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Inspiração carregando: mar e rio como apreensão simbólica dos pescadores de Canárias-MA.

Pedro Vagner Silva Oliveira

Introdução:
É bem verdade que os humanos estão rodeados de materialidade. O mundo natural,
seu habitat é composto por um sistema complexo de organismos vivos e seres abióticos que se
relacionam entre si. Do meio ambiente em que estão imersas, as diferentes sociedades se
apropriam dos recursos naturais e delas fazem uso para garantir sua sobrevivência, isso salta
aos olhos. A historiografia por muito tempo entendeu que as apropriações físicas eram
naturais à vida dos indivíduos ou coletividades, muitas vezes quase como uma simbiose. No
entanto, os usos dos elementos naturais bem como dos recursos podem ter diferentes
significados para as sociedades que deles fazem uso e se relacionam.
Partindo desse pressuposto, o presente texto visa entender de que maneira os
pescadores das Canárias, uma ilha fluvial-marinha do Delta do Parnaíba, compreendem o mar
e o rio. Para o historiador ambiental, Donald Woster, “a ‘natureza’ não é uma idéia, mas
muitas idéias, significados, pensamentos, sentimentos empilhados uns sobre os outros,
frequentemente da forma menos sistemática possível” (WOSTER: 1991, 210). Dessa maneira,
os elementos e organismos que circulam entre homens e mulheres recebem diversos
entendimentos que são construídos ao longo do tempo na relação com o espaço, no qual este é
constantemente modificado, passando por (re) significações.
Alain Corbin afirma que a paisagem é um emissor de imagens que facilitam a
passagem do consciente ao inconsciente (CORBIN: 1988, 302). Neste sentido, o território e
os elementos naturais ou sociais que constituem a vida dos habitantes das Canárias, são
representados e compreendidos de forma mais complexa do que se imagina. Isso se dá por
que “a natureza é também uma criação das nossas mentes, e por mais que nos esforcemos para
ver o que ela é objetivamente em si mesma, por si mesma e para si mesma, em grande medida
caímos presos nas grades da nossa própria consciência e nas nossas redes de significados”
(WOSTER: 1991, 210). Partindo deste paradigma, o meio físico é imaginado pelas sociedades
humanas e a partir disso, ganham significados. Em Canárias percebeu-se que, o rio, as matas,
a praia e o mar, enquanto elementos da paisagem foram apropriados também simbolicamente
ao longo das gerações.
As ilhas são de certa forma diferentes, e para Antonio Carlos Diegues elas vivem “sua
vocação na procura das diferenças, afastando-se dos padrões tradicionais da relação
população-espaço, e sua população vive num nicho ecológico particular” (DIEGUES: 1998,
93). Canárias é de certa forma, isolada do continente. Para se chegar à comunidade homônima
a ilha, ou nas demais (Passarinho, Torto, Caiçara e Carnaubeira), o único acesso é o rio ou o
mar. Em meio a este isolamento, os autóctones ao longo das gerações criaram sua própria
relação com o espaço, principalmente com as vias liquidas - rio e mar-, estes elementos,
foram e continuam sendo usados para fins como pesca e transporte.
Apesar de se utilizarem fisicamente, a materialidade foi abstraída pelos moradores de
Canárias. O lugar em que vivem e o meio que os cercam fazem parte do imaginário destes
habitantes da insula. Concordamos com o conceito de imaginário de Sandra Jatahy Pesavento,
para a historiadora, o imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão
do pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da
realidade (PESAVENTO,1995: 15). De acordo com ela, versão do real, a representação se
constitui por meio da oralidade, de imagens e de textos. Dessa maneira, veremos que o
imaginário não é fiel, mas uma versão da realidade. Em Canarias, esta versão do real nada
mais é do que a leitura de mundo dos seus moradores.
Enquanto objeto de estudo do historiador, o imaginário é parte do universo da cultura e
se constituiu enquanto abordagem nos anos 1980. De acordo com José D'Assunção Barros, a
história do imaginário visa estudar “essencialmente as imagens produzidas por uma
sociedade, mas não apenas as imagens visuais, como também as imagens verbais e, em ultima
instancia, as imagens mentais” (BARROS, 2007: 26). O que interessa neste texto é
compreender por meio das narrativas dos pescadores e das pescadoras, as representações e os
usos que esse grupo social tinha e têm acerca do rio e do mar.
Essas visões e compreensões do mundo em que vivem os sujeitos dão significados às
suas vidas, "a representação do real, ou o imaginário, é, em si, elemento de transformação do
real e de atribuição de sentido ao mundo” (PESAVENTO,1995: 18). Logo, não basta o
elemento físico ou a materialidade existir, para ter importância ou uso concreto na vida dos
indivíduos, é preciso que seja também, apropriado simbolicamente. É nessa transformação do
real, ou melhor, nas atribuições de sentidos ao mundo que os rodeiam, que os moradores de
Canárias criaram identidades; divisões na pesca e condutas para os membros de tal oficio.
Ambivalente, e “prenhe de significados, a água é um elemento da vida que a
encompassa e a evoca sob múltiplos aspectos, materiais e imaginários” (CUNHA: 2000,15).
As águas -doces ou salgadas- são o elemento primordial para a subsistência do pescador e
permeia sua visão de mundo e imaginário, é referência de organização da sua vida. Desta
forma, torna-se significativo entender como o mar e os rios são vistos por esses sujeitos que
fazem uso tanto das suas águas, quanto de seus produtos pesqueiros (peixes, crustáceos e
moluscos).
Outro fator a ser levado em consideração além da representação da materialidade pelos
pescadores de Canárias é a religiosidade, que também contribui para a formação do
imaginário dos habitantes desta comunidade. De maneira geral, os pescadores são um grupo
social que possui fé, fé esta que faz com que homens e mulheres continuem velejando em
meio as ondas e igarapés na busca de prover sua família. Acreditamos que religião cristã tem
sua contribuição na formação ou construção do imaginário dos pescadores de Canarias, pois
ela lhe ampara por meio da proteção divina ou dos santos.
No que diz respeito à comunidade em questão, os pescadores do rio e do mar,
desenvolveram visões bastante complexas sobre o oficio no qual exercem, seja na água doce
ou na salgada. Segundo Diegues, “os diversos espaços dentro das ilhas são apropriados de
forma diferenciado, tanto técnica quanto social e simbolicamente” (DIEGUES: 1998, 106).
Observa-se que em Canárias, os territórios líquidos nos quais se pescam, confere identidades,
sentimento de solidariedade e principalmente significados na vida de homens e mulheres.
Compreende-se a partir da fala dos pescadores, que existe a limitação clara entre os
pescadores de mar e os de rio. Essa divisão é marcada tanto pelas águas, quanto pelo
imaginário e sublinhada no vocabulário deste grupo social de Canarias. O mar é conhecido
neste lugar como “lá fora”, dessa maneira, os pescadores do mar foram referenciados nas falas
dos colaboradores pelo nome, “os que pescam lá fora”. Há ainda a nomenclatura “costeiro”
para denominar as pessoas que pescam na costa da praia, ou “encostado”, como os próprios
pescadores chamam, aqui pescam tanto homens quanto mulheres. Além desses, os pescadores
e pescadoras que se utilizam dos rios, apesar de não possuírem uma nomenclatura –não
ouvimos nenhuma para denominar pescadores de rio – tem sua importância e imagem na
comunidade enquanto profissionais.
1. Primeiras pescarias: a infância e o oficio da pesca fluvial e marinha em Canarias-Ma.

Como se constitui o pescador na comunidade Canárias? Ao fazer entrevistas entendeu-


se que os pescadores são forjados ainda na infância. As crianças nessa comunidade ajudavam
seus pais seja em pequenas atividades dentro de casa ou até mesmo na pescaria. Senhor
Magno conta que pescava desde cedo, “já mesmo com oito anos pescava de tarrafa, de
linhazinha”. Ele ainda conclui, “a minha infância aqui em Canárias era assim mesmo... Era
um dia atrás do outro. Dias bons, dias mais ruins...” Outro pescador, em sua fala mostra
ressonâncias com a mesma experiência de Magno. Colega de profissão, senhor Antonio, mais
conhecido em sua comunidade por Totonho, fala que está “no mundo da pesca desde menino”.
O pescador completa, “com a idade de dez aninhos já segurava o paneirinho de peixe do meu
pai, que tarrafiava e eu segurava o panerinho pra gente pegar aquele peixinho, pra nós trazer
pra casa”. Comunidade marginalizada, os moradores de Canárias viam a pesca -fluvial e
marítima- juntamente com a agricultura, como sua forma de ganhar renda.
Meninos e meninas costumavam acompanhar os pais nas pescarias, nessa ocasião era
quando tinham os primeiros contatos com o universo pesqueiro. Nas primeiras pescarias, as
crianças iam apenas com o intento de ajudar ou dar suporte aos seus pais, eles ainda não
pescavam efetivamente, acerca disso, rememora dona Lúcia.

Quando era pequena, ficava mais o papai. De madrugada ele levava nois,
saía pra ir pescar depois da Pousada dali, na boca da noite... Pescar de
tarrafa, porque os meninos era mais pequeno e eu mais a Branca, era as mais
velha. Quer dizer que eles eram pequenos demais e eu ia de noite mais ele,
pra ele num ir só. Cansei de ir... Na época eu tinha dez, onze anos...

Pela fala da colaboradora pode-se perceber a participação de meninas na pesca fluvial.


Nessas companhias que as crianças faziam aos pais, os pequenos aprendiam o oficio dos
adultos, profissão essa que mais tarde poderia ser também a sua. Marcada pelo trabalho, a
memória coletiva tanto dos homens quanto das mulheres revela a vida árdua e laboriosa que
os habitantes de Canárias tinham. “A nossa vida foi só de trabalhar e a gente tinha que ir,
minha filha. Num era porque gostava não! Aquele pouquinho que ele matava de peixe, ele
tirava o nosso de comer e o outro era pra comprar um litro de farinha” (Dona Lúcia). A
marginalização social no qual Canárias se encontrava obrigavam os pais a empregarem seus
filhos.
Em meio ao trabalho, havia alguns momentos na vida dessas crianças em que elas
brincavam. Totonho relembra como era sua vida quando criança, “na minha infância eu
brinquei um pouquinho, porque os pais da gente naquele tempo eram rígidos”. Ele conta que
costumava jogar bola com os seus amigos, “quando eu era criança, minha brincadeira era só
jogar bola, e na beira da praia, naquele pé de morro. Só isso, não tinha mais nada, não tinha

televisão”. A pouca condição financeira das famílias, a estrutura precária da ilha, sem água

encanada ou energia elétrica mostra que Canárias, era uma comunidade isolada das políticas
publicas.
As crianças tinham poucos momentos de diversão, os filhos deviam aos seus pais
obediência e respeito. À noite, a família se reunia em casa às luzes de lamparinas, ou
ascendiam fogueiras. Nesse período do dia, os mais velhos costumavam contar as crianças
algumas histórias que lhes ocorreram.

À noite, a gente se reunia em uma roda com os adultos e eles contavam


muitas histórias! Escutei muitas dessas histórias do meu pai... Se ele ainda
estivesse vivo, ainda estaria contando pra essa meninada. A gente brincava
de roda, de cair no poço... Foi uma criancice boa, até jogar bola no escuro a
gente jogava!

Normalmente os pescadores saem das suas casas de acordo com o que intitulam de
maré cheia. A maré cheia é o período propicio para esses homens e mulheres irem pescar nas
suas canoas feitas de madeira e tentar a sorte, pois pescar requer não só conhecimento do
lugar e das espécies, mas também sorte, ainda mais nas ultimas décadas em que de acordo
com as falas dos pescadores, os peixes estão diminuindo em tamanho e em quantidade.

2. Pescadores do mar:

2.1 Pesca e luta

O mar ao longo da história ocidental foi representado de maneiras diversas, mas quase
sempre associado à violência e à fúria natural. De acordo com Jean Chervalier e Alain
Gheerbrant, o mar é “símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e tudo retorna a ele: lugar
dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos (…) o mar é ao mesmo tempo, a
imagem da vida e a imagem da morte” (CHEVALIER & GHEERBRANT, 2007: 592). São
nessas imagens e simbolismos que os pescadores marítimos de Canárias ganham a vida com a
venda dos pescados e forjam sua identidade.
Para Diegues, pensar o mar como espaço de significações e subjetividades requer
alguns conceitos como o de maritimidade. Tomando a paisagem não simplesmente em seu
plano físico, já que os homens interpretam os lugares em que estão inseridos e lhes dão
significações, a maritimidade é o conjunto de interpretações que as sociedades marítimas
fazem em relação ao mar, colocando a paisagem num plano simbólico.
Esse não é um processo natural e igual em todas as comunidades marítimas, pois,
como afirma Diegues, nem todas desenvolvem o sentimento de maritimidade. Os ilhéus
podem negar a existência do mar ao vê-lo como uma barreira, e se direcionarem para
atividades que visam explorar o interior de suas ilhas como, por exemplo, a agricultura.
Percebemos que estes pescadores possuem uma complexa relação com o pélago, bem
mais do que como elemento provedor de alimentos. Concebido de inúmeros significados, para
Jacques Laberge, o mar é “lugar de perda, de falta. Perda radical, risco de vida. Morte.
Separação. Falta de peixe”(LABERGE, 2000: 57) Vê-se a dubialidade do mar nas falas dos
pescadores, senhor Magno, pescador de Canárias, em sua narrativa, expressa tanto o gosto
pela pesca marítima, quanto à ambivalência do território. “É tão bom passar o dia lá fora! No
dia que a gente não sai, fica com saudade de ir. Por lá a gente se alaga, pega alagação, pega
pancada de todo jeito”. A imensidão marítima é locus de batalhas com a natureza,
solidariedades entre os pescadores e traumas, sejam eles físicos, psicológicos ou simbólicos
coletivamente.
Reunindo inúmeros sentimentos em meio às águas salgadas, dentre eles medo e
alegrias, a pesca marítima em Canárias se configura enquanto atividade admirada, pelos que
praticam e de maneira igual pelos que não a realizam devido a limitações individuais. Para os
pescadores de Canárias, o mar é também lugar que possui seus perigos e representações, bem
como palco de feitos heróicos, assim como os de Ulisses da Odisséia.
Quem vê o pescado trazido do mar pelos homens, em sua canoas, até a terra, não
imagina a aventura que este tipo de pesca. Lugar de possibilidades, as ondas podem virar os
barcos e lesar, ou mesmo tirar a vida de algum pescador.

Meu filho, lá dentro daquele mar só a gente sabe o que a gente


passa ali dentro!... O cara vê a gente chegar com o monte de peixe
daquele... Ê, rapaz, a coisa tava boa! Tava rapaz, tava boa! Você
passa sufoco lá dentro!

A fúria das águas e a labuta pesada são o tom vital presente nas falas tanto dos
pescadores de rio, quanto nos de mar entrevistados, como atesta Diegues “as comunidades
marítimas se constituem pela prática da gente do mar num ambiente naturalmente marcado
pelo risco, pelo perigo e pela instabilidade” (DIEGUES, 1998: 47). O mar ao passo que
propicia o sustento pode ser o próprio empecilho na pesca, principalmente se ele estiver mais
revolto. A instabilidade é constante na vida desses homens, além dos seus saberes, o pescador
depende também de sorte, “o dia de pescado é assim: tem dia que a gente mata mais, tem dia
que é mais pouca” (Magno). Logo, as águas salgadas possuem imagem ambivalente,
provedora de alimentos e causadora de malefícios.
Velejando, ou como os pescadores de Canárias chamam, velando, existem vários
perigos, o mais fatal entre eles, é a morte. Entendemos que padecer no mar representa a perca
para o pescador, não perca costumeira - representada na falta do peixe -, mas a derrota brusca.
Durante o trabalho da escuta, nenhum colaborador disse que conhecia alguém que
tivesse morrido afogado no mar em Canárias. No entanto, os pescadores afirmaram terem
encontrado corpos boiando nas águas, geralmente eram "tudo de gente de fora” (Magno).
Compreendemos que essa fala do senhor Magno, significa vitória. Na peleja com o mar, à
volta para casa é representada como vitória, tal como os heróis que retornam da jornada. Mas
nem só de vitórias vive o pescador As percas e derrotas, são inerentes e mesmo constantes à
sua profissão.
Foram ouvidas algumas histórias que envolviam acidente no alto mar, dentre eles o
naufrágio de uma canoa, na qual seus tripulantes ficaram dias à deriva. Os acidentes são vistos
pelos pescadores de Canárias, como perigos. Sair de uma alagação ou de algum naufrágio é a
vitória do pescador.
O mar guarda inúmeros perigos e representações. Falemos um pouco sobre a
representação de destruidor e ceifador de vidas que os pescadores têm acerca das águas
salgadas. Observemos a fala do pescador Goberto. “Eu digo o seguinte a cada um dos amigos
meus que moram em Canárias: “Se não souber nadar, não enfrente o mar! Lá é um sistema
dum cemitério... Você vai lá, só vai falecer, e você não sabe se encosta ou se enterra num
cemitério”. O colaborador aconselha aos pescadores que não sabem nadar a não irem pescar.
Ele compreende devido a sua experiência, os perigos que as águas salgadas representam.
Chama atenção nessa narrativa, a morte por afogamento e o desfecho imprevisível do
corpo. As possibilidades de o cadáver ficar a deriva engendram o horror da desfiguração
trazido com os ataques de peixes, como o tubarão ou de outros animais marinhos que se
alimentam de carne, a exemplo da barata d’água.
Outra subjetividade contida ainda nessa narrativa é quando ele fala, “você não sabe se
encosta”. Goberto quer dizer com isso que o corpo inerte, pode ou não aparecer na praia. Caso
não apareça, os familiares não poderão sepultar o ente perdido. “O oceano hibernal cinzento,
lúgubre e frio, sintetiza as forma do medo; alimenta o temor de sermos surpreendidos pela
morte imprevisível privada dos últimos sacramentos, longe do círculo familiar; de sermos,
corpo e alma, entregues sem sepultura a essa ondas infinitas que não conhecem nenhum
repouso” (CANBATOUS apud CORBIN, 1989: 18). Dessa maneira, a morte por afogamento
assusta por abster o indivíduo da cultura, da religiosidade e da família.
Senhor Magno conta o naufrágio de um grupo de pescadores da comunidade:

Aqui, os meninos pegaram uma alagação cinco horas da manhã. Quando foi
no outro dia, três horas da tarde - passaram a noite fora - três horas da tarde
pegaram aqui, já perto do Camocim. De noite, passaram a noite com sede,
deu uma chuva, e eles aparavam a água com uma cuia para beber. Os
pescadores vinham e pegaram dois. Eles perguntaram de onde eram. “Rapaz
, nós somos das Canárias”. Meninos, você são muito felizes! Porque tem dia
que não contam as abas de tubarão! Mas não morreu nenhum, não encostou
nenhuma barata d’água para roer um homem desse e é assim.

O grupo de pescadores que se encontravam a deriva foi salvo em Camocim, cidade do


Estado do Ceará. Graças à solidariedade dos pescadores dessa localidade, os náufragos
conseguiram retornar para suas casas em Canárias. A narrativa ilustra a luta pela vida. Os
pescadores uma vez naufragados, procuravam sobreviver à maneira que podiam, bebendo até
mesmo água da chuva. A história do colaborador mostra ainda o perigo que os pescadores se
encontravam. Figurado nessa fala em dois seres marinhos, o velho pescador se mostra
aliviado, pois nem a barata d’água ou o tubarão, instigaram ataques contra os companheiros
de profissão.
No processo de significação que os pescadores fizeram acerca do mar, pode-se
perceber que eles ainda transformaram alguns seres marinhos em símbolos. Segundo Durand
“um símbolo se expressa por uma imagem, que é seu componente espacial, e por um sentido,
que se reporta a um significado para além da representação explicita ou sensível”. (DURAND
apud PESAVENTO: 1995, 22). Dessa forma, no contexto pesqueiro, ao passo que o peixe
comercializado é entendido como símbolo de vida – pois dele advém lucro e renda-, a barata
d’água e o tubarão, representam a corrupção e morte, pois eles desfiguram os cadáveres que
boiam no mar.
Esses dois últimos animais remetem ao monstro mitológico Cila, que de acordo com a
mitologia, devorava homens que passavam embarcados. Para Diegues, o “monstro itiógrafo,
devora os homens, causando uma morte que fazia desaparecer o corpo de um modo selvagem
e o privava de toda humanidade porque impedia o sepultamento das cinzas como sublimação
do luto: os peixes devoravam os homens” (DIEGUES, 1998: 138-139). Assim como o
imaginário dos gregos antigos, no qual a morte no mar trazia horror devido à banalidade, em
Canárias, tem-se percepção semelhante sobre este fenômeno.
A barata d’água, pela narrativa do senhor Magno, parece se alimentar de carne. Este
animal marinho provoca a corrupção corporal, trazendo pavor ou ojeriza aos pescadores.
Analisando ainda a fala do senhor Magno, compreendemos que o acidente teve como
arremate a vitória, os pescadores foram salvos. Porém, a vida no mar traz alguns infortúnios.
A derrota mais fatal - a morte no mar - traz consigo repudio e aversão pelo estado físico do
cadáver. Goberto. Contou-nos que já encontrou corpos sem vida boiando no mar de Canárias.
"Eu mesmo já achei gente morta aqui. Tudo faltando perna, braço cabeça. Tudo o tubarão
comia".
O vai e vem das ondas do mar traziam os corpos dos indivíduos mortos,
proporcionando contato com o pescador. As narrativas dos homens do mar entrevistados,
falam mais sobre este triste espetáculo.

Bem aí, na Pedra do Sal, na ponta desse lado, tem um lugar acolá que tinha
umas trinta toras de gente, mas nunca encostou um inteiro não. Alagava na
banda das almas. Aí desalagava... Ai tinha um cearense, que veio correr
costa na Pedra do Sal... Tinha noite que ele enterrava quatro toras de gente,
faltando o braço, a perna, o pescoço, tudo o tubarão comia. (Magno)

Senhor Magno fala acima sobre as pessoas mortas que eram encontradas na Pedra do
Sal, praia da ilha vizinha. O termo “toras de gente” significa os pedaços das pessoas, ou seja,
os corpos estavam mutilados, como ele mesmo completa, “nunca encostou um inteiro não”. A
causa dos corpos não continuarem intactos, nessa narrativa, é o tubarão. Esse predador traz
medo aos pescadores pela sua ferocidade. Além disso, há certa inversão da cadeia alimentar.
Os peixes, antes alimento dos homens, ao se depararem com um corpo humano boiando no
mar devoram-no. Assim, a morte no mar é imaginada como uma das piores que esses homens
podem ter.
O que se pode perceber em Canarias é uma maritimidade complexa. Tanto o mar
quanto alguns dos seres que nele habitam foram apropriados simbolicamente. Estas abstrações
são resignificadas pelo tempo e transmitida pelos pescadores marítimos ao longo das gerações
por meio da oralidade. Dessa maneira, se percebeu que sair da praia e direcionar-se “lá para
fora”, não é algo tão mecânico e natural. No balançar da canoa nas ondas, existem
representações que trazem significados ao oficio desses homens.
2.2 Identidade do pescador marítimo e sua representação na comunidade

O balanço constante da canoa na água causa enjoo e mal estar na tripulação de


primeira viagem. Quem não está acostumado, comumente passa mal durante a pescaria. Essa
indisposição atinge, inclusive, os pescadores experientes na água doce que tentam pescar na
água salgada.
De acordo com Corbin (1989), o mar e a praia até o século XVIII, no ocidente eram
representados por uma serie de imagens repulsivas. Segundo este autor, “os vapores mefíticos
que exalam do mar tornam as costas malcheirosas. Esse odor das praias, composto de
emanações que a química do século XVIII se esforçará por analisar, resulta do apodrecimento
dos depósitos marinhos. As algas, os excrementos, os detritos orgânicos lançados às praias
contribuem, imagina-se, para engendrar o mau ar que reina frequentemente no litoral”
(CORBIN, 1989: 26-27). Não obstante, Corbin fala ainda sobre outro flagelo relacionado ao
mar, a intensidade do enjôo marinho. Em seu estudo, o historiador francês diz que não saberia
“analisar as imagens do mar e de suas praias sem levar em conta o horror desse mal”
(CORBIN, 1989: 27). Ao que parece as sensações físicas, como o cheiro fétido e o enjoo
causavam nos turistas do século XVIII a imagem de repulsa acerca tanto do mar, quanto da
praia. Essas imagens mais tarde seriam modificadas com a ajuda da literatura, do discurso
médico e a resignificação e/ou reaproveitamento de partes da visão teológica.
Em Canárias, pelas falas, não existe a imagem de repulsa existente antes do século
XVIII descrita por Corbin. Porém, a maneira de apreciação que os indivíduos que não usam
diretamente das águas salgadas se assemelham daquelas narradas pelo autor. Zé Miguel,
pescador de rio, fala que não teme o mar, mas não pesca por causa de sua limitação física, a
pesca marinha lhe afeta o corpo. “No mar eu não aguento pescar não. Fui só uma vez. Mas
meu intestino num aguentou, rapaz. Eu vomitei demais oh”.
As águas salgadas não lhe dão repulsa, pelo contrário, causam a ele admiração. Ao que
parece, a pesca marítima traz fascinio e o convida, mas devido a sua limitação pessoal, ele
parece abster-se da pesca no alto mar. Para Corbin, “o sistema de apreciação não decorre
apenas do olhar e da bagagem cultural; advém primeiramente das experiências cenestésicas,
sobretudo quando estas se impõem com tanta força quanto as náuseas provocadas pelo arfar e
balançar do navio” (CORBIN, 1989: 27). Percebe-se que o mar para Zé Miguel é um
elemento do qual este pescador possui certa apreciação, mas ainda que ele o aprecie, a sua
experiência lhe produziu certa reserva e admiração pelos homens que conseguem pescar “lá
fora”.
Há ainda nessa narrativa algo a ser explorado. Não existe apenas temor do mar, mas
também certa limitação física em alguns indivíduos. O enjôo que se sente é uma barreira
física para os indivíduos, mas a limitação corporal não se restringe somente a isso. O mal
estar, ligado intimamente com o território, mexe ainda mais com o imaginário que se tem do
mar, pois ele aqui encarna um elemento que modifica o próprio bem estar e a saúde do sujeito.
Nesse caso, o flagelo causado pelos balanços das ondas na canoa limita físico e
simbolicamente a pesca marítima.
Outro pescador de rio, assim como Zé Miguel, também não suporta o sobe e desce da
canoa nas ondas. Claucio fala que começou a pescar, “indo pra bem longe da costa. Eu
comecei pescando no rio e ainda no mar eu me embriago”. Apesar de ser pescador há bastante
tempo, assim como Zé Miguel, Claucio também sente dificuldades físicas em pescar no mar.
Corbin escreveu que as viagens marítimas iniciais causavam certos transtornos e “no
romântico sensível, a experiência pode acabar em drama; sacudido pelas ondas tempestuosas
que se abatem sobre as costas da Escócia, o marquês de Custine acredita ver chegada sua
hora; apesar de seu imenso desejo de visitar as Hébridas, será obrigado a renunciar e regressar
por via terrestre”(CORBIN, 1989: 28). Da mesma forma que o marquês de Custine renunciou
sua ida pelo mar devido aos transtornos físicos e imagéticos causado pelo elemento. Claucio,
Zé Miguel entre alguns outros pescadores, parecem ter desistido da pesca nas águas salgadas.
O mar impõe seus limites físicos, que por sua vez perpassam para o campo das
representações.
O território azul representa inúmeras facetas, devido “suas características
imprevisíveis, o mar sempre representou um meio difícil e perigoso, e por isso propicio a
suscitar emoções fortes e a engendrar sentimentos de perigo, abandono e solidão” (DIEGUES,
2000: 159). Analisamos que o mar, por ser um elemento que resguarda possibilidades, faz
com que os pescadores marítimos desta comunidade, se identifiquem com ele pelas
dificuldades.
Compreendido como território infinito, o "marzão" age com suas ondas que batem nas
canoas dos homens. Instável, agressivo ou brando, o mar é representado como elemento que
não pode ser dominado pelo homem. Roger Chartier afirmou que a representação pode vir a
“transformar-se em máquina de fabricar respeito e submissão” (CHARTIER, 1991: 186).
Partindo desse pensamento, a forja da identidade dos pescadores marítimos, bem como a
representação dos pescadores em geral, submete na comunidade o respeito pelo pescador e
pelo seu oficio. Por conta da vida árdua e laboriosa que levam, o combatente das águas
salgadas edifica a imagem do homem corajoso e forte.
Em Canárias a pesca no alto mar é ocupação masculina, Goberto explica, “tem mulher
na pesca sim, mas no nosso ramo de vida, de pescar no mar, não!”. Observa-se que nesta
narrativa, o colaborador delimita a pesca em dois territórios: a praia, espaço em que as
mulheres podem pescar, e o alto mar, oficina dos homens. O mar é entendido pelos
pescadores como espaço fálico, pois, segundo Laberge (2000), quando estão “penetrando nas
águas, o pescador rivaliza com seus colegas. Enfrenta todos os desafios para este encontro
idealizado com as águas, de onde recolherá os melhores e maiores frutos” (LABERGE, 2000:
52). Uma vez o mar delimitado dentro do imaginário desses ilhéus, os homens tomam para si
as águas salgadas e reivindicam-na enquanto seu espaço de trabalho.
Com isso, nas buscas pelo peixe, há juntamente a ela a demanda pela representação,
individual e coletiva do pescador. Tal como uma aventura, as águas são, ao mesmo tempo, a
forja da identidade e o lugar o qual requer, entre outros atributos, coragem. São nas lutas com
o mar, que os pescadores marítimos de Canárias, criam identidade e mostram seus valores, o
maior de todos talvez, seja a coragem.
A pesca nessa comunidade é representada pelos moradores como aventura, luta e
batalha pela vida. Logo, os pescadores de Canárias são tidos como guerreiros que saem da
ilha, se desligam da terra e se lançam ao mar para capturar o peixe. O mar por sua vez, age ora
como palco, ora como personagem, quando personificado, exerce os papeis de companheiro e
antagonista.
As limitações e imposições naturais uma vez abstraídas dão aos pescadores obstáculos,
que por sua vez servem como construtores identitários. A identidade, segundo Zygmunt
Bauman é uma “convenção socialmente necessária” (BAUMAN, 2005: 13). Existe a
necessidade dos seres humanos de criarem identidade e com isso ganharem notoriedade ou se
firmarem enquanto indivíduos ou grupos sociais. Pescar para os habitantes de Canárias é antes
de tudo uma grande aventura que pressupõe principalmente, coragem. Compreendemos que
na referida comunidade, existem características físicas e simbólicas que marcam a pesca de
água doce e salgada, tais diferenças contribuem para a formação identitária dos pescadores.
Ao fazer as entrevistas com esses homens, nota-se a imagem que eles constroem em
suas narrativas. Em história oral, a fala é o material pelo qual se faz o tecido narrativo. Nesse
caso, a fonte, ou melhor, os colaboradores ao narrarem suas vivências criam distintas imagens
de si. Porém uma das ressonâncias presente nos discursos deles são os perigos e a
voluptuosidade do mar. Se concordarmos com Bauman quando ele fala que a construção da
identidade é um processo que se difere de um jogo de quebra-cabeça, entenderemos um dos
motivos dessas ressonâncias.
De acordo com o sociólogo polonês, o quebra-cabeça vem “completo numa caixa, em
que a imagem final está claramente impressa” (BAUMAN, 2005: 54). Em contrapartida a
identidade é edificada com peças limitadas no qual não se possui a imagem final. Pelo
contrário, a identidade começa a ser produzida com a “serie de peças obtidas ou que pareçam
valer a pena ter e então se tenta descobrir como é possível agrupá-las e reagrupá-las para
montar imagens (quantas?) agradáveis” (BAUMAN, 2005: 55). As batalhas que os homens
travam com o mar para sobreviver; os perigos que o elemento representa e o trabalho árduo
são as peças no qual os pescadores marítimos de Canárias construíram sua identidade. Nesta
construção da identidade, os pescadores marítimos se apropriaram dessas características do
seu oficio e reproduzem na fala a imagem de heróis bravos que resistem contra uma força da
natureza.
O respeito ao mar por causa das dádivas e dos alimentos que dele provém é apenas
uma das afetividades. Os pescadores são tributários do mar e com ele possuem relações
ambíguas, no qual o medo de morrer afogado se mistura à felicidade de pegar o peixe. Dos
inúmeros perigos escondidos ou mesmo disfarçados em meio às ondas, o pescador Magno,
fala que todos são inerentes à sua atividade, “é tão bom passar o dia lá fora, no dia que a gente
não sai fica com saudade de ir; por lá a gente se alaga, pega alagação, pega pancada de todo
jeito”. Dessa maneira, pegar alguma alagação, ou uma tempestade são fenômenos que
pertencem ao mundo da pesca.
Ao passo que os perigos integram o cotidiano dos pescadores, a impossibilidade de ir
pescar é tida por esse mesmo colaborador como algo ruim, equivalente a estar desvalido. Ele
explica estar acostumado a ir pescar e quando não pode se sente chateado. Chama atenção que
mesmo já sendo aposentado, senhor Magno não se distancia da atividade pesqueira. “A gente
já tá vei. Mas eu não descanso não, é de noite eu vou para a costa pescar, passo tarrafeando
por ai, pescando de linha.
Sobre essa subjetividade dos pescadores, Diegues (2003) compreende que, "dadas as
incertezas, os imponderáveis climáticos e de mercado, cria-se entre os pescadores uma
psicologia particular e certo apego à vida do mar, que dificulta sua inserção em terra". Por
estarem desde cedo ligados ao mar, com o tempo desenvolvem afeto pelo local e pela
pescaria, mesmo apesar dos traumas. O pescador Claucio, discursa sobre as subjetividades
que o mar traz aos pescadores, depois que para de pescar vive da aposentadoria mesmo assim
continua pescando por prazer. Mesmo que ele possa causar numerosos danos e/ou perigos à
vida dos pescadores, esses sujeitos ainda nutrem o sentimento de pertença ao elemento.
Visto e entendido de diversas formas, tais como herói, vilão, companheiro e ceifador
de vidas. É no balançar das ondas que homens pescadores reproduzem sua vida e dão sentido
ao seu mundo. A pesca marítima, representada enquanto aventura, é constituída por toda uma
gama de perigos. Vida, morte e principalmente trabalho e simbolismos, o mar é constituído no
imaginário tanto dos habitantes de Canárias, quanto dos sujeitos que dele fazem uso, como
locus de possibilidades. São nesses perigos que o pescador constrói sua imagem de sujeito
trabalhador e valoroso pela sua coragem.

3. Pesca no rio:
3.1.Identidade dos pescadores de rio
Tal como uma aventura, as águas são, ao mesmo tempo, a forja da identidade do
pescador e uma maravilha a qual demanda, entre outros atributos, coragem. Os homens que
pescam tanto nos rios, quanto no mar, em Canárias, constroem em sua narrativa a imagem de
valentes e de sujeitos corajosos que nada temem.
No mar, as ondas, a sua força e a imprevisibilidade marcam a vida e a memória dos
pescadores marítimos, esses dois “pedaços de tecidos” - o território marítimo e a
imprevisibilidade - dentre outros, auxiliam os homens do mar a costurarem sua colcha de
retalhos que é a identidade. Bauman fala que a “'identidade' é uma idéia inescapavelmente
ambígua, uma faca de dois gumes. Pode ser um grito de guerra de indivíduos ou das
comunidades que desejam ser por estes imaginados” (BAUMAN, 2005: 82). Partindo desse
pensamento, os homens que pescam lá fora - no alto mar - ao criarem em suas narrativas a
imagem de heróis por lutarem contra uma força da natureza, estão tecendo sua identidade.
Neste processo, eles firmam a sua imagem, quer enquanto grupo ou individuo.
Quanto aos pescadores fluviais, apesar dos rios não serem tão bravos quanto o mar,
estes primeiros pescadores de Canárias se mostram tão corajosos quanto os seus colegas da
água salgada. Ao passo que os pescadores marítimos se reúnem enquanto um grupo de
homens corajosos que enfrentam o mar, eles acabam excluindo os demais pescadores que não
pescam lá fora. Não podemos afirmar se tal exclusão foi proposital ou não. Mas acreditamos
que ao serem apartados, os pescadores das águas doces buscaram também certa equiparação
aos do mar.
Mesmo sendo excludente, a identidade para Bauman é “uma luta contra a dissolução e
a fragmentação; uma recusa de devorar e ao mesmo tempo uma recusa reluta a ser devorado”
(BAUMAN, 2005: 84). Os pescadores fluviais trabalharam para não serem dissolvidos e/ou
apartados pelas/das imagens do pescador marítimo. Devido à maior serenidade da água e à
pesca não ser tão árdua quanto à marítima, os que pescam em rios sentiram a necessidade de
demonstrarem também sua coragem, tornado-se equivalentes aos seus companheiros de
profissão marítima.
Nesta busca, os pescadores de rio da mesma maneira que os do mar representaram o
rio, e por meio de tais representações conseguiram integrar grupo social (pescador)
partilhando dessa maneira os mesmos valores. Estes primeiros também se mostram como
heróis, não por enfrentarem ondas. Mas por estarem em um meio de coexistência com
aparições sobrenaturais chamada popularmente nessa região pelo nome de visagens. Logo
eles criaram uma identidade que reúne elementos e seres fantásticos, estas aparições foram
engendradas por meio da apropriação simbólica dos rios.
Os pescadores entrevistados falaram com veemência de contatos que tiveram com
seres sobrenaturais que buscavam lhes apavorar. A ciência moderna provavelmente descartaria
essas historias. Pautado no método e na comprovação, o pensamento cartesiano no mínimo
diria que as visagens não passam de contos sem fundamento cientifico.
Logo, não seria apenas “historias de pescador”, ou seja, algo sem verdade factual essas
visagens? Não necessariamente. Os estudos da memória e do imaginário possibilitam vermos
as visagens presentes nas narrativas como grande valor simbólico. Alessandro Portelli (1997),
entende que a historia oral se torna diferente por que ela “nos conta menos sobre os eventos
que sobre os significados”. (PORTELLI, 1997: 31). Partindo desse pensamento, as visagens
têm mais a dizer da cultura, dos valores e mesmo do imaginário dos pescadores e moradores
de Canárias do que aparenta.
As águas para Chevalier, são ambivalentes, no que diz respeito as correntes fluviais,
ele fala “os rios podem ser correntes benéficas ou dar abrigo a monstros” (CHEVALIER,
1992: 19). Em Canárias o rio provém e ao que parece, é também um micro-universo de seres
encantados que povoam a imaginação e o oficio dos homens. A visagem, ou o conjunto dela,
as visagens, fazem parte da memória e do imaginário coletivo dos pescadores fluviais dessa
comunidade e dos moradores em geral.
Os seres que povoam o rio, a costa e o imaginário dessa comunidade dão aos homens
do rio o mesmo pré-requisito pertinente ao caráter do pescador de mar: a coragem. As
visagens são o que tanto os pescadores quanto as demais pessoas do lugar em questão
chamam as aparições sobrenaturais que lhes causam medo, espanto e admiração.
No contato com alguns moradores que pescam em rios, ouvimos narrativas sobre a
pesca fluvial, o saber/fazer dos indivíduos e o cotidiano dos pescadores. Em certas falas,
houve momentos em que os colaboradores lembraram-se das visagens e contaram o que lhes
ocorrera, a “construção da narrativa revela um grande empenho na relação do relator com a
sua história” (PORTELLI, 1997: 31). Ao contar sua história o colaborador revive
momentaneamente à experiência narrada. É interessante chamar atenção que os pescadores,
antes de começarem as contar suas histórias sobre as visagens, diziam que não possuíam
medo ou mesmo sentiram-se intimidados com as aparições.
A valentia dos pescadores marítimos pode ser vista em suas histórias na luta quase
diária com o mar. "A história de pescador que a gente tem mesmo pra contar mais é quando a
gente se alaga na canoa, e fica flutuando, ai desalaga a canoa e sobe de novo” (Totonho).
Nenhuma visagem ou algo do tipo foi notada durante a narrativa desses colaboradores que
pescam na água salgada. Zé Miguel desconhece as aparições fantasmagóricas no mar, “lá fora
eu não sei se tem visagem. Nunca ouvi falar. Aqui na beira da costa tem coisa ô”.
Outro pescador, dessa vez do mar, mas que devido a idade se utiliza atualmente mais
do rio e da pesca lacustre revela.

Em beira de costa a gente vê muita “presepadera”! Muita novidade em beira


de costa a gente vê: vê carro, vê cavalo, vê boi correndo no rumo de dentro
d’água. Quem é assombrado, se assombra logo assim que vê. (Magno)

Barros explica que o oficio do historiador do imaginário, começa quando problematiza


e relaciona “as imagens, os símbolos, os mitos, as visões de mundo a questões sociais e
políticas de maior interesse – quando trabalha os elementos do imaginário não como um fim
em si mesmos, mas como elementos para a compreensão da vida social, econômica, política,
cultural e religiosa” (BARROS, 2007: 31). As visagens enquanto símbolos nos servem para
compreender a identidade do pescador fluvial. Na narrativa do pescador Magno, ele afirma
que “quem é assombrado”, ou seja, tem medo ou é impressionado, logo se assusta. Na
construção pessoal e mesmo coletiva da imagem do pescador em geral de Canarias, eles
sempre evocam talvez o maior dos valores que são agregados à sua figura enquanto
profissional, a coragem.
A bravura é talvez o tom vital da fala coletiva dos pescadores nessa comunidade. Os
pescadores marítimos afirmam que não temem pescar no alto mar e nem enfrentar as fortes
ondas. Os do rio falam que não fraquejam quando estão exercendo sua atividade e algum
vulto, voz ou mesmo aparição surge para lhes assustar.

3.2 Visagens e pescadores de rio


Antes de abordamos sobre as visagens, convém fazer um rápido debate sobre as
aparições sobrenaturais que estão presentes não na vida, mas nas narrativas e no imaginário
dos pescadores entrevistados. De acordo com Portelli, as fontes orais possuem para o trabalho
do historiador “o que nenhuma outra fonte possui em medida igual, é a subjetividade do
expositor” (PORTELLI, 1997: 31) Extremamente subjetiva e cheia de significados, as fontes
orais para o autor, “são aceitáveis mas com uma credibilidade diferente” (PORTELLI, 1997:
32). Logo no estudo da memória, importa mais saber os significados e as subjetividades
contidos nos fatos ou fenômenos narrados do que a veracidade dos mesmos.
Reiteramos ainda com o pensamento de Barros quando este fala que o imaginário pode
ser visto “como uma realidade tão presente quanto aquilo que poderíamos chamar 'vida
concreta'“(BARROS, 2007: 26). As visagens são matriz e reprodução do imaginário dos
pescadores fluviais de Canárias, elas se configuram como ideias que estruturam os mesmos
enquanto grupo social, lhes conferindo identidade, valores e lhes dando normas sociais.
Compreendemos as visagens enquanto apropriações simbólicas do rio, das matas e da
praia. Não as conceituamos enquanto mitos segundo o pensamento de Claude Lévy-Strauss,
uma vez que o antropólogo francês falou que os mitos dão “ao homem a ilusão, extremamente
importante, de que ele pode entender o universo e de que ele entende, de fato, o universo”
(LÉVY-STRAUSS, 1978: 28). As visagens divergem desse pressuposto, pois as histórias
contadas não visavam responder a perguntas dos pescadores ou demais moradores de
Canárias. Por outro lado, elas eram “atores” que se manifestavam em fenômenos nos quais a
população não conseguia explicar.
Já Diegues, usa o termo mito naturalista, segundo ele, “a noção de mito naturalista, da
natureza intocada, do mundo selvagem diz respeito a uma representação simbólica pela qual
existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num
estado 'puro' até anterior ao aparecimento do homem” (DIEGUES, 2001:53). Concordamos
em partes com esta concepção de mito no qual fala este antropólogo. Aceitamos o pensamento
de Diegues de que as visagens são representações simbólicas, pois elas estão ligadas com o
rio, a mata e a praia, desta maneira elas seriam abstrações destes territórios.
Porém discordamos com o antropólogo brasileiro quando ele discorre que este tipo de
mito “supõe a incompatibilidade entre as ações de quaisquer grupos humanos e a conservação
da natureza” (DIEGUES, 2001 :53). Nossa discordância é por que os pescadores de Canárias
se utilizam da praia, das matas e dos rios, estes lugares não são intocados pelos homens e
mulheres. Nesta lógica não há incompatibilidade, mas interação entre homens e mulheres
pescadores e as visagens. Este tipo de mito para Diegues incita a preservação da área natural,
o que não é correspondente com Canárias, pois as visagens presentes nas narrativas não
teriam o papel de guardiãs e protetoras.
Logo, entendemos que essas aparições são lendas no qual fazem parte do imaginário
dessa comunidade. Lendas estas apreendidas do território no qual circunda os pescadores e
demais moradores. De acordo com Jacques Le Goff, “o imaginário transborda o território da
representação e é levado adiante pela fantasia, no sentido forte da palavra” (LE GOFF, 2009:
12). Enquanto seres fantásticos, as visagens são percebidas pelos pescadores como elementos
constituintes do mundo que os rodeia, elas habitam e são oriundos da materialidade. O
imaginário “se nutre de uma afetividade irreprimível: necessidades, desejos, temores, paixões,
agem como lentes deformadoras na nossa apreciação dos fenômenos e acontecimentos,
marcando-os frequentemente pela irracionalidade e fantasia que são a condição sine qua non
da constituição do elemento mitopoetico” (DIEGUES,1998: 24). As experiências oriundas do
encontro com esses seres são repassadas ao longo das gerações por meio da oralidade e da
convivência. Interessa para nós não contestar, mas compreender essas narrativas.
Nas falas, as visagens sempre agiam durante a noite, seja na lua cheia, ou mesmo na
ausência do satélite natural da terra. “Não tinha essa energia. E era noite “truva”, escura. Não
era nem de lua. Era turva, turva, turva que nem breu, no tempo da lamparina”. O pescador
Magno, fala que elas estão associadas à noite, "é coisa da noite, mesmo". As visagens são
entendidas por nós como representações e como tais não se abstém da realidade. Para
Pesavento, as representações teriam, “na sua concepção, um fundo de apoio na concreticidade
das condições reais de existências” (PESAVENTO, 1995: 22). Dessa maneira, a visagem
enquanto representação advém da realidade existente. Logo as aparições extraordinários
narradas pelos pescadores advém da escuridão e da paisagem noturna, pois ela remete ao
mistério.
Em meio à penumbra da paisagem noturna, as visagens aparecem e manifestam as
suas ações, o intuito, apavorar os pescadores mais jovens e/ou menos corajosos. Magno nos
disse que, "quem não está acostumado se assusta mesmo". Analisando que o pescador afirma
em sua fala a palavra "acostumado", pode-se supor que as visagens são bem recorrentes no
cotidiano do pescador fluvial de Canárias. Em uma entrevista coletiva com dois pescadores
fluviais, eles afirmaram as visagens como um fenômeno corriqueiro, tanto para os pescadores,
quanto para as demais pessoas. “Mas aí, aqui, em Canárias. A gente vê essas coisas assim.
Acontece! E já aconteceu com várias e várias pessoas”.
Mais uma vez sublinhamos a apropriação simbólica que os moradores e pescadores
fizeram do rio, das matas e da praia. O que tem-se nas falas são as visagens oriunda destes
mesmos espaços que o pescador, isto se deve pelo fato de que o “fantástico e o extraordinário
manejam com dados reais, transformados e adaptados em combinações várias (PESAVENTO,
1995: 22). Logo, por mais surreal que sejam as visagens, elas tem ligação com o mundo real,
partindo disso, não se torna tão insólito esses seres fantásticos nas narrativas dos pescadores.
Cabe ao historiador buscar compreender o significado das visagens nessas falas.
Chama atenção que algumas aparições são mais costumeiras e/ou como fala Zé
Miguel, mais “públicas” que outras, “muita gente já viu eles saindo do cajueiro pra água, e
sempre a noite”. Corriqueiras, públicas ou não, as visagens enquanto constituidoras da
imaginação simbólica são imagens, e no campo do imaginário, as imagens como fala
Pesavento “remete a noção de alegoria: a imagem é, pois, a revelação de uma outra coisa que
não ela própria. Pensar alegoricamente implica referir-se a uma coisa mas apontar para uma
outra, para um sentido mais além” (PESAVENTO, 1995: 22). Nessa lógica, as visagens
seriam a personificação dos valores ou da prova deles, como a coragem, por exemplo; ou
normas sociais tais como a obediência.
Produto da sensibilidade desses moradores. As visagens vão desde presença de seres
visíveis, que parecem manifestar alguma ação - entre elas assustar e afugentar o pescador,
como uma bola de fogo que aparece nas águas do rio - até de seres invisíveis, como a
presença de alguma entidade. Existe ainda uma assombração que parece ser meio termo,
invisível para a maioria das pessoas, aparecendo apenas para as suas vítimas. É exemplo
disso, o Casca Grossa, visagem que estupra tanto mulheres quanto homens.
As histórias que foram contadas mostram que há uma gama de visagens, assim pode-
se classificar em três tipos: as visíveis, as invisíveis e as intermediárias. A exemplo das
visíveis existem várias, como por exemplo, uma bola de fogo que surge no rio à noite e que
aparece algumas vezes para os pescadores. Esta surge no horizonte e sobe em direção ao céu.
O pescador Zé Miguel fala um pouco sobre ela.

Quando a gente pesca de noite sozinho ai no mundo. Aparece um bocado de


coisa. Essa camarada que mora bem ai. É meu irmão mais velho. Nós vimos
uma bola de fogo atravessando o rio, uma bola grande assim. Parece uma
bola de brinquedo, um balão, atravessando o rio de um lado para o outro.
Assim com mais ou menos uns dois metros de altura. Até enquanto nós não
vimos mais. (Zé Miguel)

Parecendo não temer, o pescador conta outra história, com um personagem bastante
semelhante visto por ele e seu irmão.
Nessa emenda do igarapé da Salina com o igarapé dos Poldros tem um fogo
que toda noite ele trabalha, aparece. É o Vulcão. Esse fogo ai, é tão grande
que se a pessoa não é acostumada a ver ele. Se ver, sai da pescaria. Mas é só
visão mesmo da noite. Eu nunca soube de algo que ele fizesse com ninguém
não. É muito grande, a claridade dele. (Zé Miguel)

A primeira vista, essas “histórias de pescador” podem parecer absurdas, no entanto “se
a realidade por vezes nos parece opaca e incompreensível, é preciso buscar indícios,
estabelecer relações e procurar significados em dados aparentemente irrelevantes, mas que
adquirem sentido dentro de um contexto mais amplo, que é a necessária referência para a
interpretação” (PESAVENTO, 1995: 18). Muito mais que uma simples história de pescador,
as narrativas acima se não desprezarmos o contexto pesqueiro, revelam sinais dos valores dos
pescadores fluviais.
Deve-se levar em consideração a fala do narrador e os seus sentidos, juntamente com
sua performance. Ao contar essas duas histórias, a performance do colaborador, juntamente
com a subjetividade da sua narrativa ilustra os valores individuais que acabam refletindo nos
coletivos. Inicialmente a bola de fogo aparece aos pescadores e nada faz. Sua aparição serve
para causar espanto, admiração e/ou medo. Esta visagem assim como algumas outras, serve
como espécie de prova de caráter. Os pescadores devem manter-se firmemente corajosos
quando vêem essas aparições. Pode-se supor isso quando o colaborador menciona que apesar
da claridade e do tamanho, o Vulcão era inofensivo. Acerca da performance, Zé Miguel se
manteve tranquilo e calmo, falando com naturalidade desta visagem. Reação bastante
diferente de outra que iremos ver mais a frente quando o mesmo pescador fala do Casca
Grossa.
Além da bola de fogo, existem ainda visagens que se assemelham com animais. Esses
aparecem também à noite, saindo da água, ou então, correndo em direção a essa. Em uma
entrevista com dois pescadores, um deles narra uma experiência vivida:

Faz muito tempo que eu vivo aqui em Canarias, eu já vi coisas na beira desse
rio...Deus sabe de tudo, existe o bem e existe o mal. Esse rapaz aqui era
duns... Tu te lembra daquela vez lá do porto, que agente ia saindo? Que
eramos tu o seu João e eu; seu, senhor Mateus mais o Caoia e o Raimundim
com o Reis; cada qual numa canoa? Era três em uma canoa. Ai um animal,
um animalzinho pequeno que nem um porco, saiu correndo daquele porto.
Noite de lua, noite de lua... Isso não é natural. Ele correu, correu um monte
de cachorro atrás, era um monte de cachorro, porque nas Canarias o que não
falta é cachorro e cachorro apanhava, ele batia em cachorro.
E quanto mais ele corria, mais crescia, mais ele corria mais ele crescia.
Quando chegou la num outro, ele ia do tamanho de um baleco, se eu tiver
mentido por favor meu Deus não me faça sair daqui hoje.
O colaborador inicia sua narrativa dizendo que mora em Canárias há bastante tempo e
da existência de seres que fogem a sua compreensão. Quando fala que “Deus sabe de tudo,
existe o bem e existe o mal”, nos repassa a idéia de maniqueísmo, conflito de bem com o mal.
Os pescadores em sua maioria são indivíduos religiosos. Praticantes do catolicismo ou não, as
pessoas dessa comunidade, principalmente as mais velhas, possuíam a formação religiosa
cristã católica. Este possível embate de forças, bem contra o mar é provavelmente reflexo de
sua visão religiosa sobre o mundo. O mal na narrativa do pescador seria encarnado pela
presença e ações das visagens.
O narrador ainda chama o seu colega que teve a mesma experiência, tentativa talvez
de fazer com que o mesmo o ajude a lembrar ou comente o fato. Maurice Halbachs explica
que nunca lembramos sozinhos, “nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são
lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos
envolvidos, e com objetos que só nós vimos” (HALBACHS, :26). Estruturante da identidade
coletiva, a memória diz respeito tanto ao individuo quanto ao grupo, isto por que ela é
negociável, em resumos ela atende ao individuo, mas precisa também ser coerente com a
memória do grupo.
Para dar mais ênfase na sua fala, o pescador fala ainda que no ocorrido estiveram mais
pessoas, provavelmente ao elencar mais pescadores, ele quis nos mostrar que não foi o único
que viveu tal experiência. O grupo caso consultado sobre o mesmo, poderia confirmar a
narrativa desse pescador.
O animal/visagem, de aparência desconhecida, mas que possuía o tamanho de um
porco saiu de um dos portos e correu até outro. Nessa jornada, os cachorros existentes no
local, atraídos pelo ser desconhecido punham-se a ir atrás dele. Na cultura popular da região,
alguns animais como o cachorro ou o cavalo possuem a habilidade de ver seres sobrenaturais.
O que ficou registrado na memória deste pescador foi o combate desta visagem com os cães.
Este episodio provavelmente é uma batalha maniqueísta no qual o cachorro, por inspirações
cristãs, é uma criação divina representa o bem e foi derrotado pelo mal, a visagem.

Religiosida aqui.

Há também aparições humanoides, no qual provém de um cajueiro e passam em


marcha na frente de pescadores e/ou pessoas que andam sozinhos pelo seu caminho. Na
mesma entrevista, o outro pescador contou outra experiência que ele teve com uma visagem:
Olha nessa beira de praia nesse mesmo lugar que ele falou. Há 15 anos, as
minhas irmãs chegaram de Brasília. Elas só são por parte de pai, mas são
muito chega, somo muito unidos, viu?!, Ai irmão disse, “vamos jogar
baralho?”
Eu sempre gostei de desafiar coisa ruim e quem pede coisa ruim ligeiro vem
coisa ruim né, se você pedir coisa boa a boa vem mais custa, mas coisa ruim
é rapidola a gente encontra né?

O narrador nesta fala, expressa a união que ele tem com suas meias-irmãs e também o
seu espírito aventureiro. Quando ele falou que gosta de “desafiar coisa ruim”, quis demonstrar
sua coragem, ou seja, nos mostrar seu valor enquanto homem e pescador. Fizemos essa breve
analise para mostrar como a bravura deste pescador se relaciona com sua história e também o
significado da sua ousadia em “desafiar coisa ruim” no desfecho da narrativa. Voltemos agora
para a fala do pescador:
E ai, quando eu tava lá com as minhas irmãs jogando bisca lá e tal, jogando
o tal de toco e pá, pá parapapau. Eu disse, irmã que hora é? Ela disse é 12
horas, morava bem aqui nessa outra rua. Pois já tá na hora de eu ir embora
irmã, já tá tarde, vocês vão dormi e tudo, tão cansada da viajem. Eu vou
embora não vou pela rua não eu vou pegar aqui, vou por outro caminho. No
tempo que agente usava lamparina que ninguém usava vela era aquela
lamparina a querosene, ai eu ia lá e quando chego assim perto, assim. Ouvi o
ronco de uma porca. Eu tava ali no cajueiro da Dodó, na beira da praia, eu
vim pela beira da praia e a maré tinha vasado assim umas duas braças e a
“porca” veio pra cima de mim, e a bicha quanto mais roncava mais fedia.
Um cheiro, uma catinga assim que eu acho que nunca tinha visto na vida.
Catinga forte mesmo, não tinha uma vareda na subida do cajueiro que as
negradas (áudio corrompido),tinha a vareda e um pé de gameleira aqui perto
ai naquela area ali (áudio corrompido), saiu um leitãozinho deste tamanho.
“Oia a desgraça que quer me assustar, uma praga dessa. Também não liguei
não, quando bati pestana pulou outro, quando pensei que não pulou outro, ai
eu falei, “rapaz esse negocio não ta certo não”. Quando percebi eles estavam
vindo pro meu rumo, vieram caminhando e se alevantando e ficando um
neguim mais ou menos desse tamanho, não passaram desse tamanho não.

O que aparentava ser um filhote de porco começou a se transformar e a ganhar:

Formato de gente. De gente! De um bicho feio assim tipo um anãozinho, eles


marcharam no meu rumo achando graça né. E ai enquanto eu tive força de
lutar com ele eu tutei, mas tinha um que tinha os zois era igual uma tocha de
fogo, me agarrou pelo meio, do jeito que ele me agarrou ele me levou, ai
saiu me levando pra beira da praia. Me levando pelo mei, me agarrou pelo
mei, ele ia me levando parece que era eu que ia levando assim um saco de
arroz de 60 quilos nas costas, parece que não era eu que ia me levando não
parece que era eu que ia levando ele, ai vinha dois achando graça atrás e
quanto mais eles achavam graça mais fedia, a mesma catinga da porca que
eu vi, ai eles caminharam e chegaram igual na entrada que eu tava e me
soltaram, ai caíram na agua saíram caminhando na agua e foram crescendo,
crescendo ficaram grandão ate quando se cobriram na agua. Não sei porque
isso mas o bicho era tão preto tão preto que na careca dele, na testa dele eu
conseguia ver o meu rosto, na cabeça dele, me quebrou todinha daqui pra cá
eu fiquei todo quebrado.

O ser fantástico contido na fala do pescador faz parte do imaginário e como tal o
“imaginário social é uma das formas reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e
pautando perfis adequados ao sistema” (PESAVENTO, 1995:23). Nesta sua “ousadia”, o
colaborador teve o infortúnio de se deparar com várias visagens que saíram do cajueiro. Sua
coragem não foi diminuída como pode-se observar pela sua narrativa, mas ele teve a perca, já
que a visagem se transformou numa adversidade que ele não conseguiu superar. Com tudo
isso, a visagem nesta narrativa serve como controlador social, ela ditou horários e lugares dos
quais não devem ser frequentados pelos pescadores e moradores ainda que eles se mostrem
valentes.
A experiência ocorre pouco depois da meia noite, horário bastante tarde para uma
comunidade pesqueira. O narrador fala que foi embora sozinho, na época não possuía energia
elétrica e o mesmo foi caminhando não por uma rua, mas pela beirada da praia. Lembremos
que inicialmente ele fala que gostava de desafiar coisa ruim e direcionou-se tarde da noite
usando como caminho a costa. Por ser de lá, é bastante provável que ele já tenha ouvido
histórias de visagens que apareceram na beira-mar e no cajueiro. Logo o que ele fez, se
intencionalmente, foi desafiar, tentativa talvez de pôr à prova seu caráter e coragem.
Além da narrativa, é importante observar ainda outro ponto importante. O pescador é
um narrador, e como falou Walter Benjamim, as narrativas são experiências e elas possuem
sabedoria. A narrativa, para Benjamim, possui diversas dimensões utilitárias, esta “pode
consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão pratica, seja num proverbio ou
numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos”
(BENJAMIN, 1987: 200). A narrativa deste homem revela também uma moral, ou seja, se
observarmos, esta experiência é também um conselho. Mas antes, retomemos uma vez mais a
fala deste pescador.

Eu não pude nem me virar, eu sai correndo pra casa da minha irmã e sai
correndo foi de costa assim. Num pude me virar, tanto quando que na hora
que cai e cheguei lá, ai as minhas irmãs ainda estavam com a porta encostada
e caí. Caí em cima de uma cama ainda. Eu ia era caindo em cima de uma
meninazinha delas nova. Passei foi um bucado de dia ruim. E na casa que eu
tava as minhas irmãs, ninguém que tava dentro da casa não aguentava de
catinga, aonde eles tavam, me agarraram, eu fiquei todo fedorento. Gritava,
mas a voz não saia que a língua enrolou logo, ai a voz não saia mais não.
Gritava, gritava que só. Eu que escutava os outros, quem tava por perto não
escutavam não.. E catinga lá e precisou as minhas irmãs me banha e a febre
caiu e o corpo todo quebrado, eu passei foi uma semana deitado, sem poder
me alevantar. Isso ai é bicho da praia mesmo, da agua mesmo que aqui existe
muito isso, existe e eles são morador daquele cajueiro antigo.

Ele termina dizendo que após a experiência, foi acometido por um mal-estar do qual
ficou dias acamado. Não cabe a nós contestar a veracidade deste fato que nos foi narrado, mas
compreender a narrativa e a intenção do pescador. Compreendemos que essa fala além de
mostrar o valor do pescador e do homem da comunidade Canarias, tem outro significado não
tão expresso, mas de igual valor.
Como já dissemos, essa visagem serve na fala deste pescador enquanto um regulador
social. Quem anda tarde da noite sozinho em certos lugares da ilha, pode encontrar com
aparições sobrenaturais, as visagens. Acreditamos que o pescador quis nos aconselhar sobre
certas “regras” que eles possuem dentro da comunidade bem como a desobediência, “o
conselho tecido na substancia viva da existência tem um nome: sabedoria” (BEMJAMIN,
1987: 200). A experiência deste pescador por conseguinte resultou na sabedoria do mesmo. A
sua história é uma alegoria que possui uma moral. Partindo disso, a narrativa ouvida por nós
teria a intenção de mostrar que quem desafia as normas, possivelmente é castigado. Desta
forma, a história que o pescador falou indica obediência e/ou punição para quem burla as
regras.
Algo muito importante a ser refletido é que foram entrevistados sete pescadores,
quatro homens e três mulheres; ao todo foram realizadas dez entrevistas, o que chama atenção
é que apenas as narrativas masculinas contêm histórias sobre as visagens. Possivelmente esse
desfalque nos discursos femininos pode estar relacionado ao fator de construção da imagem
individual e do grupo social no qual cada colaborador pertence.
O pescador fluvial forja na performance a figura de individuo valente e corajoso que
enfrenta aparições extraordinárias, na qual não sabem ao certo de onde vem, mas que estão
presente costumeiramente no seu cotidiano. Já as mulheres entrevistadas agiam de forma
diferente, as pescadoras edificavam a imagem de igualdade no oficio. Elas falaram que assim
como os homens pescavam e lidavam com o peixe, elas também exerciam e exercem a mesma
atividade que eles, mesmo não tendo a aprovação dos homens da comunidade ou de seus
maridos.
Dona Graça no contou que, "Ele, meu marido, não gosta que eu vá pescar. Ele diz que
eu sou metida, que gosto de fazer as coisas. Mas eu gosto de ir pescar, eu sou danada". Logo,
a mulher ou as mulheres estavam interessadas em mostrar na sua narrativa a força de trabalho
nos rios, tentativa talvez de desconstruir a imagem de que as mulheres nessa comunidade não
pescam, mesmo as de pescadores.
A voz dissonante nesta questão das visagens encontradas nas falas da mulheres fica
por conta de Dona Dôdo.

Mas eu acredito em assombração! Uma vez eu fui pescar lá no pontal mais


minha irmã, só nos duas, e a gente ouvia no meio do mato no igarapé um
cortado de pau com machado e a lua clara! Nós olhávamos pro lado e pro
outro só via pau cair. Dizem que era visagem, mas eu nunca vi visagem, e
nem quero ver. E também não tenho medo de pescar por isso.

Vale refletir que ela assim como os homens constrói na sua fala a imagem de corajosa,
tentativa de se equiparar a esses no que diz respeito à tenacidade moral. No tocante a voz
dissonante de dona Dôdo, convém mais uma vez evocar Portelli, a “importância do
testemunho oral pode se situar não em sua aderência ao fato, mas de preferência em seu
afastamento dele, como imaginação, simbolismo e desejo de emergir” (PORTELLI, 1997:
32). Ao contar que pescava somente com sua irmã, Dôdo nos revela a vontade de emergir
enquanto senhora autônoma, isto é, faz seu oficio sem a presença ou ajuda de um homem.
A fala da pescadora revela não um conflito de memória, mas a subjetividade da
colaboradora, ou seja a intenção de Dona Dôdo em se diferir das outras mulheres. A memória
para Michel Pollak é um fenômeno construído social e individualmente. Dona Dodo pretende
não se apartar das outras memórias, ou seja, ser uma voz dissonante. Ela deseja mostrar-se
pelo contrário, diferente das demais identidades, “a construção da identidade é um fenômeno
que se reproduz em referência aos outros, em referencia aos critérios de aceitabilidade, de
admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com os outros”
(POLLAK, 1992: 5). Dona Dôdo quer se integrar na memória coletiva, porém visa construir
uma imagem diferente das demais mulheres entrevistadas, isso por que a identidade é atrelada
à alteridade, depende-se do “outro” para construir o “eu”.
Voltando para as visagens, mas usando-nos ainda a fala dessa pescadora. Observa-se
que ela crê em assombração (visagem), e apesar de não temer, prefere não possuir nenhuma
experiência como as relatadas pelos outros moradores da comunidade. Para Le Goff, a história
do imaginário “trata-se de uma história da criação e do uso das imagens que fazem uma
sociedade agir e pensar, visto que resultam da mentalidade, da sensibilidade e da cultura que
as impregnam e animam” (LE GOFF, 2009:13). As visagens enquanto imagens discursivas
e/ou imaginárias assustam e reforçam valores como a coragem e até mesmo servem de
controle comportamental. Compreende-se que embora diga que não nunca tenha visto alguma
aparição, Dona Dôdo acredita nas mesmas. Desta maneira, para essa sociedade pesqueira os
seres fantásticos –visagens- são tão reais quanto o rio, o mar e o lugar em que moram.
Das aparições ou visagens que mais chamaram a nossa atenção não pelo conto em si,
mas pela performance do colaborador, foi a história do Casca Grossa. Ouvimos esse relato por
meio do pescador Zé Miguel. Ao ser indagado sobre algumas visagens ele contava às histórias
que sabia e conhecia. Sua filha, durante a entrevista o lembra do Casca Grossa. Devido o
nosso desconhecimento sobre esse personagem lhe foi pedido que detalhasse mais um pouco.
O colaborador muda seu semblante, juntamente com ele o tom, falando de maneira mais lenta
e temorosa. Sobre o ser fantástico, o pescador afirma:

O Casca Grossa - ele é do mar, mas ele é da areia, dos ranchos...ataca o


povo. Casca Grossa é perigoso rapaz! ( Zé Miguel)

Quando Zé Miguel afirma que o Casca Grossa é do mar, entendemos que esse não é o
lugar em que a visagem aparece. Mas talvez, sua procedência, tendo em vista que nessa
narrativa, as vitimas eram atacadas sempre na costa da praia. Com o tom mais baixo, quase
como querendo contar um segredo, o narrador pareceu temer a assombração.

Casca Grossa é perigoso demais. Ele pega os homem nos rancho. Quando os
homem tão dormindo. É malvadeza! Ele faz isso para se servir dele, das
pessoas...Ele é cruel!

A palavra servir significa usar o corpo da pessoa de forma sexual. A assombração


estupra o indivíduo enquanto ele ainda dorme, razão pela qual tanto assusta o pescador. Ao
construir uma imagem de ser viril e "macho", o Casca Grossa é uma afronta à identidade e à
masculinidade do pescador bravo e corajoso.
Referências:
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