e pensar de seus leitores, de
maneira que seus questionamentos teóricos sobre as experiências da sexualidade e do cuidado
de si entre os antigos jamais interromperam seu interesse pelas questões políticas das lutas de
minorias da atualidade, antes pelo contrário, poder-se-ia mesmo supor que seu interesse pela
antiguidade permitiu-lhe aguçar as desconfianças e a crítica em relação ao dispositivo
moderno da sexualidade, tematizado por ele no volume I da História da Sexualidade. Assim,
em uma entrevista de 1982 sobre as lutas políticas dos homossexuais, Foucault discute os
limites e potencialidades da noção de identidade, deixando clara a relação entre suas pesquisas
a respeito da hermenêutica do sujeito e questões de sua própria atualidade. (FOUCAULT 1994
d, p. 739) À pergunta cristã pela verdade acerca de si, acerca de nossa identidade, de nossos
desejos e das práticas, Foucault, inspirado pelos antigos, propõe uma nova pergunta, aquela
que interroga o que estamos fazendo de nós mesmos. Tal questão interroga nossas práticas e
nossos discursos a fim de por em questão nossas formas correntes ou hegemônicas de
estabelecer relações com os outros e conosco mesmos. Daí a ideia de que a identidade até
pode ser um importante marcador social se ela estiver destinada a promover novas formas de
relação e de amizade entre as pessoas, sendo entretanto uma perigosa armadilha se
direcionada a uma hermenêutica de decifração da verdade escondida de si mesmo. A despeito
de toda mudança nos objetos de pesquisa de Foucault a partir do início dos anos 80, quando se
consolida seu interesse pelas práticas e discursos do cuidado de si entre os antigos e ele se
afasta de sua genealogia dos poderes-saberes modernos, permanece intacto o motivo central
de seu pensamento-escritura, qual seja, o “de fazer por mim mesmo, e convidar os outros a
fazerem comigo, através de um conteúdo histórico determinado, uma experiência do que
somos, do que é não somente nosso passado mas também nosso presente, uma experiência de
nossa modernidade da qual saímos transformados.” (FOUCAULT 1994 d, p. 44)

Assim, se é certo que do ponto de visto do estilo de escrita e de pensamento o


rebuscamento quase-literário das obras e textos dos anos 60 desaparece para dar lugar ao
caráter sóbrio e tranquilo de um pensador finalmente reconciliado com a filosofia e
interessado pelas práticas e discursos do cuidado de si dos antigos, nem por isso deve-se
pensar que o dispositivo expressivo do pensamento-escritura abandonaria seu motivo central,
a produção de transformações em si mesmo e nos outros, o qual, como afirmamos, perpassa e

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amarra a totalidade de sua reflexão. Assim, naquele que talvez seja um de seus últimos textos
escritos, o Prefácio ao volume II da História da Sexualidade, texto no qual Foucault justifica
perante seu público leitor as alterações que atrasaram e transformaram o plano inicial da obra,
ele afirma o seguinte:

O motivo que me impulsionou foi, por sua vez, muito simples. Aos
olhos de alguns, espero que ele possa bastar-se por si mesmo. É a
curiosidade; em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a
pena praticar com um pouco de obstinação: não aquela que busca
assimilar o que convém conhecer, mas aquela que permite separar-se
de si mesmo. De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse
apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa forma e tanto
quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Há momentos na
vida em que a questão de saber se se pode pensar de outra maneira do
que aquela pela qual se pensa, e se se pode perceber de outra maneira
do que aquela pela qual se vê, é indispensável para continuar a olhar e
refletir. (...) Mas o que é a filosofia hoje – quer dizer, a atividade
filosófica – se ela não for o trabalho crítico do pensamento sobre si
mesmo? Se ela não consistir, em lugar de legitimar o que já se sabe,
em tentar saber como e até que ponto não seria possível pensar de
outro modo? (...) O ‘ensaio’ – que é preciso compreender aqui como
experiência modificadora de si mesmo e não como apropriação
simplificadora de outrem – é o corpo vivo da filosofia, ao menos se
ela ainda é agora o que ela foi antes, isto é, uma ‘ascese’, um exercício
de si no pensamento. (FOUCAULT 1994 d, p. 543, minha ênfase)

Neste texto derradeiro já nada resta das pirotecnias retóricas do jovem autor de
Arqueologia do saber, cujo rosto inquieto há muito desapareceu para dar lugar ao semblante
sereno de um pensador que já não mais recusa a filosofia, na esteira de Nietzsche, por causa
de sua tendência à mumificação conceitual carente de sensibilidade histórica. A partir dos
anos 80 Foucault assume para si a filosofia, mas então ele a concebe e a exerce sob a forma do
“ensaio”, isto é, como “exercício filosófico”, como “ascese” ou trabalho de si sobre si que
deve nos permitir “saber em que medida o trabalho de pensar sua própria história pode liberar
o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente e pode lhe permitir pensar de outro
modo.” (FOUCAULT 1994 d, p. 544) O surgimento de novos elementos teóricos ao longo de
seus últimos cursos no Collège de France, tais como a concepção da prática filosófica como
exercício ascético que permite transformar o pensamento e o próprio pensador, mostra que se
os interesses teóricos de Foucault se deslocaram em relação às suas preocupações dos anos 60
e 70, nem por isto o dispositivo expressivo do pensamento-escritura sofreu qualquer abalo:
nos anos 80, pensar e escrever continuavam entregues à produção de estranhamentos, ao

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descaminho, visando permitir que o autor se desvencilhasse de si mesmo, se distanciasse
daquilo que pensara até então, diferindo de quem fora até então. Nos anos 80 como nos anos
60 e 70, a tarefa do pensamento e da escritura de Foucault jamais terá se resumido à
acumulação e transmissão de conhecimentos verdadeiros, mas continuava a pôr à prova o
limite de certa maneira de pensar, promovendo, assim, efeitos de desconstrução e
desestabilização nas formas correntes de viver. Não casualmente, portanto, neste texto que
pode ser considerado como o testamento teórico de Foucault, o motivo da crítica é entendido
e posto em ação como o dobrar-se reflexivo do pensamento sobre si mesmo a fim de liberar a
via para que se possa pensar e ser de outro modo.

Finalmente, algumas breves considerações sobre o contexto teórico em que o


dispositivo expressivo do pensamento-escritura se constituiu na reflexão foucaultiana, que
consideramos já estar em ação no momento mesmo do primeiro deslocamento teórico que fez
de Foucault o autor que hoje conhecemos, ou seja, já na sua ruptura em relação ao universo
teórico de sua formação psicológica e filosófica: a fenomenologia, a dialética hegeliano-
marxista e o existencialismo. Encontramos aí uma primeira e importante peripécia reflexiva,
uma primeira exigência de autotransformação, de apagamento do rosto próprio, por meio da
qual o jovem filósofo e psicólogo inclinado ao marxismo humanista se converteu no
arqueólogo Michel Foucault. (Ribas, 2011). A fim de efetivar este processo de conversão de
seu olhar, Foucault recorreu à leitura de certos autores, por ele sempre muito prezados:

Nietzsche, Blanchot e Bataille são os autores que me permitiram


liberar-me daqueles que haviam dominado minha formação
universitária no começo dos anos de 1950: Hegel e a fenomenologia.
Fazer filosofia, então, como de resto ainda hoje, significava
principalmente fazer história da filosofia; e esta história da filosofia
procedia delimitando-se, por um lado, pela teoria dos sistemas de
Hegel e de outro pela filosofia do sujeito sob a forma da
fenomenologia e do existencialismo. (...) Foi neste panorama
intelectual que amadureci: por um lado, não ser um historiador da
filosofia como meus professores e, de outro lado, buscar alguma coisa
totalmente diferente do existencialismo: isto foi para mim a leitura de
Bataille e de Blanchot e, por meio deles, de Nietzsche. O que eles
representaram para mim? Primeiramente, um convite a por em questão
a categoria do sujeito, sua supremacia, sua função fundadora. Depois,
a convicção de que tal operação não teria qualquer sentido se ela
ficasse limitada às especulações; por em questão o sujeito significava
experimentar alguma coisa que levaria à sua destruição real, à sua
dissociação, à sua explosão, à sua transformação em alguma coisa
totalmente outra. (FOUCAULT 1994 c, p. 48)

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O assunto é certamente complexo e não há como conceder-lhe tratamento adequado
agora, mas, de todo modo, gostaríamos de sugerir uma última hipótese de trabalho a ser posta
à prova em pesquisas futuras. Trata-se da hipótese de que o pensamento-escritura de Foucault
aprofundou-se e consolidou-se tomando como ponto de apoio sua persistente crítica ao
humanismo e às ciências humanas, postura teórica que levou seu pensamento até a posição
limítrofe em relação à modernidade e seu humanismo constitutivo. Para Foucault, como se
sabe, é apenas a partir da constituição de uma episteme moderna, no limiar do século XIX,
que o sujeito abstrato do conhecimento clássico dá lugar ao homem como figura de carne e
osso, entendido simultaneamente como sujeito e objeto histórico finito e condicionado
empiricamente, o qual, portanto, assume a “posição ambígua de objeto para um saber e de
sujeito que conhece: soberano submisso, espectador olhado”. (FOUCAULT 1995, p. 238)
Apenas então surge o homem como sujeito que se tematiza e se objetiva, como ser que
delimita uma região de conhecimento a respeito de si mesmo. Na análise foucaultiana,
portanto, o homem como sujeito e objeto do conhecimento nasceu em um território
fundamentalmente fracionado entre o empírico e o transcendental, e as ciências humanas, que
justamente estudam as representações que o homem elabora sobre seu trabalho, sua vida e sua
linguagem estariam condenadas a oscilar perpetuamente entre considerá-lo como um ser
determinado por condições sobre as quais ele não tem controle (o homem não controla as
condições de sua vida, de seu trabalho e de sua linguagem, que lhe são pré-existentes) e como
ser que, em suas próprias limitações, está apto a conhecer-se enquanto ser finito, tornando-se
sujeito e condição de possibilidade de seu auto-conhecimento: “O homem, na analítica da
finitude, é um estranho duplo empírico-transcendental, porquanto é um ser tal que nele se
tomará conhecimento do que torna possível todo conhecimento”. (FOUCAULT 1995, p. 334)
O homem é, pois, um locus caracterizado por Foucault sob a figura do “quadrilátero
antropológico”, ou seja, ele é a instância onde se entrecruzam o empírico e o transcendental, o
cogito e o impensado, a positividade do saber e a finitude, a busca da origem e seu intrínseco
e indeterminado recuo. Em suma, o homem surge para o pensamento moderno como um ser
perpassado por domínios que ele não pode compreender de maneira absoluta, mas, ao mesmo
tempo, como um ser dotado de inteligência sempre capaz de aumentar gradativamente o
espaço daquilo que se pode esclarecer.

Em As palavras e as coisas, portanto, Foucault empreendia uma cartografia do


pensamento moderno e contemporâneo, demonstrando as aporias e perplexidades decorrentes

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de seu caráter humanista ou antropológico. Seus questionamentos sobre as ciências humanas
não pretendiam definir quais deveriam ser os contornos de um pensamento do futuro, mas
claramente sugeriam a necessidade de superar o humanismo constitutivo da modernidade a
fim de despertar o pensamento de seu sono antropológico e, assim, instaurar novos modos de
pensar. A conclusão a que Foucault chegou foi que a duplicidade das estratégias modernas de
tematização do homem, este duplo empírico-transcendental que é simultaneamente sujeito e
objeto do conhecimento, levava ao impasse e à estagnação do pensamento, limitando assim
suas possibilidades. Foi nesse sentido que ele pôs em questão a necessidade ou perenidade da
existência do próprio homem, desvendando e questionando o a priori histórico das Ciências
Humanas em seu caráter marcadamente antropológico, o qual portanto, deveria ser destruído
desde seus fundamentos: “Para despertar o pensamento de tal sono ..., para chamá-lo às suas
mais matinais possibilidades, não há outro meio senão destruir, até seus fundamentos, o
‘quadrilátero’ antropológico.” (FOUCAULT 1995, p. 358) O ponto de chegada dessas
reflexões se encontra enunciado já no provocativo prefácio de As palavras e as coisas: o
homem não seria o mais velho tema de questionamento dos saberes ocidentais, mas apenas
uma “brecha na ordem das coisas”, uma configuração das novas formas de conhecimento que
propiciou o surgimento de “todas as quimeras dos novos humanismos” e “todas as facilidades
de uma ‘antropologia’ entendida como reflexão geral, meio positiva, meio filosófica, sobre o
homem”. (FOUCAULT 1995, p. 13) E se o homem não é mais do que uma “invenção recente,
uma figura que não tem dois séculos,” então não se deveria imaginar que ele perduraria para
sempre como alvo primeiro e último do conhecimento. Enquanto esse acontecimento ainda
não chega, a tarefa do arqueólogo seria a de promover a desconfiança crítica que se faz
acompanhar do sorriso e do martelo nietzscheanos. Para Foucault, portanto, a superação do
sono antropológico que adormece as ciências humanas e a própria filosofia pós-kantiana
dependeria de uma saudável suspeita em relação à figura do Homem como fundamento de
todo conhecimento possível, requerendo, assim, também a ultrapassagem do paradigma
humanista moderno. (FOUCAULT 1995, p. 359)

Ademais, Foucault também estava certo de que o humanismo fora a base de


justificação de catástrofes políticas perpetradas tanto pela esquerda quanto pela direita, visto
que tanto o tecnocrata como o revolucionário constumam justificar suas ações e seus saberes
em nome de uma suposta felicidade do homem: “Nossa tarefa é nos desvencilhar
definitivamente do humanismo e é nesse sentido que nosso trabalho é político, na medida em
que todos os regimes do leste e do oeste fazem passar sua má mercadoria pelo pavilhão do

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humanismo”. (FOUCAULT 1994 a, p. 516) Para o arqueólogo dos anos 60 seria preciso
conceber uma prática política que recusasse a idéia de homem e a idéia de sua felicidade
enquanto fins últimos e determinantes. Assim, criticar o humanismo não significava assumir
uma posição teórica anti-política ou intelectualista, como por vezes se afirma: tratava-se,
antes, de perceber que a renovação das práticas políticas passava pela exigência de um
pensamento rigoroso. Por isso, nos trabalhos dos anos 60 Foucault opôs a paixão do conceito
e da sistematização teórica à paixão pela existência e pela liberdade, tal como elas eram então
professadas por Sartre. Em suma, seria preciso superar o humanismo como herança
extemporânea do século XIX no século XX, de sorte que o papel do filósofo seria o de
mostrar como a humanidade poderia existir sem precisar de novos mitos. Já então Foucault
considerava ser preciso superar as tentativas de resolução dos problemas fundamentais da
humanidade por meio do recurso a categorias totalizadoras e moralizantes, como alienação,
reconciliação e consciência, as quais prometem um ideal de autenticidade por meio do retorno
do homem a si mesmo.

Pensamos, pois, que a crítica foucaultiana do humanismo e do caráter antropológico


das ciências humanas foi o crivo a partir da qual se pôs em ação um pensamento e uma
escritura ‘outros’, expostos à experiência da alteridade, do deslocamento e da transformação
de si e dos outros, uma escrita e um pensamento fundamentalmente ético-políticos, marcados
pela abertura à diferença, pelo questionamento dos efeitos de naturalização que se impregnam
às doutrinas do mesmo e da identidade. Se tal hipótese puder encontrar sustentação, então já
não fará mais sentido argumentar que as investigações arqueológicas dos anos 60 não
conteriam intuições fundamentalmente ético-políticas, concepção que, por sua vez, haverá de
abrir novas possibilidades interpretativas a respeito das pesquisas arqueológicas e de sua
relação com suas investigações genealógicas e éticas, assunto ao qual ainda pretendemos
retornar com mais calma e vagar em outra oportunidade.

Referências Bibliográficas
Foucault, Michel. Dits et Écrits, vol. I. Paris: Gallimard, 1994 a.
_____________. Dits et Écrits, vol. II. Paris: Gallimard, 1994 b.
_____________. Dits et Écrits, vol. III. Paris: Gallimard, 1994 c.
_____________. Dits et Écrits, vol. IV. Paris: Gallimard, 1994 d.
_____________. As palavras e as coisas. Tradução de Salma Tannus Muchail. SP:
Martins Fontes, 1995.

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_____________. Arqueologia do Saber. Tradução de Luis Felipe Baeta Neves. RJ:
Graal, 7a ed., 2004 a.
_____________. Sécurité, Territoire, Population. Paris: Gallimard, 2004 b.
Machado, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. RJ: Graal, 2000.
Paltrinieri, Luca. “La ficcion, ou la production de la vérité.” In Dossier Foucault
Inédit, apud Le Magazine Littéraire, Fevereiro de 2014.
Ribas, Thiago Fortes. Arqueologia, Verdade e Loucura. Considerações sobre o
pensamento de Foucault entre 1952-1962. Dissertação de Mestrado defendida no
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Paraná, 2011.
(No prelo da editora da UFPR).

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