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APRESENTAÇÃO

A Revista FORPROLL (2526-7507), do grupo CNPq/FOR-


PROLL – Formação de Professores de Línguas e Literatura nasceu
com o intuito de difundir os estudos na área de Educação em seus
diversos aspectos e congruências. O grupo surge como uma pro-
posta para abertura de discussões no campo do Ensino de Línguas
e Literaturas, bem como as relações interdisciplinares que o saber
mantém com todas as áreas.
Os objetivos do Grupo de Pesquisa fundamentam-se em
observar, refletir, analisar e discutir a recepção e atuação de atuais e
futuros professores de Língua Materna (LM) e Língua Estrangeira
(LE) com relação às propostas de ensino atuais que visam a maior
participação e autonomia do aluno. Não obstante, contribuir com
novas propostas interdisciplinares que auxiliem o processo ensino-
aprendizagem.
A Revista, em consonância com os propósitos do grupo,
também busca uma discussão mais fecunda e frutífera acerca do
Ensino de Línguas e Literaturas e áreas de interesse em comum,
pensando na formação de um professor crítico e reflexivo.
A terceira edição, visando a amplitude dos propósitos do
grupo, traz discussões que vislumbram desde a gramática normativa,
variações linguísticas e ensino de língua estrangeira, até propostas
didáticas e reflexões sobre o papel do professor e a indisciplina em
sala de aula.
As contribuições dessa edição continuam prezando pela
diversidade de instituições e regiões brasileiras, do mesmo modo
que abre espaço para textos de instituições internacionais.

Renato de Oliveira DERING


Editor-chefe

1 | 2018 – vol. II, nº 01


EDITORES DIAGRAMAÇÃO E
Eduardo Dias da Silva NORMATIZAÇÃO
(UnB-PósLit/ FORPROLL-CNPq) Lucca de R. N. Tartaglia
Lucca de R. N. Tartaglia (UFRJ/FORPROLL-CNPq)
(UFRJ/FORPROLL-CNPq)
Renato de Oliveira Dering (Uni- CONSELHO EDITORIAL
ANHANGUERA/FORPROLL-CNPq) Confira a lista clicando AQUI.

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SUMÁRIO*

Vol. II (2018) – Nº 02

01
A poesia de São Francisco e a pintura de
Giotto di Bondonne: traços de confluência
estética na produção artística de mato grosso
Adriana Lins PRECIOSO
Danglei de Castro PEREIRA

02
Da decodificação aos letramentos: uma
revisita ao ensino e aprendizagem da leitura
nos anos iniciais
Arinádina Caetano PENONI
Gasperim Ramalho de SOUZA

03
A construção do imaginário e do simbólico
no conto infanto-juvenil A princesa suja

Cacio José FERREIRA

04
Letr@mentos digit@is e a formação de
professores: uma revisão sistemática de
artigos acadêmicos em língua portuguesa
Francisco Jeimes de Oliveira PAIVA
Ana Maria Pereira LIMA

* Todo o conteúdo contido nos textos é de responsabilidade integral de


seus autores e foram cedidos para publicação, conforme as condições da
revista. Sendo assim, emitem a ideia de seus autores e não da Revista
Forproll ou do Grupo FORPROLL/CNPq.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 2


05
O currículo de língua estrangeira à luz da
linguística aplicada contemporânea: análise
multimodal de uma unidade didática de um
livro didático de espanhol
Jaqueline BARROS

06
“Quando os profissionais da educação
estarão prontos para incluir?” Uma análise
com base na linguística sistêmico-funcional e
na análise de discurso crítica

Juliana Araújo RIBEIRO

07
Produção textual na aula de língua
portuguesa: um enfoque sociodiscursivo

Karine Rebouças de Oliveira MAIA


Ester Maria de Figueiredo SOUZA

08
A Inglaterra pós-primeira guerra mundial, a
luta de classes e a industrialização no
romance O amante de Lady Chatterley
Leopoldina Ramos de FREITAS

Próspero e Caliban na relação entre política

09 exterior e identidade nacional no Brasil


Ludimila Stival CARDOSO
Elias NAZARENO

10
O “folhetim eletrônico” repaginado: a
constituição da narrativa teleficcional
brasileira

Rondinele Aparecido RIBEIRO

Recepção de telenovela na

11 contemporaneidade: um olhar a partir do


Twitter

Tiêgo Ramon dos Santos ALENCAR

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12 Para pensar a educação integral
Lucca de R. N. TARTAGLIA

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 4


A POESIA DE SÃO FRANCISCO
E A PINTURA DE GIOTTO DI
BONDONNE: TRAÇOS DE
CONFLUÊNCIA ESTÉTICA NA
PRODUÇÃO ARTÍSTICA DE
MATO GROSSO1

Adriana Lins PRECIOSO2


Danglei de Castro PEREIRA3

RESUMO: A presente pesquisa dá continuidade a um projeto iniciado em 2013


com o título: “Transculturação e poéticas contemporâneas: traços identitários de
Mato Grosso” que teve financiamento da FAPEMAT e foi desenvolvido até o
ano de 2015. Como os resultados evidenciaram promissoras continuidades e
revelaram uma constância da presença do elemento mítico como fenômeno de
revisitação e atualização, deu-se sucessão à pesquisa agora intitulada:
“Transculturação e poéticas contemporâneas: traços identitários de Mato Grosso
– Abordagem mitológica” (2016/2019). Nesta primeira fase do projeto atual serão
investigados os modos como a poesia e a pintura dialogam de forma estética entre
o final da Idade Média e o início do Renascimento formando a raiz mítica que
será ao longo dos tempos retomada, renovada e até parodiada nos tempos atuais.
Para isso, serão selecionados poemas de São Francisco de Assis e as pinturas e
afrescos do seu contemporâneo Giotto di Bondonne, com a finalidade de buscar os
fatores que os tornaram emblemáticos na produção da Arte Sacra cristã, uma vez
que, as imagens de suas obras fazem parte do imaginário do inconsciente coletivo.
Esses artistas possuem uma importância fundamental para o desenvolvimento da

1 Uma parte introdutória e resumida deste artigo pode ser vista no trabalho
intitulado “Confluências estéticas e mitológicas na Arte Sacra: a poesia de São
Francisco e a pintura de Giotto di Bondonne” nos Anais do XIV CONAELL –
Colóquio Nacional de Estudos Linguísticos e Literários de 2016, realizado pela
UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso – Campus de Sinop, na
página: http://www.conaell.com.br/Anais-Evento/Edicao-Atual
2 Pós-doutoranda da Universidade de Brasília pela CAPES (2017/2018).

Professora dos Programas de Mestrado Acadêmico e Profissional da FAEL –


Faculdade de Educação e Linguagem da UNEMAT – Universidade do Estado de
Mato Grosso – Campus de Sinop.
3 Coordenador e Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Literatura

da Universidade de Brasília (Pós-LIT/UnB) e Supervisor deste estágio de Pós-


Doutoramento.

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arte ocidental, sendo também em suas épocas precursores de inovações da arte
poética e pictórica, sinalizando um movimento de valorização do homem frente
a sua busca pelo encontro com o maravilhoso proposto pela religião, neste caso,
o cristianismo. A articulação das duas artes nos auxilia na compreensão de que
apesar de estarmos vivendo no período dito pós-moderno (HUTCHEON, 1991),
o ser humano carrega em sua essência a necessidade de viver e acreditar nos mitos,
suas imagens, símbolos e ideais. Para buscarmos sua atualização na produção da
poesia e da pintura produzidas em Mato Grosso, nosso primeiro passo é buscar
a configuração desses elementos na História da poesia e da pintura e o modo
como eles influenciam as duas artes em tempos atuais e servem de base para os
processos de revisitação dos traços considerados sagrados pela mitologia judaico-
cristã.

Palavras-chave: Confluências; Giotto; São Francisco.

INTRODUÇÃO

Este texto surge como resultado parcial do projeto de


pesquisa intitulado: “Transculturação e poéticas contemporâneas:
traços identitários de Mato Grosso – Abordagem mitológica” que
teve início em 2016 e vai até 2019. Há ainda uma parceria com o
grupo de pesquisa – LIOA – Literatura italiana e outras artes,
coordenado pela Profa. Dra. Maria Celeste Tommasello Ramos da
UNESP/IBILCE – Campus de São José do Rio Preto-SP e vice-
coordenado por mim. O foco da pesquisa é identificar e resgatar os
elementos da mitologia que influenciam a produção cultural de
Mato Grosso e o seu diálogo com o cânone e a tradição. Para isso,
foi escolhido um primeiro caminho de confluência estética
visualizado na produção de poemas de São Francisco de Assis e nas
pinturas de Giotto di Bondone, os quais inauguram as primeiras
produções de arte sacra na Idade Média e já apontam caminhos e
avanços que desencadearam os valores estéticos desenvolvidos ao
longo da Renascença. Sendo assim, verificaremos a ressonância
desse diálogo com a poesia do Bispo Dom Pedro Casaldáliga e da
pintura de Cerezo Barredo.
Vale ressaltar que os artistas italianos escolhidos são
considerados como pertencentes da arte clássica e também da arte
sacra, ou seja, a arte que tem inspiração religiosa e suas obras servem

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como partícipes dos rituais litúrgicos. Ela fora destinada ao culto
como participante ativa da relação entre o fiel e o seu Deus, ela ainda
fomenta e ordena o culto, ao divino nos tempos atuais. A relação
mítica com o divino nos interessa na medida em que as
representações poéticas e pictóricas procuram evidenciar traços
atribuídos às divindades em suas produções e também conjugam a
presença de símbolos e metáforas desses mitos. Sendo assim, “as
histórias mitológicas são construídas com o auxílio da linguagem
simbólica. É possível decifrar as metáforas que criam novos
sentidos, valendo-se de determinados empregos de palavras,
imagens, etc., para representá-las nas obras de arte” (RAMOS, 2005,
p. 8).
Tomamos por mito, o conceito de Chauí: “Um mito é uma
narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da
Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos
ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos
instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.)”
(2000, p. 28). Chauí indica as origens da palavra mytho em grego,
como sendo derivada de dois verbos mytheyo que significa contar,
narrar ou contar algo para os outros e mytheo que significa anunciar,
nomear, designar. (2000, p. 28).
Para a filósofa, o pensamento mítico, com base nas
pesquisas de Lévi-Strauss, reúne as experiências, as narrativas, os
relatos, até compor um mito geral, no caso específico deste estudo,
para a composição da mitologia judaico-cristã na sua versão
atualizada. Chauí sintetiza as três funções principais dos mitos: 1)
explicativa: “o presente é explicado por alguma ação passada cujos
efeitos permaneceram no tempo”; 2) organizativa: “o mito organiza
as relações sociais (de parentesco, de aliança, de trocas, de sexo, de
idade, de poder, etc.) de modo a legitimar e garantir a permanência
de um sistema complexo de proibições e permissões” e 3)
compensatória: “o mito narra uma situação passada, que é a negação
do presente e que serve tanto para compensar os humanos de
alguma perda como para garantir-lhes que um erro passado foi

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corrigido no presente, de modo a oferecer uma visão estabilizada e
regularizada da natureza e da vida comunitária.” (2000, p. 161-2)
Desta forma, as funções do mito dinamizam uma série de
símbolos, metáforas, ritos, rituais que passam a encarnar nas artes e
a representar ideiais e ideais que sintetizam um período histórico,
cultural e econômico formadores dos valores estéticos atribuídos a
diferentes períodos da história da humanidade. Para este estudo,
inicialmente, vamos investigar a produção poética de São Francisco
de Assis.

SAN FRANCESCO – O POETA

Giovanni di Pietro Bernardone (1181-1182? / 1228) –


chamado de Francisco pelo pai. Participa da guerra entre as cidades
de Assisi e Perugia. Vem a ser preso por um ano e fica muito doente
na prisão, seu pai paga a fiança e ele volta para casa muito debilitado.
É neste período que inicia-se o processo de conversão de Francisco.
O jovem, depois de recuperado, passa a desejar viver tal como Jesus
Cristo viveu, renuncia a família e os bens materiais e vai viver junto
dos mais pobres, afastado do centro da cidade. Depois da aprovação
do Papa, Francisco funda a Ordem Franciscana aprovada por
Onorio III em 1223. Seu trabalho junto aos pobres da época, aos
leprosos e animais se evidenciam, são comentados por toda a
comunidade e depois chegaram a virar lendas; vale ressaltar que
aqui, toma-se o termo “lenda” a partir da sua origem:

do latim leggenda – “coisas que devem ser lidas”.


Originalmente, a palavra designava histórias de
santos, mas o sentido estendeu-se para significar
uma história ou tradição oriunda de tempos
imemoriais e popularmente aceite como verdade.
É aplicada hodiernamente a histórias fantasiosas
ligadas a pessoas verdadeiras, acontecimentos ou
lugares.
(http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/lenda/4)
4 Conferir site: http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/lenda/ - Visitado em
27/02/2018.

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Uma das lendas mais divulgadas narra que no dia do
nascimento de Francisco uma revoada de pombos sobrevoou o
telhado da casa dos pais do santo, uma outra é a respeito de um
animal nos arredores da cidade de Gubbio, um lobo feroz que após
amedrontar toda a cidade, transformou-se em um cão manso após
uma conversa com Francisco. (PROSCIUTTI, 1970).
A biografia de São Francisco é muito popular e divulgada,
sua figura carrega a simbologia do nome que a ele foi atribuído il
poverello d’Assisi (o pobrezinho de Assis). Considerado santo pela
Igreja Católica, é um dos mais conhecidos e venerados no mundo.
Sua vida tem aspectos muito interessantes para os historiadores:

à margem da Igreja mas sem cair na heresia,


revoltado sem niilismo, ativo naquele ponto mais
fervilhante da cristandade, a Itália central, entre
Roma e a solidão de Alverne, Francisco
desempenhou um papel decisivo no impulso para
a nova sociedade cristã, e enriqueceu a
espiritualidade com uma dimensão ecológica que
fez dele o criador de um sentimento medieval da
natureza expresso na religião, na literatura e na
arte. Modelo de um novo tipo de santidade
centrado sobre o Cristo a ponto de se identificar
com ele como o primeiro homem a receber os
estigmas, Francisco foi uma das personagens
mais impressionantes de seu tempo e, até hoje, da
história medieval. (LE GOFF, 2001, p. 9)

Para nós, além da simbologia que marca a trajetória de vida


de São Francisco, o poema Cantico delle Creature (Cântico das
Criaturas), nos interessa sobremaneira, uma vez que, esse texto é um
dos inauguradores da tradição da Poesia del Duecento da literatura
italiana. Mais conhecido como Il cantico di frate sole e sorella luna (O
cântico do irmão sol e da irmã lua), foi composta provavelmente em
1224, já no final da vida breve de Francisco. É uma poesia de louvor
a Deus, a vida e a natureza, esses elementos surgem harmonizados

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em uma relação de beleza e função para a manutenção da vida de
ambas as espécies.
Pazzaglia afirma:

São Francisco de Assis contribuiu para a


recondução, na Itália, das tensões heréticas mais
subversivas da ortodoxia, não através de uma
mera restauração, mas vivendo e inspirando uma
dimensão inédita da experiência religiosa, que se
traduzia, pois, em uma nova ideia do homem e da
vida5. (1997, p. 81) (tradução nossa)

Essa visão humanista é baseada na postura de vida adotada


por Francisco, inspirado na vida de Cristo e na afirmação do
fundamento maior do Cristianismo como sendo o amor.

A vida de São Francisco de Assis é uma vida-


poema. O heroísmo e a humildade se confundem
com essa vida maravilhosa. Ama e serve os
leprosos; enfrenta a soberba presença do soldado
do Egito, para e apascenta o feroz lobo de
Gubbio; pede ajoelhado a bênção do frade
Ginepro, funda missões, ordens novas, edifica
igrejas e conventos, aconselha reis e papas; escuta
com religiosa atenção o canto dos rouxinóis. Fala
com as flores e as estrelas, as cigarras e os falcões,
ao fogo e ao vento, ao Amor e a Morte,
chamando todos irmãos e irmãs. Em tempos de
feroz dureza sobre toda a Itália um raio de alta
poesia6. (PROSCIUTTI, 1970, p. 9 – tradução
nossa)

5 “San Francesco d’Assisi contribuì a ricondurre, in Italia, le tensioni eretiche più


eversive all’ortodoxia, non attraverso una mera restaurazione, ma vivendo e
ispirando una dimensione inedita dell’esperienza religiosa, che si traduceva, poi,
in una nuova idea dell’uomo e della vita”. (PAZZAGLIA, 1997, p. 81)
6 “La Vita de S. Francesco d’Assisi è una vita-poema. L’eroismo e l’umiltà si

confondono in questa vita meravigliosa. Ama e serve i lebbrosi; afronta la superba


presenza del Soldano d’Egitto e ferma e mansuefà il feroce lupo dì Gubbio; chiede
genuflesso la benedizione a frate Ginepro, fonda missioni, ordini nuovi, edifica
chiese e conventi, consiglia re e papi; ascolta con religiosa attenzione il canto dei
rosignoli. Parla ai fiori e alle stelle, alle cicale ed ai falchi, al fuoco ed al vento,
all’Amore e alla Morte, chiamando tutti fratelli e sorelle. In tempi di feroce dureza
versa sull’Italia un raggio di alta poesia. (PROSCIUTTI, 1970, p. 9)

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Nesse sentido, podemos observar que também para os
teóricos a vida e a obra de Francisco se misturam e formam lendas
que acabam por fortalecer a presença da mitologia cristã ainda hoje.
Vejamos a versão original e depois uma tradução para o italiano
atual do poema Cantico delle Creature (Cântico das Criaturas):

Altissimo, onnipotente, bon Signore,


tue so' le laude, la gloria e l' honore et onne benedictione.
Ad te solo, Altissimo, se confano
e nullu homo ène dignu te mentovare.
Laudato sie, mi' Signore, cum tucte le tue criature,
spetialmente messer lo frate sole,
lo qual' è iorno, et allumini noi per lui
Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:
de te, Altissimo, porta significatione.
Laudato si', mi' Signore, per sora luna e le stelle:
in celu l' ài formate clarite e pretiose e belle.
Laudato si', mi' Signore, per frate vento
e per aere nubilo e sereno et onne tempo,
per lo quale a le tue creature dài sostentamento.
Laudato si', mi' Signore, per sor' acqua,
la quale è molto utile et humile et pretiosa et casta.
Laudato si', mi' Signore, per frate focu,
per lo quale ennallumini la nocte:
et ello è bello et iocondo e robustoso e forte.
Laudato si', mi' Signore, per sora nostra madre terra,
la quale ne sustenta et governa,
e produce diversi frutti con coloriti fiori et herba.
Laudato si', mi' Signore, per quelli ke perdonano per lo tuo amore
e sostengono infirmitate e tribulatione.
Beati quelli ke'l sosterranno in pace
ca da te, Altissimo, sirano incoronati.
Laudato si', mi' Signore, per sora nostra morte corporale
da la quale nullu homo vivente po' scappare:
guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali;
beati quelli ke trovarà ne le tue sanctissime voluntati,
ca la morte secunda no 'l farà male.
Laudate et benedicete mi' Signore et rengratiate
e serviateli cum grande humilitate. (GHIRARDI, 2012)

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Vejamos agora a tradução que segue abaixo, uma versão
ilustrada retirada da Basílica de Assis:

Figura 1: ver referência webgráfica.

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O poema surge como marco que inicia a Poesia Italiana
devido ao seu caráter histórico, literário e teológico. (MATTOS,
2012). Escrito em latim vulgar, o latim falado popularmente na
época, ficou consagrado como uma ode de louvor a Deus, aos
elementos da natureza, sua beleza e função em perfeita harmonia
com a relação entre Deus x homem x natureza, sua estrutura é
parecida com uma prosa rítmica quase em forma de um salmo.
Levando em consideração que um poema é uma expressão
de uma experiência, o poema de São Francisco, é um texto literário
que expressa uma experiência espiritual, escrito em uma língua que
ainda não tinha um nome, uma vez que derivava do latim dos
eruditos misturado a um latim considerado vulgar, a língua do povo,
é o primeiro uso literário do latim vulgar em dialeto umbro na Itália.
Os três primeiros versos caracterizam a figura do Senhor
“altíssimo”, “onnipotente”, “bon” e atribui a Ele a criação de todas
as coisas; nos dois próximos versos, o poeta afirma que nenhum
homem é digno de mencionar o Senhor devido a sua imensa
bondade. Ghirardi (2012) afirma que há um temor reverencial nesse
epíteto que pode ter antecipado a liturgia cristã nos termos de
“temor e tremor” proposta por Kierkegaard no início do século
XIX.
Após essa reverência, o poeta louva a Deus pela criação
específica do sol, da lua, das estrelas, etc, contudo, o modo como
ele faz esse louvor é chamando esses elementos da natureza de
“irmão” e “irmã”, personificando-os e aludindo a uma harmoniosa
relação entre essas figuras com o homem, além de descrevê-los em
suas funções: “radiante cun grande splendore” – o sol; “clarete,
preziose e belle” – a lua e as estrelas; “robusto e forte” – o fogo.
Todas as criaturas são convocadas para louvar a Deus, são
colocadas no mesmo grau de importância em uma relação que pode
ser equilibrada e respeitosa em uma horizontalidade que sustenta a
mesma função: adorar ao Criador, por isso, o título do poema –
Cantico delle Creature. Ghirardi (2012) anuncia a presença de um
diálogo com o primeiro livro da Bíblia, o Gênesis; na medida em

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que, retoma-se a ideia de que tudo foi criado por Deus e que tudo
que foi por Ele criado é bom.
O processo de figurativização dos elementos da natureza
auxilia na contemplação do poema e o modo como ele os descreve
e permite ao leitor uma visualização bastante eficiente da relação
harmônica. “A contemplação da beleza das criaturas, dos irmãos e
irmãs, como manifestação do Criador é o que leva Francisco a
expressar em poesia sua grande experiência mística. A expressão
poética torna-se inseparável dessa experiência.” (GHIRARDI,
2012)
Essa harmonia estende-se ao campo da sonoridade, a repe-
tição dos termos: “Laudato si', mi' Signore, per” cria uma espécie de
ladainha, a qual soma-se a busca por um ritmo musical também na
repetição nos últimos versos, formando pares sonoros, como po-
demos verificar em: stelle/belle, vento/tempo, corporale/scappare. Não são
todos os versos que existem esses pares, mas uma maioria ou uma
aproximidade sonora.
Podemos sintetizar que “para Francisco de Assis, a beleza
das criaturas é grande manifestação da beleza divina.” (GHIRARDI,
2012). O poema canta a beleza da criação em plena harmonia com
a beleza das criaturas na organização estética de uma forma que
estabelece ritmo, som e figura.
Passemos, agora, para a produção pictórica do mesmo pe-
ríodo.

GIOTTO DI BONDONE: O PINTOR

Do mesmo modo em que Francisco inaugura com seu


poema o que hoje consideramos o início da Literatura italiana,
Giotto di Bondone (1266 – 1337), supera com suas pinturas a arte
bizantina da época e é considerado como o primeiro gênio do
Renascimento italiano na produção pictórica. A temática religiosa
era a mais utilizada neste período, tanto na poesia quanto na pintura,
e o fator da humanização apareceu em ambos, na pintura, ainda,
Giotto consegue avançar dando a elas um caráter tridimensional.

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Gombrich salienta:

Com métodos dessa espécie, um gênio que que-


brou o sortilégio do conservadorismo bizantino
pôde aventurar-se em um novo mundo e traduzir
para a pintura as figuras realistas da escultura
gótica. A arte italiana encontrou esse gênio no
pintor florentino Giotto Bondone (c. 1267-1337)
(2008, p. 201)

A pedido dos Franciscanos, Giotto compôs o Ciclo delle Storie


di San Francesco (Ciclo de Histórias de São Francisco) (1296 – 1300),
na Catedral de Assis:

São 28 pinturas que se encontram abaixo das ja-


nelas, nas quais nas quais Giotto narra os episó-
dios mais populares da vida de Franscisco. O
pintor pinta o espaço e os personagens repre-
sentando-os na realidade da vida cotidiana: vêm
retratadas as cidades medievais com os edifícios e
os personagens reais nas vestimentas do tempo
de Giotto. (ANGELINO, BALLARIN, 2006, 33
– tradução nossa)

O princípio da vida religiosa de Francisco foi retratada por


Giotto na tela intitulada “Renúncia dos bens terrenos”:

Figura 2: ver referência webgráfica.


A vida religiosa de Francisco tem início com a sua renúncia
aos bens materiais, filho de um comerciante rico da cidade de Assisi,

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ele recebeu educação voltada para os negócios mas após retornar
ferido da luta com a cidade de Perugia, ele, ao invés de voltar para a
vida ordinária e auxiliar os pais no negócio da família, decide atender
ao chamado de Cristo, quando estava orando na Capela de São
Damião. Segundo Francisco, o chamado dizia: “Vá Francisco,
restaure a minha casa!”
A partir de então, Francisco entrega-se aos trabalhos como
os necessitados, leprosos e animais. Faz voto de pobreza e começa
a pregar sua doutrina. Funda a “Ordem os irmãos mendigos de
Assis”.
A tela de Giotto retrata o exato momento em que diante da
igreja, Francisco se despe dos trajes e os entrega ao pai, em um ato
de renúncia a vida passada e início do seu ministério, esse é o teor
narrativo que possui a pintura. Já a tridimensionalidade surge com
as figuras de fundo, que dão a dimensão do espaço, as casas
representadas dos lados direito e esquerdo, como também o centro
da pintura com um azul que dá profundidade. No plano dianteiro,
temos a população que observa a ação de Francisco, bem como, seu
pai recebendo as vestes, um bispo o cobre com o seu próprio manto.
As cores claras e os gestos precisos remontam a narrativa proposta
pela pintura.
Já na tela Predica agli uccelli (O sermão dos pássaros),
Francisco está acompanhado de um discípulo, seus trajes já
evidenciam a escolha pela vida religiosa e as marcas que caracterizam
a sua doutrina até os dias atuais.

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Figura 3: ver referência webgráfica.

Nessa tela pode-se observar a movimentação com os gestos


de São Francisco, seu discípulo e dos pássaros geram inovação para
a pintura da época. Vale ressaltar que: “Na Itália, particularmente
em Florença, a arte de Giotto modificara toda a ideia de pintura. A
velha maneira bizantina pareceu, de súbito, rígida e obsoleta.”
(GOMBRICH, 2008, p. 212). Os tons terrosos, as cores das aves e
a composição da natureza tentam capturar a forma realista a cena
em que se apresenta.
Angelino e Ballarin (2006, p. 33) esclarecem:

Não existe uma narrativa contínua entre as várias


histórias: cada pintura é uma história completa e
a cena vem narrada entre o espaço da pintura e
aquele arquitetônica da nave. Essas cenas vêm
representar alguns fatos históricos de um Santo
que teve papel histórico preciso em uma realidade
precisa7. (Tradução nossa)

7 “Non c’è un racconto continuo tra le varie storie: ogni dipinto è una storia
completa e la scena viene raccontata tra lo spazio del dipinto e quello
architettonico della navata. Queste scene vogliono rappresentare alcuni fatti
storici di un Santo che há avuto un ruolo storico preciso in un realtà precisa.
(ANGELINO E BALLARIN, 2006, p. 33)

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Os aspectos de realidade alcançados por Giotto fundam
uma nova configuração ao surgimento de uma nova perspectiva
artística:

A palavra renascença significa nascer de novo ou


ressurgir, e a ideia de tal renascimento ganhava
terreno na Itália desde a época de Giotto.
Quando as pessoas desse período queriam elogiar
um poeta ou um artista, diziam que sua obra era
tão boa quanto a dos antigos. Giotto fora assim
exaltado como um mestre que liderara um
verdadeiro ressurgimento da arte; as pessoas
queriam significar com isso que a arte de Giotto
era tão boa quanto a daqueles famosos mestres
cujas obras eram louvadas pelos antigos da Gré-
cia e de Roma. (GOMBRICH, 2008, p. 223)

Desse modo, um novo olhar se estabelecia no campo das


artes e o Renascimento, dentro dessa perspectiva, se volta para o
humano, para o cotidiano para a sociedade da época, em
substituição a uma submissão centrada na figura de um deus distante
e centralizador, o homem passa a ser envolvido no processo da vida
individual e social.

ATUALIZAÇÃO DA MITOLOGIA CRISTÃ:


POESIA E PINTURA

Campbell apresenta elementos que sustentam uma mitologia


atuante. Para ele:

Para ser efetiva, uma mitologia (para expor o


assunto rudimentarmente) deve estar
cientificamente atualizada, embasada em um
conceito do universo que seja atual, aceito e
convincente. E em respeito a isso, é claro, torna-
se imediatamente evidente que as nossas
tradições estão passando por problemas sérios,
pois as principais alegações do Antigo e do Novo
Testamento estão fundamentadas em uma
imagem cosmológico do segundo milênio antes

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 14


de Cristo, que já estava desatualizada quando a
Bíblia foi compilada nos últimos séculos antes de
Cristo e no primeiro da era cristã. (2002, p. 242)

Sendo assim, Campbell anuncia o problema da desatualização


das imagens que compõem todo o cenário da obra que fundamenta
o Cristianismo, a Bíblia. Nesse sentido, justifica-se o objetivo desse
trabalho: difundir uma produção atualizada que dialogue com a
tradição da mitologia cristã. Nosso foco tem como recorte a obra
poética do Bispo Dom Pedro Casaldáliga, que completou 90 anos
agora em 2018; a produção pictórica do padre claretiano Maximino
Cerezo Barredo (1932). As obras desses artistas podem ser
encontradas em boa parte da América Latina, em consonância com
a temática desenvolvida pela Teologia da Libertação, vertente da
Igreja Católica que inspira não só a reflexão e mudança na vida
religiosa como também renova o cenário da poesia e pintura ditas
religiosas no campo das artes. Vale ressaltar que os conflitos
vivenciados em terras da Amazônia mato-grossense e o atual
sistema de colonização ganham corpo e voz no exercício de
resistência e de denúncia na arte de Casaldáliga e Barredo. Também
será apresentada a obra da artista plástica Mari Bueno que, mesmo
ligada aos espaços mais tradicionais da Igreja Católica na atualidade,
compartilha em suas produções, desse processo de atualização do
espaço litúrgico.
A obra Orações da caminhada: Prelazia de São Félix do Araguaia
(2005) apresenta uma estrutura que se divide em 6 partes: 1) orações
com a temática das bem-aventuranças e a Páscoa; 2) Os credos, a
confissão e profissão de fé; 3) orações dedicadas a Maria, a nossa
Senhora Aparecida, a São Francisco e aos mártires; 4) as ladainhas,
5) orações de causas específicas, por exemplo: oração dos direitos
humanos, orações da causa da mulher; 6) orações dedicadas a
conquista da paz. Para este estudo foi selecionado o poema/oração
abaixo:

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ORAÇÃO A SÃO FRANCISCO
EM FORMA DE DESABAFO

Compadre Francisco, Muitos tecnocratas


como vais de Glória? e poucos poetas,
e a comadre Clara muitos doutrinários
e a Irmandade toda? e menos profetas.

Nós, aqui na Terra, Armas e aparelhos,


vamos mal-vivendo, trustes e escritórios
que a cobiça é grande planejam a História,
e o amor pequeno. manejam os Povos.

O Amor Divino A Mãe Natureza


é mui pouco amado chora, poluída,
e é flor de uma noite no ar e nas águas,
o amor humano. nos céus e nas minas.

Metade do mundo Pássaros e flores


definha de fome morrem de amargura,
e a outra metade e os lobos do espanto
de medo da morte. ganharam as ruas.

A sábia loucura Murchou o estandarte


do Santo Evangelho da antiga arrogância.
tem poucos alunos são de ódio e lucro
que a levem a sério. as nossas cruzadas.

Senhora Pobreza, Sucedem-se as guerras


Perfeita Alegria, e os tratados sobram.
andam mais nos livros sangue por petróleo
que nas nossas vidas. os impérios trocam.

Há muitos caminhos O Mundo é tão velho,


que levam a Roma. que, para ser novo,
Belém e o Calvário compadre Francisco,
saíram de rota. só fazendo outro...

Nossa Madre Igreja ... Quando Jesus Cristo


melhorou de modo; e Nossa Senhora
mas tem muita cúria venham dar um jeito
e carisma pouco. nesta Terra nossa,
compadre Francisco,
Frades e conventos tu faz um força,
criaram vergonha, e a comadre Clara
mas é mais no jeito e a Irmandade toda.
que por vida nova. (2005, p. 64-7)

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Casaldáliga recupera as figuras dos santos São Francisco e
Santa Clara (prima de Francisco e atuante em sua ordem) e passa a
dialogar com eles, em uma espécie de atualização do modo como o
mundo tem se organizado na contemporaneidade. Esse diálogo
revela tanto uma crítica que se posiciona de forma global, como nos
versos: “Nós, aqui na terra, / vamos mal vivendo, / que a cobiça é
grande / e o amor pequeno.”; quanto de forma específica, em
relação aos próprios religiosos: “Frades e conventos / criaram
vergonha, / mas é mais no jeito / que por vida nova.”.
A relação harmônica entre o homem e a natureza louvada
no poema de Francisco dá lugar ao resultado de um capitalismo
selvagem e devastador; “A mãe natureza / chora, poluída”; e o lobo,
da lenda do santo, é reconfigurado com nova roupagem: “e os lobos
do espanto / ganharam as ruas.” Casaldáliga ainda acrescenta: “São
de ódio e lucro / as nossas cruzadas.”
A oração-poema tem um tom de desabafo e desilusão e
chega a concluir: “O mundo é tão velho / que, para ser novo, /
compadre Francisco, / só fazendo outro...” Ao nomear o santo de
“compadre”, Casaldáliga se une a ele, em uma mesma visão de
mundo, de fé e vida, contudo, carregado de um pessimismo em
relação ao futuro do mundo que repete os mesmos erros do
passado.
O processo de atualização realizado por Pedro Casaldáliga
se dá, na medida em que, os dados históricos, sociais e econômicos
de um mundo globalizado, capitalista e indiferente surgem em uma
oração-poema em que todos os tipos de relações são questionadas
e criticadas. Por conseguinte, essa é a mesma perspectiva encontrada
na arte de Cerezo Barredo, pois para ambos, a Teologia da
Libertação, vertente da qual são praticantes e teóricos, procura
atualizar o compromisso da igreja e sua opção será sempre pelos
pobres e necessitados. Para eles, o compromisso e a contemplação
religiosa não podem ser apenas simbólicas.

Não contemplamos paragens celestiais, mas


procuramos escutar o grito de Deus no grito da

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realidade. Procuramos contemplá-lo na sarça ar-
dente no processo de libertação, no qual escu-
tamos a Palavra que nos envia como Moisés para
libertar nosso povo. Procuramos escutá-lo
obedientemente, com “ob-audientia”. A con-
templação da libertação é sempre um chamado a
um renovado compromisso com a realidade.
(CASALDÁLIGA, VIGIL, 1993, p. 143)

Esse compromisso latente com a realidade, expõe as


condições de luta quando se faz a opção pela Teologia da Libertação
em áreas onde os poderes ocultos governam, tal como podemos
observar no afresco intitulado “O Reino e o Anti-reino” de Cerezo
Barredo abaixo:
A pintura de Cerezo Barredo soma-se ao processo de luta e
engajamento desenvolvido por Casaldáliga. Retomando o modelo
da construção e consolidação da igreja primitiva e perseguida,
Barredo dialoga com o cânone e, ao mesmo tempo, o atualiza,
provocando no seu observador um estranhamento para o tipo de
figuras utilizado para compor o interior de uma igreja, como
podemos observar no mural “O Reino e o Anti-reino”, encontrado
na Prelazia de São Félix do Araguaia-MT:

Figura 4: (BARREDO, 2005, p. 9)

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 18


A pintura de Cerezo Barredo soma-se ao processo de luta e
engajamento desenvolvido por Casaldáliga. Retomando o modelo
da construção e consolidação da igreja primitiva e perseguida,
Barredo dialoga com o cânone e, ao mesmo tempo, o atualiza,
provocando no seu observador um estranhamento para o tipo de
figuras utilizado para compor o interior de uma igreja, como
podemos observar no mural “O Reino e o Anti-reino”, encontrado
na Prelazia de São Félix do Araguaia-MT.
Localizado no interior da igreja, é possível ver sua porta e as
paredes de tijolos que sustentam o mural, bem como, o teto de
madeira sem forro, caracterizando o espaço na qual a igreja se insere.
A cena se compõe em direita e esquerda em uma narrativa de forma
semelhante as pinturas renascentistas, na qual surge Jesus ao lado
dos trabalhadores rurais munidos de enxada e faca em
posicionamento de vigilância e luta.
Do centro-direito, um trator passa por cima de algumas
pessoas e ao canto direito, um rosto roxo que tem a seu lado uma
caveira e um saco de dinheiro, engole pessoas. Um braço atravessa
o mural e tenta pinçar pessoas caracterizadas como trabalhadoras.
Longe da imagem do Cristo consagrado pela arte e pela igreja
tradicionais, este Cristo negro, se posiciona na história daquela
comunidade e se coloca em posição de luta por eles. Denúncia clara
contra a ação do agronegócio na região, suas ações e suas
abordagens, o mural tanto busca a resistência do povo quanto revela
o verdadeiro “inimigo” da comunidade. Ao atualizar o mito,
Barredo o lança no chão da história, dá a ele traços mais próximos
daqueles que as pesquisas mais atualizadas dizem a respeito da
forma e da aparência que teria tido Jesus.
Esse afresco encontrado no mural da igreja em São Félix-
MT é apenas uma das muitas obras de Barredo, todas são
fundamentadas nessa mesma vertente que preserva a relação com o
cânone tanto religioso quanto cultural e acrescenta os processos
históricos, sociais, econômicos e culturais da atualidade.

19 | 2018 – vol. II, nº 02


CONSIDERAÇÕES FINAIS

San Francesco e Giotto são exemplos que constituem uma


construção poética que exprime uma convergência estética e de
inovação em períodos históricos, sociais, culturais e econômicos.
Ambos inauguram tendências que serão, posteriormente, estudadas
como destaque na poesia e na pintura. Cria-se um senso de
realidade, uma busca pelo humano, pelo movimento, pela
integração que era inédito para a época.
Os elementos da natureza antropomorfizados na poesia de
Francesco em conjunção com o homem e a expressão humana e da
natureza ganhando forma, dimensão e movimento na pintura de
Giotto, configuram-se em um dos maiores legados de evolução
artística no período do Renascimento e que depois serviu de base
para novas conquistas que se expandirem para as outras áreas de
conhecimento do homem e do meio ambiente.
Todo esse legado poético pode ser, portanto, vislumbrado
em uma interlocução confluente e atualizada com a produção
artística de Pedro Casaldáliga e Cerezo Barredo. As bases que
estruturam as obras desses artistas dão sustentação para os
processos de convergência que são os alicerces das artes: o
movimento centrípeto e o movimento centrífugo. Desse modo, o
mergulho nas referências míticas e estruturais são dinamizadas junto
a uma realidade específica, historicamente pontuada e
contemporânea. Assim, a hipótese do projeto de pesquisa encontra
força em estudos como esses para prosseguir na linha teórica na qual
foi concebida e gerar novas outras possibilidades de inovação e
divulgação tanto do diálogo entre as artes como na arte produzida
no estado de Mato Grosso.

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THE POETRY BY SÃO FRANCISCO AND THE PAINTING


BY GIOTTO DI BONDONNE: TRACES OF AESTHETIC

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CONFLUENCE IN THE ARTISTIC PRODUCTION OF
MATO GROSSO

ABSTRACT: The present research continues a project started in 2013 with the
title: "Transculturation and contemporary poetics: identity traits of Mato Grosso",
which was financed by FAPEMAT and was developed up to the year 2015. As
the results were promising and revealed a Constancy of the presence of the
mythical element as a phenomenon of revisiting and updating, was given
succession to the research now entitled: "Transculturation and Contemporary
Poetics: Identity Traits of Mato Grosso Mythological Approach" (2016/2019). In
this first phase of the project will be investigated the ways in which poetry and
painting dialog aesthetically between the end of the Middle Ages and the
beginning of the Renaissance forming the mythical root that will be repeated,
renewed and even parodied in the present times. To this end, poems of St. Francis
of Assisi and the paintings and frescoes of his contemporary Giotto di Bondonne
will be selected to search for the factors that made them emblematic in the
production of Christian Sacred Art, since the images of his works Are part of the
collective unconscious imaginary. These artists are of fundamental importance for
the development of Western art, already in their epoch were precursors of
innovations of poetic and pictorial art, signaling a movement of appreciation of
man in his search for the marvelous encounter proposed by religion, in this case,
Christianity. The articulation of the two arts helps us to understand that although
we are living in the postmodern period (HUTCHEON, 1991), the human being
carries in its essence the need to live and believe in the myths, their images,
symbols and ideals. In order to look for an update on the production of poetry
and painting produced in Mato Grosso, our first step is to seek the configuration
of these elements in the History of poetry and painting and how they influence
the two arts in current times and serve as the basis for the Processes of revisiting
the traits considered sacred by Judeo-Christian mythology.

Keywords: Confluences; Giotto; São Francisco.

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REFERÊNCIAS

ANGELINO, M. BALLARIN, E. L’italiano attraverso la storia


dell’arte. Perugia: Guerra Edizioni, 2006.

BARREDO, C. CASALDÁLIGA, P. Murais da libertação: na


prelazia de São Félix do Araguaia, MT, Brasil. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.

CAMPBELL, J. Mitologia na vida moderna. Tradução de Luiz Paulo


Guanabara. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 2002.

21 | 2018 – vol. II, nº 02


CASALDÁLIGA, P. VIGIL, J. M. Espiritualidade da Libertação.
Tradução de Jaime A. Classen. São Paulo: Vozes, 1993.

CASALDÁLIGA, P. Orações da caminhada: Prelazia de São Félix do


Araguaia. Campinas: Verus Editora, 2005.

CHAUI, M. Convite à Filosofia. 12². ed. São Paulo: Ática, 2000. p.


28-31 e 160-163.

GHIRARDI, P. G. São Francisco de Assis e o Cântico das Criaturas. In:


http://www.hottopos.com/seminario/sem2/pedro.htm

GOMBRICH. A História da arte. Tradução de Álvaro Cabral. 16


ed. Rio de Janeiro: LTC, 2008.

LE GOFF, São Francisco de Assis. Tradução de Marcos de Castro. 3ª


ed. São Paulo: Editora Record, 2001.

PAZZAGLIA, M. Scrittori e critici della letteratura italiana. 3. ed.


Bologna: Zanichelli, 1997, v. 1.

PROSCIUTTI, O. Lineamenti di letteratura italiana: pagine di scrittori


italiani. Perugia: Grafica Stabilimento per le arti grafiche, 1970.

RAMOS, C. (Org.) Mitos: perspectivas e representações. Campinas:


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creature.jpg&imgrefurl=http%3A%2F%2Fwww.vittoriasacca.it%2
F%3Fp%3D2566&docid=BjeKzjgzZ6DSaM&tbnid=V6jnKYmY
P30HZM%3A&w=497&h=720&bih=658&biw=1366&ved=0ah
UKEwiZ3o3k3p7PAhWEH5AKHeYSAxIQMwgpKA0wDQ&iac
t=mrc&uact=8 – visitado em 20/02/18.

http://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/lenda/ - Visitado em
27/02/2018.

http://www.hottopos.com/seminario/sem2/pedro.htm -
Visitado em 20/02/2018.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 22


DA DECODIFICAÇÃO AOS
LETRAMENTOS: UMA REVISITA
AO ENSINO E APRENDIZAGEM
DA LEITURA NOS ANOS INICIAIS

Arinádina Caetano PENONI1


Gasperim Ramalho de SOUZA2

RESUMO: O presente artigo, na forma de uma breve revisão de literatura,


apresenta uma discussão sobre as diferenças nas concepções de leituras, desde a
decodificação ao letramento, enquanto uma apropriação sociocultural do ato de
ler e como uma prática social indispensável para qualquer cidadão e que deve ser
incentivada e fortalecida no ensino fundamental. Diante disso, os professores não
devem apenas enfatizar a leitura como prática social, mas uma prática de cidadania
e exercício de reflexão que exige dos leitores um posicionamento crítico. Além
disso, pretende-se com essa pesquisa resgatar discussões que ressaltam a
importância do prazer da leitura, o qual pode ser ressignificado a partir de
atividades que permitam aos alunos engajar-se em práticas sociocomunicativas
relevantes para o exercício de sua cidadania

Palavras-chave: Alfabetização- Leitura- Prática Social- Cidadania.

1. INTRODUÇÃO

A leitura continua sendo um dos processos cognitivos mais


instigantes discutidos em diversos artigos, em capacitações docentes
e meios de comunicação, que direta ou indiretamente, apresentam
práticas sociais em que a leitura está presente ou em que ela precede
as relações socias existentes ali. É através dela, que o ser humano
aprimora o vocabulário, a interpretação, a ortografia, autonomia,
potencializa sua argumentação, sua colocação diante da sociedade,

1 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Lavras (UFLA)- E-mail:


arinadina@hotmail.com
²Professor do Departamento de Estudos de Linguagens da Universidade Federal
de Lavras( UFLA)- Email: gasperim.souza@del.ufla.br

23 | 2018 – vol. II, nº 02


desenvolve a criatividade, e seu raciocínio. O hábito pela leitura
amplia o conhecimento em diversas áreas, além de proporcionar a
contextualização e aprendizagem significativa de diversos
conteúdos em uma perspectiva interdisciplinar que não se dissocia
das práticas sócias. Nesse contexto, é muito importante que ela
reconheça através de incentivo desde a infância, por parte da família
e da escola, que a leitura não é uma mera atividade de “passatempo”,
obrigação ou mesmo como um castigo.
Além disso, é muito comum a concepção do ato de ler como
a consolidação de uma mera alfabetização através da decodificação
de palavras. Sendo que há diferença e se ensinado assim, a criança
terá dificuldades em interpretação. A alfabetização e a decodificação
envolvem o ato de ensinar o código escrito, já a leitura abrange o
entendimento, a comunicação humana, a transmissão cultural e a
interação.
Essa perspectiva do ato de ler, contudo, ainda é confundida
com o ato de simplesmente de decodificar palavras, especialmente
no ensino fundamental. Nesse ínterim, o professor tem um
importante papel como mediador desse processo. De acordo com
Soares, para se formar leitores deve ter uma atenção quanto à
dedicação do professor como leitor “porque se a pessoa não utilizar
e não tiver prazer no convívio com o material escrito, é muito difícil
passar isso para as crianças”. (SOARES apud MARICATO, 2005).
Para proporcionar à criança o desenvolvimento da
habilidade de leitura, é necessário que a escola tenha conhecimento
sobre a sua atuação e importância, já que nem sempre em casa há
este estímulo. O resultado adquirido com esta atuação será um leitor
crítico, que fará disso um prazer e desenvolverá o seu modo de ver
e argumentar sobre o mundo.
Este artigo na forma de uma breve revisão de literatura tem
por objetivo identificar como a prática da leitura, inserida no Ensino
Fundamental I (1º ao 5º anos), deve ser bem desenvolvida,
incentivando uma leitura prazerosa e motivando os alunos a lerem
diferentes tipos de texto para resultar em um leitor assíduo e crítico
a partir de práticas de leitura na perspectiva dos letramentos.

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2. O QUE SIGNIFICA LER EM
UMA PERSPECTIVA SOCIAL

De acordo com o dicionário Michaelis (2017), o termo


leitura significa: “Ação, efeito ou arte de ler; tirar lição de um texto”.
Entendendo então o termo, podemos observar que não há
facilidade em aprender a ler, porque depende de vários aspectos.
A leitura é uma das metas mais importantes a serem
atingidas no Ensino Fundamental, especialmente, o I que é a base
para os seguintes anos, ou seja, a responsabilidade é enorme.
Envolve muito incentivo e apoio aos alunos para que eles,
realmente, aprendem e assimilem a importância da leitura.
O aluno juntando as letras forma uma sílaba e depois as
palavras, isso faz parte da alfabetização, porém a leitura vai além de
uma simples decodificação. Envolve o letramento que acontece
quando a criança tem domínio da língua dentro do seu contexto
social. “Letramento é, o resultado da ação de ensinar ou de aprender
a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social
ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da
escrita.” (SOARES, 1999)
A leitura se dá pela construção de sentido que pode ser
explorada por vários modos, como por exemplo, pela imagem, som,
desenhos produzidos, vídeos, filmes, contação de histórias, entre
outras. O aluno quando lê deve associar a palavra a sua imagem,
assim ele interpreta (SOARES, 2003). Envolve a formação das
palavras e o seu significado. Segundo Soares (2002), só a partir da
década de 80 que este assunto foi mais entendido, assim dando uma
base melhor para os educadores saberem como agir com seus
alunos, trabalhando de forma precisa para envolver o aluno no
mundo da leitura. Assim, seu incentivo, desde o Ensino
Fundamental I, será essencial para formar sujeitos-leitores, com
capacidade de entender a importância da leitura e seus benefícios.
É a partir da leitura que temos o conhecimento de mundo,
como de outras histórias, experiências, hábitos e culturas. Além

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disso, com ela podemos nos orientar das mais diversas formas,
como: nas instruções, nas estradas e não ficarmos perdidos
(SUASSUNA, 1995; SOARES, 2003; SOARES, 1999). De acordo
com Moura e Martins (2012):

A leitura é essencial para o indivíduo


construir seu próprio conhecimento e
exercer seu papel social no contexto da ci-
dadania, pois a capacidade leitora amplia o
entendimento de mundo, propicia o acesso
à informação, facilita a autonomia, estimula
a fantasia e a imaginação e permite a
reflexão crítica, o debate e a troca de ideias.
(MOURA e MARTINS, 2012).

Portanto, para se viver em sociedade faz-se, necessário saber


ler e para isso há de se considerar a leitura (CARVALHO, 1997)
como propulsora, que transforma o sujeito em agente pensante,
crítico, analista e com bagagem cultural. “Um leitor competente é
alguém que, por iniciativa própria, é capaz de selecionar, dentre os
trechos que circulam socialmente, aqueles que podem atender a uma
necessidade sua.” (BRASIL, 1997).

2.1. A DIFERENÇA ENTRE


DECODIFICAÇÃO E LEITURA

Todo aluno durante o processo de aprendizagem, aprende a


decodificar, que significa ler de forma superficial. É um dos
primeiros estágios que possui grande importância, já que é através
da decodificação que processa todo o procedimento da leitura.
Primeiro, junta as letras, forma sílabas e depois palavras, porém não
interpreta de forma rápida, pois para entender algo deve ler
repetidas vezes e associar as palavras ao seu significado. A
decodificação é um ato de alteração de um código que está escrito
para o oral, para chegar a ser uma leitura deve ir além, deve ter uma
percepção de mundo, fonética e linguística. Segundo Menegassi
(1995):

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Na decodificação, há a ligação entre o reconhe-
cimento do material linguístico com o significado
que ele fornece. No entanto, ‘muitas vezes a
decodificação não ultrapassa um nível primário
de simples identificação visual’, pois se relaciona
a uma decodificação fonológica, mas não atinge
o nível do significado pretendido. (MENEGAS-
SI, 1995).

A compreensão das palavras vai acontecer depois da


decodificação, quando o leitor interligar os signos linguísticos com
as informações que estão dispostas ali (MENEGASSI, 1995).
Compreender um texto é absorver seu conteúdo, é encontrar os
significados de palavras novas e é conhecer as regras textuais,
semânticas e sintáticas. (CABRAL, 1986).
Leitura não é só saber ler, o processo vai muito além, o
indivíduo deve interpretar o que está escrito assim passando por um
longo processo de ensino-aprendizagem, que envolve o domínio da
linguagem, conhecer vocábulos e seus significados. Ela não é
somente reconhecer as letras, sílabas e palavras, pois se deve saber
ligar a palavra ao seu significado e a seu contexto social. Segundo
Lajolo (1982):

Ler não é decifrar, como num jogo de


adivinhações, o sentido de um texto. É a partir do
texto, ser capaz de atribuir-lhe significado,
conseguir relacioná-lo a todos os outros textos
significativos para cada um, reconhecer nele o
tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da
própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou
rebelar-se contra ela, propondo outra não
prevista. (LAJOLO, 1982)

O ato de ler é fundamental em várias ações na qual for


realizar, inclusive para os estudantes, que qualquer matéria que for
estudar necessitará da leitura. “Há um componente social no ato de
ler. Lemos para nos conectarmos ao outro que escreveu o texto,

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para saber o que ele quis dizer, o que quis significar.” (RANGEL e
ROJO, 2010)
A leitura é um processo que envolve leitor e autor, sendo
que ambos são interligados pelo texto, através de uma informação a
ser passada durante um determinado contexto histórico-social. É
um processo de trocas de informações, transmissão de
conhecimento. “leitor não deveria mais ser considerado como
consumidor passivo da mensagem não-significativa e irrelevante,
mas sim como ser participante na construção das ideias e nos
questionamentos de ideologias mascaradas nos textos.” (DIB,
2003).
Através dos conceitos pesquisados sobre leitura, Dib (2003)
analisa:

área da linguagem não mais a consideram [leitura]


como Produto, mas sim como um Processo, na qual
a participação do leitor não depende basicamente
de sua capacidade de decifrar sinais, mas sim de
construir significados. Com isso, a função do
educador, não seria somente a de ensinar a ler,
mas a de criar condições para o educando realizar
a sua própria aprendizagem, conforme seus
próprios interesses, necessidades, segundo as
dúvidas e exigências que a realidade lhe apresenta.
(DIB, 2003).

A leitura envolve diversas capacidades como afetivas,


sociais, intelectuais, perceptivas e linguísticas, cujas são dependentes
do objetivo e finalidade da leitura (KLEIMAN, 1989a). Para
desenvolver a leitura é necessário expandir o conhecimento do leitor
para que possa entender a informação implícita, o texto não traz
tudo pronto. Por isso, ao ler construímos sentido sobre a
informação e ativamos inúmeras estratégias sociocognitivas.

3. ENSINAR E APRENDER A HABILIDADE LEITURA

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Um dos maiores desafios dos professores e pais é incentivar
e despertar o interesse da leitura nas crianças. Atualmente, existem
tantas outras coisas que chamam mais a atenção e que também
podem ser usadas como complemento do ensino e aprendizagem
da leitura, por exemplo, os aparelhos eletrônicos, que ao invés de
criticá-los podemos usá-los em favor do ensino.
As novas tecnologias não excluem as formas tradicionais de
ler um texto impresso, já que as estratégias são complementares e
nunca exclusivas. Como ao fazer uma navegação na internet que não
se desvincula do ato de ler e ainda é uma leitura com maiores
exigências, já que, se deve ter um conhecimento amplo sobre vários
assuntos. (COSCARELLI, 2016). Soares (2002) discute sobre a
diferença entre ler um texto disposto em um papel e o hipertexto:

A dimensão do texto no papel é materialmente


definida: identifica-se claramente seu começo e
seu fim, as páginas são numeradas, o que lhes
atribui uma determinada posição numa ordem
consecutiva – a página é uma unidade estrutural;
o hipertexto, ao contrário, tem a dimensão que o
leitor lhe der: seu começo é ali onde o leitor
escolhe, com um clique, a primeira tela, termina
quando o leitor fecha, com um clique, uma tela,
ao dar-se por satisfeito ou considerar-se
suficientemente informado – enquanto a página é
uma unidade estrutural, a tela é uma unidade
temporal. (SOARES, 2002).

Isso demonstra que existe o letramento digital,

isto é, um certo estado ou condição que adquirem


os que se apropriam da nova tecnologia digital e
exercem práticas de leitura e de escrita na tela,
diferente do estado ou condição – do letramento
– dos que exercem práticas de leitura e de escrita
no papel.” (SOARES, 2002).

Para desenvolver bem a leitura deve ser trabalhado em sala,


a partir da educação infantil com o intuito de estimular a imaginação

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e o gosto pelos livros. Os educadores devem trabalhar de forma
lúdica para incentivar e envolver a criança em suas práticas. Isso
trará a vantagem de proporcionar a associação de situações do dia a
dia com o mundo da imaginação, trazendo a compreensão do que é
real e estimulando a sua fantasia e criatividade, assim fazendo com
que o lúdico tenha um papel de destaque. Já que auxilia o professor
no desenvolvimento do seu trabalho, pois mexe com a imaginação
das crianças de maneira agradável. “As atividades didáticas
relacionadas com jogos proporcionam aos alunos uma melhor
compreensão das atividades propostas”. (RAMOS, 2003)
O professor deve sempre estar atento com a sua forma de
trabalhar a leitura, por ser a peça fundamental de incentivo e um
grande formador de opinião. A leitura é um tema delicado, já que é
a base para a compreensão de vários conteúdos. Então, não deve
ser algo desgastante, pois existem várias distrações interessantes. O
livro deve ser levado para sala, explorado de diversas formas pelo
professor, incentivar a levá-lo para casa, para que os pais também
tenham atuação. Deve-se acabar com a ideia de que livro é um
“objeto sagrado; é sagrado sim, mas para estar nas mãos das pessoas,
ser manipulado pelas crianças”. (SOARES apud MARICATO,
2005)
Faz-se necessário oferecer ao aluno o conhecimento
juntamente com o prazer de adquiri-lo. O docente tem que se
adequar a realidade do seu aluno, tendo um olhar para as suas ações
e vivências, trazendo significado para as coisas que os rodeiam,
assim, garantirá que haja interesse em todo o processo de ensino-
aprendizagem da leitura. “A leitura do mundo precede a leitura da
palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele.” (FREIRE, 2008)
Existem diversas formas que podem ser utilizadas de
maneira criativa para tornar a leitura prazerosa e incentivar a
formação de leitores críticos e dinâmicos. O entusiasmo e a
satisfação podem ser encontrados tanto na hora no contato com o
livro, na escolha na biblioteca, ao ler ou ouvir a história. O professor
deve ser sempre o mediador promovendo leituras em grupo com

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rodas de leitura ou individuais, sempre provocando a interpretação
e compreensão do texto. De acordo com Brasil (1997):

Para tornar os alunos bons leitores — para


desenvolver, muito mais do que a capacidade de
ler, o gosto e o compromisso com a leitura —, a
escola terá de mobilizá-los internamente, pois
aprender a ler (e também ler para aprender)
requer esforço. Precisará fazê-los achar que a
leitura é algo interessante e desafiador, algo que,
conquistado plenamente, dará autonomia e
independência. Precisará torná-los confiantes,
condição para poderem se desafiar a “aprender
fazendo”. Uma prática de leitura que não
desperte e cultive o desejo de ler não é uma
prática pedagógica eficiente. (BRASIL, 1997).

A leitura não deve ser vista como obrigação, mas como algo
bom, que traz conhecimento de mundo. O prazer pela leitura é algo
pessoal, quanto mais tem o hábito de leitura, mais a pessoa se torna
crítica, assim passa a ter suas próprias escolhas. “Para realizar
determinadas tarefas que, se abordadas adequadamente, não só
interferirão no primeiro objetivo, como também ajudarão a elaborar
critérios pessoais que permitam aprofundá-lo” (SOLÉ, 1998). A
liberdade de escolha traz isso para o ser humano, então, quando o
aluno procura o que lê, consequentemente terá mais interesse. Isso3
funcionará, principalmente para os alunos que tem uma resistência
maior, certamente procurarão livros finos, histórias em quadrinho,
ou até mesmo revistas, mas o principal é que desenvolva o hábito
de leitura, tanto pessoal quanto escolar e que esteja dentro da sua
faixa etária.
A leitura deve ser estimulada por diversas áreas do
conhecimento, onde a mesma “não pode ser feita apenas pelo
professor de Língua Portuguesa. A tarefa é responsabilidade de

3 A leitura não pode ser dissociada da ideia de gêneros textuais, então para mais
informações sobre a teoria destes, sugiro a leitura de MARCUSCHI, Luiz
Antônio. Gêneros textuais: definição e Funcionalidade. In: ______. Gêneros
textuais : constituição e práticas sociodiscursivas. São Paulo: Cortez, 2010.

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todas as áreas porque cada uma tem textos com características
específicas” (FERRARI, 2005). Alguns professores afirmam que a
obrigação de desenvolvimento da leitura é de responsabilidade
apenas pelo professor de linguagem, mas não é. Todas as outras
matérias necessitam da leitura e também da interpretação.
Assim como o incentivo também pode ser feito em casa,
com auxílio de pais e familiares. A criança que cresce observando as
pessoas de seu convívio desenvolverá o hábito mais cedo e de forma
mais prazerosa, através da observação, o ato de repetir e a vontade
de parecer fará isso. Simples ações como a leitura antes de dormir,
levar os filhos a uma livraria ou banca, comprar e ler livros juntos
resultará em leitores ativos e críticos. “O leitor que se inicia no
âmbito familiar demonstra mais facilidade em lidar com os signos,
compreende melhor o mundo no qual está inserido, além de
desenvolver um senso crítico mais cedo.” (VIEIRA, 2004)

4. DA LEITURA A LEITURA CRÍTICA


E AOS LETRAMENTOS

A leitura é essencial na vida em sociedade, onde o indivíduo


a utiliza para analisar, compreender, dar opinião, criticar e cobrar
seus direitos. "Ler é um direito de todos e, ao mesmo tempo, um
instrumento de combate à alienação e à ignorância". (SILVA, 2002).
A criança ao ingressar em uma instituição escolar já tem uma
bagagem cultural, que permitirá ao professor contribuir para seu
enriquecimento através da leitura ampliar seus conhecimentos. “A
leitura é responsável por contribuir, de forma significativa, à
formação do indivíduo, influenciando-o a analisar a sociedade.”
(KRUG, 2015). Leffa (1996), afirma:
Embora a leitura, na acepção mais comum do
termo, processa-se através da língua, também é
possível a leitura através de sinais não linguísticos.
Pode-se ler tristeza nos olhos de alguém, a sorte
na mão de uma pessoa ou o passado de um povo
nas ruínas de uma cidade. Não se lê, portanto,

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apenas a palavra escrita, mas também o próprio
mundo que nos cerca (LEFFA, 1996).

Ler compõe a escrita, assim como ajuda na interação entre


as pessoas. Segundo Antunes (2003), “a leitura é parte da interação
verbal escrita, enquanto implica a participação cooperativa do leitor
na interpretação e na reconstrução do sentido e das intenções
pretendidas pelo autor”. (ANTUNES, 2003).
O leitor para entender o texto na íntegra deve realizar a ação
da leitura com muito cuidado, analisando cada palavra e frase.
Nunca deixe uma dúvida para trás, a palavra desconhecida atrapalha
na interpretação. Caso desconhece uma deve procurar seu
significado com o auxílio do dicionário, que deve ser incentivado,
por pais e professores o seu uso, desde o início do Ensino
Fundamental. Muitas vezes, a preguiça de pegar um dicionário é
tanta que o leitor usa o processo da adivinhação, que é claro que não
funciona, pois o seu significado não é identificado por aparência. A
frase não interpretada deve ser lida e relida até seu entendimento
total e claro, ou seja, o leitor impulsivo não vai compreender e nem
interpretar.
O significado do texto, considerando sua dimensão e
desdobramento social, político e histórico não estão absolutamente
no texto em si, mas em quem está o entendendo e dialogando com
ele, ou seja, no leitor. “O significado não está na mensagem do texto,
mas na série de acontecimentos que o texto desencadeia na mente
do leitor” (LEFFA, 1996). O leitor é a peça fundamental, pois é
através das suas experiências que o processo da interpretação fluirá
diante do texto. Segundo Souza (2014), a leitura tradicional é aquela
onde as informações do texto são vistas como “fonte de verdade”,
isso tem ficado de lado pelas demandas sociais, culturais e políticas
que apontam para uma importante dicotomia: leitura crítica X
letramento crítico.
A leitura crítica acontece quando o leitor vai além do que
está expresso no papel, traz argumentos e questiona a imposição.
Souza (2004), afirma:

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De acordo com os estudos sobre o LC, o co-
nhecimento não é natural ou neutro, ele é ideo-
lógico. Sendo assim, a principal meta instrucional
do LC é o desenvolvimento da consciência crítica
opondo-se à mera interpretação sugerida pela
leitura crítica (SOUZA, 2014).

O leitor que analisa o texto e forma a sua própria opinião,


tem como ponto de partida sua experiência e segundo Lobão (2009)
“o que torna uma leitura crítica valiosa é ter uma posição de um
leitor que não dará sua opinião simplesmente para agradar o autor,
pelo contrário, ele estará procurando falhas que possam
comprometer original”.
O termo letramento é muito confundido com alfabetização,
porém há uma grande diferença. A pessoa que é alfabetizada sabe
o básico que é escrever e ler, ou seja, não necessariamente é letrado,
que é alguém que vai além desse simples processo, por usar também
a leitura e a escrita no dia a dia na prática. Utilizando os diversos
tipos de gêneros textuais, que possuem diferentes funções com
variados tipos de portadores de escrita e leitura. “Enfim: letramento
é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e
variadas práticas sociais de leitura e de escrita” (SOARES, 2003).4
De acordo com Lankshear; Mclaren (1993), o letramento crítico:

torna-se a interpretação do presente social com o


propósito de transformar a vida cultural de de-
terminados grupos, ao questionar pressupostos
implícitos e desarticulados de formações sociais e
culturais atuais, bem como as subjetividades e
capacidades daqueles que o fomentam.
(LANKSHEAR e MCLAREN, 1993).

4Há muitos outros tipos de letramento tais como digital, crítico, multissemioticos.
Para saber mais informações leia o artigo: ROJO, R. Letramentos Múltiplos,
escola e inclusão social. São Paulo: Parábola Editorial, 2009

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É através do letramento crítico que as pessoas entendem as
informações implícitas contidas nos textos, sendo capazes de ir além
do que está sendo exposto pelo autor, para não ser meros
entendedores das ideias e reprodutores passivos.

5. CONTRIBUIÇÕES DE UMA PERSPECTIVA CRÍTICA


SOBRE LEITURA PARA O ENSINO FUNDAMENTAL I

Uma forma de aplicar a estratégia de leitura aqui é o


letramento crítico que significa entender o texto como um meio,
onde questões sociais são problematizadas enquanto lemos e
interpretamos as charges. Este gênero textual é interessante, pois
aborta assuntos cotidianos e da atualidade de forma satírica,
utilizando a linguagem verbal e não-verbal, com caricaturas.
Veja um exemplo de atividade retirada do Portal do
Professor, criada pela autora: Lazuita Goretti de Oliveira e pela
coautora: Eliana Dias, utilizando o gênero charge:

Atividade (Adaptada)

Em sala de aula, o professor deverá entregar algumas cópias de


charges aos alunos e fazer-lhes a seguinte observação: para que o
leitor se divirta com a leitura de uma charge, é preciso que ele
esteja a par da situação cultural – conhecimento prévio de
mundo – que a charge expõe, bem como dos recursos
linguísticos nela presentes.
A seguir, o professor deverá solicitar aos alunos que façam a leitura
das charges a eles apresentadas, respondendo às questões propostas.

CHARGE 1

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CHARGE 2

Fonte: http://tirocerto.homestead.com/charges.html

Questões sobre as charges:


1. O que é uma charge e qual a sua finalidade?
2. Qual é o conhecimento prévio de mundo necessário para que o
leitor se divirta com: charges 1, 2.

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3. Observe as charges
a. Explique cada uma delas. O que elas criticam?
4. O humor da charge é produzido pela associação de elementos
linguísticos e de elementos visuais. Descreva cada uma das charges,
de modo a indicar os aspectos visuais bem como o(s) elemento(s)
linguístico(s) que provocam humor em cada uma delas.
5. Qual a crítica feita pela charge e que grupo de pessoas ela
favorece?
6. Qual o seu posicionamento/questionamento diante dessas
charges?
Fonte: Portal do Professor -MEC (2015, Aula 10697).

Na aula 10697, é proposto a leitura crítica das 2 charges.


Antes de analisá-las o professor deve introduzir o gênero textual
abordado, descrevendo seu conceito, sua função e explicar o motivo
de estar atualizado para entender o humor da charge. A leitura crítica
e o letramento deverão ser feitos através da interpretação da
linguagem verbal e não-verbal e o contexto atual. O professor
poderá auxiliar seus alunos através de uma análise oral de cada
charge, fazendo a observação dos locais desenhados, aspectos
sociais e econômicos discutidos. O docente como mediador poderá
fazer perguntas para que o aluno trazendo a crítica abordada e uma
análise de toda a composição.
A charge possibilita que através de um gênero circulante na
vida dos alunos (MARCUSCHI, 2010) os mesmos possam fazer
uma leitura que empregue o questionamento de uma situação social,
econômica e política vigente empoderando os leitores como
cidadãos que reconhecem o texto como um espaço de construção e
desconstrução de realidades. Essa abordagem de leitura motiva os
alunos a participarem, porque eles passam a ganhar poder sobre os
textos no sentido de não apenas decodificá-los, mas questionar a
quem eles beneficiam e que grupos são excluídos por eles.

6. METODOLOGIA

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Para realizar o trabalho foi executada uma pesquisa
bibliográfica sobre o tema, leitura exploratória e seleção do material
coletado. As leituras sobre o tema foram subsidiadas por textos
encontrados, que foram retirados de sites, artigos, revistas e livros
encontrados em sites de busca com Google Acadêmico e Scielo,
para que possam contribuir da melhor forma para a discussão e
comparações do estudo sobre a leitura e a interpretação de texto na
escola, durante o Ensino Fundamental I (3º ano).

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura é essencial para que possamos participar de


quaisquer práticas sociais que são subsidiadas por essa habilidade. A
leitura deve ser estimulada desde a infância e os professores e
familiares dos alunos no Ensino Fundamental I precisam
compreender que a leitura vai além da mera decodificação e só
atinge seu objetivo se for pensada na perspectiva dos letramentos,
sobretudo do letramento crítico.
Através da prática da leitura que o ser humano se torna um
ser pensante, capaz de acompanhar os acontecimentos no mundo e
ter senso crítico. A leitura traz benefícios para a vida de cada um,
tanto intelectual, profissional e pessoal, mas para que isso aconteça,
o aluno deve aprender a ser um sujeito leitor, ativo, que saiba
realmente interpretar aquilo que lê.
Desta forma, teremos cidadãos críticos que não apenas
entendem os textos, mas percebem, analisam e questionam sua
forma de produção que visa à manutenção ou exclusão de muitas
realidades que não são mostradas ou que são ignoradas nos textos
intencionalmente. Logo, ler significa existir e resistir em uma
sociedade em que a informação é capital cultural e simbólico.

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FROM DECODING TO THE LITERACIES: A REVIEW OF


TEACHING AND READING LEARNING IN INITIAL YEARS

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ABSTRACT: This article as a brief literature review, presents a discussion about
differences in the conceptions of readings, from decoding to literacy as a
sociocultural appropriation of the act of Reading and as a social practice
indispensable to any citizen and should be encouraged and strengthened in
elementary school. Given this perspecie, teachers should not only emphasize
reading as social practice, but as one which fosters the practice of citizenship and
reflection which requires readers to adopt a critical positioning. In addition, it is
intended with this research to redeem discussions which emphasize the
importance of the pleasure of reading, which can be resignified from activities
which allow students to engage in sociocomunicativas practices relevant for their
citizenship practice.

KEYWORDS: Alpahabetization. Reading- Social Practice- Citizenship.

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A CONSTRUÇÃO DO
IMAGINÁRIO E DO SIMBÓLICO
NO CONTO INFANTO-JUVENIL
A PRINCESA SUJA

Cacio José FERREIRA1

RESUMO: Este artigo trata de algumas considerações sobre a narrativa A princesa


suja, recolhida da oralidade popular do estado do Tocantins. A discussão
relacionada à narrativa explora a construção do imaginário e do simbólico. Nessa
perspectiva, discute, também, as características, explícitas ou não, que classifica a
narrativa como infanto-juvenil. Por conseguinte, para a exploração do imaginário
e dos símbolos, as ideias de Pesavento, Chevalier e do dicionário de símbolos The
book of Symbols permeiam as reflexões e debates. É preciso entender as imagens
linguísticas, os princípios sociais e culturais de onde a narrativa está renascendo,
transmutando, para entender os elementos de significação da narrativa. A
compreensão perpassa pelos manuais que já existem e criam novos caminhos,
permitindo, assim, entender o processo imaginário e simbólico de A princesa suja.

PALAVRAS-CHAVE: A princesa suja; imaginário; símbolos; literatura infanto-


juvenil.

Nos vazios do silêncio escreve-se a historiados


homens. Tecido de palavras sussurrantes, de
gestos singulares que o contista organiza em
narrativas únicas. No solo polvilhado de farinha
de cevada torrada em torno do qual juntam-se os
ouvintes, ressoam os cascos de um cavalo. O som
eleva-se entre o sonho e nós, como uma poeira
dourada. O herói passou, e deixou seu vestígio de
areia de nossas memórias onde sobreviverá
(BRUNEL, 2005, p.191).

INTRODUÇÃO

1 Professor de Literatura Japonesa da Universidade Federal do Amazonas


(UFAM), caciosan@hotmail.com

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A narrativa infanto-juvenil A princesa Suja2 foi recolhida da
oralidade popular na cidade de Taguatinga do Tocantins, em 2009.
Nela, há uma busca da consolidação de uma formação ética, dos
valores patriarcais do século XX, evidenciando, de certa forma,
alguns elementos da busca pela identidade e formação cultural. Essa
narrativa pedagógica é engendrada por um enredo que se aproxima
dos contos maravilhosos, mas a transformação não ocorre por meio
de um objeto mágico ou por um encanto. Ela se dá no campo da
atitude e da mudança de paradigma em relação às experiências de
vida.
A viagem de transformação e de aprendizagem começa com
a ida para a floresta – lugar sombrio e, de certa forma, mágico. As
imagens da floresta, do rio e do isolamento constroem um cenário
propício para a reflexão e para reforçar a coragem e a atitude como
forças motrizes do aprendizado. “Eram um recurso educativo por
excelência, tanto para as crianças quanto para os adultos, por
proporcionarem a reflexão sobre as relações e a ética” (MATOS,
2005, p. XXII). Assim continua:

Essa educação servia à vida. Por meio dela


aprendia-se como abrir as portas para o afeto,
para o trabalho, para as relações. Aprendia-se
como viver bem em comunidade e como morrer
bem, deixando na memória dos vivos a
lembrança das nossas ações. A propósito disso,
meu avô, primeiro contador de história da minha
infância, costumava nos ensinar com seus contos
que “um homem morre como viveu e ressuscita
como morreu”. (MATOS, 2005, p. XXII).

Nesse caminho, por meio de apontamentos recorrentes à


narrativa A princesa suja, o objetivo desse artigo é compreender a
construção do imaginário como força motivadora para a
transformação da princesa. Além disso, analisa as significações
simbólicas geradas pelas paisagens que constituem o cenário da

2 Recolhida por Cacio José Ferreira.

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narrativa, que era fabulada como forma didática, principalmente
para as mulheres. Elas eram preparadas para o casamento desde a
infância e as histórias eram uma espécie de iniciação ao mundo no
interior da casa.
A forma fabular da narrativa, com certa dose de lição de
moral, perpassa por descrições rápidas e diretas. A narrativa popular
fabular é o imaginário dotado de sonho, loucura e fantasia. Segundo
Cascudo, a definição de fábula é

conversa, narração, principalmente, conversa


frívola, conto, anedota, historieta; depois peça de
teatro, narração e representação de cena irreal,
engendrada. Narra a história, conta o boato, os
ditérios, as novidades. Velha como o homem é a
ficção na fala, sem maldade. E nem sempre os
homens podem rest et non verba [...] a representação
que cada qual tem do mundo, representação
infinitamente fecunda, sempre agravou ouvir de
outras narrações do que eles vão pensando,
fertilizados pelo que vão vendo e cabendo.
Assim, sempre foi uso matizar-se a fala e
amenizar-se a narrativa, deixando a imaginação
solta, a criar deliciosamente. (CASCUDO, 1954,
p. 515).

Nesse viés, os contornos e os adornos são menos


importantes que o cerne da história. A linguagem aborda certos
temas como os de advertência, moral, troca de experiência. Jonas,
por exemplo, era o pretendente certo devido aos conhecimentos de
mundo que possuía. A forma de abordagem dos temas invoca a
ludicidade3 como invólucro dos destinos humanos. Ameniza a árida
angústia do mundo adulto.

3 O conceito de ludicidade trabalhado nesse artigo vai ao encontro das ideias de


Huizinga. Para ele, o lúdico deve ser gerado pela espontaneidade e não atrelado a
uma produção planejada. É uma atividade livre que tem características de um jogo.
Segundo ele, o lúdico “é uma atividade livre, conscientemente tomada como “não
séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o
jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer
interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro

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As fábulas e histórias conhecidas moldaram-se às
necessidades da vida e de sobrevivência diante das forças de poder,
censura e injustiças. As histórias eram adaptadas, também, no
momento do trabalho árduo da moagem da farinha ou da cana, na
travessia da mata para chegar à cidade vizinha para comparar
sortimentos e prezava muito religiosidade. Dezotti postula que o
elemento fabular mantém as práticas discursivas e incorpora novos
fatores culturais de acordo com os movimentos da vida:

Na fábula, o narrar está a serviço dos mais


variados atos de fala: mostrar, censurar,
recomendar, aconselhar, exortar, etc. Essa
característica formal, muito simples, aliás, pode
ser uma explicação para a popularidade e a
resistência desse gênero através dos tempos. “É
que a maleabilidade se sua forma lhe permite
incorporar novos repertórios de narrativas e
ajustar-se à expressão de visões de mundo de
diferentes épocas. (DEZOTTI, 2003, p. 22).

EXPEDIÇÕES EXPLORATÓRIAS

Como a narrativa chegou e propagou na região? Desde a


metade do Século XVI até o século XIX, diversas expedições
exploratórias organizaram-se e percorreram os sertões do interior
do Brasil com o objetivo de encontrar riquezas minerais. Viajantes
naturalistas4, quando se referem ao descobrimento de Goiás,
baseiam-se na tradição oral e em fontes oficiais. Segundo a narração

de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas


regras. (HUIZINGA, 2000, p. 16).
4 O século XIX foi marcado pela necessidade de uma sistematização do
conhecimento científico. Pesquisadores estrangeiros buscavam estudar e
pesquisar países e culturas diferentes. Correia assevera que “para eles, o outro é
aquele que não se identifica; é aquele cuja descoberta causa êxtase. Esses
sentimentos inundaram os viajantes que percorriam a Província de Goiás. São
eles: August de Saint-Hilaire, Joahann Emmanuel Pohl, George Gardner e
Castelnau (CORRÊIA, 2001, p.75).

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de Saint-Hilaire, Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera5, em
companhia de seu filho de 12 anos, por volta de 1680, adentrou as
terras goianas prestando serviços ao governador de São Paulo,
Rodrigo César Meneses. Depois de adulto, por volta de 1725, o filho
de Bartolomeu Bueno da Silva, de mesmo nome, chega a São Paulo
e relata a grandeza de seus descobrimentos: minas de ouro no
interior do Brasil atraindo multidões heterogêneas. Começava a
povoação do Brasil central no afã de enriquecimento rápido e de
misturas linguísticas.

Cada ano vem nas frotas quantidade de


portugueses e estrangeiros, para passarem às
minas. Das cidades, vilas, recôncavos e sertões do
Brasil vão brancos, pardos, pretos e muitos
índios, de que os paulistas se servem. A mistura é
de toda a condição de pessoas; homens e
mulheres; moços e velhos; pobres e ricos; nobres
e plebeus, seculares e clérigos, e religiosos de
diversos institutos, muitos dos quais não têm no
Brasil convento nem casa (PALACIN,1995, p.
35).

A migração e a imaginação fantasista em busca do ouro


existente em serranias encantadas rumavam para o centro do Brasil
criando a Província de Goiás. Séculos depois, em 1988, criou-se o
estado do Tocantins com a divisão do estado de Goiás. Crenças e
contos que habitaram o Sertão do Ouro permaneceram junto ao
artesão que tece a ordem das experiências da vida ao seu redor, do
camponês que lavra a natureza em ritmo de sabedoria e do agricultor
que semeia o grão em sulcos, fazendo brotar uma floresta de
diversidade de conhecimentos e valores. Enfim, os processos

5 “É pouco provável, porém, que os Goiases falassem Guarani, e a palavra


Anhaguera pertence inegavelmente a essa língua. O apelido que herdaram os
descendentes de Bartolomeu Bueno da Silva foi dado a estes, evidentemente pelos
índios do litoral ou pelos próprios paulistas, os quais, como é sabido, falavam a
língua geral, dialeto do guarani. Anhang, em Guarani, significa alma, demônio.
Ouvi um índio paraguaio empregar a palavra anhangue- ao falar de pesadelo ou de
uma aflição. Finalmente –ra é uma expressão que significa semelhança.
Anhaguera, ao invés de diabo velho, significaria, pois, homem semelhante ao
espírito mau que provoca pesadelo” (SAINT-HILAIRE, 1975, p.160).

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naturais parecem ser renovados e reinventados pela memória
popular.
A rigidez da forma literária não habita suas narrativas
populares, mas eles mantêm suas tradições seculares moldadas à
realidade por meio da Literatura Oral. São fabricadores da obra de
arte que não se torna valorosa, mas que engrandece a alma e
possibilita a reinvenção. As histórias são poéticas, mas não se
formalizam em poemas e, talvez, nem na escrita. Tudo passeia pela
complexidade da memória humana e suas peripécias. As histórias
narram o encantamento ao vencer as dificuldades. O passado
embrenhado de sabores regionais e atualizações necessárias garante
a sobrevivência das narrativas populares, como por exemplo A
princesa suja.
Portanto, O universo oral de A princesa suja desvela a
realidade das histórias recheadas de conselhos moralistas e
venturosos postos por um passado que moldou o comportamento
do indivíduo na forma de contar a narrativa. Assim, a necessidade
de aproximação do real com o mítico gera os enredos populares
imprimindo neles as transformações e as diferenças que são
determinadas por fatores culturais do lugar.

A CONSTRUÇÃO DO IMAGINÁRIO
E DO SIMBÓLICO

A mistura lúdica entre palacianos e plebeus é uma das


formas mais antigas de relação entre a fantasia e o conhecimento
popular. Os próprios personagens de A princesa suja instigam o
leitor/ouvinte porque estes possuem características díspares e, por
essa razão, são capazes de entrelaçar experiências e valores. A
história apresenta um final feliz como qualquer narrativa de Era uma
vez. No entanto, a felicidade vem acompanhada de uma mensagem
fabular que imprime uma certa rigidez.
A princesa suja conserva uma matriz, espécie de núcleo
genético que, por sua vez, é capaz de se disseminar em outras
narrativas. Tal transformação da narrativa remete-se à imagem do

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 48


ovo ao se quebrar. Não se pode quebrar um ovo sem que uma parte
da clara adira à casca. Assim é a narrativa em análise, que conserva
o seu núcleo (a gema), mas tem as camadas que o encobrem (clara e
casca) constantemente reelaboradas diante da realidade do local, já
que a falta de um autor específico e o próprio modo de enxergar o
mundo em constante mutação promovem essa alteração. Cada
pessoa, ao transmitir a narrativa para seu ouvinte, a ela acrescenta
algo de sua própria experiência. O que continua imutável é o cerne.
Na narração de A princesa suja, o afastamento de casa
também decorre da necessidade. O personagem heroico, por salvar
a princesa da acomodação do mundo, parece vir de um lugar
distante do reino. O periférico é ultrapassado pelo homem corajoso
e pobre após a desistência de pessoas que vivem em reinos. As
forças conspiraram para a ascensão do personagem.
O imaginário percorre longas estradas temporais e alastra de
acordo com os objetivos de cada comunidade. Palácio, princesas,
plebeus e paisagens se fundem, construindo significados como uma
espécie de espelho mágico. Há dois lados, dois mundos, mas a
história contada é apenas uma. Nesse sentido, Sandra Pesavento
argumenta que

o imaginário é, pois, representação, evocação,


simulação, sentido e significado, jogo de espelhos
onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam,
estranha composição onde a metade visível evoca
qualquer coisa de ausente e difícil de perceber.
Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar
um segredo, é buscar um significado oculto,
encontrar a chave para desfazer a representação
do ser e parecer (PESAVENTO, 1995, p. 24).

No fragmento do conto “A princesa guardava um segredo


que não podia ser revelado a ninguém. E o medo de tal revelação
afastava os possíveis pretendentes. Certo dia, então, apareceu um
pobretão e falou que iria se casar com a filha do rei. Seja lá o que
for, vou casar. Não tenho medo de nada nesse vasto mundo”, há
um segredo oculto. No entanto, a coisa não revelada é uma

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representação da realidade. O palácio lidava com a situação da
princesa suja de uma forma até surgir alguém, oriunda de outra
comunidade, e apresentar uma experiência diferente. De alguma
forma, uma moça ao escutar tal história, pensava no forasteiro que
poderia revelar segredos novos. No entanto, precisa ir além dos
ensinamentos de casa. Devia aprender muito mais do que já sabia.
Muito mais daquilo que era possível: afazeres do interior da casa. E
de forma alguma deveria seguir o exemplo da princesa.
Enveredando pela simbologia do conto, nota-se que no
palácio está o segredo, ou seja, aquilo que está mergulhado no
inconsciente. É o não revelado. Para Chevalier, o palácio simboliza,
“do ponto de vista analítico, os três níveis da psique: o inconsciente
(o segredo), o consciente (o poder e a ciência) e o subconsciente (o
tesouro e o ideal)” (CHEVALIER, 2008, p. 679). Portanto, como já
dito, o segredo deve ser mantido pelo futuro esposo da princesa até
o alcance da revelação. O rei tem consciência de que Jonas pode
conseguir a façanha de “curar” a princesa. E depois do feito, é
recompensado com muita riqueza.
O rio surge dentro da floresta como uma espécie de
consciência que emerge do subconsciente. Ele é capaz de lavar a
sujeira mais intensa que preenche as lacunas do tempo. Assim,

O rio expressa a vida como fluxo, liberdade,


movimento, correntes perigosas, afogamento,
fluir sempre, correndo em seu leito, inundando,
alo como confinamento, direção, exploração,
canalização. O rio nos lembra que nunca
podemos subir acima de nossa fonte; Todos os
rios fluem em declive em relação à sua fonte,
terminando finalmente em uma confluência do
mar (SIGNS & SYMBOLS, 2010, p.40 –
tradução minha6).
6 The river speaks of life as flow, freedom, movement, dangerous currents,
drowning, running ever along, running its course, flooding, also as confinement,
direction, holding, channeling. The river reminds us that we can never rise above
our source; all rivers flow downhill from their source, finally terminating in a sea
confluence (SIGNS & SYMBOLS, 2010, p.40).

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 50


Nesse limiar que revela, sem clarificar demasiadamente ou
levar consigo a relação, a água é uma espécie de purificação. Por
meio dela é possível transgredir a caixa que oculta o segredo e usá-
lo como uma transformação de si. A princesa não penetra na água
do rio, mas mergulha nela as roupas que a envolve durante a
escuridão. Nesse sentido, Chevalier postula que “penetrar (ou
mergulhar) num rio significa para a alma, entrar num corpo. O rio
tomou o significado do corpo [...]. O corpo tem uma existência
precária, escoa-se como água, e cada alma possui seu corpo
particular, a parte efêmera de sua existência – seu rio próprio”
(CHEVALIER, 2008, p. 782). De alguma forma, o não mergulhar
o corpo, mas o que a circunda, é o aprendizado. Não é um
aprendizado desejado. Ele foi imposto pelo pai e pelo marido.
Remete a um período bem patriarcal da história brasileira. A mulher
era treinada para ser mãe e cuidar da casa.
O imaginário que perpassa A princesa suja não é agressor, mas
evidencia a espontaneidade do olhar do contador eivada de desejos
e inquietações transformadoras quase que de forma inconsciente.
As experiências incorporadas à narrativa outorgam ao espaço da
floresta o lugar de comparecimento ideal da palavra, já que a crença
imperante adverte que a mulher, no caso a princesa, precisa se
deslocar até o interior sombrio da floresta para transformar e
incorporar os valores tradicionais da vida pós-matrimônio.
Portanto, sem negar a individualidade impressa pelo contista
à narrativa contada, A princesa suja é narrada de um modo que pode
ser compreendido como “coletivo”, pois apresentam recursos
próprios da tradição oral - repetições, paralelismos, elipses,
chamando a atenção do ouvinte. Tais requisitos são necessários à
criação do ambiente, dos caracteres das personagens e ao
desenvolvimento verossímil de um argumento com conotações
moralizantes. Na narrativa, os conteúdos aparecem diretamente
dispostos a invocar uma moral.

A NARRATIVA A PRINCESA SUJA

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É LITERATURA INFANTO-JUVENIL?

Nos textos escritos para o público infanto-juvenil há


predominância de personagens encantados ou não com
características mais pueris, uma dose maior de ludicidade e
linguagem mais direta, sem grandes abstrações e, geralmente, são
mais curtos.
Em A princesa suja há uma mistura do castelo com a floresta,
a formação de um príncipe, o rei e a princesa. Esses elementos
permeiam o conto maravilhoso e o universo infanto-juvenil. Criam
uma certa magia para imergir no universo adulto, cobertos por
preocupações reais do mundo: como ganhar dinheiro para se
alimentar, se hospedar, seguir viagem, manterem-se em segurança,
cuidar uns dos outros, serem responsáveis. Nesse caminho,
Zilberman e Lajolo afirmam que a representação presente nos livros
infantis “deixa transparecer o modo como o adulto quer que a
criança veja o mundo” (ZILBERMAN & LAJOLO, 2006, p. 19).
Tal afirmação retrata bem o caso de A princesa suja.
Apesar da ênfase que a oralidade dá ao contar, a narrativa se
enquadra bem como literatura infanto-juvenil. A leitura que se faz
hoje da narrativa em análise é a apropriação de determinado aspecto
social, o que pode aparentar estar além de uma leitura de puro deleite
juvenil, mas ainda assim conserva os elementos que invocam uma
certa inocência. De certa forma, o pensamento de Maria Zaira
Turchi sobre a literatura infantil ilustra bem as argumentações
acima. Segundo ela, a literatura infantil

tem sido capaz de resgatar a história, de caminhar


pela metaficção historiográfica, trazendo os
discursos dos excluídos e esquecidos. Tem sido
capaz de caminhar pela diversidade étnica e cul-
tural brasileira, dando espaço para a criança ima-
ginar e construir sua subjetividade, lidar com a
afetividade, enfrentar a dor e os conflitos e des-
cobrir a esperança e a alegria. A literatura infantil
brasileira tem alcançado um padrão estético no
diálogo criativo entre texto, ilustração e projeto

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 52


gráfico, uma interação entre linguagem literária e
outras linguagens (TURCHI, 2006, p. 26).

Os conflitos da narrativa marcam os discursos de uma


época. Cabe ao leitor/ouvinte estabelecer as relações com a leitura
e de seu conhecimento de mundo. Nada impede, portando, que um
leitor em idade juvenil note com interesse que os personagens
masculinos são impositivos em suas determinações. A personagem
feminina tem um papel secundário e é relacionado à condição de
subserviência. Em posse de algum conhecimento de sociedade, nada
impede que suas reflexões o levem além de uma leitura emotiva, e
que ele compare determinados contextos, reconhecendo uma crítica
social. Em todo caso, não é o nível de leitura que define o gênero.
Uma poesia continua a ser poesia independente de ser lida por uma
criança ou um adulto.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa A princesa suja, oriunda da oralidade popular, traz


elementos que fertilizam o imaginário humano. Além disso, por
meio das marcações simbólicas, pontuam as experiências centradas
no campo da atitude e da mudança de paradigma em relação à
vivência de mundo. As verdades inseridas nas entrelinhas da
narrativa entretêm e marcam um determinado período de tempo
envolto pelo predomínio da voz masculina e da sabedoria feminina.
Entretanto, a história analisada encanta o leitor/ouvinte pela
transformação de vidas que o segredo palaciano sugere pelas
palavras e elementos que estão aninhados na memória do contador.
A verbalização externaliza uma dose de emoção e até convence (ou
convencia) a outras a pessoas retransmitir a história; nesse caso, cada
comunidade que conta a narrativa insere elementos que dão um
contorno mais individual, em que a interpretação/ressignificação se
dá pelo contexto fabular, no meio de uma certa moral. A moral
arrancada é o compromisso da mulher em saber lidar com as

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obrigações do interior da casa. Caso não consiga, dores e
sofrimentos surgirão após o casamento.
Os elementos que compõem os cenários da narrativa são
buscados no conto maravilhoso, ainda que a terra onde é
verbalizado a história não tenha castelos e nem princesas. Assim, A
princesa suja pode ser considerada uma narrativa infanto-juvenil. De
certa forma, ela é um processo iniciático para a construção de um
universo adulto. Apresenta uma singeleza entrelaçada às
dificuldades que a vida adulta e o casamento oneram o indivíduo.
No entanto, é realista ao enfatizar que as dificuldades é um caminho
sem retorno. Apenas a transformação de caráter possibilita ou o
habilita para a grande travessia da vida.

-----------------------------------------------------------------------------------
THE CONSTRUCTION OF THE IMAGINARY AND THE
SYMBOLIC IN THE CHILDREN AND JUVENILES TALE A
PRINCESA SUJA

ABSTRACT: This article deals with some considerations about the narrative A
princesa suja, collected from the popular orality of the state of Tocantins. The
discussion related to the narrative explores the construction of the imaginary and
the symbolic. In this perspective, it also discusses the characteristics, explicit or
not, that classifies the narrative as children and juveniles. Therefore, for the
exploration of imagery and symbols, the ideas of Pesavento, Chevalier and the
dictionary of symbols The book of Symbols permeate the reflections and debates.
One must understand the linguistic images, the social and cultural principles from
which the narrative is being reborn, transmuting, to understand the elements of
meaning of the narrative. The understanding runs through the manuals that
already exist and create new paths, thus allowing us to understand the imaginary
and symbolic process of A princesa suja.

KEYWORDS: A princesa suja; imaginary; symbols; children's literature

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REFERÊNCIAS

ARCHIVE FOR RESEARCH IN ARCHETYPAL


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(Orgs.). Leitor formado, leitor em formação: leitura literária em questão.
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ZILBERMAN e LAJOLO ,2006 In: Autores, editores, leitores. O que


os livros cívicos para crianças da Primeira República dizem sobre eles?
Disponível em:

55 | 2018 – vol. II, nº 02


<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
90742011000200004>. Acesso em fevereiro 2018.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 56


ANEXO:
A PRINCESA SUJA

Minha mãe nos contava essa história quando éramos ainda


meninas. É sobre um rei que tinha uma filha. Nenhum rapaz se
interessava em casar com ela e, o todos os dias, o rei afirmava para
os pretendentes:
– Quem casar com minha filha vai levar junto um segredo.
A princesa guardava um segredo que não podia ser revelado
a ninguém. E o medo de tal revelação afastava os possíveis
pretendentes. Certo dia, então, apareceu um pobretão e falou que
iria se casar com a filha do rei. “Seja lá o que for, vou casar. Não
tenho medo de nada nesse vasto mundo”.
Qual seria o segredo da filha da realeza? Ele teria que guardá-
lo para o resto da vida? Entre questionamentos e coragem, ele se
casou. O casamento foi realizado de forma discreta e sem alarde.
Após o casório, o segredo foi revelado: a moça fazia as
“necessidades” na cama todos os dias.
Na primeira noite, fez as tais necessidades na cama; fez na
segunda, também na terceira. Contudo, na quarta noite, o marido
tomou uma atitude e foi conversar com rei:
– Vossa Majestade, amanhã vou caçar e levarei comigo a
princesa. Eu sou caçador, gosto da floresta. Preciso levar a minha
mulher. Não existe nenhum impedimento para isso.
– A princesa não é do seu mundo. Não sobreviveria nenhum
um dia sozinha na floresta, retrucou o rei.
– Preciso levá-la! Eu sou o marido e no acordo não havia
esse impedimento. Sairei bem de madrugadinha para que ela não
pegue sol e queime a pele. Tomarei todo cuidado, prometo!
O rei não teve como contra argumentar. Então, ele juntou
toda a roupa suja da princesa, acumulada nos três últimos dias,
amarrou-as em forma de trouxa, colocou-as em uma pequena
carroça e partiu com a princesa para uma casinha na floresta à beira
de um rio de águas límpidas. Enquanto ele caçava, ordenou que a
princesa lavasse toda a roupa suja no rio ali próximo da casa. Ela

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quis contrariá-lo, mas estava sem o auxílio de nenhum criado. O
marido partiu para a floresta em busca de uma caça para o jantar. E
assim passou o dia. À tardinha quando retornou da floresta, com
diversas caças, notou que a princesa lavara toda a roupa suja. Ela já
havia adormecido, pois o cansaço era tamanho.
Os dias foram passando e a princesa começou a pensar que
não devia fazer as necessidades na cama, pois lavar roupa todos os
dias era muito difícil. Dessa forma, ao totalizar uma semana, voltou
ao palácio com a princesa. O rei intrigado, questionou:
– O que você fez com a princesa, Jonas? O que está
acontecendo? Você continua casado com minha filha. Achei que
você não aguentaria nem uma noite!
Então Jonas respondeu:
– Quer saber por que ela faz isso? Porque ela tinha
empregados para lavar tudo o que sujava. Então, não se importava
em sujar.
Passado um mês, o sogro repetiu o questionamento:
– Por que você continua casado com ela? Anteriormente,
ninguém ousou casar com a minha filha após a revelação do segredo.
Então o jovem marido revelou outro segredo.
– A princesa era muito bajulada. Havia empregados ao seu
redor o dia todo. Lavavam, durante o dia, o que ela sujava à noite.
Então, ela não se importava em corrigir o hábito defeituoso
construído ao longo de sua vida. A partir do momento em que ela
precisou lavar a própria roupa, deixou de cometer os erros que fazia
outrora, passou, então, a levar uma vida normal.
Pensativo, o rei deu razão a Jonas. E assim foram vivendo
cada vez melhor. O segredo do mundo é a modificação. A princesa
tinha ao seu redor quem fizesse todo o trabalho, mas o genro do rei,
com humildade, mostrou que a vida não poderia ser sempre assim.
Então, o rei ficou satisfeito com a transformação dos hábitos da
princesa e doou muitas terras e ouro para o príncipe Jonas. Tudo
isso por causa de um segredo tão pequenininho. Foi assim que
aconteceu! Minha mãe que contava.

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LETR@MENTOS DIGIT@IS E A
FORMAÇÃO DE PROFESSORES:
UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DE
ARTIGOS ACADÊMICOS EM
LÍNGUA PORTUGUESA

Francisco Jeimes de Oliveira PAIVA1


Ana Maria Pereira LIMA2

RESUMO: Nesta pesquisa buscamos apresentar uma revisão sistemática da


literatura sobre as produções científico-acadêmicas, visando a entender como
estão sendo trabalhados na educação as práticas de letramentos digitais em
atividades de formação de professores no contexto educacional brasileiro. Numa
premissa teórico-metodológica, baseamo-nos nas etapas de análise, adaptadas por
Ramos, Faria e Faria (2014), e reaplicada por Silva e Bottentuit Junior (2017) que
primam pela avaliação regrada, em princípios científicos e críticos, a partir das
fontes encontradas e analisadas. Dessa forma, foram avaliados 10 artigos que se
encontram em bases de dados científico-acadêmicas, os quais apresentam estudos
empíricos com os principais sujeitos sociais da comunidade escolar (alunos,
gestores, professores etc), bem como os que atuam nas universidades e centros
de formação profissional. Conclui-se que as práticas de letramentos digitais em
atividades cotidianas escolares, acadêmicas, profissionais etc., possibilitaram o
estímulo e o uso de tecnologias na educação, bem como impulsionaram a
promoção dos letramentos digitais na formação de professores e na
potencialização tecnológica das aprendizagens dos vários participantes dos
estudos avaliados.

PALAVRAS-CHAVE: Letramentos Digitais; Formação de Professores;


Revisão Sistemática; NTDICs.

1 Aluno do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras, da Faculdade de


Educação, Ciências e Letras do Sertão Central, campus da Universidade Estadual
do Ceará. Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literaturas. Especialista
em Gestão Escolar e Práticas Pedagógicas. Licenciado em Letras pela Faculdade
de Filosofia Dom Aureliano Matos, campus da Universidade Estadual do Ceará.
Aluno da Graduação da Universidade Internacional da Lusofonia Afro-
Brasileira/Unilab (UaB/CAPES).
E-mail: geimesraulino@yahoo.com.br
2 Pós-Doutoranda em Letras pela Uern, campus Paus dos Ferros. Doutora e mestre

em Linguística pela Universidade Federal do Ceará. Professora da graduação em


Letras da Fafidam e Coordenadora e Professora do Programa Interdisciplinar em
História e Letras da Universidade Estadual do Ceará. E-mail: ana.lima@uece.com

59 | 2018 – vol. II, nº 02


LETRAMENTOS DIGITAIS: OS NOVOS DESAFIOS DE
FORMAÇÃO DE PROFESSORES E A PRODUÇÃO DE
PESQUISAS NO BRASIL

O letramento digital
implica a capacidade
dos usuários de utilizar
as tecnologias digitais
de maneira eficaz para a
comunicação nas
práticas sociais,
culturais e educacionais.
Barbosa, Araújo e
Aragão (2016, p. 634).

Os avanços tecnológicos, o surgimento da cultura digital e a


expansão dos fenômenos da globalização fizeram emergir muitos
dos estudos acerca dos letramentos. No entanto, estes ainda não são
suficientes para se compreender a dimensão dos progressos que são
perceptíveis desde os trabalhos precursores de Heath (1983) e Street
(1984), bem como as investigações de Kleiman (1995), Soares (1996,
2002, 2004) e Tfouni (1995), apenas para citar alguns(mas) dos(as)
pesquisadores(as)3 mais evidentes neste viés de novos estudos dos
letramentos, multiletramentos e tecnologias educacionais.
Dessa forma, esses novos estudos no Brasil têm se tornado
cada vez mais necessários, pois se deve levar em consideração que
as Novas Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação
alastraram-se assustadoramente no século XXI. Por outro lado,
visando a compreender como os “problemas trazidos pelos
processos de mundialização e hipertecnologização da vida
quotidiana” (BUZATO, 2016, p. 8) moldaram- se a esta nova
cultura digital, é preciso ainda observar como funcionam as
tecnologias na sociedade atual, bem como perceber quais são os

3 Para mais informações, ver (MOITA LOPES, 2010).

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impactos das práticas digitais de linguagem ou dos letramentos
digitais na vida dos usuários de uma língua.
Além do mais, é imprescindível lembrar que essa
tecnologização global sobrevém tanto na vida diária, no trabalho e nas
demais atividades de muitos/as brasileiros/a. Dessa forma, muitos
desses processos de mediação tecnológica acontecem em instâncias
sociais de interação, comunicação e informação humanas e não
humanas, sobretudo em diferentes ambientes sociais, profissionais,
acadêmicos e científicos que se tenha acesso ou se esteja
conectado/logado digitalmente (BUZATO, 2016).
Esse cenário trouxe também novos desafios, avanços e
dificuldades que acarretaram na produção de mais pesquisas com
foco em tecnologias, relacionadas à educação, às linguagens, às
mídias, sendo geralmente associadas a vários outros ambientes
(presenciais ou virtuais), agravados por muitos impactos
consideráveis advindos dos estudos e/ou de pesquisas com as
Novas Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação
(NTDICs, doravante) ou meramente TICs4 (Tecnologias de
Informação e Comunicação), disponíveis de forma online, impressa
ou por meio de aplicativos ou de plataformas aos usuários da nova
cultura digital globalizada (BUZATO, 2016; COSCARELLI et al,
2016).
Levando em conta a rapidez com que o acesso à informação
e à comunicação síncrona e assíncrona têm se transformado e
modernizado em razão dos avanços tecnológicos, com o
surgimento das NTDICs aplicadas à educação na sociedade e no
contexto educacional brasileiro, ressaltamos que estas podem ser
consideradas como “tecnologias digitais móveis ou não que ajudam
na comunicação, na transmissão e compartilhamento de
informações através da internet” (CARDOSO, 2016, p. 186).
Essa pesquisadora acrescenta que as NTDIC podem ser
incorporadas no processo de ensino e aprendizagem, de maneira a

4Nesta pesquisa, adotamos as terminologias NTDICs, TICs e NTICs que serão


usados intercambiavelmente, visto que os diferentes estudiosos e autores
pesquisados não são unânimes nas nomenclaturas.

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ampliar-se tanto o espaço quanto o tempo de sala de aula. Por isso,
os estudos avaliados por ela apresentaram a assertiva de que

Na educação, as NTDIC têm o poder de poten-


cializar o trabalho dos docentes e de seus alunos
já que envolvem a reflexão e o aprofundamento
de determinados “aspectos didáticos, que são
ressignificados e ganham novas dimensões e ca-
racterísticas [...]” (RAMOS, 2011, p. 58). Os do-
centes das diversas áreas do saber devem se abrir
para as novas maneiras do saber humano, novos
modos de suscitar e “dominar o conhecimento,
novas formas de produção e apropriação do
conhecimento da prática docente, isto se não
quiserem ficar estagnados em métodos de ensino
e teorias de trabalhos obsoletos” (MISKULIN,
1999 apud MISKULIN; VIOL, 2014, p. 1313).
Para Miskulin e Viol (2014), as novas tecnologias
têm mostrado considerável reconhecimento em
relação às suas potencialidades nos processos de
ensinar e aprender (CARDOSO, 2016, p. 187).

Na perspectiva da autora citada, concordamos com Araújo


(2013), ao enfatizar que as novas práticas pedagógicas oriundas da
utilização das tecnologias em salas de aula propiciaram o surgimento
de novas metodologias de ensino e de ferramentas que ajudaram na
mediação tecnológica para uma aprendizagem abalizada no
interesse, na criatividade e na autonomia do alunado e/ou dos
usuários em geral. Além do mais, Araújo (2013) acentua que o uso
das TIC tem instigado transformações no modo de projetar e de
utilizar materiais didáticos, sendo assim a formação de professores
é mais do que uma necessidade e, sim precisa ser uma prioridade,

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sobretudo na “elaboração de políticas públicas educacionais”5
(PAIVA e LIMA, 2017b, p. 2).
Para isso, no sentido de melhorar e ressignificar as práticas
de ensino, a inserção e o aprimoramento contínuo com as
tecnologias em sala de aula, bem como a execução de atividades
digitais que podem nos oferecer

uma gênese historiográfica acerca do impacto das


novas tecnologias em relação à língua, ao
letramento, a educação e a sociedade no campo
das mudanças atuais devido ao emprego de
ferramentas digitais que estão reconfigurando as
atividades de leitura e de escrita de maneira
reflexiva quanto às práticas de letramentos no
cotidiano dos diversos grupos sociais (PAIVA e
LIMA, 2017a, p. 264).

Dessa forma, o foco de muitos estudos atuais está alinhado


na aprendizagem linguística e tecnológica interdisciplinar,
principalmente na era das mídias digitais e das tecnologias, na
incumbência de oferecer subsídios para as atividades educacionais
de professores e de estudantes nos processos de leitura/escrita, em
que novas competências letradas, habilidades e estratégias são
demandadas nas diversas atividades sociocomunicativas hodiernas.
Uma vez que novos contextos de produção surgem, fazendo
com que o trabalho pedagógico da escola seja o de ampliar o
potencial de cada um dos/as alunos/as, mediante o uso criativo e
colaborativo de ferramentas, aplicativos, recursos online, auxiliando
os educandos a terem mais familiaridade com as tecnologias e com
os diversos tipos de letramentos estudados(as) por alguns(mas)

5 Paiva e Lima (2017, p. 2b) corroboram que “[d]evemos compreender que a


política de formação continuada do professor como um projeto educacional que
prescreve as propostas de capacitar profissionais da educação, gerindo-os ao
relacionamento no ambiente escolar através de suas capacidades docentes. Nos
atuais discursos pedagógicos, alguns conceitos são identificados como alusão
principal na formação e experiência educacional, como autoconhecimento,
autonomia e autoconfiança, apreciados como elemento para constituição dos
saberes dos docentes”.

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pesquisadores(as) cada qual com suas particularidades (PAIVA e
LIMA, 2017a).
Acrescido a isso, Pinheiro (2013) ao estudar os letramentos
demandados em cursos on-line trouxe à baila uma série de lacunas acerca
da acepção de letramento produzidas nos vários debates em função das
variedades de contextos em que o fenômeno acontece. Sendo,
assim, os conceitos de letramento tornaram-se desiguais em espaços
e/ou épocas diferentes. Apesar disso, hoje cada esfera de produção
acadêmica, por meio de seus pesquisadores, quanto a uma
conceituação de letramento, expressa a necessidade de atribuir-lhe
uma concepção que se justifica, entre outros motivos, para facilitar
a avaliação dos indivíduos ou grupos sociais por parte dos órgãos
oficiais, a fim de direcionar as políticas públicas educacionais.
Em outro estudo relevante da área, Lima e Pinheiro (2015,
p.330), quanto aos multiletramentos nas aulas de língua portuguesa no
Ensino Médio, ressaltam que numa análise crítica sobre esse aspecto
cabe, porquanto, a escola formar usuários mais competentes, sendo
imprescindível se - compreender as diversas semioses imbricadas
nos gêneros da contemporaneidade que podem torná-los objetos de
estudo em face das novas práticas de letramentos na sala de aula
(PAIVA e LIMA, 2017c, p. 14).
Em uma de suas recentes pesquisas, Rojo (2017) esclarece
que esse cenário dos novos multiletramentos em tempos na web

as tecnologias digitais e nem os novos multile-


tramentos da cultura digital efetivamente chega-
ram ainda às práticas escolares, que continuam
aferradas ao impresso e a suas práticas. No en-
tanto, essas são as práticas letradas das pessoas,
dos trabalhadores e dos cidadãos do século XXI
em diante (ROJO, 2017, p. 8).

A partir desta reflexão de Rojo (2017), concordamos que o


contexto atual dos multiletramentos na escola tem demandado dos
usuários e consumidores de tecnologias competências e habilidades
para desenvolverem novas práticas (multi)letradas, em virtude da

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produção, manuseio e consumo de textos multimodais no/pelo uso
dos recursos, ferramentas e aplicativos multimidiáticos, por
exemplo (BUZATO, 2016).
Isso tornou crucial a inserção dos indivíduos a uma
educação tecnológica constante, pautada na pedagogia dos
multiletramentos que possibilite uma melhor compreensão das
novas possibilidades de interações entre os sujeitos, em ambientes
digitais, advindas da globalização digitalizada, compreendida por seus
variados fenômenos e práticas de linguagem no viés das novas
tecnologias digitais de comunicação e informação (BUZATO,
2016).
Defendemos, portanto, a necessidade de uma formação
integral e continuada que procure ensinar letrando crítico e digitalmente,
tanto o alunado quanto o professorado, para que seja possível uma
formação integral desses interactantes, com base num
comportamento linguístico interacional e (re)significativo do sujeito
ensinante e aprendente, pautado em concepções de educação, de
linguagens e tecnologias (PAIVA e LIMA, 2017a).
É necessário ainda que os agentes educacionais, as escolas,
as universidades, entre outros, promovam efetivamente o
conhecimento pedagógico-curricular das NTDIC no cotidiano
escolar a fim de fundamentar e justificar a proposta educacional com
a qual os professores e demais usuários necessitarão se orientar,
(re)pensando suas práticas de letramentos e/ou multiletramentos6,
visando oferecê-los a possibilidade de usarem as ferramentas
tecnológicas de forma adequada para a produção de materiais
educacionais como recursos pedagógicos no contexto digital. (REIS
e GOMES, 2014).

6 Para Rojo (2017, p. 4) os “[m]ultiletramentos são as práticas de trato com os


textos multimodais ou multissemióticos contemporâneos – majoritariamente
digitais, mas também impressos –, que incluem procedimentos (como gestos para
ler, por exemplo) e capacidades de leitura e produção que vão muito além da
compreensão e produção de textos escritos, pois incorporam a leitura e
(re)produção de imagens e fotos, diagramas, gráficos e infográficos, vídeos, áudio
etc.

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Neste estudo, os problemas a serem elucidados referem-se
ao quantitativo de estudos e resultados de pesquisas acerca dos
letramentos digitais e a formação de professores em língua portuguesa, por
isso, questionamos: Qual o quantitativo de estudos sobre letramentos digitais
já produzidos por pesquisadores/as brasileiros/as? Quais os aspectos teórico-
conceituais desses letramentos são necessariamente importantes para
professores/as, estudantes e pesquisadores/as?7 E quais os resultados
metodológicos mais expressivos que foram empregados em cada estudo publicado
no campo dos letramentos digitais e da formação de professores no Brasil?
Para responder, finalmente, a essas questões-problemas
propostas, ancoramo-nos na abordagem metodológica de revisão
sistemática da literatura8, adaptada por (RAMOS, FARIA e FARIA,
2014) e amplo e, recentemente, utilizada por (BOTTENTUIT
JUNIOR e SANTOS, 2014; LIMA e BOTTENTUIT JUNIOR,
2015; COSTA e BOTTENTUIT JUNIOR, 2016; SILVA e
BOTTENTUIT JUNIOR, 2017), entre outros, com muita
recorrência na área da Ciências da Educação, Tecnologias e Cultura.
Além deste tipo de metodologia, muitos outros métodos
similares têm sido adotados em investigações da área de Ciências da
Saúde, visto que estes se utilizam dessas várias categorias de revisão
para identificarem “as condições em que determinadas evidências
ocorrem e a possibilidade de identificação de padrões de
ocorrência” (VOSGERAU e ROMANOWSKI, 2014, p. 175).
Nesse sentido, algumas dessas categorias metodológicas se
destacam na literatura científica, entre elas, as revisões: sistemática
(DEPAEPE; VERSCHAFFEL; KELCHTERMANS, 2013), revi-
são integrativa (SOBRAL; CAMPOS, 2012), síntese de evidências
qualitativas (TONDEUR et al., 2011), metassíntese qualitativa

7 Indagação elaborada a partir de (BAKER, PEARSON e ROZENDAL, 2010).


8 A revisão sistemática caracteriza-se, por conseguinte, por empregar uma
metodologia de pesquisa com rigor científico e de grande transparência, cujo
objetivo visa minimizar o enviesamento da literatura, na medida em que é feita
uma recolha exaustiva dos textos publicados sobre o tema em questão (THORPE
et al., 2005).

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 66


(MATHEUS, 2009), meta-análise (KYRIAKIDES; CHRISTO-
FOROU; CHARALAMBOUS, 2013) e metassumarização (SAN-
DELOWSKI; BARROSO; VOILS, 2007)9.
Vale salientar que ainda temos poucas pesquisas acerca dos
letramentos, multiletramentos e práticas de letramentos
relacionadas, sobretudo, às experiências e atividades de formação de
professores no Brasil, em especial nas áreas da Semiótica Social,
Nova Retórica, Linguística Sistêmico-Funcional, Análise de
Discurso Crítica, entre outras, que se utilizem dessa tipologia de revisão
sistemática de literatura em pesquisas e métodos utilizados na área da
Linguística. Podemos atestar que temos algumas escassas
ocorrências na Sociolinguística, a exemplo de (NOGUEIRA, 2014;
ELOI, COSTALONGA, MAGALHAES, 2017) e no Ensino de
Línguas Estrangeiras com estudos de (LORA, ORIDE e PASSONI,
2015), respectivamente.
Este artigo, enfim, por meio da aplicação da revisão
sistemática de literatura – RSL possibilitou-nos apresentar um
panorama não somente teórico-conceitual das pesquisas sobre os
letramentos digitais e a formação de professores no Brasil, mas também
sobre os principais resultados obtidos e respectivas análises e
resultados, baseados nas abordagens e métodos associados às
estratégias e às habilidades concernentes a uma ampla taxonomia de
letramentos10 que são necessários para o engajamento de vários grupos
sociais, mormente de alunos/as e professores/as em uma sociedade
vastamente conectada, envergada pela complexidade e pela
imprevisibilidade.

LETRAMENTOS DIGITAIS: TECNOLOGIAS NA


EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS

Com tantas mudanças tecnológicas na sociedade brasileira,


sobretudo na área educacional, tornou-se necessário cada vez mais
a inserção da cultura digital na escola e na vida cotidiana dos sujeitos

9 Para maior aprofundamento, ver (VOSGERAU e ROMANOWSKI, 2014).


10 Para maior aprofundamento, ver (DUDENEY; HOCKLY e PEGRUM, 2016).

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que a compõem por meio de ferramentas, objetos de aprendizagem,
materiais didáticos diversificados etc. Tudo isso objetivando
proporcionar continuamente tanto a professores/as quanto a
estudantes, entre outros, uma educação tecnológica significativa e
transformadora, uma vez que devido à realidade dos baixos níveis
ou graus de letramento e alfabetização no Brasil ainda muitos
acentuados, sobretudo nos estratos sociais reconhecidamente
marginalizados pela carência de políticas públicas e de atividades e
projetos pedagógicos voltados aos multiletramentos digitais desses
sujeitos.
É sabido que o letramento digital provoca tanto a
assimilação de uma tecnologia ou mais de uma, quanto a utilização
efetiva das práticas de leitura e escrita no ambiente digital
(COSCARELLI, 2005, apud COSCARELLI; RIBEIRO, 2005).
Nesse sentido, muitos/as pesquisadores/as defendem a necessidade
de outros estudos no sentido de promover uma discussão teórica e
prática em perspectiva mais sociodiscursiva da linguagem, visando
ao desenvolvimento de atividades, de estratégias e de recursos
adequados para o letramento digital de alunos/leitores, tornando-os
mais críticos e proficientes em práticas de leitura e de escrita
(COSCARELLI et al, 2016).
Seguindo essa concepção anterior, notamos que nesta era da
tecnologização digital na educação, é preciso mais do que formar
leitores críticos, é crucial suscitar os educadores a uma preocupação
maior, a fim de desenvolver no alunado as competências e/ou as
habilidades indispensáveis na compreensão leitora e na produção de
uma diversidade de gêneros textuais em ambientes digitais de
produção discursiva e de acesso à informação em contextos
sociohistoricamente situados.
Nessa seara de trabalho, Rezende (2015) tem ponderado que
muitos dos debates acerca do que sejam letramentos conduzem,
desse modo, ao que ela acredita ser letramento digital como um novo
letramento que se utiliza de nova(s) tecnologia(s), um caso
paradigmático dos novos letramentos.

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Essa pesquisadora retoma a definição de Buzato (2006),
afirmando que os

letramentos digitais (LDs) são redes de


letramentos (práticas sociais) que se apoiam,
entrelaçam, e apropriam mútua e continuamente
por meio de dispositivos digitais (computadores,
celulares, aparelhos de TV digital, entre outros)
para finalidades específicas, tanto em contextos
socioculturais limitados fisicamente, quanto
naqueles denominados online, construídos pela
interação social mediada eletronicamente
(BUZATO, 2006, s/p).

Apreende-se, pois, dessa explanação que é imprescindível


mais do que conhecer o conceito acerca do que sejam os
letramentos digitais, porque essas tipologias de letramentos
requerem o reconhecimento de práticas de linguagens, de ações
sociais e o conhecimento dos textos e das agências de letramento,
para que o manuseio tecnológico seja constante e potencializador
das habilidades de leitura e escrita em contextos de produção
diversos, por isso é preciso dar significação a essa atividade
pedagógica com tecnologias, aprendendo a cada momento e
superando as dificuldades educacionais corriqueiras.
Para isso, lembramos ainda que é necessário ensinar a esses
aprendizes as atividades orientadas pedagogicamente, entre as quais:
saber localizar e selecionar os materiais por meio de navegadores,
hyperlinks e mecanismos de procura, entre outros, ou seja, não basta
ter somente habilidades indispensáveis para se recuperar
informações na mídia digital, é preciso ser capaz “de avaliar e usar a
informação de forma crítica se quiserem transformá-la em
conhecimento” (BUCKINGHAM, 2010, p. 49).
Ademais, salientamos que a partir da visão sociocultural,
econômica e politicamente orientada, os letramentos digitais são
compreendidos como “habilidades individuais e sociais necessárias
para interpretar, administrar, compartilhar e criar sentido

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eficazmente no âmbito crescente dos canais de comunicação digital”
(DUDENEY; HOCKLY e PEGRUM, 2016, p. 17).
Para tanto, esses pesquisadores corroboram o entendimento
de que as tecnologias educacionais apresentam uma natureza
eminentemente social. Assim sendo, em suas pesquisas os autores
mencionados apresentam estratégias e habilidades associadas a uma
ampla gama de letramentos considerados necessários para o
engajamento do aluno em uma sociedade amplamente conectada,
marcada pela complexidade e pela imprevisibilidade.
Isso significa dizer que na atualidade, enfatizam os autores
(DUDENEY; HOCKLY e PEGRUM, 2016, p. 19), ensinar (língua)
“exclusivamente através do letramento impresso” significa “fraudar
nossos estudantes no seu presente e em suas necessidades futuras”.
Em Letramentos digitais, temos uma extensa gama de letramentos
específicos que são agrupados a partir de quatro pontos focais, quais
sejam:

1) linguagem, que engloba, entre outros, o le-


tramento impresso, o multimodal e o móvel; 2)
informação, envolvendo o letramento em pes-
quisa, o letramento em informação e o letramen-
to em filtragem, por exemplo; 3) conexões, que
abarca o letramento em rede e o participativo,
além do intercultural; e 4) (re)desenho, campo
que agrupa letramentos como o denominado re-
mix (DUDENEY; HOCKLY e PEGRUM, 2016,
p. 10).

Compreendemos que esses agrupamentos não incidem em


compartimentalização, porque muitos dos letramentos apresenta-
dos se sobrepõem. Dudeney, Hockly e Pegrum (2016), enfatizam
que o propósito mais relevante da estrutura proposta não recai em
oferecer uma checklist de letramentos variados, mas seu objetivo é
apresentá-los de maneira a ajudar os estudantes a desenvolverem
estratégias para lidar com os letramentos específicos de cada campo

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focal, levando-os a fazerem “o máximo com as possibilidades das
mídias digitais” (DUDENEY; HOCKLY e PEGRUM, 2016, p. 21).

REVISITANDO E TRABALHANDO OS
MULTILETRAMENTOS COM FOCO
NO CURRÍCULO, LINGUAGEM E
SOCIEDADE NA CONTEMPORANEIDADE

Anacleto e Miranda (2016), ao estudarem os multiletramentos


e práticas de leitura, escrita e oralidade no ensino de língua portuguesa na
educação básica ressaltam que a atividade de leitura e de produção de
textos (orais e escritos), na atualidade, procedem “da articulação de
diferentes ordens discursivas, fomentadas pelo hibridismo da
linguagem, ou seja, pelos multiletramentos que fazem parte das
práticas sociais, culturais, econômicas etc., dos sujeitos em suas
comunidades” (ANACLETO; MIRANDA, 2016, p. 69).
Dessa forma, as autoras mencionadas enfatizam ainda que,
em uma sociedade letrada, a escrita se tornou um fator de interação
entre as pessoas e a leitura uma forma eficaz de entendimento do
mundo (BAZERMAN, 2007), porque esse contexto
contemporâneo de comunicação de práticas de leitura e escrita num
viés ideológico (STREET, 2014) demanda e impulsiona outras
práticas sociais com a leitura e a escrita, funcionando ativamente na
construção de significados e identidades sociais, e não apenas como
uma mero processo que agencie o amoldamento social do sujeito ao
mundo e às suas cobranças sociais.
Todavia demandou “o resgate identitário e construção de
identidades fortes, para o empoderamento, em sua cultura local, de
vozes que são silenciadas não apenas na agência escolar, mas em
outros contextos sociais, e para uma contra-hegemonia global”
(ANACLETO; MIRANDA, 2016, p. 73). Nesse diapasão, Rojo
(2012) acentua que é no interior dessas reflexões sobre a
contemporaneidade e sobre os gêneros discursivos que o termo
multiletramentos tem ganhado força em muitos espaços sociais,
posto que

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O conceito de multiletramentos, articulado pelo
Grupo de Nova Londres, busca justamente
apontar, já de saída, por meio do prefixo “multi”,
para dois tipos de “múltiplos” que as práticas de
letramento contemporâneas envolvem: por um
lado, a multiplicidade de linguagens, semioses e
mídias envolvidas na criação de significação para
os textos multimodais contemporâneos e, por
outro, a pluralidade e diversidade cultural trazida
pelos autores/leitores contemporâneos a essa
criação de significação (ROJO, 2012, p. 45).

Ainda para a autora, faz-se necessário hoje a adesão de uma


pedagogia dos multiletramentos que já foi assegurada, com maior
clareza, em 1996, a partir do manifesto resultante de um colóquio
do Grupo de Nova Londres (GNL). Nesse sentido, outros
pesquisadores tanto a nível internacional, a exemplo de (COPE;
KALANTZIS, 2000, KRESS e van LEEUWEN, 2001 e KRESS,
2003), quanto a nível nacional, (ROJO, 2009, 2012; MOITA
LOPES, 2010; KLEIMAN, 2005) para citar apenas alguns, têm
reforçado que

[o]s textos no mundo dos multiletramentos em


que estamos vivendo passaram a ser construídos
de formas inovadoras nas telas dos computado-
res, nos quais convergem no desktop do compu-
tador, ao se apertar uma tecla, ferramentas com-
plexas, que são facilmente acessíveis tais como
aquelas que possibilitam operar simultaneamente
com imagens, sons, músicas, cores, vídeos, textos
escritos etc., em hipertextos planejados como
lugar de construção de sentido em um mundo no
qual o conceito de design/ planejamento se tor-
nou central (MOITA LOPES, 2010, p. 398).

Em outras palavras, Moita Lopes (2010) avalia que os


multiletramentos e o ensino têm ganhado destaque em muitas
pesquisas no âmbito brasileiro, uma vez que surgiu a necessidade de
estudar os novos letramentos digitais sob a perspectiva

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primeiramente, pelo fato de serem caracterizados como típicos do
mindset 2.0, no qual o participante se transforma em um
“prosumidor”, ou seja, envolve-se na construção do discurso com
outros. E em segundo lugar, porque nas redes sociais da Web 2.0, os
participantes têm colaborado na construção de subpolíticas, por
meio das quais os indivíduos têm anunciado os temas que têm feito
ultrapassar dogmas e narrativas cristalizados (MOITA LOPES,
2010, p. 400).

PERCURSO METODOLÓGICO: A REVISÃO


SISTEMÁTICA DE LITERATURA: EXPLICANDO
A TIPOLOGIA METODOLÓGICA - RSL

Este estudo configura-se como uma revisão sistemática


aplicada que consiste em um tipo de investigação, baseada na revisão
de literatura, em que o/a pesquisador/a, a partir de uma questão de
pesquisa começa o mapeamento e avaliação das produções
acadêmicas acerca do assunto investigado e, deste modo, as revisões
são, em geral, descrições das contribuições feitas por diversos
autores em um campo de estudo (FINK, 1998; HART, 1998).
Ressalte-se, porquanto, que a revisão sistemática é uma
pesquisa construída a partir dos dados registrados em diferentes
pesquisas que abordam a mesma temática, com análise crítica de sua
metodologia e conclusões com o intuito de possibilitar avanços no
campo teórico e prático (DAVIES, 2007). Neste sentido, essa
metodologia caracteriza-se por tornar relevante a definição de
critérios precisos, rigorosos e sistemáticos para a identificação e
seleção de fontes bibliográficas que irão garantir a confiança no
trabalho científico a ser desenvolvido (RAMOS; FARIA e FARIA,
2014).
Alguns pesquisadores da área das Ciências da Educação
colocam em confronto as duas formas distintas de realizar uma
revisão de literatura, enfatizando que

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A revisão de literatura tradicional tipicamente
apresenta resultados de investigação relativos a
um tópico de interesse [do investigador]. Resu-
mem o que é conhecido sobre esse tópico sem
explicarem os critérios utilizados para identificar
e incluir esses estudos nem justificar o motivo de
alguns estudos serem descritos e discutidos, e
outros não. Assim, estudos potencialmente rele-
vantes podem não ter sido incluídos na revisão de
literatura pelo autor não ter conhecimento deles
ou, conhecendo-os, decidir não os incluir por
razões que não explica. Se o processo de
identificação das fontes bibliográfica não for ex-
plícita, consistente e rigorosa, não é possível
avaliar a adequação dessas fontes ao estudo em
causa (GOUGH; THOMAS e OLIVER, 2012, p.
5, tradução nossa).

Em outras palavras, os pesquisadores ligados às Ciências da


Educação trouxeram inúmeras investigações epistemológicas acerca
da revisão tradicional ou narrativa de literatura: esta deveria
aproximar-se do longo caminho já percorrido pelas ciências médicas
no qual a Revisão Sistemática tem revelado influência profunda nos
resultados dos estudos em que ela é aplicada
(CONTANDRIOPOULOS et al., 2010).
Para tanto, recentemente, esta metodologia apareceu nas
Ciências Sociais (DENYER; TRANFIELD, 2009; SAUR-
AMARAL, 2010;) e nas Ciências da Educação (GOUGH et al. 2011;
LEVIN et al., 2011; REES; OLIVER, 2012; SQUIRES et al., 2011;
STEWART, OLIVER, 2012; VANDERLINDE; van BRAAK,
2010)11, entre outros. Em suma, faz-se necessário,
metodologicamente, a inclusão de um protocolo de pesquisa por
meio da adoção de um conjunto de etapas específicas para o
levantamento e tratamento dos dados que comporão a revisão
sistemática da literatura.

11Para maior aprofundamento acerca dos estudos citados, ver (RAMOS, FARIA
e FARIA, 2014, p. 21-22).

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Assim, adotamos neste estudo as seguintes etapas para o
processo de revisão sistemática da literatura (RSL), a saber:

Figura 1: Descrição das etapas da revisão sistemática de literatura


Fonte: SILVA e BOTTENTUIT JUNIOR (2017, p. 269).

PROBLEMAS DE PESQUISA

No sentido de realizar um recorte metodológico mais


acertado acerca do tema letramentos digitais e formação de professores,
procedeu-se à elaboração dos problemas científicos que nortearam
o presente estudo:

1. Quais são os principais resultados metodológicos abor-


dados nas produções científico-acadêmicas destacados nas
práticas de letramentos digitais em atividades de formação
de professores no contexto educacional no Brasil?

A partir da indagação acima, de cunho mais amplo, outras


questões específicas desdobraram-se ao longo da produção desta
Revisão Sistemática:
• Quais metodologias são adotadas nos estudos
selecionados?
• Quais instrumentos de coleta de dados são utilizados?
• Quais níveis de letramentos digitais têm sido
contemplados nas pesquisas?

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• Foram registrados potenciais pedagógicos, formativos ou
limitações com a utilização das mídias e recursos digitais
enfocados nos trabalhos? Quais?

DESCRIÇÃO METODOLÓGICA
DA ANÁLISE DO CORPUS

Quadro 1: Etapas seguidas no processo


de revisão sistemática da literatura
1 – OBJETIVOS Identificar estudos que abordem a
utilização dos letramentos digitais
no âmbito da formação de
professores;
2 - EQUAÇÕES DE Expressões como: “Letramento(s)
PESQUISA Digital(is)”, “Letramentos em
mídia”, “Letramentos em
Multimídia”, “Letramentos em
Rede” e “Letramentos móvel”
aliadas a “Formação de
Professores”12;
3 -ÂMBITO DA Google Acadêmico, Scielo e
PESQUISA Periódicos Capes;
4 - CRITÉRIOS DE Artigos publicados em revistas e
INCLUSÃO eventos científicos, em periódicos
acadêmicos, todos em Língua
Portuguesa, realizados entre os
anos de 2010 a 2017, empíricos ou
teóricos, mas que sejam voltados
para o desenvolvimento em sala de
aula com enfoque para o estímulo a
leitura e escrita com o uso de
Tecnologias na Educação e áreas
afins;

12 Para
formulação de alguns dos descritores aqui, baseamo-nos em (DUDENEY;
HOCKLY e PEGRUM, 2016, p. 21).

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5 - CRITÉRIOS DE Artigos fora do âmbito
EXCLUSÃO educacional, que não foram
publicados em revistas científicas e
escritos em língua estrangeira;
dissertações de mestrados e teses
de doutorado;
Documentos ou artigos advindos
de blogs ou outras ferramentas da
web social não publicado em
veículos acadêmicos;
6 - CRITÉRIOS DE Verificação dos critérios de
VALIDADE inclusão e de exclusão;
METODOLÓGICA
7 - RESULTADOS Registro de todas as etapas da
pesquisa;
8 - TRATAMENTOS Escolher, sintetizar, descrever e
DOS DADOS analisar criticamente os dados.

Fonte: Elaborado pelos autores, baseado em


(COSTA e BOTTENTUIT JUNIOR, 2016, p. 9-10).

Conforme o quadro acima, este estudo foi desenvolvido


com o intuito de alcançar uma aproximação com o tema por meio
da análise de 10 estudos existentes acerca do tema: Letramentos
digitais, Tecnologias e Formação de Professores, nas áreas vincu-
ladas a Letras, Linguística e Educação, disponibilizados em três
bases de dados: Google Acadêmico, Scielo13 e Periódicos Capes14.
A seleção das três bases de dados é explicada pela finalidade
de realização de uma busca aprofundada e compreensiva sobre o
tema e também pelo fato de que estas bases possibilitam o acesso

13 Para mais informações, ver: https://search.scielo.org. Acesso em: 27 de dez.


2017.
14 Para mais informações, ver: http://www.periodicos.capes.gov.br. Acesso em:

27 de dez. 2017.

77 | 2018 – vol. II, nº 02


aos textos de forma completa, bem como os seus meios de pu-
blicação. Desta forma, o levantamento foi realizado por meio de
busca avançada nas três bases de dados de trabalhos produzidos,
entre os anos de 2010 a 2017, em língua portuguesa e que aborda-
vam a utilização dos letramentos digitais com enfoque para a formação
de professores no Brasil, sobretudo nas áreas da Educação, Letras e
Linguística das bases de dados a serem investigados, cada qual com
seus critérios específicos.
Os descritores empregados foram os seguintes: “Letramen-
to(s) Digital(is)”, “Letramentos em mídia”, “Letramentos em Mul-
timídia”, “Letramentos em Rede”, “Letramentos móvel” e Multile-
tramentos”, estas buscas individuais foram feitas, aliadas ao descri-
tor “Formação de professores” (Ex.“Letramentos Digitais” “For-
mação de professores”), uma vez que inicialmente foram encon-
trados muitos trabalhos sobre esse tipo de letramento fora do âm-
bito educacional, ao realizarmos as investigações com a exclusão do
descritor “Formação de professores”.
Vale ressaltar que a obtenção de resultados que englobassem
também expressões adequadas, ao longo do processo de procura
documental, configurou-se pelo uso das aspas duplas. Elegeu-se
ainda nesta investigação uma avançada busca nas bases de dados
usadas, na qual se pôde filtrar inicialmente o período de produção e
o gênero acadêmico que se desejava encontrar, no caso os artigos
acadêmicos mais bem avaliados na Plataforma Sucupira/Capes,
independentemente de serem classificados como artigos: teóricos,
de revisão de literatura ou experimentais (BERNARDINO, 2007).
Porém, delineamos a metodologia e o escopo de estudo adotados
por cada pesquisador/a em seus estudos.

DEFINIÇÃO DE CRITÉRIOS E
IDENTIFICAÇÃO DO CORPUS

Procedemos, metodologicamente, depois desta análise


prévia a definição dos critérios que seriam considerados, ou não, ao

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 78


longo do processo de busca. A seleção dos critérios de inclusão e
exclusão consiste em uma etapa fundamental para dar início à
operacionalização da busca dos trabalhos que fazem parte da análise.
A tabela, a seguir, demonstra o levantamento dos trabalhos
encontrados:

Tabela 1: Bases de dados, descritores e quantitativo de trabalhos


encontrados e com foco temático relacionados

DESCRITORES BASE DE BASE BASE DE


DADOS: DE DADOS:
GOOGLE DADOS: PERIÓDICOS
ACADÊMICO SCIELO CAPES
-
RESULTADOS
Letramento(s) 9.030 12 48
digital(is)
Letramentos em 11.800 0 16
mídia
Letramentos em 5.130 0 4
multimídia
Letramentos em 14.100 4 32
rede
Letramentos 7.220 0 3
móvel
Multiletramentos 3.040 12 35
Formação de 28.000 1. 250 8.353
professores
Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.

A partir do critério da relevância na base de dados google


acadêmico15, por exemplo, verifica-se um quantitativo de
aproximadamente 9.030 resultados em (0,03 s) para o descritor

15 Veja a consulta aplicada:


https://scholar.google.com.br/scholar?q=letramentos+digitais&hl=pt-
BR&lr=lang_pt&as_sdt=1%2C5&as_vis=1&as_ylo=2010&as_yhi=2017.
Acesso em 27 de dez. 2017.

79 | 2018 – vol. II, nº 02


“Letramentos Digitais”, apenas no recorte temporal de 2010 a 2017.
Além do mais, quando se inclui o termo “Formação de
professores”, encontrou-se aproximadamente 28.000 resultados,
porém poucos são as evidências quanto a formação de professores
de língua materna no Brasil, muitos dos resultados estão ligados as
línguas estrangeiras mais presentes no contexto de ensino da
educação básica, a língua inglesa e a língua espanhola.
Nas outras duas bases pesquisadas, verifica-se uma maior
simetria dos dados encontrados pelo fato das bases – Scielo e
Periódicos Capes possuírem critérios de busca mais delineados,
permitindo um filtro das informações com mais exatidão aos
objetivos propostas nesta pesquisa, sendo que obtivemos apenas
artigos acadêmicos procurados com as especificações que adotadas
aqui, ou seja, encontramos publicações de 2010 a 2017, sobretudo
na área da Educação, Letras e Linguística.
Percebe-se ainda que neste montante de resultados são
localizados além de artigos divulgados em revistas acadêmicas,
dissertações e teses, também textos de blogs, sites e outros
ambientes virtuais. Após o levantamento inicial, em que foram
verificados os trabalhos, foi realizada uma análise meticulosa a partir
dos critérios de inclusão e exclusão e foram selecionados 10 estudos
de maior relevância que, de fato, se enquadravam no enfoque deste
estudo e fazem jus a uma observação mais aprofundada.
A partir dos trabalhos excluídos da revisão sistemática,
conferiu-se que muitos estudos inquirem a produção de letramentos
digitais com enfoque para as práticas de letramentos voltadas para o
acesso à internet e ao uso de mídias digitais para informar, avaliar,
localizar, selecionar, entre outras atividades, os conceitos, figuras,
textos, matérias, propagandas etc., que se encontram no meio
virtual, isto é, priorizando apenas a questão do manuseio dos
recursos tecnológicos e não a sua inserção no âmbito educacional.
Finalmente, outros estudos também excluídos são voltados
para a área de ensino de línguas estrangeiras, tecnologias da
informação, engenharias da informática, bem como, estudos em que

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 80


o enfoque não está no estímulo da leitura, escrita e produção textual
no âmbito dos letramentos digitais e da formação de professores.

CARACTERIZAÇÃO DO CORPUS E
APLICAÇÃO DOS CRITÉRIOS

Por questões metodológicas foram editadas, a seguir, apenas


10 dos artigos encontrados (mais relevantes na área de letras,
linguística e educação no período de 2010 a 2017) que foram
selecionados a partir dos critérios de inclusão e exclusão, correlatos
à metodologia de revisão sistemática de literatura, os quais foram
organizados com as seguintes informações: ordem, título, autor,
ano, revista/periódico e qualis.
Vejamos, a seguir, o quadro 2 com os artigos acadêmicos
selecionados:

81 | 2018 – vol. II, nº 02


Quadro 2: Artigos acadêmicos sobre letramentos digitais e a
formação de professores/as encontrados

Nº TÍTULO AUTOR ANO REVISTA QUALIS


16

Educação em Revista/UFMG,
1 Letramento digital e FREITAS, 2010 disponível em: A1
formação de M. T. http://www.scielo.br/pdf/ed
professores. ur/v26n3/v26n3a17

Letramento digital e Hipertextus Revista


formação de SILVA, S. P. 2012 Digital/UFPE, disponível em: B1
2 professores na era http://www.hipertextus.net/v
da web 2.0: o que, olume8/01-Hipertextus-Vol8-
como e por que Solimar-Patriota-Silva.pdf
ensinar?
GELNE/UFRN, disponível
Novas tecnologias
SANTOS, M. 2014 em: B1
na escola e
3 C. dos. http://www.gelne.com.br/arq
letramento digital:
uivos/anais/gelne-
por que e para quê?
2014/anexos/582.pdf
Práticas e eventos Interfaces Científicas –
de letramentos FERNAND Educação/ Universidade B2
4 digitais na ES T.; 2017 Tiradentes-SE, disponível em:
Formação de CRUZ, D. M. https://periodicos.set.edu.br/
Estudantes online e AMANTE, index.php/educacao/article/d
na universidade. L. ownload/4846/2430
Narrativas digitais
na educação: uma COSTA, L. Revista Tecnologias na
revisão sistemática M.; e 2016 Educação, disponível em: B1
5 das produções BOTTENTU http://tecedu.pro.br/wp-
acadêmicas em IT JUNIOR, content/uploads/2016/09/Ar
língua portuguesa. J. B. t19-ano8-vol17-dez2016-.pdf

16 De acordo com a Classificação de Periódicos do Quadriênio 2013-2016.


Disponível em:
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublica
caoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf. Acesso em 27 de dez. 2017.

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Letramento digital:
SILVA, M. F. 2014 Revista Línguas & Letras – B1
uma análise das
6 R. M.; Unioeste, disponível em:
práticas sociais no
RIBEIRO, R. http://e-
ciberespaço a partir
R.; SANTOS, revista.unioeste.br/index.php/
da acessibilidade e
E. C. da S. linguaseletras/article/view/10
frequência de uso
729/8189

Os novos
MOITA
letramentos digitais
7 LOPES, L. P. 2010 Trab. Linguíst. A1
como lugares de
da. Apl./UNICAMP.
construção de
Disponível em:
ativismo político
http://dx.doi.org/10.1590/
sobre sexualidade e
S0103-18132010000200006
gênero.

Os LIMA, A. M. 2015 Linguagem & A1


8 multiletramentos P.; e Ensino/UCPEL. Disponível
nas aulas de língua PINHEIRO, em:
portuguesa no R. C. http://www.rle.ucpel.tche.br/
Ensino Médio. index.php/rle/article/viewFile
/1351/872

Práticas de leitura e
KOMESU, 2016 Revista da ABRALIN. A1
escrita em contexto
9 F.; e GALLI, Disponível em:
digital: autoria e(m)
F. C. S. http://revistas.ufpr.br/abralin
novos mídiuns
/article/view/47889/28824
Protocolo de
avaliação de
softwares ARAÚJO, N. 2017 ALFA: Revista de A1
10 pedagógicos: M. S.; e Linguística (UNESP.
analisando um jogo FREITAS, F. Online). Disponível em:
educacional digital R. R. http://seer.fclar.unesp.br/a
para o ensino de lfa/article/view/8625
língua portuguesa.
Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.

83 | 2018 – vol. II, nº 02


Depois da leitura e da análise de cada estudo para o
preenchimento do quadro anterior, foi possível tecer uma série de
informações, de lacunas e de resultados sobre o estado da arte que se
encontra a literatura científico-acadêmica, referente à temática dos
letramentos digitais e a formação de professores no Brasil,
fornecendo os dados necessários para as análises, avaliações e
comparações sistemáticas que foram realizadas ao longo desta
pesquisa, tendo em vista o protocolo de etapas do processo de
revisão sistemática da literatura, aplicadas por (SILVA e
BOTTENTUIT JUNIOR, 2017).

ANÁLISE(S) E DISCUSSÃO(ÕES) DOS RESULTADOS

A partir da verificação sistemática dos 10 artigos


encontrados por meio das buscas e, posteriormente, analisados
pelos processos metodológicos adotados por critérios de inclusão e
de exclusão, chegamos; por conseguinte, a alguns dados e/ou às
informações de pesquisa substanciais.
Identificamos que os artigos selecionados pertencem aos
periódicos de Qualis/Capes: A1 e B1, sendo a maioria deles, cerca
de 50% dos artigos encontrados em periódicos de Qualis A (A1,
nível de maior avaliação) e 40% e 10% correspondendo aos estratos
B1 e B2, respectivamente. Não houve nenhuma ocorrência de artigo
classificado como B3 e B4 em virtude do filtro de busca adotado
para se encontrar principalmente os artigos mais bem avaliados
nessas bases pesquisadas.
Vale advertir também que cerca de 50% dos artigos
avaliados são do estrato de qualidade B e 50% estão no A, estrato
mais elevado da classificação de Periódicos da Qualis/Capes, o que
sem dúvida, demonstra a qualidade dos estudos realizados nas várias
regiões do Brasil acerca deste tema, o que nos dar a certeza de que
os/as pesquisadores/as estão, buscando gradativamente apresentar
um maior padrão de qualidade em relação as pesquisas realizadas na
área dos letramentos digitais e formação de professores, sobretudo quanto
as práticas de letramentos digitais na educação, tanto a nível

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 84


superior, nas universidades, quanto na educação básica no cerne das
atividades pedagógicas.
Com relação à metodologia aplicada na realização dos
estudos, infelizmente são poucas pesquisas, muitas delas são
bibliográficas com o enfoque investigado, porém aparecem em
apenas 30% dos trabalhos selecionados. O mais interessante é saber
que 70% estudos podem ser classificados como trabalhos de
verificação empírica, sendo a maioria deles, pesquisas qualitativas de
caráter exploratório, descritivo e interpretativista, muitos dos quais,
foram realizados metodologicamente por meio de estudos de
campo, aulas interativas em laboratórios, pesquisa-ação, participante
ou etnográfica, geralmente com os sujeitos-participantes, sendo
alunos, professores, trabalhadores, moradores de rua etc.
Outro dado importante é saber que estas pesquisas estão
vinculadas a grupos de estudos das universidades, a projetos e a
ações formativo-pedagógicas nas próprias escolas de ensino básico,
visando à formação de professores e a promoção/inserção dos
interactantes que compõem os vários espaços sociais de uso
constante de tecnologias, consubstanciadas pelos vários subsídios
tecnológicos da informática, mídias, textos multimodais, recursos
didáticos digitais etc., ofertados a esse público.
Até porque são justamente nesses espaços que surgem as
inúmeras possibilidades de variação na maneira de como se
trabalhar com as NTICs, tanto nas escolas quanto nas universidades,
entre outros campos, por isso muitos dos estudos analisados
mostram que é fundamental que os professores compreendam a
necessidade de adaptarem as metodologias de ensino para essa nova
realidade (SANTOS, 2014).
Enfim, no tocante ao nível dos estudos que foram avaliados,
observamos que boa parte dos estudos selecionados ocorreu no
âmbito do ensino superior, com ênfase nas práticas de letramentos
de professores e, sobretudo, de licenciados com 30% e com 40% a
nível escolar, em que alunos e professores atuam diariamente, no
intuito de adquirir e potencializar os conhecimentos curriculares,
tecnológicos e pedagógicos em uma formação tecnológica e

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educacional integral e diversificada, ou seja, cerca de (70%) dos
estudos se efetivaram no contexto universitário e escolar,
totalizando 07 trabalhos, conforme revelado na tabela 2:

Tabela 2: Nível em que os estudos foram realizados


NÍVEL N° DE %
ESTUDOS
Pós-Graduação 1 10%

Superior 3 30%

Escolar 4 40%

Superior/Escolar 2 20%

Total 10 100%

Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.

Seguindo as etapas de análise, de Silva e Bottentuit Junior


(2017) ficou evidente que os 10 trabalhos que se enquadravam nos
critérios de inclusão e exclusão foram publicados entre os anos de
2010 e 2017. Além do mais, esses artigos divulgados nas bases de
dados pesquisadas, correspondem a 20% das publicações em 2010,
10% em 2012, 20% em 2014, 10% em 2015, 20% em 2016 e,
consequentemente, cerca de 20% dos estudos, que compõem o
corpus desta análise foram publicados recentemente em 2017.
Pode-se observar que nos anos de 2011 e 2013 não foram
encontrados artigos sobre os letramentos digitais ou correlatos aos
descritores pesquisados, uma vez que muitos dos trabalhos na área
não foram ainda avaliados pelo Qualis/Capes. Apesar disso, em
2014, a produção de artigos foi de dois trabalhos, média que decaiu
em 2015 com apenas um artigo, e em 2016 cresceu pouco com
apenas dois estudos. Somente em 2017, verificou-se que mais dois
trabalhos foram publicados, em periódicos mais bem avaliados no
Brasil, o que mostra que os pesquisadores, de fato, estão procurando

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manter, ampliar e consolidar os conhecimentos nesta área do saber
especializado.
Nesta pesquisa, considerando a expansão da cultura digital e
suas formas de comunicação e de produção de textos (ROJO e
BARBOSA, 2015), existentes hoje por causa de uma
heterogeneidade de representações semióticas e culturais, integradas
as produções discursivas na contemporaneidade, fez surgir a
necessidade de ressignificar e de potencializar as práticas educativas
e tecnológicas com a leitura e a escrita, sobretudo, no contexto
educacional brasileiro, tendo em vista as muitas mudanças com a
dinâmica de trabalho com as língua(gens), textos, mídias, imagens,
aplicativos etc., em diversos ambientes sociais, visando à formação
e à integração de professores-leitores, alunos-leitores e leitores-
sujeitos, produtores e multiplicadores de conhecimentos.
Observamos, portanto, que os autores dos artigos se
pautaram em produzir pesquisas com ênfase no ensino e
aprendizagem, visando trabalhar com os letramentos digitais em
atividades pedagógicas, formativas e tecnológicas em que a leitura e
a escrita ganham novos formatos, estratégias e espaços de
produção/circulação, em função das limitações geográficas,
educacionais e políticas do Brasil, apresentando um panorama de
tendências, métodos e aplicações didáticas mais adequadas e usadas
pelos sujeitos participantes dos estudos. Vejamos, a seguir o quadro
3 com as evidências, objetos metodológicos e resultados de pesquisa
encontrados na análise dos artigos selecionados.

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Quadro 3: Evidências, objetos metodológicos e resultados de
pesquisa encontrados na análise dos artigos

Nº AUTOR/ES OBJETO DE TIPOLOGIA/ PRINCIPAIS


ESTUDO DELINEAMENTO RESULTADOS
DE PESQUISA
[...] pesquisar, ler e conhe-
cer sobre os mais variados
assuntos navegando na
internet confere ao aluno
um novo perfil de estudan-
te, que exige também novo
perfil de professor. (p. 348).
Leitura-escrita PESQUISA PARTICI-
1 FREITAS, M. de adolescentes PANTE/ GRUPO DE [...] falta ao professor o
T. em chats e tam- PESQUISA letramento digital e ele não
bém em e-mails. reconhece esse letramento
digital do aluno como
conhecimento, mas como
técnica, o professor tam-
bém não se reconhece
como um não-letrado digi-
tal. (p. 348)
[...] percebemos que o foco
recai sobre alfabetização
digital, de caráter mera-
mente instrumental, não no
letramento, de forma
crítica. (p. 2).
Formação
docente Na formação de professo-
2 SILVA, S. P. continuada em e PESQUISA res, os formadores preci-
para contextos BIBLIOGRÁFICA sam incluir nas agendas
digitais espaço para que essas de-
monstrações aconteçam de
forma a atenuar o impacto

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inicial daqueles que ainda
não têm tanta familiaridade
com as novas tecnologias.
(p. 5).
As respostas [...] demons-
tram que os pesquisados
percebem que a tecnologia
faz parte do contexto social
da vida moderna e que, por
isso, deve estar inserida na
escola. (p. 4).

As respostas [...] assinalam


Novas a importância da interação
tecnologias na PESQUISA do meio digital como fator
3 SANTOS, M. escola e PARTICIPANTE E para “dinamizar” as aulas,
C. dos. letramento BIBLIOGRÁFICA deixando de “ser monóto-
digital nas”. Pode-se perceber aqui
uma espécie de “tec-
nolatria” ou superestima-
ção do poder das tecnolo-
gias. (p. 4).
Assim, os eventos que têm
o digital como mediador
Novas das interações nos proces-
tecnologias na sos de comunicação no
escola e qual as práticas de forma-
FERNANDE letramento ção têm lugar podem ser
S T.; CRUZ, digital PESQUISA denominados ELD. (p. 85).
4 D. M. e Práticas e PARTICIPANTE/
AMANTE, L. eventos de GRUPO DE A partir desses indicadores,
letramento PESQUISA uma experiência de forma-
digitais na ção na educação online
formação de pode ser concebida como
Estudantes PLD que envolve ELD,
online na onde estudantes e profes-
universidade sores são corresponsáveis

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no processo de ensino e
aprendizagem. (p. 86).
A utilização de narrativas
digitais fez ressurgir o
hábito de contar histórias
em sala de aula, só que
agora utilizando também
recursos tecnológicos para
torná-las mais atrativas e
atualizadas ao contexto dos
Produções discentes. (p. 4).
COSTA, L. acadêmicas PESQUISA
5 M.; e sobre a temática BIBLIOGRÁFICA/Q Entretanto, podemos afir-
BOTTENTU das narrativas UANTI- mar que esta metodologia
IT JUNIOR, digitais na QUALITATIVA de contar histórias é bas-
J. B. educação. tante recente, pois somente
com o desenvolvimento
das tecnologias da infor-
mação e comunicação é que
surgiu este tipo de
narrativa. Com o maior
avanço das TIC, as narrati-
vas digitais têm progredido
também. (p. 4).
[...] o acesso à internet é
A acessibilidade maior nas residências, com
ao Letramento a frequência diária de uso
Digital dos pela maioria dos informan-
moradores das tes, o que demonstra a
cidades satélites popularização deste meio
do Distrito de acesso à informação,
SILVA, M. F. Federal e a embora este ainda possua
R. M.; frequência de custo relativamente alto e
6 RIBEIRO, R. uso do conexão lenta. O ambiente
R.; SANTOS, ciberespaço para de trabalho é o segundo
E. C. da S. a realização de maior local de uso, a de-
atividades de pender da sua especificida-
leitura e escrita. de, seguido da instituição

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 90


de ensino, que ainda dis-
ponibiliza pouquíssimo
essa forma de comunica-
ção.
(p. 7).

PESQUISA Os informantes conside-


PARTICIPANTE/EN ram atividades de lazer em
TREVISTA ambiente virtual a leitura de
textos que dependem de
sua livre vontade de esco-
lha. Os mesmos gêneros
utilizados na sala de aula
(notícia, reportagem, men-
sagem, vídeos, música) são
classificados pelos colabo-
radores como atividades de
estudo para atender às
necessidades do espaço
escolar. (p. 9).
Os ganhos epistêmicos de
tal enfoque estão relacio-
nados, portanto, à possibi-
lidade de compreender os
novos letramentos digitais
como práticas sociais nas
quais atores operam ou
agem em um ethos colabo-
Novos rativo e participativo na
letramentos construção de significados
digitais como PESQUISA (Moita Lopes, no prelo),
MOITA lugares de BIBLIOGRÁFICA/A reconhecendo socialmente
7 LOPES, L. P. construção de NÁLISE DE tais operações / ações
da. ativismo político DISCURSO como um modo de fazer
sobre coisas no mundo
sexualidade e (Lankshear & Knobel,
gênero 2007: 4). (p. 398)

91 | 2018 – vol. II, nº 02


Esses movimentos discur-
sivos são possibilitados
pelos modos por meio dos
quais, como tentei argu-
mentar acima, os partici-
pantes de tais letramentos
se organizam como parti-
cipantes de espaços de
afinidades do mindset 2.0
na construção de uma
inteligência coletiva como
cidadãos e prosumidores. A
politização da vida social
está agora mobilizada con-
tinuamente nesses novos
letramentos digitais e nos
usos variados e transgres-
sivos que as pessoas quise-
rem deles fazer, da mesma
forma que está também
facilmente acessível no
teclado do computador. (p.
415-416).
[...] o docente preparou a
referida aula antecipada-
mente, elaborando um
WebQuest. Ressaltamos a
atitude do participante da
pesquisa ao trabalhar com
texto, no caso uma canção,
e a seleção do videoclipe,
que agrega elementos mul-
Os tissemióticos. (p. 342).
LIMA, A. M. multiletramentos PESQUISA
8 P.; e nas aulas de EXPLORATÓRIA/ Os relatos comprovam que
PINHEIRO, língua PRÁTICAS o videoclipe dá margem a
R. C. portuguesa no LABORATORIAIS um trabalho em que se
Ensino Médio pode tratar de questões

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 92


multiculturais através das
quais o docente poderia
desfazer o equívoco de que
há uma cultura valorizada e
outra desvalorizada. (p.
344).
Esse processo de empode-
ramento, sabemos, não é
transparente para aqueles
que participam12 de uma
Práticas de cultura da convergência ou
leitura e escrita de produzagem, assim
9 KOMESU, em contexto PESQUISA DE como parece não haver
F.; e GALLI, digital, CARÁTER “consciência” dos partici-
F. C. S. letramento DESCRITIVO pantes (consumidores-
digital, autoria e produtores, produsuários)
novos mídiuns. de que os discursos sobre a
facilidade de acesso a in-
formações mediante tecno-
logias digitais e a conse-
quente possibilidade de
compartilhamento e sele-
ção de conteúdos apontam
para uma ideia naturalizada
sobre a noção de informa-
ção – como algo a ser con-
sumido. (p. 177).
A perspectiva adotada no
jogo pedagógico digital Um
ponto muda um conto é a
de língua(gem) como
interação, uma vez que, nas
atividades de leitura, são
muito bem explorados o
uso real da língua (em
função dos usuários) e as
finalida-
des/intenções/característic

93 | 2018 – vol. II, nº 02


Tecnologias as dos gêneros textuais. (p.
ARAÚJO, N. Digitais de PESQUISA DE 401).
10 M. S.; e Informação e CARÁTER
FREITAS, F. Comunicação e DESCRITIVO / O jogo pedagógico digital
R. R. jogos EXPLORATÓRIO analisado, se considerarmos
pedagógicos o universo de conteúdo de
digitais Língua Portuguesa,
apresenta um recorte de
conteúdo, no caso, ativida-
des de leitura que se pro-
põem a ensinar o alu-
no/usuário a identificar e
reconhecer características
particulares a 4 gêneros de
texto, o que remete a uma
parte do estudo de com-
preensão textual. (402).
Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.

Os dados no - quadro 3: Evidências, objetos metodológicos


e resultados de pesquisa encontrados na análise dos artigos –
apresentam robustas implicações tecnológicas na formação de pro-
fessores com os letramentos digitais, primeiro devido as tipologias
de metodologias operacionalizadas em muitos artigos analisados,
demonstrando a necessidade de formar tecnologicamente os/as
professores/as para enfrentarem os desafios e as dificuldades ori-
undas da cultura digital e das práticas de letramentos, mediadas por
tecnologias na sociedade atual na era do globalização digitalizada
(BUZATO, 2016).
Além disso, os resultados alcançados, neste estudo, dimen-
sionam como os/as pesquisadores/as conseguiram aplicar e de-
senvolver diversas atividades com leitura, escrita e análise linguística,
mediadas com o uso de tecnologias, aplicativos, atividades, internet
etc., maiormente no contexto escolar, acadêmico, profissional e
social, resultando em práticas pedagógicas com a inserção constante
das novas tecnologias de informação e comunicação (NTDICs), em

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 94


atividades formativas, avaliativas e emancipativas dos educadores e
da comunidade escolar frente aos desafios atuais na busca de uma
aprendizagem significativa, colaborativa e integrada
tecnologicamente.
Coadunamo-nos com a perspectiva de Ribeiro (2011) ao
defender que esse novo contexto educacional tem requerido dos
professores, alunos, gestores etc., um conjunto de práticas educati-
vas mediadas pelas tecnologias, percebendo-as e analisando-as a
partir do alinhamento pedagógico significativo, pautado em um
planejamento que busque privilegiar a participação dos professores
como mediadores pedagógicos e na apresentação de soluções apli-
cáveis. Esse pesquisador reforça, portanto, que as ferramentas
tecnológicas precisam ser empregadas e para isso devem fazer sen-
tido para os professores e alunos, nesse sentido é necessário acres-
centar valor e inovar os programas educacionais e os processos de
ensino-aprendizagem já existentes.
Por fim, a revisão sistemática de literatura realizada nesta
pesquisa nos ofereceu, portanto, uma visão panorâmica das implica-
ções sociais e educacionais dos letramentos digitais nas escolas, universidades e
centros de formação, uma vez que se compreendeu na perspectiva de
cada pesquisador/a como os sujeitos, processos formativo-
educacionais, atividades com tecnologias foram investigados.
Compreende-se, em suma, ainda o como esses sujeitos da
pesquisa estão incorporando esses letramentos digitais às práticas de
ensino, às atividades pedagógicas e sociais, bem como estão
atrelando essas práticas de letramentos digitais – PLD, em projetos
realizados para/na sociedade, universidades e centros de formação
tecnológica, ajudando a potencializar as aprendizagens, as intera-
ções, as atividades com a escrita e a leitura multimodais, intermedi-
adas por tecnologias na educação e na formação inicial e continuada
de professores.

95 | 2018 – vol. II, nº 02


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, as evidências e ocorrências resultantes


da análise sistemática de cada artigo selecionado mostraram que
ainda existem poucos trabalhos publicados no Brasil sobre a relação
dos letramentos digitais e a formação de professores, disponíveis em
língua portuguesa nas bases online de pesquisas avaliadas, tanto no
Google Acadêmico, Scielo e Periódicos Capes foram encontrados poucos
artigos de maior avaliação pelo Qualis/Capes.
Apesar disso, conseguimos perceber o interesse de alguns
pesquisadores/as, grupos de pesquisa no sentido de investigar os
impactos e a importância de se trabalhar com as tecnologias no
desenvolvimento de práticas de letramentos digitais em diversas
atividades de comunicação humana e não humanas, sobretudo no
cerne das atividades escolares, pedagógicas, acadêmicas e profissi-
onais.
Além do mais, percebemos que os sujeitos que participaram
das diversas experiências educativas e letradas encontradas na
maioria dos resultados nesses estudos, que foram auferidos, após a
apropriação de ferramentas/atividades pedagógicas e profissionais
na melhoria do potencial tecnológico e da efetivação de práticas de
letramentos, mediadas pela inserção das Novas Tecnologias Digitais
de Informação e Comunicação (NTDIC), em diversos ambientes
virtuais e/ou presenciais, em que sua implementação, execução e
avaliação foram efetivadas ou utilizadas, visando; pois, ofertar tanto
aos professores quanto aos alunos um constante ciclo de atividades
com os letramentos digitais no enfrentamento dos desafios
impostos pelas sociedades tecnologizadas.
Ousamos dizer ainda, conforme Frade (2011) que as tecno-
logias na educação exercem cada vez mais uma função essencial no
compartilhamento da cultura escrita, da leitura e da produção de
sentidos multissemióticos na sociedade globalizada, requerendo de
cada um de nós, uma formação capaz de nos fazendo (re)pensar as

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 96


novas formas de agir e outras possibilidades cognitivas e, por con-
seguinte, pautado em uma nova pedagogia dos multiletramentos,
principalmente, na escola e nas atividades cotidianas.
Isso porque essas ferramentas transformam os modos com
que nos relacionamos com a cultura da escrita, leitura e produção de
significados e, em outro domínio, com o próprio conhecimento
empírico, científico e acadêmico e com os saberes que envolvem a
instituição escolar, sendo esta encarregada de mediá-los aos apren-
dizes de forma dinâmica, inovadora e emancipativa.
Os artigos analisados por nós demonstram uma simbiose
interdisciplinar e apontam para a constante necessidade de uma
formação tecnológica, que deve promover os multiletramentos,
envolvendo a ampliação da “capacidade do professor para lidar com
a multimodalidade (KRESS, 2003), cada vez mais presente nos
textos da era atual, tanto nos impressos quanto nos digitais, e para
agir criticamente em diferentes contextos sociais por meio das
tecnologias digitais frente à diversidade cultural, linguística e étnica
das interações online” (DIAS, 2012, p. 865).
As travessias metodológicas traçadas neste estudo nos fez
compreender que as práticas discursivas e sociais nesse contexto de
emergência das tecnologias demandam uma postura docente
desafiadora na contemporaneidade, as quais as políticas públicas
educacionais estão cada vez mais íngremes, carecendo, assim, de
formação(ões) tecnológica(s) de profissionais que atuem efetiva-
mente, em sala de aula, em uma tentativa de promover a formação
integral e plena almejada pelos documentos oficiais de educação,
dessa forma ressaltamos que a continuidade formativa dos profes-
sores devem ser pautada inicialmente na melhoria das práticas pe-
dagógicas desenvolvidas na rotina do trabalho escolar, bem como
no uso adequado de tecnologias nas aulas de forma colaborativa,
criativa e emancipativa.
Finalmente, os artigos cotejados nesta pesquisa demonstram
a importância da mediação pedagógica dos professores no processo
de aprendizagem tecnológica de forma interdisciplinar que, na visão
de Paiva e Lima (2017a) tem demandado considerar que o currículo

97 | 2018 – vol. II, nº 02


necessita ser fomentado com estratégias profícuas e embasadas em
atividades interculturais com aplicativos e ferramentas digitais,
(re)significando a prática de ensino dos/as professores/as,
definindo seus papeis hodiernos com o trabalho interdisciplinar
com os letramentos digitais no contexto escolar, acadêmico e
profissional.
Assim, as abordagens teórico-metodológicas, utilizadas na
maioria dos artigos analisados direcionam-nos a ampliar as compe-
tências linguísticas e tecnológicas, tanto dos professores quanto dos
estudantes nos ambientes físicos ou virtuais, em que estejam agindo
ou interagindo. Isso significa dizer que nessa travessia de formação
tecnológica é preciso muito mais do que focalizar a melhoria das
práticas sociocomunicativas nas comunidades locais e globais. É
crucial ainda integrar essas práticas de letramentos ao currículo, aos
usos da língua(gem), aos estudos e análises de textos, a escrita, a
leitura e ao uso social de variados gêneros discursivos.
Convergimos, portanto, com a acepção de Heinsfeld e Pis-
chetola (2017, p. 1356) ao salientarem que “na perspectiva da cultura
digital, educadores e aprendentes trabalhariam em consonância com
as tecnologias digitais, a escola assumindo o papel de orientar, guiar
e apoiar os esforços dos alunos frente aos novos significados e às
estruturas do mundo virtual, além de explorar suas potencialidades”.
Isso tudo pode ser conseguido pela utilização adequada das
tecnologias em função de uma educação tecnológica e integral que
nos capacite para vencer os obstáculos, provenientes da era da
globalização digitalizada (BUZATO, 2016), culminando em inúmeras
possibilidades de os indivíduos aprenderem a educar-se
tecnologicamente.

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DIGITAL LITERACIES AND TEACHER EDUCATION: A


SYSTEMATIC REVIEW OF ACADEMIC ARTICLES IN
PORTUGUESE

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 98


ABSTRACT: In this research we seek to present a systematic review of the
literature on scientific-academic productions, aiming to understand how the
digital literacy practices in teacher training activities in the brazilian educational
context are being worked on in education. On a theoretical-methodological
premise, we base ourselves on the stages of analysis, adapted by Ramos, Faria and
Faria (2014), and reapplied by Silva and Bottentuit Junior (2017), who excel at the
evaluation based on scientific and found and analyzed. Thus, 10 articles were
found in scientific-academic databases, which present empirical studies with the
main social subjects of the school community (students, managers, teachers, etc.),
as well as those in universities and research centers, professional qualification. It
is concluded that digital literacy practices in daily school, academic, professional
activities, etc., have enabled the stimulation and use of technologies in education,
as well as promoted the promotion of digital literacy in teacher training and
technological of the studies evaluated.

KEYWORDS: Digital Literacy. Teacher training. Systematic review. NTDICs.

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105 | 2018 – vol. II, nº 02


Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 106
O CURRÍCULO DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA À LUZ DA
LINGUÍSTICA APLICADA
CONTEMPORÂNEA: ANÁLISE
MULTIMODAL DE UMA UNIDADE
DIDÁTICA DE UM LIVRO
DIDÁTICO DE ESPANHOL

Jaqueline BARROS1

RESUMO: tomando o livro didático como materialização do Currículo de língua


estrangeira e considerando sua forte presença nos cursos livres de idiomas e nas
escolas regulares, com base ainda em uma breve revisão das teorias pedagógicas
para a construção do Currículo (SILVA, 2017) e na evolução e abrangência dos
estudos realizados na área de Linguística Aplicada como área transdisciplinar
(MOITA LOPES, 2006), utilizou-se do conceito de linguagem pela perspectiva
multifuncional (HALLIDAY, HASAN, 1989) e multissemiótica (KRESS E VAN
LEEUWEN, 2006) no que concerne às interações que compõem as prática sociais
para realizar uma análise multimodal de uma unidade didática de um livro de
espanhol distribuído mundialmente. Tal análise tem como finalidade relacionar as
teorias pedagógicas aos estudos da Linguística Aplicada Contemporânea para
verificar o que tem sido ensinado e como se tem ensinado. Buscamos desta forma,
relacionar os elementos da tríade: poder(Currículo), saber(Linguística Aplicada) e
identidade (livro didático).

PALAVRAS-CHAVE: Currículo, Linguística Aplicada, livro didático de língua


estrangeira

1 INTRODUÇÃO

1Doutoranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar de Linguística


Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

107 | 2018 – vol. II, nº 02


Neste artigo busca-se responder a questões como: O que é
o Currículo? Que relação há entre o Currículo e a Linguística
Aplicada? Como o currículo se materializa no livro de língua
estrangeira atual?
Considerando o conceito de Currículo, aquele definido por
teorias tradicionais da educação, certamente poder-se-ia dizer,
tratar-se de um documento que descreve o conteúdo que a ser
ensinado sobre alguma disciplina. Tal instrumento tinha como
objetivo a realização de procedimentos e métodos para a obtenção
de números que expressassem um resultado para aprendizes, em
testes cuja finalidade é a mudança de nível. Nesse sentido, como
estamos falando sobre o ensino de língua estrangeira, poderíamos
mencionar, para exemplificar, o Quadro Comum Europeu de
Referência (QCER)para o ensino de línguas.
Mais tarde, criado a partir da demanda advinda do processo
capitalista neoliberal, o novo Currículo visava otimizar a formação
de artificies para suprir as necessidades do mercado de trabalho.
Havia também nesse período, em nível mundial, uma preocupação
com o estabelecimento da educação como objeto de estudo
científico e, no Brasil, com a manutenção de uma identidade
nacional, visto o grande contingente imigratório advindo do pós-
guerra.
A explosão dos protestos estudantis, a partir dos anos 60, na
França e em vários outros países provoca mudanças no status quo
das teorias tradicionais trazendo à tona as teorias críticas que
tentavam abolir as práticas tecnicistas para dar lugar ao
questionamento sobre a reprodução em série do sistema ideológico
de desigualdade econômica gerado pelo capitalismo, pelo qual os
estudantes aprendiam um oficio com o intuito de se tornarem
produtivos e subordinados aos proprietários das empresas.
Nesse período, contrariando as ideias do marxismo que era
um movimento ideológico muito forte na época, Bourdieu e
Passeron desenvolvem uma pedagogia racional baseada na metáfora
do poder simbólico.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 108


Para esses sociólogos era fundamental que as crianças das
classes dominadas tivessem acesso a tudo a que tinham as crianças
das classes dominantes no que diz respeito ao capital cultural, isto é,
acesso à cultura, como conjunto de sistemas de significação da classe
dominante: peças teatrais, livros, cursos, entre outros.
Ainda em desenvolvimento, a teorização crítica nos anos 70
e 80 apresenta as propostas de Giroux, que com base nos estudos
desenvolvidos por Paulo Freire que tinha como conceitos centrais
responsabilizar a esfera pública, promover o ensino intelectual
transformador e dar voz às minorias: mulheres, negros, pessoas em
condições de vulnerabilidade socioeconômica, entre outros .
Após esse período, continuam a se desenvolver as teorias
críticas, trazendo para o currículo e para a escola o fenômeno
chamado multiculturalismo, promovendo assim, a convivência
entre pessoas de diferentes nacionalidades, raças, étnicas com o
intuito de combater o racismo. Daí se desenvolveram as pedagogias
antirracistas.
Mais tarde a teorização crítica centrou-se em problematizar
questões de gênero por meio da pedagogia feminista e da teoria
queer2, afirmando que questões que permeiam as diferenças entre
gênero e as relações entre gêneros são produzidas sócio
historicamente entre as diferentes sociedades e que por isso, não
devem ser tomadas como constituintes essenciais do sujeito.
Tempos depois, a crítica pós-estruturalista se estabelece
sobre a crítica pós-modernista informando que o sujeito produz a
linguagem e é por ela constituído, de forma que não pode mais ser
considerado como indivíduo, mas sim como sujeito social e, que por
isso, é provido de um discurso polissêmico (múltiplos semiótico) e
heteroglóssico (multivocal), o que lhe confere uma identidade
multifacetada.
Levando em consideração a necessidade de construir um
discurso polissêmico e heteroglôssíco, os Parâmetros Curriculares
Nacionais de 1998 consideram, no que concerne ao ensino de

2 De acordo com Butler(1997) o termo denota “algo fora do normal”

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língua estrangeira, a possibilidade de promoção de capacidades
intelectuais, profissionais e de interesse e desejo dos alunos como o
objetivo de sensibilizá-los quanto o multilinguismo e
multiculturalidade do mundo em que vivem, a compreensão global
da expressão da língua que está sendo aprendida (recepção e
produção oral e escrita) e principalmente o empenho na negociação
de significados com despreocupação quanto a ocorrência de erros.
Tendo em vista todas essas transformações pelas quais
passou o Currículo para que pudesse se transformar em um
documento fomentador de significados sociais a serem
materializados na escola, por meio da linguagem, é mister considerar
as transformações pelas quais a Linguística Aplicada que antes era
considera mera aplicação da Linguística também passou.
Ora, se o livro didático, muitas vezes, ocupa o lugar do
próprio Currículo é mister também investigar como se dá a
materialização do currículo nesse instrumento de trabalho utilizado
pelo professor de línguas. Esse é apenas um ponto da agenda dos
Linguístas Aplicados Contemporâneos.
Nesse sentido, uma investigação utilizando como base as
demandas advindas da Linguística Aplicada Contemporânea como
área de estudos indisciplinar, transdisciplinar, mestiça (MOITA
LOPES, 2006), e por se tratar de uma abordagem de estudos que
toma a linguagem como ação social discursiva e historicamente
situada, nosso arcabouço teórico está embasado nas teorias pós-
críticas advindas dos Estudos Culturais as quais se preocupam com
as conexões entre saber, identidade e poder questionando as
escolhas de “o que” e “como” ensinar, é o que tratamos na segunda
seção deste artigo.
O arcabouço metodológico deste artigo está embasado nos
pressupostos oriundos da Linguística Sistêmico Funcional
(HALLIDAY, 2001) e da Gramatica do Design Visual,
considerando o caráter multidisciplinar da linguagem em uso em
suas dimensões ideacional, interpessoal e textual, como tratado na
terceira seção deste artigo.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 110


Sendo assim, a Linguística Aplicada na qual está embasado
se afilia as questões de ética e poder (MOITA LOPES, [2011(2006)].
Tais questões são semelhantes as questões que tem sido trazidas
pelos Estudos Culturais e pelos questionamentos tratados pelas
teorias pós-estruturalistas. Nesse sentido, o seu foco de investigação
há muito deixou de ser o somente o funcionamento de um sistema
linguístico passando a ser como esse sistema funciona dentro e entre
as sociedades, o que inclui investigar também as relações de poder
que permeiam tal funcionamento, e bem por isso, o capital
simbólico (BOURDIEU, 1978) que as línguas representam e todo
os intervenientes acarretados a ele, como processos secção,
exclusão, discriminação, dominação.
Assim, o objetivo deste artigo é mostrar como os livros
didáticos materializam o currículo para o ensino de língua
estrangeira. Para alcança-lo, buscou-se embasamento nas teorias do
Curriculo (SILVA, 2017), nos estudos advindos da Linguística
Aplicada e dos pressupostos da Linguísticas Sistemico Funcional e
da Gramática do Design Visual para realizar uma análise sucinta
multimodal.

2. O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS


NO BRASIL: BREVE PANORAMA

Até o final dos anos 60, os estudos realizados em Linguística


Aplicada no Brasil eram constituídos de mera aplicação das teorias
linguísticas e a principal preocupação dos linguistas aplicados era
decidir como transmitir o funcionamento dos sistemas linguísticos,
o que significa dizer que o foco principal da atividades desses
pesquisadores, que mais tarde formariam professores de línguas,
estava em depositar o conhecimento linguístico formal por meio de
abordagens de ensino.
No que concerne a primeira abordagem a ser utilizada para
o ensino de línguas, trata-se da abordagem chamada gramática-
tradução. Tal abordagem tem como foco principal o ensino da
gramática e da tradução de algumas expressões por meio de textos

111 | 2018 – vol. II, nº 02


e diálogos. Essa abordagem evolui e anos mais tarde se
complementa pelo o método audiolingual, devido a demanda
originada pela participação do Brasil na II Guerra Mundial trazendo
para os soldados a necessidade de entender as estratégias de guerras
dos países inimigos, para aquisição de armamento e leitura de
manuais em língua estrangeira.
Quanto ao método audiolingual, por tratar-se de um método
que relembra o behaviorismo (comportamento padronizado para a
produção), sua realização consiste em repetir incansavelmente
exercícios como forma de “consumo” de conteúdo auditivo e, de
produzir o que fora consumido de forma oral, isto é, o aluno ouve
uma determinada expressão e a repete até que consiga “alcançar”
semelhança extrema com a de um falante nativo da língua que está
sendo aprendida.
Depois vieram os métodos funcionais baseados no ensino
minuciosamente monitorado por conteúdos linguísticos pautados
em eventos comunicativos situacionais (obedecendo as ordens do
discurso) de cada evento, como por exemplo, o momento de
produzir interação e o conteúdo linguístico dos enunciados
realizados por atores sociais dentro de um aeroporto, dentro de um
restaurante, dentro de supermercado.
Mais tarde surge a chamada Abordagem Comunicativa pela
qual os eventos comunicativos (basicamente diálogos representando
situações reais) são utilizados como materialidades para o ensino.
Por essa abordagem o uso da língua materna em aulas de língua
estrangeira é considerado inadequado para a promoção do ensino.
Um pouco mais tarde, as teorias sociointeracionistas uniram
ensino e aprendizagem a um só processo e tanto o professor, quanto
o aluno e o material didático passam a ser considerados elementos
mediadores para a realização do mencionado processo. Fazendo que
seja ainda mais desatualizado o método audiolingual e todas as suas
variantes vindo após ele e ainda que com nomes diferenciados, o
pós-método tinha como principal preocupação trazer o conteúdo a
ser aprendido de forma a contemplar a realidade dos alunos.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 112


Pelo pós-método os contextos de uso da linguagem iam
sendo construídos aos poucos e a linguagem passava a fluir de forma
mais dinâmica. Ora, se os contextos vão surgindo de acordo com a
demanda dos próprios alunos, logo, os significados também vão
emergindo junto aos novos contextos. É por isso que para alguns
linguistas aplicados, o pós-método é considerado a abordagem de
ensino de línguas mais atual, a qual mescla todos os métodos os
quais são usados de acordo com a necessidade do momento da aula
e de acordo com a demanda de cada turma.
No entanto, para os linguistas aplicados contemporâneos,
tal método ou abordagem não é suficiente para oferecer um ensino
efetivo e holístico que promova para o aluno a participação na
construção de sua realidade, pois, mesmo cuidando de promover o
uso da linguagem por meio das demandas advindas dos alunos, esse
uso muitas vezes, não desconstrói estereótipos que originam formas
de secção por discriminação.
Isso não acontece quando o professor utiliza sua aula e tudo
a envolve como forma de desaprender. Desaprender a aceitar as
relações de poder desiguais, desaprender a unificar os discursos
como se fossem somente um, desaprender a oprimir considerando
oprimir como algo natural.

3. A LINGUÍSTICA APLICADA CONTEMPORÂNEA:


ESPAÇO DE DESAPRENDIZAGEM

Antes de conceituar o que consideramos Linguística


Aplicada Contemporânea, é necessário fazer uma breve
retrospecção no que concerne ao campo epistemológico da área
iniciando-se a partir tempo em que ela estava completamente
vinculada a Linguística, que era considerada área mãe da então
Linguística Aplicada.
Tentava-se, nesse período, capturar por meio da filosofia da
linguagem os significados discursivos advindos dos atos de fala
perculatórios (AUSTIN, 2013). Tal reação representava uma
contraposição a Filosofia analítica que tinha como foco o idealismo

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absoluto, não havendo significação social, mas apenas subjetiva, o
que quer dizer que o que existia era aquilo que poderia ser visto,
experimentado. Todas as palavras e ações tinham uma substancia
que lhes correspondia de forma invariável. Sendo assim, os
fenômenos linguísticos, por não serem considerados como
fenômenos constituídos discursivamente (socialmente), não
poderiam ter seus significados contestados. Nos encontrávamos na
era do “ipsis litteris”3.
Houve uma “drástica” mudança quando alguns filósofos da
linguagem (BAKTHIN, 2009) tomaram a linguagem como prática
social denotando, então que o estudo da linguagem requer o
conhecimento sobre o tempo/lugar na qual ela é produzida. Isto
quer dizer que se investigamos o funcionamento de uma
língua(gem), estamos investigando também a sociedade e a cultura
das quais ela é parte constituinte e constitutiva. Outro sentido
atribuído aos estudos da linguagem diz respeito a questão relativa as
escolhas ideológicas e políticas que fazemos ao interagirmos
discursivamente. Sabemos que tais escolhas lexicais são atravessadas
por relações de poder e que devido a isso, não são e não podem ser
consideradas neutras e que também por esse motivo provocam
diferentes efeitos de sentido no mundo social.
Esses efeitos de sentido têm sido percebidos por uma
multiplicidade de sistemas semióticos acessados constantemente
por meio da megaestimulação visual e cognitiva da qual somos
reféns por fazermos parte de um mundo globalizado,
mercantilizado e hibridizado, caracterizado por fluidez e
fragmentação contínuas (FABRÍCIO, 2011).
Essa drástica mudança de paradigmas foi chamada de
virada linguística, tendo como sinônimo as expressões “ virada
icônica” e “virada crítica” e conforme nos afirma FABRÍCIO, 2011:
A reconfiguração da LA como prática interroga-
dora é, então, inseparável da enorme reorganiza-

3 “literalmente” ou “significado literal” são possibilidade de sentido para a


expressão escrita em latim.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 114


ção do pensamento e das práticas sociais corren-
tes na contemporaneidade. Entretanto [...] toda
ideia de reconstrução de conhecimentos consa-
grados implica persistências e descontinuidades,
pois, ao longo da nossa história, quebras de
moldes e derretimento de grilhões tendem a co-
existir com cânones, às vezes, revestidos de ou-
tras roupagens, configurando um território mul-
tifacetado no qual convivem múltiplas vo-
zes(FABRICIO,2011,p.49).

Dessa forma, analisar a linguagem passou a ter conotação


com o contexto social e cultural no qual ela é usada, levando-se em
consideração as práticas sociais, os paradigmas e valores de uma
determinada comunidade de fala, o que nos remete, a considerar a
linguagem não como mera representação da realidade, mas também,
como ação, atuação sobre a realidade. (AUSTIN, 2013).
Admitindo então que a LA como área de estudos
participante da virada linguística e ,que por isso ,passa a tomar novos
rumos envolvendo-se em contínua reflexão acerca de sua própria
constituição como área de investigação (PENNYCOOK, 2001),
observa-se que ela passa a não se restringir a problemas relativos a
manutenção do depósito de paradigmas linguísticos em sala de aula
(MOITA LOPES,1996), “passando a escapar de visões
preestabelecidas para trazer à tona o que é marginal” (SIGNORINI,
1998a), “enfocando por isso, questões de uso da linguagem dentro
ou fora de sala de aula” (CAVALCANTI, 1985), tornando-se, por
isso, indisciplinar.
Ao assumir uma postura indisciplinar a Linguística Aplicada
como área de investigação da linguagem construída sócio
discursivamente posiciona-se politicamente de forma a empoderar
o sujeito social desprovido de uma racionalidade absoluta, dotado
de uma mutabilidade atemporal.
Nesse sentido ela passa a contribuir para a desconstrução de
projetos hegemônicos de dominação vinculados por relações
injustas de poder, trazendo para o centro das discussões linguísticas
os atravessamentos identitários de classe social, raça, etnia com

115 | 2018 – vol. II, nº 02


vistas a redescrever a vida social e as formas de conhecê-la (MOITA
LOPES, 2006).
Essa nova tendência da LA adiciona a área um outro
adjetivo, ela passa a ser chamada também de Linguística Aplicada
Contemporânea, uma vez que questionando a agenda do mundo
globalizado e maneira como ele é constituído abre-se para
discussões relativas a pós-modernidade (JAMESON, 1991), pós-
coloniais (SAID, 1996), Pós-estruturalistas (LOURO, 1997;
BUTLER, 1997, BOURDIEU, 2011) e antirracistas (FANON,
2008; FERREIRA, 2012).
Constrói-se então uma Linguística Aplicada que busca
diálogo como outras áreas das Ciências Humanas trazendo para a
sua epistemologia a perspectiva pós-estruturalista, a qual se
diferencia da perspectiva pós-modernista no sentido de questionar
a origem de verdade institucional e, por isso, estrutural que constitui
os discursos identitários sociais, isto é, a representação do que seja
a loucura, a prisão, a homossexualidade e o poder que os constitui
considerando que tal poder não é fixo, mas móvel e fluido e está em
toda parte (FOUCAULT,2001 [1979]), diferentemente da
concepção considerada pelo pós-modernismo pela qual o discurso
do sujeito humano é tido como uno, centrado e invariável.
A concepção pós-estruturalista pela qual o sujeito se
constitui discursiva e socialmente a partir da diferença, busca o
adiamento das certezas sobre a constituição dos significados dos
signos que nos classificam, principalmente no que concerne as
relações de poder que envolvem os binarismos, como por exemplo:
masculino/feminino, branco/negro, rico/pobre, já que as
instituições também são discursivamente constituídas. (DERRIDA,
2006).
No que concerne aos Estudos Culturais, cuja origem data de
1964,na Inglaterra se subdividem em um sem-número de variadas
perspectivas teóricas. Algumas delas são afiliadas ao marxismo, mas
outras, às versões pós-estruturalista. Entretanto, o objetivo principal
dessa abordagem está em desnaturalizar os artefatos sociais que
organização as construções culturais. Há, por esse motivo, um

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 116


envolvimento político com as questões nas quais estão imbricadas
relações de poder que estabelecem e naturalizam desigualdades e
estereótipos.

4. A LINGUÍSTICA SISTÊMICO FUNCIONAL E A


GRAMÁTICA DO DESING VISUAL COMO APARATOS
TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA ANÁLISE
MULTIMODAL DE LIVROS DIDÁTICOS

A Linguística Sistêmico-Funcional é uma teoria da


linguagem que relaciona texto e contexto social considerando e
questionando as relações de poder e ideologia em análises
multimodais de contextos reais de uso da língua, podendo-se utilizar
também da semiótica para promover mudança discursiva e, como
consequência desta, mudança social (MARTIN, 2000)
Esta teoria defende que a linguagem relaciona significados a
sua materialidade linguística, oral ou escrita e que estes significados
estão em constante construção no momento das interações sociais.
Tendo isso em mente, temos que todo texto (discurso,
enunciado) desempenha uma série de funções, isto é, realiza um
conjunto de significados coerentes com um determinado contexto
sociocultural.
Nesse sentido, Halliday e Hasan (1989) afirmam que a
linguagem constrói e representa nossas experiências de mundo e
nossa realidade. A essa construção, estes linguistas chamaram
função ideacional. Tal função compreende significados
experienciais, isto é, experiências reais ou imaginadas que por serem
construídas socioculturaltmente tornam-se coerentes. A expressão
dessas experiências ocorre através das ações dos participantes das
interações e das circunstâncias na qual atuam. Diz-se, então sobre a
existência do “campo” de interação dos participantes.
Ora, se os participantes interagem em um determinado
campo, logo, eles tomam “partido”, posicionamento, defendendo
ou atacando o que está sendo tratado nesse campo, dependendo de
sua identificação com um determinado ou com vários papéis sociais.

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Trata-se, portanto, da função interpessoal da linguagem, que por
estar ligada ao posicionamento dos participantes das interações
sociais, está diretamente ligada a construção identitária desses
participantes.
Para organizar os posicionamentos identitários dos
participantes em interações sociais de um determinado campo
social, existe a função textual. Tal função pode nos mostrar como
são naturalizadas relações de poder, as quais estão presentes em
qualquer nível de interação, mas que em determinadas situações
podem fomentar as injustiças sociais.
Podemos dizer então que as funções organizam os
significados (modo) de acordo com um determinado contexto
(campo) no qual este significado é representado (relações).
Esquematicamente temos:

Tabela 1- Metafunções, tipos de significado e registro

Metafunção (significado) Tipo de Registro


significado (Organização
veiculado contextual)
Ideacional/experiencial Representação Campo (ação
de atividades social)
sociais
Interpessoal/identificacional Papéis sociais Relações
assumidos pelos (estrutura de
participantes papeis)
Textual Papel simbólico Modo
da linguagem (organização
simbólica)

Tabela 1 -Construída com base


nos estudos de Eggins e Martin (1997)

Essas funções foram utilizadas por Kress e van


Leeuwen(1996) para o desenvolvimento da Gramática do Design
Visual (GDV).

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De acordo com esses linguistas a comunicação visual não
apenas representa o mundo, como também estabelece uma
interação social, constituindo um tipo de texto e, por isso, de
significado. Assim, o uso de imagens tem como funções principais:

representar o mundo à nossas volta (função ide-


acional); estabelecer modos de relação com o lei-
tor, contribuindo para uma maior aproximação
ou afastamento com ele (função interpessoal); e
organizar de forma coerente tanto internamente
quanto externamente, com seu contexto de pro-
dução (função textual) (SOUZA, 2015)

A análise de imagens, no que concerne a função ideacional,


como representação de experiências de mundo por meio da
linguagem, leva em consideração os participantes descritos na
interação. Estes podem ser indivíduos, lugares ou objetos; a
estrutura narrativa, quer seja a presença de vetores estabelecendo
interação entre os participantes representados descrevendo a ação
ocorrida e a narrativa da ação.
A narrativa narrada pode ser uma ação ou reação
transacional, se o olhar dos participantes se direciona para fora da
imagem buscando contato com o leitor. Ao contrário, será não
transacional se o olhar dos participantes representados se voltar para
dentro da imagem. Caso não haja nenhuma ação sendo
representada, pode-se dizer que a imagem traz uma estrutura
conceitual na qual os participantes podem ser apresentados em
grupos, portanto objetos que lhe atribuem uma identidade
simbólica.
No que concerne a função interpessoal, compreende as
categorias: contato, distância social e atitude.
O contato (social) diz respeito ao olhar direcionado pelo
ator social presente no texto ao leitor (olhar de demanda) ou ao
olhar direcionado para dentro da imagem (olhar de oferta). Diz-se
que o olhar de demanda objetiva criar intimidade com o leitor
convidando-o a participar do que está sendo realizado, já o olhar de

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oferta convida o leitor a apenas contemplar o que está sendo
realizado.
A distância social relaciona-se com a primeira categoria
mencionada e diz respeito ao grau de intimidade entre os atores
sociais representados e o leitor. Assim, quanto maior for a distância
entre ator social representado e leitor menor será o grau de
intimidade da relação entre eles. Ao contrário, quanto menor a
distância entre ator social representado e leitor maior o grau de
intimidade demandado.
Quanto a atitude, pode ser representada pelos pontos de
vista escolhidos pelo autor para representar a interação. Assim, a
atitude subjetiva contempla somente um ponto de vista dependendo
do ângulo em que se pode observar os atores sociais envolvidos na
interação. Diz-se, então que nos planos horizontal ou vertical
trazem-nos o grau de envolvimento ou distanciamento entre atores
representados e leitor. A atitude diz respeito também as relações de
poder entre atores representados e leitor, pois quando vistos de cima
representam menor autoridade em relação ao leitor, mas, ao
contrário vistas de baixo representam maior autoridade em relação
ao leitor.
No que concerne a função textual são categorias valor da
informação, o qual é atribuído de acordo com o posicionamento da
imagem como dado, se está a direito e novo se está a esquerda; como
ideal se parte superior da folha e real se na parte inferior, e ainda
mais importante se está localizada no centro da página.
Há também o quesito saliência com relação ao tamanho, cor,
brilho, entre outros que salientam uma imagem em relação a outras.
Por último temos o emolduramento que confere presença
ou ausência de linhas limítrofes entre as imagens.
Nos livros didáticos a análise multimodal com a utilização
das funções da linguagem como instrumental teórico-metodológico
podem ser dispostas no seguinte esquema:

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Tabela 2- Metafunções da linguagem para
análise multimodal do livro didático
Função ideacional Visão de mundo Disneylandia
representada no pedagógica ou
livro representação do
mundo real?
Função Oportunidade de o Atividades
interpessoal aluno mostrar sua propostas
voz representam os
papéis sociais dos
alunos e do
professor
Função textual Organização Crenças do autor
estrutural do sobre a concepção
material em temas de ensino-
aprendizagem:
Conjunto de regras
formais e
reproduzidas ou
Forma de agir no
mundo?

Tabela 2: elaborada a partir da pesquisa


realizada por Tilio em 2006.

5. O CURRÍCULO RETRATADO PELO LIVRO


DIDÁTICO DE ESPANHOL – BREVE ANÁLISE
MULTIMODAL

Iniciamos nossa análise descrevendo o corpus. Trata-se da


análise multimodal4 das páginas que compõem a unidade 4 de um

4 O temo multimodalidade vincula-se ao conceito de multiletramentos cunhado


por Cope e Kalantzis (2000) como habilidade de lidar com múltiplos e integrados
modos de produzir sentido, incluindo os modos verbais, visuais, gestuais e
sonoros.

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livro didático global intitulado: “Aula Internacional- curso de
español”, volume 1, editora Difusión.
O título mencionado é utilizado no Brasil por professores e
alunos do curso livre de nível básico de espanhol do Instituto
Cervantes.
Conforme mencionado nas seções anteriores as categorias
elencadas para análise dizem respeito as metafunções de uso da
linguagem tanto da Linguística Sistêmico- Funcional quanto da
Gramática do Design Visual. Elas se inter-relacionam.

Figura 1 - Unidad 4 - Aula Internacional 1- p.48

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Figura 1 - Unidad 4- Aula Internacional 1 - p.49

O título da Unidade é “ Cuál prefieres”, a qual tem como


tema compras, como tópico temático a unidade traz: “ Hacer la lista
de cosas que necesitamos para pasar un fin de semana fuera y
comprar em tiendas”. São recursos comunicativos: identificar
objetos, expressar necessidade, comprar em lojas, perguntar por
produtos, pedir preços, falar sobre preferências. Já os recursos
gramaticais apresentados são os demonstrativos de localização, os
pronomes definidos, substantivos, perífrases, verbos ir e preferir.
Como recursos léxicos, os alunos conhecerão os numerais cardinais
até o 100, as cores, nomes de peças que compõem o vestuário e
objetos de uso cotidiano.
Quanto a função ideacional, todas as imagens apresentadas
nas figuras 1 e 2 são consideradas como narrativas conceituais, pois

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apresentam lojas que oferecem seus produtos: uma casa de vinho,
uma sapataria, uma livraria e uma loja de presentes. Mesmo havendo
participantes representados, estes são apenas veículos para
propaganda das lojas e de seus produtos. As lojas estão localizadas
em Málaga (Espanha)

Figura 2 - Unidad 4 - Aula Internacinal 1- p.49

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Figura 3 - Unidad 4 - Aula Internacional 1 - p.48

Das mesmas maneiras as figuras 3 e 4 apresentam narrativas


conceituais, pelas quais são apresentadas ao leitor, na figura 3 peças
do vestuário que estão à venda pela internet. Na figura 4 peças do
vestuário e objetos dentre os quais alguns serão escolhidos e
acondicionados dentro da mala de viagens, conforme sugere o
tópico temático da unidade.
Ainda concerne a função textual, a figura 4 traz uma espécie
de suporte gramatical no qual estão expostos os numerais cardinais
até o número 100, um quadro comparativo entre pronomes
adjetivos e pronomes demonstrativos. Logo abaixo os artigos
definidos e, em seguida os pronomes substantivos e os verbos
irregulares ter e ir conjugados.

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Na figura 5 , ao contrário, temos, uma estrutura narrativa
transacional bidirecional, o que significa dizer que os participantes
representados conversam entre si. A questão apresentada diz
respeito a escolha de um entre os dois objetos portados por um dos
participantes. O leitor, nesse caso está em segundo plano, não
participa da ação apresentada.
Quanto a função textual, há ,na figura 6 , atividades de
múltipla escolha, um jogo (bingo). Antes de jogar os aprendizes
devem completar a cartela com o valor expresso por extenso. Segue-
se uma atividade de recepção auditiva na qual há a pronuncia dos
valores expressos na cartela. A última questão apresenta três itens,
sendo o primeiro referente a relacionar uma coluna a outra (verbo
ir+ complemento indireto) e ( perífrase ter +que expressando
necessidade). Na mesma figura há a imagem de um passaporte
emitido pela Espanha. Tal imagem está condizente com o tópico
temático “pasar un fin de semana fuera y comprar en tiendas”.

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Figura 4 - Unidad 4 - Aula Internacional 1 - p.50

Figura 5 - Unidad 4- Aula Internacinal - p.48

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No que concerne a função interpessoal, a figura 7 apresenta
uma imagem que representa uma narrativa conceitual transacional
pela qual três participantes representados portam em seus corpos
casacos, sendo que apenas um deles porta uma jaqueta marrom.
Esta narrativa conceitual é também título do tópico explorar e
reflexionar. Ele direcionam o olhar para fora da imagem buscando
interagir com o leitor para promover envolvimento. Apesar disso,
aparecem de corpo inteiro em distância social (long shot) o que
promove um envolvimento distanciado entre os participantes
representados e o leitor. Trata-se de três pessoas fotografadas em
enquadramentos diferentes, em alta modalidade naturalística, dando
à imagem o caráter de realidade para o que está sendo apresentado.

Figura 6 -Unidad 4 - Aula Internacional - p.49

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Figura 7 - Unidad. 4 - Aula Internacional 1- p.54-55

A figura 8, apresenta na página 54, contem imagens natura-


lísticas que também constituem uma narrativa conceitual. Do lado
direito temos imagens de objetos que fazem parte do vestuário e do
lado esquerdo da página temos três imagens de paisagens distintas,
duas referindo-se a Espanha e uma Argentina. As imagens
apresentam as atividades propostas pelo tópico: “Practicar e co-
municar”. As atividades demandam perguntar ao companheiro que
peça de roupa ele prefere levar para passar um fim de semana fora
da cidade e decidir se já se tem todo o necessário para viajar ou se
falta adquirir algum objeto.
Na página 55, há a proposta de uma tarefa comunicativa. Os
alunos precisam simular um mercado e divididos em grupos devem
representar vendedores e compradores. Há para a realização dessa
atividade uma figura ilustrativa para mostrar a postura (o papel
social) que cada um ocupará para começar a tarefa. Há também um

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script para ser “decorado” pelos “vendedores” e pelos
“compradores”.
A figura 9, encerra as atividades da unidade demandando aos
alunos o reconhecimento das maiores marcas espanholas. Há na
página 57, no enunciado da questão um pedido sobre a opinião do
aluno acerca das marcas e um pedido de busca a ser realizado via
internet para indicar marcar renomadas dos países de origens dos
estudantes.

Figura 8 - Unidad 4 - Aula Internacinal 1 - p.56-57

Finalizando nossa análise, podemos observar, no que diz


respeito a função ideacional que há uma visão eurocentrista pela
qual a Espanha é considerada o centro do mundo.
Além disso, os vestígios da globalização que se fazem
presentes de forma tão enfática servem como instrumento
neoliberalista de dominação cultural e de exclusão social. Há,
portanto, um incentivo ao consumo das marcas apresentadas de

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forma que o livro faz a veiculação de produtos como se fora um
outdoor. O incentivo ao consumo de marcas renomadas diz respeito
à manutenção do capital simbólico e ao prestígio de pertencer uma
classe social que possui alto poder de aquisição de bens e serviços.
O mundo criado pela unidade não tem problemas
financeiros. Como se para adquirir uma roupa de grife bastasse
somente clicar em um link da internet. O mesmo se diz sobre viajar.
Quanto a função interpessoal, as atividades representam a
voz do professor como dominador do conhecimento e não dão
espaço aos alunos para construírem identidades diferentes das
questões representadas no livro. Isso também pode ser observado
pela presença mínima de atores sociais representados de forma
naturalística. O foco da unidade estava em apresentar objetos de
consumo.
Quanto a questão de multiculturalidade, observamos que em
toda a unidade o único país latino-americano a ser mencionado é a
argentina e, mesmo assim, uma única vez.
Nesse sentido, se questiona se todos os países hispano
falantes possuem o mesmo estilo de vida, a mesma maneira de se
vestir, ainda que o clima dos países latino-americanos seja
totalmente diferente do clima dos países europeus. Esse seria um
ponto importante a ser problematizado.
No que ser refere a função textual, a concepção de ensino
que a unidade apresenta diz respeito ao pós-método combinado o
ensino de competências e ao ensino gramatical o ensino baseado em
tarefas.
Longe do emprego de gêneros textuais, o léxico e a
gramática são abordados de forma diretamente expositiva por meio
de tabelas e quadros classificatórios.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomando as perguntas feitas no início deste artigo: O que


é currículo? Que relação há entre o currículo e a Linguística Aplicada
Contemporânea? Que espaço/tempo do currículo e da Linguística

131 | 2018 – vol. II, nº 02


Aplicada o livro de língua estrangeira retrata? E, considerando a
relação da tríade: currículo -poder (base), o saber-linguístico
aplicado (primeira face) e o livro didático- identidade (segunda face),
de acordo com a análise apresentada é provável que a intenção dos
autores e idealizadores do livro é manter a língua espanhola como
capital simbólico do mundo globalizado. Uma língua para ser
aprendida por pessoas que possuem alto capital econômico, cultural
e social.
O mesmo intuito havia no Currículo segundo as teorias
pedagógicas tradicionais para manter o conhecimento sob o poder
da classe dominante que poderia decidir o que deveria ser ensinado
nas abordagens de ensino de línguas nos primórdios da Linguística
Aplicada, cujos profissionais ainda linguistas (não críticos) e não
aplicados, depositavam o conhecimento linguístico de forma
estruturalmente planejada.
O aprendiz de espanhol retratado pela unidade analisada
pode comprar roupas de marca e viajar. Tem gosto apurado quanto
a leitura e frequenta a bares e cafés. Não há problemas sociais a
serem resolvidos por ele, pois isso não lhe diz respeito. Ele não foi
sensibilizado para que essa problematização ocorra.
Diante da evolução das teorias pedagógicas que constituem
o Currículo e da expansão da Linguística Aplicada como área de
estudos interdisciplinar a qual tem como uma preocupação a
promoção de um ensino voltado para a formação cidadã e, tendo
em vista o que se constata pela análise da unidade de um livro cuja
distribuição ocorre em nível global, advoga-se pela adaptação desse
material de forma a contemplar a inclusão de identidades sociais
conforme defendem os Estudos Culturais.
Essa realidade é condizente que o que prescrevem os
Parâmetros Curriculares Nacionais (2008) e os estudos advindos da
Linguística Aplicada Contemporânea no sentido de que o objeto de
análise, nesse caso, o livro didático, assim como as relações entre os
sujeitos participantes do processo de ensino aprendizagem,
professores e alunos representados no livro devem ser analisados à
luz da tríade poder, conhecimento e identidade.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 132


É papel dos linguistas aplicados contemporâneos contribuir
para formação de cidadãos críticos, os quais são responsáveis e
responsivos às demandas de práticas sociais que são construídas
discursivamente e que bem por isso constroem nossas identidades
sociais. Assim, faz-se necessário analisar o que os livros didáticos
retratam como currículo e vinculam como realidade para esses
cidadãos.

-----------------------------------------------------------------------------------
THE CURRICUM OF LANGUAGE FOREIGN ABOUT
APPLIED LINGUÍSTIC CONTEMPORARY: MULTIMODAL
ANALISIS OF DIDATIC UNIT OF A COURSEBOOK OF
SPANISH

ABSTRACT: to take the coursebook as materialization of Curriculum of foreign


language and considering the hard presence in courses free of language and on
school regular, into in a brief review of theories pedagogy for the building of
Curriculum (SILVA, 2017) and in evolution and growing of studies make of
Applied Linguistic as area transdisciplinary (MOITA LOPES, 2006), uses of
concepts of language for multifunction perspective (HALLIDAY, HASAN,
1989) and multissemiotic (KRESS and Van LEEUWEN, 2006) about of
interactions that make the social practices for to make a multimodal analysis of a
didactic unit of a coursebook of learning Spanish shared by world. These analysis
have a aim relation a pedagogy theorical to the of Applied Linguistic
Contemporary for to check the that have been and a have been learning. Seek so,
to relation the elements of triad: power (curriculum), know (Applied Linguistic)
and identity (coursebook).

KEYWORDS: Curriculum, Applied Linguístic, coursebook of foreing language

-----------------------------------------------------------------------------------

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Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 136


“QUANDO OS PROFISSIONAIS
DA EDUCAÇÃO ESTARÃO
PRONTOS PARA INCLUIR?” UMA
ANÁLISE COM BASE NA
LINGUÍSTICA SISTÊMICO-
FUNCIONAL E NA ANÁLISE DE
DISCURSO CRÍTICA

Juliana Araújo RIBEIRO1

RESUMO: Em contextos pós-modernos é comum que a questão da inclusão


social de alunos com deficiência seja vista com um olhar mais natural, em que as
escolas de ensino regular devem receber esses alunos e estar preparadas para essa
inclusão. Mas, em muitas escolas, essa inclusão não ocorre exatamente da maneira
mais adequada, pois o aluno tem direito ao acesso ao ensino na escola regular,
mas há professores que não sabem lidar com a chegada desses alunos, muitas
vezes também falta estrutura na escola como: rampa de acesso, corrimão ou salas
com portas mais largas para a entrada de cadeirantes. A presente pesquisa analisa
um relato de uma mãe sobre o fato de seu filho com paralisia cerebral ter ficado
sozinho na escola, enquanto todos os outros alunos foram a um passeio. Essa
mãe faz um desabafo em uma rede social, o qual tem uma grande repercussão. Os
objetivos desta investigação são apresentar esse texto que possui um tema de
relevância social e analisar de que forma, a partir da Análise de Discurso Crítica
(ADC) e da Linguística Sistêmico-Funcional (LSF), esse texto pode contribuir
para a promoção de igualdades e reconhecimento da necessidade de lutas contra-
hegemônicas, de minorias como pessoas com deficiência no contexto escolar.
Este trabalho terá como fundamentação teórico-metodológica a ADC respaldada
por Fairclough (2001) e a Linguística Sistêmico-Funcional LSF baseada nos
estudos de Halliday (1975; 1994) e Halliday e Matthiessen (2004). Esta é uma
pesquisa bibliográfica com dados quantitativos, mas é eminentemente qualitativa.

PALAVRAS-CHAVE: Inclusão; Deficiência; Escola; Análise de Discurso


Crítica; Linguística Sistêmico-Funcional

1 Doutoranda em Linguística da Universidade de Brasília (UnB). Mestra em


Linguística Aplicada pela Universidade de Brasília (UnB). Professora da Secretaria
de Estado de Educação do DF (SEEDF).

137 | 2018 – vol. II, nº 02


INTRODUÇÃO

As discussões sobre preconceito e com deficiências vêm


apresentando discursos contra-hegemônicos na tentativa de
desnaturalizar as relações desiguais de poder. Como exprime Žižek
(1999, p. 14), concepções ideológicas dos discursos hegemônicos
aparecem como “mentiras sob o disfarce da verdade”, sendo o
modo mais destacado “o cinismo: com desconcertante franqueza,
admite-se tudo”. Há a tentativa de se naturalizar discursos
hegemônicos contra as minorias, velando a real situação e as reais
necessidades da sociedade diante do que é de fato inclusão social e
de que forma ela deve acontecer.
A inclusão de pessoas com deficiência deve ser pautada na
concepção de que “o corpo com impedimentos” deve ser visto
“como uma expressão da diversidade humana a ser protegida e
valorizada” (SANTOS, 2010, p. 117). Santos (2010) complementa
dizendo que a luta social da pessoa com deficiência ocorre
justamente porque a deficiência é vista como “um marcador
corporal de desigualdades” gerando opressão e discriminação, o que
deve ser combatido em contextos de promoção da justiça social.
Sob essa ótica, analisar um relato de uma mãe de uma criança
com paralisia cerebral, que partilha de lutas diárias contra a opressão
e as desigualdades, inclusive no contexto escolar é um quadro que
dialoga com as concepções teóricas da Análise de Discurso Crítica
(ADC), em que práticas sociais estão sendo analisadas sob a crítica
da mudança social.
Os estudos de LSF complementam a ADC, pois, ao estudar
o léxico sob um viés semântico-funcionalista, as práticas discursivas
são enxergadas também pelo sentido e significado das palavras, e é
feita uma análise funcional que revela, através do léxico, contextos
críticos dos discursos, havendo uma avaliação dessas escolhas
léxico-gramaticais. Para esta pesquisa, a análise foi feita baseando-se
principalmente nos Processos do Sistema da Transitividade, pois,
foi o aspecto mais relevante a ser discutido com profundidade, após
as análises de todos os Sistemas.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 138


DEFICIÊNCIA E TERMOS ADEQUADOS

É relevante iniciar as discussões sobre a pessoa com


deficiência com essa pergunta, que pode não ter uma definição tão
simples como parece: o que é deficiência? As opiniões são variadas,
em diversos âmbitos, mas as definições mais pertinentes para este
trabalho serão as relacionadas a um modelo social de deficiência,
assim como aborda Diniz (2007).
Deficiência ou lesão? Para a Upias2 (Liga dos Lesados
Físicos Contras Segregação) a lesão é isenta de valor, enquanto que
a deficiência se organiza em termos de inclusão/segregação, a
pessoa com deficiência inserida em uma sociedade que discrimina e
segrega.
Em uma abordagem das concepções biomédica e social de
deficiência, Rios (2010, p. 80) expõe que

a deficiência não está relacionada necessariamen-


te a características físicas e mentais peculiares
deste ou daquele indivíduo (concepção biomédi-
ca), mas é condição resultante da interação e do
modo de inserção de indivíduos e grupos no
contexto social hegemônico (concepção social).

Falar de deficiência no âmbito social é tratar de um tema


relacionado às minorias que são discriminadas e que lutam pela sua
inserção e direito de voz na sociedade, assim como mulheres ou
negros, dessa forma, a deficiência, na perspectiva de uma teoria
social compreende que a pessoa com deficiência sofre opressão e se
encontra em um campo de desigualdades e injustiças sociais
(DINIZ, 2007).
Muitos termos que já foram usados até em documentos
oficiais já não são mais considerados adequados como “portador de

2A Upias foi a primeira organização política sobre deficiência a ser formada e


gerenciada por deficientes (...). Seu principal objetivo era questionar a
compreensão tradicional da deficiência, essa sendo considerada uma questão
eminentemente social (DINIZ, 2007, p. 15)

139 | 2018 – vol. II, nº 02


deficiência” ou “portador de necessidades especiais”, primeiro
porque a palavra “portador” tem uma conotação negativa de que a
pessoa carrega, porta uma deficiência. Em relação a necessidades
especiais, essa é uma questão que envolve qualquer pessoa, já que
necessidades especiais é bem abrangente e não se aplica apenas a
alguém que tenha uma deficiência.
No Brasil3, as discussões também trouxeram novas reflexões
e mudanças na forma de olhar para as escolhas dos termos e em
2011 o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência
publicou no Diário Oficial um texto informando que o termo
adequado deixou de ser “pessoa portadora de deficiência” para
“pessoa com deficiência”. O termo “especial” também está sendo
suprimido dos textos oficiais.
Diniz (2007) discute a relação de identidade com o termo
“deficiente”, mas é justamente essa mesma questão que trás o termo
“pessoa com deficiência” como mais adequada atualmente.
A teoria social de deficiência argumenta que a pessoa com
deficiência acaba sendo segregada e essa pessoa tem um corpo com
deficiência e isso faz parte de um estilo de vida, o que não implica
em incapacidade, mas um modo diferente de vida, só que isso não
deveria ser fator de segregação. Diniz (2010, p. 120) alude que “viver
em um corpo deficiente pode significar uma vida com violação de
direitos e discriminação porque a organização social não reconhece
o corpo com impedimentos de forma a tratá-lo com igualdade”.
Para que o estilo de vida de cada um seja respeitado e
possível de maneira menos discriminatória é que leis foram criadas
a favor de adaptações para que a acessibilidade exista, seja ela para a
pessoa cega, surda, cadeirante, ou com qualquer outra deficiência.
Um exemplo é a Lei n. 7.853, de 1989 que trata do acesso a espaços
públicos e privados, em lugares de trabalho e edificações.
Os movimentos de luta contra a segregação da
discriminação da pessoa com deficiência aumentam, pois esse é

3Nos Estados Unidos o termo “pessoa com deficiência” já era usado desde a
década de 1990, havendo alguns autores contrários ao uso, alegando que
deficiente seria mais adequado devido a questões identitárias.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 140


assim que veem uma forma de terem seus direitos resguardados e
assim terem o olhar para essa questão com um viés crítico-social.
Conforme ressaltam Barbosa, Santos e Silva (2010, p. 189) “as
pessoas com deficiência estão em uma situação de inferioridade em
relação às demais simplesmente como decorrência da não adaptação
social e cultural à diversidade expressa em seus corpos”. E quanto a
isso, cabem lutas contra-hegemônicas, reflexões e ações da
sociedade.

ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

Para que a discussão sobre ADC seja iniciada,


primeiramente é preciso esclarecer o que é discurso no contexto da
Linguística. Podemos tomar como base a definição de Fairclough
(2001, p. 21), o qual denota discurso como “referência a amostras
ampliadas da linguagem falada ou escrita”. Também, nesse mesmo
contexto o autor diz que “discurso é usado em relação a diferentes
tipos de situação social” (ex.: ‘discurso de jornal’, ‘discurso
publicitário’, discurso de sala de aula, ‘discurso de consulta médica),
e discurso é “um modo de ação” (p. 90). Por fim, o discurso é usado
na análise social, ele é “socialmente constitutivo” (FAIRCLOUGH,
2001, p. 91).
O modelo de discurso usado para as análises que serão feitas
neste estudo será o inserido no modelo tridimensional, na esfera da
prática social, dialogando com a análise linguística e com a análise
social do discurso ao considerar que todo discurso se coloca na
perspectiva de “texto e interação”, em que qualquer “discurso será
considerado como texto e simultaneamente, é um exemplo de
prática discursiva e um exemplo de prática social (FAIRCLOUGH,
2001 p. 22).
A dimensão do texto se concentra nas análises linguísticas, a
dimensão da prática discursiva se concentra na interpretação, na
interação textual e a dimensão da prática social extrapola a
interpretação, indo para a esfera social, para que se chegue no campo
da mudança social, que é o principal foco da prática social

141 | 2018 – vol. II, nº 02


(FAIRCLOUGH, 2001). Este trabalho está alinhado aos objetivos
de Fairclough (2001) quanto às definições de discurso, atribuindo
maior valor ao que se relaciona ao discurso como prática política e
ideológica, expandindo-se para a esfera da prática social de seu
modelo tridimensional de discurso.

Figura 1 - Concepção tridimensional do discurso


(FAIRCLOUGH, 2001[1992])

A ADC é uma abordagem teórico-metodológica que trata de


questões que envolvem a prática social em um contexto que propicie
a mudança social. Conforme evidencia van Dijk (2015, p. 9) os
estudos críticos estão envolvidos na “reprodução discursiva de
abuso de poder e desigualdade social”, por isso é interessante
investigar qualquer propriedade semiótica do discurso que se
desdobre em relações de poder na sociedade.

LINGUÍSTICA SISTÊMICO-FUNCIONAL

A Linguística Sistêmico-Funcional é uma teoria que se baseia


no uso das palavras considerando o texto como unidade mínima
(base funcional) e nos significados das palavras dentro do texto
(base semântica). Essa perspectiva teve início com os estudos de
Halliday, principalmente em Halliday (1975, 1994, 2004).
Na mesma perspectiva de Fairclough (2001) acerca do que é
texto, Halliday e Matthiessen (2004, p. 3) dizem que “quando uma
pessoa fala ou escreve, ela produz texto. O termo texto se refere a

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 142


várias instâncias da linguagem e a vários meios, que faça sentido para
alguém que conheça a língua”.
A abordagem funcional de Halliday concebe que as palavras
não são vistas como unidades, mas que se relacionam e têm suas
funções de acordo com seus significados e relações dentro do texto,
dessa forma ele também enfatiza a importância do contexto, esse
que se caracteriza respectivamente pelo: campo do discurso
(interação); pelas relações do discurso e relações interpessoais e,
pelo modo do discurso (organização da língua para se atingir os
objetivos almejados) (HALLIDAY E HASAN, 1989, p. 23).
O texto está inserido em dois contextos: de situação e de
cultura como denotam Fuzer e Cabral (2014) baseado em Halliday.

Figura 2: Texto em contexto Fuzer e


Cabral (2004) baseado em Halliday (1989)

O contexto de situação é o ambiente onde ocorre a interação


imediata e o contexto de cultura é onde ocorrem as práticas sociais,
nas quais se desdobram os inúmeros gêneros textuais, sendo um
pouco mais abstrato, quando relacionado com o conceito anterior.

AS METAFUNÇÕES DA LINGUAGEM

Com base nos estudos principalmente de Halliday (2004) é


que podemos descrever as funções desempenhadas pela linguagem,
denominadas por ele de metafunções. Essas metafunções estão

143 | 2018 – vol. II, nº 02


relacionadas às variáveis contextuais mencionadas anteriormente.
De acordo com Fuzer e Cabral (2014, p. 32) “metafunções são as
manifestações, no sistema linguístico, dos propósitos que estão
subjacentes a todos os usos da língua: compreender o meio
(ideacional), relacionar-se com os outros (interpessoal) e organizar a
informação (textual)”.
A metafunção ideacional é realizada pelas funções
experiencial e lógica (Halliday e Matthiessen 2004), sua unidade de
análise é a oração, encaixando-se no sistema da transitividade. O
sistema da transitividade descreve toda a oração e é composto por:
processos, participantes e circunstâncias.

Componentes Definição Categoria Exemplo


gramatical
Processos É o elemento Grupos A mãe mata
central da verbais o recém-
configuração, nascido,
indicando a durante o
experiência se parto ou
desdobrando logo após,
através do sob
tempo. influência do
estado
puerperal.

Participantes São as entidades Grupos


envolvidas- nominais A mãe mata
pessoas ou o recém-
coisas, seres nascido,
animados ou durante o
inanimados-, as parto ou
quais levam à logo após,
ocorrência do sob
influência do

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 144


processo ou são estado
afetadas por ele. puerperal.
Circunstâncias Indica, Grupos A mãe mata
opcionalmente, adverbiais o recém-
o modo, o nascido,
tempo, o lugar, a durante o
causa, o âmbito parto ou
em que o logo após,
processo se sob
desdobra. influência do
estado
puerperal.

Quadro1 - baseado em Halliday e Matthiessen


2004, representado por Fuzer e Cabral 20144.

Os principais tipos de processos do sistema da transitividade


são: materiais, mentais e relacionais e entre esses há os tipos
secundários: verbal, comportamental e existencial. Os tipos de
participantes desse sistema são os apresentados no quadro 2.
Processo Material Ator, Meta, Beneficiário, Escopo,
Atributo
Processo Existencial Existente
Processo Relacional Portador, Atributo, Identificador,
Identificado
Processo Verbal Dizente, Verbiagem, Receptor, Alvo
Processo Mental Experimentador, Fenômeno
Processo Comportante, Escopo
Comportamental
Quadro 2
A metafunção interpessoal trabalha com a oração como troca,
a linguagem em interação com as outras pessoas no meio social. Os

4 Fonte do exemplo: alegações finais da defesa de um Processo penal, fl. 106.


(FUZER e CABRAL, 2014, p. 41)

145 | 2018 – vol. II, nº 02


significados interpessoais são o sistema de MODO. A troca de
informação que há nesse sistema é da própria linguagem. Na troca
de bens e serviços “a linguagem é instituída como instrumento de
ação” (FUZER e CABRAL, 2014, p. 105).
No Sistema de MODO a oração se organiza em: Modo e
Resíduo.

Toda a turminha da escola foi ao cinema.5


Modo Resíduo

O Modo é constituído de: Sujeito e Finito. O Sujeito é


geralmente um grupo nominal, tendo semelhante carga semântica a
do sujeito na gramática tradicional.
O Finito é representado por desinências verbais, e
caracteriza o tempo ou “a opinião do falante e inclui a polaridade
positiva ou negativa (DROGA e HUMPHREY, 2003 apud FUZER
e CABRAL, 2014 p. 109).

A inclusão vai Ser algo que existe apenas nos


projetos escritos em folhas até
quando Patrícia Cunha?6
Sujeito Finito
Modo Resíduo

O Resíduo é composto pelo: Predicador, Complemento e


Adjunto(s), sendo que nem sempre os três aparecem na oração. O
Predicador é composto por elementos verbais, exceto o Finito.
Na metafunção textual a oração é vista como mensagem. A
linguagem é usada para organizar os significados ideacionais e
interpessoais de maneira coerente, permitindo que haja significados
textuais (BUTT, et al. 2000, p. 39). Através do sistema do Tema os
significados textuais são expressos como mensagens. Esse sistema é

5 Exemplo retirado do texto analisado neste trabalho.


6 Exemplo retirado do texto analisado neste trabalho.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 146


constituído por Tema (o início da mensagem) e Rema (a informação
nova sobre esse início), conforme esclarece Silva (2010, p. 74).

METODOLOGIA E CONTEXTUALIZAÇÃO

O texto aqui analisado e posto em anexo se trata de um


relato de uma mãe de uma criança de 9 anos com paralisia cerebral,
estudante da Rede Municipal de Ensino de Belo Horizonte. A mãe
se chama Adriane Cristina da Cruz, conforme informa a Revista
Crescer, local de onde foi retirado o texto utilizado neste trabalho.
O relato foi publicado no Facebook e viralizou, contando com mais
de 10 mil reações e mais de 6 mil compartilhamentos até a conclusão
da reportagem para a revista. A mãe desabafa nas redes sociais
devido ao descaso da escola com seu filho, que é cadeirante e não
foi ao cinema com os demais alunos, permanecendo na escola
durante todo o período da manhã acompanhado de seu cuidador
social.
O texto será analisado de acordo com as abordagens teórico-
metodológicas da Análise de Discurso Crítica (ADC) com bases
faircloughianas e da Linguística Sistêmico- Funcional (LSF), baseada
nos estudos de Halliday.
Esta é uma pesquisa quantitativa, pois trabalha com dados
estatísticos e de porcentagem, mas é principalmente qualitativa, e
conforme Bauer e Gaskell (2002, p. 23) “a pesquisa qualitativa lida
com interpretações das realidades sociais”.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica, em que o material
analisado será um texto retirado de uma revista eletrônica, não
havendo contato com os atores sociais que fazem parte das análises.

UMA MÃE QUE NÃO DESISTE, MAS


QUE ESTÁ MUITO CANSADA

A voz da mãe que fala pelo filho, a escola inclusiva que


segrega. A voz da mãe que não foi silenciada e a realidade
costumeira de profissionais que não estão preparados para lidar com

147 | 2018 – vol. II, nº 02


a inclusão social de alunos com deficiência(s). Esse é o ponto que
dialogará com o que já foi apresentado sobre o modelo social de
inclusão da pessoa com deficiência e também com as análises que
serão feitas, consoante ao modelo de deficiência em uma concepção
crítica e social.
A Constituição, como diversas Leis e Decretos, propõe a
inclusão social da pessoa com deficiência, seja na prestação de
serviços, seja em atendimentos em locais públicos, ou no direito a
práticas educacionais (BONFIM, 2010). O problema é que tais Leis
nem sempre são cumpridas, devido a diversos fatores como a falta
de acessibilidade e a falta de preparo das instituições educacionais
ou outros órgãos dos quais as pessoas com deficiência necessitem
algum atendimento.
A mãe de João Pedro, autora do texto em análise, mostra um
pouco do que a população com deficiência, bem como as pessoas
envolvidas nessa realidade, passa no seu dia a dia7.
No âmbito do direito da antidiscriminação, define-se a
discriminação por motivo de deficiência como

qualquer diferenciação, exclusão ou restrição


baseada em deficiência, como o propósito ou
efeito de impedir ou impossibilitar o
reconhecimento, ou desfrute, ou exercício, em
igualdade de oportunidades com as demais
pessoas, de todos os direitos humanos e
liberdades fundamentais nas esferas política,
econômica, social, cultural, civil ou qualquer
outra (AMARAL, 1994, apud RIOS, 2010, p. 76)

Pelo relato de Adriane Cristina, ator social nesta análise, seu


filho com paralisia cerebral está inserido e sempre esteve, em
ambientes escolares (bem como outros) discriminatórios. Vejamos
o seguinte excerto:

Excerto 1:

7 O texto analisado consta nos anexos.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 148


"Hoje vendo meu filho chegar da escola não tive como não
chorar. Toda a turminha da escola foi ao cinema, meu filho
ficou de 07:00 às 11:20, circulando no corredor da escola
com o auxiliar de apoio dele”.

Depreende-se de sua fala a carga emocional que a


acompanha devido à forma como seu filho foi tratado. Ela usa o
diminutivo “turminha” com uma carga emotiva, bem como, “não
teve como não chorar”.
Mas esse desabafo é feito justamente porque essa não foi a
primeira vez, conforme ela afirma no decorrer de sua fala, que seu
filho passa por situação discriminatória. Seu discurso é de luta
contra o poder hegemônico. No âmbito da ADC, a escola mantém
práticas sociais controlando a seleção de certas possibilidades
estruturais e a exclusão de outras (FAIRCLOUGH, 2003) como
pode ser visto no excerto 2:

Excerto 2:
“a (há) anos meu filhos estuda na escola inclusiva, e ainda
não conseguiram aplicar o lindo projeto que eu também
amo, que se encontra escrito no papel, ele não vai aos
passeios da escola”(...)

Seu filho estuda em uma escola inclusiva, mas


contraditoriamente a isso, a escola não tem as características de uma
escola assim denominada, por isso ela diz que “o lindo projeto
encontra-se escrito no papel” e a realidade é que seu filho não vai
aos passeios da escola. De acordo com a mãe, as alegações da escola
por não levá-lo aos passeios são: “porque está frio, porque ele grita, porque
levanta a perna, porque não sabem qual será a reação dele”.
As ações dentro da ideologia do discurso são visíveis nas
práticas sociais da escola. De acordo com Fairclough (2001, p. 120)

as ideologias constituídas nas convenções podem


ser mais ou menos naturalizadas e automatizadas,

149 | 2018 – vol. II, nº 02


e as pessoas podem achar difícil compreender
que suas práticas normais poderiam ter
investimentos ideológicos específicos. Mesmo
quando nossa prática pode ser interpretada como
de resistência, contribuindo para a mudança
ideológica, não estamos conscientes dos detalhes
de sua significação ideológica.

Assim, mesmo que a escola não tenha total consciência da


significação ideológica de suas práticas, elas existem e contribuem
para a naturalização de práticas opressoras e discriminatórias.
O menino chegou em casa com um balão que, segundo o
auxiliar social, era “o prêmio de consolação” por ele não ter ido ao
passeio.
Em uma perspectiva crítica, a ação de segregação da escola
apresenta uma prática discursiva, mais uma vez, contraditória, pois
a escola é, ou deveria ser, um campo de lutas e contestações
(FAIRCLOUGH, 2001), mas destoa deste discurso ao apresentar
práticas discriminatórias.
A Linguística Sistêmico-Funcional também será ferramenta
teórico-metodológica deste trabalho, e iniciaremos as análises
funcionais com base na semântica léxico-gramatical trazendo o
Sistema da Transitividade da Metafunção Experiencial, que tem a
oração como representação. Como descrevem Halliday e
Matthiessen (2004, p. 170), “o sistema da transitividade constrói o
mundo de experiência em um conjunto gerenciável de tipo de
processo (os verbos). Cada tipo de processo fornece o seu próprio
modelo ou esquema para interpretar um domínio particular de
experiência”. Esse sistema afeta não apenas os processos, mas
também seus participantes e as circunstâncias.
As discussões a seguir serão sobre os processos e suas
relações sistêmico-funcionais no texto analisado consoantes com a
ADC.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 150


De acordo com os vinte e cinco Processos analisados8 temos
a seguinte tabela com a quantidade e a porcentagem de ocorrências
no texto:

Tipos de Número de Porcentagem


Processos- Sistema ocorrências
de Transitividade –
Metafunção
Experiencial
Processo Material 8 32%
Processo Mental 8 32%
Processo Relacional 5 20%
Processo Existencial 3 12%
Processo 1 4%
Comportamental
Processo Verbal - -

Quadro 3 – Sistema da Transitividade –Metafunção


Experiencial – Número de ocorrências no texto analisado

Como podemos extrair do quadro 3, o texto trás uma maior


quantidade de Processos Materiais, que indicam ações e de
Processos Mentais. O fato se torna interessante quando notamos
que estamos falando de um texto sobre uma pessoa com paralisia
cerebral, cadeirante. O Processo Material é encontrado na fala da
mãe quando se refere à ela e quando se refere a seu filho
principalmente. Observemos:

Orações que envolvem o Orações que envolvem a


filho: mãe:

8As análises foram feitas apenas no campo da oração e não entraram análises de
complexos oracionais com análises das orações coordenadas ou subordinadas.

151 | 2018 – vol. II, nº 02


“Toda a turminha foi ao “Eu não desisto”.
passeio”... “Como nós familiares de
“Meu filho ficou circulando pessoas com deficiência
pelo corredor”... podemos ajudar?”
“O João vai ao cinema”.
“(O João) entra na água fria”.
“(O João) rola no chão”.
Como ele vai formar suas
ideias”

Quadro 4 – Contextos em que aparecem os processos Materiais.

Podemos inferir do texto em análise que a mãe justifica,


através das ações do filho, que os motivos pelos quais o menino não
é convidado para os passeios são contestáveis. A escola diz que ele
não pode ir porque está frio, mas em casa ele entra na água fria; a
escola diz que ele não pode ir porque não sabe qual será a reação
dele, mas ele dança no palco, rola no chão, ou seja, ele faz coisas que
qualquer criança faz, ele não é tão frágil como a escola o considera,
segundo a mãe.
O Processo Material relacionado à mãe “(não) desistir” vem
seguido de um elemento textual “mas” e de um processo mental
“(me) sinto (muito cansada)”. Ela impõe sua postura de luta contra
as injustiças, não desiste de lutar pelos direitos de seu filho, de vê-lo
em uma sociedade que adote, não só no papel, como ela diz, o
modelo social de inclusão da pessoa com deficiência.
O ator “como nós familiares de pessoas com deficiência”
mostra que as pessoas que convivem com quem tem alguma
deficiência deveriam ser ouvidas. Não é uma escolha aleatória, é para
causar impacto, para mostrar quem pode ajudar. Dessa forma, esse
ator se posiciona ideologicamente, conectando-se com as práticas
sociais discriminatórias (ou excludentes) e ideológicas a que é
exposto na tentativa de reestruturar essas práticas (FAIRCLOUGH,
2001, p. 121).

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 152


Não aparecem Processos Materiais ou Mentais relacionados
a ações da prefeitura. São feitas cobranças à Secretária Municipal de
Educação de Belo Horizonte com o uso de Processos Relacionais,
em que há o Vocativo para chamar a atenção, marcar com quem ela
está falando. Também é importante destacar que aparece o Processo
Relacional para referir-se à inclusão e aos professores
(despreparados, em sua concepção).

“(...) são estudos, textos, filmes e estudos de casos maravilhosos,


mas não se aplica a vida real.”
“Até quando Patricia Cunha,SMED ( Secretaria municipal de
educação) a inclusão vai ser algo que existe apenas nos projetos
escritos em folhas?”
“Quando os professores estarão prontos para incluir?”

Quadro 5 – Exemplos de Processos


relacionais encontrados no texto

O texto é um desabafo, sendo assim, bem como expressões


que remetem ao estado emotivo da mãe como “turminha”,
“balãozinho”, “não tive como não chorar”, também há um número
considerável de Processos Mentais, esses que têm maior
representatividade na fala da mãe. Vejamos o quadro 6:

Contextos relacionados à mãe


“Fico imaginando como é frustrante ser quem capacita estes
profissionais da inclusão”
“Ver ele chegando com um balãozinho do SESC, pendurado na
cadeira como prêmio de consolação, doeu-me ainda mais”.
“Me sinto muito cansada.
“Acredito que o treinamento não é o suficiente”.
“Estamos dispostos a ajudar viu”.

Quadro 6 – Processos mentais relacionados à mãe


Ainda há dois fatores importantes quantos às escolhas
léxico-gramaticais a serem analisados neste trabalho. O primeiro diz

153 | 2018 – vol. II, nº 02


respeito à oração “Acredito que o treinamento não é o suficiente (...)”. O
Processo Mental “acredito” indica a opinião da mãe, mas o que é
mais relevante é a escolha pela palavra “treinamento”, que constitui
parte do Fenômeno. O que é treinar? De acordo com o Dicionário
Michaellis on line treinar é: “submeter a treino; adestrar; habituar;
exercitar-se para competições esportivas”. Mesmo que
inconscientemente, ela acaba trazendo um léxico que subentende
uma conotação negativa, treinar como uma repetição, um
adestramento, um condicionamento.
Com base em Fairclough, Vieira e Resende (2016, p. 45)
descrevem que “nas práticas sociais cotidianas, utilizamos o discurso
de três principais maneiras simultâneas e dialéticas: para agir e
interagir, para representar aspectos do mundo e para identificar a
nós mesmos/as e a outros/as”. Adriane Cristina faz essa interação
e identificação, dela e dos outros, através de seu discurso inserido
nas práticas sociais.
O último aspecto a ser tratado neste trabalho se refere à
oração “A introdução da vida social com olhares e avaliações diferentes ocorre
na escola”. O Processo existencial “ocorre” aparece de maneira
monoglóssica, ou seja, sem que percebamos, aparece sem
dialogismo, com outra premissa. Ela poderia usar um modalizador
“pode ou deve ocorrer”, mas não o faz, pois ela quer justamente
mostrar que a escola tem responsabilidade quanto às atitudes de
discriminação à pessoa com deficiência.
O existente “A introdução da vida social com olhares e avaliações
diferentes” dialoga com a teoria social de inclusão da pessoa com
deficiência. Ela atribui à escola a responsabilidade de haver um
“olhar diferente” e pode-se depreender do contexto de sua fala que
esse olhar é tanto do aluno com deficiência quanto das pessoas que
convivem em sociedade com ele. Consoante a essa ideologia, Diniz,
Barbosa e Santos (2010, p. 99) expõem que “para a Convenção
sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, a desvantagem não é
inerente aos contornos do corpo, mas resultado de valores, atitudes
e práticas que discriminam o corpo com impedimentos”.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 154


A “desvantagem” de João Pedro, ator social desta análise,
não está nos impedimentos de seu corpo, mas nas barreiras sociais
que persistem em existir, mesmo que, “no papel”, tudo já esteja
resolvido com leis contra a discriminação e a favor de um modelo
social de inclusão a serem postas em prática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desabafo em forma de relato de uma mãe de um aluno


com paralisia cerebral nos remeteu a um quadro comum em nossa
sociedade e mais especificamente, em nossas escolas: o cenário da
inclusão dominado pela discriminação. Pela fala da mãe,
compreende-se que a inclusão social de pessoas com deficiência(s)
no contexto escolar precisa alinhar teoria e prática dos conceitos de
acesso e acessibilidade , pois abrir as portas para esses alunos, devido
ao direito garantido por lei não é oferecer as condições para que eles
aprendam em um ambiente em que não se enxergue a segregação.
Também é importante ressaltar que, através das análises
discursivas e sistêmico-funcionais compreende-se o olhar da mãe
para a escola como um lugar em que se luta pelo fim das
desigualdades, um lugar em que os alunos vão para aprender mais
que português e matemática, a escola também é o lugar em que se
aprende valores e respeito às diferenças.
O papel do discurso, de acordo com Fairclough (2001, p.
211), está em “construir, reproduzir, desafiar e reestruturar os
sistemas de conhecimentos e crenças”, assim pensemos então, que
a escola é um lugar em que o discurso será palco de reprodução, ou
de reestruturação dos sistemas de conhecimentos e crenças.
Os estudos sobre deficiência e um modelo social de inclusão
nos mostra que os impedimentos físicos, intelectuais e sensoriais
estão em um âmbito, a opressão devido à deficiência está em outro.
Como bem expõem Diniz, Barbosa e Santos (2010, p. 105), “é
possível um corpo com impedimentos não vivenciar a opressão, a
depender das barreiras sociais e da crítica da cultura da normalidade
em cada sociedade”. E ao final deste estudo fica uma pergunta para

155 | 2018 – vol. II, nº 02


reflexão: “Quando os profissionais da educação estarão prontos
para incluir”?

-----------------------------------------------------------------------------------

When will education professionals be ready to include?"


An analysis based on Systemic-Functional Linguistics
and Critical Discourse Analysis

ABSTRACT: In postmodern contexts it is common for the issue of social


inclusion of students with disabilities to be seen with a more natural look, where
regular schools should receive these students and be prepared for such inclusion.
But in many schools, this inclusion does not take place in the most appropriate
way, since the student has the right to access to teaching in the regular school, but
there are teachers who do not know how to deal with the arrival of these students:
access ramp, handrail or rooms with wider doors for the entrance of wheelchairs.
The present study analyzes an account of a mother about the fact that her son
with cerebral palsy was left alone at school while all the other students went for a
walk. This mother makes an outburst in a social network, which has a great
repercussion. The objectives of this research are to present this text that has a
theme of social relevance and to analyze how, from the Critical Discourse
Analysis (CDA) and the Systemic-Functional Linguistics (SFL), this text can
contribute to the promotion of equalities and recognition of the need for counter-
hegemonic struggles of minorities as persons with disabilities in the school
context. This work will have as a theoretical-methodological foundation the CDA
supported by Fairclough (2001) and SFL based on the studies of Halliday (1975;
1994) and Halliday and Matthiessen (2004). This is a bibliographical research with
quantitative data, but it is eminently qualitative.

KEYWORDS: Inclusion; Deficiency; School; Critical Discourse Analysis;


Systemic-Functional Linguistics

-----------------------------------------------------------------------------------

REFERÊNCIAS

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pessoas com deficiência: um estudo no Distrito Federal. In.:
Deficiência e Discriminação. (Org.) DINIZ, D.; SANTOS, S. Brasília.
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Vozes. Petrópolis-RJ, 2002.

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____. Disponível em:


<https://www12.senado.leg.br/manualdecomunicacao/redacao-e-
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BUTT, D.; FAHEY, R.; FEEZ, S.; SPINKS, S. & YALLOP, C.


(Ed.) Using functional grammar: an explorer’s guide. 2a. ed. Sidney:
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DINIZ, D. O que é deficiência? São Paulo: Editora Brasiliense.


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D.; SANTOS, S. Brasília. Letras Livres. Editora UnB. 2010, p. 97-
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FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Tradução:


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London and New York: Routledge, 2003.

FUZER, C.; CABRAL, S. R. S. Introdução à Gramática Sistêmico-


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HALLIDAY, M. A. K. & HASAN, R. Language, context and text:


Aspects of language in a social-semiotic perspective. Oxford: Oxford
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functional grammar. 3rd. edition, London: Arnold, 2004.

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In.: Deficiência e Discriminação. (Org.) DINIZ, D.; SANTOS, S.
Brasília. Letras Livres. Editora UnB. 2010, p. 73-96.

157 | 2018 – vol. II, nº 02


SANTOS, W. Deficiência, Desigualdade e Assistência Social: O Brasil e o
Debate Internacional. In.: Deficiência e Discriminação. (Org.) DINIZ,
D.; SANTOS, S. Brasília. Letras Livres. Editora UnB. 2010, p. 117-
142.

SILVA, E. C. M. Do discurso à gramática: um enfoque crítico e


funcional de gêneros Disponível em:
<http://www.periodicos.unb.br/index.php/les/article/view/2830
/2442> Acesso em: 14 fev. 2018.
VAN DIJK, T. Discurso e Poder. (Org.) HOFFNAGEL, K. F. 2. ed.
São Paulo. Contexto, 2015.

VIEIRA, V.; RESENDE, V. M. Análise de Discurso (Para a) Crítica:


O texto como Material de Pesquisa. Vol. 1. Campinas, SP. Pontes
Editores, 2ª Edição, 2016.

ZIZEK, S. O Espectro da Ideologia: Um mapa da ideologia. Rio de


Janeiro: Contraponto, 1996.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 158


ANEXO 1

Relato de uma mãe postado em uma rede social e


reproduzido no site da revista Crescer, versão eletrônica.

"Hoje vendo meu filho chegar da escola não tive como não chorar. Toda a
turminha da escola foi ao cinema, meu filho ficou de 07:00 às 11:20, circulando
no corredor da escola com o auxiliar de apoio dele, a 9 anos meu filhos estuda
na escola inclusiva, e ainda não conseguiram aplicar o lindo projeto que eu
também amo, que se encontra escrito no papel, ele não vai aos passeios da escola,
este ano nem mesmo convidado a festa junina da escola foi. "Motivos da escola:"
•porque está frio,
•porque ele grita,
•porque levanta a perna
•porque não sabem qual será a reação dele.
Fico imaginando como é frustrante ser quem capacita estes profissionais da
inclusão, são estudos, textos, filmes e estudos de casos maravilhosos, mas não se
aplica a vida real, ver ele chegando com um balãozinho do SESC, pendurado
na cadeira como prêmio de consolação, doeu-me ainda mais, como ele vai
aprender a ir ao cinema, como vai aprender a controlar suas emoções se a escola
não lhe fornece os outros temperos, comigo o João vai ao cinema, dança no palco,
entra na água fria, rola no chão, mas aqui é a casa dele o reino dele, tem o
tempero do amor (aqui em casa), tem minha condição é uma ação familiar, a
introdução da vida social com olhares e avaliações diferentes ocorrem na escola,
não desisto, mas me sinto muito cansada, até quando Patricia Cunha,SMED
( Secretaria municipal de educação) a inclusão vai ser algo que existe apenas nos
projetos escritos em folhas?
Quando os profissionais da educação estarão prontos para incluir?
E o que precisa para eles aprenderem?
Cobaias já temos meu filho está a 9 anos sofrendo nesta função.
Como ele vai formar suas ideias e sentimentos sem o apoio da escola e da
sociedade?
Incluir no meu ver vai além de deixar uma pessoa limpa e bem alimentada
circulando por corredores de escolas municipais da cidade de Belo Horizonte, e

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acredito que está opinião também é dos profissionais, como nos familiares de
pessoas com deficiência podemos ajudar vocês?
Acredito que o treinamento da prefeitura não é suficiente, estamos dispostos a
ajudar viu.

Disponível em: <http://revistacrescer.globo.com/Voce-precisa-


saber/noticia/2017/09/meu-filho-com-deficiencia-foi-excluido-
do-passeio-da-escola.html> Acesso em: 05 dez. 2017.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 160


PRODUÇÃO TEXTUAL NA AULA
DE LÍNGUA PORTUGUESA: UM
ENFOQUE SOCIODISCURSIVO

Karine Rebouças de Oliveira MAIA1


Ester Maria de Figueiredo SOUZA2

RESUMO3: Este artigo tematiza gestos didáticos autorais do professor nas aulas
de produção textual na disciplina Língua Portuguesa no ensino médio. A tríade
planejamento/escrita/reescrita do texto é a orientação para o desenvolvimento
da atividade na aula. Para produção dos dados, aportamos na abordagem
etnográfica da pesquisa e na Línguística Aplicada, utilizando-se do reconhe-
cimento de indícios das práticas discursivas da aula de português para se revelar e
interpretar a natureza dos gestos didáticos específicos da aula de produção textual.
A análise revelou que as operações constitutivas dos gestos não foram
mobilizadas pelos docentes, que a dimensão da oralidade e da função social do
gênero discursivo não são exploradas e, para ilustrar os resultados, apresentam-se
atividades de ensino aplicadas aos estudantes, como parte do plano da aula.

PALAVRAS-CHAVE: Produção Textual; ISD; Ensino de Português.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ACERCA DO


INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO

Muitas pesquisas na área têm mostrado que a produção de


texto nas escolas brasileiras tem sido feita de maneira
descontextualizada, de forma mecânica, uma vez que os alunos
escrevem acerca de temas aleatórios, encomendados pelo professor,

1 Mestre em Letras. Professora da rede pública de ensino. Pesquisadora do Grupo


de Pesquisa linguagem e Educação. GPLED/CNPq, da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). Email: kareboucas@hotmail.com
2 Professora Plena da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Líder

do Grupo de Pesquisa linguagem e Educação. GPLED/CNPq. Doutora em


Educação. Pós-Doutora em Linguística. Email: efigueiredo@uesb.edu.br
3 Registramos agradecimentos á CAPES pela concessão de bolsa de Iniciação

Cientifica para realização da pesquisa, integrante do Programa de Pós-Graduação


em Letras: cultura, educação e linguagens (PPGCEL), da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB).

161 | 2018 – vol. II, nº 02


apenas para obter uma nota no final da unidade letiva, sem que haja
qualquer propósito sociocomunicativo do produtor do texto nesta
atividade de linguagem. A produção escrita deveria, entrementes,
atender a intenções específicas, determinadas previamente, pois,
assim, seria uma atividade significativa para o aluno.
Proposto por Bronckart e alguns colaboradores, o
Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) analisa as ações humanas a
partir de perspectivas históricas, discursivas e sociais, “focalizando
a ação de linguagem como resultado da apropriação humana das
propriedades da atividade social mediada pela linguagem” (COLE
2012, p. 53).
Bronckart salienta que

[...] as práticas linguageiras situadas (ou os textos


discursos) são os instrumentos principais do
desenvolvimento humano, tanto em relação aos
conhecimentos e aos saberes quanto em relação
às capacidades de agir e da identidade das
pessoas. (BRONCKART, 2006, p. 10).

Em relação às atividades de produção textual, que é o nosso


foco aqui, é preciso levar em consideração o repertório de
conhecimento prévio que o aprendiz apresenta quando chega à
escola, já considerado como um falante da língua natural, pois
entendemos o processo de produção textual em consonância com
ISD a partir da adoção do princípio de que:

[...] a escrita de um texto é uma ação de linguagem


socialmente situada, pois reflete as escolhas
linguístico-discursivas de um agente-produtor,
em que este, apoiando-se nas experiências dos
mundos formais (físico, social e subjetivo),
materializa linguisticamente uma ação
psicológica, a qual corresponde ao desejo desse
agente em interagir por meio da linguagem
(SILVA, 2012, p. 28).

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 162


Entretanto, muitas vezes, tal conhecimento não habilita o
aluno a produzir diferentes gêneros de textos, daí a importância do
papel da escola, pois, nela, “o aluno terá a oportunidade de
experienciar diferentes espécies de textos, lendo-os e,
consequentemente, produzindo novos exemplares a partir do
conhecimento adquirido” (SILVA, 2012, p. 27).
Segundo Pereira (2012, p. 10) “[...] a melhor maneira de
ajudar os alunos a ler e a escrever é criar situações em que tenham
de ler e escrever para propósitos específicos, isto é, em que leitura e
escrita sejam necessárias para algo”. Com isso, salientamos que o
ISD concebe os textos como instrumentos do desenvolvimento
humano. Nessa perspectiva, os textos “[...] são entendidos como
unidades comunicativas globais – a relacionar, por um lado, com as
atividades de linguagem (ou discursos) de que dependem e, por
outro, com os tipos de discurso (ou atitudes de locução) que
integram” (COUTINHO, 2007, p. 102).
Destarte, assinalamos que o ISD concebe a dimensão social
como determinante das ações humanas, ou seja, vê que as atividades
humanas são “inevitavelmente sociais e que se organizam em função
das interações estabelecidas nas diferentes formações
sociodiscursivas” (SILVA, 2012, p. 30). Para o ISD, “uma ação
significante propicia a autonomização do pensamento consciente
através das situações de linguagem que são sócio-historicamente
construídas e reguladas” (COLE, 2012, p. 53). Em suma, o ISD leva
em conta as ações humanas nas interações sociais e discursivas.
Cada agente-produtor, ao se comunicar, é influenciado pelas
convenções próprias do quadro social em que está inserido, ou seja,
até para se comunicar ele vai tentar alcançar seus propósitos
comunicativos, por exemplo, baseando-se no seu receptor, etc.
No entanto, não é certeza que a mensagem que o agente
queira passar, ao produzir determinado texto, seja totalmente
compreendida pelo receptor (BARROS, 2012, p.188). O autor em
foco diz, ainda, que “Isso pode ser ainda mais difícil se pensarmos
na escrita, em que, diferentemente da fala, há a ausência de
elementos suprassegmentais, como o acento tônico e a entonação e

163 | 2018 – vol. II, nº 02


outros elementos extralinguísticos, como por exemplo, os gestos
que podem, eventualmente, auxiliar na compreensão do que está
sendo discutido”. (BARROS, 2012, p.189).
Para Malaquias e Pereira (2012, p. 77), o ISD contempla uma
visão de língua como sendo interativa, social e formadora:

Interativa, porque a língua, nessa perspectiva, se-


ria por excelência interação, troca que permite
agir comunicando e transformando: um sujeito
que fala/escreve para outro sujeito, com um ob-
jetivo e intenção previstos. Social, porque os su-
jeitos referidos estão situados, fazem parte de
uma comunidade linguística, falam, escrevem de
um lugar social e, por vezes, respondem por este.
Nesse sentido, a língua, portanto, só existe em
sociedade, em contextos situados de atuação
comunicativa, relativamente estáveis, em que o
sujeito se identifica com, no e através do outro.
Formadora, porque é a partir do uso situado da
linguagem que nos desenvolvemos cognitiva-
mente e modificamos o social.

Acrescentamos que as ações de linguagem são materializa-


das no texto. Em palavras mais claras, Bronckart, (1999, p. 91),
afirma que ação de linguagem “designa propriedades dos mundos
formais (físico, social e subjetivo) que podem exercer influência
sobre a produção textual”. Segundo o autor mencionado, para se
produzir um texto, o agente-produtor mobiliza suas representações
sobre os mundos de acordo com duas perspectivas: por um lado,
representações sobre os mundos levando em conta o contexto de
produção em que o agente se encontra e, também representações
sobre a temática que será verbalizada no texto.
Silva (2012, p. 32-33) nos fala sobre cinco postulados acerca
das ações de linguagem que são de extrema importância para
entendê-las: “Esses postulados abarcam tanto de ações psicológicas,
levando em consideração as materializações dos textos como as
circunstâncias de sua produção”.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 164


As ações de linguagem são prefiguradas pelos gêneros,
assim, por exemplo, “a atividade de conferir os exercícios feitos em
casa é a condição para que haja a possibilidade de escolha de gênero
“correção da tarefa de casa” (NASCIMENTO, 2014, p. 60).
A ação de linguagem mobiliza um conjunto de operações
que são denominadas capacidades, ou melhor dito, para realizar as
ações de linguagem, os agentes-produtores mobilizam alguns
conhecimentos obtidos nas suas próprias ações de linguagem ou na
dos outros sujeitos, de modo que tais acontecimentos são
denominados capacidades de linguagem. Essas capacidades
possibilitam o desenvolvimento do pensamento consciente.
Com o aporte teórico do ISD, temos em mãos uma
descrição minuciosa dos conhecimentos (capacidades de linguagem)
que são necessários e também as habilidades que são mobilizadas
no momento da produção de textos escritos. Segundo Leite (2012,
p. 150-151), na ação da linguagem no texto, o agente-produtor
mobiliza as capacidades de linguagem, a saber:

 Capacidades de ação: possibilitam ao sujeito


adaptar sua produção à situação de ação de lin-
guagem (representações de conteúdo temático e
dos contextos físico, social e subjetivo), e ao gê-
nero textual;
 Capacidades discursivas: possibilitam esco-
lher a infraestrutura textual (tipos de discurso,
articulação entre os tipos de discurso, sequências
e outras formas de planificação, plano geral);
 Capacidades linguístico-discursivas: possibi-
litam realizar operações de linguagem implicadas
na produção do texto e são de quatro tipos: (1)
mecanismos de textualização (conexão, coesão
nominal e coesão verbal); (2) mecanismos enun-

165 | 2018 – vol. II, nº 02


ciativos (gerenciamento de vozes e modaliza-
ções); (3) construção de enunciados, orações e
períodos; e (4) escolha de itens lexicais.

Na produção textual, segundo Bronckart, “o agente-


produtor recorre às suas representações dos mundos físico, social e
subjetivo, que vão servir como contexto para a produção textual e
como conteúdo temático, configurando-se a situação de ação de
linguagem” (SOARES, 2012, p. 268). Reforçando o que dissemos
anteriormente, Oliveira, em consonância com as ideias de
Bronckart, salienta que para que um texto seja produzido, o agente-
produtor mobiliza algumas representações em relação à situação de
interação na qual ele julga se encontrar e também aquelas acerca do
conteúdo temático, ou seja, dos temas verbalizados no texto
(OLIVEIRA, 2012, p. 114).
Retomando as ideias de Bronckart, notamos que, para este
autor, o contexto de produção diz respeito ao “conjunto de
parâmetros que podem exercer uma influência sobre a forma como
um texto é organizado” (OLIVEIRA, 2012, p. 114), ou seja, esses
parâmetros são referentes aos estados físico e psíquico do agente-
produtor e também às condições do lugar de produção (contexto),
etc.; alguns fatores associados ao mundo físico e outros relacionados
ao mundo subjetivo.
Ademais, para Bronckart, é no contexto sociossubjetivo que
há “a preponderância do social em detrimento do aspecto físico”
(OLIVEIRA, 2012, p. 114), visto que a produção de todo texto é
feita através de uma interação comunicativa que se relaciona ao
mundo social (regras sociais, valores, etc.) e também se relaciona ao
mundo subjetivo, que é, segundo o autor, “a imagem que o agente
dá de si ao agir” (OLIVEIRA, 2012, p. 114). Em relação a esse
contexto sociossubjetivo, Oliveira (2012, p. 115) aponta os
principais parâmetros:

a) O lugar social: no quadro de qual formação


social, de qual instituição ou, de forma mais geral,

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 166


em que modo de interação o texto é produzido
(escola, família, mídia, exército, igreja, interação
comercial, interação profissional, etc.);
b) A posição social do emissor (que lhe dá seu
estatuto de enunciador): que é o papel social que
o emissor desempenha na interação em curso
(papel de professor, de pai, de cliente, de superior
hierárquico, de amigo, etc.);
c) A posição social do receptor (que lhe dá seu
estatuto de destinatário): qual é o papel social
atribuído ao receptor do texto (papel de aluno, de
criança, de colega, de subordinado, de amigo,
etc.);
d) O objetivo (ou os objetivos) da interação: qual
é, do ponto de vista do enunciador, o efeito (ou
os efeitos) que o texto pode produzir no seu
destinatário?

Desta forma, quando há, por parte do autor, a preocupação


de adequar a linguagem para a produção de um determinado gênero
textual, a preocupação com os efeitos que o texto poderá produzir
no seu interlocutor, essa produção textual é realizada num
“processo de socialização” (OLIVEIRA, 2012, p. 124), pois, ao
selecionar o tipo de linguagem que será utilizada, o agente-produtor
do texto age de acordo com as convenções sociais (regras, normas,
etc.) que são determinadas de acordo com o contexto social em que
o texto pertence e no qual irá circular depois.
Seguindo por essa mesma linha de análise, observemos o
que diz Soares (2012, p. 269) nas linhas abaixo:

Todo texto é produzido numa situação socio-


comunicativa determinada e, consequentemente,
expressa as imagens que os interlocutores fazem
um do outro, os papéis sociais que desempe-
nham, a situação em que se encontram. Diferen-
ças hierárquicas entre as pessoas determinam va-
riações linguísticas e revelam como o uso da lin-
guagem é forma de atuação social. Quem diz al-
guma coisa faz com certa intenção e é essa in-
tenção que orienta todo o processo de composi-

167 | 2018 – vol. II, nº 02


ção textual. Todo texto quer convencer, impres-
sionar, solicitar, criticar, e visa produzir os efeitos
correspondentes no interlocutor, tornando
aceitável o ato que insinua.

Nas atividades de escrita, entendemos que os trabalhos com


os gêneros textuais não são apenas meios para estudar os aspectos
linguísticos do texto, mas eles próprios são a ação de linguagem. E,
antes de se trabalhar um gênero, a preocupação central deve ser
fornecer uma situação comunicativa em que tal gênero seja
necessário, pois, segundo Malaquias e Pereira (2012, p. 94), “Não há
grande produtividade em ensinar a organização ou a formatação de
um gênero textual, se ele não for foco de apropriação e prática dos
estudantes”. Segundo os autores, o trabalho com os gêneros deve
ser interativo, formador e social, pois antes mesmo da escolha de
um tema para a produção textual, deve-se antes oferecer uma
situação comunicativa em que tal gênero a ser produzido seja
necessário.
Antes de se trabalhar um gênero textual, portanto, é
necessário “refletir sobre o seu contexto de produção e circulação e
sobre os efeitos de sentidos pretendidos e gerados” (LEITÃO,
2012, p. 230). Infelizmente, muitas pesquisas criticam o uso dos
gêneros textuais na escola. Na realidade, eles estão sendo
dissociados “de suas esferas de circulação e estudados a partir da
identificação e/ou reprodução de suas características formais [...]”
(LEITÃO, 2012, p. 231). Ainda com base neste autor, o ISD,
idealizado por Jean-Paul Bronckart, surge dessa necessidade de
ultrapassar essas questões linguístico estruturais e se aprofundar na
análise social e psicológica, dentre outras, no processo de produção
de textos orais e escritos.
Nascimento (2014, p. 11) nos fala que, há estudos que
mostram que os textos já possuem um papel central nas aulas de
Língua Portuguesa, mas que muitas vezes os textos ainda são vistos
de maneira estereotipada pela tradição escolar, ou seja, são tipos de
textos: narração, descrição, argumentação, etc. Desta forma, o
gênero não é ensinado e nem é descrito como um meio singular de

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 168


uma prática de linguagem. A atividade não envolve uma situação
real de produção e o professor, na maioria das vezes, de forma
descontextualizada, tem na produção escrita apenas uma forma de
correção de problemas de estrutura gramatical (aspectos formais).
Silva (2012, p. 28) salienta que

[...] a escrita de um texto é uma ação linguagem


socialmente situada, pois reflete as escolhas lin-
guístico-discursivas de um agente produtor, em
que este, apoiando-se nas experiências dos
mundos formais (físico, social e subjetivo), ma-
terializa linguisticamente uma ação psicológica, a
qual corresponde ao desejo desse agente em in-
teragir por meio da linguagem.

Silva (2012, p. 28-29) enfatiza, ainda, que a atividade de


escrita deve atender a demandas específicas, determinadas
previamente pelo professor, porque, como a produção textual é
vista como uma ação de linguagem produzida intencionalmente, ela
não é algo espontâneo e deve estar de acordo com os propósitos
sociocomunicativos do produtor do texto. O autor mencionado
elenca os principais objetivos que devem ser estabelecidos pelo
professor de Língua Portuguesa para o ensino da escrita na
perspectiva do ISD, a saber:

1. Introduzir na aula de produção do texto uma


diversidade de gêneros como forma de oportu-
nizar aos alunos experiências de leituras, fazendo
com que tenham um conhecimento sobre a es-
trutura composicional e a função sociocomuni-
cativa dos mais variados gêneros de textos;
2. Discutir sobre os elementos de textualização e
sobre os mecanismos enunciativos responsáveis
pela estruturação linguístico-discursiva do texto,
observando as características funcionais do gê-
nero, tendo em vista os propósitos da ação de
linguagem, os quais determinam as capacidades
discursivas para selecionar o tipo de discurso e as
sequências tipológicas a serem empregadas no
gênero.

169 | 2018 – vol. II, nº 02


3. Considerar os fatores contextuais intrínsecos
às condições de produção dos textos, mostrando-
os como elementos que dizem respeito às in-
fluências sociodiscursivas do agente-produtor,
tendo em vista os seus objetivos ao materializar
sua ação de linguagem situada;
4. Desenvolver módulos de atividades que con-
templem o trabalho com os gêneros em forma de
sequências didáticas, sistematizando as ações em
três momentos: leitura do gênero, produção
escrita (com reescrita) e divulgação ao público do
produto final;
5. Fazer da aula de produção de texto um mo-
mento de ensino-aprendizagem de língua mater-
na, haja vista reconhecermos que, só assim,
aprendemos de fato uma língua para podermos
usá-la em suas expressões oral e escrita de ma-
neira competente (SILVA, 2012, p. 44).

Portanto, na perspectiva do ISD, esses são os cinco


objetivos que devem ser levados em conta, pelo professor, nas
atividades de produção textual. Objetivos esses que observaremos
mais a seguir, na análise dos dados, a fim de notarmos se o professor
leva em conta os propósitos sociocomunicativos do produtor do
texto, se permite ao aluno experienciar as diversas estruturas
composicionais dos diferentes gêneros textuais, se há esse processo
de leitura do gênero, escrita e reescrita do texto, se os elementos de
textualização serão trabalhados de maneira contextualiza apenas
para que o aluno possa selecionar o tipo de discurso a ser utilizado
em sua produção ou se as atividades de escrita desenvolvidas pelas
professoras não envolvem uma situação real de produção e se os
professores utilizam a produção textual como forma de correção de
problemas de aspectos formais. De acordo com Silva (2012)

[...] a escrita de um texto é a ação de linguagem


socialmente situada, pois reflete as escolhas lin-
guístico-discursivas de um agente-produtor, em
que este, apoiando-se nas experiências dos
mundos formais (físico, social e subjetivo), ma-
terializa linguisticamente uma ação psicológica, a

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qual corresponde ao desejo desse agente em in-
teragir por meio da linguagem (SILVA, 2012, p.
28).

Portanto, a proposta sociodiscursiva vê as atividades de


linguagem como atos cooperativos entre falantes que agem nas
interações verbais, e as representações desses indivíduos acerca dos
mundos (físico, social e subjetivo) é que vão determinar os
posicionamentos e escolhas desses indivíduos nas atividades de
linguagem.
Segundo a proposta do ISD, as atividades linguageiras são
inevitalmente sociais e pela diversidade das relações sociais e
também das atividades de linguagem em que os textos circulam,
estes acabam por se diversificar em diversos gêneros. Portanto, toda
língua “acaba por acumular historicamente um legado de textos, que
são modelos discursivos representados pelos gêneros e constituídos
mediante a negociação dos significados que os signos apresentam
(de suas pretensões à validade designativa) (SILVA, 2012, p. 31)”.
Em vista disso, os indivíduos utilizam os modelos textuais
pré-existentes e a depender de suas necessidades de comunicação,
produzem novos gêneros textuais. Para o autor mencionado, é de
fundamental importância, para que o indivíduo aprenda a escrever
textos, a utilização desses modelos de textos já existentes, pois são
legitimados socialmente e possuem características definidas
historicamente pelos falantes da língua.
O produtor de textos tem contato com diversos modelos de
gêneros disponíveis durante sua vida e os utiliza para produzir os
seus próprios textos. Nessa perspectiva, o aluno deve ser capaz de
interpretar os mais diversos textos que circulam socialmente e, por
conseguinte, produzir outros textos eficazes nas mais variadas
situações, pois os textos, de um modo geral, desempenham papel
fundamental no meio social em que se vive, já que nos
comunicamos o tempo todo por meio deles.
O ISD apresenta um novo quadro teórico para as condições
de produção de textos e as operações em que se baseia o

171 | 2018 – vol. II, nº 02


funcionamento dos textos. Dolz, Gagnon e Decâncio (2010, p. 25),
falam sobre as operações que acreditam essenciais na produção
textual. Essas operações constituem os esquemas de utilização de
um gênero e podem ser resumidas em cinco etapas, a saber: 1)
operações de contextualização; 2) elaboração do que vai ser tratado
como conteúdo temático do texto; 3) planificação do todo textual;
4) textualização; 5) releitura, revisão e reescrita (NASCIMENTO,
2014, p. 92).
Essas etapas fazem parte, segundo os autores mencionados
anteriormente, de cinco operações que fazem parte de uma
sequência de elementos envolvidos em qualquer atividade de
produção escrita. Observe o diagrama abaixo, que fizemos uma
adaptação do modelo proposto por NASCIMENTO, 2014, p.92), e
mostramos os elementos que fazem parte das cinco operações, de
forma sintetizada:

Diagrama nº 01 - Produção textual: etapas operativas


1. Contextualização:
adaptar-se à
situação de
comunicação

5. Releitura, revisão
e reescrita.

2. Elaboração e
tratamento dos
Produção conteúdos
Textual temáticos

4. Textualização:
utilizar os recursos 3. Planejamento do
da língua texto: organizar o
texto em partes

Fonte: Adaptações das autoras.


A primeira operação está relacionada à contextualização, que
se refere às representações do produtor do texto sobre o gênero que

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se pretende escrever, ou seja, mobiliza a capacidade de ação do
produtor do texto. “[...] capacidades de ação implicam aptidões
acionais requeridas para produzir um determinado gênero de texto,
adaptando-se às características do contexto de produção [...]
(NASCIMENTO, 2014, p. 93).
Nesta perspectiva, serão de suma importância as
representações do produtor do texto, conforme Bronckart (2006, p.
146), sobre: a) o contexto sócio histórico mais amplo em que o texto
é produzido, em que circula e é usado; b) o suporte em que o texto
é veiculado; c) o contexto linguageiro imediato, os textos que
acompanham, em um mesmo suporte, o texto a ser produzido; d) o
intertexto (os textos com os quais o texto mantém relações
identificáveis; e) a situação de produção, que compreende as
representações do produtor que exercem influência sobre a forma
do texto, distribuídas nos parâmetros: local, tempo, papel social do
enunciador e do receptor, instituição social e objetivo da produção.
A segunda operação está relacionada ao tratamento dos
conteúdos temáticos. Esta operação requer do produtor textual,
uma ampla pesquisa para que possa se informar acerca do tema
escolhido, pesquisas essas em diferentes meios e gêneros, com a
finalidade de adquirir mais conhecimentos sobre o tema em questão.
A terceira operação tem a ver com planejamento e
organização do próprio texto e de suas partes constituintes.
Planejamento esse, que tem que estar de acordo com o “contexto
de produção, de recepção e de circulação” do texto. “O
produtor/autor é que tem a responsabilidade de organizar e
encadear os fatores que darão conta do texto articulado à ação de
linguagem” (NASCIMENTO, 2014, p. 93).
A quarta operação é a textualização, ou seja, os mecanismos
de coesão nominal e verbal, as operações de conexão, que são
fundamentais para que o texto seja compreendido pelo destinatário.
Nascimento (2014, p. 94) acrescenta a esta quarta operação, as
dimensões transversais que estão presentes em toda produção
escrita que são as operações morfossintáticas de composição dos
sintagmas e os componentes ortográficos e gráficos. A autora

173 | 2018 – vol. II, nº 02


acrescenta ainda que tais aspectos “[...]constituem objetos de ensino
no processo que se inicia nas séries iniciais e deve-se estender por
todas as etapas de escolarização”.
A quinta operação envolve a releitura, revisão e reescrita
textual. A autora salienta que a função do professor é fazer com que
os textos dos alunos melhorem em todas as fases, tanto em relação
ao gênero de texto, quanto em relação à produção escrita
propriamente dita, daí a importância dessa quinta operação.
Segundo a autora, todo texto pode ser melhorado, não só na
arquitetura textual, mas também nas dimensões transversais da
produção escrita: “a ortografia, a pontuação, a organização
morfossintática do texto” (NASCIMENTO, 2014, p. 94). Essas são
as cinco operações necessárias para o domínio do gênero que se
quer trabalhar.
Para Bronckart (1999), essa ideia de operações reforça o
conceito de escrita processual, segundo a qual o texto é elaborado
de maneira gradual. Assim, “Em uma atividade dessa natureza, ele é
instigado a conceber a escrita como um processo passível de
aprimoramento e, ao se apropriar dessa percepção, passa a avaliar e
a criticar as próprias produções (PEREIRA e MALAQUIAS, 2012,
p. 78)”.

PERCURSO METODOLÓGICO: PRODUÇÃO E


ANÁLISE DE PRODUÇÕES TEXTUAIS

Em nossa análise, utilizamos produções textuais de aulas de


Língua Portuguesa. Essas produções fizeram parte da pesquisa de
mestrado: Análise de Gestos Didáticos em atividades de escrita na aula de
Língua Portuguesa, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras: Cultura, Educação e Linguagens da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia – UESB e, foram obtidas na fase de
observação da pesquisa etnográfica.
As produções textuais utilizadas são de duas turmas do
ensino médio. Na análise em questão, verificaremos se nessa
atividade, as “operações” foram respeitadas, pois, segundo Dolz,

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 174


Gagnon e Decândio (2010), elas são “conjunto de operações que
encerram obstáculos para o domínio do gênero enquanto
instrumento de uma ação linguageira” (NASCIMENTO, 2014, p.
103).
Os textos das imagens nº 01 e 02 obtiveram um conceito
razoável na avaliação professora, já que a atividade valia 2,0 pontos
e a aluna obteve 1,6. Houve uma aula sobre dissertação, no entanto,
o tema da dissertação foi livre. A professora nos informou que não
houve discussão coletiva, textos de leitura prévia, nada que pudesse
dar informações ao aluno sobre o tema a ser discorrido. Apenas
foram sugeridos os temas e os alunos escolheriam aqueles que
considerassem melhor para redigir.

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Figura nº 01 - Produção escrita

Fonte: MAIA, 2016.

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Figura nº 02 - Produção textual

Fonte: MAIA, 2016.

Segundo relatos da professora, os textos produzidos em sala


de aula como avaliação parcial da unidade. Depois de avaliados,
foram devolvidos aos alunos e pediu que eles “passassem a limpo”
todo o texto, corrigindo o que foi pedido. Na verdade, o processo
ocorre da seguinte maneira: a) O aluno produz o texto no caderno;
b) O aluno reescreve seu texto para evitar borrões e entrega à
professora para ser corrigido; c) A professora corrige erros de grafia

177 | 2018 – vol. II, nº 02


e ortografia, avalia e devolve o texto aos alunos; d) Os alunos
passam o texto a limpo para que a professora veja que os erros de
grafia e ortografia tenham sido corrigidos pelos alunos; e) a
professora devolve o texto aos alunos. No ponto “d”, a professora
apenas quer ver se o aluno se dispôs a corrigir os erros apontados
por ela, mas o texto do aluno já foi avaliado anteriormente e recebeu
um conceito, que não será mudado. Nos textos analisados, os alunos
ainda terão que passar a limpo para devolver à professora.
Lembrando que, nessa aula de “passar a limpo” eles fazem isso
durante toda a aula e tiram dúvidas quanto a questões estruturais.
Em relação ao conjunto de “operações” necessárias para a
produção textual, mencionadas por Dolz, Gagnon e Decândio
(2010), extraímos as seguintes compreensões da prática de ensino
de língua portuguesa empreendida pelos alunos, revelando indícios
da produção escrita das imagens n 01 e 02:
Na primeira operação que se refere ao contexto de
produção, situação de comunicação, percebemos que, a aluna tentou
produzir um texto voltado ao contexto escolar, tentou adequar a
linguagem à situação de produção;
Na segunda operação que tem relação direta com o
conhecimento que o autor tem sobre o tema desenvolvido, notamos
que pela falta de fundamentação na sua argumentação, a autora não
pesquisou, não se informou melhor sobre o tema que se propôs
escrever, pois as ideias centrais do texto não foram bem
desenvolvidas, bem fundamentadas, em nenhum dos dois textos.
Em relação à correção da professora, em momento algum ela fez
anotações do tipo: melhorar a argumentação, desenvolver melhor as
ideias do texto, etc. Não houve posicionamento na correção textual
acerca do conteúdo presente nos textos da aluna.
Na terceira operação que tem a ver com a planificação do
texto. Sabemos que há diferentes formas de planificação de acordo
com os textos. Nesse ponto, a professora apontou o maior
problema da autora em questão. Na concepção da professora, o
texto dissertativo deve possuir três partes constituintes: introdução,
desenvolvimento e conclusão. A autora, em questão escreveu seu

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 178


texto em apenas um parágrafo, fato que mostra a inadequação do
seu tipo de texto, de acordo com a professora.
Ademais, a professora diz que a autora utilizou um parágrafo
muito longo que, também, é inadequado ao tipo de texto produzido
em questão. E mesmo que a introdução, o desenvolvimento e a
conclusão estivessem incluídos, aí, num único parágrafo, tal fato não
foi observado pela professora, pois o aluno não seguiu as normas
de construção de um texto dissertativo (de acordo com as regras
sugeridas pela professora).
A quarta operação está relacionada à textualização e às
dimensões transversais. Esta quarta operação é essencial para que o
destinatário compreenda a mensagem que receberá. Nesse ponto, o
texto da autora também apresenta grandes problemas: em relação à
ortografia, quando a mesma escreve “pois meche bastante com o
psicológico da pessoa”, e “Assunto bem comum e que é bastante
descutido nas escolas”. A autora apresenta problemas em relação às
escolhas lexicais, como na frase a seguir, “e acaba que a pessoa se
restrinja da sociedade”, ou seja, a má escolha lexical produziu uma
incoerência de sentido na frase. Outro problema foi em relação à
paragrafação, como já dissemos acima, (utilizou um único parágrafo
e, este parágrafo foi muito longo) e, por último, há também
problemas de pontuação. Todos esses problemas detectados podem
comprometer a compreensão da mensagem pelo destinatário e
foram corrigidos pela professora.
A quinta operação está relacionada à revisão, reescrita
textual. Nessa perspectiva, notamos que a professora não pediu ao
aluno que reescrevesse o texto. O texto foi produzido para a escola
com o objetivo de ser avaliado. A professora, logo após ter avaliado
através de um conceito, devolveu o texto ao aluno, apenas com
correções de aspectos gramaticais, tais como a ortografia das
palavras “anti-ético”, ridiculo, meche e, outras correções citadas nos
tópicos anteriores. Sem a atividade de reescrita, o aluno não teve a
oportunidade de rever o que escreveu, de ler mais e produzir um
texto melhor, apenas teve a oportunidade de passar a limpo os erros

179 | 2018 – vol. II, nº 02


de ortografia, regência, concordância, que foram corrigidos pela
professora.
Pelos pressupostos do ISD, as produções não foram bem
sucedidas, pois por mais que as alunas tentassem adequar a
linguagem à situação de produção e ao destinatário, elas falharam na
segunda operação que tem tudo a ver com informação sobre o que
se diz, com o uso da argumentação correta, etc. No entanto, a
professora corrigiu quanto ao uso da 1ª pessoa do singular, segundo
ela, a orientação é que o autor não se inclua no texto e nem cite fatos
de sua vida particular, mas a autora em questão o faz, como
podemos perceber ‘ [...] eu sou totalmente contra e acho uma total
agressão[...]”.
Nos textos analisados, houve também problemas quanto à
planificação, ou ao estilo composicional do gênero escolhido e,
também problemas na textualização que podem dificultar a
compreensão do texto pelo destinatário, ou seja, problemas de
ordem estruturais, que também são importantes, mas devem não ser
vistos como “prioridade” na produção textual, como fazem as
professoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo os pressupostos do ISD para as atividades de


produção textual, as atividades de reescrita têm papel fundamental.
Os estudos linguísticos acerca dos processos de escrita nos falam
que tais processos são compostos por três fases: o planejamento, a
escrita e a revisão (reescrita). Pensando na produção textual “ não
basta ao professor indicar a necessidade de que o texto seja reescrito
para tornar a atividade produtiva. É preciso elencar critérios que
sejam significativos e que considerem o texto em sua dimensão
global” (LEITE, 2012, p.141).
A atividade de reescrita pode ser entendida como uma
atividade de reflexão sobre a própria escrita, isso depois de uma
atividade de produção textual (em sua primeira versão) para que o
próprio agente- produtor possa refletir e reconhecer suas

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 180


dificuldades e que possa atuar sobre elas. Ademais, é uma atividade
de extrema importância, pois os alunos se veem como sujeito ativos
na co-construção do conhecimento, na medida em que eles próprios
resolverão os problemas que possuem nas atividades de escrita.
“Nesse sentido, a reescrita, como uma das etapas do processo de
produção textual, pode ser um instrumento muito importante para
a apropriação pelos alunos dessa complexa dinâmica escrita”
(LEITE, 2012, p. 143).
Nas atividades de reescrita, a correção é tida com parte do
processo de aprendizagem da escrita, ou seja, “um elo na cadeia da
interação” (LEITE, 2012, p. 145). A correção inserida nesse
processo mais amplo, deixa de ser uma etapa final de mensuração
do produto e passa a ter uma perspectiva processual. No entanto,
nas amostras de produções textuais brevemente analisadas, as
professora não fizeram uso dessa operação, a operação de reescrita,
que é considerada de extrema importância para o aprendizado do
gênero escolhido.
Em suma, depois desta pequena análise, percebemos que as
professoras trabalharam, com tipologia textual em vez dos gêneros
do discurso. Ademais, seria bastante interessante se elas, na verdade,
observassem se as cinco operações necessárias para a produção
textual bem-sucedida, como entendem Dolz, Gagnon e Decândio
(2010) foram respeitadas pelos alunos em suas produções.
Em primeira instância, antes de solicitar uma produção
textual, seria importante organizar outros meios para que os alunos
tivessem contato com o tema que vão escrever, para que eles
possam argumentar e desenvolver as capacidades de ação
necessárias para a produção. Ou seja, “[...] reconhecimento da
prática de referência associada aos textos do gênero; pesquisa, leitura
e exposição de textos do gênero em foco; discussões prévias sobre
o contexto de produção dos textos desse gênero [...]”
(NASCIMENTO, 2014, p. 106). É de fundamental importância que
os alunos possam

181 | 2018 – vol. II, nº 02


[...] reconhecer a função social do gênero, o valor
que é indexado a ele, ou seja, o instrumento pelo
qual o cidadão se posiciona enquanto cidadão
crítico a fim de reivindicar, opinar e contextar,
tendo em vista destinatário(s) e suporte es-
pecíficos para sua enunciação (NASCIMENTO,
2014, p. 106).

Acreditamos que essas atividades de estudo da prática sejam


de fundamental importância, pois como preconiza a LA, os
professores devem repensar a sua prática pedagógica, pois muitas
vezes, o nosso agir está tão arraigado às práticas corriqueiras do
ambiente escolar (devido a muitos anos de experiência, por
exemplo), que não estamos “abertos” a modificações no nosso
modo de agir.

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TEXTUAL PRODUCTION IN A PORTUGUESE
LANGUAGE CLASS: A SOCIODISCURSIVE APPROACH

ABSTRACT: This article thematizes copyright didactic gestures of


the teacher in the classes of textual production in the discipline
Portuguese Language, in high school. The planning / writing /
rewriting triad of the text is the orientation for the development of
the activity in the classroom. For the production of the data, we
took as basis the ethnographic approach of the research and the
Applied Linguistics, using the recognition of indications of the
discursive practices of the Portuguese class, to reveal and interpret
the nature of the specific didactic gestures of the textual production
class. The analysis revealed that the constitutive operations of the
gestures were not mobilized by the teachers, and that the
dimensions of orality and the social function of the discursive genre
are not explored and, to illustrate the results, teaching activities
applied to students are presented, as part of the class plan.

KEYWORDS: Textual production; Sociodiscursive


Interactionism; Teaching Portuguese.
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A INGLATERRA PÓS-PRIMEIRA
GUERRA MUNDIAL, A LUTA
DE CLASSES E A
INDUSTRIALIZAÇÃO
NO ROMANCE O AMANTE DE
LADY CHATTERLEY

Leopoldina Ramos de FREITAS1

RESUMO: Sabemos que a literatura registra múltiplos aspectos do campo social


em que ela se insere. Partindo deste pressuposto, este artigo tem como finalidade
estabelecer uma relação entre história e literatura através do romance O amante de
lady Chatterley escrito pelo modernista inglês D. H. Lawrence. Para atingir este
objetivo, fizemos uma análise de algumas passagens deste romance que
descrevem o período pós-Primeira Guerra Mundial, a luta de classes e o processo
de Industrialização na Inglaterra do início do século XX.

PALAVRAS-CHAVE: Romance. Luta de classes. Industrialização. Pós-


Primeira Guerra mundial.

INTRODUÇÃO

Muito se tem discutido acerca do uso de obras literárias


como fontes históricas. Esta relação é objeto de estudo de umas das
vertentes da História Cultural, que debate sobre as aproximações e
os distanciamentos entre história e literatura. Para Pesavento (1998,
p.22), há um “empenho, tanto por parte da literatura quanto da
história, de compor uma construção do real de forma a torná-la
crível, desejável, aceita”.

1 Aluna do Mestrado Interdisciplinar em História e Letras (MIHL) da


FECLESC/UECE. E-mail: leopoldina_90@hotmail.com

187 | 2018 – vol. II, nº 02


Não faz parte das intenções do texto literário provar que os
fatos narrados tenham acontecido concretamente, mas a narrativa
apresenta em si uma explicação do real e traduz sua sensibilidade
diante do mundo, recuperada pelo autor (PESAVENTO, 1998).
David Hebert Lawrence, em seu livro O amante de Lady Chatterley,
consegue recuperar e fazer com que o leitor vivencie toda a
atmosfera da Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial. A leitura
deste romance nos permite sentir o cheiro da combustão, do
enxofre, do carvão e do ferro proveniente das minas de uma
Inglaterra em processo de industrialização.
A percepção do ambiente das Midlands Inglesas é possível
porque Lawrence retrata não apenas as paisagens, mas também as
relações entre os mineiros que habitavam aquela região e seus
patrões. Essa contextualização do texto com o qual se trabalha, de
acordo com Barros (2004, p.137-138), é:

[...] indispensável para elucidar o lugar em que foi


produzido, seu estilo, sua linguagem, a história do
autor, a sociedade que envolve e penetra o
escritor e seu texto. A época, a sociedade, o am-
biente social e cultural, as instituições, os campos
sociais, as redes que estabelece com outros textos,
as regras de uma determinada prática discursiva
ou literária, as características do gênero de escrita
que se inscreve no texto, são questões que
permeiam o texto escrito e constrangem o autor
de um texto, deixando nele suas marcas.

Sabendo que “a literatura registra e expressa aspectos


múltiplos do complexo, diversificado e conflituoso campo social no
qual se insere e sobre o qual se refere” (BORGES, 2010, p. 98),
escrevemos este artigo que traz uma análise de algumas passagens
do romance O amante de lady Chatterley que fazem referência ao pós-
Primeira Guerra, ao processo de industrialização e à luta de classes
na Inglaterra do início do século XX.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 188


2 D. H. LAWRENCE E SEU ROMANCE
O AMANTE DE LADY CHATTERLEY

David Herbert Lawrence, mais conhecido como D. H.


Lawrence, nasceu em 1885, foi o quarto dos cinco filhos de uma
família de mineiros em Eastwood, Inglaterra. Aos doze anos,
Lawrence recebeu uma bolsa de estudos para frequentar a escola
secundária de Nottingham, entretanto, cinco anos depois, deixou a
escola para empregar-se como escriturário.
Em 1911, Lawrence publicou seu primeiro romance, The
white peacocke (O pavão Branco). No ano seguinte, 1912, ele
conheceu Frieda Weekley, esposa alemã de um professor da
Nottingham University College, onde ele havia estudado; Frieda,
mais tarde, divorciou-se do marido e casou-se com Lawrence. O
casal tinha uma vida sexual ruidosa e tumultuada, contudo, isso não
era segredo, uma vez que os amigos do autor sempre eram
informados dos vários estágios de sua vida amorosa e sexual através
de cartas e conversas.
Em 1913, Lawrence publica Filhos e Amantes, cujo enredo
gira em torno da dramática vida familiar de um mineiro. Seu livro O
arco-íris (1915) foi proibido na Inglaterra, assim como seu último
romance O amante de Lady Chatterley. O romance Mulheres apaixonadas
(1918) gerou enorme controvérsia nos meios literários e passou três
anos para ser publicado devido à falta de editor.
Depois da Primeira Guerra Mundial o autor viajou para
muitos países, dentre eles Austrália, Estados Unidos e México. Em
1925 retornou à Europa, tendo morado muitos anos na Itália e na
França. Morreu vítima de tuberculose em 1930, em Vence, no Sul
França, aos 44 anos de idade.
De acordo com SILVA (2016), D. H. Lawrence é, na
atualidade, um dos maiores nomes relacionados a literatura
modernista e sua obra vai além dos escândalos envolvendo
moralidade, uma vez que ele aborda em seus trabalhos assuntos
referentes à realidade da população da época, à condição feminina,

189 | 2018 – vol. II, nº 02


à diferença entre as classes, aos benefícios e malefícios da revolução
industrial, à urbanização e ao capitalismo.
Para Soares (2007), muito do interesse popular pela obra de
Lawrence ocorre devido a uma certa mistificação a respeito da
natureza controversa de seus temas principais, visto que ele des-
creveu a sexualidade de seus personagens com honestidade im-
pressionante não apenas para explorar com ironia os estereótipos
burgueses sobre a virilidade da classe trabalhadora, mas também
para debater os resultados catastróficos da industrialização e da
chamada modernidade na vida contemporânea. “Tudo isso visto
pelo olhar que percebe os efeitos da história tanto nos grandes fatos
quanto no pormenor das relações humanas mais íntimas”
(SOARES, 2007, p. 84).
Ainda de acordo com Soares (2007), a infância de Lawrence
na cidade de Eatswood, centro da indústria de mineração britânica
na época, foi uma experiência marcante que contribuiu para a
elaboração de uma visão crítica da sociedade de classes e o instigou
a desenvolver uma linguagem que pudesse capturar formalmente a
experiência de pessoas cujas vidas não costumavam ser retratadas
na literatura.
O romance O amante de lady Chatterley foi censurado, quando
publicado pela primeira vez em 1928, e passou por alterações
significativas que renderam três diferentes versões da obra até ser
novamente publicado, em sua versão original, 32 anos depois. As
descrições detalhadas do ato sexual, o uso de palavras consideradas
indecentes, a relação entre uma mulher burguesa e um empregado,
bem como a crítica à guerra, foram temáticas abordadas nesse
romance que afrontaram a moralidade vitoriana conservadora que
dominava o cenário artístico na Inglaterra.
Em 1959, o Parlamento Britânico alterou a lei sobre
publicações obscenas e passou a considerar o mérito literário de
obras anteriormente consideradas pornográficas. Aproveitando-se
dessa alteração, a editora Penguin, em 1960, anunciou que publicaria
o controverso romance de D. H. Lawrence, que já circulava no
Reino Unido em edições piratas. A publicação foi considerada ilegal

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 190


e o Estado processou a editora, o que ocasionou um dos
julgamentos de obscenidades mais famosos do século XX. Apesar
das tentativas do Ministério Público de banir o romance, a defesa
conseguiu provar o mérito cultural do livro e o júri absolveu a
editora.
O romance O Amante de Lady Chatterley é ambientado na
Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial, um país que passa por um
rápido processo de modernização. Sua personagem principal é
Constance Chatterley, ou Lady Chatterley, uma jovem burguesa
liberal e intelectual que teve sua primeira experiência sexual antes do
casamento. Em 1917, Constance casou-se com o herdeiro das minas
de carvão de Wragby, Clifford Chatterley, quando ele veio passar
um mês de folga do exército em casa. Os dois tiveram apenas um
mês de lua de mel, que foi interrompida pela volta de Clifford para
Flandres. Seis meses depois, ele retorna à Inglaterra, em frangalhos,
paraplégico e impotente. Desde então, ele passa a escrever romances
e a cuidar de suas minas de carvão mineral, enquanto Constance
passa a ter uma vida estéril, vazia e sem emoção.
O casal vai morar na mansão Wragby Hall, próxima as minas
de carvão de Clifford. Constance sente-se oprimida com o local e
com a impotência do marido. O pai de Connie (apelido para
Constance), preocupa-se com o estado da filha ao fazer-lhe uma
visita e sugere que ela não viva como uma semivirgem:

Em seu segundo inverno em Wragby , o pai lhe


disse: “Espero, Connie, que você não vá deixar
que as circunstâncias a forcem a viver como uma
demi-vierge.” “Demi-vierge?”, respondeu Connie, de
novo com uma expressão vaga. “Por quê? E por
que não?” “A menos que você goste, claro! ”,
emendou o pai às pressas. (LAWRENCE, 2010,
p. 64).

Ele também conversa com Clifford, afirmando que o fato


da filha viver como uma semivirgem não está lhe fazendo bem, uma

191 | 2018 – vol. II, nº 02


vez que ela está “magra e angulosa” (LAWRENCE, 2010, p. 64).
Isso faz com Clifford acabe refletindo sobre o estado semivirginal
da vida de sua esposa, o que o leva a sugerir que ela tenha um filho
com outro homem, para que a tradição e o nome de sua família não
morressem com ele.
Após refletir sobre o que seu pai lhe disse e chegando a
conclusão de que o marido não se importaria, desde que não
soubesse nem fosse obrigado a ver, Constance envolve-se com um
escritor que frequenta a casa do casal, contudo, como ela não
consegue satisfazer-se sexualmente com ele, o romance não vinga.
Depois de algum tempo, Connie adoece e vai tratar-se em Londres,
o que faz com seu esposo contrate uma enfermeira para cuidar dele.
Ao retornar, ela acaba sentindo-se mais livre, pois o marido havia se
afeiçoado a enfermeira e já não requisitava seus cuidados como
antes.
Constance passa a caminhar pela propriedade do marido
com frequência para distrair-se e, em um desses passeios, encontra-
se com Oliver Mellors, o guarda-caça de Clifford. No início, Mellors
tenta evitar qualquer tipo de intimidade com a mulher do patrão,
mas não consegue resistir. Os dois acabam envolvendo-se em um
relacionamento afetivo e sexual.
Constance engravida e Clifford descobre que o filho era de
Mellors, seu guarda-caça, por quem ele nutria um imenso ódio.
Clifford despede Mellors, que viaja para o interior e passa a trabalhar
em uma fazenda. Connie viaja com sua irmã para a Escócia e fica
aguardando o divórcio, para poder, finalmente, unir-se a Mellors.
Segundo Soares (2007, p. 84), o interessante desta obra
reside no fato de que:

[...] Lawrence dissecou a sexualidade de seus


personagens com honestidade impressionante
não apenas para explorar com ironia ácida os
estereótipos burgueses sobre a virilidade da classe
trabalhadora, mas também para discutir os efeitos
catastróficos da industrialização e da chamada
modernidade na vida contemporânea.

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Para Lessing (2010), embora seja um livro que
supostamente fala sobre o sexo, O amante de lady Chatterley, na
verdade, é um romance permeado pela Primeira Guerra Mundial e
todo o seu horror. De acordo com esta autora:

Muitas vezes o tema central ou fundamental de


uma obra não é percebido. Outro dia, ouvi um
grupo de jovens sensíveis e inteligentes discutin-
do O senhor das moscas no rádio, praticamente sem
mencionar por que Golding escreveu o livro, a
dor que o inspirou. Golding era um romântico
idealista - como os jovens tendem a ser - quando
a Segunda Guerra Mundial começou, mas viu o
que os seres humanos são capazes de fazer uns
aos outros, culminando nos campos de morte
nazistas, e seu velho coração se partiu. O resul-
tado foi O senhor das moscas. Mas os filhos da paz,
pessoas que nunca sofreram esse grande choque
para o coração e a mente, conseguiram discutir o
romance por uma hora inteira sem mencionar a
experiência central que levou a ele. Foi a coisa
mais estranha, especialmente quando a pessoa
conheceu William Golding e o ouviu falar sobre
o que lhe aconteceu. E o mesmo ocorre com O
amante de lady Chatterley em relação à Primeira
Guerra Mundial. Grandes calamidades públicas
que marcam as psiques de um povo, de um país,
permanecem vivas nos pesadelos das pessoas,
mas levam tempo para aflorar à consciência - não
temos facilidade para lidar com o horror.
(LESSING, 2010, p. 16-17).

Na próxima seção discutiremos como D. H. Lawrence


usou a primeira guerra mundial como cenário para o desenvolvi-
mento do romance que estamos abordando.

3 A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL COMO PANO DE


FUNDO PARA O ROMANCE O AMANTE DE LADY
CHATTERLEY.

193 | 2018 – vol. II, nº 02


No início do romance, Lawrence já anuncia que ele foi
ambientado em uma Inglaterra pós-Primeira Guerra Mundial ao
dizer:

Nossa época é essencialmente trágica, por


isso nos recusamos a vê-la tragicamente. O
cataclismo já aconteceu e nos encontramos
em meio às ruínas, começando a construir
novos pequenos habitats, a adquirir novas
pequenas esperanças. É trabalho difícil:
não temos mais pela frente um caminho
aberto para o futuro, mas contornamos ou
passamos por cima dos obstáculos.
Precisamos viver, não importa quantos
tenham sido os céus que desabaram. Era
esta mais ou menos a posição de Constance
Chatterley. A guerra derrubara o teto sobre
sua cabeça. E ela percebera que todos
precisamos viver e aprender.
(LAWRENCE, 2010, p. 45).

Constance e sua irmã Hilda foram mandadas para Dresden,


Alemanha, aos quinze anos de idade. As duas viviam em meio a
alguns estudantes com os quais discutiam questões filosóficas,
sociológicas e artísticas, como também se divertiam muito ao lado
de seus namorados alemães. Elas eram livres, à solta no vasto
mundo. “Entretanto, começou a guerra. Hilda e Connie foram
trazidas às pressas de volta para casa - depois de já terem vindo
passar algum tempo na Inglaterra em maio, para o enterro da mãe.
Antes do Natal de 1914 seus rapazes alemães já tinham morrido[...]”
(LAWRENCE, 2010, p. 51).
Como efeito da primeira guerra mundial no romance, temos
a morte do mais velho dos irmãos Chatterley, Herbert, e a paralisia
do mais novo, Clifford. Além disso, Sir Geoffrey, o pai de Clifford,
fornecia madeira de sua fazenda para servir como esteios de
trincheiras e também enviava alguns de seus mineiros para a guerra,
como podemos constatar pelo trecho a seguir:

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 194


Sir Geoffrey, o pai de Clifford, era intensamente
ridículo, abatendo suas árvores e escolhendo,
entre seus mineiros, homens que empurrava para
a guerra; enquanto ele próprio se mantinha a
salvo e intensamente patriótico; por outro lado,
gastando com seu país mais dinheiro do que na
verdade possuía. (LAWRENCE, 2010, p. 53).

Em uma das conversas entre família, os Chatterley falavam


a respeito “ [...] dos soldados rasos, da ameaça do recrutamento e da
escassez de açúcar e doces para as crianças” (LAWRENCE, 2010,
p. 54). Essa “ameaça de recrutamento” mencionada no romance faz
referência ao fato do Reino Unido ter instituído, em 1916, o serviço
militar obrigatório para os homens capazes entre os dezoito e os 41
anos de idade.
Algumas personalidades históricas também são citadas em
alguns pontos do romance, como podemos observar na passagem a
seguir na qual Constance critica o governo e a guerra:

[...] e todo governo era ridículo: especialmente do


tipo que temos, sempre esperando para ver o que
acontece. E todo exército era ridículo, e todo
general velho e incompetente: especialmente o
rubicundo Kitchener. Até a guerra era ridícula,
embora matasse de fato muita gente. Na verdade,
tudo era um pouco ridículo, ou muito ridículo: e
sem dúvida tudo que tivesse a ver com a autori-
dade, fosse no governo, no exército ou nas uni-
versidades, também era ridículo até certo ponto.
E à medida que a classe governante tinha alguma
pretensão de governar, era ridícula também.
(LAWRENCE, 2010, p. 53)

Horatio Herbert Kitchener foi um marechal de campo


imortalizado durante a Primeira Guerra Mundial por um famoso
cartaz de recrutamento em que seu rosto e o indicador apontado
apareciam por cima dos dizeres “Seu país precisa de você”. Ele
tornou-se secretário de Estado para a Guerra em 1914 e foi
responsável por uma imensa expansão do exército britânico.

195 | 2018 – vol. II, nº 02


Em alguns trechos do romance, Lawrence faz questão de
descrever os muitos efeitos da guerra na vida dos personagens,
como na passagem a seguir, em que Constance observa como a
guerra deixou marcas na personalidade de seu marido:

[...] e ela percebeu então, de maneira ainda vaga,


uma das grandes leis da alma humana: quando a
alma emocional sofre um choque violento que
não mata o corpo, dá a impressão de recuperar-
se ao mesmo tempo que o corpo. Mas é simples
aparência. Na verdade, trata-se apenas da mecâ-
nica do hábito retomado. Aos poucos, muito aos
poucos, as marcas na alma começam a se revelar,
como uma ferida que só gradualmente aprofunda
sua dor terrível, até preencher enfim toda a
psique. E, quando achamos que estamos recu-
perados, que já nos esquecemos, é então que os
terríveis efeitos secundários se manifestam em
seu grau mais violento. (LAWRENCE, 2010, p.
111).

Sobre a passagem acima, Lessing (2010, 24) afirma que em


uma primeira leitura do romance não havia percebido que “ [...]
homens e mulheres sobrevivem às guerras aparentemente intactos,
mas feridos por dentro, podendo não se recuperar nunca. Milhões
deles, em toda parte”. Esta autora acredita “que este romance seja
um dos mais poderosos jamais escritos contra a guerra”.
(LESSING, 2010, p. 24).
Em O amante de lady Chatterley, Lawrence também retrata um
pouco do processo de industrialização na Inglaterra pós-Primeira
Guerra Mundial, bem como o estabelecimento de uma consciência
de classe social que veremos na próxima seção.

4. INDUSTRIALIZAÇÃO E CLASSE SOCIAL NO


ROMANCE O AMANTE DE LADY CHATTERLEY

Na concepção de Stevens (2007), o fato de Lawrence ter


crescido em Eastwood, centro da indústria de mineração britânica,

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 196


fez com que ele tivesse um conhecimento íntimo do industrialismo
rural que ocorria na época. Sua ficção descreve o ambiente das
Midlands inglesas com alguns componentes do pastoralismo
tradicional inglês - as casas de campo, os jardins, os pastos, as
árvores e as florestas - opondo-se aos resíduos de poluição e às
atividades frenéticas das minas e fábricas. Estes contrastes são muito
bem explorados no romance O amante de lady Chatterley, uma vez que
nele é descrita a interferência do que Lawrence chama de
“mecânico” na paisagem e no modo de viver da sociedade.
Ainda de acordo com Stevens (2007), o já citado romance
oferece uma visão sombria do poder de destruição da
industrialização e da modernidade. O impacto da modernidade é
mostrado através do retrato que Lawrence faz da vida humana e as
descrições de paisagens que foram devastadas pelas indústrias,
minas de carvão e fábricas. O autor capta em sua escrita “[...] os
confrontos violentos do ambiente industrial, seus cheiros, seus sons,
suas texturas, seus esplendores visuais terríveis [..]” (STEVENS,
2007, p. 143, tradução nossa). Na passagem a seguir, temos uma
descrição que exemplifica essa afirmação de Stevens:

[...] no entanto, depois de percorrer lentamente e


com cautela toda a extensão dos seus limites —
uma caminhada de quase dez quilômetros —, ele
ficou cansado. Subiu ao alto do morrote e olhou
à sua volta. O único som era o ruído, abafado e
arrastado, da mina de Stacks Gate, que nunca
parava de funcionar: e quase não havia luzes
acesas, salvo as fileiras de postes elétricos junto à
mina. O mundo inteiro dormia, mergulhado na
névoa e na escuridão. Eram duas e meia da
manhã. Mas mesmo adormecido o mundo era
desconfortável, cruel, agitado pelo rumor da
passagem de um trem ou de um caminhão
pesado, e manchado pelo fulgor de algum raio de
luz rosada emitido pelas fornalhas. Aquele era um
mundo de ferro e carvão, a crueldade do ferro e
a fumaça do carvão, e a cobiça infinita, infinita,
que regia tudo aquilo. Só a cobiça, a cobiça em
seu sono agitado. (LAWRENCE, 2010, p. 245).

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O romance também revela mudanças na paisagem da
Inglaterra, onde os casarões e castelos estavam dando lugar a
casinhas de tijolos, ferrovias e fábricas, delineando a Inglaterra
industrial:

Inglaterra, minha Inglaterra! Mas qual é minha


Inglaterra? As residências imponentes da
Inglaterra dão boas fotografias e criam a ilusão de
alguma conexão com os elisabetanos. Os belos
antigos palacetes ainda estão aí, desde os dias da
Boa Rainha Ana e de Tom Jones. Mas a fuligem
se acumula cada vez mais negra no revestimento
que há muito deixou de ser dourado. E um a um,
como os antigos castelos, são abandonados. E
agora estão sendo demolidos. Quanto aos chalés
da Inglaterra, ei-los ali — grandes extensões de
casinhas de tijolo na paisagem desolada. Agora
estão demolindo os antigos palacetes, e as
mansões georgianas estão desaparecendo. Assim
é a história. Uma Inglaterra anula a outra. As
minas fizeram a riqueza dos palacetes. Agora os
apagavam da paisagem, como já tinham
provocado o desaparecimento dos antigos chalés.
A Inglaterra industrial se sobrepunha à Inglaterra
agrária. Um significado oblitera o outro. A nova
Inglaterra oblitera a antiga. E a continuidade não
é orgânica, mas mecânica. (LAWRENCE, 2010,
p. 264).

Segundo Lessing (2010), Lawrence tinha uma visão sombria


do futuro que pode ser percebida pela forma como ele descreve a
industrialização, tão odiada por ele, em seus romances. Em 1926, o
autor esteve na Inglaterra e tornou a ver as paisagens de sua
juventude, os bosques e as campinas, completamente modificadas.
“O ódio do que ele viu está presente em O amante de Lady Chatterley”
(LESSING, 2010, p. 25), como podemos observar no trecho abaixo:

[...] porque quando eu sinto que o mundo dos


homens está condenado, que condenou-se a si
mesmo por sua própria estupidez mesquinha,

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 198


então eu sinto que as colônias ainda ficam perto
demais. Nem a lua fica longe o bastante, porque
mesmo de lá se pode ver a Terra, suja, feia, sen-
saborona entre os astros: arruinada pelos ho-
mens. Nessas horas eu sinto que engoli bílis pura,
que ela está corroendo minhas entranhas e não há
lugar longe o bastante para o qual se possa fugir.
Mas, quando tenho uma oportunidade, esqueço
tudo de novo. Embora seja um absurdo o que
fizemos com as pessoas nos últimos cem anos:
homens transformados em insetos trabalhadores,
toda a masculinidade removida, sem qualquer
vida autêntica. Por mim, eu faria desaparecer
todas as máquinas da face da Terra e acabaria de
uma vez por todas com a era industrial, um erro
pavoroso. (LAWRENCE, 2010, p. 264).

O amante de lady Chatterley também foi duramente criticado,


na época de sua primeira publicação, “por prejudicar o senso de
ordem, o sistema de classes e a moralidade do leitor” (GHAZEL,
2014, p. 2, tradução nossa). Neste romance Lawrence busca
“questionar as convenções vitorianas de classe e gênero”
(GHAZEL, 2014, p. 2, tradução nossa) ao escrever sobre um
relacionamento amoroso entre a esposa de um industrial aristocrata
e um guarda-caça. No período pré-guerra, as diferentes classes da
sociedade foram mantidas separadas e isto era considerado uma
característica natural, uma vez que poder, dinheiro e educação
mantiveram a supremacia de uma classe social sobre a outra. A
transgressão dos limites de classe em um romance escrito após a
primeira guerra chocava e ameaçava uma sociedade que buscava
estabelecer o status quo ante bellum.2
Segundo Ghazel (2014), este romance se organiza em duas
fases: a primeira busca desconstruir e destruir o sistema de classes
através de alguns questionamentos acerca da fundação do sistema
de classe britânico, mostrando seu vazio de valores; já a segunda,
começa ao abalar o senso de classe do leitor para depois propor uma

2 O termo status quo ante bellum é uma expressão em Latim que significa
literalmente "o estado em que as coisas estavam antes da guerra".

199 | 2018 – vol. II, nº 02


nova consciência de classe. “Esta fase converte o leitor em uma
nova experiência social baseada na sensualidade. Lawrence
transgride as fronteiras de classe ao liberar todas as classes sociais
das prerrogativas de classe e gênero”. (GHAZEL, 2014, p. 3,
tradução nossa).
Através do personagem Clifford, D. H. Lawrence expõe a
excentricidade da classe alta. O conflito entre Mellors e Clifford é
uma alegoria que busca representar o antagonismo entre as classes
operárias e as classes dominantes da Inglaterra do pós-guerra. Para
Ghazel (2014), a incapacidade de Clifford de misturar-se com
pessoas de ordem social mais baixa, aliada a sua falta de
sensualidade, ilustra a decadência e a falência intelectual da classe
alta. Seu comportamento arrogante nos mostra que a classe alta
insiste em querer governar os outros, apesar do vazio de deus ideais.
A devoção de Clifford pela fama e pelo dinheiro é típica dos
aristocratas que, mesmo não sendo capazes, reclamam o direito de
dominar as classes baixas. Na passagem abaixo, percebemos como
é representada, no romance, a relação entre os personagens Clifford
e Constance, que representam a classe alta, e os trabalhadores das
minas, classe inferior:

[...] não que ela e Clifford fossem impopulares —


apenas pertenciam a uma espécie completamente
diversa da dos mineiros. Abismo intransponível,
lacuna indescritível, como talvez não exista ao sul
de Trent. Mas, nas Midlands e no Norte fabril,
um abismo intransponível, através do qual
nenhuma comunicação poderia ocorrer — “Você
fica do seu lado e eu fico do meu! ” —, uma
estranha negação do pulso comum da
humanidade. (LAWRENCE, 2010, p. 59)

Além da dificuldade de relacionar-se com as pessoas de


classe social inferior a sua, Clifford também costumava tratar como
objeto os seus empregados que trabalhavam na mina:

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 200


[...] ainda assim, não tinha como deixar de sentir
o quanto eram fracas as ligações que ele na
verdade mantinha com as pessoas. Os mineiros
estavam, num certo sentido, sob seu comando;
mas ele os via antes como objetos que como
pessoas, mais parte da mina que da vida, antes
fenômenos naturais crus que seres humanos
como ele. De certa maneira ele os temia e não
suportava que olhassem para ele, agora que estava
aleijado. E a vida estranha e rude que levavam
parecia a Clifford tão pouco natural quanto a dos
porcos-espinhos. (LAWRENCE, 2010, p. 61)

A luta de Clifford para manter seu controle e supremacia


sobre os mineiros, tentando estabelecer a rigidez da ordem social
pré-guerra, “materializa o ódio de Lawrence pela industrialização e
sua desumanização dos trabalhadores. Clifford é o mestre, já que ele
possui os meios de produção, e os mineiros são sua posse”
(GHAZEL, 2014, p. 9, tradução nossa). Mesmo fornecendo seus
corpos e suas almas aos caprichos dos capitalistas, os trabalhadores
são apenas engrenagens na máquina do sistema produtivo. Clifford
representa os capitalistas e as classes altas na passagem a seguir, ao
afirmar que o processo de industrialização é benevolente e que é
necessário haver diferenças sociais:

“Mas os homens vão deixar que você dite os


termos?”, perguntou ela. “Minha cara, não vão ter
escolha: se fizermos com jeito.” “Mas não deveria
haver um acordo entre as partes?” “Claro:
quando eles entenderem que a indústria vem
antes dos indivíduos.” “Mas precisa ser você o
dono da indústria?”, disse ela. “Não. Mas à me-
dida que já sou, sim, preciso. A propriedade
transformou-se hoje numa questão religiosa:
como já vem sendo desde Jesus e são Francisco.
A questão não é ‘pega tudo que tens e dá aos
pobres’, mas usar o que você tem para desen-
volver a indústria e dar trabalho aos pobres. É o
único modo de alimentar todas as bocas e vestir
todos os corpos. Dar tudo que temos para os
pobres significa a fome para os pobres, além de

201 | 2018 – vol. II, nº 02


nós. E a fome universal não é uma meta elevada.
Nem a pobreza generalizada é bela. A pobreza é
feia.” “Mas a desigualdade! ” “É o destino. Por
que Júpiter brilha mais que Netuno? Não se pode
querer alterar a natureza das coisas!” “Mas depois
que essa inveja, esse ressentimento e esse
descontentamento principiam…”, começou ela.
“Há que se fazer o possível para detê-los. Alguém
precisa comandar o espetáculo! ” “Mas quem
comanda o espetáculo?”, perguntou ela. “Os
homens que possuem e administram as in-
dústrias.”

Nestas, como em outras passagens, percebemos que


Lawrence expressa o seu profundo descontentamento com o efeito
que o processo de industrialização e a existência de classes sociais
causam aos indivíduos. Contudo, o autor nos dá esperanças através
do romance entre Mellors, o guarda-caça, e Constance. A união
entre os dois é simbólica, na medida que anuncia uma possibilidade
de regeneração social que destrói a barreira entre as classes e que
pode resultar em uma transformação da indústria opressora.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura configura-se como uma reflexão daquilo que


existe e uma projeção daquilo que poderá vir a existir um dia. Ela
registra e interpreta o presente, reconstrói o passado e inventa o
futuro por meio de uma narrativa pautada no critério da
verossimilhança. Contudo, a literatura não tem a preocupação de
explicar o real, tampouco de comprovar os fatos. Esta é uma
preocupação da História.
Este trabalho procurou utilizar a literatura como um registro
que nos permite compreender as experiências humanas, os hábitos,
as atitudes, os pensamentos, as inquietações, as esperanças e os
sonhos de uma sociedade que foi retratada em uma determinada
época.

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Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 202


ENGLAND POST-FIRST WORLD WAR, CLASS FIGHTING
AND INDUSTRIALIZATION IN THE ROMANCE LADY
CHATTERLEY LOVER

ABSTRACT: We all know that literature records multiple aspects


of the social field in which it is inserted. Based on this assumption,
this article aims to establish a relationship between history and
literature through the novel Lady Chatterley’s Lover written by the
English modernist D. H. Lawrence. To achieve this goal, we have
analyzed some passages from this novel that describe the post-
World War I period, the class struggle, and the industrialization
process in England during the early twentieth-century.

KEYWORDS: Novel. Class struggle. Industrialization. Post-World


War I period.

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REFERÊNCIAS

BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especificidades e


abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

BORGES, Valdeci Rezende. História e Literatura: Algumas


Considerações. Revista de Teoria da História, Goiás, n. 3, p. 94-109,
jun. 2010. Disponível em:
<https://www.historia.ufg.br/up/114/o/ARTIGO__BORGES.p
df>. Acesso em: 28 maio 2018.

GHAZEL, Abdelfattah. Class Consciousness in D H Lawrence’s


Lady Chatterley’s Lover. International Journal of Humanities and Cultural
Studies, Saudi Arabia, n. 3, p. 1-19, dec. 2014. Disponível em <
https://www.ijhcs.com/index.php/ijhcs/article/view/46>.
Acesso em: 12 maio 2018.

LAWRENCE, David Herbert. O amante de lady Chatterley. Tradução


de Sergio Flaksman. São Paulo: Penguin Classics Companhia das
Letras, 2010.

203 | 2018 – vol. II, nº 02


LESSING, Doris. Introdução. In: LAWRENCE, David Herbert.
O amante de lady Chatterley. Tradução de Sergio Flaksman. São
Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2010.

SILVA, Ewerton Félix da. Os entremeios do simbólico no conto The


shadow in the Rose Garden, de D. H. Lawrence. 2016. 25 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Letras) – Universidade
Estadual da Paraíba, Guarabira, 2016. Disponível em:
<http://dspace.bc.uepb.edu.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123
456789/13267/PDF%20%20Ewerton%20Felix%20da%20Silva.p
df?sequence=1&isAllowed. Acesso em: 29 mar. 2018.

SOARES, Marcos. D. H. Lawrence: discutindo o sexo dos


ingleses. Cadernos entre livros: panorama da literatura inglesa. São
Paulo: dueto Editorial, v. 1, 2007. 84 p.

STEVENS, Hugh. D. H. Lawrence: organicism and the modernist


novel. The Cambridge Companion to the Modernist Novel. London:
Cambridge University Press, 2007. Disponível em: <
http://yunus.hacettepe.edu.tr/~jason.ward/ied388novel3/stevens
dhlorganicism.pdf>. Acesso em: 12 maio 2018.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da história e da


literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade
nacional. In: LEENHARDT, Jacques; PESAVENTO, Sandra
Jatahy (Orgs.). Discurso Histórico e narrativa literária. São Paulo:
editora da UNICAMP, 1998.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 204


PRÓSPERO E CALIBAN NA
RELAÇÃO ENTRE POLÍTICA
EXTERIOR E IDENTIDADE
NACIONAL NO BRASIL

Ludimila Stival CARDOSO1


Elias NAZARENO2

RESUMO: O objetivo deste trabalho é abordar possibilidades de uso da


dicotomia Próspero-Caliban, desde a peça que lhes deu origem até visões pós-
coloniais ou, até, decoloniais e como, ao mesmo tempo, pode ser usada como
metáfora ou mote para a discussão de uma possível proximidade entre política
externa e identidade nacional no Brasil. Mas o que significa Próspero e Caliban?
Quais debates esses termos levantam? E, principalmente, em que esses termos
nos ajudam a repensar o Brasil? Essas respostas são dadas a partir de releituras da
peça A Tempestade de William Shakespeare, em que Próspero e Caliban são dois
personagens. Tais releituras são feitas por autores pós-coloniais que reavaliam
questões importantes como as práticas discursivas, mas limitados por desejar falar
pelo Outro, não permitindo a construção de espaços reais de práticas de leitura
alternativas. Por isso caminhamos mais adiante até a perspectiva decolonial e a
“ecologia de saberes” de Boaventura de Sousa Santos.

PALAVRAS-CHAVES: Próspero; Caliban; Brasil; identidade nacional; política


exterior.

Sinto-me nascido a cada momento


Para a eterna novidade do Mundo.
Fernando Pessoa

1 Graduada em Relações Internacionais, pela PUC-Góias, mestre em


Comunicação, pela Universidade Federal de Goiás, com bolsa da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, e aluna do Programa
de Pós-Graduação em História, nível doutorado, da Universidade Federal de
Goiás, bolsista da CAPES. E-mail: luluscmo@hotmail.com.
2 Pós-doutor em Sociologia pela Universidad de Barcelona com bolsa do

Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq,


Doutor em Sociologia pela Universidade de Barcelona, ex-Pesquisador Associado
Sênior do IREL/UnB, Pesquisador Associado do Centro Argentino de Estudios
Internacionales - CAEI. E-mail: eliasna@hotmail.com.

205 | 2018 – vol. II, nº 02


ESCLARECIMENTO NECESSÁRIO

Esse artigo, cabe esclarecer logo no início, representa


pesquisas iniciais sobre o tema “De Caliban a Próspero: A
Identidade Brasileira e a Política Externa Republicana (1889-2010)”,
realizadas no doutorado em História da Universidade Federal de
Goiás, na linha de pesquisa Fronteiras, Interculturalidades e Ensino
de História, iniciado neste ano.
Quando resolvemos pesquisar sobre política externa e
identidade nacional no Brasil sabíamos que era importante visitar
algumas áreas correlacionadas, como a Antropologia, a Histórias e
as Relações Internacionais, à qual essa pesquisa mais se atem por
primar pelo estudo da política externa brasileira no período
republicano.
Ao mesmo tempo, sabemos que este campo de estudo –
Relações Internacionais - é algo ainda um tanto insipiente,
sobretudo no Brasil, pois, como explica Márcio Roberto Voigt em
artigo intitulado A teoria dos sistemas-mundo e a política
internacional: uma abordagem alternativa das teorias das
Relações Internacionais3, a construção desse campo teórico
realizou-se apenas no século XX, o que se justifica se pensarmos
que é somente nesse século que o sistema internacional se formata
tal qual o conhecemos na atualidade.
A entrada tardia de Relações Internacionais na arena
acadêmica faz com que a área ainda careça de uma série de pesquisas
em objetos ainda não estudados ou pouço vistos, assim é o caso em
que nos colocamos, com uma fraca discussão – senão ausência –
sobre a correlação entre política externa brasileira e identidade
nacional.
Diz-se fraca porque o levantamento bibliográfico mostrou,
até o momento, poucos trabalhos nessa temática, entre eles O dia

3VOIGT, Márcio Roberto. A Análise dos Sistemas Mundo e a Política Internacional:


Uma Abordagem Alternativa das Teorias das Relações Internacionais. Textos de
Economia, v. 10, p. 101-118, 2007.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 206


em que adiaram o Carnaval: política externa e a construção do
Brasil4, de Luís Cláudio Villafañe G. Santos, lançado em 2010 pela
UNESP, mas que se prende ao início do século XX, período em que
José Maria Paranhos da Silva Júnior – Barão do Rio Branco – foi
ministro das Relações Exteriores do Brasil (1902-1912) e, o
território nacional, praticamente, assumiu os atuais contornos.
Daí se pensar na novidade de nossa empreitada, já que
buscamos debater sobre a referida correlação, não nos restringindo
como faz Villafañe a dez anos, mas procurando enxergar como a
política externa pôde colaborar na construção de nossa identidade
nacional, especificamente no período republicano de 1889 a 2010.
Por hora cabe deixar claro que a identidade nacional é nosso
pano de fundo para o estudo da política externa brasileira a partir da
República e, a dicotomia Próspero-Caliban é uma metáfora, o mote
de tal estudo. Com isso queremos dizer que esse par dicotômico
apresenta relação de semelhança com o Brasil, seja este país Caliban
em sua identidade, ou assim se apresente para consumo interno, e
Próspero na política externa, quando se pensa na inserção brasileira
na África, principalmente de língua portuguesa, e na América do Sul,
onde tem assumido um papel de liderança regional.
Necessitamos, pois, visitar o par Próspero-Caliban
explicando-o, levantando suas possibilidades de uso em diversos
momentos e autores e, sobretudo, tentando perceber onde nos
encaixamos ou onde queremos nos localizar. Ou seja, qual uso ele
já teve, se queremos aproveitar algum já apresentado ou se faremos
uma conjugação de elementos apresentados em diferentes leituras
que surgiram a partir disso. Suspeitamos que a última opção acabará
nos seduzindo em função da novidade do tema e sua complexidade.
Nesse trabalho iremos, portanto, revisitar o par Próspero-
Caliban, procurando caminhar em suas formas de utilização e
esclarecer o porquê dessa escolha para dar nome à pesquisa. E,
finalmente, terminaremos mostrando, mesmo que de forma ainda

4SANTOS, Luis Cláudio Villafañe Gomes. O dia em que adiaram o Carnaval:


política externa e a cosntrução do Brasil. São Paulo: Ed. UNESP, 2010.

207 | 2018 – vol. II, nº 02


incipiente, a opção teórica a qual se prende esse texto: teoria
decolonial, que nos ajudará a repensar e desconstruir uma série de
leituras acerca do Brasil.
Comecemos, então.

A HISTÓRIA DE CALIBAN E PRÓSPERO

Está na hora do meu jantar. Esta ilha é minha;


herdei-a de Sicorax, a minha mãe. Roubaste-ma;
adulavas-me, quando aqui chegaste; fazias-me
carícias e me davas água com bagas, como me
ensinaste o nome da luz grande e da pequena, que
de dia e de noite sempre queimam. Naquele
tempo, tinha-te amizade, mostrei-te as fontes
frescas e as salgadas, onde era a terra fértil, onde
estéril... Seja eu maldito por havê-lo feito! Que em
cima de vós caia quanto tinha de encantos
Sicorax: besouros, sapos e morcegos. Eu, todos
os vassalos de que dispondes, era nesse tempo
meu próprio soberano. Mas agora me
enchiqueirastes nesta dura rocha e me proibes de
andar pela ilha toda.
[...]
A falar me ensinastes, em verdade. Minha
vantagem nisso, é ter ficado sabendo como
amaldiçoar. Que a peste vermelha vos carregue,
por me terdes ensinado a falar vossa linguagem
(A Tempestade, William Shakespeare, Ato I,
Cena 2).

Esse trecho acima representa duas falas de Caliban,


personagem da peça de William Shakespeare, intitulada A
Tempestade5 que, segundo Carlos Túlio da Silva Medeiros (2011)6,

5 Usa-se essa peça, esclarece Almquist (2006), porque Shakespeare é um ícone


hegemônico e a medida da relação entre europeus e não-europeus, além de A
Tempestade poder simbolizar o estabelecimento de relações mais subservientes
entre colonizados e colonizadores, considerando-se que uma das justificativas
para a colonização foi a ideia de uma “missão civilizadora” da Europa em relação
ao restante do mundo.
6 MEDEIROS, Carlos Túlio da Silva. Da Tempestade de Shakespeare ao Ariel de Rodó.

In: CHIAPPINI, Lígia Org.). Encontros e Desencontros da/na América

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 208


foi a última obra do dramaturgo inglês, realizada no ano de 1611
(com estréia no mesmo ano), dividida em cinco atos, os quais
narram uma história “de vingança, de amor, de reconciliação” (p.
01), tendo como fonte a comedia dell’arte italiana, o naufrágio de Sir
George Somers7 na região das Bermudas e, provavelmente, o
romance castelhano La gran conquista de ultramar (1291-1295)8.
Shakespeare narra, nessa peça, prossegue Medeiros (2011),
uma história centrada em três personagens: Próspero, Ariel e
Caliban. O primeiro seria Duque de Milão, o segundo um espírito
etéreo e, o último, um escravo de aparência degradante. Os três
passam a conviver quando Próspero é expulso de sua cidade
juntamente com a filha Miranda, em função de um golpe de seu
irmão, Antônio.
Colocado num barco e atracando em uma ilha,
aparentemente, deserta, já habitada antes pela feiticeira Sicorax,
Próspero subjuga os espíritos que a feiticeira havia aprisionado,
entre eles, Ariel, obediente ao Duque, que o submete em razão dos
poderes que ele tem de se transformar em água, ar e fogo. Assim
também faz com Caliban, filho da feiticeira, único habitante
humano de fato da ilha, transformando-o em escravo. Convivem
essas quatro personagens por doze anos, até que, num certo
momento, Próspero descobre que seus antigos inimigos9 estaria em
viagem e passariam próximos à ilha10.
Próspero, então, ordena a Ariel que provoque o naufrágio
da embarcação e traga todos para a ilha, pois gostaria de levá-los ao
desequilíbrio mental. Ele consegue seu intento, sobretudo com
Antônio. Alonso se arrepende, Miranda e Fernando se apaixonam e
o Duque se reconcilia com todos e retorna à sua cidade, mas antes
liberta Ariel como havia prometido, o que não disse a Caliban

Latina no século XX. Revista eletrônica Celpcyro: integração multidisciplinar


temática, vol. 2, segundo semestre 2011.
7 Colonizador da região das Bermudas.
8 Shakespeare teria se inspirado também em Thomas Morus e/ou em Dos

Cannibais (1580) de Montaigne (Maria Bernardete Ramos Flores, 2006).


9 Estavam presentes: seu irmão Antônio, o rei de Nápoles Alonso e seu filho

Fernando, o conselheiro Gonzalo e a tripulação (Medeiros, 2011, p. 02).


10 Medeiros, 2011.

209 | 2018 – vol. II, nº 02


porquanto este sempre se colocou em posição de revolta e desafio
da sua condição de escravo11.
Essa obra de Shakespeare tem sido, demonstram Sirlei
Santos Campos (2001)12 e Irene Lara (2007), reapropriada por
diversos intelectuais, principalmente os que se dedicam à discussão
do colonial e pós-colonial, isto porque a dicotomia Próspero-
Caliban seria, na interpretação desses autores, a representação do
relacionamento colonizador e colonizado, em que

Próspero representa o colonizador usurpador,


uma vez que ele se apodera da ilha de Caliban.
Caliban, como Ariel, representa o colonizado.
Como ele não aceita a colonização, Caliban é re-
tratado como um “selvagem”, enquanto Ariel – o
assimilacionista – é premiado por obedecer13.

A revolta de Caliban é exemplificada por sua fala transcrita


no início, sobretudo, argumenta Campos (2001), quando ele diz que
a vantagem de saber a linguagem de Próspero é poder amaldiçoá-lo
com a “peste vermelha”, fala esta que muitos intelectuais,
especialmente latino-americanos – Roberto Fernández Retamar,
Aimé Césaire – passaram a utilizar como emblemas para suas lutas
sociais, sobretudo, explica Lara (2007)14, “as a way to challenge
eurocentric and patriarchal power”15.
Esse tipo de uso acaba lançando a um segundo plano
personagens como Sicorax16, vista apenas como uma feiticeira, mãe
de Caliban, sem nenhuma participação mais ativa na peça, o que

11 Medeiros, 2011.
12 CAMPOS, Sirlei Santos. Leituras pós-coloniais D’A Tempestade: um breve
panorama. Revista de Ciências Humana V. 01, nº 1, fevereiro/julho 2001, p. 89-
96.
13 CAMPOS, Sirlei Santos. Leituras pós-coloniais D’A Tempestade: um breve

panorama. Revista de Ciências Humana V. 01, nº 1, fevereiro/julho 2001, p. 90.


14 LARA, Irene. Beyond Caliban’s curses: the decolonial feminist literacy of

Sycorax. Journal of International Women’s Studies Vol. 9 nº 1 Nov. 2007, p. 81.


15 “como uma maneira de desafiar o poder eurocêntrico e patriarcal” (tradução

dos autores)
16 Sicorax é derivado do latim corax que significa corvo, visto no discurso

dominante como um assistente de bruxas e portador de presságios ruins (LARA,


2007)

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 210


seria o mesmo que, utilizando a perspectiva de Lara (2007),
marginalizar Sicorax, racializar e sexualizar a discriminação,
confirmando os discursos dominantes, entre eles o patriarcal.
A Sicorax de Irene Lara corrobora o texto de Spivak, Pode
o subalterno falar?17, em que a autora argumenta, entre outras
questões, que o subalterno18 feminino está em “profunda
obscuridade”19, já que a construção da categoria gênero, segundo
ela, mantém a dominação masculina, mesmo quando se fala do
sujeito colonial que se revolta contra o colonizador, pois se refere a
uma dominação masculina.
Por isso, Lara (2007), propõe tornar Sicorax uma “absence
present in our imaginations”20, como forma de quebrar esses discursos,
de desenvolver a “decolonial imaginary”21, já que ouvi-la seria, para essa
autora, uma forma de desafiar o monolinguismo e o
monoculturalismo praticado pelos grupos dominantes, que
controlam a narrativa da história e, portanto, segundo Chacon
(2005)22, a própria história, ao menos, a história oficial23.
. Tem-se assim, de um lado, “as tentativas do dominador de
silenciar a versão do subalterno” e de outro as estratégias do
subalterno “para desmascarar a versão dominante que se pretende
fixar como verdadeira”24, que nos ajuda a repensar desde uma

17 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra


Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo
Horizonte: Ed. UFMG, 2010.
18 “Retomado do significado que Gramsci o dá ao se referir ao ‘proletariado’, ou

seja, àquele cuja voz não pode ser ouvida” (ALMEIDA, prefácio da obra Pode o
subalterno falar?, 2010, p. 12), ou ainda, “as camadas mais baixas da sociedade
constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato
social dominante” (SPIVAK apud ALMEIDA, 2010, p. 12).
19 LARA, 2007, p. 67.
20LARA, 2007, p.81. “ausência presente em nossas imaginações” (tradução dos

autores).
21 LARA, 2007, p. 81. “Imaginário decolonial” (tradução dos autores).
22 CHACON, Vamireh. A grande Ibéria. São Paulo: Ed. UNESP; Brasília:

Paralelo 15, 2005.


23 Perspectiva vinda de Platão (CHACON, 2005).
24 CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna.

Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n. 15, julho 2001, p. 126.

211 | 2018 – vol. II, nº 02


perspectiva decolonial25, a qual tomamos parte, a peça de
Shakespeare não mais, apenas, na dicotomia Próspero-Caliban, mas
integrando Sicorax, o que amplia nosso olhar e ratifica, pela leitura
decolonial que realiza, nossa tentativa de estudar a política externa
da república e sua contribuição à construção da nação brasileira,
buscando analisar qual a influência da política externa na construção
da ideia de nação.
Pretendemos, assim fazer parte de toda essa tradição
intelectual de releitura da peça A Tempestade, a partir de uma
perspectiva que pode ser caracterizada como simbólica, vendo o
Caliban, colocam Alden Vaughan e Virgínia Vaughan (1991)26, pelo
que ele pode representar ao estudo, ou seja, faz-se o que Steven
Almquist (2006)27 chama de “Caliban’s flexibility”28, em que o Caliban
acaba sendo uma projeção dos desejos de quem o estuda.
Esse personagem e os demais da peça, é necessário que se
diga, prestaram-se a diferentes interpretações que vão desde, como
narra Campos (2001), Caliban representar o opressor – domínio dos
Estados Unidos – com o jornalista Rubén Dario, passando por
Ernest Renan29 em 1878, quando Caliban representa o povo que

25 Suprimir la “s” y nombrar decolonial o de-colonial no es promover un


anglicismo. Por el contrario, es marcar una distinción con el significado en
castellano del “des”. No pretendemos simplemente desarmar, deshacer o revertir
lo colonial, es decir, pasar de un momento colonial a otro no colonial, como si
fuera posible que los patrones y sus huellas desistan de existir. La intención, más
bien, es señalar y provocar un posicionamiento -una postura y actitud continua-
de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo de-colonial denota, entonces, un
camino de lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y alentar
“lugares” de exterioridad y construcciones alternativas (WALSH, Catherine.
Interculturalidad crítica y educación intercultural. In: VIAÑA, Tapia, Jorge Luis y
WALSH, Catherine. Construyendo Interculturalidad Crítica. La Paz – Bolivia,
Instituto Internacional de Integración del Convenio Andrés Bello, 2010, p. 75-
93).
26 VAUGHAN, Alden T. & VAUGHAN, Virginia Mason. Shapespeare’s

Caliban: a cultural history. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.


290p.
27 ALMQUIST, Steven M. Not Quite the Gabbling of “A Thing Most

Brutish”: Caliban’s Kiswahili in Aimé Césaire’s A Tempest. Callaloo, vol.


29, nº 2, 2006, p. 587-607.
28 “Flexibilidade do Caliban” (tradução dos autores).
29 Livro Caliban, continuação da Tempestade, com o qual os intelectuais franceses não

simpatizaram, o que levou Renan, em 1881, a escrever outra peça chamada L’eau
de Jouvence: suíte de Caliban (CAMPOS, 2001).

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conspira contra o Próspero e o vence30; indo a José Enrique Rodó
com seu Caliban, representante do pragmatismo e vícios dos
Estados Unidos.
A obra de Rodó, o ensaio Ariel publicado em 1900 teria sido,
explica Maria Bernardete Ramos Flores (2006)31, uma resposta aos
problemas percebidos pelo texto de Renan, quanto à possibilidade
do povo assumir o poder em função da Comuna de Paris, embora,
acentue essa autora, Rodó fosse um “democrata eclético” ou
“democrata pela meritocracia”32.
Além disso, Rodó influenciou outros pensadores, entre eles,
Plínio Salgado, chefe da Ação Integralista Brasileira, que elaborou
um texto chamado Ariel e Caliban com “o mesmo tom do Ariel do
pensador uruguaio”33, já que para ambos “[...] Caliban representa o
grotesco, o sensual, a falta de nobreza no povo”34, tendo como
único caminho para regenerar a “raça brasileira” a “moralização
espiritualizante”.
A AIB foi criada, somente para explicar, na década de 1930,
objetivando um grande movimento nacional, a arregimentação
militar e o enquadramento em uma estrutura hierárquica,
influenciada pelos movimentos fascistas europeus. Seus adeptos
defendiam um nacionalismo cultural e político incompatível com a
República, baseado no manifesto do Verde-Amarelismo,
radicalizado depois pelo grupo Anta, de extrema direita, que visava
criar a consciência nacional, baseada no conservadorismo burguês,
na aversão ao cosmopolitismo e na manutenção da propriedade,
tendo o nativo como sua força para chegar ao autêntico
nacionalismo35.

30 Análise de Maria Bernardete Ramos Flores, 2006.


31 FLORES, Maria Bernardete Ramos. O mito do Caliban na interpretação do
Brasil acerca do americanismo na República Velha brasileira. Diálogos
latinoamericanos, nº 11, Universidad de Aarhus, Aarhus, Latinoamericanistas, p.
50-71.
32 FLORES, 2006, p. 63.
33 FLORES, 2006, p. 62
34 FLORES, 2006, p. 62.
35GONÇALVES, Leandro Pereira. A intelectualidade integralista:
nacionalismo e identidade na literatura de Plínio Salgado. Locus: Revista de
História, Juiz de Fora, vol. 15 nº 1, 2009, p. 111-128.

213 | 2018 – vol. II, nº 02


Retomando o Caliban, é possível encontrar referências a ele,
de acordo com Campos (2001), em Caliban Parle (1928), de Jean
Guéhenno e; Humanismo burgué y humanismo proletário (1938) de Aníbal
Ponce, em que Caliban é identificado com o povo explorado,
mudança que tem início, narra a mesma autora, “quando os
intelectuais da América Latina começaram a valorizar mais suas
heranças indígenas e a dar voz a um sentimento nacionalista que
clamava por independência”36.
Entre os autores que colaboraram com essa mudança estão:
Octave Mannoni, George Lamming, Aimé Césaire, Roberto
Fernández Retamar, entre outros.
Octave Mannoni escreveu em 1948, explica Christopher
Lane (2002)37, obra intitulada La psychologie de la colonization,
em que o colonizado possuiria o “complexo de dependência”, inato
a todos e; o colonizador o “complexo de inferioridade”, presente
nos que não conseguem superar o primeiro complexo e se vêem
compelidos a dominar. Para Mannoni, segundo Lane (2002), essa
relação se daria por uma “falha na adaptação”38, implicando uma
patologia e, ao mesmo tempo, algo que é latente mesmo antes da
colonização. Essa perspectiva foi criticada por Frantz Fanon em
Black Skin, White Masks (1952).
Tal crítica se faz porque, para Fanon (1956)39, o racismo é
um elemento do conjunto que forma a opressão sistemática de um
povo, que começaria pela afirmação maciça, por parte do
dominante, de sua superioridade, desumanizando o outro grupo, o
que produz, para ele, o complexo de culpabilidade. Ao mesmo
tempo em que esse racismo nunca é algo oculto, inconsciente, não
sendo também uma disposição do espírito, algo psicológico, como
argumentava Mannoni, principalmente, utilizando-se Lane (2002),

36 CAMPOS, 2001, p. 91.


37 LANE, Christopher. Psychoanalysis and Colonialism Redux: Why
Mannoni’s “Prospero Complex” Still Haunts Us. Journal of Modern
Literature, vol. 25, nº 3/4, 2002, p. 127-149.
38 LANE, 2002, p. 136.
39 Texto apresentado no Congresso de Escritores e Artistas Negros em Paris,

setembro de 1956. Depois publicado no número especial de Présence Africaine,


junho-novembro de 1956.

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quando se diz que “[...] the origins of violence need not be external,
but can obtain from the power of a personʼs racial imagos”40,
deixando clara sua proximidade com Freud e a perspectiva
psicanalítica.
Assim, para Mannoni, de acordo com Lane (2002), o
“caráter nativo”41 não se relaciona ao etnocentrismo, mas é
contingente aos traços culturais, retirando todo o sentido político
do racismo, o qual estaria cheio de simbolismo. Embora, na segunda
metade da década de 1960 e começo da 1970, ainda em Lane (2002),
Mannoni reveja sua posição extremamente psicanalítica e passe
também a considerar as questões materiais e políticas, o que não o
fez retirar a grande ênfase nos aspectos psicanalíticos presentes no
racismo e nas relações coloniais.
O aspecto psicológico é a grande diferença entre Fanon e
Mannoni, porque para o primeiro existe sim algo de psicológico na
violência colonial, como afirma Lane (2002) a seu respeito, mas o
colonial e o racismo não se reduzem a esse elemento, diríamos mais,
não é algo pré-determinado ou latente em colonizados e
colonizadores, como se aqueles desejassem ser dominados e a estes
restasse o desejo de fazê-lo.
Ao contrário, o racismo é um elemento constitutivo,
segundo Immanuel Wallerstein (2000)42, da economia mundo
capitalista e tem como objetivo “manter as pessoas dentro do
sistema, mas com o estatuto de [...] seres inferiores passíveis de
serem exploradas economicamente e usadas como bodes-
expiatórios políticos”43.

40 LANE, 2002, p. 29-30. “[...] as origens da violência não precisam ser externas,
mas podem obter-se a partir do poder de uma Imago racial de pessoa (tradução
dos autores).
41 LANE, 2002, p. 130.
42 WALLERSTEIN, Immanuel. O albatroz racista: a ciência social, Jörg

Haider e a resistência. Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 56, fev. 2000, p.


05-33.
43 WALLERSTEIN, 2000, p. 13.

215 | 2018 – vol. II, nº 02


O que nos faz buscar Rodrigo Ferrari-Nunes (2011)44, que
enxerga continuidade nas relações socioeconômicas a partir da
colonização até o neoliberalismo, como motivadas pelos mesmos
elementos ideológicos. Ou seja, existe uma continuidade ideológica
que motivou as mudanças do colonialismo ao neoliberalismo. Isto
porque, ainda de acordo com Ferrari-Nunes (2011), esse projeto que
atravessa a história é composto pelos mesmos elementos:
“Accumulation, growth, prosperity, land domination, patriarchy, state control,
industrial dependence, competition, slavery and their myriad euphemisms and
institutional offshoots (e.g. wage labor, bureaucracy, nationalism, enforced state-
controlled education, etc.)” 45.
Essa perspectiva é importante já que nos possibilita
trabalhar com diferentes períodos históricos, mas percebendo-os
dentro de certa continuidade, embora tenhamos que considerar
todas as mudanças ocorridas, por exemplo, com a instituição da
República no Brasil, momento de inflexão que nos propomos a
discutir nas pesquisas vinculadas ao doutoramento.
Ao mesmo tempo, a questão do racismo e essa ideia de
inferiorização do Outro faz parte do que Anibal Quijano (2005)46
chama de Novo Padrão de Poder, baseado em dois eixos principais.
O primeiro seria o de estabelecer a diferença entre conquistados e
conquistadores a partir da noção de raça, naturalizando a
inferioridade por meio de uma estrutura biológica diferente, como
faz o racismo. O outro eixo seria “a articulação de todas as formas

44FERRARI-NUNES, Rodrigo. Indigeneity and consciousness in Brazil:


Analyzing Sousa (1587) and Mendes Jr (1912). Critique of Anthropology 31(3)
185–209, 2011.
45 FERRARI-NUNES, 2011, p. 186. “Acumulação, o crescimento, a

prosperidade, a dominação da terra, o patriarcado, o controle estatal, a


dependência industrial, a concorrência, a escravidão e seus eufemismos e
inúmeros desdobramentos institucionais (por exemplo, o trabalho assalariado, a
burocracia, o nacionalismo, aplicação do controle estatal da educação, etc.)”.
(tradução dos autores).
46 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In:

EDGARDO LANDER (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e


ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur,
CLACSO, Buenos Aires – Argentina, setembro 2005. p. 227 – 278.

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históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus
produtos, em torno do capital e do mercado mundial”47.
Esse segundo eixo, segundo Quijano (2005), vai incluir a
escravidão, a servidão, a produção mercantil, não como simples
extensões ou continuações de momentos anteriores, mas dentro de
uma nova realidade histórica e sociológica, em que estavam
organizadas para produzir para o mercado mundial, articuladas entre
si e com o capital em uma situação de dependência histórico-
estrutural, que vai gerar o capitalismo mundial.
Impõe-se, pela conjugação desses dois elementos, de acordo
com o pensamento de Quijano (2005), uma divisão racial do
trabalho, que se manteve ao longo do período colonial e que
representava a sistemática de que aos colonizados estava reservado
o trabalho não pago, em razão de sua natural inferioridade.
Consequentemente, aos brancos destinava o trabalho remunerado,
o que explica, ainda para Quijano (2005), os menores salários das
“raças inferiores” – mestiços, índios e negros – em relação à mesma
atividade desenvolvida por “brancos” nos centros capitalistas
mundiais, diferença que só pode ser entendida dentro da dinâmica,
do que esse autor chama de “colonialidade do poder capitalista
mundial”48.
Toda essa discussão de Quijano demonstra a construção de
pares dicotômicos: inferiores X superiores, tal qual a noção de
próspero e caliban, sobre o qual estamos discorrendo e revisitando
em diferentes autores como George Lamming que, por sua vez,
esclarece Campos (2001), escreveu The Pleasures of Exile (1960),
quando o Caribe Britânico ainda era domínio inglês, pensando o
Caliban como o escravo negro – que também possui traços do índio
caribenho – levado ao Caribe, que foi, para Lara (2007), colonizado,
exilado de suas raízes e cultura e, limitado em suas realizações pela
língua do colonizador.
Lamming, segundo Almquist (2006), inverte o
relacionamento colonial constituído pela língua, mostrando que esta

47 QUIJANO, 2005, p. 227


48 QUIJANO, 2005, p. 230.

217 | 2018 – vol. II, nº 02


é “a prisão do presente do Próspero”49, mas um presente
controverso, pois permitiria ao Caliban uma revolta futura,
construindo sua própria ameaça, ao invés de um instrumento útil.
Outro autor é Aimé Césaire que, em 1969, escreveu a peça
A tempestade, Adaptação para um Teatro Negro, onde, conforme Lara
(2007), desafia a língua colonial do colonizador a partir de uma
releitura crítica que coloca Caliban como um escravo negro,
esquecendo-se ou marginalizando “the voices and bodies of other
non-male ‘rebels’ ”50, corroborando com a “obscuridade” de que
fala Spivak, acerca da mulher subalterna, sobretudo por transformar
Sicorax em uma protagonista com poder espiritual – Eshu (Exu) –
contrapondo-a ao poder de Próspero – “magia branca” – e
denominando “magia negra” – assim como fez Shakespeare quando
associou a origem de seus poderes ao norte da África.
Além disso, Césaire, critica Almquist (2006), teria
desconsiderado o indígena – assim como ocorreu na peça original –
, africanizando a peça de Shakespeare com o uso da expressão
“Uhuru!51”, que seria essencial a Césaire já que estaria dando voz ao
Caliban, mas um Caliban que não é nativo, mas trazido pelo
colonizador, daí a noção de diáspora e a formulação do conceito de
negritude, entendida como a afirmação da identidade negra e seu
orgulho.
Aimé Césaire foi um intelectual afro-caribenho que pensou
a questão da descolonização enquanto, explana Ramón Grosfoguel
(2008)52, a afirmação de um universalismo concreto53, conceituado

49 ALMQUIST, 2006, p. 591.


50 LARA, 2007, p. 87. “as vozes e corpos de outros rebeldes não masculinos”
(tradução dos autores).
51 Vem do romance de mesmo nome de Robert Ruark, de 1962, narra sobre a

desintegração do controle britânico sobre o Kênia, quando este país pede pela
independência através do uso dessa expressão, que segundo o dicionário inglês
Oxford, significa independência nacional do Kênia, que vem da rebelião Mau Mau
da década de 1950, movimento nacionalista de libertação (ALMQUIST, 2006, p.
587 e 599).
52 GOSFOGUEL, Ramon. Hacia un pluri-versalismo transmoderno

decolonial. Tabua Rasa. Bogotá – Colômbia, nº 9, Julho/dezembro 2008, p. 199-


215.
53 Diferente do universalismo concreto de Hegel e Marx, o qual representa

conceitos ricos em diversas determinações, dentro de uma mesma cosmologia e

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como “aquél que es resultado de múltiples determinaciones
cosmológicas y epistemológicas (um pluri-verso, em lugar de um
uni-verso)”, “es el resultado de um proceso horizontal de diálogo
crítico entre pueblos que se relacionan de igual a igual”54.
Essa perspectiva de Césaire fez com que ele, juntamente
com Frantz Fanon e Eric Willians, fosse, já em 1992, apontado por
Peter Hulme como precursor do trabalho de Edward Said,
Orientalismo, embora Said trabalhe com o Oriente. Isto porque,
explica Hulme (1992)55, a análise de Said apresentava elementos já
perceptíveis nos estudos caribenhos sobre a representação colonial,
ou seja, haveria uma grande similaridade entre esses autores.
Hulme (1992) também percebe aproximação entre esses
autores e os ensaios de Roberto Fernández Retamar, escritor
cubano, sobretudo os do final dos anos 1960 e início dos 1970,
apresentando temas semelhantes, mesmo trabalhando em contexto
diferente: a Revolução Cubana.
Retamar publicou em 1971 na revista Casa de las Américas
o artigo Caliban, que chegou ao Brasil apenas em 1988, onde,
segundo Luiz Guilherme Assis Kalil (2007)56 e Almquist (2006),
propõe repensar a condição do latino-americano, emprestando ao
personagem Caliban a função de ser “nosso símbolo”, por ser a
melhor forma de representar a experiência do “Novo Mundo”, com
o colonizado perdendo sua liberdade e língua. O autor segue, diz
Kalil (2007), as trilhas de Simon Bolívar e José Martí, negando, ao
mesmo tempo, o protagonismo de Ariel, perspectiva de Rodó, e
analisando a dicotomia Próspero-Caliban.

episteme (ocidental), em que o movimento dialético destrói com toda a alteridade,


transformando-a no mesmo (GROSFOGUEL, 2007).
54 GROSFOGUEL, 2008, p. 72. “aquele que é o resultado de múltiplas

determinações cosmológicas e epistemológicas (um pluri-verso em lugar de um


uni-verso)”, “é o resultado de um processo horizontal de diálogo crítico entre
povos que se relacionam de igual para igual”. (tradução dos autores)
55 HULME, Peter. Toward a cultural history of America. New West Indian

Guide/ Nieuwe West-Indische Gids 66 (1992), no: 1/2, Leiden, p. 77-81.


56 KALIL, Luís Guilherme Assis. Caliban, de escravo a “herói da liberdade”.

História Unisinos 11(2), maio/agosto 2007, p. 287-288.

219 | 2018 – vol. II, nº 02


Argumenta Lara (2007), entretanto, mesmo que o Caliban
atue como queria Retamar, ele o faz, apoiando-se na perspectiva de
Spivak (2010), por meio de uma subjetividade contida e mediada
pelos limites estabelecidos pela língua do colonizador para reforçar
o discurso hegemônico.
Ou seja, mesmo que aja resistindo à dominação colonial, o
Caliban age dentro de limites impostos por quem domina, até
porque, para Spivak (2010), o subalterno não pode falar, no sentido
de que, esclarece Sandra Regina Goulart Almeida, prefaciadora da
obra Pode o subalterno falar, não há processo dialógico na fala do
subalterno, o que o impede de se autorrepresentar, já que sua fala é
sempre intermediada pelo Outro, daí não ser ouvido. Isso não quer
dizer que ele use o discurso hegemônico para se representar, mas
que o Outro é que o representa, fala por ele.
A incapacidade de fala do subalterno leva ao que Spivak
(2010) chama de violência epistêmica, presente no projeto de
construção do sujeito colonial como o Outro, um sujeito que tem
seus rastros apagados, assim como sua história, no mesmo sentido
das “linhas abissais” de Boaventura de Sousa Santos (2010)57, no
qual, segundo o autor, se baseia o pensamento moderno ocidental e
que consiste em um sistema de distinções visíveis e invisíveis, que
divide a realidade em duas linhas radicais: o universo “deste lado da
linha” e o universo “do outro lado da linha”.
Exclui-se, desse modo, “o outro lado” da capacidade de
existir, ou seja, “o outro lado da linha” passa a não existir, “sob
qualquer forma de ser relevante ou compreensível”58. Isso porque,
prossegue Santos (2010), o pensamento abissal se caracteriza pela
impossibilidade de copresença dos dois lados. O que significa a
“própria negação da natureza humana de seus agentes”59, relegando-
os à impossibilidade de existir, ou quando muito reconhecendo sua

57SANTOS, Boaventura de Sousa. Para Alem do Pensamento Abissal: das linhas globais
a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; Meneses, Maria Paula
(Orgs.). Epistemologia do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. p. 31-83.
58 SANTOS, 2010, p. 32.
59 SANTOS, 2010, p. 37.

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existência como algo perdido no passado, portanto, negando-os a
contemporaneidade.
Ademais, voltemos a Retamar, ele, argumenta Lara (2007),
esquece ou marginaliza vozes de rebeldes não-masculinos e,
tentando corrigir e inserir os problemas de gênero em sua discussão,
trabalha a ausência das mulheres, sobretudo em notas de rodapé, em
seu último texto. O que para Lara (2007) já seria um grave problema,
ainda mais sério por Retamar lançar o elemento feminino como o
simbólico de “Mãe” referente às “Terras do Caliban”60, apagando a
violência a que esta mulher está submetida em guerras e revoluções.
Apesar de todas as críticas, Retamar possui a vantagem de
recolocar a questão da dominação colonial na América, dentro da
tradição de uso da peça de Shakespeare, A tempestade, assim como
faz Richard Morse, em Espelho de Próspero: cultura e ideias nas
Américas, publicada no México em 1982 e no Brasil em 198861.
Nesse livro, segundo Monteiro (2009)62, Morse faz um
diagnóstico letal sobre a sociedade formada na América do Norte,
em contraposição à qual se formaria na parte sul, na América de
raízes ibéricas, isto porque o autor aposta “em um modelo de
civilização em que o indivíduo não se fecha sobre si mesmo, sobre
seus afazeres, seu sucesso individual e seus tormentos interiores
jamais exprimíveis ou publicáveis”63, valorizando uma sociedade
inversa a tudo o que é fundamental aos Estados Unidos: “a ética do
sucesso individual e da interiorização e privatização dos
sentimentos”64.
A obra de Retamar, retomemos, pode ser, além disso,
comparada à de Edward Said, já que, para Fredric Jameson,
prefaciador da coletânea de textos de Retamar, intitulada Todo

60 LARA, 2007, p. 87.


61 MONTEIRO, 2009.
62 MONTEIRO, Pedro Meira. A paixão latino-americana: Richard Morse. In:

BOTELHO, André & SCHWARCZ, Lilia Moritz (Orgs.). Um enigma


chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras.
2009. p. 352-363.
63 MONTEIRO, 2009, p. 358.
64 MONTEIRO, 2009, p. 358.

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Caliban (2004), ela “generó uma inquietud y um fermento similares
en el campo latinoamericano”65.
Gerou toda essa inquietude, pensamos, nos apoiando em
informações de Mely Gonzálvez Aróstegui (2001)66, porque
Retamar sustenta seus argumentos em toda uma tradição latino-
americana de luta pela liberdade, para além daquelas que se
restringem ao elemento nacional, que vão desde Túpac Amaru a Che
Guevara, colocando Caliban como o verdadeiro herói da história da
América Latina.
O Caliban de Retamar aproxima-se, afirma Hulme (1992),
do livro Desconstructing America: representations of the other (1990), de
Peter Mason, pois os dois pertenceriam “a field of study that aims
to analyze the ways in which Europe, or more generally the West,
has represented to itself in words and images the non-European
world”67.
Pensamos contudo, Retamar e outras obras a partir de Aimé
Césaire como além dessa noção, pertencentes ao campo intelectual
pós-colonial, assim como Nadia Lie, no artigo Translation studies
and the other cannibal: the English version of Fernández Retamar’s Calibán68,
faz com os textos de Retamar, ligando-os a imagens de resistência e
oposição. Esse argumento aparece no final, quando diz: “If it is true,
as Eric Cheyfitz has affirmed, that the name Caliban is the place of
translation in The Tempest, we could perhaps say that Retamar’s

65 RETAMAR, Roberto Fernández. Todo Caliban. Buenos Aires, Consejo


Latinoamericano de Ciencias Sociales, 151 p, 2004, p. 13. “gerou uma inquietude
e um fermento similares no campo latino-americano” (tradução dos autores).
66 ARÓSTEGUI. Mely González. Calibán: una necesaria defensa a nuestra

identidad. Islas, 43 (129), jul.-set. 2001, p. 114-121.


67 HULME, 1992, p. 77. “um campo de estudo que tem por objetivo analisar as

formas pelas quais a Europa, ou mais genericamente o Ocidente, tem


representado para si mesmo em palavras e imagens o mundo não europeu”.
(tradução dos autores)
68 LIE, Nadia. Translation Studies and the Other Cannibal: On the English Version of

Fernández Retamar's Calibán. In: BURNETT, Paula (Org.). Translation,


Transcreation. EnterText: an interdisciplinary humanities e-journal. Vol. 2 nº 2
julho/setembro 2003, p. 39-50.

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reading turns it into the very place of postcolonial translation
itself”69.
O campo pós-colonial, de que fala Nadia Lie, pode ser
entendido, explica Boaventura de Sousa Santos (2006)70, não apenas
como o período histórico que sucede à independência das colônias,
mas também “[...] um conjunto de práticas (predominantemente
performativas) e de discursos que desconstroem a narrativa colonial,
escrita pelo colonizador, e procuram substituí-la por narrativas
escritas do ponto de vista do colonizado”71.
Para Almquist (2006), contudo, não basta apenas substituir
textos que advogam pela primazia e supremacia do Ocidente, por
contra-discursos, é necessário modificar as práticas discursivas e os
pressupostos que as sustentam e, assim, até mesmo formas culturais
em que esses discursos hegemônicos se institucionalizam. Cabe,
dessa forma, mais que trocar uns textos por outros, é necessário
construir práticas de leitura alternativas.
Daí a grande debilidade da corrente pós-colonial: deseja
substituir discursos ao invés de reler, a partir de novas práticas, os
discursos canônicos como a peça de Shakespeare, A Tempestade,
como fizeram os vários autores até aqui vistos, que releram a peça
mudando o ponto de vista, de Próspero para Caliban, em uma nova
atitude discursiva como deseja Almquist (2006), mesmo que aberta
a inúmeras críticas.
Desse pensamento fazem parte, além de Edward Said,
Gayatri Spivak, Hommi Bhabha que, explica Roberto Follari
(2005)72, começou na Índia, “[...] buscando repensar la imagen de si

69 LIE, 2003, p. 49. “Se é verdade, como afirma Eric Cheyfitz, que o nome Caliban
é o lugar da tradução em A Tempestade, nós poderíamos talvez dizer que a leitura
de Retamar transforma-o no melhor lugar da tradução pós-colonial” (tradução
dos autores)
70 SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre próspero e caliban: colonialismo, pós-

colonialismo e inter-identidade. In: ______________. A gramática do tempo: para


uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006. Capítulo 7, p. 227 – 276.
(Coleção para um novo senso comum; v. 4).
71 SANTOS, 2006, p. 233.
72 FOLLARI, Roberto. Lo poscolonial no es lo posmoderno: la estetizacion

llevada al paroxismo. Utopía y Praxis Latinoamericana, ano/vol. 10, nº 028.


Universidad de Zulia, Maracaíbo – Venezuela, janeiro/março 2005, p. 71-82.

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que se han formado los pueblos que fueron coloniales, incluso en el
decurso mismo de la lucha colonial73”. Assim, esse grupo busca
repensar a condição colonial, baseado na tese de que a consciência
colonial foi imposta e dada pelo colonizador e, ratificada pela
internalização da mesma por parte das populações colonizadas.
O pós-colonial, ainda de acordo com Boaventura de Sousa
Santos (2006), se baseia em parte do pensamento de Jaques Derrida
e sua perspectiva de desconstrução, especificamente no que se refere
à textualidade, pois Derrida pensa a mesma como auto-referencial
e, dessa forma, possibilita descobrir a dinâmica interna dos textos,
descortinando sua face autoritária e sua pretensão de universalidade.
Trata-se, portanto,

[...] de descomponer la imagen de si que los países


centrales habrían impuesto a los coloniales:
pensamiento binario, bipolar, que no reconoce
diferencias ni matices, y compele a los mismos
dominados a asumir la liquidación de la diferencia
como recurso de su propio pensamiento. Así, el
atrapamiento en la lucha contra el invasor co-
lonial llevaría a pensar en sus mismos términos:
oponérsele sería trabajar en espejo, reproducir la
imagen del pensamiento reduccionista y coloni-
zador74.

Tal tentativa de desconstrução ou de descompor a narrativa


colonial, assevera Follari (2005), se coloca como uma ação política
na luta contra a dominação, não dando voz aos oprimidos, mas
falando por eles – seu grande problema – e, impossibilitando a
elaboração de sua própria discursividade, o que, claro, deve ser

73 FOLLARI, 2005, p. 72. “[...] buscando repensar a imagem que os povos que
foram coloniais formaram deles mesmos, inclusive durante o decurso da luta
colonial” (tradução dos autores).
74 FOLLARI, 2005, p. 72. “[...] de descompor a imagem de si que os países centrais

havia imposto aos coloniais: pensamento binário, bipolar, que não reconhece
diferenças nem nuances e compele aos mesmos dominados a assumir a liquidação
da diferença como recurso do seu próprio pensamento. Assim, o aprisionamento
na luta contra o invasor colonial levaria a penar em seus mesmos termos: opor-se
a ele seria trabalhar como espelho, reproduzir a imagem do pensamento
reducionista e colonizador”. (tradução dos autores)

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 224


evitado sob o risco de se acabar com a especificidade de cada
realidade social por meio de discursos universalizantes.
Esse mesmo tipo de crítica e advertência é feito por Spivak
(2010) por meio da noção de violência epistêmica, em que não se
faz uso da melhor versão da história, mas da que foi estabelecida
como normativa, por meio do que a autora chama de recusa ideológica
coletiva em dizer da prática imperialista, que seria aquilo que o texto
não pode dizer, ou mais, seria a construção do Outro a partir de nós,
assim como ocorreu com a “constituição imperialista do sujeito
colonial”75.
O ato de representar o Outro presente na versão de história
do Ocidente e/ou na atuação de teóricos pós-coloniais não se
resolve, segundo Spivak (2010), com a abstenção desses intelectuais.
O que não deve ser esquecido, para ela, é que comprar essa versão
“é ignorar a sua produção por parte do projeto imperialista”76.
Ou seja, mesmo os discursos de resistência desses autores
podem estar engendrados pela fala hegemônica, já que eles
transformariam o subalterno em objeto de pesquisa,
impossibilitando lugares e momentos para que o mesmo fale e
colocando-o, apenas, como uma “contrapossibilidade para as
sanções narrativas conferidas ao sujeito colonial nos grupos
dominantes”77.
Assim, quando Spivak pergunta: “Com que voz-consciência
o subalterno pode falar?”, ela responde mostrando que a fala do
subalterno não é dele, mas do Outro que o representa, já que o
mesmo foi obscurecido ou impossibilitado de existir através da
negação da contemporaneidade e do estabelecimento das linhas
abissais. O que significa dizer que mesmo as críticas pós-coloniais,
que advêm do próprio Ocidente, são “o resultado de um desejo
interessado em manter o sujeito do Ocidente, ou o Ocidente como
Sujeito”78.

75 SPIVAK, 2010, p. 84.


76 SPIVAK, 2010, p. 76.
77 SPIVAK, 2010, p. 65.
78 SPIVAK, 2010, p. 20.

225 | 2018 – vol. II, nº 02


Com isso Spivak (2010) deixa claro que a corrente pós-
colonial – apesar de ser identificada à mesma – não pode falar pelo
subalterno, devendo na verdade, segundo sua prefaciadora Sandra
Regina Goulart Almeida, criar espaços para que o subalterno possa
falar e ser ouvido.
Tal crítica também é feita por Follari (2005), para quem é
ilusória a noção de que o pensamento pós-colonial tenha um
potencial crítico/político, mesmo que seus autores queiram colocá-
lo de tal forma, posto que os intelectuais desse matiz não consigam
falar como os oprimidos, tornado-se incompreensíveis ao leitor
comum e não estabelecendo relação com os setores sociais, já que
trabalham sobre textualidades e não sobre o social, o que torna, “[...]
absurdo pretender operar sobre lo político sin atender a lo social
donde se constituye y se ejerce”79.
Ademais, é preciso perceber que o pensamento pós-colonial
vem de uma tradição européia, pois, de acordo com Mignolo
(2007)80, é fruto do pós-estruturalismo francês – Foucault, Lacan e
Derrida. Conclusão a que também chega Boaventura de Sousa
Santos, sobretudo no que se refere à proximidade entre tal corrente
e a perspectiva desconstrutivista de Jacques Derrida.
O estudo pós-colonial81, então, por se realizar através de
práticas textuais e discursos, apresenta, portanto, um viés
culturalista, em que se enxerga a cultura nacional “como direito do
colonizado à auto-significação”82, reconhecendo a presença da

79 FOLLARI, 2005, p. 74. “[...] absurdo pretender operar sobre o político sem
levar em conta o espaço social onde se constitui e se exerce” (tradução dos
autores)
80 MIGNOLO, Walter D. El pensamiento decolonial: desprendimiento e apertura. In:

CASTRO-GÓMEZ, Santiago & GROSFOGUEL, Ramón (Orgs.). El giro


decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del
capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores; Universidad Central,
Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontifi cia Universidad
Javeriana, Instituto Pensar, 2007. p. 25-46.
81 O estudo pós-colonial é diferente da teoria pós-moderna, pois “el locus de

enunciationis de las teorías posmodernas el de antiguas colonias que abandonan


su condición periférica para convertirse em ‘centros’, el de las teorias
poscoloniales se situa em colonias que jamás abandonaron su condición marginal
e periférica” (CASTRO-GÓMEZ apud FOLLARI, 2005, p. 73).
82 SANTOS, 2006, p. 239.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 226


heterogeneidade na ideia de identidade.
Isto, ao mesmo tempo, deixa ver as limitações desse
pensamento, algumas já elencadas por Follari (2005), e outra
percebida por Rámon Grosfoguel (2008), porquanto, para ele, os
pós-coloniais reduzem o sistema capitalista a sistema cultural,
colocando a cultura como fator constitutivo às relações econômicas
e políticas do capitalismo, o que dificulta para seus autores o estudo
dos processos político-econômicos e, leva Grosfoguel (2008), a
propor que se dê uma “intervenção decolonial” nessa corrente
teórica.
Em função da proposta acima e da noção de que nosso
estudo vai além da perspectiva culturalista, embora não prescinda
dela, ao contrário, a mesma se constitui em uma de nossas bases, em
que se encontra também a realidade político-econômica, desejamos
ir pelo caminho decolonial83, no sentido de permitir, por meio do
diálogo intercultural, a fala do subalterno e, assim, reconstruir a
noção de identidade nacional no Brasil, agregando a ela o agir
indígena, sobretudo quando se discute sua importância na
conservação e conformação do território brasileiro – como o
entendemos hoje – e a atuação de afro-descendentes e portugueses
na leitura que se faz de Brasil.

83 O pensamento decolonial emergiu no momento de fundação da


modernidade/colonialidade como contrapartida de tal processo, ocorrendo nas
Américas – nos pensamentos indígena e afro-caribenho –; continuou depois na
Ásia e na África – como contrapartida da reorganização da
modernidade/colonialidade do império britânico e do colonialismo francês e,
após, na interseção dos movimentos de descolonização na Ásia e na África. É
também uma conseqüência da matriz colonial de poder, sendo, portanto, advindo
da “colônia” e do “período colonial”, ressurge nos séculos XVIII e XIX. As
primeiras manifestações ocorreram nos Vice-Reinados hispânicos, nos séculos
XVI e XVII, nas colônias inglesas, durante o século XVIII. O primeiro autor foi
Waman Poma de Ayala e sua obra Nueva Corónica y Buen Gobierno (1616); o segundo
foi Otabbah Cugoano – escravo liberto – e seu tratado Thought and Sentiments on
the Evil os Slavery (1787). Esse pensamento pressupõe a diferença colonial, a
exterioridade, no sentido do bárbaro, colonial, construída pelo civilizado,
imperial, assentada no que Santiago Castro-Gómez (2005) chama de “Hybris del
punto cero”. O giro descolonial é a liberdade de pensamento, de outras formas de
vida, economias e teorias políticas; é o desprendimento da retórica da
modernidade e de seu imaginário, objetivando a descolonialidade do poder, da
matriz colonial de poder. Como exemplo, temos o Fórum Social Mundial, o
movimento Zapatista, Gandhi, entre outros (MIGNOLO, 2007, p. 27-30).

227 | 2018 – vol. II, nº 02


Isto é importante porque, além da relevância que o indígena
possui em relação ao território nacional, ele é um dos elementos
formadores da nossa identidade como nação, o que muitas vezes é
obscurecido não só no Brasil, mas como ficou perceptível na
América Latina mesmo nas releituras da peça A Tempestade, que
embora modifiquem indo do Próspero ao Caliban, desconsideram
ainda o elemento “nativo” e, na maioria, mostram um Caliban
lançado na colônia pelo colonizador, apagando o elemento humano,
morador dessas terras anterior à colonização.
Por isso, utilizamos a dicotomia Próspero-Caliban, não
como centro de nossa pesquisa, mas como metáfora de nossa
condição como um Caliban, um colonizado e, no caso das releituras,
um Caliban que se revolta contra o domínio. Ou poderíamos dizer
que em vez de revolta procuramos o caminho da assimilação? E
então seríamos o Ariel? Isso só o tempo e as pesquisas dirão, cabe
agora apenas dizer que fomos o Caliban/Ariel e construímos,
supomos, nossa identidade de nação a partir dessa ideia. E, ao
mesmo tempo, podemos ser Prósperos levando em consideração
nosso agir externo, relacionado, por exemplo, a África ou a América
do Sul.
Essas perguntas nos levam a repensar a formação da
identidade nacional brasileira e o agir Próspero do Brasil no cenário
internacional, olhando tanto para teóricos que debatem a questão
interna como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire e José
Murilo de Carvalho, entre outros; quanto o debate teórico acerca
das relações internacionais do Brasil.
Tudo isso buscando um novo olhar a partir das perspectivas
pós-coloniais, decolonial e a proposta de Boaventura de Souza
Santos (2010): ecologia dos saberes, vista como possibilidade de
desvio da ciência tradicional, mas um pequeno desvio, que nos leve
a atravessar as linhas abissais que a ciência moderna construiu e
estabelecer diálogos com os postulados decoloniais de Aníbal
Quijano, Walter Mignolo, Enrique Dussel e outros, podendo incluir
elementos humanos que foram colocados “do outro lado da linha”,
desconsiderados enquanto tal.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 228


O que chamamos de “outro lado da linha”, as camadas
sociais inferiorizadas e, muitas vezes excluídas e desconsideradas,
juntamente com as questões culturais, sociais e políticas que
engendram, são importantes para se entender a “calibanização” da
identidade nacional e por que a mesma, muitas vezes, está tão
díspare da política externa desenvolvida pelo país, a qual, vale
destacar, apresenta certa continuidade mesmo com as inúmeras
mudanças de governos, indo desde governos democráticos até
autoritários como aconteceu na Era Vargas e na Ditadura Militar.
O debate que aqui se levanta com o Próspero-Caliban e os
demais elementos que traz, servirá, assim desejamos, para repensar
o Brasil como nação e questionar os elementos que o constituem,
inserindo a política externa como foco da discussão, principalmente
no sentido de entender porque a construção de um Brasil Caliban
não significa uma inflexão no Brasil externo Próspero.

ÚLTIMAS PALAVRAS

A tentativa de caminhar na dicotomia Próspero-Caliban


ocorreu no sentido de percebermos os diferentes usos a que se
prestou e, mais ainda, para demonstrar em que campo estamos
entrando. Um campo que relaciona política externa e identidade
nacional, dois elementos constituidores do Brasil que,
aparentemente, não se cruzam, mas que para nós apresentam pontos
de contato, já que entendemos que existe diferença entre apresentar-
se como Caliban, discursivamente no plano interno, e ser Caliban, o
que o Brasil não é já que age como Próspero no plano externo. Ou
seja, o Brasil pode, até certo ponto, fabricar uma imagem interna de
fraqueza e debilidade, o que não significa que o país assim o seja em
termos sócio-econômicos e políticos.
E o par dicotômico aqui apresentado e debatido serviu-nos
justamente para levantar essa questão e instigar a pesquisa e a busca
por responder se a política externa ajuda a construir e, mais a
reconstruir, nossa identidade.

229 | 2018 – vol. II, nº 02


Isso significa, então, que a percepção de similaridade entre
Próspero-Caliban e o Brasil interno-externo, é apenas a metáfora
que usamos para iniciar uma discussão muito mais complexa e
profunda, que nos levará, assim esperamos, a repensar as relações
internacionais do Brasil e a desconstruir uma série de elementos que
formam o chamado “ser brasileiro”, a partir da possibilidade que
temos de mudar não só os discursos ou as práticas discursivas, mas
permitir a fala do Outro, levantando sua importância e procurando
perceber as razões que produziram sua obscuridade e o que essa
ação acarretou em termos de Brasil.
Portanto, debateremos ao longo da tese de doutoramento,
se há correlação entre identidade nacional e política externa no
Brasil e, em caso afirmativo, como essa área tem colaborado na
construção da primeira, usando como metáfora, cabe reforçar, os
personagens de Shakespeare Próspero e Caliban, como
representantes do agir brasileiro entre a prosperidade na política
externa e o Caliban de sua identidade.
Queremos, sim, perceber qual relação se estabelece entre essas
áreas, independentemente se no final essa dicotomia não se
confirmar, pois esse é apenas um começo, uma sensação que nos
levou à pesquisa e que ainda agora, depois de iniciada a mesma,
ainda permanece, com a inclusão de questões mais relevantes como
a noção de que esse debate leva a se questionar, por exemplo, o
padrão de poder mundial, o capitalismo como sistema, o
preconceito como uma construção. E, mais que isso, como todos
esses elementos influíram e ainda o fazem no Brasil, seja no cenário
interno ou no externo.

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PROSPERO AND CALIBAN IN THE RELATIONSHIP


BETWEEN EXTERNAL POLICY AND NATIONAL
IDENTITY IN BRAZIL

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 230


ABSTRACT: The objective of this study is to discuss possible applications of
the Prospero-Caliban dichotomy, from the time period of the Shakespearean play
in which it originated, to both post-colonial and decolonial
viewpoints. Simultaneously, this study examines the Prospero and Caliban
characters as metaphors to examine a possible proximity between Brazil's foreign
policy and it's national identity. What hidden meanings and possible debates do
these metaphors raise? How can they assist us in rethinking Brazil? Revisiting
William Shakespeare's "The Tempest," with its Prospero and Caliban characters,
opens the door to answers. Re-readings by post-colonial authors allow small
opportunity for alternate viewpoints. So we step beyond, into the decolonial
perspective and the "ecologies of knowledges" of Boaventura de Sousa Santos.

KEYWORDS: Prospero; Caliban; Brazil; national identity; foreign policy.

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Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 232
O “FOLHETIM ELETRÔNICO”
REPAGINADO: A CONSTITUIÇÃO
DA NARRATIVA TELEFICCIONAL
BRASILEIRA

Rondinele Aparecido RIBEIRO1

RESUMO: A telenovela é o gênero de ficção midiática de maior


importância para o Brasil. Presente no país desde a década de 1950,
esse gênero tem sua fórmula consagrada, sobretudo, pelo seu
aspecto narrativo. Estruturalmente falando, trata-se de um gênero
híbrido, já que suas origens estão relacionadas ao folhetim, ao me-
lodrama, às soap operas e às radionovelas. A partir dessa constata-
ção, este artigo intenciona recuperar a gênese da telenovela bus-
cando enfocar desde suas matrizes remotas até sua constituição
como “folhetim repaginado”.

PALAVRAS-CHAVE: Telenovela; Ficcionalidade; Narração;


Folhetim.

INTRODUÇÃO

A televisão constitui-se como veículo de comunicação mais


presente nos lares dos brasileiros. Sua presença no Brasil é notada
desde 1950, ano em que o empresário da comunicação Assis
Chateaubriand organizou a primeira transmissão no Brasil. Para a
crítica, tal aparelho foi responsável pelo redimensionamento do

1Mestrando em Letras pela UNESP-ASSIS (linha Literatura e Estudos Culturais).


Membro do GP Cultura Popular e Tradição Oral: Vertentes. Especialista em
Cultura, Literatura Brasileira e Língua Portuguesa. Licenciado em Letras-
Literatura pela UENP. Contato: rondinele-ribeiro@bol.com.br

233 | 2018 – vol. II, nº 02


entretenimento para a sociedade. De acordo com dados do Obitel2,
a cobertura do sinal de televisão abrange cerca de 97% dos lares dos
brasileiros. A mesma pesquisa revelou que os brasileiros passam em
média 4 horas diárias em frente à televisão.
A partir dos dados revelados pela pesquisa, comprova-se que a
televisão, apesar de não ser o único meio de comunicação na
sociedade, ainda se constitui como um veículo onipresente e de
grande importância para o país. Sua importância é tão grande que a
estudiosa Maria Tereza Fraga Rocco (1994) defende que a televisão
se constitui, ao lado do computador, como o invento mais
importante do século XX. Enquanto suporte, esse veículo está
assentado pela divisão em vários gêneros como explica Arlindo
Machado (2000).
De acordo com Domenique Wolton (1996), a televisão se
constitui como um verdadeiro laço social, já que o receptor ou
espectador assiste à programação, mas não o faz sozinho. Em
outros locais, há milhares de pessoas que também partilham do
mesmo hábito de assistir aos programas. A esse fenômeno, o
estudioso denomina de laço invisível. O autor explica ainda que nas
outras instituições, tais como igreja, trabalho, escola ou família, esse
laço já existe. Para o autor, com o advento da televisão, esse laço é
explicado pela recepção da programação televisiva. Por esse motivo,
Dominique Wolton sustenta a tese de que a televisão se constitui
como o “espelho” da sociedade, uma vez que ela fornece referências
que possibilitam aos telespectadores se verem representados. Para o
autor, a televisão “cria não apenas uma imagem e uma
representação, mas oferece um laço a todos aqueles que assistem
simultaneamente” (WOLTON, 1996, p. 124).
A ficção ocupa lugar privilegiado na programação televisiva,
sendo que a telenovela é o formato de maior sucesso dos gêneros
da ficção seriada. Presente no país desde 1951, quando se deu a
exibição de Sua Vida me Pertence, essa modalidade de narrativa goza
de bastante prestígio e sucesso no Brasil, que passou a exportar o

2 Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 234


produto. Assim, a telenovela é um formato bastante lucrativo na
televisão brasileira por meio do merchandising empregado pelas
emissoras na inclusão de objetos do consumo no cotidiano
vivenciado pelas personagens.
Inicialmente desprestigiada pela crítica e concebida como
um produto menor de caráter evasivo devido ao emprego da
estrutura melodramática, a telenovela foi se adaptando e se
distanciou de sua matriz latino – americana para incorporar
temáticas mais cotidianas, que dialogam com o cenário brasileiro.
Dessa forma, o gênero, passou a se constituir numa vitrine cultural
e numa forma de narrativização da sociedade (LOPES, 2009). A
partir das considerações iniciais, o presente artigo presta-se a
finalidade de tecer considerações acerca da narrativa teleficcional
televisiva de maior sucesso no Brasil: a telenovela. Para tanto,
abrange sua constituição no país e concebe o gênero como grande
potencial comunicativo pela capacidade sui generis de retratar
temáticas sociais de uma maneira extremamente esclarecedora.

O LUGAR DA FICÇÃO NA TEVÊ:


A SUPREMACIA DA TELENOVELA

Enquanto suporte, a televisão se notabiliza por apresentar


em sua configuração vários programas e formatos como bem
mostrou Machado (2000). Dentre eles, os produtos de ficção seriada
exercem grande importância na sociedade seja pelo fato de
responderem pelo acesso à ficção na sociedade contemporânea, seja
pela facilidade que as emissoras têm de obter lucro pela inserção das
ações de merchandising.
Não restam dúvidas de que a ficção na mídia exerce o papel
de mediadora social, sendo que o destaque maior deve ser conferido
para as telenovelas, que devem seu sucesso, entre outros fatores, à
necessidade atávica do homem em ter acesso à narração. Além de
estar entre “os programas mais cuidados e mais caros da TV
brasileira. São campeões de audiência e atraem milhões de pessoas,

235 | 2018 – vol. II, nº 02


que assistem ao mesmo tempo à mesma história” (SADEK, 2008,
p. 11).
Para Baccega e Abrão (2016, p. 180), a telenovela é um forte
componente da teleficção, sendo um formato bastante consagrado
consumido por todas as classes, raças ou gêneros. “É importante
traçar o percurso deste gênero em território brasileiro, tendo em
conta as heranças latino-americanas e norte americanas, assim como
o desenvolvimento da televisão e da indústria televisiva”
(TONDATO; ABRÃO; MACEDO, 2013, p. 154). Assim, desde a
narrativa primordial, passando pela ascensão do romance, do
folhetim e do meio audiovisual, o ideal humano prevaleceu, apenas
alterou-se o suporte em que a ficção é oferecida.
Acerca das especificidades do gênero telenovela, valem as
considerações de Sodré:

[...] na era da telenovela-gênero narrativo de


maior consumo na sociedade brasileira, imaginá-
rio e real interpenetram-se com força maior do
que nunca no espaço urbano. Se é verdade que o
cinema “materializa” o sonho romanesco, a te-
levisão incorpora isto e vai além: ficcionaliza o
real, seja dramatizando o cotidiano, seja incor-
porando ao drama as pequenezas do dia-a-dia.
(SODRÉ, 1985, p. 85).

Para Balogh (2002, p. 24), “a existência da televisão está


ligada a um complexo processo de evolução e entrelaçamentos entre
os campos da tecnologia, das comunicações e das artes”. Nessa
perspectiva, o produto ficcional mais promissor da televisão, como
já afirmado, é a telenovela, que responde por ser a grande promotora
de ficção na contemporaneidade, sendo lícito lhe atribuir o título de
“folhetim eletrônico”, sobretudo, por ser o gênero ficcional mais
perceptível na televisão devido a sua serialidade e por constituir-se
como um gênero híbrido herdeiro do vasto conjunto de narrativas
anteriores.
Pode-se perfeitamente depreender que cabe à televisão
cumprir um novo papel de legar e promover o acesso à ficção, uma

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 236


vez que se consubstancia como um veículo capaz de materializar as
referências histórico-sociais do indivíduo e catapultá-las em suas
narrativas repletas de significados e símbolos, que acabam por
envolver o ser humano na urdidura de seu amargo dia, atualizando
mitos a partir de aspectos corriqueiros, fazendo com que os
telespectadores encontrem um verdadeiro significado para sua
existência vital.
Milly Buonanno (2004), ao teorizar sobre as histórias
seriadas, defende que: “A razão principal pela qual é necessário levar
a sério as histórias, de modo especial aquelas criadas e contadas pelo
contemporâneo “supernarrador televisivo”, é que por meio delas a
sociedade se representa” (BUONANNO, 2004, p. 339). No rol de
autores que veem na telenovela fundamentos da narrativa estão as
autoras Mogadouro (2007) e Baccega (2013). Assim, falar acerca da
origem desse folhetim eletrônico é mergulhar na história da trama
seriada, uma vez que a telenovela é o representante contemporâneo
da velha forma cujo exemplo mais distante é As Mil e uma Noites.
Pode se acrescentar ainda que sua constituição segue um percurso
bastante peculiar no Brasil: de um simples produto alienante e
destinado às mulheres, reconfigurou-se e passou a ser o produto de
mídia mais importante da televisão brasileira.

TELENOVELA E SOCIEDADE

Depois de estabelecidas considerações acerca da narrativa na


contemporaneidade, faz-se necessário apresentar algumas
considerações acerca do gênero televisivo de maior destaque. Assim,
o artigo traçará um breve panorama acerca da gênese deste gênero
bem como apontará sua função na sociedade atual. Na atualidade, a
telenovela consolidou-se como um produto de exportação do Brasil
e veicula formas de viver, fornecendo um amplo painel acerca da
constituição da sociedade brasileira. Ao tratar das características da
telenovela, Lopes (2009) assevera que esse produto foi alçado ao
posto de uma verdadeira narrativa sobre a família por sua
peculiaridade de dar visibilidade a certos assuntos, temas e

237 | 2018 – vol. II, nº 02


comportamentos. Para a autora, esse produto ficcional define uma
certa pauta que regula as intersecções entre a vida pública e a vida
privada.
A telenovela está presente no país desde 1951, podendo-se
dizer perfeitamente que sua trajetória confunde-se com a de seu
suporte. Hoje, não restam dúvidas de que falar sobre telenovela é
falar sobre a Rede Globo de Comunicação, uma vez que a emissora
profissionalizou-se na produção desse gênero, fazendo dele a base
de sua programação televisiva.
Notabilizando-se como um gênero híbrido pelo fato de sua
estrutura originar-se a partir de características herdadas de diversas
matrizes, como folhetim, melodrama, radionovela, soap opera, a
telenovela constitui-se como um verdadeiro fenômeno artístico-
cultural do Brasil, alcançando o posto de uma verdadeira narrativa
sobre o país, como muito bem definiu Lopes (2009).
Para Mogadouro (2007, p. 85), a telenovela é responsável
por promover reconhecimento com o público devido suas histórias
serem constituídas por enredos de caráter familiar:

Além de se relacionar com outros textos (inter-


textualidade), a telenovela traduz-se num gênero
em que há uma representação da identidade na-
cional. Para a compreensão desse “repertório
compartilhado” que a telenovela estabelece com
milhões de telespectadores, a partir de um mesmo
texto ou produto, tomou-se o conceito de
nacionalidade como nação imaginada [...].
(MOGADOURO, 2007, p. 88).

Retomando a origem desse “folhetim eletrônico”, Ortiz,


Borelli e Ramos (1991) explicam que o folhetim serviu como
modelo para a telenovela, apontando “a existência não só de uma
continuidade entre o gênero folhetinesco e a telenovela, mas
também rupturas e descontinuidades” (ORTIZ, 1991, p. 25-28). A
explicação dos autores é corroborada por Mogadouro para quem “
a telenovela buscou uma forma própria de narrativa popular pautada
nas relações de cotidiano, agregando realismo e críticas sociais,

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 238


construindo um produto extremamente representativo da
modernidade brasileira [...] (MOGADOURO, 2007, p. 88-89).
Pensando-se em aspectos da teoria dos gêneros, a telenovela
se caracteriza pela dinamicidade e hibridização, tal como propõe
Bakhtin (2003), já que se formou como um verdadeiro mosaico a
partir da transmutação de outros gêneros, tanto é que, sua estrutura,
como já foi apresentada, fundamenta-se no melodrama, nos
folhetins, nas radionovelas e nas soap operas. Para Alencar (2002, p.
49), o melodrama é “um gênero em que os diálogos são
entremeados de música. Humano, imaginoso e vivaz, cria intrigas e
paixões com habilidade e requer uma completa identificação entre o
espectador e personagem”.
Martin-Barbero (2001) em sua obra Dos meios às mediações
contribui com as tessituras sobre o melodrama ao postular que tal
gênero tem sua origem em 1790 em dois países: Inglaterra e França.
De acordo com o estudioso, o melodrama se constitui numa forma
de teatro de caráter popular que centrava suas encenações para
temáticas subjacentes aos comportamentos em voga na época.
Dessa forma, o espectador passou a se identificar com os
personagens bem como com os enredos encenados, já que era a
representação de seus dramas cotidianos que estavam sendo
representados.
Pode-se perfeitamente compreender o melodrama como
sendo uma arte de caráter massivo a qual era destinada para um
público menos culto. Estruturalmente falando, tal gênero discursivo
estava fundamentado em representações movidas a um forte
sentimentalismo. Essa fórmula logrou bastante êxito ao conseguir
adesão do receptor e promover um verdadeiro processo de
identificação com o texto encenado. Sua característica centrada num
conflito maniqueísta calcado no jogo antitético entre o bem e o mal,
além de grandes marcas de oralidade, exploração de jogos
sentimentais e exploração das virtudes das personagens fizeram do
melodrama um gênero por excelência no que se refere à tarefa de
entreter o público alvo, tanto é que a telenovela usou e usa em sua
composição aspectos dessa vertente popularesca. “Apelando para a

239 | 2018 – vol. II, nº 02


polarização ou hiper-dramatização das forças em conflito, o
melodrama faz parte de um sistema estético coerente, com um
repertório mais ou menos fixo de histórias exemplares” (COSTA,
2001, p. 49).
Sobre a adoção do melodrama nas telenovelas, recorremos
às teorizações de Piveta (1999), que trata de traços constitutivos
acerca da telenovela, gênero de maior sucesso da televisão brasileira:

Enquanto base estrutural, a telenovela tem no


melodrama seu principal componente. Em ter-
mos, ela não foge à mesma regra de sucesso
consagrada pelo cinema, pelo teatro e até mesmo
pela música. No entanto, quando se diz que a
novela tem sua estrutura pautada no melodrama,
muitos críticos fazem a associação com algo
meloso, de enredo pobre, desenvolvimento pre-
visível e final que privilegie os bons. Enfim, um
verdadeiro dramalhão (PIVETA,1999, p. 24).

Para a autora, tal fórmula foi empregada pelas produções em


seu início e a escritora de maior importância nesse quesito é Glória
Magadan, que muito contribuiu para a consolidação da telenovela
para o Brasil. Outros autores, como Barbero sustentam a tese de que
esse gênero é constitutivo da América Latina e estão presentes não
apenas na telenovela como em outros programas de auditório.
Em se tratando de sua matriz literária, a telenovela deve ser
vista como um gênero formado a partir das narrativas folhetinescas.
“O folhetim era uma estória contada em episódios e dedicada ao
entretenimento. Ele ocupava, em geral, o rodapé das páginas dos
jornais [...] (PIVETA, 1999, p. 02).
O responsável pela reconfiguração do gênero foi o editor do
jornal La Presse, Émile Girardin, que iniciou a modalidade em 1836,
quando tentou tornar sua publicação de caráter mais popular. Dessa
forma, seu projeto incluía tornar o jornal uma publicação diária. Para
tanto, Girardin vê no folhetim um trunfo, já que se tratava de levar
ao público histórias com formato parcelado. Na realidade, os
folhetins “seriam histórias de amor e aventura no chamado estilo

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 240


folhetim miscelânea, nas escolas românticas e no melodrama do
teatro popular” (ALENCAR, 2002, p. 42).
Piveta contribui ao estabelecer relações entre o folhetim e a
telenovela:

Solidão, amor, miséria, medo, desejo, loucura.


Dentre tantos outros propósitos, qualquer um
destes poderia ser tema para o gênero literário,
surgido na França do século XIX, conhecido
como folhetim. Qualquer semelhança com o que
conhecemos hoje por novela não é mera
coincidência. Ela é descendente direta do folhe-
tim e dela carrega algumas de suas principais ca-
racterísticas, especialmente a fragmentação. (PI-
VETA, 1999, p. 02).

É lícito afirmar que a ascensão do folhetim, enquanto


modalidade literária, está associada também ao surgimento da
literatura de massa. Assim, para melhor se compreender esse
verdadeiro fenômeno artístico-comercial, faz-se necessário
recuperar o contexto no qual ele se insere em “um contexto de
transformação radical da sociedade francesa” (ORTIZ, BORELLI,
RAMOS, 1989, p. 11). De acordo com explicações de Patrícia
Piveta, a grande transformação pela qual se estava passando a
sociedade europeia do século XVIII é a Revolução Industrial, que
propiciou o surgimento de uma sociedade aberta, móvel com
enorme necessidade de consumir. De acordo com Ortiz, Borelli e
Ramos, com o surgimento das várias inovações tecnológicas, tais
como a fabricação de tinta para papel, a prensa a vapor e mecânica,
o surgimento de novos meios de comunicação, a criação de agências
de notícias, a instalação de linhas férreas entrecruzando toda a
Europa foram responsáveis pelo aumento da produção cultural e
difusão de livros e jornais.
A primeira experiência de Girardin ocorreu no ano de 1836,
quando se deu a publicação de Lazarillo de Tormes. Faz-se necessário
esclarecer, todavia, que tal produção não contava com as
características estruturais do folhetim, já que não havia sido escrita

241 | 2018 – vol. II, nº 02


com o intuito de ser veiculada parceladamente nos jornais. No ano
de 1840, como destaca Meyer (2005), o folhetim se consolidou
como um gênero amplamente popular, alastrando-se por toda a
Europa. Como forma de atingir o sucesso, esse gênero empregava
em sua composição, além de um forte tom maniqueísta, a presença
do gancho, que servia como fator de suspense, servindo para que o
leitor se interessasse pela continuidade da trama. Costa tece
considerações acerca do emprego do gancho nos folhetins:

Os ganchos sintetizam os capítulos diários de


uma narrativa seriada, demonstrando que as in-
trigas foram urdidas exatamente para terminarem
nesse hiato preciso e calculado - é como se o
narrador começasse a escrever o capítulo, pen-
sando já em como encerrá-lo. Podemos dizer que
quem escreve tanto conta como sugere o que não
conta, quando silencia, corta ou interrompe. Há
um enredo que se apresenta no texto e outro que
se esconde na imaginação do público, proposto
pelo narrador. O gancho acentua os silêncios, as
propostas, as ambiguidades, as sugestões,
estimula os desejos, as expectativas, os sonhos.
(COSTA, 2001, p. 04).

Em se tratando da telenovela, percebe-se que ela emprega


em sua estrutura diária o gancho como forma de suspense na criação
de expectativas no receptor. Renatta Pallotini (2012) explica
perfeitamente sobre o emprego dessa técnica herdada do folhetim.
Ademais, buscando-se uma justificativa para o sucesso das
telenovelas no Brasil, Sadek (2008, p. 17) justifica esse gosto movido
a uma tradição milenar: o velho hábito de contar e ouvir histórias.
Desse modo, é lícito afirmar que “ela tem um passado significativo,
que começa com a primeira narrativa” (SADEK, 2008, p. 17).
A partir das considerações apresentadas, pode-se perfeita-
mente interpretar como faz Alencar (2002) que mesmo tendo sur-
gido novas formas de comunicação e de entretenimento, grandes
formas de promoção artística, a estrutura folhetinesca permaneceu
no meio audiovisual.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 242


UM CÂNONE PARA O ESTUDO DA TELENOVELA

Fazendo-se uma trajetória acerca do percurso da telenovela


no país, este artigo optou por adotar o modelo proposto pela
estudiosa Maria Immacolata Lopes (2014), que dividiu esse estudo
em 3 fases. A primeira, Sentimental, compreende o período que se
estende desde as primeiras transmissões até o ano de 1967; O
segundo período é definido pela estudiosa como Realista e se
estende de 1968 a 1990: Já a 3ª fase, é definida como período
Naturalista pelo fato de as produções realizadas a partir da década
de 1990 aprofundarem as temáticas sociais conferindo-lhes um
perfeito acabamento com a possibilidade se aproximação com a
realidade.
Recuperando a gênese das primeiras experiências do
formato no Brasil, faz-se importante citar a telenovela Sua Vida me
Pertence, de Walter Foster, exibida pela Rede Tupi em 1951. Tal
produção era exibida duas ou três vezes por semana e contava com
capítulos curtos, com duração de cerca de 20 minutos. Como definiu
Lopes (2014), essa primeira fase é denominada de sentimental por
conter aspectos extremamente melodramáticos marcado pela luta
entre bem e mal e moralidade exagerada. Seu conteúdo era
extremamente evasivo. Como a realidade nacional não figurava nos
enredos, essas produções foram tachadas de alienantes. Além do
mais, pesava à telenovela o status de ser um produto destinado às
mulheres, o que lhe rendia mais preconceito ainda.
Sobre as primeiras experiências, valem as considerações de
Brandão:

A novela, escrita por Walter Foster, inaugura uma


série de outras que permaneceriam espora-
dicamente no ar duas ou três vezes por semana
com capítulos curtos, de duração média de 20
minutos. Como a televisão era uma aquisição re-
cente (1950), as primeiras novelas ainda carrega-

243 | 2018 – vol. II, nº 02


vam a influência do período áureo das radiono-
velas, mantendo a figura de um narrador que li-
gava os capítulos, informando aos telespectado-
res um resumo da história já veiculada anterior-
mente, como se fazia no rádio (BRANDÃO,
2007, p. 165).

Sadek (2008) reitera o caráter improvisado típico de tais


produções no início da história da teledramaturgia nacional. “O
começo da TV no Brasil foi improvisado. Ela foi trazida praticamente num
rompante na década de 1950, e, como não havia gente especializada nesse
trabalho, os técnicos do rádio foram requisitados para fazer os primeiros
programas da TV” (SADEK, 2008, p. 12). Já que no tange às
temáticas, pode-se falar que, nessa fase inicial, grande parte dos
roteiros eram adaptações de obras literárias, estratégia empregada
para legitimar um gênero incipiente, que não contava ainda com um
formato profissional. Outra característica dessa fase, como aponta
Brandão (2007, p. 165), é a supremacia de autores advindos da
radionovela, contribuindo para a estrutura melodramática dessa
fase.
Para Lopes (2009; 2014), a segunda fase é constituída por
telenovelas que diluíram o melodrama a situações cotidianas,
nutrindo o receptor de referências. A autora enquadra nessa fase as
produções datadas a partir de 1968, sendo Beto Rockfeller um
grande marco na teledramaturgia nacional por ter abandonado o
caráter evasivo predominante até então nas telenovelas para retratar
e a dialogar diretamente com o cenário nacional nutrindo os
espectadores de referências. Assim, a passou a servir como meio de
representação e de diálogo com uma nação que se modernizava ao
passo que experimentava uma situação sociopolítica bastante
significativa. Ao se posicionar sobre as produções dessa fase, Lopes
explica que a telenovela “ [...] se estruturou em torno de
representações que compunham uma matriz imaginária capaz de
sintetizar a sociedade brasileira em seu movimento modernizador”
(LOPES, 2009, p. 23-24).

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 244


Essa mesma característica, como destaca Ester Hamburger
(2005), pode ser estendida para as novelas produzidas nos anos 80:
a de uma perspectiva crítica acerca da realidade brasileira, podendo-
se dizer que esse gênero contribui de maneira contumaz para o
entendimento do contexto social brasileiro no seu movimento
modernizador. Ao polarizar em seu discurso temáticas
extremamente complexas, como a reconfiguração do lar, a alteração
do papel da mulher na sociedade, as questões ligadas à política, a
telenovela mostrou-se um gênero de forte representação nacional,
tanto é que Mogadouro sustenta que a telenovela “[...] buscou uma
forma própria de narrativa popular, pautada nas relações do
cotidiano, agregando realismo e críticas sociais, construindo um
produto extremamente representativo da modernidade brasileira
[...]” (MOGADOURO, 2007, p. 88-89).
Por fim, a última fase compreendida pela estudiosa como
fase naturalista (iniciada a partir dos anos 1990) deve ser entendida
como o momento de radicalização da presença de elementos
realistas da fase anterior associadas ao emprego de temáticas de
cunho social e inserção de campanhas socioeducativas, revelando
um forte componente educativo desse gênero de forte penetração
nos lares dos brasileiros. Ademais, a telenovela é tão vista e
comentada que Lopes (2009) adota a concepção de que esse gênero
é produto principal da indústria televisiva, o que lhe permitiu se
constituir num verdadeiro espaço de problematização do Brasil,
retratando aspectos ligados à intimidade bem como problemas
sociais.
Pela profundidade dos temas retratados e pelo serviço de
formativo que prestam à nação, é indiscutível que a telenovela
deixou de ocupar o posto de mero entretenimento para se
consolidar numa narrativa acerca da nação com potencialidades
socioeducativas, podendo – se citar como exemplos bastante
pertinentes dessa estratégia empregada pelas telenovelas o número
significativo de crianças resgatadas e devolvidas aos lares após a
exibição de Explode Coração, o número significativo de doação de
medula após o Brasil acompanhar o drama de uma personagem em

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Laços de Família, campanhas contra a violência doméstica e a
violência contra idosos (a partir do drama representado em Mulheres
Apaixonadas) e mais recentemente trouxe esclarecimentos sobre a
prostituição no mundo da moda e a representação de usuários de
drogas (Verdades Secretas).
As telenovelas incorporaram temáticas polêmicas em seus
enredos, passando a ser um componente integrante da cultura
brasileira. Essa particularidade permite que o telespectador veja seu
cotidiano representado, podendo-se, dessa forma, perfeitamente
entender tal gênero um instrumento de mediação, haja vista
fornecer um vasto material para o leitor interpretar o mundo à
medida em que propõe uma série de reflexões ao telespectador.
A grande verdade é que a novela passou a se constituir num
precioso instrumento de integração nacional, representando papeis
sociais, ligando a conquistas políticas, representando
comportamentos, esclarecendo determinadas condutas, refletindo
determinadas lutas de classes e de gêneros, criando hábitos de
consumo, produzindo padrões e normas. Enfim, foi alçada ao posto
de grande instrumento de integração nacional ou, como assevera,
Lopes (2014), numa narrativa sobre a nação e uma forma de
participar dessa nação imaginada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A telenovela se organiza por meio de características que


foram alteradas ao longo de seu processo evolutivo. No que tange
aos estudos realizados acerca desse gênero, normalmente
empregam-se duas linhas primárias. A primeira versa sobre teorias
que estudam a comunicação de massa bem como da sociologia da
comunicação; A segunda, pauta suas considerações para a linguagem
folhetinesca do século XIX, a matriz de onde se originou esse
gênero da ficção seriada.
Tal situação, permite afirmar que a televisão e a telenovela
são estudadas sob diversos enfoques: positivos e negativos. A
telenovela pode ser enquadrada como produto complexo e, ao

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 246


mesmo tempo, dinâmico. No limiar da história, movida a uma época
de mudanças rápidas e constantes, várias correntes de pensamento
foram surgindo com o intuito de explicar e balizar questões
relacionadas às mídias. Grosso modo, algumas se pautaram a favor
e outras criticaram o formato e a função do produto de ficção
seriada.
Como arremate, pode-se de deduzir que a telenovela, na
sociedade midiática, é um gênero de extrema importância para a
compreensão do papel que a mídia ocupa na tarefa de se constituir
como principal forma de acesso à ficção na atualidade, por essa
razão vários estudiosos tem se voltado em analisar como se dá esse
processo em uma sociedade em que pauta sua essência no
audiovisual, que além de comunicar, ganha tarefas cada vez mais
importantes seja em promover o entretenimento, a ficção ou
emancipação ao representar aspectos sociais bem como na
veiculação para seu público alvo.
Hoje, consolidou-se como gênero amplamente popular e de
forte aceitação por procurar cada vez mais interação com o público-
alvo. Suas características melodramáticas foram abandonadas por
uma linguagem própria, o que propiciou contextualizar e representar
os confrontos e problemas da sociedade. Na atualidade, as
telenovelas correspondem a uma forma de narrativização da
sociedade. Para Lopes (2014), a telenovela é um produto que foi
alçado ao carro chefe da indústria televisiva, o que lhe permitiu se
constituir num verdadeiro espaço de problematização do Brasil,
retratando aspectos ligados à intimidade bem como problemas
sociais:
Uma novela, como a que são assistidas hoje, apresentam um
requinte de cenário, com locações e figurinos esplendorosos. O
corpus narrativo se dá por meio de diálogos e as tramas são cada vez
mais próximas da realidade de público, o que acaba conferindo a
identificação com a novela e o interesse em acompanhá-las.
A telenovela consegue penetrar ativamente na casa dos
brasileiros, promovendo uma maior identificação, o que leva a uma
projeção muito maior da obra. Em suma, pode-se falar que na

247 | 2018 – vol. II, nº 02


atualidade cumprem uma função social à medida que elas
referenciam-se a um universo que é exterior à narrativa, assumindo
um papel explícito de intervenção em histórias, funcionando como
grandes prestadoras de serviços à sociedade, o que corresponde à
função comunicativa que Lopes (2014) atribui para esse gênero.
Ao longo de sua constituição, sua característica
essencialmente melodramática foi revista e cedeu espaço para a
incorporação de temáticas mais realistas. Dessa forma, é pertinente
afirmar que a telenovela apresenta a ficcionalização de fatos da
realidade, deixando bem claro que aspectos do cotidiano
influenciam a produção. É justamente esse aspecto que faz dela se
alçada, como já afirmado, em uma narrativa acerca do país. Ademais,
vale acrescentar que ao incorporar em seus enredos componentes
típicos da realidade, a telenovela se converte num meio formativo
da sociedade brasileira.

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THE LEAFLET TO THE "ELECTRONIC LEAFLET"
REPAGINATED: THE CONSTITUTION OF THE
BRAZILIAN TELEFICCIONAL NARRATIVE

ABSTRACT: The telenovela is the genre of media fiction of major importance


for Brazil. Present in the country since the 1950s, this genre has its formula
consecrated, above all, by its narrative aspect. Structurally speaking, it is a hybrid
genre, since its origins are related to the leaflet, the melodrama, the soap operas
and the radionovelas. From this finding, this article intends to recover the genesis
of the telenovela seeking to focus from its remote matrixes until its constitution
as "republished leaflet".

KEYWORDS: Soap Opera. Fictionality. Narration. Folhetim.


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RECEPÇÃO DE TELENOVELA NA
CONTEMPORANEIDADE: UM
OLHAR A PARTIR DO TWITTER

Tiêgo Ramon dos Santos ALENCAR136

RESUMO: Considerando o atual momento da cultura de convergência dos


meios de comunicação e da dinamicidade cada vez maior do fluxo de informa-
ções, este trabalho tem por objetivo explorar modos de recepção de uma tele-
novela da Rede Globo a partir da rede social online Twitter. Com base em uma
pesquisa de cunho qualitativo-interpretativista, este artigo verificou que a plata-
forma é utilizada como via de expressão de concordância ou inconformidade com
a narrativa televisiva, além de veicular a criação de vários ships e de perfis para
estes ships. Constatou-se, ainda, o potencial do Twitter enquanto veiculador das
chamadas fanfictions, o que mostra o potencial da rede social online como ponto de
convergência entre diversas mídias fundamentais para a concepção de novas
formas de recepção da telenovela.

PALAVRAS-CHAVE: Recepção; telenovela; contemporaneidade; Twitter.

INTRODUÇÃO

Atualmente, vivemos a cultura de convergência dos meios


de comunicação (JENKINS, 2008). Essa convergência implica em
uma (re)configuração constante dos modos como os indivíduos se
relacionam com as diversas mídias que permeiam suas experiências
sociais. E dentre essas mídias, é importante destacar a mídia
televisiva, que está presente na maioria dos lares dos brasileiros137 e

136 Licenciado em Letras/Francês pela Universidade Federal do Amapá (UNI-


FAP), especialista em Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade de Teologia
e Ciências Humanas de Macapá (FATECH/AP) e mestrando em Linguística
Aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: tiego-
ramon@gmail.com.
137 Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2014,

aponta que 97,1% das casas no Brasil tem pelo menos um televisor. E 40% desses
televisores têm acesso à TV digital. Consultado em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-04/ibge-embardada-ate-
amanha-10h-0604. Acesso em: 15 mai. 2017.

251 | 2018 – vol. II, nº 02


que, por vezes, assume um papel fundamental na formação social
dos espectadores. Nesse sentido, com o advento da tecnologia e do
fluxo constante de troca de informações on e off-line138, as telenovelas,
em especial, vivencia(ra)m uma nova maneira de recepção pelos
espectadores: a partir das redes sociais (e não mais, apenas, do outro
lado do televisor).
Com isso, no caso deste trabalho, o enfoque é dado na
recepção de uma telenovela brasileira a partir da rede social online
Twitter, com base em tweets sobre a telenovela Rock Story, exibida
entre novembro de 2016 e junho de 2017. Pretendo, portanto,
analisar como acontece esta interação entre as mídias, considerando
o processo de convergência midiática e a intermidialidade que
perpassa os elementos envolvidos neste processo.

RECEPÇÃO: PERSPECTIVAS

substantivo feminino
1. Ato ou efeito de receber.
2. Maneira de receber, acolhida:
fazer boa recepção a algo ou alguém.
(FERREIRA, 2014, p. 167)

Inicio este tópico trazendo uma definição do Dicionário


Aurélio, para ilustrar a possível limitação decorrente do termo
“recepção”, se deixarmos de considerar que receber também implica
em emitir. Baccega (1998, p. 7) afirma, sobre isso, que a
comunicação só existe no encontro do emissor com o receptor. É
importante considerar que a relação emissor-receptor também é
denominada, conforme Hall (2003), como uma relação de
codificação-decodificação. Codificar implica diretamente em sugerir
um determinado tipo de recepção, desejado por aquele(s) que
codifica(m) - o que, por vezes, promove um processo de
(res)significação daquilo que é apreendido pelo receptor.

Sobre as redes sociais on e off-line, considero que o on-line está na alçada da web,
138

enquanto o off-line diz respeito às interações sociais face a face (RECUERO, 2009;
PIENIZ, 2013).

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 252


Nesse sentido, Hall (2003) afirma:

se você tem de dizer algo novo, é porque o


processo está transformando os significados que
já estão lá. Portanto, cada ato de significação
transforma o estado efetivo de todas as
significações já existentes (HALL, 2003, p. 363).

Ao considerar a transformação dos significados, pelo


receptor, do que é emitido, Hall afirma que esse processo altera o
“estado efetivo” das significações já existentes. Esta é uma
implicação direta do que o autor denomina negociação de leitura do
receptor, acerca do que é gerido pelo emissor. Como se sabe, os
estudos sobre recepção focalizam as relações estabelecidas entre os
meios (de comunicação) e sua audiência; com isso, é essencial
compreender como o receptor decodifica o meio analisado, uma vez
que o código possui múltiplas possibilidades de compreensão e estas
compreensões, por vezes, (re)configuram a produção das mídias.
Dessa forma, é igualmente necessário refletir acerca da
temporalidade que permeia os processos de emissão/recepção ou
codificação/decodificação. De acordo com Grohmann (2009),

um ponto importante é que as mensagens são


recebidas por indivíduos e grupos situados em
contextos sociais e históricos específicos a
partir das múltiplas identidades [...]. A relação
bem sucedida na interação do indivíduo com
o meio está ligada à capacidade do receptor
de compreender e se ajustar às coordenadas
espaço-temporais envolvidas na relação. Há
aspectos temporais, espaciais e de poder a
ser analisados em uma recepção
(GROHMANN, 2009, p. 5, grifo meu)

Assim, não se pode desprezar a sociedade e o período no


qual uma análise de recepção está sendo realizada, bem como a

253 | 2018 – vol. II, nº 02


questão de poder139 envolvida nessa relação. Lopes (1996, p. 5) diz
ainda que a recepção da telenovela, em especial, “deve ser entendida
como um processo estruturante, que configura e reconfigura tanto
a interação dos membros da audiência com os meios como a criação
por parte deles do sentido dessa interação”. Dessa forma, meu
entendimento sobre recepção considera que o receptor exerce um
trabalho constante de (re)facção do ato de significar a mídia
recebida.
Antes do próximo ponto, retomo uma parte do conceito de
recepção dado por Ferreira: “fazer boa recepção a algo ou alguém”.
Destaco o adjetivo boa com o intuito de alertar, novamente, para as
múltiplas possibilidades de (res)significação da mídia pelo receptor,
que pode concebê-la tanto de forma negativa quanto de forma
positiva. E, dentre outros motivos, é esta diversidade de caminhos
pelos quais a construção de posicionamentos acerca da mídia
televisiva pode trilhar que instiga a produção deste ensaio.

A TELENOVELA EM FOCO

Não são recentes os estudos com foco em telenovelas.


Lopes (2003, p. 17) afirma, sobre isso, que o crescente
reconhecimento acadêmico da telenovela enquanto objeto de
estudo aconteceu entre as décadas de 80 e 90, tendo seu ápice nos
anos 2000. A autora explica ainda que esta relevância do estudo dos
processos que envolvem a emissão e a recepção das narrativas se
deu, especialmente, porque

a novela constitui-se em um veículo privilegiado


do imaginário nacional, capaz de propiciar a ex-
pressão de dramas privados em termos públicos
e dramas públicos em termos privados (LOPES,
2003, p. 20).

139Segundo Stuart Hall (2003), em sua obra “Da Diáspora: identidades e media-
ções culturais”, estas relações de poder partem, principalmente, da produção das
mídias, de modo que o receptor esteja “pronto” para adquirir o que está sendo
produzido e tenha o perfil adequado para tal ação.

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Dessa forma, associar ficção a realidade do telespectador é
um dos elos de ligação entre ambas as partes envolvidas no processo
de fazer televisivo. A veiculação de informações de rápida
associação com o cotidiano, como romances e problemas familiares,
faz com que a telenovela não seja mera “coadjuvante” nos lares
brasileiros; é um elemento fundamental para a construção de
conhecimentos sobre os próprios telespectadores e sobre aqueles
que são representados - os quais, certamente, surgem por
assemelhação a figuras da realidade (GOMES; ROSA, 2006).
Com isso, é interessante notar que, tratando especificamente
da teledramaturgia brasileira, as produções da Rede Globo de
Televisão assumem um protagonismo icônico não apenas no Brasil,
como também no exterior140. Lopes (2003) é enfática ao afirmar que

falar de telenovela brasileira é falar das novelas da


Globo. São elas, sem dúvida, as principais
responsáveis pela especificidade da teleficção
brasileira. Essa especificidade é resultado de um
conjunto de fatores que vão desde o caráter
técnico e industrial da produção, passam pelo
nível estético e artístico e pela preocupação com
o texto e convergem no chamado padrão Globo de
qualidade. É possível atribuir às novelas da Globo
o papel de protagonistas na construção de uma
teledramaturgia nacional (LOPES, 2003, pp. 23 - 24,
grifos da autora).

O nível alto de qualidade das telenovelas da Rede Globo é


referência mundial, conferindo à emissora diversas indicações e
vitórias no prêmio Emmy141, a título de exemplificação. O

140 Valentim (2007), em sua monografia de conclusão de curso, aborda a inter-


nacionalização da Rede Globo, com base na exportação de suas telenovelas.
141 Considerado o Oscar da televisão mundial, o Emmy já premiou produções da

Rede Globo 15 vezes. A última, no ano passado, consagrou a telenovela Verdades


Secretas, de 2015, como a melhor telenovela do mundo, além de ter indicado o
humorístico Zorra, a telenovela A Regra do Jogo (o que conferiu à emissora duas
produções concorrendo na mesma categoria), o ator Alexandre Nero (por seu
papel na telenovela A Regra do Jogo) e a atriz Grazi Massafera (por seu papel em
Verdades Secretas) para os prêmios de melhor humorístico, telenovela, ator e atriz,

255 | 2018 – vol. II, nº 02


comprometimento do canal com produções impecáveis reforça a
preocupação com a sua audiência, conhecida pela fidelidade
conquistada pelos mais de 50 anos de atuação na televisão brasileira.
A relevância das telenovelas globais instiga cada vez mais
pesquisas que enfoquem as suas implicações na sociedade. No caso
deste trabalho, explorando as suas implicações nos receptores destas
produções que, hoje, não se centram mais no sofá, em frente a uma
televisão. A TV está nos aparelhos celulares, nos tablets, nos
computadores, enfim. Vivemos no período das telas e é praticamente
impossível escapar do contexto da convergência midiática - e este
contexto é peça-chave para entender outro aspecto a ser abordado
neste ensaio: a rede social online Twitter.

REDE SOCIAL ONLINE: O TWITTER

O Twitter, assim como muitas redes sociais online presentes


em nossos cotidianos, tem um histórico bem recente. Criado em
2006, a plataforma de publicação de textos em até 140 caracteres
passou por constantes transformações e o usuário brasileiro, em
particular, tem recebido bem as mudanças realizadas. Informações
recentes apontam a preocupação dos administradores do Twitter
com o Brasil, levando em consideração que a rede social tem uma
das cinco maiores participações do mundo e que apresenta uma
média de uso acima da média global142.
Logo, compreendo o Twitter como uma importante
ferramenta para a construção de sentidos no meio digital, devido a
sua dinamicidade e rapidez na produção e compartilhamento de
informações através da web. Nesse sentido, a partir da perspectiva da
convergência midiática, concordo com Jenkins (2008) no que o

respectivamente. Informações consultadas no site G1 - Pop e Arte. Disponível


em: http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2016/11/novela-verdades-secretas-
ganha-o-emmy-internacional-2016.html. Acesso em: 30 mai. 2017.
142 Informações extraídas do site G1. Twitter completa 10 anos, foca em imedia-

tismo e usa Brasil de modelo. Disponível em:


<http://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2016/03/twitter-completa-10-anos-
foca-em-imediatismo-e-usa-brasil-de-modelo.html>. Acesso em: 28 mai. 2017.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 256


autor pontua sobre cultura participativa, já que é graças ao
engajamento ativo dos consumidores que as mídias são
(re)configuradas em diferentes meios, proporcionando a produção
e partilha de conhecimentos e conteúdos sobre uma determinada
mídia.
Ao partilhar suas experiências de recepção com os demais
participantes do Twitter, o usuário deixa de ser apenas mais um
usuário para ser o que Primo (2013) chama de interagente. Agora, o
interagente não mais recebe a informação e guarda para si: ele a
compartilha e constrói sentidos sobre a mesma, de forma conjunta
aos demais interagentes do Twitter. Esta nova lógica de produção,
circulação e consumo de mídias televisivas, particularmente,
caracteriza a televisão transmídia, segundo denominação de Fechine
(2013). Entendendo o Twitter enquanto uma das partes desta
televisão transmídia, trago, no tópico a seguir, alguns exemplos de
como os interagentes desta rede social online (res)significam a
experiência de assistir a uma telenovela.

INTERMIDIALIDADES E A RELAÇÃO ENTRE


TELENOVELA E TWITTER: ALGUNS
DESDOBRAMENTOS

Mais recentemente, entre finais do século XX e


início do século XXI, acompanhamos transfor-
mações potencializadas e concretizadas pela ex-
pansão da comunicação digital e por fenômenos
como a convergência e a mobilidade. Esses fe-
nômenos vêm provocando reordenamentos em
práticas e modos de produção no campo das
mídias, em seus produtos, nas formas de vincu-
lação das mídias massivas com seus públicos e
deles entre si. A problemática da recepção ganha
novos contornos nesse contexto (BONIN, 2016,
p. 216, grifos da autora).

Destaco estas mudanças apontadas por Bonin nos últimos


anos para introduzir a relação entre a telenovela e o Twitter enquanto
mediador da recepção desta mídia. Conforme a autora, os

257 | 2018 – vol. II, nº 02


reordenamentos nas práticas de produção (emissão) e recepção são
decorrentes da comunicação digital e da convergência, além da
mobilidade proporcionada pelo advento da tecnologia. Logo,
pretendo explicitar essas práticas no sentido de ilustrar a relação de
intermidialidade que perpassa os elementos envolvidos no processo.
Cabe ressaltar que a intermidialidade, segundo Clüver
(2011), implica em todos os tipos de interação e relação entre as
mídias; é o “cruzamento” das fronteiras que separam estas mídias.
Este conceito é importante para este ensaio uma vez que, na relação
telenovela - Twitter, existe um fluxo constante de diversas mídias que
não apenas a televisiva e a da plataforma da rede social online. A
seguir, são apresentados alguns exemplos de como acontece o
processo intermidiático que contempla essas mídias.
A escolha da telenovela foco deste trabalho considerou três
pontos fundamentais: o primeiro foi a importância já ressaltada
anteriormente da telenovela na vida do brasileiro; o segundo ponto
foi o fato de o brasileiro apresentar um uso expressivo do Twitter,
especialmente no que diz respeito aos comentários acerca de mídias
televisivas (conforme mencionado no tópico anterior); e por fim, a
questão de estar em exibição no momento da pesquisa143, o que me
possibilitou, também enquanto telespectador e usuário do Twitter,
acompanhar de perto a recepção por parte de outros participantes
da rede social online.
Com isso, optei por analisar a recepção da telenovela Rock
Story, exibida na faixa das 19 horas, também por constatar a grande
aceitação da trama por parte da audiência144, que normalmente
prefere a faixa das 21 horas. Outra razão partiu pelo próprio enredo

143 No início da construção deste ensaio, a telenovela estava em exibição. O último


capítulo da trama foi ao ar no dia 5 de junho de 2017, dias antes da conclusão do
trabalho.
144 Em um de seus episódios mais importantes, Rock Story registrou audiência

superior à da telenovela das 21 horas exibida no momento, A Força do Querer. Vale


ressaltar que a faixa das 21 horas é a mais assistida da Rede Globo e que,
pouquíssimas vezes, qualquer outra atração do canal obteve êxito em superar a
audiência deste horário. Informação consultada em:
http://www.otvfoco.com.br/com-morte-de-lorena-rock-story-bate-recorde-de-
audiencia-e-supera-a-forca-do-querer/. Acesso em: 30 mai. 2017.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 258


da trama, que já havia sido abordado anteriormente145 pela emissora
e que ganhou um outro direcionamento pela narrativa de Maria
Helena Nascimento, autora da trama - o que me interessou logo de
início.
A partir disso, iniciei minha investigação no intuito de
analisar a prática do receptor-produtor, interagente no Twitter, com
base na pesquisa da própria plataforma, como mostra a imagem
abaixo:
Imagem 1: ferramenta de busca do Twitter.

Fonte: do autor.

Na barra de pesquisa, utilizei apenas um termo para realizar


as buscas que nortearam a análise: a hashtag146 #RockStory. Desta
tag, encontrei inúmeros resultados relacionados à narrativa da
telenovela; logo, precisei focar em determinados aspectos que
evidenciassem a variedade de ação do interagente. Inicialmente,
selecionei alguns tweets147 que mostram reações sobre a telenovela, o
que caracteriza o Twitter como ponto de convergência midiática:

Imagem 2: tweet sobre a telenovela Rock Story

145 Em 2012, a emissora exibiu a telenovela Cheias de Charme, da autoria de Filipe


Miguez e Izabel de Oliveira, cujo enredo central englobava o embate entre a
cantora de forró Chayenne e o grupo pop Empreguetes. Assim como Rock Story,
Cheias de Charme obteve sucesso de público e de crítica. Informações
consultadas em: http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-
tv/critica/noticia/2012/09/critica-cheias-de-charme-um-balanco-da-novela-
que-mexeu-com-as-19h-467450.html. Acesso em: 30 mai. 2017.
146 A hashtag (ou simplesmente tag) “se constitui como links, etiquetas, demarca-

dores de conteúdos” (PIENIZ, 2013, p. 73) que se unem ao símbolo # (jogo da


velha) para criar links e, assim, filtros de conteúdos específicos. Clicar em cima de
uma hashtag faz com que o usuário do Twitter conecte-se imediatamente a outros
usuários que estão tuitando sobre o mesmo assunto.
147Optei por ilustrar apenas o primeiro tweet em seu suporte original, a fim de que

se perceba seu formato de veiculação. No caso dos demais, adapto apenas o


conteúdo dos tweets. Além disso, por questões éticas, preservo a identidade dos
tuiteiros.

259 | 2018 – vol. II, nº 02


Fonte: Twitter

O interagente acima deixa clara a sua preferência pelo


“melodrama” de Rock Story, por não subestimar a inteligência do
telespectador. Nesse caso, é perceptível a convergência entre as
mídias, uma vez que o receptor visualiza o que é produzido na
telenovela e externaliza suas considerações acerca disso. Além deste
usuário, é possível perceber em tweets como “Rock Story melhor
novela, quando você acha que já aconteceu tudo, toma novo
fôlego. Adoro! #RockStory” e “Essa novela é maravilhosa
#RockStory” a constante avaliação da maneira como a narrativa
televisiva é conduzida.
Esta avaliação é essencial para a construção da narrativa, que
sempre acontece pelo decorrer da exibição. Apenas para citar um
exemplo, em um determinado momento da trama, a ex-mulher da
personagem central mente em rede nacional, afirmando que o ex-
marido havia lhe agredido (quando na verdade ela tropeça e cai da
escada). Tuiteiros não reagiram bem ao ocorrido, publicando suas
indignações como “DIANA FALANDO O PORQUE DA
GENTE TER CRITICADO ESSA FALSA DENÚNCIA DE
AGRESSÃO DA MARIANE! pelo menos consertaram UM
POUCO #RockStory”, “Não gostei nem um pouco dessa
história da Mariane inventar q apanhou, vai dar margem pra
quem adora falar que mulher inventa isso #RockStory” e “tava
com vontade zero de ver #RockStory hoje depois dessa
presepada de mariane falando que foi agredida”. A autora da

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 260


telenovela, que já havia afirmado148 anteriormente sua preferência
em se manter distante das redes sociais online, modificou o enredo
de modo a “corrigir”149 a polêmica da trama, uma vez que, conforme
os próprios tweets mostraram, a falsa violência à personagem pode
provocar a perpetuação de discursos hegemônicos direcionados a
mulher. Mais uma vez, é possível notar a forte influência desta
forma de recepção, que evidencia o que está indo bem ao passo que
critica fortemente o que não está bom na narrativa.
Outro forte indicador de recepção da telenovela no Twitter
são os chamados ships (ou torcidas para casais). Formados por
fandoms (ou domínios de fãs) e até mesmo por aqueles que não se
declaram fãs, os ships em Rock Story possibilitaram a criação de
diversos perfis com o objetivo único e exclusivo de shippar os casais
da trama. Em um levantamento inicial, foram encontrados 178
perfis que homenageavam apenas o casal protagonista da telenovela,
Guilherme e Júlia (ou Guilia, nome dado pelos fãs ao casal). Tweets
como “Guilia melhor casal dessa novela 😍 vou sentir falta 😢
#RockStory”, “GUILIA EU VENERO VOCÊS #RockStory”
e “Guilia é um otp150 mesmo ne #RockStory” evidenciam a
relação íntima dos interagentes com as personagens do enredo.
Traços da cultura participativa (JENKINS, 2008) na comunidade de
fãs de Rock Story também pode ser visualizada nas torcidas pelos
casais Yasmin e Zacarias (“Zacmin o melhor casal que a gente
shipa e respeita #RockStory”) e até mesmo por casais formados
por personagens “vilãs”, que acabaram com torcidas pelo público,
como é o caso de Dona Néia e Ramon (“Ramonéia o casal que o

148 Maria Helena Nascimento, em entrevista ao jornalista Maurício Stycer, do


UOL. Disponível em:
https://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2017/05/30/autora-reve-os-
muitos-acertos-e-o-golpe-baixo-que-cometeu-em-rock-story/. Acesso em: 1 jun.
2017.
149 Rock Story “corrige” trama polêmica e condena falsa acusação de agressão.

Disponível em:
https://mauriciostycer.blogosfera.uol.com.br/2017/05/23/rock-story-corrige-
trama-polemica-e-condena-falsa-acusacao-de-agressao. Acesso em: 1 jun. 2017.
150 OTP significa One True Pairing, do inglês, que significa o mesmo que a

combinação única de dois personagens em uma história, assim fazendo o “casal


perfeito”.

261 | 2018 – vol. II, nº 02


Brasil precisava! #RockStory”) e William e Romildo (“Agora dá
aquela torcida pro Romildo e o William terem virado um casal!
hahaha #RockStory Desejo #Romilliam”).
Nesse sentido, trago exemplos de como a recepção da
telenovela baseia a produção de outras mídias, como a fanfiction151.
Acima, pode-se observar a grande presença dos fãs no que diz
respeito aos ships, mas também é interessante observar que a
telenovela surge como base para a ressignificação do que é assistido.
A (re)criação de enredos vai desde tramas bem distantes da original,
como o romance entre o vilão e o “mocinho” (“se fosse uma fic o
ship seria guilherme e leo #RockStory”), passando por
interferências na condução da trama (“Eu queria muito que o
Lázaro soubesse que é o pai do filho da Marisa. Imagina só
ele saber que é pai de pobre? Iria ser demais #RockStory) e
contemplando referências a personagens de novelas anteriores
(“Imagina as Empreguetes aparecem na última cena? Tipo
Fragmentado #RockStory”).
A partir do Twitter, os receptores-emissores recriam a
experiência de apenas “desejar” um desfecho específico ou mesmo
um desenvolvimento narrativo de um ou mais personagens da trama
televisiva, exportando suas inquietações acerca de uma narrativa
para outras plataformas - o que configura, segundo Jenkins (2008),
um processo constante e não, jamais, um ponto final na relação de
convergência midiática. Isso é visualizado em tweets como
“CAPITULO NOVO FRESQUINHO DE CONTRA O
VENTO 😋🎊 #RockStory #zacsmin”, cujo tweet apresenta um
link que direciona para um site encarregado da hospedagem de
fanfictions, o qual se pode visualizar na imagem a seguir:

Do inglês, ficção feita por fãs; ou seja, é a história feita por fãs a partir de uma
151

mídia específica.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 262


Imagem 3: tela do site Spirit Fanfics,
a partir da pesquisa pelo termo Rock Story

Fonte: www.spiritfanfics.com

Com tudo isso, verifica-se que o Twitter explora diversas


possibilidades de recepção e cada possibilidade depende,
diretamente, do posicionamento que o receptor tem da mídia
recebida. Pelos dados registrados, pode-se constatar a alto nível de
interação entre o Twitter e a telenovela, gerando, inclusive, novas
mídias, a partir disso.

ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES

Enquanto pesquisador e telespectador, bem como de


usuário ativo de redes sociais online, sempre tive grande interesse
pela relação estabelecida pela mídia televisiva com outras mídias, em
especial com o Twitter, onde a dinamicidade de compartilhamento
de informações é uma das características principais. Foi de
fundamental importância compreender os processos intermidiáticos

263 | 2018 – vol. II, nº 02


entre telenovela e Twitter, uma vez que esta relação, apesar de já ter
estudos sobre, ainda é pouco estudada.
Dessa forma, investigar, ainda que de forma breve, o Twitter
receptor e emissor de mídias, mostrou algumas das possibilidades
que a rede social online traz. Dentre estas possibilidades, a expressão
de concordância ou inconformidade com a narrativa televisiva, a
criação de vários ships e perfis para estes ships e a criação de fanfictions
foram apenas algumas abordadas neste ensaio. Porém, vale ressaltar
que há muito o que ser explorado nesta relação, que envolve
diversos outros aspectos e que precisam ser investigados, para que
se compreenda melhor como, na contemporaneidade, deixamos de
ser apenas receptores passivos de mídias para sermos, assim,
produtores-receptores. Ou como dito anteriormente, para sermos
interagentes nas intermidialidades que envolvem a vida como um
todo.

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RECEPTION OF SOAP OPERA IN CONTEMPORANITY:
A LOOK FROM TWITTER

ABSTRACT: Considering the current moment of the culture of media


convergence and the increasing dynamicity of the information flow, this work
aims to explore modes of reception of a soap opera of Rede Globo from the
online social network Twitter. Based on a qualitative-interpretative research, this
paper verified that the platform is used as a way of expressing agreement or
disagreement with the television narrative, in addition to the creation of several
ships and profiles for these ships. It was also verified the potential of Twitter as a
promoter of the so-called fanfictions, which shows the potential of the online social
network as a point of convergence between several fundamental media for the
conception of new forms of reception of the soap opera.

KEYWORDS: Reception; soap opera; contemporaneity; Twitter.


-----------------------------------------------------------------------------------

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Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 266


PARA PENSAR A
EDUCAÇÃO INTEGRAL

Lucca de R. N. TARTAGLIA

RESUMO: O presente ensaio tem por objetivo refletir acerca da


educação integral, buscando questões essenciais, mais do que respostas,
para os desafios e obstáculos que o século XXI, com todas as inovações e
facilidades que trouxe, vem apresentando e, aparentemente, apresentará
nos próximos anos. Recorreremos, para tanto, ainda que de forma
indireta, à obra de pensadores contemporâneos, como Gilles Lipovetsky
e Yuval Noah Harari, e a grandes nomes do pensamento ocidental, como
Aristóteles e Hobbes. Longe de ambicionarem uma solução, as linhas que
se seguem ocupam-se mais de dissoluções e diluições, de dúvidas e
desassossegos, do que, propriamente, de respostas.

PALAVRAS-CHAVE: Século XXI; educação integral; paradigmas.

“O homem é um animal irracional, exactamente como os outros. A única


diferença é que os outros são animais irracionais simples, e o homem é um
animal irracional complexo”.

Fernando Pessoa 1

1.

Vinculado ao “corpus platonicum” por alguns estudiosos, o


Definitiones – Ὅροι (Horoi), no orginal – traz 184 termos filosóficos
e, dentre eles, uma rápida definição para “homem”: “um animal,
sem asas, bípede, com unhas largas; o único que é um receptor de
conhecimento fundado na razão” (PLATO, 1854, p. 139)2.

1
PESSOA, Fernando. Textos Filosóficos. Vol. I. (Estabelecidos e prefaciados por
António de Pina Coelho). Lisboa: Ática, 1968, p. 162.
2 “Man - an animal, wingless, biped, with wide nails; the only one of being that is

a recipient of knowledge founded on reason”. (Tradução nossa). Cf. PLATO.


Definitions. In: BURGES, Georges (org.). The Works of Plato. Vol. VI. Translate
by George Burges. London: H.G. Bohn, 1854, p. 139.

267 | 2018 – vol. II, nº 02


Mantendo uma certa concordância com o autor da República,
Aristóteles, na Política, defende que “o homem é, por natureza, um
ser vivo político” 3 (ARISTÓTELES, 1998, p. 53) e salienta, no
Organon, a sua dupla condição, sendo, ao mesmo tempo, “homem e
animal” (ARISTÓTELES, 1985, p. 48). Esses dois aspectos, a
natureza social/política do homem e o seu estatuto de criatura
híbrida4, atravessaram as definições clássicas, passando, com
algumas variações, pela patrística, pela escolástica, pelos filósofos
medievais, até alcançar, na modernidade, a síncope da crença em
uma origem divina do Estado e o ressurgimento das teses e dos
argumentos contratualistas5.
Thomas Hobbes, pensador do séc. XVII, em Do cidadão,
contrariando a definição clássica – que o filósofo inglês entendia
como “o homem nasce apto a viver em sociedade” –, enfatiza:

A maior parte daqueles que escreveram alguma


coisa a propósito das repúblicas ou supõe, ou nos
pede ou requer que acreditemos que o homem é
uma criatura que nasce apta para a sociedade. Os

3 Sobre a tradução de “politikon”, termo utilizado por Aristóteles, Antônio Cam-


pelo Amaral e Carlos de Carvalho Gomes ressaltam, em uma nota ao fim do
volume, que o termo “deve ser tomado na estrita acepção de ‘cívico’, isto é ‘par-
ticipante da vida da cidade’, e não no sentido demasiado lato e fluido de ‘social”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 595). Mario da Gama Kury, por sua vez, salienta que
“a tradução de ‘animal social’ é mais abrangente e menos equívoca que ‘animal
político’, e corresponde melhor ao espírito do original” (ARISTÓTELES, 1985,
p. 15). Assim, em Ética a Nicômaco, na tradução de Kury, lê-se: “o homem é por
natureza um animal social” (ARISTÓTELES, 1985, p. 23).
4 Na Política, Aristóteles salienta a palavra (o discurso) como um elemento

distintivo da espécie: “A razão pela qual o homem, mais do que uma abelha ou
um animal gregário, é um ser vivo político em sentido pleno, é óbvia. A natureza,
con-forme dizemos, não faz nada ao desbarato, e só o homem, de entre todos os
seres vivos, possui a palavra. Assim, enquanto a voz indica prazer ou sofrimento,
e nesse sentido é também atributo de outros animais (cuja natureza também atinge
sen¬sações de dor e de prazer e é capaz de as indicar) o discurso, por outro lado,
serve para tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto”
(ARISTÓTELES, 1998, p. 55).
5 Tendo em conta que Epicuro, em suas Máximas principais, já deixava entrever

aspectos de uma consciência de bases contratualistas, entendemos o aparecimento


das teses ligadas à noção de “contrato”, já na idade moderna, como um
ressurgimento. Cf. EPICURO. Máximas principais. Trad. João Quartim de Moraes.
São Paulo: Editora Loyola, 2010.

Revista FORPROLL – ISBN: 2526-7507 | 268


gregos chamam-no zoon politikon [animal polí-
tico/social]; e sobre este alicerce eles erigem a
doutrina da sociedade civil como se, para se pre-
servar a paz e o governo da humanidade, nada
mais fosse necessário do que os homens concor-
darem em firmar certas convenções e condições
em comum, que eles próprios chamariam, então,
leis. Axioma este que, embora acolhido pela
maior parte, é contudo sem dúvida falso - um
erro que procede de considerarmos a natureza
humana muito superficialmente. (HOBBES,
2002, p. 25-26)

Para Hobbes, por mais que a vontade de se reunir seja parte


da natureza humana, por mais que o ser humano seja, naturalmente,
um animal gregário, “o homem é tornado apto para a sociedade não
pela natureza, mas pela educação” (HOBBES, 2002, p. 359), uma
vez que as sociedades civis “não são meras reuniões, porém
obrigações” (HOBBES, 2002, p. 358). Portanto, para constituir uma
sociedade civil, ainda segundo o filósofo, é preciso – mais do que
elementos inerentes ao animal - fé e pacto6. A virtude dessa
constituição, porém, “é por completo ignorada das crianças e dos
loucos (fools), e cujo proveito também escapa totalmente àqueles que
ainda não sentiram as misérias que acompanham sua falta”
(HOBBES, 2002, p. 358). Na sequência, o autor do Leviatã esclarece:

Disso decorre que aqueles [os loucos], porque


não sabem o que é a sociedade, não podem nela
ingressar; e estes, porque ignoram o benefício que
ela acarreta, não lhe conferem importância. Por-
tanto é manifesto que todos os homens, porque
nascem crianças (in infancy), nascem inaptos para
a sociedade. (HOBBES, 2002, p. 358-359)

6 Hobbes é um contratualista, ou seja, suas ideias estão ligadas ao contratualismo,


“doutrina que reconhece como origem ou fundamento do Estado (ou, em geral,
da comunidade civil) uma convenção ou estipulação (contrato) entre seus mem-
bros” (ABBAGNANO, 2007, P. 205). Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de
filosofia. Trad. Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes,
2007.

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Dessa forma, muitos indivíduos, por falta de uma educação
adequada, permanecem incapacitados e incompetentes pelo resto da
vida7, pois, sem conhecer as regras do jogo, ou melhor, sem ter
consciência do jogo, da sua existência e dos princípios que
determinam os numerosos movimentos, sem entender,
minimamente, acerca dos papeis sociais de cada um dos jogadores,
são condenados à inaptidão, figurando como alvos fáceis para
aqueles que, em posição de domínio dentro dos diferentes campos,
de forma mais ou menos lúcida, recorrem a manipulações das mais
variadas ordens para atingir fins dos mais variados tipos.
A despeito de sua natureza social, política e/ou gregária, o
que, seguramente, surge de forma unânime – de Platão a Pessoa – é
a visão do homem como um animal multifacetado e, de muitas
formas, complexo. Qualquer paradigma educacional que
desconsidere essa complexidade está, enquanto condena ao
fracasso, fadado a fracassar, porque todo ser humano deve ser
encarado e compreendido de forma integral, em suas várias e
intrincadas dimensões (sociais, emocionais, culturais, morais, éticas,
estéticas, psicológicas, físico-motoras, etc), e a sua educação, por
consequência, tem de ambicionar, também, essa inteireza, essa
integralidade.

2.

Antes de mais, precisamos esclarecer que, apesar de se con-


fundirem e, com alguma frequência, caminharem juntos, os termos
educação integral e educação em tempo integral não funcionam
como sinônimos e não apontam, necessariamente, para as mesmas

7 As palavras são, numa primeira vista, duras e, aparentemente, injustas, mas


apontam para onde precisam apontar, para as capacidades e competências em
potencial que, sem os estímulos necessários, são largadas à própria sorte. Na sua
ignorância, o indivíduo, em casos assim, desorientado e vagante, pode pouco e
fica restrito aos desmandos daqueles que, instruídos e bem direcionados, indicam
o “melhor” caminho.

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práticas8. O tempo integral diz respeito à ampliação da jornada es-
colar – ligada, geralmente, à ideia de que, com mais tempo disponí-
vel, haverá mais qualidade no ensino9. A educação integral, por sua
vez, passa pela noção grega de Paidéia, pela Humanitas, dos latinos,
pelo humanismo renascentista dos séculos XIV e XV, pelos jacobi-
nos, na Revolução Francesa, com seus ideais iluministas de trans-
formação através da instrução, por pedagogos (ou pedagogistas) no-
táveis e suas “escolas experimentais”, como Paul Robim e o Orfa-
nato Cempuis, Sébastien Faure e a Colmeia (La Ruche), Alexander
Sutherland Neill e a (ainda em ativa) Summerhill, Anísio Teixeira e
o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, até nomes e feitos mais
contemporâneos, como o de Darcy Ribeiro e os CIEPs (Centros
Integrados de Educação Pública), e o do luso-brasileiro José Pa-
checo, com a Escola da Ponte, em São Tomé de Negrelos, o Projeto
Âncora, em São Paulo, a CAP (Comunidade de aprendizagem do
Paranoá), em Brasília, inaugurada em 2018, e muitos outros proje-
tos.
Se a educação integral, a despeito de se enquadrar ou não na
modalidade do tempo integral, busca compreender o homem em
sua totalidade, sem resumir a figura humana, portanto, a uma
“inteligência servida por órgãos”, como queria o Visconde de
Bonald, e visa prepará-lo, de forma mais completa, para lidar com o
mundo que o rodeia, torna-se imperativo, para pensar a própria
educação integral, considerarmos, ainda que de forma breve, não
apenas o que entendemos por educação, mas, também, por cultura,
uma vez que o processo educativo tende sempre – ou deveria tender
– para uma obtenção de capital cultural e, por conseguinte, para a
assimilação (crítica ou não, a depender das escolhas feitas pelos

8 Além disso, a proteção social, relacionada, comumente, ao tempo integral,


também não aparece vinculada, de forma obrigatória, à educação integral. A
proteção social, a partir do século XX, passou a figurar como um dos elementos
constitutivos da educação em tempo integral, a fim de assegurar a integridade da
pessoa humana e garantir o processo de ensino-aprendizagem, mas pode ocorrer,
através de outros meios, de forma autônoma.
9 A quantidade de tempo investido na educação, abstraída dos muitos contextos

de aplicação, significa, necessariamente, um ganho qualitativo no que diz respeito


à aprendizagem?

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educadores) desse mesmo capital.
Não fosse a hipersensibilidade semântica e a carga negativa
que o segundo termo, na atualidade, pressupõe, o que tratamos por
“cultura” poderia ser confundido, facilmente, com “civilização”,
pois designa, de maneira um pouco grosseira no âmbito dessa
reflexão, um conjunto de técnicas criadas, desenvolvidas e
partilhadas, ao longo de várias gerações, por integrantes de um
determinado grupo humano, ou, ainda, um compêndio de saberes
compartilhados, de forma mais ou menos homogênea, entre os
membros de uma sociedade, com o intuito de capacitar o homem
no que se refere, dentre outras coisas, à interação com os outros,
com o ambiente a sua volta e consigo mesmo. Ao processo de
transmissão dessas técnicas e saberes, que visa a formação do
indivíduo, chamamos – com a certeza de algum reducionismo –
“educação”.
A partir desse ponto de vista, a educação integral,
reconhecendo as variadas e complexas dimensões do homem, teria
por objetivo, em suma, transmitir as técnicas e saberes que melhor
servissem à superação dos problemas apresentados pela vida na
contemporaneidade. Ocorre, porém, que as mudanças – nunca
como agora – têm seguido num ritmo cada vez mais acelerado e
novas situações, inéditas na história humana, têm surgido a cada dia,
exigindo respostas para perguntas que, até “ontem”, não tínhamos.
Talvez, o modelo industrial já não sirva para atender às demandas
educacionais do século XXI. A escola, talvez, como um edifício de
salas e salas a contar, todas iguais, dotadas de cadeiras e mesas
enfileiradas, de alunos postos em fila, todos uniformizados, todos
(ou a maioria) com a mesma idade, não seja uma via favorável – a
despeito das conquistas que, enquanto paradigma educacional, esse
formato obteve ou não.
Depois do processo de liquefação na “segunda moderni-
dade”, narrativas consideradas como basilares – peças fundamentais
para a manutenção e sobrevivência de uma determinada ideia de so-
ciedade – estão evaporando e, mais do que antes, “tudo o que era

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sólido e estável se desmancha no ar”. Frente a inseguranças profun-
das e radicais, num tempo de obstáculos cada vez mais alargados,
obstáculos que têm proporção global (terrorismo, conflitos nuclea-
res, colapso ecológico, etc), muitos países, de maior ou menor ex-
pressão, como a Inglaterra, a Hungria, a Índia, os EUA, as Filipinas,
a Argentina, a Rússia e o Brasil, têm se fechado num nacionalismo
de reação, transitando entre o patriotismo sadio e o extremismo dos
ultranacionalistas. Os avanços na área da biotecnologia, unidos à
capacidade atual de processamento, oferecem cada vez mais
informações para o(s) sistema(s). Os algoritmos, a cada novo upgrade,
aprendem e decidem mais acerca de tudo. Em breve, todos os
gigantes da internet – Google, Facebook10, Netflix, Amazon, Apple,
Twitter, etc – saberão, muito antes de nós, qual é o conteúdo que
melhor nos consome11. Na era das “coisas espertas”, smart things for
dumb people, temos gadgets e apps para quase tudo: para gerenciar fi-
nanças pessoais, agendar compromissos de trabalho, dizer por onde
devemos seguir e onde devemos parar e onde devemos comer, para
medir a qualidade do sono e para nos lembrar de beber água mais
vezes durante o dia. No entanto, se a bateria acaba ou, por alguma
razão, o sistema falha, entramos em stand by (ou, a depender da situ-
ação e do vício, em desespero). Estamos obcecados e, num surto
prolongado de cronofobia, através das infindáveis funções dos smar-
tphones e afins, registramos compulsivamente – fotografamos tudo,
filmamos tudo, gravamos tudo para ter a experiência depois, para
experimentar mais tarde o que, por falta de tempo, não voltaremos

10 Em novembro de 2017, Sean Parker, co-fundador da Napster e parte essencial


na fundação e popularização do Facebook (interpretado por Justin Timberlake,
no filme The social network), declarou, durante uma entrevista concedida o site de
notícias Axios, acerca do “mecanismo” por trás do sucesso e do funcionamento
da rede social: “How do we consume as much of your time and conscious
attention as possible?” Na sequência, acrescentou: “That means that we needed
to sort of give you a little dopamine hit every once in a while because someone
liked or commented on a photo or a post or whatever ... It's a social validation
feedback loop ... You're exploiting a vulnerability in human psychology ...
understood this, consciously, and we did it anyway". Disponível em:
https://bit.ly/2FvjE1a.
11 Seguindo a linha de Richard Serra no documentário de 1973, Television Delivers

People. Não viu? Veja! Disponível em: https://bit.ly/22G6JOZ.

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nunca a ver, a experimentar12. Por todos os lados, apelos publicitá-
rios anunciam novas necessidades, produtos indispensáveis para
uma vida equilibrada, pílulas miraculosas que asseguram o bem-es-
tar, artefatos fundamentais para garantir a produtividade – e mesmo
aqueles que foram excluídos do consumo, como bem apontou Li-
povetisky, se tornam hiperconsumistas, porque todos ambicionam
fazer parte do “mundo do consumo, dos lazeres e das grifes famo-
sas” (2007, p. 11). Lidar com tudo isso – e com a inconstância que,
essencialmente, faz e fará parte das nossas vidas – implica níveis
absurdos de esgotamento físico, emocional e mental. Num cenário
como esse que está se formando, será que precisamos mesmo de
mais informação? Ou, sobre uma outra perspectiva, será que, de
fato, o problema da educação é a falta de informação armazenada
pelos alunos ou transmitida pelos professores? Ou não se trata de
quantidade, mas, sim, de qualidade? Quando a “censura” não pode
restringir o fluxo, colabora com o ruído, com o aumento da torrente,
jogando todo tipo de isca e desinformação na rede. Talvez, o
essencial, agora, seja reconhecer o essencial – ou, como ficou
sugerido no título de um livro publicado em 2016, do professor
Mario Sergio Cortella e do jornalista Gilberto Dimenstein, “o que
importa é saber o que importa”.

3.

Um lugar cada vez mais complexo para um animal, desde


sempre, complexo. A educação, no século XXI, dificilmente
conseguirá algum sucesso, dificilmente conseguirá, de forma efetiva,
educar, se não se mover, se não problematizar a respeito dos velhos
paradigmas e assumir, de uma vez por todas, as intensas e
vertiginosas mudanças pelas quais nós, seres humanos – não só

12Seria essa fixação pelo registro um sintoma? Seria ela um indício da vontade e
da necessidade de um tempo “cairológico”? Seria essa “mania” – enquanto
“estado de loucura” - um sinal da carência de uma experiência do tempo que,
diferente da cronológica, privilegie a qualidade do momento?

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como civilização, como sociedade, mas também como espécie –
estamos passando e vamos passar. Só uma educação que leve em
conta as muitas dimensões do humano poderá oferecer alguma
estabilidade em tempos tão instáveis e movediços, só uma educação
integral, voltada para o desenvolvimento de habilidades que ajudem
a discernir o que é do que não é importante, habilidades de curadoria
do conteúdo, que preparem o indivíduo para lidar com o turbilhão
de estímulos que chegam, quase de forma ininterrupta, por todas as
frentes, poderá conduzir à autonomia individual e à autogestão
social, a fim de viabilizar mais flexibilidade nos períodos de
adaptação e durante as constantes variações que, a nível
supranacional, surgirão a curto e longo prazo.

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THINKING ABOUT AN “INTEGRAL EDUCATION”

ABSTRACT: This essay aims to reflect on “integral education”, seeking


essential questions, rather than answers, to the challenges and obstacles
that the 21st century, with all the innovations and facilities it has brought,
is presenting and apparently will present in the next few years. We will
resort, indirectly, to the work of contemporary thinkers such as Gilles
Lipovetsky and Yuval Noah Harari, and to great names in Western
thought, such as Aristotle and Hobbes. Far from seeking a solution, the
following lines are more concerned with dissolutions and dilutions, doubts
and restlessness, than with answers.

KEYWORDS: 21st century; integral education; paradigms.


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REFERÊNCIAS

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