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Título

Novas Formas de. Família

Autoras
Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.)

Colecção
Psicologia Clínica e Pfüjuiatria n.º 17

'Coordenação
Óscar Gonçalves ,, .

Capa
Victor Hugo

Edição
Quarteto Editora
Rua Adriano Lucas
Arroteias, lote 3
3020-430 Coimbra
E-mail: quarteto_editora@ip.pt
http://quarteto.regiaocentro.net

Execução Gráfica
Cláudia Mairos
claudia_mairos@yahoo.com

Impressão
Arte Pronta

C&imbra, Dezembro de 2002

ISBN: 972-8717cS6-3
Depósito'legal: 185 365/02

Reservados tdgos os direitos


de acordo corri a, legislação em vigor
Índice

Introdução . . . . ... .... .... ........... ..................... .. . ... . .. ..... . .. . .. ..... . ... . ............ .. ..... 9

Capítulo 1
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

Madalena Alarcão ............................................................................... 13

Introdução........................ ............................... ..................................... 17


Monoparentalidade(s) em Terapia Familiar ........................................ 22
Divórcio(s) ePós-Divórcio(s) emTerapiaFamiliar ........................... 34
Adivinhando alguns Problemas das Famílias Adoptivas... ................. 46
Concluindo... ....................................................................................... 50
Bibliografia.................................. ;....................................................... 51

Capítulo 2
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Fátima Tribuna
Ana Paula Relvas 53

Para um Enquadramento do Acolhimento Familiar............................ 57


O Sistema AcolhimentoFamiliar........................................................ 62
Condições eRiscos no AcolhimentoFamiliar .................................... 66
UmaInvestigação: FuncionamentoFamiliar
e Vinculação emFamílias de Acolhimento com Adolescentes .......... 71
Conclusões ........................................................................................... 108
Bibliografia.......................................................................................... 113
6
Novas Formas de Família

Capítulo 3
Adopção e Parentalidade

Gabriela Mateus
Ana Paula Relvas 121

A Família Adoptiva ............................................................................. 125


O Ciclo de Vida da Família Adoptiva ................................................. 136
Família Adoptiva e Stress Parental .................................................... 143
Estudo Empírico: Stress Parental em Famílias Adoptivas .................. 145
Concluindo... Das Ideias às Acções .................................................... 167
Bibliografia .......................................................................................... 176
Anexo .................................................................................................. 181

Capítulo 4
Casal, Casamento e União de Facto

Maria Helena Silva


Ana Paula Relvas ............................................................................... 189

O Amor e a União Conjugal em Mudança ......................................... 193


A Conjugalidade como Sinónimo de Complexidade .......................... 207
Qualidade Conjugal, Casamento e União de Facto:
Um Estudo Comparativo ..................................................................... 217
Conclusões ........................................................................................... 236
Bibliografia .......................................................................................... 239

Capítulo 5
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de Uma Família?

Carlota Pessoa Vaz


Ana Paula Relvas ................................................................................ 245

A Construção Psicossociológica da Parentalidade .............................. 252


A Evolução dos Papéis Maternal e Paternal:
dos Dados à Compreensão .................................................................. 256
Monopar�ntalidade, Parentalidade e Co-parentalidade:
os Conceitos ........................................................................................ 264
6
Novas Formas de Família

Capítulo 3
Adopção e Parentalidade

Gabriela Mateus
Ana Paula Relvas 121

A Família Adoptiva ............................................................................. 125


O Ciclo de Vida da Família Adoptiva ................................................. 136
Família Adoptiva e Stress Parental .................................................... 143
Estudo Empírico: Stress Parental em Famílias Adoptivas .................. 145
Concluindo... Das Ideias às Acções .................................................... 167
Bibliografia .......................................................................................... 176
Anexo .................................................................................................. 181

Capítulo 4
Casal, Casamento e União de Facto

Maria Helena Silva


Ana Paula Relvas ............................................................................... 189

O Amor e a União Conjugal em Mudança ......................................... 193


A Conjugalidade como Sinónimo de Complexidade .......................... 207
Qualidade Conjugal, Casamento e União de Facto:
Um Estudo Comparativo ..................................................................... 217
Conclusões ........................................................................................... 236
Bibliografia .......................................................................................... 239

Capítulo 5
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de Uma Família?

Carlota Pessoa Vaz


Ana Paula Relvas ................................................... ............................. 245

A Construção Psicossociológica da Parentalidade .............................. 252


A Evolução dos Papéis Maternal e Paternal:
dos Dados à Compreensão ............................................. ..................... 256
Monoparentalidade, Parentalidade e Co-parentalidade:
os Conceitos ........................ . ............................. .................................. 264
7
Índice

Representação Social, Dinâmica Familiar


e Stress Parental na Monoparentalidade: um Estudo Exploratório ..... 268
Nota Final ............................................................................................ 292
Bibliografia .......................................................................................... 295

Capítulo 6
A Mulher na Família: "Em torno dela"

Ana Paula Relvas ................................................................................ 299

A Mulher, a Família e a Ciência em Mudança ...... ............................. 306


A Mulher, a Família e o Mundo em Mudança .................................... 312
A Mulher e a Família em Mudança .................................................... 318
O Percurso do Feminino na Família:
Significados da "Fada do Lar" ............................................................ 329
Bibliografia .......................................................................................... 338
Introdução

Durante cerca de cinquenta anos, o conceito de ciclo vital da família foi


sendo estudado e aperfeiçoado. Nem sempre foi concordante a pontuação
feita das suas diferentes etapas mas a mesma foi sempre equacionada a par­
tir da família nuclear intacta.
Nos nossos dias, é frequente falarmos em novas formas de família, o
que nos obriga a pensar em contextos familiares que mais não são do que
variantes a esse ciclo vital que nos habituámos a estudar. Equacionadas
como cambiantes do desenvolvimento familiar "normal", é por compara­
ção com a família intacta que, quase sempre, tendemos a procurar e a
sinalizar as suas particularidades e vicissitudes. A nossa memória colecti­
va treinou-se, durante anos e anos de histórias infantis, ainda hoje (re)con­
tadas aos nossos filhos, a referir as suas dificuldades para exaltar, uma vez
mais, e sempre, as virtudes da família tradicional. Aliás, como afirmam
Carter e McGoldrick (1995, 8) 1 "está ficando cada vez mais difícil deter­
minar quais são os padrões [familiares] 'normais', e isso é muitas vezes
causa de grande estresse para os membros da família que têm poucos mo­
delos para as passagens que estão atravessando".
Recentemente, numa clara afirmação da diversidade e da importância
das competências familiares, mesmo em sistemas aparentemente delas
desprovidos, investigadores e clínicos têm procurado (re)conhecer as suas
potencialidades. O século que agora começamos encaminhar-nos-á, neces­
sariamente, no sentido de considerar os diferentes modelos de família, já

'Carter e McGoldrick (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar - Uma estru­


tura para a terapia familiar. ln B. Carter, M. McGoldrick et ai., As mudanças no ciclo
de vida familiar - Uma estrutura para a terapia familiar (7-29). Porto Alegre, Artes
Médicas. Edição Original 1989.
10
Novas Formas de Família

não por comparação, oposição ou déficite face a uma família padrão, mas
todos eles firmados no conhecimento ponderado das suas regularidades e
singularidades.
No entanto, pese embora as transformações a que acabámos de fazer
referência, nomeadamente no nosso país, existem ainda poucos estudos
que nos ajudem a ter um olhar não enviesado sobre estas novas formas de
famílias e a co-construir, com elas, diálogos que lhes permitam crescer na
sua própria especificidade e, entre nós, estudiosos da família, a ter um co­
nhecimento mais ajustado (fit) às realidades familiares.

Foi este o desafio a que procurámos responder quando, em 1998, no


âmbito do curso de Mestrado em Família e Sistemas Sociais (Instituto
Superior Miguel Torga), lançámos uma linha de investigação que procura­
va, exactamente, conhecer as regularidades de tais configurações fami­
liares.

Mas, mais concretamente, de que famílias falamos?


As colocações familiares e as adopções, enquanto recursos cada vez
mais utilizados numa e por uma sociedade que se debate com um expo­
nencial aumento de violência familiar e outras condições de risco desen­
volvimental, assim como com uma crescente infertilidade, surgiram-nos,
desde logo, como importantes objectos de estudo.
As uniões de facto, enquanto exemplo de transformação subtil do mo­
delo tradicional, logo no início da constituição da família, emergiram como
alvos da nossa curiosidade, quer na sua vertente heterossexual quer homos­
sexual. Pelo próprio estatuto que este último grupo tem na nossa sociedade,
esta investigação tem-se tornado de difícil concretização, razão pela qual
ainda não está concluída.
A monoparentalidade, num contexto de gravidez adolescente e de
ausência ou dissolução do vínculo conjugal, apareceu-nos, neste tríptico
de novas estruturas familiares, como uma situação de estudo incon­
tornável. Neste livro não poderemos, ainda, dar conta dos resultados dos
estudos específicos com adolescentes grávidas (primeira e segunda
gravidez adolescente) e com mães solteiras, sendo que a investigação
apresentada se reporta à situação global de monoparentalidade, indepen­
dentemente da forma como a parentalidade se veio a centrar num único
educador.
11
Introdução

O desafio que anteriormente referimos levou-nos a conceptualizar


uma série de estudos, todos de carácter exploratório, que, tendo como
denominador comum o conhecimento destas famílias - consubstanciado
naquilo que poderiam ser as suas dificuldades mas também as suas poten­
cialidades - se diferenciavam na investigação dos aspectos que, à partida,
supúnhamos mais relevantes nas suas vivências. Esta diferenciação (de
que só sublinharemos, aqui, os tópicos fundamentais) resultou, como é
óbvio, dos dados empíricos disponíveis a partir de outros estudos, das
teorias que deles emergiram e, ainda, da nossa própria reflexão e expe­
riência clínica.
Assim, o stress familiar surgiu-nos como uma variável importante a
estudar nas famílias adoptivas (cap. 3) e monoparentais (cap. 5), dadas as
implicações directas que estas estruturas têm, ou pensamos que têm, no
desenvolvimento das funções parentais.
A qualidade da vinculação e da comunicação constituíram-se como ele­
mentos relevantes em famílias onde novos vínculos se oferecem como
forma de reorganização de experiências relacionais problemáticas (cap. 2,
famílias de acolhimento).
A multidimensionalidade da vivência conjugal apareceu como base de
comparação entre casais "oficialmente" constituídos e uniões de facto,
numa tentativa de melhor compreender as semelhanças e as diferenças
destas duas formas de afirmação da conjugalidade, num quadro de respeito
pela complexidade que lhes é inerente (cap. 4).

Mas...
Para duas terapeutas familiares, toda esta reflexão teria necessaria­
mente que ser acompanhada por um questionar de experiências clínicas
que começam, mais regularmente, a ser a rotina do setting da intervenção
familiar (cap. 1). E para duas mulheres que, há cerca de vinte anos, se obri­
garam a uma recursividade entre teoria e prática, este livro não poderia
fechar a sua última página sem que, antes, se problematizasse a forma
como o percurso do feminino na família se vem espelhando nas transfor­
mações do sistema familiar (cap. 6).

Contextuado o leitor na história deste livro, permita-nos que, através


dele, possamos expressar a nossa profunda gratidão a todas as famílias que
nos têm ajudado a estudar, a pensar e a problematizar as nossas dúvidas e
certezas pessoais. Nesse processo de construção dialógica do nosso saber,
12
Novas Formas de Família

Isabel Soares, Armando Leandro, José Gameiro e Ana Nunes de Almeida


possibilitaram-nos, enquanto arguentes principais dos júris em que estas
dissertações foram discutidas, conversas que não mais esqueceremos. Tal
como não esquecemos, face às nossas dúvidas estatísticas, o apoio ines­
timável do nosso colega José Tomás da Silva. À Fátima Tribuna, pela ajuda
na reconversão dos textos em termos do seu processamento, fica o nosso
último agradecimento.

Coimbra, Julho de 2002


Ana Paula Relvas
Madalena Alarcão
Quem é a sua família?
Eu e o meu Pedro - diz Maria, admirada com a pergunta mas
deixando transparecer, em segundos de silêncio, a impressão
de que algo, nessa realidade, a incomodava.

Quem é a tua família?


Eu e a minha mãe... e o meu Pai... - diz o Ivo, sem saber
onde devia pôr, exactamente, o ponto final, depois do olhar da mãe,
também ela ainda não tranquila face à nova família daquele
que já nem queria considerar seu ex-marido mas que conti111wria
sempre a ser o pai do Ivo.

Não percebo o que é que ele quer dizer quando afirma


que não sabia que era adaptado ...
Ele já veio para nossa casa quando tinha oito anos!
Sabia bem que a nossa não era a casa da avó ...

De que dificuldades falam estas famílias,


Que a11g1ístias as atormentam?
Que dúvidas temos nós,
terapeutas familiares,
nascidos no tempo da família nuclear tradicional
e formados no setting clássico da terapia familiar,
onde também quase só apareciam famílias intactas?
Introdução

Coimbra, 5 Outubro de 1983

A tranquilidade de um sábado feriado estava entrecortada pela exci­


tação de uma nova formação.
Num serviço onde reinava e dominava a psicoterapia de orientação
analítica, falar de terapia familiar e de teoria sistémica só não era ver­
dadeiramente uma revolução porque a mesma tinha sido superiormente
sancionada e, até, promovida por Carlos Amaral Dias que, para o efeito,
convidara Eurico de Figueiredo, recentemente chegado da Suiça. Mas ter
os chefes, psicanalistas convictos, entre os formandos era motivo para nova
exaltação!
Nos rôle-playing sucediam-se as famílias difíceis: de toxicodepen­
dentes convictos, de psicóticos desesperantes, de fortes deprimidos ... Em
todas elas havia, "naturalmente", um pai, uma mãe, um, dois ou três filhos;
por vezes uma avó, uma tia... mesmo quando o agregado familiar não se
apresentava completo era porque alguém tinha "preferido" não aparecer ou
tinha sido, "gentilmente", deixado em casa.

Coimbra, 1984-1985

Superiormente autorizada a possibilidade de fazer terapia familiar,


definidas as equipes e assegurada a supervisão, a dificuldade estava em
convencer os clientes!
Mães e pais não percebiam porque é que se pedia a presença de todo o
agregado familiar (ou, pelo menos, da família nuclear) quando a dificul­
dade era do filho do meio ... ou do mais novo ... ou de dois deles ...

Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.) (2002). Novas Formas de Família.
Coimbra, Quarteto Editora.
18
Novas Formas de Família

A presença da mãe era inquestionável: era sempre ela que acompanhava


os filhos às consultas, que se ocupava das questões escolares, que melhor
conhecia os seus amigos, que estava mais próxima das dificuldades. Seria
mesmo "criminoso" pensar que ela não acompanharia a criança. Mas o
pai!. .. Estava a trabalhar, sabia muito menos coisas a respeito dos filhos, os
patrões não iam compreender a falta e iriam descontar o dia no ordenado ...
A maior parte das mães não percebia como é que, face à sua presença e
disponibilidade, era importante a presença dos pais-homens. Elas contar­
-lhes-iam o mais importante ... pois o resto só os faria perder tempo e ...
dinheiro!
Os irmãos? Para quê faltarem às aulas? Com eles as coisas corriam
(muito) bem, ou pelo menos razoavelmente, ou pelo menos não causavam
(ainda) problema.

A ideia de vir a uma entrevista familiar era tão pouco bem acolhida
pelos pais que nos pediam ajuda que, filiados na cibernética e nas terapias
de i a ordem, considerávamos' esse movimento como uma expressão clara
e excelente da tendência morfostática do sistema familiar. Assim hipoteti­
zado, o convite aos ausentes, ou aos menos receptivos, era envolvido em
conotação positiva com a qual procurávamos recuperar os ausentes e
entrar paulatinamente na fortaleza que a rigidificação homeostática tinha

' Tendo trabalhado quase sempre em regime de co-terapia e com terapeutas obser­
vadores, o plural utilizado é, efectivamente, real. Ana Paula Relvas tem sido a colega
com quem tenho mais persistentemente co-evoluído, tanto no espaço terapêutico quan­
to no docente universitário e no da formação sistémica. Outros colegas foram impor­
tantes nesses primeiros tempos: Rui Paixão, Ana Bertão e Margarida Matos Beja - os
dois primeiros acabaram por investir outras formas de posicionamento clínico; com a
terceira, os espaços profissionais divergiram e a co-evolução não pôde ser alimentada.
Anos mais tarde, Madalena Carvalho Lourenço passou a ser uma nova colega com quem
partilhei experiências terapêuticas muito ricas. Ao longo de dezoito anos muitos têm
sido os terapeutas observadores e mais alguns têm sido os co-terapeutas: seria impos­
sível referi-los a todos, embora todos façam parte das minhas memórias e tenham dei­
xado as suas marcas. De entre os mais novos, Joana Sequeira tornou-se uma interlocu­
tora muito especial. Com todos, ainda que de formas diversas, tenho tecido um percur­
so de que este texto é mais um reflexo: muito obrigado a cada um e às várias unidades
sistémicas que vamos criando.
19
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

construído (Palazzoli et ai., 1978 2). Enraizados na ideia da importância da


totalidade do sistema e dos padrões actuais de comunicação, não iniciáva­
mos nenhuma (ou quase nenhuma) sessão sem a presença de todo o agre­
gado familiar/família nuclear3 •

Coimbra, uns anos mais tarde ...

Uns anos mais tarde, a progressiva aceitação da marcação de sessões de


terapia familiar (ou mesmo a sua solicitação directa) fez-nos questionar a
anterior leitura e perceber que as "modas terapêuticas" também constituem
uma variável importante, à semelhança, aliás, de outras modas. Com efeito,
não nos vestimos, não nos calçamos, não nos penteamos, não falamos exac­
tamente como queremos ... mas sim como os estilistas e as passerelles, os
actores e as telenovelas, os fabricantes e os comerciantes nos sugerem ou
impõem.
Com a nossa descoberta, já bem entrada a década de 90, da cibernética
e das terapias de 2ª ordem, deitámos definitivamente fora a ideia da
resistência familiar, tomámo-nos menos rígidas na definição dos elementos
a atender/convocar e preocupámo-nos em tornar cada entrevista
familiar/processo terapêutico num espaço e num tempo de (potencial)
crescimento para os elementos presentes - sujeito, família, terapeutas, te­
rapeutas observadores ...

. . . face às primeiras novas formas de famaia

O contacto com a problemática da separação e do divórcio chegou-nos,


fundamentalmente, pela mão da terapia de casal. Casais em clara dificul­
dade procuravam, sobretudo por indicação de outrem ou por maior pressão

' Apesar de toda a obra constituir um documento de referência para este tipo de
leitura e de intervenção, estes aspectos são claramente abordados nos pontos 7 - La con­
notation positive - e 13 - Comment récupérer les absenrs. Para uma compreensão mais
detalhada dos termos ténicos, dos conceitos e das propostas da teoria sistémica, aplica­
da à família, veja-se Alarcão (2000).
' Em algumas famílias de três gerações trabalhámos, apenas, com a família nuclear.
20
Novas Formas de Família

do cônjuge mais interessado na manutenção do casamento, um processo


terapêutico que os ajudasse a recuperar o entendimento, a tranquilidade e o
prazer perdidos. Alguns destes processos transformaram-se mais em te­
rapias de divórcio do que de casal, ainda que outros se tivessem centrado,
com sucesso, na re-construção conjugal.
Neste enquadramento, torna-se evidente que as questões familiares
o
f ram claramente secundarizadas, de modo a não confundir conjugalidade
com parentalidade. No entanto, os ecos dessa confusão familiar, assim
como da triangulação das crianças, eram demasiado notórios para que deles
não tivéssemos notícia. A dificuldade de relação com as famílias de Qrigem,
por imiscuição ou falta de suporte, foram aspectos que também sobres­
saíram como elementos a ter em conta neste tipo de situações.

Desta experiência de estar com casais em processo de ruptura ficaram­


-me, sobretudo, os ecos de um enorme sofrimento: brigas, amargura,
acusações, ressentimentos, impotência, humilhação, raiva, remorso, baixa
auto-estima, depressão, culpabilidade, vingança, simetria, ambivalência...
são palavras que marcam a vivência de uma conjugalidade em processo
de divórcio. O casal estilhaça-se e todos os níveis geracionais da família
são alvejados por esta crise que, na opinião de Carter e McGoldrick (in
Peck e Manocherian, 1995, 291), constitui a maior ruptura no curso desen­
volvi mental do sistema familiar, aumentando a complexidade das suas
tarefas, não só na etapa do ciclo de vida em que a família se encontra
como nas seguintes. Com efeito: "As tarefas normais do ciclo de vida,
interrompidas e alteradas pelo processo de divórcio, continuam com maior
complexidade, devido às fases concomitantes deste processo. Cada fase
seguinte do ciclo de vida fica afectada pelo divórcio e, portanto, deve ser
considerada no contexto dual do próprio estágio e dos efeitos residuais do
divórcio".

O impacto desta crise acidental é, pois, emocional e pragmático e atinge


todos quantos gravitam na esfera familiar. A importância e a intensidade
das transformações exigidas naqueles dois níveis, contextuadas num
quadro de conflitualidade entretecida por lealdades muitas vezes tornadas
incompatíveis, cria uma tensão que se alimenta e engrandece por intermé­
dio de simetrias e de lealdades, mais ou menos ocultas, que se rigidificam
em escaladas que sustentam a raiva, iludem a impotência e a humilhação e
emprestam auto-estima. A dor destes afectos, o excesso de simetria, a mui-
21
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

tiplicidade de interesses (que frequentemente englobam também os dos


próprios advogados), o jogo de artilharia cruzada e a forte triangulação das
crianças foram os aspectos que mais me incomodaram e me dificultaram o
trabalho terapêutico. A ausência de um modelo de divórcio como uma tran­
sição familiar normativa (Ahrons, 1980, cit. in Peck e Manocherian 1995,
293), a ausência de experiência terapêutica e a "tirania" da convocação de
todo o agregado familiar/família nuclear ajudaram a aumentar a minha ten­
são inicial e a procurar negociações suportadas por uma complementari­
dade que não tinha ainda espaço, mental e físico, para se desenvolver. Hoje
em dia penso que, não descurando os aspectos pragmáticos do quotidiano
familiar (onde se incluem não só os fins de semana e as férias partilhadas
mas também as trocas ao estipulado no acordo judicialmente sancionado,
os regressos da escola, as horas de deitar em casa da mãe e em casa do pai,
os hábitos alimentares nas duas residências, o pagamento das consultas não
previstas de ortodôncia, etc.), não posso deixar de trabalhar o luto pela
família intacta e pela família passada para, não impondo um modelo único,
ajudar a família, no pós-divórcio e na monoparentalidade ou no recasa­
mento subsequentes. Se os avós, os tios, os primos, os(as) cunhados(as) e
os(as) sogros(as) são importantes em qualquer família, as novas formas de
família, e muito particularmente aquelas onde está a acontecer (ou já acon­
teceu) um divórcio, têm-me mostrado a relevância de não os esquecer
mesmo que nunca chegue a conhecê-los pessoalmente.

No contexto de consulta, a monoparentalidade com que mais tenho con­


vivido decorre, pois, de um casamento que se desfez. Como adiante procu­
rarei mostrar, ela traz para a consulta, qualquer que seja o período de tempo
que medeia entre o divórcio e o momento actual, alguns problemas do pós­
-divórcio que se entrelaçam com as dificuldades da monoparentalidade.
Não é, então, possível pontuar apenas um dos aspectos, mesmo quando nos
colocamos no presente para pensar o futuro.
Também já conheci a monoparentalidade por viuvez: ela comporta a
realização de um importante trabalho de luto (pelo ente perdido e pela ante­
rior família) e de uma reorganização sistémica, feitos, geralmente, num
contexto de idealização do passado, de vividos depressivos mais ou menos
assumidos e de uma lealdade perante o elemento ausente que, ao contrário
do contexto de divórcio, empresta um cunho de aconflitualidade impossí­
vel de existir num sistema em evolução.
22
Novas Formas de Família

Da memória que guardo desses encontros procurarei sublinhar alguns


aspectos que me fizeram reflectir e a partir dos quais darei, de forma mais
fundamentada, a resposta à pergunta que inicia o capítulo e que o leitor, por
certo, já adivinhou.

1. Monoparentalidade(s) em Terapia Familiar

Com divórcio, com viuvez, sem casamento, com adopção, as famílias


monoparentais que conheci confrontaram-me com uma característica
comum, independentemente de outras singularidades mais ou menos redun­
dantes - a da existência de ligações muito fortes entre os seus membros,
frequentemente fusionais, por vezes tingidas de uma conflitualidade que
procurava criar interstícios no elo fusional mas que mais não conseguia do
que aumentar a dependência (Alarcão, 2000, 212-217). Em alguns casos o
corpo segredava as palavras que a boca não se autorizava a proferir, tor­
nando-se o veículo privilegiado da expressão sintomática: surgia, então, um
xi-xi venenoso, uma gordura excessiva, uma taquicardia asfixiante, etc. Em
todas essas situações, a vida da família, e de cada um dos seus elementos,
paralizava por medo e dificuldade de construir caminhos mais autónomos e
por receio de alargar o sistema a novos elos.

1.1. Procurando a individualidade num padrão de emaranhamento ...

Ana, Mafalda e Filipa foram as três "mulheres" mais (inter)dependentes


que já conheci em terapia. Verdadeira metáfora dessa super-união e dessa
super-dependência era a forma como geriam a roupa e a cama: sem dona
definida, as malhas e algumas saias eram da "senhora" que, nessa manhã,
delas se apoderava em primeiro lugar; com duas camas de casal em casa, e
nenhuma individual, Mafalda e Filipa disputavam a companhia da mãe, a
única que, nesta roda das camas, não mudava de lugar. Também nas vindas
à terapia a troca de cadeiras era· um jogo mensalmente jogado: não tendo o
autocarro três bancos corridos, a Mafalda e a Filipa vinham, à vez, no
banco materno, deixando, no entanto, um sabor amargo à mãe, que se sen­
tia mal por não poder satisfazer as duas filhas ao mesmo tempo, e à filha,
que ficava sozinha num banco de dois e que, ainda na ida, já lembrava a
todas que, no regresso, a situação se inverteria. Diluída a memória da
23
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

viagem anterior, no mês seguinte a confusão instalava-se e as filhas lamen­


tavam não poder vir de comboio, meio de transporte que, nessa altura,
albergava três lugares em cada assento.
Mafalda tinha 13 anos e repetia o 7 º ano de escolaridade. Filipa, com 12
anos, frequentava o mesmo ano e a mesma turma. Mais responsável, era
muitas vezes encarregada de tomar conta da irmã, vigiando-lhe a tendência
para gastos excessivos de detergentes, ou outros produtos domésticos, e
regrando-a no consumo de doces. Ana, a mãe, queixava-se das inúmeras
brigas que as duas tinham. Eram disputas sem grande importância, daque­
las que os irmãos costumam ter. O que as tornava insuportáveis era o seu
carácter recorrente, a permanente solicitação da mãe como elemento me­
diador e o eco que,-naturalmente, tinham nela. Ana, Filipa e Mafalda eram
muito unidas. Ficaram ainda mais depois da morte do pai. Sem família por
perto, com algumas dificuldades económicas, particularmente depois da
morte do marido, Ana ocupava todo o tempo a trabalhar: como empregada
doméstica, durante a semana, e como cozinheira, ao fim de semana. As fi­
lhas ajudavam-na nesta tarefa. Filipa e Mafalda tinham poucas amigas e
quase só saíam de casa para ir à escola. Quando se perguntou a Filipa como
se imaginava quando adulta, disse-nos que se via médica, vivendo ao lado
da mãe que tomaria conta da sua criança. Mafalda imaginava-se solteira,
vivendo e trabalhando com a mãe numa pastelaria que com ela teria mon­
tado. As suas vidas sociais continuavam, como hoje, quase reduzidas a
zero.
Se a morte do pai tinha deixado alguma tristeza, o luto parecia feito. A
reorganização estrutural, contudo, estava claramente entravada. As dificul­
dades económicas da mãe obrigavam-na a uma permanência diária fora de
casa que se prolongava por muitas horas: na sua ausência, a parentificação
da filha mais nova foi o recurso encontrado por esta mãe que dele se con­
tinuava a servir em todas as situações em que a sua posição de educador
único lhe colocava problemas. Na ausência do sub-sistema conjugal, cada
uma das filhas se tornava a companheira da mãe, o que abalava o sub-sis­
tema fraternal e abria as portas à substituição de um alinhamento geracional
horizontal (par fraternal, por um lado, educador único, por outro lado) por
um alinhamento vertical que confundia as gerações e ameaçava criar uma
coligação (Mãe e Filipa, por um lado, Mafalda, por outro lado).
Todas meninas e todas senhoras, estas mulheres partilhavam preocu­
pações, brigas, espaços físicos; não se permitiam conhecer novas pessoas,
ter férias ou tempos livres separados. Na união encontravam a força que as
24
Novas Formas de Família

fazia vencer as adversidades mas nesta união enterravam, também, as pos­


sibilidades de crescimento.

A Ana, a Mafalda e a Filipa trouxeram para a terapia, e para as suas te­


rapeutas•, uma dificuldade que a auto-referência aumentava: filhas únicas
mas bastante estimuladas a fazerem um percurso individual autónomo, ti­
nham que ajudar a família a criar fronteiras claras num padrão de emara­
nhamento que não podia ser afrontado. Mas a família trouxe ainda outra
dificuldade: a de juntar cinco mulheres na sala de consulta. As referências
eram todas no feminino. Mesmo fora do espaço de consulta, a Ana e as fi­
lhas (quase) só falavam de mulheres: da patroa de Ana, da sua irmã, das pri­
mas Rosário e Francisca, da madrinha da Mafalda (que pagava as consul­
tas), da assistente social (que arranjava o subsídio para o transporte), das
duas ou três amigas da Mafalda e da Filipa, da vizinha que, por vezes, as
ajudava. Carlos5, o único homem que indirectamente as ajudava, estava a
muitas centenas de quilómetros. Esta homogeneidade de género era mais
um elemento a reforçar a coesão de um sistema muito centrípeto.

Não questionando frontalmente esse tipo de padrão familiar, ao fim de


um ano de encontros mensais pudemos observar algumas importantes mo­
dificações: a) a parentificação diluiu-se porque a mãe se tornou cada vez
mais capaz de decidir sozinha e de negociar as questões do quotidiano
familiar com ambas as filhas; b) realinhados o sub-sistema fraternal e o
sub-sistema parental, este saiu reforçado e as relações ganharam, na ve1ti­
calidade entre mãe e filhas, o colorido de maior proximidade que a ado­
lescência naturalmente comporta (Alarcão, 2000; Relvas, 1996); c) o
espaço físico da casa sofreu algumas transformações de modo a poder
albergar duas escrivaninhas (local de estudo para cada uma das filhas que,
anteriormente, trabalhavam na cozinha), mais um armário de roupa para
melhor a diferenciar, duas camas de solteiro, em substituição de uma cama
de casal (para as duas filhas que ficariam a dormir no mesmo quarto, logo
que um subsídio chegasse e permitisse esse gasto que o orçamento mensal

• Foi com Ana Paula Relvas que realizei este processo terapêutico. A sua descrição
integra partes do texto apresentado em Alarcão (2000, 58-59).
' Carlos era um dos filhos do primeiro casamento do pai de Mafalda e de Filipa o
qual, já viúvo, regressara a Portugal onde casara com Ana.
25
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

não cobria); d) as filhas, uma de cada vez, tiveram uns dias de férias sem a
mãe (a Mafalda com a prima, a Filipa com uma colega e amiga).
No respeito pela cultura desta família, fortemente enraizada no modelo
que Ana trouxera da sua família de origem, penso ter-se conseguido a reor­
ganização estrutural e a abertura do sistema suficientes ao seu posterior
desenvolvimento6 • Em diversos momentos o par de co-terapeutas teve de
refrear o seu ímpeto de procurar maiores níveis de autonomia e de inde­
pendência individual, nomeadamente pelo alargamento do núcleo familiar
a outrc;1s relações. Essa seria, por ventura, a família das terapeutas, não a das
suas clientes ... Sem outros elementos de triangulação, as terapeutas tive­
ram que estar suficientemente atentas para não se transformarem em novos
receptáculos de dependência nem imporem um ritmo de autonomização.

Se esta família nos permitiu desenvolver as competências adquiridas no


âmbito do modelo estrutural (Minuchin, 1979; Minuchin e Fishman, 1988)
ela possibilitou-nos, também, a compreensão da ideia minuchiniana de que
as famílias se situam num continuum entre os pólos extremos do emara­
nhamento e do desmembramento, sendo necessário, na análise do seu
potencial evolutivo, atender não só ao tipo de limites ou fronteiras intra e
inter sub-sistémicas mas igualmente à história intergeracional, às particu­
laridades dos seus elementos e ao seu contexto de vida. A Ana, a Mafalda
e a Filipa foram, ainda, uma das famílias monoparentais que: 1) nos ajudou
a perceber que o modus operandi da terapia familiar depende mais de cada
sistema terapêutico7 que se constitui do que do tipo de composição familiar
em jogo e que 2) nos mostrou a importância de não reificarmos as possíveis
dificuldades das famílias monoparentais, procurando que se reorganizem de
acordo com o padrão desenvolvimental que construímos para as famílias
nucleares intactas. Com efeito, só assim poderemos ajudar o sistema a
mudar (estruturalmente) na continuidade (organizacional).

Como facilmente se compreende, nem todas as famílias de educador


único são iguais, mesmo quando a monoparentalidade surge na sequência

• Informações obtidas ao fim de um ano de termos concluído o processo terapêuti­


co davam conta da manutenção deste tipo de transformação.
' Relembro que por sistema terapêutico se entende o conjunto composto pelos ele­
mentos da família e pelos terapeutas presentes.
26
Novas Formas de Família

de uma viuvez. Para além da dependência relacional a que acabei de aludir,


a família a que seguidamente vou fazer referência traz-nos outras particu­
laridades sobre as quais me parece interessante reflectir - por um lado, a da
necessidade de completar o luto pelo elemento desaparecido e a de criar o
espaço para que, num futuro mais ou menos próximo, um outro adulto
possa entrar na família (criando a chamada família recasada); por outro
lado, a consideração de uma família "falada" no masculino, sem dúvida
muito mais rara mas com tendência a aumentar.

1.2. Relembrando ausentes para poder continuar a viver e a crescer...

Júlio estava a iniciar a puberdade quando a mãe faleceu. Cerca de três


anos mais tarde, na suspeita de alguma negligência parental, entrecruzada
com uma inconsistência educativa que os avós também alimentavam, a
família assumiu a indicação de terapia familiar e formulou o seguinte pedi­
do de ajuda - "que o adolescente fosse mais calmo, que aumentasse o seu
rendimento escolar, que não fizesse as asneiras que conduziam às faltas dis­
ciplinares e que tivesse mais confiança no pai".

Concluída a sessão de avaliação pôde formular-se a seguinte hipótese


sistémica8 : encontrando-se esta família monoparental na etapa do ciclo vital
correspondente à família com filhos adolescentes, e sendo uma das suas
tarefas a progressiva autonomização do adolescente, ela parece estar com­
prometida pelo m_edo que o rapaz sente de perder o pai, receio eventual­
mente associado ao processo de luto pela mãe falecida. Por outro lado, o
pai, enquanto educador único, parece revelar algumas dificuldades ao nível
da imposição de regras, nomeadamente as relativas à gestão do tempo de
estudo, o que gera uma pressão excessiva para os dois.
Conotando positivamente a presença de ambos na sessão, assim como
de algumas transformações surgidas entre a data do pedido de consulta e o
dia da realização da primeira entrevista familiar, os terapeutas formulam
um contrato terapêutico cujo objectivo é "o de perceber como é que pai e
filho se podem entender e estabelecer canais de comunicação não intru-

• Agradeço a Ana Paula Relvas a cedência do material relativo ao processo te­


rapêutico efectuado e a Álvaro Mendes a sua sistematização.
27
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

sivos, respeitando a individualidade de cada um e mantendo a unidade


familiar".

Na primeira sessão do contrato, os terapeutas começam por compreen­


der as memórias que pai e filho têm dos elementos que lhe são mais signi­
ficativos, permitindo-se, nesse contexto, falar da mãe e da dor que ainda
hoje cada um sente, assim como dos silêncios que se impõem para não
magoar o outro com recordações dolorosas e lágrimas não contidas.
Na segunda sessão, recolocados no presente pela tarefa exterior prescri­
ta na sessão anterior, os terapeutas iniciam a realização do genograma e da
exploração da rede social da família. A realização desse mapa familiar visa,
sobretudo, criar um espaço e um tempo de metacomunicação entre pai e
filho, de modo a que ambos possam dar continuidade à história familiar (de
certa forma congelada pela morte inesperada e muito precoce da mãe) e se
permitam, sobretudo o adolescente, projectar na continuação dessa mesma
história, aspecto tão mais importante quanto é enorme o medo que o rapaz
tem de vir a perder o pai. O levantamento da rede visa não só a exploração
da fontes de suporte da família como a abertura discursiva necessária a que
outros possam realmente entrar neste agregado nuclear muito fusionado.
Com efeito, na quarta sessão procurar-se-á que alguns elementos da rede
possam, no espaço familiar, prolongar a conversa e a metacomunicação que
pai e filho conseguem realizar no espaço de consulta. Com esta sugestão os
terapeutas pretendem não só reforçar, cada vez mais, as competências da
família como visam o alargamento de audiências que constatem e partilhem
as mudanças que a mesma está a operar. Nesta sessão, pai e filho falam
ainda de projectos profissionais que identificam a área vocacional do rapaz
e recolocam a possibilidade do pai retomar os estudos anteriormente inicia­
dos.
Na quinta e última sessão do contrato, quase concluído o genograma
familiar (actividade que entretanto se transformara em T.P.C. 9), o adoles­
cente revela que "já não sou aquele miúdo que andava para aí" e fala, com
muito orgulho, das suas novas responsabilidades escolares. Pai e filho re­
ferem a facilidade com que hoje falam do que os preocupa.
Conotada positivamente a cumplicidade que ambos evidenciam, os te­
rapeutas advertem para a possibilidade de, num processo de crescimento,

' Assim se costumam designar os trabalhos para casa.


28
Novas Formas de Família

poderem surgir avanços e recuos (e, consequentemente, poderem espreitar


novamente algumas "asneiras"). Reafirmam, contudo, a sua confiança nas
capacidades da família para lidar com essas situações e o processo entra em
período de follow-up. Três meses depois a família refere estar bem e
começa a falar-se no seu possível alargamento: os terapeutas ajudam o pai
e o filho a falarem dos seus medos relativamente à presença de um possí­
vel novo elemento - a namorada do pai.

Na história deste processo, assim como na história desta família, o que


me parece ter sido mais importante foi a confiança que o sistema terapêuti­
co conseguiu desenvolver acerca das potencialidades e competências da
família, em detrimento da reificação dos riscos que a mesma parecia apre­
sentar: a) perda do progenitor feminino e consequente processo de luto; b)
monoparentalidade, ainda por cima conjugada no masculino'º; c) ado­
lescência do filho; d) possível negligência/inconsistência de cuidados
parentais; e) mau comportamento escolar do adolescente; t) pouca clareza
relativamente à articulação entre família nuclear e família alargada. Na
atenção aos factores de risco, sem reificação dos mesmos, as instituições e
os técnicos têm, sem dúvida, um papel extraordinário: é importante que, em
vez de se constituírem como amplificadores de mudanças de l.ª ordem, se
ofereçam como perturbadores capazes de introduzir mudanças qualitativas,
activadoras das competências do sistema (Ausloos, 1996) e do seu poten­
cial de resiliência (Walsh, 1996).
Com esta pontuação, os terapeutas permitiram que o pai não crista­
lizasse o seu sentimento de estar a fracassar na tarefa educativa, podendo,
dessa forma, atenuar a pressão que exercia, nomeadamente na área escolar,
e, assim, libertar o filho do seu medo de o desiludir. Reassegurado no
desempenho da parentalidade, este pai pôde olhar de forma diferente para
o meio social, que anteriormente dele suspeitava, e a família pôde deixar de
se sentir amputada. Curiosamente, é no momento em que pai e filho se per­
mitem evoluir que a família começa a aceitar a possibilidade de se recon­
figurar (com eventual entrada da namorada do pai).

'º Sabe-se como socialmente ainda é importante a ideia de que os pais-homens têm
dificuldade em assegurar todas as tarefas inerentes ao desenvolvimento e à educação dos
filhos.
29
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

Neste processo sinto que foi também muito importante que os terapeu­
tas tivessem estimulado pai e filho: 1) a metacomunicarem sobre o que sen­
tiam face à ausência/morte da esposa/mãe e 2) a reverem a(s) história(s) da
família para lhe poderem dar continuidade. Quase logo no início do proces­
so o adolescente disse que não queria falar sobre isso, para não magoar o
pai que se entristecia com a sua própria tristeza. Aceitando partilhar essa
tristeza e essa dor, e não insistindo numa visão patologizante ou disfuncio­
nante da crise acidental, os terapeutas permitiram a sua transformação po­
sitiva.

1.3. Aprendendo a viver sozinha...


para poder eventualmente voltar a casar...

Ao aproximar-se do fim da etapa da adolescência e ao começar a equa­


cionar a fa se seguinte - família com filhos adultos - o progenitor presente
na família monoparental tem que, à semelhança do que se passa na família
nuclear intacta, começar a reorganizar a sua vida familiar e profissional. Fá­
-lo, contudo, na ausência de um outro adulto. Com efeito, "não tem que
experienciar as vicissitudes da reorganização do sub-sistema conjugal
[mas] tem que reposicionar-se face aos filhos, ao trabalho e aos seus
próprios pais. A crise que naturalmente se instala pode constituir uma ver­
dadeira ocasião de mudança (de alargamento das relações sociais, de novo
investimento profissional, de escolha de um parceiro sexual) ou de risco de
perpetuação de um funcionamento que entrava o próprio desenvolvimento
familiar e individual (aparecimento de um sintoma no progenitor, no(s)
filho(s) ou na família alargada, nomeadamente nos avós, continuação da
co-habitação, reforma precoce, manutenção da forte ligação afectiva e
intrusão na nova vida familiar do(s) filho(s))" (Alarcão, 2000, 216-217).
A família de que vou seguidamente falar representa um momento muito
significativo no meu percurso de terapeuta familiar. Com ela aventurei-me"
a trabalhar sistemicamente com um só elemento; com ela aprendi a encon­
trar novas pontuações num contexto onde tudo me encaminhava para o
desenvolvimento de uma terapia familiar clássica.

"Juntamente com Ana Paula Relvas com quem conduzi este processo.
30
Novas Formas de Família

A Maria e o Pedro constituíam uma família monoparental fundada num


divórcio judicialmente há muito terminado mas emocionalmente não muito
bem integrado. Maria ainda não esgotara totalmente a raiva relativamente
àquele que não lhe permitira continuar a sonhar com um casamento e uma
família completa, àquele que a deixara a braços com as preocupações, as
dúvidas e as dificuldades (económicas e emocionais) de educar, sozinha, o
Pedro, àquele que ameaçara a sua integridade física e o seu equilíbrio emo­
cional a ponto de a fazer duvidar das suas capacidades como pessoa (capaz
de cuidar de si própria, de ser uma profissional bem sucedida e autónoma),
mulher (capaz de poder viver uma conjugalidade plena), filha (capaz de ser
bem readmitida na sua família de origem) e mãe (capaz de permitir o desen­
volvimento autónomo do seu filho adolescente). Pedro não conseguia, face
à ambivalência sentida e à lealdade relativamente à mãe, autorizar-se a pen­
sar que tipo de relação queria manter com o pai a quem via raramente e que,
muitas vezes, o deixava indefinidamente à espera...
Conhecemos a Maria e o Pedro porque a mãe começou por pedir uma
consulta para o filho, preocupada com alguns dos seus comportamentos de
oposição, com a sua indefinição relativamente às escolhas vocacionais a
realizar e aos seus amigos (rapazes mais velhos e em relação aos quais tinha
algumas suspeitas sobre as preferências sexuais dos mesmos). Ainda no
pedido de consulta, Maria disse-nos que também estava muito deprimida,
sentindo-se muito ansiosa quando estava sozinha (tendo que ir para casa
dos pais se o filho não estivesse em casa) e com falta de ar em espaços aber­
tos (tendo que caminhar muito depressa para chegar a casa); não sabia se
devia, ou não, dar continuidade a uma relação sua, amorosa, que achava que
fazia bem ao filho mas que não lhe dava segurança. Rapidamente ficámos
sem saber para quem estava a ser pedida a consulta: a própria família tam­
bém não conseguiu decidir (o filho disse não precisar de ajuda mas estar
disposto a vir às sessões de terapia familiar para ajudar a mãe; a mãe referiu
querer continuar o processo desde que o filho estivesse presente) e, durante
meio ano, prolongou-se uma terapia que, marcada pela alternância entre as
presenças e as ausências, não permitiu criar um fio condutor nem equa­
cionar qualquer projecto válido de conversação e de mudança.

Apesar das claras indicações que este caso tinha para terapia familiar -
problemática essencialmente relacional e claras dificuldades de diferencia­
ção num momento do ciclo vital particularmente sensível a essa tarefa
desenvolvimental - considerámos não estarem reunidas as condições para
31
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

prosseguir este processo - ausência de comprometimento e de interesse real


da família. Perante o sofrimento visível de Maria e as preocupações que este
adolescente, demasiado fusionado com a mãe, nos deixava, propusemos à
família iniciar um novo processo, só com a mãe, e exclusivamente direc­
cionado para as suas dificuldades - incapacidade de estar sozinha em casa e
falta de ar em espaços públicos e abertos, nomeadamente ruas e estradas.
Ao fim de seis meses de entrevistas mensais, Maria estava completa­
mente assintomática, deixara de dormir com o filho, quase concluíra o
curso superior que frequentava e tornara-se mais capaz de aceitar emo­
cionalmente (dado que racionalmente isso já anteriormente acontecia) os
movimentos de autonomização do Pedro. Num processo em que os inter­
valos de cada sessão 12 se constituíam como verdadeiros espaços de meta­
comunicação consigo própria e de reorganização pessoal da conversação
tida com as terapeutas, Maria cresceu como nunca imaginávamos que
pudesse acontecer. No fim disse-nos que também ela não acreditara que
este processo de encontros mensais pudesse alguma vez resultar e partiu
mais confiante em si mesma, depois de se reassegurar de que podia recor­
rer ao serviço sempre que necessitasse.

A Maria e o Pedro foram, pois, uma das famílias que me permitiu clara­
mente compreender que também é possível introduzir alterações no sistema
familiar mesmo quando se trabalha directamente só com um dos seus ele­
mentos. Uma vez mais pude constatar a imp01tância de não rigidificar a
hipótese central que tínhamos inicialmente traduzido desta forma: face ao
medo do abandono, num período de natural abertura do sistema ao exterior,
mãe e filho esgotam-se numa simetria comunicacional que lhes dá a ilusão
de autonomia e que, simultaneamente, reforça a dependência relacional.

12 Refiro-me ao intervalo que, em cada sessão, separa a primeira parte (de entrevista

com a família) da segunda (conclusão da sessão) e "no qual terapeutas e observadores


discutem entre si, afinando a(s) hipótese(s) e avaliando as suas conexões; se entenderem
que é adequado planeiam a intervenção final" (Relvas, 2000, 76). Durante esse período
os clientes ficam, habitualmente na sala de consulta, com todo o sistema vídeo desliga­
do e com o espelho unidireccional desactivado. Maria aproveitava este tempo para co­
piar coisas do quadro, ou para escrever aspectos que tivessem sido conversados, e,
quando voltámos à sala, antes do nosso comentário final, fazia a síntese da sua própria
compreensão.
32
Novas Formas de Família

Com este caso pude, ainda, experimentar o poder transformador da exter­


nalização do problema (White e Epston, 1993), construindo uma nan-ativa
menos internalizada das dificuldades de autonomização e da insegurança de
Maria, enraizadas numa história repetida de vinculações inseguras.

Em famílias em que a monoparentalidade se torna mais difícil e mais


pesada para o adulto presente, pode ser útil trabalhar a complexidade das
relações intra e intersistémicas com esse mesmo adulto, envolvendo as
crianças e/ou os adolescentes em apenas algumas das sessões.

1.4. Posso deixá-lo com o pai e a outra?...

Apesar de encontrarmos algumas redundâncias entre as famílias mono­


parentais, elas estão longe de apresentar uma homogeneidade que nos per­
mita delinear uma estratégia terapêutica uniforme. Com efeito, e embora
autores como Bernard Prieur (2001) considerem que, face ao divórcio, e
mesmo para tratar dos problemas da parentalidade e da regulação das
relações entre pais e filhos, é conveniente não voltar a juntar a família ori­
ginal, pode haver famílias em que sessões conjuntas podem ser úteis, sobre­
tudo se já tiver passado um tempo suficientemente longo para que a confli­
tualidade aguerrida e enraivecida dê lugar à divergência negociável e à real
complementaridade.

Ivo tinha 8 anos e chegou à consulta em virtude da sua enurese e da sua


encoprese secundárias. Logo na primeira sessão foi visível a posição trian­
gulada da criança relativamente à mãe (com quem vivia) e ao pai (que uma
vez por semana o ia buscar à escola e o levava a casa da mãe, aí esperando
que a mesma chegasse, e que, de quinze em quinze dias, o levava a passar
o fim de semana em sua casa que partilhava com uma nova companheira).
O conflito parental alimentava-se de estratégias educativas divergentes
(p.e. no que toca à hora de deitar ou aos programas televisivos a ver), elas
próprias resultantes de uma simetria de posições com vista à definição do
poder na relação. O recasamento do pai de Ivo e a existência de uma
madrasta com quem a criança parecia entender-se não era facilmente aceite
pela mãe, agora ainda muito mais ligada ao filho, o "seu pequenino homem
que lhe aquecia a cama". Perante esta triangulação bloqueadora do desen­
volvimento de novas relações entre a mãe e o filho (que alargassem a fusão
33
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

a uma ligação mais madura), entre o pai e o filho (que facilitassem o desen­
volvimento de identificações a que o Ivo queria dar expressão) e entre os
próprios pais (que gerassem uma complementaridade funcional através da
qual os pais, agora separados, pudessem continuar a potenciar as funções
fundamentais da família, i.é, a do crescimento de indivíduos autónomos e
a da socialização e adaptação desses mesmos sujeitos à sua cultura) e face
à manutenção de um padrão de contactos frequentes entre estes três ele­
mentos, a equipa terapêutica 13 decidiu propor um contrato de cinco sessões
em que estariam presentes os pais e o Ivo. Rapidamente os sintomas desa­
pareceram e, no fim do contrato, a luta pela definição da posição de poder
na relação deu lugar a uma articulação relacional que tornou mais fácil a
posição de educador único da mãe (permitindo-lhe, igualmente, o desen­
volvimento de novas relações sociais e de tempos livres) e a manutenção
das relações de Ivo com o pai. A criança pôde conciliar as suas lealdades e
o seu desejo de poder continuar a relacionar-se com ambos os pais. Durante
vários anos, Ivo continuou a integrar uma família monoparental, contac­
tando, também, com uma família recasada.

Curiosamente, esta foi uma das poucas famílias onde, na presença de um


divórcio, ambos os pais se manifestaram disponíveis para sessões conjuntas.
No encontro dos dois adultos, por vezes, ainda cintilavam aspectos menos
bem conseguidos da ruptura do laço conjugal. Uma das preocupações que a
equipa terapêutica procurou ter foi a de não se esquecer de que estava ali
para ajudar o Ivo e os pais a reorganizar as suas relações actuais e futuras;
não cedeu à tentação de dispensar o Ivo para "aperfeiçoar" aquele divórcio.

Na minha memória guardo ainda muitas outras histórias de famílias


monoparentais. Sinto que, inicialmente, procurava clarificar e tipificar as
dificuldades destas famílias, contextuadas na etapa do ciclo vital que
estavam a vivenciar. Hoje penso que, conjuntamente com elas, procuro
alargar os seus discursos e as suas visões, mais do que resolver problemas
concretos, de modo a que readquiram a flexibilidade necessária à cons­
trução de um novo modelo de relação e à reapropriação do controlo da sua
própria história, controlo esse que a crise questionou (Caillé, 1987, cit. in
Camdessus et al., 1995).

" Foi com Rui Paixão que conduzi este processo.


34
Novas Formas de Família

2. Divórcio(s) e Pós-Divórcio(s) em Terapia Familiar

Embora tenha referido que comecei por aceder ao divórcio num con­
texto de terapia pedida para ou pelo casal, nos últimos anos têm começado
a aparecer pedidos de ajuda para famílias que estão numa fase de pré­
-decisão ou de relativa separação, sobretudo por parte do progenitor que
perspectiva ficar com os filhos e que não desejou o divórcio. Recordando
algumas dessas situações, diria que, na sua maioria, a família está no está­
dio de cognição individual ou no estádio de metacognição familiar, tal
como Peck e Manocherian (1995) os apresentam.
No primeiro estádio, "pelo menos um dos cônjuges está considerando o
divórcio e iniciando o processo de separação emocional, mantendo distân­
cia através de actividades e envolvimentos separados. Este período é fre­
quentemente caracterizado por estresse aumentado, com consideráveis
brigas, amargura, acusações, desvalorização do parceiro, depressão,
ansiedade e, sempre, ambivalência. Pode haver um caso amoroso que fre­
quentemente serve para apressar a decisão. ( ... ) para aquele que o inicia, o
período de tomada de decisão talvez seja o mais difícil de todos, pois
ele/ela luta com tremendo remorso e culpa (Wallerstein e Kelly, 1980, cit.
in Peck e Manocherian, 1995, 294). No segundo estádio, ainda de pré-se­
paração, o segredo é revelado, provocando, habitualmente, um grande
sofrimento e um profundo desequilíbrio em toda a família, nomeadamente
ao nível do grupo mais alargado. Grande parte do sofrimento e da pertur­
bação familiar decorre, desde logo, da diferença temporal com que cada
elemento se relaciona com a perspectiva/decisão de separação e divórcio:
quando o elemento que quer sair comunica essa decisão, ou deixa que o
cônjuge descubra as suas intenções, já decorreu, para si, um período de
tempo relativamente longo em que pôde confrontar-se e debater-se com tal
ideia e com as suas consequências; no entanto, para o seu parceiro e para
os filhos essa revelação é geralmente inesperada, indesejada e cai na
família como uma bomba, provocando uma catástrofe de maiores ou
menores dimensões consoante a forma como todos venham a lidar com a
situação. A raiva, a impotência, a traição sentidas decorrem do facto da
decisão ser unilateral, mesmo em casos em que o clima familiar era "pesa­
do" em virtude dos níveis de conflitualidade conjugal atingidos. "Para o
cônjuge que não toma a iniciativa, quanto mais súbita e inesperada a
decisão parece ser mais difícil será o ajustamento emocional inicial
(Spanier e Castro, 1979). Muitos cônjuges não-iniciadores do processo
35
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

estão totalmente despreparados para a decisão (Wallerstein e Kelly, 1980)


e experienciam um sentimento total de baixa auto-estima, impotência e
humilhação" (Peck e Manocherian, 1995, 294).
De acordo com Peck e Manocherian (1995), o estádio seguinte, da se­
paração do sistema, é marcado pela separação cujos reflexos podem ser
mais ou menos bloqueadores do funcionamento familiar e individual con­
forme o modo como todos enfrentam a crise. Estando os cônjuges bastante
vulneráveis (nomeadamente aquele que não desejou a separação e que
procura reverter o processo ou que se sente traído) é possível que sintomas
como insónia ou outras perturbações do sono, alterações no peso, disfunção
sexual, incapacidade de trabalhar, apatia, uso excessivo de álcool, tabaco
ou outras substâncias possam surgir. Entre as crianças não é raro o apareci­
mento de situações de enurese ou de encoprese secundárias, perturbações
do sono, forte irritabilidade e agitação, isolamento ou comportamentos de
provocação, queixas somáticas (dores de cabeça ou de estômago),
diminuição do rendimento escolar ou desejo de não ir à escola. As crianças,
habitualmente, não querem perder nenhum dos progenitores e, mesmo
quando não estão disfuncionalmente trianguladas, procuram activamente
"consertar" as coisas entre os pais de modo a que a família possa estar de
novo reunida.
Com efeito, a ambivalência marca todo este processo, mesmo por parte
do adulto que quer sair. Se a raiva e o ressentimento são notas quase
inevitáveis, os vínculos são também demasiado fortes para que não se
façam sentir. Num período temporal que varia de família para família (mas
que a maior parte das vezes se prolonga por um ano, podendo chegar, em
alguns casos, a dois anos ou mais), vamos, então, encontrar movimentos de
aproximação e de afastamento, de raiva e rejeição e de compreensão e
aceitação que criam fronteiras tão mais ambíguas quanto maiores são as
oscilações entre separações e reconciliações. O rápido contacto com os
advogados e a pressa em resolver a crise, como se de uma avaria se tratasse,
em nada facilitam o processo, podendo mesmo fazer aumentar a crise.
Neste contexto, a reorganização estrutural da família, com redefinição de
papéis e de funções, fica dificultada.

Num sistema em que as dúvidas relativamente à manutenção do casa­


mento ou à sua dissolução são notórias e em que os cônjuges podem ter
posições diferentes, a experimentação de uma "separação terapêutica" pode
constituir uma "perturbação" muito útil para o sistema.
36
Novas Formas de Família

João e Maria estavam casados há vanos anos e, apesar dos diversos


tratamentos médicos já realizados, não tinham filhos. Em determinado
momento, numa confluência de fragilidades individuais (pessoais e profis­
sionais, nomeadamente para o cônjuge masculino em cuja família de
origem se vinha também organizando um recasamento) e de casal (em
grande parte acentuadas pelas dificuldades de aceder à parentalidade), João
tem uma experiência extra-conjugal relativamente à qual, à medida que o
tempo passa, se mostra muito ambíguo. Concretamente, quer ficar com
Maria, que começa a já não conseguir esperar mais, mas não consegue ter­
minar a relação com Guida. Ao longo de cerca de meio ano, redefinido o
pedido e firmado um "contrato de namoro" no sentido de avaliar o desejo e
a capacidade de João e Maria "voltarem a casar", o casal e as terapeutas
(re)contam a história dos encontros e desencontros conjugais assim como
as histórias das famílias de origem, tarefas potenciadas pela elaboração do
fotograma 14 . Os aspectos comunicacionais, nomeadamente as redundâncias
que disfuncionam a comunicação são trabalhados. João e Maria nutrem um
forte sentimento de amor um pelo outro mas não conseguem modificar as
suas posições: João não consegue terminar definitivamente a relação cada
vez mais distante com Guida e Maria não consegue esperar mais. A equipe
terapêutica 15 decide prescrever mês e meio de separação total. Para tal con­
cede dez dias para que João e Maria resolvam todos os assuntos que podem
obrigar a um encontro ou a um telefonema durante o mês e meio seguinte:
definição dos locais em que cada um ficará 16 ; retirada dos objectos de que
cada um necessitará durante o referido tempo para que não seja necessário
voltar a casa; pagamento da renda de casa, telefone, água e luz; re-orien-

" O fotograma não é mais do que um genograma cuja base de construção são as
fotografias que cada elemento traz para a sessão. Habitualmente, os terapeutas solicitam
a cada elemento da família que, individualmente, escolha um número limitado de
fotografias (p.e. 3 ou 5) que retratem pessoas e/ou tempos da vida familiar considerados
como significativos, sejam as emoções que as mesmas despertam positivas ou negati­
vas.
" Uma vez mais realizei este processo com Ana Paula Relvas. Num outro processo
anterior, com Rui Paixão, prescrevi um tempo de separação mais longo e a evolução foi
semelhante.
" Esta decisão estava facilitada dado o tempo de férias que se aproximava e dado
que João já vinha ficando em casa de um familiar.
37
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

tação do correio; resolução relativamente à divisão do carro (que veio a


ficar parado). Em carta foi feito o ponto da situação de modo a que as te­
rapeutas pudessem alertar para algum aspecto que ainda merecesse mais
alguma resolução conjunta antes da separação e, cerca de dois meses
depois, foi marcada nova consulta. O casal cumprira escrupulosamente a
prescrição até que, quinze dias antes do seu términus, João vai ter com
Maria para, definitivamente sem a Guida, poderem recomeçar uma nova
vida de casal. Em contactos de follow-up pudemos acompanhar não só a
manutenção da decisão quanto o bem-estar do casal.

Se este recurso terapêutico me tem sido mais fácil de implementar em


casais sem filhos, recordo um caso em que aspectos circunstanciais(viagem
prolongada de um dos cônjuges) permitiram vivências muito semelhantes e
foram sentidos, desde logo pelo cônjuge que ficou com os filhos (curiosa­
mente o elemento masculino), e depois pela equipe terapêutica e pelo casal,
como o ponto de bifurcação a partir do qual uma mudança qualitativa se foi
tecendo: inicialmente ninguém sabia o que aconteceria; no fim o casal per­
maneceu junto, evoluindo para uma nova etapa da sua história conjugal; a
família também cresceu, deixando as crianças de manifestar alguns dos sin­
tomas que em determinados momentos tinham ocorrido (enurese
secundária, dores de cabeça, etc.) e aumentando a fratria pela chegada de
um novo elemento, cerca de nove meses após o fim do processo terapêuti­
co.
Muitas são as situações, contudo, em que as dificuldades conjugais con­
duzem a um processo de divórcio.
De acordo com diversos estudos, os homens e as mulheres tomam
posições diferentes em todo este processo, desde a tomada de decisão até à
reorganização familiar subsequente ao divórcio. Mesmo nos casos em que
o desejo de separação é masculino, a iniciativa parece pertencer às mu­
lheres. "No momento de iniciar os procedimentos, as mulheres tendem a
ficar significativamente mais zangadas com os cônjuges( ...). Elas tendem
a encarar de frente o estresse do divórcio; passam por um período de tumul­
to emocional, ficam zangadas ou deprimidas, e depois recuperam
(Chiriboga e colaboradores, 1978). Muitos homens lidam com a infelici­
dade atirando-se ao trabalho e, mais tarde, experienciam um sentimento
total de mal-estar (Chiri boga e colaboradores, 1978). ( ...) Wallerstein
(1986) realizou um seguimento ao estudo de Wallerstein e Kelly (1980),
dez anos pós-divórcio, descobrindo que 55% das mulheres versus 32% dos
38
Novas Formas de Família

homens sentiam que a sua vida havia melhorado e 64% das mulheres ver­
sus 16% dos homens relataram um sentimento de crescimento emocional
psicológico em resultado do divórcio" (cit. in Peck e Manocherian, 1995,
295). Naturalmente que, neste processo, torna-se não só muito importante
a forma como cada um dos elementos se posiciona face à crise como tam­
bém assumem papel relevante a forma como toda a família lida com a situa­
ção e o apoio que os ex-cônjuges sentem por parte da sua rede social pes­
soal, isto é, da família alargada, dos amigos, dos colegas de trabalho, de
possíveis vizinhos ou outros elementos da comunidade. A rede social das
pessoas separadas muitas vezes muda, perdendo-se os amigos antigos,
casados, para se estabelecerem novas interacções, eventualmente mais
casuais e com mais sujeitos solteiros. Parece, no entanto, relativamente
consensual que o ajustamento é mais rápido quando a interacção social é
maior e qualitativamente mais rica.

No desenvolvimento do processo de divórcio e da reorganização do sis­


tema subsequente à separação, assume, pois, particular importância a forma
como cada elemento, por um lado, e o(s) sistema(s) familiar(es), por outro,
equaciona(m) a crise. Os ex-cônjuges têm de conseguir fazer o luto pelo
projecto de conjugalidade e pela família que vinham construindo e têm de
criar as bases para a reorganização da parentalidade, aspecto habitualmente
dificultado pela raiva e/ou pela desilusão que sentem um pelo outro, pela
dificuldade de articulação de interesses e necessidades emocionais e mate­
riais (definição do tipo de custódia, divisão de bens comuns, definição da
pensão e da participação em despesas inesperadas, articulação de férias e
tempos livres), pela interacção com as famílias de origem do antigo parceiro
(é muitas vezes notória a dificuldade de manter relações com aqueles que
eram sogros, cunhados, tios ... e que agora nem sabemos exactamente como
chamar!) e pelas triangulações disfuncionais facilmente criadas (não só os
pais triangulam muitas vezes com os filhos como estes se oferecem facil­
mente como objecto de triangulação, na esperança de repor o sistema na sua
forma antiga; por vezes são os avós ou outros elementos da família alarga­
da que fomentam este tipo de triangulação). A existência de um novo par­
ceiro conjugal, por parte de um ou de ambos os ex-cônjuges, constitui mais
um elemento de perturbação para a construção da nova parentalidade.

Conheci Marta quando, preocupada com o comportamento de desinte­


resse escolar do filho e com dois pequenos furtos de dinheiro que o mesmo
39
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

realizara, esta pediu consulta. No momento do preenchimento da ficha de


atendimento sobressaiu a sua angústia, e ao mesmo tempo a sua raiva, pe­
rante a descoberta de que o marido tinha uma relação extra-conjugal.
Decidida a terminar o casamento, Marta já contactara com um advogado e
comunicara ao marido que queria que ele aceitasse o divórcio, ficando ela
com a custódia dos filhos e com a casa de família. A situação era relativa­
mente recente: no momento viviam todos na mesma casa, partilhando a
mãe o quarto da filha, estando o filho no seu quarto e permanecendo o pai
das crianças no quarto do casal. Marta tinha medo que toda esta situação
afectasse os filhos e queria, sobretudo, poder falar com alguém que a des­
cansasse sobre o seu medo de poder traumatizar as crianças com esta sua
decisão; por outro lado, não imaginava poder tomar outra. Não negando a
relação extra-conjugal, nem pretendendo terminá-la, o pai das crianças não
aceitou bem a proposta de divórcio e alguns episódios de violência vieram
a ocorrer já durante o processo terapêutico que realizei com Marta.

Embora Peck e Manocherian (1995, 316) sejam peremptórios em afir­


mar que, durante a fase de tomada de decisão, se apenas um dos cônjuges
solicita terapia, é importante que ambos participem do processo terapêutico
para lentificar essa tomada de decisão, de modo não só a explorá-la como
a equacionar as questões que com ela estão relacionadas, com Marta fiz três
atendimentos conjuntos com os filhos: as crianças referiram que tinham
pena de ver os pais separados mas que percebiam as razões de tal decisão;
apenas pediam que os não envolvessem nesse processo. Ao fim de mês e
meio, o menino tinha retomado o seu interesse pela escola, recuperando
também os bons resultados escolares a que todos estavam habituados, e a
mãe não tinha queixas relevantes sobre o seu comportamento. Nunca mais
surgira nenhum episódio de roubo, situação que se manteve durante todo o
tempo em que continuei a atender Maita sozinha. Foi para mim evidente
que as crianças queriam estabelecer um fronteira clara, pedindo-me indi­
rectamente para continuar a apoiar a mãe. Esta não achava importante, nem
queria, ter o marido presente. Iniciámos, então, um processo em que pro­
curei trabalhar dois níveis fundamentais - o emocional e o pragmático.

Em termos emocionais, Marta estava muito fragilizada e com medo.


Permitindo-lhe libertar-se da raiva, procurei ajudá-la a: a) reforçar a sua
auto-estima, enquanto mãe e enquanto mulher, b) avaliar o real perigo que
tinha de ser agredida, c) separar aquilo que eram emoções decorrentes da
40
Novas Formas de Família

raiva de sentimentos que queria desenvolver, d) não descurando as suas


obrigações maternas, permitir que os filhos continuassem a relacionar-se
com o pai (mesmo nas férias ou em fi·ns de semana em que ele estava com
a nova companheira) e que a senhora pudesse continuar e alargar relações
sociais que lhe eram gratificantes e que, preenchendo-a, não lhe permitis­
sem sentir-se totalmente esvaziada ou usada. Muita atenta aos filhos, Marta
tinha uma total necessidade de manter alguns espaços de individualidade,
agora quase inexistentes não só pela partilha de quarto com a filha como
pelo ritmo frenético de vai-vém entre escolas e tempos livres. Por outro
lado, precisava de conversar, de desabafar: fazia-o com a filha mas não
achava bem pois sentia que a estava a parentificar. Paulatinamente começou
a conciliar tempos familiares, profissionais e pessoais - retomou alguns
prazeres de solteira, ainda que contextuados pela sua idade actual e pela sua
condição de mãe de dois filhos.
Ao nível pragmático, discutimos conjuntamente aspectos relativos: a)
aos filhos e ao seu papel de mãe, b) à condução do processo de divórcio, c)
às férias das crianças com cada um dos progenitores e às suas férias sem
miúdos, d) à articulação parental em termos de compatibilização de fins de
semana e períodos em que não podia acompanhar ou ir buscar as crianças;
e) às relações com as famílias de origem, nomeadamente com os avós e
tios.
Este processo terminou antes de estar concluído o divórcio. Marta esta­
va cada vez mais capaz de tomar decisões e de se reorganizar enquanto
família monoparental, inscrevendo-a numa rede alargada de amizades e de
relações. Numa consulta com as crianças, em que as mesmas consideraram
não haver grandes problemas na articulação com ambos os pais, disponibi­
lizei-me para as atender se algum dia o desejassem, fosse essa necessidade
sentida apenas por uma ou por ambas.

Considerando ter sido mais útil esta configuração terapêutica, casos há


em que as opções têm de ser outras. Não negando a tensão, e tendo mesmo
que, por vezes, a activar, penso, contudo, que há que manter os níveis de
conflitualidade em limites emocionalmente suportáveis e mentalizáveis.
Por isso nem sempre é possível, pelo menos na nossa cultura, juntar os ex­
-cônjuges.

Em todas as situações, porém, os aspectos emocionais e pragmáticos


que acompanham um processo de divórcio têm que ser equacionados e as
41
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

modalidades terapêuticas a usar podem ser muito variadas. Peck e


Manocherian (1995, 316-317), relativamente àfase de pré-decisão, consi­
deram ainda, para além do trabalho conjunto da decisão de separação, a
possibilidade de:

• "provocar decisões orientadas para o futuro, ajudando o casal a


perceber as ramificações que se seguirão a uma decisão dessas,
identificando questões específicas [de cada estádio do ciclo vital].
( ...)Talvez [possa] ser adequado encaminhar o(s) cônjuge(s) para
um grupo psico-educacional que [foque] o processo de divórcio e
as questões financeiras e relacionadas aos filhos";
• "recomendar uma separação experimental sem nenhuma implicação
legal, como um período de esfriamento. Para que uma separação
experimental seja efectiva, o casal precisa estabelecer o seguinte:
um limite de tempo, no final do qual o relacionamento será avalia­
do e tomada uma decisão, seja de aumentar o tempo de separação,
reconciliar-se ou divorciar-se; arranjos temporários de vida, sem
vínculos, com provisões financeiras e relação com os filhos; se,
quando e como terá o casal contacto, incluindo telefonemas,
encontros e sexo; e o tribunal onde trabalhar o casamento (isto é a
terapia). Durante o período de tempo especificado o casal não deve
ficar obcecado com a decisão de divorciar-se ou não, a decisão
deve ser adiada. O foco muda para examinar o relacionamento e a
participação de cada um nos problemas";
• "recomendar uma consulta com um mediador de divórcio ( ... ) [de
modo a que] o casal [participe] do processo de reorganizar a
família em vez de transferir as decisões para os advogados" que só
o formalizarão.

Na fase de separação, como já anteriormente referi, a intervenção foca­


liza-se no aconselhamento em relação ao divórcio, equacionando-se a pla­
nificação de uma parentalidade cooperativa e discutindo-se a reorganização
das relações com as famílias de origem (Peck e Manocherian, 1995, 317).
A preparação dos filhos e da família alargada para as vivências da nova
família, assim como a realização do luto pelo casamento e pela família
nuclear, são tarefa s igualmente importantes nesta fase.
42
Novas Formas de Família

De acordo com Peck e Manocherian (1995, 296), a quarta etapa neste


processo de ajustamento ao divórcio - de reorganização do sistema -
"envolve o difícil processo de deixar claras as fronteiras ( ...). O desafio
para os sistemas familiares torna-se o de reorganizar, ao invés de desman­
telar. Novas regras e padrões devem ser desenvolvidos( ... ), na ausência de
normas ou de apoios sociais para as famílias divorciadas", sendo que quan­
to mais excluído for o progenitor não residente maior será o potencial de
disfunção familiar. Diversos estudos sobre o relacionamento co-parental
evidenciam que o primeiro ano é o mais difícil(Goldsmith, 1980, in op.cit.,
296).

O quinto e último estádio - de redefinição do sistema - coincide com a


resolução das tarefas anteriores e com a nova auto-definição familiar,
assuma ela a versão da monoparentalidade, a que já anteriormente aludi, ou
do recasamento.

Se um primeiro casamento envolve, habitualmente, a ligação de duas


famílias, o recasamento implica o entrelaçamento de três, quatro ou mais
famílias, em relações que ainda hoje estamos pouco habituados a equa­
cionar. Com efeito, a própria linguagem traduz a dificuldade de nomear as
novas relações fora da família nuclear tradicional, emprestando um cunho
negativo à forma como passamos a designar os antigos membros - os
chamados ex - e como passamos a apelidar os novos membros - madrasta,
padrasto, enteados(as).

As famílias recasadas, i. é, aquelas onde um novo vínculo conjugal cons­


titui a base para o complexo arranjo de várias famílias numa nova conste­
lação, não podem organizar-se como se de uma família nuclear intacta se
tratasse. Se tal acontecer, é possível que o novo agregado procure criar uma
fronteira de lealdade em torno dos membros da família, excluindo pais ou
filhos biológicos e dificultando a forma como a nova crise acidental
(recasamento) e as futuras crises naturais (relativas ao próprio desenvolvi­
mento familiar) são equacionadas. O modo como a separação foi vivida,
como a co-parentalidade tem sido gerida, como as relações entre pais e fi­
lhos e entre irmãos se têm desenvolvido, assim como a forma como os
novos cônjuges integram o seu estatuto e desenvolvem o seu papel na nova
família constituem variáveis muito importantes na estruturação e desen­
volvimento destas famílias. Como referem McGoldrick e Carter ( 1995,
43
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

345), "o novo modelo de família requer ( ...): 1) fronteiras permeáveis em


torno dos membros das diferentes famílias, que permitam aos filhos ir e vir
facilmente, conforme combinado nos acordos de visitação e custódia; 2)
aceitação das responsabilidades e dos sentimentos paternos do cônjuge sem
assumir essas responsabilidades por ele ou tentar competir com [a ligação]
progenitor-filhos ou combater o necessário contacto com o ex-cônjuge.
( ...) Num sistema recasado funcional, ( ...) as responsabilidades de cuidar
dos filhos dele e dos dela devem estar distribuídas de maneira que não [se]
exclua ou combata a influência dos pais biológicos". Como eu própria já
escrevi noutro lugar, é importante que o padrasto ou a madrasta aceitem que
o papel parental seja desenvolvido através da figura parental biológica e
reservem para si o papel de precioso(a) auxiliar. Com o tempo, e em função
da idade e da residência principal dos enteados, o seu papel poderá tornar­
-se mais activo (Alarcão, 2000, 209).

Se esta configuração do exercício da parentalidade é dificultada pela


sobredeterminação do modelo de família nuclear intacta e pelo desejo de
integração plena, por parte do padrasto, na nova família, a situação é, por
ventura, ainda mais complicada nas famílias com madrasta. Como subli­
nham McGoldrick e Carter (1995, 345-346), "a maioria das pessoas, tanto
homens quanto mulheres, supõe que a madrasta, por ser mulher, tomará
conta da casa, dos filhos e dos relacionamentos emocionais de todo o sis­
tema. ( ...) Nem as normas de sua família nem as normas societais a
preparam para aceitar ou participar de relacionamentos familiares que não
incluem necessariamente um vínculo emocional primário". No entanto, em
ambos os casos, a construção paulatina dos novos laços parece ser um dos
aspectos mais importantes. De acordo com um estudo de Dahl e colabo­
radores (1987, cit. in McGoldrick e Carter, 1995, 347), realizado em
Connecticut com 30 famílias recasadas não atendidas clinicamente, "o
«sentimento de pertencer [à nova família]»( ...) demorou três a cinco anos
[a instalar-se] para a maioria dos seus membros, [sendo mais demorado] se
havia adolescentes". Interrogadas sobre que conselho dariam a outras
família recasadas, responderam "1. Vão devagar. Tenham paciência.
Encerrem [o vosso] antigo casamento (divórcio) antes de começar um
novo. Aceitem a necessidade de contínuo envolvimento das partes da anti­
ga família com a nova. Ajudem as crianças a manterem relacionamentos
com os pais biológicos. 2. Os padrastos devem ser cordiais, mas não
esperem o amor de um enteado. Eles devem respeitar o vínculo especial
44
Novas Formas de Família

entre o progenitor biológico e a criança. 3. [Comuniquem], negociem,


comprometam-se e aceitem o que não pode ser mudado" (idem, ibidem).

Na constituição e desenvolvimento das famílias recasadas, as dificul­


dades parecem ser geralmente menores quando o novo cônjuge é, também
ele, divorciado; pelo contrário, na ausência de uma experiência prévia de
casamento, o novo cônjuge pode ter mais pressa em assumir um papel
parental, até na ilusão de reforçar a conjugalidade. Contudo, a satisfação
conjugal é frequentemente perturbada pela presença das crianças/adoles­
centes, à semelhança, aliás, do que acontece nas famílias intactas. Com
efeito, se a maior parte dos casais pretende ter filhos, diversa investigação
tem mostrado um aumento do stress familiar enquanto as crianças são
pequenas, sendo, precisamente, durante os primeiros sete-dez anos de
casamento que ocorre a maior taxa de divórcios.

Por outro lado, nessa evolução, é também importante que a bagagem


emocional com que se chega à família recasada 11 - proveniente da família
de origem, do primeiro casamento e do processo de divórcio - não esteja
preenchida por questões não resolvidas. É aqui que muitas das famílias con­
vertem a crise em avaria, surgindo, então, muitas situações sintomáticas.

Uma das primeiras famílias recasadas que conheci chegou à consulta em


virtude das dificuldades sentidas com o filho mais velho, adolescente de
14 anos, bom aluno até há cerca de dois anos mas que actualmente dimi­
nuíra acentuadamente o seu rendimento escolar, faltava a diversas aulas e

" Num outro local já tive oportunidade de equacionar alguns dos aspectos mais sig­
nificativos relativamente ao ciclo de vida destas famílias, assim como os elementos que
podem dificultar esse mesmo processo desenvolvimental. Aí referi alguns dos aspectos
em que o ciclo de vida destas famílias mais se distingue do das famílias nucleares tradi­
cionais - !) coexistência de diferentes etapas do ciclo vital que não podem ser fundidas
nem ultrapassadas mas que têm de ser vividas num registo de complementaridade e que
obrigam a uma rápida vivência de diferentes papéis familiares (p.e., uma jovem solteira
pode tornar-se simultaneamente esposa e madrasta de dois filhos adolescentes; um filho
único pode tornar-se o irmão mais novo de uma fratria de dois, etc.), 2) necessidade de
criar novas regras e de tecer novos padrões transaccionais, sem negar o passado mas
percebendo que o presente é outro (Alarcão, 2000, 204-211).
45
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

provocava os colegas e professores a ponto de ter diversas faltas discipli­


nares. Na realidade Luís era o irmão mais velho de uma fratria de dois que,
com o recasamento da mãe se tinha alargado de modo a incluir um outro
rapaz, ligeiramente mais novo, filho do padrasto de Luís. A mãe, que com
o novo casamento pensava poder encontrar uma estabilidade emocional e
financeira, via agora o seu novo casamento estremecido pelas dificuldades
que os filhos levantavam ao exercício da autoridade parental do padrasto.
Este, que procurara ajudar a mulher "a ter mão nos rapazes", estava a ficar
farto das guerras familiares que quotidianamente marcavam a vida da nova
família e equacionava poder afastar-se. Na segunda sessão de avaliação
comecei a perceber que Luísa nunca concluíra o seu divórcio emocional e
mantinha uma relação de conflito com o ex-marido, situação que dificulta­
va o desenvolvimento das relações entre pai e filhos. Com este novo casa­
mento Luísa parecia querer concluir o seu divórcio, ao mesmo tempo que
procurava uma maior estabilidade financeira e "um pai" para os seus filhos.
Curiosamente entendia-se muito bem com o enteado de quem os seus fi­
lhos, e particularmente o mais velho, tinham muitos ciúmes.
Quando tentei clarificar os limites intra-familiares e os problemas de
lealdade e quando procurei aliviar o padrasto desta sua "missão de tentar
exageradamente ser o pai dos rapazes", a mãe desmarcou a consulta
seguinte e não voltei a saber mais nada desta família.

A revivência das dificuldades emocionais e financeiras colocadas pelo


divórcio (p.e., definição da custódia e/ou da pensão de alimentos, reapare­
cimento de sentimentos de depressão, culpabilidade, ambivalência, etc.)
são aspectos que frequentemente se associam ao recasamento de um dos
progenitores. Com efeito, as emoções relacionadas com o primeiro casa­
mento e a primeira configuração familiar tendem não só a activar-se nos
momentos da tomada de decisão e da separação/divórcio como surgem em
outros momentos futuros: recasamento de um dos ex-cônjuges, mudança na
custódia de algum dos filhos, mudança de casa de um dos ex-cônjuges,
doença ou morte de um dos ex-cônjuges, transições do ciclo de vida dos fi­
lhos (licenciatura, casamento, doença, etc.) (McGoldrick e Carter, 1995,
352).
Por isso, apesar das singularidades de cada família, há pelo menos três
atitudes emocionais que terapeuticamente é importante incentivar e que são
essenciais para facilitar a transição desenvolvimental inerente ao processo
de formação e de estabilização das famílias recasadas: 1) resolução do vín-
46
Novas Formas de Família

culo emocional com o ex-cônjuge; 2) abandono do ideal de estrutura da


primeira família e aceitação de um modelo conceptual diferente de família;
3) aceitação do tempo e do espaço necessários à construção da nova
família. Como afirmam McGoldrick e Carter, "o malogro emocional em
atingir essas «atitudes capacitadoras» dificultará ou impedirá seriamente a
reorganização e o futuro desenvolvimento da família [recasada]" (op. cit.,
356).

3. Adivinhando alguns Problemas das Farm1ias Adoptivas ...

Em dezoito anos de terapia familiar, só me cruzei ainda com três


famílias adoptivas. Durante alguns anos entrevistei diversos casais can­
didatos a adaptarem uma criança: pude confrontar-me com a dor que a
infertilidade comporta, com o receio de não se saber como revelar a
natureza do vínculo filial, com o medo de, um dia, se ser preterido em favor
dos pais biológicos, com a negação de quaisquer dificuldades ou, pelo con­
trário, com o temor da herança biológica. Uns anos mais tarde voltei a
entrevistar alguns desses casais, agora já pais de crianças em idade escolar:
falaram-me, fundamentalmente, do medo que sentiram de perder a criança
durante o período de pré-adopção e do desejo de não voltarem a repetir a
experiência; contaram-me, sobretudo, as alegrias que a criança trouxe e
deixaram transparecer a existência de relações muito fortes, por vezes
quase fusionais.
Mas famílias adoptivas que tenham recorrido a uma consulta de terapia
familiar só conheci três.

A última foi uma família monoparental e a problemática que trouxe,


associada a uma enurese primária numa criança de dez anos, é a de uma
forte ligação mãe-filha que o anúncio da puberdade quer transformar sem
saber exactamente como. Tenho procurado trabalhá-la no sentido de abrir
as portas à individualidade num contexto familiar marcado por uma história
intergeracional de emaranhamento.

A primeira família adoptiva que conheci confrontou-me com uma


questão muito delicada - a da discrepância entre a criança imaginária e a
criança real.
47
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

José tinha oito anos quando veio para casa do casal Lemos. A mãe
deixara-o, cedo, entregue aos cuidados da avó, juntamente com outros
irmãos. O casal não tinha filhos, gostou do pequeno e adoptou-o. Quando
o rapaz perguntava pela avó, o casal respondia-lhe que agora a casa dele era
aquela e eles eram os seus pais pois haviam-no adoptado. Tudo correu bem
até que José foi para o ciclo: no sexto ano de escolaridade, tinha então onze
anos, começou a faltar a algumas aulas, a roubar pequenos objectos e
pequenas quantias de dinheiro para comprar rebuçados e outras guloseimas
que distribuía pelos colegas. Um dia as coisas complicaram-se na escola
pois "assaltou" o bar para, em conjunto com outros colegas, beberem
sumos e apropriarem-se de diversas gulodices.
A desilusão do casal era tão manifesta que os Lemos nem precisavam
de dizer o quanto desejavam poder "devolver" o rapaz à avó biológica. No
entanto, verbalizavam a sua decepção afirmando a ingratidão de José que
tantas arrelias lhes provocara nos últimos meses. Encolhido, indeciso entre
ouvir ou reagir às afirmações dos pais, José só dizia que não sabia o que era
ser adoptado.
Tentou a equipa terapêutica 18 redefinir o pedido de consulta (feito para
o José) no sentido de clarificar as dificuldades sentidas pela família (gestão
das relações entre os pais e o José no sentido de que este compreenda o que
pode ou não pode fazer e de que cada um perceba o que é que pode pedir e
dar aos outros). Mas também nesse momento percebeu que os Lemos ape­
nas queriam a magia de poder regressar a casa com o José que tinham so­
nhado e que era tão diferente daquele menino que com eles tinha vindo a
Coimbra e com eles regressava a casa...

Muitos anos se passaram já. Desta entrevista guardei a memória da


minha impotência face a duas grandes desilusões: a do senhor e da senho­
ra Lemos, que não conseguiram "ter" a sua criança, e a do José, que não
sabia como ser filho daqueles pais. No trabalho que, posteriormente, fiz
com casais que pretendiam adoptar procurei expandir o mais possível este
tópico de conversa no sentido de abrir espaços de metacomunicação sobre
discrepâncias entre a criança desejada e a criança real. Fiquei com a ideia
de que esta questão poderia dificultar o processo evolutivo de muitas ou-

" Foi com Rui Paixão que entrevistei esta família.


48
Novas Formas de Família

tras famílias e de que, avolumada por dúvidas relativas ao património


genético da criança e à força do vínculo adoptivo versus vínculo biológico,
ela poderia ajudar a cristalizar 19 comportamentos que, por isso mesmo, se
tornavam problemáticos.

Da outra família só conheci a mãe, preocupada com os silêncios e o


fechamento do seu filho adoptivo mais velho, agora em plena adolescência
e confrontado com a necessidade de realizar a sua primeira grande opção
vocacional. Imaginava a mãe que estaria "corroído" por dúvidas relativas à
sua própria identidade, à história da sua família biológica e ao percurso da
sua primeira mãe, antiga prostituta de uma conhecida rua da cidade onde
vivia. Nos primeiros anos todos tinham mantido contactos e havia
fotografias da mãe biológica em casa da família adoptiva. Um técnico
aconselhara, mais tarde, a mãe adoptiva a não dar continuidade a estes con­
tactos para não perturbar o processo identificatório das crianças.

É sempre difícil saber o que teria acontecido se... mas tornar este um
assunto tabu, operar um corte tão profundo nas memórias e nas histórias
destas pessoas parece-me ter constituído um processo que dificultou o
desenvolvimento posterior da família, particularmente quando o filho mais
velho procurou reorganizar a sua genealogia familiar e reconfigurar a sua
identidade. Como já escrevi noutro local (Alarcão, 2000, 225-226) a quar­
ta etapa do ciclo vital - família com filhos adolescentes - constitui um dos
períodos mais difíceis do desenvolvimento individual do adaptado e do
desenvolvimento familiar da família adoptiva. "Se habitualmente este é um
período de claro ensaio e negociação da autonomia e da separação do ado­
lescente e dos seus pais, tais tarefas complexificam-se nestas famílias pelo
medo do abandono e pelo receio que estes sentem de que o adolescente,
finalmente, opte pelos seus pais e pela sua família biológica ou os castigue
pelo facto de eles, pela adopção, o terem privado do contacto com essa
parte da sua história. As dúvidas identitárias que normalmente assaltam o
adolescente estão, neste caso, amplificadas: muitas vezes, o desejo do ado­
lescente de querer conhecer a sua família biológica, as suas raízes geográ-

"Para um melhor conhecimento do processo de formação sintomática recomendo a


leitura de Ausloos (1996, 133-140).
49
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

ficas, as histórias do passado não significa que ele queira deixar a família
adoptiva mas apenas que quer unir as várias partes da sua história para
poder continuar a tarefa de construir a sua identidade. Neste período de pro­
funda insegurança e grande transformação, é importante que pais e filhos
adoptivos tenham uma confiança mútua, se sintam afectivamente gratifica­
dos e demonstrem flexibilidade de forma a poderem superar as crises que
necessariamente ocorrerão. Neste sentido, esta é uma fase em que as
famílias adoptivas podem necessitar novamente de apoio familiar e social
(eventualmente técnico): o poder metacomunicar sobre os seus medos,
sobre as suas angústias, o poder partir à procura de novos encontros com o
passado são tarefas dolorosas que despertam muita ambivalência em ambos
os pólos desta díade (pais-adolescente) mas que são necessárias para que o
seu desenvolvimento possa continuar a processar-se satisfatoriamente.( ... )
Face a estas múltiplas questões o adolescente pode tomar uma de três
opções: a metacomunicação sobre as suas dúvidas e o seu sofrimento (com
os pais adoptivos, com outros familiares ou com outras pessoas da sua rede
social) seria a opção mais desejável e satisfatória mas nem sempre é a mais
seguida; a provocação e a projecção da agressividade sentida é um recurso
frequente que se reificará ou será ultrapassado em função da resposta do
meio e da evolução das angústias e dos medos do adolescente; os vividos
depressivos ou a apatia constituem uma outra saída, habitualmente mais
problemática. A aparente ausência de problemas, dúvidas ou angústias
deve constituir um sinal de alerta pois este processo é naturalmente com­
plexo e doloroso e esta pseudo-calma mais não é do que negação de tais
dificuldades".

Foi exactamente essa possibilidade de metacomunicação que propus a


esta mãe: falando com o marido este não acedeu à marcação de uma entre­
vista familiar, entendeu a senhora que por medo de perturbar ainda mais
toda a família. Procurei conotar positivamente a decisão, reforçando a
minha confiança na competência da família e disponibilizando-me para
qualquer outro contacto, com qualquer membro da mesma.
Continuo ainda hoje a pensar que não será na interrupção nem na ocul­
tação de partes da sua história individual ou familiar que estas famílias, e
naturalmente os seus elementos, poderão encontrar o potencial que lhes
permitirá ultrapassar criativamente as várias crises desenvolvimentais com
que naturalmente se confrontarão. Mas tenho, de certo, que esperar mais
alguns anos para que elas me contactem em maior número e me possam
50
Novas Formas de Família

ajudar a compreender melhor algumas das suas dificuldades e das formas


de as superar.

Concluindo...

A terapia familiar é, sem dúvida, uma arte que se aprende, estudando e


ensaiando. Nos primeiros tempos o recurso sistemático à supervisão revela­
-se fundamental para flexibilizar as aprendizagens teóricas, alargar as
visões e trabalhar a auto-referência e as ressonâncias (Elka"im, 1990, 1999);
posteriormente, os espaços de supervisão e de partilha com observadores
continuam a ser importantes no enriquecimento de um terapeuta familiar.

Se o conhecimento do modelo conceptual e dos instrumentos terapêuti­


cos das várias escolas ou movimentos da terapia familiar é importante na
formação e desenvolvimento de um terapeuta familiar, o treino de um pen­
samento sistémico, sistematicamente aberto à diversidade de ligações que
constituem a trama na qual desenvolvemos a nossas relações ou blo­
queamos as nossas capacidades de crescimento e evolução, é, assim o con­
sidero, a "pedra de toque" desta arte de conversar com as famílias. A fle­
xibilização das visões, pelo seu alargamento e reenquadramento, e a
acoplagem terapêutica com a família tornam-se. então, formas essenciais de
estar na terapia.

Neste enquadramento, compreende-se que as concepções que temos do


que é (ou do que pode ser) a família - de quais são as suas configurações,
as suas funções primordiais e as suas tarefas desenvolvimentais, os ingre­
dientes promotores da sua funcionalidade e a auto-percepção das suas difi­
culdades - constituem variáveis fundamentais no desenvolvimento de qual­
quer terapia familiar. Foi exactamente no sentido de amplificar, validar e
consolidar algumas das nossas construções clínicas que Ana Paula Relvas
desenvolveu uma linha de investigação sobre "novas formas de família"
cujo resultados se apresentarão nos próximos capítulos. Para além deste
saber empírico, as nossas experiências e vivências familiares tornam-se ele­
mentos de intersecção com a família (Elkai"m, 1999) que importa analisar,
na medida em que podem constituir amplificações que não permitem ultra­
passar o equilíbrio atingido pelo sistema (e assim só podem promover
51
Novas Formas de Família, Novas Formas de Terapia?

mudanças de l.ª ordem) ou, pelo contrário, podem conduzir o sistema ao


ponto de bifurcação, num movimento que abre as portas à mudança de 2.ª
ordem2º.

Se nas conversas que desenvolvemos com famílias que se enquadram


no que convencionámos designar como novas formas de família há ele­
mentos singulares, essa especificidade resulta, fundamentalmente, do
padrão que todos temos do que é a família, padrão esse que ainda se
justapõe à família nuclear intacta. Mais do que novas técnicas, são, então,
novas configurações mentais que temos que desenvolver. Mas esse é tam­
bém o segredo de todo e qualquer terapeuta familiar! ...

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'º Num outro local (Alarcão, 2000, 13-31 e 81-90) pude desenvolver mais especifi­
camente a forma como a sistémica, e particularmente a terapia familiar, têm conceptua­
lizado a forma como os sistemas humanos funcionam e como a mudança neles ocorre.
52
Novas Formas de Família

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Capítulo 2
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Fátima Tribuna
Ana PauJa Relvas
Este capítulo é uma síntese revista da Dissertação de Mestrado em Família e
Sistemas Sociais (ISMT) realizada por M. F. Tribuna, sob a orientação de A. P. Relvas,
e intitulada Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência (cf. Tribuna, 2000).
Iniciamos este debruçar; com carácter mais empírico, sobre algumas das
chamadas novas formas de família, apresentando uma investigação cen­
trada nas Famílias de Acolhimento.
Provavelmente, de todos os tipos de família, estas são as menos reco­
nhecidas como tal. Com efeito, quem pensa nas famílias a quem foi tem­
porariamente entregue uma criança, com o objectivo de lhe garantir
condições de educação e desenvolvimento que os pais biológicos não lhe
podem proporcionar; como uma família com características novas e dife­
rentes atendendo à inclusão desse novo elemento? Poucos, cremos. Por
outro lado, para quem fará sentido isolar como forma ou estrutura fami­
liar diferente um contexto que, por definição, se supõe efémero, quando
mesmo o próprio conceito alargado de família aponta para a per­
manência e continuidade no tempo dos laços entretanto criados? Talvez
já muitos mais. Efectivamente, esse sentido resulta da percepção que
quase todos temos de que essas famílias "emprestadas" vão ter que,
junto da criança ou do jovem que acolhem, desempenhar um papel muito
próximo daquele que é atribuído às famílias "verdadeiras". Será, ainda,
que é útil entender como mais uma forma de família uma estrutura
definida como tal a partir de um reconhecimento e legitimação externa
e formal, isto é, feita pelos Serviços de Acção Social? De novo acredita­
mos que sim e também que, neste sim, estaremos acompanhadas por
muitos dos que lidam e se preocupam com estas famílias.
Posto isto, um primeiro aspecto a rejlectir tem que ser o inevitável
envolvimento de duas famílias nesta problemática - a biológica e a de
acolhimento - o que implica, necessariamente, alianças e triangulações,
nas quais se pretende evitar o aparecimento de coligações e disfun­
cionamentos. Um segundo aspecto prende-se com o que afirmámos ini­
cialmente: o recurso ao acolhimento familiar implica a transitoriedade
56
Novas Formas de Família

- da relação criança/jovem - figuras parentais no acolhimento - numa


continuidade desenvolvimental e relativamente à família biológica. Esta
situação, já em si mesma complexa em termos psicológicos, é muitas
vezes agravada por rupturas dramáticas associadas à retirada dos
menores aos pais.

Surge, então, uma pergunta inevitável: quem são e como são as famílias
que, quando aceitam acolher alguém nestas condições, se dispõem, elas
próprias, a jogar este jogo? Que famílias, supostamente, respondem
"Sim!" às duas regras fundamentais do próprio jogo: 1) estão disponíveis
para aceitar e cuidar desta criança?; 2) estão dispostas a fazê-lo sem
desenvolver em relação a ela um sentimento de pertença? Na tentativa de
encontrar respostas utilizámos, na investigação levada a cabo, algumas
medidas do funcionamento e da dinâmica familiares.
Contudo, outras perguntas acompanham a anterior. Como é que este
jogo é jogado por alguns dos seus principais protagonistas (quem acolhe
e quem é acolhido)? Que implicações tem o seu desenrolar nos vínculos
que entre eles se estabelecem? Para lhes respondermos recorremos a
escalas de medida da comunicação e da vinculação, no pressuposto de
que permitiriam obter bons índices da qualidade da relação entre eles
estabelecida.
Porque, como já foi afirmado por uma de nós, colocar uma criança não
é um acto neutro nem uma simples operação técnica, é preciso encarar
de frente estes contextos e tentar conhecer estas famílias, tantas vezes
pouco (re)conhecidas.
A perspectiva sistémica imprime à noção de família quer uma dimensão
relacional, expressa nas normas, na estrutura e na interacção familiares,
quer uma dimensão temporal, expressa no seu desenvolvimento, na sua
evolução e continuidade. Nesta perspectiva, a família tem que ser com­
preendida como um sistema com funções próprias e distintas na articulação
entre estas duas dimensões. Poderemos dizer que aqui reside o valor
intrínseco e específico da Família que a distingue de todo um outro con­
junto de sistemas sociais e humanos.
A família, tal como a sua própria definição, nada tem de linear.
Transportando esta conclusão para o que pode ser uma linha condutora de
análise na actualidade, é inevitável aceitar, hoje em dia e abandonando
esquemas simplistas de pensamento, que a nossa reflexão tem que se cen­
trar no estudo e análise das diferentes formas de família que constituem,
afinal, a Família, enquanto conceito lato integrador.
Todas as suas expressões, entre as quais incluímos as famílias de aco­
lhimento, traduzem a realidade da família contemporânea, ou seja, uma
nova visão sobre a família, agora enquadrada numa perspectiva mais rela­
cional das suas funções e papéis e mais apoiada no consenso mútuo do que
nos costumes.

Para um Enquadramento do Acolhimento Familiar

As famílias de acolhimento destinam-se a "acolher, temporária e transi­


toriamente, crianças e jovens cuja família natural não esteja em condições
de desempenhar a sua função educativa" (Decreto-Lei nº 190/92 de 3 de
Setembro, artigo 1 º). Essas crianças e jovens são habitualmente crianças em
risco e/ou oriundas de famílias em risco.
Entre as situações de risco dessas crianças (independentemente de as
suas manifestações serem episódicas ou traduzirem uma forma de agressão

Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.) (2002). Novas Formas de Família.
Coimbra, Quarteto Editora.
58
Novas Formas de Família

repetitiva) incluem-se os maus-tratos físicos e psicológicos, o abuso sexual


e toda e qualquer forma de negligência e desinteresse por parte das figuras
parentais ou de outros com quem privem. A própria privação de cuidados
representa uma agressão. Finalmente, não poderemos deixar de referir situa­
ções de falecimento ou abandono por parte dos progenitores. Nas famílias
de risco distinguimos: (1) as famílias multiproblemáticas ou multiassistidas,
definidas pela "forma de estar e relacionar-se, bem como pela existência de
uma série de problemas que afectam um número indeterminado de elemen­
tos, em margens qualitativa e quantitativamente muito amplas" (Alarcão,
2000, 315); (2) aquelas famílias que, momentaneamente, se encontram afec­
tadas nas suas condições psico-sócio-económicas (Miermont et al., 1994).
Em Portugal, e em termos práticos, nas famílias de acolhimento dis­
tinguem-se duas modalidades: acolhimento familiar e colocação em
famaia, também chamada colocação familiar, que apenas têm como
critério de distinção a existência ou não de laços de parentesco entre a
família que acolhe e a criança/jovem acolhido'. Por uma questão de uni­
formidade de terminologia, e porque nos parece veicular uma maior preci­
são, optaremos pela expressão "colocação em família" em detrimento de
"colocação familiar". Como ponto comum a qualquer uma das modalidades
agregadas sobre a designação legal de Acolhimento Familiar, consideramos
que a integração de uma criança ou jovem em qualquer família de acolhi­
mento envolve um processo de separação em relação ao grupo familiar com
quem fez as primeiras identificações e com quem foram aprendidas as
primeiras regras.

'Em termos de modalidades e atendendo à realidade francesa, Bridgman (1988) não


considera a distinção anterior, mas distingue em termos gerais a colocação fa miliar geral
e a colocação familiar especializada. A primeira, destina-se a confiar uma criança a uma
família que não a sua família de origem natural, tendo por "finalidade assegurar à
criança, momentânea ou definitivamente privada dos seus pais, uma boa saúde física e
moral ou seja, um adequado desenvolvimento" (op. cit., 385). Fundamentada no pare­
cer de técnicos de serviço social e legalmente decidida pelos tribunais de menores, por
esta via a sociedade assume o dever legal de se substituir ao contexto familiar natural.
A colocação familiar especializada destina-se especialmente a crianças que apresentam
uma patologia ou desvio determinado e que, como tal, carecem de acompanhamento
pedopsiquiátrico e cujos pais biológicos não se encontram em condições de desempe­
nhar a sua função educativa. Surge, assim, como uma técnica médico-social que tenta
conciliar a mudança terapêutica da criança e a intervenção sobre o seu meio familiar
(op. cit., 385).
59
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

No decurso desta pesquisa, encontrámos as primeiras referências teóri­


cas a estas famílias na tipologia estrutural-diagnóstica de Minuchin e
fishman (1990), classificação que entra em linha de conta com a com­
posição e estrutura da família, a fim de delinear as suas eventuais dificul­
dades e potencialidades, mas que tem como limite o facto de não ter em
conta a cultura da família. Nesta classificação, poderemos fazer corres­
ponder as famílias de acolhimento à "família hospedeira" (fosterfamily, no
original inglês), com membros familiares temporários. Aí, a paradoxali­
dade do pedido de acolhimento, formulado por parte dos Serviços de
Acção Social, reside no facto de uma relação familiar pais-filho(s) dever
ser evitada. A mensagem, mais ou menos implícita, dirigida a estas
famílias é: "façam de conta que são os pais desta criança mas não se
envolvam, pois a qualquer momento ela pode voltar para os seus ver­
dadeiros pais". Tal nem sempre é conseguido, pois a família organiza-se
como se não estivesse perante um "hóspede", criando assim tensões no
organismo familiar.
Na clarificação da problemática das Famílias de Acolhimento será
importante debruçarmo-nos sobre a questão da terminologia utilizada rela­
tivamente às "duas" famílias envolvidas na situação. Se em relação às
famílias "hospedeiras" destas crianças e jovens não surgem dúvidas - o
termo utilizado é sempre "famílias de acolhimento"- o mesmo não se
poderá dizer em relação às famílias de que são oriundos. Os autores consul­
tados usam indistintamente os termos família de origem, família biológica,
família natural, pais biológicos. No entanto, atendendo ao facto de que, no
caso português e na modalidade de Colocação em Família, os menores con­
tinuam a cargo da sua família natural, optámos pela expressão "pais
biológicos" para identificarmos o seu núcleo familiar original.

Algumas notas sobre o Acolhimento Familiar em Portugal

Já nas sociedades romanas, as crianças órfãs e abandonadas eram reco­


lhidas nas abadias ou dirigidas para famílias rurais. Em Portugal, situamos
procedimento idêntico a partir das Rodas dos Expostos que funcionavam
nas casas de recolhimento e clausura (Nova Enciclopédia Portuguesa,
Volume 22).
À época, era preocupação que o país tivesse plena cobertura de uma
rede de assistência pública aos expostos; a par desta iniciativa, foi fundada
60
Novas Formas de Família

no reinado de D. Maria I, em 1780, a Casa Pia de Lisboa, com o objectivo


de "criar a infância desvalida" (Machado et ai., 1997, 174).
Em todo este trajecto, as Misericórdias emergem como um dos garantes
da principal expressão da beneficência e do apoio à infância desvalida. Nas
iniciativas da época esboça-se a aliança entre o Estado e a sociedade laica,
representada por mulheres católicas pertencentes aos estratos sociais mais
elevados (Martins, 1999).
Em 1911, a publicação da Lei Portuguesa de Protecção à Infância, na
sequência da qual se criam as Tutorias de Infância, vem dar visibilidade às
principais medidas de protecção à infância, consubstanciadas no interna­
mento em Casas de Correcção e Reformatórios, instituições de regime
fechado que viriam a estar na génese de alguns Colégios como a Obra do
Padre Américo, entre outros (idem). Generaliza-se a ideia de que ao Estado,
e designadamente aos tribunais, compete intervir na "protecção, educação
e correcção dos menores abandonados, pobres ou maltratados, dos ociosos,
vadios ou mendigos e daqueles que se constituem como autores de contra­
venções ou crime" (Lei Portuguesa de Protecção à Infância, de 1911, cit. in
Fonseca et ai., 1998, 27). Após a Primeira Grande Guerra estão já bem inte­
riorizados os Direitos da Criança, pelo que em 1923 é proclamada, em
Genebra, a Primeira Declaração dos Direitos da Criança, versão que viria a
ser adoptada por Portugal em 1927 (Afonso, 1998).
Como marcos que se sucedem no tempo e que irão acabar por ter
expressão na produção legislativa dos anos seguintes e produzir impacto
num novo olhar sobre as políticas de apoio à infância, citamos a Declaração
dos Direitos das Crianças de 1959 e a Convenção das Nações Unidas rela­
tiva aos Direitos da Criança de 1989.
O culminar da década de 80 constituiu-se como referência em matéria
de produção legislativa na área dos menores, resultante do aprofundamen­
to do Estado de direito democrático e do quadro constitucional de inter­
venção do Estado2 • A própria Constituição Portuguesa consagra a protecção

' Aqui enquadram-se: em 1978, a revisão da Organização Tutelar de Menores de


1962 (Decreto-Lei n.º 314/78) que institui as primeiras instituições oficiais não judi­
ciárias - Centros de Observação e Acção Social (COAS); o Decreto-Lei n.º 288/79, de
13 de Agosto, que define a Colocação Familiar e estabelece os seus objectivos e o
Decreto-Lei n.º 189/91 que veio a criar as Comissões de Protecção de Menores.
61
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

à Infância (art. º 69), dando especial atenção às crianças "órfãs, abando­


nadas, ou por qualquer forma privadas de um ambiente familiar normal"
(art.º 69, ponto 2), situação que antes da 4ª Revisão Constitucional era
exclusiva dos órfãos e abandonados.
Não obstante toda esta produção legislativa, só a partir dos anos 80
Portugal passou a envolver-se na discussão do cuidado particular que as
medidas de apoio e protecção à Infância deveriam merecer. Só com o
Código Penal de 1982 foi instituído o crime de maus-tratos, passando a ser
entendimento geral, como vimos na Constituição Portuguesa, que as crian­
ças desprovidas de "meio familiar normal" são merecedoras de protecção
especial.
É neste contexto que o Acolhimento Familiar é institucionalizado legal­
mente através do Decreto-Lei n.º 190/92, de 3 de Setembro. Esta medida de
protecção social tem por objectivo "assegurar à criança ou jovem, um meio
sócio-familiar adequado ao desenvolvimento da sua personalidade, em
substituição da família natural, enquanto esta não disponha das devidas
condições" (Artigo 2.º - ponto único).
Conforme previsto legalmente, estas famílias usufruem de uma com­
pensação monetária, consubstanciada no subsídio de retribuição pelos
serviços prestados e subsídio de manutenção (Artigo 14.º, ponto 2, alínea
b). Despesas extraordinárias com saúde, transportes, equipamento escolar e
outras, como sejam educação, material escolar e de desgaste são também
suportadas pelos serviços de enquadramento - Acção Social (Artigo 14.º,
ponto 2, alínea d).
Gostaríamos de apresentar os dados quantitativos sobre a expressão
actualizada desta forma de família em Portugal. No entanto, sobre o assun­
to, o documento de que dispomos reporta-se a 1996, pelo que tal não é pos­
síveP.

'Em 1996, o total de crianças e jovens em famílias de acolhimento, independen­


temente da modalidade, era de 4.822, das quais 335 (6.9%) eram portadoras de de­
ficiência (Ministério do Trabalho e da Solidariedade ( 1999). Documento de Trabalho:
Amas, Creches Familiares e Acolhimento Familiar para Crianças e Jovens, Lisboa,
Direcção Geral de Acção Social, 33-73).
62
Novas Formas de Família

O Sistema Acolhimento Familiar

Numa óptica sistémica, a família de acolhimento é um sistema cuja


definição jurídica e funcional circunscreve três subsistemas (Figura l) e
duas famílias (pais biológicos/crianças; família de acolhimento) (Figura 2)
cuja interacção é em regra difícil (Bridgman, 1988).

Puis Biológicos/
Criunçus

Fumílias <le A�ão Social


Acolhi1ne11to

Figura 1 - Triângulo Relacional Figura 2 - Famílias em presença


no Acolhimento Familiar

Subsistemas e Triangulações

Contudo, é evidente que nem sempre os pais biológicos e respectivos fi­


lhos se mantêm como um sistema, pelo que entendemos poder discriminar
quatro subsistemas que geram uma dupla triangulação (Figura 3), na qual a
criança detém o papel de "duplo refém"'. Esses quatro subsistemas são:
pais biológicos; crianças ou jovens; família de acolhimento; Serviços.
Quanto aos Serviços importa esclarecer que podem ser oficiais ou não e que
devem ser entendidos em termos amplos e não circunscritos à Acção
Social, atendendo à multiplicidade de agentes que hoje intervêm na área da
protecção às crianças e jovens em risco.

• Seguindo a metáfora de Evéquoz (1984) para o posicionamento da criança entre a


escola e a família no que se refere ao sistema educativo, a criança situa-se numa situa­
ção de dupla pertença face aos subsistemas em presença. Esta situação surge agravada
se, na comunicação, ocorrem desqualificações que tornam a criança prisioneira de um
conflito de lealdades (Alarcão, 2000).
63
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Acção Social

Pais Fumíliu dt!


C1ianyu
Biológicos Acolhim�nto

Figura 3 - Dupla Triangulação

Sobre este mesmo assunto Bridgman (1988) é ainda mais amplo, enten­
dendo que, numa perspectiva sistémica, se podem inscrever tantos subsis­
temas quantos os que, de acordo com as próprias definições institucionais
e finalidades, vierem a estar implicados (pais biológicos, família de acolhi­
mento, Acção Social, Justiça, instituições escolares, de saúde, etc.).
De todo o modo, é quase consensual entender que os pais biológicos
destas crianças registam um baixo nível de interacções positivas com a
criança, grande falta de competências educativas e baixa tolerância ao
stress (idem).
Por outro lado, a família de acolhimento, ao inverso dos pais biológicos,
é vista como tendo competência educativa e estando socialmente adaptada
às normas sociais, sendo os próprios Serviços a reconhecer-lhe idoneidade
para a prestação desta tarefa, aliás tal como consignado na legislação
(Decreto-Lei n. 0 190/92 de 3 de Setembro, art.0 1. 0).
As crianças em risco, face às situações vivenciadas no passado, são
genericamente caracterizadas como manifestando uma baixa expressivi­
dade emocional e dificuldade em atingir metas comportamentais.
Finalmente, à Acção Social compete: (1) o acompanhamento dos pais
biológicos do menor; (2) seleccionar, formar e acompanhar as famílias de
acolhimento, na sua qualidade de entidade enquadradora; (3) apoiar o
menor e colaborar na definição do seu projecto de vida. No quadro das suas
funções, acaba por estabelecer uma relação triádica com os pais biológicos
e a família de acolhimento, na qual se observa, em regra, uma coligação,
mais ou menos secreta, com a família de acolhimento contra os pais
biológicos (Figura 4).
64
Novas Formas de Família

Família de Acolhimento

} Pais biológicos

Acção Social

Figura 4 - Coligação escondida ou negada

A Dupla Parentalidade Paradoxal

A própria necessidade de formar as famílias de acolhimento acaba por


favorecer a escalada secreta entre famílias, isto é, entre família de acolhi­
mento e pais biológicos (Figura 5), contribuindo para acentuar uma tensão
de dupla parentalidade paradoxal, inerente ao próprio contexto e definição
de acolhimento, que se vai abater sobre a criança (Figura 6).

Acção Social

Legenda
-H--
Ruptura/Conflito/Escalada

p,, L�
Biológicos
Família de
Acolhimento

Figura 5 - Escalada entre famílias


65
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Pais Família de
Biológicos
11 Acolhimento

-n-
Legenda

R uptura/Conf1ito/Escalada

Criança

Figura 6 - Dupla parentalidade paradoxal

Este sistema de dupla parentalidade paradoxal sujeita a criança a uma


comunicação com dois níveis lógicos inconciliáveis: (1) uma parentalidade
de lealdade do subsistema pais biológicos que se exprime, essencialmente,
em termos de comportamentos não verbais e sob a forma de passagens ao
acto, atitudes de passividade e inadaptação social de nível emocional ele­
vado; (2) uma parenta/idade funcional do subsistema família de acolhi­
mento que se exprime, essencialmente, em termos verbais, valorizando a
adaptação aos valores sociais normativos. A dupla parentalidade facilita,
assim, uma situação de double-bind cindido5 • Esta tensão de dupla parenta­
lidade paradoxal sai minorada quando são os próprios pais biológicos a
solicitar o acolhimento ou quando, a dado momento, vêm a concordar com
esta resposta social (Cirillo, 1988; Bridgman, 1988).
Como contributo para a tensão associada à dupla parentalidade para­
doxal, citamos a frequente desqualificação, por parte da família de acolhi-

' "Double-bind - Situação comunicacional em que, simultaneamente, são emitidas


mensagens contraditórias que deixam o seu receptor na impossibilidade de responder a
qualquer uma delas satisfatoriamente ( ... ). No double-bind cindido, o sujeito é alvo de
mensagens bipolares (injunções paradoxais discordantes) sobre o mesmo assunto, emi­
tidas por figuras igualmente significativas no plano emocional. Sendo difícil ao ele­
mento alvo deste double-bind metacomunicar sobre o paradoxo, ele tenderá a agir,
muito frequentemente no exterior, os seus afectos e emoções" (Alarcão, 2000, 343-344).
66
Novas Formas de Família

mento, em relação aos pais biológicos que se manifesta através de


expressões como: "É tal qual o pai!"; "Espero que não tenha os mesmos
defeitos da mãe". No mesmo sentido concorre a oposição a um contacto
regular com os pais, o que acaba por remeter a criança para uma situação
em que se vê desprovida, não voluntariamente, da sua bagagem relacional
de origem. Será menos provável que tudo isto aconteça quando ambas as
famílias são colocadas face-a-face. Neste encontro, e no sentido de obstar
ao desenvolvimento de toda esta tensão, deverá ser reforçada a noção de
que não há boas nem más famílias, mas que as dificuldades pontuais dos
pais biológicos determinam a passagem transitória pela família de acolhi­
mento (idem).
Esta tensão será, ainda, atenuada se a criança for preparada para a se­
paração (que não deverá ser brusca). Será esta armadura ou bagagem emo­
cional que lhe permitirá coabitar com a família de acolhimento, não se
sentindo culpabilizada por ter abandonado os pais (Berger, 1998).
Neste contexto, poder-se-á estabelecer uma relação triangular funcional
em que o sistema global "acolhimento familiar" se mantenha estável,
através da definição de comunicações e relações claras entre os subsistemas
que o compõem. No entanto, mesmo perante uma relação triangular está­
vel e funcional, a relação família de acolhimento-menor comporta, intrin­
secamente, um carácter paradoxal, dado que os técnicos constantemente
lembram a estas famílias que procedam calorosamente e com espontanei­
dade, procurando criar um clima de bem-estar, ao mesmo tempo que aler­
tam para a transitoriedade da situação e para a necessidade de que as
decisões sejam compartilhadas com os serviços (como, por exemplo, as
marcações de encontros com os pais biológicos). Por outro lado, a relação
de confiança legalmente avalizada pelos serviços mantém o estatuto privi­
legiado e a posição superior da família de acolhimento relativamente aos
pais biológicos.

Condições e Riscos no Acolhimento Familiar

Independentemente da perspectiva em que esta relação triangular é ana­


lisada, Richet (1972) sustenta que as relações afectivas e a sua continuidade
são essenciais ao desenvolvimento da criança ou do jovem. É neste sentido
que a separação não deixa de envolver danos que se tornam mais gravosos,
como já vimos, se aquela não foi preparada ou se vier a implicar a ruptura
67
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

com a família de origem, designadamente com os pais biológicos e com o


meio de residência.
Quando esta se afigura eminente, dever-se-á avaliar o meio sócio-fami­
liar, os seus estrangulamentos, analisar as hipóteses de recuperação/mu­
dança dos pais biológicos e ponderar as consequências da separação, as
quais devem ser atenuadas. Para tal, dever-se-á promover a participação
dos pais biológicos em todo o processo, bem como a continuidade da par­
ticipação das crianças na comunidade onde têm vivido (escola e amigos,
por exemplo), procurando, ainda, levar a família de acolhimento a estar
disponível e não a apropriar-se.
Mesmo assim, as famílias de acolhimento apenas se devem constituir
como indicação/solução se os técnicos intervenientes tiverem determinado:

• "a origem precisa dos problemas vivenciados pelas crianças;


• os elementos de um prognóstico estabilizador de acordo com os
quais os elementos patogénicos possam vir a desaparecer;
• os meios apropriados de terapia, assistência e controlo, capazes de
viabilizar o processo de mudança desejado;
• o tempo considerado suficiente para que a mudança se processe; os
serviços, as estruturas e os intervenientes capazes de assegurar que
a mudança se possa operar ou, dito de outro modo, que a criança
possa regressar a sua casa e aí viver normalmente" (Cirillo, 1988,
75).

É nesta perspectiva que toda a acção-base a desenvolver pelos Serviços


de Acção Social se deverá enquadrar, tendo por objectivo final o retomo da
criança para junto dos pais biológicos, pelo que o acolhimento não se de­
verá desencadear se esse retorno não for entendido como uma meta viável.
Interessa, pois, dotar os serviços de equipas multidisciplinares responsáveis
pelo acompanhamento técnico das famílias de acolhimento, pais biológicos
e crianças ou jovens, pois a presença de um só técnico reenvia-nos para
uma concepção ultrapassada de acolhimento (idem; Berger, 1998).
No sentido de obviar riscos, os primeiros objectivos da equipa técnica
deverão ser não só a compreensão das dinâmicas familiares que levaram à
exclusão da criança ou à adopção de comportamentos parentais tendentes
ao afastamento da criança, mas também a compreensão das motivações que
levam uma família a candidatar-se para ser família de acolhimento (Cirillo,
1988). Tendo em comum a relação com o menor, com os serviços e com os
68
Novas Formas de Família

pais biológicos, estas famílias não deixam, contudo, de ter motivações


próprias e diversas. Muitas decidem ser família de acolhimento como
resposta às exigências e dificuldades administrativas da adopção, relativa­
mente à qual têm uma motivação clara; outras vêem nessa situação a pos­
sibilidade de "substituição" de um elemento inexistente, ausente, desa­
parecido ou procuram uma companhia para os seus próprios filhos; algu­
mas, ainda, agem no sentido de reviver uma experiência, procurando
mesmo suavizar sentimentos de culpa.
Em contraponto, para os pais biológicos a retirada dos filhos representa
um traumatismo em que se experienciam sentimentos vários (angústia, dor,
hostilidade, culpabilidade, raiva, desespero, humilhação). A própria sepa­
ração é por eles assumida como uma perda, entendida como "um mal"
(alguém lhes levou os filhos). É este "mal", assim entendido, que interessa
prevenir, de modo a que os pais biológicos se tornem sujeitos colaborantes
e essas crianças e jovens venham a ser adultos integrados e não excluídos
da sua própria família biológica. Este é o papel que cabe, entre outros, aos
diversos serviços e à sociedade civil, também estes com motivações distin­
tas dos outros subsistemas (idem).
Mas, para prevenir, importa compreender a crise que os pais biológicos
atravessam, "o que jogam" e "qual é o jogo que mais vezes jogam", com­
preender as redundâncias e parar para reflectir. Acontece que, muitas vezes,
as equipas técnicas são dominadas pela lógica da urgência, não possuindo
condições que lhes permitam intervir ao nível de todos os subsistemas. Este
desconhecimento da família natural (pais biológicos) pode, em última
análise, levar a que as famílias de acolhimento acabem por não se consti­
tuir como uma intervenção preventiva e se assumam como condição de
risco quer para o menor quer para os pais biológicos.
Entre estas condições de risco, Cirillo ( 1988) destaca as seguintes situa­
ções:

• o primeiro dos riscos ocorrerá sempre que as famílias de acolhi­


mento se constituem através de um processo tecnicamente mal
controlado que conduz à exclusão da criança, o que se verificará
sempre que ocorra a ruptura total e definitiva com a família natu­
ral (pais biológicos), agravada com a passagem sucessiva por ou­
tras famílias;
• quando, no desenrolar de todo o processo, se acaba por instituir a
adopção, sem que previamente tenha sido delineado um projecto
69
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

de intervenção junto dos pais biológicos capaz de alterar todo o


quadro;
• a subtracção de um filho a uma família (pais biológicos), sem que
tal assuma a forma de um projecto em que a família é parte inte­
grante, pode induzir ao nascimento de um outro filho que terá por
função substituir o papel relacional do filho excluído, nascimentos
que muitas vezes conduzem a outros acolhimentos;
• quando as famílias de acolhimento ficam a braços com situações
complicadas e relativamente às quais não têm qualquer apoio téc­
nico. Uma vez na família de acolhimento, a criança pode manifes­
tar comportamentos reactivos (por hipótese, rouba porque a mãe a
abandonou e, ao mesmo tempo, porque se sente refém da lealdade
à sua família). Em todas estas situações, as famílias de acolhimen­
to precisam de ter o devido acompanhamento psicoterapêutico
para poderem com elas conviver;
• será também profundamente errado reinserir o menor na sua família
natural sem que alguma mudança tenha ocorrido.

Importa também explorar o jogo interactivo da família de acolhimento


no sentido de que a inserção do menor, junto desta, não venha a ser contra­
-indicada. Como exemplos de situações de contra-indicação relativamente
à família de acolhimento podem referir-se:

• a apropriação em relação ao menor, negando a existência dos


próprios pais biológicos;
• a escalada simétrica6 entre família de acolhimento e pais biológicos,
presente na desqualificação feita pelos primeiros em relação aos
últimos, sempre que estes pretendem estabilizar e assumir o seu
papel parental;
• sempre que a motivação do acolhimento se reduz a uma estratégia
conducente a captar o outro elemento do casal da família de aco­
lhimento;

' Escalada simétrica - trata-se de uma distorção da comunicação, essencialmente


caracterizada pela simetria, resultante da não oscilação verificada na posição dos ele­
mentos em comunicação (Watzlawick et al., 1991), ou seja "os indivíduos tendem a
reflectir o comportamento um do outro, minimizando as suas diferenças e amplificando
as semelhanças comunicacionais" (Alarcão, 2000, 74).
70
Novas Formas de Família

• sempre que a relação estabelecida entre o casal que acolhe corres­


ponde a uma escalada simétrica e a decisão de acolher uma criança
se assume como um escape à situação relacional vivida, originan­
do mais outra triangulação disfuncional em que a criança é o pólo
agregador (idem).

Como apreciação final diremos que é nossa convicção que as famílias


de acolhimento constituem um recurso que não esgota a acção dos técnicos,
os quais deverão trabalhar em todas as "frentes" e com todos os subsis­
temas envolvidos. Também aqui, muitas vezes, "o problema é a solução"
(Watzlawick e Weakland, 1975), pelo que os pais biológicos não poderão
ser esquecidos ou menorizados, devendo manter-se como o núcleo da inter­
venção.
Tudo o que dissemos mostra como distintas formas de família nuclear
asseguram as funções interna e externa da família7 • No entanto, as famílias
de acolhimento só terão condições para cumprir estas funções se houver
entre os subsistemas envolvidos uma relação estável e funcional. Esta só
será possível se estiver garantido o seu enquadramento por equipas multi­
disciplinares e se as próprias motivações destas famílias estiverem esclare­
cidas perante elas próprias e perante a equipa técnica que procedeu à sua
selecção. Muito mais do que "probabilidades", o retorno do(s) menor(es) só
será uma realidade se os pais biológicos participarem neste processo e se a
própria alteração das situações que estiveram na base da ida da criança para
a família de acolhimento se constituir como uma meta a atingir e que de­
verá, de igual modo, ser acompanhada por equipas técnicas multidiscipli­
nares.

' "Função interna - função desempenhada pela família no sentido de proporcionar e


potenciar a protecção dos seus elementos e a criação e desenvolvimento de uma identi­
dade diferenciada e autónoma relativamente ao grupo total, no respeito pelos sentimen­
tos de pertença de cada elemento" (Alarcão, 2000, 346-347).
"Função externa - função desempenhada pela família no sentido de desenvolver,
nos seus elementos, as condições e as aptidões necessárias a uma boa integração social
e cultural" (Alarcão, 2000, 346).
71
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Uma Investigação: Funcionamento Familiar e Vinculação


em Famílias de Acolhimento com Adolescentes

Perante este enquadramento e a partir da prática profissional no traba­


lho directo com estas famílias têm-se-nos colocado questões e preocu­
pações de investigação-acção.
Os corolários da Acção Social passam, nos dias de hoje, por uma outra
lógica, onde surge ultrapassada a figura do utente - as acções organizam-se
com e pelas populações. Também para os técnicos, o indivíduo e a família
têm agora um novo rosto, pois, para além de parceiros privilegiados, são
simultaneamente sujeitos e actores. É no quadro desta lógica que se encer­
ram as nossas preocupações: ultrapassando a mera aplicação de um diplo­
ma legal, colocar uma criança ou um jovem não é um acto neutro nem uma
simples operação técnica. Assim, desde há muito que nos questionamos:
uma vez em Acolhimento Familiar ou Colocação em Família como evolui
a criança ou o adolescente? Quais os factores mais relevantes nessa
evolução? Que interacção estabelece a criança ou o jovem com os pais
biológicos? Como se processa a vinculação na família de acolhimento?
Qual o tipo de comunicação que se estabelece no seu seio, em relação à
criança ou ao jovem acolhido? Que factores deverá o técnico ter presente
ao analisar as motivações das famílias e ao decidir do seu recrutamento?
Todas estas preocupações resultaram reforçadas perante a revisão biblio­
gráfica que acabámos de apresentar.
Os requisitos das famílias de acolhimento, o seu acompanhamento téc­
nico e o dos menores, designadamente em termos de dinâmica familiar, são
questões que não podemos desligar das famílias de origem envolvidas no
processo. Preocupa-nos não só a qualidade desta resposta, mas também o
desenvolvimento e vicissitudes de que é geradora. Também nos preocupa a
identificação de alguns dos factores relacionados com esse processo, bem
como o papel que, eventualmente, aí desempenham.
Foram também estas preocupações que nos conduziram a esta investi­
gação, partindo do pressuposto que as relações com os pais e/ou outras fi­
guras substitutivas assumem dinâmicas específicas e de relevo no desen­
volvimento psicossocial do adolescente. O facto de todos os sujeitos em
acolhimento, sobre os quais incidirá o nosso estudo, se encontrarem numa
fase do seu desenvolvimento (adolescência) em que ocorre o alargamento
da vinculação a outras figuras significativas e em que se poderá operar a
reestruturação das vinculações precoces eventualmente estabelecidas de
72
Novas Formas de Família

modo insegura 8, a particularidade de estarem a cargo de famílias de aco­


lhimento, o facto de terem vivenciado, por condicionalismos vários, um
processo de separação dos seus pais biológicos, razão pela qual passaram a
viver não só em lugares estranhos, corno também com pessoas estranhas
(no caso concreto do acolhimento familiar) ou com outros parentes (colo­
cação em família) foram tudo aspectos que contribuíram, de algum modo,
para a formulação da nossa questão de partida.

Problema e Método

Que relação poderá existir entre as características das famílias de aco­


lhimento e os indicadores de um relacionamento com o jovem a seu cargo
favoráveis ao seu adequado desenvolvimento?

Este foi o problema que procurámos estudar. Para tal desenvolvemos


um estudo empírico sobre duas amostras de famílias de acolhimento (uma
de Acolhimento e outra de Colocação em Família) e adolescentes a seu
cargo.
No sentido de conhecer o mais profundamente possível os indivíduos
em estudo, foram distinguidos dois grupos de variáveis: demográficas e
associadas ao acolhimento. Para além destas, identificámos ainda as va­
riáveis familiares (funcionamento familiar, recursos internos do sistema
familiar) que nos permitiram caracterizar as famílias de acolhimento. No
sentido de completar esta análise, foi considerada a comunicação entre as
figuras parentais no acolhimento e os adolescentes (e vice-versa), bem
como a vinculação percepcionada por estes. Estas duas últimas variáveis
foram seleccionadas a partir do pressuposto de que a medida da vinculação
se poderia constituir como um indicador da qualidade da relação estabele­
cida entre os jovens em acolhimento e as figuras parentais substitutas,
enquanto a comunicação poderia funcionar como dimensão facilitadora
dessa mesma qualidade (Olson et al., 1982).

• Foi esta, aliás, uma das razões que nos levou a optar por conduzir esta investigação
com adolescentes e não com sujeitos de outras faixas etárias em acolhimento.
73
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Com efeito, embora reconhecendo que não há "boas" nem "más


famílias", mas tendo em conta que uma vinculação segura na idade adoles­
cente potenciará uma vinculação segura na idade adulta9 , procurávamos,
face às características gerais destas famílias, retirar algumas conclusões
sobre as condições familiares actuais associadas à percepção de uma vin­
culação segura por parte do adolescente.
As variáveis foram operacionalizadas a partir dos seguintes instrumen­
tos: Questionário Sócio-Demográfico, Escala de Adaptabilidade e Coesão
Familiar (FACES II - Family Adaptability and Cohesion Scale de Olson et
al., 1982), Escala de Recursos Familiares (Family Strenghts Scale de Olson

Quadro 1 - Variáveis e instrumentos

Sujelillldt
apJlí;açào
Demográficas e associadas ao
acolhimento Questionário Sócio-Demog ráfico

Eunci0111111,eu10,J1,tmiliar
$ípo4<: fl\mllíit
c.iesno
Adnp!abtlidud&
Ruurso$FumB,ates
Or,o,.uil\o
Bl\leadime,no
Comunicação
Aberta . Escala de Comunicação Pais.Adolescentes (fonna mãe/
Dificuldades pí!i/ e forma pais)
B.unes & Olson, 1982

IPPA
Greenber,g,;u,/., 1981

' Para o aprofundamento do tema vinculação consultar Soares, I 996b.


74
Novas Formas de Família

et al., 1982), Escala de Comunicação Pais-Adolescentes (Parent­


-Adolescent Communication Scale de Barnes & Olson, 1982) e Inventário
de Vinculação na Adolescência (IPPA - lnventory of Parent and Peer
Attachment de Greenberg et al., 1987, in Neves, Soares, Silva et al., 1999) 1º .

Importa ainda referir que a aplicação dos instrumentos foi objecto de


procedimentos uniformizados. Assim, os pedidos de colaboração foram
dirigidos por correio e endereçados em nome do(s) elemento(s) represen­
tante(s) do menor. A aplicação decorreu num só momento: foram passados
todos os instrumentos aos elementos das famílias e aos jovens, nos locais
de atendimento do ex-Serviço Sub-Regional de Aveiro, na presença de téc­
nicos superiores do Departamento de Acção Social.
A apresentação geral dos instrumentos foi feita, em simultâneo, ao ele­
mento da família de acolhimento e ao jovem, após o que um dos técnicos
administrou os instrumentos aos primeiros, enquanto outro técnico acom­
panhava o jovem em espaço físico distinto. No sentido de obviar dificul­
dades decorrentes do baixo índice de escolaridade ou situações de analfa­
betismo, que à partida se esperava pudessem ocorrer, os instrumentos foram
todos preenchidos pelo investigador e colaboradores. Foi inquirido o ele­
mento da família que se disponibilizou para responder à convocatória
(endereçada ao casal). Quando os dois elementos compareceram, ficou à
consideração dos mesmos a decisão de quem assumiria o papel de inquiri­
do. Aos jovens, e considerando o elemento da família de acolhimento
inquirido (masculino; feminino), foram entregues os instrumentos relativos
à figura parental em referência.

'º Como procedimentos prévios observados relativamente à aplicação dos instru­


mentos é importante referir que o Questionário foi submetido a um reflexão falada,
junto de I O profissionais de serviço social, por se entender que estes conhecem não só
a problemática em estudo como emitiriam uma opinião crítica neutra. Estes elementos
não reconheceram nenhum déficit de clareza no modo como as questões eram for­
muladas, nem consideraram o questionário demasiado longo, aborrecido ou difícil. O
tempo médio da aplicação rondou os quinze minutos. Relativamente aos restantes
instrumentos apenas a Escala de Comumicação Pais-Adolescentes foi sujeita aos pro­
cedimentos normais de tradução, retroversão e pré-teste para instrumentos ainda não
utilizados no nosso país, o que era o caso desta escala, tanto quanto era do nosso co­
nhecimento. Para melhor esclarecimento consultar Tribuna (2000).
75
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Os Sujeitos

A população alvo desta investigação são os adolescentes e respectivas


famílias de acolhimento acompanhados tecnicamente pelo Departamento de
Acção Social do ex-Centro Regional de Segurança Social do Centro/Ser­
viço Sub-Regional (SSR) de Aveiro. O estudo incidiu sobre uma amostra
de 61 elementos das famílias de acolhimento e 61 adolescentes, constituí­
da por duas amostras (30 sujeitos representantes das famílias de acolhi­
mento, modalidade Acolhimento Familiar e 30 jovens a seu cargo; 31
sujeitos pertencentes a famílias da modalidade Colocação em Família e 31
jovens a seu cargo)11• A modalidade de acolhimento e, consequentemente,
a ausência/existência de parentesco entre o adolescente e a família é, por­
tanto, o critério diferenciador das duas amostras.
Os elementos da amostra foram seleccionados de acordo com os
seguintes critérios:

• famílias de Acolhimento/Colocação residentes no âmbito do SSR de


Aveiro;
• adolescentes, com idades entre os 12-18 anos, em Acolhimento
Familiar e Colocação em Família há quatro ou mais anos 12;
• situações regularizadas legalmente através dos órgãos competentes
(Tribunais Judiciais; Comissões de Protecção de Menores);
• não existir, da parte das famílias de acolhimento, a intenção próxi­
ma de apresentar petição de adopção;
• não estar em curso processo de adopção do/a adolescente;
• a inexistência de algum handicap ou tipo de deficiência, por parte
dos adolescentes.

11
Foi solicitada a colaboração de 80 famílias de acolhimento e 80 jovens a cargo das
mesmas, registando-se as seguintes taxas de participação (completion rate): 77.50% na
amostra Colocação em Família (n=31) e 75.00% na amostra Acolhimento Familiar
(n=30).
12
Este critério foi definido na sequência do estudo sumário da população, a partir do
qual se concluiu que o tempo médio de permanência das crianças e jovens nas famílias
de acolhimento ultrapassava os quatro anos. Por outro lado. a duração da relação de
quatro anos ou mais permitia indiciar uma estabilidade, pelo menos temporal, impor­
tante no que se refere ao estudo da vinculação.
76
Novas Formas de Família

A partir da aplicação do Questionário, que construímos especificamente


para este estudo, foi possível proceder à caracterização dos sujeitos inquiri­
dos, famílias de acolhimento e adolescentes a cargo nas modalidades em
estudo e traçar diferentes perfis conforme se tratava da amostra de colo­
cação ou acolhimento 13 .
Este Questionário é composto por duas partes, sendo a primeira de iden­
tificação sócio-demográfica da família de acolhimento e do adolescente a
seu cargo (Parte I - variáveis: idade, sexo, estado civil, habilitações
literárias, situação profissional e profissão do inquirido e respectivo côn­
juge; número de elementos do agregado familiar, composição do agregado
familiar e local de residência; idade, sexo e escolaridade do adolescente). A
Parte II é relativa às condições de acolhimento (tempo de permanência do
adolescente na família; presença ou não de outros adolescentes em
Acolhimento Familiar/Colocação em Família no mesmo agregado; pa­
rentesco; local de residência anterior do adolescente; origem do pedido de
acolhimento; contacto do adolescente com familiares/pais biológicos; re­
gularidade de contactos; contribuição económica dos mesmos, caso haja
contactos).
Na Tabela l apresentamos os dados mais relevantes dessa caracteriza­
ção 14 . Numa leitura de pormenor, note-se a predominância de inquiridos do
sexo feminino, tendência uniforme em qualquer uma das amostras; por
outro lado, globalmente, as famílias que acolhem são constituídas por
casais; no entanto, e comparativamente, destacamos um elevado peso de
viúvas (avós) na amostra de colocação. Continuando, observamos que os
inquiridos da amostra de colocação são significativamente mais velhos que

" Esta é a forma abreviada, através da qual faremos referência às amostras de colo­
cação em família e acolhimento familiar.
" Atendendo à extensão da informação recolhida através do Questionário não se
explicitam nesta Tabela todas as variáveis avaliadas [não se apresentam as seguintes:
profissão do inquirido; habilitações literárias, profissão e idade do cônjuge; local de
residência e número de elementos do agregado familiar; regularidade de contactos do
jovem com os pais/família biológica; contribuição económica destes últimos], nem se
indicam, diferenciadamente, todas as categorias contidas na análise original dos dados
(para urna mais completa análise da caracterização individual e sócio-familiar da
amostra consultar Tribuna, 2000, pp. 127-146). Contudo, sempre que tal se revele per­
tinente, citaremos no texto alguns dados não especificados na Tabela 1.
77
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Tabela 1 - Caracterização das amostras: variáveis sócio-demográficas


e variáveis associadas ao acolhimento

Idade p=.003
êoJocação
Jl�it
34-80; M=59.23
"'�º
Acolflimento

30-78; M=50.07
�·J9 p=-.��� 9$,iJifo f 9ª.j,)<% i
Estado Civil 54.84% casado 90.0% casado
p=.012 35.48% viúvo 3.33% viúvo
9.68% outros 6.67% outros
.
Dabifitaçáes lk·t�í% amdfabetos 3.33% anaffabetos

-·g.
·e: llt.erárias 3'&.71% 4• aoo ine. L>tS.6'7% 4°an0h1c.
22.58% eusiuo bc.isieo $3.34% e:nsino bá-sieo
e
3.23'% seeundlirio 6.67% seoondruli©
?,§'i'% 9\!WQt 2�4�% <?9�
Situação 12.50% domésticas 0% domésticas
.g Profissional 37.50% pensionistas 11.54% pensionistas
p=.048 50.0% trabalhadores 88.46% trabalhadores

dom1>0sição do "'19.õ1¾> 40.{);%


ftgt:eWldO eas:d+ adoles,ce11te casal>t,adolesoonte
48.4% 20,-0%
oasál+f'dhos+.adolesoonte casal+ffilbes+adoteseente
1'9.4'% 20.0%

- ..:rªiiº-1;\l!l&ê!!I.:§.
elemento,srngular+fi'lhos elenmnt0 s'ingulm'+
. ,fflbWJ+i!i:!9Í9,§§§lJ!tç
Presença de outros 67.74% Sim 40.0% Sim
adolescentes 32.26% Não 60.0% Não
p=.055
Tempodé M=tl1 anos . M:..1 MQS
permmi�ncia D.P. == 4.1 D.P. = 3.J(5
p::5,.!l!))j l
Origem do pedido 16.13% Acção Social 50.0% Acção Social
p=<.001 64.52% laços familiares 50.0% outros
19.35% outros
Parentesco 25.ÍÍlo/o tio/a
õJ.7491> avós
(ili'�� Qlillf,ffi

1
l
Residência anterior

Se1to
93.54%
6.46%
4'S.3J%
Não
Sim
Masculino
60.0%
40.0%
36,($7%
Não
Sim
Masculfoo
P:-l9§ iH-� % Jí!mhlioo y;}.,};l% Ft!Wl!Rf
Idade M=l4.42 M=l 4.83
p=.376 DP=l.86 DP=l.76
Ntveicie 34.5% 2• eido . 1.U<i% jõefolo
llSCOlal'<idad·e 62.1% 3° ciclo Sílí.2% 3'° cido
p=.173 .,3-.4% oatros :20.7% OUU'QS
Existência de 70.97% Sim 66.67% Sim
contactos 29.03% Não 33.33% Não
p=.931
78
Novas Formas de Família

os da modalidade de acolhimento o que tem, eventualmente, repercussões


no seu nível de habilitações literárias' 5 e na situação perante a profissão' 6.

Estas duas modalidades têm assim em comum a particularidade de que


quem acolhe são fundamentalmente casais, com um baixo nível de escola­
ridade e com uma idade avançada para figuras parentais substitutas de ado­
lescentes.
O facto de os adolescentes em colocação estarem significativamente há
mais tempo no agregado familiar é um dado esperado, pois mal a família
alargada se apercebe da situação de perigo da criança, e havendo condições
mínimas para tal, acciona os seus próprios mecanismos, procedendo à inte­
gração do menor no seu seio. O seu trajecto torna-se, então, muito mais
breve do que no acolhimento, onde os vários serviços intervenientes cola­
boram na definição do projecto de vida do menor. Contudo, mesmo aqui
(acolhimento), o tempo médio de permanência do adolescente na família
em nada está relacionado com o carácter transitório e temporário desta
resposta social. Assim, em nosso entender, ultrapassado este e goradas as
expectativas de retorno aos pais, deveria ser definido um projecto de vida
alternativo ao acolhimento, ainda que passando pela continuidade na
mesma família mas sem carácter de transitoriedade.
Em síntese, no caso da modalidade de colocação, e à parte os motivos
que lhe estiveram subjacentes, a própria integração do adolescente parece
ter ocorrido espontaneamente e como um imperativo que tem por base os
laços familiares. Ao processar-se no interior da própria família, acaba por
não envolver a passagem prévia por outra(s) residência(s) anterior(es) ou
outras formas de acolhimento, pelo que na amostra de colocação os ado­
lescentes têm um maior tempo de permanência do que na modalidade aco­
lhimento. Donde, nesta última modalidade o trajecto do adolescente até à

" A amostra total não deixa de apresentar também um baixo nível de escolaridade
(apenas 1.64% concluiu o ensino superior e 42.62% são analfabetos), o que provoca
inevitáveis reflexos na situação profissional do inquirido (37.70% são domésticas e
37.70% são trabalhadores não qualificados).
"Na amostra de colocação o peso das domésticas é um dado esperável, uma vez que
estamos perante uma população predominantemente feminina e pouco habilitada lite­
rariamente. Em oposição, na amostra de acolhimento são os trabalhadores que detêm o
maior peso (serviços: 35.71 %; não qualificados: 14.29%; operários: 7.14%).
79
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

integração actual envolveu a passagem por outras famílias e/ou outras for­
mas de acolhimento 17 • Como seria esperável, também se vê que, neste caso,
a própria integração do adolescente não teve por base a relevância dos laços
familiares mas surge na sequência de um pedido da Acção Social.
Em termos da dimensão, ou seja, do número de elementos, estes agre­
gados familiares não apresentam diferenças significativas'ª. Há, também,
entre modalidades, uma distribuição uniforme por local de residência 19 •
Feita esta análise de pormenor podemos, em síntese, concluir o seguinte:

• encontramos dois perfis distintos2º tendo por base a existência ou


não de parentesco da família com o adolescente, ou seja, con­
siderando as duas amostras no que se refere: a) às características
demográficas dos inquiridos e respectivas famílias; b) às variáveis
associadas ao acolhimento, nomeadamente, o tempo de permanên­
cia do adolescente na família, a sua residência anterior a este aco­
lhimento e a origem do pedido;
• observa-se um perfil único dos adolescentes quer duma quer doutra
amostra, concretamente no que se refere à idade, sexo, nível de
escolaridade, regularidade dos contactos com os pais biológicos
(quinzenais) 2 ' e não contribuição económica destes para a família
de colocação/acolhimento22 •

" Dos 60% dos jovens que vivem em famílias de Acolhimento, 23.33% passaram
por outras famílias e 20.0% por instituições.
" Não existem diferenças significativas no número de elementos do agregado
familiar em função da modalidade (F(l,60)=.029, p=.865). O número de elementos do
agregado varia entre 2 e 7 na modalidade de colocação, com uma média de 4.29 ele­
mentos (dp=l.42). Os agregados familiares da modalidade acolhimento variam entre 2
e 6, com uma média de 4.23 (dp=l.17).
" Não existem diferenças significativas entre modalidades em função do local de
residência X2(2)=1.75, p=.416 (urbano - 45.16% em colocação; 40.00% em acolhi­
mento; suburbano - 35.48% em colocação; 50.00% em acolhimento; rural - 19.35% em
colocação; 10.00% em acolhimento).
20 Recordamos que ao nível das variáveis demográficas só o sexo do inquirido, o

número de elementos do agregado familiar e o local de residência são idênticos nas duas
amostras.
21
Não existem diferenças significativas entre modalidades em função da existência
ou não de contactos com os pais (X2(1)=.01, p=.931 ). No caso da variável regularidade
de contactos, não foi possível o cálculo do Qui-Quadrado, por um elevado número
80
Novas Formas de Família

Quadro 2 - Perfis comuns às duas amostras

Famiiías-(neâtl

Os lnqwodos-são relallvamellle Idosos paraJiguras paranlals-de adolescooles (aidadedos,iiqulndos,iana-oolre os 34-80A


(médta,,54.72A)
Pta<alên<lla·delllQunldos dosex0i8!1111llno (ilt.8%)
O\l811NlColhe sâQ.fundamentalmente-ta.Safs (72, l�J
Baixa qualíhcação titerária (&7.it %tem o 4.1ano-dei!SColamlade.ou menos, t4.75o/.-Oâo sabe•lernem esereverJ
Ní11etproHssional.potlCO.qualttícad0>{31.P/4 são tralJalhado!eS oão,qualttícados,e,37 m. domésticas)'
Offimero de efemoolos do.lljJlegado,vana elltref.! e 1

JoY1111s (n=&iJ

ldade·entre,os 12-ttM (média 14.62:A)


59%.flUQOentam-o �cdo-00 escolandade
69% mantêfn.c011tactos C()ql os-farmliaies;
62%,são,eontactados"l)elas famlllares, sendo os coolaotos.qulnzenals
Effi,.�So/o dos C8$l»OS famllareScnâo�ec011om,:anientq

Estamos, portanto, perante famílias diferentes e adolescentes com ca­


racterísticas idênticas mas cujos percursos até à actual situação foram, con­
tudo, diversos, conforme hoje se encontram numa família de colocação ou
de acolhimento. Apesar disso é também possível identificar um quadro
familiar comum (Quadro 2).

de células terem um valor esperado inferior a 5 (80.0%). Observam-se contactos com


os familiares em ambas as amostras (70.97 % Colocação; 66.67 % Acolhimento). A
nível da amostra total 31.15 % dos jovens não mantém contactos com os pais biológi­
cos (um terço dos jovens), o que, apesar de tudo, é um dado relevante se tivermos em
conta a "transitoriedade" associada à definição de Acolhimento Familiar.
" 92.68% dos jovens da amostra total não contam com qualquer contribuição
económica dos familiares (100.0% na modalidade de acolhimento e 85.71 % na de
colocação (X2(1)=1.34, p=.246)).
81
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Características do Funcionamento Familiar

Para os objectivos da investigação era importante:

• compreender como funcionam estas famílias de acolhimento, moti­


vo pelo qual utilizámos a FACES II23 , que permite operacionalizar
as dimensões coesão [laços emocionais que cada elemento da
família estabelece com os restantes; avalia o grau de separação ou
ligação de cada membro à sua família; envolve os conceitos:
laços/ligações emocionais, limites intergeracionais, coligações,
tempo, espaço, amigos, tomada de decisão, interesses e lazeres],
adaptabilidade [capacidade que o sistema conjugal ou familiar
tem de mudar, em termos de estrutura, regras ou papéis, face a
uma situação determinada ou a acontecimento stressante; envolve
conceitos como: imposição, liderança, disciplina, negociação,
funções e normas] e tipo de familia2' [muito equilibrada, equili­
brada, meio-termo e extrema, correspondendo os dois primeiros
tipos a um melhor funcionamento familiar e os dois últimos ao
nível de maior disfuncionalidade] (Olson et al., 1982; Olson, in
Walsh ed. 1982; Lourenço, 1996; Olson e De Frain, 1996 cit. in
Santos, 1999);
• identificar os recursos que permitem às famílias, internamente, pre­
venir situações de stress, pelo que recorremos à Escala de
Recursos Familiares que avalia as dimensões orgulho [engloba
atributos como lealdade, optimismo e confiança, valores da
vivência familiar que dizem respeito à abertura, diálogo, confian­
ça, lealdade, crenças e valores, respeito e orgulho familiar] e
entendimento familiar [capacidade em saber executar tarefas,
enfrentar problemas e relacionar-se; sentido crítico vivido na
família], para além dos recursos familiares globalmente conside-

" Neste estudo a FACES II apenas foi administrada a um elemento da família de


acolhimento a cargo de quem o adolescente se encontra, o que apenas permitirá concluir
da percepção que o inquirido tem sobre o funcionamento familiar, impossibilitando-nos,
obviamente, de ter medidas de discrepância (Olson et al. 1982; Lourenço, 1996).
2• O tipo de família resulta da conjugação dos níveis de coesão (muito ligada; liga­
da; separada e desmembrada) e dos níveis de adaptabilidade (muito flexível; flexível;
estruturada e rígida).
82
Novas Formas de Família

rados [capacidade que a família tem para prevenir situações indu­


toras de stress que possam descompensar o sistema familiar]
(Olson et al., 1982; Canavarro et al., 1993; Vaz, 1999).

Estes aspectos parecem-nos relevantes atendendo ao facto de que a li­


teratura nos aponta para a importância da análise das características inter­
nas das famílias que acolhem crianças ou adolescentes (Brigdman, 1988;
Cirillo,1988; Berger, 1998), bem como ao facto de considerarmos que o
acolhimento é uma fonte de potencial stress familiar, não só para os pais
biológicos mas também para os que, substitutivamente, vão desempenhar o
seu papel (Bridgman, 1988; Benoit et al., 1988).

Feito o estudo comparativo dos resultados obtidos pelas duas amostras


na FACES 1125 e na Escala de Recursos Familiares26, a primeira conclusão a
retirar é que não existem diferenças significativas entre elas em qualquer
das medidas possíveis de obter (Gráficos l e 2). Assim, optámos por, neste
contexto de caracterização das amostras em termos do funcionamento
familiar, interpretar os dados da amostra total.

-- ---·
A acolhimento ..-.•-------.-

lo--...-·-•'...---.-
_ .._

A colocação
-_...::__
C acolhimento l,,ii,iiiiiiiiiiiiiiiiiii._______
. ---=--=-·-
e colocação l!!!!!!!!!
!P"......,
____
TFacolhimento �;.:_iiiiã,-iiil._____

o 20 40 60

Gráfico 1 - Distribuição dos resultados das amostras em função do tipo de família


(TF), nível de coesão (C) e de adaptabilidade (A)"

25
No estudo psicométrico da FACES II obtiveram-se os seguintes valores para o
índice alfa de Cronbach: Coesão .772; Adaptabilidade .782; escala completa .865.
26
Os valores do alfa de Cronbach para esta escala foram os seguintes: subescala
Orgulho .866; subescala Entendimento .387 (o que, associado ao facto de apenas dois
itens se correlacionarem significativamente com a escala, exige grande cautela na leitu­
ra dos resultados); escala total .736.
83
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Tabela 2 - Distribuição da amostra total (n=61) pelos quatro níveis do tipo de família,
coesão e adaptabilidade

Categorias
1 2 3 4
Dimensões % % % %

Tipo de família 14 75 50 82 2295 11 48


(Tf)

Coesllo 19,67 50.82 )9.67 9 84


tC)

Adapuibilidade 34.43 4098 14.75 9.84


(A)

Legenda Gráfico I e Tabela 2: TF - Tipo de Família: 1- muito equilibrada, 2 - equilibrada, 3


- meio-termo, 4 - extrema; C - Coesão: 1- muito ligada, 2 - ligada, 3 - separada, 4 - desmem­
brada; A - Adaptabilidade: 1- muito flexível, 2 - flexível, 3 - estruturada, 4 - rígida.

No que se refere concretamente à FACES II (Gráfico! e Tabela 2),


podemos concluir que, na percepção dos inquiridos, estas famílias se si­
tuam, maioritariamente, no tipo de família equilibrada (2), no nível de
coesão ligada (2) e de adaptabilidade flexível e muito flexível (1 e 2).

" As pontuações médias obtidas pelos suJeitos (figuras parentais substitutas)


mostram que não há diferenças estatísticas significativas entre as amostras, em termos
de funcionamento familiar, quer relativamente ao tipo de família (X 2 (3)=1.41, p=.702)
quer ao tipo de coesão (X2 (3)=4.35, p=.226) e de adaptabilidade (X2 (3)=2.85,
p=.415). Tanto no Acolhimento como na Colocação a maioria dos sujeitos percepciona
as suas famílias como equilibradas quanto ao tipo de família - nível 2 - (53.33% aco­
lhimento; 48.39 % colocação), ligadas quanto à coesão - nível 2 - (53.33% acolhimen­
to; 48.39 % colocação) e muito flexíveis - nível 1 - (34.43 % da amostra total; 36.67%
acolhimento; 32.26 % colocação) e flexíveis - nível 2 - (40.98 % da amostra total;
43.33 % acolhimento; 38.71 % colocação) em termos de adaptabilidade.
84
Novas Formas de Família

Na interpretação destes resultados, não poderemos deixar de fazer


apelo aos conceitos teóricos que estas dimensões envolvem nem ao facto de
estarmos perante famílias numa fase concreta do ciclo vital28 , isto é, com
filhos adolescentes.
Tudo isto significa que, em termos de Coesão, estas famílias são muito
mais unidas do que separadas, sem que tal signifique muita fusão, o que
propicia ao adolescente condições para a sua individuação. Em termos de
Adaptabilidade e uma vez que se situam, predominantemente, nas catego­
rias flexível e muito flexível conclui-se que dispõem de capacidade para
mudar em termos de estrutura, regras ou papéis face a situações determi­
nadas ou acontecimentos stressantes, o que lhes confere uma capacidade de
negociação particularmente importante no contexto da adolescência (Olson
et al., 1982; Olson, in Walsh ed. 1982). São estas características que nos per­
mitem dizer que as famílias, independentemente da modalidade de acolhi­
mento, dispõem de condições para um adequado funcionamento familiar.

50
40 �Colocação
30
20
10
o
Recursos Orgulho Entendimento

Gráfico 2 - Valores médios de recursos familiares,


orgulho e entendimento, por amostra"

" Para aprofundamento deste tema consultar Relvas (1996).


• Na escala de Recursos Familiares a média obtida pela amostra Colocação é 42.97
2

e pela de Acolhimento é 44.67. As médias observadas na subescala Orgulho são, respec­


tivamente, 27.45 e 27.47. No que se refere ao Entendimento as médias são, respectiva­
mente, 8.77 e 9.20. Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas
entre as médias obtidas pelas duas amostras: Recursos (F(l ,60)=.9 I, p=.345); Orgulho
(F( 1,60)=.00, p=.989); Entendimento (F( 1,60)=.27, p=.607).
85
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

No que toca aos recursos familiares (Gráfico 2) e tendo presente que a


construção desta escala tem por base categorias de 1 a 5, poderemos inter­
pretar os resultados a partir dos valores possíveis, mínimos e máximos, da
escala global (12-60), da subescala Orgulho (7-35) e da subescala
Entendimento (5-25). Sabendo que as médias obtidas na amostra total são
Recursos 43.80, Orgulho 27.46 e Entendimento 8.98, podemos deduzir que
os sujeitos, independentemente da modalidade de acolhimento, percep­
cionam bons recursos internos, bons valores de orgulho e baixos valores de
entendimento. Esta leitura pode, aliás, ser indirectamnte confirmada, con­
siderando os valores encontrados por Canavarro et ai. (1993) numa amostra
de controle de um grupo clínico (médias de recursos: total 44.24; orgulho
29.50 e entendimento 14.80).
Relacionando com os conceitos que lhe são inerentes, diremos que os
sujeitos percepcionam as suas famílias com boa capacidade para prevenir
situações indutoras de stress ou capazes de descompensar o sistema fami­
liar. Encaram a sua vivência familiar com lealdade, optimismo, confiança e
abertura, mas com uma reduzida capacidade para enfrentar problemas e
relacionar-se. Se a análise psicométrica da subescala Entendimento nos
exige alguma cautela na interpretação dos resultados e este último dado é,
portanto, menos fiável, poderemos afirmar, sem grande margem de dúvida,
que os níveis de recursos e orgulho destas famílias indiciam boa capacidade
para desenvolver estratégias de adaptação individual e busca de suporte
(Olson, 1982, cit. in Serra et ai., 1992).
Podemos ainda concluir da coerência e consistência dos dados, no que
se refere à relação recursos internos-funcionamento familiar (famílias com
funcionamento familiar equilibrado e bons recursos internos), pois, como
sabemos, há uma relação directa entre ambas as medidas (Olson et ai.,
1982; Canavarro et al., 1993).

A Comunicação Adolescentes - Figuras Parentais

A comunicação é entendida como elemento fundamental no desen­


volvimento de relações interpessoais, enquanto ingrediente básico da nego­
ciação inerente ao crescimento dos membros de uma família. Nesse senti­
do, é considerada uma dimensão facilitadora da coesão e da adaptabilidade,
que auxilia ou dificulta as mudanças no sistema familiar (Olson et al.,
1982; Olson, in Walsh ed. 1982). Assim, tornava-se muito importante ava-
86
Novas Formas de Família

liá-la no contexto destas famílias de acolhimento: bons índices de comuni­


cação nas díades constituir-se-iam como bons indicadores de desenvolvi­
mento do adolescente (e vice-versa). Como já indicámos anteriormente, uti­
lizámos com esse objectivo a Escala de Comunicação Pais-Adolescentes,
da autoria de Barnes e Olson (1982) que permite medir a comunicação
global e as dimensões comunicação aberta (open communication) [aspec­
tos positivos da comunicação, expressos no grau de compreensão e satis­
fação vivenciados na interacção] e dificuldades na comunicação (problems
in communication) [aspectos negativos da comunicação, expressos no
receio em comunicar, estilos negativos de interacção, selectividade e receio
naquilo que é partilhado] (Olson, in Walsh ed. 1982). Enquanto dimensão
comunicacional, facilitadora (ou não) do funcionamento familiar, a comu­
nicação envolve conceitos como a capacidade de ouvir, a capacidade de
falar, self-disclosure, clareza, conteúdo-sequência, respeito e atenção.
Esta escala é apresentada em três versões (Parent-Form Scale, Mother
Form Scale e Father Form Scale). Entre as versões a única diferença reside
na pessoa inquirida (mãe/pai ou filho/a adolescente); assim, a Parent-Fonn
foi aplicada ao elemento da família de acolhimento e as versões Mother
Form Scale e Father Form Scale foram aplicadas aos adolescentes, que
responderam a uma ou outra versão em função do elemento da família de
acolhimento, masculino ou feminino, que respondeu ao protocolo30 •

30 Em relação à escala de comunicação na versão paterna/materna (Farher­


Form/Mother-Form) obtivemos um alfa total de .846, o que aponta para uma boa con­
sistência interna. Na Comunicação Aberra foi obtido um valor de alfa de Cronbach de
.839. Nas Dificuldades na Comunicação o alfa obtido foi igual a .723. Na versão pais
(Parent-Form) e para evitar qualquer enviesamento, optou-se por analisar separada­
mente os dados relativos às mães e mães+ pais. O comportamento dos itens é idêntico
quer consideremos apenas as mães quer consideremos mães + pais. Com o n=56
(mães) o alfa de Cronbach é .572, valor que sobe para .660 se utilizarmos o n= 61 (mães
+ pais). Na Comunicação Aberta todos os itens obtêm correlações significativas com a
escala, tanto para a amostra de mães como de mães + pais. Para n=56 o alfa é .840;
considerando n=6 l o alfa é .849. A subescala Dificuldades de Comunicação para a
amostra de 56 mães obteve um alfa de .636. Com a amostra de 61 o alfa obtido foi .644.
Apesar destes dados e considerando: 1) no caso dos adolescentes, a existência óbvia de
um número reduzido de aplicações da versão paterna; 2) que Barnes e Olson ( 1982)
mostram que a comunicação entre o adolescente e as figuras parentais masculina e femi-
87
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Tabela 3 - Médias da escala de comunicação e subescalas


(adolescentes; mães) por amostra

Comunic11çíío Aberta ll>ifkuldndts

Colocação (adolescentes) 80.55 42.65 37.90


dp=l2.92 dp=6.18 dp=7.93

Acolhimento-(adolescentes) 14.17 411.13 3§.2'3


\!11�1 l,74 \lp"'7J7 �-t�
Colocação (mães) 69.11 41.52 23.82
dp=8.42 dp=5.79 dp=6.68

Acolhhnento{mãos) 61.46 39.54 24.$


(jpm8JJ 4-P"'&J4 @=5,§'5

Os dados resultantes da aplicação da escala às figuras maternas substi­


tutivas (elemento feminino da família de acolhimento), que a fim de faci­
litar a leitura dos dados designaremos daqui em diante por comunicação­
-mães, permitiram-nos constatar que não há diferenças estatisticamente sig­
nificativas entre as médias obtidas pelas modalidades Acolhimento e
Colocação3 '. Contudo, o mesmo não acontece no que se refere à comuni­
cação-adolescentes (expressão com que designamos, a partir daqui, os
resultados da aplicação da versão Mother-Form aos adolescentes): na
subescala dificuldades de comunicação a modalidade de Colocação apre­
senta resultados significativamente mais elevados 32 (F(l ,60)=6.54;
p=.013), ou seja, uma melhor comunicação. Dever-se-á ter em conta, no
caso desta subescala, que os autores indicam que a leitura deve ser feita

nina se diferenciam significativamente; 3) o reduzido número de figuras paternas subs­


titutas da nossa amostra (5), optámos por analisar, apenas, os dados resultantes da
comunicação-mães [figura parental substituta feminina] e da aplicação da versão mater­
na aos adolescentes (n= 56).
" Comunicação (F(l ,54)=.53, p=.468); Comunicação aberta (F(l ,54)=1.0 I,
p=.320) e Dificuldades de Comunicação (F(l,54)=.16, p=.687).
" Nas outras medidas não se observam, na comunicação-adolescentes, diferenças
entre Acolhimento e Colocação (comunicação F(l,60)=3.82. p=.56; comunicação aber­
ta F (1,60)=.71, p= .403).
88
Novas Formas de Família

pela positiva, ou seja, quanto mais elevado o seu valor, mais positiva é a
comunicação, sendo que há menos problemas na comunicação pais-filhos.
Por outro lado, e considerando os mínimos e máximos possíveis na
escala e subescalas (20-100; 10-50) bem como os valores de construção
apresentados por Barnes e Olson (1982), podemos observar, em relação ao
esperável, uma inversão nos valores das figuras maternas e dos adoles­
centes: estes últimos obtêm melhores valores, em todas as medidas, valores
que são em termos absolutos bons índices de comunicação adolescente­
-figura materna. Perante estes dados, procurámos saber até que ponto o
sexo do adolescente faz ou não variar os resultados. A conclusão foi nega­
tiva: o sexo não altera a percepção da comunicação, quer por parte do ado­
lescente quer por parte da figura parental substituta.
Assim, em síntese podemos afirmar que:

• os adolescentes percepcionam a comunicação com as figuras mater­


nas substitutas como boa, aberta e sem dificuldades/problemas;
• as inquiridas têm uma percepção menos satisfatória da comunicação
que estabelecem com os adolescentes;
• o sexo do adolescente não faz variar estes resultados;
• os adolescentes em colocação familiar, ou seja, com laços de pa­
rentesco com a família que os acolhe, percepcionam a comuni­
cação com as figuras maternas como tendo significativamente
menos dificuldades/problemas do que aqueles que estão em
famílias de acolhimento (sem laços de parentesco).

No que às duas primeiras conclusões se refere, seria, como vimos,


esperável encontrar resultados inversos. Barnes e Olson (1982), ao aplica­
rem esta escala, compararam os resultados obtidos pelos diferentes grupos
em análise (pai, mãe, adolescente) tendo concluído que as mães percep­
cionam a comunicação com os filhos adolescentes como mais positiva do
que estes. Esse resultado tem necessariamente a ver com a maior abertura
na comunicação familiar por parte das mães, enquanto os adolescentes
vivem um período particularmente difícil na comunicação com ambos os
pais (pai e mãe), o que os faz encarar este aspecto com maior negativismo.
A explicação avançada pelos autores tem por base o contexto da ado­
lescência, fase em que o adolescente necessita de se individualizar da sua
própria família, o que o leva a minimizar aspectos da vida familiar e a
encarar uma comunicação positiva como encorajadora da dependência.
89
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Interrogamo-nos, pois, sobre quais as razões que, inversamente à regra,


levam estes adolescentes a percepcionar a comunicação como boa, enquan­
to que as mães a encaram com um maior negativismo. Como outros ado­
lescentes, também eles desenvolvem um processo de autonomização, mas
estamos em crer que o facto de terem sido acolhidos, bem como o (re)co­
nhecimento da improbabilidade de retorno aos pais biológicos, os faz ma­
ximizar aspectos da vida familiar, designadamente percepcionar uma boa
comunicação. Em última análise, e perante este dado, poderemos ques­
tionar até que ponto a situação de acolhimento/colocação não poderá apre­
sentar-se, em termos comunicacionais e no que ao adolescente se refere,
como perturbadora da autonomização. É uma questão que fica...
Contudo, e paralelamente, no caso das figuras maternas substitutas não
poderemos deixar de ter em conta algumas características da nossa amostra,
designadamente a idade avançada das inquiridas e o seu baixo nível de
escolaridade como determinantes de um grande distanciamento dos proble­
mas do quotidiano dos adolescentes. Também a transitoriedade do seu
papel de figuras maternas substitutas em famílias de acolhimento, o dou­
ble-bind e a tensão da dupla parentalidade em que ficam encerradas
(Cirillo, 1988; Benoit et al., 1988) não deixará de se fazer sentir nestes
resultados. De forma análoga às famílias adoptivas, nesta fase, as "mães de
acolhimento" podem começar, também, a viver receios que se prendem
com a possibilidade de opção do adolescente pelos pais biológicos
(Alarcão, 2000). Assim, poderá acontecer que as "mães" receiem fazer
como os adolescentes, os quais parecem ter necessidade de "dourar" a qua­
lidade da comunicação que estabelecem com elas, amplificando o que a
relação lhes traz de bom, quem sabe se num pedido implícito da sua
manutenção.
O facto de os adolescentes na modalidade de colocação sentirem menos
dificuldades na comunicação com as figuras maternas - terceira conclusão
- também merece uma reflexão: atentando no conteúdo dos itens que com­
põem esta subescala, podemos considerar que também apontam para o "à­
-vontade", ou a sua falta, na relação comunicacional. Como os próprios
autores indicam, recordamos que avaliam os aspectos negativos da comu­
nicação expressos no receio em comunicar, na selectividade, no receio de
partilhar. Faz então sentido que o adolescente, acolhido numa família com
a qual tem laços de parentesco e, provavelmente, um conhecimento desde
que ele próprio se conhece, tenha esse "à-vontade" em muito maior grau do
que aquele que está numa família, a muitos títulos, desconhecida.
90
Novas Formas de Família

A Vinculação do Adolescente
em Relação às Figuras Parentais de Acolhimento

Tal como ficou previamente referenciado no Quadro de indicação dos


instrumentos desta investigação (Quadro 1), como medida da vinculação
usámos o Inventário da Vinculação na Adolescência - IPPA (Neves,
Soares, Silva et al., 1999)33 que permite diferenciar a vinculação segura ver­
sus a vinculação insegura. A qualidade da vinculação emerge "como factor
determinante na formação de novas relações de vinculação e na construção
das representações sobre o grupo de amigos" (Neves, 1995, 193), ou seja,
uma vinculação segura na adolescência, com o pai e com a mãe, é impor­
tante para o bem-estar do indivíduo, não só nesta fase, mas também no esta­
do adulto. Do mesmo modo, uma vinculação segura a ambos os pais poten­
cia um nível superior de ajustamento (idem).
Sendo a adolescência uma fase em que se estabelecem novas relações,
assume-se como ocasião para reavaliar e reorganizar vinculações inseguras
face aos pais, que podem vir a constituir-se como um factor de vulnerabi­
lidade e depressão no adolescente (Armsden et ai., 1990, cit. in Neves,
1995). Por outro lado, constatou-se que a ausência dos pais, como figuras

" A versão inicial deste instrumento, lnve111ory of A11ach111e111s - IAA (Greenberg


1982, in Neves 1995; Neves et ai. 1999), foi elaborada para avaliar a qualidade das rela­
ções afectivas com os pais (mãe e pai) e amigos, bem como a procura de proximidade
em situações de stress (Greenberg, Siegel & Leitch, 1983, in Neves et ai. 1999). Na sua
terceira versão (Armsden & Greenberg, 1987, i11 Neves, 1995, Neves et al. 1999) o IPPA
veio permitir avaliar separadamente a qualidade da vinculação do adolescente à mãe e
ao pai, implicando que os indivíduos fossem classificados em seguros (em cada uma das
três escalas), se os resultados se situassem acima da mediana, e inseguros (em cada uma
das três escalas), se os resultados se situassem abaixo da mediana (Neves, 1995; Neves
et ai. 1999). Outros estudos têm procurado avaliar a relação entre a qualidade de vin­
culação do adolescente e o bem-estar (Greenberg, Siegel & Leitch, 1983; Armsden,
1986; Armsden & Greenberg, 1986; Raja, McGee & Staton, 1992), a auto-estima e as
estratégias de coping (Armsden, 1986), a identidade (Harris, 1989; Lapse, Rice &
Fitzgerald, 1990), o processo de separação-individuação (May, 1990), o funcionamento
psicossocial na transição para a universidade (Lapsey, Rice & Fitzgerald, 1990;
Robinson & Janos, 1996) e a depressão (Armsden, McCauley, Greenberg, Burke &
Mitchell, 1990; Kobak, Sudler & Gamble, 1991) (in op. cit.). Os resultados destes estu­
dos justificam, em parte, a nossa opção por este instrumento como medida de um indi­
cador (possível) de um desenvolvimento "saudável".
91
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

de vinculação emocionalmente disponíveis, pode constituir-se duplamente


como factor de ameaça à estabilidade do adolescente (De Jong, 1992, cit.
in Neves, 1995).
Confirmando os pressupostos anteriores, a partir dos múltiplos estudos
conduzidos com o IPPA, concluiu-se que existe uma relação positiva entre
a qualidade da vinculação e, por exemplo, o bem-estar do adolescente, o
seu nível de auto-estima e a capacidade de reacção ao stress, pelo que esta
medida pode ser entendida como um índice do desenvolvimento psicosso­
cial do adolescente.
Nesta investigação foram aplicadas as escalas que avaliam a qualidade
da vinculação à mãe (25 itens) e ao pai (25 itens), com o objectivo de
avaliar a qualidade da vinculação do adolescente relativamente à figura
substituta materna ou paterna.
Observando os resultados do IPPA 34 (Tabela 4) concluímos que, con­
siderando os padrões de vinculação seguro/inseguro em relação à figura
parental substituta no acolhimento, não há diferenças significativas em
função das duas modalidades (Colocação e Acolhimento familiar). O
mesmo acontece no que se refere ao sexo do adolescente e composição do
agregado familiar3 5 . Também não foram encontradas correlações significa­
tivas entre o padrão de vinculação e as idades da figura parental e do ado­
lescente, nem com o seu tempo de permanência na família de acolhimento.

" A consistência interna da escala vinculação foi calculada para a versão materna,
uma vez que apenas 5 sujeitos responderam à versão masculina e a sua inclusão nos cál­
culos poderia enviesar substancialmente o estudo psicométrico desta escala, já por si
complexo. A consistência interna obtida para a escala foi de .671, o que aponta para a
necessidade de alguma cautela na leitura dos resultados, não deixando de considerar,
contudo, o carácter exploratório do estudo, o facto de que a análise psicométrica não ser
conclusiva e, fundamentalmente, as características da amostra.
"Diferenças significativas entre Acolhimento e Colocação no padrão de vinculação
(X2(1)=.016, p = .900). Diferenças significativas entre Acolhimento e Colocação em
função do sexo do jovem (F(l,60)=.58, p=.451) e composição do agregado
(X2(3)=2.08, p=.556).
92
Novas Formas de Família

Tabela 4 - Distribuição da amostra pelo padrão de vinculação

}ladr,ão de vinculaçÍio Segui,o Inseguro


Modalidade n % n %

corocacão 1� 50 16 $1.6

30 100 31 100

Como vemos, há entre modalidades uma distribuição equilibrada entre


adolescentes vinculados segura e inseguramente, pelo que o que os que
diferencia não parece ser o facto de estarem em acolhimento ou em colo­
cação, mas sim, provavelmente, o seu passado. Nesta análise, teremos que
ter em conta que o seu tempo de permanência nas famílias de acolhimento
é, em média, de 11 anos na modalidade de Colocação e de 7 anos em Aco­
lhimento. À data da sua integração nestas famílias os adolescentes teriam,
então, uma média de 3 e 7 anos respectivamente, tendo até esse momento
vivido com os seus pais biológicos. Assim, recordamos que: "as primeiras
interacções da criança com a figura de vinculação são o pilar que vai per­
mitir a representação da relação com os outros (...) Os mecanismos através
dos quais essas influências precoces ou iniciais se transmitem ao longo do
ciclo de vida têm sido explicados através de diversos conceitos tais como:
working models (Bowlby), expectativas sobre o sujeito (Sroufe) e repre­
sentações mentais dos pais (Lévy et ai.)" (Eisemann, in Canavarro, 1999,
22), modelos que irão estar presentes no desenvolvimento de relações ulte­
riores. Embora convenha recordar de novo que, como nos indicam alguns
autores (Soares, 1996b), é na adolescência que estão reunidas as condições
desenvolvimentais para a transformação de padrões de vinculação inse­
guros em padrões de vinculação seguros.

Modelo Conceptual e Resultados

A fim de operacionalizar o problema inicial, construímos um modelo


conceptual (Figura 7) que procurámos testar empiricamente e a partir do
qual se hipotetizaram as relações entre variáveis subjacentes a esse proble-
93
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

ma. Seguidamente, desmembrámos este modelo de relações em cinco


questões ou hipóteses que correspondem a outros tantos estudos empíri­
cos36.

Características da
dinâmica familiar
Variáveis
Recursos familiares associadas ao
Orgulho acolhimento
Entendimento

Comunicação
Comunicação aberta
Dificuldades de
comunicação

Tipo de família Vinculação


oesão Segura
C l◄E---------===-......,=--tt►/
Adaptabi !idade Insegura

Figura 7 - Modelo conceptual

Apesar da semelhança entre as duas amostras, na grande maioria das


variáveis contempladas no modelo, optámos por prosseguir os estudos
empíricos considerando sempre separadamente os três agrupamentos de
dados (os da amostra total, amostra de Colocação e de Acolhimento) em
busca das suas especificidades.

"Para uma leitura mais detalhada destes estudos empíricos deverá ser consultada a
versão integral da dissertação de Mestrado em Família e Sistemas Sociais, Tribuna, M.
F., Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência. Coimbra, 2000, JSMT, texto
policopiado.
94
Novas Formas de Família

Estudo 1 - Relação entre características familiares


e vinculação do adolescente

Hipótese: as variáveis familiares (coesão, adaptabilidade e tipo de


família, recursos, orgulho e entendimento) estão relacionadas entre si e à
medida que os seus valores apontam para uma maior funcionalidade os
padrões de vinculação tendem para maior segurança.

Da relação entre variáveis37 , foi possível concluir que:

• os níveis superiores de funcionalidade (FACES II), em todas as


dimensões, associam-se a melhores valores de recursos (à
excepção da adaptabilidade na amostra de acolhimento) e orgulho
familiar;
• quanto à sua relação com a vinculação, só na amostra total os
padrões de vinculação diferem significativamente em função do
tipo de família e do nível de coesão, observando-se uma maior dis­
tribuição dos padrões seguros nas famílias equilibradas/muito
equilibradas e com coesão ligada/muito ligada. Atendendo à dis­
tribuição percentual a tendência das duas amostras parece ser idên­
tica.

37 Os valores de recursos familiares (R) diferenciam-se em função do tipo de família

(TF) [total F(3,60)=26.47, p<.001; acolhimento F(3,29)=22.62, p<.00 I; colocação


F(3,30)=10.33, p<.001)], do nível de coesão (C) [total F(3,60)=15.20, p<.001; colo­
cação X2(3)=11.07, p=.0 II] e do nível de adaptabilidade (A) [total F(3,60)=15.82,
p<.001; colocação X2(3)=10.71, p=.013], sempre no sentido de que são mais elevados
nos níveis mais funcionais.
O orgulho (O) diferencia-se em função das mesmas variáveis, ainda no mesmo sen­
tido e nas três amostras (O diferencia-se em função do TF: total F(3,60)=25.90, p<.001;
acolhimento F(3,29)=15.49, p<.001; colocação F(3,30)=13.53, p<.001); O diferencia-se
em função da C: total F(3,60)=23.73, p<.001; acolhimento X2(3)=17.22, p=.001; colo­
cação X2(3)=17.54, p=.001; O diferencia-se em função da A: total F(3,60)=12.12,
p<.001; acolhimento X2(3)=9.14, p=.028; colocação X2(3)=1 l.96, p=.008]. O entendi-
. menta familiar não se diferencia em função do tipo de família, coesão ou adaptabili­
dade.
Os padrões de vinculação não diferem em função dos recursos familiares, nem da
adaptabilidade, mas, e somente na amostra total, em função do tipo de família
(X2(3)=9.32, p=.025) e do nível de coesão (X2(3)=11.13, p=.011).
95
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Podemos agora concluir que a primeira parte da hipótese (as variáveis


familiares estão relacionadas entre si) é parcialmente confirmada nas três
amostras, excepção feita para o Entendimento Familiar. Apesar das caute­
las já referidas a propósito desta subescala, admitimos poder tratar-se de
um resultado defensivo, dado que estamos perante famílias de acolhimen­
to que estão a vivenciar as questões inerentes à adolescência.
A associação entre variáveis específicas do funcionamento familiar e
recursos familiares confirma as conclusões da literatura relativamente às
famílias em geral (Olson et al., 1982; McCubbin e Patterson, cit. in. Olson
et al., 1982): sendo a família um sistema, os recursos familiares "[enquan­
to] constelação de atributos familiares de que fazem parte os pontos fortes
(strenghts) do sistema familiar" (Canavarro et al., 1993, 87) assumem um
papel importante nas estratégias de adaptação familiar e individual (Serra
et al., 1992).
O orgulho familiar relaciona-se determinante e consistentemente, nas
três amostras, com o tipo de família, a coesão e a adaptabilidade, através de
uma relação positiva: quanto maiores os valores de orgulho melhores são
os níveis de funcionamento familiar e vice-versa. Estes resultados são con­
firmados em outros estudos, pelo que diversos autores afirmam a importân­
cia da coesão e da adaptabilidade para os recursos familiares (Angel, 1936;
Cavan, 1938; Koos, 1946; Stinnet e Saur, 1977, 1981 in Canavarro et al.,
1993). Estas relações parecem compreensíveis tendo em conta que os
recursos, e o orgulho em particular, são entendidos como um atributo fami­
liar que engloba o respeito, a verdade e a lealdade, o optimismo e a con­
fiança entre membros da família. Serão estes atributos que funcionam como
a sua matriz de identidade (coesão) e lhe conferem capacidade para mudar
a sua estrutura de poder e as regras da relação (adaptabilidade).
Ao verificar-se esta relação nas três amostras, consideramos que, muito
mais que um atributo familiar, o orgulho é, para estas famílias, uma
"exigência" que intervém na capacidade para prevenir acontecimentos
indutores de stress quer normativos quer inesperados, mas sempre capazes
de descompensar o sistema familiar. O orgulho familiar poderá, nestas
famílias, ser entendido como uma espécie de mecanismo de defesa ou "uma
armadura", pois não lhes basta a capacidade educativa que a dado momen­
to lhes foi reconhecida quando lhes foi entregue uma criança, uma vez que,
regularmente, se confrontam com um sistema mais lato de que também elas
fazem parte. Falamos, entre outros, dos pais biológicos, dos diferentes
serviços intervenientes, das próprias crianças e adolescentes que acolhe-
96
Novas Formas de Família

ram. Nesse confronto, o orgulho familiar elevado pode revelar-se um fac­


tor securizante de "bom prognóstico".

No que se refere à segunda parte da hipótese (à medida que o funciona­


mento familiar é mais favorável os padrões de vinculação tendem para uma
maior segurança) a vinculação não se mostra, em nenhuma amostra, asso­
ciada aos recursos familiares. Na amostra total surge relacionada com o tipo
de família e a coesão, parecendo acontecer o mesmo nas outras duas
amostras se tomarmos como indicador a distribuição percentual. Assim, e
em termos de vinculação, muito mais que os recursos familiares internos
são importantes o funcionamento familiar global e a coesão, de alguma
maneira implícitos na forma como a figura de vinculação é acessível e
responsiva em momentos de dificuldade e stress para o adolescente.
É particularmente nos níveis superiores de funcionalidade que se situam
os padrões seguros, essencialmente caracterizados "pela procura activa de
proximidade e interacção e pela aceitação e afirmação da necessidade de
uma relação vinculativa" (Alarcão, 2000, 357). A vinculação estará, então,
muito mais associada às ligações e ao grau de separação/união entre os
membros da família (coesão) do que à especificidade ou flexibilidade das
normas (adaptabilidade).
Deveremos ainda notar que, ao relacionar dois constructos teoricamente
distintos (vinculação e funcionamento familiar), um de carácter mais indi­
vidual e outro fundamentalmente grupal/familiar, os dados que fomos
obtendo permitem dizer que eles se associam e (auto)confirmam, acen­
tuando essa ligação a tónica relacional/interactiva que ambos sublinham,
enquanto elemento dinamizador do desenvolvimento humano.

Estudo 2 - Relação entre características familiares e comunicação

Hipótese: À medida que os valores das variáveis familiares (recursos,


orgulho e entendimento, coesão, adaptabilidade e tipo de família) apontam
para uma maior funcionalidade, a comunicação percepcionada pela figu­
ra materna substituta e pelo adolescente tende a ser globalmente melhor,
mais aberta e desenrola-se com menos dificuldades38•

" Neste ponto usaremos indistintamente as expressões figura materna substituta e


mãe, sendo certo que não nos estamos a referir à mãe biológica, mas à pessoa que, no
dia-a-dia do adolescente, assume o papel de mãe.
97
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

As relações entre variáveis39 permitem-nos concluir que:

• a comunicação-mães não se diferencia significativamente em


função das variáveis familiares;
• no que se refere à comunicação-adolescentes: a) a comunicação
total diferencia-se em função de todas as variáveis familiares - à
excepção do Entendimento, em todas as amostras, e da
Adaptabilidade, na amostra de Colocação - observando-se que é
melhor nos níveis de funcionalidade mais elevados; b) nas três
amostras observa-se uma melhor comunicação-aberta nos níveis
de maior funcionalidade e de melhores recursos familiares, em
todas as dimensões à excepção do Entendimento e c) há menores
dificuldades na comunicação em função de maiores Recursos
familiares (total e dimensão Orgulho) e dos tipos de família mais
funcionais. O mesmo acontece com o nível de Coesão no caso das

"Diferenças na Comunicai;ão {total) - Adolescente, em função de:


a) tipo de família: total F(3,60)=9.06, p<.00; acolhimento X2(3)=13.62, p=.003;
colocação X2(3)=13.89, p=.003
b) nível de coesão: total F (3,60)=8.90, p<.001; acolhimento X2(3)=14.54, p=.002;
colocação X2(3)=13.89, p=.003
c) nível de adaptabilidade: total F(3,60)=5.3 l, p=.003; acolhimento X2(3)=8.59,
p=.035
Diferenças na Comunicai;ão-Aberta Adolescente, em função de:
a) tipo de família: total F(3,60)=10.92, p<.001; acolhimento X2(3)=11.72, p=.008;
colocação X2(3)=14.41, p=.002.
b) nível de coesão: total F(3,60)=9.87, p<.001; acolhimento X2(3)=10.89, p=.012;
colocação X2(3)=14.4 I, p=.002.
c) nível de adaptabilidade: total F(3,60)=9.52, p<.001; acolhimento X2(3)=12.65,
p=.005; colocação X2(3)= 10.15, p=.017.
Diferenças nas Di ficuldades de Comunicai;ão-Adolescente em função de:
a) tipo de família: total F(3,60)=4.69, p<.005; acolhimento X2(3)=8.77, p=.032;
colocação X2(3)=10.14, p=.017
b) nível de coesão: total F(3,60)=4.28, p<.009; colocação X2(3)=10.14, p=.017
No caso da comunicação-mães, não surgem resultados significativos de associação
com as variáveis familiares, apenas na amostra de acolhimento se verifica uma corre­
lação positiva entre o orgulho e a subescala comunicação aberta (r =.375) e negativa
com a subescala dificuldades de comunicação (r=-.147).
98
Novas Formas de Família

amostras total e de Colocação. Esta dimensão da comunicação não


varia, em nenhum caso, com o nível de Adaptabilidade;
• o Entendimento Familiar nunca se associa à comunicação.

Como acabamos de ver, a hipótese só se confirma no caso da comuni­


cação-adolescentes, em que esta se encontra associada às variáveis do fun­
cionamento e recursos familiares, embora com algumas variações diferen­
ciadoras nas diferentes amostras e subescalas. Estas relações surgem-nos
como esperáveis tendo em conta que a comunicação familiar facilita ou
dificulta as mudanças a nível do sistema familiar, não esquecendo que o
inverso também poderá ser verdadeiro ao aceitarmos o pressuposto da
recursividade.
Na amostra acolhimento, onde não há uma "unidade biológica", a asso­
ciação melhor comunicação-aberta/coesão aponta para a importância dos
laços emocionais. Estes laços assumem para o adolescente um valor rele­
vante para se comunicar abertamente. Serão estes que lhe permitem "[tran­
sigir] de forma directa e aberta as suas tensões, tendo em conta e respeitan­
do as diferenças e preservando o sistema como entidade" (Lacroix, 1990,
cit. in Lourenço, 1996, 110). Assim, para o adolescente, nas famílias com
mais coesão, o facto de aquela família, a dado momento, ter expressado
disponibilidade em o acolher poderá representar a aceitação de todos os
seus antecedentes familiares e história de pessoal. Dito de outro modo,
fortes laços emocionais podem fazê-lo sentir-se de facto "acolhido numa
família", o que o levará a percepcionar uma melhor comunicação gleba! e
uma melhor comunicação aberta, ao invés de, como poderíamos imaginar
nesta fase do seu desenvolvimento, perturbarem essa mesma comunicação.
Contudo, também não poderemos afastar a hipótese de que este dado tenha
que ver com uma certa idealização da família que o acolheu e não tanto
com a forma como se sente ou foi acolhido. Pensando nos resultados da
comunicação global podemos completar este raciocínio dizendo que na
amostra de acolhimento a adaptabilidade é fundamental para uma "boa"
comunicação (embora, como é óbvio, não deva ser entendida como único
factor).
Por outro lado, as dificuldades de comunicação surgem essencialmente
associadas ao tipo de família, coesão (excepção para a amostra
Acolhimento), recursos e orgulho, mas não se ligam à adaptabilidade.
Assim, é nos níveis inferiores de funcionalidade e recursos familiares que
o adolescente percepciona maiores dificuldades de comunicação. Partindo
99
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

da ausência de relação entre dificuldades de comunicação e adaptabilidade,


e contra o que seria esperável, poderemos entender que esta não se assume
como uma dimensão fortemente interferente no "à-vontade" ou falta de
receio de partilha na comunicação, o que de novo faz sobressair a importân­
cia da ligação emocional relativamente à flexibilidade das regras nestas
famílias.
A comunicação-mães não se relaciona, de qualquer modo, com o fun­
cio namento familiar global, o que entendemos como outro dado não
esperável, pois tal como no caso dos adolescentes seria de supor que tal
relação viesse também a ser encontrada. Concretamente, muito mais que o
funcionamento familiar, para as mães do Acolhimento, o orgulho familiar
é importante, pelo que quando este aumenta a sua comunicação é mais
aberta.
Como compreender, então, dois dos dados mais relevantes extraídos
desta análise: por um lado, no caso dos adolescentes existe uma associação
clara entre uma melhor comunicação e uma maior funcionalidade familiar
e melhores recursos; por outro, essa associação é irrelevante nas mães? A
fase de desenvolvimento de cada um dos grupos inquiridos (adolescentes;
adultos de meia-idade) pode ajudar a esclarecer esta associação (ou a sua
inexistência) pois permite-nos pressupor uma maior "sensibilidade" dos
adolescentes perante o tema comunicação. Por outro lado, e até pensando
no conteúdo dos itens da escala, a idade e nível sócio-cultural das "mães"
da nossa amostra também poderá ter algum efeito defensivo neste resulta­
do, contraditório com o que seria esperável em "mães de adolescentes de
classe média" junto das quais são trabalhadas estas escalas e em relação às
quais foram construídos os modelos teóricos de referência.
Dentro desta lógica, a relação positiva entre comunicação aberta e
orgulho familiar apresenta uma forte coerência, articulando-se no sentido
de que estas mães possam continuar a sentir-se como uma família com a
"capacidade educativa" que lhes foi "oficialmente" reconhecida pelos ou­
tros sistemas intervenientes no processo (Bridgmann, 1988; Cirillo, 1988).
Finalmente, a não relação do funcionamento familiar com a comunicação,
por parte das inquiridas, poderá expressar, ainda, alguns aspectos da(s)
paradoxalidade(s) contidas nas situações de acolhimento familiar em geral,
tal como foram referidas na parte teórica (idem). Tudo isto não quer, con­
tudo, significar que, a ser assim, não seja importante estar atento a esta
mesma vertente defensiva e às suas eventuais implicações.
100
Novas Formas de Família

Estudo 3 - Relação entre comunicação e vinculação do adolescente

Hipótese: À medida que a comunicaçiio tende para melhores índices, os


padrões de vinculação do adolescente tendem para uma maior segurança.

A partir da síntese final de relações encontradas•º podemos concluir que:

• na amostra de Acolhimento, o padrão de vinculação segura rela­


ciona-se significativamente com melhores índices de comunicação
percepcionada pelos adolescentes, em todas as dimensões, e pelas
"mães", nas dimensões comunicação (global) e aberta;
• na amostra total encontramos a mesma tendência considerando a
comunicaçiio (global)-adolescente e a comunicação (global) e
aberta-mães;
• na amostra de Colocação os padrões de vinculação não diferem sig­
nificativamente em função da comunicação.

A nossa hipótese é parcialmente confirmada na amostra total e de aco­


lhimento, mas completamente infirmada na amostra de colocação, onde não
existe qualquer relação entre comunicação (adolescente; mãe) e vinculação.
Destes dados há, então, que destacar a importância desta relação na amostra
de acolhimento (com prováveis reflexos na amostra total) por oposição à
amostra de colocação.
Prosseguindo na análise dos resultados, questionámo-nos: será que na
amostra de Colocação o laço biológico "obscurece" o "efeito comunicação"
na relação com a vinculação? Tendo como referência o quadro teórico de
Bowlby, é sabido que o sistema de vinculação reporta-se à figura particular
que previamente foi incorporada e que, para todos estes adolescentes, supo­
mos terá sido centrada na mãe biológica. A partir do momento em que
ficaram ao cuidado dos parentes, o que de acordo com o tempo de per-

40
Os padrões de vinculação diferem em função da comunicação-adolescente glo­
bal [total F(l,60)=4.50, p=.038; acolhimento F(l,29)=7.97, p=.009]; comunicação­
-aberta [acolhimento F(J,29)=4.34, p=.046] e dificuldades de comunicação [acolhi­
mento F(l,29)=6.55, p=.016]; o mesmo acontece com a comunicação-mães (global)
[total F(l,54)=7.63, p=.008; acolhimento F(l,27)=7.25, p=.012]; comunicação-mães
aberta [total F(l,54)=8. I 3, p=.006; acolhimento F(l,27)=7. 70, p=.010].
101
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

manência destes adolescentes na família de acolhimento terá acontecido em


média aos 3 anos, ocorreu uma rápida extensão da vinculação a outras fi­
guras que, no caso desta amostra, são na sua maioria as avós. Teríamos
assim condições aparentemente favoráveis para que os processos de vincu­
lação decorram, aqui, sem grandes cortes ou rupturas. Estas condições
parecem reforçadas se pensarmos que há possibilidades de que, em
momentos particulares do desenvolvimento como é o caso da adolescência,
as funções de prestação de cuidados e suporte sejam deslocadas para ou­
tros mais "competentes" do que as figuras parentais substitutas. Por exem­
plo, esse papel poderá ser co-desempenhado por um(a) tio(a) ou um(a)
irmão(ã), uma vez que muitos dos inquiridos têm já idade avançada.
Estas condições aparentemente favoráveis das famílias de colocação,
constituídas, como vimos, maioritariamente por avós, parecem permitir
que o padrão de vinculação dos adolescentes seja independente da quali­
dade da comunicação actual com as figuras maternas substitutas, embora se
deva recordar que nesta amostra surgem valores significativamente
menores nas dificuldades de comunicação (adolescente).

Esta investigação não nos permite definir relações de causalidade.


Apenas hipotetizámos que à medida que a comunicação melhora os
padrões de vinculação tendem para uma maior segurança; no entanto, con­
sideramos plausível hipotetizar o inverso. Isto é, em qualquer uma das
amostras, podemos supor que são os adolescentes vinculados seguramente
aqueles que comunicam melhor, mais abertamente e com menos dificul­
dades, tendo uma maior capacidade em confrontarem o outro em termos
comunicacionais. Do mesmo modo, podemos pensar que as "mães" que
melhor comunicam são aquelas que têm com o adolescente uma relação de
maior responsividade.
De todo o modo, não podemos deixar de concluir que a comunicação é
sobremaneira importante para que o adolescente possa percepcionar como
segura a sua vinculação à "mãe" de Acolhimento. Ou seja, o que o vínculo
biológico facilita na Colocação, pode aqui ser substituído pela qualidade da
comunicação adolescente/figura materna. Note-se, ainda, que esta relação
surge com reciprocidade na díade, ou seja, é impo11ante tanto na avaliação
feita pelo adolescente, como pela mãe, contrariamente ao observado na
relação funcionamento familiar-comunicação em que, para o adolescente,
se revelava importante a existência de níveis de funcionamento familiar
equilibrados para uma boa comunicação (ao menos nalgumas das suas
102
Novas Formas de Família

dimensões), sem que o mesmo fosse evidente na percepção que as mães


têm dessa mesma comunicação.
O facto de termos encontrado no Acolhimento uma relação entre o
padrão de vinculação dos adolescentes e a comunicação percepcionada
pelas mães parece permitir concluir, empiricamente, sobre o valor genérico
e global da comunicação no desenvolvimento destes adolescentes (tal como
é teoricamente postulado pelos autores para a adolescência em geral). Só
que uma vez que esse valor se afirma, particularmente, na amostra acolhi­
mento, poderemos ir mais longe hipotetizando que, na ausência de laços
biológicos, a comunicação, em geral, e a comunicação aberta, em particu­
lar, se transforma numa espécie de valor "acrescentado" em termos desen­
volvimentais. Face a este resultado, consideramos que as equipas técnicas
responsáveis pelo recrutamento e selecção das famílias de Acolhimento
deverão estar especialmente atentas aos aspectos relacionados com a comu­
nicação.

Estudo 4 - Relação entre condições do acolhimento


e padrões de vinculação

Hipótese: As variáveis associadas ao acolhimento (tempo de per­


manência, presença ou não de outros adolescentes, existência ou não de
parentesco, local de residência anterior, origem do pedido, existência ou
não de contactos com os pais biológicos, regularidade desses contactos e
a sua contribuição económica) interferem nos padrões de vinculação dos
adolescentes em relação às figuras maternas substitutas.

Em termos das relações entre variáveis41 verificámos que:

• as variáveis associadas ao acolhimento não fazem variar a vincu­


lação, nem na amostra total, nem na amostra de Colocação;

" Na amostra total não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas


nos padrões de vinculação em função das variáveis associadas ao acolhimento.
Na amostra Colocação não foi possível efectuar o cálculo do Qui-Quadrado; no
entanto, tomando como indicador os valores percentuais, não parece que as variáveis
em estudo interfiram substancialmente nos padrões de vinculação.
Na amostra Acolhimento foi encontrada uma relação entre vinculação e a existên­
cia ou não de contactos com os familiares (X2(1)=5.40, p=.020).
103
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

• na amostra Acolhimento os adolescentes, quando não mantêm con­


tactos com os familiares, tendem a apresentar padrões de vincu­
lação segura.

Começaremos por considerar que estar vinculado seguramente signifi­


ca exprimir uma "procura activa de proximidade e interacção ( ... ) aceitação
e afirmação da necessidade de uma relação vinculativa" (Alarcão, 2000,
357), ao mesmo tempo que pressupõe que as dificuldades das relações de
vinculação tenham sido interiorizadas crítica e positivamente, sem que
ocorra uma desvalorização da relação (Soares, 1996b).
Na amostra colocação, consideramos que, independentemente da
existência ou não de contactos com os pais biológicos, o adolescente está
perante a particularidade de continuar na sua própria família, não represen­
tando a situação de colocação uma mudança significativa ou um aconteci­
mento crítico. Admitimos que, nesta amostra, os parentes poderiam já
desempenhar o papel de figuras de vinculação secundárias, o que pôde ser
indirectamente confirmado no estudo anterior.
Na discussão dos resultados confrontamo-nos globalmente com alguns
limites do próprio estudo. Sabemos quem são estes adolescentes, com
quem estão e como se sentem, pois percepcionam a comunicação com as
"mães" como positiva. Relativamente aos seus pais biológicos, apenas
sabemos que não se encontram "em condições de poder desempenhar a sua
função sócio-educativa" (Dec.-Lei n.0 190/92 de 3 de Setembro). Sendo
assim, podemos pensar que essa inadequação se possa manter e que seja
nos casos mais complexos, em termos relacionais, que esses contactos exis­
tem preferencialmente. Por outro lado, partindo do quadro teórico de
Bowlby e numa perspectiva de continuidade dos modelos internos dinâmi­
cos, podemos supor que os adolescentes que agora não mantêm contactos
com os pais biológicos e que são vinculados seguramente às suas figuras
maternas substitutas mantiveram com as suas figuras de vinculação
(mãe-biológica) relações de vinculação seguras enquanto bebés (Soares,
1996b). Contudo, não podemos concluir se a sua relação com a figura
materna substituta representa a continuidade de um padrão de vinculação
ou se, face à separação da mãe biológica e no contexto da adolescência,
ocorreu uma reavaliação das suas vinculações precoces, designadamente
no caso das vinculações inseguras (Bowlby, 1984; Soares, 1996b).
De toda a maneira, o que parece também ser relevante é que todo o con­
junto de factores mais externos (como é o caso dos aspectos temporais) não
104
Novas Formas de Família

interfere no padrão de vinculação do adolescente em relação à figura


materna substituta, contrariamente ao que acontece com algumas carac­
terísticas do funcionamento familiar e da comunicação no caso específico
do acolhimento (cf. Estudos 2 e 3). Fica a questão: como é que perante a
inexistência de contactos se poderá garantir o retorno aos pais biológicos?
Em termos gerais, e porque o acolhimento familiar, independentemente da
modalidade, deverá pressupor o retorno aos pais biológicos, acreditamos
que os contactos com eles não devem ser interrompidos, salvo em situações
de excepção. No entanto, é também claro que os contactos envolvem para
todos (família de acolhimento; pais biológicos; menores) uma tensão de
dupla parentalidade paradoxal que leva a que sejam diferentemente enten­
didos por cada um dos sistemas (Cirillo, 1988; Bridgman 1988), facto que
pode ajudar a compreender o dado que obtivemos, bem como a necessidade
de propor intervenções que actuem no sentido contrário, algumas das quais
foram equacionadas na revisão da literatura.
De facto, os contactos são entendidos pelas famílias de acolhi­
mento como uma "armadilha" dos pais biológicos à actuação e papel que
pretendem desenvolver junto do adolescente, o que foi confirmado na
investigação desenvolvida por Koetter e Cierpka (1997). Estes autores
compararam 51 famílias de acolhimento com e sem visitas dos pais
biológicos, tendo os resultados deixado claro que as famílias de acolhi­
mento se assumem corno quase-família biológica e perspectivam a con­
tinuidade de contactos como um factor de stress crónico. O que o nosso
estudo mostra de novo é que isso se expressa no adolescente, nomeada­
mente na forma segura/insegura como se integra na família de acolhi­
mento.
Por outro lado, no caso concreto dos pais biológicos, os contactos re­
presentam um elemento de controlo sobre a família com quem o filho vive,
ao mesmo tempo que permitem aos adolescentes não perder os laços com
os progenitores, independentemente de todos os aspectos que a relação pos­
sa ter revestido. No entanto, a sua existência remete-os, muitas vezes, para
um estado de ambivalência e deixa-os perante um conflito de lealdade que
resulta muito mais agravado se é deixada ao adolescente a decisão de con­
tactar (ou não), e quando, os pais biológicos (Cirillo, 1988; Bridgrnann,
1988). Neste contexto, a não existência de contactos com os familiares po­
de ajudá-lo a libertar-se desse conflito. Os resultados da comunicação com
a figura parental substituta, que apontam para uma maior facilidade e aber­
tura comunicacional do que seria de esperar em adolescentes enquadrados
105
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

nesta faixa etária, podem, neste contexto, ser entendidos como mais uma
expressão desse conflito.
É importante, pois, concluir que os contactos devem surgir de forma
acautelada e planeada, no sentido de prevenir toda esta tensão, devendo ser
estudados caso a caso, para além de constantemente acompanhados e ava­
liados nos seus efeitos e implicações para todos os envolvidos, mais par­
ticularmente para os adolescentes. Finalmente e no limite, pode obrigar-nos
a repensar, senão mesmo a questionar, o próprio conceito de "Acolhimento
Familiar".

Estudo 5 - Relação entre condições do acolhimento e comunicação

Hipótese: As variáveis associadas ao acolhimento (tempo de per­


manência, presença ou não 'de outros adolescentes, existência ou não de
parentesco, local de residência anterior, origem do pedido, existência ou
não de contactos com os pais biológicos, regularidade desses contactos e
a sua contribuição económica) interferem na forma como adolescentes e
figuras maternas substitutas percepcionam a comunicação.

A partir do desenho das relações encontradas•2 podemos concluir:

• quando as figuras maternas substitutas são avós, por oposição a


irmãs e tias, o adolescente percepciona uma melhor comunicação,
global e com menores dificuldades;

'' O parentesco (avós) implica diferenças na comunicação-adolescente (global)


[total F(2,58)=4.92, p=.01 !] e nas dificuldades de comunicação [total F(2,58)=5.64,
p=.006].
Os contactos com os familiares (ausência/presença) associam-se a diferenças na
comunicação-adolescente (global) [total F(l ,60)=4.20, p=.045; acolhimento
F(l,29)=7.08, p=.013] e aberta [total F(l,60)=11.42, p=.001; acolhimento F(l,29)8
=10.12, p=.004] e comunicação-mães (global) [total F(l,54)=4.46, p=.039] e aberta
[total F(l ,54)=7.35, p=.009].
O tempo de permanência do adolescente na família associa-se a diferenças na
comunicação-adolescente (global) [acolhimento (r=.239) ] e aberta [acolhimento (r=
.431); colocação (r=.401)]. No caso concreto das mães não se observam quaisquer cor­
relações significativas.
A origem do pedido, na amostra Colocação, faz diferenciar a comunicação-aberta­
-adolescente [X(2)=8.35, p=.015].
106
Novas Formas de Família

• na ausência de contactos com os familiares quer os adolescentes


quer as "mães" substitutas percepcionam uma melhor comuni­
cação, global e aberta, entre si, particularmente na amostra
Acolhimento;
• quanto maior é o tempo de permanência do adolescente na família,
mais este entende a sua comunicação com a figura materna como
globalmente melhor e mais aberta, de novo particularmente na
amostra Acolhimento;
• na amostra Colocação, o adolescente percepciona uma comunicação
mais aberta com a figura materna quando a origem do pedido está
nos laços familiares, sem ter sido sujeito a qualquer explicitação,
quer familiar quer externa.

A melhor comunicação (tal como é avaliada pelo adolescente), no caso


em que a figura materna substituta é a avó, sugere-nos que também aqui as
tríades avó/neto/pais são muito mais "calorosas" do que as tríades
irmã(o)/irmã(o)/pais cujas relações fraternais são muitas vezes caracte­
rizadas por rivalidade (Caplow, in Miermont et al., 1994). Na linha do que
acontece nos estudos anteriores, supomos mesmo que nalguns casos a avó
tenha sido a figura que, desde sempre, se assumiu como figura primária ou
secundária de vinculação, quando os pais biológicos se revelaram impossi­
bilitados ou incapazes para o exercício da parentalidade. Este aspecto, ape­
sar de alguns dados que fariam supor o contrário (idade, por exemplo),
facilita a comunicação actual.
Prosseguindo na análise dos resultados, também nos parece lógica a
relação encontrada na amostra total e em que a comunicação (mais uma vez
na perspectiva do adolescente) varia com o tempo de permanência do ado­
lescente na família, o que tem necessariamente a ver com uma melhor adap­
tação às regras e com os laços emocionais entretanto criados, o que lhe per­
mite falar e comunicar acerca de si próprio e com os outros.
No caso da existência ou não de contactos com os familiares/pais
biológicos, e tal como acontecia na relação entre esta variável e a vincu­
lação, de novo somos remetidos para a questão da tensão de dupla parenta­
lidade que pesa quer sobre a família de acolhimento quer sobre o adoles­
cente, o qual se vê perante um duplo vínculo, pois só pode "ser leal a um,
sendo desleal a outro".
Ao tentar perceber porque essa relação não surge na amostra de
Colocação entendemos que, face à sua própria espontaneidade, os sistemas
107
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

intervenientes (pais biológicos, filhos; avós; serviços) acabam por percep­


cionar os contactos de um modo diferente. Para os avós estes contactos
pressupõem, também, o contacto que, enquanto pais, estabelecem even­
tualmente com os seus próprios filhos e que, ao mesmo tempo, lhes per­
mitem encontrar algum suporte quer para si próprios quer para o exercício
da parentalidade de que foram investidos. Nestes casos, coloca-se ainda a
hipótese de que os pais biológicos, quando contactam os filhos, se mantêm
muito mais alheados do exercício da parentalidade desempenhado pela
figura substituta, pressupondo que não correm riscos de desapropriação dos
filhos.
Por seu lado, os próprios adolescentes, sen�indo que a sua presença
junto dos avós é "natural" e resultante, muitas vezes, de um pedido expres­
so dos próprios pais biológicos, não se debatem nem com um sentimento
de perda tão forte, nem com uma culpabilização tão intensa, como em regra
acontece na modalidade de Acolhimento.
Reafirmamos que, no sentido de atenuar a tensão de dupla parentalidade
e dupla filiação, os contactos deverão ocorrer de forma acautelada e planea­
da, sendo muitas vezes exigida a sua mediação. É neste contexto que se
sugere que "os conflitos não devem ser evitados [anulando ou inter­
rompendo os contactos] mas sim orquestrados" (Bridgman cit. in
Miermont et al., 1994, 272). Nesta linha, compete às equipas técnicas fazer
com que a família biológica, ela própria, assuma como seu o pedido de
acolhimento, evitando a confusão dos níveis lógicos de cada uma das
famílias intervenientes (família de acolhimento; pais biológicos), hierar­
quizando e articulando diferentes níveis de parentalidade em cada uma das
duas famílias (Bridgman, in Benoit et al., 1988).

Síntese dos resultados aplicada ao modo conceptual

No decurso dos estudos empíricos, em termos globais e à parte as dife­


renciações das amostras, sobressaem algumas relações entre variáveis que
a figura 8 faz sobressair:
108
Novas Formas de Família

Comunicação- Tempo per-


adolescente manência
Comunicação aberta !4'---+-.1► Parentesco(Avós)
Recursos familiares Dificuldades de
Con�tctos
Orgulho comunicação

Comunicação-mãe
Comunicação aberta

Tipo de família
Insegura
Coesão
Adaptabilidade

Figura 8 - Relações entre variáveis (amostra total)

Vemos então como grande número das relações hipotetizadas no mode­


lo inicial foram confirmadas. À parte as diferenciações encontradas, todas
estas relações traduzem o peso que as variáveis familiares têm para as
famílias de acolhimento e mostram como a comunicação, tal como o ado­
lescente a avalia, é fulcral em todo o modelo, o que nos fornece indicadores
a ter em conta na selecção das famílias.

Conclusões

A nova visão sistémica confere à Família uma dimensão que ultrapassa


a linearidade de um núcleo restrito de indivíduos ligados por laços biológi­
cos ou legais (Relvas, 1998b). Nesse quadro, devemos incluir as famílias de
acolhimento entre as formas não tradicionais de família (Alarcão, 2000;
Burguiere et al., 1999).
109
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Como sistema que é, uma família de acolhimento circunscreve dife­


rentes subsistemas (pais biológicos, criança(s), serviços), entre os quais a
interacção nem sempre é fácil, dadas as particularidades de cada um
(Bridgman, 1988; Cirillo, 1988). As famílias de acolhimento, para além de
se constituírem como um recurso, encerram indicações muito particulares
(Cirillo, 1988), pelo que a integração e estadia do menor na família exige
um adequado acompanhamento que se revelará, em certo sentido, ineficaz
se forem esquecidos os pais biológicos (idem; Bridgman, 1988).

A investigação que acabamos de apresentar pode ajudar a esclarecer,


um pouco melhor, alguns desses aspectos.
As duas amostras, Colocação e Acolhimento, diferenciam-se, substan­
cialmente, considerando a globalidade das variáveis demográficas, embora
seja possível apontar para um perfil comum às figuras parentais: idade
avançada e pouco habilitados literariamente. No que diz respeito aos ado­
lescentes encontra-se também um perfil comum, expresso na sua idade
média (cerca de 14, 15 anos), na distribuição uniforme de sexos por
amostras e no nível de escolaridade (a maioria frequenta o 3.º ciclo).
Os "pais" de acolhimento (ou seja, os sujeitos do estudo) vêem as suas
famílias como funcionando bem, o que se expressa em níveis de coesão,
adaptabilidade e tipo de família bastante funcionais. São também apresen­
tadas como tendo bons níveis de recursos familiares quer em termos
globais quer na dimensão orgulho, sendo assim muito importantes os laços
familiares e os valores de vivência familiar, lealdade e optimismo que o
orgulho familiar encerra. Nestes aspectos, as famílias de Acolhimento e
Colocação não se diferenciam. Diferenciam-se, contudo, no estudo da
comunicação. É na Colocação que a comunicação do adolescente com a
figura materna apresenta resultados significativamente melhores, concreta­
mente na subescala dificuldades de comunicação (37.90 em colocação;
33.23 em acolhimento). Por outro lado, para todos estes adolescentes a
comunicação com as "mães" assume aspectos mais positivos do que habi­
tualmente acontece (ao contrário do que se passa, aliás, com elas próprias),
o que em nossa opinião reflecte como para eles é importante sentirem-se
acolhidos. Em termos de vinculação, a percepção que os adolescentes
fazem das figuras maternas substitutas como uma base segura é indepen­
dente do facto de estarem em Colocação ou Acolhimento, pelo que se pode
inferir que o que os diferencia, neste aspecto, são a sua história pessoal e o
seu trajecto prévios ao acolhimento.
110
Novas Formas de Família

Contudo, algumas características familiares do acolhimento aparecem


associadas à vinculação e à comunicação, pelo que, ao ser promovido o
acolhimento familiar de uma criança ou adolescente se deverá ter em
conta a forma como a família funciona, como comunica, bem como os
seus recursos internos, nomeadamente no que se refere ao orgulho fami­
liar.
No caso da Colocação a ideia de que os avós, pela sua idade e outros
condicionalismos, são familiares pouco adequados para acolherem os netos
é um mito a ultrapassar considerando os dados que obtivemos. Vemos
mesmo como, nalguns dos aspectos, são uma melhor alternativa do que a
modalidade Acolhimento: por exemplo, evita-se a existência de rupturas
educativas; não se colocam tantas dificuldades/problemas na manutenção
dos contactos com os pais biológicos; a comunicação está, parece, natural­
mente, facilitada. Esta conclusão é, afinal, lógica, se pensarmos que eles
podem constituir uma "linha natural" de continuidade relacional e emo­
cional junto do adolescente.
Outro dado a sublinhar, concretamente na amostra de Acolhimento, é a
relação entre o padrão de vinculação e a existência ou não de contactos com
os familiares. Este facto remete para a importância de que esses contactos,
para além de planeados, devam ser constantemente avaliados, de modo a
evitar que se constituam como um ponto de tensão, entre adolescentes,
famílias de acolhimento e famílias biológicas, que vá interferir nas respec­
tivas dinâmicas comunicacionais e relacionais.

Em síntese e apesar de todas as suas limitações, o presente estudo não


deixa de sugerir algumas implicações práticas. Designadamente no proces­
so de selecção importa ter em conta: (1) como a família de acolhimentofun­
ciona e comunica; (2) os seus recursos familiares; (3) que os contactos com
os familiares devem ser planeados e mediados.
Neste sentido, para que a eficácia e eficiência desta resposta social possa
ser assegurada é imprescindível o recurso a equipas multidisciplinares que
focalizem a sua intervenção em todas as áreas deste sistema (família de
acolhimento/criança e ou adolescente/pais biológicos). As famílias de
acolhimento não são "tábuas de salvação" ou "bocas-de-incêndio"; será
assim impensável que uma família candidata e recém-chegada aos serviços
possa ser considerada como um recurso, sem que passe, primeiro, por um
processo de selecção e, depois, por processos de formação e apoio muito
cuidadosos (Cirillo, 1988).
111
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

Uma vez feita a selecção da família e ponderado qual o menor que a


família irá acolher, deve promover-se o encontro entre a família de acolhi­
mento e os pais biológicos. Este encontro, que poderá à partida ser enten­
dido como muito problemático, permite corrigir distorções sobre esta
estratégia de intervenção, designadamente a convicção da perda do/a
filho/a por parte dos pais biológicos, aliviando a carga inerente à dupla
parentalidade através da mediação da(s) equipas técnica(s). Poderiam, tam­
bém, ser aí regulamentados aspectos práticos, mas importantes, como as
visitas, outros contactos, telefonemas, etc. (idem, 1988). Tudo isto poderá
evitar o aspecto nocivo dos contactos com os familiares evidenciado no
nosso estudo.
O trabalho da equipa deverá, finalmente, visar a preparação do menor
para a separação da família biológica, o que preferencialmente deve ocor­
rer no encontro entre famílias. Esta preparação terá por objectivo que o
menor vá para a família de acolhimento com a ideia de aprovação explícita
ou implícita dos seus pais naturais relativamente ao seu afastamento, evi­
tando que se sinta, de algum modo, culpado por isso (idem, 1988).

Justamente ao finalizar, é inevitável voltar ao ponto de partida da inves­


tigação: algumas das nossas dúvidas são, agora, menos incisivas. Estas
parecem ser afinal "boas" famílias, onde os adolescentes podem comunicar,
sentindo-se bem e seguros.
Apesar de, na globalidade, as famílias de Acolhimento e Colocação não
se diferenciarem em termos das suas características funcionais e da dinâmi­
ca familiar, na relação com o adolescente emergem algumas especifici­
dades que confirmam a complexidade da situação. Ao pressupor, como
fizemos, que o padrão de vinculação do adolescente relativamente à figura
parental substituta se poderia constituir como um índice qualitativo do seu
futuro desenvolvimento, temos que concluir que ele não se prende, especi­
ficamente, com o facto de estar numa família de Acolhimento ou
Colocação, mas sim com outros aspectos como a qualidade da comuni­
cação com a figura materna, tal como ele a avalia, ou com um bom fun­
cionamento familiar, nomeadamente em termos de ligações emocionais e
orgulho familiar.

Fica-nos como grande questão o problema dos contactos com as


famílias naturais e as condições para um regresso do adolescente ao seu
seio. Algo que os serviços pressupõem, algo que alguns dos elementos do
112
Novas Formas de Família

complexo sistema envolvido no processo desejam, que outros não desejam


e que outros, ainda, encaram de forma ambivalente.
Por isso gostaríamos de contar duas histórias, de crianças acolhidas e de
famílias que acolhem ...

A história da Márcia e dos irmãos Rita e João.


Depois de o seu processo de adopção se ter assumido como mais um
processo difícil de gerir, um processo adiado, continuava a manter-se a sua
situação de perigo, agora mais agravada pois eram abusados sexualmente
pelos progenitores. A Márcia tinha 10 anos, o João 8 e a Rita 7. Como ami­
gos mais próximos tinham as ovelhas que todos os dias guardavam no
monte; de resto, tudo lhes era adverso e até as assistentes sociais pensavam
tirá-los aos pais... Faltavam à escola, viviam numa casa de terra batida
desprovida do menor conforto. Na escola, a Rita dormitava sobre a
carteira e, por vezes, os seus lábios denunciavam ainda os restos do
pequeno almoço (sopas de cavalo cansado). Depois de muitos "entretan­
tos ", momentos em que o tempo custou a passar, por decisão judicial foi
decretada a sua retirada imediata para um Centro de Acolhimento.
Embora juridicamente adaptáveis, à medida que o tempo passava era
cada vez mais difícil promover a sua adopção conjunta. Eles próprios não
aceitavam separar-se, mesmo que continuassem a manter entre si contac­
tos regulares. Era também cada vez mais difícil encontrar uma instituição
alternativa (lar de menores). Nenhuma instituição acolhia os três irmãos
que agora estavam mais velhos, embora apenas com 12, 1 O e 9 anos. O seu
projecto de vida culminou na ida para uma família de acolhimento (um
casal sem filhos).
Hoje...
O João e a Márcia têm bom aproveitamento escolar, aspiram seguir um
curso superior; na Rita, são evidentes as sequelas da sua fetopatopatia
alcoólica.

A história da D.ª Leonor e do marido.


Pais de dois rapazes, já bem crescidos, são famz1ia de acolhimento de
três meninas oriundas de diferentes agregados familiares. Começaram por
acolher um casal de irmãos residentes nas imediações, a Joana e o
Toninho, filhos de pais alcoólicos. A Joana é a primeira das suas meninas.
Vive com esta famz1ia há cerca de 10 anos; o irmão insistiu em voltar a
viver com a mãe. Se acolher a Joana e o irmão foi um acto espontâneo de
113
Famílias de Acolhimento e Vinculação na Adolescência

solidariedade para com os vizinhos, uma resposta a um apelo da


Conferência que lhes permitiu saber o que era ser família de acolhimento,
também foi um desencadeador que levou a D. ª Leonor a insistir em aco­
lher meninas, apenas meninas... as "suas" meninas.
Posteriormente acolheram a Cátia que vive nesta família desde os 18
meses de idade. Até aí cresceu privada do mínimo bem-estar, com uns avós
muito idosos e umas tias muito dadas a superstições e bruxarias. É filha de
pais separados, ambos com sérios desvios comportamentais, tendo a mãe
perturbações mentais graves. A presença dos seus dois filhos, da Joana e
da Cátia não lhes desvaneceu o interesse em pretenderem acolher outra
menina. E apareceu a Vanessa, agora com 2/3 anos, filha de uma mãe
doente oncológica. Foi num dos internamentos hospitalares da sua mãe
que a Vanessa ficou com esta família pela primeira vez. No entanto, o
agravamento do estado de saúde da mãe fez prolongar esta estadia.
A Joana, a Cátia, a Vanessa são as meninas desta família... que a Dª.
Leonor sempre tratou com desvelo e encheu de folhas. Para as suas tra­
vessuras há sempre uma desculpa: a mãe, o pai, ... Nas visitas dos pais
biológicos a D ª. Leonor é confrontada com quadros muito diferentes e não
sabe muito bem o que dizer, "só não quer perder as suas meninas".

Em nenhum dos casos destas histórias há condições que permitam pers­


pectivar o retorno dos menores aos pais biológicos ou projectar a sua
inclusão na família alargada.

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Gabriela Mateus
Ana Paula Relvas,
Este capítulo é uma síntese revista da Dissertação de Mestrado em Família e
Sistemas Sociais (ISMT) realizada por M. G. M. Santos, sob orientação de A. P. Relvas,
e intitulada Famílias de Adopção e Stress Parental. Um estudo exploratório (cf. Santos,
1999).
Continuando à descoberta das novas formas de família, a nossa atençâo
dirige-se para um tipo de estruwra familiar que, à semelhança do ante­
rior, se constitui como tal porque acolheu no seu seio, com responsabi­
lidades parentais, um novo elemento sem laços de parentesco biológico.
Contrariamente à situação anterior, o que é pedido a estas famílias, e
por elas próprias desejado, é o estabelecimento de vínculos e de um sen­
timento de pertença que se prolongue no tempo, mesmo através de ge­
rações. Falamos, evidentemente, de Famílias Adoptivas.
É uma forma de família sobre a qual podemos dizer que "ames de ser,
já o era!" É consensual aceitar que a sua formação coincide com a
chegada a casa do adaptado; mas, tal como na família tradicional em
que o período que antecede a primeira etapa do seu ciclo de vida (jovem
adulto entre famílias, Carter e McGoldrick et ai., J 989) é muito impor­
tallle para o que se lhe segue, também nesta forma de família o período
prévio à sua constituição é fulcral para o seu desenvolvimento e
evolução. Duas fases distintas constituem esse período: a primeira, que
se prolonga desde a descoberta da infertilidade do casal até à tomada
de decisão da adopção e que é, afinal, um longo período de sofrimento
físico e psicológico, durante o qual tudo é posto à prova, inclusive,
muitas vezes, a própria relação conjugal; a segunda, que decorre desde
a decisão da adopção até à entrega da criança e na qual as famílias de
origem, ou mesmo os amigos e a comunidade, aparecem como novos
aclares com papéis importantes na continuação da história familiar.
Dois aspectos emergem como pano de fundo da constituição e evolução
da família adoptiva 110 sentido do bem-estar: 1) a aceitação das dife­
renças por parte de todos os elementos da(s) família(s) (nuclear e de
origem). Sublinhamos o plural de diferenças, na medida em que aquelas
não são apanágio do adaptado; a família adoptiva, ela própria, terá que
124
Novas Formas de Família

i
aceitar e integrar as suas dferenças pera/l/e as outras famílias; 2) as
particularidades do evoluir do seu ciclo de vida, das quais apenas
destacaremos aqui as mais relevantes. Logo na primeira etapa a família
é sujeita a uma avaliação e controlo extra-familiares (referimo-nos,
como é evidente, a todo o processo de selecção sob a alçada dos Serviços
de Acção Social e consequente ratificação judicial). Nas etapas
seguintes a necessidade de revelação à criança do seu estatuto de adap­
tada, bem como de aprendizagem para lidar com tal estatuto, impõe-se
como questão fundamental para todos os elementos da família e mesmo
para o meio mais próximo. Seguidamente, na adolescência do adaptado,
os aspectos ligados à construção da sua idemidade que implicam, fre­
quentes vezes, voltar às origens numa telllativa de "descobrir" a família
biológica, são tarefas acrescidas nestas famílias.
Num contexto familiar inevitavelmente sujeito a tantas e tão importantes
fontes de stress, parece ser lógico perspectivar a existência de dificul­
dades muito particulares no exercício da parentalidade. Será que é assim?
E em que áreas específicas? Prendem-se mais com os próprios pais ou
com as características do filho adoptado? Tentando encontrar alguma luz
neste labirinto de dúvidas, utilizámos, na nossa investigação, uma escala
de medida do stress parental, analisável em dois domínios - dos pais e
da criança.
Contudo, é nossa convicção que não basta diagnosticar as grandes difi­
culdades, no caso de existirem. Detectar as competências destas famílias
é tanto ou mais importante. Assim, desejávamos saber a que "almo­
fadas" da dinâmica familiar recorrem estas famílias como elementos de
suporte e conforto. Foi com este objectivo que complementámos o nosso
estudo com escalas de medida dos recursos internos e satisfação fami­
liares.

"Parir é dor; criar é amor", diz o nosso povo. As famílias que colabo­
raram nesta investigação ajudaram-nos a perceber as vias pelas quais,
no seu caso, esta máxima se torna possível.
Apesar de enquadrarmos as famílias adoptivas nas novas formas de
família, o conceito de adopção é quase tão antigo como a história da
humanidade. No Antigo Testamento é-nos dado conta que Moisés foi reti­
rado de um canavial pela filha de um fái'aó, que lHí1 seguida b adoptou.
Nos nossos dias, a imagem da matetrddade e da paternidade encontra­
-se extremamente valorizada. Ter um filho tort101,1 ° se quase uma exigência
no sistema de representações do indivídüo e da fãfflílÜt Símbolo da
perenidade da espécie, um filho é também, muitas vezes, símboiõ àa iclêft�
tidade sexual, da integridade física e da integração social do indivíduo e do
casal. Daí o desejo de ter um filho (Leandro, 1987).
Adultos querem crianças, crianças precisam de pais, A questão parece
ser simples, mas, tal como em qualquer oufl-a relação htHflâfia; a ãdopção
significa uma grande complexidade de emoções, necessidades ê ÍnUlt•
acções.
Num esforço para defender a criança, durante muito tempo advogou-se
a inexistência de qualquer diferença entre famílias biológicas e famílias
adoptivas. Porém concluiu-se que estas, apesar de terem um funcionamen­
to idêntico ao das famílias não adoptivas, apresentam algumas esptcifki•
dades com as quais é preciso saber lidar. A adopção é urna decisão que
afecta todos os seus intervenientes. Pais e Crianças, ninguém fica indife­
rente a esta forma de constituir família.

A Família Adoptiva

De facto, até à primeira metade do século XX, era prática comum ten­
tar que uma família adoptiva se assemelhasse o mais possível a uma família
biológica. Assim, pais e terapeutas tratavam o processo de adopção de um
modo muito discreto, "escondendo-o" da criança e da sociedade. Este com·
portamento, que pretendia proteger a criança e a família de sentimentos de

Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.) (2002). Novas Formas de Família.
Coimbra, Quarteto Editora.
126
Novas Formas de Família

"diferença" e de "vergonha", tem vindo a modificar-se, estando, hoje, esta


nova forma de família já integrada nos sistemas sociais.
Na década de sessenta, o sociólogo David Kirk foi dos primeiros
autores a reconhecer a necessidade de se definirem diferenças no funciona­
mento de famílias biológicas e adoptivas, afirmando que os indivíduos
experienciam um "role handicap"' quando há uma contradição entre a
maneira como foram culturalmente preparados para um determinado acon­
tecimento, como a paternidade, e a maneira como aquele acontece na rea­
lidade. Quer dizer o autor que as expectativas com que fornos criados, no
sentido de formarmos uma família pela via "normal", não vão ser teorica­
mente satisfeitas pela adopção de uma criança. No seu estudo, publicado
em 1960 (Shared Fate and Adoptive Kinship), conclui que a experiência
dos pais adoptivos é completamente diferente da dos pais naturais. Os
primeiros, além de sofrerem o trauma de não poderem conceber filhos seus
e de não viverem a celebração da gravidez, também não podem cumprir
uma das normas sociais mais básicas: serem pais biológicos. A não
aceitação desta realidade vai interferir não só na relação pais-filhos, mas
também no relacionamento conjugal, familiar e social. Daí que, afirma
ainda o autor, o reconhecimento e a aceitação destas diferenças facilitam o
desenvolvimento global da família e do próprio indivíduo, permitindo aos
pais adoptivos obter um melhor desempenho nesta sua função.
Ao decidir adoptar uma criança, o casal espera que essa decisão seja
aquela que melhor se adequa ao seu funcionamento quer enquanto casal
quer enquanto indivíduo(s). É pois importante que, quando os casais se
estão a preparar para a adopção, tenham tempo e disponibilidade para
perceberem as suas reais motivações.
Os factores que influenciam o sucesso ou não dessa experiência pren­
dem-se, sobretudo, com o modo como é preparado o processo da adopção
e com a capacidade para lidar com os desafios inerentes ao tipo de rela­
cionamentos construídos por via da adopção. Estas questões deverão �er
previamente resolvidas para que a criança seja aceite e acolhida na família
sem qualquer obstáculo.

' Optámos por manter a expressão original do autor.


127
Adopção e Parentalidade

A Construção da Parenta/idade

As famílias adoptivas passam por muitas das experiências e pelos mes­


mos processos de crescimento que outro tipo de famílias. Todos nós sabe­
mos que, quando os adultos enfrentam e são confrontados com a transição
para a parentalidade, têm que ajustar o relacionamento entre si, estabelecer
regras parentais e criar novas regras de funcionamento na família. Contudo,
embora a maior parte dos pais adoptivos tenha estado muito tempo à espera
da criança, nem sempre estão preparados psicologicamente para a sua
chegada. Cheios de esperança, pais e crianças iniciam o processo de adap­
tação mútua e a construção de uma forte ligação. A parentalidade psi­
cológica desenvolver-se-á lenta mas seguramente. Mas serão os pais adop­
tivos, ou os não genéticos, capazes de substituir os pais biológicos? Não
será a parentalidade biológica um pré-requisito para a parentalidade psi­
cológica? Hoksbergen (1996) afirma que não.
Considera este autor que o que determina que um casal se transforme
em pais psicológicos de uma criança é a quantidade e a qualidade do tempo
que estes passam e despendem com a criança. As experiências do dia a dia,
a partilha dos bons e maus momentos, guiar o crescimento e o desenvolvi­
mento do filho é, de facto, o mais relevante em todo este processo. Não se
nega que a parentalidade biológica é fundamental para o ser humano.
Contudo, o mero aspecto biológico é insuficiente para comparar ou definir
a complexa noção de parentalidade2 • Portanto, esta é possível na adopção
porque a parentalidade psicológica não depende de uma relação de sangue,
mas sim do desenvolvimento do dia a dia entre a criança e os pais. Diz o
povo "Parir é dor, criar é amor" ...

2
"Os novos pais organizam o modelo parental que comporta dois modelos distin­
tos: o maternal e o paternal. Esta representação vai permitir assumir a função parental
[parentalidade], baseada no ajustamento das funções maternal e paternal que não sig­
nificam, estritamente, papel desempenhado pela mãe e pelo pai. Podem ser definidas
como 'o conjunto de elementos biológicos, psicológicos, jurídicos, éticos, económicos
e culturais que tornam um indivíduo' mãe ou pai (... )" (in Relvas, 1996, 83).
Assim, "a função parental alarga-se, ultrapassando a simples interacção de tipo
causal que consiste na protecção e na educação do jovem pelos seus progenitores: inter­
age com finalidades próprias da família da criança que se expressam na transmissão
intergeracional de regras, nas redundâncias dos modelos comunicacionais, na utilização
dos mitos e rituais familiares" (idem, 86).
128
Novas Formas de Família

Isto significa que, após o nascimento, não se pode falar imediatamente


de parentalidade psicológica. Embora esta se desenvolva, ainda que lenta­
mente, durante o período gravídico, é à medida que o tempo vai passando
que as ligações entre pais e filhos se vão construindo e fortalecendo, sendo
cada vez mais difícil para uma criança a sua separação e posterior inserção
noutro meio. Por isso, é melhor para o equilíbrio afectivo e para o desen­
volvimento da parentalidade que a criança seja integrada o mais cedo pos­
sível na família que a vai adoptar.
Este processo de adaptação mútua e de construção da parentalidade nem
sempre ocorre em simultâneo, verificando-se um tempo diferente para os
seus intervenientes. Para a criança, é muito impo1tante que se estabeleça ra­
pidamente uma forte ligação aos novos pais, a fim de minimizar os senti­
mentos de insegurança desenvolvidos até ao momento da adopção e que
assumirão, eventualmente, uma importância vital no seu desenvolvimento.
Por seu lado, os pais adoptivos vão construindo esse vínculo no dia a dia, já
que, para eles, é através da partilha das experiências que se vão estabele­
cendo os laços afectivos (Hoksbergen, 1996). A família adoptiva não come­
ça, então, quando a criança chega a casa dos pais adoptivos, mas sim quando
se estabelece um vínculo afectivo na díade pais-criança (Melina, 1998).
Quando os casais atingem o seu objectivo e transitam para o estádio da
parentalidade, o ajustamento/adaptação tende a ser vivido de uma forma
mais intensa, devido, essencialmente, ao investimento emocional que foi
sendo feito para alcançarem esse objectivo.
Todos sabemos que uma das primeiras maneiras de os pais se sentirem,
eles próprios, como pai ou como mãe é identificando semelhanças entre eles
e os seus filhos. Nas famílias adoptivas acontece a mesma coisa. Ainda que
não haja qualquer vínculo genético entre a criança e os pais adoptivos, estes
encontram, quase sempre, semelhanças entre eles e as crianças, na maneira
de ser, nas características da personalidade e, por vezes, na aparência física.
Este primeiro passo é essencial para que sintam a criança como sua.
Outro aspecto e tarefa importante na família de adopção é o desen­
volvimento do sentimento de pertença ou de posse que, em termos legais, é
estabelecido através do vínculo jurídico. Enquanto os pais não sentirem a
criança como sua, dificilmente conseguem agir como tal. Este processo
(claiming), 3 através do qual os pais se entregam emocionalmente à nova

' Optámos por manter o vocábulo na língua original por não termos encontrado na
língua portuguesa um que tivesse o mesmo sentido.
129
Adopção e Parentalidade

criança, integrando-a como elemento de pleno direito naquela família,


surge, a par de outros factores, como um dos mais importantes para o
crescimento adequado deste tipo de famílias.
Associado a este sentimento, surge a questão do poder e da autoridade
(entitlement) 4 • Nas nossas sociedades, é frequente os pais naturais serem os
detentores dos direitos e autoridade sobre os seus filhos. Apesar da lei da
adopção5 consagrar aos pais adoptivos os mesmos direitos que aos não
adoptivos, nem sempre os primeiros conseguem interiorizar ou assumir
essas regras. Isto pode ocorrer, sobretudo, nos casais inférteis, quando se
sentem indignos para o exercício das funções da parentalidade (Jewett,
1994). Outros, pelo contrário, "sentem-se tão satisfeitos e gratos por terem
uma criança que, apesar de nutrirem por elas um grande afecto, sentem
muita dificuldade em exercerem a sua autoridade e disciplina, necessárias
não só ao bem-estar da criança como de toda a família" (Melina, 1994, 47).
Jerome Smith (1997) sublinha que, porém, o problema não reside só no
facto de os pais não desenvolverem esses comportamentos (pertença e
autoridade), mas sim na intensidade e no modo como são vividos. Segundo
o mesmo autor, os sentimentos, quer de pertença quer de autoridade, podem
ser desenvolvidos através do reconhecimento e da aceitação das diferenças
existentes entre as famílias de adopção e as formadas de outro modo.
Contudo, esse desenvolvimento também pode ocorrer através da resolução
inadequada dos sentimentos relacionados com a infertilidade e de apren­
dizagens efectuadas no sentido de lidar com as expectativas e observações
feitas pelos familiares e pelos amigos, onde se afirma que a parentalidade
biológica é "superior" à parentalidade adoptiva.

A Revelação

Embora todos os aspectos já anteriormente referidos se revistam de


grande importância para o desenvolvimento de uma família adoptiva, o
acto de revelar à criança que ela é adaptada é, talvez, aquele em torno do
qual existem mais tabus ou dificuldades.

'Idem.
'Para aprofundar os aspectos jurídicos, que não serão neste contexto desenvolvidos,
consultar a lei da adopção actualmente vigente em Portugal (Decreto-Lei n.º 185/ 93 de
22 de Maio; Decreto-Lei n.º 120/ 98 de 8 de Maio; cf. Santos, 1999).
130
Novas Formas de Família

Ainda que não haja unanimidade acerca de qual a melhor idade para se
dizer a uma criança que ela é adaptada, os estudos indicam que esta reve­
lação deve ser feita o mais cedo possível e pelos pais adoptivos, facto que
pode contribuir para que a família adquira um maior sentido de equilíbrio e
estabilidade. Contudo, como teremos oportunidade de ver, este "mais cedo
possível" não é linear...
O processo é normalmente iniciado assim que a criança chega a casa dos
pais adoptivos. Estes, que encaram este problema como uma das suas
maiores dificuldades, começam por decidir quando e qual a melhor idade e
a melhor forma para explicar à criança o significado da adopção. Nas
famílias em que pais e criança têm raças diferentes a adopção é mais visí­
vel, pelo que os pais deverão desenvolver estratégias de modo a defender
as crianças dos comportamentos intrusivos das outras pessoas (Anderson et
al.,1994).
Acerca de qual é a melhor idade para fazer essa revelação, as investi­
gações mais recentes indicam a existência de dois grandes grupos que se
dividem: um que considera que a revelação da adopção deve ser feita o
mais cedo possível, aos dois ou três anos (Clarke e Dawson, 1998), e um
segundo grupo que defende que esta revelação só deve ser feita aquando da
entrada da criança para a escola ou mesmo posteriormente (Smith,1997).
Os defensores da primeira posição consideram que a criança deverá, desde
muito nova, ser familiarizada com vocábulos relacionados com a adopção,
de modo a que esta palavra não lhe seja totalmente desconhecida. Por outro
lado, referem que é menor o risco dessa revelação ser feita por estranhos e
abruptamente, em vez de ser pelos pais, num local previamente preparado,
com uma atmosfera tranquila e afectiva. Além disso, o atraso por seis ou
sete anos poderá envolver alguma decepção, com efeitos negativos no rela­
cionamento pais-filhos.
Aqueles que defendem que a situação de adaptada só deverá ser reve­
lada à criança mais tarde preconizam que esta só deve ter conhecimento
sobre a adopção depois de entender o significado de concepção, infertili­
dade ou nascimento (Melina, 1998). Receiam que etiquetar uma criança
como criança adaptada, demasiado cedo, possa ter efeitos nocivos para
o seu desenvolvimento psicológico e afectivo (Wieder cit. in Melina,
1998).
David Brodzinski e colaboradores, num estudo publicado em 1984,
defenderam a existência de um meio-termo, ou seja, a revelação deverá ser
feita quando os pais considerarem que a criança é suficientemente madura
131
Adopção e Parentalidade

para esse entendimento. Assim, para aqueles investigadores, a criança não


deve ser informada muito cedo, devido à complexidade dos conceitos, nem
muito tarde, pois quanto mais nova for a criança, maiores são as probabi­
lidades de reagir positivamente à informação.
No mesmo estudo, os autores concluem que as crianças de igual nível
etário têm o mesmo grau de compreensão relativamente à adopção, inde­
pendentemente de estarem ou não integradas em famílias adoptivas.
Considera, por isso, que a grande tarefa dos pais não é elaborar conceitos
sobre a adopção ou sobre qual é a melhor idade para a revelar, mas sim
disponibilizar à criança informação sobre a sua situação em particular. No
processo da revelação, é fundamental que as crianças sintam segurança e
apoio emocional, quando as questões relacionadas consigo são discutidas
(Melina, 1998).
Se, por acaso, a criança adaptada já não for propriamente uma criança e
tiver dez ou doze anos, todo este processo terá que ser alterado. As famílias
têm que lidar com o problema de outra forma, ou seja, ajudar o adaptado a
desenvolver o sentimento de pertença e os vínculos afectivos com a nova
família. Muitas vezes, as crianças mais velhas sentem-se, elas próprias,
revoltadas por perderam involuntariamente os seus pais naturais, recusan­
do-se a aceitar a nova família. Esta recusa é consequência da desconfiança
que têm em relação aos outros, da sua baixa auto-estima e dos conflitos de
lealdade vividos em relação àqueles que anteriormente lhe deram afecto.
Esta resistência tende a aumentar se, por acaso, os pais adoptivos forçarem
ou quiserem impor a sua "entrada no mundo da criança" (Anderson et al.,
1994).
Independentemente da idade da criança, a revelação representa, para os
pais, um desafio cujo resultado poderá significar o sucesso ou insucesso da
família (Brodzinsky, 1990).

Perdas e Lutos

Como é visível, o conhecimento e a compreensão sobre a adopção


muda, necessariamente e de um modo quase previsível, durante os dife­
rentes estádios de desenvolvimento de uma criança. Tal como compreende
os conceitos de família, concepção, nascimento, relações sociais, regras,
valores, também entende a adopção e as suas mudanças. O que parece
importante é que a criança vá ouvindo, repetidamente, a história da sua
132
Novas Formas de Família

adopção. Naturalmente, de acordo com o seu estádio de desenvolvimento,


irá atribuir mais importância ou focalizar-se em determinados aspectos em
detrimento de outros. Num nível etário, as suas preocupações estarão mais
relacionadas com os pais naturais; noutro, elas prender-se-ão mais com os
pais adoptivos ou com ela própria (Brodzinsky et ai., 1984).
A adopção implica, necessariamente, uma perda para todos os elemen­
tos que compõem a díade da família adoptiva, isto é, para pais e criança. De
acordo com a teoria dos sistemas, tudo o que afecta um membro da família
tem impacto em todos os outros elementos.
Ser adaptado significa sentir-se diferente e, na maior parte das vezes,
sentir-se diferente dos outros significa uma perda. A perda experimentada
pela criança adaptada centra-se quase tanto na sua identidade como na
relação perdida com os seus pais naturais. A vida daquela criança vai ser
completamente diferente do que deveria ter sido. Não ter qualquer vínculo
genético com a família representa outra dura perda. Esta questão pode ser
tão grave para a criança como para os pais adoptivos. Adopção significa
crescer sem ninguém à sua volta com quem se seja parecido, mesmo que
haja, como já referimos, algumas semelhanças físicas. Apenas com três ou
quatro anos de idade, a criança adaptada percebe muitas vezes que a sua
história familiar é diferente da história das outras crianças (Van Gullden e
Bartels-Rabb, 1995, 33). É provavelmente nesta altura, e não mais tarde,
que a criança começa a interiorizar todo o processo que envolveu a sua
vinda para aquela família, apercebendo-se que esta não foi pela via "nor­
mal", do nascimento, mas sim de um modo diferente das outras crianças.
Esta racionalização é feita várias vezes ao longo do seu crescimento, sem­
pre que ela atinge um nível diferente do seu desenvolvimento cognitivo.
Não significa, necessariamente, que sinta a falta da sua mãe natural, mas
eventualmente a existência de algumas lacunas acerca da sua própria
história. Isto não quer dizer que a criança não venha a ultrapassar esse sen­
timento e não construa a sua própria identidade individual e familiar
(Rando,1984).
Por seu lado, para os pais adoptivos, ao contrário do que se possa ima­
ginar, a adopção também pode trazer algumas perdas emocionais. A ausên­
cia de um vínculo genético, de parecenças físicas ou de semelhanças nos
traços de personalidade, constituem os sentimentos de perda mais comuns.
Estes sentimentos são mais acentuados quando o motivo da adopção foi a
infertilidade. Muitas vezes, a adopção de uma criança simboliza, para um
casal, o abandono em definitivo da esperança de poder vir a ter um filho.
133
Adopção e Parentalidade

Todos os intervenientes neste processo, pais adoptivos e crianças adop­


tadas, desenvolvem, no entanto, expectativas sobre as suas respectivas si­
tuações. Os pais esperam que as crianças esqueçam o seu passado, a sua
família biológica, ficando por isso surpreendidos quando, passados alguns
anos, o sofrimento por essa perda ainda subsiste. O adoptado pode nunca
ter conhecido os seus pais biológicos ou ter sido separado da sua mãe assim
que nasceu. Contudo, a nossa sociedade encaITega-se de valorizar as li­
gações biológicas, fazendo-o sentir de modo permanente essa perda, em­
bora para os pais adoptivos isso possa não fazer sentido (Van Gullen e
Bartells-Rabb, 1995).
Sugerem Brodzinsky e col. (1992, 221 ), "que a perda dos pais expe­
rienciada por uma criança com a adopção é mais complicada do que a
vivenciada por morte ou divórcio": na morte há a permanente ausência de
um ou de ambos os pais; no divórcio, há a perda de um dos pais mas não
de um modo permanente; na adopção essa perda é mais penetrante, embo­
ra por vezes menos evidente. Considera o autor que a criança não tem uma
história que sustente as memórias dos seus pais naturais. Na maior parte das
vezes, esses pais ainda estão vivos, pelo que é frequente a criança fantasiar
sobre a possibilidade deles regressarem, fazendo-os permanecer durante
muito tempo na sua vida mental. Porém, este regresso implicaria a perda
dos pais adoptivos, os únicos que conhece e que ama, o que a coloca num
importante dilema.
Por seu lado, os pais adoptivos sofrem pela sua incapacidade para ge­
rarem um filho biológico, mas, ao mesmo tempo, sabem que se tivessem
tido esse filho provavelmente não tinham adoptado aquela criança que
amam acima de tudo.
Como vimos, "os dois tipos" de famílias, natural e adoptiva, e cada um
dos seus protagonistas continuam, apesar de tudo, a estar presentes na vida
uns dos outros. Esta presença envolve tanto a fantasia como a realidade. Na
realidade, pais e crianças adoptivas estão diariamente em contacto uns com
os outros. Na fantasia, os adoptados fantasiam sobre quem são e como são
os seus pais biológicos; os pais adoptivos fantasiam sobre como seria o
filho biológico que nunca tiveram...

Apesar disso, e de cada um e de cada família adoptiva ter que vivenciar


uma experiência única neste pequeno círculo, existem questões que são
comuns a todos. Em primeiro lugar, todos lidam com a questão da perda:
pais e crianças experienciam sempre um conjunto de perdas que implica
134
Novas Formas de Família

um luto: o luto pela família "normal". Em segundo lugar, todos os elemen­


tos lidam com a questão da vinculação, da separação e da descontinuidade
genealógica. Por último, todos se confrontam com um processo singular de
formação da identidade individual e/ou familiar.

Decisão e Processo de Adopção

Quando se está à espera de uma criança, adoptada ou biológica, uma das


expectativas mais comuns é que a criança venha a ter um relacionamento
muito próximo com os pais. Nas famílias adoptivas essa expectativa tende
a transformar-se em medo, pois o casal receia não conseguir estabelecer
com a criança uma forte vinculação afectiva e psicológica ou vice-versa. De
facto, sentem que tudo se joga aí.
Carter, McGoldrick e colaboradores (1989) consideram que, em média,
o nascimento do primeiro filho do casal ocorria entre o primeiro e o segun­
do ano de casamento. Contudo, estudos recentes concluem que essa reali­
dade parece estar a mudar, devido, sobretudo, ao tipo de vida das
sociedades modernas e à transformação do estatuto/papel feminino na
sociedade e na família (idem; INE, 1991).
Nos casais adoptivos, e particularmente nos casais inférteis, o período
médio sem terem filhos pode ir até aos dez anos, com tendência para
aumentar. O ciclo inicia-se quando o casal toma conhecimento da sua infer­
tilidade e começa a procurar ajuda, optando pela adopção quando os meios
da medicina e da ciência não lhe permitem manter a esperança de vir a ter
filhos biológicos. O processo de tomada de decisão de adoptar uma criança
é quase sempre longo e doloroso, pressupondo a existência das seguintes
fases (Rosenberg, 1992):

• o reconhecimento e aceitação, por parte do casal, da sua incapaci­


dade para conceber um filho;
• a aceitação dos membros do casal para serem pais de uma criança
com a qual não têm qualquer laço sanguíneo;
• a definição/descoberta do tipo de �riança a adoptar.

Cada uma destas fases envolve questões emocionais específicas que vão
desde a aceitação de cada um dos elementos do casal relativamente à sua
incapacidade de gerar filhos, passando pelo reconhecimento da existência
135
Adopção e Parentalidade

de uma diferenciação entre reprodução, adequação sexual e função


parental, até ao facto de a capacidade do casal para lidar com a descon­
tinuidade genealógica se tornar uma realidade.
Em relação à primeira questão, depois das dificuldades reprodutivas
terem sido identificadas, num ou nos dois elementos, é necessário que estas
sejam aceites por ambos. No mínimo é esperado um período em que o rela­
cionamento do casal é sujeito a um elevado nível de stress, aparentemente
relacionado com um problema que parecia não existir. Todos os outros
problemas, considerados normais no sistema conjugal, serão necessaria­
mente amplificados.
A segunda questão com que o casal se debate nesta fase, e que pode
influenciar a tomada de decisão, tem a ver com o facto de, muitas vezes, os
casais confundirem reprodução, inadequação sexual e competência
parental. Esta confusão reflecte as atitudes e comportamentos sociais que,
no entanto, parecem estar a mudar. É pois importante que este processo seja
clarificado, de modo a que os casais consigam distinguir umas coisas das
outras. Quando compreenderem e conseguirem reduzir os problemas da
reprodução à sua própria dimensão no contexto conjugal e familiar, estão a
preparar-se, eles próprios, para a parentalidade e para adopção de uma
criança (Andrews, 1990).
Finalmente, a decisão de adoptar uma criança, sem que ela tenha qual­
quer laço sanguíneo com o casal, confronta-o, como já referimos, com a
interrupção da continuidade genealógica das suas famílias. Significa que
todos reconhecem que se perdeu um elo na cadeia biológica que liga uma
geração à seguinte, o passado ao futuro. O elo contínuo poderá. no entan­
to, converter-se no vínculo e na relação psicológica que se irá estabelecer e
por meio da qual se poderá (re)construir e transmitir a história da família.
Esta relação reflectirá, também, os laços e os vínculos afectivos, os valores
e os interesses que a nova família, em ligação com o passado, irá desen­
volver no futuro.
O problema da continuidade da família também se poderá estender à
família alargada, dependendo a aceitação da criança da importância dada
por aquele núcleo à herança genealógica. A sua resistência poderá tornar
mais difícil ao casal proceder às mudanças e adaptações necessárias para a
sua preparação, no sentido de iniciar o processo de adopção (Moe, 1998).
Quando a infertilidade se torna num problema aceite por ambos os ele­
mentos do casal e a solução encontrada é a adopção, o casal tende a en­
frentar consequências internas e externas relativas a essa decisão. Primeiro
136
Novas Formas de Família

lutam com eles próprios, depois com a família, os amigos e a sociedade em


geral, na expectativa que esta decisão seja aceite por todos, tornando assim
possível a parentalidade que a natureza lhes negou. Sem a resolução ade­
quada de todas estas questões, associadas à culpa, à revolta e à dor, o casal
tenderá a trazer para a adopção algumas crenças irracionais, encarando-a
como uma decisão de recurso (Johnston, 1992).
Depois da tomada de decisão em adoptar uma criança, o casal dá efec­
tivamente início ao processo formal de adopção. Podemos distinguir a
existência de sete sub-fases6 até que este processo esteja finalizado
(Anderson et al., 1994): exploração; aceitação; avaliação; espera e
preparação; colocação/entrega - pós-colocação e, por último, a con­
cretização. Este processo, bastante longo, torna-se por vezes penoso, não só
para os casais, como também para as próprias crianças. Constantemente, o
• casal que já "perdeu" o sonho de poder ter um filho biológico é confronta­
do, em todo este processo, com novas inseguranças. Frequentemente sente
dúvidas sobre a sua elegibilidade ou sobre a reunião dos critérios para
adoptar a criança que pretende. Isto pode precipitar o reaparecimento de
sentimentos de infelicidade, angústia e dor, dando continuidade ao proces­
so de luto e de sofrimento que julgavam já ter terminado.
Durante toda a vida, o casal vai desenvolver sentimentos similares.
Estes sentimentos são mais frequentes sempre que a criança não corres­
ponde às suas expectativas ou quando causa alguma decepção, o que,
muitas vezes, é atribuído à sua herança biológica. Por outro lado, como
também vimos, é vulgar os pais fantasiarem sobre como seria o seu filho
biológico, comparando-o com aquela criança que têm na realidade. Só que
se esquecem que os pais não adoptivos também fantasiam acerca dos seus
filhos, quando estes não são as pessoas que eles gostariam que fossem.

O Ciclo de Vida da Família Adoptiva

De acordo com a teoria sistémica, a família e os seus elementos organi­


zam-se como um sistema. Cada sistema tem uma estrutura de poder, regras,
valores, metas, formas de comunicar sentimentos e emoções co-construídas
e partilhadas.

• Para um aprofundamento desta questão consultar Santos (1999).


137
Adopção e Parentalidade

A família tem o seu processo de desenvolvimento que transcorre em


etapas, em progressão crescente, nas quais se realizam tarefas bem
definidas. De acordo com a teoria sistémica, esse processo, denominado
Ciclo Vital, implica mudanças na família, ao longo do seu desenvolvimen­
to, de modo a permitir o crescimento de cada indivíduo e da própria
família7 •
Embora necessariamente com características diferentes, a família adop­
tiva também tem o seu processo de desenvolvimento, com a formação das
suas etapas e respectivo cumprimento de tarefas, ou seja, o seu ciclo vital.
Tal como Brodzinsky referiu "nas famílias adoptivas, para além das tarefas
esperáveis em qualquer família, o seu desenvolvimento centra-se em tare­
fas e problemáticas específicas, [criando-lhes] desafios adicionais que se
interligam e complicam as mais universais tarefas da vida familiar"
(Brodzjnsky 1984, cit. in Brodzinsky, 1990, 15).
Como vimos, para além da infertilidade do casal, a incerteza do timming
do processo de adopção e, já na fase da parentalidade, a adaptação da
criança, a questão da revelação, ajudar a criança a lidar com o seu senti­
mento de perda e a fomentar e criar uma imagem positiva de si própria, são
algumas de�sas especificidades que tornam diferente a família adoptiva.
O efectivo nascimento da família adoptiva começa com a chegada da
criança. Por um lado, temos a criança que chega com a sua herança genéti­
ca e experiência de vida. Por outro, temos o casal que fez o seu melhor para
esquecer a sua dor e se preparou para a chegada daquela criança. O proces­
so de integração e de desenvolvimento da família adoptiva depende de
vários factores: a idade em que a criança é adoptada, o tempo de espera pela
criança e, por vezes, a idade dos pais (Hoksbergen, 1996).
Tendo em conta que os casais preferem adoptar crianças o mais novas
possível (Hosksbergen, 1996), decidimos considerar as etapas de desen­
volvimento da família propostas por Rosenberg (1992) que, para além de
equacionar as tarefas esperáveis em qualquer família, se centra, sobretudo,
no desenvolvimento das famílias adoptivas.

O nascimento da família adoptiva e o início da parentalidade corres­


pondem à vinda da criança para casa do casal. Nesta fase (primeira etapa),

' Para um aprofundamento do tema consultar Relvas ( 1996).


138
Novas Formas de Família

o grande objectivo dos pais adoptivos é estabelecer um vínculo afectivo


com a criança que se assemelhe, o mais possível, aos laços afectivos desen­
volvidos numa família biológica.
Este processo de vinculação (attachment) é, de acordo com vários
autores, um processo recíproco que se desenvolve entre os pais e a criança,
durante o primeiro ano em que estão juntos e que é consolidado ao longo
da relação (Karen, 1998). Segundo estudos recentes não existem grandes
diferenças entre o processo de vinculação nas famílias adoptivas e não
adoptivas, desde que as crianças adoptadas sejam da mesma raça que os
pais (Andersen et al., 1994). De acordo com os defensores desta teoria, os
humanos são seres dependentes que precisam de quem cuide e trate deles,
lhes dê carinho e transmita segurança, até que se tornem autónomos. Esta
necessidade de segurança leva-os a desenvolver uma relação de proximi­
• com quem presta esses cuidados e que poderá não ser nenhum dos pais
dade
biológicos ou até não se reduzir a uma só pessoa. Na perspectiva de alguns
investigadores, o que está na base da vinculação é, essencialmente, a con­
fiança que a criança sente por esse alguém que satisfaz as suas necessidades
mais básicas (Bowlby, 1984).
Portanto, a vinculação entre pais e filhos desenvolve-se, por um lado,
quando a criança aprende que pode contar com os seus pais para satisfazer as
necessidades físicas e psicológicas e, por outro, quando os pais aprendem a
dar prazer à criança, subordinando-se às suas necessidades. Este processo é
igual tanto para as famílias biológicas como adoptivas (Sorosky et al., 1984 ).
Com uma criança mais velha o processo de vinculação desenvolve-se da
mesma maneira, ainda que existam pequenas diferenças, nomeadamente no
período imediatamente a seguir à chegada da criança ao casal. Assim, a
criança tenderá a desenvolver sentimentos ambivalentes: por um lado,
deseja estabelecer uma relação afectiva com os novos pais; por outro, de­
vido às suas experiências anteriores, tem medo que esse relacionamento
termine de novo numa separação. É vulgar neste período a criança ter com­
portamentos que visam sobretudo testar os pais adoptivos, no sentido de
perceber se eles realmente a aceitam como um elemento efectivo da família
(Katz, 1977).
Com o desenvolvimento das tarefas e da rotina do dia a dia, o casal
começa a sentir-se responsável pelo bem-estar da criança, a cumprir e a
estabelecer normas, desenvolvendo um novo sentimento, dando início efec­
tivo à parentalidade. Tal como nas famílias biológicas, também nas famílias
adoptivas, o primeiro mês de relação é extremamente importante.
139
Adopção e Parental idade

Na segunda etapa, família adoptiva com criança em idade pré-escolar


(3-5 anos), a idade da criança é "mágica". A sua imaginação está capaz de
"voar". A sua lógica não é sofisticada o bastante para interferir com a sua
criatividade, por outras palavras, tudo é possível. Essa "ausência" de lógi­
ca pode, no entanto, levar a que a criança desenvolva sentimentos de medo
e de insegurança, sempre que faz interpretações de coisas que ela ainda não
consegue entender muito bem, como por exemplo a adopção. Nesta idade,
a criança não compreende a diferença entre ser um filho natural e ser adop­
tado. Estes dois conceitos tendem a misturar-se no seu pensamento. Para
uma criança deste nível etário qualquer um que viva com "eles" faz parte
da família, não percebendo o significado da expressão "laços de sangue".
A razão pela qual parece aceitar o seu estatuto de adaptado é porque na
realidade não o compreende. Falar sobre a adopção é, para muitos pais,
uma experiência que envolve algum stress, daí que optem por fazê-lo nesta
idade. A criança não irá fazer muitas perguntas e os erros cometidos
poderão ser corrigidos mais tarde. O objectivo é permitir que a criança
comece a elaborar a informação, de modo a que, posteriormente, esta possa
ser assimilada (Brodzinsky, 1990).
Nesta etapa, a criança tende a desenvolver e a reforçar com os seus pais
adoptivos a relação de confiança já iniciada na fase anterior. Se a revelação
da adopção lhe for feita neste período, a sua tarefa é tentar integrar essa
informação nas suas cognições. Para os pais adoptivos, esta etapa caracte­
riza-se pela necessidade de sentirem que a criança adoptada é aceite, sendo
comum testarem as suas relações com os amigos e a família alargada.
Continua o processo de aprendizagem sobre a forma de lidar com as novas
funções e responsabilidades trazidas pela parentalidade, em geral, e pela
adopção, em particular (Rosenberg, 1992).

Família com filhos adoptivos em idade escolar (6-11 anos) é uma etapa
que se caracteriza fundamentalmente pela entrada das crianças na escola, o
que significa que o seu mundo se expande e deixa de se confinar à família.
Verificam-se mudanças significativas nas suas capacidades cognitivas. O
processo de maturação física e psicológica permite-lhes ter um nível de
pensamento mais lógico e, portanto, estabelecer relações de causa e efeito.
É nesta altura que os pais se sentem mais inclinados para falarem com
a criança sobre a adopção. Nesta idade, a maior parte das crianças consegue
compreender a diferença entre nascimento e adopção, assimilando também
o conceito de concepção. É nesta altura que a criança conceptualiza as
140
Novas Formas de Família

relações biológicas e adoptivas e reconhece a possível existência de dois


grupos de parentes. Normalmente, começam por lutar contra esta realidade,
fantasiam sobre a família natural, tentando compreender o quê e por que é
que aconteceu. Começam a construir as suas próprias histórias, sobre bons
e maus pais, boas e más crianças. É o período em que a criança, adoptada
(ou não), fantasia sobre a existência de outros pais melhores do que aque­
les que têm.
Para as crianças adoptadas estas fantasias são muito complicadas.
Quando zangadas ou desiludidas com os pais adoptivos, idealizam os pais
naturais, os quais são os pais perfeitos que qualquer criança desejaria ter.
Por outro lado, formulam pensamentos sobre os motivos pelos quais os pais
naturais os entregaram para a adopção; será que era má ou chorava muito?
Para se defender destes sentimentos mais negativos, a criança tende a idea-
1izar um romance que pode ir ao extremo de imaginar que foi raptada pelos
pais adoptivos aos pais naturais que eram pessoas ricas, importantes,jovens
e bonitas.
Estes medos e desejos, vulgares neste grupo etário, conhecidos na lite­
ratura psicanalítica por "Romance Familiar"ª podem perturbar as relações
afectivas estabelecidas entre a criança e a família adoptiva, ressurgindo os
sentimentos de perda, dor e medo de novos abandonos. Assim há que
relembrar que é normal a ambivalência de sentimentos e fantasias da cri­
ança adaptada acerca dos pais biológicos. O importante é que os pais adop­
tivos não deixem que o adaptado se aperceba que essa comparação e fanta­
sia é para eles um ponto vulnerável ou a criança poderá utilizá-lo para os
manipular.

Família com filhos adoptivos adolescentes. É comum a partir dos onze,


doze anos de idade, as crianças desenvolverem a sua capacidade de
raciocínio abstracto. Este tipo de raciocínio permite-lhes entender determi­
nados conceitos, sem precisar de os associar a exemplos concretos. Quer
dizer que, nesta altura, as crianças já compreendem o conceito de adopção,
compreendem que esta envolve a transferência dos direitos e responsabili­
dades legais dos pais biológicos para os pais adoptivos, revelando também
uma melhor compreensão sobre as razões pelas quais foram entregues para
a adopção.

• Para desenvolvimento do tema consultar Paixão ( 1985).


141
Adopção e Parentalidade

As transformações físicas e psicológicas da adolescência tanto têm de


excitante como de stressante. A rebeldia, a necessidade de independência e
de liberdade são características comuns a quase todos os adolescentes. É
também vulgar, nesta fase de transição, o jovem tentar definir a sua identi­
dade e lutar pela sua autonomia. Por outro lado, é característico os pais sen­
tirem dificuldades em lidar com este tipo de problemas e em perceber por
que é que os filhos, que eles tão bem trataram e acarinharam durante anos,
os querem "deixar" e ser autónomos.
Em termos do desenvolvimento familiar, esta etapa caracteriza-se pela
necessidade, sentida pelo adolescente, de criar o seu espaço, de experi­
mentar a sua independência, mas de maneira que essa autonomia não seja
sinóni!JlO de perda, abandono ou expulsão ou ponha em causa a sua segu­
rança afectiva. Esta ambivalência tem grande relevância na família de
adopção, levantando questões tanto para os pais como para os adolescentes.
É também nesta fase que se verifica, por parte de adaptados e adop­
tantes, a aceitação de um novo modelo de família, no qual elementos da
família biológica do adaptado poderão ser integrados. Assim, os adaptados
tentam construir a sua identidade, integrando alguns aspectos da sua família
natural, enquanto os adoptantes a aceitam como uma combinação entre
uma base de cariz biológica e outra consequente da adopção. Aceitar o
interesse do jovem pela família biológica poderá tornar-se fundamental
para o desenvolvimento de uma identidade equilibrada (Stein e Hoopes,
1985).
Tal como acontece noutros tipos de famílias, também aqui se verifica
um ajustamento das fronteiras e limites de forma a permitir a passagem
para a etapa seguinte do ciclo vital. É claramente uma fase de flexibiliza­
ção, de diferenciação, permitindo a todos os envolvidos o seu reajustamen­
to e uma (re)aceitação da sua condição de adoptantes e adaptados.

Família com filhos adultos. É nesta etapa que normalmente se con­


cretiza a saída de casa dos filhos, dando assim sequência ao desejo de inde­
pendência revelado no estádio anterior. Nas famílias adoptivas, o impacto
do desejo de saída de casa tende a ser maior e diferente, já que as chegadas
e partidas neste tipo de famílias também assumem um outro significado, tal
como acontece com o sentido de independência. Assim, esta saída pode ser
interpretada por todos como um abandono ou uma rejeição, o que nem sem­
pre corresponde à realidade. Na maior parte das vezes, mantêm-se inque­
bráveis os laços e os vínculos afectivos que ligam pais e filhos, reforçando-
142
Novas Formas de Família

-se os elos familiares. Ao atingir este estádio, ocorre uma mudança radical
no seio da família e nos papéis até agora desempenhados. Um aspecto
importante, que decorre da constituição de uma nova família nuclear, é o
nascimento do primeiro filho, que assume um especial significado para os
adoptados. Muitos experienciam, pela primeira vez, o estabelecimento de
um vínculo sanguíneo com alguém. Mesmo que as experiências com a
família adoptiva tenham sido muito positivas, o facto de terem um filho é
um acontecimento com uma grande dimensão e gratificação emocional que
lhes devolve, de algum modo, parte da sua identidade (Lifton, 1979).
Para os pais adoptivos, o facto de os filhos terem filhos é encarado de
acordo com a maneira como eles próprios resolveram e lidaram com a
questão de não terem filhos biológicos. Assim, os que aceitaram as especi­
ficidades de uma família adoptiva experienciam a mesma felicidade que os
filhos adoptivos, aceitando o seu novo estatuto de avós; os que não con­
seguiram resolver esses problemas, sentem que perderem a "sua criança"
para um "parente de sangue", reavivando os velhos sentimentos de dor e
sofrimento (Rosenberg, 1992).
No entanto, é importante referir que nesta fase de transição da família,
seja qual for o grau de aceitação do recém-nascido, é esperável que, ini­
cialmente, os pais adoptivos se sintam inseguros em relação àquilo que os
filhos adoptivos sentem relativamente a eles.
Por outro lado, a integração do passado biológico e psicológico, feita
anteriormente, vai permitir ao adaptado contribuir definitivamente para o
desenvolvimento de uma nova geração.

Família na fase tardia. Esta fase caracteriza-se por mudanças associa­


das ao envelhecimento e que se repercutem em todos os aspectos da vida
de uma pessoa, pelo que as principais tarefas desenvolvimentais incluem o
facto de se aprender a viver com tais alterações.
Nesta etapa, os pais adoptivos aceitam as circunstâncias da adopção com
tranquilidade, reconhecendo a existência de uma hereditariedade psicológica.
Para os adoptados, esta fase poderá envolver questões mais delicadas. A mor­
te de um dos pais adoptivos representa um novo abandono e uma nova perda
(Rosenberg, 1992) que pode significar um reviver do seu próprio abandono.

Assim, podemos sintetizar que, para além do que é considerado esperá­


vel, outras tarefas geradoras de tensões, que poderemos considerar adi­
cionais, existem neste tipo de famílias. À medida que a criança vai crescen-
143
Adopção e Parentalidade

do na família e esta vai percorrendo o seu ciclo vital, os assuntos rela­


cionados com a adopção, que incluem a revelação do seu estatuto, ajudar a
criança a ultrapassar o seu sentimento de perda e a criar um sentimento de
pertença, fomentar a criação de uma auto-imagem positiva e, ainda, satis­
fazer a sua necessidade da obter o máximo de informação sobre os seus pais
biológicos, são algumas dessas tarefas. Relacionado com essas tarefas da
paternidade adoptiva está, também, o modo como pais e filhos tratam de
assuntos referentes à adopção.
Tal como qualquer outra forma de família, as famílias adoptivas devem
aprender a lidar com as suas ambiguidades, assumindo e aceitando a sua
especificidade (Brodzinsky et al., 1992). O sucesso de uma família de
adopção depende, em parte, da maneira como vai cumprindo cada uma das
tarefas o"b seu ciclo vital, atingindo os seus objectivos e ultrapassando as
suas dificuldades.

Farm1ia Adoptiva e Stress Parental

Hans Seyle (1976) definiu stress "como a resposta não específica do


organismo a uma qualquer exigência de adaptação" (cit. in Serra, 1988,
301). Lazarus define stress como um tipo particular de relação entre a pes­
soa e o meio, no qual as exigências adaptativas são avaliadas pela pessoa
como excedendo os seus recursos e pondo em perigo o seu bem-estar. É,
assim, um processo dinâmico que envolve as transacções entre a pessoa e
o seu meio. Por outras palavras, o stress resulta da discrepância entre o que
a pessoa julga que lhe é exigido e as competências que julga possuir para
lidar com essa exigência (Cardoso et al., 1999).
A constituição de uma família e o seu desenvolvimento faz parte do
grupo de acontecimentos referenciados como indutores de stress. Como
qualquer outro tipo de famílias, a família de adopção também está sujeita a
situações geradoras de grande stress. Naturalmente, as fontes geradoras de
tensão são idênticas às das famílias biológicas, não sem que, como
podemos intuir, deixem de existir outras mais específicas mas também
"esperáveis" nas famílias adoptivas.
Se tivermos em conta o que vimos anteriormente, pode entender-se que
a ansiedade causada pela espera da entrega de uma criança, que não se sabe
quanto vai durar, os procedimentos legais, o medo que algo venha a correr
mal são fontes de stress que, infelizmente, nem sempre desaparecem com
144
Novas Formas de Família

a chegada da criança. A maior parte das vezes continuam, não só durante


os primeiros meses da parentalidade mas também ao longo de todo o desen­
volvimento da família (Van Gulden e Bartells-Rabb, 1995).
A chegada da criança e as primeiras semanas de relação, apesar de
serem um período excepcional para os pais adoptivos, culminando um
período de incertezas, frustrações e perdas, também o são de expectativas,
gerando questões que colocam receios à nova família. Nestes primeiros
meses está presente um número infinito de emoções causadoras de stress
que afecta cada elemento do casal individualmente e o relacionamento
entre ambos (idem). Depois da excitação inicial, a parentalidade traz, como
vimos, novos desafios, papéis e responsabilidades, alterando-se toda a
dinâmica familiar, em especial a relação do casal, o que naturalmente pro­
pictará o aparecimento de algum tensão.
Outra questão, na família adoptiva, liga-se com a criação do "sentimen­
to de pertença" ou "do direito a..." (Greenspan e Greenspan, 1985). A
importância do desenvolvimento deste sentimento numa família de
adopção faz com que se possa concluir que, enquanto tal sentimento não
estiver presente, também as crianças não serão sentidas "como se fossem"
filhos biológicos. Também por isso, em toda a revisão da literatura se obser­
va que a revelação do estatuto de adoptado é talvez a questão que, a par da
decisão da adopção, mais stress provoca nestas famílias.
Outro factor que influencia os seus níveis de stress é o modo com é
vivido o período de adaptação da criança à família e vice-versa. Assim,
questões como a comunicação/revelação, o sentimento de pertença e os
sentimentos de perda ou a baixa auto-estima serão tão mais fáceis de gerir
quanto melhor for a adaptação recíproca, sobretudo ao nível psicológico. A
alimentação, o espaço envolvente, a cultura interferem muito nos resulta­
dos dessa adaptação. Também o nível de apoio e de aceitação, transmitido
aos pais adoptivos pelos amigos e família alargada, interfere no modo como
ela é vivida. Quanto maior for esse suporte mais os pais se sentem seguros
da decisão que tomaram e mais preparados estão para a assumpção do seu
novo papel (Feigelman e Silverman, 1983).
Nas crianças, os níveis de stress estão fortemente relacionados com os
efeitos da adaptação (Lazarus e Monat, 1985, cit. in. Brodzinsky, 1990).
Isto aplica-se, também, à criança adoptada e, tal como acontece com os
pais, os seus efeitos estão condicionados por variáveis ambientais, cultu­
rais, biológicas e pessoais. Essa adaptação, embora se inicie com a chega­
da da criança, pode ser influenciada pelas suas vivências anteriores, mesmo
145
Adopção e Parentalidade

pré-natais. Por outro lado, é importante não esquecer que, de acordo com
as suas necessidades emocionais e afectivas, recém-nascidos e crianças
mais velhas vivem o período de adaptação de modo diferente.
A tomada de consciência do estatuto de adaptada e respectivas impli­
cações fazem a criança sentir-se incompleta, por vezes indesejada: por um
lado, sofre a rejeição dos pais biológicos e a perda das suas origens; por
outro, experimenta um sentimento de insegurança relativamente aos pais
adoptivos. Finalmente, essa consciência fá-la sentir-se diferente das outras
crianças, sentimento vivenciado, frequentemente, de um modo negativo.

Famílias felizes e com sucesso não acontecem por acaso. Durante o seu
desenvolvimento existem momentos de maior e de menor crise, com mais
e menos" stress. Se a família, perante tais situações e acontecimentos,
responder com rigidez, corre o risco de se tornar disfuncional. Pelo con­
trário, se for flexível e conseguir evoluir através da crise, reestruturar-se-á,
prosseguindo a sua história (Relvas, 1996).
Foi considerando todos estes aspectos que elegemos, como questão fun­
damental do estudo empírico sobre famílias adoptivas, a avaliação do modo
como por elas é vivido e gerido o stress parental, tentando, ainda, identi­
ficar algumas das condições, especificamente ligadas à adopção, eventual­
mente interferentes nesse processo.

Estudo Empírico: Stress Parental em Famílias Adoptivas

A gestão da parentalidade nas famílias de adopção, os seus principais


focos de stress, o perfil que deles emerge e as condições que lhe estão asso­
ciadas constituem-se, assim, no nosso objectivo fundamental de investigação.
Para operacionalizarmos este objectivo recorremos à utilização dos
seguintes instrumentos: Índice de Stress Parental - ISP (Richard Abidin
(1983) adaptado para Portugal por Salomé Santos, 1990), Escalas de
Satisfação Familiar e de Recursos Familiares (Olson et al., 1982) e
Questionário, que construímos com base na nossa experiência e na pesquisa
bibliográfica efectuada9 •

• Para um conhecimento mais aprofundado das bases teóricas e características destes


instrumentos, consultar, Santos, M. G. M. ( I 999); Santos, S. V (I 990; 1992; 1996;
1997).
146
Novas Formas de Família

Os participantes

Estabelecemos, como primeiro critério para a const1tu1çao da nossa


amostra, que as famílias de adopção não tivessem filhos biológicos e que
os motivos que as levaram a adaptar uma criança estivessem associados a
factores de ordem física ou psicológica e não humanitários. Foi também
estabelecido que a criança adaptada deveria viver com o casal há pelo
menos três anos, por considerarmos que este seria o período mínimo
necessário para a adaptação da criança ao casal e vice-versa. Por outro lado,
os três primeiros anos de vida constituem um período em que o stress asso­
ciado à função parental é especialmente crítico, quer no que diz respeito ao
desenvolvimento afectivo e comportamental da criança quer no que respei­
ta à 'telação pais-criança. A criança adaptada deverá ter, então, idade igual
ou superior a três anos. Como limite etário superior fixámos os dezoito
anos, idade em que no nosso país se atinge a maioridade.

Quadro 1 - Síntese dos critérios de amostragem

1. Casais sem filhos biológicos

2. Casais só com um filho adoptado

3. Tempo de relação pais-filho: mínimo de três anos

4. Limites etários da criança: 3-18 anos

Outro dos critérios que definimos teve a ver com o número de crianças
adaptadas por cada casal. Assim, procurando a comparabilidade no inte­
rior da nossa amostra, estipulámos que cada família não deveria ter mais do
que uma criança adaptada.
147
Adopção e Parentalidade

Recolha da amostra - método

Um grupo de quarenta e três famílias adoptivas foi seleccionado e reco­


lhido em colaboração com o NUSIAF'º, da Faculdade de Psicologia e de
Ciências da Educação da Universidade de Coimbra, e a Equipa de
Adopções do ex-Serviço Sub-Regional de Coimbra, do Centro Regional de
Segurança Social da Região Centro (CRSSC) e, ainda, por conhecimento
directo.
Todas as famílias foram contactadas entre os meses de Setembro e
Dezembro de 1998. O primeiro contacto com cada família foi feito por tele­
fone, por uma técnica da Equipa de Adopções (CRSSC) que apresentava o
estudo e explicava os seus objectivos, solicitando autorização para que
fosse efeêtuado um contacto pessoal para aplicação dos instrumentos por
parte da investigadora.
A ordem sistematicamente seguida nesta aplicação (auto-preenchimen­
to realizado pelo pai ou mãe adoptiva) foi: Questionário, ISP, Escala de
Satisfação Familiar e Escala de Recursos Familiares. Depois de obtermos
todos os elementos, introduzíamos o protocolo dentro de um envelope em
branco, que fechávamos na frente do inquirido, mantendo assim o anoni­
mato e tentando, ainda, reduzir o efeito da desiderabilidade social. Em
cinco casos não foi possível seguir este procedimento, pelo que se recorreu
à recolha de dados via correio.

Características da amostra

Dentro destes critérios e através destes procedimentos, encontrámos,


como já foi referido, cerca de quarenta famílias, das quais trinta e quatro
quiseram colaborar connosco, constituindo a amostra. Das suas caracterís­
ticas demográficas e familiares, recolhidas através do Questionário, apre­
sentamos, na Tabela 1, os aspectos mais significativos.
Este Questionário, dividido em dois grandes grupos, é constituído por
vinte e sete perguntas de resposta fechada. O primeiro grupo é composto
por dezoito questões que permitem a caracterização sócio-demográfica das

10 Núcleo de Seguimento Infantil e Acção Familiar.


148
Novas Formas de Família

famílias em estudo: sexo, idade, estado civil ou situação de facto, nível de


escolaridade, profissão, situação profissional e área de residência, sempre
relativos ao inquirido e respectivo cônjuge; sexo, idade, habilitações esco­
lares e ocupação/profissão da criança.

Tabela 1 - Principais características demográficas da amostra

VAR.tÁii'ii:l ÍNQÜíhlbó CÕNJUGE CRIANÇA


Sexo
ó" 38.23 61.70 32 35
� 61.70 38.23 67.64

ldade't!M element-0s,do Média 44.08 Médiu 46.11 Médía 8.20


agregado Mínimo 32 Mfu.tmo 32 Mínimo 3
tànúliar Máxiroo S7 Máximo 66 Má-J1imo 18
Nível de escolaridade
(%)
Curso superior 23.52 20.58
Curso médio 2.94 5.88
l2. )ano
1
23.52 8.22 2.94
9.º ano 26.47 26.47
6"ano 23 52 2.94 26.47
4 ° ano 32.25 11 75
4.º ano incompleto 20.56
não escolariudo 38.23
:Profusões
Cicotificus/iotclecru:us 14.50 Z0.58
T�cnicas intermédias 2.1.52 20.58
Set'\IJço dom�!co 20.511 2.94

Dos dados (Tabela 1) destacamos: a média de idade dos elementos do


casal (44.08; 46.11) e das crianças adoptadas (8.20) anos, o que pode indi­
ciar a parentalidade, de certo modo tardia, típica destas famílias; a grande
percentagem de mulheres (61.7%) responsáveis pelo preenchimento dos
questionários; relativamente ao sexo das crianças, um número de crianças
do sexo feminino bastante superior ao sexo masculino, o que coincide com
os elementos encontrados na revisão bibliográfica, onde é feita referência
149
Adopção e Parentalidade

ao facto de os casais adoptantes preferirem adoptar crianças do sexo femi­


nino; a distribuição de algum modo equilibrada pelos níveis de escolari­
dade e grupos profissionais.

Finalmente é de referir que os inquiridos são casados, na sua quase tota­


lidade (só um vive em união de facto), e que as famílias de adopção que
compõem a nossa mostra estão distribuídas por duas grandes áreas de
residência, Região Centro (64.7%) e Lisboa e Vale do Tejo (35.2%).

Na segunda parte do Questionário, constituída por nove perguntas, são


abordadas questões associadas à adopção e aspectos relacionadas com a
dinâmica"familiar e a gestão da parentalidade: tempo de vida em comum do
casal, tempo que mediou entre a união do casal e a vinda da criança, idade
da criança quando veio viver para casa do casal, tempo que mediou entre o
pedido de uma criança para adopção e a sua entrega, principais problemas
sentidos na educação da criança adaptada e a quem recorre para os resolver,
opinião sobre a revelação, à criança, do seu estatuto de adaptada (sim ou
não), idade mais adequada para o fazer e indicação de quem toma as prin­
cipais decisões familiares.

Tabela 2 - Variáveis associadas à adopção

VARIÁVEIS Média Máximo Mínimo Desvio


Padl'iío

Tempo que mediou entre a união do casal e a vinda


da criança
12.08 29 3 6.61

tdade da;idança quando 'lieio,para<Casa da fum1lia


adop!iva
2.8 8 o
Tempo de espera entre o pedido e a entrega da
criança
3.5 9.0 1.0 1.60

Idade para a.ruiançp ter conheciment<:>da adop<,ito


5.8 7 o
150
Novas Formas de Família

Da análise de algumas dessas variáveis (Tabela 2) podemos concluir


que: na nossa amostra, a média de idade das crianças quando chegam a
casa das famílias aponta para uma idade relativamente baixa da criança
aquando da sua adopção; o tempo que medeia entre a união do casal e a
chegada da criança, período considerado como aquele em que o casal
vivencia situações de maior stress, é, em média, de 12.08 anos, o que
parece relevante e se enquadra na informação teórica recolhida; o tempo
médio de espera entre o pedido e a entrega da criança, indicado pelos
serviços responsáveis, é de três anos, o que está próximo dos valores obti­
dos na nossa amostra - média de 3.5 anos; no que se refere ao conheci­
mento por parte da criança do seu estatuto de adoptada e qual a melhor
idade para se fazer essa revelação, os dados encontrados (mais ou menos 6
an;s) não contrariam a literatura.

Da análise dos restantes itens do Questionário podemos destacar aos


seguintes aspectos:

• o tempo de vida em comum/casamento dos casais ronda, em média,


os 18 anos, com um mínimo de 8 e um máximo de 34 anos, o que
aponta para um longo período de conjugalidade;
• a família/casal, quando tem dúvidas ou problemas na educação da
criança adoptada, não recorre à ajuda de ninguém (38.23%) ou,
quando recorre, fá-lo principalmente junto de amigos (32.35%).
Por outro lado, e paradoxalmente, é curioso registar a baixa
percentagem de recurso à família nuclear (8.2 %) e a inexistência
de pedidos de apoio à família alargada, o que de algum modo
contraria o que encontrámos na pesquisa teórica. Aos técnicos
e serviços só recorrem 17.63% dos inquiridos. Conforme referi­
mos anteriormente, a família, a par dos amigos, constitui um
dos apoios mais importantes para o casal depois da tomada de
decisão acerca da adopção (Feigelman e Silverman, 1983).
Contudo, deveremos recordar que as questões ou dúvidas mais
sentidas e colocadas pelas famílias de origem são relativas ao
"corte" do vínculo biológico, o que poderá deixar pressupor as
suas dificuldades de aceitação da situação de adopção e, logo, a
relutância do casal adoptante em recorrer à família de origem sem­
pre que sente tais dificuldades;
151
Adopção e Parentalidade

• em relação ao exercício da parentalidade, os inquiridos não parecem


sentir dificuldades acrescidas (nenhuma dificuldade, 67 .64%),
estando a sua maior preocupação relacionada com problemas de
saúde (8.82%) e educação (8.82%) da criança adaptada.

Instrumentos e Resultados

Com a investigação que agora se apresenta pretendíamos, especifica­


mente, conhecer melhor estas famílias de adopção, nomeadamente a partir
da avaliação de algumas características da sua dinâmica familiar (satis­
fação e.recursos) e dos seus níveis e pe1fil de stress parental. Pretendíamos,
ainda, analisar a interacção entre estes dois aspectos do seu funcionamen­
to, bem como a eventual influência das varáveis sócio-demográficas e
associadas à adopção, concretamente no que se refere ao emergir do stress
parental.

Características da dinâmica familiar

As Escalas de Satisfação e de Recursos Familiares foram desenvolvidas


por David H. Olson e colaboradores (1982). A primeira é uma escala de
auto-preenchimento que permite avaliar a forma como é percepcionada a
satisfação do inquirido relativamente a duas dimensões do funcionamento
familiar: a Coesão [ligação emocional sentida entre os membros da família]
e a Adaptabilidade [flexibilidade do sistema, ou seja, a sua capacidade para
mudar] 11 • É constituída por catorze itens, cotados entre um (insatisfeito) e
cinco (extremamente satisfeito) agrupados nas referidas dimensões (respec­
tivamente 8 e 6 itens). Quanto mais elevada for a pontuação final maior é
o nível de satisfação familiar percepcionado.
A segunda permite avaliar os recursos internos do sistema familiar
(Canavarro et al., 1993). Tal como a anterior também é de auto-preenchi­
mento, de tipo Likert, constituída por doze questões classificadas entre um

11 A Coesão avalia o grau de separação e ligação entre os membros da família (Olson


et ai., 1982). A Adaptabilidade é definida como a capacidade do sistema familiar para
mudar a sua estrutura de poder, os papéis e as regras relacionais em resposta a situações
de stress (idem).
152
Novas Formas de Família

(discordo muito) e cinco (concordo muito). A cotação é feita de modo a que


quanto mais elevada é a pontuação melhores são os recursos familiares. No
final, esta escala permite-nos discriminar dois aspectos distintos: o Orgulho
Familiar (sete itens) e o Entendimento Familiar (cinco itens) 12•

Quadro 2 - Satisfação Familiar

SATISFAÇÃO FAMILIAR
(0lson et ai. 1982)

COESÃO ADAPTABILIDADE
1
coligações assertividade
separações controlo
espaço disciplina
amigos regras
limites

lllRSVl()•
MÉDlA MÍN'IM0 MÁX1M(i} P=
-f�Q

Satisfação
Fami1iar 48.20 40 58 5.27
Coesão 27.82 23 33 3.28 < O. 0001
Adaptabilidade 20.38 17 25 2.37 < o. 000!

N=34

Dos resultados provenientes da aplicação destas escalas, na nossa


amostra, podemos concluir que os sujeitos se sentem significativamente

12 O Orgulho Familiar engloba atributos como a lealdade, o optimismo e a confiança

dentro da família. O Entendimento Familiar diz respeito ao "sentimento de capacidade


para cumprir tarefas, lidar com problemas e dar-se bem de uma maneira geral" (Olson
et al., 1982, 39).
153
Adopção e Parentalidade

mais satisfeitos com o funcionamento das suas famílias em termos da


Coesão do que em termos da Adaptabilidade, o que significa que a sua sa­
tisfação com a capacidade para mudar e responder em situações de stress é
clara e significativamente inferior à satisfação sentida com a ligação emo­
cional entre os seus elementos (Quadro 2).
Por outro lado, ao nível dos Recursos Familiares (Quadro 3), os resul­
tados do Orgulho, dimensão onde a média é mais elevada, permitem-nos
afirmar que a lealdade e a confiança são percepcionados dum modo signi­
ficativamente superior, relativamente à capacidade destas famílias para
gerirem e ultrapassarem as dificuldades (subescala Entendimento). Note-se
que estes dados confirmam, ainda que indirectamente, a justeza da nossa
opção i�icial pelo estudo do stress parental, uma vez que a dificuldade em
lidar com situações familiares de desentendimento e adaptação emergem
como mais relevantes.

Quadro 3 - Recursos Familiares

RECURSOS FAMILIARES
(Olson et ai. 1982)

i
ORGULHO ENTENDIMENTO
optimismo capacidade para:
lealdade cumprir tarefas e
confiança lidar com dificuldades

Vi\:RIÂiWIS MÉDIA MÍNIMO MÁXIMO DESVIO- P=


•l'AJ!MQ
Recursos
Familiares 47.32 42 56 5.27
Orgulho 31.1 7 27 35 2 56 0.018
Entendimento 15.8 10 23 2.76 O.0005

N=34
154
Novas Formas de Família

De todo o modo, globalmente e atendendo aos valores possíveis, estas


famílias revelam bons índices de recursos e de satisfação familiar que,
aliás, se correlacionam positiva e significativamente entre si (r = 0.48,
p = 0.08).

Avaliação do stress parental

Esta variável da investigação foi avaliada através do Índice de Stress


Parental (ISP) (Abidin, 1983; Santos, 1990). Segundo Richard Abidin,
autor da versão americana do Parenting Stress lndex (PSI), este é um ques­
tionário para aplicação a pais, constituindo "uma técnica de despiste e de
Õbservação diagnóstica que tem o propósito de fornecer uma medida da
magnitude relativa de stress no sistema pais-filhos" (Abidin, 1983, 5).

Os itens deste questionário distribuem-se por dois domínios: Domínio


da Criança (DC) e Domínio dos Pais (DP). As subescalas do DC
(Distracção/Hiperactividade, Maleabilidade de Adaptação, Aceitação,
Exigência, Humor e Reforço aos Pais) 13 avaliam aspectos do temperamen­
to da criança e as percepções que os pais têm do impacto destas caracterís­
ticas neles próprios e, de um modo relevante, do grau de stress que provo­
cam na figura parental (Santos, 1992). As subescalas do DP (Depressão,
Vinculação, Restrições do Papel, Sentido de Competência, Isolamento
Social, Relação Marido-Mulher e Saúde Parental) 14 reportam-se às carac­
terísticas pessoais da figura parental e ao seu contexto de suporte social, na
medida em que estas variáveis se relacionam com as tarefas e exigências da
função parental (idem). Avaliam, ainda, variáveis do contexto familiar que
influenciam a capacidade para lhes responder adequadamente (Santos,
1996).
Esta escala foi adaptada para Portugal por Salomé Santos (1990, 1992,
1996, 1997) em colaboração com Abidin, com o nome de Índice de Stress
Parental (ISP).

" Para uma melhor análise dos resultados de cada uma das subescalas (compreen­
são do seu conteúdo e significado) consultar o Anexo onde serão apresentados todos os
itens do ISP organizados, precisamente, em termos de subescalas e domínios.
"Idem.
155
Adopção e Parentalidade

Tendo em conta o tipo de famílias desta investigação, famílias adopti­


vas, verificámos que alguns vocábulos poderiam, eventualmente, desen­
cadear nos respondentes sentimentos com reflexos negativos ao nível dos
objectivos pretendidos. Deste modo, substituíram-se as palavras "nasci­
mento" e "nascer" por outras mais adequadas à situação em estudo, como
"chegada" ou "vinda da criança".
A cotação faz-se através da soma dos valores atribuídos a cada item,
avaliados numa escala de 1 a 5, obtendo-se assim três medidas: por
subescala, por domínio e um resultado final. Quanto maior for a pontuação
maior é o stress sentido em cada uma destas medidas. Os resultados corres­
pondentes aos domínios dão-nos uma orientação sobre qual o domínio em
que o st,ress parece estar a emergir.

Tabela 3 - ISP - lndices de tendência central e dispersão das subescalas e domínios

SOOESCALAS MÉDIA MIN. MAX. D.P,


A Distracção /J-liperactividade 20.32 12 33 4.23

DOMÍNIO
� R,9fot:ÇO li� f'/lJS iô.$ij § 7i i. �Q
DA e Humor 7.2 4 14 2 56
CRIANÇA P, )\ctjlas!O 14.26 $ ,1§ 4. }3
E Maleabilidade 26. li 16 42 4.88
F Bxigr11cj9 l7 li 21 �- 91
G Autonomia 18.50 13 26 3 02

H Sentido de Competências 23.70 14 36 5. 12


i V'\!t�.9ã.9 9.44 9 i$ i-õ�
DOMÍNIO
J Restrição do Papel 15.58 li 21 3.01
DOS
PAIS L De.PJ�Q 16. �4 9 l4 �- !Í7
M Relação Marido Mulher 12.94 7 20 3. 19
� Í�o!ll�n\ç-$qçí]!l 11, 67 7 17 7.59
o Saúde 10.35 6 16 2.18

DOMfNJO DA CRlANÇA 114.20 85 159 17.09


SUBTOTAL DOMÍNIO DOS PAIS 99.82 69 l'.B 15.52
156
Novas Formas de Família

Os resultados do ISP, obtidos pela nossa amostra'5, são apresentados na


Tabela 3. Desses dados é de salientar que o stress, nestas famílias, emerge,
principalmente, no Domínio da Criança por comparação com o Domínio
dos Pais (os resultados médios, bem como o desvio-padrão, são mais ele­
vados nesse domínio). Por outras palavras, os pais sentem bastante mais
dificuldade no que concerne às características da criança do que em relação
às suas próprias características e às exigências de desempenho da função
parental.
Do estudo correlacionai entre os resultados obtidos em cada subescala e
os valores globais dos dois domínios' 6 (DC e DP) é de salientar dois aspec­
tos:

• no DC verificamos que as subescalas C (Humor), D (Aceitação), E


(Maleabilidade e Adaptação) e F (Exigência) se correlacionam
significativamente com o DP, apresentando, naturalmente, valores
inferiores aos das correlações com o seu próprio domínio. Assim,
a percepção das características da criança relacionadas com o seu
humor, maleabilidade e adaptação a novas situações, aceitação e
grau de exigência estão, também, associadas à percepção do
desempenho dos pais enquanto tal. Pelo que, sempre que a nota de
cada uma daquelas subescalas aumenta ou diminui, o mesmo acon­
tece com o nível de stress associado ao DP;
• a subescala I (Vinculação), apesar de pertencer ao DP, apresenta
uma correlação maior com o DC 11 • Quer dizer que o stress associa­
do à vinculação está mais relacionado com o domínio que avalia o

"A fim de avaliarmos a fiabilidade e consistência interna dos resultados do ISP na


nossa amostra, recorremos ao cálculo do coeficiente alpha de Cronbach. Os valores
obtidos revelaram-se bons, confirmando a consistência da escala quando aplicada nesta
amostra (lSP total=0.86, cor. inter-item=0.32; DC=0.75, cor. inter-item=0.32;
DP =0.80, cor. inter-item=0.38).
"Para uma análise mais pormenorizada consultar Santos (1999).
" Este dado vem, aliás, no sentido dos resultados encontrados no estudo de vali­
dação empírica do ISP (Santos, 1997). Com efeito, no estudo factorial, a subescala
Vinculação (tal como também acontecia no estudo americano do PSI) é melhor expli­
cada pelo Factor 1 (correspondente ao DC) do que pelo Factor 2 (correspondente ao DP)
(saturação: (Fl).56 e (F2).30), tendo sido sempre mantida por Abidin no Domínio dos
Pais, com base em critérios teóricos.
157
Adopção e Parentalidade

grau de stress que as características da criança causam na figura


paterna, do que com o seu próprio domínio. Deste modo, podemos
dizer que as percepções associadas à Vinculação se relacionam,
fundamentalmente, com as características das crianças.

A fim de poder traçar o perfil dos níveis de stress percepcionados por


estas famílias, considerando as diferentes áreas da parentalidade avaliadas
pelo ISP (correspondentes às subescalas), efectuámos uma transformação
linear dos dados obtidos em valores comparáveis numa escala uniforme (1
a 5). Obtivemos, assim, o Gráfico 1.

ABCDEFGHI JLMNO

Gráfico I - Perfil de stress parental nas famílias adoptivas

Da análise do mesmo sobressaem os seguintes aspectos: os picos de


stress localizam-se nas subescalas Distracção/Hiperactividade (A - 2,54),
Autonomia (G - 2,31) (DC) e Restrições do Papel (J - 2,26) (DP); o menor
índice de stress associa-se claramente à Vinculação (I - 1,35) (DP).
Perante estes dados, e considerando o conteúdo dos itens constituintes
das respectivas subescalas (cf. Anexo), podemos concluir que as carac­
terísticas da criança associadas às áreas da gestão parental do controlo/au­
tonomia, em termos Jatos, são os aspectos que geram mais stress nos
158
Novas Formas de Família

inquiridos [exemplos'ª - item 2 (A): "é tão irrequieto que me esgota"; item
8 (A): "é fácil de convencer quando lhe negamos alguma coisa"; item 67
(G): "gosta de brincar (... ) fora de casa, mas eu evito deixá-lo/a porque
tenho medo"].
No mesmo sentido surgem as condições do desempenho da função
parental que, de algum modo, restringem as necessidades, interesses ou
actividades individuais dos pais [exemplos (J) - item 75: "gasto as horas do
meu dia a tratar das coisas para ele/a"; item 77: "sinto-me limitado por
causa das minhas responsabilidades como pai/mãe"]. Contudo, é impor­
tante notar que a relação/ligação afectiva pais-filhos é a área da função
parental que menos stress potencia [exemplos (1) - item 68: "é-lhe fácil
• compreender o que ele/a [a criança] deseja ou precisa?"; item 70: "espera­
va ter mais afecto por ele/a [a criança] e isso realmente aborrece-me"].
Se pensarmos que estamos a falar de pais adoptivos, este último aspec­
to é facilmente compreensível, mesmo esperável. Os aspectos anteriores
(picos de stress) podem surpreender (ou não) na medida em que contrariam
o mito de que estes pais não se permitem "cansar" das suas crianças ou das
suas características mais difíceis de aceitar como acontece com os pais
biológicos, pelo que, indirectamente e tal como os outros, parecem "recla­
mar" tempo e espaço para si próprios. A ser assim, este é, de facto, um
aspecto positivo quando se pensa no percurso atravessado pela relação pais­
-filhos ao longo do processo de desenvolvimento (quer individual quer gru­
pal, enquanto família).
Contudo, este aspecto também poderá apontar para algo que é referido
na literatura, ou seja, para a atribuição das maiores dificuldades da parenta­
lidade à criança, da qual, pela sua condição de adoptada, se desconhece ou
se avalia como perturbadora a influência do seu "património" prévio à
vinda para a família de adopção (quer ao nível genético quer relacional).
Perante estes dados e reflexões tornava-se interessante perceber as
semelhanças e diferenças entre pais adoptivos e a população geral, no que
se refere ao stress parental.

"Note-se, como é visível nestes exemplos, que os itens do ISP são formulados quer
em sentido directo (Likert 1, 2 ,3, 4, 5) quer em sentido invertido (Likert 5, 4, 3, 2, 1).
159
Adopção e Parentalidade

Análise comparativa com uma amostra da população geral

Decidimos então comparar os nossos dados com os obtidos na amostra


de adaptação da escala para Portugal (Santos, 1997) 19 •

Tabela 4 - Comparação entre os resultados do ISP na amostra de adaptação


e na amostra de adopção (subescalas, stress total, DP e DC)

SUBESCALAS AMOS'l'-RA AMOSTRA DE


DE ADOPÇÃO
ADAPTAÇÃO

méd,a mél)fa
D1stracção/Hiperactiv1dade 21.02 20.3
. keforç() aqssPqis 9.84 IÔ.�
DOMÍNIO
Humor 8.9 7.2 0.029
DA
CRIANÇA A..,ceiJ� lg.S'Í 14.� Q.OiQ
(DC) Maleabilidade 27.27 26.11
ll�!!..�E 17.� J7
Autonomia 18.75 18.5

Sentido de Competências 28.06 23.7 0.003

DOMfNIO
Vl!)çajp,ç!9 1�4? 9,44 O.OQ1
DOS Restrição do Papel 17.22 15.58
PAIS Q�Jl"t� �M:5 1� 14 ÕQÇ)j
(DP) Relação Marido Mulher 15.98 12.94 0.007
Í;plarnenro SroaJ 13.4$ 11.fÍ ó.ô?}
Saúde 12.16 10.35 0.039

DP 119.53 114.2 0.013

bê 119,96 99.82 <0001

Srres., TOTAL 239.47 214.02 0.005

19 A fim de podermos proceder, com mais segurança, a essa comparação, procurâ­

mos testar a comparabilidade das duas amostras (famílias de adopção e de adaptação da


escala para Portugal), através da aplicação do teste do Qui-Quadrado aos dados
160
Novas Formas de Família

Avançando com a comparação saliente-se que a tendência é a mesma.


Verifica-se, também, que na maior parte das subescalas do DC as dife­
renças não são significativas. Apenas apresentam diferenças significativas
as subescalas C (Humor) e a D (Aceitação), apresentando a amostra dos
pais adoptivos valores de stress mais baixos. Pelo contrário, no DP todas as
subescalas apresentam diferenças significativas (ao nível de p < 0,05), (com
excepção da subescala J, Restrições de Papel), obtendo a nossa amostra va­
lores inferiores de stress.
Em termos da nota global, a média obtida pela amostra de adaptação da
escala (239.47) é também significativamente superior à obtida pela amostra
de pais adoptivos (214.02), o que nos leva a concluir, numa primeira leitu­
r•a, que o stress sentido pelos pais em geral é significativamente superior ao
sentido pelos sujeitos do nosso estudo. As diferenças são também signi­
ficativas no que se refere aos valores totais dos dois domínios. Contudo, e
apesar das diferenças, é de salientar que os "perfis" seguem, nas duas
amostras, o mesmo sentido, conforme é visível no Gráfico 2.

60 ----'-"---------�----------.
50 +-----"T-...-----------
4© +-----
[:] amostra de adopção
80
li amostra de adaptação
20:
1,1)

A B C D µ F $ H I J L M N O

Gráfico 2 - Perfis dos resultados obtidos pela amostra de adaptação


e pela amostra de adopção

disponíveis em termos de caracterização das mesmas (sexo, idade, escolaridade, estado


civil e zona de residência dos inquiridos e sexo e idade das crianças). Dessa análise,
parece poder concluir-se que as amostras não diferem significativamente nas variáveis
relativas às crianças adoptadas, não acontecendo o mesmo nalgumas variáveis relativas
aos pais, (na nossa amostra há mais pais ( õ'), os nossos inquiridos são mais idosos e com
um nível de escolaridade mais elevado) o que pressupõe alguma cautela nas leituras que
a comparação sugere. É importante salientar que não temos quaisquer elementos que
nos indiquem a existência de famílias ou crianças adoptadas, nem o número de filhos
que as famílias da amostra de adaptação têm, o que poderia ser interessante para com­
pletarmos este estudo. Para melhor esclarecimento consultar Santos (1999).
161
Adopção e Parentalidade

Podemos, pois, concluir que os pais adoptivos que participaram no


estudo não se distanciam dos pais das crianças desta faixa etária em ter­
mos das áreas da parentalidade mais ou menos problemáticas, embora se
diferenciem na "quantidade" de stress assinalado. Essas diferenças emer­
gem, sobretudo, no que se refere ao DP (menos stress nas famílias adopti­
vas).
Desta comparação resulta, então, um dado que não pode ser escamotea­
do e que sugere uma reflexão atenta: os valores de stress em todas as medi­
das possíveis de obter através da aplicação do ISP são sempre inferiores na
amostra constituída pelos pais adoptivos (a única excepção é a subescala
Reforço aos Pais - DC- embora a diferença não seja significativa). Como
compreender este aspecto? Para além de todo um conjunto de variáveis
eventualmente interferentes e não controladas (particularmente a deside­
rabilidade social na amostra "adopção") pode colocar-se a hipótese de que
a situação de adopção, através das vicissitudes ligadas às dificuldades ine­
rentes à sua concretização e desenvolvimento, amplamente explicitadas no
enquadramento teórico deste capítulo, ajude a promover, por parte dos pais,
uma "negação" do stress gerado pelas tarefas inerentes ao exercício da
parentalidade, por comparação com a generalidade dos pais. A semelhança
do perfil de stress entre as duas amostras, por áreas de gestão da parentali­
dade, permite dizer que os pais adoptivos, sentindo dificuldades como toda
a gente, se recusam a valorizá-las na percepção da sua própria relação com
os filhos.
Por outro lado, uma leitura de mais pormenor, considerando as dife­
renças fundamentalmente emergentes nas subescalas do DP, bem como no
seu valor global, pode levar a pensar que essa negação é maior no que diz
respeito às dificuldades inerentes ao desempenho da própria função
parental. Assim, os pais adoptivos, depois de toda a luta travada para con­
seguirem ser pais, estarão menos sensibilizados para sentirem as suas
próprias dificuldades, enquanto pessoas, como pressão indutora de stress
relativamente às exigências do exercício da parentalidade.
Contudo, não se deve esquecer que estes resultados devem ser encara­
dos sem qualquer pretensão de generalização, pois a amostra de pais adop­
tivos é relativamente pequena e de conveniência - tendo presidido à sua
constituição um critério de oportunidade de recolha que atrás explicitámos
- para além de que as diferenças encontradas poderão ser hipoteticamente
atribuíveis às diferenças não controladas existentes entre as amostras.
162
Novas Formas de Família

Factores preditores do stress parental

Considerando as medidas possíveis de obter com o ISP como variáveis


independentes e as restantes variáveis (demográficas e associadas à
adopção) como dependentes, efectuámos regressões lineares múltiplas, a
fim de detectarmos o valor preditor destas últimas em relação à emergência
do stress parental. Pudemos, assim, identificar alguns dos seus factores
preditores.
Quanto ao estudo feito com as variáveis demográficas (idade do inquiri­
do; idade do cônjuge; média das idades do casal; sexo do inquirido; sexo da
criança e média de escolaridade dos elementos do casal) a média das idades
� do casal [ID 1- 1D2] é a única a aparecer com alguma constância como
provável preditora de todas as medidas de stress. Dizemos "provável" pois,
apesar de estes resultados não apresentarem significância estatística, no
caso do total do ISP estão muito perto de o ser (Tabela 5) e as correlações
efectuadas entre as variáveis revelaram-se moderadas e significativas20 •
Por outro lado, o limitado número de elementos da nossa amostra (34)
implica o fraco poder estatístico desta análise. Assim e em síntese, de todas
as variáveis demográficas em estudo, a idade dos elementos do casal é um
factor que merece ser avaliado em estudos posteriores, com atenção, uma
vez que, não obstante as cautelas já apresentadas, parece revelar-se como
factor potenciador do stress parental (particularmente do índice global e no
DP), no sentido de que este aumenta com o aumento da idade.

Tabela 5 - Variáveis demográficas preditoras do Índice de Stress Parental

El'l1o-padrão 28.83

Variáveis Beta 1(31) p

IOl-102 1.9'1

'º [IDI- ID2) e ISP: r = 0.38, p = 0.028; [IDI- ID2] e DP: r = 0.38, p = 0.034.
163
Adopção e Parentalidade

No que se refere às variáveis associadas à adopção o Tempo que mediou


entre a vinda da criança e a união do casal e a Idade da criança quando
veio viver para casa do casal emergem como preditoras de todas as medi­
das do ISP (tabelas 8, 9 e 10), com valores de predição da variância bas­
tante relevantes, respectivamente ISP 45%, DP 44% e DC 37% (mantendo,
evidentemente, as outras varáveis constantes).

Tabela 6 - Variáveis preditoras do Índice de Stress Parental

Variáveis Beta T (28) p

T-empo<C!lue mediou eime a vinda da ctiança e a uniã.o d:o 039 2.8'1 o.aos•
casal

Idade da criança quando veio viver para casa do casal - 0.54 -3.97 0.0004*

Tempo,que mediou entre o pedido e a entrega.da criança R21 0.13

Tabela 7 - Variáveis preditoras do stress emergente no DP

°§t'flJ•Pl!!l!'ÍiP p, 9.9�
Variáveis Beta T (30) p

1'.empo que mediou a vinda da erianga ea união.do-casal 0.31 2.29

Idade da criança quando veio vi ver para casa do casal - o. 63 - 4.57 0.0007*
164
Novas Formas de Família

Tabela 8- Variáveis preditoras do stress emergente no DC

F {4�&) = 4.072 p< 0.01 Erro-pi:MfE�o 14.§�


Variáveis Beta T (28) P

Tempo que mediou entre a vinda da e,-rlança e a união do MO 2.61 O.Ol*


casal

Idade da criança quando veio vi ver para casa do casal -0.34 -2.26 0.03*
'
Tempo que mediou entre o pedido e a entrega da criança 0.24 l.S7 0.1,2

Quando tem dúvidas a quem recorre... -0.19 - 1.27 0.21

Em relação à variável Idade da criança quando veio viver para casa do


casal é curioso registar que o valor de P é sempre negativo, isto é, a
diminuição da idade da criança, aquando da sua vinda para a família adop­
tiva, prediz o aumento do stress parental em todas as medidas que consi­
derámos, acontecendo exactamente o oposto com o período de Tempo que
medeia entre a união do casal e a vinda da criança (o seu aumento prediz
o aumento do stress).

Estes dados fazem algum sentido se recordarmos que na literatura é


referido que, durante o período que medeia entre o conhecimento da impos­
sibilidade de gerar uma criança e a vinda da criança adaptada, se desen­
volve um processo no qual são vividos grandes momentos de intensidade
emocional, associado a elevados níveis de stress. Será mesmo o período em
que o casal vivencia um maior stress. É durante este período, que dura em
média cerca de dez anos, que todo o processo de adopção se desenvolve.
Uma vez que com o prolongamento desse período o nível de stress associa­
do às características da criança (DC) aumenta, podemos colocar a hipótese
de ocorrer, particularmente, um aumento de dificuldades na "adaptação" a
uma criança à medida que o tempo da etapa de "casal sem filhos" aumen­
ta, o que faz sentido em temos teóricos.
165
Adopção e Parentalidade

A idade da criança quando chega ao casal é também muito importante.


Se, por um lado, os casais pretendem crianças muito novas, por outro, não
é menos verdade que, com uma criança mais velha, o processo de adap­
tação mútua poderá ser construído gradualmente, em conjunto, minimizan­
do-se os níveis de stress que esta fase tende a causar na família adoptiva.
Se tivermos ainda em conta que os primeiros anos de vida de uma criança
constituem um período em que o stress associado à função parental é espe­
cialmente difícil, poderemos aí encontrar, também, uma outra justificação
para este dado. Finalmente, este aspecto pode associar-se, ainda que indi­
rectamente, à questão da revelação da adopção, eventualmente "pendente"
nas crianças mais pequenas, enquanto que nas mais velhas não se apresen­
ta de forma tão problemática, pois, com o aumento da idade do adoptado,
ela terá que ser inevitavelmente assumida desde a sua chegada à nova
família.
Não obstante, como normalmente acontece com a discussão de dados,
esta leitura não pode ser entendida de modo linear, levando-nos a pre­
conizar, por hipótese e por absurdo, que a entrega das crianças para
adopção deva ocorrer quando estas apresentam idades mais avançadas, a
fim de reduzir o stress parental e o risco para o desenvolvimento da criança
que lhe é inerente. De facto, outra leitura possível prende-se com as con­
clusões retiradas da comparação entre os resultados do ISP na amostra de
adopção e os da amostra de adaptação da escala para o nosso país. Nesse
contexto, poderíamos pensar, como é também reflectido na literatura, que
quanto mais nova é a criança, mais o estabelecimento e vicissitudes da
relação pais-filhos se aproxima do que acontece com as famílias não-adop­
tivas (as quais, como vimos, sentem mais stress que os nossos sujeitos). Por
outro lado, atendendo à globalidade dos dados, o aumento do tempo de
espera pela criança (período que decorre entre a união do casal e a chega­
da a casa de uma criança adoptada), que emerge como preditor de stress,
pode ser entendido como estando eventualmente associado ao aumento da
idade do casal, pelo que já não significaria um aproximar da população
geral, mas, pelo contrário, um afastamento. A ser assim, o significado do
aumento do stress teria que ser lido de forma oposta ao do seu aumento cor­
relativo à diminuição da idade da criança aquando da sua entrega aos pais
adoptivos.
Seja como for, fica clara a complexidade da situação. Para além disso,
o nosso estudo mostra, inequivocamente, que a importância destes dois fac­
tores temporais - Tempo que mediou entre a união do casal e a vinda da
166
Novas Formas de Família

criança e Idade da criança quando veio viver com o casal - não se desfaz
com o tempo, pois a criança existe, está na família pelo menos há três anos
e a sua influência fez-se sentir a todos os níveis do stress parental.

Estudo da relação entre dinâmica familiar e stress parental

À partida, nem os Recursos Familiares nem a Satisfação Familiar se


correlacionam com o stress parental total (para um nível de significância
< 0.05). Numa análise mais pormenorizada verifica-se que, em relação às
subescalas, apenas a O (Saúde) e M (Relação Marido-Mulher), estão rela­
c;onadas com os Recursos e a Satisfação Familiar, ainda que em sentido
inverso, como seria esperável21 - quanto mais stress, no que se refere à
saúde do inquirido e à relação de casal, menor grau de recursos e satisfação
familiares.
Em relação às dimensões dos Recursos e da Satisfação é de referir que
o ISP total só está relacionado com a dimensão Coesão da escala Satisfação
Familiar (r = -0.37; p = 0.03), o que indica que quanto menos satisfeitos
com a coesão familiar estão os nossos inquiridos maior é o stress parental
ou ao inverso.
Também o DP e o Entendimento apresentam uma correlação em senti­
do inverso (-0,385; p=0.03). Isto significa que o Entendimento Familiar
baixo se constitui numa fonte de stress que se reflecte no DP e vice-versa:
o elevado stress neste domínio pode converter-se em motivo de desen­
tendimento familiar. Como o anterior, também este resultado seria pre­
visível. De facto, o Entendimento diz respeito à capacidade sentida para
cumprir tarefas; logo, quando a percepção desta capacidade diminui,
aumenta o stress sentido no DP. Finalmente, o Entendimento varia também
inversamente com o relacionamento Marido-Mulher (M) e a Depressão (L).
Aparentemente, desta análise pouco ou nada de relevante emerge para o
tema que nos,ocupa. Cremos, contudo, que há dois aspectos que merecem
ser sublinhados: (1) a importância do Entendimento Familiar nestas
famílias. Fica claro como esta é a dimensão dos recursos familiares que,
embora de modo esperável, mais interfere com as diferentes áreas do stress
parental; (2) as variáveis da dinâmica familiar, e particularmente o

" Respectivamente r=-0.36, p = .0.03; r =-0.42; p=0.01.


167
Adopção e Parentalidade

Entendimento Familiar, só se relacionam com as subescalas do DP, ou seja,


não afectam os índices de stress associados às características da criança.
O valor deste sublinhado torna-se mais claro se recordarmos que estes
pais percepcionam as suas famílias como tendo, precisamente, baixo nível
de Entendimento Familiar (pese embora as necessárias cautelas com que
estes valores devem ser lidos).

Concluindo... Das Ideias às Acções

Ao nível da revisão da literatura, e aquando do estudo do ciclo vital


neste ..tipo de famílias, apercebemo-nos que o seu desenvolvimento passa
pelas mesmas fases que as famílias biológicas. ·No entanto, apresentam
algumas tarefas acrescidas que as tornam diferentes e específicas. É na
capacidade de aceitar essas diferenças e de ultrapassar as suas tarefas que
reside o sucesso da família adoptiva.

As famílias de adopção que estudámos são, na sua generalidade, per­


tencentes à classe média, portanto com um nível sócio-cultural médio,
condições estas que se enquadram nos requisitos exigidos para a adopção
de uma criança. O nível etário do casal situa-se entre os 32 e os 57 anos de
idade (média 44 �; 46 a'), o que também está de acordo com o estabelecido
pela lei portuguesa. Na nossa amostra, maioritariamente recolhida na zona
centro do país, nenhum dos elementos do casal está desempregado.
Por seu lado, as crianças adoptadas são em maior número raparigas e a
sua idade quando chegam ao casal é de cerca de três anos, portanto, segun­
do a tipologia apresentada por Rosenberg (1992), é o início da parentali­
dade em simultâneo com o início ·da segunda fase do ciclo vital. Relati­
vamente ao casal é um período de aprendizagem; para a criança esta idade
é considerada a "idade mágica". Crianças e pais tendem a iniciar ou a
reforçar a relação de confiança, aprendendo a lidar com as novas respon­
sabilidades surgidas.
Em relação ao sexo da criança também estes dados estão de acordo com
a literatura. Assim, apesar de existirem diferentes teorias citadas por
Hoksbergen ( 1996) e por Tizard (1977) para que a escolha do sexo da crian­
ça recaia sobre a rapariga, parece-nos que devemos acrescentar uma outra,
que faz referência ao facto de o casal, ao preferir uma rapariga, poder estar,
de algum modo, a acautelar a sua velhice. Quer dizer que, eventualmente,
168
Novas Formas de Família

os casais adoptivos verão nas raparigas uma maior possibilidade de, um dia
mais tarde, elas virem a cuidar deles (Moe, 1998).
Em relação à idade da criança a adaptar, os casais preferem crianças
mais novas. Quando o casal decide adoptar, procura viver a experiência da
parentalidade tão completa quanto possível, preferindo, naturalmente, um
bebé pequenino. Por outro lado, é melhor para o desenvolvimento e equi­
líbrio afectivo da criança, e da própria família, que a sua inserção na família
que a vai adaptar seja efectuada o mais precocemente possível (Melina,
1998). Curiosamente, ou talvez não, no nosso estudo pudemos verificar
que, no entanto, quanto mais novas são as crianças adaptadas, maior é o
• stress sentido nas famílias adoptivas, aspecto cuja complexidade interpre­
tativa oportunamente discutimos.
Ainda no que se refere às características da amostra, e para que pos­
samos perceber alguns dos resultados obtidos no trabalho empírico, é
importante situá-la em termos da fase do seu ciclo vital. A média de idades
das crianças em estudo é de oito anos. Esta idade corresponde à etapa,
segundo o faseamento estudado e proposto por Rosenberg (1992), FamíZia
com filhos adoptivos em idade escolar (6-JJ anos). Este aspecto ajuda a
perceber, especificamente, o perfil de stress observado e onde a distrac­
ção/hiperactividade, a autonomia (ou seja, o controlo) e as restrições asso­
ciadas ao desempenho do papel parental, emergem como áreas relevantes.
Faz ainda sentido recordar que não encontrámos diferenças entre o perfil de
stress destas famílias e duma amostra da população em geral (amostra de
adaptação do ISP). Sabendo nós, também, que essas famílias se encontram
numa etapa semelhante do seu ciclo de vida e que o ISP foi intencional­
mente adaptado em Portugal para a população com filhos em idade escolar
(Santos, 1997), o significado da "escola" aparece, portanto, como uma re­
gularidade das famílias (adoptivas e não adoptivas) nesta etapa do ciclo de
vida familiar.
Com efeito, esta etapa caracteriza-se fundamentalmente pela entrada da
criança para a escola e pela expansão do seu mundo que deixa de estar tão
limitado à família. Por outro lado, nesta idade as crianças atingem um
desenvolvimento cognitivo que lhes permite um nível de pensamento mais
lógico e logo o estabelecimento de relações de causa e efeito. As crianças
já parecem entender determinados conceitos como concepção, nascimento
ou adopção, pelo que os pais começam a sentir-se inclinados para lhes re­
velar o seu estatuto de adaptadas ou acabarem de o fazer. Seja como for, a
revelação é, nesta etapa, uma questão activamente presente. É também
169
Adopção e Parentalidade

nesta altura que as crianças mais fantasiam sobre a família ideal ou os pais
perfeitos, sobre os quais constróem as suas próprias histórias (Van Gulden
e Bartels-Rabb, 1995).
Em relação às variáveis familiares, e no que se refere à Satisfação
Familiar, estes pais sentem-se muito satisfeitos com a forte ligação emo­
cional entre os seus elementos (coesão) que, no entanto, sentem como
respeitadora de limites, espaços e tempos. Por outro lado, sentem-se mais
insatisfeitos com o nível de adaptabilidade das suas famílias. Curiosa­
mente, poderemos identificar aqui uma das primeiras conclusões deste
estudo. Para estas famílias, a satisfação com a sua capacidade para mudar
a soo estrutura de poder ou papéis em resposta a situações de stress é
reduzida. Relembremos que a adaptabilidade mede atributos como o con­
trolo, a assertividade e a disciplina. Quererá isto significar que estes pais
são pouco disciplinadores ou menos exigentes em relação às crianças adop­
tadas e, hipoteticamente, por essa razão, apresentam níveis de stress mais
baixos que os da generalidade da população portuguesa? A afirmação feita
por Melina (1998, 19), segundo a qual "Sentem-se tão satisfeitos e gratos
por terem uma criança que, apesar de nutrirem por eles um grande afecto,
sentem muita dificuldade em exercerem a sua autoridade e disciplina",
parece ser uma interpretação possível para este dado. Este aspecto ajudaria,
então, a perceber os "picos" de stress nas subescalas do domínio da criança
associadas à gestão do controlo/autonomia já anteriormente focados, com­
plementando, como singularidade destas famílias, a regularidade ligada à
idade da criança e à sua escolarização.
Em relação a este grupo de variáveis, verificámos, também, que estas
famílias têm uma boa percepção do orgulho familiar, onde são medidos
atributos como o optimismo, a lealdade e a confiança. Depois da entrega da
criança, o casal sente que o seu esforço foi compensado e, por isso, o sen­
timento de gratificação e de optimismo renasce no seio da família (Raynor,
1980). Recordemos que o orgulho é uma das dimensões da escala dos
recursos familiares que, em termos globais, avalia os recursos internos do
sistema familiar para responder a situações que envolvam algum stress.
Coerentemente, nesta investigação verificámos como os inquiridos recor­
rem, frequentemente, aos seus recursos internos para a resolução de pro­
blemas, nomeadamente aqueles que dizem respeito à criança adoptada
(quando têm dúvidas ou problemas procuram, na sua grande maioria,
resolvê-los sem recorrer à ajuda de outros quer da família quer do exte­
rior).
170
Novas Formas de Família

Sabe-se como é importante que, quando os casais se estão a preparar


para a adopção, tenham tempo e disponibilidade para perceberem as suas
verdadeiras motivações. Os resultados anteriores fazem-nos recordar que a
literatura indica que os factores que influenciam o sucesso ou não da
adopção, prendem-se, sobretudo, com o modo como é preparado esse
processo e com a capacidade para lidar com os desafios inerentes ao tipo de
relacionamentos construídos por via da adopção. Naturalmente, essa prepa­
ração compreende um processo de aprendizagem e de maturação do casal,
em ordem a desenvolver as suas competências para ultrapassar as dificul­
dades que vão surgindo e, logo, a activação e optimização dos seus recur-
• sos internos.
A outra dimensão, entendimento, que diz respeito à percepção do senti­
mento de capacidade da família para lidar com problemas, apresenta os va­
lores mais baixos ao nível das variáveis que integram este grupo. Por para­
doxal que possa parecer relativamente às afirmações anteriores, os pais
adoptivos do estudo percepcionam as respectivas famílias como tendo difi­
culdade em lidar com problemas e no cumprimento de determinadas tare­
fas. Neste contexto, será opo11uno recordar como este aspecto, na análise da
relação com o stress parental, se liga, exclusivamente, ao domínio dos pais,
cujas subescalas avaliam "características pessoais da figura parental e va­
riáveis do contexto familiar que influenciam a habilidade para responder às
tarefas e exigências da parentalidade" (Santos, 1996, 140). Isto implica que
numa possível intervenção, com potenciais pais adoptivos ou mesmo com
famílias já com a adopção em curso, se devem activar as suas competências
no sentido de aprenderem a lidar com os seus problemas, até porque, recor­
damos de novo, recorrem pouco ao exterior. Por outro lado, não nos
esqueçamos que estamos a lidar com famílias com determinadas especifi­
cidades em termos do seu ciclo vital, pois é nesta fase que os pais se sen­
tem mais inclinados para revelar à criança o estatuto de adoptada, o que
constitui um problema para o casal adoptivo.
Neste estudo, nem os recursos nem a satisfação familiar, em termos de
resultado total, aparecem associadas ao índice de stress parental global
(embora se associem entre si, no sentido em que a satisfação é tanto mais
elevada quanto maiores forem os recursos e vice-versa). São, assim, em sín­
tese, famílias em que o stress parental não se associa à forma como são
avaliadas, globalmente, a satisfação e os recursos familiares. Contudo, estes
sujeitos percepcionam algumas dificuldades em lidar com os problemas e
gerir as dificuldades, bem como um baixo nível de satisfação em relação à
171
Adopção e Parentalidade

capacidade da fanu1ia para alterar as estruturas e regras relacionais em


resposta a situações de stress (adaptabilidade) (Olson et al., 1983).

Sabemos que o processo de integração e de desenvolvimento das


famílias adoptivas depende de vários factores: a idade em que a criança é
adoptada e a sua herança genética e experiência de vida; o tempo que o
casal espera pela criança; a idade dos pais adoptantes (Hoksbergen, 1996).
Também neste estudo, variáveis como Idade da criança quando veio viver
para casa do casal e Tempo que mediou entre a união do casal e a vinda
da criança revelaram-se como duas das mais importantes em termos de
influância sobre os níveis de stress parental e, particularmente, em termos
da sua predição.
Na amostra em estudo, o período que medeia entre a união do casal e a
vinda da criança é em média de doze anos. Recordemos que Carter,
McGoldrick e colaboradores (1989) consideram que dez anos é o tempo
médio, com tendência a aumentar, entre a data em que o casal se une e
decide ter filhos e a chegada da criança adoptada. Pudemos, também, cons­
tatar que quanto maior é esse período maior é o stress ligado à parentali­
dade. Segundo Rosenberg (1992), o processo de tomada de decisão de
adoptar uma criança é quase sempre longo e doloroso. No mínimo, é espe­
rado que o relacionamento do casal seja sujeito a elevados níveis de stress.
Quando efectuado o estudo da variável Tempo que medeia entre a união
do casal e a chegada da criança, verificámos que esta é, a par da idade do
sujeito, a variável que apresenta um maior número de correlações com ou­
tras (Santos, 1999). Dentre essas, destacamos a associação existente com o
Entendimento e os Recursos Familiares. Relembrando o que cada uma
destas variáveis mede, poderemos retirar outra conclusão: sabendo que os
recursos internos familiares e a capacidade de lidar com dificuldades apre­
sentam uma relação directa e positiva com o tempo que medeia entre a
união do casal e a vinda da criança (aumenta um, aumenta o outro e vice­
-versa), pode inferir-se que, apesar de tudo, ao longo deste período o
casal/família tende a fortalecer-se internamente e ao seu relacionamento.
Outra das variáveis associadas à adopção, e bastante relevante, é, como
se viu, a Idade da criança quando chega a casa do casal: há grande pro­
babilidade de se verificar um menor nível de stress quando a criança adop­
tada é mais velha. Foi este dado que nos levou a pensar que, quando o casal
adopta uma criança mais velha, algumas das suas principais fontes de stress
poderão ser minimizadas, como por exemplo o acto da revelação. É quase
172
Novas Formas de Família

óbvio que uma criança mais velha tem um entendimento completamente


diferente sobre esta questão e um maior conhecimento da sua situação, o
que facilita que este problema assuma menor dimensão para os pais adop­
tivos. Com efeito, a maturidade e capacidade de compreensão da criança é,
segundo Brodzinsky e colaboradores ( 1984), um importante factor no
"sucesso" da revelação. Por outro lado, quanto mais nova for a criança,
mais estes pais serão como "todos os outros"; logo percepcionarão maior
nível de stress parental. Finalmente, considerando a articulação destas va­
riáveis temporais, como é sugerido pela regressão efectuada, podemos con­
siderar que o stress parental tem grande probabilidade de aumentar (entre
,.37% e 45% conforme as diferentes medidas do ISP) quando, em simultâ-
neo, a criança é mais nova e o tempo de espera é mais longo, o que nos pode
levar a pensar nas dificuldades dos "pais" idosos com filhos muito pe­
quenos22 , isto para além das especificidades da adopção. E de novo nos con­
frontamos com as regularidades destas famílias, marcadas por algumas
(importantes) singularidades.

Ainda dentro deste grupo de variáveis, outro dado importante é o facto


de a família tentar a resolução das dificuldades em relação à criança adop­
tada sem recorrer ao exterior. Embora existam referências teóricas no sen­
tido de indicar que é crescente o número de famílias que recorrem à ajuda
de terapeutas, na nossa amostra isso ainda não se verifica. Também se
observou que a ajuda dos amigos e da família nuclear constitui o principal
suporte destes sujeitos e que o apoio da família alargada nunca é solicitado.
Tudo isto faz pensar, de novo, no corte na herança genealógica pressupos­
to pela adopção e nem sempre bem aceite pela família alargada. Daí ser
esperável que o casal, ao antever essas dificuldades, não recorra àquele
núcleo familiar.

22 Esta leitura pode, aliás, ser indirectamente confirmada, uma vez que os nossos

resultados mostram que o nível de stress emergente no DP, tal como o stress total, apre­
senta uma associação positiva, com significância estatística, relativamente à idade do
respondente, o mesmo acontecendo com a média de idades do casal (aqui também no
que se refere ao DC). Ou seja, quanto mais idosos são os pais, maior é o stress. Por
outro lado, também pudemos verificar que a relação entre a idade (do inquirido) e o
tempo que medeia entre a união do casal e a vinda da criança, é, ela própria, forte, po­
sitiva e significativa.
173
Adopção e Parentalidade

Sobre esta variável fizemos também o cruzamento com o nível de esco­


laridade do casal adoptante, o que forneceu um resultado um pouco inespe­
rado. Segundo Brodzinsky (1990), o número crescente de famílias adoptivas
que recorrem a serviços especializados à procura de ajuda não significa um
crescimento dos problemas, mas uma outra maneira de encarar a adopção e
as suas especificidades. Contudo, na nossa amostra, quanto mais elevado é
o nível de escolaridade, mais a família tenta a resolução dos seus problemas
sem recorrer ao exterior (Santos, 1999). Será que sentem competências para
o fazer? Ou, pelo contrário, será que este dado expressa, da sua parte, uma
posição eventualmente mais defensiva? É uma dúvida que fica.
�Acerca de a criança dever ter, ou não, conhecimento do seu estatuto de
adoptada, a resposta positiva é unânime, o que não levanta qualquer ques­
tão. Também sobre qual a melhor idade para se revelar à criança esse
estatuto, os resultados vão ao encontro dos elementos mais frequentemente
encontrados na literatura (ainda que aí existam opiniões divergentes), uma
vez que a idade proposta pelos nossos sujeitos corresponde à entrada da
criança na escola.

Para abordarmos a questão do stress neste tipo de famílias utilizámos,


como se viu, o Índice de Stress Parental, versão portuguesa do Parenting
Stress lndex (Santos, 1990; 1992; 1997). Da aplicação do ISP destaca-se de
imediato que, contrariamente às nossas expectativas iniciais, as famílias
participantes no estudo percepcionam um menor stress global relativa­
mente ao grupo de famílias que constituem a amostra portuguesa da adap­
tação da escala. Contudo, em ambos os casos, o stress é mais sentido no
domínio da criança do que no domínio dos pais (no caso destes pais adop­
tivos a diferença é mesmo significativa). Abstemo-nos de alargar, aqui, as
reflexões sobre estes achados, uma vez que já foram oportunamente apre­
sentadas.
Em síntese, como é gerida a parentalidade nas famílias de adopção, qual
o seu perfil, quais os focos de stress eram questões nucleares neste estudo.
Os resultados dão-nos indicadores que permitem afirmar que estamos pe­
rante um grupo de pais com um perfil e funcionamento idêntico aos não
adoptivos. Contudo, as suas especificidades também emergiram, nomeada­
mente através do nível mais baixo de stress parental, bem como da relevân­
cia das duas variáveis temporais preditoras do stress na vivência da própria
situação de adopção.
174
Novas Formas de Família

Perante tudo isto parece claro que, em futuros estudos, há variáveis que
poderão/deverão ser consideradas, tais como o tempo que medeia entre a
união do casal e a tomada de decisão de adaptar uma criança ou o período
que medeia entre a chegada da criança e a decisão judicial ou, ainda, o
número de anos de contacto entre a família e a criança.
Também as questões relacionadas com o diagnóstico de infertilidade do
casal ou associadas à resposta das famílias de origem se poderão revelar
importantes. Todavia e, apesar de todas as limitações desta investigação, é
de concluir que a tomada de decisão do casal de adoptar uma criança de­
verá ser tão célere quanto possível. Do mesmo modo, o período que medeia
entre essa tomada de decisão e a chegada da criança deverá ser encurtado
• também o mais possível, já que se constitui como factor determinante para
os níveis de stress percepcionados pelos pais.
Por outro lado, os agentes envolvidos neste processo (desde candidatos
à adopção aos técnicos e serviços) devem ser sensibilizados para conside­
rar as vantagens que, em certos casos e condições, a adopção de uma
criança mais velha implica. Todo o tempo e qualquer idade são bons para
amar e ser amado.
É claro que o modo como é preparado todo o processo de adopção é uma
questão muito importante e a ter em conta. Os serviços devem estar
preparados para trabalharem, nesta fase, com os casais e porventura com o
seu círculo de relações. Finalmente, com as famílias adoptivas deverá ser
desenvolvido um trabalho em ordem a flexibilizar a sua capacidade para
enfrentar os problemas e as diversas mudanças que vão ocorrendo ao longo
do seu percurso.

No seu início, a adopção pode trazer grandes problemas ou dificul­


dades para os casais adaptantes ou para as crianças adaptadas, mas, na
maior parte das vezes, e como pudemos verificar ao longo deste trabalho,
poder-se-á tornar uma benção para todos os que nela intervêm, desde que
encarada não como uma segunda escolha, mas como a solução mais ade­
quada.
À laia de nota final não queremos deixar de voltar a salientar determi­
nados aspectos que gostaríamos que servissem de reflexão para quem
vivencia, de uma maneira ou de outra, as questões da adopção.
Recordemos pois que sendo a adopção um processo irrevogável, que se
pretende que seja o mais semelhante possível à vinculação estabelecida
175
Adopção e Parentalidade

pelos laços biológicos e tendo Portugal uma lei da adopção das mais
avançadas da Europa, ainda subsistem muitas dificuldades, o que torna
estes processos morosos e difíceis. Esta morosidade parece ser, de algum
modo, responsável por algum stress e dificuldades sentidas pelos pais
adoptivos no exercício da sua parentalidade, pelo que deveriam ser desen­
volvidas estratégias que tornassem aquele período o mais curto possível.
Não esqueçamos que pais e crianças experienciam um constante sofrimen­
to...
Outro aspecto a assinalar prende-se com o facto de que, embora com as
suas especificidades e diferenças, o desenvolvimento do ciclo vital da
famíli� adoptiva é idêntico ao das famílias biológicas. Na adopção, a
parentalidade desenrola-se do mesmo modo que numa família não adopti­
va, apesar das questões específicas do seu desenvolvimento. Questões
como a criação do sentimento de pertença, o exercício da autoridade ou o
acto da revelação são tarefas acrescidas nestas famílias. O processo de
adaptação mútua é fundamental para o seu sucesso.
Também através deste estudo empírico, pudemos concluir que o stress
implicado pela função parental na adopção segue, em paralelo, os resulta­
dos obtidos pelos pais não adoptivos. Em relação ao ISP, tanto quanto é do
nosso conhecimento, nunca foi aplicado anteriormente a famílias com estas
características. No entanto, os resultados deixam-nos antever que a sua uti­
lização poderá ser muito útil para o estudo da parentalidade nas famílias de
adopção, podendo ser utilizado como um meio para detectar e prevenir pos­
síveis disfuncionalidades nesta nova forma de família.

Quanto a nós aprendemos que o sucesso de uma família adoptiva


depende de vários factores, mas depende sobretudo do amor e respeito
mútuo dos seus elementos. Estas famílias sentem-se satisfeitas com a sua
coesão e orgulhosas do que são. Esses sentimentos dão a cada um dos seus
intervenientes força e capacidade para abraçarem as suas dificuldades.
Como afirmámos anteriormente, a adopção não é certa ou errada. É.
Simplesmente ...
176
Novas Formas de Família

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Adopção e Parental idade

Anexo
ÍNDIC E DE STRESS PARENTAL (ISP)*
DOMÍNIO DA CRIANÇA

A - Distracção /Hiperacrividade

1. Quando ele/a quer alguma coisa não desiste até conseguir.


2. É tão irrequieto/a que me esgota.
3. Parece descontrolado/a e distrai-se por tudo e por nada.
4 . .Comparando-o/a com outras crianças, acho que tem mais dificuldade do que
elas em se concentrar.
5. Entretém-se sozinho/a com os seus brinquedos.
6. Afasta-se de nós sem que saibamos para onde, mais do que eu esperava.
7. É mais mexido/a do que eu esperava que fosse.
8. É fácil de convencer quando lhe negamos qualquer coisa.

B - Reforço aos Pais

9. Raramente faz coisas que me deixem contente.


10. Em geral sinto que gosta de mim.
11. Por vezes sinto que não gosta de mim e não gosta de estar comigo.
12. Ri-se para mim menos do que eu esperava.
13. Quando trato das coisas para ele/a, tenho a sensação de que o meu esforço
não é muito apreciado.
14. Qual das frases descreve melhor a criança? (quase sempre /... / quase nunca
- gosta de conversar comigo)

C-Humor

15. Implica ou chora? (muito menos do que eu esperava/.. ./constantemente)


16. Parece implicar e/ou chorar mais do que a maior parte das crianças?
17. Geralmente acorda de mau humor.
18. Está muitas vezes mal disposto/a e descontrola-se com facilidade.

* Em todos os itens alterados em função da especificidade de amostra (famílias de


adopção) apresenta-se, entre parêntesis rectos, a formulação original de Santos (1990).
182
Novas Formas de Família

D - Aceitação

19. É mais desobediente do que as outras crianças.


20. Tem um aspecto físico um pouco diferente do que eu esperava e isso, às
vezes, custa-me.
21. Nalgumas coisas parece ter esquecido o que aprendeu e comporta-se como
uma criança mais pequena.
22. Parece ter mais dificuldade em aprender do que a maior parte das crianças.
23. Parece ser menos sorridente do que a maior parte das crianças.
• 24. Faz coisas que me aborrecem muito.
25. Não é tão capaz e desembaraçado/a como eu esperava.
26. Não gosta muito que lhe façam festas, dêem beijos e abraços.

E - Maleabilidade

31. Sempre que há alterações ou mudanças de horário ou mudanças no lugar das


coisas, ele/a tem bastante dificuldade em se habituar.
32. Reage intensamente quando acontece alguma coisa que lhe desagrada.
33. Deixá-lo/a ao cuidado de outra pessoa, mesmo que conhecida, é um problema.
34. Descontrola-se com a mais pequena coisa.
35. Repara em tudo e assusta-se com facilidade.
36. Quando era pequeno/a foi difícil estabelecer horários para comer e dormir.
37. Geralmente evita um brinquedo novo durante algum tempo, antes de
começar a brincar com ele.
38. É difícil habituar-se a coisas ou situações novas e leva muito tempo a con­
segui-lo.
39. Não fica à vontade quando se encontra com estranhos com quem, por qual­
quer circunstância, tem que falar.
40. Parece não gostar de conviver com outras crianças.
41. Quando está descontrolado/a: (é fácil/... /difícil de acalmar/nada consegue
acalmá-lo/a).
42. Levá-lo/a a fazer alguma coisa ou a interromper qualquer coisa: (é muito
mais difícil/.../é muito mais fácil do que esperava).
183
Adopção e Parental idade

F - Exigência

43. Pense cuidadosamente e conte o número de coisas que ele/a faz e que o/a
aboITecem (por exemplo, fazer ronha... (1-3/.. ./IO ou mais).
44. Faz coisas que eu não suporto.
45. Tem tido mais problemas de saúde do que eu esperava.
46. À medida que vai crescendo e se vai tornando mais independente, sinto cada
vez mais receio de que ele/a possa meter-se em complicações ou aleijar-se.
47. Ele/a saiu-me um problema mais complicado do que eu esperava.
48. Parece mais difícil de cuidar do que a maior parte das crianças.
49. Anda sempre agaITado a mim.
50. Exige mais de mim do que as crianças costumam exigir dos pais.

G -Autonomia

60. Desde cedo que insiste em vestir-se sozinho/a.


61. Reclama que quer tomar banho sozinho/a.
62. Nunca me preocupei cm ensiná-lo/a a vestir-se e a tomar banho sozinho/a.
63. Quer comer sozinho/a mas eu prefiro ajudá-lo/a por ser mais rápido dar-lhe
o comer à boca.
64. Não gosta de se sentir vigiado/a nas suas brincadeiras.
65. Em casa, acho importante que ele/a se habitue a ajudar em tarefas simples.
66. Nunca achei importante que ele/a convivesse com outras crianças.
67. Gosta de brincar com outras crianças fora de casa, mas eu evito deixá-lo/a
porque tenho medo.
184
Novas Formas de Família

DOMÍNIO DOS PAIS

H - Sentido de Competências

27. Depois de o adoptar [Quando voltei da maternidade] tive dúvidas acerca da


minha capacidade para cuidar dele/a.
28. Criar um filho é mais difícil do que julgava.
29. Quando estávamos à espera desta criança tivemos muitos problemas.
30. Quando estou a cuidar dele/a ou de coisas para ele/a sinto-me à vontade e
realizado/a como pessoa.
51. Não consigo tomar decisões sem ajuda
52. Tenho tido mais problemas em criar os filhos do que eu esperava.
53. Tenho prazer em ser pai/mãe.
54. A maior parte das vezes sinto que sou bem sucedido/a quando procuro levá­
-lo/a a fazer (ou não fazer) alguma coisa.
55. Percebo que tenho mais dificuldades em cuidar desta criança desde o nasci-
mento do meu último filho/a.
56. Muitas vezes sinto que me desenvencilho mal das coisas que vão acontecendo.
57. Tenho que me controlar para não lhe estar sempre a bater (e/ou a castigar).
58. Quando penso em mim como pai/mãe acho que: (sei lidar/.../não sou capaz
de lidar bem com as coisas).
59. Sinto que: (sou um óptimo pai/mãe/... /não sou lá muito bom pai/mãe).

I - Vinculação

68. É-lhe fácil compreender o que ele/a deseja ou precisa? (muito fácil/... /geral­
mente não consigo descobrir... )
69. Os pais demoram muito tempo até conseguirem sentir verdadeiramente amor
pelos filhos
70. Esperava ter mais afecto por ele/a do que realmente tenho e isso aborrece-me.
71. Às vezes faz coisas que me aborrecem, só por maldade.
72. Quando eu era mais novo/a não gostava muito de crianças.
73. Reconheceu-me desde muito cedo e teve uma preferência especial por mim.
74. Neste momento acho que tenho filhos a mais.
185
Adopção e Parentalidade

J - Restrições do Papel

75. Gasto as horas do meu dia a tratar das coisas para ele/a.
76. Para poder responder às suas necessidades acabo por me privar de ter a
minha própria vida.
77. Sinto-me limitado/a por causa das minhas responsabilidades como pai/mãe.
78. Sinto muitas vezes que as necessidades dele/a controlam a minha vida.
79. Desde que ele/a chegou a nossa casa [Desde que esta criança nasceu] nunca
�ais consegui fazer coisas novas e diferentes.
80. Desde que ele/a chegou a nossa casa [Desde que esta criança nasceu] sinto
que não posso fazer as coisas de que gosto.
81. Em casa é difícil encontrar um espaço só para mim.

L - Depressão

82. Quando penso no tipo de pai/mãe que sou sinto-me culpado/a e mal comigo
mesmo/a.
83. Acontece-me ir comprar roupa para mim e ficar descontente.
84. Quando ele/a se porta mal ou faz birra sinto-me responsável, é como se eu
não estivesse a agir correctamente.
85. Quando ele/a faz uma coisa errada, sinto realmente que a culpa é minha.
86. Sinto-me muitas vezes culpado com os sentimentos que tenho em relação a
ele/a.
87. Há bastantes coisas na minha vida que me aborrecem.
88. A seguir à chegada desta criança [A seguir ao nascimento] senti-me mais
triste e deprimido/a do que esperava.
89. Quando me zango com ele/a acabo sempre por me sentir culpado/a e isso
aborrece-me.
90. Depois da chegada [Depois do nascimento] desta criança senti-me, durante
algum tempo, mais triste e deprimido/a do que esperava.
186
Novas Formas de Família

M - Relação Marido - Mulher

91. Depois da chegada desta criança [Depois de ele/ela nascer], a minha mu­
lher/marido não me deu tanta atenção e ajuda como eu esperava.
92. Ter filhos tem causado mais problemas do que esperava no relacionamento
com a minha mulher/marido.
93. Desde que os filhos apareceram, eu e a minha mulher/marido não fazemos
tanta coisa juntos como fazíamos.
94. Desde a chegada desta criança [Desde que ele/a nasceu] eu e a minha mu­
lher/marido não estamos tanto tempo juntos em família, como eu esperava.
95. Desde a chegada desta criança [Desde que o meu último filho/a nasceu]
tenho tido menos interesse pelo sexo.
96. A vinda da criança [A vinda dos filhos) parece ter contribuído para aumen­
tar o número de problemas que temos com os sogros e familiares.
97. Ter filhos tem saído muito mais dispendioso do que eu pensava.

N - Isolamento Social

98. Sinto-me sozinho/a e sem amigos.


99. Geralmente quando vou a uma festa não espero divertir-me.
100. Antes interessava-me mais o convívio com os outros do que agora.
101. Sinto muitas vezes que as pessoas da minha idade não gostam especial­
mente da minha companhia.
102. Quando tenho um problema com os meus filhos conto sempre com alguém
para pedir ajuda ou conselho.
103. Com a vinda da criança [dos filhos) tenho tido menos possibilidades de ver
os meus amigos e fazer novas amizades.
187
Adopção e Parentalidade

O - Saúde Parental

104. Nos últimos tempos tenho estado mais em baixo ou com mais achaques do
que era costume
!05. Em geral sinto-me bem fisicamente
106. Com a chegada da criança [Com o nascimento dos meus filhos] mudaram
os meus hábitos de sono.
107. Não aprecio as coisas como dantes.
1-08. Desde que ele/a chegou a nossa casa [nasceu]: (tenho estado mais vezes
doente/.. ./ tenho sido mais saudável)
Este capítulo é uma síntese revista da Dissertação de Mestrado em Família e
Sistemas Sociais (ISMT) realizada por M. H. F. Silva, sob a orientação de A. P. Relvas,
intitulada Uniões de Facto versus Casamento. Análise comparativa da qualidade con•
jugal em casais heterossexuais (cf. Silva, 1999).
Após termos centralizado a nossa atenção em duas novas formas de
família "criadas" por meio de processos e mecanismos jurídico-legais
(famílias de acolhimento e famílias de adopção), viramo-nos, agora,
para outraforma familiar que, na sua génese, tem, aparentemente, o sig­
nificado oposto, ou seja a desinstitucionalização dos laços e vínculos
afectivos. Falamos das uniões de facto.
Mesmo que hoje em dia, no nosso país, e à semelhança do que acontece
por essa Europa fora, as uniões de facto estejam juridicamente regula­
mentadas, continuam a instalar-se como situações de facto, nascidas
fora de rituais e vínculos jurídicos. Estes transformam-se, assim, num
eventual ponto de chegada, não sendo nunca um ponto de partida, como
acontece nos tipos de família anteriores ou no caso da formação da
família tradicional.
Associadas às grandes transformações sociais da segunda metade do
século XX, bem como do próprio conceito de Amor - também hoje, e
particularmente a partir dos anos sessenta, supostamente assente nos
cânones da democracia-, as uniões de facto supõem a valorização ínti­
ma dos laços conjugais, tal como a consagração da liberdade individual
e conjugal. Neste sentido, a sua bandeira é a recusa da formalização
legal da relação, a qual subentende mais algumas recusas: da rotina do
quotidiano conjugal, da relação submetida à norma da procriação como
seu último objectivo, dos papéis sociais de "marido" e "esposa", da
diferença entre sexos na relação, entre outras que poderíamos apontar.
Com ou sem "papéis" não deixam, contudo, de se constituir como
relações amorosas conjugais e, assim, também não podem deixar de
conter, em si mesmas, ou de se confrontar com toda a multidimensionali­
dade e complexidade da conjugalidade.

O Profeta Almustafá (Gibran, 1999), na sua despedida de Orphalese,


respondendo a uma pergunta de A/mitra, sua primeira seguidora aquan-
192
Novas Formas de Família

do da sua chegada à cidade doze anos antes, falou assim sobre o casa­
mento:
"Amai-vos um ao outro, mas não façais do amor urna obrigação,
mas antes um mar vivo entre as praias das vossas almas.
Enchei cada um o copo do outro, mas não bebais por um só copo.
Partilhai o pão mas não comer a mesma fatia.
Cantai e dançai juntos, partilhai a alegria mas que permaneça cada
um sozinho, como estão sozinhas as cordas do alaúde enquanto
nelas vibra a mesma harmonia.
Dai os vossos corações mas não o deixai à guarda um do outro.
Porque só a mão da Vida os pode guardar.

Permanecer sempre juntos, mas nunca demasiado próximos:


porque os pilares do templo elevam-se distanciados e o carvalho
e o cipreste não crescem à sombra um do outro" (idem, 12).

Será que no jogo de proximidade-distância, permanentemente jogado


por todos os que decidiram unir-se como casal, os sujeitos em união de
facto se diferenciam dos casados? Mas o jogo não acaba e recomeça
nele próprio: do seu desenrolar resultam implicações, uma das quais tem
que ver com a qualidade conjugal, com o que o senso comum designa
como um "bom casamento". Haverá, então, a esse nível, diferenças na
percepção de uns e de outros? Em que sentidos? Com que sentidos?
Questões aparentemente simples, não fora a complexidade do seu objec­
to. Complexidade que não se pode pretender simplificar com vista à sua
avaliação, a menos que se corra o risco de nos Jazer crer que deixou de
o ser.
Conscientes do risco, procurámos um instrumento de medida da conju­
galidade que, pelo menos, abarcasse a multidimensionalidade que esta
complexidade enquadra e avançámos, comparando através dele as
descrições de indivíduos que, relativamente à sua conjugalidade, fize­
ram diferentes opções no que se refere à forma de partida.

Como falava ainda o Profeta, agora sobre o Amor, numa "voz forte e
firme(... ) - Quando o amor vos fizer sinal, segui-o, ainda que os seus ca­
minhos sejam duros e difíceis" (Gibran, 1999, 10). Nesses caminhos
pr;ocurámos algumas direcções porque perante o Amor também surgem,
ainda 110 falar do Profeta, alguns desejos como este: "voltar a casa ao
crepúsculo com gratidão e adormecer tendo no coração uma prece pelo
bem-amado" (idem, 11 ).
Desde finais dos anos sessenta que a estrutura do casal se modificou
profundamente. O número de divórcios aumentou, o número de casamen­
tos diminuiu, a união de facto generalizou-se, os nascimentos fora do casa­
mento multiplicaram-se, bem como o número de famílias monoparentais e
pes�oas sós.

O Amor e a União Conjugal em Mudança

Em vinte anos a taxa de divórcio passou de 5-10% para 20-30% na


Europa Central e de 10-20% para 30-40% na Europa do Norte. Em França,
o número de casamentos na década de 1 nS/85 baixou 30% e o número de
nascimentos fora do casamento aumentou 2,5% (Kauffman, 1993, 44). A
intensidade da nupcialidade baixou acentuadamente e, em contraponto a
esta tendência, a prática das uniões informais sofreu um incremento notá­
vel. O exemplo mais elucidativo desta tendência foi dado pela Suécia onde,
ao longo dos anos oitenta, mais de metade da população, em idade de se
casar, optou pela união livre, em detrimento do casamento (Bandeira, 1994).
A prática das uniões informais ou uniões livres, como lhe queiramos
chamar, tem sido alvo de diversas designações, sendo a mais tradicional
concubinato. Alguns autores apresentaram outras designações, como
coabitação juvenil (Roussel, 1989), casamento informal (Singly, 1984) e
união de facto (Béjin, 1983).
Segundo um estudo realizado por Jean Dumas e Yves Peron (1997), no
Canadá, com base no recenseamento realizado na década de oitenta, o
declínio do casamento verifica-se sobretudo nas faixas etárias dos 20-29
anos, quer para os homens quer para as mulheres. Enquanto que em 1981
17% dos homens com 20-24 anos estavam casados, essa percentagem, em
1991, não ultrapassava os 6%. Para as mulheres, o declínio é ainda mais
acentuado e de uma percentagem de 35% de casadas, em 1981, passou-se

Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.) (2002). Novas Formas de Família.
Coimbra, Quarteto Editora.
194
Novas Formas de Família

para menos de 15%, em 1991. Na faixa etária dos 25-29 anos, sobretudo nas
mulheres, o decréscimo é ainda mais notório, passando de 65% para menos
de 45%. Po1tugal não é excepção: em 1994, por cada cinco casamentos
havia um divórcio; de 1970 para 1991, a taxa de nupcialidade baixa de 7.4
para 7.3; mais recentemente, de todas as uniões conjugais, 3.88% são uniões
de facto e 16.29% são segundos casamentos (Nazareth, 1994; INE, 1996).
As formas alternativas de vida conjugal multiplicaram-se e afirmaram­
-se. Passámos de uma sociedade regida por uma única norma (família fun­
dada num casal/casamento estável) para uma multiplicidade de modelos
• conjugais e, consequentemente, para novas formas de família. O casal
tornou-se, pois, uma realidade menos institucionalizada e, consequente­
mente, menos estável. Hoje em dia, as uniões livres e as mudanças de com­
panheiro, outrora excepcionais, assumem carácter legítimo.
Cada um dos elementos que formam o par aspira "a uma vida íntima
cheia de compensações afectivas e sexuais" (Badinter, 1986, 330). "Pesada
carga a de ser ao mesmo tempo, para a pessoa com quem se partilha a vida,
o amante, o cônjuge, o amigo, o pai ou a mãe, o irmão ou a irmã, o confi­
dente, o confessor" diz Béjin (1983, 180), referindo-se ao ideal contemporâ­
neo da relação conjugal. De facto, o espaço da conjugalidade caracterizar-se­
-á, cada vez mais, pelo grande investimento pessoal e social que suscita, sobre
o qual se gerarão elevados níveis de exigências e de expectativas (Badinter,
1986; Singly e Lemarchant, 1991; Kaufmann, 1993; Giddens 1994, 1995).
O destino da relação será, então, menos previsível e a sua continuidade
e gratificação tenderá a depender mais dos esforços conjugados do casal e
menos da pré-determinação e da imposição externa (Vicent,1991). Falar-se­
-á mais de relações do que de casamentos, mais de companheiros do que
de amantes e de cônjuges (Badinter, 1986). Segundo Giddens (1995), o
conceito de relação, como significado de igualdade sexual e emocional e de
laço emocional contínuo com outrem, só recentemente entrou no uso cor­
rente. Sob o imperativo da relação, sendo esta importante em si mesma,
fundamento e motivo de continuidade, estabelecer-se-á o que aquele autor
chama relação pura, traduzindo "uma situação em que uma relação social
foi assumida em si mesma, naquilo que pode resultar para uma pessoa da
relação com a outra e que dura apenas enquanto seja considerada por ambas
as partes como fonte de satisfação" (Giddens, 1995, 38). Competirá, pois,
à díade, a construção dos alicerces da relação, considerada "especial e
baseada na intimidade", em vez de atender aos apoios externos, sejam eles
a família alargada ou a normatividade social.
195
Casal, Casamento e União de Facto

Para homens e mulheres, comunicar aberta e expressivamente com o


outro torna-se um imperativo absoluto, uma condição de sucesso nas
relações amorosas (Vicent, 1991). A capacidade e necessidade de expres­
sar sentimentos e emoções são atribuídos a ambos: "o amor já não é
somente feminino, é uma exigência da própria relação" (Badinter,1986,
315). A relação amorosa desejável poderá tender para o equilíbrio de dádi­
vas e contra-dádivas. Será menos aceitável o amor enquanto prática sacri­
ficial e desigual para um dos sexos, como Badinter sintetiza no seguinte
parágrafo: "O amor ideal é geralmente entendido como um diálogo perma­
nente, que tem a sua origem no respeito e na ternura pelo outro e exprime­
-se através de uma atenção particular para com este. Respeito e diálogo
implicam a igualdade dos parceiros amorosos e o amor conjugal não pode
dispensar a regra absoluta da reciprocidade. 'Amo-te tanto como a mim
próprio, na condição que me ames como a ti próprio e mo proves'. Assim,
a reciprocidade do sacrifício anula o sentimento de se estar a fazer sacrifí­
cio" (idem, ibidem).
Para compreender e explicar a mudança de atitude do homem e da mu­
lher face ao casamento, nos últimos trinta anos na sociedade Ocidental, é
pertinente referir um conjunto mais vasto de transformações económicas,
sociais, culturais e jurídicas que influenciaram fortemente os nossos con­
temporâneos, nomeadamente:

• mudança das práticas e concepções sobre a vida familiar;


• aumento da autonomia e liberdade individual no plano da vida pri­
vada;
• mudança na forma de encarar a sexualidade e privacidade dos laços
conjugais;
• transformação social do estatuto da mulher, aumentando o seu pro­
tagonismo na sociedade (generalização do trabalho feminino fora
de casa);
• alteração no modo de encarar o casamento, que se tornou uma etapa
facultativa do percurso conjugal;
• protecção da liberdade individual e assumpção de compromissos
não duradouros e flexíveis;
• baixa taxa de nupcialidade;
• aumento da idade de casamento e de nascimento do primeiro fi­
lho.
196
Novas Formas de Família

Estas tendências generalizam-se por todos os países da Europa, apesar


da amplitude das mudanças variar de país para país. Segundo um estudo
sobre a problemática da igualdade de oportunidades para os homens e as
mulheres nos doze estados membros da Comunidade Europeia (Eurostat,
1994), constata-se uma certa recusa do casamento, enquanto instituição,
acompanhada da aceitação, cada vez maior, das uniões consensuais. De
instituição a qualquer custo, o casamento tornou-se, tendencialmente, uma
relação que dura enquanto se mantiver compensadora para quem nela está
envolvido. Da obediência a regras impostas do exterior, passou-se para a
ideia da qualidade da relação cujos valores dão maior ênfase aos laços
interpessoais do que à dimensão institucional do casamento.
Concomitantemente à mudança de valores, que transfere para a vida pri­
vada a ideia de igualdade de oportunidades, maior autonomia e liberdade
pessoal, con.cretizaram-se também profundas reformas jurídicas de cujas
implicações destacamos:

• alargamento da democracia à família - direitos iguais para homem


e mulher na família;
• aceitação e normalização da prática do divórcio;
• menor dependência do casamento como forma de sobrevivência;
• aspirações da mulher à realização pessoal, via profissionalização ou
ocupação fora do quadro doméstico.

Em síntese, este conjunto de transformações fundamentais ocorridas nas


sociedades contemporâneas contribui para explicar a mudança de atitude e
comportamentos dos indivíduos, homens e mulheres, face à conjugalidade.
Ou seja, ajuda a reflectir sobre o processo de formação e manutenção do
casal, nas sociedades modernas.

A União Amorosa: Compromisso e Construção

O casal surge quando dois indivíduos se comprometem numa relação,


cuja duração se prolonga no tempo, pertencendo a uma instituição chama­
da Casal (Relvas, 1996); quando o casal acontece já não está apenas cada
um deles, nem sequer os dois...
197
Casal, Casamento e União de Facto

A construção do "nós"

... quando o casal acontece estão três: como refere Caillé (1991, 13):
"cada um dos elementos e o seu modelo específico, o seu absoluto", enten­
dendo por absoluto do casal a experiência relacional única, particular, onde
se inscrevem vivências e significações que se constroem no casal. Cada um
dos elementos traz consigo uma história e uma experiência diferente. Tais
diferenças só podem coexistir, no dizer de Caillé, se for possível a criação de
uma síntese, ou seja, a "reunião dos elementos psíquicos num todo estrutura­
do, apresentando qualidades ou valores novos em relação aos elementos de
origem. Na ausência de um processo dialéctico, excluída a possibilidade de
uma síntese, a justaposição dos contrários resulta numa exclusão recíproca"
(Caillé, 1991, 105). O absoluto do casal é, pois, parte essencial da relação.
Também Gullota (1993) e Satir (1980) (in Narciso, 1994) se referem ao
casal afirmando que "em qualquer casal existem três partes, eu, tu e nós,
que se possibilitam e facilitam mutuamente" (idem,18). Segundo Satir é o
modo como estas três partes funcionam que possibilita a função do Amor.
Sem o nós referido por Satir, sem o absoluto de Caillé, isto é, sem a iden­
tidade do próprio casal, as diferenças de cada um dos seus elementos tor­
nam-se uma ameaça à identidade de cada um.
Deste modo, a identidade do casal implica que a relação seja sentida
como privilegiada, diferenciando-se das relações extra-familiares de cada
um dos elementos, permitindo, paralelamente, que no sistema intra-fami­
liar se diferenciem um do outro. Ou seja, a identidade do casal só é possí­
vel numa constante dinâmica entre pertença e individuação, dependência e
independência. A união conjugal será, pois, um processo que envolve duas
pessoas, procurando o equilíbrio entre proximidade e distância, entre dese­
jo de pertença e de autonomia, equilíbrio esse que exige uma permanente
adaptação e mudança face ao outro (Whitaker, 1989, in Narciso, 1994).
Cada um dos elementos do casal é portador das cláusulas de um con­
trato psicológico (Granger, 1980, in Narciso, 1994), resultantes da história
e cultura pessoais e de ideias pré-concebidas de cada um sobre a relação,
ou melhor, sobre o modo de estar na relação. São cláusulas que contem­
plam a forma como pensam comportar-se e como querem que o outro se
comporte no casal. Uma vez que só muito improvavelmente tais contratos
psicológicos serão coincidentes, a continuidade da relação é possível se
aqueles derem lugar a um contrato de relação (idem, ibidem), baseado no
acordo e compromisso de ambos os elementos do casal sobre o modo de
198
Novas Formas de Família

funcionamento do novo sistema, devendo, por isso, ser dinâmico e flexí­


vel, a fim de poder sofrer as necessárias revisões e alterações, em função
dos acontecimentos que ocorrem ao longo do ciclo de vida da relação.
Por outro lado, o casal terá, ainda, que chegar a acordo relativamente ao
seu comportamento em várias áreas da vida conjugal, nomeadamente,
questões domésticas, económicas, tempos de lazer, afectividade/sexuali­
dade, trabalho, hábitos/costumes individuais, autonomia e privacidade dos
elementos do par, vida social e religiosa, entre outras, o que implicará o
reconhecimento de diferentes estilos/expectativas, o estabelecimento de
.regras, o desenvolvimento de atitudes de cooperação, de estratégias de re­
solução de conflitos e de capacidades de negociação (idem, ibidem).

A relação do casal poderá, pois, assumir múltiplas formas, mantendo-se,


não obstante, reconhecível pela sociedade. A questão fundamental coloca­
-se no assumir do desejo de viver juntos, de construir um lar e um modelo
relacional próprio, constituindo mais do que um momento, um processo,
cuja legalização não é absolutamente necessária e cuja estrutura na
sociedade actual é multiforme, abarcando desde as uniões "sem papéis" às
ligações homossexuais (Relvas, 1996).
Neste contexto, a questão para que serve o casal? reveste-se de algum
interesse. Segundo Willy Pasini ( 1996, 22), "o casal serve para fazer durar
o amor". O amor passa a ocupar um lugar central no casamento, sendo o
seu próprio fundamento (Ariés e Duby, 1989). Os valores mais expressivos
do casamento e da família - amor, partilha e suporte emocional - tornaram­
-se prioritários, em relação a aspectos mais instrumentais.
Contudo, se colocarmos essa mesma questão àqueles que nos rodeiam,
cada interlocutor responderá de modo diferente. Nessas respostas misturar­
-se-ão necessidades, expectativas, desejos de romantismo, dificuldades da
vida quotidiana, recordações e aventuras. A união amorosa assenta no tal
contrato de relação, não escrito, composto de expectativas e promessas
individuais, conscientes e inconscientes; assenta num "jogo" interactivo,
unindo os parceiros nas áreas concordantes ou, como nos recorda Rui
Veloso, "não se ama alguém que não ouve a mesma canção"'. Cada pessoa
dá aquilo que se comprometeu a dar e, em troca, espera receber aquilo que
mais deseja, como num verdadeiro contrato ou acordo. Esse contrato, por
sua vez, expressa-se no conjunto de comportamentos dos parceiros que

' Rui Veloso/ Carlos T, A Paixão (Segundo Nicolau da Viola), Mingas e Samurais, 1990.
199
Casal, Casamento e União de Facto

define a natureza da relação comum, por seu lado sujeita a modificações em


função das respostas de cada um, até que atinjam a estabilização com a
criação do seu modelo interactivo (Pasini, 1992; 1996).
A vida do casal é hoje, mais que nunca, considerada como a principal
forma de relação amorosa socialmente plausível. O amor é um estado emo­
cional espontâneo, integrado por uma activação fisiológica, uma confusão de
sentimentos, uma absorção intensa e um desejo avassalador. Sinónimo de
paixão e união sexual, implica êxtase e dor. Desde que as pessoas deixaram
de casar, fundamentalmente, por determinação dos pais, por razões económi­
cas: étnicas, religiosas ou outras, o amor é considerado causa consensual para
a realização do casamento. Se, no seu processo evolutivo, o casal consegue
reavivá-lo com base no renovar da relação e no entendimento, ultrapassando
a decepção inicial que é previsível e maturante, a união conjugal tem possi­
bilidade de se manter e até de se consolidar(Relvas, 1996).

As componentes do amor

Neste jogo de deve e haver, que se pretende equilibrado através da


negociação, o papel desempenhado pelo amor é prioritário. Senão,
vejamos. Quando um casal nos procura em busca de ajuda para as suas difi­
culdades, a primeira questão que ocorre ao terapeuta e cuja resposta se
torna fundamental para aceitar, ou não, iniciar uma terapia de casal, é: será
que ainda se amam? É certo que, seguidamente, essa pergunta se vai des­
multiplicando: será que gostam um do outro, será que ambos desejam con­
tinuar juntos, será que(...)?
E assim nos confrontamos com a dúvida fundamental e incontornável:
mas, afinal, o que é o Amor? Num texto sobre o casal, como resposta a esta
mesma pergunta, lê-se: "dissecar esse estado, esse sentimento ou turbilhão
de sensações, essa embriaguez quente, doce e sofrida é algo que no míni­
mo designaria de inestético. Provavelmente anti-estético e anti-ético. O
melhor é perguntar aos poetas" (Dias, 2000, 133). Contudo, nenhum destes
ou qualquer outro argumento convenceu os cientistas que, com denodo,
pesquisam sobre o amor, tentando "objectivar" as suas qualidades, carac­
terísticas, componentes e vicissitudes. Assim surgiram as teorias do amor2 •

'Como exemplo das mais conhecidas teorias do amor referem-se: os estilos de amor
de J. Lee (1988); os tipos de amor de Hatfield (1988); a teoria do amor triangular e os
200
Novas Formas de Família

Sternberg (1989) apresenta uma teoria do amor baseada na conjugação


de três componentes, dando origem a oito tipos de amor, os quais traduzem
estados da relação afectiva entre duas pessoas. O amor é conceptualizado
como uma série de emoções, motivações e cognições que, no seu conjunt o,
compõem este sentimento. Vejamos o que diz o autor: "um pequeno e con­
sistente conjunto de emoções, cognições e motivações que têm aproxi­
madamente igual importância e destaque no sentimento global que
descrevemos como amor... um conjunto de estruturas primárias que são
melhor entendidas separadamente do que integradas num todo" (idem,
316).
Não negando o carácter instintivo que pode explicar o fenómeno do
amor, o autor destaca a importância do factor social na aprendizagem de um
conjunto de características típicas, as quais permitem e possibilitam o
desenvolvimento de um determinado tipo de amor numa dada relação: "o
amor é um todo complexo que parece derivar, em parte, de instintos e
impulsos geneticamente transmitidos, mas, na maioria das vezes, parece ter
origem em regras definidas socialmente e que se verificam através da
observação. Assim o amor é 'catalogado' de forma a que certos sentimen­
tos, impulsos, pensamentos e comportamentos apareçam como característi­
cos do amor, em vez de pertencentes à definição social" (Sternberg, 1989,
120). A sua teoria parte, como já referimos, da existência de três compo­
nentes que formam os vértices de um triângulo: intimidade (afecto), paixão
(motivação) e decisão/compromisso (cognição) (Stenberg, 1989). Sendo os
componentes dotados de propriedades diferentes, a manifestação, ou não,
de um determinado componente numa relação está determinada pela
duração da mesma.

Considerando alguma confusão terminológica reinante neste domínio


(onde termos como características, traços, atributos, componentes, etc., são
muitas vezes aplicados de forma indiferenciada), antes de avançar abrimos
um parêntesis a fim de clarificar que, neste contexto, componente se refere
aos elementos que constituem o amor, enquanto atributo se refere às carac­
terísticas de tais elementos. Os atributos do amor mais frequentemente cita-

tipos de amor de Stemberg (1989). Na sociologia, Badinter (1986), Alberoni (1987;


1992), Pasini (1992), Giddens (1995) são nomes a destacar. Para aprofundamento do
tema consultar Narciso (1994) e Stemberg e Bames (1988a).
201
Casal, Casamento e União de Facto

dos pelos autores são a protecção, a confiança e a necessidade do outro.


Beverly Fehr (1988), num estudo sobre este tema, verificou que a confiança
era o principal atributo do amor, seguida pela protecção, honestidade e
amizade, correspondendo, afinal, às características do denominado amor
companheiro3 •

Retomando a teoria de Sternberg, vejamos de que modo são caracteri­


zadas as três componentes do amor:

Intimidade

Paixão Decisão/Compromisso

• Compromisso. Esta componente, de carácter cognitivo, parece estar


fortemente associada quer à permanência e continuidade da
relação amorosa quer à estabilidade e à satisfação na relação. De
acordo com Sternberg e Barnes (1988b), o compromisso envolve a
decisão de que se ama o outro e o desejo de o continuar a amar.
Verificou-se, ainda, que as pessoas tendem a descrever uma
relação como sendo de amor quando há compromisso, proximi­
dade (intimidade) e uma componente sexual (idem).

' O amor companheiro pressupõe a intimidade, o conhecimento mútuo e a explo­


ração de semelhanças. Caracteriza-se, em termos cognitivos, pela revelação das carac­
terísticas pessoais mais profundas; ao nível emocional, pela preocupação profunda com
os outros e ao nível comportamental pela necessidade de proximidade com aquele que
lhe é íntimo. Implica o desejo de viver junto e a construção de uma relação negociada
e aberta (Hatfield, 1988). Note-se que na classificação desta autora este tipo de amor se
opõe ao amor apaixonado. Contudo, outros autores, como por exemplo Branden ( 1988),
não aceitam esta distinção, afirmando que genericamente só existe o amor romântico,
síntese dos dois tipos anteriores.
202
Novas Formas de Família

• Intimidade. Esta componente, de carácter afectivo e emocional, re­


fere-se à proximidade com outro. Assim, relação íntima e relação
próxima podem ser vistas como expressões sinónimas (Schn arch,
1991 ). Contudo, há autores para quem proximidade se diferencia
de intimidade: proximidade significa estar com o outro, enquanto
intimidade se refere ao processo de auto-descoberta na presença do
outro. Aparentemente, intimidade exige a capacidade de se ser
independente, um adequado nível de diferenciação do self, con­
fiança mútua e um nível adequado de auto-estima (idem).
Por outro lado, é interessante notar que intimidade não tem o mes­
mo significado para homens e mulheres. Não parece ser correcta a
afirmação segundo a qual os homens têm menor capacidade para
serem íntimos do que as mulheres. O que acontece é que homens
e mulheres procuram e experimentam a intimidade de modos dife­
rentes: os homens tendem a definir a proximidade emocional como
trabalhando, jogando ou divertindo-se com a mulher, enquanto
para as mulheres a proximidade emocional está mais ligada a con­
versar com o homem, sobretudo no plano sentimental (Narciso,
1994). Tal divergência de significações é, frequentemente, motivo
de insatisfação nas relações amorosas, uma vez que as mulheres
tendem a julgar os homens como distantes, frios e desinteressados,
enquanto estes vêem as mulheres como dependentes e invasivas
(Markman e Kraft, 1989; Fisher, 1992).

• Paixão. Componente que se refere aos elementos de carácter moti­


vacional, conducentes ao romance e atracção física e sexual. Na
revisão da literatura, a caracterização mais exaustiva da paixão é
apresentada por Elaine Hatfield (1988). Para esta autora, a paixão
inclui os seguintes atributos: a) atributos cognitivos (preocupação
com o outro; idealização do outro ou da relação; desejo de co­
nhecer e ser conhecido pelo outro); b) atributos emocionais
(atracção, sobretudo ao nível sexual, desejo de união completa e
permanente, desejo de reciprocidade); c) atributos comportamen­
tais (acções orientadas para servir o outro, manter com ele a proxi­
midade física e determinar os seus sentimentos). Em suma, à
paixão é sempre atribuída quer uma grande intensidade quer, para­
lelamente, um carácter efémero.
203
Casal, Casamento e União de Facto

A este propósito, Helen Fisher (1992) refere que, quando existe um


contacto regular entre os amados, a paixão dura em média cerca de
dezoito meses a três anos. A irregularidade dos contactos parece
aumentar o tempo da duração da paixão, já que funciona como um
obstáculo à mesma, o que é, no parecer da autora, um importante
factor de atracção. Para além deste, outros factores de atracção
seriam: as semelhanças (étnicas, traços físicos, níveis de educação,
entre outras); o timming (há momentos em que a pessoa está mais
susceptível à atracção, por exemplo nos momentos de maior
solidão ou de desejo de aventura); o mistério (o desconhecimento
do outro que suscita curiosidade); os mapas de amor (mapa men­
tal que cada pessoa desenvolve em relação ao tipo de pessoa ideal)
e o odor. Afinal a paixão é magistralmente definida nos versos de
Adriana Calcanhoto• quando canta:

"Entre por essa porta agora


E diga que me adora
Você tem meia-hora
P'ra mudar a minha vida
(. .. )
Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando vem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas... "

Narciso (1994, 38) afirma: "a paixão sentida varia na sua intensidade,
no modo como se manifesta, com a idade, com as experiências anteriores,
com o momento do ciclo de vida e com a história pessoal de cada um". E
a propósito, já não exclusivamente da paixão mas do amor, coloca, depois,
algumas interrogações: será que as componentes do amor conduzem a sig­
nificações particulares em cada relação? Até que ponto são semelhantes
para os elementos do casal estas significações? A semelhança das signifi­
cações será um factor de atracção? Terá influência na satisfação do casal?

• Adriana Calcanhoto, Marítimo, 2001.


204
Novas Formas de Família

São questões que não podem deixar de nos fazer reflectir sobre a cons­
trução da relação amorosa e sobre o valor que nela assume a significação
individual e/ou co-construída.
Seja como for, a finalizar este ponto faz sentido citar Bárbara De
Angelis (1996), para quem o segredo do amor duradouro reside no traba­
lho diário. Citando, por sua vez, o dramaturgo irlandês Samuel Becket
aquela autora afirma: "o amor é uma conta-corrente, a qual exige entrada�
constantes de capital para se poder receber juros, sob a forma de afecto. Se
deixarmos de depositar dinheiro num banco a conta congela, passando-se o
mesmo com o amor" (in Casal e Amor Guia, 1999).

Regularidades e Singularidades: Casamento e União de Facto

Independentemente do que acabamos de dizer sobre a união amorosa, e


como já referimos anteriormente, no decorrer das últimas décadas registou­
-se uma evolução acentuada das modalidades de formação do casal e de
constituição da família. Outrora, era preciso esperar pelo casamento para
viver em casal, o que acontece cada vez menos nos nossos dias, mesmo
para aqueles que, eventualmente, venham a contrair casamento. Por outro
lado, enquanto no passado o casamento marcava uma ruptura entre o tem­
po de juventude na família de origem e a entrada na vida adulta, actual­
mente, os jovens passam por essa transição de modo mais contínuo e pro­
gressivo.
A vida a dois começa, muitas vezes, desde os primeiros encontros que
fixam, desde logo, um quadro de mudanças. É muitas vezes a regularidade
das relações sexuais que leva à coabitação. Do estatuto de visita ocasional
passa-se a convidado permanente e, posteriormente, a parceiro a tempo
inteiro. Acumulando pequenas decisões e estruturando uma organização
colectiva a dois, o casal instala-se, a pouco e pouco, sem consciência
do facto. "O importante para os membros do casal são os laços interpes­
soais, a sua qualidade e autenticidade, a satisfação que cada um dos ele­
mentos retira da relação e do sistema em que estão integrados" (Kauffman,
1993).
Antes, casavam-se para a vida: "para o melhor e para o pior". Hoje, o
casal forma-se para o melhor. Iniciado o primeiro momento do ciclo de vida
da família, que corresponde precisamente à formação do casal, este vive o
dia-a-dia sem grandes objectivos a longo prazo, sem assumir um compro-
205
Casal, Casamento e União de Facto

misso incondicional, não significando, como anteriormente, uma etapa bem


demarcada da passagem da idade jovem à idade adulta (Relvas, 1996;
Bérnier e Lemieux, 1997).
Para Jean-Claude Kauffman (1993), mais do que a união livre, que na
Europa assumiu uma amplitude considerável a partir dos anos 80, o que
hoje caracteriza a formação do casal é o modo evolutivo segundo o qual
este tende a efectuar a integração conjugal e familiar. Pouco importa o tipo
de união no seio da qual se realizará esta integração - casamento civil, reli­
gioso ou união de facto. Sobre o casamento, afirma aquele autor: "Outrora
instituição na qual se entrava para a vida toda sem grandes questões, trans­
formou-se num sistema de ajustes permanentes e trabalho diário por parte
daqueles que o experimentam" (idem, 125).
Ainda que de um modo global a instituição matrimonial não esteja em
declínio, certos grupos sociais tendem a rejeitá-la mais frequentemente do
que outros - 21% dos homens consideram o casamento ultrapassado, con­
tra apenas 19% das mulheres. É entre os mais jovens que a rejeição do casa­
mento é maior, amenizando-se, posteriormente, à medida que a idade vai
avançando (idem).
Os que casam não têm, necessariamente, uma concepção de casal dife­
rente daqueles que vivem em união de facto. Em ambos, a visão do casal é
igualitária, o modo de vida é semelhante, cada um dos cônjuges, por razões
económicas e/ou de respeito pelo outro, permanece activo no plano profis­
sional, considerando a individualidade do seu parceiro. O que os parece
distinguir é, por parte das uniões de facto, a recusa da institucionalização,
a valorização íntima quer dos laços conjugais quer da definição de casal
enquanto tal (como vimos, a vida a dois, tende a iniciar-se mais informal e
rapidamente), demarcando-se do casamento caracterizado pelo "peso" da
institucionalização e do universo doméstico, desde logo estabelecido pelo
próprio ritual.
Segundo Singly e Le Marchant (1991), a união de facto, como modo de
viver a dois cada vez mais adoptada pelas gerações mais novas, é o melhor
exemplo para compreender as mudanças em curso na conjugalidade. Na
opinião dos autores "os indivíduos em união de facto recusam a rotina e os
papéis sociais de marido e esposa" (idem, 185) e não delimitam à partida a
duração da relação; antes pelo contrário, interrogam-se sobre as possibili­
dades de um amor verdadeiro, considerando fundamental a autenticidade
dos sentimentos e a autonomia dos comportamentos em todas as circuns­
tâncias. A preponderância da mulher na execução das tarefas e na tomada
206
Novas Formas de Família

de decisões domésticas declina, aumentando a participação do compa­


nheiro. De facto, os recursos oriundos do trabalho assalariado permitem à
mulher retirar-se um pouco mais das tarefas domésticas, usufruindo das
suas habilitações escolares e profissionais. Ambos dão menos importância
à propriedade de bens móveis ou imóveis, respeitam mais as aspirações e
as relações pessoais de cada um. sentem-se menos comprometidos na vida
de casal (idem; Singly, 1987).

Contudo, as próprias uniões de facto, à semelhança do casamento, tam­


bém permitem a emergência de diversos modelos. Na perspectiva de
Bernardette Bawin-Legros (1992), estes modelos poderão ser enumerados
quer através da análise objectiva das condições sociais quer através dos dis­
cursos dos jovens, correspondendo a diversas formas de iniciar a relação
conjugal. Vejamos então alguns tipos de uniões de facto:

• co11cubinato tradicional: típico nos meios populares, seguiu-se ao


declínio da censura social;
• união de facto: típica das classes médias que se opõem à institu­
cionalização da união conjugal;
• coabitação ou união pré-nupcial: cuja formalização da união conju­
gal depende da continuidade do envolvimento sentimental do par
ou melhoria das condições profissionais por parte dos parceiros.

Os modelos de vida alternativos, que proporcionam, ao homem e à mu­


lher, o respeito pelas diferenças de cada um, um grande envolvimento e
cooperação interpessoal, o viver em consonância com valores e estilos de
vida que os satisfazem e gratificam, assumem, actualmente, uma consi­
derável representatividade demográfica. Diferem dos tradicionais em com­
posição, legalidade e forma de funcionamento mas, em todos os tipos de
conjugalidade, o importante são os laços interpessoais entre os membros do
par, a sua qualidade, autenticidade e, sobretudo, a satisfação que cada um
dos elementos da díade retira da relação e do sistema em que se integra
(Kauffman, 1993).
Em suma, ainda que, de um modo global, os que casam e os que não
casam não tenham necessariamente uma diferente concepção do casal, a
verdade é que, para estes últimos, o casamento enquanto instituição parece
ter perdido o seu poder atractivo, sendo visto como um contrato desne­
cessário que poderá mesmo destruir a união emocional que liga os elemen-
207
Casal, Casamento e União de Facto

tos do par. Pelo contrário, uma ligação "sem papéis" parece proporcio­
nar-lhes realização e satisfação pessoal (gratificação no "aqui e agora"),
uma perspectiva anti-autoritária da conjugalidade e a igualdade dos sexos
na relação, reformulando papéis e responsabilidades tradicionais estereoti­
padas.

A Conjugalidade Como Sinónimo de Complexidade

Subjacente à relação que, entre homem e mulher, constitui um casal está


toda uma complexidade relacional que não caberá nunca em qualquer
definição. Do que atrás fica dito e do que a vida nos mostra e ensina, quan­
do se pensa num casal considera-se uma multiplicidade de aspectos que se
estendem desde o jogo de afectos às crenças, expectativas, cognições e
condições ou pressões sociais que nele habitam e o envolvem. Pensa-se em
amor, satisfação (individual e na díade), qualidade da relação, facilidades e
dificuldades, continuidade e mudança ao longo do tempo, filhos, contextos
e ajustes familiares e sociais. Por isso falamos de complexidade. Não temos
a pretensão de, neste texto, a explicarmos (até porque acreditamos que a
complexidade não se explica, aceita-se...) mas move-nos o desejo de, não a
esquecendo, a respeitarmos. Neste sentido, apenas nos cabe tentar visua­
lizar alguns contornos que, nessa complexidade, emergem como pontas de
icebergs. Começaremos por aqueles que se apresentam como círculos que
rodeiam, de muito próximo, o casal. Referimo-nos aos outros, particular­
mente aos familiares.

O Par e os Outros

Mais do que a união de duas pessoas, o casal é a união de duas famílias


que se inter-influenciam e criam uma rede complexa de subsistemas
(Haley, 1986, i11 Narciso, 1994). A este propósito, Carter, McGoldrick e
colaboradores (1989) definem o casal de uma forma humorista: "há seis no
leito conjugal". Além do casal, as autoras estão a referir-se à interferência,
na relação, dos pais de cada um dos elementos do par; Whitaker (1981, in
Ribeiro, Sampaio, Amaral, 1991, 71) sublinha que "é ilusório pensar que o
homem e a mulher são duas pessoas independentes que se juntaram para
formar uma união perfeita. São simplesmente bodes expiatórios, enviados
208
Novas Formas de Família

pelas suas famílias, para reproduzirem a sua maneira de ser". O papel da


família de origem em busca da continuidade é evidente, quer seja no con­
texto de aprendizagem da dinâmica pertença/individuação quer seja en­
quanto factor interveniente na escolha do parceiro.
Todavia, a união conjugal não progride caso cada elemento permaneça
demasiado preso a esse legado familiar: "cada cônjuge, na fase inicial da
sua relação marital, procurará criar uma interacção com o companheiro que
lhe permita construir um espaço e uma identidade comum, base emocional
dç uma nova família" (Ribeiro, Sampaio, Amaral, 1991, 71). É necessário
que o casal negoceie novas relações a dois com a família alargada. Segundo
Elisabeth Carter e Mónica McGoldrick (1989), a situação ideal, ainda que
relativamente rara, é aquela em que os membros do casal já eram indepen­
dentes das famílias de origem antes do casamento, mantendo, no entanto,
laços de proximidade com elas. Apesar de tudo, as dificuldades com a
família de origem significam que o casal está a tentar delinear fronteiras e
a tentar encontrar um equilíbrio entre autonomia e pertença.
Porém, a área das relações com a família de origem não é a única onde
se colocam as primeiras dificuldades do casal e onde se exigem negocia­
ções. Os amigos e o trabalho, nomeadamente, são outros a não esquecer. O
processo de acomodação à nova situação torna os conflitos inevitáveis.
Todos os casais os experienciam, se bem que sejam ultrapassados de forma
diferente, consoante os diversos trajectos individuais e familiares dos ele­
mentos do par permitem uma melhor ou pior negociação e maiores ou
menores equilíbrios. O que acabamos de dizer não quer significar que a con­
flitualidade seja negligenciável, uma vez que a frequência e a gravidade dos
conflitos parecem estar positivamente correlacionadas com uma menor sa­
tisfação conjugal. Assim, o desenvolvimento da relação conjugal pressupõe
a gestão dos conflitos e o crescimento da intimidade (Markman, 1989).

Mas o tempo vai passando e, mesmo imaginando que estas primeiras


dificuldades estão trabalhadas e integradas na relação, há um momento em
que chegam os filhos. E, de novo, os "velhos" equilíbrios, que propor­
cionaram ao casal alguma estabilidade e satisfação, são postos em causa. É
sabido que o nascimento dos filhos enquadra uma crise (necessidade de
mudança geradora de stress, entenda-se... ) que, para além de uma dimensão
familiar, tem implicações importantes na conjugalidade.
Neste âmbito, David Olson e colaboradores procederam a investigações
sobre o desenvolvimento da satisfação conjugal e familiar ao longo do ciclo
209
Casal, Casamento e União de Facto

de vida. Concluíram que tende a desenhar uma curva em U que corres­


ponde a níveis mais elevados de satisfação nas primeiras etapas do casa­
mento, seguindo-se um decréscimo progressivo até à saída de casa dos fi­
lhos e um novo aumento nas etapas posteriores (Olson, 1991). Também
Kurdeck (1993) realizou um estudo onde obteve resultados semelhantes
mas que permitem novas inferências: os casais, quer com filhos quer sem
filhos, apresentam um declínio, ao longo do tempo, quanto à qualidade e
satisfação conjugais. As maiores diferenças entre os dois grupos são em
relação às;ictividades conjuntas e à comunicação, uma vez que os casais
com filhos retiram menos satisfação das actividades conjuntas, comunicam
menos e o conteúdo das suas comunicações incide sobretudo nos filhos,
havendo menos intimidade conjugal.
Mas seja devido à existência de filhos, ao passar dos anos, a ambos os
factores ou a outros não especificados aqui (basta lembrarmo-nos que este
período corresponde, também, a uma fase de grande investimento e pressão
profissional, por exemplo) o que parece ser uma evidência é a diminuição
da qualidade e satisfação conjugais nos anos correspondentes ao nascimen­
to e crescimento dos filhos, ou seja, mais ou menos na primeira década do
casamento, e o seu aumento após a sua saída de casa, ou seja, nos quinze
anos seguintes (Belsky, 1990).

Características e Vicissitudes

Eis-nos, pois, chegadas a uma questão central: qual a importância de


uma boa união conjugal para o bem-estar físico e psicológico dos indiví­
duos? Contudo, é fácil verificar que a resposta a esta questão implica outra,
a saber, o que é um bom casamento ou uma boa união conjugal? Ou seja, é
chegado o momento de abordar, mais especificamente, temas como esta­
bilidade, qualidade e satisfação conjugal. Tentaremos, portanto, questionar
de seguida o significado de cada um destes conceitos e identificar as suas
respectivas características.

Qualidade e Satisfação Conjugal

Na revisão da literatura apercebemo-nos, frequentemente, que termos


como qualidade conjugal, ajustamento conjugal,felicidade conjugal,fun­
cionalidade conjugal ou satisfação conjugal são utilizados indiferenciada-
210
Novas Formas de Família

mente. Particularmente entre qualidade e satisfação conjugal a confusão é


muito grande (Kurdek, 1990) - não só em termos teóricos como também a
nível da operacionalização destes constructos, concretizada através das
escalas de medida da conjugalidade (Biais et al., 1990; Narciso, 1994)
Parece, pois, importante tentar proceder a alguma clarificação neste
domínio: a maior parte dos autores consideram que qualidade conjugal é
mais abrangente, ao envolver e articular as múltiplas dimensões da conju­
galidade (entre as quais se inclui a própria satisfação, para além da comuni­
cação, gestão comum das finanças, tempo de lazer, relações sexuais, temas
associados aos filhos, parentes e amigos, etc.), reservando a expressão satis­
fação conjugal para os sentimentos pessoais e avaliação subjectiva do indi­
víduo face ao casamento (Thompson, 1988; Olson, 1991; Narciso, 1994).

Contudo, o próprio conceito de satisfação conjugal, a sua definição e


aspectos associados, nada têm de linear. Como já foi referido, a satisfação
conjugal implica uma avaliação pessoal do casamento. Segundo Huston e
Vangelist (1991) a satisfação reflecte-se no modo como os membros do casal
se tratam um ao outro. Os cônjuges mais satisfeitos "tendem a expressar
mais ternura e menos hostilidade do que os cônjuges menos satisfeitos"
(idem, 721) o que nos poderia levar a pensar que existe satisfação sempre
que o casamento é percepcionado como proporcionando mais recompensas.
A negatividade na interacção (o casal, ao comunicar, exibe significativa­
mente maior quantidade e reciprocidade de afecto negativo) leva à
diminuição da satisfação e vice-versa, ou seja, a negatividade na interacção
é mais frequente em casamentos onde não é sentida satisfação. Há, portan­
to, um efeito de círculo vicioso entre negatividade na interacção e satisfação
conjugal (Gottman e Krokoff, 1989). Acerca deste assunto, Griffin (1993, in
Narciso, 1994) vai mais longe afirmando que o afecto negativo expresso na
comunicação é o discriminador mais potente da satisfação conjugal.
Homens e mulheres têm modos diferentes de exprimir e reagir ao afec­
to negativo. As mulheres, de um modo geral, são mais negativas, desejam
mais o envolvimento em conflitos e são mais capazes de lidar com eles. Por
sua vez, os homens têm tendência para evitar o conflito, o que parece gerar
um acréscimo de afecto negativo nas mulheres ao verem contrariado o seu
desejo de envolvimento no conflito. Gottman (1993), numa investigação
por si conduzida, verificou que alguns padrões de conflito conjugal têm
benefícios a longo prazo, mesmo que no momento sejam fortemente indu­
tores de stress. Constatou, ainda, que havia uma conelação positiva entre a
211
Casal, Casamento e União de Facto

deterioração da satisfação conjugal, a longo prazo, e a atitude de retirada do


conflito por parte dos homens. Para além disso, em casais insatisfeitos,
independentemente da valência positiva ou negativa da mensagem, quando
um dos elementos envia uma mensagem sobre o outro ou sobre a relação,
o outro tende a responder-lhe de um modo negativo (Markman, 1989;
Gottman, 1991, 1993).
Sobre esta problemática, também Huston e Vangelist (1991) realizaram
um estudo onde obtiveram dados consonantes com os de Gottman: quer nas
mulheres quer nos homens, a expressão da negatividade está consistente e
inversamente relacionada com a satisfação conjugal, revelando-se, mesmo,
preditora do grau de satisfação conjugal futura dos casais - embora aqui
seja de salientar, por um lado, algumas diferenças importantes em função
do sexo e da fase do ciclo de vida do casal e, por outro, a associação exis­
tente entre negatividade e interesse sexual.

Outro aspecto a considerar no domínio da satisfação conjugal diz


respeito aos factores cognitivos que parecem desempenhar um papel
importante no despoletar e na manutenção do stress conjugal (Fincham,
Bradbury e Scott, 1990).
As atribuições e o seu papel na conjugalidade têm sido uma das áreas
preferencialmente estudadas, nomeadamente por autores como Fincham e
Bradbury (1987) e Fincham e Grych (1991). Das suas conclusões subli­
nhamos as seguintes:

• os parceiros insatisfeitos têm maior tendência para ver as causas dos


acontecimentos conjugais negativos como sendo localizadas no
outro, estáveis (permanecendo constantes ao longo do tempo) e
globais (afectando várias áreas do casamento). Tendem a fazer
atribuições que maximizam o impacto do comportamento negati­
vo e minimizam o impacto do comportamento positivo;
• é mais frequente a ocorrência de atribuições em relação aos compor­
tamentos negativos do outro, do que em relação aos comportamen­
tos positivos. Parceiros insatisfeitos fazem mais atribuições positi­
vas ao seu próprio comportamento do que ao do outro.
• as atribuições influenciam o comportamento: atribuições causais
localizadas no outro, estáveis e globais, bem como as de respon­
sabilização (que entendem o comportamento do outro como um
contributo para a dificuldade) estão positivamente correlacio-
212
Novas Formas de Família

nadas com os comportamentos negativos de ambos os cônjuges


durante as discussões em que tentam resolver essa mesma dificul­
dade.

Todavia, não são'apenas as atribuições que são relevantes no casamen­


to: também a percepção dos acontecimentos, expectativas, princípios que
reflectem a imagem da realidade e as crenças sobre o casamento são impor­
tantes quando se aborda a conjugalidade. As crenças disfuncionais sobre a
relação, conjugadas com crenças irracionais sobre o próprio, permitem
mesmo prever a dissolução de uma relação, bem como a respectiva satis­
fação conjugal (Fincham e Bradburay, 1990).
Relativamente às expectativas, também o contributo de alguns autores
fornece pistas interessantes para a visualização dos contornos do tal iceberg
(Vanzetti, Notarius e Neesmith, 1992). Assim, por comparação com casais
satisfeitos:

• parceiros insatisfeitos esperam mais comportamentos negativos e


menos comportamentos positivos do outro, quer em situação de
grande quer de pouco conflito;
• casais insatisfeitos tendem a ter expectativas negativas, mesmo em
interacções geradoras de sentimentos positivos;
• quando o elemento insatisfeito percebe o comportamento do outro
como positivo e a sua expectativa era negativa, tende a processar
cognitivamente esse comportamento de tal modo que reduz ou
anula o seu efeito positivo a nível da satisfação conjugal;
• os indivíduos que têm expectativas baixas quanto à sua eficácia rela­
cional tendem a fazer atribuições do comportamento do outro que
mantêm a insatisfação;
• os sujeitos que têm expectativas elevadas quanto à sua eficácia rela­
cional tendem a ver o comportamento positivo do outro como algo
permanente no seu repertório de comportamentos, enquanto os que
têm expectativas baixas tendem a menosprezar os comportamentos
positivos do outro.

Estabilidade Conjugal

Por outro lado, to.dos estes aspectos associam-se a outros factores como
a estabilidade ou o momento do ciclo de vida do casal, o que permite ima-
213
Casal, Casamento e União de Facto

ginar, ainda mais, a complexidade da conjugalidade. Neste sentido, Narciso


(2001)5 tenta demonstrar que a conjugalidade constitui um intrincado puz­
zle, em que cada peça se assume como um destes aspectos (entre outros).
Através de algumas simples ( !) questões que se colocam com frequência
quando se pretende perceber se estamos perante um "bom" casamento,
traduz-se e clarifica-se esta ideia. Assim, ao perguntarmos: "há quanto
tempo estão casados?", associamos a conjugalidade à estabilidade e momen­
to do ciclo de vida; mas se a interrogação é: "dão-se bem? dão-se mal?", a
nossa preocupação é com a qualidade conjugal nos seus aspectos mais fun­
cionais; quando pretendemos saber se "são felizes", pensamos na satisfação
sentida na união conjugal; e assim sucessivamente (Narciso, 1994).
Entende-se, portanto, que seja difícil falar de estabilidade sem referir a
qualidade e a satisfação conjugal, por serem factores intervenientes na
própria estabilidade. Todavia, outras variáveis parecem ter influência na
estabilidade/instabilidade da união conjugal, como sejam:

• variáveis demográficas: idade, formação cultural, aspectos finan­


ceiros, recasamentos, namoros de curta duração, presença de filhos
de casamento(s) anterior(es) e gravidez são situações indutoras de
instabilidade (Kurdeck, 1993);
• variáveis individuais: (dis)semelhanças na idade, mesmos/diversos
interesses, vulnerabilidade, aparência, boas/más maneiras, (in)ca­
pacidade de controle, (in)dependência e nível de auto-estima. Al­
guns estudos sugerem que a estabilidade é mais provável em pes­
soas mais independentes, em casais cujas mulheres preferem a
actividade voltada para a relação, em pessoas sem atitudes conser­
vadoras relativamente ao envolvimento sexual (Simpson, 1990) e
em pessoas com bons níveis de auto-estima (Hendrick, Hendrick e
Adler, 1988);
• variáveis da relação: compromisso, investimento e satisfação na
relação, proximidade ou interdependência, frequência da inter­
acção, qualidade da comunicação e gestão dos conflitos são aspec­
tos que parecem ter grande importância na previsão da estabilidade
das relações (Cate e Loyds, 1992).

' Comunicação apresentada nas Jornadas de Psicologia Clínica Sistémica,


(Des)Encontros no Casal, Nusiaf, FPCE, Universidade de Coimbra, 2001.
214
Novas Formas de Família

No âmbito deste último aspecto, importa falar um pouco mais deta­


lhadamente da comunicação. Gullota (1993) salienta a sua importância em
momentos de tomada de decisão, como um factor essencial na estabilidade
e na satisfação conjugal e que permite distinguir casais funcionais e dis­
funcionais. Uma comunicação deficiente, o aumento de conflitos não
resolvidos pode impedir o crescimento da intimidade do casal e, conse­
quentemente, diminuir a positividade dos afectos, o que tenderá, por sua
vez, a influenciar negativamente a comunicação, criando-se um ciclo que
provoca o desgaste da satisfação conjugal.
Se,.gundo Markman (1992), a qualidade da comunicação do casal e a
capacidade para lidar com os conflitos são óptimos preditores do sucesso
conjugal. Todos os casais experimentam problemas e dificuldades que têm
que ser resolvidos para que a relação possa ser sentida como satisfatória e
estável. Este autor verificou que as dificuldades mais comuns são as que
dizem respeito ao dinheiro, comunicação, sexo, ciúmes e família alargada.
Quando não resolvidas, estas dificuldades são indutoras de situações de con­
flito que tendem a aumentar de frequência e intensidade ao longo do tempo.
Entre alguns factores associados a essas dificuldades o autor sublinha:
(1) as diferenças individuais; (2) as diferenças entre famílias de origem;
(3) diferenças nas necessidades de independência; (4) questões relativas às
várias etapas do ciclo de vida e à transição entre elas (idem; Markman,
1989).

O Ciclo de Vida do Casal

Ao longo de todo o texto, aqui e ali fomos referindo a influência da pas­


sagem do tempo na vivência da conjugalidade, a que se associam os aspec­
tos evolutivos e desenvolvimentais quer do casal quer da família. Contudo,
o chamado ciclo vital do casal nunca foi especificamente abordado nas suas
características, crises e transformações relacionais. Fá-lo-emos, agora, a
concluir esta revisão da literatura sobre casal e conjugalidade.
No ciclo evolutivo familiar, a fase correspondente à formação do casal
é uma das mais difíceis e complexas, apesar de "parecer ser vista como a
mais fácil e mais alegre" (Carter, McGoldrick et al., 1989, 209). A idea­
lização do amor e do casamento, o desconhecimento dos problemas ine­
rentes à conjugalidade, o desejo e as expectativas quanto à descoberta do
outro, a possibilidade de viver com o outro sem obstáculos familiares e
sociais são alguns dos factores que, nesta fase, aumentam o grau de moti-
215
Casal, Casamento e União de Facto

vação e, portanto, o grau de satisfação, facilitando urna "pré-visão" simples


e risonha do casamento. Se os primeiros anos da união conjugal podem ser
imaginados corno os de maior satisfação, para muitos, é também durante
este período que se verificam as maiores dificuldades, o que, de alguma
maneira, justifica que nessa etapa surja o maior índice de divórcios. Mais
especificamente, é por volta do quarto ano de casamento que, em muitos
países, se situa o maior pico de rupturas (Fisher, 1992). De facto, como
fomos vendo nas páginas anteriores, nesta fase "está tudo por fazer": con­
cretizar e negociar expectativas e ajustes, realinhar relações com amigos e
parentd, definir limites com o trabalho e o meio social e, fundamental­
mente, construir as bases da relação através do trabalho de criação do nós.
Assim, iniciado o primeiro estádio do ciclo vital da família com a for­
mação do casal, depois é a continuação. "O tempo atravessando o casal,
cortes, recortes, acrescentos, contornos que se refazem, mudanças. O ciclo
de vida da família a desenhar-se, etapas diferentes, fases de transição, os
filhos que nascem, que crescem, a entrada na escola, a adolescência, os fi­
lhos que partem e, de novo o ninho vazio, outra vez a 'dois'. Mas, agora, o
significado é diferente - é o vazio depois da casa cheia" - (Narciso, 1994,
52).
Mas se isso é, em termos evolutivos, o que se passa com o casal na
família, também no âmbito mais restrito da relação conjugal é possível
identificar um esquema do ciclo vital, com etapas ou estádios de transição
que marcam a sequência previsível das transformações no tempo do casal.
Podemos, então, dividi-lo em três grandes fases (Frank-Linch, 1986, in
Relvas, 1996):

• estádio de fusão - a principal tarefa dos elementos do casal durante


este período consiste na criação de uma nova relação, fundindo-se
num só sistema, o que implica a transformação das velhas ligações
afectivas, nomeadamente com as famílias de origem, e a perda de
algum grau de individualidade em favor da criação de um senti­
mento de pertença (o nós). Decorridos os primeiros três anos, o
casal poderá sentir-se unido mas não terá atingido a estabilidade,
apesar da intimidade crescente. O período que medeia entre o ter­
ceiro e o sétimo ano de casamento emerge, segundo aquela autora,
como um período cheio de incertezas para os elementos da díade,
fortemente colorido por tonalidades conflituais. É uma fase em que
os elementos do par investem nas suas carreiras profissionais ou na
216
Novas Formas de Família

parentalidade, desviando a atenção para assuntos de mais fácil


solução. A resolução dos conflitos e as questões de poder são
sanadas quando o casal atinge os sete ou mais anos de vida em
comum, entrando na fase da "fusão definitiva". Ao todo, esta etapa
pode durar uma dezena de anos;
• a segunda etapa caracteriza-se por uma fase de rotina, desentendi­
mento e vontade de separação. Em termos do senso comum, esta­
mos perante a chamada "crise dos quarenta", em que os elementos
do casal tomam consciência das divergências entre si e do desejo
.. de reencontrar a sua própria individualidade, até porque os filhos
já não estão disponíveis como elementos de triangulação. Neste
estádio, o par depara-se com quatro hipóteses alternativas: o casa­
mento termina (1) por anulação das personalidades ou (2) por
recuo para a individuação; o casamento mantém-se (3) centrado
nos filhos, devido às dificuldades e problemas dos mesmos, ou (4)
porque cada um dos membros do casal assumiu os riscos da sua
própria individuação dentro da relação, o que abre a possibilidade
de renovação relacional.
• chegado a esta etapa, o casal coabita há mais ou menos vinte anos.
É um período de empatia e de maior liberdade relacional mas que
também se caracteriza pela necessidade de preparação para novas
mudanças, como a reforma, os netos ou mesmo a ameaça de morte
de um dos parceiros.

A concluir lembramos o pensamento de Helen Fisher (1992, 36): "o


amor não dura toda a vida". A autora entende o amor romântico6 como
"uma invenção da natureza que tem como missão manter o casal unido com
o fim de procriar. [Este é] um sentimento muito primitivo que emergiu da
natureza animal e evoluiu até vir a complicar-se no ser humano" (Fisher,
1992, in Narciso, 1994, 23).

'Segundo H. Fisher (1992) este tipo de amor opõe-se ao amor amizade ou com­
panheiro e caracteriza-se pela presença da paixão, pressupondo uma intensa relação
apaixonada, um profundo envolvimento emocional, uma idealização do parceiro, uma
forte atracção sexual e admiração mútua. De notar que a expressão amor romântico
pode ter diferentes significações para outros autores, como por exemplo Giddens (1995)
ou Branden (1988) .
217
Casal, Casamento e União de Facto

Então, como explicar a existência de companheiros que vivem juntos


anos e anos e parecem felizes? Na opinião de Fisher, os casais em causa
deram preferência à conservação do casal, o que também oferece as suas
satisfações. Nesta fase "o nosso cérebro em vez de produzir os compostos
que estimulam a paixão na fase do enamoramento, segrega uma substância
que proporciona um sentimento de comodidade, paz e segurança" (Fisher,
1992, 36).

Qualidade Conjugal, Casamento e União de Facto:


um estudo comparativo

As investigações mais recentes sobre a família e o casal revelam, como


vimos, um movimento de desinstitucionalização e privatização que acom­
panha a transformação profunda das suas estruturas, o que dá origem ao
aparecimento e/ou ao reconhecimento de uma diversidade de estilos e for­
mas de conjugalidade (Kellerhals et ai., 1982; Almeida et ai., 1991;
Roussel, 1992).
É precisamente sobre uma destas novas formas de conjugalidade, con­
cretamente a coabitação ou união de facto (ver classificação de Bawin­
-Legros, 1992), prática adaptada por um número cada vez maior de ho­
mens e mulheres, que o presente estudo incide. De facto, estas estruturas
conjugais, quer na sociedade ocidental, em geral, quer em Portugal, em par­
ticular, assumem uma representatividade demográfica suficiente para se
justificar tanto a sua regulamentação jurídica (através do Decreto-Lei
135/99 de 28 de Agosto no caso português) como a necessidade do seu
conhecimento mais profundo em termos psicológicos.

Problema e Método

Assim, esta investigação surge a partir da formulação de uma questão,


aparentemente simples, que consiste em perceber como é que .os homens e
as mulheres que coabitam em união de facto vivenciam a sua ·conjugali­
dade, comparativamente com os casados. Contudo, como verificámos na
literatura, a relação conjugal é, em si mesma, uma área de elevada com­
plexidade. Será que toda a complexidade atrás descrita pode ser de algum
modo medida, equacionada e comparada empiricamente? Esta era a grande
218
Novas Formas de Família

questão e, simultaneamente, o desafio que se nos colocava como objectivo


de investigação. Para tal procurámos respostas.

Uma das respostas apontou, de imediato, para a necessidade de uma


análise comparativa entre amostras, uma de sujeitos casados e outra de
sujeitos vivendo em união de facto; outra conduziu-nos à escolha da
ENRICH - Escala de Enriquecimento & Desenvolvimento Conjugal,
Comunicação & Felicidade (Olson et al.,1982) - como instrumento funda­
mental de recolha de dados. Como é óbvio, esta escolha ficou a dever-se à
inte;acção entre a questão formulada e as características desta escala.
Este instrumento começou a ser construído nos EUA por David Olson e
colaboradores em 1981, resultando da necessidade sentida por estes de, por
um lado, avaliar potenciais questões problemáticas na relação conjugal
(finalidade preventiva) e, por outro, elaborar um instrumento que servisse
de diagnóstico, destinado a casais que procuram aconselhamento e
enriquecimento do seu casamento (intervenção terapêutica). Na versão
final esta escala é constituída por doze dimensões ou categorias, corres­
pondentes a outras tantas subescalas, que, na sua interacção e integração,
pretendem abarcar a multidimensionalidade da conjugalidade7 :

El - Distorção Idealística. Esta categoria avalia o nível de idealismo de


cada elemento do casal relativamente à união conjugal. Uma pontuação alta
indica um alto nível de idealismo, mais comum em casais solteiros. Uma
pontuação baixa indica uma visão mais realista da relação conjugal.
E2 - Satisfação Conjugal. Avalia globalmente o grau de satisfação e
compatibilidade do indivíduo com a maior parte dos aspectos da relação
conjugal - características da personalidade do parceiro, grau de respon­
sabilidade de cada um dos indivíduos na relação, nível de comunicação,
modo de resolver os conflitos, assuntos financeiros, tempos de lazer,
relação sexual, responsabilidades parentais, relações com a família e ami­
gos e orientação religiosa.

'Cada uma das dimensões é constituída por um conjunto de itens (10, à excepção
da EI com S itens). Pede-se a cada sujeito que avalie, através de uma escala Likert de
cinco pontos, o seu grau de acordo com cada um dos itens, enquanto descrição da sua
situação conjugal.
219
Casal, Casamento e União de Facto

E3 - Questões da Personalidade. Esta dimensão mede o ajustamento e


a satisfação do indivíduo com o comportamento do parceiro, nomeada­
mente com as suas características pessoais, comportamentais e, também,
com os seus hábitos alcoólicos e tabágicos. Uma pontuação alta indica um
adequado ajustamento ao parceiro e satisfação com o seu comportamento.
Uma pontuação baixa indica um baixo nível de aceitação ou mesmo falta
de bem-estar provocado pelo seu comportamento.
E4 - Comunicação. Avalia a percepção da comunicação na união con­
jugal, õu seja, o nível de conforto que cada indivíduo sente em poder par­
tilhar emoções importantes e sentir confiança no seu companheiro. Uma
pontuação alta indica o cuidado e a satisfação do casal com o nível e o tipo
de comunicação na relação. Uma pontuação baixa indica deficiência na
comunicação essencial para manter uma relação satisfatória.
E5 - Resolução de Conflitos. Esta categoria avalia as atitudes, os com­
portamentos e os procedimentos utilizados para resolver os conflitos na
relação e a satisfação sentida pelas soluções encontradas. Uma pontuação
alta indica atitudes realistas em relação aos conflitos e conforto na relação
de casal. Uma pontuação baixa sugere insatisfação com a forma como os
problemas são resolvidos e com a relação.
E6 - Administração Financeira. Esta dimensão avalia as atitudes e as
preocupações sobre o modo como as questões económicas são admi­
nistradas na relação do casal. Os itens medem a tendência dos sujeitos para
a economia e/ou para esbanjarem recursos e a sua preocupação com as
questões de débito e crédito. Uma pontuação alta indica satisfação com a
administração financeira e atitudes realistas em relação aos assuntos finan­
ceiros. Uma pontuação baixa indica preocupações várias com a situação
económica na relação do casal.
E7 -Actividades de Lazer. Esta categoria avalia as preferências de cada
indivíduo versus as preferências do casal, em relação às actividades de lazer
e às actividades sociais. Uma pontuação alta indica satisfação, flexibilidade
e/ou consenso acerca das actividades de lazer. Uma pontuação baixa indica
insatisfação com a maneira como o tempo de lazer é gasto pelo casal.
E8 - Relação Sexual. Avalia os sentimentos e preocupações do indiví­
duo em relação ao afecto, à sexualidade, ao planeamento familiar e à fide­
lidade sexual. Uma pontuação alta indica satisfação com as expressões de
afecto e a sexualidade na relação. Uma pontuação baixa indica insatisfação
nessas áreas, preocupação com o papel da sexualidade e/ou desentendi­
mento nas decisões relativas ao planeamento familiar.
220
Novas Formas de Família

E9 - Filhos e Casamento. Esta dimensão reporta-se às atitudes e aos


sentimentos do indivíduo em relação ao desejo de ter filhos e ao seu
número, à consciência, no casal, do impacto dos filhos no casamento e à sa­
tisfação das decisões quanto aos papéis parentais. Uma pontuação alta indi­
ca consenso, considerando a decisão de ter filhos, o tamanho da família
desejado, uma percepção realista do impacto dos filhos no casamento e sa­
tisfação pela forma como o papel dos pais e as suas responsabilidades são
definidas. Uma pontuação baixa indica o oposto.
El-0 - Família e Amigos. Esta categoria avalia os sentimentos e preocu­
pações do casal com os parentes, sogros e amigos, a forma como são senti­
das as atitudes dos amigos e familiares em relação ao casamento, as pers­
pectivas do tempo gasto com estes e o conforto que se sente na presença dos
mesmos. Uma pontuação alta indica uma relação confortável com a família
e os amigos. Uma pontuação baixa indica desconforto nessa dimensão,
sinalizada como potencial área de conflito.
El 1 - Igualdade de Papéis. Esta dimensão prende-se com as crenças, os
sentimentos e as atitudes do indivíduo em relação aos papéis conjugais e
familiares, tarefas domésticas e questões relativas ao sexo. Uma pontuação
alta revela partilha de papéis e de responsabilidades conjugais e familiares.
Uma pontuação baixa indica desarmonia e falta de satisfação nesta dimen­
são.
E12 - Orientação Religiosa. Esta dimensão avalia as atitudes, senti­
mentos e preocupações do indivíduo acerca da prática e crenças religiosas,
no contexto do casamento. Os itens concentram-se no significado e
importância da religião, no envolvimento das actividades da igreja e no
papel esperado que a religião terá no casamento. Uma pontuação alta
reflecte que a religião é uma componente importante no casamento. Uma
pontuação baixa indica desarmonia entre os dois indivíduos relativamente
ao papel da religião na sua relação conjugal.

Com este instrumento o avaliador obtém, portanto, um quadro com­


preensivo da relação conjugal. Como pudemos perceber, pontuações mais
altas nas diversas dimensões da escala significam que o sujeito tem uma
percepção mais satisfatória da sua relação conjugal, na respectiva dimen­
são, por oposição à obtenção dos valores mais baixos que apontam para
uma menor satisfação. Podemos ainda, e no mesmo sentido, ler a pontuação
global, extraída a partir do somatório das pontuações de todas as dimen­
sões, como expressão da Qualidade Conjugal global.
221
Casal, Casamento e União de Facto

Foi, então, necessano elaborar uma versão portuguesa da ENRICH8


(uma vez que desconhecíamos, à data, a sua utilização no nosso país) o que
foi feito pelos investigadores do projecto, seguindo os procedimentos
habituais nestes casos - tradução, retroversão e pré-teste [Maio/Julho de
1998) - até à definição da versão final. Depois de feito o estudo das quali­
dades empíricas da escala aplicada aos sujeitos da investigação, e procu­
rando uma maior fiabilidade dos resultados, foram eliminadas duas dimen­
sões da escala (El e E8) que ficou, então, reduzida a dez. Refeitos os estu­
dos d; fiabilidade os resultados revelaram-se aceitáveis, quer para cada
uma das amostras (casados, uniões de facto) quer para a amostra total (a. de
Cronbach com valores acima de .70 na quase totalidade das dimensões e na
escala total a.=.72), pelo que prosseguimos o estudo com as restantes dez
subescalas9 •
Para além da ENRICH aplicámos um Questionário, que construímos,
constituído por questões de resposta fechada e do qual se apresenta uma
descrição sumária:

• características sócio-demográficas - seis questões que investigam: a


idade do sujeito, sexo, nível de escolaridade, estado civil, profis­
são e existência ou não de independência financeira em relação ao
parceiro;
• características da relação familiar e conjugal - oito questões que
investigam: a situação familiar e conjugal do inquirido, número de
filhos, duração da relação conjugal, adopção do sobrenome do
cônjuge, história conjugal, regularidade da coabitação, existência
ou não de doença crónica por parte de um dos cônjuges e religião.

Com efeito, sabíamos teoricamente que estas poderiam ser algumas das
variáveis, intrínsecas e extrínsecas, potencialmente interferentes nos resul­
tados obtidos através da ENRICH e que, como tal, deveriam ser conside­
radas e, de algum modo, controladas.

'Este trabalho foi feito em colaboração com E. Marques, investigador que utilizou
o mesmo instrumento no estudo conducente à sua dissertação de Mestrado (Marques,
2000).
• Para uma análise mais detalhada do estudo empírico da escala efectuado neste tra­
balho, consultar Silva (1999).
222
Novas Formas de Família

Recolha da Amostra

Recordemos que a primeira resposta para a nossa questão inicial apon­


tou para a necessidade de uma análise comparativa entre duas amostras
(sujeitos casados e sujeitos em união de facto), emparelhadas nalgumas va­
riáveis que considerámos fundamental controlar à partida, o que condicio­
nou a selecção dos sujeitos em estudo.
A recolha da amostra centrou-se, assim, numa primeira fase, nos
sujeitos em união de facto e foi efectuada através de um processo de "bola
de neve". Estes foram, portanto, seleccionados através de um processo de
referências múltiplas e/ou através da indicação dos inquiridos que íamos
conhecendo. Os critérios de selecção da amostra pressupunham que os
indivíduos em união de facto vivessem essa relação há pelo menos um ano,
assumissem este tipo de relação conjugal como uma opção não transitória
e aceitassem participar, voluntariamente, na investigação.
Após a recolha da amostra acima referida, passámos à recolha da
amostra casados, procedendo, como ficou dito, ao seu emparelhamento nas
seguintes variáveis: sexo, idade, nível de escolaridade, número de filhos, e
considerando, evidentemente, o critério de duração mínima de um ano de
casamento.
Participaram neste estudo 76 sujeitos de ambos os sexos: 40 em união
de facto e 36 casados. A recolha de dados realizou-se na zona centro da
país, por um período de quatro meses (Setembro a Dezembro de 1998) e foi
efectuada por uma das investigadoras. Quanto aos restantes procedimentos,
é importante referir que se seguiu o critério do anonimato das respostas ao
protocolo e, ainda, que o tempo médio de aplicação foi de 50 a 60 minu­
tos'º.
Desta descrição do estudo ressalta a inevitável natureza exploratória e
descritiva do mesmo, bem como a não pretensão de generalização dos seus
resultados, o que se articula com o objectivo de enunciar outras questões
abrindo portas a futuras investigações.

10 A aplicação dos instrumentos foi ordenada do seguinte modo: 1) Questionário de

dados sócio-demográficos/relação conjugal e 2) ENRICH.


223
Casal, Casamento e União de Facto

Caracterização dos Participantes - Questionário

Em relação aos dados sócio-demográficos, como seria previsível, as


duas amostras só diferem significativamente (p<0.00) em relação à variá­
vel estado civil (Tabela 1).

Tabela 1 - Características sócio-demográficas

Vàrf&vels Amostra T{>tal UnlcklsAe FactQ casados Diferença


�n,.7(>) tn=40) \n.,36) ttulões-de
FactofCa-
r.ul.�«fl
n % l1 % 11 %
ldade4aMs)
tt-30 33 43.4 17 42.S 16 44.4
31-40 24 31.6 13 n,s. li 30.ó
•H-Rl 11' l97 8 20,0 7 194 n,�,
,-5,1 4 .s.:, 2 s,o 2 5:6
"""'M,3 """"34.2 ns�M.4
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nláx.=&1 t>W(.""5!( m:b<.=SJ
'11l!l. mt!M!iM gw11li¼
Sexo
Ma�«..ul,no 32 42.1 17 42.5 15 41.7 n s.
Feminino 44 57.9 23 57.5 21 58.3
&tado-Civft
\ C1»&<k> 3(, 47.4 36 100 0.00,1
SolJcln> ?,7 3$5 'Jll 61/S
Divor•ta4<> H !4S n TI.S
'ftQvç t M t j\Q
Nível de
escolaridade
obrigatório 16 21.1 9 225 7 19 4 n \ô,
secundário 32 42.1 17 42.5 15 41.7
superior 28 36.8 14 35.0 14 38.9
i\i,.,t,5S80
.•••
1• gro{'O Z2 29 12 30,0 10 27.8
2"grupo 5 6;6 4 10,0 l 2·,s
º
35,0 w 52.S
*�-
3 grupi, 33 43,4 14
4'' g,upo 7 lU 4 10,0 3 8.3
5" grllf'O 2 2,6 1 2.5 2,8
e,• grup,, 1 1.3 l :u
.,. grup,1 4 5.3 3 75 2,�
S" g,\lJ)O 2 '2,6 1 2.S 2.8

Independência
Financeira
sim 68 89.5 36 47.4 32 42 1 11.",,
não 8 10.5 4 5.3 4 5.3

* Esta variável foi definida segundo a classificação das profissões do Instituto


Nacional de Estatística (1994). Os números correspondem aos grupos profissionais
incluídos nesta classificação. Assim o grupo 1 inclui o "pessoal de profissões científi­
cas. técnicas, artísticas e de profissões similares"; grupo 2 - "directores e quadros
224
Novas Formas de Família

Os sujeitos têm uma média de idades à volta dos 34 anos, são maiori­
tariamente do sexo feminino, embora haja uma percentagem relevante de
inquiridos do sexo masculino. O nível de habilitações literárias mais fre­
quente é o secundário, seguido do superior, este mais representado na nossa
amostra do que o obrigatório; as profissões dos sujeitos situam-se, maio­
ritária e respectivamente, nos serviços administrativos ou profissões simi­
lares e áreas técnico-científicas; os inquiridos são, na sua grande maioria,
independentes financeiramente em relação ao cônjuge. Estamos, portanto,
pelante uma amostra, em média, relativamente jovem e de classe
média/média-alta, o que se enquadra na definição de união de facto pro­
posta por Bawin-Legros (1992).

No que se refere aos dados familiares, religiosos e da relação conjugal


(parte II do Questionário) as duas amostras só diferem significativamente
em relação às variáveis história conjugal (p=0.001) e religião (p=0.05)
(Tabela 2), apresentando a amostra dos sujeitos em união de facto uma
maior diversidade de trajectos conjugais e um maior número de agnósticos.
Na maior pa1te dos casos, a presente relação conjugal mantém-se há mais
de seis anos e é a primeira do sujeito, o casal coabita permanentemente, não
há história de doença crónica no cônjuge e a sua religião é católica. De notar,
ainda, a distribuição regular dos sujeitos pelas diferentes categorias de anos
de relação conjugal e o grande número de casais sem filhos.

Análise e Discussão dos Resultados

Na exploração, análise e interpretação dos dados, foram considerados


três níveis fundamentais:

• estudo dos valores obtidos por sujeitos casados e em união de facto


nas dimensões da conjugalidade avaliadas pela ENRICH;

administrativos"; grupo 3 - "pessoal administrativo e trabalhadores similares"; grupo 4


- "pessoal do comércio e vendedores"; grupo 5 - "pessoal dos serviços de protecção e
segurança, dos serviços pessoais, domésticos e trabalhadores similares"; grupo 6 - "tra­
balhadores das indústrias extractivas e condutores de máquinas fixas e de transporte";
grupo 7 - "trabalhadores não qualificados, independentes, comércio e serviços"; grupo
8 - "pessoal das forças armadas".
225
Casal, Casamento e União de Facto

Tabela 2 - Características familiares, religiosas e da relação conjugal

VM!á•els An1ostn1 Tt>W Uowes dl: tl'UUI Casados Dlftrença-OruOet


de•J>actotCa:<ados
c....1�, {o=40) (n"'36J (!')
n 'Õ 'Ã' D 'l,

sm,ação ConJuJlai
L'nilloti,fa,;w 40 su; 40 52.6 ••
e�� Jfi 4h4 J§ 41.4

Duração da relaçllo conjugal;


1·3 anos 20 274 13 333 20.6
4--6anos 18 247 12 30 8 6 176 ns
7.9 anos 17 23.3 IS.O lO 294
;, !O anos IS 24 7 18.0 li 324

fllstória O>'l)u�al
uniã<>- defoeto 29 40·3 '1:1 7-lJ 2 5,9
ca""""""' 29 40.3 o o.o 29 853
tca,,+,Ju.!o,;;u., H ISJ JO 16.3 2.9 0.001
lcM +lu. f<lOll:l M 2.6 o o.o
u o
ºº
2u.fucto+lco.. 00 29
l\!d!ls!!'t1� u !1
Número de Olhos
�mÍl.lhos 49 65.3 27 675 n 628
o.1mumfüho 12 16.0 7 17 5 14.3 us
com dq1s filhos 14 187 6 150 22.9

Adopçf;o<lo narue do<&tjuge


,lm }4 40 }4
QIIS/ li � ii ©
Doença crónica de um cônjuge
sun 6 81 75 88 D'

ollo 68 91.9 37 92.5 31 912

Coa�o
pc:m1.mentc 64 �li 35 897 29 90.6 R4,

li;;�g�!!Jr 7 � 1 � 3 M
Religião
Catllhcn 55 73.3 25 641 30 83.3 005
Agnóstico 20 26.7 14 35.9 6 16.7
226
Novas Formas de Família

• análise da relação entre a percepção dos sujeitos sobre a sua conju­


galidade (ENRICH) e as variáveis sócio-demográficas e rela­
cionais avaliadas através do Questionário;
• definição de "núcleos" estruturais, organizadores de conjugalidade
em cada grupo de sujeitos.

.
Valores da Qualidade Conjugal e Respectivas Dimensões: ENRICH

Feitos os necessários testes estatísticos, os resultados da ENRICH para


as amostras uniões de facto e casados permitem-nos afirmar que os valores
mais elevados são comuns nas duas amostras, independentemente do esta­
do conjugal em que os sujeitos se encontram. Apresentam, portanto, perfis
idênticos (Gráficol). Quer uns quer outros sentem-se mais satisfeitos com
o nível e tipo de comunicação existente na díade (E4), bem como com a
gestão dos recursos financeiros (E6). O terceiro aspecto da relação em que
os sujeitos se sentem mais satisfeitos é diferente nas duas amostras: os
inquiridos em união de facto sentem-se mais satisfeitos com o modo de re­
solução de conflitos (ES), enquanto os casados sentem os aspectos de per­
sonalidade do seu parceiro de forma mais satisfatória (E3).
Em relação às maiores dificuldades, estas são, de novo, comuns aos dois
grupos e situam-se no consenso em relação aos filhos (E9), religião (El2)
e famaia e amigos (ElO).

45 .---------,o;=====:::--i
40
35 �---.,e_,"-------<
30 t---;;ni,e._;�::::;,!::4;:----j--=-,.,--'
25
20
15 +----------�c--.,,P!!-'.,:__-_.:,t----4
10�-------�----=-------I
5 �------------------""
0-1----------------------

Gráfico 1
227
Casal, Casamento e União de Facto

Destes resultados podemos extrair, desde logo, uma primeira conclusão:


quer numa amostra quer na outra, as áreas de maior satisfação reportam-se
a aspectos mais internos à própria díade, enquanto as dimensões que reve­
lam mais dificuldades se referem à relação do casal com os outros.

Tabela 3 - Resultados: ENRICH

I
DIMENSÕES Uniões de Facto Casados
1
.. médíu b.í>. 1-11.édin ê.P.
Satisfação Conjugal (E2) 22.9 5.14 23.5 4.1
A•ctoS>da P-er-s<maíidade (ll,3') 2'4.4 ?.l 1 i,1 6."t
tí m 1 ãf a
liesolução de Conflitos (S-5) !-5.4 59 1 26.7 5.8
Administrnção Financeirn (E6) 28.8 6.7 30 5.9
1
AisúvJ(Íades de.Lazer (4t'i) 20.4 5.5 l 1;1.4 4.3
Filhos e Casamento (E9) 12.7 li 12.3 11.9
1
Famiila,e Amlgos,@il•&) !•fü9 4,4
l ,u 3.64
Igualdade de Papéis (EI J) 24.I 5.1 1
25.3 4.6
Ôrientaçi1o Religiosa (E lÍJ l'S.5 6.8 1 k8.1 6.6
1
J
Nota: o sombreado destaca as dimensões cujas médias, obtidas pelas duas amostras, se diferen­
ciam significativamente.

Calculando a significância das diferenças entre os dois grupos indepen­


dentes (Uniões de Facto vs Casados) (Tabela 3), através do teste Mann­
-Whitney, constatamos a existência de diferenças significativas, para
p<0.05, nas dimensões Comunicação (E4) e Qualidade Conjugal -
ENRICH total. Ou seja, as diferenças encontradas apontam no sentido de
uma maior satisfação com a comunicação na relação e melhor qualidade
conjugal por parte dos sujeitos casados. Relativamente às restantes dimen­
sões, verificamos que não existem diferenças significativas entre os
sujeitos. De salientar que, independentemente da significância estatística
dos resultados e à excepção da subescala Filhos e Casamento, os sujeitos
em união de facto apresentam, em todas as dimensões, valores inferiores
aos casados.
228
Novas Formas de Família

Relação Entre os Dados da Conjugalidade (ENRICH) e as


Características Sócio-Demográficas e Relacionais (Questionário)

Pretendemos, em seguida, saber como é que os resultados obtidos na


ENRICH, pela amostra total 11 , se diferenciam em função das variáveis
sócio-demográficas, familiares, religiosas e da relação conjugal.
Para tal, procedemos à análise da variância através dos adequados testes
estatísticos 12 • Apresentamos os resultados que revelaram significância
eslatística (p< O.OS) na Tabela 4.

Tabela 4 - Variância: variáveis demográficas x ENRICH e dimensões

Dimensões
/ Ens. Obrigatório Aspectos de Personalidade (E3)
Nível de Escolaridade / Ens. Obngatório Comunicação (E4)
/ Ens. Superior Actividades de Lazer (E7)
/ Ens. Superior Filhos e Casamento (E9)
Nclmero de Piihos Filh� é'.:asamento-(E9)
Duração da Relação / 4-6 anos de relação Comunicação (E4)
ConJugal / 1-3, 4-6 e 7-9 anos de Filhos e Casamento (E9)
relação

Ádopçãodo Nome do Alho� Ôlsamento (Ê9)


Cônjuge Rcsoluçffo de-Cooflitos (E5)
Religião Orientação Religiosa (E 12)

iodepen<Íênc1a . éN'Rfcà (totaô


Financeira

Nota: na coluna do meio indicam-se as categorias das variáveis demográficas que fazem variar sig­
nificativamente os valores das escalas; destacam-se a sombreado as que apresentam médias mais
elevadas nas dimensões da ENRICH que lhes correspondem na última coluna.

Optámos por fazer estes estudos com os dados da amostra total, uma vez que as
11

duas amostras, como seria previsível no que se refere a este tipo de variáveis, só variam
significativamente em função das variáveis Estado Civil e História Conjugal.
"Mann-Whitney U para as variáveis: sexo, situação conjugal, adopção do nome do
cônjuge, religião, coabitação, doença crónica de um cônjuge e independência financeira;
Tukey HSD para as variáveis: nível de escolaridade, estado civil, número de filhos.
duração da relação conjugal e história conjugal; Unequal NHSD para a variável profissão.
229
Casal, Casamento e União de Facto

Da análise da Tabela 4 concluímos que, de todas as variáveis sócio­


-demográficas consideradas, o nível de habilitações literárias dos sujeitos é
a que mais vezes faz diferenciar os resultados das dimensões da ENRICH.
Observamos que os indivíduos do nível médio (ensino secundário/12.º ano)
obtêm melhores resultados no que se refere à satisfação e ajustamento às
características de personalidade do parceiro, ao conforto com a comuni­
cação conjugal e ao consenso sobre as actividades de lazer do casal. Pelo
contrário,
• o nível inferior de habilitações literárias relaciona-se, significati-
vamente, com melhores resultados no que diz respeito ao consenso sobre o
tema filhos o qual, por sua vez, também melhora com outra variável
demográfica, isto é, com a existência de filhos (1 ou 2).
Pode colocar-se a hipótese que estas conclusões traduzam a transfor­
mação de valores ocorrida na classe média, nomeadamente no que se re­
fere ao estatuto dos papéis masculino e feminino na família e na sociedade,
o que como vimos se associa, por seu turno, à própria evolução dos valores,
expectativas e características da conjugalidade.
Constatámos, ainda, que a comunicação nos casais mais recentemente
formados é mais satisfatória do que nos casais cuja duração da relação está
compreendida entre os 4 e os 6 anos. De facto, embora as diferenças não
sejam significativas em relação aos restantes períodos considerados neste
estudo n, o período que medeia entre os 4 e os 6 anos de relação é o que evi­
dencia, entre todos, maiores dificuldades de comunicação. Pensando no
ciclo de vida do casal, também no nosso estudo se confirma que passados
os primeiros momentos de "encantamento" com a conjugalidade, ainda na
primeira etapa desse ciclo evolutivo as dificuldades emergem e, como sua
expressão, a comunicação no casal torna-se uma área problemática.
Por outro lado, a duração da relação conjugal associa-se ao nível de con­
senso do casal relativamente à decisão de ter filhos e ao seu número, bem
como à sua satisfação em relação ao papel e responsabilidades enquanto
pais, que aumentam no grupo de duração máxima da relação �10 anos).
Confirma-se que esta é uma questão que se ultrapassa ou se esbate com o
tempo, pois, para além de estar de acordo com o que vimos na revisão da
literatura, é lógico pensar que, por esta altura, a fase mais difícil relativa­
mente à articulação conjugalidade/parentalidade já terá ficado para trás.

" As médias (E4) encontradas foram as seguintes: 1-3 anos/m.= 40; 4-6
anos/m.=32.6; 7-9 anos/m. =37.2 e 10 anos ou mais/m. = 35.7.
230
Novas Formas de Família

Observamos, também, que não adoptar o apelido do cônjuge (evidente­


mente estamos a pensar nos sujeitos casados) se correlaciona com uma
melhor resolução dos conflitos e dos assuntos ligados aos filhos. Será que,
neste caso, os indivíduos em causa são predominantemente do sexo mas­
culino? Com efeito, sabemos que tradicionalmente é a mulher que adopta o
apelido do marido e, a ser assim, as diferenças dos dois sexos na abordagem
da conjugalidade, nomeadamente no que se refere à significação da intimi­
dade e da gestão dos conflitos, pode fazer algum sentido, reforçado pelo
fa<'to de que as tarefas e responsabilidades da parentalid?-de continuam, em
grande medida, a ser atribuídas à mulher. Contudo, também é verdade que
na análise estatística efectuada verificámos que nenhuma destas caracterís­
ticas varia, especificamente, em função do sexo.

Em síntese, podemos então concluir que as variáveis sócio-demográfi­


cas, familiares, religiosas e da relação conjugal que não fazem de todo va­
riar os valores da ENRICH são: sexo, profissão, coabitação e doença cróni­
ca de um cônjuge. Por outro lado, constatamos que há dimensões que pare­
cem independentes das variáveis sócio-demográficas, pelo menos nesta
análise e nestas amostras. Referimo-nos à Satisfação Conjugal (E2),
Administração Financeira (E6), Família e Amigos (Elü) e Igualdade de
Papéis (Ell). Por outro lado, como tivemos oportunidade de ver, a variá­
vel demográfica que mais faz variar os resultados da ENRICH é o nível de
escolaridade, enquanto a duração da relação conjugal se revela importante
ao interferir na satisfação com a comunicação no casal.
De novo recordamos que estas são conclusões referentes aos sujeitos do
estudo na sua globalidade, não considerando a distinção casados/uniões de
facto, pelo que exprimem dados das relações conjugais em geral.

Variáveis Preditoras das Dimensões da Qualidade Conjugal

Tendo analisado a forma como os resultados da ENRICH se diferen­


ciam em função das variáveis avaliadas pelo Questionário, no sentido
de aprofundar este estudo quisemos saber até que ponto essas variáveis
permitem predizer os resultados obtidos pelos sujeitos na ENRICH
(total e por dimensão), agora considerando as duas amostras em separa­
do.
Para tal, efectuámos equações de regressões lineares múltiplas, em que
os resultados da ENRICH foram considerados a(s) variável(eis) depen-
231
Casal, Casamento e União de Facto

dente(s) e às variáveis sócio-demográficas e familiares/conjugais foi


atribuído o estatuto de variáveis independentes (Tabelas 5 e 6).

Tabela 5 -Uniões de facto: Regressões Múltiplas

ENRICH / Dimensões Variável Demográfica Valores da Regressão


MU CVl}
S atisfação Conjugal (E2) Número de filhos F(12,27)= 1.1749 p<.03 R 2=.34 (-)

Àct?vidades de Lazer (87) . Estado civil F(l2.27)'=.94Õó2 p<.Ó4 R2=.29 <+>


Filhos e Casamento (E9) Número de Filhos F(l2,27)=1.0719 p<.02 R 1=.32 (+)

Igualdade de Papéls(Ét 1) Independência Pinanceira F{l.2,27)=l.3440p<:04 R2,;J7 (-)

Nota: o sinal entre parêntesis refere-se ao valor de B, ou seja, indica o senti do da correlação.

Tabela 6 - Casados: Regressões Múltiplas

ÉNR.ÍCH / Dimensões V'l!rÍilvel Demográfica Valores da Regressão


(Vp) !YB
Religião
Salisfação Conjugal (E2) Número de filhos F(4.29)=1 l ,696 p<.001 R 2=.62 (-)
Doença crómca do cônj.
Independência financeira
Aspectos,& Personalidade (B3l Independência financeira
Relígião
Duração da relação (•)
Resolução de Confütos (E5) Profissão (·) F(9.24)=3.5648 p<.006 R2=.57
Idade (+)
Religi1io
NÚint'ro de filhos
Administração Fínanceira truí) Sobrenome do cônj. F(7.26}=4.9479 p<;OO! R 2>-.57 (-1
Nível de escolaridade
Independência financeira
Acuvidades de Lazer (E7J Idade F(2,31)=2.2475 p<.05 R2=.13 (·)
Número de !Tihos t+)
Fdhos e Casamento tE9,) Coabitação{->
Sexo í-+)
Família e Anugos (E 10) Número de filhos F(7.26)=3.676 I p<.0068 R 2= 50 (-}
Ígu;!Ítladede P{l-pé•� (Eí LJ · . H1stóríq COllJUgal .. FÇ6.2'1)=2.6554 p<.Õ�7 iri:,.51 <+}
Onentação Rehg1osa (E12) Religião F(3.30)=2A807 p<.08 R 2=.20 (·)

Nota: o sinal entre parêntesis refere-se ao valor de B, ou seja, indica o sentido da correlação.
232
Novas Formas de Família

Perante estes dados e numa leitura mais macroscópica, retiram-se, de


imediato, duas conclusões genéricas: a qualidade conjugal global (escala
total) não é predizível a partir de qualquer das variáveis demográficas em
análise; as variáveis preditoras na amostra Casados são em muito maior
número do que nas Uniões de Facto, evidenciando redes complexas de
inter-influência.
Da primeira conclusão podemos, indirectamente, confirmar algo que ao
longo da discussão da literatura viemos afirmando: a conjugalidade, bem
como a sua qualidade, é, em si mesma, multidimensional e complexa, pelo
que nenhuma nem nenhum grupo de variáveis de carácter externo (pelo
menos das consideradas neste estudo e relativamente a estas amostras) pos­
sui "força" suficiente para permitir a sua predição. Por outras palavras, a
qualidade conjugal na sua globalidade não parece, de modo relevante e sig­
nificativo, dependente deste tipo de condições de maneira a que, a partir
delas, possamos fazer inferências com alguma validade e segurança.
Recordamos que para alguns autores (Hendrick, Hendrick e Adler, 1988)
estas variáveis seriam relevantes na estabilidade/instabilidade da relação.
Sobre essa relação concreta, o estudo que efectuámos pouco nos permite
dizer. Contudo, também na altura tivemos o cuidado de clarificar que, em­
bora admitamos que qualidade, satisfação e (in)estabilidade conjugal se
interligam, tendo afirmado, concretamente, que as duas primeiras serão
aspectos intervenientes na terceira, estas três facetas da relação conjugal
não podem ser entendidas de modo indiferenciado ou equivalente.
A segunda conclusão faz pensar que, tal como são avaliadas pela
ENRICH, as dimensões da qualidade conjugal nos sujeitos casados se pren­
dem, de uma forma interactiva e complexa e em maior número e grau",
com as características mais externas da relação, por contraste com o que
acontece nos indivíduos em união de facto. Se, efectivamente, a qualidade
conjugal nestes últimos é menos predizível a partir deste tipo de condições,
então toma-se legítimo inferir que, aí, os aspectos mais intrínsecos à
relação são centrais na definição/percepção da vivência conjugal. Tal facto
constituir-se-ia, assim, como uma singularidade dos casais em união de
facto, aliás consonante com os dados da literatura que apontam o seu dese­
jo de "desinstitucionalização" e de valorização íntima dos vínculos que os

" Esta leitura, referente ao grau de influência, repo11a-se aos valores de R' das
equações de regressão que, como é sabido, nos indicam a percentagem em que a variável
independente prediz a variável dependente, mantendo constantes as restantes condições.
233
Casal, Casamento e União de Facto

unem. Relembremos que Kauffman (1993) afirma que, para os indivíduos


que optam pela união de facto, o importante são os laços interpessoais, a
sua qualidade e autenticidade e a satisfação que cada um dos elementos
retira da relação, estando assim muito menos concentrados ou interessados
em aspectos formais ou materiais.
Entrando numa análise de mais pormenor constatamos que, em ambas
as amostras, o número de filhos é um bom preditor, em sentido inverso, da
satisfa,ão conjugal (ou seja, a satisfação diminui com o aumento do
número de filhos), o que confirma os dados da literatura. Outro dado inte­
ressante reporta-se à independência financeira do sujeito relativamente ao
parceiro a qual, nas uniões de facto, permite predizer maior consenso no
que se refere à igualdade de papéis no casal, enquanto nos casados prediz
a satisfação conjugal, a satisfação com os aspectos de personalidade do par­
ceiro, bem como com a gestão das questões financeiras pelo casal. Por sua
vez, nos casados, a partilha de papéis e responsabilidades conjugais e fami­
liares (igualdade de papéis) mostra-se ligada à história conjugal, nomeada­
mente à existência prévia de mais do que uma união conjugal. Parece assim
poder concluir-se que, para os sujeitos casados, a igualdade de papéis tem
mais que ver com experiências relacionais que podem ter funcionado como
uma aprendizagem para uma vivência diferente da conjugalidade. enquan­
to nas uniões de facto a independência dos parceiros, nomeadamente finan­
ceira, é fundamental para essa igualdade.

De todos os outros dados constantes da Tabela 6, isto é, da amostra


casados, sublinhamos, somente, três aspectos: 1) o número de filhos é fac­
tor de predição das relações com a família e amigos (é mesmo o único pre­
ditor desta dimensão) e da gestão dos aspectos financeiros, sempre no sen­
tido em que o maior número de filhos permite prever maiores dificuldades
nessas dimensões, o que não surpreende; 2) duas variáveis temporais
emergem como preditoras da dimensão resolução de conflitos. Falamos da
duração da relação conjugal e da idade do sujeito. Contudo, o sentido da
previsão parece, de algum modo, paradoxal, pois enquanto uma maior
duração da relação se liga a maiores dificuldades nessa área, o aumento da
idade do sujeito prediz o inverso. Parece-nos que aqui pesará, por um lado,
o efeito dos primeiros anos de casamento, a que chamámos de "encanta­
mento", e, por outro, o factor idade, enquanto expressão de avanço no ciclo
de vida do casal que se caracteriza pela maturidade e compreensão na sua
terceira e última fase. A ser assim, não haveria entre estes dados incompa-
234
Novas Formas de Família

tibilidade, mas antes complementaridade; 3) o sexo só permite predizer a


satisfação relativamente à dimensão filhos e casamento, mais elevada no
caso das mulheres. Será que, como afirmam Carter, McGoldrick e cola­
boradores (1989), em última análise são as mulheres que tomam as decisões
neste aspecto e, muitas vezes, contra o que é o desejo dos homens? Será que
o facto de que as mulheres continuam a ter um papel fundamental na edu­
cação dos filhos tem aqui algum peso? Recordemos que nesta dimensão se
incluem aspectos como satisfação com a decisão de ter filhos, com o
número de filhos que se deseja, com o desempenho dos papéis parentais e
uma percepção (ir)realista do impacto dos filhos no casamento.

Estrutura Dimensional dos Dados

A concluir esta investigação pareceu-nos, ainda, pertinente saber se os


resultados obtidos na ENRICH (10 dimensões), pela amostra Casados e
pela amostra Uniões de Facto, se diferenciavam em termos da sua própria
organização estrutural. Para tal, efectuámos análises factoriais para
extracção dos componentes principais com rotação Varimax, em cada
amostra. Vejamos os resultados (Tabelas 7 e 8).

Tabela 7 - Análise Factorial em Componentes Principais. Sujeitos Casados


Subescala I,'actor l 1''actor 2
E2 .822 • -.094
E3 . 820 • .142
E4 .805 • -.219
E5 .825 • -.180
E6 653 015
E7 .630 .213
E9 -.304 .659
EI0 .602 -.336
EII .471 -.304
E12 .314 .834 •
Prp. Tota-1 .428 i49
Variância Ib.pl. 4.27,8 1.489

(Marked loadings are >.700)


235
Casal, Casamento e União de Facto

Observando as tabelas e os gráficos constatamos que, utilizando um


critério bastante rigoroso de contribuição da subescala para o factor (tal como
assinalado >.70, o que significa uma explicação de cerca de 50% de variân­
cia do factor atribuível ao item), verificamos que as duas amostras se dife­
renciam, apesar de em ambas encontrarmos uma estrutura bidimensional.
Com efeito, nos sujeitos casados o Factor 1 agrega as dimensões mais
intríns�cas à conjugalidade (satisfação conjugal, aspectos de personalidade
do parceiro, comunicação e resolução de conflitos), enquanto nas uniões de
facto se lhes associam, também, a administração financeira, actividades de
lazer e as relações com a família e amigos. Em ambas o Factor 2 inclui os
aspectos religiosos e a sua influência na relação. Contudo, nos sujeitos em
união de facto encontramos, incluída neste factor, a dimensão igualdade de
papéis, embora no pólo oposto à religião, o que significa que estes dois
aspectos se associam inversamente. Por outras palavras, "quanto mais"
agnósticos se afirmam os sujeitos menor a sua satisfação quanto à igual­
dade de papéis.

Tabela 8 - Análise Factorial em Componentes Principais. Sujeitos em Uniões de Facto

Subescai:a �ctor 1 Facror í

E2 .843 • .132
E3 .800 • ·.102
E4 .889 * .112
E5 .861 • .109
E6 .827 * ·.235
E7 .788 * .192
E9 -.244 -.320
El0 .820 * -.075
Elt .245 -.878 •
E12 . 0431 .759 •
Pfli 'rotai .498 .tf>O
\4ariãncia Bxpl. 4.o/84 1.560

(Marked loadings are >.700)

Diríamos, então, que a qualidade conjugal apresenta em ambas a.mostras


uma espécie de "núcleo duro" que é diferente numa e noutra: enquanto nos
236
Novas Formas de Família

casados ele se constitui agregando as dimensões que consideramos os


aspectos do nós do casal mais intrinsecamente ligados à vivência afectivo­
-emocional do eu e do tu, nas uniões de facto esse núcleo alarga-se às áreas
de carácter mais social do nós. Ou seja, nos sujeitos em união de facto a
avaliação da conjugalidade aparece menos centrada nos aspectos do eu e tu,
alargando-se ao eu, tu e os outros. Este dado, que pode ser entendido como
outra singularidade deste tipo de união por oposição à "tradicional", con­
du�nos a duas leituras alternativas, mas não exclusivas: 1) a díade está,
aqui, mais liberta e mais capaz de aceitar o papel dos outros na sua relação
ou 2) essa aceitação comporta um carácter defensivo relativamente ao
necessário confronto entre o eu e o tu, facilitando, indirectamente, uma
maior preservação da individualidade de cada um.
Se formos um pouco menos rigorosos na análise (situando o peso mí­
nimo de contribuição da dimensão para o factor em valores >.60) as dife­
renças esbatem-se. Seja como for, parece claro que em ambos os casos a
religião se destaca como uma questão à parte na conjugalidade. De assi­
nalar, ainda, que a dimensão filhos e casamento (que na leitura anterior não
aparecia, com relevo, em nenhum dos factores em ambas as amostras) con­
tinua sem emergir nas uniões de facto, enquanto nos casados se enquadra,
nesta segunda leitura estatística, no Factor 2, ou seja "ao lado" da religião.
Quer isto dizer que os sujeitos tendem sempre a isolar a parentalidade em
relação ao que parece ser o cerne da sua conjugalidade.

Conclusões

Os resultados obtidos neste estudo empírico, permitem, de algum modo,


traçar um quadro compreensivo acerca da vivência conjugal dos sujeitos
em união de f acto versus casados legalmente.
Como pudemos constatar, as amostras são constituídas, em termos
médios, por indivíduos com cerca de 34 anos, pertencentes a ambos os
sexos, detentores do ensino secundário, trabalhando na área dos serviços, o
que corresponde, em termos de posição social, à classe média. Têm inde­
pendência financeira relativamente ao cônjuge, muitos vivem pela primeira
vez uma relação conjugal, não têm ou têm poucos filhos, o cônjuge não
sofre de qualquer doença crónica, quase todos coabitam em permanência e
são, na generalidade, católicos.
237
Casal, Casamento e União de Facto

Diferenciam-se, significativamente, em termos de estado civil, da sua


história conjugal e da comunicação e qualidade conjugal global (as duas
últimas avaliadas através da ENRICH), revelando os sujeitos casados me­
lhor comunicação na relação e maior qualidade conjugal.
Os maiores problemas situam-se, quer para uns quer para outros, no
consenso relativo aos filhos e à família/amigos. Constatámos o que já
sabíarflos através da pesquisa bibliográfica - "a preocupação com os filhos
e o cansaço a ela inerente surgem como responsáveis, não só pela
diminuição da satisfação (menos tempo para a intimidade, tempos livres e
comunicação entre os elementos do par) como também parecem exercer
um efeito negativo na relação que o casal mantém com a sua família e ami­
gos" (Kurdeck, 1993, in Narciso, 1994, 69). No que se refere à religião, os
resultados obtidos vão de encontro ao que é postulado por Gottman (l 993),
isto é, as crenças religiosas tendem a ser disfu ncionais e levam à insatis­
fação conjugal. Todavia, os resultados variam em função do número de fi­
lhos do casal, sendo o impacto da religião na relação conjugal tanto maior
quanto maior é o número de filhos.
Por outro lado, é interessante verificar que, atendendo ao nível de esco­
laridade, os sujeitos se diferenciam em relação à satisfação em diversas
dimensões da conjugalidade: os detentores do 12. 0 ano de escolaridade re­
velam maior ajustamento/satisfação com as características pessoais e com­
portamentais do parceiro, melhores níveis de comunicação e maior con­
senso com o parceiro em relação às actividades de lazer, por oposição à
falta de acordo no que se refere à decisão de ter filhos e responsabilidades
implícitas. No que diz respeito a esta última dimensão, são os sujeitos
detentores do ensino obrigatório quem demonstra maior compatibilidade
com o parceiro, bem como aqueles casais cuja duração da relação conjugal
é igual ou superior a dez anos. Estes últimos são casais que podem, even­
tualmente, situar-se no período que se caracteriza pela empatia e maior
liberdade para o casal e respectivos filhos.
A propósito dos sujeitos da amostra, com e sem filhos, é de salientar: 1)
que os primeiros se diferenciam, significativamente, daqueles que não têm
filhos, demonstrando maior consenso relativo às suas responsabilidades
enquanto pais e maior consciência do impacto dos filhos na relação conju­
gal; 2) o facto de estarmos perante amostras emparelhadas a partir das
uniões de facto, o que, em nossa opinião, poderá justificar o elevado número
de casais sem filhos relativamente à média nacional (65.3% contra 32%,
respectivamente). Contudo, não podemos deixar de questionar se a razão
238
Novas Formas de Família

deste facto estará somente directamente relacionada com o emparelhamento


das amostras. Considerando as suas características sócio-demográficas, esta
constatação poderá, também, prender-se com o aumento da idade de casa­
mento e de nascimento do primeiro filho, facto observado nos dados dos
censos e/ou com o investimento da mulher noutras áreas que não a dos fi­
lhos.
A duração da relação conjugal, ao fazer variar significativamente os
valores da comunicação, surgindo os piores valores no período 4-6 anos de
união conjugal, permite-nos concluir que estes resultados convergem no
sentido da proposta de De Frank-Lynch (idem, ibidem) que identifica este
período como problemático, conflituoso e cheio de incertezas. As áreas de
convergência retraem-se, a comunicação é mais difí�il, enquanto o par
desvia o investimento da conjugalidade para outras áreas como a parenta­
lidade ou a realização profissional.
A finalizar gostaríamos de deixar uma nota sobre o que parece ser a
conclusão mais interessante deste estudo e que pode, eventualmente, su­
gerir algumas questões conducentes a novas investigações: os casais em
união de facto diferenciam-se dos casados através de uma maior "intimiza­
ção" da relação que, no entanto, não os conduz a uma maior centralização
nos aspectos afectivo-emocionais do par, nem sequer a uma maior quali­
dade conjugal, qualquer que seja a dimensão considerada. Fica, assim, a
dificuldade em se perceber se se trata de uma relação mais "completa" ou
mais "defensiva". Talvez por isso as pessoas não "desistam" de casar e,
como nos mostram as estatísticas, há cada vez mais famílias formadas a
partir de segundos, terceiros e mesmos quartos casamentos, de um ou dos
dois cônjuges ... Contudo, será que esta conclusão se mantém independen­
temente da classe social, da(s) idade(s) dos elementos do par, do(s)
casal(ais) que os respectivos pais formaram, da história familiar transgera­
cional em termos de estabilidade individual/conjugal/familiar? Estas são
algumas das questões a que nos referíamos no início do parágrafo.
Por outro lado, quais as implicações deste dado na clínica: será que, indi­
rectamente, legitimam a terapia de casal? Será que conforme nos encontramos
com casais em união de facto ou casados deveremos promover abordagens
diferenciadas no que se refere à tal parte nuclear do nós? Como ler, em cada
um dos casos, o apelo, eventualmente comum, "ajudem-nos a salvar a nossa
união"? Serão outras questões que daqui para a frente se nos colocarão.
239
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Este capítulo é uma síntese revista da Dissertação de Mestrado em Famílias e
Sistemas Sociais (ISMT) realizada por Carlota M. R. Pessoa Vaz, sob a orientação de
A. P. Relvas, intitulada Uma Família à Parte ou Parte de uma Família? Estudo
Psicossociológico sobre a Família de Educador Único (cf. Vaz, 1999).
A concluir o caminho que encetámos à descoberta de diferentes formas
de família, nomeadamente no que se refere às suas especificidades, cen­
tramo-nos numa estrutura familiar que, contrariamente às anteriores,
não é criada a partir da junção de novos elementos, uma vez que, em
regra, se constitui a partir de rupturas conjugais. Falamos das famílias
monoparentais ou de educador único.
A elevada complexidade da definição desta forma de família é marca­
da quer pela existência de diferentes subformas que nela se enquadram
(como as famílias pós-divórcio, com educador viúvo(a) ou com proge­
nitor solteiro) quer pela confusão conceptual que envolve as noções
que se lhe associam (como parenta/idade, co-parentalidade, bi-pa­
rentalidade, função maternal/paternal, entre outras). Seja comofor, em
termos estruturais, a definição de monoparentalidade contém, implíci­
ta, a ideia da conjugalidade desfeita ou nunca existente; em termos
funcionais, o exercício solitário das funções parentais, nomeadamente
educativas, é a referência mais constante. Este último aspecto justifi­
ca, aliás, a designação alternativa proposta de início - famflia de edu­
cador único.
Neste contexto, e com todas as limitações inerentes à proposta de
definições simples e descritivas para situações complexas, consideramos
que à forma de família que nos propusemos estudar correspondem os
lares onde os filhos vivem com um dos progenitores, o qual não mantém
uma relação conjugal em termos de coabitação permanente, indepen­
dentemente das razões que conduziram a essa situação. Esta definição
permite "pôr o dedo na ferida" da sua especificidade enquanto família,
tal como a abordámos na investigação que conduzimos: a "solidão"
parental de um progenitor.
248
Novas Formas de Família

Daqui decorrem três grandes áreas de dificuldades destas famílias: ( J)


a gestão do quotidiano, sem muita possibilidade de partilha das tarefas
educativas, ou seja, sem o suporte de uma complementaridade diária no
exercício dessas tarefas; (2) a regulação das autonomias e do próprio
processo de autonomização, nomeadamente na díade progenitorlfl­
lho(a); (3) a importância das expectativas sociais que, muitas vezes,
transformam a diferença destas famílias em "falta" ou "deficiência". A
propósito deste último aspecto não resistimos a referi r, como exemplo, a
relevância dada pela imprensa do nosso país, em Maio de 2002, à
"investigação feita em França" que mostrou que os filhos de pais sepa­
rados têm "muito mais dificuldades de aprendizagem e mais insucesso
escolar"... Não conhecemos o estudo para nos podermos pronunciar
sobre ele, nem sequer pretendemos discutir este tema específico: o nosso
objectivo, aqui, é assinalar a mensagem transmitida pelos media,
apoiando-se, inclusive, num critério de (suposta) "científicidade".
Considerando estas áreas problemáticas e as fontes de stress que mais
profundamente caracterizam, podemos perspectivar o ciclo vital destas
famílias dividido em duas grandes fases: ( 1) famílias com filhos
pequenos e na escola, em que a sobrecarga parental e as expectativas
sociais de dificuldades surgem agravadas; (2) famílias com filhos ado­
lescentes e adultos, em que sobressaem as temáticas associadas à sepa­
ração na relação progenitorlfllho(s), complexificada em situações par­
ticulares como, por hipótese, o caso de filhos únicos, com emara­
nhamento da díade, ou as situações de parentificação de um dos filhos.
De todas estas reflexões surgiram-nos várias questões que nos orien­
taram na condução da investigação que levámos a cabo: como são per­
cepcionadas por estes progenitores as expectativas sociais a que atrás nos
referíamos? Foi no sentido de encontrar algumas pistas de resposta para
tal que utilizámos um questionário de representações sociais sobre a
monoparentalidade. Como lidam estes pais com a sobrecarga de tarefas
associadas ao exercício da parentalidade? E, nesse sentido, quais as
principais fontes e áreas de stress que eles próprios assinalam? A utiliza­
ção de medidas de stress parental permitir-nos-ia operacionalizar e
definir algumas ideias sobre esta questão. Contudo, e insistindo numa
perspectiva já assumida nos estudos apresentados nos capítulos ante­
riores, acreditamos que o conhecimento destas famílias não pode passar
só pela identificação das áreas potencialmente problemáticas: o estudo
249
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

dos seus recursos e satisfação familiar é muito importante quando se


pretende perceber os seus "pontos fortes". Com esse objectivo recorre­
mos a instrumentos de medida dessas variáveis.

Deste modo tentámos, em última análise, reequacionar uma questão que


nos inquieta, no sentido em que estimula a nossa curiosidade de investi­
gadores, e que, por isso, convertemos 110 título do presente capítulo:
como entender uma família monoparental? Como uma fam(lia à parte
(particular na sua diferença) ou parte de uma família (estrutura incom­
pleta, amputada de um contexto familiar mais lato)?
Nos últimos 50 anos, no ocidente, a fanu1ia modificou as suas dimen­
sões, organizou-se de formas muito diversas e viveu segundo novos va­
lores. Muitos investigadores procuram compreender este fenómeno social
que, sendo já reconhecido pela maior parte das pessoas, começa a ser objec­
to de quantificação, quer pelos dados estatísticos oficiais quer pelos indi­
cadores demográficos existentes. Para alguns, a família actual está em
"crise"; para outros, existe uma "desagregação familiar" e, ainda muitos,
falam em "transformação ou mudança" na fanu1ia.
As famflias da época actual questionam a sua vivência, não só por terem
alguns modelos de referência de um passado ainda recente, nomeadamente
da geração dos seus pais, mas também porque, no seu dia-a-dia, procuram
obter um bem estar e uma felicidade que são construídos consoante as suas
possibilidades e as oportunidades que as sociedades lhes oferecem. A
análise e reflexão sobre a família na época actual, feita por vários especia­
listas das ciências humanas, como sociólogos, psicólogos e antropólogos,
· tem, por isso, que contemplar uma diversidade de tipos de família, social­
mente aceites e presentes no tecido social, de que são exemplos as famílias
nuclear, alargada, monoparental e reconstruída. Os novos tipos de família
procuram um modelo de felicidade, onde ideais como liberdade, igualdade,
tolerância, dignidade e justiça social se afiguram como uma possibilidade
de vivência quer individual quer do grupo familiar e até colectiva.
Tendo em consideração os principais indicadores demográficos da últi­
ma década, observamos um número cada vez maior de fanu1ias com ape­
nas um dos progenitores, o pai ou a mãe, que coabitam sós com os seus fi­
lhos. Esta situação, denominada fanu1ia monoparental, necessita, no nosso
entender, de uma melhor compreensão. O presente capítulo pretende ser um
contributo, que não uma resposta, para o conhecimento da situação de
monoparentalidade e das suas vicissitudes quer em termos teóricos,

Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.) (2002). Novas Formas de Família.
Coimbra, Quarteto Editora.
252
Novas Formas de Família

nomeadamente através da revisão da literatura, particularmente no âmbito


da sociologia', quer em termos empíricos.

A Construção Psicossociológica da Parentalidade

A família é um grupo de referência para o indivíduo, desde que este


nasce até que morre. Com efeito, desde que o ser humano nasce, e é ainda
um bebé, inicia-se um processo de desenvolvimento individual na família,
através de uma aprendizagem de hábitos, costumes, valores e códigos de
linguagem que o tornam um ser específico e diferente de outros seres
humanos. A socialização é definida como sendo este processo, de aquisição
das atitudes e habilidades que são necessárias para se desempenhar um
determinado papel social (Mayer, in Michel, 1983). Tanto a sociologia
como a psicologia procuram estudar a importância da socialização na
família, embora o façam segundo perspectivas diferentes. Para a sociologia,
a função socializante da família tem em conta a aprendizagem dos valores
e dos papéis sociais. A psicologia defende a importância do contexto fami­
liar no desenvolvimento da personalidade da criança e do jovem. A psicQs­
sociologia articula· estes dois aspectos, preconizando que a assunção de
papéis e de valores, bem como o desenvolvimento psicológico da criança,
do jovem e do ser humano em geral, se fazem através de um processo de
interacção e de comunicação (idem).

O início da relação parental situa-se mesmo antes do parto, através da


organização prospectiva da maternidade e da paternidade. Definindo uma
nova vida, o casal, desde logo, estabelece um sistema de cuidados direc­
cionado para o novo elemento da famflia. Os pais, através de muitos "con­
tos" e de muitas histórias, procuram encontrar a forma de serem pais. Desde
os primeiros detalhes com a alimentação e a higiene, até ao desejo de esti-

' Esta opção por uma revisão da literatura preferencialmente centrada na análise
sociológica da monoparentalidade não exclui o interesse e complementaridade de ou­
tras leituras, nomeadamente de carácter mais psicológico. Nesse sentido, e até como
clarificação de alguns temas e conceitos mencionados no texto introdutório do capítulo,
recomenda-se a consulta de Carter, McGoldrick et al., 1995, (Capítulos 15, 16 e 17),
enquanto obra de base, e de Alarcão, 2000 (Capítulo 2, 6.2), enquanto obra de síntese.
253
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

mular o pensamento do bebé através da comunicação, estabelece-se a


relação parental (Chbani e Pérez-Sánchez,1998).
A maneira como a criança desenvolve as relações emocionais, com os
pais ou outras figuras significativas, é descrita como sendo uma relação
afectiva. Existem três indicadores que o revelam: o primeiro é o facto de
uma criança permanecer em contacto com a pessoa envolvida; o segundo,
é a presença de alguns sinais de stress quando essa pessoa está ausente; o
terceiro indicador manifesta-se quando a criança se sente relaxada e con­
fortada na presença da pessoa com quem tem essa relação afectiva, con­
trariamente ao que acontece na presença de estranhos. A relação inicia-se
durante os primeiros meses de vida, quando a criança emite sinais positivos
na presença dos primeiros cuidados e tem um contacto físico muito próxi­
mo com quem lhe presta tais cuidados. Nessa etapa, a criança desenvolve
várias formas de controlar o comportamento do objecto com quem tem essa
ligação, normalmente os pais, de modo a obter satisfação para a necessi­
dade de estar próxima deles.
Tem sido defendido, por vários autores, que a relação afectiva durante a
infância é o protótipo das relações interpessoais futuras. Esta tese significa
que o sucesso das primeiras ligações afectivas desenvolve a capacidade da
criança no sentido de ser capaz de amar e ser amada pelos outros, pelo que
experiências tardias de confiança e proximidade são difíceis de conseguir
sem estas experiências primárias (Tran-Thong, 1987; Malpique, 1990;
Sullerot, 1993; Chbani e Pérez-Sánchez, 1998; Sharp e Cowie, 1998).
Normalmente, esta relação do pai e da mãe com a criança faz-se através
da definição de um papel paternal e de um papel maternal distintos, com
determinadas características próprias, resultante da construção social do
género, masculino e feminino, ao longo da história. O papel paternal e o
papel maternal não foram sempre os mesmos, assim corno a família tam­
bém passou por diversas transformações. Se explorarmos esta relação mais
íntima de cada um dos progenitores com o bebé que nasce e com os outros
filhos, verificamos que, à medida que as sociedades humanas foram pas­
sando as diversas etapas da história, os cuidados com as crianças foram
ocorrendo segundo modalidades que não são, de forma alguma, idênticas e
consensuais quer no espaço cultural quer no tempo ou, mesmo, segundo a
classe social (L'Hermite-Leclerq, 1993). A "sentimentalização" da moral
doméstica, que emerge entre finais do século XVI e finais do século XVIII,
insiste, cada vez mais, nos deveres dos pais para com os filhos. A autori­
dade paterna, de início incondicional e rigorosa relativamente às regras de
253
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

mular o pensamento do bebé através da comunicação, estabelece-se a


relação parental (Chbani e Pérez-Sánchez,1998).
A maneira como a criança desenvolve as relações emocionais, com os
pais ou outras figuras significativas, é descrita como sendo uma relação
afectiva. Existem três indicadores que o revelam: o primeiro é o facto de
uma criança permanecer em contacto com a pessoa envolvida; o segundo,
é a presença de alguns sinais de stress quando essa pessoa está ausente; o
terceiro indicador manifesta-se quando a criança se sente relaxada e con­
fortada na presença da pessoa com quem tem essa relação afectiva, con­
trariamente ao que acontece na presença de estranhos. A relação inicia-se
durante os primeiros meses de vida, quando a criança emite sinais positivos
na presença dos primeiros cuidados e tem um contacto físico muito próxi­
mo com quem lhe presta tais cuidados. Nessa etapa, a criança desenvolve
várias formas de controlar o comportamento do objecto com quem tem essa
ligação, normalmente os pais, de modo a obter satisfação para a necessi­
dade de estar próxima deles.
Tem sido defendido, por vários autores, que a relação afectiva durante a
infância é o protótipo das relações interpessoais futuras. Esta tese significa
que o sucesso das primeiras ligações afectivas desenvolve a capacidade da
criança no sentido de ser capaz de amar e ser amada pelos outros, pelo que
experiências tardias de confiança e proximidade são difíceis de conseguir
sem estas experiências primárias (Tran-Thong, 1987; Malpique, 1990;
Sullerot, 1993; Chbani e Pérez-Sánchez, 1998; Sharp e Cowie, 1998).
Normalmente, esta relação do pai e da mãe com a criança faz-se através
da definição de um papel paternal e de um papel maternal distintos, com
determinadas características próprias, resultante da construção social do
género, masculino e feminino, ao longo da história. O papel paternal e o
papel maternal não foram sempre os mesmos, assim como a família tam­
bém passou por diversas transformações. Se explorarmos esta relação mais
íntima de cada um dos progenitores com o bebé que nasce e com os outros
filhos, verificamos que, à medida que as sociedades humanas foram pas­
sando as diversas etapas da história, os cuidados com as crianças foram
ocorrendo segundo modalidades que não são, de forma alguma, idênticas e
consensuais quer no espaço cultural quer no tempo ou, mesmo, segundo a
classe social (L'Hermite-Leclerq, 1993). A "sentimentalização" da moral
doméstica, que emerge entre finais do século XVI e finais do século XVIII,
insiste, cada vez mais, nos deveres dos pais para com os filhos. A autori­
dade paterna, de início incondicional e rigorosa relativamente às regras de
254
Novas Formas de Família

sucessão, sobretudo nos países de direito romano, é progressivamente legi­


timada e limitada pela ideia do bem-estar da criança e do seu futuro
(Kellerhals, Troutot e Lazega, 1989).
Um dos postulados básicos da sociologia diz que, embora não se possa
negar a existência de idiossincrasias pessoais, há sempre um padrão social
subjacente ao comportamento individual. Esta ideia é particularmente
importante na articulação dos aspectos individuais com a construção dos
papéis sociais. Muito do que somos e, sobretudo, a nossa existência
enquanto seres sociais na família, no trabalho, nos grupos ou na escola,
advém de um longo processo de maturação. Este processo de desenvolvi­
mento psicossocial, sendo interactivo entre cada um e os outros, também
resulta da interacção entre o indivíduo e as diversas instâncias sociais
(Deleuze, 1987; Santos, 1988, 1994). Por outro lado, os sociólogos e
antropólogos que estudam a fanu1ia consideram importantes as suas
relações internas, onde são aprendidas as principais regras de convivência,
as normas e os valores, o que faz com que grande parte do futuro dos indi­
víduos seja condicionado por essa aprendizagem mais íntima (Mead, 1970;
Parsons, 1971; Strauss, 1977; Michel, 1983; Sullerot, 1993; Ginn e Arber,·
1999). Por exemplo, Daniel Bertaux (1977), na obra Destinos Pessoais e
Estruturas de Classe, considera que a mobilidade social através das profis­
sões é feita em grande parte através das estruturas familiares. É de tal forma
importante e determinante essa "influência" que existe uma reprodução
social das profissões dos pais para os filhos, feita através das sucessivas
gerações. Este facto deve-se, segundo o autor, a dois tipos de capital que se
transmitem na fanu1ia:· o capital cultural e o capital económico. O capital
cultural, também chamado herança cultural, caracteriza-se pela aprendiza­
gem dos códigos de linguagem, valores, rituais e tradições que são legados
às sucessivas gerações. O capital económico refere-se aos bens materiais
que a família possui e que passam de pais para filhos através da herança ou
sucessão. Em suma, no âmbito da análise da parentalidade, é através dos
ensinamentos dos adultos mais significativos para a criança, os seus pais,
que aquela desenvolve a sua aprendizagem social e, também, o seu cresci­
mento psicológico individual.
A ideia do ciclo vital neste processo, ou seja, do desenvolvimento da
família, é também particularmente importante na actual teoria e pesquisa
sobre a família (Carter, McGoldrick et al., 1995; Relvas, 1996). Segundo as
teorias do desenvolvimento familiar, este processa-se segundo dois eixos
principais: o espaço e o tempo. Neste âmbito, o desenvolvimento da família
255
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

desenrola-se através de um processo de individualização e socialização, por


um lado, articulado com a manutenção ou a mudança do sistema, por outro
(Relvas, 1996). A maior parte das classificações que daí decorrem são
feitas tendo em conta as idades dos filhos e as etapas de vida de pais e fi­
lhos. Conforme se processa o crescimento da criança, assim também as
suas necessidades mudam e, consequentemente, o subsistema parental deve
também mudar. Consoante as capacidades da criança aumentam, devem
ser-lhe dadas mais oportunidades de decisão e auto-controlo. As famílias
com filhos adolescentes devem "negociar" de forma diferente das famflias
com filhos pequenos. Os pais com filhos mais velhos devem dar-lhes mais
autonomia, enquanto lhes pedem mais responsabilidades. Com efeito, o
conceito de parentalidade refere-se a dois níveis principais e distintos: o
primeiro, o nível dos pais e, o segundo, o nível dos filhos. Esta distinção
também se encontra na teoria sistémica quando se consideram dois subsis­
temas relacionais: o subsistema parental (relações entre os pais e dos pais
com os filhos) e o subsistema fraternal/filial (relações entre os filhos e dos
filhos com os pais).
Esta perspectiva sublinha, ainda, que os adultos, no subsistema parental,
têm a responsabilidade de cuidar, proteger e socializar a criança mas tam­
bém têm direitos. Os pais têm o direito de tomar decisões que estejam rela­
cionadas com a sobrevivência do sistema e de estabelecer regras para pro­
teger os membros da famflia. Têm igualmente o direito e o dever de prote­
ger a privacidade do subsistema conjugal (relações entre os cônjuges) e de
determinar o papel da criança no funcionamento familiar (Minuchin e
Fishman, 1981).
Explicando um pouco melhor a importância das funções parentais na
família, sobretudo com grande utilidade nas famflias reconstruídas e mono­
parentais ou outras que não se encaixam no tipo tradicional de família
nuclear, recordemos a sua definição a partir da obra O Ciclo Vital da Famz1ia:

"Como afirmam McGoldrick e Carter, com o nascimento do


primeiro filho, o jovem casal sobe um degrau na hierarquia gera­
cional, 'sobe de geração', e torna-se prestador de cuidados, respon­
sável e protector da geração mais nova, até aí constituída por eles
próprios. Tem assim como tarefa reorganizar-se através da criação,
negociação e definição de novos papéis e funções.
Tal como o casal construiu o seu, os novos pais organizam o
modelo parental que comporta dois modelos distintos: o maternal e
256
Novas Formas de Família

o paternal. Esta representação vai permitir assumir a função parental,


baseada no ajustamento das funções maternal e paternal que não sig­
nificam, estritamente, o papel desempenhado pela mãe e pelo pai.
Podem ser definidas como 'o conjunto de elementos biológicos, psi­
cológicos, jurídicos, éticos, económicos e culturais que tornam um
indivíduo' [Benoit et al., 1988, 223] mãe ou pai de um ou vários ou­
tros indivíduos" (Relvas, 1996, 83).

A Evolução dos Papéis Maternal e Paternal:


dos dados à compreensão

Depois de termos desenvolvido, no ponto anterior, uma análise sobre a


construção psicossociológica da parentalidade, e dado que se trata de uma
temática bastante recente nos diversos domínios das ciências sociais, pas­
saremos agora a referir alguns aspectos dos papéis parentais. A partir dos
anos 60-70, as ciências sociais iniciam uma reflexão sobre os papéis, tare­
fas e funções dentro da família, nomeadamente entre os cônjuges e entre os
pais e os filhos, não fugindo à regra da "construção" na pesquisa dos fenó­
menos sociais e do "círculo hermenêutico" entre a teoria, a prática e a
observação social. Do que fica dito resulta que, numa abordagem em que
se pretende lançar alguma luz sobre a temática da monoparentalidade, não
se pode deixar de traçar algumas notas sobre a diferenciação entre papéis
maternal e paternal, pois que se colocarão sempre questões como estas: O
que acontece na monoparentalidade? Os dois papéis (maternal e paternal)
concentram-se num só indivíduo? Será que isso é possível e saudável? Ou
é simplesmente um mito? E, por contraste: será que o modo como se jogam
estes papéis nas famílias biparentais corresponde, de facto, a uma partilha
clara de tarefas e funções entre pai e mãe?
Os factos demográficos que configuram as formas da família, determi­
nando o lugar que o pai e a mãe ocupam, alteraram-se mais rapidamente
nos últimos vinte anos, particularmente de 1965 a 1985, do que tinha acon­
tecido durante mais de século e meio. Quase se poderia falar de uma alte­
ração completa no modo de conceber e sentir a paternidade. As ideologias
que a este respeito surgiram, desde Maio de 1968, têm, entretanto, mudado.
Nessa época, gritava-se "abaixo os pais". Era a revolta de uma geração con­
tra a moral sexual, a família e os velhos modelos de cultura, educação e
autoridade. Nos anos 70 surgiu, igualmente, um movimento de afirmação
257
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

dos direitos da mulher. O feminismo desenvolveu-se inicialmente nos


Estados Unidos da América e depois estendeu-se à Europa. Esta afirmação
individual e social da mulher foi, no seu início, uma luta centrada na reivin­
dicação da mulher no sentido de assumir a sua sexualidade, desligando-a da
função de procriação (sendo esta ideologia a que vigorava na família e na
sociedade até aos anos 60-70). Passados trinta anos sobre o início deste
movimento, muitas coisas mudaram na vida das mulheres em todo o
mundo, sobretudo nas sociedades ocidentais, onde os processos de globa­
lização, em diversos domínios, dão origem ao aparecimento de fenómenos
comuns a muitos países.
Segundo Sullerot (1993) este movimento social abalou as concepções
da paternidade tradicional e foi mais longe, pois a mulher acabou por pre­
tender apropriar-se da parentalidade, marginalizando ou negando o pai na
fanu1ia. O movimento feminista desenvolveu várias lutas e, neste âmbito,
podemos referir os esforços realizados em vários países para a legalização
da interrupção voluntária da gravidez, entendida como um direito da mu­
lher no sentido de decidir sozinha sobre a vida do filho, o qual é, muitas
vezes, um projecto pessoal.

No estudo realizado em 1995 por uma de nós (Vaz, 1995), intitulado A


Família, o Poder e o Direito, um dos domínios analíticos que procurámos
verificar nas famílias foi a autoridade. O estudo, feito através de entrevis­
tas a casais, tinha como objectivo detectar dois tipos de autoridade: autori­
dade partilhada e autoridade não partilhada.
No guião de entrevista estabelecemos três dimensões de análise: 1) a
gestão das tarefas domésticas na família; 2) a relação dos pais com os fi­
lhos no âmbito da educação; 3) as assimetrias nas decisões do casal. Cada
uma destas três dimensões englobava vários itens, agrupados em temas,
constituídos por uma multiplicidade de tarefas através de um processo de
"tipificação" quer das rotinas diárias das famílias quer de outras áreas do
quotidiano familiar, tais como passeios, férias, compras, lazer, etc. A classe
social (níveis alto, médio e baixo) e dois ambientes (meio rural e meio
urbano) foram os dois níveis de análise do quotidiano familiar. Tíf\hamos
como pressuposto teórico e, também, como observadores da sociedade, que
o quotidiano das famílias do meio rural e das fanu1ias do meio urbano .são
diferentes em muitos aspectos, nomeadamente no que se refere ao tipo de
trabalho que executam, às rotinas do dia-a-dia, às tradições, aos costumes
e aos valores (Almeida, 1985).
258
Novas Formas de Família

Através deste procedimento, foi possível traçar uma fenomenologia do


poder e do patriarcado, ou seja, das relações entre o homem e a mulher no
quotidiano das famílias. Os processos interactivos na família foram
descritos por cada um dos elementos do casal, o homem e a mulher, e, pos­
teriormente, objecto de observação participante. Procurávamos, assim,
detectar assimetrias de poder ou relações mais igualitárias entre o homem e
a mulher na família.
Alguns dos resultados revelaram assimetrias entre homens e mulheres
em duas dimensões: gestão das tarefas domésticas e relação pais/filhos no
âmbito da educação. Assim concluímos que a variável sexo é uma variá­
vel importante, e até determinante, no desempenho dos papéis dos homens
e das mulheres na família. Na gestão das tarefas domésticas, tanto no meio
urbano como no meio rural, a mulher exerc(ê um papel de exclusividade em
todas as tarefas e funções analisadas: preparação das refeições; compras no
supermercado; cuidados com o vestuário; etc. Na educação dos filhos,
segundo os parâmetros deslocações, tarefas escolares, cuidados de saúde,
compra de vestuário, disciplina e cuidados ao bebé, os homens do meio
rural obtiveram uma pontuação maior do que os do meio urbano, o que se
pode atribuir, em parte, ao facto de terem um papel preponderante no esta­
belecimento das regras e da disciplina na família. No plano educativo, esse
resultado fica a dever-se à circunstância de fazerem os contactos com os
professores. No meio urbano, nas classes média e alta, a mulher obteve uma
pontuação superior ao homem, revelando um papel mais participativo na
educação dos filhos. Particularmente na mulher da classe média urbana,
esse valor é duas vezes superior ao do homem. Nesta classe social, a mu­
lher acumula tarefas e funções, nomeadamente na educação dos filhos.
Verificou-se, por isso, não só uma inversão dos valores e das práticas obser­
vados no meio rural (os quais, em termos teóricos, definem um tipo de
família tradicional), onde os papéis masculinos e femininos estão bem
definidos e a autoridade na família é exercida, normalmente, pelo homem,
mas, também, uma mudança nas representações sociais da família2 •

'A este respeito existem vários estudos denominados "estudos do género", onde se
constatam assimetrias· entre o homem e a mulher em vários domínios sociais, nomeada­
mente no mundo do trabalho. Para maior aprofundamento do tema consultar Amâncio
(1994).
259
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Este estudo, com carácter exploratório, não sendo por isso representati­
vo da realidade em causa, dá-nos algumas pistas de trabalho para a análise
dos papéis e funções do homem e da mulher na farru1ia actual. Os dados
que analisámos revelam que as famílias da classe média urbana apresentam
algumas mudanças, relativamente à família tradicional, nomeadamente nos
valores e nos papéis do homem e da mulher. O facto de a mulher do meio
urbano trabalhar, exercendo funções na esfera pública, permite-lhe obter
uma maior independência económica, um maior poder nas decisões fami­
liares e, também, uma maior autonomia relacional perante o homem. Deste
processo resulta um acréscimo de tensões e indefinições nos papéis e
funções do homem e da mulher na família (Vaz, 1995). Resulta, ainda,
alguma fundamentação para a ideia de que, em determinados contextos
familiares, dos quais a classe média urbana parece ser o exemplo prototípi­
co, a biparentalidade é, de facto, uma "quase" monoparentalidade exercida
pela mulher.

Inevitavelmente, o direito de família tem vindo a modificar-se ao longo


do tempo, sobretudo a partir dos anos 60, acompanhando o movimento
geral das ciências e das sociedades (Santos, 1988, 1994; Théry, 1994).
Flexibilizaram-se as leis, introduziram-se modificações nos processos
cíveis, na organização da justiça familiar e na própria noção do que deve
ser uma família. Os direitos das crianças ganham uma expressão mais
importante, o casamento acompanha a ideologia de felicidade do casal, per­
mitindo-se o divórcio por mútuo consentimento como saída de uma relação
conflituosa sem culpabilidade (Torres, 1987; Habermas e Guibentif, 1987;
Commaille, 1994; Copernolle, 1994).
O papel do juiz na resolução dos conflitos familiares também se alte­
rou, ora passando por uma fase mais interventora nesses processos ora
deixando o casal mais activo na resolução dos seus conflitos.
Desenvolveram-se processos alternativos de justiça familiar tais como a
conciliação e a mediação. Estes processos necessitam, normalmente, de um
acompanhamento de técnicos especializados: psicólogos, assistentes so­
ciais e mediadores (Vaz, 1976; Valeria, 1994).

Paralelamente, os estudos dos fenómenos demográficos, nestes fim e


início de séculos, apresentam mutações várias, sem precedentes, como a
diminuição das taxas de natalidade e de nupcialidade, o aumento da per­
centagem de divórcios, um aumento do número de casais em regime de
260
Novas Formas de Família

coabitação, o aumento do número de celibatos prolongados e uma maior


percentagem de filhos nascidos fora do casamento Uma das consequências
destas mutações é o número crescente de crianças afastadas, habitualmente,
do pai (Sullerot, 1993; Cabral, 1997; Crow e Hardey, 1999). No contexto
da União Europeia, Portugal acompanha as mesmas tendências verificadas
nos restantes países da Comunidade.
Um outro dado demográfico diz respeito à dimensão das famílias, a qual
tem vindo, sistematicamente, a diminuir na Europa (ONU, 1984). Em
França, na Inglaterra, na Alemanha Federal, na Bélgica, no Luxemburgo e
na Holanda, a dimensão média das famílias era, em 1977, inferior a três ele­
mentos e a percentagem de "solitários" sobre o total das famílias chegava a
atingir em França 23% e na Alemanha 29% (Sonnino in Reis, 1984). Em
Portugal, segundo os resultados do Censos de 1981 verificamos que a dis­
tribuição do número de pessoas por família diminuiu relativamente a 1970:
aumenta o número de famílias reduzidas, com duas pessoas (23.5%) e três
pessoas (22.9%), e diminui o número de farru1ias numerosas, com cinco
pessoas (10%) e seis pessoas (5%) (Reis, 1984), tendência que se confirma
e expande nos dados dos Censos 91 (INE, 1996).
Outras fontes estatísticas (Mermet, 1992; EUROSTAT, 1992) revelam
que, em 1991, a dimensão das famílias portuguesas que obtém uma maior
percentagem é de duas pessoas (24.3%), seguindo-se as famílias com três
pessoas (22.6%) e, em terceiro lugar, as famílias com quatro pessoas
(22%). Contudo, é de sublinhar que, na compreensão destes dados, não
basta pensar nas transformações familiares a nível da conjugalidade e
parentalidade, uma vez que o envelhecimento da população ocupa aqui um
lugar importante. Outros aspectos, nomeadamente a diminuição da tax·a de
natalidade, contribuem para uma mudança nas estruturas familiares no
nosso país, revelando uma nova realidade, onde as farru1ias se diferenciam
do tipo de família tradicional dominante até aos anos 50. No que diz
respeito ao divórcio, sendo um fenómeno demográfico relativamente
recente na maior parte dos países europeus, em Portugal é um fenómeno
"novíssimo" com 25 anos de existência. Sobre a evolução das taxas de
divórcio, as estatísticas revelam que quadruplicou em quase todos os paí­
ses da União Europeia. Em Portugal, no período de 1960-1991, a taxa bruta
de divórcio (em permilagem) aumentou de 0.1 para 0.6 entre 1960 e 1980
e, na década de 1980-1991, aumentou mais 0.5, sendo de 1.1 no final desse
período (idem).
261
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Sobre as famílias de educador único, os dados estatísticos disponíveis


são praticamente inexistentes, tanto em Portugal como na generalidade dos
países, pois até há bem pouco tempo não constituíam um tipo de família
com expressão numérica representativa. No entanto, alguns estudos reve­
lam dados sobre a parentalidade nestas famílias, nomeadamente os referi­
dos por Evelyne Sullerot (1993): 60% dos pais, que não viviam com a mãe
na altura do nascimento dos filhos e não são reconhecidos enquanto tal,
nunca verão os filhos; dos restantes, só cerca de 12% os vêem, embora rara­
mente. Quando os pais vivem pelo menos cinco anos com os filhos, tor­
nam-se mais presentes. As rupturas conjugais dramáticas, provocando uma
forte hostilidade entre os ex-cônjuges ou ex-concubinos, traduzem-se, nor­
malmente, numa ruptura completa das relações das crianças com o pai,
enquanto que as separações mais amistosas preservam as relações pais/fi­
lhos.
Na Suécia, desde 1975, um em três casamentos é rompido. De 1975 a
1985, em todos os países europeus, a coabitação aumenta e o divórcio
ganha terreno, contrariamente às expectativas de alguns estudiosos que
esperavam que, com a liberdade do regime de coabitações, os casais casa­
dos mantivessem a sua união, porque o fariam por convicção. Como já afir­
mámos, as taxas de divórcio sobem em todos os países da Europa: em
França e na Alemanha os valores em percentagem sobem de 15.6% para
30.4%; na Áustria, as percentagens apresentam igualmente uma subida
considerável, passando de 19.7% para 30.8%; na Holanda, os valores
aumentam de 20% para 34.4%; em Inglaterra, a percentagem de divórcios
atinge os 43.8%, quando em 1960 era de 10.7%; e em Portugal a taxa de
divórcio é de 17%, tendo também tendência para aumentar. Sendo os casa­
mentos menos numerosos são, portanto, igualmente mais frágeis. Previa-se,
ainda, um aumento rápido dos segundos casamentos, o que parece não ter
acontecido. Em França, em 1970, 35.7% dos divorciados voltavam a casar
nos três primeiros anos a seguir à ruptura. Em 1975 essa percentagem pas­
sou para 33.7% e em 1980 não ultrapassou os 25.4%, sendo em 1985 de
18%, ou seja, metade do valor verificado quinze anos antes (Sullerot,
1993). Em Inglaterra verificou-se, igualmente, um aumento significativo de
famílias com um único educador, sobretudo nas últimas duas décadas, com
tendência para aumentar ainda mais. Uma em cada oito crianças depen­
dentes da sua família vive numa família monoparental, representando este
tipo de família mais do que uma em seis no total de famílias com filhos
dependentes (Crow e Hardley, 1999; Millar, 1999).
262
Novas Formas de Família

Portanto, cada vez é maior o número de casais com filhos que se divor­
ciam, sendo certo que muitos destes indivíduos não se casam de novo.
Durante algum tempo, os casais hesitavam diante da separação, em parte
devido às dificuldades económicas das mulheres que não trabalhavam mas
também atendendo aos valores sociais que ainda excluíam os divorciados,
bem como por causa dos filhos. A partir dos anos 60, como vimos, valores
como a autonomia, tolerância, felicidade conjugal e independência, insta­
laram-se na nossa sociedade, permitindo, pouco a pouco, uma maior
aceitação social dos divorciados, bem como de outras formas de
coabitação. Como consequência, nas últimas décadas assistiu-se a uma
inversão da forma como a parentalidade era exercida, passando a ser defini­
da segundo o eixo mãe/filhos, dependendo dela as relações que os filhos
têm, ou não, com o pai biológico (Sullerot, 1993). A realidade, do ponto de
vista das crianças, é que cada vez são menos as que vivem com os seus dois
pais biológicos, vivendo apenas com um deles, habitualmente a mãe, ou em
situações de um novo casamento de um dos pais.

Em síntese: em termos jurídicos esta situação das famílias vem, como


dissemos, provocar mudanças várias nos estereótipos parentais. A cultura
das últimas três décadas contribuiu para uma incerteza na definição e exer­
cício dos papéis parentais. A figura do pai perde as referências que tinha
antes dos anos 60 - e que, de algum modo, se mantêm, no nosso país, no
meio rural (Vaz, 1995) - sendo substituídas por outras, veiculadas pelos
heróis da televisão, pelos cantores "pop" e pela escola paralela. Um novo
questionamento surge: Um pai serve para quê? É indispensável? É útil?
Quais as palavras que deve pronunciar? Que atitudes deve tomar? Que tare­
fas deve desempenhar? De acordo com que normas deve actuar na vida
quotidiana para ser um bom pai? (Sullerot, 1993).
Exprimindo a problemática actual, muitas têm sido as referências às
questões da parentalidade, nomeadamente a ideia de que caminhamos para
uma sociedade sem pais. Em primeiro lugar, porque as famílias se encon­
tram em "novos" processos de mudança e, em segundo lugar, pelo facto de
que uma grande parte dos valores de referência transmitidos pelos pais e
importantes no desenvolvimento das crianças é hoje, cada vez mais, subs­
tituída por outras influências como os infantários, a escola, as actividades
desportivas e outras, onde as crianças passam uma grande parte do dia.
Contudo, e aparentemente de modo paradoxal, perante o chamado "apaga­
mento" dos pais devido à sua maior absorção pelo trabalho, contabilizam-
263
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

-se os tempos que passam em casa com os filhos, que dedicam às tarefas
domésticas, aos cuidados com as crianças e ao acompanhamento dos tra­
balhos escolares.
As famílias da actualidade revelam, no nosso entender, algumas ten­
sões nos papéis parentais, em parte devido a alguns dos aspectos ante­
riormente referidos mas, sobretudo, pelo facto de necessitarem, no seu
dia-a-dia, de acompanhar o ritmo de vida actual mais acelerado e com
mais exigências, desempenhando uma enorme quantidade de tarefas e
funções, correndo constantemente de um lado para o outro para poderem
"estar" sempre presentes e resolverem um grande número de problemas e
situações.
Os ciclos de vida, com as habituais passagens por diversas fases evolu­
tivas, sofreram uma reformulação que passa, também, pelos actuais proces­
sos de autonomização dos jovens. Sabemos que as questões que se colocam
aos jovens são diferentes das que as crianças sentem, nomeadamente no
que diz respeito aos processos de identificação. Na fase da adolescência,
inicia-se um processo de autonomização dos jovens relativamente aos seus
pais, sendo esse processo reforçado pelo grupo de amigos que vem com­
plementar ou substituir, em grande parte, as referências parentais
(Figueiredo, 1985; Sampaio, 1989; ReJvas, 1996). O modelo de família
patriarcal, como nos referem diversos autores, não permitiria o processo de
autonomização dos jovens da forma como hoje acontece. Embora os jovens
que cresceram sob a influência desse modelo constituíssem, também, as
suas próprias famílias, não lhes era permitida uma autonomização em
relação às referências parentais, nem em termos psicológicos nem rela­
cionais, devido à maneira como a autoridade do Pai era exercida, tendo um
carácter de donúnio sobre toda a família (Le Play, 1947; Malpique, 1990).
Pensamos que os actuais processos de identificação e autonomização são
mais diversificados e mais subtis, podendo coexistir diversas formas pos­
síveis de identificação dos jovens e das crianças com as figuras parentais,
com os amigos ou mesmo com os tios e os avós e o exterior da família.
Os processos de identificação psicossocial são, em grande parte, in­
fluenciados pelas pressões sociais, ambientais, da cultura e de vários
processos sociais. Neste âmbito, um dos processos sociais consiste no facto
de se valorizarem, actualmente, questões como as que atrás apresentámos.
Por outi:o lado, desde há algumas décadas, as ciências sociais e humanas
têm tido um papel muito importante neste questionamento do homem e das
sociedades, através do desenvolvimento de um procedimento científico
264
Novas Formas de Família

racional e sistemático, mas, ao mesmo tempo, sem perder de vista o carác­


ter subjectivo e compreensivo da realidade humana.

Monoparentalidade, Parentalidade e Co-Parentalidade:


os conceitos

"Em 1985 o Parlamento Europeu constatava não existir nenhuma


definição internacionalmente reconhecida de família monoparental,
acrescentando ainda que o referido termo abrange, nos diversos paí­
ses da Comunidade, situações tão variadas como as de 'pais/mães
que vivem sós com um ou vários filhos, casais não casados com fi­
lhos, pais/mães solteiros que vivem não apenas com os filhos mas
com outros familiares, grupos de pessoas que coabitam sem qualquer
laço marital ou filial"' (Martins, 1995, 29).

"Quando se fala de família monoparental fala-se de maternidade


e paternidade simples, isto é, faz-se referência à relação com os fi­
lhos por parte de mães ou pais solteiros, viúvos ou divorciados"
(Costa, 1994, in Martins, 1995, 30).

"Infante (1989) sistematizou os resultados de um inquérito rea­


lizado a famílias com filhos até aos 15 anos, a nível nacional, que
mostram algumas características das famílias monoparentais por­
tuguesas, distinguindo-as das famílias biparentais (ditas normais ou
funcionais): a distribuição percentual das mães de família mono­
parental por estado civil é a de 35% de divorciadas, 24% de viúvas,
21% de solteiras e 20% separadas" (Martins,1995, 32).

"O quotidiano destas fanu1ias é, regra geral, vivido em grande


fragilidade psicológica pois que, quer desejado quer apenas suporta­
do, é quase sempre angustiante e [representa] uma mudança que
afecta negativamente a pessoa" (idem, 31).

As quatro citações escolhidas para iniciar esta secção reflectem, assim


nos parece, a complexidade, indefinição e "estigma" da monoparentali­
dade. Com efeito, esta é, em muitos casos, sentida como um fracasso,
provocando um processo de marginalização social que se reflecte, even-
265
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

tualmente, num sentimento de inferioridade e de desvalorização pessoal,


quer da figura parental quer dos restantes elementos da família, habitual­
mente os filhos. A mulher, que detém na generalidade o poder parental,
casa com menos frequência depois de um divórcio, tem mais esperança de
vida e, por isso, conhece mais cedo a solidão, sendo, normalmente, a mais
visada neste processo (juntamente com os filhos... ).
Esta situação familiar pode ser definitiva ou desembocar, num período
mais ou menos breve, na constituição de uma família reconstruída. Por
outro lado, é um fenómeno de tal forma importante nos dias de hoje que
deve ser considerado como um verdadeiro facto social saído da evolução
do feminismo, bem como das modificações das funções maternais e pater­
nais. Nas famílias monoparentais, os papéis e as funções de cada um neces­
sitam de ser avaliados segundo as circunstâncias que presidiram à reorga­
nização do sistema familiar e, ainda, à idade das crianças e às regras do
funcionamento familiar. Nestas famílias, o risco de uma ou várias crianças,
normalmente as mais velhas, exercerem funções parentais relativamente
aos irmãos mais novos é bastante frequente (parentificação) (Minuchin e
Fishman, 1981; Alarcão 2000). Este aspecto deve-se, sobretudo, ao
"vazio", funcional e/ou afectivo, associado à ausência de um dos pais e é
mais frequente na adolescência, pelo que pode comprometer a autono­
mização dos jovens tornando-a difícil ou mesmo impossível.
Para o educador único, o processo de reconstrução da família nuclear e
a escolha de um parceiro pode estar sujeito à hostilidade dos filhos, ou à
lealdade para com o outro pai, que pode manifestar-se como um "fantas­
ma" ou ser explícita e abertamente defendida por uma ou mais crianças
(Carter, McGoldrick et al., 1995). Contudo, o fenómeno da reconstrução
das famflias monoparentais não é específico da nossa cultura ou época.
Noutros tempos, na cultura ocidental, quando a esperança de vida se situa­
va a um nível muito baixo e a morte da mulher no parto era frequente,
encontravam-se estas famílias, mesmo quando não eram designadas desta
forma. Na fanu1ia, como já referimos, a relação entre os pais e os filhos
estrutura-se a partir das regras, dos rituais, do desempenho dos papéis
maternal e paternal, dos mitos e das tradições. As famílias reconstruídas,
acrescentando à "velha" família, no mínimo, um novo elemento parental,
também se estruturam desta forma.
Torna-se, cada vez mais, imperioso considerar que a vida das famílias
não se circunscreve, exclusivamente, à(s) família(s) de origem biológica.
Por exemplo, estes novos tipos de família, na sua vivência quotidiana, têm
266
Novas Formas de Família

um relacionamento com várias "outras" fanu1ias, nomeadamente a(s) que


resta(m) depois das rupturas e a(s) que se acolhe(m) na sequência do esta­
belecimento das novas ligações, exigindo a articulação de "novos" e "ve­
lhos" laços (Gameiro, 1998). Estas experiências podem ser positivas, de
crescimento e aprendizagem, ou, pelo contrário, podem promover dificul­
dades e bloqueios relacionais para alguns dos seus elementos. Contudo,
nunca podemos esquecer que a família reconstruída se desenvolve numa
sociedade que se encontra ela própria em evolução, ou seja, família e
sociedade evoluem em conjunto, com ajustamentos recíprocos e recursivos.

Parentalidade e Co-Parentalidade

Afinal, a questão que nos propusemos abordar, ou seja, o domínio da


parentalidade, é bastante recente, quer nas análises sociológicas quer psi­
cológicas: os primeiros estudos em que se procura uma definição do con­
ceito parentalidade surgiram nos anos setenta (Sullerot, 1993). Procurámos
o significado de parental e verificamos como é sucinto "relativo ao pai e à
mãe: autoridade parental" (Enc. Larousse, 1996, 5331). Na mesma enci­
clopédia, parentalidade não tem entrada própria: o termo é omisso. Para
além deste facto, o conceito de parentalidade não parece ser consensual nos
diversos autores, podendo muitas vezes ser confundido com conceitos
como paternidade, paternal, patriarcal e monoparentaP.
A este respeito, a socióloga Evelyne Sullerot (1993), na obra Que Pais?
Que Filhos?, define parentalidade como sendo a designação para a relação
pai/filho e co-parentalidade como sendo a relação entre os dois pais (pai
e mãe), a fim de partilharem, do modo que entenderem, os cuidados práti­
cos, a educação e os carinhos a dar aos filhos. Nas fanu1ias monoparentais

' A fim de se evitarem as confusões terminológicas e conceptuais reinantes nesta


temática e pese embora a consciência que temos da não consensualidade da nossa
opção, ao longo deste texto utilizámos sempre a expressão parentallparentalidade para
nos referirmos ao exercício desta função, independentemente de ser desempenhada pelo
pai, pela mãe ou por ambos. Reservámos os atributos maternal e paternal para men­
cionarmos, específica e respectivamente, o desempenho da função parental pela mãe ou
pelo pai.
267
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

os dois conceitos, aparentemente, fundem-se, pois esta relação é entre pai


e filhos ou mãe e filhos, já que são famílias constituídas por um único edu­
cador que coabita com os filhos. Contudo, não será bem assim.
Precisamente, ainda segundo a mesma autora, o conceito de parentalidade
(parenthood) é objecto de estudos a partir dos anos setenta, nomeadamente
na Suécia, onde as separações e divórcios separavam, normalmente, o(s)
pai(s) dos filhos. O termo serviria para realçar a questão da guarda conjun­
ta dos filhos dos casais nessas condições, tendo em conta um novo papel do
pai.

"O conceito de co-parentalidade preserva a participação do pai,


mesmo no caso de falhar a relação do casal. Subentende que o pai e
a mãe são iguais e igualmente responsáveis pelo seu filho. Cada um
deles deve poder responder às múltiplas expectativas dos filhos, pois
podem agir cada um em sua vez ou em conjunto. Cada um deles é
um pai completo, capaz de exercer os papéis do outro e os seus, mas
ambos conservam a sua personalidade. Para que o pai possa tornar­
-se esse pai completo capaz de substituir a mãe (e vice-versa), de
acordo com normas que elaboraram em conjunto, é altamente dese­
jado que ele se habitue, desde o nascimento do bebé, a ocupar-se
dele em alternância com a mãe" (Sullerot, 1993, 170).

O conceito de parentalidade, definido desta forma, pode então ser adop­


tado neste estudo sobre a parentalidade em famílias monoparentais, uma
vez que, como a autora refere, se trata da relação de um dos progenitores
com os seus filhos. No estudo empírico que levámos a efeito, considerámos
a relação entre o progenitor que coabita com os seus filhos, independente­
mente do facto de poder haver, também, uma relação de co-parentalidade.
Contudo, em termos teóricos, pensamos que o facto de existir uma relação
de co-parentalidade não é, de forma alguma, indiferente para o estudo da
parentalidade nas fanu1ias com um educador único. Efectivamente, encon­
tramos as famílias de viúvos e viúvas, em que esta relação não existe de­
vido ao desaparecimento físico do outro progenitor. No entanto, noutras
famílias, o outro progenitor existe fisicamente, podendo estar mais ou
menos ausente da relação com os filhos, o que depende de diversos factores
ou variáveis.
Como referimos, é sobretudo a partir dos anos setenta que estes con­
ceitos se começam a definir, devido à necessidade de se atribuírem papéis
268
Novas Formas de Família

e funções mais partilhados no seio da família, relativamente aos cuidados


com a educação dos filhos. Por outro lado, os cuidados com o desenvolvi­
mento psicológico e a saúde dos filhos estão cada vez mais presentes nas
políticas desenvolvidas nos últimos anos, pelos países ocidentais, nomeada­
mente através da prestação dos cuidados de saúde. O estado sueco é, neste
âmbito, considerado como um modelo de referência a seguir nas políticas
de assistência médica, condições no trabalho e familiares. Aí, no domínio
da parentalidade, foi instituída em 197 4 a licença parental, para que tanto o
pai como a mãe se pudessem ausentar do trabalho por um período de férias
de um ano. Em 1992, essa licença já podia ir até dezoito meses. Durante
nove meses ·o pagamento do salário era de cem por cento para os fun­
cionários públicos e de noventa por cento para os trabalhadores do sector
privado. Nos restantes meses, o progenitor apenas recebia um abono, nor­
malmente insuficiente para garantir as despesas necessárias do agregado
familiar (Sullerot, 1993).

Como já mencionámos anteriormente, no caso de haver uma ruptura


conjugal, com a consequência de uma separação familiar, na maior parte
dos países ocidentais e europeus o tribunal concede a guarda dos filhos à
mãe, devido ao carácter preponderante que o papel maternal teve na edu­
cação e nos cuidados dos filhos ao longo de vários séculos. A psicologia
reforçou esta ideia ao considerar nefasto o afastamento dos filhos pequenos
das suas mães, quando é necessário fazer uma escolha entre um e o outro
progenitor. Para o pai, a lei prevê, em caso de separação, a possibilidade de
estar com os filhos segundo determinados regimes de visita. Este aspecto
provoca algumas reservas nalguns pais que gostariam de um regime mais
livre para estarem com os seus filhos, sendo actualmente muito discutida a
questão jurídica da guarda conjunta. A diferenciação que acabamos de
explanar, com a introdução da noção de co-parentalidade, pode ser mais um
importante contributo para a prossecução dos necessários ajustes a estas
realidades.

Representação Social, Dinâmica Familiar


e Stress Parental na Monoparentalidade: um estudo exploratório

No quotidiano da maior parte das famílias portuguesas existe uma


relação entre os dois pais e os filhos, sendo as famílias portuguesas em si-
269
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

tuação de monoparentalidade apenas de 13.6%, segundo dados oficiais do


INE (1996). Sabemos, no entanto, que muitas situações familiares escapam
às estatísticas e, neste domínio, são frequentes as mudanças na composição
familiar.

Metodologia e Objectivos

Justifica-se, assim, levar a cabo um estudo empmco centrado em


fanu1ias com um só educador com carácter permanente (mãe ou pai),
procurando saber o seu grau de satisfação familiar, como se caracterizam
em termos de recursos internos e quais os níveis de stress a que estão
sujeitas na área da parentalidade. Para além disto, pretendíamos ainda saber
que tipo de representação social têm, elas próprias, da estrutura familiar em
que se enquadram.

Para tal seleccionámos uma amostra de famílias monoparentais ou


famílias com um único educador que coabitam com os seus filhos biológi­
cos. Todas as famílias foram inquiridas em meios urbanos, de forma inten­
cional, não probabilística, através de conhecimento pessoal ou por indi­
cação de pessoas conhecidas, sendo a amostra recolhida pelo método "bola
de neve". Ao protocolo responderam apenas os educadores, pai ou mãe,
através de um contacto pessoal. Esse protocolo era constituído pelos
seguintes instrumentos: Questionário sócio-demográfico e sobre as
condições associadas à monoparentalidade, construído para este estudo;
Escala de Representações Sociais da Monoparentalidade (ERSM), cons­
truída também especificamente para este estudo; Escala de Satisfação
Familiar e Escala de Recursos Familiares (Olson et al.,1982) e Índice de
Stress Parental (ISP) (Santos, 1990) (Figura 1).
Previamente à recolha da amostra estabeleceram-se alguns pré-requisi­
tos: o número de anos de monoparentalidade ser no mínimo de três anos;
os filhos dos inquiridos possuírem no mínimo três anos de idade; todos os
inquiridos exercerem uma actividade profissional; o estado civil dos
inquiridos poder englobar solteiros, casados, união de facto, viúvos, divor­
ciados e separados; e, por último, o educador único poder coabitar com os
seus filhos e com outras pessoas, excluindo a possibilidade de coabitação
com outra figura parental.
270
Novas Formas de Família

OBJECTIVO

1 Traçar um perfil de uma amostra de famílias monoparentais


1
INSTRU MENTOS

1
Questionário
1
Representações Satisfação
1
Recursos
1
Índice de Stress
Sociais (ERSM) Familiar Familiares Parental {ISP)
Variáveis: Vaz & Relvas, 1999 (Olsop et ai., 1982) (Olson n ai., 1982) (Santos, 1990)
1) Demográficas Dimensões: Dorrúnios:
2) Associadas à Exigência Coesão Orgulho 1) Da criança
monoparentalidade Dificuldades Adaptabilidade Entendimento 2) Dos pais

Figura 1 - Investigação: Objectivos e Instrumentos

Para a compreensão mais cabal deste estudo, cremos ser importante


esclarecer as razões que conduziram à definição dos critérios atrás enuncia­
dos. Em primeiro lugar, para o número de anos de monoparentalidade, con­
siderámos que, quer num processo de ruptura conjugal quer de falecimen­
to do cônjuge, há um importante período de luto vivido pelo educador que
fica só. Considerámos o mínimo de 3 anos como o tempo necessário à reor­
ganização familiar e à adaptação à nova situação (Carter, McGoldrick et al.,
1995).
O parâmetro idade mínima dos filhos de 3 anos tem em conta dois
aspectos principais: o primeiro é que, com esta idade, a criança começa a
exprimir algum desembaraço e autonomia, sendo normalmente a idade em
que vai para a creche, partilhando os pais os cuidados com outras pessoas,
no exterior da família, permitindo assim uma menor absorção do tempo
gasto pelos pais. Haveria já, por outro lado, um período de tempo impor­
tante no sentido da "estabilização" de um modelo de parentalidade (Relvas,
1996). Finalmente, esta idade é entendida como a idade mínima adequada
para aplicação do Índice de Stress Parental (Santos, 1992).
Considerámos, como vimos, que os inquiridos deveriam todos exercer
uma actividade profissional o que permitiria evitar situações como as de
estudantes, reformados, ou desempregados cuja inclusão, uma vez que não
possuiriam um rendimento proveniente do trabalho, poderia enviesar os
resultados do estudo.
271
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

A possibilidade de englobar nesta amostra sujeitos provenientes de


vários estados civis (solteiros, casados, viúvos, união de facto, divorciados
e separados) enquadrava-se na definição adoptada para a farru1ia mono­
parental no nosso estudo, ou seja, de serem farru1ias onde há apenas um
educador que vive com os filhos, a quem educa com um carácter perma­
nente, assumindo responsabilidades parentais em vários domínios, desde a
educação aos cuidados de saúde, alimentação, compra de vestuário, etc.
Assim, excluímos a possibilidade do educador único coabitar com outra
figura parental, embora admitindo a possibilidade de poder ter uma relação
afectiva estável (eventualmente considerada pelo próprio união de facto,
com coabitação não permanente - também designada conjugalidade não
coabitante).

Características da Amostra

Das trinta farru1ias que se dispuseram a colaborar connosco, em vinte e


seis as figuras parentais, pai ou mãe, vivem sozinhas com os filhos e qua­
tro vivem com os filhos e outros familiares. As famílias residem, na sua
quase totalidade, na região Centro de Portugal (75%) e as restantes (25%)
nas regiões Norte e Sul.
Quanto ao perfil demográfico (Tabelal), a nossa amostra é constituída
essencialmente por mulheres divorciadas (50%), embora também tenhamos
um número considerável de mães solteiras (30%). O valor médio de idade
dos respondentes é de 39 anos, sendo o valor mínimo 20 anos e o valor
máximo 53 anos, variando, no entanto, significativamente com o estado
civil dos inquiridos (F(2,25)=10,619; p=.00). Assim, as mulheres solteiras
têm uma média de idade mais baixa, 31 anos, e as viúvas uma média de
idade mais alta, 46 anos, enquanto as divorciadas apresentam uma média
de 42 anos.
A maior parte das famílias tem uma dimensão pequena, duas pessoas
por agregado familiar (mãe/pai e filho(a)). No entanto, assinalamos, tam­
bém, o número considerável de farru1ias com dois filhos. Quanto às suas
idades, verificamos que existe um grande leque de idades, desde a infância
até à etapa de jovem-adulto, cuja dispersão retira o interesse de uma análise
em termos de índices de tendência central (média ou moda, por exemplo).
Nas idades dos inquiridos (pai ou mãe), cuja média ronda os 39 anos, ve­
rifica-se também uma grande variação, desde o jovem-adulto até à meia-
272
Novas Formas de Família

-idade, embora com menor dispersão do que na variável anterior. Todos


desempenham uma actividade profissional, sendo a distribuição pelas
profissões bastante diversificada. A maior parte dos inquiridos pertencem à
classe social alta (são professores licenciados), sendo esta classe a mais re­
presentada na nossa amostra. A classe baixa ocupa o segundo lugar e o
maior grupo são artesãos. Por último, a classe média engloba profissões
diversificadas. Paralelamente, os sujeitos têm, em média, um nível de esco­
laridade elevado: mais de metade tem entre 10 e 17 anos de escolaridade.
São quase todos católicos, com uma percentagem de 96.3%.

Tabelai - Características Demográficas da Amostra


Sexo Masculino 6.6
Feminino 93.4
Mínimo-20A
Máximo - 53 A
Mécji� - �9.03 Ai D, :e.=�,68
Solteiro
Estado civil Viúvo
Divorciado
Conjugalidade não coabitante
1 filho
2 filhos
�2 fl!hos _______
Mínimo-2 A
Idade dos filhos Máximo-23 A
· + Ã1ho + omros famti1ares
Pai +Filho
Agregado familíar Mãe+ 1 F.dho
Mãe + 2 Blhos ou mai'S
� + fiJhQ§ + OQ(JqÜ@'!Jfiar�
< 35horas 27.6
Número de horas de trabalho/ semana 35-44 horas 58.6
> 44 horas 13.8
Alta '43.b
Classe social Média 27.0
l;laj� )CM�
l º CEB 13.3
2º CEB 13.3
Nível de escolaridade 3º CEB 16.7
Ensino secundário 26.7
Ensino Superior 30.0
273
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Estes dados podem conduzir-nos a uma hipótese interessante: tendo em


conta que 50% dos inquiridos são divorciados, que as suas idades médias
rondam, como vimos, os 40 anos, podemos imaginar que teriam entre 20-
-25 anos aquando do 25 de Abril de 1974, o que pode indiciar que teriam
casado, mais ou menos, por essa altura. Por outro lado, sabe-se que este
acontecimento marca, no nosso país, um importante avanço numa transfor­
mação de valores (Figueiredo, 2001), em que se enquadra um boom de
divórcios e, consequentemente, de farru1ias monoparentais. Estaríamos,
assim, perante uma amostra com forte representação do que poderíamos,
nesse contexto, designar a "geração" de Abril.
Quanto ao perfil da situação de monoparentalidade dos sujeitos (Tabela
2), podemos concluir que se encontram nesta situação, em média, há cerca
de seis anos. A média do número de anos de monoparentalidade, por esta­
do civil, é igualmente de seis anos. Os inquiridos repartem-se igualmente
no que se refere a considerarem a sua situação como fatalidade ou como
uma opção de vida. Salientamos, ainda, que quase todos vivem esta situa­
ção pela primeira vez. A maior parte não tem, actualmente, uma relação
afectiva estável com outra pessoa. Quisemos saber se esta situação se liga­
va com outras variáveis, como a idade e o número de filhos, o estado civil
e o nível de escolaridade dos inquiridos e não encontrámos qualquer varia­
ção estatisticamente significativa. A maior parte dos educadores não con­
sideram a sua situação económica desfavorável, embora o número dos que
a consideram deste modo seja assinalável.

Tabela 2 - Caracterização da situação de monoparentalidade

Mínimo-3 A
Número de anos de monoparentalidade Máximo-22 A
Moda-6 (3 A)
Média - 6 A; D. P.=4.23
· Si:gniiÍcação da situaçoode · Õpção 48.3
mpnop��nU\fidac;!e Fatal)dade ?l.7
Número de vezes em situação de Primeira vez 90.0
monoparental idade Segunda vez !O.O
Reiação afectiva estávet do inquirido Sim 20.0
))ijij9 &0,0
Situação económica Favorâvel 58.6
Desfavorável 41.4
274
Novas Formas de Família

Na última parte do Questionário, sobre a caracterização da situação de


monoparentalidade, fizemos duas perguntas abertas sobre "dificuldades"
(Gráfico 1) e "facilidades" (Gráfico 2) associadas a essa situação'. A
primeira conclusão que retirámos, depois de termos submetido as respostas
a uma análise de conteúdo, é de que, atendendo ao facto de serem edu­
cadores únicos, os inquiridos sentem mais dificuldades do que facilidades
na sua situação familiar. A educação dos filhos é a principal dificuldade
referida, seguida da ausência do companheiro e, em terceiro lugar, dos
problemas ligados à gestão do quotidiano. Quanto às facilidades, referidas
em menor número de categorias assinaláveis e, também, por uma menor
percentagem de inquiridos (30% dos inquiridos enunciam algumas "facili­
dades" contra 90% que assinalam diversas "dificuldades"), verificámos que
a facilidade mais referida é a estabilidade na educação dos filhos, seguin­
do-se a independência e autonomia.

10 ■ Aceitação Social
UVtda Socia!
2$ ■ Kal:litação
n Ausência comp
li Educação lilhos
H Económicas
15
n Rec:Uf'So a outros

10 li Gestão qtolidiano
n Trabalhc)'Famflia

5 • Ta-npo livre
o Ausência 00 pai
o

Gráfico 1 - Dificuldades associadas à monoparentalidade

Verificámos, ainda, que as "dificuldades" referidas não variam signi­


ficativamente com algumas das variáveis demográficas e associadas à
monoparentalidade consideradas neste estudo, nomeadamente, número de

'Nestas questões pedíamos aos inquiridos que inventariassem, no máximo, três difi­
culdades e três facilidades decorrentes da sua situação de monoparentalidade.
275
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

horas de trabalho, profissão, número de anos de monoparentalidade, per­


cepção da situação económica, estado civil e idade dos inquiridos e, tam­
bém, dos filhos. Já as "facilidades" variam significativamente com o
número de anos de monoparentalidade (F(l,2)=27.000; p=.035) e a média
de idade dos filhos (F(l,3)=38.400; p=.008). Dos dados descritivos5
parece ser possível inferir que as facilidades nas categorias "maior estabi­
lidade na educação dos filhos" e "ajustar horários" aumentam consoante o
crescimento dos valores das variáveis anos de monoparentalidade e idade
dos filhos.

35 ■ Decidir melhor
30
O Bem-estar filhos
25
li Ajustamento
20 horários

't5 Q Atenuação conflitos

10 a Mais estabilidade
educação filhos
5 151 Independência/
o --.- Autonomia

Gráfico 2 - Facilidades associadas à monoparentalidade

Do conjunto destes dados foi possível extrair dois sub-perfis demográ­


ficos da amostra em estudo: por um lado, mulheres de classe média-al­
ta/alta, bem qualificadas academicamente, com profissões correspondentes
(na sua maioria professoras), que não se percepcionam com dificuldades
económicas; por outro lado, mulheres de classe média/baixa, menos quali­
ficadas académica e profissionalmente (sem curso superior e com profis­
sões diversas, desde empregadas de serviços e comércio a artesãs) e que se
consideram em situação económica desfavorável.

' Não foi possível identificar, com rigor, o sentido destas variâncias, pois não se
obtiveram os testes post-hoc, uma vez que existem categorias com n= 1.
276
Novas Formas de Família

No global, os inquiridos são prevalentemente mulheres que rondam a


chamada "meia-idade"; vivem, em média, há 6 anos com 1 ou 2 filhos, de
idades muito variadas e sem a presença de outros familiares. Não têm, no
momento, qualquer relação afectiva estável (no sentido da conjugalidade),
são maioritariamente divorciadas, é a primeira vez que vivem uma situação
de monoparentalidade, cuja origem é atribuída, em igual grau, quer a opção
quer a fatalidade.
São sujeitos que apresentam, assim, características genéricas de "classe
média e urbana", o que aliás seria de esperar atendendo aos locais de reco­
lha da amostra. Pensando nos resultados do estudo efectuado por uma de
nós e anteriormente mencionado (papel fortemente participativo na edu­
cação dos filhos e maior poder nas tomadas de decisão familiares) (Vaz,
1995), faz sentido hipotetizar que as responsabilidades educativas da maio­
ria destas mulheres, face à situação de monoparentalidade, se constituem
como uma "extensão" das já assumidas antes da eventual ruptura familiar.
Assim, pese embora as "dificuldades" sentidas serem mais diversificadas e
em maior número do que as "facilidades", não será de estranhar que, aos
"problemas na educação dos filhos" e à "ausência do companheiro", se con­
traponham, enquanto facilidades, a "maior estabilidade na educação dos fi­
lhos" e a "independência/autonomia". Parece assim haver, nas nossas
inquiridas, uma "compensação directa" entre aspectos menos e mais posi­
tivos da monoparentalidade, claramente associados, em primeiro lugar, aos
filhos e, depois, à relação "a dois", eventualmente parental.
Parece, ainda, que este verso-reverso da monoparentalidade pouco tem
que ver com as condições que a caracterizam bem como com o sujeito que
a vive. De facto, apenas as "facilidades" variam com o tempo de monopa­
rentalidade e a idade dos filhos, o que faz sentido se pensarmos que, à medi­
da que esses aspectos progridem, os filhos caminham para uma cada vez
maior independência/autonomia, pelo que, em termos educativos, a mono­
parentalidade deixa, "naturalmente", de ser significante enquanto tal.
Das análises de variância feitas entre outras variáveis consideradas na
caracterização da amostra, é de salientar dois aspectos interessantes: (1) o
facto de, no presente, os inquiridos terem ou não uma relação de conjuga­
lidade estável não parece atribuível nem ao número/idade dos filhos, nem
ao seu estado civil ou estatuto académico e profissional, como se poderia
imaginar à partida; (2) o facto de as mães solteiras serem significativamente
mais novas do que as divorciadas e as viúvas pode apontar, eventualmente,
para uma definição menos definitiva da sua monoparentalidade.
277
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Representação da Famaia Monoparental

Quisemos, também, saber quais as representações sociais6 que os nos­


sos inquiridos têm das famílias monoparentais. Na escala de representações
sociais que construímos para este efeito, e depois de fazer o estudo da sua
fiabilidade7, encontrámos duas dimensões que denominámos exigência e
dificuldades. A primeira dimensão - Exigência - diz particularmente
respeito à relação entre o educador único (pai/mãe) e os filhos, enquanto a

• As representações sociais são teorias sociais e práticas, ou ainda, como refere


Jodelet (1989), são um saber prático. Para Doise (1992) as representações sociais são
estruturas organizadoras das relações simbólicas entre os actores sociais. Uma repre­
sentação social é partilhada por um conjunto de indivíduos como sendo um produto das
interacções e dos fenómenos de comunicação no interior do grupo social, reflectindo
quer a situação do grupo quer os seus projectos, problemas e estratégias.
' O processo de validação da escala iniciou-se com uma primeira fase de selecção
dos itens (correspondentes a afirmações sobre a monoparentalidade normalmente vei­
culadas pelo senso comum e avaliados pelos sujeitos numa escala Likert de 1 a 5), des­
tinada a eliminar os não discriminantes com base no critério da sua distribuição per­
centual nas 5 posições da escala de resposta. Através da análise factorial, tal selecção
foi feita considerando: 1) a forma como aqueles se organizam em estruturas indepen­
dentes e: 2) a sua validade interna. Foram eliminados os itens ambíguos, quanto ao seu
posicionamento nas estruturas obtidas numa primeira factorização (para 1, 2, 3, 4 e 5
factores). Posteriormente, fez-se uma análise de correlação item a item, a partir da qual
obtivemos uma matriz de correlações e os valores de significância; em seguida, obtive­
mos uma matriz de correlação inversa e, finalmente, procedeu-se ao cálculo das comu­
nalidades (coeficiente de comunalidade h2, que consiste na análise da co-variância do
item com os factores isolados).
Procedeu-se, então, a uma rotação ortogonal varimax, com o objectivo de maxi­
mizar as saturações dos itens nos respectivos factores. Através deste cálculo, foi pos­
sível a interpretação dos factores, passando do domínio da estatística para o domínio dos
comportamentos avaliados (itens) que se podem agrupar tendo alguma dimensão
comum subjacente (Almeida e Freire, 1997). Feita a correspondência entre os itens e os
factores encontrados, concluímos que a análise em dois factores era a mais consistente
em termos empíricos e teóricos, tendo assim definido as duas dimensões já citadas:
exigência e dificuldades. No sentido de avaliar a consistência interna das escalas e
subescalas, calculou-se o coeficiente alpha de Cronbach. Os valores obtidos foram os
seguintes: escala total .64; exigência .66; dificuldades .63. Sendo aceitáveis para um
primeiro estudo, estes valores apontam para a necessidade de um melhoramento da
escala e para alguma cautela na leitura dos resultados obtidos. Para melhor esclareci­
mento de todo este tópico, consultar Vaz, 1999.
278
Novas Formas de Família

segunda - Dificuldades - se refere, mais concretamente, ao funcionamento


e dinâmica familiares globais.

Tabela 3 - Escala de Representações Sociais da Monoparentalidade (ERSM)

Número Descrição do item Saturação


doitem do item
� Q �!JA!i\4@r rutt�A lJ!aj:§ � ffll 9!l til»:!!§ J�
Os filhos das famílias monoparentais são mais exigentes do .73
. que os d.is ou!T:1$ f,unílias
6 às filhos das famffia- s monQPatentids participam mais nas
� 49.fil�JÍi!lf
8 Os filhos são muitas vezes confidentes do seu educa�or .56

Número
f11_u1tqi: Í·- w..�ruut� Saturação
Descrição do item
do item do jt�m
j As truntlias monopareutais têm mais dilieuldãdes em
ei:ins.e:guif ter um desenv.otwmentoemooloo:ai equilfumoo ,86

r
4 As famílias monoparentais têm mais dificuldades no seu dia­ .75
-a-dia

3
ÍÉ mais impprtante a maneira somo o educador únfoo vtve a
*l!'Fº, �o qy, a a�4nejq qq-911t,�HJ�Cl}dOr
O Pai ou a Mãe que está ausente geralmente não participa na
-�
.49
educação dos filhos
7 , Ôs fiffnm dest{IS fàmifias têm menor rendimento �iar .41
A família monoparental é frequentemente vista pela sociedade .32
de modo desfavorável

Considerando que os valores médios possíveis se situariam em 30


(escala total) 18 (Dificuldades) e 12 (Exigência) podemos concluir que os
resultados dos sujeitos inquiridos (Tabela 4) são, em todas as medidas,
superiores a essas médias. Podemos assim inferir que a sua representação
social da família monoparental não parece ser muito positiva (embora tam­
bém não seja claramente negativa, uma vez que os resultados se situam
entre .51 e 1.96 pontos acima da média possível), tanto em termos globais,
como no que se refere às suas dificuldades enquanto grupo familiar e à
exigência na relação filho-pai/mãe.
279
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Tabela 4 - Resultados da ERSM (representações sociais)


·1·

Mínimo Média Máxmla Desvio-P,adrão

Representações Sociais 22 31.96 42 5.60

Exigência 4 13.43 19 3.30

Dificuldades 12 18.52 27 3.97

Dinâmica Familiar

Para a análise deste parâmetro recorremos às escalas de Satisfação e de


Recursos Familiares desenvolvidas por Olson e colaboradores (1982).
Pretendíamos compreender o nível de satisfação dos sujeitos com o seu
funcionamento familiar, bem como a sua percepção sobre os recursos inter­
nos que caracterizam as suas fanu1ias.
Não nos deteremos, aqui, na descrição destes instrumentos, uma vez
que tal já foi feito, no que se refere à Escala de Satisfação Familiar, nos
Capítulos 2 e 3 (fanu1ias de acolhimento e adoptivas, respectivamente), e à
Escala de Recursos Familiares, no Capítulo 3. Convém, contudo, recordar
que a primeira avalia a satisfação percepcionada pelos sujeitos, relativa­
mente ao funcionamento familiar na globalidade e às suas duas dimensões:
Coesão (ligação emocional dos membros da fanu1ia) e Adaptabilidade
(capacidade de mudança da família, isto é, flexibilidade). A segunda avalia
o grau de Recursos Internos disponíveis na família (resultado total da
escala) e o modo como se caracterizam a partir, também, de duas dimen­
sões: Orgulho Familiar (que engloba atributos como a lealdade, o optimis­
mo e a confiança intra-familiar) e Entendimento (sentimento de capacidade
para cumprir tarefas, lidar com problemas e dar-se bem, em geral).
Posto isto, e atendendo aos valores possíveis das escalas, bem como aos
resultados obtidos pelos inquiridos (Tabela 5), podemos concluir que aque­
les não se sentem particularmente satisfeitos com o seu funcionamento,
uma vez que apresentam médias abaixo das possíveis e, em termos absolu-
280
Novas Formas de Família

tos, inferiores às obtidas com o mesmo instrumento noutras amostras


(nomeadamente pelas fam11ias adoptivas, cf. Cap.3). Contudo, é importante
salientar que os sujeitos se sentem significativamente mais satisfeitos com
os aspectos associados à Coesão, como a distribuição do tempo/espaço
familiar, aceitação de amigos, decisões conjuntas e intimidade, do que com
os aspectos ligados à Adaptabilidade, como a disciplina, negociação, regras
e papéis (para um p=0.00).

Tabela 5 - Resultados da Escala de Satisfação Familiat

M'Édla MAximo Desvto-'1>am,ão

Satisfação Familiar 24 39.99 60 8.19

Adaptabilidade 10 16.20
35
25 3.64
:J

No que se refere aos recursos internos a situação é diferente (Tabela 6):


os sujeitos percepcionam as suas famílias como tendo bons níveis de recur­
sos, tanto em termos de Orgulho, como de Entendimento (não há diferenças
significativas entre as duas dimensões).

Tabela 6 - Resultados da Escala de Recursos Familiares•

Mhlbno Média Mltxima Desvlo-Padr!o


Recursos Familiares 27 44.30 54 6.41
3J l.16
Entendimento 7 14.50 20 3.26

• A fim de avaliar a fiabilidade e consistência interna dos resultados desta escala na


nossa amostra, recorremos ao cálculo do coeficiente alpha de Cronbach. Os valores
obtidos revelaram-se bons, confirmando a consistência da escala quando aplicada nesta
amostra: escala total a=.92; Coesão a=.85; Adaptabilidade a=.87.
• Num procedimento idêntico ao enunciado anteriormente, os valores obtidos para a
Escala de Recursos Familiares aplicada à nossa amostra são aceitáveis: escala total
a=.81; Orgulho a=.92; Entendimento a=.53.
281
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Parece, assim, estarmos perante sujeitos que, apesar de verem as suas


farru1ias como tendo capacidade para cumprir tarefas, enfrentar problemas
e dar-se bem, em geral, o que expressa confiança e optimismo nas suas
potencialidades, não se sentem muito satisfeitos com o modo como a sua
farru1ia funciona, particularmente no que se refere à sua flexibilidade face
à negociação de regras e papéis (Adaptabilidade). Diríamos, caricatural­
mente, que se sentem melhor com o que a família é, em termos de capaci­
dades, do que com o modo como vivem e se organizam, em termos fun­
cionais. Pensando nas características da amostra e na representação social
que os inquiridos têm da monoparentalidade, podemos concluir que:

• a exigência na relação figura parental/filho(a) e, particularmente, as


dificuldades familiares atribuídas à situação de monoparentalidade
ajudam a compreender os dados da dinâmica familiar. Com efeito,
tanto as dificuldades enunciadas nos itens da ERSM, como, espe­
cialmente, as assinaladas pelos sujeitos na resposta ao Ques­
tionário, remetem mais para a vertente estrutural e funcional (ges­
tão do quotidiano, ausência do companheiro, articulação traba­
lho/família, por exemplo) do que para a esfera afectiva e relacional.
Note-se, neste sentido, a distinção "ausência do pai"/"ausência do
companheiro" (cf. Gráfico 1), sabendo nós que, actualmente, o
principal valor atribuído ao casamento é claramente funcional,
"auxílio mútuo entre os cônjuges", ao invés do que acontecia há
uma década atrás, em que o valor predominante era "realização
pessoal" (Figueiredo, 2001). Com efeito, mesmo em termos de
funcionamento, os nossos sujeitos estão significativamente mais
satisfeitos com as ligações que se definem entre os membros da
farru1ia (Coesão), do que com a sua flexibilidade e capacidade de
ajustamento à mudança (Adaptabilidade);
• recordando que estamos perante inquiridos maioritariamente mu­
lheres, de classe média, com bom nível de escolaridade e uma si­
tuação profissional e económica considerada pelas próprias como
satisfatória, parece ser lógico concluir que estas dificuldades de
funcionamento provêm mais da gestão da própria vida familiar do
que de outros factores ligados às condições sócio-económicas da
farru1ia.
282
Novas Formas de Família

Em-'síntese, pelo que acabamos de ver, estes sujeitos percepcionam as


suas fail111ias como capazes, mas evidenciam dificuldades nomeadamente
na educação dos filhos, em termos de adapatabilidade, o que lhes provoca
alguma dose de insatisfação. Na sequência desta conclusão, os resultados
da análise que se segue - nível/fontes de stress parental - adquirem um
novo interesse.

Avaliação do Stress Parental

Procurámos, então, conhecer o perfil apresentado pelos suJe1tos da


nossa amostra relativamente ao stress parental. Para tal utilizámos o
Índice de Stress Parental (ISP)'º (Santos, 1990) que permite avaliar onde
se verifica maior stress: se no Domínio da Criança (DC) [percepção do
impacto das características da criança nos pais e grau de stress que neles
provocam] ou no Domínio dos Pais (DP) [características pessoais da figu­
ra parental em relação com as exigências e tarefas da função parental] e,
ainda, quais são as subescalas, nos referidos domínios, onde os pais sen­
tem mais stress [DC: Distracção/Hiperactividade, Maleabilidade de
Adaptação, Aceitação, Exigência, Humor e Reforço aos Pais; DP:
Depressão, V inculação, Restrições do Papel, Sentido de Competência,
Isolamento Social, Relação Marido-Mulher" e Saúde Parental] (Santos,
1992, 1996, 1997).
Verificamos que os nossos sujeitos (Tabela 7) apresentam significati­
vamente (p=0.00) mais stress no DC do que no DP. Este resultado sig­
nifica que as características da criança provocam mais stress nos pais do
que a maneira como estes percepcionam os seus próprios atributos,
enquanto pais, em relação ao desempenho e exigências da função
parental.

'º Tal como aconteceu relativamente às outras escalas utilizadas nesta investigação,
abstemo-nos de detalhar aqui as características do ISP, uma vez que foram devidamente
referidas no Capítulo 3. Recomenda-se, nomeadamente, a consulta do Anexo aí incluí­
do, onde se apresenta a descrição de todos os itens, por subescala e domínio.
" Neste estudo, como é óbvio, não considerámos a subescala "Relação Marido­
-Mulher" uma vez que nos centrámos em famílias monoparentais e que a existência de
par conjugal/parental foi critério de exclusão da amostra.
283
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Tabela 7 - Índices de tendência central e dispersão para o ISP e sub-escalas

Síll!��� lM{QimQ l'4tul!\ M� IP.


A - Qistracçã�per<)ctividac:le 12 20}3 34 4.70

� - �e{9t�llf1t�� ).i7
Donúnio
C - J{umor 5 p7 15 2.65
da
criança
i· �t;� n IP,$ç }i t>O
E - Maleabilidade 16 27.46 38 5.92

F-�i� � !7,M $0 4.)� '

G - Au;onomia 11 18.93 25 3.t6

H - Sentido de compe_t�ncia 17 26.76 41 5.94

1-Vlpc»J�o $ IM) t9 '.t):Q


) · Restriçêjes c:l<l papel 10 17.70 28 4.42
Donúnio
dos l,,·Ptpr� u
pais N -!solam<;lltCl sÇ)Çial 13.76 22

1.9-�W�IW'�

DC 84 121.83 168 19.47


Totais p 71 tQ§J9 137 i,ei
ISP 161 225.13 304 32.8.3

A fim de poder traçar o perfil dos níveis de stress percepcionados por


estes pais, considerando as diferentes áreas da parentalidade avaliadas pelo
ISP (correspondentes às subescalas), efectuámos uma transformação linear
dos dados obtidos em valores comparáveis numa escala uniforme (1 a 5)'2•
Obtivemos assim o Gráfico 3.

" Este procedimento revelou-se necessário, uma vez que as subescalas variam em
termos do número de itens que as compõem.
284
Novas Formas de Família

FocJ

A B C D .E F G H I J L N O

Gráfico 3 - Perfil de stress parental nas famílias monoparentais

Considerando que quanto mais elevados são os valores obtidos maior é


o stress parental, da análise do Gráfico 3 sobressaem os seguintes aspectos:
os picos de stress localizam-se nas subescalas Distracção/Hiperactividade
(A- 2.54), Aceitação (D - 2.48) e Re.strições do Papel (J - 2.53), Depressão
(L - 2.30), as duas primeiras pertencentes ao DC e as duas últimas ao DP;
os menores índices de stress associam-se ao Reforço aos Pais (B - 1.63)
(DC) e Isolamento Social (N - 1.53) (DP).
Perante estes dados e tendo em atenção o conteúdo dos itens constituin­
tes das respectivas subescalas (cf. Cap. 3, Anexo), podemos concluir que as
características da criança associadas às áreas da gestão parental do contro­
lo e de aceitação daquela criança são os aspectos que geram mais stress nos
inquiridos [exemplos 13 - (A) item 2: "é tão irrequieto que me esgota"; item
1: "quando ele/a quer alguma coisa, não desiste até conseguir"; (D) item 19:
"é mais desobediente que as outras crianças"; item 24: "faz coisas que me
aborrecem muito"].
Ainda no sentido de se constituírem como importantes fontes de stress
no DP, surgem as condições do desempenho da função parental que, de
algum modo, restringem as necessidades, interesses ou actividades indivi­
duais dos pais, em paralelo com o aparecimento de sentimentos depressivos

" Note-se, como é visível nos exemplos, que os itens do ISP são formulados quer
em sentido directo (Likert 1, 2, 3, 4, 5) quer em sentido invertido (Likert 5, 4, 3, 2, 1).
285
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

e de culpa [exemplos - (J) item 75: "gasto as horas do meu dia a tratar das
coisas para ele/a"; item 77: "sinto-me limitado por causa das minhas
responsabilidades como pai/mãe". (L) item 85: "quando ele/a faz alguma
coisa errada, sinto realmente que a culpa é minha"; item 82: "quando penso
no tipo de pai/mãe que sou, muitas vezes sinto-me culpado/e e mal comigo
mesmo/a"].
Contudo, é importante notar que as áreas da função parental que menos
stress potenciam se referem ao sentimento de recompensa (afectivo e rela­
cional) pelo esforço desenvolvido, bem como ao apoio da rede social
[exemplos - (B) item 10: "em geral sinto que gosta de mim"; item 13:
"quando trato das coisas para ele/a tenho a sensação de que o meu esforço
não é muito apreciado". (N) item 102: "quando tenho algum problema
com os meus filhos, conto sempre com alguém para pedir ajuda ou con­
selho"].

Estes resultados apontam, de novo, para dificuldades funcionais ine­


rentes à "solidão educativa" no contexto familiar, matizadas por sentimen­
tos de recompensa pelo esforço, provenientes dos próprios filhos, e de
suporte, oriundos do meio social mais próximo. De novo surge, de modo
global, a ideia já aventada anteriormente e que podemos exprimir assim: "É
difícil, mas compensa!".
Tentaremos ver, mais à frente, até que ponto estas características do
stress se associam particularmente à monoparentalidade, quando comparar­
mos os resultados do ISP, neste estudo, com os de uma amostra da popu­
lação em geral (amostra de validação do ISP em Portugal).

Do estudo correlacionai, entre os resultados obtidos em cada subescala


e os valores globais dos dois domínios14 (DC e DP), é de salientar três
aspectos:

• todas as subescalas se relacionam, significativamente, com o


domínio a que pertencem;
• no DC verificamos que as subescalas D (Aceitação), E
(Maleabilidade de Adaptação) e F (Exigência) se correlacionam

"Para uma análise mais pormenorizada consultar Vaz (1999).


286
Novas Formas de Família

com o DP, apresentando, naturalmente, valores inferiores aos das


correlações com o seu próprio domínio. Assim, a percepção das
características da criança relacionadas com a sua maleabilidade e
adaptação a novas situações, aceitação e grau de exigência estão,
também, associadas à percepção das características dos pais
enquanto tal. Pelo que, sempre que a nota de cada uma daquelas
subescalas aumenta ou diminui, o mesmo acontece com o nível de
stress associado ao DP;
• as subescalas H (Sentido de Competência), I (Vinculação) e L
(Depressão), apesar de pertencerem ao DP, também se correla­
cionam com o DC. Quer dizer que o stress associado à competên­
cia sentida no desempenho parental, à vinculação estabelecida com
a criança e aos sentimentos depressivos emanados do exercício da
função parental está, também, relacionado com as características
da criança e o impacto que causam na figura paterna.

Vemos, portanto, através desta análise, como os resultados obtidos nas


diferentes áreas dos dois domínios não são "estanques" entre si, no sentido
em que expressam a esperável interacção entre características dos pais e das
crianças, mesmo quando a fonte de stress se localiza mais especificamente
num deles. Este aspecto parece-nos particularmente importante na
subescala Aceitação, onde os inquiridos mostram que a dificuldade de
aceitação de certos aspectos da criança também se associa com a forma
como se entendem enquanto pais e educadores.

Análise comparativa com uma amostra da população geral

Quando comparámos a nossa amostra com a amostra de adaptação da


escala para Portugal (Santos, 1992), verificámos que não existem dife­
renças entre ambas, nem em relação ao valor total do ISP, nem em relação
a qualquer dos Domínios. Somente a subescala Aceitação (D) apresenta
valores significativamente inferiores na amostra de adaptação (p< 0.5).
287
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

- arrostra de
adaptação
-arrostra fam
rronoparentais

A 8 O & E F 0 H I J L N O

Gráfico 4 - Perfis dos resultados obtidos pelas amostras de adaptação


e de famílias monoparentais

Parece, assim, não se confirmar a hipótese de que a localização e inten­


sidade dos picos de stress 15 na nossa amostra se ficasse a dever à situação
de monoparentalidade. Por outras palavras, as dificuldades sentidas pelos
nossos sujeitos acompanham, de perto, o que acontece com os pais em
geral. A excepção surge na subescala Aceitação (D), onde emerge signi­
ficativamente mais stress nos pais em situação de monoparentalidade.
É então possível inferir que os pais do nosso estudo sentem as suas
crianças como sendo mais "difíceis" do que as "outras" em geral. Este
aspecto poderá apontar para uma significação importante da monoparenta­
lidade, agregando, eventualmente, as dificuldades emanentes da "solidão
educativa" de que falávamos. Por outro lado, podemos ainda interpretar
este dado no sentido em que este tipo de estrutura familiar facilita uma
maior focalização e centralização do progenitor e educador único na crian­
ça, de tal modo que ocorre, em termos de fontes de stress, uma sobreva­
lorização das suas características individuais na gestão da parentalidade. Se
recordarmos que a área que menos stress provoca nestes pais está também
associada às respostas da criança na relação (Reforço aos Pais - B) pode­
remos caracterizar estas farru1ias como "famílias centradas na criança".

" Chama-se a atenção para a não comparabilidade entre os Gráficos 3 e 4. Não se


entendeu ser necessário proceder a uma comparação entre as duas amostras na escala
que uniformiza os valores das subescalas considerando o diferente número de itens que
as compõem (tal como se fez para o Gráfico 3), uma vez que para o nosso objectivo
actual esse procedimento seria absolutamente redundante relativamente às conclusões
permitidas pelo Gráfico 4.
288
Novas Formas de Família

O nosso estudo permite ainda concluir que o grupo, segundo o estado


civil, onde se verifica mais stress parental é o das mães solteiras. No nosso
entender, este resultado parece compreensível, pois são mulheres jovens,
com um nível de instrução baixo, com dificuldades económicas e, even­
tualmente, sem alojamento próprio, uma vez que vivem maioritariamente
com familiares.
Portanto, o maior índice de stress parental parece corresponder ao
segundo subperfil demográfico, enunciado aquando da leitura dessas va­
riáveis, mas que é minoritário na nossa amostra. Também não se pode
esquecer que estas inquiridas têm, em média, idades significativamente
mais baixas do que as restantes (divorciadas e viúvas) mas com média e
desvio-padrão de anos de monoparentalidade semelhantes aos outros gru­
pos de sujeitos, o que pode apontar para que tenham sido mães muito
jovens, também significativamente. Este último aspecto pode, ainda, ajudar
a explicar o maior stress parental encontrado nesta subamostra. Finalmente,
numa vertente mais teórica e considerando os dados apresentados por
Sullerot (1993) sobre a relação pais-filhos na monoparentalidade, podemos
imaginar que estas mães estejam mais sozinhas com os filhos, no sentido da
não existência de co-parentalidade. Acresce que não seriam estas as mu­
lheres que enquadrámos na "geração de Abril", o que à partida pode fazer
pensar em significados diversos para a situação de monoparentalidade: para
estas mães solteiras a sua situação corresponderia menos a uma posição de
"libertação", estando por isso mais ligada a outro tipo de factores. Neste
sentido, não foi possível estabelecer qualquer variância significativamente
estatística, relativamente a estes grupos e à significação atribuída à sua si­
tuação de monoparentalidade (opção ou fatalidade); mas, uma vez que ne­
nhum destes itens era definido em termos concretos, ou seja, não tendo pos­
sibilidade de saber o que as inquiridas consideram, exactamente, opção ou
fatalidade, a nossa hipótese fica claramente em aberto, podendo vir a ser
considerada relevante em estudos posteriores sobre este tema.
De todo o modo, é um facto que, através do estudo das correlações entre
os resultados do ISP e as variáveis demográficas e associadas à mono­
parentalidade, se observaram três aspectos relevantes para as hipóteses que
acabamos de apresentar: (1) quanto maiores são os valores obtidos no nível
de escolaridade, idade dos inquiridos e idade dos filhos, bem como quanto
mais o estado civil tende para "divorciado", menor será o stress parental no
ISP total; (2) quanto maiores são os valores da idade dos inquiridos, o
número de anos de monoparentalidade e o nível de escolaridade, menor é o
289
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

stress sentido no DC; (3) quanto maior é a tendência para "divorciado", a


idade dos filhos e o nível de escolaridade dos inquiridos, menor é o stress
noDP.
Em síntese, a associação entre idade dos inquiridos e dos filhos, escola­
ridade dos sujeitos, estado civil divorciado e os níveis de stress em todas as
medidas possíveis no ISP é muito consistente. No sentido de melhor perce­
ber esta ligação e a sua importância em termos de previsibilidade da emer­
gência do stress parental, efectuámos algumas regressões lineares múltiplas.

Tabela 8 - ISP (VI) x var. demográficas / monoparentalidade (VD)

Virt4>vds &1!.1ª T r
Nível de Escolaridade - .578 -3.683 .001

Anos,'(te Monol)lU'entaJidad.e -.3171 -2576 .0¼6

Tabela 9 - DC (VI) x var. demográficas / monoparentalidade (VD)

ft(t 26}"" 14-$11., P = .QO; R2 = .49,; �-Pª�º = 14,12


- "

VimtiY� 1 ilt3 T f
Nível de Escolaridade - .541 -3.346 .002

Anosde MoooparentaÍidade --488 -i.S!H .OÓll

Tabela 10 - DP (VI) x var. demográficas / monoparentalidade (VD)

F (l, J7),. 8.@Qo/'; P = .009: !l:2 = .;?O; J;lr,r-0,,Pa<tm"" 16,08

Nível de Escolaridade - .478 -2.83 .009

Através dos resultados obtidos (Tabelas 8, 9 e 10), confirmamos a


importância do nível de escolaridade na redução do stress parental.
290
Novas Formas de Família

Contudo, no que se refere ao stress global e ao DC, aquele aparece também


associado ao número de anos de monoparentalidade, no mesmo sentido e
com valores de previsão importantes (entre 43% e 49%). No que se refere
ao DP só o nível de escolaridade se associa inversamente ao stress parental,
com o valor de previsão de 20%. Parece, então, que o acumular da "expe­
riência" de monoparentalidade é relevante na redução do stress parental, em
geral, e no que se refere ao impacto das características das crianças, em par­
ticular. Este aspecto pode associar-se também, como parece evidenciar-se
nos resultados das correlações, ao crescimento e autonomização dos filhos.

Relações entre Dinâmica Familiar;


Representação Social e Stress Parental

No sentido de melhor compreendermos estas relações, efectuámos algu­


mas correlações16 entre os resultados obtidos com os diferentes instrumen­
tos de medida que utilizámos nesta investigação - Escalas de Satisfação e
de Recursos Familiares, Escala de Representação Social da Monoparenta­
lidade e Índice de Stress Parental. Sintetizaremos, de seguida, as principais
conclusões retiradas dessa análise:

• a Satisfação e os Recursos familiares relacionam-se directamente,


como aliás seria esperável atendendo aos dados da literatura: quan­
to maior é a satisfação maiores serão os recursos, em geral, e o
orgulho familiar, em particular (e vice-versa);
• a Satisfação familiar e a Representação Social da monoparentali­
dade não se relacionam, nem ao nível global nem considerando as
respectivas dimensões. Contudo, a melhores Recursos familiares
associam-se menores valores na dimensão Dificuldades da ERSM.
Para além disso, um melhor Entendimento liga-se, ainda, a uma
representação global da monoparentalidade mais positiva;

• Na análise deste tópico só consideramos as correlações estatisticamente significa­


1

tivas. As tabelas com a indicação dos valores e níveis de significãncia de todas as cor­
relações podem ser consultadas em Vaz, 1999.
291
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de um;r-Fainília?

• quanto maiores os valores dos Recursos familiares, e nomeada­


mente da dimensão Entendimento, menor será o stress parental (o
melhor Entendimento familiar prediz mesmo, em 23%, um menor
stress parental total [F(l,18)=6.712; p=.018; R 2=.23; Erro­
-Padrão= 28.71)) 17• O mesmo acontece com a Satisfação familiar,
em geral, e com a Adaptabilidade, em particular. Finalmente,
quanto maiores forem os valores obtidos na escala de
Representação Social da monoparentalidade (no total e em cada
uma das suas dimensões - Exigência e Dificuldades) maior será o
stress parental total.

Em síntese, três aspectos aparecem associados nos dados dos nossos


sujeitos: a representação social da monoparentalidade, a forma como enten­
dem os seus recursos internos e o stress parental. De novo, a satisfação com
o seu funcionamento parece ter um "estatuto especial" no contexto destas
relações, pois, apesar de se associar quer com o nível de stress parental quer
com os recursos internos familiares, mostra-se independente da represen­
tação social que os sujeitos fazem da monoparentalidade. Poderíamos
mesmo hipotetizar que, enquanto a avaliação dos aspectos mais relaciona­
dos com o que o inquirido sente que a família é, em termos de recursos e
competências, é afectada por essa representação social, o mesmo não acon­
tece com os aspectos mais funcionais. Em última análise, nestes sujeitos,
parece que a representação social desta forma familiar, enquanto estrutura
organizadora (Doise, 1992), é fundamentalmente actuante sobre o que
poderíamos designar por identidade familiar e não tanto sobre a avaliação
que fazem do seu funcionamento.
É de destacar, assim, a importância da dimensão entendimento (recur­
sos familiares) em todo o jogo de variáveis, como aspecto de articulação
entre elas: o sentimento de competência da família funciona como pivot na
relação entre os outros aspectos considerados na investigação.

" De todas as medidas obtidas com os instrumentos utilizados na investigação, o


Entendimento familiar é a única que se revela preditora do nível de stress parental.
292
Novas Formas de Família

Nota Final

É sempre difícil retirar "conclusões" a partir de investigações com carác­


ter idêntico à que acabamos de apresentar. Contudo, será sempre possível
elencar aqueles aspectos que nos parecem ser as pistas de compreensão que
gostaríamos de sublinhar. É nesse sentido que escrevemos esta nota final.
Os aspectos que focámos no texto introdutório ao capítulo, sobre as difi­
culdades de gestão do quotidiano nesta forma de família, emergiram, de
algum modo, nos dados fornecidos pelos sujeitos do estudo, particularmente
no que se refere à (pouca) satisfação com as soluções funcionais encontradas
para lidar com as questões associadas ao estabelecimento e flexibilização de
regras e normas na família . Por outro lado, a forte relação entre pais e filhos,
no sentido do lugar central que ocupa nestas famílias, sobressai, claramente,
da análise dos resultados obtidos, particularmente nas perguntas abertas do
Questionário e no ISP. Finalmente, para os inquiridos as expectativas so­
ciais parecem ser relevantes na valorização/desvalorização da competência
familiar, com reflexos óbvios no stress parental.
Nesta sequência, é interessante recordar que os sujeitos não apresentam
um perfil e níveis de stress parental significativamente diferentes da média
dos pais portugueses. Assim, parece legítimo inferir que as dificuldades
atrás indicadas não se repercutem de forma assinalável nessa variável. A
excepção surge, somente, no que se reporta à aceitação das características
dos filhos por comparação com as outras crianças em geral (subescala D do
ISP), mesmo assim associada à forma como os sujeitos entendem as suas
próprias características enquanto pais. Concluímos, então, que estes pais,
mesmo expressando a sua solidão parental em termos funcionais, não per­
mitem que ela os invada, nem em termos de stress nem no sentido de
deixarem de acreditar na competência das suas famflias.
Outro aspecto que gostaríamos de sublinhar refere-se à importância do
entendimento familiar (dimensão dos recursos internos) . Este "sentimento
de capacidade para lidar com problemas, cumprir tarefas e dar-se bem em
geral" (Olson et al., 1982) aparece como elo de ligação entre as diferentes
variáveis consideradas no estudo (satisfação familiar, stress parental e re­
presentação social da monoparentalidade), sempre no sentido de se afirmar
como algo de positivo na vivência destas famílias, uma vez que o seu incre­
mento se associa a um decréscimo de dificuldades nas outras medidas. Esta
importância verifica-se, desde logo, nos valores absolutos encontrados
293
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

nesta dimensão, mais elevados nesta amostra do que os encontrados, por


exemplo, nas farru1ias de acolhimento (cf. cap. 2) e idênticos aos encontra­
dos por Canavarro e colaboradores (1993). Assim, a confiança nas capaci­
dades da família parece ser o "ponto forte" destes sujeitos, através do qual
se armam na luta contra as dificuldades. Outro ponto forte parece ser a
facilidade com que lidam com a sua rede de apoio (valores baixos na
subescala Isolamento Social do ISP), o que pode compensar a solidão de
que falávamos.
Apesar de não se constituir como uma novidade, da investigação que
conduzimos sobressai outro aspecto que merece alguma reflexão.
Referimo-nos à convergência de dados que nos pode levar a pensar estas
farru1ias como "famílias centradas na criança", ideia atrás já indicada. Ao
fazer esta afirmação não seguimos, completamente, a conceptualização de
Carter, McGoldrick e colaboradores (1995), quando, a propósito da etapa
do ciclo vital "famílias com filhos pequenos", falam do sobreinvestimento
de uma criança como factor impeditivo do desenvolvimento de outros tipos
de relacionamento, dentro e fora da farru1ia, muitas vezes com efeito "cor­
rosivo" nas relações conjugais. Na leitura que fazemos, o sobre-investi­
mento existe mas não implica, necessariamente, o aspecto disfuncional
sublinhado pelas autoras citadas. A criança/filho torna-se a fonte de preo­
cupação major nestas famílias (e provavelmente também de gratificação),
transformando-se numa espécie de "organizador" do vivido familiar. Para
além disto, cremos que só as próprias vicissitudes da situação familiar
global poderão facilitar, ou não, o aparecimento de formas menos saudáveis
de relacionamento familiar. Mesmo o facto de estes progenitores não man­
terem uma relação afectiva estável com um companheiro, neste sentido,
pouco nos diz: primeiro, porque pode derivar, no que se reporta à
coabitação, dos critérios de amostragem e, depois, porque independente­
mente desse aspecto, a não existência de relação não se associa, pelo menos
estatisticamente, aos dados sobre os filhos (número e idade).
Contudo, será importante determo-nos sobre este assunto, pois acredi­
tamos que este pode ser um factor de vulnerabilidade e um risco para um
desenvolvimento bem sucedido das famílias monoparentais Tal risco sur­
girá agravado, evidentemente, em situações já de si mais problemáticas
como as que focámos no texto introdutório - famílias pas-de-deux com fi­
lhos únicos (Minuchin e Fishman, 1981) ou famílias com filhos parentifi­
cados (Alarcão, 2000). Cremos, portanto, que este é um tópico que deve
merecer aos clínicos e investigadores uma atenção especial.
294
Novas Formas de Família

As dificuldades em ser pai ou mãe são frequentes vezes referidas quer


por especialistas quer pelo senso comum, no sentido em que ser pai ou mãe
implica uma aprendizagem constante em qualquer tipo de família.
Recordamos um dos inquiridos do nosso estudo que, a este propósito,
exprimiu a convicção de que "todos os pais e mães fazem o melhor que
podem", sendo por isso difícil, a quem quer que seja, afirmar quem é, e por
que é, bom pai ou boa mãe. Apesar de não ser esse o objectivo do estudo,
esta ideia foi-se mantendo presente ao longo de toda a investigação, sobre­
tudo porque o nosso trabalho teve, como pano de fundo, um certo ques­
tionamento sobre estas farru1ias, nomeadamente em termos de dificuldades,
stress parental, satisfação e recursos, e ainda, ao nível das representações
sociais, trabalhando com conceitos e indicadores que se reportam a um
"modelo ideal" da vivência familiar. A concluir a sua apresentação, não
quisemos deixar de fazer referência a este aspecto, que exprime a influên­
cia do mito da "família nuclear, natural e intacta", ou talvez mesmo de um
viés, na abordagem das novas formas de família a que a nossa investigação,
possivelmente, não soube fugir... Se bem que tenhamos tentado, como ficou
dito, estar muito atentas a ele, particularmente na análise e discussão dos
resultados.

É ainda um pouco neste sentido que, a finalizar, retomamos a questão


título deste capítulo: farru1ia monoparental, umafamaia à parte ou parte de
uma família?
Depois de tudo o que analisámos e discutimos parece, mais do que
nunca, fazer sentido a ideia de que os fenómenos sociais e humanos não
podem nem devem ser entendidos a "preto ou branco". A linearidade não
poderá ser a via para a compreensão desta - como das outras - formas de
farru1ia.
Os sujeitos que participaram na investigação mostraram-nos que, para
eles, a família monoparental é um pouco das duas coisas. Tentaremos
esclarecer como. É uma família à parte, uma vez que estruturalmente se
diferencia de outras formas de família e, nesse sentido, organiza-se de forma
particular e apresenta problemas e potencialidades específicas. É parte de
uma farru1ia em termos mais radicalmente funcionais, ao evidenciar a neces­
sidade da manutenção ou reatamento de algumas relações, nomeadamente
das que podemos enquadrar no conceito de co-parentalidade (Sullerot,
1993). Este aspecto poder-se-ia converter, cremos, num factor de protecção
perante o risco eventualmente criado pela centração na criança.
295
Monoparentalidade: Uma Família à Parte ou Parte de uma Família?

Por outro lado, e para terminar, os nossos sujeitos ainda nos ensinaram
aquilo que teoricamente sabemos mas muitas vezes esquecemos (talvez até
no desenho desta investigação... ): a fanúlia monoparental, como a família
em geral, não pode ser pensada como um "bloco uniforme e monolítico".
Considerando as suas características sócio-demográficas, os nossos
sujeitos, na sua quase totalidade mulheres, distribuem-se em dois grupos,
mães solteiras e mulheres divorciadas (ou viúvas), que parecem vivenciar
a monoparentalidade de modos distintos - quem sabe? - logo desde a
origem da situação. Em estudos posteriores este aspecto poderá ser consi­
derado, ajudando a conhecer as diferentes situações que se enquadram
nesta designação mais lata e que, como tal, exigem uma atenção e reflexão
também elas diversas.

E é nesse sentido que concluímos com uma "máxima" sistémica que.se


aplica, neste contexto, com toda a legitimidade: o todo é parte e a parte é
todo; só o jogo de vai-e-vém entre parte(s) e todo(s) permite o pensamento
sistémico e a construção do conhecimento, possível, do sistema (Morin,
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Capítulo 6
A Mulher na F�Oia: "Em torno dela"

Ana Pàula Relva


'1

Foi nossa intenção que toda esta obra se centralizasse no desenvolvi­


mento e análise teórica e empírica de algumas novas formas de família.
Sem pretender transformar este último capítulo num Posfácio, há algu­
mas considerações sobre este tema que fazem sentido ser aqui equa­
cionadas, como enquadramento-do assunto que nos propomos abordar a
finalizar este livro. Falamos do papel da Mulher na Família, de algum
modo colorido por Chagall através do subtítulo que lhe pedimos
emprestado, a saber; "Em torno dela" ( 1945).
Neste início de século, o conceito de família é, de novo, questionado e
(re)equacionado, numa articulação recursiva com as próprias transfor­
mações que, a nível psicossocial, nos permitem falar da família em
mudança. Neste processo, a grande diversificação das estruturas fami­
liares é um dos factores mais pregnantes,_ ao conduzir à identificação e
reconhecimento das chamadas novas formas de família ou famílias não
tradicionais.
Na nossa opinião, esta designação é de algum modo imprópria ou, no
mínimo, questionável, como a mais adequada para exprimir os aspectos
que pretende revelar. Com efeito, o nosso imaginário colectivo está
povoado de histórias infantis que, em última análise, nos falam destas
formas de família. Senão, vejamos. A Branca de Neve e a Gata
Borralheira não são mais do que protagonistas de histórias de famílias
reconstituídas. E se quisermos deixar este tipo de narrativas para pas­
sarmos aos novos heróis infantis (e não só) encontramos Harry Potter e
a sua pouco bem sucedida família de acolhimento. Contudo, algo unifi­
ca, na sua significação, todas estas histórias: a conotação negativa
destes contextos familiares que transforma os seus protagonistas em víti­
mas, salvos da sua infeliz situação por forças protectoras mágicas e
302
Novas Formas de Família

inevitavelmente muito poderosas, como as fadas ou a comunidade de


feiticeiros que, de alguma forma, os fazem regressar às origens para
cumprir o seu destino e o das suas famílias naturais.
Dizíamos, com base nesta constatação do imaginário, que as novas for­
mas de família são tudo menos "novas" na sua existência, ideia que, se
o desejássemos, poderíamos ainda mais facilmente fundamentar em
dados evolutivos históricos e demográficos. Por outro lado, a conotação
das suas dificuldades, problemas e incapacidades é algo que também se
vem mantendo: a aura de "anormalidade", por oposição à chamada
família tradicional, continua também a envolvê-las em termos de repre­
sentação, embora, talvez, de modo mais longínquo.
O que mudou, então, que nos obriga a (re)pensar e (re)conhecer estas
famílias de tal maneira que até as designamos como "novas"? Cremos
que a mudança resulta da interacção entre os dois aspectos primeira­
mente focados (questionamento do conceito de família e transformações
psicossociais da segunda metade do século XX) que, traduzida numa
maior visibilidade associada ao seu peso social e demográfico, condu­
ziu ao inevitável reconhecimento jurídico-legal destas formas de família.
Diríamos, em síntese, que a desconstrução de uma certa ideia de Família
implicou a construção do conceito Formas de Família o qual, por sua
vez, exige a transformação da sua representação social, nomeadamente
em relação à conotação negativa de que falámos. Aqui, e só aqui, o
adjectivo novas faz sentido. Na nossa opinião, este aspecto é tão rele­
vante que, apesar de todos os "ses", conservámos ao longo desta obra
essa designação para nos referirmos a estas estruturas familiares.
Contudo, tais processos de mudança são efectivamente muito lentos,
pelo que, no momento, consideramos que, complementarmente, estas
formas de família devem também ser consideradas, em termos psicosso­
ciais, verdadeiras estruturas de transição - quanto mais não seja na sua
significação, valor e processos de afirmação/reconhecimento. Para elas,
a sociedade não definiu, ainda, rituais de "normalização"; a ciência
não as estudou, a fundo, na sua diferença; perante isto, os seus elemen­
tos têm alguma dificuldade em descobrir as suas potencialidades e em
afirmar as suas singularidades.

Posto isto, conhecê-las, bem como aos processos que no seu seio se
desenrolam, faz todo o sentido. Com esse objectivo, desenvolvemos a
303
A Mulher na Família: "Em torno dela"

linha de investigação sobre "Novas Formas de Família", em que se


enquadram os estudos anteriormente apresentados. Por isso, também, a
necessidade de perceber os contextos que com elas co-evoluem.
Minuchin diz-nos que vivemos a nossa vida como os fragmentos de um
caleidoscópio e que tomar consciência deste caleidoscópio nos abre
novas possibilidades de compreender as organizações familiares
(Minuchin, 1991). Aqui se enquadra este capítulo, pois acreditamos que
um dessesfragmentos, componentes da complexidade familiar, é, incon­
testavelmente, o papel da mulher na família Um papel cuja transfor­
mação acompanha, num processo co-evolutivo, a emergência das
chamadas novas formas de família.
"Um dos aspectos mais complexos do estatuto dos membros da família
é a confusão que ocorre sobre a pessoa poder ou não escolher a sua qua­
lidade de membro e consequente responsabilidade numa família".
Carter, McGoldrick et ai., 1995, 10.

Lá em casa manda ela, mas nela mando eu!


Mãe, o que é casar? Casar, filha, é parir, fiar e chorar.
La.r, doce lar!

Estas três proposições exploram, de algum modo, uma imagem da mu­


lher na famflia que associamos ao papel que lhe era atribuído há décadas
atrás. Dentro do lar era a rainha, abelha-mestra da sua colmeia. Fora do lar
o seu papel era quase inexistente. A sua função na farru1ia era cuidar do
marido e dos filhos, a cujas necessidades se devia submeter, a fim de lhes
proporcionar as melhores condições para o desempenho dos respectivos
papéis. Para além disto, a mulher tinha ainda como função cuidar dos
doentes e idosos. Sendo passiva nesse sentido, a mulher teria, apesar de
tudo, um papel fulcral na farru1ia ao ser a responsável pela reprodução da
própria família, não só biológica como também, e fundamentalmente, ideo­
lógica. Tudo isto era visto como natural: a mulher nasceu mulher para ser
mãe e esposa.
O que acabamos de dizer não será muito mais do que um amontoado de
pressupostos e ideias feitas, com alguma fundamentação proporcionada,
nomeadamente, pelos estudos dos sociólogos da farru1ia. Contudo, não é
nesta perspectiva que nos queremos focalizar, até porque outros o fariam
incomparavelmente melhor que nós. Se começámos por relembrar esta que
hoje parece ser, pelo menos nas sociedades ocidentais ditas civilizadas,
uma imagem datada e desactualizada da mulher na família, é porque con-

Ana Paula Relvas e Madalena Alarcão (Coords.) (2002). Novas Formas de Família.
Coimbra, Quarteto Editora.
306
Novas Formas de Família

cordamos com Betty Carter e Monica McGoldrick quando afirmam: "A


mudança do papel feminino nas famílias é central nos padrões do ciclo de
vida familiar em modificação" (1995, 14).
Nasce-se, em regra, no seio de uma farru1ia. Isso implica constrangi­
mentos que nem sempre as pessoas encaram como tal. Ligações intra e
intergeracionais e o lugar ocupado por cada um nessa teia relacional
definem que se seja membro de uma farru1ia. Contudo, esta definição não é
simples: aquele membro, enquanto tal, desempenha diversos papéis num
jogo relacional complexo, o qual vai também mudando à medida que o
desenvolvimento familiar vai decorrendo.
De facto, embora o processo evolutivo familiar não seja, de modo ne­
nhum, linear, existe na dimensão linear do tempo. Do tempo familiar e do
tempo social. "Os grupos que nasceram e viveram em períodos [e contex­
tos] diferentes diferem na fertilidade, mortalidade, papéis de género
aceitáveis, padrões de migração, educação, necessidades, recursos e ati­
tudes em relação à farru1ia e ao envelhecimento" (idem,13).

Passado... Presente ... Futuro ... O Tempo. A História. Primeira matriz de


compreensão da vida, logo, da família e das famílias, significando um
movimento contínuo e contínuas transformações.
Onde ... Como ... O Espaço. A Cultura. Segunda matriz que aponta para
a importância do(s) contexto(s) nessa compreensão, enquanto
construtor(es) de significados.
O padrão que liga no tempo (Bateson, 1987). A articulação inevitável
entre estas duas matrizes que são, afinal, dois eixos descritivos do discurso
familiar. Aqui nos situaremos para, seguidamente, reflectirmos "Em torno
dela".

A Mulher, a Família e a Ciência em Mudança

Não parece haver muitas dúvidas que o modo como, hoje em dia, se
entende o papel da mulher na família (e na sociedade) está fortemente asso­
ciado às transformações ocorridas nos paradigmas de ciência, particular­
mente nas ciências sociais. A complexidade impôs-se à linearidade, o mul­
tiversus ao universus, o construído ao descoberto, a auto-referência à neu­
tralidade, a história ao aqui e agora, o qualitativo ao quantitativo, a pers­
pectiva contextual ao individualismo, a intersubjectividade à objectividade,
307
A Mulher na Família: "Em torno dela"

a linguagem, a semântica e a estética ao pragmatismo. Estas são algumas


das novas dicotomias que, ao proporem a revisão de outras antinomias
internas ao próprio positivismo, opõem os paradigmas positivista e pós­
-positivista 1 . Espera-se, apesar de tudo e ainda com base nestas novas epis­
temologias, que aqueles se possam articular dialogicamente.
A década de noventa consagrou algumas das influências anunciadas nos
anos oitenta como linhas fundamentais nos estudos sobre a família.
Seguindo Doherty e colaboradores (1993, in Fuster e Ochoa, 2000), tais
influências podem ser assim elencadas:

• Impacto das teorias feministas e de grupos minoritários, que cla­


mam pela necessidade de reconhecimento da diversidade das
experiências familiares, especialmente nos grupos marginais e
oprimidos, bem como da necessidade de reconhecer os valores
pessoais e culturais do investigador/interventor.
• Transformação das estruturas familiares, que ao longo de toda esta
obra temos vindo a referir e analisar.
• Tendência para uma maior inclusividade profissional, entenda-se,
maior interdisciplinaridade.
• Tendência para uma maior diversidade teórica e metodológica, que
conduz a uma mescla de teorias e métodos de estudo, análise e inter­
venção, sem qualquer exclusão à partida. Ao "trabalho" baseado
nesta mescla, Lynn Hoffman (1990) chamou "uma arte de lentes".
• Maior preocupação com a linguagem e o significado, reflexo da
ênfase cultural pós-moderna e da nova relevância dos métodos
interpretativos como as análises qualitativas e as abordagens her­
menêuticas.
• Movimento no sentido de abordagens mais construtivistas e contex­
tuais, como parte da tendência pós-positivista das ciências sociais,
em busca de uma metáfora própria.

' Tendo embora consciência da não linearidade e não consensualidade relativamente


à utilização desta terminologia (positivismo/pós-positivismo), optámos por mantê-la,
seguindo os autores aqui referenciados (Fuster e Ochoa, 2000). É de clarificar, contudo,
que sob a designação pós-positivismo, e numa conceptualização mais pessoal, enqua­
dramos o paradigma meta-teórico resultante da confluência da 2ª Cibernética (Von
Forster), do Construtivismo (Watzlawick) e, particularmente, do Construcionismo
Social (Gergen), aceitando, sem ter a pretensão de a explicar, a Complexidade (Morin).
308
Novas Formas de Família

• Maior preocupação com questões éticas, valores e religião, cujos


dilemas, em termos familiares, começam a adquirir lugar como
tema de investigação e intervenção.
• Tendência a romper com a dicotomia entre esferas pública e priva­
da da vida familiar, tal como entre ciência social da família e
intervenção familiar. Esta tendência é expressão, por um lado, da
revisão da ruptura entre o interior psicossocial da famflia e as
relações da mesma com a comunidade e a sociedade e, por outro,
das suas implicações práticas na intervenção política e de mudança
social.
• Maior reconhecimento, por parte dos estudiosos da família, dos li­
mites contextuais das teorias da família e do conhecimento basea­
do na investigação, assumindo-se a natureza auto-reflexiva e
histórica da investigação social, a qual enfatiza as dimensões con­
textuais e culturais desses limites.

Sendo necessariamente a pontuação dos seus autores, esta listagem de


influências expressa, de modo claro, a tendência de transformação dos pa­
radigmas da ciência, particularmente das ciências sociais. Evidencia-se
assim, claramente, a passagem de um modelo reducionista e nominalista
para um outro holista e caracterizado pelo realismo social, tal como a tran­
sição do positivismo para o pós-positivismo2 •

' Os autores que vimos seguindo (Fuster e Ochoa, 2000) apresentam estas duas
grandes antinomias enquanto paradigmas enquadradores dos estudos sobre a família.
Segundo eles, em termos ontológicos, a visão nominalista, que situa a realidade social
no indivíduo e na sua intencionalidade enquanto actor social, é congruente com o
reducionismo, que propõe que a realidade é melhor compreendida quando se decompõe
nas suas partes constituintes (também designado, por outros autores, como abordagem
analítica; Rosnay, 1977). À visão nominalista opõe-se o realismo social, segundo o qual
as unidades colectivas não podem ser totalmente explicadas em termos das propriedades
dos indivíduos, considerando a emergência das suas inter-relações como algo novo.
Esta visão é congruente com o holismo (designada por outros autores por abordagem
sistémica; idem) que se opõe ao reducionismo ao postular que a realidade é melhor com­
preendida a partir das inter-relações entre as suas partes constituintes.
Em termos epistemológicos, a segunda antinomia opõe a visão positivista, que con­
sidera a natureza objectiva do seu objecto de estudo, ou seja, da realidade social, à visão
pós-positivista, que supõe a natureza subjectiva do mesmo, enquadrando os movimen­
tos construtivistas e o construcionismo social.
309
A Mulher na Família: "Em torno dela"

É um dado quase consensual que os estudos sobre a farru1ia, na área da


psicologia, desde muitQ cedo se enquadraram no modelo holista - veja-se a
importância da teoria dos sistemas, da cibernética e consequente focalização
na interacção, desde'stmpre presentes no movimento da terapia familiar. Mas
também não será difícil aceitar que grande parte deles foi fundamentada na
tradição positivista. O seu objectivo era descobrir leis objectivas e gerais
sobre o (dis)funcionamento da família, aceitando-se, portanto, a capacidade
de predizer os resultados dos processos familiares. Por outro lado, os inves­
tigadores/interventores eram vistos como neutrais, livres da influência dos
seus próprios valores e, portanto, com capacidade de produzir conhecimento
objectivo sobre o objecto de estudo, isto é, sobre a família. Este paradigma
caracteriza-se, assim, por um pensamento exógeno (Gergen, 1994, in Fuster
e Ochoa, 2000). De acordo com ele, a farru1ia é um dado da realidade.
Só em meados dos anos oitenta o pós-positivismo ou pós-modernismo se
começa a assumir como paradigma alternativo no estudo da família -
nomeadamente na perspectiva sistémica sob a influência da cibernética de
segunda ordem, do construtivismo e do construcionismo social. A partir
daqui, aceita-se que o observador não é neutro nem exterior ao fenómeno
que observa, uma vez que a realidade social não é um dado do "mundo aí
fora", mas uma construção. A teoria precede a observação, não há factos
mas teorias, validadas por meio de um consenso intersubjectivo entre cien­
tistas, num dado contexto e num momento particular da história. Tais teorias
podem ter implicações práticas ao romper esquemas estabelecidos, quando
penetram directamente na compreensão comum da cultura, pelo que o teóri­
co converte-se, desse modo, num agente potencial de mudança.
As interpretações múltiplas das experiências são legítimas e desejáveis
e as descrições da realidade não são correctas ou incorrectas, uma vez que
são criações do observador. O conflito é fundamental nos processos que
geram conhecimento que não pretende, portanto, ser objectivo. Este para­
digma caracteriza-se, pois, por um pensamento endógeno (idem, ibidem).
Segundo ele a família é uma construção social.
Deste paradigma, que, como se vê, fundamenta epistemologicamente
grande parte das influências sobre os estudos da família neste final e início
de séculos, para o tema que nos ocupa importa destacar dois movimentos
científicos que, em última análise, tiveram como enorme implicação o
questionamento do próprio conceito de família. Referimo-nos ao constru­
cionismo social (Gergen, 1991; 1994) e aos estudos feministas (Gilligan,
1982; Hare-Mustin, 1988).
310
Novas Formas de Família

O construcionismo social

Para o construcionismo social as nossas crenças acerca do mundo são


invenções sociais, criadas na intersubjectividade da linguagem. A grande
crítica que faz ao conceito de família tem que ver com a sua reificação, ou
seja, o seu entendimento como uma "coisa" que existe como tal e que "de
fora" se impõe ao indivíduo. Nesse sentido, a família seria vista como uma
entidade natural ou biológica. Daqui decorreria que os papéis e funções
familiares seriam também naturais.
O que este movimento científico nos propõe é que o "natural" seja
entendido como uma construção social e discursiva. Na senda de Anderson
e Goolishian (1988), quando propõem que vejamos os sistemas humanos
como sistemas linguísticos, ou de Chubb (1990), quando sugere que olhe­
mos os sistemas como processos, é necessário substituir a ideia de "a
farru1ia" como uma "coisa", por uma conceptualização dos processos asso­
ciados a "ser uma farru1ia" (Gubrium e Holstein, 1993, in Fuster e Ochoa,
2000). Por outras palavras, em vez de considerarmos a família como um
conjunto concreto de vínculos, será mais interessante considerá-la uma
forma de atribuir significados às relações interpessoais.
A família é, então, um "projecto" que se realiza através do discurso. O
discurso familiar organizaria descritivamente os vínculos humanos (por
exemplo através de termos como "pai", "mãe", "irmão", etc.) e transmitiria
ideias aparentemente compartilhadas acerca da vida doméstica, atribuindo,
finalmente, significados às relações interpessoais. Para ser convincente,
esta actividade descritiva deve orientar-se para "o que toda a gente sabe"
acerca da família. A farru1ia, portanto, é uma produção do discurso fami­
liar que, simultaneamente, constrói (idem, ibidem).
Como nós próprias já escrevemos. "Estamos inseridos numa sociedade
e numa cultura num dado momento histórico; aí surgem aspectos auto-orga­
nizados que designamos realidades, ou seja, tudo o que por nós é aceite
como real, sem sombra de dúvida. (... ) A família é, assim, algo que todos
(sociedade) e cada um (indivíduo), define; como tal, aparece consensual­
mente isolada em confronto com outras realidades sociais que também
construímos e às quais atribuímos diferentes designações" (Relvas, 1998,
86-87) ou seja, descrevemos por meio de outros termos.
311
A Mulher na Família: "Em torno dela"

As abordagens feministas

O segundo movimento enquadrado no pós-positivismo, no seio do qual


também ocorre um importante questionamento do conceito de farru1ia, é a
perspectiva crítica e, mais concretamente, as abordagens feministas. Debra
Kauffman (1990, in Fuster e Ochoa, 2000) entende o feminismo como uma
teoria social crítica que trata de avaliar, descrever e explicar a história e
estrutura das relações de género. Vai, contudo, mais além da tradição inter­
pretativa, representada no movimento anterior, tendo como objectivos ilus­
trar, educar e emancipar. O conhecimento pode utilizar-se para transformar
as estruturas sociais opressoras, com o objectivo de conseguir maior justiça
e liberdade para as farru1ias e os seus membros (Habermas, 1971).
Se o pós-positivismo, em geral, recusa noções como verdade, objectivi­
dade e neutralidade, a perspectiva crítica feminista, relativamente à família,
recusa outros tantos pressupostos: a ideologia da farru1ia monolítica e
unitária; a crença de que a fanu1ia é natural ou biológica e o discurso sobre
a família centrado numa linguagem de papéis e funções. Como é evidente,
recusa o estatuto natural dos papéis masculino e feminino, sublinhando que
a família não é só local de afecto, mas também cenário de controlo e sub­
missão da mulher. Contesta a divisão entre público e privado, em que o
público seria o mundo do homem e o privado o da mulher, o que a equipara
e confina à família, impedindo que ela seja vista como um membro indi­
vidual da sociedade. Tal dicotomia impediria, ainda, a compreensão do
modo como as estruturas familiares são influenciadas por factores
macrossociais e ideológicos. Para este movimento científico, a família é
entendida como uma ideologia que determina as relações de género e a su­
bordinação da mulher.
É nestes elementos de contestação que se suportam as propostas do
movimento crítico feminista, assumindo como objectivo fundamental de
estudo a construção social do género. Lar e fanu1ia deverão ser entendidos
como diferentes. "Lar" será visto como unidade co-residencial onde as pes­
soas se encontram e "fanu1ia" como a ideologia das relações que indica
quem deve viver junto, quem deve compartilhar o quê, quem deve desem­
penhar certas tarefas. Esta seria, assim, um constructo de relações e sig­
nificados, distinta do lar enquanto unidade residencial e económica,
mudando a ênfase da estrutura familiar para a família entendida como
unidades de experiência (Ferree, 1990, in Fuster e Ochoa, 2000). A pro­
posta é, então, anular todo um conjunto de dicotomias baseadas nos pares
312
Novas Formas de Família

antinómicos masculino-feminino, homem-mulher, construídos mais social­


mente do que pela natureza.
Nos seus trabalhos pioneiros, Gilligan sustentava a ideia que as mu­
lheres têm uma epistemologia própria. Será que assim a autora traduzia
cientificamente o famoso sexto sentido feminino, retirando-lhe a conotação
algo negativa? A este tema voltaremos posteriormente quando abordarmos
a questão das teorias do desenvolvimento humano. Como ela própria afir­
ma: "No ciclo de vida, como no Jardim de Éden, a mulher tem sido des­
viante" (Gilligan, 1982, 6). O que nos faz lembrar que, apesar das suas
diferenças, homens e mulheres se parecem mais entre si do que qualquer
outra coisa na natureza, pelo que a questão volta a ser: como se constrói e
mantém a ilusão da "dicotomia do género, perante a similitude entre sexos
e a diferença dentro de um mesmo sexo"? (Ferree, 1990, in Fuster e Ochoa,
2000, 182).
Para além de novas abordagens de situações como a violência domésti­
ca, a maternidade singular, a interrupção voluntária da gravidez ou o papel
da mulher no cuidado da doença crónica, o questionamento da família neste
âmbito, associado ao debate, reflexão e implicações sociais e interventivas
que aquele promove, conduzem, finalmente, ao estudo de novas questões
não exclusivamente relacionadas com a mulher como, por exemplo, o que
é a fanu1ia, a temática dos pares homossexuais, a redescoberta do papel do
pai ou a crítica às políticas sociais e familiares.

A Mulher, a Família e o Mundo em Mudança

Na linha de análise que se vem seguindo, as transformações demográ­


ficas e sócio-culturais, ocorridas na segunda metade do século XX, fazem
parte integrante do tema que nos ocupa. Mesmo que tentássemos elaborar
uma listagem dessas transformações, ela seria, necessariamente, incomple­
ta e redutora, tantas e tão complexas elas foram. Assim, optámos por apre­
sentar e reflectir sobre aquelas que, de forma mais evidente, têm ligação
com a temática da mulher na família e que, simultaneamente, emer­
gem com mais relevância nos trabalhos apresentados nos capítulos prece­
dentes. Não abordaremos, aqui, as transformações familiares propriamente
ditas, uma vez que serão objecto de tratamento específico no ponto que se
segue.
Vamos então apresentar alguns dados e questioná-los.
313
A Mulher na Família: "Em torno dela"

Em primeiro lugar debrucemo-nos sobre a chamada revolução sexual,


em curso a partir dos anos sessenta. Este movimento de libertação relativa­
mente à moral sexual até aí vigente contesta, entre outros aspectos, a li­
gação sexualidade-procriação e a discriminação sexual homem-mulher.
Contudo, vai mais longe. Citando Costa(2000/01, 284), diríamos: "Maio
de 68 vai marcar a nova ordem social e sexual. 'Fazer amor, não a guerra'
é o grito que se repercute desde os EUA até à Europa Ocidental.
Sociólogos, filósofos, psicólogos e médicos analisam o novo fenómeno,
que tem a sua origem nos variadíssimos movimentos de libertação, que
englobam desde as reivindicações culturais e ambientais, ao anti-racismo,
ao anti-totalitarismo, à homossexualidade e ao feminismo. Ao período de
renúncia que marcou a primeira metade do século XX, seguiu-se um perío­
do de desejo de procura exarcebada do prazer(...) [pelo que se pode falar
de luta] pela mudança e pela subversão dos valores sexuais e sociais domi­
nantes".
É explícita a ligação entre o que chamámos revolução sexual e o femi­
nismo, entendido aqui como um movimento mais lato relativamente à
forma como foi encarado no ponto precedente e centrado em três temas ful­
crais: l.º - relação claramente estabelecida entre libertação sexual e liber­
tação social; 2.0 - reflexão organizada do corpo sexuado; 3. 0 - uma nova
ética centrada na criação e expressão femininas.
Também a conexão entre este aspecto e uma das formas de família atrás
estudada, concretamente as uniões de facto, é clara e efectiva. Com efeito,
esta transformação de valores foi acompanhada por uma mudança no con­
ceito de Amor e suas formas de concretização e expressão, nomeadamente
através da conjugalidade, ela própria sujeita a significados e vivências
alternativas, tal como na altura equacionámos. Deparamo-nos, assim, com
outra das grandes transformações do século: o decréscimo das taxas de
nupcialidade, confirmada em todos os estudos censitários do mundo dito
civilizado, embora seja de notar que, apesar de acompanhar essa tendência,
Portugal é o país da Europa em que essa taxa é mais elevada (7.3/1000
habitantes em 1991) (Nazareth, 1994). Nessa investigação emergiu como
conclusão, e contra o que eram as nossas hipóteses, uma maior qualidade
conjugal e melhor comunicação por parte dos sujeitos casados, o que nos
leva a questionar de novo esse dado: será que ele exprime uma transfor­
mação do casamento no sentido da integração das mudanças atrás referidas
ou, pelo inverso, um inflectir dessas mesmas mudanças? Eurico de Figuei­
redo(2001), num estudo recente sobre a evolução de valores dos anos 80
314
Novas Formas de Família

para os anos 903, conclui que as gerações mais novas têm posições mais
conservadoras do que os seus próprios pais em relação a questões como o
casamento, a sexualidade pré-nupcial, o papel da mulher na família, nomea­
damente no que se refere ao direito de acesso ao trabalho "durante toda a
vida", ou mesmo a valorização da famflia. Não poderemos, portanto, apon­
tar maior validade a uma ou outra hipótese, sendo certo que até se podem
articular: o casamento; ao ter hoje um significado diferente, pode reverter­
-se num novo valor, só aparentemente mais tradicional.
Um outro aspecto evidente no estudo apresentado no capítulo 4 é o
reduzido número de filhos dos sujeitos em união de facto. Isto aponta para
dois outros aspectos relevantes: o planeamento familiar e o decréscimo da
taxa de natalidade. Com efeito, a invenção química da pílula anticoncep­
cional, em 1950, é um importante contributo para a emancipação da mu­
lher em termos sexuais e, por consequência, a diversos níveis familiares e
sociais. Pese embora a posição contrária da Igreja Católica, dominante em
muitos países ocidentais como é o caso em Portugal, ter filhos ou não, pla­
nificar o timming do seu nascimento e o seu número passou a ser uma
decisão do casal e, em última análise, da mulher.
Mas o contributo da ciência para todas estas transformações não se fica
por aí: os avanços na medicina e na genética, desde situações como a pos­
sibilidade de mudança de sexo, até à reprodução medicamente assistida, à
possibilidade de recurso a bancos de esperma, ao diagnóstico precoce de
algumas anomalias ou perturbações e mesmo ao facto, hoje banalíssimo, da
identificação do sexo do bebé muito antes do seu nascimento, mudaram
radicalmente "a ordem natural" de um conjunto de vínculos e significados
relacionais.

' Neste estudo, de carácter intergeracional, foram comparados dados resultantes de


inquéritos passados a pais e filhos universitários e recolhidos em 1986 e 1996. Dele,
pormenorizaremos dois resultados que consideramos muito interessantes para o tema
deste capítulo: a permissividade, em relação à sexualidade pré-conjugal, diminuiu nos
jovens mas aumentou nos pais, dos dois sexos, em relação às filhas; os jovens e os pais,
nos dados de 1996, aproximam-se na escolha da opção "a mulher deve ter emprego toda
a vida como o homem" mas a aproximação fica a dever-se a uma queda nas escolhas
dos jovens, independentemente do sexo, e a igual subida por parte dos pais (10 pontos
percentuais, relativamente aos dados de 1986) (Figueiredo, 2001).
315
A Mulher na Família: "Em torno dela"

Todos estes aspectos não se prendem, somente, com o que poderíamos


entender como uma luta contra o "natural", com implicações particulares
no controlo e poder sobre o próprio corpo ou com a separação entre sexua­
lidade e procriação. As possibilidades que com eles se abrem, em termos
sociais mais !atos, espantariam os nossos avós. Se pensarmos, por exem­
plo, no planeamento familiar e na redução da natalidade, imaginamos,
facilmente, a sua ligação com o trabalho feminino, ou seja, com a partici­
pação activa da mulher na chamada esfera pública. Em todas as investi­
gações que apresentámos verificámos que, independentemente dos contex­
tos, a maioria das mulheres trabalha, havendo casos, como nas farru1ias
monoparentais, em que essa situação e a independência económica que pro­
porciona é fundamental. Nomeadamente em Portugal, enquanto em 1960
só 13% das portuguesas trabalhavam fora de casa, em 1998 a taxa de activi­
dade feminina ronda os 40%, sendo a mais alta da Europa juntamente com
a da Grã-Bretanha. Contudo, este país tem um número elevado de mulheres
que trabalham a tempo parcial, contrariamente ao que acontece no nosso
caso (Ramos, 1998).
Note-se que esta evolução conduziu, um pouco por todo o mundo dito
civilizado, à feminização quase extrema de algumas profissões, nomeada­
mente aquelas relacionadas com o tradicional papel cuidador e de ajuda da
mulher, como o ensino, a enfermagem ou a psicologia, por exemplo. Como
veremos mais adiante, contudo, isto não significa que a mulher se tenha li­
bertado, de facto, do seu papel tradicional na farru1ia, acontecendo muitas
vezes que a mulher tem uma jornada dupla de trabalho, acumulando traba­
lho doméstico e profissional, o que pode resultar em sobrecarga física, psi­
cológica e intelectual e se reflecte, por exemplo, no seu elevado absentismo
no trabalho relacionado com dificuldades e doenças de familiares
(Henriques, 1998). Como vemos, a distinção público/privado, em relação ao
género, parece perpetuar-se ainda hoje. Homens e mulheres parecem conti­
nuar a encarar de modo diferente os seus papéis no trabalho e na família. "As
mulheres têm tendência a assumir mais responsabilidades nas tarefas caseiras
e relativas aos filhos e sentem mais o conflito de papéis [trabalho/família] do
que os seus maridos. No entanto, este maior investimento na farru1ia não se
reflecte numa melhor avaliação do seu desempenho. Em contraste com as
avaliações positivas dos seus maridos relativamente ao seu desempenho
como esposas e mães, as mulheres julgam o seu desempenho dos papéis
familiares com bastante dureza e são críticas no que concerne ao modo como
as coisas correm em casa" (Wortman, Biemat e Lang, 1991, 104).
316
Novas Formas de Família

Apesar de tudo, é de reconhecer as mudanças legislativas no Direito de


Família que ao longo destas décadas se vêm processando, não só no que se
refere à relação trabalho/família como também ao reconhecimento global
da igualdade de direitos e deveres entre homens e mulheres, enquadrando
legal e juridicamente as transformações de que vimos falando. O caso por­
tuguês é, de novo, relevante, começando logo pelo texto constitucional.
Para além de emergir na legislação própria de cada país, em termos inter­
nacionais esta preocupação faz-se sentir, igualmente, em vários contextos,
desde logo nas Declarações produzidas no âmbito de alguns fóruns e
comissões das Nações Unidas (Monteiro, 1996), até às conclusões de diver­
sas reuniões dos ministros europeus responsáveis pelos assuntos de família
(Neves, 1996).
Çomo vamos constatando, todas estas transformações vão ocorrendo de
forma recursiva, num processo co-evolutivo de mudanças interrela­
cionadas, em que não saberíamos dizer o que causa o quê ou onde começa
uma e acaba a outra. É neste contexto que não podemos deixar de apontar
um outro aspecto: o aumento dos níveis de escolaridade e escolarização,
nomeadamente femininos. A chamada massificação do ensino atingiu todas
as classes e alargou a escolarização às mulheres, não só no sentido quanti­
tativo mas também no que se refere à maior graduação e qualificação.
Sabemos que, pelo menos em termos europeus, há muito mais mulheres do
que homens a frequentarem o ensino superior, embora não se verifique,
ainda, uma correspondência no que se refere à ocupação de cargos diri­
gentes ou de liderança qualificada. E isto verifica-se em todos os domínios:
desde as profissões técnico-científicas à política. As mulheres viram, então,
posta à sua disposição uma ferramenta que, simultaneamente, lhes propor­
ciona e decorre do avanço das restantes transformações em curso as quais,
basicamente, apontam no sentido da sua emancipação e autonomia.
Digamos, por outras palavras, que a sociedade lhes vai cada vez mais per­
mitindo usufruir das suas qualificações académicas, o que promove
condições para que o seu investimento nessa área seja cada vez maior, e
vice-versa.
Para terminar, não se pode esquecer todo um outro conjunto de fenó­
menos que transformam o mundo, afectando, desse modo, as farru1ias e as
mulheres. A globalização, o desemprego, as bolsas de pobreza, os movi­
mentos migratórios mais ou menos "clássicos" são exemplos desses fenó­
menos. Destes destacamos, pela sua relevância, a pobreza e os movimentos
migratórios.
317
A Mulher na Família: "Em torno dela"

Sabemos como o ciclo de vida da fanu1ia é perturbado pela pobreza.


Normalmente encurtado no número de etapas, caracteriza-se pela "fusão"
de fases - por exemplo, a adolescência e a saída dos filhos de casa (jovem
adulto) constitui, nas famílias fortemente afectadas pela pobreza, uma só
fase. Os padrões de natalidade ou casamento afastam-se dos que habitual­
mente consideramos (classe média). As crises sucessivas e as pressões
externa e interna a que estas fanu1ias estão sujeitas reduzem drasticamente
as suas possibilidades e capacidades de gestão familiar quotidiana. Vivem
num tempo "parado" no presente, o que contribui para a sua rigidificação
em termos evolutivos, conduzindo a um ciclo vital truncado (Carter,
McGoldrick et al., 1995). Apresentando redes de suporte frágeis e reduzi­
das, estão, por vezes, muito dependentes de apoios e assistência institu­
cional, o que nos leva mesmo a falar em famfüas multiassistidas e multi­
problemáticas (Alarcão, 2000). Em todo este contexto as mulheres desem­
penham um papel fundamental, até porque se trata, muitas vezes, de lares
geridos por mulheres (mães/avós).
Por seu lado, os movimentos migratórios, quer associados à pobreza
e/ou ao desemprego quer à actual mobilidade profissional e social, criam
novas situações de "desmembramentos" familiares (umas vezes mais
episódicos outras com carácter mais permanente) e de contactos intercul­
turas (e subculturas), marcantes no vivido familiar. Neste âmbito, o papel
da mulher é de novo assinalável, uma vez que muitas das suas repercussões
se prendem com a educação dos filhos, a prestação de cuidados aos idosos
ou, mesmo, com rupturas familiares (Relvas, 1996).
É, assim, altura de referir outro aspecto importante neste tema, o aumen­
to da esperança de vida, que, como· é sabido, afecta a vida da mulher na
família basicamente de dois modos: por um lado, vive mais tempo que o
homem - o que acarreta maior taxa de viuvez feminina e aumenta o seu
problema da solidão - e, por outro, "tem" mais idosos para cuidar. De facto,
as estatísticas continuam a mostrar a mulher como principal prestadora de
cuidados na velhice e na doença dos seus familiares, quer consanguíneos
quer por afinidade (Relvas, 1996).
Através desta reflexão, como afirmávamos de início inevitavelmente
incompleta e redutora, tentámos chamar a atenção para alguns aspectos do
mundo em mudança que funcionam, eles próprios, como marcadores da
mudança da família e do papel da mulher nesse contexto. Num processo,
necessariamente, co-evolutivo.
318
Novas Formas de Família

A Mulher e a Farm1ia em Mudança

Estreitando ainda mais a nossa reflexão, focalizamo-nos, agora, nas


transformações que, no ponto anterior, tentámos enquadrar no contexto
social mais lato a que chamámos "mundo". Como subtítulo deste ponto
poderíamos escrever: transformações nas estruturas e desenvolvimento
familiares. Efectivamente, cremos que estes dois aspectos organizam
grande parte dessas mutações, para além de as congregarem.

Transformações nas estruturas familiares

Poderíamos começar por afirmar que este é, afinal, o tema de todo este
livro. Que sentido faz, então, a presente abordagem? Ainda numa perspec­
tiva sistémica, diríamos que, precisamente por isso, se torna importante
articular num todo coerente o que, capítulo a capítulo, fomos reflectindo.
Começaremos, então, por falar da falência do modelo das "duas formas
de farru1ia" como referência estrutural da Família. A família extensa (várias
gerações vivendo sob o mesmo tecto) e a farru1ia nuclear intacta (pai, mãe
e filhos) constituem-se, ainda hoje, como um protótipo. Um protótipo e um
"mito" que, tal como assinala R. Barthes (1976), "transforma um sentido
em forma" (idem, 271), tendo por "missão fundar uma intenção histórica
enquanto natureza, uma contingência enquanto eternidade" (idem, 282).
Como tal, para subsistir, "o mito transforma a história em natureza" (idem,
272). Assim, esse modelo permanece, apesar da "invalidação" do seu con­
teúdo face às transformações entretanto ocorridas, o que, evidentemente, o
reforça como mito.
Salvador Minuchin (1991) fala-nos da importância dessa permanência
na vivência das estruturas familiares diferentes das tais "duas formas de
farru1ia". Chama também a atenção para a necessidade de que todos - estu­
diosos, terapeutas e farru1ias - a ultrapassemos. Assim,já em 1984, afirma­
va: "As novas famílias sentem o fantasma das velhas estruturas como os
amputados experimentam os seus membros fantasmas." (Minuchin, 1991,
35). E, um pouco mais à frente, clarifica ainda melhor o seu pensamento,
quando refere que a maior parte dos indivíduos "considera a família nuclear
intacta como a norma a qual, automaticamente, faz considerar todas as ou­
tras formas como 'incorrectas'. Mas a história avança. Parece-me que em
vez de obsessivamente procurarmos manter a 'normalidade' da família
319
A Mulher na Família: "Em torno dela"

nuclear intacta, deveríamos reconhecer a mudança como inevitável, mesmo


normal, e empreender a tarefa de ajudar as fanu1ias durante o período de
transição" (idem, 53). Com efeito, para além de em termos psicossociais
todas estas fanu1ias se encaixarem em estruturas familiares em transição,
muitas vezes, na sua vivência idiossincrática, a fanu1ia passa por um
processo idêntico, nomeadamente quando a sua forma actual resulta da
falência de formas familiares tradicionais (por exemplo: em regra, tanto a
fanu1ia de progenitor único como a reconstituída resultam da ruptura de
uma família nuclear intacta).

Quando nos referimos à "invalidação" do conteúdo do mito pensamos,


desde logo, no aumento progressivo e sistemático do número de divórcios.
Podemos pensar, em seguida, na diversificação das 'formas" ( estruturas)
familiares. Assim, a partir do divórcio surge a fanu1ia pós-divórcio (Carter,
McGoldrick et al., 1995), na qual tem que se considerar a necessidade de
reorganizar todo um conjunto de relações no sentido horizontal intragera­
cional (pai-mãe, irmão-irmã, por exemplo) e vertical intergeracional (pais­
-filhos, família nuclear-fanu1ias de origem, por exemplo). Por outro lado,
essa reorganização percorre um enorme leque de domínios, desde o finan­
ceiro e laboral, às redes de suporte social e aos amigos. E recordemos que
em Portugal, em 1998, os dados apontavam para 22.9 divórcios em 100
casamentos•.
Não só por isso mas também por isso, as famílias com progenitor único
assumem, cada vez mais, uma expressão importante nas novas estruturas
familiares. A investigação que conduzimos sobre este tipo de famílias, e
que apresentámos no Capítulo 5 deste livro, aponta para a relevância da
mulher enquanto figura parental neste contexto: como tivemos oportu­
nidade de ver, numa amostra intencional, recolhida pelo método "bola de
neve", 93.3% dos inquiridos são mulheres, das quais 53.6% são divorciadas
e 50% vivem sozinhas com os filhos. Se recorrermos aos Censos 91 (INE,
1996, 177) os dados tornam-se, ainda, mais expressivos: as fanu1ias com
um único progenitor representam 12.9% de todos os núcleos familiares
com filhos e em 86.2% destas famílias o progenitor presente é a mãe. Por

• Em toda esta secção os dados demográficos referenciados reportam-se a Portugal,


tendo como fontes essenciais os seguintes títulos: INE 1993, 1996, 1998.
320
Novas Formas de Família

outro lado, considerando todos os agregados familiares com uma só figura


parental (13.6% do total dos núcleos com menores a cargo) 82.07% são
compostos só por mãe e filho(s) e 4.36% só por avó e neto(s) (idem, ibi­
dem). Donde se vê a importância da mulher enquanto educadora única na
fanu1ia e mesmo independentemente da geração. De facto, para cpm�en­
dermos o alcance destes números, não podemos esquecer, para a1ém do já
referido aumento da taxa de divórcios na sequência dos quais as cri�nças são
preferencialmente entregues à mãe, as "mães solteiras" (no sentiáo de que
permanecem sozinhas), por opção ou não, e o facto de que as mulheres en­
viuvam mais e mais cedo do que os homens. Como contributo para a
relevância demográfica das famílias com educador- único devemos, ainda,
focar a expansão e implicações de algumas doenças que caracterizam a
metade final do século XX, com maior representação estatística no sexo mas­
culino, como por exemplo a SIDA5 e a toxicodependência, e que se retlectem
na mortaliçiade precoce de certas faixas da população e na própria alteração
das estruturas familiares, afectando, desse modo, a mulher (mães e/ou avós).
Contudo, sabemos que as faITI11ias pós-divórcio e as fam(lias de proge­
nitor único (embora devam ser entendidas como estruturas autónomas inde­
pendentemente do seu próprio desenvolvimento futuro) evoluem, muitas
vezes, para outro tipo de núcleo familiar: a família com recasamento.
Recorrendo,, de novo, a dados portugueses, sabemos que, de todos os casa­
mentos celebrados em 1998, 16.9% não são primeiros casamentos. Temos
também informação que aponta _para o facto de que estas são uniões que
ocorrem mais frequentemente na sequência de divórcios do que de viuvezes
(entre 5 a 6 pontos percentuais, respectivamente, no caso de mulheres e
homens). Finalmente, também podemos referir que as mulheres, quer a par­
tir de uma situação quer de outra, casam menos do que ·os homens.
Concretamente, em 7.71% de todos os casamentos o homem parte do esta­
do civil divorciado (47.3% considerando, somente, os "segundos'.' casa­
mentos), acontecendo o mesmo em 5.93% relativamente à mulher (36.4%
dos "segundos"6 casamentos) (INE, 1998, 100). Podemos colocar a

'Para uma melhor compreensão do tema consultar Relvas, 1999.


• Quando aqui escrevemos «"segundos" casamentos» queremos significar que não
se trata de uma primeira união, pelo que não nos referimos, necessariamente, a uma
segunda união, incluindo nessa designação eventuais terceiras, quartas ou mais relações
conjugais estáveis.
321
A Mulher na Família: ' 1Em torno dela"

hipótese de que este último aspecto se prenda com os dados anteriores re­
ferentes à predominância das mulheres nas famílias de educador único.
Sej� como for, a eventual existência de filhos de anteriores casamentos, de
um ou outro cônjuge, bem como o aparecimento de filhos do novo·casal,
implicam grandes ajustes na parentalidade que exigem, prin íp:rl!J;rente,
tempo e flexibilidade. Por outro lado, neste sentido, o reajusta ento de li­

mites com o ex-cônjuge e com as famílias de origem e alargada, omeada­
mente. com as famílias por afinidade, constitui-se uma tarefa elevante,
muitas vezes particularmente acometida à mulher, atendendo, nomeada­
mente, ao seu pape) ainda dominante na "esfera privada" e à sua especifi­
cidade em· termos de competências relacionais (Gilligan, 1982; Carter,
McGoldrick et al., 1995).
Embora o núcleo familiar actualmente mais representado seja a família
com· dois elementos, a todas estas estruturas familiares acrescenta-se o
incremento estatístico das famílias de elemento único, particularmente fe­
minino, o que se prende fundamentalmente com o celibato por opção e com
o aumento da esperança de vida. Este dado liga-se, ainda, com o aumento
da designada ''conjugalidade não coabítante", ou seja, com ·os indivíduos,
quer de um sexo quer de outro, que, embora vivendo sós, declaram manter
uma ·relação afectiva estável.

Transformações no ciclo de vida familiar

Quando reflectimos sobre a .família em mudança, não podemos limitar­


-nos a assinalar as alterações estruturais .que esta vem sofrendo no sentido
da diversificação, pois é· inevitável abordar as metamorfoses que se vêm
observando no evoluir do ciclo de vida da família de classe média, ou seja,
do núcleo familiar que nos habituámos a considerar a "família normal"7•
Por outro lado, é indispensável-sublinhar a ligação entre tais modificações
e a· evolução do papel·da mulher na. sociedade, em geral, e na família, em
particular. . . , ,', ·

1:, 'Para um apr.ofundamento global e mais completo do•ciclo vital da fanu1ia, consul�

tar Relvas, 1996.


322
Novas Formas de Família

Neste sentido, vale a pena citar mais longamente Carter e McGoldrick


a partir da obra em que, pela primeira vez no c�xto da terapia familiar,
foi abordado claramente o papel da mulher n mudanças do ciclo de vida
da famflia:

"A mudança do papel feminino nas atn11ias é central nesses
padrões de ciclo de vida familiar em modificação. As mulheres sem­
pre foram centrais no funcionamento da failll1ia. Suas identidades
eram determinadas primariamente por suas funções familiares como
mãe e esposa. Suas fases de ciclo de vida estavam ligadas quase que
exclusivamente aos seus estágios nas actividades de criação dos fi­
lhos. Para os homens, por outro lado, a idade cronológica era vista
como uma variável-chave nas determinações do ciclo de vida. Mas
essa descrição não se ajusta mais. Actualmente as mulheres estão
passando pelo ciclo da maternidade mais rapidamente do que suas
avós; elas podem transferir o desenvolvimento de objectivos pes­
soais para além do campo familiar, mas não podem mais ignorar
esses objectivos. Mesmo as mulheres que escolhem um papel prin­
cipal de mãe e dona de casa devem agora defrontar-se com uma fase
de "ninho vazio"ª que iguala, em duração, os anos dedicados pri­
mariamente a cuidar dos filhos. Talvez o moderno movimento fe­
minista fosse inevitável, na medida em que as mulheres passaram a
precisar de uma identidade pessoal. (... )
Actualmente, num ritmo mais acelerado ao longo das décadas
deste século, as mulheres mudaram radicalmente - e ainda estão
mudando - a face do tradicional ciclo de vida familiar que existiu
durante séculos" (in Carter, McGoldrick et al., 1995, 14; o subli­
nhado é nosso).

As afirmações feitas por estas autoras na citação anterior recebem hoje,


no início do século XXI, uma confirmação clara que lhes atribui, ainda,
contornos mais específicos. Com efeito, é importante salientar que, apesar
de nos reportarmos a uma tradução de 1995, a obra original data de 1989.

' O "ninho vazio" corresponde, nas classificações clássicas do ciclo vital familiar, à
etapa de saída dos filhos de casa e a uma nova centralização da família nuclear na con­
jugalidade.
323
A Mulher na Família: "Em torno dela"

Ví.
e1amos, entao, etapa a etapa, como se expressam e concretizam estas
transformações.
Elas começam por emergir, desde logo, numa primeira fase nem sempre
considerada pelos estudiosos do ciclo de vida da família. Referimo-nos à
etapa jovem adulto entre famílias (idem), caracterizada pela aceitação da
autonomia emocional e financeira do jovem adulto, quer por si próprio quer
por parte da família de origem. Implicando, igualmente, o desenvolvimen­
to de relações íntimas com um parceiro e o estabelecimento de uma identi­
dade no mundo laboral, é também, agora, vivida em pleno pelas mulheres,
facto que não acontecia até há poucas décadas atrás. Associada, como é evi­
dente, tanto ao aumento das suas qualificações académicas como à abertu­
ra que lhes é proporcionada no sentido de uma participação efectiva no
mundo do trabalho, é uma etapa totalmente nova para as mulheres - e para
as famílias com filhas - na medida em que, anteriormente, a via de eman­
cipação da jovem em relação à sua família de origem era, basicamente, o
casamento. Caricaturalmente, podemos dizer que ela deixava de estar a
cargo do primeiro homem da sua vida, o pai, para passar para o âmbito da
responsabilidade do segundo, ou seja, do marido. Hoje em dia, é de todo
razoável para a jovem e sua família que só depois de completada a for­
mação académica, indispensável à sua autonomia e independência laboral
e financeira, surja a "formalização" de uma relação afectiva conducente ao
assumir da conjugalidade. Assim, frequentes vezes, a jovem "sai de casa
dos pais" para a sua própria casa, o que implica que seguidamente vá para
casa do casal e já não "para casa do marido".
O necessário diferimento no tempo relativamente à formação do casal,
implicado pelo assumir desta etapa pela mulher e pela família, facilita a
vivência de relações de intimidade prévias à definição de uma relação con­
jugal com carácter mais formal e socialmente reconhecido. Deste modo,
pode considerar-se que, nalguns casos, surge uma nova etapa antes da for­
mação do casal, designada por Bawin-Legros (1992) coabitação ou união
pré-nupcial e cuja formalização depende da continuidade do envolvimento
sentimental do par ou da melhoria das condições profissionais por parte de
um dos parceiros (como aliás já tivemos oportunidade de referir no
Capítulo 4).

Tudo isto vai, necessariamente, ter impacto na etapa classicamente con­


siderada como a primeira do ciclo vital da família - Formação do Casal -
que, como acabamos de ver, de facto até poderá não o ser. Caracterizada
324
Novas Formas de/Família

'-
pela assunção de um compromisso conjugal por parte de dois indivíduos
que pretendem dar início a nova famflia nuclear, podemos começar por
referir que na actualidade se inicia, em média, mais tardiamente. Com
efeito, a idade média do primeiro casamento aumentou para ambos os sexos
e nomeadamente para a mulher - no nosso país, e de acordo com os dados
disponíveis, em 1993 situava-se, sensivelmente, nos '24 anos9 • Por outro
lado, a redução da taxa de nupcialidade, proporcional na mulher à maior
formação e maior salário, expressa-se, como vimos anteriormente, no
aumento da taxa dos casamentos de facto (3.88% de todas as uniões em
1991). Finalmente, nesta primeira etapa e no que se refere à organização do
subsistema conjugal, é de salientar a transformação dos padrões conjugais
que tivemos oportunidade de aprofundar no capítulo referente ao estudo
das uniões de facto. Este dado foi confirmado num estudo realizado em
indivíduos casados, nomeadamente no que se reporta aos aspectos rela­
cionados com a igualdade de papéis no casamento, sendo de -salientar que
as mulheres se diferenciam significativamente dos homens nesta questão,
defendendo valores mais igualitários· e uma maior partilha de papéis na
relação (Marques, 2000). Vem também a propósito notar que no inquérito
de 1996, do já citado estudo sobre v.alores nos anos 80-90 (Figueiredo,
2001}, a primeira opção quanto aos objectivos do casamento passou a ser,
quer para os jovens quer para os pais, o "auxílio mútuo entre os esposos",
substituindo, enquanto item mais escolhido dez anos antes, a "realização
humana para os cônjuges".

Todas estas transformações prosseguem e, de certo modo, expandem-se,


na segunda etapa do ciclo de vida familiar - -Famílias com Filhos
Pequenos. A nota a sublinhar desde logo, é que, tal como foi acontecendo
com a nupcialidade, .também a taxa de natalidade foi sofrendo uma redução
acentuada e sistemática, acompanhada pelo aumento da idade média de
nascimento do primeiro filho (25.2 anos para as mulheres e·26.5 anos para
os homens em 1993). Isto repercute-se no tamanho das fratrias e na dimen­
são média dos agregados familiares (3.1 pessoas por família em 1991) o
que tem implicações importantes nas gestão familiar desta etapa, reduzin-

' Todos os dados demográficos apresentados neste ponto são referentes a Portugal e
retirados das seguintes fontes: INE - Censos 91; Estudos Demográficos 1993 e 1998.
325
A Mulher na Família: "Em torno dela"

do, como já focámos, o ciclo dedicado à maternidade/paternidade, em ter­


mos temporais, mas expandindo a fase da parentalidade, em termos de
idade cronológica. Este aspecto torna-se ainda mais importante nalgumas
formas de família, como as famílias de acolhimento e, particularmente, as
famílias adoptivas, nas quais essa expansão é, naturalmente, maior: a even­
tual infertilidade descobre-se ·mais tardiamente, ·o processo de adopção,
necessariamente, prolonga-se mais no tempo quando consideramos a idade
dos adoptantes, pelo que muito provavelmente encontramos, nesta situ­
ação, pais a adoptarem cada vez mais tarde, o que se traduz em pais cada
vez mais idosos, com todas as implicações que daí decorrem (cf. Capítulo
3). O diferimento da·parentalidade, para além de outras fontes de stress adi­
cionais (como, por exemplo, os riscos inerentes às gravidezes tardias)
· facilita que, em muitos casos, ocorra uma sobreposição - e uma sobrecar­
ga - de tarefas para os pais, considerando que se juntam no tempo as
maiores exigências de investimento nas carreiras profissionais e nas
funções educativas familiares.
Acresce, ainda, a transformação dos padrões parentais relativamente aos
papéis maternais e paternàis clássicos, exigida pelas condições e aspectos
que acabamos de enunciar, nomeadamente pela forte participação. da mu­
lher no mundo do·trabal_ho. Este aspecto foi tnais profundamente abordado,
embora numa perspectiva de carácter fundamentalmente psicossociológico,
no Capítulo 5, dedicado à monôparentalidade, tendo aí sido detalhado o
conceito'inovador de co-parentalidade (Sullerot, 1993). Esta transformação
dos papéis pareritais é de tal modo pregnante que levou os estudiosos da
farru1ia a interrogarem-se sobre as suas responsabilidades nalgumas difi­
culdades sentidas pelos agentes desta transição. É neste sentido que
González (1998) fala de "paternidade desprestigiada e maternidade aban­
donada". Admite que a ciência ajudou a converter a figura paterna, em ter­
mos de metas educativas, numa figura desconhecida (pouco ou nada estu­
dada), culpabilizada e-periférica (nomeadamente a partir dos estudos e con­
ceptualizações da psicopatologia e das acepções da própria clínica quer
individual quer familiar). Por isso fala em "desprestígio". Quanto à figura
materna, considera que, hoje eIT1 dia, e atendendo à evolução do papel femi­
. nino que vimos referindo, a ciência a esqueceu, depois de se lhe ter dedi­
cado excessivamente. Na actualidade, tem preferido eleger como objecto
privilegiado de estudo as "novas" funções da mulher, no sentido de as desli­
gar da esfera familiar. Por isso fala em "abandono". Através do estudo que
conduziu junto de jovens adoleséerites, enquanto filhos, o autor mostra
326
Novas Formas de Família

como, pelo menos por parte destes protagonistas da relação, surge o desejo
e a necessidade de inve�er, "por dentro da famflia", esta situação.
Apesar disso, os dados de que .vamos dispondo mostram que não se afir­
mou, ainda, uma correlativa transformação no que diz respeito ao papel da
mulher na farru1ia: a mãe continua a ser a "cuidadora" e, em última análise,
a primeira responsável pelo desenvolvimento dos filhos. Mesmo quando há
partilha de tarefas com o pai, com frequência o seu significado é redutora­
mente comportamental ou encarado como uma "ajuda"'º. Por outro lado,
tudo isto interfere com a já "esperável" diminuição da satisfação conjugal
associada a esta fase do ciclo de vida da farru1ia, que referimos quando
focámos o modelo de sátisfação conjugal em U", e que pode ajudar a perce­
ber as elevadas taxas de divórcio que se observam neste período. É, então,
frequente observarmos nesta etapa rupturas familiares, com a emergência
das consequentes novas formas de família que implicam o início de novos
ciclos familiares'\ muitas vezes perturbados na sua evolução pela culpabi­
lidade dos pais, associada à incapacidade de resolução emocional e/ou
comportamental de conflitos.
Todas estas novas dificuldades na ultrapassagem desta fase são
agudizadas pela pressão que a sociedade coloca sobre os pais, e particular­
mente sobre as mães, expressas nas exigências do exercício de uma boa
parentalidade e nas regras que a definem. Sublinhemos, a propósito, a
responsabilidade da psicologia e da sua divulgação na construção desta
pressionante representação social da função parental, e particularmente
maternal, actuante mesmo antes do nascimento da criança. Não surpreende,
portanto, o sucesso das chamadas "escolas de pais" ou dos cursos para pais,
aos quais os indivíduos recorrem na ânsia de "aprenderem" a bem desem­
penhar a sua tarefa de pais e educadores. Estes aspectos são de tal modo

'º É interessante notar que uma sondagem SIC/Visão de 1998, sobre a divisão das
tarefas domésticas entre homem e mulher, registou os seguintes resultados: executadas,
exclusivamente, pela mulher 67%, pelo homem 3% e pelo casal 25%; no que se refere
ao "cuidar dos filhos", a distribuição é mulher 58%, homem 0% e casal 30% (também
exclusivamente). A não totalização de 100% destes dados associa-se, como é óbvio, a
outros participantes no desempenho destas tarefas.
11 Confronte Capítulo 4 - A Conjugalidade, Sinónimo de Complexidade; O ciclo
vital do casal.
"Referimo-nos, neste contexto, ao ciclo vital do divórcio e ao ciclo vital da família
pós-divórcio (Carter, McGoldrick et ai., 1995).
327
A Mulher na Família: "Em torno dela"

pregnantes que pudemos perceber a sua influência na gestão do stress


parental quer nas famílias de educador único quer nas famílias adoptivas
(Capítulos 5 e 3).
Sintetizaremos, recorrendo ao que já afirmámos noutro sítio: "Sabe-se
que a transição para a parentalidade é tipicamente acompanhada de uma
diminuição geral na satisfação conjugal bem como por uma 'regressão' a
papéis sexuais mais tradicionais ( ... ). Sabe-se, por outro lado, que esta
'regressão' é muitas vezes 'inversão' ou 'reversão', pois mesmo nos casais
em que as primeiras fases do relacionamento são pontuadas por uma dis­
tribuição de papéis mais igualitária, o nascimento de um filho 'empurra-os'
de volta papéis mais tradicionais (Carter, e McGoldrick et al., 1995).
Assim, podemos continuar a falar em posição sobrecarregada e desequili­
brada da maternidade, o que, de algum modo, justifica os dados da
demografia e a sua explicação empírica que apontam no sentido de que o
alargamento do espaço que medeia entre o casamento e o nascimento do
primeiro filho, a redução da natalidade e, nomeadamente, a opção pela não
existência de filhos se fica, em muito, a dever à decisão das mulheres"
(Relvas e Lourenço, 2001, 123-124).

Nas etapas seguintes - Famflias com Filhos na Escola e Famílias com


Filhos Adolescentes - muitos dos dados estão já lançados: as transfor­
mações do ciclo de vida da família, mais claramente associadas à mudança
no papel feminino na família e na sociedade, podem ser entendidas como
"extensões" das que acabamos de evidenciar relativamente às etapas ante­
riores. Contudo, não podemos deixar de aqui especificar um aspecto rele­
vante: o aumento do nível de escolaridade das mulheres concorre para a sua
maior responsabilização na escolaridade dos filhos, bem como do seu
sucesso nessa área. Com efeito, as suas cada vez maiores competências
académicas permitem-lhes um outro investimento e envolvimento na tare­
fa do acompanhamento escolar. Por outro lado, a adolescência dos fi­
lhos, caracterizada pela necessidade da construção (ou reconstrução) de
diferentes autonomias no seio da família - dos filhos, dos pais como pais,
dos pais como casal e de cada um dos elementos do par perante o outro -
coloca novos problemas aos ajustes na parentalidade e na conjugalidade.
Nestes ajustes, as questões que se colocam às adolescentes, associadas ao
actual papel da mulher e, particularmente, à sua maior autonomia psicos­
social e sexual, criam novos contornos na dinâmica familiar, que remetem,
frequentemente, para a representação do masculino e do feminino por parte
328
Novas Formas de Família

de cada um dos pais. E, como tivemos oportunidade de ver (Figueiredo,


2001), os valores dos pais perante as necessidades e direitos das filhas
estão, também, a mudar.
Por um lado, tudo isto se repercute na própria dinâmica interna à fratria,
enquanto subsistema familiar fulcral no "treino" da socialização e, desig­
nadamente, na construção da imagem do género da geração mais nova. Por
outro, os pais estão, em princípio, no auge das suas carreiras profissionais
e numa fase importante de investimento pessoal, o que não facilita a re­
solução destas tarefas que sublinham o actual momento de crise desen­
volvimental individual e familiar. Finalmente, a conjugação de todos estes
aspectos não deixa de influenciar o modo como o par se vai (re)centralizar
na conjugalidade, que se antevê na sequência da "anunciada" autonomia
dos filhos. Isto poderá ajudar a compreender o facto de ser esta a etapa do
ciclo vital da família que apresenta a mais elevada taxa de divórcio.

E o ciclo vital da famflia prossegue atingindo a sua última etapa -


Famaia com Filhos Adultos - caracterizada pelo desenvolvimento das
relações adulto-adulto entre pais e filhos e pelo necessário realinhamento
relacional para incluir os parentes por afinidade, os netos e as gerações
mais idosas. A geração intermédia, e particularmente as mulheres, vêem
reforçado o seu papel de suporte e de cuidadoras com idosos a cargo, por
vezes doentes e/ou com importantes incapacidades. O seu papel de traba­
lhadoras activas colide, de novo, com esta exigência familiar, forçando-as
a uma "sobrecarga" física e psíquica em diferentes áreas da sua vida. Tal
sobrecarga pode, eventualmente, traduzir-se em elevados níveis de stress,
com as implicações daí decorrentes em termos pessoais (doença física,
depressão, baixas no emprego, por exemplo) e familiares (falta de disponi­
bilidade relacional, dificuldades acrescidas na gestão dos conflitos ou na
resolução de problemas, por exemplo). Finalmente, e como afirmámos pre­
viamente, as mulheres têm ainda, no fim da vida, um problema acrescido
de solidão: com efeito, enviuvam mais que os homens, casam menos do que
eles depois da viuvez, reduzindo a sua vida social nomeadamente no exte­
rior da família... Para além disso, têm muitas vezes pouco suporte funcional
e mesmo afectivo, quer por parte de outros elementos da família quer insti­
tucional, atendendo à persistência da sua imagem de auto-suficiência no
que respeita a competências afectivas, relacionais e domésticas (Relvas,
1996).
329
A Mulher na Família: "Em torno dela"

Como foi evidente, nesta secção abordámos o ciclo vital da família


nuclear intacta. Deixámos claras, contudo, algumas hipóteses de que
neste ciclo ocorram importantes variantes que, a acontecerem, abrem a
porta ao aparecimento de outras formas de família, implicando a inter­
posição de ciclos "intermediários" na evolução familiar, que assim se
complexifica.

O Percurso do Feminino na Farm1ia


- Significados da "fada do lar"

Começámos este capítulo reflectindo sobre a transformação do femini­


no como objecto da ciência e no mundo. Vamos concluí-lo focalizando,
especificamente, a transformação do feminino na família. Para além de o
fazermos no sentido de ordenar, de algum modo, uma síntese possível do
tema que vimos abordando, procuramos perspectivá-la em termos funda­
mentalmente psicológicos, e não tanto a um nível meta-teórico ou demo­
gráfico.

A evolução histórico-conceptual da fanu1ia é marcada por um conjunto


de transições ou crises desenvolvimentais que nos habituámos a pontuar
como marcadores da transformação na continuidade, no sentido em que
permitem ou promovem a necessária complexificação do sistema familiar
(Falicov, 1991). Dessas transições, temos vindo a assinalar tanto as que se
prendem com o evoluir de cada família (etapas do ciclo de vida, crises nor­
mativas) como as que se associam à transformação e evolução da família
(diversificação da "família" em "formas de família"). Da articulação entre
ambas, enquadrada nas transições da própria sociedade, emerge o que
designámos como a transição do papel feminino na família.
No Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências (2001,
3611) define-se transição como "passagem de ou mudança de um local,
estado, sentimento, assunto ..., para outro; acto ou efeito de transitar". O sig­
nificado de transitar aponta, ainda mais claramente, para a ideia de percur­
so: "passar através de determinado espaço, percorrendo-o" (idem, 3612; o
sublinhado é nosso). É precisa e exactamente neste sentido dinâmico e de
movimento que entendemos a expressão transição. É ainda este sentido que
justifica o título atribuído à presente secção deste capítulo.
330
Novas Formas de Família

Feito este pequeno preâmbulo, que se pretende clarificador do nosso


posicionamento perante esta questão, de que transição(ões) falamos quan­
do interrogamos o mito da "fada do lar"? Em primeiro lugar, pensamos no
caminho que a mulher e a família percorrem, hoje, e que as transporta da
identidade da mulher ligada aos papéis familiares de cuidadora do marido,
dos filhos e dos idosos, para uma identidade pessoal complexificada pela
atribuição complementar de objectivos de carreira, individual e relativa­
mente autónoma perante as funções familiares.
Pensamos, também, na via que nos leva da: indexação do desenvolvi­
mento humano ao desenvolvimento masculino, nos seus marcadores, va­
lores e tarefas, à valorização da diferença das características do próprio
desenvolvimento feminino. Por outras palavras, pensamos na evolução de
uma psicologia do desenvolvimento que caminhe no sentido de nos con­
duzir do estudo e conhecimento do trajecto através do qual o ser humano
evolui, progressivamente, no sentido da autonomização, para o estudo e
conhecimento do percurso que lhe permite, também de modo progressivo,
atingir uma maturidade em termos de vinculação. Como afirma Gilligan
(1982), será importante que a maturidade deixe de ser somente associada a
valores masculinos como separação, diferenciação e autonomia, passando a
entender as preocupações relacionais mais como uma força humana e não
tanto como uma fraqueza das mulheres. Mais claramente: o desenvolvi­
mento de valores como apoio, cuidado, vinculação, relacionamento com o
outro, deve ser considerado primário e, como tal, deve fornecer critérios de
maturidade individual.
Complementarmente, seria possível atribuir uma relevância diferente
aos aspectos interpessoais do desenvolvimento que, apesar de consensual­
mente importantes, são relegados para segundo plano nos esquemas desen­
volvimentais construídos com base em marcadores de carácter individual.
Ou seja, abrir-se-iam alternativas na compreensão do desenvolvimento
humano se os aspectos mais radicalmente relacionais fossem entendidos,
eles próprios, como marcos desse processo e não tanto como meios para
atingir etapas evolutivas individuais - para iluminar este objectivo subli­
nhámos, anteriormente, do (desenvolvimento), pretendendo, assim, distin­
gui-lo de um eventual no (desenvolvimento) ... O nascimento dos filhos, por
exemplo, poder-se-ia então constituir, nos esquemas desenvolvimentais,
como uma etapa relevante no sentido da redefinição da identidade adulta de
uma pessoa.
331
A Mulher na Família: "Em torno dela"

À primeira vista, seria fácil pensar que as classificações do ciclo de


vida familiar, propostas pelos autores que adaptam a perspectiva sistémi­
ca, equacionam e encontram uma solução para esta questão. Contudo, não
nos parece que este aspecto deva ser visto de forma linear, pois, embora
apresentem marcadores supra-individuais e interrelacionais, na generali­
dade tais classificações consideram os processos interpessoais familiares
como pontos de referência que sublinham aspectos individuais, enquanto
fins desenvolvimentais (Relvas, 1996), e os citados valores masculinos
como metas comportamentais. Algo de semelhante se poderia dizer, ainda
hoje, sobre o promissor campo de estudos da vinculação, onde, pese em­
bora os interessantes desenvolvimentos empíricos e teóricos, a herança
psicanalítica da metáfora da mãe, associada à conceptualização da vincu­
lação como processo imprescindível para se atingir a autonomia indivi­
dual, parece ter deixado sequelas ainda bem presentes nos modelos mais
actuais (Burman, 1994). Cremos, apesar de tudo, que a transição de que
falámos se vai fazendo, particularmente, nestas duas áreas de estudo e
investigação.
Assim, poder-se-á concluir que, nos dois planos transicionais que
acabamos de apresentar (identidade da mulher e psicologia do desenvolvi­
mento no sentido da valorização teórica e científica das características
associadas ao desenvolvimento feminino), nos encontramos hoje no "meio
do caminho", com todas as alternativas evolutivas que essa condição facili­
ta. Como nos ensina Prigogine "não existe uma única trajectória possível
para a evolução (... ): pelo contrário, há diversas opções, os caminhos bifur­
cam-se e o acaso intervém inevitavelmente no desenvolvimento dessas
bifurcações" (Alarcão, 2000, 28).

Contudo, também não será impunemente que nos encontramos no tal


"meio do caminho" ... O mesmo autor diz-nos, ainda, que aquele é carac­
terizado por ser um período caótico no sentido de "sem ordem", e não tanto
de desordem, prenúncio de nova ordem, novas estruturas, novas possibili­
dades - por isso é designado transformação, crise ou transição. Nesse
período, metaforicamente, anda-se ora para trás e para a frente ora para um
lado e para outro, o que proporciona, muitas vezes, a sensação de que se
caminha em círculo ou mesmo de que não se avança de todo. Atendendo a
isto, e centrando-nos na transição da identidade feminina, poderemos falar
de algumas implicações sentidas particularmente pelas mulheres enquanto
suas principais protagonistas.
332
Novas Formas de Família

Desde logo, é de salientar os sentimentos de ambivalência e culpabili­


dade emergentes de conflitos de lealdade (estabelecidos, por exemplo,
entre o dever perante a famflia e a profissão 13), por seu lado associados, em
grande medida, à indefinição de áreas de poder, explícita ou implicita­
mente presente quer na fanu1ia quer no seu exterior. Não é de estranhar,
então, que as mulheres se possam sentir particularmente responsáveis pelas
dificuldades que este movimento evolutivo coloca às suas famílias. Este
aspecto é claramente reforçado por um conjunto de mensagens, muitas
vezes de carácter paradoxal, que lhes são endereçadas quer pela família
quer pela sociedade como globalidade, ou mesmo pelas redes não fami­
liares mais próximas como os amigos ou colegas de profissão. Exemplo
dessas mensagens provenientes da família é a solicitação imperiosa de
prestação de cuidados, por parte de elementos da mesma geração ou das
mais jovens, ou a não compreensão do diferente papel da mulher por parte
dos mais idosos, associada à exigência da sua formação académica e profis­
sional. Já em relação às mensagens enviadas pelo exterior, pode pensar-se
em alguns discursos políticos e na pressão dos media em ambos os senti­
dos. Em síntese, o conflito objectivos individuais vs. objectivos familiares
comporta um inevitável pragmatismo que coloca a mulher, e mesmo a
família no seu todo, numa situação de claro double-bind.
A paradoxalidade a que nos referíamos, como caracterizando, fre­
quentemente, essas mensagens e o double-bind que se cria (a mulher deve
trabalhar fora de casa para ajudar a fanu1ia/a mulher para ajudar a família
não deve trabalhar fora de casa; logo, ao responder afirmativamente a uma
das injunções, rejeita-se, necessariamente, a outra) é um pouco o espelho
da transição em que a própria sociedade se encontra, também, neste proces­
so. Não será, pois, surpreendente que alguns desses dilemas sejam ultrapas­
sados através da aceitação "natural" da dupla carreira feminina (dentro e fora
do lar) por parte de todos os sistemas envolvidos, incluindo as mulheres.
Outra expressão desta difícil distinção de papéis e funções da mulher,
cuidadora na família e profissional no seu exterior, pode ser a já referida
feminização de algumas profissões com carácter "de ajuda" e/ou facilidade

" Recorde-se, como vimos anteriormente neste capítulo, que as mulheres são par­
ticularmente exigentes em relação ao seu desempenho dentro e fora de casa, mesmo
mais exigentes que os seus maridos (Worman, Biernat e Lang, 1991).
333
A Mulher na Família: "Em torno dela"

de harmonização de horários. Também sabemos, contudo, como algumas


delas são profissões socialmente e mesmo financeiramente desvalorizadas
(o ensino, por exemplo 14). Tudo isto concorre para que, para além do
esforço e sobrecarga inerente à dupla carreira, as mulheres se encontrem
sujeitas a níveis muito elevados de mudança e instabilidade no seu quoti­
diano, apresentando um conjunto de manifestações psicopatológicas diver­
sas, de que se destacam os quadros depressivos.
Finalmente, a manutenção de importantes componentes do tradicional
papel da mulher na sociedade em mudança concorre para a sua solicitação
como fonte de apoio emocional por parte de redes, também elas, cada vez
mais alargadas: por um lado, correspondendo à sua imagem, as mulheres
têm mais tendência do que os homens para se sentirem responsáveis pelo
bem-estar e equilíbrio afectivo da maior parte das pessoas que integram as
suas redes; reciprocamente, por outro lado e independentemente do sexo,
as pessoas, quando necessitadas desse tipo de apoio, solicitam, fundamen­
talmente, o suporte de mulheres. Sabe-se, ainda, que as mulheres, para além
de serem mais responsivas aos apelos de apoio, são também mais afectadas
do que os homens pelos acontecimentos emocionais stressantes por que
passam elas próprias e os componentes das suas redes. Assim se entende
que estas redes sejam, para as mulheres, maiores e mais exigentes (Carter,
McGoldrick et al., 1995).
Daqui que possamos falar de sobrecargas com stresses previsíveis e
imprevisíveis. Os primeiros surgem particularmente associados às transfor­
mações demográficas e sociais atrás referidas, como acontece, por exem­
plo, com o aumento da esperança de vida e o maior número de idosos a seu
cargo em termos familiares. No caso dos segundos, stresses imprevisíveis,
as doenças, e particularmente as doenças crónicas de familiares' 5 (algumas
com forte estigma social como a SIDA ou a toxicodependência e que não
"escolhem" gerações ou condição social), as implicações dos divórcios ou
outro tipo de rupturas familiares que anteriormente focámos, os fenómenos

" Para um aprofundamento do tema consultar Vieira, 2002.


" Para uma mais completa compreensão deste tema, nomeadamente da importância
do papel do cuidador principal, na nossa cultura predominantemente atribuído à mu­
lher, o contributo da Terapia Familiar Médica revelou-se decisivo. Neste contexto, e
para aprofundamento do tema, sugere-se a leitura de Rolland, 1999.
334
Novas Formas de Família

migratórios que dão muitas vezes origem às chamadas famílias acordeão 1 6,


a existência de importantes bolsas de pobreza por vezes associadas a for­
mas de funcionamento familiar em que as mulheres detêm papel relevante
como acontece com as fanu1ias multiassistidas, são situações que não
podemos deixar de destacar neste âmbito.

E regressemos ao lar. .. a um lar de uma família, para de novo questio­


narmos: é a mulher a sua fada?
É neste contexto que voltamos a recordar as fanu1ias que, por meio das
investigações que conduzimos, procurámos conhecer um pouco melhor.

• As familias de acolhimento, nas quais as avós e as "mães" de aco­


lhimento, sem vínculo biológico com os adolescentes a seu cargo,
emergiram como figuras maternais substitutas e representantes das
respectivas famílias, quando a tal não eram obrigadas pela nossa
proposta, uma vez que para o estudo se solicitava a participação da
figura parental masculina ou feminina. Por outro lado, os resulta­
dos encontrados apontam para o desempenho competente desse
papel (Capítulo 2).
• As famílias adoptivas, também substancialmente representadas por
mulheres na nossa amostra, e nas quais pais e mães parecem ter
encontrado soluções adequadas para não deixarem que o stress,
necessariamente associado às condições de incapacidade do casal
em gerar um filho biológico, interferisse na relação com as
crianças adaptadas. Relembramos que o aspecto sentido como
menos stressante na relação pais-filhos é a "vinculação" (medida
pela respectiva subescala no ISP) (Capítulo 3).
• As mulheres e os homens que adaptaram como modelo de relação
conjugal a união de facto e que, podendo parecer um pouco mais
"à frente" no caminho da transição do feminino na família, na
maioria das dimensões da ENRICH (escala através das qual se

1
• A ausência de um dos progenitores por longos períodos de tempo caracteriza a
família acordeão que Minuchin e Fishman (1981) enquadram na sua tipologia estrutu­
ral-diagnóstica. O progenitor que permanece em casa assume tarefas parentais adi­
cionais, durante ciclos marcados pela ausência do outro, o que exige reajustamentos pe­
riódicos na exercício da parentalidade.
335
A Mulher na Família: "Em torno dela"

avaliou a qualidade conjugal), não se distinguem daqueles que


optaram por casar (Capítulo 4).
• As mulheres que assumem, na quase totalidade das famílias mono­
parentais que estudámos, o papel de educador único e que, pelo
que nos mostraram, respondem às exigências da parentalidade sem
muito mais stress do que os outros(as) educadores(as) na genera­
lidade das fan1J1ias portuguesas (elementos da amostra de vali­
dação da escala ISP), tendo, inclusive, distinguido algumas con­
dições facilitadoras da gestão da parentalidade que lhes seriam fa­
cultadas pelo seu estatuto (Capítulo 5).

Pensando noutros dados fornecidos pelos diversos estudos, o que é que,


indirectamente, nos "disseram" as mulheres que, em nome das suas
fan1J1ias, neles participaram? Pudemos constatar que estas mulheres, na sua
grande maioria, desenvolvem uma actividade profissional fora do lar. Por
outro lado, mostraram-nos como, na generalidade, se sentem satisfeitas
com as suas fan1J1ias (nomeadamente em termos das ligações emocionais),
as quais consideram competentes e com bons recursos internos 11 • Portanto,
nos "lares" que de algum modo foram desfilando ao longo das páginas
deste livro, ao lado de problemas e dificuldades, inevitáveis, emerge um
certo bem-estar com o que se é, pelo menos enquanto família e enquanto
mulher na fan1J1ia.
Daí pensarmos que a questão inicial não fará muito sentido quando se
entende a expressão "fada do lar" no âmbito de uma ideologia que confina
a mulher e as suas competências ao interior da vivência familiar. O cami­
nho que mulheres (e homens) percorrem hoje em dia, na família e na
sociedade, e que lhes faculta ou exige o desempenho de múltiplas funções
e papéis, do nosso ponto de vista não desemboca, necessariamente, na
construção/assunção de uma identidade única e monolítica. Ou seja, a tran­
sição não tem que se processar no sentido linear da passagem de uma iden­
tidade indexada aos papéis familiares, para uma outra ligada aos objectivos
pessoais de carreira extra-familiar. Não tem que se optar por uma ou outra.

"Referimo-nos, aqui e em particular, aos resultados obtidos nas investigações apre­


sentadas nos capítulos anteriores, através da aplicação das escalas de Olson e cola­
boradores, relativas aos aspectos que designámos, genericamente, por "dinâmica fami­
liar".
336
Novas Formas de Família

Numa perspectiva dialógica, multivocal, o self comporta uma multiplici­


dade de vozes e posições (Hermans e Kempe, 1993), onde o ou disjuntivo
é substituído por um e copulativo. Por outro lado, o self não é só temporal,
é também espacial (idem) - onde e quando somos o quê, é a questão que se
coloca e a resposta para ela decorre de uma construção pessoal e social.
É neste contexto, e pensando também no que Prigogine nos ensinou
sobre os caminhos possíveis da mudança, que acreditamos na multiplici­
dade de significações para a identidade feminina no mundo de hoje.
Quando afirmamos esta crença, não nos estamos a referir à "dupla carreira
feminina" ou à "feminização" de algumas profissões. Pelo contrário, cre­
mos que tais exemplos se lhe opõem, na medida em que, no primeiro caso,
se aponta para o conflito de identidades e, no segundo, para a sua pseudo­
-fusão, sem que em nenhum deles se aluda à sua complementaridade. Na
perspectiva dialógica que partilhamos, as diferentes componentes da iden­
tidade não têm que se degladiar, ou uma anular outra(s), de forma perma­
nente, embora haja momentos e espaços de maior predominância de uma
sobre a(s) outra(s). Na complementaridade que se deseja, o diálogo entre
essas componentes será a regra. A caracterização do romance polifónico de
Bakhtin (1984, 6) é bem esclarecedora desta perspectiva: "uma pluralidade
de vozes e consciências independentes e separadas (...) [em que se] revela
(...) não uma multidão de personagens e destinos num mundo objectivo e
singular, iluminado por uma consciência autoral singular, mas uma plura­
lidade de consciências, com direitos iguais e cada qual com o seu mundo,
combinadas mas não fundidas na unidade do acontecimento". Não se trata,
portanto, de uma questão de diferentes identidades, mas de uma identidade
multivocal, plural e dialógica.

Poder-se-á, então, perguntar: depois disto, que sentido faz tudo o que ao
longo destas páginas ficou escrito? Particularmente, qual o sentido de uma
abordagem psicológica das implicações das transições que fomos focando?
Esse sentido, se existe, poderá, de novo, ser procurado nos processos de
mudança. Para clarificar esta ideia, socorremo-nos do exemplo e das
palavras de Gergen, em resposta a uma questão sobre como lidar com "as­
vozes absolutistas que rejeitam a diversidade":

"Esta questão levanta uma temática complexa ( ...) Contudo posso


dizer como reajo às 'minorias fundamentalistas' (...) Vejo esta
reacção em duas fases, sendo a primeira das quais permitir que a
337
A Mulher na Família: "Em torno dela"

realidade da minoria se substancie. Frequentemente tal requer arti­


culação e expressão, de uma forma que possa aproximar as pessoas
do ponto de vista da minoria. É especialmente importante que a sua
lógica possa ser expressa de forma a que a cultura dominante a possa
entender e apreciar. Contudo, a uma dada altura, parece-me impor­
tante tentar mudar a ênfase do movimento, em direcção a um
entendimento reflexivo dentro da minoria. Este entendimento é
essencial, impedindo que um 'discurso imperialista' substitua outro.
A teoria feminista nos Estados Unidos é um bom exemplo de um
campo em que uma minoria fundamentalista tem vindo a ser cada
vez mais questionada e novas e mais integrativas alternativas têm
vindo a ser exploradas" (in Gergen e Warhus, 2001, 59).

Pensando de novo no percurso do feminino na família, apetece, de


modo pleonástico, afirmar que está em curso... através de um contínuo de
transformações por meio das quais as mulheres (e a sociedade em geral)
prosseguem no sentido da construção de uma identidade dialógica. Neste
processo a Mulher não será forçada a abdicar da sua história, mas poderá
sempre (re)construí-la, no sentido de encontrar alternativas narrativas, tanto
para essa história como para si própria. E, porque se trata de um processo
co-evolutivo, o mesmo acontece, necessariamente, com os seus compa­
nheiros de jornada, os homens. Daqui resulta, em última análise, uma outra
mudança, focalizada na construção social do género enquanto valor e sig­
nificado.
Assim, a expressão "significados da 'fada do lar'" só poderá fazer sen­
tido se apontar para múltiplas significações da metáfora. De todo o modo,
e aceitando que a construção da realidade é social, linguística e discursi­
va, teremos que assumir que a transformação prossegue, também a este
nível, o que nos leva a acreditar que emergirá(ão) outra(s) metáfora(s)
tradutora(s) do feminino na família ... metáforas que, no momento em que
se tornarem socialmente consensuais, serão tão "naturais" quanto o foi a
"fada do lar"!
338
Novas Formas de Família

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