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ZILDENICE MATIAS GUEDES MAIA
Natal-RN/2018
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ZILDENICE MATIAS GUEDES MAIA
______________________________________________________
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DEDICATÓRIA
Aos agricultores e agricultoras da
APROFAM que com suas vidas tem
escrito outras histórias para a agricultura
familiar camponesa na
contemporaneidade.
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AGRADECIMENTOS
Essa é a última página que escrevo, e por isso, a mais difícil. Chegar nesse
momento final me faz lembrar o início de uma longa jornada, e olhando para trás, me
faz perceber que começou há muito tempo e muitas pessoas participaram dela. Então,
pretendo não ser injusta com todos os que de alguma forma, escreveram essas páginas e
história comigo.
Agradeço aos produtores e produtoras da APROFAM que me acolheram em
suas casas, compartilhando suas trajetórias, histórias e retalhos de vida, e sobretudo, o
alimento. Sempre voltei para casa trazendo uma comida rica em muitos aspectos e
significados. Muito obrigada por dividirem as riquezas de vocês comigo. Essa
experiência está eternizada em minhas melhores recordações.
Agradeço a Cimone Rozendo por ser minha orientadora. Obrigada pelo apoio,
carinho, dedicação e imensa competência com que me orientou. Sou eternamente grata
por ser sua orientada.
Agradeço aos professores da banca que gentilmente aceitaram em contribuir
com a pesquisa. Sou grata pelo tempo gasto para avaliar esse trabalho.
Agradeço a minha família, em especial ao meu marido Kellyzandro e minha
filha Maria Thereza por terem me acompanhado durante todo esse tempo, sobretudo,
nas imersões em campo. Dividimos bons momentos junto aos produtores e produtoras,
momentos que ficarão para sempre em nossas histórias. Agradeço também a
compreensão nos momentos em que estive ausente.
Agradeço a minha mãe que mesmo sem saber, instigou em mim o prazer pela
leitura. Olho para trás e sou grata por todos os momentos que me presenteou com livros,
eles se tornaram parte fundamental da minha vida.
Agradeço a família do meu marido, em especial Dona Graça e Mara Sâmea, o
apoio de vocês foi imprescindível nessa trajetória.
Agradeço aos amigos e amigas que mesmo não entendendo essa minha vida de
dedicação à pesquisa, e mesmo eu não podendo estar presente em tudo, nunca estão
ausentes em minha vida. Com todo carinho, obrigada, Elson Gomes, Márcia Andrade, e
Emanuella Delfino, Allan Vasconcelos e Jacqueline Vasconcelos. Vocês também
fazem parte dessa história.
Agradeço aos amigos e amigas do LAbRural com quem também pude contar
nesse tempo de pesquisa. Obrigada em especial a Christiane Fernandes que me ajudou
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na madrugada de um sábado (preciso ser específica nesse momento) com a coleta de
dados junto aos consumidores, obrigada por fazer parte dessa história.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFRN e toda
a equipe de coordenação. Muito obrigada pelo apoio e carinho.
Agradeço a revisora deste trabalho, Elaine Aires, seu olhar criterioso e atento foi
muito importante nessa última etapa. Muito obrigada.
Agradeço ainda, aos que não estão mais aqui de uma forma física. Durante esse
tempo de doutorado houve muitas partidas e rupturas em minha vida. Nesse momento,
agradeço também aos que se foram, mesmo que de diferentes formas. O amor que um
dia nos uniu, torna qualquer distância insignificante.
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CIRCUITOS CURTOS COMO ESTRATÉGIA DE MANUTENÇÃO DA
AGRICULTURA CAMPONESA: O CASO DA FEIRA AGROECOLÓGICA DE
MOSSORÓ-RN
RESUMO
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SHORT CIRCUITS AS A CAMPONESE AGRICULTURE MAINTAINING
STRATEGY: THE CASE OF THE MOSSORÓ-RN AGROECOLOGICAL FAIR
ABSTRACT
Agroecological fairs are spaces for strengthening family farming and for (re)
appreciation of food by a diversity of actors, including farmers, farmers and consumers.
In this sense, different social groups promote changes in the production and food
consumption systems that, in turn, make possible the reconfiguration of rural spaces,
and promote in the urban space a diversity of access to organic food. The research was
based on the hypothesis that agroecological fairs, besides an important role in
guaranteeing the food security of producers and consumers, and the valorisation of
traditional and cultural knowledge, has led to a reconfiguration of the spaces where
these practices are given. The objective of the research was to understand the extent to
which agroecological fairs as short marketing channels are forged as strategies for the
construction and maintenance of a sustainable agriculture model capable of contributing
to the food security of farmers, consumers and at the same time put new forms of food
production and consumption into action.The research was a qualitative approach and the
study had as an empirical reference the experience of the Association of Agroecological
Producers and Producers of Mossoró-RN, composed of farmers from thirteen
settlements and rural communities in the State of Rio Grande do Norte. The data were
collected through interviews in the production spaces with the farmers, and with the
consumers of APROFAM. The performance of this social group has promoted
significant changes in food production and consumption systems, and in this sense,
agroecology constitutes a broad set of initiatives that strengthen and promote the re-
signification of family agriculture for these actors. For farmers to adopt agroecological
production was representative for the food and nutrition security of their families,
because they have variety and quality in their tables; besides the aspect of food
sovereignty, since for many, most of the food they eat comes from their backyards. For
consumers, the consumption of this food also has significance. For these, the
agroecological fair has enabled access to a food that among other characteristics,
presents greater durability, flavor and smell that differs from foods found in
conventional markets. In addition to consuming this food, consider that they are valuing
the regional food culture, in addition to promoting the valuation of family farming. And
thus, they strengthen reciprocity and autonomy in this alternative agri-food market,
consolidating its permanence. However, for some consumers, this relationship in some
respects still constitutes fragile, and may be absent for some, the condition of politicized
or even reflexive consumption.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
QUADRO 1 TIPOS DE ECOLOGIAS 30
FIGURA 1 MAPA DE LOCALIZAÇÃO DOS 33
ASSENTAMENTOS E COMUNIDADE
INTEGRANTES DA APROFAM
QUADRO 2 TIPOS DE MERCADOS 51
QUADRO 3 AÇÕES EMPREENDIDAS NA DÉCADA DE 1960 83
PARA O COMBATE A FOME
FIGURA 2 MAPA DE COMERCIALIZAÇÃO DA APROFAM 108
FIGURAS 3 e 4 AGRICULTOR NO SISTEMA MANDALA E 118
CRIAÇÃO APÍCOLA - ASSENTAMENTO
JUREMA.
FIGURAS 5 E 6 AGRICULTOR NA PRODUÇÃO 119
AGROECOLÓGICA GALINHEIRO NO PAIS -
ASSENTAMENTO JUREMA.
FIGURAS 7 e 8 A AGRICULTORA COMERCIALIZANDO NA 121
FAM E COMEMORAÇÃO DO ANIVERSÁRIO DA
APROFAM.
FIGURAS 9 e 10 A CASA DA FAMÍLIA E O AGRICULTOR NO 131
LOTE NO ASSENTAMENTO PAULO FREIRE.
FIGURAS 11 E 12 PAIS E PRODUÇÃO APÍCOLA NO 132
ASSENTAMENTO PAULO FREIRE
FIGURAS 14 E 15 O AGRICULTOR E SUA FAMÍLIA EM FRENTE A 132
CASA E NA PRODUÇÃO APÍCOLA NO
ASSENTAMENTO PAULO FREIRE.
FIGURAS 16 e 17 PROPRIEDADE PRODUTIVA DO AGRICULTOR 134
NA COMUNIDADE SERRA MOSSORÓ
FIGURAS 18 e 19 O AGRICULTOR E MOMENTOS DE 136
COMERCIALIZAÇÃO NA FAM.
FIGURAS 20 E 21 A AGRICULTORA EM SEU QUINTAL 144
PRODUTIVO
FIGURAS 22 E 23 O AGRICULTOR EM SEU QUINTAL 159
PRODUTIVO
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FIGURAS 24 E 25 OS AGRICULTORES CUIDAM DA PRODUÇÃO 159
DE HORTALIÇAS
FIGURAS 26 E 27 A AGRICULTORA CONDUZINDO AS 167
PESQUISADORAS AO LOCAL DE PRODUÇÃO
FIGURAS 28 E 29 PRODUÇÃO DE FRUTAS E HORTALIÇAS 168
QUADRO 4 SÍNTESE DE DADOS DA FAMÍLIA DE 169
LEANDRO JOSÉ E PAULA PATRÍCIA
QUADRO 5 SÍNTESE DE DADOS DE IZAURA CLEMENTINO 170
QUADRO 6 SÍNTESE DE DADOS DE LÚCIA MARIA E 170
ANTÔNIO SEBASTIÃO
QUADRO 7 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 171
VIVIANE E JOSÉ ANTÔNIO
QUADRO 8: REGINA E ANTÔNIO JOSÉ 171
QUADRO 9 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE PAULO 172
E EDILEUZA
QUADRO 10 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 172
SEBASTIÃO FLORÊNCIO E ESTER
QUADRO 11 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE ÁUREA 173
E BENEDITO
QUADRO 12 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 173
BENEDITA E AFONSO
QUADRO 13 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 174
VITÓRIA E JOSÉ SEBASTIÃO
QUADRO 14 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 174
MÁRCIA E ANTÔNIO NETO
QUADRO 15 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE ANA E 175
NAZARENO
QUADRO 16 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 175
SEBASTIANA E GRACIANO
QUADRO 17 SÍNTESE DOS DADOS DA FAMÍLIA DE 176
SILVANA E LUÍZ AFONSO
FIGURA 30 GRÁFICO DO NÍVEL DE ESCOLARIDADE DOS 184
CONSUMIDORES DA APROFAM
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FIGURA 31 GRÁFICO DA PROFISSÃO/OCUPAÇÃO DOS 185
CONSUMIDORES
FIGURA 32 GRÁFICO DE INTERESSE EM PARTICIPAR DAS 186
REDES SOCIAIS DA FEIRA
FIGURA 33 GRÁFICO DE ADESÃO A REDE SOCIAL 186
FIGURA 34 GRÁFICO DE TEMPO DE FREQUÊNCIA A 187
FEIRA
FIGURA 35 GRÁFICO DO HORÁRIO DE FREQUÊNCIA A 188
FEIRA
FIGURA 36 GRÁFICO DE GASTO MÉDIO NA FEIRA 188
FIGURA 37 FREQUÊNCIA A FAM 189
FIGURAS 38 e 39 BARRACA COM PRODUTOS 191
AGROECOLÓGICOS E CESTA
AGROECOLÓGICA SORTEADA PARA OS
CONSUMIDORES.
FIGURAS 40 e 41 MOMENTOS INICIAIS DA FAM E 192
SOCIALIZAÇÃO DO FILME O VENENO ESTÁ
NA MESA ENTRE AGRICULTORES/
AGRICULTORAS E CONSUMIDORES.
FIGURAS 42 E 43 ENCONTRO COM OS CONSUMIDORES DA 205
APROFAM
FIGURAS 44 E 45 MOMENTO DE CAFÉ DA MANHÃ E 206
COMERCIALIZAÇÃO NA FEIRA E
AGRICULTORA NA FEIRA.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 16
1.1 Delineamento da Pesquisa 28
1.2 Coleta de Dados 34
1.2.1 Coleta de dados nos espaços de produção 32
1.2.2 Coleta de dados com os consumidores 34
CAPÍTULO I: CIRCUITOS CURTOS DE COMERCIALIZAÇÃO E 37
MERCADOS ALTERNATIVOS
1.1 Feiras agroecológicas – Circuitos curtos de comercialização: espaços de 37
consumo e da reinvenção de mercados alternativos
1.2 Circuitos curtos no âmbito dos mercados aninhados 48
1.3 A reciprocidade nos mercados alternativos 56
CAPÍTULO II: RACIONALIDADE AMBIENTAL E AGROECOLOGIA 61
2.1 A racionalidade ambiental e a agroecologia como resposta a ecologia dos 61
saberes
2.2 A transição agroecológica: fortalecimento para os mercados alternativos 68
2.3 A agroecologia e a relação com o sistema camponês 72
2.4 A autonomia na produção agroecológica 77
CAPÍTULO III: SEGURANÇA ALIMENTAR, CONTEXTO 83
SOCIOALIMENTAR E CONSUMO POLITIZADO
3.1 A Segurança alimentar nutricional 83
3.2 O alimento: a compreensão do contexto socioalimentar 90
3.3 O consumo reflexivo nas redes agroalimentares alternativas 96
CAPÍTULO IV: AGRICULTORES, AGRICULTORAS E OS ESPAÇOS 108
DE PRODUÇÃO
4.1 Histórico e os espaços produtivos da APROFAM 108
4.2 Os Espaços de Produção Agroecológica 116
4.2.1 Assentamento Jurema: Leandro José e Paula Patrícia 116
4.2.2. Assentamento Favela: Izaura Clementino 120
4.2.2.1 Assentamento Favela: Lúcia Maria e Antônio Sebastião 123
4.2.2.2 Assentamento Favela: Viviane e José Antônio 126
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4.2.2.3 Agricultora: Regina e Antônio José 128
4.2.3 Assentamento Paulo Freire: Paulo e Edileuza 130
4.2.4 Comunidade Rural Serra Mossoró: Sebastião Florêncio e Ester 135
4.2.5 Assentamento Maisa: Agrovila Paulo Freire 141
4.2.5.1 Família de Áurea e Benedito 141
4.2.5.2 Família de Benedita e Afonso 146
4.2.5.3 Família de Vitória e José Sebastião 150
4.2.6 Assentamento Boa Fé: Márcia e Antônio Neto 151
4.2.7 Assentamento Santa Elza: Bernadete e Cláudio de Jesus 155
4.2.8 Serra do Mel – Vila Guanabara: Sebastiana e Graciano 161
4.2.9 Comunidade Riacho Grande: Silvana e Luiz Afonso 165
4.2.10 Dados das Unidades Produtivas 170
4.3 Discorrendo sobre as unidades produtivas 179
CAPÍTULO V: OS CONSUMIDORES E CONSUMIDORAS DA 184
APROFAM E OS ESPAÇOS DE COMERCIALIZAÇÃO
5.1 Os consumidores da APROFAM 186
5.2 A Feira Agroecológica do ponto de vista dos consumidores 194
CONSIDERAÇÕES FINAIS 209
REFERÊNCIAS 213
APÊNDICES 224
APÊNDICE I 225
APÊNDICE II 227
15
INTRODUÇÃO
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Os dados do Censo Agropecuário de 2006 trouxeram informações que
reforçaram a importância e potencial das unidades de produção agrícola familiar no
Brasil, demonstrando que no país há um total de 5,2 milhões de estabelecimentos
agrícolas, sendo que 4,3 milhões (84%) correspondem à agricultura familiar (IBGE,
2009). Nesse sentido, afirma Torres e Menezes (2016, p. 12):
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por conceitos como sustentabilidade ambiental e social, no sentido de refletir como as
práticas produtivas dos atores tem se configurado como mantenedoras da biodiversidade
local, assim como das práticas que possibilitam sua reprodução social. A lógica que
norteia o modo de produzir agroecológico dista do modelo de produção agrícola
convencional, e dispõe de força motriz para orientar os agricultores e agricultoras a uma
produção que os diferencia do modelo global dos impérios alimentares (PLOEG, 2008).
Assim, o que se procura desenvolver são iniciativas que estruturem processos
diferenciados de desenvolvimento rural, baseados na construção de sistemas
agroalimentares alternativos em escala local, que visem e realizem articulações
regionais, nacionais e internacionais, tendo como um dos pilares de sustentação a
construção de circuitos de proximidade de comercialização e a valorização dos
mercados locais (PEREZ-CASSARINO, 2013).
Essas experiências demonstram ainda, o potencial das práticas agrícolas
sustentáveis em que a perspectiva da segurança alimentar pode ser considerada como
relevante para a autonomia dos agricultores e agricultoras, sobretudo ao pensar na
qualidade dos alimentos e sua sanidade, de modo a garantir à população do campo e da
cidade, um alimento isento de insumos químicos e ricos em valor nutricional,
respeitando os hábitos e culturas alimentares, na defesa e valorização da herança dessas
práticas que estão relacionadas ao saber local, passado de geração para geração
(MALUF, 2000).
O acesso a esse alimento produzido de forma diferenciada dos mercados
alimentares convencionais representa para os consumidores a possibilidade de
resgatarem a culinária e os hábitos alimentares regionais, imprimindo a valorização de
tais experiências, e assim estabelecerem laços de confiança que comumente não se
fazem presentes no modo de alimentação e agricultura convencional (POLLAN, 2012).
O consumo de alimentos na sociedade contemporânea apresenta-se sob um
dúbio cenário. De um lado temos que há oferta alimentar suficiente para alimentar a
população do século XXI, e de outro há um número considerável de pessoas que não
têm acesso ao alimento, incorrendo em cenários de fome e desnutrição. Ainda há nesse
contexto, o aumento considerável de pessoas obesas.
Para Gazolla e Schneider (2017), um dos problemas centrais do modelo de
produção agroalimentar atual é que ele está voltado para a necessidade de aumentar as
escalas de produção, inviabilizando a sobrevivência de agricultores não integrados a
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essa lógica. E assim, para os autores o alimento se coloca como um elemento central
para entender a sociedade contemporânea.
De acordo com Guivant (2003) a procura por alimentos orgânicos têm sua
expansão na década de 1990, os supermercados ocupando uma posição de destaque na
distribuição e comercialização desses produtos, as feiras e lojas de produtos naturais
ocupam nesse período, um papel secundário.
Distinto dos produtos das prateleiras do supermercado, em que são as
embalagens a transmitirem confiabilidade do produto ao consumidor; os das feiras
agroeoclógicas, é o produto, o agricultor e agricultora que propiciam a confiança para
quem os adquirem. Wille e Menasche (2015) afirmam que o consumo de alimentos está
relacionado ao estabelecimento de confiança, no sentido de que o mesmo alimento que
nutre, pode de outra forma causar doença.
Marques et al. (2015), afirmam que a alimentação produz diferentes sistemas
dentro da sociedade, no sentido de que os autores afirmam que constrói-se nessas
experiências outros valores e significados que se associam ao alimento, não apenas
como mercadorias ou produtos, e que um novo regime de valor emerge da sociedade.
Na pesquisa dos autores, evidenciou-se a predominância de consumo de alimentos
produzidos na comunidade, havendo uma mínima dependência do abastecimento
externo.
Cristovão (2002) afirma que o espaço rural tem uma nova legitimidade
identitária, e esta imagem associa-se hoje à novas procuras, no sentido, de absorver o
que estes espaços promovem, sobretudo, no que diz respeito ao alimento saudável, que
difere do oferecido pela indústria alimentícia. O autor citado enfatiza que a procura pelo
rural em sua nova ressignificação, diz respeito, sobretudo, ao que tem no rural e opõe-se
ao urbano, ou seja, não é encontrado nas cidades. No que diz respeito as feiras
agroecológicas, compreende-se que a proximidade dos agricultores e consumidores
ocorre em torno do alimento e para além dele, pois, a relação de confiança para com
esse produto é um dos elos que sustenta essa cadeia.
Os mercados assumem um papel relevante para o desempenho da agricultura
familiar brasileira, esse crescimento do mercado está igualmente relacionado a
ampliação de renda e do mercado consumidor. Pertinente a agricultura familiar, as
mudanças foram igualmente representativas, pois houve o aumento pela busca de
produtos de qualidade. Nesse sentido, afirma Belik (2016, p.184):
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Entre as formas de diferenciação do alimento consumido pelas classes
de renda mais elevada estão os produtos com denominação de origem,
os orgânicos, dos empreendimentos da economia solidária e os
produtos voltados para o público que privilegia a proximidade da
produção.
Ainda no tocante aos mercados, Azevedo (2016, p. 214) faz uma consideração
importante. Para o autor, a criação da oferta não implica o mercado para
comercialização da mercadoria, e os mercados diferem entre si e “não emergem do
vácuo”, ao contrário, eles “emergem de um contexto em que há previamente relações
econômicas e sociais”. Sobre a formação destes, o autor ressalta que via de regra, não se
trata de uma formação individual, ela sempre parte do coletivo, seja no âmbito das
instituições ou cooperativas, associações e outras formações de indivíduos. Nesse
sentido, afirma:
Criar um mercado é um ato de muito maior complexidade, como já
dito, o mercado é uma instituição que, como tal, é exógena aos
indivíduos (isto é, não depende dos desígnios de um ser em
particular), mas é endógeno à sociedade (isto é, fruto das ações e
interações entre todos os indivíduos (AZEVEDO, 2016, p. 221).
20
apreender as performances da sociedade contemporânea. Outras inquietações
igualmente surgem, tais como: O que fortalece ou não, a relação entre agricultor-
agricultora-consumidor nas feiras agroecológicas? A feira agroecológica promove a
valorização cultural do alimento? A relação agricultor-agricultora-consumidor se
estende para além do local de comercialização? Os alimentos conferem autenticidade ao
produtor/produtora ou seria o inverso, para os consumidores? Quais os fatores que tem
sustentado a permanência da Feira Agroecológica de Mossoró-RN ao longo de seu
período de existência e quais os desafios enfrentados por esse empreendimento?
Tais inquietações nortearam a pesquisa para os seguintes problemas de pesquisa:
1) É possível que apesar da importância da feira como aspecto relevante da
estratégia de segurança alimentar nutricional e fortalecimento da agricultura familiar as
dificuldades da FAM em expandir-se estejam relacionadas, a um conjunto de ações em
termos de políticas públicas que podem impulsionar suas atividades de produção e
comercialização, sobretudo uma Assistência Técnica que esteja voltada para os
princípios da agroecologia.
2) Os consumidores têm ao longo da existência da Feira fortalecido a
experiência de reciprocidade e autonomia nesse mercado agroalimentar alternativo,
consolidando a sua permanência. Contudo, é possível que essa relação, sob alguns
aspectos, ainda se constitua como frágil, podendo estar ausente para alguns, a condição
de um consumo politizado, ou mesmo reflexivo.
Essas inquietações colocou-nos frente a compreensão, conforme Oliveira (1998),
que a pesquisa acadêmica é um caminho de encontro entre o objeto de estudo/sujeito(s)
e o intelectual, pois a consonância entre pesquisa e biografia é altamente enriquecedora
e, ao mesmo tempo em que a produção intelectual vai sendo tecida tentando desvelar a
realidade, para além da superficialidade, o cultivo da capacidade imaginadora vai
apontando os caminhos que distinguem o técnico do pesquisador. Nesse sentido, afirma
o autor (1998, p. 20):
21
Igualmente relevante é a afirmação de Durkheim (1937, p. 29) ao propor refletir
que a existência de uma ciência das sociedades, possibilita a ir além dos preconceitos
tradicionais, e assim seja possibilitado ver as coisas de uma forma diferente de como se
apresentam ao vulgo, “pois o objeto de toda ciência é realizar descobrimentos, e todo
descobrimento desconcerta, mais ou menos, as opiniões formadas”.
Desse modo, pensar na realidade e tentar compreendê-la sem a reduzir é sempre
um desafio, e o caminho a ser percorrido pode encontrar em Santos (2002, p.15) a
referência que nos possibilita desvelar um outro mundo possível que difere da
globalização neoliberal. O autor trata de outra globalização, uma globalização
alternativa, contra hegemônica, em que diversas iniciativas, movimentos e
organizações, através de alianças e redes locais/globais, lutam contra a globalização
neoliberal, em que sonha-se e luta-se por um “mundo melhor, mais justo e pacífico que
julgam possível e ao qual sentem ter direito”.
Nos países de desenvolvimento intermediário, semiperiféricos, consiste o
potencial e os limites da reinvenção e emancipação social. É uma diversidade de
instituições e organizações civis que colocam em evidência a globalização neoliberal e,
portanto, propõe tarefas urgentes para que sejam pensadas e formuladas alternativas
econômicas concretas que consistam em emancipatórias e viáveis, e assim sejam
propostas como uma globalização contra-hegemônica. Assim, considera Santos (2002,
p. 25):
Centrar a atenção simultaneamente na viabilidade e no potencial
emancipatório das múltiplas alternativas que têm sido formuladas e
praticadas um pouco por todo o mundo e que representam formas de
organização econômica baseadas na igualdade, na solidariedade e na
proteção do meio ambiente.
Desse modo, a compreensão da realidade pode ser feita por via de uma análise
sociológica que compreenda os múltiplos signos/símbolos que apresentam a
complexidade da diversidade de experiências contemporâneas (MARTINS, 2005).
Tomando como referência essa literatura, optou-se por realizar o estudo na
cidade de Mossoró, situada no Oeste Potiguar, no Estado do Rio Grande do Norte e faz
parte da Região Nordeste do Brasil.
O Estado do Rio Grande do Norte está situado na região do semiárido brasileiro
e é considerada a maior do mundo, ocupando uma área de 982.566 km², correspondendo
a 18,2% do território nacional, 53% da Região Nordeste, abrangendo 1.133 municípios.
A população nessa região é de cerca de 22 milhões de habitantes, e nela concentra-se a
22
maior população rural do Brasil. O termo Semiárido identifica a região como sendo
próxima a aridez. Peculiar nessa região que podem explicar essa característica semiárida
podem ser as formas humanas de manejo do solo, somados à escassez de chuva e o
limitado sistema de armazenamento de água da chuva (BAPTISTA, CAMPOS, 2014).
No que diz respeito a produção agropecuária no Estado, de acordo com o Censo
Agropecuário de 2006, no Rio Grande do Norte há 83.052 de Estabelecimentos
Agropecuários cadastradas, representando 0,89% da Região Nordeste. Na condição de
produtor em relação às terras, na condição de proprietário há 60.779, distribuídos em
uma 3.399.233/ha; a condição de assentados sem titulação definitiva corresponde a
7.715 de estabelecimentos em uma área de 137.658/ha; na condição de arrendatário
tem-se um quantitativo de 2.301 estabelecimentos em um total de 60.090/ha; como
parceiro 4.324 de estabelecimentos em uma área de 36.032/ha; na condição de ocupante
um total de 8.312 estabelecimentos em uma área de 115.700/ha e produtor sem área um
total de 4.537 pessoas (IBGE, 2009).
Na condição legal de produtor, os dados apresentaram que na condição de
produtor individual há um quantitativo de 84.752 correspondendo a 3.433.351/ha; na
condição de condomínio, consórcio ou sociedade de pessoas um total de
estabelecimentos correspondente a 1.346 distribuídos em 136.675/ha; os números para a
condição de cooperativa apresentaram um total de 80 estabelecimentos distribuídos em
5.547/ha; na categoria sociedade anônima ou por cotas de responsabilidade limitada, os
números correspondiam a 682 estabelecimentos distribuídos em 113.137/ha (IBGE,
2009).
O Estado está inserido na região que vem sendo percebida na perspectiva da
convivência com o Semiárido (Silva, 2006), que se trata de pensar e desenvolver
estratégias para essa região que não consistam em combater a seca, mas em estimular e
desenvolver para os atores sociais do campo semiárido possibilidades de reprodução
social e ambiental, que promovam interação com as condições específicas dessa região.
Assim, diversos autores já apontam para essa direção, entender melhor essa região de
modo que a forma de permanência nesse local esteja relacionada às dinâmicas próprias
dos atores sociais locais (MALVEZZI, 2007; SILVA, 2006; BAPTISTA, CAMPOS,
2014).
A riqueza da biodiversidade nessa região é uma das mais importantes no país.
Pois, aqui encontra-se a maior parte do Bioma Caatinga, exclusivamente brasileiro, com
diversidade de paisagens, espécies endêmicas e rico capital cultural e social. Percebe-se
23
que a essa região refere-se quase sempre como pouco chuvosa ou seca, o que, contudo,
não explica que consiste no Semiárido mais chuvoso do mundo, considerando que as
chuvas concentram-se normalmente, em poucos meses e mais de 90% de suas águas não
são aproveitadas, devido a evaporação e ao escoamento superficial (BAPTISTA,
CAMPOS, 2014).
Além da problemática do acesso a água que atinge essa região, há também
outros problemas como concentração fundiária que agravam ainda mais o quadro de
insegurança alimentar e nutricional, além do histórico do uso da água que foi apropriada
por grandes proprietários de extensões de terra, o que gerou cenários de exclusão social
e degradação ambiental; pois, grandes áreas de terra ficaram desocupadas, ao passo que
agricultores e agricultoras tiveram que sair do campo em busca de trabalho e moradia
nos centros urbanos. No que diz respeito aos números desse cenário, há 1,7 milhões de
famílias agricultoras vivendo nessa região, são assim 42% dos agricultores e
agricultoras brasileiras que ocupam 4,2% das terras agricultáveis, 1,3% dos
estabelecimentos rurais tem 38% das terras e 47% dos pequenos estabelecimentos tem
somente 3% destas (BAPTISTA; CAMPOS, 2014).
Desse modo, a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável no
Semiárido, perpassa a viabilização do acesso a água e ao manejo apropriado,
estimulando-se, sobretudo, a produção com base sustentável e agroecológica. No
semiárido tem sido evidenciadas práticas das famílias agricultoras que demonstram sua
capacidade e potencial em desenvolver estratégias que possibilitam condições de vida
no campo com manejo sustentável da água e solo, e assim com a produção da
alimentação para a soberania e segurança alimentar da família.
Essas práticas sustentáveis que configuram igualmente, os hábitos alimentares
das famílias agricultoras, demonstram que é preciso reconhecer que nessa região do país
tem se difundido os conhecimentos tradicionais, que somados aos novos conhecimentos
praticados pela ciência e pelas agências de assistência técnica, são demonstrações de
resistência ao modelo de desenvolvimento que historicamente existiu nessa região
(ROCHA, 2014).
Assim, pensar em soberania e segurança alimentar e nutricional no semiárido, é
pensar igualmente no desafio da sustentabilidade, que implica pensar nas ações e
estratégias de produção que considerem como relevantes a identidade cultural e
tradicional das pessoas do campo, assim como o respeito à sociobiodiversidade e a
natureza, viabilizando assim, vida saudável para aos seres humanos dessa região, bem
24
como aos ecossistemas locais e regionais, fortalecendo os modos de vida do povo do
semiárido (ROCHA, 2014).
Assim, no Semiárido tem sido desenvolvido experiências que demonstram
estratégias que conferem autonomia para seus atores sociais e, configura-se assim, como
uma região que demonstra o dinamismo da agricultura familiar e camponesa no
semiárido nordestino. Nesse sentido, considera Conti (2014, p. 31):
25
Desse modo, compreende-se que as feiras agroecológicas são expressões de
mercado que apontam em muitas direções para compreender o rural na
contemporaneidade, assim como a sociedade e seus delineamentos sobre o consumo
alimentar. Essas experiências de mercados alternativos apresentam-se de multiformas,
conteúdos e expressões. Além do que, essas experiências nos apontam para várias
direções, a saber, agricultura familiar agroecológica; consumo alimentar na
contemporaneidade, sustentabilidade ambiental, social e econômica, relação humana
com a natureza, mercados alternativos sob o conceito de imersão apresentado por
Granovetter, (1985).
Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa é compreender em que medida as feiras
agroecológicas têm se forjado como estratégias para a construção e manutenção de um
modelo de agricultura sustentável capaz de contribuir com a segurança alimentar de
agricultores, agricultoras e consumidores e, ao mesmo tempo, colocarem em curso
novas formas de produção e consumo, conforme preconizado na literatura. O estudo tem
como referência empírica a experiência da Feira Agroecológica de Mossoró, no estado
do Rio Grande do Norte.
Para tanto, se tem como objetivos específicos: 1) Identificar as práticas sócio
produtivas desenvolvidas pelas famílias agricultoras para a produção dos alimentos
comercializados na Feira Agroecológica; 2) Identificar o perfil da população dos
agricultores agroecológicos e qual a compreensão para os produtores/feirantes sobre o
significado dessa experiência; 3) Reconstituir a trajetória dos agricultores no processo
para a transição agroecológica; 4) Identificar os mecanismos e estratégias organizativas
que viabilizam o funcionamento das feiras semanalmente; 5) Evidenciar quais
elementos delineiam a relação direta entre agricultor e consumidor e, 6) Identificar o
perfil do consumidor dos produtos agroecológicos buscando compreender suas
escolhas, motivações e concepções sobre seu papel na manutenção desse modelo de
agricultura.
A tese está estruturada em cinco capítulos, além da Introdução e Considerações
Finais. O capítulo I trata das Feiras Agroecológicas enquanto circuitos curtos de
comercialização e a construção de mercados alternativos. Este capítulo traz uma
discussão sobre mercados que permeia a compreensão clássica deste, mas procura ir
para além das leituras estanques que não possibilitaram uma compreensão da
complexidade dos mercados alternativos comuns à agricultura familiar na
contemporaneidade. Assim, buscou-se compreender a construção dessas experiências e
26
sob quais bases elas se assentam, uma vez que a venda direta ao consumidor já se
configura como uma prática presente em outros países e aqui no Brasil. Assim,
categorias são fundamentais nessa discussão, tais como a reciprocidade, que se constitui
como um elemento de elo entre a relação produtor e consumidor.
O capítulo II discute a racionalidade ambiental e a agroecologia. A discussão
anterior trata dos mercados agroalimentares e como têm se constituído como
potencializadores para a agricultura familiar, e para a pesquisa, a racionalidade
ambiental configura-se como um elemento central para a transição agroecológica, uma
vez que a agroecologia é uma ciência que tem orientado e conduzido às famílias
produtoras a um processo técnico-científico e também político, que possibilita distintos
atores a acreditarem no processo de transição, que estes fortalecem os mercados
alternativos. Discute-se ainda como a agroecologia enquanto ciência fortalece à
condição de camponês dos produtores e produtores, bem como proporciona maior
autonomia para esses atores sociais.
O capítulo III aborda a segurança alimentar, o contexto socioalimentar e o
consumo. Uma vez que no Brasil, nas últimas décadas, têm sido desenvolvidas ações e
políticas públicas com vistas a combater o problema do acesso e disponibilidade de um
alimento de qualidade, assim, a segurança alimentar configura-se como uma política
que favorece a agricultura familiar. A discussão nesse capítulo consiste em abordar o
alimento como constitutivo e representativo da sociedade, ao passo que apresenta-se um
histórico de como a crise alimentar no século XX, vai conduzindo às pessoas a uma
compreensão dos males e consequências do processo de industrialização alimentar que
incorre em mudança de hábitos, e estabelecimento de novas posturas e critérios de
escolha para os alimentos. Assim, discute-se sobre o consumo politizado, reflexivo, no
sentido de compreender como a categoria consumo na contemporaneidade pode ser
considerada em uma perspectiva que conduza para além do discurso moralizante que
por muito tempo permeou os estudos sobre o consumo. O que propõe-se assim, é uma
discussão que possibilite entender como o papel do consumidor, que no que diz respeito
aos circuitos curtos de comercialização, estão preocupados com a saúde, com a questão
ambiental, bem como, o fortalecimento destas experiências como potencializadoras da
agricultura familiar.
Os capítulo IV e V tratam do campo da pesquisa. O capítulo IV aborda as
unidades de produção, o processo de transição agroecológica, e a compreensão dessa
experiência a partir dos produtores e produtoras. O capítulo V trata da Feira
27
Agroecológica e a relação entre os consumidores e produtores e apresenta como esse
circuito curto aproxima diferentes atores de uma cadeia alimentar, e como essa relação é
importante para o fortalecimento da agricultura familiar, ao passo em que contornam-se
outras compreensões e percepções a respeito do alimento.
28
Trata-se de uma investigação que visa demonstrar que o que não
existe é, na verdade, activamente produzido como não existente, isto
é, como uma altenativa não-credível ao que existe. O seu objeto
empírico é considerado impossível à luz das ciências sociais
convencionais, pelo que a sua simples formulação representa já uma
ruptura com elas. O objectivo da sociologia das ausências é
transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles
transformar as ausências em presenças (SANTOS, 2006, p.102).
29
ECOLOGIAS
Ecologia Conceito
Saberes Identificação de outros saberes e de
outros critérios de rigor que operam
credivelmente nas práticas sociais.
Ecologia das temporalidades As sociedades são constituídas por
diferentes tempos e temporalidades.
Ecologia dos reconhecimentos A sociologia das ausências confronta-se
com a colonialidade, procurando uma
nova articulação entre o princípio da
igualdade e o princípio da diferença e
abrindo espaço para a possibilidade de
diferenças iguais.
Ecologia das trans-escalas Recuperação simultânea de aspirações
universais ocultas e de escalas
locais/globais alternativas que não
resultam da globalização hegemônica.
Ecologia das produtividades Recuperação e valorização dos sistemas
alternativos de produção, das
organizações econômicas populares, das
cooperativas operárias, das empresas
autogeridas, da economia solidária, etc.
Quadro 1: Tipos de Ecologias
Fonte: Elaborada pela autora com referência em Santos (2006).
A partir do quadro elaborado, pode-se inferir que é possível que nem todas as
ecologias sejam identificadas na pesquisa, ou mesmo, que uma ou outra esteja presente
em caráter visível apenas na superfície, ou ao contrário, só seja perceptível em
dimensões mais profundas da experiência em questão.
É válido ressaltar que a pesquisa em questão perpassa pela dimensão da cultura.
Uma vez que a agricultura familiar tem suas dimensões voltadas para uma prática que se
reproduz no tempo, assim como a dimensão do consumo, que desenvolve-se também
sob um multiplicidade de questões (LIFSCHITZ, 1997).
30
As feiras agroecológicas são dotadas de um sentido e dimensões múltiplas, no
sentido, de que para compreendê-las, utilizamos diversos instrumentos e metodologias,
de modo que as imagens, os discursos, as entrevistas nos apontam caminhos para a
apreensão dessa experiência, sempre diante do desafio de não esgotar as diversas
possibilidades que nos são colocadas. O que busca-se assim, é entender os
comportamentos e escolhas, uma vez que a conduta humana é vista como uma ação
simbólica (Geertz, 2008, p. 8), no sentido de compreender tais comportamentos em suas
tessituras, reconhecendo que eles são desenvolvidos com base em uma motivação que
os justifica não em caráter isolado, mas “o que devemos indagar é qual a sua
importância: o que está sendo transmitido com a sua ocorrência”.
Nesse sentido, toda a metodologia desenvolvida na pesquisa consiste em
apreender a feira agroecológica como um espaço socialmente construído por diversos
atores que podem indicar para o desenvolvimento de outra cultura alimentar, de
construção de um mercado alimentar que pode igualmente estar relacionada a outra
cultura de consumo, que por sua vez, tem relação também com uma forma de produção
que está assentada em um modo de fazer arraigado na cultura camponesa (PLOEG,
2008).
31
especulado sobre o interesse do pesquisador, buscando estabelecer a empatia, como
forma de melhor colher os resultados.
Através dessa metodologia, buscou-se não perder de vista, durante toda a
pesquisa, os diversos contextos e fatores circundantes, a exemplo das políticas públicas
destinadas para o meio rural, especialmente àquelas mais diretamente relacionadas com
o nosso objeto de pesquisa. Além de tentar entender as complexas interações e
contradições de interesses que influenciam essa atividade.
32
quantidade de dados possíveis, bem como, não tolher a capacidade e autonomia do
sujeito em apresentar seu universo de vida e reprodução social.
Desse modo, a investigação aconteceu nos Assentamentos e Comunidades que
fazem parte da feira. Atualmente, a feira é composta por agricultores e agricultoras das
seguintes localidades: Assentamento Mulunguzinho; Comunidade Serra Mossoró;
Comunidade Riacho Grande; Assentamento Favela; Assentamento Jurema;
Assentamento Paulo Freire; Assentamento Santa Elza; Assentamento Maísa – Agrovila
Paulo Freire; Assentamento Apodi; Assentamento Recanto da Esperança; Assentamento
Carmo; Assentamento Boa Fé, Serra do Mel – Agrovila Guanabara, conforme mostra o
Mapa na figura 1:
33
Figura
1.2.2 Coleta 1: Mapa
de Dados de consumidores
com os Localização dos Assentamentos e Comunidade
integrantes da Feira Agroecológica de Mossoró.
Fonte: Pesquisa
34
09:00. Os agricultores e agricultoras chegam para organizar as barracas por volta das
04:30 da manhã, nesse horário, alguns consumidores já se encontram no local, e alguns
produtos acabam antes de chegar a barraca, como cenoura, ovos e tomate cereja.
Durante as entrevistas alguns consumidores relataram que essa cena os incomoda,
demonstra falta de organização, e relataram que isso é um aspecto passível de melhoria,
ao passo que ressaltam que isso não é culpa dos agricultores e agricultoras, falta
“consciência” de alguns consumidores.
O questionário aplicado contemplou informações variadas, como nome do
entrevistado, profissão, horário em que frequenta a feira, há quanto tempo e a
assiduidade, além do valor médio que se gasta com os produtos, os produtos que
consome, dentre outras questões que serão analisadas. Durante a aplicação dos
questionários, percebeu-se comportamentos distintos nos consumidores em relação ao
horário em que as entrevistas aconteciam. No horário inicial da feira das 4:30 até as
5:30, por se tratar de ser o momento em que se encontra maior variedade e
disponibilidade de produtos, a preocupação dos consumidores é ajuda-los, assim, houve
recusa por parte de alguns consumidores em parar para responder as perguntas dos
entrevistadores, pois temiam perder os produtos. Nesse horário há um fluxo intenso de
consumidores, e alguns deles até ajudam os agricultores e agricultoras a arrumarem as
barracas, e mesmo a comercializarem os produtos.
Os dados apresentados dessa coleta, tratam-se de informações das entrevistas
realizadas com consumidores da APROFAM. A finalidade da aplicação desse
questionário tratou de traçar um perfil aproximado dos consumidores, compreendo a
priori, suas motivações para adesão a FAM. Observou-se que a aplicação dos
questionários no horário realizado, colocou algumas limitações, tais como, o fato de
algumas pessoas não responderem por medo de perder o produto nas barracas,
provocando a reflexão sobre a outra etapa dessa fase da pesquisa em que a pesquisadora
encontrar-se-ia com os consumidores em dias e horários diferentes do momento que
acontece a FAM. Em alguns contatos prévios em que explicou-se a importância do
encontro em momentos distintos houve abertura e interesse por parte dos consumidores
em contribuírem com a pesquisa.
Em um segundo momento, voltou-se ao espaço de comercialização com outro
instrumento para coletar dados mais qualitativos. Isso se deu em decorrência, também,
do fluxo de clientes que tem aumentado no último semestre da feira, assim como,
incorporação de outros produtores e maior diversidade dos produtos. Os desafios
35
encontrados nesse momento foram os mesmos da primeira coleta, por medo de perder
os produtos, alguns se recusaram a conversar conosco, enquanto que outros, preferiram
levar o questionário para casa e combinar de entregar a pesquisadora durante a semana,
e outros trazerem no sábado seguinte.
36
CAPÍTULO I
37
relação social de mercado em que agricultores, agricultoras e consumidores estabelecem
laços de confiança recíproca, no sentido de que esses distintos atores validam essas
experiências que estão para “além das porteiras” do campo, e representam uma
possibilidade de reprodução do campesinato na contemporaneidade. Para Seyfert (2015,
p. 147), “a comida é um marcador cultural facilmente metaforizado pela memória; por
isso tem importância na significação de identidades étnicas, regionais e nacionais.”
Quando refere-se a proximidade entre agricultores e consumidores, é necessário
não deter-se apenas à aproximação geográfica, pois sabe-se que é uma tendência não só
no Brasil, mas igualmente na Europa a abertura de pequenas lojas para atender a
demanda do mercado local, mantendo-se contudo, o modelo de produção e distribuição
hegemônicos. Nesse sentido, afirma Perez-Cassarino (2013, p. 190):
38
As identidades dos sujeitos por vezes apresentam caráter contraditório,
desfragmentado em um processo descontínuo, nesse sentido, percebe-se também uma
mudança no perfil de consumo, não identificado agora apenas do ponto de vista
econômico, mas considerando, sobretudo, o perfil sociológico e antropológico, onde
percebe-se um compartilho da visão de mundo, de identidades e culturas. Assim, Betti,
et al. (2013, p. 271) consideram:
39
algo que faça circular adequadamente a confiança inicialmente
depositada.
40
obtenção de maior conhecimento sobre a origem e forma de produção dos alimentos que
vai consumir. Nesse sentido, consideram Nierdele, Almeida e Vezzani (2013, p. 52):
41
princípios que se distinguem das práticas econômicas convencionais, considerando
também a crise do modelo neoliberal econômico adotado pela maioria dos países e
nações. São mudanças estruturais que têm contribuído para construir mercados para a
agricultura familiar e essas mudanças, embora sejam desafios, as têm fortalecido.
Schneider, Marques e Conterato (2016), ressaltam aspectos importantes dessas
mudanças, tais como, acesso a políticas públicas que possibilitam aumento e
dinamização da produção, diminuição da pobreza e desigualdade no espaço rural,
aumento da segurança alimentar, e somado a isso, inserção dos agricultores familiares
nas redes de mercados alternativos, onde eles/elas mesmos (as) comercializam a sua
produção. Assim, a construção social dos mercados constitui-se como elemento de
muita importância para compreender as nuances e performances do rural
contemporâneo.
Nesse sentido, percebe-se um aumento da demanda da produção agrícola tanto
por parte das commodities, como também da disseminação de mercados alternativos,
que por sua vez, passam a coexistir com os circuitos convencionais. Assim, o estudos
podem auxiliar na compreensão desses processos distintos, pois mesmo que o modelo
convencional de produção agrícola nos indique seu crescimento, há outras performances
desenvolvidas por uma diversidade de atores que apontam para outra direção, segundo
Schneider, Marques e Conterato (2016, p. 13) “impulsionadas pela emergências de
novas formas de produção e de governança”. E nesse sentido, afirmam:
42
É relevante o entendimento de que os circuitos longos são caracterizados por se
situarem dentro de uma grande cadeia de produção, onde os países em desenvolvimento
destinam grandes áreas para a monocultura, como por exemplo, soja e milho, e através
de uma grande rede de construção de estradas e aeroportos, esses alimentos sejam
levados para outros países, configurando assim, o modelo agro exportador ou
agronegócio (BAVA, 2016). Assim como, a compreensão de que as cadeias
agroalimentares são cadeias agroindustriais, e que operam sob uma cadeia complexa e
longa de agentes intermediários, que segundo Gazolla e Schneider (2017, p. 10):
43
Difere, nesse sentido, o caminho percorrido por diversos atores sociais, em que
evidenciamos os circuitos curtos, caracterizados por maior envolvimento de agricultores
e agricultoras familiares, entidades e organizações civis, com a finalidade de que o
agricultor e agricultora, estejam mais próximos aos consumidores, de modo a beneficiar
o desenvolvimento local e regional, articulando cadeias produtivas, e valorizando a mão
de obra local. Assim, compreende Bava (2016, p. 181):
1
O Projeto IMPACT foi realizado em sete países europeus (Holanda, Reino Unido, Irlanda, Alemanha,
Itália, Espanha e França. Resultou em um panorama da difusão e do impacto das CCAAs nos referidos
países que juntos representam 75-85% da agricultura da EU (RENTING; MARSDEN, BANKS, 2017).
44
Para entender esse quadro atual que aponta para o fortalecimento, consolidação
e surgimento das RAAs, Renting, Marsden e Banks (2017) defendem a compreensão do
contexto em meio ao qual essas experiências sugiram e têm se fortalecido. A partir dos
autores, podemos sistematizar que o referido contexto diz respeito a: 1) preocupações
por parte do público consumidor com as questões ecológicas, de saúde e bem-estar
animal; 2) crescente falta de confiança na qualidade dos alimentos advindos da
agricultura convencional; 3) a dissociação entre produção, processamento e consumo
dos alimentos criou uma necessidade estrutural de construção de outro tipo de garantia
de qualidade alimentar institucionalizada.
É importante atentar ainda, para o significado da inserção nas RAAs para os
agricultores e agricultoras familiares, que para os autores trata-se de uma forma de
amenizarem o “aperto” em que os custos de produção têm se elevado, tendo inclusive
que investirem mais na propriedade atendendo as regulamentações ambientais, medidas
sanitárias, dentre outras, podendo dinamizarem-se e recuperarem valor na cadeia de
abastecimento (RENTING; MARSDEN; BANKS, 2017).
Goodman (2017, p. 65), ressalta que no que diz respeito aos produtores
inseridos nas RAAs e CAAs no contexto europeu, espera-se destes algumas
expectativas que podem assim ser elencadas: 1) desenvolvimento de novas formas de
subsistência utilizando novas fontes de valor agregado e 2) reconectarem-se com os
consumidores; sendo assim, incentivados “a interromper as cadeias industriais de
suprimentos e reconstruir a relação produtor-consumidor através da interação com
diferentes convenções e construções de atributos”.
Convém refletir sobre o que possibilita ou não, a permanência, viabilidade e
consolidação dessas experiências para além das previsões e conceitos simplificadores da
realidade. Pois, como afirma Goodman (2017) o grande capital também se apropria dos
conceitos e práticas que respondem por um alimento diferenciado. Resta-nos
compreender o que possibilita a permanência ou não dessas experiências. Quais as suas
bases e fundamentos que fragilizam ou potencializam suas práticas para além do status
quo da produção alimentar. Atentando ainda para o fato de que as grandes corporações
se proponham a ofertar um alimento saudável, esse ainda é considerado inacessível para
boa parte da população devido, sobretudo ao preço elevado, assim “apenas
consumidores privilegiados têm condições de aderir a esta “fuga para a qualidade”,
deixando os demais como “convidados ausentes à mesa”.
45
Otimizar os circuitos curtos de comercialização consiste assim em um desafio,
sobretudo, porque se tratam de uma proposta que orienta para pensar um outro modelo
que venha a ser um caminho a ser percorrido pelos distintos atores sociais. Assim, pode-
se considerar que mesmo que os circuitos curtos não possam ser vistos como caminho
único para viabilizar o acesso da sociedade ao alimento, as iniciativas que se
desenvolvem sob esse prisma, constituem sim, como caminhos de autonomia e
emancipação social, conforme Santos (2006). E assim, essas iniciativas precisam ser
observadas de mais de perto, para que assim, se compreendam suas tessituras e,
portanto, seus pontos de fragilidade, considerando ainda, que uma ação eficaz deve
consistir em iniciativas que aconteçam de forma não setorizada.
Essas experiências são relevantes, porque possibilitam aos agricultores e
agricultoras diversificarem suas atividades, e, nesse sentido, estabelecerem relação
direta com o consumidor. Essa relação pode ser percebida de diversas formas, venda
direta dos produtos agrícolas nas feiras agroecológicas, pequenos circuitos de
distribuição, dentre outros. Essas atividades estão sempre relacionadas à essência da
condição camponesa, além de valorizar o espaço rural, renova as relações sociais entre
campo e cidade (BOVÉ; DUFOUR, 2001).
Assim, é importante ressaltar o cenário em que surgiram as experiências de
comercialização alimentar em circuitos curtos, propondo-se, sobretudo, como
alternativa ao modelo hegemônico que colocou em alerta a sociedade. De um lado havia
uma população, sobretudo, de citadinos que estavam assustados com os riscos da
alimentação moderna, do outro lado havia agricultores e agricultoras que produzem para
seu consumo de forma ecológica, e precisam escoar o excedente dessa produção,
criando mercados alternativos em que agricultores e agricultoras são protagonistas do
processo de desenvolvimento local (SOUZA-SEIDL; BILLAUD, 2015).
A definição de Circuito Curto é apresentada por Souza-Seidl e Billaud (2015)
como sendo a venda direta de produtos agrícolas que ocorre entre agricultor e o
consumidor. Assim, afirmam:
46
agroalimentar, que em meio a regiões fortemente urbanizadas, buscam
harmonizar produção com preservação do meio ambiente (SOUZA-
SEIDEL; BILLAUD, 2015, p. 5).
47
dos agricultores e agricultoras familiares catarinenses, evidenciando que as cadeias
curtas se constituem como uma dimensão chave nos processos de desenvolvimento rural
contemporâneos. Na referida pesquisa, os atores participam e acessam diferentes
mecanismos de comercialização, e que assim re-espacializam e ressocializam os
alimentos, sendo essas, algumas das características mais importantes das cadeias
agroalimentares curtas. Na comercialização face-to-face percebeu-se uma economia de
regard (respeito e confiança). Assim como na pesquisa de Cassol (2013), Ferrari (2011)
mostra que as transações econômicas e ações mercantis estão igualmente enraizadas nas
relações sociais presentes nesses espaços.
Assim, pode-se considerar que a agroecologia pode duplamente favorecer a esse
novo cenário. Pois, por um lado possibilita aos agricultores orientarem suas práticas
considerando os princípios de sustentabilidade e ao mesmo tempo a comercialização
direta da sua produção, aproximando-os assim dos consumidores que veem nesses
espaços oportunidade de adquirir alimentos saudáveis que trazem também o
reconhecimento social do campo.
Na França os representantes do setor agroalimentar utilizam o termo circuito
curto para caracterizar os circuitos de distribuição em que há a relação direta entre
produtores e consumidores, ou até no máximo um intermediário nessa relação. No
Brasil, percebe-se que os agricultores que obtêm êxito com a comercialização em
circuitos curtos, vendem sua produção em pelo menos dois canais, a saber, feiras e
programas de governo. Um aspecto identificado ainda nos circuitos curtos é a
autonomia do agricultor. E autonomia em diversos aspectos, desde a produção a
comercialização, perpassando também pela autonomia na gestão (DAROLT, 2013).
1.2 Circuitos curtos no âmbito dos mercados aninhados
A discussão sobre circuitos curtos está alocada dentro da discussão sobre
mercados alternativos. E para entender essa nova configuração dos espaços rurais a
partir dos mercados alternativos, Ploeg (2016) desenvolve um conceito que ele
denomina como mercados aninhados, esses ocorrem quando estão aninhados no interior
de mercados mais amplos, assim, ele afirma que esses mercados estão dentro dos
mercados maiores, contudo, desenvolvem dinâmicas próprias, inter-relações, formas de
governança próprias, mecanismos de distribuição, dentre outros. O conceito é assim
apresentado por Ploeg (2016, p.30):
48
Um mercado aninhado é um segmento de um mercado mais amplo. É
um segmento específico, que normalmente exibe níveis de preços,
padrões de distribuição do Valor Agregado total e relações entre
produtores, distribuidores e consumidores diferentes daqueles
observados no mercado mais amplo. Tal segmento está aninhado no
grande mercado. É parte desse mercado, mas ao mesmo tempo,
distingue-se dele (PLOEG, 2016, p. 30).
49
direto com consumidores – contato que pode resultar em relações
sociais estáveis. O mercado dos agricultores é uma infraestrutura
sociomaterial (um mercado físico combinado a um determinado
conjunto de normas) que possibilita agricultores e consumidores
engajarem-se naquilo que a infraestrutura oferecida pelos
supermercados torna fisicamente impossível; isto é, a interação direta
(PLOEG, 2016, p. 42).
No que diz respeito aos estudos rurais sobre a compreensão dos mercados em si,
Schneider (2016), ressalta que esses foram estudados de maneira limitada e insuficiente,
além do fato de que sob um ponto de vista histórico, a relação agricultores e mercado
causou estranhamento, pois essa relação até épocas remotas era inexistente, não havia
mercados acessíveis para os agricultores familiares, pois a prática cotidiana desses
trabalhadores era detida ao trabalho manual e de comércio não entendiam, além do
baixo grau de instrução dessas pessoas. O autor apresenta uma classificação dos
mercados, que consistem em:
MERCADOS CARACTERÍSTICAS
Mercados de Proximidade Predominam relações de trocas
interpessoais; mobilizam-se via de
relações de parentesco, interconhecimento
e reciprocidade.
Mercados locais e territoriais As trocas passam a ser monetizadas e se
configura uma situação de intercâmbio
cada vez mais orientada pela oferta e
demanda;
Mercados convencionais Mercados de produtos, bens e
mercadorias e se orienta pela oferta e
demanda em que a atuação de agentes
privados que atuam de diversos modos.
Mercados institucionais Espaços de troca em que o principal
agente é o Estado ou algum organismo
público.
Quadro 2: Tipos de mercados
Fonte: Schneider (2016) adaptado pela autora.
51
familiar. Assim, é importante uma dupla imersão nos estudos para compreender essa
perspectiva na contemporaneidade, no sentido de obter na leitura clássica sobre a
construção de mercados uma base em que se assenta essas experiências, mas, contudo,
ir além, o desafio é não romantizar essas experiências no sentido de simplifica-las
(SCHNEIDER, 2016).
Para tanto, demanda-se estudos e uma agenda que incorpore outros olhares,
perspectivas e metodologias que possam compreender essa nova realidade do espaço
rural brasileiro. A importância de estudar os mercados embasado por outros
pressupostos é defendida por Abramovay (2004), em que citando Swedberg (1994),
afirma que a compreensão deste autor assenta-se na subjetividade dos agentes
econômicos em que embora a racionalidade fundamenta a relação econômica, ela não é
somente suficiente para orientar a ação dos atores, pois a conduta dos indivíduos e dos
grupos, só se explica socialmente. A sociologia econômica data de 1980, em que o pano
de fundo era um movimento geral questionador de pressupostos comportamentais
básicos da tradição neoclássica.
No que diz respeito a compreensão dos mercados no âmbito da sociologia
econômica, Abramovay (2004, p.44) considera como relevante os questionamentos à
ciência econômica tradicional que tratou os comportamentos humanos em uma
perspectiva a-histórica, a-social. Desse modo, a sociologia econômica contemporânea
vem justamente ao encontro dessa lacuna, concebendo os mercados como formas
específicas “enraizadas, socialmente determinadas de interação social, e não como
premissas cujo estudo pode ser feito de maneira estritamente dedutiva”.
Relevante também é a afirmação de Plein e Filippi (2011, p. 118) sobre os
mercados e sua estrutura complexa:
52
Um conceito relevante para a compreensão dos mercados na contemporaneidade
é a perspectiva da imersão (embeddedness) e que tem como referência Granovetter
(2007), para quem a visão dominante dos antropólogos, sociólogos, cientistas políticos e
historiadores, era de que o comportamento imerso se encontrava profundamente
arraigado nas sociedades pré-mercantis, mas que na sociedade moderna, esse
comportamento entre os atores e agentes se tornou completamente autônomo. Para o
autor, essa visão denota o distanciamento entre economia e sociedade moderna, de
modo que as transações econômicas não consistem mais em relações de proximidade.
Assim, o pensamento de Granovetter (2007, p.9) é relevante para o que temos
refletido sobre as feiras agroecológicas. Uma vez que essas experiências são
heterogêneas, apresentam diversidade de atores, instituições, contexto social, cultural, e
além da relevância da questão ambiental, resultando em uma teia complexa que
possibilita e fortalece essas experiências. Para o autor, é importante considerar a
importância de que as decisões e escolhas das pessoas não podem ser analisadas
desconsiderando o seu contexto social, ao contrário, suas ações “estão imersas em
sistemas concretos e contínuos de relações sociais”.
A questão da imersão apresentada por Granovetter (2007) enfatiza o papel das
relações pessoais concretas e as estruturas dessas relações na origem da confiança.
Desse modo, é possível pensar com referência no autor citado, que a relação agricultor-
consumidor nas feiras agroecológicas tem como uma de suas bases a confiança que é
estabelecida a partir do contato constante entre esses atores. A luz para essa questão é
apresentada por Granovetter (2007, p. 12) que afirma:
(1) é barata; (2) uma pessoa confia mais na informação que colheu
pessoalmente – ela é mais rica, mais detalhada, e sabe-se que é
precisa; (3) os indivíduos com os quais se tem uma relação duradoura
têm uma motivação econômica para ser dignos de confiança, para não
desencorajar transações futuras; e (4) diferentemente de motivos
puramente econômicos, as relações econômicas contínuas tendem a
revestir-se de conteúdo social carregado de grandes expectativas de
confiança e abstenção de oportunismo.
53
segmento, referenciando-se em autores clássicos da sociologia rural2. E para a
compreensão dessas mudanças no cenário brasileiro, os autores se referenciam em
Veiga (1991), Abramovay (1992), Wanderley (2009), Schneider (1999) e discorrem
sobre como a agricultura familiar brasileira tem reconhecida a sua importância para o
desenvolvimento do país, e ainda como esses agricultores estão inseridos no processo de
mercantilização agroalimentar, mantendo, contudo, características próprias que os
possibilitam a uma inserção mantendo suas especificidades. Nesse sentido, afirmam:
Milone e Ventura (2016) discutem sobre os mercados trazendo uma leitura nova
para compreender essas conformações na contemporaneidade, que podem nos ajudar a
compreender aspectos bem específicos das feiras agroecológicas. Os autores afirmam
que as transações podem ser governadas de diversas formas, e não raro, formas híbridas
que se alocam muitas vezes entre o mercado e a hierarquia, o conceito por eles
consistem em “formas híbridas de comércio e são estruturas intermediárias de
governança que recaem em algum ponto entre esses dois extremos”. Para uma maior
compreensão do conceito, os autores afirmam:
2
Mendras, 1978; Chayanov, 1974; Marx, 1982; Lênin 1985
54
“mão visível”, 3que consiste na atuação de instituições e redes. Essa atuação possibilita
trocas satisfatórias para todos os envolvidos e redução nos custos de transação. Segundo
os autores, as pesquisas empíricas na Europa tem evidenciado que essas novas formas
de transação tem influenciado o sistema agrícola e alimentar, e que mesmo as grandes
corporações têm optado por desenvolver estratégias multifuncionais uma vez que
“oferecem melhores perspectivas de sobrevivência e crescimento”. A compreensão de
mercado adotada na pesquisa assenta-se sob o conceito apresentado por Ploeg (2016, p.
21):
3
Adam Smith (1983)
55
commodities, os agricultores familiares desenvolvem iniciativas autônomas, bem como
capacidades próprias, de modo que esse cenário “exige novos conhecimentos
tecnológicos, gerenciais e mercadológicos”.
56
Desse modo, a dádiva pode ser pensada a partir de sociedades arcaicas, onde as
relações são constituídas como um sistema de representações e regras coletivas, que por
sua vez, vincula os atores a “reciprocar”, podendo-se ressaltar ainda que na
modernidade essas relações se tornam mais frágeis (LEITE, 2009).
Central na obra de Maus (2003) foi demonstrar que o valor das coisas não pode
ser superior ao valor da relação, considerando, sobretudo, que o simbolismo é
fundamental para entender as tessituras da vida social. Ao estudar as formas relacionais
primitivas, o autor constata que essas formas de vida e sociabilidades são encontradas
também no presente.
E assim, é em Mauss que encontra-se um aporte teórico para compreender a
complexidade das trocas e motivações humanas, que levam para além de pensar nas
relações econômicas. Assim, a teoria da dádiva assenta-se sobre a tríplice dar, receber e
retribuir. Desse modo, o sistema de trocas passa a ser pensado como uma teia complexa
em que distintas categorias se entrelaçam (MARTINS, 2005). Nesse sentido, Martins
(2005, p. 50) considera que:
Outro autor que possibilita dialogar com a teoria da dádiva, é Santos (2000,
p.75), defensor da leitura anti-utilitarista da realidade, ao considerar que:
57
Assim, o associacionismo pode ser pensado como uma das grandes críticas aos
paradigmas da modernidade, o Estado e o mercado. É basilar considerar que a evidência
que Mauss (2013) enfatiza é que mesmo nas sociedades arcaicas, assim como nas
modernas, há tessituras sociais que apontam para outros caminhos, outras formas de
troca de valor, mercadoria, e também simbologia (MARTINS, 2005). Assim, aponta
Martins (2000, p. 12):
Mauss compreendeu que a sociedade é primeiramente instituída por
uma dimensão simbólica, e que existe uma estreita ligação entre o
simbolismo e a obrigação de dar, receber e retribuir em todas as
sociedades, independentemente de as mesmas serem modernas ou
tradicionais.
58
norteadores precedentes, compreende que as relações humanas não podem ser
explicados apenas através destes, mas sim, que os laços sociais são também construídos
na dádiva, no dom.
Há que considerar, que está presente em todas as sociedades humanas tanto a
lógica econômica, quanto a de intercâmbio e reciprocidade, considerando que o
desenvolvimento de ambas, ou de uma em preferência, será desenvolvida de acordo
com as prioridades das comunidades, sendo o interesse privado ou os valores e as
relações humanas (SABOURIN, 2006).
Na compreensão da abordagem da reciprocidade enquanto a categoria que
configura uma ação coletiva entre sujeitos diversos, em que pese as relações de troca, há
também a busca por entender essa relação enquanto simbologia que representa as
escolhas dos sujeitos que estão para além da abordagem econômica, considera-se que
Leff (2006) ao defender que a ação de atores sociais que se unem para defender suas
condições de existência, podem ser configurados como movimentos de resistência e de
re-existência. Pois, essas pessoas querem através das suas reivindicações o direito a
natureza, mas também o direito aos seus valores culturais que imprimem suas marcas
nas vidas desses indivíduos. Assim, Leff (2006, p. 501) considera:
59
Desse modo, há uma diversidade de representações sociais na
contemporaneidade que indicam outros caminhos trilhados que trazem em si novos
contornos para a sociedade e se configuram como possibilitadoras de fomento ao
desenvolvimento local, favorecendo a emancipação social, Santos (2002), trazendo
outro sentido para os atores sociais que compõem essas experiências. O consumo, nesse
sentido, pode auxiliar a compreensão das feiras agroecológicas considerando que o ato
de consumir na contemporaneidade tem assumido distintos contornos, e nesses espaços
onde o alimento constitui-se como um elo entre agricultores, agricultoras e
consumidores, convém refletir sobre quais dimensões essa perspectiva vai sendo tecida.
Compreende-se assim, que a construção de mercados alternativos para a
agricultura familiar tem promovido dinamismo para esses atores, ao passo que outros
elementos são importantes, tais como, melhoria na condição de autonomia para as
famílias, acesso direto ao consumidor, que por sua vez lhes possibilita o fortalecimento
de suas práticas produtivas. Além de dinamizar o acesso ao alimento nos espaços
urbanos.
O capítulo a seguir trata da racionalidade ambiental em diálogo com a
agroecologia, uma vez que entende-se que a agroecologia pode se conformar com base
em uma nova racionalidade que seja permeada por uma outra relação humana com o
meio ambiente.
60
CAPÍTULO II
61
a tecnologia e o consumo. Assim, para entender o processo de mundialização da cultura
há que atentar para os contornos do cotidiano.
De acordo com Jollivet (1998), o meio ambiente se tornou um tema necessário
para ser discutido e abordado nos estudos sobre a sociologia rural, uma vez que o
surgimento dessa discussão, para o autor, pode ter surgido possivelmente a partir do
campo e da prática da agricultura familiar, considerando que recursos naturais
renováveis, qualidade dos produtos agrícolas e mesmo o espaço rural passaram a ocupar
um lugar de destaque na agenda sobre o meio ambiente.
É possível pensar que é tempo profícuo para compreender que por muito tempo
pensou-se nas questões ecológicas como uma preocupação com o “ambiente”,
denotando que esse “ambiente” seria exterior a condição humana, a raça humana
estava distante, e que tal pensamento não dá aporte para orientar a humanidade para a
mudança. Ao contrário disso, é o sentir-se parte que configura a base para a transição
(BECK; GIDDENS e LASH, 1997).
Temos a linguagem, o simbólico, uma racionalidade teórica, econômica e
instrumental, que desvelam o aprisionamento aos conceitos científicos do núcleo da
racionalidade de suas estratégias de dominação da natureza e cultura. A forma de
pensamento em relação à natureza é que desestruturam a organização sistêmica do
planeta e incide na degradação do ambiente (LEFF, 2006).
Isto posto, para reconstruir o mundo sob o prisma da racionalidade ambiental, é
preciso uma ressignificação da natureza pela cultura, o que significa dizer que embora
o cenário atual seja de incerteza, e por que não dizer, de desespero, é possível acreditar
no futuro a partir da criatividade da diversidade, no encontro com a outridade,
considerando um campo fecundo a diferença (LEFF, 2006).
Leff (2006, p. 19) considera que a crise ambiental abre possibilidades para a
racionalidade ambiental, sobretudo, a partir das práticas sociais e dos novos atores
políticos, e assim consiste no processo de emancipação, que é voltado para “a
descolonização do saber submetido ao domínio do conhecimento globalizante e único,
para fertilizar saberes locais”.
A racionalidade ambiental consiste em retomar o conhecimento humano sobre
práticas sustentáveis que sempre estiveram presentes, ocultas, mas presentes, relegadas
à marginalização, mas agora encontram campo fértil para mostrar o conhecimento da
realidade, e que sempre deu origem a uma variedade de mundos. Assim, considera
Leff (2006, p. 19):
62
A racionalidade ambiental recupera o sentido crítico do ser para
desenterrar os sentidos sepultados e cristalizados, para restabelecer o
vínculo com a vida, com o desejo de vida, para fertilizá-la com o
húmus da existência, para que a tensão entre Eros e Tanatos se resolva
a favor da vida, para que a morte entrópica do planeta seja revertida
pela criatividade neguentrópica da cultura.
4
Trata-se de conceito utilizado por Leff (2006) para se referir ao encontro com o Outro em uma
perspectiva distinta da apropriada pelo discurso filosófico.
63
atualidade. Dada essa realidade, é essa a possibilidade para se pensar nas relações
ecológicas sob o prisma da economia, da tecnologia e mesmo da moral, e com isso a
economia neoclássica vai reconhecer que é necessário internalizar as externalidades
ambientais para integrar processos ecológicos, populacionais e distributivos aos
processos de produção e consumo. Sob este prisma, Leff (2006, p. 224) considera:
64
As experiências que conferem configurações dos territórios e espaços
engendrados por pessoas com autonomia são aqui pensadas sob a referência em Santos
(2006), que afirma ser necessário ver essas experiências locais com perspectiva global,
em que se demonstra o protagonismo de homens e mulheres que na luta cotidiana contra
as formas de dominação, e, portanto, hegemônicas, se veem capazes de seguir caminhos
de autonomia e emancipação social. Trata-se ainda, de perceber que no contexto atual
de globalização, tem despontado o confronto entre projetos hegemônicos e projetos
contra-hegemônicos. Implica assim em reconhecer que no Sul despontam experiências
sociais em uma perspectiva pós-colonial, pós-imperial. Assim, Santos (2006, p. 33),
considera:
5
Trata-se de vários estudos em que Santos (2002) trata da democracia participativa. Consiste
primordialmente em propor refletir sobre a capacidade de humana de reinventar o presente, possibilitado
pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências.
65
corpo e forma, e não há como negar que é preciso ver a realidade com essas lentes,
também.
Tentando entender a realidade através de uma lente, recorre-se a Santos,
Meneses e Nunes (2005) que apontam para a pluralidade conflitual do mundo em que
uma diversidade de saberes se nos apresenta em uma variedade de práticas sociais.
Assim, somos levados a perceber que nas entrelinhas da produção de conhecimentos,
em que a forma colonizadora tenha se conformado em muito tempo como sendo a
legítima, ao seu lado, sempre se mantiveram outras formas de conhecimento do mundo
e da realidade, que “privilegiavam a busca do bem e da felicidade ou a continuidade
entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura, entre homens e mulheres e entre os seres
humanos e todas as outras criaturas” (SANTOS, MENESES e NUNES, 2005, p. 21).
Assim, torna-se evidente que mesmo a forma de conhecimento colonizador
Europeu tendo surgido com força destruidora sobre as outras formas de conhecimento, e
ganhando legitimidade científica e tecnológica para tal, percebida entre os séculos XVII
e XIX, esse processo não foi isento de perturbações, questionando assim sua
legitimidade. Nesse sentido, Santos, Meneses e Nunes (2005, p. 23) consideram que
“não é possível continuar a declarar a irrelevância ou a inferioridade dos diferentes
modos de conhecimento emergentes das experiências da esmagadora maioria da
população mundial, que vive, precisamente, no Sul”. Para esses autores (2005) é
inegável que pensar no mundo atual e sua atual configuração, implica em querer
descobrir o conhecimento a partir de outra trajetória, ou seja, não a colonizadora como
única forma legitima de conhecimento, mas querer ir além e encontrar as “outras”
versões da história que nos abrem para o reencontro com outros conhecimentos globais
e multiculturais.
Assim, não dá mais para pensar no mundo hoje de uma forma reducionista,
apenas a partir da compreensão ocidental do mundo. Desse modo, discutir o
desenvolvimento na contemporaneidade, implica conceber a pluralidade de
conhecimentos e formas de explicar no mundo e algumas terminologias são alocadas
para situar essas experiências, tais como conhecimento local, conhecimento indígena,
conhecimento tradicional, etnociência. Embora, essas formas de conhecimento sejam
em demasia, tratadas com preconceito, pois, comumente, a elas se referem conotações
reducionistas, como pequenas ou restritas a uma realidade diminuta. No entanto, essas
formas plurais de conhecimento, demonstram, por outro lado, o potencial de culturas e
66
civilizações que se contrapõem a monocultura do saber (SANTOS; MENESES e
NUNES, 2005).
Dado que o conhecimento enquanto ciência legitimou o processo de colonização
do pensamento, hoje, é evidente que os investigadores se desvencilhem das armaduras
científicas decorrentes deste processo histórico, para então dialogar com os outros
saberes, aqueles que por vezes são estranhos, mas que, contudo, conferem o desafio da
democratização do saber. Implica assim, reconhecer que esse é o atual paradigma da
ciência, reconhecer que está dado o desafio da pluralidade cientifica, de dialogar com os
saberes que historicamente foram relegados a denominação dicotômica local/global,
moderno/atrasado. E assim, “Estamos perante uma luta cultural. A cultura cosmopolita
e pós-colonial aposta na reinvenção das culturas, para além da homogeneização imposta
pela globalização hegemônica” (SANTOS, MENESES e NUNES, 2005, p. 54).
Nesse sentido, Santos (2006) considera que é preciso dar luz à sociologia das
ausências contra a banalização da injustiça e da violência, a partir da reconstrução do
inconformismo e da indignação, através de imagens e subjetividades desestabilizadoras
que coloquem em cena outros saberes. Para que isso venha acontecer, faz necessário
romper com o que ele define como a razão indolente ocidental, que nega a existência
social, econômica, cultural e política de tudo aquilo que não se apresenta no formato
hegemônico da matriz institucional da globalização neoliberal. Nesse sentido, surge a
sociologia das emergências, que significa substituir as monoculturas por ecologias,
promovendo a prática de agregação da diversidade pela promoção de interações
sustentáveis. A importância do conhecimento endógeno para a sustentabilidade da
biodiversidade é apontada por Santos, Meneses e Nunes (2005) como vital, pois trata-se
de uma relação simbiótica, em que os atores locais se sentem pertencer a essa natureza,
pois esta lhes confere condições de reprodução social e econômica, assegurando assim,
a sua permanência e manutenção no território.
Desse modo, é esse referencial teórico sobre a questão ambiental como prática
humana e cultural em que novos conceitos são gestados com base, sobretudo, nas
experiências de homens e mulheres que não têm continuado, na contemporaneidade no
anonimato. Essas práticas de sustentabilidade socioambiental inseridas em territórios
diversos, com características peculiares atestam que processos de construção da
realidade em outra perspectiva têm despontado.
67
2.2 A transição agroecológica: fortalecimento para os mercados alternativos
A Revolução verde foi implantada e promovida no Brasil pela modernização
conservadora da agricultura, que dentre seus males, expulsou dos campos milhares de
agricultores e agricultoras. Percebeu-se com esse cenário a intensificação da perda do
capital natural, assim como aumento do poder das empresas e corporações, que
financiadas pelo Estado brasileiro, detém as sementes e a tecnologia para plantar, ou
seja, o agricultor é totalmente subordinado a essa lógica que dizima vidas e compromete
o equilíbrio ecológico das espécies.
Um dos graves riscos apresentados pela agricultura convencional é o
comprometimento da sustentabilidade ambiental e social das populações rurais, e por
consequência também, do abastecimento alimentar para as demais populações humanas.
Pois, este modelo baseia-se basicamente na monocultura, o que implica
comprometimento do melhoramento genético natural das populações. A monocultura
não é viável do ponto de vista ambiental e da segurança alimentar por diversos motivos,
a saber, dentre eles, a destruição e comprometimento da resiliência da natureza, quebra
da dinâmica natural dos ecossistemas, além dos impactos sociais que ela causa. Assim,
a transição pode ser pensada como um caminho que possibilita maior dinamicidade e
fortalecimento das práticas produtivas que são distintas do modelo convencional de
produção alimentar, uma vez que:
68
alimentar, e dispõe de base científica e técnica para tanto. As experiências ao redor do
mundo e no Brasil, já evidenciam o potencial dessa perspectiva, uma vez que é preciso
reconhecer os impactos que a agricultura convencional vem demonstrando, e o preço
que a humanidade e os ecossistemas naturais têm pago. Assim, é necessária uma
descolonização do pensamento e das práticas que resultaram nesse cenário (CAPORAL,
2009).
A agroecologia é considerada também, um caminho que orienta para a transição
de um modelo de agricultura convencional para o resgate da produção camponesa. Pois,
nas práticas agroecológicas os agricultores e agricultoras não seguem apenas uma
receita pronta ditada por algum técnico, ou por algum laboratório preocupado em
vender um pacote tecnológico. Seguindo assim, diferente da lógica industrial do
agronegócio, em que “não é o agricultor, independentemente da escala – grande ou
pequena – o dono de seu próprio negócio, porque ele não decide, pois quem decide é o
vendedor dos insumos, máquinas e sementes. É o pacote” (MACHADO; MACHADO
FILHO 2014, p. 23).
Para Caporal (2009) há que atentar para que a agroecologia não seja tratada de
forma reducionista e é necessário reconhecer o seu potencial para orientar agricultores e
agricultoras rumo a um desenvolvimento rural sustentável. Segundo o referido autor, a
agroecologia é definida:
69
desenvolvidas novas tecnologias que por sua vez melhorarão a vida no campo, assim
como a qualidade dos alimentos (MACHADO; MACHADO FILHO 2014).
Caporal (2009) considera que a agroecologia não consiste em defender uma
revolução modernizadora, ao contrário, é preciso ter muito claro que os pressupostos do
modelo hegemônico atual continuam muito firmes, e, portanto, está consolidado.
Contudo, para o autor, a transição é possível e assim a conceitua:
Desse modo, a agroecologia não pode jamais ser reduzida apenas a uma forma
de pensar, que a solução para a crise socioambiental é apenas a substituição de um
modelo para outro, é preciso ir além, pois além do redesenho de agroecossistemas que
sejam mais sustentáveis, é necessário pensar em processos de desenvolvimento rural
mais humanizadores. Assim, os agricultores junto com outros atores sociais constituem
o elo dessa cadeia de produção e consumo alimentar, conforme Caporal (2009).
Logo, a prática agroecológica consiste em uma abordagem complexa, distinta da
ciência reducionista que simplificou as interações solo e planta. Ademais, pensar assim,
implica ainda em considerar que o processo de transição não é fácil, e que, portanto,
requer uma ação coletiva, tendo em vista sempre a sustentabilidade em uma perspectiva
holística (CAPORAL, 2009; LEFF, 2006).
O que se almeja no agroecossistema agroecológico é a maior interação entre as
espécies, o equilíbrio é buscado justamente nessa perspectiva. Cabe entender claramente
que a solução para a sustentabilidade de um agroecossistema é entender a sua
complexidade sem querer reduzi-la com a aplicação de um método que em outras
palavras, irá incorrer no comprometimento desse ecossistema em longo prazo. Nesse
sentido, Caporal (2009, p. 16) afirma:
70
intervenção humana menos degradantes da qual se possa ter
conhecimento.
71
reconhecimento de que a agroecologia consiste em uma prática de produção agrícola
que não está detida apenas a academia, ao contrário:
72
infundada da sua realidade e da sua essência. Para a agricultura convencional o modelo
de “sucesso” é o empresário agrícola que está totalmente, ou significativamente
integrado ao mercado de insumos, como de produto, contextualizando, portanto, a
inserção na “lógica de mercado” (Ploeg, 2008, p. 34).
Nesse sentido, Santos (2006) apresenta a compreensão de que outro mundo é
possível, alimentando-se em novos paradigmas, construções e definições que emergem
nas fronteiras, em contraste com a rigidez das subjetividades e objetividades da ciência
e do desenvolvimento. No geral, as populações rurais apresentam formas originais de
sociabilidade caracterizadas pela fluidez e a invenção; orientadas tanto pelo paradigma
dominante como pelo paradigma emergente. É importante considerar que no
campesinato um elemento fundamental é a interação e transformação constante entre a
pessoa humana e a natureza, apontado como co-produção6. O que significa dizer que a
prática agrícola que os camponeses desenvolvem trata-se uma atividade potencialmente
dinâmica
Os camponeses criam produtos finais, mas também constroem um estilo de
agricultura que por sua vez não os isola, mas os coloca em relação direta com o mundo
exterior. A luta social é intrínseca ao campesinato. Essa luta se faz na busca por
melhorar os recursos disponíveis, de modo que esses atores usufruam de melhores
condições de vida através do aumento da renda, escoamento da sua produção,
autonomia e perspectiva de futuro (PLOEG, 2008).
Assim, para pensar o processo de transição agroecológica, é fundamental um
novo enfoque social para a agricultura e o desenvolvimento rural, construindo aspectos
de conservação dos recursos naturais, viabilidade de atividades em pequena escala e
métodos ecológicos modernos. Isso deve levar a uma atividade produtiva que tenha
como ponto de partida o conhecimento e os recursos locais e que seja, ao mesmo tempo,
sustentável e com um grau de produtividade capaz de gerar produção diversificada,
propiciando condições de reprodução social das famílias e comunidades camponesas.
Diversos fatores estão encorajando os produtores a começarem esse processo de
transição para a sustentabilidade, entre eles, a baixa margem de lucro das práticas
convencionais; o desenvolvimento de novas práticas ecológicas que são vistas como
viáveis; o aumento da consciência ambiental entre produtores, consumidores e
6
A co-produção diz respeito à interação e transformação mútua constante entre a relação humana com o
ambiente natural vivo. Para maior aprofundamento ver Ploeg (2008).
73
governantes, e o crescente mercado para produtos agrícolas cultivados e processados de
forma alternativa (PLOEG, 2008).
Assim, os agricultores contemporâneos desenvolvem relações mercantis em que
são eles mesmos atores desses processos. No que diz respeito à alimentação 85% da
produção mundial de alimentos advém dos circuitos curtos e descentralizados. Para
tratar dos mercados da agricultura familiar camponesa é importante sempre considerar o
conceito de autonomia, pois se percebe que esses atores se distanciam cada vez mais
dos mercados convencionais e criam eles mesmos sua organização dos processos
produtivos e da própria comercialização (PLOEG, 2008).
Os sistemas tradicionais da agricultura familiar estão sendo constantemente
pressionados pela extrema homogeneização induzida pelo avanço da modernização
capitalista de produção de alimentos. Em contrapartida a essa tendência, o campesinato
continua tendo, na biodiversidade e na policultura, suas principais fontes de trabalho,
que, antes de qualquer consciência ecológica, são muito mais uma manifestação dos
seus interesses em garantir a oferta suficiente para o autoabastecimento das suas
famílias.
Esse princípio de autonomia tem sido alimentado pelas iniciativas dos
agricultores, com apoio de organizações de assessoria, em desenvolver atividades de
diversificação da produção e resgate de muitas espécies da fauna e flora nativa, que
estavam perdendo sua importância no sistema produtivo que garantisse renda e
soberania alimentar, inclusive, algumas delas, sofrendo ameaça de extinção. É o que
enfatiza Canuto (1998) sobre a importância do resgate da autonomia para a
sustentabilidade dos sistemas agrícolas locais e regionais.
Sabe-se que instigar os agricultores a aumentarem a produção com base em
adoção do pacote tecnológico, replicando os moldes dos processos industriais, em que
os agricultores tornam-se demasiado dependentes da indústria, não pode ser pensado
como o único modelo a seguir, ao passo que a agroecologia demonstra sua
sustentabilidade por imitar a natureza e não a indústria, assim, as práticas
agroecológicas corroboram com a segurança e soberania alimentar melhorando os meios
de vida rural, corroborando para a manutenção e preservação dos recursos naturais,
além de diminuir a erosão genética dos solos (SCHUTTER, 2012).
A produção agroecológica apresenta indicadores mais sustentáveis porque as
técnicas de cultivo na agroecologia envolvem a manutenção ou introdução de
biodiversidade agrícola (diversidade de culturas, pecuária, pesca, polinizadores, insetos,
74
biota do solo, além de outros componentes) para atingir os resultados desejados na
produção e sustentabilidade. Nesse sentido, considera Schutter (2012, p. 17):
75
A perda da diversidade relaciona-se diretamente com processos
socioeconômicos de queda de qualidade de vida, como fome, miséria
e segurança alimentar, motivo porque passou a fazer parte das agendas
dos países membros dos acordos internacionais, tendo sempre um
objetivo em comum: a conservação e o uso sustentável da
biodiversidade em comunidades locais.
.
Machado, Santilli e Magalhães (2008) afirmam que a agroecologia pode ser
pensada a partir do manejo sustentável dos agroecossistemas, envolvendo em sua
prática, a interação com os valores e saberes locais, para uma manutenção sustentável
dos recursos naturais locais.
É importante ressaltar que no Brasil, um importante avanço no âmbito da
agroecologia, foi a Política Nacional de Agroecologia de Produção Orgânica7 (Pnapo),
instituída pelo Decreto 7.794 de agosto de 2012, em que a finalidade consistiu em
“integrar, articular, e adequar as diversas políticas públicas, programas e ações
desenvolvidas no âmbito do governo federal”, objetivando induzir o processo de
transição agroecológica fortalecendo também a produção orgânica e de base ecológica
(SAMBUICHI et al., 2017, p. 11).
Como afirmam os autores, esse é um resultado de lutas e conquistas de diversos
atores sociais que no Brasil têm se fortalecido e produzido de forma sustentável,
dinamizando os espaços rurais e garantido acesso para os consumidores a um alimento
que além de ser isento de agrotóxicos, é produzido sobre os princípios de
sustentabilidade agroecológica. É resultado ainda de um longo processo, que segundo
Sambuichi et al.(2017), começou na década de 1970 com as Comunidades Eclesiais de
Base e também, os movimentos de agricultura alternativa.
Sambuichi et al. (2017) consideram que anterior ao Pnapo, já foi muito
representativo no país a implementação da Lei 10.831 de 2003 que tratou da produção
orgânica. Os autores consideram que essa lei permitiu a venda direta sem certificação
para agricultores familiares que estavam inseridos em processos de organização e
controle social, tal processo facilitou que produtores menos capitalizados conseguissem
acessar ao mercado de orgânicos, possibilitando assim outras modalidades, tais como,
acesso aos canais de venda direta, promovendo os circuitos curtos de comercialização
que potencializam a produção agroecológica.
7
A Lei 10.831 dispõe especificamente sobre a agricultura orgânica no Brasil, tendo sido instituída em
2003 (BRASIL, 2003).
76
O Pnapo é resultado direto da ação de diversos atores sociais, institucionais e
civis em que desde a década de 1980 percebe-se um movimento de contestação aos
impactos da modernização da agricultura adotada no Brasil, e em 1988 a Constituição
Federal destacou a viabilização das instâncias de participação, e ainda nessa década
surgiram os encontros brasileiros de agricultura alternativa (EBAAs). Na década de
1990, o destaque foi a intensificação do debate sobre a questão ambiental que teve sua
referência na Rio-92, e no âmbito da ação do Estado, merece destaque as ações do
Estado no Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais Brasileiras
(Programa Piloto), que havia sido proposto na reunião do grupo dos sete países
industrializados (G7). No ano de 2003, em decorrência das mudanças na relação Estado
e sociedade civil, intensificou-se uma participação maior de atores sociais e nesse
mesmo ano foi promulgada a Lei 10.831 que regula as condições obrigatórias para a
utilização de agrotóxicos no país, bem como tem início o Programa Fome Zero,
surgindo programas importantes como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e
o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) (MOURA, 2017).
77
fenômeno representa de uma certa forma um espaço de autonomia no
interior da sociedade industrial em geral e da agricultura industrial e
moderna em particular; um espaço limitado e aparentemente em não-
expansão, mas talvez um pouco mais confortável que outros, mesmo
que não constitua uma via maior de evolução para a economia e a
sociedade.
78
família e comercializando o excedente. Tais atitudes nos posicionam frente ao seu
processo de autonomia. Pois, esses atores não querem se inserir na lógica produtiva
capitalista, e serem subordinados perdendo a autonomia da sua produção, e ainda não
aceitam a migração para as favelas no espaço urbano. As possibilidades que a
autonomia na produção abrem para esse atores é assim considerada por Almeida (1999,
p. 4):
79
importante como estratégia para a construção da autonomia é a inserção dos agricultores
e agricultoras as redes de associação que estimulam ao sistema legítimo de
solidariedade e de identidade, conferindo assim empoderamento aos grupos,
cooperativas ou associações, para que assim unam forças para vencer os obstáculos à
produção, a comercialização e a vida social no meio rural (ALMEIDA, 1999).
Segundo Almeida (1999), o perfil do agricultor familiar camponês que busca
autonomia nos dias de hoje trata-se de um agricultor polivalente, solidário, ecológico e
ambientalista, que comparado ao produtor moderno dos impérios alimentares (Ploeg,
2008), pode ser reconhecido como pouco profissional, que percebe de forma diferente
as categorias de progresso, tecnologia e desenvolvimento.
Conforme Almeida (1999) a autonomia camponesa é perseguida em, pelo
menos, quatro dimensões: na estrutura de produção, quando busca uma maior
independência dos insumos externos; no consumo, quando diversifica a produção como
estratégia para a subsistência familiar; no domínio do tempo, quando organiza sua
dinâmica de trabalho de acordo com as diferentes modalidades, e na relação com o
mercado, com formas diferenciadas de comercialização, através de mercados de
proximidades e aproximação dos consumidores.
Campos (2006) vai apontar para algumas questões centrais na discussão sobre o
campesinato, que vem a ser, a priori, o tratamento recente no Brasil da categoria
camponesa. Pois, diferente da Europa, no Brasil o campesinato é um movimento
recente, tendo surgido nas ligas camponesas no nordeste do Brasil, em meados do
século XX. Ademais, há que considerar que o campesinato não é homogêneo e distintas
são as formas de apropriação da natureza. Além do fato de que o camponês embora
esteja à margem do modelo produtivista capitalista, ele não é imune das influências da
racionalidade capitalista, que é hegemônica.
Os estudos sobre o campesinato consideram algumas premissas ou teorias
básicas que tentam compreendê-lo. Sendo duas tendências predominantes: a que
considera o fim do campesinato, onde a maioria tornar-se-ia mão-de-obra proletária,
transformando-se uma pequena parcela em capitalistas; a outra tenta entender como o
camponês resiste ao modelo de produção capitalista (CAMPOS, 2006).
Pensar na autonomia camponesa não significa dizer que os camponeses estão
independentes do mercado, mas reconhecer, sobremodo, que permanece e em alguns
locais intensifica-se a reivindicação dos agricultores e agricultoras, assim como de
organizações civis se opõem aos movimentos de exploração e desumanização para com
80
os atores sociais do campo, promovido pelo grande capital (CAMPOS, 2006).
Corrobora igualmente com essa discussão, Gonçalves (2014, p. 4) ao afirmar que
agricultura camponesa trata-se de “uma forma de existência social imersa em um
conjunto de relações de dominação econômicas muito diversificadas e complexas”.
É preciso reconhecer que os camponeses na contemporaneidade assumem-se
enquanto atores sociais que mantendo alianças no meio rural e para além destes, se
percebem enquanto sujeitos que tem vozes e podem representar a si mesmos na busca
das melhorias que consideram importantes; reconhecem que não são vítimas da natureza
ou das causas divinas, e podem nesse sentido, desenvolverem ou otimizarem práticas de
convivência com as especificidades ambientais onde estão inseridos; sentem poder
dialogar com as diferenças étnicas, culturais religiosas e de gênero, e podem assim, a
partir de uma ação conjunta, reivindicarem políticas públicas que lhes represente e
confiram empoderamento e, entendem ainda que como o capitalismo se trata de um
movimento globalizado, com força hegemônica, precisam portanto, criar também
mecanismos e alianças que lhes conferirão fortalecimento político e social (CAMPOS,
2006).
Quando tratamos de autonomia camponesa, é fato que há muito o que discutir e
avançar, sobretudo, se pensarmos pontualmente na questão organização social por parte
dos agricultores e agricultoras, pensar em especial naqueles que não se integram nas
redes e experiências de agricultura sustentável, se pensarmos ainda em políticas
públicas que sejam construídas a partir da base, em um diálogo junto com o agricultor e
agricultora. Mas é igualmente relevante que está posto que o campesinato permanece
ativo no século XXI, demonstrando sua força, resistência e autonomia em não sucumbir
frente as dificuldades. Nesse sentido, considera Campos (2006, p.13):
81
resistir a força hegemônica do grande capital sem, contudo, deixar de vista que para que
as ações sejam efetivas, elas precisam incorporar uma ação conjunta de diversos atores e
setores socais, sobretudo, porque o Estado e os agentes institucionais ocupam um lugar
muito importante para esse processo de fortalecimento da autonomia na condição
camponesa (GONÇALVES, 2014).
A ideia central desse capítulo era compreender como a racionalidade ambiental e
a agroecologia tem fortalecido a prática dos mercados alternativos. Desse modo,
apreende-se que nas experiências de circuito curto de comercialização, a procura se dá
por um alimento que é produzido de forma sustentável. Assim, a agroecologia constitui-
se como um campo fértil para fortalecer essas práticas produtivas, que na
contemporaneidade conta com muitos desafios, mas se fortalecem, sobretudo, pela ação
de coletivo de atores.
No capítulo seguinte trata-se da segurança alimentar, bem como do contexto
socioalimetar e de outro de tipo de consumo que tem se tornado evidente na sociedade
contemporânea, o consumo politizado-reflexivo. E assim, de como outras relações
sociais tem sido tecidas em torno do alimento.
82
CAPÍTULO III
83
características alimentares de cada uma das cinco regiões brasileiras. Através desse
estudo, Castro (1984) conclui que a fome no Brasil trata-se de uma realidade
imperativa, mas que, contudo, não está relacionada apenas, ou majoritariamente aos
aspectos naturais e climáticos. Resulta sim diretamente de fatores econômicos e sociais
(BRASIL, 2011).
Na década de 1950, o modelo de desenvolvimento no Brasil está totalmente
atrelado ao crescimento econômico. Assim, vê-se intensificar no País a concentração
fundiária, estando as terras concentradas nas mãos dos coronéis, ao mesmo tempo nesse
período surgem reivindicações por partes de movimentos de base rural, as Ligas
Camponesas, em Pernambuco, constituindo-se como meio contestador do poder dos
coronéis, e reivindicador da reforma agrária (BRASIL, 2011).
A década de 1960 marca um cenário de crise alimentar no país, decorrente da
crise econômica e consequentemente no abastecimento alimentar. Algumas ações são
desenvolvidas nessa década, e o quadro abaixo ilustra com maior clareza:
Ano Ações
Foram criadas três entidades nacionais de armazenamento:
Companhia Brasileira de Alimentos (COBAL)
1962 Comissão de Financiamento da Produção (CFP)
Companhia Brasileira de Armazenagem (CIBRAZEN)
Superintendência Regional de Política Agrária (SUPRA)
1964 Decreto nº 53.700 de 13 de março de 1964, assinado por
João Goulart para desapropriar terras próximas às rodovias
federais e destiná-las para a Reforma Agrária.
Quadro 3: Ações empreendidas na década de 1960 para o combate a fome
Fonte: BRASIL (2011). Adaptado pela autora.
Assim, desde a década de 1960 percebe-se que a fome passa a ser tratada sob o
enfoque multisetorial e multicasual. Contudo, é apenas na década de 1970 que ações
abrangentes passam a ser pensadas para orientar a ação dos países e nações, após a
Conferência Mundial de Alimentos em Roma, em 1974, patrocinada pela FAO. Esse
evento teve como marco a recomendação para que os Estados-membros adotassem
sistemas de vigilância alimentar e nutricional (BRASIL, 2011).
A década de 1970 é marcada no Brasil pela criação do Instituto Nacional de
Alimentação e Nutrição (INAN), em 1972, nesse mesmo ano foi elaborado I Programa
84
Nacional de Alimentação e Nutrição (I PRONAN), com 12 subprogramas, abordando a
desnutrição como doença social, ficando vigente até 1974. Em 1976 é criado o II
PRONAN tendo a vigência relacionada ao Plano Nacional de Desenvolvimento, até
1979 (BRASIL, 2011).
Maluf, Meneses e Marques (1996) consideram que a segurança alimentar até a
década de 1970 estava estritamente relacionada ao aspecto da produção. Em 1974 na
Conferência Mundial de Segurança Alimentar promovida pela FAO (Organização das
Nações Unidas para Alimentação), os estoques de alimentos estavam escassos, devido a
crise de alimentos no mundo todo. Tal cenário incorreu por incentivar as pesquisas
voltadas para Revolução Verde e sua consequente adesão por diversos países. Nesse
momento, difunde-se a ideologia da Revolução Verde como o único meio pelo qual se
resolverá o problema da fome e da desnutrição, ligando assim, a produção a maciça
utilização de insumos químicos na produção agrícola.
A década de 1980 é caracterizada pelo ressurgimento do debate sobre a fome,
tendo como pano de fundo as obras de Josué de Castro. Nesse momento, diversas
entidades organizativas e civis se mobilizam para debater sobre a problemática, e
configura-se assim, na década de 1980 e 1990 os temas da alimentação e nutrição sendo
tratados em âmbito político e nacional. Um evento que marcou a temática foi a 8ª
Conferência Nacional de Saúde em 1986, em que contou com uma ampla participação,
e como um dos resultados, é a primeira referência ao conceito de Segurança Alimentar
no Ministério da Agricultura (BRASIL, 2011).
Na década de 1990, o Brasil sedia a Conferência das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), em paralelo a este evento, acontece a
Conferência Mundial da Sociedade Civil que enviaria suas propostas para o evento
oficial, nesse momento o tema da Segurança Alimentar desponta como um dos mais
destacados na Sociedade Civil, incorrendo assim no Tratado de Segurança Alimentar
(BRASIL, 2011).
Em 1993 é criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (CONSEA),
como órgão de aconselhamento junto à Presidência da República. No ano de 1994 é
realizada no Brasil a I Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional, em Brasília.
Nesse momento passam a serem as seguintes diretrizes para orientar a Política de
Segurança Alimentar e Nutricional:
i) ampliar as condições de acesso à alimentação e reduzir seu peso no
orçamento familiar;
85
ii) assegurar saúde, nutrição e alimentação a grupos populacionais
determinador; e,
iii) assegurar a qualidade biológica estimulando práticas alimentares e
estilo de vida saudáveis (BRASIL, 2011, p. 19).
86
apenas um atenuante das mazelas geradas pelo crescimento hegemônico do país, em
detrimento das experiências locais de sustentabilidade socioambiental.
Assim, pode-se inferir que as mudanças no sistema de produção e consumo
alimentar, advém também da crise de insegurança alimentar, ambiental e econômica
percebida hoje em distintos contextos sociais e históricos. Assim, diferentes grupos
sociais passaram a empreender mudanças significativas que configuram novos hábitos,
novos mercados e novas formas de pensar no alimento. É fato que as práticas
agroecológicas colocam no centro do debate, duas questões fundamentais, a saber:
soberania e segurança alimentar.
Schutter (2012) considera ainda que por um lado percebe-se um interesse do
capital estrangeiro em investir na agricultura sob os moldes da agricultura de grande
escala, pois nos últimos anos tem mudado o investimento direto estrangeiro na
agricultura que passou de uma média de US$ 600 milhões anualmente na década de
1990 para US$ 3 bilhões em 2005-2007. Ao mesmo tempo em que vai se tornando
perceptível o surgimento ou mesmo fortalecimento de outras formas de produção
alimentar que operam em outra lógica, outra perspectiva, como a agroecologia, ou
mesmo agriculturas ecológicas sustentáveis. Algumas iniciativas, tais como Iniciativa
de Segurança Alimentar Aquila, o Programa Global de Agricultura e Segurança
Alimentar (GAFSP) ou o Programa de Desenvolvimento Integral da Agricultura da
África (CAADP) do NEPAD da África, mostram que os governos estão direcionando
seus olhares para outros modelos de agricultura que sempre coexistiram em distintas
sociedades, assim o autor afirma:
87
Em 1996 foi aprovado em Leipizg, na Alemanha, o Plano de Ação Global sobre
Conservação e Utilização Sustentável de Recursos Genéticos de Plantas para
Alimentação e Agricultura. Nesse documento a questão da segurança alimentar foi
intensamente investigada, já demonstrando que em temas que discutem a
agrobiodiversidade, a segurança alimentar será pensada em sua relação com a
sustentabilidade e os ecossistemas. Temas de muita relevância igualmente foram
tratados nesse documento, tais como: valorização dos saberes endógenos das
comunidades e povos rurais; reconhecimento da importância do trabalho desses atores
para a sustentabilidade dos agroecossistemas; a importância da utilização de práticas
sustentáveis e valorização das variedades locais (MACHADO, SANTILLI e
MAGALHÃES, 2008).
Para a promoção da Segurança Alimentar e Nutricional é preciso considerar os
aspectos referentes ao alimento enquanto componente alimentar, como produção,
comercialização, disponibilidade e acesso aos alimentos, assim como atender aos
aspectos pertinentes também ao quesito nutricional, como às práticas alimentares e
utilização biológica dos alimentos. Assim, o conceito de Segurança Alimentar e
Nutricional pode ser considerado um conceito em construção, pois perpassa por
diversas questões, e está além da setorização da produção agrícola.
Oliveira e Rozendo (2016) consideram que como pano de fundo para a
emergência da concepção de segurança alimentar e nutricional, há um antigo debate que
precisava ir além da expressão fome, havendo assim, uma ampliação e politização dessa
discussão, sendo então, incorporado uma diversidade de atores. Para as autoras, a
agricultura familiar consiste em uma forma social que tem as condições de assumir o
protagonismo das ações de SAN. E Rozendo (2006) afirma ainda que a agricultura
familiar é a principal protagonista na produção de alimentos no Brasil.
Como ações pontuais dos governos nos últimos dez anos com vistas ao combate
à fome, miséria e insegurança alimentar, surgem vários programas e políticas públicas,
podendo-se citar o Programa Comunidade Solidária, do Programa Bolsa Família, além
de outras iniciativas municipais e estaduais. Nesse sentido, consideram Machado,
Santilli e Magalhães (2008, p. 35):
O apoio à agricultura familiar insere-se nessa iniciativa de
harmonização das ações públicas, particularmente pela sua grande
qualidade de fornecedor de alimentos para a população de baixa
renda. Além dessa função, a agricultura familiar é importante para a
segurança alimentar, em razão da sua característica de fonte de
88
distribuição de renda e de geração de empregos, o que abre a
possibilidade para que milhões de pessoas tenham acesso a alimentos.
89
sob o aspecto ambiental. E constitua-se assim, como uma produção que traz em seu
bojo o cuidado com o meio ambiente, se estendendo também a preservação dos saberes
culturais, e de seus valores.
Diante dessa necessidade de pensar o alimento sob essa perspectiva, pode-se
considerar de igual importância a dimensão da cultura em torno do alimento, no sentido
de reconhecer como importante, e valorizar o patrimônio cultural que as pessoas
conferem em suas práticas de preparo e consumo do alimento. Assim, Maluf, Menezes e
Marques, (1996, p.4) consideram os princípios que regem a segurança alimentar:
Vale salientar ainda que alguns avanços foram logrados no Brasil também no
tocante a soberania alimentar, tais como redução da extrema pobreza, insegurança
alimentar moderada e a grave mortalidade infantil, e nesse sentido alguns aspectos são
relevantes, podendo-se citar o aumento de poder de compra da população mais pobre,
somado ainda ao fortalecimento da agricultura familiar, e não podendo deixar de
referenciar a implantação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Contudo, ainda há desafios a serem superados, sobretudo, para a promoção de uma
produção alimentar que respeite a diversidade social, biológica e cultural (SCHOTTZ,
2014).
Em seguida, discute-se as mudanças pertinentes ao alimento dentro do contexto
das transformações dos diferentes sistemas agroalimentares, compreendendo o alimento
como uma necessidade fisiológica, mas também social.
90
usinas, e há também as empresas que passaram a especializar-se para disponibilizar o
alimento pronto (FLANDRIN; MONTANARI, 1998).
No início do século XX, médicos e profissionais observaram que onde se abrisse
mão da alimentação tradicional em prol da dieta ocidental, haveria uma relação direta
com o surgimento de doenças ocidentais, tais como obesidade, diabetes, doenças
cardiovasculares e câncer. Esse cenário conduz diretamente para a compreensão de que
se trata do alimento moderno, que tem como característica o desenraizamento
geográfico, e devido a massificação da industrialização da comida, os alimentos viajam
por quilômetros a fio, e chegam com características de frescura nos espaços mais
remotos do planeta, e quanto maior o poder aquisitivo, maior a possibilidade de
importar “alimentos nobres” e mais seletivos, compreendido assim como o processo de
homogeneização do alimento (POULAIN, 2013).
Brunori e Malandrin (2016) afirmam que a compreensão contemporânea do
alimento pode resultar em movimentos duplos, tanto da esfera de mercado à esfera
pública, quanto da esfera pública para a esfera de mercado, a primeira é decorrente das
mudanças engendradas por parte das empresas em escala maior, e que conseguem em
grande escala, atender a demanda por um alimento que e opõe por exemplo, a lógica do
fast food, sendo o slow food um exemplo. Já a segunda categoria agrega a variedade de
cadeias ou redes alimentares alternativas decorrentes da iniciativa da sociedade civil,
pequenos agricultores e mesmo dos consumidores. Assim, com base na expectativa que
se tem do alimento atualmente, outras geometrias se estabelecem resultando em
“alianças além dos domínios políticos tradicionais”.
O que identifica os seres humanos em sua relação com o alimento é o ato de
comer, que por sua vez diz respeito a uma necessidade biológica, mas também cultural,
pensar no alimento em uma relação simbiótica. Nesse sentido, afirma Pollan (2008, p.
16):
Esquecemos que, historicamente, as pessoas comem por muitas razões
além da necessidade biológica. Comida também tem a ver com prazer,
comunidade, família e espiritualidade, com a nossa relação com o
mundo natural e com a expressão da nossa identidade. Já que os seres
humanos fazem refeições juntos, a alimentação tem relação tanto com
a cultura quanto com a biologia.
91
Poulain (2013, p. 17) “produtos naturais culturalmente construídos e valorizados,
transformados e consumidos respeitando um protocolo de uso fortemente socializado”.
Quando propõe-se a discutir sobre a alimentação na contemporaneidade, depara-
se com duas questões basilares, a saber, a crise alimentar que no século XX surge com o
surto de algumas doenças como a vaca louca, e tantas outras epidemias, que
demonstram a necessária cautela com os processos tecnológicos alimentares, assim
como a questão ambiental, e ainda com o fato de a temática alimentação ser um tema
inovador para a área de ciências sociais, emergindo há aproximadamente desde a década
de 1970, em que começa-se uma demanda de pesquisas para entender ou redefinir o
estatuto teórico desta temática. Ademais, considera-se que o cenário atual é de
sociologias da alimentação, ou seja, pensa-se nessa temática de uma forma plural. Vê-se
ainda que a sociologia vai em direção à alimentação (POULAIN, 2013).
Na década de 1990, especificamente, em decorrências dos surtos da vaca louca e
dos Organismos Geneticamente Modificados (OGM), incidindo em intoxicações
alimentares, há um perceptível choque simbólico configurando um cenário de medo,
incerteza, dúvidas e críticas sobre o atual padrão alimentar. Os escândalos das práticas
espúrias das indústrias de alimentos tomam as primeiras páginas dos jornais, e põem em
xeque um padrão alimentar que é insalubre e insustentável ambiental e socialmente
(POULAIN, 2013).
Os hábitos alimentares e suas mudanças na contemporaneidade passam a ser
alvos de distintas correntes teóricas que tentam de alguma forma dar conta desse novo
contexto socioalimentar. O que é evidenciado, contudo, é que embora surjam teorias
que apontam para uma padronização alimentar, como por exemplo, a Mcdonaldização,
outras revelam uma variedade alimentar. Contudo, Poulain (2013, p. 48) considera que
embora tente, a indústria não consegue assumir a função socializadora da cozinha,
afirmando assim que:
92
provoca o seu desenraizamento natural e suas funções sociais. Desse modo, o alimento
vai se tornando cada vez mais uma mercadoria na pós-modernidade, configurando assim
o que Poulain (2013) considera como origem do comedor-consumidor, consumando
outra característica desse processo, a perda do consumidor com a cadeia da produção.
Dado o contexto apresentado por Poulain (2013), em que a insegurança
alimentar foi tratada desde o período Pós-Guerra como uma questão da quantidade dos
alimentos, ou seja, do ponto de vista do abastecimento até a o século XX, resultando em
uma diversidade de epidemias e surtos que denotam a produção industrial como sendo a
responsável por criar um cenário de incerteza e repúdio aos alimentos industrializados,
na contemporaneidade, a segurança alimentar reivindica agora a quantidade, mas
também a qualidade dos alimentos.
Desse modo, a busca pela qualidade se configura também com o surgimento de
uma diversidade de olhares sobre o alimento, e a questão de pensar no alimento
procurando entender a sua simbologia e sua representação social, torna-se uma realidade
em diversos países. Assim, a alimentação passa a ser pensada sob a discussão dos
resgates culturais de hábitos alimentares, e ainda como possibilidade de defesa ao meio
ambiente, sobretudo, diante da necessidade de repensar a alimentação e as práticas
produtivas.
Nesse sentido, instiga-se a pensar na alimentação em uma perspectiva de
sustentabilidade assentada nos aspectos sociais, ambientais e econômicos, refletindo
sobre a hegemonia do nutricionismo que vê os alimentos enquanto uma somatória de
componentes químicos, desprovendo-os de suas relações sociológicas e culturais. O
conceito de alimentação adequada e saudável proposto pelo CONSEA incorpora uma
abordagem mais holística, que revela uma outra compreensão da relação entre
agricultura e nutrição e considera o protagonismo de homens e mulheres do campo na
busca pela alimentação sustentável em seus diversos aspectos (produção, processamento
e consumo). Assim, o CONSEA apresenta o conceito de alimentação adequada:
93
químicos e biológicos e de organismos geneticamente modificados
(CONSEA, 2007, p. 26).
O autor enfatiza ainda que, esses produtos naturais circulam por redes produtivas
diversas, sendo ainda que esses produtos carregam signos e redefinições de
configurações culturais, apresentando assim, novas representações culturais.
Nesse sentido, algumas pesquisas ressaltam as conformações que o alimento
vem assumindo na contemporaneidade, e possibilitam problematizar os elementos que
incorreram na mercantilização do alimento e sob quais bases essas novas relações se
constroem. Assim, na pesquisa de Menasche (2010, p. 205), de acordo com os
8
A compreensão de tribo apresentada por Lifschitz (1997), referencia-se em Maffesoli (1987), que
compreende como tribos alimentares os microgrupos naturalistas, macrobióticos, vegetarianos.
94
consumidores entrevistados, a valorização do alimento natural ocorre em contraposição
ao alimento industrializado. Para esses consumidores, há uma reprovação aos alimentos
enlatados, dando preferência assim, aos alimentos que eles conhecem quem o produziu.
Assim “O natural, fresco, caseiro, próximo, tradicional seria, dessa forma, afirmado em
oposição ao artificial, processado, industrializado, distante, moderno”. Ressalta ainda
que aos alimentos adquiridos da feira são dotados de uma qualidade natural, que por sua
vez opõe-se ao alimento industrializado, sendo assim dotado de uma condição de
alimento saudável, limpo.
A demanda pelo alimento local, segundo Allaire (2016, p. 82), assenta-se sob
uma discussão complexa. Pois, segundo o autor, há uma teia de novas situações e temas
sociais que têm na contemporaneidade, reforçado o valor do “produto alimentar local”.
Para o autor, há várias causas que possibilitaram essa demanda, citando-se “o fracasso
da cúpula da OMC em Seattle resultante das manifestações populares, a crise de 2007-
2008, e o aumento das inquietações relativas à saúde e ao meio ambiente decorrentes de
alarmes alimentares”.
Na pesquisa de Allaire (2016, p. 86), o surgimento de mercados locais na União
Europeia está relacionada aos aspectos da instabilidade dos preços agrícolas e a
desestruturação das cadeias de produtos básicos, ocasionando para os agricultores a
possibilidade de aderirem a outras formas de comercialização, além da entrega em casa,
atrelada a uma flexibilidade e facilidade de fazer pedidos, por parte dos consumidores.
Nesse sentido, afirma o autor “Assim, a oportunidade econômica oferecida pelos
produtos alimentares locais amplia a abrangência de iniciativas ativistas, que passam a
ser apoiadas pelas principais organizações de agricultores e por programas de
desenvolvimento rural”.
Brunori e Malandrin (2016) ressaltam que os agricultores da Itália foram
consideravelmente beneficiados pela valorização e tradição local buscada nos alimentos,
opondo-se a lógica de industrialização alimentar, que nesse país despertou a
desconfiança dos consumidores, sobretudo, a partir do mal da vaca louca em 1996. Os
autores ressaltam que a partir desses fatos, surgiu outro discurso sobre o alimento e sua
qualidade, incorrendo em benefícios para os agricultores familiares e mesmo a grande
indústria procurou se adaptar a nessa nova realidade e orientar sua produção com base
no que se era exigido do ponto de vista da qualidade do alimento. Nesse contexto:
A qualidade entendida como especificidade local – representada por
receitas tradicionais, biodiversidade local e manufatura artesanal –
95
tornou-se uma prioridade nas políticas. No novo contexto a identidade
regional e nacional reúne consumidores e produtores favorecendo a
preferência por produtos nacionais e estratégias agressivas sobre os
mercados de exportação (2016, p. 148).
96
onde é preciso identificar o que a mercadoria significa para o usuário, sobretudo, o que
a utilização significa para ele.
Nessa perspectiva, Deyan (2010) credita a mercadoria, o objeto, a capacidade de
sinalizar quem somos, e podem ainda, marcar a passagem das nossas vidas.
Para Canclini (2010), ao discutir globalização, o autor afirma que os latino-
americanos herdaram dos vínculos com os Estados Unidos a condição de consumidores.
Assim, as leituras que se faz do consumo e do consumidor, dentro do processo macro de
globalização-modernização-pós-modernismo, nos parece indicar um processo que
homogeneiza, e que como afirma Ortiz (2007), representa um desenraizamento, assim, a
cultura passa a ser percebida como um processo de montagem multifuncional, e que “os
objetos perdem a relação de fidelidade com os territórios originais” (CANCLINI, 2010,
p. 32).
Contudo, Canclini (2010) afirma que não se pode perder de vista dois aspectos
relevantes: 1) o local não perde sua importância diante do global e 2) o modo neoliberal
de globalização não é o único possível. O pensamento de Canclini (2010, p. 35), se
assenta na hipótese de que “quando selecionamos os bens e nos apropriamos deles,
definimos o que consideramos publicamente valioso, bem como os modos de nos
integrarmos e nos distinguirmos na sociedade, de combinarmos o pragmático e o
aprazível”. Para esse autor, o ato de consumir está dotado de uma relevância que pode
orientar o sujeito a uma condição de cidadão que difere da forma como a globalização
apresenta. No sentido de que, reconhecer que o ato de consumir “sustenta, nutre, e até
certo ponto, constitui uma nova maneira de ser cidadãos”.
O pensamento de Baudrillard (1995) é essencial para entender a sociedade
contemporânea, pois segundo o autor o consumo surge como modo ativo de relação, e
que essa relação é sistemática e pode servir de base para entender todo o sistema
cultural. Para esse autor, somos nós, a sociedade que vemos os objetos padecer, ao
contrário dos objetos em outras épocas, em que eles é que se despediam da sociedade,
tinham um poder de obsolescência menor. Ainda nessa perspectiva, o autor ressalta o
individualismo como característica intrínseca da sociedade contemporânea e afirma que
os indivíduos não convivem entre si, mas sim os objetos.
Assim, podemos refletir sobre o consumo nas feiras agroecológicas com
referência na compreensão de Baudrillard (1995). Uma vez que nos é indicado que
nesses espaços de consumo, o que tece essas experiências é a relação com o outro
sujeito. O autor conduz assim, a compreensão de que há uma relação em que o produto
97
é fim, mas também o meio pelo qual se estabelece outra relação de diálogo, pautada por
sua compreensão, quando afirma que o consumo é um modo ativo de relação.
Segundo o autor, para que seja possível a relação de consumo, existe o processo
de dominação da natureza, a natureza é “o produto de uma actividade humana, sendo
dominadas (fauna e flora), não por leis ecológicas naturais mas pela lei do valor de
troca” (BAUDRILLARD, 1995, p. 16).
Duas características da produção do consumo são ressaltadas por Baudrillard
(1995, p.17). Primeiro, é o desenraizamento, a grande variedade de produtos disponíveis
para os consumidores que são produzidos além fronteiras, e o fascínio que os produtos
exercem sobre os consumidores, de tal modo, que o consumo de um objeto decorre na
maioria das vezes no alcance a outros, que muitas vezes os exprimem. Nesse sentido,
afirma “transformou-se a relação do consumidor ao objeto; já não se refere a tal objeto
na sua utilidade específica, mas ao conjunto de objetos na sua significação total”.
Para Baudrillard (1995) as motivações são complexas. Da perspectiva do
consumo tal como é apresentado pelo referido autor, o consumo apresenta-se como em
um quadro de esquizofrenia, no sentido de que a prática de consumo como é
desenvolvida hoje nos espaços de imagem, sedução, poder e dinheiro – sendo essa a
forma de aquisição do produto -, existe uma distância do produto-produtor-consumidor.
Essa compreensão é central na pesquisa, uma vez que o que a realidade construída
socialmente nas feiras agroecológicas está distante dessa lógica.
Nestas experiências, há a relação direta produtor-produtora-consumidor. O que
contorna essa relação é em uma hierarquia distinta do consumo macro apresentado por
Baudrillard (1995). Acontece que o produto exerce uma forte atração sobre o
consumidor, há o desejo, a necessidade fisiológica, mas há também a confiança em
quem o produziu, há a confiança no valor desse produto (nutritivo, ambiental,
econômico, social).
Miller (2007) afirma que a maioria dos estudos que tratam do consumo,
comumente o fazem sob a ótica de um discurso moral ou normativo e que incorrem em
demonizar essa prática; contudo, para o autor, o consumo poderia ser reconhecido como
uma possibilidade de erradicação da pobreza e formas mais justas de desenvolvimento.
Ressalta ainda que ao consumo se associa a comparação de uma doença definhadora,
enquanto que a produção, um caráter criativo de construção do mundo. Sobre a prática
do consumo em comunidades tradicionais, Miller trata da pesquisa de Munn (1986) em
que evidenciou que em comunidades tradicionais em uma ilha em Nova Guiné, havia
98
uma determinação de que não se poderia consumir o que se produziu, antes esses bens
deveriam ser envolvidos em trocas, uma vez que são produtores de relações sociais.
É importante a contribuição de Miller (2007) para a compreensão do consumo
na sociedade contemporânea; pois, faz-se uma leitura crítica do consumo, esse sendo
visto, segundo o autor, como possibilidade de romper o paradigma de que consumo está
atrelado ao capitalismo e seu poder destrutivo, indo de frente com um discurso moral
que permeou os estudos durante muito tempo na sociologia do consumo. Nesse sentido,
o autor discorre sobre uma série de estudos que perceberam o potencial do consumo sob
o enfoque da transformação de mercadorias e como esse tem uma condição basilar que é
também a produção de grupos sociais, e assim precisam ser examinados “cada um do
seu jeito”.
O autor utiliza várias pesquisas etnográficas para defender como essas têm
contribuído para um referencial teórico mais amplo sobre a cultura do consumo material
e como essas pesquisas rearticulam produção e troca afirmando que “levam a repensar a
materialidade de volta a uma consideração sobre a natureza da humanidade dentro de
uma sociedade consumidora (MILLER, 2007, p. 48)”. Para Miller (2007) é muito
importante estudar o consumo material, uma vez que “a materialidade de cada Gênero é
importante”, e portanto, diz que o desafio atual é de estudar a relação entre o consumo e
a produção. Nesse sentido, afirma:
99
constituindo como objeto de estudo em diversas disciplinas das ciências sociais e
humanas, percebendo-se assim, que tem se instituído como um tema interdisciplinar,
possibilitando o diálogo entre diversos pesquisadores dos mais diversos assuntos. Por
muito tempo o consumo foi classificado sob os padrões ocidentais como supérfluo,
ostentatório ou conspícuo, e assim, não é tarefa fácil analisar o consumo na sociedade
atual, pois:
100
Para pensar na perspectiva da circulação de mercadorias na vida social, recorre-
se a Appadurai (2008) que considera que o vínculo entre a troca e o valor é a política,
em seu sentido mais amplo. Assim, pensa-se que as mercadorias, assim como as
pessoas, têm uma vida social, e para explicar a definição de valor econômico,
Appadurai (2008) recorre a Simmel (1978), que considera que o valor não pode ser
pensado enquanto inerente aos objetos, mas um julgamento que os sujeitos fazem sobre
estes. Desse modo, propõe-se pensar no mundo das coisas tentando entender a sua
circulação no mundo concreto e histórico. Nesse sentido, ele considera:
101
diversos momentos de sua carreira. Assim, uma vez que as etapas por onde passam as
mercadorias, são importantes para compreender a sua complexidade, os locais de
produção podem ser considerados como depósitos de conhecimentos técnicos de
produção em que se encontra também a padronização do conhecimento técnico (como
fazer). Contudo, “obviamente, com todas as mercadorias, primárias ou não, o
conhecimento técnico sempre se mistura profundamente com suposições cosmológicas,
sociológicas e rituais que tendem a ser amplamente compartilhadas”.
Nesse mesmo sentido, Mauss (2013) identificou nas comunidades primitivas a
força das coisas, sendo essa força percebida em quem a dá e quem a recebe, estreitando
assim relações entre os indivíduos, e tornando-se perceptível a influência das coisas
trocadas. Assim, Mauss (2013, p. 80) afirma:
102
Convém reconhecer assim, que embora a esfera mercantil do sistema global do
capitalismo moderno proponha que esse deve ser percebido como uma enorme máquina
impessoal, em que predomina demasiadamente distância dos valores, mecanismos e
éticas de fluxos de mercadorias de pequena escala, trata-se na verdade de uma ideia
errônea, se considerar, sobretudo, que o capitalismo consiste também, em um sistema
cultural complexo (APPADURAI, 2008).
A economia neoclássica nos propõe que as mercadorias existem, são produzidas
e circulam por meio do sistema econômico, e assim são trocadas por outras coisas,
geralmente por dinheiro. Assim, coloca-se frente ao senso comum da definição de
mercadoria, a saber, um item de valor de uso, que também possui valor de troca. Se
pensar na mercadoria sob a perspectiva cultural, a produção de mercadorias pode ser
percebida também como um processo cognitivo e cultural, assim vê-se que as
mercadorias estão para além da simples produção material de coisas, mas consistem em
culturalmente sinalizadas como um determinado tipo de coisas. Logo, torna-se comum o
caráter dual das mercadorias, em determinados momentos, e para certos indivíduos,
essas mercadorias serem tipos de coisas, que para outras pessoas não o são
(KOPYTOFF, 2008). A definição de mercadoria é então apresentada “Uma mercadoria
é algo que tem valor de uso e que pode ser trocado por uma contrapartida numa
transação descontínua, sendo que o próprio fato da troca indica que a contrapartida tem
um valor equivalente, dentro do contexto imediato” (KOTYPOFF, 2008, p. 96).
Uma relação interessante no processo de mercantilização entendido como
possibilidade de transformação, é que ele vai imprimindo na sociedade contemporânea a
marca do valor como sendo homogêneo, e, no entanto, é a cultura que se opõe a essa
torrente potencial, desse modo “a cultura assegura que algumas coisas permaneçam
inconfundivelmente singulares, e resiste à mercantilização de outras coisas. Por vezes,
ela re-singulariza o que foi mercantilizado” (KOTYPOFF, 2008).
Segundo Kopytoff (2008) é muito importante pensar nas coisas sob a luz da sua
biografia, pois esses detalhes biográficos constituem um emaranhado de julgamentos
estéticos, históricos e mesmo políticos, que por sua vez, evidenciam minúcias sobre as
coisas, que de outra forma passariam despercebidas:
103
possibilidades biográficas inerentes a esse “status”, e à época e à
cultura, e como se concretizam essas possibilidades? De onde vem a
coisa, e quem a fabricou? Qual foi sua carreira até aqui, e qual é a
carreira que as pessoas consideram ideal para esse tipo de coisa?
Quais são as “idades” ou as fases da “vida” reconhecidas de uma
coisa, e quais são os mercados culturais para elas? Como mudam os
usos da coisa conforme ela fica mais velha, e o que lhe acontece
quando a sua utilidade chega ao fim? (KOPYTOFF, 2008, p. 92).
104
determinado, ao contrário, a modernidade em nível global tornou-se experimental, e
todos estamos presos a essa experiência que vai sendo tecida também por nossas ações e
escolhas. Assim, o consumo precisa ser pensado como resultado das ações e escolhas
dos indivíduos e para além deste quadro, pois:
A compreensão da autora é importante para a pesquisa, uma vez que fica claro
que o perfil do consumidor dos alimentos orgânicos nem sempre é fácil de identificar ou
mesmo conceituar, no sentido de que distintas compreensões e apreensões cercam esse
tipo de alimento, que é por sua vez, distinto do alimento encontrado nas grandes redes
agroalimentares. E é válido ressaltar que tal distinção é resultado, sobretudo, das
relações sobre as quais se produz esse alimento, são os atores sociais das cadeias curtas
que conferem a esse alimento características de qualidade que lhe são importantes.
106
Assim, compreende-se que a busca por alimentos que sejam representativos da
Segurança Alimentar tem se intensificado na contemporaneidade. A busca por esse tipo
de alimento tem configurado também outra relação no âmbito da cultura alimentar.
Desse modo, compreendeu-se com este capítulo como essas mudanças estão
relacionadas a dinamização, construção e fortalecimento da agricultura familiar.
Nesse sentido, o capítulo seguinte apresenta as unidades de produção da
pesquisa, e faz-se assim, uma trajetória dos alimentos produzidos e comercializados
pela APROFAM.
107
CAPÍTULO IV
9
A pesquisa foi realizada junto aos agricultores familiares, que compreende-se que vivem na condição de camponês
(Wanderley, 2009; Ploeg, 2008). O conceito de agricultura familiar adotado na pesquisa é sugerido por Wanderley
(1996, p.2) “como aquela em que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o
trabalho no estabelecimento produtivo”
108
Figura 2: Mapa de comercialização da APROFAM
Fonte: Pesquisa
109
Desse modo, por um lado, há o fortalecimento do discurso ambiental que vem
desde a década de 1960 do século passado e tem se firmado como orientador de uma
mudança para a geração atual e futura (Carson, 1962; Leff, 2002; Sachs (2008;2009);
Veiga (2008); em segundo lugar, alguns agricultores e agricultoras participantes da
pesquisa estão inseridos em uma região que por muito tempo predominou a agricultura
para exportação – fruticultura irrigada, esse modelo de produção se manteve por
aproximadamente três décadas. Hoje, as terras que foram deixadas para trás por essas
grandes corporações estão em condições de produtividade agrícola limitada, alguns
solos estão muito pobres, a maioria da região sem água e alguns agricultores produzem
com água salgada.
Assim, todo esse contexto socioambiental, tem contribuído para que os
agricultores agroecológicos vejam no processo de transição a única maneira de
produzirem, e a maioria dos agricultores reconhecem que a sustentabilidade ambiental e
social é a única que torna a sua permanência no campo possível, pois, ao contrário da
atividade do agronegócio, a terra em que eles produzem, é a mesma em que vivem,
tiram dela o alimento para as suas famílias.
E no que diz respeito às unidades produtivas, toma-se como referência Ploeg
(2016, p.30) que afirma, com base na análise da teoria de Chayanov, que existe uma
dinâmica de equilíbrio na unidade produtiva camponesa que difere dos princípios de
organização que regem a economia capitalista. Nesse sentido, afirma o autor:
110
integram a APROFAM iniciou-se há 10 (dez) anos por intermédio do SEBRAE-RN;
EMATER-RN e Prefeitura Municipal de Mossoró. Nesse tempo, houve troca de
experiências entre os atores integrantes, bem como, a participação e apoio de diversas
entidades (UFERSA; UFRN; EMATER-RN; SEBRAE-RN; Prefeitura Municipal).
Os integrantes da APROFAM são agricultores familiares que já praticavam a
agricultura ou viram seus pais desenvolverem essa prática, tanto, que muitos deles
ressaltam que sempre produziram sem veneno, e produzir com a agroecologia
constituiu-se uma continuidade da forma como produziam, explicando que não tratou-se
de um processo de ruptura.
A maioria deles já conheciam técnicas produtivas que foram aperfeiçoadas e
mudadas pelos princípios da agroecologia. Hoje, entendem com mais propriedade as
condições dos sistemas naturais com os quais trabalham, assim como o calendário dos
cultivos, e essa sensibilização é feita juntos aos consumidores, de modo, que esses
entendem que nem sempre encontrarão a laranja ou o maracujá na feira, mas
encontrarão a seriguela, o caju, ou seja, esse coletivo de atores têm desenvolvido hábitos
alimentares que se assentam sob os princípios de sustentabilidade social, ambiental e
econômica.
No âmbito da APROFAM, geralmente, é a família que é envolvida com a
produção e consiste em uma experiência de produção bastante heterogênea. Como se
trata de uma produção agroecológica, e que na maioria dos casos é realizada nos
quintais, a família se dedica diariamente a produção em uma média de 08 a 10 horas por
dia/trabalho. No geral, homem e mulher começam cedo na produção (ordenhar animais,
analisar as pragas, isso por volta das 04 (quatro) ou 5 (cinco) da manhã); esse trabalho
se estende até próximo ao almoço, quando há uma pausa, e a tarde, voltam para
continuar, nesse momento, geralmente, voltam para irrigar a produção. Há famílias em
que o marido trabalha fora da propriedade, em empresas privadas, e a produção
agroecológica fica sob responsabilidade da mulher. Bem como, há casos em que toda a
família (mulher, maridos, filhos e filhas) é envolvida somente com a produção
agroecológica, e aí, cada um fica responsável por uma parte, por exemplo, os filhos
ficam com as frutas, a esposa com as mudas para comercialização, o marido com a
produção de hortaliças e animal.
A APROFAM é composta por agricultores e agricultoras de Assentamentos e
Comunidades Rurais pertencentes a Região Oeste do Estado do Rio Grande do Norte.
Após 10 (dez anos) de existência, a APROFAM constitui-se em um coletivo de
111
produtores que provenientes de comunidades e assentamentos distintos têm produzido
sob os princípios da agroecologia. Os aspectos ambientais da referida experiência
consistem em produção agroecológica com tecnologia do PAIS 10, além de outras
tecnologias, como a solar e utilização de cisternas para captar água da chuva; em
algumas unidades, a produção é realizada em uma área de aproximadamente 1,2 a 2ha,
outros contam com áreas maiores, como 18ha; alguns contam com insumos próprios,
tais como o adubo, sementes, outras famílias adquirem o adubo, principalmente, dos
vizinhos. No que diz respeito a água, na maioria dos assentamentos e comunidades esse
recurso é escasso ou limitado, ocorrendo que alguns produtores produzem com água
salgada ou salobra; o solo em que produzem consiste também em dimensões e
condições heterogêneas, a produção animal é realizada em consórcio com a produção de
hortaliças.
Os aspectos econômicos da experiência consistem na comercialização que é
realizada pelos próprios agricultores e agricultoras diretamente aos consumidores, e da
renda adquirida com a comercialização é destinada um percentual de 5% (cinco) para a
Associação, o restante fica com o produtor e produtora que a utiliza para complementar
a renda da família, bem como para arcar com os custos que eles e elas têm para a
comercialização, para o transporte, visto que a maioria não conta com transporte
próprio, arcando assim, com os custos do deslocamento.
Quanto aos aspectos sociais, a experiência é decorrente do protagonismo da
família agricultora. Assim, vê-se envolvida na produção e comercialização, marido,
esposa, filhos e filhas. É relevante ressaltar que esses produtores produzem em suas
próprias terras, com recursos próprios e acessando a financiamentos quando necessário
e possível, e variam ainda a produção e comercialização, alguns deles acessando outros
mercados, como Mercados Institucionais ou outros coletivos com outras associações.
A produção agroecológica na APROFAM é realizada de forma a potencializar
ou desenvolver a sustentabilidade sob uma tríade, pensando assim, nos aspectos
ambientais, sociais e econômicos. Para tanto, esses atores realizam a prática de manejo
integrado e sustentável da produção, controle das pragas por meio de insumos naturais,
nas propriedades, nos PAIS, faz-se o consórcio de produção, além da preocupação em
10
A pesquisa foi realizada junto aos agricultores familiares, que compreende-se que vivem na condição de camponês
(Wanderley, 2009; Ploeg, 2008)
112
manter a vegetação e produção nativas. Há professores da UFERSA da área das
ciências agrárias que desenvolvem pesquisas e extensão com os agricultores da
APROFAM, nas áreas de conservação e fertilidade do solo e uso e reuso racional da
água.
A APROFAM conta com reunião anual para prestação de conta e uma mensal
entre os seus associados, que nesta ocasião, tomam as decisões referente a atualização
de valores para comercialização, dificuldades que os produtores enfrentam e assim,
realizarem mutirões para ajudar uns aos outros. Os mutirões são para ajudar produtores
que estejam enfrentando dificuldades para a produção, construção do PAIS, ou seja,
necessidades específicas do aspecto produtivo, é válido ressaltar que esses momentos
são permeados também de fortalecimento dos laços de amizade entre as famílias
produtoras. Contam ainda com núcleos para promover maior interação entre os
produtores, devido sobretudo, as distâncias de um espaço de produção para outro. A
APROFAM tem uma composição de seis núcleos que eles chamam de polo, cada
núcleo tem uma liderança que reúne os demais para fazerem a comunicação e
otimizarem as informações entre os demais núcleos da associação.
Na APROFAM, alguns associados estão vinculados a outras instituições, tais
como, Rede Xique Xique de Comercialização Solidária e COOAFAM (Cooperativa de
Agricultores Familiares de Mossoró-RN). Para intercâmbios tem instituições como
UFERSA, IFRN, e outros produtores orgânicos, como a Hort Vida. Diante da
necessidade dos produtores aderirem a novas técnicas e conhecimentos mais
aprimorados, faz-se a mobilização pelos próprios agricultores ou entidades para
realização de visitas e intercâmbios a outros assentamentos ou comunidades.
Há produtores e produtoras da APROFAM associados a Rede Xique Xique de
Comercialização Solidária, essa procura partiu da própria Rede aos produtores e
produtoras que tivessem interesse em disponibilizar os produtos para venda. Para tal, a
Rede recolhe diretamente na propriedade do produtor e comercializa em seu espaço. Na
COOAFAM há seis produtores da APROFAM associados.
As políticas que os produtores e produtoras acessam tratam-se do PRONAF;
Compra Direta; PAA e PNAE. O acesso à política pública tem ajudado através do
financiamento para a produção, à tecnologia e insumos; e as compras institucionais
possibilitam mais uma via de comercialização para os produtores. As comunidades
contam com visitas do agente de saúde e médicos, não contam com hospitais e postos
de saúde e medicamentos. Todas têm sistema de energia elétrica, mas nem todas as
113
comunidades e assentamentos contam com escolas. No que diz respeito ao saneamento
básico, as comunidades e assentamentos não têm acesso a esse serviço.
No que diz respeito a questão fundiária alguns já são titulares e estão pagando ao
banco. Outros estão em processo de negociação do título da terra.
A experiência de produzir nos moldes da agroecologia no Semiárido Potiguar
Nordestino tem possibilitado a fixação dos agricultores familiares no espaço rural,
acesso à produção e consumo de um alimento saudável, bem como acesso por parte dos
consumidores urbanos a um alimento produzido e comercializado pelo próprio produtor.
As áreas produtivas são representativas de uma diversidade socioambiental que tem se
desenvolvido considerando a relação humana com a natureza, essa por sua vez,
possibilita a permanência das famílias e assim fortalece o tecido social que compõe os
espaços rurais.
Com as famílias, foi evidenciado que antes de produzirem com agroecologia
havia uma maior dependência em relação as grandes redes de supermercado, além dos
hábitos alimentares que consistiam em produtos industrializados. Após a produção
agroecológica, diminuiu o consumo dos alimentos das prateleiras dos supermercados,
assim como, outros hábitos alimentares foram resgatados, e mesmo outros foram
descobertos. Por exemplo, houve uma produtora que relatou que não consumia
anteriormente rabanete, ou mesmo o tomate cereja. Houve relatos ainda de produtores
que não produziam determinado produto e após a solicitação de uma consumidora,
passou a produzir e consumir para si e sua família.
Então, a agroecologia nessa experiência tem sido importante para construir
hábitos que devido à presença dos grandes mercados agroalimentares, não se tornam
comuns ao dia a dia das famílias. Durante a feira que acontece aos sábados, os
agricultores e agricultoras destinaram uma barraca apenas para lanches (bolos, tapioca,
mugunzá, galinha caipira com cuscuz, coalhada, café, sucos) que são vendidos aos
clientes. Nessa barraca, ocorrem reencontros entre consumidores, conversa com os
produtores, e como a feira começa muito cedo, por volta das 04:30 da manhã, após as
compras, os consumidores ficam na barraca do lanche para rodas de conversas
informais.
É válido ressaltar que os produtores e produtoras que participaram da pesquisa
se tratam, alguns, de pessoas inseridas dentro do contexto da reforma agrária que no
século XX e XXI se intensificou em vários países (Ploeg, 2016), e nesse sentido, são
pessoas que voltaram para o campo em situação de pobreza, muitos na mesma situação
114
em que quando saíram para o espaço urbano, com uma diferença relevante, agora eles e
elas têm terra para produzir e o processo de transição nesse grupo tem dado resultados,
ainda que com limitações. O importante é evidenciar que esse grupo compõe um
mosaico heterogêneo, alguns trabalham fora da propriedade, mesmo em empresas do
agronegócio, outros vivem exclusivamente da produção agrícola camponesa. Sem
deixar de ressaltar a configuração da agricultura camponesa contemporânea, que é
tomada por uma série de questões que se coadunam, a saber, a questão ambiental, a
diversidade de movimentos rurais que se apresentam como resistente frente ao modelo
de desenvolvimento já ultrapassado, e ainda questões novas surgem e portanto,
precisam ser compreendidas e captadas em sua essência. Para uma maior compreensão,
recorremos a Ploeg (2016, p. 19) que afirma:
115
alimento, mas se estende para além deste. Desse modo, a experiência em questão tem
fortalecido a agricultura familiar na região onde ela acontece, e se estendendo para além
destas. É importante ressaltar ainda que esses atores sociais em específico, contam
também com o apoio de instituições que acreditam no potencial da transição e da
relevância da sustentabilidade ambiental, que nessa experiência, revela-se como base de
sustentação para o protagonismo das ações empreendidas.
11
Na pesquisa é utilizado pseudônimos para os participantes.
12
O agricultor entrevistado refere-se a parceiro outro morador do assentamento.
116
grupo, de modo que dentro das suas possibilidades, constroem um discurso e uma
prática que os conecta com uma realidade para além deles e delas. Nesse sentido, Ploeg
(2016, p. 20) defende que os atores dessas experiências encontram e constroem outras
alternativas que são desenvolvidas como possibilitadoras da construção de outra
realidade, nesse sentido, afirma o autor:
Assim, meu contato com a terra vem desde criança, porque meu avô,
meu bisavô eram agricultores, eles tinham um roçado muito grande e
eles botavam a gente para trabalhar, aí passou para meu pai, e meu pai
passou para mim que a gente deveria continuar com isso, com o
contato que a gente tinha com a terra.
117
caju. Pois, segundo ele, não houve estudos prévios por parte dos órgãos governamentais
competentes sobre as condições, sobretudo, de solo para orientar a produção, assim
praticamente todos os assentados acessaram a empréstimos e financiamentos para
investirem nessa única espécie. Hoje, em sua maioria, os cajueiros não renderam, e
assim, os agricultores desse assentamento em grande parte, estão desmotivados para
investir em outra forma de produção.
Atualmente, Leandro José é presidente também da Associação dos Agricultores
e Agricultoras no Assentamento Jurema. O local onde realiza a produção e
comercialização no Assentamento trata-se de um espaço coletivo que foi cedido pelos
membros da Associação, para que ele mantenha o seu PAIS. Segundo o agricultor essa
concessão foi realizada através de Assembleia e consta em Ata.
Nesse assentamento encontrou-se uma realidade parecida com a de outras
unidades produtivas, ou seja, um pequeno percentual de moradores produzem ao menos
para a subsistência, e a agroecologia sequer é conhecida por essas pessoas. Desse modo,
compreendemos à luz de Caporal (2009) que para a transição agroecológica é necessária
duas condições fundamentais, a saber, a descolonização do pensamento, pois existe por
parte dos moradores dos espaços rurais certo descrédito na produção sem agrotóxicos,
assim como é importante o redirecionamento das práticas e hábitos, uma vez que a
agroecologia implica em um conhecimento e adoção de práticas científicas que estão
relacionadas a um conhecimento holístico e sistêmico.
Assim, a adoção da agroecologia constitui-se como um desafio, uma vez que
trata-se de uma mudança política, econômica e sócio-cultural, como afirma Caporal
(2009), e assim, atitudes e valores estão relacionados nesse processo. Na experiência de
produção e comercialização em questão, evidenciou-se que é o coletivo que fortalece
esse processo de transição, são as muitas mãos e vozes juntas que validam e
potencializam os esforços percebidos nas unidades produtivas.
As imagens abaixo apresentam o sistema de mandala do PAIS onde o agricultor
cultiva hortaliças que são comercializadas no Assentamento e na feira aos sábados. Nas
figuras 4 e 5 o agricultor mostra a caixa de água que utiliza para a produção diária e o
galinheiro do sistema PAIS. No momento não está sendo possível a criação de galinhas
devido aos constantes roubos à sua criação. Para ele, é melhor produzir nesse local
porque assim conta com a disponibilização de água da escola vizinha a Bodega do
Bode.
118
Atualmente, o agricultor conta também com a tecnologia do Bioágua, que trata-
se de uma tecnologia de reutilização da água, possibilitando a segurança alimentar e
nutricional da família, conforme Santos et al. (2016). Essa tecnologia advém de uma
parceria com professores da UFERSA da área de solos e água. Segundo o agricultor, a
referida tecnologia ainda está em fase de experimento, não tendo sido analisada a
primeira produção decorrente da tecnologia. No que diz respeito a utilização da mesma,
o agricultor ressalta que tudo o que venha ajudar o produtor à melhora a sua produção, é
bem-vindo. Sobretudo, pelo contexto de escassez do recurso água no Semiárido.
119
Figuras 5 e 6: Agricultor na produção agroecológica galinheiro no PAIS - Assentamento Jurema.
Fonte: Dados da Pesquisa
13
O PAA foi instituído em 2003 como resultado da proposição do CONSEA e como parte da estratégia do Fome
Zero. Em 2009 foi sancionada a lei que estabelece novas diretrizes para o PNAE (CONSEA, 2009).
120
Tem alguns solos que não dá, por exemplo, para produzir a beterraba,
a cenoura, e a gente tem alguns solos que tem como produzir. Então, a
gente não proibiu ninguém de produzir o que quisesse, mas eu tenho o
compromisso de, por exemplo, trazer a cenoura. Eu não posso deixar
de ter o coentro, a alface e a rúcula.
14
Referência a Companhia Nacional de Abastecimento que antigamente chamava-se Central de
Abastecimento de Frutas, verduras, cereais e frigorífico – COBAL em Mossoró-RN.
121
suas dinâmicas de trabalho, ao que nos leva igualmente, para a afirmativa de Ploeg
(2016, p.23):
122
4.2.2.1 Assentamento Favela: Lúcia Maria e Antônio Sebastião
O Assentamento Favela conta com 92 (noventa e duas) famílias, sendo que 8
(oito) trabalham com produção e comercialização agroecológica através do PAIS.
Segundo as famílias entrevistadas, a maioria de moradores do assentamento trabalham
fora no espaço urbano e não tem a prática de produzir.
A agricultora Lúcia Maria tem 61 anos, casada, ensino fundamental incompleto.
A sua família é composta pelo marido, José Moreira da Silva, 59 anos, fundamental
incompleto, e suas filhas de 32 e 12 anos. Lúcia e o marido são filhos de agricultores e
informaram que sempre trabalharam com agricultura. Moram no Assentamento há 32
(trinta e dois) anos, e sempre morou na zona rural, os pais da agricultora trabalhavam na
condição de parceiros. Perguntada se havia alguma diferença na forma que seus pais
produziam e na que ela produz hoje, a mesma informou, que a maneira de agricultura é
a mesma, contudo, a diferença é que hoje tem mais variedade e ela e o marido, não
plantam nas terras alheias.
Na produção agroecológica trabalham apenas Lúcia e o marido. Eles produzem
em uma área de 40 metros que fica no quintal de casa, contam com cisterna e o PAIS
encontra-se ativo. Integraram-se a APROFAM há 3 anos e realizam o processamento de
doce. Alegam que só receberam assistência técnica quando receberam o PAIS onde
mantém a produção de frutas e verduras. Lúcia considera que o valor do produto
comercializado nas feiras é baixo. Durante a entrevista, os produtores falaram que na
ocasião em que receberam o PAIS, o mesmo não veio completo, como exemplo, citaram
o sombrite que só veio 5 mts – considerando que a área de produção é 40mts. No que
diz respeito a comercialização nos outros espaços de produção (CAERN; UERN e
Ninho Residencial), essa família não pode participar durante a semana. Nesse
assentamento as produtoras contam com transporte próprio para se dirigirem às feiras.
Quando começou a produzir, essa família mandava a produção para a feira por
intermédio de outra agricultora do Assentamento, quando adquiriram o certificado de
OCS (Organização de Controle Social) emitido pelo SEBRAE, passaram a ir para o
espaço de comercialização. Se o produtor não frequentar assiduamente a feira, o
certificado é recolhido e deixa de integrar a APROFAM. A agricultora considera que
“hoje eu tenho que ter mercadoria direto, toda semana para vender aos clientes” e isso
para ela é bom, pois, tem possibilitado melhoria na renda da família.
Perguntada como era a produção antes da agroecologia, ela nos respondeu “A
gente plantava só para comer, plantava feijão, o milho, a macaxeira. Hoje tem mais
123
variedade, eu levo verdura, levo doce, caju. Aí tem uma variedade de mercadoria.
Antigamente era praticamente só o feijão e o milho”.
Para a família, trabalhar com agroecologia representa maiores benefícios para
eles, assim como para as famílias dos consumidores, pois consideram que “traz mais
saúde”. A dificuldade para essa família em trabalhar com a agroecologia, diz respeito a
falta de água “a gente não tem água suficiente, com a pouca água que a gente tem,
vamos pelejando para manter. Mas não temos água suficiente”. Mesmo com as
dificuldades de água e tecnologias, por exemplo, a família produz, e essa produção é
representativa para alimentação da família, afirmaram que hoje, dificilmente se
deslocam para Mossoró, porque preferem consumir o que tem em casa, o que vem da
produção do quintal. Sobre as dificuldades para a produção, a agricultora afirmou sobre
o custo e demais desafios:
Tem coisa que é cara, por exemplo a semente, a gente não pode
comprar em quantidade, a gente sobrevive disso, então a gente vai
comprando de pouquinho. A gente não tem água suficiente, então, tem
que ir produzindo de pouco, a gente tem um poço aqui mas está
parado. Não pagaram a conta da água, aí o poço está desativado. A
gente usa água da adutora, mas não é constante, e agora com essa seca
aí é que a água é pouca.
É melhor, né. Porque a gente vende com um preço mais justo. Pronto,
porque se eu pegasse essa mercadoria e fosse vender lá na COBAL, eu
venderia mais barato que nas feiras, porque os agricultores que
vendem na COBAL tem o atravessador, então o produto sempre sai
mais barato para o produtor, então a gente não tem atravessador,
melhor para a gente.
Sobre a renda adquirida nas feiras, a agricultura afirma que é importante para a
família; bem como se essa deixasse de existir o que isso representaria para ela, assim
nos relatou:
É importante, porque aqui em casa só tem a minha renda, meu marido
não tem salário, as minhas filhas moram comigo, então a gente vive
do salário (aposentadoria) que eu recebo e das feiras. Eu ia ficar só
com o meu salário. Aí ia diminuir mais para a gente, seria mais difícil.
124
Isso aí é uma coisa difícil viu? Você é acostumada a trabalhar com o
individual, e aí para o coletivo, as vezes dá certo, e as vezes pode não
dar certo, porque são muitas pessoas. Na APROFAM eu só vendo a
mercadoria de Navegante (outra produtora), se ela não puder ir. Aí eu
estou fazendo um favor a ela, mas essa história de a gente está
pegando mercadoria dos outros e misturar, isso não acontece, a gente
não mistura, cada um vende a sua.
125
mais cavalo e boi. Em terceiro lugar, a organização da produção é regida por uma lógica
distinta, pois na unidade camponesa, o objetivo é maximizar o produto líquido ou a
renda do trabalho, e assim “Em suma, os camponeses promovem melhorias convertendo
terra inativa em recurso produtivo, combinando-a com níveis mais elevados de trabalho
e capital e orientando a produção na direção da mais alta intensidade possível de ser
alcançada”. E nesse sentido, afirma ainda que contemporaneamente, muitos camponeses
têm migrado da lógica capitalista de produção para a construção de novos mercados e
canais de mercado.
15
Planta indiana denominada Azadirachta indica A Juss
126
É válido ressaltar que no que diz respeito a agroecologia, uma das questões
centrais para autores como Caporal (2009), é a complexidade dos agroecossistemas, e
sobre a produção agroecológica, no contexto do Semiárido, para a agricultora não é
fácil, pois, segundo ela:
Existe muita dificuldade, porque a gente planta aí tem uma coisa que
não dá certo. Geralmente a gente tá animado com uma produção, mas
quando ver aparece alguma coisa, algum tipo de praga. É muito bom a
gente plantar, mas a gente tem que estar direto e bem perto com a
lagarta, principalmente.
127
4.2.2.3 Agricultores: Regina e Antônio José
A agricultora tem 53 anos ensino médio completo, é casada, e, é residente do
assentamento há 30 (trinta) anos, filha de agricultores. O seu marido, Antônio José, tem
54 anos, é alfabetizado, e o seu filho tem 32 anos. A família produz com o PAIS no
quintal de casa, sendo que o marido trabalha fora do assentamento, na área de
construção civil, então, ajuda a agricultora nos horários em que está em casa. A
agricultora realiza a atividade de costura para complementar a renda, ela está integrada a
feira há 3 anos. No que diz respeito a questão sucessória, o marido e a esposa não
poderão contar com o filho, pois esse tem problemas de saúde que o impedem de
exercer qualquer atividade. Essa família não acessa a outros mercados. Antes de
trabalhar com a agroecologia, eles relataram que contavam apenas com fruteiras em
casa, mas a variedade não tinha. A família se dedica em média de 5 a 6
horas/dia/trabalho. A agricultora conta com transporte próprio para se deslocar as feiras.
Sobre a produção agroecológica, a agricultora considera:
128
Sobre a participação da família na feira agroecológica, a agricultora ressalta “Eu
aumento a produção, porque a gente vende todo sábado, tem aquele dinheiro certo, e já
tem o alimento em casa que a gente evita comprar no supermercado”.
Sobre a interação direta com o consumidor, Navegante relata:
Sobre o preço, Regina considera que tem preço bom e ruim para o produtor. A
definição do preço é feita em reunião com todos os associados para definirem reajustes.
Perguntou-se a Regina sobre como ela vê o número de pessoas no assentamento
e o número de pessoas que produzem e comercializam, ao que nos disse “Eu acho que é
o trabalho que dá, as pessoas não querem todo dia estar cuidando de horta, porque a
gente limpa hoje, e daqui a dois dias está cheio de mato de novo, tem que ir lá limpar,
dá trabalho”. No que diz respeito ao cliente procurar um produto e os produtores não
terem, foi relatado:
129
4.2.3 Assentamento Paulo Freire: Paulo e Edileuza
No Assentamento Paulo Freire, o agricultor Paulo de Morais tem 43 anos, ensino
médio incompleto, é casado com Edileuza que tem 40 anos e ensino médio incompleto.
Moram no assentamento há 15 anos, desde o momento da ocupação. Hoje, a família
moram no lote, pois consideraram a necessidade de estarem mais próximos do local da
produção, além do problema do acesso a água para produzir; e compreenderam que
mudando-se para o outro lado da agrovila, teriam melhores condições de sustentarem
sua produção, sobretudo pelo acesso a água. A sua família é composta por sua esposa de
40 anos e seus filhos de 24, 19 e 10 anos.
Para Paul e sua família, foi muito importante contar com o projeto de reforma
agrária, sobretudo, porque o agricultor já tinha uma referência de agricultura familiar.
Nesse sentido, corroboram Cardoso, Flexor e Maluf (2003, p. 64):
Sobre a condição de agricultor, Paulo ressalta que foi forte o exemplo da sua
mãe:
Minhas raízes de querer morar no mato vem da minha família, da
minha mãe. Quando eu tinha a idade dessa minha menina, ela criava,
plantava (a sua mãe). O quintal da gente era a coisa mais linda, e aí eu
fui crescendo e vi que a natureza, se a gente cuidasse, preservasse com
certeza você tem do que sobreviver.
É válido ressaltar que no que diz respeito a agroecologia, não trata-se apenas de
mudar de um modelo para outro, a transição agroecológica em ir além dessa questão,
implica em pensar e dialogar com um modelo de desenvolvimento rural que seja mais
humanizado e que envolva diretamente os atores sociais que estão envolvidos com esta
questão, como afirma Caporal (2009).
Eles moram no Assentamento desde o momento da ocupação em que exerceu a
função de coordenador de grupo, depois coordenador regional e em seguida estadual,
exercendo essas atividades pelo período de 2 anos. Após esse período ele foi fazer por
130
indicação do MST, no ano de 2003, um curso de agroecologia na Paraíba. Sobre essa
experiência, ele fala:
Eles contam com 10,5 hectares, mas produzem em 1,5 hectare (figuras 8 e 9),
desenvolvem atividades agrícolas e comercializam também, diretamente ao consumidor,
e sua produção sempre foi isenta de agrotóxicos. No início da produção a finalidade era
observar o comportamento das plantas nos três anéis de produção, como atenderia a
utilização de composto, biofertilizante, calda nutritiva, repelente. A mão de obra para a
16
Referência a Assistência Técnica via SEBRAE.
131
produção é exclusivamente da família. Apesar das dificuldades para produzir sob os
princípios agroecológicos, ele afirma que decidiu colocar os conhecimentos em prática.
A família, atualmente comercializa cestas agroecológicas atendendo a domicílio,
A dinâmica desse trabalho é possibilitada pelo número de pessoas que já conhecem o
produtor e sua família, então, na quarta-feira Paul e seus filhos começam a preparar as
cestas, fotografam e enviam para os clientes através do Whats app, recebem as
encomendas e na sexta fazem as entregas diretamente no endereço dos clientes. Para a
família, esse trabalho tem possibilitado aumento na renda e maior visibilidade da
produção agroecológica. Através dessa modalidade de venda, ele faz entrega de 30
(trinta) cestas em média, por semana e pretende aumentar esse número.
132
Figuras 11 e 12: PAIS e produção apícola no Assentamento Paulo Freire
Fonte: Dados da Pesquisa
Sobre o trabalho com a terra, o agricultor diz se sentir muito bem, pois “a terra e
a água são as bases da vida, porque sem a terra a gente não consegue produzir o
alimento para sobreviver, a parte de massa, e sem a água também a gente não
consegue”. Percebemos em sua narrativa, a preocupação com a forma de produzir
adotada pelos agricultores e agricultoras da feira agroecológica. Nesse sentido, ele
afirmou:
Até agora recente, eu comentando com França (agricultor integrante
da FAM), que tem muita gente aqui dentro da feira que está plantando
sem noção, atirando para todos os lados, inclusive a gente aqui, dentro
do conhecimento da agroecologia, mas estamos plantando sem noção.
Eu acho que é sem noção porque a gente está tentando equilibrar as
coisas, mas a gente está precisando usar algumas tecnologias, como
por exemplo, uma das principais que a gente precisa aqui é conhecer
como é o nosso solo, o que ele precisa, qual é a formação do nosso
solo, e quais são as carências que ele mais necessita.
133
conjuntas. O agricultor apresenta uma trajetória com a agroecologia que antecede a sua
participação na FAM, inclusive ele já tinha demanda de clientes antes de se integrar a
essa forma de comercialização. Os limites da produção são evidentes em sua narrativa,
pois ele afirma que falta assistência técnica para agricultor que produz com a
agroecologia. Além disso, o problema de acesso a água se coloca como um dos
principais limites à produção, conforme o relato dos entrevistados.
Antes de se integrar a FAM, o agricultor e sua família já faziam entregas de
produtos agroecológicos diretamente aos consumidores, e devido ao problema da falta
de água para produção, ele não comercializa na feira todos os sábados, além dos
consumidores que compram diretamente a ele no próprio local da produção.
134
ausência de políticas públicas, bem como, indisposição de outros produtores para
integrar a experiência. Para Maluf (2013), a agroecologia é um processo social que está
ligado diretamente ao abastecimento alimentar e ao futuro da agricultura familiar e
camponesa. E Ferrari (2011) afirma que através dessas experiências outras
compreensões acerca do alimento tem se fortalecido na sociedade contemporânea.
Terminei o curso e eu não sabia nem se era para modificar esse tipo de
produção, nem sabia que tipo de produção era, não sabia se era para
orgânico ou o que era, se ia continuar com o convencional. Aí quando
terminou a capacitação eu fui entendendo o que era e o trabalho que
eu ia ter. Aí eu disse, meu Jesus, será que vai dar certo, mas se estou
aqui, vou continuar, porque você vem trabalhando no convencional, aí
muda para o orgânico em que nada de veneno você vai usar, a
primeira que você acha é que não vai dar certo. Quer dizer como você
vai combater os insetos, se você já está acostumado com aquele
problema e com o sistema convencional. Mas eu disse, a gente já está,
então deixe estar. Só em eu mesmo ir direto ao consumidor já é muita
coisa já.
136
“rapaz eu tenho que ir para ver primeiro o que o cliente quer para eu poder produzir”.
Segundo o agricultor, nesse tempo não dava nem para custear a despesa com o
transporte, tinha feirante que o aconselhava a desistir.
Na FAM (Figuras 18 e 19) ele é um dos agricultores mais conhecidos, além da
trajetória na feira desde o seu início, foi por muito presidente da APROFAM. É comum
a maioria dos consumidores comprarem dele, ou mesmo passar em sua barraca para
conversar, aos sábados.
Quando perguntado sobre como ele se sente ao trabalhar com a terra, em sua fala
ele traz a realização em fazer o que gosta. Sobre as tecnologias a que tem acesso para
137
produzir, ele ressaltou que tem percebido que está precisando fazer algumas mudanças,
como por exemplo, a utilização de compostos, a adesão ao minhocário, pois estava
tendo muitos problemas com as mudas, e agora precisa aderir para a sua unidade
produtiva sombrites, pois o sol tem prejudicado sobretudo as folhas.
No que diz respeito a relação com o consumidor, ele compreende que a procura
dos consumidores da cidade pela FAM, em sua maioria, são pessoas que já tiveram
problemas de saúde relacionados aos alimentos industrializados/convencionais. Sobre
uma situação com consumidor em especial, agricultor 4 narra:
138
Sobre a divisão de produção entre os agricultores e agricultoras para a FAM, o
agricultor fala que essa é uma problemática percebida, mas que ainda não conseguiram
se organizar para fazê-la. Antes da produção agroecológica, a sua produção era na
modalidade convencional, produzia poucas coisas, como pimentão, melancia e algumas
verduras. Sobre a produção agroecológica, ele afirma:
Hoje dou muito graças a Deus de ter um sistema de trabalho que não é
a monocultura, mas uma policultura, com várias culturas. As vezes
você está com umas e não está conseguindo, ter prejuízo não dentro da
venda, mas dentro do campo. Mas como você tem várias, uma cobre
as despesas da outra, e quando você tem as duas melhor ainda, você
tem mais produto. Hoje com a parte da hortaliça, eu lido com a alface,
coentro, a rúcula eu já vinha plantando há algum tempo mas não vinha
dando certo, a couve folha e a tomate. Na parte de fruta tem a banana,
a goiaba, o mamão, frutas de época como a cajarana, a acerola.
139
processo de transformação, a produção familiar permaneceu como um
setor importante da agricultura, inclusive em países de capitalismo
avançado.
Atualmente, o ovo é o produto que ele mais leva para a feira, pois, considera que
como os outros produtores tem os outros produtos (FLV), ele prefere comercializar os
ovos. Aos domingos, Sebastião faz entrega de cestas agroecológicas (FLV, ovos) aos
vizinhos e moradores próximos a comunidade. Segundo o agricultor, ele atende nesse
dia, uma média de 10 a 15 famílias, deixando de porta em porta.
A propriedade do produtor conta também, atualmente, com produção de peixe.
Essa é resultado de uma parceria entre a UFERSA e algumas comunidades e
assentamentos. Em uma das visitas que foi feita, o agricultor informou que está
utilizando a água do rejeito dos peixes para a produção de hortaliças, segundo o mesmo,
quando utilizou a água do poço, as hortaliças ficaram queimadas, mas quando utilizaram
a água do rejeito, não aconteceu a queimadura. Para o agricultor, a água deve conter
material orgânico, inclusive ele estava aguardando análise da água.
Compreendemos essa experiência sob a referência de Wanderley (2015, p. 27),
pois, a autora ressalta que no Brasil, o campesinato está inserido em uma realidade de
agricultura estruturada sob a grande propriedade monocultora e o trabalho escravo. E
que embora, esse cenário se constitua como pano de fundo para “delinear” a agricultura
nacional, há uma prática que sempre esteve presente nos interstícios internos e externos
dos latifúndios, e que as estratégias de resistência camponesa permanecem mesmo “sob
o domínio dos grandes empreendimentos e de sua capacidade de criar espaços para uma
outra agricultura, a de base familiar e comunitária”.
E mesmo que as experiências no âmbito da agricultura familiar sejam
representadas por um mosaico de heterogeneidade, a autora firma:
140
A família tem enfrentado desafios para a produção de ovos, uma vez que a ração
das aves não é orgânica, segundo o agricultor, ele procurou assistência técnica para ver
a possibilidade de deixar a produção na condição de totalmente orgânica, esta
viabilidade está sendo estudada, pois para o agricultor, ele quer uma opção que seja
viável para o produtor, inclusive do ponto de vista econômico.
141
outros atores sociais que tem possibilitado esse modelo de produção. Isso evidencia-se
sobretudo, ao analisar o discurso da família de Áurea, em que havia produção, mas não
havia mercado. E nesse sentido, Ploeg (2016, p. 42) “Deixando bem claro, no mundo de
hoje, assim como no passado, é impossível a família e a propriedade sem o auxílio dos
mercados. Ninguém é independente dos circuitos das mercadorias”.
Esse quadro, pode ser analisado para além dessa realidade local. Uma vez que
uma parcela considerável da agricultura familiar tende muitas vezes à degradação, pois,
falta capacidade de autofinanciamento, fraqueza de suas terras, e até mesmo falta de
capacitação de seus recursos humanos, ou até mesmo “a pulverização minifundiária que
gera estabelecimentos de terceira categoria (FAO/INCRA, 1994, p. 12)”.
A família de Áurea e Benedito estão com o PAIS há três anos, e na ocasião em
que receberam, o kit veio incompleto faltando alguns, pois, veio de outras famílias que
não conseguiram produzir. No tempo em que a família ficou sem o PAIS, não havia
produção para o consumo alimentar da família.
Passados alguns anos, a assistência técnica via SEBRAE conversou com as
famílias sobre a possibilidade de adesão ao PAIS. Na ocasião, 22 produtores aderiram
ao programa, e hoje conta com 6 famílias. Por ocasião do PAIS, Áurea integrou-se a
FAM desde o início, mas por dificuldades como transporte, poucos clientes, ela não
continuou. Mesmo assim, o PAIS continuou ativo.
Na compreensão de Veras (2005, p. 44), a motivação para os agricultores
familiares aderirem a outras propostas produtivas, diz respeito também, ao momento em
que percebem que estão à margem de um círculo de racionalidade que os exclui,
fazendo assim, a busca por caminhos alternativos, outras racionalidades que passam a
ser percebidas necessárias à sua sobrevivência, assim “atores pretendem estabelecer
ações contrárias à racionalidade dominante e ao mesmo tempo, garantir, embora
precariamente, a manutenção e reprodução da família ou do grupo”.
Durante a entrevista com Áurea e Benedito, houve a presença da sua filha
Márcia. No final da conversa, Márcia conversou conosco sobre a cultura de utilização
de agrotóxico presente na agrovila. Ela falou que desde a sua infância é comum a
prática de produzir sem agrotóxico, e estranhou muito o hábito comum das pessoas da
agrovila só cultivarem com esses insumos. Relatou inclusive, que sua mãe é
desacreditada pelas pessoas da família e da própria comunidade por só produzir de
forma agroecológica. Outro fato curioso é que toda essa região, durante mais de três
décadas foi terra do agronegócio, eram terras de fruticultura irrigada, então, hoje
142
produzir com agroecologia é um desafio, sobretudo, porque para Márcia, a produção
agroecológica não é percebida como possível para a maioria das famílias da
comunidade.
Márcia falou também sobre o desequilíbrio ambiental que hoje se vê mais
claramente, e no próprio cotidiano da comunidade. Áurea nos falou sobre a dificuldade
de produzir devido à falta de água. Na propriedade, contam com a tecnologia do PAIS
no quintal de casa e exercem outras atividades, tais como: Áurea na condição de
costureira, e Benedito cuida da mercearia que eles mantém em casa. Segundo Áurea,
esse comércio ajuda o marido a ficar ocupado, uma vez que ele não pode trabalhar na
produção agrícola devido a problema de saúde.
O espaço de produção corresponde a 1,5ha. Então, apenas a agricultora cuida da
produção e da comercialização nas feiras agroecológicas, recebendo ajuda da filha.
Ambos são aposentados, e nos dias que antecedem a feira, recebem ajuda da filha que
mora na mesma agrovila para ajudá-la a preparar os produtos para a comercialização.
Áurea comercializa na praça do Museu, no Shopping Popular, na CAERN e na UERN.
Eles participam também da Associação da Agrovila.
Eles são agricultores que comercializam na FAM há um período de 3 anos,
participaram no início, mas pararam devido as dificuldades de transporte, bem como de
mercado. No início da feira não havia procura de consumidores, ocorrendo assim, muita
perda na produção.
Conversou-se com a família sobre o número de assentados e o número de
produtores agroecológicos, para a filha de Áurea, é questionador como em um
assentamento de 100 famílias, apenas 6 pessoas se dedicam para produzir sobre os
princípios da agroecologia. Pelo discurso da filha de Áurea, há uma crise da condição de
agricultor familiar por parte das pessoas, uma vez que moram na zona rural mas não
querem produzir, preferem trabalhar na cidade ou mesmo nas empresas do agronegócio,
desacreditam na produção agroecológica, ou seja, a maioria das pessoas não produz e se
o fizesse, seria a base de agrotóxico, e o fato de agricultores e agricultoras estarem
produzindo em seus quintais, alimentando suas famílias e comercializando diretamente
ao consumidor não é suficiente para que outras pessoas passem a produzir.
Áurea e Benedito são filho e filha de agricultores. Sobre a prática da produção, a
agricultora afirmou “O bom é que a gente trabalha para nós mesmos, não trabalhamos
para ninguém. Apesar que é muito cansativo, muito trabalhoso, já passamos por muitas
coisas. Eu não tenho mais saúde mas não me entrego, mas eu trabalho muito”. O
143
reconhecimento da sua identidade enquanto perpetuadores da condição de agricultores
familiares, pode ser refletido à luz de Vera, que assim afirma:
144
Sobre a importância da feira para a família, os agricultores afirmaram que a
renda obtida com a comercialização é mais que um complemento, que segundo a
produtora, essa renda depende da produção que leva-se para comercializar.
Sobre a relação direta com o consumidor, Áurea afirmou como se sente:
Eu me sinto tão feliz, eu me sinto uma rainha. Pense como acho bom,
no dia que eu não vou para aquela feira, eu fico pirada aqui dentro de
casa, eu fico doida. Estou acostumada demais. E é bom conhecer as
pessoas né, porque ali a gente conhece tantas pessoas. E a gente vê
que aquelas pessoas tratam a gente com tanto carinho. Eu acredito que
porque eles sabem que a gente tá levando um produto de qualidade. E
saber que ali é a gente que produz e está vendendo o nosso produto
mesmo, aquilo ali feito com as mãos da gente.
145
4.2.5.2 Família de Benedita e Afonso
A agricultora Benedita tem 42 anos, casada, e tem ensino fundamental
incompleto. Seu marido, Afonso tem 48 anos, ensino fundamental incompleto, o filho
do casal tem 23 anos e mora junto com os pais. A produção agroecológica é realizada
em 1ha, e o marido trabalha fora em empresa privada, ficando responsável pela
produção, a agricultora. Benedita faz parte do grupo que trabalhou na Agrovila com a
experiência do Projeto de Irrigação do INCRA em 2006, cuja finalidade era produzir
hortaliça orgânica, contudo, essa experiência não teve êxito pois, não havia mercado. A
família não faz processamento dos produtos e conta com o PAIS. Na ocasião da visita
de campo, a família estava sem produzir hortaliça porque perdeu toda a produção
devido a falta de água em decorrência da bomba quebrada. O marido de Benedita
trabalha fora em empresa do agronegócio. Durante dois anos a família acessou a outro
mercado, o PNAE, colocava produtos na escola da agrovila.
Na ocasião da entrevista, a agricultora e o marido nos relataram que estão sem
produzir. Inicialmente foi a falta de esterco e em seguida, a falta de água, foi cortada a
energia que possibilitava acesso ao poço e problema com a bomba. Devido isso, a
família perdeu toda a produção, faltando apenas 30 (trinta) dias para colher. Sobre esse
fato, a agricultora relatou “Foi uma perda grande, eu não vou nem lá, já chorei muito.
Porque a gente só depende desse poço da comunidade, aí tem esses problemas”.
Ela e o marido estão esperando a chuva para começarem novamente. A família
conta com uma cisterna de 16.000lts (dezesseis mil litros). Para o controle de praga a
família usa Nim e faz uma calda com esterco, rapadura.
Sobre a motivação para trabalhar com agroecologia, a agricultora narrou:
17
Referência a profissional de Assistência Técnica ligado ao SEBRAE.
146
integrar o movimento do MST (Movimento dos Trabalhadores sem Terra). Inclusive,
foi a agricultora que mobilizou agricultores e agricultoras para trabalhar com a produção
agroecológica dentro da agrovila.
Perguntamos a Benedita, o que ela acha do número de famílias que produz com
agroecologia na Agrovila diante do número de 100 (cem) famílias que residem, ao que a
agricultora nos relatou:
Eu acho muito triste. Porque nós começamos com um grupo de 79
(setenta e nove) pessoas, um projeto que recebemos do INCRA
(projeto de irrigação), e aí ficou um grupo de 30 (trinta) mulheres, só
mulheres, aí começamos a produzir com orgânico, a gente produzia a
cenoura, o alface, tudo, aí na verdade o pessoal foi se desestimulando
devido não ter o comércio (mercado) não era aberto para nós. Aí na
verdade a gente pegava o produto, e para não perder a gente cedia para
o colégio para servir de alimentação para as crianças, e dividia para
algumas famílias que não produziam. Aí ainda tentamos, eu entrei
primeiro na feira da APROFAM, eu, Áurea e o esposo dela (outros
produtores da agrovila), e formamos um grupo, aí fomos trabalhar lá.
147
Sobre o momento atual em que a APROFAM se encontra, Benedita ressalta
“mas o comércio se abriu muito para nós. Hoje fomos convidados para participar da
feira da Maísa18 também, nosso grupo foi convidado”.
É importante reter duas questões centrais. A saber, em primeiro lugar, a maioria
dos pobres vivem no campo (70%), e a maioria depende da agricultura. Em segundo
lugar, esses agricultores, em sua maioria vivem na condição de squeeze (Ploeg, 2008),
então, se colocam na tentativa de continuar na agricultura, reproduzindo assim, a
condição de resistência, e nesse sentido, afirma Ploeg (2016, p. 83):
Ingressar novamente à agricultura camponesa também é uma
expressão de resistência. Não são poucos os envolvidos nesse tipo de
resistência – é uma multidão. Muitos camponeses estão ativamente
procurando e colocando em prática adaptações, mudanças, novas
abordagens e padrões alternativos de cooperação.
Para essa família o aspecto que precisa melhorar diz respeito ao transporte, e
isso limita os produtores de diversas maneiras, pois, as vezes, querem levar mais
produtos e não têm como. A agricultora também trabalhou com mercado institucional, e
considera que no começo trabalhar com produção agroecológica foi difícil em vários
18
Os agricultores e agricultoras da Agrovila comercializam aos domingos às margens da BR 304.
148
aspectos, mercado para comercializar e no que diz respeito a mercado institucional, o
acesso aos espaços institucionais era muito difícil também.
Nesse sentido, considera que hoje está bem melhor, além do fato de ter mercado
para a agroecologia. A dificuldade hoje, para ela, é o custo para chegar aos locais de
comercialização, devido à falta de transporte que facilite a vida do produtor. Nesse
sentido ela fala:
149
Sobre a trajetória do grupo e após 10 (dez) anos de feira, a agricultora considera
que essa trajetória foi fortalecida pela força do grupo que tem uma história de
resistência e de união. O trabalho da agricultora na agrovila é de mobilizar outras
produtoras, a procura é sempre pelas mulheres para integrarem o grupo de produção, e o
fato de Benedita ter experiência com essa prática, facilita a sensibilização. Nesse
sentido, afirmam Rivera e Álvarez (2017, p. 42):
Devido não ter chuva piorou muito, porque tem plantas muito
sensíveis, aí quando passa de uma semana sem água, a gente já perde
toda aquela produção. Aí como a gente ficou mais de um mês sem
água, perdemos toda a produção, a gente não tinha como está
comprando água. Porque quando seca a cisterna, a gente tem que
comprar a pipa de água, e quando a gente compra tem que deixar essa
pipa para nosso consumo humano, para abastecer as plantas e os
animais a gente não tem como.
150
Os agricultores informaram que no momento estão com dificuldade em adquirir
insumos para a produção, principalmente adubo, pois devido a seca que tem se
estendido por mais de 5 (cinco) anos, tem impedido a viabilidade da produção animal na
família. A família consome o que produz, no que diz respeito a frutas, verduras, ovo, a
galinha caipira, feijão verde.
A família de Vitória e José Sebastião participaram da APROFAM desde o início
e deixaram por dificuldades, retomaram há 3 (três) anos. Sobre o contato direto com o
consumidor, a agricultora afirmou:
Eu me sinto bem, foi uma experiência boa, muito boa, porque a partir
daí eu aprendi a desenvolver mais o meu trabalho, conheci mais
pessoas, e foi um desenvolvimento muito bom para mim. Eu nunca
imaginei que eu pudesse ter um produto e vender ao próprio cliente,
eu nunca imaginava. Aí hoje é totalmente diferente. O consumidor é
importante, porque a gente produz e sabe que tem um consumidor
esperando por nosso produto, isso é muito bom para gente, eu acho
muito importante.
Para os agricultores trabalhar com agroecologia tem sido difícil, no que diz
respeito acesso a água para produção, controle das pragas, e mesmo o aspecto da
produção, fazendo referência aos tamanhos e aspectos dos produtos, que na sua fala “o
melão, se eu plantar ele no meu roçado, agroecologicamente ele não vai crescer, como
outro produto que tem veneno, nesse sentido, porque o produto pode as vezes não ser o
que o consumidor espera”.
Sobre a importância para a família de trabalhar hoje com agroecologia, a
agricultora afirmou:
151
três filhos tem nível superior completo, e dois estão cursando. A família trabalha com a
produção apícola em uma área de 18ha. Toda a família é envolvida com a produção e
também com a comercialização, contam com um espaço no Assentamento para
comercializar a sua produção, bem como outros produtos adquiridos com outros
produtores. No Assentamento, eles foram a única família que se interessaram em ficar
com o PAIS, segundo Márcia, os moradores falam “não dá certo produzir assim, tem
que colocar veneno”.
A família participa da Feira Agroecológica desde o início. Eles foram
procurados pelo SEBRAE com o intuito de saber se a família tinha interesse em
produzir o mel na condição de orgânico, uma vez que a família já trabalhava com a
produção apícola. Nesse momento, a família demonstrou interesse, pois, segundo o
casal “Era muito para a gente saber que ia produzir um alimento que não tinha veneno”.
Nessa ocasião, eles receberam o PAIS e passaram a produzir na área coletiva da
agrovila. A família tentou com recursos próprios obter um poço para a produção, mas
não obtiveram êxito, tiveram muito prejuízo.
Para Márcia o momento de capacitação foi muito importante, pois:
A família é bem dinâmica e também está inscrita para receber visitas através do
Turismo Rural, esse trabalho é feito por intermédio do SEBRAE e das agências de
turismo. Os espaços de comercialização da família são bastante variados, comercializam
nas feiras da APROFAM, Hotéis Garbo e Villa Oeste, no Shopping Via Direta em
Natal-RN, e também colocam seus produtos no Nordestão na cidade de Natal. Para
comercializar seus produtos, a família produtora adquiriu o selo SIM (Selo de Inspeção
Municipal) da Prefeitura para comercialização, e atualmente estão fazendo mudanças na
estrutura para adquirir outro selo.
A família conta com uma bodega onde expõe os produtos apícolas, bem como
produtos de outros agricultores e agricultoras, como doces, castanha, artesanato, dentre
outros.
152
Atualmente, o PAIS da família está desativado, pois, não tem água para produzir
com essa tecnologia, alegam que a cisterna destinada a família, foi encaminhada para
outra propriedade. Desse modo, o consumo da família dos produtos agroecológicos
advém das feiras, onde eles adquirem dos outros produtores. Para adequar a produção às
novas instalações, a família precisou se desfazer de fruteiras no quintal (pinha,
maracujá, goiaba), bem como da produção de galinha.
Predomina nessa família o trabalho do pai e da mãe, contam com o trabalho de
duas pessoas contratadas, e quando chega o tempo de colher o mel e processar, somente
a família faz esse trabalho, pois consideram que como se trata de uma produção
orgânica, ressaltam que não podem correr o risco de ter alguma falha na fabricação dos
seus produtos.
Essa família realizou a transição agroecológica há 10 (dez) anos. Para o
processamento dos produtos eles contam com uma estrutura física habilitada para tal, o
Entreposto19, para onde o mel é levado para processamento e envazado para
comercialização, tendo sido aprovado pela prefeitura e registrado com o SIM. Para a
produção ao longo do tempo, contaram com financiamento do PRONAF/C e Linha
Emergencial de Crédito.
Perguntado ao casal, como eles se sentem após 10 (dez) anos de feira
agroecológica, eles relatam:
Olhe, foi muito difícil. Porque você sair daqui para ir montar uma
feira ali no Museu. Eu me lembro que quando a gente saia daqui para
ir vender uma ou duas garrafinhas de mel lá, e dava certo. E hoje, é
muito bom mesmo, a gente tem muito cliente. A feira é muito boa, eu
sei que a gente vende muito bem ali.
19
Ver SEBRAE, 2009.
153
O casal nos relatou que alguns pontos de comercialização não são interessantes
para os produtores, como por exemplo, a experiência que tiveram em comercializar no
Ninho Residencial em Mossoró. Para a família, o custo para se deslocar não é
compensado pelo que vendem. Assim, para se ajudarem, eles decidiram que quem mora
mais próximo ao Residencial, leva os produtos de quem mora mais distante, e vice
versa. Acontecendo essa permuta também na feira que acontece na CAERN. Quanto a
feira que acontece no Museu, a agricultora ressalta “agora ali, a feira do museu, ali a
gente vai e é muito bom. Porque o pessoal já conhece o mel da gente, o nosso produto, e
quando chega lá que a gente não está, telefonam para ir pegar no meio do caminho o
nosso mel”.
Perguntado aos produtores como se sentem vendendo diretamente ao
consumidor, Márcia relatou:
Para a família, foi muito importante contar com o apoio do SEBRAE. A família
dispõe de transporte próprio para se dirigirem aos locais de comercialização. Nesse
sentido, Schutter (2012) considera de muita importância o trabalho conjunto, de modo
que as instituições ao fortalecer e apoiar essas experiências, usufruem da experiência e
do retorno que essas experiências possibilitam para além dos espaços rurais. O maior
154
problema para produzir é a falta de água. Perguntou-se ao casal o que fariam se a feira
parasse de acontecer, Márcia disse:
155
assentamento. Os insumos da produção são adquiridos na propriedade, com exceção
para algumas sementes, como exemplo, milho e feijão que os agricultores sempre
guardam.
Os agricultores nos relataram que há interesse em produzir com a agroecologia
por parte dos outros moradores do assentamento, contudo, o grande grau de dificuldade
é a água, e a maioria param na primeira dificuldade.
Perguntou-se aos agricultores como foi a experiência da agroecologia, ao que
nos relataram:
Primeiro a agroecologia é preciso. Todo mundo ter a consciência de
muitas coisas, como lidar com a água, com a terra, como se alimentar.
Então esse convite veio de Sebastião (outro agricultor da
APROFAM), ele falou para mim que estava havendo uns cursos, aí eu
comecei a acompanhar eles. Foi através do SEBRAE e do Professor.
Aí com um ano eu consegui o certificado para eu poder comercializar
na feira.
Ploeg (2016) é uma referência que pode nos auxiliar a compreender que formas
e dinâmicas a agricultura familiar assume na contemporaneidade. Pois, segundo o autor,
vê-se no século XXI um processo de recampesinização que não pode ser desconsiderado
nem deixado de ser captado em sua essência, pois a agricultura familiar continua a
responder pela produção de 80% dos alimentos que se põem à mesa, o processo de
migração para as cidades não resolveu os problemas da fome, desemprego e melhor
qualidade de vida como se prometera, a agricultura familiar camponesa tem
demonstrado sua capacidade de sobreviver no tempo e espaço e “não há horizonte que
mostre que vai desaparecer”, a questão ambiental e gestão sustentável dos recursos
naturais são hoje condição fundamental na produção familiar camponesa e, sob esse
enfoque, igualmente, afirma Schneider:
156
Para a pesquisa, um dos desafios da imersão no campo, foi compreender a todo
momento o contexto em que esses agricultores e agricultoras estão, e isso, a partir do
seu cotidiano. De modo que, suas narrativas são tomadas por esses elementos, que
embora, sejam claros (região, recursos, processo de ocupação da terra, produção, etc),
está muitas vezes encoberto pela necessidade que eles tem de defender a causa em que
vivem. Pois, para eles, construír uma trajetória em que as dificuldades são claras, se
constituem como desafios, mas não são maiores que a resistência e autonomia que a
produção agroecológica tem lhes possibilitado. E para Schneider (2016, p. 18), há um
pano de fundo que possibilita ou não essas experiências, pois para o autor:
20
Cidade que tem forte presença das empresas do agronegócio.
157
Estão integrados a APROFAM desde o início. A família não acessa a outros
mercados e conta com assistência técnica da Prefeitura. Contam com transporte próprio
para se deslocarem até a feira. Os insumos utilizados na produção advém da
propriedade.
Perguntado aos agricultores como eles se sentem ao trabalharem com a terra,
produzindo no quintal de casa e o que isso representa para essa família, eles nos
relataram:
158
APROFAM foi contemplada com um projeto para beneficiamento de popa e terá a sede
na Comunidade de Riacho Grande, na propriedade do agricultor Luiz Afonso e Silvana,
a Coopervida que está à frente do Projeto e é financiado pelo Programa RN Sustentável.
Sobre a relação com o consumidor, Ana nos relatou “É muito bom, porque ele
está comprando os produtos e sentindo feliz porque está consumindo um produto que é
orgânico, e a procura está sendo grande. Tem cliente que pergunta se o produto tem
veneno, sempre tem alguém que pergunta”.
Sobre a importância da feira agroecológica, Nazareno nos relatou
159
Figuras 22 e 23: O agricultor em seu quintal produtivo
Fonte: Pesquisa
160
4.2.8 Serra do Mel – Vila Guanabara: Sebastiana e Graciano
A agricultora Sebastiana é casada, tem 56 anos, e ensino fundamental
incompleto. Seu marido é Graciano da Silva, tem 57 anos e ensino fundamental
incompleto. Toda a família é envolvida com a produção agroecológica, e seus filhos têm
entre 20 e 22 anos. A família tem casa no Assentamento Favela e atualmente mora na
Serra do Mel. Segundo Sebastiana, ela optou por morar em Serra do Mel devido ao fato
de os pais dela sempre terem morado nesse lugar, então, ela preferiu comprar uma casa
e mudar-se também junto com sua família. Então, a família produz nos dois lugares, na
Serra do Mel e no Assentamento Favela. Há 10 (dez) anos ela está em Serra do Mel.
Sebastiana está integrada a APROFAM desde o seu início, e sobre essa
experiência, ela relatou “Eu toda vida gostei de plantar em casa, colocar uma hortinha, e
mamãe também plantava, aí eu já plantava”.
A família conta com a tecnologia do PAIS e energia solar para produzir em uma
área de 1ha, contam também com uma área de 15ha no lote no Assentamento Favela
onde produzem o que comercializam na feira, como, manga, caju, maracujá, laranja,
goiaba e hortaliças. A família está integrada a APROFAM desde o seu início, há 10
anos, e conta que com um mês de produção já começou a ver o resultado. Realizam
também o processamento de popa no Assentamento Favela, pois o espaço para essa
produção, fica nesse assentamento. Trata-se de uma casa de polpa adquirida através do
Projeto Integrado de Desenvolvimento Sustentável do Rio Grande do Norte – Projeto
RN Sustentável21. A família está integrada a outras associações como a COOFAM, e
Associação do Assentamento Favela. Essa família não conta com mão de obra
contratada, e acessa a outros mercados, PNAE e compra direta nas escolas. A
agricultora participa de projetos de horta escola na vila. Toda a família é envolvida com
a produção e comercialização, sendo essa sempre de responsabilidade da agricultora,
então, quando os demais a acompanham é para ajudá-la.
A agricultora e dois filhos, afirmaram que trabalham na produção todos os dias,
e como produzem também no Assentamento Favela, se dividem, ficando esse espaço
sob a responsabilidade do marido. A dedicação diária da família é de aproximadamente
de 6 a 8/dia. Para se dirigir aos espaços de comercialização, a família conta com
transporte alternativo.
21
O Projeto visa em linhas gerais, promover o desenvolvimento regional e crescimento
inclusivo através de inclusão, empreendedorismo, infraestrutura e logística dos investimentos
produtivos, eliminar a pobreza extrema, através do reforço da segurança alimentar e geração de
renda, dentre outros (MANUAL OPERATIVO DO PROJETO RN SUSTENTÁVEL, 2013).
161
Para Ploeg (2016, p.9) há uma série de equilíbrios que permeia a vida do
camponês em seu processo de produção. Como os princípios de organização que
modela e remodela, como os campos são lavrados, como o gado é criado, assim como é
feito o trabalho de irrigação, bem como as identidades e relações mútuas se
estabelecem. É importante ressaltar que há uma complexidade dos equilíbrios, dado,
sobretudo, o caráter heterogêneo da agricultura camponesa. Nesse sentido, “por um
lado, o camponês é oprimido e não compreendido, por outro lado, é indispensável e
altivo. O camponês sofre e resiste: às vezes em momentos distintos, às vezes
simultaneamente”.
A partir da compreensão de Ploeg (2016) sobre os diferentes equilíbrios
presentes na agricultura camponesa, é possível refletir se essa compreensão, por sua vez
está próxima, ou em diálogo com o conceito de autonomia, conforme Schmitt (2013),
Schottz (2014), Maluf (2000) e Almeida (1999). Pois, a prática produtiva dessas pessoas
nos conduz a percepção de que eles e elas desenvolvem suas estratégias em um coletivo
que os fortalece e os situa à parte da lógica econômica do grande capital. E nesse
sentido, afirma Ploeg (2016, p. 15):
162
compra em supermercado, só compra a mim”. A família vende na vila em que mora, e
informaram que tem 6 famílias que são clientes fiéis à Sebastiana.
Sobre a experiência de comercializar diretamente ao consumidor, a agricultora
nos falou:
Foi minha sorte, porque com todos esses anos de seca, com pouca
água. Todo sábado eu consigo comercializar, em todos esses anos de
feira, se eu faltei duas vezes foi muito, e teve sábado, no começo, que
eu não fazia nem o dinheiro da passagem, foi muito difícil, mas de lá
para cá, melhorou muito.
163
Para Mariátegui (1975), o que difere esses agricultores dos grandes
proprietários, é que os primeiros estão interessados na produtividade da terra, diferente
dos segundos, que segundo a autora, estão interessados apenas na lucratividade.
Perguntado aos produtores o que aconteceria com sua família se a feira parasse
de acontecer, ao que relatou “Eu tinha onde vender. Tenho conhecidos. Graças a Deus
tenho onde plantar, e tenho onde vender”.
Sobre a alimentação da família, perguntada se após a agroecologia houve
mudanças, ao que ela disse “Hoje está melhor, porque aumentou as coisas”. A
agricultora é responsável pela horta cultivada na escola da vila, e segundo ela, é a única
que produz na vila, e assim, os seus vizinhos vêm comprar diretamente à sua porta, bem
como, moradores de outras vilas. O seu marido trabalha o dia todo no lote que fica no
Assentamento Favela, onde eles também têm casa.
Perguntado a agricultora o que significa para ela trabalhar diariamente com a
terra:
Eu acho muito bom, graças a Deus eu não sei o que é médico. As
minhas vizinhas dizem que eu sou muito sadia (tem uma saúde
saudável), vem médico aqui para a vila Rio Grande, mas felizmente eu
não sei quem é. Tem dias que quando eu dou dois passos, aí é que eu
vou embora mesmo.
164
4.2.9 Comunidade Riacho Grande: Silvana e Luiz Afonso
Na Comunidade Riacho Grande, a produção agroecológica é realizada por
Silvana, solteira, 52 anos, ensino fundamental incompleto, e seu pai, Luiz Afonso, 71
anos, casado, ensino fundamental incompleto. Silvana é assentada, mas produz com o
pai na terra da família, e ela que continuará cuidando do estabelecimento. A família não
conta com mão de obra contratada na propriedade, apenas quando há uma necessidade
maior. Normalmente, contam com a colaboração de sobrinhos e netos, que também
ajudam na comercialização. Um elemento central identificado nessa unidade produtiva e
em outras, é a intensificação do trabalho por parte da família.
Nesse sentido, afirma Ploeg (2016, p. 114):
A força de trabalho necessária pode assumir diversas formas: homens,
mulheres, crianças, vizinhos que se ajudam entre si. Ao participarem
do processo de produção, representam a força de trabalho. O ponto
importante é que o seu trabalho transforma os objetos de trabalho em
itens mais uteis. Isso requer o uso de instrumentos (ou ferramentas).
165
10.831 de 2003, conforme Sambuichi et al. (2017). Através da referida lei, foi possível
ao produtor familiar pouco capitalizado, produzir na modalidade orgânica e inserir-se
em redes de comercialização, desde que esses produtores estejam inseridos em processo
de organização e controle social.
O agricultor Luiz relatou que há muito tempo trabalha com o orgânico, desde a
época da Associação de Crédito e Assistência Rural – ACAR, atual EMATER, recebeu
cursos também do SENAR, e nessa época só plantava para o consumo, exclusivamente.
Nesse tempo, a família trabalhou também com produção de frango e era comercializada
por intermédio da EMATER. Com a agroecologia, fazem 4 anos que a família produz.
As dificuldades encontradas pela família dizem respeito, sobretudo, ao
transporte para se deslocarem aos locais de produção. Sobre a produção, o agricultor
afirmou: “A gente não usa veneno nem para a formiga, porque os homens não querem
(se referindo a APROFAM e ao SEBRAE). Porque, se chegar uma fiscalização, e pode
chegar a qualquer hora, nós já somos descadastrados na mesma hora”.
Nesse mesmo diálogo, Silvana afirmou
Se faltar algum produto para a gente levar para a feira, eu não compro
fora, eu não levo de jeito nenhum. Porque a gente tem que confiar,
mas também a gente tem que temer. Porque pode muito bem, você
trabalhar com o orgânico e aqui e acolá você soltar um veneno. Então
eu não quero isso, porque se eu quero o bem para mim, eu também
quero o bem para o cliente. Porque o cliente está confiando em mim,
aí eu vou fazer essa traição?
Para essa família, eles não tiveram a prática de produzir com veneno, então,
quando receberam a formação, começaram a entender que já faziam boas práticas de
manejo, sem contudo, terem a ciência que se tratava de orgânico. Segundo Luiz, a
questão é que tem dado certo para a família, pois “Se o cabra tiver tempo de sobreviver
disso aqui, dá certo”. Para Ploeg (2016, p. 147), as práticas produtivas desenvolvidas
pelas famílias camponesas, conotam-se como mais sustentáveis, comparadas, sobretudo,
as unidades capitalistas, pois para o autor:
166
(Altieri; Koohanfkan, 2008); e finalmente procura minimizar o
desperdício de água (Dries, 2002).
Silvana: Para mim foi bom para ter mais conhecimento, melhorou
muito para mim, as pessoas perguntam para o produtor como é que a
gente faz. Luiz: Eu já vi próprio produtor, colega da gente fechar
encomenda de tomate por semana com a gente, isso não é uma coisa
boa? Ele pediu para a gente vender a ele de 10kg (dez) a 15kg
(quinze) de tomate.
Eu acho muito bom trabalhar com união, porque por exemplo, nas
quintas que eu não posso ir para o shopping, mas se eu não puder ir,
167
quem vai vende meu produto, e se ele não puder, eu posso vender o
dele. Então eu acho muito bom trabalhar com essa união no grupo, no
coletivo.
A família embora esteja inserida a feira há 4 (quatro) anos, considera que sempre
produziram sem agrotóxicos, na modalidade orgânica, e não pensam em produzir de
outra forma, pois consideram que além da alimentação ter ganho com a diversidade
produtiva, há também o fator saúde, que para Luiz, hoje é melhor para ele. Convém
refletirmos sobre essa narrativa a partir da afirmação de Ploeg (2016, p. 149):
168
Figuras 26 e 27: A agricultora conduzindo as pesquisadoras ao local de produção
Fonte: Pesquisa
169
4.2.10 Dados das unidades produtivas
Comunidade/Assentamento Jurema
Famílias 100
Família Produtora Leandro José e Paula Patrícia
Área 15 ½ há
Produtos Cenoura, cebola, castanha, pimentão, tomate cereja,
cheiro verde, rúcula, cebolinha, ovos.
Produção animal Guiné; Caprino; Galinha
Tecnologias PAIS; Bioágua
Água Poço (salgada)
Questão Sucessória Filho
Locais de Comercialização CAERN; Estação Shopping; Museu e UERN
Comercialização Leandro José
Quadro 4: Síntese de dados da família de Leandro José e Paula Patrícia – Assentamento Jurema
Fonte: Pesquisa
Comunidade/Assentamento Favela
Famílias 92
Famílias 8
Família Izaura e os pais
Produtos Polpas, Coentro e cebolinha; caju, acerola, manjericão,
mastruz, alface.
Produção animal Não
Tecnologias PAIS
Água Adutora
Questão Sucessória Filho
Locais de comercialização CAERN; Estação Shopping e Museu
Acesso a outros mercados PNAE
Comercialização Izaura e familiares
Participação em outras COAFAM (Cooperativa de produtores e produtoras da
Associações agricultura familiar)
Quadro 5: Síntese de dados de Izaura Clementino – Assentamento Favela
Fonte: Pesquisa
170
Comunidade/Assentamento Favela
Quantitativo Famílias 92
Famílias produtoras da 8
APROFAM
Família Entrevistada Lúcia Maria e Antônio Sebastião
Produtos Frutas, Coentro e cebolinha; caju, acerola, manjericão,
mastruz, alface.
Produção animal Não
Tecnologias PAIS
Água Adutora
Questão Sucessória Não tem
Comercialização Lúcia Maria
Locais de Comercialização Praça do Museu
Acesso a outros mercados Não
Participação em outras COAFAM
Associações
Quadro 6: Síntese de dados de Lúcia Maria e Antônio Sebastião
Fonte: Pesquisa
Comunidade/Assentamento Favela
Quantitativo de Famílias 92
Famílias produtoras 8
Família Viviane e José Antônio
Produtos Frutas, Coentro e cebolinha; caju, acerola, manjericão,
mastruz, alface, acelga, couve, rúcula, hortelã.
Produção animal Não
Tecnologias PAIS
Água Adutora
Questão Sucessória Filho
Acesso a recursos RN Sustentável
Acesso a outros mercados Não
Locais de Comercialização UERN, Estação Shopping, Praça do Museu
Participação em outras COAFAM
Associações
Quadro 7: Síntese dos dados da família de Viviane e José Antônio
Fonte: Pesquisa
171
Comunidade/Assentamento Favela
Quantitativo Famílias 92
Famílias produtoras da 8
APROFAM
Família Entrevistada Regina e Antônio José
Produtos Coentro, cebolinha, manjericão, mamão, acerola,
Produção animal Não
Tecnologias PAIS
Água Adutora
Questão Sucessória Não tem
Comercialização Regina
Locais de Comercialização Praça do Museu
Acesso a outros mercados Não
Participação em outras COAFAM
Associações
Quadro 8: Síntese dos dados da família de Regina e Antônio José
Fonte: Pesquisa
172
Comunidade/Assentamento Comunidade Serra Mossoró
Família Sebastião Florêncio e Ester
Área 2ha
Ocupação Atividade agrícola e aposentadoria; a filha mais jovem
e o marido dedicam-se exclusivamente a produção e
comercialização de ovos.
Produtos Tomate, cenoura, beterraba, cebolinha, cebola, banana,
mamão, melão, rúcula, ovos,
Produção animal Galinha – 350
Estrutura Aviário
Tecnologias PAIS
Água Poço
Questão Sucessória Filha
Associações APROFAM; COOPERXIQUE;
Locais Comercialização APROFAM (Todas as feiras); Rede Xique Xique; Porta
a porta
Comercialização Sebastião Florêncio e Ester
QUADRO 10: Síntese dos dados da família de Sebastião Florêncio e Ester
Fonte: Pesquisa
173
Comunidade/Assentamento Agrovila Paulo Freire – Maisa
Famílias 100
Famílias Produtoras 6
Família Áurea e Benedito
Ocupação Atividade agrícola e aposentadoria
Tempo de Participação – 3 anos (participou no início, não continuou, e voltou há
APROFAM três anos)
Produtos Coentro, cebola, cebolinha, pimenta de cheiro; caju,
acerola, banana, manjericão, mastruz, alface, colorau,
coco, óleo de coco, macaxeira, batata, couve folha,
repolho.
Produção animal Não
Tecnologias PAIS
Água Adutora; Poço
Questão Sucessória Filha
Locais de Comercialização Feira aos sábados; CAERN; Shopping Popular e UERN
Comercialização Agricultora e a filha
Quadro 11: Síntese dos dados da família de Áurea e Benedito
Fonte: Pesquisa
174
Comunidade/Assentamento Agrovila Paulo Freire – Maisa
Famílias na Agrovila 100
Famílias produtoras – 6 famílias
Agroecologia
Família Vitória e José Sebastião
Produtos Frutas, Coentro e cebolinha; caju, acerola,
manjericão, mastruz, alface.
Produção animal Não
Tecnologias PAIS
Água Adutora
Processamento da Produção Não
Comercialização Esposa
Locais de Comercialização Feira no Museu
Outros Mercados PNAE
Questão Sucessória Filhos
Comercialização Agricultora
Quadro 13: Síntese dos dados da família de Vitória e José Sebastião
Fonte: Pesquisa
Comunidade/Assentamento Boa Fé
Quantitativo de Famílias 100
Família Márica e Antônio Neto
Espaço de produção 18ha
Produtos Apícolas
175
Comunidade/Assentamento Assentamento Santa Elza
Famílias 22
Famílias produtoras – 3 (apenas a de Ana e Nazareno está ativa, outro
PAIS agricultor está levando ovos e galinha)
Família Bernadete e Cláudio de Jesus
Produtos Banana, acerola, alface, rúcula, manjericão, cheiro
verde; Beterraba, ovos
Produção animal Carneiro, galinha, gado e peixe
Tecnologias PAIS
Água Adutora
Questão Sucessória Não tem (os filhos moram fora)
Locais de Comercialização Museu; CAERN; Shopping.
Comercialização Bernadete e Cláudio
Quadro 15: Síntese dos dados da família de Bernadete e Cláudio
Fonte: Pesquisa
176
Comunidade Riacho Grande
Família Silvana e Luiz (pai e filha)
Produtos Tomate cereja, melancia, melão, coentro, beterraba,
cenoura, banana, ovos, mamão, acerola, coco, cebolinha,
limão, laranja, leite, jerimum, macaxeira, pimentão,
milho, feijão, melancia, melão
Produção animal Ovelha, gado e produção de peixe na Serra Mossoró
Tecnologias PAIS
Água Poço
Questão Sucessória Silvana continuará
Mão de obra Familiar
Associados APROFAM; COOPERVIDA; COOPERXIQUE.
Locais de APROFAM e Xique Xique
Comercialização
Comercialização Silvana e sobrinhos
Quadro 17: Síntese dos dados da família de Silvana e Luiz
Fonte: Pesquisa
177
4.3 Discorrendo sobre as unidades produtivas
Os agricultores e agricultoras familiares integrantes da APROFAM, tratam-se de
produtores que antes da categoria agricultura familiar, integravam a “baixa renda” ou
“pequena produção”, e nesse sentido, agora, esses atores sociais integram um espaço na
nova dinâmica dos mercados, conforme Wilkinson (2008).
Para Maluf (2003), a questão específica da agricultura familiar brasileira, mais
especificamente as unidades produtivas, a renda oriunda da atividade agrícola em
algumas unidades produtivas não são insuficientes para a dedicação exclusiva da família
a essa prática deve-se a dois fatores: O primeiro relaciona-se a tendência de queda dos
preços reais dos produtos agrícolas e, consequentemente a redução da renda agrícola,
em segundo lugar, a falta de condições que possibilite as famílias aperfeiçoarem seus
processos produtivos e assim, agregar valor aos produtos agrícolas. Em um sentido mais
geral, Maluf (2003, p. 138) afirma “a constatação de que é decrescente o peso
econômico da atividade agrícola própria na reprodução de um grande número das
famílias rurais brasileiras não está em desacordo com a maioria das análises sobre a
realidade rural no Brasil”.
As imersões em campo possibilitaram muitas inquietações, sobretudo, as que
dizem respeito às condições de produção dos agricultores e agricultoras que integram a
APROFAM, o pouco acesso à água e as tecnologias adequadas é uma constante em
todos os assentamentos e comunidades investigados.
Os produtores e produtoras rurais participantes da pesquisa apresentam
dinamicidade na produção, e se lançam no desafio de produzir com agroecologia,
embora, para a maioria dos entrevistados, esta representa apenas a não utilização de
insumos, ao passo que percebemos tratar-se de um coletivo que são organizados social e
politicamente. Para Wanderley (2003) existem quatro funções associadas ao exercício
da atividade agrícola:
178
ocasiões evidenciou-se que essas famílias eram as únicas trabalhando em seus quintais,
pois, na região, a maioria dos assentamentos e moradores rurais se deslocam para
trabalhar na cidade como trabalhadores assalariados, essas famílias agroecológicas
embora se dividam entre trabalhar na propriedade e trabalhar em outras ocupações,
como trabalhadores assalariados também, mantém seus quintais produtivos.
Percorrer os caminhos, estradas e trilhas que esses homens e mulheres percorrem
semanalmente para comercializar sua produção, possibilitou entender essa experiência
que começa com a produção, e se estende para além da comercialização. Pois, o que
essas pessoas fazem nos dias de feira é para além disso. Elas comercializam sua
produção, mas também compartilham suas histórias, suas trajetórias, seus retalhos, a
feira compõe um mosaico de vidas, são agricultores e agricultoras familiares que
encontraram na agroecologia a possibilidade de alimentar sua família, mas é válido
ressaltar que a agroecologia também os encontrou.
Desse modo, evidenciou-se que esses espaços produtivos se configuram como
espaços multifuncionais, e esse se constituiu em um conceito que se colocou como luz
para apreender essas experiências que saem dos assentamentos e comunidades e
adentram o espaço urbano como forma de valorizar a agricultura familiar e uma
agricultura de base ecológica. Nesse sentido, o conceito é assim apresentado:
179
unidade familiar exercem alguma atividade extra-agrícola e/ou
possuem uma fonte de renda não agrícola, como o aluguel de casa ou
quartos (CARNEIRO, 2003, p. 93).
180
ambiental, econômica e cultural desse espaço recorre-se ao conceito de
multifuncionalidade que possibilita compreender as diversas interfaces que os atores
sociais do campo recorrem para estabelecer suas estratégias que difere de região, mas
que em comum, apresentam o protagonismo dos agricultores e agricultoras, e nesse
sentido, para tratar desse rural contemporâneo, Moraes e Vilela (2003) ressaltam as
diversas interfaces desse espaço social, sendo o turismo, a proteção ambiental, a
valorização dos saberes e culturas locais, inclusive a alimentar, as relações de mercado,
ou seja, a multifuncionalidade pode ajudar a entender como essas interações se
correlacionam e dialogam entre si, ou não.
No que diz respeito à segurança e soberania alimentar, evidenciou-se que houve
melhoria significativa no quadro alimentar das famílias integrantes da APROFAM,
inclusive alguns relatos fazem relação da alimentação com a melhoria em quadros de
doença. Essa produção e melhor acesso aos produtos alimentares, tem sido
representativo também, no orçamento familiar, pois, em seus relatos, as famílias
ressaltam a menor dependência em relação aos supermercados. Esses elementos, são
igualmente apontados por Schottz (2014).
A experiência de produção e comercialização agroecológica em questão, trata-se
de sistemas produtivos complexos e heterogêneos, mas que tem em comum alguns
aspectos basilares, tais como, o produzir cotidianamente que lhes proporciona alimento,
mas também autonomia e inserção em um tecido social que é fortalecido pelo coletivo,
significa ainda, perceber que não fosse essa experiência de agroecologia, que não pode
mais ser considerada embrionária, pois, tem percorrido uma trajetória no espaço/tempo
que tem fortalecido as raízes desses produtores. Significa ainda que é essa experiência
de agroecologia que tem possibilitado autonomia para essas famílias, eles migraram de
uma experiência de agricultura patronal para uma possibilidade de autonomia e
reciprocidade.
Assim, uma vez feita a trajetória dos alimentos produzidos pela APROFAM,
apresenta-se no capítulo seguinte o espaço de comercialização e os consumidores e
como esses atores tem fortalecido essa experiência.
181
182
CAPÍTULO V
183
qualidade do produto como envolvendo também as suas formas de produção e o estilo
de vida em que se apoia”
Para Wilkinson (2008) é relevante compreender as dinâmicas da agricultura
familiar na contemporaneidade sob um enfoque interdisciplinar de análise, pois para o
autor, a sociologia e a economia fornecem instrumentos para tal. Nesse sentido, o autor
afirma ainda:
184
5.1 Os consumidores da APROFAM
O nível de escolaridade apresenta maior percentual correspondente ao nível
superior completo, representando 37% dos entrevistados, conforme a figura 30.
Escolaridade
0% 0%
0%
37%
185
Ressalta-se assim, que a feira é um vasto campo de análise, conforme Zanini e
Froelich (2015), e podem nos dizer muito sobre os elementos que compõe a sociedade
contemporânea e seus hábitos alimentares.
No que se refere a Profissão/Ocupação dos consumidores, o maior percentual
corresponde a Servidor Público, enquanto que o percentual menor ficou para a condição
de estudante, conforme a figura 31.
9%
29%
Aposentado
Autônomo
28%
Empregado
Estudante
7% Servidor Público
27%
186
Não
18%
Facebook
43% Não 43%
57% Sim Whats App
34%
Whats App e
Facebook
5%
Figura 32: Gráfico de Interesse em Participar das Figura 33: Gráfico de adesão a rede social
redes sociais da feira e receber informações.
Fonte: Pesquisa Fonte: Pesquisa
Além das barracas de comercialização dos produtos, há uma barraca com lanche
que os agricultores e agricultoras trazem para disponibilizar aos consumidores. A
intenção é disponibilizar café da manhã com produtos da culinária nordestina local,
como cuscuz com galinha, bolos variados (de batata, ovos, milho), mugunzá, salgados
como tortas e coxinhas, grude, tapioca, café, e sucos variados. Percebeu-se que os
consumidores que chegam mais cedo, lancham na barraca após a compra, e os
consumidores que chegam por volta das 07:00 em diante, a primeira barraca a ser
visitada é a do café da manhã. No momento em que os consumidores se encontram
nessa barraca, ocorre um encontro para conversas com os agricultores e agricultoras,
assim como com outros consumidores. Havendo nesse momento também, reencontro
entre consumidores que não se viam há algum tempo e, no entanto, foram amigos de
universidade na juventude.
Para a pergunta sobre o tempo de frequência a feira, houve variação por parte
dos consumidores, há pessoas que compram na feira desde o seu início, até clientes que
conheceram essa experiência há apenas poucos meses, conforme mostra a figura 22.
187
TEMPO DE FREQUÊNCIA A FEIRA
188
2%
9%
7%
5:00 a 5:30
5:30 a 6:00
12% 6:00 a 6:30
6:30 a 7:00
7:00 em diante
70%
14%
36%
189
Gosto da ideia do projeto, ajudar os produtores e, sobretudo, porque
são produtos orgânicos (Consumidor 2).
Estou comprando aqui porque estou em busca de saúde (Consumidor
3).
Tive problemas de saúde, uma urticária muito séria, então, venho para
ter uma alimentação saudável (Consumidor 4).
2%
2% 2%
5% Média de uma vez ao
mês
7%
Quase todos os
sábados
Todos os sábados
Quinzenalmente
Raramente
190
e encontra mais facilmente na feira, quais produtos consome e encontra dificilmente,
assim como os produtos que os consumidores consomem e nunca encontram na feira.
Dentre os produtos mais encontrados há o queijo de coalho, doces de leite e mamão,
temperos, mel, óleo de coco, feijão verde, milho, cheiro verde, alface, pimentão, cebola,
quiabo, beterraba, batata doce, jerimum, macaxeira, maxixe. Dentre as frutas tem
banana, laranja, caju, mamão, coco, goiaba, manga, pimenta, castanha, limão, seriguela.
Algumas frutas são disponibilizadas em polpas, como maracujá, cajarana. Produtos que
acabam logo nas primeiras horas de feira, ovo – cenoura, tomate cereja. Dentre as
carnes disponibilizadas, está a de frango e de caprino. Na barraca do lanche encontram-
se cuscuz com galinha, bolos, tapiocas, salgados, café e sucos.
Quando os feirantes chegam ao local para montarem as barracas alguns
consumidores já os aguardam, e nesse momento inicial da feira é comum que os
consumidores os ajudem a montar as barracas e mesmo a vender; pois, ó fluxo é muito
intenso nesse horário e alguns avançam sobre os produtos para disputá-los, o que
provoca tumulto. Nesse sentido, quando perguntou-se aos consumidores quais ações
consideram necessárias para o melhoramento da feira, responderam:
Nas figuras 38 trazemos uma das barracas com alguns produtos, na figura 39 a
imagem trata de uma cesta agroecológica que é sorteada no último sábado de cada mês
para os consumidores.
191
Figuras 38 e 39: Barraca com produtos agroecológicos e cesta agroecológica sorteada para os
consumidores.
Fonte: Pesquisa
Na figura 40 apresentamos a dinâmica da feira nos primeiros horários de
funcionamento. A figura 41 trata-se de momento de pós-feira para apresentar para os
consumidores o filme “O veneno está na mesa”. Esse momento decorreu da iniciativa
dos agricultores, agricultoras, alunos e professores e pesquisadores da UFERSA.
Tratou-se ainda de um momento de discussão sobre a importância das Feiras
Agroecológicas como alternativa para uma alimentação saudável e sustentável social e
ambientalmente.
192
Figuras 40 e 41: Momentos iniciais da FAM e Socialização do filme O veneno está na mesa entre
agricultores/ agricultoras e consumidores.
Fonte: Pesquisa
22
O Professor está presente na APROFAM desde o seu início, sendo inclusive o profissional de
assistência técnica mencionado pelos agricultores e agricultoras em seus relatos.
193
Através de amigos. Busca de um alimento saudável e fresco,
valorização da agricultura familiar (Consumidor 6).
Jornal. Procurando bem estar e saúde, fiquei com medo do
transgênico. (Consumidor 7).
Através dos agricultores. É um produto que conhecemos a origem, e
pela questão social, é uma forma de incentivar a agricultura familiar.
(Consumidor 8).
Desde que a feira começou, quando eu soube que a feira iria ser
implementada, eu já inclusive tinha participado de uma experiência
anterior com o pessoal da Rede Xique Xique com as mulheres lá do
Assentamento Mulugunzinho. Então, houve uma certa paralisação, foi
mais ou menos nessa época que surgiu a feira então, na hora que eu
soube que ia acontecer a feirinha imediatamente eu vim, tanto é que
eu acompanho a feirinha desde então (Consumidor 9).
É válido ressaltar ainda, que não se pode deixar de considerar o papel e o lugar
dos mercados no âmbito da agricultura familiar no contexto atual, conforme Schneider,
Marques e Conterato (2016). Por sua vez, a referida conjuntura em que se fortalecem,
consolidam e surgem as Redes Agroalimentares Alternativas, segundo Renting,
Marsden e Banks (2017), a falta de confiança na qualidade dos alimentos provenientes
da agricultura convencional, está entre as razões para procurar esses espaços
alternativos. É importante ressaltar que é um marco a década de 1990 para a questão
agrícola no país, pois, especificamente nessa década, os pequenos produtores passam a
ser reconhecidos como agricultores familiares, sendo essa categoria fruto da luta pela
terra, bem como a necessidade de reconhecer que embora tenha se intensificado o êxodo
rural nas décadas anteriores, ainda há um percentual de produtores e produtoras que
194
produzem em suas terras, mesmo com um série de dificuldades. Contudo, ressalta
Wilkinson (2008) que embora tenha havido essa mudança, os estudos que se seguiram
para compreender as interfaces dos espaços rurais posteriores a inserção da agricultura
familiar no sistema agroalimentar, não se detiveram as formas dinâmicas de integração
aos mercados em suas diferentes formas.
A experiência da APROFAM pode ser analisada sob o enfoque da sociologia
econômica, uma vez que segundo Wilkinson (2008), esta está ancorada em novas
referências e teorias para compreender a constituição de novos mercados e da vida
econômica. Nesse sentido, compreendo que as experiências de circuito curto na
agricultura familiar assenta-se sob o enfoque da qualidade, essa vista como uma
construção social, ou seja, há outras técnicas, formas e mecanismos utilizados na
contemporaneidade por um coletivo de sujeitos e atores que qualificam os produtos,
bem como suas técnicas. Nesse sentido, considera o autor:
195
Visitei o local de produção, achei interessante, passei a confiar
(Consumidor 9).
Como os produtores têm orientação técnica, eles sabem aplicar as
técnicas para conseguir OCS (Consumidor 10).
Pela constância que frequento o espaço da feira, estabeleu-se uma
relação de confiança e reciprocidade minha com os agricultores-
feirantes (Consumidor 11).
Primeiro é que isento de agrotóxico, qualidade nutricional, ou seja,
valor nutritivo, produto fresco, garantia de higiene, aparência é a
última coisa que importa (Consumidor 12).
Eu venho para cá porque eu priorizo a saúde da minha família eu
quero um produto de boa qualidade e eu não tenho essa qualidade no
supermercado mesmo (Consumidora 13).
No que diz respeito aos laços que são estabelecidos entre produtores e
consumidores, evidenciou-se que se trata também da qualidade dessas relações, laços de
amizade e igualmente de confiança, pois, há uma troca no processo de dar e receber, e o
produto é um elo que liga esses sujeitos, como afirma Sabourin (1999). E a confiança
identificada entre produtor e consumidor, na pesquisa de Cassol (2013), evidenciou-se
que embora a relação mercantil esteja presente, esta se estende para além dessa
condição.
As experiências de circuito curto são fortalecidas por estratégias de organização
social que envolve agricultores, agricultoras e consumidores, além das instituições e
outros atores, como afirmam Souza-Seidl e Billaud (2015). Para Granovetter (2007) a
confiança é fortalecida pelas relações pessoais, pois o constante contato fortalece os
laços, levando assim, aos consumidores acreditarem no que consideram “a boa fé” do
produtor.
Ressalta-se ainda que essa experiência de produção e comercialização
agroecológica, pode ser refletida á luz de Lef (2006). Para o autor, a racionalidade
ambiental consiste na reapropriação social da natureza, e diante da crise ambiental em
que a pessoa humana norteada pela lógica do progresso e do crescimento sem limites
defronta-se com os limites da natureza, resultando assim “na ressignificação do mundo
e na construção de uma racionalidade alternativa”. O que é evidente nas unidades
produtivas são agricultores e agricultoras que em uma diversidade de experiências, têm
pautado sua forma de produzir nessa racionalidade alternativa, que para essas pessoas
consiste na possibilidade de tornarem suas terras produtivas com um modo de produção
que possibilita a relação humana com a natureza em uma perspectiva de
sustentabilidade.
196
Assim, o produto decorrente dessa prática sustentável, é percebido pelos
consumidores como possibilitador de mais saúde, mas também, mais respeito para com
a natureza e o meio ambiente. Para o autor o que possibilita a racionalidade ambiental
são os processos sociais de reapropriação da natureza que entram em jogo. Pois:
197
Mesmo que no supermercado seja orgânicos, na feira tenho
informações sobre a origem dos produtos. Comprar na feira significa
fortalecer um espaço alternativo na cidade de alimentos
agroecológicos, da agricultura local e familiar (Consumidor 11).
198
Entende-se assim, que nesse universo alimentar, que é criado e apropriado por
uma diversidade de atores, em uma cadeia curta, o alimento torna-se elemento central
de uma cultura, ao passo que revela uma diversidade de significados. Nesse sentido,
afirma Sahlins (2007, p. 169):
199
Ademais, uma outra forma de tentar compreender essas experiências, é
deslocando-se dos conceitos de teoria econômica que fundou-se na produtividade do
capital, no capital e na tecnologia, e indo ao encontro de um “novo paradigma baseado
na produtividade ecológica e cultural, em uma produtividade sistêmica que integre o
domínio da natureza e o universo de sujeitos culturais dentro das perspectivas abertas
pela complexidade ambiental” (LEFF, 2006, p. 68).
A racionalidade ambiental leva a repensar a produção a partir das
potencialidades ecológicas da natureza e das significações e sentidos atribuídos à
natureza pela cultura, além dos princípios da “qualidade total” e da “tecnologia limpa da
nova ecoindústria, assim como da qualidade de vida derivada da “soberania do
consumidor”. A racionalidade ambiental que daí emerge se distancia de uma concepção
conservadora e produtivista da natureza para converter-se em uma estratégia para a
reapropriação social da natureza, baseada na valorização cultural, econômica e
tecnológica dos bens e serviços ambientais da natureza. A racionalidade ambiental
desemboca em uma política do ser, da diversidade e da diferença que reformula o valor
da natureza e o sentido da produção (LEFF, 2006, p. 69).
Perguntou-se em que medida essa experiência pode ser considerada importante
para o desenvolvimento local, ao que relataram:
200
conhecimento da produção e comercialização de alimentos
agroecológicos. Contribui para melhorar a renda desses agricultores e
esse recurso “ficar” na economia local (Consumidor 11).
201
A consumidora relatou que desde esse tempo, mesmo com a limitações da feira,
ela se tornou assídua, e no seu caso, a motivação maior para tal foi a busca por mais
saúde através do alimento. Pois, há uma década ela começou a se preocupar mais com a
qualidade de vida, nesse sentido ela afirmou “eu passei a me preocupar mais com o que
a gente está comendo, e principalmente, respeito ao meio ambiente”. Para ela, o
caminho percorrido foi mais estudo sobre a identidade e cultura, uma vez que sua área
de trabalho é a educação. Sobre esse momento ela narra:
Então, nessa busca você vai se deparar com o orgânico, então, como a
gente mora aqui, e a gente não tinha acesso a muita coisa, a feira
acaba sendo uma espécie de oásis no deserto. E quando a feira começa
tem aquela ideia, poxa tem alguém aqui que está fazendo alguma
coisa, é possível, então. E daí quando eu começo a ir para a feira,
porque não é só comprar o alimento, é conversar com os produtores,
saber como eles chegam até ali, quais são as dificuldades que se tem.
Nessa primeira fase, a consumidora relatou que havia poucos clientes, assim
como uma pouca quantidade de produtos, e ela ouvia das pessoas que não adiantava ir
para esse espaço, porque além de acordar cedo, havia poucas opções de produtos. Para a
consumidora, desde esse momento, era melhor comprar na feira do que se dirigir aos
outros espaços de comercialização, uma vez que para ela, a compreensão desse alimento
girava em torno de conceitos que ela considera importante, como a relação direta entre
orgânico, meio ambiente e saúde, nesse sentido ela afirma “E começou a dar retorno, do
ponto de vista da saúde, e do ponto de vista do social”.
Nos últimos três anos, a consumidora ressalta que se tornou mais próxima aos
agricultores e isso a levou a entender a lógica de produção e como essa está relacionada
a presença ou ausência de alimentos e sua relação com os aspectos mais gerais, como
por exemplo:
202
magistério, e eu comecei a pensar o que eu ia fazer, porque comecei a pensar que, eu só
me aposento se tiver outro projeto de vida para esse segundo momento da minha vida”.
Em seu relato, ela afirmou que estar mais próxima aos produtores a ajudou a
compreender dimensões da cultura destes, e como esses elementos ajudaram a respeitar
mais essa experiência, sobretudo, pelas dificuldades que esses atores enfrentam, pois
para ela:
Aqui você abre uma torneira e tem água em todo instante, e lá eles não
têm água, como é que essas pessoas produzem, como que elas vivem?
É uma coisa impressionante, e você não tem esta dimensão estando do
lado de cá, você não tem essa dimensão indo a um supermercado,
apenas. Ou indo até mesmo a uma feira mais organizada”.
203
um conceito humano fora de si mesmo, como se fosse um homem
falando com homem, usando as coisas como meio de comunicação.
Então, quando a gente volta e diz o que acontece, eles já sabem o que
que é, o que é fundamental, porque já sabem que não podem molhar.
Então, eles já têm muito cuidado, o que eu acho muito bacana nisso
também, quer dizer, ninguém fica chateado, e ninguém vai achar que o
consumidor está reclamando, mas é um retorno de como está o
produto.
Sobre a tecnologia PAIS, a consumidora informou que para ela foi a grande
descoberta no que diz respeito a APROFAM, pois:
204
por outro, então, na falta, é melhor ficar sem. Antes eu não tinha essa
dimensão, quando comecei a frequentar a feira, ah, não tinha a
cenoura, eu comprava a outra, agora, não é mais assim. E o que me fez
ficar assim foi o próprio processo de mudança, a descoberta da
alimentação saudável. E você vai vendo os outros fatores que estão
nesse processo, e o fator social e político é muito forte.
205
consumidores dos dados levantados mediante aplicação dos referidos questionários
(figura 42).
Nesse primeiro momento do encontro tornou-se evidente através da participação
dos consumidores, em média 30 pessoas, o interesse em compreender a FAM, assim
como, colaborar para o seu fortalecimento. Houve questionamento por parte dos
consumidores sobre a pouca oferta de algumas culturas, como por exemplo, o tomate
cereja, ou mesmo o tomate comum. Nesse momento, os agricultores e agricultoras
expuseram suas dificuldades técnicas de produção, e limitações para a expansão de
maior oferta. Os consumidores presentes demonstraram interesse em contribuir de
forma mais efetiva para maior efetivação da FAM. Alguns, inclusive, já haviam visitado
locais de produção durante as visitas técnicas realizadas pelos agricultores, agricultoras,
consumidores e entidades parceiras. Após os momentos de diálogo, houve a
disponibilidade de um lanche agroecológico para os consumidores (figura 43).
206
produtores e produtoras realizaram um café da manhã aberto ao público e contou com a
participação de representantes de diversas instituições (SEBRAE-RN, PMM,
Cooperativas, EMATER-RN, Grupos de Arte Local, Impressa, FBB, UFERSA, IFRN,
Assembleia Legislativa do Estado, Escolas Municipais e Estaduais). Esse momento
aconteceu em um dia de comercialização, então, os consumidores estavam presentes. Na
ocasião, as barracas contaram com uma diversidade de produtos, graças a incidência
maior de chuvas no ano corrente, as figuras 44, 45, 46 e 47 mostram esse momento de
festa na APROFAM.
Figuras 44: Momento de café da manhã e comercialização na feira; Figura 45: Agricultora Sebastiana
na feira.
Fonte: Pesquisa
207
CONSIDERAÇÕES FINAIS
208
comercialização. A questão sucessória trata-se de um elemento de fragilidade de
algumas famílias, uma vez que em alguns casos, os filhos não trabalham com os pais, e
esses consideram que não terão a quem passar esse conhecimento acerca da produção. O
significado que os produtores e produtoras têm da produção agroecológica, bem como
da comercialização, é que esta experiência, embora com todos os desafios tem dado
melhores condições para a família, tanto no que diz respeito ao consumo alimentar da
família, bem como no que diz respeito a comercialização, que além de melhorar a renda
da família, tem possibilitado um contato direto com o consumidor que para a maioria,
isso já valida essa experiência.
A transição para a agroecologia não tem sido fácil para os atores sociais ao
longo do tempo, mas, sobretudo para os que já produzem há dez anos, o solo de que
disponibilizam hoje é bem melhor, e produzirem com diversidade para as unidades de
produção tem proporcionado maior rendimento às famílias. O desafio do acesso a água
para produção está presente em quase todas as unidades, para isso, os produtores se
adaptam, e também são abertos a novas tecnologias, bem como há casos em que
precisam comprar água. Com isso contam com um coletivo de instituições (SEBRAE;
UFERSA; Cooperativas; EMATER-RN; PMM, dentre outras) que tem apoiado a
APROFAM. Desse modo, a agroecologia induz a uma visão holística sobre o campo, no
sentido de reconhecer os diversos atores sociais que estão presentes nesse espaço, e
ainda a importância desses atores assumirem sua condição de autonomia frente ao
modelo hegemônico de produção alimentar.
A APROFAM tem hoje espaços de comercialização diversificados, sendo o que
conta com maior fluxo contínuo de consumidores, a comercialização do sábado na praça
do Museu. Embora a maioria dos produtores tenha dificuldade em acessar os outros
locais de comercialização, eles se reúnem e decidem mandar os produtos pelos
produtores, para que não deixem faltar produtos para os consumidores, bem como,
perder a oportunidade de vender. Há também os produtores que vendem à domicilio as
cestas agroecológicas.
A relação agricultor e consumidor tem sido fortalecida no âmbito da
APROFAM, e para a maioria dos produtores, essa relação tem validado e fortalecido
essa experiência criando e estabelecendo laços de confiabilidade e reciprocidade para
ambos os atores. Os produtos já são percebidos pela maioria dos clientes como sendo
distintos dos produtos das prateleiras dos supermercados, nos quesitos de qualidade que
dizem respeito a cheiro, sabor, frescura e durabilidade. A proximidade entre agricultores
209
e consumidores, não diz respeito apenas à aproximação geográfica, pois, é uma
tendência não só no Brasil, mas, por exemplo, igualmente na Europa a abertura de
pequenas lojas para atender a demanda do mercado local, mantendo-se, contudo, o
modelo de produção e distribuição hegemônicos. Por isso, é preciso de fato, atentar para
a relação produtor/agricultor e consumidor.
Na Feira Agroecológica identificou-se um processo de diálogo entre
agricultores, agricultoras e consumidores, além da preocupação dos produtores em estar
aproximando os consumidores para compreender o processo complexo da feira, e assim,
associarem a defesa dessa experiência à manutenção da agricultura camponesa nesse
território. Identificamos ainda que os integrantes da APROFAM são ativos na produção
agroecológica e dividem-se para participarem com assiduidade das capacitações,
congressos e atividades de defesa da agricultura ecológica. Embora, eles interajam com
as outras iniciativas agroecológicas presentes no Estado, essas pessoas têm uma
dinâmica própria de trabalho, em que permitem as confluências na medida em não
interfiram em seus propósitos de fortalecimento do circuito curto em questão.
No que diz respeito ao perfil dos consumidores da APROFAM, evidenciou-se
que em sua maioria trata-se de pessoas com nível de formação superior, pessoas
preocupadas com a saúde em primeiro lugar, e secundariamente com a sustentabilidade
ambiental e social desse modo de produção. Evidenciou-se também laços de confiança e
reciprocidade por parte dos consumidores, uma vez que acreditam que precisam
consumir esse alimento, pois assim estarão fortalecendo a agricultura familiar.
Inclusive, há consumidores que frequentam também, os espaços de produção. Percebeu-
se também que a feira, sobretudo, a que acontece aos sábados, é um momento de
encontro entre os consumidores, é comum ver-se nesse dia, rodas de conversas após as
compras.
Torna-se claro que as pessoas que se tornam fiéis aos dias de comercialização da
feira agroecológica consistem ainda nos que sentem que nas prateleiras e corredores dos
supermercados está a mais clara evidência da dieta moderna, onde espécies estão
desaparecendo, tornando-se extintas da dieta humana, representando um risco para a
saúde, e perda considerável de capital natural, cultural e social, com referência em
Pollan (2008).
É válido ressaltar que esse circuito curto tem permanecido ao longo do tempo
devido a uma série de fatores, tais como, protagonismo dos atores e das suas famílias,
apoio de instituições, confiabilidade e reciprocidade por parte dos consumidores. Ao
210
passo em que reflete-se que suas fragilidades decorrem também de uma série de
elementos que são centrais para o fortalecimento dessa experiência, tais como políticas
públicas construídas em coletivo com esses atores, na perspectiva proposta por Sen
(2010), bem como acesso a tecnologias que estejam pautadas pelos princípios da
Convivência com o Semiárido (Silva, 2006).
Ademais, a prática da agricultura camponesa nessa região apresenta dinamismo
e potencialidade, pois há diversificação de atividades nos aspectos produtivos e de
comercialização. Essa relação pode ser percebida de diversas formas, venda direta dos
produtos agrícolas nas feiras agroecológicas, pequenos circuitos de distribuição, dentre
outros. É mister salientar que essas atividades estão sempre relacionadas à essência da
condição camponesa, além de valorizar o espaço rural, renovando também as relações
sociais entre campo e cidade, como ressaltam Bové e Dufour (2001).
Apreende-se dessa experiência que a inserção da agricultura familiar nos
circuitos curtos trata-se de uma realidade que tem sido fortalecida nas últimas décadas, e
por isso, faz-se necessário mais estudos e pesquisas que possam compreender essas
experiências em sua essência, captando também, seus limites e possibilidades.
211
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222
APÊNDICES
223
APÊNDICE I
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
CIRCUITOS CURTOS COMO ESTRATÉGIA DE MANUTENÇÃO DA
AGRICULTURA CAMPONESA: O CASO DA FEIRA AGROECOLÓGICA DE
MOSSORÓ-RN
QUESTIONÁRIO: PRODUTORES
1) IDENTIFICAÇÃO:
Nome:
Localidade:
Município:
Dados da família:
2) PROPRIEDADES SOCIAIS DO PESQUISADO (A):
História, origem, tempo de moradia
Relações externas e as experiências com o mundo urbano:
Nível tecnológico na produção:
Perfil socioeconômico:
Questão sucessória no estabelecimento familiar:
Participação em movimentos sociais, associações e organizações:
Posição de liderança local na comunidade ou no empreendimento:
3) DADOS DO EMPREENDIMENTO FAMILIAR
Estrutura fundiária:
Atividades agrícolas e não-agrícolas:
Há quanto tempo pratica a produção agroecológica:
Processamento de produtos:
Nível das instalações e benfeitorias:
Força de trabalho: familiar/contratada:
Todos da família trabalham na produção agroecológica?
Trabalham fora? Qual atividade?
Instituições que assistem a propriedade?
Acessa outros mercados?
4) SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL E SOCIAL: PRODUÇÃO
AGROECOLÓGICA
Como era a produção antes da agroecologia?
De que forma produz?
O que produz?
Dispõe de água para a produção?
Dispõe de assistência técnica?
Como é feito o controle de pragas?
O que motivou a produzir dessa forma?
Quais dificuldades tem encontrado para produzir?
Se a feira parar de funcionar, o que faria?
5) SEGURANÇA ALIMENTAR
Como era a alimentação da família antes da produção agroecológica?
A alimentação da família provém produção agroecológica?
O que é comprado fora?
224
6) RESGATE HISTÓRICO DA INICIATIVA
9) LIMITES E DESAFIOS
1. Quais são os principais limites para o desenvolvimento e sustentabilidade dessa
experiência;
225
APÊNDICE II
Nome:
Contato/E-mail:
Idade:
Profissão/Ocupação:
Há quanto tempo frequenta a feira:
Frequência:
( ) Quase todos os sábados
( ) Quinzenalmente
( ) Média de uma vez ao mês
( ) Raramente
Em que horário:
( ) 5 -5:30 ( ) 6:30-7h
( ) 5:30 – 6h ( ) 7h – 7:30
( ) 6h – 6:30 ( ) 7h em diante
Gasto médio na FAM:
( ) Até R$ 20,00 ( ) De R$ 50,00 a R$ 100,00
( ) De R$ 20,00 a R$ 50,00 ( ) Acima de R$ 100,00
Como conheceu a APROFAM?
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______________________________________________________________________
Por que você compra na APROFAM?
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Por que você confia nesse produto? Ele tem qualidade?
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Qual a diferença entre comprar na feira e comprar no supermercado? Você acha que os
produtos são iguais?
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Você conhece os produtores? Já visitou algum local de produção? Há relação de
amizade, confiança, negócio, ou nenhuma?
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Como você se sente nessa relação produtor e consumidor? Você compra sempre do
mesmo agricultor (a)? Por que?
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Você acha o preço justo? Pede desconto?
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Tem conhecimento do modo de fazer utilizado pelo agricultor(a) para a produção dos
alimentos comercializados na APROFAM?
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O agricultor/feirante deve comercializar o que produz, ou pouco importa?
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Em que medida você considera que essa experiência é importante para o
desenvolvimento local?
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______________________________________________________________________
O alimento que você adquire na APROFAM é importante para você e sua família? De
que forma?
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Se a feira deixar de acontecer, isso representa alguma mudança para a alimentação da
sua família?
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Quais desses produtos você consome:
Tem algum produto que você adquire, mas não está listado acima?
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