EMfLIO WILLEMS

CORPO E ALMA
1
l'
DO BRASIL UMA VILA
BRASILEIRA
TRADIÇÂO E TRANSIÇÂO

Direçao do
Prof. Fernando Henrique Cardoso
Prefacio de
NELSON 'vVERNECK SooRÉ
'[
;

IV

Janeiro 1961 ' FUSAO EUROPÉIA DO LIVRO

Rua Marquês d e Itu, 79
Rua Bento Frei tas, 362 - 6. •
SA.o PAULO
 tdt •llielllns culturais ligado s a esta ûltima fas e. 0 leitor tomara
ct)Jdu;t~inu ·.n t o dêlcs en~ detalhe, mas convém lembrar, desde logo,
<Jill: HO ha pouco Itmpava conheceu 0 radio, 0 autom6vel e a
l11t'1quina de escrever. Itaipava, assim, é ainda um pouco do
velho Brasil, conservado em museu vivo. Nesse sentido, 0 en-
i-ll !"i o de Willems é de uma riqueza singular, pela meticulosidade
do lcvantamento . E é nesse sentido que o exemplo de Itaipava
ndmite generalizaçoes.
Devo, finalmente, e apenas por um elever de honestidad e
deixar claro que, curioso da mesma ciência em que Emili~
Willems é especialista, -distanciam-me dêle a obediência a métodos
e cri~érios de anali~e diferentes. Nao considerei de modo algum
A
que Isso fosse mot1vo para deixar -de estar presente, com êle à
porta clêste ensaio, tao rico pelo que apresenta e tao rico p'elo
que sugere. Seu .rigor cientifico, sua honestidade no oficio sua
capacidacle como especialista merecem aclmiraçao. 0 leito;. vai
conhecer um livro de mestre.
NELSON WERNECK
fi
INTRODUÇAO
1 - Par maior que seja a complexidade das mudanças a
transforma-rem a maneira de viver de um agregado humano, elas
se reduzem, no nivel mais abstrato, a um processo fundamental
apenas. Que se escolham exemplos em qzwlquer um dos se~ores
de uma dada cultura, a introduçao de novas técnicas agricolas,
digamoo, um .nova mod:o de pro,piciar os deuses, de cumr doen-
ças ou de decidir litigios, os homens envolvidos em semelhantes
SonRÉ
atos ten.dem a dissociar-se e a cindir-se em grupos antagônicos .
Aspectas da vida em comum sôbre os qua.is havia consenso
outrora, agora deixam os homens perplexos, no dilema da duvida,
da indecisiio e da confusiio de quem ja nao sabe camo proceder
em situaçoes que nunca antes suscitaram dificuldade alguma. )
Onde havia um rumo a seguir, agora se percebem dois (ou mais);
ao escolher, o individu.o hesita sob a pressao daqueles que }a se
decidiram a favor ou contra a inovaçiio. À oposiçao de princi-
pios, re gras, normas, 1w "·nive l'' pràpriamente cultural (coma di-
zem os antrop6logos) dorrespondem antagonismos ou con/litas
no "nivel'' social. Na verda.de, nao ha dois niveis diferentes, o
"social" e o "cultural" siio apenas dois aspectas do mesmo fenô-
meno ou, talvez, .duas perspectivas em que se pode col'Ocar o fenô -
meno chamado "desorganizaçiio". Êste têrmo, um tanta ominoso,
vai quase sempre acompa.nhado do adjetivo "social", mas esta
preferênci.a pode fazer-nos esquecer que desorganizaçao, no sen-
tido proposto aqui, é impl"Lcitamente cultural, pois desentendimen-
tos, œntago.nismos ou con/litas giram necessàriamente em tôrno
de um "assunta", guer dizer, uma idéia, nanna, regra, principio
ou formas d e comr<ortamento . É 0 que 0 antrop6logo percebe
1
i camo cultura. De outra lado, o conflito niio pode deixar de
a/etar as relaçoes sociais entre as pessoas que dêle participam.
Discorda7U~o, os homens tendem a dissociar-se uns dos outras,
a formar grupos ou instituiçoes dissùle.ntes que se opoem e se
9
 cumbat.em mùluame-nte. À descontinuidade das regras de compor-
/.a/1/,cnto corresponde a desagregaçâo de agrupamentos sociais.
Assùn, a desorganizaç~o é cultural e social a um tempo' A sua
essência se poele ver, com Thomas e Znaniecki, no "enfraqueci-
1/lento da influência que regras sociais existentes exercem sôbre
os membros do grupo".
Em ltaipava, a desorganizaçâo cultural ·nâo apresenta tra-
ças espetaculares ou alarmantes. Esta, por exemplo, na falta de
consenso entre aquêles que praticam a religiâ·o catolica e os que
se desviaram dela aderindo ao protestantismo. A soluçâo de con-
tinu~d~e cultural se estende a quase toda simbolismo religioso
tradu:W!nal que, para o protestante, significa ape-nœs idolatriœ e
superstiçâo. Mas a des,organizaçâo vai muito além da esfera prà-
priamente religio·sa, pois a nova religiiio envolve o individuo em
wna rêde de proibiçoes e restriçoes conferindo signific.ado dis-
crepante ao que se define par "prazeres munda.nos" e inibindo
formas de associaçâo que implicam a participaçâo em tais "pra-
zeres".
Em outras setores da cultura de 1taipava é a oposiçâo entre
medicina popular e medicina cientifica, ou a paula.tina substitui-
çâo .do sistema de "respeito", na divisâo da propriedade entre
herdeiros, pela agrimensura. Em todos êsses e muitos outros ca-
sos, ha pela menas divergências de opiniâo quamto ao acêrto, à
· conveniência ou aplicabilidade de certas re gras, idéias ou .normas;
às vêzes, grupos ou "partidos" se formam em tôrno de normas
~p~s~as, surgem anùnosidades, tensoes, antagonismos ou mesmo
m~n:~zades e-ntre os membros de semelhantes grupos, se bem que
mu~gad.as par atitudes de tolerância e talvez par uma aversiio
generalizada a hostilidades intemperadas.
0 conceito de desorganizaçiio social, assim coma foi pr'o-
pos~o ..P?r Thomas e Znaniecki, nâo implica os juizos de valor
ouünanamente associados cam o tênno. Afirmar que um agre-
gado hum~no esta_ desorganizado niio equivale a dizer que sua
mo~a~ esteja em d~ssoluçcïo ou que haj.a sinto1nas de enfermidades
soc~ms clamando parr receitas e terapias. A idéia do patologico
q~e por tanta tempo se ligou ao conceito da .desorganiza.çéiJd so-
cwl, quase soterrou êste campo de estudos sob avalanches de
preconceitos e sub jetivisrroos z:nverificaveis. V encera a tendência
para definir desorganizaçâo social estreitamente em têrmos de
I.'~Tt?s_ problemas (tais coma a delinqüência, o alcoolismo, a pros-
1/.tiu~:ao, o desemprégo etc.) que assolavam as sociedades loâ-
/()
rlent.ais . S em ·negar que semelhantes problenws possam cons-
t.iluÙ' aspectas de desorganizaçâo, ncîo é possivel fugir à impress~o
de que a tacanharia ùnplicita em limitaçoes dessa natureza, este7a
prejzulicanâo sèriamente o estudo do J:nômeno fnndameontal, a
sa.ber o papel (ou a funçâo) do confh to no processo :ultur~l.
Sa.be-se que a "sociologia do conflito" nêio avançou mu~to alem
do qne Georg Simmel escreveu ha mais d.e n~eio_ século. 0 atraso
observado ( e reconhecido) neste ten·eno tao ~mportante parece
estar relacionado cam a idéia de ser o conflito algo de tempo-
rario e des.t rutivo, a perturbar 0 ritmo "normal" das socied'adJes
hwnanas. A hipotese de que o aonflito social passa constituir
uma fôrça po>Sitiva, onipresente e nonnal, no sentido de repre-
sentar, pelo menas, um dos mecanismos através dos quais se r;o·
duzem modificaçoes cultnmis, esta hipotese - ava.nçada por s~m­
mel Thomas e Znaniecki, entre outras - tem suscitado bastante
int:rêsse verbal sem qz~e éste se tenha convertido em ener!gia im-
vestigadpra:. ltaipava nâo oferecia oportu.nidade para. verificar
a hipotese, e1omo de fato nenhum estudo monogréifico poderia ofe·
recé-la, mas desejo frisa.r, de modo ma.is enféitico possiv·el, que a
presença c01nprovada de conflitos culturais e sociais cam sez:s
efeitos des'Organizadores em ltaipava, nao implicœ a sua auséncw
em qualquer época do passad1o . Creio ser pouco realistica a idéia
de um "marco zero", a partir do qual se teriam realizado tôdas
as comoçoes sociais cam efeitos diretos sôbre a situaçêio presente,
substituindo uma existéncia comunitaria, isenta de discordia in-
terna e mudança cultural, por uma jase "critica" de trans/or·
maçoes profundas e T(ipidas que estejam rumando para uma exis_-
téncia social futura ( melhor ou pior, de acôrdo cam as pred~­
leçoes ideologicas do observador), caracterizada, co mo a vida
social anterior à crise, par uma estrutu,ra "definitiva" e im6vel.
Sem .negar a realidade de jases criticas, de rapida e extensa ~ub­
versiio de valores tradicionaZ:S, estou inclinado a pensa:r, apowdo
em numerosos estud'Os de recente data, que muda.nça cultural ·niio
l~ significa apenas transiçiio de status para contractus, d e " comum-.
dade" para "sociedade" ou de "cultura. de folk" para "civilizaçii~",
cam a possivel implicaçâo de nm retôrno a uma ordem so'Cwl,
isenta de conjlitos e desorganizaçâo camo isento teria sida o
\
status quo que precedeu a grande crise. Descle que os /~tas ~x~­
minados neste volume nâo oferecem ensejo para profecw.s, lLmr-
to-me a decl.arar agui qu.e nenhuma das tendências de desenvol-
vimento assi.naladas no decon·er do estudo, indica ou sugere que
Tl
 llrn dia ltat:pava coma qualquer outra localidade sa~ra da jase
de fl1t{.(!,-,.tlr,:a coma zuna serpente S·ai de sua pele, exibindo o lustra
dr! tuna ~~slrntura social tôda nova e imaculada.
:2 .- . 0 r;_rocesso .de desorganizaçâo cultural em si ·nâo apre-
sen ta uuhc~.çoes relatwas ao rumo e ao conteUdo das mztdanças
qne se real~zam em determinadas jases hist6ricas da vida de unw
sociedade. Supondo que ~ma inovύiio acabe por ser incorpo-
rada ao acervo cultural ex~stente, quais seriam os seus efeito'" sô-
Ûre a estrutura social? 0 conflito se afigura coma situaçâo tran-
s~lona, coma falha temporaria de contrôles sociais, cnjas hesi-
taço~s. e ir:decisoes ja •nao pennitem o usa inequivoco de sançoes
traiùclonals. M.a:.s, uma vez supera.da, essa jase relativa;mente
amorfa (limitada, esta clara, aos setores da cultura em que ocorre
a . mw!ança) ten:Ie a ceder a algo qne ultrapassa a mera reorga-
mzaçao da socledade nos moldes anteriores, o retÔn~<o ao status
quo. No "nivel" cultural se poele apontar a existência de novi-
dade.s --:- e;n. 1tai pava sao novas praticas religiosas, médicas, mer-
c~ntu, Jnridlcas etc. - mas que sucedeu no "nivel" social? A
/lm de analisar alguns dos efeitos que as inovaçoes tiveram sôbre
~ estrutura social de ltaipava, lancei mao .de um conceito que,
JU•ntamente com ~ de desorganizaçâo e secularizaçao fôra usado
por Robert Redjleld nos seus estudos em lucatêi: individuali·
zaçao.
Mesmo o exame mais superficial revela a maior especifici-
&:de dos processos .sociais abrangidos p.or êsse têrmo. A afirma-
ç~o ~e que um:a.s.ocledacle ou cultura esta desorganizad'a apenas in.
du:_a mcom,patlbdidades e antagonismos entre valores e home.ns, mas
nao s~ reporta aas caracteristicos do sistema socia,l anteri'pr ou
~os~e~w;r ~ essa jase. Todavia, dizer que uma. sociedade se esta
L.ndwzduahzando equivale à asserçêio de que, em época anterior
as ~nuda~ças, a estrutura social possuia traças "coletivistas". Es-
tana, pou, numa jase de tramsiçao em que os diversos grupos
perdem algo cle sua capaciclade de agir em conjunto, .ou, inversa-
mente, em que o individuo encontra incentivos e ensejos de des-
pr~nd~~·,se de certas dependências grupais e de agir "par conta
prop':!.a · 0 aspecta mais 6bvio da individualizaçâo de Itaipava
se ve na transformaçao da tradicional economia de swbsistência
ern . e~o.nomia _comercial. A individualizaçao também pode ser
rlefuuda em tennos de novas alternativas de açao que sz~rgern
1 rlnmnte a fase de desorganizaçiio e acabarn sendo aceitas contra
72
Clresistênda daqueles que se apegam à tra.diçiio. Quanta maior
u nûmeno de alternativas de comportamento entre as quais o indi-
viduo é livre de escolher, tanta maior a individualizaçao.
Urn dos perigos dêste conceito reside na possibilidade de se
aceitar coma. definitiva e irreversivel a seqüência que nurnerosos
estudos, ~ncluindo os de Robert Redfield, parecern sugerir, isto
é, de que a mudança, onde quer que ocorra, procede inevitàvel-
mente de urna ordem social mais ou menas coletivista para uma
nova, caracterizada p.or um individualismo cada vez mais acen-
tuado. Que o processo encarado assim, adquire wn sabor român-
tico (pois se ajigura coma "liberaçiio) do individuo de laço.s
sociais inibitivos) parece ser apenas urn dos produtos secundii-
rios da reflexao sociol6gica. Na verdade, ·niio hii nada, na l6gica
ou nos fatos, que justifique a inevitabilidade daquela seqüência.
Muito ao dp.ntrario, tantos sao os casas, no cenario social contern-
porâneo, de restriçêio espontânea ou coercitiva de alternativas de
comportamento a que os membros de determinadas sociedades se
submetem, que tôda idéia de irreversibilidade precisa de ser aban-
danada. De outra lado, nern tôdas as sociedades "simples", "pri-
mitivas" on "preletradas" sâo necessàriamente coletivistas. A lite-
ratura etnografica abunda em exernplos de sociedades prirnitivas
que opunham ou opoem um minima de restriçoes à açao ou ini-
ciativa individual. Nao menas preconcebida é a idéia de que
ao individualismo esteja necessàriamente associada a desorgani-
zaçâo social. N â10 parece haver du vida de que, ern jases de en-
fraquecimento ou colapso temporario de co·ntrôles sociais, a indi-
viduo encontre oportunidades unicas para enveredar par carni-
nhos ordinàriamente vedados, mas se a des,organizaçao traz con-
sigo, ao menas ternporàriamente, consideravel individualismo, êste,
por sua vez, nao esta necessàriamente associado à desorga.nizaçâo.
Urna sociedade individualista nao deixa de ter estrutura, rneca-
nismos de contrôle e sançoes. Ern outr-os tênnos, formas de com-
portamento individualista podem ser tao costurneiras camo a seu
contrario, o coletivisrno, isto é, ambas as formas padern ser dis-
tinguidas com'(J elementos estrntnrais sàmente em funçao da pre-
sença de certos mecanismos coercitivos que as definem e circuns-
crevem. Ainda nao se divisaram estruturas duradouras que hou,.
vessern abolido completamente tôdas as alternativas de compor·
tamento . De outra lado, é irnprovavel que a multiplicaçiio de
alternativas perrnissiveis passa chegar a;o ponta de ramper tôda
e qualquer convençao social. Falar de individualizaçiio sàmente
tem sentido a partir de determinadas sitzwçoes hist6ricas ern que
13
 ccrtos setores do sistema. nonna.tivo faziam coma que o individuo
fJudesse agir apenas em funçiio de designios grupais.
A i·ndividualizaçiio é relativa ainda num sentido diferente .
0 moradl()r de 1taipava pode agora escolher entre wn sistema de
trabalho cujas frutos revertem em beneficia da familia extensa
de qne é membro, e o trabalho assalariado em ztma localidade
distante. À medida em que prefere a ultima alternativa, a familia
extensa tende a enfraquecer .e transformar-se, mas niio ha duvida
de que encontrara pela /rente limitaçôes do mercado de trabalho,
assim camo as exigéncias teonol6gicas da divisiio dP trabalho
inere,ntes à economia industrial. Em outras palavras, a individna-
lizaçiio observada em uma estrutura tradicional resulta em novas
alternativas cuja escolha e.nvolve o individuo em novas processos
de coletivizaçâo menas suscetiveis de contrôle do que os de âm-
bito comu•nal. Adianto esta observaçiio meramente à guisa de
zuna hip6tese a ser verificada futuramente.
3 - Dos trés processos analisados aqui, a secularizaçiio é,
indubitàvelmente, o mais especifico, pois em contraste cam os
outras dois, v têrmo se refere a regras ou nonnas especificas,
substantivas, relacionadas com o sobrenatz~ral, e ao papel que
elas dese;npenham nos diversos setores da cultura. Afirmar que
uma socLedade se esta secularizando equivale a dizer que pela
menas algumas de suas atividades se despre.ndem do ritual reli-
gioso ou magico que ,outrora. as permeava. A secularizaciio de
Itaipava se afigura coma um dos muitos aspectas da des~rgani­
zaçiio cultural e social. Par exemplo, danças e cantos conside-
rados sac ros na zona rural de 1taipava, passam par divers ô es pro·
fanas entre a populaçiio z~rbana, constituindo assim um casa tipico
de descontinuidade de valores tradicionais que divide os homens
em crentes. e descre.ntes.
Quai é a relaçiio entre individzwlizaçiio e secularizaçii,o? 0
hom~": d~ 1tai pava que perdeu a fé nas praticas propiciat6rias
trad~cwnms, pode escolher entre o credo protestante, o ateismo
professa on simplesmente a indiferença. Em qualquer uma dessas
hip6teses, suas atitudes diante do sobrenatural se secularizam,
mesmo se escolhe o protestantismo, pois os fatos apresentados no
presente estudo atestam que, no a/ii de livrar-se de "supersti-
çôes", os protestantes tendem a reconhecer zww linha de dernar-
r:aç/io definida entre o sagrado e o secular, assinando a êste uma
t·sftmt de açiio consideràvelmente maior do qu e os niio-protes-
/o·nll~s que aindn se pwtegem contra o mau-olhado, acreditam em
" cui.w feita" e fazem promessas aas santos.
A mudança cultural .niio encerra necessàriamente a secula-
ri:::açiio, seja porque a cultura nunca foi "sacra", seja porque ela
lraz no-vas formas de lidar cam o sobrenatural niio menas absor-
venles do que as a.nteriores. Nem tôdas as culturas prirnitivas
on simples siiro "sacras". Freqüentemente, constitui motiva de sur·
présa para o obser-vador, a pouca importâ.ncia que se liga ao so-
brenatzaal, e a despreocz~paçiio com que os home.n s se dedica.m
a seus afazeres quotidiano,s sem se incomodar cam o que os séres
do outra mundo1 possam pensar déles. ltaipava possuiu ou ainda
possui, até certo ponta, caracteristicas de uma cultura sacra por-
que foi, coma tmuas comzmidades da América Latina, herd'eira
de tradiçôes religiosas medievais, modificaclas por crenças e pra-
ticas indige-nas e talvez a/ricanas, mas sobretudo pelas adaptaçôes
ou reinterpretaçoes sucessivas por que toda êsse ncervo passau
nas miios de pratica.ntes cuja imaginaçêio estava relativamente
livre dos entraves· da teologia oficial. T iio entremeada de religiêio
e magia esta a cultura de 1taipa.va que mesrno a reorganizaçiio
paula tina .d a 1greja Cat6lica, no niv el local, nêio pode deixar de
exercer influéncias secularizantes. Ai esta uma densa vegetaçiio
de ritos e crenças, frutos da heresia espontânea e multissecular
do povo, cuja erradicaçâo reduziria as esferas sacras da cultura
e traria um desencantamento generalizado qzwnto à extensêio e
intensidade das interferéncias sobrenaturais ,na vida humana.
De outra lado, movimentos religiosos recentes sugerem que
êste desencantamento, ge rada tanta par fôrças "mundanas" (a
sabedoria humana) camo pela "ritualismo /rio e dista.nte" das es·
truturas eclesiasticas tradicionais, es·ta sendo repelido pelas mas·
sas que preferem o espiritismo e, sobretudo, o pentecostalismo,
pois éstes prometem recuperar, mesmo no ambiente das javelas, o
significado sacra dos eventas que o individuo experimenta em
contacta com o meio ambiente fisico e social.
Essas observaçôes poderêio servir para que se coloquem o
alcance e a relevância dos trés processos : desorganizaçêio, indi-
vidualiza.çiïo e secularizaçiio, na. devida perspectiva metodol6gica.
Nâo me iludo quanta às possibilidades que éles oferecem. Certa-
mente, .niio constituem a unica, nem talvez a maneira mais ade-
quada para estudar uma comunidade em mudança. Dar-me-ei par
satisfeito se a reediçâo déste volume, cuja pnblicaçêio data de
1947, oontribuir para incentivar a pesquisa monograjica no
Brasil.
15
·, .. r
CAPITULO II
A ESTRUTURA SOCIAL
l. As CLASSES SociAIS
A estratificaçêio social
Perguntando a um morador de Itaipava sôbre as di-
ferenças sociais na populaçâo local, recebemos esta respos-
ta: "Aqui hâ so os graudos e o povo que nâo manda
em nada". Outras informaçoes nâo foram muito diferentes. Ver-
clade é que em vârias ocasiôes pudemos observar atitudes de res-
peito para com os chamados graudos que lhes caracterizavam
bem o status social. Contactas rotineiros entre pessoas do "povo"
e as autoridades locais representavam oportunidades freqüentes
para se ajuizar nâo somente das diferenças de status, mas tam-
bém dos padrôes que orientavam as atitudes reciprocas. Obser-
vaçôes reiteradas feitas no gabinete de trabalho do prefeito mu-
nicipal, revelaram três tipos de atitudes reciprocas. Pessoas hâ
que entram livremente no gabinete sendo recebidas sem delongas
e sem nenhuma tentativa de guardar uma distância social que
possa indicar diferenças de classe. Entre êsses individuos figu-
ram nâo somente outras autoridades locais, mas também chefes
politicos da roça, por exemplo. Pessoas do "povo" estacionam
a certa distância do gabinete ou, às vêzes, se aproximam da
porta aberta sem entrar. Conformam-se em esperar pacientemente
fora do gabinete e nunca reclamam contra demoras. Todavia,
nao raro aparecem individuos que o prefeito convida a aproxi-
mar-se, interrompendo conversas iniciadas e, perguntando-lhes o
JnoLivo de sua vinda, procura solucionar imediatamente o caso.
1 .)(/
1
0 recém-chegado fica ordinàriamente em pé, à entrada do gabi-
atender a visitantes de seu proprio nivel social. Essas observa-
çôes nos levaram à suposiçâo de que bouvesse nâo apenas "grau-
dos e o povo que nâo manda em nada", mas possivelmente uma
camada in termediâria. Contudo a fraca ritualizaçao das relaçôes
sociais clificultava a definiçao do estrato intermediârio, cuja po·
siçao somente por meio de pacientes observaçôes do comporta·
mento manifesta pôde ser determinada.
A nossa hipotese relativa à existência de uma classe média
se confirmava à medida que conseguiamos familiarizar-nos com as
atitudes assumidas por individuos que presumivelmente perten-
ciam a essa classe. A sua posiçâo econômica ou o cargo que
ocupam lhes confere, com relaçao à classe "inferior", uma supe·
rioridade que se manifesta em atitudes reciprocas caracteristicas
de relaçôes sociais superordinativas. Bastava observar os contac-
tos rotine:iros entre trabalhaclores braçais, arrendatârios, artifi-
ces, "biscateiros" e aquêles de que dependiam ou eventualmente
viessem a depender econômicamente: em geral, os dependentes
dispôem-se a receber, passivamente, orclens ou recomendaçôes das
pessoas de que dependem, mesmo se estas ocupam um status que
evidentemente na-o alcança o dos "graudos". Muitas vêzes, dife-
renças no vestuârio simbolizam a diferença de status. Por exem-
plo, os da classe inferior andam quase invariàvelmente descalços,
ao passo que os outros, mesmo os sitiantes, usam calçados.
Oportunidades para observar que de fato a comunidade reco-
nhece a existência de um estrato intermediârio, oferecem os ban-
quetes formais . Os graudos, embora separados por partidos poli-
ticos, costumam ocupar, nessas ocasiôes, mesas separadas, colo·
cadas no melhor lugar do recinto. Os demais convivas sentam-
·se às outras mesas, mas pessoas da classe inferior nunca sao
convidadas ou, quando hâ ingressos à venda, nâo os adquirem
porque "nao se sentiriam à vontade". É evidente, portanto, que
a ordem observada nos proprios banquetes coïncide com a divi·
sâo entre classe superior e classe média.
Corn relaçao aos "graudos", os da classe média assumem,
caracteristicamente, uma atitude critica que muito contrasta com
o respeito passivo da classe inferior. Poucas conversas mantive-
mos com pessoas da classe média que nao incluissem censuras
ou elogios dirigidos a autoridades locais ou chefes pollticos e,
mais de uma vez, faziam ver, nessas criticas, ambiçoes fru stra-
das ou o desejo de ascender socialmente .
37
nete. De acôrdo com a categoria das pessoas com que esta tra.
tando, o mesmo funcioniirio interrompe ou nao a audiência para
Todavia, para consolidar essas observaçôes, necessiiria nm'
parecia a realizaçao de um trabalho suplementar. Os fatôres co·
mumente considerados responsiiveis pela estratificaçao de socie·
clades em classes, como riqueza, profissao, religiao, antiguidade
de familia, côr, educaçao e diferenças "culturais", foram utili·
zados num sentido meramente hipotético, pois tratava-se natural-
mente de descobrir quais os critérios que a propria comunidadé
adotara para atribuir a seus membros niveis sociais diferentes.
Partindo dai, realizamos um trabalho de entrevista que visava
confirmar ou infirmar as observaçôes anteriores sôbre a estra-
tificaçao da comunidade local. Aplicamos uma série de quesitos
a pessoas que supunhamos pertencessem a niveis sociais dife·
rentes, a fim de saber os status que se atribuiam mùtuamente e
a si pr6prias. Embora nao se pudesse afastar a possibilidade de
uma subdivisao, os resultados obtidos pelas entrevistas foram de
molde a confirmar as observaçôes diretas feitas anteriorment€.
A primeira parte dêsse trabalho era dedicada à classe supe·
rior. Declaraçôes contradit6rias procuramos esclarecer por meio
de novas interrogaçôes. Caso persistissem as duvidas, o indivi-
duo era eliminado do quadro dos "graudos". De modo aniilogo
procedemos corn a classe intermediaria. Talvez nao seja desne-
cessiirio dizer que os casos duvidosos ou residuais jii constituiam
nucleos iniciais das classes intermediiiria e inferior.
Tencionamos classificar, dessa maneira, os 321 chefes de
familia ou moradores urbanos independentes cuja lista nos havia
si do fornecida pela Prefeitura de Itaipava ( 1).
A classe superior
Verificamos que dos 321, trinta ou 9,35% fazem par·
te da classe superior. Quinze representam nomes tra-
dicionais ligados à historia local, quinze sao pessoas vindas de
fora, entre êles cinco estrangeiros ou brasileiros naturalizados e
dois filhos de estrangeiros. Dez sao chefes politicos, vinte nao
ocupam cargo nenhum nos partidos, mas 13 dêles têm interêsses
(1) Trate. -~e de um censo municipal feito para prop6sitol!l de ra.ciona.tnen-
to de gêneras.
:w
politicos ou "atuaçao" politica. Dos trinta, nove sao funcionii-
rios publicos. Econômicamente, tod os os 30 sao tidos como reme-
diados, mas nenhum poderia ser classificado como abastado, em·
bora naturalmente haja entre êles diferenças consideriiveis de
nivel econômico.
A aniilise dêsses dados é mais dificil do que pode parecer
à primeira vista. Nao hii, em caso algum, fator preponderante
que aponte alguma uniformidade nos critérios de classificaçao.
0 quadro A apresenta os fatôres principais que poderiam ter
contribuido para a inclusao das 30 pessoas na classe su peri or:
situaçao econômica, familia, naturalidade, nacionalidade, profis·
sao e papel politico. A atividade dêsses individuos em associa·
çôes religiosas, recreativas, educacionais, caritativas etc. nao foi
levada em consideraçao porque o desenvolvimento dessas esfe·
ras é fraco demais para justificar-lhes o prestigio adquirido. lm·
pressionante é o elevado numero de combinaçôes diversas no
quadro A. Poucas combinaçôes se repetem e o numero de repe-
tiçôes nao admite nenhuma conclusao quanto ao predominio de
certos crité:rios. Comum a todos os cas os é a situacao econômica:
na classe superior nao hii pessoas cuja situaçao e~onom1ca possa
ser qualificada cl'lmo preciiria. Ressalta aind.a outro ca:racteris-
tico que nos poderii servir de ponto de apoio: a ausência com·
pleta de certas profissôes de reduzida cotaçao na sociedade local.
Nenhum individuo é lavrador dependente, trabalhador braçal,
artifice, operiirio especializado, funcioniirio ou empregado subal-
terno. Entre os "graudos" de Itaipava hii sete fazendeiros, mas
nenhum sitiante. Tôdas as profissôes existentes no quadro A
representam posiçôes de mando ou possibilidades de exercer in-
fluência sôbre um numero variiivel de individuos dependentes:
devedores, fornecedores, agregados, empregados. Talvez seja ai
que se deva procurar a diferença de cotaçao entre fazendeiros e
sitiantes, pois os ultimos nao dispôem senao de reduzido numero
de agregados e, fr eqüentemente, o sitio é trabalhado apenas pela
familia.
0 caso mais simples representam as autoridades locais. Pre-
feito, juiz, delegado de policia, promotor publico, diretor do gru-
po escolar e vigiirio sao incluidos na classe superior, pela natu-
reza do cargo que os investe de autoridade funcional. 0 pres-
tigio que se associa a certas profissôes liberais exp~ica o status
dos dois advogados do foro, do médico e, talvez, do dentista.
Mais dificil era a avaliaçao do status dos farmacêuticos e tabe-
liaes. A dois farmacêuticos se atribui, espontâneamente, o status
39
 QUADRO A firmou . Ambos os tabeliâes, por exemplo, pertencem a familias
"tradicionais". Um dos farm acêuticos a que se atribui uma das
Classe superior de Itaipava posiçoes mais elevadas na comunidade, é de ori gem estrangeira .
.. .. - 0 mesmo se verifica corn relaçâo a dois comerciantes, ambos de
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origem siria. É muito duvidoso que o fato de pertencer a uma
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a definiçiio do status social. A populaçâo de Itaipava permane-
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ceu isolada durante muito tempo. Apesar do êxodo incessante,

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grande numero de troncos antigos continua até hoje. Poucas
familias "novas" entraram e possivelmente foi a falta de con·
1 x x x 1 ~ trastes sociais e culturais que evitou a valorizaçâo das familias
2
3
4
1 2
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x 1 !
"antigas". Atualmente, as familias antigas perfazem grande par·
te da populaçâo local e nâo ha novas que lhes possam servir de
5 x x x x "pana de fundo". Em outras comunidades, o tradicionalismo de
6 x x x x 1 :
7 x x x x 4 familia associa-se ao latifûndio senhorial (2). Todavia, em Itai·
8 x x x x x 5
9 x x x x 4 pava niio ha nem havia latifundia cafeeiro ou açucareiro. A alti·
10 x x x x 4
11 x x x x 4 tude niio permitiu que se cultivasse café em escala apreciavel e
12 x x x x 4 a lavoura nunca se elevou muito acima do nivel de subsistência.
13 x x x x 4
14 x x x x x 5 Assim niio se acumularam grandes fortunas e as correntes imigra·
15 x x x x 4
16 x x x 3 t6rias nunca alcançaram ltaipava. Niio admira que, nessas con-
17 x x x x 4
18 x x x x 4 diçôes, as familias tradicionais estacionassem em um nive! cuja
19 x x x x 4 simplicidade nâo se compara ao esplendor atingido pela "aristo·
20 x x x x 4
21 x x x x 4 cracia" rural do Vale do Paraiba. Embora a consciência de anti·
22 x x x x x 5
23 x x x x 4 guidade continue viva e de vez em quan<l.o se ouçam referências
24 x x x x 4 à importância que tal ou qual familia teve no passado, niio se
25 x x x x 4
26 x x x x 4 observam atualmente atitudes de "orgulho" ou de exclusivismo ,
27 x x x x 4
28 ., x x x 4 associadas ao desprêzo do forasteiro ou do homem de origem
29 x x 3
30 x x x 3 ignorada. Ao contrario, a experiência de que a cotaçiio social
do forasteiro ( estrangeiro ou "brasileiro de fora") é inversa·
mente proporcional a seu numero, é valida também em ltai·
pava : poucos sâo os forasteiros; porém a ascensiio so cial de
de ':graudos", n_iio porém ao terceira, sem que fôsse possivel, a
quase todos êles nâo encontrou, ao que parece, obstaculos sérios.
começo, descobnr a raziio dessa avaliaçiio divergente. 0 mesmo
Cinco dessas familias imigradas foram incluidas na elite local.
se pode dizer dos dois tabeliiies aos quais se atribuem status
0 homem que dirigiu a politica de ltaipava durante cinqüenta
diferentes. Investigaçôes mais acuradas revelaram diferencas ana·
logas na c otaçâo social de comerciantes, capitalistas e f~zendei­
ros. A situaçiio econômica em nada contribuia para explicar es· (2) Nesse sentido , a sociedade de Tietê represe nta um ex emplo carn c -
teristico . U1na numerosa camada de e x -escravos e agregaclos co n.5titu l a
sas diferenças, pois era evidente a inferioridade econômica de base da pirâmide social sôbre a qual se realçam as fa n1lli ns trn dt cion ats .
alguns d êsses individuos quando comparados corn outras da classe "aristocrâticas" . Aos imigrantes italianos, cujas descendentes perfa :r.e m h o je
mais do que a m e t ade de tôda a p o pulaçâo, se atr !buia um st a.tus setne -
médi~. ?bservaçôes feitas em outras comunidades sugeriram que lhante a os clos ex-escravos. ..Italiano er a lixo aqui" , assc gu rnvn -nos um mo-
radar antigo. A asce nsao social dos italo-bras ile iros começou sàmente e m
n anl:lgmdade e o papel hist6rico da familia poderiam fornecer 1928 e, embora a situaçao tenha mud ado por compl e ta, o pre concetto e o
c lerncntos de explicaçiio. Mas também essa hip6tese nâo se con· exclusivismo de nâo poucas famili as "tradicionais " continuan1 até ho je.

41
 u nos, er a baiano de côr. 0 a tu al prefeito nâo é itaipavense e o
se u predecessor era de origem francesa. Um dos atuais chefes
poliLicos é sirio. Outra sirio e um farmacêutico de origem ita·
liana exercem consideravel influência nas campanhas eleito-
rais. A ascensâo social do forasteiro é um fenômeno cuja fre·
qüência esta em desproporçao obvia corn 0 numero de advenas.
Quanta às familias tradicionais, nao seria possivel considerar
desproporcionalmente elevada a sua representaçao na classe supe·
ri or (50%). Antes ao contrario: uma an alise dos nomes de alu-
nos do grupo escolar demom;tra.ria que mais de 50% sâo porta-
dores de nomes tradicionais.
Persiste, pois, o problema de composiçao da classe superior.
Nem o status econômico, nem a antiguidade de familia, nem tam-
pouco a profissiio siio fatôres que, isoladamente ou combinados,
explicam a inclusâo de certo numero de pessoas na classe supe·
rior. Esclarecido esta apenas o caso das autoridades locais, dos
advogados e do médico, cujo status decorre diretamente do pres-
tigio atribuido ao cargo ou à profissâo, independentemente de
outras fatôres que porventura estej am associados àqueles.
A fim de compreender o status dos demais individuos é
precisa atentar para a relaçâo que existe, em todos os casas repre·
sentados no quadro A, entre as profissôes de comerciante, capi-
talista, fazendeiro, e as duas colunas atinentes às atividades po·
liticas. Vê-se que sete comerciantes e capitalistas sao, ao mesmo
tempo, "chefes politicos". Trés outras sao "politicos" ou, em
ouros têrmos, estâo interessados no desenvolvimento da poli-
tica local a ponto de prestar o seu concurso pessoa! a um dos
partidos politicos, trazendo-lhe eleitores da pr6pria familia ou
f:reguesia. Talvez nao sej a mero acaso sete individu os (entre
clez) pertencerem a familias an ti gas, pois familia antiga significa,
quase sempre, parentela grande e, portanto, um numero elevado
de eleitores.
Entre os sete fazencleiros residentes na cidade, três exeroem
profissôes liberais e nao se lhes pode aplicar, portanto, a ana-
lise que estamos tentando. Dos quatro restantes, o numero 11 é
poli ti co e membro de uma famllia tradicional; o nlimero 14 é
chefe politico e "capitalista" a mn tempo. Verificamos que essa
ùltima situaçâo condicionou um prestigio excepcional, tanta mais
que o mesmo individuo pertence a mna clas familias mais anti-
gn5 c Tumificadas. 0 numero 18 é politico e membro de uma fa-
lllil.i a lracli cional; o m esmo se da corn o numero 24.
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Parece··nos que essa analise justifica a conclusâo de que o
status supeTior é condicionado, nos casas em aprêç?, pela a~so­
ciaçao da atividade politica à profissiio de comerc1ante, caplta-
lista ou fazendeiro.
Re:::ta saber, no entanto, por que outras pessoas da comuni-
dade que exercem as mesmas profis&ôes nao procuram elevar o
seu status pela participaçao na politica local. . As can;p~nhas
eleitorais corn suas solicitaçôes oferecem oportumdades face1s de
participaçao politica, sobretudo aos varejistas :e fazendeiros c~m
numerosos arrendatiirios e meeiros. Poder-se-1a pensar tambem
que relaçôes politicas fàcilmente levam à ampliaçâo ou solidif~­
caçâo das relaçôes comerciais. Observaçoes reite:adas nos e~sl·
naram que a participaçiio na politica local se ahgura a mmtos
como arma de dois gumes. Moradores ha que apontam exemplos
do passado: pessoas que enriqueceram pela ~olitica. ~as gerai-
mente se lhes associa o estigma da desonest1dade. Sao lembra-
dos c;m10 "ladrôes que começaram pobres e acabaTam. :icos~'·
Os negociantes de Itaipava também sabem que a part1c1paçao
politica limita as possibilidades comerciais. Diante do ~antago­
nismo que separa os partidos, o "politico" niio pode ahmen_tar
a esperança de conservar ou "conquistar" fre~eses d_o. part1do
contrario. Acresce a ameaça latente das revoluçoes pohhcas corn
suas reminiscências ainda frescas de 1932. Foi nesta ocasiâo que
alguns dos comerciantes locais politicamente :'comp~ometidos" v~­
ram suas lojas saqueadas. Essa ameaça contmua v1va na memo·
ria de muitos que acham pouco sedutora a idéia de "começar de
novo". De outra lado, ao comerciante novo, vindo de fora, a
politica poele afigurar-se coma trampolim bastante promissor. 0
passado e mesmo 0 presente oferecem alguns exemplos dessa ca-
tegoria.
Todavia, os depoimentos colhidos nâo deixaram ~uvida de
que, em gera!, o interêsse econômico é m6vel demas1adamente
fraco para explicar a participaçâo politica de ~lguns. É cerJ:_o,
no entanto, que é poderoso a ponto de determmar a abstenç,ao
politica de outras. Parece que as atividades politicas conte~n
elementos de auto-satisfaçao suficientemente fortes para atrau
precisamente aquelas pessoas que lhe.'i sabem apreciar as_ quali-
dades inerentes de jôgo, ou, para repetir algumas expresso es re-
gistradas que gostam "d e mtngas
· · " , d e " go 1pes cl'~- ~u rJJiêsa".' ". dr
aTdis", e "manhas". Alguns preferem sofrer preJUIZO economJCO
e suportar as censuras da familia, a "larga: .da ~o litica". f:s tes
"estâo viciaclos com a politica" ou a " poht1ca e cachaça para
43

êles". Semelhantes observaçëies siio bastante expressivas para in-
dicar algumas das qualidades pessoais do "politico". Muitos indi-
viduos da classe média niio possuem essas qualidades e os cargos
que poderiam conquistar niio lhes parecem compensadores em
um mumc1p10 cuja renda anual nunca ultrapassou 150.000
cruzeiros (até 1944).
Niio existem, porém, linhas de demarcaçiio rigidas entre as
classes. A prova esta nos individuos ja mencionados que alguns
quiseram incluir na classe superior, ao passo que outros prefe-
riam atribuir-lhes uma posiçiio mais baixa. Incluimo-los na clas-
se média, mas dependera somente de sua atuaçiio politica se futu-
ramente deverao ser incluidos na classe superior.
A classe média
N un ca ouvimos, nas nossas entrevistas, a men or referência
expressa à classe média. Somente pela observaçao do compor-
tamento dos moradores de ltaipava chegamos, como ja foi dito,
à conclusao de que existia realmente um estrato intermediario.
Êste se compëie de todos os moradores que estao em situa-
çao econômica mais ou men os desafogada; que assumem, nas
suas relaçëies corn autoridades locais, uma atitude de relativa de-
:senvoltura e cri ti ca; que vendem serviços ou utilidades de cota·
çao social relativamente elevada; que, graças a sua educaçao, po-
dem participar de atividades recreativas que exigem o dominio
de certas regras da etiquêta urbana; cuja pos1çao econômico-
-profissional representa um "potencial politico" altamente apre-
ciado pelos partidos.
93 individuos ou 28,97% dos 231 moradores classificados
pertencem à classe média. Ha entre êles 41 comerciantes ou
"capitalistas", 16 si ti antes, 12 funcionarios de categoria média;
10 artifices, 7 fazendeiros, 3 empregados, 2 arrendatarios, 1 fun-
cionario de categoria mais elevada e 1 individuo que exerce pro-
fissao liberal. Para caracterizar a classe média é preciso dizer
que dos 93 individuos somente 17 nao têm posiçao politica defi-
nida. A existência de 5 mulheres e 1 estrangeiro entre os 17 apo-
liticos diminui mais ainda o significado dêsse nillnero. De 76
pessoas da classe média sabe-se que sao adeptos do Partido Re-
publicano Paulista ou Partido Constitucionalista (3) e que, pro-
vàvelmente, continuarao leais aos velhos partidos.
(3) Embora a campanha eleltoral de 1945 j a tivesse sido iniciada na èpo-
ca cm que êsses dados foram colhidos, as denominaçôes partidàrias, anterio-
i ~""" a 1937, continuavam sendo usa das.
1
As desigualdades econômicas na classe média siio maiores
do que na classe superior, mas niio ha indjviduos reconhecida-
mente pobres. Mesmo os arrendatarios, sitiantes, empr_e~ados e
rnercadores de aves ou cereais dispëiem de algum pecuho, pro-
priedade im6vel ou ordenado suficientemente ~lto para equiparar
0
seu estilo de :vida às condiçëies e expectatlvas de sua classe.
Ja assinalamos, no entanto, a existência, na classe média, de. al-
gumas pessoas consideràvelmente mais abastadas do que mmtas
da classe superior.
Profissao, riqueza relativa e interêsses politic?s de nao pou-
cos componentes dessa classe, fazem corn que a hnha de demar-
caçâo, corn relaçao à classe superior, na~ possa ser traçad~ ~o~
exatidiio. Um estudo mais acurado levana talvez a uma diVISao
dêsse estrato em classe média "superior" e classe média "infe-
rior". Em todo caso, as diferenças de nivel observadas na classe
média sao mais acentuadas do que aquelas que se percebem na
classe inferior ou superior.
Dos 93 individuos que compëiem o estrato intermediario, 38
ou 30,10% sao portadores de nomes tradicionais (contra 50%
na classe superior).
A classe inferior
A camada inferior da sociedade de Itaipava caracte-
riza-se, principalmente, pela ausência completa de um ope·
rariado industrial. Nao existe estabelecimento fabril no
municipio fato êsse que contribui para dar à classe inferior uma
feiçao ac~ntuadamente rural. Entre os 198 c~efes. de fami~as e
pessoas independentes que compëiem a cl_asse mfenor da c1dade,
ha 62 lavradores (arrendatarios e meenos), 42 trabalhadores
braçais, 41 artifices e opw1rios especializados, 1_2 ~u~cionarios
subalternos, 12 empregados, 5 negociantes e 24• 1ll01VIdUOS naO
classificados. Essas 198 pessoas representam 61,68% dos mora-
dores citadinos classificados. Os componentes da classe inferior
siio considerados pobres. Nenhum dêles dispëie de r~cursos ou
propriedade em escala ponderavel. Embor~ alguns deles, como
certos empregados e artifices, vendam serv1ços bastante apr?c.ia-
dos pela sociedade local, êles nao conseguiram acumu_lar_ pecuhos
que os pusessem a salvo das oscilaçëies da v!da ~co~onuca local.
Essa depend ência lhes da uma posiçao de mfenondade que se
nota nas atitudes que assumem em contacto com membros de ou-
45

l.r11 ~ clu " !:ics son<us. Muito dos artifices e operanos especializa.
du 11 di slin g ucm-se dos trabalhadores braçais apenas por uma espe·
t'inli;-:açiio de importância restrita. É o caso dos numerosos pe·
dreiros, por exemplo, que em gerai nâo podem viver exclusiva-
IIJCnte de seu oficio numa cidacle onde se constr6i muito pouco.
De mais a mais, suas habilidades técnicas nao se elevam muito
acirna do que é considerado rudimentar nessa profissao.
Muito mais do que 50% da classe inferior compôem-se, por-
tanto, de trabalhadores braçais ocupados, na sua grande maio·
ria, no amanho da terra. Èles dependem, corn pouquissimas ex-
ceçôes, no exercicio de seu oficio ou atividade, de outros meru-
bras da mesma comunidade. Deixando de lado alguns poucos
funcionarios e empregados subalternos, poele-se dizer que as re-
laçôes econômicas que os associam a patrôes, empregadores ou
proprietarios, sâo relaçôes intracomunais, pois é desconhecido
o absentismo em ltaipava. 0 numero elevado de arrendatarios
e meeiros torna necessario, no entanto, uma caracterizaçao su·
cinta das condiçôes sociais em que êsses homens vivem e tra·
balham.
Meeiro e arrenclatario nao se acham em pé de igualdade
corn quem lhes "da a meia" ou terras "de arrenda". Sao rela-
çôes subordinativas de patrao corn agregado, sendo êste o têrmo
que substitui geralmente o de arrendatario. Êste mora na fazen·
da, tem casa de pau-a-pique, onde mora corn a familia. Paga
exclusivamente em espécie: 10 cargueiros de milho por alqueire
plantado e dois alqueires de feij ao por um alqueire de plan ti o.
É tal o grau de dependência que o arrendatario se transforma
geralmente em "camarada" assumindo obrigaçôes relativas às la-
vouras do "patrao". Os cuidados que dispensa às roças do pa·
trao trazem, nao raro, prejuizo às pr6prias lavouras, dada a
impossibilidade de cuidar simultâneamente de ambas. Acresce
que nao poucos patrôes mostram, segundo fomos informados,
"pouco respeito pelo direito dos agregados soltando o gado que
lhes in vade os milharais". É digno de nota que êsses fatos rara-
mente produzem conflitos, revolta ou abandono entre os agrega-
dos. Êstes sâo considerados "miseraveis" e "pobres", mas "bons"
e incapazes de reaçôes violentas. Ouvimos diversas vêzes que
"muitos agregados sao tao pobres que nao possuem sequer roupa
e dinheiro para sair da zona".
0 meeiro é geralmente solteiro, recebendo casa, comida e
sementes do patrao. Êste lhe indica o terreno a ser cultivado
e o mantém até "amontoar o milho" na roça. Depois reparte corn
i
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meeiro 0 milho ou feijao colhido. Usualmente compra a parte
0
que couhe ao meeiro, mas freqi.ient~mente ê~te lhe deve grande
parte da "meia", pois suas necess1dades nao se resume~. em
casa e comida e o patrao lhe adiantou despesas com vestuano e
"extraordinàrios".
Entre os sitiantes médios e pequenos nao é raro o meeiro
clesposar a filha do patrao. Muitas vêzes, o trato abrange o con-
sentimento tacito de ambos quanto ao casamento, embora talvez
o meeiro nem conheça sua futura mulher.
Tanto arrendatario (4) como meeiro podem ser, ao mesmo
tempo, "camaradas", sobretudo no periodo que m~deia en:re a
colheita do feijao e a do milho, quando o tempo e apr_ove1tado
para reparos gerais na fazenda e nas cêrcas, para a hmpa de
pastos e o consêrto de caminhos. Nem sem~re o ~agregad~ en·
contra serviço na pr6pria fazenda, sendo mmtas vezes obngado
a procura-lo em fazendas ou sitios vizinhos.
Camo nao existe soluçao de continuidade entre "cidade" e
"roça" e as tendências de urbanizaçâo na~ a_nularam certos_caracte·
risticos rurais da comunidade, as cond1çoes em que v1vem os
arrendatarios e meeiros residentes na cidade, nao se distinguem
das condiçôes de vida daqueles que residem longe da sede do
municipio.
As relaçôes entre pessoas de classes sociais divers?s, disti_n-
guem·se geralmente pela ausência de traços que em mmtas soc1~·
clades caracterizam a distância social entre senhores e subord1·
nad os patrôes e empregados, no bres e plebeus: a "arrogância"
'
e o "orgulho" de um la do, e a "humilda cl e." e o ". s~VI"l"ISIDO " de
outro lado. Na maioria das situaçôes da vida rotmeua, a classe
média confunde-se de tal maneira corn a classe superior que seria
dificil discerni-las apenas pelas atitudes de seus mem~ros. Pes·
soas da classe inferior sao tratadas corn brandura e nao adotam
nenhuma forma de comportamento que pudesse ser in_terpretada
coma servil:ismo. A atitude de pessoas de status mais elevado
têm muitas vêzes um quê de paternalismo a que corresponde,
do lado da classe inferior, um padrao de "respeito", acrescido
de rece10 , mêdo ou desconfiança quando o individuo corn que
(4) De uns cinco ou sete anos a esta part~, importante muctançn sc
assinalou no tradicional sistema de arrenda. Surg1u o arrendatârio inctcp?n-
dente de terras e pastagens. Corn êle o trato nâo é "de bôca", mas cscnto.
~le paga em dinheiro e mantém relaç5es estr~t~mer:te coordenatlvns corn o
rendeiro. A introduçâo dêsse ti po de arrendatano hga-se _à entrada de mi-
neiros e à difusao da pecuària, pois as terras a rrendadas sao gernlmente pns-
tagens.
47
 se estabelecem contactas, representa uma parcela do poder po·
litico. Parece digna de nota que o "respeito" impoe restriçoes
no comportamento, interditando, até certo ponta, a manifesta·
çao espontânea de juizos e de emoçoes. Na casa do médico, por
exemplo, ha, expostos nas paredes do corredor da entrada, alguns
quadros cômicos que provocam a hilaridade, sobretudo de pes·
soas .d a classe inferior. Mas o respeito pelo local e seus mora·
dores nâo lhes permite uma expansâo livre de sua hilaridade
que se manifesta .apenas por meio de risadas abafadas e meio
disfarçadas. As atitudes que a classe inferior assume para com
as autoridades, revelam uma boa dose de mêdo e desconfiança
que integra o padrâo de respeito e talvez explique as atitudes
restritivas. As autoridades representam, aos olhos da classe infe·
rior, um poder que emana das suas ligaçoes com poderes mais
arnplos, incompreendidos e talvez incompreensiveis a uma classe
social que depende, muito mais do que as outras, de valores
peculiares a uma cultura isolada e meramente local. Terernos
ainda oportunidade de analisar o sentimento de mêdo e descon·
fiança que inspiram aos membros de classe inferior, contacto.s
cam o "govêrno" e pessoas que o representem. "Govêrno" sig·
nifica-lhe um poder misterioso, maléfico e, par issa, temivel, de
cujo contacta se deve fugir. Dai, por exemplo, o pavor que têm
da convocaçâo para o serviço militar e da açâo policial. "0
maior valentâo se toma cordeiro quando vê um soldado da po·
licia, afirmava-nos o delegado local.
Determinadas condiçoes econômicas que serâo analisadas
mais adiante, agem atualmente no sentido de solapar aos poucos
os padrôes de paternalismo e respeito, reduzindo também o
"mêdo" das autoridades. Na zona rural ja sâo freqüentes as refe·
rências a agregados "revoltados" que acusam os fazendeiros "àe
lhes tirar o ultimo trapo". Na cidade, os operarios, na terrni·
nologia de uma pessoa da classe superior, "estiio rnuito fidalgos".
Corn êles "é precisa falar corn rnuito jeito, porque deixarn o tra·
balbo por qualquer coisinha. Ha muita falta de braços e em
qualquer lugar arranjam serviço".
:f:sses fatos podem ser interpretados coma indices de uma
consciência de classe em status nascendi, que provàvelmente leva·
ra a transformaçôes incisivas nas atuais relaçoes entre as classes
sociais e, sobretudo, a uma reestruturaçâo <las pr6prias classes.
48
2. VrzrNHANÇA E MuTIRÂo
Formas de cooperaçiio vicinal
Ha uma série de atividades seculares e sacras, cuj a rea·
lizaçâo depende de cooperaçao vicinal. Ao lado de serviços
ocasionais que vizinhos imediatos se prestam rnùtuarnente,
figuram acontecirnentos que afetam, mais profundamente, a
vida de individuos e familias e que, usualmente, exigem a
assistência de um numero restrito de vizinhos. Casamentos e
partos, doenças e vel6rios, rezas, novenas e festas em gerai re~­
nem os mor·adores do bairro. Além dêsses acontecimentos, atr·
nentes a relaçoes sociais entre membros da mesma familia ou
de familias diversas, existem outras, de carater ciclico, liga·
dos ao cont1rôle do meio fisico. Aî figuram, par exemplo, ativi·
clades relacionadas cam a lavoura: a limpa e relimpa das roças
e pastagens, a construçâo e conservaçâo de caminhos e o barrea·
mento da casa.
Os padroes de cooperaçâo vicinal sàlidamente arraigados na
cultura local de Itaipava obedecem, como alhures, às regras da
reciprocidade social ( 5) . É du pla a expectativa de reciprocidade
que se encontra à base da cooperaçâo vicinal. Em primeiro lu·
gar, os vizinhos prestam-se auxilio em casa de doença ou morte,
mas esperam também ser convidados para as festas domésticas
que porventura venharn a realizar-se. Em segundo lugar, os mo-
radores acodem ao chamado dos vizinhos quando se trata de
limpar um milharal ou barrear uma casa, mas na expectativa
tacita de que os vizinhos atendam corn a mesma solicitude.
No primeiro caso a retribuiçâo dos serviços prestados é
adiada (na terminologia de Thurnwald), pois entre os eventas
"tristes" e "alegres", os que exigem "sacrificios" e os outras
que oferecem "regalias", medeiam intervalos consideraveis.
Quanta ao mutirao (6) nâo se lhe notou ain~a a dupla _for·
ma de reciprocidade que o caracteriza: as comr_d~s e bebrd~s
que 0 "dono do mutirao" oferece aas que o auxrham na reah-
(5) Veja o estudo fundamental de Richard Thurnwald, "Gegenseltigkeit
im Aufbau und Funktionieren der Gesellungen und deren Institutionen", in
Reine und an!~ewandte Soziologie, Leipzig, 1936.
(6) Mutir~io, adjut6rio e juntamento sâo usados camo sinônimos na re-
giâo de !taipa va.
49
4
 :t.llt.::ïo do trabalho coletivo, representam uma forma de recipro·
c:idade inslantânea, ao passo que a retribuiçao dos serviços vici-
llllis C<'Jnslitui outTo exemplo de reciprocidade adiada.
Na cultura rural de Itaipava, o mutiriio é a forma basica de
cooperaçâo vicinal. Nao exagero na afirmaçao de que, sem essa
inslituiçao, a organizaçao social deixaria de existir na sua pre-
sente forma. As lavouras basicas, milho e feijao, necessitam de
duas limpas. Os sitiantes raramente dispoem de agregados em
nùmeTO suficiente para a realizaçâo dêsses trabalhos. A exten-
sao dos milharais também nao permite que sejam carpidos pela
propria familia. Dai o mutirao ser aceito por quase todos os
moradores rurais. Nos bairros, os lavradores costumam atender
ao chamado dos vizinhos, esperando que êstes lhes reh·ibuam o
serviço na proxima ocasiao. Excetuam-se apenas os inimigos pes-
soais, mas as inimizades, contanto que sejam numèricamente re-
duzidas, nao impedem o fun cionamento da instituiçao. Sitiantes
e fazendeiros que dispoem de mao-de-obra, preferem mandar
agregados, mas êstes participam de tôdas as fases do mutiTao em
igualdade de condiçôes com os demais trabalhadores. Nao se
estabelece nenhuma distância social entre proprietarios e agrega·
dos. A todos cabe a mesma tarefa e durante as refeiçoes e fol-
ganças todos se misturam indistintamente.
Ha duas maneiTas de organizar o mutirâo. Segundo a corn·
binaçâo feita, os homens formam uma ùnica fila e avançam tra-
balhando lado a lado até alcançarem o fim da roça. Considera-se
mais eficiente o mutiriio par tare/a. Tivemos ensejo de assistir
a um mutirao por tarefa no dia 20 de janeiro de 194.5, no hairro
do Guandu. 0 sitiante havia feito o convite com um mês de ante·
cedência. 36 homens atenderam ao chamado, nùmero êsse consi-
derado pequeno pelo "dono" do mutirao. Tratava-se apenas de
uma relimpa de milharal, e êsse trabalho podia ser executado
pelos que vieTam, numa ùnica joruada. "Nos outros mutiroes
vêm a té 90 e mais pessoas", explicou-nos com certo orgulho o
Sr. Nicolau. Percebia-se que no nûmero de participes se refletia
o prestigio do dono. "Desta vez vieram so pessoas das redon·
dezas, os vizinhos." Esta explicaçao revelava um conceito de
vizinhança um tanto inesperado , pois descobrimos entre os par-
ticipantes do mutirao nâo poucos que moravam a uma légua ou
mais de distância. Parece que a rarefaçao demografica alaTga
o conceito de vizinhança a ponto de abranger até moradores de
hainos vizinhos.
.')()
Precedeu o mutirâo a mediçao das tarefas pelo "medidor".
A cacia individuo atribuiu-se uma tarefa que tinha a medida ha-
bituai de quatorze braças quadradas. Às sete boras todos esta·
vam trabalhando, cada um na sua tarefa. Todavia, os individuos
que acabavam sua tarefa passavam a auxiliar os vizinhos mais
proximos, de modo que pelas dez e meia havia três grupos de
trabalhadores além dos outros que continuavam isolados. Ao
meio-dia interromperam o trabalho para almoçar e, à uma e
meia, todos se reuniram para terminar, em conjunto, a relimpa
do milharal. 0 trabalho todo estava concluido às quatro e meia.
Observamos varios dos grupos enquanto trabalhavam e no·
tarnos que todos manej av am a enxada ràpidamente e com a habi-
tua! eficiência. Nao percebemos nenhuma diferença entre o mu-
tirao e o trabalho rotineiro feito por cada um nas proprias ter-
ras. Pelo contrario, parecia haver uma certa emulaçao. lndivi-
duos com fama de bons trabalhadores esforçavam-se visivelmente
por terminar sua tarefa a fim de "empanar" os outros, como diziam.
Notava-se-lhes o prestigio que associavam ao trabalhador rapido
e eficiente. 0 dono do mutirao nao "inspecionava" mas executa-
va sua tarefa como os demais. Quem nâo o conhecesse, dificil-
mente o teria identificado como dirigente da emprêsa.
As refeiçoes tomaram-se em casa do Sr. Nicolau. Antes de
se iniciar o mutirao, todos receberam o habituai café com fari-
nha de milho. Almôço e jantar consistiam em arroz, feijao e
canjinha com carne de porco . A comida era farta e hem prepa-
rada. Apos as refeiçoes todos tomaram caninha, mn gole apenas
depois do almôço, quantidades maiores depois do jantar. Em
gerai, o proprio mutirao é acompanhado de cantos alegres. Os
"cantadores", em grupos de dois ou individualmente, "folgam"
suas modas, desafiando-se e respondendo de pontos diversos da
roça em que se realiza o mutirâo. Ao mutirao do dia 20 de ja-
neiro faltava essa nota alegre. Semanas antes um filho do
Sr. Nicolau e outro morador do bairro, vizinho e participe de
mutiroes, haviam falecido. Teria sido considerada "falta de res-
peito" a realizaçao das costumeiras folganças, sobretudo as mo-
das de viol as e o baile à noite que constituem a esperada com-
pensaçao do esfôrço feito durante o dia.
Alias, a preparaçao das comidas para algumas dezenas de
trabalhadores exige uma espécie de mutirâo doméstico de mu-
lheres. Em casa do Sr. Nicolau algumas vizinhas começaram a
lidar, cedo de manha, corn grandes tachos em que cozinhavam,
51
 no lerrei ro , sôbre fogos abertos, o arroz, o feijiio e a carne. A
(·lus larnbém cabia a distribuiçiio das comidas e a lavagem das
lou ças no almôço e no jantar. Mas nenhuma das mulheres to-
mava as refeiçoes em companhia dos homens. Também nao ha-
via mesa posta para êstes, mas, fiéis à pr6pria tradiçiio familiar,
procuravam os lugares mais diversos, sem a menor formalidade
ou etiquêta de mesa. Acocorados alguns, de pé outros, sentados
em bancos, mesas ou na ombreira da porta, ingeriam, servindo-se
de colheres ou garfos, grandes quantidades de comida. Ocupa-
vam todos os cômodos da casa, corn exceçiio dos quartas, e al-
guns grupos ficavam no terreiro durante as refeiçoes.
Contnàriamente ao que sucede em outras regioes do Brasil,
pül!Cas duvidas ouvimos acêrca da eficiência do mutiriio. 0 ve-
lho Homero, um dos maiores fazendeiros de Itaipava, realiza mu-
tiroes na sua propriedade, sobretudo para a limpa das pastagens.
Confirmou o que ja ouviramos de outras fontes, que o êxodo
cada vez mais freqüente de agregados estava dando maior alento
aos mutiroes.
A maior freqüência dos mutuoes e a assiduidade corn que
os moradores acodem ao chamado vicinal, representam uma ten-
tativa da comunidade para resolver dificuldades que lhe amea-
çam as pr6prias raizes .da existência. A experiência mostra que
o uso generalizado de miio-de-obra assalariada poele levar à de-
sintegraçiio do mutiriio como instituiçiio social, mas os dois
sistemas de trabalho niio siio incompativeis, coma se vê no exem-
plo de Itaipava. Um fazendeiro coma o velho Homero niio aco-
de pessoalmente ao mutiriio, mas, coma muitos outros, manda
alguns de seus empregados. Essa "substituiçiio" é considerada
normal e prova que ambos os padroes foram integrados na cultu-
ra local. Niio ha duvida de que êsse fato da uma fôrça de resis-
tência à estrutura social de Itaipava que outras sociedades rurais,
baseadas exclusivamente no braço assalariado, niio possuem.
Sintomas de desorganizaçiio do mut~riio
Niio faltam , porém, sintomas que tendem a desorganizar o
mutiriio, implicando, ao mesmo tempo, numa individualizaçiio do
regime de trabalho. Alguns dos nossos entrevistados discordavam
quanta à eficiência do mutÏJ;ao. 0 velho Olimpio de Campos, dono
de oitenta alqueires e afamado como "curioso" (7) , niio convoca-
(7) "Curioso" o povo chama a quem revela esp!rito inventivo e habl-
lida de excepcionais.
52
va mutiroes na sua fazenda. Achava que "nao fazem o serviço di-
reito" e por issa prefere "pagar camaradas". Acrescentou, no
entanto, que niio convidava mais os vizinhos para o mutiriio "por
causa das bebedeiras". Mas o velho Campos é metodista e con-
dena as bebidas alco6licas, principalmente a cachaça. Todos os
membros da familia estiio convencidos de que "é pecado beber"
e afirmam abster-se do alcool. 0 velho condena particularmente
os mutiroes convocados para "barrear casa" , pois camo todos,
nessa ocasi.'io, têm que lidar corn barro e agua, julgam salutar
o consu~o de consideraveis quantidades de caninha, durante e
ap6s o trabalho.
Verificamos que todos os protestantes de Itaipava siio consi-
derados abstêmios. Embora a abstençiio de bebidas alco6licas
niio tenha levado ao desaparecimento do mutiriio nos bairros
metodistas de Itaipava, o desprêzo que o velho Campos mani-
festava corn relaçiio ao mutiriio parecia tao estreitamente rela-
cionado às suas convicçoes religiosas que niio julgavamos des-
cabida a hip6tese de ser mera racionalizaçiio a sua afirmaçiio
sôbre a "ineficiência" do mutiriio. Rodeado de muitos vizinhos
cat6licos ao lado de metodistas, niio podia, camo em bairros de
populaça'o exclusivamente protestante, evitar o consuma de alcool
nos mutiroes. A atitude do velho Campos e a de muitos outras
protestantes mostra;
l A associaçiio intima de elementos religiosos e econô-
micos no contexto da cultura local.
2 - A influência dessa associaçiio sôbre a estrutura social,
no sentido de alterar relaçoes vicinais basicas.
3 - A desobediência a uma norma de comportamento tido
coma fundamental para a cooperaçiio vicinal. Nesse sentido · a
atitude poele ser interpretada como indicio de desorganizaçiio
social.
4 - A substituiçiio do regime tradicional de trabalho cole-
tivo e a troca de serviços entre os moradores do bairro, pelo
trabalho assalariado. Nesse sentido, a mudança que a atitude do
fazendeiro acarretou pode ser interpretada coma individuali-
zaçiio.
Mais obvia, no entanto, a tendência para a desin tegraçiio do
mutirâo se tornou numa outra esfera. Pelo Codigo Municipal
de Itaipava, de 1893, tôdas as estradas municipais e vicinais
53

eram construidas e conservadas "de mâo comum" pelos mora-
dores do ,b airro ou "vizinhos". Todo individuo que trabalhasse
"por suas mâ:os e1n serviço de roça" era obrigado a comparecer
aos mutiroes convocados pelos "inspetores de distrito de estradas
e caminhos". Os fazendeiros deviam concorrer "corn um quarto
de seus trabalhadores nâo domiciliados".
0 C6digo de Posturas do Municipio de Itaipava de 1929,
substituiu o mutirâo obrigat6rio pela "taxa de viaçâo" de 15
mil-réis, "imposta a cada homem valido maior de 21 anos, resi-
dente nas propriedades agricolas, quer sej a proprietario, arren-
datario, agregado ou camarada".
Corn o dinheiro arrecadado, a Câmara Municipal contratava
trabalhadores para a conservaçâo das estradas municipais. Ha-
via, contudo, a possibilidade de "remissâo" da taxa e, nessa
hip6tese, a taxa era substituida por dois dias de serviço de oito
horas cada um. 0 c6digo marcava os meses de abril e maio
para a reconstruçâo e conservaçâo das estradas municipais. Os
trabalhos eram executados pelos "contribuintes que preferiam
fazer a remissâo da taxa pelo trabalho" e pelos trabalhadores
"contratados e pagos corn as quantias arrecadadas pela taxa de
viaçâo" . A penas a construçâo das estradas particulares ficava
entregue a os proprietarios e interessados ( 8) .
0 c6digo de 1893 deu forma juridica a uma instituiçâo so·
cial que ja era tradiçâo e continuava intacta até 1929. 0 uso
de veiculos a motor, util ao desenvolvimento econômico do mu-
nicipio, tornava necessaria a construçâo das estradas de acôrdo
corn determinadas exigências técnicas. Foi surgindo, aos poucos,
um pequeno operariado municipal especializado em trabalhos
dêsse gênero . Ao mesmo tempo, a articulaçâo administrativa, cada
vez mais estreita, entre o govêrno municipal e os governos esta-
dual e federal, impunha obrigaçoes cada vez maiores e mais defi-
nidas às câmaras municipais. Entre essas obrigaçoes figuravam
a construçâo e conservaçâo de estradas que passaram a ser absor-
vidas pela burocracia comunal.
0 c6digo de 1929 determinava que a "construçâo e conser-
vaçâo de estradas particulares ficavam entregues aos proprietarios
e interessados", mas nâo estabelecia nenhum modus faciendi. Os
(8) Atualmente a "taxa de viaçâo" continua sendo arrecadada sob a
dcnominaçâo de ''taxa de conservaçâo de estradas de rodagem" (22 mil
cruzeiros em 1945) .
moradores habituados à convocaçâo do mutuao pelas inspetores,
dependiam repentinamente da inici~tiva pr6p:_ia. Per.n:aneciam
na expectativa e, como o terreno ac1clentado nao per~rnt1a o en:-
prêgo de veiculos de rodas, a conservaçâo dos can_nnhos ~arh­
culares raramente impunha trabalhos de monta. Ass1m exphca-se
que os mutiroes "de estrada" se. tornavam cad~ ve~ ma,~s raros,
constituindo. atualmente, acontec1mentos excepc10nms. Os mo-
radores preferem quebrar uma perna a conservar em born estado
os sens caminhos", nos di zia uma autoridade local. Essa frase,
mas sobretudo os fatos, atestam o grau de individualizaçâo que
se observa nessa esfera, pois pràticamente toclo trabalho c~le­
tivo outrora executado em beneficia do bairro ou parte dele,
dei~ou de ser realizado de maneira organizada.
As tendências de desorganizaçâo e individualizaçâo que aca-
bamos de apontar e que se distinguem, com . mai or nitidez ain da,
na violaçào do respeito (9) - base do s1stema de _terr~s em
r.-omztm - nâo representam ainda uma quebra da sohdanedade
vicinal, embora a estejam enfraquecendo, como most_r~ o exe~­
plo do bairro da Apariçâo (10) . Conflitos entr: _vlZlnhos s~o
geralmente acomodados pelos inspetores ~e quar~e~rao . Èstes sao
escolhidos entre os moradores locais ma1s prest1g10sos e nomea-
dos por proposta do subdelegado e prefeito. A ,êl_es se c~~fia a
acomodaçâo dos conflitos corriqueiros. 0 preshg10 que P des-
frutam co mo proprietarios e "homens de respeito", associado ao
apoio moral que podem esperar do delegado . de policia, faz corn
que suas decisoes sejam geraln:ente reco~~ec1da:. As desavenças
mais freqüentes ligam-se a que1madas e a mvasao das roças pelo
gado do vizinho.
Uma queimada feita sem o necessario cuidado prejudicou
dez vizinhos cujas matas e invernadas se incencliaram. 0 autor
da queimada recusou-se a pagar indenizaçâo, alegan~o, que seus
haveres nao eram suficientes para compensar o preJUIZo. Ape-
sar da recusa nao houve processo e os vizinhos implicados fize-
ram um ajuste toleravel para todos, graças à _mediaçâo do ins-
petor local. Êste e outras fatos mostram _a ca~ac1dade que a comu-
nidade desenvolveu em acomodar confhtos mternos.
Tivemos ensejo de observar ainda outra forma de coopera-
çâo vicinal. Um agregado tinha sarado de uma moléstia que o
(9) Veja o capltulo sobre Sexo e Fam!lia.
!10) Veja a "'dcnùncia" , pag. 73.
55
ohrigara a ficar de cama durante quarenta dias. Para solver as
<lividas que o tratamento dispendioso exigira, fêz promessa de
r calizar uma festa em homenagem a Sâo Benedito, com leilâo,
moçambique e dança de Sâo Gonçalo . 0 resultado do leilâo re-
verteria em beneficia do convalescente. A festa realizou-se no
dia 19 de julho de 1945, no terreiro da casa. Apareceram cêrca
de 130 pessoas do bairro trazendo carne de porco, queijo, pastéis,
biscoitos, bebidas e frutas. 0 numero elevado de participantes
e a quantiDade de prendas oferecidas evidenciaram nâo somente
a eficacia dêsse "ajutorio" vicinal, mas sobretudo o fato de se
tratar de um padrâo de "assistência social" sancionado pela comu-
nidade e praticado, segundo fomos informados, em ocasioes se-
melhantes.
3. SEXO E FAMÎLIA
Pa.droes de aproximaçiio dos sexos e a escolha do cônjuge
A aproximaçâo dos sexos obedece a uma série de regras que
estabelecem restriçoes quanta ao circula de pessoas aceitaveis,
à maneira de entabular relaçoes, ao local e à bora considerados
proprios. A cidade é tâo pequena que constitui, pràticamente,
um unico grupo de vizinhos. Todos se conhecem embora às vê-
zes se evitem por inimizade polîtica; mas entre os j ovens, depois
de decorridos sete anos sem campanha eleitoral, pouco ou ne-
nhum rancor existe. 0 conhecimento reciproco que vern dos
tempos do Grupo Escolar e dos folguedos infantis, facilita a
aproximaçâo. "No meu tempo", nos contou uma velha, "o namô-
ro se fazia por sinais, troca de flôres e por assobios". Agora, o
passeio à noite da ensej o para troc ar olhares que normalmente
conduzem a conversas. Se nâo ha oposiçâo paterna, os namo-
rados passeiam juntos, mas somente até as nove boras, nâo po·
dendo afastar-se do quadrilatero formado pelas ruas que incluem
o centro, pois "môça que desce outra rua, fica falada". Ocasio-
nalmente, vêem-se casais de namorados de mâos dadas ou senta-
dos num banquinho junto à calçada. Os velhos escandalizam-se
corn êsses "agarramentos", mas, em gerai, a opiniâo publica ja
perdeu a velha intransigência.
Outrora, tais atitudes teriam sido inconcebiveis, pois o na-
môro das môças somente era tolerado dentro de casa, em pre·
sença dos membros da familia que nunca deixavam a sos os
noivos. Em qualquer visita que fizessem , as môças iam gerai-
mente acompanhadas por um irmâo. Ainda que um tanto mais
56
frouxa em comparaçâo corn os "tempos antigos", a comunidade
continua impondo uma moral sexual que podera parecer austera
quando posta em confronta corn os padrôes observados em Gu~­
pira ou Paracauba. A funçâo conservadora das regras morais
de Itaipava é obvia, considerando-se que elas tendem:
1 - A afastar da comunidade as môças "mal faladas" às
quais se atribuem deslizes sexuais. Geralmente, elas sâo "expul-
sas" pela familia que age como "mâo forte" da comunidade. Sob
a pressao da opiniao publica, poucas môças "caidas" se man-
têm na cidade. Tôdas elas pertencem à classe inferior e algumas
entre elas sâo consideradas "do corte", o que na giria local
significa "dadas a aventuras amorosas em troca de presentes
ou dinheiro".
2 - A impedir que se estabeleça uma prostituiçao organi-
zada. As poucas meretrizes existentes, além de "clandestinas",
sao "desclassificadas"' quer dizer' abaixo do nivel ti do co mo
aceitavel pelos "rapazes de familia".
3 - A perpetuar o status superior do home~, perdoand_o·
-lhe os mesmos deslizes que invariàvelmente levam a condenaçao
das môças. Contanto que os escândalos de "defloramento" nao
se repitam, os homens se reabilitam, depois de ~lgum tempo,
sendo readmitidos, como mostram alguns casos ocorndos na classe
superior, mesmo nos circulos de mais rigorosos principios morais.
Um tanto diferente é a aproximaçao dos sexos na zona ru-
ral. Os rap azes da roça sâo considerados "acanhados" pelos da
cidade. Tivemos ensejo de observar que a segregaçao dos sexos
na zona rural é mais acentuada do que na cidade. Mesmo em
festas. mulheres e homens conservam-se em grupos separados.
Rapa~es em idade de namorar exibem-se medindo su~s fôrças em
lutas improvisadas. Procuram assim requestar, coletivamente, as
môças que se rnantêm afastadas olhando e rindo entre cochich_os.
Verificamos que êsse requestos coletivos se repetem corn relatlva
freqüência, dificultando aproximaçôes i~dividua~s. Toda:ia, estas
ocorrern, embora muitas pessoas da c1dade nao acreditem que
haja "casa:mentos por amor" na. roça. Nu~ca, poré:m, o _ra~az
dirige o pedido de casamento duetamente a moça . A etiqueta
requer que faça um pedido formai ern forma de ca.rta end~r~­
çada ao pai da môça. 0 padrao é ~xplici~o a po~,to de ex1g\~
"papel de flôres", pois pa pel cornu rn e cons1deraclo pouco casa
e a carta ficaria sem resposta. Depois de accito, o rapaz estube~
Ieee contac.to direto corn o futuro sogro. Parece curioso êsse
57
r
i
costume à vista de analfahetismo que predomina na zona rural,
mas é justamente êsse fato que nos fornece a explicaçiio mais
plausivel do valor atrihuido ao pedido escrito. Niio ha duvida
de que noivo e sogro têm que recorrer ao auxilio de terceiros
que saibam redigir e ler uma carta, mas em qualquer hip6tese
o documenta escrito valoriza o processo todo como tamhém as
pessoas envolvidas nêle.
A julgar por depoimentos de velhos, a escolha do noivo ca-
hia outrora aos pais. Contou-nos uma senhora idosa que seu
avô fôra a Itaipava para aceitar o pedido de um rapaz que qui-
sera casar-se corn uma de suas filhas. Por quaisquer cir~uns­
tâncias de que j a nâo se lemhrava, o av ô acahou aceitando o
pedido de outro rapaz, contra a expectativa da filha. Esta se
conformou, pois, comentou a velha, "vocês pensam que naquêle
tempo havi a êste desrespeito de agora?" Um meio de evitar
unioes que nâo fôssem satis.fat6rias do ponto de vista paterno,
foi o casamento prematuro. As pessoas mais velhas ain!la lem-
'hram um exemplo ocorrido em 1895, mais ou menos, quando
um rapaz de treze anos foi casado corn uma menina de onze.
Ainda no principio dêste século era comum os pais fazerem ar-
ranj os matrimoniais à reve lia dos filhos, ohrigando-os depois a
sujeitar-se à escolha feita. Atualmente é improvavel um pai que-
rer casar a filha sem consultar-lhe a vontade. Ao contrario,
em gerai estas dâo o primeiro passo pedindo aos pais que apro-
vem a escolha pr6pria. Na cidade, o pedido de casamento é pre-
cedido por uma fase de namôro geralmente tolerado e vigiado
pelos pais.
Afirma-se freqüentemente que hoje em dia nâo ha oposiçâo
paterna à escolha dos filhos. Nesse particular nâo notamos dife-
renças de classe. As familias "tradicionais" nâo se fecham a
casamentos com forasteiros, nâo se percehem atitudes de "orgu-
lho" familiar, mas o fato de nâo haver muita oportunidade de
conhecer fo.r asteiros torna comuns casamentos intracomunais,
geralmente entre membros de familias ja aparentadas. Na opi-
niâo do povo, algumas familias "tradicionais" costumam casar
s6 entre si. Nâo ha nenhuma prova, no entanto, de que essas
tendências hom6gamas resultem de atitudes exclusivistas, pois em
gerai o bornem " de fora" é preferido pelas môças. Associam-lhe
a idéia de "hom partido", correspondendo assim ao desejo pa·
terno de que se deve "melhorar quando se escolhe alguém".
A despeito da r elativa liherdade de escolha, o consenso pa-
terno continua desempenhando um pape! de relêvo. Nas entre-
58
vistas realizadas corn pessoas de vanas classes sociais, verifi-
camos que a comunidade responsabiliza sobretudo o pai, da esp~­
sa no caso de ser "infeliz" o matrimônio. Intimeras vezes ouvl·
mos "que o pai da Fulana ou Beltrana dera a filha a m~u. ma~i­
do" . 0 fa t o de se "dar" a filha reflete o grau de part1c1paçao
e contrôle que a comunidade espera dos pais, pelo menos. corn
relaçâo às filhas. É à luz dessa expectativa que deve ser mter-
pretada a relutância corn que nâo poucas miies consentem ??
casamento da filha. Uma informante casada relatou a hoshh-
dade corn que a pr6pria mâe rece~ia pedidos d.e casa~en;o de
rapazes desejosos de contrair nupclaS corn as fllhas.. Nao :e-
nho filha para casar" era a resposta aspera, e s6 depo1s d~ mmta
hesitaçâo aceitava o pedido. Dona Carmela, _senhora _ 1dosa e
cabeça de uma das familias mais antigas de lta1pa~a, nao o~ulta
sua aversiio a eventuais casamentos de suas quatro f1~has so~;euas.
Estimula-lhes a "solteirice" dando mostras de rece10 de er:tre-
gar" as filhas a alguém que "nâo preste". As ~ôças niio se o~oe~
ao casamento, mas acham dificil encontrar um ho;n mando ·
Nâo se Jhes notava sinal de rebeldia contra o controle materno.
Existem restriçoes matrimoniais relacionadas corn côr. Ge-
ralmente ouve-se que "brancos devem casar ~om branc?s e pre-
tos corn pretos". Corn referência à populaçao rural,_ e comum
ouvir a afirmaçâo de que "negra viuva pr?cura u~1~-se a ho:
mem branco mesmo que seja velho ou enfermo, reJeitando. a;e
pretos mais jovens e hem colocados". ~erda~e é que a opos1çao
a casamentos mistos é menor na classe mfeno~ e entre_ ?s mora-
dores da roça. Mesmo assim, os casamentos mter-_rac1a1S. r~pre·
sentam a minoria das unioes que figuram no Reg1stro C1v1l de
Itaipava.
CASAMENTOS REALIZADOS ENTRE 1929 e 1944
I -- Casamento intra-raciais:
1 - Ambes os cônjuges brancos
749
11
2 - Ambos os cônjuges pretos 80
3 - Ambos os cônjuges pardos
840
Total
11 -- Casamehtos lnter-raciais: :J
1 - Homem branco corn mulher preta
51
2 - Homem branco corn mulher parda
1
3 - Homem prêto corn mulher branca
4 - Homem prêto corn mulher parda 11
U!l
5 - Homem pardo corn mulher branca
1
6 - Homem pardo corn mulher preta
liS~
Total
III - N iio declara dos .
24
1.029
Total
59
1'
f Vê-se que, sôbre um total de 1.029 casamentos registrados,
1!40 ou 81,1% se contrairam entre pessoas consideradas racial-
mente homogêneas e somente 165 ou 16% ocorreram entre indi-
viduos racialmente diversos. Casamentos entre pretos e 'b rancos
siio raros, pois, apenas 7 casos foram registrados. Se ha real·
mente um processo de branqueamento na populaçâo local êste
s~ da pelas unioes de pardos corn pretos e brancos, pois a ~aio­
na dos casamentos mistos é representada por aquêles que se
deram entre brancos e pardos. 103 casamentos inter-raciais, per·
fazendo 62,4% dessas unioes, se realizaram entre homens mesti·
ços ?u pretos e mulheres mais claras, fato êsse que talvez possa
ser mterpretado como tendência, embora fraca, para a hiperga-
mia masculin a (11) .
Entre os sirios de Itaipava nota-se uma tendência acentuada
para casamentos mistos, principalmente na segunda geraçâo. Al-
gumas vêzes tivemos ensejo de ouvir expressoes que evidencia-
vam a antipatia que descendentes de sirios nutrem pelos casamen-
tos corn sirios. Nem sempre, porém, os pais compartilham dêsses
sentimentos, chegando alguns a opor-se enèrgicamente ao casa·
mento corn "brasileiros".
Sançiio legal do casamemo
Na cidade, poucos sâo os casamentos que nâo sejam
civis e religiosos a um tempo, mas na zona rural 0 ca-
samento se limita geralmente à cerimônia religio&a. No mês
de março de 1944, por exemplo, houve 19 casamentos
religioso& e apenas dois civis. Percebe-se nitidamente a exis-
tência de dois padroes diversos de "legitimidade", um valido
no âmbito da civilizaçiio urbana de que Itaipava representa uma
au;o~tra, ~ ?utro, predominando na cultura rural. É pela ceri-
n:~ma rehgwsa que se legitimiza a uniâo matrimonial, na opi·
mao do povo da roça. Alguns moradores, geralmente funcio-
nanos, i?sistem em que a Igreja contribui, indiretamente, para
desacreditar o casamento civil difundindo a idéia de que "nâo
vale" e que "para efeito de batizado os filhos dos pais casados
. (11) Se esta hip6tese fôr conflrmada por inve•tigaçoes po•teriores, te-
Jinmos _ a qut um resu1ta do contrario aos que fora rn colhidos até agora pois
l~crnlmcntc .~ a ~ul,~ er que t~nde a casa r-se corn homens de statu s 'racial
c.o corn~ sup~rl~r pe.la s<;>c1eda de. V eja , p. e. , Dona ld Pierson, "Ra a e
O q{n nlz~ ç<~o Soc1a ! , Socwlogw, vol. VU, n.o 3, J9q5, pag. 153.
apenas pelo casamento chamado civil sâo ilegitimos e niio podem
receber o sacramento".
A atitude de reserva ou de desconfiança que o homem da
roça manifesta ante o poder estatal e seus representantes aparece
também corn relaçâo ao casamento civil. De acôrdo corn o depoi·
mento de um juiz de paz, s6 uma "vantagem" do casamento ci-
vil esta .sendo compreendida. É que o casado pode fugir ao ser·
viço militar. Assim explica-se que, na época da convocaçâo, muitos
j ovens se casam apressadamente para evitar o alistamento . Esta
crescendo, no entanto, o numero de casais que apos o nascimento
de dois ou mais filhos legalizam matrimônios "para garantir os
filhos" ( 12).
Na comunidade urbana rarissimos sâo os casos de ama5Ïa·
mento. Outrora, porém, ·e ram freqüentes, mesmo na classe supe·
rior. Verificamos que, ha 40 anos atras, seis pessoas da "elite
local" viviam ama&iadas sem que "alguém ligasse para êsse fato".
Nâo sofre duvida que o padrâo atual é hem diverso, pois a rea·
çâo da opiniâo publica traria conseqüências extremamente inde-
sejaveis aos transgressores da norma social.
Diferente é a situaçâo na roça onde os amasiamentos sao
freqüentes, sobretudo entre os agregados.
Relaçoes sexuais pré-nupciais "corn môça de familia" sâo
relativamente raras. Quando sucedem na classe alta ou . média,
os pais procuram imediatamente legalizar a uniâo pelo casamento.
Na roça predomina a crença de que "môça que perd eu a virgin-
dade vira r~ula-sem -cabeça depois da morte". Esta sançao sobre·
natural, associada à vigilância dos pais, age como poderoso fator
preventivo contra "abusos", mas nâo impede que, pelo meno_s
entre os agregados, o matrimônio tome, freqüentemente, uma fei·
çâo pouco estavel, como veremos adiante.
Para a cerimônia religiosa muitos vêm da roça à cidade,
principalmente quando se trata de familia de sitiantes. Pousam
em casa de parentes ou amigos e dela dirigem·se à igreja em
procissâo.
A cerimônia realizada no dia 8 de janeiro de 1945 assis·
tiram 44 pessoas, das quais 26 homens e 18 mulheres. Os noivos
, ·,.-,. ·· : ·· r -F~
(12) Mui.tas vèzes alega-se o custo do casamento clvll como um dos prtn-
cipais obstâculos ao incrementa das uniôes legalizadas. Pôsto que muitas
vêzes êsse ar gun1ento proceda, nao se deve esquecer que o cosamento re-
ligioso depende també m do p a gamento de uma esp6rtula. Em Itaipava, o
ç custo do casamento civil in1porta em 80 cruzeiros, a esp6rtu1a dada ao padre
é de 60 cru:zeiros.
61
 erum brancos, entre os homens havia um prêto, 12 mulatos e
lB brancos; das mulheres duas eram mulatas, seis brancas e 0
resto caboclas claras. Vinham todos em cotejo formando fila
de dois, à frente os noivos e logo atnis os padrinhos. A noiva
usava vestido branco corn véu branco, o noivo terno comum de
brim.. Noivos e padrinhos entraram pela frente da igreja, os
demaJs pela porta lateral. Os homens estacionaram na nave lon-
ge do local da cerimônia, as mulheres mais à frente. Ent;ou 0
padre e todos foram chamados para perto da sacristia. Homens
e mulheres permaneciam segregados, estas à direita e os homens
à esquerda. Terminada a cerimônia, todos se dirigiram à casa
dond: haviam partido para tomar alguma bebida, aguardente,
cerve]a e guarana. Foi-nos dado observar que a noiva se dirigia
aos presentes para receber os cumprimentos. Alias êsse costume
é considerado rustico e freqüentemente ridiculariz~do pelos mo-
radores urbanos.
A recepçâo que os noivos da roça dâo na cidade te1mina
~àpidamente: Mas é comum continuar a festa na roça corn café,
]antar e bali:. No cas? descrito, o casai ia residir na proprie-
dade dos pms da esposa, mas em gerai nâo existe nenhuma
tendência que ?udesse. ser interpretada como matrilocal ou patri·
lo~a_l. Se o pm do no1vo tem mais terra, vâo residir la, do con-
:rar~o preferem a propriedade dos pais da noiva. l!:sse arranjo
e feJto antes do casamento pelas familias interessadas. Às vêzes
o casai vai residir corn os pais de um ou de outro, porém é mai~
comum a residência separada em terras cedidas pelo pai ou
sogro.
Na cidade é comum os filhos casados morarem corn os pais
ou so~~os. Ger~lmente,_ as casas sâo amplas a ponto de compor-
tar vanos casals. 0 fliho de D. Carmela, por exemplo, reside
em casa do sogro. Ao amanhecer, porém, vai à casa da mâe onde
toma banho e depois o café. Habitualmente o casai almoça sepa-
rado, cada quai "em casa da mâe".
As mâ~s, sobretudo quando viuvas, apreciam que as filhas
casadas res1dam corn elas. A princîpio, o casai novo prefere
montar casa pr6pria, porém mais dia menos dia acaba morando
n~ casa em que um dos dois passou a maior parte da vida. Toda-
VJa, ,rr:esm~. :esid~nc!as separadas nâo impedem que haja um
convJVlO d1ano e mtJmo devido, principalmente, à pouca distân-
cia que separa as casas.
62
A organizaçâo da familia
Êsses fatos evidenciam a influência do princ1p10 consan-
güîneo na organizaçiio da familia itaipavense. Apesar da com-
petiçiio cada vez mais intensa do princîpio conjugal, niio regis-
tramas nenhum caso de conflito, talvez porque ambos os côn-
juges continuem emocionalmente presos a sua familia respec·
tiva e, talvez, porque as familias de ambos siio geralmente apa-
rentadas, havendo, portanto, coincidência de parentesco consan-
güîneo e parentesco por afinidade.
As tendências patriarcais da comunidade ongmaram um pa-
draa de "recato" que limita a esfera de influência da mulher
casada ao Jar. Quando o marido recebe h6spedes, ela raramente
aparece e nas refeiçoes ela serve os convidados sem tomar lugar
à mesa. Somente em festas de certa importância, a dona da casa
figura à mesa, mas sempre em companhia de outras mulheres.
Percebe-se, no entanto, que êsse padrao esta sendo aos poucos
modificado por mulheres da classe superior vindas de fora. Mes-
mo quando o marido recebe visitas masculinas, as senhoras apa·
recem, sao apresentadas e participam da conversa, às vêzes corn
grande vivacidade, explicavel pela "monotonia do meio", como
elas dizem, raramente interrompida pelo aparecimento de foras-
teiros do mesmo nivel social.
Observamos que as mulheres da roça gozam de maior auto-
nomia do que as da cidade.· Estas se vêem confinadas, em gerai,
ao âmbito doméstico. Aquelas, no entanto, podem dedicar-se a
atividades econômicas que lhes asseguram um grau de indepen-
dência relativamente elevado. As mulheres de sitiantes e fazen•
deiros criam aves e suînos, fazem farinha de milho no pilâo e
vendem o produto de seu trabalho. Dessa maneira, muitas con·
seguem acumular um peciilio que o marido "respeita". Pergun-
tada, por um entrevistado nosso, se tinha juntado algum "dinhei-
rinho", uma senhora de meia idade respondeu que sim, mas que
havia "empatado tudo num negocinho". Êsses "negocinhos" con-
sistem em empréstimos a juros ou às vêzes mesmo em pequenas
transaçoes comerciais de carater especulativo. Muscates que per-
correm os sitios, freqüentemente sao convidados, pelos donos,
a entrar e perguntar à mulher se quer comprar alguma coisa,
pois nessus transaçoes o marido nao costuma interferir.
A procriaçiio é ainda considerada o fim precîpuo do matri-
mônio. A tradiçâo, provàvelmente idêntica à de muitas outras
63
i
f com unic.lud es brasilcirns, exige qut "se deve ter tantos filhos
q lill li lus Deus der" e "que se nao se pu desse tê-los, nao se
teria" . 0 emprêgo de meios anticoncepcionais e abortivos nilo é
cumum, mas notamos que, mesmo na roça, ha muita curiosidade
d_e m?es de ~1eia idade que ou~iram falar de meios anticoncep-
etonms e deseJ a~ conhecê-los. N ao perdem ensej o de perguntar a
mul_heres forasteuas de que presumem que saibam algo a respeito.
Ass1m, mna mulher de côr vinda de Minas, mae de nove filhos,
clcsejava saber 0 que deveria fazer para nao ter mais filhos.
Diss.eram-lhe que os "médicos da cidade ensinavam camo fazer"
e que "as enfermeiras sabiam também". Estava convencida de
que algumas velhas da regiao conheciam chas "que nao deixam
ter mais filhos", mas "que nao querem ensinar, porque acham
que é pecado. Que se deve ter tantos quantos Deus manda". A
entrevistada revelava bastante mêdo de uma passive! "vingança"
de Deus e dos santos. Interrogada sôbre se o marido nao se
incomodaria se empregasse m eios anticoncepcionais, ela respon-
dia que "êle até estaria de acôrdo, mas também nao conhecia o
segrêdo".
. Nâo foi êste o umco casa observado, de modo que parece
JUsta a conclusâo de que a iniciativa, nesse particular, parte mais
da mulher do que do homem. A introduçao, na cultura local,
de meios anticoncepcionais depende, sobretudo, da possibilidade
de difusao de técnicas conhecidas na civilizaçâo urbana. Em-
bora nâo faite receptividade e a mudança de atitudes ja tenha
começado, a comunidade nâo reage senâo através da "curiosi-
dade" de alguns de seus membros. Vê-se também que a mudan-
ça de atitude nao se opera sem conflito com o padrâo tradicio-
nal que continua poderoso pela ameaça de sançoes sobrena-
turais.
0 conceito de legitimidade dos filhos segue o da legitimi-
dade d? matri~ônio. Basta casar-se "no religioso" para o filho
se~ batizado. Este fato é decisivo, sobretudo quando nâo ha pro-
pnedade capaz de justificar "por interêsse" o casamento civil e
a legitimaçâo dos filhos. Assim explica-se que, em 1934, 45%
de todos os nascimentos ocorridos em Itaipava foram ilegitimos,
no senti do do Codigo Civil (13).
Filhos naturais nâo sao objeto de escarnio e raramente a
familia do pai lhes nega o amparo concedido a seus proprios
(13) A. de Almeida Junior, "A Ilegiti m idade no E s t ado de Sao Paulo",
Rev1sta do Arquivo Mtvnicipal, n.o 62, Sao Paulo, 1939, pâg. 155.
64
membros. Contudo, essa tend ência parece ter sida mais acen-
tuada no passado do que no presente, pois os entrevistados se
referiam, quase sempre, a casas ocorridos na geraçâo passada.
Muitas vêzes, a propria espôsa aceitava os filhos naturais do
marido para cria-los camo se fô ssem seus. Na conversa, os entre-
vistados nâo traiam o menor constrangimento ao referir-se a
pessoas da propria familia. Assim, uma senhora mencionava os
filhos naturais do proprio pai em presença da mae que acrescen-
tou: "Mas eu nâo criei êles" co mo se corn issa mostrasse grande
alti vez.
Um fazendeiro remediado apresentou-nos uma mocinha, fi-
lha natural de um filho falecido corn uma mulata. Explicou o
casa sem a menor inibiçao, notando-se que na familia nao se
fazia a menor diferença entre essa mocinha e as demais filhas
e netas.
Ouvimos também ter sida comum outrora entre as familias
r emediadas aeeitar e criar crianças abandonadas. Muitas vêzes
davam-lhes nome e posiçao social, constituindo-os herdeiros de
ben s.
A funçao dêsses padroes de tolerância que, de modo algum,
for am completamente abandonados é obvia: preservando de me-
nosprêzo crianças naturais e seus pais, evitando-lhes as sançoes
que em gerai a sociedade aplica a individuos de origem espu-
ria ou desconhecida, a comunidade evita que se transformem em
focos de desorganizaçao social.
Na escolha dos padrinhos, os avos gozam de preferência.
Quando na o se escolhe um parente, o compadrio obedece a inte-
rêsses ou amizade. Geralmente, o marido escolhe o padrinho
e a espôsa a madrinha, mas o pedido feito a uma pessoa casada
nao implica a escolha do outra cônjuge. Freqüentemente, pa-
drinho e madrinha sâo pessoas solteiras. Relaçoes compadrescas
envolvem "muito respeito" reciproco. "Compadre nâo pode an-
dar corn comadre. Quando junta assim casai de compadre, vira
mula-sem-cabeça." Diziam-nos que, às vêzes, quando uma mu·
lher casada se vê perseguida por um rapaz solteiro, convida-o
para ser padrinho do filho. Êle nao pode deixar de aceitar e
acabam ass:im os requestos amorosos. Seria a melhor maneira
de alijar-se da "perseguiçâo". Todavia, o povo lembra casos
em que a descoberta de relaçoes ilicitas entre a mulh cr c o com-
padre, pela mari·do, "nâo tem dada briga".
5 65
 N 1io é raro o compadrio "encobrir" o parentesco. Muitos
individuos principalmente na roça referem-se ao compadre sem
[n wr mençao de que se trata do proprio irmao. Nao dizem "meu
inniio" porém "meu compaclre", usando êste têrmo também em
lugar do nome proprio quando se lhe dirigem diretamente. Pa-
rece, no entanto, que o compaclrio nao envolve muita interfe-
rência na educaçao dos afilhados. Pela menas nao nos foi dada
observar casas concretos. Em casa de morte do afilhado, é o
paclrinho ou a madrinha que se incumbe de "fazer o entêrro".
A despeito ela sançao sobrenatural que paira sôbre uniêies
entre compadre e comaclre e apesar de serem acerbamente cen-
suradas pela opiniao publica, apontam-se três casamentos entre
inclividuos compaclrados. A atitude de abstençao se estende tam-
bém aos filhos do compadre com os quais nao é considerado
i' licita contrair nupcias .
Alias, a comunidade parece ser mais tolerante corn relaçao
a casamentos entre certos parentes. Consente, por exemplo, em
casamentos corn a irma da espôsa falecida . Êstes éasamentos sao
freqüentes na comuniclade local porque, na opiniao do povo, re-
presentam uma maneira de evitar duas sogras. Embora nao se
trate de uma obrigaçao do viuvo, mas de mera escolha prefe-
rencial, o fato pode ser interpertado camo tendência para o so-
rorato.
Geralmente, o viuvo contrai segundas nupcias corn uma môça
solteira. Êsses casamentos soem ocorrer pouco tempo depois da
morte da primeira mulher. Antigamente, viuvos idosos davam
preferência a môças muito j avens. Desde que as môças corne-
çaram a ser ouvidas por ocasiao dos arr an j os matrimoniais, tais
casas se tornaram mais raros.
Casamentos entre tios e sobrinhos eram censurados pela opi-
niao pûblica, mesmo antes de serem proibidos por lei. Atual-
rnente aponta-se um linico casa de um individuo a .viver amigado
corn a prôpria sobrinha.
Casas de incesto sao rarissimos, em contraste sobretudo corn
o litoral onde parecem ser freqüentes em algumas regiêies e ta le-
radas pela opiniao publica (14). Em ltaipava apontam-se três
casas, mas êstes incestuosos sao tidos coma "tarados" e irres-
ponsaveis.
1 (14) Umas dessas regiôes é a praia do Sono, no municlpio de Paracaùba.
1
i
A moral sexual de Itaipava se caracteriza por uma relativa
austericlade quando comparada corn a do liloral ou das maiores
cidades do Yale do Paraiba. Nunca ouvimos mexericos que
visassem casas de infidelidade conjugal atribuida a mulheres ca-
saclas ela cidade. 0 paclrao de recato e a vigilância exercida
pela familia e vizinhança obriga os homens casa?os dese)osos
de "aventuras amorosas" a procura-las em comumdades dlstan-
tes. 0 povo esta consciente do paclrâo moral proprio e costuma
confronta-lo corn o de certas comunidades vizinhas. Observaçoes
de menosprêzo sâo dirigidas, sobretudo, contra os moradores de
Paracaûba. "Paracaubano so presta pra fazer filho e beber ca-
chaça", observou um tropeiro que semanalmente desce a Para-
caùba, "cada pelado dêsses tem dez a doze filhos e duas ou três
rn ulheres".
Corn êsse padrao de austericlade relativa contrasta o padrao
moral dos agregados. Sâo corriqueiras as referências a "casais
que se largam". Bailes realizados na roça levam, às vêzes, à sepa-
raçao de easais, passando cacla um a viver, maritalmente, corn
outra pessoa. Particularmente curiosa é uma observaçao reite-
rada por diversos entrevistados, que a infidelidade da mulher e
o abandono do lar raramente originam conflitos. A unica rea-
çao seria, às vêzes, uma queixa que o marido abandonado faria
ao compadr e. A aparente ausência de ciumes e a falta de reaçêies
violentas talvez provem a r elativa fraqueza de relaçêies afetivas
entre os ca.sados.
Separaçao de casais ou abandono do lar por um ou outro
cônjuge sao fatos raros nas familias da cidade. Atualmente apon-
tam-se dois cas os a penas nas classes média e superior. Jamais
ouvimos, em nossas entrevistas, qualquer observaçao que pudesse
ser interpretada como tentativa de justificar a separaçao de
cas ms.
A educaçâü dos filhos é feita, na zona rural, quase exclusi-
vamente pela participaçâo da criança na vida dos adultos. Ta-
dos os fatôres do meio doméstico e vicinal contribuem para
transformar a criança, o mais depressa passive!, em adulto.
Na roça, uma criança de seis ou sete anos ja colabora corn
os adultos acompanhando-os à r oça e imitando-lhes tôdas as téc-
nicas de trabalho. A "hombridade" do menino é avaliacla pela
capacidade de trabalho, portanto, pela desenvolvimento fisico. É
considerado "homem" quando se revela capaz de "tirar urna
tarefa" ou "meia tarefa" conforme a natureza do serv1ço. Nesta
67
 época, que coïncide corn a puberdade, o rapaz pede a faca, sim-
holo material da "hombridade". A entrega da faca equivale a
um rito de passagem; é a iniciaçao de meninos que nunca tive·
ram outro ideal senao o de adotar os habitos que a sociedade
associa ao bornem adulto. 0 pais nao fazem nada que possa
retardar a realizaça o <l êsse desejo. É aspecto comum um pai dar
fogo a um filho de oito ou dez anos para acender o cigarro de
palha. Geralmente, nao se acredita que alimentos ou bebidas
consumidos por adultos possam ser prejudiciais ao desenvolvi-
mento fisico da cri an ça. As ma es costumam dar feij ao corn tor-
resmo a crianças de poucos meses de idade, e o consumo <le
cachaça nao é raro entre menores de pouca idade. Raramente
os p ais se queixam de filhos rebeldes, acham facil conserva-los
no "hom caminho", mas quando a familia nâo dispôe de pro·
priedade, dificil se torna evitar a dispersâo dos filho s. Corn a
" mobili<lade espacial da populaçao (padrao aceito ha muito) e
as distâncias consideraveis entre os bairros, as familias de agre-
gados e pequenos sitiantes se desintegram fàcilmente. Em tais
condiçôes nao admira que muitos pais acusem os filhos e sobri-
nhos de tê-los abandonado na velhice.
A sociedade urbana apresenta um aspecto um tanto diverso.
0 trabalho infantil esta limitado à classe inferior. Meninos entre·
garn leite ou vendem hortaliças a domicilio, limpam quintais ou
se encarregam de reca·d os ou outros serviços ocasionais. As me-
ninas empregam-se em casas de familia como domésticas ou aju-
dam às maes na lavagem da roupa. É significativo que muitas
vêzes nao se "descobre" trabalho adequado para crianças. Mui-
to cedo estas se habiluam a viver pelas ruas subtraindo-se à vigi-
lância paterna. tsse fato explica a diferença de atitude para
corn a escola: na roça muitos pais consideram a escola como
inutilidade, mas na cidade recorrem à escola para "prender a
criança porque a mae nao pode mais corn ela". Querem ma-
tricular o filho antes de êle haver atingido à idad e minima exi-
gida por lei. Nao sao raros os pais que autorizam os profes-
sôres a "surrar" os filhos em caso de rebeldia, fato êsse que
parece incompativel corn a aversâo que os pais geralmente têm
às interferências educaci onais de outrem.
A escola publica afigura-se como principal canal de infil-
traçâo e difusao de element os da cultura juvenil ( 15), en con·
(15) Para o conceito de cultura juvenil veja T alcott P arsons , "Age and
Sex in the Social Structure of the Unite d States" , Ame1:-k an SocioZogîcaL Re-
view, vol. 7, n.o 5, outubr o de 1942, pags . 606 e segs .
68
trando reeeptividad e sobretudo nas classes média e superior.
As crianças dessas classes podem entregar-se aos folguedos ade-
quados à idade. Aprendem jogos na escola e praticam-nos na
rua, pois nao ha distâncias que lhes dificultem a associaçâo.
Através da escola sao postos em contacto com a literatw·a cha-
macla infantil, cujos efeitos começam a se fazer sentir na men-
talidade das crianças de Itaipava. Acresce a aprendizagem de
esportes estimulados igualmente pela escola e, mais ainda, pelo
radio. Influências de companheiros viajados ou internados em
escolas distantes completam êEse quadro que esta longe de repre·
sentar uma cultura infantil plenamente desenv olvida, mas sufi·
ciente para criar distâncias culturais entre as crianças da cidade
e as do meio rural. A escola e os grupos de folguedos compe-
tem, em escala crescente, com o meio doméstico, produzindo, aos
poucos, mudanças de concepçôes tradicionais de origem rural,
principalmente no que diz r espeito à higiene e a muitos valores
representat:ivos do meio social mais amplo.
A situaçao dos filh os torna-se critica quando alcançam a
ida de de escolher uma profissao. Ja fris amos a impossibilidade
de distribuir o excedente demografico pelos campos de atividade
intracomunais. Para muitos o êxodo torna-se inevitavel e os
remanescentes dependem de pais e outros parentes dos quais
herdam, geralmente, a propriedade e a profissao. 0 êxodo nao
pode deixar de produzir um enfraquecimento dos vinculos fami·
liais e a permanência em Itaipava conduz, na maioria dos casos,
a uma posiçao de dependência que ja nao se afigura como dese-
j avel a muitos j ovens. Ha, portanto, du as tendências diametral-
mente opostas, nas relaçôes entre pais e filhos: uma centripeta
agindo como fôrça de atraçao e absorçao individual e outra,
centrifuga e dispersiva, atenuada apenas pelo retôrno intermitente
dos membros de familias residentes fora de Itaipava. Festas e
enterros reunem, freqüentemente, dezenas de parentes que deixa-
ram ha muito a comunidade. Nao sao raros os que, ap6s anos
de residência em Sao Paulo ou outros centros urbanos, voltam
a Itaipava para ai fixar r esidência definitiva.
0 êxodo nao se limita ao sexo masculino. Intimeras silo
as mô ças que se retiram de Itaipava para trabalhar em h\hrir;as
de Loreto, Taubaté, Guapira e Sao Paulo. Outras viio estmlnr,
formam-se em escolas normais e aceitam cargos qne as afastam,
às vêzes definitivamente, de Itaipava. Mesmo entre as rr.manes-
cen tes esta-se acentuando a tendência para exerr.cr uma atividadc
69
 que lhes dê uma relativa autonomia econômica ou as subtraia, Cornu motivo da separaçao as maes alegam que "as meninas
por algumas horas do dia, ao convivio da familia. Numa das precisam dos cuidados da mae e nao podem ficar em pensao".
familias mais antigas, por exemplo, duas filhas solteiras sao
Nao seria possivel elucidar a estrutura da familia de !tai-
funcionarias publicas e outra é professôra da escola isolada, dis-
pava sem fazer mençao de dois fatos de certa relevância: a auto-
tante da cidade. Muitas môças solteiras sao costureiras e duas
ridade do irmiio. mais velho sôbre os demais irmâos e a dos
lojas possuem vendedoras. É inegavel que essa tendência cornu,
avos sôbre os ·netos. A familia de D. Carmela oferece um exem-
principalmente, o êxodo de mulheres solteiras, contribui para a
plo da primeira categoria, pois ela compartilha a direçao da
individualizaçâo (16) crescente da familia, pois os seus mem-
familia corn o filho mais velho. "Cornu poderia ter me arran-
brus masculinos e femininos, deixam de agir coletivamente cornu
jado sèzinha corn quatro môças?" D. Carmela tentou explicar
partes de um todo e passam a exercer, individualmente, ativi-
a posiçao do filho mais velho. Nao lhe parece suficiente sua
dades especializadas. A freqüência do êxodo pode ser avaliada
pelo quadro seguinte que se .r efere a nove familias tomadas ao autoridade de mae, nao tanto para se fazer respeitada pelas fi-
acaso, e tôdas ·elas pertencentes, corn uma exceçao apenas, a lhas, mas principalmente para lhes assegurar o respeito da comu-
estirpes "tradicionais" de Itaipava. Vê-se que uma média gerai nidade e a desforra por eventuais agravos que lhes poderiam
de 25,9% de seus membrus esta residindo fora de Itaipava. prejudicar o status de môças solteiras. As atitudes do filho mais
velho corn relaçao à mae e às irmas revelam que se integrou no
papel de chefe de familia, contribuindo êsse fato, sem duvida
NUmero de Percentagem alguma, para que nao se casasse.
1'-Jllmero de NUmero total componentes de
Familia geraçOes de componentes
consideradas co1nponentes
residindo fora
residindo fora D. Filomena, viuva idosa e membru de uma das familias
de Itaipava
de Itaipava mais antigas de Itaipava, queixava-se de que o respeito pelo ir-
............... 274 13~ 50,7 mao mais velho estivesse diminuindo. Achava que seus filhos
~
··· ········· ·· · 4 72 1~ 26,4 deviam respeitar o filho mais velho que lhes substitui o pai.
:l
4
·· · ······· ···· · " lU
Acrescentou que tinha uma filha mais velha do que aquêle filho.
.···· · ··· · ···· · · J 2U 20,U
. . . . . . . . . . ..
4
5 6 4:{!1 63 14,4
Dela nao exigia tanto respeito pelo irmao, mas afirmava zan-
.,
6 ............. . .
··· .· ....
·····..···
59 11 18,6
gar-se corn o desrespeito dos demais filhos. Ela mesma, caso
. ...·· .·
172 34 1~.7
8 ... 134 36 26,8
~ .......... 4 41 lU 24,4 tenha algo de sério a resolver, costuma consultar a irma mais
Total 1.217 316 25.~
velha, most:rando assim que a transmissao da autoridade paterna
nao esta necessàriamente ligada ao sexo e que, na hip6tese de
nao haver "filho homem", a filha mais velha é investida de
N as familias "tradicionais" ma es ou outros parentes acom- poderes equivalentes.
panham, muitas vêzes, as filhas que saem para estudar. É o que
verificamos corn relaçao a uma filha de D. Carmela. Ela alugou As nossas observaçoes revelaram a existência de um con-
uma casa em Guapira passando a residir ai em companhia da sensu gerai quanto às interferências dos av6s na educaçao dos
filha, enquanto o marido continua em Itaipava. 0 mesmo ocor· netos. Dada a convivência estreita de três geraçoes sob o mesmo
reu corn outra senhora da classe superior. Também ela deixou teto, a questao das relaçoes entre av6s e netos nao podia deixar
o marido e a casa aos cuidados da filha mais velha a fim de de surgir. Os pais nao se opoem a que os av6s exerçam influên-
morar corn a filha mais nova em Guapira. S6 depuis de se ter cia sôbre os netos. A distância de duas geraçoes, no entanto,
verificado o casamento desta filha, a mae voltou para Itaipava. e as mudanças que se fazem sentir na cultura local, produzem
choques freqüentes entre av6 5 e netos, pois êstes ja nao aceitam
os padroes de respeito e obediência de outrora. Nesses conflitos,
. . (16 ) Para o ~onceito de individualizaçâo empregaclo no presente estudo, os pais interferem para apaziguar os ânimos e manter o equilibrio
\·eJa Robert Redf1eld, The F o lk CultuTe of Yucatan, Chicago, 1941, pàg. 355
e passint. necessario à paz doméstica.

70 71
 moda de viola (17) que caracteriza a situaçâo em um dos bair·
ros rurais mais antigos de Itaipava.
0 sistema de terras em comum

Na roça, os filhos de sitiantes e fazendeiros trabalham para a DENüNCIA

familia paterna até o casamento. Mas começaram a surgir tendên· 0 pobre do lavrador
Nosso Bairro da Apariçao
cias de relativa autonomia filial. Nao é raro o pai dar uma vaca que trabalha no pesado
tôda a vida foi gabado;
leiteira ao filho . Êste começa a fazer e vender queijo por conta é um bairro pequenino Com a falta do terreno
pr6pria, acumulando aos poucos um pecûlio que em alguns casas tem um grande povoado. cada vez mais sacrificado
Nao tem nenhum fazendeiro a, pouca lavoura que faz
atinge a algumas dezenas de milhares de cruzeiros. Ao filho casa· é pisapé de burro e gado.
do o pai "ajuda", cedendo-lhe um "lugar" nas terras de sua pro· mas cada um tem um bocado.
Todos sao proprietarios Pareo sarto o ano inteiro
priedade. A maneira de dividir as propriedades caracteriza a pro· ninguém mora de agregado. retira depois de cevado.
pria estrutura da familia rural. Predomina um sistema que a po·
pulaçao cham a terra em comum e que consiste no seguin te: o pai Os antigos m01·adores A gente vai avisa
viviam todos aliado; êles banca revoltado
avalia a propriedade em dinheiro e divide essa soma ficticia em prejuizo êles nao paga
partes iguais entre os filhos de ambos os sexos. A cada quinhao era um povo unido
deixa um pobre isolado;
e todos combinado.
correspO'ndem x alqueires nao medidos e cujas limites sao defini- Mas tinha bons conselheiro briga a gente num pode
dos "mais ou menos" por um acôrdo oral. Geralmente, os herdei- o causa é séria e compricado;
homens considerado; a gente vai para justïça
ros nao têm noçao exata da extensao de sua propriedade e enga- a convivência do povo e tem que ser processado.
nos que importam em cinco, dez ou mais alqueires (conforme a até hoje é falado.
extensao total da propriedade do testante) nao sao raros. Em se· Vou participar ao Prefeito,
De um certo tempo pra ca
guida os herdeiros "avançam" cada quai na parte que supoem vou comunica ao Delegado
esta tu do demudado; vou fala com o Juiz,
seja sua. É precisa, contudo, que haja uma norma reco· anarquia sôbre anarquia vo~1 ajusta um advogado
nhecida por todos e capaz de contê-los ao alcançarem as supostas nao tem nin.guém respeitado. pra manda uma vistoria;
divisas da propriedade. Essa norrna é conhecida sob o nome Os homens que têm dinheiro isto tem q1ie ser aprovado
tao ficando entusiasmado, que os chefe criador
de respeito. É o respeito que garante a posse da terra de modo nao respeitam nem as leis
a nao prejudicar os co-herdeiros. 0 individuo "respeitador" precisa ser fiscalizado.
do Govêrno do Estado.
"para" muito antes de haver atingido a divisa.
Os terreno é em comum Benedito Alves da Silva
0 sistema do respeito funcionou desde tempos imemona1s e nao tem ninguém separado; quem fala isto expricado,
em gerai continua funcionando satisfatoriamente na opiniao do tem quatro alqueire fecha oito sustenta no pé da letra
povo. Todavia, estao-se multiplicando os casas de "desrespeito" inda avança pra toda o lado. se algum dia fôr chamado;
Fazem cêrca de dois fio que a minha palavra vale
à propriedade alheia, em forma de litigios judiciais. Cada vez igt:al a um pape! registrado.
disse que tem pasto fechado ,
mais numerosos sao os casas de herdeiros acusados de avança- os terreno de cultura Vale no Rio vale em Sao Paulo
rem na propriedade de irmaos ou outros parentes. Apontam-se tà tudo em capim melado. no Brasil e todos Estado.
pessoas que, ap6s anos de ausência, encontram suas terras par·
cialmente ocupadas e cultivadas por irmâos, primas, sobrinhos,
·- d a festa no dia 14 de jnnairo
cunhados etc. Freqüentemente, solicita-se a interferência do juiz (17) 0 texto fo i tomado _po r ocastao . ~ u~ iro ~orridor cn1 Aparlç~\0.
que é chamado para garantir a passe ou reintegrar o individuo de 1945. 0 autor ela moda e u!n ~onheci~a~ ~ol~ao' sÔ funçbc.s rccrcGtiV:l:ï,
É precise acrescentar que o~ V!oleiros exe: ce . .- . bllca Todos os
na passe de suas terras. Nao sofre dûvida que a diminuiçao das m serven:1 tan1bém de mews de expressao da opmtao pu · .
ac~~tecime~tos ocorridos na comunidade constituen1 objeto cle moci<1s de vt~l~,
propriedades pela divisao crescente e, sobretudo, a sua valori- sao narra dos, ridicu1arizados, censura dos ou Iasti n1;:~dos . pcl?s vtolcirosi 1 ~~
tos em versos e cantados, sofrem um processo d_e. rltua~tz.a.çn o quccvif~nd~n~t'Ic
zaçao rapida nos ûltimos anos estimulam a violaçao da norma n-:.ais itnpressionantes, difundindo-lhes os comentanos critH.OS c ·•
tradicional do respeito . A "denuncia" que fazemos seguir é uma sejmn esquecidos ràpidamente.

73
72
 Vê-se que, aos dois motivos mencionados, a moda acrescenta
um terceiro: a intensificaçâo das atividades pastoris que exigem
grandes extensoes de terra e estimulam o "avanço" em terra
alheia.
Tratando-se de um bairro antigo cujos moradores, na gran-
de maioria, sâo aparentados entre si, a violaçâo do respeito se
esta tornando uma fonte de desorganizaçâo nâo s6 da familia,
mas da pr6pria comunidade local. De outro lado aparece a ten-
dência de prevenir ou acomodar conflitos que fàcilmente surgem
de tais litigios. "Brigii a gente num pode" é expressâo que ouvi-
mos muitas vêzes dos nossos entrevistados. É uma frase confir-
mada pelo insignificante numero de crimes ocasionados por
disputas de terras.
Se o respeito decerto traduz um sentimento de solidarie-
dade em que o interêsse (18) particular de cada membro da
familia ou parentela permanece subordinado aos interêsses da
familia ou grupo de parentes como todo, a invasâo de terras
alheias é, sem duvida, um sintoma de individualizaçâo e desor-
ganizaçao social. A individualizaçâo manifesta-se nâo apenas
pelo fato de a atuaçâo coletiva da familia estar cedendo à açâo
particular de seus membros semi-independentes, mas pelo anta-
gonismo evidente entre açao individual e interêsse familiar. E a
desorganizaçao se faz sentir através de um "decréscimo da in-
fluência das regras sociais de comportamento existentes sôbre os
membros individuais do grupo" (19). No nosso caso a regra
social que esta sendo desobedecida, é o respeito. Tudo indica
que os fatôres responsiiveis pela violaçâo da norma tradicional
continuarâo agindo agravando a desorganizaçâo até que o prin-
cipio atual venha a ser substituido pela mediçâo exata das ter-
ras. Alias, alguns fazendeiros j ii man dar am dividir suas terras
por agrimensores. Assim, o velho Homero que repartiu seus
182 alqueires entre seus sete filhos e três filhas. Mandou fazer
uma planta em que foram traçadas as divisas exatas de cada
quinhâo. "Se nâo fizesse isto, cada um iria roçar em viirios
lugares ao mesmo tempo de modo que nâo se formariam pro-
priedades contiguas." Alguns dos filhos casados jii ocuparam
sua parte usufruindo-a até que sobrevenha a morte do pai.
(18)Para o conceilo de interêsse, ve.ia Ralph Linton, The Study
Man, Nova !orque, 1936, pâgs. 422 e segs.
(19)W. I. Thomas e F. Znaniecki. The Polish Peasant in Europe
America, Nova !orque, 1918, vol. IV, pàg. 23.
74
Parentelas e nomes de familia
Como os bairros rurais mais antigos, também a cidade é in-
tegrada por familias aparentadas em sua maioria. De 199 alunos
do Grupo Escolar de Itaipava, 133 ou 66,83%. pertencem a 48
"fraternidades" (20). Na ocasiâo em que reahz~m~s, trabalhos
de Antropologia Fîsica, medimos um total de 296 mchv1duos. Ve-
rificamos que 127 ou 42,9<fo er am portadore~ .de ap~nas 17.. nome:
considerados tradicionais. 0 nome de fam1ha mais frequente_ e
representado 33 vêzes, mn outro 27 vêzes. Levando em conta nao
s6 0 fato de se tratar de familias extremamente numerosas, m~s
ainda 0 parentesco existente entre elas, chega-se a UJ?a noçao
aproximada da complexidade das relaçôes que as assoc1am.
A pouca extensâo da cidade nao poele ~ei~ar de contribuir
para que relaçôes vicinais e de parentesco co.mci~am, sendo. rela-
tivamente dificil ajuizar-se do grau de sohdar_:edade motiv~da
exclusivamente pelo parentesco. Geralmente, nao ~e. nota dde-
rença nas relaçôes entre par·e ntes mais remo~os e v_:z1~hos. Mas
por ocasiâo de acontecimentos de grande ImportanCia para a
comunidade. a morte de um de seus membros, por exemplo, as
familias ap~rentadas, embora remotamente ape~a_s, "guardam res-
peito", abst endo-se de ouvir radio OU de aSSIStH a festas, m.O~·
trando assim uma solidariedade que ultrapassa a de m_eros VIZI·
nhos.
Digna de mençâo é uma diferença ~~e se n~t~ q~anto. à
conservaçâo do nome da famîlia. Nas fam1has tradicionais, pnn-
cipalmente da cidade, o apêgo ao nome é muito acentuad?; Atual-
mente encontram-se ainda quase todos os nomes que la apare-
ceram nos documentos do século XVIII, como tivemos ensejo de
verificar nos arquivos da Câmara Municipal. _0 ~pêgo ao, nome
corresponde realmente à consciência da contmmdade e a m~­
m6ria que se tem dos antepassados, tanto que os ~embros, ma1s
idosos dessas familias, geralmente, sabem reconstr':u sua. arvore
geneal6gica, pelo menos de quatro ou cinco geraçoes. Dif,er~nte
é no entanto a atitude de muitas familias das classes med1a e
i~ferior. Pou,ca importância ligam à perpetuaçâo de um cleter-
minado nome de familia. Substituem.no arbitràriamente ou mo·
of
(20) "Fraternidade" no sentido da Antropologia Fi sica : sé rie de incti-
and
viduos descendentes do 1nesmo pai e da n1esma müe.
75
 dificurn-no por acréscimos que sao quase sempre apelidos dados
pelo povo. A legislaçao atual dificulta essas modificaçoes, mas,
até lui pouco tempo, era comum um pai registrar o filh o sob
outro nome que o dêle. Aponta-se, por exemplo, o caso de um
morador chamado Pereira Campos que registrou um filho seu
sob o nome de Rodrigues Alves. Tao grande era a influência
dos apelidos que seus portadores acabaram adotando-os e trans-
milindo-os aos descendentes. Os filhos de um morador alcunha-
de caça-ratos levaram o nome Cacinha incorporado ao nome de
familia. Outra pessoa da classe superior, coronel da guarda na-
cional, era leitor assiduo das obras de Ponson du Terrail. Tan-
to contava aos vizinhos e parentes sôbre as aventuras de Rocam-
bole que lhe puseram êsse nome como apelido. Mas o apelido
"pegou" e atualmente pode ser vista na Lipide do tfunulo de
seu portador, no cemitério de Itaipava.
Na classe inferior é freqüente o uso do prenome materno,
mormente quando se trata de filhos naturais. Assim existem,
por exemplo, um Augusto Rita (Augusto, filho de Rita), Paulo
Catarina (Paulo, filho de Catarina) e Theodora Riqueta (Theo-
dora, filho da Riqueta) etc. Algumas vêzes, êsses individuos
incorporaram êsses apelidos ao verdadeiro nome.
Se é que essa diferença de atitude diante do nome tem aigu-
ma relaçao corn a estrutura da familia, somente esta nos parece
cabivel: na classe superior existe algum sentimento de solida-
riedade corn os membros falecidos da familia, a classe inferior
caracteriza-se pela ausência dêsse sentimento. Essa interpretacao
é confirmada pelo culto dos mortos encontrado nas classes .su-
perior e média, e na ausência dêsse culto· na classe inferior, como
em gerai entre os moradores rurais.
0 cemitério de Itaipava, que esta sendo usado desde 1850,
reflete hem essa diferença. Ha duas categorias de tiimulos com
poucos casos intermediarios: alguns tiimulos ri cos dos quais mui-
tos fazem lembrar pequenos mausoléus e os demais, visiveis como
lugar de entêrro apenas devido às placas de ferro colocadas pela
administraçao do cemitério. A iiltima categoria representa urna
maioria de talvez 80% de todos os tiimulos. Nenhum sinal, cruz
de madeira, lapide, coroa ou ramalhete de flôres se encontra
nesses tiimulos, revelando assim a ausência de um culto dos mor-
tos comum na civilizaçao urbana.
7(i
4.. Ass 0 c IA ç6 E s
1
Partidos politicos
'
! A visao retrospectiva que os cidadaos mais idosos de Itaipa-
va têm da polîtica local, abrange três periodos distintos. Ao pri-
j meiro êles proprios costumam chamar "o tempo da politica
brava" em que "se mandava matar". Dêsse primeiro perio-
do existem apenas reminiscências meio apagadas que se ligam
às lutas entre liberais e conservadores, no fim da fase imperial.
0 segundo periodo é completamente dominado pela figura de um
homem a que qualquer morador se refere em têrmos de reverên-
cia e gratidao. Clemente Pedroso, médico, natural de um dos
Estados do Norte, chegou em 1877 a Itaipava a fim de curar-se
de uma afecçao pulmonar, segundo se acredita geralmente. Dois
fatos caracterizam sobretudo a ca.rreira politica dêsse homem:
êle era forasteiro e homem de côr. Mas nem a côr, nem o fato
de nao pertencer a uma das familias poderosas do local impediu
que alcançasse um prestigio excepcional na comunidade, pres-
tigio êsse que lhe .as::.egurou, por meio século quase, a posiçao
de "chefe politico". Em 1886, Clemente Pedroso foi eleito presi-
dente da Câmara Municipal, em 1892 deputado federal e em
1913 senador.
0 seu pape! nao se limitava à politica. Era o iinico médico
de tôda a regiao e a maneira de exercer .a profissao contribuiu
para da.r-lhe um prestigio descomunal. Mantinha clinica gratuita
para os pobres, granjeando, aos poucos, a reputaçao de benfeitor
e conselheiro da comunidacle. Poucas pessoas tomavam uma de-
cisao importante sem antes pedir conselho ao Dr. Clemente Pe-
clroso. Laços de compadrio e amizade pessoal o ligavarn a cen-
tenas de familias em todos os recantos do municipio. Esta forma
de prestigio, baseado na reputaçao de honradez e caridade, lhe
assegurava um eleitorado numeroso e leal com que fàcilmenle
vencia quase tôdas as eleiçoes locais.
0 status. de Clemente Pedroso determinava a estabilidnde
da posiçâo do Partido Republicano e a monopolizaçao dos prin-
cipais cargos por membros de certas familias ligadas ao partido
dominante. A oligarquia local era constituida por três familias
aparentadas entre si: os Beirao de Moura, os Caiado e os Fr a-
dique. Ricardo Beirao de Moura manteve-se na prcfcitura inter-
77
 ruptnm enlc, graças, sobretudo, a sua amizade corn Clemente Pe-
el ru so, dur ante 22 anos. A familia Caiado controlava as cole-
torias e os Fradiques a secretaria da Câmara e a subprefeitura
de Campos de Itaipava. Nessa época, a estrutura politica era
nitidamente patrimonialista ( 21) . Arraigado nos traços do feu-
dalismo transplantados do Velho Mundo e, mais ainda, na escra-
vocracia e relativa fraqueza da classe média, o patrimonialismo
encontrava condiçôes propicias a sua perpetuaçao nas condiçôes
oligarquicas da politica local. Pode-se admitir que a conserva-
çao de uma pessoa, por exemplo, no pôsto de prefeito municipal
durante mais de vinte anos e sem que a "oposiçao" disponha de
meios para controlar-lhe a gestao, contribui para que o detento.r
se considere "dono" do cargo, e a linha divis6ria entre esfera
publica e esfera privada, se existiu em tempos anteriores, tende
a apagar-se cada vez mais. Em tais condiçôes, a extensao do
poder nao se limita à esfera publica, mas tende a considerar a
propriedade priva da e o campo profissional particular, se postos
a serviço de pessoas nao "leais" ao potentado local (segundo a
formula genuinamente patrimonialista), como esfera de contrôle
e possivel intervençao. Significativo nesse sentido é um fato que
se conta do prefeito Rica.rdo Beirao de Moura. Havia êle arren-
dado uma chacara de sua propriedade a um "forasteiro", vindo de
um municipio vizinho. Um dia, o prefeito mandou um empregado
apanhar uma cesta de figos na chacara arrendada. 0 arrenda-
tario entregou os figos e, dias depois, apresentou a conta ao
prefeito. Enfurecido corn o procedimento do chacareiro, o coro-
nel Beirao de Moura ameaçou-o de "expulsao", pois julgava-se
corn direito às frutas da chacara arrendada. Dai em diante mul-
tiplicaram-se os atritos e o "forasteiro" (brasileiro, alias) cedeu
à pressao e deixou Itaipava.
A revoluçao de 1930 trouxe alteraçôes profundas à estrutura
politica de ltaipava. 0 prestigio do velho Clemente sofreu aba-
(21) Tipo de organizaçâo politica em que as relaçëes subordinativas sao
determinadas por dependência econômica e sentimentos tradicionais de leal-
dade e respeito que os governados revelam corn relaçao aos governantes.
Êstes disp6em dos recursos materiais, que lhes faculta m o exercicio do po-
der camo se fôssem propriedade pessoa!. No Estado patrimonialista as re-
laçôes polfticas sâo senhoriais, mas limitadas pelas imposiç6es da lei de re-
ciprocidade. Esta consiste na pre sta çâo de serviços dos governados aas go-
vernantes, e na prote çào qu e êstes oferecem aas "sllditos" . A origem do
regime patrimonialista deve ser procurada na descentralizaçâo do patriar-
calismo doméstico d a famlli a -grande. Para o estudo do patrimonialismo
veja Max Weber, Wirtschatt und Gesel!schaft (Tübingen, 1926), vol. II, pags.
660 e segs. Também Emilio Willems, "Burocra cia e p a trimonia lismo , exem-
plo de um conflito cultura l na organizaçâ:o politico-administrativa do Bra-
sil'", Administraçâo Pub!ica. ano 3. n.o 3. setembro de 1945.
78
los e as familias Beirao de Moura e Caiado se afastaram dêle.
Po.r algum tempo o coronel Ricardo voltou à prefeitura, mas a
primeira eleiçao municipal fêz surgir à tona as mudanças dos
anos anteriores. Corn a morte de Clemente Pedroso, ocorrida
em 1936, 0 velho grupo esta va definitivamente desfeito. J a nao
existia o monopolio das três familias antigas. Impotentes, estas
ti ver am que, assis tir à remoçao de varios parentes de cargos que
ocupavam " tradicionalmente". Varios dos principais membros des-
sas familias, entre êles o coronel Ricardo, acabaram deixando
ltaipava.
Corn o desaparecimento da oligarquia que dominou o muni-
cipio durante trinta anos, a comunidade esta acéfala. Nao faltam,
po.rém, pessoas e grupos corn aspiraçôes à liderança politica. Os
anos entre 1934 e 1937 caracterizam-se pela exacerbaçao das
lutas politicas entre o Partido Republicano e o Partido Consti-
tucionalista. Nessa época, os competidores transformam-se em
adversarios que se hostilizam e se segregam. Nao ocorrem vio-
lências, mas as armas precisam garantir a liberdade das eleiçôes
mumc1pais. Familias outrora ligadas por amizade e parentesco
nao se falam mais. As festas sao freqüentadas apenas por adep-
tos de um dos dois partidos. Acompanham-se os funerais so-
mente se o defunto pertencia ao proprio partido, e na missa
dominical os dois partidos ocupam lados diversos. Atualmente,
o povo lembra êsses anos corn mostras de indisfarçavel desagrado
culpando "a politica" de haver provocado a desuniao da comu-
nidade que antes era "muito unida".
Todavia, a queda da oligarquia pouco afetou o status do
Partido Republicano. Apesar da sua derrota nas eleiçôes esta-
duais, êle continuava vitorioso na esfera municipal: o primeiro
prefeito eleito pelo povo, depois de 1930, pertencia ao P. R. P.
Poder-se-ia dizer que a mudança foi meramente pessoa!, mas tal
afirmaçao careceria de base, pois Clemente Pedroso nao foi subs-
tituido por outro chefe politico. Nao havia ninguém cujo p res-
tigio se comparasse ao do velho lider. A estrutura intern a d o
partido dominante alterou-se, nao somente pelo afastamento de
algumas das principais familias da comunidade, mas sobretudo
por uma situaçao de equilibrio entre os pretendentes à sucessao
de Clemente Pedroso. Nenhum dêles era suficientemente for te
para dominar os demais e o proprio partido. Ao contniri o, n
posiçao relat ivamente fraca de cada um dêles fazi a corn que Lodos
procurassem, continuamente, o apoio dos demais. Ês te apoio, no
79
 rr ..------- ...... · ·
~-
( ~ nlanlo , equivnlia a mna espec1e de contrôle sôbre os que exer-
cium um cargo. A ausência de um chefe corn grande prestigio
"junl:o ao govêrno" (companivel ao prestigio de Clemente Pe-
d rosu), a gia também co mo estimulo sôbre o parti do oposicio-
ni sta que se valia de tôdas as supostas ou reais fraquezas dos
.funcionarios situacionistas para lhes mover campanha e exigir,
ami li. de, das autoridades estaduais 0 seu afastamento.
Esta é a situaçâo que tem perdurado até agora . Da reestru-
turaçâo do partido resul tou uma espécie de liderança plu.ralista
corn chances igualmente distribuidas entre os diversos individuos
pretendentes a cargos cujo provimento esta condicionado à "po-
litica".
É inegavel que tai situaçâo, aliada a certas "inovaçoes admi-
nistrativas", conducentes a uma reduçâo da autonomia munici-
pal, diminuiu consideràvelmente as tendências patrimonialistas.
À vista disso parece razoavel concluirmos que as mudanças nâo
foram apenas pessoais, mas sobretudo estruturais.
Nos juizos depreciativos que os dois partidos externam, um
corn relaçâo ao outro, encontra-se comumente a acusaçâo de que
a facçâo adversaria esta sendo manejada por "elementos de fora"
ou "estrangeiros sem expressâo no nosso meio". Verdade é que
em ambos os partidos ha "estrangeiros", tomando êste têrmo no
senti do em que vulgarmente é empregado : pessoas nascidas fora
do Brasil. Assim, um individuo nascido na Italia, outra vindo
da F.rança corn vinte e poucos anos de idade e dois comerciantes
de origem siria participam da politica em posiçâo de destaque.
Objetivamente encarada, esta participaçâo nâo é "interferência
de estrangeiros na politica local", mas a conseqüência direta de
mn a assimilaçâo completa ( em alguns ca sos) e quase completa
( em outros) mas em todo caso suficiente para mn a identificaçâo
integral dos interêsses corn os da vida local. Um dêles, o brasi-
leiro naturalizado, foi eleito prefeito, continuando atualmente a
desempenhar um pape! de importância no Partido Republicano.
Um dos dois sirios é chefe de fato da oposiçâo, gozando de um
prestigio extraordinario, sobretudo ent.re os moradores da roça.
0 outro comerciante sirio é membro do diret6rio do P. R. P. e
"cabo eleitoral" de grande influência.
A ascensâo social dos poucos estrangeiros nâo se fêz exclu-
sivamente pelos partidos politicos como ja foi dito em paginas
i anteriores, mas seu status atual é reflexo de uma ascensâo !enta
l no
.- j
.'
através de todos os canais que normalmente se apresentam ao
membro de uma comunidade como a de Itaipava.
0 Partido Republicano sempre foi e continua sendo o par-
tido da classe superior. Sènnente seis dos trinta membros des-
sa classe fazem parte do partido oposicionista e entre os
membros do Partido Republicano figuram, corn uma unica ex-
ceçâo, as autoridades locais. Essa distribuiçâo explica a pr.edo-
minância do P. R. P. confirmada mais uma vez pela ultima elei-
çâo (2 de dezembro de 1945) em que êsse partido, embora
sob denominaçâo diferente, obteve cêrca de 75 % de todos os
votos.
A estabilidade da constelaçâo partidaria resistiu a oito anos
de ditadura. Como alhures, também em Itaipava essa fase fêz
desaparecer ou atenuar muitas inimizades. Embora persistissem
i a reserva e desconfiança entre os antigos adversarios, rapazes e
t
môças das familias mais atingidas pelas lutas partidarias "j a con-
versavam animadamente nos bail es" . J a se "retomavam as velhas
amizades" quando, em 1945, as atividades partidarias foram reen-
cetadas. Durante os oito anos de ditadura nâo se deixava de
falar em P. C. e P. R. P. A maioria de seus membros conti-
nuava prêsa aos velhos compromissos, e embora a politica local
nâo recomeçasse exatamente no ponto em que ela fôra parali-
1 sada em 1937 (pois alguns morreram, outros envelheceram ou
sairam de Itaipava e uma nova geraçâo esta va aparecendo), nâo
podia haver duvida da sobrevivência dos antigos quadros parti-
darios. Nenhuma das novas denominaçoes de partido "pegou"
em Itaipava.. Embora conhecendo a mudança, os politicos locais
1 continuavam falando em P. C. e P. R. P. Recomeçou a luta corn
tôdas as tendências de desintegraçâo e segregaçâo, atingindo nas
vésperas da eleiçâo um grau de exacerbaçâo igual ao do tempo
anterior a 1937.
As denominaçoes dos partidos fazem supor a existência de
uma ligaçâo estreita corn a politica estadual e, por intermédio
desta, corn a politica nacional. Esta vinculaçâo, no entanto, é
meramente formai. P.roblemas politicos que ultrapassam o âm·
bito municipal, podem constituir assunto de conversa, mas nunca
motivos de açâo politica. Esta é determinada exclusivamenle por
interêsses loc ais. "Tôda luta politica gira em tôrno da prefei tura",
declarou-nos um velho chefe local. "Nâo nos interessa qu cm
seja o candidato à presidência da Republica, nao nos interessa
que êste OU aquêle ganhe as eJei çoes presiclcnciais j 0 q U t: 1105
1 6
81
1
i
1
r q tu :rr:nws ~ ev itar que aquela gente (a oposiçâo) se instale na
1 prdeitura", foram as palavras textuais de outro politico local,
IH>Jnt :nt Lastante informado que nâo deixava passar um dia se-
IJUt:r sem ler o Correio Paulistano e ouvir as noticias do
rùd .io. A campanha eleitoral de 1945 forneceu mais um exem-
plo dessa limitaçâo dos interêsses politicos, pois na primeira fase
ela campanha os dois partidos chegaram a apoiar o mesmo can-
didato à presidência da Republica. Depois houve um trabalho
de coordenaçâo corn o P. S. D. e a U. D. N. e os dois grupos
tomaram o rumo impôsto pela organizaçâo partidaria.
Ao lado dessa ligaçâo fonnal corn a politica nacional existe
uma outra, real, que associa os interêsses do partido dominante
à politica de um chefe "regional" de Guapira. A subordinaçâo
de Itaipava a Guapira nâo é, pois, apenas ecol6gica e econômica,
mas também politica. Na divisâo tradicional do Vale do Paraiba
em "zonas" dominadas por "chef es" ( 22), Itaipava é conside-
rado "feudo" da familia Alba de Guapira. Êste vinculo é vital
para Itaipava, pois tâo reduzida é sua significaçâo eleito.ral, que
1 precisa de um homem de "grande prestigio" para a defesa de
seus interêsses junto ao govêrno do Estado. Acresce a inexis-
tência de uma personalidade da posiçâo de Clemente Pedroso
para torna.r mais importante a relaçâo corn os Alba. Ao mesmo
tempo, o prestigio local do P. R. P. depende da obtençâo de van-
tagens a que a comunidade julga ter direito. "Pleitear" uma
Santa Casa, um empréstimo ou uma .e strada de rodagem repre-
senta sempre um "teste" para a qualidade dos dirigentes muni-
cipais e êstes procuram o necessario apoio na influência dos
Alba.
Como em tôdas as comunidades, os partidos politicos exer-
cem a funçâo primordial de peneirar os lideres locais, através
de complicados processos de competiçâo, conflito e acomodaçao.
Outra funçâo vital dos partidos é a de controlar os individuos,
mormente os do partido- oposto, que ocupem cargos publicos na
administraçâo comunal. Além do mais, através dos partidos os
j ovens aprendem os padrôes politicos da cultura local.
0 "enfeudamento" do P. R. P. local aos Alba exerce, ao
que parece, duas funçôes de inegavel importância. Os Alba sâo
(22) Os resultados da e!eiçao presidencial de 1945 revelaram a deca.
dência dêsse sistema de "zoneamento" e a instituiçâo de "chefes" que con-
trolam "sua" regHio "par cima" das autoridades constituidas, prestando con-
tas diretamente ao che:fe do govêrno estadual.
B2
os intermediarios entre os situacionistas locais e as autoridades
do Estado. Recorre-se, amiude, à mediaçâo do chefe de Gua-
pira e as "vantagens" conseguidas dessa maneira padern bene-
ficiar o que a comunidade considera os seus interêsses. Assim,
o p.restigio dos Alba contribui indiretamente para consolidar o
prestigio dos situacionistas locais e perpetuar a predominância
do Partido Republicano local.
É verdade que as lutas politicas exercem efeitos desintegran-
tes sôbre a comunidade, tanta mais que ambos os grupos pro-
curam, constantemente, apoio fora da comunidade pa.r a combater
os "advers<irios". Toda via, as tendências de desintegraçâo e se-
gregaçâo sâo compensadas de du as maneiras:
l - E.mbora a injuria e calunia sejam recursos corriquei-
ros na luta politica, os contendores nao usam de violências.
2 - Nem todos os membros da comunidade tomam parte
ativa na politica. Muitos sâo apenas "simpatizantes" dêste ou
daquele partido, mas respeitados por todos por sua tolerância.
Grande é também o numero dos indiferentes e êstes e suas fami-
lias têm urna funçao acomodaticia de inegavel importância. As
suas casas estâo abertas a pessoas de ambos os partidos. Êles
se vangloriam de "ter amigos no P. R. P. e no P. C.". As suas
moradias representam terreno neutra em que os inimigos apren-
dem moderaçao e mantêm contactas indiretos. Os indiferentes
constituem elos "intermediarios" numa corrente que de outra
maneira nâ:o resistiria à tensâo das campanhas eleitorais.
lgrejas e a.ssociaçôes religiosas
A organizaçao paroquial cat6lica. - A part1c1paçao efetiva
dos fiéis nas atividades religiosas, de acô.rdo com a disciplina
eclesiastica da Igrej a Cat6lica, exige condiçôes pessoais e mate-
riais que raramente existem nas regiôes rurais do Brasil. As pa-
r6quias nao devem cobrir mna area muito extensa a ponto de
to.rnar inteJrmitentes ou raros os contactas com o sacerdote que
é o intermediario indispenséwel entre a divindade e os fiéis, pois
é o sacerdote que celebra o culto e administra os sacramentos.
É precisa que as par6quias estejam realmente providas e qu e haja
um templo em que o povo passa assistir às sagraclas ce.rimônias.
Além do mais, é imprescindivel a existência de nssociaçôes rcli-
giosas que integrem a Igreja na comunidacle exercendo um con-
83
 trôle eficiente sôbre os seus membros e transmitindo-lhes os va-
Jores religiosos considerados indispensaveis a sua vida espiritual
e à perpetuaçao da propria Igreja.
Quaisquer condiçôes que nao permitam a realizaçao dessas
formas de associaçao sao consideradas insatisfatorias e indese-
javeis. De fato , o municîpio de Itaipava é atualmente uma umca
P'aroquia dirigida por um sacerdote apenas, domiciliado na ci-
clade. A zona rural esta dividida em mais de vinte "capelas",
muitas das quais ficam a quarenta e mais quilômetros de dis-
tância. Paroquias da extensao e densidade demografica de !tai-
pava costumam ter, no Brasil meridional, dois ou três padres
que dividem seu trabalho entre a sede e as diversas capelas.
Vê-se, portanto, que as condiçôes locais sao mais desfavoraveis
à Igrej a Catolica do que aquelas que padern ser consideradas
comuns, nesta parte do paîs. Na maioria dos distritos rurais
os contactas com o sacerdote sao raros ou mesmo rarîssimos.
Associaçôes religiosas com vida que corresponda aproximada-
mente às exigências da Igrej a, somente padern desenvolver-se na
cidade. Na zona rural e~istem dois templos que rea lm ente me-
recem êsse nome ( considerando as conotaçôes que entre nos
usualmente se associam àquela palavra) : a igreja de Campos de
Itaipava e a capela de Sao ] osé, no bairro da Boa Vista. Na
propria cidade houve uma reduçao consideravel do equipamento
material e pessoa! quando se compara a situaçao atual à do século
passado. Havia naquele tempo as seguintes igrejas: N. S. da
Conceiçao (atual matriz), N. S. do Rosario dos Pretos, N. S.
da Lapa e N. S. dos Remédias. As duas ultimas foram demo-
lidas e a igreja de N. S. do Rosario, construîda em 1793, esta
fechada. A propria matriz ( edificada em 1731) é tao am pla
que os fiéis presentes à missa dominical mal lhe ocupam a me-
tade do espaça disponîvel.
Vista como associaçao de fiéis, a organizaçao paroquial é
relativamente frouxa. Na prop.ria cidade, a populaçao niio se
' -
atribui muita "religiosidade" culpando geralmente os padres que
precederam 0 atual vigario, sobretudo 0 ultimo, "homem hom,
mas estragado pelo meio". "No tempo dêle o povo ja nao pra-
ticava religiao, nao confessava, nem comungava" e "nao havia
nem cinco pessoas assis tin do à rn issa". 0 casamento do padre
com uma môça da sociedade local constituiu novo choque para
os fiéis. Esta e outras ocorrências associadas pela opiniao local
a certos vigarios e à pouca estabilidade de quase todos êles, con·
84
tribuem talvez para explicar certa reserva ou mesmo descon·
fiança que muitos moradores locais revelam com relaçao ao clero
em gerai.
Intimeras vêzes percebemos nas nossas entrevistas que a po-
pulaçao local estabelece uma diferença entre "religiao" e "pa-
cire" ou entre "padre" e "igrej a". D. Carmela, membro de uma
das famîlias mais antigas e mais respeitadas de Itaipava, criti-
cava um padre por haver eliminado uma das suas filhas do
côro da igreja. "0 padre nao pode expulsar ninguém da igre-
ja, observou ela. A igreja é do pava. Nos podemos expulsar
o padre, mas o padre nao pode expulsar ninguém. Minha filha
ajuda-o a ganhar dinheiro."
Como a igreja, também as festas religiosas "sao do povo".
0 povo defende a tradiçiio contra a propria Igrej a e seus repre-
sentantes. 0 padre que tenciona modificar a tradiçao das festas
é mal vista e suas intençôes sao consideradas interesseiras. A
tentativa de reduzir os aspectas das festas tidos como exagera-
damente "profanas" ou "pagaos" encontrou a resistência pas-
siva dos moradores locais, sobretudo do povo da roça, incapaz
co mo é de separar aspectas "prof anos" e "religiosos". A Igrej a
cedeu e em 1945 a Festa do Divino foi comemorada, pela pri-
meira vez, depois de seis anos, de acôrdo com a tradiçao.
Apesar dessa tensao entre povo e vigario, a vida religiosa
ligada ao culto e ao dogma esta-se reconstituindo aos poucos.
"Nao ha ateus em Itaipava. Todos sao crentes embora haja
homens que nao aceitam os sacramentos da confissao e co-
munhao."
Existem nove associaçôes religiosas e, coma alhures, elas
obedecem ao princîpio de divisao dos paroquianos em grupos
unissexuais e bissexuais, em grupos de idade, em casados e sol-
teiros, e em algumas é visîvel a estratificaçiio da populaçao em
classes soeiais. A combinaçao de varios dêsses critérios carac-
teriza pràticamente tôdas as associaçôes religiosas de Itaipava.
A Cruzada Eucarîstica é uma associaçao infantil bissexual. A
Pia Uniao das Filhas de Maria é unissexual e abrange somentc
mulheres solteiras, quase tôdas jovens. A Congregaçiio Mari ana
de S. Luîs Gonzaga é masculina e constituîda por j ovens soltei-
ros. 0 Apostolado da Oraçao do Sagrado Coraçao de J esus e
a Irmand~tde de Nossa Senhora das Dores siio associaçôes femi·
ninas formadas, principalmente, por mulheres adultas e, na gran-
de maioria, casadas. Ha duas associaçôes masculinas compostas,
85
fT
i
1
1 qunse exclusivamente, de homens adultos e casados: a Irman·
clade do Santissimo Sacramento e a Irmandade de Sao Bene·
dito. Nestas cluas associaçoes aparece o principio da estratifi.
caçao em classes sociais. A Irmandade do Santissimo Sacramento
rüio sènnente reune muitos nomes "tradicionais" cujos portado-
res pertencem à classe superior ou média, mas estabelece tam-
bém, nos seus estatutos, a condiçao de "idoneidade econômica
que permita socorrer aos encargos de irmao".
A maioria dos membros da Irmandade de Sao Benedito per·
tence à classe inferior. Esta associaçao que é antiga {23) difun-
diu-se em quase tôda a iirea do municipio. Muitos de seus mem·
bros fazem parte de companhias de moçambique chamado tam-
bém "dança de Sao Benedito". Essa associaçao entre a liman-
clade e as companhias de moçambique exige algumas observa·
çoes suplementar-es.
Os moçambiques foram introduzidos em Itaipava ha 15 anos
mais ou menos, difundindo-se primeiro na zona rural e, depois,
na cidade onde atualmente existe uma companhia. 0 moçambi-
queiro local assume a obrigaçao de associar-se à Irmandade de
Sao Benedito, pois do contrario nao poderia "sair de moçamhi·
que". A admissao à lrmandade exige um juramento religioso e,
depois de prestado êsse compromisso, o moçambiqueiro "nao pode
falhar" as suas obrigaçoes de irmao e membro de uma compa·
nhia. Além do juramento religioso, o moçambiqueiro presta um
compromisso pessoal ao rei e aos mestres da sua companhia, acei·
tando sua chefia e prometendo cumprimento fiel de suas ordens
relativas aos ensaios e às saidas da companhia.
Na ordem hi eriirquica dos cargos seguem-se rei, general,
capitao-mestre e contramestre das companhias de moçambique.
Cada quai tem seu papel determinado, mas geralmente as pes-
soas que ocupam êsses lugares, agem como se tivessem autoridade
equivalente, pelo menos tôda vez que estao em jôgo os inte·
rêsses da companhia. Algumas dessas companhias estao em crise
ou desagregaçao, t o.rn ando-se cada vez mais raras suas "saidas".
A da cidade, por exemplo, n iio conseguiu reunir membros em
(23) Encontramos uma mençiio da Irmandade de Siio Benedito num
docum enta do ano d e 1852 . 0 mesmo docu1nento traz referências às Irman -
d ades do S. S . Sacramento e de N . S. das Dores. (Documentas qu e acom-
p anham o discurso corn que o Ilustrissimo e Excelen tissimo Senhor D. José
Thomâs Nabuco d'Araûjo, Presidente da Pro vfncia de Sâo Paulo, abriu a
Assembléia Legislativa Provincial no dia J. o de 1naio de 1852. Sâo P au lo ,
rasz, pag. 9.!
86
nfunero suficiente para "sair" à festa de Sao José, em 1945.
0 prôprio rei é "abusante" e falta aos compromissos. 0 mestre
esta promovendo a sua substituiçao desempenhando a um tempo
o papel de diretor, organizador e ensaiador.
Fato é que, localmente pelo menos, a lgreja Catôlica procura
controlar as companhias de moçambique, usando-as como ba-
luarte da tradiçao contra certas influências rotuladas no pul-
pito como "modernismo". 0 "modernismo" nada mais é senao
a existência e difusao de certos elementos da civilizaçao urbana
que encontraram um ponto de apoio e foco de irradiaçao no
unico clube de Itaipava. Para compensar a difusao de certos
padroes recrea ti vos {bailes, sobretudo), uma companhia de mo·
çambique foi convidada pelo vigiirio para dançar na festa de
Sao Paulo, em 1945. Os moçambiqueiros hospedaram-se na casa
paroquial e exibiram-se, durante dois dias, nas ruas de Itaipava.
É precisa dizer, que nessa e em outras ocasioes, o moçambique
atraiu o povo muito mais do que as diversoes oferecidas pelo
clube.
Nas associaçoes femininas, a divisao em classes socrars pa·
rece menos acentuada, embora a Irmandade de Nossa Soohora
das Dores seja mais pronunciadamente uma agremiaçao da classe
superior e média do que o Apostolado da Oraçao, jii pelo fato
de uma parte das sôcias da ultima residir na roça.
A ûnica associaçao religiosa bissexual para adultos é a
Associaçao de Sao José que abrange 275 membros de tôdas as
classes sociais.
Resta mencionar a lrmandade de Sao Vicente de Paula que
se propoe fins caritativos. Envia de vez em quando um menino
para angariar donativos e corn o r esultado contribui para o sus·
tento de algumas familias pobres da cidade.
Nao é fiicil ajuizar-se das funçoes exercidas pelas associa·
çoes religiosas de ltaipava. 0 observador é impressionado pelo
contraste entre as funçoes atribuidas e as funçoes realmente de-
sempenhadas. De modo gerai, às associaçoes religiosas cabe inte·
gnir a Igreja, coma instituiçao, na vida da comunidade. Pelo
contrôle que as associaçoes se propoem exercer sôhre os seus
membros e sôbre os fiéis em ger al, a lgrej a espera pôr em pni-
tica certos principios ou impor obediência a determinadas nor-
mas como, por exemplo, o exercicio da caridade, eombate a
" seitas" e instituiçoes consideradas incompativeis corn os prin-
87
 c1p10s cat6licos (maçon aria, Rotary Club), respeito ao ma tri·
mônio-sacramento, observância de pniticas religiosas como a con·
fissao, comunhâo e a oraçao em geral. Evidentemente, existe
uma divisâo do trabalho entre as diversas associaçôes, procuran·
do cada quai controlar um determinado setor dirigindo-se, ao
mesmo tempo, a um grupo limitado de paroquianos. A que pon·
to a lgreja consegue realmente articular·se corn a comunidade,
representa uma questao que dificilmente comporta uma resposta
generalizante. Algumas associaçôes sao recentes como, por exem·
plo, a lrmandade do Santissimo Sacramento, fundada em 1944,
ou a Cruzada Eucaristica. Outras sao mais antigas, mas é suma-
mente duvidoso, pelo menos em alguns casos, que tenham exis-
tência real além da execuçâo de certas formalidades como elei-
çao de diretoria e arrecadaçâo de- taxas. Também os aspectas
quantitativos merecem alguma atençâo . Tomemos as duas asso-
ciaçôes basicas dentro da organizaçâo paroquial: a Congrega-
çao Mariana e a Pia Uniao das Filhas de Maria. Basicas por·
que elas cuidam da transmissao de valores religiosos funda·
mentais para a comunidade. É nelas que a geraçao nova aprende
a ajustar seus interêsses e suas aspiraçoes aos padrôes religiosos.
Pelo menos é êste o objetivo que as duas associaçôes se pro-
pôem. A Cong.regaçâo Mariana conta atualmente 27 s6cios dos
quais doze a quinze freqüentam as reunioes semanais. :Ë.stes
numeros sao reduzidos em uma comunidade que monta a mais
de 1.500 membros. A Pia Uniao tem 41 s6cias, numero igual-
mente pouco representativo. A praxe de anotar as faltas à missa
dominical permite certas conclusôes quanto ao zêlo religioso dos
me-mbros da Pia Uniâo; durante um determinado tempo, as 41
jovens tiveram 245 comparecimentos e 260 faltas. É de notar
que, corn exceçâo de três membros, todos deram certo numero
de faltas.
À vista dêsses dados, parece duvidoso que as duas associa·
çôes desempenhem realmente a funçao que se propêiem: inte-
grar a lg.reja na vida da comunidade. A duvida parece justi-
ficada quando se leva em conta que a luta contra o "modernismo"
tende cada vez mais a dividir a comunidade urbana em dois cam·
pos opostos caracterizados pela adoçâo ou rejeiçâo de detenni-
nados valores culturais. Aos membros da Pia Uniâo é vedada a
participaçâo nos bailes do Clube ou mesmo a entrada na sede. As
que freqiientam mn baile sao "ameaçadas de expulsao". Como a
comunidade nâo usa sançêies para obrigar as jovens a fazerem
parte da Pia Uniâo "s6 entra quem quer". Das cinco filhas
Bb
solteiras de uma familia "tradicional" nenhuma é filha de Ma-
ria. "Tôdas nos gostamos de dançar e assistimos aos bailes do
Clube", declarou uma delas. Prosseguiu contando que muitas
môças freqüentaram o baile de Natal realizado pelo Clube. À
meia-noite foram à "missa do galo" e depois voltaram ao Clube
onde dançaram "até as 4 horas da madrugada". Fora de uma
"severa censura" do padre nada lhes aconteceu.
:Ë.sses fatos revelam a aceitaçâo que certos elementos cultu-
rais, condenados pela lgreja e a Pia Uniao, têm em muitas fami-
lias da cidade. Ressalta, pois, uma quebra de certos padrêies
tradicionais de comportamento adotados ainda por uns e rejei-
tados por outros. Embora a desorganizaçâo social decorrente
dessa quebra de homogeneidade nâo houvesse produzido sinto·
mas mais graves, ela foi suficiente para dividir a geraçâo nova
e, indiretamente, também os adultos, em dois campos opostos no
que se refere ao ajustamento de certos interêsses às normas esta·
belecidas pela lgrej a. Assim parece justificada a conclusao a
que chegarnos : a Pia Uniâo exerce sua funçao de associaçao
religiosa apenas com relaçao a uma parte limitada da comuni-
dade. É justamente essa limitaçâo, no entanto, que implica uma
funçao derivada, a de manter segregada uma parte da comuni·
dade, pela resistência oferecida à introduçao de elementos cultu-
rais considerados nocivos. É 6bvio que o Clube exerce, de fato, a
mesma funçao segregadora.
Quanto à Congregaçâo Mariana, o reduzido numero de jo-
vens filiados a ela e a pouca importância que a sociedade mas-
culina em gerai atribui à pratica de deveres religiosos precei-
tuados pela lgrej a, limitam sua funçâo integradora ain da mais
do que a da Pia Uniao.
A organizaçiio metodista. - 0 protestantismo foi introdu-
ziclo em ltaipava no fim do século passado. Ninguém nos soube
inclicar a data exata, mas eram unânimes em afirmar que haviam
clecorrido "entre 50 e 60 anos desde entao". A nova religiao per-
maneceu limitada a duas areas do rnunicipio: o Jeric6 e o Cume,
mas alguns mora.dores evangélicos encontram-se em outras
bairros.
A lgreja Metodista do Jeric6 conta 200 mcmbtos, mas nu
regiao tôda resiclem cêrca de 300 familias protestantes. A cscola
dominical mantida pela comunidacle é freqüenlada por 1S5 nlu-
nos. A comunidade metodista do Cume é bem menor, mas foi
89
l inutil o nosso esfôrço em precisar o numero de crentes. A escola
municipal cujo prédio serve de capela evangélica, registra uma
matricula de 40 crianças, quase tôdas evangélicas. No "culto"
/
realizado em 1 9 de julho de 1945, por um pregador vindo de
Sao Paulo, estiveram presentes 60 pessoas. Provàvelmente, a
comunidade do Cume nao representa mais de 60 ou 70 familias,
numero êsse insuficiente para manter um ministro proprio. 0
~ini~t~o. do ~;rico ,~ostuma ir uma vez por mês ao Cume para
ar durgrr o culto e pregar o evangelho. Ambas as comuni-
dades contribuem para o sustento do unico ministro da regiao.
Nao se conseguiu implantar o protestantismo na cidade, cm-
bora atualmente haja alguns moradores protestantes, todos êles,
como uma exceçao apenas, pessoas da classe inferior. As tenta-
ti_vas de fundar uma comunidade urbana encontraram a reaçao
vwlenta da populaçao catolica. Um dos fazendeiros do Cume,
ho~:m, de sessenta anos aproximadamente, lembra três "perse-
gmçoes que os protestantes sofreram em ltaipava. A primeira
ocorreu ha perto de 35 anos e estève provàvelmente ligada à
?rimeira fase da difusao, pois o ministro Bevilacqua "tentou
rmplantar o evangelho, mas foi repelido corn pedradas". Em 1934
houve nova tentativa de evangelizaçao na cidade. "Somente a
intervençao do delegado impediu que os evangélicos fôssem lin-
chado~·". A terceira perseguiçao se cleu por ocasiao do Congresso
Eucanstrco de 1940. Também nessa ocasiao o ministro protes-
tante estava tentando fundar uma comunidade urbana. A "casa
de culto" dos metodistas foi apedrejada e o ministro corn difi-
culdade escapou à agressao da multidao. Evidentemente, tôdas
as perseguiçôes estiveram associadas a periodos de proselitismo
e:angélico, explicando êsse fato talvez a "culpa" que os cato-
hcos atribuem aos "ministros protestantes de fora". Os meto·
distas por sua vez acusam os padres catolicos de haverem "ins-
tigado o povo".
Na roça, a introduçao e difusao do protestantismo se pro-
cessaram, ao que conseguimos apurar, sem conflitos e violências,
talvez por se tratar, particularmente no caso do Jerico de um
b_a~rro distante, isolado e men os controlado pela lg;ej a Ca-
tohca.
Atualmenle, na zona rural os metodistas "vivem em paz"
corn os catolicos. Nao verificamos sinais de proselitismo. Che-
gou-.s~ a um estado de reciproca tolerância e respeito, mesmo nas
farmhas em que ha membros que compartilham de religiôes di-
90
versas. No Cume, um ou outro catolico "freqüenta o culto evan·
gélico".
As duas paroquias metodistas impressionam pela coesao de
seus membros e pela obediência a certos padrôes de comporta-
mento impostos pela lgrej a. Os vendeiros protestantes nao ven-
dem alcool e nao se re aliz am bail es. No J erico, ' 1fora das ter-
ras ha uma venda onde ha pinga e jogatina, mas os protestantes
nao vao Iii". Apesar dêsse alto grau de integraçao das congre-
gaçôes, desenvolveu-se o culto doméstico, no Cume mais do que
no Jerico. À noite os membros de algumas familias reunem-se
em tôrno da mesa para orar e cantar hinos em comum. Êste
aspecto de uma familia tôda reunida em tôrno de uma mesa nao
é comum na sociedade rural de ltaipava, pois mesmo em casa
de sitiantes e fazendeiros remediados, nem as refeiçôes exercem
êsse efeito associativo sôbre a familia. É verdade que todos almo·
çam e jantam ao mesmo tempo, mas cada quai procura um lugar
diferente: êste no umbral da porta, aquêle de cocoras no meio
da cozinha, um terceiro agachado na plataforma do fogao, al-
guns em pé e outros sentados em bancos, desprezando o ensejo
de sociabilidade que as refeiçôes oferecem ao grupo doméstico.
Nao é so o trabalho que retine os protestantes, mas também as
refeiçôes e sobretudo o culto doméstico e, nao raro, a obriga-
çao que muitos pais sentem em alfabetizar os filhos quando niio
ha escola para desempenhar essa tarefa. A leitura da Biblia
é essencial ao protestante, e dai o zêlo de instruir os filhos nas
primeiras letras. No bairro do Monjolo vimos um quadro-negro
numa casa de fazenda. 0 fazendeiro, por nao haver escola pro-
xima, reunia os dois filhos menores em idade escolar para lhes
transmitir conhecimentos rudimentares de leitura e escrita.
Nao admira, pois, que os protestantes "se acham diferentes
dos demais". No seu proprio conceito "o protestante nao da
trabalho, nao aborrece ninguém, nao briga e é muito zelaso".
Dada a imensa importância que a religiao (nem sempre a "Igre-
ja") exerce na vida da saciedade local, a separaçaa do povo
em catolicos e protestantes é a fôrça segregadora mais natavel
aa lado da politica partidaria. É obvia que a base da acamo-
daçao existente é a a·b stençaa de atitudes proseliticas. Nenhuma
parte deixa de considerar a outra co mo ameaça latente: o cat6-
lico julga o pratestantismo coma fôrça estranha que invadiu a
seara propria e precisaria de ser extirpado. Apesar de cxternar
atitudes de tolerância e de respeito à pessoa, o protestante des-
91
:;
f
preza no intima a "ignorância" do cat6lico, seu culto aos san-
tos, temendo ao mesmo tempo novas perseguiçoes.
Na cidade, os poucos protestantes pertencem à classe infe-
rïor. Apenas um membro da classe superior é metodista. Nao
vai longe o tempo em que êle pregava na igrejinha do Cume
exercendo ocasionalmente as funçoes de ministro. Essas ocasioes,
no entanto, foram-se tornando cada vez mais raras e atualmente
os proprios paroquianos o consideram "um crente que esfriou",
que "trocou Cristo pelas posiçoes terrenas". Na cidade, a classe
superior é cat6lica e freqüenta a missa "chique", às 10 horas.
Os protestantes sao "olhados de lado". No Cume e no J eric6
no entanto, a situaçao é diferente: ai os protestantes formam
a classe superior de fazendeiros e sitiantes remediados e os cat6-
licos sao agregados.
Embo.ra a Igreja Cat6lica tenha uma pos1çao dominante, ela
representa, sobretudo no meio rural, uma fôrça puramente local
s~m nenhuma articulaçao corn a sociedade mais ampla. Contrà-
namente talvez ao que o insulamento das comunidades metodis-
~as faz esperar, o protestantismo exerce uma funçao visivelmente
mtegradora. Nas escolas mantidas pelas metodistas os alunas
nao sao apenas instruidos nas primeiras letras, m~s adquirem
realmente o habita da lei tura. E a Igrej a os provê de lei tura.
No Cume, por exemplo, aparecem as seguintes revistas 0 Expo-
sitor Cristiio (semanario), Revista dos Ptofessôres da Escala Do-
m~nical, V oz Missionaria (para senhoras), Bem-Te-Vi (para
cnanças) e Cruz de Malta (para jovens). No Jeric6 o nfunero
~e. assinantes do jornal metodista aumentou de 18 para 30, nos
~lhmos ~nos. Embora religiosa, essa imprensa contém uma parte
mformativa capaz de despertar a curiosidade do povo da roça.
É facil, pois, distinguir os protestantes entre os moradores rurais.
t!:}es se traem pela maior desenvoltura na conversa e pelo inte-
resse que mostram por assuntos e acontecimentos completamente
al_h~ios ao horizonte da cultura local. Em algumas casas evan-
g~~Ica~ e~contramos livras que nao esperavamos ver numa re-
giao _tao Is.olada. 0 velho Morais, morador do Cume, o primeiro
e mais a~hgo_ p_rotestante do bairro, consul tou em nossa presença
uma enciclopedia portuguêsa do século passado. Eu fizera uma
pergunta sôbre veneno ofidico e como nenhum dos presentes
soubesse dar a resposta adequada , o velho recorreu à enciclo-
pédia que &abia manejar corn fa cilidade, mas, an tes de aceitar a
92
informaçâo do livra, teve o cuidado de compara-la corn suas
pr6prias experiências.
0 Clube
À classe superior da comunidade local pertencem pessoas
vindas "de fora" e entre elas figuram principalmente as "auto-
ridades" estaduais. Essas pessoas trouxeram padrôes de socia-
bilidade reereativa que desejavam implantar ou difundir no meio
local, quer para tornar o meio menas "acanhado" ou "mono·
lono", quer para conquistar simpatias e consolidar o seu pres·
tigio entre as familias mais "progressistas" da terra. Providas
de experiências mais amplas, adquiridas em centras urbanos maio-
res, nao poucos nativos da classe superior apoiavam as tendências
para difundir, no meio local, padroes de recreaçao que lhes eram
familiares mas que nao podiam vingar sem o concurso de "ele-
mento de fora". Acresce que o desejo de dispor de meios recrea-
tivos considerados "urbanos" ou "civilizados" se enquadrava na
ideologia do "progressa" local.
Verdade é que tais tendências nao eram novas. Os atuais
dirigentes do clube apontam très tentativas, verificadas no pas-
sada, para fundar um centra recreativo. Tôdas elas falharam
"por causa da politica". Foi a politica que "matou os clubes de
Itaipava", declarou um dos membros de maior "projeçao social".
Desde a constituiçao do atual clube procura-se cuidadosamente
afastar dêle "a politica". Mais do que êsses cuidados, foi provà-
velmente a ausência de campanhas eleitorais, entre 1937 e 1945,
que favoreeeu a constituiçao de um centro recreativo. Dada a
estrutura politica da classe superior, 0 clube nao podia deixar
de ser dirigido por membros ou simpatizantes do P. R. P. que
de fato !he constituem o grupo predominante. Membros da opo-
siçao que se sentem "oprimidos" ou "perseguidos" pela situa·
cionismo , jamais participaram das atividades do clube, e dois che-
f es oposicionistas deixaram de ser s6cios.
Atualmente, o clube conta 109 membros, divididos em très
categorias de acôrdo corn a mensalidade que pagam: 20, 10 e 5
cruzeiros. Oito membros pagam 20 cruzeiros, 17 pagam 10 e 84
figuram no roi dos s6cios corn a taxa de 5 cruzeiros. Quuse lo·
dos os que contribuem corn 20 cruzeiros, fazem parle da classe
superior. Entre os que pagam cinco cruzeiros encontram-se si-
liantes e fazendeiros que "ocasionalmente apareccm quando estiio
93
 na cidade". A atual diretoria quer atrair "todos os bons elemen-
tos da cidade e da roça", procurando evitar tendências exclusi-
vistas. De fato, a lista dos socios contém nomes de individuos
considerados "humildes", mas tais individuos nâo freqüentam a
sede social porque ai "nâo se sentiriam à vontade".
0 clube aceita "pessoas de vida regrada". Como insistis-
semos na definiçâo da expressâo "vida regrada", obtivemos a
resposta de que o "homem de vida regrada nâo deve estar ama-
siado quando casado e nâo eleve ser um ébrio habituai". Nada
se exige quanto à religiosidade ou honestidade em assuntos eco·
nômicos. Parece-nos, no entanto, que a omissiio dessa ultima
exigência se explica pelo fato de serem rarissimos os casos de
desonestidade comercial na populaçiio local, a ponto de se consi-
derar desnecessaria qualquer referência expressa a essa eventua-
lidade.
0 clube nao aceita pessoas de côr. Interrogados sôbre o
porquê dessa exclusao, varios socios influentes apressaram-se em
declarar que "pessoalmente nada tinham contra o prêto. Êles
siio como nos, mas a sociedade os repudia. As môças nâo querem
dançar corn êles". Fato é, no entanto, que o filho de criaçiio de
uma familia "tradicional", homem de côr (mulato escuro) é
socio do clube, mas nao freqüenta os bailes (24).
Os divertimentos oferecidos pelo clube consistem em jogos,
bailes e raras representaçoes cinematogrâficas. Nao hâ jôgo "pe·
sado" que, embora comum em muitos pequenos centras urbanos,
costuma provocar oposiçâo e despertar reservas corn relaçiio aos
"viciados pela jogatina". Atualmente, os dirigentes do clube in-
sistem em atrair "famîlias". Estas, no entanto, aparecem so em
ocasioes excepcionais, num baile ou "cinema" oferecido, às vê-
zes, por um individuo da classe superior possuidor de uma mâ-
quina portâtil de proj eçiio. A se de do clube, deserta dur ante
o dia, é freqüentada, à noite, por um pequeno grupo de homens
que se reunem para jogar bilhar ou truque. Às vêzes, 0 numero
de freqüentadores sobe a quinze ou vinte, mas geralmente nâo
mais do que oito a ciez pessoas, quase sempre as mesmas, se
encontram reunidas depois do j antar.
(24) Ao passa que na zona rural nao existe pràticamente "linha de
côr", as atitudes da populaçâo urban a estâo impregnadas de prevençâo con-
tra _o. prêto. Mes~o antes de existir o atual clube, os pretos nâo podiam
P~r~1c1par ~os b_a1les de brancos. Um morador antigo contou-nos um epi-
s_:>dio ocorndo a1nda no tempo do império, par ocasüio da procissao de en-
terra na Sexta-feira Santa. Era costume naquele tempo os "grandes" da
94
Embora se trate de um "clube de familias", as suas ativi-
dades sâo encaradas corn desconfiança ou hostilidade pelas !gre-
jas locais e seus crentes mais ortodoxos. A moral evangélica
condena severamente jôgo e dança e no juizo da Igreja Catolica,
sobretudo os bailes sâo condenaveis. Aos membros da Pia Uniao
das Filhas de Maria a entrada na sede é vedada e quando o
clube quis realizar um baile infantil, na festa de Sao J oâo, em
1945, o vigârio protestou enèrgicamente do proprio pulpito proi·
bindo à criançada que freqüentasse o baile. Êste nâo se realizou
e tivemos ensejo de observar que a atitude do padre foi rece-
bida, por muitos, corn real surprêsa, pois nao haviam contado
corn a possibilidade de condenaçao tao severa de um diverti-
mento ti do geralmente co mo "inocente".
Conseguimos apurar cinco funçoes que o clube atualmente
exerce:
l Prover mews de recreaçâo para os seus membros.
2 B.eafirmar o status social de limitado grupo de pes-
soas da classe superior.
3 - Servir de canal de ascensâo a individuos desejosos de
elevar o seu status social. Tivemos ocasiao de observar casos
malogrados ou "em andamento". De fato, o clube é uma peneira
social, mas nao hâ sançoes contra os membros da comunidade
que nâo fazem parte de seu quadro.
4 - B.eafirmar a ideologia do "progressa local" importan-
te para a integraçâo da comunidade e a auto-estima de seus mem·
bros. A existência do clube afigura-se-lhes como prova de que
terra, trajados de cartola e casaca, carregarem o esquife. Um sapateiro
prêto, original de Sâo Luis do Paraitinga, veterano da guerra do Paraguai,
e comendador da Ordem da Rosa (condecoraçâ.o ganha nessa campanha),
amarrou o lenço no esquife manifestando assim o prop6sito de participar d a
cerimônia ern. lugar de destaque. Outra comendador, branco e mernbro de
uma das farrlilias mais antigas de Itaipava, recusou-se a carregar o csquife
em companh:ia do homem de côr. l!:ste, que vinha na farda de tourier , n
comenda no peito, foi intimado a retirar-se . Nâ.o se conformou, no e ntanto ,
e de espada na mâc desafiou o comendador. Para evitar derramamento de
sangue, os demais participantes intervieram segurando o comendador braneo
e o prêto pô de participar da procissâo carregando o esquife.
Todavia, o senso de equilibrio e a capacidade acomodatlva do comun!-
dade revelavam-se por ocasiâo da festa de N. S. do Rosârio que otunJm cntc
jà nâo se eomemora. Os principais personagens dessa f e stn (rel , r alnhu ,
juiz da vara, juiz do ramalhete, juîza da vara, juiza do rmnnlhctc , nHormJ
da bandeira e capitfio de mastro) eram todos pessoas de cOr. No ·bunqu r:.tc,
êsses persona.gens e os demais membros da Irm.ancLadc crarn. ~wrvici,o~; nx el1L-
sivamente por individuos brancos. A funçfio dessa lnvcrsfio de pnpéls p a-
rece ter sido a de neutralizar a eventual tensao que normntme ntc ac
acumula entre grupos antagônicos.
95
 ... :.,., .
1 Itaipava realmenle "progride", embora nao haja nenhuma ten-
èlência para exaltar êsse "progressa".
5.- Ao _lado desta funçao integrante, o clube exerce outra,
de efelt~s desmtegrantes, pois conduz à segregraçao relativa dos
qu~ ac~1t~m padro es recrea ti vos "modern os", daqueles que se
opoem a mtroduçao dêsses padréies.
A cooperativa
à Uma das poucas construçéies novas de Itaipava, logo
~entrad~ da cidade, ostenta os letreiros da umca coope-
rahva existente. Atualmente, esta reune cêrca de 300 lavra-
dores e_ um capial de 61 mil cruzeiros dos quais 49 mil
for~rr:_ I~Iteg;ad_os. Os fautores da cooperativa, apoiados na
~ss_1stenc1a. tecmca d~ Departamento de Assistência ao Coopera-
hvismo, VIsavam, acuna de tudo, beneficiar os lavradores evi-
tanqo os intern;e?iarios ("atravessadores") e vender a produçao
agncola dos soc1os diretamente a centras urbanos mais distan -
tes que :pag~s.se~ os preços correntes nos grandes mercados. "A
cooperativa Ja Ia muito hem até a embrulhada do ano passado"
(1944): declarou-nos uma das pessoas mais interessadas no de-
senvolvimento da cooperativa e -do "progressa" local. A "em-
br~lhad~' foi um defi~it de quase trinta mil cruzeiros cujo em-
prego nao se consegmu esclarecer satisfatoriamente aos socios.
t 0 casa suscitou muito mexerico e suspeitas dirigidas contra 0
i gerente que foi o~rigado a deixar o cargo. Corn grande difi-
!
1
culdade a cooperativa sobreviveu à onda de desconfiança e retrai-
mento que se seguiu à descoberta do deficit.
~ A maior dificuldade com que os dirigentes da cooperativa
!
lutavam em 1945_, era a f~lta de capital para adiantar 0 paga-
men:o dos fornec1mentos feltos pelos lavradores associados. Des-
c?nfiados, êstes so aceitam negocias corn pagamento à vista. Ou-
Vlmos constantemente queixas sôbre o "imediatismo" dos lavra-
dores que "nao queriam esperar até que a cooperativa vendesse
os produtos a bons preços". Evidentemente, os socios nao eram
"_bons comerciantes", pois nao aceitavam o padrao que se pode-
na chamar "especulativo" e que consiste em armazenar o
prod~to e aguardar preços favoraveis. Preferiam 0 pagamento
1med1ato a u~. lucro maior e mediato. Trabalhados pela propa-
ganda dos d1ngentes da cooperativa, alguns lavradores deram a
entender que se contentariam com o preço que se pudesse obter
:1
j
1
no momento, abrindo mao "da diferença em favor da coope-
rativa".
É obvio que o padrao de "imediatismo" dos lavradores exer-
ce o efeito de alterar a funçao da cooperativa que, idealiter,
beneficiaria os socios corn os lucros obtidos pela colocaçao direta
dos produt:os disponiveis. Dessa maneira, os lavradores conse-
guiriam lucros que levariam, corn o tempo, a uma modificaçao
da estrutura econômica. Atualmente, no entanto, a cooperativa
esta rnuito longe de exercer essa funçao . A escassez de capital
a coloca numa situaçao de visivel inferioridade corn relaçao à
maior parte dos "atravessadores" locais. De fato, os estimulos
para que os lavradores "cornpreendam as vantagens" da coope-
rativa, sao extremamente fracas, pois conseguem vender, corn a
maior facilidade, as suas colheitas a preços que lhes parecem
compensadores. E rnuitos socios da cooperativa vendern sua sa-
fra de milho ou fei j ao, tôda ou em parte, nao à cooperativa,
mas a negociantes locais. Portanto, para que aceitar transaçéies
a prazo quando se pode obter na cidade ou, nao raro, nos pro-
prios sitios (onde "atravessadores" chegam corn grande fre-
qüência) preços que ultrapassam a propria expectativa? Nos
homens adultos corn mais de trinta anos continua viva a lem-
brança dos tempos em que os produtos "nao valiam nada",
quando se devia transportar a mercadoria a Guapira, "no lombo
de burro", oferecendo-a a negociantes que pouco se interessavam
pela sua aquisiçao e par fim pagavam "uma miséria" que "mal
clava para pagar as despesas da viagem". Vê-se que a propria
situaçao se afigura sumamente desfavoravel a uma mudança da
atitude "imediatista" dos lavradores, mudança essa indispensa-
vel para que o padrao "cooperativismo" possa ser integrado na
cultura local.
Apesar de tantas limitaçéies, nao parece dificil divisar uma
funçao integrante da cooperativa, pois ela contribuiu para elimi-
nar interêsses competitivos entre os seus associados oferecendo
a todos oportunidades iguais dentro de limites bastante estreilos.
As cliques
Em tôdas as comunidades observa-se mn Lipo de gru-
po que aparece espontâneamente, reune seus memhros de
modo mais "informai" possivel e serve aas o!Jj clivos nwi~
variados: as cliques. Uma an alise acurada mo~lra que as
97
 cliques, à guisa das massas e multidoes, representam, freqüen·
temente, formas de atualizaçao de grupos sociais mais amplos e
solidamente constituidos. Membros de um clube esportivo ou
partido polîtico que se reunem, à noite, num ponto determinado
da cidade para conversar sôbre esporte ou polîtica, "trocando
idéias", fazendo crîtica e "tecendo" pianos, constituem cliques
através das quais se realiza boa parte da vida do clube ou do
partido. É o que se pode afirmar, por exemplo, das cliques lo·
cais em que se "conversa sôbre polltica". Nessas conversaçoes
realizam-se "sondagens" de grupos ou indivîduos dissidentes ou
suspeitos de dissidência, reduzem-se ambiçoes pessoais a seus "jus-
tos têrmos", preparam-se "golpes", vinganças, "traiçoes" e camba-
lachos. Os mexericos e a "ma lîngua" dos "venenosos" consti·
tuem, por si s6, sançoes temidas e aplicadas corn freqüência. "Falar
mal da vida alheia" é uma das principais ocupaçoes de quase
tôdas as cliques locais.
Mesmo na hip6tese de servirem de instrumenta de açao a
grupos maiores, as cliques nunca se limitam a um objetivo ape·
nas. As 17 cliques que conseguimos localizar em Itaipava, giram
em tôrno dos seguin tes interêsses:
Politica;
pornografia;
mexencos ("falar mal") ;
lavoura;
esporte;
ouvir râdio;
j ôgo proibido;
diversoes suspeitas;
desastres.
As combinaçoes tipicas de interêsses sao: politica +nego·
cios+mexericos, ou bebedeiras+neg6cios+pornografia. Todavia,
hâ comhinaçoes mais variadas ainda e tôdas elas mostram a fei·
çao aparentemente multifuncional e lâbil das cliques. Em tôdas
elas observamos uma tendência para ventilar, ao lado dos inte·
rêsses prediletos, os acontecimentos "do dia", um desastre tai·
vez, ou a chegada de uma pessoa "de fora". A multiplicidade
de funçoes pode ser reduzida, pelo que vemos, a três funda-
mentais:
98
l - As cliques satisfazem o desejo de uma sociabilidade,
isenta de certas regras convencionais que impoem a o,b servância
de uma etiquêta considerada, nao ra.ro, incômoda.
2 - As cliques satisfazem a necessidade de circulaçao ra-
pida de idéias relacionadas corn os interêsses da comunidade.
l:':sta nao possui outros 6rgaos de difusao capazes de exercer
essa funçao corn a mesma eficiência.
3 - Numa comunidade em que predominam os contactas
primârios, as cliques exercem uma forma de contrôle social que
atinge todos os seus membros de maneira direta. As "mas lin-
guas" dos "venenosos" que todos temem, operam principalmente
através das cliques e apoiadas no consenso delas t25). É prin·
cipalmente êste consenso que torna pràticamente impossîvel quai.
quer defesa contra "mâs !inguas" dando assim maior eficiência
a sua técnica de contrôle.
6bvio é que, na hip6tese de constituîrem uma forma de vida
dos partidos politicos, as cliques assumem pelo menos algumas
das funçoes atribuidas aos proprios partidos. É o caso de pelo
menos duas cliques politicas de Itaipava. Boa parte da funçao
peneiradora, os partidos exercem através de suas cliques.
Em Itaipava ha cinco cliques constituidas por membros das
classes superior e média. Em sete cliques predominam pes-
soas da classe inferior e as cinco restantes sao "mistas", servindo
a pessoas de classes diversas que nelas encontram ensejo para
contactas espontâneos que nao acarretem maiores conseqüências
para o seu status. 0 aspecto "democratico" que a sociedade lo·
cal apresenta deve-se, sobretudo, ao fato de pelo menos dez das
dezessete cliques reunirem pessoas de classes diversas, que con·
versam entre si como se fôssem socialmente iguais. Essa aproxi·
maçao de individuos de classes diferentes pode ser interpretada
como funç(io integradora que grande parte das cliques exerce
corn relaçâo ao sistema de classes sociais existente.
(25) É verdade que todos os grupos humanos exercem funçôes de con-
trôle sôbre os seus membros e nâo haveria, portanto, necessidade de frisar
êsse fato. Todavia, as cliques nâo "respeitam" limitaç6es que outras gru-
pos se impôe~m. Essa ausência de restriçôes e, freqüentemente sua rc1at1va
irresponsabiliclade (caracteristicos aprovados par se us lnembros) ex pl icnm a
tendência para a mexerico, para "falar mal", atingindo a todos e n tuda.
Parece-nos que essa forma de contrôle diferencia a clique de todos os de-
mais tipos d1~ associaçâo humana.
99
 Outras associaçoes
Existem .duas bandas de mus1ca e um clube de futebol, mas
estas associaçôes pouca influência exercem sôbre a vida da comu-
nidade. Contràriamente ao que sucede em muitas localidades, o
futebol nâo conseguiu despertar o interêsse do povo. Embora
algumas pessoas se referissem a jogos realizados no passado, nun-
ca logramos presenciar um treino ou jôgo no campo local.
A comzmùlade
Resta-nos analisar as fôrças que, a despeito de tanta dife-
renciaçâo interna, conservam a unidade da estrutura local fazen-
da corn que os seus individuos e grupos integrantes se considerem
comunidade e possam agir como um todo.
Em primeiro luga.r parece necessario frisar que a maioria
dos grupos analisados em separado, compensa a funçâo diferen-
ciadora por uma funçâo nitidamente integradora. Vimos que o
mutirâo - forma de cooperaçâo vicinal - renne sitiantes de
niveis diferentes e agregados, agindo como ponte de ligaçâo entre
classes rurais .diversas. Da mesma forma, cada um dos partidos
politicos integra elementos de tôdas as classes sociais, nâo obs-
tante haver uma concentraçâo de pessoas da classe superior no
Partido Republicano.
Mais ampla é a funçâo integrante das Igrejas. Na Igreja
Cat6lica os fiéis participam das atividades religiosas sem dis-
tinçâo de classe social ou partido politico. Embora relativamente
frouxa como associaçâo paroquial de grande extensâo geogra-
fica, a Igrej a é, assim mesmo, um fa tor de integraçâo para a
comunida.de urbana. Fora disso, é s6 nas grandes festas religio-
sas (Sexta-feira Santa e Divino Espirito Santo) que a Igreja
Cat6lica age como fôrça de integraçâo social. É nessas ocasiôes
que as emoçôes coletivas dos fiéis reunidos alcançam um consi-
deravel grau de intensidade. Dentro da sua area geognifica me-
nor e restrita a grupos comparativamente pequenos, a Igreja Me-
todista exerce, como ja vimos, essa funçâo de maneira mais
intensiva do que a Igreja Cat6lica.
A funçâo integrante de algumas cliques j a foi posta em
relêvo. É preciso nâo subestima-la, pois é nas cliques que se
100
desenrola boa parte da sociabilidade recreativa, da vida econô-
mica e politica da comunidade.
Ha, porém, uma série de fatôres de integraçilo que até agora
nâo foram abordados e cuja importância rivaliza corn os que
acabamos de mencionar.
Ao examinar a estrutura social mais ampla que se estende
para além dos confins da cidade, o observador é impressionado
pela ausência .de .antagonismo, tâo corriqueiro alhures, entre po-
pulaçâo rural e populaçâo urbana. Grande parte dos moradores
da cidade nâo somente tira o seu sustento cliretamente da zona
rural, mas continua praticando a lavoura. Quase tôdas as fami-
lias-grandes residentes na "sede" têm .r amificaçôes na zona rural,
formando, nilo raro, parentelas grandes em varios bairros simul-
tâneamente. Mas o que da à comunidade urbana um cunho rus-
tico é, acima de tudo, uma certa "simplicidade" de costumes,
explicavel pela isolamento secular e a inexistência de fontes de
renda que permitissem a acumulaçâo de grandes fortunas. Essas
afirmaçôes nâo significam que nilo haja nenhuma tendência para
a introduçil.o de elementos mais "refinados" da civilizaçilo ur-
bana. Certos padrôes recreativos, o habito de ler jornais diarios,
constituem elementos que apontam tendências de urbanizaçâo,
estimuladas, alias, pelas familias vindas "de fora" e os viajantes
e veranistas que às vêzes criticam o estilo de vida local, achando
que êstes "pr·ecisam de um banho de civilizaçilo".
De outro lado nilo faltam, na zona rural, exemplos de se-
gregaçao quase completa: mor adores que raramente ou nunca
vilo à cidade subtraindo-se inteiramente a suas influências.
Todavia, êsses exemplos representam exceçôes, e as tendên-
cias opostas, visando uma urbanizaçilo mais intensa, nilo conse-
guiram destruir, até hoje, a tradicional rusticidade dos mora-
dores urbanos.
A ausência do antagonismo cidade-roça prende-se intima-
mente a certos caracteristicos da organizaçao econômica. Ja fri-
samos que tôdas as ativida.des econômicas localizadas na comuni-
dade urbana estao em relaçilo de interdependência corn ativida-
des agricolas e pastoris. Essa interdependência criou uma solida-
riedade de interêsses inexistente em comunidades industrializa-
das. Seria exagêro afirmar que os limites geogridicos dessa soli-
dariedade coincidem com as divisas do municipio. Como centro
de dominância ecol6gica, a cidade de Itaipava pouco influi sôbre
101
alguns distritos periféricos e mesmo Campos de Itaipava esta
mais ligada a outra cidade do Vale do Paraîba do que à sede
municipal. Ao isolamento e às distâncias devem ser atri,b uîdas
essas limitaçoes, mas o isolamento e as distâncias forjaram tam-
bém a solidariedade de interêsses econômicos da comunidade
local corn r elaçao a comunas vizinhas.
É obvio o papel do govêrno municipal como fator de inte-
graçâo de grupos e interêsses opostos ou competidores. A admi-
nistraçâo de serviços publicos como, por exemplo, a conserva-
çâo e construçâo de estradas, fornece a base material para man-
ter ou aumentar a freqüência dos contactos entre os moradores
da area ecologicamente dominada pela sede municipal. Em 1945
houve ensej o pa<ra verificar o pa pel integrador do govêrno mu-
nicipal. 0 racionamento de sai, açucar, gasolina e outros pro-
dutos escassos alargou, consideràvelmente, a esfera de contrôle
da prefeitura local. Surgiram dificuldades de transporte de mer-
cadorias racionadas, pois a prefeitura nâo possuîa veîculos moto-
rizados e os poucos proprietârios de caminhêies, quase todos co-
merciantes, davam preferência a mercadorias isentas das restri-
çêies do racionamento . Um dia, o prefeito convocou os proprie-
tarios de caminhêies, explicou-lhes que a populaçâo estava na
iminência de fi car sem sal e açucar e intimou-os a realizar ime-
diatamente o transporte das mercadorias racionais. Caso nâo se
efetuasse êsse transp"ürte, suspenderia o recebimento de quotas de
gasolina. Na re"uniâo ouviram-se express ô es co mo "interêsses do
povo" que estariam "acima dos interêsses particulares".
Analogo à situaçao do govêrno municipal, o poder judicia-
rio age como fator de integraçao pela distribuiçao de justiça. A
reciprocidade como base de funcionamento de todos os grupos
humanos, deseja ver compensado o agravo, quaisquer que sejam
a forma ou· as formas de compensaçao realmente adotadas ( com-
posiçao, expiaçao, puniçao, vingança etc.) . Sen do insignificante
a criminalidade, a importância d o poder judiciario é limi-
tada (26). Simples queixas sâo r esolvidas pelas autoridades po-
(26) Até 1937, o poder legislativo municipal que resolvia e decretav3.
"leis municipais'' tinha :funç6es integradoras de nao pouca relevancia.
102
liciais cu j a interferência quase constante exerce efeitos de conci·
liaçâo e, portanto, de integraçao muito freqüentes.
Conseguimos registrar uma série de atitudes e opiniêies pos·
siveis de serem interpretadas como manifestaçoes de uma soli-
dariedade comunal.
Muitos moradores gostam de lembrar fatos historicos rela-
cionados corn a cidade, referindo-se qu ase sempre à época de
esplendor, quando Itaipava se achava à Leira de uma das grandes
estradas imperiais. Mostram corn orgulho o sobradao onde o
Duque de Caxias pernoitou numa viagem de Paracauba ao inte-
rior. Citam nomes de "moradores ilustres", geralmente de fami-
lias antigas, e nunca se esquecem de Clemente Pedroso e de sua
"atuaçao na politica nacional". Da historia mais recente fre-
qüentemente lembrado é o "heroi de Itaipava", Paulo Virgini.p,
cujo nome foi dado a uma das ruas centrais da cidade. Hâ
poucos moradores da cidade ou roça que nao conhecem a "his-
toria do martirio e da morte" de Paulo Virginio, "caboclo va-
lente", que morreu pela causa constitucional, na revoluçao de
1932. Contam que um pelotao de tropas governamentais aprisio-
nou o lavrador Paulo Virginio exigindo-lhe que indicasse o cami-
nho de ltapaiva. Paulo Virginio recusou-se a fazer "papel de
traidor" suportando as torturas que os soldados lhe infligiram
e, por fim , preferiu a morte à traiçao. Os mais afamados violei-
ros de Itaipava costumam cantar a historia do heroi Paulo Vir-
ginio. Eis o t exto, composto por Nicolau Sobrinho Filho, lavra-
dor e violeiro:
. MODA DE VIOLA S6BRE 0 HEROI DE ITAIPAVA,
DA REVOLUÇAO DE 1932, PAULO VIRG1NIO
Vou eu ·c onta de um caso .No Bairro do .T aboâo
que isto foi acontecido onde êle era residido
daquele tempo da Revolta tiraro êle da casa dêle
nâo vi ninguém resolvido. êle saiu distraido.
Houve muito desprêzo de Trouxero pro Rio Abaixo
[familia êle veio muito iludido
ficou muito coraçâo sentido na casa do senhor Laurindo
sôbre a morte de Paulo onde êle foi recebido.
[Virginio Que s6 de falâ é doido.
que s6 no fa lâ é doido.
103
 Isto era bem cedinho Levaro perto de uma ponte Tem um grande mumc1p1o De certo tempo pra câ
o sol nao tinha batido onde êle foi falecido lem muitas léguas quadrado, Itaipava tâ sendo mais
pusero êle na âgua fria fizero êle fazê a sepurtura; tem muitos trabalhadô [movimentado,
logo que o dia tinha jâ êle estava distraido t:rabaia no pesado. rumnento é uma beleza,
[amanhecido. depois da sepurtura feita Tem muito eriadô. estâ tôda iluminada.
Tiraro êle da âgua fria recramô seu pedido. cria porco, burro e gado. Temo o padre Sepetimio
pusero na âgua fervido. A produçi'io de Itaipava é que é um born coraçao aliado;
Mandô chama seu Benedito [grande tâ na frente da religiao.
Geada tava no campo [Maria que dâ muito resultado. corn um bonito livro sagrado.
que nem um sal moido; que era seu amigo garantido Na chegada daqui pra lâ Estâ ensinando a dotrina
se nao fôsse a Revolta e fêz a recramaçao tem um bonito Cruzeiro explica bem explicado
êsse homem nao tinha morrido. do que tinha acontecido, [fincado. os meus irmaos da cidade,
mandara êle vira as costa religiao precisa ser
Ë o sinal de nossa terra
Seus fio inda tinha pai dero 18 tiro do ouvido. tôda a vida hâ de sê [freqüentado.
sua mulher tinha marido 5 sordado e um tenente Também tem o salao do Crube
[alembrado. muito bem aperparado.
coitada dessa familia aquela crasse de bandido.
Tem um Grupo na saida Tem o campo do Gouveia
quanta ela nao foi sofrido Pra quem pensa e considera muito bem eolocado
sôbre as farta de seu pai veja que trecho doido. aonde treina o quadro,
onde ensina as criançacta tem uma banda de musga
para os seus filhinho querido. cresce tudo bem educado. os instrumenta aniquelado
Tem uma matriz importante marcha certa na linha
primeiro que foi afundado . o dia que toca o seu dobrado.
Também tem duas igreja Tem muitas casa comerciante
É preciso acrescentar que os violeiros representam 6rgaos que agora vai sê falado, também tem os fiscâ
da opiniao publica da populaçao rural, sobretudo das classes mé- do Rosario e S. Vicente de secos e molhado
dia e inferior. Quem desejar estudar a maneira pela quai os mo- que fica pra outro lado que tudo é fiscalizado
radores da roça encaram e interpretam homens, instituiçêies e é auxiliadô dos pobre si sai fora da lei
que tem seu cartao tirado. negociante tâ murtado.
acontecimentos, nao pode deixar de registrar e analisar os textos
cantados aos arpejos da viola. Também tem o radio falante
Temo Juiz e Promotor que deixa uma voz aumentado.
A recordaçao dêsses fatos hist6ricos prova que existe uma também temo born Delegado. Também tem a jardineira
Temo cart6r:io, as coletorias tem o seu horârio marcacto
consciência comum do passado de cujas feitos os moradores con- também temo advogado tem o rel6gio na tôrre
tinuam participando e que constituem, através do tempo, um ponta também temo born prefeito que o povo fica admirado
de gravitaçao de sentimentos coletivos. que é um homem delicado. da pancada no sino
0 progressa tâ progredindo quando é hora compretado.
Os violeiros cantam também a Itaipava presente, apreciando tâ sendo bem diministrado. Viva a cidade de Itaipava
suas instituiçêies e seus homens eminentes. A "descriçao" se- Na frente da Medicina terra que eu fui nascido
guinte, colhida por ocasiao de uma festa, mostra de que maneira tem um bom doutô formado. e fui criado,
Edmauro e o Sarvadô também viva o nosso Brasir
a comunidade se representa a si pr6pria, através das modinhas
também tem seu Duardo. que é o nosso pais amado.
de seus violeiros mais aplaudidos. Também êste texto é de An-
tônio Nicolau Sobrinho:

Importantes fatôres de integraçao sao as festas religiosas,

DESCRIÇAO DE ITAIPAVA principalmente as que atraem grande numero dos moradores mais
distantes lembrando-lhes que sao partes de uma comunidade maior
Da nossa cidade de Itaipava Na beira dêste sertao do que aquela formada apenas pelos moradores de scu bairro.
Tenho a descriçao tirado. da estrada de ferro arretirado As cerimônias finais da Semana Santa reunem de quatro a cinco
:E'J uma cidade pequena ela é a princesa de S. Paulo mil pessoas na cidade. De significaçâo social ainda mai or é a
que é um grande povoado. Capital de nosso Estado. Festa do Divino. Muitos meses antes da festa prôpri a mente dita,

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 a folia começa a percorrer a zona rural angariando os donativos -nos uma das autoridades locais. 0 velho Cardoso Friais desen-
para a festa. 0 grupo de folioes é um elo de ligaçao entre os volveu uma teoria pr6pria para explicar a imigraçâo de mineiros
bairros mais afastados. Na ultima fase de preparativos, os fo- e o perigo dessa imigraçao. Segundo essa teoria, os mineiros
lioes raramente viajam sozinhos. Numerosos moradores do bair- entram todos corn o prop6sito de formar "quistos raciais" na
ro onde a folia pediu o ultimo pouso, acompanham a bandeira regiao de Itaipava e nos municipios que se limitam corn o Es-
do Divino pelo menos ao pouso seguinte. Nao é raro formar-se tado do Rio. Uma vez suficientemente fortes, exigiriam que tôda
um grupo de algumas dezenas de cavaleiros em tôrno da ban- aquela regiao, inclusive Itaipava, fôsse anexada ao Estado de
deira. 0 "pedido de pouso" é uma festa de grande significaçao Minas Gerais que assim ·-conseguiria "acesso ao mar". 0 .velho
social e religiosa. 0 j antar e o bai le subseqüente reunem a fami- Cardoso Friais é uma das poucas pessoas em Itaipava que costu-
lia do hospedeiro, as familias vizinhas, os folioes e todo o seu mavam acompanhar os acontecimentos da guerra através do radio.
séquito. A ocasiao associa, portanto, parentes, e vizinhos corn É assim que se explica a estranha transferência de um fato de
moradores do mesmo bairro e de bairros vizinhos e todos êstes politica internacional ao âmbito regional.
corn os folioes que vêm de longe e representam o festeiro, a Até agora, as atitudes contrarias à "imigraçao mineira" nao
lgreja e, pelo menos, indiretamente, o Divino Espirito Santo, se transformaram em "açâo defensiva", porém mesmo assim pa-
cujo simbolo material expoem à veneraçao dos devotos. A pro- dern ser consideradas expressâo de solidariedade comunal e pre-
pria festa, enfim, movimenta a regiao tôda. Durante uma sema- vençao contra o forasteiro.
na, muitos milhares de moradores rurais vao à cidade a fim de
participar das cerimônias religiosas e diversoes "profanas". A
Festa do Divino desempenha uma série de funçoes integrantes
que serao estudadas num dos capitulas seguintes.
Ao lado da Semana Santa e da Festa do Divino é principal-
mente a Festa de Sao José que retine, no bairro da Boa Vista,
grande parte -dos moradores rurais e urbanos.
Sintomas de coesao comunal sao, também, as atitudes que
os moradores costumam assumir corn relaçao a certos forasteiros
e comunidades vizinhas. A subordinaçao econômica e politica a
Guapira exige uma atitude compensat6ria, geralmente de hosti-
lidade ou agressao. Muitos gostam de referir-se ao "papel para-
sitario" de Guapira onde "nao se produz nada" e que "vive às
expensas de ltaipava". Alguns se ressentem do desenvolvimento
de Campos do J ordâo, classificando o elima de Itaipava como
sendo "muito mais sêco e muito superior" ao daquela estância
climatérica. Baseado nas qualidades geograficas de Itaipava e
na existência de uma "agua mineral de grandes efeitos curati-
vos", um grupo politicamente influente pleiteava, em 1945, a ins-
tituiçao da "prefeitura sanitaria".
0 forasteiro comum em Itaipava é o mineiro. 0 povo da
roça o acolhe corn agrado porque é "trabalhador e honesto".
Todavia, a populaçâo urbana considera o mineiro como elemento
prejudicial ou mesmo como "fator de decadência", pois êle "trans-
forma a lavoura em pastagens e despovoa o municipio". "Se de-
pendesse de mim, eu proibiria a entrada de mineiros", declarou-

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