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TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS


– CONCEITUAÇÃO E MODELOS TEÓRICOS
► DANIEL CRUZ CORDEIRO

 Foram propostos modelos teóricos para tentar explicar os critérios clínicos do


transtorno por uso de substâncias (TUS) e as construções psicológicas envolvidas
nesse processo.
 Esses modelos podem ser utilizados concomitantemente, sobretudo quando
entendemos que o TUS ocorre de forma multifatorial.
 O Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM) e
a Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID)
norteiam os principais pontos a serem investigados no desenvolvimento do
diagnóstico de TUS.
 Tais manuais são modificados de tempos em tempos para uma melhor
adequação aos novos conhecimentos científicos e às mudanças sociais e culturais.

Desde a última edição deste livro, houve mudanças importantes a respeito dos conceitos relacionados à
dependência química. O DSM foi lançado em sua quinta versão com mudanças na forma de entender e
classificar esse transtorno. O DSM é um norteador para todos aqueles que trabalham diretamente com
transtornos mentais, seja no tratamento direto, seja em pesquisas e em outros setores, como companhias de
seguro, políticas públicas e a própria indústria farmacêutica. Apesar das críticas relacionadas ao manual
escrito pela American Psychiatric Association (APA), não se pode negar a influência direta deste, que
envolve desde diagnósticos até decisões diversas a respeito de vários assuntos relacionados ao tema, bem
como sobre a própria CID (DSM-5).
Nos últimos anos, foram desenvolvidos modelos teóricos na tentativa de explicar de forma distinta os
critérios clínicos do TUS e as construções psicológicas envolvidas nesse processo. A organização de tais
modelos tem a intenção de investigar, controlando estímulos ambientais, como apenas alguns indivíduos
vulneráveis, após a exposição prolongada a substâncias, tornam-se compulsivos em seu consumo.
Atualmente, o conceito de dependência química entende esse problema como um transtorno
neuropsiquiátrico que afeta algumas pessoas que utilizam substâncias. Os estudos genéticos têm
contribuído para que haja um melhor entendimento da vulnerabilidade de determinadas pessoas. O grande
desafio para o futuro será integrar esses resultados, identificando significados funcionais e correlacionando
a genética aos modelos comportamentais e aos processos cognitivos em indivíduos que passam de usuários
recreacionais para consumidores compulsivos.1
A evidência atual mostra que a maioria das drogas exerce seus efeitos de reforço inicial ativando
circuitos de recompensa no cérebro. Porém, com a continuidade do consumo, ocorre prejuízo cerebral: esse
órgão se torna progressivamente mais sensível a fatores estressantes, produzindo interferências no
autocontrole e, por fim, uma transição para o consumo automático e compulsivo. Essa evolução pode se
dar com maior facilidade em indivíduos com vulnerabilidades genéticas, que apresentam transtornos
psiquiátricos, que tiveram experiências precoces de consumo de substâncias na adolescência e que estão
sob a ação de estresse crônico.2
Com o desenvolvimento das tecnologias, novas formas de realizar diagnósticos são desenvolvidas e
apuradas. Para a maioria das especialidades médicas, existem diferentes exames laboratoriais ou de imagem
que podem ser utilizados para apontar a presença de determinada patologia ou distúrbio. Quando um
paciente apresenta pressão arterial de 180/120 mmHg, não há dúvidas de que ele é ou pelo menos está
hipertenso. Se a contagem de hemácias estiver baixa, podemos dizer, de forma grosseira, que a pessoa tem
anemia. No entanto, o fato de alguém beber todos os dias não o torna necessariamente dependente de álcool.
Por exemplo, alguns clínicos são favoráveis ao consumo diário de uma taça de vinho, o que diminuiria o
risco de acidentes cardiovasculares.3
Da mesma forma que outros temas relacionados à psiquiatria, a dependência também sofre por não
dispor de exames laboratoriais ou de imagem para a realização de diagnóstico apurado e preciso.
Essa complexidade no diagnóstico de problemas relacionados ao consumo de substâncias gera
inúmeras possibilidades de erro, desde a elucidação do problema até sua resolução e, por fim, seu
prognóstico. O profissional da saúde que trabalha com tal especialidade deve ter familiaridade com os
sistemas diagnósticos para não minimizar quadros de maior gravidade ou para não cometer o oposto, isto
é, dar importância exagerada a situações em que o quadro de dependência ainda não está instalado. Na
primeira situação, o profissional peca por fazer menos que o necessário; na segunda, por realizar
tratamentos que podem produzir iatrogenia (p. ex., a introdução de medicamentos em paciente que obteria
mais benefícios com outro tipo de intervenção).4
O conhecimento e a frequência na utilização das classificações auxiliam o profissional da saúde mental
a identificar melhor a sintomatologia dos pacientes, diminuindo, dessa forma, a possibilidade de erros.

► TRANSTORNO POR USO DE SUBSTÂNCIAS: MODELOS


TEÓRICOS
Existem diferentes modelos que tentam explicar o TUS. A seguir, são apresentados os mais conhecidos.

MODELO MORAL
Nesse modelo, quatro traços relacionados ao funcionamento individual criariam o senso de moralidade:
simpatia, autocontrole, justiça e dever. “Defeitos” nessas características gerariam problemas no convívio
social, promovendo um colapso. A falta de autocontrole seria a própria impulsividade. Comportamentos
criminosos surgiriam quando impulsividade se somasse a agressividade e falta de empatia. James Q. Wilson
acredita que tanto o criminoso como o indivíduo com TUS devem ser julgados moralmente para prevenir
e corrigir seus comportamentos.5 No modelo moral, tanto o uso de substâncias como a própria dependência
são escolhas pessoais. Acredita-se que esse consumo seja um desrespeito às normas sociais, transformando
o paciente em um transgressor. Esse tipo de entendimento torna o indivíduo sujeito a críticas sobre a doença,
como se ele fosse responsável por ela e, logo, estivesse apto a arcar com todas as consequências em
quaisquer situações.6,7 Esse é o modelo que muitas vezes torna o paciente intoxicado alvo de críticas,
desatenção e punição em serviços de saúde, bem como de pensamentos populares do tipo: “Tanta gente
doente, e esse aí causando confusão porque bebe”, “Esse paciente vive chegando drogado no pronto-
socorro. Melhor atender rápido e mandar logo embora”, “Apanhou na rua? Foi estuprada? Também, quem
mandou usar droga/beber?”.
Em determinadas situações, o modelo moral é empregado e pode surtir efeitos positivos, como os
Alcoólicos Anônimos (AA). Esse grupo de 12 passos trabalha com alguns conceitos em que falhas de
caráter são pontuadas e discutidas para que o indivíduo perceba tais problemas e possa fazer mudanças em
seus comportamentos. Nessa situação, não há uma pessoa “melhor” apontado falhas e cobrando melhorias
por parte daquele com “falhas morais”, mas sim a autopercepção da necessidade de mudança pela
identificação com o coletivo, situação em que todos teriam características semelhantes. 8
Fora de situações como a exemplificada, a abordagem do modelo moral mostra-se inadequada no
tratamento do TUS. Apenas responsabilizar o paciente pelo quadro de intoxicação ou pelos danos causados
em sua vida devido ao consumo de substâncias não torna o profissional diferente das pessoas em geral (p.
ex., família, empregador, vizinhos), que já apresentaram esse tipo de postura muitas vezes. O paciente é
levado a responsabilizar-se como causador da doença e como mantenedor dela por não ter “força de
vontade” para promover mudanças comportamentais bem-sucedidas.9

MODELO DA TEMPERANÇA OU SOBRIEDADE


No século XVIII, o consumo de álcool começou a ganhar mais atenção, e quadros de embriaguez passaram
a ser considerados doença a partir de trabalhos científicos como os publicados por Thomas Trotter.6 No fim
do século XIX, nos Estados Unidos, surgiu o modelo da temperança, ou sobriedade, o qual teve alguma
credibilidade até 1933. Foi a primeira tentativa estruturada para entender a etiologia do alcoolismo. Com a
utilização desse modelo como forma de entendimento da dependência de álcool, o objetivo do tratamento
seria a administração cautelosa e moderada da substância. Tal modelo, diferentemente do anterior, não via
a embriaguez como um pecado cometido por falha de caráter do indivíduo, mas sim como um hábito a ser
desaprendido.7 O intuito seria encontrar um equilíbrio no consumo de bebidas, de forma que o paciente
retornasse a um estágio anterior ao da dependência. Benjamim Rush dizia que esse modelo servia para
entender a dependência de álcool como uma espécie de termômetro físico e moral. Para esse pensador, o
consumo “começa com uma escolha, torna-se um hábito e depois uma necessidade”. Deveria haver uma
fronteira entre o consumo adequado e o beber patológico, e as pessoas que tivessem ultrapassado esse limite
deveriam retornar ao consumo sem prejuízo. A Lei Seca foi o auge desse movimento, entre 1919 e 1932, e
proibiu a fabricação e o consumo de bebidas alcoólicas. 6,7

MODELO DA DEGENERESCÊNCIA NEUROLÓGICA


Em 1849, Magnus Huss, na Suécia, publicou um trabalho científico no qual, pela primeira vez, a palavra
“alcoolismo” foi utilizada, e o fenômeno foi entendido como uma patologia. Houve forte tendência a
acreditar que o tratamento deveria ser igual ao de outras doenças na época: banhos de vapor, tônicos, uso
de sanguessugas, etc.7

MODELO ESPIRITUAL
Em 1935, Bill Wilson e Robert Smith criaram os AA. A dependência de álcool, nesse modelo, é entendida
como uma condição que o indivíduo se torna incapaz de superar por si só. A esperança de mudança consiste
em entregar a vida a uma força superior e, a partir daí, segui-la rumo à recuperação. Praticar os 12 passos
é peça fundamental para a recuperação. A partir dos AA, outras irmandades foram criadas, seguindo
basicamente a programação dos 12 passos. Os grupos Al-Anon e Alateen foram desenvolvidos para
familiares de dependentes de álcool. Além deles, há os Narcóticos Anônimos (NA), o Dependentes de Sexo
Anônimos, o Neuróticos Anônimos, o Comedores Compulsivos Anônimos, entre muitos outros. 6

MODELO PSICOLÓGICO
Várias escolas de pensamento voltadas ao modelo psicológico tentam explicar o surgimento do TUS:
 Condicionamento clássico – Situações do dia a dia provocam estímulos, produzindo
respostas no indivíduo. ES-R
 Condicionamento operante – O consumo de substâncias, produzindo bem-estar,
relaxamento e quadros de euforia, ou retirando sensações de ansiedade e mal-estar (reforços
positivos e negativos), resultaria em padrões de comportamentos. ES-S-R
 Modelo cognitivo-comportamental – Busca ressaltar a importância dos processos mentais
sobre os comportamentos. O esforço do modelo volta-se para o entendimento das expectativas do
indivíduo acerca dos efeitos do álcool e de outras substâncias. Expectativas positivas podem
promover consumos mais pesados. O modelo de prevenção de recaída ressalta a importância dos
processos cognitivos na evocação ou evitação da recaída. Os enfoques voltados para a teoria
comportamental surgiram na primeira metade do século XX, com Pavlov e Skinner, e
preconizavam que situações capazes de prover o indivíduo de prazer e recompensa geram reforço
positivo, aumentando as chances de manutenção do comportamento. Quando o indivíduo aprende
que o consumo de álcool é capaz de trazer alívio a situações estressantes, as chances de manter tal
comportamento para aquela situação e generalizá-lo para outras aumentam.10 ES-S-P-R

 Escola psicanalítica – A dependência de substâncias estaria ligada às tentativas de retorno


a estados prazerosos infantis. A doença é explicada a partir da “hipótese da automedicação” a
interações disfuncionais na primeira infância, como vulnerabilidades no desenvolvimento da
autoestima, construção de relacionamentos e de intimidade problemáticos, habilidade de
autoproteção com prejuízos e déficits de tolerância aos afetos.6,7
resposta inconsciente:
sensação não possível de ser actings, doenças
elaborada pelo aparelho psicossomáticas,
recalque inconsciente
mental: cultura pensamentos obsessivos, ....

estímulo
orgânico ou ambiental
sensação possível de ser
elaborada pelo aparelho resposta consciente
mental

 Modelo de aprendizado social – Discorda que o indivíduo nasça dependente. O


aprendizado não é só do contexto da substância, mas do que ela pode dar ao indivíduo. O modelo
sociocultural apresenta uma visão mais ampla sobre o papel da sociedade e das subculturas na
modelagem dos padrões individuais de consumo. Ele propõe intervenções macrossociais para
atuar nas questões das drogas (p. ex., aumento de preços, normas claras sobre o consumo,
cumprimento de punições previstas, proibição de anúncios, etc.).10
 Modelo sistêmico – O comportamento individual é parte interativa de um sistema social
mais amplo, no qual se destaca a família. No entendimento das atitudes do indivíduo com TUS,
leva-se em conta seus relacionamentos (nos vários níveis). O sistema (família) tende a manter um
equilíbrio (muitas vezes precário) que resiste às mudanças. O modelo propõe que o TUS é um
transtorno familiar. A mudança de comportamento do indivíduo com TUS produziria desagrado
ou resistência da família. A terapia familiar é a intervenção indicada para alcançar o sucesso
terapêutico.10

MODELO BIOLÓGICO
Estudos neurobiológicos relacionados ao consumo de substâncias vêm apontando a dependência química
como um transtorno crônico do cérebro e que o estudo minucioso desses elementos resultará em futuros
tratamentos mais individualizados e eficazes.2 O modelo biológico ganhou força a partir dos anos de 1970
e aponta a fisiologia e a genética dos indivíduos como responsáveis pela etiologia da dependência. Esse
modelo estuda a herança genética e a constituição biológica do indivíduo e como tais características
determinam o surgimento da dependência. Estudos com famílias, gêmeos e adoção enfatizam a importância
das características biológicas dos indivíduos para o surgimento desse processo, por exemplo, estudos com
gêmeos idênticos separados na infância e adotados por famílias com características diferentes evoluindo
para quadros de dependência química na idade adulta. Na década de 1970, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) desenvolveu uma nova conceituação sobre a dependência química, considerando-a como uma
síndrome que obedece a um continuum de gravidade. Houve distinção entre consumo abusivo e
dependência.7,10
Atualmente, sabe-se que as substâncias podem modular a expressão de genes envolvidos na
neuroplasticidade cerebral. Modificações no ácido ribonucleico (RNA) produzem disfunções nos
neurônios, que resultam em alterações duradouras observadas no TUS. 11 O consumo dessas substâncias
produz aumento da liberação de dopamina no cérebro, em regiões, como o nucleus accumbens e a área
tegmentar ventral, que estão diretamente relacionadas ao processo de recompensa. 12
Diversos estudos estão sendo apontados como promissores em relação ao papel biológico do
desenvolvimento do TUS. Entre as pesquisas mais importantes, estão:2
1. A identificação de subtipos de neurônios dopaminérgicos, a caracterização de suas
projeções, insumos e função.
2. A investigação das interações entre os núcleos e os circuitos mediadores de recompensa
envolvidos com a regulação do humor.
3. A investigação das interações dinâmicas na recompensa do uso de substâncias e o
consumo compulsivo delas.
4. A investigação da influência dos genes sobre a biologia molecular e os circuitos neuronais
– essa heterogeneidade individual resulta em diferentes tipos de vulnerabilidade e resiliências ao
vício.
5. A identificação de biomarcadores úteis para prevenção e intervenções terapêuticas.

MODELO BIOPSICOSSOCIAL
Segundo esse modelo, uma multifatoriedade está envolvida no surgimento da dependência química. As
diferentes teorias associadas seriam necessárias para determinar a doença, e o indivíduo não teria apenas
uma única causa para explicar o desenvolvimento, o curso e o prognóstico do problema. 10 A substância seria
apenas um dos fatores de uma tríade que incluiria o indivíduo e a sociedade da qual ele faz parte e na qual
a substância se encontra.13

► CONCEITOS SOBRE O CONSUMO DE SUBSTÂNCIAS


Diante de um consumidor de álcool e/ou outras substâncias, é necessário saber como esse indivíduo utiliza
a substância em questão. Nem todos os abusadores se tornam dependentes. O uso abusivo pode ser tão
perigoso quanto determinados casos de dependência, e o uso esporádico pode ser mais perigoso do que um
transtorno mais grave (p. ex., um jovem que ingere grande quantidade de bebida alcoólica apenas nos fins
de semana e que dirige alcoolizado pode se tornar um perigo maior para si próprio e para a sociedade do
que um alcoolista crônico que não dirige). As diferenças entre uso, abuso e dependência não são tão nítidas,
mas, de forma simplificada, podemos dizer:10
 Uso – Seria experimentar, consumir esporadicamente ou de forma episódica, não
acarretando prejuízos por conta disso.
 Abuso ou uso nocivo – No consumo abusivo, há algum tipo de consequência prejudicial,
seja social, psicológica ou biológica.
 Dependência – Ocorre perda do controle no consumo, e os prejuízos associados são mais
evidentes.
Edward e Gross14 propuseram sinais e sintomas fisiológicos, cognitivos e comportamentais para
caracterizar a síndrome de dependência de álcool. A partir dessa definição, foi observado que muitas outras
dependências seguiam padrões semelhantes. Segundo os autores, na dependência de álcool, ocorreriam os
seguintes fenômenos:14
1. Estreitamento do repertório do beber – Tendência a ingerir bebidas alcoólicas seguindo um padrão.
A pessoa bebe a mesma quantidade, estando acompanhada ou não, nos dias úteis ou nos finais fins
de semana. Os dias de abstinência ou de consumo baixo tornam-se cada vez mais difíceis de
acontecer. Influências sociais e psicológicas ficam cada vez menos importantes (p. ex., bebia
apenas para comemorar, agora bebe quando está feliz, triste, só ou na presença de outras pessoas,
de dia ou de noite e em qualquer dia da semana).
2. Tolerância – Perda ou diminuição da sensibilidade aos efeitos iniciais do álcool. O indivíduo passa
a necessitar de doses cada vez maiores para experimentar os mesmos efeitos agradáveis. Torna-se
cada vez mais resistente e consegue exercer atividades que outras pessoas (não dependentes) com
o mesmo nível de alcoolemia não conseguiriam.
3. Síndrome de abstinência – Sinais e sintomas psíquicos e físicos que ocorrem após a diminuição
ou interrupção do consumo da substância. Quanto maior o grau de dependência, mais exuberante
é o efeito da ausência da substância no organismo do paciente.
4. Saliência do comportamento de uso – Ocorre a presença de desejo persistente e tentativas
frustradas de controlar o consumo. O indivíduo passa a utilizar a substância em maiores
quantidades e maior frequência que o inicialmente planejado (p. ex., quando conta que sai para
tomar uma dose e só volta após beber várias doses). Há um comprometimento funcional, pois o
indivíduo passa a utilizar seu tempo de forma cada vez maior para adquirir, consumir ou recuperar-
se das intoxicações.14
5. Alívio ou evitação dos sintomas de abstinência – O consumo não é mais uma experiência
unicamente motivada pelo prazer, passando a ser necessária para evitar os sintomas
desconfortáveis da ausência da substância.
6. Sensação subjetiva da necessidade de consumir – É a própria fissura, isto é, a vontade intensa e
subjetiva de consumir.
7. Reinstalação da síndrome de dependência após abstinência – Após algum período de abstinência,
o indivíduo que volta a consumir rapidamente retorna ao mesmo padrão mal-adaptativo do uso (p.
ex., indivíduo que tomava um litro de cachaça por dia, permaneceu um ano sem beber, voltou a
usar a bebida e, em questão de semanas, retorna à quantidade de um litro por dia).
A OMS15 determinou classificações que podem auxiliar no entendimento do consumo de substâncias
pelos indivíduos. Por exemplo, quanto à frequência:
1. Uso na vida – uso da substância pelo menos uma vez na vida.
2. Uso no ano – uso pelo menos uma vez nos últimos 12 meses.
3. Uso recente ou no mês – uso pelo menos uma vez nos últimos 30 dias.
4. Uso frequente – uso seis ou mais vezes nos últimos 30 dias.
5. Uso de risco – implica alto risco de prejuízo à saúde física ou mental do usuário, mas ainda não
causou doença física ou psicológica (i.e., quadros de uso abusivo ou nocivo).
6. Uso prejudicial – já causa prejuízo físico ou psicológico (i.e., quadros de dependência).
A OMS apresenta, também, uma classificação que organiza os indivíduos conforme a intensidade do
consumo. Essa organização é interessante principalmente para profissionais que ainda estão pouco
familiarizados com quadros de TUS e que podem ficar confusos com algumas argumentações de pacientes,
por exemplo: “Uso pouco”, “Só uso quando tem”, “Uso socialmente”, “Quando uso, costumo usar muito”.
Essas quantificações são imprecisas e, muitas vezes, tornam a anamnese pouco objetiva. De acordo com a
intensidade do consumo, para a OMS, o usuário pode ser:
 Não usuário – nunca utilizou
 Usuário leve – usou, no último mês, menos que uma vez por semana
 Usuário moderado – usou na última semana, mas não diariamente
 Usuário pesado – utilizou diariamente no último mês

► O DIAGNÓSTICO DO TRANSTORNO POR USO DE


SUBSTÂNCIAS
O DSM-5 e a CID-10 apresentam critérios que auxiliam na identificação correta do diagnóstico de TUS. É
importante lembrar que essas classificações são sempre visões reducionistas de um fenômeno complexo e
têm como intuito uniformizar o entendimento e o diagnóstico, evitando erros mais grosseiros.

DIAGNÓSTICOS SEGUNDO O DSM-5


As mudanças recentemente ocorridas na quinta edição desse manual apontam para uma visão mais ampliada
dos problemas relativos ao consumo de substâncias. Padrões de uso de qualquer tipo de substância, que
levem a sofrimento clinicamente significativo ou comprometimento, antes especificados pelos termos
“abuso” e “dependência”, foram substituídos por “transtorno por uso de substâncias”. Portanto, nessa nova
forma de classificar, indivíduos que eram “abusadores”, ou mesmo aqueles que eram diagnosticados com
um transtorno psiquiátrico chamado “dependência química”, passaram a compartilhar a mesma
denominação, com diferenças em seus níveis de comprometimento, que são agora classificados como leve,
moderado e grave.
O diagnóstico, de acordo com o DSM-5, é fundamentado nas seguintes evidências.15
Critério A: padrão problemático de uso de determinada substância, que leve a comprometimento ou
sofrimento clinicamente significativo, percebido por pelo menos dois dos critérios a seguir, que devem
ocorrer pelo período mínimo de 12 meses:
1. A substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período de tempo
maior que o pretendido.
2. Desejo persistente ou esforços malsucedidos na tentativa de reduzir ou controlar o uso da
substância.
3. Muito tempo é gasto em atividades relacionadas a obtenção, utilização ou recuperação dos efeitos
do uso da substância.
4. Fissura, desejo intenso ou mesmo necessidade de usar a substância.
5. Uso recorrente da substância, resultando em fracassos no desempenho de papéis em casa, no
trabalho ou na escola.
6. Uso contínuo da substância, apesar dos problemas sociais ou interpessoais persistentes ou
recorrentes causados ou piorados por seus efeitos.
7. Abandono ou redução de atividades sociais, profissionais ou recreativas importantes ao indivíduo
devido ao consumo de substâncias.
8. Uso contínuo da substância mesmo em situações nas quais esse consumo represente riscos à
integridade física.
9. O consumo é mantido apesar da consciência de se ter um problema físico ou psicológico
persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado por esse uso.
10. Tolerância, definida como: efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma
quantidade de substância e/ou necessidade de quantidades progressivamente maiores de substância
para atingir o mesmo grau de intoxicação.
11. Abstinência manifestada por: síndrome de abstinência característica da substância utilizada e/ou
uso da substância ou de similares na intenção de evitar os sintomas de abstinência.

DIAGNÓSTICOS SEGUNDO A CID-10


O diagnóstico de dependência deve ser feito se três ou mais dos seguintes critérios são experienciados ou
manifestos durante os últimos 12 meses:16
1. Forte desejo ou senso de compulsão para consumir a substância.
2. Dificuldades em controlar o comportamento de consumir a substância em termos de início,
término ou níveis de consumo.
3. Estado de abstinência fisiológica, quando o uso da substância cessou ou foi reduzido, evidenciado
por: síndrome de abstinência característica da substância ou uso da mesma substância (ou de uma
intimamente relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar os sintomas de abstinência.
4. Evidências de tolerância, de forma que doses crescentes da substância são requeridas para alcançar
efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas.
5. Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da substância:
aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou consumir a substância ou recuperar-se
de seus efeitos.
6. Persistência no uso da substância, a despeito de evidência clara de consequências manifestamente
nocivas, como dano ao fígado decorrente de consumo excessivo de bebidas alcoólicas, estados de
humor depressivos consequentes a consumo excessivo da substância ou comprometimento do
funcionamento cognitivo relacionado com a substância: deve-se procurar determinar se o usuário
estava consciente da natureza e extensão do dano.
A CID-10 apresenta diferentes graus de comprometimento que podem surgir a partir de uma mesma
substância. Por exemplo, F designa qualquer diagnóstico psiquiátrico; o primeiro número (aqui o número
1) representa diagnósticos relacionados a substâncias; o X é a substância, e deve ser substituído pelo
respectivo número que a representa, por exemplo, 0 = álcool. Por fim, o último algoritmo representa o
quadro em que o indivíduo se encontra; ou seja, F10.0 é a intoxicação aguda provocada pela ingestão de
álcool.16
 F1x.0 Intoxicação aguda
 F1x.1 Uso nocivo
 F1x.2 Síndrome de dependência
 F1x.3 Estado de abstinência
 F1x.4 Estado de abstinência com delirium
 F1x.5 Transtorno psicótico induzido
 F1x.6 Síndrome amnésica
 F1x.7 Transtorno psicótico residual e de início tardio
 F1x.8 Outros transtornos mentais e de comportamento
 F1x.9 Transtorno não especificado
De modo geral, acredita-se que todas ou quase todas as substâncias podem produzir os quadros
descritos. No entanto, tais quadros, além das quantidades e da frequência de uso, também podem surgir de
acordo com suscetibilidades pessoais e com condições clínicas associadas. Por exemplo, algumas pessoas
têm maior predisposição que outras para apresentar quadros psicóticos; portanto, doses menores ou menor
frequência de uso de substâncias poderiam produzir um quadro de F1x.5. 16
Um dos maiores estigmas do diagnóstico de TUS está na impossibilidade de “cura” ou mesmo na
dificuldade de lidar com esses pacientes. Entender a doença e suas características é essencial para que o
profissional consiga diminuir frustrações ao aumentar as expectativas dos pacientes e dos familiares acerca
do tratamento.
CAPITULO 2

2
CRITÉRIOS PARA DIAGNÓSTICO DO
TRANSTORNO POR USO DE SUBSTÂNCIAS
► MARCELO RIBEIRO
► LUIZ GUSTAVO VALA ZOLDAN

 O conhecimento dos critérios diagnósticos e de sua aplicabilidade prática é


fundamental para os profissionais que atuam nas áreas de tratamento dos
transtornos por uso de substâncias (TUSs), pois facilita o diálogo entre eles.
 Para um bom diagnóstico, é importante reconhecer os sintomas presentes e
suas variações, que dependem das características próprias do indivíduo e do
contexto em que ele está inserido.
 Deve-se ter o mesmo cuidado ao diagnosticar o uso de mais de uma
substância em um paciente.
 Quanto mais criterioso é o diagnóstico, melhor é o planejamento do
tratamento.

Hoje, o consumo de substâncias está disseminado em todas as classes sociais, faixas etárias e culturas,
tornando-se um grave problema de saúde pública em todo o mundo.1 Muitas vezes, o primeiro contato de
um indivíduo que apresenta problemas relacionados ao consumo de substâncias se dá por meio de
profissionais não especialistas, e essa é uma abordagem fundamental para encaminhá-lo a tratamento e para
prevenir complicações resultantes desse consumo.2
A classificação e os critérios diagnósticos para o TUS são necessários para a uniformização e para uma
linguagem própria a fim de compreender os fenômenos envolvidos nesse transtorno, objetivando melhores
abordagem e tratamento.3 Portanto, é fundamental que os profissionais conheçam esses conceitos e os
apliquem na prática, garantindo, assim, avaliação adequada, condutas e prognósticos padronizados.

► O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
O atual conceito de dependência química é resultado de uma evolução de ideias cujas primeiras tentativas
de abordagem científica têm menos de 300 anos; e as definições mais próximas da atual, pouco mais de um
século. Em comparação ao consumo de substâncias, que ocorre há milhares de anos, o conceito de
dependência química é muito recente.4
Os problemas relacionados ao consumo de álcool e outras substâncias foram encarados como desvios
morais até o século XVIII, quando dois médicos, o norte-americano Benjamin Rush e o britânico Thomas
Trotter,5caracterizaram pela primeira vez a embriaguez como resultado da perda do autocontrole. O modo
de consumo era, até certo ponto, uma escolha pessoal, mas a substância passava a “dominar” o controle e
a vontade do usuário. Além disso, Rush e Trotter diziam que a intensidade do consumo variava ao longo
de um continuum de gravidade e pontuaram que os problemas relacionados ao consumo instalavam-se ao
longo do tempo, ou seja, tinham uma história natural. 6
Entretanto, apesar de a embriaguez ser identificada como uma doença mental, não foram definidos
critérios diagnósticos. Apenas em meados do século XIX, Magnus Huss (1849) utilizou o termo
“alcoolismo” pela primeira vez, na tentativa de definir o conjunto de complicações clínicas decorrentes do
uso abusivo e crônico de álcool.4Quase no fim do referido século, outros pesquisadores formularam
conceitos que se aproximaram do que hoje é denominado dependência, isto é, uma doença com prováveis
causas biológicas e genéticas associadas. Aos poucos, essa definição estendeu-se para outras substâncias,
com a criação de entidades nosológicas como morfinismo, narcomania e cocainomania. 7 Poucos
pesquisadores ativeram-se aos aspectos psicossociais decorrentes do uso indevido de álcool e substâncias,
deixando espaço para as explicações moralmente embasadas ou muito caracteriológicas, ou seja, as que
consideravam que a gênese dos problemas com o consumo de álcool e drogas estava direta e exclusivamente
ligada a transtornos da personalidade inerentes, não levando em conta as alterações psicossociais como
parte da dependência, focando em demasia a presença dos aspectos biológicos e referindo a outros modos
problemáticos do consumo.7
Nos anos de 1960, as classificações começaram a considerar os diferentes padrões de consumo de
álcool, sendo caracterizado dentro destes o uso contínuo, periódico e irregular. Jellineck, em 1960, criou
uma classificação que dividia os dependentes de acordo com uma tipologia empiricamente determinada,
identificando aqueles com características de origem biológica, com início precoce do consumo e com
evolução mais rápida para a perda do autocontrole (tipos gama e delta) e distinguindo-os de outros cujas
influências eram de origem ambiental, com evolução mais lenta e arrastada (alfa, beta e épsilon).8
Ainda na década de 1960, surgiram os termos “dependência física” e “dependência psicológica”, hoje
em desuso, mas ainda utilizados de maneira inadequada. Esse tipo de distinção originou duas classes de
substâncias psicoativas – as leves e as pesadas –, representando um retrocesso no conceito moralista, com
dois vieses dentro desse conceito. O primeiro viés caracteriza o usuário como sem disposição e caráter para
tornar-se abstinente de uma dependência apenas psíquica. O segundo considera a substância que produz
apenas dependência psíquica, sobretudo quando comparada com substâncias pesadas, como álcool,
benzodiazepínicos e opioides.7
A partir dos anos de 1970, surge o conceito de síndrome de dependência de álcool, proposto por
Edwards e Gross,9 partindo de três pressupostos básicos:
 A dependência é uma síndrome nosológica: agrupamento de sinais e sintomas que se
repete com certa frequência em alguns usuários, porém sem ter uma causa única ou aparente.
 Essa síndrome se organiza dentro de níveis de gravidade, e não como um absoluto
categórico: não há um sintoma característico, mas uma série de sintomas cuja intensidade é
considerada ao longo de um continuumde gravidade.
 A síndrome de dependência é moldada por outras influências capazes de predispor,
potencializar ou bloquear suas manifestações. Nesse caso, o padrão de consumo dos indivíduos é
moldado por uma série de fatores de risco e de proteção, entre eles fatores individuais, ambientais,
culturais, familiares, profissionais, educacionais e sociais, além do tipo de substância utilizado.

► DIAGNÓSTICO
Os conceitos atuais que definem os critérios para o diagnóstico de síndrome de dependência são
fundamentados nos conceitos da escola britânica de Griffith Edwards10 (Tab. 2.1) e serviram de base para a
elaboração dos dois principais códigos psiquiátricos da atualidade: a Classificação internacional de
doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Tab. 2.2),
e a quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), da American
Psychiatric Association (APA) (Tab. 2.1).
TABELA 2.1 ► Critérios diagnósticos da dependência de substâncias

Compulsão para o A experiência de um desejo incontrolável de consumir uma substância. O indivíduo


consumo imagina-se incapaz de colocar barreiras a tal desejo e sempre acaba consumindo.

Aumento da tolerância A necessidade de doses crescentes de determinada substância para alcançar


efeitos originalmente obtidos com doses mais baixas.

Síndrome de abstinência O surgimento de sinais e sintomas de intensidade variável quando o consumo de


substância cessou ou foi reduzido.

Alívio ou evitação da O consumo de substâncias visando ao alívio dos sintomas de abstinência. Como o
abstinência pelo indivíduo aprende a detectar os intervalos que separam a manifestação de tais
aumento do consumo sintomas, passa a consumir a substância preventivamente, a fim de evitá-los.
Relevância do consumo O consumo de uma substância torna-se prioridade, mais importante do que coisas
que outrora eram valorizadas pelo indivíduo.

Estreitamento ou A perda das referências internas e externas que norteiam o consumo. Conforme a
empobrecimento do dependência avança, as referências voltam-se exclusivamente para o alívio dos
repertório sintomas de abstinência, em detrimento do consumo ligado a eventos sociais.
Além disso, o consumo passa a ocorrer em locais onde sua presença é
incompatível, como, por exemplo, no ambiente de trabalho.

Reinstalação da O ressurgimento dos comportamentos relacionados ao consumo e dos sintomas


síndrome de de abstinência após um período abstinente. Uma síndrome que levou anos para
dependência se desenvolver pode se reinstalar em poucos dias, mesmo o indivíduo tendo
passado por um longo período de abstinência.

Fonte: Edwards e colaboradores.10

TABELA 2.2 ► Critérios da CID-10 para síndrome de dependência e para uso nocivo
Síndrome de dependência Uso nocivo

Um diagnóstico definitivo de dependência deve O diagnóstico requer que um dano real tenha sido
usualmente ser feito somente se três ou mais dos causado à saúde física e mental do usuário.
seguintes requisitos tenham sido experienciados ou Padrões nocivos de uso são frequentemente criticados
exibidos em algum momento do ano anterior: por outras pessoas e estão associados a consequências
a. Um forte desejo ou senso de compulsão sociais de vários tipos. O fato de um padrão de uso ou
para consumir a substância. de uma substância em particular não serem aprovados
b. Dificuldades em controlar o comportamento por outra pessoa ou pela cultura ou de terem levado a
de consumir a substância em termos de seu consequências socialmente negativas, como prisão ou
início, término e níveis de consumo. conflitos conjugais, não é por si mesmo evidência de uso
c. Um estado de abstinência fisiológico nocivo.
quando o uso da substância cessou ou foi
A intoxicação aguda, ou “ressaca”, não é por si mesma
reduzido, como evidenciado por: síndrome de
evidência suficiente do dano à saúde requerido para
abstinência para a substância ou o uso da
codificar uso nocivo.
mesma substância (ou de uma intimamente
relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar O uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome
sintomas de abstinência. de dependência, um transtorno psicótico ou outra forma
d. Evidência de tolerância, de tal forma que específica de transtorno relacionado ao uso de drogas
doses crescentes da substância psicoativa são ou álcool estiver presente.
requeridas para alcançar efeitos originalmente
produzidos por doses mais baixas.
e. Abandono progressivo de prazeres e
interesses alternativos em favor do uso da
substância psicoativa, aumento da quantidade
de tempo necessária para se recuperar de seus
efeitos.
f. Persistência no uso da substância, a
despeito de evidência clara de consequências
manifestamente nocivas (deve-se fazer
esforços claros para determinar se o usuário
estava de fato consciente da natureza e
extensão do dano).
A CID-10 foi publicada em 1992 pela OMS,11 resultado de muitos testes e pesquisas realizados em
diversos centros acadêmicos de vários países do mundo. O DSM-5 foi lançado exatamente 20 anos depois
de sua edição anterior, o DSM-IV (1993),12,13 propondo alterações importantes – entre elas, a substituição
do binômio “dependência” e “abuso” por “transtornos relacionados a substâncias”, com diferentes níveis
de gravidade. A organização e a estrutura desses sistemas diagnósticos serão detalhadas adiante.
Conhecer esses sistemas é importante para a comunicação entre os profissionais de áreas
interdisciplinares afins, como, por exemplo, médicos, psiquiatras e psicólogos. A habilidade do profissional
não está apenas em aplicar esses conceitos, mas em reconhecer as sutilezas dos sintomas presentes e como
essas manifestações são influenciadas pelo ambiente e pelas características próprias do indivíduo (p. ex.,
personalidade, comorbidades psiquiátricas, características genéticas), ou seja, identificar os chamados
fatores de risco e de proteção que interferem no padrão de consumo e na gravidade da dependência.
DEPENDÊNCIA
A dependência química caracteriza-se por um padrão de consumo compulsivo da substância, estando
presentes pelo menos três dos sete critérios diagnósticos elaborados por Edwards e colaboradores (Tab.
2.1).9 Tal padrão de consumo, em geral, está voltado para o alívio ou a evitação de sintomas provocados
pela abstinência, interferindo na execução de atividades e compromissos sociais realizados pelo indivíduo,
que passa a abandoná-los ou negligenciá-los em função do uso. Além disso, esse padrão de consumo resulta
em tolerância e síndrome de abstinência. Segundo a OMS, 11 ele pode ser aplicado a qualquer classe de
substância, exceto cafeína. Contudo, há descrições de sintomas de abstinência em usuários pesados dessa
substância.

USO NOCIVO
O uso nocivo é um padrão mal-adaptativo de uso da substância que culmina em repetidas complicações
clínicas e/ou psicossociais para o indivíduo. Todavia, essa situação é restrita ao período de consumo –
problemas legais ou interpessoais e vulnerabilidade a acidentes ou situações de violência. Esse diagnóstico
se distingue da dependência pela ausência de tolerância, pela síndrome de abstinência ou pelo diagnóstico
anterior de dependência química, resumindo-se apenas às consequências prejudiciais do uso frequente.
Em geral, a detecção do uso nocivo é realizada em usuários recentes e, na maioria das vezes, é uma
condição transitória. Há um risco importante de evolução para a dependência, mas são possíveis tanto a
redução ou o abandono do consumo quanto a persistência do padrão de uso nocivo por um longo
período.14 A categoria abuso de substância não se aplica à nicotina e à cafeína.
O termo “uso nocivo” é utilizado pela CID-10; no DSM-IV, adotava-se o termo “abuso”. Havia
diferença de critérios entre esses sistemas classificatórios: na CID-10, não há especificações sobre
problemas legais, as quais se encontravam no DSM-IV, o qual, porém, não especificava alterações físicas
e relação do dano com a substância, conteúdo que a CID-10 tem entre seus critérios.11,13

TRANSTORNO POR USO DE SUBSTÂNCIAS


Com o lançamento do DSM-5 em 2013, a APA substituiu as denominações “abuso” e “dependência”,
presentes no DSM-IV, por um continuum de gravidade. Nesse novo formato, passou a existir apenas a
categoria diagnóstica “transtorno por uso de substâncias” (Quadro 2.1, Fig. 2.1), que será explicada com
mais detalhes na parte final do capítulo.
QUADRO 2.1 ► Critérios do DSM-5 para transtorno por uso de substâncias
Transtorno por uso de substâncias

a. Um padrão problemático de uso de [determinada substância], levando a comprometimento ou


sofrimento clinicamente significativos, manifestado por pelo menos dois dos seguintes critérios, ocorrendo
durante um período de 12 meses:
1. A substância é frequentemente consumida em maiores quantidades ou por um período mais
longo do que o pretendido.
2. Existe um desejo persistente ou esforços malsucedidos no sentido de reduzir ou controlar o
uso da substância.
3. Muito tempo é gasto em atividades necessárias para a obtenção da substância, na utilização
da substância ou na recuperação dos seus efeitos.
4. Fissura ou um forte desejo ou necessidade de usar a substância.
5. Uso recorrente da substância, resultando no fracasso de desempenhar papéis importantes no
trabalho, na escola ou em casa.
6. Uso continuado da substância, apesar de problemas sociais ou interpessoais persistentes ou
recorrentes causados ou exacerbados por seus efeitos.
7. Importantes atividades sociais, profissionais ou recreacionais são abandonadas ou reduzidas
em função do uso da substância.
8. Uso recorrente da substância em situação nas quais isso representa um perigo para a
integridade física.
9. O uso de substância é mantido apesar da consciência de ter um problema físico ou
psicológico persistente ou recorrente que tende a ser causado ou exacerbado pela substância.
10. Tolerância, definida por qualquer um dos seguintes aspectos:
a. Necessidade de quantidades progressivamente maiores da substância para alcançar
intoxicação ou o efeito desejado.
b. Efeito acentuadamente menor com o uso continuado da mesma quantidade de
substância.
11. Abstinência, manifestada por qualquer dos seguintes aspectos:
. Síndrome de abstinência característica da substância (consultar os critérios
para síndrome de abstinência específicos para cada droga, entre as páginas 481-590,
do DSM-5).
a. A substância (ou outra substância estritamente relacionada) é consumida para aliviar
ou evitar os sintomas de abstinência.

FIGURA 2.1 ► O campo dos transtornos relacionados ao uso de substâncias de acordo com as
principais classificações internacionais. Outrora bastante semelhantes – contando ambos com um
diagnóstico para padrões mal-adaptativos de consumo, marcado por perda do controle e com
consequências negativas à saúde circunscritas ao período imediato do uso da substância (uso nocivo,
pela CID-10, e abuso, pelo DSM-IV) –, o DSM-5 agrupou o abuso e a dependência em um único
diagnóstico: transtorno por uso de substâncias. Questionamentos acerca da maior abrangência dessa
nova conceituação para casos outrora não considerados patológicos (1), bem como de sua
capacidade reduzida em detectar casos de dependência mais leves (2), ainda aguardam
investigações científicas esclarecedoras.16

► CID-10
O quinto capítulo da CID-1011 aborda os transtornos mentais e comportamentais, que estão codificados pela
letra F, seguida pelos números de 0 a 9, correspondentes a nove classes de transtornos. Os transtornos
mentais decorrentes do uso de substâncias estão organizados da seguinte forma (Quadro 2.2):
QUADRO 2.2 ► Classificação dos transtornos mentais decorrentes do uso de substâncias segundo
a CID-10

F1: O número 1 corresponde ao transtorno por uso de substâncias.


F10: O segundo número corresponde à substância utilizada. F10, por exemplo, indica o transtorno mental
decorrente do uso de álcool.
F10.0: O terceiro número, sempre colocado após o ponto, indica o transtorno por uso da substância
representada no número anterior ao ponto. F10.0, por exemplo, significa intoxicação aguda pelo álcool.
F10.07: O quarto número descreve o curso do transtorno, o subtipo ou as complicações relacionadas ao
diagnóstico. F10.07, por exemplo, indica intoxicação patológica decorrente do uso de álcool.
A relação completa das codificações é apresentada nos Quadros 2.3 e 2.4. É importante considerar que
muitos usuários podem utilizar mais de um tipo de substância, mas o diagnóstico do transtorno deve ser
classificado de acordo com a substância única ou com a classe de substâncias (benzodiazepínicos) mais
importante usada. Se o indivíduo utiliza maconha e álcool, estes devem ser codificados separadamente. O
código F19, que corresponde ao transtorno resultante do uso de múltiplas substâncias, deve ser utilizado, de
acordo com as diretrizes da CID-10, “somente nos casos em que os padrões de uso de substâncias
psicoativas são caóticos e indiscriminados ou nos quais as contribuições de diferentes drogas estão
inextrincavelmente misturadas”.11
QUADRO 2.3 ► CID-10 – Transtornos mentais decorrentes do uso de substâncias segundo a classe
de drogas

F10 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de álcool


F11 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de opioides
F12 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de canabinoides
F13 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de sedativos ou hipnóticos
F14 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de cocaína
F15 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de outros estimulantes, incluindo cafeína
F16 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de alucinógenos
F17 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de tabaco
F18 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de solventes voláteis
F19 Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de múltiplas drogas e do uso de outras
substâncias psicoativas

QUADRO 2.4 ► Códigos segundo os transtornos relacionados ao uso de substâncias

Fx.0 Intoxicação aguda


Fx.1 Uso nocivo
Fx.2 Síndrome de dependência
Fx.3 Estado de abstinência
Fx.4 Estado de abstinência com delirium
Fx.5 Transtorno psicótico
Fx.6 Síndrome amnéstica
Fx.7 Transtorno psicótico residual e de início tardio
Fx.8 Outros transtornos mentais e de comportamento
Fx.9 Transtorno mental e de comportamento não especificado
A OMS está preparando a 11ª edição da CID. Nesse sentido, especialistas do mundo todo vêm
discutindo a validade das categorias diagnósticas vigentes, bem como a necessidade de se incluir
outras.15 Ao que tudo indica, não haverá alterações significativas nos critérios diagnósticos para
“dependência” e “uso nocivo”, permanecendo a primeira hierarquicamente superior à segunda, ou seja, “o
uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome de dependência, um transtorno psicótico ou outra
forma específica de transtorno relacionado ao uso de drogas ou álcool [estiver] presente”.
A nova versão da CID estuda a possiblidade de se introduzir o conceito de “episódio de uso nocivo
isolado” [tradução livre] para caracterizar determinadas situações em que a referida intoxicação não se
encaixa em um padrão de consumo mais amplo, porém foi capaz de proporcionar danos à saúde e ao entorno
social do usuário15 – por exemplo, um usuário de baixo risco que bebeu em binge durante o carnaval ou
durante sua formatura e bateu o carro ou um adolescente durante suas primeiras experiências com o
consumo de álcool. Um segundo episódio em menos de 12 meses já fecharia critérios para “uso nocivo”
propriamente dito. Outra inovação em estudo é a possibilidade de se introduzir um espectro para as
intoxicações agudas, que passariam a ter critérios bem-definidos para as modalidades “leve”, “moderada”
e “grave”.15

► DSM-5
A APA substituiu as denominações “abuso” e “dependência”, presentes no DSM-IV, por um continuum de
gravidade, no DSM-5. Nesse novo formato, passou a existir apenas a categoria diagnóstica “transtorno por
uso de substâncias” (Figura 2.1), definida como “um padrão problemático de uso [de qualquer substância
psicoativa], levando a comprometimento ou sofrimento clinicamente significativos, manifestado por pelo
menos dois [de 11 critérios possíveis], ocorrendo durante um período de 12 meses (“Critério A”)” (Quadro
2.1).12 Quanto à gravidade, a presença de 2 ou 3 critérios caracteriza um TUS “leve”; 4 ou 5, um TUS
“moderado”; ao passo que o “grave” reúne ao menos seis sintomas.
A alteração trazida pelo DSM-5 é resultado das seguintes considerações:17
 Os critérios diagnósticos do DSM-IV para “abuso” não tinham a validade e a
confiabilidade daqueles para “dependência”.
 A hierarquização existente entre “dependência” e “abuso” (“uso nocivo”, para a CID-10),
muitas vezes, passa a impressão de que este último é um padrão de comportamento mais leve,
apesar dos graves problemas clínicos, sociais e criminais muitas vezes associados a ele – como os
acidentes automobilísticos –, sugerindo que “abuso” e “dependência” não estão necessariamente
relacionados dentro de um continuum de gravidade.
 Por fim, alguns usuários de substâncias (diagnostic orphans) apresentavam dois critérios
para dependência (quando eram necessários ao menos três) e nenhum para uso nocivo, o que
indicava que tinham problemas, mas não um diagnóstico capaz de orientar alguma prática clínica.
Isso levou o grupo responsável pela elaboração do DSM-5 a concluir não se tratar de duas
patologias, mas de uma categoria unidimensional, sugerindo que os critérios deveriam ser
combinados para indicar um único transtorno.17
A novidade trazida pelo DSM-5 – a fusão do “abuso” e da “dependência” em um único diagnóstico
dotado de espectros de gravidade – permanece longe do consenso. O próprio Griffith Edwards, pouco antes
de seu falecimento, afirmou em carta a uma revista científica que o novo conceito trazia desarranjo ao corpo
de conhecimento desenvolvido até o momento, questionando a consistência dos achados que convenceram
a mudança de paradigma oferecida pelo DSM-5.18
Estudos comparativos iniciais19 têm demonstrado um alto grau de concordância – por volta de 95% –
entre “transtorno por uso de substância grave” (DSM-5) e “dependência” (DSM-IV, CID-10), tanto entre
os homens quanto entre as mulheres. Da mesma forma, a ausência de qualquer diagnóstico para transtornos
relacionados ao uso de substâncias foi encontrada na mesma proporção por todos os códigos. Contudo,
mais de metade dos casos de “TUS moderado” (DSM-5) receberia o diagnóstico de “dependência”, ao
passo que um terço dos casos “leves” não receberia diagnóstico, segundo a CID-10. Isso aponta para um
descompasso entre as duas classificações, gerando questionamento acerca da acurácia do DSM-5 para a
detecção de casos de dependência menos graves, bem como para a possibilidade do aumento do número de
casos “leves” entre indivíduos cujo comportamento de beber está fora do campo dos transtornos
relacionados ao uso de substâncias.16
Tais achados parecem sugerir que o novo campo delimitado pelo DSM-5 para a investigação dos
transtornos relacionados ao consumo de substâncias ainda deverá passar pelo crivo de pesquisadores e
especialistas até que suas fronteiras estejam melhor definidas, seja pelo ajuste de seus critérios vigentes,
seja pelo ajuste das outras classificações.

► CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há menos de 50 anos, os problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas não apresentavam critérios
diagnósticos precisos, recebendo explicações eminentemente embasadas em modelos morais e
estigmatizantes. O conceito “síndrome de dependência” possibilitou a harmonização entre as principais
linhas de pensamento acerca do tema.
As classificações diagnósticas são importantes porque auxiliam o profissional a diagnosticar os
transtornos mentais de modo objetivo. Elas ajudam a identificar o problema e sua gravidade, além de
auxiliar o profissional no mapeamento dos fatores de proteção e de risco, capazes de interferir na evolução
do quadro diagnosticado. O uso nocivo, dependência ou TUS são considerados, portanto, não apenas a
partir de suas características biológicas, pois os aspectos psicossociais e o contexto envolvidos em todo o
processo fenomenológico são igualmente valorizados.8
Os avanços das últimas décadas ainda têm pouco impacto na opinião do grande público, que ainda
valoriza em demasia explicações baseadas em teorias etiológicas reducionistas ou eminentemente
moralistas. Em contraposição, o conceito de síndrome de dependência introduz um novo paradigma, no
qual defeitos se convertem em características e atribuições de culpa, em responsabilidade pelo processo de
tratamento, dividida entre o profissional, o paciente e sua família.15

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