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Estatuto da Cidade:

aprovação e implantação
Sonia Naha
ahass de C
Naha arv
Carv alho
arvalho

R e sumo Abstr
Abstracac
actt
Com o propósito de discutir a aprovação e a The article discusses the approval and
implantação do Estatuto da Cidade, o traba- implementation of Estatuto da Cidade (federal
lho foi organizado em dois tópicos. No pri- law number 10.257/2001) by organizing the
meiro, a análise, ao identificar o Estatuto da arguments in two parts. Considering the
Cidade como marco regulador das políticas Estatuto da Cidade as the regulatory guide for
urbanas no Brasil no período atual, salienta urban policies in Brazil, the first part identifies
três ordens de questões que delimitam as con- three institutional conditions that are essential
dições institucionais necessárias à sua to its implementation: the importance of the
implementação: centralidade do plano dire- city master plan as the main instrument for the
tor como instrumento de execução da políti- execution of the urban policy; legal
ca urbana; competência legal para a definição competence to define the property’s social
da função social da propriedade; e ênfase na use; and the importance of democratic urban
gestão democrática das cidades. No segundo administration. The second part explores the
tópico, a análise explora as possibilidades political possibilities for the implementation
políticas de implementação do Estatuto da of the Estatuto da Cidade, discussing the
Cidade, discutindo as hipóteses sobre a are- hypotheses about the public policy arena in
na de política pública na qual se desenvol- which the conflicts regarding urban land
vem os conflitos em torno do solo urbano e develop and the difficulties in moving to
as dificuldades de deslocamento para outra another arena. The experiences of elaboration
arena, a partir das experiências de elaboração of master plans in the cities of Santos and São
de planos diretores nos municípios de San- Paulo support this discussion.
tos e São Paulo. K ey-w
ey-woror ds:
ords: Estatuto da Cidade; city
Pala vr
vraas-cha
alavr -chavve: Estatuto da Cidade; plano master plan; institutional conditions; urban
diretor; condições institucionais; solo urbano; land; conflicts of interest; organization of
articulação de interesses; setor de produção urban building production; cities of Santos
imobiliária; municípios de Santos e São Paulo. and São Paulo.

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O Estatuto da Cidade, como se tor- Executivo e transformado em lei pelo


nou conhecida a lei federal nº 10.257, de 10 Legislativo – como instrumento básico
de julho de 2001, é a regulamentação dos para a execução da política de desenvol-
artigos 182 e 183 da Constituição Federal, vimento urbano. Para essa execução, o
promulgada em outubro de 1988. Esses ins- poder público municipal pode contar
titutos legais representam um avanço com a cooperação das associações repre-
institucional para o tratamento da questão sentativas no desenvolvimento municipal
urbana no Brasil, historicamente carente de (art. 29, inciso X) e, ao mesmo tempo, deve
diretrizes e princípios definidos de forma articular-se às ações promovidas pelo go-
articulada e integrada a nortear o desenvol- verno federal.
vimento urbano. O Estatuto da Cidade preservou, e
Vários são os indicadores que não poderia ser de outra forma, a cen-
apontam esse avanço. A Constituição de tralidade no solo urbano, no plano diretor
1988, pela primeira vez na história das cons- e na fixação da abrangência das interven-
tituições brasileiras, dedicou um capítulo ções aos limites da atuação dos governos
específico ao tratamento da política urba- municipais. Sem especificar mecanismos
na (capítulo II, título VII). Além disso, o tex- para o tratamento dos problemas urbanos
to constitucional promulgado foi também que possam ultrapassar as fronteiras do ter-
26 inovador, dado haver compreendido dis- ritório municipal e sem atribuir dimensão
positivos ausentes na legislação urbana bra- regional aos problemas dessa natureza, es-
sileira até então existente. O Estatuto da Ci- tendeu a obrigatoriedade do plano dire-
dade, por sua vez, atendeu à exigência cons- tor, além dos municípios com população
titucional, ao regulamentar os artigos 182 e igual ou superior a 20 mil habitantes,
183. E é dessa forma que ele deve ser enten- àqueles integrantes de regiões metropoli-
dido, isto é, um estatuto que reúne diretri- tanas e aglomerações urbanas, aos municí-
zes, instrumentos gerais, específicos e de pios nos quais o poder público municipal
gestão para a execução da política urbana, pretenda utilizar os instrumentos previstos
formulados em consonância ao objetivo, no parágrafo 4º do artigo 182 da Consti-
atribuição de competências e abrangência tuição Federal,1 aos municípios integrantes
da política urbana, fixados nos artigos 182 de áreas de especial interesse turístico e
e 183 da Constituição Federal. àqueles inseridos na área de influência de
Em poucas palavras, o capítulo empreendimentos ou atividades com signi-
constitucional relativo à política urbana ficativo impacto ambiental de âmbito regio-
definiu o solo urbano como questão cen- nal ou nacional (artigo 40).
tral e elegeu o plano diretor – obrigatório Com o propósito de discutir a
para cidades com mais de 20 mil habitan- efetividade do Estatuto da Cidade como ins-
tes, de responsabilidade do poder público tituto norteador da política urbana, três sor-
municipal, elaborado e executado pelo tes de questões merecem ser especificadas,

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uma vez que elas delimitam as condições integrado para os centros urbanos (Cintra,
institucionais para a implementação da po- 1983, pp. 124-125).
lítica, quais sejam: a centralidade do plano Sob a coordenação e financiamen-
diretor como instrumento de execução da to do Serfhau, planos diretores, então de-
política; a competência legal para a defini- nominados planos de desenvolvimento lo-
ção da função social da propriedade; e a cal integrado, foram elaborados para as ci-
ênfase na gestão democrática das cidades. dades brasileiras de médio e grande porte.
Essas questões delimitam o arcabouço Coerente com a concepção de um sistema
institucional consagrado no capítulo cons- articulado e integrado nacionalmente, nas
titucional da política urbana, posteriormen- esferas locais, a proposta de um sistema de
te regulamentado pelo Estatuto da Cidade. planejamento local integrado visava tornar
mais racionais os investimentos com vistas
ao desenvolvimento urbano.
Questões centrais
do Estatuto da Cidade Os problemas intra-urbanos, como bai-
xa densidade, crescimento desordenado,
especulação imobiliária, alto custo das
O plano diretor estruturas urbanas, foram apontados, e
como instrumento por excelência propôs-se a modernização das institui- 27
da execução da política ções locais. (Id., 1978, p. 205)
de desenvolvimento urbano
Não obstante os esforços à época
A experiência brasileira imediatamente an- realizados, a avaliação desse processo in-
terior de elaboração de planos diretores foi dica os baixos resultados apresentados,
marcada pela atuação do Serviço Federal de dado que não se alcançou a implantação
Habitação e Urbanismo (Serfhau) nos anos dos sistemas locais de planejamento, nem
de 1960 e 1970, organismo federal orien- mesmo a execução de intervenções suge-
tador da estruturação de políticas nacionais ridas pelos planos elaborados. Seus resul-
urbanas e de planejamento urbano con- tados, de fato, responderam muito mais a
soante às regras impostas pelo Estado do demandas localizadas na burocracia fede-
período autoritário, isto é, decididas em cír- ral, com pouca repercussão junto às forças
culos estreitos da burocracia pública e políticas locais. Isso reflete o distancia-
pouco atenta às demandas da sociedade. A mento entre os agentes de elaboração dos
essa agência, em particular, coube respon- planos – atribuído a empresas privadas de
der às necessidades de cursos de ação pla- consultoria – e os agentes executores, lo-
nejados compreensivamente dentro de uma calizados nas administrações municipais e
proposta de implantação em dois níveis: na ausência de demandas ou reivindica-
das redes de cidades e do planejamento ções de ações públicas dessa natureza.

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O destino desses planos, não raro, foram No processo constituinte de 1987-


as prateleiras ou gavetas das administrações 88, a alternativa apresentada pelos movi-
municipais. mentos urbanos em muito diferia dos me-
Um estudo realizado em 1975, pelo canismos de política urbana instituídos du-
Centro de Processamento de Dados e Es- rante os anos de vigência do regime autori-
tudos de Sistemas da Escola de Engenharia tário. Aquele passado, por si só, reforçava
de São Carlos (USP), com 107 municípios o estigma da baixa eficácia política e técni-
paulistas, identificou três motivos relacio- ca do plano diretor como instrumento de
nados à dinâmica política local que teriam política urbana, associado, dentre outros, à
contribuído para os resultados alcançados. burocracia pública federal fortemente
Em primeiro lugar, centralizadora. Para esses movimentos, a
questão urbana era a questão fundiária e di-
[...] tal como concebido e nas condições zia respeito ao acesso à terra urbana e à ci-
em que freqüentemente era elaborado, dade como direito, e a proposta apresen-
o plano tinha sua conclusão próxima ao tada, portanto, era a da reforma urbana, me-
final da gestão do prefeito que o havia diante a instituição de instrumentos jurídi-
contratado. Assim, o novo prefeito não cos e urbanísticos básicos e gerais. E, den-
se sentia vinculado às recomendações do tre esses, não se incluía o plano diretor.
plano. (1976) A partir das ações conduzidas pe-
28
la Associação Nacional do Solo Urbano
Em segundo lugar, o plano era
(Ansur), criada no início dos anos de
[...] mais um instrumento do Poder Exe- 1980 como entidade de assessoria aos
cutivo ou da pessoa do prefeito do que movimentos urbanos e de organização de
da administração municipal como um demandas, foi estruturado o Movimento
todo. Ao que parece, o Poder Legislativo Nacional pela Reforma Urbana (MNRU)
permaneceu à margem do plano. Os ele- que, durante o processo constituinte,
mentos normativos complementares, que elaborou a proposta de Emenda Popular
devem decorrer da cooperação entre o pela Reforma Urbana apresentada ao
Executivo e o Legislativo municipais, ra- Congresso com 160 mil assinaturas e o
ramente se concretizaram. (Ibid.) apoio de dezenas de entidades regionais
e locais e seis entidades nacionais (Fede-
E, em terceiro lugar, ração Nacional dos Engenheiros, Federa-
ção Nacional dos Arquitetos, Coordena-
[...] apesar dos esforços e do empenho ção Nacional dos Mutuários, Movimento
das entidades governamentais super- de Defesa do Favelado, Instituto dos Ar-
visoras do processo de planejamento quitetos do Brasil e a própria Ansur). A
municipal, a participação da comunida- mobilização realizada significava “a reto-
de no mesmo foi limitada. (Ibid.) mada [da bandeira da reforma urbana] a

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partir de uma visão integrada do ambiente ticos propostos, como a função social da
construído e o direito à vida na cidade” propriedade, o solo criado, o imposto
(Franklin Dias Coelho, apud Salvatore, progressivo, a usucapião etc.
1996, p. 75). No centro dessa proposta
buscava-se, em suma, introduzir o concei- A centralidade adquirida pelo pla-
to de função social da propriedade por no diretor como principal instrumento de
meio do questionamento do direito de execução da política urbana foi, portanto,
propriedade privada. a alternativa política possível resultante do
As resistências a essa proposta arti- conflito entre posições divergentes duran-
cularam uma espécie de aliança formada te o processo constituinte. Isso significou,
pela burocracia estatal e parcela de con- de um lado, a submissão de aplicabilidade
gressistas em torno de uma outra proposta, de instrumentos jurídicos e urbanísticos ao
de caráter mais conservador, para a qual o aprovado no plano diretor e, de outro, o
direito à propriedade privada é inviolável. adiamento da solução do conflito relativo
É no contexto da disputa entre posições ao solo urbano para a fase de elaboração
divergentes que o plano diretor é introdu- dos planos diretores na esfera local. De
zido no texto constitucional, expressando qualquer forma, a decisão constitucional
a posição dos interesses que atuam na área instituiu o plano diretor como instrumento
de incorporação imobiliária ou ligados à por excelência da política urbana, e o Esta-
29
dinâmica da produção urbana e de grupos tuto da Cidade fixou o prazo de cinco anos
técnico-corporativos enraizados na admi- (até julho de 2006) para a elaboração e
nistração pública brasileira (Rolnik, 1994, aprovação dos planos diretores nos muni-
pp. 357-358). Portanto, como resultado cípios brasileiros que preencham as carac-
das articulações e de grupos de pressão terísticas definidas em lei.
organizados, o plano diretor torna-se cen-
tral à política urbana no texto constitucio- Competência legal na definição
nal de 1988 e “posterga” a definição dos da função social da propriedade
requisitos institucionais para o acesso so-
cial à terra urbana. Consoante à centralidade atribuída ao pla-
De acordo com Dias Coelho (apud no diretor, a Constituição de 1988 estabe-
Salvatore, 1996, p. 76), a proposta de inclu- leceu que a função social da propriedade
são do plano diretor é definida no âmbito do plano diretor. Uma
definição que reforça o plano diretor como
[...] não surgiu nem foi negociada com os instrumento central da política urbana.
movimentos populares. Ela surge como Na Constituição de 1934, quando
alternativa ao temor suscitado, nos seto- apareceu pela primeira vez, o dispositivo da
res mais conservadores, quanto ao uso su- função social da propriedade expressava a
mário dos instrumentos jurídico-urbanís- idéia vaga de que o direito de propriedade

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privada somente seria reconhecido quando mediante a consideração dos interesses


seu exercício desempenhasse uma função sociais envolvidos, durante o processo do
social (Fernandes, 1995, p. 51). Com essa plano diretor. Em conseqüência, a abran-
mesma acepção, esse princípio foi repeti- gência atribuída ao plano diretor é que de-
do nas constituições brasileiras subseqüen- terminará a concepção de propriedade so-
tes, não tendo sido mais que “um chavão ou cial que será adotada. Em vez de ser um di-
uma intenção do Poder Público que se cho- reito com conteúdo predeterminado, o di-
cava frontalmente com a base fundamental reito de propriedade poderá se transformar
da propriedade privada” (Caiado, 1991, pp. no direito à propriedade, perdendo o sen-
157-158). Para Fernandes, os poucos esforços tido individual e definindo-se por uma fun-
de redefinição do direito de propriedade ção socialmente orientada.
privada, substituindo-o por direito à pro- Como fazer cumprir a função social
priedade – passando assim a ter um signifi- da propriedade? O parágrafo 4º do artigo
cado social –, empreendidos no início da 182 da Constituição federal estabelece que
década de 1960, não foram suficientemen- o poder público municipal, mediante lei
te recompensados, de modo que, nos anos específica para área incluída no plano dire-
de vigência das regras políticas autoritárias, tor, poderá determinar, nos termos de lei fe-
assistiu-se ao retorno da aplicação in- deral, ao proprietário do solo urbano não
30 questionável das definições constantes no edificado, subutilizado ou não utilizado
artigo 524 do Código Civil de 1916. Segun- que promova o seu adequado aproveita-
do esse artigo, o direito de propriedade é mento. O artigo 5º do Estatuto da Cidade,
reconhecido em sentido individual, dentro por sua vez, estabelece que lei municipal
dos limites da exploração econômica nos poderá determinar o parcelamento, a edi-
quais uma dada propriedade concreta é ex- ficação ou utilização compulsórios para as
clusivamente determinada pelos interesses áreas delimitadas pelo plano diretor.3 No
individuais de seu proprietário.2 caso de não cumprimento, as penas aplicá-
A Constituição de 1988 rompeu veis compreendem a aplicação do impos-
com essa tradição, ao estabelecer que a fun- to sobre a propriedade predial e territorial
ção social da propriedade urbana define- urbana (IPTU) progressivo no tempo,4 me-
se no âmbito do plano diretor. Escapa-se, diante a majoração da alíquota pelo prazo
pelo menos teoricamente, das vagas defi- de cinco anos consecutivos (artigo 7º) e a
nições constantes dos instrumentos ante- desapropriação do imóvel, com pagamen-
riores. Para Fernandes (1995, p. 63), o di- to mediante títulos da dívida pública (arti-
reito de uma dada propriedade urbana go 8º). Através de seus incisos, esses arti-
passa a ser reconhecido a partir de regras gos fixam os procedimentos a serem
legais municipais definidoras de suas adotados para aplicação das penas.5
potencialidades de uso e o seu conteúdo Portanto, o Estatuto da Cidade esta-
econômico seria atribuído pelo Estado belece que a propriedade privada cumpre

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sua função social quando atendida as exi- O objetivo dessa limitação à livre dispo-
gências fixadas no plano diretor, dispondo, nibilidade do imóvel urbano pelo pro-
para tanto, do mecanismo da progres- prietário se fundamenta na função social
sividade do IPTU no tempo aplicável em da propriedade e na atribuição do po-
imóveis urbanos não utilizados, subuti- der público municipal de condicionar o
lizados ou não edificados. exercício deste direito individual à polí-
Ao lado desse instrumento da polí- tica urbana. O direito de preempção
tica, outros institutos jurídicos e urbanísti- pode incidir em imóvel público ou pri-
cos foram facultados ao poder público mu- vado para atender esse princípio consti-
nicipal para a execução da política urbana tucional.
na esfera local, relacionando-se o direito Este instituto, no que se refere à política
de preempção, a outorga onerosa do direi- urbana, tem como finalidade constituir
to de construir acima do coeficiente de um sistema de informações públicas so-
aproveitamento adotado mediante contra- bre as alienações voluntárias que se pro-
partida, as operações urbanas consorciadas cessam no interior de um perímetro ur-
e a transferência do direito de construir. A bano estabelecido pelo município em
utilização desses mecanismos pressupõe lei razão do interesse público ou social,
municipal específica, fundamentada no pla- constituir um banco de áreas públicas e
no diretor aprovado para o município. Os controlar os preços dos terrenos, em es- 31
significados e finalidades desses instrumen- pecial em áreas urbanas cujo preço dos
tos a seguir descritos recuperam a sistema- imóveis dos terrenos sejam elevados de-
tização feita pelo Instituto Polis (2001), ex- vido à existência de especulação imobi-
celente guia de orientação aos municípios liária. (p. 137)
e cidadãos para a implementação do Esta-
tuto da Cidade. Transferência do direito de construir
Direito de preempção (artigos 25 a (artigo 35) visa viabilizar a preservação de
27) visa conferir ao poder público munici- imóveis ou áreas de importante valor histó-
pal preferência para adquirir imóvel urba- rico ou ambiental.
no objeto de alienação onerosa entre par-
ticulares. Este instrumento foi concebido de modo
a permitir que os proprietários de imó-
A preferência [para essa aquisição] é apli- veis a serem preservados fossem compen-
cável nas alienações de imóveis urbanos sados pelo fato de que em seus imóveis
que, em razão da política urbana esta- os coeficientes ou densidades estabele-
belecida nos municípios, sejam conside- cidos para o território urbano não po-
rados necessários para atender as funções dem ser atingidos sob pena de compro-
sociais da cidade, como a criação de es- meter o objetivo de preservação de imó-
paços públicos de lazer e áreas verdes. veis de interesse histórico, paisagístico ou

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ambiental. No Estatuto da Cidade está o redesenho deste setor (tanto de seu


prevista também a hipótese de transfe- espaço público como privado); a com-
rência para os casos de regularização binação de investimentos privados e
fundiária e programas de habitação de públicos para sua execução; e a altera-
interesse social. ção, manejo e transação dos direitos de
O proprietário de imóvel sobre o qual uso e edificabilidade do solo e obriga-
incide um interesse público de preser- ções de urbanização. Trata-se, portan-
vação, seja sob o ponto de vista to, de um instrumento de implemen-
ambiental, ou sob o ponto de vista do tação de um projeto urbano (e não ape-
patrimônio histórico, cultural, paisa- nas da atividade de controle urbano)
gístico e arquitetônico, ou ainda um para uma determinada área da cidade,
imóvel que esteja ocupado por uma fa- implantado por meio de parceira en-
vela que se quer urbanizar, pode utilizar tre proprietários, poder público, in-
em outro imóvel, ou vender, a diferen- vestidores privados, moradores e
ça entre a área construída do imóvel usuários permanentes.
preservado e o total da área construída As operações urbanas recortam da or-
atribuída ao terreno pelo coeficiente de denação geral do uso e ocupação do
aproveitamento básico, conforme a le- solo um conjunto de quadras e definem
32 gislação existente. A transferência so- para estas um projeto de estrutura
mente será permitida se o proprietário fundiária, potencial imobiliário, formas
participar de algum programa de preser- de ocupação do solo e distribuição de
vação elaborado em conjunto com o usos, distintas da situação presente des-
poder público ou elaborado pelo se- te setor e das regras gerais vigentes de
tor privado e aprovado pelo ente téc- uso e ocupação do solo para este. Tra-
nico responsável. (p. 76) ta-se, portanto, da reconstrução e
redesenho do tecido urbanístico/eco-
Operações urbanas consorciadas nômico/social de um setor específico
(artigos 32 a 34) é um instrumento que da cidade, apontado pelo plano dire-
visa viabilizar intervenções de maior es- tor, de acordo com os objetivos gerais
cala, em atuação concertada entre o po- da política urbana nele definidas.
der público e os diversos atores da inicia- As operações urbanas articulam um
tiva privada. conjunto de intervenções, coordenadas
pela prefeitura e definidas em lei muni-
Operações urbanas consorciadas cons- cipal com a finalidade de preservação,
tituem um tipo especial de intervenção recuperação ou transformação de
urbanística voltada para a transformação áreas urbanas com características sin-
estrutural de um setor da cidade. As gulares. Estas intervenções podem se dar
operações envolvem simultaneamente: através de obras públicas e/ou privadas

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e o estabelecimento de um marco Gestão democrática


regulatório completamente diferente da- das cidades6
quele em vigor para o conjunto da cida-
de, que muda as obrigações dos agentes Ao lado dos instrumentos urbanísticos e ju-
públicos e privados envolvidos. (p. 80) rídicos, o Estatuto da Cidade definiu o con-
junto de instrumentos de gestão passíveis
Outorga onerosa do direito de de utilização pelo poder público para de-
construir (artigos 28 a 31) é o instrumento senvolver a política urbana em moldes de-
que permite fixar áreas nas quais o direito mocráticos. Para tanto, reserva o capítulo IV,
de construir poderá ser exercido acima do no qual são especificados os instrumentos
coeficiente de aproveitamento básico, me- que favorecem a gestão democrática da ci-
diante contrapartida a ser prestada pelo dade: órgãos colegiados de política urba-
beneficiário. De acordo com a interpreta- na, nos níveis nacional, estadual e munici-
ção feita pelo Instituto Pólis, esse instru- pal; debates, audiências e consultas públi-
mento funda-se nos princípios do direito cas; conferências sobre assuntos de interes-
de superfície e da função social da proprie- se urbano, nos níveis nacional, estadual e
dade com o objetivo de separar a pro- municipal; e iniciativa popular de projeto
priedade dos terrenos urbanos do direito de lei e de planos, programas e projetos de
de construir, possibilitando ao poder pú- desenvolvimento urbano (artigo 43). 33
blico aumentar sua capacidade de interfe-
rir sobre o mercado imobiliário (p. 72). Experiências municipais
Além desses instrumentos, passíveis
de utilização por meio do plano diretor, o De acordo com o exposto, o plano dire-
Estatuto da Cidade regulamentou também tor é o instrumento privilegiado de trata-
a usucapião especial de imóvel urbano de mento do solo urbano, questão central pa-
uso residencial individual e coletivo (arti- ra a política de desenvolvimento urbano.
gos 9º ao 14º), aplicável a áreas ou edi- É em seu âmbito também que as exigências
ficações de até 250 m2 de uso ininterrupto para o cumprimento da função social da
por cinco anos com a possibilidade de propriedade urbana serão estabelecidas.
aquisição de seu domínio e o estudo de E, em seu processo, a sociedade poderá
impacto de vizinhança (artigos 36 a 38) que, contribuir, valendo-se dos canais ins-
tendo por referência os estudos de impac- titucionais de participação na política,
to ambiental, visa definir os empreendi- também legalmente estabelecidos.
mentos e atividades públicas ou privadas, Contudo, realizar os princípios
situadas em área urbana, que dependerão constitucionais norteadores da política
de elaboração de estudos prévios de im- urbana com a aplicação dos instrumen-
pacto para obter licenças para construção, tos jurídico-urbanísticos regulamentados
ampliação ou funcionamento. pelo Estatuto da Cidade dependerá da

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composição de forças sociais mobilizadas No mesmo período daquele gover-


durante a elaboração e aprovação do pla- no, em São Paulo, Luiza Erundina (1989-
no diretor na esfera local, pois é nesta es- 92) abriu as discussões sobre o plano di-
fera e neste momento que conflitos pode- retor também sob a inspiração da propos-
rão ocorrer. As experiências de Santos e São ta de reforma urbana, mas o processo foi
Paulo fundamentam essa discussão. interrompido sem que se tivesse formali-
Santos e São Paulo diferenciam-se zado um projeto de lei. O retorno à agen-
de outros municípios brasileiros pelo alto da governamental somente se deu no go-
grau de urbanização, acentuada concentra- verno Marta Suplicy (2001-04) que,
ção populacional e, durante a elaboração apoiando-se nas regras instituídas pelo Es-
do plano diretor, eram governados por re- tatuto da Cidade, elaborou e encaminhou
presentantes do Partido dos Trabalhadores ao Legislativo o projeto de lei do plano
(PT). Por outro lado, os processos aí desen- diretor. Após discussões e negociações
volvidos foram regidos, no caso de Santos, comandadas pela Câmara municipal, a lei
exclusivamente pelos princípios aprovados do plano diretor de São Paulo foi aprova-
pela Constituição de 1988 e, em São Pau- da em agosto de 2002.
lo, já se contava com a lei do Estatuto da Nos processos havidos, as propos-
Cidade aprovada. tas de regulação do solo urbano apresen-
34 Em Santos, os debates sobre o pla- tadas pelo Executivo das duas cidades é que
no diretor se iniciaram no governo Telma mobilizaram atores sociais, centralizaram o
de Souza (1989-92) fortemente influencia- debate e definiram o alcance da política ur-
dos pelas teses da reforma urbana dos bana. A simples divulgação dos fundamen-
anos de 1980, tiveram continuidade no tos das propostas pelo Executivo das duas
governo David Capistrano Filho (1993- cidades explicitou a ameaça que poderiam
96), que finalizou um projeto de lei de representar a um setor da economia em par-
plano diretor, enviando-o à Câmara mu- ticular – o segmento da produção imobiliá-
nicipal no último ano de seu mandato. A ria urbana – que mostrou ser o interlocutor
sua aprovação somente se deu na gestão privilegiado e a força social co-responsá-
seguinte, de Beto Mansur (1997-2000), vel na definição dos instrumentos de
então do antigo Partido Progressista Bra- regulação do solo urbano, capaz, inclusive,
sileiro (PPB). 7 O espaço institucional de de criar obstáculos ao andamento da polí-
debate e mesmo de deliberação sobre o tica caso suas demandas não fossem aten-
plano diretor foi o Conselho Consultivo didas. Os fundamentos contidos nos ins-
do Plano Diretor, instituído em 1968 trumentos propostos poderiam alterar as re-
como órgão de assessoramento da prefei- gras vigentes de produção das cidades, e os
tura e subordinado diretamente ao gabi- riscos vislumbrados seriam o de deslocar o
nete do prefeito e reativado no governo conflito em torno do solo urbano para a
Telma de Souza. arena redistributiva, ou seja, de um conflito

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estatuto da cidade: aprovação e implantação

entre grupos de interesse para um conflito de zoneamento urbano, historicamente fun-


“classes”, por menos usual que essa deno- cional, para um zoneamento por aden-
minação pareça ter nos dias de hoje.8 samento, identificado pela mistura de usos
Entender esses processos pressupõe urbanos. Com essa perspectiva, a proposta
definir categorias conceituais que orientam elaborada seria, para seus propositores, a
o enquadramento de uma política pública resposta pública para a reversão do proces-
em uma determinada arena de conflitos e so histórico de ocupação das cidades bra-
não em outra, uma vez que essas categorias sileiras de grande e médio porte marcadas
se apresentam de maneira diferente em cada pela segmentação do espaço urbano entre
caso ou para um conjunto de casos. Para excluídos e incluídos. Coerente a essa in-
tanto, a análise somente poderá ocorrer terpretação, os instrumentos urbanísticos
pela consideração de sistemas de partici- existentes, ao provocar a desvalorização
pação e de decisão estruturados mutua- desigual do custo da terra também teriam
mente e inter-relacionados, à luz do obje- concorrido para a emergência daquele fe-
to de decisão em pauta. Há que se conhe- nômeno. E manter a diretriz do zoneamento
cer o objeto, em especial quanto a suas funcional significaria dar continuidade ao
possibilidades de divisão, pois ele irá de- processo de ocupação da cidade segundo
terminar a capacidade de sensibilizar ato- moldes anteriores, isto é, com segmentação
res políticos, a sua forma de atuação e o e segregação socioespaciais. 35
exato instante em que a decisão será toma- Em São Paulo, o foco da proposta
da. Em função das características específi- do Executivo municipal foi a instituição da
cas do objeto poderá ocorrer também uma outorga onerosa do direito de construir,
ampliação ou limitação dos agentes envol- mecanismo previsto no Estatuto da Cidade
vidos e que, por sua vez, contribuirá para que possibilita fixar áreas nas quais o direi-
uma eventual redefinição do próprio ob- to de construir poderá ser exercido acima
jeto, distinto daquele proposto no mo- do coeficiente de aproveitamento básico,
mento inicial. mediante contrapartida a ser prestada pelo
Os instrumentos de regulação do beneficiário. Também conhecido como
solo urbano contidos nos projetos de pla- solo criado, esse mecanismo seria im-
no diretor apresentados pelo Executivo plementado com a definição de um índice
das duas cidades apontavam para o des- padrão de aproveitamento para todos os
locamento do tratamento do solo urba- terrenos, com variação segundo a área do ter-
no da arena regulatória para a arena re- reno. A noção que fundamenta a outorga
distributiva, ao visarem o acesso mais igua- onerosa afasta-a dos mecanismos usuais de
litário à cidade e aos benefícios coletivos regulação do solo urbano contidos na le-
nela produzidos. Em Santos, o Executivo gislação brasileira, pois a função social da
de David Capistrano Filho propunha alte- propriedade urbana passa a ser definida
rar a fundamentação conceitual de com base na separação entre o direito de

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propriedade e o direito de construir. Essa os efeitos indutores do desenvolvimento


idéia, que não é tão nova assim,9 contraria das principais atividades econômicas e de-
a prática usual brasileira de se estabelece- finia o papel do município no contexto re-
rem coeficientes de aproveitamento gional. Para os governos do PT, tratar os
diferenciados e específicos para cada uma problemas urbanos implicava seguir duas
das zonas em que é dividido o território diretrizes gerais. A primeira era, claramen-
urbano das cidades. te, a orientação mais geral do partido, à
Em São Paulo, de forma semelhan- época, cunhada na expressão inversão de
te à verificada em Santos, a proposta de prioridades. Inverter prioridades na alo-
regulação do solo urbano distinguia-se da cação de recursos públicos era o mecanis-
concepção dominante de intervenção pú- mo adotado para minimizar as desigualda-
blica limitada a regulamentar o tipo de uso des sociais.
urbano e os potenciais construtivos (taxas A segunda diretriz era implantar e
de aproveitamento e de ocupação) permi- consolidar um projeto democrático de go-
tidos em cada porção ou zona da cidade. verno, com o apoio e estímulo à participa-
Assim definido, fixa-se a natureza regu- ção popular no processo das políticas pú-
latória desse instrumento de intervenção blicas. Para tanto, seria necessário fomen-
pública, e o lote urbano carrega em si mes- tar a organização popular e criar instâncias
36 mo um determinado potencial construti- para sua representação, como os conselhos
vo fixado em lei, que é intransferível e, des- municipais. No caso da política urbana (ou
sa forma, preservam-se os interesses da co- de planejamento urbano), implantar essa di-
letividade ante regras gerais previamente retriz significava, inclusive, alterar a compo-
estabelecidas e protegem-se os interesses sição de forças sociais representada no Con-
privados mediante autorização pública de selho Consultivo do Plano Diretor, marca-
otimização imobiliária da terra urbana, do pela forte presença dos setores ligados à
estabelecida em lei. produção urbana em sua composição.
Para essa discussão, vamos, primei- No governo Telma de Souza, a pro-
ro, recuperar a experiência de Santos, es- posta de plano diretor propunha tratamen-
tudada de forma aprofundada, para, na se- to diferenciado para as porções insular e
qüência, examinarmos o caso de São Pau- continental do município e o embate com
lo, à luz do mesmo referencial conceitual.10 o setor de produção imobiliária localizou-
se nas propostas apresentadas para a San-
Comprovando a hipótese: tos-ilha, em especial quanto à proposição
o plano diretor de Santos de um índice padrão de aproveitamento
dos lotes, ou seja, o solo criado.11
Em Santos, o plano diretor dos anos de Não obstante os esforços de mobi-
1990 fundava-se em um diagnóstico do pro- lização popular, de resultados baixos ou nu-
cesso de ocupação urbana que enfatizava los, a interlocução da política realizou-se

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com grupos ligados ao mercado imobiliário Deve-se, primeiro, considerar as


urbano – em particular com a Associação mudanças ocorridas ainda na fase de cam-
dos Empresários da Construção Civil da Bai- panha eleitoral, em 1992. Nessa ocasião, eli-
xada Santista (Assecob) – e as decisões to- minou-se o principal foco de conflito en-
madas circunscreveram-se ao âmbito do tre o setor de produção imobiliária e o go-
Conselho Consultivo do Plano Diretor. verno anterior, reduzindo as tensões que
Diante da inflexibilidade das posi- marcaram essas relações. O então candida-
ções, o conflito entre o Executivo munici- to, em debate promovido na sede da
pal e esses grupos evoluiu para o confron- Assecob, declarou sua disposição de sus-
to e a política urbana, para o impasse. Já às pender a discussão relativa ao solo criado,
vésperas das eleições municipais de 1992, ante a conjuntura econômica que o país
Telma de Souza decidiu pela retirada do atravessava. Mais do que a intenção de pos-
plano diretor da agenda de governo. tergar a discussão, a declaração de David
No governo David Capistrano Filho, Capistrano Filho expressou o propósito de
o quadro foi outro, com a conclusão de dispensar novo tratamento à questão rela-
uma proposta de política de desenvolvi- tiva ao solo urbano. Uma disposição que foi
mento urbano desenvolvida dentro do es- interpretada como o anúncio do tratamen-
forço de atribuir abrangência mais ampla ao to da questão relativa à propriedade urba-
plano diretor e de encaminhamento do na para o âmbito circunscrito ao seu uso, 37
projeto de lei do plano diretor ao Le- com o conseqüente distanciamento das
gislativo. O processo havido desenrolou- propostas que pressupunham separar o di-
se em 1995, iniciando-se com a divulgação reito de propriedade e o direito de cons-
dos trabalhos técnicos, evoluindo para o truir. Em outras palavras, o anúncio expres-
cumprimento de uma agenda de debates sou a intenção em trazer “de volta” a ques-
públicos e se encerrando com o envio do tão do solo urbano para a arena regulatória,
projeto de lei à Câmara. Contudo, a con- afastando a política urbana, pelo menos
clusão de uma proposta no âmbito do Exe- nessa temática que lhe é central, da arena
cutivo não garantiu sua aprovação pelo redistributiva, como era o propósito com a
Legislativo, pois, ao final do governo, após ênfase atribuída à questão fundiária no go-
13 meses de permanência na Câmara, o pro- verno Telma de Souza.
jeto de lei do plano diretor não chegou a Essa decisão significou também re-
ser votado. conhecer os produtores da cidade como
Dado que as condições político- interlocutores por excelência e força social
institucionais gerais não se alteraram em re- co-responsável pela definição dos instru-
lação ao período de Telma de Souza, per- mentos reguladores do solo urbano, e do
gunta-se: que fatores possibilitaram ultra- mesmo modo aceitar os agentes do merca-
passar a etapa de formulação da política na do que, como parte do processo de pro-
esfera executiva? dução da cidade, podem criar obstáculos

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ao andamento da política, caso não se aten- plano de governo, ao reunir os programas


dam suas demandas. Se essa decisão ex- públicos existentes e previstos, articulados
pressou a disposição ao diálogo e à ne- e integrados às diretrizes de desenvolvimen-
gociação, alterou, por conseqüência, a na- to. Contudo, a dimensão mais específica re-
tureza e as condições das relações entre lativa aos instrumentos de regulação urba-
os interesses do setor imobiliário urbano na não foi deixada de lado. Mantida a ex-
e a chefia do Executivo, o que permitiu clusão do dispositivo do solo criado, a pro-
criar as bases para as novas estratégias, ago- posta elaborada foi fiel aos parâmetros es-
ra de conciliação e negociação (e não tabelecidos no governo anterior, de trata-
mais de confronto e impasse do governo mento diferenciado às porções continen-
Telma de Souza). tal e insular do município. Para a Santos-ilha,
Essas estratégias foram igualmente a proposta mantinha a diretriz de zonea-
sustentadas por razões políticas, definidas mento por áreas de disciplinamento do
desde as eleições municipais de 1992. A vi- adensamento urbano, com controle do im-
tória eleitoral de David Capistrano Filho no pacto de eventual incompatibilidade entre
segundo turno incluiu o apoio formal do atividades urbanas e o tratamento diferen-
PSDB, levando-o a constituir uma base po- ciado e a correspondente delimitação de
lítica mais ampla e formar um governo re- zonas especiais para o tratamento de
38 presentativo das forças que ganharam a elei- temáticas urbanas específicas, como os
ção, de tal forma que, na composição de zoneamentos especiais de interesse social,
seu secretariado, duas pastas foram entre- cultural e de desenvolvimento urbano.
gues a esse partido. A proposta do Executivo foi dis-
A ampliação da base de sustentação cutida, inicialmente, por meio de consulta
do governo e, em particular, a participação popular e, posteriormente, no âmbito do
do PSDB, facilitou as negociações com o Coplan. A consulta popular foi estruturada
setor da produção imobiliária, até porque por um grupo de trabalho constituído no
algumas de suas lideranças pertenciam a gabinete do prefeito, responsável pela
esse partido, como o então presidente da montagem da agenda de discussão, com
Assecob e seu antecessor. Esses fatos, por- clara definição dos objetivos e calendário
tanto, corroboraram a disposição à nego- dos eventos, antecedidos de distribuição
ciação e à conciliação, contribuindo para gratuita e ampla de exemplares da propos-
quebrar as resistências ao diálogo, presen- ta elaborada.
tes no governo anterior. Com a consulta popular buscou-se,
O Executivo municipal elaborou da mesma forma que no governo anterior,
uma proposta de plano diretor com esco- cumprir a diretriz de governo de democra-
po amplo, de plano de desenvolvimento, tizar a gestão pública, ampliando o acesso
contendo as diretrizes de ação à promoção da população às informações e estimulan-
das vocações econômicas da cidade, e de do a prática da participação popular. Além

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de divulgar a política, esse processo visou a Assecob, entidade líder na condução


obter o apoio popular ao projeto do Exe- das negociações.
cutivo em sua fase posterior e decisiva, no Nas reuniões do Coplan, os aspec-
âmbito do Legislativo – apoio que os for- tos contidos no plano que mais direta-
muladores da política consideravam neces- mente afetavam os setores ligados à pro-
sário para a aprovação da lei pela Câmara dução imobiliária foram efetivamente de-
municipal. Não havia, contudo, o compro- batidos e, por fim, deliberados. Ante o
misso de incorporar as sugestões apresen- equilíbrio de forças aí existente, as mudan-
tadas durante os debates públicos. ças introduzidas no projeto do Executivo
No processo de consulta popular, – que foram estruturais, visto terem altera-
a parceria com o Coplan não ocorreu, do substancialmente os fundamentos ori-
mantendo-se a distinção entre os debates ginais estabelecidos – localizaram-se nas
públicos e esse conselho como canais de restrições urbanísticas.
interlocução entre o poder público e a so- Se as negociações desenvolvidas no
ciedade com funções e objetivos distin- âmbito do Coplan mantiveram inalterada a
tos. Por sua vez, as entidades-membro des- proposta do Executivo para a área conti-
se conselho participaram nas sessões do nental de Santos, o mesmo não ocorreu em
congresso municipal, etapa final do pro- sua porção insular. Sem alterar a posição
cesso de consulta popular. As sugestões explicitada no governo Telma de Souza, os 39
encaminhadas foram de atores individuais representantes do setor da produção imo-
interessados em um debate que então se biliária discordaram do zoneamento por
iniciou e que teve continuidade nas adensamento e recolocaram a proposta de
reuniões do conselho, que se seguiram. zoneamento fundado na separação de usos
Os dados de registro do congres- urbanos, sustentados por uma cultura urba-
so municipal mostram que a Delegacia da na historicamente cristalizada de leitura de
Baixada Santista do Sindicato dos Arqui- cidade. A manutenção do zoneamento por
tetos e a Assecob apresentaram suas pro- função urbana vinha ao encontro do setor
postas na plenária que sucedeu a última produtor da cidade, pois, a este, mais dire-
sessão temática. No caso da Assecob, o tamente que a outros grupos, convém se-
seu representante, alegando o adiantado parar usos urbanos, que é a condição para
da hora de realização da sessão, propôs o exercício de sua atividade econômica
transferir a discussão das sugestões for- com potencialização de ganhos.
muladas para o âmbito do Coplan, o que As mudanças sugeridas pela
foi aceito pela plenária do congresso. Assecob, incorporadas no texto final do
Assim, deslocou-se para um fórum restri- projeto de lei, reintroduziram os parâ-
to, reconhecido politicamente, o deba- metros do zoneamento funcional, em par-
te acerca das questões tão caras ao setor ticular a definição do uso exclusivo para
da produção imobiliária – em particular algumas áreas urbanas e a diferenciação de

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índices de aproveitamento e taxas de por segmentos ligados à produção imobi-


ocupação do lote segundo zonas urbanas. liária. Por parte do governo, diante das difi-
Ainda por sugestão da Assecob, foram es- culdades políticas que impediram a gestão
tipuladas as áreas da porção insular de San- David Capistrano Filho de alterar a compo-
tos consideradas prioritárias a seus interes- sição desse conselho, foi preciso negociar,
ses, para as quais propuseram-se alterações pois, do contrário, não se teria aprovado o
de perímetro, de usos urbanos permitidos plano diretor em seu âmbito – condição
e de taxas de aproveitamento e ocupação institucional sem a qual o projeto de lei não
dos lotes. À exceção dessas, a contra- poderia ser enviado à Câmara municipal.
proposta do setor não conteve nenhuma
modificação urbanística a ser introduzida Reforçando a hipótese:
nas demais áreas da cidade. o plano diretor de São Paulo
A atenção diferenciada da Assecob
entre áreas do território insular de Santos O contexto político-institucional no qual
foi a principal evidência das prioridades se desenvolveu a discussão com aprovação
dos interesses imobiliários representados. do projeto de lei em São Paulo pouco di-
No contexto urbano da cidade, as áreas feriu ao identificado em Santos, pois o con-
com modificações correspondem àquelas flito foi igualmente travado em torno da
40 com melhor potencial de mercado: os questão do solo urbano, apesar de a pro-
bairros em direção à orla, por suas carac- posta elaborada também conter outras di-
terísticas de região de residência da popu- mensões.12 Em São Paulo, da mesma forma
lação de poder aquisitivo mais elevado, que em Santos, a mobilização e participa-
além de veraneio; e a área central, que, em ção dos setores populares ou de qualquer
face da cobertura existente de equipa- outro setor social não foram expressivas,
mentos e serviços urbanos, guarda, em si exceto dos grupos ligados à produção imo-
mesma, potencial para a realização de no- biliária urbana e de entidades que se soli-
vos investimentos imobiliários. darizaram com as posições desses grupos,
Se, por um lado, a proposta final de além de arquitetos urbanistas avaliando as
plano diretor contrariou os princípios ori- proposições.13 De forma distinta em relação
ginais que a fundaram nos idos de 1990, a Santos, o espaço institucional das discus-
por outro, os resultados alcançados con- sões e negociações foi a Câmara municipal.
firmaram a disposição do governo de es- O projeto de lei do Executivo en-
tabelecer o diálogo com o setor produ- trou na Câmara em maio de 2002, após ter
tor urbano, coerente ao compromisso as- sido elaborado sem maiores repercussões
sumido em campanha. As mudanças pro- públicas. De acordo com o projeto apre-
cessadas no texto final decorreram do per- sentado, o índice de aproveitamento fixa-
fil de representação social do conselho do do correspondia a uma vez a área do terre-
plano diretor, majoritariamente formado no, podendo chegar a até 1,7 vez, conforme

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a área e acima desses valores, e até 2,5 ve- As alterações introduzidas no tex-
zes, seria aplicado o mecanismo da outor- to final aprovado integraram o subs-
ga onerosa do direito de construir com titutivo do Legislativo municipal, elabo-
contrapartida em dinheiro. Essa proposi- rado pelo vereador Nabil Bonduki, em
ção fundamentava-se na queda do preço um contexto de reações intensificadas
dos terrenos e, por conseqüência, na am- por pressão das entidades ligadas à pro-
pliação do acesso à terra urbana aos seg- dução imobiliária urbana à proposta do
mentos de população de menor poder Executivo municipal em alterar a regra vi-
aquisitivo. Os recursos advindos da ven- gente de regulação do uso e ocupação do
da do potencial construtivo seriam rever- solo urbano. A reação então havida mar-
tidos aos cofres públicos e retornados à cou os debates pela ênfase nos impactos
coletividade sob a forma de benfeitorias decorrentes sobre o mercado caso o me-
e equipamentos urbanos. canismo da outorga onerosa do direito de
O projeto aprovado pela Câmara construir fosse implementado tal como
municipal, em agosto de 2002, alterou os proposto. De forma a contextualizar a par-
índices propostos pelo Executivo, com a ticipação desse setor, seu nível de organi-
adoção de novos procedimentos, a sa- zação e capacidade de pressão, vale recu-
ber: escalonamento gradual de implanta- perar três episódios havidos, amplamente
ção do mecanismo da outorga onerosa divulgados (e apoiados) pela mídia im- 41
que considera 2003 como período de pressa paulistana.14
transição e 2004 como período de im- O primeiro episódio recupera a
plantação definitiva, com a adoção de posição explicitada por Raul Leite Luna,
índices de aproveitamento mais flexíveis presidente do capítulo brasileiro da Fede-
e variáveis segundo zonas urbanas da ci- ração Internacional das Profissões Imobiliá-
dade. Nas zonas mistas e de alta densida- rias (Fiabci) antes mesmo da entrada do pro-
de (Z-3, Z-4, Z-5, Z-10 e Z-12), com coefi- jeto de lei na Câmara. Com forte carga
ciente básico gratuito igual a três em ideológica, em matéria paga (anúncio pu-
2003 e a dois em 2004. Nas zonas blicitário) publicada no jornal O Estado de
residenciais de baixa densidade (Z-2), a S.Paulo (23/4/2002), Luna deu o teor da
taxa gratuita é igual a um, podendo che- crítica à proposta do Executivo paulistano
gar a dois, nos casos em que houver o em artigo que ressalta de forma emble-
compromisso em manter parte do terre- mática a posição do setor por ele represen-
no ajardinado e permeável. Nessas zonas, tado. Para ele, caso a Câmara viesse a apro-
o índice poderá chegar a 2,5 vezes a área var a proposta enviada pelo Executivo iría-
do terreno, mediante compra do direito mos “assistir ao maior ato de usurpação da
de construir. E nas zonas estritamente propriedade privada de que se tem notícia
residenciais (Z-1), foi mantido o índice de em toda a história do país”. E mais adiante
aproveitamento igual a um. acrescentou:

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A Prefeitura passa assim não só a encare- da produção imobiliária urbana em organi-


cer o imóvel, mas a elitizar (grifo nosso) zar o que denominaram Frente pela Cida-
ainda mais o uso do solo. Isto porque, dania, integrada por 30 entidades, direta ou
além de arcar com o custo do terreno, o indiretamente articuladas na defesa de in-
comprador terá, pelo novo plano, de pa- teresses econômicos específicos.15
gar esse valor extra à Prefeitura. Assim, só A oposição manifesta por essas en-
quem estiver em condições de pagar duas tidades ao plano diretor apresentado ape-
vezes vai conseguir construir. lou à sociedade, explicitando as perdas
Daí que a alegação de que esta mágica para o trabalhador e para a família, decor-
vai fazer cair o preço do terreno não en- rentes da queda da produção imobiliária
contra pé na realidade. urbana. A aprovação das novas regras de
regulação do solo urbano traria efeitos di-
O segundo episódio refere-se ao retos para o trabalhador, pois causaria de-
evento realizado na Federação das Indústrias semprego e, para a família, as repercussões
do Estado de São Paulo (Fiesp) em 12/6/ seriam a do adiamento da realização do
2002, para discutir exclusivamente o plano sonho da casa própria em conseqüência da
diretor de São Paulo. As lideranças ali pre- redução da oferta de moradias.
sentes foram explícitas na manifestação de O que de fato argumentos dessa na-
42
suas posições. Em matéria de 13/6/2002, o tureza explicitavam era a defesa do setor de
jornal O Estado de S. Paulo, ao sintetizar as produção imobiliária em buscar de manter
discussões realizadas, colocou que “a maior a regra vigente na regulação do uso e ocu-
bronca do setor da construção ficou, entre- pação do solo urbano, isto é, sem outorga
tanto, por cobrança da chamada outorga onerosa. Insistir na proposta apresentada
onerosa”. Arthur Quaresma, presidente do pelo Executivo representava o risco de con-
Sindicato da Indústria da Construção Civil duzir a política ao impasse e paralisação do
do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP), foi processo na Câmara municipal. A alterna-
direto ao afirmar que instituir a outorga one- tiva contida no substitutivo elaborado pelo
rosa era “confisco. Vamos pagar pelo que vereador Bonduki foi o enquadramento do
hoje é de direito do proprietário de cons- objeto circunscrito aos parâmetros aceitos
truir”. Para ele, o plano visa mais a arrecada- pelo setor da produção imobiliária urbana.
ção de recursos para a prefeitura e não con- Em poucas palavras, foi a alternativa possí-
sidera os interesses urbanos da cidade. Para vel e negociada com os interesses do setor
as entidades representativas do setor imo- de produção imobiliária. Para Romeu Chap
biliário, esses interesses urbanos se tradu- Chap, presidente do Secovi São Paulo,
zem em otimizar os investimentos imobiliá- Nabil Bonduki teve bom senso no texto ela-
rios realizados na cidade. borado (O Estado de S.Paulo, 13/7/2002).
Por fim, o terceiro episódio foi a Para Bonduki, o resultado alcançado mos-
mobilização feita pelas entidades do setor tra que houve um processo de negociação

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estatuto da cidade: aprovação e implantação

com a sociedade, pois foi “a primeira vez ficaram restritas à negociação com o setor
que um plano diretor foi elaborado e vota- da construção imobiliária e nos itens de seu
do de forma democrática” (Id., 14/8/2002). interesse. Em São Paulo, as negociações se
O processo de definição – e poste- deram na Câmara municipal, espaço polí-
rior aprovação – do plano diretor em São tico-institucional de representação da so-
Paulo pouco diferiu do ocorrido em San- ciedade paulistana no qual se procedeu à
tos. Nas duas cidades, a despeito da diver- revisão, com redefinição, da proposta ori-
sidade de proposições contidas nas respec- ginal de plano diretor apresentada pelo
tivas propostas elaboradas, a discussão cen- Executivo, também polarizada nos itens
tralizou-se em torno das regras tidas como explicitados pelos interesses da produção
básicas pelas forças sociais que de fato se imobiliária urbana.
mobilizaram para participar do processo de Em Santos e em São Paulo, portan-
discussões, quais sejam os instrumentos de to, não se escapou ao padrão geral obser-
regulação do solo urbano tão caros ao se- vado nas políticas públicas que buscam
tor da produção imobiliária urbana. Em San- definir instrumentos de regulação da pro-
tos, a articulação foi mais restrita, com a dução urbana a partir da interlocução com
liderança exercida pela Associação dos os grupos ligados ao setor da produção
Empresários da Construção Civil da Bai- imobiliária urbana, principalmente com
xada Santista. Em São Paulo, a articulação seus segmentos empresariais e, secundaria- 43
foi mais ampla e complexa, indicador de mente, com os segmentos profissionais que
um ambiente sócio-político que contém lhes dão suporte.
número maior e mais diversificado de ins- Não é de surpreender que o perfil
tituições organizadas do mercado imobi- social dos interlocutores da política nas
liário e a elas solidária. duas cidades esteve fortemente marcado
Em Santos e em São Paulo, os inte- por esses grupos, assim como o campo mais
resses do setor produtor imobiliário vale- geral que tradicionalmente delimita quais
ram-se igualmente dos canais institucionais são os problemas e de que modo são nor-
para participar na definição da política. O malmente definidos e tratados. Ou seja, é a
fórum que conquistou a atribuição efetiva forma mesma como as políticas existentes
de deliberar sobre o plano diretor em San- se desenvolvem que define alguns grupos
tos foi o Conselho Consultivo do Plano como vozes legítimas (no sentido da auto-
Diretor, espaço institucional com forte re- ridade reconhecida por outros centros de
presentação daquele setor. Malgrado os poder) em um campo particular de políti-
esforços de ampliação do fórum de dis- ca e, simultaneamente, tornam outras vo-
cussões, para a incorporação de outras for- zes menos críveis (Weir, 1992, p. 191). As
ças sociais, bem como os esforços ainda políticas já desenvolvidas, além disso, in-
que tímidos para alterar a composição do fluenciam o leque de soluções possíveis
Coplan, as definições do plano diretor e fornecem analogias das quais políticos

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e policy-makers utilizam-se para julgar fu- Paulo, a lei aprovada manteve o mecanis-
turas opções. mo da outorga onerosa do direito de
Foi o que se verificou em Santos e construir, talvez mitigada, adequando-o
São Paulo. A despeito dos esforços em des- aos interesses do mercado produtor imo-
locar o objeto da política, dispensando-lhe biliário. Em Santos, a preservação do
tratamento redistributivo, os grupos sociais zoneamento funcional, em detrimento do
efetivamente mobilizados buscaram defen- zoneamento por adensamento, não ex-
der sua manutenção no âmbito da arena cluiu a instituição de zonas especiais, res-
regulatória. Em seu âmbito, os conflitos fo- tringindo a seus perímetros a definição de
ram acirrados durante a fase de definição instrumentos de regulação especiais, co-
dos regulamentos de uso e ocupação do mo foi o caso da lei das zonas especiais
solo urbano, pois é nesse momento que de desenvolvimento econômico (Zede),
eles ocorrem. instrumento de regulação pública que iso-
Como resultado, não se pode des- la porções do território municipal para
conhecer os avanços ocorridos e as pers- adensamento urbano diferenciado e adap-
pectivas de definição da função social da ta o instrumento da outorga onerosa do
propriedade urbana em outras bases, por direito de construir, restringindo-o a situa-
meio do estabelecimento de novas parce- ções urbanas específicas, além da própria
44 rias entre os setores público e privado no lei de instituição das zonas especiais de
processo de produção das cidades. Em São interesse social (Zeis).

Sonia N aha
ahass de C
Naha arv
Carv alho
arvalho
Socióloga. Doutora em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.
sonianahas@seade.gov.br

Notas
(1) O artigo 4º é aquele que faculta ao poder público municipal exigir, mediante lei específica
para área incluída no plano diretor, do proprietário do solo urbano não edificado,
subutilizado ou não utilizado, a promoção do seu adequado aproveitamento.
(2) De acordo com Edésio Fernandes (1995), os esforços de mudança, identificados no início
da década de 1960, resultaram de um Legislativo mais ativo, em contexto de crescimen-
to da mobilização social que aprovou a lei federal nº 4.132, de 1962, permitindo a

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estatuto da cidade: aprovação e implantação

desapropriação urbana para fins de “interesse social”. Contudo, enquanto instrumento


de planejamento urbano, essa lei mostrou-se restrita ao fixar que a compensação para a
desapropriação somente pode ser paga em dinheiro, em um contexto de administrações
municipais com recursos financeiros escassos, e ao impedir sua utilização para fins urba-
nísticos, como a formação de estoques de terras. No período pós-1964, apesar das mu-
danças institucionais no aparato de planejamento, todas as tentativas de reforma legal da
ordem urbana foram obstruídas.
(3) De acordo com o artigo 46, no caso das áreas delimitadas, o proprietário poderá requerer
o estabelecimento de consórcio imobiliário como forma de viabilizar financeiramente o
aproveitamento do imóvel. De acordo com o parágrafo 1º, entende-se por consórcio imo-
biliário “a forma de viabilização de planos de urbanização ou edificação por meio da qual
o proprietário transfere ao poder público municipal seu imóvel e, após a realização das
obras, recebe, como pagamento, unidades imobiliárias devidamente urbanizadas ou
edificadas”.
(4) No âmbito do sistema tributário (artigo 156, inciso I, parágrafo 1º), a Constituição introduz
um novo dispositivo referente à progressividade do imposto predial e territorial urbano,
nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da
propriedade. Conforme Caiado (1991, p.154), esse é um dispositivo novo somente no
conteúdo da Constituição federal de 1988, posto que vigora desde 1966 no Código Tribu-
tário Nacional e sua aplicação está regulamentada em vários municípios.
(5) Por ocasião do processo constituinte, esse tema foi polêmico, com posições mais conser-
vadoras, explicitadas pelos membros do Centrão, defensores única e exclusivamente da
desapropriação de imóveis com “prévia e justa indenização em dinheiro”. A posição da
então liderança peemedebista – integrada à Comissão de Sistematização – era a de manter 45
o dispositivo constitucional que permitiria ao poder público taxar ou mesmo desapropriar
áreas urbanas “não edificadas, não utilizadas ou subutilizadas”.
(6) De forma complementar, vale observar que o artigo 44 do Estatuto da Cidade estabeleceu
que, para a gestão orçamentária participativa de âmbito municipal, deverão ser previstas a
realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano
plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual, como condição obri-
gatória para sua aprovação pela Câmara municipal. Em relação às regiões metropolitanas
e aglomerações urbanas, o artigo 45 estabeleceu que os organismos gestores deverão
incluir, “de forma obrigatória e significativa, a participação da população e das associa-
ções representativas dos vários segmentos da comunidade, de modo a garantir o controle
direto de suas atividades e o pleno exercício da cidadania”.
(7) O Plano Diretor de Desenvolvimento e Expansão Urbana de Santos foi aprovado em
23/11/1998, sem que tivesse apresentado diferenças de maior expressão quando compa-
rado com o projeto de lei enviado à Câmara municipal por David Capistrano Filho.
(8) A referência conceitual é tomada de T. Lowi (1964) em estudo que propôs três categorias
de políticas públicas – distributiva, regulatória e redistributiva – caracterizadas a partir do
tratamento combinado de objetos de decisão e estruturas de participação.
(9) O debate para a instituição da outorga onerosa – ou solo criado, como é também reconhe-
cida – esteve presente nas agendas de debate público e governamental nos anos de 1970.
O tema fez parte do projeto de lei federal sobre desenvolvimento urbano e foi discutido
durante a gestão Olavo Setúbal na prefeitura de São Paulo.

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sonia nahas de carvalho

(10) A análise de Santos baseia-se na pesquisa feita para a minha tese de doutorado (ver biblio-
grafia) e a de São Paulo valeu-se predominantemente da consulta de material de imprensa.
(11) As discussões sobre o plano diretor no governo Telma de Souza enfatizaram a instituição
do mecanismo do solo criado, ou índice padrão de aproveitamento, mas também incluía
a proposição do zoneamento por adensamento. Além disso, a estratégia adotada foi a de
implementar o plano diretor “por partes”, garantido em parte pelo fato de se dispor de um
plano diretor em vigor (aprovado em 1968), o que favoreceu a aprovação das leis de
criação da Área de Proteção Ambiental (APA) e das Zonas Especiais de Interesse Social
(ZEIS).
(12) Em São Paulo, a abrangência do plano diretor foi também mais ampla, contendo as dire-
trizes básicas ao ordenamento da cidade. Distintamente de Santos, contudo, a proposta
apresentada pelo Executivo e a lei aprovada não incluíram o zoneamento, objeto de ins-
trumento legal posterior. A título de registro, o projeto aprovado pela Câmara de vereado-
res incluiu alguns artigos contendo a mudança do zoneamento em áreas específicas, mo-
tivo de muitas reações. Esses artigos foram vetados pela prefeita ao sancionar a lei.
(13) Pelo material de imprensa consultado, houve também a manifestação de arquitetos urba-
nistas, como expressão de opinião mais individual do que representação de uma categoria
profissional. As críticas ou sugestões apresentadas tiveram pouco impacto na versão de
plano diretor aprovada pela Câmara.
(14) A fonte consultada limitou-se às matérias publicadas pelo jornal O Estado de S.Paulo.
(15) Essas entidades são: Associação das Administradoras de Bens Imóveis e Condomínios de
São Paulo (Aabic); Associação Brasileira de Shoppings Centers (Abrasce); Associação Co-
46 mercial de São Paulo (ACSP); Associação das Distribuidoras de Madeira do Estado de São
Paulo (Adimasp); Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil (ADVB);
Associação das Empresas de Loteamento e Desenvolvimento Urbano do Estado de São
Paulo (AELO); Associação Brasileira de Lojistas de Shopping Centers (Alshop); Associação
Nacional dos Comerciantes de Materiais de Construção (Anamaco); Associação Paulista
de Empresários de Obras Públicas (Apeop/SP); Associação dos Registradores Imobiliários
de São Paulo (Arisp); Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (Asbea); Associa-
ção Paulista Viva; Câmara de Valores Imobiliários do Estado de São Paulo (CVI); Federação
do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio); Capítulo Nacional Brasileiro da Fede-
ração Internacional das Profissões Imobiliárias (Fiabci/Brasil); Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (Fiesp); Instituto de Engenharia (IE); Instituto Brasileiro de Avaliações
e Perícias de Engenharia de São Paulo (Ibape); Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SP);
Sindicato dos Corretores de Imóveis do Estado de São Paulo (Sciesp); Sindicato das Empre-
sas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de
São Paulo (Secovi/SP); Sindicato dos Empregados em Empresas de Compra, Venda, Loca-
ção e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo, Guarulhos, Barueri,
Diadema e São Caetano do Sul, Estado de São Paulo (Seecovi); Sindicato do Comércio
Atacadista de Louças, Tintas e Ferragens de São Paulo (Sincaf); Sindicato do Comércio
Varejista de Materiais de Construção da Grande São Paulo (Sincomavi); Sindicato das
Empresas de Garagens e Estacionamentos do Estado de São Paulo (Sindepark); Sindicato
do Comércio Varejista de Vidro Plano, Cristais e Espelhos; Sindicato da Indústria da Cons-
trução de São Paulo (Sinduscon/SP); Sindicato da Indústria da Construção Pesada de São
Paulo (Sinicesp); Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Construção Civil do Estado
de São Paulo (Sintracon); e Sindicato do Comércio Atacadista de Madeiras do Estado de
São Paulo (Sindimasp).

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estatuto da cidade: aprovação e implantação

Referências
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Recebido em fev./2006
Aprovado em maio/2006

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