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esmo sendo um velho conhecido do leitor comum brasilei-

ro, Antón Pávlovitch Tchekhov não gozou aqui da apaixo-

nada admiração por um Dostoiévski, um Tolstói, um Górki

– mas teve o seu quinhão dereconhecimento. Creio, no

` entanto, que se alguém investigasse a sério, decerto descobri-

ria que o Tchekhov da nossa intimidade era o da primeira fase, a fase dos

pequenos contos humorísticos semelhantes a sketches: diálogos curtos e ágeis,

cenário reduzido, tom de comédia, ou melhor, tragicomédia. Observador

sagaz e impiedoso, Antón P. Tchekhov comprazia-se em surpreender os seus

contemporâneos em situações vexatórias, no mínimo ridículas. Adotava então

o pseudônimo de Antocha Tchekhonté.

HÉLIO PÓLVORA

literário.

Tche
HÉLIO PÓLVORA é
ficcionista e crítico

A. P. Tchekhov: Cartas para


uma Poética, de Sophia
Angelides, apresentação de
Boris Schnaidermann, São
Paulo, Edusp, 1996.( Livro
ganhador do Jabuti de me-
lhor tradução de 1996).

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Anton
Pavlovitch
Tchekhov
em foto de
1899

Uma
poética
do conto
e do

e khov
drama

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Vez por outra um desses contos curtos, como queria Grigoróvitch, assumiu o seu ta-
como “Morte de um Funcionário”, destaca- lento, oferece ao público contos “desossados”,
va-se pela dramaticidade intensa. Algo pare- sem arcabouço, sem vigamento, sem
cido, na subserviência extremada do funcio- madeirame, nos quais quase não se observa
nário, à existência baça e massacrada daque- movimentação cênica e superposição
le Akaki Akakiévitch, de Gogol (“O Capo- episódica. Em verdade, Tchekhov escreveu
te”). Mas o Tchekhov reestruturador da his- as entrelinhas da história curta – e por tal
tória curta moderna, um dos pais do conto motivo a sua arte sutil encantou Virginia
impressionista, data do seu período de ama- Woolf, que tentou inutilmente imitá-lo, e
durecimento crítico/criador. Isso ocorreu em Katherine Mansfield, que o assimilou melhor
1886, quando, a instâncias do romancista nos seus contos ditos de “atmosfera”.
Dmítri Grigoróvitch, que o admirava, passou Virginia Woolf chamou de “momentos do
a encarar a literatura – a sua literatura – com ser” ou “estados de consciência”, aliás em
seriedade. Disse-lhe Grigoróvitch: mutações contínuas, aqueles instantes deci-
sivos, iluminados, da contística tchekhoviana.
“Os atributos variados do seu indiscutível Um tema de Tchekhov, a metáfora da mosca
talento, a verdade de suas análises psico- prisioneira, veio a ser trabalhado coinciden-
lógicas, a mestria de suas descrições [...] temente por ela, por Katherine Mansfield e
deram-me a convicção de que está desti- pelo contista brasileiro Moreira Campos. Na
nado a criar obras admiráveis e verdadei- novela O Duelo a enfastiada Nadyezhda
ramente artísticas. E o senhor se tornará Fyodorova tem a desagradável sensação de
culpado de um grande pecado moral, se ser uma mosca e, pior ainda, de ficar igual a
não corresponder a essas esperanças. O uma mosca retida numa poça de tinta. “E
que lhe falta é estima por esse talento, tão pareceu-lhe que, qual uma mosca, ela conti-
raramente conhecido por um ser humano. nuava a cair na tinta e a se arrastar novamente
Pare de escrever depressa demais...”. para a luz”, anota o narrador. No conto “O
Vestido Novo”, escrito provavelmente no
A. P. Tchekhov: Cartas para uma Poéti- início de 1925 e publicado em maio de 1927,
ca, de Sophia Angelides, ex-professora de antes de incluí-lo em volume, Virginia Woolf
língua e literatura russas da Universidade de se propõe a investigar “a consciência da fes-
São Paulo, em bem cuidada edição da Edusp, ta, a consciência do vestido, etc.”, conforme
refere-se à maturidade tchekhoviana, que adianta numa carta. A sua personagem Mabel
durou mais ou menos da reprimenda de admite, a certa altura, que “todos nós nos
Grigoróvitch (e do apoio incansável de parecemos com moscas que tentam se arras-
Suvórin, editor do Nóvoie Vrêmia) até 1904, tar pela beira de um pires”, e cita palavras
quando o contista russo morreu em seguramente colhidas no texto tchekhoviano:
Badenweiler, Alemanha. Num período de “Moscas tentando se arrastar”. Mais adiante,
vinte anos, se tanto, Tchekhov escreveu suas quando exclama para si própria “mentiras,
obras-primas, que são muitas, a começar por mentiras, mentiras”, ela nos remete, outra vez,
“A Estepe”, publicada no número 3, 1988, da a O Duelo, na ocasião em que o desastrado
revista Séverni Véstnik, narrativa em que Laevsky “tentava sempre mostrar-se supe-
aparecem nitidamente insinuados os seus con- rior e melhor do que eles. Mentiras, menti-
ceitos de história curta: a falta de enredo de- ras”. Quando, no conto woolfiano, um indi-
finido, no sentido de acontecimentos ou fatos víduo malicioso e importuno avisa que Mabel
seqüenciais, a diluição das três partes ou blo- está de vestido novo, “a pobre mosca foi de-
cos –princípio, meio e fim – característicos finitivamente empurrada para o meio do pi-
do conto maupassantiano, e, sobretudo, o res. Sem dúvida ele deseja afogá-la, acredi-
impressionismo, a sutileza da tintura psicoló- tou Mabel”. E por fim, depois de dizer à an-
gica que ele vai espargindo com mão leve e fitriã, Mrs. Dalloway, que muito havia apre-
no entanto com um surpreendente poder de ciado a sua festa, Mabel sai a resmungar:
luminescência. Tchekhov, na fase em que, “Mentiras, mentiras, mentiras”.

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Influência poderosa, a de mestre Tchekhov velho que havia amortecido o sentimento de
na contística inglesa. Woolf e Mansfield lhe pesar pela morte do filho único na guerra. E
teceram loas, procuraram imitar-lhe o poder talvez porque ele se sentisse morto por den-
de exprimir o que parece inexprimível, de tro, vem a matar, com pingos de tinta, a mos-
narrar sem estar jungido a um plot ou desfe- ca que havia resgatado do tinteiro e posto a
cho. Não há em “O Vestido Novo” qualquer secar num mata-borrão.
alusão a Tchekhov, mas não deixa de ser sin- É durante o seu período de amadureci-
tomático que Virginia Woolf tenha escrito mento e criação intensiva (tinha horror à pre-
um texto curto com o título de Tio Vânia, em guiça, acreditava no trabalho como remédio
que o drama no palco repete o drama de um moral), quando firma a sua definição de con-
entediado casal de espectadores ingleses em to, que Tchekhov promove para o irmão
vias de agressão mútua. Sabe-se, a propósito, Aleksandr, parentes, amigos, escritores, o
que a 16 de fevereiro de 1937 Virginia assis- editor e amigo Suvórin, a esposa Olga Knipper
tiu a uma peça de Tchekhov, Tio Vânia, onde, e a escritora Maria Kisseliova, um debate
no final do terceiro ato, Vânia dispara duas acerca da contística e da dramaturgia , porque
vezes o revólver contra alguém e erra. “Os ele próprio foi um dos que rasgaram também
russos não são mesmo mórbidos?”, pergunta a cortina para o teatro moderno. Criou, sem
a mulher ao marido, enquanto saem do teatro. querer, uma Poética (cartas sobre o conto, o
Em Moreira Campos, contista cearense, a teatro e outros temas literários) que tem cor-
metáfora da mosca prisioneira reflete outros rido mundo, em línguas e edições diversas,
desesperos. Aqui, a referência, mais do que a especialmente Letters on the Short Story, the
dor de viver, mais do que o tédio enorme de Drama, and Other Literary Topics,
viver, será o sexo. “A Grande Mosca no Copo selecionadas e editadas por Louis S. Friedland,
de Leite” faz parte do último volume de con- da qual tenho um exemplar de 1966, da Dover
tos do autor, que tem título igual e data de Publications, Inc., New York, baseado na obra
1985. História simples, porém das mais car- originalmente lançada por Geoffrey Bles and
regadas, sobre um furto de jóias atribuído pela Minton, Balch & Company, de 1924.
patroa rica, velha e fútil, a uma das suas em- Foi nesta antologia que há de ter-se inspi-
pregadas domésticas. Sem provas, sem pro- rado Sophia Angelides. Com mão certeira
cesso formado e com a conivência da família, ela escolheu um punhado dessas cartas – 63
a moça é presa e, na delegacia, submetida a ao todo. Acompanhando-as, uma a uma, ve-
torturas para confessar o furto. Um conto mos que o autor de “O Monge Negro” desen-
cruel, de tintura sádica, em que a injustiça da volveu, em fragmentos, toda uma teoria do
situação cria um sentimento de revolta indig- conto literário, e com mais vigor, e profundi-
nada. Metida, nua, no pau-de-arara, a moça dade do que o fizeram, nestes últimos decêni-
desabrocha de súbito ao revelar na branca os, nos Estados Unidos e algures, alguns
carne leitosa do corpo a mosca negra do sexo tratadistas. Naturalmente Tchekhov levou
que “avultava com força, exuberante, o ven- sobre estes a vantagem de não teorizar no
tre batido”. Mosca, teia de aranha ou que outra vazio, de orelhada; partia de sua experiência,
imagem tenha no imaginário coletivo, o sexo do barro que tinha nas mãos e procurava la-
da mulher, nesse caso, atrai, na tentativa não vrar e moldar; tirou conclusões do que fazia
de imolar-se, mas de se libertar. enquanto o fazia, naquela fase “quente” da
A mosca na metáfora de Moreira Campos escrita, embora dê impressão de frieza, de
é um símbolo de coragem e resistência, de álgido médico anestesista ou dissecador de
amor à vida, menos mórbido do que o seu almas. Os contos tchekhovianos, incluindo
similar em Tchekhov e Virginia Woolf. Veja- os mais longos, que semelham novelas ou
se agora a mensagem da mosca em Katherine romances tolhidos, valem por uma teoria in-
Mansfield. “The Fly” está incluído no volu- formal do conto. De forma que quem quiser
me The Dove’s Nest, de 1923. Ainda dessa rastrear, na contística moderna, o instante
feita, a mosca, que caiu num tinteiro e tenta exato em que se deu a ruptura com o modelo
escalar a borda, dá lições de coragem a um clássico terá de buscar naquela correspondên-

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cia a comprovação de todos os indícios. “Queridinha”, “A Estepe”, “No Barranco”,
Na compilação de Sophia Angelides, “Mujiques”, “O Monge Negro”, “A Enfer-
enriquecida com notas sempre precisas, em maria nº 6”, “Uma História Enfadonha”, o
linguagem clara e ortografia impecável, tra- admirável “O Bispo” (sua penúltima história,
balho feito com um rigor asséptico, é fácil de 1903), e um extraordinário conto sobre um
recensear algumas posições do grande prosa- desencontro amoroso, “Três Anos”, de 1895
dor russo acerca da história curta e da (talvez a mais autobiográfica das histórias de
dramaturgia. Curioso é que as peças teatrais Tchekhov, juntamente com “Minha Vida”).
também obedecem mais ou menos a sua idéia Há outras que deixo de citar.
e prática do conto, conforme se lê na carta 10, O que é “A Estepe” senão uma sucessão
ao irmão Aleksandr, a propósito da peça de quadros que funcionam como contos? Se
Ivanov: “O argumento é complicado e não é não chegam a ser autônomos é porque o me-
tolo. Termino cada ato como os meus contos: nino Iegóruchka os percorre, atando-lhes as
conduzo o ato inteiro de maneira tranqüila e pontas. Até mesmo na dramaturgia
mansa, mas no final dou um tapa na cara do tchekhoviana esse afã de terminalidade, de
espectador”. Tchekhov nasceu com a voca- trabalhar o discurso em compartimentos es-
ção de contista e o conto foi a forma de arte tanques ou intercomunicantes, mas sempre
literária que mais lhe falou ao temperamento: compartimentais, se impõe.
“Por falta do hábito de escrever longo, sou A correspondência escolhida e traduzida
desconfiado; enquanto escrevo, a idéia de que por Sophia Angelides menciona uma espanto-
minha novela será longa e não estará na devi- sa viagem transiberiana até a ilha-presídio de
da forma, assusta-me o tempo todo, e tento Sacalina. Já enfermo, minado pela tuberculo-
escrever o mais curto possível”, ele confessa se, Tchekhov resistiu aos conselhos dos ami-
a Suvórin (carta 25, a propósito do conto gos e empreendeu a viagem. O resultado se
“Luzes”). Jamais escreveu um romance, sabe: recensear a população carcerária, denun-
emborca manifestasse esperança, em carta de ciar os métodos penitenciários feudais que eram
1888, a Grigoróvitch: “Enquanto não soar a a vergonha da Europa. Mas, ainda assim, per-
hora do romance, vou escrevendo aquilo que siste a indagação: por que aquela viagem de
me agrada, ou seja, pequenos contos de uma quase auto-imolação? O tédio? O contista
folha, uma folha e meia”. Mas a indecisão atirava-se ao trabalho como forma de reagir ao
dura pouco, os contos se alongam, se esprai- tédio da vida. Sentimento de culpa por não dar
am, aproximando-se, em realização artística à sociedade russa, tão injusta nas suas desi-
e número de páginas, da nouvelle posterior de gualdades e violências, algo mais que a litera-
Henry James, “the beautiful and best tura? Não seria decerto aquela sensação de ser
nouvelle”. Para James, tal novela, que ele um pouco um daqueles homens supérfluos (“un
exercitou com mestria, juntando as peripéci- homme de plus”) do ficcionismo de
as do conto licencioso boccacciano ao teor Turguêniev. Talvez fosse mais um resíduo do
moralista das novelas cervantinas, era um misticismo tolstoiano que chegou a impregnar
conto sem extensão previamente determina- o Tchekhov dos primeiros escritos. Mas o se-
da, que tinha “the value above all of the idea gredo da ida a Sacalina ele o levou para o
happily developed”. Uma idéia desenvolvida túmulo. Ivan Ilitch, personagem de Tolstói,
com êxito – tais são as novelas ou contos encarou a morte com um espanto decepciona-
extensos de Tchekhov. Um texto ficcional do: “Então é isto a morte?”, monologou, já nas
intermediário entre o conto e a novela, ou às vascas da agonia. Já Antón Pávlovitch sentou-
vezes entre a novela e o romance, algo em se na cama, disse “Ich sterbe”, bebeu
torno de vinte a quarenta mil palavras, tema champagne e morreu com ar risonho. Parece
sem ramificações (sub-plots) do núcleo nar- que o encontro final com a morte lhe deu pra-
rativo, sem desdobramentos – uma composi- zer, ou pelo menos despertou-lhe curiosidade
ção, em suma, unicelular. As obras-primas pelo que viria. Algo parecido com o final da
do mestre russo, neste particular, são “A Dama peça As Três Irmãs: ”Minhas queridas irmãs,
do Cachorrinho”, “Ana no Pescoço”, nossa vida ainda não terminou. Viveremos”.

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O consolo de que os outros, os que ficam, fu- discursivo e abrem, de repente, nervos
turamente poderão ser felizes. Quanto a esse latejantes. Esse conto moderno, terso e tenso,
consolo, Ibsen, numa de suas peças mais ao qual chega, na sua jornada analítica, Sophia
negativistas, antecipa-se a Tchekhov. Angelides, requer naturalmente a cumplicida-
Depois das cartas, a Poética das cartas. E de do leitor, fica insinuado no papel para que
aqui, mais uma vez, Sophia Angelides atesta a o leitor o preencha segundo os rumos da sua
sua profunda empatia com Tchekhov, confor- emoção despertada. Assim o entendemos, nas
me salienta no prefácio o tradutor Boris suas ambivalências e ambigüidades que, de
Schnaidermann. Os métodos de dois tanto se repetirem, recusam o reconhecimento
antecessores deste, Edgar Poe, que buscou “um de verdades absolutas, verdades lugar-comum,
singular efeito único” e formulou uma filoso- em favor da “verdade” ficcional. Nunca dizer
fia de composição empenhada toda ela em diretamente, jamais concluir. Sugerir, sugerir
produzir tal efeito, e François-René-Albert- sempre e deixar a sugestão suspensa no ar,
Guy de Maupassant, que preparava aos pou- qual ameaça de sortilégio, renunciar aos fe-
cos um final contundente, umas vezes chos de efeito, porque nem sempre os “con-
anedótico, outras vezes dramático e até sobre- tos” da vida se completam à maneira lógica de
natural, são repassados por Angelides no es- um relato circunstanciado. Na opinião, aliás,
forço de rastrear o método personalíssimo de de Sean O’Faolain, “telling never dilates the
Tchekhov. Esforço penoso, já que talvez o mind with suggestion as implication does”.
próprio Antón Pávlovitch ignorasse os limites Razão não faltou a um contista moderno,
extremos, ainda que vagos ou indefinidos, da Sherwood Anderson, ao dizer que vivemos
ruptura que impôs ao conto enquanto narrati- apenas durante alguns breves instantes signi-
va, enquanto “acontecimento” ou “caso”. É ficativos de nossas vidas; e que os fatos, inci-
que nas mãos do mestre de Taganrog o núcleo dentes ou lá o que sejam, não se reúnem nem
sedimentar do conto provoca irradiação, na se mesclam a ponto de configurar um enredo
medida em que o tema se dilui ou dissolve ante completo, digno de transcrição literária.
a riqueza de uma prosa construída, curiosa- Tchekhov, sendo o pioneiro de ficções curtas
mente, de observações quase sempre corriquei- baseadas em incidentes, recomenda conten-
ras, mas que, na uniformidade do bloco ção, na sua correspondência, e chega à ousa-
contístico, adquire significados insuspeitados. dia de, em pleno reinado da narrativa clássi-
A verticalização predomina sobre a ca, com o gosto do público já viciado,
horizontalidade do relato, o contista não pare- desconsiderar o argumento tanto na contística
ce empenhado em narrar ou contar, senão em quanto na dramaturgia. Suas personagens
atingir um instante crítico, uma situação-limi- nada fazem de notável. Andam, gesticulam,
te, quando, então, desvela alguma verdade falam, se desentendem ou silenciam. Às ve-
oculta, ou tangencia um mistério de persona- zes os seus silêncios gritam. E o que elas di-
lidade. Em outras ocasiões o conto parece bro- zem ou calam é mais importante do que aqui-
tar sem a intervenção do autor, ele se narra, lo que poderiam pensar por intermédio de
caprichosamente se deixa ficar incompleto, quem as criou. Revelar, pois, a personagem
uma parte mergulhada nas sombras ou ao invés de descrevê-la e de justificá-la, pelo
submersa. Contos antianedóticos, ao contrá- que ela diz ou cala, faz ou omite, é uma das
rio dos que escreveu, para ganhar dinheiro e técnicas do conto tchekhoviano, da mesma
sustentar a família pobre, no início da carreira, forma que a parcimônia da paisagem (“A
quando ainda estudante de medicina. Contos Estepe” seria uma exceção por ser um painel
de incidentes, entretecidos mais de impressões vasto que o ficcionista se dispôs intencional-
que de fatos, e onde o factual, quando aparece, mente a compor) mal delineia o cenário. Nada
está sublinhado por um toque lírico ou enseja de descrições minuciosas e extensas. Não se
uma impregnação poemática. Contos, em chega mais rápido ao centro nervoso do conto
suma, de composição fechada, à guisa de so- pelos pés de chumbo da retórica. E se puse-
netos e outras rígidas formas líricas – mas que rem uma espingarda na parede, por favor,
emocionam exatamente quando negaceiam o façam com que a disparem. O conto

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tchekhoviano não admite adornos, retratar quem falou ou pensou a respeito
rendilhados, acessórios. de Deus ou do pessimismo, de que manei-
Mas se esse conto não resulta de um con- ra e em que circunstâncias. O artista não
junto de representações factuais, nem por deve ser o juiz de suas personagens, nem
isso perderá um revestimento virtual. O do que elas falam, mas apenas uma teste-
virtualismo de Tchekhov, embora sem des- munha imparcial” (carta a Suvórin).
cer ao “estrume”, emite o odor forte de uma
realidade muitas vezes abjeta. “Mujiques”, Ao mesmo Suvórin ele advertiu uma vez:
“No Barranco” e “A Enfermaria no 6”, para “Quando alguém serve café, não pense em
ficarmos apenas nestes exemplos, impressio- encontrar cerveja no café. Quando eu expo-
nam mais, a meu ver, como literatura social, nho as idéias de um professor, confie em mim,
pelo realismo resultante das situações descri- nelas não procure as idéias de Tchekhov” (a
tas e dos conflitos latentes, do que a denúncia propósito de “Uma História Enfadonha”).
direta, do que a vergastada de Górki. É um O livro de Sophia Angelides, trabalho que
milagre a absorção do documento pela arte da lhe consumiu muitos anos e no qual pôs o seu
escrita, que apenas pelo poder das palavras ardor intelectual, permite muitas considera-
acaba por imprimir ao documento foros de ções e aproximações. Sei que estou a alon-
verdade mais cruel do que a verdade sentida gar-me, mas é difícil resistir a mais algumas
em primeira mão. E dizer-se que Tchekhov linhas antes de fechar este comentário. Na
foi acusado de preconceitos ideológicos. E exegese que faz da Poética tchekhoviana,
saber-se que outro retratista social da Rússia, Angelides registra, além da “contenção”, mais
Turguêniev, sofreu feroz campanha dos duas diretrizes: “a unidade básica da modula-
patrulheiros ideológicos. ção e desenvolvimento”, na composição do
Nas suas premonições, porque todo gran- conto divisado por Tchekhov e, como já assi-
de criador as tem, Antón Pávlovitch só se nalamos, descrições curtas da natureza, em
enganou uma vez, ao supor (carta de 1888), pormenores distribuídos “de tal maneira que,
que “nunca haverá revolução na Rússia...”. ao lê-los, se possa, fechando os olhos, formar
Afora este equívoco, seu realismo é um quadro”. Estas lições do mestre russo
irretocável, é impiedoso. Eis um escritor que, parecem de encomenda para defender-se, se
na sua gloriosa maturidade, negou-se a quais- ainda preciso, o nosso Machado de Assis,
quer concessões. Se Kovrin, com os nervos tantas vezes acusado de menosprezar a paisa-
arrebentados, avista um monge negro a voar, gem, de ser escritor europeu. É que o gosto
talvez não esteja com as faculdades mentais literário da época ia para a geografia român-
avariadas, talvez o contista esteja a propor tica de Alencar. Também em benefício da
uma metáfora acerca do próprio Kovrin e da história curta, Tchekhov aconselhou certa
fragilidade humana. Se, em “Três Anos”, al- “reticência artística”. Ignoro se Machado te-
guém avista, numa poltrona do quarto, a figu- ria lido Tchekhov. Mas seguramente a “reti-
ra de um morto querido, provavelmente está cência artística” e outros processos que cons-
delirando, porque fantasmas não existem. tituem o ideário do gigante russo estão em
“Um escritor deve ser tão objetivo quanto um contos como “Noite de Almirante”, “Galeria
químico”, disse o mestre em carta a Maria Póstuma”, “Cantiga de Esponsais”, “Uns
Kissiliova. “Ele deve renunciar à subjetivi- Braços”, “Trio em Lá Menor”, “Missa do
dade da vida codidiana e saber que os montes Galo”, “Pílades e Orestes”, “Um Capitão de
de estrume desempenham um papel muito Voluntários”– para ficar somente nestes.
respeitável na paisagem, e que as paixões ruins Vamos nos deter um pouco em “Uns Bra-
são tão inerentes à vida quanto as boas.” Tam- ços”. Este conto foi publicado pela primeira
bém negava ao escritor caráter carismático. vez no dia 5 de novembro de 1885, na Gazeta
de Notícias, do Rio de Janeiro. Dois anos de-
“Parece-me que os escritores não devem pois, em 1887, Antón Tchekhov estampava
resolver questões tais como Deus, o pes- “O Beijo”, no Nóvoie Vrêmia, no 4.238. O conto
simismo, etc. O papel do escritor é apenas de Machado retoma o sovadíssimo triângulo

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amoroso, porém irrealizado, apenas implícito. Outra obra-prima machadiana, “Noite de
Inácio, jovem ajudante de solicitador na Cor- Almirante”, tendo por motivo o desencanto
te, apaixona-se platonicamente pela dona da ou o desencontro amoroso, guarda a
casa em que está hospedado, D. Severina. pungência de uma história tchekhoviana. É
Maltratado pelo solicitador Borges, ele encon- um conto de ilusão perdida. Mas talvez “Mis-
tra em sonhos, nos braços da mulher, a evasão, sa do Galo” seja o exemplo reticente por ex-
a ternura de que está carente, a resposta às celência, oblíquo e dissimulado à maneira de
primeiras solicitações do sexo. Inácio ador- Tchekhov. Nele, um rapaz do interior e uma
mece e sonha com a Amada. Sonha que ela lhe senhora comprometida conversam sozinhos,
deu um beijo na boca. Acontece que o beijo foi em casa desta, enquanto ele espera a chegada
real, porque D. Severina, num instante de ten- do amigo que o levará à missa da meia-noite.
tação, havia cedido ao instinto. Inácio vai Há nesse conto uma linguagem paralela
embora e vive daí por diante embalado pelo sugerida pelo que não é dito, mas que é pen-
gosto daquele beijo. Também em equívoco sado. As entrelinhas pulsam de desejo eróti-
semelhante está centrado “O Beijo” de co. Machado de Assis consegue nessa página
Tchekhov, em que um modesto oficial, tímido o milagre da libido disfarçada que, exatamente
e desajeitado, é beijado por engano, num quar- por estar disfarçada, ou reprimida, suplanta o
to escuro, por uma mulher desconhecida, du- erotismo direto e por vezes brutal. Em “Mis-
rante recepção oferecida ao seu regimento. O sa do Galo” os silêncios falam, gritam tanto
incidente marca-o para o resto da vida. Quem quanto os silêncios do teatro tchekhoviano.
teria sido a dama? A senhora de vestido lilás Estamos pensando na peça As Três Irmãs ou
ou a loura de vestido preto? A senhora que está O Jardim das Cerejeiras, onde o que não é
dançando agora com o seu companheiro de dito, mas insinuado ou pensado, pesa mais
regimento, ou aquela ali a sua frente, na mesa? que qualquer palavra explícita.

BIBLIOGRAFIA

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———. The Kiss and Other Stories. Penguin Books, 1982.
———. The Duel and Other Stories. Penguin Books, 1984.
———. The Party and Other Stories. Penguin Books, 1985.
———. As Três Irmãs. Tradução de Maria Jacintha e Boris Schnaidermann. São Paulo, Abril
Cultural, 1979.
———. O Monge Negro. Tradução de Moacir Werneck de Castro. Rio de Janeiro, Rocco, 1985.
———. A Dama do Cachorrinho e Outros Contos. Tradução de Boris Schnaidermann. São Paulo,
Editora Max Limonad, 1985.
———. O Homem no Estojo. Tradução de Tatiana Belinky. São Paulo, Global Editora, 1986.
YARMOLINSKY, Avrahm. The Portable Chekhov, London, The Viking Portable Library, 1977.
WOOLF, Virginia. Objetos Sólidos. Tradução de Hélio Pólvora. São Paulo, Siciliano, 1992.

R E V I S T A U S P , S Ã O P A U L O ( 30 ) : 3 4 4 - 3 5 1 , J U N H O / A G O S T O 1 9 9 6 351

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