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TEMAS DE TEOLOGIA

BÍBLICA II
Guia de Estudos

Facilitador: Julio Paulo T. Mantovani Zabatiero

1a Edição
Potyguara – São Paulo – 2017
PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA GERAL DA IPIB:
Áureo Rodrigues de Oliveira

PRESIDENTE DA FECP:
Heitor Pires Barbosa Junior

MINISTRO DE EDUCAÇÃO DA IPIB:


Marcos Nunes da Silva

SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA:


Clayton Leal da Silva

DIRETOR DA EAD-FECP:
Reginaldo von Zuben

AUTOR:
Julio Paulo T. Mantovani Zabatiero

CAPA E PROJETO GRÁFICO:


Camyla Barreto e Daniel Vega

DIAGRAMAÇÃO:
Ana Paula Pires

ILUSTRAÇÕES:
FOTOLIA

REVISÃO:
Dorothy Maia

EDIÇÃO:
Reginaldo von Zuben e César Marques Lopes

Reservados todos os direitos desta edição. É proibida a reprodução total ou


parcial dos textos e do projeto gráfico desta obra sem autorização expressa de
autores, organizadores e editores.
Apresentação

Estamos iniciando nova etapa na vida da nossa igreja em


termos de educação teológica. Não se trata apenas de incorpo-
rar uma nova ferramenta que está em evidência nas instituições
educacionais, mas sobretudo de cumprir de modo mais efetivo o
mandado da grande comissão dada por Jesus à igreja: “Ide, fazei
discípulos, batizando, ensinando...”. A igreja, portanto, tem essa
tarefa de ensinar e cuidar da formação dos seus membros, capaci-
tando-os para a missão.
Como igreja de tradição reformada, trazemos também esta
herança da ênfase e do cuidado no ensino, não apenas da sua
liderança, mas de seus membros como um todo. Entendemos
que a fé cristã, baseada na revelação que nos foi dada em Cris-
to e testemunhada nas Escrituras, não prescinde do esforço da
inteligibilidade. Como bem sinalizou Anselmo de Cantuária, um
grande teólogo medieval, “creio para entender” (credo ut intelli-
gam); por outro lado, a fé requer o entendimento (fides quae-
rens intellectum)!
Democratizar a possibilidade de uma formação teológica a
irmãos e irmãs que não têm a oportunidade de frequentar pre-
sencialmente uma faculdade representa, sem dúvida, grande
avanço e empenho na tarefa de cumprir a grande comissão, sen-
do fiel à nossa tradição reformada. 
No anseio de que nossa igreja seja abençoada, mas também
meio de bênção, nossos votos de uma jornada proveitosa!

Rev. Áureo R. Oliveira


Presidente da Assembleia Geral da IPIB
FUNDAÇÃO EDUARDO CARLOS PEREIRA

É muito interessante o texto bíblico em que o apóstolo Pau-


lo, mesmo preso em Roma, pede para que Timóteo traga a sua
capa e os livros, principalmente pergaminhos, a fim de estudar
(2Timóteo 4.13). Até no final da sua vida e ministério, o apóstolo
dos gentios não deixa de se dedicar aos estudos e de se preparar
para conhecer e ensinar com zelo e presteza a Palavra do Senhor.
O Curso Livre de Teologia da Fundação Eduardo Carlos Pereira
(FECP) surge para abençoar muitos irmãos e irmãs com interesse
em, por meio do estudo da teologia, servir a Deus com mais zelo,
segurança e presteza. Nosso desejo é que, de fato, este Curso seja
meio pelo qual a ação poderosa de Deus se manifeste na vida de
todos os estudantes, irmãos e irmãs em Cristo. Com isto, a FECP
atende aos anseios da IPI do Brasil em garantir acesso ao curso de
Teologia não só aos candidatos e candidatas ao sagrado ministé-
rio, mas também a oficiais, liderança, membros e outros interessa-
dos, tanto da IPI do Brasil como de outras denominações cristãs.
Como cristãos, cremos que o Espírito Santo desperta, cha-
ma e capacita pessoas para atuarem nos diversos ministérios
da Igreja. Isto ocorre por causa da necessidade de edificação e
orientação do povo de Deus no mundo, bem como para o cum-
primento da missão de Deus em meio aos desafios do nosso
contexto. Deus faz a parte dele e nós temos a nossa. Temos
responsabilidades no que se refere à busca de excelência na
vida cristã, ao cumprimento da vontade de Deus em nossa vida
e à vitalidade da igreja no testemunho da graça e do amor divi-
nos. Diante destas responsabilidades, é fundamental o estudo
da Palavra de Deus, da história da igreja, da teologia cristã e das
ferramentas para o exercício pastoral e atuação como líderes
cristãos, tudo visando à boa preparação para desempenharmos
a privilegiada condição de servos e servas, sem deixarmos de
ser amigos e amigas do Senhor Jesus.
A exemplo do apóstolo dos gentios, sejamos dedicados nos
estudos e ricamente abençoados nesta caminhada de aprendi-
zagem e crescimento.

Deus abençoe a todos nós.


SUMÁRIO

MÓDULO 1:
Deus e sua Criação

1. A Criação .........................................................................................10
2. A Nova Criação ...............................................................................18

MÓDULO 2:
A Eleição Divina e o Povo de Deus

1. Eleição e Predestinação ................................................................35


2. O povo de Deus em Isaías 40-55 ..................................................45
3. Povo de Deus em escritos paulinos ..............................................53

MÓDULO 3:
A Eleição Divina e o Povo de Deus

1. O problema ....................................................................................61
2. Enfrentando o problema ...............................................................65
MÓDULO 1
Tema: Deus e sua Criação
Temas de Teologia Bíblica II

JJ PARA INÍCIO DE CONVERSA

Bem-vindas e bem-vindos! Iniciamos nosso primeiro Módu-


lo da disciplina Temas de Teologia Bíblica II. Como o título da
disciplina indica, ela é continuação de Temas de Teologia Bíbli-
ca I, mas com novas temáticas em relação às que estudamos
anteriormente. Neste primeiro módulo o tema central é o da
atividade criadora de Deus, a que tradicionalmente chamamos
de Doutrina da Criação. Prefiro sempre falar, quando estudo
Teologia Bíblica, sobre a atividade de Deus e não tanto do re-
sultado dessa atividade. Por quê? Porque no Antigo Testamento
a ênfase da reflexão teológica sempre recai sobre a pessoa e
o agir de Deus, e só em segundo lugar sobre os resultados da
ação de Deus. Assim, iniciaremos agora o estudo da atividade
do Deus Criador.
Você logo verá que, ao falarmos do Deus Criador, não nos
referimos apenas à criação do mundo, mas também nos re-
ferimos à libertação do povo de Deus (Israel) e à salvação da
humanidade, formando o novo povo de Deus (Igreja). Por isso,
nosso estudo iniciará com a reflexão sobre a criação do mundo
e continuará com a reflexão sobre a nova criação. Assim, como
na disciplina anterior, não ficamos restritos a um dos Testamen-
tos. Nosso objetivo, portanto, é estudar este tema no Antigo e
no Novo Testamentos, procurando formar uma compreensão
geral do que significa crer em um Deus Criador e Redentor.
Mãos à obra, então! Prepare-se para desenvolver e ampliar
seu conhecimento – e sua gratidão – sobre a atividade criadora
de Deus, pelo que Ele faz por nós e por toda a sua criação.

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

JJ 1. A CRIAÇÃO

1.1. O mundo como expressão do amor e da


harmonia de Deus (Gn 1.1-3.24)
No livro do Gênesis encontramos dois textos sobre a cria-
ção do mundo por Deus. O primeiro está em Gn 1.1-2.3 e o se-
gundo em Gn 2.4-3.24. O primeiro texto possui formato mais
poético, semelhante a um hino ou a uma confissão de fé, e é,
de fato, uma reflexão sobre a criação “dos céus e da terra”. O
segundo texto possui a forma de narrativa e não tematiza a
criação de “céus e terra”, mas tem seu foco no ser humano e
na sua relação com Deus no jardim. O primeiro texto possui
vocabulário muito semelhante ao vocabulário de textos me-
sopotâmicos sobre a criação do mundo (como o famoso texto
Enuma Elish, vários séculos mais antigo que o livro de Gênesis),
enquanto o segundo tem vocabulário mais comum em am-
bientes rurais, mas também com ideias encontradas em tex-
tos egípcios (como, por exemplo, a serpente como símbolo de
esperteza e sabedoria).
Vejamos alguns destaques importantes desses textos para a
compreensão teológica da criação:
(1) A criação em Gn 1.1-2.3 é descrita como um processo har-
mônico, ordenado e dirigido pelo próprio Deus, e se pressupõe
que o Criador é o único Deus existente. Isto está em contraste
com textos mesopotâmicos, por exemplo, que falavam da cria-
ção como resultado de uma luta entre deuses, como fruto de
um caos (desordem) inicial produzido por essa luta, e que pode-
ria, a qualquer momento, ocorrer novamente se os deuses não
fossem devidamente servidos. O relato de Gn 1, em especial,
tanto através de sua forma poética e ordenada (com a sequ-
ência de dias e o refrão ao final de cada dia, progredindo em
complexidade até a criação da humanidade e a santificação e a
bênção do descanso), quanto através de seu conteúdo, fala da

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Temas de Teologia Bíblica II

criação como expressão da amorosa beleza e harmonia da ação


de um Deus que se deleita naquilo que cria (repare no refrão
“viu Deus que isso era belo/bom – a palavra hebraica usada em
Gênesis pode se referir tanto à beleza quanto à bondade – repe-
tido ao final de cada dia da criação). Trata-se de uma harmonia
que se impõe sobre a desarmonia inicial (v. 2), quando Deus es-
tava começando a formar o mundo: “a terra, porém, estava sem
forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito
de Deus pairava por sobre as águas”.
O “abismo” (tehom em hebraico, que tem forma semelhante
ao nome de Tihamate, deus da Babilônia que é um dos persona-
gens principais do relato babilônico sobre a criação) não é nome
de divindade, mas apenas uma caracterização da situação dos
“céus e da terra” no início da ação criativa de Deus, situação
controlada pela presença do Espírito (em hebraico, a expressão
usada também pode significar “um vento muito forte”) que re-
tém as águas no fundo do abismo e as impede de destruir o que
já começava a existir.
A ilustração abaixo nos ajuda a entender os versos iniciais
de Gênesis 1. Para os antigos habitantes do Oriente, o mundo
era visto como uma espécie de casco de tartaruga (arredon-
dado acima e achatado abaixo), rodeado de águas por todos
os lados, e como que “pendurado” sobre um “abismo” (tehom
em hebraico, ou apsu em acádio ou caldaico, o antigo idioma
da região da Babilônia). Em diversas culturas do Antigo Orien-
te, influenciadas pelas culturas da Mesopotâmia, se acreditava
que as águas do tehom eram constante ameaça à sobrevivência
do seu território (na Mesopotâmia, as enchentes dos rios Tigre
e Eufrates sempre foram perigosas e destrutivas, até que reis
caldeus construíram canais que impediam as enchentes de des-
truir as cidades e passaram a usar essas águas para irrigação no
plantio), pois os deuses que as controlavam poderiam enviá-las
novamente para aniquilar a população.

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

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Grande Abismo

Ralph V. Chamberlin. “A antiga concepção hebraica do universo”. The White


and Blue. Vol XIII no. 11, 1909, pp. 84-88. Esta imagem é de domínio público.

(2) Diferentemente de relatos de outras culturas da época,


que falavam do sangue de deuses como matéria-prima da cria-
ção, o texto de Gênesis nos conta que somente a palavra de
Deus foi o instrumento e a matéria usados por ele para criar
tudo o que existe. Neste sentido, a criação toda é “espiritual”,
pois sua matéria é a própria palavra de Deus. Ou seja, a dis-
tinção radical entre “espírito” e “matéria”, presente em filoso-
fias e religiões antigas, e que dura até hoje, não tem base na
Escritura Sagrada. Tudo o que Deus criou é bom, é “espiritual”
e digno de testemunhar da sua glória (cf. Sl 19). Poderíamos
dizer que o Universo é o grande poema de Deus, presente de
Deus, que não tinha necessidade de criar um mundo, mas, por
amor, o criou.

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Temas de Teologia Bíblica II

CURIOSIDADE
Sobre a criação ser toda “espiritual”, já que sua ma-
téria é a própria palavra de Deus, é interessan-
te observar que em Hebreus 11.3 se usa lin-
guagem semelhante. Foi ela que deu origem
ao termo técnico teológico, em latim, crea-
tio ex nihilo, que significa criação a partir do
nada, ou seja, no ato divino de criação, a pró-
pria matéria é criada, pois nada além de Deus
existia antes da criação.

No livro de Provérbios se fala da sabedoria como agente divi-


no da criação (8.22-36), com uma linguagem simbólica bastante
exaltada, colocando a sabedoria no mesmo nível da palavra de
Deus. Sabedoria, no Antigo Testamento, destaca principalmen-
te a harmonia do mundo criado e a importância de justiça nas
relações entre as obras da criação, a fim de que haja vida para
todos. Em o Novo Testamento, aproveita-se esta afirmação do
Gênesis para fundamentar as declarações de que Deus criou o
mundo em e através de Jesus Cristo, o Logos (palavra) divino. Da
mesma forma, fala-se de Jesus como manifestação da sabedo-
ria divina, usando expressões tiradas de Pv 8, para descrever a
preexistência de Jesus (ou seja, sua existência anterior à encar-
nação; veja, por exemplo, Jo 1 e Fp 2.5ss);
(3) “Bênção” e “descanso” são os eixos fundamentais da
criação. Três vezes aparece a ideia de bênção em Gn 1.1-2.4a:
no verso 22, quando Deus abençoa os animais e os torna seus
parceiros na multiplicação e no preenchimento da Terra; no ver-
so 28, quando Deus abençoa a humanidade e a torna parceira
na multiplicação e no preenchimento da Terra, e também (o que

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

não ocorre no caso dos animais) parceira de Deus no cuidado e


no governo da criação; e em 2.3, quando Deus abençoa o sába-
do, o dia do descanso. Ao abençoar o dia do descanso Deus ins-
taura um ritmo para a vida, composto de trabalho e descanso, e
consagra o descanso como o tempo mais sagrado e importante,
o tempo santificado para a festa, para a convivência humana,
sem objetivo de lucro, e para a comunhão com o Criador.
Se você lembrar que o povo hebreu foi escravizado mais de
uma vez em sua história, perceberá a importância do descanso,
pois era uma das coisas que os escravos não tinham direito. Não
é à toa que há várias leis no Pentateuco sobre o descanso no
sábado, tanto o descanso semanal propriamente dito, quanto o
descanso da terra e dos escravos a cada sete anos, e sete vezes
sete anos (Dt 15.1-22; Lv 25; Êx 20.11 e Dt 5.13-15). Da mesma
forma, a descendência dos escravos permanecia sob constante
ameaça, pois, mesmo que tivessem filhos e filhas, estes pode-
riam ser arrancados deles à força. Devemos contrastar esta ên-
fase com a maldição descrita em Gn 3, consequência de os seres
humanos não terem seguido o projeto do Criador. Quando a hu-
manidade não cumpre sua vocação, a bênção de Deus recebe
obstáculos e o mal vai tomando o seu lugar no mundo. A ideia
da bênção neste relato da criação nos ajuda a entender o uso da
metáfora da criação para a libertação de Israel (veremos, mais
adiante, textos de Isaías sobre a libertação enquanto criação) e
para a salvação (em o Novo Testamento, o livro de Hebreus irá
retomar a ideia de descanso e usá-la para descrever a salvação).
(4) Diferentemente de outros relatos da criação no mundo
antigo, Gênesis ensina que toda a humanidade é imagem de
Deus (em livros de teologia se costuma usar a expressão latina
imago Dei) e não só os reis (como no caso de antigos relatos
egípcios e mesopotâmicos). Em Gn 1 se afirma que homem e
mulher foram criados à imagem de Deus, ou seja, foram cria-
dos para representar Deus na Terra e governar em seu nome,

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Temas de Teologia Bíblica II

dominar a criação como expressão da bênção (Gn 1.28) e não


da maldição, como defesa da vida e não como autorização para
destruição da natureza. Em Gn 2, é Adão quem se torna par-
ceiro de Deus ao dar nome aos animais e receber do Criador
uma parceira de vida, formada a partir de um osso extraído de
seu próprio corpo, símbolo da igual dignidade entre homem
e mulher, igualdade manifestada explicitamente através do
adjetivo “idônea”, mas quebrada por causa do pecado. Não há,
portanto, nenhuma base em Gênesis para se dizer que o ho-
mem tem mais valor do que a mulher perante Deus. As diferen-
ças de valor e dignidade entre homem e mulher (assim como
entre diferentes raças, classes sociais etc.) são fruto do pecado
e são abolidas em Cristo (cf. Gl 3.26-28).
Um conceito teológico importante para explicar o papel da
humanidade na criação como parceira de Deus é o conceito de
aliança. Ao criar o ser humano, Deus estabelece com ele uma
aliança, um compromisso de parceria, um contrato de trabalho
conjunto, uma proposta de comunhão, companheirismo, de ser
uma só família. A mesma ideia de aliança será usada, ao final do
relato do Dilúvio, para mostrar que Deus não irá jamais destruir
a Terra por causa do pecado humano. Em outras palavras, Deus
faz uma aliança com a Terra toda, Terra que sofre por causa do
pecado humano e que aguarda também a sua redenção (Rm
8.20-23). Aliança é o conceito que expressa a união, a harmonia
que deveria haver entre Deus e a humanidade e toda a cria-
ção, mas que foi truncada, quebrada pela infidelidade humana,
pela arrogância da criatura, que buscou ser igual a Deus (Gn 3),
em vez de aceitar seu papel como parceira e parceiro de Deus.
Maldição, porém, não deve ser a última palavra da doutrina da
criação. Bênção, esta sim, deve ser a última palavra, pois Deus
criou todo o Universo para expressar seu amor e sua bondade,
por isso que o Novo Testamento também fala da salvação como
nova criação, de modo que o propósito amoroso de Deus seja

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

retomado na parceria com a humanidade, agora mediante a fé


em Cristo Jesus.

1.2. O mundo como expressão da graça de Deus em


Cristo (Cl 1.15-20; 1Co 8.5-6; Hb 1.1-4)
Os autores do Novo Testamento aproveitaram as noções ve-
terotestamentárias da criação mediante a palavra e a sabedoria
e as redescreveram de modo tal que o Filho de Deus, o Logos
eterno, a Sabedoria eterna e encarnada, passa a ser o agente da
criação divina. Mas não só o agente da criação (“tudo foi criado
por meio dele”), Cristo é também o ambiente da criação, o espa-
ço onde o mundo passa a existir (“tudo foi criado nele”) e o alvo
da criação (“tudo foi criado para ele”). E mais, Jesus é o primogê-
nito de toda a criação, o que não significa que ele foi o primeiro
a ser criado, mas, sim, que ele é o herdeiro do Pai e o represen-
tante do Pai na criação. Isto nos ensina que devemos entender
o mundo em que existimos como um mundo com significado
messiânico (ou cristológico). O propósito da criação só pode ser
entendido em Cristo e não nos próprios elementos da criação,
por mais importantes que sejam as coisas criadas e por mais
pistas que possam nos fornecer sobre a finalidade do Universo.
Além de criador, Cristo também é apresentado nesses textos
como o sustentador do Universo, ou seja, sem Ele nada do que
existe continuaria a existir: Ele é a vida e a energia de todo o
cosmos (assim como se falou do Espírito no Salmo 104.29-30).
Em Ef 1.9-10 somos ensinados que o propósito divino em rela-
ção à criação é que, no final dos tempos, tudo o que existe se
submeta a um só Senhor: Jesus Cristo, o cabeça de todo o Uni-
verso. E esse propósito divino é expressão de sua maravilhosa
e multiforme graça, descrita com grande riqueza na oração de
louvor em Ef 1.3-14.
Assim como no Antigo Testamento a criação é descrita como
expressão do amor divino, também em o Novo Testamento ela

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Temas de Teologia Bíblica II

é descrita como tal, agora em termos cristocêntricos, como ex-


pressão da graça (sinônimo de amor) de Deus em Cristo Jesus.
Sendo assim, todo o mundo criado é bom e digno de ser cuida-
do amorosamente, pois a humanidade, ao ser convocada para
imitar a Cristo, deve amar graciosamente toda a criação divina.
Assim somos desafiados a pensar também em tudo o que exis-
te como expressão da multiforme graça de Deus – pelo que se
pode continuar dizendo que os “céus manifestam a glória de
Deus”, que “todo ser que respira [e não só os seres humanos]
louve ao Senhor”. Como consequência da graciosidade da ação
criadora de Deus, temos também de perceber a presença da gra-
ça na história humana, nas realizações humanas na cultura e na
sociedade, mesmo que essas realizações e essa história estejam
marcadas pelo pecado e pela morte. Ora, pecado e morte, por
mais forte que sejam, não são capazes de anular a graça de Deus.
A ação sustentadora da criação por Cristo tem sido descrita
tradicionalmente na teologia como providência e preservação.
A providência é o conceito teológico que afirma o senhorio de
Deus sobre a história humana, que a conduz para o seu fim
cristocêntrico. Mediante a ação providencial, Deus restringe o
poder do pecado e da carne, de modo que o mundo não se
corrompa totalmente, nem que o ser humano peque ilimitada-
mente (por exemplo, costuma-se dizer que o Estado, a Família,
a Cultura e a Sociedade são expressões da providência divina,
conquanto sejam marcadas pela pecaminosidade humana). A
providência é também o conceito teológico que descreve a fi-
delidade de Deus para com toda a sua criação, inclusive o ser
humano. Costuma-se dizer que, graças à providência divina,
“todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a
Deus, daqueles que são chamados segundo o Seu propósito”
(Rm 8.28). A preservação, por sua vez, é o conceito teológico que
visa a explicar a ação de Deus em manter o universo existindo,
em não permitir que seja destruído (nem mesmo pelo próprio

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

Deus, conforme a aliança que fez após o Dilúvio, Gn 9.11-17).


Mais recentemente, também se fala, na teologia reformada, da
preservação como criação contínua:

O criar de Deus na história acontece sob o pressu-


posto do criar de Deus no início. É um criar naquilo
que foi criado. Pode ter o caráter de preservação
da criação contra as formas da destruição. A dou-
trina da “creatio continua” tematiza a preservação
contínua da criação uma vez criada. Praticamente,
a cada instante o criador repete o seu sim original
e o seu agir ordenador. Deus não cria algo novo,
mas cria continuadamente aquilo que uma vez foi
criado, na medida em que preserva e guarda (Molt-
mann, 1992, p. 301, grifos do autor).

Assim, aprendemos que a atividade criadora de Deus não


se restringe ao início do mundo, mas permanece constante até
hoje e até o fim dos tempos. Deus é criador, ou seja, a criativi-
dade é um atributo de Deus, uma qualidade do modo de ser
divino. Assim, sua atividade criadora é constante e permanen-
te, apenas modificando-se as suas características ao longo da
história das relações de Deus com o mundo que ele mesmo
criou. Por isto, autores do Antigo e do Novo Testamentos usam
a temática da criação como sinônimo de libertação e salvação,
temas que estudaremos a seguir.

JJ 2. A NOVA CRIAÇÃO

2.1. Criação e nova criação em Isaías 40-55


Os capítulos 40-55 de Isaías formam uma unidade temática e
estilística. O seu conteúdo indica que a experiência do juízo de
Deus na destruição de Jerusalém e na deportação das lideranças
políticas e religiosas já havia sido parcialmente assimilada pelos
israelitas, mas ainda não haviam percebido a plena significação

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Temas de Teologia Bíblica II

desses acontecimentos. Is 40-55 é uma reflexão profética e litúr-


gica sobre o juízo de Deus e a restauração do povo por Deus em
aliança com as pessoas fiéis a ele. Em especial, Is 40-55 nos apre-
senta uma figura importante na teologia bíblica: o escravo do
Senhor, presente em quatro belos poemas (ou cânticos), que te-
matizam seu chamado, sua fidelidade a Deus, a incompreensão
do povo de Deus, sofrimentos, prisão e morte do escravo – em
favor do povo de Deus, a fim de que este alcançasse a libertação
divina (Is 40.1-4; 49.1-6; 50.4-11 e 52.13-53.12).
Um conceito importante também em Is 40-55 que será re-
levante em o Novo Testamento é o do Evangelho do Reino de
Deus (40.1-11; 52.7-12), mediante o qual é anunciada a liberta-
ção do povo e sua volta do exílio para a terra de Israel. A boa
notícia (Evangelho) de que Deus estava prestes a libertar Israel
do exílio, perdoando seu pecado, incluía a missão do escravo
do Senhor, que encarnaria em si mesmo a fidelidade a Deus e
estimularia o povo a abandonar sua teimosia e voltar a crer no
anúncio divino da libertação.
As afirmações sobre a singularidade e a universalidade de
Javé em Is 40-55 foram construídas em confronto com a teologia
oficial do Império Babilônico, que afirmava o poder universal de
Marduque (seu deus principal), que havia derrotado os deuses
dos vários povos conquistados pelos babilônios. Essa teologia
se difundia à população principalmente mediante as celebra-
ções do festival do Ano Novo (em aramaico o nome desse festi-
val é akitu) e as narrativas míticas sobre a criação do mundo. A
mensagem central de Is 40-55 pode ser construída como uma
espécie de imagem-de-espelho da ideologia expressa na liturgia
akitu e no mito Enuma Elish (“Acima, no alto”, um antigo texto
babilônico sobre a criação do mundo). O fato de as únicas divin-
dades estrangeiras nomeadas nestes capítulos de Isaías serem
Bel e Nebo – isto é, Marduque e seu filho Nabu (46.1-2), os pro-
tagonistas divinos no festival akitu – apoia esta leitura do texto.

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

PARA PENSAR
Como você já sabe, os povos do Antigo Oriente Próximo
eram todos politeístas. Para eles, os deuses eram vistos
como especialistas e dividiam entre si as diversas atividades
que um deus deve realizar. A fé israelita em um único Deus
elimina essa especialização e afirma que Javé, o Deus de
Israel, é capaz de fazer todas as coisas que um
deus precisa fazer. Boa parte da teologia
israelita se constrói em oposição e diálogo
crítico com as teologias de seus vizinhos.

Já no prólogo desta seção de Isaías (40.1-11), a polêmica


contra a teologia babilônica, especialmente contra Marduque,
se faz evidente. Isaías 40.1-2 apresenta Javé misericordioso,
colocando fim aos “trabalhos forçados” do seu povo – justa
punição sobre os seus pecados – com linguagem que lembra a
seguinte passagem sobre Marduque, no tablete VII do Enuma
Elish: “Ele é Agaku, o amor e a ira; com palavras vivazes ele
apressa a morte, ele teve pena dos deuses caídos, ele dimi-
nuiu os labores que caíam sobre os adversários”. Isaías 40.3-5
redescreve a procissão triunfal dos deuses para a cidade da
Babilônia, como a procissão triunfal dos judaítas exilados re-
tornando à sua terra, imediatamente seguida de uma declara-
ção da fragilidade dos poderes humanos (40.6-8; cp. 47.1-15,
que descreve a queda da Babilônia), ou seja, Isaías inverte a
lógica geográfica do akitu.
À saída dos judaítas do exílio (que corresponde inversamente

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Temas de Teologia Bíblica II

à entrada dos deuses na Babilônia) corresponde a procissão de


Javé para voltar a reinar em Jerusalém-Sião, brevemente descrita
em 40.9-11. O evangelho às cidades de Judá, declarando que Javé
é rei, contradiz diretamente a aclamação de Marduque como rei.
No tablete IV do épico Enuma Elish encontramos: “Ele falou e a
aparição desapareceu. Novamente ele falou e a aparição reapa-
receu. Quando os deuses se deram satisfeitos por Marduk ter
provado a força de sua palavra, os deuses ancestrais abençoa-
ram-no e bradaram: Marduk é rei!”
Em 51.9-11, a descrição da procissão feliz dos exilados de
volta a Sião é precedida pela descrição da vitória de Javé no
êxodo, estilizada à luz da cosmogonia babilônica da luta entre
deuses. A historicização do combate criador mediante sua in-
serção na tradição do êxodo é mais um exemplo da vitória de
Javé sobre Marduque. Pouco depois, em 52.7-10, reafirma-se
a realeza de Javé (em contraste com a declaração da realeza
de Marduque no Enuma Elish IV,28), que está na base da sa-
ída dos exilados, exortados a não permanecerem na Babilô-
nia (52.11-12). Em contraste com esta feliz saída, há uma bre-
ve descrição da saída de Bel e Nebo da Babilônia, derrotados
por Javé, Deus incomparável (46.1-7. cf. 40.18.25; 43.11; 44.6-8;
45.5-6.14.18.21-22; 46.9 – textos que estão em relação polêmi-
ca com as afirmações sobre a grandeza incomparável de Mar-
duque no Enuma Elish, e.g., VII, 14.88).
A declaração de que Javé é o criador do mundo e salvador de
Israel (cf. 40.12.26.28; 42.5; 43.1.15; 44.24; 45.7-8.12.18; 48.12-
13; 51.13.16) também pode ser vista nos termos da polêmica
contra a cosmogonia babilônica, que retrata a criação do mun-
do como fruto de uma guerra entre deuses, vencida por Mardu-
que ao matar Tiamate (a deusa “mar”), para que a humanidade
passe a servir as divindades. Nesse contexto polêmico, a descri-
ção de Gerhard Von Rad faz sentido:

21
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

[...] para ele (Isaías), a criação é o primeiro dos mi-


lagres históricos de Javé, testemunha a seu modo a
vontade de salvação de Javé. [...] O segundo-Isaías
nos fornece uma prova impressionante desta con-
cepção “soteriológica” da criação: fala da mesma
forma de Javé, Criador do mundo, como de Javé,
Criador de Israel. Javé é o Criador de Israel no senti-
do de que chamou este povo à existência enquanto
criatura, e sobretudo porque o “escolheu” e o “res-
gatou”. [...] Quando, num hino, atribui a Javé os pre-
dicados de Criador e de Redentor de Israel, não faz
alusão a duas atividades distintas, mas a uma só: o
acontecimento salutar que permitiu a Israel sair do
Egito (Is 44.24; 54.5) (Rad, 1974, p. 231-232).

O sentido salvífico da criação, e sua respectiva historiciza-


ção, pode ser percebido contextualmente na polêmica contra
o sentido “escravizador” da criação do mundo e dos seres hu-
manos por Marduque e demais deuses babilônios. Pode-se
incluir aqui, também, a afirmação de que Javé não precisa de
conselheiros (40.13-14; 41.28), que contrasta com a afirmação
de que Marduque é conselheiro dos deuses: “Ele é Kinma, con-
selheiro e líder, seu nome traz terror aos deuses, o rugido do
tornado” (Tábua VII).
Neste campo semântico também devemos incluir as afir-
mações sobre Javé como “deus eterno” (40.28), “deus de toda
a terra” (54.5), “soberano Senhor” (51.22), que lhe atribuem
características também atribuídas a Marduque, por exemplo:
“Um deus é maior do que todos os outros deuses, de fama
mais justa, cuja palavra de comando é a palavra dos céus, oh
Marduk, o maior de todos os grandes deuses, honra e fama,
vontade de Anu, grande no comando, palavra eterna e inal-
terada!” (Tábua IV). Em Is 40-55, a antiga e tradicional noção
do deus supremo que rege os demais deuses no conselho
celestial é modificada pelas afirmações de que somente Javé

22
Temas de Teologia Bíblica II

é Deus (45.5.6.18b.22; 46.9), e que ele é anterior à criação,


“primeiro e último” (43.10b; 41.4; 44.6; 48.12). Desta forma,
a redescrição deve ser entendida como a resposta teológica
dos judaítas à dominação imperial babilônica, legitimada pela
soberania universal de Marduque sobre os deuses e, conse-
quentemente, sobre toda a Terra. Que Javé é o único e supre-
mo Deus também se postula por meio da afirmação de que
ele controla os astros celestes (40.26; 45.12), por ele mesmo
criados, em clara polêmica contra a divinização dos astros ce-
lestes na teologia babilônica (e.g., Marduque é o Sol, Sin é a
Lua), bem como contra a astrologia desenvolvida pelos “ma-
gos caldeus” – só de Javé é que se deve buscar conselho e
direção para a vida.
Enfim, a criação pode ser também identificada com a eleição
de Israel (cf. Is 43.1; 44.24ss; 46.5 e 54.5) de modo que a fé no
Deus criador não estava dirigida apenas à temática da criação
em si, mas estava ligada também, e principalmente, à manuten-
ção da fé no Deus Salvador que age na vida de seu povo (cf. Is
40.12-31; 42.5; 43.1-7 e 44.24-28). Javé, como criador do mundo,
dirige a história de seu povo e de todos os povos, de modo que
a ação de Ciro, o rei persa, para autorizar o retorno dos judeus
exilados à sua terra pode ser vista como fruto da unção de Javé
sobre o rei estrangeiro (Is 44.24ss; 45.1-2). Assim, se Javé é o
único e incomparável Deus criador, Israel não precisa temer o
Império Babilônico e seus deuses: a fé se torna fonte de resis-
tência e renovação da vida do povo.

2.2. Criação e Nova Criação em Paulo


2.2.1. Jesus Cristo, o Criador (Colossenses 1.15-17)

Nosso ponto de partida para esta reflexão sobre Jesus Cristo,


o Criador, na teologia paulina é o hino cristológico de Cl 1.15-17,
que pode ser dividido em três blocos:

23
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

(1) Ele é a imagem do Deus invisível,


o primogênito de toda a criação;

(2) pois nele foram criadas todas as coisas,


nos céus e na terra,
as visíveis e as invisíveis,
tronos ou soberanias,
poderes ou autoridades,
todas as coisas foram criadas por Ele e para Ele.

(3) Nele tudo subsiste.

Duas características são atribuídas a Cristo no texto bíblico


acima: “imagem do Deus invisível” e “primogênito de toda a cria-
ção”. Em ambas, destaca-se a ação reveladora de Cristo: através
dele podemos conhecer a face de Deus – doutra maneira, invisí-
vel – e a face do mundo, aparentemente tão familiar a cada um
de nós. Os dois termos (“imagem” e “primogênito”) provêm do
ambiente dos discursos sapienciais judaicos contemporâneos a
Paulo, os quais se desenvolveram em diálogo com concepções
helenísticas do cosmos e de Deus. Era moeda comum na época
a distinção entre o mundo visível e o invisível.
No platonismo, o mundo visível é o mundo acessível aos sen-
tidos e o invisível, acessível apenas à mente; dualismo também
presente nos escrito de Filo de Alexandria. No judaísmo mais
tradicional, o destaque é dado à invisibilidade de Deus, a saber,
a sua incognoscibilidade. Sendo invisível, Deus não pode ser co-
nhecido pela visão humana, ele só pode ser conhecido através
de uma revelação.
Diferentes portadores da imagem de Deus no mundo helê-
nico eram: o próprio cosmos (Platão, Timeu, 92c; Corpus Hermeti-
cum 11.15; 12.15), o ser humano (Corpus Hermeticum 8,5) e o rei:
“No culto helenístico ao imperador, dizia-se que a aparição do

24
Temas de Teologia Bíblica II

governante era o evento da epifania divina” (Lohse, 1986, p. 47).


O judaísmo, em diálogo polêmico com essas concepções
helenísticas, enfatizou o caráter revelador da Sabedoria e da
Palavra divinas (e.g., Sab 7.26; 1En 42.1-2; 49.1-4; e em vários
escritos de Filo). Filo de Alexandria descreve a Sabedoria como
“princípio, imagem e visão de Deus” (Legum allegoriae 1,43),
mesma descrição da Palavra feita por ele. Em um mundo que
valorizava positivamente a filosofia, a atribuição da função reve-
ladora à Sabedoria/Palavra exercia impacto significativo, além
de manter-se fiel à tradição judaica canônica, conforme Pv 8. O
Deus invisível, que não pode ser conhecido, dava-se então a co-
nhecer em sua imagem, tornando-se acessível ao ser humano
em sua busca.
O hino, tirando proveito dessa discussão, atribui a Jesus Cristo
a característica de ser a imagem de Deus: aquele que revela Deus
ao mundo. Este movimento da teologia cristã nascente não dei-
xou de ter um caráter polêmico, tanto com relação ao judaísmo
quanto em relação ao helenismo. Ao afirmar que Jesus, e não a
Sabedoria (Torá), é a imagem de Deus, o hino esvazia a Sabedoria
da sua função mediadora e a Torá, de sua função de caminho até
Deus. Simultaneamente, o hino nega ao cosmos qualquer fun-
ção reveladora e retira as bases teológicas do valor da filosofia
como caminho para alcançar a verdade (esse caráter polêmico se
acentua nas discussões do capítulo 2 da Carta aos Colossenses).
Quem quer conhecer a Deus, portanto, tem de conhecer a Cristo,
e somente ele é intérprete e porta-voz de Deus na Terra (compa-
re ideias similares em Jo 1.14-18 e Hb 1.1-3).
O que mais ressalta na polêmica, contudo, é o fato de que
Deus, invisível, se dá a conhecer através de um homem visível. Con-
quanto a valorização protestante da Palavra de Deus como teste-
munho da revelação divina seja importante, o Novo Testamento
destaca a visibilidade da revelação de Deus na vida e nas ações
de Jesus. Não só Deus pode ser ouvido, mas, particularmente, ele

25
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

pode ser visto: a invisibilidade se transforma em visibilidade, o


Deus inacessível torna-se acessível e, em Cristo, pode ser tocado
(cf. 1Jo 1.1-3). Devemos notar também que as sentenças seguin-
tes ligam os termos imagem e primogênito a “poderes”.

PENSE NISSO
Há um outro aspecto derivado da ideia de Cristo como ima-
gem de Deus. Na tradição de Gênesis 1, que se fez em diálogo
polêmico com os mitos de criação da Mesopotâmia, ser imagem
de Deus é representar Deus na Terra. Nos mitos mesopotâmi-
cos, somente o rei pode ser a imagem de Deus. Quem quer ser-
vir a Deus, deve servir ao rei. Quem tem a imagem de Deus, tem
poder para governar! Ao atribuir a Cristo a característica de ima-
gem de Deus e vincular essa imagem aos poderes, o hino de Co-
lossenses também destaca a supremacia do Filho de Deus: Ele
está acima de todos os poderes, como revelador e como
criador. Nenhum poder está acima, nenhum po-
der é anterior a Ele, nenhum poder é maior
do que Ele. Desta forma, o hino também afir-
ma a soberania plena (supremacia) de Cristo!

A segunda caracterização de Jesus, primogênito de toda a cria-


ção, provém do mesmo ambiente teológico, já que a Sabedoria
(Pv 8.22.25) é o primogênito da criação (cf. Filo, que se refere
ao Logos como primogênito, embora use outro termo grego).
Em relação à Sabedoria, o termo primogênito possui certa ambi-
guidade, pois se afirma, por um lado, sua função mediadora na

26
Temas de Teologia Bíblica II

criação, e, por outro, o caráter criado da mesma Sabedoria (Pv


8.22; Sirácida 1.4; 24.9). Presente também na tradição judaica é
a ideia de que o primogênito é o representante do pai, o regente
em seu lugar. No judaísmo de então, o rei messiânico, Israel, os
patriarcas e a Torá eram descritos ocasionalmente como pri-
mogênitos de Deus. No hino, a atribuição da primogenitura a
Cristo é desvestida da ambiguidade, pois ele foi não só o agente
divino da criação (“por meio dele”), como também o ambiente
no qual a criação ocorreu (“nele”) e o alvo (“para ele”) da criação.
Sua preexistência e primazia são enfatizadas ainda no v. 17: ele
é “antes de todas as coisas. Nele tudo subsiste”.
Ressalta-se, assim, a função de Cristo como representante
de Deus e regente da criação, o que já estava presente na tradi-
ção cristológica encontrada na literatura paulina. Em 1Co 8.6 a
confissão da fé é feita em termos similares: “todavia, para nós
há um só Deus, o Pai, de quem são todas as coisas e para quem
existimos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as
coisas, e nós também por ele”. Em Rm 11.36 as mesmas afir-
mações doxológicas são feitas em relação a Deus: “porque dele
e por meio dele e para ele são todas as coisas”. Em particular
deve-se notar a importância da primogenitura de Cristo para
o conhecimento do verdadeiro caminho para a humanidade.
Como imagem, Cristo revela Deus à humanidade. Como primo-
gênito, nos revela a verdadeira humanidade, nele se cumprindo
o projeto de Deus de refazer de toda a humanidade a sua gran-
de família: “porquanto aos que de antemão conheceu, também
os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho,
a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm
8.29), temática que está presente na segunda estrofe do hino.
O mundo, aparentemente acessível de forma plena ao nosso
saber, não pode ser conhecido a não ser em Cristo: “assim que
nós, daqui por diante, a ninguém conhecemos segundo a carne;
e, se antes conhecemos a Cristo segundo a carne, já agora não

27
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

o conhecemos deste modo” (2Co 5.16). Primogênito de Deus,


o Filho encarnado torna visível também a utopia de uma nova
humanidade, e nele encontramos tanto o saber a respeito do
ser humano, quanto o nosso dever-ser conformes a ele, quanto
o sabor agradável da nossa missão porque: “Deus, em Cristo,
sempre nos conduz em triunfo e, por meio de nós, manifesta
em todo lugar a fragrância do seu conhecimento” (2Co 2.14).

2.2.2. Participantes da nova criação (2Co 5.14-21)


Esta perícope oferece material não só para a discussão da
noção de Messias em Paulo, como também para a descrição da
autocompreensão paulina sobre a missão, de modo que a reto-
maremos mais adiante na discussão sobre ‘ekklesia dentro do
Módulo 2. Aqui o foco recairá sobre a condição de Jesus como o
Messias. Que tipo de Messias é Jesus?
(a) Um messias amoroso: “Pois o amor do Messias nos cons-
trange, julgando nós isto: um morreu por todos; logo, todos
morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não
vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles mor-
reu e ressuscitou” (v. 14-15). O Messias é caracterizado não pelo
poder, mas pelo amor – ou, para apimentar o contraste, pelo
amor que é o poder messiânico! Ele, sendo um, morreu por to-
dos, para que todos, nele, sejam um. Aqui vemos que o relato
em Gl 2.20ss., que poderia ser interpretado como se referin-
do especificamente a Paulo, é apresentado como um projeto
para todos os seguidores do Messias Jesus. O amor do Messias
é o fundamento da vida e da ética dos seus seguidores (“somos
constrangidos pelo seu amor”), não somos obrigados por sua
lei, ou seu poder, ou sua autoridade. “Somos constrangidos”:
um Messias amoroso é um Messias pessoal, que se relaciona
pessoalmente com os seus. Em outras palavras, a fidelidade do
Messias gera a fé-fidelidade no Messias e para o Messias.
(b) O Messias é o agente da nova criação divina: “E, assim,

28
Temas de Teologia Bíblica II

se alguém está no Messias, está na nova criação; as coisas anti-


gas já passaram; eis que se fizeram novas” (v. 17). As traduções
costumam mostrar “é nova criatura”, em vez de “está na nova
criação”. Traduzir o grego ktisis por “criatura” é ligeiramente
possível, mas altamente improvável. Ktisis se refere, predomi-
nantemente, nas cartas de Paulo, à criação divina e, aqui e em
Gl 6.15, à nova criação. A linguagem é paralela à da agência do
Messias como primogênito da ressurreição em Cl 1.15ss. Ele
não só é o agente da criação, mas também o da nova criação
de Deus. De fato, o Messias é a própria nova criação, pois es-
tar nele é também estar nela. A noção corporativa do Messias
faz eco aqui: quem participa do ser-Messias participa da nova
criação-Messias.
(c) O Messias como agente divino da reconciliação – “Deus
estava no Messias reconciliando consigo o mundo” (v. 19) – tem
paralelo posterior no hino cristológico de Colossenses e em Ro-
manos 5. À luz de Colossenses, podemos supor que também
aqui a expressão “Deus estava no” significa mais do que sim-
plesmente a presença de Deus na vida de Jesus, mas também
a presença ontológica de Deus no Messias. O Messias Jesus é
Deus-reconciliador: “nele habita a plenitude da divindade”.
Como amoroso Messias, ele reconcilia todo o mundo (toda a
criação, cp. Rm 8.18ss), com Deus, tornando inimputáveis os pe-
cados, ou seja, liberta da condenação que recai sobre a criação
inteira por causa do pecado humano.
(d) O Messias como pecado: “Aquele que não conheceu peca-
do, ele o fez pecado por nós” (v. 21). Esta afirmação é ousada e
pode ser interpretada de duas maneiras pelo menos: (1) o Mes-
sias foi feito oferta pelo pecado, à luz do fato de que no hebraico
a mesma palavra se refere tanto ao pecado quanto ao sacrifício
que o expia; ou (2) o Messias foi feito pecado, ou seja, foi colo-
cado na condição de maldito (pecador), mesmo que não tenha
transgredido ou pecado. Poderíamos ainda ver na afirmação a

29
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

presença de ambos os aspectos, à luz de Is 52.13-53.12 (talvez


isto esteja na base do pensamento da Carta aos Hebreus): o Mes-
sias, solidário com os pecadores, morre por eles (oferta pelo pe-
cado), tendo sua morte valor especial porque o Messias foi amal-
diçoado (foi feito pecado) em prol da libertação dos pecadores.

O quarto cântico do servo em Isaías contém uma li-


nha na LXX – “o justo (dikaios), meu bom servo, fará
muitos se tornarem justos” (53.11 tradução minha)
– que lança luz sobre a segunda metade do verso
21: de modo que possamos nos tornar a justiça de
Deus nele. Aqui Paulo explica que, em adição ao
perdão dos pecados, Deus tem um propósito (“de
modo que”) ao reconciliar o mundo consigo mesmo
por meio de Cristo. A fim de entender seu sentido
devemos, primeiro, examinar o que ele denota com
a frase “justiça de Deus” (dikaiosyne theou), uma fra-
se que tem sido fonte de muito debate teológico.
Ela se refere à própria justiça de Deus, expressa por
suas ações, de acordo com as promessas da alian-
ça? Ou à justiça que Deus derrama sobre seres hu-
manos, de modo que sejam capazes de se conduzir
de acordo com a vontade divina? Como veremos,
Paulo, de fato, opera a partir desses dois sentidos
da “justiça de Deus” (Stegman, 2009, p. 153).

Não é possível ler 2Co 5.14-21 e não perceber os ecos da


noção messiânica em Is 40-55 – o Messias como escravo opri-
mido, especialmente no quarto cântico (acima referido). Se-
melhantemente, há claros ecos da visão do mártir pela fé em
Deus, desenvolvida principalmente na literatura dos macabeus.
O foco da perícope recai, assim, sobre a morte reconciliadora
do Messias. Morte esta que é o clímax do autoesvaziamento de
Deus-Filho Messias. Em contraste com a expectativa messiânica
básica – de que o Messias matará os inimigos de Deus e de seu

30
Temas de Teologia Bíblica II

povo, a fim de libertar Israel do domínio estrangeiro –, Paulo


propõe um Messias que morre pelos inimigos de Deus e de seu
povo, a fim de libertar toda a criação de seu cativeiro ao pecado.

CURIOSIDADE: OS LIVROS DOS MACABEUS


“Os dois livros dos Macabeus não fazem parte dos livros canôni-
cos judeus, tendo sido considerados apócrifos por São Jerônimo
e mais tarde pelos protestantes. [Eles] são os únicos que nos in-
formam sobre a história do povo eleito na época helenística, ain-
da que abrangendo só meio século, desde o fim do reino de Se-
leuco IV em 176, até o advento de Joao Hircano, em 134. A Judéia
é então vassala dos selêucidas, cujo império, com Antioquia por
capital, se estende do Mediterrâneo aos altiplanos do Irã, mas ra-
pidamente se debilita, acossado pelos romanos e
partos e minado pelas competições dinásticas.
O tema dos dois livros é parecido: graças ao
socorro divino, Judas Macabeu e seus irmãos
reconquistam a autonomia nacional e a liber-
dade de culto que Antíoco IV Epífanes (175-
164) tentara aniquilar.”
Bíblia TEB (1996, p. 1042)

Por fim, o amor e a graça de Deus, como eixos da criação


em Cristo (e no Espírito), indicam que a nova criação deve ser
vista como o alvo da criação, e deve vincular à fé no Deus cria-
dor a esperança no Deus que consumará o seu Reino e a sua
salvação. Ser humano e natureza não podem ser entendidos
de forma radicalmente distinta, como se os seres humanos fos-
sem uma espécie totalmente diferente das demais espécies de
seres que existem na natureza, como se costumava dizer, por

31
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

exemplo, ao afirmar que só o ser humano possui dignidade, o


que justificou por muito tempo a falta de consciência ecológica
do ser humano moderno. Em Cristo, toda a criação é sustentada
e conduzida para o propósito final de Deus, e ela também geme
aguardando a sua redenção (Rm 8.18-23).

JJ ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Amar o mundo e servi-lo como nosso campo missionário.


Este é o convite da teologia da criação. Amar e servir como cristãs
e cristãos, como pessoas que não são do mundo, nem vivem de
acordo com os valores do mundo (Paulo, para evitar confusões,
prefere usar a palavra “carne” para expressar o mesmo senti-
do negativo da palavra “mundo” nos escritos joaninos). Em um
planeta (mundo) ameaçado pela destruição causada pela ativi-
dade humana, cristãs e cristãos têm a imensa responsabilidade
de serem representantes de Deus, defensores e defensoras da
vida para toda a criação. Nós, que participamos da nova criação,
somos agentes de Deus para a salvação de todas as pessoas
que o buscam e se submetem ao Senhor Jesus.

32
Temas de Teologia Bíblica II

33
MÓDULO 2
Tema: A Eleição Divina e o Povo de Deus
Temas de Teologia Bíblica II

JJ PARA INÍCIO DE CONVERSA

Entramos no segundo Módulo de nossa disciplina “Temas


de Teologia Bíblica II”. Nosso tema é complexo e tem gerado
muitas controvérsias na história das igrejas e da teologia. Por
isso, nosso foco não deve estar em alguma tentativa de resolver
esses problemas, e a nossa atitude no estudo não deve ser po-
lêmica ou apologética (defensiva). Nosso objetivo é desenvolver
melhor percepção sobre as principais noções da atividade di-
vina de escolher (eleger ou predestinar) seus parceiros e par-
ceiras. Vamos fazer um esforço para deixar de lado as nossas
preferências doutrinárias sobre o tema e tentar perceber como,
nos tempos bíblicos, essa atividade divina era entendida.
E, ainda mais importante, nosso estudo será feito em uma
atitude de gratidão a Deus porque ele é Criador e Libertador.
A sua atividade eletiva só faz sentido quando somos capazes
de pensar criação e libertação (salvação) em harmonia. Se des-
ligamos a eleição da criação, acabamos caindo em uma atitude
fatalista. Se desligamos a eleição da salvação, acabamos cain-
do em uma atitude universalista. A atitude mais adequada para
estudar a eleição divina é a de gratidão e louvor, assim como
Paulo trata do tema em Ef 1.3ss, ou seja, em oração e adoração
ao Senhor de toda a criação.

JJ 1. ELEIÇÃO E PREDESTINAÇÃO

1.1. A eleição no Antigo Testamento


Na tradição veterotestamentária, eleger significa, basicamen-
te, manifestar uma preferência, uma opção. Usa-se frequente-
mente o verbo bahar (referências a pessoas e objetos escolhidos
são feitas por meio do uso do particípio verbal), que se traduz
por escolher, selecionar, eleger; e, raramente, usa-se o verbo ba-
rar, o qual não é usado em contextos teológicos. Além destes

35
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

verbos, também a expressão “amar mais” e a noção da vocação


divina pertencem ao campo semântico da escolha. Os seres hu-
manos e Deus são os sujeitos desses verbos e da expressão.
Concentraremos nossa atenção na eleição divina. A ação divina
de optar por pessoas ou por um povo sempre está ligada a uma
função a ser exercida pelo eleito. A eleição divina não é um ato
arbitrário, mas um ato amoroso e solidário. As pessoas e os po-
vos eleitos por Deus o são para participar, com ele, da bênção
e da libertação para todos os povos e toda a criação. Quando
Deus é o sujeito, os objetos da sua eleição são: o rei de Israel, a
família sacerdotal, os profetas, o escravo de Deus, o lugar único
para a adoração sacrificial, Jerusalém e, mais enfaticamente, o
povo de Israel.

CURIOSIDADE: REIS, SACERDOTES, PROFETAS E JERUSALÉM


COMO OBJETO DA ELEIÇÃO DIVINA
No caso de reis, sacerdotes e profetas, a eleição é claramen-
te uma escolha para o exercício da função designada, e não
deveria ser entendida como a criação de um privilégio para as
pessoas assim eleitas. No caso particular de reis e sacerdotes, a
eleição tem também um caráter representativo:
os eleitos representam todo o Israel peran-
te Deus. No pano de fundo deste uso do
verbo eleger está a ideia de que somente
Deus pode ser a origem de atos e situações
salvíficos para o seu povo. Com relação à
escolha da família davídica para ocupar o
trono de Israel, veja-se principalmente 2Sm
7; da família sacerdotal, veja-se 1Sm 2.27-28;
Dt 18:5; Nm 16.5ss; 1Cr 15.2; de um profeta como

36
Temas de Teologia Bíblica II

objeto, veja-se especialmente a vocação de Jeremias (Jr 1.4-19);


sendo Jerusalém o objeto, veja-se 1Re 11.13.32; 2Cr 6.34-38.
Por fim, destaca-se, em Deuteronômio, a escolha do único lugar
para a adoração a Deus (Dt 12.1-32), que enfatiza: (1) somente
Deus é o Deus de Israel; (2) Ele é o Senhor de seu povo; (3) Israel
não deve seguir os hábitos religiosos de seus vizinhos, pratican-
do a idolatria; e (4) o culto deve ser expressão de fidelidade a
Deus, gratidão por suas bênçãos, alegria e solidariedade para
com levitas, órfãos, viúvas e imigrantes.

A eleição estabelece as bases para a identidade do povo de


Israel. Dt 7.7-11 destaca: a) o motivo da eleição de Israel por
Deus foi o amor de Deus, e não alguma qualidade especial do
povo (v.7-8a); b) a eleição está na base da libertação de Israel
da opressão egípcia (v. 8b); c) indica que somente Deus deve
ser crido e adorado como o Deus de Israel, e que ele é Deus
fiel à aliança que estabeleceu com o seu povo e misericordio-
so até mil gerações para com as pessoas que guardam os seus
mandamentos; Ele é juiz daqueles que O odeiam (v. 9-10); e d)
consequentemente, a eleição de Israel estabelece a identidade
desse povo como o povo fiel a Deus, que se esforça para guar-
dar e cumprir seus mandamentos, estatutos e normas (Dt 7.11).
Êx 19.3-7 também tematiza a identidade do povo eleito: (a)
a ação libertadora de Deus, no Egito, estabelece o povo de Isra-
el (v. 3-4); b) a aliança de Deus com seu povo é o fundamento
da identidade de Israel, cujas características seriam: pertencer
a Deus como uma posse amada e benquista, porque Deus é
dono de todo o mundo (v. 5); ser, para Deus, um reino sacerdo-
tal e uma nação santa, a fim de exercer a função sacerdotal de
abençoar outros povos em nome de Deus. O povo deveria ser
santo, ser diferente dos demais povos no tocante aos costumes

37
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

religiosos e éticos (v. 6;) e c) a ação eletiva de Deus demanda


uma resposta do povo de Deus se comprometendo com ele,
não há efeitos automáticos (v. 7-8).
Que a eleição divina foi compreendida como privilégio e não
como tarefa pode ser deduzida em alguns textos. Em Am 3.1-2
encontramos um oráculo de juízo, que fundamenta o juízo divi-
no sobre uma compreensão inadequada da eleição: “De todas as
famílias da terra somente a vós outros vos escolhi, portanto eu
vos punirei por todas as vossas iniquidades” (v. 2). Eleição não es-
tabelece um relacionamento arbitrário entre Deus e o seu povo,
mas uma aliança, com mútuos compromissos. Em Am 9.7-8 o
tema reaparece, enfatizando, porém, que Israel não foi o único
povo libertado por Deus de seus opressores: “Não sois vós para
mim, ó filhos de Israel, como os filhos dos etíopes? Diz o Senhor.
Não fiz eu subir a Israel da terra do Egito, e de Caftor os filisteus,
e de Quir os siros?” (v. 7). A mesma temática da não exclusividade
de Israel como alvo da libertação de Deus se encontra também
em Isaías 19.18-25 (especialmente nos versos 24-25).
O exclusivismo da nação judaica é condenado, não só nos
textos já mencionados, mas também no livro de Jonas, que pode
ser entendido como uma metáfora da eleição universal de Deus,
e no livro de Rute, que estende a preferência de Deus a uma
não-israelita, a ponto de torná-la antecessora do vindouro Mes-
sias de Israel. Para cristãos, os poemas do escravo de Deus (Is
42.1-4; 49.1-6; 50.4-11; e 42.13-53.12) são os textos mais incisi-
vos do Antigo Testamento no tocante à não-exclusividade étnica
da eleição divina, demonstrando que a opção divina é uma esco-
lha que cria história de solidariedade para com todas as pessoas
e povos que clamam. Textos como estes indicam que a eleição
divina deve ser entendida no âmbito do amor de Deus por todos
os povos. A releitura cristológica destes textos, por vários auto-
res do Novo Testamento, indica que a Igreja Primitiva possuía
uma compreensão não-exclusivista da eleição de Deus.

38
Temas de Teologia Bíblica II

Note que já no Antigo Testamento a compreensão da eleição


pode ser distorcida. Se pensarmos na eleição como um privilé-
gio, acharemos que somos melhores do que outras pessoas. Se
virmos a eleição, porém, como convite e desafio, pensaremos a
respeito de nós mesmos como parceiras e parceiros de Deus na
libertação de sua criação.

1.2. A eleição no Novo Testamento


O verbo eklegomai e o substantivo ekloge são os termos
gregos que traduzimos por eleger, eleição. Além do uso propria-
mente teológico, esses termos são utilizados para se referir ao
ato de escolha de um lugar, de uma pessoa, de um caminho a
se fazer, e vários são os seus sujeitos em o Novo Testamento.
No uso teológico, Jesus é o sujeito do verbo em contextos da
escolha dos Doze, embora alguns considerem que o sentido é
genérico em Jo 6.70; 13.18; 15.16. A doutrina da eleição se ba-
seia em textos nos quais Deus-Pai é o sujeito, e seus aspectos
principais ocuparão nossa atenção adiante.
O sentido teológico da eleição, em o Novo Testamento, segue
o do Antigo Testamento, ampliando-o em perspectiva cristoló-
gica. Deus elege toda a humanidade, em Cristo, para receber a
sua graça salvífica e ser incluída em sua aliança. Ef 1.4 é o texto
paulino mais contundente: “e nos escolheu nele, antes da fun-
dação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante
dele em amor”. O verso faz parte de uma oração de louvor a
Deus por suas bênçãos, indicando que o tema da eleição deve
ser tratado em contexto litúrgico, o que destaca o aspecto gra-
cioso e amoroso da eleição. A eleição é, então, uma das bênçãos
salvíficas de Deus para toda a criação, cujo propósito é reuni-
ficá-la sob o senhorio de Cristo (Ef 1.9-10). A eleição da Igreja,
em Cristo, tem a mesma função histórica da eleição de Israel: o
povo de Deus, agora na forma da Igreja, é agente da graça amo-
rosa de Deus para a salvação de toda a criação. A identidade do

39
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

povo de Deus, a Igreja, é criada também pela eleição: somos o


povo de Deus em Cristo e levamos o evangelho da sua cruz para
todas as nações (cf. 1Pe 2.8ss).
Jo 6.70 afirma: “respondeu-lhes Jesus: não vos escolhi, eu,
a vós os Doze? Entretanto, um de vós é diabo”. A pergunta de
Jesus aponta para o fato de que a eleição não é automática,
geradora de privilégio, mas criadora de responsabilidade, de
trabalho, e essa responsabilidade deve ser assumida e levada
a efeito. Ti 2.5 e 1Co 1.27-28 destacam a preferência de Deus
pelas vítimas do pecado e, consequentemente, a historicidade
da escolha, que se dirige aos que clamam sob o peso da injus-
tiça. No ato eletivo, Deus estabelece a identidade de seu povo,
Israel e Igreja, e a Igreja deve construir a sua identidade a partir
do ato eletivo de Deus, priorizando em sua ação missionária as
mesmas opções eletivas de Deus.
Romanos 9-11 é um texto importante para o tema da eleição.
Nele, entre outros temas, Paulo discute o lugar de Israel no pla-
no de Deus. Teria o povo eleito perdido o seu caráter de povo
escolhido de Deus? Não, nem todos os israelitas seguiram o pro-
pósito de Deus e foram fiéis à Aliança, mas Deus permanece fiel
– e permanece fiel em Cristo. O endurecimento de Israel não
é definitivo, mas serve para beneficiar os gentios, na recepção
da graça divina. A esperança firme de Paulo é que “no fim, todo
Israel será salvo” (11.26s), assim como é firme a esperança pau-
lina de que chegue a plenitude dos gentios (11.25). Diante de tal
mistério, Paulo conclui sua reflexão com uma doxologia que des-
taca os limites da nossa compreensão dos atos de Deus e nos
convida a dar a ele, e apenas a ele, toda a glória! (Rm 11.33-36).

1.3. A Predestinação
Alguns autores entendem que eleição e predestinação se
referem a diferentes atos de Deus; outros, que são diferentes
maneiras de se referir à mesma ação divina. Aqui, apesar de

40
Temas de Teologia Bíblica II

distinguir os termos eleição e predestinação, sigo a interpreta-


ção de que ambos são sinônimos e se referem à mesma atitude
de Deus. Por que, então, esta separação? Porque a doutrina da
predestinação já foi considerada uma das mais complicadas na
história da Igreja. Para muitos cristãos, ela continua obscura,
promovendo inúmeras indagações e proporcionando um labi-
rinto sem saída. Desta constatação provém a primeira, senão
a principal, questão a ser considerada: tratar do tema da pre-
destinação implica adentrar no campo dos mistérios divinos e,
portanto, o máximo de cuidado deve ser tomado para que não
seja invertida a mensagem teológica da referida doutrina.

1.3.1. Brevíssimo olhar para a história da doutrina
da predestinação
A predestinação (que inclui a eleição) tem importância e fun-
damentação bíblica no âmbito da fé e da espiritualidade cristãs.
Tanto no Antigo como no Novo Testamento existe a noção de
que o povo de Deus se considera eleito e predestinado pela ini-
ciativa do próprio Deus. Textos como Dt 7.6-8 (“o Senhor, teu
Deus, te escolheu, para que lhe fosses o seu povo próprio”), Ef
1.3-5 (“assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do
mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em
amor nos predestinou para ele, para adoção de filhos”) e 1Pe
2.9 (“Vós, porém, sois raça eleita, sacerdócio real, povo de pro-
priedade exclusiva de Deus”) nos certificam da relevância deste
tema teológico.
Por ser um tema presente e legitimado pela Bíblia, a predes-
tinação não pode ser ignorada. Porém, deve ser interpretada e
aplicada para despertar o louvor, a adoração e a gratidão por
tão grande ação de Deus na vida e na história de seu povo,
assim como nortear a missão deste povo. Ela não surgiu para
provocar medo, apreensão ou insegurança nas pessoas por não
saberem seguramente a decisão definitiva de Deus sobre nós.

41
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

Muito menos para configurar um Deus mau, frio ou injusto.


Mas é exatamente na questão da interpretação que surgiram
enormes conflitos em torno desta doutrina.

CURIOSIDADE : PREDESTINAÇÃO EM PELÁGIO E AGOSTINHO


A relação entre predestinação e livre arbítrio levantou questões
no passado que permanecem até nossos dias. Pelágio, nos pri-
meiros séculos da igreja cristã, afirmava que Deus predestina as
pessoas que, ele já sabe, aceitarão sua graça salvadora (predes-
tina de acordo com sua presciência). Agostinho, logo após Pe-
lágio, discorda da predestinação pela presciência e afirma que
ela é, acima de tudo, dom e graça de Deus, independentemente
de qualquer ato e decisão humanos. Para Agostinho, Deus não
nos predestina baseado no conhecimento de que um dia o acei-
taríamos, mas porque é gracioso conosco.
Neste sentido, a maneira com que Pelágio
sustenta sua concepção de predestinação
salvífica aponta exclusivamente para a li-
vre decisão humana, e é esta que justifica
a predestinação de Deus, tornando, para
Agostinho, a salvação por mérito ou obra,
pois passa a ser dependente da decisão hu-
mana e não unicamente da graça divina.

Inevitavelmente, a predestinação para a salvação eterna teve


que tratar do problema dos não-predestinados. Qual seu des-
tino? Por que não foram predestinados? O que está por trás da
sua não-predestinação, já que não tiveram a oportunidade do
livre arbítrio e a opção pela salvação? Para tentar dar resposta a
tais questionamentos, Calvino, um dos principais reformadores

42
Temas de Teologia Bíblica II

da igreja no século XVI, aponta para a possibilidade da dupla


predestinação, embora nunca tenha utilizado esta expressão.
Para Calvino, predestinação é um decreto de Deus que
determina o destino e a condição de cada ser humano na eterni-
dade. Assim, Deus ordenou uns para a vida eterna (predestina-
dos) e outros para a condenação perpétua (não-predestinados).
Portanto, existe a predestinação para a vida e a predestinação
para a morte. Embora alguns teólogos afirmem que Calvino foi
deturpado por gerações posteriores nesta perspectiva, a ex-
pressão dupla-predestinação passou a ser corrente por algum
tempo na reflexão teológica. Para os calvinistas, discípulos e se-
guidores de Calvino, Deus não estaria sendo injusto para com
os não-predestinados, pois todos nós merecemos a condena-
ção e a morte por sermos pecadores e indignos. Porém, Deus
está sendo bondoso e gracioso com aqueles que predestinou,
não porque merecem, mas porque foram justificados pela obra
de Cristo Jesus. Mas qual critério Deus usaria para escolher uns
e desprezar outros?
Mais próximo, cronologicamente, de nós, Karl Barth, teólogo
reformado do século XX, apresentou uma perspectiva da
doutrina da predestinação totalmente diferente em relação às
discussões anteriores. Barth deslocou o alvo da predestinação
para Cristo, em vez de focalizar especialmente o ser humano,
como fizeram os teólogos já citados. Para ele, a predestinação
do ser humano só pode e deve ser compreendida em Cristo. Na
verdade, Cristo é o predestinado e ao mesmo tempo o conde-
nado. Cristo representa toda a humanidade em aceitação e re-
jeição de Deus. Na cruz ele sofreu a condenação de toda huma-
nidade, morreu em nosso lugar. Mas na ressurreição revelou a
graça e o amor de Deus em favor de toda humanidade. Assim,
em Cristo todos são predestinados, já que ele suportou a rejei-
ção, levando sobre si todos os nossos pecados. Esta visão não
resolve todos os problemas vinculados à questão da eleição/

43
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

predestinação, mas abre possibilidades para uma revisão cris-


tocêntrica de nosso pensamento sobre o tema.

PENSE NISSO : UM RECONHECIMENTO DEVOCIONAL


DA PREDESTINAÇÃO
Sempre houve redução do significado teológico da predestina-
ção quando as discussões giraram em torno somente de quem
alcança a salvação eterna. A doutrina da predestinação trata
também de para que somos predestinados. Por exemplo, 1Pe
2.9-10 ressalta o aspecto da proclamação, e assim a dimensão
missionária desta doutrina, assim como o aspecto do amor e da
graça divina que nos inclui em sua maravilhosa luz. Nesta dire-
ção, o conteúdo da predestinação divina não aponta somente
para a salvação eterna, mas, antes disso, para nossa missão en-
quanto povo de Deus predestinados: “proclamar as virtudes da-
quele que nos chamou das trevas para sua maravilhosa luz”. Gn
12.1-4 fala da eleição de Abraão não só como separação para
ser um grande povo, mas como escolhido para ser perfeito e
para abençoar todas as famílias da Terra. Paulo enfatiza que so-
mos predestinados para ser conforme a imagem de Jesus Cristo
(Rm 8.29; Ef 1.3-14)
O tom e o grau de acerto e erro das nossas definições da
predestinação dependerão, igualmente, da maneira como in-
terpretamos e articulamos os vários textos bíblicos que tratam
do assunto. Há textos, como Rm 9-11, por exemplo, que pas-
sam clara sensação de arbitrariedade e onipotência indiscutí-
veis. Há textos, como Ef 1.3-14, que passam ideia de graciosi-
dade e benevolência da escolha divina, e assim por diante. Se
repensarmos os conceitos de destino e liberdade, se revisarmos
nossas noções da onisciência, onipotência e imutabilidade divi-
nas, talvez possamos formular mais adequadamente o conceito

44
Temas de Teologia Bíblica II

da predestinação. Talvez aprendamos que o predestinar divino


convida o povo de Deus à celebração agradecida e comprome-
tida com os propósitos daquele que a amou, elegeu e chamou
para ser povo parceiro da aliança. Talvez consigamos enxergar
a liberdade humana como a capacidade para amar como
Deus ama, para servir como Cristo serve, para
agir como o Espírito age. Liberdade para ser
o povo de Deus, tema de que trataremos nas
próximas páginas.

JJ 2. O POVO DE DEUS EM ISAÍAS 40-55

Há muitas formas de tratar do tema sobre o povo de Deus


no Antigo Testamento. Escolhi abordar este assunto na teo-
logia de Is 40-55 por três razões: 1) na unidade anterior estu-
damos estes mesmos capítulos do ponto de vista da criação
e da nova criação, e aprendemos que “criar” é sinônimo de
“salvar” o povo de Deus; 2) consequentemente, a identidade do
povo de Deus liberto pelo Criador é uma continuação natural
do tema da criação-salvação; e 3) a descrição da identidade do
povo de Deus em Is 40-55 é uma das bases para a exposição
da humanidade e da Igreja em o Novo Testamento. Assim, ao
estudarmos a identidade dos israelitas em Is 40-55 estaremos,
também, estudando os aspectos principais da explanação so-
bre a identidade do povo de Deus, que servirão de base para a
teologia do Novo Testamento.

45
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

2.1. Povo pecador


A abertura de Is 40-55 destaca o cumprimento da pena do
“meu povo”, pena justa para os pecados outrora cometidos
(40.1-2). A identificação do “meu povo” com Jerusalém nos ver-
sos iniciais, bem como a afirmação do papel de “evangelista”
para Jerusalém-Sião (em 40.9-11), deve ser entendida como re-
afirmação da condição pecaminosa dos grupos dirigentes do
Judá pré-exílico, e também como afirmação de sua importância
estratégica na restauração do reino por Deus. Desde o início do
livro ressoa a polêmica contra a crença babilônica (e vétero-o-
riental em geral) de que os deuses dos povos conquistados eram
derrotados pelos deuses da Babilônia. A destruição do reino de
Judá e o exílio de parte de sua população não foram causados
pelo poder superior de Marduque, mas pela mão do próprio
Deus, que puniu seu povo por causa de seus pecados. Entretan-
to, o castigo não é a palavra final de Deus para seu povo, e este
é o tema que perpassa a pregação dêutero-isaiânica: o mesmo
Deus que puniu seu povo, por causa dos pecados, é o poderoso
Deus que irá libertá-lo e restaurá-lo (40.3-11).
São três os termos que descrevem o pecado de Jerusalém
(“meu povo”) no verso 2: servidão ou serviço militar, perversida-
de ou transgressão e “todos os teus pecados”. Os dois últimos
são relativamente frequentes no Antigo Testamento, enquan-
to o segundo só é usado aqui neste sentido de pecado/castigo,
aproveitando a ambiguidade do termo, que indica serviço mili-
tar obrigatório e, por extensão, servidão. Transgressão e pecado
são termos mais genéricos, usados tanto em contextos cúlticos,
quanto legais e políticos. Mi 3.8 (pecado) e Am 3.2 (transgres-
são) são textos emblemáticos, destacam o caráter totalizante
dos erros dos dirigentes de Judá e Israel (injustiça social, idola-
tria e infidelidade a Deus).
Descrições mais concretas são encontradas em: a) Is 42.18-
25 que salienta a cegueira e a surdez de Jacó-Israel, que não

46
Temas de Teologia Bíblica II

ouviu a Torá de Deus e não andou em seus caminhos: nem a


Torá nem os profetas foram capazes de fazer Jacó-Israel prestar
atenção em Deus. A nação pecadora preferiu ouvir a si mesma,
aos seus próprios sábios e mestres, ao invés de ouvir a Deus e
seguir os seus caminhos de justiça; b) Is 43.22-28 é construído
ao redor da temática do senhor-escravo, destacando que Jacó-
-Israel não serviu a Deus, não o honrou com o seu culto ou com
sua vida, ao contrário, fez do culto um autosserviço e do Senhor,
um escravo dos interesses da nação. Muito provavelmente, o
texto é uma releitura das tradições de Jacó, especialmente Gn
27-32, destacando o comportamento do povo, que desonrou a
Deus e causou, assim, a perda de sua “primogenitura”. Em vez
de acusar Deus de esquecimento de seus compromissos com
Jerusalém e a dinastia davídica, os acusadores deveriam reco-
nhecer sua própria condição de infidelidade e pecado, e agra-
decer a Deus pelo gracioso perdão que passou a lhes conceder;
c) Is 48.1-11 destaca a falsa confiança na proteção de Deus e a
teimosia dos dirigentes de Jerusalém que não agiam em con-
formidade com a aliança de Deus, mas exigiam dele o cumpri-
mento de “sua” parte no trato: proteger Jerusalém e a dinastia
davídica. Denúncias similares sobre a falsa confiança em Deus
são encontradas em Am 3.2; Os 12.3-4; Jr 2.4; 9.3, enquanto afir-
mações sobre a teimosia de Judá-Israel são comuns na tradição
deuteronomista (e.g. Dt 10.16; 31.27; Jr 7.25-26). Deus, através
de seus profetas, não deixou de denunciar o pecado e prevenir
contra o castigo, mas não foi ouvido e teve de cumprir a ame-
aça; e d) Is 51.17-23 utiliza a metáfora da embriaguez para se
referir tanto ao castigo de Deus quanto à pecaminosidade de
Jerusalém. A metáfora da embriaguez tornou-se um tópico rela-
tivamente frequente na profecia (Is 5.11-17; 28.1-6.7ss; 29.9-16;
Jr 13.12-14; 25.15-38; Ez 23.32-34), destacando não só o pecado,
mas também o castigo de Deus contra a nação pecadora. A ir-
racionalidade da embriaguez é metáfora da irracionalidade do

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

pecado, a conduta que não se adequa ao ensino e à aliança de


Deus com o seu povo. Como no pensamento vétero-israelita a
culpa e o castigo sobre a culpa formam uma unidade com o
pecado. A utilização da mesma metáfora da embriaguez para o
juízo de Deus não é de estranhar.

2.2. Povo perdoado e resgatado por Deus


O pecado de Jacó-Israel/Jerusalém-Sião foi de tal monta que
obrigou Deus a cumprir suas ameaças e castigar a nação com o
fim do reino e a deportação dos dirigentes. Porém, a grandeza
do poder e da misericórdia de Deus ultrapassa em muito o mal,
e faz com que a última palavra para o seu povo pecador não seja
a de castigo, mas a de perdão, consolo e libertação. A teologia do
segundo-Isaías destaca a justiça de Deus em condenar e castigar
seu povo. Justo, Deus enfatiza, através da pregação do servo, sua
misericórdia e sua fidelidade para com o povo de sua eleição,
as quais se tornarão eficazes mediante a libertação do domínio
babilônico e o retorno a Jerusalém reconstruída e restaurada em
seu papel de cidade do povo de Deus. Além do efeito justificador
de Deus, a ênfase sobre a justiça do castigo tem como papel es-
sencial chamar a atenção dos exilados e convocar-lhes para vol-
tar a crer no Deus de Israel, que não se esquecera deles, como
chegaram a pensar (cf. 40.27-31; 49.14-26; 50.1-3).
As metáforas usadas para a construção da nova identidade
do povo de Deus, em Is 40-55, são principalmente: a) novo êxodo
(40.3-8; 43.9-21; 45.14-25; 47.4; 51.1-16), que excederá o primei-
ro em grandeza e glória, revelando a todas as nações o braço
forte e a mão estendida de Deus em favor do seu povo humilha-
do. Neste novo êxodo, três são os protagonistas humanos desta-
cados: o escravo de Deus que anuncia o seu agir (passim); Ciro,
que será instrumento de Deus para tirar os exilados da Babilô-
nia (45.1ss) e o próprio povo, que é convocado a sair da Babilô-
nia, a fugir dela para voltar a Deus (48.20; 52.11-12); b) o reinado

48
Temas de Teologia Bíblica II

de Deus (40.9-11; 52.7-12), que é anunciado como boa notícia


aos castigados, como o retorno de Deus a Jerusalém-Sião para
novamente apascentar e governar seu povo; c) uma nova alian-
ça, de plenitude (54.10), intermediada não mais pela dinastia
davídica (55.1ss), mas pelo servo fiel a Deus (42.6; 49.8), e que
se estenderá a todas as nações, fazendo, assim, de Israel-Jacó
testemunha de Israel para os povos (cf. 43.9-21; 44.24-28); e, a
novidade do segundo Isaías, a libertação como criação (43.1ss;
44.2.24; 46.3; 54.5). Deus não só é o criador de céus e terra,
como é também o criador de Israel-Jacó – tema impressionante
que reafirma a exclusividade e a singularidade de Deus, o único
Deus (54.5), que discutimos no Módulo anterior sobre a criação.

2.3. Povo grandioso: a utopia da nova família de Deus


A utopia do segundo Isaías está diretamente ligada à ação de
Deus, que constitui a identidade do seu povo. A primeira marca
da visão de um novo Israel é a afirmação triunfante do reinado
de Deus (Is 40.9-11; 52.7-11). Com Deus como rei, Israel esta-
rá livre do domínio de outras nações e estará livre também da
condenação a que foi submetido por seu próprio pecado. Que
Deus reina é uma boa notícia, um evangelho para Israel, que dá
força aos cansados, ânimo aos desanimados, coragem aos en-
fraquecidos. O reinado de Deus tem Jerusalém-Sião como o seu
espaço central, do qual se irradia para todas as cidades de Judá
(40.9-11), cidade destruída, apenas ruínas que serão reconstruí-
das e restauradas como uma nova cidade que dará testemunho
do evangelho do reinado de Deus.
A soberania libertadora de Deus, por sua vez, carrega em si
a marca da justiça (e.g. Is 41.2; 42.1-4, etc.), que é o sinônimo
da libertação e da justiça social. Nas tradições do davidismo, a
justiça é implementada na terra pelo rei (e.g. Sl 72), que repre-
senta Deus como governante e juiz do seu povo. No segundo
Isaías, o rei está ausente da implementação da justiça, tarefa

49
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

que cabe ao servo de Deus e ao próprio povo, que deve buscar


a justiça (51.1ss). Na bela descrição da justiça do povo de Deus
no capítulo 51, as figuras de Abraão e Sara são evocadas para
despertar a memória para o poder de divino que, do nada, pode
fazer brotar a vida. Buscar a justiça de Deus também significa
andar nos Seus caminhos e seguir a Sua Torá (51.4.7), de modo
que é refletindo o agir e o caráter de seu Deus que o povo isra-
elita encontrará sua nova identidade e reconstruirá sua nação
em novas bases.
Concretamente, isto evoca o problema da distribuição das
terras, uma vez que os exilados eram os possuidores da maior
parte da terra judaíta – embora isso tivesse sido conseguido gra-
ças ao pecado (e.g. Is 5.1ss; Mq 2.1-5; 3.1-4). Se a volta dos exila-
dos exige a busca e a implementação da justiça, e se Jerusalém
será evangelista para Judá, o direito dos que ficaram na terra
deverá ser considerado seriamente: a antiga noção da herança
familiar deve ser o pano de fundo desta dimensão da utopia.
Em Is 49.5-6.8 podemos encontrar um indício nessa direção, na
afirmação da restauração das tribos de Jacó em companhia dos
exilados de Israel.
Mas a metáfora mais impressionante e dominante no segun-
do Isaías é a da reconstrução e do repovoamento de Jerusalém-
-Sião (40.2.9; 44.26-28; 46.13; 49.14ss; 51.3.17ss; 52.1-12; 54.1-
17). O tema perpassa todo o livro, sendo indicado na primeira
parte e desenvolvido exaustivamente na segunda. Os capítulos
51, 52 e 54 tratam com profusão de metáforas e detalhes, da
restauração da cidade santa de Deus, a morada do Rei e Santo
de Israel, abrigo e habitação dos filhos de Israel. O contraste
entre a condição real de Jerusalém, destruída, arruinada, desa-
bitada, e a nova realidade que será levada a efeito por Deus,
através de seus servos, não poderia ser maior. Aproveitando a
metáfora da esposa e da mãe, o laço entre Deus e Jerusalém
é apresentado de forma intensamente pessoal, destacando o

50
Temas de Teologia Bíblica II

caráter familiar do novo povo de Deus, ansiado pelo profeta.


Conquanto o segundo Isaías seja crítico das tradições da inviola-
bilidade de Sião, em sua utopia apresenta também a promessa
de que Deus protegerá a sua cidade e fará dela o centro de seu
governo mundial (54.3).
O que distingue a pregação do segundo Isaías da tradição
sionista da corte de Jerusalém do período pré-exílico é que o
fundamento da nova Jerusalém não é cúltico, mas ético. Apesar
da ênfase em Sião (o monte onde ficava o Templo), não há des-
taque correspondente sobre o Templo e o culto sacrificial. Isto
sugere que os autores desta utopia estavam ligados ao culto,
sim, mas principalmente à dimensão didática do serviço sacer-
dotal. Na nova Jerusalém, todos os seus habitantes serão dis-
cípulos de Deus (Is 54.13), figura que evoca o próprio servo de
Deus como aquele que escuta ao seu Deus. Evidentemente esta
metáfora do discipulado está em contraste com a descrição do
pecado pregresso de Jerusalém como cegueira e surdez.
Não mais cega e surda aos caminhos e à instrução divina, Je-
rusalém se tornará uma cidade verdadeiramente santa e justa,
pelo que receberá a proteção de seu Senhor. Morada dos dis-
cípulos de Deus, Jerusalém será cidade da justiça (Is 54.14), da
qual toda opressão será afastada e toda injustiça será banida.
É esclarecedor ler o capítulo 54 à luz de Is 1.21-31. A Jerusalém
pré-exílica se dizia santa, morada divina, sede da justiça, trono
do Senhor, mas era, na verdade, a capital da injustiça social e
da negação do reinado de Deus. A nova Jerusalém terá Deus
como seu rei (Is 52.7ss), seguirá as palavras do Senhor (51.16)
e efetivamente fará da justiça os seus alicerces (54.14). E tudo
isso virá do próprio Deus (54.17), de modo que não se pode-
rá tomar esta descrição como algo de cunho sacramental, au-
tomático, mas como uma utopia no sentido pleno da palavra,
uma nova cidade a ser construída pelo novo povo de Deus, se-
guindo a Torá do Senhor, andando na santidade do seu Deus,

51
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

praticando a justiça do seu Criador e Redentor, e submetendo-


-se ao governo justo de seu Rei.
A partir dessas novas metáforas, o povo judaíta no exílio
pode repensar sua condição de “castigo” como uma nova situ-
ação: a de “perdoados” por Deus. O rei de Israel, único Senhor
de toda a Terra, é Deus fiel à sua aliança. Sendo fiel, renova a
aliança com o seu povo pecador, reafirmando sua graça e mi-
sericórdia e reconvocando seu povo à fidelidade e à santidade
que caracterizam a resposta do povo à sua aliança.

EM RESUMO
A nova identidade do povo de Deus tem sua base na nova
concepção da identidade de Deus. O Senhor de Israel é o único
Deus, aquele que criou o mundo e o seu povo, que libertou e
libertará seu povo perante as nações, que realizou e realizará a
justiça e manifestará sua soberania entre todos os povos. Por
isso, o povo de Deus, reconduzido à sua terra, será testemunha
viva desse Deus, testemunha concreta, não em palavras, mas
em atos. Através do testemunho, o povo de Deus pode recons-
truir a sua identidade nessas novas bases, identidade
de aprendiz, discípulos e discípulas de Deus que
efetivamente encontrarão no serviço sua real
identidade, o grande desafio da sua utopia.

52
Temas de Teologia Bíblica II

JJ 3. POVO DE DEUS EM ESCRITOS PAULINOS

De modo similar ao que fizemos no tópico anterior, podería-


mos discutir o tema “povo de Deus” em o Novo Testamento de
várias maneiras. Como não temos tempo suficiente para tratar
de todo o Novo Testamento, optei por abordar o assunto a partir
de alguns textos paulinos mais importantes para a compreen-
são de sua teologia do povo de Deus. Você perceberá elementos
de continuidade com a proposta de Isaías, mas também verá
novidades em relação à visão do povo no Antigo Testamento.

3.1. A identidade do povo de Deus


Uma das imagens que Paulo utiliza para se referir à Igreja é a
da família. Embora ele não construa sobre esta imagem concei-
tos teológicos amplos, a noção de família está presente todas
as vezes em que Paulo fala da Igreja como composta de filhos
e filhas de Deus. Mesmo assim, a imagem é importante ao nos
mostrar a atuação fundadora do Espírito em relação à Igreja.
O papel do Espírito é nos tornar filhos de Deus por adoção e
nos testificar que realmente o somos (Rm 8.14-17; Gl 4.6). Em
outras palavras, somos uma família porque todos partilhamos
da mesma experiência salvífica trinitária: todos recebemos a
filiação ao Pai mediante o agir do Espírito de Cristo. É dele que
recebemos a vida, e por meio dele é que vivemos em Cristo e
para o Pai (cf. 2 Co 5.11ss)!
Esta mesma ideia está presente na expressão paulina da
“comunhão do Espírito Santo” (2Co 13.13; Fp 2.1), que pode ser
entendida como nossa participação no Espírito Santo, ou seja,
a experiência comunitária de recebermos nossa identidade e
nossas funções do Espírito. Com relação a 2Co 13.13 a ênfase
recai no fato de que a graça do Senhor Jesus e o amor de Deus
só podem ser experimentados mediante nossa participação
no Espírito Santo, que as concretiza na história humana. Já em

53
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

Fp 2.1 a ênfase recai na experiência comum do Espírito como


o fundamento para a unidade da igreja local, ameaçada de di-
visão. Como partilhamos de um e mesmo Espírito Santo de
amor, vivamos também em união.
O conceito de que o Espírito Santo vivifica a Igreja está pre-
sente também na figura do Corpo de Cristo, especialmente em
1Co 12.12s. Somos, como Igreja, um só corpo porque “todos fo-
mos batizados por um só Espírito, para formarmos um só corpo,
judeus ou gregos, escravos ou livres, e todos nós bebemos de
um único Espírito.” O caráter reconciliador das divisões huma-
nas, presente na ação do Filho enviado pelo Pai, é concretizado
mediante o agir do Espírito Santo, que faz vir à existência co-
munidades do povo de Deus em localidades específicas. Como
decorrência dessa experiência comum de entrada na vida de
Deus, a Igreja – família e povo de Deus – é chamada a viver em
união e amor (cf. Fp 2.1ss; Gl 5.13ss; 1Co 13.1ss), características
do agir do Espírito Santo que derrama o amor de Deus sobre
nós (Rm 5.5), e assim fundamente a unidade essencial que o
povo de Deus é chamado a guardar ou manter (Ef 4.1-6). O Cor-
po de Cristo é uma nova humanidade, em forma de primícias, a
expressão de uma humanidade não mais dividida por causa do
pecado, na qual as diferenças de raça, etnia, sexo e classe social
deixam de ter valor e passam a ser vistas como manifestações
da multiforme graça de Deus.

3.2. A edificação do povo de Deus


A figura mais comumente usada por Paulo para referir-se
à Igreja é a do Corpo de Cristo (1Co 10.16s; 11.29; 12.12ss; Rm
12.4-5; Cl 1.18; 3.15; Ef 1.23; 2.16; 4.3-16; 5.23), e as suas duas
ênfases mais claras são as de unidade e diversidade desse
corpo: a nova comunidade carismática de Deus, que é edifi-
cada mediante o mútuo exercício dos carismas da Trindade.
Por carismática entendemos a comunidade que é composta e

54
Temas de Teologia Bíblica II

edificada por pessoas que participam da graça de Deus, de-


monstrada no envio do Filho, concretizada escatologicamente
pelo agir do Espírito e que se manifesta de diferentes formas:
a partir da experiência carismática da filiação ao Pai e do re-
vestimento do Filho. Enfatiza-se que nenhum membro da Igre-
ja é falho no tocante à recepção da graça de Deus, por isso ne-
nhum membro pode recusar-se a contribuir com a adoração
ou com a vida da comunidade.
A experiência do Espírito produz vida, vida em semelhança a
Jesus Cristo (cf. Gl 5.13ss), vida mútua por meio do exercício dos
dons e dos ministérios e manifestações da Trindade na vida da
Igreja. Tendo sido batizados no Espírito Santo, os cristãos são
tornados participantes ativos da vida do Corpo de Cristo. Não
pode haver, segundo o pensamento paulino, um membro ina-
tivo na Igreja, pois pertencer ao Corpo de Cristo significa tam-
bém possuir um ministério no Corpo (ou um dom espiritual).
Semelhantemente, não é possível pensar, de acordo com Paulo,
na possibilidade de membros dispensáveis da Igreja – se um
membro deixa de cumprir sua função, todo o Corpo sofre, as-
sim como, se um membro sofre, todo o Corpo sofre. O Espírito
Santo é, por assim dizer, aquele que torna solidários os mem-
bros da Igreja, fazendo-os, verdadeiramente, Corpo de Cristo e
membros uns dos outros. Essa mutualidade não só é exercida
através da prática dos carismas, mas também no relacionamen-
to amoroso entre irmãos e irmãs, conforme as diversas exorta-
ções paulinas veiculadas na expressão “uns aos outros” (amar,
perdoar, suportar, ensinar etc.).
Consequentemente, todos os cristãos são carismáticos e isto
também implica que todos vivemos uns para os outros e, jun-
tos, vivemos para servir a Deus no mundo. Os carismas nos são
dados tendo em vista o bem comum (1Co 12.7) e a edificação do
Corpo (Ef 4.11ss), de modo que a Igreja chegue à plenitude da
experiência do Filho através do exercício mútuo dos dons, em

55
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

um ambiente de amor (cf. 1Co 13). Assim, não podemos pensar


na unidade do povo de Deus como uma característica da sua
doutrina ou de sua institucionalidade. A unidade é, pelo contrá-
rio, um evento criativo constante, continuamente dependente
da ação do Espírito que distribui e manifesta seus multiformes
e sempre criativos carismas. Dessa forma, toda e qualquer dis-
cussão sobre os dons deve girar ao redor do eixo da edificação
da Igreja à semelhança de Cristo, o que evitaria todas as querelas
inúteis na tentativa de estabelecer a superioridade dos dons so-
bre o fruto ou do fruto sobre os dons do Espírito.
O exercício mútuo dos dons é o que nos possibilita a práti-
ca do fruto e, simultaneamente, é a manifestação do fruto do
Espírito que permite à comunidade o exercício adequado dos
dons espirituais. Aqui junta-se, à figura do Corpo de Cristo, a do
templo de Deus que ocorre quatro vezes na literatura paulina
(1Co 3.16-17; 2 Co 6.16; Ef 2.21; 1Tm 3.15 – nesta última o víncu-
lo com o Espírito não é evidente). Em Ef 2.21 a ênfase recai no
fato de que a Igreja é morada de Deus, que está presente nela
pelo Espírito Santo, que assim a edifica. Nos dois textos aos co-
ríntios, a ênfase recai na santidade e na fidelidade que a Igreja
deve demonstrar, em função de ser a morada de Deus – deve
evitar a idolatria e a sabedoria humana, e demonstrar a vida de
Deus, sendo fiel a ele e mantendo-se unida.

PENSE NISSO
É comum ligar a temática dos dons espirituais
aos conflitos entre igrejas “tradicionais” e
“pentecostais” ou “carismáticas”. Não vale a

56
Temas de Teologia Bíblica II

pena perseverar nessa atitude conflitiva. Os dons são expres-


sões da graça de Deus e, se há diferentes maneiras de entendê-
-los e de praticá-los, não nos deveríamos preocupar com isso,
mas, ao contrário, deveríamos nos alegrar com a diversidade
dos modos de Deus agir entre nós.

Por fim, quando pensamos na natureza carismática da Igre-


ja, temos de vinculá-la à missão do povo de Deus. A edificação
da Igreja não pode ser compreendida de modo redutivo, ima-
ginando-a apenas em termos da vida interna da comunidade.
A Igreja é edificada em duas direções simultâneas: a) na dire-
ção interna e vertical do aperfeiçoamento espiritual de todos os
seus membros na vida com Deus; e b) na direção externa e ho-
rizontal do exercício da missão, demonstrando o amor de Deus
ao mundo submetido ao poder do pecado. Quando Paulo fala
do trabalho do povo de Deus como ministério, está se referindo
ao serviço que cada um presta, interna e externamente, serviço
aos irmãos, serviço ao mundo.
O povo de Deus, em Paulo, é essencialmente uma comuni-
dade dispersa no mundo realizando a missão. A dispersão (ou o
envio) é sua característica básica, a partir da qual se pode enten-
der mais adequadamente a sua “re-união” na liturgia dominical.
Assim, ‘ekklesia recebe seu sentido mais adequado – não se tra-
ta de ser “chamado para fora do mundo”, mas, ao contrário, “ser
chamado de dentro de si mesmo para ir ao mundo’”.

JJ ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Somos eleitos e eleitas! Podemos nos alegrar e confiar no


amor do Senhor que nos escolhe em Jesus Cristo para a sal-
vação. Podemos nos alegrar na fidelidade do Senhor que não

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

abandona seus filhos e filhas, nem os entrega à perdição. Pode-


mos nos regozijar na certeza de que Deus manterá sua palavra
e seu compromisso para com seus eleitos e eleitas. Por isso, ale-
gres, podemos nos comprometer com o Deus que elege, para
que sejamos seus parceiros e parceiras na realização do seu
amor na história da criação. Eleitas e eleitos são testemunhas
do amor de Deus em Cristo Jesus. Somos testemunhas do amor
que abre a todas as pessoas o acesso à salvação plena mediante
a fidelidade de Jesus e a fé-fidelidade em Jesus. Alegria, gratidão
e compromisso – estas são as atitudes do povo eleito. Jamais
arrogância, complexo de superioridade ou conformismo com o
mundo. Eleitas e eleitos em Jesus, podemos viver como ele mes-
mo viveu neste mundo, servindo sempre a Deus e sua criação.

58
Temas de Teologia Bíblica II

59
MÓDULO 3
Tema: Lei e Graça
Temas de Teologia Bíblica II

JJ PARA INÍCIO DE CONVERSA

Neste último módulo de “Temas de Teologia Bíblica II” nosso


tema de estudo será o problema “lei versus graça”. É um tema
que aparece também em outras disciplinas de nosso curso: em
“Introdução ao Antigo Testamento” conversamos sobre a rela-
ção entre lei e graça no Pentateuco (Torá) e em “Temas de Te-
ologia Bíblica I” conversamos sobre a relação entre lei e graça
na aliança, especialmente em Jeremias e sua profecia da nova
aliança. Retomarei partes dessas outras conversas, a fim não só
de refrescar nossa memória, mas também para ajudar quem
não tenha feito uma ou ambas dessas disciplinas anteriores.
Vamos rever sem repetir o que já estudamos, ou seja, vamos
retomar um tema e tratá-lo de uma forma diferente e, neste
caso, mais abrangente. Nosso objetivo, portanto, é investigar o
percurso dos temas lei e graça no Antigo e no Novo Testamen-
tos, buscando compreender a lógica da gratidão e da gratuida-
de que devem direcionar nossa ação e nossa própria identidade
enquanto povo de Deus.
Para começar a conversa, vamos descrever o problema da
relação entre lei e graça.

JJ 1. O PROBLEMA

Este não é um problema “novo”, já existe há vários séculos


na interpretação da Bíblia e nas teologias acadêmicas e eclesi-
ásticas, e possui várias dimensões. Mas não é só um problema
acadêmico; é também um problema prático. Vejamos as várias
dimensões desta questão, tanto teóricas como práticas:
(1) Dimensão Semântica (relativa ao sentido da palavra). A
primeira dimensão do problema tem a ver com o sentido das
palavras traduzidas por “lei” nos textos bíblicos em suas línguas
originais. A palavra hebraica torah, bem como a palavra grega

61
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

nomos (que é usada na Septuaginta e em o Novo Testamento


Grego para traduzir o hebraico torah), possui diferentes usos
e significados. Assim, ela pode se referir: a) ao Pentateuco, ou
seja, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento; b) apenas
às seções normativas do Pentateuco (“mandamentos, estatutos
e preceitos” conforme a terminologia bíblica); c) à instrução ou
ao ensino, primeiramente dos sacerdotes, mas também do en-
sino em geral, inclusive o divino; d) à lei consuetudinária (basea-
da no costume) ou positiva (baseada no ordenamento jurídico),
a ser praticada na vida social; e) enquanto “lei” no sentido acima
(em “d”), é uma exigência externa à pessoa, ou seja, é algo para
ser cumprido, mas não necessariamente algo que está incor-
porado na identidade pessoal: uma obediência que pode ser
motivada pelo medo da punição ou pela hipocrisia etc.; f) em
alguns textos do judaísmo e do Novo Testamento, a palavra
pode se referir ao caminho de salvação, como meio de acesso
ao Reino de Deus. Neste caso, a Lei se tornou a marca principal
da identidade do povo judeu na tradição farisaica e no ensino
sacerdotal oficial da época neotestamentária; e g) pode, enfim,
ser usada com o sentido de um princípio existencial, como em
Rm 8.1ss – “a lei do Espírito, que é lei da vida [...]” –, que equivale
mais ou menos ao que nós costumamos chamar de “estrutura”
ou de “identidade”.
(2) A segunda dimensão do problema, especialmente na his-
tória das relações do Protestantismo com o Catolicismo, e do
Cristianismo em geral com o Judaísmo, tem a ver com a relação
entre a obediência à lei e a salvação pela graça ou, na linguagem
mais típica da época da Reforma, a relação entre graça e obras.
Este problema é especialmente presente nos escritos paulinos e
na comparação de Paulo com Tiago. É, teologicamente falando,
uma questão soteriológica: o ser humano pode fazer algo para
merecer a salvação? O ser humano pode, de algum modo, coo-
perar com Deus para alcançar a salvação?

62
Temas de Teologia Bíblica II

(3) A terceira dimensão do problema tem a ver com a valida-


de e a interpretação da “lei” do Antigo Testamento em sua rela-
ção com a “graça” do Novo Testamento. De acordo com alguns
autores, a graça teria anulado a lei, de modo que os cristãos não
precisariam levar em consideração as leis do Antigo Testamen-
to na sua vida ética. Outros, porém, não queriam ir tão longe e
propuseram formas menos radicais de compreensão do lugar
da lei no regime da graça. Por exemplo, na história da inter-
pretação reformada da lei do Antigo Testamento se afirmou a
seguinte classificação das leis do Pentateuco: cerimonial, moral
e cívica. Esta distinção serviu para afirmar que a lei moral conti-
nua válida para os cristãos, mas não a cerimonial nem a cívica.
O problema, neste caso, tem a ver com a adequada distinção
entre essas três categorias de leis, pois no Antigo Testamento
não existia esse tipo de classificação.

PENSE NISSO
Existem formas menos agudas desse problema, porém, que
afetam cristãs e cristãos de todas as denominações e tradi-
ções, inclusive pessoas que são membros de igrejas protestan-
tes históricas. Vejamos um exemplo: protestantes, em geral,
não admitem qualquer tipo de imagens representativas de
Deus em seus templos (diferentemente de templos
católicos e ortodoxos). Em alguns casos, não
se admite uma cruz com o corpo de Jesus re-
presentado ou nem mesmo uma cruz vazia,
ou seja, não se admitem representações de

63
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

Jesus enquanto encarnado, porque ele é o Deus encarnado, en-


tão seria idolatria ter imagens de Jesus (estátuas ou pinturas)
no templo (ou nas casas etc.). Por quê? Porque ter imagens de
Deus seria quebrar o segundo dos dez mandamentos: “não fa-
rás para ti imagem [...]”. Bem, se devemos cumprir o “segundo
mandamento”, por que não devemos cumprir todos os outros
mandamentos presentes no Pentateuco? Ou será que apenas
os “Dez Mandamentos” ainda devem ser obedecidos?

(4) Do ponto de vista prático o problema da relação lei-gra-


ça também tem diferentes formas. Ele tem a ver com o modo
como lidamos com a relação entre salvação e santificação – em
alguns casos a salvação é recebida pela graça, mas a santifi-
cação é entendida como resultado do esforço humano (obras
ou moralidade). Em sua forma mais aguda, está presente es-
pecialmente em denominações de tradição pentecostal. A lei
veterotestamentária serve como base para a questão dos “cos-
tumes”. Por exemplo: em algumas igrejas as mulheres não po-
dem cortar os cabelos, os homens não podem deixar crescer
barba, é proibido assistir televisão etc. O que é chamado de
“costumes” nessas denominações equivale ao que chamamos
de “lei”: regras ou normas que devem ser seguidas a fim de
que a relação da pessoa com Deus se mantenha adequada e
que a pessoa possa dar testemunho da sua fé e doutrina. Não
iremos discutir a validade da questão dos “costumes” (afinal
de contas, é um problema que deve ser resolvido nas e pelas
denominações onde existe, e não por nós que pertencemos a
denominações que não possuem essa compreensão da vida
cristã), apenas indicamos as diferentes formas do problema.
Em termos mais gerais, tem a ver com o modo como lidamos
com as práticas eclesiais – por exemplo: para continuar a ser

64
Temas de Teologia Bíblica II

salvo é necessário dar dízimo? Frequentar cultos? Fazer boas


obras? Em termos abstratos: a graça é fundamental para a sal-
vação, mas as obras, para a santificação. Colocado desta forma,
o problema é grave, pois a graça de Deus é suficiente tanto
para a salvação quanto para a santificação e a única resposta
humana possível é a da fé-fidelidade.

JJ 2. ENFRENTANDO O PROBLEMA

2.1. A questão semântica


O aspecto semântico do problema possui duas formas de
resolução. Em primeiro lugar, devemos simplesmente aceitar o
fato de que a palavra “lei” (seja em hebraico, grego, português
ou outros idiomas) possui diferentes significados, de modo que,
ao usarmos ou encontrarmos a palavra em conversas ou leitu-
ras, devemos prestar atenção ao sentido específico em que ela
está sendo usada. Em segundo lugar, do ponto de vista mais
especificamente teológico, precisamos diferenciar o sentido
contemporâneo de “lei” do sentido da “lei” na teologia bíblica.
Se, ao lermos a Escritura, enxergarmos na palavra “lei” a noção
de “norma elaborada, garantida e sancionada pelo Estado, que
deve ser cumprida integralmente”, manifesta nos vários “Có-
digos Legais” (Civil, Penal, Tributário etc.), então cometeremos
o erro do anacronismo: o significado “jurídico-legal” de lei de
nossos dias não existia na Escritura (embora houvesse sentidos
aproximados ou similares, especialmente na parte ocidental do
Império Romano).
É mais adequado entender “lei”, no Antigo e em o Novo
Testamentos, no sentido mais genérico de “norma” – uma
descrição de comportamento humano considerada adequada
para a vida em sociedade. Toda lei é também “norma”, mas nem
toda “norma” é “lei”, na medida em que não é criada, garantida
e sancionada pelo Estado. Ou seja, as normas expressam as

65
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

diferentes visões presentes em uma sociedade no tocante aos


modos corretos de agir, mesmo que não se preveja uma san-
ção estatal para o descumprimento delas, ou mesmo que a
norma não tenha garantia estatal de legitimidade. Em outras
palavras, as “leis” do Antigo Testamento (bem como as listas
neotestamentárias de comportamento) devem ser entendidas
como normas, ou seja, como descrições contextuais de modos
corretos de agir na vida em sociedade. Desta forma, a validade
de uma norma depende do contexto (histórico, social, cultural,
político e religioso) em que ela foi elaborada.
Podemos, para efeitos de discussão, sintetizar as demais
dimensões do problema lei-graça como a dimensão teológico-
-hermenêutica. Assim, ao invés de estudarmos como cada uma
dessas dimensões pode ser resolvida, vamos estudar o tema
genérico da relação lei-graça no Antigo e no Novo Testamen-
tos, apresentando, na medida em que estudamos alguns textos
fundamentais, a resposta básica para cada uma das dimensões
do problema.

2.2. Lei e graça no Antigo Testamento


2.2.1. Lei e graça na Torá (Pentateuco)
Aqui retomo parte do que estudamos em “Introdução ao
Antigo Testamento”. A “lei” no Pentateuco (Torá) é da nature-
za das normas e não das leis! Precisamos, então, compreender
os textos normativos como instrução, ensino ou teologia e não
mais como leis. São normas culturais-teológicas que visam a
instruir o povo de Deus à prática da fidelidade à aliança en-
tre Deus e seu povo. Como os textos normativos fazem parte
da narrativa do Pentateuco sobre a identidade de Israel, eles
não são lei no sentido do debate teológico-eclesiástico, mas
expressão da graça de Deus. Em outras palavras, Israel não
se tornaria povo de Deus se cumprisse as leis; Israel se tornou
povo de Deus pela graça libertadora de Deus no êxodo e na

66
Temas de Teologia Bíblica II

promessa da terra. As normas divinas vieram depois da liber-


tação: “Deus pronunciou todas estas palavras, dizendo: Eu
sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair da terra do Egito, da
casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim”
(Êx 20.1-3).
Antes da lista de normas (Êx 3-17) para a vida do povo de
Deus, vem a declaração da graça – “que te fez sair”. Note ainda
como no verso 1 o texto define o que nós, erradamente, cha-
mamos de “Dez Mandamentos” – “todas estas palavras”. Deve-
ríamos, então, chamar este famoso texto de Decálogo (Dez Pa-
lavras) e não de Dez Mandamentos, posto que, embora tenham
força normativa, não são leis, mas a instrução de Deus para nós
que cremos nele.
Note bem, agora, outro texto: “Eis que vos ensinei estatu-
tos e normas, conforme o Senhor, meu Deus, me ordenara,
para que os ponhais em prática na terra em que estais en-
trando, a fim de tomardes posse dela. Portanto, cuidai de pô-
-los em prática, pois isto vos tornará sábios e inteligentes aos
olhos dos povos. Ao ouvir todos esses estatutos, eles dirão:
‘Só existe um povo sábio e inteligente: é esta grande nação!’.
De fato! Qual a grande nação cujos deuses lhe estejam tão
próximos como o Senhor, nosso Deus, todas as vezes que
o invocamos? E qual a grande nação que tenha estatutos e
normas tão justas como toda esta Torá que eu vos proponho
hoje?” (Dt 4.5-8).
Repare no primeiro verbo do texto: ensinei! Os estatutos e as
normas da Torá são o ensinamento de Moisés ao povo de Israel.
A finalidade do ensino é que o povo de Deus, após entrar na
terra prometida: a) mantenha a posse dela, b) seja reconhecido
como um povo sábio e inteligente, c) cujo Deus é um Deus pró-
ximo, amigo do povo, o Deus da aliança. Mais uma vez temos
a sequência: graça libertadora de Deus – promessa – ensino –
prática do que foi ensinado.

67
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

PARA RESUMIR
Os textos normativos do Pentateuco devem ser estudados e
compreendidos como ensino de Deus para nós, não podem
ser separados de seu contexto narrativo, não devem ser
lidos como lei em contraste com a graça. As normas vétero-
testamentárias são normas da graça, são expressão da
fidelidade de Deus em relação ao seu povo e da fidelidade que
Deus deseja que seu povo tenha para com ele. O problema
“lei-graça” só existe, então, quando interpretamos as “normas”
como “leis” e este tipo de interpretação já era
criticado pelos profetas do Antigo Testamento,
especialmente por Jeremias e Ezequiel, cujo
conceito de “nova aliança” já estudamos e
iremos retomar na próxima subseção.

2.2.2. Lei e graça na Nova Aliança


Para entender a crítica de Jeremias e Ezequiel à “antiga”
aliança, precisamos retomar os seguintes temas históricos: 1)
no período anterior à monarquia, a berith (graça) do Senhor
Deus (consequentemente, também a “lei”) com Israel era vista
e vivida como um compromisso libertador de Deus a favor de
seu povo, que demandava uma resposta de fidelidade a Deus
e solidariedade para com o próximo; 2) durante a monarquia,
os reis e o sacerdócio passaram a ensinar a berith como um
contrato entre Deus e o seu povo, mediado pelo rei (que tam-
bém era o chefe do sacerdócio). Na interpretação estatal-sa-
cerdotal da Torá, esta passa a ser vista como “lei” que deve ser

68
Temas de Teologia Bíblica II

cumprida por todos e é garantida pelo Estado (rei e sacerdó-


cio) que também assume o direito de punir quem desobedece
à “lei”; 3) Jeremias e Ezequiel retomam a primeira compreen-
são da berith e a apresentam como uma “novidade”: Deus é o
libertador que demanda fidelidade de seu povo e não precisa
de intermediários para se relacionar com o povo que libertou.
Retomemos a parte final da perícope de Jr 31.27-34 para
destacarmos a relação lei-graça na “nova aliança”. Essa parte
final, Jr 31.31-34, é dividida em duas partes que se comple-
mentam pelo contraste. Na primeira parte temos, inicialmen-
te, o anúncio da chegada de uma nova berit a ser firmada entre
Deus e as casas de Israel e de Judá. No verso 32 temos uma
explicação da necessidade dessa nova berit: a aliança em vigor
na época de Jeremias, firmada no êxodo do Egito, foi anulada
pelos “seus pais”. Na segunda parte temos a explicação dessa
nova berith, que será firmada “depois daqueles dias”, e que
consistirá em uma “escrita” da torah no corpo de cada membro
da casa de Israel. Implícita neste esquema estrutural está a
crença na fidelidade de Deus: “os pais” foram infiéis, mas Deus
permanece fiel.
A nova aliança se funda no “novo êxodo”, ou seja, no retorno
dos exilados como o evento fundante da nova casa reunificada
de Israel e de Judá. Entretanto, a novidade essencial não está
aí, mas na “escrita” da torá no corpo dos membros do povo e
em suas consequências. Os textos sobre o novo coração em
Jeremias, Deuteronômio e Ezequiel são importantes parale-
los a esta descrição da nova aliança e, de fato, ela pressupõe
uma compreensão dos israelitas como “duros de coração” ou
de “coração maligno”, de tal modo que, apesar de terem sido
“desposados” por Deus, jamais foram fiéis a ele. Assim, a solu-
ção definitiva para Israel não é meramente a posse da terra e a
autonomia política, mas sim uma nova subjetividade, para usar
um termo atual. E é essa o ineditismo da nova aliança – o que

69
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

Deus fará é estabelecer uma nova subjetividade de modo que


instituirá, enfim, um novo povo. Uma subjetividade e um povo
com a potencialidade de serem fiéis a Deus, assim como Deus
sempre tem sido fiel.
Além do novo povo, uma nova relação com Deus. Duas afir-
mações de Jeremias são fundamentais: “ninguém ensinará a seu
próximo” e “perdoarei os pecados”. Ora, se “ninguém ensinará
ninguém” e se o “próprio Deus perdoará os pecados”, então o
que temos é uma reestruturação das funções institucionais da
religião: o problema da antiga aliança estava nos “pais” (símbolo
de todas as autoridades) ou nos sacerdotes e escribas a quem
Jeremias acusa repetidamente de não conhecer a Torá (confor-
me também Os 4). Para ser fiel a Deus não é possível depender
de intermediários, é preciso se relacionar diretamente com ele.
Essa relação, porém, não pode ser baseada na experiência indi-
vidual, nem deve ser individualista. Seu eixo é a torah de Deus e
seu meio ambiente é a vida do povo de Deus. Assim, todos sa-
berão que este é o único Deus de Israel, não sendo necessário
nenhum outro senhor – divino ou humano!
Resumindo: Jeremias está afirmando que não devemos en-
tender as “leis” do Pentateuco do mesmo modo que os reis e o
sacerdócio oficial do Templo de Jerusalém as entendiam: como
leis que o rei, como representante de Deus, fazia o povo cum-
prir para receber a bênção divina. Para Jeremias, é a graça liber-
tadora de Deus que fundamenta as normas do Pentateuco, de
modo que elas não podem ser interpretadas como “leis” que o
Estado garante, impõe e aplica punições a quem não as cumpre.
É esta visão da “lei” que encontramos no ensino de Jesus e no
ensino de Paulo que estudaremos a seguir.

2.3. Lei e graça no Ensino de Jesus


2.3.1. Interpretando adequadamente a Lei
Em Israel, no período de Jesus, saduceus e fariseus disputa-

70
Temas de Teologia Bíblica II

vam a primazia na interpretação válida e ortodoxa (verídica) da


Torá. Os primeiros priorizavam a dimensão sacrificial e ritual
da Torá, enquanto os segundos priorizavam a dimensão moral
e comportamental, embora não devamos entender esta des-
crição como dando validade à inadequada distinção entre lei
ritual e lei moral. A observância da Torá, conforme interpreta-
da pelas autoridades religiosas do judaísmo oficial, servia como
meio de distinção entre eles e o povo-da-terra: “Porventura, creu
nele [em Jesus] alguém dentre as autoridades ou algum dos fa-
riseus? Quanto a esta plebe [multidão], que não conhece a Torá,
é maldita” (Jo 7.48-49). Os essênios, em sua oposição a saduceus
e fariseus, eram ainda mais radicais na exigência de verdadeira
interpretação da Torá e nos legaram uma verdadeira biblioteca
exegética, que não poderemos discutir aqui. Para eles, a obedi-
ência à Torá deveria ser ainda mais extrema do que na visão de
fariseus e saduceus, a ponto de chegarem até a criar comunida-
des isoladas dos demais judeus, para que se pudesse cumprir
integralmente a lei.
Jesus não nega a autoridade da Torá, mas oferece uma in-
terpretação radicalmente nova da lei presente no Pentateuco.
Um conjunto de controvérsias de Jesus com lideranças judaicas
serve como exemplo para entendermos a interpretação da lei
de acordo com Jesus: Mc 2.1-3-6.
O trecho de Mc 2.1-3.6 é composto pela articulação de cinco
perícopes de teor polêmico. Cada uma delas inicia com a des-
crição de alguma ação de Jesus e finaliza com um dito do Mes-
tre, que estabelece: a) a identidade de Jesus e de seu discurso
messiânico, no contexto de sua enunciação pelo Messias; e b)
a identidade da comunidade cristã, no contexto de sua enun-
ciação escrita no Evangelho (note que em Mateus estas cinco
perícopes são colocadas em distintos lugares na estrutura do
Evangelho [9.1-17 e 12.1-14], enquanto Lucas segue o arranjo
marcano, mantendo as perícopes unidas).

71
Curso Livre de Teologia EAD-FECP

CURIOSIDADE
O termo técnico para definir esse tipo de dito é apotegma, pa-
lavra adotada do grego apóphthegma. Segundo Klaus Berger
(1998, 78): O termo “créia” designa uma fala ou ação ocasiona-
da na vida de uma pessoa importante pela situa-
ção, mas transcendendo-a [...] A forma mais
curta, que obedece ao esquema x (nome)
foi perguntado sobre y (assunto) e disse z
(sentença ou gnome)”, é chamada apoteg-
ma. O apotegma, portanto, é um subgênero
da créia; nele costuma haver somente uma
pessoa que pergunta e uma que responde.

O arranjo estrutural destas perícopes é o do quiasmo (ter-


mo derivado do formato da letra X, cujo nome, em grego, é qui)
concêntrico (o elemento central do arranjo é o que norteia a
temática e a interpretação do trecho) e seu tema central é o da
interpretação verídica da Torá:

a. 2.1-12 Cura e Controvérsia com Fariseus


b. 2.13-17 Refeição com Pessoas Impuras
c. 2.18-22 A Nova Interpretação da Torá
b” 2.23-28 Refeição com Alimentos Impuros
a” 3.1-6 Cura e Controvérsia com Fariseus

Iremos nos concentrar no centro do trecho, buscando extrair


de Mc 2.18-22 a visão do movimento de Jesus no tocante à Torá.
Aparentemente, a perícope não tem nada a ver com a in-
terpretação da Torá, mas apenas com a questão do verdadeiro
jejum. Só aparentemente. O tema do jejum serve como base

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Temas de Teologia Bíblica II

para a afirmação, em forma de parábola, da radicalidade her-


menêutica do movimento de Jesus nos versos 21-22. A ques-
tão fundamental tratada pelo texto tem a ver com o modo da
relação entre o conteúdo do texto bíblico e o conteúdo de sua
interpretação. No judaísmo oficial esta relação era baseada na
continuidade da tradição, ou seja, na continuidade de um modo
autorizado de interpretar o texto que encontrava sua autorida-
de nas próprias doutrinas do grupo que o interpretava. Era legí-
tima a interpretação que mantivesse seu acordo com a doutrina
oficial de saduceus, ou fariseus, ou essênios. Não se poderia
admitir nenhuma inovação ou nenhuma interpretação que se
baseasse em critérios exteriores à doutrina verdadeira, trans-
mitida pela tradição.
A fala de Jesus, por outro lado, destaca o critério da novidade
para a adequada interpretação da Torá. No Messias Jesus en-
contramos uma nova ação de Deus para a libertação de toda a
humanidade e não só da nação judaica. Essa novidade do agir
de Deus é que serve como critério para a interpretação da Torá.
Não é a tradição que define o rumo da interpretação bíblica,
mas o agir de Deus “que faz novas todas as coisas” (Ap 21.5).
Traduzindo a linguagem cotidiana da novidade para a linguagem
técnica da teologia, podemos dizer que a futuridade de Deus é
o critério hermenêutico do movimento de Jesus. A futuridade
é o modo de ser e agir de Deus, pois Ele é o “Deus que vem”,
cujo “Reino está próximo”, o Deus que subordina o passado e o
presente ao futuro, à sua vinda, à sua nova chegada, à segunda
vinda do Messias.
A novidade do agir de Deus não cabe na mesmice da tradi-
ção doutrinária do judaísmo oficial. De novo, como no caso de
Paulo escrevendo aos coríntios, não se trata de negar a validade
da Torá ou a eleição do povo de Israel. Trata-se, isto sim, de cri-
ticar o desvio radical de rota que o judaísmo oficial tomou, ao
criar distinção insuperável entre judeus e gentios, entre puros e

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

impuros, com base em sua interpretação tradicionalista e dog-


mática da Torá. As quatro perícopes associadas a Mc 2.18-22
são exemplos concretos dessa interpretação inadequada: em
todas elas se mostra que o judaísmo oficial restringe a salvação
às pessoas que cumprem a Lei. Jesus, porém, mostra que a Lei é
que está a serviço das pessoas e não o contrário.
O agir de Jesus que cura fora dos padrões da Lei interpretada
pelos fariseus (Mc 2.1-12; 3.1-6) e que quebra o rigor da Lei ao
permitir a refeição impura e com impuros (Mc 2.13-17; 23-28) é
que serve de critério para a verdadeira interpretação da Torá.
Este é o vinho novo e o pano novo do Evangelho: a salvação das
pessoas está acima da Torá. A Torá deveria ser instrumento de
salvação, não de exclusão e classificação hierárquica. O agir sal-
vífico do Messias Jesus é pessoal e não institucional. A fé deve ser
dirigida a um Deus pessoal e não a uma instituição religiosa (por
melhor que seja essa instituição). A Torá é palavra, testemunho,
boa-nova a respeito do Deus pessoal de Israel e de toda a cria-
ção. Não pode ser reduzida à doutrina de uma instituição, não
pode ser reduzida à “lei” sancionada pelo Estado ou por uma
instituição normativa de outro tipo qualquer. A graça sempre
precede a lei e é a graça que determina o sentido da lei para a
vida humana.

2.3.2. Jesus e a questão da pureza


Uma das principais polêmicas entre Jesus e o judaísmo oficial
de seu tempo tinha a ver com as noções de pureza e impureza
defendidas por saduceus e fariseus. Encontramos nos Evange-
lhos vários textos que revelam as relações polêmicas entre o
discurso cristão sobre a pureza e o discurso oficial judaico da
época de Jesus. Selecionei a perícope de Mc 7.14-23, que é a se-
gunda parte de uma discussão mais ampla sobre a relação en-
tre pureza, doutrina e identidade do povo de Deus. Na primei-
ra parte da discussão, nos versos 1-13, a polêmica se dá entre

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Temas de Teologia Bíblica II

Jesus e fariseus que o questionam pelo fato de seus discípulos


não seguirem as regras de pureza para a alimentação. A respos-
ta de Jesus, segundo Marcos, acusa os fariseus de não serem
corretos no seguimento da Torá, mas tirarem proveito de suas
regras hermenêuticas para burlar a lei que afirmava que todos
deveriam segui-la escrupulosamente. O juízo de Jesus sobre o
judaísmo oficial, representado aqui pelos fariseus, é radical: “in-
validais a palavra de Deus pela tradição que vós mesmos trans-
mitistes” (Mc 7.13).
Na segunda parte da discussão, Jesus se dirige à multidão
que o segue e passa a lhe ensinar a respeito do verdadeiro sen-
tido da pureza, em contraste com o ensinamento do judaísmo
oficial. Nossa reflexão será baseada nesta parte da discussão.
Não entrarei em detalhes sobre todos os aspectos do texto,
pois o foco será sobre a nova concepção de pureza no movi-
mento de Jesus.
Leia, então, o texto de Mc 7.14-23. Veja que a acusação dos
fariseus contra os discípulos de Jesus comerem sem lavar ade-
quadamente as mãos, de acordo com as exigências de pureza,
motiva Jesus a formular sua própria versão do que significam a
pureza e a impureza. A perícope está estruturada em três seg-
mentos formando um quiasmo concêntrico simples: a) versos
14-16 em que Jesus, dirigindo-se à multidão, apresenta sua vi-
são teológica da impureza (v. 15); b) versos 17-19 nos quais Jesus
se dirige aos discípulos e os recrimina por sua incapacidade de
compreender a novidade do ensino do Messias e reafirma a sua
visão no verso 19; e a”) o segmento final, versos 20-23, retoma
a primeira parte da perícope e reafirma que a impureza brota
do coração do ser humano e consiste em sua pecaminosidade.
A essência da visão de Jesus sobre a pureza, nesta períco-
pe, está no verso 19: “e, assim, considerou ele puros todos os
alimentos”. Aparentemente, a visão de Jesus é simples. Ele ape-
nas teria considerado os alimentos todos como puros. Mas, no

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

âmbito das relações interdiscursivas com o judaísmo oficial,


este dito de Jesus é radicalmente polêmico. Para o discurso
oficial judaico, os judeus, por serem o povo eleito de Deus, já
são puros em si mesmos, sendo-lhes exigido que mantenham
a sua pureza mediante a guarda da Lei. Dentre os vários que-
sitos para manter a pureza, a questão da alimentação ocupava
um lugar central, posto que era o sinal mais visível, do ponto
de vista social, da peculiaridade do povo judeu como eleito de
Deus. De fato, até hoje, os judeus rigoristas mantêm com rigor
o regulamento sobre a alimentação pura. No discurso oficial,
então, há distinção radical entre judeus (puros) e gentios (impu-
ros), distinção que será negada por Jesus a partir desta simples
declaração: “todos os alimentos são puros”. Assim, não haveria
como distinguir os eleitos de Deus dos não-eleitos.
A forma simples da radicalidade do discurso de Jesus rece-
be uma versão mais completa nos dois segmentos que formam
a moldura do quiasmo concêntrico. O que torna uma pessoa
impura não é o que ela come, mas o que ela faz (v. 15. 20-23).
Ao afirmar que a impureza não consiste no que as pessoas se
alimentam, mas no que elas fazem nivela toda a humanidade
sob a mesma condição: a da impureza. Gentios e judeus, igual-
mente, estão afastados de Deus por causa da impureza de seus
corações. O coração, no pensamento judaico da época, não era
considerado a sede das emoções, mas a própria essência da
personalidade da pessoa. A proposta de Jesus pode ser ligada à
afirmação da nova aliança de Jr 31, em que a novidade da ação
de Deus consistiria em inscrever a lei no próprio coração das
pessoas e eliminar a necessidade de mediadores entre Deus e
elas. Esta é a novidade radical do ensino de Jesus: todas as pes-
soas são igualmente impuras e pecadoras; a todas, igualmente
e sem distinção, o Messias oferece gratuitamente a purificação.
Assim, Jesus, por um lado, mantém a noção de que existem pes-
soas puras e impuras; mas, por outro lado, anula essa distinção

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Temas de Teologia Bíblica II

mediante sua própria ação de morrer por todas (cf. Mc 8.27-


9.1), de modo que aos olhos de Deus ninguém mais pode ser
classificado como impuro.

2.4. Lei e graça em Paulo


2.4.1. A verdadeira interpretação da Torá
Vamos voltar à discussão sobre a verdadeira interpretação
da Torá. Desta vez, o foco recai sobre a visão paulina da Torá e
sua interpretação. O Capítulo 3 de Gálatas é parte da discussão
de Paulo com as comunidades da Galácia, relativa ao lugar da
Torá no acesso a e na permanência no Povo de Deus (caps. 3-4).
Essa polêmica fora provocada por alguns judeus-cristãos, cuja
noção do lugar da Torá era mais conforme ao discurso do juda-
ísmo oficial do que ao discurso de Jesus e à pregação paulina do
Evangelho. Para esses judeus-cristãos (que a tradição acadêmi-
ca chama de judaizantes), a novidade do Evangelho tinha de ser
interpretada à luz do ensino do judaísmo oficial: os gentios que
aceitassem o Evangelho deveriam seguir a Lei como os judeus a
seguiam. Para Paulo, essa visão legalista reduziria o Evangelho
a uma mera facção do judaísmo oficial.
Em Gl 3, Paulo oferece uma resposta ao problema da inter-
pretação correta da Torá. O capítulo é assim articulado:

a. Declaração do problema (1-5);


a”. Texto bíblico que resolverá o problema (6-7);
b. Primeiro argumento: o Messias incorpora a maldi-
ção da Lei e a bênção abraâmica (8-14);
b”. Segundo argumento: a Torá não pode invalidar a
promessa abraâmica (15-18);
c. Primeira conclusão: a Torá manifesta o pecado e
aprisiona ao pecado (19-22);
c”. Segunda conclusão: a Torá encaminha ao Messias
Jesus que liberta os escravos do pecado (23-29).

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

Abra a sua Bíblia e vamos juntas e juntos interpretar


este capítulo.

(1) Declaração do problema e texto da Torá (v 1-7)


O problema fundamental é: como se tornar parte do
povo de Deus? Paulo recrimina os gálatas por terem se desvia-
do tão rapidamente da palavra da cruz, seguindo a palavra da
lei. Começaram no Espírito, mas estavam agora na letra – “ora,
a letra mata, mas o Espírito vivifica”! Como chegamos a Deus,
mediante a prática dos mandamentos da Torá ou mediante o
ouvir da fé na palavra da cruz? A resposta está na própria Torá:
Abraão creu em Deus e por isso alcançou a justiça. Logo, os fi-
lhos de Abraão são os que creem como ele e não apenas os que
podem traçar sua genealogia humana a ele. Para o propósito de
nossa reflexão neste texto: na Torá encontramos o critério de
sua própria interpretação.
(2) Primeiro argumento (v. 8-14)
A palavra da cruz é inclusiva: ao povo de Deus pertencem
tanto judeus como gentios – lição já encontrada na própria
Torá. Na eleição de Abraão, a sua missão estava incluída: “em
ti serão abençoados todos os povos”. E isto faz com que o povo
de Deus seja o povo da fé e não o povo das obras da Torá. Pois
quem quer seguir a Torá como caminho de salvação encontrará
apenas maldição. Pelo contrário, a pessoa justa é a pessoa fiel a
Deus. No Messias somos abençoados com a bênção prometida
a Abraão, pois o Messias assumiu a maldição da Torá em lugar
de toda a humanidade e, assim, abriu as portas para que a bên-
ção abraâmica chegasse a todos os povos e pessoas.

(3) Segundo argumento (v. 15-18)


No segundo argumento, Paulo interpreta a promessa de des-
cendência a Abraão como se referindo a um único descendente
(Gn 13.15; 17.19) – o Messias (o novo Isaque). A promessa, que

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Temas de Teologia Bíblica II

tem o valor de uma aliança, não pode ser anulada pela lei, que
foi dada muito mais tarde ao povo de Israel. Paulo, aqui, reduz a
abrangência da Torá a Israel, enquanto, ao mesmo tempo, com
base na Torá, afirma a universalidade da promessa a Abraão.
Este é o paradoxo da Torá: ela não valida a si mesma, ela dá
valor ao Messias.
(4) Primeira conclusão (v. 19-22)
Paulo formula, então, sua primeira conclusão: a Torá não
anula a promessa de Deus. Sua função não é substituir a pro-
messa, mas sim revelar que toda a humanidade está escraviza-
da ao pecado e não pode, mediante suas ações, alcançar a vida.
A tese de Paulo é sutil: a Torá vem de Deus pela mediação de
Moisés que, por sua vez, a recebeu pela mediação de anjos (este
era um item das crenças judaicas da época paulina). Para que
Deus entregou a Torá a um mediador? Para revelar a pecamino-
sidade humana e abrir as portas para o cumprimento universal
e inclusivo da promessa abraâmica.

(5) Segunda conclusão (v. 23-29)


Paulo finaliza esta parte da discussão com uma segun-
da conclusão: a Torá cumpriu sua função enquanto o Messias
não veio para concretizar a promessa. Agora, no Messias, não
há mais lugar para a Torá, pois não é mais necessário instruir
a respeito da chegada do Messias. Agora que o Messias já veio,
o que importa é revelar a inclusividade da salvação no Messias
Jesus. A aliança abraâmica é renovada no Messias, e todos os
que se comprometem com essa aliança encontram a salvação e
se tornam descendência de Abraão e herdeiros da sua promes-
sa. Agora, trata-se de estar no Messias e não no judaísmo, ou
na sabedoria, ou na prosperidade, ou na moralidade. O povo
abraâmico de Deus é um povo sem fronteiras: “não pode ha-
ver judeu nem grego, nem escravo nem livre; nem homem nem
mulher”, nem quaisquer outras classificações e distinções que

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

afastem as pessoas de Deus e criem uma hierarquia de valor


entre os seres humanos. A vida no Messias é vivida na fidelidade
ao compromisso de Deus com toda a sua criação, e não em obe-
diência à lei que exclui. Em outras palavras, assim como Jesus.
Paulo também enxerga a Lei sob o ponto de vista da primazia
da graça, como em Jeremias e Ezequiel.

2.4.2. Paulo e a questão da pureza


De modo semelhante aos Evangelhos, a discussão sobre a
pureza em Paulo está presente em vários textos. A principal di-
ferença, porém, é que nos escritos paulinos não se restringe
apenas à polêmica com o discurso oficial judaico sobre o tema;
também se dirige contra a visão grega que distinguia radical-
mente os gregos dos bárbaros (sua versão filosoficamente so-
fisticada da pureza/impureza). Como o tempo não nos permite
uma discussão abrangente, vamos estudar Rm 14.13-21 como
base para nossa discussão.
Esta perícope sobre a pureza segue a discussão de Paulo
sobre o amor e o juízo, que conclui afirmando que ninguém
pode julgar outra pessoa, pois a responsabilidade perante
Deus é individual (tema que também se baseia em Jr 31.29ss).
E o tema que motivou a discussão de Paulo sobre o juízo foi o
da alimentação que, na igreja de Roma, servia para distinguir
cristãos fortes e fracos: retomando e reinventando o discurso
judaico oficial sobre puros e impuros. A perícope possui três
segmentos: a) versos 13-16 que trazem a interpretação pau-
lina do dito de Jesus sobre a impureza; b) versos 17-18 que
declaram a natureza do reino de Deus e do discipulado cristão;
e c) versos 19-23 que exortam a comunidade de Roma a não
seguir o discurso da divisão hierárquica entre fortes e fracos
descrita no segmento inicial, e que inclui a reafirmação da vi-
são paulina da pureza.
No centro da perícope está a declaração sobre a essência

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Temas de Teologia Bíblica II

do reino de Deus: não é comida ou bebida (ou seja, cumpri-


mento das leis dietéticas que definiam a identidade dos ju-
deus em distinção com os gentios), mas alegria, justiça e paz
no Espírito Santo (ou seja, o fruto interior de uma vida cheia
do Espírito de Deus). Quem vive no Espírito (e não na carne
– compare com a discussão de Paulo em Gl 3), é agradável a
Deus e aprovado diante dos seres humanos. Por quê? Por-
que ama o próximo, faz o bem ao necessitado e manifesta a
alegria de viver. Esta compreensão do Reino de Deus está na
base da visão paulina sobre pureza/impureza: a) “nenhuma
coisa é de si mesma impura, salvo para aquele que assim a
considera; para esse é impura” (v. 14); e b) “todas as coisas, na
verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com
escândalo” v. 20).
Paulo reinterpreta o dito de Jesus sobre o coração como fon-
te da impureza: ele destaca que é o próprio ser humano que tor-
na algo impuro ao classificar tal coisa (ou pessoa) como impura.
Paulo faz uma radical humanização do conceito de pureza: não
é Deus quem considera nada impuro, somos nós mesmos, se-
res humanos. E se somos nós, o conceito de impureza não pode
ter valor para classificar as pessoas, pois é meramente humano.
Por outro lado, embora nada seja impuro, a ação humana pode
tornar a vida impura, mediante o escândalo, ou seja, mediante
a ofensa ao próximo através da classificação religiosa hierárqui-
ca (fracos versus fortes). O escândalo não é mera diferença de
hábitos ou costumes. O escândalo é fazer de nossos hábitos e
ações um critério para julgar o próximo. Ao fazermos isto, esta-
mos negando o ensino de Jesus “a ninguém julgais”. Para Paulo,
então, o discurso do judaísmo oficial sobre a pureza é um dis-
curso excludente e não pode, assim, ser compatível com a Boa
Nova do Messias Jesus.

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JJ ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Vivemos pela graça de Deus. Por isso, seguimos a lógica da


gratidão e da partilha, e não a lógica do dever e da dívida. A
lei, enquanto norma autorizada e sancionada por um Estado ou
por uma Instituição, funciona segundo a lógica do dever e da
dívida: devemos fazer o que a lei manda, devemos deixar de
fazer o que a lei proíbe, devemos temer a punição e esperar a
recompensa. A lógica da graça não é assim. É lógica da gratidão
e da gratuidade: nada devemos a ninguém, nem mesmo a Deus.
Tudo podemos! (“Tudo posso naquele que me fortalece.”). Tudo
podemos fazer e ser de acordo com o ser de Deus e a fidelida-
de de Jesus Cristo. Sem triunfalismos, podemos viver de acordo
com a vontade de Deus. Gratidão e gratuidade marcam a vida
de quem é amado ou amada por Deus. Gratas e gratos porque
podemos ser como Jesus!

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Curso Livre de Teologia EAD-FECP

JJ CONCLUSÃO

Chegamos ao final da nossa segunda disciplina estudando


temas da Teologia Bíblica. Procuramos nos ocupar da análise
e da reflexão de alguns temas teológicos, presentes nos textos
bíblicos, que são fundamentais para a nossa vida cristã. Repare
que os três temas estudados aqui se relacionam intimamente:
enquanto participantes da nova criação e como povo de Deus,
somos seus agentes para a salvação de todas as pessoas que o
buscam e se submetem ao Senhor Jesus; e nossa atuação neste
sentido não se baseia na lógica do dever, mas na lógica da graça
e da gratuidade.
Encerro este Guia de Estudos como encerrei o de Teologia
Bíblica I: continue estudando em profundidade as Escrituras!
Acima de tudo, porém, viva intensamente a fé – seja fiel a Deus,
ao próximo e a toda criação, na força do Espírito Santo. Que
Deus nos abençoe!

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Temas de Teologia Bíblica II

JJ REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERGER, Klaus. Formas literárias do Novo Testamento. São Paulo:


Loyola, 1998.

LOHSE, E. Colossians and Philemon. Fortress Press: Filadélfia, 1986.

MOLTMANN, Jürgen. Deus na criação. Doutrina ecológica da cria-


ção. Petrópolis: Vozes, 1992.

STEGMAN, Thomas D. 2 Corinthians. (Catholic Commentary on


Sacred Scripture) Grand Rapids: Baker, 2009.

von RAD, G. Teologia do Antigo Testamento, vol. 2. São Paulo:


ASTE, 1974.

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JJ ANOTAÇÕES

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JJ ANOTAÇÕES

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