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Emmanuel Kant

Razão, liberdade, lógica e ética

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Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS

Reitor
Aloysio Bohnen, SJ

Vice-reitor
Marcelo Fernandes Aquino, SJ

Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Diretor
Inácio Neutzling, SJ

Diretora Adjunta
Hiliana Reis

Gerente Administrativo
Jacinto Schneider

Cadernos IHU em formação


Ano 1 – Nº 2 – 2005
ISSN 1807-7862

Editor
Prof. Dr. Inácio Neutzling, SJ – Diretor do IHU – Unisinos

Conselho Editorial
MS Dárnis Corbellini – IHU – Unisinos
Prof. MS Gilberto Antônio Faggion – Economia – Unisinos
Profa. Dra. Hiliana Reis – PPG de Comunicação – Unisinos
Prof. MS Laurício Neumann – Ciências Humanas – Unisinos
MS Rosa Maria Serra Bavaresco – IHU – Unisinos
Profa. MS Vera Regina Schmitz – Ciências da Comunicação – Unisinos
Esp. Susana Maria Rocca Larrosa – IHU – Unisinos

Responsável Técnico
Laurício Neumann

Revisão – Língua Portuguesa


Mardilê Friedrich Fabre

Revisão Digital
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Projeto gráfico e editoração eletrônica


Rafael Tarcísio Forneck

Impressão
Impressos Portão

Universidade do Vale do Rio dos Sinos


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Av. Unisinos, 950, 93022-000 São Leopoldo RS Brasil
Tel.: 51.5908223 – Fax: 51.5908467
www.ihu.unisinos.br

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Sumário

Apresentação
Por Adriano Naves de Brito................................................................................................... 4

Emmanuel Kant
Biografia ............................................................................................................................... 8

A Herança de Kant: A vinculação radical entre razão, liberdade e ética


Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira ......................................................................... 10

Kant: um investigador aberto a todas as possibilidades


Entrevista com Guido Antônio de Almeida............................................................................ 13

A pergunta de Kant ao PT: “Estamos construindo instituições em que soberanias popula-


res estão articuladas com os direitos humanos?”
Entrevista com Ricardo Terra ................................................................................................ 17

Uma ética motivada pelo desejo de realização da humanidade


Entrevista com Valério Rohden ............................................................................................. 21

Lógica e Metafísica em Kant e Nietzsche


Entrevista com Rogério Vaz Trapp ........................................................................................ 23

Kant entre os sentimentos, a razão e a barbárie


Por Adriano Naves de Brito.................................................................................................. 25

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Os Cadernos IHU em formação são uma publicação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, que reú-
ne, num caderno, entrevistas e artigos sobre o mesmo tema, já divulgados no Boletim IHU On-Line.
Deste modo, queremos facilitar a discussão na academia e fora dela, em torno de temas considerados
de fronteira, relacionados com a ética, trabalho, teologia pública, filosofia, política, economia, literatura,
movimentos sociais, etc. que caracterizam o Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

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Apresentação

O que há de contemporâneo em Kant? to e direção. A boa filosofia deve ser capaz de, a
despeito de sua profundidade, falar aos homens,
Em 2004, o mundo acadêmico comemorou responder a suas inquietações, inaugurar-lhes ho-
o bicentenário da morte de Emmanuel Kant. A rizontes de pensamento.
força do pensamento kantiano, atestada por sua A filosofia de Kant é notadamente complexa,
duradoura e vasta influência em diversas áreas mas inequivocamente dirigida aos homens, à hu-
das ciências humanas, teria sido justificativa sufi- manidade, e não apenas aos filósofos. Ao longo
ciente para se ter adornado a data com honrarias do conjunto de entrevistas que compõem este vo-
e celebrações. As cerimônias que a data ensejou lume, o leitor terá a oportunidade de conferir com
foram muitas, em diversos países e de modo al- que destreza e humildade o pensamento kantiano
gum circunscritas ao ano que passou. Seguimos, pode nos falar hoje. O balanço é positivo, segun-
na filosofia, sob a égide das homenagens a Kant. do me parece, mas não deve impressionar nem
Uma das mais significativas ocorrerá no Brasil em pela legítima autoridade dos que falam, nem pela
setembro deste ano, como nos dá conta Valério grandeza daquele sobre quem comentam. O que
Rohden, presidente da Sociedade Kant Brasileira, Kant edificou com seu pensamento seria inteira-
em entrevista neste número dos Cadernos IHU mente posto ao chão se, sobre a verdade de tudo,
em formação. No período, o país receberá, no inclusive do próprio pensamento de Kant, cada
campus da USP, o X Congresso Kant Internacional, um não tomasse para si a máxima de pensar por si
reunião de schollars de todo o mundo que debate- mesmo; o que significa “procurar em si próprio
rão as entranhas da filosofia kantiana, mas terão (isto é, na sua própria razão) a suprema pedra de
também a tarefa de mostrar que ela pode fornecer toque da verdade; e a máxima de pensar sempre
a nós, homens do mundo contemporâneo, respostas por si mesmo é a Ilustração (Aufklärung)… Ser-
para os complexos problemas que nos desafiam. vir-se de sua própria razão, quer apenas dizer que,
Pode Kant, filósofo cuja produção data do em tudo o que se deve aceitar, se faz a si mesmo
século XVIII, falar com pertinência aos homens do esta pergunta: será possível transformar um prin-
século XXI? Há algo de tão contemporâneo em cípio universal do uso da razão, aquele pelo qual
Kant que possa vivificar o seu pensamento para o se admite algo, ou também a regra que se segue
homem letrado deste século e não apenas para os do que se admite?” (Kant, “O que significa orien-
acadêmicos de nosso tempo? Creio que a tônica tar-se no pensamento”. 1786, A 330).
deste caderno, dedicado a Emmanuel Kant, é Assim é que o pior que se pode fazer à filoso-
dada por estas perguntas. A se medir a atualidade fia kantiana é não submetê-la ao escrutínio do juí-
de Kant pela vastíssima e crescente bibliografia zo de cada um, transformando-a num dogma. No
que a sua filosofia tem merecido nas últimas déca- que toca a esta devoção ao pensamento autôno-
das, a resposta deveria ser inequivocamente posi- mo, sua filosofia, aliás, não é original (o que não
tiva. Contudo, essa resposta não satisfaz ao leitor diminui a relevância do ponto), mas filha de seu
que não está entre os estudiosos da filosofia, mas tempo. Um tempo em que o homem tomou posse
que, em virtude de sua humana condição, se con- de sua razão e depositou nela todas as esperanças
ta entre os que esperam dela algum esclarecimen- de tornar o mundo melhor; o tempo do esclareci-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

mento. Kant é um pensador da Aufklärung – como idéia de usar a linguagem como meio de investi-
bem aponta Rogério Trapp – e o Esclarecimento, gação das faculdades mentais do homem, e, por-
em cujo âmbito seu pensamento está inserido, tanto, como meio para a razão avaliar-se a si mes-
conclama os homens a usar de sua própria razão, ma, embora devedora em sua gênese do empiris-
conclama-os a pensar com liberdade e a agir auto- mo inglês, foi conduzida por Kant com tal geniali-
nomamente. Tome então, o leitor, já de partida, dade, no cruzamento que faz com o racionalismo,
como adágio para a leitura deste Caderno, pensar que praticamente não há contemporaneamente
por si próprio, mesmo lá onde isso o leve a duvi- posição filosófica alguma que não tope, em algu-
dar das próprias capacidades da razão, seja de co- ma altura, com posições kantianas. Nesse aspec-
nhecer o mundo, seja de redimir a humanidade. to, ele se situa num cruzamento de posições fun-
A questão da contemporaneidade de Kant damentais e por isso estudar seu pensamento teó-
tem na possibilidade e alcance da razão o seu rico é decisivo para qualquer pensador de hoje,
ponto de inflexão. Pensador crítico, construiu sua sob pena de ele navegar sem saber de que porto
filosofia mediante a demarcação dos limites da ra- partiu sua nave.
zão, mas munido dos instrumentos que ela pró- Mas também na ponta prática, o problema
pria para isso podia oferecer. O combate ao dog- dos limites da razão se coloca. Afinal, pode o ho-
matismo, ponto ressaltado por Guido Almeida mem guiar-se moralmente apenas pela razão? As
como um dos mais importantes legados do filóso- entrevistas deste caderno deixam entrever clara-
fo, tem em Kant o caráter de um movimento da ra- mente que dentre as heranças mais vivas de Kant
zão sobre si mesma para limitar-se. Ora, cabe per- para o mundo ocidental está a sua filosofia moral,
guntar, no uso de nossa liberdade de discernimen- se não por seu apelo racional, então por sua filia-
to, se pode o olho que tudo vê, discernir os limites ção à tradição cristã. Ora, também aqui, no cam-
entre isto – o que é visto – e o que lhe está fora de po prático, a filosofia kantiana denuncia sua ori-
alcance. Ricardo Terra, em sua entrevista, ao gem histórica. Mas ao contrário do que se passa
mencionar a questão da coisa em si, toca numa com sua filosofia teórica, o que de Kant é atual na
das pontas dessa questão, qual seja, a ponta teóri- moral é tanto o seu procedimento de análise e
ca. A distinção kantiana entre fenômeno e coisa fundamentação do fenômeno, quanto o conteúdo
em si, fundamental para a sua crítica à metafísica, de sua doutrina. Se por um lado, o racionalismo
esteve entre os aspectos mais disputados pelos fi- kantiano permite a generalização do conteúdo
lósofos que imediatamente o sucederam e que, a moral de suas reflexões, este conteúdo condiz
partir dele, compuseram o idealismo alemão. com a intuição ordinária sobre o valor moral das
A filosofia kantiana é devedora da ciência de ações, qual seja, que tal valor está justamente lá
seu tempo e assim como essa ciência – a física de para onde as nossas humanas inclinações sensí-
Newton – foi severamente abalada pelas teorias fí- veis não nos conduzem naturalmente. O valor, em
sicas contemporâneas, as concepções teóricas de outros termos, está onde o desejo não está, mas
Kant também têm de ser filtradas pelas conquistas lá, para onde a razão, sozinha, dita que nossa
científicas hodiernas. De fato, as concepções kan- ação deva dirigir-se.
tianas de cunho teórico influenciam hoje muito O rigorismo da moral kantiana, presente na
mais pelo procedimento de investigação que ele idéia de que uma ação será boa somente se moti-
adotou em sua monumental obra, a Crítica da vada apenas pelo dever, tem sido, desde Scho-
Razão Pura, do que pelas conclusões a que che- penhauer, duramente criticado. Pode o homem
gou. Em especial, a investigação filosófica media- guiar-se no agir apenas pela razão? Pode a razão
da pela análise do juízo, seja ele teórico, prático ser prática, quer dizer, determinar por si mesma a
ou estético, conta entre os elementos que, em ação humana? Há algo como o interesse da liber-
meio à filosofia contemporânea que, como desta- dade pela razão? Não é o caso de tentar aqui
ca Manfredo de Oliveira, deu uma virada lingüísti- uma resposta a estas questões, mas posso, pelo
ca, garantem a Kant uma atualidade inegável. A menos, desdobrar o problema em uma perspecti-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

va que situe melhor, assim como o vejo, o fato de motivada unicamente pelo mandamento da von-
Kant tomar a razão como eixo da moral. Num tade conforme a lei moral, quer dizer, pela pura
sentido que ainda precisa ficar claro, Kant não determinação da Razão, é certamente segundo
tem nenhuma pretensão de reformador moral. ela “que cada um julga se as ações são boas ou
Ao contrário, a moralidade, tal como a encon- más” (KprV, 122). E se é verdade que, por maior
tramos no mundo, está bem assim como é. que seja a virtude do agente, sempre haverá a
Erram, pois, os críticos de Kant que o julgam possibilidade de que sua ação tenha sido motiva-
como o pensador de uma moral impossível para da por um móbil sensível e a ele mesmo, o agente,
o comum dos mortais. Nada pode estar mais completamente desconhecido e imperceptível; é
distante da filosofia moral kantiana, e isso mes- igualmente certo que onde termina a influência da
mo que talvez nunca tenha havido no mundo – sensibilidade, aí começa “o valor do caráter, que
quiçá à exceção de Cristo – uma ação legitima- é, moralmente sem qualquer comparação, o mais
mente moral. alto, e que consiste em fazer o bem, não por incli-
O interesse pela concordância do conheci- nação, mas por dever” (GMS, BA 12). Por isso, tem
mento prático que a filosofia crítica pode auferir mais valor a filantropia do avarento que a genero-
com as intuições vulgares a respeito da moral é sidade do despojado; a benevolência do bruto,
uma constante fundamental nos escritos práticos que a afabilidade do gentil.
de Kant. Na verdade, o que esses escritos querem Portanto, aquilo do que a filosofia moral kan-
fundar são justamente as sadias intuições morais tiana dá conta é do valor absoluto que ele vê pre-
que qualquer um, mesmo os menos dotados de sente nos juízos morais que os homens fazem so-
capacidades intelectuais, tem. Escreverá ele no bre as ações suas e dos outros. Se uma filosofia re-
prefácio à Fundamentação: “… a razão humana cusa as conclusões kantianas e o rigorismo que ele
no campo moral, mesmo no caso do mais vulgar vincula à noção de dever, tem ainda de explicar a
entendimento, pode ser facilmente levada a um origem do valor assim como ele se apresenta nos
alto grau de justeza e desenvolvimento …” (GMS, juízos morais humanos, quer dizer, um valor que
BA XIV). Por isso mesmo, considera ele, a tarefa cresce na medida inversa que diminui a influência
de escrever uma crítica da razão pura em seu uso das inclinações sobre o agir.
prático é muito menos necessária que a crítica de É claro que a pergunta pela felicidade eclode
seu uso teórico (GMS, BA XIV). com toda a força quando confrontamos o rigor do
Mas como compatibilizar esta crença na ca- dever com as reais circunstâncias da vida huma-
pacidade de discernimento prático do senso co- na. Para esta vida e as comunidades e estados
mum com o conhecido ceticismo kantiano quanto que nela os homens edificam, Kant tem, em sua fi-
à pureza dos motivos do agir humano? Ora, no to- losofia, um lugar preciso e jamais esquecido. Se
cante a isso, a desconfiança é tão kantiana quanto suas reflexões fundantes terminam por levá-lo
a de qualquer homem entre os homens, e disso dá para as esferas mais altas e transcendentais do
prova a severidade dos juízos de cada um sobre o pensamento, os pés da filosofia kantiana nunca
valor de suas próprias ações e das ações dos ou- abandonaram o solo do mundo. E mesmo que
tros. Se o discernimento prático é moeda comum seus fundamentos, expostos nas obras críticas,
entre os homens, o valor moral é aí jóia rara e possam falhar, ainda assim haverá muito a apren-
quando se trata de aquilatar sua legitimidade, são der da descrição kantiana do mundo humano, en-
eles ourives cuidadosos contra a especiosidade crustada em sua filosofia política, do direito, da re-
dos caracteres. ligião e, é claro, em sua antropologia. Tudo isso
É evidente, então, que aquilo que Kant alme- compõe um riquíssimo corolário descritivo do ho-
ja: que sua filosofia prática concorde com a co- mem ao qual se soma um conjunto harmônico de
mum moralidade não são as ações dos homens, sabedoria prudencial e que garantem à sua obra
mas o juízo que eles delas fazem. Se é de todo in- pelo menos a universalidade estética da boa
certo que alguma ação tenha sido levada a termo literatura.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

No espírito de uma reflexão que chama a fi- dos Cadernos IHU em formação dedicado a
losofia de Kant para pensar o tempo presente a Kant, o texto que segue esta apresentação. A to-
partir de sua descrição do homem, deixo ao lei- dos uma agradável e frutífera leitura.
tor, antes de entregá-lo ao variegado cardápio
das entrevistas e textos reunidos neste volume
Dr. Adriano Naves de Brito

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Emmanuel Kant

Reproduzimos uma biografia de Emmanuel sobre a Maneira Verdadeira de Calcular as


Kant, escrita por Rubem Q. Cobra, disponível na pá- Forças Vivas.
gina de Filosofia Moderna Geocities: http://www.an- Aos 21 anos – apesar de haver decidido se-
troposmoderno.com/biografias/Kant.html guir uma carreira acadêmica –, com a morte de
seu pai em 1746 e o seu fracasso em obter o posto
Emmanuel Kant (1724-1804), filósofo ale- de subtutor em uma das escolas ligadas à universi-
mão, em geral considerado o pensador mais influ- dade, Kant se viu obrigado a desistir temporaria-
ente dos tempos modernos, nasceu em Königs- mente de seu projeto e a buscar meios imediatos
berg, atual Kaliningrado, em 22 de abril de 1724. de se manter. Foi compelido a suspender os estu-
Não casou nem teve filhos, falecendo no dia 12 de dos universitários e ganhar a vida como tutor par-
fevereiro de 1804 aos 80 anos. Kaliningrado si- ticular. Durante nove anos, manteve essa ocupa-
tua-se onde foi a Prússia Oriental, um território no ção, atividade em que foi bem sucedido e que lhe
litoral sul do Báltico, parte da Rússia desde 1946. permitiu conviver com a sociedade mais influente
Kant era filho de um artesão que trabalhava e refinada de seu tempo. Serviu a três famílias di-
couro e fabricava selas. Sua mãe, de origem ale- ferentes, tendo, nesse período, viajado à cidade
mã, embora não tivesse estudo, foi mulher ad- próxima de Arnsdorf. Em 1755, ele retornou a Kö-
mirada pelo seu caráter e pela sua inteligência nigsberg e lá passou o restante de sua vida.
natural. Seus pais eram do ramo pietista da Igre- Em 1755, ajudado por um amigo, Kant pôde
ja Luterana, uma subdenominação que requeria completar seus estudos na universidade. Obteve
dos fiéis vida simples e integral obediência à lei seu doutorado e assumiu a posição de livre do-
moral. cente (Privatdozent, professor sem salário).
A influência de seu pastor permitiu a Kant, o A seguir, por 15 anos, ele ensinou na univer-
quarto de 11 crianças, porém o mais velho sobre- sidade, primeiro dando aulas de Ciência e Mate-
vivente, entrar na escola pietista onde estudou, mática, mas gradualmente ampliando seu campo
por oito anos e meio, principalmente os clássicos de interesse a quase todos os ramos da filosofia. A
latinos. Física newtoniana o impressionou, não apenas
Em 1740, aos dezesseis anos, Kant entrou pelas suas implicações filosóficas, mas também
para a universidade de Königsberg onde estudou pelo seu conteúdo científico. Comoveram-no
até os 21 anos. Apesar de ter assistido a cursos de igualmente as asserções leibnizianas, as quais criti-
teologia e até pregado alguns sermões, ele foi atraí- caria no futuro. A fama de Kant como professor e
do mais pela matemática e pela física. Ajudado escritor aumentou constantemente durante seus
por um jovem professor, Martin Knutzen, que ha- 15 anos como livre-docente. Cedo ele já leciona-
via estudado Christian Wolff, um sistematizador va sobre muitos assuntos, além de física e mate-
da filosofia racionalista, e que também era um en- mática, incluindo lógica, metafísica e filosofia mo-
tusiasta da ciência de Sir Isaac Newton, Kant co- ral. Até mesmo ensinou sobre fogos de artifício e
meçou a ler os trabalhos deste físico inglês e, em fortificações e cada verão, por 30 anos, deu um
1744, começou seu primeiro livro, o qual tratava curso popular sobre Geografia Física. Ele teve
de um problema relativo a forças cinéticas, Idéias grande sucesso como professor: seu estilo, que di-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

feria grandemente daquele de seus livros, era hu- Com pouco mais de 1,50 m de altura, com o
morístico e vivo, vivificados por muitos exemplos peito deformado e sofrendo de saúde precária,
de suas leituras em literatura inglesa e francesa, vi- Kant manteve através da sua vida um severo regi-
agem e geografia, ciência e filosofia. me. Era um sistema cumprido com tal regularida-
Embora as aulas e os trabalhos escritos nes- de que as pessoas diziam poder acertar os relógios
ses 15 anos como livre-docente estabeleceram sua de acordo com sua caminhada diária ao longo da
reputação como um filósofo original, ele não rece- rua, que depois recebeu o nome, em sua homena-
beu uma cadeira na universidade até 1770, quan- gem, de “Caminhada do Filósofo”, até que a ida-
do se tornou professor de Lógica e Metafísica, de o impediu. Sabe-se que ele somente deixou de
uma posição que manteve até 1797, continuan- aparecer regularmente na ocasião em que o Emi-
do, nesses 27 anos, a atrair grande número de es- le, de Rousseau o fascinou tanto que ele ficou em
tudantes para Königsberg. casa por vários dias para poder lê-lo.
O ensino não-ortodoxo de religião de Kant, Após um declínio gradual, que foi muito do-
que era baseado no racionalismo mais que na reve- loroso para seus amigos, tanto quanto para ele
lação, colocaram-no em conflito com o governo da próprio, Kant morreu em Königsberg, em 12 de fe-
Prússia e, em 1792, ele foi proibido pelo rei Frederi- vereiro de 1804. Suas últimas palavras foram:
co Guilherme II de ensinar ou escrever sobre temas “Isto é bom”. Segundo a revista Der Spiegel,
religiosos. Kant obedeceu a essa ordem por cinco 29-12-03, ele sofreu, no final da vida, de uma do-
anos, até a morte do rei e então se sentiu liberado ença semelhante a Alzheimer e não conhecia mais
dessa proibição. Em 1798, o ano que se seguiu à os mais próximos dele.
sua aposentadoria da universidade, ele publicou um A Crítica da Razão pura foi publicada em
resumo de seus pontos de vista religiosos. 1781 e a Crítica da Razão prática, em 1788.

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A herança de Kant:
A vinculação radical entre razão, liberdade e ética

Entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira

Contribuindo com suas reflexões sobre a im- que não é fundamento de si mesma, portanto,
portância do pensamento de Kant, o professor que é essencialmente contingente e limitada. Mas
Manfredo Araújo de Oliveira, da Universidade Fe- ele também estaria feliz de ver que neste contexto,
deral do Ceará, Departamento de Filosofia, con- a partir da reviravolta lingüística, se renova hoje,
cedeu ao IHU On-Line a entrevista que publica- em alguns pensadores, a perspectiva nova que ele
mos a seguir. Graduado em Filosofia pela Facul- abriu para a filosofia: a da reflexão transcendental
dade de Filosofia de Fortaleza, obteve mestrado sobre os pressupostos irrecusáveis de nosso co-
em Teologia pela Pontifícia Universidade Grego- nhecimento finito.
riana de Roma (PUG) Itália, com dissertação inti-
tulada A concupiscência na teologia de Karl Rah- IHU On-Line – A partir da concepção de ética
ner. Cursou o doutorado em Filosofia na Universi- de Kant, quais seriam apontados como prin-
tät München Ludwig Maximilian, na Alemanha, e cipais problemas éticos da globalização?
sua tese teve o título Subjetividade e mediação: Manfredo de Oliveira – Ele retomaria suas con-
estudos sobre o desenvolvimento do pensamento siderações de uma filosofia do “direito cosmopoli-
transcendental em Kant, E. Husserl e H. Wagner. ta”, que trata das relações dos estados nacionais
É autor de várias obras, entre elas Diálogos en- entre si. A questão subjacente para Kant é aqui a
tre razão e fé. São Paulo: Paulinas, 2000; Desa- efetivação da paz. Assim como os estados nacio-
fios éticos da globalização. São Paulo: Pauli- nais garantem a paz internamente pelo estabeleci-
nas, 2001; e Para além da fragmentação. São mento do direito, também a paz global só pode ser
Paulo: Loyola, 2002. garantida se pensarmos numa “república mun-
dial”, isto é, no estabelecimento de normas jurídi-
IHU On-Line – Como Emmanuel Kant veria cas universais que possam reger, de forma racio-
o momento pelo qual está passando a filo- nal, as relações dos estados entre si. Portanto, ele
sofia contemporânea? estaria muito bem situado nas discussões atuais
Manfredo de Oliveira – Ele certamente veria sobre um estado universal, que emergiram a partir
como um momento que apresenta traços estrutu- do novo contexto de um mundo que se globaliza.
rais muito semelhantes a seu próprio tempo. Em
primeiro lugar, trata-se de uma filosofia que levou IHU On-Line – Nos últimos dias, notícias
adiante sua crítica às pretensões metafísicas de se sobre falta de ética na política têm lotado
articular como teoria do Absoluto e a partir do os jornais ao ponto de chegar a se perguntar
Absoluto.O pensamento contemporâneo apro- se é possível a ética na política. O filósofo
funda a idéia de que nossa consciência é finita, José Arthur Gianotti disse em recente arti-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

go que é próprio do mundo da política uma salismo diz respeito às condições de possibilidade
certa zona de amoralidade e que é insensa- da efetivação da liberdade na vida dos povos. Ele
to exercer o poder beneficiando o inimigo. não aprovaria, pois, qualquer associação de po-
Como se relacionam em Kant ética, moral e vos, mas somente aquelas que pudessem conduzir
política? a uma efetivação da liberdade.
Manfredo de Oliveira – Kant distinguiu na esfe-
ra da razão prática diferentes dimensões de nor- IHU On-Line – Qual era a compreensão do
matividade, ou diferentes níveis de legislação que, filósofo a respeito de Deus e qual sua visão
em última instância, dizem respeito às diversas es- do cristianismo?
feras de realização do ser humano como ser livre. Manfredo de Oliveira – Também aqui Kant foi
Isso significa que não existe dimensão da práxis inovador. Ele não reconheceu qualquer prova da
humana que escape à normatividade. Aqui tam- existência de Deus pela razão teórica: a análise do
bém vale o princípio: toda autoridade provém da aparato cognitivo do ser humano demonstra que
razão. É, contudo, muito importante a distinção tais pretensões são pura ilusão. O acesso à realida-
das “diversas esferas de normatividade” que não de divina se faz por outro caminho: sua preocupa-
está presente na nossa discussão atual. É funda- ção fundamental, no que diz respeito à religião,
mental a distinção entre a legislação ética que te- consistia em encontrar uma síntese entre, de um
matiza a lei fundamental da liberdade interna e a lado, os preceitos éticos e, de outro lado, a espe-
legislação jurídica que diz respeito à lei fundamen- rança na imortalidade e a fé em Deus. Portanto, o
tal da liberdade externa, na qual se situa propria- acesso que temos a Deus é de ordem moral: a di-
mente a problemática da política.O princípio do mensão moral do ser humano abre um caminho
direito formula a condição de coexistência de indi- em que Deus certamente não é demonstrável,
víduos livres, a condição de igual liberdade para mas pode ser postulado. No fundo, Kant assume a
todos. Assim, Kant define o direito como “a soma concepção de Deus do Iluminismo moderno para
das condições sob as quais o arbítrio de um pode quem Deus é o governante moral do mundo. O
ser unificado com o arbítrio do outro segundo conceito de Deus é essencialmente um conceito
uma lei universal da liberdade”. O direito é o prin- moral e, como tal, Deus é pensado em distancia-
cípio da liberdade externa, o que pressupõe a mento da revelação divina, das instituições religi-
idéia do ser humano como ser autônomo, portan- osas, portanto, para além das fronteiras das diver-
to, como um ser que tem direito à liberdade. Este sas religiões e confissões. Ele emerge como o Deus
é o direito originário que compete ao ser humano que une todos os homens. Neste contexto de pen-
na medida em que ele é ser humano. É a partir da- samento, a religião é essencialmente moral. Seu
qui que se pode entender as reflexões de Kant a julgamento das religiões positivas se faz a partir
respeito do direito político (sua preferência ética deste horizonte moral. Daí sua profunda admira-
pelo Estado de Direito em virtude do tratamento ção pelo cristianismo.
igual a todos os cidadãos) e do direito internacio-
nal (a idéia da “república mundial”). IHU On-Line – Qual é a herança mais impor-
tante que o filósofo deixou à contempo-
IHU On-Line – E a ética na economia? raneidade?
Como Emmanuel Kant avaliaria propostas Manfredo de Oliveira – Gostaria de sublinhar,
como a Alca? sobretudo, suas grandes intuições na esfera da ra-
Manfredo de Oliveira – Como um filósofo uni- zão prática: Kant recusa claramente legitimar os
versalista, Kant saudaria as tendências universalis- critérios da ação humana em elementos que trans-
tas que hoje estão em curso na economia. Por ou- cendam a autonomia do sujeito, como, por exem-
tro lado, o universalismo não pode destruir a auto- plo, a tradição, a vontade de Deus, a revelação, as
nomia dos diferentes povos. Portanto, seu univer- necessidades humanas, etc. Em seu pensamento,

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

nenhuma pretensão de validade exterior é reco- imperativo categórico, a única instância que pode
nhecida: toda autoridade tem que se legitimar pe- orientar a ação humana. Sua tentativa de vincular
rante a razão. O que conta para a ética não são os radicalmente razão, liberdade e ética é certamente
sentimentos ou o sucesso da ação, mas as máxi- a herança mais importante que ele deixou para a
mas da vontade humana e sua subordinação ao humanidade.

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Kant: um investigador aberto a todas as possibilidades

Entrevista com Guido Antônio de Almeida

O professor Guido Antônio de Almeida, do ca e a arte. Sobre tudo isso, elaborou conceitos e
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Departa- idéias que merecem ser levados em conta e ainda
mento de Filosofia, da Universidade Federal do servem de ponto de partida, ou pelo menos de
Rio de Janeiro, é também estudioso e pesquisador ponto de referência, para qualquer discussão des-
de Kant. Graduado em Filosofia pela Universida- ses temas. O que se comemora, pois, no ano do
de Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em bicentenário da morte de Kant, é a atualidade do
Filosofia pela Fordham University, Estados Uni- seu pensamento, o fato de que o seu pensamento
dos, o professor Guido doutorou-se em Filosofia contiua vivo. Talvez se possa dizer que, entre os
pela Universität Freiburg (Albert- Ludwigs), em pensadores do passado, ele é um dos mais impor-
Freiburg, na Alemanha. Ele obteve seu pós-dou- tantes, senão o mais importante. Com efeito, uma
torado pela Freie Universität Berlin, em Berlim, na parte enorme da vastíssima produção filosófica no
Alemanha. É autor de Enunciados de Valor. Rio mundo atual é dedicada ao aprofundamento de
de Janeiro: Cadernos Edipuc, 1979 e organiza- temas kantianos ou envolve a discussão desses
dor, ao lado de R. F. Landim Filho, de Filosofia temas.
da Linguagem e Lógica. São Paulo: Loyola,
1981. IHU On-Line – O que os conceitos kantia-
nos de liberdade e moralidade poderiam in-
IHU On-Line – Qual o significado mais im- terpelar à sociedade contemporânea?
portante do bicentenário da morte de Kant Guido de Almeida – Uma característica impor-
para o senhor? tante da sociedade contemporânea é o papel que
Guido de Almeida – O que se comemora neste a ciência desempenha em todos os setores da sua
bicentenário não é apenas uma figura do passado vida. Para, praticamente, tudo, em nossa vida,
que teria sido muito importante na época, mas podemos buscar um especialista que nos ajude a
conservaria apenas um interesse histórico. O que tomar uma ou outra decisão. Não há nada de mal
nós comemoramos, no caso de Kant, é o pensa- nisso, mas com essa importância crescente, essa
mento de um filósofo que permanece vivo, atual. presença avassaladora da ciência na sociedade
De um modo geral, isso pode ser dito de todos os contemporânea, vai também uma certa ideologia
clássicos da Filosofia, como Platão, Aristóteles, positivista, que pretende ver, na ciência, o único
Santo Tomás de Aquino, Descartes, Spinosa, He- padrão possível, não apenas do conhecimento,
gel. São considerados clássicos, porque o que eles mas do saber em geral. No entanto, uma das coi-
dizem ainda tem interesse para nós. No caso de sas importantes que Kant mostrou é que nós pen-
Kant, especialmente, isso é mais válido do que samos as nossas ações e as nossas decisões com
nunca. Kant refletiu sobre todos os temas impor- base em princípios que são radicalmente diferen-
tantes da Filosofia, o conhecimento e a ciência, a tes dos princípios do conhecimento e da ciência
moral e a busca da felicidade, a experiência estéti- da natureza; numa palavra, que o nosso saber

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

prático se fundamenta em princípios e suposições cidade na política, na política em geral e na políti-


que são essencialmente diversos daqueles em que ca brasileira em particular. A primeira é que a base
se alicerça a investigação científica da natureza. da política tem que ser o direito e a base do direito
Assim, enquanto as explicações científicas se ba- tem de ser a moral, porque só isso pode conferir
seiam num conceito da causalidade natural que legitimidade a ela. Com efeito, o que distingue a
implica o determinismo de tudo o que acontece, política da arbitrariedade e da força é a conformi-
não podemos deixar de pensar nossas ações dade a leis aceitas, e o que dá legitimidade às leis é
como livres, na medida em que fazemos juízos a presunção de que elas emanam, direta ou indi-
morais sobre elas. Para tornar isso claro, pense, retamente, da vontade de todos. Ora, a exigência
por exemplo, no seguinte: se um relógio marca de agir com base em princípios que se possam to-
corretamente a hora, podemos elogiar a sua mar- mar como leis válidas para todos nada mais é do
ca e o seu produtor, e se ele atrasa, podemos cen- que a exigência moral. Assim, é preciso que as re-
surá-lo, mas não tem sentido elogiar ou censurar o gras da vida política possam ser reconduzidas a
funcionamento do relógio, uma vez que ele não uma exigência moral, para que elas possam ser
pode fazer de outra maneira: o que ele faz é deter- aceitas como legítimas. Uma segunda idéia impor-
minado por seu mecanismo. Ao contrário, se elo- tante de Kant é que, no domínio do direito e da
giamos ou censuramos as nossas ações, se as ava- política, a única coisa que podemos esperar e exi-
liamos de um ponto de vista moral, é porque, e só gir, é o que ele chama de “legalidade”, isto é, a
porque, supomos que elas dependem de nós e so- conformidade externa a esses princípios morais,
mos livres para fazê-las ou deixar de fazê-las. que constituem, no entanto, a base do direito e da
Assim, pensar as nossas ações como livres é pen- política, por oposição à moralidade, isto é, a con-
sá-las de um ponto de vista que é radicalmente formidade interna à lei moral por respeito à lei
distinto da ciência da natureza. Por isso, o positi- moral. Mas então, se o que está em questão na
vismo, que é a idéia de que a ciência é a única vida política é unicamente a conformidade exter-
possibilidade, não só do conhecimento da nature- na a princípios morais, o que pode entrar em crise
za, mas de todo saber, é incompatível com essa vi- nela não é a moralidade como tal. Da moralidade,
são das nossas ações e com o próprio conceito da como tal, podemos dizer duas coisas diversas, e
moralidade. Kant insistiu sobre isso como um apenas, na aparência, contraditórias, a saber,
ponto fundamental da compreensão que o ser hu- que, em certo sentido, ela nunca está em crise e
mano tem de si mesmo. Ouso dizer que sua con- que, em outro sentido, ela está sempre em crise.
cepção da ação e da moralidade é, mais do que Ela nunca está em crise, porque está claro para to-
nunca, atual no mundo contemporâneo, onde a dos em que consiste o ponto de vista moral, qual
importância da ciência serve de aval para uma seja, a exigência de fazer um uso da nossa liberda-
ideologia positivista. de, na tentativa de realizar os fins a que nos pro-
pomos, que seja compatível com o uso pelos de-
IHU On-Line – Não é novidade a falta de éti- mais de sua liberdade na tentativa de realizar seus
ca na política. Nestes dias, o tema está es- próprios fins. Em outro sentido, ela está sempre
pecialmente em pauta e, ao ser constatada em crise em cada um de nós, na medida em que
falta de ética no PT (talvez onde menos se depende de uma decisão pessoal, que deve ser
esperava), chega-se a formular a pergunta: sempre renovada e sobre a qual, segundo Kant,
“É possível ética na política?” Como o se- nunca podemos ter inteira certeza, visto que pode-
nhor responderia a essa questão, iluminado mos sempre nos enganar sobre as nossas verda-
por Kant? deiras motivações e acreditar que agimos moral-
Guido de Almeida – Sobre ética e política, Kant mente, quando, na verdade, nos conformamos
disse duas coisas importantes que precisam ser com as leis morais por interesse ou cálculo egoísta.
pensadas para que tenhamos idéia de onde situar Em suma, se alguma coisa está em crise na vida
exatamente o que se chama de uma a crise da eti- política, não é a moralidade como tal, visto que o

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que se espera na convivência com os demais não maneira que possa querer que seja por essas
é a rigor da moralidade, mas a mera conformida- ações um membro de um reino do ser, um mem-
de externa a exigências morais. bro de uma sociedade, uma comunidade onde se
legisla com os demais para todos. Essa idéia de
IHU On-Line – Então, o que está em crise na um reino do ser é de origem cristã, a idéia do reino
política brasileira? de Deus, que Kant reformulou, para elaborar sua
Guido de Almeida – Embora Kant não tenha idéia de uma comunidade moral, onde todos fa-
usado este termo neste sentido, eu diria que é a zem, com base em máximas aceitas pelos demais,
eticidade no sentido amplo da palavra, não a mo- regras universais, portanto de tal maneira que to-
ralidade em sentido próprio, que é algo subjetivo dos contribuam por sua ação para a felicidade de
e individual, mas a conformidade externa dos todos. Nós sabemos que isso não ocorre de fato.
nossos atos, exigências da moralidade, não im- Jamais podemos esperar que nos tornemos coleti-
porta o motivo que tenhamos para isso. É porque vamente felizes, porque agimos moralmente, é o
não sabemos punir, não apenas pela aplicação contrário do que nós esperamos. Mas, como nós
das leis jurídicas, mas também com sanções sociais, não podemos deixar de esperar sermos felizes,
a saber, a desaprovação, nem recompensar, que a sob a condição da moralidade, nós temos que es-
eticidade, a conformidade e a moralidade estão perar que isso seja possível de alguma maneira,
em crise na política brasileira. Kant ensinou isto: senão não faria sentido agir. A exigência moral é
cada um cuida da sua moralidade e, da conformi- que cada um procure a sua felicidade, mas respei-
dade externa, nós temos que cuidar. Porque não tando o direito dos outros de serem felizes tam-
soubemos cuidar disso, a ética na política se tor- bém. Esse é o ponto de vista universal da morali-
nou um problema tão grave. dade. Nós não podemos querer isso, sem a expec-
tativa de sermos felizes. Isso não é garantido pela
IHU On-Line – Em que sentido o autor pode- natureza. Nós somos, necessariamente, levados a
ria iluminar o cristianismo e as religiões no postular a existência de Deus e a esperar uma vida
geral? futura, e a existência de Deus como condição des-
Guido de Almeida – Conheço superficialmente sa expectativa de ser feliz, agindo moralmente.
a filosofia da religião kantiana. Kant incorporou, Isso faz parte também da teoria moral kantiana.
na sua teoria moral, muitos conceitos importantes Por isso Kant pôde apresentar a sua teoria moral
que têm a sua origem no cristianismo, por exem- como o núcleo racional e moral de toda a religião.
plo, o de boa vontade. Na verdade, é um conceito As religiões se diferenciam por crenças em fatos
histórico, mas que está presente desde o Novo históricos, pela diversidade dos cultos, etc. Para
Testamento, porque seus autores conheciam a fi- mim, a importância de Kant, como filósofo da reli-
losofia grega. Este é um conceito importante, um gião, foi precisamente esta: ter destacado esse nú-
conceito básico, essa idéia de que agir é moral- cleo moral das religiões em geral, núcleo que o
mente ter boa vontade, e ter boa vontade é agir cristianismo tem em comum com outras religiões e
por dever, e não por interesse nas conseqüências que talvez tenha apresentado de uma maneira
da ação, essa idéia é fundamentalmente cristã. O mais pura que outras religiões.
que interessa é a intenção, a pureza do coração.
Essa é uma das idéias centrais da ética cristã e que IHU On-Line – Qual o legado de Kant que a
está presente na ética kantiana. Outro conceito universidade mais deveria aproveitar?
importante que ele utilizou, também para formu- Guido de Almeida – O que eu mais valorizo em
lar a idéia de algumas formas do princípio moral, é Kant é o fato de ele se apresentar como um pensa-
que o princípio moral tem várias fontes. Uma de- dor crítico, não-dogmático, o que compreendeu
las já citei: agir de tal maneira que a máxima da sempre como um pesquisador, como um investi-
ação possa ser querida como uma lei por todos os gador. Ele não é um filósofo que parte de uma
demais. Ele tem uma outra fórmula: agir de tal idéia pré-concebida, de uma tese a demonstrar,

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

uma hipótese a corroborar. Ele é precisamente Só é legítima a política, na medida em que


um investigador. Ele está aberto a todas as possi- ela não é apenas um exercício do poder arbitrário,
bilidades. Ele não formula as suas questões, de tal ela requer legitimidade. Qualquer base de legiti-
maneira que a elaboração implique uma resposta mação é política. É a exigência de que todas as
ou torne impossível certas respostas. É essa men- decisões políticas, por exemplo, a formulação de
talidade aberta de Kant como investigador que legislação, tem que se basear no princípio da
devemos cultivar. Kant e Aristóteles formularam igualdade, segundo o qual só são legítimas as de-
os dois sistemas filosóficos mais impressionantes cisões que nós tomamos e que envolvem outras
da história da Filosofia, Kant, entretanto, não pre- pessoas, as leis que nós formulamos para outras
tendeu ensinar Filosofia. Isso ele diz expressamen- pessoas, se elas podem ser aceitas por todos. Nes-
te em sua obra mais importante, A crítica da ra- se sentido, a política tem que ter uma base moral,
zão pura. Filosofia não é algo que se pode ensi- porque só ela pode conferir legitimidade à políti-
nar. O que se pode ensinar é a filosofar. Isso para ca. Esse foi o ponto, a meu ver, mais importante
Kant, em última análise, é aclarar os conceitos da- da teoria do princípio do direito e da vida política
dos, o domínio do conhecimento, da moral, da es- regrada segundo o Direito. Então é o mesmo prin-
tética e da arte, procurando clareza sobre eles e cípio da moralidade, o qual ele chamou de impe-
sobre as razões que nós temos para adotar esses rativo categórico, que diz que só devemos agir
conceitos, e não os outros. Isso é o que o acadêmi- com base em máximas, em regras, que possam ser
co deve mais prezar do legado kantiano. adotadas pelos demais. Esse é o princípio da
igualdade entre os indivíduos, do respeito a todos
os demais como iguais.

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A pergunta de Kant ao PT:
“Estamos construindo instituições em que soberanias
populares estão articuladas com os direitos humanos?”

Entrevista com Ricardo Terra

Ricardo Terra é professor titular do Departa- estética. E, na terceira crítica, que é a Crítica do
mento de Filosofia da Universidade de São Paulo juízo, ele ainda abre a possibilidade de se pensar
(USP). É graduado, doutor e livre-docente em Fi- o juízo estético, independente da religião, inde-
losofia pela USP. Seu pós-doutorado foi realizado pendente da ciência e da ética. A amplitude do le-
na Universidade de Frankfurt, Alemanha. É autor gado kantiano pode ser avaliada pelas três críti-
de A política tensa. Idéia e realidade na filo- cas. Para dar apenas um exemplo: A razão prática
sofia da história de Kant. São Paulo: Iluminu- que possibilita a fundamentação da moral tam-
ras, 1995; Passagens Estudos sobre a filoso- bém leva a uma fundamentação do Direito, o que
fia de Kant. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, tem uma relevância enorme. Além de pensar a
2003; Kant e o Direito. Rio de Janeiro: Jorge fundamentação do direito privado e do direito pú-
Zahar Editor, 2004. Organizou as obras Idéia de blico, no direito internacional Kant foi tão longe
uma história universal de um ponto de vista que podemos considerá-lo como precursor de or-
cosmopolita, de E. Kant. São Paulo: Martins ganismos como a Organização das Nações Unidas
Fontes, 2004 e Duas introduções à Crítica do (ONU). Seu legado vai desde condições de possi-
Juízo, de E. Kant. São Paulo: Iluminuras, 1995. bilidade para se pensar a física de Newton, ou rea-
A seguir, a entrevista que concedeu ao IHU lizar uma revolução na maneira de considerar a
On-Line sobre a importância da filosofia de Kant. metafísica, até no plano político, repensar as rela-
ções internacionais. O legado tem muitas perspec-
IHU On-Line – Qual seria o principal legado tivas, tanto no plano da compreensão da ciência,
de Kant? da ética, da moral, do direito como na do próprio
Ricardo Terra – O legado de Kant é muito am- juízo estético.
plo. Na história da Filosofia, existem poucos filó-
sofos que podem se comparar a ele nesse aspecto. IHU On-Line – Nessa moral autofundada, ele
Aristóteles também tem essa virtude. No caso de muda a concepção de Deus de sua época?
Kant, o legado é enorme. Na Crítica da razão Ricardo Terra – Há vários aspectos importantes
pura, encontram-se questões vinculadas tanto à na concepção kantiana de Deus. Kant escreveu
crítica da metafísica como à análise das condições um livro que tem o título Religião nos limites
de possibilidades da ciência do tempo dele, que é da simples razão. Nesse livro, elabora uma con-
a física de Newton. Na Crítica da razão prática, cepção ético-religiosa em que interpreta a própria
há uma ampliação e radicalização da autofunda- escritura, mas do ponto de vista da razão, isto é,
ção da moral. Kant elabora uma filosofia moral in- da religião nos limites da simples razão. A grande
dependente da religião e separada da ciência e da mudança que tem Kant em relação à religião ou

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

em relação a Deus, é que ele acha impossível de- Ricardo Terra – Em muito. Além do legado das
monstrar a existência de Deus. Isso faz uma dife- três críticas, o legado do pensamento políti-
rença enorme, tendo-se em conta a metafísica an- co-jurídico kantiano é fundamental, porque Kant
terior, em que a prova da existência de Deus era insiste o tempo todo no espaço público, na discus-
fundamental até para a fundamentação do campo são no espaço público. Nesse sentido, há uma re-
do conhecimento, se pensarmos, por exemplo, sistência contra todos os fundamentalismos. A
em Descartes. Para Kant, o fundamental do co- postura kantiana é de abertura para as discussões
nhecimento no próprio sujeito, não depende de públicas, e não para a violência pública. Kant quer
Deus. Não há uma prova da existência de Deus, articular os direitos liberais com os democráticos.
mas isso não significa que não se acredita em Ele, o tempo todo, está querendo relacionar direi-
Deus. Não há uma prova racional da existência de tos humanos e soberania popular. Esse é o ele-
Deus, mas fica aberta a possibilidade para uma fé mento fundamental do seu pensamento político.
racional. Também não se pode provar que Deus O filósofo contemporâneo alemão Jürgen Haber-
não existe. Há uma limitação do que é o conheci- mas diz que há uma co-originalidade entre direi-
mento, e essa limitação abre possibilidade para tos humanos e soberania popular em Kant. A so-
afirmar Deus de outra maneira, que não seja berania popular é fundamental, mas também os
teórica. direitos humanos são fundamentais. A soberania
popular, junto com os direitos humanos, deveria
IHU On-Line – Duzentos anos após a morte reger não só a política interna de cada país, mas
de Kant, quais as principais limitações dele também, em última instância, a política externa.
que o senhor assinalaria? Podemos encontrar muitos elementos na filosofia
Ricardo Terra – Apesar de ser um crítico da me- kantiana contra a política como violência ou como
tafísica, Kant ainda tem todo um lado metafísico terrorismo, ou como antiterrorismo violento. A
com a manutenção da noção da coisa em si. De perspectiva de paz de Kant não é uma mera pers-
outro lado, ele está limitado à ciência de seu tem- pectiva utópica. A paz para ele se constrói com o
po. A epistemologia de Kant está no horizonte da Direito. A condição da paz é o estado de direito, é
física de Newton, o que apresenta uma limitação, a soberania popular e direitos humanos juntos.
se levamos em conta a teoria da relatividade ou a Diante do horror que estamos vivendo nesses
física quântica. É claro que há uma certa limitação dias, pensar a noção de direitos humanos junto
histórica no pensamento de Kant. Mesmo assim, o com a soberania popular é uma maneira de en-
legado é grande, porque a maneira como Kant frentar essa situação e tentar construir instituições
trabalha Newton pode ser repensada hoje para re- tanto nacionais quanto internacionais em que se
fletir a física contemporânea. Temos vários neo- tenha mais justiça e menos fundamentalismos. A
kantismos que tentam repensá-la. Uma parte do tolerância deveria se transformar em instituições
legado fundamental é encontrada no ponto de jurídicas que garantam tanto a soberania popular
vista político e jurídico. Há autores, como John quanto os direitos humanos.
Rawls e Jürgen Habermas, que, de uma forma ou
de outra, desenvolveram a ética e o direito kantia- IHU On-Line – O que a filosofia de Kant po-
nos. Apesar da limitação da filosofia do sujeito deria dizer sobre ética na política brasileira?
kantiano, a inspiração kantiana se desdobra de Ricardo Terra – Kant diz que a ação política não
outras maneiras. pode ir contra a moral. Por outro lado, é evidente
que não podemos confundir política com ética in-
IHU On-Line – Em uma cultura de guerra na dividual. Devemos pensar que instituições políti-
qual vivemos, com tanta violência terrorista cas estejam garantindo o estado de direito. Exis-
e “antiterrorista”, como o conceito de paz tem problemas de falta de ética de indivíduos, mas
kantiano poderia iluminar nossa sociedade o importante seria haver instituições que cuidam
contemporânea? disso. Não podemos tirar toda a atenção da políti-

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

ca por causa da falta de ética de certos agentes. O verno de Frederico II, havia liberdade de pensa-
importante é criar estruturas que possam punir mento na Prússia. Já no fim da vida, Kant teve
essa falta de ética. Estamos construindo ou não problemas com a censura. É fundamental o âm-
instituições em que a soberania popular está arti- bito da liberdade do pensamento no espaço pú-
culada com os direitos humanos? Esta é a questão blico. É fundamental que se possa publicar e dis-
fundamental. Será que os governantes estão con- cutir sobre todos os assuntos. A universidade é
seguindo articular a soberania popular com os di- um importante berço da criação de ciência, de
reitos humanos? Está havendo uma ampliação de cultura, de arte.
direitos sociais ou não? Esta questão tem uma di-
mensão ética que diz respeito a garantir direitos IHU On-Line – Quais seriam as característi-
sociais. Problema muito maior do que a falta de cas básicas, e que, de repente, foram inova-
ética de alguns membros do partido, o que não se doras em seu tempo, da concepção kantia-
esperava que acontecesse, é se o PT está conse- na de pessoa humana e de sociedade?
guindo articular a soberania popular e os direitos Ricardo Terra – É uma ampla pergunta. Vou
humanos, ou seja, há políticas que estão ampli- simplificar muito. A noção de dignidade da pessoa
ando os direitos sociais e, ao mesmo tempo, ga- é um elemento fundamental para Kant. O interes-
rantindo direitos individuais? O susto maior está sante é que a dignidade da pessoa está vinculada
aí: não tanto em descobrir que existem pessoas com a noção de autonomia, aí é que está o grande
corruptas. Isso sempre existiu e vai existir em to- alcance da filosofia kantiana. O homem é digno,
dos os partidos. A integridade ética maior será se porque ele faz leis para ele mesmo. Essa noção de
ele está cumprindo ou não essa dimensão de arti- autonomia é fundamental, tanto no plano da ética
culação de direitos sociais e a soberania popular. quanto no plano político e jurídico. Nós obedece-
O problema do partido é muito mais esse, a falha mos a leis que nós, como racionais, estamos ela-
está muito mais nesse aspecto do que em ter ele- borando. Kant tem uma ética que não depende de
mentos corruptos, o que todos os partidos têm. É elementos empíricos nem depende de Deus. Os
claro que os corruptos precisam ser investigados e homens têm que seguir leis que estão fazendo
punidos. para eles mesmos. No plano da relação interpes-
soal, isso leva a que o homem não possa ser consi-
IHU On-Line – Há três semanas, a matéria derado apenas como meio para outro homem. O
de capa de nosso boletim foi o papel da uni- homem tem sempre fim em si mesmo. Aí existe
versidade na sociedade. Qual seria o legado uma crítica à exploração do homem por outro, já
mais importante de Kant que a universida- que, pela dignidade, ele precisa sempre ser toma-
de deveria assumir? do como fim, e não apenas como meio. No plano
Ricardo Terra – É difícil dizer o que Kant pen- político, Kant pensa a noção de autonomia: a no-
saria da universidade. Ele refletiu sobre univer- ção de soberania popular. O povo tem que obe-
sidade, mas principalmente sobre a indepen- decer às leis que ele está elaborando para ele mes-
dência das faculdades. Na época dele, havia mo. Só que, como a noção de dignidade é forte
conflitos muito grandes entre as Faculdades de em Kant, ele tem que articular a noção de sobera-
Filosofia e Teologia, e havia censura da Facul- nia popular à noção de direitos humanos. Uma
dade de Teologia em relação à de Filosofia. No determinada maioria conjuntural não pode ir con-
pensamento kantiano, a universidade é o lugar tra a dignidade da minoria. A articulação de direi-
privilegiado do espaço público e da discussão tos humanos com soberania popular torna possí-
sem coerção, sem censura. A universidade é vel uma noção de pessoa que garante a sua digni-
onde deveria ser possível um desenvolver da dade, participando de uma sociedade em que há
ciência das artes e do pensamento livre. Por ex- a soberania popular. Tanto no plano de vista ético
celência, a universidade precisa ser o elemento quanto político-jurídico a autonomia e a dignida-
criativo do pensamento crítico. No tempo do go- de são fundamentais.

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

IHU On-Line – Com base nessa concepção o espírito de toda a filosofia dele. Ele, que fala tan-
de autonomia da pessoa humana de Kant, to da dignidade e da autonomia ética da mulher,
há 200 anos, que consciência ele poderia acaba não encontrando essa autonomia política
ter em relação à mulher? da mulher na vida social. Mas é bom lembrar que,
Ricardo Terra – Este é um ponto bem complica- mesmo na Constituição de 1791, da Revolução
do. Antes, em suas questões, uma dizia respeito Francesa, a mulher não tinha direito ao voto, que
aos limites do pensamento de Kant. Ora, aqui vol- é também o limite dos próprios constituintes. Tan-
tamos a um limite. Apesar de Kant colocar toda a to na Revolução Francesa como na filosofia de
autonomia moral e ética e reconhecer a dignidade Kant, encontramos uma ambigüidade. Embora
da mulher, há uma limitação histórica em relação Kant, no plano ético, trate da dignidade e da auto-
à participação da mulher na política. Preso às con- nomia da mulher; no plano político, ele não con-
cepções da Prússia de seu tempo, ele não defende segue ir além do seu tempo. O grande filósofo da
o direito da mulher de votar. Este é um limite his- dignidade e da autonomia acabou tendo esse li-
tórico que, inclusive, contradiz, em certo sentido, mite em relação aos direitos da mulher.

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Uma ética motivada pelo desejo de realização da humanidade

Entrevista com Valério Rohden

Valério Rohden é professor titular de Filoso- Por isso, comemorar os 200 anos de sua morte
fia na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), significa celebrar o seu gênio, com suas contribui-
ex-professor titular de Filosofia da Universidade ções inesgotáveis à nossa atividade filosófica, ao
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisa- nosso espírito crítico em qualquer âmbito, mas
dor do CNPq e presidente da Sociedade Kant Bra- significa, sobretudo, homenagear sua grandeza,
sileira. Traduziu, de Kant, a Crítica da razão da qual ainda hoje aprendemos a viver. Tanto
pura (Abril Cultural, 1981), a Crítica da facul- mais fecundamente pensaremos nossos proble-
dade do juízo (Imprensa Nacional/Casa da Moe- mas atuais e procederemos bem, quanto mais in-
da, Lisboa, 1992 / Forense Universitária, RJ, tensamente nos aproximarmos dele, com o mes-
1993) e a Crítica da razão prática (Martins mo espírito livre com que ele pensou e viveu.
Fontes, 2002, edição bilíngüe 2003). É livre do-
cente pela UFRGS e pós-doutor pela Wilhelms IHU On-Line – Como vê a questão de Deus
Universität Münster, na Alemanha. É autor de em Kant? Qual seria o projeto kantiano pe-
Interesse da Razão e Liberdade. São Paulo: rante a física contemporânea?
Ática, 1981. Valério Rohden – Kant pensou Deus de maneira
renovada, tanto do ponto de vista teórico quanto do
IHU On-Line – Qual é o significado mais im- ponto de vista prático. Ele contestou, na Crítica da
portante para o senhor do bicentenário da razão pura, o pensamento especulativo e dogmáti-
morte de Kant? co da tradição racionalista, que presumia conhecer
Valério Rohden – Emmanuel Kant (1724-1804) Deus com simples conceitos formais. Para ele, o
foi um filósofo que não saiu de sua cidade, que problema de Deus era metafisicamente ineludível,
mantinha uma atividade social diária, que realiza- como os problemas da alma, do mundo e do ser.
va exercícios físicos regulares e participava da po- Sua prova prática da existência de Deus foi desen-
lítica universitária. Foi duas vezes reitor, leciona- volvida na seção sobre o sumo-bem moral, da Crí-
va, escrevia, citando poucos autores; seus conhe- tica da razão prática, segundo a qual o homem
cimentos, entre teológicos, científicos, filosóficos, não poderá realizar-se em sua finitude, que envolve
artísticos e comuns, estendiam-se a quase todos uma conexão sintética entre moralidade e felicidade
os domínios da teoria e da prática humana; elabo- e que só Deus pode assegurar, se ele ao mesmo
rou uma ética exigente, mas acessível ao homem tempo não existir. Logo, Deus existe: trata-se de um
comum e finito; investigou terremotos, os ventos, postulado prático. Quanto à sua contribuição para a
o fogo, o céu – “o céu estrelado sobre mim e a lei física contemporânea, fiquemos com sua funda-
moral em mim” – ; suas teorias, especialmente seu mentação apriorística da possibilidade da experiên-
pensamento filosófico, foram de uma perspicácia cia, resolvendo o problema de Hume.
tal, que ele ainda hoje – parece que com uma for-
ça crescente – move-nos a conhecer e pensar. Ele IHU On-Line – O que é para o autor o encon-
equipara-se a qualquer gênio da filosofia grega. tro ético e estético com o outro?

21
CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

Valério Rohden – Em todos os âmbitos, teóri- Valério Rohden – A filosofia moral de Kant é
cos, práticos e estéticos, Kant pensou essas ativi- uma ética do indivíduo responsável perante to-
dades articuladamente, mais precisamente, me- dos os outros. O que nela está em jogo é o amor
diante uma articulação de faculdades (por exem- de cada um pelos outros na mesma medida do
plo, na teoria: “O nosso conhecimento brota de seu amor a si mesmo. Seu objeto é a humanida-
duas fontes principais do ânimo/Gemüt...”). trata- de. A teoria ética kantiana é, mediante conceitos,
va-se de conhecimentos válidos universalmente. como autonomia, universalidade e justificação
Na prática, sua teoria moral inclui uma motivação racional, a base indispensável do pensamento
que supõe a articulação de razão e da sensibilida- ético contemporâneo.
de: trata-se de uma ética motivada pelo desejo de
realização da idéia de humanidade. Na estética, IHU On-Line – O que o grande filósofo dos di-
também inspirada moral e cognitivamente (como reitos humanos, da igualdade perante a lei,
condições sine qua non da mesma), apesar de da cidadania mundial, da paz universal e, aci-
cada esfera ser pensada em sua rigorosa especifi- ma de tudo, da emancipação da razão, pode-
cidade, a sua teoria estética desenvolve uma con- ria dizer à sociedade global contemporânea?
cepção de juízo que se exerce sempre do ponto de Valério Rohden – Com seu cosmopolitismo rea-
vista do outro: é uma teoria da livre comunicabili- lista e crítico, de cunho político e moral – a ponto
dade do prazer. Trata-se aí da mais elevada forma de ele dizer que, se a humanidade não se dispuser
kantiana de epicurismo. a dar este último passo, todos os passos anteriores
não terão valido a pena – Kant viu, no direito e no
IHU On-Line – De que forma Kant entende a comércio internacionais, meios seguros nesse ca-
moral sem Deus? minho para uma união democrática de países em
Valério Rohden – Já vimos que a moral não se rea- favor de um progresso pacífico, não isento de con-
liza sem Deus. Mas se trata de uma ética autônoma e flitos, mas solúveis sem o recurso à guerra. Como
racional, que, segundo a indireta sugestão de Tu- os homens, infelizmente, aprendem a viver melhor
gendhat, poderia incluir Deus, já que Deus não nos através dos males com que se autoflagelam e se au-
impõe nada autoritariamente, pois o que Ele faz, ob- todestroem, assim a razão, unida à natureza, ser-
viamente, é bom, o que significa que é algo que qual- ve-se desse ardil para nos fazer crer que jamais pre-
quer um também poderia autonomamente querer. cisamos perder a esperança de um futuro mais hu-
mano para todos. Precisamos do realismo crítico e
IHU On-Line – Qual o legado de Kant que a da amplidão de vista do pensamento de Kant para
universidade mais deveria aproveitar? não desesperar e continuar acreditando no futuro.
Valério Rohden – Inspirados nos textos O que é
Esclarecimento e Disputa das faculdades, poderíamos IHU On-Line – De que forma, no Brasil, está
dizer que a universidade é o lugar por excelência tan- sendo celebrado o bicentenário da morte do
to da produção do conhecimento quanto da promo- filósofo?
ção da maioridade humana. Em relação a elas, o ho- Valério Rohden – Nós conseguimos trazer para
mem e a universidade são autônomos, aquele, capaz o Brasil o X Internationalen Kant-Kongress / 10th
de pensar por si próprio e escolher fundadamente International Kant Congress / X Congresso Kant
uma forma elevada de vida, esta, pela sua autono- Internacional, a realizar-se na Universidade de
mia, capaz de determinar-se, em plena liberdade, São Paulo, entre 04 e 09 de setembro de 2005. O
apontando à sociedade e à política os rumos para o que prova o reconhecimento internacional de
que considera justo, verdadeiro e bom. nosso crescimento filosófico e nos propicia a mai-
or oportunidade que jamais tivemos de dar passos
IHU On-Line – De que forma a ética kantiana ainda mais decisivos nessa direção. Convidamos
manifesta uma dimensão social e comunitá- a todos os que se interessam pela filosofia de Kant
ria? Qual a atualidade desses conceitos? a comparecerem a esse grande evento.

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Lógica e Metafísica em Kant e Nietzsche

Entrevista com Rogério Vaz Trapp

Rogério Vaz Trapp é licenciado e mestre não só de um raciocínio correto como também
em Filosofia pela Unisinos com dissertação inti- de uma ação moralmente boa. Portanto, exata-
tulada A base ontológica da autonomia em Kant mente por haver uma convergência, em Kant,
e Nietzsche. Rogério participou como bolsista de entre a estrutura dos princípios teóricos, práticos
Iniciação Científica Fapergs, no projeto Da Nega- e lógico-formais é que a sua coerência acaba por
tividade: a construção lógica e o lugar histórico revelar-se como a própria condição de possibili-
dos temas negativos na filosofia de Theodor dade da validade e legitimidade da filosofia
Adorno e Walter Benjamin. Este projeto cen- transcendental.
tra-se na consideração de que a história possível
da negatividade e do negativo em filosofia está IHU On-Line – Quais as relações mais im-
entremesclada à própria história da metafísica portantes que você estabelece na disserta-
com a qual a filosofia, durante muito tempo, se ção entre Kant e Nietzsche?
viu confundida. Rogério Vaz Trapp – Eu diria que uma das rela-
ções que julgo ser mais importante seria a de reu-
IHU On-Line – Qual é a relevância da coe- nir Kant e Nietzsche sob um viés comum de com-
rência entre a teoria, a prática e a lógica no preensão. Nesse sentido, a investigação não pre-
pensamento kantiano? tendeu realizar um esforço crítico, como já é cos-
Rogério Vaz Trapp – Se compreendermos por tumeiro no meio filosófico, mas elaborar a preo-
coerência a qualidade de um raciocínio de não cupação desses pensadores com um tema em co-
apresentar sinal algum de contradição, então mum: a relação entre lógica e metafísica. Assim,
posso afirmar que a importância dela é, antes de diria que o viés de compreensão, segundo o qual
tudo, fundamental para o próprio sistema kantia- a lógica ocupa o papel de estrutura metafísi-
no, na medida em que os princípios da lógica co-discursiva para ambos os pensadores, ainda
configuram e estruturam os princípios tanto de que valorizada diferentemente por eles, é o tema
sua filosofia teórica quanto de sua filosofia práti- central de minha pesquisa. Depois, estender a re-
ca. Com isso quero dizer que a própria possibili- flexão sobre a metafísica até o tema da autono-
dade do edifício kantiano sustenta-se sobre a ne- mia, na filosofia prática, é outra relação importan-
cessidade da correção formal. Em segundo lugar, te que desenvolvi, pois pretendi ter exposto as ba-
a coerência entre aquelas três instâncias também ses ontológicas do sujeito auto-afirmativo moder-
é de suma importância para Kant, porque o sujei- no tal como as encontramos nesses dois autores e,
to, como sujeito transcendental, condição de ainda que por vieses diferentes, conforme com-
possibilidade do idealismo transcendental, que preendemos, que se constituem como o cume
raciocina e age discursivamente, só o pode fazer mais elevado da filosofia de ambos os pensado-
mediante a estrutura dos princípios lógico-formais, res. Portanto, as relações que estabeleci em minha
motivo pelo qual a coerência entre elas é garantia dissertação, e que julgo serem mais importantes,

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

envolvem a lógica, a metafísica, a ética, a episte- dade do pensamento desse filósofo. Com efeito,
mologia e a antropologia. seja pela sua reflexão epistemológica, seja pelas
questões propriamente metafísicas, seja pela sua
IHU On-Line – Em que aspectos o pensa- filosofia prática, com sua concepção de lei moral e
mento kantiano pode iluminar nossa época de autonomia prática, seja pela sua estética e sua
contemporânea? teleologia, seja pela sua reflexão sobre a finalida-
Rogério Vaz Trapp – Iluminar é um ótimo termo de da sociedade e a esperança depositada em
para usarmos com relação a um representante da uma “paz perpétua”, Kant está profundamente
Aufklärung! Após a euforia hegeliana, um certo presente na contemporaneidade por não ter extin-
retorno a Kant foi inevitável. Com isso, podemos guido esses temas, legando tanto uma grande
dizer que o intento crítico kantiano permanece quantidade de problemas para os pensadores
ainda no cerne filosófico da reflexão atual. Assim, posteriores, quanto gigantescas tentativas de solu-
não só nossa época é profundamente kantiana ção a esses mesmos problemas. Portanto, Kant
como também não podemos compreender filóso- hoje é de suma importância não só para compre-
fos, como Nietzsche, Husserl, Heidegger, Apel, endermos a posição essencialmente crítica que o
Habermas ou Rawls sem passarmos por Kant. A Iluminismo nos legou, mas também para compre-
tão extensa influência de Kant sobre a posteridade endermos tudo que perdemos junto com o com-
talvez se deixe melhor compreender pela fecundi- bustível que o Iluminismo teve que “queimar”
para alimentar sua chama “esclarecedora”.

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Kant entre os sentimentos, a razão e a barbárie

Por Adriano Naves de Brito

Adriano Naves de Brito é doutor em filoso- dele, nada é possível pensar que possa ser consi-
fia pela UFRGS/Universitaet Bielefeld-RFA, derado como bom sem limitação a não ser uma só
1998. Professor do PPG em Filosofia da Unisi- coisa: uma boa vontade.” Sua declaração no iní-
nos e professor visitante no doutorado de Ciên- cio da Fundamentação da Metafísica dos
cias Ambientais da UFG, organizador, entre ou- Costumes aponta apenas para um dos lados de
tros, de Ética, questões de fundamentação, seu objeto, mas deixa-nos entrever também o ou-
Brasília: UnB, 2004. tro, inteiramente. Se só a vontade pode ser boa
Obrigações morais são para nós um incômo- sem limitação, então não há o que possa ser con-
do. Mesmo que – já a elas habituados – possamos siderado irrestritamente mau a não ser uma má
agir sem as perceber como regras constrangedo- vontade. Ela, sozinha, a vontade, divide o reino
ras da vontade, basta uma leve mudança em nos- da moral em seus dois campos: o do bom e o do
sos interesses para que nos voltemos a sentir des- mau.
confortáveis sob seu jugo. Pesa-nos, então, sobre Assim é que o problema moral parece ser a
os ombros como nunca, aquilo para o que nossa domesticação da vontade. Muitos, depois de
vontade se inclina. Estamos sob o império da Kant, se insurgiram contra essa idéia emasculado-
vontade e sua natureza é querer, querer e querer. ra do querer. E, de fato, vale perguntar até que
Nietzsche, em sua Genealogia da Moral, é ras- ponto estavam certos. Em meio aos sucessivos
cante: “prefere o homem querer o nada ao não abalos que o pensamento do século XIX e os acon-
querer.” tecimentos do século XX provocaram nos funda-
Contra a litania pessimista e corrosiva dos mentos morais, a filosofia fundacionista reergueu
detratores da natureza humana volitiva, gostamos sua paliçada. O ceticismo moral e o niilismo fin du
de cavar uma trincheira que nos defenda a digni- siècle perderam seu glamour ntelectual tão logo os
dade ameaçada. Sim, as obrigações nos moles- olhos do mundo viram em corpos humanos, de-
tam, mas também não nos aflige a nossa vontade positados e aniquilados nos campos de concentra-
contra elas? E, portanto, não haveria nos vastos do- ção, o grau de crueldade que pode alcançar a
mínios do querer um terreno pedregoso em que pu- vontade. O que diríamos contra os protagonistas
déssemos enterrar os fundamentos do dever? Que do horror – os de antes, os de agora e os que certa-
conforto poder apoiar em sólidas estruturas a força mente nos sucederão – se não tivéssemos, ao me-
que obrigaria o querer! Que alívio ter bons motivos nos, um ponto em que pudéssemos fundar as
para aplacar o querer, para querer submeter-se! obrigações morais para com os outros? Contra a
Não há, está claro, como evadir-se da vonta- barbárie, o que temos nós, os filósofos? Frente à
de. Kant, cuja filosofia nunca foi ingênua com res- bestialidade da vontade, a que nos resta recorrer
peito à natureza da vontade humana, ergueu so- senão à razão? Com efeito, a divisa de que, em al-
bre ela mesma – a vontade – a fortaleza das obri- guma medida, somos todos neokantianos nunca
gações morais. “Nesse mundo, e até também fora foi tão corroborada quanto na filosofia moral do

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

pós-guerra. Variações da filosofia prática de Kant Que Kant não tenha sido ingênuo com respe-
estão em incontáveis tentativas de fundamenta- ito à natureza humana, vê-se sobretudo porque
ção do dever que foram feitas desde então. nunca esperou que pudéssemos dar conta desse
Segundo o diapasão kantiano, a vontade problema (pelo menos não sem a eternidade
boa é a vontade racional. Reside exatamente aí, d’alma e a benevolência divina). Nossa vontade,
no grau de robustez – ou, visto da perspectiva ne- que não é santa, inclina-se para todos os lados do
gativa, no grau de debilidade – que se confere à prazer, mas quase nunca – aconteceu – para o do
razão, uma das mais importantes notas distintivas dever. Por sorte, segundo ele, nossa redenção se
entre quase todas as concepções filosóficas con- dá com pouco, muito pouco. Basta nossa firme in-
temporâneas que defendem haver um fundamen- tenção para agir por respeito à lei, que nossa pró-
to para a moral e, como querem, uma alternativa pria razão nos dá, para que haja esperança. E
à barbárie. A origem comum, o pensamento do apenas isso, esperança. A escolha, no entanto,
“relógio de Königsberg”, garante-lhes virtudes e tem de ser livre, quer dizer, uma determinação da
vícios semelhantes. Do lado das virtudes, está o razão pura em seu uso prático. Toda escolha cujo
fato de que os princípios da moral kantiana são fa- fundamento seja a felicidade em alguma de suas
cilmente assimiláveis pela cultura ocidental cristã formas já está condenada à imoralidade. Mas, en-
esclarecida, a que nos moldou como somos, para tão, não estamos todos, que, afinal, só queremos
o melhor e o pior. Antes de sermos neokantianos, ser felizes, desde sempre condenados?
somos cristãos (convictos ou não); traço de onde Eu não seria mesmo justo com Kant se não
germina um vício comum a esta cepa de filosofias concordasse que entre as maiores virtudes de sua
fundacionistas da moral: o desdém pelas inclina- filosofia moral está a crença no poder da razão hu-
ções mundanas, mas humanas. É bom, porém, mana para disciplinar a vontade. E, no entanto,
que não esqueçamos, somos também modernos e aqui também encontramos o seu maior vício. O
amamos a razão, assim como Kant. esclarecimento nos prometeu um paraíso racional
Se o leitor quer saber como agir, não consul- laico. A história nos mostrou também a barbárie
te seus desejos e sentimentos, eles o trairão. Inva- da razão, e sob muitas bandeiras, à direita e à es-
riavelmente! Para Kant, não há bem real que se al- querda. Dirão que o conceito “razão” não é o
cance tendo-se como guia as inclinações sensíveis. mesmo nos dois casos – em Kant e nos regimes to-
A carne não é apenas fraca, ela é moralmente talitários – ou que, pelo menos, não está aqui bem
cega, pior, infensa à moral (e há quem possa duvi- definido. Como não concordar com expediente
dar agora do cristianismo kantiano?). Pergunte à tão filosófico? Os pruridos do filósofo não diminu-
razão, leitor, e ela lhe dirá, concordando consigo em, contudo, nossa legítima inquietação: como
mesma, que você deve agir como se legislador escapar à barbárie (seja ela da vontade ou da ra-
fosse; legislador de uma natureza cujas leis, as que zão). Creio que nos duzentos anos de sua morte,
você lhe der, serão universais, como o são as leis também não seríamos justos com a grandeza de
físicas sobre as quais, no entanto, não temos qual- Kant, se não pudéssemos submeter sua filosofia
quer influência. ao escrutínio de nosso tempo.
Colocados assim nessa condição de legislado- Numa frase da Crítica do Juízo, Kant fe-
res coerentes (a razão nos aproxima de Deus!) de cha, com cristalina transparência, o círculo de seu
um mundo dos fins a ser edificado no reino da na- carrocel conceitual. Diz ele: “Pois o bom é o obje-
tureza, promulgaríamos máximas universais para a to da vontade (isto é, de uma faculdade de apeti-
ação, cujo traço comum seria a desconsideração ção determinada pela razão)”. E onde a razão es-
para com os interesses privados de cada membro colheu, não há espaço para mais liberdade. Liber-
do reino moral. O problema é como agir conforme dade, Razão e Vontade (a boa, melhor frisar) são,
estas regras. Nós, que somos humanos, demasia- pois, meras variações de um mesmo tema: a ne-
damente humanos (como vaticinou Nietzsche). cessidade. Se queremos honrar Kant, sua filosofia
deveria ser revisitada hoje com a desconfiança

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CADERNOS IHU EM FORMAÇÃO

que nós, contemporâneos, acumulamos nestes úl- Referências bibliográficas


timos dois séculos contra as muitas liberdades ne-
cessárias que nos foram oferecidas. Mas não ape- KANT, Emmanuel. Fundamentação da metafí-
nas isso, creio que deveríamos revisitá-la também sica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural,
com as esperanças que – quem diria! – nossa pas- 1980. (GMS)
sional e contingente vontade não deixa morrer. _______. Crítica da Razão Pura. São Paulo:
Assim, entre razões e sentimentos, haveremos, Abril Cultural, 1979. (KrV)
como sempre, de encontrar alguma barricada _______. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Edi-
contra a barbárie, nossa inexorável sombra. ções 70, 1986. (KprV)
_______. O que significa orientar-se no pen-
samento. Lisboa: Edições 70. 1988.
NIETZSCHE, Friedrich. Zur Genealogie der Mo-
ral. In: Friederich Nietzsche: Das Haupt-
werk. München: Nymphenburger, 1990.

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