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Larissa Pelúcio
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No atual contexto brasileiro a discussão sobre o “lugar de fala” tem mobilizado
acalorados debates. Adio essa discussão para outro momento neste texto. Antes disso,
pretendo retomar de forma bastante sintética a constituição de um campo de reflexão
feminista sobre o enfeixamento de marcadores sociais da diferença como metodologia
necessária para se analisar situações de opressão, violência e enfrentamentos às mesmas
experenciadas por mulheres, mas também homens, de forma que além do gênero e da
classe, outras variáveis fossem necessariamente consideradas. Sinalizo desde já que,
como Henrietta Moore penso que
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A perspectiva intersecional tem justamente esse mérito desconstrutivista, no
sentido derridariano, e tendencialmente antiessencialista, como teoriza Stuart Hall.
Desmontar a lógica interna das categorias gênero, classe, geração, nacionalidade e raça,
por exemplo, revela suas limitações, suas instabilidades contextuais, o entrelaçamento
que existe entre elas, na conformação de sujeitos sociologicamente densos.
As discussões sobre os marcadores sociais da diferença são relativamente
recentes. Historicamente, essas abordagens têm seu ponto de referência no “feminismo
das diferenças”, nascido nos Estados Unidos ao longo dos anos 1980 (PISCITELLI,
2008). Essa vertente teórica surge como uma crítica à miopia do feminismo vigente,
voltado, segundo formularam diversas autoras, para as mulheres brancas, anglófonas,
heterossexuais, protestantes e de classe média. Estas vozes periféricas se articulam
também para propor uma epistemologia crítica capaz de superar as limitações teóricas
expressas nos binarismos homem/mulher, masculino/feminino, homo/hetero, West/rest,
tomados como essencializadores e biologizantes. O feminismo da diferença procurou
salientar que o sujeito é social e culturalmente constituído em tramas discursivas nas quais
gênero, raça, religião, nacionalidade, sexualidade e geração não são variáveis
independentes, mas se enfeixam de maneira que o eixo de diferenciação constitui o outro
ao mesmo tempo em que é constituído pelos demais. Esse debate avança e no final da
década de 1990 já reúne um escopo considerável de reflexões.
A percepção de que experiências de gênero, sobretudo, do “ser/tornar-se mulher”
não era suficiente para definir-se como sujeito político ou criar agendas unificadas, deu
visibilidade a categorias negligenciadas ou subsumidas pela categoria gênero.
Como escreve Judith Butler
se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém
é (...) o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas,
étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas
(...) [e] se tornou impossível separar a noção de ‘gênero’ das interseções
políticas e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida
(BUTLER, 2003, p. 20).
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o “mantra da interseccionalidade”, são conceitualizadas separadamente. No Brasil, essa
forma de abordar as questões identitárias nos estudos feministas e de gênero ganha fôlego
teórico nos primeiros anos deste século, com sensível influência de um texto da pensadora
indiana Avtar Brah. Seu texto “Diferença, diversidade, diferenciação”, publicado em
2006 nos cadernos pagu (Unicamp), passa a ser referência quase que obrigatória quando
se trata da abordagem interseccional. De lá para cá a perspectiva interseccional foi
adotada no campo da saúde, principalmente por antropólogas/as que têm apostado
metodologicamente na abordagem dos marcadores sociais a fim de compreender como
estes agem em combinação, produzindo e (re)produzindo diferenças e desigualdades em
saúde.
Porém, chama-me a atenção a forma como jovens negras foram se apropriando do
termo “interseccionalidade” para articular um campo de reflexão e de luta bastante novo,
que tem sua aparição relacionada a diversas transformações sociais que o País atravessou
nas últimas duas décadas. As políticas reparatórias, o acesso mais inclusivo às mídias
digitais, a instituição de secretarias especiais para tratar de temas como racismo e gênero,
a politização de temas como relações de gênero e sexualidade, desenham um contexto
histórico no qual as pautas feministas voltam com força crítica e chega às periferias das
grandes cidades brasileiras, ocupam páginas na internet, fomentam debates em escolas
públicas e nos meios acadêmicos.
Bastante inspiradas em teóricas-ativistas negras norte-americanas, muitas
feministas brasileiras passam a se identificar com o feminismo interseccional. Patricia
Hill Collins, Angela Davis e Audre Lourdes formam a tríade mais citada nas falas, textos
e post na internet de mulheres que se assumem como feministas e negras no Brasil
contemporâneo. Collins (2017), em texto recentemente traduzido lembra que
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É ainda Collins que chama atenção para a necessidade de se teorizar sobre as
hierarquias da interseccionalidade. Posto que, para ela há contextos em que alguns desses
eixos constituidores de identidades complexas e específicas se sobrepõem aos outros.
Em um país onde o racismo só passou a ser reconhecido como um problema social
relevante muito recentemente, textos como o de Collins que mostram apagamentos das
contribuições das feministas negras para a sofisticação teóricas para o enfretamento às
desigualdades, remete às suas próprias histórias de silenciamentos. Ser negro ou negra no
Brasil não se desassocia facilmente do pertencimento de classe. Mulheres negras que
falam anunciando a consciência que adquiriram de seu lugar subalternizado, reaviva
temores ancestrais pelos quais se constitui o próprio projeto de nação brasileira: o de
criminalização da pobreza e da negritude, além da insistente tutela que o Estado mantém
sobre o corpo das mulheres, sobretudo das pobres.
É recente a emergência de um enunciado de políticas e reivindicações centrado na
ideia de lugar de fala. O sintagma tem potência crítica e política indubitável, uma vez que
reivindica não só voz para aquelas e aqueles que foram historicamente silenciadas/os,
mas requer também a escuta. Quer dizer, que estas sejam vozes ouvidas e levadas a sério.
A polêmica que envolve a exigência do lugar de fala não se deve, pelo menos não neste
texto, a questionamentos quando à legitimidade desta demanda e a importância da
denúncia que ela encerra, mas aos essencialismos que foram sendo reavivados nesse
processo.
Passou a ser voz comum em espaços universitários, em eventos acadêmicos e,
acredito que isso tenha se dado também em outros fóruns de discussão, que pessoas
iniciassem suas falas ou intervenções elencando suas opressões. Sublinhar essas marcas
de desigualdade servia para dar visibilidade aquelas que falavam em espaços nos quais
suas vozes não costumavam ser ouvidas. Dizer-se negra, lésbica e favelada tornou-se um
ato político em uma país que parecia se transformar e rever séculos de racismos,
colonialismo, machismos e violências de classe. A experiência subjetiva passou a, por si,
emprestar legitimidade em ocupar o espaço de fala. Falas que não podiam ser
interrompidas, ainda que ultrapassassem o tempo convencionado coletivamente para as
exposições. A ação reparatória podia vir também nessas concessões, ou estas seriam
formas envergonhadas de “paternalismo”?
Em 2009, uma mesa-redonda que encerrou um grande evento universitário de
caráter bastante transgressivo, feministas tidas como brancas foram questionadas e quase
impedidas de falar: “onde estavam as feministas negras?”, interrogava parte da audiência.
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De feministas, aquelas senhoras que corporificavam referências bibliográficas brasileiras
clássicas, passaram a serem suspeitas de racismo. Não bastava mais que fossem mulheres
falando de feminismo, de sexualidade, de reprodução, de direitos. Raça precisava ser
reconhecida como eixo constituinte de experiências singulares de exclusão. E precisava
ser feito por uma mulher negra.
A recusa na forma, por vezes de acusação, em ouvir acadêmicas falarem,
reproduzia dicotomias como “elas fazem teoria e nós fazemos política” (BENTO, 2010).
A potência dos feminismos foi, a meu ver, romper, justamente, como esse tipo de
separação, denunciando a mal-disfarçada neutralidade das ciências canônicas.
Adriana Vianna (2012, p. 228) remonta o cenário destas tensões em sua pesquisa
de campo sobre direitos sexuais. Escreve ela:
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Volto à Avenida Paulista, para aquela cena que se torna possível por ser fruto
concreto, tangível, desses acirrados debates. A voz que ali se expressa diz, no enunciado
de apresentação da cantora, dos silêncios que a invisibilizaram, fragilizaram, calaram,
quando ela tinha tanto a dizer. Aquela voz, porém, não se fez audível sozinha. Acreditar
nesse protagonismo voluntarista seria abraçar os mais perniciosos (e tolos, e nem por isso
menos perigosos) refrãos neoliberais. Muitas vozes falam ali. Reconhecê-las é
fundamental para não apagar uma história de lutas. A história da transformação cultural
mais profunda pela qual as sociedades de matriz ocidental têm passado: a da critica
feminista.
Essa tem sido a potência crítica dos feminismos: sua capacidade transformadora.
O que implica em transformar-se constantemente, problematizando suas próprias
categorias de análise. Os desafios se colocam mais acentuadamente nos tempos de
radicalização, tão necessários para as mudanças e para a gestação de novas teorias. Mas
são nesses momentos também que corremos maiores riscos de construirmos polarizações
como quem constrói barreiras. Momentos também que, como escreveu Brah, na citação
recortada acima, dificultam que se estabeleçam políticas de solidariedade.
Referências bibliográficas
BRAH, A. “Diferença, diversidade, diferenciação”. Cadernos Pagu. Campinas, n. 26, p.
329-376, jan/ jun. 2006.
HALL, Stuart. Quem precisa da identidade? Tradução de Tomaz Tadeu da Silva. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e
diferença. A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora. Vozes, pp. 103-133,
[1996] 2000.
HENNING, Carlos Eduardo. Interseccionalidade e pensamento feminista: As
contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de
marcadores sociais da diferençaMediações, Londrina, V. 20 N. 2, P. 97-128, JUL./DEZ.
2015
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidade, categorias de articulação e experiências de
migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez, 2008, p. 263-274.
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VIANNA, Adriana. Atos, sujeitos e enunciados dissonantes: algumas notas sobre a
construção dos direitos sexuais. In MISKOLCI, Richard; PELÚCIO, Larissa. Discursos
Fora da Ordem. São Paulo: Annablume Queer/Fapesp. 2012