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É por esta razão que Amnésia contém um desafio aos historiadores. Além
de ser um engenhoso quebra-cabeça, o filme tangencia as indagações
sobre quais critérios avaliam os atos humanos. A questão é clássica. E nos
tempos modernos foi Maquiavel quem primeiramente fixou seus termos ao
polarizar fortuna e virtude. Desde então, os estudiosos vêm se perguntando
qual é o foco do juízo racional sobre as ações, ou seja, sob qual aspecto se
interpreta a conduta dos homens? Considerando a intenção dos agentes ou
os efeitos dos atos? A virtú ou as circunstâncias casuais? Levando em
conta o livre arbítrio ou a determinação das escolhas? Valorizando os
princípios morais ou as conseqüências políticas? Chamando os homens à
responsabilidade ou deixando-os entregues à suas convicções? Pólos
indissociáveis — a despeito dos esforços de Max Weber para racionalizar a
questão —, esses dilemas exprimem as múltiplas faces de um lento
processo de alteração cognitiva. Eles encerram o simultâneo processo de
dissolução da idéia de uma natureza humana eterna, a conformação do
indivíduo como cidadela livre e voluntária e a valorização da História e da
mobilidade temporal como princípios de compreensibilidade dos assuntos
humanos. Em outras palavras, trata-se do esvaziamento dos paradigmas
atemporais junto ao surgimento da visão de mundo moderna cujas fórmulas
explicativas da vida dos homens são historicizantes.
Sob esse aspecto, o filme é uma lição de teoria da História — digo, é uma
aula de como o historiador lida com sua matéria prima: o tempo. Igual à
personagem do filme, o historiador está preso ao presente e aborda o
passado a partir dessa circunstância. A História, disse Marc Bloch, é
elaborada do presente. Inescapável, tal pertencimento ao presente não é,
contudo, um interdito à inteligibilidade do passado. Justo o contrário. Pois se
guarda os limites, também reúne as condições de possibilidade
(epistêmicas e ônticas) da inteligência historiadora. Diálogo entre horizontes
temporais díspares, a História consiste numa relação complexa, mútua e
reciprocamente constitutiva do presente, do passado, do futuro. Em
outras palavras, o passado é reinterpretado constantemente pelo presente
que, por sua vez, se reordena a cada atualização do ontem e reelabora
novas projeções de futuro que, mais uma vez, reforçam (ou não) a
necessidade de outras visões da História.
NORMA CÔRTES