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Mas o contemporâneo também pode ser visto como o resultado de múltiplas
determinações e da unidade de contrários que lutaram, na concretude e nos limites do
real, pela realização de suas imanências no tempo passado e que ainda se
transformam mutuamente no presente. O tempo histórico (essa espécie de presente
estendido) em que vivemos e que chamamos de contemporâneo, além de herdeiro das
lutas antepassadas, é também o tempo das lutas dos agentes vivos pela realização de
futuros possíveis.
Assim, o mundo e o contemporâneo que merecem ser vividos são aqueles em que
podemos tomar consciência dos limites e possibilidades reais da humanidade e agir
de tal forma; aqueles em que se reconhece não ser possível fugir da vida como drama,
seja através de ilusões de redenção, ou de concessões desumanizadoras que
assegurem a um ou outro um fragmento de emancipação política – lutando, assim,
uns contra os outros por esses ilusórios privilégios.
O tipo de humanismo aqui defendido como forma de ver o contemporâneo muitas
vezes pode ser interpretado como determinista, pois ele persiste na busca pela
apreensão do movimento geral do real, pela possibilidade de haver mesmo um real e
seu movimento geral a ser apreendido. Mas talvez seja preciso um raso conhecimento
sobre esse humanismo, ou mesmo reconhecimentos invertidos e idealizados da
totalidade para se pensar assim. Com os "óculos" desse humanismo é possível nos
aproximarmos da apreensão do concreto em sua estrutura e dinâmica. Torna-se
possível a compreensão (e a vivência) do contemporâneo como elemento vivo do
entrelaçamento histórico (passado, presente e futuro) que expressa os conflitos de
sujeitos que agem agrupadamente segundo os interesses da suas posições comuns
nas hierarquias das sucessivas formas de organização da reprodução social.
O olhar post festum nos educa a perceber que o nosso objeto (por exemplo, o
contemporâneo) existe na sua aparência e na sua essência. Mas nem o mundo
sensível é todo o mundo (um mundo pseudoconcreto); nem o sensível, o aparente,
mente sobre a essência; nem aparência e essência vão coincidir entre si – o que
dispensaria o olhar curioso, persistente e crítico para compreendê-lo.
Dessa forma, para nos integrarmos potentemente ao nosso tempo e ao concreto,
torna-se necessário equiparmos-nos com tais "óculos". Com eles podemos decifrar os
"borrões" e formas sociais – tão incompreensíveis quanto sugestionáveis (como
nuvens que tomam formas humanizadas no céu) – como aquilo que são de fato:
relações, interesses, necessidades que lutam entre si pela sua eternização e
naturalização – custe o que custar.
Assim, saltando do abstrato para o concreto, o que nosso contemporâneo diz sobre
nosso passado? Este é o tempo histórico da superpopulação e da primazia humana
sobre toda e qualquer forma de vida; é o tempo em que essa primazia se impõe como
dominação e consumação (aquilo que se torna meio de satisfação mediante sua
destruição); é um tempo de dilaceração e negação do humano (esteja ele na sua
criação material e imaterial, em sua intersubjetividade, ou na natureza que ele
significou para si); é o tempo da ciência como técnica de gerenciamento do velho
contra o novo, e não como meio de afloramento do novo. Mas porquê e como
chegamos neste contemporâneo? O que nos diz o passado sobre o presente?
Entretanto, com o tempo, alguns de nós perceberam que suas possibilidades de
efetivação poderiam ser maiores tanto em relação à capacidade e criatividade
produtiva sua, quanto a do seu coletivo. Entenderam que o meio para essa específica e
diferenciada relação social de efetivação era a desefetivação dos demais. Alguns de
nós pretenderam ter mais do que todos poderíamos ter juntos. Para isso, se fazia
necessário criar relações sociais capazes de privar os demais seres sociais dos meios
produção da vida; dos produtos do trabalho humano surgidos desses meios; dividir os
homens e mulheres em tarefas separadas e cada vez mais específicas e
hierarquizadas, evoluindo essas divisões em classes sociais.
De volta ao presente, encontramos o contemporâneo com um estranho cheiro de velho
– aquele que sentimos quando abrimos as embalagens dos nossos novos
computadores, tablets, celulares e carros inteligentes. Depois de ser uma contraditória
força criadora e civilizacional (de um tipo particular de civilização), a forças da
Modernidade fecharam-se em si mesmas na sua luta contra o novo, contra tudo e
contra todos, pela sua reprodução.
Com sua inteligência artificial, big data, telecomunicação ultrarrápida e seus mitos de
empreendedorismo, a 4ª Revolução Industrial desmembrou, precarizou e espalhou a
linha de produção por todo o mundo globalizado. Com isso, enfraqueceu ainda mais os
laços de solidariedade entre os desefetivados. As barreiras da segurança ambiental
foram literalmente rompidas em nome do lucro, alterando o clima, o ciclo de chuvas,
extinguindo rios e outros sítios de vida. E os sofrimentos do estranhamento,
intensificados nesses tempos vertiginosos, são tratados como patologias para as
quais há diagnósticos, médicos, remédios, aplicativos e o que mais puder ser vendido.
Arrastados por essa "fábrica social", subsumidos pela necessidade cada vez mais
exigente e insaciável do velho em reproduzir as condições sociais da sua
sobre-vivência, agora é a sociabilidade que é externalizada do ser social. A nossa forma
de construção identitária individual e coletiva, nossa capacidade humana de
colaboração e de produção de cultura têm sido cada vez mais alienadas do social e
reificadas através dos "jardins murados" – as redes sociais. Cada vez mais aspectos e
dimensões da sociabilidade só podem ser realizados lá dentro. Nos jardins murados
do Facebook, Instagram, Tinder e similares, a sociabilidade se torna coisa, valor de uso
– e causal e simultaneamente, valor de troca, mercadoria. Então, para se viver a
sociabilidade-mercadoria é preciso consumi-la. Mas para consumi-la é preciso trocá-la
por algo que interesse ao seu dono.
Porque se tornou coisa imaterial útil – uma abstração real –, a
sociabilidade-mercadoria só pode ter seu valor de uso consumido enquanto ela é
produzida pelo seu próprio consumidor. Ao ingressar nos jardins murados, o que o
consumidor recebe é o direito de usar os meios para produzir a sua mercadoria ao
mesmo tempo que ele a consome.
Mas o que o dono da sociabilidade-mercadoria se apropria, se na sua aparência, a
troca não se dá pela cessão da forma-dinheiro em posse do "cliente"? Para e ao
realizar o consumo, os "clientes" precisam produzir (e ceder o direito econômico
sobre) cópias digitais de suas experiências de vida – além de outros marcadores do
seu comportamento e da sua subjetividade, que assumem a forma dos dados que são
coletados nos nossos novos dispositivos digitais. Fotos, vídeos, textos, como
movemos os olhos e o mouse, nossa localização, o jeito como andamos quando
estamos com o celular no bolso, onde clicamos, o que compramos, como digitamos,
ouvimos, assistimos, tudo é transformado em dados. Estes dados são organizados
pela inteligência artificial, que nos agrega em perfis psicométricos, que por sua vez são
alugados a outros portadores de mercadorias que precisam ser trocadas pela
forma-dinheiro, como meio de realização do seu capital. Esses mercadores podem
assim nos oferecer mercadorias que, sabidamente por eles, se colam a desejos,
medos, expectativas que podemos até mesmo desconhecer sobre nós.
Assim, mais uma vez, objetivamos no mundo produtos que estranhamos e que
assumem as formas fetichizadas da mercadorias e do valor (a sociabilidade reificada);
não possuímos e não controlamos os meios de produção dessas mercadorias que
passamos a precisar consumir (as redes sociais); ao estranharmos essa relações
produtivas (sequer suspeitamos que existem!), estranhamos também o gênero
humano, agora na forma de curtidores, fãs, haters, concorrentes; e, com isso,
estranhamos a nós mesmos, pois para sorver essa sociabilidade e se realizar nela,
precisamos ser outro, aquele a quem os algoritmos podem (ou não) nos privilegiar
com um l ike, uma visualização, um match.
Se essa nova outra forma tardia de relação social é uma forma de alienação, disso
resulta que, para viver nela, produzimos também uma (inter)subjetividade alienada,
mistificada, castradora, sublimada em novos fetiches; produzimos o insaciável desejo
de desejar não apenas as mercadorias, mas também e principalmente o direito de viver
no e sob o reino das coisas que têm vida própria.
Esta parece ser a última (até então) fronteira de disputa entre o velho e o novo pelo
direito de se realizar nos contemporâneos construídos socialmente por todos nós.
Último, porque está além de outras capturas, como os genes, o bioma, o nano e o
cósmico, pois passa a colonizar e moldar a forma de darmos sentidos pessoais aos
significados sociais dessas dimensões da totalidade até então desconhecidas.
Para concluir, entretanto, é preciso – graças àqueles "óculos"! – revelar que o ser
social não é e não pode ser plenamente subsumido, impedido de desconfiar e, ainda
que subversivamente, desejar sua reefetivação, reconciliar-se com seus produtos, seus
meios de produção, consigo e com seu gênero – elevar-se como ser antropocósmico!
Não somos – nunca fomos – vítimas indefesas e incapacitadas para atravessar essa
velha contemporaneidade.
Trata-se da necessidade de uma práxis revolucionária. Aquela capaz de descobrir
como os operários da fábrica social em que se tornou a contemporaneidade – tão
distintos daqueles dos séculos XIX e XX –, podem se reconhecer como comuns; como
podem, em meio à sua diversidade, agir como comuns; como podem resistir, criar,
aprender, ressignificar, criar forças para a única tarefa que pode nos apresentar ao
novo: destruir o velho.