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APOSTILA

TRIBUNAL DE JUSTIÇA SP
VUNESP - PARTE 1I

- REPRODUÇÃO PROIBIDA –
Março/2017
SUMÁRIO

UNIDADE I – ADOLESCÊNCIA. ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DO


ENVELHECIMENTO HUMANO................................................................................3

UNIDADE II – A FORMAÇÃO E O ROMPIMENTO DOS LAÇOS AFETIVOS...........20

UNIDADE III – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DO


FENÔMENO DA VIOLÊNCIA. AS INTER-RELAÇÕES FAMILIARES: CASAMENTO,
CONFLITO CONJUGAL..............................................................................................26

UNIDADE IV – O PSICOLOGO NO ATENIDMENTO AOS CASOS NAS VARAS DA


INFÂNCIA E DA JUVENTUDE E NAS VARAS DA FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES
(Abuso Sexual Infantil, Adolescente Infrator, Guarda dos Filhos, Síndrome de
Alienação Parental, Adoção, Separação, Acolhimento
Institucional)........................................................................................................38

RAFAEL TREVIZOLI NEVES


CRP 06/107487
ORGANIZADOR E ELABORADOR 2
UNIDADE I – ADOLESCÊNCIA/ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DO
ENVELHECIMENTO

1.1. Introdução

A primeira parte do material da EducaPsico elaborado para o concurso do


Tribunal de Justiça de São Paulo abordou a questão da adolescência sob o prisma da
teoria winnicottiana. Dando continuidade a bibliografia proposta do edital,
exploraremos outros elementos relacionados a essa estapa do ciclio de vida, a saber –
sua pertinência histórica e algumas considerações ulteriores à teoria de D. Winnicott.

1.2. Adolescência

Falar sobre a Adolescência inclui contrapor o discurso adolescente, que traz


consigo a inconformidade frente ao estabelecido, anunciando uma estranheza e
inviabilidade do status quo e o discurso sobre o adolescente, que vem dialogar com
aquele que é posto neste lugar (MATHEUS, 2012).
Sob o segundo aspecto, Matheus (2012), salienta o uso de diagnósticos e
justificativas como forma de abafamento da inquietação, inconformidade e
insubordinação que marca esse ciclo vital. Nesse sentido, o orgânico e o corporal são
constantemente apontados como fatores determinantes da subjetividade, em
articulação com fatores culturais e vão coincidir na categoria de crise. Contudo, o autor
saliente que a adolescência mantém um relação incerta com o advento da puberdade,
sendo fenômenos concomitantes, mas com construções discursivas diferentes.

1.3. Perspectiva histórica

Adolescência é um termo de origem latina, do verbo adolescere, significando


desenvolver-se, crescer. O termo adulescentia é encontrado na cultura romana,
denotando um período intermediário entre a pueritia e a iuventus, chegando até os 28-
30 anos de idade. Era um período de preparação da participação na vida comunitária.
De modo distinto da fundamentação pedagógico-científica da modernidade, a divisão
das idades na cultura romana organizava e legitimava a rígida hierarquia que pautava
a estrutura familiar e social e não era baseada em questões fisiológicas, ainda que
elas circulassem nos discursos (MATHEUS, 2012).

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A educação do efebo, correspondente Grego do jovem na puberdade NA Idade
Antiga, – sob o nome de paideia - , diferente da função da educação escolar na
modernidade, não visava a adaptação do cidadão à cidade, mas a formação e o
aprimoramento do comportamento global de cada um. Era realizada por um homem
mais velho (erastes), que introduzia o jovem amado (eròmeno) em práticas eróticas,
além dos esportes e da prática reflexiva e filosófica, numa relação de dominação e luta
contra a dominação que era base natural do equilíbrio da cidade (MATHEUS, 2012).
A imagem da juventude na Idade Média é incerta e heterogênea, coexistindo
diversas concepções acerca das etapas da vida, divididos em dois grandes sistemas –
o profano e o erudito. Na cultura profana, há uma correspondência entre as quatro
estações do ano e as quatro idades – infância/primavera, juventude/verão, idade
“média”/adulto e velhice/inverno. Na cultura erudita, por sua vez, baseada na
geometria celestial, incorporava questões aritméticas no desenvolvimento dos ciclos
vitais (MATHEUS, 2012).
As funções do jovem, no fim da Idade Médica e clarear da Idade Moderna,
caracterizaram-se pela ambivalência, uma vez que exerciam um papel transgressão e
expansividade (ligada às festas e a vitalidade) ao mesmo tempo em que se
responsabilizavam pelo controle da moral e da vida cotidiana, contando com a
cumplicidade dos adultos nessa função (MATHEUS, 2012).
Durante o século XVIII, com o crescimento das cidades, os grupos sociais
perderam sua unidade e constância em decorrência dos deslocamentos populacionais
crescentes. A transgressão, até então anônima e parte de uma reivindicação coletiva,
passou a ser vista como uma ação individual e fonte de ameaça, com o jovem
perdendo seu papel central na representação moral e, portanto, construindo-se como
figura social associada à insubordinação (MATHEUS, 2012).
A partir do nascimento do Estado moderno, adolescência e juventude
adquirem, gradualmente, maior discriminação – assim como as demais faixas etárias –
, por meio de uma reinvenção das idades da vida pela educação e instrução por
etapas, na busca da fabricação do homem esclarecido. Ela se constituirá como
momentos que se desenha como frágil no processo da emergência do homem livre,
um momento de crise que “embora muito curto, tem longas influências (...). É quando
ocorre o ‘segundo nascimento do ser humano,’” (MATHEUS, 2012, p. 26).
O processo de periodização dos ciclos vitais em idades é constituinte do
indivíduo moderno e fundamento do Estado moderno em sua busca da previsão e do
controle sobre o sujeito social. A delimitação de um espaço privado e intimista, próprio
da família burguesa, locus da infância, e distanciado do espaço social público,

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caracteriza o campo de tensão que pauta a noção moderna da adolescência – a
transição entre os universos privado e público (MATHEUS, 2012).
Se na idade antiga, a efebia era objeto de admiração e preocupação, em que
situava-se a contradição passividade/atividade, na idade moderna a adolescência vai
se desenhar como um “momento de fissura do desenvolvimento em função do
desigual e irregular crescimento do corpo e do psiquismo” (MATHEUS, 2012, p. 34),
como uma revolução. A noção de crise se aglutina nos discursos sobre a essa etapa
do desenvolvimento do indivíduo.
Na contemporaneidade, os desdobramentos do capitalismo, a rapidez das
transformações tecnológicas e sociais, a complexificação dos sistemas sociais, a
intensificação e ampliação, no último quarto do século XX da descontinuidade entre
escola e mercado de trabalho (acirrando a postergação da inserção no mundo adulto)
são problemáticas articuladas com a adolescência e juventude. Tais obstáculos
interferiram na saída dos jovens do seio familiar, de modo que a passagem para vida
adulta tem ganhado contornos mais incertos e imprecisos (MATHEUS, 2012).

1.4. Adolescência e Psicanálise

Na psicanálise, a adolescência só apareceu como tema secundariamente, na


teoria freudiana, que a discutiu sob o prisma da puberdade. Com o deslocamento da
sexualidade para a infância, diferente das concepções da época, que situavam-na na
puberdade, Freud precisou rediscutir o papel da puberdade na etiologia das neuroses
e na constituição do sujeito psíquico (MATHEUS, 2012).
Não estando claramente trabalhado na obra freudiana, o tema da adolescência
veio a se oferecer como campo de pesquisa a ser retomado pelos psicanalistas no
último quarto do século XX. “O corpo adolescente, em suas múltiplas roupagens, era
posto em cena e se apresentava como enigma para quem estivesse disposto a
desvendá-lo” (MATHEUS, 2012, p. 43).
Do pós-guerra até os dias atuais, é predominante a referência à adolescência
como crise necessária a ser vivida, elaborada ou superada. Nessa unidade, nos
centraremos em duas concepções prementes que se articulam com os conteúdos do
edital: apresentaremos as ideias de Erikson, abordadas por Matheus (2012) e
retomaremos algumas considerações Winnicott (2016).

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1.4.1. E. Erikson e a Adolescência

Para E. Erikson, a construção da identidade pessoal é considerada a tarefa


mais importante da adolescência, o passo crucial da transformação do adolescente em
adulto produtivo e maduro. Construir uma identidade, implica em definir quem a
pessoa é, quais são seus valores e quais as direções que deseja seguir pela vida
(MATHEUS, 2012).
A identidade é uma concepção de si mesmo, composta de valores, crenças e
metas com os quais o indivíduo está solidamente comprometido. A formação da
identidade recebe a influência de fatores intrapessoais (as capacidades inatas do
indivíduo e as características adquiridas da personalidade), de fatores interpessoais
(identificações com outras pessoas) e de fatores culturais (valores sociais a que uma
pessoa está exposta, tanto globais quanto comunitários) (MATHEUS, 2012).
E. Erikson dá atenção especial à adolescência, devido ao fato de ser a
transição da infância à vida adulta. Diante de muitas modificações fisiológicas, próprias
da puberdade, o adolescente precisa, neste momento, rever suas posições infantis
diante das incertezas dos papéis da vida adulta que lhe são apresentados (MATHEUS,
2012).
A identidade e sua crise teriam dimensões tanto sociais quanto psíquicas,
assim como uma dimensão psico-histórica. Sendo a identidade psíquica, considera-se
uma parte consciente e outra inconsciente, portanto, ela está sujeita à dinâmica de
conflitos; isto explicaria porque nos picos de crise pode haver estados mentais
contraditórios (MATHEUS, 2012).
Ao utilizar o termo crise de identidade, este não aparece como sinônimo de
catástrofe ou desajustamento, mas de mudança e transformação, de um período
crucial no desenvolvimento do indivíduo. O termo "crise" designa um ponto decisivo e
necessário, ou seja, um momento crucial no qual o desenvolvimento precisa optar por
uma ou outra direção, mobilizando recursos de crescimento e diferenciação
(MATHEUS, 2012).
O estágio psicossocial da adolescência seria marcado, dessa forma pela crise
identidade X confusão de papéis A relação social significativa é a formação de grupo
de iguais, pelo qual o adolescente busca sintonia e identificação afetiva, cognitiva e
comportamental. A força específica que nasce da constância e da construção da
identidade é a fidelidade, isto é, a consolidação dos conteúdos da identidade,
estabelecida como projeto de vida (MATHEUS, 2012).

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1.4.2. Adolescência e imaturidade na perspectiva winnicottiana

A concepção de D. Winnicott sobre o adolescente é produto direto da sua


teoria sobre a importância do ambiente no desenvolvimento da criança. Segundo o
mesmo, “há genes que determinam padrões e tendências herdadas para o
crescimento e a aquisição da maturidade; não há crescimento emocional, no entando,
a não ser em relação à provisão ambiental, que precisa ser satisfatória” (WINNICOTT,
2016, p. 141).
Para compreender a imaturidade do adolescente é preciso partir da ideia de
dependência individual a qual todos estamos sujeitos nos primeiros estágios da vida.
Apesar do caminho gradual à independência, está nunca se torna absoluta
(WINNICOTT, 2011).
A estrutura social, de modo geral, é fornecida e mantida pelos seus “membros
saudáveis” do ponto de vista psiquiátrico, mas contém os “doentes”, isto é, os
imaturos, os psicopatas, os neuróticos, os esquizoides, os esquizofrênicos, os
paranoides e as pessoas de gênio instável, que em maior ou menor grau amparam-se
no sistema social. Todavia, Winnicott (2016) ressalta que mesmo os indivíduos
saudáveis dependem, para serem saudáveis, “serem leais a uma área limitada da
sociedade” (p.149).
Para o autor, a adolescência é o momento quanto os êxitos e falhar do
desenvolvimento do bebê e da criança vêm à tona. Ele retoma, assim, a importância
da maternagem satisfatória e, posteriormente, da paternagem e do ambiente familiar
no desenvolvimento do indivíduo, que deve ser ancorado na continuidade dos
cuidados ao bebê. Um trabalho que produz apenas recompensas indiretas
(WINNICOTT, 2011).
Dessa forma, crescer não depende apenas de tendências herdadas; envolve,
também uma complexa interação com um ambiente facilitador. Na puberdade,
reaparecem os mesmo desafios presentes nos estágios iniciais do desenvolvimento,
contudo, sob outra vestimenta. Por exemplo, se o que aparece na fantasia do
crescimento primitivo infantil é a morte, na fantasia adolescente o que existe é o
assassinato, pois crescer significa tomar o lugar dos pais. Tal agressividade, na visão
de Winnicott (2011) é inerente ao crescimento. “Se a criança está se tornando adulta,
é às custas de um corpo morto de um adulto que essa mudança é conseguida.” (p
149).
A rebelião, característica desse período de desenvolvimento, deve se
encarada, segundo Winnicott, como da liberdade fornecida às crianças quando ainda

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eram bebês e que permitiram um crescimento criativo. O papel dos pais, nesse
cenário é sobreviver, sobreviver a essa morte simbólica que permite que a criança
aceda ao lugar de adulto (WINNICOTT, 2011).
Na teoria winnicottiana, a imaturidade é característica inerente da adolescência
e deve ser respeitada, uma que vez que a prematuridade leva, fatalmente, a perda da
espontaneidade e do impulso criativo. Nesse ponto, a transferência de
responsabilidades ao adolescente antes que o mesmo seja capaz de absorvê-las pode
ser vivenciada como uma espécie de abandono e torna-los adultos por um processo
“falso”. A cura para imaturidade, para Winnicott (2011) é a passagem do tempo.
Winnicott relembra que as mudanças na puberdade ocorrem em diversas
idades e que, tal espera, pode levar a imitação daqueles que se desenvolveram mais
cedo, o que pode desencadear um processo de falta maturação, cuja base é a
identificação e não o processo de crescimento. Contudo, mais cedo ou mais tarde, há
um crescimento físico e um ganho real de força, que dá um novo significado à
agressividade e à violência. Como ainda não conhece o quanto o trabalho diminui o
sentimento pessoal de culpa em função de uma contribuição social, há uma
suscetibilidade extrema à agressão que pode se manifestar na forma de impulsos
suicidas ou numa perseguição (WINNICOTT, 2011).
Em suma:

“O principal é que a adolescência é mais do que a puberdade,


ainda que esteja muito baseada nela. A adolescência implica em
crescimento, e esse crescimento leva tempo. Ainda que ocorra
crescimento, a responsabilidade é dever das figuras parentais.
Se elas abdicam, os adolescentes são obrigados a um salto para
a falsa maturidade, perdendo a sua maior riqueza: a liberdade de
ter ideias e agir por impulso (...) é necessário que se lhe forneça
realidade por meio de um ato de confronto. Esse confronto tem
que ser pessoal. Os adultos são necessários para que os
adolescentes tenham vida e vivacidade. A confrontação refere-
se à contenção que não é retaliadora, que não contém vingança,
mas que tem força própria.” (WINNICOTT, 2011, p. 162).

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1.5. Aspectos psicossiciais do envelhecimento
1.5.1. Reflexões sobre o fenômeno social do envelhecimento

O Brasil precocemente entrou na rota do envelhecimento populacional. A


previsão dos é de que no ano 2020 existam cerca de 1,2 bilhão de idosos no mundo,
dentre os quais 34 milhões de brasileiros acima de 60 anos, que, nesse caso,
corresponderão à sexta população mais velha do planeta (MINAYO & COIMBRA,
2011)
O assunto da velhice foi ‘estatizado’ e ‘medicalizado’, transformando-se ora em
problema político, ora em ‘problema de saúde’, seja para ser regulado por normas,
seja para ser pensado de forma preventiva, seja para ser assumido nos seus aspectos
de disfunções e distúrbios que, se todos padecem, são muito mais acentuados com a
idade. Dessa forma, desconhece-se a complexidade dos sujeitos, criando-se uma
estética da vida referenciada em proibições e regras gerais (MINAYO & COIMBRA,
2011)
Para Minayo e Coimbra (2011) é preciso executar um movimento que positive o
envelhecimento como um tempo produtivo específico da vida, emocional, intelectual e
social, superando assim os estigmas da discriminação. A positivação da identidade do
idoso significa, por um lado, reconhecer o que há de importante e específico nessa
etapa da vida para desfrutá-lo; por outro, compreender, do ponto de vista desse grupo
social, os sofrimentos, as doenças e as limitações com toda a carga pessoal e familiar
que tais situações acarretam.
O envelhecimento não é um processo homogêneo. Cada pessoa vivencia essa
fase da vida de uma forma, considerando sua história particular e todos os aspectos
estruturais (classe, gênero e etnia) a eles relacionados, como saúde, educação e
condições econômicas (MINAYO & COIMBRA, 2011).
Para a compreensão do envelhecimento, quatro aspectos centrais serão
enfatizados por Minayo e Coimbra (2011): o envelhecimento como híbrido biológico-
social; o envelhecimento como problema; o envelhecimento como questão pública; o
velho como ator social.

A) O envelhecimento como um híbrido biológico-social

Para Minayo e Coimbra (2011), é necessário desnaturalizar o fenômeno da velhice


e considerá-la como uma categoria social e culturalmente construída. Se, por um lado,

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o ciclo biológico próprio do ser humano assemelha-se ao dos demais seres, por outro,
as várias etapas da vida são social e culturalmente construídas.

“O processo biológico, que é real e pode ser reconhecido por


sinais externos do corpo, é apropriado e elaborado
simbolicamente por meio de rituais que definem, nas fronteiras
etárias, um sentido político e organizador do sistema social.”
(MINAYO & COIMBRA, 2011)

No imaginário social a velhice sempre foi pensada como uma carga econômica
– seja para a família, seja para a sociedade – sendo a forma mais comum de
discriminação cultural o estigma de ‘descartável’, ‘passado’ ou ‘peso social’. A visão
depreciativa dos mais velhos tem sido, através dos tempos modernos, alimentada
profundamente pela ideologia ‘produtivista’ que sustentou a sociedade capitalista
industrial (MINAYO & COIMBRA, 2011).

B) O envelhecimento como problema

A ideia de que os velhos constituem um problema social vem sendo construída


sobremodo pelo Estado brasileiro e se expressa na constante divulgação dos déficits
nos cálculos da previdência social, uma vez que o direito à aposentadoria (um direito
dos idosos) se universalizou(MINAYO & COIMBRA, 2011).
De acordo com Minayo e Coimbra (2011), é importante descobrir quem e quais
seriam os formuladores de um novo sentido do envelhecimento e que interesses têm
nessa destinação. Seria uma simplificação e um reducionismo dizer que o grande
propulsor das transformações do papel atual do idoso na sociedade seja o mercado,
mas não convém desconhecer seu lugar.

“torna-se impossível desconhecer o seu papel como


‘consumidora’, pois crescem pari passu a constatação desse
fenômeno demográfico, o turismo, a moda, a cosmética, a
medicina de reabilitação e a fisioterapia, a indústria de
alimentação específica, novos padrões de construção, uma
literatura específica, além de todas as práticas, instituições e
agentes voltados para esse público cativo e em expansão.”
(MINAYO & COIMBRA, 2011)

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C) O envelhecimento como questão pública

O envelhecimento como questão pública retira esse tema do domínio individual


e privado sem negá-lo, colocando-o num âmbito muito mais abrangente: na esfera da
grande política e das políticas sociais. Minayo e Coimbra (2011) salientam que há
duas categorias sociais opostas e em construção o futuro do país. A primeira é a
‘juventude’, essa etapa entre a adolescência e o mundo adulto que, exatamente pela
força de expansão da expectativa de vida e das exigências escolares, cada vez tende
a ampliar seu tempo e a criar uma identificação específica. A segunda é a velhice.

D) O velho como ator social

De acordo com Minayo e Coimbra (2011), os idosos brasileiros, nas duas


últimas décadas, inauguraram um espaço próprio de ação, de cidadania e de
inclusão., modificando o cenário da social e se estabelecendo um grupo de
interlocução política.
Constituem-se, dessa forma, como um emergente ator social, com poder de
influir nos seus destinos, pela sua significância numérica e qualitativa, por meio da
construção de leis de proteção, de conquista de benefícios e pela presença no cenário
político, no qual valem seu voto e sua representação (MINAYO & COIMBRA, 2011).

1.5.2. Envelhecimento e saúde

Contrariamente aos países desenvolvidos, onde o aumento da esperança de


vida resultou de melhoria considerável das condições de vida das populações, no
Brasil muitos indivíduos estão hoje vivendo por mais tempo sem, necessariamente,
dispor de melhores condições socioeconômicas ou sanitárias. Dessa forma, o
processo do envelhecimento pode reforçar desigualdades em termos da qualidade de
vida e do bem-estar entre diferentes estratos da população, contribuindo para
aumentar a chance de exclusão dos idosos (UCHOA & LIMA-COSTA, 2011).
São ainda mais raros estudos que possam informar sobre a maneira como as
pessoas idosas residentes no Brasil tentam dar significado a esse período de suas
vidas e sobre a forma como limitações e perdas são integradas à experiência de vida.
A partir dessa problemática, Uchoa e Lima-Costa (2011) entrevistarem idosas e

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informantes-chaves a respeito de tais temáticas, com intuído de apreender as
representações sociais sobre o envelhecimento e seus desdobramentos na saúde.
A velhice e o envelhecimento foram associados a distintos níveis de problemas.
No campo da saúde, há referência ao aparecimento das doenças crônicas. Na área
econômica, há referência à diminuição da renda e a um concomitante aumento dos
gastos, particularmente em função dos problemas com a saúde. Há também
referência, em quase todas as entrevistas, ao declínio funcional levando à
incapacidade progressiva de exercer as atividades cotidianas e à perda da autonomia.
No âmbito das relações sociais, há referência a um comprometimento da inserção
social; mortes de parentes e amigos e aposentadoria favorecem a diminuição da rede
social, a perda de papéis sociais, a marginalização e o isolamento. Todos esses
problemas convergem para um conjunto de perdas diversas, todas elas implicando um
aumento progressivo da dependência e a exigência de diferentes níveis de suporte
(UCHOA & LIMA-COSTA, 2011).
Quando são focalizadas as histórias de vida, surgem imagens bem mais
positivas da velhice e do envelhecimento. Fica claro que um problema de saúde pode
ser exacerbado ou minimizado pela inexistência ou existência de suporte familiar ou
comunitário, ou que a situação financeira pode exacerbar ou aliviar as consequências
de um problema de saúde. Assim, parece ser constitutiva da própria definição de
problema a existência ou não de recursos para solucioná-lo (UCHOA & LIMA-COSTA,
2011).

“O conjunto de suas histórias de vida mostra, que perdas e


limitações existem, mas que isto não é específico da velhice e
que, além disso, o impacto real de tais perdas pode ser mediado
por diferentes elementos do contexto.” (UCHOA & LIMA-COSTA,
2011).

1.5.3. Envelhecimento e Corpo

A modernidade capitalista construiu uma visão segmentar das idades:


primeiramente a infância e a juventude, no pré-capitalismo socialmente indiferenciadas
da idade adulta; bem mais recentemente (década de 60), inventa uma ‘terceira idade’,
inserção de um novo período entre a maturidade e a velhice, ao mesmo tempo
negação desta (MOTTA, 2011)

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Como recorda Motta, a cultura também está inscrita no corpo, ao mesmo
tempo condicionando e transformando a natureza. Não atua de modo homogêneo no
interior de uma sociedade e em determinado período histórico. Por isso, os corpos,
além de sua forma e ‘natureza’ humana, diferenciam-se em cada período histórico no
seu existir biossocial (MOTTA, 2011).
No imaginário social, o envelhecimento é um processo que concerne à
marcação da ‘idade’ como algo que se refere à ‘natureza’, e que se desenrola como
desgaste, limitações crescentes e perdas, físicas e de papéis sociais, em trajetória que
finda com a morte. As perdas são tratadas principalmente como problemas de saúde,
expressas em grande parte na aparência do corpo, pelo sentimento em relação a ele e
ao que lhe acontece (MOTTA, 2011).
Se a formação das identidades de idade ou de geração já é difícil, porque são
condições mutáveis rapidamente no tempo, pior é a fixação da identidade de velho,
porque indesejada e dúplice, ou ambígua, principalmente quando referida ao corpo: a
aparência ‘desgastada’, seu funcionamento não totalmente sincronizado e a mente –
ou a essência dos sentimentos – ‘jovem’ (MOTTA, 2011).

“As mudanças corporais se processam rapidamente, por isso, há


sempre um sentimento de brusquidão na (auto)percepção do
envelhecimento. Ao mesmo tempo, o envelhecimento, como
anteriormente mencionado, não se processa de modo
homogêneo – nem cronológica, nem física, nem
emocionalmente. Há sempre partes, órgãos ou funções do corpo
que se mantêm muito mais ‘jovens’, ‘conservados’ ou sadios do
que outros. Assim como no terreno dos sentimentos e das
representações, ‘a velhice nunca é um fato total. Ninguém se
sente velho em todas as situações’. (MOTTA, 2011).

Apesar dos discursos pejorativos, incapacitantes e apáticos sobre os corpos


dos velhos, eles movimentam-se conforme suas trajetórias de vida: os homens, para o
lazer e o ‘descanso’; as mulheres, para atividades de mais clara liberação existencial,
de lazer e cultura. Mas todos tendo, em comum, a intensificação ou retomada de uma
universalmente desejada sociabilidade (MOTTA, 2011).

“Na realidade, ainda coexistem as duas imagens: a tradicional,


‘naturalizada’, do velho inativo, respeitável, mas ‘inútil’; e a nova

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imagem, mais dinâmica e participante, embora apenas em
determinadas situações sociais. Esta ironicamente propiciada,
grosso modo, pela sociedade de consumo, ávida pelas pensões
e pelos ‘benefícios’ dos aposentados.” (MOTTA, 2011)

1.5.4. Demência e o impacto na família

De acordo com Caldas (2011), no âmbito da assistência à saúde do idoso, uma


especial atenção deve ser dada às pessoas que vivenciam um processo demencial.
Na verdade, essa assistência é principalmente prestada pela família, centrada na
figura do cuidador principal. O cuidador principal é aquele que tem a total ou a maior
responsabilidade pelos cuidados prestados ao idoso dependente, no domicílio.
À medida que a pessoa vai desenvolvendo um processo demencial, há uma
mudança de papéis dos membros da família. Se o doente é um dos pais, os filhos
adultos assumem a função de decidir e assumir as responsabilidades dos pais. O filho
adulto torna-se cuidador e ficará sobrecarregado com essa função, que se soma às
atribuições familiares e a seu emprego. Frequentemente os familiares veem-se
limitados, e os sentimentos de desespero, raiva e frustração alternam-se com os de
culpa por ‘não estar fazendo o bastante’ por um parente amado. O aumento da
despesa também é fator preocupante para a família (CALDAS, 2011).
As decisões de assumir os cuidados são mais ou menos conscientes, e
embora a designação do cuidador seja informal e decorrente de uma dinâmica, o
processo parece obedecer a certas regras, refletidas em quatro fatores (CALDAS,
2011):
 parentesco – com frequência maior para os cônjuges, antecedendo sempre a
presença de algum filho;
 gênero – com predominância para a mulher;
 proximidade física – considerando quem vive com a pessoa que requer os
cuidados;
 proximidade afetiva – destacando a relação conjugal e a relação entre pais e
filhos.

Para planejar e/ou legislar sobre a questão da assistência ao idoso, é


importante considerar os diferentes contextos sociais, econômicos e culturais nos
quais estão inseridos os cidadãos mais velhos de nossa sociedade. O governo
brasileiro instituiu a Política Nacional do Idoso, regulamentada pelo Decreto no 1.948,

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de 13 de julho de 1996. Uma das diretrizes dessa política recomenda que o
atendimento ao idoso deve ser feito por intermédio de suas próprias famílias, em
detrimento do atendimento asilar. Para assumir tal responsabilidade, a família
necessita de uma rede social e de saúde que constitua um suporte para lidar com seu
familiar idoso à medida que este se torne mais dependente. Entretanto, essa rede de
suporte não existe em nosso país (CALDAS, 2011).
A recente Política Nacional de Saúde do Idoso (1999, citado por CALDAS,
2011) reconhece a importância da parceria entre os profissionais da saúde e os
cuidadores, apontando que esta deverá possibilitar a sistematização das tarefas a
serem realizadas no próprio domicílio, evitando-se assim, na medida do possível,
hospitalizações, internações em asilos e outras formas de segregação e isolamento.

A) O processo demencial

“A demência é uma síndrome clínica de deterioração das


funções corticais superiores, incluindo memória, pensamento,
orientação, compreensão, cálculo, capacidade de aprendizagem,
linguagem e julgamento ou discernimento. Ela ocorre com
manutenção da consciência e com severidade suficiente para
interferir nas funções sociais e ocupacionais do indivíduo.”
(CALDAS, 2011)

A fase inicial da doença pode passar de forma despercebida. Ocorrem


episódios de lapsos de memória, que muitas pessoas conseguem compensar ou
disfarçar por meio de estratégias como o uso de agendas ou outras formas de auxílio
à memória. No entanto, progressivamente, a pessoa passa a ter dificuldades para
tomar decisões e fazer planos, torna-se cada vez mais vagarosa ao falar e
compreender, perde progressivamente a capacidade de manter a atenção, ter
iniciativas e fazer cálculos. Passa a evitar interação social, pois já está com dificuldade
de participar de uma conversação. É frequente, também nessa fase, que a pessoa
fique bastante deprimida, pois como ainda está lúcida a maior parte do tempo, percebe
seu estado mental se deteriorando (CALDAS, 2011).
Nessa etapa da evolução da doença, os profissionais que acompanham a
pessoa devem procurar envolver a família na assistência, enfatizando a necessidade
de compreensão do que sente o idoso, a partir do entendimento do diagnóstico e
prognóstico da patologia. Também é necessário que nessa fase se oriente a família

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em relação às medidas de controle da ansiedade e da agitação. Podem-se trabalhar
com o idoso técnicas de orientação para a realidade, para estimulá-lo a se manter
consciente de informações orientadoras corretas. A reabilitação cognitiva nesse início
do processo demencial contribui para retardá-lo (CALDAS, 2011).
A segunda fase, ou fase intermediária, é caracterizada pelo aumento do grau
de dependência, na medida em que a pessoa já necessita de supervisão e ajuda para
o autocuidado. Como sua capacidade de julgamento ou discernimento se encontra
prejudicada, a pessoa passa a apresentar comportamento inadequado e aumenta a
necessidade de atenção à segurança. A família costuma sofrer bastante nessa etapa
não só pela necessidade de exercer vigilância permanente e controle da pessoa, mas
também pela letargia e indiferença afetiva que a pessoa apresenta. Os familiares se
entristecem e geralmente se sentem impotentes e já não sabem como agir. É
necessário que os familiares aprendam uma nova forma de lidar com o seu idoso
(CALDAS, 2011).
Os profissionais responsáveis pelo acompanhamento deverão enfatizar nessa
fase a prevenção de acidentes, as orientações sobre alimentação e medicação, o
estabelecimento de rotinas para as eliminações fisiológicas e o reconhecimento de
outros códigos de comunicação, pois o idoso já não consegue expressar verbalmente
o que está querendo ou sentindo. É preciso desenvolver a habilidade de se comunicar
com ele utilizando outros códigos
A fase final é marcada pela dependência total da pessoa. Há necessidade de
cuidados integrais no leito permanente, devido à perda da atividade psicomotora.
Nesse momento, os profissionais da equipe de enfermagem deverão orientar os
cuidadores para prestarem os cuidados básicos, priorizando o conforto e o afeto. É
importante manter o suporte familiar. (CALDAS, 2011).

B) O processo de cuidar

Caldas (2011) identificou e categorizou, no discurso dos cuidados de idosos


com demência, o desenvolvimento psicossocial relacionado ao processo de cuidar.

 Vivência de grande sofrimento por conviver com a progressão do


processo demencial de seu familiar;

Os cuidadores vivenciam o processo demencial de seu familiar idoso como


uma despedida gradual da vida para a morte. É um sofrimento gerado pela lembrança
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e pela constatação de que a pessoa está se tornando cada vez mais dependente O
cuidador vai se despedindo daquilo que o seu familiar foi e sempre sentirá saudades
da antiga maneira de ser, mas irá aos poucos aprendendo a reconhecer e a amar essa
‘nova pessoa’, a cada dia mais dependente e indefesa (CALDAS, 2011)
A mudança e a aceitação da situação são um processo desencadeado a partir
do momento em que o cuidador toma consciência do diagnóstico e a doença vai se
configurando mais real a cada dia, com o avançar dos sintomas. O sofrimento irá
acompanhar toda a trajetória de cuidado até a morte do familiar, porém, a forma de
conviver com a situação muda de tom com a experiência. No início, é a angústia pelo
diagnóstico e pela irreversibilidade. Depois do impacto e da aceitação do diagnóstico,
vem a dor por assistir à perda das habilidades cognitivas (CALDAS, 2011).

 Consegue desenvolver o cuidar enfrentando grandes dificuldades, porque


não vê outra saída;

Ao enfrentar o processo demencial, o cuidador se esforça permanentemente


para superar as dificuldades por ele desencadeadas. Ao aceitar a doença, ele percebe
que a única coisa a fazer é trabalhar para tornar o futuro melhor, mais leve para
ambos (CALDAS, 2011).
Quando as pessoas apontam um motivo concreto para estarem cuidando do
seu familiar idoso, demonstram fundamentalmente que tinham de assumir tal posição
ativa e conscientemente. As razões apontadas são sempre ligadas ao significado da
pessoa, o que ela fez ou representou anteriormente, num tempo que é passado. O
cuidador marca o pretérito como ponto de partida para o fato de se colocar disponível
e, ao estabelecer este marco, possibilita que esse exercício o transforme a cada dia
(CALDAS, 2011).
Assumir-se como responsável pelo que ocorre com o idoso não é sentir-se uma
vítima do destino ou da sorte. É compreender o problema. É conseguir enxergar as
possibilidades de conviver com o processo demencial (CALDAS, 2011).

 Apresenta um grande cansaço ao cuidar do familiar idoso de quem se


ocupa intensamente;

O cansaço que o cuidador sente é avassalador. E o pior é que não há uma


perspectiva de repouso a curto prazo. Isso porque o que eles sentem não é apenas
físico: é um cansaço total, existencial (CALDAS, 2011).
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 Precisa ter muita paciência para lidar e cuidar de seu familiar idoso que
está desenvolvendo um processo de demência;

Os cuidadores demonstram que a paciência precisa estar como um pano de


fundo, permeando sua experiência. Caso contrário, tudo se desequilibra: o idoso, a
família e a casa, a partir do descontrole do próprio cuidador (CALDAS, 2011).
Outro aspecto do exercício da paciência é a aceitação do ritmo do idoso. A
pessoa que vivencia um processo demencial tem um ritmo totalmente próprio e sem
possibilidade comparativa com os parâmetros de um indivíduo da mesma idade em
plena capacidade cognitiva. Seus horários, as manifestações de suas necessidades e
vontades são totalmente atípicos; muitas vezes, ilógicos. Tudo exige paciência para
aceitar e compreender esse comportamento (CALDAS, 2011).

 está tensa, cansada e limitada no seu lazer porque assume a obrigação de


cuidar de seu familiar, que apresenta grande dependência;

A limitação que o cuidador sente não é apenas a impossibilidade de ir e vir sem


dar satisfações; é a consciência de que qualquer descuido ou falha pode determinar o
agravamento do doente, porque este, sim, é que está privado da liberdade de
autodeterminação. O que o cuidador percebe como grande limitação, na verdade, é a
impossibilidade de organizar um esquema de suporte para seu idoso. E mesmo que
consiga estruturar um eficiente sistema de apoio, ele não se desliga de seu familiar
(CALDAS, 2011).

 Reconhece a necessidade de ser cuidado também, porque enfrenta


dificuldades pela intensidade da ocupação de seu tempo e de suas
emoções.

Os cuidadores demonstram ter consciência de que se não estiverem bem de


saúde não poderão suportar a intensidade da ocupação de cuidar. Apesar das
preocupações consigo mesmo, para o cuidador é difícil manter um equilíbrio entre a
ocupação de cuidar de seu familiar idoso e o seu próprio cuidado (CALDAS, 2011).

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1.6. Referências BIbliográficas

MATHEUS, T. C. Adolescência (Coleção Clínica Psicanalítica). Casa do Psicólogo:


São Paulo, 2012.

WINNICOTT, D.W. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CALDAS, C.P.O. O idoso em processo de demência: o impacto na família. In:


MINAYO, M.C e COIMBRA, J. R, C.E. A in: MINAYO, M.C e COIMBRA, J. R, C.E. A
Antropologia, Saúde e Envelhecimento Rio de Janeiro: Fiocruz Ed, 2011, p. 51 a
73.

USHOA, J. E. e LIMA-COSTA M.F. Envelhecimento e Saúde: Experiência e


Construção Cultural In: : MINAYO, M.C e COIMBRA, J. R, C.E.A. Antropologia,
Saúde e Envelhecimento Rio de Janeiro: Fiocruz Ed., 2011, p. 21 a 33.

MINAYO, M.C.S. e COIMBRA, J.C.E. A. Entre a Liberdade e a Dependência:


Reflexões sobre o Fenômeno Social do Envelhecimento In: Antropologia, Saúde e
Envelhecimento Rio de Janeiro: Fiocruz Ed., 2011, p. 11 a 24.

MOTTA, A.B. Envelhecimento e Sentimento do Corpo in: Antropologia, Saúde e


Envelhecimento Rio de Janeiro: Fiocruz Ed., 2011, p. 37 a 50.

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UNIDADE II – A FORMAÇÃO E O ROMPIMENTO DOS LAÇOS AFETIVOS

2.1. Formação e rompimento dos laços afetivos

J. Bowlby descreve sua teoria de vinculação como produto dos seus interesses
sobre a contribuição do meio ambiente de uma pessoal em seu desenvolvimento
psicológico. Ele define como teoria da ligação:

“um modo de conceituar a propensão dos seres humanos a


estabelecer fortes vínculos afetivos com alguns outros e de
explicar as múltiplas formas de consternação emocional e
perturbação da personalidade, incluindo ansiedade, raiva,
depressão e desligamento emocional, a que a separação e a
perda involuntária dão origem” (BOWLBY, 2015, p. 168).,

Articulação entre psicanálise, etologia e teoria do controle.


Segundo o autor, até meados dos anos 1950 a natureza e origem dos vínculos
afetivos tinha como perspectiva a satisfação de impulsos como a alimentação, na
infância, e o sexo, na vida adulta. Estudos como o Lorenz sobre o imprinting e de
Harlow levaram a um questionamento do vínculo como sendo algo apenas da ordem
da alimentação e da sexualidade, introduzindo a variável proteção como elemento
importante dos laços afetivos (BOWLBY, 2015).
A partir de tais concepções, Bowlby (2015) definiu como comportamento de
ligação

“qualquer comportamento que resulta em que uma pessoa


alcance ou mantenha proximidade com algum outro indivíduo
diferenciado e preferido, o qual é usualmente considerado mais
forte e(ou) mais sábio. (...) Inclui o choro e o chamamento, que
suscitam cuidados e desvelos, o seguimento e o apego, e
também os vigorosos protestos se uma criança ficar sozinha ou
na presença de estranhos” (p. 171).

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Dessa forma, a teoria de ligação enfatiza as seguintes características (BOWLBY,
2015):
a) Especificidade – o comportamento de ligação é dirigido para indivíduos
específicos, em ordem de preferência;
b) Duração – é uma ligação persistente;
c) Envolvimento emocional – emoções intensas estão na formação,
manutenção, rompimento e renovação das relações de ligação. Dessa forma, a
ameaça de perda gera ansiedade e a parda real, tristeza. Ambas as situações
são passíveis de gerar raiva. A manutenção de um vínculo é sentida como
segurança e renovação de um vínculo como júbilo;
d) Ontogenia – o comportamento de ligação com uma figura preferida
desenvolve-se durante os primeiros 09 meses de vida e mantém ativado até o
terceiro ano de vida;
e) Aprendizagem – aprender a distinguir o familiar e o estranho constitui um
processo-chave no desenvolvimento do comportamento de ligação;
f) Organização – o comportamento de ligação é mediado por respostas
organizadas segundo linhas simples que vão se complexificando a partir do
final do primeiro ano. As condições ativadoras incluem o estranhamento, a
fome, cansaço e as terminais compõem-se da visão ou som da figura de
vinculação.
g) Função biológica – a observação de comportamentos de ligação em outras
espécies de mamíferos sugere que esse comportamento possui valor de
sobrevivência;

Bowlby enfatiza a diferença entre dependência e comportamento de ligação,


apontando que a primeira não está especificamente relacionada com a manutenção da
proximidade, não se refere a um indivíduo específico e nem está, necessariamente,
relacionada a uma reação emocional intensa. Além disso, observa uma utilização
depreciativa do termo dependência, enquanto considera o comportamento de ligação
algo positivo e “nada existe de intrinsecamente pueril ou patológico quanto a ele”
(BOWLBY, 2015, p. 174).
O comportamento de ligação está relacionado, ainda, ao cuidar e à exploração.
A atividade exploratória, de modo geral, habilita um indivíduo a formar um quadro
coerente das características de seu ambiente, sendo recurso importante à
sobrevivência. Apesar de relacionado ao comportamento de ligação, a exploração é
antitética ao mesmo, uma vez que envolve um afastamento das figuras eleitas pelo

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individuo como constituintes de uma base segura para si. Por outro lado, o cuidar é
complementar ao comportamento de ligação. O cuidar envolve 1) estar disponível e
pronto para atender quando solicitado e 2) intervir no caso do indivíduo de quem se
cuida estar necessitando (BOWLBY, 2015).
A separação involuntária de uma figura de ligação pode suscitar medo e
ansiedade, considerada uma reação perfeitamente normal e saudável na teoria de
ligação (BOWLBY, 2015).

2.2. Os efeitos do rompimento de um vínculo afetivo

A vinculação afetiva é resultado do comportamento social de cada indivíduo,


resultando numa aproximação de cada membro do par vincular. Tal processo não
desconsidera a agressividade, que assume papel decisivo a manutenção dos vínculos
afetivos ao atacar/afugentar intrusos e punir um parceiro errante (BOWLBY, 2015).
Na visão do autor, “aqueles que padecem de distúrbios psiquiátricos –
psiconeuróticos, sociopáticos ou psicóticos – manifestam sempre deterioração da
capacidade para estabelecer ou manter vínculos afetivos” (BOWLBY, 2015, p. 100).
O psicopata (ou sociopata) é o indivíduo que, embora não sendo psicótico ou
mentalmente subnormal, realiza atos persistentes contra a sociedade, contra a família
e contra sua própria pessoa. De acordo com Bowlby (2015), frequentemente a infância
de tais indivíduos foi seriamente perturbada por um evento de resultou na ruptura dos
vínculos afetivos de forma precoce (antes do 06 anos de idade).
Outra condição associada a perdas significativas na infância é a depressão.
Entretanto, o tipo de perda experimentada é diferente das dos psicopatas, sendo mais
frequente a perda de uma das figuras parentais, e não a deterioração familiar geral,
como no caso anterior. Em relação ao tempo, também diferem-se a inscrição da perda
nas biografias do indivíduos, sendo mais comuns rompimentos de vínculos no
segundo quinquênio de vida (BOWLBY, 2015).
Os efeitos em curto prazo de uma separação involuntária temporária das
figuras de ligação incluem duas formas de comportamento afetivo – o desligamento
emocional e uma implacável exigência para estar perto da figura de ligação. Contudo,
Bowlby (2015) salienta que se verifica uma vasta gama de variações na reação ao
rompimento de um vínculo afetivo, que envolve desde eventos ocorridos durante a
gestação até componentes genéticos.

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2.3. A aplicação clínica da teoria de ligação

O ponto fundamental de Bowlby (2015) é que “existe uma forte relação causal
entre as experiências de um indivíduo com seus pais e sua capacidade posterior para
estabelecer vínculos afetivos” (p. 178). A experiência de uma parentalidade saudável
envolvem 1) uma compreensão intuitiva, por parte dos pais, do comportamento de
ligação de uma criança e a disposição para satisfazê-lo e, no momento adequado,
termina-lo e; 2) o reconhecimento de que uma das fontes mais comuns de raiva na
criança é a frustração de seu desejo de amor e cuidados e de que sua ansiedade
reflete a incerteza quanto à disponibilidade dos pais.
A parentalidade patogênica pode levar a perturbações do comportamento de
ligação, estabelecendo-se um padrão denominado de ligação ansiosa. A ligação
ansiosa caracteriza-se por uma constante ansiedade, com medo da perda da figura de
ligação e um baixo limiar para ativação do comportamento de ligação. No luto, isto é, a
perda irreversível da figura de ligação, aparece sentimentos como raiva intensa, autor
recriminação e depressão (BOWLBY, 2015).
O oposto da ligação ansiosa é a autoconfiança compulsiva, em que o indivíduo,
comporta-se constantemente como uma pessoa insiste em aguentar todas as
pressões e fazer tudo por si mesma, em quaisquer condições. Para Bowlby (2015), a
origem desse padrão comportamental está na inibição do comportamento de ligação,
negando qualquer desejo de relações estreitas de modo a evitarem a dor de serem
rejeitadas ou a submissão a pressões que obriguem a cuidar de outrem. Em tais
indivíduos, o luto pode ser protelado por meses ou anos.
Uma terceira manifestação da perturbação do comportamento de ligação é a
solicitude compulsiva, que pode ser descrita como o envolvimento de um indivíduo em
relações íntimas, mas sempre no papel de dispensador de cuidados e nunca de
receptor. A experiência infantil típica desses casos é a de uma figura parental que não
pode cuidar da criança mas, em vez disso, aceitou de bom grado seus cuidados
(BOWLBY, 2015).
Por fim, uma quarta manifestação patológica do comportamento de ligação se
observa nos indivíduos que foram privados de cuidados maternos durante os primeiros
anos de vida, combinada por rejeição ou ameaças de rejeição posteriores. Nesses
casos, observa-se alguém emocionalmente desligado, incapaz de manter um vínculo
afetivo estável (BOWLBY, 2015).

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2.4. Princípios psicoterápicos

A aplicação da teoria de ligação nos contextos clínicos deve incluir, nos casos
em que pode ser utilizada tal teoria, o exame do padrão de comportamento de ligação
assumido pelo paciente, além da exploração de eventos relevantes de sua vida,
principalmente separações, doenças e mortes. É necessário, ainda, obter alguma ideia
dos padrões de interação que predominam no lar atual do paciente (BOWLBY, 2015).
O sintoma trazido como queixa deve ser considerado como:

“uma resposta, que divorciada da situação que a provocou


parece inexplicável. Ou então um sintoma surge como resultado
de uma tentativa feita pelo paciente de evitar reagir com
sentimento autêntico a uma situação verdadeiramente aflitiva ou
deprimente (...) [a] tarefa consiste em identificar a situação, ou
situações, à qual o paciente está respondendo, ou inibindo uma
resposta” (BOWLBY, 2015, p. 189).

Para Bowlby (2015), as tarefas do psicoterapeuta devem incluir,


a) Proporcionar ao paciente uma base segura a partir da qual ele possa explorar a
si mesmo e às suas relações;
b) Juntar-se ao paciente nessas explorações, encorajando-o a examinar as
situações em que atualmente se encontra, suas pessoas significativas e a
relação com elas;
c) Chamar a atenção do paciente para os modos como ele tende a interpretar os
sentidos e o comportamento do terapeuta em relação a ele;
d) Ajuda-lo a examinar como as situações em que geralmente se encontra e suas
reações típicas podem ser entendidas em termos das experiências infantis;
O autor que reconhece que essas considerações sobre as tarefas de um
psicoterapeuta aplicam-se à outras teorias também, uma vez que se referem ao
fornecimento de apoio, interpretação da transferência e (re)construção de situações
passadas. Contudo, em sua visão novos pontos merecem ênfase na teoria de ligação,
a saber (BOWLBY, 2015):
 A atribuição de um lugar central do papel de dotar o paciente com uma base
segura;
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 A opção pela concentração nas experiências de vida real do paciente;
 A atenção aos detalhes de como os pais do paciente podem ter, de fato, se
comportasse em relação a ele;
 A utilização da interrupção no decorrer do tratamento para observação de
como o paciente interpreta momento de separação.

Bowlby (2015) recomenda a aplicabilidade da teoria de ligação também em


terapias familiares. Para ele, a finalidade de uma terapia familiar sob essa perspectiva
é habilitar todos os membros da família a relacionarem-se uns com os outros de modo
de modo que cada um possa encontrar uma base segura em seu relacionamento com
a família. Nesses casos, é reservado menos tempo à interpretação da transferência.
Por fim, o autor alerta, ainda, para os perigos em que pode deixar-se cair o
terapeuta que utiliza-se da teoria de ligação. O primeiro é que, o seu anseio em obter
uma base segura e seu medo de ser rejeitado podem tornar as reclamações do
paciente algo difícil de abordar. Ele alerta para o fato de que, ao fazer tais
reclamações, o paciente pode estar empregando com o terapeuta os mesmos
métodos que os pais usaram com ele na infância, uma segunda armadilha para qual
se deve estar atento. É importante que o terapeuta esteja apto a reconhecer quanto as
expectativas de um paciente se tornam irrealistas, evitando um sentimento de
desesperado ante a frustração das mesmas.

2.5. Referências Bibliográficas

BOWLBY, J. Formação e Rompimento dos laços afetivos. São Paulo: Martins


Editora, 2015.

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UNIDADE III – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA/ASPECTOS PSICOSSOCIAIS DO
FENÔMENO DA VIOLÊNCIA. AS INTER-RELAÇÕES FAMILIARES: CASAMENTO,
CONFLITO CONJUGAL

3.1. Aspectos psicossociais da violência

A arquitetura das cidades e das casas, a partir da década de 90, reflete o


estado de alma ante as cenas de violência e intensificam o isolamento, o
individualismo, a intolerância com a diferença e a privatização da vida. Com a perda
do espaço social como lugar de troca, de construção coletiva – uma vez que não há
lugar seguro –, perde-se, também a noção de história, de memória, de lugar simbólico
transgeracional (MARIN, 2002).
O termo violência tem sido usado como referência para uma multiplicidade de
ações e de agentes, sendo algumas mais evidentes e outras, contudo, mais sutis,
relacionadas à docilização dos corpos – “a submissão a situações de abuso físico,
psíquico ou social, sem que os sujeitos tomem consciência disso ou esbocem
qualquer resposta reativa a esses abusos” (MARIN, 2002, p. 28).
Para Marin (2002), afirmar que a violência faz parte da constituição do
psiquismo não pode levar à diluição de seu impacto e atenuação de seu horror, mas,
ao contrário, pensar no destino dado à agressividade própria do humano e as
circunstâncias que favorecem sua irrupção incontrolável e generalizada no tecido
social. Pela violência surgem cenas que apontam para o terror inimaginável, que
conduzem o psiquismo para a borda do irrepresentável.
A violência articula-se ao poder, contudo, na concepção de Marin (2002), ao
vencê-lo, submetendo-o, amplifica a atomização da sociedade e esgarça os laços
sociais. Instala-se, assim, o domínio do terror, que ao se espalhar pelo tecido social
promove o medo paranoico e a banalização da morte. A forma pela qual uma cultura
vive a experiência da morte é uma das formas de avaliação de seu grau de violência,
pois revela o valor dado à vida.
A violência é sempre um meio e está a serviço da sustentação econômica e
condições sociais, necessitando uma transformação, uma revolução de tais estruturas,
como forma de trabalho sobre a violência, principalmente a do domínio de uns sobre
os outros (MARIN, 2002).
Falar da violência como marca constitutiva da subjetividade, como
característica da condição humana e da cultura traz como risco a banalização e
justificação dos atos realizados, relativizando as referências possíveis entre certo e

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erro, legitimo e ilegítimo. De acordo com Marin (2002), a punição é necessária para
impedir o colapso do psiquismo uma vez que as vítimas de violência correm o risco de
abalo de seu juízo de realidade ante a experiência de viver como se nada tivesse
acontecido. “O ato de justiça conserta a ruptura social, confirma a validade da lei e, por
conseguinte, a própria ordem social”.
Em Totem e tabu, Freud (1913 citado por MARIN, 2002) sinaliza os perigos da
dissolução social quando a transgressão à lei não é punida, uma vez que os
transgressores revelam o desejo de todos e podem tornar-se modelos.
Posteriormente, em O futuro de uma ilusão (FREUD, 1927, citado por MARIN, 2002)
pontua que maioria dos indivíduos só obedece às interdições, restrições e proibições
quando pressionados por elementos externos. Nesse sentido, a culpabilidade ganha
destaque na sustentação cultural, pois é o produto direto da internalização de um
código moral e da repressão/recalcamento.
Para Marin (2002), a punição também é necessária para quem comete a
transgressão, saindo da posição de quem não está implicado com seu ato. A principal
forma de punição, no aparato jurídico, é a prisão, relacionada com o poder disciplinar
iniciado no século XVII, funcionando mais como um dispositivo normalizador do que
transformador. O encarceramento, de acordo com a retomada da teoria foucaultiana
pela autora, que segue os seguintes princípios:
1. Princípio da correção – a detenção tem por função essencial a transformação
do comportamento de individuo;
2. Principio da classificação – os detentos devem ser isolados de acordo com a
gravidade penal de seu ato, sua idade, suas disposições e as técnicas de
correção a serem utilizadas;
3. Principio da modulação das penas – as penas devem ser modificadas de
acordo com as individualidades;
4. Princípio do trabalho como obrigação e como direito – o trabalho é uma
das peças-chaves da transformação e da socialização dos detentos;
5. Princípio da educação penitenciária – a educação do detento é
indispensável e uma obrigação para o mesmo;
6. Principio do controle técnico da detenção – o regime da prisão de ser
controlado e assumido por uma equipe especializada técnicas e moralmente;
7. Princípio das instituições anexas – o encarceramento deve ser
acompanhado de medidas de controle e de assistência até a readaptação
definitiva do antigo detento.

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As contradições e ambiguidades presentes na sociedade reproduzem-se no
dispositivo corretivo, em que os excluídos socialmente estão expostos a penalidades
maiores e solidariedades menores (MARIN, 2002).
O medo é um espectro que compõe a cena da violência, apontando para um
novo desejo – o desejo de segurança. Quando não leva à paralisia, pode ser uma
forma de se manter alerta e gerar dispositivos de proteção. Todavia, “o medo
presentifica a fragilidade, a vulnerabilidade e o desamparo e pode levar uma demanda
de proteção onipotente. É por essa brecha que se infiltram as ‘legitimações’ de
práticas repressivas violentas e os abusos dos poderes autoritários” (MARIN, 2002,
p.132).
Outra reação possível ante a violência é a apatia que, em contraposição ao
medo, representa uma tentativa de redução ao mínimo possível dos afetos, emoções,
sentimentos, uma anulação do desejo. É a estagnação da pulsão de morte que destrói
todo o investimento libidinal, inclusive sobre o próprio eu. Nesse campo, não há
revolta, nem mobilização, apenas conformismo.

“Quando as cenas de violência se tornam excessivas e o


desamparo predomina, o par amor-ódio é novamente substituído
pela indiferença – pela apatia – numa tentativa de abolição dos
afetos, de auto conservação mínimo, de retorno ilusório ao
isolamento do eu-real inicial” (MARIN, 2002, p. 134).

3.2. A violência intrafamiliar

3.2.1. Constituições familiares contemporâneas

A clínica com famílias da contemporaneidade tem suscitado questões cada vez


mais prementes sobre o exercício da parentalidade, com as figuras parentais cada vez
mais confusas e ambivalentes quanto às suas funções (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Em tramitação no congresso nacional, o Estatuto das Famílias (PL No.
2285/2007) “visa solucionar conflitos e demandas familiares com base em novos
valores jurídicos, como o afeto, a solidariedade, o cuidado e a pluralidade” (FÉRES-
CARNEIRO, 2016, p. 74) sistematizando regras das uniões estáveis, uniões
homoafetivas, família monoparental e relações de parentes.
A família contemporânea tem base relacional, ou seja, é fundada a partir de
laços livremente consentidos, dissolúveis, o que faz que haja uma mudança

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significativa no tratamento dos conflitos – prioriza-se, na atualidade, o diálogo e a
negociação tanto entre os membros do casal, quanto com os filhos e filhas (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).

A) A paternidade

Ao longo dos anos, tem-se estabelecido um novo padrão de paternidade em


que os pais não contribuem apenas financeiramente com o sustento familiar, mas
participam, junto com a mãe, da educação dos filhos. Tais transformações devem-se
ao rápido ritmo das mudanças sociais e demográficas, com o aumento do número de
separações/divórcios, casamentos tardios, redução do número de filhos e
emancipação feminina e acesso da mulher ao mercado de trabalho (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).
A “paternidade participativa” é aquela que engloba o cuidado e o envolvimento
constante do pai no cotidiano dos filhos, principalmente nas esferas da alimentação,
higiente, lazer e educação. Por vezes, encontra-se, ainda, na literatura, a expressão
“pai nutridor” para designar o pai que mantém uma relação próxima e empática com os
filhos e compartilha com a mãe a função de cuidar das crianças (FÉRES-CARNEIRO,
2016).
Segundo Féres-Carneiro (2016) a possibilidade de planejamento do
nascimento dos filhos por meio do desenvolvimento dos métodos contraceptivos, que
desvincularam a atividade sexual e a parentalidade, é outro fator que contribui para o
engajamento dos pais na criação próxima dos filhos.
Apesar de tais mudanças, o que comumente se encontra continua sendo o
homem como provedor e a mulher como co-provedora e cuidadora principal, uma vez
que o papel de “pai nutridor” envolve uma transformação social da identidade
masculina (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
É importante ressaltar, ainda, que é uma discrepante percepção em relação à
execução das funções parentais – enquanto os homens acreditam estar
desempenhando um grande papel, as mulheres consideram que o que eles fazem
ainda não é suficiente (FÉRES-CARNEIRO, 2016).

B) A maternidade

De modo geral, a experiência da maternidade é descrita como algo bom,


gratificante e que traz sentimentos plenitude e completude. Contudo, Féres-Carneiro

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(2016) chama atenção para a “verdade inconfessável” da experiência materna como
fracasso, no qual estão incluídos conteúdos como o esgotamento, a frustração, a
solidão e a culpa.
A mulher contemporânea está ciente da sobrecarga que muitas vezes seu
papel lhe impõe, sendo a principal responsável pelos cuidados dos filhos, mas também
cobrada para o desenvolvimento de uma vida profissional bem-sucedida. Nesse
contexto, é comum a expressão se sentimentos de culpa e de cobrança (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).

“A mulher contemporânea vivencia muitas culpas, pois, apesar


do reconhecimento e da liberdade conquistados, conviva com a
acusação de negligência nos cuidados dos filhos e com a culpa
por vastas parcela de responsabilidade nas crises do
casamento. As consequências disso são remorso, insatisfação e
dúvida causados pela sensação de não está cumprindo um
dever a contento” (FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 81).

C) O padrasto

A configuração de famílias recasadas é cada vez mais comuns e “se estrutura


a partir de uma trama complexa de relações entre adultos e crianças. Nessas famílias,
a parentalidade de expande, podendo ser exercida por adultos que, embora muitas
vezes não sejam reconhecidos pelo sistema jurídico, exercem a função parental”
(FÉRES-CARNEIRO, 2016, p.113).
Estudos sobre a famílias recasadas apontam que não há diferenças
significativas em relação à capacidade de promoção de saúde em famílias casadas e
recasadas. Pelo contrário, o recasamento, muitas vezes, representa uma oportunidade
para o resgate da vida amorosa do casal conjugal, mas também da construção de
vínculos familiares socioafetivos por parte dos filhos, encontrado neles suporte
emocionais. A clínica das famílias recasadas, contudo, aponta para uma excessiva
idealização das funções conjugais e parentais (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Apesar de haver uma tendência à disjunção entre conjugalidade e
parentalidade, Féres-Carneiro (2016) observa que as famílias mantem ideais
familiares herdeiros da família conjugal moderna. Muitas vezes, o modelo de “família
tentacular” da contemporaneidade traz sofrimentos, pois cada filho de um casal

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separado é a memória viva do momento em que aquela relação fazia sentido,
construída nos moldes de ideais da família do passado (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Como ressalta Féres-Carneiro (2016), “A base intersubjetiva da família
recasada depende de rearranjos simbólicos envolvendo o casal conjugal o casal
parental e a família extensa” (p.126).
Pesquisas com famílias recasadas apontam que essas famílias conseguem
desenvolver um funcionamento mais saudável quando o(a) padrasto/madrasta
desenvolve predominantemente um vínculo afetivo com a criança e o adolescente,
deixando o exercício da autoridade para o(a) pai/mãe (FÉRES-CARNEIRO, 2016).

D) Homoafetividade e parentalidade

Como retomado por Féres-Carneiro (2016), “na medida em que o biológico e o


conjugal deixam de ser parâmetro fundamentais na definição da parentalidade, faz-se
necessária uma reconfiguração que inclua situações novas, como as procriações
assistidas e aquelas até então marginalizadas, como as famílias homoafetivas”
(FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 141).
A apreensão da homoparentalidade no processo de filiação precisa ir além da
concepção tradicional e patriarcal do édipo, entendo que as operações simbólicas em
cheque excedem a figura do pai e da mãe, podendo ser exercida por outros (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).
A parentalidade designa o conjunto de processos conscientes e inconscientes
pelos quais um sujeito se torna pai/mãe do ponto de vista psíquico. Se no campo
sociológico, as famílias homoparentais representam um desafio, para Féres-Carneiro
(2016), do ponto de vista psicológico a noção de parentalidade aplicada aos
homossexuais apresenta poucas mudanças quando comparadas a
heteroparentalidade.
Féres-Carneiro (2016) propõem uma noção da parentalidade exercida a partir
de 3 eixos:
a) O exercício da parentalidade – que organiza e situa o sujeito em seus laços
de parentesco;
b) A experiência da parentalidade – que corresponde à experiência subjetiva de
tornar-se pai/mãe e;
c) A prática da parentalidade – que consiste nas tarefas cotidianas executadas
pelos pais junto aos filhos.

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Toda experiência de parentalidade, além de estar inserida na cultura, que
determina os papéis a serem desempenhados, é influenciada pelas marcas advindas
da história de cada sujeito do lugar atribuídos apor eles à criança (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).

“Quando se busca um filho, seja biológico, seja adotivo, deve-se


levar em conta qual é a fantasia de filho e qual é a fantasia de
parentalidade dos sujeitos implicados e avaliar em que lugar o
filho está sendo colocado, se no de sujeito ou no de objeto”
(FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 144).

O trabalho de tornar-se pai/mãe demanda um trabalho de definição e


redefinição de lugares, em que são atualizadas as referências aos próprios pais. A
parentalidade se inscreve na continuidade de gerações e implica na renúncia do lugar
de filho para cedê-lo a criança. Supõe, assim, a perda da própria posição de filho,
acompanhada de um movimento de identificação com os pais, ao mesmo tempo que
se mantém o processo de diferenciação a eles (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
De acordo com Féres-Carneiro (2016), “a experiência da parentalidade (...)
exige um trabalho psíquico de reatualização dos fantasmas edípicos e de luto, visando
liberar o lugar fantasmático de criança para aquela que chega” (p. 145).
Os casais homoafetivos que desejam exercer a parentalidade costumam
recorrer a um processo de adoção ou q técnicas de reprodução assistida. Essa ultima,
sendo mais comum nos casais de mulheres (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
As atividades parentais não são inerentes ao sexo do indivíduo e seu exercício
depende de como o desejo de filho é construído e partilhado pelo parceiro, além de
elementos relacionados à própria disponibilidade para o exercício das mesmas. As
funções materna e paterna circulam entre o casal, que automaticamente ocupam
posições complementares ao papel do companheiro (FÉRES-CARNEIRO, 2016).

3.2.2. Conflito e violência conjugal

Ao serem investigados os principais motivos alegados em processos de


separação, aparecem como destaque as brigas, discussões e agressões do cônjuge,
resultados que evidenciam as dificuldades dos casais em lidar com os conflitos
inerentes à vida a dois, que muitas vezes culminam em situações de violência
(FÉRES-CARNEIRO, 2016).

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O conflito conjugal pode ser definido como uma “oposição ostensiva entre os
cônjuges, identificada pelos mesmos como desentendimentos ou fonte de grandes
dificuldades no relacionamento” (FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 161).
As estratégias de resolução do conflito conjugal podem ser construtivas – a
cooperação, intenção de resolver o problema, aceitar o ponto de vista do outro, estar
aberto para conversar sobre o conflito e priorizar o relacionamento e não a
individualidade – ou destrutivas – comportamentos coercitivos, evitação ou tentativa de
sobrepor seu ponto de vida ao do outro e priorização a individualidade. A resolução de
um conflito envolve, ainda, o processo de comunicação (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Entre os padrões destrutivos, se fazem presente as diferentes formas de
violência conjugal, como a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A
violência no contexto conjugal deve ser entendida como expressão máxima da
disfuncionalidade, sendo importante considerar os diferentes níveis nas quais ela se
manifesta, a intensidade e a frequência de sua manifestação, pois estratégias de
intervenção vão varias de acordo com as suas características (FÉRES-CARNEIRO,
2016).
Féres-Carneiro (2016) chama atenção para o fato de que em muitos casais, o
padrão de interação conflituoso dá origem a uma série de atos violentes que não
seriam aceitos se exercidos por outras pessoas. “A complexidade do fenômeno da
violência no casal é evidenciada pela construção dinâmica da interação entre o casal
que alimenta e perpetua o vínculo violento” (p.168).
A violência conjugal comumente revela um processo cíclico, relacional e
progressivo, compreendendo fases que podem ser descritas como:
a) Construção da tensão – com pequenos incidentes, considerados como sob
controle;
b) Tensão máxima – caracterizada pela perda do controle sobre a situação e
agressões levadas ao extremo e;
c) Lua de mel – na qual há reestruturação do relacionamento, ficando evidentes o
arrependimento e o desejo de mudança.

“A partir de uma perspectiva sistêmica, constata-se que a


violência que permeia os relacionamentos conjugais geralmente
é intrínseca ao contrato de relacionamento estabelecido entre os
cônjuges, o qual é estabelecido a partir da história de vida de
ambos, da construção do vinculo afetivos entre eles e da poria
interação conjugal. É caracterizada como relaciona e

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dinamicamente construída pelos cônjuges, que são coautores do
funcionamento do casal, sendo necessário um olhar pra o
fenômeno a partir de uma perspectiva bidirecional e contextual”
(FÉRES-CARNEIRO, 2016, p.169).

A) A violência contra a mulher

A promulgação da lei no. 11340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha,


constituiu um importante passo para a abordagem da violência contra a mulher. Por
meio dessa lei, definiu-se vários tipos de violência que podem estar presente em
qualquer relação intima de afeto, independente da coabitação e de formalização, além
de instituir medidas de proteção. Incluem-se como modalidades da violência (FÉRES-
CARNEIRO, 2016):
 Violência física – está relacionada a condutas que afetam a integridade ou
saúde corporal das mulheres;
 Violência psicológica – definida como conjunto de condutas que causam
danos emocionais, diminuição da autoestima, prejuízos e perturbações ao
pleno desenvolvimento físico e emocional, condutas que visam degradas ou
controlar ações, por meio de ameaças, constrangimentos, humilhações,
manipulações, isolamento, vigilância, perseguições, insultos, chantagens,
ridicularizações e explorações;
 Violência sexual – inclui condutas que constrangem as mulheres e forçam a
presenciar, manter, participar de relação sexual não desejada, bem como
comercializar ou utilizar de qualquer modo sua sexualidade, além de
intervenções em seus direitos sexuais e reprodutivos;
 Violência patrimonial – entendida como qualquer conduta que configura
retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de
trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos e;
 Violência moral – definida como qualquer conduta que configura calunia,
difamação e injuria.

Uma relação conjugal violenta é composta por uma série de paradoxos, sendo
o primeiro deles a simplificação e essencialização das experiências e violência. A
conduta violenta é algo que emerge de uma combinação complexa de fatores
históricos, culturais, sociais, institucionais, relacionais, familiares e pessoais e não é
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uma “exceção”. Mitos como o ciúme e o controle como prova de amor contribuem para
a minimização e o silenciamento da violência contra a mulher (FÉRES-CARNEIRO,
2016).
O isolamento é outra dimensão importante que pode favorecer tanto o
surgimento quanto a manutenção da violência. A precariedade da rede social, a
impossibilidade de contar com ajuda de familiares/parentes, aumenta a vulnerabilidade
e dependência do parceiro (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Outro paradoxo refere-se ao controle, que assume centralidade na relação,
transformando-a numa dinâmica perversa em que por trás de um discurso de “não
poder viver sem o outro” é justamente o controle que pode levar a morte desse outro
(FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Um paradoxo importante está relacionado à distância entre as experiências
vividas e a possibilidade de nomeação e reconhecimento dessas experiências. Isso
desdobra-se em duas questões – o que é violência, para essas mulheres e o porque
do silêncio. Muitas vezes, são os próprios familiares que se unem no silenciamento da
mulher (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
A permanência da mulher numa relação violência pode, muitas vezes, ser vista
como um paradoxo. Mas como aponta Féres-Carneiro (2016):

“A conduta violenta está inserida numa teia de lealdades e de


dependência econômica e emocional. Soma-se a esse fato a
preocupação genuína com os parceiros, o desejo de permanecer
juntos, de preservar a família intacta, de proteger os filhos. Outra
questão importante é o ciclo da violência (...) principalmente
durante a fase da lua de mel, o parceiro pode se mostra como
uma pessoa arrependida, capaz de pedir desculpas e tratar bem
a companheira, de fazer promessas de que mudará e de a
violência não se repetirá” (FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 199).

A dimensão religiosa é outra ferramenta que pode contribuir para a


manutenção do vínculo relacional, uma vez que pode alimentar expectativas de
mudança e pressões para a preservação da família (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
Os processos de construção de identidades sociais e de expectativas
relacionais também contribuem para a permanência das mulheres nos
relacionamentos, por exemplo, “ser casada” pode ter um alto valor social. As falhas no
cumprimento das tarefas associadas estereotipadamente aos gêneros – é

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responsabilidade da mulher o cuidado com a casa e com os filhos - constituem-se, em
alguns casos, em “justificativas” aceitáveis para o uso da violência (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).
A intensidade do investimento nos filhos reflete o valor dado ao exercício da
maternidade, tendo essa função um lugar central na construção da identidade das
mulheres, que por vezes, a título de preservação dos mesmos, resistem em separar-
se de seus parceiros violentos (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
O exercício da sexualidade também é elemento a ser considerado. Nas
relações conjugais violentas, é comum a mulher ser vista como objeto sexual e a
relação tende a ser pautada nas necessidades dos maridos, que ante uma negativa
podem tornar-se perseguidores e ainda mais violentos (FÉRES-CARNEIRO, 2016).

“O clima da casa e dos relacionamentos é marcado pela


presença de uma tensão permanente, uma vez que todos sabem
do risco iminente de eclosão de um ato violento, mas ninguém
sabe o que servirá de fator precipitador. O casal vive em
constante ambivalência, dividido por sentimentos de amor e
raiva (muitas vezes, ódio), apego e separação, construção e
destruição, vida e morte” (FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 204).

A análise da construção de vínculos feita por Féres-Carneiro (2016) aponta que


na grande maioria das mulheres atendidas num serviço especializado de vítimas de
violência conjugal, chama a atenção a pressa que marca o início da relação – o tempo
de vinculação varia de um dia a, no máximo, três meses (FÉRES-CARNEIRO, 2016).
A resistência à denúncia da violência envolvem vários motivos como o medo de
não ser compreendida e ser culpabilizada e os discursos midiáticos, ora
consicentizadores, ora opressores sobre a mulher, objetificando-a. Somam-se a isso,
processos identitários e sociais e um aparato jurídico que dificultam o acolhimento e
sustentação de tal queixa (FÉRES-CARNEIRO, 2016).

“A existência de uma lei e de politicas sociais voltadas para os


direitos das mulheres a uma vida sem violência não constituem,
por si só, garantia de que esses direitos serão respeitados. As
instituições sociais – o casamento, a família, as igrejas (...), as
instâncias educacionais, jurídicas e políticas – todas funcionam a

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partir de parâmetros normativos atravessados por mitos e
marcadores de gêneros.” (FÉRES-CARNEIRO, 2016, p. 210)

O fato de que homens e mulheres são ensinados a se ver e a se relacionar de


modo binário (superior/inferior, ativo/passivo, dominador/submissa) compromete a
possibilidade de mudança. Enquanto tais polaridades permanecerem vivas no
imaginário, estaremos lidando com os paradoxos do afeto e da convivência (FÉRES-
CARNEIRO, 2016).

3.3. Referências Bibliográficas

MARIN, I. da S. K. Violências. São Paulo: Escuta/Fapesp, 2002

FÉRES-CARNEIRO, T. Casal e Família – Transmissão, conflito e violência. São


Paulo: Casa do Psicólogo, 2016.

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UNIDADE IV – O PSICOLOGO NO ATENIDMENTO AOS CASOS NAS VARAS DA
INFÂNCIA E DA JUVENTUDE E NAS VARAS DA FAMÍLIA E DAS SUCESSÕES

4.1. Algumas Considerações sobre a Resolução CFP n. 008/2010 que Dispõe


sobre a Atuação do Psicólogo como Perito e Assistente Técnico no Poder
Judiciário

Os artigos a seguir tratam sobre a realização da perícia

Art. 1º – O Psicólogo Perito e o psicólogo assistente técnico


devem evitar qualquer tipo de interferência durante a avaliação
que possa prejudicar o princípio da autonomia teórico-técnico e
ético-profissional, e que possa constranger o períciando
durante o atendimento.
Art. 2º – O psicólogo assistente técnico não deve estar
presente durante a realização dos procedimentos
metodológicos que norteiam o atendimento do psicólogo perito
e vice-versa, para que não haja interferência na dinâmica e
qualidade do serviço realizado.

O trabalho perícial pode contar com a utilização de diferentes estratégias. Isso


é o que observamos no artigo a seguir:

Art. 3º – Conforme a especificidade de cada situação, o


trabalho perícial poderá contemplar observações, entrevistas,
visitas domiciliares e institucionais, aplicação de testes
psicológicos, utilização de recursos lúdicos e outros
instrumentos, métodos e técnicas reconhecidas pelo Conselho
Federal de Psicologia.

É importante ressaltar a importância de se zelar pela privacidade do atendido


bem como pela qualidade técnica dos instrumentos utilizados para avaliação.

Art. 4º – A realização da perícia exige espaço físico apropriado


que zele pela privacidade do atendido, bem como pela
qualidade dos recursos técnicos utilizados.

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Sobre a atuação do psicólogo nas equipes multiprofissionais a portaria deixa
clara a possibilite de atuação do psicólogo, desde que o mesmo garanta que seja
preservada a especificidade do seu trabalho, o limite da sua intervenção, ainda é
preciso que o profissional não esteja subordinado técnica e profissionalmente a outras
áreas.

Art. 5º – O psicólogo perito poderá atuar em equipe


multiprofissional desde que preserve sua especificidade e limite
de intervenção, não se subordinando técnica e
profissionalmente a outras áreas.

Sobre o relatório da perícia a portaria define qual a função primordial desse


documento. Alertando ao psicólogo que o seu papel é fornecer indicativos
relacionados à sua investigação, sendo que esses devem subsidiar o Juiz na
solicitação realizada. Ressalta, ainda, que não cabe ao profissional adentrar as
decisões judiciais, tarefa que cabe aos magistrados.

Art. 7º – Em seu relatório, o psicólogo perito apresentará


indicativos pertinentes à sua investigação que possam
diretamente subsidiar o Juiz na solicitação realizada,
reconhecendo os limites legais de sua atuação profissional,
sem adentrar nas decisões, que são exclusivas às atribuições
dos magistrados.

4.2. Atribuições da Justiça da Infância e da Juventude

De acordo com o Art. 148, a Justiça da Infância e da Juventude é competente


para:

I – conhecer de representações promovidas pelo Ministério


Público, para apuração de ato infracional atribuído a
adolescente, aplicando as medidas cabíveis;
II – conceder a remissão, como forma de suspensão ou
extinção do processo;
III – conhecer de pedidos de adoção e seus incidentes;

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IV – conhecer de ações civis fundadas em interesses
individuais, difusos ou coletivos afetos à criança e ao
adolescente, observado o disposto no Art. 209;
V – conhecer de ações decorrentes de irregularidades em
entidades de atendimento, aplicando as medidas cabíveis;
VI – aplicar penalidades administrativas nos casos de infrações
contra norma de proteção à criança ou adolescente;
VII – conhecer de casos encaminhados pelo Conselho Tutelar,
aplicando as medidas cabíveis.
Quando se tratar de criança ou adolescente nas hipóteses do Art. 981, do
Estatuto da Criança e do Adolescente é também competente a Justiça da Infância e da
Juventude para o fim de:
a) conhecer de pedidos de guarda e tutela;
b) conhecer de ações de destituição do pátrio poder poder
familiar, perda ou modificação da tutela ou guarda; (Expressão
substituída pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
c) suprir a capacidade ou o consentimento para o casamento;
d) conhecer de pedidos baseados em discordância paterna ou
materna, em relação ao exercício do pátrio poder poder
familiar; (Expressão substituída pela Lei n. 12.010, de 2009)
Vigência
e) conceder a emancipação, nos termos da lei civil, quando
faltarem os pais;
f) designar curador especial em casos de apresentação de
queixa ou representação, ou de outros procedimentos judiciais ou
extrajudiciais em que haja interesse de criança ou adolescente;
g) conhecer de ações de alimentos;
h) determinar o cancelamento, a retificação e o suprimento dos
registros de nascimento e óbito.

4.3. Violência e abuso sexual infantil

1
Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta
Lei forem ameaçados ou violados:
I - por ação ou omissão da sociedade ou do Estado;
II - por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável;
III - em razão de sua conduta.
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4.3.1. Os abusos sexuais: sedução, culpa e segredo

Os abusos sexuais, a questão de sua realidade ou não e seu impacto no


desenvolvimento da personalidade ocupam um lugar importante no pensamento
psicanalítico. A teoria da sedução, originalmente elaborada por Freud no inicio da sua
obra, atribuía a lembrança de cenas reais de sedução de um adulto sobre a criança
um papel determinante na etiologia das psiconeuroses. O trauma produzido pela
cenas reais ou fantasmáticas em que o sujeito sofre passivamente por parte de outro
assédios e manobras sexuais ocorreria em dois tempos (GABEL, 1998):
 Primeiro tempo – é o da sedução propriamente dita. É o acontecimento sexual
do ponto de vista do adulto, mas pré-sexual do ponto de vista infantil.
 Segundo tempo – um novo acontecimento que faz ressurgir por associação a
lembrança da cena de sedução anterior, provocando um afluxo de excitação e
por isso é reprimida.

Freud foi levado, contudo, a abandonar a teoria da sedução ao perceber que


essa cena era fantasiada, dando um novo estatuto à realidade psíquica. Tais cenas
passaram a ser compreendidas como fantasmas inconscientes utilizados para
dissimular a atividade auto erótica (GABEL, 1998).
É Ferenczi em “A confusão de línguas entre os adultos e as crianças; a
linguagem da ternura e da paixão” quem vai retomar, na perspectiva psicanalítica a
problemática a sedução e do abuso sexual (GABEL, 1998).
Ao falar de abusos sexuais de adultos contra crianças, confronta-se a
sexualidade infantil com a adulta, relação essa marcada por uma assimetria e por
características bem diferentes. Enquanto a sexualidade infantil, descrita por Freud,
ultrapassa a genitalidade não tem um objeto total, a sexualidade adulta tem a primazia
da zona genital, é dirigida a um objeto total e viabiliza a procriação. Ferenczi pontuou
tais diferenças por meio da distinção entre a linguagem da ternura que marca a
sexualidade infantil e a linguagem da paixão que marca a sexualidade adulta (GABEL,
1998).
Na descrição do desenvolvimento sexual infantil, a curiosidade e as teorias
sexuais infantis lançam-na numa empreitada solitária, num terreno que tacitamente ela
descobre que “não é bom falar”, instaurando-se o segredo. Com o complexo de Édipo,
entre os três e cinco anos de idade, o tabu do incesto e instância moral se instalam e,
com ela, a possibilidade da culpa, que pode ter efeitos mais nocivos do que a própria
atividade sexual em si (GABEL, 1998).
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A riqueza da vida fantasmática infantil leva a criança a facilmente sentir-se
culpada, sendo importante o acolhimento e a escuta desse elemento. Nos casos do
abuso sexual, outro elemento contribui para seu desenvolvimento, a saber, a
identificação com o agressor, descrita nos seguintes termos por Ferenczi (1936, citado
por GABEL, 1998):

“As crianças sentem-se física e moralmente indefesa, sua


personalidade é ainda muito fraca para que protestem; a força e
autoridade esmagadora dos adultos as emudecem, e podem até
fazê-las perder a consciência. Mas esse medo, quando atinge
seu ápice, obriga-as a se submeterem automaticamente à
vontade do agressor e adivinhar seu menor desejo, a obedecer
esquecendo-se completamente e a identificar-se totalmente com
o agressor. (...) Por identificação, digamos uma introjeção do
agressor, este desaparece enquanto realidade exterior e torna-
se intrapsíquico. (...) é a introjeção do sentimento de culpa do
adulto (...) ela já está dividida, é ao mesmo tempo inocente e
culpada” (GABEL, 1998, p.50).

Gabel (1998) retoma a problemática síndroma da adaptação descrita por


Summit (1983) para explicar as funções do silêncio, do segredo e da negação nos
casos de abuso sexual infantil.
O momento da descoberta do abuso é traumático para a criança, uma vez que
os adultos não conseguem entender os comportamentos da mesma, já que se
baseiam em seus próprios padrões comportamentais para medir as reações da
criança. Nesse sentido, a criança torna-se duplamente vítima: a dos abusos sexuais e
a da incredulidade dos adultos (GABEL, 1998).
O processo descrito por Summit (1983, citado por GABEL, 1998) na síndrome
da adaptação começa pela instauração de um segredo, com ameaças ante a sua
revelação que tornam esta ultima mais perigosa que o próprio ato. Posteriormente, a
criança vive uma relação de submissão ante o adulto, que na maioria dos casos é
alguém conhecido e com quem a criança sente que não tem defesas. O passo ulterior
é que a criança se adapte à situação, uma vez que “se a criança não procurou ajuda
e não foi protegida, sua única opção é aceitar a situação e sobreviver” (GABEL, 1998,
p.55) , seja por meio de uma clivagem, seja por meio de uma identificação com o
agressor. A revelação acontece então, tardiamente, e diante do risco que ela

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provoca, a criança optará por retratar-se. Todas as forças que operam levarão a
criança a se calar, uma vez que:
 Os abusos intrafamiliares acontecem em segredo. O segredo tem por função
manter uma coesão familiar e proteger a família do julgamento de seu meio
social. A realidade das consequências fazem com que a revelação seja mais
grave que o próprio abuso.
 A criança, por sua posição e constituição, opõe pouca resistência ao agressor
sexual e,
 Por fim, a criança é presa de um sistema relacional patológico, adaptando-se a
ele.
Nesse sentido, mais do que se preocupar com a veracidade da fala da criança,
é importante sustentar sua palavra e reconhecer o quanto ela se encontrada
fragilizada em tal situação. O risco é que ela se feche novamente, ao ser desmentida
ou não escutada, que não espere mais nenhuma ajuda, nenhum apoio (GABEL,
1998).

4.3.2. As consequências em curto e médio prazo nas crianças e adolescentes


vítimas de abuso sexual

De modo geral, a criança vítima de abusos sexuais corre o risco grave de


desenvolvimento de psicopatologias que perturbam sua evolução psicológica, afetiva e
sexual. É comum o desenvolvimento de sintomas psicossomáticos e desordens do
comportamento, como pesadelos, medos e angustias. Menos frequente, mas
importantes, são ainda as anomalias do comportamento sexual (masturbação
excessiva, objetos introduzidos na vagina ou anus, comportamento de sedução,
pedido de estimulação sexual e conhecimento da sexualidade adulta inapropriado para
a idade) (GABEL, 1998).
Em adolescentes, é comum a tentativa de suicídio, estados depressivos,
dificuldades acentuadas no desenvolvimento escolar, fugas, anorexia, distúrbio sem
substratos orgânicos e toxicomania (GABEL, 1998).
As consequências dos abusos sexuais vão depender, ainda, de numerosos
fatores que se intrincam, dentre eles, o contexto nos quais ocorrem, o elo com o
abusador, a natureza do ato imposto, as consequências da revelação e a idade e
maturidade fisiológica e psicológica da vitima (GABEL, 1998).

4.3.3. As adolescentes vítimas de abusos sexuais


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A adolescência, enquanto etapa do ciclo vital é considerada como fonte
potencial de perigos para a ordem familiar ou social. No campo da sexualidade, podem
ser descritos como crianças com corpo sexuado de adulto, que inspiram menos
compaixão e, em casos de abusos, são lhe emprestadas intenções ou maturidades
que ainda não possuem (GABEL, 1998).
Assim como a criança, é difícil que o adolescente conte, com toda confiança, a
historia da agressão sexual sofrida, seja por vergonha, seja por medo de represálias
ou ainda por não ter sua palavra acolhida como verdadeira. Isso porque a retratação,
que pode ocorrer como um produto da crise instaurada pela revelação, por vezes é
utilizada como forma de prova do caráter “fabulatório” da denúncia (GABEL, 1998).
Na adolescência é importante a distinção entre os abusos intrafamiliares,
portanto incestuosos, das agressões extrafamiliares, por exemplo, o estupro. As
agressões sexuais extrafamiliares geralmente são encaminhadas a algum dispositivo
de saúde logo após ou pouco tempo depois do trauma. Nesse momento, é a ação
médica que deve ser priorizada no acolhimento e tratamento da vítima. É importante
respeitar as reações emocionais da vitima, abordando-a, de preferência, num primeiro
momento, separada dos familiares. É comum a ideia de que tudo se resolva
rapidamente, “para ser esquecido logo” e “voltar à vida normal o quanto antes”
(GABEL, 1998).
As situações incestuosas, por sua vez, são mais complexas e geralmente os
abusos são um capítulo antigo de suas vidas. Os distúrbios e sintomas decorrentes
dos abusos são acentuados pelo contexto familiar perturbado, confuso e
desorganizado que dá ensejo ao incesto. Somam-se, ainda, os novos problemas
causados pela dispersão familiar que ocorre após a revelação e pelas pressões para
uma retratação (GABEL, 1998).

4.3.4. A perícia psicológica da criança abusada

A perícia psicológica das crianças vítimas de abuso sexual coloca em jogo algo
diferente para o juiz, para a criança e para os adultos que a cercam. Para o juiz,
importa os fatos, de forma a estabelecer um julgamento. Os adultos tem como
preocupação uma reparação, em geral pelo silêncio dos próprios fatos. Nesse sentido,
a perícia, que pode se dar varias meses após a revelação, é percebida como uma
intervenção que ultrapassa o silêncio vigente e desperta sofrimento. Por fim, em
relação à criança vitima, tem a necessidade de se proteger se seu sofrimento, mas

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também de compreender aquilo que está relacionado aos fatos e, como toda vítima,
requer uma reparação (GABEL, 1998).
De acordo com Gabel (1998), a perícia não é uma ação de ordem terapêutica:
é breve, circunscrita a questões que serão debatidas no processo e inseridas num
momento judiciário. Não há uma solicitação própria da família ou da criança, mas sim
dos autos judiciais. Em resumo,

“A perícia tem por objetivo descrever (‘descrever a personalidade


X...’), fazer uma espécie de balanço (‘a repercussão que os fatos
puderam acarretar no que se refere ao psiquismo de...’), ajudar a
compreender (‘mencionar todos os dados úteis à compreensão
dos fato’).” (GABEL, 1998, p.123).

A abordagem a criança deve ser estabelecida por uma metodologia especifica,


levando-se em conta o que está em jogo para cada um dos envolvidos, o tempo e a
reiteração dos relatos do abuso e as reticências dos adultos que a cercam (GABEL,
1998).
A analise da dimensão temporal permite circunscrever o que se passa na
perícia, dar lugar a esse tempo e, até mesmo, validá-lo como reparação. Com relação
ao tempo do abuso, é preciso considerar que a dimensão temporal não é a mesma
numa criança de cinco anos, numa de dez e em um adolescente. Da mesma forma, a
criança que sofreu um ato pulsional isolado não viveu o mesmo tipo de vitimação que
aquela que, dia após dia, teve de conviver com o agressor, guardando silêncio
(GABEL, 1998).
O tempo da revelação é, também, o tempo da iteração, segundo Gabel (1998).
É o momento em que a palavra é possível – após um período de segredo e silêncio. É
o tempo de ruptura, e a perícia deve ajudar a compreender o que permitiu essa
ruptura. “Em cada vítima, a ruptura é um momento particular de elaboração que vai
ressoar nas consequências imediatas e mais em longo prazo de sua vitimação”
(GABEL, 1998, p.125).
Na perícia, deve-se trabalhar esse tempo a revelação, tentando compreender
em que condições essa se deu. Esse questionamento não tem por motivo a análise da
credibilidade da revelação, mas sim seu remanejamento. Desse período em particular,
também é útil resgatar como que o silêncio sobre a temática se reestabeleceu (ou
não), sendo importante ressaltar que já não é o mesmo silêncio anterior ao da
revelação. É um silencia infiltrada da culpa da revelação (GABEL, 1998).

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“O silêncio, tendo uma função psicológica tanto para a criança
quanto para que os que a cercam, não é sinal de que tudo vai
bem, de que não há sequelas nem prognóstico a ser feito. Um
dos objetivos da perícia é de evidenciá-lo, avaliando o impacto
das reações do adulto sobre a criança” (GABEL, 1998, p.127).

O tempo da perícia prolonga o tempo da revelação, uma vez que pode revelar,
também, o que não é visível nas reações da criança e da família. É importante, nesse
contexto, a autorização para revelar, uma vez que a criança só consentirá em expor
simultaneamente seu sofrimento presente e passado se os adultos de quem ela
dependem a autorizarem a isso (GABEL, 1998).
Quando a criança fala sobre seu abuso, o adulto, mesmo não sendo o adulto-
agressor, reage como acusado. As evasivas ante a perícia não são um fenômeno
incomum e é preciso entender a sua significação. O perito deve, ainda, levar em
consideração, a lealdade da criança àqueles com as quais convive (GABEL, 1998).
O momento da perícia não é neutro. Fazendo a investigação em nome da lei,
do relato do abuso e da historia da criança, abre-se um diálogo com a família e a
criança sobre a necessidade de reparação (GABEL, 1998).

“A criança submetida à perícia, por ordem do juiz, é de fato


reconhecida como sujeito de direito (à reparação), e a perícia vai
confirmar sua necessidade, contento que ela lhe dê direito à
palavra sobre sua vitimação, em detrimento dos silêncios dos
adultos” (GABEL, 1998, p. 128).

Do ponto de vista metodológico, o primeiro aspecto importante da perícia é


reconstituir parcialmente o ponto de desenvolvimento da criança no período que
precedeu aos fatos ou no período em que eles foram reiterados. A abordagem
pressupõe, dessa forma, estudos dos elementos de dossiês e, na medida do possível,
entrevistas prévias com aqueles que a cercam e, posteriormente, entrevistas na
presença e na ausência da criança (GABEL, 1998).
O exame da criança, em si, deve se ater em dois aspectos: um quadro da
personalidade que descreve, além da estrutura, os movimentos perceptíveis, as
elaborações defensivas os modos de relações; e uma descrição de tipo

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sintomatológico, que leva em conta o que se passou desde os abusos e sua revelação
(GABEL, 1998).
Por fim, Gabel (1998) ressalta que a perícia não é substituta da terapêutica.
Seu objeto é a avaliação, a vitimação, o contexto de desenvolvimento da
personalidade, não um trabalho sobre a personalidade e ela se dirige ao juiz, não ao
sujeito. Contudo, “a perícia da criança que sofreu abuso sexual, se conseguir
reposicioná-la claramente como sujeito, produz um ajustamento entre o procedimento
judicial e o procedimento psicológico, ambos necessários” (GABEL, 1998, p.131).

4.4. A atuação do psicólogo junto à crianças em acolhimento institucional e ao


processo de adoção

No Brasil, a pobreza tem um impacto considerável sobre a organização familiar


e responde por um percentual significativo dos casos de separação de crianças e de
adolescentes de suas famílias de origem (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
A prática de abandono de filho no Brasil teve início no século XVI, durante o
período da colonização europeia. Nesse período, as câmaras municipais eram
responsáveis pelo acolhimento às crianças abandonadas, bem como as Santas Casas
de Misericórdia, que mantinham em seus muros as Rodas dos Enjeitados ou Rodas do
Expostos. Os bebês depositados nesses dispositivos não eram somente filhos da
pobreza, mas também de mulheres que teria descumprido as normas da moral sexual
vigente (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
No século XVIII surgiram as primeiras instituições de proteção às crianças
abandonadas, marcadas pelo isolamento e pela rigidez disciplinar. Essas instituições
produziam mais distanciamento tanto das famílias de origens, quanto das possíveis
famílias que poderiam a vir recebê-los num lar substituto uma vez que eram
instituições fechadas. De certa forma, trabalham mais para a exclusão dessa
população do que para sua inclusão, atuando de maneira próxima aos manicômios ao
ocultar dos olhos da sociedade a miséria, a desordem o abandono (GHIRARDI &
FERREIRA, 2016).
No século XX, surgem as primeiras leis sobre a adoção, oferendo uma solução
para as famílias sem filhos. Contudo, era uma adoção revogável, que não anulava os
vínculos do adotado com a família biológica (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
A primeira lei de assistência e proteção da infância data de 1927 – o Código de
Menores – e determinava que crianças de até sete anos, encontradas em condições
de negligência, exploração e maus-tratos deveriam ser encaminhadas para abrigos.

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Foi a partir 1959, por meio da Declaração Universal dos Direitos da Criança,
promulgada pelas Nações Unidas, que a criança passou a ser considerada como
sujeito de direitos (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Em território nacional, durante a ditadura militar (1964-1985), a questão da
criança e do adolescente passou a ser tratada como questão de segurança, sendo
aprovado em 1979 um novo Código de Menores, que acabou com a distinção entre
abandonados e delinquentes (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Após os questionamentos e debates que marcaram a década de 1980, em
1990 entrou em vigor o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que em
consonância com a Convenção sobre os Direitos da Criança na ONU, deixa de centra-
se nas crianças em “situação irregular” e passa a assegurar a todas as crianças e
adolescentes os direitos fundamentais – à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, à proteção e à convivência familiar e comunitária (GHIRARDI & FERREIRA,
2016).
De acordo com o ECA, em situações em que os direitos das crianças e dos
adolescentes estão em risco ou foram violados, estão previstas medidas de proteção
que incluem o acolhimento institucional, o acolhimento familiar e a colocação em
família substituta, implicando no afastamento de seus pais ou responsáveis
(GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Atualmente, no Brasil, a adoção consiste numa forma de filiação instituída pela
lei, com caráter irrevogável, e que coloca pais e filhos em condições jurídicas idênticas
à filiação e à paternidade biológica. Contudo, tal medida é utilizada somente quando
são esgotadas todas as tentativas de reinserção da criança na sua família de origem
(GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Os novos modos de organização familiares, principalmente a
monoparentalidade e a homoparentalidade, constituíram-se como importantes
manifestações do desejo da paternidade e maternidade, ganhando espaço nos
processos de adoção (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
A clinica do acolhimento institucional e da adoção, entendida por Ghirardi &
Ferreira (2016) como mais do que psicoterapia, mas “intervenções múltiplas no social
que contribuam para a busca de novas saídas para situações enclausurantes e
assujeitadoras (p.182)”, é definida pelas autoras como uma clínica dos excessos e dos
transbordamentos. Isso porque “essa população expõe escandalosamente o que mais
tememos recordar: que no início da vida fomos, mas de alguma forma ainda
continuamos, desamparados” (p. 182).

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Sobre o acompanhamento psicoterápico das crianças e adolescentes em
situação de vulnerabilidade social, Ghirari & Ferrari (2016) ressaltam como marca
importante o silêncio sobre as origens, sobre os abandonos e sobre a adoção
pactuados entre os diversos protagonistas desse universo e que demandam
elaboração, sentido. Uma clínica que transita entre o perigo da omissão da verdade (o
silêncio) e a violência de sua revelação.
Em grande parte dessas crianças, a perda da mãe se constitui num trauma
inassimilável, manifesto em sintomas como enurese e ecoprese, agitação motora,
somatizações diversas, pseudobrincadeiras e dificuldades de aprendizagem. Um luto
que precisa ser elaborado para que a criança possa se lançar a novos enlaces
(GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Com relação aos pais adotivos, não raro se observa que ao candidatar-se
“buscam realizar desejos que ocupam um lugar messiânico, caridoso e salvador para
as crianças em situação de risco social, e que demandam do filho adotivo uma eterna
gratidão e submetimento, o que gera grandes prejuízos, tanto quando esta demanda
não é correspondida” (GHIRARDI & FERREIRA, 2016, p. 186). O adotar deve ser
concebido como algo da origem do desejo e não da beneficência, da caridade ou da
política publica.
Por sua complexidade, é uma clinica que exige a escuta das crianças e dos
adolescentes, mas também dos cuidados dos abrigos, dos candidatos à pais adotivos,
dos pais adotivos e dos demais profissionais envolvidos no processo de acolhimento a
crianças separadas de sua família de origem, tecendo uma rede particular caso-a-caso
(GHIRARDI & FERREIRA, 2016).

4.4.1. Narrativas sobre as origens

“De maneira geral, até pouco tempo atrás, a história de vida das
crianças que viviam em instituições de acolhimento não eram
tomada como uma questão a ser considerada de forma
cuidadosa e crítica pelos profissionais que trabalhavam com ela.
O mesmo podia ser observado em casos de adoção de uma
criança por uma família. (...) havia quase um consenso de que,
se não se falasse sobre sua historia, a criança dela se
esqueceriam consequência, não sofreria” (GHIRARDI &
FERREIRA, 2016, p.18).

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As rupturas precoces nos laços familiares vivenciadas por essas crianças,
contudo, deixam marcas importantes no psiquismo que, quando não processadas,
podem se manifestar através de sintomas, inibições ou alguns atos compulsivos.
Muitas vezes, é nesse contexto – o da patologia – que questões sobre a história de
vida dessas crianças e adolescentes emergem (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Atualmente, a história de vida dessa população passou a ser considerada,
todavia, muitas vezes, são tomadas em sua literalidade e, não raramente, apresentada
à elas sem mediações ou sem considerar os sentidos por elas construídos. Como
ressaltam Ghirardi & Ferrari (2009) é fundamental respeitar não apenas o que a
criança diz, mas o que é metabolizável para ela em relação à sua história.
“Achamos essencial poder ouvir e valorizar as versões e às vezes ficções que
a criança e o adolescente fazem de sua história e acolher as narrativas, como
autênticos caminhos de acesso à subjetividade” (GHIRARDI & FERREIRA, 2016,
p.27).
A princípio enlaçada à sexualidade infantil, a curiosidade sobre as origens é
parte do desenvolvimento de toda criança e tal necessidade não se restringe apenas
aos fatos históricos, mas à criação de um mito pessoal acerca da sua inserção no
mundo e a referencia ante os Outros (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
No contexto da adoção, a abordagem das origens é uma questão que mais
angustiam os pais adotivos, uma vez que a revelação da adoção reedita, para os pais,
as experiências penosas ligadas às perdas que motivaram a adoção, seja a
infertilidade, seja o filho biológico não concebido. Dessa forma, a vivência da
revelação implicará uma necessária experiência de luto (GHIRARDI & FERREIRA,
2016).
A revelação da adoção, do ponto de vista das necessidades psíquicas da
criança, não é um evento pontual e sim um processo que se estenderá ao longo da
relação entre pais e filhos adotivos. Isso porque,

“Se por um lado a falta de significações para as origens pode se


constituir em importante entrave para a aquisição da capacidade
simbólica da criança, o excesso de informação ou a informação
descuidada poderá ter efeito de trauma, ao ser experimentado
pela criança como excesso pulsional – condição que torna
impossível de ser assimilada pelo psiquismo (...) cada família
deverá encontrar recursos em sua própria subjetividade,
transformando-os em ferramentas criativas a serviço da

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construção de um mito que seja singular e, ao mesmo tempo,
um projeto familiar” (GHIRARDI & FERREIRA, 2016, p. 35).

4.4.2. A devolução de crianças adotadas

A despeito da irrevogabilidade que caracteriza uma sentença de adoção, a


devolução da criança é uma possibilidade intrínseca à vivência adotiva uma vez que a
Lei não é suficiente para conter certos impasses que podem ocorrer na relação afetiva
de filiação (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
Para Ghirardi e Ferreira (2016) a experiência psíquica de estranheza
(Umheilich)
“dificulta os processos psíquicos ligados às identificações dos
adotantes com a criança que pode vir a culminar em sua
devolução. Devolução daquela que é vista como alguém que
espelha, reflete e, por isso mesmo, ‘denuncia’ aspectos do
psiquismo parental que deveriam permanecer recalcados”
(GHIRARDI & FERREIRA, 2016, p. 113).

A adoção uma metáfora de migração, em que um estrangeiro vem de fora e


traz uma bagagem de alteridade para o seio da família, despertando reações de
estranhamento e ineditismo. Questões ligadas às origens dessa alteridade aparecem
com surgimento de características singulares da criança, e podem trazer momentos de
vulnerabilidade no processo de filiação (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).
A presença da subjetividade desse outro pode gerar intensos conflitos, sendo a
fantasia de devolução uma reação aos sentimentos despertados por essa alteridade.
Diante tal situação, a capacidade de identificação que legitima a parentalidade sobre a
criança adotada fica prejudicada, e, uma contrapartida da fantasia de devolução, a
fantasia de rouba da criança, pode aparecer (GHIRARDI & FERREIRA, 2016).

“[A fantasia de roubo da criança] na vivência com a adoção,


quando intensificada, impossibilita aos pais fazerem os
investimentos psíquicos necessários para a inclusão da criança
em seu imaginário, como filha. (...) Experimentada ora como a
apropriação indevida da criança, ora como temor de que a
família de origem possa, vir a reclamar por ela, é a contraparte
da fantasia de devolução e realça a presença de sentimentos

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ambivalentes em relação à criança” (GHIRARDI & FERREIRA,
2016, p.116).

A condição de estrangeiro, de estranho – o familiar que volta distorcido por


conta do recalque, que a adoção instaura é uma das dificuldades parentais na relação
com o filho, suscitando dúvidas e incertezas relacionadas ao seu reconhecimento
como pais. Nesse cenário,

“A devolução revela a impossibilidade de inclusão imaginária da


criança como filho quando a criança ‘estrangeira’ torna-se para
os adotantes, inquietante estranheza. Sem poder encontrar nela
o que deveria ser familiar, ela é vista como aquela que revela o
que deveria ser omitido e recalcado (...) Endereçada a um não
lugar, ‘desapropriada’ do desejo parental e estrangeira em sua
terra natal, a criança adotiva que vive a devolução desvela a
experiência inquietante do desamparo humano” (GHIRARDI &
FERREIRA, 2016, pp.119-120).

4.5. O relatório psicossocial do adolescente infrator

O relatório psicossocial é um relatório elaborado para oferecer ao magistrado


um maior conhecimento sobre o adolescente infrator, subsidiar suas decisões com
informações mais qualificadas e, possivelmente, servir como peça de intervenção
(COSTA et al., 2005).
De modo geral, o documento é solicitado pelo juiz após a decretação de uma
medida socioeducativa e os estudos são realizados por profissionais psicossociais
(psicólogos, assistentes sociais, pedagogos integrantes do Judiciário), os quais
oferecem suporte para aprofundar o conhecimento sobre o sujeito e sua realidade
sociocomunitária e familiar (COSTA et al., 2005).
Para Costa e colaboradores (2005), o relatório psicossocial

“pode ser construído de modo a não beneficiar unicamente o


juiz, ser um instrumento de enriquecimento do processo jurídico
e de ampliação da visão dos atores do judiciário sobre a fase de
desenvolvimento do adolescente e não conter somente uma
visão avaliativa, mas também o sentido de devolver a

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humanidade aos sujeitos dependentes das decisões judiciais e
promover uma perspectiva de intervenção psicossocial.”
(COSTA et al., 2005)

Por vezes, o relatório psicossocial acaba tendo como base avaliações


prioritariamente psicopatológicas, com definições e prognósticos sombrios acerca dos
atos infracionais, esquecendo-se de que a adolescência é uma etapa transitória da
vida (COSTA et al., 2005).

“O relatório precisa ser pensado com muito cuidado, para que


não seja mais um instrumento de controle e classificação de um
sujeito que está vivendo uma fase de transição e de
experimentação de papeis e formas de inserção no mundo. Isto
significa que é preciso entender o adolescente por trás do ato
infracional, além de considerá-lo como sujeito a ser protegido.”
(COSTA et al., 2005).

4.5.1. Das medidas socioeducativas ao relatório psicossocial

As medidas socioeducativas são dispositivos jurídicos aplicados quando se


verifica a prática de um ato infracional pelo adolescente. O ato infracional é uma
conduta descrita pela legislação como crime ou contravenção penal. As medidas
aplicadas podem ser advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à
comunidade (PSC), liberdade assistida (LA), inserção em regime de semiliberdade e
internação em estabelecimento educacional (COSTA et al., 2005)
O órgão que regulamenta a implementação e execução das medidas
socioeducativas é o Sistema Nacional de Atendimento Socieducativo (SINASE) (Brasil,
2006). Ele objetiva primordialmente o desenvolvimento de uma ação socioeducativa
assentada nos princípios dos direitos humanos e

“estabelece um conjunto de regras e critérios de caráter jurídico,


político, pedagógico, financeiro e administrativo que devem ser
seguidos durante o processo de apuração de ato infracional
cometido por adolescentes até a execução de medidas
socioeducativas. Além disso, propõe as medidas em meio aberto
(prestação de serviço à comunidade – PSC – e liberdade

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assistida – LA) em preferência às restritivas de liberdade, as
quais somente devem ser aplicadas em caráter excepcional, nos
casos de atos infracionais mais graves.” (COSTA et al., 2005)

A Doutrina da Proteção Integral está presente na Constituição Federal (1988) e


no ECA, e representa uma ruptura com o pensamento do direito anterior, que se
constituía numa perspectiva de infância delinquente, característica de uma tradição
autoritária do Direito, enquanto a perspectiva dos direitos humanos, que é a base
filosófica da proteção integral, identifica uma infância carente. Os dois paradigmas são
contraditórios: um está preocupado em acusar e punir, o outro busca proteger e
oferecer condições de mudança na realidade de vida do adolescente (COSTA et al.,
2005).
Na aplicação das medidas socioeducativa, é obrigatório o desenvolvimento de
um PIA (Plano Individual de Atendimento) (Brasil, 2006, citado por COSTA et al.,
2005). Esse plano

“é um instrumento de planejamento, registro e gestão das


atividades a serem desenvolvidas com o adolescente como
medidas socioeducativas postulado pelos envolvidos na
execução da medida. O propósito fundamental do PIA é a
personalização do atendimento ao jovem em conflito com a lei;
portanto o PIA se configura como uma ferramenta importante
para a evolução pessoal e social do adolescente e para a
conquista de metas e compromissos estabelecidos no decorrer
da medida e adequação às necessidades do adolescente e sua
família e como ponto central da estruturação da execução da
medida socioeducativa.” (COSTA et al., 2005).

É importante lembrar que em nossa realidade o cometimento de atos


infracionais, na grande maioria dos casos, está associada a contextos de pobreza e
vulnerabilidade social (COSTA et al., 2005).
A delinquência só é reconhecida depois que a sentença precisa é conhecida,
avaliada, medida, diagnosticada e tratada. É preciso muito cuidado para não
transformar o infrator em delinquente por meio de uma cuidadosa avaliação das
condições individuais, familiares e sociais do adolescente que cometeu um ato
infracional (COSTA et al., 2005).

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O relatório sobre os riscos de reincidência em atos infratores seja também
avaliado do ponto de vista qualitativo, mostrando que o estudo de caso pode beneficiar
sobremaneira a compreensão da dinâmica dessas atuações. Essa dimensão mais
compreensiva pode alterar positivamente os encaminhamentos feitos para o
adolescente (COSTA et al., 2005).
Lima (2003, citado por COSTA et al., 2005) define o relatório psicossocial como

“um estudo, realizado por psicólogos e assistentes sociais de um


tribunal de justiça que assessoram nas decisões dos
magistrados em questões referentes às famílias. Não é
suficiente conhecer sobre o ato infracional, é preciso também
adentrar as motivações que vêm da história de vida do
adolescente, sua realidade sociocultural e comunitária e os
conflitos familiares que o envolvem. Esta avaliação descentra o
processo do ato infracional e o centra no sujeito e sua história,
dando visibilidade ao adolescente em sua fase de transição e às
complexidades que lhe são inerentes”. (COSTA et al., 2005)

O relatório, com certeza, subsidia o juiz em sua tarefa, ao trazer aspectos


subjetivos do adolescente, mas sua função não é somente esta. Ele permite conhecer
melhor o sujeito em sua realidade social e familiar, e não somente no seu lado
delinquente. Embora o interesse da Justiça seja compreender aspectos específicos do
ato delinquente, cabe à equipe psicossocial responsável pela elaboração do relatório
transformar esta solicitação em uma possibilidade de conhecimento do sujeito e de
sua história. Torna-se necessário discutir o olhar da sociedade sobre este sujeito, já
que, em função do ato cometido, os estereótipos podem prevalecer sobre a
subjetividade (COSTA et al., 2005).
O histórico do adolescente infrator que servirá de base para a elaboração do
relatório deve conter dados como a história dos atos infracionais, a história dos fatores
ambientais que influenciaram esses atos e a história da motivação para sua prática, ou
seja, os aspectos afetivo-emocionais do adolescente (COSTA et al., 2005).

“O relatório serve para compor uma avaliação, mas também para


orientar, transformar, oferecer oportunidade de intervenção e,
principalmente, situar o adolescente como pertencente a um
tempo histórico, a um tempo pessoal e a um tempo judicial. O

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caráter avaliativo do relatório deve ser contrabalançado por uma
perspectiva de planejamento de intervenções que sejam eficazes
e ajudem o adolescente a superar a situação de cometimento ao
ato infracional. Isto significa que, mais do que avaliar, o relatório
precisa fornecer subsídios para orientar o trabalho psicossocial
com o adolescente.” (COSTA et al., 2005)

4.5.2. Um relatório para o adolescente

Costa e colaboradores (2005) descrevem o que seriam os componentes de um


relatório “útil, correto e justo para com o adolescente”:
 Servindo a dois senhores - O relatório precisa ser construído com uma
formatação que sirva de peça de subsídio e informações ao juiz, mas deve
também enriquecer o modus operandi do judiciário, trazendo a este contexto a
realidade social desse sujeito;
 Valorizando a família - As informações sobre as relações familiares dos
adolescentes são essenciais, resgatando a violência presente nas gerações
anteriores e mostrarão que o adolescente está envolvido numa teia de
repetições em que é muito difícil adquirir, sozinho, consciência de que sua
conduta reproduz outras das quais é quase impossível ele se livrar;
 Reconhecendo a realidade socioeconômica - A condição socioeconômica
da família molda as oportunidades de seus componentes.
 Apoiando a fase de transição - Enfatiza como seu direito fundamental o de
serem tratados como pessoas humanas em fase de desenvolvimento;
 Enfocando a circularidade das relações - Saindo do limite do
psicodiagnóstico e ampliando-se para a consideração de aspectos da ordem
do social e das interações que o sujeito mantém em seu meio;
 Resgatando a proteção devida ao adolescente - Além da compreensão dos
elementos que se reúnem no cometimento do ato infracional, é preciso que o
relatório contemple corretas relações entre o profissional e o adolescente.
 Construindo o PIA - O relatório deverá indicar os caminhos a serem
percorridos na construção do PIA pelas entidades de atendimento e/ou
programas que executam a internação provisória e as medidas socioeducativas
de prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e
internação.

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4.6. Síndrome da Alienação Parental

4.6.1. O rompimento conjugal

Nas situações de dissolução do casamento, com frequência estão presentes


conflitos e questões emocionais não resolvidas pelo ex-casal, denotando uma
separação conjugal, mas muitas vezes não afetiva, sendo tal processo permeado por
sentimentos como raiva, frustração, desilusão e uma vontade, consciente ou não, de
vingança (SOUSA, 2010).
Quando há filhos, o fim do vínculo do ex-casal é particularmente difícil, pois
muitas vezes torna-se necessária o contato com o ex-cônjuge para resolver aspectos
relativos à prole (SOUSA, 2010).
A forma como o ex-casal conduz as questões relativas à separação pode trazer
repercussões sobre a experiência do que os filhos tiveram desse evento, sendo
recomendado que se procure preservar as relações parentais em meio a dissolução
das relações conjugais. No entanto, pode acontecer que a raiva dirigida ao ex-
companheiro(a) ou à culpa por ter uma família incompleta sobrepuja o exercício da
parentalidade. De qualquer forma, a existência de conflitos entre os ex-cônjuges não
deve ser justificada para o afastamento da criança de seu convívio familiar (SOUSA,
2010).
A diferenciação entre o casal parental e o casal conjugal revela-se como um
dos aspectos mais complexos do processo de divórcio. Não raro, os filhos são
envolvidos nesse processo e eliciados como espiões e aliados dos pais (SOUSA,
2010).
O processo de desconstrução da conjugalidade requer um luto pelo
rompimento da relação para que ocorra, simultaneamente a reconstrução das
identidades individuais, uma vez que as formas identitárias do “eu-conjugal” não fazer
mais sentido. Dessa forma, o vínculo entre os ex-companheiros nçao se extingue ou é
anulado, mas antes, transforma-se, assume outros significados e o ex-casal pode
continuar dando suporte ao vínculo entre pais e filhos (SOUSA, 2010).
O primeiro ano após o divórcio é extremamente crítico pois diferentes aspectos
relacionados às finanças, rotinas e trabalhos precisam ser reestruturados na nova
constituição familiar. Tais alterações podem afetar o exercício da parentalidade. Nesse
contexto, algumas mulheres passam a apresentar significativa dependência emocional
em relação aos filhos, buscando neles apoio para lidar com a nova realidade. Em tal

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cenário, é possível, um dos genitores, junto com um ou mais filhos, reúnam-se em um
ataque vigoroso ao outro, fenômeno chamado de alinhamento (SOUSA, 2010).

“Geralmente no primeiro ano após a separação, os filhos tentam


manter a lealdade a ambos os responsáveis, mas, nos casos em
que há uma crescente hostilidade entre esses, nos anos
seguintes os filhos podem resolver o conflito de lealdade por
meio de uma polarização, ou seja, aliando-se a um dos
genitores” (SOUSA, 2010, p. 37).

Nos juízos de família, são comuns os processos judiciais litigiosos envolvendo


a guarda e/ou arranjo de visitas dos filhos. As disposições legislativas, bem como a
forma como os processos judiciais por vezes encaminham-se nas Varas de Família
podem contribuir para o acirramento da contenda litigiosa, em vez de dissuadi-la. Isso
se dá, principalmente, quando os ex-cônjuges são colocados como adversários na
batalha pela guarda dos filhos, em uma espécie de “concurso de habilidades”
(SOUSA, 2010, p.43).
Uma via para a minimização desse modelo adversarial é a guarda
compartilhada, que é considerada como modelo mais adequada “para se manter a
convivência entre pais e filhos após a dissolução do casamento, uma vez que ambos
os genitores exercem a autoridade parental, independemente da permanência da
união conjugal” (SOUSA, 2010, p.44).
De acordo com Sousa (2010), o campo jurídico é responsável por estabelecer
limites, impedindo que os responsáveis regulem as funções parentais de acordo com
suas vontades. Por conta da representação social dominante de que a mulher seria
mias apta para os cuidados dos filhos, é comum o favorecimento do “imperativo
materno” no caso de contendas.
O entendimento que comumente se tem sobre as mães serem essenciais nos
cuidados com os filhos se constitui a partir de três causas, de acordo com Sousa
(2010):
 A primeira advém do contexto social, no qual as instituições privilegiam
exclusivamente a figura da mãe, perpetuando a ideia de que somente ela
possui o papel de cuidadora;
 A segunda causa seria ideológica, fundada na argumentação de que cuidar
adequadamente das crianças seria uma característica inata das mulheres e;

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 Por fim, as causa legais, as quais dão preferencia à mãe no que se refere aos
cuidados com a prole, ficando o pai com um papel secundário.

4.5.2. A Sindrome da Alienação Parental – SAP

A Síndrome da Alienação Parental (SAP) foi estabelecida por Richard Gardner,


psiquiatra infantil, em 1983 na Universidade de Columbia, a partir da sua experiência
acompanhando casos nos tribunais de justiça.
Como retomado por Sousa (2010),

“A SAP foi descrita por Gardner como sendo um distúrbio infantil


que surge, principalmente, em contextos de disputa pela posse
de guarda dos filhos. Manifesta-se por meio de uma campanha
de difamação que a criança realiza contra um dos genitores, sem
que haja justificativa para isso. Essa síndrome (...) resulta da
programação da criança por parte de um dos pais, para que
rejeite e odeie o outro, somada à colaboração da própria criança”
(SOUSA, 2010, p.99).

À mesma época, outras síndromes também foram relacionadas ao litigio


conjugal, como:
 Síndrome das alegações sexuais no divórcio – os genitores empreenderiam
falsas acusações de abusos sexuais;
 Síndrome de Medéia – em referência à figura trágica grega, nessa síndrome a
mãe vê a criança como uma extensão de si e utiliza-a como agente de
vingança contra o ex-companheiro e;
 Síndrome da mãe malvada no divorcio – na qual a mãe é vista como aquela
que interfere ativamente na relação da criança com o pai.

De acordo com Sousa (2010), as síndromes mencionadas, incluindo a SAP,


seriam produtos das transformações sociais da década de 1970, época em que o
tratamento legal do divórcio deixou de priorizar a mulher quanto à guarda dos filhos e
passou a respaldar a guarda compartilhada.
O diagnóstico de SAP é realizado a partir dos sintomas exibidos pela criança,
ainda que se reconheça que esta esteja manifestando em si um problema familiar,

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priorizando, assim, um processo de avaliação individual. Os sintomas enumerados por
Gardner incluem (SOUSA, 2010):
 Campanha de difamação;
 Racionalizações pouco consistentes, absurdas ou frívolas para a difamação;
 Falta de coerência;
 Pensamento independente;
 Suporte ao alienador no litigio;
 Ausência de culpa ante a crueldade e/ou exploração do genitor alienado;
 Presença de argumentos emprestados, e;
 Animosidade em relação aos amigos e/ou família do genitor alienado.

Nos casos em que há maltrato ou abuso contra a criança, não se empregaria o


diagnostico da SAP (SOUSA, 2010).
Gardner descreve três níveis ou estágios de desenvolvimento da SAP, a saber
(SOUSA, 2010):
i. Leve – a criança apresenta manifestações superficiais e intermitentes de
alguns sintomas;
ii. Moderado – os sintomas estão mais evidentes; a crianças faz comentários
depreciativos ao genitor alienado; as visitações são realizadas com grande
relutância, mas, quando afastado o genitor alienador, a criança tende a
relaxar, e;
iii. Severo – os sintomas aparecem mais exacerbados e genitor alienador e
criança compartilham fantasias paranoides a cerca do genitor alienado; a
criança entra em pânico frente ideia de encontra-lo, tornando impossíveis
as visitações.

De acordo com o autor, o genitor alienador comete uma forma de abuso


emocional à criança, contudo dificilmente tem essa critica presente por estar
impulsionado pela raiva que sente do ex-cônjuge. Para lidar com tal situação,
recomenda-se a utilização de medidas judiciais impostas ao genitor alienador, como
sanções de ordem financeira, detenção do genitor alienador em sua própria casa,
colocação de transmissores eletrônicos no tornozelo do genitor alienador, a prisão do
genitor alienador e, enfim, a separação da criança do genitor alienador. Gardner
sugere, ainda, a imposição de um tratamento psicoterápico (SOUSA, 2010).
No que se refere ao tratamento da criança, o psiquiatra indica a importância de
não acatar os desejos da mesma, uma vez que ela está sendo influenciada ou
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controlada pelo genitor alienador e propõe que as sanções utilizadas com o genitor
alienador seja usadas também com a criança, “pois, dessa forma, ela poderá utilizá-las
como justificativa para aceitar as visitar do responsável alienado sem que se sinta
desapontado ou contrariando as expectativas do alienador” (SOUSA, 2010, p.115).
Quanto ao genitor alienado,

“Gardner (2001a) considera imprescindível que seja realizado


exame cuidadoso, de modo a verificar que não exista qualquer
comportamento da parte desse que possa caracterizar abuso
físico, psicológico, sexual ou negligência em relação à criança,
pois a presença de qualquer forma de abuso eliminaria a
possibilidade de se tratar de um caso de SAP” (SOUSA, 2010,
p.117).

Durante o tratamento psicoterápico, o genitor alienado não deve se afastar da


criança apesar das manifestações de rejeição e agressividade da mesma, agindo de
modo a mostrar que as acusações que incidem sobre ele são irreais (SOUSA, 2010).
Apesar de bastante difundida nos tribunais, nas jurisprudências e nos discursos
profissionais, a SAP não é reconhecida cientificamente e não integra o Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-V, contrariando as
expectativas de seu criador, que apostava na sua inclusão com a elaboração mais
recente do manual (SOUSA, 2010).
Por sua vez, é comum a utilização como sinônimo da SAP e do conceito de
alienação parental desenvolvido por Darnall (1997 citado por SOUSA, 2010). Darnall
(1997 ciado por SOUSA, 2010) define a alienação parental como o “processo,
consciente ou não, desencadeado por um dos genitores, geralmente o guardião, de
forma a afastar a criança do outro responsável” (p.123). Para Gardner (2002b, citado
por SOUSA, 2010), a SAP seria uma forma especifica da alienação parental de
Darnall.
Polêmicas envolvendo a SAP incluem, ainda, seu uso como forma de ocultar
ou invalidar as denúncias de abuso sexual de pais contra filhos e seu uso como
estratégia de patologização e culpabilização de pais, vitimização das crianças e
promulgação de intervenções coercitivas e penalizantes à família (SOUSA, 2010).
“A teoria de Garner sobre a SAP, com discurso simplificador,
pode ter ainda uma função política, a de se manter o atual
estado de coisas, uma vez que o problema tido como patologia

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diria respeito a um caso partícula e não ao coletivo, à política ou
ao contexto sócio-historico. E o mais importante, sob a égide de
uma síndrome no litigio conjugal, ocutal-se a intervenção e o
controle estatal sobre a vida privada” (SOUSA, 2010, p.188).

4.6. Referências Bibliográficas

COSTA, L.F.; PENSO M.A; SUDBRACK, M.F.O; JACOBINA, O.M.P Adolescente em


conflito com a lei: o relatório psicossocial como ferramenta para promoção do
desenvolvimento. Psicologia em Estudo, 16(3), pp. 379-387, 2005.

GHIRARDI, M. L. A. e FERREIRA, M. P. (Org.). Laços e Rupturas – leituras


psicanalíticas sobre a adoção e o acolhimento institucional. São Paulo: Escuta:
Instituto Tortuga, 2016.

GABEL, M. (org.) Crianças Vítimas de Abuso Sexual. São Paulo, Summus Editorial,
1998.

SOUSA, A. M. Síndrome da Alienação Parental. Um novo tema nos juízos de


família. São Paulo: Cortez, 2010.

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