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O PREÇO DA DESIGUALDADE

JOSEPH STIGLITZ

O PREÇO
DA DESIGUALDADE

Lisboa 2013
Capítulo 1
O PROBLEMA DOS 1% NOS ESTADOS UNIDOS

A crise financeira de 2007-2008 e a Grande Recessão que se seguiu


pôs à deriva um grande número de norte-americanos no meio dos
destroços e do entulho de uma cada vez mais disfuncional forma de
capitalismo. Cinco anos depois, um em cada seis norte-americanos que
gostariam de ter um emprego a tempo inteiro não conseguia arranjá-lo;
cerca de oito milhões de famílias perderam as suas casas, e milhões
esperavam receber avisos de despejo1; e muitas pessoas viram as suas
poupanças de toda uma vida aparentemente a evaporar-se. Mesmo que
os sinais de esperança que os otimistas continuavam a vislumbrar fossem,
na verdade, o prenúncio de uma verdadeira recuperação, demoraria anos
– não antes de 2018 – até que a economia regressasse ao pleno emprego.
Contudo, muitos já haviam perdido a esperança em 2012. As poupanças
dos que perderam o emprego em 2008 ou em 2009 já tinham sido gastas.
O subsídio de desemprego esgotara-se. As pessoas de meia-idade, outrora
confiantes num rápido regresso ao trabalho, acabaram por perceber que
na realidade estavam reformadas à força. Os jovens, acabadinhos de sair
da universidade com dezenas de milhares de dólares de dívida, não con-
seguiam encontrar trabalho. Pessoas que foram viver com amigos e
familiares no início da crise tornaram-se sem-abrigo. As casas compradas
durante o boom imobiliário ainda estavam à venda ou eram vendidas ao
desbarato. Muitas mais ficaram vazias. Os fundamentos obscuros do boom
financeiro da década precedente estavam por fim à mostra.
Um dos lados mais negros da economia de mercado que veio à
luz do dia foi a grande e crescente desigualdade que deixou o tecido
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social norte-americano, e a sustentabilidade económica do país, à beira


do precipício – os ricos cada vez mais ricos, enquanto os restantes
enfrentavam dificuldades em desacordo com o sonho norte-americano.
A existência de ricos e pobres nos Estados Unidos era um facto bem
conhecido; e embora esta desigualdade não tenha sido somente
provocada pela crise do subprime e da retração económica que se seguiu
– que ja vinha a sentir-se nas últimas três décadas –, a crise piorou
tudo, ao ponto de já não poder ser mais ignorada. A classe média vinha
sendo esmagada de diversas formas, como veremos mais à frente
neste capítulo; o sofrimento das classes mais baixas era palpável, à
medida que as fragilidades na rede de segurança norte-americana
cresciam e à medida que os programas de apoio público, no mínimo
inadequados, sofriam ainda mais cortes; porém, enquanto tudo isto
acontecia, os 1% do topo asseguravam para si uma grande fatia da
riqueza nacional – mais do que um quinto –, ainda que alguns dos
seus investimentos tivessem sofrido um golpe.2
A desigualdade estava presente a todos os níveis da distribuição
de riqueza, inclusive dentro do microuniverso dos 1%, onde uma
franja de 0,1% ficava com a maior fatia do bolo. Em 2007, o ano antes
da crise, os 0,1% do topo das famílias norte-americanas apresentavam
rendimentos 220 vezes superiores à média dos 90% da base.3
A riqueza era mais desigualmente distribuída que os rendimentos,
com os 1% mais ricos a deterem cerca de dois quintos da riqueza
nacional.4 Os dados sobre a desigualdade na distribuição da riqueza
apenas nos dão um vislumbre de uma economia num único
momento. Mas é precisamente por isso que os dados sobre a
desigualdade são tão perturbadores – a desigualdade na distribuição
da riqueza vai para além das variações verificadas nos rendimentos
anualmente. Além disso, a riqueza reflete melhor as diferenças no
acesso aos recursos.
Nos Estados Unidos as diferenças aumentam a um nível cada vez
mais célere. Nos primeiros sete anos do novo milénio (2000 a 2007)
os 10% do topo apoderaram-se de mais de 100% dos lucros da riqueza
nacional, e os 1% do topo ficaram com três quartos desse total.5 Isso
significava que, embora os 1% do topo vivessem muitíssimo bem, a
grande maioria dos norte-americanos vivia cada vez pior.6
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Se os ricos ficassem cada vez mais ricos e se a classe média e os


da classe mais baixa também ficassem cada vez melhor, seria uma
coisa, sobretudo se os esforços dos primeiros fossem fulcrais para o
êxito dos restantes. Poderíamos celebrar os êxitos dos que estão no
topo e sermos gratos pelos seus contributos. Porém, não é isso o que
se tem verificado.
Alguns membros da classe média norte-americana sofriam
resignados, e tinham razões para isso, porque durante as três décadas
precedentes à crise os seus rendimentos raramente se modificaram.
Durante quase 15 anos, a maioria das famílias norte-americanas não viu
os seus rendimentos aumentar.7 Na verdade, os rendimentos de um
típico trabalhador masculino estagnaram durante cerca de 30 anos.8
A crise agravou estas desigualdades de várias maneiras, para além
aumentar a taxa de desemprego, o número de casas perdidas e os casos
de salários estagnados. Os ricos tinham mais a perder no mercado de
ações, mas estes recuperavam razoavelmente bem e relativamente
rápido.9 De facto, os ganhos da «recuperação» que se seguiu à crise só
encheram os bolsos dos americanos mais ricos: os 1% do topo ficaram
com 93% dos rendimentos adicionais (em relação a 2009) criados no
país em 201010. Os pobres e a classe média detinham a maior parte
da sua riqueza no setor imobiliário. Uma vez que o preço médio das
casas caiu mais de um terço entre o segundo quarto de 2006 e o fim
de 201111, uma grande quantidade de norte-americanos – os que
tinham créditos hipotecários elevados – viu a sua riqueza essencialmente
aniquilada. No topo, os diretores-executivos eram notoriamente bem-
-sucedidos em manter os elevados salários; depois de um pequeno
decréscimo em 2008, a proporção da remuneração total anual a um
diretor-executivo em relação à de um trabalhador comum em 2010
era a mesma de antes da crise, de 243 para 1.12
Alguns países do mundo dão exemplos assustadores do nível de
desigualdade para o qual nos dirigimos. Não é um cenário bonito:
países onde os ricos vivem em comunidades fechadas, servidos por
multidões de trabalhadores de baixos rendimentos; sistemas políticos
instáveis onde os populistas prometem às massas uma vida melhor,
apenas para as desiludirem. Talvez seja mais importante afirmar que
existe uma ausência de esperança. Nestes países, os pobres sabem
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que as perspetivas de saírem da pobreza, quanto mais de chegarem


ao topo, são minúsculas. Isto não é algo por que deveríamos lutar.
Neste capítulo, explico a extensão da desigualdade nos Estados
Unidos, e o impacto que ela tem na vida de milhões de cidadãos.
Descrevo não só o modo como nos estamos a tornar uma sociedade
mais dividida, mas também o modo como já não somos a terra das
oportunidades que fomos outrora. Discuto as poucas hipóteses que
tem uma pessoa de uma classe económica baixa de ascender social-
mente. Todavia, o nível de desigualdade e a ausência de oportunidades
que vemos hoje nos Estados Unidos não é inevitável, nem essa
crescente disparidade é simplesmente o produto das inexoráveis forças
de mercado. Nos capítulos seguintes descreverei tanto as causas desta
desigualdade, como os prejuízos para a nossa sociedade, a nossa
democracia e a nossa economia, e falarei do que poderemos ainda
fazer para a reduzir.

A maré alta que não ergueu todos os barcos

Embora os Estados Unidos tenham sido sempre um país capitalista,


a nossa desigualdade – ou pelo menos o seu atual nível alto – é
novidade. Há cerca de 30 anos, os rendimentos dos 1% representam
apenas 12% do rendimento do país.13 Esse nível de desigualdade devia
também ter sido inaceitável; mas desde então a disparidade cresceu
de forma dramática.14 Os 1% do topo viram os seus rendimentos
aumentar, ao passo que os salários líquidos dos 20% mais pobres
estagnaram, pelo que em 2007 o rendimento líquido médio dos 1%
do topo chegou aos 1,3 milhões de dólares, mas o dos 20% mais
pobres mão ultrapassou os 17 800 dólares.15 Os 1% do topo ganham
numa semana 40% mais do que os 20% de baixo recebem num ano;
os 0,1% do topo receberam em dia e meio o que os 90% da base
receberam num ano; e os 20% mais ricos ganharam um total líquido
superior aos rendimentos dos 80% de baixo juntos.16
Durante os 30 anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial,
a nação americana cresceu como um todo, os rendimentos aumenta-
ram em todos os setores, com as classes de baixo a crescerem mais
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rapidamente dos que as do topo. A luta pela sobrevivência do país


trouxe um novo sentido de união, e isso conduziu a políticas, como a
lei GI Bill, que ajudaram a unir ainda mais o povo americano.
Porém, nos últimos 30 anos tornámo-nos cada vez mais uma nação
dividida. Não só têm os do topo enriquecido de forma mais célere,
como também os de baixo têm, na realidade, empobrecido. (O padrão
não tem sido sempre implacável. Na década de 1990, durante algum
tempo, as classes média e baixa viviam melhor. Contudo, por volta do
ano 2000, a desigualdade cresceu a um ritmo ainda mais acelerado.)
A última vez que a desigualdade se aproximou deste nível tão
alarmante de hoje foi nos anos que antecederam a Grande Depressão.
A instabilidade que se verificou então e a que vivemos hoje estão
intimamente relacionadas com esta crescente desigualdade, como
explicarei no capítulo 4.
Como explicar estes padrões, o fluxo e o refluxo da desigualdade,
é assunto dos capítulos 2 e 3. Por agora, apenas observo que a redução
assinalada na desigualdade no período intermédio, entre 1950 e o
início da década de 1970, deveu-se em parte à evolução nos mercados,
mas ainda mais às políticas governamentais, tal como o aumento do
acesso ao ensino superior facultado pela GI Bill e o sistema tributário
altamente progressivo decretado durante a Segunda Guerra Mundial.
Por contraste, nos anos seguintes à «Revolução Reagan» as diferenças
aumentaram e, por ironia, as iniciativas governamentais criadas para
controlar as injustiças dos mercados foram abandonadas durante esse
mesmo período, uma vez que os impostos baixaram para as classes
do topo e os programas sociais sofreram cortes.
Claro que as forças do mercado – as leis da oferta e da procura
– desempenham inevitavelmente algum papel em determinar a
extensão da desigualdade económica. Mas essas forças também estão
em jogo noutros países desenvolvidos. Mesmo antes da explosão de
desigualdade que marcou a primeira década deste século, nos Estados
Unidos já existia mais desigualdade e menos mobilidade económica
do que praticamente em todos os países europeus, assim como no
Japão, na Austrália e no Canadá.
Esta tendência pode ser revertida. Alguns países conseguiram
reduzir as desigualdades. O Brasil já teve um dos níveis mais altos de
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desigualdade do mundo, mas, na década de 1990, apercebeu-se dos


riscos que ela acarretava em termos de divisão social e política e a
nível de crescimento económico a longo prazo. O resultado foi um
consenso político transversal à sociedade de que algo tinha de ser
feito. Durante o mandato do presidente Henrique Cardoso verificou-
-se um aumento massivo das despesas na educação, incluindo para
os pobres. Durante o mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva
verificaram-se despesas sociais para reduzir a fome e a pobreza.17
Reduziu-se a desigualdade, o crescimento aumentou18, e a sociedade
tornou-se mais estável. O Brasil continua a ser uma país com mais
desigualdades que os Estados Unidos, mas enquanto o Brasil tem
lutado, com bastante êxito, por melhorar as condições dos mais
desfavorecidos e por reduzir as diferenças de rendimentos entre ricos
e pobres, os Estados Unidos permitiram o crescimento da desigualdade
e o aumento da pobreza.
Para piorar, as políticas governamentais têm sido centrais na
criação de desigualdade nos Estados Unidos. Se quisermos contrariar
esta crescente desigualdade, teremos de reverter algumas políticas que
ajudaram a transformar os Estados Unidos no país desenvolvido mais
dividido economicamente, e, para além disso, teremos de tomar mais
medidas para mitigar as desigualdades que surgem por si devido às
forças de mercado.
Alguns defensores do atual nível de desigualdade afirmam que,
embora esta tendência não seja inevitável, contrariar esta realidade
teria custos demasiado elevados. Acreditam que, para o capitalismo
funcionar perfeitamente, um nível alto de desigualdade é uma inevitável
e até necessária característica da economia. Apesar de tudo, os que
trabalham duro devem ser recompensados, e têm de o ser, uma vez
que fazem os esforços e os investimentos dos quais todos beneficiam.
Alguma desigualdade é, de facto, inevitável. Alguns cidadãos trabalha-
rão mais e durante mais tempo que outros, e qualquer sistema econó-
mico que funcione bem tem de os recompensar pelos seus esforços.
Todavia, neste livro demonstro que tanto a magnitude da desigualdade
norte-americana atual e o modo como é gerada, na verdade, enfra-
quecem o crescimento e a eficiência da economia. Se isto acontece, é
também porque grande parte da desigualdade norte-americana resulta
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O PREÇO DA DESIGUALDADE

de distorções do mercado, que não incentiva os agentes económicos


a criar riqueza, mas a extorqui-la de outros setores da sociedade. Não
é, portanto, surpreendente que o nosso crescimento tenha sido mais
forte nos períodos em que a desigualdade foi mais baixa e em que
crescemos juntos.19 Isto foi verdade não só nas décadas posteriores à
Segunda Guerra Mundial, mas também em tempos mais recentes,
como é o caso da década de 1990.20

Economia trickle-down

Os apologistas da desigualdade – e são muitos – afirmam o


contrário, que dar mais dinheiro aos do topo será benéfico para todos,
em parte porque isso gera mais crescimento. Esta ideia é chamada de
«economia trickle-down». Tem uma longa existência e há muito que está
desacreditada. Como vimos, mais desigualdade não nos conduziu ao
crescimento, e a maioria dos norte-americanos tem, na verdade, visto
os seus rendimentos a afundar ou a estagnar. O que os Estados Unidos
têm testemunhado nos últimos anos é o oposto de uma economia
trickle-down: a riqueza vai para os do topo a expensas dos de baixo.21
Podemos pensar no que tem acontecido em termos de fatias de um
bolo. Se o bolo fosse equitativamente dividido, todos ficariam com uma
fatia do mesmo tamanho, e os 1% do topo teriam direito a 1% do bolo.
Na verdade, ficam com uma fatia enorme, cerca de um quinto do bolo
inteiro, mas isso significa que todos ficam com uma fatia menor.
Ora, os que acreditam numa economia trickle-down chamam a isto
a política da inveja e defendem que não devemos olhar para o tamanho
relativo das fatias, mas sim para o tamanho absoluto do bolo. Dar mais
aos ricos implica um bolo maior, por isso, embora os pobres e a classe
média fiquem com uma porção mais pequena do bolo, a fatia com que
ficam é aumentada. Gostava que assim fosse, mas não é. Na realidade,
dá-se o oposto: como pudemos observar, no período de desigualdade
crescente o crescimento foi mais lento e o tamanho da fatia dada à
maioria dos norte-americanos tem diminuído.22
Os jovens (dos 25 aos 34 anos) com menos educação têm uma
vida ainda mais difícil; os que apenas cumpriram o ensino secundário
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viram os seus rendimentos reais decrescer mais de um quarto do seu


valor nos últimos 25 anos.23 Mesmo as famílias com indivíduos
licenciados ou outros graus académicos não têm tido a vida facilitada
– o seu rendimento médio (ajustado para a inflação) caiu um décimo
entre 2000 e 2010.24
Mostrarei mais à frente que, embora a economia trickle-down não
funcione, a economia trickle-up pode funcionar: se os da base e os do
meio receberem mais, todos podem beneficiar com isso – mesmo os
do topo.

Um olhar sobre a desigualdade norte-americana

Eis o resumo do que se passa nos Estados Unidos: os ricos estão


a ficar mais ricos, os mais ricos dos ricos estão a ficar ainda mais ricos25,
os pobres estão a ficar mais pobres e mais numerosos, e a classe média
está a ser destruída. Os rendimentos da classe média estão a estagnar
ou a decrescer e a diferença entre ela e os verdadeiramente pobres está
cada vez mais diminuta.
As disparidades nos rendimentos das famílias estão relacionadas
com as disparidades nos salários e com as disparidades na riqueza – e
a desigualdade em ambas está a aumentar.26 E assim como a
desigualdade geral tem crescido, também têm crescido as desigualdades
nos ordenados e nos salários. Por exemplo, nas últimas três décadas
os 90% de baixo tiveram um crescimento de apenas cerca de 15% nos
seus salários, enquanto os 1% do topo tiveram um aumento de quase
150% e os 0,1% do topo de mais de 300%.27
Entretanto, as mudanças no cenário da riqueza são ainda mais
dramáticas. Nos 25 anos antes da crise, enquanto todos enriqueciam,
os ricos ficavam mais ricos a um ritmo mais acelerado. Contudo, como
vimos, grande parte da riqueza dos pobres e da classe média, que se
apoiava no valor das suas casas, era uma riqueza ilusória – baseada
nos preços da bolha imobiliária – e, enquanto todos perderam durante
a crise, os do topo recuperaram depressa, ao contrário dos pobres e
da classe média. Mesmo depois de os endinheirados terem perdido
alguma da sua riqueza devido ao decréscimo do preço das ações na
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O PREÇO DA DESIGUALDADE

Grande Recessão, os 1% do topo tinham 225 vezes mais riqueza que


o típico norte-americano, quase o dobro de 1962 ou 1983.28
Dada a desigualdade na distribuição da riqueza, não surpreende
que os do topo tenham ficado com a maior parte dos rendimentos de
capitais – antes da crise, em 2007, cerca de 57% foi para os 1% do
topo.29 Nem é surpreendente que os 1% do topo tenham recebido
uma parte ainda maior do aumento dos rendimentos de capital no
período seguinte a 1979 – cerca sete oitavos – enquanto os 95% de
baixo ficaram com menos de 3% do incremento.30
Estes números de largo espetro, ainda que alarmantes, podem não
conseguir captar as disparidades atuais com força suficiente. Para uma
ilustração ainda mais impressionante do estado da desigualdade nos
Estados Unidos, dou o exemplo da família Walton: os seis herdeiros
do império da Wal-Mart, que detêm uma fortuna de 69,7 mil milhões
de dólares, o equivalente à riqueza dos 30% mais pobres da sociedade
norte-americana. Os números podem não ser tão surpreendentes
como parecem, simplesmente porque a classe mais baixa tem tão
pouca riqueza.31

Polarização

Os Estados Unidos sempre se viram como um país de classe


média. Ninguém quer pensar que é um privilegiado, e ninguém quer
pensar que a sua família pertence à classe mais pobre. Todavia, em
anos recentes, a classe média norte-americana ficou eviscerada, uma
vez que os «bons» empregos de classe média – que requerem um nível
moderado de capacidades, como os empregos na indústria automóvel
– pareciam estar a desaparecer em comparação com os trabalhos que
requerem menos capacidades e com os cargos de topo, que requerem
um nível de capacidades superior. Os economistas referem-se a isto
como a «polarização» da população ativa.32 Discutiremos algumas das
teorias que explicam o porquê de isto estar a acontecer, e o que se
pode fazer para combater esta tendência, no capítulo seguinte.
O colapso dos bons empregos aconteceu durante o último quarto
de século, e, de forma pouco surpreendente, os salários de tais empregos
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JOSEPH STIGLITZ

desceram e a disparidade entre os ordenados do grupo do topo e os


da classe média aumentou.33 A polarização da população ativa significa
que, enquanto a maior parte do dinheiro vai para o topo, mais pessoas
empobrecem.34

A Grande Recessão dificulta ainda mais as vidas difíceis

A divisão económica norte-americana tornou-se tão grande que é


difícil para os 1% do topo conseguirem imaginar como é a vida para os
mais desfavorecidos socialmente e inclusive para as pessoas da classe
média, cada vez mais esmagada. Pensemos por um momento numa
família com um único membro a sustentá-la e dois filhos. Assumamos
que esse membro que sustenta se encontra de boa saúde e consegue
trabalhar 40 horas por semana (a semana de trabalho média dos traba-
lhadores norte-americanos é de apenas 34 horas35), recebendo um salário
pouco acima do ordenado mínimo: digamos cerca de 8,5 dólares por hora,
para que depois de pagar o imposto à Segurança Social ele receba oito
dólares por hora, e assim receber 16 640 dólares anuais pelas suas 2080
horas de trabalho. Assumamos que não paga imposto sobre rendimentos,
mas que o seu patrão cobra-lhe 200 dólares por mês por um seguro de
saúde para toda a família e fica com os restantes 550 dólares por mês do
custo do seguro. Isto faz com que leve para casa 14 240 dólares por ano.
Se tiver sorte, conseguirá encontrar um T2 (todo equipado) por 700 dóla-
res mensais. Isto deixa-o com 5840 dólares anuais para cobrir os custos
anuais do agregado familiar. Como a maioria dos norte-americanos,
pode considerar o carro uma necessidade básica; seguro, gasolina,
manutenção e a redução do valor do veículo podem muito bem custar
cerca 3000 dólares. O dinheiro que resta são 2840 dólares – três dólares
por dia por pessoa – para cobrir os gastos básicos com a alimentação e
o vestuário, para não falar do que dá sentido à vida, a cultura. Se algo
correr mal, simplesmente não tem margem de manobra.
Uma vez que os Estados Unidos entraram na Grande Recessão,
algo correu, de facto, mal, para a nossa hipotética família e os milhões
de verdadeiros norte-americanos por todo o país. Perderam-se empre-
gos, o valor das suas casas – o seu maior ativo – caiu, e, quando a
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O PREÇO DA DESIGUALDADE

receita pública decresceu, a Segurança Social sofreu cortes quando era


mais necessária.
Mesmo antes da crise, os pobres norte-americanos viviam à beira
do precipício; mas com a Grande Recessão isso tornou-se cada vez mais
evidente até para a classe média. As histórias humanas desta crise estão
repletas de tragédias: os pagamentos falhados da hipoteca desembocam
em casas perdidas; sem sítio onde morar, as pessoas perdem os seus
empregos e vêm muitas vezes as suas famílias destruídas.36 Para algumas
famílias, um choque é tratável; mas um segundo não. Contanto que
cerca de 50 milhões de norte-americanos não têm seguro de saúde, uma
doença pode lançar uma família inteira para a beira do precipício37; uma
segunda doença, a perda de emprego ou um acidente de automóvel
podem empurrá-la para lá. Na realidade, várias pesquisas recentes
revelaram que a maior porção de bancarrotas pessoais envolvem de
longe a doença de um membro da família.38
Para vermos como até pequenas mudanças em programas de proteção
social podem ter um enorme efeito sobre as famílias pobres, voltemos à
nossa família hipotética, que tinha 2840 dólares para gastar por ano.
Enquanto a recessão continuava, muitos estados cortaram na assistência
de saúde infantil. No estado de Washington, por exemplo, o custo mensal
de seguro de saúde infantil para duas crianças é de 1433 dólares.39 Mesmo
que o outro membro do casal conseguisse um emprego com uma remu-
neração aproximadamente igual à do cônjuge, continuaria a ser impossível
ter acesso a assistência médica infantil sem o apoio estatal.

Um mercado de trabalho sem uma rede de proteção social

Por outro lado, as dificuldades enfrentadas pelos que perderam o


emprego e não conseguiam encontrar outro eram ainda maiores. Entre
novembro de 2007 e novembro de 2011 registaram-se menos 8,7 milhões
de empregos a tempo inteiro40, um período durante o qual normalmente
entravam no mercado de trabalho 7 milhões de novas pessoas – na
realidade, perderam-se mais de 15 milhões de postos de trabalho.
Muitos dos desempregados de longa duração acabaram por desistir
de encontrar trabalho e saíram da população ativa; os jovens decidiram
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prolongar os estudos, uma vez que as perspetivas de emprego, até para


os licenciados, pareciam inexistentes. A existência destes trabalhadores
«retirados» significa que as estatísticas oficiais de desemprego (que no
início de 2012 sugeriam que a taxa de desemprego era de «apenas»
8,3%) apresentavam um cenário demasiado cor-de-rosa do estado do
mercado de trabalho.
O nosso sistema de subsídio de desemprego, um dos menos
generosos no mundo industrializado e desenvolvido, simplesmente
não estava à altura do desafio de providenciar um apoio adequado aos
que ficavam sem emprego.41 Por norma, o subsídio estende-se apenas
por seis meses. Antes da crise, um mercado de trabalho dinâmico com
pleno emprego significava que a maioria das pessoas em busca de
trabalho conseguia empregar-se num curto espaço de tempo, mesmo
que o trabalho não estivesse à altura das suas expectativas e das suas
capacidades. Porém, na Grande Recessão, isso deixara de ser verdade.
Quase metade dos desempregados estava há muito sem emprego.
A elegibilidade ao subsídio de desemprego foi estendido (como
vem a ser hábito, depois de um árduo debate no Congresso)42, mas,
mesmo assim, milhões de pessoas chegam ao fim das prestações de
subsídio ainda desempregadas.43 Já que a recessão e o fraco mercado
laboral continuaram até 2010, emergiu um novo segmento na nossa
sociedade, os «99ers» – os que estavam desempregados há mais de
99 semanas. Mesmo nos melhores estados, e apesar do apoio federal,
estes desempregados foram deixados ao abandono. Procuravam tra-
balho, mas não havia trabalho suficiente para todos. Havia quatro
desempregados para cada posto de trabalho existente.44 E dada a
quantidade de capital político que teve de ser gasto para estender o
subsídio de desemprego para 52, 72, ou 99 semanas, poucos políticos
sequer propunham fazer alguma coisa em relação aos «99ers».45
Uma estatística publicada pelo New York Times no fim de 2011
revelou a extensão das insuficiências no nosso sistema de subsídio de
desemprego.46 Apenas 38% dos desempregados estavam então a
receber subsídio, e cerca de 44% nunca o tinham recebido. Dos que
recebiam assistência, 70% tinham poucas esperanças de estar a
trabalhar no fim das prestações do subsídio de desemprego. Para três
quartos dos que recebiam assistência, as ajudas não chegavam, de
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longe, aos rendimentos anteriores. Mais de metade dos desempregados


sofreram de problemas emocionais ou de saúde como resultado de
estarem sem emprego, no entanto, não puderam aceder a qualquer
tipo de tratamento, uma vez que mais de metade dos desempregados
não tinham seguro de saúde.
Muitos dos desempregados de meia-idade não tinham qualquer
perspetiva de alguma vez conseguirem encontrar trabalho. A duração
média de desemprego para quem tem mais de 45 anos já chega quase
a um ano.47 A única nota otimista na estatística foi haver 70% de inqui-
ridos com expectativas de conseguir trabalho num prazo de 12 meses.
O otimismo norte-americano, ao que parecia, ainda estava vivo.
Antes da recessão, os Estados Unidos pareciam estar de alguma
forma melhor que outros países. Os salários da classe média até podiam
estar mais baixos e a subir menos comparativamente a outros contextos
(por exemplo, nalguns países da velha Europa), mas quem quisesse
trabalhar tinha a garantia de emprego. Esta era a muito gabada vantagem
dos «mercados laborais flexíveis». Mas a crise mostrou que até esta
vantagem parecia estar a desaparecer, à medida que os mercados laborais
se pareciam cada vez mais com os da Europa, com um desemprego não
só alto, como também duradouro. Os jovens sentem-se frustrados e,
quando se aperceberem do que as tendências atuais pressagiam, sentir-
-se-ão ainda mais frustrados: os que continuam desempregados durante
um longo período têm menores perspetivas de empregabilidade do que
os que têm qualificações similares mas tiveram mais sorte no mercado
de trabalho. Mesmo quando arranjam emprego, esses jovens que
estiveram durante muito tempo desempregados acabam por receber um
salário menor do que os colegas com qualificações similares mas que
não estiveram fora do mercado de trabalho. Na verdade, o azar de entrar
no mercado de trabalho num ano de muito desemprego aparece nos
rendimentos auferidos ao longo da vida por estes indivíduos.48

Insegurança económica

É fácil perceber a crescente insegurança que tantos norte-ameri-


canos sentem. Mesmo os que estão empregados sabem que têm os
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JOSEPH STIGLITZ

seus empregos em risco, e que com o alto nível de desemprego e o


baixo nível de proteção social, as suas vidas podem de repente mudar
para pior. A perda de emprego pode significar a perda de seguro de
saúde, e talvez até a perda da casa.
Os que tinham empregos aparentemente seguros passaram a ter
de lidar com a incerteza da sua futura reforma, visto que em anos
recentes os Estados Unidos alteraram o modo de gestão das pensões.
A maioria dos benefícios de reforma costumava ser providenciada
através de planos de reforma em que os indivíduos podiam ter a
certeza do que receberiam quando se reformassem, com as empresas
a suportar os custos das flutuações do mercado de ações. Mas agora
os trabalhadores têm planos contributivos em que o indivíduo fica
com a responsabilidade de gerir a sua reforma e de suportar os riscos
das flutuações do mercado de ações e da inflação. Há um perigo óbvio:
se o indivíduo ouviu os analistas financeiros e colocou o seu dinheiro
nos mercados de ações, terá sofrido um espancamento em 2008.
Deste modo, a Grande Recessão representou um triplo obstáculo
para a maioria dos norte-americanos: os seus empregos, as suas
reformas e as suas casas estavam em risco. Deste modo, acabaram
por ser atingidos de um golpe só pela bolha imobiliária e não pelas
consequências em curso da baixa de salários. Antes da crise, as
pessoas lutavam por manter o seu nível de vida, gastando muitas
vezes para além dos seus rendimentos. Na realidade, em meados da
década de 2000, antes do começo da Grande Recessão, 80% da
população gastava cerca de 110% dos seus rendimentos.49 Agora que
a bolha rebentou, estes norte-americanos terão de viver com o que
ganham, e muitos terão de viver abaixo do que ganham para pagar as
dívidas acumuladas. Mais de um quinto dos que têm hipotecas estão
sufocados, devendo mais da casa do que ela vale.50 A casa, em vez de
ser o mealheiro para pagar a reforma ou a educação superior do filho,
tornou-se um fardo. Há muita gente em risco de perder a casa, e
muitas famílias já a perderam. Desde a explosão da bolha imobiliária
quase 8 mil milhões não só perderam o teto sobre as suas cabeças
como também grande parte das suas poupanças.51
Entre as perdas nas reformas pensionárias e os 6,5 biliões de dólares
perdidos em avaliações imobiliárias52, os norte-americanos comuns
72
O PREÇO DA DESIGUALDADE

levaram um duro golpe da crise, e para os mais pobres, que estavam a


começar a ter um vislumbre do sonho americano – ou assim pensavam,
uma vez que compraram uma casa e viram o seu valor a subir na bolha
– as coisas correram ainda pior. Entre 2005 e 2009, a típica família
afro-americana perdeu 53% da sua riqueza, pondo os seus ativos a uns
meros 5% do norte-americano branco comum, enquanto o hispânico
médio perdeu 66% da sua riqueza. O património líquido de um branco
americano de classe média caía substancialmente, para 113 149 dólares
em 2009, uma perda de 16% de riqueza desde 2005.53

Um nível de vida em declínio

Os números dos rendimentos em que nos focámos até agora,


tristes como são, não captam na totalidade o declínio no nível de vida
da maioria dos norte-americanos. A maior parte da população enfrenta
uma insegurança crescente, não só a nível económico, mas também
de saúde e, nalguns casos, até da sua integridade física. O programa
de seguro de saúde do presidente Obama foi desenhado para aumentar
a sua cobertura, mas a Grande Recessão e a austeridade orçamental
que se seguiu conduziram a uma direção oposta. Os programas de
seguro de saúde Medicaid, dos quais os pobres dependem, foram
reduzidos.
A falta de seguro de saúde é um dos fatores que levam a uma
saúde pior, sobretudo entre os pobres. A esperança média de vida
nos Estados Unidos é de 78 anos, menor que a do Japão, de 83 anos,
ou que a da Austrália ou de Israel, de 82 anos. De acordo com o
Banco Mundial, em 2009 os Estados Unidos estavam na 40.ª posição,
mesmo atrás de Cuba.54 A taxa de mortalidade infantil e materna nos
Estados Unidos é ligeiramente mais baixa que a de alguns países
desenvolvidos; no que toca a mortalidade infantil, a taxa americana
é mais elevada que a de Cuba, Bielorrússia e Malásia, entre outros
países.55 Estes baixos indicadores de saúde são em grande parte
reflexo das péssimas estatísticas dos pobres norte-americanos. Por
exemplo, os pobres nos Estados Unidos têm uma esperança média
de vida quase 10% mais baixa que os do topo.56
73
JOSEPH STIGLITZ

Observámos anteriormente que os rendimentos de um típico


trabalhador a tempo inteiro estagnaram durante um terço de século,
e que os rendimentos dos que não foram para a universidade
decresceram. Para evitar que os rendimentos baixassem ainda mais,
as famílias aumentaram o horário laboral, principalmente porque a
maioria das mulheres está a juntar-se ao mercado de trabalho a par
dos seus maridos. As nossas estatísticas sobre os rendimentos não têm
em conta a perda de lazer nem as consequências desta perda para a
qualidade da vida familiar.
O declínio dos padrões de vida também se manifesta em padrões
sociais mutáveis, assim como em difíceis factos económicos. Uma
crescente fração de jovens adultos está a viver com os pais: cerca de
19% de homens entre os 25 e os 34 anos, uma subida de 5% desde
2005. Nas mulheres desta faixa etária, a subida foi de 8%, atingindo
os 10%.57 Por vezes chamados de «geração bumerangue», estes jovens
são forçados a ficar em casa dos pais, ou a regressar a casa depois da
universidade, porque não podem custear uma vida independente. Até
o casamento tradicional está a ser afetado, pelo menos por agora,
devido à falta de rendimentos e de segurança. Em apenas um ano
(2010), o número de casais que viviam juntos sem casar subiu para
13%.58
As consequências de uma pobreza difundida e persistente e de um
duradouro subinvestimento em educação pública e outras despesas
sociais também se manifestam noutros indicadores de mau
funcionamento da sociedade: um nível alto de criminalidade, e uma
grande fração da população na prisão.59 Embora as taxas de crime
violento sejam melhores que no seu nadir (em 1991)60, continuam
altas, bem piores que noutros países desenvolvidos industrializados, e
impõem à nossa sociedade enormes custos económicos e sociais. Os
residentes de muitos bairros pobres (e outros não tão pobres) ainda
sentem o risco de assalto físico. É dispendioso manter 2,3 milhões de
pessoas na prisão. A taxa norte-americana de encarceramento, de 750 por
100 mil pessoas (ou 1 em cada 100 adultos61), é a mais alta do mundo,
e cerca de nove a dez vezes mais alta que a de muitos países europeus.
Alguns estados norte-americanos gastam mais com as prisões do que
gastam com as suas universidades.62
74
O PREÇO DA DESIGUALDADE

Tais despesas não são um sinal de uma economia e de uma


sociedade que funcionam bem. O dinheiro que é gasto em «segurança»
– proteção da vida e da propriedade – não acrescenta nada ao bem-
-estar; apenas previne que as coisas fiquem pior. No entanto,
consideramos estes gastos parte do produto interno bruto (PIB) do
país, tanto quanto outras despesas. Se a crescente desigualdade dos
Estados Unidos se traduzir em mais despesas para a prevenção do
crime, aparecerá como um aumento do PIB, mas ninguém deverá
confundir isto com um aumento do bem-estar.63
O encarceramento chega até a distorcer as nossas taxas de
desemprego. As pessoas na prisão são desproporcionalmente mal-
-instruídas e provêm de grupos que enfrentam um alto nível de
desemprego. Se não estivessem presas, provavelmente juntar-se-iam
às já avolumadas fileiras de desempregados. Visto deste prisma, a
verdadeira taxa de desemprego nos Estados Unidos seria ainda pior:
se toda a população encarcerada de 2,3 milhões fosse contabilizada,
a taxa de desemprego seria bem superior a 9%.64

Pobreza

A Grande Recessão tornou a vida da decrescente classe média


norte-americana ainda mais difícil, mas foi especialmente dura com a
classe mais baixa, como é ilustrado nos dados anteriores da família
que tenta sobreviver com um salário pouco acima do ordenado
mínimo.
Um número cada vez maior de norte-americanos mal consegue satis-
fazer as necessidades básicas. Diz-se destas pessoas que estão na pobreza.
A fração dos que estão na pobreza65 era de 15,1% em 2010, superior
aos 12,5% em 2007. Como já deve ter ficado claro, da anterior aborda-
gem das estatísticas, o nível de vida dos que se encontram no limiar da
pobreza decaiu de forma dramática. Em 2011 o número de famílias
norte-americanas a viver em situação de pobreza extrema – viver com dois
dólares diários ou menos por pessoa, a medida de pobreza usada pelo
Banco Mundial para os países desenvolvidos – duplicara desde 1996
para 1,5 milhões.66 O «fosso da pobreza», que é a percentagem pela
75
JOSEPH STIGLITZ

qual o rendimento médio dos pobres de um país desce abaixo da


linha oficial de pobreza, é outra estatística reveladora. Com 37%,
os Estados Unidos são um dos mais mal cotados países na Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), o “clube”
dos países mais desenvolvidos, encontrando-se na mesma categoria
que o México (38,5%).67
A extensão da pobreza é ilustrada pela fração de norte-americanos
que dependem do Governo para cobrir as suas necessidades alimentares
básicas (um em sete). E, mesmo assim, um grande número de norte-
-americanos vai para a cama com fome pelo menos uma vez por mês,
não porque estão em dieta, mas porque não têm dinheiro para
alimentação.68
A medição de pobreza – tal como a medição de rendimentos – é
difícil e longe de ser incontroversa. Até 2011, o padrão de medição
de pobreza focava-se nos rendimentos, não tendo em conta os efeitos
dos programas governamentais – os números dados anteriormente
resultam deste padrão. Esta informação revela como seria a vida sem
os programas governamentais de proteção social. Não surpreende que
os programas governamentais sejam essenciais, sobretudo em recessões
económicas. Muitos dos programas, como é o caso do subsídio de
desemprego, dão apenas um apoio a curto prazo. Direcionam-se aos
que enfrentam dificuldades temporárias. Com a reforma do Estado-
-providência em 1996 (Lei do Trabalho e Responsabilidade Pessoal),
os apoios governamentais também ficaram temporalmente mais
limitados (os fundos federais estão geralmente limitados a um máximo
de cinco anos).
Se olharmos para estes programas e, simultaneamente, examinarmos
de perto as diferentes necessidades dos vários grupos sociais – os do
setor rural enfrentam custos imobiliários mais baixos; os idosos
enfrentam custos de saúde mais altos –, ficamos com um retrato das
nuances da pobreza: existem menos pobres rurais e mais pobres
urbanos, menos crianças pobres e mais idosos empobrecidos que nas
medições antigas, que não tinham em conta as diferentes circunstâncias
dos diferentes grupos de pobres. Com esta nova medição (assim como
sob as antigas), verificamos que os números da pobreza têm aumentado
depressa, cerca de 6% só entre 2009 e 2010, sendo que estas novas
76
O PREÇO DA DESIGUALDADE

contas revelam números ainda mais altos que os antigos, uma vez que
um em cada seis norte-americanos vive na pobreza.69
«Porquanto sempre tendes convosco os pobres» não significa que
tenha de haver tantos pobres, ou que eles tenham de sofrer tanto.
Temos a riqueza e os recursos para eliminar a pobreza: a Segurança
Social e a Medicare quase que eliminaram a pobreza entre os idosos.70
Outros países, não tão ricos quanto os Estados Unidos, fizeram um
melhor trabalho na redução da pobreza e da desigualdade.
É particularmente perturbador que – atualmente – quase um
quarto de todas as crianças vivam na pobreza.71 Não fazer nada sobre
esta situação é uma opção política que terá consequência duradouras
para o nosso país.

Igualdade de oportunidades

A crença na justiça essencial dos Estados Unidos, a crença de que


vivemos numa terra de oportunidades, ajuda a manter unido o povo
americano. É pelo menos esse o mito norte-americano, poderoso e
persistente.
Cada vez mais não passa disso – um mito. É óbvio que há exceções,
mas para os economistas e os sociólogos o que importa não são as
poucas histórias de sucesso, mas sim o que acontece à maioria dos que
estão na classe mais baixa e na classe média. Quais são as suas hipóteses
de conseguirem, digamos, chegar ao topo? Qual é a probabilidade de
os seus filhos não terem uma vida melhor que eles? Se os Estados
Unidos fossem realmente uma terra de oportunidades, as hipóteses
de sucesso de, digamos, alguém nascido numa família pobre ou com
poucos estudos chegar aos 10% do topo deveriam ser as mesmas de
alguém nascido numa família rica, com muitos estudos e uma boa rede
de relações. Mas esse não é, de todo, o caso, e existem algumas provas
de que é cada vez menos assim.72 Na verdade, de acordo com o Projeto
de Mobilidade Económica, «existe uma ligação mais forte entre a
educação parental e os resultados económicos, escolares e socioemo-
cionais da criança» nos Estados Unidos do que em qualquer outro
país investigado, incluindo os da «velha Europa» (Reino Unido, França,
77
JOSEPH STIGLITZ

Alemanha e Itália), outros países anglosaxónicos (Canadá e Austrália)


e os países nórdicos (Suécia, Finlândia e Dinamarca), onde os resul-
tados eram mais previsíveis.73 Vários outros estudos corroboraram
estas descobertas.74
Este declínio das oportunidades tem andado de mão dada com a
nossa crescente desigualdade. Na realidade, esse padrão tem sido
observado em vários países – os países com mais desigualdades têm
sistematicamente menos igualdade de oportunidades. A desigualdade
persiste.75 Mas o que é particularmente perturbador nesta relação é o
que esta pressagia para o futuro do país: a crescente desigualdade nos
últimos anos sugere que o nível da igualdade de oportunidades no
futuro reduzir-se-á e o nível da desigualdade aumentará, se não
tomarmos medidas para contrariar esta tendência. Isto significa que
os Estados Unidos, em 2053, serão uma sociedade ainda mais dividida
que a de 2013. Todos os problemas sociais, políticos e económicos
que provenham da desigualdade, que discutiremos nos capítulos
seguintes, serão bem piores.
É na base e no topo que os Estados Unidos têm a nota mais
negativa: os mais desfavorecidos socialmente têm boas hipóteses
de permanecerem na base, assim como os do topo nunca se movi-
mentam do seu lugar. Esta imobilidade social é muito mais alta aqui
do que noutros países. Num cenário de total igualdade de oportu-
nidades, 20% da quinta parte da população situada na base da
pirâmide social verão os seus filhos permanecer nessa quinta parte
inferior. A Dinamarca quase que o consegue – 25% não se deslocam
do fundo da pirâmide. A Inglaterra, supostamente conhecida pelas
suas divisões de classes, tem um número apenas um pouco pior
(30%). Isto significa que os mais desfavorecidos socialmente têm
70% de hipóteses de chegar ao topo. Contudo, as hipóteses de subir
nos Estados Unidos são notoriamente mais baixas (apenas 58% das
crianças nascidas na classe mais baixa conseguem ascender a nível
social)76, e quando os indivíduos conseguem mover-se para cima, a
ascensão social costuma ser apenas ligeira. Quase dois terços dos
20% que estão na base da pirâmide social têm filhos que estarão entre
os 40% que não se deslocam do fundo da escala – o dobro do
que aconteceria num cenário de total igualdade de oportunidades.77
78
O PREÇO DA DESIGUALDADE

Do mesmo modo, com uma total igualdade de oportunidades, os


20% da base chegariam aos 20% do topo. Nenhum país consegue
chegar perto desse objetivo, no entanto, tanto a Dinamarca (com
14%) como o Reino Unido (com 12%) têm muito melhores resultados
que os Estados Unidos, com uns meros 8%. Do mesmo modo,
quando alguém chega ao topo da pirâmide social nos Estados Unidos,
é muito provável que lá permaneça.78
Existem muitas outras formas de sintetizar a posição desvantajosa
dos pobres. O jornalista Jonathan Chait chamou a atenção para duas
das mais reveladoras estatísticas do Projeto de Mobilidade Económica
e para a pesquisa por parte do Instituto de Política Económica.79

• As crianças pobres que tiveram êxito escolar têm menos


probabilidade de se licenciarem do que as crianças ricas que
têm piores resultados escolares.80
• Mesmo que consigam acabar os estudos universitários, os filhos
de pobres estão em pior situação que os filhos de ricos.81

Nada disto surpreende: a educação é fulcral para o êxito. No topo


da pirâmide social, o país fornece uma educação que é das melhores
do mundo. Por outro lado, o americano médio apenas tem acesso a
uma educação média – a matemática, disciplina fundamental para se
ter êxito em diversos domínios da vida moderna, o seu nível é
medíocre. Em contraste, noutros contextos como a China (Xangai e
Hong Kong), a Coreia do Sul, a Finlândia, a cidade de Singapura, o
Canadá, a Nova Zelândia, o Japão, a Austrália, a Holanda e a Bélgica,
os resultados são bastante superiores à média americana em todos os
testes (leitura e matemática).82
Um cruel reflexo da desigualdade de oportunidades na sociedade
americana no que toca à educação é a composição do universo de
estudantes das universidades mais seletas do país. Apenas cerca de
9% dos estudantes provêm da metade inferior da pirâmide social,
enquanto os restantes 74% provêm da quarta parte mais alta da escala
social.83
Até aqui, descrevemos o quadro de uma economia e uma sociedade
cada vez mais dividida. Isto ficou demonstrado não só pelos dados
79
JOSEPH STIGLITZ

dos rendimentos, mas também da saúde, da educação e do crime – de


facto, em todos os âmbitos as avaliações realizadas foram negativas.
Embora as desigualdades nos rendimentos parentais e na educação
traduzam diretamente as desigualdades nas oportunidades educacionais,
as desigualdades de oportunidade são bem anteriores à escola. Come-
çam nas condições que os pobres enfrentam mesmo antes e depois
do nascimento, nas diferenças a nível da nutrição e da exposição a
poluentes ambientais que podem ter efeitos vitalícios.84 É tão difícil
para os que nascem pobres sair da pobreza, que os economistas
chamam a esta situação a «armadilha da pobreza».85
Mesmo que os dados demonstrem o contrário, os norte-americanos
continuam a acreditar no mito da igualdade de oportunidades. Uma
sondagem efetuada pela Pew Foundation descobriu que «quase sete
em cada dez norte-americanos já atingiram, ou esperavam atingir, o
Sonho Americano a dado momento das suas vidas».86 Mesmo
enquanto mito, a crença de que todos podem chegar lá tem as suas
vantagens: motiva as pessoas a trabalhar no duro. Promove o
sentimento de estarmos todos no mesmo barco; mesmo que alguns,
de momento, viajem em primeira classe enquanto outros viajam em
terceira classe. Na viagem seguinte, as suas posições podem ser
revertidas. Esta crença permitiu aos Estados Unidos evitar algumas
das divisões e tensões entre classes que marcavam alguns países
europeus. De modo semelhante, à medida que as pessoas vão tomando
consciência da realidade, e que a maioria dos norte-americanos percebe
por fim que o jogo económico está contra eles, tudo isto está em risco.
A alienação começou a substituir a motivação. Em vez da coesão
social passamos agora a ter de lidar com uma nova divisão.

Examinando de perto o topo da pirâmide e a fatia maior do bolo

Como observámos, a crescente desigualdade na nossa sociedade


é visível no topo, no meio e na base. Já analisámos o que está a aconte-
cer na base e no meio. Agora, observaremos melhor o topo.
Se as famílias pobres em dificuldades inspiram hoje a nossa com-
paixão, as do topo suscitam cada vez mais a nossa ira. Outrora, quando
80
O PREÇO DA DESIGUALDADE

havia um alargado consenso social de que os mais ricos ganhavam o


que mereciam, havia uma generalizada admiração por quem estava no
topo. Contudo, na crise recente os diretores-executivos dos bancos
receberam bónus descomunais pelas perdas descomunais, e as
empresas despediram trabalhadores, afirmando não haver dinheiro
para os manter, para depois usarem essas poupanças nos bónus
oferecidos aos executivos. Como consequência, a admiração pela
inteligência do topo deu lugar à raiva pela sua insensibilidade.
Os números das remunerações recebidas pelos diretores das
grandes empresas – incluindo os que provocaram a crise – falam por
si. Descrevemos anteriormente o enorme hiato entre o ordenado de
um diretor-executivo e o de um trabalhador comum – o primeiro
ganha 200 vezes mais –, um número bastante superior aos de outros
países (por exemplo, no Japão o rácio correspondente é de 16 para 1)87
e até bastante superior ao dos Estados Unidos há 25 anos.88
O antigo rácio norte-americano de 30 para 1 parece agora algo
estranho em comparação. Parece inacreditável que durante esse
período os diretores-executivos, enquanto grupo, tenham aumentado
tanto a sua produtividade, em relação ao trabalhador comum, que um
múltiplo de mais de 200 possa ser justificado. De facto, os dados
disponíveis sobre o êxito das empresas norte-americanas não dão
qualquer sustento a tal visão.89 O que é pior é que demos um mau
exemplo, já que os diretores-executivos noutros países do mundo
imitam os seus homólogos norte-americanos. A High Pay Commis-
sion do Reino Unido denunciou que os salários dos executivos das
grandes empresas estão a aproximar-se dos níveis vitorianos de desi-
gualdade, em comparação com o resto da sociedade (embora a atual
disparidade seja só tão escandalosa quanto a da década de 1920).90
Como se lê no relatório, «é importante que dentro das empresas os
salários sejam justos; afeta a produtividade, o envolvimento dos funcio-
nários e a confiança nas nossas empresas. Além do mais, os salários
nas empresas de capital aberto abrem um precedente, e quando esse
salário não está manifestamente ligado ao desempenho, ou premeia o
falhanço, envia uma mensagem errada e é um claro sintoma do falhanço
dos mercados».91

81
JOSEPH STIGLITZ

Comparações internacionais

Se olharmos para o mundo, os Estados Unidos não só têm o maior


nível de desigualdade dos países industrializados e desenvolvidos,
como também esse nível de desigualdade está a crescer em termos
absolutos em relação aos outros países. Os Estados Unidos eram o
mais desigual dos países desenvolvidos em meados da década de 1980,
e tem mantido essa posição.92 Na verdade, o hiato em relação a muitos
outros países aumentou: desde meados da década de 1980, a França,
a Hungria e a Bélgica não viram um aumento significativo da
desigualdade, enquanto a Turquia e a Grécia viram, de facto, um
decréscimo da desigualdade. Estamos agora a aproximar-nos do nível
de desigualdade característico de sociedades disfuncionais – é um
clube ao qual não queremos manifestamente pertencer, que inclui
países como o Irão, a Jamaica, El Salvador e as Filipinas.93
Por termos tanta desigualdade, e por esta estar em franco cresci-
mento, o que acontece à receita (ou PIB) per capita não reflete a vida de
um típico norte-americano. Se os rendimentos de Bill Gates e de
Warren Buffett sobem, o rendimento médio nos Estados Unidos sobe.
Mais significativo é o que está a acontecer ao rendimento mediano, o
rendimento de uma família de classe média, que, como vimos, não
tem subido nos últimos anos.
O PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
criou uma medida-padrão para o «desenvolvimento humano», que
combina avaliações de rendimentos, saúde e educação, ajustando no
fim esses números de modo a traduzir de forma mais completa a
desigualdade. Antes desta nova medida, os Estados Unidos pareciam
razoavelmente bem em 2011 – em quarto, antes da Noruega, da
Austrália e da Holanda. Mas assim que se tem em conta a desigualdade,
os Estados Unidos ocupam a vigésima terceira posição, atrás de todos
os países europeus. A diferença entre as classificações obtidas com
e sem o fator desigualdade foi a maior de todos os países
desenvolvidos.94 Todos os países escandinavos estão melhor classi-
ficados que os Estados Unidos e cada um deles providencia aos seus
cidadãos educação e assistência médica universal. Nos Estados
Unidos predomina a ideia de que os impostos necessários para
82
O PREÇO DA DESIGUALDADE

financiar estes benefícios asfixiam o crescimento. Longe disso. Por


exemplo, durante o período entre 2000 e 2010, a Suécia, país de
muitos impostos, cresceu muito mais depressa que os Estados Unidos.
As taxas de crescimento médio deste país excederam as dos Estados
Unidos – 2,31% ao ano contra 1,85%.95
Como me disse um ex-ministro das Finanças de um destes países:
«Crescemos tão depressa e tão bem por causa dos impostos altos.»
Claro que o que ele queria dizer não era que os impostos em si con-
duziam a um maior crescimento, mas que os impostos financiavam
a despesa pública – investimentos na educação, na tecnologia e nas
infraestruturas – e que era esta que sustentava o alto crescimento,
compensando de longe quaisquer efeitos adversos dos impostos
altos.

Coeficiente de Gini

Uma das medidas da desigualdade comummente utilizadas é o


coeficiente de Gini. Se a receita fosse partilhada proporcionalmente
com a população – se os 10% da base recebessem 10% da receita, se
os 20% da base recebessem 10% da receita, e por aí adiante –, o
coeficiente de Gini seria de zero. Não haveria desigualdade. Por outro
lado, se todos os rendimentos fossem para a pessoa que estivesse na
posição mais alta, no topo, o coeficiente de Gini seria de um, o que
corresponderia à completa desigualdade. As sociedades mais equitativas
têm coeficientes de Gini de 0,3 ou menos, como por exemplo, a Suécia,
a Noruega e a Alemanha.96 As sociedades mais desiguais têm coeficientes
de Gini de 0,5 ou mais, como é o caso de alguns países africanos (em
particular a África do Sul com a sua grotesca história de desigualdade
racial) e da América Latina, onde há uma prolongada tradição de
políticas e sociedades fraturantes (e muitas vezes disfuncionais).97 Os
Estados Unidos ainda não entraram neste grupo de «elite», mas está no
bom caminho. Em 1980 o nosso coeficiente de Gini era praticamente
de 0,4; hoje é de 0,48.98 De acordo com os dados das Nações Unidas,
somos um pouco mais desiguais que o Irão e a Turquia99, e muito
menos iguais que qualquer país da União Europeia.100
83
JOSEPH STIGLITZ

Para concluir esta comparação internacional, voltamos a um tema


que levantámos anteriormente: os indicadores da desigualdade de
rendimentos não captam na totalidade os aspectos críticos da
desigualdade. Nos Estados Unidos a situação poderá ser, de facto, bem
pior do que sugerem os números. Noutros países desenvolvidos, as
famílias não têm de se preocupar com a forma como vão pagar a conta
do médico, ou se terão dinheiro para pagar a assistência médica dos
pais. O acesso a um serviço de saúde decente é tido como um direito
humano básico. Noutros países, a perda de emprego é algo sério, mas
há pelo menos uma melhor segurança social. Não existe outro país
onde haja tanta gente preocupada com a perda da casa. Para os norte-
-americanos da classe mais baixa e da classe média, a insegurança eco-
nómica tornou-se um facto da vida. É real, é importante, mas não é
captada nestas medições. Se fosse, estas comparações internacionais
pintariam um pior cenário do que está a acontecer nos Estados Unidos.

Comentários finais

Nos anos antes da crise, muitos europeus olhavam para os Estados


Unidos como um modelo a seguir e perguntavam como poderiam
reformar a sua economia de modo a ter um desempenho tão bom
quanto o americano. A Europa também tem os seus problemas,
provocados principalmente pela união dos países numa moeda única
sem efetuarem as necessárias reestruturações políticas e institucionais,
e pagarão um preço alto por essa falha. Mas pondo isso de lado, os
europeus (e os povos doutros países do mundo) sabem agora que o
PIB per capita não fornece um retrato fiel do que está a acontecer à
maioria dos cidadãos – deste modo, também não nos diz algo
fundamental, que é se a economia está a funcionar bem ou não. Hoje,
já não é esse o caso. É óbvio que os economistas que estavam por
dentro do assunto sabiam já em 2008 que o crescimento baseado na
dívida não era sustentável; e mesmo quando tudo parecia estar a correr
bem, os rendimentos e a riqueza da maioria dos norte-americanos
estavam a decrescer, assim como os ganhos descomunais das elites
estavam a distorcer o quadro geral.
84
O PREÇO DA DESIGUALDADE

O êxito de uma economia só pode ser avaliado se olharmos para


o que acontece aos padrões de vida – de um modo geral – da maioria
dos cidadãos durante um período de tempo continuado. Nesses termos,
a economia norte-americana não se tem portado bem, e isto já dura há
pelo menos um terço de século. Embora tenha conseguido aumentar
o PIB per capita, três quartos de 1980 a 2010101, a maioria dos trabalha-
dores masculinos a tempo inteiro tem, como observámos, visto os seus
rendimentos decrescer. Para estes trabalhadores, a economia norte-
-americana não está a conseguir efetuar a melhoria dos padrões de vida
que esperavam. Não que a economia norte-americana tenha perdido
a capacidade de produzir, a questão é que o modo como o motor eco-
nómico norte-americano tem sido gerido tem dado os benefícios desse
crescimento a um cada vez mais reduzido grupo no topo, e inclusive
tem desviado alguma da riqueza que antes ia para a base.
Este capítulo esclareceu alguns duros e desconfortáveis factos
sobre a economia norte-americana:

a) O recente crescimento dos rendimentos nos EUA ocorre essen-


cialmente no 1% do topo da distribuição de rendimentos;
b) Como resultado, verifica-se uma crescente desigualdade;
c) Os cidadãos da base e os da classe média vivem hoje pior do
que viviam no início do século;
d) As desigualdades na riqueza são ainda maiores que as desigual-
dades nos rendimentos;
e) As desigualdades são evidentes não só nos rendimentos, mas
também em muitas outras variáveis que refletem os padrões de
vida, tais como a insegurança e a saúde;
f) A vida é particularmente difícil para a classe mais baixa, e a
recessão tornou-a muito pior;
g) Tem-se verificado um certo esvaziamento da classe média;
h) Existe pouca mobilidade dos rendimentos – a ideia dos EUA
enquanto terra de oportunidades não passa de um mito;
i) Por fim, os Estados Unidos têm mais desigualdade que qualquer
outro país desenvolvido, faz menos para corrigir estas
desigualdades, e a desigualdade cresce mais que em muitos
outros países.
85
JOSEPH STIGLITZ

A Direita norte-americana considera inconvenientes os factos


descritos neste capítulo. A análise é contrária a alguns dos mitos mais
amados pelo povo e que a Direita gostaria de propagar: que os Estados
Unidos são uma terra de oportunidades, que a maioria dos cidadãos
tem beneficiado da economia de mercado, sobretudo desde que Rea-
gan desregulou a economia e reduziu a ação do Estado. A Direita
gostaria de negar os factos, mas a acumulação de dados dificulta-lhe
ainda mais a negação. Não pode sobretudo negar que as classes mais
desfavorecidas e a classe média estão a passar um mau bocado nem que
os do topo da pirâmide social estão a ficar com uma porção cada vez
maior da riqueza – uma porção tão maior, que o que resta para os
outros é reduzido; é impossível negar que as hipóteses que os da base
e os do meio têm de chegar ao topo são bem inferiores às hipóteses
que os do topo têm de lá permanecer. A Direita também não pode
defender a ideia de que o Estado não pode ajudar a melhorar a pobreza
– pelo contrário, tem ajudado, sobretudo entre os idosos. Isto significa
que os cortes nos programas governamentais, incluindo na Segurança
Social, se não forem planeados com cuidado, muito provavelmente
farão aumentar ainda mais a pobreza.
Em resposta, a Direita dá-nos quatro argumentos. O primeiro é
que, todos os anos, há sempre uns que acabam na miséria e outros
que prosperam. O que de facto importa é a desigualdade durante
toda a vida. Os que têm rendimentos mais baixos terão, em geral,
rendimentos mais altos em anos posteriores, e por isso a desigualdade
ao longo da vida é menor do que a sugerida pelos dados. Os
economistas têm analisado bem as diferenças dos rendimentos ao
longo da vida e, infelizmente, a ideia da Direita não reflete a realidade
de hoje: a desigualdade vitalícia é enorme e cresceu imenso nos
últimos anos.102
A Direita por vezes também afirma que a pobreza nos Estados
Unidos não é uma pobreza verdadeira. Apesar de tudo, muitos dos
que vivem na pobreza têm acesso a comodidades que não estão
disponíveis aos pobres de outros países. Deviam estar gratos por
viverem nos Estados Unidos da América. Têm televisões, água cana-
lizada, aquecimento (a maioria das vezes) e acesso a escolas públicas.
Todavia, como descobriu um painel da Academia Nacional de
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O PREÇO DA DESIGUALDADE

Ciências103, não podemos ignorar a privação relativa. Os padrões


básicos de saneamento das cidades norte-americanas fazem com que
o acesso a água canalizada seja algo natural. A existência de televisões
chinesas baratas permite que os pobres as possam adquirir. Na verdade,
mesmo em aldeias chinesas e indianas pobres existe um acesso geral
à televisão. No mundo de hoje, isto não é sinal de riqueza. O facto de
as pessoas poderem usufruir de uma pequena televisão não significa
que não enfrentem a pobreza extrema – nem significa que estejam a
participar no sonho americano.104
A terceira réplica é a de tergiversar as estatísticas. Alguns são capa-
zes de alegar que a inflação está a ser sobrestimada, e que talvez por
isso o aumento dos rendimentos esteja a ser subestimado. Porém, na
verdade, suspeito que os números subestimam as dificuldades que a
típica família norte-americana enfrenta. Uma vez que os cidadãos
trabalham mais horas para manter o nível de vida – «pela família» –,
a vida familiar costuma sofrer por isso. Neste capítulo já descrevemos
o crescente nível de insegurança que os pobres e a classe média
enfrentam nos Estados Unidos, e isto, também, não está refletido nas
estatísticas dos rendimentos. É possível que a verdadeira desigualdade
seja bem maior que a sugerida pelos índices de desigualdade dos
rendimentos. Na realidade, como observámos anteriormente, quando
recentemente o INE olhou com maior cuidado para as estatísticas da
pobreza, descobriu que a taxa de pobreza de 2010 subiu de 15,2%
para 16%.105
O último argumento da Direita passa por uma justificação econó-
mica e moral da desigualdade, acompanhada pela alegação de que a
tentativa de contrariar o status quo simplesmente «matará a galinha dos
ovos de d’ouro», enfraquecendo de tal modo a economia norte-
-americana, que até os pobres sofrerão.106 Segundo Mitt Romney, a
desigualdade é o tipo de coisa que deve ser discutida com calma e em
privado.107 Os pobres, nesta terra de oportunidades, só se podem culpar
a si próprios. Em capítulos seguintes abordaremos estes argumentos.
Demonstraremos que, na maior parte dos casos, não só não devemos
culpar os pobres pela sua condição, como a argumentação dessa elite,
que presume ter ganhado o seu dinheiro «por si só», não tem grande
mérito. Veremos que os 1% não são, no geral, os que ganharam os seus
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JOSEPH STIGLITZ

rendimentos através de grandes contributos sociais, nem são eles os


grandes pensadores que transformaram a nossa perceção do mundo
ou os grandes inovadores que transformaram a nossa economia.
Também explicaremos por que motivos a criação de uma sociedade
mais igualitária pode criar uma economia mais dinâmica.
O trauma da Grande Recessão – com tanta gente a perder o
emprego e a casa – acionou uma reação em cadeia que afeta não só
as vidas dos indivíduos em questão, como também toda a sociedade.
Agora vemos que, para a maioria dos norte-americanos, a economia
não estava, de facto, a funcionar como devia, mesmo antes da recessão.
Não podemos mais ignorar a crescente desigualdade nos Estados
Unidos e as suas graves consequências económicas, políticas e sociais.
Mas se queremos perceber o que temos de fazer quanto a isso, temos
de entender as forças económicas, políticas e sociais que dão origem
a esta desigualdade.

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