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Desde a última edição deste livro, houve mudanças importantes a respeito dos conceitos relacionados à
dependência química. O DSM foi lançado em sua quinta versão com mudanças na forma de entender e
classificar esse transtorno. O DSM é um norteador para todos aqueles que trabalham diretamente com
transtornos mentais, seja no tratamento direto, seja em pesquisas e em outros setores, como companhias de
seguro, políticas públicas e a própria indústria farmacêutica. Apesar das críticas relacionadas ao manual
escrito pela American Psychiatric Association (APA), não se pode negar a influência direta deste, que
envolve desde diagnósticos até decisões diversas a respeito de vários assuntos relacionados ao tema, bem
como sobre a própria CID (DSM-5).
Nos últimos anos, foram desenvolvidos modelos teóricos na tentativa de explicar de forma distinta os
critérios clínicos do TUS e as construções psicológicas envolvidas nesse processo. A organização de tais
modelos tem a intenção de investigar, controlando estímulos ambientais, como apenas alguns indivíduos
vulneráveis, após a exposição prolongada a substâncias, tornam-se compulsivos em seu consumo.
Atualmente, o conceito de dependência química entende esse problema como um transtorno
neuropsiquiátrico que afeta algumas pessoas que utilizam substâncias. Os estudos genéticos têm
contribuído para que haja um melhor entendimento da vulnerabilidade de determinadas pessoas. O grande
desafio para o futuro será integrar esses resultados, identificando significados funcionais e correlacionando
a genética aos modelos comportamentais e aos processos cognitivos em indivíduos que passam de usuários
recreacionais para consumidores compulsivos.1
A evidência atual mostra que a maioria das drogas exerce seus efeitos de reforço inicial ativando
circuitos de recompensa no cérebro. Porém, com a continuidade do consumo, ocorre prejuízo cerebral: esse
órgão se torna progressivamente mais sensível a fatores estressantes, produzindo interferências no
autocontrole e, por fim, uma transição para o consumo automático e compulsivo. Essa evolução pode se
dar com maior facilidade em indivíduos com vulnerabilidades genéticas, que apresentam transtornos
psiquiátricos, que tiveram experiências precoces de consumo de substâncias na adolescência e que estão
sob a ação de estresse crônico.2
Com o desenvolvimento das tecnologias, novas formas de realizar diagnósticos são desenvolvidas e
apuradas. Para a maioria das especialidades médicas, existem diferentes exames laboratoriais ou de imagem
que podem ser utilizados para apontar a presença de determinada patologia ou distúrbio. Quando um
paciente apresenta pressão arterial de 180/120 mmHg, não há dúvidas de que ele é ou pelo menos está
hipertenso. Se a contagem de hemácias estiver baixa, podemos dizer, de forma grosseira, que a pessoa tem
anemia. No entanto, o fato de alguém beber todos os dias não o torna necessariamente dependente de álcool.
Por exemplo, alguns clínicos são favoráveis ao consumo diário de uma taça de vinho, o que diminuiria o
risco de acidentes cardiovasculares.3
Da mesma forma que outros temas relacionados à psiquiatria, a dependência também sofre por não
dispor de exames laboratoriais ou de imagem para a realização de diagnóstico apurado e preciso.
Essa complexidade no diagnóstico de problemas relacionados ao consumo de substâncias gera
inúmeras possibilidades de erro, desde a elucidação do problema até sua resolução e, por fim, seu
prognóstico. O profissional da saúde que trabalha com tal especialidade deve ter familiaridade com os
sistemas diagnósticos para não minimizar quadros de maior gravidade ou para não cometer o oposto, isto
é, dar importância exagerada a situações em que o quadro de dependência ainda não está instalado. Na
primeira situação, o profissional peca por fazer menos que o necessário; na segunda, por realizar
tratamentos que podem produzir iatrogenia (p. ex., a introdução de medicamentos em paciente que obteria
mais benefícios com outro tipo de intervenção).4
O conhecimento e a frequência na utilização das classificações auxiliam o profissional da saúde mental
a identificar melhor a sintomatologia dos pacientes, diminuindo, dessa forma, a possibilidade de erros.
MODELO MORAL
Nesse modelo, quatro traços relacionados ao funcionamento individual criariam o senso de moralidade:
simpatia, autocontrole, justiça e dever. “Defeitos” nessas características gerariam problemas no convívio
social, promovendo um colapso. A falta de autocontrole seria a própria impulsividade. Comportamentos
criminosos surgiriam quando impulsividade se somasse a agressividade e falta de empatia. James Q. Wilson
acredita que tanto o criminoso como o indivíduo com TUS devem ser julgados moralmente para prevenir
e corrigir seus comportamentos.5 No modelo moral, tanto o uso de substâncias como a própria dependência
são escolhas pessoais. Acredita-se que esse consumo seja um desrespeito às normas sociais, transformando
o paciente em um transgressor. Esse tipo de entendimento torna o indivíduo sujeito a críticas sobre a doença,
como se ele fosse responsável por ela e, logo, estivesse apto a arcar com todas as consequências em
quaisquer situações.6,7 Esse é o modelo que muitas vezes torna o paciente intoxicado alvo de críticas,
desatenção e punição em serviços de saúde, bem como de pensamentos populares do tipo: “Tanta gente
doente, e esse aí causando confusão porque bebe”, “Esse paciente vive chegando drogado no pronto-
socorro. Melhor atender rápido e mandar logo embora”, “Apanhou na rua? Foi estuprada? Também, quem
mandou usar droga/beber?”.
Em determinadas situações, o modelo moral é empregado e pode surtir efeitos positivos, como os
Alcoólicos Anônimos (AA). Esse grupo de 12 passos trabalha com alguns conceitos em que falhas de
caráter são pontuadas e discutidas para que o indivíduo perceba tais problemas e possa fazer mudanças em
seus comportamentos. Nessa situação, não há uma pessoa “melhor” apontado falhas e cobrando melhorias
por parte daquele com “falhas morais”, mas sim a autopercepção da necessidade de mudança pela
identificação com o coletivo, situação em que todos teriam características semelhantes. 8
Fora de situações como a exemplificada, a abordagem do modelo moral mostra-se inadequada no
tratamento do TUS. Apenas responsabilizar o paciente pelo quadro de intoxicação ou pelos danos causados
em sua vida devido ao consumo de substâncias não torna o profissional diferente das pessoas em geral (p.
ex., família, empregador, vizinhos), que já apresentaram esse tipo de postura muitas vezes. O paciente é
levado a responsabilizar-se como causador da doença e como mantenedor dela por não ter “força de
vontade” para promover mudanças comportamentais bem-sucedidas.9
MODELO ESPIRITUAL
Em 1935, Bill Wilson e Robert Smith criaram os AA. A dependência de álcool, nesse modelo, é entendida
como uma condição que o indivíduo se torna incapaz de superar por si só. A esperança de mudança consiste
em entregar a vida a uma força superior e, a partir daí, segui-la rumo à recuperação. Praticar os 12 passos
é peça fundamental para a recuperação. A partir dos AA, outras irmandades foram criadas, seguindo
basicamente a programação dos 12 passos. Os grupos Al-Anon e Alateen foram desenvolvidos para
familiares de dependentes de álcool. Além deles, há os Narcóticos Anônimos (NA), o Dependentes de Sexo
Anônimos, o Neuróticos Anônimos, o Comedores Compulsivos Anônimos, entre muitos outros. 6
MODELO PSICOLÓGICO
Várias escolas de pensamento voltadas ao modelo psicológico tentam explicar o surgimento do TUS:
Condicionamento clássico – Situações do dia a dia provocam estímulos, produzindo
respostas no indivíduo. ES-R
Condicionamento operante – O consumo de substâncias, produzindo bem-estar,
relaxamento e quadros de euforia, ou retirando sensações de ansiedade e mal-estar (reforços
positivos e negativos), resultaria em padrões de comportamentos. ES-S-R
Modelo cognitivo-comportamental – Busca ressaltar a importância dos processos mentais
sobre os comportamentos. O esforço do modelo volta-se para o entendimento das expectativas do
indivíduo acerca dos efeitos do álcool e de outras substâncias. Expectativas positivas podem
promover consumos mais pesados. O modelo de prevenção de recaída ressalta a importância dos
processos cognitivos na evocação ou evitação da recaída. Os enfoques voltados para a teoria
comportamental surgiram na primeira metade do século XX, com Pavlov e Skinner, e
preconizavam que situações capazes de prover o indivíduo de prazer e recompensa geram reforço
positivo, aumentando as chances de manutenção do comportamento. Quando o indivíduo aprende
que o consumo de álcool é capaz de trazer alívio a situações estressantes, as chances de manter tal
comportamento para aquela situação e generalizá-lo para outras aumentam.10 ES-S-P-R
estímulo
orgânico ou ambiental
sensação possível de ser
elaborada pelo aparelho resposta consciente
mental
MODELO BIOLÓGICO
Estudos neurobiológicos relacionados ao consumo de substâncias vêm apontando a dependência química
como um transtorno crônico do cérebro e que o estudo minucioso desses elementos resultará em futuros
tratamentos mais individualizados e eficazes.2 O modelo biológico ganhou força a partir dos anos de 1970
e aponta a fisiologia e a genética dos indivíduos como responsáveis pela etiologia da dependência. Esse
modelo estuda a herança genética e a constituição biológica do indivíduo e como tais características
determinam o surgimento da dependência. Estudos com famílias, gêmeos e adoção enfatizam a importância
das características biológicas dos indivíduos para o surgimento desse processo, por exemplo, estudos com
gêmeos idênticos separados na infância e adotados por famílias com características diferentes evoluindo
para quadros de dependência química na idade adulta. Na década de 1970, a Organização Mundial da Saúde
(OMS) desenvolveu uma nova conceituação sobre a dependência química, considerando-a como uma
síndrome que obedece a um continuum de gravidade. Houve distinção entre consumo abusivo e
dependência.7,10
Atualmente, sabe-se que as substâncias podem modular a expressão de genes envolvidos na
neuroplasticidade cerebral. Modificações no ácido ribonucleico (RNA) produzem disfunções nos
neurônios, que resultam em alterações duradouras observadas no TUS. 11 O consumo dessas substâncias
produz aumento da liberação de dopamina no cérebro, em regiões, como o nucleus accumbens e a área
tegmentar ventral, que estão diretamente relacionadas ao processo de recompensa. 12
Diversos estudos estão sendo apontados como promissores em relação ao papel biológico do
desenvolvimento do TUS. Entre as pesquisas mais importantes, estão:2
1. A identificação de subtipos de neurônios dopaminérgicos, a caracterização de suas
projeções, insumos e função.
2. A investigação das interações entre os núcleos e os circuitos mediadores de recompensa
envolvidos com a regulação do humor.
3. A investigação das interações dinâmicas na recompensa do uso de substâncias e o
consumo compulsivo delas.
4. A investigação da influência dos genes sobre a biologia molecular e os circuitos neuronais
– essa heterogeneidade individual resulta em diferentes tipos de vulnerabilidade e resiliências ao
vício.
5. A identificação de biomarcadores úteis para prevenção e intervenções terapêuticas.
MODELO BIOPSICOSSOCIAL
Segundo esse modelo, uma multifatoriedade está envolvida no surgimento da dependência química. As
diferentes teorias associadas seriam necessárias para determinar a doença, e o indivíduo não teria apenas
uma única causa para explicar o desenvolvimento, o curso e o prognóstico do problema. 10 A substância seria
apenas um dos fatores de uma tríade que incluiria o indivíduo e a sociedade da qual ele faz parte e na qual
a substância se encontra.13
2
CRITÉRIOS PARA DIAGNÓSTICO DO
TRANSTORNO POR USO DE SUBSTÂNCIAS
► MARCELO RIBEIRO
► LUIZ GUSTAVO VALA ZOLDAN
Hoje, o consumo de substâncias está disseminado em todas as classes sociais, faixas etárias e culturas,
tornando-se um grave problema de saúde pública em todo o mundo.1 Muitas vezes, o primeiro contato de
um indivíduo que apresenta problemas relacionados ao consumo de substâncias se dá por meio de
profissionais não especialistas, e essa é uma abordagem fundamental para encaminhá-lo a tratamento e para
prevenir complicações resultantes desse consumo.2
A classificação e os critérios diagnósticos para o TUS são necessários para a uniformização e para uma
linguagem própria a fim de compreender os fenômenos envolvidos nesse transtorno, objetivando melhores
abordagem e tratamento.3 Portanto, é fundamental que os profissionais conheçam esses conceitos e os
apliquem na prática, garantindo, assim, avaliação adequada, condutas e prognósticos padronizados.
► O DESENVOLVIMENTO DO CONCEITO DE
DEPENDÊNCIA QUÍMICA
O atual conceito de dependência química é resultado de uma evolução de ideias cujas primeiras tentativas
de abordagem científica têm menos de 300 anos; e as definições mais próximas da atual, pouco mais de um
século. Em comparação ao consumo de substâncias, que ocorre há milhares de anos, o conceito de
dependência química é muito recente.4
Os problemas relacionados ao consumo de álcool e outras substâncias foram encarados como desvios
morais até o século XVIII, quando dois médicos, o norte-americano Benjamin Rush e o britânico Thomas
Trotter,5caracterizaram pela primeira vez a embriaguez como resultado da perda do autocontrole. O modo
de consumo era, até certo ponto, uma escolha pessoal, mas a substância passava a “dominar” o controle e
a vontade do usuário. Além disso, Rush e Trotter diziam que a intensidade do consumo variava ao longo
de um continuum de gravidade e pontuaram que os problemas relacionados ao consumo instalavam-se ao
longo do tempo, ou seja, tinham uma história natural. 6
Entretanto, apesar de a embriaguez ser identificada como uma doença mental, não foram definidos
critérios diagnósticos. Apenas em meados do século XIX, Magnus Huss (1849) utilizou o termo
“alcoolismo” pela primeira vez, na tentativa de definir o conjunto de complicações clínicas decorrentes do
uso abusivo e crônico de álcool.4Quase no fim do referido século, outros pesquisadores formularam
conceitos que se aproximaram do que hoje é denominado dependência, isto é, uma doença com prováveis
causas biológicas e genéticas associadas. Aos poucos, essa definição estendeu-se para outras substâncias,
com a criação de entidades nosológicas como morfinismo, narcomania e cocainomania. 7 Poucos
pesquisadores ativeram-se aos aspectos psicossociais decorrentes do uso indevido de álcool e substâncias,
deixando espaço para as explicações moralmente embasadas ou muito caracteriológicas, ou seja, as que
consideravam que a gênese dos problemas com o consumo de álcool e drogas estava direta e exclusivamente
ligada a transtornos da personalidade inerentes, não levando em conta as alterações psicossociais como
parte da dependência, focando em demasia a presença dos aspectos biológicos e referindo a outros modos
problemáticos do consumo.7
Nos anos de 1960, as classificações começaram a considerar os diferentes padrões de consumo de
álcool, sendo caracterizado dentro destes o uso contínuo, periódico e irregular. Jellineck, em 1960, criou
uma classificação que dividia os dependentes de acordo com uma tipologia empiricamente determinada,
identificando aqueles com características de origem biológica, com início precoce do consumo e com
evolução mais rápida para a perda do autocontrole (tipos gama e delta) e distinguindo-os de outros cujas
influências eram de origem ambiental, com evolução mais lenta e arrastada (alfa, beta e épsilon).8
Ainda na década de 1960, surgiram os termos “dependência física” e “dependência psicológica”, hoje
em desuso, mas ainda utilizados de maneira inadequada. Esse tipo de distinção originou duas classes de
substâncias psicoativas – as leves e as pesadas –, representando um retrocesso no conceito moralista, com
dois vieses dentro desse conceito. O primeiro viés caracteriza o usuário como sem disposição e caráter para
tornar-se abstinente de uma dependência apenas psíquica. O segundo considera a substância que produz
apenas dependência psíquica, sobretudo quando comparada com substâncias pesadas, como álcool,
benzodiazepínicos e opioides.7
A partir dos anos de 1970, surge o conceito de síndrome de dependência de álcool, proposto por
Edwards e Gross,9 partindo de três pressupostos básicos:
A dependência é uma síndrome nosológica: agrupamento de sinais e sintomas que se
repete com certa frequência em alguns usuários, porém sem ter uma causa única ou aparente.
Essa síndrome se organiza dentro de níveis de gravidade, e não como um absoluto
categórico: não há um sintoma característico, mas uma série de sintomas cuja intensidade é
considerada ao longo de um continuumde gravidade.
A síndrome de dependência é moldada por outras influências capazes de predispor,
potencializar ou bloquear suas manifestações. Nesse caso, o padrão de consumo dos indivíduos é
moldado por uma série de fatores de risco e de proteção, entre eles fatores individuais, ambientais,
culturais, familiares, profissionais, educacionais e sociais, além do tipo de substância utilizado.
► DIAGNÓSTICO
Os conceitos atuais que definem os critérios para o diagnóstico de síndrome de dependência são
fundamentados nos conceitos da escola britânica de Griffith Edwards10 (Tab. 2.1) e serviram de base para a
elaboração dos dois principais códigos psiquiátricos da atualidade: a Classificação internacional de
doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10), da Organização Mundial da Saúde (OMS) (Tab. 2.2),
e a quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-5), da American
Psychiatric Association (APA) (Tab. 2.1).
TABELA 2.1 ► Critérios diagnósticos da dependência de substâncias
Alívio ou evitação da O consumo de substâncias visando ao alívio dos sintomas de abstinência. Como o
abstinência pelo indivíduo aprende a detectar os intervalos que separam a manifestação de tais
aumento do consumo sintomas, passa a consumir a substância preventivamente, a fim de evitá-los.
Relevância do consumo O consumo de uma substância torna-se prioridade, mais importante do que coisas
que outrora eram valorizadas pelo indivíduo.
Estreitamento ou A perda das referências internas e externas que norteiam o consumo. Conforme a
empobrecimento do dependência avança, as referências voltam-se exclusivamente para o alívio dos
repertório sintomas de abstinência, em detrimento do consumo ligado a eventos sociais.
Além disso, o consumo passa a ocorrer em locais onde sua presença é
incompatível, como, por exemplo, no ambiente de trabalho.
TABELA 2.2 ► Critérios da CID-10 para síndrome de dependência e para uso nocivo
Síndrome de dependência Uso nocivo
Um diagnóstico definitivo de dependência deve O diagnóstico requer que um dano real tenha sido
usualmente ser feito somente se três ou mais dos causado à saúde física e mental do usuário.
seguintes requisitos tenham sido experienciados ou Padrões nocivos de uso são frequentemente criticados
exibidos em algum momento do ano anterior: por outras pessoas e estão associados a consequências
a. Um forte desejo ou senso de compulsão sociais de vários tipos. O fato de um padrão de uso ou
para consumir a substância. de uma substância em particular não serem aprovados
b. Dificuldades em controlar o comportamento por outra pessoa ou pela cultura ou de terem levado a
de consumir a substância em termos de seu consequências socialmente negativas, como prisão ou
início, término e níveis de consumo. conflitos conjugais, não é por si mesmo evidência de uso
c. Um estado de abstinência fisiológico nocivo.
quando o uso da substância cessou ou foi
A intoxicação aguda, ou “ressaca”, não é por si mesma
reduzido, como evidenciado por: síndrome de
evidência suficiente do dano à saúde requerido para
abstinência para a substância ou o uso da
codificar uso nocivo.
mesma substância (ou de uma intimamente
relacionada) com a intenção de aliviar ou evitar O uso nocivo não deve ser diagnosticado se a síndrome
sintomas de abstinência. de dependência, um transtorno psicótico ou outra forma
d. Evidência de tolerância, de tal forma que específica de transtorno relacionado ao uso de drogas
doses crescentes da substância psicoativa são ou álcool estiver presente.
requeridas para alcançar efeitos originalmente
produzidos por doses mais baixas.
e. Abandono progressivo de prazeres e
interesses alternativos em favor do uso da
substância psicoativa, aumento da quantidade
de tempo necessária para se recuperar de seus
efeitos.
f. Persistência no uso da substância, a
despeito de evidência clara de consequências
manifestamente nocivas (deve-se fazer
esforços claros para determinar se o usuário
estava de fato consciente da natureza e
extensão do dano).
A CID-10 foi publicada em 1992 pela OMS,11 resultado de muitos testes e pesquisas realizados em
diversos centros acadêmicos de vários países do mundo. O DSM-5 foi lançado exatamente 20 anos depois
de sua edição anterior, o DSM-IV (1993),12,13 propondo alterações importantes – entre elas, a substituição
do binômio “dependência” e “abuso” por “transtornos relacionados a substâncias”, com diferentes níveis
de gravidade. A organização e a estrutura desses sistemas diagnósticos serão detalhadas adiante.
Conhecer esses sistemas é importante para a comunicação entre os profissionais de áreas
interdisciplinares afins, como, por exemplo, médicos, psiquiatras e psicólogos. A habilidade do profissional
não está apenas em aplicar esses conceitos, mas em reconhecer as sutilezas dos sintomas presentes e como
essas manifestações são influenciadas pelo ambiente e pelas características próprias do indivíduo (p. ex.,
personalidade, comorbidades psiquiátricas, características genéticas), ou seja, identificar os chamados
fatores de risco e de proteção que interferem no padrão de consumo e na gravidade da dependência.
DEPENDÊNCIA
A dependência química caracteriza-se por um padrão de consumo compulsivo da substância, estando
presentes pelo menos três dos sete critérios diagnósticos elaborados por Edwards e colaboradores (Tab.
2.1).9 Tal padrão de consumo, em geral, está voltado para o alívio ou a evitação de sintomas provocados
pela abstinência, interferindo na execução de atividades e compromissos sociais realizados pelo indivíduo,
que passa a abandoná-los ou negligenciá-los em função do uso. Além disso, esse padrão de consumo resulta
em tolerância e síndrome de abstinência. Segundo a OMS, 11 ele pode ser aplicado a qualquer classe de
substância, exceto cafeína. Contudo, há descrições de sintomas de abstinência em usuários pesados dessa
substância.
USO NOCIVO
O uso nocivo é um padrão mal-adaptativo de uso da substância que culmina em repetidas complicações
clínicas e/ou psicossociais para o indivíduo. Todavia, essa situação é restrita ao período de consumo –
problemas legais ou interpessoais e vulnerabilidade a acidentes ou situações de violência. Esse diagnóstico
se distingue da dependência pela ausência de tolerância, pela síndrome de abstinência ou pelo diagnóstico
anterior de dependência química, resumindo-se apenas às consequências prejudiciais do uso frequente.
Em geral, a detecção do uso nocivo é realizada em usuários recentes e, na maioria das vezes, é uma
condição transitória. Há um risco importante de evolução para a dependência, mas são possíveis tanto a
redução ou o abandono do consumo quanto a persistência do padrão de uso nocivo por um longo
período.14 A categoria abuso de substância não se aplica à nicotina e à cafeína.
O termo “uso nocivo” é utilizado pela CID-10; no DSM-IV, adotava-se o termo “abuso”. Havia
diferença de critérios entre esses sistemas classificatórios: na CID-10, não há especificações sobre
problemas legais, as quais se encontravam no DSM-IV, o qual, porém, não especificava alterações físicas
e relação do dano com a substância, conteúdo que a CID-10 tem entre seus critérios.11,13
FIGURA 2.1 ► O campo dos transtornos relacionados ao uso de substâncias de acordo com as
principais classificações internacionais. Outrora bastante semelhantes – contando ambos com um
diagnóstico para padrões mal-adaptativos de consumo, marcado por perda do controle e com
consequências negativas à saúde circunscritas ao período imediato do uso da substância (uso nocivo,
pela CID-10, e abuso, pelo DSM-IV) –, o DSM-5 agrupou o abuso e a dependência em um único
diagnóstico: transtorno por uso de substâncias. Questionamentos acerca da maior abrangência dessa
nova conceituação para casos outrora não considerados patológicos (1), bem como de sua
capacidade reduzida em detectar casos de dependência mais leves (2), ainda aguardam
investigações científicas esclarecedoras.16
► CID-10
O quinto capítulo da CID-1011 aborda os transtornos mentais e comportamentais, que estão codificados pela
letra F, seguida pelos números de 0 a 9, correspondentes a nove classes de transtornos. Os transtornos
mentais decorrentes do uso de substâncias estão organizados da seguinte forma (Quadro 2.2):
QUADRO 2.2 ► Classificação dos transtornos mentais decorrentes do uso de substâncias segundo
a CID-10
► DSM-5
A APA substituiu as denominações “abuso” e “dependência”, presentes no DSM-IV, por um continuum de
gravidade, no DSM-5. Nesse novo formato, passou a existir apenas a categoria diagnóstica “transtorno por
uso de substâncias” (Figura 2.1), definida como “um padrão problemático de uso [de qualquer substância
psicoativa], levando a comprometimento ou sofrimento clinicamente significativos, manifestado por pelo
menos dois [de 11 critérios possíveis], ocorrendo durante um período de 12 meses (“Critério A”)” (Quadro
2.1).12 Quanto à gravidade, a presença de 2 ou 3 critérios caracteriza um TUS “leve”; 4 ou 5, um TUS
“moderado”; ao passo que o “grave” reúne ao menos seis sintomas.
A alteração trazida pelo DSM-5 é resultado das seguintes considerações:17
Os critérios diagnósticos do DSM-IV para “abuso” não tinham a validade e a
confiabilidade daqueles para “dependência”.
A hierarquização existente entre “dependência” e “abuso” (“uso nocivo”, para a CID-10),
muitas vezes, passa a impressão de que este último é um padrão de comportamento mais leve,
apesar dos graves problemas clínicos, sociais e criminais muitas vezes associados a ele – como os
acidentes automobilísticos –, sugerindo que “abuso” e “dependência” não estão necessariamente
relacionados dentro de um continuum de gravidade.
Por fim, alguns usuários de substâncias (diagnostic orphans) apresentavam dois critérios
para dependência (quando eram necessários ao menos três) e nenhum para uso nocivo, o que
indicava que tinham problemas, mas não um diagnóstico capaz de orientar alguma prática clínica.
Isso levou o grupo responsável pela elaboração do DSM-5 a concluir não se tratar de duas
patologias, mas de uma categoria unidimensional, sugerindo que os critérios deveriam ser
combinados para indicar um único transtorno.17
A novidade trazida pelo DSM-5 – a fusão do “abuso” e da “dependência” em um único diagnóstico
dotado de espectros de gravidade – permanece longe do consenso. O próprio Griffith Edwards, pouco antes
de seu falecimento, afirmou em carta a uma revista científica que o novo conceito trazia desarranjo ao corpo
de conhecimento desenvolvido até o momento, questionando a consistência dos achados que convenceram
a mudança de paradigma oferecida pelo DSM-5.18
Estudos comparativos iniciais19 têm demonstrado um alto grau de concordância – por volta de 95% –
entre “transtorno por uso de substância grave” (DSM-5) e “dependência” (DSM-IV, CID-10), tanto entre
os homens quanto entre as mulheres. Da mesma forma, a ausência de qualquer diagnóstico para transtornos
relacionados ao uso de substâncias foi encontrada na mesma proporção por todos os códigos. Contudo,
mais de metade dos casos de “TUS moderado” (DSM-5) receberia o diagnóstico de “dependência”, ao
passo que um terço dos casos “leves” não receberia diagnóstico, segundo a CID-10. Isso aponta para um
descompasso entre as duas classificações, gerando questionamento acerca da acurácia do DSM-5 para a
detecção de casos de dependência menos graves, bem como para a possibilidade do aumento do número de
casos “leves” entre indivíduos cujo comportamento de beber está fora do campo dos transtornos
relacionados ao uso de substâncias.16
Tais achados parecem sugerir que o novo campo delimitado pelo DSM-5 para a investigação dos
transtornos relacionados ao consumo de substâncias ainda deverá passar pelo crivo de pesquisadores e
especialistas até que suas fronteiras estejam melhor definidas, seja pelo ajuste de seus critérios vigentes,
seja pelo ajuste das outras classificações.
► CONSIDERAÇÕES FINAIS
Há menos de 50 anos, os problemas relacionados ao consumo de álcool e drogas não apresentavam critérios
diagnósticos precisos, recebendo explicações eminentemente embasadas em modelos morais e
estigmatizantes. O conceito “síndrome de dependência” possibilitou a harmonização entre as principais
linhas de pensamento acerca do tema.
As classificações diagnósticas são importantes porque auxiliam o profissional a diagnosticar os
transtornos mentais de modo objetivo. Elas ajudam a identificar o problema e sua gravidade, além de
auxiliar o profissional no mapeamento dos fatores de proteção e de risco, capazes de interferir na evolução
do quadro diagnosticado. O uso nocivo, dependência ou TUS são considerados, portanto, não apenas a
partir de suas características biológicas, pois os aspectos psicossociais e o contexto envolvidos em todo o
processo fenomenológico são igualmente valorizados.8
Os avanços das últimas décadas ainda têm pouco impacto na opinião do grande público, que ainda
valoriza em demasia explicações baseadas em teorias etiológicas reducionistas ou eminentemente
moralistas. Em contraposição, o conceito de síndrome de dependência introduz um novo paradigma, no
qual defeitos se convertem em características e atribuições de culpa, em responsabilidade pelo processo de
tratamento, dividida entre o profissional, o paciente e sua família.15