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Weber Fonseca

lgbtfobia
Casos de violência por discriminação
de gêneros, identidades e orientações
sexuais na Grande São Paulo

[pausa longa]. Ele me estuprou uma segunda vez.


Foram só duas vezes. A segunda vez foi bem pior que
a primeira [um minuto de completo silêncio].
A segunda vez ele usou um vidro de perfume.
[um minuto e meio de silêncio]. Só cortei o
vínculo quando eu contei pra minha namorada
[silêncio]. Aí passou um mês e eu denunciei

lamparina
luminosa

lamparina luminosa
F748
Fonseca, Weber, 1972

lgbtfobia: casos de violência por discriminação de gêneros, identidades e


orientações sexuais na Grande São Paulo /Weber Fonseca. - 1.ed.
São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2015. 156p.

ISBN 978-85-64107-16-8

1.Violência urbana. 2. Relações de gênero. 3. Homofobia. I. Título.


CDD 303.62

Ficha catalográfica: Sandra Ap. de M. G. A. Moura CRB-8 5980

Coordenação editorial, diagramação e


projeto gráfico: Christian Piana, Ana Rosa Carrara e Michele Navarro
Revisão: Daniela Lima
Transcrição das entrevistas: Luisa Bertrami D’Angelo e Weber Fonseca
Na contracapa: Lorenzo Vitturi, fotografia da série: “Stupenda e
Misera Cittá”, 2004

Lamparina Luminosa
www.lamparinaluminosa.com
facebook.com/lamparinaluminosa

As licenças deste livro permitem copiar, distribuir, exibir e executar a obra e fazer trabalhos
derivados dela, conquanto que sejam para fins não comerciais, que dêem créditos devidos
ao autor e a Lamparina Luminosa, e que as obras derivadas sejam distribuídas somente sob
uma licença idêntica à que governa esta.
Weber Fonseca

lgbtfobia
Casos de violência por discriminação
de gêneros, identidades e orientações
sexuais na Grande São Paulo

1ª edição

São Bernardo do Campo


Lamparina Luminosa
2015
Para os meus homens: Mário, Kleber, André e Eurípes.
HOMOLESBITRANSFOBIA MATA

Este livro nasceu de uma indignação. De um medo. Da sensação


de insegurança. Da certeza da impunidade. Da invisibilidade de uma
causa e os direitos civis a ela desassociados por não existir – no Brasil
– a qualificação de crimes de ódio por homolesbitransfobia ou, sim-
plesmente, lgbtfobia. Este livro nasceu da observação dos relatos mi-
diáticos e factuais de crimes que se tornam invisíveis pois sua natureza
motivacional não consta de métodos estatísticos oficiais. Este livro
nasce para dar voz a estas vítimas que estão cada vez mais próximas,
cada vez mais reais, materiais, com nomes próprios. As redes sociais e
os veículos de comunicação extraoficiais, alternativos, independentes
e/ou libertários têm permitido a divulgação destes fatos e a possibili-
dade de contabilizarmos cada vítima como um indivíduo biográfico,
dotado de autoridade sobre sua própria história.
O livro nada pretende. Nem mesmo é parâmetro de amostragem
diante do cenário que o Brasil ostenta no que diz respeito aos crimes
motivados por lgbtfobia. O que se apresenta nas páginas seguintes é a
possibilidade sensível de ouvir quem a sociedade brasileira – ainda que
democrática – cala e exclui a cada dia não assegurando direitos civis.
A matéria-prima deste trabalho jornalístico, documental, tangen-
ciado pela minha afetividade, envolvimento e militância preza – ex-
clusivamente – pela VOZ do entrevistado. Muitos foram os convida-
dos. Respeitei o tempo de resposta de cada um. Cada sim. Cada não.
Cada talvez. Cada entrevista adiada. Cada encontro cancelado. Não
houve, jamais, uma insistência. Apresentam-se a seguir sete histórias
na voz de oito vítimas. Por trás desta seleção estão dezenas de conta-
tos. Dezenas de vítimas ainda silenciadas. Dezenas de dores, lágrimas,
opressões, direito tomado, usurpado, sangue derramado. E estas de-

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zenas de vozes que não puderam ou não quiseram estar aqui é apenas
uma porcentagem da realidade exposta nas ruas, casas, empresas, esta-
belecimentos, acostamentos e terrenos baldios Brasil afora.
O leitor poderá facilmente identificar que biografias tão díspares
se encontram em uma unidade identificadora no pós-trauma. A dor,
o medo, a dúvida, a opressão, a luta pela sobrevivência e sustento, a
família, os amigos, o afeto, a militância, o empoderamento. E espe-
cialmente um tempo presente definitivamente alterado para sempre.
O objetivo primordial é o relato, considerações e condições exis-
tenciais de vítimas dos crescentes casos de ataques e crimes de ódios
cometidos contra gays, lésbicas, travestis, além de mulheres trans e
homens trans na cidade de São Paulo, região metropolitana e cidades
do ABCD, por meio de um espaço narrativo para esta voz violentada
poder expressar o processo de recuperação – psicofísico-emocional –
pós-trauma. O reclame recorrente de todo o movimento LGBT [ou
LGBTT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêne-
ros] são a falta de espaço na mídia, a abordagem errônea de termos e
forma de tratamento e o não comprometimento das pautas por parte
da sociedade civil, midiática e poderes públicos com as leis de direitos
civis e identidade de gênero que escorregam pelos corredores das casas
legislativas, executivas e judiciárias há 20 anos.
O jornalismo, bem como a atual mídia convencional dos grandes
grupos de comunicação no Brasil, tem criado espaço de relato apenas,
por vezes, com uma abordagem no “exotismo” da questão. A igualda-
de de direitos civis e saúde pública ficam subjulgadas aos critérios he-
teronormativos, binários, de moral religiosa e conservadora que têm
demonstrado ser majoritários no país. Isto confere um espaço midiá-
tico restrito ao factual: matérias jornalísticas que cobrem o fato até o
pouco provável indiciamento de algum culpado quando identificado.
Segundo a divulgação do dia 21 de novembro de 2014 no portal
do jornal Estadão, a cada hora um homossexual sofre algum tipo de

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agressão no Brasil [“A cada hora um gay sofre violência no Brasil”, por
Edgar Maciel, no caderno Geral]. Nos últimos quatro anos, o núme-
ro de denúncias ligadas à homofobia cresceu 460%. A Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDHPR) registrou
1.159 casos em 2011. Neste mesmo ano de 2014, até outubro, os casos
registrados superam a marca de 6,5 mil denúncias.
Segundo dados oficiais da Secretaria da Segurança Pública do Go-
verno do Estado de São Paulo, os chamados Crimes de Intolerância
reúnem no mesmo tópico/dado de “motivação do homicídio”: etnia,
raça, orientação sexual e credo.
Portanto não existem dados oficiais uma vez que não se qualifica o
crime por lgbtfobia.
A partir desta lacuna de informação é que o Grupo Gay da Bahia
– a mais antiga associação de defesa dos direitos humanos dos homos-
sexuais no Brasil, fundado em 1980 – divulga um “Relatório Anual
de Assassinatos de Homossexuais no Brasil” baseando-se em dados
divulgados nas mídias impressas e eletrônicas e recolhimento de dados
em ONGs defensoras da causa. Segundo o relatório, os assassinatos
são caracterizados pelo uso extremo de violência, na maioria dos ca-
sos, com emprego de armas de fogo, armas brancas, enforcamento,
espancamento e em algumas ocorrências degolamento, tortura e car-
bonização. Em 2014 foram documentados no Brasil, segundo a ONG,
328 mortes de gays, travestis e lésbicas, incluindo nove suicídios. Um
assassinato a cada 27 horas. O GGB afirma que o Brasil continua sen-
do o campeão mundial de crimes motivados pela homo/transfobia:
50% dos assassinatos de transexuais no ano passado foram cometidos
em nosso país. Do total 163 eram gays, 134 travestis, 14 lésbicas, 3
bissexuais e 7 amantes de travestis. Nesta equação somam-se ainda 7
heterossexuais assassinados, por terem sido confundidos com gays ou
por estarem em circunstâncias ou espaços homoeróticos. Em termos
absolutos, São Paulo é a metrópole onde mais ocorrem assassinatos.

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No relatório, o coordenador do banco de dados Eduardo Michels,
analista de sistemas, afirma que “a subnotificação destes crimes é no-
tória, indicando que tais números representam apenas a ponta de um
iceberg de violência e sangue, já que nosso banco de dados é constru-
ído a partir de notícias de jornal e internet (…) A realidade deve cer-
tamente ultrapassar em muito tais estimativas, sobretudo nos últimos
anos, quando policiais e delegados cada vez mais, sem provas e sem
base teórica, descartam preconceituosamente a presença de homofo-
bia em muitos desses ‘homocídios’”.
O fato é que na esfera criminal não existe nada que identifique o
tipo “homofobia”. Então um homicídio de LGBT acaba sendo tra-
tado como um homicídio de qualquer pessoa sem possibilidade de
qualificar a motivação real do crime. No máximo o que acontece é
ser discutido, em sede qualificadora, o fato de ter sido por “motivo
torpe”. Mais grave ainda quando – na ausência de dados precisos e
testemunhas – as mortes são registradas como suicídio. Neste mesmo
relatório, o professor Luiz Mott, fundador do GGB e coordenador da
pesquisa, lamenta que a violência anti-homossexual cresça incontro-
lavelmente no Brasil. “Nos oito anos do governo FHC, foram docu-
mentados 1.023 crimes homofóbicos, uma média de 127 por ano; no
governo Lula, subiram para 1.306, com média de 163 assassinatos por
ano; em apenas quatro anos, no governo Dilma, tais crimes já atingi-
ram a cifra de 1.243, com média de 310 assassinados anuais – quase o
dobro dos governos anteriores. Daí a urgência de a presidenta cumprir
sua promessa de campanha de criminalizar a homofobia!”, declara.
Reside aqui a importância da aprovação do Projeto de Lei da Câma-
ra, denominado PLC 122/06. Este visa criminalizar a discriminação
motivada unicamente na orientação sexual ou na identidade de gêne-
ro da pessoa discriminada alterando a Lei de Racismo para incluir tais
discriminações no conceito legal de racismo – que abrange, atualmen-
te, a discriminação por cor de pele, etnia, origem nacional ou religião.

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A discriminação por orientação sexual é aquela cometida contra ho-
mossexuais, bissexuais ou heterossexuais unicamente por conta de sua
homossexualidade, bissexualidade ou heterossexualidade, respectiva-
mente. A discriminação por identidade de gênero é aquela cometida
contra transexuais e não transexuais unicamente por conta de serem
ou não transexuais (respectivamente).
Em 2011, a deputada estadual Leci Brandão apresentou na Assem-
bleia Legislativa do Estado de São Paulo o projeto de lei nº 728 deter-
minando que as instituições de ensino público e privado integrantes
do Sistema Estadual de Ensino de São Paulo devam incluir o nome
social de travestis e transexuais nos seus registros internos de modo a
garantir a efetivação do processo de inclusão destes no contexto esco-
lar. No entanto, ressalta-se aqui a assinatura deste projeto no qual a
deputada define com propriedade a importância das leis de inclusão
e direitos civis LGBT: “Igualmente, sabemos que não se estabelece
a afetividade por meio de leis, mas que o respeito ao próximo é um
valor ético que, ao ser transgredido, exige que instrumentos assegurem
o respeito e a dignidade dos grupos vitimizados da nossa sociedade.”
Em fevereiro de 2015 os ministros da Saúde, da Secretaria de Di-
reitos Humanos e da Secretaria-Geral da Presidência assinaram uma
portaria que pretende monitorar as ocorrências de casos de homofo-
bia e transfobia no Brasil. Desde 2005, a violência é uma notificação
obrigatória no SUS mas sem o registro de informação em relação à
orientação sexual e identidade de gênero. A ideia é criar uma mudança
no sistema de notificação de casos de violência e deixar visível qual
é a orientação sexual e a identidade de gênero do paciente, além da
motivação da agressão. Desta forma, começa a se desenhar um mapa
da violência contra a comunidade LGBT. Esta portaria tem a intenção
de ser uma medida que permita acompanhar, desde a notificação, a
abertura do inquérito e a ação judicial para que a punição aconteça.
Entre 2011 e 2014, a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos rece-
beu 7.694 denúncias de violência contra a população LGBT.

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A maior conquista até o momento foi a aprovação da lei estadual
nº 10.948, publicada em 5 de novembro de 2001. Apresentada como
projeto de lei 667/2000, pelo deputado Renato Simões, do PT, esta lei
é de vital importância para a saúde e integridade do cidadão pois ela
garante penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em
razão de orientação sexual. O artigo 1º dispõe que será punida “toda
manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão
homossexual, bissexual ou transgênero” e complementada pelo artigo
3º “estão sujeitos às punições todo e qualquer cidadão detentores de
função civil, pública ou militar, além de toda organização social ou
empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público,
instaladas no estado de São Paulo”.
O texto da lei considera atos atentatórios e discriminatórios dos
direitos individuais e coletivos dos cidadãos homossexuais, bissexuais
ou transgêneros os seguintes:
I - praticar qualquer tipo de ação violenta, constrangedora, intimi-
datória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica;
II - proibir o ingresso ou permanência em qualquer ambiente ou
estabelecimento público ou privado, aberto ao público;
III - praticar atendimento selecionado que não esteja devidamente
determinado em lei;
IV - preterir, sobretaxar ou impedir a hospedagem em hotéis, mo-
téis, pensões ou similares;
V - preterir, sobretaxar ou impedir a locação, compra, aquisição,
arrendamento ou empréstimo de bens móveis ou imóveis de qualquer
finalidade;
VI - praticar o empregador, ou seu preposto, atos de demissão direta
ou indireta, em função da orientação sexual do empregado;
VII - inibir ou proibir a admissão ou o acesso profissional em qual-
quer estabelecimento público ou privado em função da orientação
sexual do profissional;

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VIII - proibir a livre expressão e manifestação de afetividade, sendo
estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos.
No dia 12 de março de 2015 foi publicada no Diário Oficial da União
a decisão do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e pro-
moções dos direitos de lésbicas, gays, travestis e transexuais (CNCD/
LGB) que estabelece parâmetros para a garantia das condições de
acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais nos sistemas e
instituições de ensino.
A decisão formula orientações quanto ao reconhecimento institu-
cional da identidade de gênero e sua operacionalização garantindo o
direito ao tratamento oral exclusivamente pelo nome social, em qual-
quer circunstância, não cabendo nenhum tipo de objeção de consci-
ência. Também ficou determinado que o campo “nome social” deve
ser inserido nos formulários e sistemas de informação utilizados nos
procedimentos de seleção, inscrição, matrícula, registro de frequên-
cia, avaliação e similares. Está garantido ainda o uso de banheiros,
vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de
acordo com a identidade de gênero de cada sujeito.
Não são as leis ou este livro que vão humanizar a selvageria humana.
Mas trazer à luz da consciência a voz das vítimas e assegurar igualdade,
tratamento digno e imparcial a todos os seres humanos é um direito
universal e previsto constitucionalmente a todos os cidadão brasileiros
na lei n° 7.716, de 5 de janeiro de 1989. E o Código Penal assegura a
punição nos casos em que esta igualdade não é respeitada ainda que
muitas qualificações de crimes de ódio não estejam englobadas nesta
lei.
No estado de São Paulo, foi criada a Delegacia de Crimes Raciais
e Delitos de Intolerância (Decradi) – por meio do decreto 50.594,
de 23 de março de 2006 – com a finalidade de reprimir e analisar
os delitos de intolerância de um grupo em relação a outra pessoa ou
grupo caracterizados por convicções ideológicas, sexuais, religiosas,

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raciais, culturais e étnicas. A existência desta delegacia tem permitido
minimizar transtornos relativos ao modo de registro de ocorrências
motivadas por lgbtobia, bem como a possível tomada de providên-
cias em relação ao acolhimento da vítima e a medidas educativas e
reconciliadoras pertinentes ao agressor. Algumas características que
definem um agressor são: uso de palavras ofensivas; tratar a agressão
como brincadeira sem reconhecer o preconceito; agressão física leve
ou extrema; desprezo pelo comportamento da vítima; se referir à ví-
tima como se esta fosse inferior, degradante ou fora da normalidade;
acusar tais minorias de atentar valores morais e éticos da sociedade;
atitudes agressivas ao presenciar demonstrações afetivas; negar atendi-
mento ou prestação de serviço.
Enquanto os direitos civis igualitários para a população LGBT não
forem assegurados por meio de leis faz-se necessário SEMPRE a de-
núncia por meio de boletim de ocorrência, seja qual for o nível de
agressão: verbal, física ou moral.

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CRIMES DE ÓDIO POR LGBTFOBIA

Ou eu ou ele.
Eis o ódio. Uma exclusividade humana.
Motivado pelo ódio um indivíduo se vê no direito de romper o
limite da pele do outro. Agredir. Ferir. Violentar. Matar.
O ódio aponta para a destruição do outro porque seria – o outro –
obsceno. “É obsceno no seu modo de obter prazer”, define o psicana-
lista Eduardo Furtado Leite, “atua uma forma de vida estranha e não
assimilável. Esse parece ser o ponto: o não assimilável da satisfação de
alguém que desequilibra o mundo.”
Um indivíduo se satisfaz menos porque o outro – seu semelhante –
se satisfaz demais. Este estranhamento em relação ao prazer do outro
torna o mundo desarmônico para o indivíduo e o ódio aparece quan-
do este semelhante se revela estrangeiro.
“O ódio é uma paixão”, definiu Montaigne (Michel de Montaigne,
1533-1592). Ódio que Lacan chamou de “amoródio” considerando a
íntima correlação dos dois sentimentos. A psicanalista Clara de Góes,
em seu artigo intitulado “Sobre o Ódio”, diz que “o ódio, de ser pai-
xão, é um transbordamento que arrasta consigo a consciência e a ra-
zão. O ódio faz estrago no coração dos homens e na praça pública”.
A praça pública, no caso do objeto de pesquisa deste livro, assu-
me características medievais violentando e executando sumariamente
uma comunidade oprimida e violentada por valores conservadores
vinculados – em sua maioria – a conceitos fundamentalistas e arbitrá-
rios. A praça na contemporaneidade se configura como todo o espaço
urbano, a cidade como espaço político de existência comum para todo
e qualquer cidadão. E que, na ausência de uma legislação que crimi-
nalize a lgbtfobia como crime de intolerância e ódio, torna a cidade

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uma praça pública inquisidora que abriga corpos violentados em seus
direitos físicos e civis enquanto o Estado laico e seus “cidadãos de
bem” assistem a este cenário com o distanciamento de uma planilha
estatística com dados deturpados, onde o indivíduo como vítima é in-
visível e o agressor qualificado com a brandura de uma suposta justiça.
Ainda que no seu rastro escorra sangue, lágrima e dor.
Apresentar, aqui, os relatos de vítimas de crimes de ódio, motivados
por intolerância e lgbtfobia, é tornar este indivíduo visível que – por
vezes – não é reconhecido como vítima e considerado provocador. A
pressão de uma sociedade heteronormativa e binária se materializa
em reações típicas, por exemplo, a vítima se sentir culpada em algum
momento do pós-trauma. Os relatos deste livro não têm a intenção de
tornar a vítima herói ou mártir. Publicar a versão histórica da vítima,
sem buscar o julgamento dos fatos como forma de legitimar o depoi-
mento, é permitir que a biografia desta singularidade seja reconstruída
por si mesma.
“A figura da vítima constitui uma forma socialmente inteligível de
expressar o sofrimento associado à violência, legitimando demandas e
ações sociais de reparação e cuidado. Se a experiência do sofrimento
questiona, em si, o lugar do sujeito no mundo (…), o sofrimento
associado à violência remete inelutavelmente à discussão moral. (…)
Toda dor envolve um golpe moral, um questionamento da relação do
indivíduo com o mundo.” Estas são palavras da doutora em Antropo-
logia pela Universidade de São Paulo Cynthia Sarti, em seu artigo “A
vítima como figura contemporânea”, de 2011.
A antropóloga ainda destaca que o sofrimento associado à violência
não se separa dos constrangimentos que a provocaram pois a violência
se constitui em avesso da possibilidade de comunicação, ou seja, ela
transcende o que é próprio das relações conflituosas. Tudo o que não
pode ser relacionado ou comunicado atinge o limite, que no caso é
a violência. “Constitui-se em um trauma, experiência que não é assi-

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milável no momento em que ocorre, é indizível, inenarrável, porque
não pode ser simbolizada. A dor da violência, como experiência trau-
mática, pode, no entanto, ser ressignificada em momentos posteriores
de elaboração, o que torna relevante o contexto de sua manifestação e
o de sua elaboração, a partir do discurso de quem fala”, afirma Cyn-
thia. Esta elaboração das experiências de dor e sofrimento, portanto,
permite articular aspectos subjetivos, o contexto social e político. Nas
construção desta fala identifica-se o que seria permitido ser dito, o
que se faz silenciar, o que é permitido vir à tona e o que é deixado na
sombra. Pois a memória estará associada ao sofrimento da violência.
Para concluir, Cynthia destaca um pensamento de Michel Wieviorka
afirmando que “foi a emergência da questão dos direitos, na moder-
nidade, que nomeou a violência e a qualificou como tal”, associando
a categoria de vítima à de direitos. É nestes argumentos que este livro
encontra sua justificativa, possibilitando, assim, a existência de cada
um destes protagonistas por meio de seus próprio relatos materiali-
zando a experiência traumática vivida, sua ressignificação e a retoma-
da da vida cotidiana após o acontecimento. Renata, André, Victor,
Douglas, Lua, Gabriel, Jonathan e Samuel verbalizam nestas páginas
a voz emudecida de milhares de vítimas Brasil afora, por ainda serem
parcos os direitos civis assegurados por lei.

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RENATA PERON
depoimento em 10 e 11 de abril de 2015

Entre a agressão sofrida pela artista Renata Peron e esta entrevista


são quase oito anos. O tempo e a militância fortaleceram as ações da
artista. Renata fala com determinação da linha do seu passado e do
seu presente. Tem a firmeza dos revolucionários que lutam. Suas ar-
mas, a palavra e atitude política.

[Renata] Meu nome é Renata Peron. E não gostaria de falar o meu


nome masculino porque a nossa luta é pelo reconhecimento do nome
que a gente escolheu. Então o nome masculino é o que pouco importa.
Sobre a família não posso falar muita coisa pois eu perdi a minha mãe
quando eu tinha 7 anos de idade. Minha mãe morreu louca, incendiada.
Tocou fogo no corpo. Ela teve depressão pós-parto. E aí ela não chegou
a ver as minhas transformações. Eu saí de casa muito cedo, com 13 anos
de idade. E eu não tive mais contato com a minha família. Só aos 17
anos de idade eu vi meu pai. Mas foi uma coisa muito rápida e eu segui
a minha vida como estou seguindo até hoje. Então eu não tenho muito
o que falar sobre a aceitação deles porque eles não viram as minhas
transformações, né?
Tenho duas mágoas com relação a dois irmãos. Um deles foi embora e
me deixou debaixo de uma árvore para eu não morar com eles. Com
vergonha de mim. E o outro não permitia que eu saísse pra abraçar
meus sobrinhos porque, por eu ser uma pessoa transexual, eu era uma
pessoa doente...
Eu me descobri transexual quando tinha 17 anos mas eu só fui fazer
minhas readequações depois que eu cheguei aqui São Paulo, com 27
anos. Que lá onde eu morava, as travestis e transexuais, elas eram
assassinadas, empaladas, quando descobriam que nós éramos travestis.

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Na cidade onde eu morava, chamada Juazeiro da Bahia, você poderia
ser apenas gay para servir como depósito de porra pros homens casados,
de madrugada, usar os corpos nossos. Mas a gente não podia se assumir
transexual ou travesti. Porque pra eles só seria mulher se tivesse nascido
mulher. Do contrário, era viado, safado, que tinha que ser assassinado.
Eu, então, pra me preservar, acabei tendo que segurar a minha onda.
Até vir embora pra São Paulo. Muitas das minhas amigas eu enterrei,
porque elas queriam enfrentar isso lá e acabaram sendo assassinadas.
A gente se sente mulher de dentro pra fora. Aí temos que fazer algumas
readequações para melhorar. Porque o nosso corpo vai crescendo se você
não tomar hormônio, como foi meu caso. O corpo, ele tem a forma
masculina e a mente feminina. Então, você precisa usar alguns meca-
nismos tecnológicos para quebrar um pouco isso. Então, nós temos um
tratamento chamado de hormonioterapia. Você toma comprimidos de
hormônio feminino pra diminuir um pouco o pelo, para pele ficar mais
macia. Mas a estrutura do corpo não muda mais porque só mudaria
se eu tivesse iniciado o tratamento com 12 anos de idade. Como eu só
iniciei depois disso, depois dos 27, então não tem muita mudança. Mas
geralmente, essas novas gerações que estão nascendo agora, elas são
mais femininas do que nós de 30 anos atrás. Inclusive porque agora já
existem algumas políticas. Mínimas, mas existem. Aqui em São Paulo
a gente tem o Centro de Referência da Diversidade, temos o Ambula-
tório de Travestis e Transexuais que é justamente para fazer tratamento
de mulheres que querem assumir a sua identidade de gênero. Necessa-
riamente você não precisa fazer a cirurgia de readequação pra se sentir
mulher. Você pode ser uma trans sem querer fazer esta cirurgia.
Meu gênero é feminino. Eu sou uma mulher trans. E costumo usar a
palavra transexual. E não é porque eu quero ser higienista em relação
à palavra travesti. É que, na verdade, nas nomenclaturas médicas não
existe a palavra travesti. Existe a palavra trans. No Brasil se assume esta
palavra travesti para muitas militantes como uma... Como se diz...

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Elas usam para se autoafirmar, entende? Agora a palavra travesti para a
sociedade brasileira ela é vista como um ser marginal. Pessoas que vivem
à margem: “que a travesti é ladrona, que a travesti rouba, que a travesti
é isso, que a travesti é aquilo”. E eu não vejo assim. Eu gosto de usar a
palavra trans porque é assim que eu me sinto. Eu me sinto uma mulher.
Existe a travesti que não quer ser nem mulher e nem homem. Ela quer
ser o terceiro sexo. Eu não quero ser terceiro sexo. Eu sou uma pessoa
que nasceu num corpo masculino com uma cabeça de menina. Então
eu me sinto mais trans. Eu quero estar com as mulheres, quero conviver
com as mulheres, quero ser amiga das mulheres. Mas na verdade cada
pessoa se identifica com a maneira que queira. Eu sou a Renata e sou
uma pessoa Trans.
Em 2006 eu fui agredida por um grupo de nove rapazes aqui em São
Paulo, na Praça da República, ao qual eu acabei perdendo o rim direito
pois tomei um chute com uma bota. E esta bota tinha uma placa de
ferro por dentro. Isso fez estourar meu rim. Hoje eu só tenho um rim e
tomo três litros de água todos os dias para sobreviver.
Essa agressão aconteceu no dia 29 de dezembro de 2006, era uma sexta-
-feira à noite. Nesse dia eu tava com outro amigo mas ele não quer que
cite o nome dele, tá? Era um amigo que eu vou chamar de Rogério,
nome fictício, que também era gay. E ele foi agredido também. Os
caras eram nove agressores. Na agressão ele perdeu os óculos que era um
desses óculos de grau, de fundo de garrafa. Ele não enxergou mais nada
quando jogaram vinho na cara dele. Eles deram chutes e acertaram bem
no nervo ciático do Rogério. Ele teve que fazer um tratamento e ficou
três meses andando de cadeira de rodas.
Quando eu fui agredida eu fiquei caída no chão por um tempo.
Depois levantei. Ninguém ajudou. Tinha uns guardas municipais que
estavam protegendo o patrimônio público e assim continuaram. Não
fizeram nada. Nós pegamos um táxi e fomos pra casa. Eu não achava
que era nada de mais. E fiquei sangrando três litros de sangue a noite

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inteira. A noite inteira tendo hemorragia interna sem saber. Só de ma-
nhã foi que a gente chamou o Samu e fomos direto para a Santa Casa
para fazer a retirada das migalhas que ficaram do meu rim.
Assim que eu sofri a agressão eu tive que ficar internada um período.
Fiquei em casa, de repouso, 15 dias. E aí nesse ‘meio-termo’ eu dei uma
entrevista para um jornal, aqui em São Paulo, dizendo que eu não acre-
ditava na justiça desse país e duvidava que eles iriam prender alguém.
Como de fato não teve como prender. A delegada Margarete [Marga-
rete Barreto então delegada da Delegacia de Crimes Raciais
e Delitos de Intolerância – Decradi – do Departamento de
Homicídios e Proteção à Pessoa – DHPP] que era da delegacia de
Crimes Raciais aqui em São Paulo na época, não sei se ainda é a mesma,
ela veio até minha casa pedir para que eu não tivesse dito, não tivesse
dado esta manchete, que eu não acreditava na justiça. E aí eu falei para
ela que “se eles conseguissem prender os meliantes eu iria retirar”. E aí
fique muito mal. Um bom período de quase 25 dias para me recuperar.
Mas como eu não tinha emprego, eu era artista de rua, fazia estátua
viva, então, 15 dias depois, eu já estava na rua fazendo estátua viva.
[A voz parece sorrir com gracejo rememorando o passado]
Era uma estátua greco-romana que recitava poesias quando distribuíam
dinheiro na vasilha. Era uma estátua poética! Estátua Poética Greco-
-Romana era o nome que eu dei para ela [pausa].
Demorou alguns meses para que eles conseguissem localizar o grupo.
Mas como era escuro lá, o local, acabou que eu não consegui reconhecer
a pessoa. Não deu em nada. Eu entrei com ação na justiça. Processei o
estado de São Paulo por falta de segurança pública. E eu perdi em pri-
meira instância. Eles alegando que eu fui agredida porque era travesti.
[Renata se mantém sempre numa frequência vocal equili-
brada. Elegante. Com bom humor. Poucas vezes rememorar
a exalta. A seguir o primeiro momento.] Uma barbaridade, uma
estupidez horrível. E estou aqui com apenas um rim hoje e nada foi
feito em relação a esses monstros.

22
Depois da agressão eu fiquei com medo, claro, mas não fiquei acuada.
Porque como eu falei anteriormente eu tinha que trabalhar pra pagar
as contas. Eu moro de aluguel ainda hoje e nessa época não era dife-
rente. Então, eu com 15 dias pós-operatório já fui pra rua fazer estátua
viva muito revoltada, com ódio. Estava com muito ódio. Eu queria
ter comprado uma arma pra ficar escondida, pra perseguir estes caras
e matá-los. E aí, depois de três meses, eu fui vendo que este tipo de
comportamento não era viável a uma pessoa do bem como eu. Eu não
queria me tornar um deles. Então eu fui fazendo um trabalho espiritual
e fui superando. Seis meses depois eu estava tranquila, com a paz no
coração, no sentido de não fazer justiça com as próprias mãos. Só que
até hoje eu sou revoltada por não ter pegado esses caras e ter conseguido
vê-los presos [convicta]. Porque era esse o papel que a justiça tinha
que ter feito. Achei negligente [se exalta]. Tanto no que diz respeito
a pegá-los e prendê-los como o juiz não me reconhecer enquanto uma
pessoa, de ser digna de ter o meu direito reconhecido e fazer eu ganhar a
ação. Porque foi falta de segurança pública mesmo. Não era um horário
a esmo. Eles tinham que estar lá para proteger a mim e a população de
forma geral [pausa].
Eu superei esta agressão entendendo que o mal estava com quem me
agrediu. Não eu. Não em mim. Eu sempre fui uma pessoa super do bem
e sempre quis ver o melhor dos outros e transformar a vida das outras
pessoas. Foi por conta dessa agressão que hoje eu abri uma associação
aqui em São Paulo chamada Cais: Associação Centro de Apoio e Inclu-
são Social de Travestis e Transexuais que lida com questões voltadas para
travestilidade, transexualidade, violências e todas essas brutalidades que
o ser humano é capaz de criar. A gente tenta aplacar de alguma maneira
todo esse mal. Eu superei estas agressões todas graças a Deus e hoje eu
vivo muito bem, muito tranquila, com o meu coração em paz. Eu sou
uma pessoa mais experiente. Eu não sou mais feliz porque eu perdi um
rim, porque fica estranho você dizer que você é mais feliz quando você

23
é agredida. Mas isso me deu mais sabedoria pra entender que o ódio
existe nas pessoas e que eu não posso ser ingênua ao ponto de achar que
se eu ficar esperando a ajuda da ONU ela vai chegar. Então eu arregacei
as mangas e me tornei uma pessoa mais militante.
[Como continuar acreditando e lidando diariamente com a
realidade cruel imposta às pessoas trans?]
Essa pergunta é bem paradoxal, eu, a princípio, assim, como eu saí de
casa muito cedo, a gente vai vivendo e vai amadurecendo muito cedo e
como você vê muitas coisas na vida, muitas desgraças, muita fome, mui-
ta miséria, muito preconceito, das duas uma ou você se entrega e fica
morando debaixo da ponte, vendo a vida passar – como diz a música
do Raul Seixas, “com a boca escancarada cheia de dentes esperando a
morte chegar” –, ou você vai pra um outro lado, de achar que você pode
tentar, pelo menos tentar, fazer algo diferente que chegue às pessoas. E
tentar dar pra elas aquilo que você não teve. Foi assim que aconteceu
comigo. Saí de casa com 13 anos, não tive o amor da minha família mas
eu amo as pessoas. Eu não sei como... Mas eu consigo amar as pessoas
mesmo não tendo sido amada, não tendo sido amamentada pela minha
mãe... Sabe, minha mãe, ela tinha uma doença no sangue que o leite
dela saía salgado. Não me pergunte como. Vários dos meus irmãos não
sobreviveram a isso. E eu sou uma sobrevivente desde essa época porque
eu não mamava. E eu acho que esses sofrimentos todos me fizeram ser
uma pessoa melhor. É a única explicação que eu vejo. Hoje eu consigo
olhar pra alguém que está numa situação de rua, de drogadição, que
está super à margem assim... E eu olho pra ela como uma pessoa, um
ser humano que está precisando de alguma ajuda. Não tô nem falando
de uma ajuda financeira mas de pelo menos ser ouvida, sabe? Por mais
que você pense que “ah.. uma assistente social ficar sentada, escutando
a pessoa só falando, falando, falando, depois ela vai embora e nada
mudou”, é engano! A pessoa que está na rua ela precisa pelo menos de
atenção. Se ela souber que tem alguém escutando... Pelo menos escu-

24
tando... Ela pode se tocar que ela tem chance, sim! Se ela quiser. Porque
tudo depende da própria pessoa. Não existe igreja, não existe centro
espírita, não existe médico, nem assistente social, nem psicólogo, nem
psiquiatra que faça o ser humano deixar de usar drogas ou deixar essa
vida de situação de rua. O que faz é ela mesma entender e internalizar
que do jeito que está não pode, senão ela morre. Eu, sinceramente, olho
pra pessoas como seres humanos que estão passando por situações mas
que por algum motivo ou em algum momento vão perceber que elas
podem ser diferentes e que elas podem sair dessa história.
Eu sofri preconceito na minha vida cotidiana e também na universi-
dade. Em 2012 eu comecei a faculdade de Serviço Social na Uninove,
da Barra Funda. Na universidade o preconceito foi logo no primeiro
momento que eu cheguei. Eles não queriam me reconhecer pelo nome
social e tive que batalhar e levar os decretos e as leis municipais e esta-
duais aqui de São Paulo pra ser reconhecida. Hoje eu tenho a minha
carteirinha com nome social. Meu nome na sala de aula é respeitado
[orgulhosa]. Então, eu sou a Renata. E assim eu vou desbravando
contra os preconceitos afora, né?
Não existe uma lei de identidade de gênero no Brasil. Nós não temos
uma lei que nos resguarde o uso do nome social. O que existe, o que
nós temos e que foi aprovada agora, no dia 12 de março de 2015, foi
uma resolução que estabelece que a gente possa usar o nome social nas
instituições. Nas instituições operacionais. Esta resolução estabelece
parâmetros para a garantia das condições e acesso da pessoa travesti e
transexual ou homem trans. Aonde? Nas escolas, nas delegacias, nas
repartições públicas, nos hospitais. Entende? Mas não é lei. Isso é uma
resolução, tá? Essa resolução, ela é do Conselho Nacional de Combate à
Discriminação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Hoje, claro, eu me sinto ameaçada por conta de que estou mais visível.
Enquanto militante eu apareço mais, as pessoas me veem mais. Há pou-
cos dias eu tive uma ameaça de um cara que me chamou de “desgraça”.

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E eu discuti com ele. E ele queria vir pra cima de mim pra me agredir.
Eu acredito que essa violência gratuita no Brasil não vai acabar agora
nem tão cedo e muito menos com quem já é mais velho. Nós temos
uma chance grande com essas aprovações de leis que estão aí, trami-
tando no Senado. É pras novas gerações que virão. Virão com menos
preconceito porque a sociedade precisa trabalhar isso nesses jovens que
vêm. Agora, os da minha idade, os mais velhos que eu... A gente tem
medo, sim. Todos os dias eu tenho medo. Tenho medo de sair para ir ao
meu trabalho e não voltar viva. Como tem muitas amigas que eu já vi
que morreram aqui, sem ser militantes, que são prostitutas, que vivem
nas esquinas da vida, à margem da sociedade que não quer abrir espaço
verdadeiramente para dar a essas criaturas uma vida digna. Alguns
avanços já tivemos mas aqui é um passo para frente e dois pra trás.
Agora mesmo, a resolução 12 que dá garantia de travestis e transexuais
a usarem seu nome nas delegacias, nos hospitais, nas escolas públicas.
Uma cambada de vagabundos lá de Brasília, 80 deputados, entraram
com uma liminar para derrubar essa ação nossa! Então, a gente vive
numa corda bamba. Grita de alegria hoje e chora de dor amanhã.
O que eu acredito que mudou mais de 2007 para cá é que nós, mu-
lheres travestis e transexuais e homens trans, entendemos que a gente
não pode se sentir à margem como a sociedade assim quer. Quer que
a gente se sinta excluída, que a gente não se beije na rua, que a gente
não possa fazer uma novela com duas senhoras de 80 anos se beijan-
do livremente, que a gente tenha que estar sempre à margem, sempre
escondidas, sempre aniquiladas por debaixo das coisas... Então, eu acho
que as mudanças de 2007 para cá não foram muitas nas legislações, não
se criou uma lei contra a homofobia, não se criou uma lei que dá direito
d’eu ir num cartório e mudar o meu nome no dia e na hora que eu
quiser. Mas tiveram alguns avanços no que diz respeito – a gente chama
isso de gambiarra legal – a alguns decretos. Em alguns estados foram
implantados decretos em que as travestis e transexuais podem fazer os

26
seus nomes sociais em algumas repartições públicas. Mas são passos
conquistados com muita luta do próprio movimento. O Estado não
faz como deveria ser: de maneira natural e de maneira laica. A laicidade
neste país é uma farsa, é uma mentira. Nós não vivemos num país laico.
A gente vive num país falso de laicidade. Então, eu acho que o avanço
está no que nós – travestis e transexuais – nos empoderamos. E vamos
à luta mesmo! A gente vai pra cima com câmeras, com filmagens, com
denúncias em programas de TV que faz alguma coisa que a gente não
gosta, nos lugares que a gente chega e que é maltratado. A gente vai lá e
faz barraco e grava e joga na internet. Eu acho que essa coisa das redes
sociais foi nossa arma pra lutar contra esses preconceitos, tanto do lado
religioso como dos próprios políticos que misturam tudo e fazem do
nosso país essa bagunça que está hoje. Verdadeiramente.
As redes sociais apareceram para nos dar um sulavanco, um solavanco,
não sei como chama... [gargalhada] A gente pode divulgar as nossas
queixas, denunciar os agressores, fazer denúncias. Isso chega mais rápido
ao poder público. E aí as coisas se resolvem de uma maneira mais rápi-
da. Esse é o avanço. É o que de melhor surgiu de 2007 pra cá. O que de
pior surgiu foi o aumento desses malditos evangélicos. Eu digo malditos
no sentido desses evangélicos que não estão aí para evangelizar e nem
para falar do amor de Deus. Esse bandidos que se vestem com a Bíblia
e com a farda do nome de Deus para ganhar dinheiro. E ainda querem
mudar as leis para o benefício próprio deles e não legislar para a popu-
lação brasileira independente de ser religiosa ou de não ser religiosa.
Como falei anteriormente, esse país tem e deve ser laico. Infelizmente,
não é isso que nós estamos vendo. Então, esta é a parte ruim [categó-
rica]. Aumentou a quantidade de evangélicos pilantras e ladrões no
Congresso Nacional e está ‘fudendo’ com a vida da gente [pausa].
Há quase dois anos eu sou recepcionista da SP Escola de Teatro. Mas
eu, antes de passar por todos esses processos, já era uma cantora. Já era
uma artista de teatro, de performance, tudo. Agora, eu tenho quatro

27
CDs gravados, um em homenagem a Noel Rosa. Sou cantora de música
popular brasileira, sou profissional nessa área. Além do curso de Serviço
Social. Todas, todas essas coisas são pra me fortalecer e me deixar mais
segura pra enfrentar essas situações todas que nós temos aqui.
[Renata canta]:
“O mundo me condena, e ninguém tem pena
Falando sempre mal do meu nome
Deixando de saber se eu vou morrer de sede
Ou se vou morrer de fome
Mas a filosofia hoje me auxilia
A viver indiferente assim
Nesta prontidão sem fim
Vou fingindo que sou rico
Pra ninguém zombar de mim
Não me incomodo que você me diga
Que a sociedade é minha inimiga
Pois cantando neste mundo
Vivo escravo do meu samba, muito embora vagabundo
Quanto a você da aristocracia
Que tem dinheiro, mas não compra alegria
Há de viver eternamente sendo escrava dessa gente
Que cultiva hipocrisia.”
Essa música é uma mantra que eu uso sempre. Aonde eu vou eu canto
essa música porque ela tem tudo a ver com essa nossa história e essa
entrevista que eu te dei. Espero que te ajude.
Aqui é Renata Peron de São Paulo para o Brasil. E para o mundo [risos].

A canção é “Filosofia”, de Noel Rosa, que ela cantou em seu show


de gravação do DVD, no Teatro Sérgio Cardoso, no dia 6 de dezem-
bro de 2010. É emblemática. É uma síntese. É a cor e o coração desta
mulher forte, decidida e de ação. Ainda que estas palavras escritas

28
não sejam audíveis, o relato desta artista ecoará em alto e bom som e
afinado tom seu canto de guerra e paz.
Ainda no contexto pós-trauma e suas decorrências, Renata Peron
funda e preside a associação denominada Cais que tem por missão
“contribuir para a construção de uma sociedade democrática e res-
peitadora de todas as diferenças humanas, na qual nenhuma pessoa
seja submetida a quaisquer formas de coerção e violência, em razão
de sua orientação sexual e identidade de gênero, ou quaisquer outras
características que a singularize.
A Cais busca se transformar em um referencial contras as discrimi-
nações e intolerâncias, constituindo-se como um instrumento para a
efetiva garantia de direitos”. Renata também está a frente da Campa-
nha Nacional “Sou Trans e Quero Dignidade e Respeito”.
A Praça da República tem sido cenário de muito crimes com moti-
vações homofóbicas e transfóbicas. Entre tantos, vale ressaltar o caso
do adestrador de cães Edson Néris da Silva, de 35 anos, que ocorreu
no dia 6 de fevereiro de 2000. Edson andava de mãos dadas com
seu namorado, Dario Pereira Netto, quando foram atacados por um
grupo de aproximadamente 25 pessoas. Dario conseguiu fugir para a
estação do metrô e pedir ajuda aos seguranças. Edson foi espancado
até a morte com correntes, soco-inglês, chutes e pontapés de coturnos
Foi a partir da denúncia de um ambulante que, durante a madrugada,
o grupo foi preso enquanto bebia em um bar do bairro Bela Vista, na
região central da cidade. Todos eram integrantes da gangue skinhead
“Carecas do ABC”. Entre os agressores: 16 homens, 2 mulheres e 7
menores (que foram liberados). Desses 25 acusados, apenas três foram
condenados, dois deles a 21 anos de prisão; 10 anos depois todos foram
soltos.
O crime de Edson Néris foi emblemático pois pela primeira vez
se utilizou o termo “homicídio por homofobia” nos noticiários. Co-
gitou-se que o grupo agressor no caso da Renata Peron tenha sido o
mesmo pela características nos trajes, forma de ataque e local.

29
ANDRÉ CARDOSO GOMES BALIERA
depoimento em 5 de março de 2015

A máquina torcedor estraçalha a carne do homem no ponto de ônibus por-


que trajava preto e branco e não azul e branco E duas de nós são agredidas
pela máquina heterossexual porque andávamos de mãos dadas Roupas ar-
rancadas carne exposta para delírio da máquina estupro Não para A má-
quina multidão não opera milagres Não ajuda Olha nossa miséria e dança
E quando dança na rua seja por causa da máquina carnaval ou máquina
manifestação as máquinas automotivas não perdoam A artéria avenida
leva oxigênio para as células casas O ódio contra quem obstrui o sistema
máquina circulatório é o mesmo contra quem rouba seja um xampu um
celular uma maçã não para MATEM para que a máquina lamento possa
funcionar Crânios afundados Barrigas perfuradas Ossos quebrados Cabe-
ças decepadas Não para A máquina gozo das imagens precisa ejacular e
não nos resta outra saída
O Canto das Mulheres do Asfalto, Carlos Canhameiro.

[André] Maravilhoso...! Maravilhoso. Mas essas indagações são inda-


gações que a gente se faz diariamente, principalmente depois do que
aconteceu comigo. Quando falam que “duas de nós somos agredidas
pela máquina heterossexual porque andávamos de mãos dadas” é um
pouco isso, assim... Eu fui agredido porque eu andava de mão dada, de
certa forma. Eu... Existi. Eu existi ali. Ali eu existi. E isso é muito grave,
sabe? É muito grave essa tentativa de te tirar o direito de existir em paz.
Eu saí de Penápolis, aí fui fazer faculdade em São José do Rio Preto. De
São José do Rio Preto eu larguei a faculdade e fui morar com o meu
irmão em Ilha Solteira. Ele fazia engenharia. Saí de Ilha Solteira e vim
para São Paulo. Estou aqui desde 2005. Vai fazer 10 anos. Eu passei no
concurso primeiro do banco. Lá na Nossa Caixa, ainda. Depois virou
Banco do Brasil.

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[Pausa] Foi no comecinho de dezembro de 2012... Dia 3, uma segun-
da-feira, seis e meia da tarde. Nessa época eu trabalhava no Banco do
Brasil e eu tinha ido ao médico. Eu morava em Pinheiros naquela épo-
ca. E eu tava voltando do médico, passei na farmácia pra comprar o re-
médio que ele tinha me receitado. Uma farmácia na esquina de cima da
esquina onde aconteceu, é uma Drogasil que fica na Teodoro [avenida
Teodoro Sampaio], no cruzamento com a [avenida] Henrique
Schaumann. Ali tem a via que vai primeiro sentido Sumaré, aí vem o
canteiro central e depois tem a que faz o sentido avenida Brasil que vai
pro Ibirapuera. Então eu atravessei a primeira, parei no canteiro central.
Ali tem um semáforo, que aguarda os carros que viram pra esquerda,
que sobem a Teodoro, e tem o outro semáforo que só vai reto. Então, eu
tava ali com todo mundo, aguardando o semáforo. Fechou o semáforo e
a gente foi atravessar [pequena pausa]. O que aconteceu: na verdade,
tinha esse carro, que tinha essas duas pessoas, que era o primeiro carro
da fila... Eu passei na frente do carro e eu não sei se por conta dos meus
trejeitos, eu não sei se... Eu não sei por que... [pausa] Na verdade, é
tão triste isso. Na realidade a gente fica tentando achar uma desculpa...
Por que a gente é ofendido na rua? Isso sempre me traz um mal-estar,
assim, porque uma das coisas que sempre me perguntam é como é que
eles sabiam que eu era gay? E se não fui eu que mexi, como se por acaso
eu tivesse olhado. Ou alguma coisa dessa teria legitimado a violência.
Mas, de fato, eu não sei dizer o que aconteceu pra que eles me identifi-
cassem como gay. Mas eu tava, enfim, com uma calça slim e aí... bem,
enfim, tem um milhão de coisas que compõem o personagem “André
gay” que tava ali passando na rua...
[De qualquer maneira você estava sendo simplesmente você.]
Isso! Exatamente, era eu, exatamente. E aí eu atravessei na frente, passei
na frente do carro deles e aí o Bruno – na hora eu não sabia o nome de
ninguém, mas por conta do processo eu sei o nome dos dois – o Bruno
[Bruno Paulossi Portieri, empresário, então 25 anos], que estava

31
no banco do carona, mexeu comigo, com ofensas homofóbicas, tipo
“ah, e aí viado?” e não sei o quê [pausa]. Essa coisa de enfrentar esse
tipo de situação é muito comum principalmente em quem vive aberta-
mente os trejeitos, a maneira como gosta de se vestir. Eu, por exemplo,
que ando de mãos dadas com meu namorado... É uma coisa comum,
[determinado] como é comum, pra mim, a maneira como eu reajo
contra isso. Eu não consigo só ouvir e ficar quieto. Ele me xingou e eu
xinguei de volta. Eu fiquei muito nervoso na hora. Eu tinha acabado
de passar pelo carro deles, tava no meio da rua ainda, virei e falei “ah,
meu, vai tomar no cu... Nunca te vi na vida... Filho da puta”. Sei lá o
que eu falei. A gente começou a trocar ofensas e ele desceu do carro.
Esse Bruno. Isso tudo, às vezes eu vou contando e fico me perguntando
“nossa, mas parece tão grande a história”. Mas não, foi tudo no tempo
de um semáforo, porque os carros estavam parados. Ele desceu do carro
e veio pra cima de mim. E o cara era assim... Tipo, ele é maior que você,
assim, de altura, é bem alto – nos autos do processo, parece que ele
tem um [metro] e noventa e poucos [centímetros]... E tipo, eu sou
isso aqui, com um e setenta. Sessenta e oito! E aí eu fiquei intimidado.
Não vou dizer que não. Eu fiquei intimidado porque na realidade o
que acontece: sempre que alguém me ofende de alguma forma, se eu
ofendo de volta a pessoa fica meio constrangida e acaba ali. Pelo menos
sempre foi assim comigo. É... Ali eu tava numa situação muito surreal,
de que eu revidei a ofensa verbal e o cara desce do carro! Aí eu fiquei de
fato intimidado, falei “nossa, agora vou apanhar aqui”. Mas ele... ele fez
chacota, inclusive da nossa diferença de tamanho, ele falou “ah, não vou
bater num viado desse tamanho”, não sei o que lá, e voltou pro carro.
Eu fui pra calçada e terminei de atravessar. Já com o cu na mão... Eu
voltei a xingar. O outro que tava dirigindo, o Diego [Diego Mosca
Lorena de Souza, personal trainer, na época 29 anos] começou
a me xingar também e aí foi uma troca de ofensa, tipo pesada, ali, no
carro... Abriu o semáforo, o cara fez a coisa mais louca que se poderia
supor. A Henrique Schaumann tem, se eu não me engano, tantas vezes

32
que eu já contei essa história, seis faixas: duas que sobem até a Teodoro
e as outras quatro que seguem. Eles estavam no meio e iam seguir reto.
Eles entraram na frente dos outros dois ou três carros que também
iam seguir, numa conversão proibida à direita, porque a Teodoro só
vira à esquerda, viraram na contramão, entraram naquele posto Shell
e desceram pra me bater. Tipo, aquilo foi muito surreal. O Diego
tomou a frente, no início. Ele também é um cara muito grande, não é
alto, mas muito grande. Eu fiquei extremamente assustado na hora, eu
falei “cara, agora fodeu muito”. Eu tava com um fone de ouvido, que
é um fone de ouvido grande, assim, de uma promoção daquela vodka
Sky. Ele pegou, tirou o fone, quebrou o fone que, inclusive, é prova
dos autos. Ele tava de óculos de sol. E esse é meu problema... Não [se
corrigindo de imediato]. Não é o meu problema. Na verdade, é que
eu acabo trazendo pra mim uma culpa que eu não tenho. Mas... Enfim,
ele fez isso de quebrar o fone e eu fiz nele também. Ele tava de óculos
de sol e eu puxei os óculos de sol dele. Eu não consigo achar que eu tô
errado por ter feito. No que eu fiz assim [faz a mímica] e arranquei
os óculos dele, ele começou a me esmurrar. Meu, aí foi absurdo. Eu
apanhei muito, muito. Eu apanhei tanto que, eu andei apanhando.
Tipo, eu comecei a apanhar em cima do posto, aí tem a descidinha do
posto, ele foi me batendo. Eu sei que tinha a primeira faixa da Teodoro
e fui apanhando e acabei caindo na frente de uma Tucson. Ele subiu em
cima de mim e começou a me bater na frente da Tucson. Eu lembro que
era uma Tucson porque a mulher ficou tão desesperada que ela quase
atropelou a gente. Ela soltou o pé e o carro foi pra frente, sabe? Tinha
um ônibus ali do lado subindo a Teodoro pelo corredor de ônibus. O
pessoal começou a gritar desesperadamente e a cena ficou muito surreal
pra mim. Porque eu tava apanhando e eu só conseguia ouvir o grito das
pessoas e o cara em cima de mim até que chegou a polícia e tirou ele de
cima. Que foi o que separou, porque na verdade ele só saiu de cima de
mim por conta da polícia. Tanto que foram presos em flagrante. Eu só
consigo lembrar de um batendo. Só o Diego. É, eu só vi o Diego. No

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processo tem várias testemunhas. No final das contas acabou um monte
de gente vendo, algumas pessoas reconhecem o Bruno também como
se tivesse me batido. E quando ele desceu do carro duas meninas que
são testemunhas do caso e estavam no carro atrás deles dizem que ele
tentou me chutar. Eu não lembro, e eu tomei pra mim uma postura de
dizer o que eu tenho certeza porque, enfim, eu estudo Direito, sou meio
contra o sistema penal, eu acho meio injusto também eu querer só que
eles vão presos a qualquer custo. Então o que eu lembro é isso que eu tô
contando: o Bruno desce do carro, ele que deu causa a tudo, porque ele
que me xingou primeiro, mas quem me bateu mesmo que eu sei, que eu
posso afirmar com certeza, foi o Diego.
Tem outra situação que é bastante surreal: eu tava sangrando e muitas
pessoas em volta. Muitas pessoas. Todo mundo meio chocado. Veio
uma mocinha que trabalha na conveniência do posto com sacos de gelos
assim, enormes, e colocava na minha cabeça. E todo mundo falando
“meu, coloca o menino pra cima”, outros falam “não, deita o menino”,
“ah, abre espaço pra ele respirar”... E eu completamente tonto, era quase
algo onírico, sabe? Eu não conseguia acreditar que aquilo realmente tava
acontecendo. Sabe aquelas cenas de filme, que você vai ouvindo vozes?...
E eu no chão. As pessoas me carregaram pra calçada e aí começou esse
tumulto. Várias pessoas dizendo que eles eram homofóbicos, começa-
ram a discutir com os caras, algumas pessoas sacaram celular pra filmar.
O Bruno falava alguma coisa do tipo pra parar de filmar, que ele tra-
balhava em academia, alguma coisa assim... Eu ouvia as vozes e achava
aquilo tudo muito surreal. Era tipo... Sei lá, uma pintura do Dalí. “Não
é possível. O que está acontecendo?”
Eu não sei qual que é o estágio de adrenalina nessa hora... Porque a
grande verdade é que não vinha dor como um resultado racional de algo
que eu conseguisse pensar, do tipo “nossa, que soco forte esse que ele
me deu”. Não vinha isso. Primeiro que assim: tudo é tão rápido que é
difícil racionalizar. É... Mas não doía, assim, fisicamente, não. Depois

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dói. Depois dói. A coisa esfria e dói. Na hora, ali, é... [pausa] É tanta...
É só... É... [gagueja um pouco] Medo, eu tive medo. Muito medo.
Talvez a sensação mais marcante é essa: medo, medo. Porque era uma
incógnita, aquela situação. O que ia acontecer dali? Até porque a polícia
chegou. Mas eu não era capaz de prever que a polícia ia chegar e me
tirar dali, então, assim, será que se a polícia não tivesse chegado ele teria
parado? Qual que é o limite entre ele... Que ponto que ele entende que
eu já apanhei o suficiente dentro da cabeça dele? Então acho que eu
tinha medo só. Medo, medo. Mas é muito louco porque na verdade não
passa muita coisa racional não. É bem irracional. Tudo, tudo, desde as
ofensas, foi o tempo de uns três semáforos.
Naquele momento, chorar, chorar, não chorei. Na verdade, eu só con-
segui processar a informação do que tava acontecendo bastante tempo
depois. Uma menina pediu meu celular, ligou pra minha tia, com quem
eu morava ali na Cônego [rua Cônego Eugênio Leite] quase na
esquina de onde aconteceu. Quando minha tia e minha prima chega-
ram aí eu desabei. Ali, eu chorei. Mas, até então, eu não lembro de ter
chorado não.
Era uma segunda-feira, tava um dia claro, muita gente viu. Tanto que
na hora – essa parte até que é bacana do ponto de vista jurídico, pelo
menos – três pessoas foram comigo pra delegacia pra testemunhar.
Porque elas não eram obrigadas a nada disso, normalmente a gente
pega o RG só e intima pra depor. Mas, não, duas meninas – essas duas
que estavam no carro atrás – e um cara foram pra delegacia e ficaram
comigo tomando aquele chá de cadeira. Ficaram lá até quatro da manhã
pra testemunhar. Porque assim, eu tive que fazer exame de corpo de
delito. Porque quando a polícia me pegou eu tava sangrando muito. E
aí os policiais me levaram pra um hospital na Lapa e do hospital eu fui
pra delegacia.
A gente levou um tempão pra prestar depoimento. Na delegacia que
aconteceu que o caso acabou ficando famoso. Um pouco por causa

35
disso: o Bruno deu uma declaração, pra Record se eu não me engano,
dizendo que eu apanhei porque fui idiota, porque eu não segui o meu
caminho, porque se eu tivesse ficado quieto e só ouvido as ofensas eu
não teria apanhado. Isso saiu em vários lugares, em várias manchetes.
É... [suspiro]
Quando quem sofre homofobia... Sofre duas vezes: sofre quando
apanha e sofre na delegacia. Mas eu tive sorte, sei lá, porque o delegado
foi extremamente consciente. O delegado falou pra mim, quando eu
cheguei na delegacia e fui prestar meu depoimento, ele falou “olha, tá
claro o que aconteceu aqui. Vocês entraram e deu pra entender o que
tava acontecendo”.
Na realidade, o que aconteceu foi o seguinte: a gente foi pra uma outra
delegacia primeiro, que era uma delegacia de flagrantes, que era lá na
Vila Formosa, ali perto do Ceasa. Tem uma delegacia ali naquela...
Gastão Vidigal [91o DP – Ceasa – na av. Dr. Gastão Vidigal], se
eu não me engano, o nome da rua. Os dois foram para lá primeiro en-
quanto eu estava no hospital. Só que lá tava com muita fila. O delegado
me chamou e falou “oh, eu já entrei em contato com o delegado lá da
Deputado Lacerda Franco, lá eles ‘tão mais tranquilos’, embora tenha
sigo flagrante vocês vão ser encaminhados pra lá”. Aí a gente foi pra lá.
E aí chegou todo mundo meio junto. Os caras ficaram muito tempo
no tête-à-tête comigo, assim, sabe. Obviamente que eu tentei ficar o
mais distante possível, mas a gente estava dentro de um mesmo espaço
de convivência na delegacia. Sentados todos na sala de espera. Ficamos
bastante tempo juntos. Mas eles acabaram sendo reclusos porque eles
estavam ameaçando as testemunhas. É, porque a situação foi muito
pesada, do ponto de vista até humano. Porque o Bruno, ele arrogava
pra si um status de superioridade que era absurdo. O cara dizia na
cara de qualquer um que ele era de um status social privilegiado, que
nada ia acontecer com ele. Tipo, dentro da delegacia, o cara falava um
negócio desse. Chegou a sair em alguma reportagem, em alguma das

36
emissoras que foram lá. E ele ameaçando as meninas. O outro cara que
topou prestar depoimento estava em horário de trabalho. Ele viu porque
passou ali de moto no momento do ocorrido. Então, ele voltou, pegou
o telefone dessa minha prima, entrou em contato e falou assim “onde
cêis tão? Porque eu vou aí pra prestar depoimento”. E aí ele foi até a
delegacia.
Eu nem fui prestar queixa na Decradi [Delegacia de Crimes Raciais
e Delitos de Intolerância]. Porque, na verdade, o que acontece? A
Decradi é muito bacana do ponto de vista dos delitos de preconceito,
dos delitos de intolerância, porque ela tenta mitigar um pouco essa coisa
do preconceito que se sofre por parte dos policiais. Mas eu não sofri.
Eu fui superbem atendido, os policiais foram superamistosos, ninguém
tentou duvidar da minha história, ninguém chegou e falou assim “ah,
porque... viado”. A gente saiu dali e da delegacia mesmo eles já foram
presos. Eles já foram pra cadeia.
Eu fiquei bem arrebentado. Se tu jogar meu nome, assim, se colocar
“André Baliera” no Google é o que mais vem. Eu inteirinho arrebenta-
do. Porque eu... eu me dispus a denunciar publicamente pela internet.
Eu fiquei muito inchado aqui, no rosto, muito, muito inchado no
lado direito. Algumas escoriações no braço... Cortes... Na testa tive um
inclusive que ficou me acompanhando por bastante tempo, e aqui no
olho eu tenho até hoje um ‘queloidezinho’. Aqui assim ficou uma man-
cha, um tempão... Mas fiquei bem arrebentado. O olho aquele inchaço
de sangue coagulado, sabe? Ficou bastante tempo isso. Tanto que no
trabalho – quando eu voltei a trabalhar depois de um período que eu
fiquei afastado – minha chefe falou assim “André, eu vou te colocar lá
atrás pra ninguém ficar te perguntando”. Eu trabalhava no banco.
No dia seguinte ao fato, claro, eu não fui trabalhar. Acho que uns dois
dias depois eu fui. Aí não consegui mais... Porque também eu fiquei um
tempo meio recluso, com um pouco de medo de sair de casa. Senti di-
ficuldade de ir pro trabalho do ponto de vista psicológico, mesmo. Não

37
era nem da dor. É... [silêncio] No fim das contas, eu consegui de um
médico psiquiatra os 15 dias pra ficar afastado. Mas eu cheguei a ficar até
um pouco mais do que esses 15 dias porque eu ficava indo e voltando.
Acabei faltando no trabalho. Minha chefe, graças a deus, foi superlegal.
Ela entendeu o que aconteceu. Os dias que eu faltava ela falava “tudo
bem, André, fica em casa”.
A primeira noite, ela não existiu. Eu cheguei em casa, da delegacia,
devia ser umas cinco da manhã. Estavam minha tia, minha prima e a
síndica do prédio da minha tia, que é advogada e acabou indo com a
gente... Quando eu cheguei em casa, deitei na minha cama, minha tia
fez algo pra eu comer. Eu lembro que eu deitei e aí começou a vir as
imagens.
Um certo período de culpa... Uma culpa... [reflete] Isso é uma violên-
cia, uma autoviolência muito foda. Você começa a se culpar por alguma
coisa. Você não sabe exatamente o quê, mas começa a se culpar. Tipo
“ah, por que eu tava passando naquela rua? Por que eu tenho tantos
trejeitos? Por que eu tava vestindo essa roupa?”.
Coisas que, pelo amor de deus, assim, eu acho execrável pensar que isso
é culpa minha, não tem... Eu não acho que eu tenha culpa, nenhuma!
Mas, na hora, você começa a tentar achar uma explicação. E esse mo-
mento é uma autoviolência muito forte, sabe? E aí eu só fiz chorar.
A gente é ensinado a julgar a mulher que foi estuprada por conta da
roupa que ela tá vestindo, né? “Pô, a mulher tava de roupa curta e
foi estuprada, mereceu!” Ou não mereceu mas “ah, quem mandou,
também?”. A gente tem uma mania absurda de condenar a vítima no
mundo que a gente vive. Isso não tem racionalidade nenhuma. É... você
dizer que “pô, mas quem mandou ter trejeito?”. O ponto é: eu tenho
plena consciência de que eu não tenho culpa nenhuma e que a minha
liberdade não pode ser justificativa pra eu apanhar. Embora, nessa hora
– é o que eu tô dizendo – seja um momento muito irracional de procu-
rar a culpa. Mas, sim, a gente é educado a isso... Invadir a integridade

38
física alheia? Não tem sentido nenhum. Você sabe que nessa lógica,
também, eu acho que até dentro daquilo que você [referindo-se a
mim, autor] se propõe a fazer, principalmente em relação às trans, às
travestis, eu acho que inclusive é por isso que a sociedade, de alguma
forma... Não que aceita, porque essas pessoas infelizmente não são
aceitas mesmo, mas que elas toleram a vivência das travestis de maneira
noturna, só. Então, você joga essas pessoas só pro período noturno. E
aí a vinculação da travesti com tudo que há de profano, de sexual, de
droga. Porque assim: “ali elas até podem existir”. A realidade das trans é
uma violência diária. Independentemente de violência física. Indepen-
dentemente de ela ser verbal, enfim, a exclusão da sociedade. A mesma
coisa com nós, gays. Se o cara for gay mas tiver, assim, uma conduta de
macho então “a gente até tolera que ele exista, mas não vai me dar um
beijo num outro homem de barba!”. E ainda, “nem parece que é gay;
até tenho amigo gay; meu melhor amigo é gay”... Isso é absurdo! E aí as
pessoas usam isso como um subterfúgio pra poder falar mal de alguma
coisa. Tipo assim “ó, tô falando mas não é que eu sou preconceituoso
não!” Isso é um absurdo, cara, essa sociedade tá muito louca, muito
doente.
Bem, e aí foi muito foda porque eu lembro que peguei no sono, acordei
com o telefone tocando sete da manhã – eu devia ter conseguido pegar,
de fato, no sono por volta das seis da manhã – era a RedeTV, querendo
fazer entrevista. Aí não parou mais. Não parou mais. Minha tia tem
um telefone daqueles antigos, sabe? Que disca ainda. Cara, foi surreal.
A casa não parava. Tanto que, nessa época, eu ficava com um cara –
um cara superbacana, que é médico – e aí ele falou “André, vamos pra
minha casa”. E eu passei umas duas semanas na casa dele, pra fugir um
pouco do assédio de entrevista, essas coisas todas. Porque em casa tava
bem complicado. Tipo, o povo parando na frente da minha casa.
Na época, eu achei importante dar algumas entrevistas. Porque aconte-
ceu o seguinte: uma das testemunhas, lá na hora, ligou pra Band. Quan-

39
do eu volto do hospital pra delegacia – lá na Vila Leopoldina – eles [os
agressores] estavam dando entrevista. E nisso a síndica lá do meu
prédio, que é advogada e já estava esperando com a minha tia, falou pra
mim o seguinte: “André, você vai ter que dar entrevista”. Na hora eu
não queria porque eu fiquei constrangido, tava muito machucado, e ela
falou “você vai ter que dar entrevista, porque vai sair isso na mídia e vai
ser a palavra deles sem a sua palavra”.
Eu falei o que aconteceu. Dei a minha versão. Dali pra frente foi equipe
de reportagem de tudo quanto é mídia; na manhã seguinte a RedeTV,
o SBT quis fazer uma reportagem comigo no próprio posto onde tinha
acontecido... Foi tudo uma sequência, era tudo meio psicodélico. As
coisas não paravam, eu não tinha dormido... Então, a primeira noite
não existiu por conta disso. E aí a minha vida passou a ser, no primei-
ro mês, uma coisa muito louca de assédio da mídia, de todo mundo
querendo saber o que aconteceu. Milhões de teorias a respeito do que
tinha acontecido. Muita ofensa, sabe? Não sei se você vai lembrar –
óbvio que vai lembrar – mas as pessoas me comparavam com a Geisy
Arruda, dizendo que eu queria ficar famoso... Por conta do caso dela.
Nada contra a Geisy Arruda mas o meu universo é outro. Porque eu sou
do universo jurídico, que é um puta universo conservador e preconcei-
tuoso. É claro que, pra mim, não tinha vantagem nenhuma colocar a
cara pra bater. Pelo contrário, só tinha desvantagem. Porque, primeiro,
eu nunca ganhei um real pra dar entrevista e segundo que, se você for
pensar que se eu quisesse ser advogado, num escritório... [irônico] Joga
meu nome no Google, vê tudo que aconteceu, “ah, não vamos contra-
tar esse viado muito louco aí, não”. Eu tenho consciência de que eu só
me ferrei, mas eu escolhi me expor por conta da militância. Porque aí,
respondendo a sua pergunta sobre os prós, tem esse segundo momento,
que é o momento em que eu escolho gravar um vídeo em casa, logo
depois que saiu uma matéria sobre o que a irmã do Bruno tinha falado
[riso nervoso]. Ela falou que eu nem morri. Falou que tinha sido
muito alvoroço porque, afinal de contas, “ele nem morreu”.

40
Eu me senti tão afrontado com isso, como se eu só tivesse direito a ter o
Estado do meu lado, a justiça do meu lado, se eu tivesse morrido. Aí eu
gravei um vídeo falando o que aconteceu, falando mais ou menos como
eu tava me sentindo. E aquilo foi um marco também porque depois
que eu gravei isso... Aí fodeu de vez. A mídia que ainda não tinha me
entrevistado veio pra me entrevistar. Não parou mais mesmo. Então,
teve esse primeiro momento de, de, de [gagueja um pouco] de sofri-
mento por causa do que aconteceu, depois teve todo um período de um
mês, mais ou menos, de muito assédio, e depois disso eu fui tentando
voltar ao normal.
Porque aí é um outro momento... Que você começa... que você encara
o que aconteceu e fala “bom, eu não tenho mais licença médica, preciso
trabalhar, preciso pagar conta, preciso viver, então agora nós vamos ter
que dar um jeito nisso, vamos...” [pequena pausa] Aí eu comecei a
fazer tratamento psiquiátrico, comecei a tomar remédio. Pânico. Pânico.
E... [pausa] Eu já fazia terapia com psicólogo. Claro que, provavel-
mente nas 10, talvez 20 sessões subsequentes ao que aconteceu, foram só
sobre o que tinha acontecido. Mas, assim, eu tinha a faculdade que eu
precisava seguir em frente e as coisas foram tomando algum rumo, sabe?
Eu passei muito tempo sem passar pelo posto de gasolina... No posto,
especificamente, eu demorei muito tempo, mais de seis meses, pra vol-
tar a chegar no posto. Era tão louco que... Eu morava ali muito perto...
Era quase automático, eu dava uma volta para não passar ali. Depois de
um bom tempo, eu fui no posto agradecer os frentistas. Teve um dos
frentistas que se dispôs, inclusive, a depor. O pessoal foi superbacana
comigo, enfim. Mas é engraçado como a vida segue, né? Não tem muito
o quê... [silêncio]
Olha, primeiro eu acho que é o seguinte, eu acho que eu tinha que
devolver pra militância alguma coisa, porque eu já militava há um
tempo, eu trabalhei, antes disso, no CCH, que é o Centro de Com-
bate à Homofobia. Eu já tinha estado do outro lado. Não do lado de

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quem bate, mas do lado de quem atende, de quem ajuda... Muitas
vezes. Muitas vezes. Mas muitas vezes. Eu trabalhava no [enfático]
Centro de Combate à Homofobia e tinha visto situações próximas ao
que eu passei centenas de vezes. A grande diferença entre o que eu via
todos os dias no Centro de Combate à Homofobia e o que aconteceu
comigo era o local onde a homofobia tinha acontecido e a pessoa com
quem tinha acontecido. Porque no Centro de Combate à Homofobia a
gente atendia pessoas em situação de rua, situação de pobreza, gente da
periferia... E aí eu vou te falar: na periferia, isso tá acontecendo agora.
Isso aconteceu há 10 minutos, isso vai acontecer daqui 20 minutos e não
parou de acontecer e não vai parar tão cedo. Mas aí acontece em Pinhei-
ros. Acontece em Pinheiros, onde boa parte das pessoas que mora ali é
gay, também; onde as pessoas se sentem, de alguma forma, protegidas
pelo status social, porque “ah, não, Pinheiros, não sei o que lá”; acontece
com um aluno da USP, um aluno de Direito, funcionário público... Aí
as pessoas começam a se enxergar mais. A mídia deu atenção pro meu
caso provavelmente porque quem consome a mídia se identificou comi-
go. Só que eu via todo dia, todo dia, todo santo dia quando trabalhava
no CCH isso acontecendo sem que aparecesse uma única notinha em
qualquer jornal, em qualquer veículo de comunicação, sabe? Inclusive,
no vídeo que eu gravei, eu falava isso, que não era nada novo o que ti-
nha acontecido comigo. Que acontece diariamente. Aliás, a cada sabe-se
lá quanto intervalo de tempo curtíssimo na periferia. Só que ninguém
dá bola pra isso se acontece com o cara, com o preto, pobre, no meio
da favela, entendeu? Então, eu senti ali que eu devia, pra que eu fosse
coerente com o que eu acredito, eu precisava falar, independentemente
do que isso ia significar do ponto de vista profissional. Porque foi o que
eu te falei: eu não sei mensurar o tanto de oportunidades que eu perdi
e que eu ainda vou perder na minha vida por conta da escolha que
eu fiz de denunciar publicamente. Porque podia ter ficado maquiado
isso. Só o processo judicial, tranquilo. Mas na medida em que eu me
coloco, faço um vídeo, deixo as pessoas tirarem foto, concedo entrevista,

42
até documentário já fizeram... Eu optei por, talvez, ter algum tipo de
problema na minha vida profissional. Não sei. Nunca vou saber dizer.
Mas seria muito incoerente da minha parte simplesmente esconder. E
mais do que qualquer coisa: a grande verdade é que eu não desejo nada
de mal pra eles. Eu queria muito que eles respondessem pelo que de fato
aconteceu. Eu não acredito no sistema penitenciário, então nem tenho
muito desejo “nossa, vão pra cadeia, eu quero que eles fiquem... apodre-
çam na cadeia”. Não vai mudar nada na minha vida se eles ficarem 20
anos presos em vão; pelo contrário, talvez eles fiquem piores, depois iam
me pegar... Então, eu não desejo nada de ruim pra eles, especificamente.
Eu quero que o Estado responda de uma forma justa. E responda pra
mim e responda pra sociedade, pra todos os gays, falar “ó, tá vendo,
cara, homofobia não pode acontecer; se acontecer, tá aqui, ó”.
O que pode acontecer.Vou te dizer assim, bem real: o processo que mais
me emociona e que eu mais tenho carinho é o processo administrativo.
O que aconteceu gerou, como consequência, três processos: um pro-
cesso penal, porque eles foram indiciados por tentativa de homicídio;
um processo civil, onde eu peço indenização pelos danos morais; e o
processo administrativo. Este último é extremamente importante pra
mim. É claro que – não tô desfazendo dos outros dois. Seria muito...
Até demagogia dizer que eu quero perder o processo civil. Não, não é
isso. Mas, assim, no processo penal a resposta é muito pra sociedade
como um todo. Assim: “a violência, independentemente da questão
sexual – porque homofobia não é crime – independente da sexualidade,
a violência é proibida”, então é uma resposta pra sociedade inteira. O
processo civil é uma resposta pra mim: o que eu sofri e o quanto isso vai
significar em pecúnia, em dinheiro. Agora, esse processo administrativo,
ele me parece mais bacana porque ele é uma resposta pra comunidade
gay, pra comunidade LGBT, na verdade, como um todo. Porque existe
uma lei, que é uma lei estadual, aqui do estado de São Paulo – embora
alguns estados também tenham leis parecidas – que é a lei 10.948, que

43
pune condutas de homofobia, transfobia, lesbofobia, enfim, administra-
tivamente. Quer dizer, os caras vão ter que pagar uma multa pro Estado.
Não é um dinheiro pra mim, ele não vem pra mim, mas é uma multa
do Estado, que tem um condão que obriga a ser investida em Direitos
Humanos, está lá especificado na lei. E esse processo já foi julgado e
a gente já venceu. Nesse processo tem uma comissão processante, na
verdade não é nem um juiz. É uma comissão processante, porque a lei
especifica como é que funciona o processo pra declarar homofobia ou
não. Então, assim, a homofobia já foi declarada, sabe? A homofobia
já foi declarada, eles já foram condenados por homofobia. Eles vão ter
que pagar, cada um, se eu não me engano era algo na ordem dos R$
20.000,00 cada um. Esse é o processo administrativo, que é um proces-
so bonito do ponto de vista da militância, do ponto de vista da coleti-
vidade gay. Quando saiu a sentença eu queria imprimir. É maravilhosa!
Eu queria colocar em todos os lugares. A gente venceu, pelo menos na
primeira instância desse processo. Agora, o que tá acontecendo, eu não
sei te dizer. Provavelmente eles recorreram, é claro. Eles não vão pagar
20 contos fácil, sem recorrer. Outra coisa que parece um pouco para-
doxo, mas é verdade, eu não me atenho muito aos processos. Primeiro,
porque isso me causa transtorno. Hoje eu sou funcionário do Tribunal
de Justiça e eu tenho plena consciência de como é lento, como é demo-
rado. Eu sei que o processo administrativo eu venci, até porque saiu no
jornal. Mas, tendo consciência de como é lento, eu não fico olhando
toda hora. Me dá uma angústia, me dá um negócio, eu não tenho saco.
Obviamente que eu não cuido. Não está na minha Vara. Aliás, não
corre nem no João Mendes, isso, corre lá no Fórum Santo Amaro, o
processo civil, e o processo penal, lá no Fórum Criminal. Uma vez ou
outra, quando eu resolvo ver, aí dá um desespero, “puta, fizeram um
negócio aqui que podia ter feito diferente”, então eu prefiro não ver. O
advogado é o doutor Paulo Iotti, que inclusive é militante. Ele advoga
nos dois processos, então ele me avisa de tudo.

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Mas não importa o julgamento. Eu não tenho medo da reação deles.
De maneira nenhuma! De jeito nenhum. De jeito nenhum. Primeiro:
eles não são imbecis. Sério, eles não são. Quer dizer, eles foram imbecis.
Parece meio louco eu protegendo eles... Não, não é isso. Mas, assim,
eles não vão fazer isso de novo, sabe? Meu, um deles tá pagando um dos
maiores criminalistas do país. Que inclusive é meu veterano lá na facul-
dade. O cara deve ter falado já mil vezes pra ele “oh, não fique, não che-
ga nem perto desse menino, entendeu?”. E sem contar tudo que eles já
perderam, sabe? Eles trabalhavam os dois numa academia... A academia
lançou uma nota, logo que aconteceu. Parece que um deles era personal
na academia e o outro tinha uma loja de suplemento alimentar dentro
da academia. A nota dizia que não ia renovar o contrato de aluguel com
o negócio e não ia permitir que o cara que era personal continuasse
trabalhando. Então, assim, eles perderam muita coisa. Eu não acredito
que eles vão insistir nisso, sabe?
Mas aí é que tá... Quando você fala de medo, eu realmente não tenho
medo deles, mas eu criei um certo medo social. Uma coisa que eu não
tinha. Então, se hoje eu tenho... eu tento, e aí de maneira racional, a
todo momento, quando eu me percebo deixando de...Tipo, quando eu
me percebo andando na rua, andando com a perna aberta porque eu tô
com medo de onde eu tô... aí eu tenho que falar “calma, André, cê pre-
cisa ser a bicha que você é. Seja a bicha que você é”, sabe? “Seja a bicha
que você é, para de se privar de ser quem é.” Mas, assim, muitas vezes
eu me pego assustado, de repente, por conta dos meus trejeitos, da mi-
nha voz... Quando eu tô com meu namorado, de mão dada... Eu passei
a ter certas condutas que eu não tinha. Mas eu tento lutar contra isso,
sabe? Porque eu não quero que isso seja uma subtração eterna da minha
liberdade. Mas ainda é. Ainda é. Ainda tenho receio de muita coisa. Eu
me tornei uma pessoa... Um cara muito mais introspectivo [pausa] por
conta de tudo isso. Isso sem falar na decepção social. Pra você ver como
as coisas são: quando eu ainda ajudava as pessoas, quando eu era o cara

45
que fazia, lá, o trabalho no CCH, aquilo me emocionava. Mas aquilo
te emociona de um ponto até o momento que você sai do seu trabalho
e vai pra casa. Tudo bem. Hoje em dia, não. Hoje em dia, a violência,
quando eu vejo um caso desse, pode ser lá no Pará, pode ser em outro
país – o que tá acontecendo na Rússia, por exemplo – eu entro num
estado de tristeza, sabe? Porque a identificação acontece comigo. A pior
coisa que eles fizeram pra mim foi isso: foi me tirar parte da alegria de
viver, do meu prazer de andar na rua tranquilo. E, inclusive, é muito
louco porque você não sabe quando que isso não vai existir mais. Ou se
é que vai. Você não tem a perspectiva de que vai voltar a ser 100% livre.
É... nenhuma! Eu não tenho essa perspectiva hoje. Eu quero, luto con-
tra mim mesmo, em alguns momentos. Em alguns momentos eu estou
me podando de alguma maneira e aí eu falo “André, não se poda”. Mas
não dá muito pra falar em um estado de normalidade porque a minha
normalidade agora é outra. É outro parâmetro de normalidade.
Porque não acabou. Não acabou. O raio cai duas vezes... Nunca apa-
nhei outra vez. Mas não deixou de acontecer. De novo, sim. Ofensas.
Sim, sim sim. Revidei. E pelo menos isso eles não me roubaram. O
peito de me posicionar. A coragem de dizer “não, não vão, aqui não. No
meu galinheiro não vai... não vai... entrar pra me ofender”. Por exem-
plo: eu entrei num novo trabalho, e no novo trabalho eu me posicionei
novamente. Eu não me escondo de maneira nenhuma. Todo mundo
sabe que eu sou gay no Fórum. E, se eu ouço algum tipo de piada, corto
ali na hora: “não, não é pra fazer, não é assim”. Essa conduta reativa eu
continuo tendo. Seja em que grau for. Às vezes, um carro passa, eu tô de
mão dada com o meu namorado e fala “ah, seus viado!”, eu falo “vai to-
mar no cu!”. Isso não me tiraram, não. Ainda bem, né, porque eu acho
que não tem que tirar. Quer dizer, óbvio que eu não queria passar por
essas situações, sabe? Mas eu tenho plena consciência, uma consciência
de que isso não vai mudar do dia pra noite. Enquanto isso não muda,
eu pretendo ser um instrumento de mudança. Pretendo ser aquele que
vai questionar.

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Eu acho que se eu tivesse que falar alguma coisa, assim, pra todo
mundo... [pequena pausa] Sei lá, eu fico tão inconformado com
isso que aconteceu e com o que acontece... [pausa] Eu não sei, acho
que tudo que eu queria era um porquê que tirasse de mim essa tal culpa
irracional, sabe…? É... O que acontece com a sociedade que continua
produzindo pessoas preconceituosas? Por quê? E aí eu fico pensando
no que as pessoas realmente acreditam... Por que elas agridem? Por que
elas maltratam? Por que que elas ofendem? Qual a razão do bullying?
[pausa] É tudo tão difícil que eu nem consigo verbalizar...
Vou ser muito sincero: se eu não acreditasse no ser humano, eu não
militava. Eu só milito porque eu acredito. Acredito menos do que eu
acreditava antes de apanhar. Assim, é claro... Todas essas subjetividades
que eles me subtraíram, que compõem o que eu sou hoje, um pouqui-
nho mais cético do que eu era antes. Mas se eu ainda milito, se eu ainda
vou em manifestação, se eu ainda me comprometo com projetos como
o seu, vou em fóruns de discussão, essas coisas todas, é porque eu acre-
dito. Talvez, obviamente, não vamos estar vivos pra ver essa sociedade
ideal. Isso eu acredito que a gente vai construir. Tomara que a gente
tenha parte nessa transformação.

[“(...) O mesmo mundo mamãe que me machuca Que me amarra Me morde Me


maltrata Por que mamãe Se sou tão mesma que ela que você que ele Minha pele dói da
mesma maneira E meu coração para quando a bala o atravessa Como para o da vaca da
égua do macaco dele e dela Por que mamãe o cabelo que você penteou com cuidado as
mãos dele arrancam com força Por que mamãe meu grito não faz com que ele me acuda
como você me acudia quando eu gritava Por que mamãe ele não me vê viva como ele e
me mata por um gozo sem vida (...)”]

[André] Meu deus... Nossa... Que coisa maravilhosa, isso. Cara... é


muito isso. Eu achei muito forte isso. É o que tava tentando te dizer: o
quanto essas... [pausa emocionado] O quanto é triste saber que es-

47
sas pessoas existem tanto quanto eu existo... Respiram como eu respiro,
comem o que eu como, fazem o que eu faço e elas... Elas se sentem no
direito de me obstruir. Sendo que elas sentem... É muito isso que você
me leu aí. O soco que esse cara me deu... se alguém der nele, também
dói. Como... Por que é incapaz de entender?
[E ele, bem provavelmente, é um cara de afeto com alguém.
Ele provavelmente ama alguém, uma irmã, uma mãe, uma
namorada. E ele quer a proteção dessa pessoa!]
[André] Sim, como eu sou amado... [pausa] Meus pais ficaram
destruídos. O meu pai que inclusive sempre foi, é machista, professor
de educação física, jogador de futebol, sempre teve um certo problema
com a minha sexualidade... Meu, ele chegou a vir pra cá pra ir numa
manifestação que fizeram por mim. Ele veio... Isso é bem curioso,
porque o nome do meu pai é o meu. Os dois se chamam André Baliera.
Muita gente entrou em contato comigo. Aliás, é legal comentar isso.
Falei de tanta desgraça, de tanta ofensa, que eu ouvi por causa disso,
mas também ouvi – aliás, muito mais do que ofensas – ouvi palavras
de solidariedade, que me motivaram bastante a continuar. Enfim, as
pessoas me adicionavam muito no Facebook, pra me mandar mensa-
gem, essas coisas e tal. E o meu pai, nessa época, tinha uma foto no
perfil que era eu e ele. Então as pessoas, quando procuravam André
Baliera, encontravam ele também. E muita gente achava que eu era ele e
mandava mensagem pra ele. E eu vou te dizer, assim, que... Isso balan-
çou muito meu pai. Porque meu pai soube de histórias... Porque muita
gente, na tentativa de se identificar, as pessoas contam um pouco delas.
Então, muitas pessoas contavam muita coisa pra mim, e muita gente
contou muita coisa pro meu pai, achando que era eu, pra se identificar:
“poxa, eu também passei por isso”, e aí fazia uma narrativa sobre o que
aconteceu com a pessoa. Meu, meu pai... Ele chorava e me mandava
essas mensagens falando “André, eu preciso selecionar pra te mandar”
e, assim, cada história mais linda que a outra. Triste. Lindo no sentido

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de... Tão triste que você fica emocionado. E isso motivou meu pai até
vir aqui, participar de uma manifestação...
[Isso muda a relação de vocês.]
[André] Opa! Mudou muito...
[Você tem irmãos?]
[André] Três. Um mais velho que também tomou a frente de um
movimento contra a violência pelo que aconteceu comigo. Mora em
Santos, com a minha mãe. Meus pais são separados, meu pai mora em
Penápolis. E meus dois irmãos mais novos são do segundo casamento
do meu pai. Nessa época... Minha irmãzinha estava com 4... 3 anos.
Então você imagina mostrar pra menina... Pra ela entender o que tava
acontecendo quando ela me via todo estourado... Ela me via e começa-
va a chorar sem nem saber por que, sabia que eu tinha sofrido alguma
coisa... E meu irmãozinho, que já é um pouquinho mais velho – hoje
ele tá com 10, na época ele tinha 7 – que já era capaz de entender o
que aconteceu, ele foi bastante consciente, sabe? De dizer que os caras
estavam errado, “bateram em você por causa da sua sexualidade e isso
não pode”. Pra minha família inteira foi um aprendizado.
[E a sua sexualidade está clara na sua relação familiar desde
quando?]
[André] Desde os 21. Desde os 21. Faz nove anos. Faz nove anos que eu
saí do armário, que eu estourei o armário...

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VICTOR PEREIRA DA SILVA MACEDO
depoimento em 25 de fevereiro de 2015

Antes de qualquer brincadeira que você fizer em relação a minha sexuali-


dade, pare para pensar um pouco.
Se coloque no lugar de alguém que vive em uma cultura que deseja a sua
morte, se submeta a pelo menos um terço da violência que eu enfrento
diariamente.
Esqueça os privilégios que permitem que vocês heterossexuais possam fazer
tudo o que quiserem, sem medo.
E se a brincadeira ainda fizer sentido, faça! Ao contrário, cale a boca.
Exigir ser tratado como humano, como vocês heterossexuais são tratados,
não é a mesma coisa que exigir privilégios.
É exigir igualdade. E direitos não são dados, são tomados.
Victor Pereira.

[Victor] Meu nome é Victor Pereira da Silva Macedo. Eu sou de 4 de


outubro de 1996. Nasci em Frei Inocêncio, próximo de Governador
Valadares, em Minas Gerais. Mudei com 2 anos pra cá, pra São Paulo.
Tenho uma irmã. Mais velha.
Tudo começou no ano passado. Eu estava com 17 anos e estudava
Edificações no ITB-Barueri [Instituto Técnico de Barueri – Atílio
Flores de Azevedo]. Eu usava batom dentro da escola. E, tipo, teve
um tempo que a direção me chamou… Aí, nos banheiros da minha
escola, começaram a escrever meu nome, meu número de telefone,
começaram a escrever, tipo, que eu estava me prostituindo e muitas
coisas horrorosas: que eu era viado, que viado merecia morrer, odeio
viado, chupa rola… Aí, eu tirei foto e ‘printei’. Imprimi, mandei pra
direção da escola e falei assim: “olha, eu quero que resolvam isso”. Aí
eles falaram: “tá, amanhã você me traz uma carta explicando tudo que tá
acontecendo”. Eu falei “ok”.

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Eu levei uma carta no outro dia pra eles. A coordenadora pedagógica
falou assim, que o fato de os garotos do banheiro estarem me difaman-
do é porque eu tava deixando eles me difamarem porque eu era o mais
afeminado da escola, porque eu passava batom... Ela falou que eu fugia
ao padrão de uma escola técnica e que eu não poderia ser esse padrão
que eu sou, de usar batom porque “nós somos uma escola técnica”. E
deu exemplo de umas amigas dela que não estavam satisfeitas no Brasil,
que eram lésbicas, que sofriam muita opressão, e foram embora do
Brasil. Tipo, se eu estivesse incomodado, que eu fosse embora da escola,
fosse embora do Brasil. Eu saí desestabilizado da escola porque eu não
militava, eu não fazia nada, eu não sabia a quem recorrer. Então, eu che-
guei numa sala de aula e tinha uma professora minha, a Talita Jacobelis,
que foi a professora que me ajudou. E ajuda até hoje no caso, porque o
caso voltou. Começou ano passado e voltou este ano. Prosseguindo, eu
contei o caso pra professora, ela falou assim: “mas você conversou com
a coordenação?”, eu falei “conversei, ela falou isso, isso e isso”. Ela falou
assim: “eu não acredito! Vamos levar pra direção o caso”. Eu levei pra
direção. A primeira discriminação que eu sofri na escola foi no banhei-
ro masculino, a segunda foi com a coordenadora pedagógica, falando
que, se eu estivesse insatisfeito, que eu saísse da escola e a terceira foi
quando a direção ratificou isso, falando que, se eu tivesse ido primei-
ro na direção, eles iriam me falar a mesma coisa, que eu estava numa
posição errada. Que, ao mesmo tempo que eu queria respeito, eu teria
que respeitar os meninos que não gostassem do meu batom dentro da
escola. Ela até chegou falando assim: “ao mesmo tempo que você quer
respeito, os homofóbicos também querem respeito dentro da escola”.
Ela claramente falou isso. Aí não dá, né?
Minha mãe sabia que eu era gay, meu pai não sabia. A diretora falou
que queria uma reunião com os meus pais e eu pedi pra ela me dar um
tempo pra eu falar com os meus pais e tal. Ela disse que tudo bem, me
daria um tempo. Mas ela atropelou o processo e chamou minha mãe na
escola no dia seguinte! Tipo, minha mãe foi pra escola e ela contou tudo
antes de eu contar. Minha mãe não sabia que eu usava batom dentro

51
da escola, e nem fora também. Cheguei em casa, encontrei minha mãe
chorando, tipo desesperada, morrendo de chorar… Eu fiquei desesta-
bilizado. E a gente não conseguia falar. Não conseguia se comunicar...
Pra gente, foi o auge, sabe? E eu me toquei, mesmo, “cara, tá aconte-
cendo isso, eu tô sendo ameaçado na escola, eles querem me expulsar da
escola, tem sete garotos querendo me bater, minha mãe tá desesperada
em casa, meu pai não sabe de nada, minha família também não sabia de
nada, tipo... O que eu vou fazer agora?” E aí foi, tipo, muito desespe-
rador. Muito, muito, muito, muito mesmo. Nesse dia foi que eu decidi
me matar. Rolou isso porque tava tendo muita pressão. Nunca tinha
acontecido nada parecido comigo, sabe? Era muita pressão. Aquela
diretora me tirou todos os direitos [pausa]. Eu fiquei em casa. Isso foi
muito silencioso, porque era noite, meu pai tava em casa, é... Foi bem
punk. Nessa mesma noite, na madrugada eu escrevo uma carta para a
professora Talita. Por fim não tomei nenhuma atitude drástica depois da
conversa que a gente teve. Eu e a professora.
Nesse período, a gente marcou um ‘batonzaço” na escola. Para que
todo mundo que se sensibilizasse com a causa usasse batom na hora do
intervalo, nada mais. Só usasse batom mesmo, simbólico.
A direção ligou para a professora Talita e falou assim “olha, tô sabendo
que vai ter um ‘batonzaço’ e quero que você desmobilize isso porque
você é a mais próxima do Victor”. A Talita respondeu “eu sou amiga do
Victor, mas não tem como desmobilizar uma coisa que tá acontecendo
pela internet”. Ela [a diretora] falou assim “porque amanhã, se alguém
aparecer usando batom, eu vou dar uma punição pra todo mundo”. A
professora falou assim “mas qual que é a punição? Está no regimento da
escola que é proibido usar maquiagem?”. E a diretora respondeu: “não
tá, mas eu vou dar uma punição”.
Eu avisei a galera que ia ter uma punição. Rolou o ‘batonzaço’. Foi
muito pequeno por causa disso. Mas teve gente usando batom. Outros
homens usaram, gays e heterossexuais também, meus amigos. E não
teve nenhuma represália dentro da escola.

52
Nesse mesmo período sete garotos que se autointitulam “neonazistas”,
da minha escola, me ameaçaram e falaram assim “se fosse gente usando
batom, eles iam descer a porrada em todo mundo”. Antes disso, eu
usava uma echarpe na escola. Eles fizeram uma cena na porta da minha
sala: um deles tava com uma echarpe e com batom e os outros agredi-
ram ele. Eles deixaram bem claro, tipo: “se você vir de batom de novo, a
gente vai te agredir”. Eu apresentei pra direção mas não resolveu. Então
eu fiz o primeiro BO [boletim de ocorrência] contra esses sete
meninos e contra a direção. A escola nunca chamou os pais dos garotos,
mesmo sabendo que havia BO feito com o nome deles. Os meninos são
menores de idade e quem poderia responder são os pais deles; a escola
não comunicou os pais dos garotos até hoje, eles não sabem o que eles
fazem, que eles fazem a bandeira da suástica dentro da sala. É muito
pesado, sabe? Me ameaçaram mesmo de bater.
Depois, eu levei o caso pra Coordenadoria de Diversidade da minha
cidade, de Barueri, e, depois, para o Cads, pra coordenadora Heloísa
[Heloísa Alves, coordenadora de Políticas para a Diversidade
Sexual do Estado de São Paulo]. Tivemos uma reunião na Alesp
[Assembleia Legislativa de São Paulo] que foi chamada pelo
deputado Carlos Giannazi, onde a gente chamou a escola também. Na
primeira convocatória, que foi na Coordenadoria de Barueri, a gente
chamou a escola. Minha mãe foi nesse dia conversar com a direção na
reunião da Coordenadoria da Diversidade da minha cidade. A direção
da escola não foi, nem o superintendente da escola. Porque minha
escola é uma autarquia. A Fieb [Fundação Instituto de Ensino de
Barueri, mantenedora da escola] é uma autarquia que tem várias
redes da escola. A minha é a ITB de Barueri, Jd. Belval. Depois fomos
para a audiência na Alesp e a escola também não compareceu, deixando
bem claro que tá pouco se fodendo pro que tá acontecendo. Depois que
a gente levou pra Alesp, a gente levou pra Heloísa e ela deu início no
processo contra a escola, contra a coordenadora e a direção e contra a
mantedora da escola, que não fez nada. Tudo via Cads. O processo está
andando mas não temos resultados ainda.

53
Além disso, a minha professora Talita, que me acompanhou o caso
inteiro, foi repreendida na escola também. Mas não é que ela estava
infringindo as leis da escola, ela estava do lado certo, do lado do oprimi-
do! A escola que escolheu ficar do lado do opressor. E ela sofreu ameaça
também. A casa dela foi invadida quatro… Acho que seis vezes. Quan-
do eu fui ameaçado de expulsão da escola, ela também foi ameaçada
de perder o emprego. A direção pressionou ela pra caralho. Não só ela
como os outros professores da escola. Nenhum falava mais com ela. Só
depois a professora Roseli [Machado] que também começou a ajudar
quando o caso explodiu. Depois da Assembleia, a gente fez dois atos
[Ato Pelo Fim da Homofobia nas Escolas (ITBs) de Barueri] lá
na frente da escola e ganhou uma grande visibilidade. Não tinha como a
escola negar isso.
Na reunião que a gente fez com a coordenadora Heloísa, ela perguntou
o que eu queria que fosse feito. Eu queria que fosse feita uma carta da
escola com um pedido de… Não é um pedido de desculpa, mas é de
conhecimento que houve o caso e a escola errou, apontando os erros da
escola e falando que isso não vai acontecer mais. E também pedi que
acontecesse um ciclo de palestras e debates dentro da escola. A Heloísa
chamou uma reunião com o superintendente da escola e com a direção.
Eles compareceram e ela apresentou o que eu queria, e a direção falou
assim “olha, a primeira parte a gente não vai fazer”. A Heloísa insistiu
“não, eu quero que vocês façam os dois”. Eles falaram “não, só vamos
fazer um dos dois”. Até que eles fizeram uma “Semana da Liberdade e
Alteridade”. Mas foi muito avulsa. Não foi uma coisa pra se retratar do
meu caso. A direção não participou dessa Semana. Foi feita com alunos.
Este ano eu não estudo mais na escola, terminei ano passado. Agora
eu passei pra faculdade Latino-Americana, a Unila, que fica em Foz do
Iguaçu, então eu fui na escola me despedir de alguns professores. Eu es-
tava de saia e uma camiseta tipo x... Mas não tinha nada escrito, tipo...
normal. Eu fui barrado na porta da escola, eu fui repreendido e não
deixaram eu entrar. Falaram que não podia, a minha presença na escola
tava proibida por ordens da direção e que eu não poderia pisar o pé

54
mais na escola. Eu perguntei o porquê, se tinha amigos meus, ex-alunos,
que entraram no dia anterior. Direitos iguais pra todo. E eles falaram
“mas você não pode”. E não deixaram eu entrar.
A professora Talita postou um texto no Facebook falando disso e outros
alunos até comentaram no texto que tinham ido na escola e foram
super-recebidos pela direção, pela coordenação, pela orientação, pelos
funcionários. Não havia o porquê de eu não poder. Os tais garotos
neonazistas começaram a publicar na página deles, “amanhã eu vou lá
na escola porque eu sou superbem recebido. Porque eu sou opressor
mesmo”. Começaram a falar uma caralhada!
Antes... Quando eu estava indo pra escola, antes de eu ser barrado,
eu desci do ônibus e fui agredido por seis caras que eu não conheço,
entre 20 e 30 anos. Eles estavam mexendo comigo porque eu estava de
saia. Eu não lembro quais foram as palavras porque eu estou tentando
esquecer isso, sabe? Eu mostrei o dedo pra eles. Um deles chegou e me
deu um tapa na cara, e falou assim: “você não tem que reclamar porque
eu tava te elogiando, e, se esse tapa doeu, você faz coisa pior, que é dar o
cu”. Aí eu fiquei desestabilizado. Isso foi na padaria nem a um quartei-
rão da minha escola. Eu segui em frente, encontrei meus amigos e fui
tentar entrar na escola e foi quando eu fui barrado. Eu falei “eu acabei
de ser agredido!” e a recepcionista falou “problema é seu, você não vai
entrar na escola”. Acabou que depois do período de aula, meio-dia e
meia, eu consegui conversar com alguns professores mas fora da escola.
Ontem, terça-feira [24 de fevereiro de 2015] eu fui na escola, fiz
uma reunião com o grêmio e eu pedi que o grêmio fizesse um texto em
conjunto comigo, contando tudo que aconteceu. Eu fui barrado na
escola, eu fui agredido e tem um pessoal fazendo chacota com o meu
nome. Me chamaram até de macaco, os neonazistas. Também tô recor-
rendo pra entrar com um processo contra eles novamente. A gente tá
juntando vários ‘prints’ porque a gente tem isso, já consegui com algu-
mas pessoas que me mandasse. Pedi pro grêmio que fizesse uma carta e
postasse na página oficial e postasse no mural da escola tudo o que está
acontecendo. A gente vai denunciar, vai denunciar a escola novamente

55
por um caso de homofobia, porque tá claro que eu não entrei porque eu
estava de saia. Eles falaram que eu não podia entrar porque eu estava de
saia e estava maquiado. Eu estava com rímel.
No começo, eu não consegui lidar com tudo isso. Eu não sabia que eu
era tão forte pra lidar com um mundo desabando nas minhas costas,
sabe? Porque, como eu falei no começo, só minha mãe sabia da minha
sexualidade. Depois desse processo inteiro, como a situação ficou muito
grande, minha mãe precisou falar com meu pai. Foi um atropelo imenso
na minha vida, sabe? Tipo, eu ter que me assumir pro meu pai às pressas
porque estava bombando na internet. Tem vídeo meu na Alesp, alguma
hora o caso ia aparecer. Minha sorte é que meu pai aceitou de boa. Mas
agora eu acho que eu aceito tudo isso um tanto pela minha militância.
Depois desse caso, eu conheci vários outros coletivos que me apoiaram e
participaram da manifestação. E agora eu faço parte do coletivo “RUA –
Juventude Anticapitalista”. E eu tenho muito a agradecer a eles, porque
o fato de você se organizar te dá muito mais força na luta diariamente,
saber que isso não vai acontecer só com você e, se acontecer, você tem
companheiros pra te ajudar... Eu acho que é por isso, tipo, eu estar vivo
hoje. Eu posso estar andando tranquilamente a essa hora em São Paulo,
estando escuro e, mesmo de calça, sofrer qualquer agressão do portão da
sua casa até a estação, entendeu? Eu não tinha nenhum medo de andar
na rua, tipo, do meu jeito e tal. Mas eu comecei a ficar com medo desde
a agressão de sexta-feira. Que foi sexta-feira agora. Tipo, eu não consigo
mais andar na rua sozinho. Tanto que eu pedi pra você me pegar lá
na estação [de metrô]. Não consigo mesmo. É... Parece que alguém
está me seguindo toda hora, sabe? Não tem ninguém te seguindo, mas
parece que tem alguém atrás de você, tem alguém mexendo com você e
você começa a andar rápido. É doloroso isso. Não sei até quando vai dar
mas, por enquanto, eu tô meio que em pânico de andar na rua. Eu não
contei pra minha mãe, não denunciei, sobre a agressão. Até porque, se
eu contasse pra minha mãe, eu acho que ela não deixaria eu sair de casa
nunca mais.
Eu não tenho muita bagagem pra falar sobre essa coisa de nascer gay...

56
Tipo, eu acho que é toda uma construção social, saca? Mas desde a in-
fância, tipo, eu tinha atrações por homens, por meninos da novela e tal.
Mas eu me assumi, assumi mesmo, tipo aceitei mesmo, falei assim “cara,
eu sou gay e é isso mesmo” foi quando eu tinha 16… 15 anos. Foi no
meu segundo ano que eu me assumi pros meus amigos. Eu me assumi
mas eu era mais enrustida, tipo, eu era quieto, na minha. “Eu sou gay,
mas ok.” Mas agora eu uso batom, eu passo rímel, eu ando de saia... É...
Uso peruca quando eu tenho vontade... No meu cotidiano.
Minha mãe… Ela descobriu. Eu tinha dormido e deixei o Facebook
aberto e, no mesmo dia, eu tinha me assumido pra minha amiga. Ela
leu a conversa. Ela me acordou chorando e falou que a gente ia passar
num psicólogo. A gente conversou pra caramba. Isso era muito novo
pra ela, ela pensava que ser gay era se travestir. Ela não sabia a diferença
de gay, de travesti, de transexuais, ela não sabia de nada disso. Foi muito
difícil e acredito que é até hoje. Mas hoje ela não chora mais. Porque,
antigamente, ela chorava todo dia; me olhava, conversava comigo,
minha mãe chorava. Acho que doía muito porque ela não queria falar
pra ninguém. Eu me assumi pra minha irmã. Minha irmã me apoia em
tudo que eu faço. Minha irmã sabe que eu uso saia, sabe que eu uso
vestido, sabe que eu uso batom, que eu passo maquiagem... E é super de
boa. Com todos meus primos também.
Meu pai tem 51, tipo, ele é um cara muito machista, muito homofóbico,
lesbofóbico, transfóbico, bifóbico... No dia em que minha mãe contou,
ele falou pra mim “ah, eu já sabia”. Mas é uma coisa que você sempre
vai ter que ficar reforçando, tipo “pai, eu sou gay”. Inclusive, ontem,
eu estava com uma camiseta da lei 10.948 e meu pai falou “nossa, essa
camiseta é horrorosa, pode tirar”, e eu falei “não, não vou tirar”. É um
processo que você vai... Para sua vida inteira, sabe? Eu falo que ele acei-
tou “de boa” porque não rolou nenhuma agressão, ele não me expulsou
de casa... Mas, até hoje, meu pai nunca conversou comigo sobre eu
ser gay. Mas, é... [pequena pausa] Eu acredito que é uma coisa que
eu vou ter que ficar reforçando pro resto da minha vida. “Pai, eu sou
gay, vou namorar com homem.” Eu acredito que, quando eu começar

57
a namorar e, tipo, monogamicamente, quiser apresentar meu parceiro
pro meu pai, pra minha família, eu vou ter que me assumir novamente,
porque parece que eles estão se desligando, sabe? É difícil isso.
[Você é muito jovem, tudo é muito recente. Como é o pro-
cesso de enfrentamento e superação, uma vez que basica-
mente você se organiza psicologicamente sozinho? De onde
vêm seus recursos psíquicos? A motivação?]
[Victor] É... Nossa... É muito difícil falar sobre isso, sabe? Eu acho que
o que mais me motiva é ver umas referências que eu tenho na inter-
net, Daniela Andrade, Maria Clara, que são travestis, a Sofia, Amanda
Paglia, postando vários textos de motivações. Não só motivações e, sim,
expondo mesmo a realidade das transexuais, mas não só das transexuais
como também outros gays que eu acompanho na internet. Você vendo
essas coisas, vendo o que eles estão passando. E você estando na rua
também lutando... Agora a gente vai ter um ato. Meu coletivo também
constrói a “Revolta da Lâmpada” [ato-manisfesto criado por múl-
tiplos ativistas tendo como símbolo a lâmpada, em referên-
cia ao grupo de pessoas agredido com lâmpadas fluorescen-
tes em São Paulo, em 2010. Motivação do crime: homofobia.
O ato conclama a liberdade dos corpos, pela igualdade racial
e de gênero]. Também vamos ter outro, o “Passaço de Cadáver do
Eduardo Cunha” [ato em repúdio ao presidente da Câmara
Eduardo Cunha, após afirmar que a pauta da legalização do
aborto só passaria sobre o seu cadáver]. Esses e outros atos,
vendo essas coisas, indo pra rua lutar… Cara, tem muita pessoa lutan-
do aqui. Claro que tem um dia que você cansa. Desmotiva. Sempre
mexeram comigo na rua mas eu nunca mostrei o dedo, nunca fiz nada,
eu sempre segui. Esse dia, justo esse dia que eu mostrei o dedo, eu fui
agredido. Parece que as pessoas acham que têm o direito de mexer com
você. E, se você fala “cara, não tá legal”, elas acham que têm o direito de
te bater, ainda, porque você tá falando que não tá legal. É... É doloroso,
mas é uma coisa que... Não tenho uma opinião formada de como eu
convivo até hoje lutando [pausa]. Sabendo que tem gente que está pior

58
que eu, tem travestis que estão morrendo todo dia porque a vida delas é
muito mais difícil do que a minha... É mais isso, saca?
Essa militância veio em decorrência do meu caso. E isso é parte da
minha vida hoje. Eu não tenho planos formados pra minha vida, sabe?
Eu posso falar uma coisa hoje e amanhã ser totalmente diferente. E
falar “nossa, nem faz sentido o que eu falei ontem”. Eu passei pra Unila,
em Antropologia. Mas eu escolhi ficar. Pra este ano, por enquanto, pra
esta semana, eu falo que meu plano é entrar no cursinho popular, me
dedicar ao máximo e conseguir passar em pedagogia na USP porque eu
quero muito trabalhar com educação infantil. E continuar na militân-
cia, continuar fazendo as coisas que eu faço dentro do meu coletivo.

[anexo – Carta da Professora Talita Jacobelis aos demais


professores da escola]
Caros colegas professores,
Como é de conhecimento da maioria de vocês, no último dia 11 de junho
aconteceu um Ato pelo Fim da Homofobia nas Escolas de Barueri (ITBs),
que saiu da frente da nossa escola e caminhou até a Prefeitura Municipal e
depois até a Câmara Municipal. O ato ocorreu devido a um caso que
aconteceu dentro da nossa escola, com um aluno de edificações, o Victor
Pereira. A direção da escola já expôs o ponto de vista perante os professores
em duas ocasiões, uma vez no dia 10 de junho pela manhã e outra vez no
dia 11 durante a realização do Ato. Não estive presente em nenhuma das
duas vezes porque não fui avisada que essas reuniões aconteceriam. No
entanto sou professora da escola e estou pessoalmente envolvida nessa questão
e gostaria de contar a todos um outro ponto de vista: o meu. Tudo começou
com vários insultos pichados nas portas do banheiro masculino de alunos da
escola, chamando o Victor de “bicha”, “chupa rola”, dizendo que ele fazia
programa e colocando o número do celular dele. Quando o Victor viu as
pichações, a primeira reação foi riscar o número de seu próprio celular e
procurar ajuda. Ele me procurou, perguntando o que fazer. Orientei-o a

59
procurar a orientação pedagógica da escola. Ao procurar a orientação
pedagógica e apresentar as fotos das pichações, a orientação pedagógica o
responsabilizou pelo ataque, dizendo que a sua sexualidade ofendia a
sexualidade dos demais colegas da escola e que ele não ficava bem usando
batom. Aqui faço uma pausa no relato pra fazer duas considerações:
primeiro chamo-os a atentar para a culpabilização da vítima. O aluno teve
seu nome e seu celular pessoal exposto mediante uma série de acusações e
xingamentos. Em nenhuma hipótese ele poderia ser responsabilizado por
isso. Segundo que não cabe a nenhum de nós, profissionais da educação,
julgar o que fica bem e o que não fica bem a qualquer pessoa. O aluno
estava usando o uniforme escolar e assim como várias colegas, usava batom.
Voltei a ser procurada pelo aluno e o orientei então a procurar a direção da
escola para pedir providências quanto às pichações. Em conversa com a
diretora o estudante ouviu que ele não se porta adequadamente dentro da
escola e que dentro da escola é proibido o uso de batom por pessoas do sexo
masculino. O que fere diretamente a Lei nº10.948/01, Art. 2º, inciso VIII,
conforme colagem abaixo: Lei nº 10.948 de 05 de Novembro de 2001 Dispõe
sobre as penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em razão
de orientação sexual e dá outras providências. Artigo 2º – Consideram-se
atos atentatórios e discriminatórios dos direitos individuais e coletivos dos
cidadãos homossexuais, bissexuais ou transgêneros, para os efeitos desta lei:
VIII – proibir a livre expressão e manifestação de afetividade, sendo estas
expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos. A direção
também alertou ao aluno que este somente poderia fazer uso de batom caso
um responsável o autorizasse a fazê-lo, o que legalmente não faz o menor
sentido. O estudante pediu à direção um tempo para falar com os pais, pedi-
do esse aceito pela direção. Diante da pressão que o aluno sofreu por ter seu
direito de usar o batom na escola vetado, o Victor e seus colegas organizaram
um batonzaço, que seria uma manifestação pacífica dentro da escola, onde
os alunos que quisessem, meninos e meninas, escolheriam um dia e viriam
todos de batom vermelho à escola, em manifestação de apoio ao Victor e
num chamado pacifista por respeito à diversidade. A divulgação do
batonzaço incitou um grupo de alunos, que se auto intitulam neonazistas, a

60
fazer uma encenação no corredor da escola. Um deles passou batom e outros
seis alunos encenaram pontapés e agressões verbais ao aluno que estava de
batom. O fato chegou ao conhecimento da direção, que para evitar conflitos,
proibiu o batonzaço. Ora veja, mais uma vez paro o relato para uma
consideração: havia duas ações possíveis, uma que seria repreender os alunos
que fizeram a ameaça clara à integridade física do Victor, e outra que seria
proibir a manifestação de defesa programada dos alunos. A escola negligen-
ciou a segurança do garoto alvo e optou por não advertir os alunos agressores
e sim por inibir a ação de defesa da vítima. Para proibir o batonzaço, a
direção da escola me chamou e me solicitou, numa sexta feira, às duas da
tarde, véspera do dia das mães, que eu desmobilizasse o batonzaço marcado
pra segunda feira seguinte. Fiquei num dilema entre as minhas convicções
morais: atender ao que minha chefia me solicitava, que em certo sentido é
meu dever, mas o que me pedia extrapolava minhas funções como professora;
ou não atender, já que julgava que a direção havia tomado a decisão
estratégica equivocada, sob uma justificativa legítima, opinião que,
inclusive, manifestei em nossa conversa. Decidi alertar aos alunos, pelo
menos àqueles dos quais eu tinha algum contato, de que a direção prometeu
punições a todos os que usassem batom na segunda feira. Alguns alunos me
questionaram: “Professora, mas isso está certo? Ela pode fazer isso?”, ao que
respondi: “Não sei. Acho que não. Mas vocês terão que tomar suas próprias
decisões”. A direção da escola chamou a mãe do Victor e fez um documento
no qual está escrito que a mãe o proíbe de usar batom no ambiente escolar.
A cópia do documento não foi entregue à mãe do garoto. Foi a própria
diretora que contou à mãe do menino que ele usava batom, pois ela não
sabia. Nesse dia, 7 de maio, recebi uma mensagem do Victor, às 23h29,
desesperada. Passei uma madrugada falando com ele e tentando ser o
suporte que ele precisava. O menino estava desamparado. E ele é apenas um
menino, de 17 anos. Não poderia expressar melhor que ele próprio o que se
passou com ele, qual foi o tamanho do impacto que essa sequência de fatos
causou na vida dele. Transcrevo abaixo apenas uma das mensagens que
recebi dele, talvez a mais comovente de todas: “Professora, meu coração dói
tanto, eu estou tão angustiado, desamparado e não consigo parar de chorar.

61
Dona Rita acabou com a minha vida, ela disse que iria me dar tempo para
falar com a minha mãe, aí eu falei que tinha algo para falar com a minha
mãe, mas quando ela ficou sabendo do batonzaço ela logo correu e ligou
para minha mãe convocando ela na escola, ela disse tudo para a minha
mãe, coisas que minha mãe deveria ter ouvido por mim, mas ela não me
deu esse tempo. Eu estou arrasado e minha mãe nem se fale. Meus manifes-
tos podem não dar certo agora, mas isso eu sempre soube que pedras estarão
no caminho e eu vou conseguir passar por cima disso. Enquanto eu estiver
vivo, lutarei por todos homossexuais mortos por homofóbicos, por serem
simplesmente diferente do padrão que a sociedade impõe. Hoje mesmo eu
decidi tirar a minha vida, mas sei que isso não iria resolver em nada. Eu
não sei o que faço, minha vida está em um total inferno. Me ajuda, eu
preciso de você mais do que nunca, fique do meu lado, eu realmente não sei
o que faço. Está doendo tanto ver a minha mãe desesperada, e eu não paro
de chorar. Professora, me perdoe, eu sei que a senhora tem os seus filhos, a
sua vida, seu trabalho. Me desculpe se estou te incomodando, mas estou
perdido nessa.” O grupo que se diz neonazista se fortalece entre os alunos e o
Victor passa a se sentir acuado dentro da escola. Ele fica com medo de
chegar na escola, de sair da escola, de andar nos corredores. Ele me pede
ajuda pra procurar alguém de fora da escola que possa auxiliá-lo, já que
dentro da escola ele não encontrou respaldo. Comecei a busca, mas ele foi
mais bem sucedido que eu. Encontrou um coletivo de juventude anticapita-
lista chamado RUA, formado por estudantes de várias universidades, que
tem um grupo cujo projeto é o combate à homofobia dentro das escolas
públicas do estado de São Paulo. A pedido do Victor, participei da primeira
reunião entre ele, o coletivo e outro estudante da escola. Esse coletivo e
alguns alunos da escola organizaram o ato que aconteceu no dia 11 de
junho. Eu apoio integralmente o Ato. Participei do Ato. Divulguei o Ato no
Facebook. Porque acima de tudo, eu apoio o Victor. E meu apoio a ele não é
maternal, afinal é a mãe que exerce, muito bem, esse papel. Também não é
um coleguismo, visto que não sou aluna da escola e nem colega dele. Meu
apoio é como educadora, pois esse apoio é uma das responsabilidades que
assumimos quando assumimos a docência, segundo a própria LDB delibera

62
em seu Art. 13, inciso VI: LDBE – Lei nº 9.394 de 20 de Dezembro de 1996
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Art. 13. Os docentes
incumbir-se-ão de: VI – colaborar com as atividades de articulação da
escola com as famílias e a comunidade. Entendo que as atitudes da direção
da escola foram atos de boa fé, tentando minimizar conflitos e manter a
escola como um ambiente harmônico e seguro. Entretanto, como já expus
anteriormente, acredito que a estratégia de ação enquanto gestão da escola
pública tenha sido equivocada por colocar as convicções pessoais acima das
determinações legais e do respeito à diversidade. A família do Victor, na
figura de sua mãe, procurou, por orientação do coletivo RUA, a coordenado-
ria de diversidade sexual do município de Barueri. A coordenadoria
atendeu prontamente ao caso do Victor, encaminhando-o aos serviços sociais
competentes e chamou a direção da escola, que compareceu à mesma
coordenadoria na segunda feira dia 09 de junho. A mãe do Victor solicitou à
coordenadoria uma reunião conciliatória, onde as duas partes pudessem
expor seus pontos, reunião essa agendada para a última segunda feira dia 16
de junho às 14:00h. Compareci, a pedido do Victor e de sua mãe a essa
reunião, bem como outros estudantes da escola, o coletivo RUA e o coletivo
JUNTOS. Além de nós estava também o Conselheiro Estadual de direitos
LGBTT, o blog “Me representa” e a revista eletrônica “Brasil de Fato”. A
direção da escola, convidada para a reunião e com presença confirmada não
compareceu à reunião. Nem nenhum representante da FIEB, cujo próprio
superintendente, Prof. Agnério, havia confirmado presença. Anunciaram
que não compareceriam por telefone e trinta minutos após o início da
reunião. A ausência da diretoria e da FIEB na reunião demonstra o descaso
da instituição com o aluno, com a família e com a própria coordenadoria de
diversidade sexual do município. Outro Ato está previsto para dia 25
próximo, em frente à escola. A intenção do próximo Ato é conseguir
estabelecer um diálogo com a direção da escola. Participarei desse novo ato
como continuidade de meu apoio à causa do respeito à diversidade e da
conquista dos espaços democráticos através do diálogo. Faço parte do grupo
de docentes dessa escola, gosto de ser professora, é um grande prazer ser
educadora, ainda mais de uma instituição tão renomada! E não abro mão

63
de ser docente, de participar da vida docente e das decisões que envolvem a
escola e também de participar da educação ética e profissional dos nossos
alunos. Também não abro mão das minhas convicções morais e políticas, em
defesa principalmente do respeito à dignidade humana e ao direito à
igualdade realmente democrática.
Grande abraço a tod@s,
Profª Talita Jacobelis.

64
GABRIEL DA SILVA CRUZ e JONATHAN FAVARI
depoimento em 17 de maio de 2015

Escolhi não virar estatística, escolhi não ser um número, mas uma voz
contra essa luta. A homofobia não é um fantasma impalpável que paira
pela sociedade. Ela tem nome, rosto e endereço.
Ela tem corpo, tem punhos e tem cara. Ela acontece.
Gabriel da Silva Cruz.

[Gabriel] Foi do dia 2 para o dia 3 de agosto de 2014, às quatro da ma-


nhã. Vai fazer um ano. Foi no Sukiya Augusta, na rua Augusta, 974. É
uma franquia. Um fast food de comida japonesa. Estava bem movimen-
tado, era um sábado pra domingo.
[Jonathan] A gente estava na Augusta, num aniversário, num bar-
zinho. Beleza, acabou e a gente saiu para comer. Nisso, a gente parou
nesse restaurante japonês. E a gente estava sem grandes alardes. A gente
estava conversando mesmo. Eu levantei e dei um selinho no Bito [Ga-
briel] porque eu estava indo pro banheiro. Daí na hora que eu estava
no banheiro eles falaram com você, né?
[Gabriel] É, quando o Jow [Jonathan] me deixou sozinho na mesa,
no que eu me vi sozinho, fui rodeado por um segurança e um garçom.
O segurança eu não sabia que era segurança pois ele estava à paisana.
Mas o garçom estava uniformizado. E eles começaram a proferir uma
série de barbaridades. “Vocês não podem fazer isso aqui; isso é um
ambiente de família; tem uma criança ali do lado; como vou explicar
para a criança; isso aqui não é uma balada; na casa de vocês pode fazer o
que vocês quiserem; mas aqui não é uma balada; aqui é um restaurante;
se fosse um casal hétero a gente ia tá fazendo a mesma coisa, porque na
semana passada a gente teve que arrancar um casal hétero porque estava
trepando no banheiro.” Como se fossem coisas comparáveis. E ele pediu

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“desculpa pelo inconveniente”. O que foi o auge do cinismo! E eu falei,
“não desculpo. Não. Não tô fazendo nada de errado. Você vem me im-
portunar, me recriminar, me repreender por uma coisa que não é nada
de errado? Não desculpo não”. Ele falou: “Ah, tá bom, então. Depois
não reclama”. E daí quando o Jonathan voltou pra mesa eu falei, “olha o
garçom e aquele rapaz vieram reclamar porque nós demos um selinho”.
Eu expliquei brevemente. O Jonathan já levantou e falou: “ah é? Vou lá
falar com eles”. E nisso eu fui no banheiro.
[Jonathan] Aí o garçom começou a discutir comigo, me pegou pelo
braço e começou a me levar pra fora, me puxar para fora do restaurante.
Enquanto você chegou a falar com a família, não é isso?
[Gabriel] É. Quando eu saí do banheiro, no meu caminho estava a
família que supostamente estava incomodada, que era a única família
que tinha criança ali. Aí eu pedi licença, abordei eles e falei: “o beijo que
eu dei no meu namorado incomodou vocês de alguma maneira?”. E o
pai: “Não! De maneira nenhuma, nem se as crianças tivessem visto não
teria sido problema nenhum”.
[Jonathan] E, porque eles estão na Augusta, é um coisa comum. É um
espaço comum.
[Gabriel] E o pai foi superbem. “Vou reclamar do quê? Não foi a gente
que reclamou não.” Eles eram a única família.
[Jonathan] Nisso, ele [o garçom] estava me puxando, eu parei e
comecei a discutir com ele. “A gente não está fazendo nada errado, você
não pode fazer isso.” E ele me segurando. Então eu puxei, tirei meu
braço da mão dele. E perguntei pra ele: “E se fosse um casal hétero que
tivesse se beijando, você estaria fazendo isso?”. Foi aí que deixou ele sem
palavras. E a resposta dele a isso foi um soco em mim.
[Gabriel] Calma, calma, eu falei pro garçom. “Olha, a família ali que,
supostamente, está incomodada… Ninguém falou nada. O problema
é de vocês mesmo. Ninguém reclamou. É preconceito de vocês.” E daí
o Jonathan falou: “É? Ninguém reclamou?”. E me beijou de novo. E o
garçom considerou isso uma afronta sem tamanho, pegou a gente pelo

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braço e começou a levar a gente pra fora na força. A gente se desven-
cilhou do braço dele mais uma vez e foi aí que ele começou a bater
no Jonathan. Foram uns três bons socos na cara. Foi na cara direto. O
pai da família que estava do outro lado do restaurante saiu correndo
pra segurar o garçom. Eu tive que segurar ele também. E na hora eu já
peguei o telefone para ligar para a polícia. Fui para a porta do restauran-
te. Quando eu voltei estava o Jonathan lavado de sangue, o chão lavado
de sangue, o nariz sangrando, o supercílio cortado. E o garçom sumiu.
Sumiram com ele. Enquanto a gente esperava a viatura da polícia, no
restaurante, o segurança – que neste momento se identificou como
segurança – ele ameaçou a gente. Começou a discutir de novo. Eu falei:
“A gente conversou com o pai da criança e não tem problema nenhum
pra eles. O preconceito é de vocês mesmo”. Ele falou a seguinte frase
que nunca vai sair da minha cabeça: “Cê vai querer falar de preconceito
comigo moleque? Já tirei sangue dele para tirar de você não custa nada”.
[Jonathan] Depois que aconteceu tudo isso eles estavam desesperados
pra que a gente saísse do restaurante. E a gente bateu o pé e falou, “não,
a gente não vai sair, a gente vai esperar a polícia aqui”.
[Gabriel] Nisso veio uma moça ajudar a gente. E a gente não sabe
quem é. Uma cliente. Ninguém do restaurante prestou nenhum tipo de
socorro. Nenhum tipo de ajuda.
[Jonathan] Surgiu um gelo. Então deve ter vindo da cozinha.
[Gabriel] Mas não apareceu gerente, não apareceu chefe de nada. Não
apareceu ninguém pra saber o que estava acontecendo. A muito custo
foi feito um BO. Chegou a polícia. E a todo momento eles tentavam
dissuadir a gente de fazer o BO. Falavam, “não, imagina vocês vão pra
delegacia, vai ficar lá até de tarde, não vai valer a pena. Aproveita que
você está na Augusta e vai tomar uma cerveja. Ainda dá pra você entrar
numa balada”. E o Jow com o nariz quebrado, sangrando. Cheio de
sangue. E o policial, “vai pegar uma balada, ainda dá tempo de vocês se
divertirem. Faz um acordo com o cara aí. Deixa ele voltar pro trabalho
dele. Vai tirar ele do trabalho pra levar ele pra delegacia?”. Muitas vezes

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eles falaram isso. Eram dois policiais. Depois chegou um superior a eles
que estava fazendo uma ronda por ali. E também com a mesma história.
Por fim, a gente foi pra delegacia todo mundo no mesmo carro.
[Jonathan] Ombro a ombro com o agressor.
[Gabriel] Ombro a ombro. Nós três. O segurança não porque como
ele estava à paisana a gente entendeu que ele recebeu ordens para fingir
que não estava ali. Porque ele também sumiu em algum momento. O
restaurante tinha outros garçons mas eles continuaram atendendo como
se nada estivesse acontecendo. Como se não tivesse uma pessoa sangran-
do ali. O nome do garçom?
[Gabriel e Jonathan em uníssono] Mady [Mady Haygert].
[Gabriel, bem irônico] Fomos num clima muito agradável de paz,
amor e união, os três para a delegacia, sem falar nada. E na delegacia
começou a acontecer uma sucessão de coisas esquisitas. Foi no 7o DP, na
Estados Unidos [rua Estados Unidos, Jardins].
[Jonathan] A delegacia estava vazia.
[Gabriel] Na hora de preencher o BO, o garçom não tinha documen-
tos. E não lembrava o documento dele. Ninguém achou isso esquisito.
Ele não lembrava o endereço dele. Ele falou, “ah… Acabei de mudar, eu
não sei meu endereço…” “ah, eu não tenho telefone”… Daí puseram o
endereço e telefone do restaurante. Eu tenho a impressão que ele estava
recebendo ordens de cima porque ele estava no celular o tempo inteiro.
Devia ter um gerente, algum responsável do restaurante falando com
ele. E ninguém questionava isso. Ele fala no celular mas ele não sabe o
número dele. E ninguém achou esquisito. Ele fez até uma ceninha assim
uma hora: “ai, eu não sei meu endereço, deixa eu ver no mapa… Ah, eu
moro por aqui”, apontando num mapa. E está lá no BO o endereço e o
telefone do Jonathan. Sendo que o garçom tem uma cópia do BO.
[Jonathan] Ele tem meu número de documento, meu número de
celular, meu endereço. Ele tem tudo. E eu não sei nada dele.
[Gabriel] Uma bizarrice. Na hora de redigir o depoimento foi muito
esquisito porque a gente estava falando na frente dele, sabe? Nem reser-

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varam um espaço pra gente nem pra ele. Ele redigiu o depoimento dele.
E a gente falou, o policial redigiu e a gente assinou. Era muito claro
a tomada de posição da polícia. E ele alegando legítima defesa a todo
tempo. Ele falou que o Jonathan começou a confusão, que o Jonathan
bateu nele primeiro. E que ele só se defendeu. E todo mundo compran-
do essa ideia. Na hora de falar as versões pro delegado o policial falava
assim: “este garçom que estava trabalhando”, dando a maior ênfase para
a história dele, “ele alega legítima defesa. E eles estavam jantando e co-
meçaram a arrumar confusão, ele pediu para sair gentilmente, e eles não
saíram”. E do outro lado: “esses aí falaram que apanharam do garçom
porque estavam se beijando”. Era uma tomada de decisão muito clara e
muito revoltante porque a gente estava lá, abalados, precisando de aju-
da, não sabíamos o procedimento legal, era uma coisa que a gente não
tinha conhecimento e ninguém disposto a ajudar a gente. Ninguém.
[Jonathan] A gente chegou e ficou cinco horas esperando para come-
çar a fazer o boletim. Sendo que a delegacia estava vazia, não tinha nada
ali pra se resolver.
[Gabriel] A gente chegou às cinco e saiu quase meio-dia.
[Jonathan] Enquanto isso, nesse período vieram falar com a gente
umas três ou quatro vezes. Explicando que a gente poderia fazer o bo-
letim por internet, que não valia a pena, se a gente tinha certeza que ia
fazer o boletim, que não ia dar em nada…
[Gabriel] Que no final das contas ele ia pagar um cesta básica. “Não
vai dar em nada, vocês vão perder o tempo de vocês aqui”, a todo mo-
mento vinham com essa ideia de dissuadir a gente.
[Jonathan] Chegou num ponto que eu comecei a gravar o que o poli-
cial falava, porque ele falava de uma maneira para confundir a gente. Ele
falava, falava, falava e a gente não entendia o que ele estava querendo
dizer. Por que não valia a pena? E ele falava qualquer coisa, mil palavras,
dava a volta e não explicava nada.
[Gabriel] E era o mesmo policial que levou a gente. Ele que serviu
de testemunha e assinou o BO. Nesse meio-tempo que a gente estava

69
na delegacia, tinha uma moça esperando também. Ela queria fazer um
outro BO. E tudo na mesma sala de espera. Ela ouviu o que estava
acontecendo e começou a conversar com a gente. Chegou um mo-
mento que o escrivão veio conversar com gente e ela bancou a briga
assim: “Mas homofobia é crime. Eles apanharam por homofobia!”. E o
escrivão responde: “não, homofobia não é crime, não tem o que fazer, é
lesão corporal leve, e o cara vai pagar uma cesta básica”.
[Jonathan] Se pagar…
[silêncio]
[Gabriel] E o garçom continuava ali com a gente a todo momento.
Ele dizia que também ia fazer um corpo de delito pra alegar que ele não
tinha batido, porque se ele tivesse batido ia ter provas na mão dele.
[Jonathan] Saímos da delegacia e fomos direto fazer corpo de delito,
no IML das clínicas. A gente fez tudo que podia fazer. A gente fez de
imediato pra resolver. Bom, o nariz quebrou, começou a sangrar um
monte, e eu mesmo coloquei no lugar na hora que eu estava no restau-
rante. Porque é o procedimento. Se você não conserta o nariz na hora
ele começa a calcificar torto. E como eu sabia como consertar eu colo-
quei na hora. Depois, bem depois, eu fui passar num médico porque
doía. Fui tirar um raio X e ver como estava mesmo. O olho, na hora, no
dia, estava um pouco inchado, depois ele foi ficando roxo. Então, assim,
de prontidão não tinha muito o que fazer. Foi só o nariz que eu conser-
tei, parou de sangrar e ficou tudo bem. Depois é que foram aparecendo
os hematomas. O olho esquerdo ficou gigantesco, roxo e dentro ficou
puro sangue por causa do derrame. Mas na hora não tinha muito o que
fazer. Eu fui avisar minha família só depois quando eu cheguei em Jun-
diaí. Eu não pensava em ligar e falar que tinha acontecido um problema
senão eles iam ficar desesperados.
[Gabriel] Eu só avisei, “olha não vou chegar em casa porque deu um
problema”. Quando eu cheguei, expliquei o que tinha acontecido. O
meu pai foi extremamente sensível.Na verdade eu tive condição emocio-
nal de contar a história pra ele uns dias depois. E ele me deu apoio total

70
e absoluto. Ele falou: “olha, se você precisar voltar na delegacia eu vou
com você. Se precisar reunião com advogado, eu vou com você. Eu tô
aqui pra o que você precisar”. Foi um apoio muito importante. Minha
mãe morando no interior, ela ficou muitíssimo assustada. Porque ela já
morou em São Paulo muito tempo. Ela tem essa ideia de que São Paulo
é muitíssimo violenta e que, enfim, eu vou morrer a qualquer momento
se eu puser o pé pra fora de casa. Então ela ficou assustadíssima. “O que
você estava fazendo na Augusta? Não saia de casa. Não dê pinta.”
[Jonathan] Em casa eu cheguei e contei pra minha mãe e… [silên-
cio] E nada! [risos] Nada. Meu pai ficou um pouco chateado mas ele
dizia que... Como ele dizia? Que eu tinha meio que cuidar dele. Mas,
poxa, eu acabei de ser agredido! Quem tem que ser cuidado sou eu!
Quem quer um colo sou eu! Por favor, né? Me chame, pergunte se está
tudo bem. E ele esperava que eu perguntasse, que eu ficasse em cima
dele, “viu, está tudo bem a família saber? Por que agora está saindo na
internet”. Ele queria que eu cuidasse dele nesse sentido. E eu tava sem
condição nenhuma. Imagina, a gente [o casal] ficou com a relação
afetada por, sei lá, umas três semanas.
[Gabriel] Porque é um negócio tão fora da realidade. É tão absurdo.
Primeiro você não entende nada do que está acontecendo. Teve uns dois
segundos, sei lá, que eu estava no restaurante, vendo ele apanhando e
pensei “não, isso não é verdade. Isso é um filme. Eu vou acordar”, sabe?
E é uma pressão psicológica tão grande que, se você se descuidar por um
segundo, você acha que você está errado.
[Jonathan] É… Eu perguntei várias vezes pra você na delegacia, “mas
eu fiz alguma coisa? Fui eu que comecei?”. Porque, inclusive, eu tive
um lapso de memória, assim, o Bito que foi me conduzindo. Daí eu
perguntava pra ele, “eu fiz alguma coisa?”. Porque é muito confuso.
[Gabriel] É um choque tão grande que a gente não consegue assimilar.
E o que a gente assimila são as pessoas – na situação – dizendo que a
gente estava errado, que ele começou. Você começa a duvidar da sua
própria versão, sabe? É supermaluco. Eu tinha certeza absoluta de que

71
eu estava certo de que eu não estava errado. Mas era tanta informação
e um impacto emocional tão grande que eu me duvidava. E isso é um
sentimento horrível, horrível. Horrível. Porque eu comecei a ficar com
receio de demonstrar afeto com ele. Dentro de casa. Por que se isso foi
condenado e foi errado uma vez por que não seria de novo? E de novo.
E de novo. E de novo. Eu sempre fui muito tranquilo em relação a isso.
Eu sempre andei de mãos dadas na rua, sempre beijei na rua. Nunca
tive nenhum problema com isso. E, depois, eu entrei num estado de
alarme que me preocupou muito. Porque eu nunca fui assim. Eu via as
pessoas como agressores em potencial. Eu andava na rua sozinho, eu
andava com ele eu falava “eu, a qualquer momento, posso ser agredido
pelas costas. Podem me dar um chute na cabeça”. Por que entra na tua
cabeça de um jeito muito complexo.
[Jonathan] Por algumas semanas até o contato físico era esquisito.
[Gabriel] Superesquisito.
[Jonathan] Super, super… A gente não conseguia…
[Gabriel] A gente ficava se medindo.
[Jonathan] Por mais que a gente estivesse demonstrando carinho
parecia que qualquer coisa ia machucar, parecia que qualquer coisa era
agressão. Então, rolou um receio. Foi um período. Mas a gente se man-
teve juntos, se falando todo dia. Porque foi difícil. Como era um coisa
muito forte e muito recente, a qualquer momento a gente ia acabar
caindo nessa história e acabar contando isso pras pessoas. Então, a gente
combinou.
[Gabriel] Vamos pôr um limite.
[Jonathan] Só no caso de alguém perguntar a gente conta rapidinho
dependendo de como for. Porque senão isso toma conta da vida e só se
fala disso, o tempo todo.
[Gabriel] Vai sendo dominado por isso.
[Jonathan] Porque este medo em potencial ainda é presente.
[Gabriel] Ele é. Muda a relação com o espaço.

72
[Jonathan] Não sei se você reparou ontem, que a gente estava andan-
do de mãos dadas e eu até dei uma olhada pra trás. Eu sempre dou uma
conferida, fica assim, meio psicopata.
[Gabriel] Fica armado.
[Jonathan] Porque é isso, você pensa que qualquer pessoa é um
agressivo em potencial. É claro que agora a gente anda já sabendo disso.
Já aconteceram outros casos de as pessoas virem abordar a gente, então
a gente já sabe lidar com isso. Mas rola uma atenção de estar em volta e
saber se proteger.
[Gabriel] Nos primeiro dias a minha primeira reação foi a de tentar
esquecer. Tipo, amanhã eu preciso trabalhar, eu preciso acordar e estar
bem. Então abafa. Mas é impossível. É impossível. Eu tava dando aula
com um monte de criança fazendo a minha alegria e pá! Não! Calma!
Não! Calma. E isso faz parte do processo de entender o que aconteceu.
[Jonathan] Eu lembro que no começo também a gente se falava
bastante por telefone. E a gente conversava à noite. No começo a gente
reclamava muito. Um reclamava muito pro outro de tudo o que estava
acontecendo e isso foi uma coisa que a gente podou.
[Gabriel] Vamos cuidar da gente.
[Jonathan] É vamos cuidar da gente porque se a gente ficar recla-
mando a nossa relação vai ficar em função da agressão. Então vamos
contando as coisas boas e engraçadas também.
[Gabriel] Mas foi um processo demorado se desvincular… A gente
ainda está vinculado a isso de alguma maneira.
[Jonathan] Vai estar sempre.
[Gabriel] Eu acordava desesperado de madrugada e ligava pra ele pra
saber se estava tudo bem. Foi um processo consideravelmente extenso e
complicado. Alguns meses… mais do que semanas.
[Jonathan] A gente se conhece há muitos anos. Cinco anos.
[Gabriel] E estamos juntos há um ano e cinco meses. Mas na ocasião
nós estávamos namorando fazia uns quatro meses.

73
[Jonathan] Olha, depois que aconteceu isso a gente acabou tomando
muito mais consciência. A gente já tinha consciência do preconceito.
Mas a gente acabou indo atrás, acabou sabendo do movimento, como
lidar com o preconceito [pausa]. Revolta? Com relação ao agressor,
ao Mady, não sei se rola. Acho que não. Dele em si, não. Mas eu tenho
uma revolta, uma raiva do que ele representa. Uma classe homofóbica,
rola uma revolta contra essa classe. De querer mudar essas pessoas, sabe?
Querer que essas pessoas percebam.
[Gabriel] Toda vez eu que eu passo na Augusta é um quadro que vem à
cabeça assim ó… [um tapa sonoro na própria testa] Colado!
[Jonathan] E dá uma raiva saber que ele continua trabalhando lá.
[Gabriel] Ele continua trabalhando lá.
[Jonathan] Nada foi feito.
[Gabriel] Ele só foi transferido de unidade. Mas ele trabalha na rede
ainda.
[Jonathan] Então, o que essa empresa busca? Pra eles, tanto faz o que
aconteceu. O que deixa de acontecer. Eles chegarem a chamar a gente
pra dar palestras para os funcionários.
[Gabriel] Porque a gente foi na Secretaria de Direitos Humanos. Por
que alguém fez uma denúncia, recorrendo à lei 10.948. E por causa disso
eles investigaram o restaurante e chamaram a gente pra conversar. Eu fui
pra uma reunião com a Heloísa Alves [coordenadora] e ela explicou:
“a gente está chamando vocês aqui pra ouvir a versão. Porque a gente
chamou eles. Eles foram denunciados e a versão deles não colou. Eu es-
tou aqui pra ouvir vocês”. E, por conta dessa denúncia, a SDH obrigou
eles a passarem um treinamento pros funcionários como uma primeira
ação – não punitiva – mas educativa. E eles chamaram a gente pra dar
esse treinamento [riso]. Pra conversar com eles. E nós não fomos.
[Jonathan] A gente não tem nem formação pra isso. E não tinha
condições. Não tinha clima. Como assim, eu estava com um olho roxo,

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todo vermelho. E ia dar uma palestra para o meu agressor? Não. Não
fazia sentido. Tem mil outras pessoas muito mais bem preparadas que a
gente pra falar sobre isso.
[Gabriel] Parecia muito que eles estavam querendo limpar a barra
deles, sabe? “A gente é bonzinho com vocês. Vem aqui ajudar a gente a
ser bonzinho.”
[Jonathan] Muitas pessoas falaram que eu deveria ter ido lá, agredir o
garçom. Não rola um desejo de fazer o que fizeram comigo, não. Pelo
contrário, porque senão é o oprimido virando opressor e isso não vai
resolver nunca. O desejo é que as pessoas tenham consciência de não
fazer isso, sabe, de não sair dando soco na cara das pessoas.
[Gabriel] É bizarro que tenha que ter uma palestra que alguém fale
para os funcionários de um restaurante: “não batam nos gays”. É bizarro
isso. Mas enquanto isso for necessário a gente tem que batalhar por isso.
Por isso que eu acho que educar é importante, não só punir [pausa]. A
partir desse episódio a gente teve contato com muita gente da militân-
cia, com muita gente do meio, de vários movimentos, de várias ONGs.
Eu conheci um grupo de pessoas e a gente elaborou um projeto juntos.
Porque a partir disso eu fui incluso num grupo do Facebook que tem
mais de 8 mil pessoas e toda semana aparecia alguém que foi expulso
de casa, que saiu do armário, que a mãe brigou, que o pai expulsou,
que levou no pastor, enfim… E a partir disso a gente se juntou para
fundar uma ONG que visa, abre aspas, “amparar, acolher e capacitar
indivíduos LGBTs em situação de vulnerabilidade social”, fecha aspas. É
um texto decorado! [riso] Desde agosto do ano passado [2014] a gente
está trabalhando para legalização dessa ONG, que se chama “Proje-
to Ninho”. E nossa ideia é ter uma sede, uma casa que a gente possa
fazer o primeiro acolhimento da pessoa que foi expulsa ou que sofreu
qualquer tipo de agressão e dar encaminhamento psicológico, jurídico e
profissional. Porque vai interessar pra essa pessoa sair de casa e se ela não
tiver capacitação não tem como arranjar um trabalho. Não só de pessoas
gays, mas de trans, de bissexuais, LGBT inteiro. E fazer parcerias com

75
empresas que contratem esse público. A gente está em processo de lega-
lização ainda. A gente está juntando a documentação pra abrir o CNPJ
da ONG. Num primeiro momento terá uma unidade aqui na cidade de
São Paulo. A gente tem contato com o Brasil inteiro. Tem dois mem-
bros bastante ativos, uma menina de Fortaleza e um menino de Goiás.
Mas a ideia é centralizar o projeto aqui e a partir do nosso trabalho aqui
a gente fundamentar ações no Brasil inteiro. Então, de repente não tem
uma sede em Goiás mas tem alguém que se cadastrou e pode receber
uma pessoa em casa. Ou tem uma empresa que pode empregar. Eu sou
secretário-geral e cuido da comunicação.
[Jonathan] Eu não participo na ONG. O Gabriel me conta e minha
preocupação é trabalhar a vida para pagar o advogado. Por enquanto…
[riso]
[Gabriel] O advogado na causa é o Tales Coimbra.
[Jonathan] Ele é especializado na área de direito LGBT.
[Gabriel] Bem, pelo que a gente consultou são quatro ações diferentes
neste caso. Uma por lesão corporal que a gente abriu no Decradi. De-
pois disso o gerente do restaurante falou que viu as imagens da câmera
de segurança e admitiu numa entrevista, numa reportagem que o gar-
çom estava errado. A gente citou isso e a delegada do caso já imprimiu a
notícia na hora e já anexou no processo. Enfim, outra ação é por viola-
ção dos direitos do consumidor. Porque independente da motivação ele
estava no horário de serviço e ele agrediu um cliente. Por danos morais
e pela lei 10.948 de homofobia em estabelecimento. E está em aberto.
Está caminhando. Na ocasião eu fiz um post enorme no Facebook que,
de uma hora para a outra, teve um alcance gigantesco. Eu fique uma
semana abrindo meu Facebook com 500 notificações, foi compartilha-
do quase 7 mil vezes. E nisso vinha muita imprensa, vinha advogado,
vinha gente prestando solidariedade, muita, muita, muita gente. E aí,
dentro da imprensa que procurou a gente, nós tentamos selecionar os
meios mais confiáveis. A exposição é uma coisa que a gente trabalhou
bastante juntos. De planejar a exposição e tentar encaminhar para um

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lado positivo, de conscientizar as pessoas, de explicar os mecanismos ju-
rídicos, se for o caso. Porque o que aconteceu com a gente acontece com
muita gente e não é todo mundo que tem a coragem ou a paciência de
ficar sete horas na delegacia esperando fazer um BO. Mas isso é muito
importante e as pessoas têm que ter consciência disso. Que sem um BO
na mão, apesar de ser muito difícil, não adianta nada. E que deixar pra
lá também não é o caso. A sensação geral que eu tenho em relação à
justiça, em relação à polícia, é que é um número. Se for um relatório de
uma página é muito, sabe? Porque não importa. Não faz diferença.
[Gabriel] Eu nasci em São Paulo mas eu me mudei para São João da
Boa Vista quando eu era criança. Mudei para Campinas para fazer a fa-
culdade. Depois de formado eu voltei pra cá [São Paulo]. Meu pai está
aqui e minha mãe fica no interior. Ele trabalha aqui e de fim de semana
ele volta pra lá. Tenho um irmão mais novo, de 20 anos, e uma irmã
mais velha, de 26 anos. Aqui eu moro com meu pai e meu irmão.
[Jonathan] Eu sou de Jundiaí, moro com meu pai, minha mãe e
minha irmã de 15 anos.
[Gabriel] Eu me assumi para os meus pais quando eu tinha 16 anos.
Eu estava namorando um garoto do colégio e como eu passava muito
tempo fora de casa, porque eu namorava na casa dele, eles começaram
a desconfiar que ou estava usando drogas, ou namorando um rapaz.
Aí eu achei por bem dizer que eu estava namorando um rapaz [risos].
E no começo meu pai foi bastante compreensivo. Meu pai me aceitou
bastante e minha mãe, a priori, pareceu que sim. Só que eu entendi que
ela tinha aceitado porque meu pai tinha aceitado, e na verdade ela não
tinha. E a gente teve alguma confusão em relação a isso. E por muito
tempo foi um assunto que não se falou mais. Quando eu comecei a
namorar o Jow eu tinha esperança de que ia ser duradouro [risos].
Eu falei, bom já que ele está introduzido na minha vida e eu tenho
maturidade para lidar com isso eu vou falar francamente. E eles foram
absolutamente receptivos. Absolutamente. Meu pai considera o Jow
como parte da família. Já pensa em alugar casa pensando no carro dele
que vai pôr na garagem, coisa assim. E meu irmão também, meu irmão
foi bastante compreensivo mesmo.

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[Jonathan] Eu demorei um pouco mais para contar. Acho que eu
tinha uns 19… Até porque eu sou bissexual, então eu tive essa fase…
Confusão… Se eu era hétero…. Não, peraí… Será que eu sou gay?....
Não, peraí… Então eu demorei mais para contar. Meu pai aceitou
um pouco mais fácil também. E eu lembro que no dia que eu contei
foi assim: porque eu sempre ouvi meu pai falar que era doença e que
precisava se tratar. E daí, quando eu contei, eu falei, “eu sei que você
acredita que é doença, então se você quiser eu passo num psicólogo só
pra provar pra você que não é doença”. Daí ele falou uma coisa que eu
achei superlegal. Ele falou: “não, quem tem que passar por psicólogo é a
gente, porque é a gente que tem que aprender a te aceitar”.
[Gabriel] Ai… que fofo!
[Jonathan] Beleza, num momento minha mãe aceitou. Conversou
toda aquela conversa bonita cheia de clichês e tal que “amor de mãe não
tem tamanho, que ela me ama mesmo assim”. Mas deu uma semana e
ela enlouqueceu. Enlouqueceu! Era gritos e mais gritos, “o que eu estava
fazendo da minha vida; como assim, você é bissexual; mas daí você vai
namorar um menino e uma menina ao mesmo tempo? Como você vai
fazer? Você vai namorar um cara mas vai trair ele com uma mulher?”…
[Gabriel] Eu acho que o conflito da tua mãe é justamente de você ser
bissexual. Por que, para ela, se você pode namorar menina por que você
escolheu namorar um menino? Escolheu o lado mais complicado?
[Jonathan] É… Se você tem a possibilidade de ser uma família tradi-
cional... E até hoje tem esse resquício. O Gabriel pode ir em casa mas
a gente dorme em quartos separados. E a gente não pode demonstrar
muito afeto.
[Gabriel] A gente não pode se encostar de preferência.
[Jonathan] A imagem que tem que passar é que ele é meu “brother”.
Não meu namorado.
[Gabriel] Enquanto a gente tá na condição de amigo, assim, tá tudo
bem.
[Jonathan] Tá tudo bem… Mas se a gente se abraçar, se beijar…

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[Gabriel] Se escapa alguma coisa de namorado, ela já fica aflita.
[Mas ela chega a verbalizar?]
[Jonathan] Chega!!! Chega de um tudo!
[Gabriel] Verbalizar em alto e bom som.
[Jonathan] Alto e bom som!
[Gabriel] Bem alto às vezes!
[risos]

A repercussão da postagem de Gabriel foi tamanha que rapidamen-


te se formou um evento de repúdio ao fato ocorrido. A ação foi orga-
nizada, via Facebook, pelo DJ e produtor Flávio Ghidelovich. Intitu-
lado “Sukiya: engula sua lgbtfobia! Prato principal: língua de boy”, foi
marcado para a quinta-feira subsequente ao fato, dia 7 de agosto, às
20h. O ato promovia um “beijaço” no estabelecimento. No entanto,
uma hora antes do início do protesto o restaurante fechou as portas.
No dia seguinte, dia 8, os manifestantes voltaram ao local, entraram
entoando em coro “Eu beijo homem, beijo mulher, tenho direito de
beijar quem eu quiser”, alguns cartazes traziam as frases: “Território
homofóbico, boicote”, “O amor é para todos, beijos sim”, “Ser gay
não é opção. Ser homofóbico sim!”. Toda a ação foi documentada em
vídeo. No dia 11 de agosto, o organizador do ato publicou a seguinte
nota: “No dia 08/08 após a dispersão dos manifestantes, realizada por
dois carros de polícia na porta do restaurante Sukiya na Augusta, o
organizador do ato Flávio Ghidalevich e os apoiadores do evento Luiz
Fernando Prado Ucha, Gabriela Rodrigues, Célia Marques e Matheus
Rossi conversaram com o gerente responsável pelo local sobre o ocor-
rido e exigiram as seguintes medidas: afixação de um cartaz com a
lei 10.948/01 e da bandeira LGBTT em locais visíveis do restauran-
te; a demissão por justa causa do segurança que agrediu Jonathan; o
treinamento em qualidade de atendimento a equipe de funcionários;

79
o pronunciamento oficial da rede Sukiya à imprensa e redes sociais
sobre o lamentável incidente. Se as medidas não fossem tomadas até
11/08/2014, a organização do Ato e apoiadores elaborariam panfletos
a serem distribuídos na porta do local visando boicotar o seu funcio-
namento devido a seu desrespeito à conversa tida na sexta passada e à
comunidade LGBTT por sua omissão ao acontecido”.

[Trechos da postagem de Gabriel e suas palavras no dia do


acontecimento.]
Esse post enorme não é mimimi, nem uma “xingada no twitter”.
É um protesto sobre como eu quero mudar o mundo.
É muito assustador sabermos que vivemos no mundo em que não é tudo
bem ser gay, em que as pessoas são agredidas e sangue rola porque alguém
ama diferente. Quando acontece com você, é mais do que assustador. É apa-
vorante. Fui agredido. (...) Fica a dor, a indignação, a raiva, a inesperança,
a tristeza. Tristeza de ver como a felicidade alheia pode incomodar tanto, e
como o nível de ‘argumentação’ dessa homofobia burra e medonha faz com
que eu acredite na involução do ser humano. Tristeza de ver que uma crian-
ça é usada como justificativa para o preconceito de adultos vis. Tristeza por
se dar conta do desamparo e da sensação de que os mecanismos da justiça
não se empenham em fazer nada em nossa defesa. Tristeza. Mas sobretudo
fica a gana e a vontade de lutar pra mudar esse mundinho, a garra e a
coragem pra botar a boca no trombone, lutar pela penalização desse e de
tantos outros culpados que cometem crimes de ódio, fica o sangue nos olhos e
os pulmões plenos pra gritar: homofobia não passará!

Após sete meses do ocorrido, o casal foi novamente acometido por


uma abordagem homofóbica. Dessa vez no terminal rodoviário de
Jundiaí. Segue relato de Gabriel Cruz no dia 2 de março de 2015.
Mais uma vez aconteceu, e mais uma vez não me calarei!
Estava com meu namorado no terminal rodoviário de Jundiaí. Estávamos
no acesso às plataformas de embarque esperando o horário de partida do

80
meu ônibus com destino a São Paulo. Abraçados, trocando singelos carinhos
de despedida e conversando. Eis que sorrateiramente se aproxima um segu-
rança da empresa SOCICAM (responsável pela administração dos terminais
rodoviários intermunicipais de todo estado), que de imediato pediu que
parássemos. Já prontos pra discussão, questionamos seu pedido infundado,
dizendo que não estávamos fazendo nada de errado e que ele não tinha
aparato legal nenhum para nos obrigar a parar. Nesse momento, um casal
hétero interveio a nosso favor, alegando que um beijo deles, assim como o
nosso, não poderia ser reprimido, afinal de contas estávamos exercendo nosso
direito de expressar carinho em público e que éramos todos seres humanos.
Apontamos o preconceito da atitude dele, preconceito esse que ele negou
prontamente (afinal, palavras dele, o beijo de um casal hétero é normal, já o
nosso ele deveria reprimir não por preconceito, mas por uma questão moral.
Afinal, era só o trabalho dele). O homem do casal de desconhecidos solicitou
o gerente para resolvermos essa situação. Nesse momento o segurança, osten-
tando seu crachá e sem nenhum pudor quanto a ser reconhecido mais tarde
(me dando, na verdade, a oportunidade de anotar seu nome para efetivar
a denúncia, que certamente ele não teme), afirmou ser o gerente. Questio-
nei então o que ele faria. Nos agrediria? Nos expulsaria do terminal? Nos
prenderia? Em tom de ameaça, ele disse que “estávamos avisados”, ao que se
afastou. Peguei o contato do rapaz que, ótimo, se prontificou a testemunhar
a nosso favor juntamente com sua esposa, mediante o absurdo da situação
abusiva e claramente homofóbica.
Seguimos então para a plataforma, e continuei me despedindo do meu na-
morado como de costume. Foi o gatilho para que o gerente voltasse, dessa vez
acompanhado de um colega com ares de capanga, sem uniforme, e ambos
em tom muito mais agressivo retomaram a profusão de barbáries: “Vocês tão
querendo provocar? Isso vai confundir a cabeça das crianças, vocês vão in-
fluenciar elas! Vocês são ridículos e nojentos! O que vocês querem que a gente
faça, tire vocês daqui no braço?” Mesmo que muito agitados e assustados
pelo teor das ameaças, tentamos calmamente, tendo o casal ao nosso lado,
refutar os “argumentos” que ambos agressores vociferavam, o que, claro, sem-
pre acalora ainda mais os nervos daqueles que não tem razão. Felizmente,

81
mesmo com o baque psicológico que mais uma vez nos acomete e apesar da
disposição dos homofóbicos em resolver tudo na porrada, nenhuma agressão
física proferida.
Como meu ônibus estava partindo, dei um último beijo no Jow e embar-
quei, bastante preocupado com a integridade física dele já que, afinal, ele
deveria retornar para o carro sozinho. De dentro do ônibus, pude ver os dois
arautos da intolerância gesticularem e falarem qualquer coisa para meu
namorado, que partia em segurança em direção ao carro.
Uma das coisas que eu aprendi com o episódio do restaurante é não me
submeter, e encontrar no coração saindo pela boca e no frio da barriga
força e coragem para lutar por aquilo que me é de direito. NÃO estávamos
atentando ao pudor. O exercício social da minha sexualidade NÃO é uma
provocação ou uma afronta. NÃO vou permitir que me humilhem e me
rebaixem. NÃO vou me deixar intimidar!
Mais uma vez, vou recorrer a todas as medidas legais que me forem possíveis
para que esses agressores e essa empresa não saiam impunes.

82
DOUGLAS DE OLIVEIRA
depoimento em 5 de maio de 2015

O jovem de 16 anos Kaique Augusto dos Santos foi encontrado


morto e desfigurado no dia 11 de janeiro de 2014 sob o viaduto 9 de
Julho, na região central da cidade de São Paulo. O caso foi amplamen-
te divulgado na imprensa, especialmente pelos caminhos tomados nas
investigações oficiais. O crime que inicialmente – e aparentemente
– apresentava todas as características de um Crime de Intolerância
motivado por Homofobia acabou sendo arquivado como suicídio.
No entanto, este caso guarda diversas outras particularidades e reve-
la uma condição comum na vida de muitos homossexuais: a exclusão
familiar. Menores de idade, jovens, expulsos de casa por assumirem
sua sexualidade gay ou identidade de gênero trans. Esse fato é tão
comum que, ainda que não seja visível socialmente, a comunidade
gay se organiza em diferentes frentes de acolhimento, seja por meio de
organizações não governamentais, abrigos sociais, coletivos ou agru-
pamento de amigos que caracterizam a existência das chamadas “Fa-
mílias”, conforme o relato a seguir.
[Douglas] Meu nome é Douglas de Oliveira, eu tenho 32 anos. Faço
Educação Física e moro em Guainazes. Artisticamente eu sou Douglas
Vallentyne Lawiny, que é nome da nossa família. A gente forma uma
família de consideração, de amigos próximos. E com isso a gente tem
uma segurança pra nós mesmos. No caso dessa violência, a gente tem
mais acompanhamento de amigo, tem mais facilidade. Tipo, você che-
gar num lugar e não se sentir sozinho. Você tendo mais gente da família,
você tem um vínculo de amizade. Você tem mais acesso. Por segurança
da gente mesmo. Inclusive na hora, vamos supor, que a pessoa vai pra
balada, aí vai embora. Vai embora sozinha e você sabe que aqui no
centro é um roubo lamentável. Então você indo com mais amigos – não

83
que seja mais seguro – mas evita, acho, que muita coisa, entendeu?
Vou explicar o que é o pai da noite. Normalmente, aos domingos no
Largo do Arouche tem um encontro. Geralmente a gente está lá. Sem-
pre que posso eu estou presente nas baladas do centro. A partir das sete,
oito horas da noite já tem bastante gente na praça.
Antigamente tinha o pessoal que eram os líderes. Eles achavam que
eram os bambambãs e que podiam fazer o que quisessem com gay.
Vamos supor, numa discussão, olhou feio já ia lá, queria bater num gay,
entendeu? Entre gays mesmo. Um gay líder, mais velho, que se acha,
que comanda uma área, um pedaço no centro. Tinha vários líderes
e cada um representava uma família. Eles tinham isso como família.
Antigamente podia falar que era um tipo de gangue. Vamos supor que
eu era o pai da família. Alguém olhou feio para um filho ele chega e “ô,
pai, alguém olhou feio pra mim, esbarrou”. O pai já ia tirar satisfação e
agredia o menino se fosse o caso. E o que é que eu fiz? Eu não aceitava
aquilo, eu achava uma puta covardia. Eu falei, “eu vou criar uma famí-
lia”. Essas pessoas que eu vejo que são sozinhas, que são inofensivas…
Eu vou montar essa família e se acontecer alguma coisa essa pessoa vai
poder perguntar pra mim e eu vou poder defender ela, por quê? Porque
quando essas pessoas que chegavam lá e respondiam que não tinham
uma família eles batiam nelas. Mas a partir do momento que você é de
uma família, por exemplo, “sou da família Vallentyne” eles iam pensar
duas vezes em querer agredir porque eles sabiam que ia ser cobrado,
entendeu, que ia ter quem defendesse. Porque, eu, quando via isso, o
pessoal batendo, a pessoa chorando, eu ficava muito com dó. Eu chega-
va e conversava. Eu era totalmente contra então surgiu na minha cabeça
a ideia de montar uma família pra defender essas pessoas. Uma família
pra proteger. Eu fiz essa família não em intenção de querer agredir.
Jamais. Eu fundo a família para combater a violência entre a gente mes-
mo, porque o preconceito já é enorme se a gente mesmo ficar brigando
entre a gente mesmo fica difícil. Por exemplo, no Brasil a gente não tem

84
uma proteção, não tem direito de nada. Se a bancada de políticos for de
uma maioria evangélica a gente vai ser esquecido. Inclusive eu sempre
aconselho aos nossos membros da família quando for votar em deputa-
do e vereador pra ver bem, investigar o político que vai votar. A gente
não pode deixar os evangélicos tomar a maior parte da bancada. Por
quê? Porque a gente já é esquecido.
Enfim, a família começou lá embaixo, com poucas pessoas, eu não
era conhecido nem nada. E eu ralei para conseguir levantar, conseguir
o nome que a gente tem hoje no centro. Se você for ali na praça do
Arouche e perguntar da família Vallentyne, boa parte de todo mundo
conhece. Somos uma das maiores daqui. Nossa família, atualmente, está
chegando a 400 membros. Dia 27 de abril a família fez 11 anos. Eu sou
o fundador de tudo e eu identifico todos os meus filhos, um por um,
por nome.
Antigamente era só isso que a gente fazia: se defender. A família era só
pra isso. Hoje em dia já pensamos diferente... A gente faz eventos, faz
projetos, festas, programação de cinema, essas coisas todas. E também
temos um grupo de bonde, de funk, que representa a família: Bonde
dos Vallentynes.
Aqueles membros que a mãe não aceita, por exemplo. Às vezes o gay
quer falar alguma coisa pessoalmente, o caso que só se pode falar com a
tua mãe e teu pai. Mas se teu pai e tua mãe não aceitam como você vai
falar? Aí entra a gente. Eu sempre falo, se precisar de alguma coisa pode
chegar em mim e falar. Não só em caso de briga, essas coisas. Em tudo
o que você precisar. Se tiver passando dificuldade, necessidade, tiver que
dar conselho, alguma coisa, pode chegar em mim e falar. Não precisa
ter medo. Porque o que você falar pra mim vai ficar aqui. “Eu sou o
seu pai da família e sou seu amigo verdadeiro”, eu digo. Em tudo pode
contar comigo. Somos a única família daquele tempo que está no auge
ainda. Porque as pessoas vão chegando numa certa idade e vão vendo
que aquilo é bobagem. Pra que isso? Então isso vai sendo descartado e

85
vai acabando. E acabou. Só nós que estamos no auge ainda desde aquele
tempo. Fazendo projetos bons para os jovens. Já tive que defender bas-
tante gente brigando, já fiz muita coisa. Antigamente mesmo quando
era aquele tempo, nossa, já botei muito a cara a tapa para defender uma
pessoa. E com o tempo fui ganhando respeito e eles foram respeitando.
Hoje eu sou bem respeitado no centro, todo mundo me conhece. Tenho
um círculo de amizade muito grande.
Tem também os tios da família. Porque eu não posso estar presente em
todos os lugares. Então pelo menos tem um tio da família. Se precisar
de alguma coisa e eu não estiver presente procura os tios e as tias. As
tias são gays também. Tem uma tia travesti e uma madrinha travesti.
Inclusive a mãe da família é uma travesti. Sou eu que escolho eles e elas
todos. Tem regras na família. Entre os filhos da família, os mais novos
tem 14, 15 e 16. Mais ou menos a idade que começa a sair, a se descobrir.
O Kaique era meu filho da noite.

KAIQUE AUGUSTO BATISTA DOS SANTOS

Eu conheci o Kaique aí na praça.


Eu conheci o Kaique através de outros amigos, filhos meus que co-
nheciam ele, apresentou a gente e ficamos num círculo de amizade.
E a gente pegou bastante intimidade. Nunca namoramos. Ele era um
menino exemplar.
O Kaique a gente conheceu na praça da Vieira, seria o Arouche, né?
[Vieira é como o Largo do Arouche é chamado em referência
à avenida Viera de Carvalho, que passa pelo largo] E nisso a
gente começou uma amizade, assim, normal. Até então eu nem tinha
chamado ele pra família nem nada. Mas, conforme a gente pegou uma
amizade, fomos saindo juntos. Sempre que eu ia pra lá eu encontrava
ele e ele falava comigo. Ele tinha 16 anos quando eu conheci. Aí eu

86
convidei ele pra fazer parte da família. Ele ia fazer um ano que estava na
família. E aconteceu o negócio... Na morte dele ele já tinha quase 17.
No dia que aconteceu o fato a gente estava tudo junto na balada. Lá na
PZÁ, que era lá na rua Bento Freitas. Então, a gente tava lá, e como a
balada estava muito cheia não tinha como a gente ficar totalmente jun-
tos, todos os momentos. Ele saía para andar, dançar prá lá, eu subia…
Porque lá são três pistas: uma embaixo, uma no meio, e lá em cima é
área de fumantes. A partir de umas três da manhã, mais ou menos, eu
já não estava mais junto com ele. A gente se cruzava mas, normal, até
então tranquilo.
E havia vários outros membros da família lá. Muitos. A gente curtiu a
balada. Terminou a balada, fomos embora normalmente. Até então, a
gente nem sabia nada, porque quando acaba a balada aqueles que estão
perto da gente, os que vão ficando por último, a gente se junta e vamos
embora juntos. Mas naquele momento ele não estava com nós. Pra mim
ele já tinha ido embora. Nunca eu ia imaginar que ia acontecer o que
aconteceu.
Fomos embora todo mundo tranquilo, de boa. Aí no sábado eu fiquei
sabendo que ele não tinha chegado em casa. Porque a festa tinha sido
na sexta à noite. Foi no dia 10 de janeiro de 2014. Uma sexta-feira de
janeiro. No sábado ele não tinha chegado em casa mas, até então, tem
muitos que saem e não voltam pra casa no mesmo dia. Às vezes vão pra
casa de um amigo. Eu relevei porque até então seria normal. Porque tem
vários casos que a pessoa chega um dia depois. Bom, no domingo eu
já vi no Face [Facebook] a postagem. Todo mundo já falando que ele
estava desaparecido. Isso já me preocupou. Então no domingo mesmo
comecei a perguntar e divulgar pra todo mundo dos filhos meus. Quem
estava com ele naquela hora? Quem estava com ele na balada? Quem
ficou bastante tempo com ele? Qual a última vez que viu? Investiguei
tudo isso. Beleza. Na segunda-feira eu já fiquei sabendo da notícia, do
fato, do que aconteceu, tudo. A partir do momento que eu fiquei sa-

87
bendo eu já fiquei apavorado. Eu queria saber mesmo a verdade. O que
aconteceu mesmo de verdade. E igual falaram: que ele tinha perdido a
carteira e que ele voltou pra balada, que tinha skinhead lá dentro. Não
tinha nada disso. Não tinha skinhead lá. Primeiro porque eu estava lá.
Eu sempre frequentei essa balada. Não tinha o porquê um skinhead
entrar lá? Porque ele seria identificado. Não teria como ele pegar só o
Kaique.
Ele foi embora da balada naquele dia porque ele tinha que trabalhar no
outro dia. E foi nesse momento, foi a hora que cataram ele. Não foi o
que falaram, não. Que ele foi buscar carteira, voltou e brigou lá dentro.
Isso não tem nada a ver. Ele não brigou lá dentro, nada disso.
Igual mostra num vídeo da câmera de segurança, ele saindo da balada.
Igual assim, eu acredito que acobertaram muita coisa. Eu acredito que
no dia tinha um grupo andando perto da 9 de Julho, que seriam os
homofóbicos, pegaram ele, espancaram e jogaram ele lá de cima do
viaduto. E não como falaram alguns dias depois. Que ele se suicidou...
Ele foi espancado e foi atirado lá de cima.
Então, é difícil falar, é complicado. Até aquele momento a mãe estava
atacando que era homicídio. Que tinham matado ele. Passou na tele-
visão, ela chorando falando que queria justiça e tudo. Só que de uma
hora para outra apareceu uma agenda, um diário, falando que ele estava
passando por dificuldades, algumas outras coisas e que ia se matar. Pois
é, depois de uma semana apareceu essa agenda. Muito estranho isso.
Ela estava falando que queria justiça e, de repente, de uma hora pra
outra mudou tudo. Eu não sei… Acredito que tem algo que podia ser
investigado mais além. Mas eu sei que vai morrer nisso e não se vai ficar
sabendo mesmo a verdade.
Não pudemos ver o corpo. O que falaram é que ele estava com os
dentes quebrados e todo os ossos dos dedos quebrados. As duas mãos. E
uma barra de ferro cravada na perna. Depois que se concluiu o “suicí-
dio” falaram que essa perfuração da “barra de ferro” foi, na verdade, o

88
próprio osso que saiu pra fora. Eu acho sem cabimento isso. E falaram
que os dedos quebraram na hora que ele caiu. Fora as outras marcas,
falaram que ele estava todo machucado, com sinal de agressão. Aliás, até
aquele momento era agressão. Só que depois mudou tudo.
O inquérito estava aberto enquanto a mãe pedia justiça mas a partir do
momento que ela acatou que ele realmente tinha se jogado o inquérito
foi encerrado. O que acontece: foram mais de três dias de reportagem
entrevistando a mãe e ela falando que queria justiça. Ela dizendo que
eles não tinham problemas, que ele morava com ela... [negativa com
a cabeça] Ele já não morava mais com a mãe. A mãe natural dele mo-
rava em Taboão da Serra, se não me engano alguma coisa assim. E a casa
que ele estava morando era em Santana, praqueles lados da zona norte.
Kaique não morava com a mãe de sangue. Morava com a mãe de um
amigo dele que considerava ele como filho. Por quê? Porque a mãe dele
não aceitava ele como gay, entendeu? E pelo preconceito e tudo mais ele
resolveu ir morar com essa “mãe” que aceitava ele.
[Em depoimento no dia 17 de janeiro de 2014, Aline Amaral,
mãe do amigo de Kaique dos Santos, que estava abrigando
temporariamente o menor, disse que o jovem nunca falou
em suicídio, nunca apresentou sinais de depressão e sempre
se mostrou alegre em sua casa. Ela se declara surpresa com o
fato de o boletim de ocorrência trazer a hipótese de suicídio.
Na reportagem do portal UOL ela diz: “Com toda a violência
que existe na cidade de São Paulo, talvez seja mais fácil acre-
ditar em homicídio, crime de homofobia”.]
Então aquilo, pra mim, aquilo que passou na televisão, toda aquela
cena da mãe [biológica] é um marketing. Ele não tinha depressão.
Ele vinha com problemas com a mãe. Ele falava que tinha problemas
na família, sim. E eu acho que era por conta da mãe, de não aceitar.
O emocional de qualquer pessoa fica com problema. Sua própria mãe
não te aceita. Mas só que pra mim, na Vieira, quando ele ficava com a

89
gente ele era uma pessoa superextrovertida, legal, cantava… Um futuro
enorme pela frente.
[O jovem desaparece no dia 10 de janeiro de 2014, o corpo é
encontrado no dia 11, mas só é reconhecido pela família dia
14. Nesse período ficou no IML fora da geladeira por super-
lotação. O boletim de ocorrência foi feito com base no relato
do policial que encontrou o corpo de Kaique. O delegado da
Polícia Civil de São Paulo assinou o BO registrando a morte
como suicídio, o que provocou a revolta da família, amigos
e ativistas LGBT que pediram explicações e investigação. Em
coletiva, no dia 21, a mãe biológica, Isabel Cristina Batista,
acompanhada do advogado Ademar Gomes acatam a teoria
de suicídio motivado por depressão e desilusão amorosa.
Fato desconhecido pela família que abrigava Kaique e pelos
amigos mais próximos. O criminalista Gomes pede desculpa
para as facções que foram cogitadas como autoras da morte
e também para as autoridades policiais.]
Então, depois que foi confirmado a identificação do corpo a gente ficou
bem revoltado pela situação e ainda mais afirmar que ele tinha se suici-
dado. Então, eu junto com o Elvis [Justino], tivemos a ideia de fazer o
protesto. O ponto desse protesto era a indignação do povo falar que ele
se jogou. A gente organizou e começamos a divulgar.
Eu e Elvis somos amigos. Ele tem uma outra família: a Stronger. Então
junto com ele e os filhos dele e os meus a gente fez uma página [even-
to no Facebook] e marcamos a data. Mandei meus filhos divulgarem
nas redes sociais. Ele também mandou os filhos dele jogarem na rede e
mandou para algumas autoridades. Se não me engano foi numa sexta
[17 de janeiro de 2014]. O ponto de encontro era quatro horas da
tarde na sexta-feira. Cinco e meia, seis horas ia sair a caminhada. O
ponto de encontro foi lá na Vieira, no Arouche.
Só que aí no dia eu não esperava, meu. Eu disse: “nossa mano, será que
vai virar?”. Quando eu cheguei na praça, a praça lotada. Lotada. Eu

90
fiquei impressionado. Eu não esperava mesmo, de verdade. Um monte
de reportagem, jornais, Folha de S.Paulo, UOL, Terra, emissoras de TV.
[O ato organizado por Douglas teve repercussão nacional e
ampla cobertura jornalística. Na ocasião a ministra de Direi-
tos Humanos, Maria do Rosário, designou o coordenador-
-geral de Promoção dos Direitos LGBT, Gustavo Bernardes,
para seguir o caso pessoalmente em São Paulo.]
Hoje a rede social está ajudando mais a expor a violência. Porque
antigamente você não ouvia falar nada. Hoje a rede social está ajudando
bastante porque estes crimes aconteciam e sempre aconteceram. Tanto
que por isso nos organizamos em grupo. Os crimes já aconteciam, já
vêm de muito tempo. Só que hoje as mídias estão ajudando a mostrar
para a cidade o que acontece normalmente. Lá atrás, bem no começo,
eu tive um outro filho que morreu por violência. Isso foi quando nossa
família tinha uns três anos de existência. Só que eu fiquei sabendo de-
pois que já tinha acontecido tudo. Umas três semanas depois. Era o Le-
onardo. Foi lá em Diadema onde ele morava. Ele tinha 15 para 16 anos e
morava com a família. Ele estudava, tinha irmãos, bastante irmãos. Eu
namorei com ele. A gente terminou e ficou um pouco afastado porque
ele não era muito de sair. Mas ele participava da minha família mes-
mo assim. A gente conversava muito pelo MSN, na época era MSN e
Orkut. Passaram uns dias e eu vi mensagens: LUTO no Orkut dele. Eu
foi quando eu fiquei sabendo de tudo. Ele foi estuprado friamente e co-
locaram até uma barra, um cabo de vassoura no… né… [empalado].
E bem machucado. Muito machucado. E esse caso a mídia não pegou,
ninguém ficou sabendo de nada e morreu.
Dentro da família Vallentyne têm muitos casos de homofobia, de filhos
meus que apanharam e foram roubados bem na rua da saída da estação
[metrô República] que vai pra rua da Vieira, na rua do Arouche. Ali é
fatal. Muito assalto. Muitos filhos já foram assaltados ali. E eu sempre
indico: “tá na praça? Vai embora? Chama três ou quatro pessoas e vai

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embora juntos. Nunca vai sozinho”. Porque ali é bastante visado, até os
go-go boys, os garotos de programa, até eles roubam. Vê a bicha pas-
sando lá, sozinha, eles roubam mesmo. Se estiver mexendo no celular…
É fatal! Eu sempre aconselho ir embora pela Santa Cecília. Porque pela
Santa Cecília é rapidinho também.
Na família não tem caso da pessoa ser agredida em casa. Mas, sim, de
ser expulsa. Da mãe expulsar de casa: “Ah, você é gay? Então eu não
quero você aqui”. Já teve muitos casos de eu correr atrás de um abri-
go com amigos meus. Eu falar assim: “a mãe não quer porque ficou
sabendo que é gay, está sem lugar pra ficar, tem como passar uns dias?”.
Ficava uns dias em um, depois ficava em outros. E assim vai.
Teve um caso também que um filho meu – o Junior – que fugiu de casa
pra viver na prostituição no centro. A mãe dele tinha contato comigo.
Sabia que eu era pai dele na noite. Me procurou – eu não sabia de nada
– e me explicou. Eu lembro que eram sete horas da noite quando ela me
ligou, eu fiquei apavorado, preocupado, aí eu falei: “eu sei onde é que
ele está. Pode deixar comigo que eu vou atrás dele. Umas dez horas da
noite pode ir lá pro centro que eu vou te entregar o Junior”. Eu liguei
pra um outro amigo e fomos atrás. Pegamos o Junior e joguei o mor
psicológico nele. Falei! Papel de pai mesmo, falei um monte. Porque ele
foi se prostituir por modinha dos outros. Porque em casa ele tem tudo.
Só que aí vê o amigo lá, ganhando uma grana… Isso é tudo influência
de amigos. Má companhia. Quando eu cheguei que eu encontrei ele,
tinha um carro encostado. Falei pro cara: “o que você tá fazendo aqui?
Mano, sai fora! Dá licença que ele é menor”. Três semanas fora de casa.
Ele estava morando numa casa lá bem perto da Bela Vista. Sei que nós
andamos. Era um lugar bem ridículo, num porão. Num quartinho
horrível. Ele pegou todas as coisas dele e eu fiz ele trocar de roupa.
Porque ele estava com um short aqui [indica o quão curto] ridículo.
Voltamos para a Vieira e ficamos esperando a mãe dele chegar. Quando
a mãe dele chegou acompanhada do irmão dele eu, que já tinha falado

92
um monte, falei tudo de novo para a mãe dele ver que eu não apoiava
aquilo e que era errado. Ela agradeceu, até chorou emocionada. Muitas
mães contam com a gente.
Eu trato meus filhos como se fosse um pai verdadeiro mesmo, de sangue
mesmo, porque eu quero o bem deles, eu quero o futuro deles. O que
eles precisarem de mim podem contar comigo no que for. Igual um
pai normal agiria com um filho de sangue. Então eu ajo dessa forma.
Eu moro com minha mãe e com meu pai. E tenho mais um irmão que
mora junto comigo. Eu vou morar sozinho agora, mês que vem, se deus
quiser. A relação com meu pai é tranquila só que ele não aceita, minha
família não aceita, minha mãe não aceita eu ser gay. Mas eu conti-
nuo vivendo em casa. Só que ela respeita, né? Mas ela não gosta se eu
começar a falar das coisas. Nem fala nada sobre isso. Tem um dia a dia
normal.

Kaique configura um perfil característico de vítima fatal no Brasil:


jovem, menor de idade, negro, de baixa renda e, no caso, homosse-
xual. No entanto, a possível motivação do crime – intolerância por
homofobia – o torna invisível nas estatísticas oficiais. A presença de
uma “família da noite” deu a ele um “sobrenome” que lutou pela in-
vestigação do caso dando notoriedade – ou pelo menos visibilidade
– num tipo de ocorrência muito mais comum do que o divulgado. Os
componentes obscuros deste caso não poderiam ser negligenciados
durante o inquérito. Muitos dados da investigação foram fornecidos
por integrantes das famílias Stronger e Vallentyne, por exemplo as
nítidas imagens da câmera de segurança exibidas nos telejornais – no
dia 18 de janeiro de 2014 – onde aparece Kaique andando sobre o cal-
çamento do viaduto 9 de Julho, com certa tranquilidade, às 3h58 da
manhã, a 50 metros de onde seria encontrado, já morto, 20 minutos
depois.
A comunidade e a militância reclamam o fato de mortes de indiví-
duos LGBT serem comumente registradas em boletins de ocorrência

93
como “suicídio”, encobrindo as possíveis motivações reais que pode-
riam estar relacionadas com crimes de ódio e intolerância por lgbtfo-
bia. Ou mesmo quando dotado de todas as evidências um agressor é
indiciado por “lesão corporal leve”.
Ainda no caso Kaique acrescenta-se – ao relato de Douglas Oliveira
– as palavras de Elvis Justino “Stronger”, que participou ativamente
nas investigações deste caso.

ELVIS JUSTINO SOUZA


depoimento em 9 de maio de 2015

As famílias LGBTs não são ONGs. São agrupamentos ou coletivos de


amigos. Algumas como a Vallentyne e Stronger contêm cerca de 500
integrantes.
Minha concepção de família é carinho, amor, proteção e acolhimento.
É isso que a minha família, a Stronger, faz com os rejeitados pelas
famílias de sangue. Isso ajuda muito os jovens na sua autoaceitação. E
na construção de sua personalidade. Agora o caso Kaique acompanhei
tudo. A mãe biológica o expulsou de casa quando soube que ele era gay.
O Douglas cuidou dele nas ruas de São Paulo. Deu proteção pra ele.
Mas ao sair da balada, misteriosamente, ele é encontrado morto com
os dedos da mãos quebrados, os dedos dos pés quebrados, os dentes
quebrados. Coisa que a perícia não explicou. E uma barra de ferro
atravessada na perna que depois desapareceu. A polícia não interrogou
nenhum porteiro da região. Como sei disso? Porque fui até lá perguntar.
As imagens dos vídeos fui eu e o Ghe Santos [militante LGBT] que de-
mos para a polícia porque nem isso ela tinha feito. Do nada a equipe do
advogado da Record – os advogados foram oferecidos pela Rede Record

94
pra mãe biológica do Kaique – acha um caderno de quando ele tinha 12
anos. Pega uma frase e diz que ele queria se matar. A mãe biológica na
hora disse: “ele se matou mesmo”. Coisa que as irmãs não aceitam até
hoje. Tenho certeza que ele não se matou. Foi vergonhoso esse caso. A
Stronger e a Vallentyne íamos pedir a exumação do corpo e provar que
a polícia está mentindo. Mas não temos dinheiro. Teve pessoas que iam
financiar. Mas preferimos não mexer. Por muitos motivos.

95
LUA AOKI
depoimento em 25 de fevereiro de 2015

Este capítulo apresenta novos contornos. A biografia da entrevistada


não traz violência física em seu retrato. Mas apresenta uma violên-
cia que consome, minando como água pelas estruturas – psíquica e
emocional – cotidianamente toda e qualquer relação. Do bom dia em
família, do elevador compartilhado à visita ao médico ou à banca de
revistas. A discriminação pelo simples reconhecimento ao estrangeiro.
Lua é jovem. Lua nasceu no dia 19 de novembro de 1997, noite
de lua cheia indo para minguante. À primeira vista sua beleza é no-
tória. Sua beleza dói. Dói nela. Lua fala com calma. Calma de uma
voz embargada pela emoção. Tem elegância em tudo. Até mesmo na
fina ironia para lidar com o descaso do mundo. Lua foge de qualquer
estereótipo midiático. Lua seria exceção estatística não fosse um mo-
tivo: o sofrimento do preconceito. Seu corpo fenotípico ainda é novo
socialmente, seus hormônios estão em ação constante, Lua está em
transformação. Lua tem 27 anos. A Lua é nova e será crescente.

[Lua] Então, a questão, assim... é... o pessoal GLS, GLBTs sempre


fica em silêncio. Fazem cara bonita, sabe? Tentam mostrar felicidade e
sabem que tem alguma coisa de errado na sociedade, nessa questão de...
As pessoas não entenderem a diferença dos outros, não respeitarem. En-
tão... Isso eu acho ruim. Você tem que, sim, falar: “olha, está acontecen-
do isso, isso é ruim, tô sofrendo, é assim que funciona”. Porque senão
as pessoas não entendem. Te veem de um jeito que eles não conseguem
perceber como você está sofrendo.
Porque chega muito gente pra mim e fala... Costumam ver só a beleza.
Então falam, “ah, cê tá feliz, né?”, como se eu tivesse ganhado na loteria.

96
E não funciona assim. Eu, tecnicamente, ainda não me reconheço
completamente no espelho. Ainda sofro várias coisas que tem no meu
corpo que não me pertencem... Entendeu? Independente do que veem,
do que acham.
Minha autoimagem ainda fica oscilando muito, sempre. Eu não me vejo
completa, ainda, pelo fato de ter coisas que não me pertencem. É como
você fazer uma peça de teatro e você está com a roupa do figurino de...
não sei, do figurino de um marido, vai. E aí você tem que ir embora pra
casa, você gosta de usar roupas mais leves, só que você é obrigado a sair
com aquele terno, entendeu? É basicamente isso: como se estivesse gru-
dado no seu corpo. Então tem coisa pra mim, ainda, que... precisa ser...
[pausa] cortado da minha vida [riso leve]. Basicamente, é isso.
[A mulher que exteriormente está surgindo te acalma, te
satisfaz?]
[Lua] Não. Não, porque tem coisas que nascem em você que só você
sente. Não faz parte da questão... Da imagem de si. Pode até fazer, mas
não é isso que me importa. Tem umas coisas que não me pertencem
mas que eu sinto. Posso não estar olhando no espelho, mas eu estou
sentindo. Pra mim, são coisas que precisam ser tiradas, de qualquer
maneira. E não estou dizendo genitália. Não, outras coisas que não me
pertencem. Acho que você vai querer saber, né? Osso da testa, o gogó,
enfim... Essas coisas não me pertencem. Existe cirurgia para tirar tudo
isso. E isso porque eu nem sabia que o osso da testa era masculino. É
uma coisa, assim, que começou a me incomodar com uns 15 anos. Eu
não tinha a mínima ideia. Esse osso é uma das coisas principais que
você vê em trans que não são muito femininas. Isso eu falo esteticamen-
te. Agora, quando você sente por dentro... [pequena pausa] Enfim...
Sou de São Paulo. Escorpiana [risos]. Mas morei na Itália desde... Acho
que 1 ano e meio de idade. A minha mãe me teve aí a gente teve que ir
morar fora por conta de alguns problemas familiares. Ela casou de novo
com um italiano. Morei perto de Milão até uns 6, quase 7 anos. Então,

97
voltamos para o Brasil. E eu ia a cada dois anos para visitar a família.
Depois parou, porque minha mãe casou de novo aqui no Brasil e teve
um bebê que é meu irmãozinho, o Bruno. Eu tenho família na Itália
mas é só por parte do meu padrasto. É estranho falar assim... É que, na
verdade, pra mim ele era meu pai.
Vir pra cá foi bem difícil, no começo... A gente ficou aqui por um
tempo pra se adaptar. Estava tudo ótimo. Eu estava gostando muito do
Brasil, das pessoas, da família em geral. E quando eu comecei a estudar
eu vi que a coisa pegava um pouco, sabe, pro meu lado. Na época, eu
não entendia muito bem essa coisa de sexualidade, de identidade de
gênero. Pra mim, vestir qualquer roupa, tanto fazia... Isso com 6, 7
anos. Já antes, pra mim, tinha uma coisa esquisita que eu não sabia o
que era. Mas eu era criança. Você não tem essa consciência [pausa]. Só
um segundo [pausa]. Onde parei? Desculpa... É que, quando eu penso
essas coisas, vem muita coisa na cabeça... Porque eu acho que essa ques-
tão trans, ela é confusa. Por exemplo, eu nasci num corpo que não me
pertence. Pelo menos, a imagem dele, que ele fornecia, era errada. Mas,
de resto, as formas de... Interpretar ou ver isso... Tem várias formas.
Tem mil formas, e é difícil de falar. Por isso que você vê muitas trans
ou travestis até se engasgando pra falar, porque não sabe direito como
funciona isso na cabeça dela e diante da sociedade. A gente não teve
essa estrutura desde criança. Que estrutura a gente teve quando criança?
Gênero: masculino e feminino. E cada um já era montado, que nem
Lego. Peças de Lego. Já tinha essa classificação. Quando a gente nasce
de uma forma diferente, não tem essa espécie de Lego certinho. Então,
a gente tem que montar nosso próprio muro, entendeu? Nosso próprio
brinquedo, digamos assim. Nossa identidade [silêncio]. Então, pra
mim, não era uma questão de gênero interna. Era só externa. Mas que
isso não me afetava, porque o tratamento, de criança, é parecido. Acho
que aqui no Brasil é um pouco mais separado: menina é assim e menino
é assado; é um pouco mais violento, isso. Já percebi. Eu acho que... Eu

98
não digo na Europa em si mas, pelo menos onde eu morava, o trata-
mento era um pouco mais leve. Claro, alguma diferença você percebe.
No mundo inteiro existe machismo. E... Onde estava? [pausa] Eu
sentia alguma coisa diferente que eu não sei te dizer exatamente o que
seria, mas tinha momentos que eu achava que, assim… Quando minha
mãe me dava uma coisa mais feminina e tal, eu achava que ela tava me
enxergando. Independente do corpo que eu tinha. Com o tempo, você
vai vendo que não. Na verdade, a pessoa só te vê diferente, acha que
você é outra coisa e tenta te tratar daquele outro jeito, só porque você
aparenta aquela coisa... [pausa] Não sei se... Desculpa, eu perco muito
a linha do raciocínio, assim...
[Não se desculpe, tá?]
[Lua] Eu tenho um pouco de problema de... [pausa] de memória, que
eu estou tentando recuperar. Eu tenho algumas dificuldades pra algu-
mas coisas, de ligar algumas frases… Eu passei um bom tempo queren-
do não ter memória. Porque a memória, eu acho que é um dos poderes
do ser humano. Se você tem memória, você faz tudo. Se você não tem
memória, você é um vegetal. Eu queria estar nesse estado vegetativo por
um bom tempo, porque você percebe que ... A sua família não te en-
xerga. Você não se enxerga no espelho, amigos não te enxergam... Você
percebe que tem uma ou duas pessoas que falam “hum, tem alguma
coisa de errado, aquela pessoa não é aquela pessoa. Aquele menino não
é bem um menino, parece uma menina”. Só que não é todo mundo que
consegue enxergar isso.
Esteticamente teve, sim, uma fase de androginia. Teve uma época que
achavam que eu era uma caminhoneira lésbica. E por conta do meu
nome, também. Porque, no meu RG, meu nome é Luane Aoki Mar-
ques, já é feminino. Então, fica aquela coisa unissex. Você não sabe de
que sexo pertence. O que eu não acho que seja ruim numa sociedade
dessa que sempre define as coisas dessa maneira. Infelizmente, não é o
jeito que eu me sentia. Eu não me sentia uma pessoa, é... Eu nunca sei

99
falar, é andrógina ou androginia? Bem, eu não me sentia assim. Se eu
me sentisse assim, tá ótimo, né, esse tratamento. Eu sempre me senti
uma menina. Sempre fui uma menina. O que me fez... [pausa] me
sentir mais menina é perceber as coisas que os outros determinavam
pra menino. Então me fez ter mais certeza do que, talvez, uma pessoa
“normal” que já nasça naquela caixinha e já se sinta naquela caixinha.
No meu caso, foram impostas muitas coisas de menino que eu fui
vendo que eu não era aquilo. Independente do meu gênero. Meu gênero
já era aquele. Eu até tentei me encaixar em algumas coisas. Porque tem
meninas que acabam se encaixando, gostam de futebol, por exemplo.
Hoje em dia, já não são tão determinadas essas coisas. Ou, pelo menos,
as pessoas tentam lutar contra isso. Contra esses padrões de gênero. Teve
fases, mas geralmente meu convívio era com meninas. E teve uma época
que eu gostava muito de conversar com pessoas mais velhas. Eu não
ligava muito pra isso. E acho que eu tinha uma cabeça um pouco mais
madura pra idade, mesmo sendo meio molecona. De vez em quando
tenho meus momentos de adolescente. Grandona.
Bem, isso menina. Mulher, eu nunca tive consciência. Eu não entendia
muito bem o que que é ser mulher. Agora... Menina, sempre fui. Isso,
pra mim, nunca mudou. Podiam me chamar de cachorra, de copo,
de casa, que não faria diferença pra mim, entendeu? Era o que eu era,
assim. É claro que, naquela época, você não tem tanta certeza dessas
coisas porque você não sabe direito o que são essas coisas. Você apenas
sente. Você sabe quem é você. E eu só via um membro que não me per-
tencia. Eu achava que ia cair a qualquer momento, que ia apodrecer...
Mas acho que de criança, assim. eu achava que tinha sido costurada...
Sei lá, não sei o porquê disso. Porque, tecnicamente, você nasce num
corpo assim, a sociedade te manda viver de um jeito e você não conse-
gue viver daquele jeito e você muda. Só que, pelo menos no meu caso,
eu, mesmo fazendo as mudanças, ainda não foi o suficiente. Vestir uma
roupa feminina não é o suficiente. Eu me sentia ainda trancada num
corpo que não me pertencia, digamos assim. Eu sei que é meio errado

100
falar desse jeito mas, às vezes, é como eu me sinto. É como muitas trans
se sentem também. Não vou generalizar mas eu sei que tem várias que
se sentem assim.
Eu fiz faculdade de Artes Visuais, bacharel. Na Belas Artes. Eu fui pegar
o diploma esses dias, e eu até tive uma surpresa: meu diploma veio com
tudo feminino, sem eu pedir. Acho que isso foi um erro. Mas foi um
erro bem acertado. Porque meu nome é feminino, então isso já ajuda
muito. E eu fiquei superfeliz com isso porque, pra mim, se não tivesse
no feminino não ia valer de nada. Até porque, naquela época, pra mim
foi como se eu estivesse vestindo um personagem. Todo dia, tinha que
ficar lembrando que... Tinha que ser tratada no masculino... Porque eu
já tinha consciência. Então, quando você tem consciência, já muda sua
cabeça em relação a isso.
Eu entrei na faculdade com 17 anos e foram cinco anos, mais ou menos
até os 22. Eu não pedia para ser tratada no feminino. É uma coisa assim
que você vai levando... E você vai se sentindo trancada. É que nem
em teatro. É basicamente isso. Quando falo isso pra minha mãe, ela
me acha louca. Mas no teatro eu aprendi muito isso. E eu percebi que
era muito parecido com o que eu vivia na vida real. Só que, pra eles,
era teatro. Tinha muito disso: age assim, fala assim, faz assado, pensa
assim. É o tempo todo você se policiando pra não ser você mesma. Tá,
eu posso gostar daquele porquinho amarelo [apontando um cofre de
louça na sala] mas não posso gostar do rosa, porque o rosa já entra em
outro gênero que não pertence a esse corpo. Eu via desse jeito. O que é
errado, porque existe gay afeminado que gosta de coisa feminina, existe
lésbica que gosta de coisa masculina... E nem por isso ela é um homem.
Depende muito da pessoa e de como ela quer ser classificada. De como
ela quer ser tratada e como ela se vê no espelho.
Eu moro sozinha faz um ano e pouco. Desde que comecei a fazer o
tratamento hormonal, eu comecei a morar sozinha. Foi meio que uma
coincidência. Pelo menos, até onde eu sei. Porque meus pais já estavam

101
com apartamento novo e a documentação ficou pronta bem nessa épo-
ca. Daí eles já tiveram que mudar, senão teriam que alugar, fazer alguma
coisa. Eu acho que eles acabaram aproveitando pra me deixar sozinha,
pra refletir, pra crescer, essas coisas... Porque, antes de fazer as mudan-
ças, eu não via motivo nenhum pra crescer. Porque eu ficava pensando:
se eu tiver que trabalhar, tiver que ficar sozinha, eu vou ficar sozinha
com esse corpo? Então eu preferia ficar sempre... Tentando regredir, di-
gamos assim. Não chega a ser infantil mas a não ter as responsabilidades
de adulto. Porque eu sabia que, se tivesse responsabilidades, eu teria que
morar sozinha. Era uma luta constante. Porque é o que a sociedade esti-
pula pra você. Eu ficava pensando: se eu morar sozinha, eu vou ter que
ficar me olhando no espelho sozinha? Então eu vivia pra eles, não vivia
pra mim. Porque quando você... é... Por exemplo, quando você é um
personagem, você não está vivendo pra você, você está tentando agradar
um público. E, pra mim, funcionava assim. Era confuso e... Talvez, essa
confusão que eu passei, que agora eu não passo mais, os meus pais vão
passar daqui pra frente. Porque, pra eles, eles tinham um filho [pausa].
Mas eles não tinham um filho. Eles tinham uma filha e não conseguiam
ver isso. E, quando eles me podavam, eles conseguiam ver o filho que
eles queriam ver. No começo, achavam que era um gay muito sensível.
Nunca falavam gay, falavam que era, tipo, uma pessoa muito sensível.
Até aí, né, “muito sensível”...
Tinham um certo bloqueio com as palavras. Eles eram meio reservados
nesse sentido. Eu cheguei a falar que eu era gay, por um bom tempo.
Primeiro, porque eu não sabia outra palavra. E, quando eu via, por
exemplo, uma transexual ou uma travesti que tivesse alguma caracterís-
tica masculina evidente, eu não conseguia entender que era uma mu-
lher. Eu via de uma forma diferente: “não, ela é diferente de mim. Acho
que é um homem querendo ser mulher”. Porque você é criada de uma
certa forma que não consegue perceber os outros. Isso acontece muito
com muitas lésbicas, com muitos gays. Porque rola esse preconceito

102
dentro do meio. Porque eles próprios não conseguem entender, não são
ensinados a entender. Eles não aprendem sobre sexualidade da maneira
correta na época escolar. Infelizmente, é assim. Então não tem apoio,
você acaba não tendo um apoio dessas pessoas que também são diferen-
tes e que deviam estar juntas, unidas no mesmo grupo. Eu vejo que tem
umas meninas que passam por isso, geralmente as que têm mais traços
masculinos passam por isso, são menos aceitas pela sociedade. O fato de
que eu não tinha tantos traços masculinos muda muito... Isso não quer
dizer que eu esteja salva. Eu não vejo assim. Até porque, mesmo que eu
faça a operação de readequação sexual, de redesignação sexual, eu vou
continuar sendo uma menina presa no corpo errado, entendeu? Mesmo
que eu faça a cirurgia... É só uma forma de me aliviar. De criar uma
ilusão e falar “não, tá tudo certo”. Porque, tecnicamente... É isso. Eu
sempre vou ser diferente das outras mulheres. E, afinal, todas as mulhe-
res são diferentes, né? Então... É só mais uma diferença, no passado.
Eu já ouvi falar que esta questão está na alma, é do espírito. Eu tentava
achar várias soluções, porque eu me sentia presa num filme. E não sabia
como escapar. Não sei se você já viu aqueles filmes que tem a pessoa que
entra na televisão... Eu sei que é uma viagem falar dessa maneira mas eu
me sentia um pouco assim. Tipo, eu nunca sabia; quando a porta fecha-
va, eu nunca sabia o que estava acontecendo do outro lado. E me sentia
presa. Cada dia eu tentava achar um jeito de escapar e achar uma teoria
pra tudo isso. Então você pensa em fada madrinha, você pensa em
dragão, você pensa num monstro debaixo da cama… Na brincadeira,
mas você acaba pensando em vários jeitos de... De sair daquela situação.
Porque você não sabe como sair. A sociedade trabalha seu psicológico de
um jeito que tem uma hora que você fica presa não só no corpo mas no
seu psicológico também.
Terapia hormonal? Na verdade, eu não entendia muito bem sobre isso.
Foi no dia que eu tentei me matar. Não deu certo. Eu contei pros meus
pais, fiquei desesperada... Eu contei que eu era uma mulher, que eu era

103
uma menina presa num corpo errado. Que eu não estava mais aguen-
tando a situação. E... [pausa] Desculpa...
[Não peça desculpa, Lua.]
[silêncio]
[Lua] Eu contei pra eles e foi aí que comecei a ir atrás de grupos, de
um grupo chamado Projeto Purpurina. E eles ajudam pessoas homos-
sexuais, transexuais. Eles apoiam. É uma ONG [GPH – Grupo de
Pais de Homossexuais]. E, lá, eu consegui uma psicanalista. Depois
minha mãe contratou um psiquiatra pra mim, indicada pela Edith
Modesto [fundadora e coordenadora da ONG]. Eu tinha entre 23
e 24 anos. E, nessa época, foi uma coincidência, porque todas as trans
famosas começaram a entrar na mídia, a aparecer toda hora na UOL.
Ariadne Arantes, Jenna Talackova, que participou do Miss Canadá, se
eu não me engano; acho que ficou em 11º lugar, não tenho certeza. Teve
umas outras também... Erin, que acabou namorando um homem trans,
também, ficou bem famoso na mídia, esse casal... Enfim, várias pessoas
que eram trans estavam na mídia na época. Foi um boom. Isso me aju-
dou bastante, comecei a pesquisar mais sobre o assunto. Comecei a ver
o que eu podia fazer em relação a esse corpo. Porque eu não sabia mais
o que fazer. Nem sabia se alguma coisa estava certa ou errada. Nessa
hora você não tem a mínima ideia do que vai acontecer. É um navio
afundando e você tendo que salvá-lo.
[Você é o próprio navio?]
[Lua] Sim... O Titanic. A terapia hormonal não tem prazo. É para a
vida toda. A vida toda. Na ONG, eu já parei de participar, e agora eu
só estou no SUS, fazendo o tratamento hormonal há, mais ou menos,
dois anos. Eu vou pegar meu laudo com o psiquiatra em junho, julho
deste ano. Esse laudo serve pra você fazer a cirurgia de readequação. Pra
dizer “oh, ela tá capacitada pra fazer a cirurgia. Tem condições mentais
pra fazer a cirurgia”. Porque o laudo é de Transtorno de Gênero. Só que
a questão é que o transtorno, na verdade, não é do gênero; é da questão

104
social e corporal, do que você está vendo no espelho. Não tem a ver
com a cabeça. E mesmo que tivesse a ver com a cabeça, você não tem
como mudar isso, então você tem que mudar o que dá pra mudar, cer-
to? [breve silêncio] Neste momento minha mãe me ajuda. Me ajuda
no que pode… Me liga sempre.... Acho que ela tem mais problema com
o mundo: medo de que acontecesse alguma coisa comigo no mundo. E,
até mesmo, porque ela foi meio que uma mãe solteira, então fica com
medo de ter influenciado no que não influenciou. Esse tipo de coisa
você não influencia alguém. Agora a relação está tranquila. Só acho
que ela ainda está começando a entender que ela tem uma filha e não
tinha um filho. Filho é o papel do meu irmão, não tem mais nada a ver
comigo; não sou mais obrigada.
E... o meu padrasto ainda não aceita. Ele me ajuda no que pode, mas
não fala comigo. Acho que é um processo. É claro, eu sinto falta. Queria
que ele me visse assim. Fico meio ansiosa... Ele só me viu no começo.
Era diferente. Acho que ainda ligava com aquela outra imagem. Agora,
já não. Já não tem mais nada a ver com aquela imagem. E meu pai,
de Campinas, que é meu pai biológico, ele ainda me trata de maneira
neutra; não me trata nem no masculino, nem no feminino [pequena
pausa]. Mas está aceitando. Do jeito dele, mas tá. De vez em quando
ele vem me visitar. Uma vez por ano. Ele também tem problemas com
os outros filhos, na verdade. Todos meios-irmãos. Mas é que eu ser trans
é a desculpa do dia.
A relação com meus irmãos é boa. Aceitaram tranquilamente. De vez
em quando, eu vou visitar meu irmão e minha cunhada, que acabaram
de ter filho. Eu fui uma das primeiras a saber que eu ia ser tia, que ela
ia ter bebê. Ele tem um respeito e gostam. A minha irmã Tainá faz um
tempo que não a vejo porque ela viajou. Está em outro estado e não es-
tou tendo muitas notícias dela. Mas é tranquilo. Apesar de ela ainda não
ter me visto completa, pelo menos, aparentemente. Espero vê-la logo. A
minha outra irmã, Camila, mora em Campinas, estava morando com o

105
meu pai e... [pausa] é tranquila, também. Ela já viu, a gente conversa,
já me trata no feminino. A minha irmã Camila tem 18, a minha irmã
Tainá tem dois anos a menos que eu, tem 25, meu irmão tem dois anos
a mais do que eu, o Caiêh, tem 29. O Bruno irmão por parte da minha
mãe tem 11 anos. Ele é muito reservado. Desde criança ele é assim, com
todo mundo. E... Me trata normalmente... Eu acho que, por influência
de amigos, ele ainda tem um pouco de medo, então acho que ele fica
muito mais reservado do que deveria. Só precisa de tempo.
Minha mãe ainda me chama de Lu. Lu também é unissex, não é? Mas,
pra mim, significa que ela ainda não está me enxergando completamen-
te. Eu tô ligada. Meu pai [biológico] às vezes me chama de Luane...
Por mais que seja feminino, tem uma questão psicológica por trás. Eu
não gosto de ser chamada por esse nome. Eu escrevo ele. Uso o RG,
tudo, mas... Acho que eu preciso de um tempo. E, mesmo precisando
de um tempo, eu acho que Lua, pra mim, está ótimo. Me sinto me-
lhor. Você entrou num assunto, assim, daqueles... Porque... Eu vou te
mostrar o documento porque é um pouco mais complexa essa questão
[silêncio, mexe na bolsa]. A minha carteira de trabalho [silêncio
novamente. Mostra todos os documentos que atestam “sexo:
feminino”]. Eu sou tratada no feminino em todo lugar, então... Tem
esse probleminha. No registro está feminino; no trabalho também
colocaram feminino, “vendedora”; no diploma está no feminino, sem
pedir. Às vezes, em exame médico, até antes das mudanças já vinha no
feminino, então isso me salvou muito nesse sentido. Pois meu nome de
batismo confunde as pessoas. Então eu não tenho problema na questão
de documento. Pelo menos nesse sentido, não tenho. Tanto que o meu
psiquiatra, toda vez que eu vou lá, ele fala assim “mas você mudou o
nome? Você entrou com o pedido?”. Não! Continua assim no meu
documento. Eu pretendia trocar a documentação para não ter muitas
complicações. Não sei ainda. Talvez eu continue assim. Porque no
Brasil, pelo menos em São Paulo, precisa da cirurgia de readequação pra

106
fazer isso. É um absurdo, né? Mas... Tem gente que diz que consegue,
depende muito do juiz. Tem juiz que empaca. Não sei se no meu caso
seria mais fácil porque, justamente, tudo já é no feminino, já sou trata-
da no feminino e a única coisa que empaca é a certidão de nascimento.
Eu não tenho problemas mas para muitas [trans] é uma burocracia
fazer qualquer coisa. É uma humilhação.
[…]
Meu primeiro beijo foi com 17 anos. Com um homem. E... acho que
ele era bissexual. Perdi a virgindade com 18. Uma boa idade pra se
perder [risos]. Se bem que eu queria ter perdido bem depois mas, pela
minha situação, eu não sabia se eu ia viver muito, então eu falei assim
“bom, deixa eu fazer dessa maneira”.
[Não viver muito por... Por você não querer mesmo?]
[Lua] Sim. Na época, eu já tinha traçado um limite pra mim: uns 23,
24 anos, era até onde eu podia aguentar. Porque depois eu sabia que eu
teria que morar sozinha, então...
[Você teria que enfrentar o mundo?]
[Lua] O mundo não. Enfrentar eu mesma. Eu não queria isso [si-
lêncio]. Não sei te explicar como eu superei tudo. Não sei ainda. Às
vezes, eu penso que é um jeito de... Eu mudar um pouco os olhares do
mundo. Dos brasileiros. Fazendo as pessoas valorizarem mais as outras.
E [pausa] eu acho que, pelo fato de me acharem bonita, isso é uma
arma, sabe? Isso é uma forma de chamar a atenção pra causa. Não é só
um enfeite. Acho que a beleza tá aí. Infelizmente, as pessoas se impor-
tam, sim, com beleza, são estéticas, superficiais... Mas, enfim, é uma
forma de você chamar a atenção pra algumas coisas que são boas. Não
só pras coisas fúteis. Tipo... Mostrar que pessoas trans não são lixo. Tra-
vestis não são lixo. Gays não são só aquilo. Lésbicas não são só aquilo
que muitos acham, que somos pessoas ruins, pessoas pecadoras. Ligado
ao sexo, quem não é? A partir do momento que te vestem de rosa ou

107
azul, você só está pensando em sexo. Porque era assim que eu via antes.
Eu via como se olhassem pra mim como se eu tivesse cara de pênis.
Porque só estão vendo o gênero, vendo o sexo. Não estão vendo outra
coisa. O sexo está presente na vida de todo mundo. É dolorido? É. Você
tem que passar por essa fase? Tem. Quando criança você não pensa em
sexo, você não tem vontade, desejos. Mas depois não tem jeito. Entra a
adolescência faz parte de você aquilo. É doloroso? É, mas todo mundo
tem que crescer. De forma biológica também. O sexo pertence a todo
mundo. As pessoas que veem coisas ruins nele. Eu acho que é ruim a
partir do momento que alguém quer passar doença pro outro; acho que
é ruim quando um engana o outro. Mas se a pessoa quer transar com/
sem e tá sendo sincero... Problema da pessoa. Se quer transar com um,
se quer ser virgem, problema seu. Você não está machucando alguém.
As pessoas ainda estão muito envolvidas na vida dos outros e querendo
aprisionar os outros naqueles paradigmas ou limites [pausa]. Por exem-
plo, eu tenho um círculo de amigos variados. Tenho amigos de todo
tipo: trans, gays... Os amigos sempre quiseram me tratar no feminino.
Antes de eu contar que eu era trans, muitos diziam assim: “você é muito
diferente, tem alguma coisa estranha”. E isso me assustava porque eu
tentava esconder. Então, “opa, não estou escondendo direito”. Achei
que ia perder os amigos. Na época, eu nem achava que tinha amigos.
Mas as coisas mudaram bastante. Muita gente tentou me ajudar. Fui
convidada pra fazer algumas sessões de fotos, às vezes tem algum amigo
que me chama pra algum trabalho... Eu nunca gostei dessa ideia, “ah,
sou trans, tenho que ser amiga de todas as trans”. Acho que não fun-
ciona assim. Por exemplo, você tem um amigo gay aí você acha que ele
tem que ser obrigado a fazer amizade com todos os amigos gays? Não
funciona assim, tem que ter afinidades. Só a questão do gênero ou do
sexo não é afinidade pra ninguém, a não ser que seja uma relação muito
superficial.... Eu tenho poucas amigas lésbicas. Bem poucas. Mas acho
que é uma questão do círculo de amizade que acaba não tendo tantas

108
pessoas daquele tipo. Tenho amigos héteros, amigos de infância, me
tratam no feminino... Isso é muito legal, às vezes eles me tratam até no
feminino no passado. Então isso é bom. Porque quando me tratavam
no masculino no passado, pra mim, era como se eu não estivesse lá. Eu
lembro de vocês mas eu não lembro do conjunto.
[Quando esse amigo te rememora no passado, no feminino,
ele constrói essa memória com você?]
[Lua] Sim, de certa forma tem um esforço. Ele me resgata. Com certe-
za. Porque eu pensava: “ou eu elimino totalmente o passado, de alguma
forma, o que não tem nada a ver comigo, ou eu mostro que eu estava
lá só que eu não estava do jeito que eles estavam pensando”. Eu explico
isso pra minha família. Minha avó tenta me tratar no feminino no pas-
sado. Está fazendo um esforço. E tem uma tia minha que estava lutando
um pouquinho, mas agora já está melhorando. Sabe que eu não gosto,
eu não me sinto bem. Eu não me sinto realmente bem. Parece que eu
saio do meu corpo naquele momento em que me tratam no masculino.
Sabe? Parece que nem adianta ter feito alguma mudança, porque não
estão me enxergando. Dá um certo desespero, às vezes.
[...]
Uma vez eu estava no shopping com um grupo de amigos e um cara
que eu estava ficando, antes das mudanças, então vieram uns caras
enormes querendo mexer comigo e as pessoas do grupo. Daí um
deles pegou a cabeça do cara que eu estava ficando e enfiou na mesa.
Achei que ia fazer o mesmo comigo, mas não aconteceu. Não foi feito
nenhum boletim de ocorrência. Teve reclamação no shopping, a gente
saiu com segurança até o metrô. Mas só. Na época eu era muito criança,
não entendia muito bem isso. Entendia que era preconceito, era um
preconceito forte, mas não sabia quais eram os limites da lei. Você não
tem esse tipo de instrução. Pelo menos agora começou a ter informação
sobre essas questões. Sobre como reclamar. Pela internet inclusive. Antes
parecia que você não tinha voz. Parecia que você ia se expor mais ainda.

109
Esse tipo de violência acho que foi só essa vez. As brincadeirinhas na
época de escola sempre tiveram. Era insuportável. Não dava pra estudar.
Às vezes, eu só ficava pensando nisso, que horas iam tentar me fazer
alguma brincadeirinha ou pior... Porque às vezes eu recebia ameaça. Eu
ficava bem preocupada com essas coisas. E tinha o meu desconforto em
relação ao meu corpo, em relação aos outros. Mistura tudo isso com
uma pessoa que está entrando numa adolescência que não é nem dela!
As coisas pioram bastante. Porque eu falava assim pra minha mãe: “mãe,
por que isso que está crescendo aqui? O que está acontecendo com a
minha voz?”. Ela falava que era normal. Pra mim, não era normal. Pra
mim, era como se fosse um conto de fadas ao contrário: você está se
transformando numa coisa que não é você. Até porque eu nunca tive
pelos, assim, na bochecha, nunca fiz barba. Graças a deus, nunca tive
esse tipo de problema aqui. Tive só que fazer depilação a laser no buço
e embaixo do queixo. E... eu perdi, desculpa... [pausa] Eu acho que a
maior violência psicológica era o silêncio. Eu sentia muito no silêncio.
Não sei explicar como. O machismo está no silêncio das pessoas. O
preconceito está no silêncio. Você entra num ambiente, digamos assim,
num bar. Quando eu estou com amigos eu me sinto um pouco mais
confortável. Agora... No metrô, andando na rua... Lugares onde eu
chamo muito a atenção é complicado. Por isso te pedi para me buscar
na estação. Na maioria das vezes me reconhecem como mulher. Mas eu
sou alta então tem gente que desconfia pela altura. Tem aquela cabeça
bem fechada. Tipo: mulher alta não existe. Mas existe muita mulher
alta. Além de mulheres trans, tem também as mulheres cisgêneras que
também têm altura.
A maioria olha com admiração. Tem gente que olha estranho mas se
você fala um “oi” já desmonta. Isso é até bom. Eu gosto quando olham
assim porque acho que faz bem pra pessoa e faz bem pra mim, de não
ter nada negativo naquilo. Mas eu nunca sei quando é negativo ou não.
São muitos olhares e você não está numa peça de teatro, entendeu? É

110
sua vida, ali. Às vezes... Eu me sinto um pouco exposta. Um pouco não,
muito. Muito exposta. Pra mim, essa questão ainda tenho que superar...
Tenho que superar. O que eu acho que eu me sinto cobrada é de ter que
contar que eu sou trans. Porque sempre acham que eu sou uma mulher
cisgênera. Isso eu acho que sou cobrada. De ter que falar. Porque eu não
quero parecer uma mulher cisgênera. Porque eu não sou uma mulher
cisgênera. Por mais que eu seja mulher, e agora eu consigo refletir isso
por fora, eu sei que meu corpo não é de uma mulher cisgênera. Mesmo
que eu tiver uma vagina. Continuo sendo uma mulher, mas não uma
mulher cisgênera. É que as pessoas só colocam “mulher” então fica
aquele peso; aquele peso da palavra “mulher”, da “original”. E não é
assim. Eu não gosto de ficar parecendo uma coisa que eu não sou. Mas
o fato de quererem me colocar parecendo com alguém. Quem é essa
mulher cisgênera que eu pareço? Eu não entendo muito bem como que
funciona isso na cabeça das pessoas. Ou, até mesmo, na minha. Não
posso ser hipócrita. Eu gosto de ser tratada no feminino, gosto que me
vejam, que saibam que eu sou uma mulher trans.
Não é orgulho. O fato é que, quando te falam que você é uma mulher,
essa palavra carrega muita coisa. “Homem”, “mulher”. Perguntaram pra
mim: “você era homem?”. Bom... complicado falar isso, porque eu não
cheguei nem a ter pelos no rosto, não pensava como homem. Eu tinha
instinto maternal... Então o que é exatamente ser homem? O que é
exatamente ser mulher?
Ser trans traz muitos medos. Muitos. Este tempo de terapia hormonal
não é que me deixou mais feliz. Me deixou mais livre. Na questão so-
cial, em como eu me vejo. Porque tem muitas características físicas que
me faziam sentir presa pelo fato de terem colocado muitos significados
naquelas partes. Então o fato de saber que tem partes que estão sendo
eliminadas está sendo ótimo porque eu estou tirando todo aquele sig-
nificado imposto, aquele peso. Isso ajuda bastante. Eu tenho o alívio de
que algumas coisas não vão mudar pra pior mas tem um certo descon-

111
forto, talvez, de eu saber que dependo desses remédios para o resto da
vida. Eu tenho medo de ficar sem remédio, de voltar a me transformar
em uma coisa que eu não sou. Medo de não conseguir minhas cirurgias.
Medo de não aguentar ficar presa num corpo errado... Porque eu tenho
crises, muitas vezes... E... [pausa] Só um segundo [pausa longa].
Você tem medo de um monte de coisa. Mas acho que a maioria dos
medos todo mundo tem. Medo de envelhecer, de ser abandonada, de
ficar sozinha, de não ser amada, de não ter dinheiro... Todo mundo
tem esses medos. Do preconceito. Você pode sofrer de preconceito com
tudo. Por ser normal, por ser loira, por ser homem, por ser mulher,
por ser baixinha, por ser alta, por ser gorda, magra... As pessoas ainda
não estipularam um limite para a falta de respeito. Basicamente é isso.
Eu tava vendo uma matéria falando da Lady Gaga. Eu gosto dela. E
ela estava no Oscar com luvas vermelhas que pareciam luvas de limpe-
za. E muita gente reclamando. Como se tivesse algum direito sobre a
vida dela. E fora que não ficaram feias! Tá legal, tá criativo. As pessoas
querem sempre o normal, sempre o que é aprovado pelos outros. Isso
ainda eu acho muito errado. Você tem que ser quem você é, quem você
quer ser. Se você quer vestir uma roupa de vaca por que você não pode?
Porque a sociedade determina? Infelizmente, muita gente acaba não se
vestindo de vaca por causa disso. Até mesmo quem precisa trabalhar
se for o caso, vestida de vaca, fica com vergonha. Eu percebi muito
isso, essa opressão quando eu fazia teatro e tinha aula de Maquiagem e
Caracterização. Eu era a única que, às vezes, saía da aula maquiada. Os
outros todos tinham medo de sair maquiados, sendo héteros, mulheres,
mulheres lésbicas, idosas... Queriam tirar toda a maquiagem com medo
de que alguém visse. Mesmo que saíssem de carro. Todos. Não tinha um
que não tivesse esse tipo de problema. E isso é preocupante. Você per-
cebe como que é a opressão. As pessoas precisam parar de julgar tanto.
Porque isso é o resultado de alguma coisa que acontece no silêncio que
tem nessa cidade. Eu acho que as pessoas precisam enxergar mais o co-

112
ração dos outros. Mesmo que ele esteja dentro do corpo, eu acho que é
importante as pessoas terem um pouco de sensibilidade. O que sempre
as pessoas acharam ridículo, ter sensibilidade, é uma coisa que eu acho
valiosa; é preciso ter pra despertar um pouco de inteligência emocional.
E esse respeito pelo outro, não é só um respeito de você deixar o outro
sentar do seu lado, mas de querer, às vezes, ajudar também o outro. De
você participar da vida do outro – contanto que isso não faça mal pra
outra pessoa. Acho que isso é importante.
Eu acho que é sufocante, sim, isso de você não poder ter certos direi-
tos civis. Porque quem está de fora acha que você está comendo, você
tá recebendo salário, está tudo certo. E não é assim. Você tem alguns
direitos que são privados pra você. Como você falou: se você é diferente,
trans, você é proibida de entrar num banheiro? [indignada] Isso é
errado! A questão do casamento, de você não poder fazer um casamento
legal entre gays, entre lésbicas, entre trans. Mulher trans com homem
cisgênero, um homem trans com uma mulher cisgênera. Essa questão
da dificuldade que tem para se adotar crianças aqui no Brasil por pais
homossexuais. Isso precisa ser melhorado. Precisa ter mais consciência,
consciência coletiva. Pra tudo. Pra questão da água, questão de lixo,
questão de trânsito, questão de pessoas com deficiência que as pessoas
ainda não respeitam... Nesse sentido.
Profissionalmente, eu queria muito entrar no mundo dos desfiles. Eu
estou fazendo várias sessões de fotos, mas ainda não consegui entrar
nesse meio fashion. Não sei, está no meu sangue. Eu sinto isso. Nem
pergunte como. Tenho muita vontade. Mas mesmo que eu não tivesse
o perfil, eu ia continuar tendo essa vontade, isso não ia me impedir, não
[risos]. Semana que vem vou ter uma sessão de fotos num projeto meu
e da Kalinca Maki. Eu já trabalhei com ela.
É importante você não esconder quem você é porque senão as pessoas
acham que pessoas como eu não existem. Que são alienígenas. E não
são. É uma realidade e não um conto de fadas. Apesar de gostar muito
de contos de fadas, eu sei que não é.

113
O depoimento de Lua Aoki revela um outro nível de violência aco-
metida diariamente a indivíduos, cidadãos que não estão classificados
no sistema heteronormativo, binário e cisgênero. Portanto, faz-se ne-
cessário definir essas características e suas nomenclaturas contempo-
râneas.
Um indivíduo é considerado cisgênero (do latim cis = do mesmo
lado, deste lado) quando sua identidade de gênero está em consonân-
cia com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer. Assim sua conduta
psicossocial, nos atos cotidianos, está de acordo com o que social-
mente se espera das pessoas com esse sexo biológico. O indivíduo
cisgênero é alguém que está adequado ao sistema binário de gêneros
em contraste com o transgênero.
O termo transgênero surge como um denominador geral do grupo,
classificando todos os seus membros com base nos seus desvios relati-
vos ao comportamento socialmente esperado do gênero em que foram
classificados ao nascer. Segundo a psicanalista Letícia Lanz, “o concei-
to se aplicaria a qualquer indivíduo que, em tempo integral, parcial
ou em momentos e/ou situações específicas da sua vida, demonstre
algum grau de desconforto ou se comporte de maneira discordante do
gênero em que está enquadrado”.
Hailey Kaas – bacharel em Artes Plásticas e em Tradução – é mili-
tante e autora do blog e movimento Transfeminismo. Em seu comple-
to artigo “O que é cissexismo”, afirma que “vivemos em uma socieda-
de ciscêntrica, cisnormativa. Isso ocorre porque as pessoas cis detêm
o poder de decisão sobre as pessoas não cis dentro de vários âmbitos:
Médico, Político, Jurídico, Financeiro etc.”. Assim, uma pessoa cis
mantém – politicamente – um status de privilégio em detrimentos
das pessoas trans*, dentro da cisnorma (o uso do asterisco para o mo-
vimento é porque a palavra trans* é considerada um termo guarda-
-chuva – umbrella term – que abriga e expressa várias identidades:
transexual ou transgênero e travesti e ainda indivíduos que se identifi-
cam dentro e/ou fora do sistema normativo binário de gênero, ou seja,
da ideia normativa sobre o que é “masculino” e “feminino”).

114
O artigo objetiva evidenciar o caráter ilusório da naturalidade da ca-
tegoria cis e não criar uma dicotomia entre pessoas cis e pessoas trans.
“O alinhamento cis envolve um sentimento interno de congruência
entre seu corpo (morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde
o conjunto de performances é percebido como coerente. Em suma, é
a pessoa que foi designada ‘homem’ ou ‘mulher’, se sente bem com
isso e é percebida e tratada socialmente (medicamente, juridicamen-
te, politicamente) como tal, afirma.” Para a autora nomear cis é uma
atitude política. “Historicamente a ciência criou as identidades trans*
(e por isso já nasceram marginalizadas), mas não criou nenhum termo
para as identidades consideradas ‘naturais’. É por isso que a adoção do
termo cis denuncia esse pseudostatus natural. Nomear cis é o mesmo
processo político de nomear trans*: aponta e especifica uma experiên-
cia e possibilita sua análise critica”, defende.
Surge então o conceito de cissexismo, que é a desconsideração da
existência das pessoas trans na sociedade que acontece por meio da
negação das necessidades específicas dessas pessoas. É a proibição de
acesso aos banheiros públicos, a exigência de um laudo médico para
as pessoas trans existirem, ou seja, o gênero das pessoas trans necessita
legitimação médica, e a negação de status jurídico impossibilitando a
existência civil-social em documentos oficiais.
Estas são questões que podem ser caracterizadas como transfobia
mas o cissexismo ocorre quando se usa o termo biológico para desig-
nar pessoas cis, usando discursos e expressões que excluem ou invali-
dam direta ou indiretamente as identidades das pessoas trans*.
A autora lista alguns comportamentos discriminatórios que eviden-
ciam o cissexismo:
• Noção de que só existe um tipo de morfologia (corpo) e este
deve estar alinhado com o gênero designado ao nascer;
• Noção de que só existem dois gêneros (binários: masculino/fe-
minino) e que uma pessoa deve estar alinhada dentro de um desses dois;

115
• Noção de que uma pessoa trans* tem uma vivência menos
‘verdadeira’, e/ou nunca será ‘verdadeira’ se não fizer modificações em
seu corpo para ficar mais próxima de um dos gêneros binários;
• Noção de que uma pessoa precisa estar dentro de um desses
gêneros binários, porque senão ela não será feliz ou não será aceita
etc.;
• Noção de que pessoas que não se encaixam no binário são
doentes mentais, têm patologia e precisam se tratar de algum modo
para se curar e que essa cura ou será o alinhamento, ou o processo
transexualizador;
• Noção de que o corpo da pessoa é “bizarro”, que ela não pode
viver no “entre” etc., o que pode caracterizar também transmisoginia
e/ou transmisandria;
• Noção de que a pessoa “dá pinta”, “é muito escandalosa”,
“chama atenção”, principalmente no que diz respeito à performance
e/ou atitudes que não estão alinhadas do ponto de vista cis ou não age
como esperado do alinhamento cis;
• Uso de termos ofensivos, mas que muitas pessoas não acham
ofensivos, ou evocar arbitrariamente (sem a permissão da pessoa) o
nome designado ao nascer (nome civil), a experiência “pregressa” (fa-
lar em “antes” e “depois”); termos como ‘transvestir’,’transformista’,
‘traveco’, ‘transex’, ‘t-gata’, ‘t-lovers’; e o uso de termos como cross-
dress, drag, drag queen/king, quando você não sabe qual é a identida-
de da pessoa;
• Designar arbitrariamente a identidade da pessoa. Conhecer
alguém e prontamente decidir qual é a ID da pessoa baseada na ima-
gem (visual e/ou performática) (da sua posição cis) que você tem dela.
Alinhar pronomes e identidades também é cissexista;
• Na simples discriminação pela pessoa não ser cis, por ter
qualquer comportamento diferente do esperado pelo alinhamento cis.
Nesse ponto o sexismo também tem papel importante. cissexismo e
sexismo são faces da mesma moeda.

116
Gêneros binários são classificados em feminino (mulheres) e mascu-
lino (homens). Uma pessoa binária é aquela que se identifica estrita-
mente com o gênero feminino ou com o gênero masculino, sempre de
forma separada, sem fluidez e em totalidade. Pessoas binárias podem
ser cisgênero (cis) ou transgênero (trans). Todos esses gêneros (biná-
rios ou não) fazem parte de um mesmo universo infinito de gêneros.
Os gêneros não binários são todos os outros gêneros que não são
nem 100% feminino nem 100% masculino. Incluem formas de neu-
tralidade, ambiguidade, multiplicidade, parcialidade, ageneridade,
outrogeneridade e fluidez de gêneros. São infinitos gêneros também.
Pessoas não binárias são sempre trans.
De maneira geral, podemos falar em Identidade de Gênero, Ex-
pressão de Gênero, Identidade Sexual, Orientação Sexual, Identidade
Romântica, Orientação Romântica, Genitais e Sistema Reprodutor.
Enfim, todas essas características são distintas e não correlacionadas.
Por este motivo, genital e sistema reprodutor não têm relação obriga-
tória com identidade de gênero, que, por sua vez, não necessariamente
está relacionada com identidade ou orientação sexuais.
Em toda a luta, militância e questões da comunidade LGBT, sem
dúvida transgêneros e travestis enfrentam a maior invisibilidade, dis-
criminação, preconceito, segregação e privação de direitos em todos
os aspectos da vida: profissional, social, econômico, incluindo acesso
a um sistema de saúde que garanta respeito, cuidado especializado e
tratamentos adequados e específicos. Visando garantir tais direitos,
tramita no Congresso Nacional desde o dia 20 de fevereiro de 2013 o
Projeto de Lei da Câmara – PLC 5002/2013 a “lei de Identidade de
Gênero”, também conhecida como “lei João W. Nery”. O projeto foi
apresentado pelos deputados federais Jean Wyllys, Erica Kokay, entre
outros, e dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo
58 da lei 6.015 de 1973. Os três primeiros artigos pretendem tornar
acessível a identificação de gênero pela própria pessoa a partir de sua

117
autopercepção. Dando-lhe autonomia e voz. Sem a necessidade de
uma aprovação do Estado, que hoje legisla sobre o corpo do cidadão.
Artigo 1º – “Toda pessoa tem direito: I – ao reconhecimento de sua
identidade de gênero; II – ao livre desenvolvimento de sua pessoa con-
forme sua identidade de gênero; III– a ser tratada de acordo com sua
identidade de gênero e, em particular, a ser identificada dessa maneira
nos instrumentos que acreditem sua identidade pessoal a respeito do/s
prenome/s, da imagem e do sexo com que é registrada neles.”
Artigo 2º – “Entende-se por identidade de gênero a vivência interna
e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, a qual pode cor-
responder ou não com o sexo atribuído após o nascimento, incluindo
a vivência pessoal do corpo. Parágrafo único: O exercício do direito
à identidade de gênero pode envolver a modificação da aparência ou
da função corporal através de meios farmacológicos, cirúrgicos ou de
outra índole, desde que isso seja livremente escolhido, e outras expres-
sões de gênero, inclusive vestimenta, modo de fala e maneirismos.”
Artigo 3º – Toda pessoa poderá solicitar a retificação registral de
sexo e a mudança do prenome e da imagem registradas na documen-
tação pessoal, sempre que não coincidam com a sua identidade de
gênero autopercebida.”
O Artigo 4º apresenta um parágrafo único de suma importância:
“Em nenhum caso serão requisitos para alteração do prenome: I – in-
tervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial; II – terapias
hormonais; III – qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico
psicológico ou médico; IV – autorização judicial.”
A transexualidade ainda é considerada um transtorno pela psiquia-
tria e pelo Estado. Atualmente, ainda é necessária a emissão de um
laudo psiquiátrico para a hormonização, para cirurgias e para a mu-
dança de nome. O movimento social organizado considera essa inter-
ferência estatal absurda e luta para a despatologização das identidades
trans.

118
SAMUEL SILVA
depoimento em 10 de junho de 2015

Ao encontrar com Samuel, conforme combinado, nas escadarias do


prédio da Gazeta, ele sorri largamente e seguimos para um café dentro
do cinema do edifício. Ele começa a falar espontaneamente sem eu
mesmo cumprir com minha formalidade explicando que vou gravar o
depoimento. Sempre com muitas pausas. Muitas pausas. Muitas res-
pirações profundas. Risos irônicos. Risos tensos. E basicamente não
me olha nos olhos. Seus olhos sempre estão para baixo, à direita. Pen-
so em tudo o que possivelmente virá desta conversa.

[Samuel] Sou de São Paulo, da zona leste, na Água Rasa.


Eu estudei num colégio que era perto de casa, que se chamava Nossa
Senhora de Lourdes. Era uma escola privada mas era uma escola, assim,
bem baixo nível. O Lurdão, que era como a gente chamava, era um
colégio bem fácil. Eu era um dos melhores alunos nesse colégio. Eu era
bem nerd. Depois no colegial eu mudei para o Agostiniano Mendel,
que também era perto. Era um colégio bem difícil, a gente brincava que
era um colégio quase militar. Mas eu também ia relativamente bem. Eu
sempre fui bem inteligente no colégio. Mas, assim, eu enfrentei algumas
dificuldades, no sentido de quase ser expulso por causa das questões de
sexualidade e de gênero. E questões de problemas psicológicos e psiqui-
átricos que eu fui apresentando. Por causa dos meus conflitos internos.
Mas sempre fui muito bom aluno.
Eu cresci numa família muito religiosa. Meus pais são da Congregação
Cristã no Brasil. Minha família inteira é. Lá, os homens são separados
das mulheres, as mulheres têm que usar saia, cabelo comprido, não
pode cortar. E têm que usar um véu na cabeça em respeito aos homens.

119
Não é em respeito a deus. Isso pouca gente fala, mas é verdade. Porque
os homens são a cabeça das mulheres e deus é a cabeça dos homens.
Tem uma relação de poder muito forte ali dentro em que a mulher
é um ser inferior ao homem. É um machismo muito grande. Então,
enquanto eu me identificava como mulher eu me sentia um ser inferior
por causa dessa educação que eu tive dentro da religião. Eu nasci no
berço desse religião. Eu cresci dentro dessa religião. Então eu tinha que
usar saia, eu tinha que ter cabelo comprido, dentro da igreja eu tinha
que usar o véu, eu tinha todo esse peso em ser mulher até os 17 anos.
Foi quando eu rompi com a igreja. Eu moro com meus pais e com meu
irmão mais novo, de 20 anos. Ele ainda é bem religioso e não me aceita
até hoje. Ele me trata no feminino e me chama pelo meu nome de
registro. É... [pausa] Na verdade a gente nem se fala direito por causa
desta questão.
Eu escolho Samuel porque minha família é muito religiosa. E meu
nome de registro não é um nome bíblico. E Samuel é um nome bíblico.
E Samuel é “um milagre de deus”. Porque a mãe de Samuel na bíblia
não era pra ter um filho, e ela pediu para deus para ter um filho porque
ela já era muito velha. Então, Samuel nasce como um milagre de deus.
Não era pra ter nascido mas nasceu. Então, eu vim. E não era pra eu ter
vindo desse jeito mas eu vim como um milagre também. E Samuel mais
do que isso foi prometido para deus. Então eu também sou uma pro-
messa de deus então eu também vim falando que eu sou uma promessa
pra deus apesar de estar sendo contra a igreja, contra o que os meus pais
acreditam, contra tudo. Eu também tenho o direito de ser uma promes-
sa para deus. E eu venho com toda esta história [risos].
Então, eu nasço nesse contexto e vou crescendo. Geralmente os meni-
nos trans eles relatam um tipo de comportamento característico que é
ser o mais masculino possível. E eu não tenho esse tipo de comporta-
mento quando eu era bem pequeno. Por exemplo, eu sempre fui uma
criança muito sensível, uma criança muito delicada, uma criança muito
chorona, e se você olhasse para aquela criança você ia ver uma menina.

120
Não ia ver um molequinho, uma criança masculina. Eu destoo um pou-
co disso, dos outros meninos trans. Eu sempre fui uma criança muito,
muito sensível [convicto]. Eu sou um menino sensível. Um menino
mais voltado para a parte artística, sentimental... Isso destoa um pouco
dos outros meninos que são um pouco mais agressivos. Mais voltado
para esportes. Eu gostava muito de jogar futebol mas, por exemplo, eu
era aquele menino que se caia, se machucava, sentava e chorava [risos].
Não era aquela coisa de cair, levantar e voltar a jogar futebol. Eu ia jogar
com os meninos, eu adorava brincadeira masculina mas eu era visto
como menina pelos outros meninos, eu não era visto como um deles.
Eu rejeitava tudo o que era de menina até os 8 anos de idade. Eu não
rejeitava roupas porque eu queria agradar meus pais. Desde sempre eu
queria agradar os outros. Eu tinha também essa característica passiva.
Outra característica que é tida como feminina. Se minha mãe me vestia
de tal roupa eu aceitava, eu fazia o que os outros queriam. Mas tinha
uma coisa que eu não deixava não. Era que colocassem qualquer enfeite
no meu cabelo. Isso desde bebê minha mãe falava. Desde sempre.
Uma das primeiras memórias da crise de identidade de gênero é... É
uma coisa meio difusa. Mas acho que é ... A partir... Dos 8 anos, quan-
do começa uma certa pressão por parte da minha avó materna. Porque
meus pais trabalhavam muito. Eu nem lembro dos meus pais nessa épo-
ca. Quando eu era pequeno a gente era de classe média. Média média
mesmo. Porque eu acho que a gente ascendeu um pouco socialmente.
Mas meus pais trabalhavam muito e a gente – eu e meu irmão – era
criado pela minha avó e minha tia-avó. E minha avó fazia uma pressão
muito grande em mim falando que eu não deveria me comportar como
um menino, como um moleque, eu não deveria ficar brincando na rua.
Não deveria ficar jogando bola... Eu deveria ficar em casa me compor-
tando como uma mocinha. Deveria aprender a lavar a louça, deveria
aprender coisas de menina. Eu deveria me comportar como minha mãe
se comportava quando criança e mocinha. E ela me comparava com a
minha mãe o tempo todo. Minha mãe sempre fui muito certinha, sem-

121
pre ficou em casa, nunca teve infância ou adolescência direito. Minha
mãe demorou um pouco para casar porque ela foi tão controlada que
ela não tinha vida social para arranjar um marido. Ela foi arranjar um
marido quando ela entrou no trabalho, aí ela conheceu um moço que
foi meu pai, dentro do emprego. Tanto que eles trabalham na mesma
empresa de informática até hoje. Juntos. E aí eles casaram. Deram sorte
de os dois serem da mesma igreja [risos]. Ela sempre foi muito regrada.
E eu não. Eu queria fugir disso. Então eu comecei a sentir um pouco
dessa injustiça social em cima de mim. Meu irmão podia fazer tudo. E
eu não podia fazer nada. Comecei notar essa diferença entre nós. Entre
mim e meu irmão. Essa contradição. Aí que começou um pouco o
conflito, eu acho.
Mas eu fui obedecer minha avó, ouvir minha avó, por causa de um fato.
Eu fui forçada a entrar no mundo feminino por causa de um fato que
aconteceu na minha vida, que foi um marco. Que foi algo que me ex-
pulsou do mundo masculino. Foi um abuso sexual que sofri no prédio
[o ambiente intimista reverbera a voz e a história. Proponho
mudarmos de lugar e Samuel sugere irmos para o Parque
Trianon. Ele acende um cigarro. Caminhamos]. E foi assim. Até
os 8 anos de idade eu morava numa casa. O mundo era um pouco mais
restrito. A gente tinha menos amigos, um vizinho ou outro. Mas quan-
do a gente mudou para um prédio a quantidade de criança e adolescen-
te que tinha era enorme. Então nosso mundo abriu [enfático]. Então
nesse ano as minhas relações sociais aumentaram. Como lá todo mundo
era de classe média, todos os pais trabalhavam muito, as crianças e os
adolescentes ficavam muito soltos, livres, pela área comum do prédio.
Então meio que se criou uma sociedade em que as crianças e os adoles-
centes se controlavam a eles mesmo. Sabe, as crianças criam as próprias
leis, com uma hierarquia. Quem detinha o poder no prédio óbvio que
eram os mais velhos, os adolescentes. E quando os adolescentes têm o
poder, as crianças um pouco mais novas tentam imitar os adolescentes.
Então os pré-adolescentes imitam os adolescentes, e assim por diante.

122
Eu tinha exatamente 8 anos. Eu era uma das crianças mais novas. Meu
irmão, mais novo ainda, 6 anos, não entendia porra nenhuma do que
estava acontecendo. Eu já entendia um pouco mais. E foi nessa história
toda que eu comecei a ter algum contato com a sexualidade humana,
porque eu não tinha contato nenhum. Eu não sabia de onde vinham os
bebês, não sabia como se faziam bebês, achava que vinha da cegonha,
sei lá, na verdade achava que vinha de deus, porque eu estava inserido
num contexto religioso. Mas aí eu soube que as pessoas transavam, que
nascia da mulher. Isso já foi um susto enorme para mim.
Os adolescentes mais velhos, eles faziam sexo com as meninas. E os
pré-adolescentes queriam imitar esse comportamento dos adolescentes.
E aconteceu, num dia que eu estava brincando de esconde-esconde... O
prédio tinha um salão de festas e a gente invadia esse salão. Porque era
muito fácil invadir, especialmente se você era pequeno, ou não muito
grande. Era uma janela que estava meio quebrada, a gente levantava o
vidro, empurrava pro lado, aquelas janelas de correr, pulava uma mureta
e entrava. A gente se escondia ali às vezes. Só que era meio que proibido
se esconder ali porque era o lugar mais difícil de as pessoas te acharem,
tá ligado? Só que eu fui me esconder ali porque achei que estava sendo
muito inteligente, ninguém ia me achar e eu ia ganhar o jogo. Eu entrei
sozinho e achei que ninguém ia me seguir, só que três pré-adolescentes
me seguiram e ... [pausa] E... [pausa]... E aí... É... [pausa]... Acon-
teceu que dois deles me seguraram e um deles me abusou sexualmente.
E aí a partir desse momento... [pausa longa] As coisas mudaram por-
que eu senti que eu estava sendo expulso daquele mundo. Do mundo
masculino. E que eu não tinha espaço ali [pausa longa]. Aí... Aí... A
partir daquele momento eu entendi o que minha vó estava querendo di-
zer – e acho que inconscientemente porque eu era muito pequeno para
tentar entender qualquer coisa – quando falava que eu “NÃO PODIA
ser como os meninos, eu NÃO PODIA agir como os meninos. Porque
eu NÃO ERA como eles”. Eu entendi que eu era diferente. O porquê
eu era diferente. E isso era meio que proibido. E que, se eu continuasse

123
andando com os meninos ou fazendo o que eles faziam, eu ia ser puni-
do. Ia ser punido daquele jeito. E eu não queria mais ser punido daque-
le jeito. Então eu fui forçado a entrar no mundo feminino. E agir como
menina. E me comportar “direito”. A partir daquele momento eu passei
a me comportar como menina e fazer amigas meninas. Me travestir de
menina. Por mais que eu odiasse aquilo. Eu fiz uma amiga no prédio, e
a gente brincava de bonecas, e ela comandava a brincadeira e eu seguia.
As outras meninas me perseguiam – não sei o porquê mas penso que
era porque elas notavam que eu era diferente – elas me zoavam muito,
muito, muito. Zoavam minha roupa, zoavam meu cabelo, zoavam meu
jeito, tudo. E essa minha amiga me defendia. Isso era legal, pelo menos.
E assim eu fui crescendo inclusive dentro da igreja. E na igreja era mui-
to difícil porque eu me sentia muito mal lá dentro. Muito mal mesmo.
Porque esse sentimento de inferioridade dentro da igreja crescia dentro
de mim. Um sentimento de não ser nada. De ser inferior aos homens e
inferior até às outras mulheres. Porque eu não me sentia nem homem
nem mulher. Eu me sentia NADA. Nada. Nada. Eu não me encaixava
nem entre os homens nem entre as mulheres. Eu me sentia num limbo.
Eu me sentia uma coisa. E eu fui crescendo nesse lugar sem conseguir
me identificar. Era muito horrível. Quando eu fiz 12 anos eu comecei a
pegar garotos. Ficar com meninos. Por mais que fosse errado pra igreja,
que só admitia isso após o casamento. Eu queria me forçar a ser normal.
E pra mim garotas normais ficam com meninos. Eu queria provar para
mim mesmo que eu era normal. Hoje em dia eu me identifico como
bissexual. Mas na época eu me sentia muito mal por ficar com meni-
nos pois eu estava forçando algo que não era natural porque eu estava
ficando com meninos enquanto “menina” e não como menino como
eu sou hoje. Hoje eu não tenho problemas com homens porque eu sou
um homem. Na época isso me machucava demais, era um sentimento
de aversão muito grande. Eu me sentia sujo. Me sentia nojento. Não era
aversão ao outro era aversão a mim mesmo. Isso ia me destruindo aos
poucos. Era um comportamento autodestrutivo que eu estava fazen-

124
do. Para você ter uma ideia, o primeiro menino que eu fiquei era meu
melhor amigo e no dia seguinte eu dei um soco na cara dele porque eu
não conseguia ficar perto dele. Não por causa dele, por causa de mim,
e eu não conseguia expressar isso. E eu não conseguia me “normalizar”.
Não me encaixava de jeito nenhum. As roupas eram um assunto muito
complicado pra mim. Sempre que eu ia comprar uma roupa com minha
mãe eu tinha vontade de ir pra seção masculina e escolher as roupas que
eu me sentia confortável. Mas minha mãe me levava pra seção feminina.
E ali nada me agradava. Eu vestia aquelas roupas e me sentia travestindo
de mulher. Me sentia um homem vestindo roupas femininas. Eu me
sentia ridículo e sempre saia chorando das lojas. A partir dos 15 anos eu
comecei a parar de comer. Porque meu corpo me incomodava absurda-
mente. Minhas curvas, meus seios, eu não entendia que era isso que me
incomodava então eu achava que eu estava gordo. Tive um princípio de
anorexia. Ninguém percebeu. Comecei a emagrecer até chegar aos 50 e
poucos quilos. E minha estrutura óssea é grande. Eu jantava e almoçava
suco. Quanto mais magro eu ficava mais eu queria ficar porque eu não
queria ter curvas no meu corpo. Não queria ter nada feminino. Não
adiantava, é óbvio. E aí aos 15 anos eu fiquei com um menino que fez
sexo comigo e foi horrível [pausa. Respiração ofegante. Pausa].
Muito horrível. Foi consentido até certo momento. Mas depois de certo
momento não foi mais consentido mas ele continuou. Eu estava tre-
mendo e chorando no meio do sexo, tá ligado? Eu deixei minhas coisas
na casa dele [riso nervoso e ofegante] fui embora e nunca mais
voltei. Até hoje. Eu morria de medo de encontrar ele de novo. Depois
disso nunca mais fiz sexo com homem cis.
A partir dos 15 anos as coisas começaram a ruir. A partir do princípio de
anorexia eu comecei a desenvolver outros transtornos. Por exemplo, aos
17 anos eu rompi com a igreja. E nessa idade eu comecei a me cortar.
E me cortei uma vez, aí depois de dois dias eu me cortei outra vez. A
partir de então eu comecei a me cortar dia sim, dia não. Dia sim dia
não. Dia sim dia não. Dia sim dia não. Dia sim dia não. Com Gilette

125
[Samuel mostra os dois antebraços. Inúmeras cicatrizes, de
tamanhos variados, em toda a extensão entre os pulsos e
a articulação com o braço]. Eu comecei a me cortar porque, por
exemplo, os abusos que eu sofri, o bullying das meninas, eu nunca
contei pra ninguém até eu crescer.... Eu sempre fui muito perseguido.
Eu tinha amigos e amigas que a minha vida inteira sempre me zoaram.
Sempre me excluíram. Para você ter noção quando eu fazia aniversário
eu recebia carta dizendo o quão estúpido e ridículo eu era. Sério. Eu
recebia esse tipo de carta dos meus amigos [riso nervoso]. Eu sempre
sofri muito com isso porque eu era uma pessoa muito diferente mesmo,
eu era uma pessoa mais tímida, muito quieta, muito fechada, muito
reservada, muito envergonhada. Eu era um pessoa zoada, velho. Eu
admito [riso]. Eu era uma pessoa zoável. Eu ficava muito incomodado
com essas brincadeiras, não era uma pessoa que levava na boa, que zoava
de volta, e as pessoas gostam de incomodar gente que se sente inco-
modada. Eu levava a sério. Eu não sabia brincar. E como disse antes eu
era uma pessoa muito sensível, muito chorona. Eu era um alvo muito
fácil [acende um cigarro]. Perseguido não sei se é a palavra porque
senão parece que eu estou tendo síndrome de perseguição. Mas enfim,
eu era muito zoado. Sempre guardei tudo pra mim. Me cortar, além de
ser uma resposta ao fato de eu odiar meu corpo – então eu punia meu
corpo porque eu odiava ele, era uma forma de desleixo com meu corpo,
foda-se o meu corpo, eu vou estragar ele porque eu odeio ele –, era tam-
bém uma forma de eu me expressar, de eu chorar. Chorar sangue! Por-
que a lágrima não era o suficiente pela dor que eu estava sentindo. No
começo eu escondia com manga comprida, com um monte de pulseiras.
Porque eu comecei aqui [cortes próximo à articulação braço-an-
tebraço], então eu usava uma munhequeira. E aqui [pulso] eu usava
um monte de pulseiras. A quantidade de cortes é incontável. Já cheguei
a contar 200, nos dois braços e aqui [região da coxa e virilha]. Mas
eu perco a conta. Isso durou até o ano passado com 21 anos. Tem uns
grandes. Eu cheguei a levar 60 pontos. Eu corto sempre múltiplos de
três. Tem um padrão. Três cortes, seis cortes, nove cortes. Dizem que

126
pode ser para insultar [ri] a santíssima trindade [gargalha]. Eu não sei,
é inconsciente [riso]. Isso eu tinha 17 anos, estava no segundo colegial,
porque eu sou mais velho, eu repeti o pré-primário [riso] porque eu
tinha dificuldade para aprender a ler e escrever. Eu tenho dislexia. En-
fim... Até que eu pedi ajuda. Eu falei para minha mãe que eu queria ver
um psiquiatra porque eu achava que tinha déficit de atenção. Inventei
qualquer coisa. Na primeira consulta minha mãe entrou junto então eu
não pude falar muita coisa. Mas eu chorei pra caralho! Chorei a consul-
ta inteira, não falei porra nenhuma. O médico me deu um antidepres-
sivo. Mas o antidepressivo me deu um “revetreco” porque eu não posso
tomar qualquer antidepressivo. Me deu uma crise de mania. Mania da
bipolaridade. Eu fiquei muito agitado, ansioso, impulsivo. Eu fiquei
louco. Não parava quieto. Me cortei mais. Me cortava pra caralho,
muito mais. Estava difícil esconder. Voltei no mês seguinte, entrei sozi-
nho e o médico quase caiu de costas, me passou outra medicação e me
mandou para a psicoterapia. Na psicoterapia a psicóloga mandou entrar
primeiro minha mãe. Depois entrei eu. Sozinhas. A psicóloga tomou
um susto porque minha mãe me descreveu de uma forma e quando eu
entrei era uma outra pessoa. Porque para a minha mãe eu fazia o papel
da menina quietinha, boazinha. Eu não sou assim. Eu sou falante, sou
extrovertido. Mas não mostro isso pra quase ninguém. Eu fui ensinado
a ser de uma certa forma. Minha vó me ensinou assim. A ser quietinho
e tímido. Porque esse é o papel da mulher dentro da igreja. Mas eu não
tinha o que esconder da psicóloga porque eu queria ser ajudado. Então
eu mostrei pra psicóloga quem eu era [pausa muito longa].
[Dispara] Cê repara eu quase não olho no seu olho, né? [riso] Por cau-
sa do que eu fui ensinado. Porque você é homem. O homem é superior.
Eu não posso olhar no teu olho. Eu tenho que baixar a cabeça. É difícil
eu olhar no teu olho, mas eu tento me policiar [riso] [riso] [quase
gargalhada].
Enfim, quando eu entrei na psicóloga. Eu fui sincero. E logo me
diagnosticaram com borderline [síndrome de Borderline, ou

127
transtorno de personalidade limítrofe], que é quando há muita
oscilação de humor. Tanto que eu já tinha ganhado o apelido na escola
de “bipolar”. Em um intervalo eu era o extrovertido, agitado que fazia
piada, animado. No outro intervalo eu estava no canto do corredor
quieto, ouvindo música, chorando e se alguém se aproximasse perto de
mim eu tacava coisas na pessoa. Nessa fase eu tinha uma agressividade
enorme. Tive também crises psicóticas. O primeiro sintoma de psicose
foi a despersonalização, que é quando você começa a se sentir fora de
si. Parece que sua alma está saindo de você. Você se enxerga fora do seu
corpo. Isso acontece em situações cotidianas e em situações traumáticas.
O segundo sintoma de psicose foi eu começar a ver coisa se mexendo.
Por exemplo, eu via a parede entrando em si como se fosse um buraco
negro, puxando tudo à minha volta, convergindo num ponto, tudo
distorcendo como se fosse um quadro do Van Gogh. Muito bizarro.
Depois mais para frente piorou para eu começar a ver vultos. Depois
piorou para eu começar a ouvir vozes. E teve outro sintoma que foi alu-
cinação sensorial. Eu comecei a sentir minhas mãos, meus pés e minha
cabeça aumentando e diminuindo de tamanho. Você começa a perder a
noção do que é real e do que não é real. E eu tive outro diagnóstico que
foi a esquizofrenia porque começou a piorar demais as psicoses. Mas
esse diagnóstico de esquizofrenia foi retirado de mim porque as crises
pararam. Foi uma crise psicótica temporária. Tudo isso houve MUITO
medicamento. Eu fui internado cinco vezes em clínica psiquiátrica.
Foi também nessa época da escola, aos 17 anos, que eu comecei a ficar
pela primeira vez com uma menina que estudava na mesma escola que
eu. Ela me ajudou muito, muito, muito, nessa fase. Porque eu estava
na fase dos cortes começando o borderline. Eu te juro, todo dia ela
conferia meus braços, todo dia ela fazia curativo em mim, todo dia ela
sentava e conversava comigo. Todo dia ela cuidava de mim. Eu comecei
a ficar conhecida como a “lésbica suicida” maluca da escola. Os pais
começaram a ligar para a escola falando que eu estava atrapalhando o
desempenho dos alunos, exigir que eu fosse expulso… Começou uma

128
história de que eu não poderia chegar perto da minha namorada. Nessa
época eu comecei um blog para contar da minha experiência enquanto
“borderline”. E aí começou uma história que eu estava ensinando os
outros adolescentes a se cortar no meu blog. Não era isso! Era a minha
experiência de lutar contra o borderline. Eu era chamado na diretoria
direto por causa do meu blog, por causa dos meus cortes, por causa
da minha namorada, por causa do caralho e eu quase fui expulso da
escola. Era um preconceito muito grande. As pessoas fugiam de mim.
A maioria dos meus amigos. Menos essa namorada e uns dois ou três.
É engraçado. Quando você está fodido realmente você não tem amigos.
E, quando eu melhoro, os amigos voltam. É engraçado isso, quando
você se empodera, quando você levanta a cabeça os amigos voltam, mas
quando você está fodido mesmo não tem ninguém ali por você. É mui-
to foda. Aí eu passei na USP, na primeira fase, e na segunda fase estava
namorando e chutei o balde. Mas o fato de ter passado na primeira fase
com uma nota alta, nossa, foi uma vitória enorme porque eu estava
lutando contra muita coisa.
Quando eu comecei a ficar com essa menina ela fazia o papel da lésbica
masculina e eu fazia o papel da lésbica feminina. Por quê? Porque eu
queria agradar essa minha namorada. Isso me machucava. Aos poucos
eu fui me masculinizando e tive essa liberdade no relacionamento. Isso
foi legal, sabe, poder me masculinizar mesmo estando com uma menina
masculina. Isso é uma definição estética. Em questão de sexo eu sempre
fui totalmente livre. Sem papéis. Ativo… Passivo… Relativo. Porque
tem muito menino trans que só quer ser ativo, ativo, ativo. Porque acha
que homem tem que ser ativo. Besteira. Isso não define gênero. Sexuali-
dade é uma coisa livre. É engraçado quando você se identifica primeiro
como lésbica, porque eu nunca tive muita liberdade, enquanto eu era
adolescente, pra conhecer este mundo LGBT porque meu mundo
era bem fechado por causa de religião. Eu não sabia da existência das
pessoas trans. Quando você descobre primeiro as lésbicas você acha que
só existe aquilo para você ser uma pessoa masculina. Eu pensava que

129
para ser uma pessoa masculina eu tinha que ser lésbica, eu tinha que
pegar só mulheres. Mas eu tinha atração por homens. Homem gay. Isso
era um conflito dentro de mim. Porque eu estava preso dentro dessa
identidade lésbica. Isso é muito complexo porque eu acredito que dever
ter um monte de bofinho [lésbica masculina] por aí que na verdade
se identifica como homens trans mas não sabe da existência dos homens
trans. Sente atração por gays, por homens, enfim, e não pode ficar com
homens porque senão vão deslegitimá-la enquanto figura masculina,
lésbica. É muito tenso isso.
Eu entrei na faculdade, entrei na ESPM, consegui uma bolsa para
iniciação científica. Então, eu fazia faculdade, eu estudava pra caralho,
eu ia bem, muito bem, porque era uma faculdade difícil, fazia iniciação
científica que era bem puxado, estava me fodendo por causa do trans-
torno de personalidade de borderline… E eu consegui levar a iniciação
científica até o fim. Entreguei e fui internado. Porque não suportei
mais. Eu me cortei e foi a segunda vez que eu precisei de pontos, a
primeira foi um corte na perna que eu precisei de pontos, no consultó-
rio do meu psiquiatra. Mas a segunda foi feio, eu fui parar no hospital e
do hospital eu fui direto pra clínica psiquiátrica. Porque é assim que eles
procedem quando você vai para o hospital por causa de cortes assim.
Aí, eu fui para a clínica psiquiátrica pela primeira vez. Eu era a pessoa
mais nova naquela clínica, 19 anos, mas eu tinha uma cara de criança
absurda, eu era o bebê da clínica [riso]. E como eu era uma figura
feminina ainda o pessoal até que me tratou bem. Foi uma internação
relativamente tranquila. Mas é um ambiente horrível. Porque é assim,
perder a sua liberdade é uma coisa que você não consegue nem descre-
ver. O pior crime que você pode cometer com uma pessoa é você tirar
a liberdade dela. Eu entendo as pessoas que são encarceradas, por causa
dessa minha internação. Eu entendo como é que elas podem enlouque-
cer numa cadeia. Fiquei um mês nessa primeira internação. Imagina
uma pessoa que fica anos? Eu não sei como essas pessoas aguentam.
Lá você depende de tudo: se você quer beber água, se você quer ir no

130
banheiro, você quer comer, você quer qualquer coisa você precisa dos
outros. E as outras vezes que eu fui internado ia piorando. Porque você
vai ficando mais velho, você vai ficando mais conhecido na casa, eu vou
me masculinizando. Então as pessoas vão te tratando de uma forma
cada vez menos cuidadosa. Cada vez menos “visita”, e mais como se
você fosse “da casa”. Na minha última internação, que foi no começo
do ano passado [2014] eu fiquei dois meses e meio. Eu fui amarrado,
eu levei muitas injeções, eu levava injeção de sedativo e apagava, de cair
no chão, de bater a cabeça… [passa por nós um pai empurrando
um carrinho de bebês duplo com gêmeos] Eita porra! [Samuel
sorri, ri e a expressão se alivia pela primeira vez] Dessa última
vez eles me tiraram todos os remédios e me colocaram num quarto. Só
que eu tomava muitos, muitos remédios. Você não faz isso com uma
pessoa doente. Tirar os remédios e trancar num lugar. A pessoa fica lou-
ca. Você não faz isso, gente! É desumano. Eu tive convulsão do grande
mal. Aquela que a pessoa para de respirar, fica roxa, começa a espumar,
tá ligado? “O que que é isso, gente! Eu vou morrer aqui!” E você não
pode fazer nada porque você depende deles. Você não tem voz ali, você
não tem vez. Se você faz birra por qualquer coisa eles te amarram numa
cama e pronto. Eu tive uma crise lá em que eu tinha que me cortar.
Então, eu fui tomar banho e eu comecei a chutar o box, era vidro…
Temperado que fala? Para não quebrar? Eu chutava, chutava e aquele
barulhão, aquele barulhão, aquele barulhão… Me arrancaram de lá, me
amarraram numa cama e eu comecei a bater a cabeça na parede, a cabe-
ça na parede, a cabeça na parede porque eu tinha que me machucar de
alguma forma. Eu estava semiconsciente. O médico entrou e começou
a ler meu prontuário e falou: “essa menina não tem jeito, ela nunca vai
sair daqui, ela nunca vai parar de ser internada, ela nunca vai melhorar”.
E falando um monte de coisa, um monte de coisa, um monte de coisa,
pesadíssimas… Mas eu estava ouvindo. Aquilo ficou marcado pra sem-
pre em mim. Na minha primeira internação tem uma coisa interessante.
O primeiro médico que me atendeu, ele falou um negócio para minha

131
mãe: “ela tem uma coisa dentro dela que ela precisa soltar, é uma coisa
muito grande que está prendendo, ela ainda vai soltar um dia e vai
mudar a vida dela. Mas eu não sei o que é, nem ela sabe ainda. Mas ela
ainda vai colocar para fora”. E eu acredito que essa coisa seja a transexu-
alidade. Interessante porque ele meio que previu.
E aí, na minha última internação, eu conheci uma mulher trans lá
dentro da clínica e foi a primeira vez que eu tive contato com uma
pessoal transexual. Essa mulher trans abriu o mundo da transexualidade
pra mim. Quando a gente saiu da clínica ela me colocou num grupo
no Face [Facebook] sobre transexuais. E aí, conversando com os
meninos, vendo o discurso deles, eu me identifiquei na hora. Porque a
mesma coisa que eles falavam era o que eu falava. Tudo! A relação deles
com o corpo, a relação deles com as roupas, o fato de eles se sentirem
meio que inferiores…
[Você saiu da ilha. Te resgataram.]
[Samuel] É… Me resgataram!... [largo e duradouro sorriso.
Samuel olha nos meus olhos pela primeira vez de fato e a
partir daí poucas vezes ele desviará o olhar] Foi incrível! Na
hora eu já comecei a procurar tudo, processo transexualizador no SUS,
CRD [Centro de Referência da Diversidade], CRT [Centro de
Referência e Treinamento DST/AIDS-SP] que é onde fica o Ambu-
latório TT, Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais.
O primeiro lugar que eu fui foi o CRD e foi quando eu apresentei pela
primeira vez o meu nome social e eles respeitaram. Até então eu nunca
tinha usado o nome social, exceto na internet. No grupo [Facebook]
vem a luz sobre minha identidade de gênero [acende um cigarro]
e eu começo a pedir pro pessoal me tratar no gênero masculino e me
chamar de Samuel. E aí eu vou abrindo aos poucos para outras pesso-
as. Porque eu me sinto muito melhor me tratando no masculino e me
chamando de Samuel. No CRD eles fazem uma entrevista para verem
se eu me encaixo como transexual e na hora eles já encaminham para
o CRT, no Ambulatório TT, para eu começar o tratamento hormonal.

132
Eu entro na fila do tratamento hormonal. Enquanto isso eu já começo a
fazer uma roda de conversa e atendimento com uma psicóloga do CRT
para conseguir o laudo de que eu sou transexual. Porque você precisa de
um laudo. Eu consigo esse laudo e em seis meses eu começo a tomar o
hormônio. Eu comecei no dia 5 de janeiro deste ano. Eu venho toman-
do testosterona Nebido®. Desde então aconteceu m-u-i-t-a c-o-i-s-a…
Muita treta [riso nervoso] inclusive o estupro [embargando a
voz]… do “fulano” [pede para não identificar pelo nome]…
Que deslegitimou meu gênero totalmente [pausa]. Enquanto me
estuprava me chamava de mulherzinha, falava que eu não era homem o
bastante, que se eu fosse homem eu não estaria chorando, que se eu era
homem eu tinha que aguentar, falava umas coisas horríveis.
[Os próximos 26 minutos – aproximadamente – da entrevista
são de inúmeras pausas, longas. Voz embargada, gaguejar,
ausências temporárias, silêncios profundos em que o som da
cidade chega a silenciar conforme adentra o parque e nosso
diálogo. Fisicalidades, expressões e estados emocionais
impossíveis de serem transcritos.]
Ele se utiliza de abuso psicológico. Porque eu sou uma pessoa muito
frágil psicologicamente falando. Ele procura pessoas assim. Ele é muito
ardiloso, muito manipulador. Ele era da roda de conversa do CRT. A
roda de conversa é uma roda terapêutica. O que você faz? Você expõe as
suas fraquezas. Por exemplo, eu exponho na roda de conversas que eu
sou borderline, e a maior fraqueza do borderline é o medo do abando-
no. Essa é a maior fraqueza. E o medo do abandono chega a ser irreal,
no sentido de que a gente cria fantasias sobre o abandono. Por exemplo,
às vezes a gente tem um medo do abandono que é fantasioso, eu posso
do nada inventar que a minha namorada vai me abandonar por causa de
qualquer coisa que eu pense. E a gente fica com um medo que é capaz
de a gente se cortar, se matar. Uma fantasia absurda. Doentio mesmo.
Porque é uma doença. E eu expus isso na roda de conversa. Ele é muito
esperto. O que ele fez? Eu procurei ele [acende um cigarro] porque ele

133
era do Ibrat [Instituto Brasileiro de Transmasculinidade]. Um
dia antes eu tinha me cortado por causa de uma treta com a minha
namorada. Eu tava muito mal. E eu postei no grupo “TransParência
Não Binária”, o grupo onde eu me descobri trans, um grupo de trans
não binários mas que aceita qualquer pessoa. E nesse grupo eu confio
muito porque foram pessoas que me acolheram demais. E ele estava
nesse grupo. Não está mais porque eu denunciei. Eu postei nesse grupo
se tinha alguém de São Paulo que poderia me distrair, conversar sobre
qualquer coisa, pra gente beber junto. Sei lá... Qualquer coisa. Ele
postou embaixo que poderia, ele era da roda de conversa, eu conhecia
ele. Eu falei, beleza, a gente pode conversar sobre política, vai ser muito
louco, porque eu adoro política. E eu queria entrar pro Ibrat, para mili-
tar. E como ele era do Ibrat pensei, ótimo, vou matar dois coelhos com
um cajadada só. Ele marcou de nos encontrarmos e fomos beber em um
bar na República. Eu não posso beber porque eu tomo medicamento
mas às vezes eu bebo, principalmente se eu quero agradar alguém. E eu
queria ser “o legal”. Porque eu queria impressionar, porque pra mim
ele era um cara “da hora”, da militância e tal... Na época eu namorava
a Fernanda [nome fictício]. Hoje minha ex. A gente bebeu bastante
e ele começou com um papo bem estranho. Começou a falar que eu
não deveria namorar a Fernanda “porque ela não era mulher o bastan-
te”. Porque a Fernanda é uma menina deste tamanhozinho assim, uma
gracinha, mas ela não tem um corpão, não é mulherão, é uma menina,
uma menininha, uma princesinha. Então, ele começa a dizer que ela era
uma criança, que eu deveria pegar uma mulher. Porque “homem pega
mulher. Homem não pega menininha”. Homem pega ou homem, ou
mulher.” Porque ele é gay [homem trans gay]. E ele sabia que eu era
bi. Eu já tinha falado que tinha brigado com a Fernanda e ele começou
a deslegitimar a Fernanda. Eu comecei a achar meio estranho por ele
dizer que eu não era homem o bastante, o suficiente por namorar a
Fernanda, não sei o quê... Metendo o dedo no nosso relacionamento...
Um papo estranho. Mas eu também estava meio bêbado. Ele falou

134
“porque homem o bastante faz isso” e me agarrou. Me agarrou mesmo,
de um jeito violento. E ele é violento. E ele é violento em público.
Ele não está nem aí. E este relato é comum para todas as vítimas dele.
Ele me agarrou e me beijou. Me beijou à força. Machucando o lábio.
Quando a gente se separou ele mudou completamente a postura. Sabe
quando parece que vira outra pessoa? Parece que ele tinha aumentado
de tamanho e eu diminuído. Parece que eu tinha virado uma criança. E
eu me senti completamente oprimido. Ele estava com uma postura de
poder. E ele começou a falar que se eu não fizesse o que ele mandasse a
partir de agora ele ia contar para a Fernanda que eu tinha beijado ele e
eu seria abandonado. Eu tinha que fazer o que ele mandasse. E que eu
ia gostar de fazer o que ele mandasse porque ele era o dominador e eu
gostava de ser submisso. Uma tortura psicológica e eu comecei a ficar
com muito medo. Eu amava a Fernanda demais. E começou a crescer
aquele medo. Crescer, crescer, crescer, crescer, crescer, crescer, crescer e
eu comecei a ficar muito desesperado. E quando eu amo alguém eu amo
de uma maneira muito desesperada. Não é amar. Na verdade eu não
amo alguém, eu dependo da pessoa. Porque amor borderline é isso, é
depender da pessoa. Eu não conseguia me imaginar sem a Fernanda. E
de fato a gente tinha se beijado e eu não consegui reagir a aquele beijo.
Porque quando alguém me ataca e é agressivo comigo eu não tenho
reação. Eu fui ensinado desde criança – por causa daquele abuso – a não
reagir. Porque eu não reagi quando eu era pequeno, eu não entendi na-
quela época e eu aprendi a não reagir. Se a pessoa grita comigo eu já não
reajo, se a pessoa é agressiva de forma física, aí eu reajo menos ainda. Ele
me deu uns tapas na cara, na frente de todo mundo, e parecia que nin-
guém ligava, um absurdo. Mano, essas pessoas não estão olhando isso
acontecer? Eu levando um tapão? [riso nervoso] De fazer barulho.
Muito bizarro. E ele gosta de dar tapa, enforcar, bem sádico. E ele con-
tinuou me pegando, me dando tapa, me enforcando, pegando no meu
corpo, inclusive pegando nos meus seios. O que é um tabu pra homem
trans. Você não pode pegar nos seios de homem trans. Ele me fez pagar

135
a conta no bar. Ele sempre faz isso. O que é um abuso financeiro. Falou
que a gente ia sair dali e ia para um motel e que eu também ia pagar. Eu
não sabia o que fazer. Não sabia como sair daquela situação. Aí eu fui.
Não sabia como reagir. E lá ele me abusou sexualmente e me estuprou.
Simples assim. Nossa relação ainda continuou por um mês. Ele me
ligava todos os dias para saber o que eu estava fazendo, com quem eu
estava, me falava o que eu tinha que fazer, completamente controlador,
manipulador. E ele me ameaçando que ia contar [para a Fernanda]
se eu não fizesse o que ele mandava. E ele ia espalhar pela rede social.
Ele chegou a me ameaçar dizendo que ia chamar 20 caras cis para me
estuprar se eu não fizesse o que ele mandasse. Ser estuprado por um
cara cis era um dos meus maiores medos. Porque era relembrar a minha
infância. Eu já tinha falado pra ele que eu tinha sido estuprado quando
eu era pequeno. E ele estava mexendo na ferida. Sabe o que ele mandava
eu fazer? Ele mandava eu repetir a história do estupro porque ele tinha
prazer em ouvir aquela história, de tão doente que ele era. E ele ficava
falando que eu tinha gostado de ter sido estuprado: “você gostou. Você
gosta de ser abusado. Você gosta de ser machucado. De apanhar”.
Ele me incitou a cometer suicídio. A gente estava conversando pela
internet. Eu estava muito mal e falei que queria me matar. Ai ele falou:
“por que você não corta tua jugular? Por que você não dá um tiro na
cabeça? Se mata logo. Se você acha que não vale nada pra sociedade se
mata logo, velho”.
Eu fiquei muito mal. Eu queria muito morrer nesse dia [silêncio]. Isso
é um crime. Incitação ao suicídio. Está previsto na lei. Eu queria denun-
ciar ele. Eu tentei denunciar [silêncio]. Mas eu preciso dar continui-
dade na defensoria pública. Eu precisava do endereço dele [silêncio].
Depois de meses eu consegui. Mas eu não continuei [silêncio]. Não
sei, precisa de muita força pra você denunciar alguém [silêncio]. É
muito difícil ter força pra isso [silêncio]. Sozinho. No começo eu fui
com o pessoal do Ibrat [pausa longa]. Ele me estuprou uma segunda
vez. Foram só duas vezes. A segunda vez foi bem pior que a primeira

136
[um minuto de completo silêncio]. A segunda vez ele usou um
vidro de perfume. [um minuto e meio de silêncio]. Só cortei o
vínculo quando eu contei pra minha namorada [silêncio]. Aí passou
um mês e eu denunciei para o Ibrat [silêncio]. Junto vieram mais duas
denúncias [silêncio]. De uma mulher trans e de uma travesti [longo
período de silêncio]. Aí ele tentou abusar da Fabi [nome fictício]
mas ele não conseguiu [silêncio]. Eu fiquei com a Fabi [silêncio].
Uma pessoa muito gente boa [silêncio]. Ela é uma travesti [silêncio].
Fabi tem bastante empoderamento. Ela é bem forte [silêncio]. Eu não
era tão forte assim [silêncio]. Mas a militância me deu bastante força
depois que eu entrei no Ibrat, em dezembro. Aí tudo melhorou muito.
Fui muito difícil porque muita gente se virou contra mim. Eu denunciei
e a gente teve que escrever uma carta de afastamento dele do Ibrat. E
quando a gente escreveu e publicou essa carta – pois muitas instituições
estavam exigindo isso da gente, cobraram isso porque ele ainda estava
se utilizando do nome do Ibrat – ele publicou vários prints meus na
internet. Prints de conversas nossas mas partes que convinham pra ele,
claro. Em que ele falava várias besteiras de sedução e eu não falava nada
[silêncio]. Ou eu falava qualquer coisa pra que ele não se aborrecer
porque eu tinha medo que ele ficasse bravo [silêncio]. E aí muita gente
se voltou contra mim. Porque eles não entendem a dinâmica de um
abuso psicológico [silêncio]. De uma pessoa tão frágil [silêncio]. E na
internet todo mundo julga todo mundo e se acham donos da verdade.
E até hoje eu sou apontado como alguém que se vitimiza e o caralho, só
porque eu denunciei ele. Se denunciar alguém é se vitimizar eu já não
sei de mais nada [silêncio. Acende um cigarro]. Mas enfim...
A última vez que eu vi ele eu ainda chorei, ele ainda tem um certo po-
der sobre mim, porque foi uma coisa muito forte. Ele ainda manipula
meus sentimentos mesmo tendo contato zero. Porque eu ainda posso
encontrá-lo nos rolês da militância. Sem dúvida o Ibrat e a militância
me deram – e muito – a capacidade de empoderamento. Tanto que eu
posso falar, hoje, sobre isso tudo de uma forma muito mais tranquila.
Sem chorar.

137
[Silêncio] Ah, mano. Meus amigos me empoderam bastante. Prin-
cipalmente na militância. O fato de militar me empodera muito. Eu
tenho novos amigos e muito bons. O fato de trabalhar pro Ibrat me aju-
da muito. Eu faço assessoria de comunicação, eu fiz o site do Ibrat que
a gente vai lançar ainda. Foi muito legal fazer isso e trabalhar com os
valores do Ibrat dentro do site. Porque eu mexi com muito conteúdo e
aprendi muita coisa. Trabalhar na assessoria de comunicação é trabalhar
com a diretoria. É um espaço de grande importância. O fato de ganhar
um espaço ali dentro me faz sentir que tenho um lugar. Isso é muito
legal! Por mais que eu esteja recebendo críticas... Porque meus remédios
estão diminuindo então eu estou tendo que lidar com o meu transtorno
de personalidade de borderline meio que só com a minha psicoterapia.
Peitando. Porque o fato de eu ter me identificado como homem trans
está me ajudando a me desvincular dos remédios. Porque eu estou me
encontrando na sociedade. Só que, na hora que diminui o remédio,
alguns sintomas começam a voltar aos pouquinhos, mas de forma mais
branda. Lidar com esses sintomas é um pouquinho complicado. Eu
não aprendi ainda totalmente. O borderline é um pouco infantil, não
sabe lidar com os sentimentos dele. Com as emoções. Eu tenho que
aprender isso. E se aprende na psicoterapia. Meus amigos me criticam
bastante mas sei que é de forma construtiva. Porque eles são adultos.
Meus amigos são mais velhos. Eles me criticam pro bem. Eles não estou
me zoando como meus amigos de antigamente. E eu tento aprender
com isso. Apesar de eu ser criança emocionalmente, racionalmente eu tô
mais maduro e sei entender essas críticas de forma construtiva.
Outra coisa que também me empodera é uma página que eu criei no
Facebook que chama “Um Homem TransCasperiano”. E lá eu falo
sobre várias coisas. É um canal de comunicação meu com os alunos da
Cásper [Faculdade Cásper Líbero] e outras pessoas que queiram
saber e entender sobre o universo trans masculino. Principalmente para
os alunos da Cásper. Já que eu sou o único homem trans da faculdade.
A única pessoa transexual. Eu entrei na Cásper este ano. Vim transfe-

138
rido da ESPM pois acabou minha bolsa e estava muito caro. Eu tinha
trancado a matrícula várias vezes por causa das internações. Lá eu ainda
não tinha me identificado como homem trans. Aqui eu consegui meu
nome social. Foi a primeira pessoa que conseguiu, eu abri esta porta
pra outras pessoas que quiserem vir. Foi bem legal. Na minha turma
é supertranquilo. Eu tive alguns problemas de diálogo com a frente
LGBT casperiana que não me dá muita abertura pra eu conversar com
os alunos. Mas já foi um pouco resolvido. A frente é mais gay. Acho que
tem uma ou duas lésbicas. Tem bastante menina bissexual, é interessan-
te. Menino bissexual assumido só eu. É difícil homem se assumir bis-
sexual. Com os professores no começo foi um pouco mais difícil. Eles
não têm acesso ao meu nome de registro. Ninguém. Só o pessoal do
arquivo, diretor, coordenador do curso, sei lá... Mas os professores não
têm como me chamar de outro nome. Eles me chamavam de Samuel
mas me tratavam no feminino. Eu não sei como eles faziam essa lógica.
Falavam: “Samuel, seja bem-vinda!”. Eu me posiciono! E eu falava, eu
sou “O Samuel” e não “A Samuel”, porra! Já tretei com uma professora
mas hoje em dia todos estão me tratando no masculino.
[O caso de Samuel tem uma particularidade que – de certa
forma – abrange todos os outros relatos deste livro. Sua
reestruturação psicofísico-socioemocional passa por vários
níveis. Primeiro sua superação autônoma de dois abusos
sexuais num período de sete anos entre a infância e a ado-
lescência, o bullying na escola, o reconhecimento de identi-
dade de gênero masculino, o reconhecimento da orientação
sexual e a busca por uma estabilidade psíquica-emocional
libertária adquirida por meio de um tratamento psiquiátrico
e terapêutico. Este longo processo construído ao longo de
20 anos é deslegitimado pelas duas novas ocorrências de
estupro já após seu autorreconhecimento de gênero.]
[Samuel] Eu acho que se encontrar enquanto homem trans foi tão
libertador, foi tão positivo e foi um alívio tão grande que me ajudou

139
a superar tanta doença que havia dentro de mim. Isso me libertou de
tanta coisa. Eu melhorei tanto no sentido psiquiátrico. Hoje em dia
meus remédios diminuíram bastante. Eu não estou mais sendo interna-
do repetidas vezes como eu estava antigamente. O fato de esse aconte-
cimento traumático ter acontecido mexeu muito comigo [enfático].
Muito mesmo. Foi uma tragédia. Mas não abalou a minha identificação
como homem trans. Não abalou esse meu achado. A minha construção
até este momento. Eu me cortei depois do fato, mas foi a última vez. Já
faz mais de seis meses que não me corto. A hormonização é quase um
presente dos céus. Porque dá um alívio muito grande, é um processo
de libertação mesmo. Porque seu corpo está finalmente entrando nos
eixos. Seu corpo está finalmente se transformando naquilo que você
sempre quis ser. E dá uma descarga de ansiedade também.Você quer que
mude rápido mas é lento o processo. Cada corpo responde de um jeito
ao hormônio mas geralmente pra você ficar uma figura mais masculina
demora um ano, um ano e meio. Dois anos. E doloroso também. Muita
gente não fala sobre isso. Todo processo de transformação é um processo
doloroso. Por quê? Porque são injeções dolorosas, um processo extrema-
mente lento em que você tem que ter paciência, tem que sempre estar
indo na clínica, você tem que fazer cirurgias que são cirurgias dolorosas.
É uma transformação penosa. Em seis meses, por exemplo, a minha
voz começou a mudar, começou a nascer alguns poucos pelos no rosto,
meus pelos corporais estão aumentando, o “bang” começou a crescer
[riso. Gargalhada]. Que é o clitóris que começa a se desenvolver. E eu
ainda pretendo passar pela mamoplastia masculinizadora.
Eu terminei com a minha namorada há pouco tempo. A gente teve
um processo bem difícil nessa época do abuso porque ela duvidou de
mim. Isso voltava ao nosso relacionamento constantemente, sempre que
acontecia alguma coisa ela voltava naquele ponto. E isso me incomo-
dava. Me machucava o fato de ela duvidar da minha fidelidade. E me
culpabilizar. A nossa sociedade culpabiliza a vítima. De forma muito
intensa. A vítima sempre tem uma parcela de culpa senão a culpa intei-

140
ra. E sempre vêm aqueles questionamentos: “será que você não quis em
certo em momento?... Será que você não sentiu prazer enquanto estava
acontecendo aquilo?”. E você mesmo se questiona: “será que eu não te-
nho culpa? Será que foi um abuso? Será que foi um estupro?”. Demora
pra você processar que aquilo foi um estupro. Tem gente que passa anos
sem perceber que aquilo foi um estupro. Eu demorei anos pra perceber
que, aos 15 anos, aquele sexo que eu fiz com aquele menino foi um abu-
so. Eu estava tremendo e chorando enquanto ele me penetrava. Isso foi
um abuso, quem que faz sexo daquele jeito? Meu corpo estava gritando
“não!”. Quem não percebe aquilo, gente? Você faria sexo com alguém
que está tremendo e chorando na cama?
No estupro mais recente, eu não fiz um BO contra o “fulano” e muita
gente não faz porque você sai daquela situação e você não pensa “meu
deus, sofri um estupro”. Gente, eu fui deixado em um motel sozinho,
chorando e você não pensa “vou numa delegacia fazer um BO e abrir
as minhas pernas pra um policial ver”. Eu fui pensar em fazer um BO
três meses depois. Aí, já era! Fodeu! E aí você não tem possibilidade de
denunciar o cara. Você tem possibilidade de abrir um processo mas não
é a mesma coisa. É muito mais difícil. Acontece isso com muita gente.
Voltando. Todo aquele processo com minha namorada foi me cansan-
do. E tem outra questão ainda. A testosterona é uma coisa engraçada
porque ela imprime na gente um desejo que é instintivo. Pouca gente
fala disso também. A testosterona tira um pouco o caráter romântico
do desejo. A mulher, geralmente, ela tem o desejo romântico que é,
“eu vou fazer sexo com você se eu gostar de você. Se eu te amar.” E o
homem não, “eu vou fazer sexo com você porque eu quero fazer sexo”.
Por isso que no mundo gay tem esse negócio de fazer o sexo por fazer.
Por um prazer. Não estou dizendo que o gay é promíscuo. Não! É da
testosterona. E ela faz isso com o homem trans também. Imprime esse
desejo. Então eu comecei a ter desejos que eu não tinha antes. Então eu
comecei a querer fazer sexo com um monte de gente. Desculpa, mas eu
quero [gargalhada]. Com homem, com mulher, com mulher trans,

141
com travesti, com todo mundo. Eu sou bissexual, eu tenho desejo por
todo mundo. E eu tenho! Não é que eu vou sair fazendo sexo com todo
mundo. Mas eu comecei a ter desejo por outras pessoas, comecei a achar
injusto eu ficar com a minha namorada naquela situação, sentindo
desejos por outras pessoas, então decidi terminar porque achei mais
saudável.
Outro problema é que eu tenho muito desejo por homens gays. Mas o
mundo gay é muito fálico. E você sofre muito preconceito por ser um
homem trans. Porque você não tem um pinto. É isso! Quer dizer, você
tem. Mas não é um de verdade. O gay ele não tem só desejo por ho-
mem. Porque se fosse só desejo por homem ele ficaria de boa com um
homens trans. Porque ele veria ali um homem. Mas eles têm o fetiche
por pênis. Desculpa. Mas tem esse fetiche. Eu já fiquei com alguns caras
gays. Mas transar é muito difícil rolar. E é muito foda ser um homem
trans no começo da transição porque você fica esta figura ambígua,
em que você não parece homem, não parece mulher, não parece porra
nenhuma... E você não é desejado. Você não é desejado nem por lésbica,
nem por mulher, nem por homem, nem por nada, tá ligado? Porque
você não é nada. Você não é atraente. E os seus hormônios estão a mil.
Você quer foder! E ninguém te quer [gargalhada]. É muito foda
[acende um cigarro].
Quanto a usar o masculino se referindo a mim mesmo no começo é
bem difícil. Você faz muita confusão e troca muito. No começo você
não consegue usar o masculino no passado mas com o tempo se torna
uma coisa natural, sabe? Você se refere a você no masculino no presente,
no futuro, no passado é uma coisa natural. Meus pais tentam respeitar
meu gênero. Às vezes erram mas tentam respeitar. Eles tentam. Eles têm
medo que eu volte a me cortar, na verdade. Tem um pouco dessa chan-
tagem emocional. Meu pai erra às vezes. Minha mãe erra quase nunca.
Meu pai é mais distante, mas já era assim. Minha mãe não. Minha mãe
era muito mais distante, mais brava e mais rígida quando eu era menor.
Mas a partir do momento em que fico doente ela se torna outra pessoa.

142
Ela se torna muito mais afetuosa, muito mais carinhosa, muito mais
atenciosa. Ela mudou muito. A minha avó erra bastante. De trazer o
nome de batismo.
Eu rompi completamente com a religião. Eu me considero agnóstico,
sei lá! Eu não penso sobre religião. Não penso nada, na verdade. Não
penso nem que não existe para não ficar na noia de “sou ateu, então não
acredito em nada, então acredito que não acredito em nada”. Eu nem
penso sobre isso! Às vezes minha avó enche o saco, fala se eu não quero
ir na igreja. Eu já falei que só vou na igreja se for usando terno pra sen-
tar do lado dos homens. Ela já falou [imitando a voz da avó] “você
pode sentar do lado dos homens, se você quiser”. Às vezes eu penso se
não seria da hora se eu rompesse o sistema e fosse mesmo de terno, gra-
vata e sentasse do lado dos homens. Mas eu tenho um pouco de medo
de ir na igreja porque eles falam um coisa que é meio assustadora, quan-
do você é escolhido pra ser da igreja você não tem a sua própria escolha.
Se deus te escolheu você VAI SER DA IGREJA. E deus vai te puxar de
onde você estiver e vai te colocar dentro da igreja. Então eu tenho medo
de pisar na igreja e ficar preso lá, tá ligado? [gargalhada]
O fato é que a gente está numa situação bem complicada porque a gen-
te tem uma bancada evangélica muito forte no Congresso. E o movi-
mento social organizado [LGBT], ele é forte também porém a gente não
tem elegibilidade. A gente não elege gente, a gente tem quem? O Jean
Wyllys, só! A gente não tem ninguém que represente a gente. A gente
precisa começar a usar dessa política. Não adianta a gente ficar critican-
do e não fazer nada. Porque muita gente critica a política mas a gente
precisa usar dessa política pra quando a gente chegar no poder a gente
poder mudar. Como se muda a política? Elegendo gente. Por que não
existe um Partido da Diversidade, por exemplo? Se existe um partido
evangélico, por que não existe um Partido da Diversidade? Deveria
existir. A gente precisa eleger gente. Que nos represente.
[Samuel passou pela mamoplastia masculinizadora no dia
2 de setembro de 2015. Feliz, ele se diz “um novo homem” e
declarou: “De peito aberto vou seguindo... Estou certo de
que sou assim. Ser eu mesmo não é nenhum pecado”.]

143
O VERMELHO QUE SANGRA O ARCO-ÍRIS

Um dia eu percebi que me chamavam de mulher. Eu aceitei esse rótulo imposto


como uma identidade política e me empoderei.
Um dia me chamaram de lésbica. Eu aceitei esse rótulo como uma identidade
política e me empoderei.
Um dia me chamaram de negra. Eu aceite esse rótulo como uma identidade
política e o que te fez pensar que eu não ia me empoderar?
Audrei Teixeira.

Este livro não tem fim. As vozes relatadas neste extenso trabalho
de pesquisa – exceto o jovem Kaique – continuam suas vidas, suas
paixões e afetos, suas lutas e militâncias dotadas de um poderoso con-
ceito apreendido neste processo: o empoderamento. Empoderar-se é
a grande chance de transformação por aqueles que sofrem a opressão
e tornam-se vítimas de um sistema e uma política excludente, uma
sociedade preconceituosa, valores religiosos fundamentalistas deter-
minando o modo de vida legal de um país cujo princípio de Estado
laico está garantido no artigo 19 da Constituição Federal, de 1988.
O empoderamento, denotado como conscientização, criação, socia-
lização do poder entre cidadãos que buscam inclusão social, capaci-
dade participativa e exercício da cidadania, é a fronteira de resistência
dessas minorias sociais que têm seu sangue – literalmente – derrama-
do por crimes de intolerância e ódio onde o agressor, criminoso, con-
segue respaldo legal de proteção, que por sua vez culpabiliza a própria
vítima diante de toda uma sociedade que acata o crime pelo silêncio.
Este livro não tem fim. Pois neste momento centenas de outras ví-
timas por lgbtfobia estão sendo caladas nos recônditos da cidade, do
estado, do país.

145
Às vésperas de concluir este trabalho a comissão de parlamentares
que analisa o Plano Nacional de Educação retira do texto principal a
ser votado o termo “igualdade de gênero”, expresso com o objetivo de
fortalecer o combate à lgbtfobia em ambientes escolares conforme já
assegurado em alguns decretos. Num esforço hercúleo de deputados-
-pastores e do representante da Igreja católica dom Odilo Pedro Sche-
rer a vitória na redação obscurece os caminhos vindouros.
Em 1978, o artista americano Gilbert Baker cria a bandeira do arco-
-íris como símbolo do orgulho gay. Suas oito cores originais (atual-
mente não tem mais o rosa e o turquesa) simbolizavam a diversidade
na comunidade LGBT. O rosa era a sexualidade; o laranja, a cura;
amarelo é o sol; o verde, a natureza; turquesa era a magia; azul, sere-
nidade; violeta é o espírito. E, representando a vida, o vermelho. A
VIDA, de fato, se esvai diariamente na configuração posta pela nossa
organização sociopolítica.
A sociedade civil precisa se conscientizar urgentemente das questões
éticas acerca dos crimes de intolerância e ódio cometidos contra a
comunidade LGBT, devolvendo ao Estado democrático a laicidade, e
sobretudo garantir direitos civis igualitários a todos os seus cidadãos.
Caso contrário, este vermelho continuará escorrendo o corpo e o
sangue de brasileiros sem nenhuma salvação.

146
AGRADECIMENTOS

Uma extensa reportagem só acontece com uma rede de contatos e


pessoas dispostas a colaborar.
Em primeiro lugar, agradeço a William Santana Santos, meu amigo,
que disponibilizou todo seu estudo e militância para me conectar às
mais incríveis pessoas envolvidas neste projeto. E foi também meu
plantonista de tantas e tantas dúvidas. William, meu baiano querido,
sou muito agradecido de todo coração!
Alessandra Valois, Audrei Teixeira, Bill Santos, Carlos Canhamei-
ro, Christian Piana, Clara de Góes, Coletivo Divergen, Coletivo Na
Rego, Cynthia Sarti, Daniela Andrade, Daniela Lima, Dennis Ramos,
Eduardo Furtado Leite, Elvis Justino Souza, Felipe Stucchi, Fernando
Rocha, Gabriel Fernando Souza, Grupo Gay da Bahia, Grupo Nacio-
nal Mães Pela Diversidade, Instituto Brasileiro de Transmasculinidade
(Ibrat), Ligia Botelho, Luís Arruda, Luisa Bertrami D’Angelo, Majú
Giorgi, Marcelo Gil, Michele Navarro, ONG Ação Brotar pela Cida-
dania e Diversidade Sexual (ABCD’S), Projeto Ninho, Silvia Carme-
sini, Talita Jacobelis, Todd Tomorrow, Vinícius de Vita Cavalheiro.
A cada um dos perfis da rede social que compartilharam minhas
postagens de divulgação do projeto.
E, claro, agradeço a cada uma das VOZES registradas neste livro:
André, Douglas e o menino Kaique, Gabriel, Jonathan, Lua, Renata,
Samuel e Victor. E repito o que disse ao final de cada conversa: que a
vida lhes seja generosa e os preencha de amor.

147
GUIA

Cais – Associação Centro de Apoio e Inclusão Social de Tra-


vestis e Transexuais
Contatos por telefone: (11) 948.214.014 ou (11) 980.306.787
Email: centrodeapoioeinclusaosocial@gmail.com
Facebook: www.facebook.com/caiscentrodeapoioeinclusaosocial

Cads – Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual


Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania
Endereço: Largo Páteo do Colégio, 148, térreo, Centro, São Paulo, SP
CEP: 01016-040
Telefone: (11) 3291.2700
Email: diversidadesexual@sp.gov.br

Coordenação de Políticas para LGBT – Secretaria Municipal


de Direitos Humanos e Cidadania
Criada em 10 de fevereiro de 2005 e institucionalizada por meio da lei
nº 14.667, em 14 de janeiro de 2008, pelo governo municipal. É res-
ponsável por formular, articular, propor e monitorar políticas públicas
que visem à promoção da cidadania e à garantia de direitos de lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Endereço: Rua Líbero Badaró, 119, 6º andar, Centro, São Paulo, SP
CEP: 01009-000
Telefone: (11) 3113.9748
Email: politicaslgbt@prefeitura.sp.gov.br
Site: www.prefeitura.sp.gov.br

149
CRD – Centro de Referência da Diversidade: associado ao
Grupo Pela Vida/SP
O CRD tem como objetivo principal acolher pessoas lésbicas, gays,
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais que vivenciam vio-
lações de direitos decorrentes de discriminação e violência devido à
orientação sexual e identidade de gênero. Oferecendo atendimento
psicossocial, orientações e encaminhamentos jurídicos necessários à
superação da situação de violência e vulnerabilidade e contribuindo
para o fortalecimento e o resgate de sua cidadania.
Endereço: Rua Major Sertório, 292/294, República, São Paulo, SP
Telefones/fax: (11) 3151.5783 / 3151.5786/3214.1964
Coordenação: Eduardo Luiz Barbosa
Site: http://www.aids.org.br/
Facebook: https://www.facebook.com/Centrodereferenciadefesadadi-
versidadeCRD

CRT – Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP


Coordena o programa de DST/AIDS no estado de São Paulo, pres-
tando serviço de atenção integral à saúde da população em DST, HIV
e Aids. Junto funciona o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis
e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP,
que tem por objetivo atender as travestis e transexuais de forma in-
tegral. Os principais procedimentos oferecidos pelo ambulatório são:
acolhimento; avaliação médica, endocrinológica, proctológica, fono-
audiológica e de saúde mental.
Endereço: Rua Santa Cruz, 81, São Paulo, SP
CEP: 04121-000
Telefone: 0800 16 25 50
Diretora: Dra. Maria Clara Gianna
Email: mariaclara@crt.saude.sp.gov.br
Diretora adjunta: Dra. Rosa de Alencar Souza

150
Email: ralencar@crt.saude.sp.gov.br
Agendamentos de consultas: (11) 5087.9984, das 8h às 11h
Sites: http://www.saude.sp.gov.br/centro-de-referencia-e-treinamen-
to-dstaids-sp/assistencia/ambulatorio-de-saude-integral-para-traves-
tis-transexuais
https://www.facebook.com/crtdstaidssp
https://www.facebook.com/pelavidda

Decradi – Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância


É vinculada ao Departamento Estadual de Homicídio e Proteção a
Pessoa (DHPP).
Endereço: Rua Brigadeiro Tobias, 527, 3º andar, Luz, São Paulo, SP
CEP: 01032-902
Telefone: (11) 3311.3555
Email: decradi@policiacivil.sp.gov.br
Site: http://www.ssp.sp.gov.br

Núcleo de Combate à Discriminação, Racismo e Preconcei-


to – Defensoria Pública do Estado de São Paulo
Endereço: Rua Boa Vista, 103, 7º andar, Centro, São Paulo, SP
CEP: 01014-001
Telefone: (11) 3101.0155, ramais 137 e 249
Email: nucleo.discriminacao@defensoria.sp.gov.br

GGB – Grupo Gay da Bahia


Endereço: Rua Frei Vicente, 24, Pelourinho, caixa postal 2552, Salva-
dor, BA
CEP: 40022-260
Telefones: (71) 321-1848 / 322-2552 / 322-2176
Email: ggb@ggb.org.br

151
Site: http://www.ggb.org.br/
Facebook: https://www.facebook.com/GrupoGaydaBahia
Blog: https://homofobiamata.wordpress.com

Guia de Direitos
Site: http://www.guiadedireitos.org/

Ibrat – Instituto Brasileiro de Transmasculinidade


É uma rede nacional de homens trans ativistas. Atua nos eixos da
formação política; estudos e pesquisas sobre transmasculinidades e
controle social.
Telefone: (11) 981.906.770
Email: diretoriaibrat@gmail.com
Facebook: https://www.facebook.com/institutoibrat

Mães pela Diversidade


Facebook: https://www.facebook.com/MaespelaDiversidade

ONG ABCDS – Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Se-


xual
É uma organização não governamental que tem como principal ativi-
dade a luta contra a homofobia e o preconceito.
Telefone: (11) 985.675.530
Email: contato@ongabcds.com.br
Sites: http://ongabcds.com.br
https://www.facebook.com/ongabcds

Projeto Ninho – Centro de Acolhimento


Facebook: https://www.facebook.com/ninholgbt
Site: https://ninholgbt.wordpress.com/

152
Projeto Purpurina: projeto multicultural do GPH – Grupo de
Pais de Homossexuais
Foi a primeira ONG brasileira fundada para acolher pais que descon-
fiam ter ou têm filhos homossexuais.
Endereço: Rua Alberto Faria, 835, Alto de Pinheiros, São Paulo, SP
CEP: 05459-000
Telefone: (11) 3031.2106
Email: maes-de-homos@uol.com.br
Site: http://www.gph.org.br/

Um Homem TransCasperiano
Facebook: https://www.facebook.com/homemtranscasperiano

Transfeminismo – Feminismo intersecional relacionado às


questões trans*
Site: http://transfeminismo.com/

Savs – Serviço de Atendimento a Vítimas Sociais


Site: http://www.atendimentoavitimas.com.br/

Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promo-


ção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e
Transexuais (CNCD/LGBT)
É um órgão colegiado, integrante da estrutura básica da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR)
Endereço: Setor Comercial Sul-B, Quadra 9, Lote C, Edifício Parque
Cidade Corporate, Torre “A”, 9º andar, Brasília, DF
CEP: 70308-200
Telefone: (61) 2027.3241
Email: cncd@sdh.gov.br
Site: http://www.sdh.gov.br/sobre/participacao-social/cncd-lgbt

153
ÍNDICE

Homolesbitransfobia mata 7

Crimes de ódio por lgbtfobia 15

Renata Peron 19

André Cardoso Gomes Baliera 30

Victor Pereira da Silva Macedo 50

Gabriel da Silva Cruz e Jonathan Favari 65

Douglas de Oliveira 83

Lua Aoki 96

Samuel Silva 119

O vermelho que sangra o arco-íris 145

Agradecimentos 147

Guia 149
ISBN 978-85-64107-16-8

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