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03/11/2010 Veja 03/09/97

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Os astros da degola
Um banho de sangue coroou a campanha
em que o Brasil defrontou o Brasil

Foto: Flavio de Barros

Acima, o corpo do
Conselheiro, depois de
desenterrado. Ao lado, o
Conselheiro, o marechal
Bittencourt e a 'Matadeira'
convivem em paz na
Foto: Orlando Brito praça de Monte Santo

No dia 18 de julho de 1897, o jornal O País, do Rio de Janeiro


um dos principais da então capital federal, dirigido pelo
eminente Quintino Bocaiúva , publicou um artigo em que se lia,
sob o título "O monstro de Canudos":

"O monstro, ao longe, nas profundezas do sertão misterioso, escancara as


guelras insaciáveis, pedindo mais gente, mais pasto de corações
republicanos, um farnel mais opulento de heróis..."

A frase é longa, façamos uma pausa. Canudos é, entre outras coisas, um


fenômeno de imprensa. Os principais jornais do Rio, de São Paulo e de
Salvador enviaram correspondentes à guerra, especialmente depois do
trauma da derrota da expedição Moreira César. Pela primeira vez, fazia-
se no Brasil a cobertura maciça, diária e direta de um determinado evento.
Euclides da Cunha foi enviado pelo jornal O Estado de S. Paulo, e isso
possibilitou-lhe o início da coleta do material para o livro que publicaria
cinco anos depois. Outros jornalistas de primeira linha foram enviados à
frente. O telégrafo, conquista recente no país, estendido até Monte Santo
para as necessidades da ocasião, fornecia o suporte técnico ao
empreendimento. Continuemos a frase:

"...e a fera ir-se-á abastecendo e devorando até que num assomo de raiva,
ao sentir a falta de ucharia, desse abastecimento de corpos, desgrenhe a
juba e com um arranque de sua pata monstruosa queira esmagar a pátria,
em crepe pela morte dos seus filhos mais amados, pelo massacre do seu
exército glorioso!"

Casa atual de sertanejo:


queimam, afogam,
e Canudos ressurge
Foto: Orlando Brito

Trata-se de um animal fantástico, como observa a professora Walnice


Galvão, autora de No Calor da Hora, livro que reúne as coberturas de
imprensa da guerra. Tem guelras de peixe e juba de leão. Custa crer que
se levasse a sério que o arraial miserável do Conselheiro, situado um
pouco para lá do fim do mundo, representasse tal ameaça à pátria. E, no
entanto, pelo que se lia nas páginas arrebatadas dos jornais, frementes de
patriotismo, levava-se sim.

Uma grande mobilização nacional seguiu-se à derrocada da terceira


expedição. A quarta haveria de ser muito maior e mais equipada, e de não
ter piedade dos lesas-pátrias do sertão, incapazes de compreender as
excelências do regime republicano. Para comandá-la foi escolhido o
general Artur Oscar de Andrade Guimarães. Ao aceitar a missão, Artur
Oscar declarava: "Todas as grandes idéias têm os seus mártires; nós

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estamos votados ao sacrifício de que não fugimos para legar à geração
futura uma República honrada, firme e respeitada". Euclides da Cunha, que
nos seus despachos de repórter seguira a sanha patrioteira em voga, mas
que no seu livro "vingador", como dizia, adotou uma postura crítica,
escreve, em Os Sertões: "A paixão patriótica roçava, derrancada, pela
insânia".

Mais de 5 000 homens foram mobilizados para a nova ofensiva.


Reuniram-se batalhões do Rio Grande do Sul ao Amazonas, e as forças
dessa vez foram divididas em duas colunas. A primeira, como as duas
anteriores, se concentraria em Monte Santo. A segunda esta era a
grande novidade partiria de Aracaju para Canudos, comandada pelo
general Cláudio Savaget. Todos os recursos do Exército foram
mobilizados. A primeira coluna, com a qual viajava o general Artur Oscar,
contava com uma arma assombrosa: um canhão Withworth de 32
milímetros, que seria apelidado de "Matadeira" pelos sertanejos. Tratava-
se de um trambolho de 1 700 quilos, que precisava de vinte juntas de boi
para ser arrastado. A Withworth entupia os caminhos e retardava a
marcha, mas, como escreveu Euclides, "era preciso assustar os sertões
com o monstruoso espantalho de aço".

Casa do arraial: Euclides


horrorizou-se com a "urbs
monstruosa"
Foto: Flavio de Barros

Hoje, a "Matadeira" repousa pacificamente nos jardins da praça de Monte


Santo. Ou melhor: o que resta dela, pois o canhão espantoso terminaria
por sofrer quase tantos estragos, pela imperícia com que era manejado,
quantos causou, ao longo da campanha. No jardim de Monte Santo, tem
como vizinhos uma escultura em madeira do Conselheiro e um busto em
bronze do ministro da Guerra à época do conflito, marechal Carlos
Machado Bittencourt. Sob o busto do marechal, uma inscrição datada de
22 de março de 1973 época do regime militar informa que
Bittencourt "esteve neste local, berço da Intendência, prevendo e
provendo".

Sim, foi necessária a presença do próprio ministro, para prever e prover.


Pois a força avassaladora reunida para vencer os sertanejos, mais de 5
000 homens, duas colunas, Matadeira e tudo, acabou, uma vez em
Canudos, atrapalhada e impotente como as expedições anteriores. A
primeira coluna, apanhada numa armadilha no Morro da Favela, foi salva
por pouco, ao conseguir a junção com a segunda. Depois de um mês de
combate, a tropa parecia, segundo Euclides, "uma aglomeração de
fugitivos". Dos 5 000 soldados, 900 estavam fora de combate mortos
ou feridos. A fome grassava. Por conta própria, e ao risco de cair nas
numerosas armadilhas dos sertanejos como de fato muitos caíram , os
soldados organizavam grupos para caçar bodes ou o que houvesse para
comer. E, para culminar, do arraial lá embaixo produzia-se aquele
sortilégio que dava mais medo ainda:

"Ao cair da noite de lá ascendia, ressoando longamente nos descampados


em ondulações sonoras, que vagarosamente se alargavam pela quietude
dos ermos e se extinguiam em ecos indistintos, refluindo nas montanhas
longínquas, o toque da Ave Maria..."

A situação crítica resultou em nova promoção à guerra do sertão. A


primeira expedição havia sido comandada por um tenente, a segunda por
um major, a terceira por um coronel e a quarta começara com um general.
Agora era a vez de um marechal, e Bittencourt desembarcou em Monte
Santo ao mesmo tempo que para lá afluíam reforços que montaram a 3
000 homens suplementares. Não era no aumento das tropas, porém, nem
nos grandes movimentos estratégicos, que ele fixaria sua atenção. O
ministro da Guerra decidiu que sua função seria comprar burros mansos e
organizar comboios, para levar comida aos combatentes. E foi então que
se deu a virada. Regularizado o abastecimento da tropa, graças ao desvelo
do marechal, que chegava a cuidar pessoalmente da partida dos burros
com suas cargas, o relógio na mão, para apressá-los, o Exército começou
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03/11/2010 com suas cargas, o relógio na mão, para apressá-los, o Exército
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começou
a ganhar a guerra. "Mil burros mansos valiam na emergência por dez mil
heróis", escreveu Euclides. Contra a pata infame do monstro descrito no
artigo de O País, mobilizava-se a pata vulgar do muar de carga.

E veio o cerco, o bombardeio impiedoso, o massacre, o incêndio do


arraial. Tornaram-se célebres as degolas praticadas em Canudos as
"gravatas vermelhas" aplicadas no pescoço dos conselheiristas. Os
soldados exigiam que os prisioneiros gritassem "Viva a República", mas
muitos gritavam "Viva o Conselheiro". Sabiam que iam morrer, com um
grito ou outro. "Aquilo não era uma campanha, era uma charqueada",
escreve Euclides. Mesmo porque quem praticava as atrocidades tinha a
certeza da impunidade não havia a temer nem o castigo dos chefes nem
o juízo do futuro. "A História não iria até ali", escreve Euclides, num dos
trechos mais inspirados de seu livro. "O sertão é o homizio." E ainda:
"Canudos tinha muito apropriadamente, em roda, uma cercadura de
montanhas. Era um parêntese; era um hiato; era um vácuo. Não existia.
Transposto aquele cordão de serras, ninguém mais pecava".

Um estudante de medicina de Salvador que esteve na guerra com o corpo


médico, Alvim Martins Horcades, descreveu num livro publicado antes de
Os Sertões (Descrição de uma Viagem a Canudos), e com uma crueza
a que Euclides não chegaria, a degola dos prisioneiros. "Belo exemplo de
civismo e progredimento social!", escreve Horcades, com indignação.
"Levar-se homens de braços atados para trás, como criminosos de lesa-
majestade, indefesos, e perto mesmo de seus companheiros, para maior
escárnio, levantar-se pelo nariz a cabeça, como se fora a de uma ave, e
cortar-lhes com o assassino ferro o pescoço, deixando cair a cabeça
sobre o solo é o cúmulo do banditismo praticado a sangue frio, como se
fora uma ação nobilitante!"

Escreve ainda:

"Acontecia certas ocasiões estarem muitos daqueles miseráveis dormindo


e serem acordados para se lhes dar a morte. Depois de feita a chamada,
organizava-se aquele batalhão de mártires, de braços atados, arrochados
um ao outro, tendo cada qual dois guardas e seguiam... seguiam para
ainda uma vez provar cabalmente a sua coragem intimorata. Caminhavam
um pequeno pedaço de terra e lá ia sendo assassinado um após outro.
Eram encarregados desse serviço dois cabos e um soldado, a mando do
sanguinário alferes Maranhão, os quais, peritos na arte, já traziam os seus
sabres convenientemente amolados, de maneira que, ao tocarem a
carótida, o sangue começava a extravasar-se, sendo então decepada toda
aquela região, de modo a produzir um jorro de sangue, tendo pouco mais
ou menos 25 centímetros de espessura, em circunferência".

Horcades conta que a princípio as execuções eram feitas à noite, mas


depois se tornaram "cousa naturalíssima", e "eram eles supliciados mesmo
ao clarão dourado dos raios solares, e as turmas duplicaram, triplicaram e
quadruplicaram".

Em 6 de outubro de 1897, dia seguinte à tomada de Canudos, descobriu-


se o local onde tinha sido enterrado Antônio Conselheiro. Foi
desenterrado. Fotografaram o cadáver. Então, com uma faca afiada, mais
uma vez praticaram aquele ato tão repetido deceparam-no. A cabeça
foi levada a Salvador, para ser examinada pelo professor Nina Rodrigues,
que acreditava, com seu mestre Lombroso, que os loucos, os criminosos e
os perturbados de toda espécie apresentavam traços de seus desvios
medonhos já a partir da conformação do crânio.

Sessenta anos depois, o sertão era visitado pelo cachorrinho Samba. O


cachorrinho Samba é um personagem da escritora de livros infantis Maria
José Dupré. Em O Cachorrinho Samba na Bahia, um dos volumes da
série, publicado em 1957, o cachorrinho paulista visita Canudos. Ele
aprende então que os sertanejos, "sendo pessoas atrasadas, mal sabendo
ler ou sem instrução alguma, acreditavam em tudo que dizia o
Conselheiro". Muitos dos habitantes de Canudos não trabalhavam
"viviam tocando viola de papo pro ar". Quando faltavam alimentos, "saíam
aí pelo sertão, roubavam bois, mantimentos, tudo o que podiam". E depois
chegavam a Canudos "com cara de inocentes e iam rezar na igreja". A
visão da senhora. Dupré, autora também do conhecido Éramos Seis, é da
Guerra de Canudos como "um ato de delinqüência", como nota Clímaco
Dias, pesquisador da Universidade Estadual da Bahia que, num artigo, foi
desencavar a reveladora peça.
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Por mais que se a queime ou afogue, Canudos sempre ressurge, porque há


Canudos para todos os gostos. Para Maria José Dupré, "o Conselheiro
era ignorante, não sabia nem interpretar a religião, fazia tudo à moda dele".
Para os padres da Teologia da Libertação, um dos quais, o padre Enoque,
de Monte Santo hoje ex-padre , costumava agitar a região, até há
poucos anos, organizando os camponeses sob a égide de Antônio
Conselheiro, este seria um revolucionário, um Che Guevara do Morro da
Favela assim como o outro era de Sierra Maestra. Ou, então, seria um
apóstolo dos sem-terra, e Canudos um antecessor do Pontal do
Paranapanema. Para outros ainda, se trataria de um fenômeno puramente
religioso messianismo, milenarismo, ou qualquer outro nome erudito que
se lhe dê. A controvérsia se desdobra na maneira de encarar a
comunidade do Conselheiro. Para alguns, seria uma sociedade erigida em
bases comunistas e igualitárias. Outros notam a existência, em Canudos,
de comerciantes, como Antônio Vilanova e Joaquim Macambira, que não
só detinham poder econômico como status privilegiado junto ao
Conselheiro. Canudos é um caso sério, porque mexe ao mesmo tempo
com dois valores humanos dos mais perturbadores, a fé e a utopia.

Canudos ressurge a todo momento também no sentido de que representa,


em sua versão mais sangrenta, o estranhamento dos brasileiros urbanos e
privilegiados com relação aos compatriotas pobres. Euclides, em seu livro
tão belo quanto contraditório, em que tanto desqualifica, com invectivas
racistas, as práticas dos brasileiros despossuídos, quanto lhes estende o
socorro da denúncia e da compaixão, horroriza-se com a arquitetura e o
urbanismo do arraial, que chama de "urbs monstruosa" e "civitas sinistra do
erro". Ora, nota o sociólogo Duglas Teixeira Monteiro, o padrão de
construção das casas que tanto escandalizou Euclides é "nada mais, nada
menos" que "a habitação comum do sertanejo pobre". A estranheza entre
brasileiros, no extremo, conduz a massacres como o de Vigário Geral, do
Carandiru ou da Candelária, assim como a batidas policiais como as de
Diadema e Cidade de Deus. Vige ainda a suposição de que nesses lugares
não se peca. Para usar a linda fórmula de Euclides, neles a História não
chega. Canudos, nesse sentido, é aqui, agora.

Há uma passagem em Os Sertões em que uma criança do arraial cai


prisioneira dos soldados. O menino fumava, "com a bonomia satisfeita de
velho viciado", enquanto discorria, com perfeito conhecimento de causa,
sobre as armas que, guerreiro precoce, manejava. "Aquela criança era,
certo, um aleijão estupendo", escreve Euclides. Um "bandido feito"
despontava "sobre os ombros pequeninos". E Euclides prossegue:

"Decididamente, era indispensável que a campanha de Canudos tivesse um


objetivo superior à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir um
povoado dos sertões. Havia um inimigo mais sério a combater, em guerra
mais demorada e digna. Toda aquela campanha seria um crime inútil e
bárbaro se não se aproveitassem os caminhos abertos pela artilharia para
uma propaganda tenaz, contínua e persistente, visando trazer para o nosso
tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes compatriotas
retardatários".

Hoje não se falaria em propaganda como remédio, e "os rudes


compatriotas retardatários" seriam chamados de outra coisa "excluídos",
é a moda , mas a questão da existência de um mar de brasileiros
deserdados da sorte persiste.

O professor Nina Rodrigues não encontrou no crânio do Conselheiro


traço de insânia. Ou sua ciência o traía, ou aquele irredento Maciel, não
contente, oferecia aos brasileiros cultos e racionais mais uma de suas
tantas surpresas. O crânio ficou guardado na Faculdade de Medicina da
Bahia até que, em 1905, o prédio foi tomado por um incêndio. Perdeu-se
então aquele pedaço do Conselheiro, junto com outras peças da coleção
de Nina Rodrigues, como o crânio de um famoso bandido, o Lucas da
Feira.

O caso do Conselheiro é apenas um entre muitos, na História do Brasil,


em que se adota a prática de cortar cabeças. Zumbi dos Palmares teve a
cabeça cortada, depois de morto, assim como Tiradentes e o líder da
Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, Gumercindo Saraiva. Idem
o cangaceiro Lampião, idem os crentes da comunidade do Caldeirão, um
fenômeno parecido com o de Canudos, ocorrido no Ceará nos anos 30
deste século. De certa forma, a galeria dos vencedores da História do

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Brasil confunde-se com uma galeria de astros da degola.

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O LEGADO DO
CONSELHEIRO
Cem anos depois, Canudos é uma ferida,
e um emblema do Brasil
Roberto Pompeu de Toledo

Canudos em chamas, numa foto


da época: calcula-se que 15000
pessoas morreram
Foto: Flávio de Barros

Onde ficava Canudos, hoje: açude no


lugar do arraial e, ao fundo, os morros
do Mário e da Favela
Foto: Orlando Brito

Vestia um camisolão azul, sem cintura. Tinha cabelos longos como


Jesus e barbas longas. Nos pés calçava sandálias para enfrentar o pó
das estradas e, a cabeça, protegia-a do sol inclemente com um
chapelão de abas largas. Nas mãos levava um cajado, como os
profetas, os santos, os guiadores de gente, os escolhidos, os que sabem o
caminho do céu. Saudava as pessoas dizendo "Louvado seja Nosso Senhor
Jesus Cristo". Respondiam-lhe dizendo "Para sempre seja louvado".
Chamava os outros "meu irmão". Os outros chamavam-no "meu pai". Foi
conhecido como Antônio dos Mares, uma certa época, e também como
Irmão Antônio. Os mais devotos o intitulavam "Bom Jesus", "Santo Antônio".
De batismo, era Antônio Vicente Mendes Maciel. Quando fixou sua fama,
era Antônio Conselheiro, nome com o qual conquistou os sertões e além. O
mais célebre cronista de suas aventuras, Euclides da Cunha, escreveu em Os
Sertões que poderia tanto ir para a História como para o hospício. Maldade
considerá-lo caso de hospício. Foi para a História, e nela cravou um marco
profundo um ferimento. Transformou-se num dos personagens mais
perturbadores da História do Brasil, figura central de um dos episódios mais
extravagantes, equivocados e trágicos da nacionalidade, e também dos mais
fascinantes, em que o Brasil defronta o Brasil, estranha o Brasil e choca-se
frontalmente com o Brasil.

A igreja de Crisópolis, feita pelo


Conselheiro: "Só Deus é grande"
Foto: Orlando Brito

A Guerra de Canudos, na qual, calcula-se, morreram 15 000 pessoas, faz


100 anos. No dia 5 de outubro de 1897, depois de quatro expedições
militares, um ano de lutas intermitentes e uma resistência feroz por parte de
seus defensores, o arraial erigido pelo Conselheiro nos ermos do Nordeste
da Bahia foi finalmente tomado pelo Exército. Quase nada sobrava daquele
santuário-cidadela, um povoado que sonhou ser a Jerusalém dos confins do
mundo e acabou uma Pompéia sem Vesúvio, reduzida a escombros,
cadáveres, sangue e cinzas. Escreveu Euclides da Cunha:

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"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o
esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do
termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram seus últimos defensores,
que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e
uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 000 soldados."

Dias antes, em 22 de setembro, morrera o Conselheiro de disenteria,


segundo alguns, talvez das complicações de um ferimento leve, segundo outra
versão, talvez da desolação e da tristeza que cresciam a seu redor naqueles
derradeiros momentos. Cem anos passados, programam-se seminários,
haverá cerimônias na Bahia e em outras partes, e continua a pairar sobre o
país a enormidade do mistério de Canudos. Mistério, ou misterioso, são
palavras usadas muitas vezes por Euclides da Cunha para qualificar o local
que descreve, o ambiente e a coligação de jagunços e beatos que se opunha
à ordem representada pelo governo da República e o Exército nacional ou
talvez o bando de jagunços feitos beatos, ou beatos feitos jagunços.

Imagine-se a seguinte cena. Depois de um dia inteiro de combates ferozes,


tiros, mortos e feridos de lado a lado, correria e cansaço infinitos, caía a
noite, depunham-se as armas e fazia-se silêncio no vale onde se situava o
arraial e nas montanhas ao redor. De repente, um rumor começava a insinuar-
se na escuridão. Aos poucos, percebia-se que era um coro de vozes
humanas, com predominância das vozes femininas, num arrastado entoar de
ladainhas. Euclides da Cunha explica: "O inimigo, embaixo, no arraial invisível
rezava". O mistério, a sensação de intercâmbio com o sobrenatural, de
parte com o Absoluto, baixava sobre as desolações do sertão.

Canudos não existe mais. A vila do Conselheiro, não bastasse ter sido
destruída na guerra, encontra-se submersa, afogada que foi, em 1969, pelas
águas do Açude de Cocorobó. A cidadezinha que hoje toma o nome de
Canudos fica a 10 quilômetros da original. Em volta do açude, qual sentinelas
de uma história que insiste em não morrer, vigiam os morros tornados
nacionalmente conhecidos, à época da campanha, como locais de onde o
Exército disparava seus canhões contra o arraial insurgente, e onde os
rebeldes arriscavam suas escaramuças contra as tropas regulares o Morro
da Favela, o Morro do Mário. O Morro da Favela tornou-se tão famoso que
veio a nomear um morro similar no Rio de Janeiro por causa dos casebres
parecidos com os de Canudos que nele vieram a erigir, segundo uma versão,
ou porque nele se aboletaram os soldados veteranos da campanha, segundo
outra. E a partir daí a palavra "favela" passou a ter um significado tão
simbólico do Brasil quanto as cores verde e amarela.

José Calazans: a história


reconstruída a partir do
relato dos sertanejos
Foto: Orlando Brito

Uma multidão de casas de taipa, ordenadas, ou melhor, desordenadas em


volta de uma praça: eis o que era o arraial. O Exército calculou em 25 000 os
seus habitantes, o que o tornaria a segunda cidade da Bahia na época, só
inferior a Salvador. Considera-se hoje, em geral, o cálculo exagerado. Na
praça central havia duas igrejas, uma em frente da outra as chamadas
"igreja velha", a menor, e "igreja nova", esta uma ambiciosa obra
empreendida pelos conselheiristas, nunca terminada. Aquela guerra singular,
tão brasileira quanto a Guerra de Tróia foi grega, e tão reveladora de mitos,
artimanhas e desencontros da nacionalidade, travou-se em torno da praça
das igrejas. Mais particularmente, da igreja nova, em cujas torres incompletas
e andaimes encarapitavam-se os sertanejos para alvejar os inimigos, e que
por sua vez consistia no alvo preferencial da fuzilaria e do canhoneiro dos
soldados. Quando caiu enfim a igreja nova, no finzinho da guerra, houve
grandes manifestações de júbilo entre os soldados e, segundo o relatório de
um dos comandantes militares, "uma entusiástica e violenta vaia na
jagunçada". Aproximava-se do desfecho a bizarra guerra que teve por centro
uma igreja.

Hoje, sobe-se ao Morro da Favela ou ao Alto do Mário e não se ouvem


rezas. O amplo espaço em torno é vazio e silencioso. Abaixo, vêem-se as
águas do açude apenas um plácido lago, às vezes cruzado por botes
simples de pescadores, que num dia de sorte terminarão sua jornada fornidos
de tucunarés, carpas ou tilápias. É um lago como outro qualquer, consideraria
o observador, até mais feio, porque cercado de árida paisagem. Mas, se se

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tem consciência das ruínas que ele encobre, dos muitos cadáveres e da
cidade duplamente fantasma, destruída pelo fogo e afogada nas águas, um
frêmito pode percorrer o observador. O mistério continua.

Antônio Vicente Mendes Maciel, nascido em Quixeramobim, no Ceará, em


1830, foi professor primário, comerciante e advogado prático rábula é a
palavra , antes de se tornar beato. Não era de família pobre, mas
remediada. Não era um ignorante, mas tinha suas letras. Alguns atribuem a
guinada que deu na vida a uma desilusão amorosa o abandono da mulher,
Brasilina. Ele ainda se uniria a uma segunda mulher, uma fazedora de imagens
conhecida pelo luminoso nome de Joana Imaginária, antes de renunciar aos
amores. Em 1874, aos 44 anos, já estava avançado na nova senda. É de
quando data a primeira notícia sobre suas atividades, um registro do jornal O
Rabudo, da cidade de Estância, Sergipe, dando conta de um certo Antônio
dos Mares que, em andanças pelo sertão, vinha atraindo um "número
espantoso" de pessoas. Seu modesto mundo circunscrevia-se a lugares
perdidos como Natuba, Cumbe, Masseté, Uauá, Jeremoabo, Itapicuru
basicamente o sertão da Bahia, com uma ou outra incursão a Sergipe. Ele
andava, andava. Rezava, vivia de esmolas e ajudava os necessitados,
acompanhado de um séquito cada vez maior. Quando parava em uma
cidade, oferecia-se para recuperar ou, quando não houvesse, construir uma
igreja, ou então os muros do cemitério. Maciel tinha mania de fazer igrejas e
arrumar cemitérios.

Algumas de suas obras subsistem. A cidade que hoje leva o nome de


Crisópolis, fundada por ele próprio, na década de 1880, com o nome de
Bom Jesus, para ali acomodar alguns dos seguidores, tem em sua praça
central uma igreja de sua lavra. A igreja, que Euclides da Cunha considerou
"belíssima", está pintada de novo e bem conservada. Do séquito do
Conselheiro faziam parte pelo menos dois mestres-de-obras, Manuel
Faustino e Manuel Feitosa. A igreja de Crisópolis obedece a um desenho de
Manuel Faustino, sendo dele também a talha do altar. Numa das paredes
internas, pendura-se um medalhão com a inscrição "Só Deus é grande", o
dístico favorito do Conselheiro. A praça que se estende à frente da igreja,
remodelada recentemente, chama-se "Antônio Conselheiro". A cotação de
Maciel nunca andou tão alta, no sertão e fora dele. Euclides, entre muitos
outros epítetos depreciativos, chamou-o de "messias de feira" e "bufão
arrebatado numa visão do Apocalipse". Considerava-o o "grande
desventurado", e, Canudos, a objetivação daquela "insânia imensa". A
cotação do Conselheiro, hoje, variará de herói para aqueles que vêem nele
um certo tipo de bravura e resistência a um bom homem, que não queria
senão a salvação eterna, para si e os adeptos.

Como se informar sobre esse cearense que procurava a paz de Deus mas
acabou joguete dessa obra do Demo que são as guerras fratricidas? Durante
décadas, a fonte capital e sagrada foi o livro de Euclides da Cunha.
Hoje, impossível introduzir-se no assunto sem passar por José Calazans. O
octogenário Calazans é o decano dos canudistas da Bahia, um grupo de
estudiosos voltado à pesquisa das aventuras do Conselheiro, seu arraial e a
guerra. Calazans tem saído a campo, principalmente, em busca da chamada
história oral de Canudos a história recomposta a partir do depoimento dos
sertanejos. Como começou a trabalhar na década de 40, ainda alcançou
vários sobreviventes do arraial do Conselheiro. Por exemplo, Honório
Vilanova, irmão do dono da principal loja de Canudos, Antônio Vilanova, um
dos homens mais próximos do Conselheiro. Honório Vilanova, com o irmão
e as respectivas mulheres, escapou de Canudos nos últimos dias da guerra,
como vários outros conselheiristas. Veio a morrer com mais de 100 anos.
Uma vez, contou a Calazans que quando conheceu Maciel, em Assaré, no
Ceará Honório também era cearense , este era beato. Anos mais tarde,
ao reencontrá-lo na Bahia, já era conselheiro. "E há diferença?", perguntou
Calazans. Honório explicou então que o beato tira rezas, pede esmolas e
ajuda os pobres. O conselheiro vai além: dá conselhos. Qual seja, prega. Na
hierarquia informal do sertão, a hierarquia paraeclesiástica do misticismo
sertanejo, o conselheiro situa-se acima do beato.

Essas figuras de guias espirituais surgiam no interior do Nordeste muito em


função da ausência de padres, explica o professor Cândido da Costa e Silva,
da cadeira de História das Religiões da Universidade Federal da Bahia, autor
de Roteiro da Vida e da Morte, um estudo sobre o catolicismo sertanejo.
"Portanto, não existiam para contestar a Igreja oficial, mas para suplementá-
la." O sertão não tinha padres como nas aldeias francesas, que davam
assistência permanente às famílias e acompanhavam-nas ao cemitério,
inclusive, levando seus mortos, prossegue o professor. Daí, os tiradores de
reza e as incelências eram figuras e fórmulas que supriam a falta de pessoal

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e de liturgia oficial. A pessoa ascendia à condição de beato ou conselheiro,
ainda segundo Costa e Silva, de forma natural, pelo destaque que haviam
obtido na sociedade, em virtude de sua liderança, capacidade de expressão,
piedade e outras qualidades.

Maciel jamais ousou ir além do que permitia sua condição. Nunca se


aventurou a ministrar sacramentos. Tampouco podia ser acusado de desvios
de doutrina, pois não pregava senão a teologia conservadora daqueles
rincões e não aconselhava senão práticas de longa tradição sertaneja, como o
jejum, quanto mais jejum melhor, caminhadas longas, até se esfalfar, e
carregar pedras, para pagar os pecados. Mesmo assim, a hierarquia da Igreja
lhe era crescentemente hostil. Em 1887, o arcebispo de Salvador, dom Luís
Antônio dos Santos, cobrou providências ao governo do Estado, que por sua
vez pediu socorro ao governo do Império. A idéia era internar Maciel no
Hospício Dom Pedro II, no Rio de Janeiro. A autoridade imperial consultada
respondeu, no entanto, que não havia vaga no referido hospício. Em seu
ímpeto repressor, na verdade, a autoridade eclesiástica aliava-se à aflição dos
coronéis do sertão, que se viam ameaçados duplamente, no poder
econômico e no poder político. Estudiosos contemporâneos, como o
brasilianista americano Ralph Della Cava, demonstraram como o
Conselheiro, e também o padre Cícero, no Ceará, na mesma época,
drenavam a mão-de-obra das fazendas, ao mesmo tempo que retiravam da
influência dos chefetes os votos de cabresto que lhe garantiam o controle dos
instrumentos do Estado.

Acresce que, quando o movimento do Conselheiro aproximava-se de seu


auge, ocorre a mudança de regime no país, de Monarquia para República, e
o Conselheiro, tradicionalista como era, recusa-se a aceitar o novo regime. A
República era o Anticristo, era a ordem de Satanás. Ousara separar a Igreja
do Estado. E, entre outras disposições odiosas, instituíra o casamento civil,
roubando da Igreja a exclusividade de celebrar matrimônios. Uma mulher
casada no civil, segundo o professor Costa e Silva ouviu de um sertanejo, em
época bem mais recente, seria uma "p... testemunhada". O novo regime
também delegara aos municípios a faculdade de instituir impostos. Certa vez,
o Conselheiro encontrou os habitantes de Natuba inconformados com os
impostos anunciados em editais no centro do povoado e incentivou-os a
destruí-los. Foi seu primeiro gesto de desobediência civil. Em conseqüência,
uma tropa policial saiu-lhe ao encalço. Depois de um choque violento, na
localidade de Masseté, que resultou em três mortos de cada lado, a tropa
retirou-se, mas para o Conselheiro ficou um sinal de alerta. O clima
crescentemente desfavorável pedia uma decisão. Chegara a hora de mudar
de vida. Depois de vinte anos de andanças, ele se estabeleceria com sua
gente num lugar onde pudesse rezar em paz, aconselhar em paz e viver em
paz, ao abrigo dos agentes do insano governo dos incréus, ou dos bispos que
faziam o jogo do Diabo. Nascia Canudos.

Foto: Flavio de Barros

O fotógrafo Flávio de Barros (foto ao lado)


tinha um estúdio em Salvador, e isso é
quase tudo o que se sabe dele. Nas últimas
semanas da guerra, seguiu para Canudos,
comissionado pelos militares, para cobrir a
Quarta Expedição. A foto acima é uma de
suas mais famosas - a foto conhecida como
das "prisioneiras", embora, olhando bem,
perceba-se que nela há homens também, no
fundo. As mulheres prisioneiras foram, uma
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vez destruído o arraial, transportadas para
Salvador. Os homens foram executados. Ao longo desta
reportagem, estão estampadas mais fotos de Flávio de Barros.
Foram selecionadas principalmente as que mostram aspectos do
arraial do Conselheiro - uma minoria, dentro de um conjunto em
que a ênfase do fotógrafo foi nos militares. Se constituem um
documento precioso, dos mais importantes da história da fotografia
no Brasil, as fotos de Flávio de Barros apresentam também uma
das mais lamentadas lacunas dessa mesma história: por força da
censura, ou das obrigações que o prendiam ao Exército, ou ambas
as coisas, ele deixou de documentar a selvageria e as atrocidades
que caracterizaram o fim do conflito.

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Duas vezes morto,


duas ressuscitado
Excertos de um diário do sertão: as pessoas,
os locais, o estigma de um arraial malfadado

Foto: Orlando Brito

A obra de Travessa
no Alto Alegre: conjunto
de igreja, museu, salão,
cruz e estátua do
Conselheiro. Ao lado:
vista do arraial primitivo
Foto: Flavio de Barros

Cigarro não ofende?

Não, não ofende, e então Manuel Alves, mais conhecido por


"Manuel Travessa", de 57 anos mas aparentando mais, pele
morena e estorricada de sertanejo, chapéu de couro, dentes ruins, acende
o cigarrinho que é seu companheiro inseparável. Estamos no carro que
conduz o autor desta reportagem e o fotógrafo de VEJA do lugar
chamado Bendegó, dentro do município de Canudos, à beira da estrada,
antes de chegar à cidade propriamente dita, ao lugar chamado Alto
Alegre, uma elevação à margem do lago no fundo do qual se encontram as
ruínas da antiga Canudos. Quem foi Antônio Conselheiro para Manuel
Travessa?

No meu pensamento, ele era igualmente que um crente, hoje. Há 100


anos, não existia crente. Eu sempre penso que pode ter existido um ciúme
da Igreja Católica pelo Antônio Conselheiro.

Euclides da Cunha escreveu em Os Sertões que a cidade de Queimadas,


para onde as tropas iam de trem, desde Salvador, antes de enfrentar os
caminhos poeirentos do sertão, assinalava uma fronteira: "Salta-se do
trem; transpõem-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e
topa-se para logo, à fímbria da praça o sertão". Está-se no ponto de
encontro de duas sociedades alheias uma à outra, segundo Euclides. "O
vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria
desgraciosa, e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam
vertiginosamente os patrícios do litoral, que o não conhecem." Entre um e
outro há uma "discordância absoluta", segundo o autor, o que acaba por
desequilibrar "o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo" e "perturba
deploravelmente a unidade nacional". Os soldados vindos de outras partes
do país, chega a escrever Euclides, tinham a sensação de seguir para uma
guerra externa. "Sentiam-se fora do Brasil."

Há exagero nisso, certamente. Já havia exagero há 100 anos, e haverá


ainda mais hoje, em considerar o sertão um mundo à parte do resto do
Brasil. Mas, por mais que hoje em dia se esteja familiarizado com a região,
por mais romance regionalista que se tenha lido, filme do cinema novo que
se tenha visto, por mais música e novela de TV que se tenha digerido, o
forasteiro será tomado pela sensação de um mundo meio encantado, a
começar pela língua que ali se pratica. Dá vontade de reproduzir, tal e
qual, a fala de Manuel Travessa.

Ele não foi um destruidor (o Conselheiro). Não foi que nem Lampião.
Ninguém diz que ele matou alguém. Era igual que Assembléia de Deus,
Deus é Amor. Essas cresceram e agora está difícil acabar com essa...
essa... como se diz?... essa religião.

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Manuel Travessa entre as peças


de seu museu: um homem de iniciativas
Foto: Orlando Brito

Manuel Travessa não é um qualquer. Pode ser qualificado como um


empresário do sertão. Um empresário quase miserável, que vive numa
casa que Antonio Ermírio de Moraes não imagina possa preencher as
necessidades de um ser humano, come um tipo de comida que Abílio Diniz
não comeu nem quando foi seqüestrado e veste uma roupa que Moreira
Ferreira estranharia muito num companheiro da Fiesp, mas um empresário
um farejador de oportunidades, campeão da iniciativa. Ele já tinha um
bar naquele lugar chamado Bendegó e, agora que o asfalto está chegando
à região, antevendo uma ampliação do mercado, abriu outro.

Mais significativas são suas realizações no Alto Alegre, um lugar batizado


por ele próprio ao chegar à região, em 1971, depois das muitas
perambulações pelo sertão, a partir de sua Monte Santo natal. Só havia
três casas no local, e a elas ele acrescentou a sua. Começou a notar então
que freqüentemente aparecia gente interessada em Canudos, querendo
informações e em busca de vestígios da guerra. Para tentar satisfazer essa
demanda, Manuel Travessa iniciou, em 1975, uma coleção de relíquias
espingardas, balas, capacetes de soldado. Objetos que achava pelas
redondezas ou comprava dos vizinhos. Hoje essa coleção está reunida
numa casinha que construiu para abrigá-la, composta de um só cômodo,
de não mais que 2 por 2 metros, a que, de maneira sem dúvida
pretensiosa, chama de "museu". Ao lado de uma tralha que realmente tem
a ver com a guerra, o museu de Travessa exibe máquinas de costura
velhas e até um buda de porcelana.

Ao lado do museu, Manuel Travessa levantou uma capela, e ao lado da


capela, um salão de dança. Assim, pode-se rezar pelo Conselheiro no
local ou, alternativamente, convocar um forró. O conjunto de museu-
igreja-salão completa-se com uma escultura do Conselheiro em madeira e
a de um canhão também em madeira, além de duas cruzes, para compor o
que poderia ser chamado de praça monumental do Alto Alegre, se
monumental fosse, ou mesmo se praça fosse na verdade é um conjunto
de toscas construções erigidas na terra dura de um descampado. De
qualquer forma, é o que se tem. Quem vai ao povoado que hoje ostenta o
nome de Canudos não encontrará recordação do Conselheiro. O Alto
Alegre, a 10 quilômetros de distância, por iniciativa do empresário
sertanejo Manuel Travessa, preenche essa lacuna.

Contam-se três Canudos, ao longo da História. A primeira, do


Conselheiro, depois de arrasada, ficou no seguinte estado, de acordo com
o depoimento de um ex-conselheirista, Manuel Ciriaco, ao jornalista
Odorico Tavares, em 1947, quando a guerra completava cinqüenta anos:

"Era de fazer medo. A podridão fedia a léguas de distância, os bichos a


gente via correndo pelos cadáveres e urubu fazia nuvem. Tudo
abandonado, ninguém ficou enterrado. Foi quando Angelo dos Reis, por
sua própria caridade, trouxe uns homens e enterrou ali mesmo a jagunçada
morta. Todas essas colinas que o senhor vê estão cheias de ossos de
jagunços. Acabou-se Canudos e, durante uns dez anos, só se vinha aqui
de passagem".

O Angelo dos Reis citado era um fazendeiro da região. Dez anos


decorridos, durante os quais o simples nome de Canudos fazia medo na
região era sinônimo de atrocidade, perseguição, constrangimento , o
local começou a se repovoar. Alguns eram antigos habitantes que
voltavam. Nascia uma segunda Canudos, sobre os escombros da primeira.
Na década de 50, foi projetado um açude que, represando as águas do
Rio Vaza-Barris, acabaria por inundar o povoado. Será que a represa
precisaria ser justamente ali, fazendo submergir um lugar histórico como
aquele? A pergunta foi feita pelo escritor Paulo Dantas, em 1958, ao
engenheiro que chefiava as obras, José Fernandes Peixoto. "Isso é
conversa de poetas", respondeu o engenheiro. "O que esta região precisa
é de água. A tradição é muito bonita, mas não mata a sede nem a fome de
ninguém." Em 1969, depois de sucessivos atrasos, a represa finalmente
inundou Canudos. A população a essa altura já tinha sido transferida para

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o povoado chamado Cocorobó mesmo nome do açude , mais tarde
rebatizado de Canudos. Esta é a Canudos atual, a terceira.

Em junho último, foi inaugurado o Parque Estadual de Canudos.


Estendendo-se ao sul do açude, compreende uma área de 18 quilômetros
quadrados, em que se encontram sítios familiares a quem conhece a
história da guerra: o Alto do Mário, o ponto mais elevado, de onde hoje
se descortinam o açude e as montanhas ao redor; a Fazenda Velha
ruínas de uma antiga sede de fazenda na qual os conselheiristas fixaram um
posto avançado que resistiu até os dias finais; o Morro da Favela.
Próximo ao Alto do Mário, situa-se uma grande vala comum,
possivelmente vizinha do hospital de campanha dos militares, onde eram
enterrados os soldados. É o chamado "Vale da Morte".

O Parque foi uma idéia do professor Renato Ferraz, um dos mais ativos
lutadores pela memória de Canudos pesquisador, organizador de
seminários e eventos sobre o assunto. Ferraz sabe tudo o que é possível
saber de Canudos. Só falta escrever um livro a respeito, algo que promete
vagamente para o futuro.

A parte visível do Parque Estadual de Canudos, que é administrado pelo


Centro de Estudos Euclides da Cunha, da Universidade Estadual da
Bahia, consiste, por enquanto, num portal de entrada e em placas de
localização dos sítios históricos. No decreto de sua criação, pelo governo
do Estado, estatui-se que deverão funcionar no local "museu, laboratório
de arqueologia, estação experimental de meteorologia, escolas
experimentais e outras instituições". Um trabalho de exploração
arqueológica está em curso, a cargo do arqueólogo paulista Paulo
Zanatini. Trata-se de uma arqueologia histórica, basicamente procuram-
se trincheiras, barricadas, armas ou restos de armas, balas, objetos de uso
cotidiano dos soldados ou sertanejos, ossadas, sepulcros. Uma das
últimas descobertas de Zanatini foi que as ruínas até agora consideradas
da Fazenda Velha são de uma casa mais recente, do início do século. A
Fazenda Velha verdadeira, da época da guerra, está soterrada embaixo
dessas ruínas.

No Alto Alegre, uma trinca de garotos de 11 ou 12 anos cerca-nos e se


dispõe a levar-nos a um passeio de bote pelo lago. Um dos meninos,
Gilmar, conta que o "painho" uma vez achou uma canela no chão. Ou seja,
um osso da perna, ou o que ele supôs fosse um osso da perna. Não se
pode ficar com esses achados, explica Gilmar. O pai então deu para um
alemão. Um alemão? Não, ele não sabe direito se era alemão. Mas sabe
que era uma pessoa que "não fala igual que a gente, não".

No bote, passeando pelo lago, percebem-se, quase à superfície,


encobertos somente por um palmo de água, as guarnições laterais de uma
antiga ponte. Essa ponte fazia parte da estrada que cortava a segunda
Canudos. Há também uma ruína que aponta para fora do lago. Trata-se
da parte superior do portal de um cemitério, também da segunda
Canudos.

Da Canudos do Conselheiro, a única construção que sobrou de pé, ao fim


da guerra, foi um cruzeiro que se erguia à frente da igreja velha. Às
vésperas da inundação da área, o cruzeiro, de madeira, foi transportado
para o povoado de Cocorobó, para onde estava sendo transferida a
população. Ficou o pedestal de cimento em que ele se incrustava. No ano
passado, o nível do açude baixou sensivelmente, e o pedestal, ou o que
resta dele, emergiu das águas. Um pouco do Conselheiro voltava à tona.

Ferraz, aquele que sabe tudo de Canudos e teve a idéia de instituir o


parque, serviu de guia ao peruano Mario Vargas Llosa, em 1979, quando
este realizava as pesquisas para seu romance sobre a Guerra de Canudos,
A Guerra do Fim do Mundo.

Um dia, Vargas Llosa e Renato Ferraz fizeram uma escala na cidade


sergipana de Simão Dias. No hotel onde se hospedaram, rústico como
todos na região, foram recebidos por um funcionário homossexual sim,
há disso também no sertão. Logo depois, invade o quarto uma senhora
que, sem dúvida guiada pelas informações do funcionário, queria conhecer

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o atraente estrangeiro. Ela se ouriça: "Argentino!, argentino!", exclamava,
como uma fã de galã de televisão. Era a dona do hotel, dona Raimunda.
Quando se preparavam para partir da cidade, dona Raimunda pediu uma
carona até Lagarto. Atenderam-lhe ao pedido, e ela viajou no banco de
trás. Quando chegaram a Lagarto, dona Raimunda foi saindo devagar do
carro, esgueirando-se, no difícil movimento de deixar o banco de trás de
um Fusca... e então deu o bote. Numa manobra fulminante, prendeu-se ao
pescoço de Vargas Llosa e pespegou-lhe um beijo na boca.

Manuel Travessa diz que ouviu uma vez do avô que Canudos seria
destruída três vezes.

A primeira vez pelo fogo, a segunda pela água e a terceira pelo pó. Pelo
fogo foi a guerra. Pela água, a represa. Só falta pelo pó.

Esse avô de Travessa era o materno, de nome Mundu, um criador de


cabras. Ele explica que a mãe teve treze filhos antes dele. Depois, "me
conseguiu". E o pai? Do pai, Manuel Travessa não sabe: "Sou filho de
mulher particular". Manuel Travessa subiu na vida e hoje, além de
empresário, é político elegeu-se vereador, em Canudos. Como seria
essa terceira destruição da cidade de que falava seu avô?

O que espero é que a barragem estoure e essa lama se torre no pó. Aí


ninguém vai escapar desse pó. Isso é o que eu penso.

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O fim do Treme-Terra
A fama, as aventuras, as trapalhadas e o triste
destino do coronel Moreira César

Foto: Flavio de Barros


Monte Santo hoje
(ao lado), vista do
início da subida da via-
sacra, e durante a guerra,
quando serviu de base de
apoio do Exército
Foto: Orlando Brito

Uma onda de temor varreu o sertão. Lá vinha ele: o Anticristo, o


Corta-Cabeças, o Treme-Terra. Muito tempo depois da guerra,
ele ainda serviria de inspiração para os cantadores. Como nesta
quadra, recolhida por José Calazans:

Moreira César foi ao céu


Com Tamarindo ao seu lado
São Pedro falou assim:
Ô, que cara de malvado!

Antônio Moreira César era o seu nome, coronel a sua patente. O oficial
talvez mais celebrado do Exército, a quem se atribuía bravura sem igual.
Era considerado o herdeiro do marechal Floriano Peixoto, falecido havia
dois anos, ídolo dos militares e patrono-mor dos "jacobinos", como eram
chamados os defensores mais intransigentes do regime republicano.
Euclides da Cunha o descreve: "O aspecto reduzia-lhe a fama. De figura
diminuta um tórax desfibrado sobre pernas arcadas em parênteses ,
era organicamente inapto para a carreira que abraçara. (...) Apertado na
farda, que raro deixava, o dólmã feito para ombros de adolescente frágil
agravava-lhe a postura. A fisionomia inexpressiva e mórbida completava-
lhe o porte desgracioso e exíguo".

E, no entanto, quanto respeito e quanto medo impunha à sua volta.


Consideravam-no um herói por sua atuação na repressão aos dois
movimentos que haviam desafiado o regime florianista a Revolta da
Armada, no Rio de Janeiro, e a Revolução Federalista, no Sul. Em Santa
Catarina, para onde foi enviado, com plenos poderes, para apagar os
últimos fogos da Revolução Federalista, distinguiu-se pela ferocidade.
Quando não fuzilava, decapitava os adversários. Agora ia entrar na
legenda do sertão. "Na Guerra de Canudos, depois de Antônio
Conselheiro e Euclides da Cunha, Moreira César é o principal
personagem", diz Oleone Coelho Fontes, outro dos canudistas baianos,
autor de um livro sobre Moreira César, O Treme-Terra."

A cruz que marca o local


onde o corpo de Moreira
César foi deixado
Foto: Orlando Brito

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O elenco da epopéia do sertão pode ser prolongado ao infinito: coronel
Tamarindo, o segundo de Moreira César; cabo Roque, herói efêmero de
uma bravura que não houve; marechal Bittencourt, o ministro da Guerra.
Do lado dos conselheiristas, a turma dos jagunços valentes, alguns
formados na escola do cangaço antes de se juntar ao Conselheiro e se
tornar os cabeças de seu Exército improvisado: João Abade, o
"comandante da rua", como era conhecido "rua" no sentido de "arraial",
de "cidade", de "área urbana", e comandante porque era o chefe militar
supremo; Pajeú, o temível guerrilheiro das estocadas ardilosas, "forma
retardatária de troglodita sanhudo", segundo Euclides; Pedrão, que veio a
morrer só em 1958, com tanto gosto de lutar que dizia a José Calazans,
quando já nonagenário, e entrevado: "Faz pena um homem como eu
morrer sentado". O mesmo Pedrão, que mais de trinta anos depois de
Canudos seria contratado pelo interventor Juraci Magalhães para
combater Lampião, justificava-se: "O coração pedia para brigar".

A estes, acrescentem-se os acólitos religiosos do Conselheiro: Antônio


Beatinho, José Beatinho, Paulo José da Rosa. José Beatinho, com sua
bela voz, fazia as rezas mais bonitas e mais pungentes. Havia o sineiro
Timotinho. Até o fim, não importava o vareio de balas, o troar de canhões
e o mar de cadáveres que se interpunham em seu caminho, nas ruas
estreitas do arraial, Timotinho cumpria a obrigação de tocar o sino.
Morreram juntos, ele e o sino, um arremessado para cada lado, quando
uma bala de canhão atingiu a torre da igreja velha. A Guerra de Canudos é
tão rica de personagens quanto a releve-se a insistência na comparação
de Tróia, e de personagens que, igualmente, foram se credenciando à
mitologia, tal a maneira como os descrevem, e tais as façanhas que lhes
atribuem. Se o Brasil fosse os Estados Unidos, e produzisse filmes como
Holywood, haveria aqui mais filmes com Moreira César e Pajeú,
Tamarindo e João Abade, do que há nos Estados Unidos com o general
Custer e Touro Sentado. Canudos, entre outras coisas, é uma esplêndida
história, com uma trama de emoções e imprevistos.

A guerra começou com um equívoco. Correram rumores em Juazeiro, à


margem do Rio São Francisco, a noroeste de Canudos, de que, por causa
do atraso na entrega de uma encomenda de madeira para a construção da
nova igreja do arraial, os conselheiristas preparavam uma invasão da
cidade. A população assustou-se com o boato, o juiz local notificou o
governador do Estado, Luís Viana, e este resolveu enviar a Canudos
estamos em novembro de 1896 uma expedição punitiva. Tinha 104
homens, era comandada por um tenente, Pires Ferreira, e estava destinada
ao primeiro dos sucessivos vexames que seriam impostos aos militares.
Quando os soldados estavam estacionados no povoado de Uauá, já perto
de Canudos, sentiram a aproximação de um estranho cortejo uma fila
de gente que rezava e entoava cânticos religiosos, tendo à frente uma
grande cruz e um estandarte do Divino. "Parecia uma procissão de
penitência", escreve Euclides. Era um batalhão do Conselheiro, armado
com o que foi possível juntar na circunstância velhos trabucos, facões,
paus, pedras, foices. Depois de quatro horas de combate, embora com
muito mais perdas do que o inimigo, puseram-no a correr. Terminava
aquela que passou para a História como a primeira expedição.

Cena dos últimos dias


da guerra: conselheirista
preso, entre seus captores
Foto: Flavio de Barros

A segunda expedição, comandada pelo major Febrônio de Brito,


quintuplicou de tamanho 550 homens e pela primeira vez usou Monte
Santo como base de apoio e ponto de partida da ofensiva, algo que se
repetiria nas expedições seguintes. Monte Santo, 100 quilômetros ao sul
de Canudos, é, hoje como há 100 anos, o lugar mais interessante da
região. O Monte Santo que lhe empresta o nome é a Serra de Piquaraçá,
que se eleva atrás da cidadezinha. Na verdade, a cidadezinha é como
outras do sertão. O que há de interessante no lugar é o monte, que lhe
serve de majestoso pano de fundo um monte sulcado por um caminho
que o vai galgando, sinuosamente, subindo sempre, subindo até quase

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perder de vista, e todo salpicado de capelinhas, como se fosse, como
escreveu Euclides da Cunha, "uma escada para os céus". Lá no alto, no
fim do caminho, há uma igreja maior, a Igreja de Santa Cruz.

Trata-se de uma via-sacra, em que as capelinhas representam os passos


da Paixão. Foi construída no século XVIII, 100 anos antes de Canudos,
por um capuchinho italiano, frei Apolônio de Todi. A subida até Santa
Cruz, longa de 3 quilômetros, é penosa. O caminho é não só íngreme,
quase a desafiar alpinistas, como composto de chão rude de pedras,
cortantes algumas, escorregadias outras. No alto, bate um vento forte e
descortina-se um panorama deslumbrante da região. O Monte Santo de
frei Apolônio, reprodução do que ele imaginava fosse o Calvário de Jesus
na verdade muito mais alto, mais íngreme e mais penoso de subir do
que o Calvário ao qual se é apresentado em Jerusalém , é o mais
eloqüente símbolo material do catolicismo do sertão: um catolicismo feito
de penitência, de severidade, de purgação atormentada e permanente dos
pecados.

Hoje, ao chegar a Monte Santo, depara-se com uma placa: "Benvindo,


Welcome, Bienvenido. Monte Santo, Altar do Sertão". Como se a
cidadezinha perdida nos fundões do Brasil fosse visitada por estrangeiros.
Não é, mas os sertanejos continuam a procurá-la. Na Semana Santa,
costuma atrair milhares de devotos. Mas mesmo no resto do ano, e
especialmente nas sextas-feiras, o dia da feira na cidade, o movimento é
grande. É o dia preferido pelos pagadores de promessa. O caminho de
pedras que sobe morro acima registra então um contínuo vaivém. Hoje
são raros, mas ainda há os que sobem de joelhos ou carregando pedras.
Fica-se a perguntar: que tanto se peca, no sertão, que tanto se precisa de
penitência? Monte Santo evoca tanto a religião, como cidade santuário,
quanto a Guerra de Canudos. No tempo de suas peregrinações pelo
sertão, antes de estabelecer-se no arraial, Antônio Conselheiro visitou-a
várias vezes. Um ano antes de estabelecer-se em Canudos, encetou, com
seus seguidores, trabalhos de restauração em algumas das capelinhas da
montanha.

Quando os soldados se reuniram em Monte Santo, segundo Euclides, a


cidade tomou ares de festa. Barracas militares, centenas de forasteiros:
"Tudo aquilo era uma novidade estupenda". A segunda expedição
demorou quinze dias na cidade, antes de se pôr a caminho. E, então, tudo
foi muito rápido. Bastaram dois dias, ao se aproximar de Canudos, para
que, ela também, fosse desarticulada e posta a correr, depois de ter sido
surpreendida pelo inimigo emboscado nos morros próximos do arraial
insurreto. A humilhação era demasiada. O irredentismo dos "fanáticos"
sertanejos, como começavam a ser qualificados, virava questão nacional.
O histerismo que tão freqüentemente caracteriza a vida política brasileira,
materializado ora em denúncias arrasadoras, ora em invectivas que
desqualificam o adversário num dia como um "comunista", no outro como
"neoliberal", consolidava uma fantasia: a de que Canudos era a ponta-de-
lança de uma reação monarquista. Lembre-se de que o regime republicano
fora inaugurado havia apenas sete anos. O novo regime já enfrentara o
desafio da Revolta da Armada e da Revolução Federalista. Agora, sob o
disfarce do fundamentalismo religioso, vinha dos sertões uma revolta que
sem dúvida se ramificava país afora, nos arraiais monarquistas, e quem
sabe tinha até apoio do exterior. Para debelá-la, só um bravo como
Moreira César. Paulista de Pindamonhangaba, então com 47 anos, o
coronel foi convocado para chefiar os 1 300 homens que formariam na
terceira expedição.

Da lenda de Moreira César faz parte uma coleção de marcos na região.


Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe, apontarão ao visitante
a casa em que ele ficou, quando por lá passou, a caminho de Canudos
um sobrado hoje vazio e fechado, atrás da igreja. Em Queimadas, Monte
Santo, em cada cidade se mostram os lugares de alguma forma ligados à
sua memória. No lugar chamado Umburanas, em Canudos, por onde
corre o riacho do mesmo nome, há uma cruz, no meio do mato. Uma
lápide explica, embaixo: "Neste lugar foi abandonado, no dia 4 de março
de 1897, o cadáver do coronel Moreira César..." O marco, mandado
edificar por Oleone Coelho Fontes, José Calazans, Renato Ferraz e outros
estudiosos de Canudos, foi inaugurado no dia 4 de março último,
centésimo aniversário do evento que rememora.

Como pôde o coronel acabar desse jeito? Ele vinha tão confiante... Ao se
aproximar de Canudos, ordenou que se disparassem dois tiros de um de
seus quatro canhões Krupp. "Lá vão dois cartões de visita ao

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Conselheiro", disse. Ao longo da marcha, sua preocupação maior era que
os conselheiristas abandonassem o arraial, privando-o da glória de
derrotá-los. À medida que se aproximava, o otimismo aumentava: "Vamos
tomar o arraial sem disparar mais um tiro, a baioneta". Ocorre que
Moreira César tinha outro adversário, tão difícil de vencer quanto o
Conselheiro ele próprio. Era epilético, num tempo em que não se tinha
como conter a doença. Sofreu dois ataques, durante a campanha de
Canudos. Além disso, apresentava um temperamento instável e impulsivo.
Certa vez, navegando para o Rio de volta da campanha de Santa
Catarina, com seus soldados, mandou prender o capitão do navio, por
suspeitar de uma traição para a qual não havia evidência alguma. Em
Canudos, da mesma forma como lhe sobrava confiança, faltou-lhe
previdência. Mandou seus homens ao ataque depois de longo dia de
marcha penosa, sem descanso. Fê-los avançar até para dentro do arraial e
entrar numa luta corpo-a-corpo com os conselheiristas o que, além de
facilitar a movimentação do adversário, familiarizado com o labirinto de
ruelas, inutilizou a artilharia, que não podia disparar sob pena de atingir os
próprios companheiros. A situação se complicava. Moreira César
ordenou um ataque de cavalaria, mais desastroso ainda, em se tratando
não de uma planície aberta, mas de um inimigo entrincheirado num reduto
cheio de barreiras. Com a situação cada vez mais feia, o coronel deixou
seu posto de comando, endireitou o cavalo em direção ao arraial e
avançou, dizendo: "Vou dar brio àquela gente". Não foi muito além.
Atingido no ventre por uma bala, vergou-se, largando as rédeas. Os
companheiros cercaram-no. "Não foi nada, um ferimento leve", disse.
Morreu naquela noite.

Os infortúnios de Moreira César e sua expedição estão magistralmente


descritos em Os Sertões. Morto o comandante, a desarticulação da tropa
foi geral. O coronel Pedro Nunes Tamarindo, que deveria sucedê-lo no
comando um homem "simples, bom e jovial", segundo Euclides, que já
chegara aos 60 anos e não aspirava senão a uma reforma tranqüila --
proferiu então sua frase famosa, um clássico de todos os tempos das
debandadas militares: "É tempo de murici, cada um cuide de si".
Tamarindo seria por seu turno abatido horas depois, quando transpunha o
Córrego do Angico. Seu corpo foi recolhido pelos conselheiristas,
empalado e erguido num galho, para assustar os imprudentes que
porventura ainda viessem a ousar uma nova expedição contra o arraial
sagrado. Os soldados não tinham como salvar os cadáveres ilustres. No
atropelo da fuga, com os sertanejos ao seu encalço, fustigando-os e
roubando-lhes as armas e as munições, abandonaram o corpo de Moreira
César nas Umburanas.

A morte do cultuado coronel elevou à potência máxima o clima nacional


de histeria. As turbas invadiram as ruas do Rio de Janeiro. "A correria do
sertão entrava arrebatadamente pela civilização adentro", escreveu
Euclides. "Vingança" e "morte aos monarquistas" eram as palavras de
ordem. Jornais monarquistas foram empastelados. Um monarquista, o
coronel Gentil de Castro, fiel escudeiro do último primeiro-ministro do
Império, o visconde de Ouro Preto, foi assassinado. Criavam-se fantasias.
Correram rumores de que um certo cabo Roque, ordenança de Moreira
César, heroicamente, tinha permanecido ao lado do corpo do chefe e
resistira até o último cartucho, preferindo a morte a permitir que o inimigo
profanasse a sagrada relíquia. Uma rua no Rio e outra em São Paulo
foram batizadas com o nome do cabo Roque. Eis então que Roque
reaparece, são e salvo, entre os últimos fujões retardatários, e destrói o
Roque da fantasia. O cabo Roque de verdade, desprovido de qualquer
glória, veio a morrer prosaicamente em 1900, de peste bubônica, no Rio.
Quanto a seu malogrado chefe, ficava agora entregue aos cantos do
sertão, mesmo que equivocados, confundindo o local em que foi
abandonado o corpo com o da morte:

Coronel Moreira César


Olho de cana caiana,
Tomou chumbo em Canudos
Foi morrer nas Umburanas.

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De boca em boca
Mais excertos de um diário do sertão: histórias
que atravessam gerações, a sujeira da igreja...

A igreja velha pouco antes de ser


destruída e o cruzeiro, ocupados
pelos vencedores
Foto: Flavio de Barros

Numa casinha solitária nas Umburanas, a poucos metros do local


onde foi abandonado o corpo do coronel Moreira César, vive
"seu" João de Régis, 90 anos completados no dia 12 de junho.
João de Régis é um sertanejo magrinho e miúdo, meigo e humilde.
É filho de conselheiristas. O pai, Reginaldo José de Matos, e a mãe, Joana
Batista de Jesus, viveram no arraial do Conselheiro. Foi lá que eles se
casaram, sendo celebrante das núpcias o padre Sabino, famoso vigário do
Cumbe que, amigo de Antônio Conselheiro, costumava visitar Canudos,
ali rezar missas e ministrar os sacramentos. E seus pais gostavam do
Conselheiro, "seu" João de Régis? "Ave Maria, gostavam demais", ele
responde. João de Régis recupera-se de uma pneumonia. Ainda tosse,
mas se diz melhor. A cabeça continua boa, a memória, precisa.

João de Régis mostra um documento. É um salvo-conduto emitido pelo


Comitê Patriótico da Bahia, datado de 12 de janeiro de 1898 e assinado
por Lélis Piedade, em favor da avó de João de Régis, Josepha Maria de
Jesus, e suas filhas Joana (que viria a ser a mãe dele), Maria e Antônia.
Pede-se ali às "autoridades do Centro do Estado" fazerem o obséquio de
"protegerem-nas, em qualquer emergência". O documento, atente-se, data
de três meses depois do fim da guerra. A avó, a mãe e as tias de João de
Régis encontravam-se em Salvador. Para lá tinham sido enviadas muitas
mulheres de maridos que foram mortos em combate ou executados, bem
como suas crianças. Elas se tornariam empregadas domésticas ou
prostitutas, em Salvador e em outros lugares. No caso, a avó e a mãe de
João de Régis queriam voltar porque sabiam que os homens da família
estavam vivos. Daí terem pedido ajuda ao Comitê Patriótico, uma
entidade beneficente criada para prestar assistência aos sobreviventes da
guerra, dirigida pelo jornalista Lélis Piedade. O documento que João de
Régis tem em casa é um salvo-conduto para a volta a Canudos.

O cruzeiro que se vê no alto da


matéria, no chão da sala onde
hoje fica guardado
Foto: Orlando Brito

E como elas sabiam que os homens da família o avô materno e o pai de


João de Régis estavam vivos? Porque eles se encontravam fora do
arraial, quando do assalto final, explica João de Régis. Um dia, eles saíram
pela Estrada de Uauá, para apanhar farinha. Quando estavam fora, a
estrada foi fechada pelo Exército. Não puderam voltar. Por essa Estrada
de Uauá, acrescente-se, fugiram muitos conselheiristas, nos últimos dias.
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Sobreviventes contaram que, das trincheiras, os soldados gritavam
avisando que a estrada estava aberta e que quem quisesse fugir ainda era
tempo. O pai de João de Régis era de Pombal, ao sul de Canudos, e tinha
vinte e poucos anos quando o Conselheiro passou por lá. "Ele achou
bonito aquele jeito do Conselheiro, aquela amizade, aquela vivência",
conta João de Régis. Então resolveu acompanhá-lo. A mãe era da região
de Canudos e aderiu ao Conselheiro junto com os pais e as irmãs.

E como viviam seus pais, em Canudos? O pai trabalhava de carapina, diz


seu João de Régis isto é, de carpinteiro, fazendo as casinhas do arraial.
A mãe fiava algodão e fazia rede. João de Régis explica que, quando
alguém queria casar, a primeira coisa a fazer era comprar uma rede. "O
Conselheiro vivia em comunidade, rezando, dando conselho", conta João
de Régis. Quando a família se reencontrou, depois da volta das mulheres
de Salvador, veio viver aqui, nesta mesma terra onde nos encontramos,
nas Umburanas. Viviam "de roça", de "tropinha de animais", e assim a vida
continuou e continua até hoje, e continuará sempre. O episódio de
Canudos foi um espasmo sangrento e tumultuado, e depois o sertão voltou
ao sossego de sua eternidade. Aqui, o tempo não se mexe. João de Régis
nasceu neste recanto do fim do mundo e neste recanto do fim do mundo
morrerá.

Ioiô da
Professora,
ao balcão de
seu botequim, e
João de Régis,
em sua casa:
depositários de
histórias da
guerra que ouvem
desde crianças

Fotos: Orlando Brito

Quem vaga pelo sertão terá sempre a persegui-lo um duplo


acompanhamento sonoro: o chocalho das cabras e a Rede Globo de
Televisão. O chocalho das cabras está lá desde sempre. A Rede Globo,
que se ouve nos restaurantes, nos bares abertos para a rua, nas pousadas
e nas casas, deu o ar de sua graça mais recentemente. Quem diz que o
tempo não se mexe aqui?

Na cidade de Euclides da Cunha, a antiga Cumbe, 80 quilômetros ao sul


de Canudos, tem seu Ioiô da Professora. Seu Ioiô, se fosse um
espetáculo, não um ser humano, seria do tipo que os críticos classificam de
"imperdível". Ele conta a história de Canudos tal qual a ouviu do pai, ou do
sogro, ou de outras pessoas, quando jovem. Conta o que se dizia na
região quando se soube que Moreira César estava chegando:

Vamos arretirar!!! Vem aí um Treme-Terra que não arrespeita


sertanejo!!!

Ioiô da Professora, ou José Siqueira Santos, seu nome de registro, "da


Professora" porque é filho de uma professora primária, tem 89 anos, pele
branca, farta cabeleira branca, é magrinho e usa óculos de grossas lentes.
Seu sogro era o maior fazendeiro do Cumbe, o "coronel" José Américo
Camelo de Souza Velho, inimigo figadal do Conselheiro, mas nada da
antiga fortuna, ou prestígio, sobrou para os descendentes. Ioiô vive de um
botequim que ocupa a parte da frente de sua modesta casa, onde,
basicamente, vende cachaça para os bêbados do lugar. São muitas,
compridas, e cheias de detalhes e vivas descrições, as histórias de seu
Ioiô. Ele conta que Pajeú, o guerrilheiro tão temido do Conselheiro,
incendiou duas fazendas do coronel Zé Américo. Numa delas, só ficou um
quarto onde havia imagens de santos, acomodadas em nichos. "Não sou
inimigo de santo", disse Pajeú, segundo Ioiô. "Aqui tem santo. Não pode
destruir." E Ioiô acrescenta: "Esse povo do Conselheiro respeitava muito
esse movimento de igreja, de santo".

Os bispos estavam contra o Conselheiro, explica Ioiô. Por que motivo?

As rezas dele atrapalhavam a religião.

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Mas havia outros também insatisfeitos:

O povo não queria mais obedecer os coronéis. Até para emprego, era
com o Conselheiro.

Ioiô explica, de diferentes maneiras, a crueldade e os maus bofes de


Moreira César:

Era um terrível!!! Pior que Lampião!!!

Não matava mulher, mas homem era uma desgraça.

Era um ateu terrível!!! Dizia: "Não quero saber de santo".

Ioiô senta, levanta, gesticula. Interpreta, exclama, dá um acento de voz a


cada situação. Preenche os claros das histórias com contribuições
próprias, do tipo: "Então ele se sentou"; "Tirou o chapéu"; "A ordem de
Moreira César foi seca". Ioiô conta que Moreira César foi vítima de uma
maldição. Uma vez ele mandou fuzilar um médico. A viúva, de nome
Olímpia, estava entre as pessoas que assistiram ao embarque de Moreira
César, em Salvador, em direção a Canudos. Ela disse, naquele momento:

Vai, bandido sanguinário... Vais a Canudos, mas não voltas.

Não, não cabe dizer "se fosse um espetáculo"... Seu Ioiô da Professora é
um espetáculo.

A via-sacra de Monte Santo é tão sacra quanto descuidada e suja. As


capelinhas pelo caminho encontram-se em estado lamentável. Mas a maior
decepção está lá em cima, na Igreja de Santa Cruz, ponto final da
escalada. À direita do altar, entre uma coleção de muletas e cruzes que os
devotos trazem na subida e ali abandonam, em sinal de reconhecimento
por graças recebidas, encontram-se, além de muita poeira, garrafas
plásticas de refrigerante vazias. Do outro lado, à esquerda do altar, os ex-
votos deixados pelos fiéis, na forma de braços, pernas e cabeças de
madeira, empilham-se sem nenhuma ordem. Do lado de fora, nos fundos
da igreja, outra cena deprimente: mais ex-votos, muito mais cabeças,
braços e pernas de madeira, lembram a vala comum onde foram
depositados os restos dos combatentes de alguma guerra no fim do
mundo. Ou isso, ou o lixão de uma favela.

Na casa paroquial, o jovem Expedito, única pessoa presente, informa que


havia três padres em Monte Santo, mas hoje não há nenhum. Um foi
embora da cidade. Dos outros dois, um foi para Salvador e outro para
São Paulo, e talvez não voltem. É sexta-feira, dia de maior afluência de
fiéis, mas não há padres para recebê-los. Se o sertanejo continua
presente, em sua fé, o mesmo não se pode dizer dos agentes da Igreja.
Em Euclides da Cunha, o padre, procurado reiteradas vezes pelo autor
desta reportagem, nunca estava, e a igreja permanecia sempre fechada.
Em contrapartida, o templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na Rua
Major Antonino, estava sempre aberto. Esse singelo pormenor pode ser
um bom começo para quem quer entender o avanço evangélico sobre as
hostes católicas.

A história da maldição da viúva contada por Ioiô da Professora corrobora


a antiga tese de que Moreira César não foi morto pelos sertanejos, mas
por um de seus próprios soldados. Segundo uma versão, o soldado que
atirou, ao ver o coronel avançar em seu cavalo em direção ao arraial, fez
isso porque estava cansado dos maus-tratos a que o coronel submetia a
tropa. Segundo outra, a vingança teria sido por conta de ações praticadas
por Moreira César na campanha de Santa Catarina. A família de dois
irmãos mortos pelo coronel nessa ocasião teria contratado um soldado
para vingá-la. Esses irmãos acrescenta-se, para fechar a história
seriam ninguém menos que o pai e o tio do poeta modernista Ronald de
Carvalho.

Ioiô da Professora, João de Régis. João de Régis quer dizer: João, filho de
Régis, assim como Ioiô da Professora quer dizer Ioiô, filho da professora.
Entre o povo do sertão, em vez de sobrenome, usa-se a forma ancestral
de identificar as pessoas pelo pai ou pela mãe. Outros exemplos: Joana de

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Manuel Eliseu, Maria de Sidrônio. Há casos em que um "de" não basta, e
então usam-se dois: Maria de Totonho de Silvano. Qual seja: Maria, filha
de Totonho, filho de Silvano.

O município de Canudos tem 15 000 habitantes, cerca de 60% dos quais


na zona rural. O progresso que o engenheiro Peixoto previa para a cidade,
na década de 50, com a construção do açude que, em vez de poesia,
ofereceria água e alimento à população, ainda não chegou. Luiz Paulo
Neiva, que, como coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha,
da Universidade Estadual da Bahia, dirige um trabalho de levantamento da
situação no município, com vista a um plano de desenvolvimento, desfia
alguns dados:

65,4% dos chefes de família recebem menos de um salário mínimo por


mês;

25,6% recebem de um a três salários mínimos;

52% da população acima dos 15 anos são analfabetos;

22% das crianças até 6 meses sofrem de desnutrição.

Canudos, onde se cria bode, pesca-se no lago e poucas coisas mais, é um


dos municípios mais pobres da Bahia. Quer dizer, do Brasil.

Não é bem que a atual Canudos não tenha nada que lembre o
Conselheiro, como se afirmou páginas atrás. Tem. Mas é preciso procurar
bem, porque está escondido. Vai-se à casa onde fica um "centro de
convivência" da Igreja Católica, um local para reuniões e festinhas.
Procura-se pela irmã Cirila, que veio do Rio Grande do Sul. Pede-se para
abrir a sala na qual ela guarda os livros sobre a guerra, alguns objetos do
período... e pronto, lá está: a cruz de Antônio Conselheiro. Sim, aquele
cruzeiro que se encontrava em frente da igreja velha e que foi transportado
para esta nova Canudos quando a velha foi afogada. A cruz está deitada
no chão. A madeira, escura e cheia de fendas, necessita cuidados, para
não apodrecer. É a mais importante relíquia que se tem do arraial. Ao lado
da cruz repousa uma lápide, onde se lê: "Edificado em 1893 por
A.M.M.C.". As iniciais referem-se a Antônio Mendes Maciel Conselheiro,
e a lápide costumava ficar ao pé do cruzeiro. Irmã Cirila guardará a
preciosa relíquia em sua sala quase secreta enquanto não se construir um
local adequado para exibi-la.

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