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Amnésia, o tempo como construção

Resenha do filme Amnésia (título original, Memento). Direção e roteiro, Christopher


Nolan, EUA 2001, distribuidora Paris Filmes

Por NORMA Amnésia provocou mais espanto que


CÔRTES boa crítica. E quase passou
Historiadora, despercebido pelo grande público. Nos
Mestre em cinemas do Rio de Janeiro não teve
História Social uma temporada expressiva, mas
pela PUC-Rio e quando foi lançado em vídeo passou a
Doutora em ser bastante procurado. É desses
Ciências filmes cult, divulgados informalmente,
Humanas que se pode ver em casa, na telinha da
(ciência política) televisão. Não exige uma sala de
pelo IUPERJ. É projeção especial — o seu forte não
bolsista recém- são imagens, mas a lógica do seu
doutor pelo enredo.
CNPq junto ao
Departamento A história é banal. Após o estupro
de História e ao seguido do assassinato da esposa,
PPGH da homem perdeu a habilidade de
UERJ, onde memorizar qualquer acontecimento
leciona recente e iniciou uma saga de
disciplina na vingança. Não se tornara um completo
área de Teoria desmemoriado; sabia quem era, lembrava-se do seu nome (Leonard), onde
e Metodologia havia nascido e permanecera consciente do seu passado até o momento do
da História e acidente. O problema é que a partir daí virou um prisioneiro do presente.
desenvolve Vivia cada instante como se fosse o único, sendo incapaz de lembrá-los ou
pesquisa sobre de concatenar a sucessão das suas experiências rotineiras. Sua memória
Nelson não guardava coisa alguma por mais de uns poucos minutos. Condenado à
Werneck Sodré vida vegetativa, Leonard perdeu a faculdade de dar sentido às suas
e João Cruz vivências. O filme consiste neste imbróglio: o protagonista sofre de amnésia
Costa recente; quer encontrar os assassinos da mulher; e tenta superar sua
deficiência mnemônica com a mesma obstinação que alimenta pela
vingança. Para isso se impôs uma disciplina férrea e sistemática registrando
todos os acontecimentos cotidianos. Munido de máquina Polaroid e caneta,
ele fotografava a tudo e a todos, anotando qualquer pequeno fato que lhe
acontecesse. Não satisfeito, adotou uma solução ainda mais radical e
tatuou no próprio corpo a seqüência ordenada dos resultados da sua
investigação. Pensava que através desse curioso sistema de notações
supriria suas falhas de memória. Afinal, se o continuum do real lhe
escapava, inventou um artifício que mantivesse e fixasse a ordem dos fatos.

É no roteiro que está a originalidade do filme. Obedecendo à percepção


temporal do protagonista esquecido, a narrativa fílmica desconstrói o
sentido natural do tempo e se apresenta de trás para frente. Quer dizer, em
vez de as tomadas seguirem o encadeamento cronológico padrão vindo do
passado para o presente — diretamente, ou mesmo em flashsback que
geralmente retornam aos fatos anteriores para reconstituírem linear e
cumulativamente a sucessão de eventos —, Amnésia conta seu enredo na
ordem temporal inversa. A história começa pelo fim. Em sua primeira cena,
a revelação de um negativo Polaroid, a imagem fotografada de um cadáver
empalidece lentamente. No avesso do sentido usual, a foto não se torna
nítida e aos poucos vai sumindo até desaparecer. Apesar de fugaz, a cena
insinua toda a estrutura do roteiro. Desde o início sabe-se que o
protagonista matou um homem, mas tal como desmemoriados,
desconhecemos os fatos prévios que conduziram àquela situação.

Contra toda obviedade, Amnésia desmonta os elos do raciocínio linear e


impede que se estabeleçam vínculos fáceis entre a contigüidade temporal e
a explicação causal. Na marcha ré do tempo, o filme é uma dramática
perseguição às causas das ações do seu protagonista. No limite, trata-se
de uma tentativa desesperada para oferecer sentido às ações de um
homem que mesmo sem conseguir entender o significado dos seus próprios
atos, quer obstinadamente alcançar uma meta futura. Entre a memória de
um passado perdido e a perseguição de um destino que, sendo realizado ou
não, será inexoravelmente esquecido, o protagonista está preso em um
tempo eternamente atual. Sua consciência não registra a experiência da
mobilidade temporal e, portanto, o presente se lhe parece inalterado. Não
que tivesse desaprendido o significado das palavras antes/passado,
durante/presente, depois/futuro. Leonard não perdeu o entendimento ou a
razão; e algumas de suas faculdades intelectuais permaneciam intactas. O
que ele não possuía mais era a capacidade de reunir os fragmentos das
suas ações emprestando-lhes algum sentido. Sabia quem era e aonde
queria chegar, mas não entendia se o que acabara de fazer era compatível
com sua identidade e intenção. Refém do esquecimento, Leonard perdeu a
natural habilidade de compreender e explicar o fluxo do tempo.

É por esta razão que Amnésia contém um desafio aos historiadores. Além
de ser um engenhoso quebra-cabeça, o filme tangencia as indagações
sobre quais critérios avaliam os atos humanos. A questão é clássica. E nos
tempos modernos foi Maquiavel quem primeiramente fixou seus termos ao
polarizar fortuna e virtude. Desde então, os estudiosos vêm se perguntando
qual é o foco do juízo racional sobre as ações, ou seja, sob qual aspecto se
interpreta a conduta dos homens? Considerando a intenção dos agentes ou
os efeitos dos atos? A virtú ou as circunstâncias casuais? Levando em
conta o livre arbítrio ou a determinação das escolhas? Valorizando os
princípios morais ou as conseqüências políticas? Chamando os homens à
responsabilidade ou deixando-os entregues à suas convicções? Pólos
indissociáveis — a despeito dos esforços de Max Weber para racionalizar a
questão —, esses dilemas exprimem as múltiplas faces de um lento
processo de alteração cognitiva. Eles encerram o simultâneo processo de
dissolução da idéia de uma natureza humana eterna, a conformação do
indivíduo como cidadela livre e voluntária e a valorização da História e da
mobilidade temporal como princípios de compreensibilidade dos assuntos
humanos. Em outras palavras, trata-se do esvaziamento dos paradigmas
atemporais junto ao surgimento da visão de mundo moderna cujas fórmulas
explicativas da vida dos homens são historicizantes.

Nesse sentido, o filme interessa aos historiadores não apenas porque


enfrenta o dilema dos efeitos perversos envolvidos nas nossas escolhas —
situações em que a ação ou a omissão pode resultar em malefícios
infinitamente piores que o previsto pelas (boas) intenções —, mas
principalmente porque sugere que a inteligibilidade desse dilema supõe
a construção em retrocesso de uma seqüência causal, ou seja, implica
em resgatar uma História que compatibilize fins e meios, conseqüências
com intenções. Em outras palavras, a força dramática de Amnésia não
reside somente no fato de o protagonista hesitar em agir. Mais que a
imprevisibilidade inscrita nas suas decisões (o que, de resto, é comum a
todos os mortais), Leonard se depara como a perda da faculdade de
lembrar e reconhecer suas próprias ações. Portanto, mesmo que estivesse
orientado por todos os manuais de boa conduta ou animado pela mais
maquiavélica das astúcias, sem memória, tornara-se incapaz de dar sentido
àquilo que fizera. E tal como fazem os historiadores (os profissionais da
memória), se viu obrigado a escolher e fixar os fatos dignos de serem
lembrados para, a partir deles, forjar retrospectivamente uma série causal.
Afinal, quando perdeu o entendimento espontâneo da sucessão temporal,
seus esforços para compreender a marcha dos acontecimentos e enquadrá-
los numa narrativa minimamente convincente passaram a ser tão arbitrários
e artificiais quanto suas (in)decisões de agir.

Sob esse aspecto, o filme é uma lição de teoria da História — digo, é uma
aula de como o historiador lida com sua matéria prima: o tempo. Igual à
personagem do filme, o historiador está preso ao presente e aborda o
passado a partir dessa circunstância. A História, disse Marc Bloch, é
elaborada do presente. Inescapável, tal pertencimento ao presente não é,
contudo, um interdito à inteligibilidade do passado. Justo o contrário. Pois se
guarda os limites, também reúne as condições de possibilidade
(epistêmicas e ônticas) da inteligência historiadora. Diálogo entre horizontes
temporais díspares, a História consiste numa relação complexa, mútua e
reciprocamente constitutiva do presente, do passado, do futuro. Em
outras palavras, o passado é reinterpretado constantemente pelo presente
que, por sua vez, se reordena a cada atualização do ontem e reelabora
novas projeções de futuro que, mais uma vez, reforçam (ou não) a
necessidade de outras visões da História.

É claro que não se inventa o tempo passado. Trabalhando com


documentos, registros, arquivos, provas testemunhais etc, os historiadores
em geral estão sinceramente vocacionados a buscar a verdade dos fatos e
procuram, nos limites da nossa falibilidade, comprovar suas investigações.
(E caso façam inferências pouco convincentes, considerando que
pertencem a uma comunidade de intelectuais atentos, competitivos e
prontos a lançar dúvidas sobre as conclusões uns dos outros, vale lembrar
que o debate interpares consiste numa instância limite para aferição do que
é social e historicamente aceito como verdadeiro.) Portanto, dificilmente
concordariam com a hipótese de que são ficcionistas, artífices inventivos de
um mundo imaginário, fantasioso e irreal.

O que importa, porém, não é contrapor o “realismo histórico” à admissão da


liberalidade construtiva do historiador. A questão não se cinge à oposição
entre as evidências empíricas e a margem de autonomia do intérprete da
História. Trata-se, antes, de enfatizar a artificialidade do empreendimento
historiográfico. Diferentemente do memorialista, o historiador mesmo que
seja protagonista dos acontecimentos não os lembra espontaneamente. Na
oficina da História, a montagem de uma continuidade qualquer de eventos
não é um dado natural, mas resulta de pesquisa (cujos princípios metódicos
pertencem a um corpus disciplinar reconhecido) e também de muito
trabalho e esforço intelectual. Trata-se de uma empresa cognitiva que critica
e seleciona fatos, define seus significados, estabelece as séries seqüenciais
em que se encaixam e, por fim, conecta todo esse material sob uma escrita
literariamente arbitrária. Além disso, e a despeito das suas inclinações
teórico-metodológicas, os historiadores se entregam a tal tarefa na
contramão do fluxo temporal. Quer dizer, à semelhança do roteiro
de Amnésia, não se lançam ao passado saltando sobre um vácuo de tempo.
O retorno ao passado não é um simples transplante do hic et nunc para o
período histórico que pretendem investigar. Ao invés disso, os historiadores
recuperam os atuais vestígios do passado e, num regresso às avessas,
reconstroem (no limite, inventam) a ordem da contigüidade factual
estabelecendo suas conexões causais.

Esta aproximação artificial e regressiva é nítida quando, por exemplo, antes


mesmo de lidar mais estreitamente com as fontes primárias, o historiador
cerca o debate historiográfico em torno do seu objeto de pesquisa. Ele
visita os clássicos, os autores consagrados e o círculo de idéias que ao
longo dos tempos se produziu sobre seu objeto de interesse não só por
cautela, mas porque nesse reconhecimento à tradição intelectual reside seu
caminho de aproximação com o passado. Afinal, caso estude a antiguidade
oriental, não será catapultado do hoje à civilização babilônica. Com efeito,
seus passos de pesquisa (leia-se método) em vez de serem meras técnicas
de investigação, devem ser considerados em si mesmos como um modo
de resgatar a própria historicidade dos elos que vinculam o presente
ao passado. Dessa forma, a historicidade da investigação — o
pertencimento da razão histórica ao tempo presente — se expressa nos
procedimentos metódicos que foram sendo adotados e o historiador precisa
tornar essa dimensão do seu trabalho intelectualmente produtiva
(em Verdade e Método, Gadamer explora tal questão).

Prisioneira do presente, a inteligência historiadora é artífice do tempo. Ao


registrar o sentido das ações, estabelecer início e fim dos processos
factuais, conectar intenções e conseqüências e descrever o rumo dos
acontecimentos, os historiadores emprestam ritmo e significado à
experiência da mobilidade temporal. Não que o tempo seja criatura da
consciência histórica. Justo o contrário — para usar os termos de
Heidegger, se pode dizer que ela encontra no tempo a sua morada.
Todavia, assim como em Amnésia, a faculdade mnemônica não existe a
priori do próprio empreendimento que busca compreender a ordem dos
fatos. E o filme encerra essa lição: descreve os passos de (des)construção
do sentido do tempo, convidando os historiadores a refletirem sobre seu
ofício.

NORMA CÔRTES

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