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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TERIA PSICANALÍTICA

O FEMININO NOS CAMINHOS DA PULSÃO: DA SUBLIMAÇÃO À ESCRITA

Hevellyn Ciely da Silva Corrêa

Rio de Janeiro

2017
O FEMININO NOS CAMINHOS DA PULSÃO: DA SUBLIMAÇÃO À ESCRITA

Hevellyn Ciely da Silva Corrêa

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de
Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutora em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Maria Cristina Candal Poli

Rio de Janeiro
2017

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C824 Corrêa, Hevellyn Ciely da Silva.
O feminino nos caminhos da pulsão: da sublimação à escrita /
Hevellyn Ciely da Silva Corrêa. 2017.
149f.

Orientadora: Maria Cristina Candal Poli.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto


de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica,
2017.

1. Psicanálise e arte. 2. Feminilidade. 3. Sublimação. I. Poli, Maria


Cristina Candal. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Psicologia.
CDD: 150.195

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O FEMININO NOS CAMINHOS DA PULSÃO: DA SUBLIMAÇÃO À ESCRITA
HEVELLYN CIELY DA SILVA CORRÊA.

Tese de Doutorado submetida ao


Programa de Pós-graduação em Teoria
Psicanalítica da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutora.
Orientadora: Profa. Dra. Maria Cristina Poli.
Aprovada por

_________________________________________________
Profª. Drª. Maria Cristina Candal Poli - Orientadora
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_____________________________________________
Profª Drª Anna Carolina Lo Bianco Clementino
Universidade Federal do Rio de Janeiro

__________________________________________
Profª Drª Simone Perelson
Universidade Federal do Rio de Janeiro

____________________________________________
Profª Drª Denise Maurano Mello
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

_______________________________________
Profª Drª Simone Zanon Moschen
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Rio de Janeiro
2017

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RESUMO
O FEMININO NOS CAMINHOS DA PULSÃO: DA SUBLIMAÇÃO À ESCRITA
Hevellyn Ciely da Silva Corrêa
Orientadora: Maria Cristina Candal Poli
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Teoria
Psicanalítica.

O encontro entre psicanálise e arte, de onde parte a presente pesquisa, é aqui realizado a partir
dos possíveis manejos do trabalho pulsional em articulação com o feminino que, através da
arte, alcançam também a cultura, de tal modo que as articulações entre feminino e pulsão são
aqui realizadas através de criações em que sujeito e cultura tenham arranjos distintos do
sintoma. Para pensar as articulações entre feminino, que de Freud a Lacan é pensado para
além dos destinos dados à sexualidade a partir da anatomia, e os caminhos da pulsão fora do
recalque, nos dedicamos à sublimação através da heroína Antígona, em que a leitura lacaniana
nos mostra que beleza e morte se conjugam no objeto artístico, de modo que a personagem de
Sófocles nos sinalizou um registro de criação no qual o belo e o desejo estão intimamente
implicados. As articulações entre feminino e trabalho da pulsão seguem através de outra
heroína trágica, Sygne de Coûfontaine, que tem na pena lacaniana um destaque quanto à
radicalidade do desejo que, diferente da personagem grega, conjuga beleza e morte através de
um “não/nome”, no qual se vê a falência dos valores ali sustentados, de maneira que a
travessia dos limites entre as duas mortes, realizado pela heroína contemporânea, nos ajuda a
pensar uma forma de criação em que já não se trata exatamente do destino sublimatório, mas
que ofereceu elementos para pensar as torções entre significante e letra. Estas torções, que são
esboçadas na personagem de Claudel, ganham destaque no ensino de Lacan, nos ajudando a
pensar os liames entre feminino e trabalho pulsional na personagem Nawal Maruan, da obra
Incêndios de Wajdi Mouawad, na qual o feminino apresenta modos de operar na linguagem
que, através da letra/carta, nos indicam caminhos de criação que não são regulados de todo
pelos sentidos revelados, dando a ver um escape ao sentido que acreditamos dizer respeito à
escrita própria ao feminino.
Palavras-chave: Pulsão, feminino, sublimação, escrita, trágico.

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RESUMÉ

LE FÉMININ DANS LES CHAMINS DE LA PULSION: DE LA SUBLIMATION À


L’ÉCRIT

Résumé de Thèse de Doctorat soumis au Programme de Pós-Graduação en Théorie


Psychanalytique, Institut de Psychologie, de l‘Université Fédéral du Rio de Janeiro – UFRJ,
intégrant les prérequis nécessaires à l‘obtention du titre de Docteur en Théorie
Psychanalytique.

La rencontre entre la psychanalyse et l’art, d’où part cette recherche, est ici realisé a partir des
possibles manierés du travail pulsionel en articulation avec le féminin qui, à travers de l’art,
attendre aussi la culture, de sorte que las articulations entre le féminin et la pulsion sont ici
faits à travers des créations qui le sujet et la culture ont accords distincts du symptôme. Pour
penser las articulations entre féminin, que chez Freud et chez Lacan est pensé au-delà des
destins donnés de la sexualité depuis l’anatomie, et les chemins de la pulsion dehors le
refoulement, nous nous dédions a la sublimation à travers l’heroïne Antigone, où la lecture
lacanienne nous montre que la beauté et la mort se combinent dans l’objet artistique, d’une
façon que le personnage de Sofocle nous a signalé un registre de création où le beau et le désir
se combinent. Las articulations entre le féminin et le travail de la pulsion suivent par d’autre
heroïne tragique, Sygne de Coûfontaine, qui a dans l’ouvre lacanienne une importance a
propos de la radicalité du désir qui, diferent de l’heroïne grécque, elle unit la béauté et la mort
a travers d’un « non/nom » dans lequel on voit la faillite des valeurs ici soutenus, d’une façon
que la traversée des limites entre les deux morts, realisée par l’heroïne contemporaine, nous
aide à penser une façon de création qui´il ne s’agit pas exactament du destin sublimatoire,
mais que nous a offert des questions pour penser les tortillons entre le significant et la lettre.
Cettes torsions, qui sont dessinées dans le personage de Caudel, gagnent importance dans
l’enseignement de Lacan, en nous aidant à penser les liens entre le féminin et le travail
pulsionel dans la personage Nawal Maruan, de l’ouvre Incendies de Wajdi Mouawad, où le
féminin présente des façons d’opérer sur la langage que, par le lettre, nous montre les chemins
de la création ne sont pas reglés du tout par les sens révéles, mise en voir un échape au sens
que nous croyons qu´il s’agit d’une écrite propre au féminin.
Mots-clés: Pulsion, féminin, sublimation, écrite, tragique.

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Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido.
Carolina Maria de Jesus

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AGRADECIMENTOS
Esta tese, para além de um trabalho acadêmico, testemunha uma trajetória em diferentes
solos e moradias, em que o Rio de Janeiro me ofereceu acolhida e experiências sem as quais
não posso conceber minha escrita; Paris, apesar do pouco tempo de moradia, me permitiu o
encanto e estranhamento das (minhas) fronteiras; Belém, minha cidade natal, como uma
presença constante, mesmo em outros territórios. Meus agradecimentos circularão entre estas
cidades, o que me faz ter profunda gratidão por cada uma delas.
Agradeço à Cristina Poli, minha orientadora, pela transmissão e parceria em todo o
percurso. Do mestrado ao doutorado, sua presença foi imprescindível para o trabalho
construído.
Às avaliadoras da banca, professoras Anna Carolina Lo Bianco, Simone Perelson,
Denise Maurano e Simone Moschen, pelo aceite ao convite e pela atenção à minha tese.
Ao professor Alain Vanier, directeur de recherche no estágio de Doutorado Sanduíche,
pela acolhida e orientação na Universidade Paris VII e no Espace Analytique.
Aos colegas do Grupo de Estudos Mallarmé, coordenado por Isabel Lins, pela
transmissão da psicanálise de forma tão poética.
Aos amigos do PPGTP-UFRJ, Luciano Dias, Carolina Moreira, Marcia Alves, Carolina
Martins e Fernanda Heck, pela alegria do encontro dentro e fora da academia.
Às amigas Marina Mesquita, Raquel Rocha, Rhanna Henrique, Alda Queiroz e Roberta
Rocha, por terem feito da moradia a porta de entrada para grandes amizades.
Ao meu namorado Guilherme Delgado, pelo companheirismo nos dias de peso e de
leveza.
Aos diretores Amir Haddad, Anselmo Vasconcellos, Cesar Bournier e Vilma Mello, por
me permitirem fazer do Rio um espaço para palco.
Ao Coletivo Cultural Ultramundanos, por seguir acreditando junto comigo no fazer
teatral.
À tia Dirce, pela atenção e cuidado na revisão de minha escrita.
Aos amigos paraenses Helô Cesar, Priscila Anjos, Katia Faro, Fernanda Bengio,
Julianne Freire, Fernanda Castelo, Felipe Ribeiro e Marcela Azevedo, pela partilha do Norte
de forma tão feliz e frutífera.
Aos amigos Adriano Dias, Daiana Althaus, Luciana Batista, Tania Santos e Patricia
Alves, pelo carinho e acolhida de sempre.
À tia Antonia, pelo porto sempre seguro em terras cariocas.

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A Betinha Vale, Fábio Crescenzi e Osmar Felix, pela introdução e passeio pela língua
francesa e a ternura que ela nos permitiu.
Para concluir, meu maior e mais profundo agradecimento aos meus pais, Carlos e
Cristina, e às minhas irmãs, Hellen e Hellayne, por tudo e pelo amor de sempre, sem o qual
minha trajetória não seria possível.

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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 12
CAPÍTULO 1 – CAMINHOS DA PULSÃO: DA SUBLIMAÇÃO À ESCRITA ........... 22
1.1 - Sublimação em Freud ................................................................................................... 23
1.2 - Pulsão e criação no destino sublimatório....................................................................... 34
1.3 - Criação em Lacan, do destino pulsional à escrita ...........................................................41
CAPÍTULO 2 – FEMININO: UM PERCURSO................................................................. 48
2.1 - Da diferença sexual à feminilidade: um percurso em Freud .........................................49
2.2 - Da feminilidade ao Feminino........................................................................................ 55
2.3 - Feminino e gozo.............................................................................................................66
CAPÍTULO 3 – TRÁGICO: DO ANTIGO AO CONTEMPORÂNEO .......................... 71
3.1 –Trágico Grego................................................................................................................. 71
3.2 – O Trágico entre o Belo e o desejo ..................................................................................78
3.3 - Trágico além do antigo................................................................................................... 83
CAPÍTULO 4 – PERSONAGENS TRÁGICAS: VEREDAS DO FEMININO ................ 91
4. 1 - Antígona: de Sófocles a Lacan........................................................................................ 91
4.1. 1 - O Feminino em Antígona..................................................................................... 94
4.1.2 – Maternidade e feminino no enredo de Antígona ..................................................96
4.1.3 – Sublimação e morte na filha de Édipo ............................................................... 100
4.1.4 – Antígona ou a diferença radical do feminino: uma entrada no desejo e na
cultura............................................................................................................................. 102
4.1.5 – Antígona, como esta figura feminina testemunha sobre a sublimação?.............105
4.2 – Tragédia contemporânea: o Nome/Não de Sygne .........................................................107
4.2.1 – O desejo em sua articulação no enredo de L’Otage .......................................... 108
4.2.2 – Ultrapassagem e atravessamento dos limites .....................................................113
4.2.3 – Morte e beleza em Sygne....................................................................................116
4.2.4 - A letra que faltava para imprimir o significante Sygne.......................................119
4.3 – Nawal Maruan: tragédia contemporânea, mais ainda ...................................................123
4.3.1 – Incêndios: um consolo impiedoso .....................................................................124
4.3.2 – Uma carta sempre chega ao seu destino de litoral.............................................126
4.3.3– Uma letra feminina ou a escrita d’A mulher......................................................131
4.3.4 - Do silêncio e da escrita como testemunhos........................................................135
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................138

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REFERÊNCIAS ...................................................................................................................144

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INTRODUÇÃO
Esta tese nasce do percurso de pesquisa dentro do campo psicanalítico, que a mim foi
apresentado através do curso de psicologia, em que a transmissão da psicanálise na
universidade indicou-me outra maneira de pensa r os cânones acadêmicos e a noção de sujeito
e tratamento clínico, fazendo-me manter com a universidade e a psicologia uma posição de
aproximação e afastamento. Também como entradas e afastamentos, esta tese nasce de minha
atuação no teatro, anterior àquilo que me levou à psicanálise, mas que, de algum modo,
também a ela me encaminhou e se fez presente no trajeto que aqui se apresenta.
Aproximações e distanciamentos marcaram meu percurso no teatro e, ainda que uma carreira
profissional não tenha se estabelecido, não deixou de existir através de oficinas e montagens
teatrais, o que ofereceu à pesquisa em psicanálise os contornos que aqui busco desenhar.
Este duplo nascimento a que remeto a presente pesquisa oferece ao material teórico um
tratamento que se interessa pela práxis, marcando assim o caráter da pesquisa em psicanálise
na universidade que, conforme Pinto (2006), só pode ser pensada à luz do laço social, em que
o sujeito do inconsciente se inclui no saber que produz, apesar das exigências de
universalidade, tão caras aos preceitos acadêmicos, que recaem sobre tal saber. Neste sentido,
a presente tese busca participar dos modos de transmissão da psicanálise na universidade, que
vê no campo artístico uma forma de operar no laço social.
Operando no laço social, busco lançar o olhar psicanalítico sobre questões artísticas, o
que encontra na psicanálise diferentes modos de exploração do campo das artes, porém,
mesmo que haja recorrências a determinadas particularidades de um artista ou obra, e daí
múltiplas consequências serem recolhidas, algo se mantém e marca a perspectiva da
psicanálise: o interesse direcionado àquilo que este campo carrega de singular e faz laço
social, ou seja, de uma singularidade que não diz respeito apenas ao autor individualmente,
mas que se endereça ao Outro.
A partir disso, compreendemos a recorrência de Freud a artistas como Michelangelo e
Leonardo da Vinci para pensar questões que não estão subsumidas às figuras destes artistas,
mas que, através de seus trabalhos via arte, dizem respeito ao funcionamento psíquico do
sujeito e sua entrada na cultura. Seguindo este legado freudiano, a pesquisa parte de um
conceito em psicanálise cujo trabalho está intimamente atrelado ao fazer artístico: a
sublimação.
A vinculação da sublimação ao campo artístico, operação já comum nos estudos
psicanalíticos, justifica-se pela história do conceito dentro da psicanálise, na qual o campo

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artístico aparece com lugar privilegiado e, sobretudo, porque carrega uma importante
interrogação: o que significa, para o sujeito, fazer arte? Ao utilizarmos o verbo “fazer”
relacionado ao sujeito, consideramos o trabalho da pulsão nele implicado através da
sublimação, ou seja, partimos de um sujeito cuja produção artística diz respeito a sua
dinâmica pulsional.
Com esta concepção, as noções de sujeito e de arte que guiam nosso olhar não podem
ser pensadas senão pelo trabalho da pulsão, já que, mesmo que consideremos que outros
registros estão implicados nestas noções, inclinamo-nos ao destino pulsional que a um só
tempo responde às exigências da pulsão e faz laço social através da arte. Neste sentido,
marcamos o encontro entre arte e psicanálise através de um destino dado à pulsão, encontro
este que desde as investigações freudianas foi marcado por atrações e distanciamentos, a
partir dos quais compreendemos que há algo em comum entre eles, mas que isto não os tornar
idênticos. Relançando o movimento de atração e distanciamento, partimos da psicanálise em
um estudo que vai ao terreno artístico, por pressupor que tanto a arte quanto a psicanálise se
direcionam ao sujeito, a partir da dimensão que lhe escapa e ao mesmo tempo o constitui.
Este ponto de intercessão oferece-nos vários caminhos e formas de lidar com ele, como
nos mostram alguns estudos nesta área (RIVERA, 2013; MAURANO, 2006), o que nos
convoca a escolher os operadores por onde promoveremos nossa leitura. Elegemos o do
feminino, pois nele notamos importantes elementos que ajudam a pensar a articulação entre
arte e psicanálise. Operar a articulação entre feminino e arte dentro da seara psicanalítica,
novamente nos lança em uma série de possíveis caminhos. Antes que nos deixemos vagar por
tamanhas possibilidades, tomemos a falta, o vazio ou, conforme nos diz Kehl (2003), as
formas de nomear o que não há, que em ambos - feminino e arte - assume lugar de excelência,
convocando-nos a trabalhar para dizer a que nos referimos, quando lançamos mão destes
nomes e com eles operamos.
Este lugar de excelência tomado por aquilo que não há, e as formas de nomeá-lo,
imprime na arte e no feminino, diz Kehl (2003), um estado de constante mutação que os torna
expressões do inacabado, o qual nunca encontra arremate completo porque tem o vazio em
seu cerne. Trata-se, neste sentido, de um inacabado não enquanto parte que busca se totalizar,
mas que retira da incompletude o movimento da criação, como a alegoria do oleiro em que
Lacan (1959-1960/ 1995) nos diz que, mais do que construir as paredes do vaso, constrói o
vazio em seu centro. Neste sentido, ao recorrer ao feminino e à arte, partimos de uma noção

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onde o vazio é positivado, pois convoca ao novo; movimento próprio ao desejo em sua
condição faltosa.
Nesta dimensão do desejo como falta, estamos considerando o lugar do significante
fálico na articulação do desejo e, ao pensarmos a partir do feminino, como este significante
encontra no feminino uma maneira muito particular de ser operado. Se o desejo tem no falo a
marca da falta que o mobiliza, de Freud a Lacan, o feminino não deixa de ser tocado por ele,
mas não o opera tal qual o masculino e - eis o que iremos trabalhar no decorrer da tese - abre
caminhos para pensar uma inscrição que também diz respeito ao trabalho da pulsão.
Neste sentido é que nosso trabalho irá pensar o desejo a partir da falta instaurada pelo
significante fálico, assim como a partir da noção de causa do desejo através do objeto a, o
qual também atua como objeto da pulsão, mesmo que de modo diferente que na fantasia e no
desejo. O objeto a, neste sentido, surge como ponto comum e, ao exercer diferentes funções
no campo do desejo e da pulsão, mostra as junções e disjunções entre trabalho da pulsão e
organização simbólica, registros que são diretamente tocados pela sublimação.
Desta maneira, ainda que tratemos de registros distintos quando pensamos o trabalho
sublimatório e a articulação do desejo – de um lado pulsão e de outro fantasia -, estes registros
não são sem relação e nos convidam a pensar seus possíveis modos de articulação no laço
social. Com este interesse é que iremos ao campo artístico, pois pensamos, com Lacan (1959-
1960/1995), que a arte se encontra no lugar de revelar a falta e ao mesmo tempo tentar cingi-
la, de tal modo que, através de uma mesma personagem teatral, Antígona, o autor retira
conseqüências para pensar tanto o desejo quanto a sublimação.
Estas consequências tomam maiores proporções para nossa pesquisa se considerarmos
que, na pena lacaniana, elas são articuladas através de uma personagem feminina: Antígona.
Menos por um corpo anatômico de mulher e mais pela recorrência a uma heroína que não
cede de seu desejo, vemos aí algo do feminino que tem muito a dizer sobre a criação
sublimatória. Encontramos na figura de Antígona um estreito vínculo com o desejo, já que a
leitura lacaniana - diferente da tradição de helenistas como Vernant & Vidal-Naquet (1981) -
vê no enredo de Sófocles não uma contradição entre lei humana e tradição divina, mas a
sustentação do desejo que faz a personagem deliberadamente andar sobre a navalha trágica.
A resposta ao desejo sustentada por Antígona, sublinha Lacan (1959-1960/1995), é feita
através do belo e por ele também é impedida, estabelecendo assim as duas faces do belo frente
ao desejo, quais sejam, extinção ou temperança do desejo e também sua disrupção. Estes
movimentos entre belo e desejo em Antígona, que marcam a leitura lacaniana e em muito nos

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ajudam a pensar a produção sublimatória, serão abordados no decorrer da tese, no capítulo em
que nos dedicaremos diretamente às articulações entre feminino e sublimação na heroína da
tragédia antiga.
Já de início, podemos situar o ponto de onde nossa pesquisa se lança a partir de
Antígona, a saber, uma criação que está em estreito enlace com o desejo em sua dimensão
erótica e mortífera. Notamos aí uma relação com o feminino que não é de qualquer ordem,
pois - eis o que suspeitamos - a personagem deixa antever em sua figura uma relação com a
criação que diz respeito à produção a partir e em torno do vazio, em que o destino pulsional
que encontra saídas distintas do recalcamento é diretamente tocado.
Com Antígona, guiando-nos por Lacan (1959-1960/1995), tratamos das tentativas de
contorno do vazio que produzam algo que não a formação sintomática; nossa investigação,
assim, expande-se para o destino pulsional sublimatório, dizendo respeito às dimensões
tomadas pela pulsão enquanto exigência de trabalho e força constante, de modo que no
trabalho permanente da pulsão podemos criar contornos que escapam ao recalcamento. Tais
contornos, não esqueçamos, são aqui pensados a partir do feminino, o qual lhes imprime uma
particular relação com o vazio, na medida em que recorre a contornos, mas neles não se deixa
subsumir. Nossa suspeita, que iremos explorar no decorrer da tese e aqui situamos a título de
apresentação, é que com Antígona notamos uma aproximação entre o movimento próprio à
pulsão no trabalho sublimatório e o manejo do falo feito pelo feminino.
A particular relação do feminino com o vazio - que acreditamos ser um ponto de
destaque na heroína sofocleana - está presente desde as primeiras investigações freudianas,
em que a dinâmica edípica apresenta diferentes conseqüências psíquicas para aqueles que
sofrem ameaça de castração e para aquelas que se vêem castradas, e terá no ensino de Lacan
um desenvolvimento em que o feminino diz respeito a uma singular posição, não-toda, na
inscrição fálica. Esta intimidade entre feminino e vazio nos parece um fio possível de costura
com a sublimação, nisto que Lacan (1959-1960/1995) chama de criação em torno do vazio,
em que o trabalho da pulsão cria os contornos que presentificam o vazio de Das Ding.
Vemo-nos assim diante da tríade: vazio, feminino e sublimação, convocando-nos à
caracterização da órbita que aí se dispõe, em outros termos, como o modo do feminino operar
com o vazio se imprime na sublimação? De que modo o destino pulsional sublimatório
trabalha a partir do feminino? Em última instância, estamos levantando interrogações acerca
do sujeito e suas formas de resposta face ao vazio, que suspeitamos ter um trabalho
diferenciado através do feminino. Tendo o devido cuidado de considerar as mudanças

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ocorridas no ensino de Lacan, entre o seu trabalho acerca da sublimação como organização
em torno do vazio no Seminário 7 e o feminino como não-todo no Seminário 20, nossa
pesquisa vê pontos de aproximação entre aquilo que autor articula como formas de gozo e o
trabalho da pulsão na criação artística.
Estes pontos de aproximação têm em Antígona uma entrada em que belo e desejo se
enlaçam na criação. Para compreendermos tal enlace, dedicar-nos-emos ao enredo em que a
filha de Édipo, ao sustentar o desejo de dar honras fúnebres ao irmão, faz da morte a
sustentação de seu desejo, já que opera pelas próprias mãos aquilo que desde o início lhe foi
colocado como ameaça. Ao fazer da própria morte a sustentação máxima de seu desejo, a
heroína sofocleana repete o ato materno, porém, conforme iremos explorar no capítulo
dedicado a Antígona, tal ato põe em cena as diferentes articulações entre sexualidade e morte
em Jocasta e sua filha, o que nos convida a pensar os modos com que o feminino se dispõe na
morte tornada beleza na figura de Antígona.
A introdução à dramaturgia de Antígona nos ajudará a pensar como a personagem,
tomada por modelo para pensar a sublimação e a ética da psicanálise, pode oferecer-nos
questões próprias ao feminino na criação sublimatória, dando notícias da entrada do sujeito no
desejo e na cultura. Já com nossa outra heroína, Sygne de Coûnfontaine, os pontos de
proximidade entre criação e feminino têm uma articulação um pouco diferente, oferecendo-
nos outras maneiras de pensar desejo e cultura.
A dedicação ao que Lacan chama de tragédia contemporânea, a trilogia dos Coûfontaine
de Paul Claudel, carrega algumas torções em relação ao trabalho a respeito da heroína da
tragédia antiga. Ainda se inclinando à questão do desejo, a abordagem lacaniana de Sygne de
Coûfontaine inscreve-se no trabalho do autor a respeito da transferência, no Seminário 8
(1960-1961/2010), no qual o desejo surge como ponto de interrogação para a experiência
analítica e, antes de se dedicar à trilogia de Claudel, Lacan faz uma longa exploração sobre o
amor e o objeto de desejo. Desta forma, o interesse lacaniano já parece girar em torno dos
modos de articulação do desejo, o que irá se apresentar naquilo que o autor chama de “o mito
de Édipo hoje”, sua leitura acerca da trilogia claudeliana.
Ao mostrar novamente a proximidade da psicanálise com a experiência trágica, Lacan
aborda o trabalho de Claudel (1911), cuja narrativa se inscreve em um cenário onde os valores
da fé cristã perdem força face ao crescimento da burguesia no império de Napoleão I. A
leitura lacaniana irá direcionar-nos ao ponto comum da tragédia, a saber, a evocação da Atè,
como calamidade fundamental na qual gira o destino do herói; no entanto, tal ponto é

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atravessado por Sygne de Coûfontaine e, diferente de Antígona que vai até seus limites, faz
dessa travessia o esgar da vida através de seu não/nome.
Apresentando aí a miragem da beleza trágica, naquilo que Lacan (1960-1961/2010) diz
ser a beleza insensível dos ultrajes, a heroína Sygne revela-nos uma face de criação em que a
morte está inscrita de uma maneira distinta da tragédia antiga, em que o “não” de sua morte
enlaça a tentativa de restauração de uma ordem já perdida. E na medida em que a tragédia de
Sygne de Coûfontaine é pensada por Lacan como o primeiro tempo da recomposição do
desejo 1, a saber, a marca do significante, esta marca está diretamente enlaçada ao negativo e à
morte.
A heroína da tragédia contemporânea, neste sentido, encaminha-nos para uma relação
com a criação em que o sacrifício e a morte estão fora de uma seara religiosa ou, em termos
mais precisos, em que a seara religiosa atesta seu fracasso através do sacrifício. Ao tratar do
enredo de L’Otage para pensar a articulação do desejo, em que a marca do significante tem
em Sygne a destruição e afastamento de todos os valores da fé, notamos que a leitura
lacaniana nos encaminha a pensar esta marca inaugural do desejo que não se faz sem uma
íntima relação com a morte. Por isto, já não basta chegar aos limites entre duas mortes, é
preciso atravessá-los. Eis o que faz Sygne de Coûfontaine.
Conforme iremos explorar através do enredo de L’Otage, este atravessamento dos
limites da morte já se apresenta na figura da heroína desde os primeiros atos, mostrando
aquilo que Lacan chama de esgar da vida, que não se faz apenas em seu ato de atirar-se frente
à bala que acertaria o abjeto Turelure, mas que tem neste ato o momento de radicalidade do
desejo. Não por salvar aquele que amava, mas por levar seu “não/nome” aos limites últimos, a
morte em Sygne é atentatória ao estatuto da beleza, diz-nos Lacan (1960-1961/2010),
mostrando novamente a proximidade entre beleza e morte, o que iremos explorar no capítulo
sobre a heroína claudeliana, a fim de pensar como esta proximidade pode dizer respeito à
criação.
Ainda que alguns elementos comuns apareçam na leitura de Antígona e de Sygne, como
a relação entre morte e beleza, eles são tomados por Lacan com alguns deslocamentos; neste
sentido é que o autor já não toma a perspectiva da sublimação para pensar a trilogia de
Claudel, mas o faz para tratar a articulação do desejo que esta trilogia põe em cena. Isto nos

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Lacan (1960-1961/2010) refere a recomposição do desejo em três gerações às tramas de Claudel, em que Sygne,
da peça L’Otage, ilustra a marca do significante; Louis de Coûfontaine, da peça Le Pain Dur, representa o objeto
enquanto não desejado; e Pensée, da peça Le Père humilié, ilustra o desejo.
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mostra o quanto o uso de dramaturgias trágicas se inscreve de modo diferente nas abordagens
de Lacan, uma vez que as próprias dramaturgias contêm elementos nos quais o conflito
trágico se instaura de diferentes maneiras.
Seguindo os passos lacanianos, nossa investigação dedica-se àquilo que os enredos
oferecem e, a partir disso, tomamos a tragédia contemporânea de Sygne de Coûfontaine por
aquilo que, dizendo respeito à criação, não necessariamente se refere à sublimação. Neste
sentido é que nossa pesquisa vê, na abordagem que faz de Sygne, um ponto de dobra no
ensino de Lacan, a respeito do trabalho da pulsão em seus modos possíveis de criação.
Notamos este ponto de dobra, pois, conforme citado pelo autor antes de adentrar à leitura dos
Coûfontaine, é a letra que está em seu horizonte, na medida em que a trilogia só pôde nos
alcançar pela impressão do Û nunca antes usado.
Da sublimação à letra, o sujeito continua a ter que lidar com o trabalho pulsional e a
articulação do desejo, ao que Sygne de Coûfontaine aparece como a marca do significante
que, contudo, só pode chegar a tal pela inscrição da letra. Significante e letra, neste sentido,
aparecem em uma difícil articulação, já que a letra não é pensada fora da dinâmica
significante, porém tal dinâmica não é da mesma ordem do trabalho de cifra da letra. Como
iremos explorar no decorrer da tese, estas articulações ganharão destaque no ensino de Lacan
e, no que diz respeito a Sygne de Coûfontaine, dão a ver seus primeiros contornos na figura da
heroína de Claudel.
Esta perspectiva da letra, que Lacan situa sem maiores explorações no Seminário 8, é
foco de seu interesse em trabalhos contemporâneos do autor como Juventude de Gide ou a
Letra e o Desejo (1958), permitindo-nos pensar um registro de trabalho da pulsão mais
próximo à escrita que à sublimação. Esta mudança, que aqui lançamos a título de introdução
ao percurso que iremos realizar no decorrer da tese, guarda em si um trabalho acerca das
diferentes articulações entre letra e significante, que faz com que a própria perspectiva de
sublimação, paulatinamente, dê lugar à escrita e ao Sinthoma no ensino de Lacan.
Destarte, aquilo que irá ganhar maiores contornos no ensino de Lacan, insinua-se no
trabalho acerca da trilogia claudeliana, indicando que letra e articulação do desejo não são
sem relação. Partindo disto, nossa investigação a respeito da personagem Nawal Maruan, da
peça Incêndios (2003) de Wajdi Mouawad, também se dedicará às articulações entre desejo e
letra, a partir do enredo que põe em cena o horror, bem como histórias de amor, que se
revelam a partir de cartas/letras, as quais entram no drama como últimos desejos da heroína.

18
Nosso trabalho, a respeito de uma personagem contemporânea, segue as heranças
lacanianas de recolher o que os elementos próprios à dramaturgia nos oferecem, para daí
pensarmos os modos como a criação se dispõe, dando-nos notícias do sujeito em sua inscrição
na cultura. Na figura da protagonista Nawal Maruan, temos acesso ao caminho empreendido
por uma mãe em busca do filho que, no cenário de guerras do Oriente Médio, é levada à
prisão e violação, lá encontrando, sem saber, o filho no carrasco. Esta revelação, que aqui já é
colocada, é-nos apresentada através das cartas-testamento, deixadas ao casal de filhos como
últimos pedidos.
Desejo e revelação aparecem em estreito enlace no enredo de Incêndios e, na medida
em que têm por veículo cartas de conteúdo desconhecido, tais cartas adquirem uma grande
importância e nos convidam a pensar o registro da letra na dinâmica da personagem. Neste
sentido é que nosso trabalho se dirige ao estatuto da letra no ensino de Lacan, para pensar os
modos com que o deslocamento das missivas, de conteúdo desconhecido até a última cena,
aproxima- se do que o autor trata no Seminário Sobre a Carta roubada (1956) e dão a ver o
efeito feminizante que a carta/letra possui. De tal modo que o feminino aqui se apresenta a
partir daquilo que mobiliza nos personagens, pois é através dos seus efeitos que ficamos
sabendo do que está para além das letras ali dispostas.
Nosso trabalho a este respeito seguirá a noção de letra no ensino de Lacan, que,
destacando-se da noção de significante, no Seminário 18 (1971) é pensada como litoral que
faz borda entre gozo e saber. Situando o campo do gozo, é enquanto borda que as cartas de
Nawal portam algum saber, de tal modo que através das cartas se delimita a impossibilidade
de acesso a este gozo, ao mesmo tempo em que algo dele se dá a ver. Tal bordejamento feito
pelas cartas é atestado pela reação de cada um dos filhos, para os quais as missivas são
deixadas: a filha, por uma saída pela lógica matemática, que sempre chega a um ponto
impossível, e o filho, pelo problema de visão periférica, que o conduz a um ponto cego
presente no combate de boxe. Algo sempre lhes escapa, mesmo seguindo os caminhos abertos
pelas cartas. Eis aí o campo do gozo de Nawal.
Este escape deixa ver uma dimensão de criação que nos interessa sobremaneira,
revelando as possibilidades de pensar uma escrita tributária à lógica do não-todo que, ao
mesmo tempo em que atesta a impossibilidade de dizer tudo, também dá contornos
contingentes ao impossível de dizer. Estamos, assim, na dimensão de algo que faça cessar o
impossível, através de saídas que não se limitam à organização fálica, ainda que a ela recorra,
situando-nos na perspectiva de feminino trabalhado por Lacan no Seminário 20 (1972-1973).

19
Assim, nosso trabalho a respeito de Nawal segue no sentido de pensar como o destino
construído pela personagem dá notícias do desejo e do gozo.
Conforme iremos explorar no decorrer da tese, esta passagem do registro do desejo ao
campo do gozo traz consigo uma perspectiva sobre o trabalho pulsional diferenciada daquela
pensada nas heroínas Antígona e Sygne de Coûfontaine, ainda que desejo e gozo também
estejam implicados na leitura de Lacan acerca das personagens de Sófocles e Claudel. Para
melhor compreender isto que aparece de fundo nas leituras das personagens Antígona, Sygne
de Coûfontaine e Nawal Maruan, dedicaremos o primeiro capítulo da tese a pensar o percurso
da sublimação, que o ensino de Lacan recolhe da obra freudiana, e caminha no sentido de
pensar o trabalho pulsional, não apenas a título de vicissitude sublimatória, mas à escrita, em
que o gozo também está implicado.
Neste sentido, para alcançarmos o capítulo onde as heroínas trágicas serão nosso foco,
de nosso primeiro, dedicado ao percurso da sublimação à escrita, encaminhamo-nos, no
segundo capítulo, ao tema do feminino em Freud e Lacan, em que, da feminilidade ao
feminino, somos lançados aos modos de operar na linguagem que ajudarão na leitura das
personagens. A entrada no tema do feminino mostra-nos que, desde os estudos freudianos
acerca da diferença anatômica e suas conseqüências psíquicas, são colocadas questões que
não se esgotam naquilo que o Complexo de Édipo responde, no que o ensino de Lacan avança
no sentido de pensar o significante fálico que, muito mais do que a presença ou ausência
anatômica, diz respeito à falta enquanto motor do desejo, e a modalidades de gozo em que o
fálico é tomado de diferentes maneiras.
Desta forma, buscaremos os pilares daquilo que suspeitamos dizer respeito à inscrição
do sujeito na cultura, em que o trabalho da pulsão encontra contornos muito particulares,
femininos diremos, que se deixam ver de diferentes modos nas personagens às quais
recorremos.
Uma vez que a recorrência a tais personagens as vincula sob o título trágico, nosso
terceiro capítulo dedica-se a caracterizar a órbita trágica que as une, de tal modo que nos
ajude também a compreender como o trágico, que tem lugar de excelência na seara
psicanalítica desde Freud, é pensado a partir de nossos interesses. Neste sentido é que dentro
deste capítulo, dedicado ao trágico do antigo ao contemporâneo, situamos a perspectiva de

20
Lacan sobre o trágico e o belo, a fim de situar, no amplo campo de estudos sobre o trágico, a
leitura que nos guia2.
Com a entrada nestes campos preliminares da sublimação e escrita, do feminino e do
teatro trágico, temos os operadores para pensar os modos de criação que as três personagens
nos testemunham. Como já esboçamos a título de introdução, cada uma delas nos oferece
caminhos distintos de leitura, dos quais esperamos recolher questões sobre os modos como
sujeito e cultura se articulam.

2
A aproximação com o trágico que realizamos advém da dissertação de mestrado, intitulada “Sublimação a
partir de estéticas conflituosas: um diálogo entre Psicanálise e Tragédia Grega”, na qual trabalhamos a
sublimação em íntima relação com uma dimensão estética que suporta paradoxos, própria à tragédia grega.
21
CAPÍTULO 1 - CAMINHOS DA PULSÃO: DA SUBLIMAÇÃO À ESCRITA
O interesse pelo tema da sublimação a partir de um objeto artístico, tarefa a que nos
propomos, marca o olhar do psicanalista ao se direcionar para a cultura, pois busca pensar o
ponto comum entre sujeito e obra, que não diz respeito a um espelhamento entre biografia e
criação, mas a um solo que os atravessa, ao mesmo tempo em que lhes escapa de uma
compreensão unívoca. Partindo de um trabalho marcado pela alteridade, tanto sujeito quanto
obra criada não se limitam a um modelo, podendo recorrer ao horror e à beleza a um só
tempo, já que se trata das dimensões tomadas pela pulsão que, conforme nos diz Lacan
(1964/1996), é acéfala, porém seu trabalho não deixa de ter contornos simbólicos e
imaginários na arte.
A questão que se levanta é de como pensar em criação artística quando ela a todo o
momento traz a marca do pulsional, contudo, não se confunde com ele, na medida em que
carrega também as amarrações simbólicas. Esta questão, que enunciamos sem a pretensão de
esgotá-la, dá à própria noção de criação um estatuto que se diferencia de leituras
psicologizantes, as quais buscam compreendê-la a partir de uma suposta localização da
ligação entre obra e autor.
Interessa-nos o destino pulsional sublimatório que opera na dobradiça entre pulsão e
cultura e, assim, tem por motor o inesgotável conflito entre as pulsões, que mostra suas
marcas também nas formas tomadas. Ao partirmos de um destino pulsional que se diferencia
do recalcamento, mas que, tal qual ele, também atua nas esferas do sujeito e da cultura,
estamos tratando das possibilidades de satisfação inauguradas pela interdição. Em outros
termos, face à impossibilidade de uma plena satisfação pulsional, o que cabe ao sujeito que
não o recalque3? A esta interrogação, nossa perspectiva é que com o feminino haveria uma
forma de resposta que não está completamente subsumida às respostas fálicas, ainda que a
elas recorra.
Na medida em que buscaremos pensar a sublimação a partir do campo artístico, a
dinâmica que aí se instaura lança questões aos debates já comuns a este campo: o que daria à
criação o estatuto de arte? Seria apenas a operação do artista que a elege como tal? Cabe ao
espectador ou ao especialista a eleição do objeto artístico? Sem adentrarmos nos pormenores
destas interrogações, tampouco ignorá-las, guardemos o que elas ressoam à psicanálise,

3
Ainda que sem ele sequer podemos pensar o trabalho da pulsão em articulação ao laço social, ou seja, o próprio
destino pulsional sublimatório pressupõe um recalque original, mostrando que não se trata da mera contraposição
entre sublimação e recalcamento, mas que, como destinos pulsionais, eles não podem ser pensados
desimplicados, cabendo-nos pensar suas particularidades.
22
enquanto estranhamento entre trabalho criador e obra criada. Advindos deste estranhamento,
iremos guiar nossa leitura sobre as personagens Antígona, Sygne de Coûfontaine e Nawal
Maruan, que dão diferentes testemunhos do lugar da obra de arte sob a perspectiva
psicanalítica.
No entanto, não podemos esquecer que quando nos direcionamos ao encontro de Lacan
com as obras de Sófocles e de Claudel, nas figuras de Antígona e Sygne, para recolher o que o
psicanalista nos oferece sobre o trabalho em torno destas obras ficcionais, e, a partir deste
trajeto, nos inclinamos à heroína Nawal, já estamos em um tempo avançado do trajeto sobre a
sublimação, em que a própria noção de criação da qual partimos sinaliza questões que não
estão subsumidas apenas ao trabalho da pulsão sublimada, mas incluem outros registros,
implicados que não apenas o pulsional. Na tentativa de remontar às bases que nos trouxeram
até este ponto de leitura, para daí avançarmos, deter-nos-emos no trajeto da sublimação no
discurso psicanalítico.

1.1 – Sublimação em Freud


A primeira referência ao termo sublimação aparece na pena freudiana em carta enviada
a Fliess de 2 de maio de 1897, na qual lemos: “As fantasias derivam de coisas que foram
ouvidas, mas só compreendidas posteriormente, e todo o seu material, naturalmente, é
verídico. São estruturas protetoras, sublimações dos fatos, embelezamentos deles e, ao mesmo
tempo, servem como auto absolvição” (FREUD, 1897/1996, p. 296), o que mostra sua íntima
ligação com a criação fantasiosa. Mais à frente, no rascunho L que acompanha tal
correspondência, novamente a sublimação aparece vinculada à fantasia, de modo que Freud
busca compreender, através desta vinculação, a arquitetura neurótica, sobretudo histérica,
considerando o caráter elevado que a sublimação oferece à fantasia.
Neste momento da obra freudiana, mesmo que já se observem características que
marcarão a sublimação por grande parte de seu trajeto, o termo não aparece com o sentido
psicanalítico que posteriormente tomará, como um destino pulsional, mas à sombra da
histeria. Este deslocamento interessa-nos muito de perto, por atestar que a sublimação está
sempre atrelada à atividade do aparelho psíquico, de tal modo que, do encobrimento da
fantasia à vicissitude pulsional que prescinde do recalque, a sublimação se mantém como
trabalho da pulsão, fornecendo-nos material para pensar seus mais diversos modos de
trabalho.

23
Ainda vinculada à histeria, mas não subsumida a ela, a sublimação ganha corpo em
1905, com a publicação de Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria (caso Dora), escrito
desde 1901, e Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. No caso Dora, lemos as palavras
de Freud (1905/1996) referirem à sublimação um caráter de elevação dos impulsos sexuais de
natureza perversa para fins culturais. Na mesma obra, Freud (1905/1996) também irá referir a
sublimação à transferência, apresentando-a como forma de reedição transferencial, na qual há
moderação do conteúdo e possível apoio da fantasia na atualidade através de uma “certa arte”.
Ou seja, a sublimação novamente aparece como forma de dar contornos menos sexuais àquilo
que se atualiza no caso clínico, porém, agora já não se inclui na dinâmica histérica apenas
como encobrimento do sexual, mas como forma de dar outros desenhos à sexualidade
presente na transferência.
Em Três Ensaios sobre a Teoria da sexualidade (1905), a sublimação aproxima-se da
pulsão sexual através da ideia de transformação da polimorfia perversa, assim como se
vincula à pulsão de saber, que seria uma forma sublimada de dominação, e à pulsão
escopofílica, em que a atuação da sublimação garantiria a orientação da pulsão sexual para
outros alvos através do olhar. A este respeito, Freud (1905/1996) indica-nos que a inclinação
da criança em busca de saber e de ver é direcionada principalmente a problemas sexuais, de
modo que a sublimação atua como um desvio do sentido claramente sexual que estas
atividades possuem. Assim, a sublimação ao mesmo tempo em que se aproxima do conteúdo
sexual, serve como disfarce a ele.
Neste sentido, a pulsão de saber e a pulsão escopofílica, ainda que neste momento não
sejam consideradas propriamente sexuais, mantêm uma íntima relação com a sexualidade
perverso polimorfa, alvo da análise freudiana. Este esclarecimento é feito pelo próprio Freud
em nota de rodapé acrescentada em 1915, ano de publicação de As Pulsões e suas vicissitudes
– obra em que Freud trabalhará a sublimação como singular destino pulsional -, o que
demonstra que a leitura feita pelo autor acerca da sublimação, mesmo que a refira a pulsões de
outra natureza, não a deixa escapar do caráter sexual. Há ainda nos Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade uma aproximação da sublimação ao mecanismo de formação reativa,
realçando aí um teor defensivo muito próximo àquele referido na correspondência com Fliess.
Destes ingressos ao tema da sublimação, o que observamos são esboços de um conceito
que circula, sobretudo, por duas esferas: a sexualidade e o laço social, naquilo que Freud
(1905/1996), referindo-se à sublimação, diz que da sexualidade infantil perverso polimorfa se
redireciona para objetivos mais elevados e “destina-se a fornecer a energia para um grande

24
número de nossas realizações culturais” (p.26).O que à primeira vista os coloca em uma
simplória relação auto-explicativa - o laço social se dá também graças ao trabalho da
sublimação sobre a sexualidade, enquanto este trabalho ocorre graças ao laço social -, é
problematizado pela atestação de que igualmente nestas esferas opera o recalque. Uma vez
que o laço social e a sexualidade estão implicados, como eles podem suscitar diferentes
arranjos na formação sintomática e na sublimação? O percurso freudiano segue na linha de
responder a questão do que os diferencia, ainda que partam dos mesmos elementos.
Segundo Kupermann (2003), a problemática instaurada pela sexualidade faz com que,
ao ser referido em diferentes momentos da teorização freudiana, o conceito de sublimação
oscile dentro da obra entre duas perspectivas: uma que considera a sublimação como
dessexualização e outra na qual a sublimação pressupõe o sexual, pois se dá fora do recalque.
Para além do que sublinha Kupermann (2003), destacamos que mesmo na perspectiva de
dessexualização, não fica claro se com este termo Freud se refere à possibilidade de um
registro fora da sexualidade ou de um encobrimento, uma “elevação”, dos fins claramente
sexuais e, assim, diz respeito a outro modo de apresentar aquilo que se mostra claramente na
segunda perspectiva sobre a sublimação, ou seja, que em ambas há a presença maciça do
sexual.
A partir desta noção de mudança dos fins claramente sexuais, a sublimação é
inaugurada como conceito em Moral Sexual “Civilizada” e Doença Nervosa Moderna
(1908/1996), na qual é invocada para pensar a equação sujeito-civilização a partir de uma
mudança dos objetivos sexuais. Nesta obra, notamos um claro questionamento acerca da
inserção do sujeito na cultura à custa da sexualidade, e a sublimação, ainda que opere a favor
da civilização, lida com a sexualidade de uma maneira diferente daquela operada pela
neurose. Nas palavras de Freud (1908/1996, p.91):

Esse instinto4 [sexual] coloca à disposição da atividade civilizada uma extraordinária


quantidade de energia, em virtude de uma singular e marcante característica: sua
capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade.
A essa capacidade de trocar seu objetivo sexual original por outro, não mais sexual, mas
psiquicamente relacionado com o primeiro, chama-se capacidade de sublimação.
Contrastando com essa motilidade, na qual reside seu valor para a civilização, o instinto
sexual é passível também de fixar-se de uma forma particularmente obstinada, que o
inutiliza e o leva algumas vezes a degenerar-se até as chamadas anormalidades

4
O termo instinto é aqui utilizado pela tradução para se referir ao Trieb, mas em nossa leitura utilizaremos o
termo pulsão e, neste sentido, utilizamos o termo instinto somente por se tratar de uma citação que usa tal
tradução, porém, onde se lê instinto, leia-se pulsão.
25
Neste sentido, já no primeiro trabalho em que a sublimação é tomada como conceito
que diz respeito aos destinos da sexualidade e sua relação com a cultura, a análise freudiana o
coloca em franca diferença do manejo feito pelo recalque, o que irá acompanhar a leitura
freudiana em obras posteriores a respeito da sublimação, como Leonardo da Vinci e Uma
Lembrança de sua Infância (1910) e As Pulsões e suas Vicissitudes (1915). Assim, antes
mesmo de ter um trabalho mais detido a respeito do funcionamento próprio à sublimação, sua
distância do recalque é claramente marcada, ainda que, conforme dissemos, ambos atuem no
registro do sujeito e da cultura.
Neste sentido é que no mesmo ano em que Freud publica Moral Sexual “Civilizada” e
Doença Nervosa Moderna, ele publica também Escritores Criativos e Devaneios (1908), obra
na qual, através da criação artística, a sublimação aparece relacionada ao brincar e ao caráter
erótico que este carrega, bem como ajuda a pensar a questão do fantasiar. A sublimação,
assim, aparece às voltas com o singular do sujeito, a fantasia, e com a inserção na cultura
através da criação artística, ambos com caráter sexual diretamente implicado.
Antes de avançarmos no trabalho freudiano acerca do destino pulsional sublimatório,
sublinhamos, para os nossos interesses em articular o trabalho da pulsão ao feminino, uma
importante colocação de Freud em Moral Sexual Civilizada e Doença Nervosa Moderna
(1908) que, ao tratar da sublimação como uma das maneiras em que a civilização moderna
usa a sexualidade a seu favor, destaca que a capacidade de sublimação é menor entre as
mulheres:

Mas a experiência também mostra que as mulheres, em sua qualidade de verdadeiro


instrumento dos interesses sexuais da humanidade, só possuem em pequeno grau o dom de
sublimar seus instintos, e que, embora possam encontrar um substituto adequado do objeto
sexual no filho que amamentam, mas não nas crianças maiores — a experiência mostra,
insisto, que as mulheres ao sofrerem as desilusões do casamento contraem graves neuroses
que lançam sombras duradouras sobre suas vidas (p. 94).

Esta particularidade feminina quanto à sublimação, que irá acompanhar o pensamento


freudiano sobre a feminilidade, mostra a íntima relação entre o feminino como objeto de
desejo e sua relação com a maternidade que, conforme iremos explorar mais à frente,
atravessa todo o trabalho do autor ao pensar os destinos da sexualidade feminina. Para este
momento da tese, destacamos a íntima ligação que Freud deixa antever entre a sublimação,
como um trabalho da pulsão, e as disposições da sexualidade em cada sujeito e nas atividades
culturais. Notamos assim, que na equação sujeito-cultura, na qual o trabalho sublimatório
opera, está incluída a relação com a castração e o complexo de Édipo, pois, mesmo que em

26
Moral Sexual Freud não os trate diretamente nestes termos, a diferença salientada pelo autor
entre homens e mulheres quanto à capacidade de sublimar não se refere à anatomia.
Na pena freudiana, a sublimação, mesmo envolta em ares de um disfarce da sexualidade
ou operando em diferentes proporções entre homens e mulheres, não deixa de estar ligada ao
tom erótico; seria uma satisfação erótica alcançada através de uma saída criativa e partilhada
socialmente. Destituindo assim a imagem de dessexualização do processo sublimatório e
vinculando-o à plasticidade proporcionada pela simbolização, esta perspectiva ganha corpo
com a dualidade pulsional entre pulsões de vida e pulsão de morte.
Ainda que os contornos sejam mais evidentes na segunda teoria das pulsões, como
notamos toda sua força em O Mal-estar na Civilização (1930/1996), a autonomia da
sublimação em relação ao recalque aparece pela primeira vez em Leonardo da Vinci e Uma
Lembrança da sua Infância (1910/1996), e é justamente na obra em que esta autonomia é
inaugurada, que notamos mais claramente a simultaneidade da função erótica e civilizatória
da sublimação. Ou seja, em Leonardo da Vinci e Uma Lembrança da sua Infância
(1910/1996) há uma leitura da sublimação vinculada à erotização, em convívio com o
empobrecimento da sexualidade, provocado pelo trabalho sublimatório em sua função
civilizatória5.
Ao referir-se a um personagem que é cientista e artista, Freud (1910/1996) nota que
Leonardo da Vinci atua nos dois principais produtos sublimatórios, porém, o que lemos no
texto freudiano são as diferentes disposições tomadas pela sublimação em cada uma destas
atividades. À ciência é referido o empobrecimento erótico, ao passo que na arte haveria um
sobressalto da pulsão sexual. Estes diferentes registros, arte e ciência, mostram a Freud
(1910/1996) que a natureza do destino sublimatório não pode ser pensada apenas sob a
condição recalcadora do laço social, pois neste também é costurado algo da ordem da
satisfação sexual.
Assistimos assim a sublimação ser disposta em um lugar paradoxal, já que as análises
de Leonardo realizadas por Freud (1910/1996) indicam diferentes direções do trabalho
sublimatório sem, contudo, marcar uma separação radical entre elas. Não se trata, portanto, de
modos paralelos e distintos da sublimação, pois mesmo na concepção científica de Leonardo

5
Segundo Kupermann (2003), o “caso Leonardo” é emblemático para pensar a sublimação em Freud, porque o
convívio das diferentes perspectivas sinaliza uma mudança de paradigma operada no pensamento freudiano, em
que Freud sai de um modelo cientificista e passa a um modelo estético.

27
da Vinci, vinculada à repressão sexual, aparece o caráter de transbordamento, nos diz Freud
(1910/1996, p. 83):

Na verdade, Leonardo não era insensível à paixão; não carecia da centelha sagrada que é
direta ou indiretamente a forma motora – il primo motore– de qualquer atividade humana.
Apenas convertera sua paixão e, ao atingir o auge de seu trabalho intelectual, isto é, a
aquisição do conhecimento, permitia que o afeto há muito reprimido viesse à tona e
transbordasse livremente, como se deixa correr a água represada de um rio após ter sido
utilizada. Quando, ao chegar ao clímax de uma descoberta, podia vislumbrar uma vasta
porção de todo o conjunto, ele se deixava dominar pela emoção e, em linguagem exaltada,
louvava o esplendor da parte da natureza que estudara ou, em sentido religioso, a grandeza
do seu Criador.

A criação intelectual é assim pensada como um desvio da natureza manifestamente


sexual, que já não pode ser considerada apenas enquanto recalque, já que no alcance do saber
o teor impulsivo retorna, revelando o sexual que estivera presente em sua arquitetura. Em
outros termos, a pulsão sexual atua no trabalho intelectual, mas, de forma diferenciada da arte,
só demonstra sua sede erótica ao final do trajeto percorrido.
Notamos que, neste traslado, o conceito de sublimação já apresenta algumas mudanças,
de modo que no caso Leonardo a sublimação está sempre orbitando entre uma aproximação
com o recalque e um afastamento dele. O personagem cientista e artista, ao se conduzir à fuga
e indiferença das obras de arte e maior aproximação da produção intelectual, bem como na
indeterminação entre lembranças e fantasias, mostra a Freud os liames entre criação e
sexualidade que, a partir de Leonardo, parecem reafirmar a crítica levantada à moral sexual
civilizatória.
Porém, estes mesmos elementos oferecidos por Leonardo a Freud apontam para uma
leitura que não se esgota na crítica à civilização, pois inclui o desenvolvimento da
sexualidade. E aqui, quando nos referimos à sexualidade, estamos considerando tanto a
erotização presente na sublimação através das atividades artísticas, quanto à detalhada análise
feita por Freud (1910/1996) da vida sexual de Leonardo. Análise que é realizada através da
atenção ao sonho com o milhafre, do desconhecimento do corpo feminino e do impulso de
pesquisa como um controle do sexual.
Notamos aqui a conjunção de alguns pontos que aparecem nas abordagens anteriores
sobre a sublimação – a função do ver e saber como controle do sexual, que o autor trata em
Três ensaios, o trabalho sublimatório que opera de maneira diferente na atividade intelectual e
na artística, esboçada em Moral Sexual -, mas que no trabalho sobre Leonardo da Vinci ganha
contornos que nos interessam muito de perto. Na medida em que é no corpo feminino que o
desconhecimento de Leonardo recai, haveria uma íntima relação entre o enigma que o
28
feminino lança ao artista e suas tentativas de resposta, através da atividade artística e
intelectual; sinalizando-nos assim o feminino como este lugar em que o saber tropeça e que o
fazer artístico tem seu motor.
Encontramos aqui uma ligação entre feminino e desejo, objeto enigmático que, sempre
faltoso, impulsiona o sujeito e, conforme iremos abordar no trajeto freudiano sobre a
feminilidade, está diretamente relacionado à castração, que na mulher, além de posicioná-la
como objeto de desejo, oferece-lhe uma relação com a falta anterior à dinâmica edípica. Estes
elementos avançam no ensino de Lacan, em que o feminino é pensado a partir de uma posição
não regulada de todo pelo significante fálico, fornecendo ao feminino um lugar de desejo e
uma modalidade de gozo singulares. Para este momento da tese, o trabalho sobre o feminino
em sua relação com o significante fálico deve ser guardado como ponto que esperamos
alcançar para pensar o trabalho sublimatório e, na leitura que empreendemos sobre o trajeto
do conceito em Freud, aparece como o enigmático que produz movimento.
Guardado este ponto que esperamos alcançar de maneira mais articulada no decorrer da
tese, retomamos nosso percurso a partir das disposições da sexualidade na sublimação que,
ainda que em Leonardo surja como trabalhos intelectuais em prejuízo da arte, não deixam de
mostrar que o sexual possui um tom criativo próprio à sua natureza. Esta concepção, que nos
remete à base inconsciente da sexualidade, é trabalhada por Freud em Os Chistes e Sua
Relação com o Inconsciente (1905), obra na qual o conceito de sublimação não é pontuado,
mas que deixa importantes consequências para nosso trabalho acerca da vicissitude
sublimatória, pois trata dos processos que jazem na criação.
O trabalho do chiste, em sua relação com o cômico e o humor, dá-nos importantes pistas
a respeito do trabalho operado pelo pensamento para sua elaboração, pois na criação chistosa
é preciso que o pensamento mergulhe no inconsciente, lá encontrando o estágio lúdico que lhe
serve de fonte. Portanto, é ao ter acesso ao jogo, enquanto estágio inconsciente mais arcaico,
que pode o sujeito criar um chiste e obter prazer através do regresso do pensamento à sua
fonte infantil. Este movimento de retorno ao lúdico para a criação de algo que provoca prazer
no criador e alcança também outros sujeitos sinaliza importantes elementos para pensarmos a
sublimação.
A criação, nestes termos, está intimamente vinculada à ludicidade que o prazer infantil
carrega - concepção bem delineada em Escritores Criativos e Devaneios (1908) -, sendo a
atitude estética que daí decorre uma forma de contrapor-se ao enrijecimento do recalque. O
que lança luz sobre as duas ordens de sublimação evidentes em Leonardo: a que se vincula à

29
criação artística parece manifestar a atitude estética, ao passo que no trabalho intelectual,
ainda que sua fonte seja o sexual, há um afastamento do lúdico primordial.
Outra importante contribuição que o estudo sobre o chiste nos deixa é a implicação
subjetiva que sua criação pressupõe (implicação esta que o distingue na classe do cômico),
pois é somente com um movimento advindo do sujeito que pode haver criação chistosa, bem
como é na implicação do outro, um terceiro, que o chiste fecha seu ciclo e provoca riso. É
nesta íntima ligação entre quem produz o chiste e sua compreensão enquanto tal que se situa a
consideração estética do humor.
Vemo-nos, assim, novamente diante da ligação entre sujeito, em suas particulares
formas de prazer, e criação; deixando de herança à sublimação um questionamento a respeito
de como o sujeito pode aí ser situado, em outros termos, quando tratamos de sublimação,
entre a satisfação pulsional e a criação sublimatória, que notícias podemos ter do sujeito? Este
questionamento tomará maiores contornos com o ensino de Lacan, mas já em Freud notamos
seu desenho através das torções entre o trabalho da pulsão e uma inscrição do sujeito, torções
estas que são evidenciadas pelo interesse de Freud em compreender o papel, a um só tempo,
civilizatório e sexual da sublimação.
Os caminhos da sublimação entre sujeito e civilização, além de terem como cenário as
disposições do laço social, também dizem respeito à construção deste cenário, de modo que a
sublimação não pode ser compreendida sem sua ligação com a própria inscrição do sujeito na
civilização. Trata-se aqui da sublimação operando na instituição da lei, enquanto construção
do laço social e interdição individual, ou seja, em termos freudianos estamos no terreno do
Complexo de Édipo. Neste sentido, Freud em A Dissolução do Complexo de Édipo
(1924/1996), diz:

Os investimentos de objeto são abandonados e substituídos por identificações. A autoridade


do pai ou dos pais é introjetada no eu e aí forma o núcleo do supereu que assume a
severidade do pai e perpetua a proibição deste contra o incesto, defendendo assim o ego do
retorno do investimento libidinal de objeto. As tendências libidinais pertencentes ao
complexo de Édipo são em parte dessexualizadas e sublimadas (coisa que provavelmente
acontece com toda transformação em uma identificação) e em parte são inibidas em seu
objetivo e transformadas em impulsos de afeição. (p. 184)

A partir deste fragmento, somos lançados a importantes considerações sobre


sublimação: a fonte libidinal da sublimação advinda das tendências edípicas, o papel exercido
pela sublimação no processo de identificação, o claro distanciamento da inibição e,
novamente, a relação entre sublimação e desssexualização. Estes pontos mostram-nos que a

30
sublimação, em sua condição de destino pulsional, faz parte da arquitetura do sujeito,
situando-se na base da interdição ao incesto e da identificação.
Na relação que novamente estabelece entre dessexualização e sublimação, Freud
(1924/1996) não nos deixa claro se há uma independência entre os termos ou se a sublimação
seria decorrente da dessexualização. Porém, ainda que não haja um esclarecimento, Freud não
os dispõe em sinonímia. Segundo Metzger (2008), as construções freudianas mostram que a
saída do Édipo implica ambos os processos, de modo que a dessexualização6 diria respeito a
uma criação afetiva em relação aos pais diferente do que até ali se construiu, ao passo que na
sublimação há a possibilidade do sujeito, ao desviar os impulsos libidinais anteriormente
devotados aos pais, voltar-se para a criação de objetos socialmente valorizados. Isto nos
mostra que os dois processos se aproximam, já que advêm do desenvolvimento edípico e suas
consequências, mas que a sublimação ganha independência, na medida em que oferece ao
sujeito um destino pulsional particular em resposta à interdição.
Seria, portanto, a partir da inauguração de outras possibilidades de satisfação que a
sublimação surgiria como destino advindo da interdição ao incesto, sendo o recalque outro
destino possível. Esta perspectiva nos é muito cara, na medida em que pensamos a sublimação
com um caráter feminino e este, conforme nos detivermos mais à frente, tem íntima ligação
com o Complexo de Édipo. Na altura em que estamos do trabalho, destacamos a presença da
sublimação na dinâmica edípica, que nos mostra estarmos lidando com o campo pulsional e as
amarras simbólicas construídas no complexo de Édipo em que, além do recalque que aí se
instaura, também o trabalho sublimatório opera.
A sublimação, ao estar presente tanto na arquitetura da identificação quanto nos efeitos
dela, mostra trabalhar de forma diferenciada do recalque, que também aparece nestes dois
lugares. A partir disso compreendemos que sublimação e recalque têm importantes papéis na
equação sujeito-cultura instaurados pelo Complexo de Édipo, mas tais papéis são exercidos de
formas distintas. Situando-se em oposição ao recalque, a sublimação mostra seu caráter sexual
e pode tentar responder à questão da inserção do sujeito na cultura longe do empobrecimento
libidinal sem, contudo, apartar-se do tributo que tal inserção exige.
Esta concepção, diz Birman (2008), ganha novos contornos com a dualidade entre
pulsões de vida e pulsão de morte, de forma que a sublimação, ao se atrelar às pulsões de
vida, pôde contrapor-se ao recalque do processo civilizatório moderno, ao mesmo tempo em

6
Novamente destacamos que o uso do termo “dessexualização” em Freud não diria respeito necessariamente a
ausência de sexualidade, mas sobretudo ao desvio de sua aparência erótica.

31
que protege o sujeito do silencioso trabalho da pulsão de morte, dando-lhe a possibilidade de
criar, o que também serve à necessária agregação cultural. Tal perspectiva tem seu claro
delineamento nas páginas de O Mal-Estar na Civilização (1930/1996), em que lemos sobre a
“suave narcose” (p. 88) proporcionada pela sublimação e compreendemos a implicação entre
subjetividade e arte pela via sexual:

A atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a
ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza dispõe de
uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta com um
emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar
disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as
condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem sido incapaz de fornecer
qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente
acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas
quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O
que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. (p. 90)

Sem a pretensão de compreender a beleza, inclusive criticando a ciência estética que o


faz, lemos as palavras freudianas destacarem a derivação sexual das artes. Desta vez
assinalando-nos a condição indispensável que, em paralelo à falta de utilidade, compõe a arte
como produto do campo sexual, Freud (1930/1996) faz-nos pensar a sublimação na dobradiça
entre sujeito e laço social. De modo que, tendo a segunda teoria pulsional como pano de
fundo, a sexualidade pode promover o trabalho sublimatório que contemple os dois pontos de
tal dobradiça.
Portanto, a sexualidade aparece com toda força no trabalho sublimatório, sem com isso
ignorar a crítica à civilização moderna que desde o início permeava as elucubrações de Freud
sobre o assunto: o sujeito, em sua inserção na cultura, é tributário do recalque pelo laço social
que a partir dele se constrói, mas também através do laço social lhe é possibilitada uma
erotização através da sublimação. E na medida em que estamos sob a égide da segunda teoria
das pulsões, quando falamos em erotização, sabemos que necessariamente ela carrega a marca
da pulsão de morte que ali se instala, logo, a criação sublimatória atrelada à erotização deixa
atrás de si a marca da pulsão de morte.
Mediante a constante luta entre Eros e pulsão de morte, a sobreposição de um a outro
também acarretará consequências à vicissitude sublimatória, a qual pode então advir tanto da
vitória do trabalho de Eros, em sua construção de unidades, quanto da pulsão de morte
enquanto pura desconstrução. Tal perspectiva acerca do antagonismo das pulsões dará a
Freud, em O Ego e o Id (1923/1996), a possibilidade de pensar o processo de desfusão
pulsional provocado pela sublimação. Este processo deixaria o Eu exposto aos ataques do

32
supereu, mostrando assim o caráter destrutivo que a sublimação pode tomar ao vincular-se à
pulsão de morte, nos diz Freud (1923/1975, p.69):

Após a sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da
agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma de uma
inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do caráter geral de
severidade e crueldade apresentado pelo ideal — o seu ditatorial “farás”

Esta relação entre sublimação e desfusão pulsional comporta importantes questões


para o nosso trabalho, pois nos aponta que o destino pulsional cujo laço social é uma de suas
premissas, pode provocar a destruição dele através da irrupção da pura pulsão de morte; em
sentido contrário, ela nos aponta que mesmo a mais crua pulsão de morte guarda relações com
o laço social, pois utiliza sua agressividade a favor do imperativo do supereu7. Portanto,
quando tratamos do destino sublimatório, referimo-nos também às constantes exigências
feitas pela destrutividade e tendência ao inanimado, o que coloca em nosso horizonte questões
a respeito das criações culturais, as quais seriam fundadas também sob a rubrica da pulsão de
morte. Em última instância, a sublimação atuando a favor de Eros e da pulsão de morte
interroga: de que satisfação se trata quando falamos de pulsão? Como a sublimação responde
a este questionamento?
Estas interrogações lançadas à sublimação colocam no seio da criação artística o além
do princípio do prazer, cuja repetição do desprazer através de experiências no limite da
simbolização, toma o sujeito de assalto. Esta tomada de assalto, que atualiza o mortífero e o
erótico, é pensada por Freud no mesmo passo em que o autor se dedica à questão da
feminilidade, nos anos 30, quando a questão de algo que escapa às amarrações simbólicas, ao
mesmo tempo em que nelas se instala, encaminha o autor também para pensar os destinos da
sexualidade feminina. Neste sentido, a problemática da feminilidade coloca questões de fundo
também no trabalho da sublimação, apontando-nos que em ambos, sublimação e feminilidade,
a pulsão de morte se impõe e demanda um trabalho da pulsão de vida em contorná-la.

7
Notamos aqui elementos do que o ensino de Lacan irá desdobrar através do campo do gozo, destacando, no
Seminário 18: de um discurso que não fosse semblante (1971/2009), o duplo papel do supereu que, a um só
tempo, interdita e ordena ao gozo: “Qual é a prescrição do supereu? Ela se origina precisamente nesse pai
original mais do que mítico, nesse apelo como tal ao gozo puro, isto é, a não castração. Com efeito, que diz esse
pai no declínio do Édipo? Ele diz o que o supereu diz. Não é à toa que ainda não o abordei realmente até agora.
O que o supereu diz é: Goza!” (p. 166). Novamente notamos, de Freud a Lacan, questões da dinâmica edípica
presentes na sublimação, apontando sua estreita ligação com a sexualidade e agressividade que circulam em tal
dinâmica.

33
Sublimação e feminino têm na pulsão de morte um ponto que em muito nos interessa,
na medida em que não servem ao mortífero de modo paralisante, mas como questionamento
ao trabalho de Eros em sua tentativa de união - eis aí o solo fértil para pensar o mal-estar na
civilização. Novamente a equação sujeito-cultura é convocada para pensar os limites daquilo
que produz, ética que atravessa todo pensamento psicanalítico, ao tratar o sintoma fora da
lógica médica, e aqui se apresenta como modo de pensar sujeito e civilização fora das
construções totalizantes.
Estamos aqui no seio da própria concepção de pulsão em Freud que, pensada enquanto
constante exigência de trabalho, com a pulsão de morte ganha nuances que só podem ser
compreendidas à luz do embate e implicação com as pulsões de vida, pois, considerando
unicamente a pulsão de morte, estas características fariam com que a pulsão levasse ao seu
próprio esgotamento em direção à destruição.Neste sentido é que nosso trabalho acerca da
sublimação tem um importante alicerce no conceito de pulsão e, para avançarmos na
compreensão do destino que atua entre sujeito e cultura, adentraremos no estudo sobre a
pulsão, a fim de compreender como as particularidades deste conceito em psicanálise podem
nos dar notícias da sublimação, enquanto destino em que o sexual e o mortífero da satisfação
pulsional ganham contornos no laço social.

1.2 – Pulsão e criação no destino sublimatório


Determo-nos à pulsão, investigando-a como conceito psicanalítico, direciona-nos ao
Projeto para uma Psicologia Científica (1895/1996) na qual, na tentativa de compreender o
aparato psíquico, Freud vincula a pulsão às intensidades, que surgem como inesgotável
exigência de trabalho ao psiquismo, diferenciando-se de estímulos internos ou externos ao
aparelho psíquico, que conseguem ser parados por uma satisfação. Já nesta primeira incursão
no estudo sobre o conceito, uma importante característica aparece: a constante e renovada
exigência de trabalho.
O desenvolvimento do conceito na obra freudiana segue uma série de caminhos e, em
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996) ganha outra importante
caracterização, a saber, a parcialidade das pulsões em sua relação com as zonas erógenas.
Com a concepção da polimorfia da sexualidade, as pulsões, enquanto parciais, regem a
sexualidade através de um fluxo que nunca se completa de todo, sendo as zonas erógenas
bordas através das quais as pulsões comparecem no corpo. Observamos aqui a continuidade

34
da noção das pulsões como inesgotável exigência de trabalho, o que neste momento da obra
freudiana diria respeito à dualidade entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação.
Neste breve percorrido, observamos que as pulsões surgem no discurso psicanalítico
como uma leitura sobre o sujeito que não se resume ao biológico, ainda que com ele tenha
claras ligações. Da mesma maneira que não se resumem ao psíquico, já que as exigências
pulsionais a ele se impõem, apontando a insuficiência do princípio de prazer em esgotá-las.
Este caráter da pulsão revela-nos um importante desdobramento ao destino pulsional
sublimatório que, ao operar torções no biológico e no psíquico, oferece ao sujeito um trabalho
constante que incide também no social, o qual não pode, portanto, ser pensado sem a
consideração deste trabalho pulsional.
É neste sentido que em As pulsões e suas vicissitudes (1915) Freud situa a pulsão como
um conceito-limite entre o somático e o psíquico. Além das consequências desta concepção
para o manejo psicanalítico, observamos que, reiteradamente, a pulsão ganha na psicanálise
um lugar de ineditismo conceitual, com um caráter que marca sua perspectiva de sujeito.
Trata-se, portanto, de um sujeito pensando entre o somático e o psíquico, não podendo ser
reduzido à consciência, tampouco à biologia.
Com isto, podemos dizer que o conceito de pulsão permite que a própria psicanálise se
sustente enquanto um discurso singular sobre o sujeito; compreendemos assim a assertiva
lacaniana de que o Trieb se torna um dado radical da experiência analítica, a ponto de seu
passado ser verdadeiramente ocultado8. Ainda que o termo já fosse utilizado em outras searas,
o estatuto de operador conceitual que o Trieb ganha na psicanálise, diz Lacan (1964/1973),
está diretamente vinculado à experiência analítica, na qual se testemunha o retorno daquilo
que não sucumbe ao recalque, ou seja, é pela comprovação via análise de que há no sujeito
um núcleo não tratável via linguagem, ainda que a assalte e por ela se revele como ponto de
ruptura, que o Trieb se torna um conceito fundamental da psicanálise.
Partindo da pulsão como conceito que dá um caráter particular à psicanálise, o
desenvolvimento seguido por Freud encaminhou-se para a dualidade entre pulsões de vida e
pulsão de morte, em que a radicalidade da pulsão toma maiores proporções. Para além das

8
Segundo Gondar (2006)o termo Trieb surge no vocabulário alemão vinculado ao movimento pré-romântico,
vinculado ao campo da estética. Apesar desta referência anterior a Freud, a assertiva lacaniana não se anula, já
que o uso ganha outra significação e importância dentro da psicanálise, o que é pontuada por Lacan (1964/1973,
p. 155): “Ele acrescenta, no que se mostra bom epistemólogo, que, a partir do momento em que, ele Freud,
introduz a pulsão na ciência, de duas coisas uma – ou este conceito será guardado, ou será rejeitado. Será
guardado se funcionar, dir-se-ia hoje em dia – eu diria, se ele traçar sua via no real que se trata de demarcar. É o
caso de todos os Grundbegriffe no domínio científico.”.
35
mudanças operadas na teoria e prática analítica a partir desta radicalidade, interessa-nos o que
se mantém enquanto fundamento e nos ajuda a trabalhar o destino pulsional sublimatório.
Neste sentido, detenhamo-nos na obra em que a pulsão é posta entre o somático e o psíquico,
As pulsões e suas vicissitudes (1915), pois ali Freud não apenas situa a pulsão, como também
se dedica aos elementos que a compõem e aos seus destinos, entre eles, a sublimação.
Mostrando-nos que a pulsão tem um caráter particular, tanto em sua estrutura quanto
nos arranjos desta estrutura em diferentes destinos, os elementos da pulsão – impulso, fonte,
objeto e alvo – dispõem-se a serviço da força constante e em retorno, mecanismo que atesta a
não naturalidade da pulsão. Encontramo-nos em um terreno onde o natural, que a noção de
instinto poderia enganosamente oferecer, não se sustenta, uma vez que o impulso à descarga
diz respeito às excitações internas que nunca encontrarão pleno esvaziamento; que a fonte
somática diz respeito ao corpo a partir de zonas erógenas; que o objeto pode ser qualquer um
que ofereça satisfação, a qual é o alvo da pulsão.
Neste sentido, com os elementos da pulsão notamos que o Trieb em Freud está
estreitamente vinculado às representações que, embora não se desliguem do corpo, surgem
como formas de pôr em questão o que é da satisfação em sua ultrapassagem do fisiológico.
Quando dizemos “pôr em questão” nos referimos, com Lacan (1964), tanto à busca quanto à
interrogação da satisfação, pois, em última instância, é disso que se trata ao observarmos
isoladamente cada elemento da pulsão.
Também em termos de “pôr em questão a satisfação” funcionam as vicissitudes
pulsionais – formação reativa, introjeção, recalque e sublimação – que, diz Freud
(1915/1996), além de destinos em busca da satisfação, podem ser consideradas formas de
defesa contra as próprias pulsões, trabalhando no registro do princípio de prazer e também o
contrariando. Sabemos que neste momento da obra freudiana a dualidade se dava entre
pulsões sexuais e pulsões do Eu, de modo que, tendo o narcisismo introduzido uma mudança
no embate pulsional, a noção de trabalhos pulsionais contrários ao princípio de prazer atesta
que este paradoxo é inerente às pulsões, ainda que ganhe maiores contornos com a pulsão de
morte.
Encontrar nas vicissitudes formas tomadas pelo caráter paradoxal da pulsão já nos dá
algumas pistas sobre nosso tema de interesse, a sublimação, mas é preciso que nos
detenhamos mais à pulsão, a fim de compreender como a sublimação carrega tal caráter e lhe
dá um destino singular. O quê da pulsão permite uma vicissitude como a sublimação? A este
respeito, Freud (1915/1996), liga a sublimação a algumas particularidades das pulsões:

36
Distinguem-se [as pulsões] por possuírem em ampla medida a capacidade de agir
vicariamente uns pelos outros, e por serem capazes de mudar prontamente de objetos. Em
consequência dessas últimas propriedades, são capazes de funções que se acham muito
distantes de suas ações intencionais originais — isto é, capazes de ‘sublimação’. (p. 131)

Seria, portanto, a partir da capacidade de mudar seus objetos e falsearem-se umas às


outras que as pulsões mudariam suas ações originais e promoveriam sublimação. Na medida
em que, mesmo com essas mudanças, sobretudo por elas, a sublimação é uma satisfação
pulsional, notamos que a plasticidade própria da pulsão permite-lhe alcançar satisfação
mesmo naquilo que não o seria, sem que para isso haja recalcamento. Sem a formação
sintomática substitutiva, a pulsão consegue, via sublimação, um desvio de seu alvo através do
investimento em outros objetos, os quais não trazem a tentativa de uma plena descarga ou de
paragem do circuito pulsional, mas promovem renovadas tentativas de criações de objetos,
costurando o laço social e oferecendo satisfação ao sujeito.
Se a sublimação pode fazer este movimento em relação à satisfação, é porque a própria
pulsão carrega dimensões que lhe dão um lugar paradoxal quanto à série prazer-desprazer. É
neste sentido que, em Além do princípio de prazer (1920/1996), Freud encontrará nos
fenômenos de repetição do desprazer a ação da pulsão de morte, de modo que, através de uma
pulsão que tende ao inanimado, satisfação e prazer evidenciam seus paradoxos.
Lançamos luz aqui sobre o que anteriormente tratamos a respeito da desfusão pulsional
provocada pela sublimação, pois o trabalho da pulsão guarda este paradoxo que, na
sublimação, permite a irrupção da pura pulsão de morte advir do destino pulsional que se
inscreve também na cultura. Esta perspectiva da desfusão pulsional, que é pouco desenvolvida
posteriormente por Freud, é utilizada por Carvalho (1997; 2001) quando a autora aborda a
relação da criação literária em escritoras suicidas, pensando aí os limites da sublimação em
sua ligação com a pulsão de morte. Ainda que consideremos a pertinência de tal leitura, não
seguiremos esta direção, pois nossa proposta de trabalho é, seguindo a perspectiva de Lacan
no Seminário 7 (1959-1960), investigar o caráter criacionista que a pulsão de morte imprime
na sublimação que, ao considerar a pulsão como “vontade de criação a partir do nada, vontade
de recomeçar” (p.260), conjuga o destrutivo e o erótico nas próprias criações artísticas, como
Antígona.
Uma vez que a própria pulsão carrega o paradoxo de relacionar-se à série prazer-
desprazer através do erótico e do mortífero, cabe-nos salientar que é na sublimação, e não em
qualquer outra vicissitude, que a pulsão de morte pode alcançar independência, o que põe às

37
claras que tratamos de um destino pulsional que, mesmo que não responda à produção
sintomática como o recalque, também tem em seu funcionamento a ação da pulsão de morte.
Com Lacan (1959-1960/1995) esta perspectiva ganha maiores contornos na medida em
que o autor, mesmo não tratando em termos de desfusão pulsional, põe no seio da vicissitude
sublimatória a pulsão de morte. Se em Freud ainda lemos uma oscilação entre um olhar que
considera a sublimação como uma forma refinada de lidar com o mal-estar e trabalhar a favor
da pulsão de vida, e uma leitura que considera a pulsão de morte, mas sem deter-se a esta
presença; com Lacan a pulsão de morte estará articulada ao belo no brilho da heroína trágica.
Em outros termos, é no efeito de beleza e ofuscamento que criação e destruição irão se
conjugar, fazendo de Antígona a figura trágica que testemunha a sublimação enquanto
ascensão do objeto à dignidade da Coisa.
Esta leitura sobre sublimação, cujo trabalho da pulsão de morte é maciço na produção
sublimatória, é destacada por Safatle (2006) como um importante avanço no ensino de Lacan
acerca da pulsão de morte, em que, para além da compulsão à repetição e tendência à
destruição, situa no seio das criações um negativo que diz respeito menos à tendência ao
inorgânico, como claramente pontuava a leitura freudiana, e mais à ruptura da pretensa
organização feita pelo simbólico. Neste sentido é que na pena lacaniana podemos, por
exemplo, falar de uma “segunda morte” em Antígona e Sygne de Coûfontaine, em que na
derrisão se vê o desejo das heroínas em todo seu esplendor.
A pulsão de morte, assim, ganha destaque como uma marca que se inscreve nas próprias
produções artísticas, as quais não deixam de conter também o caráter erótico. Neste sentido é
que Safatle (2006) sublinha que na leitura lacaniana vemos uma mistura de ética, erótica e
estética, com a pulsão circulando entre esses três registros e deixando ver uma dimensão que
sempre escapa ao simbólico e ao imaginário. Conforme Safatle (2006), esta característica da
leitura lacaniana permite a concepção de que “toda pulsão é virtualmente pulsão de morte”, de
modo que, aquilo que na leitura freudiana aparece como marca da diferença entre as pulsões
de vida e de morte, no ensino de Lacan tomará dimensões que dizem respeito ao Real.
Pensando a partir do trabalho da pulsão, é importante fazermos um retorno ao modo
com que Lacan (1957-1958/1999) articula a pulsão no grafo do desejo, em que, mesmo
havendo relação entre desejo e pulsão, trata-se de registros distintos. Encontramo-nos aqui nas
disjunções entre demanda e desejo, e no que se refere à pulsão, esta situa o sujeito em relação
à demanda, relação esta que nunca é de igualdade, porém, que não deixa de mantê-los
implicados, como atesta no matema da pulsão ($<>D).

38
Ao tratarmos da pulsão, portanto, é a demanda o ponto de referência do sujeito; seja na
fase oral, em que esta demanda parte do sujeito ao Outro, na busca por alimentação e a
satisfação que extrapola a necessidade, ou na fase anal, em que a satisfação da necessidade se
coloca do lado da satisfação do Outro, de onde parte a demanda. Porém, o que o matema da
pulsão nos deixa claro é que estas demandas, sejam do sujeito ao Outro ou deste àquele,
nunca serão de todo satisfeitas, fazendo com que o sujeito reste a demandar, deixando ver
aquilo que não está no campo das necessidades. Neste sentido, destaca Lacan (1957-
1958/1999), é que a parcialidade das pulsões garante que elas não encontrarão uma paragem
nos objetos da demanda, mas que, ainda assim, se conceba um campo pulsional articulado.
Em outros termos, a pulsão não deixa de ter seus objetos, porém, estes guardam sempre
a marca de um trabalho que neles não se esgota, o que lança luz ao que Lacan refere à
sublimação como contorno do vazio. Como trabalho da pulsão, a sublimação além de não se
saturar nos objetos da demanda, revela o vazio naquilo que constrói e, na medida em que atua
também no laço social, deixa às claras o problema do objeto que aí se dispõe:

Trata-se do objeto. Mas, o que quer dizer disso, o objeto, nesse nível? Quando Freud
começa, no início nos modos de acentuação de sua doutrina, em sua primeira tópica, a
articular aquilo que concerne à sublimação, nomeadamente nos três ensaios sobre a teoria
da sexualidade, a sublimação caracteriza-se por uma mudança nos objetos, ou na libido, que
não se faz por intermédio de um retorno do recalcado, que não se faz sintomaticamente,
indiretamente, mas diretamente, de uma maneira que se satisfaz diretamente. A libido vem
encontrar sua satisfação nos objetos – como distingui-los inicialmente? Muito
simplesmente, muito massivamente, e, para dizer a verdade, não sem abrir um campo de
perplexidade infinita, como objetos socialmente valorizados, objetos aos quais o grupo
pode dar sua aprovação, uma vez que são objetos de utilidade pública. É desse modo que a
possibilidade de sublimação é definida. (LACAN, 1959-1960/1995, p. 119)

Neste sentido, é a valorização social que marca a ligação entre o destino pulsional
sublimatório, com sua fonte no Trieb como ponto irredutível, e o objeto criado, enquanto
objeto de satisfação pulsional. Porém, adverte Lacan (1959-1960/1995), tal valorização social
não esgota o conceito de sublimação, já que este “não pode absolutamente ser reduzido a uma
satisfação direta, em que a própria pulsão se saturaria de uma maneira que só teria por
característica a de poder receber a estampilha da aprovação coletiva” (p. 120). Destarte,
quando tratamos de sublimação, não nos inclinamos unicamente ao papel social, porém dele
não prescindimos, operando uma inesgotável luta entre pulsão, com sua constante demanda de
satisfação, e objeto, como aquilo por onde se alcança a satisfação e, desde Freud (1915/1996)
o sabemos, é o que há de mais variável na pulsão.
Dar à acefalia pulsional amarrações via objeto criado - eis aí o que o trabalho
sublimatório está sempre às voltas -, encontrando seu motor no fracasso do objeto em esgotar
39
a pulsão. Por este viés, Lacan (1964/1996) dirá que a pulsão é paradoxal, porque implica algo
da ordem do impossível, do real, e assim só pode ter com o objeto uma relação que nele não
se esgota, já que não é à necessidade que este objeto vem responder, mas que a contorna,
mantendo e reiteradamente criando o vazio.
Neste sentido é que Safatle (2006) destaca que, na leitura lacaniana da sublimação, o
objeto contém sua própria negação, na medida em que este objeto responde ao trabalho
próprio da pulsão de morte. Esta negação do objeto através dele próprio, ao que o autor realça
como importante deslocamento da leitura freudiana para a lacaniana, faz com que o trabalho
da pulsão de morte não seja tomado apenas como tendência bruta à destruição, mas exerça um
movimento de produção do objeto, que desvela o real naquilo que serviria ao fantasma. O
objeto, neste sentido, dá contornos imaginários à contradição entre fantasma e Coisa,
deixando atrás de si a marca de um trabalho pulsional que faz vacilar as tentativas de
universalização próprias ao fantasma.
Esta concepção de objeto, que no Seminário 7 se coloca entre o desejo e das Ding, terá
maiores tensões, destaca Safatle (2006), na medida em que o objeto a ocupa o espaço disso
que é revelado por das Ding. Estas tensões serão redobradas, pois, se com das Ding como
conceito recuperado do Projeto para uma Psicologia Científica (1895), o objeto já está
situado como para sempre perdido, com o objeto a como causa do desejo, o estatuto de objeto
perdido não é deixado para trás e, mais ainda, soma-se a ele uma causa que não diz respeito a
uma intencionalidade do sujeito, tampouco está encarnada nas figurações do objeto.
Neste sentido é que, ao tratar do objeto a, o percurso do ensino de Lacan irá abrir
diferentes questões; para os nossos interesses acerca do objeto na sublimação, destacamos
aquilo que o autor trabalha no Seminário 10 (1962-1963/2005) sobre a noção de causa ligada
ao objeto a. Ao pensar o lugar do objeto de desejo, o objeto a é o que se coloca por trás dele,
portanto, não é a figuração do desejo, mas atua como causa do desejo, deixando ver um
exterior que antecede uma interioridade relativa à satisfação: há algo fora que causa o desejo.
Ao passo que, quando se trata do objeto da pulsão, destaca Lacan, entre o alvo da pulsão, a
satisfação, e seu objeto, que pode ser qualquer um, este se furta a todo nível de captação
possível. Desta forma, o objeto a tanto nos dá notícias das configurações que podem tomar o
desejo, quanto exerce também a função de objeto da pulsão, como algo sempre inapreensível
e, para os nossos interesses, mostra o trabalho da pulsão na sublimação também neste registro.
Com isto compreendemos o que Lacan dirá no Seminário 11 (1964/1996) a respeito do
objeto a, em que, a partir da acefalia pulsional, o objeto surge como algo que escapa à

40
simbolização, demarcando um vazio que diz respeito não apenas à incompletude de qualquer
objeto, mas à parcialidade própria das pulsões. Neste campo pulsional, o objeto atua de
maneira muito particular, nas palavras de Lacan (1964/1996, p.174-175):

O objeto da pulsão deve ser situado no nível do que chamei metaforicamente uma
subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito, um osso, uma estrutura, um traçado,
que representa uma face da topologia. (...) Nesse nive1, não estamos mesmo forçados a
fazer entrar em linha de conta nenhuma subjetivação do sujeito. O sujeito é um aparelho.
Esse aparelho é algo de lacunar, é na lacuna que o sujeito instaura a função de um certo
objeto, enquanto objeto perdido. É o estatuto do objeto a enquanto presente na pulsão.

Desta maneira, o objeto a como objeto sempre perdido, revela o caráter próprio da
pulsão e, diferente de seu estatuto na fantasia a qual sustenta o desejo, diz respeito à face real
do trabalho pulsional. Notamos assim que o objeto a atua de diferentes maneiras no que diz
respeito à pulsão, à fantasia e ao desejo, mostrando as junções e disjunções entre trabalho da
pulsão e organização simbólica, registros que são diretamente tocados pela sublimação.
Neste quadro, as obras de arte surgem com um privilégio paradoxal: trazem à cena
civilizatória criações que escapam ao recalque, por meio de uma aparente gratuidade na
satisfação oferecida, no entanto, carregam o impossível próprio ao registro real da pulsão.
Esta articulação entre trabalho da pulsão e enlace social tem no ensino de Lacan alguns
deslocamentos, que o fazem pensar a criação não apenas como trabalho sublimatório, ao que
nos dedicaremos a seguir, a fim de recolher elementos para nossa posterior dedicação às
personagens teatrais.

1.3 - Criação em Lacan, do destino pulsional à escrita


Detendo-se no que escapa aos contornos imaginários de uma obra de arte, Lacan (1959-
1960/1995) irá empreender a leitura de Antígona em seu particular destino de
deliberadamente andar sobre a navalha trágica, servindo de modelo para pensar a sublimação
e a ética da psicanálise. Ao pensá-las como algo que não diz respeito à ordem do Bem, o autor
distorce a relação entre Bem e Belo que a doutrina platônica impingiu ao campo das artes em
sua relação com o saber, assim como faz cair por terra o ar moralizante que se estendia sobre
a noção de ética. Já de início, portanto, notamos que Antígona se oferece, através de sua
beleza, como forma de ver além e ao mesmo tempo ofuscar sua natureza.
Notamos, pois, que o uso feito por Lacan de uma figura ficcional interessa-se pela
função significante que ela demarca no trabalho pulsional, buscando, não em qualquer ficção,
mas na personagem que adentra no fatídico destino trágico por sustentar seu desejo. Neste
sentido é que a leitura feita por Lacan da personagem sofocliana ganha destaque, para
41
pensarmos o trabalho sublimatório, pois mostra a questão que está colocada para todo sujeito
acerca de seu desejo. Sublimação e desejo, assim, colocam-se em íntima ligação na pena
lacaniana através da figura de Antígona.
Ao se ocupar da tragédia grega, Lacan (1959-1960/1995) destaca o campo do desejo
que aí se insere, fazendo uma leitura particular do enredo sofocliano de Antígona. Sob a pena
lacaniana, notamos que não se trata de uma oposição entre lei humana e tradição divina, pois
é ao seu desejo que a heroína responde, com toda a carga de prazer e sofrimento que ele
carrega. Porém, a resposta ao desejo sustentada por Antígona através do belo é também por
ele impedida, e assim se sustenta o paradoxo: o desejo pode ser eliminado do registro do belo,
na medida em que tem o efeito de suspendê-lo; no entanto, o desejo não deixa de se
manifestar no belo, fazendo dele sua visada. Nestes termos, estabelecem-se as duas faces do
belo frente ao desejo, quais sejam, extinção ou temperança do desejo e também sua disrupção
Este caráter duplo que o belo tem com relação ao desejo, assevera Lacan (1959-
1960/1995), criou duas diferentes linhas de pensamento, uma na qual a beleza é tida como
apaziguamento e outra em que é irrupção. Mas o que a leitura lacaniana vem destacar é
justamente a conjunção destas duas faces do belo, as quais respondem ao desejo e igualmente
lhe escapam, mantendo-o faltoso, nas palavras do autor: “a função do belo sendo
precisamente a de nos indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, e de nos
indicá-lo somente num resplandecimento” (LACAN,1959-1960/1995, p. 354).
Esta problemática relação entre desejo e belo se dá pela íntima implicação que aí se
dispõe; diferente do Bem que suprime o desejo pela via moral, o belo se mantém como
revelação do desejo, ainda que o intimide. O que nos faz compreender por que a sublimação
se situa nesta dinâmica, escapando aos ditames morais, mesmo que faça laço social e
contribua à civilização: uma vez que o destino sublimatório está a serviço do desejo, ao
contrário do sintoma, ele não obedece a uma economia que passe pelo recalque.
A concepção de sublimação que aí se apresenta, conforme vimos no trajeto do conceito,
é revelada já nas páginas de O Mal Estar na Civilização (1930), em que recalque e
sublimação são marcadamente diferenciados em suas operações no laço social. Mas o que a
análise lacaniana irá acrescentar é que tal diferença não pode ser compreendida senão pela
função do significante, pois sem ela não teria como distinguir a satisfação pulsional advinda
do recalque ou da sublimação. A partir da função significante, diz Lacan (1959- 1960/1995),
o destino sublimatório não responde a uma economia de substituição significante,

42
encontrando a satisfação em outros alvos, sem que para isso passe pelo retorno do recalcado
enquanto elo da cadeia de substituição.
Nestes termos, a satisfação sublimatória, ao ser pensada a partir da função significante,
diz do alvo pulsional, o que então teria a dizer do objeto, tantas vezes situado em um difícil
lugar com relação à sua criação e à natureza da pulsão? Para responder a esta questão,
lançamo-nos na famosa construção lacaniana que nos diz que a sublimação é o que eleva o
objeto à dignidade da Coisa. Ou seja, o objeto, antes apenas revestido de elaborações
imaginárias – e aqui se justifica o reconhecimento social por ele alcançado –, com a operação
sublimatória é ascendido a das Ding:

É nessa relação de miragem que a noção de objeto é introduzida. Mas esse objeto não é a
mesma coisa que aquele visado no horizonte da tendência. Entre o objeto, tal como ele é
estruturado pela relação narcísica e das Ding há uma diferença, e é justamente na vertente
dessa diferença que se situa, para nós, o problema da sublimação. (LACAN, 1959-
1960/1995).

A partir destas palavras lacanianas, notamos que, por ser referida ao Trieb, a sublimação
está em íntima ligação com das Ding, objeto para sempre perdido pela entrada na função
desejante, e assim é distinta do objeto imaginário com seus revestimentos narcísicos, mas faz
uso deste para dizer do Real, através da operação significante que realiza; eis aí neste
movimento a elevação do objeto à dignidade da Coisa. Destarte, o objeto sublimatório é ele
próprio a Coisa, porém, é da natureza da Coisa apresentar-se sempre como unidade velada, o
que obriga o sujeito, justamente pelas vias sublimatórias, a cingi-la.
Deparamo-nos aqui com uma noção paradoxal: o objeto sublimatório cinge o vazio da
Coisa, dando-lhe contornos, ao mesmo tempo em que é a própria Coisa, em sua condição de
vazio. Lacan (1959-1960/1995) não abre mão da antinomia que aí se dispõe; ao sustentá-la, o
autor aponta o lugar da arte como modo de organização em torno do vazio, que não dispensa
sua dimensão faltosa; ao revés, é por dar seus contornos, que o cria e reafirma. Criação ex
nihilo por excelência, a qual tem no vazio seu propulsor e nele se mantém em todos os objetos
criados.
Vemo-nos, desta forma, em um constante movimento de aproximação e distanciamento
do tratamento simbólico feito pela sublimação, o qual usa a rede significante, articulando-se
através dela, porém, tal uso se dá apontando a insuficiência que estes elementos assumem
frente a própria natureza pulsional, o que faz com que sua satisfação seja paradoxal. E aqui,
nesta difícil torção entre rede significante e Coisa, lembremos as palavras lacanianas, que nos
dizem que a Coisa é o que do real padece do significante, mas nos dizem também que “não há
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nada entre a organização na rede significante, na rede Vorstellungrepräsentazen, e a
constituição no real desse espaço, desse lugar central sob o qual o campo da Coisa como tal,
se apresenta para nós.” (LACAN, 1959-1960/1995).
Localizar-se na rede significante e no real, eis o lugar da sublimação, que assim tem sua
articulação ao desejo e também ao gozo. Desta forma, alguns fios soltos na leitura freudiana
da sublimação, que, conforme nosso percurso no subcapítulo anterior, levantaram questões
sobre os modos de satisfação quando tratamos de pulsão e igualmente tratamos da inscrição
do sujeito no desejo e na cultura, são recolhidos por Lacan para pensar as costuras que situam
o trabalho da sublimação na rede significante e no real.
Esta perspectiva tomará maiores contornos no decorrer do ensino de Lacan, sobretudo
quando o autor tratar do registro da letra e do significante em lituraterra, lição do Seminário
18: de um discurso que não fosse semblante (1971/2009), e do Sinthoma em Joyce, no
Seminário 23: O Sinthoma (1975-1976/2007), mas já se mostra esboçado no seminário em
que Antígona é a personagem de seu interesse. Ainda que no decorrer de seu ensino Lacan
abandone a noção de sublimação para pensar a função estruturante do Sinthoma na criação
artística, a dimensão do gozo parece inerente ao trabalho pulsional que se dispõe nestes dois
registros, da sublimação e do Sinthoma.
Neste sentido é que já no Seminário 7 (1959-1960) Lacan irá dedicar parte de sua
investigação àquilo que chama de “O Paradoxo do gozo”, onde é a pulsão de morte presente
na operação sublimatória que está em seu horizonte de trabalho. Importante destacar, para os
interesses deste estudo, que é ao se dedicar à articulação da pulsão de morte na sublimação
que Lacan pensa o caráter criacionista da sublimação; não se trata, portanto, da criação que
claramente vemos no trabalho de Eros em busca de unidades, mas do inventivo presente no
caráter disruptivo da pulsão de morte.
Esta criação a partir da pulsão de morte, que atesta que os laços simbólicos contêm uma
quebra em sua própria amarração, seguirá no ensino de Lacan mesmo quando o autor já não
usa a noção de sublimação, e trabalha os diferentes registros da letra e do significante na
escrita, na lição Lituraterra do Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante
(1971/2009), para pensar a escrita como forma de ascensão ao real, como forma de “prover de
ossos” o gozo. Pensando a escrita como litoral que cria fronteiras sem a clara delimitação de
suas divisões, mas sem deixar de construir contornos, o trabalho de Lacan verá no gozo, que
se coloca fronteiriço ao saber, a presença da pulsão de morte e, neste sentido, mostra outra
maneira da pulsão se dispor na criação.

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Torna-se mais evidente, com esta noção de escrita, a relação de estrangeiridade que a
pulsão mantém com a linguagem – relação que desde Freud vemos ser esboçada através da
sublimação -, na medida em que não se faz sem a linguagem, porém, não se inscreve em seu
circuito tal qual uma operação significante. Surgindo como algo do próprio sujeito que se
impõe a ele sem que o reconheça, o trabalho simbólico e imaginário parece estar sempre um
passo atrás na busca de um sentido compartilhável, tentando fazer da escrita uma narrativa.
Nesta convocação a narrar o que a letra cifra, notamos outra maneira de pensar a criação que,
não mais subsumida a um destino pulsional, dá a ver o registro real.
Desta forma, o interesse de Lacan pela escrita, destaca Pacheco e Alberti (2012),
progressivamente ganha espaço em seu ensino dizendo respeito ao real; o que no Seminário 7
é considerado, mas a ênfase recai na operação simbólica da sublimação. Da sublimação à
escrita - com o destaque que os registros da letra e significante possuem neste traslado -, o que
notamos, ainda conforme Pacheco e Alberti (2012), é a dimensão da escrita não ser tomada
nem como simulacro imaginário, nem como experiência corporal real da alíngua, mas como
cifra da experiência.
Este trajeto da escrita mostra que, ao concebermos um deslocamento da sublimação à
escrita, é importante considerarmos as particularidades da noção de escrita no ensino de
Lacan, na medida em que ela possui algumas mudanças. Segundo Costa (2015), o tema da
escrita no pensamento lacaniano pode ser abordado por três caminhos, a saber, a instância da
letra no inconsciente, a letra na fantasia e o sinthoma reduzido à letra. Tais caminhos, ainda
que tenham pontos comuns entre si, mostram distintas operações entre trabalho da pulsão e
organização simbólica.
Na concepção da letra em instância, destaca Costa (2015), a letra está ligada a algo do
inconsciente situado como “isso mostra”, ou seja, um trabalho da pulsão que se impõe e
demanda inscrição. Tal perspectiva, trabalhada por Lacan em A Instância da Letra ou a Razão
desde Freud (1957), se liga sobremaneira à noção freudiana de formações do inconsciente, em
que sonhos e lapsos denunciam a emergência de algo do próprio sujeito que não lhe é
reconhecível. Neste sentido é que a emergência do inconsciente como uma letra em instância
convida ao exercício de elaboração, no qual a decifração desta letra - mais do que os sentidos
que pode tomar - atesta a exterioridade do movimento pulsional em relação ao Eu.
Por esta divisão entre trabalho da pulsão e Eu, que desde Freud mostra a singularidade
da perspectiva psicanalítica, notamos que não basta a emergência da letra nas formações do
inconsciente para que se dê a inscrição do sujeito. Desta maneira é que, ainda segundo Costa

45
(2015), a letra toma outros contornos quando de seu enlace ao sintoma, pois neste enlace se
revela algum trabalho de amarração do sujeito, o qual já não é apenas assaltado pela
emergência do trabalho pulsional. Compreendemos assim um deslocamento em relação à
noção de letra, em que, diferente da instância da letra no inconsciente, a letra na fantasia irá
indicar um encontro entre objeto da pulsão e traço unário, nas palavras de Costa (2015, p. 31):

O sonho apresenta uma singularidade no que diz respeito à letra no inconsciente e Freud lhe
deu bastante importância. Nele, o trabalho se alinha do lado de uma tentativa de inscrição
do pulsional. Assim, é bem marcada a diferença entre a letra do sonho e aquela da escrita da
fantasia. Nesta última, temos uma superposição de registros, onde o que é da ordem da letra
se confunde com o que seria do registro do traço unário. Ou seja, a articulação da fantasia
superpõe objeto da pulsão e traço unário.

Neste trajeto da letra, entre a emergência do trabalho pulsional e a articulação da


fantasia, notamos uma tentativa do sujeito de dar amarras àquilo que está fora da dinâmica
significante, dando a ver uma escritura primeira do sujeito. Com isto alguns elementos do que
se via na sublimação ganham outras dimensões, pois, na medida em que não se trata
exatamente da vicissitude pulsional distinta do recalque, mas de uma inscrição do sujeito que
se dá também na fantasia - logo, no registro do recalque -, a letra em sua articulação com o
significante vem mostrar os contornos dados pelo sujeito ao objeto da pulsão que, assim, pode
igualmente servir à fantasia.
As dimensões entre significante e letra, que já mostram suas junções e disjunções, terão
uma camada a mais à medida que o registro da letra se aproxima do que Costa (2015) destaca
como o terceiro caminho que podemos pensar a letra no ensino de Lacan, a saber, a redução
do Sinthoma como letra, em que é no campo do gozo que a letra se apresenta. Neste caminho,
que diz respeito à leitura sobre Joyce feita por Lacan no Seminário 23 (1975-1976), a escrita
surge como amarração dos registros Real, Simbólico e Imaginário. Tal leitura contém um
traslado sobre a letra em que, desde o Seminário 18 (1971), Lacan está às voltas com a relação
entre letra e gozo que, sempre como escape ao saber, revela os pontos de falha da cadeia
significante. Este caminho da escrita no ensino de Lacan revela a complexidade que a letra
nos oferece, na medida em que se coloca mais do lado da cifra do que de uma narrativa
encadeada.
Conforme iremos abordar no último capítulo, é também na direção da escrita enquanto
cifra da experiência que caminhará nossa leitura sobre as personagens, na medida em que, de
Antígona à Sygne de Coûfontaine, e desta à Nawal Maruan, o registro da letra
progressivamente ganha destaque: passando de uma leitura sobre os paradoxos do gozo em
Antígona, mas que ainda é a função simbólica que aparece com destaque; para a marca de
46
uma letra como causa que garanta a existência da obra, o Û dos Coûnfontaine que Lacan
(1960-1961) comenta, mas que ainda é o significante fálico que ganha destaque por sua
relação com desejo ali encenado na trilogia de Claudel; até a experiência de excesso
apresentada em Incêndios, em que é a escrita, daquilo que não pôde ser suportado na fala, que
atravessa todo o enredo e faz as costuras possíveis do destino de Nawal Maruan.
A escrita assim tomada contém sempre algo de impossível e, assim como pode ser fonte
de angústia, também pode ser fonte de criação. Nosso trabalho encaminha-se a pensar uma
escrita que permita que o impossível cesse de não se escrever, dando ao impossível um
contorno contingente e, na medida em que a pensamos a partir do feminino, crie a escrita de
um gozo suplementar, não todo regulado pelo fálico. Esta perspectiva, que iremos explorar no
decorrer da tese através de personagens teatrais, aponta o que Safatle (2006) situa como
figuras do impossível, nas palavras do autor:

O termo impossível nomeia assim a série de experiências que opõem resistências


insuperáveis aos processos de simbolização reflexiva e que não podem encontrar lugar no
interior do Universo Simbólico que estrutura a vida social. Podemos situar cinco: a relação
sexual (‘não há relação sexual’), a posição feminina (‘a mulher não existe’), o Real (‘o Real
é o impossível’), o corpo para além da imagem especular (que aparece nos textos
lacanianos sempre em metáforas de informidade da carne) e o gozo não fálico (que aparece
sempre no condicional: ‘o Outro gozo, se ele existisse’)” (SAFATLE, 2006, p. 201-202)

A partir disso que Safatle (2006) destaca, notamos uma proximidade entre feminino, real
e gozo não-todo fálico através da dimensão do impossível que eles carregam e, na medida em
que encontramos nesta dimensão um campo profícuo para pensar o trabalho da pulsão, já
notamos possíveis articulações entre feminino e pulsão. Para explorar estas possibilidades que
se abrem a nossa pesquisa, dedicaremos o capítulo seguinte ao feminino, a fim de
compreender isto que anunciamos como pontos que buscaremos alcançar, para daí recolher
esta noção de criação, que iremos trabalhar a partir das personagens trágicas.

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CAPÍTULO 2 – FEMININO: UM PERCURSO
O feminino em psicanálise comparece em vários momentos da obra freudiana e marca
seu percurso teórico e prático, já que pela escuta oferecida às mulheres o feminino teve
grande importância para o próprio surgimento da psicanálise e abandono da hipnose, em
Estudos Sobre a Histeria (1987/1996), e a descoberta da transferência, no Caso Dora
(1901/1905/1996); mas é no final de sua obra que o autor se dedica mais diretamente ao tema,
em textos como Sexualidade Feminina (1931/1996) e a conferência Feminilidade
(1933/1996). Nestas incursões ao tema, observamos o trabalho de Freud no sentido de pontuar
os diferentes caminhos tomados pela sexualidade que, ainda que tenha um suporte na
anatomia, não se limita a ela, o que terá importantes consequências para pensar a castração e
suas implicações em homens e mulheres.
Nosso trabalho seguirá na continuidade dada por Lacan ao trabalho inaugurado por
Freud sobre o tema da feminilidade, que o levou a pensar uma inscrição do feminino como
posição subjetiva. A passagem da feminilidade para o feminino em psicanálise, desde já é
ressaltada como importante ponto que irá atravessar nosso trabalho. Ao postular o falo como
significante ordenador da cadeia simbólica, Lacan (1972-1973/2008) fará ver no feminino um
além do falo, mostrando que este significante diz menos da castração, e as reivindicações dela
decorrentes, e mais da divisão que instaura; em outros termos, não é a lei fálica que por si
mesma faz homens e mulheres diferentes, mas a posição em que se sujeitam a ela.
O feminino - eis o elemento em que iremos nos deter no decorrer deste capítulo - indica
um posicionamento além do falo que com ele não rompe, fundando-se como não-todo na
função fálica; ao que Lacan (1972-1973/2008) irá referir um gozo próprio que, em relação à
função fálica, trata-se de um gozo suplementar. Notamos que, com a concepção de um não-
todo fálico e de um gozo suplementar, a questão do feminino no ensino de Lacan alcança
proporções que o vinculam não apenas aos destinos da diferença sexual e do complexo de
Édipo, mas que dizem respeito ao sujeito em sua condição inconsciente e marcado pela
linguagem.
Estas concepções a respeito do feminino, que aqui dispomos para pensar seus liames no
trabalho da pulsão na sublimação e na escrita, já mostram que operar com o feminino requer
que compreendamos como o tema foi abordado por Freud e Lacan. Para tanto, percorreremos
o trajeto do tema na pena freudiana, a fim de compreender a posterior leitura feita por Lacan.

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2.1 – Da diferença sexual à feminilidade: um percurso em Freud
Pensar o feminino desde o trabalho freudiano, antes mesmo de adentrarmos no tema da
feminilidade que foi alvo de seu interesse, conforme dito anteriormente, nas obras
Sexualidade Feminina (1931/1996) e Feminilidade (1933/1996); lança-nos ao mistério
vinculado às figuras femininas em que, seja relacionado à fantasia em Delírios e sonhos na
Gradiva de Jensen (1907/1996) e às diferentes representações da mulher em O tema da
escolha do cofrinho (1913/2010) ou nas alusões às deusas mães em Moisés e o Monoteísmo
(1938/1996), acompanhamos Freud envolver o feminino em ares enigmáticos.
Estes ares enigmáticos em que Freud envolve o feminino, levam-no a colher questões
que ultrapassam as figuras femininas às quais recorre; desta maneira vemos a personagem Zoe
do conto de Jensen oferecer-lhe elementos para pensar a construção da fantasia; enquanto a
cena, em O Mercador de Veneza, da escolha entre os cofres de ouro, prata e chumbo, ao se
referirem à imagem da mulher, dá a ver a relação do sujeito com a morte na escolha do cofre
de chumbo; ao passo que a recorrência às deusas mães serve de entrada para Freud pensar os
laços civilizatórios, nos quais a ascensão da religião monoteísta sobre as religiões matriarcais
mostra o movimento do sujeito quanto à lei simbólica da castração. Estas recorrências
mostram que, diante do mistério do feminino, o saber psicanalítico avança através de
diferentes respostas.
Esta leitura que vincula o feminino ao mistério é pontuada textualmente por Freud na
conferência Feminilidade (1933/1996), quando nos diz que “através da história as pessoas têm
quebrado a cabeça com o enigma da natureza da feminilidade” (p. 78), mostrando que, ao se
dedicar ao tema da feminilidade, a leitura psicanalítica se vê diante de um campo que
constantemente lança questões, e ainda que não consiga respondê-las plenamente, não se
deixa calar face ao enigma. Tal postura se mantém, ainda que ao fim desta mesma conferência
Freud nos convide a procurar sobre o tema em outros lugares - na experiência pessoal, nos
poetas e na ciência -, apontando que tudo que até ali fora dito não o esgota. Em outros termos,
o trabalho freudiano não se furta a investigar o enigma do feminino, construindo, a partir dele
e sobre ele, saberes que têm muito a dizer à psicanálise.
Este caráter da leitura freudiana, diz Assoun (1993), distancia-se de leituras feitas ao
longo da história, cujo feminino é um mistério intocável em que qualquer dizer a seu respeito
não tenha legitimidade, e, pelo contrário, encontra no mistério um ponto de atração para
produzir dizeres, ainda que estes apontem o limite extremo da própria experiência analítica.
Somos lançados, através da leitura freudiana sobre a feminilidade, aos limites da análise e do

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fálico, encontrando-nos no seio da castração enquanto barreira final da análise e dos
diferentes destinos da sexualidade.
Esta postura que Assoun (1993) refere à leitura freudiana está diretamente vinculada ao
percurso feito por Freud, no qual, a partir do interesse pela diferença sexual e suas
implicações psíquicas - em obras como A Organização Genital Infantil (1923), A Dissolução
do Complexo de Édipo (1924) e Algumas Consequências Psíquicas da diferença anatômica
entre os sexos (1925) -, o autor reconhece que, ao mesmo tempo em que o falo e a castração
são operadores que incidem em meninos e meninas, estas parecem sempre apontar para a
insuficiência destes operadores. Nas palavras de Freud (1925/2011, p. 267-268):

No menino — como expus na publicação mencionada, à qual se ligam as observações feitas


aqui — o complexo de Édipo não é simplesmente reprimido, ele realmente se despedaça
com o choque da ameaça de castração. Seus investimentos libidinais são abandonados,
dessexualizados e parcialmente sublimados, seus objetos são incorporados ao Eu, onde
formam o âmago do Super-eu e emprestam a essa nova formação traços característicos, No
caso normal — melhor dizendo: ideal — não subsiste mais um complexo de Édipo no
inconsciente, o Super-eu é o seu herdeiro (...) Na garota falta o motivo para a destruição do
complexo de Édipo. A castração já produziu antes o seu efeito, que consistiu em impelir a
criança para a situação do complexo de Édipo. Por isso este escapa ao destino que o
aguarda no menino, pode ser lentamente abandonado, liquidado mediante repressão ou seus
efeitos podem prosseguir até bem longe na vida psíquica normal da mulher. Hesitamos em
expressar isto, mas não podemos nos esquivar da noção de que o nível do que é eticamente
normal vem a ser outro para a mulher. O Super-eu jamais se torna tão inexorável, tão
impessoal, tão independente de suas origens afetivas como se requer que seja no homem.

Nesta arquitetura edípica, em que Freud ressalta um supereu menos rígido na menina
por lhe faltar motivo para dissolução do complexo de Édipo, novamente notamos a presença
da sublimação, sinalizando a proximidade entre inscrição no desejo e trabalho pulsional. Sem
detalhar as possíveis articulações entre esses registros, Freud não deixa de mantê-los ligados,
o que se manterá no trabalho do autor ao se dedicar aos destinos da feminilidade, uma vez que
a dinâmica edípica na mulher também incluirá a sublimação, naquilo que na conferência
Feminilidade (1933) Freud chama de “menor capacidade de sublimar” (FREUD, 1933/1996,
p.79). Desta maneira, assim, como a sublimação participa da estrutura edípica, os destinos
dados ao complexo de Édipo também incluirão o trabalho pulsional que prescinde do
recalque.
Como podemos notar, o estreitamento entre pulsão e desejo, que já observamos na
investigação freudiana sobre a dinâmica edípica em homens e mulheres, tem particularidades
na feminilidade, ao que o trabalho freudiano se dedicará em obras posteriores e, conforme já
destacamos e iremos tratar mais à frente, a sublimação também aparece de modo diferenciado
quando se trata da feminilidade. Este desdobramento para questões que não dizem respeito
50
apenas ao corpo sexuado mostra que, a partir da dinâmica da castração e complexo de Édipo,
o feminino e o masculino são atravessados pela sexualidade não apenas a título anatômico,
rompendo assim com uma concepção biológica, na qual o testemunho corporal corresponderia
inequivocamente ao psiquismo; no entanto, a questão de como se passa de um registro ao
outro, da anatomia ao psiquismo e deste àquela, sem um completo desligamento nem
equivalência, mostrará diferentes destinos para homens e mulheres.
Da disposição bissexual à dissolução do complexo de Édipo, e o lugar ocupado pela
castração neste percurso, a mulher retira consequências que dizem respeito ao modo como
estes elementos operam desde sua entrada em tal percurso. Segundo Freud (1925/1996), na
medida em que a mãe é o primeiro objeto de amor para todo sujeito, o complexo de Édipo
dar-se-á de modo diferente para aqueles que dele saem mediante a ameaça de castração e para
aquelas que, além de já se verem castradas, têm de abrir mão deste primeiro objeto de amor e
posteriormente com ele rivalizar. Aqui já observamos que os elementos “primeiro objeto de
amor”, “complexo de Édipo” e “castração” incidem de maneira muito particular nas mulheres,
sobretudo por sua relação com a mãe, o que acarretará um laborioso translado rumo àquilo
que Freud chama feminilidade.
A feminilidade, portanto, não é algo que já está posto para as mulheres a partir da
anatomia, mas diz respeito aos particulares efeitos psíquicos advindos do manejo dos
elementos presentes no complexo de Édipo. De início, diz Freud (1923/1996), a reunião das
pulsões parciais dá-se pela primazia do falo, o que nos meninos é encontrado no próprio corpo
e nas meninas ao notar a presença no corpo do outro e ausência no seu. Este movimento diz
respeito à passagem da primeira fase da organização pré-genital, cuja polaridade ocorre entre
ativo e passivo, para a organização genital, que se polariza entre fálico e castrado.
Observamos, nesta passagem da organização pré-genital para a genital, que a leitura freudiana
coloca de um mesmo lado passivo e castrado, referindo-os à menina, o que se seguirá na
terceira polaridade ocorrida na puberdade, dispondo-se nos polos masculino e feminino, ou
seja, de um mesmo lado se coloca passivo/castrado/feminino.
Este paralelo entre feminino e passividade, que neste momento surge como modo de
compreender as aproximações e distanciamentos entre o Édipo masculino e feminino, será
trabalhado por Freud com mais atenção quando o autor se dedicar à feminilidade, no artigo
Sexualidade Feminina (1931) e na conferência Feminilidade (1933), em que o autor irá
pensar a noção de passividade, a qual vincula o feminino, como algo que demanda muita
atividade para ser alcançada. Neste sentido, a própria noção de passividade não está referida a

51
uma menor valoração, mas ao trabalho psíquico que aí se dispõe, dizendo respeito às
diferentes configurações da sexualidade9, de tal modo que ao se lançar ao terreno da
sexualidade feminina, o autor mais deixa ver as questões que este terreno lhe coloca do que dá
respostas últimas.
Ainda nos trabalhos sobre a dinâmica edípica, as noções de feminino e masculino
surgem como polaridades que advêm da organização sexual e psíquica, porém, se para os
meninos o falo já se torna sinônimo de masculino, uma vez que encontram no corpo seu
representante, para as meninas o feminino requer o reconhecimento da vagina como órgão
sexual, o que significa o abandono do clitóris, que até então atuava como representante fálico.
Esta concepção da feminilidade como ascensão de uma alteridade, que nos interessa muito de
perto, terá ainda uma íntima ligação com a maternidade, na medida em que, segundo Freud
(1924/1996), além do reconhecimento de um órgão que represente o feminino, a feminilidade
também diz respeito ao desejo de ter um filho como dissolução do complexo de Édipo, onde
as meninas buscam no filho o falo enquanto objeto de desejo.
A dinâmica edípica, na qual Freud busca correlatos entre meninos e meninas através das
identificações daí resultantes e das formas como adentram e respondem ao complexo de
castração, parece sempre levar o autor à constatação de que a mulher lhe demanda novas
questões, sinalizando o “continente negro” (FREUD, 1926) que não se desvela de todo. É
neste sentido que, partindo da diferença sexual, os estudos de Freud detêm-se na feminilidade,
em Sexualidade Feminina (1931/1996) e na conferência A Feminilidade (1933/2010),
mostrando as tentativas de contornar aquilo que o drama edípico, ao mesmo tempo, oferece
algumas respostas e aponta seus limites.
Na incursão de Freud no tema da feminilidade, o que se destaca dos anteriores estudos a
respeito da diferença sexual é a ênfase ao momento pré-edípico, o qual dá sinais de que o
material investigado nas disposições da sexualidade, que desde Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905/1996) sinalizava uma passagem do autoerotismo ao complexo de Édipo
como estruturante das subjetividades, requeria uma atenção à relação com a mãe. Esta relação
é especialmente importante na mulher porque, conforme dissemos anteriormente, dela se
demanda que a mãe deixe de ser seu primeiro objeto de amor, o que, segundo Freud

9
É também no sentido de pensar os destinos da sexualidade que Freud (1933/1996) irá vincular o masculino ao
sadismo e o feminino ao masoquismo, menos por uma encarnação destes quadros clínicos em homens e
mulheres, e mais pelas disposições que atividade e passividade têm nos sujeitos.
52
(1931/1996), faz com que a própria entrada no complexo de Édipo seja uma formação
secundária, um refúgio a esta relação primordial.
Da relação pré-edípica algumas questões se colocam para o desenvolvimento da
feminilidade: o afastamento deste primeiro objeto materno é marcado pela hostilidade que o
complexo de castração instaura; da mãe fálica a menina é deslocada à castração materna e,
assim, acusa a mãe por sua inferioridade; na mudança para o objeto paterno não se sabe se
aquela primeira relação de amor foi totalmente desviada, de modo que os objetivos sexuais
ativos e passivos parecem acompanhar a relação entre mãe e filha. Mesmo o desvio para o
objeto paterno e entrada no complexo de Édipo, que encaminha à feminilidade, é apenas uma
das saídas possíveis para a menina, que pode ter a frigidez ou o complexo de masculinidade
como destinos dados à castração.
Na dinâmica própria à feminilidade, notamos Freud dedicar-se às relações entre corpo
sexuado, castração e complexo de Édipo; mas o que suas pesquisas também deixam antever é
o campo puslional que aí se dispõe. Neste sentido é que na feminilidade também a sublimação
se dá de modo diferente, na medida em que, conforme citamos mais acima, na conferência
Feminilidade (1933), Freud nos diz que a mulher teria menor capacidade de sublimar suas
pulsões. Esta assertiva freudiana - a que o autor não se dedica de modo mais contundente,
porém, não deixa de destacar como algo próprio ao feminino -, está intimamente atrelada aos
modos com que o supereu atua no laço social e, conforme destacamos anteriormente, na
mulher tal instância seria menos rígida, o que lhe daria também um menor senso de justiça.
Porém, malgrado a debilidade feminina em questões que atuam no laço social, como a
sublimação, Freud (1933) situa uma forma de criação que nos parece importante destacar:

Parece que as mulheres fizeram poucas contribuições para as descobertas e invenções na


história da civilização; no entanto, há uma técnica que podem ter inventado — trançar e
tecer. Sendo assim, sentir-nos-íamos tentados a imaginar o motivo inconsciente de tal
realização. A própria natureza parece ter proporcionado o modelo que essa realização imita,
causando o crescimento, na maturidade, dos pêlos pubianos que escondem os genitais. O
passo que faltava dar era fazer os fios unirem-se uns aos outros, enquanto, no corpo, eles
estão fixos à pele e só se emaranham. (p. 78)

Graças à mulher, o que na natureza é fixo e preso ao corpo ganha trançados, mostrando
aí que a feminilidade atua no sentido de dar formas outras àquilo que já estava colocado. Esta
perspectiva, ainda que apenas esboçada por Freud, em muito nos interessa, na medida em que
surge como porta de entrada ao que Lacan irá referir ao fálico, como ordenador da cadeia
simbólica em que o feminino opera não-todo dentro dele, o que nos convida a pensar os
modos com que a criação pode aí se colocar.
53
Nosso trabalho seguirá nesta direção, e no ponto em que estamos sobre o percurso da
feminilidade, ressaltamos aquilo que o trabalho freudiano em torno da feminilidade deixa às
claras: diante do feminino, Freud se vê interpelado e, nas tentativas de responder a partir da
psicanálise, é lançado aos limites que a castração instaura, o que não diria respeito unicamente
ao sexo feminino – apresentando-se no próprio processo analítico, conforme nos diz o autor
em Análise Terminável e Interminável (1937) -, mas que neste surge com lugar de excelência.
É importante lembrar que os estudos de Freud a respeito da feminilidade estão sob a
égide da segunda teoria das pulsões, na qual as experiências que tocam os limites da
representação são questionados a partir da pulsão de morte, ou seja, o feminino não apenas é
tocado pelo fálico e a castração, mas também questiona estes operadores e sinaliza questões
que dizem respeito à dinâmica pulsional10.
Conforme já tratamos anteriormente, quando investigamos o trajeto da sublimação, o
trabalho da pulsão nesta vicissitude também é tocado pelos limites que a pulsão de morte
deixa às claras, de tal modo que, sob a rubrica da pulsão de morte, os temas da feminilidade e
da sublimação dirigem-se mais a questionar o sistema simbólico organizado pela castração e
pelo complexo de Édipo, do que apenas a participar dele. Estamos aqui no cerne do mistério
que o feminino aponta na dinâmica edípica e nas criações sublimatórias. A partir disso,
notamos que o mistério do feminino lança a leitura freudiana a pontos limites, o fálico e a
castração, que buscam recobrir aquilo que o feminino vem contradizer através de incessantes
questões.
Esta leitura, esclarece-nos André (1986/1998), dá à trajetória freudiana a preservação do
mistério por meio de sua tentativa de cobertura, de modo que as bordas impostas ao mistério
parecem tomar maiores proporções que o próprio. No entanto, se a leitura de Freud parte do
mistério e alcança lugares-limites, o trajeto lacaniano faz o movimento contrário, diz André
(1986/1998, p. 66):

Vemos em Freud uma elucidação que parte do real para chegar à castração e a fazer desta
uma verdadeira tela para o real - a ponto de, nos últimos textos, o próprio trauma ser
atribuído ao medo da castração, mais que à emergência do real. Em Lacan, ao contrário, o
deciframento parte da castração e atinge um ponto de real, de tal sorte que o sistema
simbólico se revela não mais como um recobrimento, mas como aquilo que atravessa os
furos por onde se manifesta a hiância do real. Esta inversão do sentido das trajetórias
respectivas de Freud e Lacan esclarece a diferença de resultados aos quais chegam suas
reflexões sobre a feminilidade.

10
Esta questão do feminino ligado não apenas à dinâmica edípica, mas que também revela algo da pulsão, é
tratada por trabalhos contemporâneos, como Poli (2015) em Feminino Além do Édipo e Chaboudez (2017) em
Que Peut-On Savoir Sur le Sexe.
54
Notamos que esta mudança de vetor operada por Lacan, longe de contradizer as
construções freudianas, vai ao mistério que já estava nelas, encontrando nos registros
imaginário, simbólico e real as relações entre mistério e suas formas de desvelamento, o que
dará outro alcance às investigações lacanianas acerca do feminino. Não tomando o simbólico
como tela que encobre o real, pois serve também ao seu deciframento, a leitura lacaniana
sobre o feminino não se limita à díade fálico/castrado, e suas encarnações fantasiosas nas
narrativas individuais, mas mostra que o falo diz respeito ao significante que, mais do que
estabelecer a importância de sua presença, como os textos freudianos sublinham, tem sua
função relacionada à falta.
Nesta breve passagem que fizemos de Freud a Lacan, notamos que os pontos comuns
entre os autores mostram o feminino como tema que levanta questionamentos que
ultrapassam a anatomia, ainda que com ela se relacionem, ou seja, que mulheres e feminino
não se dispõem em sinonímia, mas que, ao tratar de ambos, Freud e Lacan se direcionam ao
mistério que o interpela. “O que quer uma mulher?”11 carrega o mistério que o tom retórico da
pergunta pode tomar, na medida em que a enunciação já desvela que qualquer sentido contido
na resposta não esgotará a interrogação. Na tentativa de lançar respostas possíveis e
contingentes, a interrogação segue soando aos psicanalistas, mostrando que as construções
postuladas por Freud demandam mais trabalho sobre o assunto.
Neste sentido, adentraremos no percurso feito por Lacan sobre o feminino que, partindo
do lastro deixado por Freud, distancia-se da continuidade dada pelos pós-freudianos, dizendo
respeito à linguagem enquanto estreita ligação com o inconsciente. Assim, desde a entrada no
ensino de Lacan sobre o tema, já sinalizamos elementos também presentes na leitura que o
autor empreendeu sobre a sublimação, na qual através da linguagem o trabalho sexual e
mortífero da pulsão faz laço social via trabalho sublimatório.

2.2 – Da feminilidade ao Feminino


Como pudemos observar na trajetória freudiana, a feminilidade torna-se objeto de
algumas obras do autor, mas o feminino comparece também de outras maneiras, como a

11
A pergunta colocada nestes termos é feita por Serge André (1986/1998) e já guarda em si a passagem de Freud
a Lacan sobre a questão do feminino, conjugando a pergunta “O que a mulher?” que, segundo Jones (1989),b
Freud dirige a Marie Bonaparte dizendo-lhe que esta seria a questão a qual a psicanálise ainda não tinha sido
capaz de responder, com o avanço no ensino de Lacan sobre o feminino, em que “A mulher não existe” carrega a
impossibilidade de dizê-la senão uma a uma.
55
própria ascensão da psicanálise a partir da escuta oferecida às histéricas, de modo que a
perspectiva da feminilidade, enquanto desdobramento do complexo de Édipo nas mulheres,
traz consigo também o tratamento dado por Freud às suas pacientes. Neste sentido é que Kehl
(2008) destaca a importância da compreensão da figura da mulher contemporânea a Freud
para acompanharmos seu pensamento, de modo a não lançar críticas à teoria, no que diz
respeito ao funcionamento psíquico e à dinâmica que revela, quando o alvo da crítica é a
leitura histórica e social, que também se dispõe em Freud. Partindo de uma indiferença entre
estas perspectivas, as abordagens pós-freudianas surgem como crítica à concepção freudiana
do falo como ponto de referência nos destinos da sexualidade, de onde a presença ou ausência
do falo é lida como diferença valorativa.
Das críticas lançadas dentro da própria psicanálise, o que Lacan chama “a querela do
falo”, destacam-se Hélène Deutsch, Karen Horney, Melanie Klein e Ernest Jones, que
tomaram as postulações freudianas por diferentes vieses de leitura e, ao mesmo tempo em que
se utilizavam de alguns elementos lançados por Freud, fazem criticas a eles e lançam
diferentes maneiras de pensar a sexualidade feminina. Sem adentrarmos nos pormenores das
teses destes autores, salientamos o modo como os elementos usados por Freud para pensar a
sexualidade feminina – castração, inveja do pênis, complexo de masculinidade, frigidez,
feminilidade e maternidade – são tomados por estes autores a partir de leituras que pouco
consideram a dimensão inconsciente destes elementos, ou seja, do efeito que eles exercem
sobre o funcionamento psíquico, independente de seu correlato na realidade.
Afastando-se desta linha de leitura, o ensino de Lacan retoma a importância dada por
Freud ao falo como organizador da sexualidade, porém, o autor francês se interessará menos
pela presença no corpo daquilo que opera justamente pela falta. Neste sentido é que Campista
e Caldas (2013), destacam dois importantes momentos da leitura feita por Lacan sobre o
feminino: nos anos 50, pela dialética do ter/não ter o falo desdobrada em ser/não ser o falo, e
nos anos 70, por uma lógica além da fálica. Assim, o fálico encontra lugar de excelência em
Lacan e, ainda que tenha modificações no percurso de seu ensino, não deixa de comparecer
como significante que dirá respeito a toda dinâmica sexual.
No primeiro momento da leitura lacaniana, em A Significação do falo (1958/ 1998), o
autor retoma a perspectiva freudiana do ter o falo e a desdobra na perspectiva de ser o falo,
sublinhando a função de prestígio que o falo contém nestas duas posições. Neste
desdobramento, todo sujeito parte da posição de ser o falo do Outro, posição perdida para
entrada no simbólico, ao passo que ter o falo é uma posição que, mediante a castração, o

56
sujeito busca em outros objetos. Porém, o atributo de ser o falo, objeto de desejo do Outro,
pode ser forjada e, o que Lacan refere ao feminino, tem na mascarada uma forma de alcance.
O uso da mascarada - termo forjado por Joan Rivière (1929), para se referir a uma
paciente que encenava fragilidade aos homens após suas demonstrações de poder e sucesso –
como saída feminina mostra-se próximo da perspectiva freudiana de feminilidade, na medida
em que a busca por ter o falo orienta os destinos da sexualidade. Porém, com a mascarada,
Lacan ressalta a função significante do falo, que assim pode ser manejado de diversas formas,
pois atua no lugar onde a falta instaurada por este significante é tomada como artifício para
escapar a ela, em outros termos, para ser o falo para o Outro, o feminino encarna ter a falta
através da máscara. Não se trata, no entanto, de uma dissimulação, pois é o significante fálico
que aí se dispõe, logo, é a falta própria ao desejo que a máscara desenha.
Vestir-se de faltosa com atributos que seduzem o Outro, e nesta sedução antever o valor
fálico de tais atributos, dá ao feminino uma relação com o falo que terá importantes
consequências na postulação de uma lógica do não-todo. Sem nos apressarmos a estas
consequências, seguimos o pensamento lacaniano quando diz que na mascarada a mulher
repudia parte de sua feminilidade que, para ser amada por aquilo que não é, sobrepõe o falo ao
seu ser, mostrando assim que a feminilidade não está apenas no movimento de engano, mas
também fora dele. Sem esgotar-se no uso dos atributos fálicos, o feminino põe às claras o falo
como significante da falta e, assim, deixa ver o estatuto simbólico do falo que não se esgota
nos suportes imaginários.
Este lugar do falo como falta que promove o desejo mostra aquilo que Poli (2007)
destaca como um deslocamento do estatuto imaginário, que o falo ocupara nos tempos
anteriores do Édipo, para a função simbólica a partir da qual o falo opera como significante da
falta. Para compreender tal deslocamento sublinhado pela autora, é necessário direcionemo-
nos ao que Lacan trata no Seminário 4: A relação de objeto (1956-1957/1995), em que é a
partir da falta de objeto que as relações do sujeito com o falo serão compreendidas. A falta,
portanto, desde o início está colocada, mas como ela ganha estatuto simbólico de guardião do
lugar do desejo, é um trajeto que passa pela privação, frustração e castração.
Na privação, diz Lacan (1956-1957/1995), o falo aparece como um terceiro entre mãe e
criança que, longe de atuar como mediação, aponta uma relação com a falta que está colocada
para os dois: para a criança, como privação real de um objeto simbólico, que na satisfação de
suas necessidades a criança refere à mãe, a qual, neste sentido, é detentora das insígnias
fálicas; para a mãe, junto com a criança há a exigência simbólica do falo, a que a criança

57
corresponde mais ou menos. Já neste primeiro tempo da falta, notamos que o falo exerce uma
função imaginária, que dá à relação mãe-bebê um descompasso com a garantia de que
nenhum alcançará plenamente aquilo que a falta coloca, o que será confirmado pelo agente da
privação, a saber, o pai imaginário como aquele que venha romper esta relação mítica entre
mãe e criança.
Se na privação a mãe aparece como a matriz simbólica na qual a criança busca lidar
com o furo real, no segundo tempo da falta de objeto, a frustração, a mãe surge como real na
medida em que, nos diz Lacan (1956-1957/1995), na dialética da frustração ela não oferece
apenas os objetos de satisfação da necessidade, mas investe os objetos simbolicamente,
tornando-os objetos de dom e - eis o que dá a condição real da mãe -, deixam ver a potência
materna quando, na dialética ausência-presença, podem não ser oferecidos. Notamos assim
que a falta se dispõe de modo diferente, o que dará ao falo uma operação também
diferenciada, pois surge quando esta imagem da mãe onipotente é rasurada pela falta, por ser
desejante, ao que a criança responderá fazendo-se falo da mãe para dela receber os objetos de
dom. Neste jogo de engodo, notamos o lugar imaginário do falo enlaçar-se à operação
simbólica que ele exerce:

Existe aqui algo que vai mais longe. Esta imagem fálica, a criança a realiza sobre si mesma,
e é aí que intervém, falando propriamente, a relação narcísica. No momento em que a
criança apreende a diferença dos sexos, em que medida essa experiência vem se articular
com o que lhe é oferecido na presença da mãe e de sua ação? Como se inscreve, então, o
reconhecimento deste terceiro termo imaginário que é o falo para a mãe? Muito mais, a
noção de que à mãe falta esse falo, de que ela própria é desejante, não somente de algo
além dele próprio, porém simplesmente desejante, isto é, afetada em sua potência, será para
o sujeito mais decisiva que tudo. (LACAN, 1956-1957/1995)

Aqui já notamos a inserção no campo do desejo que, assim, tomará o falo de modo
diferente da privação, já que na privação estávamos no registro real12, ao passo que na
frustração tratamos do sujeito em uma operação simbólica. Com a complexidade que a
dialética da frustração instaura, o falo surge como objeto que preenche uma falta, a quem o
filho dissimula no desejo materno e, ao mesmo tempo, atesta que este preenchimento não se

12
É preciso lembrar, com Lacan (1956-1957/1995), que mesmo que na privação a falta se dê no real, onde não
há sujeito, esta só pode ser concebida como tal com uma operação de simbolização: “Quando digo que, em se
tratando de privação, a falta está no real, isso quer dizer que ela não está no sujeito. Para que o sujeito tenha
acesso à privação, é preciso que ele conceba o real como podendo ser diferenciado do que é, isto é, que já o
simbolize. A referência à privação formulada tal como aqui, consiste em situar o simbólico antes – antes que
pudéssemos dizer coisas sensatas. Ela se opõe, assim, à gênese que nos é habitualmente dada do psiquismo” (p.
55). Esta assertiva lacaniana, que deixa às claras a complexidade da ligação entre os registros real, simbólico
imaginário, para o ponto em que estamos tratando sobre o estatuto do falo como significante, nos dá a dimensão
da passagem de um tempo a outro da falta, onde o falo exerce diferentes funções e atua em diferentes registros.
58
faz plenamente. Isto porque na frustração a falta de objeto diz respeito ao dano imaginário de
um objeto real, em que as reivindicações pelo falo não encontram uma paragem no imaginário
que lhe é oferecido, mas que assim podem situar o falo no plano do desejo, que terá com a
castração seu contorno simbólico.
A passagem do falo de uma reivindicação insaciável para o motor do desejo faz-se a
partir de um quarto elemento até então não situado: o pai real operador da castração. Se na
frustração já se vê um deslocamento da mãe onipotente para a mãe desejante porque castrada,
este deslocamento traz consigo a indicação de que não é na criança que o desejo materno se
satura, mas que há aquele para quem seu desejo também se direciona, e a quem ela nomeia
para a criança como pai. Encontramo-nos aqui próximos aos termos freudianos do complexo
de Édipo, em que o pai exerce, a um só tempo, a interdição ao incesto e a castração, daí
advindo uma relação de rivalidade e idealização; mas o que Lacan (1956-1957/1995) vem nos
indicar é que, na castração pensada como terceiro tempo da falta de objeto, o falo já opera
anteriormente, não sendo por ela inaugurado, porém, é somente pela dívida simbólica
instaurada pela castração que o falo terá o estatuto de significante da falta.
A castração assim permite que um objeto imaginário se inclua numa dinâmica
simbólica, fazendo com que o falo não se enclausure nas encarnações imaginárias, mas se
inscreva como falta que toca a todos. Partindo disso, os destinos dados ao complexo de Édipo
em homens e mulheres também serão atravessados pela função significante exercida pelo
falo: marcados com um sinal de mais ou menos, nenhum é possuidor do falo e, a partir daí, é
incitado a encontrá-lo em outros objetos que não o materno. A partir deste quadro instaurado
pela castração, pode o sujeito ter o desejo regulado pela fantasia ($<>a), na medida em que
um objeto vem se colocar como causa do desejo que nunca será de todo satisfeito.
A concepção do falo como motor do desejo é assim remontada a tempos anteriores à
castração, sinalizando-nos um interesse para o momento pré-edípico, o mesmo em que as
investigações freudianas se detiveram para tratar a sexualidade feminina. Em outros termos,
vemos o ensino de Lacan direcionar-se ao que a questão da feminilidade convocou Freud,
mostrando que a questão colocada pela feminilidade lança luz sobre a própria articulação do
desejo.
O momento pré-edípico como aquele sem o qual não se pode pensar a sexualidade
feminina diz respeito, portanto, à construção do falo como significante da falta, que abre os
caminhos para as trocas simbólicas que daí advêm, pois “ele circula, deixando atrás de si o
signo de uma ausência no ponto de onde vem” (LACAN, 1956-1957/1995, p. 155). Como

59
signo de uma ausência, a dinâmica do ter e ser o falo está sempre condicionada à função
simbólica de tal dinâmica que, seja como portador ou como encarnação do falo, é a ausência
que se deixa ver.
Notamos que estas elaborações lacanianas preparam o terreno para o que o autor irá
trabalhar em A Significação do falo (1958), o que esclarece suas entradas no terreno do
fetichismo e da função do véu, por exemplo, como trabalho em torno dos modos como se
opera com o significante fálico. É assim que, do Seminário 4 ao texto A Significação do falo,
notamos o feminino circular entre uma ocultação da falta através do véu, que igualmente a
revela ao contorná-la de mistério, e uma tentativa de ser o falo, objeto de desejo masculino.
Estas saídas, que encontram na cultura os signos por meio dos quais se exercem – a mulher
ligada ao mistério, às imagens de pureza e de pecado – indicam o modo particular como o falo
é tomado pelo feminino.
Esta relação entre feminino e falo no ensino de Lacan demonstra ir além da saída
freudiana, que conjuga feminilidade e maternidade, contudo, não deixa de passar pelo lugar
que o materno ocupa na dinâmica do feminino. Com Lacan, este lugar é concebido mais como
disjunção do que confluência; o que é pensado a partir de uma figura trágica: Medéia. Para
trabalhar as torções entre mulher e mãe, em A Juventude de Gide ou a letra e o desejo (1958)
Lacan verá na personagem de Eurípedes assassina dos próprios filhos a imagem da
“verdadeira mulher”, justamente pela distância que nela há entre a mãe e a mulher. A falta
aqui já não diz respeito tanto ao anseio em busca de algo que tampone, mas, como mostra
Medeia, à possibilidade de destituir-se daquilo que lhe é mais precioso.
A leitura de Lacan (1958/1998) sobre Medéia é pontual, quando de sua comparação ao
ato de Madeleine de queimar as cartas de André Gide, mas de extrema importância para
pensarmos o feminino, na medida em que Lacan destaca o horror causado pela maneira com
que o feminino opera com a falta. No entanto, ao mesmo tempo em que causa horror, o
feminino contagia aquele que esta falta alcança, já que Gide, ao descobrir a queima das cartas
por Madeleine – como Medéia, desfazendo-se do que lhe é mais precioso – também se
feminiza:

Desde então, o gemido de André Gide, o de uma fêmea de primata ferida no ventre, com o
qual ele pranteia a extirpação do desdobramento de si mesmo que eram suas cartas – razão
pela qual as chamava de seu filho –, só faz parecer que preenche com exatidão o vazio que
o ato da mulher quis abrir em seu ser, longamente escavado por uma após outra das cartas
atiradas ao fogo de sua alma flamejante (LACAN, 1958/1996, p. 772).

60
O feminino, neste sentido, está muito mais próximo daquilo que escava o vazio do que
da busca de preenchimento, ainda que esta busca esteja em seu horizonte, já que, como
destaca Miller (2010), a mulher não tem limites quanto às concessões que pode fazer a um
homem, como nos mostra o próprio enredo de Medéia. Notamos aí uma maneira muito
singular de operar com o fálico, que mostra um gozo na destituição e também na busca, em
outros termos, situa-se na organização fálica e aponta seus limites.
O que ocorre ao feminino para que esteja sempre muito próximo à falta? Isto diria
respeito unicamente à anatomia? Seria esta proximidade mantida com a falta que lhe confere
o mistério? Estas questões, que encontram na clínica e na cultura as mais diversas
manifestações, impulsionam as pesquisas lacanianas e, em Diretrizes para um congresso
sobre sexualidade feminina (1960/1998), levam o autor a questionar se a mediação fálica
drena todo o pulsional da mulher, pois este parece sempre escapar. Neste sentido, mesmo a
função fálica instaurando a falta significante em todos os sujeitos, o feminino mostra um além
desta instauração, sinalizando a natureza própria da pulsão.
Com esta proximidade à pulsão, destacamos o lugar do feminino também em relação ao
objeto a em que, paralelo à leitura lacaniana do feminino em relação ao falo como operador
simbólico, o feminino também diz respeito a este conceito que, conforme já citamos
anteriormente, tem um lugar importante no trajeto lacaniano. Segundo Áran (2003), a
proximidade do feminino com o objeto a pode ser remontada a três momentos do ensino de
Lacan: o primeiro, no Seminário 10: A Angústia (1962-1963), onde o objeto a é tido como
causa de desejo e também como resto, em que a mulher, ora servindo a uma, ora a outra
destas funções do objeto a, atua como suporte à angústia de castração, ao mesmo tempo em
que suscita a angústia do Outro, diz Lacan (1962-1963/ 1995, p. 200):

Qualquer exigência de a sobre a via dessa iniciativa de encontrar a mulher – já que adotei a
perspectiva androcêntrica – só pode desencadear a angústia do Outro, justamente por eu
não fazer dele mais do que a, por meu desejo o “aizar” se assim posso dizê-lo. É por isso
mesmo que o amor-sublimação permite ao gozo condescender ao desejo. Aqui, meu
pequeno circuito de aforismos morde a própria cauda.

A mulher, neste sentido, ao colocar-se como objeto a, tem relação com o gozo e o
desejo, na medida em que permite a passagem de um ao outro através deste “aizar”
promovido pelo desejo. Nesta passagem, a mulher, enquanto objeto a, assim como faz o gozo
condescender ao desejo, igualmente comporta a angústia de castração intrínseca ao desejo. A
partir disso podemos dizer que, neste momento do ensino de Lacan, feminino e objeto a se
dispõem entre a angústia e o desejo.

61
O Segundo momento de aproximação entre feminino e objeto a, destacado por Áran
(2003), situa-se no Seminário 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964),
em que Lacan irá se dedicar à parcialidade das pulsões e, neste sentido, o objeto a surge como
objeto da pulsão nunca totalmente significantizado, demarcando um vazio próprio à acefalia
pulsional. Ainda que não vejamos aqui uma clara ligação com o feminino, o escape à
simbolização do objeto a diz respeito à sua ligação com a demanda do Outro e, assim, abre os
caminhos para o que posteriormente será trabalhado em relação ao gozo feminino que, não
todo mediado pela função fálica, tem relação com Outro.
Esta dimensão do objeto a como objeto da pulsão, e o lugar do feminino nisto, parece-
nos um ponto a ser sublinhado dentro de nosso tema de pesquisa, pois, conforme abordaremos
mais à frente, oferece-nos elementos para pensar sua relação com a sublimação e a escrita.
Guardemos, pois, esta perspectiva do feminino com vínculos com o objeto a enquanto objeto
da pulsão, pois ele nos será muito caro para pensarmos as articulações entre feminino e o
campo do gozo.
O terceiro momento em que feminino e objeto a se aproximam no ensino de Lacan,
sublinha Áran (2003), diz respeito ao Seminário 14: A Lógica do Fantasma (1966-1967),
seminário inédito em que Lacan irá tratar o objeto a como suporte da fantasia; de tal modo
que, ao mesmo tempo em que sustenta o desejo na fantasia, o objeto a também funciona como
anteparo ao real, no que a mulher, ao se colocar como objeto a, dá a ver a função do falo e a
posição de fetiche própria à fantasia masculina, ao mesmo tempo em que revela a dimensão
real que não se esgota nesta posição. Notamos surgir aqui alguns argumentos do que será
postulado como “a relação sexual não existe”, em que a posição masculina do desejo faz
fracassar uma promessa de plenitude entre os sexos, pois é sempre como objeto que o parceiro
é tomado, ao passo que o feminino também garante o fracasso da relação sexual, por conta de
sua relação com o Outro13.
Como podemos observar nestes momentos destacados pela autora, feminino e objeto a
não apenas se apresentam nestas obras de Lacan, como têm desdobramentos em várias
direções dentro da psicanálise, ao que, para nossos interesses, sublinhamos os modos com que
o feminino é tomado na pena lacaniana. A partir disso, continuaremos nosso trajeto do tema
dentro do ensino de Lacan, destacando a natureza pulsional que se deixa antever pelo

13
Esta perspectiva do feminino e sua relação com Outro será trabalhada mais detidamente no sub-capítulo
seguinte, quando iremos tratar do gozo a partir do quadro da sexuação.
62
feminino que, desta maneira, atua nas operações simbólicas próprias ao falo e também revela
o campo pulsional.
Neste sentido é que ainda em Diretrizes para um Congresso sobre Sexualidade
Feminina (1960/1998), o autor diz que o feminino se dispõe como Outro absoluto na dialética
falocêntrica, mostrando novamente que o feminino opera dentro da função fálica, mas nela
não se encerra, mantendo-se enquanto enigma por sua estreita relação com o Outro.
Vinculado ao Outro, o feminino ganha na pena lacaniana o papel de revelar que a função
fálica não se dá de forma maciça e unívoca em todos os sujeitos, mas que há diferentes
caminhos de se sujeitar a esta função.
Interessante notar que os trabalhos em que Lacan toca o feminino em relação ao falo, A
Juventude de Gide ou a letra e o desejo (1958) e Diretrizes para um congresso sobre
sexualidade feminina (1960), são contemporâneos a sua dedicação às heroínas Antígona e
Sygne de Coûfontaine, nos Seminários 7 e 8. Ainda que o foco da leitura lacaniana através
das personagens não seja o mesmo de seus artigos, notamos que o problema que tais
personagens colocam ao autor circula entre o desejo e sua articulação, seu endereçamento ao
Outro. Na medida em que Antígona faz do belo a visada do desejo, levando seu sacrifício aos
limites da segunda morte, e que Sygne os atravessa deixando para trás seu próprio ser, desejo
e morte têm nestas figuras femininas um desenho que interroga as próprias bordas que
compõem os limites entre vida e morte, onde o Outro revela sua inconsistência.
Nesta interrogação, feita de diferentes modos pela heroína antiga e pela heroína
contemporânea, notamos que não se trata de uma ausência de bordas, já que é sobre elas que
as personagens caminham e atravessam, mas trata-se de revelar sua função na partilha
simbólica como aquilo que permite os sujeitos operarem na linguagem via discurso. É neste
sentido que no Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante (1971/2009) Lacan
pensa o homem e a mulher no discurso em relação à função fálica, de modo que novamente o
ensino de Lacan sublinha o fálico para além da dinâmica edípica.
Para compreender a função fálica no discurso, o autor articula a lógica, pelas categorias
do universal e particular, aos quantificadores existenciais, nas categorias do todo e do alguns,
manejando outros elementos que não apenas os da lógica aristotélica foraclusiva. Lacan pensa
o atributo fálico como um operador no discurso que, assim, possibilita ao homem o amparo
fálico no universal todohomem, ao passo que a mulher não existe com uma referência que lhe
seja passível de criar o universal, o que não impede de construir no particular uma mulher.

63
Em ambos, o falo serve ao semblante no discurso, porém, a possibilidade de criar ou não
conjunto pelo atributo fálico oferece-lhes diferentes posições:

O homem é uma função fálica na qualidade de todo homem. Mas, como vocês sabem, há
enormes dúvidas incidindo sobre o fato de que o todo homem existe. É isso que está em
jogo – ele só pode sê-lo na qualidade de todohomem [touthhomme], isto é, de um
significante, nada mais. Quanto à mulher, em contrapartida, o que está em jogo é
exatamente o contrário, como eu lhes disse. É isso que se expressa no enunciado
discordancial de cima, aquele que só escrevi sem escrevê-lo, se assim posso dizer – já que
ressaltei que se trata de um discordancial que só se sustenta por ser enunciado. Ele diz que
A mulher só pode ocupar seu lugar na relação sexual, só pode sê-lo, na qualidade de uma
mulher. Como acentuei vivamente, não existe toda mulher. (p. 132)

Colocando o impasse sexual dentro da própria lógica que orienta o discurso, Lacan
(1971/2009) deixa ver que os significantes homem e mulher ocupam funções que não dizem
respeito a um testemunho corporal que os faria complementares, mas às suas posições quanto
ao significante fálico. Por isso o semblante fálico pode servir à mascarada, como dissemos
anteriormente, assim como pode ser operado pela histérica ao bancar o todohomem, e pelo
homem ao se guiar por este universal; em outros termos, tratamos de uma frequentação da
potência fálica através das insígnias imaginárias presentes no discurso.
Não precisamos ir muito longe para notarmos como isto pulula na cultura, através de
discursos em que o fálico se empresta a dissimular uma plena divisão na partilha sexual - do
“coisa de menino versus coisa de menina” até às múltiplas nomeações em identidades sexuais
“hétero, homo, trans, travesti, crossdresser”, com as diferentes disposições presentes em cada
um destes significantes -, e logo em seguida deixa antever a hiância que buscava tamponar.
No entanto, eis o que destaca o ensino de Lacan, se o fálico funciona por esta lógica cujo
universal o orienta, proporcionando uma mínima partilha simbólica e imaginária entre os
sujeitos, há uma lógica que se organiza pela negação da homogeneidade do quantificador
universal, o que não significa a exclusão deste quantificador.
Neste sentido é que o ensino de Lacan nos encaminha para o feminino como esta outra
lógica, do não-todo, dentro do discurso que, assim como usa o significante fálico acentuando
seu estatuto de semblante, a ele também se posiciona de modo a não se incluir
completamente. É interessante notar que na obra em que Lacan inaugura a lógica do não-todo,
Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante (1971/2009), o autor também se
dedica ao discurso e à função da escrita e da letra, e conclui o seminário pensando o supereu
enquanto agente de interdição e também coerção ao gozo; ou seja, a partir da complexidade
que estes temas carregam, o pensamento lacaniano dirige-se ao campo do gozo como aquilo
que escapa às amarras simbólicas e imaginárias.
64
O feminino como não-todo, neste sentido, dá notícias de um gozo cujo discurso não
bordeja completamente, mas que através do discurso encontra vias simbólicas; é o que Lacan
desenvolve no Seminário 20: Mais Ainda (1972-1973/2008). Partindo da concepção do
feminino como Outro face ao falo, o trajeto lacaniano sobre o feminino radicaliza a condição
significante dos termos “feminino” e “masculino”, ao apontar que, uma vez operando no
discurso, eles só podem ser pensados à luz do ser falante:

O Outro deve, por um lado, ser novamente martelado, espedaçado, para que tome seu pleno
sentido, sua ressonância completa. Por outro lado, convém colocá-lo como termo que se
baseia no fato de que sou eu que falo, que só posso falar de onde estou, identificado a um
puro significante. O homem, uma mulher, eu disse da última vez, não são nada mais que
significantes. É daí, do dizer enquanto encarnação distinta do sexo, que eles recebem sua
função. (p. 45)

Entre dizer e sexo há disjunções que, se por um lado mostram que não há uma relação
absoluta entre corpo sexuado e fala, por outro apontam a incidência do significante sobre os
corpos, ou seja, não é possível homogeneizá-los, tampouco separá-los. A cada sujeito, porque
falante, estão colocadas exigências de operar pela função fálica e a ela apontar a carência; é
neste sentido que o trajeto lacaniano irá pensar feminino e masculino relacionados a modos de
gozo. Esta perspectiva em muito nos interessa, na medida em que sublinha as possíveis
formas de trabalhar dentro da linguagem e, assim, dá notícias daquilo que também se inscreve
no destino sublimatório.
Considerar os modos de gozo possíveis aos sujeitos falantes faz com que o trajeto
lacaniano acerca do feminino caminhe progressivamente para uma leitura que não aprisiona o
sujeito ao significante fálico, ainda que a ele deva sua instauração. Se com Freud já notamos
suspeitas a respeito da primazia do falo, com Lacan esta suspeita ganha proporções que não
dizem respeito unicamente à inscrição no corpo sexuado. E aqui encontramos entradas para
pensar personagens teatrais que, dentro de cada dinâmica dramatúrgica, nos oferecem
maneiras de operar com a linguagem e a função fálica que aí se inscreve. Neste sentido é que,
conforme iremos trabalhar nos capítulos seguintes, os destinos ali construídos, em alguns
momentos revelam-se regulados pelo fálico, ao passo que em outros momentos usam a
partilha simbólica oferecida pelo falo, de modo a apontar o que não está todo contido nele.
Situando o falo como significante, a investigação lacaniana direciona-se a questão de
como cada sujeito, uma vez falante, posiciona-se em relação a tal significante. Deste modo,
mesmo que a castração regule os destinos da sexualidade, ela já não tem vínculos tão
próximos com o testemunho corporal como em Freud – castração consumada nas meninas e
temida nos meninos – mas ao sexo em seu enlace com a dialética do desejo, do significante
65
que a todos falta e por isso os faz desejar. Neste sentido, Lacan (1972-1973/2008) situa o lado
mulher na sexuação:

Em frente, vocês têm a inscrição da parte mulher dos seres falantes. A todo ser
falante, como se formula expressamente na teoria freudiana, é permitido, qualquer
que ele seja, quer ele seja ou não provido dos atributos da masculinidade - atributos
que restam a determinar – inscrever-se nesta parte. Se ele se inscreve nela, não
permitirá nenhuma universalidade, será não-todo, no que tem a opção de se colocar
na Φ x ou bem de não estar nela. (p. 86)

Na medida em que o feminino aparece como não-todo, isto não significa um escape à
operação significante do falo, mas uma inscrição que a ela não se limita; em outros termos, é
por se inscrever não-todo na função fálica que o feminino aponta que esta não é capaz de
representar a todos de uma única forma, tal qual o lado homem encontra no significante
fálico. A universalidade do falo, enquanto representante da falta, não garante a universalidade
das posições que cada sujeito, um a um, ocupa frente à falta; eis o que o feminino mostra.
Com Lacan (1972-1973/2008), o feminino dá notícias também dos modos como os
sujeitos se inserem na linguagem, já que, pela ausência de um significante que represente a
existência da mulher, como faz o falo em relação ao homem, ela não encontra no campo da
palavra senão a precária significação oferecida pelo falo, o que justifica a famosa construção
lacaniana “A mulher não existe”. Esta construção lacaniana mostra-se profícua para nossa
pesquisa, na medida em que, por sua inexistência a partir de um significante, a mulher tem
que ser inventada, tanto pelo uso do significante fálico quanto pela denúncia dos limites deste
significante, abrindo o campo da criação para diferentes modos de inscrição do sexual. Com
isto, o ensino de Lacan nos leva a pensar o feminino operando na linguagem no que diz
respeito ao gozo, a que nos dedicaremos a seguir.

2.3 - Feminino e gozo


Ressaltando que feminino e masculino dizem respeito ao desejo e também ao campo do
gozo, o ensino de Lacan mostra que a linguagem comporta formas de operar nestes dois
registros. Isto toca muito de perto nosso problema de pesquisa já que, ao levantar a
possibilidade de articular o feminino à pulsão através da sublimação e da letra, recorrendo ao
campo artístico para tal, estamos trabalhando diretamente na linguagem, o que de fundo nos
interroga se o feminino assim pensado diria respeito a formas de gozo ou à inscrição dos
sujeitos na dialética do desejo interpelada pelo falo.

66
Uma vez que estas duas categorias, desejo e gozo, dispõem-se ao sujeito pela linguagem
por uma lógica não exclusiva, pensaremos como o trabalho da pulsão nelas atua de modo
feminino e, conforme esperamos alcançar, como desejo e gozo podem se apresentar a partir
de personagens ficcionais. Desde já destacamos que, ao pensar o feminino nesta dinâmica,
recorreremos a diferentes momentos das narrativas, já que não se trata de dar o título de
feminino para uma determinada obra ou personagem, esgotando sua riqueza e, assim,
contradizendo a própria noção de feminino.
Por enquanto, cabe-nos pensar as formas estabelecidas pelo feminino, via linguagem,
em relação ao operador fálico no gozo e no desejo. Estamos supondo, portanto, que há uma
particular posição do feminino face ao falo que lhe imprime uma forma de desejar e um gozo
feminino. As fórmulas da sexuação, elaboradas por Lacan no Seminário 20: Mais, Ainda
(1972-1973/2008), ajudam-nos a compreender como o feminino se dispõe nestes dois lugares
e, na medida em que atestam a não complementaridade entre os sexos, mostram como o
problema do feminino ganha espaço e deixa consequências para todo o funcionamento
psíquico.

Homem Mulher

Fórmulas da sexuação, conforme Lacan (1972-1973/2008)

Com relação ao desejo, o próprio trajeto de Freud sobre feminilidade já mostra a íntima
implicação entre desejo e falta instaurada pelo falo, o que, conforme já demonstramos, tomará
maiores proporções com a função significante do falo, postulada pelo ensino de Lacan. Por
isso, no quadro vemos $, sujeito barrado, do lado homem direcionar-se ao objeto a,
posicionado do lado mulher14, deixando ver a fantasia que regula o desejo sempre faltoso. De

14
Apresentando o objeto a do lado mulher da sexuação, notamos a aproximação do feminino ao objeto a,
aproximação esta que, conforme tratamos anteriormente, tem diferentes abordagens no ensino de Lacan e, no
que se refere à posição ocupada no quadro da sexuação, $ do lado homem direciona-se a do lado mulher, situa o
67
tal modo que, quando se trata de desejo via fantasia, estamos todos do lado masculino,
enquanto sujeito barrado em busca de um objeto, e da mediação simbólica feita pelo falo, Φ
que igualmente se encontra do lado homem. Assim, por se colocar a todo sujeito como
faltoso, o falo faz com que todos tenham sua cadeia simbólica regulada pela função fálica, por
isso do lado mulher também parte uma seta em direção ao Φ.
O feminino não deixa de participar da função fálica, porém - eis o que o campo do gozo
irá indicar a partir das fórmulas da sexuação -, do lado mulher as setas partem de Ⱥ, o Outro,
que, no entanto, não está todo contido na função fálica, ainda que a ele recorra, pois também
se direciona ao S(Ⱥ), a falta de significante no Outro. Destarte, o lado mulher atesta que o
gozo fálico não responde de forma maciça ao Outro, que também se direciona à ausência de
significante; por sua relação com S(Ⱥ), o lado mulher deixa ver um gozo que está fora da
linguagem, que não se dá apenas através de significações fálicas, conforme mostra a parte
superior do lado mulher: existe um gozo que não está todo na exceção instaurada por Φx.
Deste modo, a sexuação feminina põe às claras o próprio campo do gozo, isto que,
conforme Lacan (1972-1973/2003), não serve para nada, mas ainda assim insiste, de modo
que o gozo como constructo eminentemente lacaniano15, não só oferece questões importantes
para o feminino, como através do feminino alcançamos maiores compreensões a respeito do
gozo. A sexuação mostra que o campo do gozo, assim como o desejo, é tocado pela função
fálica, porém, as diferentes modalidades de gozo atestam que há posições distintas face à
função fálica. Isto em muito nos interessa para pensar os modos com que a criação pode aí se
dispor, dando notícias de como cada sujeito goza falicamente e também de modo suplementar
ao falo.
Destarte, existe um gozo fálico, regido pelo órgão no qual se inscreve, dizendo respeito
a um significante localizado na linguagem; e um gozo do Outro que assinala sempre a
insuficiência do sentido dado pelo significante, referindo-se a um tempo originário, o qual se
perdeu para entrada no campo da palavra. No entanto, ao mesmo tempo em que este gozo
aponta para um tempo mítico, ele só pode ser concebido retroativamente via linguagem e,
neste movimento, aponta para um além do significante fálico. Na medida em que o lado
mulher da sexuação está duplamente implicado, ao Φ e ao S(Ⱥ), o gozo feminino responde a

feminino como objeto na fantasia. Porém, como nos diz Lacan no Seminário 10, uma vez que a castração está
colocada tanto para objeto a como causa de desejo quanto para objeto de angústia, o feminino como objeto a
também guarda estes dois aspectos pela relação com a castração que deixa antever.
15
Ainda que a obra freudiana já abordasse certos problemas referidos ao campo do gozo, estes não eram
postulados nos termos explorados por Lacan.

68
ambos e, desta feita, tem um gozo não-todo fálico, ou seja, inscreve-se no registro fálico e o
ultrapassa.
Estas noções de um todo fálico e um não-todo fálico como modalidades de gozo,
evidenciam uma lógica que não é regulada apenas pelo universal, é neste sentido que, antes de
lançar as fórmulas da sexuação, conforme quadro mais acima, relacionadas ao lado homem e
ao lado mulher, em O Aturdito (1972/2003) Lacan irá dedicar-se à lógica a partir dos
impasses da universalidade. Ao conceber a lógica do não-todo, não se trata de oposição
excludente ao universal, mas de uma negação que nele se insere, de tal forma que o todo
universal, que tem na função fálica o modo de operar, surge como uma saída, não a única, de
dar contornos ao impossível, ao passo que o não-todo surge como outra maneira, nas palavras
de Lacan (1972/2003, p. 480):
Recorrer ao nãotodo, ao ahomenosum [hommoinsun], isto é, aos impasses da lógica, é, ao
mostrar a saída das ficções da Mundanidade, produzir uma outra fixão [fixion] do real, ou
seja, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. É também traçar o caminho pelo
qual se encontra, em cada discurso, o real com que ele se enrosca, e despachar os mitos que
ele ordinariamente se supre.

O não-todo, assim, surge como uma forma de operação na linguagem que está muito
próxima do real e, na medida em que esta lógica é vinculada ao feminino, notamos um campo
que se abre para pensar o feminino como algo que permite este deslocamento das ficções para
uma fixão do real. Com esta proximidade ao real, compreendemos o caminho realizado por
Lacan, entre O Aturdito e Mais,ainda, em direção ao campo do gozo, em que, a partir da
lógica do não-todo, o feminino surge como modalidade de gozo que não está toda contida na
lógica fálica, revelando o impossível presente na estrutura mesma da linguagem.
A trajetória do feminino em psicanálise, até aqui empreendida, faz-nos alcançar
registros de gozo que dizem respeito a um fora da linguagem e, de forma mais interessante
para nosso trabalho, um modo de operar torções dentro dela. Trata-se do vazio d’A Mulher
como lugar de criação, o que pode dar ensejo à angústia por não haver um significante que
exerça a função que o falo tem para o masculino, bem como sinalizar a riqueza que daí pode
surgir: se não há, inventa-se. Esta invenção não é sem o falo, mas a ele mostra os limites e
possíveis torções. Desta maneira, a partir da lógica do não-todo, o feminino lança
questionamentos ao próprio sistema discursivo e, uma vez que não se trata de uma posição
que se habita de uma vez por todas, a freqüentação entre as saídas fálicas e não-toda fálicas
apontam um uso do discurso que não se satura no encadeamento por ele proporcionado.
Neste sentido, André (1986/1998) nos diz que algumas considerações de Lacan sobre o
feminino o fizeram direcionar-se ao campo do gozo, as quais o autor elenca da seguinte
69
maneira: 1 – a feminilidade mais como um processo de divisão do que de uma castração, 2- a
unidade da libido estrutura-se de forma diferente na sexualidade feminina, 3 – o enigma
representado pela mulher diz de sua relação com o Outro que não existe, mostrando a
inexistência da relação sexual, 4 – função do falo como significante, ao qual se sujeita de
diferentes maneiras.
Estes pontos, que em alguma medida tocamos no decorrer de nossa investigação, fazem
com que no ensino de Lacan o feminino alcance lugares que extrapolam os destinos da
sexualidade em relação à anatomia, sinalizando a dimensão real que estrutura o ser falante.
Assim, o feminino estabelece vínculos com a falta, enquanto inscrição da castração e suas
consequências, e também com o vazio como marca do registro real, daquilo que não pode ser
dissolvido nas insígnias simbólicas e imaginárias de cada sujeito.
Compreendemos assim que o direcionamento lacaniano mantém o caráter enigmático do
feminino, retirando-o do registro da mácula e enigma intratável, para pensá-lo como operador
do campo psicanalítico, o que implica que a trajetória analítica interrogue insistentemente
seus próprios saberes através de questões que, com o feminino, não encontram respostas
totalizantes. É o que nos indica Poli (2015), ao apontar as diferentes interrogações que o
feminino põe ao campo psicanalítico face às questões contemporâneas, presentes em debates
sociais e demandas clínicas, de tal modo que o feminino se mantém como heteros dentro da
própria psicanálise e, nas palavras da autora, “desde esse lugar, é que passa a ser um operador
essencial, tornando possível ultrapassar até mesmo os desígnios previstos pelo Complexo de
Édipo” (p.27). Trata-se, portanto, de pensar a lógica do não-todo dentro da própria prática e
teoria psicanalítica que, sem dispensar o Complexo de Édipo, tem com ele uma relação que o
excede nas possibilidades de significação, apontando aí as disjunções entre significante e
campo pulsional.
Partindo disto, nossa proposta de trabalho seguirá vinculando este lugar do feminino à
sublimação e à escrita, de tal modo a pensá-lo através das criações artísticas a que nos
dedicaremos. Desta forma, buscaremos pensar como o feminino, mais do que as imagens
femininas às quais recorreremos, imprime na própria produção artística seu funcionamento
não-todo. Antes de partirmos para as possíveis articulações através das personagens, dedicar-
nos-emos ao teatro trágico, para caracterizar a seara artística na qual situamos tais
personagens.

70
CAPÍTULO 3- TRÁGICO: DO ANTIGO AO CONTEMPORÂNEO
Direcionarmo-nos às figuras femininas que surgem como representantes do trágico,
levanta-nos interrogações acerca da própria noção de trágico ao qual recorremos: o que
significa adjetivar uma obra artística de “trágica”? Segundo Lesky (1996), além de uma
nomeação que caracteriza determinada forma de atuação teatral, o termo ganhou
independência e, descolando-se da forma de encenação teatral predominante na Era Clássica,
no decorrer da história ocidental, tornou-se um adjetivo que se refere a destinos fatídicos e
irremediavelmente definidos, referindo-se ainda a uma cosmovisão marcada pela separação
abismal entre deus e o mundo.
A passagem do trágico de uma forma de arte para uma visão de mundo não tem um
momento histórico bem definido, e o estudo desta transição requereria uma pesquisa à parte
sobre o assunto. O que se pode afirmar, segundo Lesky (1996), é que os gregos tinham no
trágico uma particular forma de arte, suas criações propunham-se à materialização do
acontecer trágico no drama apresentado na arena. Tal afirmação demonstra que os gregos não
tinham na tragédia uma visão de mundo, o que em muito justifica a existência de uma obra de
arte, que apresentava enredos com fins catastróficos, ser contemporânea a uma sociedade em
que se pregava a moderação, esta sim, uma cosmovisão.
Logo, os gregos tinham na tragédia uma forma de contemplar aquilo que fugia de seus
preceitos a respeito do mundo e de si mesmos. Para compreendermos esta coabitação do
trágico na metron grega, situaremos historicamente a criação trágica; tendo o devido cuidado
de não considerá-la unicamente como reflexo social, mas compreendendo que os aspectos
culturais e históricos, que permeavam o século VI a.C, alcançavam as cenas dramatizadas
sobre a orquestra. De modo que, esta localização no cenário histórico possa nos apontar os
elementos que escapam a possíveis determinações, fazendo com que o trágico se mantenha
sob outras condições culturais.

3.1 – Trágico Grego


Pensar o trágico a partir de seu princípio grego é, conforme enunciamos anteriormente,
referir-nos ao espetáculo teatral da tragédia grega, a qual, advinda dos rituais dedicados ao
deus Dionísio, nasce no momento em que as leis da pólis grega estavam sendo elaboradas.
Por isso, diz Vernant (1981/2008), os temas sobre legalidade de certos atos e sua importância
para a comunidade fazem parte dos enredos trágicos. Ao mesmo tempo em que se tratava de
cidadania e direito grego, a ideia de determinação divina ainda estava muito presente, o que se

71
justifica pela própria incursão nos festejos dionisíacos16, situando-se, por conseguinte, em
dois planos/tempos distintos, mas indissociáveis: transcorre em um tempo humano, limitado
e, simultaneamente, em um tempo divino que o abrange e sobrepõe.
Ainda que o discurso mitológico estivesse muito presente nos enredos trágicos, as
imagens dos deuses míticos raramente compunham tais enredos; o que se apresentava nas
arenas era o desenrolar das ações humanas. Logo, é um agir que considera as faculdades
humanas, mas que também se sabe intimamente ligado a questões divinas que escapam ao
humano. Tratava-se do divino materializando-se nas ações dos homens, o que destacamos
como um importante elemento para pensar a manutenção do trágico sob outras formas de
encenação, já que, ao direcionar-se ao homem, também pode ser pensado em outras
disposições sócio culturais.
Voltando-se sempre ao humano, no qual as vontades divinas se exerciam, a tragédia
utilizava temas comuns à cultura grega , sua contemporânea, dialogando assim com a arena
que lhe assistia. No entanto, mesmo com um apelo ao debate acerca da então incipiente
democracia, não se tratava de um debate político, tal qual acontecia nas assembleias. Afinal,
segundo Vernant (1981/2008), seu objeto não era a lei, mas o homem que vivia este debate.
Tampouco é uma narração mítica encenada, pois não retratava fielmente a linguagem
mitológica: interrogava-a.
Tal qual se fazia ao mito, era como questionamento que o corpo social grego se
apresentava na cena trágica, pois seu caráter histórico não se limitava a uma historiografia que
apenas reproduzia a realidade. Sobre a orquestra grega, mostrava-se o extremo que o social e
o mitológico podem alcançar na figura do homem, apontando assim para o alcance tomado
também na vida cotidiana.
Esta característica - que causa amplos debates entre os helenistas, acerca das diferentes
disposições entre divino e humano nas obras de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes (VERNANT,

16
A natureza do deus ao qual a tragédia surge como homenagem em muito justifica a caracterização da obra
trágica. De acordo com Brandão (2001), o Dionísio referido na tragédia, o deus-bode, é o filho bastardo de Zeus
com a mortal Sêmele, que, transformado em bode para enganar a traída deusa Hera, se escondia no monte Nisa
quando, na presença de Ninfas e Sátiros, descobriu o vinho ao provar o néctar advindo das uvas e seu efeito
vertiginoso. Sobrevivente de ataques anteriores, este Dionisio é o segundo, que foi salvo quando o coração ainda
palpitava e sua mãe o engoliu. Novamente a enciumada Hera quis destruir o deus e, ao se disfarçar de ama,
convenceu a princesa Sêmele a pedir que Zeus se apresentasse em toda a sua epifania, o que, porém, não poderia
ser suportado por mortais, provocando um incêndio no castelo e sua consequente morte. Na tentativa de salvar o
filho que ela carregava no ventre, Zeus recolheu o fruto ainda em formação e o colocou em sua coxa, terminando
ali a gestação (o que justifica o nome Dionisio: nascido da coxa). Com o nascimento da criança, Zeus então o
enviou para ser criado por Ninfas e Sátiros no monte Nisa, onde nas primaveras novamente o efeito do vinho
provocava êxtase e devotava a Dionísio contemplação e sacrifício.

72
1981/2008; LOURAUX, 1985/1988; VIEIRA, 2009) -, é-nos muito cara, na medida em que
pensamos as personagens Antígona, Sygne de Coûfontaine e Nawal Maruan enquanto trágicas
e, ainda que a personagem de Sófocles seja aquela em que este problema do humano e do
divino surja com o caráter próprio à antiguidade, a noção de personagens divididas entre as
faculdades humanas e algo que lhes escapa nos aparece como um traço comum ao trágico em
suas figuras. Esta divisão, que se desenhará de diferentes formas no decorrer dos séculos no
teatro, parece-nos um ponto de intercessão importante com a psicanálise e, no ponto da escrita
em que nos encontramos, será pensada dentro do universo do trágico grego.
Na medida em que os elementos do humano e do divino estavam presentes, mas que,
conforme dito, o teatro deles se apropria como forma de contemplação àquilo que se afastava
da cosmovisão grega, os personagens ganham importante lugar nesta dinâmica, surgindo
como porta-vozes da contradição ao mítico e ao social. Esta perspectiva interessa-nos muito
de perto, pois estará de fundo na leitura da personagem Antígona em seu particular enredo e,
por não se tratar de uma investigação da psicologia da personagem, encontra na obra de
Sófocles um solo frutífero para pensar questões que ultrapassam a Grécia antiga. Antes de nos
determos na obra a partir da psicanálise, guardemos a perspectiva da trágica filha de Édipo
enquanto porta-voz dos contrassensos e, ao mesmo tempo, objeto de contemplação dos
cidadãos.
Neste sentido, a obra Antígona surge como importante representante do trágico grego,
na medida em que os dois principais personagens da narrativa, Antígona e Creonte, marcam
de diferentes formas o conflito constitutivo do fundamento trágico. Ao se contraporem
frontalmente, a filha de Édipo representaria a preservação do mito através da tradição, porém,
seu heroísmo se dá, diz Vieira (2009), não somente pela tentativa de manutenção do rito, mas
por fazê-lo através de um caráter inexorável que se afasta sobremaneira de um modelo de
comportamento humano; assim como, destaca o autor, Creonte não é a representação do
melhor estadista, pois através do autoritarismo mostra a mediocridade que o caráter humano
pode alcançar na vida pública. Os personagens, mesmo em suas atitudes diametralmente
opostas, têm a condição humana como ponto de desestabilização dos ideais que
representariam, apontando assim para as contradições próprias ao sujeito que assistia à cena
trágica.
Observamos assim, que a tragédia, ao apresentar mentalidades contemporâneas à sua
época, direcionava-se para suas falhas, jogando com o esquema lógico para denunciar suas
incoerências. Isto se dava tanto pelo caráter histórico, já citado, quanto pela consciência do

73
fictício que a tragédia traz em seu bojo, o qual caracteriza sua origem e seu fazer em si
própria, diz Vidal-Naquet (1981/2008, p. 270):

Não há outra origem na tragédia senão a própria tragédia. Que o protagonista saia do coro
que canta um “ditirambo” em honra a Dionisio, que um segundo (com Ésquilo), depois um
terceiro ator (com Sófocles) venham se juntar a ele no confronto entre o herói e o coro, não
se pode explicar em termos de “origens”. E nada mais se explicará ao dizermos que a
palavra “tragédia” significa, talvez, canto declamado por ocasião do sacrifício do bode
(trágos). Não são bodes que morrem na tragédia, mas homens; e se há sacrifício, é
sacrifício desviado de um sentido.

Assim, a tragédia grega situa-se na encruzilhada do histórico e do mitológico, do


político e do cortejo, de modo a estar nestes lugares sem, contudo, pertencer a eles a ponto de
caracterizar-se como tal, pois sua origem é em si mesma. A tragédia é um fenômeno singular
que engloba diversos temas e lhes dá lugar dentro de seu contexto cênico, no qual o desfecho
satisfaz tanto questões sociais, quanto realiza o destino traçado pelos deuses. Tais realizações
são operadas através de uma linguagem que, ainda que recorra a outros discursos, é
especificamente trágica.
A concepção de uma linguagem especificamente trágica, cujo teatro grego testemunha
enquanto forma particular de encenação, deve ser mantida no horizonte de nossa pesquisa,
pois mostra que os meios em que se concebe uma obra como trágica estão diretamente
vinculados aos seus modos de inserção na linguagem. Trata-se de elementos que, dentro de
um universo discursivo, carregam aquilo que se nomeou trágico, o que pode ser
compreendido quando observamos a recorrência da tradição filosófica ao trágico, tradição que
não se interessa apenas pela narrativa e encenação, mas retira consequências para o
pensamento. Esta recorrência à seara trágica, que ultrapassa a encenação teatral, também
ocorre na leitura freudiana do personagem Édipo para postular o complexo estruturante das
subjetividades.
Sem nos apressarmos em recolher quais seriam os elementos que dão ao trágico uma
forma particular de linguagem, fiquemos com aquilo que até agora a tragédia grega nos
aponta: a ocupação simultânea, através da linguagem, de lugares distintos. Tal ocupação, não
confere total aderência a nenhum deles, mas uma singularidade frente a cada um.
A partir destes duplos lugares em que a tragédia insistentemente se mantém, podemos
afirmar, com Vernant (1981/2008), que a polaridade é o que caracteriza o universo trágico,
não apenas por situar-se na fronteira entre os deuses e os mortais, mas também a própria
estrutura denuncia uma polaridade. De um lado o coro, composto coletivamente por cidadãos
cuja representação era anônima, tinha por objetivo manifestar os temores e esperanças da
74
comunidade espectadora, apresentando-se então como porta-voz da inquietação. No outro
polo, o herói trágico, encenado por um ator profissional, que representava um personagem de
outra época, estranho à condição de cidadão, representando assim um passado ainda vivo.
Notamos assim que coro e herói se apresentam como dois pontos de inquietação.
Os conflitos apontados pelos paradoxos também se fazem presentes através do
vocabulário. Por estar em elaboração o estatuto jurídico, a tragédia utilizava palavras que
dentro deste campo assumiam diferentes significados - muitas vezes opostos - de acordo com
o contexto, havendo ainda mais confusão quando tais palavras possuíam outra significação no
campo religioso ou social. Ou seja, as narrativas trágicas continham palavras que dentro de
diferentes contextos assumiam muitas significações, fazendo com que o desenrolar da
narrativa apontasse para a confusão inerente à comunicação humana.
A recorrência a diferentes vocabulários para a construção do enredo trágico
proporcionava-lhe um enriquecimento a partir de falhas, pois era pelo tropeço na
comunicação entre os personagens que se arquitetava a grandiosidade trágica dos destinos ali
encenados. Tais falhas, quando compreendidas e assistidas pela plateia, tornam-na, segundo
Vernant (1981/2008), consciência trágica. Contudo, a importância destes tropeços na
comunicação não está apenas em esclarecer seu papel na trajetória cênica, mas principalmente
em levá-los além da apresentação teatral, apontando-os no/ao homem, mantendo com o
público uma relação que extrapolava a contemplação.
No enredo de Antígona, este particular uso da língua para promover duplos sentidos
ocorre em vários momentos da obra; destacamos o termo utilizado pela heroína para se referir
ao enterro que dará ao irmão; conforme esclarece Vieira (2009), quando a protagonista diz
“querida com ele me deitarei, com o querido” (verso 73), o significante traduzido por deitar
(Keimai) guarda os significados de erotismo e funeral. A sobreposição destes dois sentidos é
freqüente nesta obra sofocliana, destaca Vieira (2009), o que muito nos interessa para pensar
os modos como o trágico nela se constrói e como, a partir do erotismo e da morte, ressoa aos
espectadores.
Neste momento de nosso trabalho, não iremos nos ater ao trágico em Antígona, ainda
que o mantenhamos em nosso horizonte de pesquisa; detenhamo-nos, por enquanto, naquilo
que o uso da linguagem nos diz sobre o trágico. O desenho da construção trágica parte do uso
da linguagem feita pelo tragediógrafo em sua operação criativa - inaugurando uma forma de
arte, o teatro, cujo texto escrito para encenação já não cabe dentro da literatura porquanto só
faz sentido em ato -, mas só se completa no encontro entre ator/coro e plateia. É no

75
Teatron17que a tragédia alcança sua significação através das falhas, que só podem ser
concebidas como tais pelo olhar daqueles que acompanham o enredo de fora dele.
Neste enredamento que alcança os vários elementos da tragédia grega, notamos que
estamos caminhando sobre os pilares trágicos; trata-se dos componentes que estão além e
aquém da encenação que, conforme pontuamos anteriormente, remete o trágico não somente à
encenação teatral nascida no século VI a.C, mas também alcança outras searas, dentro e fora
do teatro. Partindo disso, podemos dizer, com Lesky (1996), que o elemento fundamental que
caracteriza o trágico é o conflito inconciliável, ágon, elemento que, segundo o autor, adquire
no teatro tamanhas proporções na medida em que seu caráter de embate constante atravessa
enredos e disposições cênicas, a ponto de se apresentar desde as origens do teatro e se manter
na cena teatral ao longo da história.
Esta caracterização do trágico mostra que ele não tem um princípio e um fim
conclusivos, mantendo-se como embate permanente que, se tem no homem grego seu ponto
de partida, conforme observamos anteriormente, na encruzilhada entre o mito e o cidadão, não
se limita a ele, alcançando também o sujeito moderno como lócus de seu conflito
inconciliável. Neste sentido, quando nos direcionamos ao trágico a partir da psicanálise, é
enquanto sujeito, considerando aí a dimensão do desejo, que buscamos pensar o lugar onde o
trágico se dispõe. Localizando brevemente nosso tema de pesquisa dentro do trágico,
interessa-nos o sujeito desejante que faz o trágico se manter e produzir arte teatral, o que torna
o teatro trágico um campo para pensar o desejo, como apontado por Lacan (1960-1961/2010,
p. 164):

Se há dois desejos no homem, que o capturam, por um lado, na relação com a eternidade, e
por outro lado, na relação de geração, com a corrupção e destruição por ela comportada, é o
desejo de morte, enquanto inabordável, que o belo é destinado a dissimular. A coisa é clara
no próprio começo do discurso de Diotima. Encontramos aqui o fenômeno ambíguo que
fizemos surgir a propósito da tragédia. A tragédia é, ao mesmo tempo, a evocação, a
abordagem do desejo de morte que, como tal, se esconde por trás da evocação da Atè¸ da
calamidade fundamental em torno da qual gira o destino do herói trágico, e é também para
nós, enquanto convocados a dela participar, esse momento máximo onde aparece a
miragem da beleza trágica.

Partindo do desejo com essa relação entre morte e criação, na qual a destruição se
dissimula em beleza, a experiência trágica nos aponta o tratamento belo dado à morte. No
contexto desta escrita, Lacan (1960-1961) está tratando do discurso de Diotima como aquela

17
Palavra grega que, segundo Azevedo (2001), significa “lugar de onde se vê”, indicando assim que é o lócus
dedicado ao espectador que nomeia forma de arte teatral.

76
que, no Banquete, vem falar da natureza do amor; de modo que a recorrência à experiência
trágica se insere naquilo que o ensino de Lacan avança sobre as questões entre o desejo e o
amor18. Considerando nossa trajetória de pesquisa, podemos dizer que esta abordagem
lacaniana mostra que a tragédia ocupa lugar de excelência na psicanálise por apontar os
paradoxos próprios ao desejo e à beleza, que lançam o trágico para além da cena do teatro
grego.
Neste sentido é que no mesmo seminário em que Lacan lança as palavras supracitadas,
o autor dedica-se também à trilogia de Paul Caludel, chamando-a de tragédia contemporânea,
enquanto tragédia do desejo. Considerando ainda que nos anos anteriores ao Seminário 8 o
autor se dedicara à Antígona e a Hamlet, notamos que o ensino de Lacan gira em torno do
trágico por ver aí algo que tem muito a dizer à psicanálise, pois articula desejo e morte em
forma de beleza. Nesta articulação, duas das personagens que trabalhamos na presente tese
surgem com especial destaque, o que, no ponto em que estamos de caracterizar o trágico,
aponta para a continuidade do ágon trágico na figura ficcional de personagens de diferentes
momentos da cena teatral.
Observamos que a noção de conflito inconciliável, representada pelo termo ágon, tem
lugar de excelência na concepção psicanalítica de sujeito, ainda que não seja nos termos
tomados pelo teatro trágico. Neste sentido, partindo do conflito inconciliável como ponto de
possível enlace com a psicanálise, encontramos no embate agonístico um importante
concepção de trágico, o qual buscamos desenhar neste capítulo. Uma importante leitura a
partir do ágon é realizada por Nietzsche (1873/1989), na qual o conflito está ligado à
construção e destruição através dos impulsos apolíneo e dionisíaco que, sem um caráter
moral, é pensado como um jogo sem trégua nem termo, pois qualquer um destes significaria o
fim do circuito criativo que aí se encadeia.
A concepção nietzschiana de trágico, que gera controvérsias e um amplo debate entre
helenistas e filósofos, guarda proximidades com a psicanálise, no sentido de pensar o conflito
como motor de criação, ao que Gondar (2006) destaca o uso do mesmo termo Trieb por Freud
e por Nietzsche para se referir a este caráter de inesgotável combate. Porém, os autores se
distanciam na medida em que, em psicanálise, o conflito próprio ao Trieb é pensado na
dinâmica de um mesmo solo pulsional encontrando diferentes destinos, que passam tanto pelo
recalque e a formação sintomática, quanto pela sublimação e suas produções culturais, ao
passo que na leitura nietzschiana isto aparece nos primeiros trabalhos do autor, como

18
Relação esta que ajudará Lacan (1960-1961/2010) a pensar a transferência e o próprio desejo da analsita.
77
Introdução a Tragédia de Sófocles (1870/2006), A Filosofia na época trágica dos gregos
(1873/1989) e O Nascimento da Tragédia (1872/2007) enquanto dura crítica à tradição do
pensamento socrático.
Notamos assim desdobramentos distintos da noção de Trieb, já que a prática clínica
oferece uma dimensão diferente do trabalho filosófico, mesmo em se tratando de um
rompimento com a maiêutica como o é o pensamento de Nietzsche. Com Freud, ao ter no
pulsional uma constante exigência de trabalho situada entre o somático e o psíquico, aquilo
que tomamos como núcleo do trágico, o combate agosnístico, pode ter diferentes destinos,
entre os quais a sublimação.
Neste sentido é que o ensino de Lacan irá tomar as heranças freudianas para, a partir de
uma heroína trágica, pensar a sublimação em seu estreito enlace com o belo, este tomado a
partir de uma leitura que se distancia da tradição estética. Para melhor compreendermos a
leitura do belo feita por Lacan, bem como a importância das personagens trágicas Antígona e
Sygne de Coûfontaie em tal leitura, dedicar-nos-emos a entender como o autor faz torções na
tradição estética para pensar o problema da sublimação e, o que nos interessa sobremaneira
neste momento da pesquisa, como estas torções nos ajudam a pensar a manutenção do trágico
naquilo que o autor chama de “trágico contemporâneo”.

3.2 – O trágico entre o belo e o desejo


Conforme os passos até aqui dados acerca da tragédia grega, chegamos ao seguinte
quadro: uma forma de arte que se assenta no conflito e tem a origem em si própria, mas que
só com o outro se completa; em outros termos, uma criação ex nihilo que não se dá senão
transpondo seu nada primordial e ressoando alhures. Esta perspectiva - muito próxima ao
trabalho sobre sublimação a partir do enredo de Antígona (LACAN, 1959-1960) – ajudar-nos-
á a pensar como o trágico é tomado por Lacan em seu vínculo com o belo, o qual é pensado,
conforme iremos nos deter neste subcapítulo, de um modo distinto da tradição estética sobre a
beleza. Para tanto, iremos situar brevemente como a beleza foi tomada no âmbito dos debates
filosóficos, aos quais se opõe a concepção de belo enquanto visada do desejo.
De partida, podemos afirmar, conduzidos por Nunes (1966/1999), que o vínculo entre
beleza e arte não era estabelecido na cultura grega, já que o termo Kalón (Belo) vinculava-se à
natureza e às discussões metafísicas, assumindo assim implicações de caráter intelectual e
moral. Já a Arte encontra acepções nos termos apóiesis, referente à criação poética, e téknen –
o qual tem seu correlato latino em ars -, alusivo a fabricações manuais, de modo que o

78
sentido, em ambos os termos, remete Arte à noção de produção sem relação com o
conhecimento filosófico. Neste breve quadro notamos como a leitura aristotélica da tragédia,
feita na obra Poética (séc. IV a. C/ 1973), aproxima-se desta concepção, pois, na medida em
que a tragédia grega é da ordem da apóiesis, ela não se tornava tema das discussões
filosóficas e teológicas concedidas pela doutrina platônica à beleza, tampouco do vínculo
desta com o Bem.
A partir disso compreendemos a escrita de Aristóteles a respeito da tragédia, quando na
Poética (séc. IV a. C/ 1973) o filósofo caracteriza a arte trágica enquanto mimesis da natureza,
direcionando seu estudo no sentido de fundamentar as particularidades da estrutura cênica e
textual da tragédia, as quais seriam necessárias para o alcance do objetivo catártico. Assim,
advindo de uma herança platônica, em que a realidade era pensada como uma cópia
imperfeita do mundo das ideias e a arte mimesis desta cópia, Aristóteles concebia a tragédia
grega como construção, na qual se podia criar ações com homens melhores que os reais,
nestes provocando a purgação dos sentimentos de horror e piedade. Nesta concepção,
notamos a noção de apóiesis como criação que dá forma àquilo que se encontra em potência
na matéria bruta, porém, sob a visão aristotélica, isso não passa por um alcance de ordem
intelectual/belo.
A convergência de beleza, enquanto dotada de conhecimento, e arte, como criação para
além da natureza, deu-se com Baumgarten, em sua obra Estética ou teoria das artes liberais
em 1750. Segundo Nunes (1966/1999), a partir daí, a arte passa a ser dotada de um
conhecimento sensível, o qual teria o mesmo valor científico que o conhecimento racional,
ainda que fosse de outra ordem, respondendo assim ao anseio moderno de autorizar um saber,
a partir do teor científico que ele demonstra. Com esta aproximação, o autor considerou que o
conhecimento sensível, que tinha na estética seu representante científico e nas artes seus
objetos, alcançava sua perfeição na beleza; dito em outros termos: o conhecimento adquirido
pela percepção ascendia à verdade estética através do belo.
Caminhamos progressivamente para o estatuto científico dado ao belo que, se o tirou de
um hiato com o saber, promoveu a união com este através de determinados pressupostos do
que seria o belo capaz de produzir saber; para tanto, foi preciso um julgamento que elegesse o
que é o “belo”, no qual o campo das artes torna-se por excelência o palco de tal julgamento.
Assistimos, assim, ao reconhecimento da arte como objeto de conhecimento estreitamente
vinculado à sua inserção nos cânones científicos, os quais respondem a uma lógica que, já na
Grécia Antiga, hierarquizava as fontes de saber.

79
Esta inserção ganhou força, diz Nunes (1966/1999), através de Kant, na obra Crítica do
Juízo (1790). Ao se preocupar com os juízos de gosto na arte, o autor desenha, com linhas
mais intensas, os princípios gerais a que a criação artística deve obedecer, para ser
considerada fonte de experiência estética e, consequentemente, de saber. Pela doutrina
kantiana, uma experiência estética caracteriza-se pelo prazer desinteressado que provoca, por
prescindir de responder a um conceito e, assim, ter um fim em si mesma.
Partindo disso, a estética como disciplina científica adquire sua originalidade, não por
estudar o Belo – já que desde sua etimologia, Kalón, já era vinculado ao saber -, mas por
situá-lo em uma perspectiva definida que não estaria sujeita a leis morais, simplesmente ao
deleite. Porém esta definição, que à primeira vista parece atinente ao teor sensível da estética,
elege certos objetos artísticos como detentores de uma experiência estética em detrimento de
outros, dando assim um caráter valorativo às artes quando converge os pontos subjetivos e
objetivos, componentes de sua contemplação desinteressada, em determinados pressupostos.
Neste sentido, diz Nunes (1966/1999), uma obra artística, sob a pena kantiana, tem
estatuto de experiência estética quanto mais se aproxima do produto da natureza, tal como a
natureza impressiona quando parece criada artisticamente. De modo que a imaginação usa do
entendimento e da sensibilidade, através do que Kant chama de um “jogo funcional da livre
imaginação”, para promover um prazer estético de caráter universal, o qual harmonizaria
sensibilidade e entendimento no objeto criado e, quando este objeto não é capaz de promover
tal harmonia, o belo dele se destaca.
Nesta concepção kantiana, que tem tamanha importância para o estudo das artes até os
dias atuais, já notamos elementos diametralmente opostos à leitura feita por Lacan, em que o
belo enquanto apaziguamento, sobre o qual recai a harmonia pretendida pelo deleite kantiano,
carrega algumas torções. Não por acaso, no trabalho em que Lacan (1959-1960/1995) pensa o
belo como a visada do desejo, no qual a morte se dissimula em beleza, o autor se opõe à
leitura kantiana do Bem supremo como ponto-guia da moral, assim como se distancia da
leitura da Crítica do Juízo acerca do belo. O ensino de Lacan vem nos indicar que esta
oposição radical à perspectiva kantiana, do bem e do belo, traz consigo uma noção de ética e
de estética que se direciona a problemas colocados pelo campo do desejo.
Com isto, ao se dedicar à tragédia de Antígona, o ensino de Lacan encaminha-nos a
questionamentos feitos à tradição do pensamento ocidental, tanto no que se refere ao bem,
com conseqüências para a moral e a ética que daí se construiu, quanto à perspectiva estética
desde seu nascimento enquanto ciência. Deslocando o interesse do bem supremo para a

80
economia dos bens, vendo aí o que desde Freud circula entre o princípio do prazer e o
princípio de realidade, mostra-nos Lacan (1959-1960/1995) que a barreira de acesso a esta
economia do sujeito diz respeito, sobretudo, ao belo:

A verdadeira barreira que detém o sujeito diante do campo inominável do desejo radical,
uma vez que é o campo da destruição absoluta, da destruição para além da putrefação é o
fenômeno estético propriamente dito uma vez que é identificável com a experiência do belo
– o belo em seu brilho resplandecente, esse belo do qual disseram que é o esplendor da
verdade. É evidentemente por o verdadeiro não ser muito bonito de se ver que o belo é,
senão seu esplendor, pelo menos sua cobertura. (LACAN, 1959-1960/1995, p. 259-260)

Ao ter o belo como barreira, cobre-se a face destrutiva do desejo, porém, a própria
cobertura bela carrega o teor de destrutividade, já que não se trata de uma separação radical
entre os registros do belo e do desejo em que um apenas serviria ao outro. Por esta
perspectiva, a beleza surge em estreito enlace com a morte, eis o ponto em que o destino de
Antígona se inscreve e nos ajuda a pensar o trabalho sublimatório. Não se trata, portanto, de
pensar a contraposição entre a beleza da filha de Édipo e seu caminhar rumo a morte, mas que
na figura mesma desta personagem e seu desejo tornado destino, é o sujeito desejante que aí
se deixa ver.
Desejo, beleza e morte, encontram-se imbricados, fazendo com que a leitura de Lacan,
novamente, distancie-se da tradição filosófica, na medida em que conjuga elementos que na
doutrina kantiana diriam respeito ao sublime e não ao belo. Trazendo para o belo a dor e
destruição que o sublime kantiano possuía, o ensino de Lacan retira o caráter valorativo que
esta divisão carrega, e dá ao prazer e à morte uma junção que só pode ser compreendida à luz
do embate pulsional. No campo do Trieb, e os engodos que este campo traz para o sujeito,
sublinha Lacan (19590-1960, p. 113), abre-se a vereda para satisfações como o destino
sublimatório, que faz os jogos de dor e beleza atuarem na dinâmica pulsional e no laço social.
Da longa exploração feita por Lacan a respeito do belo e do desejo, sublinhamos a
importância que a figura de Antígona possui nesta exploração, de modo que é sob esta figura
que o belo e a sublimação são trabalhados, oferecendo questões à psicanálise, naquilo que o
autor chama na última seção do seminário de “a dimensão trágica da experiência analítica”.
Na conformidade com seu desejo, o destino de Antígona em busca de dar honras fúnebres ao
irmão direciona-nos àquilo que guia a ética da psicanálise, já que é também a resposta ao
desejo que se coloca na experiência analítica.
Compreendendo a importância que o trágico tem para a psicanálise, as elaborações
acerca do belo também alcançam outra figura, Sygne de Coûfontaine, personagem que, no

81
tique facial em forma de “Não” no momento da morte, Lacan (1960-1961, p.343) vê o destino
do belo. Novamente a beleza enlaça-se à morte, e no esgar da vida de Sygne este enlace
apresenta a beleza insensível dos ultrajes, o que, pelos destinos das personagens de Sófocles e
de Claudel, oferece outras conseqüências para se pensar o desejo. As aproximações e
distanciamentos entre Antígona e Sygne quanto ao desejo, que dizem respeito aos limites da
Atè, serão trabalhados nos próximos capítulos e, para a discussão em que estamos neste
momento, sublinhamos o fio que as liga a partir do belo na pena lacaniana.
No seminário em que se vai dedicar à trilogia de Claudel, Lacan (1960-1961/2010)
anteriormente pensa o belo no trabalho em torno do Banquete de Platão; assim, antes de dizer
que a morte de Sygne é mais atentatória ao estatuto da beleza que o enforcamento de
Antígona, a entrada às discussões sobre o amor o encaminham a pensar o fascínio pela beleza,
como condução do mortal em direção ao imortal, em que o belo seria uma forma menos
penosa, até ilusória, de ascensão à imortalidade. O que de início soa romantizado, terá no
discurso de Diotima sua articulação: na medida em que esta busca pela eternidade guarda uma
relação com a geração e a destruição, o belo aí se insere como o que serve a dissimular o
inabordável desejo de morte.
A partir desta dissimulação do desejo de morte através do belo, abre-se para nós a
abordagem da tragédia, pois, nas palavras de Lacan (1960-1961/2010) “A tragédia é, ao
mesmo tempo, a evocação, a abordagem do desejo de morte... e é também para nós, enquanto
convocados a dela participar, esse momento máximo no qual aparece a miragem da beleza
trágica” (p.164). Este duplo papel do trágico, que marcará a posição das heroínas no espaço
entre duas mortes, faz com que beleza e morte operem de modo a manter o fio trágico de
Sófocles a Claudel, no que o trabalho lacaniano vai de um ao outro a partir de personagens em
que a abordagem da morte e a miragem da beleza se conjuguem.
Compreendemos assim como a perspectiva do belo em Lacan está em íntima relação
com aquilo que o trágico lhe oferece, o que justifica nossa investigação de personagens
trágicas. Mesmo com disposições cênicas e narrativas distintas, Antígona e Sygne de
Coûfontaine lançam luz sobre os modos com que o mortífero se dispõe na beleza que,
conforme iremos nos dedicar no último capítulo, também alcançam a personagem Nawal
Maruan. Guardada esta perspectiva do que compreendemos por belo e trágico, iremos nos
dedicar a pensar os modos com que o teatro contemporâneo atualiza o trágico, a fim de
buscar subsídios para nosso posterior trabalho acerca das personagens teatrais de diferentes
momentos da história do teatro.

82
3.3 - Trágico além do antigo
Abordar as formas com que o teatro ocidental deu contornos ao conflito trágico, mostra-
se uma tarefa muito vasta, pois o conflito inconciliável já não está disposto na organização
cênica tal qual na antiguidade. Por isso, partiremos do pressuposto de que o teor trágico,
pensado como manutenção do conflito inconciliável, já não se apresenta somente em
narrativas cujo herói tem seu destino enredado por forças que lhe escapam e, ainda assim, ele
não deixa de lutar; mas que as noções de “destino” e “forças que lhe escapam” são outras,
fazendo com que a manutenção do conflito encontre outras dinâmicas cênicas e
dramatúrgicas.
Em busca de novas faces ao inconciliável trágico, notamos o teatro contemporâneo às
voltas com o seu próprio fazer que, circulando entre corpo, texto e interpretação, opera com o
trágico não somente em seus personagens e enredos. Esta operação se dá, diz Motta (2011),
tanto no que diz respeito a novas narrativas, criadas a partir de construção coletiva e de
pesquisas acadêmicas, quanto na recorrência a textos e referências gregas:

Os textos gregos parecem ser, pois, o fio condutor de toda uma reflexão acerca do lugar do
teatro na sociedade contemporânea. Ao chegar à tensão dada, de um lado, por uma pesquisa
teórico-prática que se aprofunda, dando continuidade à ideia do teatro como um laboratório,
como um campo de experimentação e, de outro, por um questionamento sobre o sentido
dessa atividade para a realidade socioeconômica e cultural, o que emerge é uma fusão
indissociável entre o gesto ético e o gesto estético, fusão esta que parece apontar para uma
espécie de consciência da tragicidade da condição do artista contemporâneo, a qual seria
dada pela presença de uma disposição afetiva contraditória: o vazio, a desilusão, a
descrença, a incerteza, a ausência de valores éticos sólidos se unem à necessidade de
afirmação de si, de ser, de criar, de novos valores. (p. 58).

A partir desta postura, marcadamente pós-moderna, de reflexão acerca das próprias


produções, que já não trazem uma caracterização bem delineada que lhes garanta um título
único, mas se apropriam de várias influências para um processo de pesquisa e atuação,
notamos que mesmo a recorrência a obras clássicas é feita através de um tratamento moderno,
em que o trágico da condição do artista ganha espaço na construção dos espetáculos. Sob esta
perspectiva, as obras criadas convocam o olhar para além do palco, o que Motta (2011) refere
ao caráter inextricável de ética e estética no teatro contemporâneo, e nossa leitura
psicanalítica vê os contornos mais explícitos do trabalho sublimatório.
Com o devido cuidado de não igualar simploriamente a implicação do artista a uma
localização de sua operação sublimatória, destacamos esse importante movimento que
considera o caráter de enunciação em toda obra apresentada, o que, consequentemente,
alcança também o público. Tal movimento, que aponta a condição trágica no próprio sujeito,
83
não pode ser realizado senão a partir do questionamento direcionado à linguagem
homogeneizante dentro do teatro: a dramaturgia linear, o texto com um desfecho único, um
modelo de preparação do ator, etc.
O papel de porta-voz da condição trágica do sujeito, que o teatro contemporâneo exerce
através de vários elementos cênicos, no decorrer da história é feito de diferentes maneiras;
destacamos aqui o drama L’Otage, onde atua a protagonista Sygne de Côufauntaine, como
obra em que Claudel (1911) põe às claras os limites do poder da igreja através do desejo desta
personagem, uma vez que não se trata apenas da manutenção de uma tradição cujo fundo
histórico poderia responder de forma unívoca. Esta perspectiva é sublinhada pelo próprio
Claudel (1934/1966) que, ao responder às críticas lançadas a L’Otage, esclarece sua
perspectiva acerca da construção narrativa a partir do cenário histórico:

A propósito de “L’Otage”
A história literária nos mostra que há duas maneiras de tratar o drama histórico.
A primeira, que foi empregada pelos grandes Ingleses e os grandes Espanhóis do século
XVII, é de escolher, eu diria de montar, um certo número de episódios característicos que
obtenham do espectador uma sensação viva e contrastante de forças presentes, personagens
que se afrontem e se confrontem, eventos que se façam e se desfaçam (...) Totalmente outra
é a concepção da nossa grande tragédia clássica. O francês, amante de horizontes e
habitante de vales, ama acima de tudo a linha, a continuidade. Ele ama ainda mais do que o
que sentiu, o que conheceu e a compreender. Ele ama ter diante dele os grandes encontros,
alguma coisa a construir e a compor, a que o olho e o espírito possam longamente se
prender. Ele ama o durável, as posições nitidamente estáveis que o curso do tempo vem
animar de movimento de forma demonstrativa (...) Entre as forças opostas que têm seu
apoio sobre uma espécie de necessidade e de dever, o drama fez sua obra quando buscou
algum ponto de composição. Os atores são recrutados para a solução de problemas mais
vastos que eles. Esta segunda concepção é a de L’Otage. Eu não tentarei justificar as
infrações que o autor de L’Otage se permitiu trazer para a realidade histórica. O drama tem
as mesmas licenças que a lenda e ele o faz recorrendo ao mesmo trabalho. A realidade não
é senão o esboço que o artista tem o direito de completar. Às direções esparsas e
incompletas, ele substituiu com um sentido. (CLAUDEL, 1934/1996, p. 64-65)19

19
Livre tradução para: “A PROPOS DE ‘L’Otage’. L’histoire litteraire nous montre qu’il y a deux manières de
traiter le drame historique. La première, qui a eté employée par les grands Anglais et les grands Espagnols du
XVII° siècle, est de choisir, j’allais dire de monter, un certain nombre d’episodies caractéristiques qui procurent
au spectateur une sensation vive et contrastée des forces en presence, des personages qui s’affrontent et se
confrontent, des évenements qui se preparent et qui se dénouent (...)Tout autre est la conception de notre grande
tragédie classique. Le Français , amateur d’horizons et habitant des vallés, aime par dessus tout la ligne, la
continuité, la tenue. Il aime encore plus qu’a sentir, a connaître et à comprendre. Il aime à avoir devant lui les
larges ensambles, quelque chose de construit et de composé, à quoi l’oeil et l’espirit puisse longement s’attacher.
Il aime le durable, les positions nettement établies que le cour du temps vient animer d’un mouvement en
quelque sorte démonstratif (...)Entre les forces oposées qui prennent leur appui sur une espéce de necessité et de
devoir, le drame a fait son ouvre quand il a trouvé un certain point de composition. Les acteurs ont eté recrutés
pour la solution d’un problème plus vaste qu’eux. Cette seconde conception est celle de L’Otage. Je n’essayerai
pas de justifier les infractions que l’auter de L’Otage s’est permis d’apporter à la realité historique. Le drame a
les mêmes licences que la legende et il fait en raccourci le même travail. La réalité n’est qu’une ébauche que
l’artiste a le droit de compléter. Aux directions éparses et incomplètes, il a substitué en sens. ” (CLAUDEL, P.
Figaro,le29 octobre 1934. In : Mes Idées sur le théâtre. 1966, p. 64-65) .
84
Lançando luz sobre o uso que faz da história através da ficção, Claudel (1934/1966) não
apenas se defende das críticas ao uso excessivo da tradição cristã, como nos dá mostras
daquilo que podemos chamar de manutenção do trágico fora da Grécia Antiga, revelando que
se trata menos do uso de elementos religiosos e mais do teor inventivo presente neste uso.
Fazendo a arte completar o esboço que é a realidade, as palavras claudelianas mostram-nos
que o conflito trágico atravessa o tempo e tem na figura da heroína Sygne de Coûfontaine
uma forma de completar esse esboço através de um “Não”, desejo que, à revelia da ordem ali
estabelecida, conjuga beleza e morte ao final da trama.
Por esta concepção de uso da história através da criação artística, também
compreendemos o destino construído pela heroína de Incêndios, que se mantém no desejo
malgrado o cenário de guerras e dos caminhos que lhe são impostos, de modo que com
Mouawad (2003) também a realidade é tomada como um ponto em que a criação se inscreve e
a completa. Partindo de elementos comuns ao Oriente Médio, sem a fidelidade da
verossimilhança, tampouco um distanciamento abstrato, o autor compõe uma dramaturgia na
qual alguns dados de realidade, como a perseguição a mulçumanos e o recrutamento de
crianças pela milícia, estão presentes no enredo - e na história pessoal do escritor e diretor20 -,
mas se dispõem de maneira própria à criação dramatúrgica, ligando a singularidade do enredo
ao conflito trágico que transborda a ribalta.
Neste sentido, pela recorrência às personagens de Claudel e de Mouawad, tratamos não
apenas de inovações cênicas, mas do novo que se apresenta a partir do conflito inconciliável
próprio ao trágico. Retornando ao nosso percurso sobre o trágico além do antigo, na produção
do novo a partir do ágon, de autores mais atuais como Grotóvski e Peter Brook, Azevedo
(2004) destaca o papel de experimentação no fazer teatral, o que nos aproxima de uma
produção de sentido mais direcionada às operações significantes que aos significados
construídos. Isto surge no teatro contemporâneo como forma de questionar o naturalismo,
questionamento que encontra no trágico um porta-voz que apresentado através de diferentes
recursos. Os movimentos teatrais na atualidade parecem abrir a sala de ensaio, fazendo dela o
próprio palco e atestando ao espectador que o realizado ali, enquanto atelier, também
concerne a ele, tanto por uma quebra da hierarquia, que a visão moderna até então impunha ao
artista, quanto por um compartilhamento do fazer artístico em seus encantos e suas dores.

20
Cf. Parcours de Wajdi Mouawad – La place d’Incendies dans sa création. In : Incendies: Étude Critique
(COISSARD, 2014).
85
Esta diminuição da distância entre o artista e o espectador no teatro, surge, portanto,
como um testemunho daquilo que liga artistas e plateia, estaríamos aí no terreno próprio à
sublimação que, assim, não se trata apenas de um destino pulsional que se corporifica nas
artes. Sem adentrarmos nos possíveis desdobramentos da questão, tão amplamente debatida
entre o meio artístico, do que então teria estatuto de arte, uma vez que seu conceito se alarga e
não encontra mais um ponto rígido, nem ignorar tal questão, destacamos o que daí salta ao
psicanalista: aquilo que seria um destino pulsional que, como tal, traria a marca da pulsão de
morte e do erotismo, parece ele próprio fazer parte da obra criada, já não havendo linhas tão
marcadas entre o objeto e seu processo de criação.
Este movimento pós-moderno que, segundo Rivera (2002), oferece ao sujeito espelhos
quebrados que, além de tirá-lo da fixidez oferecida pelo discurso moderno, faz com que ele se
veja irremediavelmente fragmentado, guarda em si o que já se fazia na Grécia antiga através
dos ditirambos, porém, somam-se outras referências tomadas na história do teatro ocidental.
Se com o discurso pós-moderno a noção de metanarrativas que garantam a unidade do sujeito
nos convida a pensar sobre as subjetividades que daí advêm, este convite se faz também
através de múltiplas formas de criação teatral que, desta maneira, mantêm o germe trágico que
inaugurou o teatro ocidental.
A retirada de lugares que se pretendem unificantes, tão cara ao trágico face à metron
grega, permanece no teatro malgrado os discursos modernos que se colocam sobre o palco;
cabe-nos, portanto, pensar como esta denúncia da falácia do uno encontra diferentes
disposições na cena teatral. Ao pensar o fio de tragicidade que liga a Grécia antiga aos dias
atuais, Sarrazac (2013) pontua algumas características, sendo a primeira delas a separação
entre trágico e tragédia nos termos em que é pensada pela poética aristotélica, a saber, pela
necessidade de peripécia e reviravolta e do drama como a “alma” da peça. Esta mudança, que
sinaliza outros modos de escrita, ratifica o que observamos no subcapítulo anterior acerca dos
elementos do trágico.
Por esta perspectiva, o modelo da tragédia grega sucumbe ao tempo, mas o trágico se
mantém, tratando-se do que Szondi (2003) chama de filosofia do trágico; logo, trata-se menos
de compreender como os demais modos de fazer teatro fogem à estrutura da tragédia,
conforme postulado por Aristóteles, e mais de pensar como o trágico penetra a forma
dramática e a transforma, de modo a atualizar-se através de diferentes arranjos sociais e
dramatúrgicos. Neste sentido, ainda que consideremos a importância da filosofia do trágico,
que Szondi (2003) destaca como uma questão alemã, com Schelling, Hegel e Nietzsche; neste

86
momento da pesquisa interessa-nos, sobretudo, as atualizações ocorridas no teatro, que nos
dão notícias sobre as personagens que tomamos por trágicas.
Outra característica destacada por Sarrazac (2013), que pode nos ajudar a pensar a
atualização do trágico, é o que o autor chama de um trágico sem grandes ações que,
novamente, surge mais como uma resposta contrária ao que se concebia por tragédia do que
um deslocamento do fundamento trágico. Trata-se da mudança da perspectiva hegeliana que
requeria uma ação apresentando uma grande colisão dramática; segundo Sarrazac (2013), no
teatro moderno, em obras de Strindberg, Tchékov e Pirandello, por exemplo, há uma
rarefação dos embates diretos entre personagens, o que não significa a exclusão do conflito,
mas um deslocamento do nível interpessoal para o intrassubjetivo.
À parte as interpretações psicologizantes que esta mudança acarretará, com seu ápice no
folhetim moderno, o conflito levado também para o próprio sujeito mostra-nos que a condição
trágica do humano, que na Grécia era colocada sobre a orquestra a título de discurso mítico e
político, encontra outros desenhos com o sujeito moderno, cuja consciência regula seus atos
mas, na medida em que tal consciência não é soberana, também impede as ações. Neste
sentido é que o conflito intrassubjetivo cria ações reflexivas muito mais próximas da ausência
de atos, o que nos lembra a recorrência de Freud e Lacan ao herói Hamlet enquanto
personagem que melhor encarna o complexo de Édipo, pois mostra a dinâmica edípica que se
deixa antever nas hesitações do herói21.
Segundo Lesky (1996), as caracterizações psicológicas, tão caras à idade moderna,
fizeram-se presentes já nas tragédias de Shakespeare, ainda que em menor escala do que no
drama, o que não se via na tragédia grega, na qual as noções de Homem e Pólis se
imbricavam aos deuses. Isto diferencia os heróis trágicos - ainda que ambos partam de uma
natureza fundada no pathos – e suas respectivas catástrofes: para Édipo, o exílio e errância, a
quebra da íntima ligação com a Ágora; para Hamlet, a loucura e a morte, um hiato com a
subjetividade que representa a vida.
Se em Shakespeare já notamos um deslocamento em direção a uma subjetividade
reflexiva, mas ainda com uma estrutura dramática em que a figura do herói se destaca, em
autores como Ibsen e os já citados Strindberg e Tchékov, até mesmo o herói como figura de
estirpe e importância social perde força. Trata-se do que Sarrazac (2013) chama de um herói

21
A relação entre desejo e ato na figura de Hamlet foi objeto de nosso interesse no artigo Saber, Desejo e Ato: o
que Édipo e Hamlet dizem à psicanálise. Revista FSA (Faculdade Santo Agostinho), v. 10, p. 327-341, 2013.
87
do cotidiano, em que o enredo trágico perde a grandiosidade dos feitos heróicos, sendo a
própria sobrevivência diária um ato de heroísmo. Nas palavras do autor:

“A humanidade”/“uma escória”, é nesse entremeio que se localiza o personagem trágico


moderno. Entre o homem comum e o homem decaído, calibanesco. Sub-homem que serve
de cobaia (...). Vemos assim libertar-se o aterrorizante perfil do não-humano do humano. O
trágico contemporâneo adquire a dimensão do pós-Auschwitz, como o trágico do começo
do século XX assumira a dimensão das valas comuns da guerra de 1914-1918. Nem herói e
nem mesmo “personagem agindo” (prattontes), a figura trágica moderna não combate, não
age, não decide. Ela se submete. Quanto mais ela se esforça em ser, mais se torna mártir,
testemunha (a etimologia é a mesma). Testemunha de si mesma, de seu próprio sofrimento.
Trágico da “Paixão do Homem”, diria Mallarmé. (SARRAZAC, 2013, p. 8)

Esta imagem da queda do prestígio do herói mostra-se em nossas duas personagens


contemporâneas, Sygne de Coûnfontaine e Nawal Maruan e, na medida em que as tomamos
por heroínas trágicas, notamos que seus heroísmos estão referidos às dinâmicas cotidianas que
as assaltam. Com Sygne, é a tentativa de recuperar as terras da família, pertencente à nobreza
decadente, e a salvação do Papa que a leva ao casamento com Turelure; sua resistência
permanece em forma de um sinal, um não/nome, que a acompanhará até a morte, também esta
sem grandiosidade, mas como testemunho de sua negação. Nawal também carrega o trágico
testemunho de seu sofrimento enquanto resistência e sem grandes feitos; é pela captura e
prisão que ela encontrará no carcereiro algoz o filho que procurava e, sem reconhecê-lo,
torna-se vitima daquele que veio de seu ventre; por mais cruel que pareça sua trajetória, ela se
apequena diante do cenário de guerra do Oriente Médio; resta à heroína o silêncio diante da
descoberta.
Neste sentido, os textos de Claudel (1911) e Mouawad (2003/2013) incluem-se em uma
tradição do teatro ocidental em que a figura do herói é recolocada face ao momento histórico;
já não se trata, portanto, de um heroísmo cujo destino se impõe de um golpe só miticamente,
mas que a imposição não deixa de existir e demandar respostas das personagens. Neste
sentido compreendemos o próprio desenrolar das narrativas: na tragédia grega, conforme
Vernant (1981/2009), a história apresentada se passa em um único dia, ainda que o espectador
acompanhe os fatos que a precederam através da narrativa; ao passo que na tragédia
contemporânea, em L’Otage e Incêndios, somos lançados a diferentes momentos e espaços.
Esta mudança em relação à história e os modos de apresentá-la, que caracteriza o
percurso do teatro entre o épico, o lírico e o dramático, dá ao trágico um desenho que recai
sobre o sujeito, ou seja, trata-se da forma de contar a história de um sujeito em sua
tragicidade, cujo tempo e espaço, usados para contar, só fazem sentido em relação a sua
narrativa. Sarrazac (2003) chama de “drama da vida” esta forma de teatro que costura épico,
88
lírico e dramático e marca o divórcio entre a dimensão subjetiva e objetiva, na medida em que
a ação se dá em personagens divididos entre ação e testemunha. Compreendemos assim o
recurso não mais a uma progressão narrativa, mas à retrospecção e flashes para contar a
história e revelar outras que, até ali, mostravam-se ocultas22.
Nestas diferentes formas com que o teatro moderno e contemporâneo narram seus
enredos, estão implicadas as perspectivas de história que, segundo Gadelha (2013), tem no
corpo o lugar de registro de hábitos e percepções antigas que se ligam ao atual. Se na tragédia
antiga a vontade dos deuses se confundia com os atos deliberados dos heróis, na modernidade
a história da sociedade e história pessoal não têm sua clara delimitação, o que, no dizer de
Gadelha (2013), libera a narrativa do encadeamento aristotélico, apresentando referências da
história social e pessoal nos atos ali encenados.
A partir desta apresentação de questões pessoais e da história social, é que em L’Otage
notamos a referência ao império napoleônico na tentativa feita por Sygne de salvar o papa
casando-se com Turelure; assim como em Incêndios é a guerra no Oriente Médio que faz o
filho de Nawal tornar-se carcereiro, após ser treinado pelo exército guerrilheiro e, sem
reconhecer,encontrara mãe na prisão. Porém, estas referências ao cenário social só podem ser
compreendida à luz dos dramas ali encenados, já que eles mostram muito mais os tropeços da
história social do que a organização que o social pretende manter.
Compreendemos assim o que Gadelha (2013) refere à força trágica no teatro pós-
moderno: ao articular dimensões como corpo, espaço e tempo, têm no conflito um vetor
contra a tendência à homogeneização presente na tradição moderna, cujas construções cênicas
e narrativas seguiam padrões rígidos. A autora pensará como paradigma desta maneira de
tragicidade a obra de Artaud, mas, para os nossos interesses, pensaremos os modos com que
as narrativas de Claudel e Mouawad se apropriam destas características, ainda que não se
incluam de todo nelas.
Nestes termos, quando tratamos de tragédias contemporâneas, estamos nos situando em
um terreno cujas características não são homogêneas, mas apresentam diferentes modos em
que a tragicidade se mostra nas narrativas. A partir disso, nosso trabalho a respeito das
personagens de diferentes momentos históricos será realizado considerando a tragicidade
como uma forma de criação muito particular.

22
Entre os espetáculos que usamos para pensar a tragédia contemporânea, podemos afirmar que Incêndios se
situa dentro desta perspectiva de retrospecção, ao passo de L’Otage, mesmo que se diferencie da tragédia grega,
ainda está sob a dimensão dramática, onde a narrativa segue um encadeamento linear.

89
90
CAPÍTULO 4 – PERSONAGENS TRÁGICAS: VEREDAS DO FEMININO
Advindo do trabalho sobre os temas da sublimação à letra e do feminino, e com a
caracterização do trágico do antigo ao contemporâneo, neste capítulo buscaremos as
articulações a partir de personagens teatrais. Nossa perspectiva de leitura seguirá os passos
inaugurados por Freud que, em obras como Delírios e Sonhos na Gradiva de Jensen
(1907/1996) e O tema da escolha do cofrinho (1913/2010), encontra em figuras femininas
ficcionais um lugar para pensar algo do sujeito, de tal modo que, aquilo que lhe surge como
da ordem do mistério, encontra destinos que dizem respeito não apenas às personagens. Se,
por exemplo, a personagem Zoe de Jensen, com as pegadas deixadas ao jovem Hanold,
permitiu Freud (1907/1996) tratar da fantasia, é que o autor viu ali algo que não estava
subsumido ao enredo construído pelo escritor. Também com este caráter, Lacan vai a
personagens ficcionais femininas, para recolher diferentes questões para psicanálise,
conforme veremos em duas das personagens a que o autor se dedica.
Nestes termos, no presente capítulo dedicar-nos-emos às personagens Antígona, Sygne
de Coûfontaine e Nawal Maruan, buscando as possíveis amarrações entre os pontos
trabalhados. Conforme anunciado, as duas primeiras personagens serão tomadas a partir do
destaque dado por Lacan em seu ensino, buscando aí compreender como este destaque pode
nos ajudar a pensar a criação com um modo de operar feminino, tarefa que estenderemos à
terceira personagem, como possível contribuição a partir de uma obra teatral da atualidade.

4. 1 - Antígona: de Sófocles a Lacan


No percurso sobre o trágico antigo, já salientamos alguns pontos em que a heroína grega
aparece como grande representante do gênero. Agora, deter-nos-emos em suas
particularidades e a forma como esta personagem pode dar notícias sobre a sublimação numa
personagem feminina. Ao nos direcionarmos a Antígona, nosso trabalho já parte da
importância alcançada por esta personagem na história do teatro ocidental e na psicanálise, o
que nos oferece diferentes formas de entrada neste campo e, para tanto, escolhemos o
feminino como caminho possível. Neste sentido, nosso trabalho buscará pensar os modos com
que a figura da heroína, em seu particular destino de andar deliberadamente sobre a navalha
trágica, foi erguida a modelo para pensar a sublimação e a ética da psicanálise, cotejando
elementos do feminino para articular estes modos.
Suspeitamos que, por se tratar de uma personagem feminina, a relação com o feminino
está implicada de maneira muito singular nos efeitos que Lacan dela recolhe para pensar o

91
problema da sublimação. Na tentativa de lidar com esta suspeita, que nos fará adentrar nas
questões relativas às junções e disjunções entre mulher e feminino, situaremos a noção de
feminino do qual partimos relacionando-o à figura de Antígona, tal como é tomada na leitura
lacaniana e também na escrita de Sófocles.
O enredo trágico conta o trajeto da personagem em busca de honras fúnebres ao irmão
Polinices mediante a proibição deste rito, já que o morto, assassinado em batalha pelo próprio
irmão Etéocles, é considerado pelo rei Creonte um traidor de Tebas que não se adapta à lei
por ele decretada, a qual só concede enterro ao outro irmão por lutar a favor da polis tebana.
Porém, não se trata de qualquer mulher, mas de Antígona, filha de Édipo e sobrinha de
Creonte. A heroína tem com estes homens relações de parentesco, que dão nuances ao enredo
desde sua primeira fala:

Antígona
Homossanguínea irmã, querida Ismene,
Será que Zeus nos poupa, enquanto formos
vivas, de alguns dos males que abateram
Édipo? O rol do horror está completo:
Dor, despudor e desonor, que dissabor
nos falta? O general promulga
um decreto à cidade toda. Sabes
algo de seu teor ou desconheces
os males que inimigos têm causado
a quem ambas amamos? (SÓFOCLES, Séc V a.C/ 2009, versos 1-10, p.25)

Em suas palavras, a heroína refere-se aos males advindos de seu pai e irmão, e trata o
tio pela nomeação de Estado que representa, a ele vinculando os males que recaem sobre seus
amados; apontando assim para elementos pressupostos – os males que abateram Édipo, a lei
decretada por Creonte que é contrária a tradição, o rol do horror - que darão ensejo ao seu
plano de enterrar o irmão. No entanto, estes pressupostos não atuam na narrativa de modo
causal, pois a heroína deles faz uso de forma eminentemente trágica, ou seja, mantendo o
conflito inconciliável entre os impulsos Apolíneo e Dionisíaco, o embelezamento e o horror.
O conflito inconciliável, o ágon entre a beleza harmônica e o horror, é exercido pelos
heróis sofoclianos, diz Nietzsche (1872/2007), transfigurando a precisão e a clareza do
diálogo apolíneo ao colocá-lo na boca de um herói que, por suas palavras, diz da natureza
terrível. Por este jogo, aquilo que viria ofuscar e afastar o olhar, surge como forma de proteger
do terror, nas palavras do autor: “as luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o
apolíneo da máscara, são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e
horroroso na natureza”(NIETZSCHE, 1872/2007, p.60).

92
Assim, as palavras de Antígona, ao mesmo tempo em que situam a plateia no enredo e
lhe dão clareza, protegem do horror carregado por elas, paradoxo que é exercido pela imagem
da heroína. Também direcionado à imagem de Antígona é que Lacan (1959-1960/1995) verá
no belo a visada do desejo, vinculando assim a filha de Édipo, com sua beleza que ofusca,
àquilo que estaria no fundamento da ética da psicanálise e do trabalho sublimatório. Portanto,
por responder ao desejo, a bela Antígona empreenderá sua trajetória trágica, resposta que tem
muito a dizer à sublimação que, a um só tempo, satisfaz a exigência de trabalho pulsional e
faz laço social.
Detendo-se ao que escapa à formalização da narrativa, Lacan (1959-1960/1995) irá
empreender a leitura de Antígona em seu particular destino de andar sobre a navalha trágica,
servindo de modelo para pensar a sublimação e a ética própria à psicanálise, as quais não são
da ordem do Bem. Ao distorcer, desta forma, a relação entre Bem e Belo, que a doutrina
platônica impingiu ao campo das artes em sua relação com o saber, e fazendo cair por terra o
ar moralizante que se estendia sobre a noção de ética, Antígona se oferece, através de sua
beleza, como forma de ver além e ao mesmo tempo ofuscar sua natureza.
Ocupando-se da tragédia grega, Lacan (1959-1960/1995) faz uma leitura particular do
enredo sofocliano de Antígona; sob a pena lacaniana, notamos que não se trata de uma
oposição entre lei humana e tradição divina, pois é ao seu desejo que a heroína responde, com
toda a carga de prazer e sofrimento que ele carrega. Porém, a resposta ao desejo, sustentada
por Antígona através do belo, é também por ele impedida, estabelecendo o paradoxo: o desejo
pode ser eliminado do registro do belo, na medida em que tem o efeito de suspendê-lo; no
entanto, o desejo não deixa de se manifestar no belo, fazendo dele sua visada. Nestes termos,
estabelecem-se as duas faces do belo frente ao desejo, quais sejam, extinção ou temperança do
desejo e também sua disrupção.
Cabe-nos aqui lançar uma questão importante para nossa pesquisa: em que medida esta
relação entre belo e desejo pôde ser estabelecida por se tratar da figura de uma personagem
feminina? A beleza estaria aí posta de uma forma diferenciada, a ponto de oferecer o que
figuras de heróis masculinos não ofereceriam? Sem nos ater a comparações entre heróis e
heroínas do universo trágico, pensaremos de que modo Antígona pode responder a estas
questões; para tanto, retomaremos o feminino na psicanálise a partir do enredo de Antígona.

93
4.1.1 - O Feminino em Antígona
Conforme trabalhamos anteriormente, o feminino em psicanálise comparece em vários
momentos da obra freudiana e, no ensino de Lacan, insere-se no campo do gozo de um modo
suplementar ao gozo fálico. Tratarmos do feminino em Antígona, portanto, diz respeito às
junções e disjunções que o feminino opera na cadeia simbólica regulada pelo falo e, na
medida em que tratamos de uma personagem fictícia, não alcançaremos as disposições que
tais junções e disjunções podem ter num trajeto clínico, mas seu enredo dá notícias das formas
em que elas se dispõem na linguagem dentro da narrativa sofocliana.
Neste sentido, ao usarmos uma personagem feminina para pensar o feminino que se
dispõe na criação sublimatória, trabalhamos com as relações entre corpo sexuado e posição
subjetiva frente ao falo. Antígona, ao ser tomada como imagem bela que promove
apaziguamento e disrupção do desejo, traz consigo estas relações que, por sua figura
participar do universo da Grécia Antiga, questionam também a condição da mulher na polis
grega. Estas relações entre o feminino e mulher, e suas singulares maneiras de amarração,
podem ser observadas no diálogo entre Ismene e Antígona:

Ismene: Recorda como nosso pai morreu


malvisto e malquerido (autodescobre
o autodelito e com as próprias mãos
automutila as órbitas dos olhos)
e como a esposa-mãe (palavra ambígua)
trunca a vida na corda retorcida,
e como nossos dois irmãos, em tércio,
autoassassinam-se num mesmo dia,
cumprindo moira igual por fratricídio
de duas mãos recíprocas. Será
terrível nosso fim, ambas sozinhas,
se, ao arrepio da lei, desafiarmos
a determinação e o poderio
tirânico. Não fomos feitas, nós
mulheres, para combater os homens.
Sob a égide dos fortes, nossa agrura
se agravará. Quem manda me constrange.
Perdão, subtérreos, se me vergo ao chefe!
É pura insensatez transpor limites.

Antígona: Nada te impinjo, mas refeito o auxílio


que por ventura me pretendas dar.
Age como quiseres, que me empenho
no enterro! Serei grata se morrer
amando quem me amou, concluindo ao lado
dele o rito. Mais vale o tempo no ínfero
do que na companhia de quem vive:
o eterno circunscreve o meu repouso.
Desestima o que os deuses sobrestimam!
(SÓFOCLES, Séc V a.C/ 2009, versos 50-75, p. 28-29)

94
Antígona não recua diante das leis da cidade, tampouco diante dos apelos da irmã, com
a qual partilha a condição de filha de Édipo e descendente dos labdácidas que, segundo
Vernant (1981/2008), é uma estirpe que sustenta o trágico no caráter inexorável de seus
descendentes, ou seja, o apelo de Ismene busca desviar o que até então marcara sua
ascendência. Mas Antígona se mantém no inabalável caráter trágico, preferindo a companhia
dos mortos a viver entre os contrários ao seu desejo, caráter no qual Lacan vê o paradigma do
problema da sublimação.
Duas mulheres, ambas descendentes do pai-irmão e da mãe suicida, mas com respostas
distintas diante do que o enredo trágico lhes impõe e, na medida em que é Antígona a
continuidade do trágico que atravessa a família, ela mais se mantém na linha trágica quanto
mais contraria o lugar dedicado às mulheres, transpondo limites, mesmo que a irmã diga da
insensatez deste gesto.
Outro elemento a ser ressaltado para pensar a tragicidade em Antígona, que se liga
também a sua feminilidade, é o fato da heroína, justamente para realizar o enterro do irmão,
abdicar do casamento com Hémon, filho de Creonte, mantendo-se virgem e sabendo desde o
início do castigo de morte que sua tarefa lhe imputaria. Este desvio das questões eróticas que
o casamento carrega não significa, no entanto, a ausência de sexualidade em seu ato, mas a
conjugação entre sexualidade e morte em tal ato.
Sexualidade e morte aparecem no destino traçado pela heroína também através das
palavras utilizadas, já que, conforme pontuamos anteriormente ao tratarmos da trajetória da
tragédia grega, no ato de dar homenagens fúnebres ao irmão ela usa o termo Keimai, referente
a “jazer com”, compartilhar a morte, e “deitar-se com”, dividir o leito no sentido erótico.
Além desta clara ligação entre sexo e morte, que desta forma estendia os efeitos de duplo
sentido sobre a plateia, em Antígona a relação com a morte toma importantes conotações
porque, segundo Vieira (2009), diferente de outras peças sofoclianas, a morte em Antígona
não é um desdobramento das ações, mas o que as impulsiona.
A sobreposição entre sexualidade e morte em Antígona dá-nos pistas sobre a criação
sublimatória, na medida em que, conforme apontamos no subcapítulo anterior, estas duas
dimensões estão implicadas no trabalho da pulsão e seu enlace civilizatório. A conjugação do
sexual e mortífero no destino de uma personagem feminina lança-nos ao mistério próprio de
sua figura, o qual, ainda segundo Vieira (2009), faz da figura solitária de Antígona um
representante do trágico até os dias atuais.

95
O mistério representado por mulheres é também recorrente na psicanálise desde Freud,
conforme dito anteriormente, relacionado às representações da mulher em O tema da escolha
do cofrinho (1913/2010) e nas alusões às deusas mães em Moisés e o Monoteísmo
(1938/1996). Estas recorrências mostram que, diante da feminilidade, o saber psicanalítico
está sempre às voltas com algo que lhe escapa e demanda novas respostas, aludindo, portanto,
ao pulsional em sua constante exigência de trabalho.
O mistério do feminino em Freud e Lacan mostra esta proximidade com o pulsional na
medida em que, se considerarmos que em Freud os textos sobre o tema da feminilidade estão
sob a égide da segunda teoria das pulsões - em que estava colocada a concepção de uma
pulsão que tende ao inorgânico e sinaliza o além do princípio do prazer -, notamos que o
problema da feminilidade aponta também para os destinos tomados pelas pulsões, que não se
deixam subsumir às disposições anatômicas. “O que quer a mulher?” parece a interrogação
que deixa claro o ar de mistério mantido em torno do feminino e, conforme relato do próprio
Freud (JONES, 1989), no qual esbarram as respostas dadas pela psicanálise. Já com Lacan,
conforme sublinhamos no decorrer desta tese, o autor vai ao mistério não como ponto de
chegada e paragem, mas como partida para tirar consequências sobre a posição do sujeito na
sexuação e seus modos de gozo.
Na tentativa de dar alguma resposta ao mistério, a maternidade serviu a Freud (1933)
como saída para a mulher na dissolução do complexo de Édipo, enquanto Lacan em
Juventude de Gide ou a Letra do Desejo (1966/1998), demarca uma disjunção entre mãe e
mulher, ao recorrer à figura de Medeia para referir-se à verdadeira mulher, aquela que surge a
partir do ato paradoxal de destruir o que há de mais precioso para si. Sem esgotar o mistério, e
o pulsional que aí se deixa antever, as relações entre mulher e maternidade, ao sinalizarem o
falo nestas relações, surgem como ponto que merece atenção também em Antígona.

4.1.2 – Maternidade e feminino no enredo de Antígona


A ligação entre feminino e maternidade encontra em nossa heroína um cenário muito
próprio, já que, conforme pontuamos anteriormente, a sexualidade em Antígona aparece em
estreito enlace com a morte, no qual a maternidade também se inclui, pois a personagem
lamenta morrer virgem e sem filhos no mesmo passo em que segue seu desejo de deitar/jazer
com o irmão e, assim, concentrar-se no ato que levará à sua morte. A relação incestuosa, de
que a personagem é tributária desde sua concepção, manter-se-á no desejo que guia sua

96
trajetória trágica; tal relação, ressalta Vieira (2009), impossibilita Antígona de deslocar seu
desejo para fora do âmbito familiar e, por isso, ignora o próprio noivo.
Aquela que diz ser feita para o amor (verso 523), já nos versos iniciais diz que prefere
viver seu amor entre os mortos: “Serei grata se morrer/ amando quem me amou, concluindo
ao lado/dele o rito. Mais vale o tempo no ínfero” (versos 72-74). Nesta consecução do amor
em morte, esta personagem não gera filhos e segue na radicalidade da posição solitária que, ao
lhe dar o brilhantismo dos heróis sofoclianos, situa-a na contramão ao lugar dedicado às
mulheres na Grécia Antiga. Segundo Vieira (2009) esta proximidade com o heroísmo e o
afastamento do lugar dedicado às mulheres, surge também no nome de Antígona e se refere à
sua própria geração:
A radicalidade da posição solitária e a capacidade de sustentar até o fim a condição
devastadora aparecem indicadas no nome ‘Antinata’, ‘Antigerada’, trata-se de uma palavra
composta da preposição ‘anti’, ‘de encontro a’, ‘contra’ e do substantivo (goné), ação de
engendrar, e, no sentido passivo, ‘descendente’, ‘filho’. Nascida à contracorrente, isolada
no seio da própria família que continua ressoar. (VIEIRA, 2009, p. 17)

Na continuidade de seu destino solitário, aquela que carrega no nome a geração à


contracorrente, segue na contramão ao lugar dedicado às mulheres como esposa e mãe.
Quanto mais heroína trágica, menos mãe. Estas disposições no enredo de Antígona mostram
as torções entre a harmonia de sua beleza e seu caráter inquebrantável, que está longe de uma
harmonia, sobretudo no que diz respeito ao lugar dedicado ao feminino na cultura grega, que
conjuga mulher e maternidade.
Esta conjugação aproxima-se da leitura freudiana sobre a feminilidade e, guardadas as
devidas proporções entre o mundo antigo retratado no enredo de Sófocles e as análises
freudianas; sublinhamos que a feminilidade pensada por Freud diz respeito, não apenas à
maternidade como dissolução do complexo de Édipo, mas à relação pré-edípica entre mãe e
filha, o que nos convida a pensar esta dinâmica no enredo de Antígona.
A relação entre mãe e filha não aparece marcadamente na narrativa de Antígona e,
segundo helenistas como Lesky (1996) e Vieira (2009), a heroína seria a representação do
caráter inquebrantável do pai Édipo, como as palavras do coro que a ela se referem dizendo
“Saiu ao pai: do cru nasce a cruel/ indiferente à sina mais sombria” (versos 471-472), aponta-
nos, assim, a inscrição fálica na qual Antígona se situa, o que a própria tarefa de dar honras
fúnebres ao irmão deixa às claras, já que isto o inclui na lei simbólica própria à Grecia Antiga,
em que a ausência de enterro é tida como ultraje.

97
No entanto, se Jocasta e Antígona não têm cenicamente uma relação que nos comunique
algo sobre o feminino, na morte elas encontram uma saída comum: o suicídio23 através do
enforcamento, morte que é anunciada por outros personagens e não apresentada em cena. Esta
repetição fúnebre guarda uma ligação entre Jocasta e Antígona que, segundo Louraux (1988),
se trata do uso eminentemente trágico da morte feminina, qual seja, a morte tirada dos lugares
comuns e, como homens em batalha, colocada em toda sua violência, sobretudo por ser
realizada pelas mãos das próprias mulheres24. No caso de Jocasta, o suicídio é cometido logo
após descobrir ser mãe do esposo Édipo, o que, ainda guiando-nos por Louraux (1988), na
narrativa de Sófocles é realizado pelo enforcamento que acentua sua condição de esposa e não
de mãe, pois, diferente da Jocasta escrita por Eurípedes, ela não faz qualquer menção aos
demais filhos – entre eles Antígona –, matando-se como mulher esmagada pela verdade do
incesto. Por isso sua morte não é sangrenta, como seria um ato de heroísmo materno, mas se
associa à valorização da mulher/esposa que se depara com o trágico de sua sexualidade.
Antígona também tira a própria vida e, tal qual sua mãe, o faz por enforcamento; com
este ato, a heroína distancia-se da morte comum às virgens, as quais no universo trágico não
se matam, são assassinadas. Morrendo como esposa, ela dá enterro ao irmão e ignora o noivo,
logo, apenas sua morte é como a de uma esposa e, mais do que a consecução ou não do
casamento, o que esta morte deixa ver é a sexualidade presente no ato de fazer por suas mãos
aquilo que seria operado por outrem. No momento da morte, a heroína reencontra o erotismo
que não vivera, diz Louraux (1988, p. 64):

Vítima humana oferecida aos deuses infernais para que eles se apossassem de sua jovem
vida; sepultada viva, a filha de Édipo estava condenada a morrer asfixiada e, no laço feito
com seu véu de virgem, ela antecipará a asfixia por outra via. Seu proveito com isso é
inventar sua própria morte e condenar Creonte à macula que ele queria evitar. Mas o
sentido desse enforcamento não se esgota no gesto pelo qual Antígona, fiel à lógica das
heroínas de Sófocles, escolhe morrer por suas próprias mãos e converte em suicídio o que
seria execução: matando-se como as mulheres bem femininas, a moça reencontra na morte

23
Ao utilizarmos o termo suicídio, nos referimos ao movimento das personagens de tirarem a própria vida, sem,
contudo, nos direcionarmos a questão do que seria tal movimento em termos clínicos – se estaria mais próximo
da passagem ao ato ou do acting out, conforme tratado por Lacan no Seminário 10 (1962-1963/2005) -, já que
não buscamos interpretar nestes termos as personagens. Sublinhamos, conforme iremos nos deter no capítulo que
se segue, a sustentação de desejo que este movimento representa em Antígona.
24
Segundo Louraux (1988), o suicídio de personagens mulheres marca o modo particular com que a tragédia
toma o feminino e, anterior a isto, o próprio jogo entre os corpos sexuados, nas palavras da autora: “Boa ocasião
para observar novamente que se na tragédia o masculino e o feminino brincam cruelmente com a distribuição da
humanidade entre homens e mulheres, essa brincadeira nada tem de fortuita, mas tende a sugerir o modo –
adequação ou desvio – pelo qual cada personagem vive o seu destino de ser sexuado, essa realidade, ao mesmo
tempo, muito real e muito imaginária de que a cidade desejaria produzir uma realidade antes de tudo social.
Entretanto, sejam elas femininas ou viris, há para as mulheres um modo de morrer segundo o qual elas
permanecem plenamente mulheres. É sua maneira, fora do teatro, de encenar seu suicídio” (p. 47)
98
tanto uma feminilidade que enquanto viva renegara com todo seu ser, como um tipo de
núpcias.

Na morte em espelhamento à morte materna, Antígona reencontra a feminilidade que


não vivera e, distanciando-se do caráter paterno, em núpcias incestuosas inventa a própria
morte com um gesto feminino. Esta morte inventada através do feminino interessa-nos,
sobretudo, pelo lugar de destaque que a heroína tem para o problema da sublimação, na
medida em que a figura de uma mulher que cria sua própria morte e, nesta criação, reproduz o
gesto materno, é a figura por excelência do destino pulsional que responde à exigência de
trabalho da pulsão e faz laço social.
A morte de Antígona por enforcamento, e a maneira como ela é tomada na escrita
sofocliana, é destacada também por Lacan (1959-1960/1995) no Seminário em que se dedica
à tragédia para pensar a sublimação, apontando nesta morte o distanciamento de uma leitura
mítica para a ênfase à escolha da heroína: “Antígona é aquela que já escolheu sua visada em
direção à morte. A invocação que se tece em torno dessa haste é outra coisa, ela não chega, no
caso, ao desafio humano” (p.345). Lacan, nesta passagem, destaca que, mesmo que o
enforcamento reapareça em outras peças, com fundo religioso e mítico que apontaria um
desafio humano em oferecimento aos deuses, em Antígona ela é a marca do desejo da heroína.
Podemos dizer que o destino traçado por Antígona, que na morte se aproxima da mãe e
distancia-se do caráter inquebrantável do pai/irmão, possui algumas torções nesta
aproximação em relação à morte materna, pois, a sexualidade a que a morte vem enlaçar,
mostra-se diferente nas duas personagens. Em Jocasta, o encontro com a sexualidade
incestuosa causa-lhe horror e a leva ao enforcamento, enquanto com Antígona o ato de
enforcamento é a consecução de um incesto que a tira das práticas eróticas; desta forma, não
há em Antígona um reconhecimento do caráter sexual deste “jazer/deitar com o irmão”, por
isso sua morte figura como o sacrifício de uma virgem; no entanto, eis a riqueza da narrativa
sofocleana, mesmo não havendo reconhecimento claro, a sexualidade não deixa de se mostrar
nos duplos sentidos e apresentar a marca do desejo.
Estas torções entre as mortes de Jocasta e Antígona que, mesmo havendo aproximações
no ato de tirar a própria vida, têm diferentes significados, sinalizam-nos que o feminino entre
as personagens não é algo da ordem da transmissão, pois, diferente do fálico da linhagem
paterna, não se esgota naquilo que se apresenta em ato. É preciso, portanto, um
direcionamento a cada uma delas para saber a que serviu sua morte inventada, um convite a
pensar os modos de uso dos significantes presentes nesta morte. Em Antígona, nosso foco de

99
interesse, a morte apresenta como afirmação de desejo. Com esta marca do desejo e suas
maneiras de operar na linguagem, encontramo-nos em um ponto importante de nossa
pesquisa, no qual feminino e sublimação mostram, através de Antígona, uma forma muito
particular de criação.
Assim, nossa hipótese de pesquisa, de que heroínas trágicas apresentam uma dimensão
do trabalho pulsional e laço social, cuja resposta à falta não se limita ao recurso fálico,
encontra importantes elementos através da morte de Antígona e o que esta morte desvela.
Adentraremos na questão da morte na heroína, a fim de compreender como esta morte pode
nos sinalizar sobre a criação sublimatória.

4.1.3 – Sublimação e morte na filha de Édipo


Conforme destacamos no decorrer da tese, vincular a sublimação ao feminino significa
partir da noção de que o trabalho sublimatório é um modo de organização em torno do vazio
que gera algo novo, o que é próprio à criação sublimatória, já que, nos diz Lacan (1959-
1960/1995), ela é ex nihilo e porta um saber do criador e da própria criação, no qual
localizamos um registro próprio ao feminino. Portanto, quando a criação à qual nos
dedicamos,Antígona, faz de sua morte uma afirmação do desejo, devemos nos perguntar de
que modo o vazio aí se coloca, e como o trabalho das pulsões se deposita nesta afirmação via
morte.
A leitura lacaniana sobre Antígona dedica-se à morte simbolizada pela heroína, que
quando a faz como desejo de dar honras fúnebres ao irmão, dá a ver um desejo que não diz
respeito a um atentado à vida, mas à afirmação dela através da sustentação do Nome do Pai,
na medida em que atua na linhagem que a vincula a Édipo; estamos aqui na cadeia simbólica
na qual o desejo se situa. Porém, a morte em Antígona também deixa ver a dimensão
pulsional, que não se refere apenas à encenação da trajetória da herdeira de Édipo, mas à
pulsão de morte que se dispõe em sua beleza. Neste sentido, diz Lacan (1959-1960/1995,
p.340):

O efeito de beleza é um efeito de cegamento. Ainda ocorre algo para além dela, que não
pode ser olhado. Com efeito, Antígona declarou por si mesma, e desde sempre – Estou
morta e quero a morte. Assim que Antígona se descreve como Níobe se petrificando, com o
que ela se identifica? - senão com esse inanimado no qual Freud nos ensina e reconhecer a
forma na qual a pulsão de morte se manifesta. Trata-se justamente de uma ilustração da
pulsão de morte.

Antígona, com sua tragicidade, apresenta-se como figura que contraria a própria
imagem que aparentemente apresenta, sua beleza seduz e ofusca, produzindo um efeito de
100
cegamento que porta em si a destrutividade. A imagem de Antígona, portanto, ajuda-nos a
pensar a visada do desejo através do belo e a pulsão de morte que o atravessa, de modo que, a
partir da heroína trágica, Lacan (1959-1960/1995) lança-nos em uma dimensão do desejo em
estreito enlace com a destruição e a morte.
Vemo-nos novamente, tal como observamos no trajeto sobre a sublimação, no
paradoxal lugar da criação que se funda na pulsão destrutiva, mostrando que criação e
destruição trabalham na arquitetura sublimatória. Com Antígona, tal arquitetura aponta a
morte situada ainda em vida, já que a personagem é referida por Lacan (19159-1960/1995)
entre duas mortes, de modo que a morte invade os limites do que se concebia como vida. Sua
figura ilustra a destruição, não apenas na cena em que se anuncia sua morte, mas desde as
imagens em que o belo nela se personificava durante as articulações da peça, ou seja, onde o
belo aparece é a morte quem por ele fala na figura de Antígona.
A destruição da pulsão de morte, nestes termos, mostra-se presente desde as primeiras
linhas e aponta também para um além do desfecho cênico, revelando que não se trata de uma
destrutividade esgotante ou paralisante, mas que dá ensejo à criação sempre marcada pelo tom
destrutivo. Isto marca a natureza da pulsão de morte que, nos diz Lacan (1959-1960/1995), ao
mesmo tempo em que faz cair por terra tudo que existe, “é igualmente vontade de criação a
partir do nada, vontade de recomeçar” (p. 260)
Neste sentido, a pulsão de morte encontra na sublimação uma forma de dar contornos à
sua natureza de destruição e motor criativo, fazendo com que a sublimação, enquanto criação
ex nihilo modelada pelo homem, porte um saber do criador e da própria criação. Este saber
não é da ordem da unidade material ali modelada, mas projeta algo para além e, a um só
tempo, exibe e encobre sua fonte pulsional.
Estamos tratando diretamente dos liames entre os conceitos de sublimação e pulsão de
morte, os quais desde Freud não se atrelam de forma linear, já que, à primeira vista, a noção
de uma pulsão que tende ao inanimado não se conjugaria ao destino pulsional eminentemente
produtivo; sendo como paradoxo que se sustenta a relação entre tais conceitos. A pulsão de
morte, sempre amalgamada à erotização, funciona como ruptura da ilusão de unidade,
produzindo, a partir de tais rupturas, novas criações e dando continuidade ao fluxo criativo-
pulsional.
Fundamentados no paradoxo, sublimação e pulsão de morte dão à leitura psicanalítica
uma perspectiva acerca da arte que se afasta de um apaziguamento contemplativo, ainda que
não o recuse como possibilidade de trabalho sublimatório. Compreendemos assim a utilização

101
de uma tragédia grega para pensar a arte em cuja pulsão está implicada: a imagem da trágica
filha de Édipo lança importantes questões à sublimação na medida em que, conforme
observamos, alimenta o circuito pulsional sem responder à repetição sintomática. A beleza de
Antígona e sua sustentação na navalha trágica carregam uma satisfação pulsional que faz laço
social, o que justifica a importância tomada pela obra na cultura ocidental, mas nos interessa,
sobretudo, por apresentar o funcionamento do sujeito na operação sublimatória.
Assim, a recorrência a esta personagem teatral não se realiza apenas pela compreensão
acerca da criação artística em si, mas como ela forja a condição fundamental do sujeito na
cultura, na articulação entre desejo e civilização. Na luta de forças que aí ocorre, o duelo entre
os combatentes - desejo e civilização - não caminha para um termo excludente, tampouco
apaziguador, mas se mantém passando de um a outro sem um claro limite entre eles,
marcando a radicalidade do sujeito desejante na cultura.
A morte em Antígona, nestes termos, mostra seu trabalho não somente no desfecho
dado pela heroína ao se enforcar e deliberadamente seguir um caminho que desde o início se
sabia desdito, mas na criação bela que, para além da figura desta personagem feminina, se
apresenta no trabalho sublimatório. Por considerar o lugar deste trabalho na entrada do sujeito
na cultura, dedicar-nos-emos à radicalidade própria a tal entrada, onde a sublimação atua no
sujeito e na civilização.

4.1.4 – Antígona ou a diferença radical do feminino: uma entrada no desejo e na


cultura
Quando pensamos o feminino que se articula ao trabalho pulsional presente no desejo e
na cultura, consideramos também o lugar de radicalidade que o feminino ocupa nestes dois
registros que, com sua posição em relação ao falo, mostra que é de dentro deles que opera
uma torção e marca a diferença que não se deixa subsumir pelo significante fálico. Antígona é
também a marca da diferença: única mulher protagonista na trilogia tebana, ela ocupa o duplo
lugar de início e fim nas obras sofoclianas, pois, segundo Lesky (1996), cronologicamente
Sófocles escreveu Antígona (442 a.C), Édipo Rei (430 a. C) e Édipo em Colono (401 a.C); ao
passo que dramaturgicamente a trilogia teria seu encadeamento sob a ordem Édipo Rei, Édipo
em Colono e Antígona. Esta diferenciação marca, além da autonomia das narrativas, o lugar
de destaque de Antígona, em sua condição de ultrapassagem e arremate da trilogia que já
estava dada/escrita primordialmente.

102
Esta personagem feminina, que teve sua escrita anterior à tragédia familiar incestuosa
que a gerou, segue a intenção de enterrar o irmão depois que o pai, em Édipo em Colono,
negou-se a intervir na querela entre os irmãos, levando à morte de ambos. Deste modo,
notamos com Antígona um borrar de fronteiras entre seu pertencimento e afastamento das
linhas narrativas de sua história, o que, segundo Rudnitsky (1987), nos convida a uma leitura
das peças tebanas, ao mesmo tempo, sincrônica e diacrônica, em que a própria existência da
personagem está condicionada a estes dois eixos. Este condicionamento é exercido por
Antígona através de uma quebra da linearidade, transpondo os limites estabelecidos pela
ordem fálica e deixando ao horror aquele que por esta se guia – representado na figura de
Creonte -, ao fazer confundir o que se mostrava marcadamente separado.
Também como pertencimento e afastamento das linhas narrativas edípicas, ainda que
em outros termos que não os da dramaturgia teatral, a feminilidade é concebida na pena
freudiana e o feminino no ensino de Lacan, conforme nosso trabalho reiteradamente
demonstra. Esta quebra da linearidade é pensada, com Lacan (1959-1960/ 1995), na figura de
Antígona, na qual beleza e morte se conjugam, o que nos permite pensar um trabalho
sublimatório cuja cadeia significante contém a dimensão da morte tornada beleza. O que isto
teria a dizer sobre o sujeito que daí advém? Na medida em que pensamos a sublimação como
um destino pulsional situado na dupla inscrição do sujeito, no desejo e na cultura, notamos
que ele trabalha sobre os mesmos registros em que opera o recalque e, assim, na passagem
pelo complexo de Édipo.
Logo, a morte tornada beleza, própria do trabalho sublimatório, diz respeito também ao
modo com que a sublimação incide sobre os destinos da sexualidade e na inscrição na cultura.
Cabe-nos pensar como o feminino, na figura de Antígona, oferece elementos para pensar a
sublimação como inscrição na cultura.
Para tanto, podemos seguir a leitura lacaniana em que o autor remete a mulher ao ex
nihilo que, por estar no campo da Coisa, surge como objeto de desejo. Tal leitura - que é
realizada sobre a sublimação e pulsão de morte, mas que se liga também à proposição que o
autor faz sobre o amor cortês -, está intimamente atrelada à perspectiva freudiana da
feminilidade, pois, ao ocupar o lugar de objeto de desejo, a mulher alcançaria o falo. Neste
sentido, o feminino aparece, nesta leitura da sublimação, como um alcance do falo e, ao
mesmo tempo, no campo da Coisa:

Esse campo que chamo de campo da Coisa, onde se projeta algo para além, na origem da
cadeia significante, lugar onde tudo o que é lugar do ser é posto em causa, lugar eleito onde

103
se produz a sublimação, da qual Freud nos apresenta o exemplo mais maciço – de onde é
que saem sua perspectiva e sua noção? É igualmente o lugar da obra em que o homem,
singularmente, põe-se a cortejar, e é por isso que o primeiro exemplo que lhes dei foi
extraído do amor cortês. Convenham que situar nesse ponto de para-além uma criatura
como a mulher é uma ideia verdadeiramente incrível. (LACAN, 1959-1960/1995, p. 262)

A mulher situada no ponto para-além e também objeto de cortejo, eis as torções próprias
ao trabalho do destino pulsional sublimatório, no qual beleza e morte se unem. Nesta
perspectiva, notamos uma aproximação ao objeto a como causa de desejo e objeto da pulsão
que, conforme citamos anteriormente, se situa de diferentes maneiras através do feminino.
Porém, considerando que no momento em que Lacan lança estas palavras, o autor se refere ao
campo da Coisa e do desejo, podemos dizer que aquilo que posteriormente será tratado como
objeto a é aqui situado nos liames entre o campo pulsional e o desejo, oferecendo-nos
questões próprias à sublimação na figura de Antígona.
Deste modo, retornamos aos liames entre belo e criação em Antígona: o que de início
parece situar o belo nas coberturas imaginárias que a criação artística modela, mostra,
justamente pela intervenção simbólica da sublimação, sua referência ao Real do desejo. A
beleza de Antígona recobre simbolicamente o Real, ao mesmo tempo em que carrega suas
marcas, revelando o desejo de morte que nela se dissimula; trata-se do teor destrutivo presente
na beleza.
O termo “feminino” não aparece na pena lacaniana neste momento de sua obra, mas a
personagem trágica, por meio da qual a beleza apresenta seu caráter destrutivo, é
enfaticamente situada em uma posição diferente de outros personagens. A partir disso, nossa
perspectiva de leitura sublinha o feminino que esta figura dramática carrega não por um
testemunho corporal, mas pela dimensão de morte e beleza que a situa em outra posição face
aos demais personagens.
Relembrando o que referimos quanto ao trabalho de Lacan sobre o feminino, o
Seminário dedicado à Antígona situa-se no período que Campista e Caldas (2013) sublinham
como o momento em que Lacan pensa o feminino pela dialética ter/não ter o falo,
desdobrando-se em ser/não ser o falo e, ainda que não se dedique ao feminino no Seminário 7
(1959-1960/1995), não podemos perder de vista o contemporâneo movimento do ensino de
Lacan acerca do falo. Neste sentido, situar a sublimação no para-além próprio ao campo da
Coisa, e dar à mulher um lugar de excelência neste para-além, aproxima-se deste
desdobramento em ser/não ser o falo.
Assim, feminino e sublimação ganham, em Antígona, uma leitura na qual seu estreito
vínculo com a beleza e a morte apresenta diferentes modos de operar com o significante fálico

104
enquanto objeto de desejo. Antígona é a mulher que coloca as barreiras entre vida e morte sob
o signo de seu desejo, na medida em que, nos diz Lacan (1959-1960/1995), faz a vida
confundir-se com a morte certa e a morte se antecipar em vida. Desta maneira, a filha de
Édipo situa-se entre duas mortes, fazendo com que sua criação ex nihilo traga a marca da
pulsão de morte que, conforme destacamos, é antes de tudo vontade de criação a partir do
nada.
Esta perspectiva sobre a sublimação mostra-nos uma forma muito singular de criação
que, já anunciando o que iremos pensar a partir das demais heroínas, não se manterá nestes
termos no ensino de Lacan. Para o momento da tese em que estamos, dedicar-nos-emos à
criação sublimatória oferecida por Antígona a Lacan.

4.1.5 – Antígona, como esta figura feminina testemunha sobre a sublimação?


A vontade de criação ex nihilo na figura de Antígona, mostra-nos a face do feminino
que, no trágico antigo, interroga o que está instituído – a lei de Creonte, a morte a que foi
condenada, o lugar da mulher na polis grega - para a ascensão de um novo, ainda que este
novo se realize através da própria morte. Esta interrogação do que está instituído também é
feita pela mulher nos trabalhos freudianos, na medida em que a feminilidade põe às claras que
o anseio pelo falo, que está posto para todos os sexos, é igualmente um questionamento dos
lugares fálicos. Neste sentido, podemos dizer que Antígona exerce este anseio pelo falo e
denuncia seus lugares comuns através da beleza e da morte, o que nos coloca a tarefa de
compreender como nela o feminino faz este movimento, ao mesmo tempo em que diz respeito
a um trabalho erótico e mortífero.
A personagem Antígona, que Lacan (1959-1960/1995) refere a uma ultrapassagem da
Até para responder ao seu desejo, joga com o impossível, quebrando a lógica ordinária (fálica)
da busca por sentido unívoco dentro do contexto de sua tragédia, e também em referência às
demais em que aparece. Encontramos aí uma posição em que, diferente de uma negação dos
limites, há o reconhecimento que permite caminhar sobre eles, e neste caminhar o trabalho
sublimatório se promove.
Portanto, articular feminino e sublimação através de Antígona faz-nos supor a criação
do vazio por uma lógica que cria seus contornos, porém, não se limita a eles, apontando o que
escapa a tais contornos. Isto parece ser intrínseco ao próprio processo sublimatório pois,
considerando a alegoria, usada por Lacan (1959-1960/1995), do oleiro que mais do que erguer
as paredes que fazem borda ao vaso, cria o vazio em seu centro; no entanto, nossa suspeita é

105
que nisto há algo próprio à inscrição do feminino, na medida em que opera em termos que
ultrapassam a unidade da posição fálica.
Para buscar os possíveis caminhos a que esta suspeita nos leva, partamos da singular
maneira com que a sublimação se apropria do pulsional: no trabalho sublimatório há um
modo de operar com a falta, conforme o belo e o desejo testemunham, e também uma
organização em torno do vazio. Na medida em que a sublimação mantém e cria este vazio
através de novos significantes, permite a alimentação do circuito pulsional através daquilo que
seria próprio às pulsões, o erótico e o mortífero.
Com isso, a partir de um registro sexual e destrutivo que encontra na falta seu
movimento, a sublimação aponta que qualquer promessa de prazer integral significaria sua
obliteração. Na consecução do circuito pulsional pela sublimação, o que daí é criado se
distancia de ofertas de prazer total, pois, na medida em que oferece satisfação além do
princípio de prazer, diz da condição desejante do sujeito. Antígona responde a este caráter da
sublimação na medida em que, ao não se deixar levar por esclarecimentos ou tentativas de
salvação, segue rumo ao castigo e à morte na mesma marcha em que segue seu desejo, como
notamos no diálogo com Ismene:

Antígona: Livra tua cara! Não te invejo a fuga.


Ismene: Me sonega tua moira? Dilacero-me!
Antígona: Escolheste viver, eu quis morrer.
Ismene: Não foi por falta de ouvir conselhos.
Antígona: Há quem aprove uma ou outra via.
Ismene: Mas a nós duas responsabilizam.
Antígona: Coragem! Vives; não é de hoje que a ânima
se me morreu, ao devotar-me aos mortos.
(SÓFOCLES, Séc V a.C/ 2009, versos 553-560, p. 55-56)

Nesta sustentação do desejo, a heroína sofocliana apresenta a morte em vida e, nisto, a


sublimação em seu trabalho, o qual oferece renovadas satisfações que trazem consigo a
certeza do não esgotamento. Na devoção aos mortos, a filha de Édipo encontra o desejo de
sua vida, e neste ato podemos pensar o feminino que aí se inscreve. Seria, portanto, um
feminino que atrela beleza e morte à criação sublimatória e, na medida em que tratamos de
uma heroína trágica, neste atrelamento se implica a dimensão de conflito irreparável própria
ao trágico.
A figura feminina de Antígona marca o lugar da sublimação como destino pulsional, em
que beleza e morte têm no desejo seu ponto de interseção, ou seja, se na criação sublimatória,
desde Freud, já se considera o trabalho das pulsões de vida e morte, Antígona mostra que este

106
trabalho se exerce através do belo enquanto visada do desejo. Nos liames entre morte e
criação bela que esta visada apresenta, notamos a tênue fronteira na qual a sublimação se
situa, pois o desejo de morte aparece como motor para o belo, mas é também seu último
limite. Eis o destino escolhido por Antígona: situar-se neste lugar fronteiriço.
Ao se posicionar neste espaço, Antígona mostra o desejo que, segundo Guyomard
(1996), em sua irredutibilidade apresenta um caráter trágico, porém, esta mesma
irredutibilidade pode dar ensejo a um gozo do trágico, enquanto transposição dos limites entre
duas mortes. O trágico, portanto, estaria no desejo e no gozo, exercendo neles diferentes
funções a partir de sua irredutibilidade. O trabalho de Guyomard (1996) a este respeito segue
as vias que, na leitura do autor, estas perspectivas de gozo e desejo trágicos abrem para a
psicanálise; no entanto, limitar-nos-emos a pensar Antígona operando nestes dois registros: no
belo, como visada do desejo, e no gozo como campo da pulsão de morte que aí se apresenta.
A heroína grega mostra-nos que é no caminho do desejo e da morte que a sublimação
mantém seu trabalho, oferecendo renovadas satisfações que trazem consigo a certeza do não
esgotamento, o que dá ao campo artístico possibilidades constantes de rupturas. No decorrer
da história, outras personagens e obras artísticas colocaram em cena, com palavras e imagens
distintas, o que a figura de Antígona apresenta enquanto desejo inexorável. Através deste fio
que atravessa as obras artísticas, encontramos algo que diz respeito ao sujeito: um sujeito que
cria porque deseja; tal “porque” carrega a difícil articulação entre pulsão e cultura.

4.2 – Tragédia contemporânea: o Nome/Não de Sygne


A abordagem da tragédia contemporânea tem com Lacan, no Seminário 8: A
Transferência (1960-1961) uma análise da trilogia de Paul Claudel, Les Coûfoutaine, em que
o autor se dedica a pensar as narrativas L'Otage (1911), Le pain dur(1913) e Le père humilié
(1916) a partir do que chama de a tragédia do desejo. Dedicar-nos-emos à primeira peça da
trilogia, L'Otage, a partir da figura da heroína Sygne, pelo destaque dado por Lacan que, na
esteira de pensar as figuras trágicas com estreito laço entre desejo e morte, vê em Sygne este
laço atuar de forma diferente da heroína grega.
Com laço entre desejo e morte, Sygne de Côufontaine é tomada por Lacan (1960-
1961/1992) para destacar a ultrapassagem dos limites entre duas mortes em que, se Antígona
vai até seus limites, a heroína claudeliana os atravessa. O trabalho de Lacan, ao se dedicar à

107
trilogia de Paul Claudel, vê em Sygne, a radicalidade do desejo, na medida em que toma para
si a salvação da família, aparentemente respondendo a uma necessidade; no entanto, o faz
sustentando um não/nome até seu último suspiro, mostrando o que Lacan chama de “a beleza
dos ultrajes”, que ultrapassa a necessidade e sinaliza o desejo. Esta perspectiva, de um fio
trágico que liga as personagens, mas que comporta diferenças nos modos como beleza e morte
são apresentadas, surge-nos como profícuo campo de estudos para nossa hipótese de pesquisa.
Partindo deste disparador - o desejo que atravessa os limites da morte -, que esperamos
situar dentro de nossa questão, adentraremos no enredo de Paul Claudel, buscando
compreender como as articulações da peça ofereceram elementos para a leitura lacaniana.

4.2.1 – O desejo em sua articulação no enredo de L’Otage


A obra L’Otage , peça em três atos escrita em 1911, passa-se no momento da ascensão
de Napoleão e queda do poder da igreja, motivo pelo qual o papa torna-se refém (l'otage) do
Barão de Turelure que, para manter o segredo de que Sygne abrigava o pontífice raptado da
prisão, chantageia a personagem para que esta case com ele. Temos por pano de fundo a
derrocada da nobreza, que também se mostra no aceite de Sygne a esta união, na medida em
que Turelulure, que tem seu título de barão graças à adesão a Napoleão, é filho de uma antiga
criada dos Coûnfontaine, os quais agora se encontram em decadência
Privada de sua família e de seus bens, a moça abre mão do amor por seu primo George
de Coûfontaine e cede ao assédio do abjeto Toussant Turelure25, encontrando no casamento
uma possibilidade de recuperar as terras da família, ou seja, a heroína toma para si a
restauração da ordem ao preço da perda de seu desejo. Desta operação de renúncia em prol de
uma ordem já perdida, resta-lhe um sinal em forma de tique nervoso, em que a personagem
balança a cabeça em sinal de não. Tendo na língua francesa a homofonia entre Sygne/sinal e
não/nome, estes significantes irão atravessar a narrativa fazendo confundir a própria
personagem com seu tique, e o negativo que ele movimenta como a inscrição de um nome.
O tique nervoso em forma de Não, que acompanhará a personagem ao longo do último
ato até o momento de sua morte, aparece pela primeira vez na peça já no primeiro ato,
enquanto ela conversa com seu primo George e este lhe diz que seus filhos estão mortos.
Neste sentido, é ao se dar conta de que os Coûfontaine estão dizimados, só restando Sygne e
George, que o Não/Nome surge à heroína:

25
Destaque para a homofonia de “Toussant”, com o nome dado ao dia de todos os santos e “Turelure” com a
proximidade à tirelire, uma espécie de cofre. (Cf. Seminário 8: A Transferência, 1960-1961, p. 486)
108
Coûfontaine: ... estão mortos. Todos dois quase ao mesmo tempo,
enquanto eu estava na França, desta terrível febre inglesa
Sygne: Deus tenha piedade de nós!
Sygne permanece durante um momento imóvel, os olhos fechados e como
desfalecida, depois lentamente ela agita a cabeça como alguém que faz “Não”
Eu suponho que não há nada a lhe dizer, George?
Coûfontaine: Não há nada a me dizer

Pausa
(CLAUDEL, 1911, p. 19. Livre tradução26)

Este Não, que surge logo após a heroína recorrer ao divino, além de apontar o desejo
pela via negativa - o que posteriormente tomará maiores contornos quando de seu casamento
com Turelure -, sinaliza o conflito que, segundo Maurano (2001), o cenário histórico da
narrativa e os modos como Claudel aí dispõe os conflitos apontam a decadência dos valores
da fé que, pela leitura da autora, deixam antever a derrisão do pai, derrisão que
progressivamente tomará contornos e terá seu ápice na terceira peça da trilogia, Le père
humilié. Para os nossos interesses em Sygne, ressaltamos esta dimensão de uma queda do pai
enquanto perda dos discursos religiosos e políticos até então hegemônicos, que encontra na
figura de uma mulher a tentativa de resguardá-los e, no mesmo passo de sua tentativa, um não
se insurge como sinal.
O não/nome da heroína carrega a mensagem que este sinal tornado Sygne vem marcar, e
estará muito próximo ao desejo e à morte, na medida em que demarca um desejo que não se
alinha com o ato do casamento, desalinhamento que se manterá até sua morte, quando ela se
atira na frente da bala que atingiria Turelure. Lacan (1960-1961) destaca que este ato não é
realizado por amor, mas pela ultrapassagem de todos os limites, onde “a vida é deixada de
longe, para trás … a heroína vai contra tudo que se liga a seu ser até suas mais íntimas raízes”
(LACAN, 1960-1961/1992, P. 271)
O deixar a vida de longe, destacado por Lacan, acompanha Sygne antes mesmo do ato
que a leva à morte, sublinhando a importância da honra e do nome em detrimento da vida.
Esta característica da heroína de Claudel novamente nos mostra o conflito entre os valores da

No original: Coûtontaine: ... sont morts. Tous deux Presque en meme temps,
pendant que j’etais en France, de cette mauvese fièvre anglaise
Sygne: Dieu ait pieté de nous!
Sygne reste pendant un moment immobile, les yeux fermés et comme evanouie, puis lentement elle
agite la tête comme quelqu’un qui fait “Non”
Je suppose qu’il n’y a rien à vous dire, George?
Coûfontaine: Il n’y a rien a me dire
Pause

109
fé e da monarquia face aos valores do império; o que tem na figura de Sygne uma radicalidade
que não diz respeito apenas aos discursos que permeiam a peça, mas se insere no destino
próprio à heroína. Seguindo este caráter radical, Sygne deixa a vida para trás não apenas ao se
atirar na frente de Turelure, mas também quando diz abdicar da vida enquanto ainda evitava o
casamento:

Senhor Badilon: O que o mantém [George] que vale mais que a vida?
Sygne: A honra
Senhor Badilon: Esta honra a qual honrarás teu pai e tua mãe
(...)
Sygne: Eu nãodesposarei Toussaint Turelure!
Senhor Badilon: A vida de George também está em seu poder
Sygne: Que ele morra como eu estou pronta a morrer! Nós somos eternos?
Deus me deu a vida e eis-me aqui pronta a deixá-la.
Mas o nome é meu! Minha honra de mulher é somente minha!
(CLAUDEL, 1911, p. 88-90. Livre tradução27)

A protagonista mostra sua radicalidade ao evitar o casamento com aquele frente ao qual
ela irá se atirar e ser alvejada, mostrando aí que o ato que a levará à morte não se refere a
Turelure, mas está sob a égide do caráter radical da personagem. Tal caráter, neste trecho
citado, direciona-se ao nome e à honra de mulher, os quais são valores inquebrantáveis
mesmo diante da morte, o que nos sinaliza, para além da leitura histórica que claramente está
presente na obra de Claudel, o lugar de destaque que os significantes “nome” e “mulher”
alcançam na cadeia simbólica daquela que será capaz de ultrapassar os limites da vida, pois
nem a morte toca tais significantes.
Neste sentido, assim como nos momentos destacados por Lacan em que o nome/não de
Sygne colocam em cena a tragédia do desejo, outras cenas também sinalizam esta inscrição do
desejo como ultrapassagem dos limites entre duas mortes. A peça de Paul Claudel, na figura
de Sygne de Coûfontaine, de diferentes maneiras apresenta-nos uma forma de criação em que
não se está sob o domínio dos limites que, ainda que ocupados pela heroína Antígona com sua
beleza e ofuscamento, são estabelecidos por uma organização simbólica; ao passo que com os
Coûnfontaine, há uma derrisão desta organização, eis o que Sygne sinaliza.

27
No original:MonsierBadilon: Que lui garder qui vaille plus qui la vie?
Sygne: L’honeur.
MonsierBadilon: Cet Honneur dont tu honoreras tes père et mere. (…)
Sygne: Je n’epousarai point Toussant Torelule!
MonsierBadilon: La vie de George aussi est en sa puissance.
Sygne: Qu’il meure comme je suis prête à mourir! Sommes-nous eternels?
Dieu m’a donné la vie et me voici prompte à la rendre.
Mais le nom est à moi! Mon honneur de femme est à moi seule!
110
A peça continua após a morte da heroína, que na penúltima cena, ao dizer suas últimas
palavras “tudo está esgotado” (p. 141), desfalece e só então deixa de apresentar o tique em
forma de não, ao que recebe a última oração de Badilon. Esta mesma cena tem uma variante
escrita por Claudel, na qual a heroína, alvejada e semimorta, divide seus últimos momentos
não com Badilon, mas com Turelure, que irá atribuir o ato de Sygne ao amor que esta sentiria
por ele e, se com o confessor a cena é uma tentativa de redenção, com Turelure o “não” do
tique encontra uma elaboração por parte do vilão que oscila entre raiva, tentativa de acerto de
contas e agradecimento por tê-lo salvado; a tudo isto Sygne segue em silêncio e apenas
balança a cabeça em negativo e, tal qual a cena variante, Confoûntaine Adsum são as últimas
atribuições dirigidas à heroína já morta.
Neste sentido, o não de Sygne, tanto na cena dividida com o confessor Badilon ou na
variante com Turelure, tem sua função de ultrapassagem através da morte da heroína. A
derrisão dos Coûfontaine faz-se através do ser desta personagem, o que é confirmado pela
última cena, que irá mostrar o abjeto Turelure recebendo o rei e sua caravana real e, após
apresentar o corpo de Sygne como uma demonstração de dedicação ao rei da França, ganhará
o título de Conde. Ou seja, a organização que ali se estabelece é mantida após o ato de Sygne
de Coûnfontaine, não há redenção após sua morte, nem mudança radical senão no próprio ser
da personagem, que com isto realiza a ultrapassagem entre as duas mortes.
O ato de Sygne de Coûfontaine, apesar da grandiosidade, é seguido pela continuidade
da ordem estabelecida, de modo que seu sacrifício não tem qualquer mudança que promova
um happy end ou uma reviravolta, marcando o caráter trágico contemporâneo destacado com
Zarrazac (2013). No entanto, esta aparente ausência de efeitos, positivos ou negativos, a partir
daquela que deixa a própria vida para trás terá conseqüências nas outras gerações, que se
apresentam em Le Pain Dur et Le Père Humilié. Mais do que uma linha de descendência
linear, estas consequências mostram uma atmosfera que liga as três obras, o que é referido
pelo próprio autor ao comentar sobre a trilogia:

Eu gostaria simplesmente de atrair sua atenção sobre este fato de que há alguma coisa de
comum nas três peças da trilogia, é o lado extremamente amargo, desiludido, quase cínico,
doloroso, que constitui, por assim dizer, a atmosfera. Nada é mais doloroso que o sacrifício
de Sygne, nada é mais amargo e mais cínico que o conflito do pai e do filho em Toussaint
Turelure e, enfim, mais igualmente doloroso que a cegueira de uma mulher que ama e que
não é capaz de ver e de realizar o objeto deste amor. (CLAUDEL, 1954/2001, p.279)28

28
Livre tradução para: « Je voulais simplement attirer votre attention sur ce fait qu’il y a quelque chose de
comum dans les trois pièces de la trilogie, c’est le côté extrêmement amer, desabusé, presque cynique,
douloureux, qui en constitue, pour ainsi dire, l’atmosphère.Rien n’es plus douloureux que le sacrifice de Sygne,
111
Nada é mais doloroso que o sacrifício de Sygne, o qual não garante uma mudança na
ordem estabelecida, mas compõe a atmosfera que irá atravessar a trilogia dos Coûfontaine,
ainda que, segundo Claudel (1954/2001) na mesma entrevista, não houvesse perspectiva de
continuidade na escrita, uma vez que quando compôs L’Otage não pensava em seguir a
descendência dos Coûfontaine em trilogia. Compreendemos assim que o ato sacrificial de
Sygne é pensado dentro da atmosfera de amargura quando lido retroativamente após a escrita
das três peças, ao passo que em sua inauguração e singularidade ele demarca um desejo que
caminha em direção à morte, sem qualquer promessa de mudança naquela geração ou em
próximas.
Esta dimensão do sacrifício da heroína, que não tem maiores conseqüências no enredo
de L’Otage, mas terá na continuidade de uma dramaturgia que, no entanto, não estava
pressuposta quando da escrita de Sygne, em muito nos ajuda a pensar a leitura feita por Lacan
(1960-1961/2010) da trilogia de Claudel como tragédia do desejo. Na medida em que o autor
pensa a trilogia claudeliana como os três tempos da recomposição do desejo, em que Sygne de
Coûfontaine é a marca do significante, o sacrifício realizado por nossa heroína tem seu lugar
dentro de uma estrutura, nas palavras de Lacan (1960-1961/2010, p. 365-366):

Com efeito, essa hiância se desenvolve, e o desejo acabado não é simplesmente esse ponto,
mas aquilo que se pode chamar de um conjunto no sujeito, do qual tento não somente
ilustrar a topologia num sentido paraespacial, mas também marcar os tempos. A explosão
ao fim da qual se realiza a configuração do desejo se recompõe em três tempos, e vocês
podem ver isso marcado em gerações (...) Na primeira, a marca do significante. É aquilo
que, na composição claudeliana, é ilustrado ao extremo, e tragicamente, pela imagem de
Sygne de Coûfontaine, levada até a destruição de seu ser, por ter sido totalmente arrancada
de todas as suas ligações de palavra e de fé.

A personagem, ao ser arrancada de tudo que a ligava aos valores da fé, deixa para trás a
própria vida e, neste ato, inscreve o significante naquilo que só será a visada do desejo duas
gerações depois, na figura de sua neta Pensée, fazendo assim a ligação entre estas duas
personagens através da recomposição do desejo. Este desejo, que em Sygne ainda é a
inscrição significante, mostra-nos que a ultrapassagem que a personagem faz dos limites da
Atè é o que permite os tempos seguintes da articulação do desejo, a saber, o objeto como não

rien n’est plus amer et plus cynique que le conflit du père et du fils dans Toussaint Turelure et, enfim, de plus
douloureux également que cet aveuglement d’une femme qui aime et qui n’est pas capable de voir et de realiser
l’objet de cet amour. » (CLAUDEL, 1954, p. 279. Memoires improvisés – Quarante et un entretiens avec Jean
Amrouche. Texte établi par Louis Fournier et indexé par Anne Egger. Paris: Gallimard, 2001)
112
desejado, na figura de Louis de Coûfontaine em Le Pain Dur, e o desejo em sua articulação
com o objeto parcial em Pensée de Coufontaine.
A fim de pensar este lugar de ultrapassagem do espaço entre duas mortes, que serve de
entrada para os demais tempos da articulação do desejo, dedicar-nos-emos à figura de Sygne a
partir das possíveis articulações com o feminino. Buscaremos pensar os modos com que esta
mulher, a única personagem feminina do enredo de L’Otage, se dispõe nele e ganha destaque
no ensino de Lacan para pensar o desejo.

4.2.2 – Ultrapassagem e atravessamento dos limites


A ultrapassagem dos limites entre as duas mortes, que Lacan refere à Sygne e a
diferencia de Antígona, pode ser pensada como o lugar do feminino que, conforme
destacamos anteriormente, desde os trabalhos freudianos surge como interrogação e com o
ensino de Lacan sinaliza os limites do significante fálico. Ainda que o autor não tenha tratado
diretamente do feminino no seminário em que se dedica a trilogia dos Coûfontaine, a forma
como a personagem claudeliana é pensada por Lacan (1960-1961/1992) mostra uma maneira
de operar com a linguagem que faz torções nos caminhos do sentido traçados pela própria
heroína, na medida em que segue a tarefa de recuperar os bens da família e salvar o papa; para
tanto busca o conselheiro e segue suas orientações, porém, é exatamente por este caminho que
ela diz não à vida e, de forma ainda mais radical, faz da vida uma morte através de seu não.
Ao atravessar os limites entre as duas mortes, Sygne sinaliza uma forma outra de operar
com os limites da Até, ponto em que o destino se inscreve e que nas tragédias tem um lugar
privilegiado; que podemos pensar como lugar onde se dá a partilha do sentido, do que se
compreende coletivamente sobre o que é destino. A este respeito, diz Maurano (2001, p. 127):

A Até, conceito fundamental para o presente estudo, tem o sentido de ponto onde o destino
se inscreve. Nesta tragédia estamos além de todo sentido. Estamos, eu diria, no ponto de
ruptura do sentido, de rasgamento do mesmo, em função de seu esgarçamento excessivo. O
sacrifício de Signe só consegue atingir a derrisão absoluta de seus fins. O papa, suposto
representante de Deus na Terra, pai de todos os fiéis, a quem ela é convocada a proteger,
raptado de seu lugar de origem, não figura na narrativa senão como um homem impotente,
sem força (…) Entre Antígona e Signe, Lacan faz um escalonamento do espaço trágico do
entre-duas-mortes – o já mencionado ultrapassamento da morte factual, a primeira morte,
em direção a mais absoluta esterilidade, a segunda morte.

Este esgarçamento do sentido sinaliza-nos uma posição singular na cadeia simbólica, a


qual podemos relacionar ao feminino face ao significante fálico e, na medida em que este
esgarçamento do sentido se faz dentro da própria organização que Sygne busca resguardar,
não se trata de um fora do sentido, mas de uma torção dentro dele. Este enlace com o

113
significante fálico apresenta-se na medida em que, ao tratarmos da tragédia contemporânea
como a tragédia do desejo, o falo está na cadeia que estrutura este desejo, o que tomará
maiores contornos com as outras duas peças da trilogia de Claudel, mas que, conforme iremos
ver mais adiante, já se apresenta em Sygne enquanto a marca do significante.
Esta torção no sentido pode ser compreendida pela própria denominação de “tragédia
contemporânea” dada por Lacan (1960-1961/2010), que com este título se refere menos à
cronologia, já que a peça foi escrita em 1911 e narra uma história que se passa no início do
século XIX, com a ascensão do império napoleônico, e mais à atualidade que a peça encena
quanto à relação com o desejo. Ao dizer que a tragédia contemporânea se dá não pelo terror e
piedade, mas através de todo terror e toda piedade, Lacan assinala aí o radical desejo do
sujeito, que é o desejo do Outro.
E novamente aqui retomamos o trajeto do ensino de Lacan sobre o feminino que,
contemporâneo à escrita sobre a trilogia de Claudel, em Diretrizes para um congresso sobre
sexualidade feminina (1960/1998) diz que o feminino questiona a mediação fálica ao se
dispor como Outro absoluto na dialética falocêntrica e, ainda que o autor não faça uma
referência direta entre estes seus dois trabalhos, consideramos que o movimento do
pensamento lacaniano sinaliza o feminino, diríamos também a figura feminina de Sygne,
como uma posição diferenciada na cadeia simbólica instaurada pelo falo. Assim, na medida
em que a tragédia contemporânea diz do desejo enquanto desejo do Outro, a figura de Sygne
mostra-se em estreito enlace com este desejo radical também por algo do feminino que ela
carrega.
Neste sentido é que Sygne, ao atravessar os limites da Atè, fará ver o desejo com toda
sua carga de terror e piedade pela renúncia que faz, pois já não se trata de culpa pela dívida
simbólica representada pela Atè, mas da dívida que é por ela própria instaurada e está ao seu
encargo, eis aí o trágico desejo contemporâneo. Ao ser retirada de outrem a dívida simbólica
a qual o sujeito deveria pagar, ele ainda lança mão das respostas que até então poderiam
regatá-lo - tenta-se salvar o papa como recuperação desta ordem -, mas é pela renúncia ao
próprio ser que Sygne surge como aquela que, ao mesmo tempo em que crê nesta ordem
perdida, padece o horror que isto lhe causa, tornando-se ela própria L’Otage:

Só pode ser refém, certamente, aquela que crê, Sygne, e que, por crer, deve testemunhar
daquilo em que crê. É justamente por isso que ela é presa, cativa nessa situação que basta
forjar para que exista – ser chamada a sacrificar à negação daquilo em que crê.
Ela é mantida como refém na própria negação, sofrida, daquilo que ela tem de melhor.
Algo nos é proposto que vai mais longe que a infelicidade de Jó e sua resignação. A Jó está
reservado todo o peso da infelicidade que ele não mereceu, mas à heroína da tragédia
114
moderna é exigido assumir como um gozo a própria injustiça que lhe causa horror.
(LACAN, 1960-1961/2010, p. 373-374)

O desejo nesta condição radical apresenta a marca do significante, já que, uma vez que
o Deus está morto e a Atè ultrapassada, o sujeito é lançado ao verbo e se torna o suporte da
marca deixada pelo significante. Porque falante, o sujeito suporta a dívida outrora sustentada
pela figura divina; é neste sentido que nossa heroína Sygne é a marca, o sinal, do significante.
No entanto, quando pensamos na articulação do desejo, sublinha Lacan (1960-1961 /2010),
devemos considerar as três gerações em que ele se recompõe, de modo que, conforme dito
anteriormente, Sygne se situa no primeiro tempo, da marca significante, e as outras duas peças
da trilogia de Claudel – Le pain dur e Le père humilié - apresentam personagens,
descendentes de Sygne, que marcarão o segundo tempo, do objeto enquanto não desejado, e a
última geração que é o próprio desejo.
O desejo, que em Sygne figura como a marca do significante, apresenta-se na trajetória
da heroína como o abandono dos valores da fé que a ligavam aos seus. Os Coûnfontaine
dizimados, resta-lhe resgatar a si própria com um Não/Nome até a morte. Este gesto, no qual a
vida é deixada para trás, tem seu motor, destaca Lacan (1960-1961), não naquele que solicita
o casamento, Turelure, mas na figura do confessor, o padre Badilon:

Certamente o santo Badilon não lhe impõe, propriamente falando, nenhum dever. Ele vai
mais longe. Nem mesmo é à sua força que ele apela, diz ele e escreve Claudel, mas à sua
fraqueza. Mostra-lhe aberto diante dessa aceitação pela qual ela se fará agente de um ato de
libertação sublime. Mas, reparem bem, tudo é feito para nos mostrar que, ao fazer isso, ela
deve renunciar em si mesma a alguma coisa que vai além de toda atração, de todo prazer
possível, de todo dever mesmo. Ela deve renunciar àquilo que é seu próprio ser – ao pacto
que a liga, desde sempre, à sua fidelidade à sua própria família – ao compromisso sagrado
que acaba de assumir para com aquele que ama. Aí está algo que nos conduz, não aos
limites da vida, pois sabemos que é uma mulher eu faria de bom grado o seu sacrifício,
como o demonstrou no passado, mas sim ao sacrifício daquilo que, para ela, como para
todo ser, vale mais que sua vida – não somente suas razões de viver, mas aquilo em que ela
reconhece seu próprio ser (LACAN, 1960-1961/2010, p. 341)

Neste trecho Lacan sublinha a diferença que reconhece entre a heroína antiga e a
contemporânea, bem como o ponto comum que as conjuga ao sacrifício, deixando antever o
feminino como algo que une e também separa Antígona de Sygne. O que faz Sygne sacrificar
seu próprio ser, e aí ser a marca do significante, é o conselho daquele que apela à sua fraqueza
para a “libertação sublime”. Este sacrifício, que, conforme citamos anteriormente, o próprio
Paul Claudel (1954/2001) diz ser o mais doloroso e compor a atmosfera que liga as peças da
trilogia, faz esta personagem feminina renunciar ao próprio ser e nesta renúncia apresentar a
beleza dos ultrajes.

115
Ao abrir mão de seu ser, morrendo no lugar daquele a quem não ama, a heroína
claudeliana desta forma faz o esgar da vida, sublinha Lacan, ser mais atentatório que o
enforcamento cometido por Antígona. Neste sentido, o suicídio 29 como ponto comum entre
nossas heroínas, surge com diferentes funções em cada uma, mostrando que a relação que
estas personagens têm com a própria morte parte de diferentes questões e, conseqüentemente,
produz efeitos distintos. Adentraremos a questão da morte e beleza em Sygne, a fim de pensar
como isto nos dá notícias de um particular modo de criação.

4.2.3 - Morte e beleza em Sygne


Conforme já esboçamos anteriormente, quando situamos a perspectiva de belo em
Lacan no capítulo 3.2, a heroína de L’Otage comparece como figura que ajuda a pensar a
beleza em estreito enlace com a morte e, uma vez que em seu destino a personagem atravessa
os limites entre duas mortes, a beleza aí se coloca de modo diferente. Cabe-nos pensar como
beleza e morte, significantes também presentes em Antígona, se articulam na personagem de
Claudel e o que esta articulação pode nos oferecer.
Comecemos pelo que Lacan (1960-1961/2010, p. 343) nos diz sobre esgar da vida em
Sygne, que é mais atentatório ao estatuto da beleza do que o enforcamento de Antígona; e na
própria expressão “esgar da vida” usada pelo autor já notamos a maneira com que a morte é
apresentada na heroína de Claudel, que, assim como apresenta o tique nervoso em forma de
“Não” após ser alvejada pela bala que acertaria Turelure, também traz essa negativa anterior à
morte propriamente dita. A vida nela já se esvaía antes mesmo de ser acertada pelo tiro, eis aí
o que atenta contra a beleza e mostra o atravessamento entre duas mortes durante toda a peça.
Mas não esqueçamos que é também em Sygne que se vê a beleza insensível dos ultrajes e a
radicalidade do desejo apresentada em seu “não”, de tal modo que nela a beleza se apresenta e
também é atacada.
Para compreendermos esta leitura que Lacan retira do drama claudeliano, é preciso
situar que no mesmo seminário o autor se dedica à beleza no comentário sobre o Banquete em
que, ao se debruçar sobre o amor, buscando aí compreender a dinâmica transferencial, Lacan
(1960-1961/1992) vai a esta obra emblemática sobre o tema na filosofia ocidental e nos diz
que é a beleza, em sua dimensão trágica, que lhe dá o verdadeiro sentido referido por Platão.
Dizer que o Belo dá o verdadeiro sentido ao amor, pressupõe que no amor o sentido está
oculto; qual seria então o sentido a ser revelado pelo belo? Entre as várias nuances que Lacan

29
Cf. Nota de Rodapé 23.
116
(1960-1961/2010) irá investigar nos discursos que compõem a obra platônica, o belo surge
como aquilo que especifica o amor e, ao manter relação com o ser e não com o ter, liga o
amor à geração, à criação do ser mortal.
Esta revelação feita pelo belo nos é apresentada por Diotima enquanto contradição ao
discurso socrático, o qual ali se dispõe para também compreender a natureza do tema em
debate. Quando se trata do amor, portanto, já não é possível um discurso como a maiêutica,
mas a fala de uma mulher vinculada à magia, e é partindo desta natureza que pode ela nos
introduzir no mito do nascimento do amor - filho de Poros e Aporia, o recurso e a pobreza -
para nos dizer que ele suporta o belo e o feio em si, escapando assim da lógica socrática que
os dispunha em posição de exclusão.
Já encontramos aqui alguns elementos que nos ajudarão na interpretação do Não/Nome
de Sygne, concebendo o belo como isto que diz respeito ao ser e não ao ter, e que comporta
em si aquilo que o saber dispõe em pontos contraditórios. Encontramos, ainda na fala de
Diotima, outros elementos que se situam no destino da heroína de L’Otage, quando Lacan
(1960-1961/2010, p. 164) refere ao trágico e ao discurso de Diotima a evocação da Até e do
desejo de morte, ao mesmo tempo em evoca que a máxima beleza. Ambos, amor e tragédia,
estão em condições de nos indicar a calamidade do desejo e a ele ser convocados por suas
miragens belas.
Nesta indicação/convocação ao desejo, deixa-se ver sua relação com a morte, de tal
modo que o belo surge como aspiração do sujeito em eternizar-se e também destruir-se;
estamos ou não muito próximos da figura de Sygne de Coûfontaine? A proximidade com a
personagem claudeliana torna-se mais clara quando Lacan explora a relação em que, no
discurso de Diotima, o belo deixa de ser referido ao suporte nos objetos e estes passam a ser a
transição para o belo, tomado em sua essência. Nesta passagem, de um meio para a finalidade
última, Lacan (1960-1961/2010) vê o movimento próprio ao desejo:

Para voltar aqui aos nossos próprios termos, pode-se dizer que a definição dialética do
amor, tal como é desenvolvida por Diotima, vem ao encontro o que tentamos definir como
a função metonímica do desejo. É disso que se trata em seu discurso – de alguma coisa que
está para além de todos os objetos, que está na passagem de um certo objetivo e de uma
certa relação, a saber, do desejo, através de todos os objetos, e rumo a uma perspectiva sem
limites (p.166)

O belo e o desejo se avizinham na medida em que ambos são o próprio motor da busca -
aquilo que Lacan irá referir ao amante enquanto faltoso -, porém, não devemos esquecer que a
morte também está contida nisto que Lacan chama de uma perspectiva sem limites. É aqui

117
que nossa heroína contemporânea se aloca: na transposição dos limites, Sygne de Coûfontaine
deixa ver a radicalidade do desejo que transborda o espaço entre duas mortes. Sua beleza,
assim, pode, a um só tempo, ser atentatória e um ultraje.
A beleza da morte de Sygne não serve a um fim grandiloqüente, já que, ao se atirar
diante da bala, ela morre por aquele que fora o carrasco de sua família, e desta forma não se
refere a um bem maior cuja beleza viria coroar heroicamente. No entanto, no ato de sua
morte, ela repete de forma intensificada o gesto que a acompanha em vários momentos da
peça, de modo que a morte que este “não” enlaça é a segunda, quando a própria vida até ali
levada já foi invadida pela morte. Esta perspectiva, que a leitura lacaniana sublinha e nos
mostra a radicalidade do desejo que aí se desenha, é observada num trecho da peça em que,
antes mesmo de ser convocada a salvar o papa casando-se com Turelure, a personagem diz:

Sygne: Meu Deus, vós tivestes atenção a esta pobre coisa que nós ainda tínhamos!
Que vossa vontade seja feita! Que vossa amarga vontade, que vossa amarga
vontade...
Nós permanecemos sozinhos, Georges, você e eu.
Você e eu cada vez mais uma só pessoa e sozinhos, e a vida como dela mesma se
retira de nós.
No mundo onde nós deixamos de ter parte e proporção30.
(CLAUDEL, 1910. Ato I, Cena I, p. 21)

Esta fala, que é antecedida por um longo lamento pelo destino dos pais e de toda a
geração dos Coûfontaine, mostra a morte que já invadira o destino da heroína desde o
primeiro ato da peça. Desta forma, podemos nos perguntar em que medida a salvação do
Papa, a que Sygne toma para si como tarefa, seria uma tentativa de sair desta morte em vida
ou apenas a continuidade de uma vida que já se retirara dela própria. A escrita de Claudel nos
permite estes dois caminhos de interpretação, já que a heroína hesita antes de ceder aos apelos
do confessor Badilon, dizendo que já não há nada a ser salvo, e mesmo com a salvação do
Papa através de seu casamento, não há uma recuperação da vida já perdida. Qualquer um dos
caminhos tomados não garante uma salvação da ordem; neste sentido é que a análise
lacaniana nos é esclarecedora quanto à derrisão absoluta representada pelo destino de Sygne
de Coûfontaine: ele apresenta o destino do belo naquilo que está para além de todo sentido.
Este além do sentido faz com que Sygne seja a porta voz da organização falaciosa
representada pela igreja, na figura do papa, e da própria nobreza emergente de que seu abjeto

30
Livre Tradução para: “Sygne: Mon Dieu, vous avez fait attention à cette pauvre chose que nous avions encore!
Que votre volonté soit faite! Que votre amère volonté, que votre amère volonté... Nous restons seuls, George,
vous et moi. Vous et moi de plus en plus une seule personne et seuls, et la vie comme d’elle mêmese retire de
nous. Dans un monde où nous avons cessé d’avoir part et proportion’’
118
marido faz parte; a tudo isso a heroína responde com um “não”. Ao ver aí o indício de um
sentido novo dado ao trágico humano, Lacan mostra sua herança freudiana cuja negativa
afirma um desejo em que, conforme o autor se dedica em outras lições do mesmo Seminário
8, a respeito do desejo e a dialética da castração, o “não” surge como uma primeira distinção
do desejo face à demanda, pois é pela possibilidade da recusa que na oralidade o sujeito
aponta um além da necessidade. Considerando os avanços no ensino de Lacan no que tange à
dialética do desejo, em cujos pormenores não nos deteremos e, pelos objetivos da pesquisa,
sublinhamos a marca do desejo apresentada pelo “não” de Sygne.
Isto nos mostra uma dimensão de criação que se faz pelo negativo, como aquilo que se
mostra às avessas na positividade e, assim, nela se insere; é o que mostra a trajetória da
heroína: ao ceder aos apelos e casar-se com o vilão, ela parece dar continuidade ao
encadeamento de sentido ali construído, porém, trata-se de uma ordem já perdida, em que o
tique nervoso em forma de “não” revela as faltas sobre as quais se ergue tal ordem.
Assim como revela as faltas, a própria escrita e impressão de L’Otage se ergue sobre
uma falta, o Û até então nunca impresso. Esta letra que falta é destacada por Lacan ao
adentrar na análise da trilogia de Claudel para pensar o Mito de Édipo hoje, sinalizando o
papel e a função da letra, naquilo que o autor nos adverte, “trata-se da edição de L’Otage e,
prestem atenção, não ao conteúdo, mas ao papel e à função que dei à letra, pois é esta mesma
a causa eficiente do fato de que vocês ouvirão falar, durante uma ou duas sessões, desta
trilogia sem igual” (LACAN, 1960-1961/2010, p.336). Tal advertência, que o autor não
retoma em sua leitura da trilogia de Claudel, encaminha-nos à letra como pano de fundo que
atravessa os efeitos que Lacan retira da tragédia contemporânea. Vejamos que notícias isto
pode nos dar a partir de Sygne.

4.2.4 – A letra que faltava para imprimir o significante Sygne


No início de seu trabalho acerca da trilogia de Paul Claudel, Lacan refere-se à
correspondência dele com André Gide que, na condição de editor de La Nouvelle Revue
Française, relata a dificuldade dos tipógrafos imprimirem a letra Û, mas que a vivacidade de
L’Otage, segundo relato do próprio Gide em carta, causou-lhe enorme prazer e por isso a
impressão na revista era de grande interesse. Este elemento sem o qual a obra, por brilhante
que seja em seu conjunto, não pode alcançar os leitores, sem dúvidas é de despertar o
interesse psicanalítico e, em se tratando de uma letra que até aquele momento não se usava na
impressão, nosso interesse direciona-se a uma inscrição inaugural presente em L’Otage.

119
As correspondências entre André Gide e Paul Claudel a este respeito datam de 1910 e,
entre junho e dezembro deste ano, os diálogos em torno de L’Otage vão desde a finalização da
obra relatada por Claudel, passam pela leitura e convite feito por Gide e as tentativas de
contornar a dificuldade de impressão da obra na Nouvelle Revue Française (cf. CLAUDEL &
GIDE, 1899-1926/1949). O relato de Paul Claudel, quando se consegue imprimir
“COÛFONTAINE” conforme sua escrita, revela-nos a importância desta obra para o escritor:

Eu lhe confesso que eu mesmo fiquei muito contente da leitura de meu segundo ato que é
muito bem vindo a sua impressão. L’Otage é para mim uma vitória em dois pontos de vista:
pela primeira vez, eu consegui colocar rédeas ao lirismo e criar personagens objetivos e
exteriores, o que quer dizer que depois das faculdades de expressão, aquela visão começa a
se desenvolver. Mas que dores pra se chegar lá! Quantas vezes eu estava desesperado e
prestes a largar tudo, e que ofício este do escritor! A experiência passada não serve para
nada, cada obra nova coloca novos problemas, diante dos quais se sente todas as incertezas
e todas as angústias de um novato, com mais algumas facilidades traiçoeiras que é preciso
brutalmente trabalhar – Enfim, nosso lema é como aquele dos embalsamadores de sardinha:
sempre melhorar. (CLAUDEL&GIDE, 1899-1926/1949.Correspondência de 22 de
dezembro de 1910, p. 157)31

Como podemos ver, o convite à leitura das correspondências entre Gide e Claudel feito
por Lacan no Seminário 8 não é sem razão; a troca de cartas entre os escritores é muito
interessante e, neste trecho supracitado, temos acesso à importância que Claudel confere a
L’Otage após a inscrição do Û. Ao dar testemunho de sua criação, naquilo a que o autor
chama de “colocar rédeas ao lirismo”, o que notamos são as nomeações dadas a posteriori
acerca do drama em que, sob nossa perspectiva, vemos a protagonista colocar em cena a
radicalidade do desejo. Mais do que um problema entre criação e recepção de uma obra de
arte, salta-nos aos olhos como a dramaturgia de Claudel nos ajuda a pensar a articulação do
desejo que, sem a escrita de uma letra nunca antes impressa, sequer teria a circulação do
drama.
Se com Sygne de Coûfontaine podemos pensar um primeiro tempo do desejo, da marca
do significante, este tempo primeiro é remontado à impressão de uma letra, como elemento
primordial que, no entanto, não tem autonomia e não pode ser pensado senão dentro da

31
Livre Tradução para : « Je vous avoue que j’ai eté très content moi même de la lecture de mon second Acte
qui est très bien venu à la impression. L’Otage est pour moi une victoire à deux points de vue : pour la prémier
fois, j’ai réussi a tenir en bride le lyrisme à creer personages objectifs et exterieurs, ce qui veut dire qu’aprés les
facultés d’expression, celle de vision commenccent à se developer. Mais que de peines pour en arriver là! Que de
fois j’ai été desesperé et sur le point de tout lâcher, et quel métier que celui d’écrivain! L’experience passée ne
sert à rien, chaque ouvre nouvelle pose des problemes nouveaux, devant lesquels on se sent tout les incertitudes
et toutes les angoisses d’un debutant, avec en plus certenaines facilités traîtesses qu’il faut brutalement maîtriser.
– Enfin notre devise est comme celle des embaumeurs de sardines : toujours à mieux »
120
dinâmica significante. Encontramo-nos, assim, na difícil articulação entre letra e significante,
e, ainda que não sejam exatamente estes os caminhos tomados pela leitura lacaniana a respeito
da trilogia dos Coûfontaine, ela nos lança questões para trabalhar tal articulação.
Sabemos que a noção de letra32 sofre algumas torções no ensino de Lacan, que em
escritos como A Carta Roubada (1956) e a Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão
desde Freud (1957) é tomada sem uma clara distinção com o significante, ainda que marcados
como instâncias distintas; ao passo que em estudos mais tardios como Seminário 18 (1971) e
Seminário 23 (1975-1976), esta distinção é marcada e situa a letra com sua face real, enquanto
escrita que não se reduz à função significante. Esta mudança ajuda-nos a pensar o lugar da
letra nisto que Lacan sublinha da impressão do Û na escrita de L’Otage, que neste momento
de seu ensino destaca a primazia do significante.
Pensando o significante em que, graças à escrita singular de uma letra, Sygne é a marca,
a partir dela é que se segue o tempo do objeto como rejeitado, seu filho Louis de Coûfantaine,
que no enredo de L’Otage aparece sem maior importância, apenas apresentado pelo pai
Turelure durante seu batizado, mas que na peça seguinte, Le Pain Dur, terá lugar de destaque
ao matar o pai e reproduzir um caráter não tão diferente deste. Também com o terceiro tempo
da articulação do desejo, a marca significante que é Sygne irá se ligar, tendo em outra
personagem feminina, Pensée de Coûfontaine, o lugar do desejo na figura de uma mulher
cega, que traz para si o desejo como objeto sempre faltoso. Em torno do significante é que
estas três gerações, abertas por Sygne, podem nos ajudar a pensar o desejo, indica-nos Lacan
(1960-1961/2010, p. 364):

O caminho no qual tento colocá-los, com a ajuda do drama claudeliano, é o de ressituar, no


coração do problema, a castração. Pois a castração é idêntica àquilo que chamarei a
constituição do sujeito do desejo como tal – não do sujeito da necessidade, não do sujeito
frustrado, mas do sujeito do desejo. Como já adiantei bastante a noção para vocês, a
castração é idêntica àquele fenômeno com que o objeto de sua falta, do desejo – já que o
desejo é falta – seja, em nossa experiência idêntico ao próprio instrumento do desejo o falo.

Tratar do desejo, portanto, significa nos direcionarmos ao falo, significante da falta; eis
o que a trilogia Claudeliana, de uma personagem feminina a outra, nos ajuda a pensar sobre
um sujeito que não está referido à necessidade, mas causado pelo desejo. Não por acaso, as
lições que antecedem a interpretação da trilogia de Claudel, são dedicadas a pensar o objeto

32
Lettre em francês, significante que guarda os sentidos de carta e letra, ao que o próprio trajeto do tema no
ensino de Lacan irá utilizar os dois sentidos. Dentro dos limites de nosso trabalho, iremos nos referir à letra e à
carta a partir das traduções aqui utilizadas sem, contudo, elidir o duplo sentido que a homofonia do termo francês
guarda.
121
de desejo e a dialética da castração, em que é o falo como marca da falta que surge com
destaque no campo do desejo. O interesse de Lacan, portanto, ao se dedicar à tragédia
contemporânea, é pensar como ela coloca em cena o drama do sujeito do desejo, em que o
significante fálico demarca o lugar da falta e faz desejar.
Interessante ressaltar que nesta dinâmica da castração, o feminino também está no
horizonte, questionando os meios com que o significante fálico nele opera, conforme tratamos
em nosso capítulo dedicado ao feminino. Na medida em que Sygne é a marca do significante,
tal marca opera com o falo pela afirmação de um não/nome, ao que notamos uma dinâmica
particular, feminina diríamos, de marcar o significante que posteriormente será o desejo.
Neste sentido, aquilo que na terceira geração surgirá como desejo, de início foi inscrito por
uma via negativa, fazendo das heroínas Sygne e Pensée os pontos de início e arremate da
estrutura do desejo.
Com isto, a heroína contemporânea à qual nos dedicamos, Sygne de Coûfontaine, dá-
nos a ver a maneira em que o desejo, ao guardar sempre uma proximidade com a morte,
encontra numa figura feminina um modo de operar com o falo dentro da estrutura do desejo.
Este modo de operar, que nos parece distante da concepção de sublimação tão bem
apresentada pela heroína grega, não está, contudo, afastado do laço social no qual opera a
sublimação. Sygne apresenta a entrada no desejo, mas também com ela temos a metáfora da
entrada na cultura:

Vocês entenderam bem, penso, o que eu disse – retira-se ao sujeito seu desejo e, em troca,
enviam-no ao mercado, onde ele entra no leilão geral. Mas não é isso justamente, o que
acontece no início, no andar de cima, e ilustrado, então, de uma maneira bem diferente,
feita desta vez, para despertar nossa sensibilidade adormecida? Quero dizer – não é isso que
acontece no nível de Sygne? (LACAN, 1960-1961/2010)

Compreendemos assim os desdobramentos desta marca que é Sygne, a qual coloca em


cena o desejo que somente em outras gerações poderá ser recomposto e, na medida em que
não é a respeito da sublimação que este desejo dá notícias - ainda que notemos os mesmos
registros, desejo e cultura, implicados no destino pulsional sublimatório –, notamos que o
ensino de Lacan tem, com a tragédia contemporânea, um deslocamento da leitura sobre a
inscrição do desejo no laço social.
Sem nos apressarmos a lançar questões definitivas a este respeito, nossa suspeita é que o
registro da letra aí se insinua para pensar outro modo com que a pulsão se coloca na cadeia
simbólica e, sempre a ela escapando, diz respeito ao registro real presente na criação. Partindo
desta suspeita, concebemos a obra de Claudel como emblemática deste ponto de dobra na
122
noção de criação que, entre significante e letra, abre espaço para pensarmos não apenas a
título de destino pulsional, mas de algo que diz respeito à estrutura do sujeito, em que a letra
surge como cifra de gozo.
Nosso trabalho seguirá no sentido de pensar as possíveis maneiras com que estas
questões se atualizam em uma obra de arte contemporânea. Para tanto, dedicar-nos-emos à
personagem Nawal Maruan da peça Incêndios, buscando pensar os modos com que ela nos
lança questões sobre sujeito e cultura.

4.3 – Nawal Maruan: tragédia contemporânea, mais ainda


Seguindo os passos lacanianos, recorremos à personagem Nawal Maruan da peça teatral
Incêndios de Wajdi Mouawad, em cuja protagonista vemos a figura de uma mulher que, em
meio ao cenário de guerrilhas do Oriente Médio, coloca em cena o inexorável desejo que a
move: ao viver um grande amor, ao buscar o filho perdido, ao proteger os filhos do passado
doloroso, ao calar-se ante a descoberta mais cruel, enfim, ao adentrar os tortuosos caminhos
em busca de revelações, pois, conforme uma de suas falas, “Há verdades que só podem ser
reveladas se forem descobertas” (p.132).
Desejo e revelação, nestes termos, apresentam-se desde o início da obra, com o
testamento de Nawal Maruan e, no decorrer da história, lança-nos à riqueza que os elementos
iniciais proporcionam, de modo que um desejo, enunciado como último pedido, é levado aos
primórdios daqueles que a ele se direcionam. Para a compreensão desta arquitetura
dramatúrgica, na qual o desejo da protagonista mostra-se através de revelações, dedicar-nos-
emos a apresentar o enredo de Incêndios, destacando o lugar assumido por Nawal Maruan ao
sustentar um desejo em que amor e morte estão sempre muito próximos. Esta proximidade,
que destacamos antes mesmo de situá-la dentro da história, está presente no cenário político e
social onde a peça se passa, mas, sobretudo, na singular história desta personagem feminina.

123
4.3.1 – Incêndios: um consolo impiedoso
A obra Incêndios (2003/2013) é a segunda de um quarteto33 escrita por Wajdi Muawad,
antecedida por Littora l(1997) e seguida por Forêts (2006) e Ciels (2008); a que o autor
denomina Sangue das Promessas. A independência entre as narrativas garante que esta união
entre elas se dê por um tema comum que as atravessa, sem que para tanto haja a retomada de
personagens ou acontecimentos; este tema comum, diz o autor no prefácio de Incêndios
(2003/2013), é a questão da busca pelas origens. Na obra em que Nawal Maruan é a
protagonista, este tema comum encontra um desenho muito particular, na medida em que a
busca por origens empreendida pela personagem procura a encaminha a dar origem a outros
destinos.
A peça inicia-se com a leitura do testamento de Nawal Maruan pelo tabelião Hermile
Lebel, diante do casal de filhos gêmeos Jeanne e Simon; entre alguns poucos pertences
deixados a cada um, estão três cartas: uma dedicada ao pai, que até então os gêmeos
acreditavam estar morto, outra a um terceiro filho, irmão que até aquele momento Jeanne e
Simon desconheciam a existência, e o aviso de uma última carta dedicada a eles, que só lhes
será dada após a entrega aos destinatários anteriores. Além das cartas, o testamento trazia o
pedido de ser enterrada nua e com o rosto virado para o chão, sem qualquer escrita em sua
lápide. Desde a leitura do testamento, pela reação dos filhos deixa-se antever a hostilidade
presente na relação deles com a mãe e, com a revelação de um novo irmão e do pai ainda
vivo, dispara a agressividade por conta do segredo mantido durante toda vida, que então surge
como trabalho deixado aos herdeiros.
A presença das cartas atravessará toda a narrativa que se passa no presente, o que será
alternado pela história da jovem Nawal Maruan, encenando a história de seu primeiro amor
por Wahab, da infância com ele compartilhada e, já na primeira cena em que se conta esta
história de amor, da despedida entre eles, pois Wahab será levado dali. Sem o detalhamento
sobre do que se trata este “ser levado”, compreendemos que se refere a questões políticas que
permeiam o Oriente Médio e, o que nos interessa ainda mais, de um destino que se desenha

33
Apesar do termo tetralogia ser comum para se referir a obras dramatúrgicas, segundo Coissard (2014),Wajdi
Mouawad prefere o termo “quarteto”, ainda que compreenda e também use o outro termo pelo seu laço com o
mundo teatral. Tal preferência é explicada pelo autor por compreender as obras não apenas por uma linha de
escrita que as une através de um tema de inspiração, mas, como o sentido musical carrega através do termo
quarteto, por uma composição em torno de uma execução comum, naquilo que o autor chama de “uma tentativa
de recontar um grito”* (Mouawad, 2009 In. Coissard, 2014, p.8). Considerando esta observação do autor, no
decorrer de nossa escrita, utilizaremos os dois termos, pensando o sentido de linha que une as peças e de voz em
torno da qual o quarteto busca recontar.
* livre tradução para: “une tentative de raconter un cri”
124
nesta separação, pois na cena seguinte ao “aconteça o que acontecer, vou te amar para
sempre” (p.46) dito ao companheiro, assistimos a protagonista dar à luz a um menino e lhe
dizer as mesmas palavras antes de se separar da criança.
Nestes flashes entre a história atual e a história passada, o espectador é lançado aos
elementos que conduzem àquilo que as cartas-testamento carregam como tarefas aos filhos
gêmeos, tanto no sentido da consecução destas tarefas, quanto no trajeto de uma mãe que
segue em busca do filho que lhe foi tirado na tentativa de salvá-lo dos ataques ao local. Ao
acompanharmos Nawal, já com 40 anos de idade, na prisão em busca do filho, notamos em
sua fala à amiga Sawda a repercussão da guerra, mas também a sua resposta oposta ao horror:

Sawda: Então, a gente não se mexe, é isso?


Nawal: Mas quem você quer convencer? Você não está vendo que tem homens que não se
pode convencer? Homens que não se pode persuadir de qualquer coisa que seja? Como
você quer explicar pro cara que urrava nos ouvidos dessa mulher “escolhe!”, exigindo que
ela mesma condenasse os filhos, que ele se enganou? (...) Sawda, quando arrancaram meu
filho do meu ventre, depois dos meus braços, depois da minha vida, compreendi que era
preciso escolher: ou eu arrebento a cara do mundo ou faço tudo pra encontrar ele de novo.
E cada dia eu penso nele. Ele tem 25 anos, a idade de matar e a idade de morrer, a idade de
amar e a idade de sofrer; então no que estou pensando, você acha, quando estou te contando
tudo isso? Penso na sua morte evidente, na minha busca imbecil, no fato de que serei pra
sempre incompleta porque ele saiu da minha vida e que nunca verei seu corpo ali na minha
frente. Não pense que a dor dessa mulher eu não sinta. Está em mim como um veneno. (...)
Todos os dias eu vivo no rosto daqueles que destroem nossas vidas. Vivo em cada uma de
suas rugas, e basta eu fazer isso para arrancar a carne deles todas até a moela de suas almas,
está me ouvindo? Mas fiz uma promessa, uma promessa para uma velha mulher de
aprender a ler, a escrever a falar, para sair da miséria, sair do ódio. E vou cumprir essa
promessa. Custe o que custar. Não odiar ninguém, nunca, a cabeça nas estrelas sempre.
Promessa para uma mulher que não era bonita, nem rica, nem nada de nada, mas que me
ajudou, cuidou de mim e me salvou. (MOUAWAD, 2003/2013, p. 90-91)

Responder ao horror fora do ódio, com a escrita e a fala como promessas desta resposta
fora do ciclo odioso, eis o que guia Nawal em busca do filho e, ainda que a continuidade desta
cena seja o plano de matar o chefe da milícia, tal plano carrega a intenção de acertar um único
alvo, sem que outras pessoas sejam atingidas. Com a consecução do plano, de atingir com
“duas balas gêmeas” (p.92) o chefe da milícia, Nawal é levada para outra prisão, onde
tragicamente encontrará o filho no carrasco que a engravida. Para não lançar mão novamente
da saída fálica através da violência - a qual, mesmo pontual e buscando atingir um agente do
ciclo de guerras, a levou à reviravolta de encontrar aquele que procurara neste mesmo ciclo -,
Nawal escreve cartas, colocando no campo da palavra o que a atingiu e não conseguiu se
tornar fala durante a vida.
Portanto, a escrita das cartas e seu endereçamento em forma de testamento, mais do que
uma narração, carrega o trabalho desta mulher face ao horror. Nos tortuosos caminhos

125
conduzidos por seu desejo, compreendemos a captura e prisão de Nawal pelo trajeto que as
cartas conduzem os filhos, fazendo ressoar um desejo que se enreda à busca pelas origens. E
neste sentido, perguntarmo-nos até que ponto aquilo que teve entrada pelo desejo, a busca
pelo filho, a conduziu a algo da ordem do gozo, ou seja, em que a mesma busca pelas origens
conduz ao objeto de desejo e ao inominável do gozo.
Como busca pelas origens, tema que o próprio autor refere como ponto comum ao
quarteto de espetáculos, a infância aparece como “uma faca enterrada no pescoço”, frase que
reaparece em vários momentos da peça pela voz de Nawal e outros personagens, e nos é
emblemático da revelação de que o filho procurado por Nawal, fruto de seu amor com Wahab,
é o carrasco Abu Tarek. A mulher que canta, como Nawal era chamada na prisão, e que com
seu canto garantiu que não fosse morta, cala-se ao descobrir o nariz de palhaço, que deixara
nas fraldas de seu filho, ser narrado pelo carrasco em seu julgamento como a única lembrança
deixada pela mãe. Com isso, a faca da infância é desenterrada e com ela a revelação,
oferecendo à protagonista um consolo impiedoso, em que desejo e gozo atestam suas
disjunções.
Encontrando no silêncio uma maneira de suportar tamanho sofrimento, nossa
protagonista permanece os últimos anos de sua vida sem dizer aos filhos gêmeos sobre suas
verdadeiras origens; tragicamente ela mantém o conflito que aí se dispõe ao amar o filho e
odiar o carrasco. Somente em sua morte ela consegue romper o silêncio através das cartas
deixadas ao casal de filhos Simon e Jeanne e, conforme dissemos anteriormente, fazê-los
encontrar verdades que só podem ser reveladas pela busca, conferindo assim ao testamento o
caráter de testemunho de um dizer.
As cartas, neste sentido, ocupam um importante lugar na narrativa, ao serem o início e a
revelação final que costura toda a trajetória de Nawal Maruan. Partindo disso, dedicar-nos-
emos à importância que as cartas podem nos oferecer sobre a criação que aí se dispõe,
encaminhando-nos ao trabalho sobre a letter que o ensino de Lacan nos apresenta, como
possível registro de criação.

4.3.2 – Uma carta sempre chega ao seu destino de litoral


A entrada na narrativa através de cartas-testamento por uma protagonista já morta
direciona-nos ao lugar da letter (carta/letra) que Lacan em O Seminário sobre a carta
roubada (1956) trata como um objeto que, mais que seu conteúdo, que é desconhecido, tem
importância pelo deslocamento que porta o testemunho de um dizer. Sabemos que no ensino

126
de Lacan o tema da letra terá um importante desenvolvimento, que trará algumas mudanças
com relação ao texto sobre a carta roubada, porém, ainda que consideremos estas mudanças, o
texto dedicado ao conto de Poe traz-nos elementos para pensar as cartas deixadas por Nawal
Maruan.
No Seminário sobre a carta roubada, em que Lacan narra o roubo pelo ministro da carta
destinada à rainha, o autor destaca que a carta/letra feminiza, e o ministro, no ato de roubá-la,
exala “o mais singular odor de femina” (p. 37). Neste momento de seu ensino, Lacan não
esclarece do que trata esta feminização, mas insiste nos efeitos que produz sobre os
personagens, os leitores e o próprio autor, em que o mistério se deixa antever pelo destaque
que a carta alcança, tornando-se ela própria o sujeito do conto. A feminização, assim, aparece
em estreito enlace com o mistério e o objeto de desejo e, na medida em que, na mesma obra, o
autor diz que o signo da mulher é aquele do qual ela foi despojada (cf. p. 35), sinaliza aí o
falo.
Esta nossa leitura, do efeito feminizante da carta vinculado ao falo, está guiada pela
retomada que Lacan faz do conto de Edgar Alan Poe no Seminário 18: De um discurso que
não fosse semblante (1971/2009), no qual o autor se dedica a pensar a letra como um registro
diferente do significante, distinção que não aparece claramente no texto de 1956. Neste
sentido, a carta roubada e sua ligação com o feminino, que em muito nos interessa, encontra
no ensino de Lacan uma continuidade na qual notamos o autor aprofundar os liames presentes
em tal ligação. A este respeito, diz Lacan (1971/2009, p. 87-88):

Da página 30 à página tal, vocês verão o que falo da veiculação da carta, da maneira como
o ministro a furta da Rainha, ou como Dupin se reveza com o ministro, e que consequências
traz o fato de ser o detentor dessa carta... Essa carta, que é aquilo de que falo da página tal à
página tal, vocês verão que fui eu que a escrevi. Será que eu sabia o que estava fazendo?
Bem, não vou lhes dizer. O que estou falando é do falo. E até diria mais: ninguém nunca
falou melhor dele. É por essa razão que lhes peço que se reporte a isso, que lhes ensinará
alguma coisa.

O modo “melhor” como o falo é tomado por Lacan refere-se menos ao estatuto de falta
que a todos mobiliza, sentido já presente desde a leitura freudiana, e mais aos efeitos por ele
provocados através de seu estatuto simbólico. Tomada como falo, a carta/letra, independente
do conteúdo que carrega, é disparadora das intrigas próprias ao enredo de Poe, e é nisto que o
significante, esvaziado de seu significado, dirá das posições de cada personagem face ao
deslocamento da carta/letra.

127
Esta dinâmica é o que assistimos em Incêndios, após a leitura do testamento e o anúncio
das cartas, nenhuma delas com seu conteúdo revelado antes da cena final; os filhos Simon e
Jeanne apresentando diferentes reações. Jeanne, o total silêncio, repetindo assim o gesto da
mãe nos últimos cinco anos de vida; Simon, rompendo o silêncio após a fala do tabelião:

Simon: Ela infernizou as nossas vidas até o fim! Vaca! Velha puta! Vaca de merda! Filha
de uma cadela! Velha cretina! Vaca velha! A pior piranha da raça dela! Ela realmente
encheu a porra do nosso saco até o final! A gente pensava todo dia há muito tempo: ela vai
morrer, essa vaca, ela vai parar de atazanar a gente, ela vai parar de nos dar nojo, essa
cretina! E aí, pimba! Game over! Ela acaba morrendo! E depois, surpresa! Não acabou!
Puta merda! Essa não dava pra prever; juro que não tinha a menor ideia! Ela preparou
muito bem essa jogada, calculou os negócios, cretina de uma puta! Vou enfiar porrada no
cadáver dela! Té parece que ela vai ser enterrada de cara pra terra! Té parece! A gente vai é
cuspir em cima dela! (MOUAWAD, 2003/2013, p. 27)

Com tamanha agressividade, o filho da protagonista não se interessa pelo conteúdo das
cartas, mas pelo que elas disparam: o não dito acerca de um irmão e de um pai, que o decorrer
do espetáculo revelará ser a mesma pessoa. A elaboração por meio da violência mostrar-se-á
neste personagem durante toda a narrativa, porém, esta violência, que o personagem já não
consegue usar em seu ofício de boxeador, fracassa na tentativa de afastá-lo dos últimos
pedidos da mãe, pois os efeitos da carta sempre o alcançam.
O deslocamento das cartas e a busca por seus destinos, terão outros efeitos sobre aquela
que permaneceu em silêncio diante da narração da herança-tarefa, deixada pela protagonista.
Após a leitura testamentária, Jeanne só fala na cena seguinte, ministrando uma aula de
matemática na qual diz aos alunos:

Jeanne: Não posso dizer hoje quantos de vocês passarão pelas provas que os aguardam. A
matemática tal qual como vocês a conhecem até hoje teve como objetivo chegar a uma
resposta estrita e definitiva partindo de problemas estritos e definitivos.A matemática na
qual vocês estão se engajando, seguindo este curso de introdução à teoria dos grafos é de
natureza totalmente distinta, já que trará problemas insolúveis. As pessoas à sua volta vão
ficar repetindo que isso que tanto perseguem é inútil. Sua maneira de falar vai mudar e,
ainda mais profundamente, sua maneira de se calar e de pensar. E é justamente o que não
será perdoado (…) Bem-vindos à matemática pura, quer dizer, ao país da solidão.
Introdução à teoria dos grafos (MOUAWAD, 2003/2-13, p. 34).

Na primeira fala da filha, não há qualquer referência direta às cartas deixadas pela mãe,
mas é o drama materno que lemos em suas palavras sobre a matemática pura, o país da
solidão que Nawal habitou, e que não foi perdoada por sua maneira de calar e pensar. É com
referência à matemática que também se deixam antever os efeitos enigmáticos da carta sobre
a gêmea, que, com seu modo de elaboração através do raciocínio lógico-matemático, na cena
seguinte explicará um polígono com cinco lados, em que cada canto representa um membro
da família – avó, pai, mãe, filho e filha –. Na descrição do polígono, o único lado que vê e é
128
visto por todos é a mãe, os demais membros vêem apenas parcialmente um ao outro; a
presença da mãe, portanto, é o elemento que garante a união de todos os lados, ainda que eles
não se vejam.
As reações de Simon e de Jeanne, ainda que em ato sejam radicalmente opostas, têm por
ponto comum a presença da mãe e o que suas cartas mobilizam, mesmo que eles
desconheçam seus conteúdos. Esta presença em ambos é apresentada também cenicamente, na
cena intitulada “Teoria dos grafos e visão periférica”, em que os filhos dividem o palco e,
enquanto Jeanne fala sobre o polígono em que a mãe é onividente, Simon treina boxe e não
consegue perceber as estratégias do adversário, padecendo daquilo que seu treinador chama
de problema de visão periférica. Ao colocar sobre o palco o que Coissard (2014) destaca
como uma questão do ver, e assim reenviá-la ao espectador, a obra de Mouawad lança a
presença da mãe a partir dos efeitos de cegueira produzidos sobre os gêmeos.
Esta presença da mãe atravessa toda a dramaturgia, que até a quarta cena do primeiro
ato só se apresenta através das cartas deixadas e dos efeitos sobre os filhos; são seus últimos
pedidos que acompanhamos. Na cena em que enfim assistimos à figura de Nawal Maruan, é o
seu chamado a Wahab que entrecorta a cena de Jeanne e o tabelião, em que a filha gêmea
busca compreender como seus pais se conheceram, ou seja, vimos em paralelo: a busca da
filha, a partir do ponto em que a carta a mobilizou, e a jovem Nawal tentando falar com seu
companheiro, o que depois compreendemos se tratar da revelação da gravidez.
Busca por origens e suas revelações têm aí uma clara ligação com o sexo, não no
sentido do encontro erótico dos corpos, mas do real do sexo que não se dilui nas explicações
que os sujeitos forjam. O que do sexo se escreve e se transmite? Em última instância, não
seria este o conteúdo das cartas enviadas por Nawal? Tratando-se de um discurso, que tem no
passado e no presente seus pontos de enunciação, podemos dizer que este discurso determina
funções que, seguindo o que nos diz Lacan (1971/2009), estabelecem o escrito como gozo. As
cartas da protagonista, neste sentido, são objetos que testemunham um gozo.
Estamos aqui no seio da carta/letra pensada por Lacan no Seminário 18, como litoral
entre saber e gozo, na medida em que é a fronteira entre o dizer de um gozo e o impossível
dele se saber, fronteira esta que, como uma formação litorânea, conjuga campos distintos sem
a clara determinação de seus limites nem uma reciprocidade entre eles. Entre a pergunta da
filha sobre a relação dos pais e a escrita endereçada a cada um dos destinatários, um gozo se
escreve que não está todo contido na revelação do conteúdo das cartas, ou seja, a resposta

129
através da organização discursiva não responde de todo às conseqüências que a carta produz,
revelando assim os efeitos de discurso próprios a letter e também em sua face real.
Nestes termos, sublinhamos que a transmissão da carta/letra diz respeito à organização
do discurso enquanto gozo, que neste sentido não diz respeito ao prazer, mas ao usufruto;
goza-se das cartas enquanto se busca aquilo que elas movimentam. Não se trata, portanto, de
revelar via carta uma mensagem de uma mãe aos filhos, mas de fazer uso daquilo que elas
mobilizam; é a isto que assistimos nas diferentes reações dos gêmeos e nas cenas de
retrospecção da vida de Nawal, estão eles usufruindo dos incêndios que compõem a peça34 e
que as cartas os conduzem.
Da letter pensada como suporte material do significante, a qual produz efeitos de
feminização, chegamos à letter que na escrita diz respeito ao gozo e, no mesmo seminário em
que assim é pensada, Lacan (1971/2009) postula que é pelo uso da letra que se pode articular,
na lógica, o universal e a proposição. Desta articulação, o homem surge referido ao universal,
ao passo que a mulher aparece em outra lógica que não a universal do todohomem.
Novamente letra e feminino se apresentam próximas, de modo que as diferentes perspectivas
sobre a letra são acompanhadas pelo trabalho que o feminino oferece a Lacan; tal
acompanhamento ajuda-nos a pensar os modos com que a criação se dá, a partir de uma lógica
que não se limita ao quantificador universal, ainda que passe por ele. Eis aí algumas chaves de
leitura para pensar o trajeto de Nawal Maruan.
O leitor atento perceberá que nosso trabalho a partir da protagonista de Incêndios afasta-
se da leitura da sublimação e feminino trabalhada em Antígona. Ainda que a perspectiva sobre
sublimação tratada por Lacan no Seminário 7 possa nos oferecer subsídios para pensarmos
Nawal, os elementos oferecidos pela narrativa de Mouawad têm muito a dizer sobre a escrita
e o gozo, do que sobre belo e ascensão do objeto à dignidade de Coisa.
Com uma trajetória distinta do heroísmo clássico35, tendo na cotidianidade e ausência de
feitos grandiloqüentes uma característica do trágico contemporâneo (SARRAZAC, 2013),
Nawal Maruan testemunha um modo de criação cuja escrita da própria história se dá, como
em Sygne de Coûnfontaine, através de todo terror e toda piedade e, mais ainda, aponta modos

34
A peça é dividida em quatro atos: Incêndio de Nawal, Incêndio da infância, Incêndio de Jannaane e Incêndio de
Sarwane (MOUAWAD, W. Incêndios. 2003/2013)
35
Além das possíveis aproximações e distanciamentos entre o heroísmo clássico e o contemporâneo que
notamos em Incêndios na figura de Nawal Maruan, o autor Wadi Mouawad também se dedicou à montagem de
tragédias gregas, em que a primeira série de montagens, realizada em 2011, foi intitulada “Mulheres”, na qual o
diretor colocou em cena as peças de Sófocles Traquínias, Antígona e Electra, mostrando-nos as diferentes
maneiras com que o trágico circula em sua obra através de personagens femininas. (Cf. COISSARD, 2014)
130
de operar dentro da lógica fálica e suplementá-la. Como situamos em alguns trechos da
narrativa, a heroína de Incêndios não deixa de ter saídas fálicas, mas também opera de outros
modos que não se limitam a elas.
Neste sentido, trataremos o feminino, pela lógica do não-todo e do gozo Outro, a partir
das possíveis entradas oferecidas por Nawal Maruan e, antes mesmo de adentrar nesta tarefa,
já anunciamos que estas possibilidades não dizem respeito à obra como um todo, mas a
diferentes dimensões dentro da dramaturgia. Não trataremos, portanto de uma criação fora da
organização simbólica feita pelo falo, mas que não está completamente sujeita a esta
organização.

4.3.3– Uma letra feminina ou a escrita d’A mulher


A criação deixada pela protagonista, na figura dos filhos e das cartas a eles endereçadas,
dá mostras de uma maneira de operar com aquilo que lhe trouxera dor e é fruto do amor, o
que é escrito no conteúdo das cartas (cf. MOUAWAD, 2003/2013, p. 125-132); mas, antes
mesmo de se ter acesso a este conteúdo, o movimento dos filhos em busca de um sentido à
própria história, que as cartas mostraram não ser aquele que até então os orientava, apresenta
a confluência entre amor e sofrimento. A busca por sentido, portanto, fracassa naquilo que o
saber oferecia como amparo, isto porque este sentido é aparência, nos diz Lacan (1972-
1973/2008, p. 85):

Com efeito, um discurso como o analítico visa ao sentido. De sentido, é claro que só posso
lhes dar, a cada um de vocês, o que vocês já estão encaminhados para absorver. Isto tem um
limite, que é dado pelo sentido em que vocês vivem. Não é dizer muito, dizer que ele não
vai muito longe. O que o discurso analítico faz surgir, é justamente a idéia de que o sentido
é aparência.
Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser para dar razão do
seu limite. Não há, em parte alguma, última palavra, se não for no sentido em que última
palavra é nem palavra, caluda – já insisti nisso. Sem resposta, nem palavra, diz em algum
lugar La Fontaine. O sentido indica a direção na qual ele fracassa.

O discurso analítico, ao fazer surgir a ideia de que o sentido é aparência, faz-nos pensar
o trajeto dos filhos em busca do sentido deixado pela mãe, naquelas que seriam as últimas
palavras de uma protagonista que permaneceu em silêncio desde a descoberta do filho até à
morte. O sentido ao qual aparentemente as cartas encaminhavam os filhos de Nawal, e como
cada um manejava esta busca – Simon, através da agressividade e Jeanne, do raciocínio lógico
-, direciona-os ao fracasso deste sentido, em que o ódio e o amor convivem na mesma figura
que recebe as cartas direcionadas ao pai e ao irmão. Estamos aqui nos liames entre
131
organização fálica própria ao sentido, com seu estatuto simbólico, e um operar feminino das
cartas de Nawal, na medida em que indicam o gozo impossível de dizer e escrever.
A descoberta do pai/irmão por uma operação matemática é emblemática deste fracasso
do sentido, justamente naquilo que o sentido indica a direção:

Simon: Você sempre me disse que 1+1 dá 2. É verdade?


Jeanne: É... é verdade...
Simon: Você não mentiu?
Jeanne: Claro que não! 1+1 dá 2!
Simon: Não pode nunca dar um?
Jeanne: O que você encontrou, Simon?
Simon: Um mais um, será que pode dar um?
Jeanne: Pode.
Simon: Como assim?
Jeanne: Simon!
Simon: Me explica!
Jeanne: Porra, não é hora pra matemática, me diz o que você encontrou!
Simon: Me explica como é que 1+1 dá 1, você sempre
disse que eu nunca entendia nada, então agora é a hora! Me explica!
Jeanne: Tudo bem! Tem uma conjectura muito estranha na matemática.
Uma conjectura que nunca foi demonstrada. Você vai me dar um número,
qualquer um. Se o número for par, a gente divide por dois.Se ele for ímpar,
a gente multiplica por 3 e acrescenta 1. A gente faz a mesma coisa
com o resultado. Essa conjectura afirma que pouco importa
o número do qual se parte, sempre se chega a 1.
Fala um número.
(MOUAWAD, 2003/2013, p. 120-121)

O casal de irmãos segue nesta conjectura a partir dos números por eles ditos e, quando
se alcança o resultado final igual a 1, Jeanne compreende a descoberta do pai e irmão
destinatário das cartas, sem que haja qualquer explicação para tal. Nesta conjunção de dois
em um, lembremos aqui a recorrência de Lacan (1971/2009) a Frege para postular a lógica do
não-todo: uma vez que o zero e o um podem ser o mesmo, já que o zero é um número,
quantificável e contável, ao que o Frege divide entre Sinn (sentido) e Bedeutung (referência).
Porém, Lacan subverte a lógica de Frege, que pensa em termos de referente longínquo ou
direto, ao passo que na leitura lacaniana o falo é o significante (Bedeutung) ordenador da
cadeia simbólica e, mais do que o compartilhamento da linguagem pela ausência/presença, diz
respeito a modalidades de gozo quanto a este referente.
Se o falo é Bedeutung que permite quantificar o dois em um, e aí encontrar o pai como
número, a mãe, que lançou os filhos nesta busca, escapa à quantificação; “A mãe, em sua
linhagem, eu diria, é inumerável”, nos diz Lacan (1971/2009, p. 162). Neste encontro entre
pai quantificável, a ponto de ser também o filho, e mãe inumerável, deparamo-nos com a
inexistência da relação sexual, pois na habitação da linguagem, em que masculino e feminino

132
se situam como significantes, o real do sexo não consegue se inscrever, dando a ver a
ficcionalidade presente no uso que se faz da linguagem para dar conta de algo que lhe escapa.
Essa impossibilidade de numeração da mãe, contudo, não impede que seja ela quem
habite o discurso, por mais ficcional que seja tal habitação, pois, eis o que Lacan avança no
Seminário 20: Mais, ainda (1972-1973/2008), “a mulher não será jamais tomada senão quo
ad matrem. A mulher só entra em função na relação sexual enquanto mãe” (p. 40). Nesta
disjunção entre mãe e mulher, que com Nawal Maruan apresenta a carga sexual e mortífera, o
ensino de Lacan nos encaminha ao lado mulher da sexuação: não estando totalmente na lógica
fálica, e não havendo um significante que a represente, ela não faz conjunto, ou, em termos
mais precisos, situa-se não-toda nesta lógica fálica.
A partir da lógica do não-todo, o feminino surge como impossível de dizer e de
escrever, mas que, como nos mostram as cartas e o silêncio de Nawal, consegue dar alguns
contornos a este impossível. Com isto nos aproximamos do que Caldas (2013) diz a respeito
da arte, quanto à escrita contingente do impossível que, neste sentido, deixa de sê-lo de todo,
fazendo cessar o que não cessa de não se escrever; no entanto, se a arte consegue fazer esta
operação feminina, o preço pago é a precariedade ao perseguir algo que não se escreve: A
mulher.
Escrita precária quanto ao impossível de escrever A mulher, mas que tem nesta
precariedade um motor para criação, em renovadas tentativas de escrever uma mulher. Neste
campo de criação, a fábula de uma mulher, Nawal Maruan, encaminha-nos para outras fábulas
- dos filhos gêmeos, do filho Nihad tornando-se o carrasco Abu Tarek, da avó a quem
prometeu sair do ódio pela escrita, dos combatentes e prisioneiros de guerra – e conforme
entrevista que acompanha a versão francesa Incendies (2003/2009), a própria fábula de Nawal
é inspirada em uma mulher, Souha Bechara, que relata a prisão e violação, e o lançamento da
pergunta ao agressor: “Como tu podes fazer isso, eu podia ser tua mãe?”, interrogação
disparadora para o enredo da peça.
Do horror que a violação ao corpo materno suscita, Mouawad constrói uma nova
história, sendo ela própria, tal como as cartas da protagonista, uma saída pelo campo da
palavra. Porém, se o horror foi disparador para esta elaboração, ele não é o único construtor
da trama - como bem sabemos, em se tratando de elaboração via palavra -, ao que o autor
refere os ensaios e reuniões com o elenco à invenção de algumas saídas dramáticas, como o
uso do nariz de palhaço como objeto em que a mãe reconhece o filho no julgamento do
carrasco e a profissão de boxeador de Simon. Sem adentrarmos nos detalhes desta nomeação a

133
posteriori sobre os modos de criação de Mouawad, interessa-nos, sobretudo, a dimensão de
savoir faire que estes relatos deixam ver, e que o conteúdo da carta direcionada ao filho
também nos revela:
Simon dá seu envelope para Nihad, que o abre.
Nawal: Te procurei por toda parte ...
Te procurei olhando para o céu,
Te procurei no meio das nuvens de pássaros
Pois você era um pássaro.
E o que há de mais lindo do que um pássaro voando no brilho do sol?
O que há de mais só do que um pássaro,
Do que um pássaro sozinho no meio das tempestades
Levando para os confins do dia seu estranho destino?
Nesse instante você era o horror.
Nesse instante você se tornou a felicidade.
Horror e felicidade.
O silêncio está na minha garganta, você duvida? (...)
Aconteça o que acontecer, te amarei pra sempre
Sem saber que, no mesmo instante, estávamos derrotados, você e eu
Já que eu te odiava com toda minha alma.
Mas ali onde há amor, não pode haver ódio
E para preservar o amor, escolhi cegamente me calar.
Uma loba defende sempre seus filhotes.
Você tem Jeanne e Simon diante de você.
Ambos teu irmão e tua irmã
E já que você nasceu do amor, eles são irmão e irmã do amor
Escuta, esta carta estou escrevendo com o frescor da noite.
Ela vai te contar que a mulher que canta era tua mãe
Talvez você também venha a se calar.
Então seja paciente.
Estou falando com o filho, pois não estou falando com o carrasco
Para além do silêncio.
Tem a felicidade de estar junto.
Não há nada mais lindo do que estar juntos.
Pois tais foram as últimas palavras do teu pai.
Tua mãe.
(MOUAWAD, 2003/2013, p. 127-129)

Após estas bonitas e reveladoras palavras, os gêmeos podem então abrir a missiva que
lhes foi destinada, cumprindo assim o pedido-testamento materno; de tal modo que as últimas
palavras da protagonista antes do silêncio absoluto, “não há nada mais lindo do que estar
juntos”, ganham na carta uma escrita anterior e posterior que dão sentido aos atos de Nawal.
Pelo campo da palavra temos acesso à escrita de uma personagem feminina, que transmite em
cartas o que lhe tirou a fala, de modo que o ato da escrita tornou possível o impossível de
dizer. Encontramo-nos, assim, em diferentes registros no que tange à função da fala e a
produção do escrito, o que nos convida a pensar estes diferentes registros de criação a partir
do enredo de Incêndios.

134
4.3.4– Do silêncio e da escrita como testemunhos
A escrita e o silêncio de Nawal Maruan, que desde a primeira cena da peça nos são
apresentados através de seus filhos, dão a ver aquilo que a personagem deixou em presença e
em ausência: a presença do escrito e a ausência da fala. Estes dois registros não se situam em
completa oposição, mas com nuances que mostram a maneira com que a produção de sentido
se realiza em cada um.
A presença do escrito, como já destacamos, atravessa toda a narrativa mesmo sem o
conhecimento de seu conteúdo, ao passo que a ausência da fala demarca o momento
traumático da descoberta do filho no julgamento do carrasco. A partir dali, Nawal Maruan
segue em silêncio até o momento da morte, e a filha, ao seguir os caminhos abertos pelas
cartas, escuta a gravação do silêncio, feita pela enfermeira que acompanhara Nawal em seus
últimos anos de vida; a escrita deixada leva ao silêncio também deixado. Lemos aí duas
formas de operar com a voz e a letra.
Estes diferentes registros e modos de operar encaminham-nos à função do escrito, como
é tratado por no Lacan Seminário 20 e, o que o próprio autor indica na lição dedicada a
Jackobson, ao texto O Aturdito (1972), em que a produção de sentido está em estreito vínculo
com o dito. Na famosa frase “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se
ouve” (LACAN,1972/1998, p.448) lançada em Aturdito e retomada em Mais, ainda, é o
lugar do dito que tem destaque - como algo para do além do que se julga no dizer e que
sempre resta aberto – e deixa antever que o escrito não é da mesma ordem do que é ouvido36.
Antes de adentrarmos naquilo que estas ordens distintas nos oferecem em Nawal,
recolheremos a dimensão de significação tratada em O Aturdito e Mais, ainda que nos ajude a
pensá-la em nossa protagonista.
Segundo Pinheiro (2014), o ensino de Lacan tem com O Aturdito e o Seminério 20 um
momento em que o autor se dedica à questão da significação de modo distinto do que fizera
entre os anos 50 e 60, em que o significante é referido àquilo que se insere no significado,
deslocando-se para pensar a significação como aquilo que tem efeito de significado; eis aí o
lugar do dito na produção deste efeito. Não esqueçamos que também nestas obras de 72 e 73,
o ensino de Lacan está às voltas com a questão de uma lógica em que o existencial não se

36
A respeito desta diferença entre o registro da fala e da escrita na produção artística, remeto o trabalho
desenvolvido por Fátima Pinheiro (2014) em sua tese de doutorado, na qual a autora se dedica a pensar o saber
do artista a partir da prática da letra.
135
reduz ao universal, no qual as fórmulas da sexuação serão elaboradas a partir de uma lógica
fálica e uma não-toda fálica.
Na medida em que se considera o universal contendo uma existência que o negue, o
possível que se recorta deste universal é também ele habitado pela negação, ou seja, dentro do
que se inscreve como possível há a negação do universal que, assim, não se destaca dele, mas
o opera de forma suplementar. Estes quantificadores, que dizem respeito à lógica no discurso,
apontam o que nele se coloca como impossível, a saber, que não há relação sexual. Notamos
que a proximidade entre sexuação e significação dá notícias dos modos com que a
organização simbólica, oferecida pelo falo, pode ser operada e produzir efeitos de sentido,
assim como dizem respeito a modalidades de gozo.
Nesta produção de sentido e de gozo, como já sublinhamos, o que se ouve e o que se lê
não é da mesma ordem; a este respeito, Caldas (2001) faz um importante esclarecimento:

Aos tradicionais objetos oral, anal e genital freudianos, Lacan acrescentou o olhar, a voz e a
letra. Voz e letra se imbricam: a voz do lado da ressonância que se precipita, que cai do
significante como suporte fônico, e a letra do lado do traço de escrita. Como objetos,
podemos situar a voz na articulação da fala por suas ênfases e modulações, na ressonância
da poesia, na musicalidade dos efeitos sonoros. Um objeto de gozo mais próximo à
produção de sentido – o sentido gozado. A letra como objeto fica do lado do puro traço da
escrita, no desenho, na caligrafia; mais independente da voz e da fala portadora de sentido
(p. 4)

Encontramo-nos, assim, nas formas com que os objetos voz e letra se colocam no
discurso e revelam modos de gozo. Com Nawal Maruan, o registro da letra, conforme
trabalhado anteriormente, ajuda-nos a pensar vários caminhos de inscrição. Quanto à voz, o
que é ouvido é seu silêncio, uma ausência presentificada e registrada, mas ela também é a
mulher que canta e, com as modulações e ressonâncias que a voz lhe permitiu, conseguiu
sobreviver à prisão e ter sua identidade vinculada a este canto. Dois modos de produção de
sentido que relevam um gozo pela presença e pela ausência, ao que referimos uma
freqüentação do fálico e do não-todo fálico, pois é falicamente que ela lança sua voz e desafia
seus torturadores, mas é também para além do desafio que seu canto a faz suportar os horrores
da prisão e, por não suportar o horror máximo de ver o filho no carrasco, sua voz se ausenta.
Nestas diferentes configurações dramatúrgicas, notamos a personagem Nawal Maruan
fazer do campo do possível seu lugar de silêncio e de canto, em que o contingente contém
algo do impossível de dizer. Na medida em que este contingente é o que alcança os filhos e,
através deles, o silêncio e o canto ganham sentido, notamos aí o testemunho de um dizer e de
um calar que se transmitem, como mostra emblematicamente a cena final em que, após a

136
leitura das três cartas, os gêmeos voltam a ouvir o silêncio da mãe, antes que as cortinas se
fechem diante do espectador.
Transmissão e testemunho então se atrelam para fazer chegar algo da ordem do
intransmissível próprio ao feminino e ao gozo, o que só pode ser pensado enquanto produção
de sentido contingencial. Estamos diante de uma produção contingente do feminino realizada
através de testemunhos, os quais só puderam chegar ao estatuto testemunhal porque antes
houve produção de sentido, como meio de dar contornos ao inominável. De tal modo que
aquilo que garantiu a sobrevivência ante o horror, pode então ser endereçado ao Outro e, a
partir daí, fazer laço, em um movimento que diz respeito tanto à dinâmica interna dos
personagens, quanto da própria obra Incêndios com o leitor/espectador.
Situamo-nos, assim, naquilo que Costa (2015), ao pensar os liames entre transmissão e
testemunho em psicanálise, nos diz da função do testemunho: fazer passar algo que não faz
série e a importância, para tal, do estar em presença. Nestes dois registros é que a peça
Incêndios nos ajuda a pensar um modo de criação testemunhal, em que o estar em presença,
próprio ao teatro37, conjuga-se à dinâmica de uma protagonista onipresente no enredo, mesmo
depois de sua morte; e que, através da trama apresentada, diz de uma singularidade que não
faz série, mas ainda assim transmite seu dizer/calar.
Concluímos, assim, este recolhimento do que a trajetória de Nawal nos oferece no ponto
em que sua última fala antes do silêncio absoluto nos indica, ao dizer “não tem nada mais
bonito do que estar juntos” (MOUAWAD, 2003/2013, p. 129); é a dinâmica de criação,
referente ao trabalho pulsional que faz laço social, que nos ressoa. Em um trabalho da pulsão
que parece estar mais do lado da escrita do que da noção de sublimação, a protagonista desta
tragédia contemporânea dá-nos a ver a riqueza que sua cifra da experiência pode nos oferecer.

37
Destaco aqui, como testemunho pessoal, a importância desta dimensão da presença própria ao teatro, discutida
por muitos autores do campo das artes para pensar a singularidade do texto teatral, como decisiva para o trabalho
na tese, pois, mesmo conhecendo integralmente o texto, por indicação da professora Simone Perelson, e assistido
o filme de Denis Villeneuve (2010), foi assistir a montagem brasileira de Incêndios, dirigida por Aderbal Freire
Filho, que me fez escolher esta peça para pensar meu problema de pesquisa.
137
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após o percurso aqui realizado, as palavras freudianas “perguntem aos poetas” com que
o autor conclui seu trabalho sobre feminilidade, ressoa-nos como um bom conselho, ao
mesmo tempo em que este convite a outra seara, que não a psicanalítica, parece o presságio de
que a psicanálise encontra no feminino algo que lhe escapa e é da ordem da poesia. Seguindo
o conselho e sem temer o presságio, nossa pesquisa adentrou nesta ordem da poesia na escrita
teatral a partir do trabalho pulsional, ou seja, encontrando na seara psicanalítica as possíveis
entradas ao campo em que o feminino tem lugar de excelência. Mantendo-nos na
incompletude própria a esta tarefa, que a assertiva freudiana também sinaliza, nosso trabalho
levantou algumas questões que lançam luz sobre modos de criação do sujeito, entre trabalho
pulsional e inscrição simbólica.
Conforme nosso percorrido, ao pensar a criação a partir do campo pulsional, de Freud a
Lacan este campo tem com a sublimação um caminho em que ao sujeito se abre uma
satisfação distinta do recalque, mas que esta abertura traz consigo as torções próprias à noção
de satisfação pulsional. Neste sentido, a pesquisa sobre sublimação já nos encaminharia a
problemas próprios a este destino pulsional e, como exploramos nesta tese, outros caminhos e
problemas se abriram ao pensarmos sua articulação com o feminino. Ligarmos o feminino à
pulsão, portanto, pressupõe a suspeita de que a sexuação e os destinos pulsionais têm pontos
de conexão, pontos que não os igualam, mas que nem por isso deixam de apresentar suas
singularidades. Em busca destas singularidades, nosso trabalho dirigiu-se às personagens
Antígona, Sygne de Coûfontaine e Nawal Maruan.
O direcionamento a estas três personagens faz-nos recolher diferentes questões. Com
Antígona, obra emblemática do teatro ocidental, o trabalho de Lacan (1959-1960) mostra-nos
que, se com Freud temos algumas notícias sobre este destino pulsional, a investigação
lacaniana vai aos paradoxos que esta vicissitude oferece na figura da heroína. Não por acaso,
a personagem sofocliana nos ajuda a pensar a sublimação e a ética da psicanálise, pois estes
dois registros guardam uma intimidade com o desejo, no qual morte e beleza estão colocadas,
o que se apresenta no trajeto de Antígona.
Tratar da sublimação, portanto, é adentrar no campo do desejo em sua dimensão
mortífera e bela, e na medida em que uma figura feminina nos encaminha a isto, nosso
trabalho seguiu no sentido de articular as possíveis maneiras com que o feminino, tal qual o
trajeto pensado de Freud a Lacan, se dispõe na personagem. A partir dos elementos oferecidos
pela narrativa, notamos que aquilo que, na pena lacaniana, é pensado como sustentação de

138
desejo - dar honras fúnebres ao irmão à revelia da lei de Creonte - traz consigo uma relação
com a morte enquanto afirmação da linhagem paterna, como maneira de sustentação da lei
simbólica.
Neste sentido, o desejo em Antígona mostra seu pertencimento à inscrição fálica, o que
se apresenta em seu caráter inquebrantável, próprio à descendência dos Labdácidas. Porém,
este pertencimento é feito de maneira singular através de sua beleza, dando a ver um além da
cadeia significante e dizendo respeito a Das Ding. Neste ponto onde o desejo e o vazio de Das
Ding se conjugam, é uma figura feminina quem se coloca, o que nos oferece elementos para
pensar o feminino como este lugar entre pertencer e mostrar os limites, que desde Freud surge
como convite e também ponto de opacidade. A partir daí, o ensino de Lacan irá avançar ao
pensar o campo do gozo que, ainda que não seja tratado nestes termos com Antígona, não
deixa de estar presente no seminário em que o autor se dedica a esta personagem.
A heroína da tragédia antiga, portanto, ajuda-nos a pensar o campo da criação em que
estão implicados a cadeia significante e Das Ding; em que morte e beleza se articulam e, na
medida em que é a ética da psicanálise que daí recolhe elementos para pensar a dimensão
trágica da experiência analítica, ressoa ao trabalho diário do psicanalista. Seja na escuta
clínica ou em instituições onde o psicanalista se insere, não seria esta dimensão da cadeia
simbólica e Das Ding que estaria no horizonte, uma vez que parte da ética do desejo? Esta
pergunta parece soar como um convite sempre renovado, indicando uma dimensão da
sublimação no seio do trabalho psicanalítico.
Pensar a sublimação em estreito enlace com a ética da psicanálise, portanto, faz-nos ter
com o campo artístico uma aproximação que não é de qualquer ordem - e aqui o
convite/presságio freudiano parece ter algum contorno -, na medida em que não se trata de
mera contemplação ou ilustração, tampouco uma sobreposição de um ao outro através da
sublimação, mas de ver no trabalho sublimatório o que Quinet (2014) chama de um “algo de
si” que pertence e escapa, em que o brilho de Antígona revela-se como desejo.
Se com Antígona o destino sublimatório é diretamente tocado, com Sygne de
Coûfontaine outros campos nos são introduzidos, sobre os quais nos debruçamos no decorrer
da tese. Direcionando-se à obra de Claudel e vendo nela a articulação do desejo, Lacan (1960-
1961) indica-nos uma relação com a morte e a beleza que é distinta daquela da tragédia
antiga, pois não se trata da sustentação da ordem simbólica, que em L’Otage de partida já está
perdida. Com a derrisão dos valores da fé, que na tragédia antiga ainda se apresentavam, o
que a heroína claudeliana vem nos indicar é a radicalidade do desejo que a partir daí se

139
coloca. Não se trata, portanto, de uma ausência da ordem simbólica em que ao sujeito restasse
a elisão do desejo, mas um desejo que se inscreve apesar da queda dos valores; eis o que o
“não/nome” de Sygne revela.
Esta inscrição do desejo que se faz malgrado uma ordem simbólica estabelecida, tem na
figura feminina de Sygne a marca primeira, inaugurando aquilo que só será objeto de desejo
duas gerações depois. Por isso seu “não” é emblemático e sua morte, sem qualquer relação a
um fim maior, apresenta a beleza insensível dos ultrajes, revelando que beleza e morte se
conjugam para pensar outros modos de criação a partir da queda dos valores da fé.
Trata-se, portanto, de uma visão que, conforme Maurano (2012), não nos encaminha
para um fim fatalista ou catastrófico, mas para abertura a espaços transfiguradores na cultura,
o que oferece à práxis psicanalítica uma incidência que busca dar contornos aos horrores da
vida e, sem recusá-los, fazer algo a partir deles. Nossa heroína contemporânea, portanto,
ajuda-nos a pensar o que se abre de possibilidades ao sujeito quando a esfera simbólica se
mostra humilhada, para usar o termo que aparecerá na terceira peça dos Coûfontaine; Sygne
nos mostra que a partir daí se faz a marca do significante, em que o desejo se conjuga com o
termo radical de sua realização.
Sublinhamos aqui o fato de ser numa figura feminina que Lacan (1960-1961/2010) vê
este primeiro tempo do desejo em que, através do atravessamento dos limites da Atè, nos
mostra o que pode advir a partir da derrisão do Pai. Esta personagem, que gesta aquele que
será o objeto rejeitado, Louis de Coûfontaine, e abre os caminhos para o desejo na figura de
Pensée, tem com os limites da esfera simbólica uma relação que se faz pela via negativa em
que, sem se recusar a dela participar, faz de seu “Não” a afirmação do desejo em meio à
ordem já perdida. Percebemos aqui um movimento próximo ao do feminino em relação ao
falo em que, ora se colocando como objeto de desejo, ora revelando o simulacro imaginário
que esta posição comporta e, assim, denunciando os limites da cadeia significante organizada
pelo falo, opera torções dentro do regime ali vigente.
Esta maneira de operar observada na figura de Sygne ofereceu-nos pontos de contato
entre feminino e criação em que, ainda que não sejam tratados em termos de sublimação, ao
se apresentarem dentro de uma obra de arte, serviram-nos de convite a pensar o trabalho
pulsional que aí se deixa ver. Nossa pesquisa viu na interpretação de Lacan sobre a trilogia
dos Coûfontaine, que tem sua entrada em L’Otage, um momento em que seu ensino se
aproxima do registro da letra, em que o significante, ainda que tenha sua importância, mostra
seus limites.

140
Este caminhar em direção à letra para pensar o trabalho da pulsão, como nossa tese
apresentou no primeiro capítulo, faz com que o percurso lacaniano se interesse por aquilo que
escapa à operação significante e, na medida em que notamos este direcionamento já presente
em Sygne de Coûfontaine, o registro da letra e do sigificante tem nela um desenho particular:
Sygne é a marca do significante, primeiro tempo na articulação do desejo, e só faz tal marca
por uma letra inaugural, o Û sem a qual ela não poderia se imprimir. Letra e significante,
assim, têm na personagem claudeliana uma conjugação interessante, que nos oferece
caminhos para pensar como o trabalho da pulsão se coloca nos arranjos da linguagem.
Estes caminhos abertos pela heroína Sygne, indicam-nos novamente o que Maurano
(2012) chama de uma transfiguração em que, face aos desenhos do mundo contemporâneo
com suas particulares exigências de satisfação, a psicanálise e a arte encontram meios de
responder aos horrores a partir de saídas inventivas, que não são feitas de uma vez por todas,
nem garantem a ausência de horrores, mas que abrem veredas possíveis. Neste sentido é que
Sygne de Coûfontaine insinua aquilo que o avanço do ensino de Lacan irá remeter às torções
entre letra e significante, implicadas nestas saídas inventivas abertas ao sujeito.
Sem negar a continuidade do trabalho pulsional sublimatório, já que estes registros não
se excluem, pensar a título de letra e significante é tratar das articulações entre a produção de
sentido e aquilo que nele não se subsume, apontando assim também para o campo do gozo.
Direcionamo-nos, portanto, a questões no sujeito em que, aquilo que diz respeito a sua
dinâmica psíquica e faz laço social, contém um campo que estes dois registros, do sujeito e do
social, não contornam de todo.
Dizer que o gozo também participa das formas de criação do sujeito direciona-nos à
questão da escrita que, conforme exploramos no decorrer do trabalho, tem no ensino de Lacan
um percurso em que a letra inicialmente não é claramente distinta do significante, mas que o
autor não deixa de colocá-los em registros diferentes; parece-nos que é neste momento que a
heroína Sygne se situa, entre a marca do significante e a letra, em que a derrisão da esfera
simbólica é o espaço para uma inscrição inaugural. O avanço no trabalho sobre a letra
encaminhou-nos para questões que ajudaram na leitura de nossa terceira heroína, Nawal
Maruan, na medida em que a letra enquanto litoral, pensada por Lacan no Seminário 18, e a
função do escrito, trabalhado no Seminário 20, ofereceram-nos operadores para pensar a
dinâmica desta personagem.
Quando nos direcionamos a uma peça teatral contemporânea que trata dos horrores da
guerra que tombam sobre a história de uma mulher, nosso olhar já se direciona àquilo que a

141
atualidade nos sinaliza de terrível, mas que, igualmente, participa do mundo artístico. Ao
adentrarmos na narrativa de Mouawad, nosso interesse foi menos pelo que a guerra no Oriente
Médio tem a nos dizer politicamente e mais pelos efeitos sobre um destino particular,
interesse eminentemente psicanalítico, de direcionar-se aos modos com que o sujeito traz sua
narrativa e, através destes modos, deixa ver uma dinâmica muito singular.
Com Nawal Maruan, entramos em contato com a história de uma personagem em que as
cartas nos ajudaram a pensar o registro da letra na construção de sua história, de modo que o
deslocamento das cartas se aproxima daquilo que Lacan no Seminário Sobre a Carta
Roubada destaca como efeito feminizante que, menos por seu conteúdo e mais pelo
deslocamento que provoca, deixa ver o estatuto simbólico que, conforme o autor irá retomar a
leitura sobre o conto de Poe no Seminário 18, diz respeito ao falo. Encontramo-nos
novamente nas articulações entre significante e letra e, diferente do que vimos em Sygne, com
Nawal as cartas, ainda que se prestem ao estatuto simbólico do falo, estão mais próximas do
escrito enquanto cifra de gozo, na medida em que carregam algo do inominável e não tratável
pelas vias simbólicas.
Esses dois estatutos, da letra e do significante, a que as cartas se prestam na dinâmica
dramatúrgica, mostraram-nos que a personagem atua na rede significante e também aponta o
campo do gozo, o qual nunca é de todo tomado pelo saber, mesmo com as revelações que as
cartas comportam. No registro do desejo e do gozo é que também se coloca a própria
trajetória da personagem em busca do filho: fruto de um desejo 38 que, regulado pela fantasia e
contornado pela rede simbólica, já contém as questões próprias ao descompasso entre a causa
do desejo e seus objetos ($<>a); e igualmente o trajeto a direciona ao gozo inominável, ao
encontrar o filho no carrasco.
Notamos com Nawal Maruan uma forma feminina de operar com as cartas e na própria
trajetória da narrativa e, uma vez que a referimos ao feminino, ressaltamos que não se trata de
toda a obra, já que ela também tem saídas fálicas no decorrer do drama, mas de momentos
cruciais da dramaturgia, como o silêncio e a escrita das cartas, em que se dá a nos ver um
gozo que não é todo regulado pelo fálico.

38
Mesmo que não seja tomado nos termos psicanalíticos que compreendemos por desejo, um relato do autor
sobre o lugar de Incêndios dentro do quarteto Sangue das Promessas o liga diretamente ao desejo, na palavras do
autor: “Litoral, Incêndios, Florestas, Céus, como vontade de recriar os elementos para responder à perda dos
elementos. Arrancado ao mar eis Litoral, arrancado ao desejo eis Incêndios, arrancado à montanha, eis Florestas,
arrancado aos pássaros eis Céus.”* (COISSARD, 2014, p.10) . * Livre tradução para: « Littoral, Incêndies,
Forêts, Ciels, comme l’envie de recréer les elemens pour répondre à la pertre des éléments. Arraché à la mer
voici Littoral, arraché au désir, voici Incendies, arraché à la montagne voici Forêts, arraché aux oiseux voici
Ciels »
142
A personagem do teatro contemporâneo, neste sentido, convida-nos a pensar uma
escrita contingente daquilo que é impossível de dizer, dando algum contorno ao que não cessa
de não se escrever e, na medida em que algo disso chega aos filhos e aos espectadores,
notamos um laço social que se constrói também a partir dessa operação. Assim, mesmo que o
feminino seja por excelência uma modalidade de gozo sem um significante que o represente,
para isso recorrendo ao falo, ele o faz de modo suplementar, dando a ver um laço social que
também se faz neste suplemento.
Neste sentido é que, como pontua Chaboudez (2017), somos levados a pensar sobre o
lugar social possível ao gozo que não se faz sem o fálico, mas que não se limita a ele, em que
a autora nos indica o lugar do psicanalista neste lugar social; não que a prática psicanalítica
seja especificamente feminina, mas que se apoia nesta lógica e assim não se restrinja à função
fálica do discurso. Tal lugar, assim, nos surge como um convite a ler, tal como as cartas de
Nawal nos ofereceram, o que não se dissipa no conteúdo das cartas e no caminho de horrores
que a atravessaram. Leitura que, entre autor, personagens e platéia – e no caso da presente
tese, também do leitor –, não se limita a nenhum deles, mas que ao circular entre eles atesta
que algo se dá a ler, fazendo-nos leitores de uma escrita contingente do impossível.
Concluímos nosso percurso, constatando que de Antígona a Nawal Maruan, passando
por Sygne de Coûfontaine, recolhemos diferentes, mas não sem relação, efeitos a partir dos
modos com que o feminino se coloca no trabalho pulsional que, entre sublimação e escrita,
nos sinaliza sempre um além da circunscrição simbólica na qual se situam. Mas não
esqueçamos que são personagens e, por mais brilhantes que sejam suas escritas, não possuem
as nuances que as narrativas clínicas oferecem, porém, acreditamos que, na perguntas que
fizemos aos poetas do teatro, estas personagens podem oferecer ecos para narrativas
construídas fora do palco.

143
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