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O HOMEM CURIOSO

O problema da exterioridade
na filosofia de Aristóteles
O HOMEM CURIOSO

O problema da exterioridade
na filosofia de Aristóteles

MARIO VIEIRA DE MELLO

EfJ
PAZ E TERRA
© by Maria Vieira de Mello

CIP-Brasil. Catalogação-na-fome
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

M479h

Mello, Maria Vieira de


O homem curioso - O problema da exterioridade
na filosofia de Aristóteles/ Maria Vieira de Mello. -
Rio de Janeiro : Paz e Terra, 2001

ISBN 85-219-0417-7

1. Ética moderna. 2. Liberdade. 3. Conduta.


4. Valores. 1. Título.

01-1186 CDD-170
CDU-17.0

011270

EDITORA PAZ E TERRAS/A


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2001
Impresso no B;asil / Printed in Brazil
ÍNDICE

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

CAPÍTULO 1 ...... ........ ................ .. .... 11

CAPÍTULO II .......... .... .......... .... .... .... 67

CAP ÍTULO III 139

CAPÍTULO IV 165

CAP ÍTULO V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177

CAPÍTULO VI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221

Índice Onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 239


PREFÁCIO

Mario Vieira de Mello é um dos mais importantes pensado­


res de nosso país. Depois de uma profícua carreira diplomática,
cujo último posto foi de embaixador do Brasil na Hungria, a apo­
sentadoria lhe proporcionou tempo livre para sua meditação filo­
sófica. Homem da mais ampla cultura histórica, literária e artís­
tica, além de alta competência filosófica, Vieira de Mello
concentrou seu pensamento na elucidação do problema da liber­
dade do homem, como liberdade moral.
Com O Homem Curioso, Mario Vieira de Mello oferece-nos
a última formulação de um pensamento filosófico que se manifes­
tou, inicialmente, com Desenvolvimento e Cultura ( 1 963). Quatro
outros livros se seguiram: O Conceito de uma Educação da Cultu­
ra ( 1 986), Nietzsche: O Sócrates de nossos tempos ( 1 993), O Cida­
dão ( 1 994) e o O Humanista ( 1 996).
O pensamento de Mario Vieira de Mello apresenta, entre
outras características, três particularmente relevantes: ( 1 ) sua den­
sidade, (2) sua originalidade, no contexto brasileiro, e (3) sua for­
ma de expressão.
O tema central da reflexão de Vieira de Mello é a liberdade
interior e moral do homem. Tema denso, por definição, que Viei­
ra de Mello aborda com apoio numa ampla cultura filosófico-his­
tórica e que o conduz, por um lado, a uma profunda discussão

7
do pensamento de Sócrates e Platão, no mundo clássico, de ho­
mens como Gogol, Dostoievsky, Tolstoi, e Berdiaev na cultura
russa e, particularmente, de Kierkegaard e Nietzsche. Por outro
lado, essa preocupação com o pensamento ético, que considera o
núcleo central da cultura, leva Vieira de Mello a uma contínua
confrontação com o pensamento estético e com o pensamento
científico-tecnológico. A vontade do bem versus a sedução do
belo e a vontade do saber que conduz à vontade do poder.
Esse pensador denso é, também, um dos mais originais filó­
sofos brasileiros. Não se trata de uma originalidade buscada para
produzir efeitos. Trata-se de uma não deliberada originalidade
originária no contexto da cultura brasileira - porque se ocupa de
temas pouco ou nada abordados por nossa filosofia, como o da
liberdade moral - e de autores por ela pouco freqüentados, como
Sócrates, Lutero, Kierkegaard ou Berdiaev.
Peculiar, também, é a forma de expressão do pensamento
de Vieira de Mello. Usualmente, os pensadores se inscrevem em
uma das três seguintes modalidades de expressão: ( 1 ) a esquemá­
tica (Aristóteles) , em que um conj unto articulado de proposi­
ções centrais arma a estrutura no âmbito da qual se constrói o
pensamento; (2) a de condensações sucessivas (Platão) , em que
algumas grandes intuições matriciais, como uma nebulosa origi­
nária, proporcionam sucessivos desdobramentos e (3) a aforísti­
ca (Nietzsche) , em que instituições básicas são apresentadas
como isoladamente auto-evidentes. Vieira de Mello participa,
em certa medida, das duas últimas modalidades expressionais,
mas se caracteriza por formular seu pensamento como uma su­
cessão de ondas de idéias, que se desenvolvem como a música no
Wagner de Tristão e Isolda, como vagas de um mesmo oceano,
em que a seqüência do pensamento, mais do que por sua articu­
lação lógica, é determinada pela afinidade de idéias e temas.
Em O Homem Curioso, Vieira de Mello busca confrontar o
pensamento ético, voltado para perscrutar a liberdade íntima e
moral do homem e analisar a conduta ética, dirigida para os valo-

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res superiores, com o pensamento científico-tecnológico do "ho­
mem curioso", voltado para a compreensão do mundo extç:rior,
implícita ou explicitamente para o dominar. Em Sócrates e em
Aristóteles, vê nosso Autor os representantes paradigmáticos da­
quela e desta forma de pensamento. Em Sócrates, Vieira de Mello
identifica a expressão mais exemplar, no curso de toda a história,
de uma bem integrada racionalidade ética, que coloca a razão a
serviço da prática da virtude. Em Aristóteles, vê a funesta origem
da separação da razão da liberdade interior, convertendo a busca
do "ser", em detrimento dos valores, na preocupação central da fi­
losofia, o que iria favorecer a ciência e suas decorrências tecnoló­
gicas, em detrimento da ética, e a vontade de saber e de poder, em
detrimento da virtude. Na seqüência de Aristóteles, Descartes,
Kant e Heidegeer farão da filosofia uma busca do ser. Depois de
Sócrates e Platão, somente Lutero, em parte, e Kierkegaard e
Nietzsche, plenamente, voltaram a se ocupar da verdadeira liber­
dade, que é a liberdade interior, a liberdade moral, "que nada tem
a ver com a liberdade de origem social". Como disse Sócrates, "o
homem pode ser socialmente livre e interiormente escravo, como
pode ser socialmente escravo e interiormente livre".
Sejam quais forem as discordâncias que suscitem algumas
de suas posições, O Homem Curioso é um livro muito importan­
te e original, de denso conteúdo e de significativa relevância,
como uma crítica, a partir de uma perspectiva socrdtíco-kíerke­
gaardeana e berdíaeveana (mais do que níetzscheana) do mundo
contemporâneo e das condições de uma sociedade tecnológica de
consumismo intransitivo.
Tão admirável quanto seu livro é a pessoa de nosso Autor,
que mantém, nos seus oitenta e nove anos, o verdor e a criativi­
dade de sua juventude, a que se agregou uma amplitude do saber
só acumulável no curso de muito anos.

Helío ]aguaríbe

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CAPÍTULO 1

O desdém manifestado pela cultura moderna do Ocidente


ao pensamento filosófico do mundo clássico dos gregos não se ex­
plica unicamente pela insuficiência da física aristotélica diante do
novo panorama aberto pela possibilidade de aplicar a matemáti­
ca ao conhecimento dos fenômenos do universo; resultou tam­
bém, embora com menor visibilidade, da insuficiência da ética
aristotélica na elaboração de uma teoria da liberdade que permi­
tisse a prática das virtudes no âmbito de um sistema ético univer­
salmente reconhecido.
Havia também uma outra causa, a influência de uma opi­
nião que, embora nunca fosse expressamente formulada, pesaria
na decisão dos rumos que a História tomaria: a opinião errônea
de que Aristóteles constituía a expressão máxima, a essência do
pensamento filosófico do mundo clássico dos gregos. Aristóteles
negava aos escravos que faziam parte da população da Cidade­
Estado grega a condição de serem livres - esta ficava sendo uma
das noções que caracterizavam a ética no mundo grego. Esquecia­
se de que Sócrates havia descoberto a liberdade moral do homem,
esquecia-se de que era dele a reflexão segundo a qual o homem
poderia ser socialmente livre e escravo na sua interioridade e, por
outro lado, ser socialmente escravo e livre nessa interioridade.

11
No início de sua metafísica, Aristóteles afirma que o desejo
natural do homem é conhecer. Nada declara sobre a questão de
ser ele ou desejar ser um homem livre. Toda sua filosofia está
marcada por essa prioridade absoluta atribuída ao princípio do
conhecimento. A significação, a importância e a capacidade de ir­
radiação que teve durante o período medieval derivam direta­
mente desse fato crucial: a filosofia aristotélica, preocupada prin­
cipalmente com o desejo natural do homem de conhecer, era
recebida por uma época profundamente ignorante, essencialmen­
te religiosa, reverente em face dos mistérios, com uma fé em algo
que se situava além dos limites do mundo visível. Essa filosofia,
quando se encontrou com o mundo moderno, ávido de conquis­
tas, de poder e com um desinteresse total pelo conhecimento
puro, desligado de qualquer outro objetivo que não fosse ele pró­
prio, a sua dignidade e o seu valor intrínseco, não poderia deixar
de levar um golpe sério, mais do que isso, fatal - que repercuti­
ria necessariamente sobre toda a tradição do pensamento filosó­
fico do mundo grego, tombada subitamente num descrédito de
que até hoje não se desvencilhou.
Tinha havido, entretanto, em tudo isso, como já dissemos,
um grande equívoco. Aristóteles não era a expressão máxima, a
essência do pensamento filosófico do mundo clássico dos gregos.
Esse pensamento já havia elaborado antes dele uma noção impor­
tantíssima que não o sensibilizara e que o mundo moderno, na
sua leviandade, havia desprezado e jogado no lixo, de roldão com
seu despejo de inconveniências e impropriedades por meio do
qual havia pensado estar se purgando das imperfeições do mundo
clássico. Essa noção, sem a qual não se teria completa a imagem
da riqueza e da plenitude da cultura clássica dos gregos, consistia
simplesmente na idéia gloriosa de um mundo moral livre a que o
homem, quando bem conduzido, poderia ter acesso. De que
modo se poderia chegar a esse mundo? Era nessa pergunta que re­
sidia a essência da cultura clássica.

12
O homem deseja inegavelmente ser livre, não apenas conhe­
cer. O conhecimento é um meio, a liberdade, um fim. Essa é a
lição da cultura clássica dos gregos mas não a lição de Aristóteles.
Na concepção de Sócrates, a economia moral do ser humano se
traduz pela hegemonia da razão sobre as paixões e os instintos,
mas isso não como uma expressão de um serviço prestado ao conhe­
cimento, mas como a expressão de um serviço prestado à liberda­
de. A hegemonia de que a razão desfruta não é uma hegemonia
sobre a vida mas uma hegemonia sobre as paixões e os instintos
que se agitam na alma humana. É dessa hegemonia que resulta a
liberdade. Aristóteles desmantelou todo esse mundo. Sua noção de
uma faculdade de escolha, sobrevivente da devastação causada, é
um magro, inexpressivo espaço reservado no seu mundo à liberda­
de destronada, deixando o restante, vastos salões ricamente mobi­
liados, para a razão - a quem eram dados assim o conforto e o
luxo apropriados à instalação de uma grande soberana.
O desastre que isso representou para o progresso moral da
humanidade é realmente incalculável. Numa posição subalterna,
a liberdade foi humilhada pelos filósofos modernos. Cada um se
j ulgava no direito de vexá-la com os mais reles serviços. Em Des­
cartes, como a ciência, a grande soberana, é instável e está se reno­
vando sempre, a moral, sua vassala, é provisória para poder ser es­
tável e não ameaçar a sociedade com a sua instabilidade. Em Kant
a ciência afirma-se em termos de uma causalidade necessária. A
moralidade, sua serva, assume então a forma de uma causalidade
livre, uma noção composta de duas idéias, causalidade e liberdade
na qual a segunda idéia é a que menos importa. Cada filósofo jul­
gou-se no direito de emitir sua opinião sobre o que era propria­
mente moral. A noção de que o processo já havia sido julgado e
que era agora inoportuno proceder a novos j ulgamentos tornou­
se imperativa. Sem saber o que era liberdade, procurou ter-se um
pronunciamento sobre o que era moral. E como se ignorava total­
mente o que fosse a liberdade moral do homem, tinha-se também

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uma visão distorcida do que fosse a razão na sua função de serva
não só do conhecimento como também da liberdade. Razão e li­
berdade, como já tivemos a ocasião de sugerir, em outras ocasiões,
são irmãs gêmeas nascidas do ventre de uma alma em trabalho de
parto e que oferece ao mundo, como frutos maduros, o melhor de
si mesma. Sócrates foi um parteiro de idéias mas também um par­
teiro dos atos livres decorrentes do funcionamento da moralidade.
O fato de o conhecimento ser um meio, a liberdade, um fim, não
prejudica a comparação. Num parto de gêmeas, uma deve ser a
primeira para que a outra possa nascer. Nesse sentido, a primeira
pode ser considerada um meio, a segunda, um fim.
Quando se fala em sociedade aberta ou sociedade fechada
raramente tem-se em vista o fato de que Sócrates está na origem
dessa diferenciação. Pensa-se na distinção entre totalitarismo e li­
beralismo como se estivéssemos na presença de um contraste de
caráter político, de uma oposição entre duas formas de governo.
Na realidade trata-se de uma oposição que tem suas raízes numa
extraordinária descoberta, de natureza essencialmente filosófica,
realizada pela figura ímpar da História da humanidade, Sócrates,
o filho de uma parteira e destinado ele próprio a trazer ao mundo
realidades prodigiosas tais como a racionalidade e a liberdade
moral do homem.
A noção equivocada que tem o mundo moderno do que seja
efetivamente liberdade vem do fato de se ter omitido o nome de
Sócrates na análise da contribuição que a cultura clássica dos gre­
gos teria trazido para a formulação dos princípios reconhecidos
pela modernidade. Estudam-se, por exemplo, os trágicos gregos
para chegar à conclusão de que para eles a liberdade não existia,
pois não conseguiam resolver o conflito criado pela existência de
duas concepções do que fosse o Bem, uma gerada por determina­
ções divinas, outra por determinação das leis do Estado.
Não havendo solução para esse conflito não poderia haver
liberdade para o homem. Qualquer decisão que tomasse lhe seria

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fatal. Se aceitasse as imposições do Estado seria castigado pelos
Deuses. Se obedecesse às injunções divinas seria punido pelo Es­
tado. Foi o que aconteceu com Sócrates e o que possivelmente es­
taria acontecendo até hoje se ele não tivesse, com a sua vida
orientada pelo oráculo interior que o aconselhava e com a sua
morte serena e gloriosa, inspirado seus amigos e, por intermédio
deles, toda a humanidade.
O que resultou dessa inspiração? Platão não foi apenas um
herdeiro, um discípulo, um intérprete de Sócrates. O uso da for­
ma dramática foi para Platão um meio extraordinariamente bem­
sucedido de fazer de seu mestre uma figura viva que atravessou os
séculos sem perder um átimo de sua vitalidade. O próprio esque­
cimento em que viveu, e vive ainda hoje, é uma contraprova do
que estamos dizendo. Se o mundo hoje vive em crise é porque se
esqueceu de Sócrates. No século XIX, Kierkegaard disse isso com
palavras destinadas a despertar do seu torpor a época em que vivia.
Há grandes homens que são esquecidos e isso é lamentável. Nes­
ses casos o que nos entristece é a injustiça feita a esses grandes ho­
mens. Mas, no caso de Sócrates, é o mundo que devemos lamen­
tar, o mundo que está sofrendo com essa ausência injustificável.
Platão, entretanto - quando o mundo se dá conta da razão
que está na origem de seus grandes sucessos -, há sempre de con­
seguir, como conseguiu depois da morte de seu mestre, fazer que
suas palavras continuem a produzir sobre nós a impressão que
produziam quando Sócrates estava vivo, uma impressão de atuali­
dade, de familiaridade, de presença. Não serão, como nunca fo­
ram, ensinamentos transmitidos em textos incapazes de trazer à
nossa presença a individualidade irônica, complexa e sutil do filó­
sofo. Serão antes experiências que serão vividas individualmente e
que nos transportarão ao momento, ao lugar e às circunstâncias
em que realmente aconteceram. Desse modo teremos uma noção
privilegiada do que foi com todas as suas peripécias o aconteci­
mento Sócrates: saberemos não só como havia começado sua car-

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reira gloriosa como também como havia terminado, nos seus me­
nores detalhes. E teremos finalmente uma visão dos fatos que con­
correram para o seu desfecho, ao mesmo tempo triunfal e infa­
mante - uma epopéia de intensa e refinada espiritualidade na
qual um homem, um gigante, mostrou aos homens, membros de
uma coletividade que se contentava com exterioridades, um espa­
ço interior mediante o qual pudessem se tornar autônomos sem
irem de encontro às leis majestosas do Estado e sem deixarem de
prestigiar tampouco um relacionamento com a divindade que
passou a ser interlocutor imediato.
Foi essa criação no homem, que vivera até então como
membro de uma coletividade compacta, essa descoberta de uma
realidade espiritual, de um oráculo interior capaz de nos orientar
em todas as circunstâncias da vida, que determinou o apareci­
mento do indivíduo autônomo de um lado e de uma sociedade
aberta de outro. As sociedades em que viveram Ésquilo, Sófocles
e Eurípides eram sociedades fechadas - sociedades em que o
homem podia se sentir dividido entre a obediência que devia ao
Estado e a obediência que devia a Deus - entre o Bem que re­
presentava a primeira e o Bem que representava a segunda. A so­
ciedade que condenou Sócrates a beber a cicuta era uma socieda­
de fechada porque nela o homem podia se sentir dividido entre o
Bem que representava a obediência às leis do Estado e o Bem que
representava a obediência à voz de Deus. Sócrates foi o primeiro
homem na História da humanidade que enfrentou essa divisão,
tomando a iniciativa de uma decisão contrária às leis do Estado e
sem saber se a divindade iria aprová-lo.
Sócrates não obedeceu a determinações divinas. O oráculo
interior que havia dentro dele não sugeriu nem aconselhou o que
quer que fosse. Ele tomou uma decisão e observou que o orácu­
lo não o havia contrariado. É essa abstenção da voz divina, essa
decisão tomada sem saber se os céus a aprovariam que faz toda a
diferença entre Sócrates e os trágicos gregos. Em Sócrates há ini-

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ciativa, nos trágicos, obediência. Em Sócrates, autonomia; nos trá­
gicos, estrita dependência. Philoctetes concorda em partir em de­
fesa de Tróia ouvindo as palavras de Heracles. Creon condena
Antígone à morte, contrariando os desígnios da divindade. Essa
decisão tomada por j ulgar que Antígone havia desobedecido às
leis do Estado trouxe-lhe desastre e sofrimento. Sócrates também
desrespeitou as leis do Estado e foi por isso condenado à morte.
Mas não houve, em seu caso, nenhum Creon que fosse atingido
pelos raios da ira divina que essa morte causava.
A razão disso é que o Tribunal de Atenas que j ulgou Sócra­
tes não desrespeitou nenhuma lei divina. A nova divindade que
Sócrates reverenciava queria talvez que Sócrates morresse por ra­
zões que para nós são insondáveis. Sócrates mesmo declara que
seu oráculo, que tinha o hábito de se opor às suas palavras nas
coisas mais insignificantes, na hora do seu j ulgamento, quando se
tratava de uma questão de vida ou de morte, não fizera nenhuma
oposição ao que ele dissera, .fazendo-o pensar que talvez conside­
rava a morte, a que eventualmente seria condenado-o, um bem e
não um mal.
A morte de Sócrates não lhe foi imposta de modo inexorá­
vel. Poderia tê-la evitado, pagando a multa que o tribunal lhe in­
dicasse ou aceitando a proposta de Critias, que já comprara os
carcereiros da prisão para onde fora levado, de modo que fosse
possível organizar a sua fuga. Sócrates havia decidido morrer. A
autonomia do indivíduo falava mais alto do que a determinação
dos Deuses. Despediu-se dos que o acusavam sem ressentimento
ou rancor; recusou a oferta de viver o restante de seus dias longe
de Atenas; e caminhou para a morte com a serenidade que mais
parecia ser a felicidade de quem com esses passos estava dando
um último toque, um último aperfeiçoamento que assegurasse à
sua obra a consagração incomparável que realmente teve.
Críticos da modernidade são raros e, em muitos casos, o são
por motivos que estão longe de constituir o essencial dos males

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que afligem nossa época; mas, mesmo os que mais se aproximam
do que parece ser o cerne das nossas dificuldades, esquecem sem­
pre a razão fundamental, a ausência de Sócrates, a única conside­
ração capaz de não só nos dar uma explicação para o imbróglio em
que estamos envolvidos como também de resolvê-lo, abrindo
novos horizontes para uma compreensão desimpedida do que re­
presenta, em face da razão humana, a natureza essencial da ver­
dadeira liberdade.
Alasdair Mac lntyre é um dos filósofos da nossa contempo­
raneidade que se tem mostrado mais sensível aos efeitos pernicio­
sos da atual noção de liberdade. No seu livro After Virtue, com
que iniciou uma campanha contra o nosso tão celebrado libera­
lismo, ele escreve: "[ ... ] the Sophoclean self transcends the limi­
tations of sociais roles and is able to put those roles in question
but it remains accountable to the point of death [...] the presup­
position of the Sophoclean existence is that it can indeed win or
loose, save itself or go to moral destruction, that there is an arder
that requires from us the pursuit of certain aims [ . . . ]. But is there
such an arder? We can no longer delay turning away from poetry
to philosophy, from Sophocles to Aristodes" .
"From Sophocles to Aristodes" nos diz Mac lntyre. E por
que não de Sófocles para Sócrates? Por que se deixarmos a poesia
é só em Aristóteles que encontraremos a filosofia? Mac lntyre não
nos dá nenhuma explicação para o salto que executou. E não nos
resta assim nenhuma conclusão a não ser o fato de que para ele
Sócrates e Platão não representam a filosofia.
Não é sempre que encontramos, num texto contemporâneo
tãci claramente explicitado, o descaso e a indiferença com que são
mantidos pela modernidade os fundadores do pensamento filo­
sófico do Ocidente. Entretanto, não se pode compreender a es­
sência desse pensamento sem precisamente examinar o passo que
se dá quando se deixa a poesia de Sófocles para se chegar à filo­
sofia de Sócrates e Platão.

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Mac lntyre exalta a ética de Aristóteles mas chega finalmen­
te à inquietante questão de saber onde se situa para Aristóteles o
problema da liberdade. A solução, para ele, consiste no fato de
que o exercício das virtudes e a realização do Bem pressupõem a
liberdade.
Acontece, entretanto, que no sistema aristotélico o bárbaro
e o escravo estão excluídos do privilégio da liberdade. Mac In­
tyre considera "afrontosa" para nós modernos essa convicção que
nos é transmitida pela Ética de Aristóteles. Mas procura de certa
forma atenuar a impressão dizendo que a "cegueirá' de Aristóte­
les faz parte de uma "cegueira geral, embora não universal" da
cultura grega. Explica também que o pensamento do filósofo
possui um caráter anistórico, incapaz de compreender a tran­
siência da pólis grega e de um modo geral a historicidade dos
povos. Acredita finalmente que essas limitações não prej udi­
cam a sua compreensão do lugar das virtudes no plano geral da
vida humana.
Num autor que quando cuida de outros temas se mostra
tão rigoroso, tais considerações são de modo a nos deixar atôni­
tos. Como uma concepção errônea do que seja liberdade não
prej udica a compreensão do lugar das virtudes no plano geral
da vida humana? Que significa essa "cegueira geral, embora não
universal", da cultura grega? Se era geral, mas não universal,
precisaríamos saber quem era a exceção, quem era que impedia
que fosse universal? E mais ainda: precisaríamos nos concentrar
nessa exceção, essa gloriosa exceção, que fazia que a cultura gre­
ga não pudesse ser considerada como vítima de uma "ceguei­
ra universal".
Mac lntyre deveria ter-se concentrado nessa exceção; por­
que teria descoberto que era ela e não Aristóteles que deveria ser
apresentada - seu nome era Sócrates - como expressão máxi­
ma, como verdadeiro cume do pensamento da filosofia clássica
dos gregos.

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Sócrates criticou a democracia ateniense. Por isso é banido,
mantido no ostracismo pelo nosso mundo democrático. Aristó­
teles é bem-vindo porque assumiu a posição contrária. Não fez
críticas à democracia ateniense. Viveu mesmo dentro do contex­
to que ela lhe proporcionava. Com relação às Constituições do
Estado grego, suas manifestações foram de índole descritiva,
científica. Embora apontasse deficiências ou vantagens numa ou
noutra, não havia nessas indicações um engajamento do seu ser
moral. O contexto no qual se situava sua filosofia era o da demo­
cracia ateniense que era uma sociedade fechada, apesar de todo o
brilho que o século de Péricles lhe emprestara.
Sócrates criticou a democracia ateniense. Mas não pensou
que os escravos estivessem excluídos do privilégio da liberdade;
não pensou que da falta do exercício de direitos políticos se pu­
desse deduzir a exclusão do privilégio da liberdade; chegou
mesmo a pensar que um cidadão da pólis grega, com todos os
seus direitos garantidos, poderia se encontrar numa situação de
escravo. Só que essa escravidão não era aquela em que veio a pen­
sar Aristóteles - porque era uma em que não poderia pensar -
uma escravidão que só adquiria pleno sentido quando concebida
no âmbito de uma sociedade aberta tal como Sócrates a havia
imaginado. Porque vale a pena repetir: Aristóteles, apesar de viver
numa época posterior à morte de Sócrates, permaneceu apegado
às antigas formas da existência histórica dos gregos e desenvolveu
todo o seu sistema no contexto de uma sociedade fechada.
Sócrates, assim, foi o primeiro pensador que nos mostrou o
caminho de uma sociedade aberta. O caminho mostrou-se cheio
de obstáculos. Platão foi um anunciador da liberdade de Sócrates
mas foi talvez, em pequena parte, responsável pelo fato de que
esse anúncio não tenha sido claro. Foi certamente um fiel segui­
dor dos ensinamentos do Mestre, indubitavelmente o mais fiel;
sua identificação com o pensamento de Sócrates era quase mila­
grosa; mas embora tenha, influenciado pelo mestre, abandonado

20
inteiramente a política - sua ambição inicial - e voltado sua
atenção inteiramente para a filosofia, nunca esqueceu o ser polí­
tico que existia dentro dele. Conheceu Sócrates absorvido com o
problema das virtudes e com a questão de saber como ensiná-las.
Isso era filosofia. Mas Platão foi pouco a pouco compreendendo
que Sócrates não era só um filósofo mas também um Estadista -
um Estadista de uma nova espécie. A antiga ambição de sua ju­
ventude se reacendeu, embora transformada. A política agora não
era mais a política da ação, da eloqüência, da sedução sobre as
massas. Era a política que tinha como finalidade a implantação
das virtudes, do controle de si mesmo, da educação do homem.
Platão viaja para Siracusa e, deixando talvez subir à tona algum
resquício de sua antiga ambição, tenta fazer uma experiência
dessa nova política. Não fizera, entretanto, a preparação necessá­
ria nem tomara os cuidados indispensáveis - o resultado da ex­
periência foi conseqüentemente um fracasso. Quando volta para
Atenas Platão não tenta mais novas experiências. Compreende
agora que Sócrates era um Estadista sim, mas o Estado em que
pensava era o Estado que existe dentro de nós, sem o qual a exis­
tência do outro Estado, o Estado histórico, exterior, pragmático
estará sempre ameaçada. É esse Estado interior que é descrito na
República e de que as Leis são um pálido reflexo.
Qual era a viga mestra que o sustentava? - era indiscuti­
velmente a educação. Mas essa educação só poderia ser empre­
endida no contexto em que havia sido pensada, o contexto de
uma sociedade aberta, a sociedade que Sócrates havia entrevisto.
Dando ao projeto de Sócrates um caráter mais desenvolvido e
mais explícito, Platão o tornou suspeito quando, influenciadas
por Aristóteles, as sociedades se fecharam. Durante muito tem­
po essa suspeita ficou como que congelada porque as sociedades
não se preocupavam em saber se eram fechadas ou abertas. Mas
quando as sociedades começaram a falar em liberdade, quando
começaram a pensar que eram sociedades livres, a suspeita sobre

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o que pode significar a educação passou a se manifestar e se pen­
sou então que fazer da educação a viga mestra da construção
de um Estado era propor a formação de um Estado totalitário, de
um Estado a serviço do qual seriam colocados todos os recursos
da educação.
É claro que essas sociedades que acusam Platão de totalitá­
rio não são livres. E é só porque não são livres que fazem uma tal
acusação. No princípio da nossa argumentação sugeri que havia
por parte de Platão uma pequena responsabilidade por não haver
anunciado claramente ao mundo a liberdade que Sócrates desco­
brira. Mas, pensando melhor, creio que não houve responsabili­
dade alguma. Platão anunciara a liberdade para as sociedades que
quisessem assimilá-la, não para as que decidiam rejeitá-la. Para
essas, Platão era um pensador totalitário e Sócrates pouco ou
nada significaria. Mas para aquelas Platão era um discípulo
único, exemplar, que lhes oferecia todos os meios de avaliar o que
havia sido Sócrates como homem, como filósofo, como político,
como Estadista e, por que não dizer -, como profeta.
Para sermos realistas devemos então dizer que a época em
que vivemos está composta de sociedades que não assimilaram a
liberdade de Sócrates, anunciada por Platão. E não só não assimi­
laram essa liberdade como cultivam uma indisfarçável inimizade
por Platão. Filósofos e historiadores respeitados não escondem o
mau humor que lhes causa qualquer referência a esse grande pen­
sador. E o que é irônico e paradoxal é a descrição que fazem de si
mesmos quando procuram descrever os equívocos que lhe atri­
buem. Platão quer reeducar, querendo contribuir para a forma­
ção de uma sociedade fechada. Mas as sociedades que o precede­
ram não eram todas fechadas? Onde se manifesta a abertura nas
sociedades de estilo de É squilo, Sófocles e de Péricles? Por outro
lado, onde se manifesta a abertura nas sociedades desses filósofos
e historiadores respeitados? Na liberdade democrática dessas so­
ciedades? Mas já vimos que a democracia ateniense era uma de-

22
mocracia mas também uma sociedade fechada. Na liberdade dos
cultos? Hoje em dia a liberdade religiosa é completa mas a atro­
fia do homem interior também é completa. Não há liberdade in­
terior quando há atrofia do homem interior. E não há liberdade
religiosa quando não há liberdade interior.
A liberdade do homem contemporâneo é uma liberdade ex­
terior - o nome está dizendo: uma liberdade que só tem a ver
com as coisas exteriores da existência. Como pode o homem con­
temporâneo se vangloriar de ter liberdade religiosa? A religião é
um acontecimento interior, nada tem a ver com a exterioridade
da vida. Assim como o homem contemporâneo está equivocado
a respeito de sua liberdade democrática que ele pensa ser a verda­
deira liberdade, ele está também equivocado a respeito da sua li­
berdade religiosa, com relação à qual ele tem a mesma ilusão.
O processo pelo qual passa o desaparecimento da liberdade
coincide com o processo pelo qual passa a atrofia do homem in­
terior. Não que eles sejam exatamente a mesma coisa; mas a área
de coincidência é significativa. Sócrates que descobriu a liberda­
de moral teve o seu oráculo interior. O cristianismo é uma reli­
gião de liberdade e de interioridade. Aliás, é um fato digno de re­
gistro a circunstância de que no mundo moderno se fala muito
de liberdade democrática, de liberdade religiosa, para não falar de
outras liberdades; mas por que não se fala nunca de liberdade
moral? Que qualidade especial estará associada à idéia de liberda­
de para que ela possa, como pode, valorizar a idéia que a acom­
panha? Repudiaríamos uma democracia totalitária como a que
foi concebida por Marx, com seu ideal de uma ditadura do pro­
letariado? Os que o fazem alegam que a idéia democrática foi dis­
torcida por Marx, que essa idéia significa pluralismo, liberdade de
todos, para todos; que só assim a noção de democracia estaria
plenamente j ustificada.
Não creio que seja preciso dizer mais para tornar evidente
que democracia e liberdade no mundo moderno são noções dau-

23
clicantes, que procuram se entreajudar e só aceitamos porque não
vemos nenhuma outra alternativa que possamos adotar. O con­
teúdo da idéia de liberdade democrática é confuso, indefinido,
paradoxal. Nada impede que nele se inclua a liberdade do roubo,
do assassinato, de um atentado contra o Estado. A idéia de uma
polícia numa democracia liberal é absurda. Cometem-se crimes,
roubos, assassinatos. Paciência. Estamos vivendo numa demo­
cracia liberal. Elaboram-se Constituições, estabelecendo direitos,
garantias para o indivíduo. Grande desmentido para as demo­
cracias liberais, mesmo quando se trata de Constituições liberais.
Cria-se a Justiça, estabelecem-se os tribunais para j ulgarem os
crimes cometidos. Grande desrespeito ao espírito da democra­
cia liberal.
O que estamos dizendo pode parecer uma farsa de mau
gosto mas é, infelizmente, um retrato fiel das nossas sociedades
que mostra a inconsistência, a incoerência e a inutilidade das
idéias que servem de base à nossa existência. Por que chamar de
democracia liberal uma organização em que há órgãos represso­
res, e, em muitos casos, órgãos repressores muito mais temíveis
do que os que já existiram nas mais sangrentas ditaduras? A
forma adjetivada do substantivo liberdade nunca foi um elemen­
to adequado para definir com exatidão uma situação precisa, ri­
gorosa, concreta. Uma Constituição liberal pode ser uma Cons­
tituição não despótica mas pode ser também uma Constituição
que permite um individualismo anárquico. Ao lado de um fascis­
mo nazista como o de Hitler pode existir um fascismo liberal
como o de Mussolini. A liberdade que conta numa democracia é
a liberdade moral, a liberdade de que nunca se fala. Esse é o in­
grediente adequado porque tem objetivos precisos. Quando é
preciso reprimir ela se inclina, depois de estabelecer os limites
dentro dos quais a repressão deve ser feita. A idéia de um sistema
democrático de governo lhe é bem-vinda porque coincide com
algumas de suas próprias tendências. Por que, em vez de falarmos

24
em liberdade democrática, não falamos de democracia moral? A
idéia de liberdade não acrescenta nada à idéia de democracia a
não ser algumas excrescências que são indesejáveis. A idéia de li­
berdade não inclui em si mesma a idéia de moralidade. A idéia de
moralidade inclui em si mesma a idéia de liberdade, todo o con­
teúdo da idéia de liberdade que a democracia poderia desejar.
A polêmica que existe no mundo moderno, em torno da fi­
gura de Platão, é um símbolo do conflito que nele existe entre as
duas concepções de sociedade, a que defende a possibilidade da
existência de uma sociedade aberta e a que se deixa envolver pela
idéia de que uma sociedade como a nossa, que reivindica tão in­
sistentemente a noção de liberdade, não pode deixar de ser uma
sociedade aberta.
Não se cogita dos tipos de liberdade que estão em jogo.
Acredita-se que a liberdade é uma só e que não convém fazer dis­
tinções que são apenas sutilezas incapazes de lançar luz sobre os
problemas. Cultiva-se um estilo de pensamento que tende irresis­
tivelmente a imprecisões, à falta de nitidez no co11 orno das coi­
sas, à formação de uma névoa que V8 i pouco a pouco invadindo
a paisagem sem possibilidade de uma nova claridade.
A crise espiritual de nossos tempos poderia de um certo
modo ser compreendida em razão do conflito de que estamos fa­
lando. Se o poder em nossos dias é reverenciado da maneira por
que o é não tenhamos dúvida de que a razão disso reside precisa­
mente no fato de que vivemos dentro de uma concepção que faz
de nossas comunidades sociedades fechadas. A unanimidade que
existe em torno do ideal democrático parece nos desmentir -
democracia não é sinônimo de liberdade e liberdade não signifi­
ca abertura social?
Entretanto, voltemos a perguntar, embora isso pareça a mui-
,

tos impertinente: não estaríamos aqui diante de uma dessas ilu-


sões pertinazes que já no século de Péricles empanava o brilho da
sociedade ateniense? Como explicar as tragédias de Sófocles sem

25
ter a consciência de que numa sociedade aberta elas não seriam
possíveis? Hoje a liberdade religiosa é completa e nenhuma deter­
minação divina poderia ser contrariada pela autoridade do Esta­
do. Isso faz de nossas comunidades sociedades abertas? A respos­
ta deveria ser afirmativa. Mas há algo que nos faz dizer não. Há
nas sociedades que se formaram a partir da Idade Média algo que
não existia antes, uma atrofia do homem interior. Já me referi a
isso. Havendo essa atrofia, a autoridade do Estado nada mais en­
contra que possa contrariar. A liberdade religiosa, nesse caso, seria
como que pérolas jogadas aos porcos. O que poderá fazer com ela
o homem exterior que teve a sua interioridade atrofiada? É o que
vemo-lo fazer freqüentemente: utilizar a sua liberdade religiosa
como argumento para provar que vive numa sociedade aberta.
O Estado, por seu lado, encontra nela um bom pretexto
para se apresentar como organizador de uma sociedade aberta.
Teria razão para fazê-lo se não tivesse contribuído para que se
produzisse a atrofia. Mas o que uma investigação atenta demons­
tra é que teve. O Estado é culpado, é responsável pela atrofia do
ho-mem interior. Este não brota espontaneamente como uma
flor que nascesse na interioridade da alma humana. É o resulta­
do de um trabalho, de um esforço que o Estado pode respeitar ou
impedir: um trabalho para promover uma ordem na agitação das
paixões e dos instintos que são o lote comum dos seres humanos.
Essa ordem é promovida pelo indivíduo. Mas o Estado pode in­
terferir nulificando o esforço de quem o faz. Qualquer interferên­
cia do Estado, por mais ligeira que seja, representa um atentado
à existência do homem interior, cuja fragilidade se explica pelo
respeito que lhe é devido como interlocutor da divindade. O Es­
tado que ouve os conselhos de quem quer que seja, tendo em
vista interferir nos trabalhos do indivíduo para promover a sua
ordem interior, está evidentemente atentando contra a existência
do homem interior. Mas isso é o que tem acontecido durante os
séculos que nos separam da Idade Média e não há, pois, como

26
eximir de culpa e responsabilidade o Estado moderno. Sua inter­
ferência na vida interior do homem é clara. A atrofia dessa vida
que dela resulta é evidente. Depois disso a liberdade religiosa
concedida é um escárnio.
O que acontece realmente? O Estado moderno e contempo­
râneo, sem se preocupar com o homem interior, decidiu aprovei­
tar-se dos instintos, das paixões humanas como motores para dar
maior dinamismo aos instrumentos de que dispunha para pro­
mover os interesses gerais da sociedade. Resolveu, em outras pa­
lavras, instrumentalizar as paixões. O egoísmo, por exemplo, o
interesse próprio, enfeitados de um qualificativo lisonjeiro -
o adjetivo "esclarecido", quando aplicado à vida econômica dos
povos, torna essa vida mais ativa, mais produtiva, mais útil à so­
ciedade como um todo. Era então necessário dar a essa paixão, o
egoísmo, todo o encorajamento possível. Que a ordem na alma
do homem interior ficasse prej udicada não parecia ter importân­
cia. O importante era produzir benefícios para a sociedade.
Falta aos nossos tempos um trágico da envergadura de Só­
focles para exprimir, em termos de arte, o que está ocorrendo. O
homem interior, quando existe, é obrigado a viver uma vida clan­
destina. O poder o cerca por todos os lados. A atmosfera para ele
é irrespirável. Vive ao lado de homens que não parecem sofrer de
mal algum. Se nos tempos de Sófocles as leis do Estado podiam
contrariar a obediência a determinações divinas, nos nossos tem­
pos elas não somente podem mas, de fato, contrariam a interlo­
cução com o ser divino - interlocução que só pode se realizar
quando há interlocutores capacitados para isso.
E aqui voltamos à questão que deu início ao que tem sido
dito nos últimos parágrafos. Então a liberdade religiosa não
basta? É preciso algo mais para que possamos nos considerar de
pleno direito uma sociedade aberta? Nos tempos de Sófocles, a
obediência a determinações divinas podia levar longe, podia
mesmo levar até a morte. Hoje o que significam? Ir à missa aos

27
domingos, confessar nossos pecados, comungar uma vez por ano?
Na realidade, a religião, como é observada em nossos dias, repre­
senta uma parte mínima na vida das pessoas. Tornou-se pouco
exigente. Raríssimas vezes coloca seus adeptos em posição de en­
frentar as suas determinações.
A resposta então à questão que levantamos antes é certa­
mente afirmativa. Precisamos sim de algo mais do que a simples
liberdade religiosa. Precisamos de liberdade moral. Não é livre
moralmente quem sofre uma interferência do Estado na sua vida
interior - seja por que motivo for. Embora essa interferência
não impeça de ir à missa aos domingos, de confessar pecados ou
de comungar quando se quiser, ela impede de organizar o pensa­
mento de acordo com normas livremente aceitas para a condução
da vida interior.
Lutero foi uma das raríssimas exceções ao que estamos dizen­
do. Teria sido assassinado por ordens da Igreja de Roma se não
fosse seqüestrado e mantido durante dez meses no castelo de Wart­
burg, propriedade de Frederik, Eleitor da Saxônia, seu protetor.
Lutero, com sua sola fide, tornava problemática a interlocu­
ção entre o homem interior e a divindade. Suas críticas a Aristó­
teles e a Erasmo protegiam-no da noção de uma falsa liberdade e
o punham no caminho da interioridade, embora não lhe dessem
a possibilidade de chegar à plenitude de uma verdadeira concep­
ção da liberdade. Seu homem interior não era livre em face do
Deus onipotente. Entretanto, a transferência da autoridade da Igre­
ja de Roma para a consciência do indivíduo dava a esta última
uma liberdade especial, uma liberdade que era um meio-termo
entre a liberdade do homem interior e a liberdade no mundo ex­
terior. Era mais uma eficácia do que uma liberdade. Permitia ao
homem fazer coisas proibidas pelo Estado ou por uma autorida­
de religiosa exteriorizada.
Lutero colocou-se assim, de modo absolutamente inespera­
do, ao lado de Descartes, como origem de uma atitude nova, uma

28
atitude que distinguia o homem moderno do homem medieval
ou do homem clássico - a atitude de poder, de conquista do
mundo exterior: Descartes lançando o homem na conquista do
mundo da natureza, Lutero na conquista do mundo econômico
e social.
Max Weber tinha razão em pensar que a ética do protestan­
tismo está na origem do espírito do capitalismo. O homem que
trabalha sem estar movido pela sede insaciável do lucro, que tra­
balha pensando não em si mas em Deus, não tem limites para o
esforço que emprega. O lucro que é obtido não é gasto em luxo
ou prazeres mas reinvestido em novos empreendimentos que ge­
rarão novos lucros. Assim se forma o Capital, assim se torna pos­
sível o mundo de hoje.
Max Weber engana-se, entretanto, quando pensa que o que
distingue o trabalho realizado em virtude da sede insaciável de
lucro, do trabalho levado a termo com humildade, tendo em vis­
ta unicamente a ascese que isso representa, é a irracionalidade do
primeiro e a racionalidade do segundo. Max Weber acredita na
existência de um suposto espírito do capitalismo que se exerce
intervindo na orientação do impulso egoísta e irracional do
lucro para transformá-lo numa atividade planejada, consciente,
racional, que visa não à satisfação do ego mas ao sentimento do
dever cumprido.
Max Weber parece confundir a racionalidade do capitalis­
mo com a racionalidade que impõe ordem no caos das paixões
humanas. A expressão que usa, "ética do protestantismo'', nos faz
acreditar que para ele as forças do capitalismo derivam da racio­
nalidade ética.
Em outras ocasiões, já nos referimos a esse tipo de raciona­
lidade que não passa de uma instrumentalização das paixões. O
curioso, entretanto, é ver como as "boas obras" que Lutero de­
nunciara, no início de sua carreira de Reformador religioso, rea­
parecem agora no protestantismo que fundou com uma configu-

29
ração diversa. Lá eram as "boas obras" do indivíduo creditadas na
sua relação com a divindade que eram denunciadas. Aqui essas
"boas obras" não pretendem ser creditadas no mundo interior. A
ascese, apesar de originada no mundo interior, era creditada no
mundo exterior.
Não temos aqui um flagrante de como a liberdade de Lute­
ro, esse centauro de interioridade e de exterioridade, produz fru­
tos que têm a mesma natureza do centauro que os produziu? -
ascese interior, capitalismo exterior: não havia interlocução entre
o homem interior de Lutero e a divindade; mas a autoridade da
consciência do indivíduo lhe dava estímulo para agir com mais
eficácia, com mais "liberdade" sobre o mundo exterior.
Weber não é o único responsável pela confusão que tem ha­
vido no período moderno e contemporâneo da filosofia sobre o
que constituia o conteúdo do conceito de razão. Descartes foi o
precurssor desse imbróglio com sua razão instrumental. Em nos­
sos dias o nome mais em voga é razão desengajada. Kant deu-lhe
o nome mais impressionante de razão pura. Mas justamente com
esse nome que foi escolhido porque a pureza parecia ser indispen­
sável para a compreensão da sua essência já havia sido dado o pri­
meiro passo em falso. É da essência da razão o fato de não ser ela
pura. A razão é uma faculdade necessariamente engajada.
A ciência em que Kant se inspirou não oferecia uma pers­
pectiva suficientemente ampla para nos permitir uma avaliação
correta da vastidão do mundo que a razão governa. A razão não
é uma autoridade que se encerra numa torre de marfim. Ela se
mistura com seus súditos e os governa bem porque os conhece na
sua intimidade. Em outros termos: na sua essência a razão é uma
faculdade engajada. Além disso é irmã gêmea da liberdade e com
ela divide o seu império.
A razão kantiana, como a razão cartesiana, é uma razão ins­
trumentalizada, uma razão que renunciou à missão que lhe havia
confiado Sócrates de transformar o mundo caótico da alma hu-

30
mana, convulsionada pela agitação das paixões em permanente
desencontro, num mundo organizado em que instintos e paixões
pudessem contribuir para a configuração da personalidade moral
do ser humano. É uma razão instrumentalizada, voltada não para
a ordem ética mas para o exercício do poder que Kant chama de
razão pura. O outro tipo de razão que considera, a razão prática,
é a seu ver a faculdade que se ocupa de moralidade; mas estranha­
mente essa faculdade que trata de moralidade evita qualquer con­
tato com as paixões e os instintos - o que a preocupa, sobretu­
do, é a universalidade das máximas da sensibilidade: imitando
nisso a razão pura que se preocupava com a universalidade das
leis que regem o mundo físico. Na sua opinião, a universalidade
daquelas máximas deveria ser tanto quanto possível próxima da
universalidade das leis científicas, descobertas pela razão instru­
mentalizada. Mas como a razão prática não encontra, como a ra­
zão pura, apoio na ciência para j ustificar sua existência, é incapaz
de se legitimar se revestindo da autoridade necessária.
O formalismo da moral kantiana provocou, como era inevi­
tável, uma multidão de protestos. Entre as principais críticas que
se levantaram, cumpre destacar as de Max Scheler e as de Nico­
lai Hartman. Mas o que aqui é extremamente significativo é o
fato de que, embora o formalismo moral de Kant se mostrasse
uma proposta inaceitável, o prestígio da análise kantiana da razão
pura se tenha mantido inalterável. Não se pensou que uma coisa
estava visceralmente ligada à outra; que se a análise do fenômeno
moral não era convincente, a análise do problema do conheci­
mento também não poderia sê-lo. Apesar de Husserl, apesar de
Wittgenstein, apesar da filosofia analítica, a situação espiritual de
nossos tempos continua definida pelo que ficou estabelecido por
Kant: de um lado, uma razão pura, totalmente desengajada de
qualquer objetivo que não seja a função de conhecer, uma razão
que se ocupa unicamente da descoberta das leis que regem o uni­
verso físico ou matemático e, do outro, uma razão prática, que se

31
ocupa, também, de leis universais, mas que não encontra, como
a razão pura, apoio na ciência ou em algo consistente para se ma­
nifestar e que por isso é incapaz de revestir os seus atos da auto­
ridade necessária.
As sociedades não existem sem uma ordem que as estruture.
E a ordem não pode existir sem uma autoridade que a imponha.
Os homens, por sua vez, não adquirem sua função especificamen­
te humana se não obedecerem a um princípio de ordem; mas esse
princípio a que obedecem não é o princípio da ordem geral que
governa as sociedades: é o princípio de uma ordem individual, se­
gundo a qual essa ordem deve ser produzida por todo indivíduo
que dela vai se beneficiar e que, de um certo modo, se articula
com a outra ordem, a ordem de que se beneficia a sociedade.
Como já dissemos, toda ordem pressupõe uma autoridade
que a imponha. E como existem dois tipos de ordem, deverá
também existir dois tipos de autoridade: a autoridade que está li­
gada à existência da sociedade ou, mais especificamente, do Esta­
do e a autoridade que está ligada à existência do indivíduo, na sua
dimensão humana. À primeira dá-se o nome de soberania, sobe­
rania em face dos membros do Estado soberano e soberania em
face das nações com que está relacionada. À segunda dá-se o
nome de autonomia, autonomia do indivíduo na sua dimensão
humana, face à autoridade do Estado soberano.
Nem a soberania do Estado, nem a autonomia do indivíduo
são absolutas. A autonomia do indivíduo só é absoluta quando o
indivíduo é entendido na sua dimensão humana. De outra forma,
é evidente que ela não pode significar senão um desrespeito às leis
do Estado. Por outro lado, o Estado não deve se imiscuir com os
problemas espirituais do indivíduo, restringir sua liberdade reli­
giosa (quando não há atrofia do homem interior) , obrigando-o a
seguir tal ou qual culto que lhe pareça mais conforme ao espírito
da verdadeira religião; isso inclui o respeito pelas crenças de um
povo, pelo seu passado religioso, já que nenhum povo surge no

32
palco da História desacompanhado de algum tipo de religiosida­
de. O desrespeito manifesta-se não somente quando um Estado
se declara ateu, como foi o caso do Estado marxista, stalinista, re­
centemente desaparecido. Manifesta-se também no Estado des­
compromissado com a religião do seu povo como é o Estado li­
beral, laico, dos nossos tempos. Nos dois casos, o desrespeito é o
mesmo. No primeiro caso, procura-se eliminar, por uma agressão
direta, a substância religiosa de um povo; mas, no segundo, se agri­
de igualmente, indiretamente essa substância, estabelecendo uma
concorrência entre vários tipos de opção religiosa e colocando
assim aquela que havia acompanhado as vicissitudes históricas do
povo no mesmo nível e nas mesmas condições de qualquer outra,
mesmo daquelas trazidas por elementos adventícios que venham
se incorporar à comunidade.
Pretende-se que o liberalismo religioso não é uma forma
dissimulada de indiferença religiosa. Mas os fatos estão aí para
provar que o liberalismo religioso não só é isso, como também
contribui enormemente para que essa indiferença aumente. Nos
Estados Unidos, por exemplo, o resultado imediato foi uma pro­
liferação de seitas oriundas, na maioria dos casos, do fanatismo
de indivíduos desequilibrados que não se qualificam de forma al­
guma para o desempenho do papel de líderes religiosos. As "reli­
giões" que pensam ter fundado não têm a menor perspectiva de
serem um dia abraçadas por um povo inteiro. No mesmo país
surge assim, ao lado dessas pequenas comunidades fanáticas, uma
comunidade maior de indivíduos que se dizem agnósticos ou que
crêem em Deus mas não "praticam" a religião, toda uma série de
nuances que vão do mais desabrido destempero, nos que preten­
dem estar saturados de razões para não acreditar em Deus, pas­
sando pelos indiferentes, pelos que são movidos pela preguiça,
pelo desleixo, por vulgaridade, até a mais refinada hipocrisia, nos
que j ulgam Deus necessário para a vida da sociedade, do Estado
e da família.

33
Os líderes intelectuais da humanidade são, em grande parte,
responsáveis por toda essa confusão. Os líderes intelectuais da
modernidade, para sermos mais específicos. O tratamento inde­
vido que deram ao problema da racionalidade levou-os a abando­
nar completamente o problema da liberdade, deixando-o com­
pletamente à mercê das deficiências do pensamento vulgar.
Pode-se dizer que não há no período moderno do Ocidente eu­
ropeu, com exceção de Kierkegaard e Nietzsche, nenhum exem­
plo de uma reflexão séria, profunda e exaustiva sobre o problema
da liberdade. Fala-se muito, entre nós, em liberdade, escreve-se
muito sobre ela mas, na minha opinião, foi na Rússia do século
XIX, na Rússia dos grandes romancistas e dos filósofos que igno­
raram Descartes, Kant e a revolução epistemológica ocorrida no
Ocidente europeu - foi nessa Rússia que se refletiu sobre a ques­
tão com a seriedade e a profundidade necessárias. E a única razão
que consigo encontrar para isso é que eles conseguiram preservar
intacta a fé ortodoxa que fez do povo russo um enorme bloco,
unido, substancioso e homogêneo. Nem mesmo a agressão dire­
ta que sofreram na sua religiosidade, do Estado ateu, marxista,
'
stalinista, conseguiu abalar os alicerces desse sólido edifício.
Quando a agressão foi feita, já era tarde para que se cumprissem
os seus propósitos perversos. A reflexão sobre a liberdade já havia
sido feita, no século anterior, e, com ela, a fé ortodoxa se tornara
ainda mais invulnerável.
Dostoievsky, naturalmente, foi o mais genial representante
desse cristianismo profundo que contagiava o povo russo inteiro.
Seus romances eram todos motivados pelo problema da liberdade
humana. O poema de Ivan Karamazov, personagem daquele que
é talvez o seu maior romance, Os Irmãos Karamazovi, era a formu­
lação mais clara desse problema: pode-se oferecer tudo ao homem
mas não se oferece nada se desta oferta está excluída a liberdade.
Qual é a diferença entre essa liberdade russa e a nossa liber­
dade ocidental? Dostoievsky foi uma das grandes fontes de inspi-

34
ração do filósofo russo Nicolai Berdiaev, detentor de uma vasta
audiência, não só na Rússia nas décadas anteriores à Revolução
Russa, como no Ocidente, nas décadas posteriores a ela. Berdiaev
julgava discernir, na obra de Dostoievsky, o sentimento de que a
liberdade humana era irracional - o filósofo não tinha dúvidas
sobre essa sua impressão e via, nessa noção de uma liberdade ir­
racional, o traço fundamental que distinguia o pensamento orto­
doxo russo do pensamento ocidental.
Sócrates, escrevia ele, só era capaz de conceber uma liberda­
de na razão. Platão acreditava que Deus estivesse subordinado à
Verdade e à Justiça. Eram essas noções que, segundo ele, haviam
inspirado o Ocidente. Mas enquanto a primeira exigiria uma aná­
lise mais pormenorizada, a segunda era claramente equivocada.
Sócrates certamente só concebia a liberdade associada à ra­
zão; mas sua maneira de conceber a liberdade associada à razão
era essencialmente diferente da maneira pela qual o Ocidente
veio a conceber essa associação. A associação socrática consistia
numa hegemonia da razão, num controle sobre as paixões que as­
segurassem a implantação de uma ordem na alma humana. A as­
sociação que já na Idade Média, mas sobretudo no período mo­
derno e contemporâneo do Ocidente, acabou por se tornar uma
prática habitual da humanidade consistia na instrumentalização
de uma só paixão que deixava a alma humana no mesmo estado
de desordem em que se achava antes, quando não fosse, num es­
tado mais agravado e pernicioso.
Englobar as duas situações numa só definição representa
pois um grande equívoco. Berdiaev, que é indubitavelmente um
grande representante do pensamento russo, na passagem do sécu­
lo XIX para o século XX, não aprofundou obviamente os seus es­
tudos sobre a cultura clássica dos gregos. Sócrates não mereceu de
sua parte senão rápidas e raras referências. Sua tensão foi toda ela
voltada para o sentido último do cristianismo, sua substância e es­
sência. Tinha bons motivos para isso pois, em nenhum outro país,

35
a religião cristã produziu uma tal profusão de frutos saborosos e
autênticos. Pôde assim criticar, sem se desviar um só milímetro da
justiça, os descaminhos do cristianismo no Ocidente. Essa crítica,
sem a menor dúvida, foi correta. O que não estava certo era res­
ponsabilizar Sócrates e a cultura clássica dos gregos pelos erros co­
metidos no Ocidente medieval, moderno e contemporâneo.
Berdiaev concebe a existência de três tipos de liberdade no
homem: primeiro, a liberdade anterior ao Ser, a liberdade irracio­
nal; segundo, a liberdade na razão, a liberdade socrática; terceiro,
a liberdade em Cristo, Homem e Deus, que é a verdadeira liber­
dade, porque só nela o homem responde livremente ao apelo ine­
rente à idéia da Verdade, do Bem e da Divindade. Em Sócrates,
pensa Berdiaev, o homem não responde livremente a esse apelo
- a resposta lhe é imposta pela tirania da razão.
Quanto à liberdade irracional, tal é o nome que Berdiaev dá
à desordem completa dos instintos, ao desgoverno da paixões. No
seu estudo sobre Dostoievsky, talvez o mais importante, mas sem
dúvida o mais interessante de quantos foram publicados sobre a
obra do grande romancista russo, Berdiaev procura nos mostrar
"

como circula nos personagens criados pela imaginação do r�-


mancista essa liberdade irracional. Segundo Berdiaev, a desordem
das paixões teria como conseqüência imediata a presença de um
conflito dentro da alma humana - um conflito dentro da alma
de cada indivíduo humano, o conflito entre o Bem e o Mal.
Nisso consistiria para ele a substância, a essência do drama dos­
toievskiano.
No meu livro Desenvolvimento e cultura, publicado há mais
de trinta anos, procurei mostrar que o conflito que existe dentro
da alma dos personagens de Dostoievsky não é entre o Bem e o
Mal, mas, sim, entre o princípio ético e o princípio estético. Essa,
aliás, é uma característica do pensamento russo, que curiosamen­
te teria menos motivos que o pensamento ocidental para possuí­
la. Não houve no pensamento russo um conflito entre dois tipos

36
de religiosidade, como se verificou no Ocidente, ocasionando
uma exasperação do princípio ético num deles e uma certa le­
niência com relação ao princípio estético no outro. A cultura
grega, com seu amor da forma bela, não teve sobre a cultura russa
o mesmo impacto que teve sobre a cultura do Ocidente. E, pe­
rante a religiosidade intensa do povo russo, a racionalidade grega
sempre pareceu algo suspeito. Gogol lastima não ver nada de
bom na idéia do Bem. Soloviev atribui à razão platônica um sen­
tido determinista, desconhecendo, assim, a sua função como ins­
trumento principal da descoberta socrática da liberdade moral.
Tolstoi denuncia, na arte e na beleza, um poder demoníaco de se­
dução sobre os que deixam se envolver em suas malhas. E Dos­
toievsky, finalmente, concebe a beleza como uma luta entre Deus
e o Diabo, tendo como campo de batalha o coração dos homens.
Tal é o background que explica e, até certo ponto, justifica as
posições de Berdiaev. Seus livros foram lidos com grande interes­
se no Ocidente, sobretudo no período que precedeu a Segunda
Guerra Mundial. Uma Nova Idade Média foi mesmo um best sel­
ler muito discutido e comentado em diversos meios literários e
não apenas entre filósofos e especialistas. Berdiaev trazia para o
público do Ocidente uma visão que só não era inteiramente nova
porque os grandes autores russos do século XIX sempre foram
lidos por esse público com uma curiosidade em que havia, ao mes­
mo tempo, admiração e estupefação. Berdiaev sintetizava, dava
uma forma mais nítida àquela nebulosa, cheia de pressentimentos
e sugestões ricas e fecundas, em que consistiam as noções impre­
cisas e desencontradas que tínhamos sobre a vida e a cultura russa.
E em que consistia exatamente a essência da cultura russa?
Tudo parecia resumir-se na questão da liberdade. Berdiaev nos
trazia uma noção mais ampla, mais rica, mais substancial des­
sa questão. No Ocidente, o problema da liberdade como que se
tinha atrofiado. Tínhamos a liberdade democrática, o livre-arbí­
trio, mas o que tínhamos parecia pobre em comparação com o

37
que o pensador russo nos trazia. Quis o destino que mesmo essa
forma empobrecida de liberdade se tornasse subitamente ameaça­
da. Mussolini, Hitler, surgiam no horizonte e o Ocidente viu-se
de repente envolvido numa guerra catastrófica em que não só a
liberdade como os mais elementares valores e condições da vida
humana foram vilipendiados, desprezados e negados como se o
que se tivesse em vista fosse um mundo novo, demoniacamente
concebido, instaurado com a rejeição total de tudo quanto até
então tinha sido admirado, respeitado e preservado.
Quando, afinal, o Ocidente conseguiu livrar-se desse pesa­
delo, à custa de perdas e sofrimentos indizíveis e de um holocaus­
to que pesará ainda não se sabe por quanto tempo na memória
dos homens, houve um sentimento geral de que a liberdade havia
sido salva. Mas isso foi - é melancólico ter de reconhecer agora
- apenas uma impressão causada pela relatividade das coisas. Ter
escapado de um mundo destinado a uma situação de inconcebí­
vel escravidão pôde parecer uma grande vitória, quase um mila­
gre. Nos primeiros momentos de alívio, o desgaste produzido
pelo esforço que fizemos para escapar do mundo demoníaco p.;:ts­
sou despercebido. Mas, pouco a pouco, à medida que se vai efe­
tuando o processo de nossa recuperação, os sintomas e as conse­
qüências do desgaste vão se manifestando. Hoje, quando tudo
parece estar recomposto e não temos nada à vista que nos amea­
ce de forma imediata, começamos a sentir um mal-estar inexpli­
cável, como se estivéssemos cercados por uma horda assustadora
de inimigos invisíveis.
Somos verdadeiramente livres? De que maneira se manifes­
ta essa liberdade? Sem levar a sério a democracia, com seu jogo de
interesses e refinada hipocrisia, compra de votos, promessas não
cumpridas, corporativismo, o que podemos dizer é que nossa li­
berdade se afirma, sobretudo, de forma negativa. Não somos pre­
sos arbitrariamente como acontecia na Alemanha de Hitler, po­
demos viajar se temos dinheiro para isso, podemos visitar amigos

38
e parentes quando isso não afeta a segurança pública, podemos
escrever livros ou artigos exprimindo desacordo com as diretivas
do governo. Sobre a liberdade religiosa já me referi, em páginas
precedentes. Mas é nisso que consiste a liberdade? É curioso que
num indivíduo que goze de todas essas "liberdades" se possa
constatar a mais completa falta de liberdade, isto é, daquela que
não resulta de um condicionamento, de uma permissão, liberda­
de de movimentos, se isso não afetar a segurança pública, viajar
se tiver dinheiro para isso, escrever livros e artigos exprimindo de­
sacordo com as diretivas do governo. Sua liberdade é sempre con­
dicionada ou permitida. Mas é somente verdadeiramente livre o
homem que não depende de permissões ou condicionamentos
para se sentir livre. Quando se diz que um homem é independen­
te isso não quer dizer que ele seja um homem livre. Quer-se dizer,
simplesmente, que ele não depende dos outros. Mas há formas
diferentes de dependência. Podemos depender dos outros de ma­
neiras diversas. Podemos, por exemplo, depender da proteção, da
solicitude, do amor, da amizade, da ajuda física ou moral dos ou­
tros - e ainda assim poderemos nos sentir perfeitamente livres.
Por outro lado, mesmo que fôssemos completamente indepen­
dentes do mundo exterior, não seríamos livres se a nossa liberda­
de não fosse um fato, uma expressão, uma conseqüência da nossa
vida interior.
A liberdade ou autonomia individual nada tem a ver com a
liberdade de origem social. Ela não está configurada nem na nossa
liberdade democrática, nem no que se convencionou chamar de
livre-arbítrio. A liberdade democrática obviamente só pode ser en­
tendida num contexto social e político. Quanto ao livre-arbítrio,
embora se procure coloca-lo num contexto filosófico e religioso, a
fonte inicial de sua inspiração foi o contexto social da democracia
ateniense. A concepção aristotélica da faculdade de escolha, ori­
gem da noção de livre-arbítrio, foi indubitavelmente alicerçada no
mundo de idéias que ilustrou o século de Péricles.

39
Como tinha surgido essa noção de liberdade individual in­
dependente dos condicionamentos e das permissões que a socie­
dade nos oferece? Essa liberdade que o mundo moderno e sobre­
tudo o mundo contemporâneo, depois da Segunda Guerra
Mundial, parece ter esquecido? Quase não seria preciso dizer ao
leitor que vem acompanhando o curso de nossa reflexões: surgiu
de Sócrates, de suas perguntas, de sua preocupação com as virtu­
des, de sua concepção do homem e da divindade. Sócrates inte­
riorizou o instituto da escravidão. O homem, pensou ele, pode
ser socialmente livre e interiormente escravo, como pode ser so­
cialmente escravo e interiormente livre.
Essa descoberta de Sócrates, que na realidade representa um
passo enorme na compreensão da espiritualidade do homem, foi,
infelizmente, mal administrada por Aristóteles, com conseqüên­
cias desastrosas para a recepção e para a propagação da cultura
clássica no Ocidente. Como dissemos anteriormente, Aristóteles
não admite que o escravo da sociedade ateniense possa ser inte­
riormente livre. Ele não admite a distinção entre uma interiorida­
de e uma exterioridade - conseqüência do fato de estar >() seu
'

pensamento situado no contexto de uma sociedade fechada.


Como não são atribuídos direitos políticos ao escravo, a condição
de ser livre lhe é, ipso factum, negada. Nenhuma convicção de
Aristóteles parece mostrar mais claramente a dependência em que
se encontrava sua reflexão filosófica com relação ao contexto da
democracia ateniense. Sócrates era capaz de criticar a democracia
ateniense - e, por isso, descobria a liberdade moral do homem.
Aristóteles compartilhava de todos os princípios, inclusive os pre­
conceitos, da democracia ateniense - uma sociedade fechada.
Por isso negava ao escravo, privado de direitos políticos, o acesso
à liberdade moral do homem. Por isso contribuía para que se di­
fundisse, nas gerações que o sucederam, a noção equivocada de
que a cultura grega se apoiava sobre o instituto da escravidão -
considerado expressão legítima da natureza das coisas e base in-

40
substituível na organização das sociedades. Irresistivelmente, no
mundo moderno e contemporâneo, quando se pensa na cultura
clássica dos gregos, são as idéias de Aristóteles que se têm em vista.
Poder-se-ia argumentar, em favor de Aristóteles, dizendo que
a descoberta de Sócrates não modificou em nada a organização
social de Atenas. Mas é nisso, justamente, que reside o "x" do
problema. A missão da filosofia não é descrever, fazer o retrato da
sociedade em que surgiu. Uma filosofia vale não porque fez esse
retrato, mas pelos frutos que vem dando através dos séculos e que
muitas vezes se oferecem muito longe, no espaço e no tempo, da
semeadura que lhes deu origem. Aristóteles era empírico, Sócra­
tes tinha um projeto. Um contentava-se em descrever o que exis­
tia, o outro tinha um projeto de vida, baseava-se no que existia
tendo em vista o que deveria existir. Eventualmente o instituto da
escravidão desapareceu da face da terra como elemento indispen­
sável na organização da sociedade. E isso se deve, embora remo­
tamente, a Sócrates, em virtude da valorização do escravo, ao lhe
ser atribuída a liberdade e da desvalorização do senhor, ao se mos­
trar que ele também podia ser escravizado. Teve como resultado
inevitável a redução, a diminuição da distância que separava essas
duas condições do ser humano. Uma filosofia vale não pelos re­
tratos que faz, mas pelos frutos que oferece.
Mas a memória dos homens é ingrata. Mesmo quando a
imagem de Platão adquiriu maior visibilidade, como nos tempos
de Platino e de Porfírio, de Santo Agostinho e de Philo de Ale­
xandria, e mais tarde ainda, no período do Renascimento italia­
no ou dos Platonistas de Cambridge, a lembrança de Sócrates
permanecia apagada. Platão, que é o espelho onde a imagem de
Sócrates se vê mais claramente refletida, parecia impedir que essa
imagem fosse vista. Só no século XIX, por meio das obras de
Kierkegaard e Nietzsche, readquiriu Sócrates, como homem,
como filósofo e fundador do pensamento ocidental, a consistên­
cia, a nitidez de contorno, a realidade, enfim, que foi a sua quan-

41
do viveu numa época gloriosa, cuja grandeza precisamos tentar
compreender e assimilar.
É curioso o relacionamento que temos nós, modernos e
contemporâneos, com a figura de Sócrates. Lembra um pouco o
relacionamento que temos com a figura de Cristo. Somos todos
cristãos, respeitamos e celebramos a imagem do Cristo e qualquer
palavra crítica ou irreverente a seu respeito nos parece voltar-se
contra nós mesmos em desabono certo e irrecusável. Mas, na ver­
dade, o que Jesus foi não chega a ter a mais leve influência na
nossa vida cotidiana. Fazemos exatamente o contrário daquilo
que ele nos ensinou. A sua mensagem, que foi a mensagem do
amor, não foi por nós escutada. Somos cristãos, mas nossa vida é
mais guiada pelo egoísmo do que pelo amor; entre os cristãos, al­
gumas vezes, ela pode ser até mesmo guiada pelo ódio. Não ofe­
recemos a outra face à mão que nos agrediu; ao contrário, retri­
buímos o insulto, e, por vezes, de forma exagerada. Não amamos
o próximo tanto quanto a nós mesmos; ao contrário, nos ama­
mos muito mais do que o amamos.
Do mesmo modo, somos todos racionais ou pelo menbs sa­
bemos que deveríamos sê-lo. Mas não usamos a razão da manei­
ra como Sócrates nos ensinou a usá-la. Pensamos que a contribui­
ção de Sócrates para a humanidade limitou-se a ter descoberto a
existência da razão. Mas, mais do que o simples fato de tê-la des­
coberto, o que Sócrates fez foi nos mostrar o modo pelo qual ela
deveria ser usada. É esse modo justamente que vem sendo igno­
rado, esquecido, desrespeitado. No seu modo de usar a razão, o
homem moderno e contemporâneo a avilta, a degrada, a desilus­
tra. Ele a instrumentaliza. Faz da razão, que deveria ser a sobera­
na das paixões, uma serva por elas humilhada.
Não há nada de mais irrisório e, ao mesmo tempo, mais me­
lancólico do que o espetáculo do homem moderno e contempo­
râneo se vangloriando e se pavoneando com os triunfos obtidos
pelos trabalhos dessa ex-soberana, dessa serva humilhada. lrrisó-

42
rio porque nada do que tem sido feito na nossa era tecnológica
tem dado ao homem aquela substância, aquela consistência,
aquela dignidade sem as quais ele não merece o nome que lhe é
dado. E melancólico por ver que esse é o prêmio que ganhamos
agora, que vamos ganhar no futuro e que ganharemos sempre e
sempre, inapelavelmente, por ter sacrificado e mutilado as estru­
turas de nossas vidas.
O problema dos diferentes usos que podem ser feitos da
razão humana não parece ter sido suficientemente estudado.
Kant, com as suas três Críticas da razão esteve longe de exaurir
essa problemática. Embora os filósofos do período moderno da
filosofia tivessem, cada um deles, o seu modo de considerar o em­
prego da razão e julgassem que esse modo era o único aceitável,
não ocorreu a nenhum deles a idéia de que essa variedade de pon­
tos de vista ocultava, talvez, uma fraqueza. Como justificar que
um desses modos seria o certo e os outros equivocados?
A única maneira de fazê-lo parece ser considerar o homem
desprovido de qualquer espécie de atributo. Que precisa ele neste
mundo povoado de outros homens? Indubitavelmente precisa de
instintos que são parte da vida e da razão que também faz parte
da vida. Na verdade, a razão também é um instinto. O que a di­
ferencia dos outros é que ela é o instinto da ordem, copiando
nisso a própria organização da vida ao passo que os outros instin­
tos lhe são subordinados, justamente, porque deverão ser ordena­
dos. Quando um instinto que não é a razão pretende ordenar a
vida do homem, ele usurpa o lugar da razão. O egoísmo, por
exemplo, quando pretende ordenar a vida do homem, transfor­
ma a razão num instrumento, numa faculdade que lhe é subor­
dinada. O mesmo acontece com o instinto do poder - quando
ele pretende ordenar a vida, transforma a razão, que é um instin­
to hegemônico, numa faculdade subalterna.
Esse é o relato, em poucas palavras, do que se passa na tran­
sição entre a cultura antiga, clássica, dos gregos, e a cultura dos

43
modernos. Descartes fez da razão um instrumento para a con­
quista, o domínio do homem sobre a Natureza. A aliança que es­
tabeleceu entre a matemática e a ciência física permitiu-lhe mul­
tiplicar de forma extraordinária os modos de domínio do homem
sobre a Natureza. Dessa maneira, a razão foi conduzida a uma
função subalterna, a função de uma razão instrumental. O curio­
so é que foi justamente essa razão subalterna que deu origem ao
racionalismo que teve o seu apogeu no século das Luzes. Um ver­
dadeiro paradoxo! Quando a razão era hegemônica, a palavra ra­
cionalismo nem mesmo existia. Foi preciso que a razão descesse
do pedestal em que Sócrates a havia posto para que ela pudesse
ter a entusiasta recepção que teve.
A partir do aparecimento da razão instrumental de Descar­
tes, surge uma série de novas configurações, todas elas vinculadas
à primeira, mas exibindo novas possibilidades dentro dos limites
que lhes haviam sido traçados. A razão instrumental passou a
exercer um papel, não apenas no campo científico, mas t �mbém
no campo moral, gerando normas de conduta e legitimações teó­
ricas, criando novas É ticas e organizando as sociedades de acordo
com princípios que pareciam estar mais conformes a seu bem­
estar e interesse.
Nos nossos dias, a razão instrumental foi rebatizada com o
nome de razão desengajada. Esse novo nome não deixa de ter
uma nova significação. Parece indicar que a razão agora está livre
de uma subordinação exclusiva a uma paixão. Está livre de uma
subordinação exclusiva ao poder, ao egoísmo, ao instinto utilitá­
rio. Pode servir qualquer patrão, como um trabalhador que deixa
de servir exclusivamente a um senhor para servir mais alguém
que queira alugar sua força de trabalho. A razão desengajada não
é mais somente a serva das paixões que conhecemos. Trabalha
também como serva de mais alguém ou alguma coisa que não sa­
bemos exatamente o que seja, um desígnio misterioso, escondido
nas entranhas da ciência e da tecnologia. A situação da razão, nos

44
tempos presentes, não podia ser menos transparente e, entretan­
to, é a partir dela, infelizmente, que seremos obrigados a tentar
compreender o mundo em que vivemos.
O indivíduo que faz de um instinto o princípio orientador
de sua vida, instrumentaliza, faz de sua razão a serva desse instin­
to. Nisso consiste o processo de instrumentalização. A razão
torna-se um instrumento de que se serve esse instinto. Mas uma
sociedade também pode ser orientada por um único instinto;
caso, entretanto, em que a razão que lhe serve de instrumento se
confunde com um agente exterior que comanda o comportamen­
to dos membros dessa sociedade. Em tal circunstância, a razão
serva, subalterna, não se situa no interior dos indivíduos, mem­
bros da referida sociedade. Situa-se no espírito do legislador, que
ordena a sociedade não mais respeitando a função hegemônica de
uma legítima racionalidade, mas obedecendo a um instinto ele­
vado indevidamente a uma posição que não é a sua na hierarquia
dos princípios que regulam a vida psíquica do homem.
Há nesse processo de instrumentalização, realizado no âmbi­
to de uma sociedade, um duplo atentado cometido contra a inte­
gridade moral do homem. Em primeiro lugar, o fato de que no in­
terior do indivíduo a razão se torna serva, subalterna, com relação
aos instintos, às paixões que lhe deviam obediência; em segundo,
essa razão que se torna serva não é a razão do próprio indivíduo,
mas a razão que provém de um agente exterior e que soi disant co­
manda o comportamento desse indivíduo. O agente exterior vem
ao encontro do instinto do indivíduo, encorajando-o, estimulan­
do-o e fornecendo-lhe todos os meios para realizar seu desidera­
tum. Curiosamente, a razão do legislador é, nesse caso, um instru­
mento do instinto do indivíduo mas um instinto do indivíduo é
também inversamente um instrumento da razão do legislador.
Eric Voegelin nos mostrou, no seu livro Enlightenment and
Revolution, como se realiza esse processo. Foi preciso que nos sé­
culos XVII e XVIII a alma humana, tal como havia sido conce-

45
bida pelos gregos, fosse destruída pelos filósofos que procuravam
construir algo de novo sobre as ruínas da Antigüidade. O "espí­
rito" , as "luzes" eram as únicas coisas que restavam desse trabalho
de destruição. A razão hegemônica, exercendo sua soberania
sobre as paixões, de Sócrates, deixava de ser o centro espiritual da
existência humana e uma razão qualquer, uma reflexão qualquer
sobre os erros ou abusos das autoridades espirituais da época,
podia constituir o que se considerava então o "espírito" , as "luzes"
de que essa época tanto se orgulhava.
Voegelin atribui essa destruição do centro espiritual da exis­
tência humana aos ataques que sofreu na época o cristianismo. E
não há dúvida de que Voltaire, quando criticava os erros e os abu­
sos das autoridades espirituais de seu tempo, não tinha outro ini­
migo em vista. Mas quando Voegelin nos fala do centro espiritual
do homem, mediante o qual o homem se abre para a realidade
transcendente, não podemos deixar de pensar que esta era tam­
bém a situação da razão hegemônica de Sócrates. A organização
das paixões do homem, tal como a entendia Sócrates, levava tam­
bém à transcendência.
Voltaire, naturalmente, não tinha a menor idéia de que es­
tava atacando não apenas o cristianismo mas o promotor daque­
las "luzes" que, ao longo de tantos séculos, vinha iluminando o
Ocidente. Na sua época tinha-se perdido completamente a noção
de quem era Sócrates, a noção de tudo o que se devia a ele. Apro­
veitava-se, sem a menor cerimônia, de tudo quanto dele se her­
dara sem a curiosidade de saber de onde proviera. Como reagiria
Voltaire se um dia um gênio malicioso o levasse a comparar as
suas próprias "luzes" com as do filósofo esquecido?
Seja como for, a transcendência foi abandonada e com ela o
centro espiritual do homem que lhe dá acesso. Onde situá-lo
então? Tendo-se perdido a noção de transcendência, iniciou-se a
procura do centro nas profundezas da imanência. Surgiu a era da
genealogia das paixões. Helvetius apareceu em cena.

46
Foi essa uma época extremamente desconcertante. Havia,
por um lado, uma densa obscuridade espiritual. Homens como
Auguste Comte, como Hegel ou como Marx lançavam sobre o
mundo as sombras sinistras de suas várias megalomanias. Ho­
mens como Rousseau, Kant ou Goethe tentavam construir pre­
cários redutos de sanidade mental, na vã esperança de conter o
ímpeto da investida obscurantista. A genealogia das paixões não
havia produzido aquilo que dela se havia esperado, isto é, a for­
mação de um novo centro para a vida espiritual do homem. O
que havia sido possível, enquanto se respeitava a transcendência,
tornava-se agora inviável quando imperava a imanência.
Nas últimas décadas do século XIX, o problema da genealo­
gia das paixões foi retomado - mas dessa vez retomado por um
homem cuja alma estava inspirada e mesmo incendiada pela flama
vivificante do espírito de Sócrates - Friedrich Nietzsche. Voege­
lin, no seu estudo sobre Helvetius, mostra-nos a diferença entre
ele e Nietzsche. Vinculado a Locke, Helvetius, na sua genealogia,
admite a hipótese de que a aspiração à felicidade engendre a von­
tade de poder. É prepóstera, nos adverte Voegelin, a idéia de que
César ou Alexandre almejassem o poder para serem felizes.
Mas a diferença entre Helvetius e Nietzsche é muito maior
do que isso. Helvetius foi inspirado por uma espécie de religiosi­
dade intramundana caracterizada por uma inversão na direção a
ser tomada na procura do realissimum da existência. Essa nova
atitude se torna evidente, por exemplo, em Hobbes, em quem a
inversão se configura como uma fuga do summum malum - a
guerra civil - em substituição ao summum bonum. A inversão da
direção se estabelece assumindo o título de genealogia e se ofere­
cendo como instrumento de interpretação da ordem interna da
natureza humana.
Nietzsche, ao contrário, foi inspirado por uma religião
transcendente, a religião de Israel. Sua descrição, na Genealogia
da moral, de como o homem bárbaro, habituado a destroçar o

47
m1migo, volta seus instintos cruéis contra si mesmo e, com a
mesma violência com que o despedaçava, faz de si mesmo o ob­
jeto desse furor - essa descrição é o prelúdio do nascimento da
alma no ser humano, a alma, nos diz ele, que é uma coisa mara­
vilhosa e da qual pôde surgir algo de absolutamente inesperado,
o amor cristão.
É claro que Nietzsche está com os olhos voltados para a his­
tória de Israel quando descreve essa situação - a história de Is­
rael, o povo que descobriu a transcendência. Ele vê nessa trans­
formação uma doença e um mistério. Possuidor de uma alma, o
homem torna-se um animal interessante mas, ao mesmo tempo,
um animal doente. Animal interessante porque ele tem agora um
projeto, uma visão do mundo transcendente. Animal doente por­
que a sua saúde parece agora estar condicionada a uma obediên­
cia estrita às leis do mundo imanente.
Alasdair Maclntyre, no seu livro Three Rival Versions of
Moral Enquiry, nos faz uma "narrativà' dessas versões, segundo a
qual haveria uma Enciclopedista, outra Genealógica e a terceira
Tomista. Atribui a Nietzsche e não a Helvetius a origem da ver­
são genealógica, embora este tenha sido o primeiro pensador eu­
ropeu a se ocupar de genealogia. A verdade é que Maclntyre não
está pensando na Enciclopédia de Diderot quando se refere à ver­
são enciclopedista, caso em que, naturalmente, Helvetius deveria
nela estar incluído. Está pensando na nona edição da Enciclopé­
dia Britânica, escrita com a contribuição dos professores dos es­
tabelecimentos universitários dominantes na Escócia, na Alema­
nha e em outros países no fim do século XIX, que criaram um
sistema de referências e um contexto de verdades a serem respei­
tadas nas conferências pronunciadas nesses estabelecimentos, em
muitos casos, pelos própios contribuintes da mencionada Enci­
clopédia britânica.
A versão genealógica é atribuída a Nietzsche. O filósofo,
como se sabe, rompeu com a tradição universitária e colocou-se na

48
posição de um outlaw. Essa é curiosamente a razão pela qual Ma­
clntyre o considera um genealogista. O fato de ter Nietzsche escri­
to uma genealogia da moral parece ter pesado pouco na avaliação
de Maclntyre - parece mesmo considerar que em tal livro Nietzs­
che adotou um estilo que se aproxima do tipo de conferência que
os contribuintes da Enciclopédia britânica haviam adotado.
Qual era o propósito de Nietzsche ao escrever a genealogia
da moral? pergunta Maclntyre - é, responde ele, exibir a gêne­
se da deformação psicológica envolvida na moralidade do fim do
século XIX e da filosofia e teologia que a sustentavam - o tipo
de moralidade, filosofia e teologia de que participavam também
os professores de Nietzsche, Adam Gifford e seus contemporâ­
neos de Edimburgo. E continua: por conseguinte, a tarefa do ge­
nealogista deverá em geral consistir na descrição das formações
sociais e psicológicas nas quais a vontade de poder sofre modifi­
cações e põe uma máscara para aparecer como vontade de verda­
de; especificamente a tarefa do genealogista deverá consistir em
mostrar social e conceitualmente como o rancor e o ressentimen­
to por parte das classes inferiores destruíram os valores da nobre­
za aristocrática, dos heróis arcaicos e os substituíram por uma ta­
bela de valores sacerdotais na qual a preocupação com a pureza e
a impureza dissimula a realidade da malícia e do ódio.
Maclntyre confunde genealogia com psicologia. Quando
Nietzsche, na Genealogia da moral, nos mostra um instinto de
poder voltando-se contra si mesmo e originando um espaço in­
terior, a alma do homem, ele está fazendo genealogia. Mas, quan­
do ele nos mostra a vontade de poder se dissimular sob a másca­
ra da vontade de verdade, está fazendo algo de essencialmente
diferente, está fazendo psicologia, psicologia dionisíaca, pois é
somente sob o signo de Dionísio que a psicologia de Nietzsche
poderia ser entendida.
A narrativa que fizemos, páginas antes, do nascimento da
alma humana tal como Nietzsche a fez, corresponde mais ao que

49
estamos agora sugerindo do que o que faz a narrativa do filósofo
escocês. Uma vontade de poder que se modifica e se esconde sob
a máscara de uma vontade de verdade é ainda, diga-se o que
se disser, uma vontade de poder. A alma humana que, segundo
Nietzsche, resulta da anulação e da dissolução da vontade de
poder, representa um horizonte inteiramente novo; o interior da
alma humana é um contexto em que novas forças entram imedia­
tamente em ação, todas elas voltadas para um objetivo que se afir­
ma não mais como poder mas como cultura. O intelectualismo
de Maclntyre, inspirado talvez em São Tomás de Aquino ou
mesmo em Aristóteles, faz dele um mau psicólogo. Já registramos
em páginas anteriores a psicologia deficiente de Helvetius que o
faz crer que a vontade de poder de um homem pode ser inspira­
da pelo desejo de felicidade; aqui o que temos a observar é a cren­
ça de Maclntyre de que o poder, depois de se anular e de se dis­
solver, pode continuar sendo um poder.
O bárbaro que volta contra si mesmo a crueldade com que
despedaçava o inimigo não é um ressentido. Os israelitas, os cris­
tãos que assumem uma culpa, um pecado, não são ressentidos. O
clima da culpa, do pecado, é justamente o oposto do clima do
ressentimento. O sentimento de culpa, de pecado, nobilita. O
ressentimento avilta.
Quando Nietzsche nos diz que houve uma inversão de va­
lores - que o que era pobre, maldotado, deficiente, sem poder,
passou a ser considerado o que era bom e que o que era rico,
nobre, magnífico e poderoso, o que era mal - quando disse isso
estava descrevendo não o aparecimento da alma na natureza hu­
mana, mas uma fase mais adiantada do processo histórico. Não
há dúvida de que a famosa inversão de valores, quando houve, foi
obra do ressentimento. Mas não estamos aqui procurando dizer
que, segundo Nietzsche, não houve ressentidos no cristianismo.
Estamos, sim, afirmando que, segundo Nietzsche, a origem do
cristianismo foi nobre e não vil, estamos dizendo que o cristianis-

50
mo, segundo, Nietzsche, não teve como origem o ressentimento.
Nunca se encontrará, na sua vasta obra, uma palavra sequer sobre
Jesus que não reconheça irrestritamente sua nobreza intrínseca.
Os valores sacerdotais a que se refere Maclntyre, nos quais a preo­
cupação com a pureza e a impureza dissimula a realidade da ma­
lícia e do ódio, colocam-se em oposição frontal ao que diz Jesus
àqueles que querem apedrejar a mulher pública: "Quem, na sua
consciência, sinta que está isento de qualquer pecado, atire a pri­
meira pedra''.
Jesus poderia igualmente ter dito: Quem, na sua consciên­
cia, sinta estar isento do pecado da inveja, do rancor e do ressen­
timento que pronuncie, em primeiro lugar, um j ulgamento sobre
como qualificar os que são magníficos e poderosos.
Jesus ensinava aos homens sobretudo a pureza d' alma; sem
essa pureza, as outras espécies de pureza não contavam para ele.
Os valores sacerdotais não representam e nunca representaram o
valor a que o nome de Jesus está associado. Nietzsche compreen­
deu isso melhor do que ninguém, e é simples chicana pretender
que tal verdade tenha sido por ele ignorada.
O intelectualismo de Maclntyre faz dele um mau psicólogo,
dissemos antes. Por isso, os seus mestres, São Tomás de Aquino e
Aristóteles, são grandemente responsáveis. O que há de má psico­
logia, em muitos textos desses dois grandes filósofos, é na realida­
de surpreendente. Nenhum dos dois poderia figurar como psicó­
logo entre Sócrates, Platão, Santo Agostinho, Lutero, Pascal,
Rabelais, Montaigne, Shakespeare, Goethe, Dostoiesvsky ou
Nietzsche. Aristóteles trai suas limitações quando se manifesta
sobre a condição servil do homem; e também quando deixa ver
que não se apercebe de forma alguma da maneira e do nível de
profundidade em que se apresenta para o filósofo o difícil e com­
plexo problema da liberdade humana. São Tomás de Aquino, ape­
sar da inspiração cristã que indubitavelmente o habitava, nunca
pôde, sobre as bases de uma tal inspiração, construir um edifício

51
intelectual livre da tirania de Aristóteles, sobretudo por meio da­
queles aspectos em que o filósofo grego era mais deficiente.
Se a "vontade de poder" pode sofrer uma modificação e se
manifestar sob o aspecto de uma vontade de verdade, por que
considerar isso uma distorção e uma dissimulação? A vontade de
verdade é uma coisa digna de todo o respeito e, mesmo que esti­
véssemos convencidos de que ela tem uma origem na vontade de
poder, nem por isso deixaríamos de lhe manifestar o maior res­
peito e consideração. Nietzsche, ele próprio, assim o fez. A von­
tade de verdade é a vontade de transcendência, a vontade de pela
ascensão dialética chegar àquele mundo em que estaríamos livres
dos percalços e das agressões da imanência. Sócrates pensou que
a origem dessa vontade estivesse na atividade racional, mas se
Maclntyre pensa que é na vontade de poder, que diferença isso
faz no cômputo das coisas? Nietzsche também pensou que a
alma, uma coisa maravilhosa e que havia sido o objeto preferido
das cogitações de Sócrates, tivesse tido, como origem, o poder do
homem bárbaro, voltado contra si mesmo. Discordamos de Ma­
clntyre, no que diz respeito ao processo psicológico, em virtude
do qual o poder se transforma em algo diferente de si próprio.
Mas concordamos, plenamente, se o que Maclntyre quer narrar
é a transformação do poder em algo maravilhoso e que lhe era in­
finitamente superior - o que não parece ser o caso.
Além dessas observações, seria necessário indicar a confusão
que o filósofo escocês estabelece entre as transformações do poder
e o aparecimento da moral dos escravos. Não há aqui nenhuma
interferência de rancores ou ressentimentos. A moral dos escravos
aparece na história do povo hebreu, eterna vítima dos povos con­
quistadores. Era inevitável que a humildade, a compaixão, o al­
truísmo aparecessem no seio desses povos humilhados, vítimas
do desprezo e do desamor dos povos que os conquistavam, como
valores superiores, porque a "necessidade do sentimento de po­
der" é comum aos poderosos e aos oprimidos. Não se trata aqui

52
de uma distorção ou de uma dissimulação da vontade de poder.
Trata-se, simplesmente, de uma inversão do desempenho que era
atribuído à vontade de poder como protagonista do drama da vida
humana. Os povos conquistadores, senhores do mundo, com suas
crueldades, sentiam-se fortalecidos e confortados na sua necessi­
dade do sentimento de poder e consideravam, por isso, como su­
periores os valores que os conduziam a essas chacinas. Do mesmo
modo, os povos oprimidos, conquistados, os escravos, esses seres
humilhados e desprezados, em virtude da mesma necessidade do
sentimento de poder, passaram a ver na humildade, na compai­
xão, no altruísmo e na resignação os valores superiores com que
deveriam orientar as suas vidas. Eventualmente, esses valores dos
povos oprimidos, que eram também os valores das classes inferio­
res numa sociedade não oprimida, passaram a ser aceitos pelas
classes superiores dessa mesma sociedade. E daí se originou a dis­
tinção nietzscheana entre uma moral de nobres e aristocratas e
uma moral de escravos, de humilhados e de oprimidos.
Onde está então a transformação social e conceitua! que
levou o rancor e o ressentimento por parte das classes inferiores a
destruir o prestígio da nobreza aristocrática, dos heróis arcaicos e
substituí-lo por uma tabela de valores sacerdotais na qual a preo­
cupação com a pureza e a impureza não era mais que um disfar­
ce para a malícia e o ódio?
O rancor e o ressentimento das classes oprimidas não teriam
destruído o prestígio da nobreza aristocrática sem que se tivesse
produzido antes um acontecimento essencial, a emergência da
alma no ser humano. Entretanto, uma vez esse fato acontecido, o
trabalho do genealogista cessa. Explicar o que acontece na alma
humana, rancor, ressentimento ou qualquer outra emoção é tra­
balho de psicólogo, não de genealogista. A criação de uma tabe­
la de valores sacerdotais, na qual a preocupação com a pureza e a
impureza não é um disfarce para a malícia e o ódio, é uma situa­
ção que cabe ao psicólogo, não ao genealogista analisar. E não há

53
dúvida de que Nietzsche, como grande psicólogo que foi, tinha­
se dedicado a essa análise.
Eram os cristãos ressentidos, rancorosos, cheios de ódio e de
malícia? Talvez até tivessem sido. Mas não foram esses sentimen­
tos que deram origem à moral que adotaram. Nietzsche, nas suas
diatribes contra o cristianismo, certamente terá contribuído para
criar a impressão de que assim pensava. Mas ele investiu também
contra Sócrates no começo de sua carreira - contra Sócrates que
foi depois fonte quase permanente de sua inspiração. Só quem lê
Nietzsche como ele deve ser lido, isto é, com a atenção voltada
não para o que ele diz, mas para seu projeto de vida, pode assi­
milar o que há de permanente em cada coisa dita. Sócrates leva
avante o seu projeto de vida amparado na ironia, Kierkegaard
leva o seu amparado na máscara e na ironia. Nietzsche não usa a
ironia, mas faz da máscara seu equipamento necessário.
Nietzsche esconde-se não apenas atrás de personalidades,
César ou Sócrates, Napoleão ou Wagner, como também por de­
trás das idéias que deixa consignadas em seus livros. Essa necessi­
dade de se esconder por detrás de personalidades ou de idéias, de
ser comediante, poderia parecer paradoxal tendo em vista o fato
de ser a natureza de Nietzsche diretamente contrária à natureza
de um comediante. Ele mesmo nos diz, na sua Gaya scienza:
"[ . . ] eu sou de natureza essencialmente antiteatral". Mas na sua
.

incursão pelo mundo grego o filósofo havia encontrado Dionísio,


uma força transformadora que despertava nos homens o desejo
de se tornarem máscaras, máscaras de um ser supra - personal,
divino. Depois do encontro, a psicologia de Nietzsche não pode­
ria mais ser descritiva - havia-se transformado numa psicologia
dionisíaca que forjava máscaras sucessivas na esperança de entrar
em contato com o divino.
A moral do cristianismo, vista sobre o prisma de uma moral
do ressentimento, é uma dessas máscaras. Era uma mascara que
não era permanente. Os que não aceitam esse fato, os que acre-

54
ditam que a psicologia de Nietzsche é meramente descritiva, se­
rão levados a conseqüências que talvez não queiram endossar -
inclusive à idéia de que Dionísio nenhuma importância tinha na
obra de Nietzsche e de que sua psicologia se inspirava num rea­
lismo científico natural.
Depois de ter repudiado duas das três versões da moralida­
de que havia apresentado como objeto de sua pesquisa, Maclnty­
re elege a terceira, a versão tomista como a que deveria ser prefe­
rida. Sua argumentação para nos provar que a versão tomista é
superior às outras está longe, entretanto, de ser convincente. Co­
meça nos descrevendo a crise que ocorreu no século XIII, na Uni­
versidade de Paris, quando novos textos de Aristóteles foram
descobertos. A universidade tinha uma tradição augustiniana,
segundo a qual a liberdade estava totalmente dissociada da ra­
zão no homem. E os novos textos descobertos revelavam que
para Aristóteles a razão estava associada a essa liberdade. A facul­
dade de escolha, que era o nome que Aristóteles dava à liberda­
de, era concebida como um instinto raciocinativo ou como uma
razão desiderativa.
Maclntyre crê que São Tomás de Aquino estava numa situa­
ção fronteiriça entre as duas tradições - isso graças à influência
que recebera de Alberto, o grande, um teólogo augustiniano que
também havia assimilado a maior parte do novo pensamento
aristotélico revelado em textos recentemente descobertos. A posi­
ção de São Tomás de Aquino permitia, portanto, superar a in­
compatibilidade que existia entre essas duas tradições. Há nesse
momento uma certa nebulosidade no pensamento do filósofo es­
cocês. Maclntyre, em primeiro lugar, reconhece que existe a in­
compatibilidade. Aristóteles, como em geral a filosofia clássica,
ignora a noção de vontade e não pode, portanto, admitir a noção
de que uma vontade perversa possa impedir o acesso ao homem
à verdade - que é, como sabemos, a noção que comanda a epis­
temologia de Santo Agostinho. Mas depois de penetrar numa

55
zona de densa obscuridade, em que todos os gatos são pardos, ele
chega à conclusão de que aquilo que no início, quando ainda es­
távamos na posição de Santo Agostinho, parecia uma incompati­
bilidade, transforma-se, quando chegamos à posição de São
Tomás de Aquino, em algo perfeitamente viável: de modo que se
torna possível dizer que neste último filósofo se realiza finalmen­
te a desejada superação do con fli to entre as duas grandes tradi­
ções do pensamento filosófico da cristandade - a augustiniana e
a aristotélica.
Que em São Tomás de Aquino, no século XIII, se tenha efe­
tivado uma superação do conflito entre augustinianos e aristoté­
licos é um fato claramente desmentido com o aparecimento, no
século seguinte, do conflito entre o nominalismo e o realismo.
Guilherme de Occam foi a grande figura que deu início a esse
conflito. Com ele, Lutero aprendeu a se situar no campo da filo­
sofia e da teologia. No século XVI , a questão das indulgências foi
o elemento explosivo e, quando Lutero pregou as suas teses nos
muros da Universidade de Wittenberg, o conflito entre o augus­
tinianismo e o aristotelismo não poderia ter-se revestido de forma
mais aguda. Hoje, apesar do que nos diz Maclntyre, não creio
que a situação em sua essência tenha mudado. Há quem acredi­
te na liberdade aristotélica e quem não acredita nela. Os que não
acreditam na liberdade aristotélica não o fazem porque não acre­
ditam em nenhum tipo de liberdade. Ao contrário, é justamente
porque acreditam num tipo de liberdade mais ampla, mais plena,
que recusam a liberdade diminuída que lhes oferece Aristóteles.
A liberdade em que crêem é a liberdade moral de Sócrates, que é
não como a Eva da Bíblia, tirada da costela de Adão, mas como
uma Eva que tivesse nascido ao mesmo tempo que Adão, uma
Eva irmã gêmea de Adão, que tivesse as mesmas prerrogativas e a
mesma autonomia (ou falta de autonomia) do seu companheiro.
O homem só pode olhar para dentro de si mesmo por dois
prismas: o de sua liberdade e o de sua racionalidade. O que vê na-

56
turalmente traz a marca do prisma pelo qual foi visto. Vejamos
alguns exemplos para tornar mais claro o que estamos dizendo.
Se quisermos ver nossa interioridade pelo prisma da razão,
cada ato de nossa liberdade nos parecerá ser apenas um acréscimo
à soma dos determinismos que existem no universo. Esse acrésci­
mo constituiria um fato novo, uma variação que romperia a mo­
notonia do sistema planetário (Kant) . Ou veríamos aquele ato
como uma opção entre várias possibilidades previamente deter­
minadas por nossa razão (Aristóteles) . Mas, se encararmos nossa
interioridade pelo prisma da liberdade, o que veremos é algo de
totalmente diferente. A liberdade nos aparecerá então com um
dinamismo que ignora a causalidade da razão. Por sua causa esta­
remos prontos a praticar todos os atos que a razão evitaria. Lute­
ro negou, em nome da fé, uma liberdade vista pelo prisma da
razão determinista - mas essa fé, em nome da qual negou tal li­
berdade, transmitiu-lhe uma nova liberdade, a liberdade vista
pelo prisma da própria liberdade. Foi com as forças que recebeu
de tal liberdade que Lutero pôde enfrentar a Igreja �· � Roma e pôr
em risco a própria vida. Galileu, físio ) eminente que descobriu a
lei da queda dos corpos no vazio, o astrônomo que abraçou as
idéias de Copérnico, não julgou necessário expor a própria vida
para defender a teoria heliocêntrica do universo.
Procuremos evitar as argúcias de Maclntyre, a sua maneira
de escamotear o problema da liberdade e encará-lo de frente. Para
isso, precisaremos reexaminar alguns pontos j á mencionados em
páginas anteriores.
Pelágio não estava interessado em saber se o homem era
capaz de "conhecer" , sem a ajuda divina: mas sua intuição psico­
lógica o fazia pensar que, se a graça de Deus fosse concedida a
todos indistintamente, sem que ninguém tivesse de fazer o menor
esforço para merecê-la, a virtude no homem, em pouco tempo,
desapareceria da face da Terra. E Lutero, dotado de não menor
acuidade psicológica, pensava muitos séculos mais tarde que as

57
virtudes praticadas não tendo em vista as finalidades de sua pró­
pria natureza interna, mas apenas objetivos externos como o re­
conhecimento de méritos, já não eram mais virtudes mas simples
meios ineficazes e totalmente incapazes de obter o supremo dom
da graça divina.
Na imensidade desses conflitos desaparecia a problemática
da racionalidade. Não se cogitava de saber se o homem redimido
de seus pecados era capaz ou não de exercer autonomamente a
sua faculdade racional. O problema moral, o problema funda­
mental da indagação moral era o problema da liberdade humana.
Santo Agostinho tinha-se dedicado essencialmente a esse proble­
ma. Erasmo também o fez. Mas a diferença entre Erasmo e Santo
Agostinho era que o primeiro vinha de uma tradição que nunca
se ocupara seriamente de tal problema, enquanto o segundo
vinha de uma tradição que não só o fizera como tinha sido o pri­
meiro a formulá-lo.
É fato notório que não há em Aristóteles o conceito de von­
tade. As faculdades da alma para ele são razão, instinto e uma ter­
ceira que chamou de razão desiderativa ou instinto raciocinativo.
É nessa terceira que, segundo ele, está a origem da noção de li­
berdade. Aristóteles deu-lhe o nome de faculdade de escolha.
Sócrates, entretanto, antes dele, havia concebido a noção de
liberdade de modo essencialmente diferente. A liberdade para ele
não surgia da associação do instinto e da razão, mas de um parto
em que as entranhas da alma humana davam à luz duas gêmeas,
a razão e a liberdade. Em Aristóteles, para que a liberdade exista
é preciso que a razão já esteja em existência. Para Sócrates, as duas
entram ao mesmo tempo na existência e cada uma delas tem o
seu destino próprio.
É esse destino próprio que falta à liberdade aristotélica. Ela
está sempre presa à razão, seja como instinto raciocinativo, seja
como razão desiderativa. Foi por isso que nunca desenvolveu
uma teoria da liberdade. Foi por isso que nele esse conceito foi

58
sempre descaracterizado pela introdução da idéia de racionalida­
de. A descoberta de novos textos de Aristóteles, que provocou a
crise na Universidade de Paris, augustiniana, no século XIII, pro­
vocou a crise não pela descoberta do que era novo, mas pela ree­
dição do que era velho, do que já era velho no momento em que
pôs os pés na existência. Em matéria de liberdade, Aristóteles re­
presenta claramente um retrocesso sobre o que haviam pensado
Sócrates e Platão. O bem fundado dessa afirmação pode ser facil­
mente comprovado comparando o que pensam Sócrates e Aristó­
teles sobre o escravo.
É curioso observar que, embora Lutero tenha defendido
diante de Erasmo praticamente a mesma tese que Santo Agosti­
nho defendera perante Pelágio, as conseqüências dessa defesa, nos
dois casos, tenha sido tão diferente. A eficácia da graça divina
para a salvação do homem defendida por Santo Agostinho foi
muito bem recebida pela cristandade do seu tempo, mas a mesma
defesa feita por Lutero, dez séculos mais tarde, foi tal mal recebi­
da que ele foi obrigado a se refugiar no castelo de um nobre que
o protegia para escapar da sanha assassina dos sequazes da Igreja
de Roma. Ainda nas primeiras décadas do século passado, Jac­
ques Maritain, um filósofo tomista, escrevia um livro descreven­
do os vícios que corrompiam Lutero, o desespero que sentira por
não poder oferecer a menor resistência ao pecado, à luxúria, à
falta de medida nos hábitos de mesa, procurando até mesmo mos­
trar, por meio de pinturas, as transformações físicas que aquelas
desordens produziam.
Mais de dez séculos tinham passado entre Santo Agostinho
e Lutero. Mas o que tinha realmente acontecido é que durante
esse tempo o pensamento de Aristóteles tinha-se instalado e de­
senvolvido, criando uma espécie de aliança entre a sua faculdade
deliberativa e o que o cristão considerava ser sua liberdade. Santo
Agostinho havia ensinado a existência de duas liberdades, a liber­
tas minor e a libertas majore - a liberdade de escolher entre o

59
bem e o mal e a liberdade no bem. Foi a primeira que se aliou à
faculdade deliberativa de Aristóteles, criando o conceito de von­
tade. A segunda, a liberdade no bem, foi identificada com a graça
divina, em Santo Agostinho e em Lutero. Só dessa maneira, pen­
savam eles, ficaria assegurada a autenticidade da fé de um cristão.
Essa ausência ou presença do fator Aristóteles explica assim
a boa ou má recepção pela cristandade da doutrina da importân­
cia e eficácia da graça divina, defendida por Santo Agostinho e
Lutero. Sem Aristóteles, Santo Agostinho pôde facilmente con­
vencer a cristandade de que só uma graça divina soberana pode­
ria salvar o homem. Com Aristóteles, Lutero teve dificuldade em
convencê-la de que era essa a única alternativa possível. O livre­
arbítrio defendido por Erasmo nada mais era do que a velha fa­
culdade deliberativa de Aristóteles. A vontade, o novo conceito
usado por toda a cristandade do seu tempo, nada mais do que a
velha razão desiderativa de Aristóteles. Quando Santo Agostinho
falava na liberdade entre o bem e o mal, estava pensando na ex­
periência corriqueira do cristão, na liberdade menor, que não era
a verdadeira liberdade. Quando Erasmo falava no livre-arbítrio,
estava pensando na construção artificial e espiritualmente estéril
do esquema de Aristóteles.
Assim, o fato de o homem ter perdido de vista, no período
moderno do Ocidente, a concepção socrática da liberdade moral,
deve-se não aos conflitos teológicos que precederam esse período,
mas à supremacia do pensamento de Aristóteles a partir do sécu­
lo XIII. Desse ponto de vista, Madntyre está equivocado quan­
do pensa que São Tomás de Aquino superou a crise provocada
pelo conflito formado entre Aristóteles e Santo Agostinho. Nem
mesmo Lutero superou a crise. O que conseguiu fazer foi criar
uma divisão, uma separação, no mundo cristão, entre católicos e
protestantes. Os primeiros continuaram fiéis a Aristóteles. E é
entre os segundos que podemos encontrar o fio da meada que
nos levaria a Sócrates.

60
O conceito de vontade que nos parece tão natural e espontâ­
neo é, na verdade, uma coisa extremamente artificial. Quando di­
zemos que uma pessoa tem muita força de vontade, o que que­
remos significar é que o instinto nela é menos forte do que a
causalidade da razão, como, por exemplo quando se freqüenta as­
siduamente aulas de ginástica ou se estuda prioritariamente ma­
temática, embora não sejam essas atividades que condigam com
as nossas preferências; por outro lado, quer significar também a
abrangência, a universalidade da razão, como, por exemplo, quan­
do a força de vontade se manifesta com relação a vários objeti­
vos - podemos planejar nossa vida tendo em vista a ascensão so­
cial e para isso acordamos cedo, de modo a conciliar estudos e
trabalhos e nos submetemos a trabalhos e estudos que não faría­
mos se tivéssemos em vista outros objetivos.
Mas o que pode resultar de uma combinação da razão com
um instinto que é mais forte do que ela? É evidente que de uma
tal combinação só poderia resultar a submissão, a subordinação
da razão ao instinto. O instinto reinaria, homogêneo. A força de
vontade revelar-se-ia assim como uma desordem na alma huma­
na. Do lado oposto, temos coisa muito parecida com a vontade
pura de Kant - que não tendo o instinto como ingrediente,
deixa de ser vontade. Segundo os filósofos medievais que elabo­
raram a idéia de vontade, é da sua essência ser impura. A vonta­
de pura de Kant, identificada como uma lei universal, deixa de
ser vontade. É simplesmente razão. A vontade contém, em si
mesma, um ingrediente instintivo, e instinto já não é instinto
quando identificado com uma lei universal.
O indivíduo que planeja sua vida tendo em vista sua ascen­
são social é sustentado não por sua força de vontade, noção arti­
ficial, como já dissemos, mas por sua ambição, instinto simples,
embora equívoco. É a ambição que o faz levantar-se cedo, execu­
tar trabalhos que não o agradam e estudar o que para seu gosto
não seria prioritário; enfim, é ela que o faz obedecer a todos os

61
requisitos que se apresentam como degraus necessários na escada
de sua ambição. Há nisso abrangência, não universalidade. Há
um objetivo único, a ascensão social, embora esse objetivo abri­
gue uma variedade de objetivos que lhe são subordinados e que
contribuirão, se forem cumpridos, para a realização do objetivo
maior. Há abrangência nisso, repetimos. Haveria universalidade
se a ambição pudesse ser, uma razão, considerada uma caracterís­
tica de toda a humanidade.
Lutero foi um reformador brutal, violento. Procurou reavi­
var a consciência religiosa de um povo que ia levianamente assi­
milando idéias incompatíveis com a crença que pretendia profes­
sar. Teve de fazer o que os russos, não contaminados pelas idéias
de Aristóteles, nunca precisaram fazer: uma revolução religiosa. A
Rússia, excetuado o período da aventura marxista e stalinista,
sempre respirou, graças a seu cristianismo ortodoxo, um clima de
liberdade espiritual, apesar das eventuais perseguições czaristas. A
fé cristã que sempre animou esse povo nunca foi motivo para que
em seu nome se procurasse destruir a liberdade humana. Por que
então a mesma fé se tornou motivo no Ocidente para que em seu
nome se realizasse tal intuito? Joana D'Arc e Hus haviam prece­
dido Lutero na defesa da fé cristã verdadeira. Por que acabaram
os dois morrendo na fogueira, Joana D'Arc acusada de bruxaria,
Hus acusado de heresia? Por que Lutero escapou do mesmo fim,
por um quase milagre, pela sorte de encontrar um amigo pode­
roso que o protegeu? É evidente que a fé cristã se tornara o mo­
nopólio de uma organização política que não admitia que essa fé
se exprimisse num clima de completa liberdade. A Igreja Católi­
ca pretendia ter o monopólio da idéia de liberdade. Havia apren­
dido com Aristóteles, o filósofo pagão, o que era a liberdade. Por
isso estaria disposta a queimar Lutero na fogueira, já que ele mos­
trava ter sobre a liberdade uma idéia diferente.
Esse era o grande pecado de Lutero. O arbítrio escravo era
a negação do livre-arbítrio de Erasmo e de Aristóteles. Lutero

62
pregava a predestinação numa oposição desesperada ao paganis­
mo de Aristóteles. Mas a sola fide, evidentemente, não era uma
pregação anticristã. Era certamente o cristianismo na sua mais
pura expressão. Para o cristianismo autêntico a fé era o caminho
para a liberdade. Era o que pregara Jesus durante a sua vida ter­
rena. Era aquilo em que acreditavam São Paulo, os outros após­
tolos e Santo Agostinho. Mas não era aquilo em que acreditava a
Igreja de Roma. Para ela, era a liberdade o caminho que levava à
fé. O máximo que admitia era que a liberdade e a fé se encontras­
sem a meio caminho. Quando Lutero dizia "se quiser pecar,
peque fortemente", ou quando exclamava "queria imaginar um
pecado terrível para poder zombar do Diabo", ele escandalizava a
cristandade católica que não podia compreender essa desenvoltu­
ra, essa petulância, essa liberdade perante Deus - liberdade que
Lutero possuía porque já encontrara uma fé que nenhum peca­
do, por maior que fosse, poderia jamais destruir.
A diferença entre o cristianismo ortodoxo russo e o cristia­
nismo católico é que o primeiro nunca se deixou levar pelas ar­
gúcias de Aristóteles. Platão sempre foi o seu grande inspirador.
A Igreja Ortodoxa Russa estaria sempre disposta a acolher no seu
seio o mais terrível pecador. Nunca lhe passaria pelo espírito a
idéia de vender "indulgências" como o fez a Igreja de Roma. A
sua "indulgêncià' era gratuita, bastava que o pecador se jogasse
aos seus pés, movido pelo profundo arrependimento que sua fé
lhe ditava. Como os russos entenderiam bem as coisas que Lute­
ro dizia sobre o pecado! O que escandalizava o cristianismo cató­
lico encantava o cristianismo ortodoxo russo. A aproximação das
du as atitudes poderá nos servir de guia para primeiro compreen­
dermos melhor a natureza da liberdade na obra de Lutero e, se­
gundo, para vermos como a idéia de liberdade inerente ao espíri­
to do cristianismo autêntico foi respeitada ao longo de todo o
percurso da evolução do cristianismo russo, mesmo depois que
entrou em contato com a filosofia grega, representada por Platão.

63
Fé e liberdade foram assim conciliadas, no cristianismo or­
todoxo russo, sem que fosse necessário escrever um tratado para
explicar essa conciliação. Lutero escreveu esse tratado, absoluta­
mente genial, mas com medíocres resultados. Mesmo os que o se­
guiram nem sempre o compreenderam inteiramente. Melanch­
thon, por exemplo, seu grande colaborador, era reticente quanto
à questão da predestinação. Havia nisso um problema de equilí­
brio; o catolicismo parecia ter conquistado esse equilíbrio: Lute­
ro, tentando encontrá-lo, ultrapassara talvez, levemente, certos li­
mites. Mas a solução a que visara era correta e as reações que
provocou eram muito mais devidas aos erros que se obstinavam
do que aos pequenos excessos que foram cometidos.
Não tendo sido contagiado por Aristóteles, o cristianismo
ortodoxo russo e a cultura russa em geral não precisaram de um
Lutero. Não só no plano religioso, como também no plano lite­
rário e filosófico, os benefícios da ausência de Aristóteles se fize­
ram sentir de modo profundo na cultura russa. No século XIX,
quando a Europa do Ocidente se deu conta do que estava acon­
tecendo, a cultura russa respirava um clima de extraordinária
liberdade; liberdade justamente que dava a essa cultura uma
dimensão de tal grandeza que, mesmo o Ocidente, com toda a
sua pretensão de líder espiritual do mundo, não podia deixar
de reconhecer.
Comecemos por Dostoievsky - considerado por muita
gente o maior romancista de todos os tempos. Dostoievsky não é
somente um romancista, mas também um pensador. Os dramas
espirituais descritos em seus livros têm uma significação univer­
sal. Tudo é mostrado por meio da imaginação, nada está mais
longe de um romance intelectualizado. E, entretanto, os seus li­
vros fazem trabalhar não apenas nossa imaginação, fazem vibrar
não apenas nossos sentidos, mas mexem com toda a nossa cons­
tituição psíquica, imaginação, sensibilidade, inteligência, caráter,
levando-nos até uma participação com a mais alta espiritualidade.

64
Dostoievsky foi um grande psicólogo. Recebeu de Nietzsche
(que me parece ser o maior psicólogo de todos os tempos) um
elogio que foi o máximo que lhe podia ter sido oferecido: "Dos­
toievsky, o único psicólogo de quem aprendi alguma coisà', disse
Nietzsche. O elogio era justo. Nietzsche e Dostoievsky sabiam,
nos lembra Nicolai Berdiaev, que a liberdade do homem é um
fardo que lhe causa sofrimento. Dostoievsky pôde assim revelar,
como só um gênio poderia fazê-lo, o drama espiritual do seu povo
tal como era vivido por todas as classes da sociedade russa, fos­
sem quais fossem as diferenças que as separavam.
Por ter vivido muito tempo no Ocidente e ter nele publicado
a maioria dos seus livros, Nicolai Berdiaev é talvez dos grandes filó­
sofos russos o que nos é mais conhecido. Sua obra é um exemplo
dos frutos de que foi capaz a cultura ortodoxa russa. Foi muito lido
entre nós durante o tempo em que viveu em Paris, exilado da Re­
volução Russa, tendo morrido antes que Gorbachev tivesse iniciado
o seu trabalho de conciliação. Sua familiaridade com a cultura filo­
sófica do Ocidente era grande. Esse foi um dos motivos por que foi
bem acolhido por nós, mas não foi o único. Berdiaev trazia-nos um
elemento novo, um elemento que nossos filósofos pareciam não
considerar, ou pelo menos não considerar como um elemento im­
portante, essencial, na pesquisa filosófica - a questão da liberdade.
Berdiaev não só nos trazia esse elemento como o colocava no cen­
tro de sua indagação filosófica. Chegava a nos dizer que espírito
não era outra coisa senão liberdade. Os problemas epistemológicos,
a que damos tanto apreço, ele os colocava em plano secundário.
Não havia, portanto, contraste mais evidente do que esse
entre o filósofo russo e a nossa filosofia ocidental. Berdiaev não
criticava os nossos filósofos; mostrava apenas que conhecia a obra
deles e continuava no seu caminho solitário. Nossos filósofos, por
seu lado, não criticavam Berdiaev. Deixavam-no prosseguir no
seu caminho solitário e eventualmente o convidavam para profe­
rir uma ou outra conferência.

65
De sua obra emanava um sentimento que podia ser expres­
so por uma profunda aversão à cultura do Ocidente. A questão da
liberdade, de que tanto se ocupava, era naturalmente suscitada
pela intensidade do seu sentimento religioso, mas tinha também
raízes no seu igualmente intenso interesse pela natureza do ser hu­
mano. Haveria no Ocidente o mesmo interesse pelo homem que
havia na Rússia? Era essa a dúvida que parecia existir no espírito
de Berdiaev. A obsessão pela racionalidade, evidente na filosofia
ocidental, era a seu ver o indício de um certo desinteresse pela na­
tureza humana - um desinteresse pelo que o homem propria­
mente era como indivíduo, como existência particular, como mo­
rada de emoções, de aspirações, de crenças, de experiências de
imanência e de transcendência, como realidade espiritual. Liber­
dade é a liberdade do indivíduo. Era provavelmente por isso que
a filosofia ocidental, obcecada pela racionalidade, não se interes­
sava por ela. Berdiaev conhecia Kierkegaard, e isso para ele era
motivo para ter esperanças no futuro da filosofia ocidental.
Finalmente liberdade é espírito. Aqui Berdiaev coloca-se
frontalmente em oposição à filosofia ocidental que pretende ver
na razão a substância, o elemento essencial do que se convencio­
nou chamar de espírito. O espírito do racionalismo é a razão ela
própria. Teríamos uma analogia perfeita da coisa se pudéssemos
imaginar um animal que mordesse a própria cauda pensando
nela encontrar alimento.
Tentamos, neste capítulo, fazer uma primeira aproximação
de alguns temas que figuraram na preocupação do homem oci­
dental nos séculos passados. No próximo capítulo, procuraremos
descrever os diversos tratamentos dados ao problema da liberda­
de pelos principais representantes da filosofia ocidental, no seu
período moderno, e pelos representantes da filosofia russa, no sé­
culo XIX.

66
CAPÍTULO II

Descartes sentia não pequeno temor da Inquisição. Quan­


do soube que Galileu havia sido condenado pelo Santo Ofício,
por ter defendido a idéia do movimento da Terra, escreveu a seu
amigo Mersenne, em 22 de julho de 1 633, ano em que termi­
nou o seu tratado sobre o mundo: " [ . . ] ce qui m' a si fort éton­
.

né que je me suis quasi résolu à bruler tous mes papiers, ou du


moins de ne les laisser voire à personne . . . je confesse que s'il (le
mouvement de la terre) est faux, tous les fondements de ma phi­
losophie le sont aussi, car il se demontre par eux évidemment, et
il est tellement lié avec toute les parties de mon traité que je ne
l' en saurais détacher sans rendre le reste tout défectueux". Seu
"tratado sobre o mundo" efetivamente foi publicado 27 anos de­
pois de sua morte.
Há dois pontos interessantes a assinalar nessa carta escrita a
Mersenne: primeiro, o fato de que uma teoria sobre o movimen­
to dos planetas tenha uma ligação tão estreita com a substância
da filosofia de Descartes; segundo, o temor do filósofo que o le­
vava mesmo a considerar a possibilidade de queimar seus escritos.
O que significa o fato de que uma teoria sobre os movimen­
tos dos planetas tenha também a função de fundamento de refle­
xões sobre a liberdade e a moral? A meu ver significa que só a voz
da razão, da racionalidade tem direito a se fazer ouvir no recinto

67
severo da filosofia. A liberdade moral, a irmã gêmea da razão so­
crática, era esquecida. Segundo Descartes, a liberdade era dádiva
de Deus. Dádiva não encontrada no caminho da fé, como no
caso de Lutero, mas dádiva gratuita, como a da razão, fundamen­
to da ciência. A diferença era que ela nada tinha a ver com a ciên­
cia. A liberdade não tinha um fundamento racional.
Entretanto, como exigir para a liberdade um fundamento
quando ela já era por si própria um fundamento? Não é necessá­
rio chegarmos à teoria do Ungrund de Jacob Boehm para defen­
der os direitos da liberdade a uma absoluta prioridade ao lado da
razão. Sem essa prioridade, qualquer edifício moral que se queira
construir há de desmoronar. E sem um edifício moral a seu lado,
qualquer edifício filosófico que se queira construir encontrará
sempre um terreno movediço no momento em que se tentar plan­
tar os seus alicerces. A imagem do homem surge, toma corpo, se
forma, amadurece não somente a partir de sua racionalidade mas
também a partir de sua liberdade. Descartes foi um cientista ex­
traordinário, genial; as descobertas que fez no campo da ciência
foram, sem a menor dúvida, da maior importância. Mas tudo o
que ele nos diz sobre a moral é, sem exceção, de uma banalidade
contristadora, exalando um vago odor de mediocridade e deixan­
do mesmo ver, por vezes, uma ponta de ridículo. Sua moral pro­
visória será sempre uma moral provisória porque "[ . . . ] precisa­
mos de normas regulares e estáveis para regular nossa conduta, ao
passo que o conhecimento, que poderia servir-lhe de fundamen­
to, não é nunca estável, está sempre progredindo" . E não é ape­
nas isso - se o conhecimento instável não pode servir de funda­
mento à moral que deve ser estável, qual será o fundamento da
moral provisória?
Descartes não responde a essa pergunta. A simples descrição
do que é moral provisória faz as vezes, para ele, do que seria uma
resposta. A moral provisória não deverá inovar, deverá obedecer
aos costumes do país em que se vive, seguir a religião aí estabele-

68
cida, evitar excessos e extravagâncias. Será uma moral provisória
que deverá se eternizar no provisório. Não seria mais direto, mas
honesto, mesmo, declarar abertamente que esse estilo de pensar
não comportava a descoberta de um fundamento para o proble­
ma da moralidade?
O outro ponto interessante, na carta de Descartes a Mersen­
ne, é o temor manifestado diante das providências que o Santo
Ofício poderia tomar em represália à divulgação de suas teorias.
Não temos aqui uma manifestação exemplar de como o desen­
volvimento racional, mesmo elevado ao seu mais alto grau, não
demonstra ter a menor influência no caráter de um indivíduo
tendo em vista suscitar a energia necessária para torná-lo capaz de
enfrentar um perigo como o que ameaçava Descartes? Compare­
mos a atitude de Lutero com a do filósofo francês. Lutero encon­
trava, na sua consciência, energias morais suficientes para confir­
mar perante a Dieta de Worms tudo o quanto estava escrito nas
teses pregadas no muro da Universidade de Wittenberg. Descar­
tes não encontrava no seu Cogito mais do que a certeza de sua
existência. A solução para ele era não publicar os seus escritos, tal­
vez queimá-los. Temos aqui, ao vivo, dois exemplos de como po­
dem agir, separadas uma da outra, a racionalidade e a liberdade.
Não é nada surpreendente que Descartes, com a sua aten­
ção voltada para a racionalidade só tenha conseguido "pescar", no
mergulho que deu no Cogito, a certeza da existência. Tivesse ele
a sua atenção voltada para a liberdade, encontraria o filósofo, no
mesmo Cogito, um amontoado de paixões, de emoções, de for­
ças que se combatem e que se anulam, transformando o mergu­
lho na oportunidade de uma pesca mais rendosa. A diferença
entre os dois mergulhos seria que num encontraria a certeza da
existência, no outro, um caos de paixões, de forças desencontra­
das, esperando uma força maior capaz de dominá-las.
Husserl, nas suas Meditações cartesianas, sugere-nos uma vol­
ta a Descartes. Uma volta que teria, entretanto, um objetivo di-

69
ferente já que não visava encontrar de novo a certeza da existên­
cia mas somente a opulência das virtualidades.
Na sua pesca, Husserl, portanto, pôs de lado o problema da
existência; e isso significa que pôs de lado não apenas a certeza de
que existimos, como também a realidade das paixões, das emo­
ções, das forças desencontradas que Husserl traz à tona quando
volta do mergulho. Ele as chama de vivências, essas emoções,
essas paixões destituídas de realidade.
O que aconteceu, de fato? Husserl quis, com o mergulho
que deu no Cogito, realizar uma pesca que fosse algo mais do que
a que produzira os magros resultados obtidos por Descartes. Mas,
querendo mais, fez tão pouco quanto ele. Descartes mergulhou
concentrando o seu interesse na existência e ignorando as virtua­
lidades. Husserl mergulha concentrando-se nas virtualidades e ig­
norando a existência. Refletidas num espelho, com Husserl, as
paixões, as emoções, os instintos deixam de ser forças atuantes e
passam a ser imagens fantasmas. É só quando a atenção é volta­
da para a liberdade que os instintos, as paixões e as emoções
podem ser vistas como forças atuantes.
O alheamento de Descartes, com relação ao problema da li­
berdade, foi desastroso. Com Descartes, a razão tornou-se capaz
de conquistar o mundo, impondo ao universo físico a ordem e a
regularidade necessárias para assim fazê-lo; mas tornou-se também
incapaz de impor a ordem na alma humana, de ser hegemônica,
de exercer sua soberania sobre as emoções, sentimentos e paixões
que nos habitam. Deixou de ser uma "razão engajadà', como se
poderia chamá-la, tomando o contrapé da terminologia moderna.
A volta a Descartes de Husserl nos parece assim ter sido inú­
til. O preço do ideal de transparência formulado por Husserl nas
suas Investigações lógicas parece mesmo ter sido muito alto. Cus­
tou-nos a nossa liberdade. Isso se torna amplamente evidente nas
obras de seus dois discípulos mais ilustres, Max Scheler e Nicolai
Hartman. Falam abertamente de emoções e valores que não são

70
movidos por uma força interna - aparentemente um emociona­
lismo ético cujas raízes estão na racionalidade e não na liberdade.
Hartman propõe-se a investigar o problema da liberdade. A
liberdade, segundo ele, nada mais é do que um acréscimo de cau­
salidade ao mundo de causalidades já existente. Temos aqui de
volta, contrariando a faculdade de escolha de Aristóteles e o livre­
arbítrio de Erasmo, a causalidade livre elaborada por Kant na sua
Crítica da razão prdtica.
A contrariedade, entretanto, não é completa. Kant não faz
senão completar o que Aristóteles havia começado, isto é, definir
a liberdade em termos de racionalidade. Descartes nem mesmo
tinha-se apercebido do problema de tal modo estava imerso em
racionalidade. A liberdade era por ele simplesmente colocada nas
mãos de Deus. Mas o problema existia, o homem não havia sim­
plesmente descoberto a razão, mas também a liberdade moral.
Embora Kant estivesse fascinado com a idéia de ciência, procu­
rou encontrar no seu mundo um lugar para a liberdade.
A razão cartesiana é hoje ainda chamada de razão instru­
mental porque era um instrumento de poder, garantido pela cer­
teza que Descartes havia conquistado com o Cogito. Com o cor­
rer do tempo, verificou-se que essa razão cartesiana podia ser
utilizada não apenas para adquirir poder sobre a natureza, como
também para outras finalidades - exceto, estranho paradoxo,
para estabelecer ordem na alma humana, dirigindo e hierarqui­
zando as paixões, de modo a proceder como queria a filosofia
clássica, isto é, criando o homem dentro do homem. É a essa
razão, capaz de ser empregada para qualquer finalidade, com ex­
ceção daquela que nos parece ser a essencial, que damos hoje o
nome de razão desengajada.
O que faltava à razão desengajada para poder ser utilizada
para a finalidade proposta pela filosofia clássica era j ustamente a
contribuição da liberdade. A razão prática de Kant, sentindo-se
desassistida pela liberdade, tentara criar uma liberdade extraída

71
de suas próprias entranhas. Mas o estratagema não surtira efeito.
A liberdade kantiana não conseguira estabelecer contato com as
paixões e emoções do homem - ao contrário, tentando preser­
var a universalidade da razão, não hesitara em castrá-la, transfor­
mando-a numa lei universal, nos moldes da ciência. Mas a uni­
versalidade da razão é uma coisa, a universalidade da ciência é
outra. Entre a universalidade da razão engajada, da moral e a uni­
versalidade desengajada da ciência não há como hesitar - é a
primeira que se deve escolher porque ela tem a seu lado uma po­
derosa aliada que sua rival não tem: a liberdade.
Husserl procurou evitar a trilha que havia seguido Kant. Jul­
gou que Kant não havia mostrado, com relação à ciência, a fide­
lidade absoluta que j ulgava indispensável. Kant incidira em pe­
quenas traições, rápidos "flertes" com a metafísica. Urgia
retroceder caminho, retomar a estrada no seu começo, voltar a
Descartes. Nas suas Meditações cartesianas propõe um novo mer­
gulho no Cogito. O mergulho de Descartes havia sido incomple­
to, as riquezas que jaziam nas profundezas haviam sido mal ex­
ploradas, o produto da pesca fora medíocre. Influenciado pela
ciência, pela necessidade da certeza, Descartes tivera a intuição
do Cogito. Mas Husserl, agora que Descartes lhe tinha dado essa
certeza, queria o Cogito para uma outra coisa: queria fazer dele
um objeto de ciência. Queria fazer da filosofia uma ciência sem
traições, sem "flertes" com a metafísica.
Husserl era um filósofo - mas era um filósofo que queria
fazer da filosofia uma ciência, uma ciência que começava suas in­
vestigações pondo a existência entre parênteses. O problema da
moralidade, um problema visceralmente ligado ao problema da
existência, não podia por conseguinte entrar no âmbito de suas
cogitações. Isso para não falar do problema da liberdade. Mas
seus dois discípulos Max Scheler e Nicolai Hartman não pude­
ram evitar essas preocupações. Preocuparam-se com ética e, mes­
mo um deles, Hartman, com o problema da liberdade.

72
O ponto de referência para eles não foi Descartes como
havia sido para o mestre, mas Kant. Kant era o filósofo que havia
feito a primeira grande síntese dos acontecimentos filosóficos que
se tinham produzido desde o tempo de Descartes.
Scheler manifestou escasso interesse pelo problema da liber­
dade. Concentrou toda a sua atenção sobre a questão do aprioris­
mo e do formalismo na moral kantiana. Segundo ele, o aprioris­
mo kantiano havia sido uma grande contribuição para o estudo
da moralidade, mas o seu formalismo era inaceitável. As paixões
e as emoções não podem ser ignoradas como elementos determi­
nantes na vida ética do homem. Uma simples lei moral, comple­
tamente desligada da vida dos sentimentos, não é suficiente para
a vida ética. Quanto maior for o homem de ação que estivermos
considerando, mais sua consciência estará esquecida da lei moral
que existe dentro dele para perder-se completamente no objeto
que constitui a sua ação. É esse objeto, e não a lei, que dará valor
ético a sua ação. Entre a ética formal e a ética material, Scheler se
decide por esta última.
Isso o leva naturalmente à conclusão de que o par de prin­
cípios contrastantes "formal-material" e a priori-a posteriori nada
tem a ver um com o outro. Nem tudo apriorístico é formal, nem
tudo material é a posteriori. Scheler sente-se assim autorizado a
fundar uma ética em que princípios materiais tenham a mesma
autoridade que têm os princípios formais.
Nada disso teria sido possível se ele tivesse se adstrito ao
subjetivismo de Descartes. Scheler chegou aonde chegou porque
lhe havia sido mostrado por Husserl as limitações da racionalida­
de que eram inerentes ao subjetivismo de Descartes.
Entretanto, no que diz respeito ao problema da liberdade, o
panorama é diferente. Não tendo recebido de Husserl luzes que
pudessem guiá-lo nessa questão, manifestou por ela, como já dis­
semos, escasso interesse. Coube a Hartman tratar dela. Tendo re­
cebido de Husserl as mesmas influências que Scheler, teria prova-

73
velmente ignorado o problema da liberdade se não tivesse tam­
bém sido influenciado por Scheler. Scheler resolveu para ele o
problema do formalismo de Kant, liberando-o assim para um es­
tudo mais aprofundado do problema da liberdade. Pelo menos
uma terça parte da sua obra monumental sobre a ética, é dedica­
da à abordagem do tema. Segundo ela, a liberdade se estabelece
quando "há um acréscimo de causalidade ao mundo de causali­
dades já existente" .
Já dissemos, em páginas anteriores, que vemos nessa concep­
ção uma versão da noção kantiana de uma liberdade encarada
como uma causalidade livre. Se, na questão do formalismo kantia­
no, Hartman estivera plenamente de acordo com Scheler, recusan­
do categoricamente tal formalismo, na questão da liberdade, sobre
a qual, aliás, Scheler não se pronunciara, Hartman se revelava um
fiel seguidor de Kant e, indiretamente, mas só indiretamente, se­
guidor de Descartes - uma vez que esses dois filósofos tinham
sua visão da liberdade prejudicada pela interferência de uma racio­
nalidade não engajada, isto é, pela interferência da ciência.
Kierkegaard e Nietzsche foram e continuam sendo os úni­
cos pensadores da Europa Ocidental da modernidade que levan­
taram a bandeira da liberdade autêntica. Os dois, e ninguém mais,
compreenderam na sua pureza integral a mensagem de Sócrates.
Vale a pena registrar como apareceu diante desses dois filósofos
privilegiados a visão irretocável do grande ateniense.
A exposição que se segue será uma síntese, com a utilização,
por vezes, das mesmas palavras e frases do texto de que é uma sín­
tese. O seu autor é Lee M. Capei, tradutor e introdutor do livro
de Kierkegaard - The Concept of Irony - With Constant Refe­
rence to Socrates.
Na legenda popular, três figuras apresentavam-se como sím­
bolos para Kierkegaard. Don Juan representava a sensualidade,
Fausto, a dúvida, e Ahasveras, o desespero. Na procura de seu mo­
delo, o filósofo dinamarquês escolhera para si Fausto que lhe pa-

74
recia reunir num só tipo os três elementos. Mas Goethe criara um
Fausto diferente do Fausto da legenda: um Fausto arrependido.
Kierkegaard rejeita veementemente esse Fausto. Insiste na "ansie­
dade" da consciência que mesmo o diabo não podia suprimir em
Fausto - uma idéia, acrescenta, que "existe desde o começo,
eterna, presente agora mesmo, no espírito do filósofo". Cada
época, aliás, tem seu Fausto, diz ainda, embora um tal Fausto
possa degenerar num simples retrato da época. Um Fausto que se
arrepende é um retrato do século XVIII. Um século de virtude cí­
vica, de uma ação prática mais do que banal como a do cidadão
da sociedade, de uma reconciliação não problemática da vida
com o conhecimento. Kierkegaard indigna-se com esse Fausto
"infaustiano" que se encontra por toda parte entre seus contem­
porâneos que ele chama de "consumistas confirmados". Não há
tampouco nada de faustiano nos scholars febrilmente concentra­
dos nos seus trabalhos e entre os quais se encontram as mais bem­
dotadas pessoas da sua época. Um outro grupo mais jovem tem
realmente em si algo de faustiano, mas curiosamente se associa ao
Fausto de Goethe que nada tem do elemento de sedução que
Don Juan possui em vários momentos.
Isso nos leva à concepção de um Fausto com quem Kierke­
gaard se identifica. Para sua época, o elemento faustiano só apa­
rece quando a energia humana de um modo ou de outro se sente
deficiente. A deficiência deriva da consciência de que todo co­
nhecimento é fragmentário. O Fausto de sua época está natural­
mente impressionado pelo conhecimento insuperável realizado
até então, mas, embora se sinta atraído por ele, sente sua deficiên­
cia perante essa vastidão de conhecimento que nada é diante do
que deseja: o Absoluto. Por isso, esse Fausto é isolado, um fantas­
ma sujeito a paixões tempestuosas.
Finalmente o "teste" verdadeiro desse Fausto - a confron­
tação com a sua caricatura: o inescapável Wagner. Essa imagem
suscita em Kierkegaard o desejo desesperado de se retirar de tudo,

75
de esquecer tudo o que tinha aprendido, de, talvez, pastorear
vacas ou transportar-se para um outro mundo - de suicidar-se.
Kierkegaard desenvolve uma teoria sobre o Eco. O Eco re­
pete o que nós dizemos, mas, por uma inflexível ironia, de uma
maneira diferente. O Eco o deprime mas, ao mesmo tempo, o di­
verte por ser uma paródia. Isso lhe dá uma nova idéia. Ele rever­
terá o uso do Eco, esse grande mestre da ironia. Tendo sido uma
vítima da ironia do Eco, vai agora usá-lo em seu próprio provei­
to. Vai se servir da ironia do Eco para vingar-se daqueles que o
atormentavam.
Kierkegaard reconsidera sua noção de um Fausto desespera­
do; seu uso do Eco, o grande mestre da ironia, lhe dá um novo
equilíbrio, uma resignação que não é o resultado de uma pressão
exterior, mas desenvolvida a partir de uma elasticidade interna,
de uma satisfação que triunfou no seu conflito com o mundo ex­
terno! Foi por esse caminho que Kierkegaard chegou ao seu en­
saio sobre a ironia e à figura de Sócrates. Quando anos mais
tarde, Kierkegaard exclamou que o mundo precisava de um Só­
crates, o que quis fazer foi primeiro se justificar de suas maneiras
de expressão, da sua teoria da comunicação indireta, do uso de
pseudônimos, recursos de quem pretende se esconder por detrás
do que está dizendo; segundo, justificar sua ironia que tinha a
mesma intenção; e, terceiro, dizer ao mundo que lhe faltava liber­
dade, a liberdade que não era o objeto de uma dissertação teóri­
ca, de um ensaio filosófico, mas um problema existencial, um
problema que ele vivia e que incluía todos os ingredientes de que
se compõe normalmente a existência humana: hábitos, predile­
ções, curiosidade, simpatias e antipatias, interesses, contatos hu­
manos, sem falar de sentimentos mais profundos, como o amor
e a amizade.
Era essa também a concepção de Nietzsche. A consciência
de uma missão e a aspiração à liberdade eram duas paixões como
que embutidas uma na outra que dominavam o seu espírito des-

76
de o início de sua carreira de filósofo. No seu primeiro livro A ori­
gem da tragédia, vemos explodirem essas duas paixões no seu ata­
que a Sócrates e no desrespeito pelas opiniões geralmente admi­
tidas pela sociedade em que lecionava. Nessa ocasião, deve ter
tido o mesmo sentimento de alguém que estivesse profanando um
templo de que fora assíduo visitante e onde participara com fer­
vorosa unção dos ritos sagrados que ali eram celebrados. Nietzs­
che dedicara toda a sua juventude a estudos. Quando se tornara
professor, ainda extremamente jovem, seu mundo confirmou-se
como o mundo dos estudos, o mundo da universidade, onde
esses estudos se processavam.
Entre os problemas que eram examinados, avultava a perso­
nalidade de Sócrates. Sócrates era um acontecimento prodigioso,
sobre-humano, reconhecia Nietzsche, uma força gigantesca que
derrubara deuses, demolira templos unicamente para impor sua
presença sem que ninguém se dispusesse a opor-se a essa ousadia.
Nietzsche como filólogo que era, como filólogo que aprendera a
ser, como filólogo que pretendia continuar fiel à tradição da uni­
versidade, nada podia fazer senão o que faziam todos os seus co­
legas, isto é, curvar a cabeça, submeter-se à ousadia assombrosa
do gesto socrático. Mas uma nova consciência começava a des­
pertar na mente do filólogo: a consciência do filósofo. A tradição
que um professor como ele deveria respeitar começava a lhe apa­
recer sob um novo aspecto - como a tradição de um servilismo,
como a tradição de uma escravidão. Nietzsche viu-se subitamen­
te investido de uma missão formidável, de uma tarefa para gigan­
tes, que correspondia a nada mais nada menos do que fazer Só­
crates descer do pedestal em que a universidade, pela unanimidade
de seus colegas, o havia colocado. Nietzsche queria ser livre. Não
mediu conseqüências. O preço que deveria pagar por essa ousa­
dia seria forçosamente o ostracismo a que o condenaria a univer­
sidade, como o faziam as antigas cidades gregas com seus cida­
dãos julgados culpados de crimes cometidos contra o Estado.

77
Com Nietzsche a condenação não foi imediata. Houve
ainda quem o defendesse, mas Nietzsche assumiu uma atitude
passiva como se compreendesse que seu gesto fora tão ousado
quanto o havia sido o de Sócrates. Wilamovitz, que o atacou, se­
guiu tranqüilo e com grande sucesso a sua carreira de filólogo.
Nietzsche iniciou a sua de filósofo. Wilamovitz e Nietzsche -
lembremo-nos das últimas palavras de Sócrates na Apologia de
Platão: um foi para a vida de sua carreira filológica e para a morte
de uma carreira filosófica. O outro foi para a morte de sua carrei­
ra filológica, mas para a vida de uma carreira filosófica. Os ho­
mens sabem bem o que foi melhor.
No seu primeiro contato com Sócrates, Nietzsche viu nele
um inimigo. Não era o que viria a ver mais tarde, um modelo a
ser seguido, mas era de qualquer maneira uma figura prodigiosa,
um gigante que derrubara templos e deuses. Sua compreensão de
Sócrates foi mais lenta do que a de Kierkegaard, realizou-se ao
longo de toda a sua carreira de filósofo - mais foi talvez, se não
mais profunda, pelo menos mais abrangente na sua profundida­
de. Kierkegaard concentrou-se sobre o problema da ironia.
Nietzsche viu em Sócrates um Dionísio capaz de assumir diver­
sas máscaras e não somente a máscara da ironia.
Que Sócrates tenha podido ter, desses dois filósofos tão di­
ferentes, avaliações tão semelhantes, mostra bem a dimensão gi­
gantesca da alma desse ateniense que estava pronto para confes­
sar, para quem quisesse ouvi-lo, sua própria ignorância. Tanto
para Nietzsche como para Kierkegaard o problema da liberdade
não foi apenas o tema para uma dissertação filosófica, mas um
problema existencial, um problema que tinha a ver com suas exis­
tências, com seus espíritos, com suas missões como filósofos. Isso
faz desses dois filósofos não só figuras ímpares de nossa cultura
moderna e contemporânea, mas também pontos de referência
para julgar da importância intrínseca de outros grandes represen­
tantes dessa cultura. Segundo tal critério, filósofos como Descar-

78
tes, como Spinoza, como Leibnitz, como Kant e como Husserl
não têm uma importância absoluta para essa cultura porque não
contribuíram de modo decisivo para o nosso humanismo, dotan­
do-o de uma reflexão mais profunda sobre o problema da liber­
dade. A grande importância que tiveram foi relativa, uma vez que
contribuíram para o esclarecimento de certos usos da razão, mas
certamente não os mais essenciais. Por isso é absolutamente legí­
timo indagar se a enorme influência que tiveram sobre nume­
rosos seguidores lhes dá o direito de figurar numa galeria ao lado
desses dois homens que se distinguiram mais pela alta qualidade,
pelo valor intrínseco, inerente aos efeitos e às conseqüências de
sua passagem pelo mundo: Kierkegaard e Nietzsche.
Se Descartes ou Kant ou Spinoza tivessem contribuído de
modo importante no que diz respeito ao problema da liberdade
no mundo, como se explica que a cultura da Europa ocidental,
nos tempos de Kierkegaard e Nietzsche, tivesse chegado ao esta­
do lastimável a que chegou? Como se explica que, apesar dos es­
forços desses dois pensadores, ela continue ainda hoje desalenta­
da, prostrada por terra, sem ânimo ou forças para se repor de pé
e continuar o seu caminho?
A influência de Kierkegaard parece estar se esgotando, mas
a de Nietzsche continua e hoje é impossível saber quando termi­
nará o seu reinado. No começo dava a impressão de estar com
pouco fôlego, mas, com o passar do tempo, foi revelando uma re­
sistência que não fazia senão aumentar. Hoje é sem dúvida a
maior força intelectual que governa os rumos da nossa cultura. Só
o empirismo inglês e a filosofia analítica podem dar-se ao luxo de
ignorá-la. Mas essa ignorância está tendo um preço. E esse preço
é a total ausência de tais orientações filosóficas nos debates e con­
trovérsias de que foi o teatro no século XX. São correntes de pen­
samento que só timidamente, no recinto protegido das universi­
dades, ousam se â'presentar. A vida ao ar livre, nas praças e nas
ruas, lhes é vedada. E não se sabe muito bem qual seja a sua fun-

79
ção: porque, embora se declarem servidoras da ciência, não pare­
ce que a ciência leve muito em conta seus serviços.
Pensemos com toda a simplicidade e com total pureza d' alma:
em que medida um gigante como Descartes contribuiu para o
desenvolvimento, para o crescimento, para o amadurecimento da
realidade interior do homem, com suas emoções, suas paixões,
seus instintos querendo se afirmar indisciplinadamente, criando
um estado de desordem? A resposta não podia ser mais decepcio­
nante: Descartes sugere que seja adotada uma moral provisória.
Empolgado pelos progressos que a utilização do seu método tra'­
ria para a ciência, confessou que a moral não poderia recolher os
mesmos benefícios: a ciência, com seu progresso, é instável; a
moral, com suas regras e necessidade de ordem, requer estabilida­
de. A moral que já existe deve ser conservada. Descartes não ousa
propor qualquer alteração.
Pensemos em Kant. O que propõe para que desenvolvamos,
afinemos, amadureçamos o nosso senso moral? Curiosamente o
que sugere é exatamente o inverso do que havia sugerido Descar­
tes: propõe que imitemos a ciência, não que a ignoremos. A ciên­
cia, naturalmente, é progresso, movimento, instabilidade, mas é
também ordem, universalidade, estabilidade. Quando uma máxi­
ma da sensibilidade é de natureza a poder se transformar numa
lei universal totalmente abrangente, Kant considera que o mo­
mento chegou de entrarmos no domínio em que circulam os fe­
nômenos morais. A máxima da sensibilidade transformada em lei
universal torna-se então um imperativo categórico da moralida­
de. A máxima que se situava no mundo da ciência penetra agora
no mundo moral.
Como vemos, os gigantes do mundo moderno sempre que
falam em moral têm em vista a ciência. A ciência, sempre a ciên­
cia! - esse é invariavelmente o ponto de referência da filosofia
moderna e contemporânea. Não surpreende que com isso a pes­
quisa dos fenômenos e dos valores morais realizada por uma tal

80
filosofia ofereça resultados tão magros e escassos. O que é sur­
preendente é que com tal obsessão pela ciência, tenha existido
um Bach, um Beethoven, um Mozart, um Haydn, um Liszt, um
Chopin . . . depois de Descartes, de Spinoza, de Leibnitz, de Kant.
A ciência não foi certamente a fonte em que se inspiraram essas
manifestações artísticas. Que instinto, diverso do instinto que
deu origem à ciência, estaria por detrás delas? A filosofia a quem
caberia naturalmente elucidar esse problema nunca o estudou da
maneira completa, exaustiva, porque o havia feito nas suas refle­
xões sobre a ciência. As filosofias da arte que figuram no elenco
das produções teóricas do Ocidente não passam de reflexões su­
perficiais, que não atingem e nem procuram atingir o fundo das
questões que a existência do impulso artístico no homem levan­
ta. O instinto estético é para o mundo ocidental uma incógnita,
que várias teorias tentam revelar, mas que continua ainda envol­
ta num mistério. O que não impede, aliás, que ele se exerça e
contribua com extraordinárias manifestações para o engrandeci­
mento intelectual e moral da humanidade.
O primeiro passo para uma compreensão mais profunda do
que possa corresponder na natureza humana ao instinto estético
foi dado por dois pensadores que nasceram no começo do século
XIX, um na Rússia, Nicolai Gogol, em 1 809, outro na pequena
Dinamarca, Süren Kierkegaard, em 1 8 1 3 . Ambos angustiaram-se
com a relação do homem com seu próximo, considerado um
irmão. "Como pode o homem amar o próximo como a si mes­
mo?", pergunta Gogol. "Como se pode amar seus irmãos? A alma
do homem deseja amar apenas o que é belo e o próximo, sobre­
tudo o pobre, é tão vil de aspecto e destituído de beleza! O prin­
cípio moral é impotente porque na realidade a alma é movida não
por impulsos morais, mas por impulsos estéticos. "
Kierkegaard, por seu lado, parte d o princípio de que todo
homem é tedioso. Não somente os pobres, mas a humanidade in­
teira é tediosa. Quando uma criança se cansa dos brinquedos e

81
das brincadeiras que lhe são propostas é preciso que sua governan­
ta tenha muita inventividade, um instinto estético para sugerir-lhe
novas atividades. O mesmo acontece com o homem maduro. Só
alguém dotado de um refinado instinto estético consegue arrancá­
lo do tédio em que vive. O homem entediado deixa-se seduzir
pela beleza que lhe é oferecida, mas essa atração o leva por cami­
nhos que não são os que conduzem à plenitude que almeja. Kier­
kegaard não é diretamente vítima da sedução da beleza mas, indi­
retamente, depois de tornar sua vítima a mulher amada.
Depois dessas experiências e investigações, tornou-se claro
para os dois pensadores que havia uma contradição essencial
entre o impulso estético e o impulso moral, pelo menos na época
em que os dois viviam. Essa evidência não seria p9ssível se ado­
tassem uma perspectiva meramente racional. Sem a adoção de
uma nova perspectiva, uma perspectiva que considerasse também
o problema da liberdade, aquela evidência não se imporia. Para a
razão, não há diferença alguma entre os vários impulsos que par­
ticipam do dinamismo da alma humana. Em certos casos, ela se
submete a eles e então se torna uma razão instrumental ou, como
se diz hoje, uma razão desengajada; em outros, ela se torna hege­
mônica e impõe uma ordem no caos das paixões que se agitam
na alma humana. Mas em nenhum caso ela se substitui aos ins­
tintos de modo a se tornar possível uma conciliação entre eles.
No Ocidente, a contradição entre o ético e o estético havia
sido entrevista por Lutero; mas Goethe, com seu humanismo es­
tético, a havia novamepte soterrado. Mais uma vez, ela reaparece
com Kierkegaard e Nietzsche, agora mais fortemente protegida
por um fator novo que os dois filósofos levaram em conta, a idéia
por tanto tempo esquecida de uma verdadeira liberdade.
No meu Nietzsche, publicado em 1 993, procuro mostrar as
diferenças que existem entre o poeta e o filósofo, no que diz res­
peito à visão que tinham do fenômeno grego. Citando trechos da
famosa carta que Schiller enviou a Goethe descrevendo a maneira

82
pela qual o poeta assimilara o classicismo da Grécia, procurei mos­
trar como Nietzsche também tinha querido transformar a sua mo­
dernidade em algo que representasse o que havia de mais valioso
na Grécia antiga - mas que não era uma sensibilidade clássica
que corrigisse a sensibilidade romântica do país nórdico em que
nascera - mas um projeto de vida a partir do qual uma nova
visão do mundo se articulasse. Esse é o contexto em que nasce a
psicologia dionisíaca de Nietzsche. Não se trata de uma nova sen­
sibilidade, mas de uma nova concepção de liberdade - uma li­
berdade que questiona o valor estético, que põe em dúvida a su­
perioridade da beleza, a sua invulnerabilidade e respeitabilidade.
Temos aqui agora não mais dois, mas três contestadores da
Beleza considerada como valor autônomo, independente de quais­
quer outros valores: Gogol, Kierkegaard e Nietzsche. Com o tem­
po, outros virão se juntar a eles, Dostoievsky, Tolstoi, formando
um grupo com peso suficiente para mudar o espírito de uma
época. Uma característica principal dá a esse grupo uma feição es­
pecial: a nova concepção estética é condicionada à introdução do
fator liberdade.
Como se realiza esse condicionamento? Foi talvez Nietzsche
quem compreendeu mais profundamente o problema. Na Ori­
gem da tragédia, analisa o fenômeno artístico fazendo uma distin­
ção entre o espírito dionisíaco e o espírito apolíneo: o primeiro
representaria um transbordamento, um excesso de forças vitais, o
segundo, uma disciplina, uma contenção de energias, um repou­
so, uma serenidade que provinha não da ausência mas da presen­
ça de forças controladas. Nietzsche opunha ao otimismo da razão
socrática o pessimismo da tragédia grega. Enquanto a distinção
entre o dionisíaco e o apolíneo era uma contraposição, uma ten­
são entre dois princípios que se completavam, a distinção entre o
otimismo e o pessimismo representava uma oposição, uma hos­
tilidade entre princípios antagônicos. Essa foi a primeira concep­
ção estética elaborada pelo Ocidente que levasse em consideração

83
o fator liberdade. Nietzsche escreveu a Origem da tragédia no
auge do seu entusiasmo por Wagner, um Wagner que acreditava
estar interpretando na sua música as idéias de Schopenhauer, o fi­
lósofo que via na música a essência pessimista do mundo, coman­
dado por uma vontade cega e inexorável na sua arbitrariedade.
O pessimismo era assim eleito como atitude fundamental,
indispensável a quem se propusesse a entrar no mundo da cria­
ção artística. A arte inspirada no pessimismo podia ser considera­
da uma arte séria, verdadeira. A arte inspirada em atitudes otimis­
tas era leviana, irresponsável. Durante todo o tempo em que
Nietzsche pôde acreditar nessas idéias, seu entusiasmo e amizade
por Wagner permaneceram inalteráveis. Wagner, depois de ler a
Origem da tragédia, escrevia uma carta a Nietzsd1e para dizer-lhe
que nunca lera um livro igual. Durante algum tempo, o filósofo
foi acolhido e reconhecido no círculo wagneriano como o amigo
dileto do grande músico. Mais as reflexões de Nietzsche sobre a
arte continuavam progredindo e bem cedo, ele pôde se conscien­
tizar de que nem todo pessimismo é admirável e de que havia um
pessimismo de força, mas também um pessimismo de fraqueza.
Foi então que Nietzsche encontrou o caminho que o leva­
ria à posição em que poderia resolver o problema que enfrenta­
va. Havia envolvido na questão estética um fator importantíssi­
mo a ser considerado, o problema da força ou da fraqueza, da
intensidade maior ou menor das energias vitais que concorriam
para a produção da obra artística. Esse fator não havia nunca si­
do considerado antes. Falava-se num equilíbrio clássico da arte
grega, mas não se indicava com suficiente precisão que elemen­
tos eram mantidos em equilíbrio. Se o equilíbrio clássico dos gre­
gos representava um ideal, o que dizer da tragédia grega ou da
arte helenística?
Eram as forças vitais do homem que a cultura clássica dos
gregos mantinha em equilíbrio. Mas esse equilíbrio não era man­
tido pela razão. A razão ordenava a alma humana mas respeitava

84
a liberdade. A liberdade humana não podia sofrer determinações
da razão, ser ordenada por ela como as paixões, pois dispunha dos
mesmos privilégios da outra, sendo sua irmã gêmea, nascida do
mesmo parto. Para ser contida no seu ímpeto, por vezes destrui­
dor, não era à razão que o homem deveria recorrer. Havia para
isso um outro elemento, o sonho apolíneo que se contrapunha à
violência dionisíaca, sem castrá-la, e que fazia parte do conjunto
de impulsos que constituíam a natureza da alma humana.
É dessa análise aprofundada do fenômeno estético que
emerge finalmente para Nietzsche a noção de liberdade. Quando,
ao se separar de Wagner, ele se conscientizou de que existe um
pessimismo de força e outro de fraqueza, o problema artístico
para ele deixou de se articular em função das noções de otimis­
mo e pessimismo e passou a valorizar as noções de força e de fra­
queza. A primeira representa um reconhecimento de que a vida
está cheia de perigos, de abismos, de ciladas, mas, ao mesmo
tempo, de uma independência, de uma bravura, de uma liberda­
de diante das maiores calamidades, de uma confiança inabalável
na capacidade do indivíduo de superá-las; a segunda representa
um reconhecimento desses mesmos perigos mas, contrariamente,
um sentimento de impotência, uma antecipação de derrota, uma
submissão servil a um destino já traçado, que faz do indivíduo
assim constituído um homem para quem a palavra liberdade per­
deu todo o significado.
Quando Nietzsche chega a esse ponto, a análise do fenô­
meno estético deixa de ser para ele o foco central de sua aten­
ção. O que o absorve agora é a questão da liberdade. O livro,
que é como o grito de emancipação de seu envolvimento com
Wagner, é dedicado à Voltaire, numa época em que se celebra­
vam as comemorações de seu centenário - Voltaire o patrono
da liberdade, que, com sua mente poderosa, contribuíra mais do
que ninguém para que seu século merecesse a denominação de
o Século da Luzes;

85
Nietzsche, entretanto, logo compreendeu que a liberdade de
Voltaire não era a liberdade tal como ele próprio a compreendia
(como antes havia compreendido que o pessimismo de Schope­
nhauer e de Wagner não era tal como ele mesmo o compreendia) .
Suas reflexões voltam-se agora para o par Dionísio-Sócrates. Mas
o que começa agora a entrever é que esse par não representa mais
para ele a oposição otimismo-pessimismo, marcada por uma
acentuada hostilidade. Agora Nietzsche crê ver em Sócrates indí­
cios de um espírito dionisíaco. Uma evolução lenta e insidiosa de
Sócrates a Dionísio começa a aparecer para Nietzsche, revelando
toda a riqueza de uma fascinante personalidade - Sócrates, não
mais o crítico impiedoso, o destruidor de sonhos e projetos, mas
o gênio do coração, o sedutor irresistível, capaz de atrair em
torno de si uma legião de admiradores. É emocionante essa con­
versão de Nietzsche. Ele se cerca de um certo mistério, como se
tivesse vergonha de sua incompreensão passada. Nós, os especta­
dores desse processo de libertação, compreendemos bem o imen­
so esforço que lhe foi preciso fazer para arrancar de uma cultura
saturada de otimismo racionalista, de uma cultura que julgava ter
chegado à maturidade pelo simples fato de ter elaborado uma so­
fisticada teoria do conhecimento - o imenso esforço que lhe foi
preciso fazer, repito, para trazer à luz do dia a imagem de uma li­
berdade absolutamente autêntica, totalmente dissociada de qual­
quer elemento que pudesse provir do mundo da racionalidade.
O desinteresse do filósofo contemporâneo pela moralidade,
a aversão que por ela tem o economista, a frieza dos industriais e
empresários, todas essas tendências cuja influência é exercida for­
temente sobre o homem comum, parecem explicar a desorgani­
zação social em que vivemos. Mas o desinteresse não é causa
única. Há também as distorções da moralidade em que alguns fi­
lósofos se comprazem. Em um e outro caso, o interesse pelo que
é verdadeiramente moral, aquele que tem a ver com a verdadeira
liberdade humana, é abandonado. À medida que essas distorções

86
se desinteressam pela moral da verdadeira liberdade humana, elas
se desinteressam certamente pela moral tout court. A aversão que
tem o economista pela moral, esta, não requer comentários. O
economista tem aversão a qualquer tipo de moralidade.
O problema parece então residir na ausência absoluta, por
parte da nossa filosofia moderna e contemporânea, da questão da
liberdade tal como a entendemos. A liberdade não constrói teorias,
nem produz argumentos em favor da justiça social, mas contribui
poderosamente para a formação de homens, por assim dizer, com­
pletos, homens que não são fragmentos, com virtudes desacompa­
nhadas de outras virtudes que deveriam igualmente estar presentes.
Esses homens completos são livres. E se sua espécie se mul­
tiplicasse e se multiplicasse de maneira intensiva, poderíamos estar
certos de que a tragédia da injustiça social perderia a posição de
destaque que ocupa hoje no panorama dos problemas mundiais.
O que pode um homem livre é muita coisa. O que podem
dois seria mais do dobro. O que pode um grande número deles
seria incalculável. Não se pense que o homem livre fica ruminan­
do seus sentimentos na esperança de uma recompensa divina.
Pense-se, por exemplo, em Albert Schweitzer - ele era um
homem livre. Depois dos trinta anos, já famoso como intérprete
de Bach, executado nos órgãos mais apreciados que existem nas
igrejas da Europa, e como autor de livros importantes sobre o
próprio Bach, sobre Jesus e o apóstolo Paulo, abandonou tudo
isso para estudar medicina, com o objetivo de construir um hos­
pital na África, onde pudesse cuidar de leprosos, vítimas da doen­
ça do sono e o que mais houvesse. Com o que vinha ganhando
com seus concertos e com fundos que obteve de sociedades bene­
ficentes, conseguiu construir seu hospital. E para lá foi, depois de
obter o seu diploma de médico, atraído por essa extraordinária
aventura em Lambarene, onde passou o resto de sua vida, com
breves intervalos em que ia à Europa para dar concertos, e assim
angariar mais fundos.

87
Tive a honra de conhecê-lo pessoalmente quando passou
certa vez por Bordeaux, onde eu era cônsul, com destino à Áfr ica.
Sabendo da sua presença na cidade, solicitei, de sua secretária,
uma hora para cumprimentá-lo, declinando minha qualidade de
cônsul e o fato de conhecer os seus livros que muito admirava.
Fui gentilmente atendido. Levei, quando fui visitá-lo, seu livro
sobre São Paulo, na esperança de que o valorizasse com sua assi­
natura. Recebeu-me com simplicidade, pondo-me logo à vonta­
de. Conversamos uma boa meia hora, uma conversa de que guar­
do ainda muita coisa. Contra as minhas intenções, Schweitzer
falou mais de seus problemas na África do que das questões de
que tratavam os seus livros. Dizia modestamente que as muitas
coisas que não tinha podido elaborar nos seus livros deixara para
seus discípulos resolver. O trabalho na Áfr ica exigia de sua parte
uma dedicação completa. Só o interrompia quando necessitava
de fundos: ia então à Europa e dava alguns concertos.
A impressão de serenidade, de simplicidade, de energia vital
e plenitude espiritual que esse homem de 8 5 anos me causou
nunca mais pude esquecer. Tenho visto uma vez ou outra homens
dessa idade lúcidos e mesmo brilhantes. Mas nunca vi um que
me desse tamanha impressão de liberdade.
Devo confessar que tive de fazer um grande esforço para re­
primir a vontade imensa que me deu de fazer-lhe um certo nú­
mero de perguntas. Que a imagem de Jesus que nos deixara me
parecia extremamente convincente - eu lhe disse logo no início
da conversa. Mas não tive a coragem de perguntar-lhe que dife­
rença fazia entre a escatologia ética dos profetas e a ética escato­
lógica de Jesus. Justamente a escatologia ética dos profetas que
Schweitzer dizia ter Jesus incluído na sua síntese, não abandona­
va a idéia de nacionalidade, com todos os seus pressupostos éti­
cos - coisa que Jesus insofismavelmente havia abandonado. O
que pensar então dessa ética associada a um mundo que ainda
não existe e dissociada do mundo existente, da nação a que Jesus

88
evidentemente pertencia? O que pensar das críticas à ética de
Jesus, que Joseph Klausner, por exemplo, o grande scholar israe­
lense faz quando a caracteriza com extremista, excessiva, exagera­
da, adequada apenas à vida dos monastérios, mas totalmente ina­
propriada para a vida comum do homem simples, trabalhador,
membro de uma comunidade religiosa?
Além das dúvidas, tinha eu também minhas "certezas" .
Minha admiração por Sócrates não havia sido abalada pelas críti­
cas que Schweitzer lhe fazia. Ele apontava para o fato de não estar
a ética do filósofo grego associada a uma visão do mundo. Sobre
isso, a meu ver, se enganava duplamente. A visão do mundo de
Sócrates tinha como principal ingrediente a noção de Areté - es­
sência de todos os valores que a história da Grécia havia engen­
drado; e como representante principal o próprio Sócrates, que
não era um simples indivíduo, mas um estadista, o maior deles,
maior do que Pérides, como pensava quem melhor o conhecia,
Platão, seu discípulo, biógrafo e intérprete.
Todos esses pensamentos se amontoavam na ·11inha cabeça
mas sentia que não tinha o menor cai 1imento exprimi-los naque­
le momento. Schweitzer já me havia dito que deixara para seus
discípulos o trabalho de desenvolver suas idéias. Predominando
tudo, ele me transmitia a impressão de um homem que perante
o mundo e perante Deus não havia esquecido a sua liberdade.
Não sei se Schweitzer acreditava na divindade de Jesus; mas estou
certo de que acreditava no Deus em que Jesus acreditava; em
todo caso agia como se acreditasse. Não seguia fielmente todos os
ensinamentos de Jesus, mas seguia aqueles que lhe pareciam mais
importantes. Não abandonara pai e mãe para segui-lo, não qui­
sera incendiar o mundo, não hesitara em dar "o que é santo para
os cães e pérolas para os porcos". Parecia mesmo ter feito para si
próprio a pergunta que o scholar Joseph Klausner faz nos seus li­
vros sobre Jesus: " Quando realmente a cristandade se comportou
de acordo com os padrões éticos de Jesus?" Schweitzer, entretan-

89
to, fez o que raros cristãos antes dele haviam feito: abandonou
duas atividades, duas vocações, quando já era, em virtude do ta­
lento que havia revelado por meio delas, uma celebridade. Isso
para dirigir um hospital de leprosos, de vítimas da doença do
sono, perdido na Áfri ca.
Não contrariara assim a terrível condenação de Jesus relati­
va aos cães e aos porcos?
Todos esses fatos me parecem fazer de Schweitzer um ho­
mem extraordinariamente livre, de uma liberdade interior rara,
extremamente rara, sobretudo nessa época em que vivemos. Ao
mesmo tempo, devo dizer que não o considero um filósofo de
grande envergadura. Sua avaliação de Sócrates e seu ideal ético re­
sumido na fórmula "reverência pela vida'' são para mim decepcio­
nantes. Encontramos aqui o mesmo muro, o mesmo obstáculo
que já havíamos encontrado em outros representantes da cultu­
ra moderna e contemporânea quando procurávamos uma visão
integrada em que estariam unidos os dois elementos essenciais
para uma concepção do mundo: a razão e a liberdade. Berdiaev e
Schweitzer nos tempos mais recentes são dois bons exemplos.
Defenderam a liberdade mas não tiveram o mesmo êxito na de­
fesa da racionalidade. Ambos tiveram de Sócrates uma visão de­
feituosa, influenciados talvez pelos excessos e distorções da filoso­
fia obcecada pela idéia de racionalidade.
Como já repetimos muitas vezes, dois pensadores do Oci­
dente defenderam no século XIX a liberdade e a razão totalmente
imunes contra as distorções de que já falamos: Kierkegaard e
Nietzsche. Foram eles dois baluartes capazes de rechaçar, com for­
te bateria, a investida do inimigo. Mas, depois deles, quem pode­
ria ajudar-nos? Quem poderia, hoje, defender a liberdade? No sé­
culo XIX, veio também em socorro da nossa ameaçada liberdade
o cristianismo russo, a alma russa, o pensamento russo. Pushkin,
Gogol, Dostoievsky e Tosltoi nos foram então revelados. Foram
eles nomes que empolgaram não somente as elites cultas da Euro-

90
pa como a grande maioria dos leitores. Dostoievsky, sobretudo,
era irresistível. Liam-se os seus livros com a sofreguidão com que
se lê um romance policial. A alta cultura era sacudida pelos ven­
tos fortes dessa surpreendente espiritualidade e se deixava influen­
ciar por ela. Nietzsche dizia: "Dostoievsky, o único autor de quem
pude aprender algo em matéria de psicologia''.
Que havia de novo na literatura russa que impressionava
tanto os europeus? Ou para ser mais direto: o que havia de novo
no modo de ser russo, que intrigava tanto quem dele se aproxi­
mava? Porque é preciso acrescentar: não era só a literatura, a qua­
lidade emocional nela revelada que causava uma impressão -
eram também as idéias, as preocupações intelectuais, a filosofia,
enfim. Evidentemente não faltavam os críticos que dissessem que
se tratava de uma filosofia não amadurecida, que lhe faltava ainda
um maior contato com a filosofia ocidental; mas havia também
quem discordasse dessa opinião e considerasse o "não amadureci­
mento" um equívoco, pois se tratava na verdade de uma opção
conscientemente assumida em virtude da qual a filosofia russa
possuía uma incontestável originalidade.
Qual era a deficiência que os europeus ocidentais, e mesmo
alguns russos, viam nessa filosofia original? Faltava-lhe, diziam
eles, uma teoria do conhecimento plenamente desenvolvida; no
Ocidente essa parte da filosofia era considerada a mais importan­
te - filosofia da natureza, antropologia e moral eram considera­
das matérias de menor importância e, como tal, tratadas pela
maioria dos filósofos.
A essa crítica dos europeus a filosofia russa respondia com
uma crítica talvez mais contundente: a filosofia ocidental, com a
sua obsessiva preocupação com a racionalidade, voltara-se intei­
ramente para a teoria do conhecimento, esquecendo o próprio
homem, sua existência, sua liberdade. A filosofia russa optara pe­
lo homem, pelo que ele representa como paixão, sofrimento, es­
perança e liberdade. Sua resposta à acusação de imaturidade era

91
justamente que era preferível ser imaturo e de posse da substân­
cia humana a ser maduro e atrofiado.
Nisso, e só nisso, consistia a grande novidade, a revelação do
pensamento russo para os europeus do século XIX. Mas essa re­
velação teve um alcance limitado. O grande público, naturalmen­
te, recebeu de braços abertos uma literatura que ia ao encontro
das suas mais veementes aspirações; as elites cultas reconheceram,
sem hesitação, o gênio que estava por detrás daquelas obras lite­
rárias, mas os filósofos se mantiveram obstinados, confiando ape­
nas no caminho que lhes havia traçado Descartes.
No início do século XX, houve na França um certo interes­
se por filósofos russos: Solovief, Rozanof, Leontiev, Chestov e
Merezhkovski tiveram um certo número de leitores. Mas o único
que conseguiu empolgar um público razoavelmente numeroso
foi Berdiaev. O seu livro Uma nova Idade Média foi um best se/­
ler, que chegou mesmo a abrir o caminho para outros livros do
filósofo de caráter mais filosófico.
A filosofia européia, entretanto, não se deixou comover por
essas manifestações esporádicas. No Brasil, nosso líder católico,
Alceu de Amoroso Lima, escreveu um artigo sobre o livro de Ber­
diaev, "Espírito e Liberdade" , em que dizia que eram perigosas as
bases sobre as quais se sustentava a sua filosofia. Continuou o
Ocidente na sua rota de um progressivo desinteresse por tudo
quanto dizia respeito ao homem, com exceção de sua hipertrofia­
da racionalidade. Em outros tempos, a razão havia sido conside­
rada a faculdade que distinguia os homens dos animais. Mas a
razão não havia então sofrido ainda nenhuma hipertrofia, era
apenas uma planta colocada num vaso cheio de terra e regada de
tempos em tempos. A razão não era apenas a planta, mas também
o vaso e a terra regada. Agora, essa planta tinha sido retirada do
vaso e colocada num recipiente artificial, o Ego transcendental,
onde era nutrida não mais pela terra e pela água que encontrava
no vaso. Os alimentos que lhe eram dados eram artificiais, ela se

92
hipertrofiava, tornava-se maior, mais eficaz, mais capaz de reali­
zar grandes proezas no mundo exterior; mas, ao mesmo tempo,
se tornava incapaz de produzir os efeitos que produzia quando
suas raízes mergulhavam na terra do vaso. Se, por um lado,
podia-se dizer que ficara hipertrofiada, por outro, o que seria
justo dizer era que ficara atrofiada.
Em primeiro lugar, viera Descartes; depois Kant; depois a
fenomenologia de Husserl; em seguida Wittgenstein e finalmen­
te a filosofia analítica. A essa razão atrofiada, com suas raízes des­
providas de terra e de água dá-se, hoje em dia, o nome de razão
desengajada. Nossos filósofos não têm a coragem de confessar -
mas, na verdade, o ponto final a que esse percurso inevitavelmen­
te deverá nos levar só pode ser um desengajamento total: uma
razão sem qualquer vestígio da presença do homem - um robô.
As raízes da razão e a terra úmida em que penetram são con­
sideradas pelos nossos filósofos elementos adversos que precisam
ser extirpados. Para preservar a razão, o recurso que encontram é
castrá-la e, portanto, castrar a liberdade e o homem que com ela
se identifica. Bela perspectiva para nossa filosofia! Entretanto,
com uma obstinação inacreditável, com uma certeza obsessiva,
prosseguem nesse trabalho de destruição do homem, sem ouvir
os protestos de homens como Kierkegaard, como Nietzsche,
como Schweitzer, como Berdiaev e como os autores russos do sé­
culo XIX, procurando mesmo fazer crer que esses protestos ti­
nham sua origem em fontes suspeitas, de procedência duvidosa,
e por onde não passavam as águas límpidas da ciência.
Os protestos dos russos, entretanto, deveriam ter-nos alerta­
do. Afinal, não era apenas um indivíduo, mas toda uma cultura
que se afirmava, que nós reconhecíamos e que, entretanto, levan­
tava um protesto mudo contra tudo o que éramos e fazíamos.
Não se tratava de uma voz isolada que surgisse de nossas próprias
entranhas, mas da voz de toda uma comunidade que dava como
testemunho sua rica experiência.

93
O pensamento russo priorizava a liberdade e não a teoria do
conhecimento por uma razão muito simples - queria evitar a es­
terilidade do eunuco. Não era por falta de maturidade que o fazia.
Era por uma opção conscientemente tomada por tal prioridade.
O acertado dessa decisão se evidenciava pela produção de
uma literatura que empolgava a humanidade inteira. Nietzsche
confessava ter encontrado em Dostoievsky um mestre. Tolstoi fazia
Rilke empreender a longa viagem à Rússia para conhecer pessoal­
mente o grande escritor desabusado. Wittgenstein, surpreenden­
temente, nutria por ele grande admiração. Se os filósofos europeus
consideravam seus colegas russos imaturos, o grande público e a
elite cultural da Europa, pela acolhida imediata e entusiasta que
davam aos romancistas russos, mostravam de mo.do iniludível que
o que acolhiam era tão interessante quanto o que se fazia em casa,
se é que não pensavam que tinha mais força e vitalidade.
Sem dúvida, a liberdade interior do povo russo criava uma
situação vulnerável a qualquer tipo de experiência social, inclu­
sive as mais frustrantes. E foi por isso que uma revolução ins­
pirada no marxismo foi possível na Rússia. Em outros países,
dificilmente sê-lo-ia. Cuba e os países do Leste europeu foram
colônias da Rússia soviética. Os governos comunistas que tive­
ram (Cuba ainda o tem) foram inspirados ou mesmo implanta­
dos por Moscou; não tiveram origem autônoma. Os germes da
Revolução Russa nasceram no seio da sociedade russa - mas a
revolução marxista e sua ideologia surgiram na Europa ociden­
tal. O marxismo, na verdade, nada tem a ver com os anseios de
reforma social que existiam na Rússia; e foi talvez por isso que
naquele país uma revolução marxista pôde ocorrer. Mas havia
também na Rússia uma corrente subterrânea de liberdade que as
autoridades russas nunca puderam subj ugar; e foi também por
isso que a revolução não pôde criar raízes, não pôde se estabele­
cer senão precariamente, tendo sido tragada pela inexorabilida­
de dos acontecimentos.

94
A revolução foi para a Rússia uma experiência catastrófica.
As substâncias venenosas produzidas pela cultura do Ocidente,
que agiam sobre ela própria e continuam agindo de maneira lenta
e quase imperceptível, agiram sobre a sociedade russa de uma
forma rápida, quase fulminante. O efeito foi arrasador. Durante
mais de meio século, a Rússia, que no século XIX se havia impos­
to à admiração da Europa, pela sua cultura, passou a ser conside­
rada um país de ignorantes, de homens completamente destituí­
dos de qualquer individualidade. A religião, graças à corrente
subterrânea de liberdade que a alimentava, resistiu. Mas o credo
oficial da Rússia soviética era ateu. Quem quisesse participar dos
negócios de Estado deveria, forçosamente, pelo menos ostensiva­
mente, abraçar esse credo.
Não creio por isso que a Revolução Russa constitua uma
prova de que o interesse pela questão da liberdade manifestada
pela cultura russa do século XIX tenha levado a conseqüências
desastrosas. A substância que a intoxicou havia sido elaborada no
Ocidente. Foi o interesse excessivo, pernicioso, venenoso da cul­
tura do Ocidente pela ciência, pela teoria do conhecimento e seu
desinteresse pelo homem e pela sua verdadeira liberdade, que
produziu e vem produzindo os efeitos negativos, destruidores de
que temos falado - e foram esses ingredientes que, injetados na
sociedade vulnerável que era a sociedade russa, produziram os
mesmos efeitos, só que de um modo fulminante.
Penso então que a Rússia do século XIX estava plenamente
autorizada a dar um sinal de alerta para a Europa decadente da­
quela época. E penso mais: que esse sinal de alerta, que foi dado
inutilmente no século XIX, continuava válido no século XX e
continuará válido para nós no novo milênio, j á que a situação da
cultura do Ocidente permanece inalterada.
Esse sinal de alerta apresenta naturalmente dois aspectos,
conforme a posição de que é visto: é encorajador quando se vê a
cultura russa do século XIX exibindo tanta exuberância, tanto

95
vigor, tanta vitalidade - qualidades que preservou por não ter­
se esquecido do homem e de sua verdadeira liberdade; mas é me­
lancólico quando nos leva a colocar a cultura do Ocidente euro­
peu diante de um espelho - porque o que se vê então é uma
fisionomia decomposta, doentia, envelhecida e desfigurada.
Esse espelho nos mostra uma racionalidade moribunda,
uma humanidade vítima de um rolo compressor, a tecnologia.
Gerações e gerações vítimas da máquina, seja ela qual for, a má­
quina das grandes indústrias, do cinema, da televisão, do compu­
tador, do telefone celular. Tudo isso concorre para roubar-lhes a
liberdade. O que lhes dão em troca?
A máquina das grandes indústrias rouba do homem o em­
prego, o trabalho. Não vou falar aqui do cinema, da televisão, do
computador, do telefone celular. São inegavelmente grandes
avanços na história do progresso humano, embora encerrem pe­
quenos inconvenientes que poderiam facilmente ser corrigidos.
Com relação ao cinema, quero deixar consignado aqui que devo
a ele uma boa parte da minha formação moral. Foi vendo os ve­
lhos filmes do faroeste americano que fui consolidando as minhas
noções do bem e do mal. Foi vendo os filmes mais sofisticados de
Lubtish, Pabst, Murnau, Chaplin, Von Stronheim, Fritz Lang,
William Wyler, Tay Garnet, King Vidor, Jean Renoir e muitos
outros que pude aguçar o meu senso psicológico e aumentar o
meu discernimento ao envolver-me no emaranhado das paixões
humanas. A verdade é que a leitura de romances agregou-se a esse
processo. Mas penso que sem o arranque inicial, dado pelo cine­
ma, eu talvez não tivesse me dedicado de modo tão completo ao
que mais tarde e até hoje constitui minha ocupação favorita: a li­
teratura e a filosofia.
Os inconvenientes do cinema? Ouço dizer de todos os lados
que incita à violência, à crueldade e mesmo ao crime. Isso talvez
possa ser dito do cinema atual. Mas trata-se de uma censura que
deveria ser feita ao espírito de nossa época e não ao cinema. Do

96
mesmo modo, deveríamos encarar o problema da televisão. Ela
seria um maravilhoso instrumento de propagação de tudo quan­
to a humanidade produz de bom se a nossa humanidade fosse
capaz de realizar uma tal proeza. O fato é que há mais fracassos a
deplorar do que sucessos a comemorar. Há pobreza, há miséria,
há violência, há cobiça e ganância a registrar. Há acontecimentos
que provocam revolta, decepção, desespero, melancolia e apatia.
E não é culpa da televisão. Ela foi criada para mostrar tudo, in­
clusive essas coisas que deploramos. Foi criada para nos mostrar
como é o mundo, o mundo em que vivemos, o mundo que
somos nós mesmos e que gostaríamos de ver refletido, de modo
menos cruel, nas telas que monopolizam as nossas horas de lazer.
Os donos da televisão apercebem-se do perigo que constitui­
ria para eles mostrar ao mundo a sua imagem total como ela é. In­
ventam então um mundo da fantasia ao lado do mundo real que
lhes permite sobreviver como instituição: o mundo do consumo.
Ao mesmo tempo que despertam no público o desejo de consu­
mir, garantem-se financeiramente oferecendo a esse público um
mundo de fantasia que alimente diariamente sua imaginação. In­
felizmente não são de boa qualidade os alimentos que oferecem.
Desenvolve-se então o mundo da novela, uma pseudo-arte capaz
de conquistar os corações não só das mais ilustradas pessoas da
nossa sociedade, como também dos mais humildes empregados. É
um Deus nos acuda. " É a hora da novela!" (Diz quem se aperce­
be que houve um descuido nos hábitos da casa.) Todo mundo se
precipita e durante uma hora dominam absolutos os personagens
que a novela põe em cena.
Quanto ao computador, a sua utilidade é inquestionavelmen­
te grande. Mas o que se diz sobre a revolução que veio a efetuar
no mundo da cultura parece-me sujeita a algumas restrições. Não
creio que o computador possa substituir o livro. Não creio que a
fonte de informações que ele representa nos dispense de laboriosa
pesquisa, que é sempre necessário se fazer nos livros quando se pro-

97
cura investigar aspectos da cultura, que não estejam ainda catalo­
gados nas diversas enciclopédias que têm sido elaboradas em épo­
cas passadas. O computador não pode ser mais do que uma sínte­
se do conteúdo de todas as enciclopédias existentes. Foram todas
elas concebidas sob o signo da racionalidade, isto é, na suposição
de que o campo da racionalidade cobre todo o mundo da cultura.
Mas a polêmica do meu livro pressupõe justamente a convicção
contrária, a noção de que a área da cultura é mais vasta, a noção de
que essa área abrange também os domínios da liberdade. Para uma
tal concepção de cultura, não foi ainda elaborada uma enciclopé­
dia. E tudo leva a crer que uma tal elaboração, tendo em vista o
conteúdo que se pretende anexar, talvez seja irrealizável.
Pensemos no telefone celular. Que novidade trouxe esse
aparelho para nossa vida? Na minha idade é difícil ter uma opi­
nião sobre o telefone celular. Para mim ele não tem grande utili­
dade. Provavelmente pensaria de outro modo se fosse mais
jovem. Por isso vou me abster de fazer qualquer juízo sobre ele.
Mas, de qualquer modo, não há dúvida de que se deve tomar al­
gumas precauções antes de usá-lo.
Existem hoje sinais de alarme, nos Estados Unidos, na Euro­
pa e na Ásia, mostrando o perigo da utilização de um tal aparelho.
Carlos Alberto Teixeira escreveu na edição de O Globo, de 24 de
fevereiro de 2000, um artigo interessante a respeito do assunto.

No Brasil, nos diz ele, como de hábito, não apareceu até agora
nenhum sinal de alarme. Está acontecendo agora o que aconte­
ceu há mais de 30 anos , quando foram divulgados os malefícios
do fumo à saúde, j á então plenamente conhecidos pelos pesqui­
sadores das grandes empresas , mas criminosamente mantidos em
segredo. Nos Estados Unidos, só agora as indústrias de tabaco
estão sendo obrigadas a pagar multas astronômicas às vítimas do
cigarro. Os resultados das pesquisas realizadas em torno do pro­
blema do telefone celular são, como no caso do cigarro , contrá-

98
rios aos interesses das indústrias que o produzem e por isso, tal­
vez, tenhamos de esperar outros trinta anos antes que sej am ple­
namente divulgados.

O que acontece é o seguinte: antes de que uma chamada


chegue a seu celular, ela passa por pelo menos uma estação de
rádio-base, que são as antenas que ficam espalhadas pela cidade,
torres e mastros metálicos ou de concreto que servem como repe­
tidores dos sinais. Os órgãos reguladores de cada país estipulam
normas de segurança de modo que o campo eletromagnético ge­
rado pelos celulares e pelas torres não possa afetar a saúde da po­
pulação. Como as freqüências envolvidas estão na faixa das mi­
croondas, o temor é que o usuário do celular também possa ter
os miolos torrados (Carlos Alberto Teixeira explica anteriormen­
te que os aparelhos de microondas são projetados de modo a não
deixar vazar microondas para fora do forno) .
O artigo explica ainda que muitos outros efeitos nocivos não
térmicos podem advir do uso do celular e da proximidade das es­
tações rádio-base: dificuldades no sono, perda de memória, dores
de cabeça, síndrome de fadiga crônica, debilitação do sistema
imunológico, agravamento de quadros de epilepsia e até mesmo
leucemia e câncer. As emissões eletromagnéticas são ainda mais
perigosas porque se situam na faixa das freqüências usadas pelos
nossos processos neurológicos naturais. Ou seja, o controle e a or­
ganização de grande parte dos fenômenos eletromagnéticos que
ocorrem no nosso organismo vivo podem ser abalados pela inter­
ferência externa das emissões celulares e das antenas das estações.
Uma vez que as pesquisas nesse âmbito são financiadas pelas em­
presas que fabricam os equipamentos dos telefones celulares, nem
precisamos dizer que se trata de um jogo de cartas marcadas.
Mas não é somente no plano da saúde pública que é possí­
vel registrar os inconvenientes causados pelo uso indiscriminado
da telefonia celular.

99
A rebelião de presidiários, ocorrida recentemente no Estado
de São Paulo, revelou-nos como a vida do crime no Brasil é orga­
nizada, desenvolvida e estimulada a partir de centros de comando
situados dentro das prisões. Um número impressionante de apa­
relhos de telefonia celular encontrado na posse dos bandidos que
se comunicavam sem o menor impedimento com o mundo exte­
rior. O número era tal que tornava pouco provável a hipótese de
que fossem introduzidos pelos visitantes dos presídios. Era quase
certo que uma grande parte, pelo menos, era vendida pelos ftm­
cionários cuja obrigação era vigiar e impedir que os prisioneiros
mantivessem relações com o mundo exterior fora do controle da
instituição. Comentou-se mesmo, na ocasião, existirem meios de
evitar essa comunicação com a utilização de -um aparelho apro­
priado. Entretanto, o fato é que os presídios não dispunham desse
mecanismo e a comunicação telefônica efetuava-se livremente.
Essa facilidade tecnológica deu origem, naturalmente, à for­
mação de quadrilhas com um coeficiente de eficiência significa­
tivamente aumentado na prática de crimes. Pode-se dizer que,
assim como a tecnologia criou um instrumento que facilita o
crime, também produziu o instrumento capaz de anular esse fa­
vorecimento. Da mesma forma como há funcionários que se cor­
rompem vendendo telefones celulares a bandidos, há outros que
se corrompem, talvez a uma taxa mais alta de lucros, não acio­
nando o aparelho que supostamente impediria o livre acesso ao
mundo exterior por parte dos telefones móveis manipulados
pelos prisioneiros.
Se quisermos ver a questão do ponto de vista do convívio
social, podemos ainda dizer que o telefone celular tem a tendên­
cia de nos tornar incivis, mal-educados, capazes de pertubar o
calor afetivo de uma reunião com conversas prolongadas com
pessoas que os presentes desconhecem.
A tecnologia contemporânea é do tipo invasiva. Penetra no
homem por todos os poros, desde os centros mais importantes de

1 00
distribuição de nossa energia vital até os mais insignificantes de­
talhes do nosso comportamento social. Rouba-nos a liberdade de
espírito para começar e acaba nos roubando a liberdade ínfima de
distinguir o que seria bem e o que seria mal nos modos de pro­
ceder como membros de uma comunidade. O imaginário do
povo também é invadido pela emoção causada pelos êxitos da
tecnologia. Antigamente se imaginava uma vida de homem no
mundo submarino e mesmo um foguete que nos levasse à Lua.
Mas tudo era imaginário, não estava alicerçado em bases científi­
cas. Não produzia sobre o povo o mesmo efeito que produz hoje
a tecnologia, com a sua fria obstinação. O que antes fazia sorrir
ou reagir com condescendência, porque era produto da imagina­
ção, hoje é levado a sério e dá origem a uma corrida na produção
cinematográfica norte-americana, com imagens de um futuro
que nos deixam completamente estarrecidos.
Os realizadores de filmes norte-americanos já conceberam
um tipo de homem extraterrestre que atingiu um grau de desen­
volvimento científico muito mais avançado do que o nosso. Esses
homens são mesmo capazes de produzir homens-máquinas. Não
sei por que motivo, talvez por desejarem conquistar nosso plane­
ta, nos consideram inimigos ferrenhos. Se descartarmos o milita­
rismo simplório, ingênuo e astucioso ao mesmo tempo, dos Es­
tados Unidos, que precisam ter sempre um inimigo à vista, para
se defender - o que permite a aprovação de enormes orçamen­
tos para a aquisição de armas de todo o tipo, nucleares e não-nu­
cleares, para manter-se o que já são, isto é, uma superpotência -
há ainda um outro elemento a considerar nesse complexo de sen­
timentos que atuam sobre a vida norte-americana: a fascinação
da máquina e da ciência, a convicção fundamente arraigada na
alma desse povo de que o futuro da humanidade será rigorosa­
mente determinado, nos seus mínimos detalhes, pela soberania
da ciência e da máquina. Os homens, segundo eles, procederão
melhor se observarem com atenção os movimentos, o comporta-

101
mento, o relacionamento que estabelecem entre si os "robôs" . As
máquinas extinguirão nos homens qualquer veleidade de agir ao
acaso, de uma vida sem propósito, sem objetivos, uma vida atua­
da unicamente pelo desejo de viver. Não se discute se isso é bom
ou mal. Sabe-se apenas, ou se julga saber, que as coisas serão
assim. As crianças norte-americanas (e também as nossas) já estão
habituadas com crânios que se abrem ao simples apertar de um
botão e que mostram um interior muito parecido com aquele
que poderia mostrar um relógio que fosse desmontado.
O interesse pelos espaços interplanetários e pelos outros pla­
netas é outro aspecto da nossa indiferença pelo homem e pelo seu
"hábitat" : já fomos à Lua e nada de extraordinário encontramos
lá, mas o simples fato de poder contemplar nosso planeta com os
pés num outro corpo celestial já nos parece um acontecimento
extraordinariamente importante. Se já chegamos à Lua, que não
tem nada de excitante a nos mostrar, por que não chegaremos a
um planeta como o nosso, que terá certamente coisas mais inte­
ressantes a nos oferecer? Esquecemos que, se a ciência possivel­
mente não tem limites, o homem certamente os tem. O homem
foi criado para viver na Terra, não em Marte ou em Saturno. Para
caminhar na Lua o homem já teve de tomar várias providências
de que não necessita para caminhar na Terra - e a Lua está dis­
tante da Terra apenas 300 mil quilômetros. Imaginem o que seria
necessário fazer para caminhar em Marte ou em Saturno, que
ficam a milhões de quilômetros de distância.
E o que é mais grave é que, ao fazer essas tentativas, esque­
cemos o homem e sua existência na Terra. Isso está bem na linha
do esquecimento progressivo do homem, que vem caracterizan­
do a cultura do Ocidente. Quanto mais descobertas fazemos no
espaço, mais embotada fica a nossa percepção das realidades hu­
manas. O interesse pela vida interplanetária talvez seja o proces­
so mais rápido de uma regressão do homem à barbárie. A desco­
berta da razão, que representou o triunfo completo, integral da

1 02
civilização sobre a barbárie não esperou muito para tomar o ca­
minho inverso e prosseguir rumo à origem de onde procedera. As
distorções que sofreu, a separação daquela com quem tinha nas­
cido - a liberdade - e a prostituição a que se entregou, renun­
ciando a sua dignidade e se associando aos instintos menos no­
bres do homem, foram a causa desse retrocesso. Se algum dia
chegarmos a Marte será provavelmente na qualidade de represen­
tantes de um planeta habitado por bárbaros completos, bárbaros
mesmo com menos humanidade do que os bárbaros que invadi­
ram as partes civilizadas da Europa, pois esses ao menos se mos­
traram capazes de assimilar a cultura das regiões que conquista­
vam. O bárbaro que invadir Marte ou Saturno será totalmente
incapaz de compreender o que seja o fenômeno da cultura. Isso,
naturalmente, no caso pouco provável de que um dia chegue lá.
O resultado dessa nossa análise nos leva a um estado de pro­
funda melancolia - consiste na consideração de que o destino
final da cultura do Ocidente parece ser um inexorável regresso à
barbárie. O desinteresse pelo homem e pela sua verdadeira liber­
dade não parece poder levar a outra coisa. A situação é tão mais
melancólica, visto que essa barbárie que tememos será uma bar­
bárie armada até os dentes, capaz de enfrentar qualquer inimigo,
dotada de recursos para destruir quem ouse atacá-la - o que ne­
nhum povo ou comunidade tentará fazer, já que nem mesmo
pode sonhar em possuir a metade dos recursos necessários para
realizar tal empreendimento.
As perspectivas são, portanto, de uma barbárie que terá a
mesma duração que vai ter a vida do planeta. Sombrias perspec­
tivas na verdade. Por mais que se tenha em vista que essas coisas
que prevemos terão lugar num futuro do qual não faremos parte,
só o pensamento de que tudo quanto prezamos, respeitamos e
amamos vai desaparecer um dia, para nunca mais voltar - só
esse pensamento é capaz de nos atormentar e - coisa curiosa -
se pudéssemos esperar que a barbárie fosse novamente conquista-

1 03
da e que a civilização, nossa civilização, voltasse, com nossos va­
lores, estaríamos de um certo modo consolados, confortados. Tal
é a natureza humana. Somos solidários com o mundo em que vi­
vemos e sofremos tanto com a existência de uma ameaça iminen­
te quanto com a configuração de um perigo que se situa num fu­
turo que de qualquer maneira não seria o nosso.
A nobreza do espírito humano revela-se nessa defesa de valo­
res cujo desaparecimento representa uma ameaça não para nós,
mas para os nossos descendentes. Há, nesse sentimento, desvincu­
lado de todo instinto egoístico de posse imediata, uma inequívo­
ca afirmação de liberdade. A liberdade que não esquecemos no co­
meço é a mesma liberdade que não nos esquece no fim. Morremos
livres quando morremos em defesa daqueles- bens de que depois
de nossa morte não poderemos usufruir. Os que esqueceram o ho­
mem e a liberdade morrem sem saber por que viveram - nunca
puderam usufruir dos bens que em vida tinham ignorado.
G. H. von Wright escreveu recentemente um artigo sobre o
futuro da Rússia, que entre outras coisas afirma que a história do
povo russo não está bem sincronizada com o restante da Europa.
A modernização da Rússia, segundo ele, não resulta de um cres­
cimento orgânico de baixo para cima, mas das tentativas de rea­
lizar reformas de cima para baixo, numa sociedade imatura. A
primeira teria sido a de Pedro, o Grande. G. H . von Wright con­
sidera que ela foi prematura. Resultou no que Spengler chamou
de uma pseudomorfose histórica. Julgar a história russa de Pedro,
o Grande, à Lênin como uma pseudomorfose, conseqüência de
uma modernização prematura, parece-lhe basicamente correto.
Quem poderia ler, nos pergunta ele, As almas mortas ou O inspe­
tor de Gogol, sem pensar que a sociedade russa do século XIX era
um grande equívoco?
Agora que a pseudomorfose marxista e leninista caiu por
terra, criou-se novamente, pensa G. H. von Wright, espaço para
um debate no gênero do que já havia ocorrido nos tempos da an-

1 04
tiga pseudomorfose - o debate a respeito do contraste entre os
eslavófilos e ocidentais - seria um contraste entre um Ocidente
que atravessa o Atlântico para abraçar os Estados Unidos e outro
que atravessaria a Ásia para alcançar o Pacífico. Esse contraste foi
caracterizado pelo filósofo russo Alexandre Panarim como um
entre os atlantists e os eurasiasts; os primeiros pensando que a mo­
dernização da Rússia deveria se filiar à civilização global da qual
fazem parte a economia de mercado e a democracia liberal, os se­
gundos pensando que disso só poderá resultar uma outra pseudo­
morfose. Abre-se um campo de debate vastíssimo sobre em que
poderia bem se constituir o eurasianismo.
G. H. von Wright encerra o seu artigo sem se pronunciar a
respeito, mas o fato de que o contraste entre a Europa Ocidental
e a Rússia existe desde os tempos do suposto primeiro pseudo­
morfismo - de que é protagonista principal Pedro, o Grande -
parece indicar que a "sociedade imatura", o "grande equívoco" de
que nos fala Von Wright nunca foi uma matéria informe, algo
que estivesse em estado caótico à espera de algo que lhe desse
uma forma, um ordenamento, uma organização. Consistia antes
numa realidade já pronta, já completamente constituída, que
possuía uma vida totalmente autônoma. A falta de certos elemen­
tos que, eventualmente, pudessem dar a impressão de que a Rús­
sia estava à espera de alguém ou de qualquer coisa que lhe desse
forma era uma ilusão que entretinha aqueles que possuíam tais
elementos. O historiador da filosofia russa V. V. Zenkovsky dis­
cute amplamente esse problema. Mostra-nos como o desenvolvi­
mento da razão pode se dar em dois sentidos opostos, um volta­
do para si próprio, outro para o desenvolvimento do homem e de
sua liberdade. Seria presunçoso ignorar o resultado do desenvol­
vimento da razão neste último sentido. Tal é a contribuição da fi­
losofia russa. E seria também presunçoso desconsiderá-la alegan­
do o fato de que, sendo um pensamento elaborado por um país
não europeu, deveria ser excluído, desconhecido como parte in-

105
tegrante do acervo da cultura ocidental - do mesmo modo
como se excluiria como parte integrante desse acervo a filosofia
hindu ou a filosofia da China.
No nosso modo de entender, a filosofia russa faz parte de
uma cultura humanista, embora o seu humanismo não coincida
ponto por ponto com a estrutura do humanismo europeu. Trata­
se de uma cultura concentrada sobre o homem, não de uma cul­
tura cosmológica como a chinesa ou a da Índia. Tem mesmo
sobre o humanismo europeu a vantagem de ocupar todo o espa­
ço reservado à cultura em geral. O humanismo europeu divide
esse espaço com a teoria do conhecimento e nessa divisão tem
cada vez menos a parte do leão, perde cada dia mais terreno para
ela. No Ocidente europeu já se fala hoje êntre os filósofos mais
recentes na morte do humanismo - é verdade que são eles epí­
gonos, sem maior representatividade -, mas o que dizem é, sem
a menor dúvida, um sinal dos tempos.
Não seria uma bela contribuição para o humanista debilita­
do do Ocidente receber sangue novo do humanismo russo, vigo­
roso, dotado justamente daqueles ingredientes que estão fazendo
falta no humanismo ocidental? A suposta pseudomorfose russa
revelar-se-ia então capaz de produzir uma verdadeira transforma­
ção na cultura do Ocidente europeu. Com a ajuda de Nietzsche,
com a sua visão de um Sócrates dionisíaco, a união poderia se
realizar. O que o primeiro Nietzsche via em Sócrates é exatamen­
te o que a Rússia eslavófila do século XIX via na cultura da Eu­
ropa Ocidental. A evolução de Nietzsche consistiu em perceber
que havia muito mais em Sócrates do que inicialmente percebe­
ra. A evolução do pensamento russo eslavófilo poderia agora per­
ceber que há muito mais na filosofia ocidental do que havia ini­
cialmente percebido. Poderia perceber, por exemplo, que havia
um homem como Nietzsche.
O complexo de superioridade que existe no Ocidente, em
virtude de seu maior poder militar e tecnológico, fez com que as

1 06
muitas visões do futuro que nele têm circulado não levem em
conta a riqueza que a cultura russa pode oferecer para esse fu­
turo. São sempre visões em que se desenham extremos a que
pode chegar o homem tecnológico. Como se a tecnologia con­
tivesse a essência do que a cultura humana tem produzido! Diz­
se assim: A tecnologia vai permitir isso, vai permitir aquilo,
como se fossem tais coisas desiderata supremo. Que já se tenha
produzido coisas importantes, antes da tecnologia, que merece­
riam ser carregadas para o futuro, é o que nunca ocorre a esses
futurólogos. A relação é de adversidade. Como em tempos em
que havia cultura não havia tecnologia, agora que há tecnologia
acha-se natural que não haja cultura. Todo mundo riria se estra­
nhássemos o fato de que astronautas nunca levem Platão ou Ho­
mero para ler nos momentos de lazer que eventualmente te­
nham em suas naves espaciais.
A tecnologia exclui a cultura. Não surgiu até hoje nenhum
intrépido astronauta que fosse também um grande poeta. En­
tretanto, as civilizações não se fazem nunca por exclusões, mas
por acréscimos, por adições. O que somos hoje é uma soma do
que foram os egípcios, com sua crença na imortalidade, dos ju­
deus com sua crença no pecado, na má consciência, na alma, do
que foi Jesus, com sua crença na redenção do pecado, do que
foram os gregos com sua crença na embriaguez criadora e des­
truidora de Dionísio e no poder moderador e formativo do
sonho apolíneo. Nada dissso pode ser jogado fora simplesmen­
te porque se descobriu a tecnologia - a "civilização tecnológi­
ca" não pode ser a única que se fez por exclusão, mesmo saben­
do que ela pode levar o homem à Lua. Não podemos j ogar fora
uma cultura como a russa que desenvolveu paralelamente à cul­
tura da Europa alguns dos elementos que enumeramos anterior­
mente, e não podemos jogá-la fora sobretudo porque desenvol­
veu elementos que na cultura ocidental haviam sido colocados
num segundo plano.

1 07
Seria difícil para nós, que vivemos o momento presente, ima­
ginar o que poderia ser uma conversa com o homem que viverá
num mundo plenamente tecnológico. Excluídos todos os assun­
tos que pudessem mesmo de longe se referir à cultura rejeitada, o
que poderíamos dizer-lhe? Não haveria nem mesmo uma lingua­
gem comum com que pudéssemos nos comunicar. Todos os ob­
jetos que constituem o nosso mundo ficariam perdidos no espa­
ço sem ligações uns com os outros. A água não servirá mais para
lavar, nem a terra para a cultura de alimentos. Haverá outros pro­
cessos para chegar ao mesmo fim. É impossível que a linguagem
não fique afetada com isso. As palavras que usaríamos não teriam
sentido para o nosso homem. Ele teria cerçamente uma lingua­
gem própria. Seria uma linguagem que revelaria um cérebro mais
desenvolvido que o nosso? Isso é coisa que me custa acreditar. A
origem mais provável de uma linguagem bem desenvolvida é na­
turalmente uma imaginação poderosa. É o que o homem tecno­
lógico, por mais que desenvolva a sua tecnologia, jamais possui­
rá. Por conseguinte sua linguagem, por força das circunstâncias,
terá uma capacidade de expressão reduzida. Haverá mesmo, creio
eu, uma tendência a que com o passar do tempo essa capacidade
vá cada vez mais diminuindo. Seu coeficiente de loquacidade, ao
fim de um certo tempo, será extremamente baixo. Não afetaria
isso sua constituição física dando a seu cérebro a dimensão ade­
quada às reduzidas funções que desempenha?
Dissemos ainda há pouco que as civilizações se fazem por
acréscimo. As civilizações judaica e grega pressupõem a civiliza­
ção egípcia como a civilização cristã pressupõe as civilizações ju­
daica e grega. A civilização renascentista pressupõe a civilização
grega e a católica. A civilização protestante pressupõe a civiliza­
ção católica e a civilização renascentista.
Se procurarmos agora definir o que pressuporia a civilização
racionalista, teremos dificuldade em fazê-lo. Voltaire, o grande
guru do Século das Luzes, foi mais o campeão de uma liberdade

1 08
sem compromissos de que da racionalidade. Foi por essa razão
que Nietzsche dedicou a ele o seu livro Humano, demasiadamen­
te humano. O Século das Luzes, pretendidamente racionalista, foi
o século que, em face da imensa riqueza cultural produzida pela
humanidade ao longo dos séculos, pretendeu selecionar, sem
qualquer compromisso, fosse de que espécie fosse, o que lhe pa­
recia ser mais valioso por ser mais conforme à razão humana.
Razão e liberdade entram nessa decisão como ingredientes espiri­
tuais superficiais, não aprofundados. Não foi por isso uma cultu­
ra herdeira de algum tipo de passado que tivesse elaborado os va­
lores desse passado de modo a criar um estilo autônomo, mas
uma civilização crítica que adotou como postura essencial uma
avaliação, ela própria sujeita a críticas, do que havia produzido a
humanidade em matéria de cultura até a sua data.
A conseqüência imediata dessa postura foi que a civilização
racionalista não criou valores substanciais, modelos originais. As
idéias que proclamou - liberdade, racionalidade, igualdade, fra­
ternidade - eram idéias que já haviam sido defendidas em ou­
tras culturas, embora não tivessem pretendido, como faziam as
luzes, utilizar essas bandeiras como bandeiras revolucionárias.
O Século da "Luzes" foi assim uma espécie de "canto do
cisne" da civilização da Europa Ocidental. Houve protestos, ten­
tativas de reverter o processo de deterioração - Rousseau, Goe­
the, o movimento romântico e seus desdobramentos, naturalis­
mo, realismo, surrealismo etc. - tentativas fracassadas e que
enchem a história dos séculos XVIII, XIX e XX. Mas, se não con­
siderarmos a contribuição de Kierkegaard e de Nietzsche no sé­
culo XIX, nada houve que pudesse reavivar em nós uma confian­
ça inabalável no futuro da humanidade.
Certas pessoas que consideram que vivemos num período
de trevas, com o nazismo, o fascismo e o estalinismo a nos mos­
trar o que poderá vir a ser o mundo - um espetáculo de barbá­
rie e de irracionalismo - poderão acreditar que as esperanças de

1 09
um futuro melhor estão todas concentradas num retorno ao es­
pírito do Século das Luzes, ao racionalismo, à lucidez de Voltai­
re, ao equilíbrio de Boileau, ao magistério dos enciclopedistas.
São pessoas que não discerniram a esterilidade do Século das
Luzes, a melancolia desse "canto de cisne", que ignoram ou não
compreendem a importância e a significação de homens como
Kierkegaard e Nietzsche, e nem tampouco a importância e a sig­
nificação da inspiração que poderia nos advir da cultura russa do
século XIX.
Se seguirmos os passos dessas pessoas nos veremos em breve
confrontados com o mais desalentador dilema: ou rejeitaríamos
todo tipo de cultura, inclusive a cultura das Luzes para ficar uni­
camente com a ciência e a tecnologia que assumiriam então as
funções de uma nova forma de "civilização" ; ou faríamos das
"Luzes" de Voltaire um "nariz de cerà' que seria superposto a essa
nova forma de civilização que exclui, por definição, qualquer sus­
peita de uma associação com valores substanciais de cultura.
O "nariz de cera" funcionaria como um Ersatz de cultura. O
homem tecnológico falaria da liberdade como um autômato por­
que haveria nele um mecanismo psicológico que o impeliria a um
tal procedimento. Não haveria nele a menor sombra de que hou­
vesse um dia experimentado o que fosse a liberdade; mas haveria
aquele ímpeto, aquele impulso para reconhecer que a liberdade e
a racionalidade eram algo valioso.
Eventualmente diria que a tecnologia libera o homem do es­
forço físico do trabalho: como se o homem fosse um animal atre­
lado a uma carroça ou utilizado para carregar pesos; diria tam­
bém que ela permite ao homem realizar um certo número de
coisas: como se o conjunto dessas "permissões" fosse um acervo
de dotações capaz de transmitir ao homem a qualidade de "ser
livre" . Na verdade nenhum agente exterior é capaz de transmitir
ao ser humano tal qualidade. Ela é um atributo que o homem de­
verá conquistar por si mesmo, por uma luta que só pode ter

1 10
como teatro a própria interioridade do homem. Isso a tecnologia
ignora e aqui temos a razão pela qual é incapaz de se alçar a no­
ções mais sofisticadas do que seja a liberdade humana.
Uma civilização de um modo geral tem objetivos, tem ca­
racterísticas, tem um estilo. Qual seria o estilo da civilização tec­
nológica? Como conseguiria ela aglutinar um certo número de
indivíduos de modo a formar uma sociedade? Que tipo de cren­
ça teriam eles? Que outros interesses teriam além de fazer e pôr a
funcionar máquinas? Que novas utilidades seriam inventadas que
j ustifiquem a produção de novas máquinas? Essas perguntas per­
mitirão talvez perceber como é difícil organizar uma sociedade
em torno de máquinas. Que sentimentos poderão suscitar no
homem com sua presença? Nos homens que as manipulam e que
delas se beneficiam podem até suscitar gratidão, mas eles são uma
ínfima minoria. A imensa maioria dos homens sofre com a pre­
sença das máquinas no mundo, perde seu emprego por causa
delas, passa fome, conhece a miséria e a falta de solidariedade hu­
mana. Com relação às máquinas, se não sentem ainda, acabarão
por sentir o mais intenso ódio. Não adianta dizer que no futuro
haverá fartura para todos e que todos se beneficiarão dessa fartu­
ra. Sabemos perfeitamente que já há fartura hoje para todos e que
o que não há é solidariedade humana. A civilização tecnológica
terá elementos ou meios para suscitar tal sentimento?
Nossas análises precedentes nos inclinariam a dar a essa per­
gunta uma resposta negativa. Realmente não se trata de uma aver­
são gratuita à tecnologia. Emocional ou intelectualmente, a tec­
nologia sairia infalivelmente reprovada de um escrutínio severo
que se fizesse ao que constitui a sua essência. As sociedades huma­
nas existirão enquanto houver crenças comuns, um certo senti­
mento de solidariedade (que j ustamente ainda temos mas não no
grau que seria necessário) , relacionamentos vários por interesses
motivados pela diversidade de um mundo em que há cultura. Na
civilização tecnológica nem mesmo os laços de família poderão ser

111
livremente cultivados! Pais, mães e filhos não terão mais projetos
individuais que alimentem a conversa da família - estarão, cada
um deles, enclausurados na obsessão tecnológica que se achar a
seu alcance. Naturalmente só não serão infelizes os homens que as
máquinas ainda não desempregaram. Os outros terão todo o
tempo que quiserem para cuidar dos filhos - mas não terão di­
nheiro para alimentá-los, para vesti-los, para educá-los.
O homem tecnológico tem uma ambição desmedida. Já
conquistou a Terra, quer agora conquistar os espaços interplane­
tários para eventualmente conquistar um outro planeta. Não é,
nem deseja ser um super-homem porque não sabe o que é ser hu­
mano. Dá as costas à Terra para poder contemplar o que vai pelos
céus. Mas a idéia do divino nem por um segundo aflora à sua
mente. Nesse particular é menos dotado que o homem primitivo
que tinha e tem o sentido do sobrenatural. Só de um modo ale­
górico poder-se-ia dizer que ele estivesse voltando à barbárie. É
difícil saber se seria "mais" ou "menos" do que o homem primi­
tivo. Por certos lados pareceria ser "mais": seu domínio da técni­
ca, sua capacidade de construir instrumentos e máquinas, suas
proezas na terra, no mar e nos ares - são tudo coisas que não só
fascinam a imaginação das crianças como impõem o respeito à
consideração dos adultos; mas, por outro lado, percebe-se a au­
sência de sentimentos, de emoções, de impulsos de toda nature­
za - um acervo de elementos de preço inestimável.
O aspecto mais terrível da civilização tecnológica é que ela
parece ser o fim de um processo. A civilização das "Luzes" foi o
"canto do cisne" que anunciou a morte da civilização ocidental.
A civilização tecnológica parece ser algo disforme, uma anomalia
gerada antes que a morte sobrevenha - um pesadelo que paira
sobre nós como uma nuvem cinzenta, que nos impede de ver o
céu azul e que vem baixando com uma lentidão inexorável como
se sua intenção fosse esmagar-nos, já que há nela reflexos que pa­
recem vir do aço.

1 12
Não há mais então salvação para a cultura do Ocidente?
Sendo a tecnologia a força avassaladora que é, não terá o Extre­
mo Oriente energia suficiente para resistir a ela? E se não tiver,
será a Terra, o mundo inteiro um planeta tecnológico?
O caso do Extremo Oriente é um caso à parte. A assimila­
ção da tecnologia ocidental não parece ter o dom de modificar
grande coisa da essência da cultura chinesa. A China tem mais de
vinte séculos de civilização e nunca conheceu a liberdade huma­
na - nem a liberdade exterior, oriunda do poder, nem a liberda­
de interior, oriunda de uma cultura transcendente. Não conhe­
ceu a liberdade exterior porque nunca conheceu a democracia
igualitária - um sistema em virtude do qual cada cidadão é livre
porque poderia possuir as mesmas coisas, teria o mesmo poder
que o seu vizinho. Não conheceu a liberdade interior porque sua
cultura é cosmológica, não transcendente, e, portanto, nunca pro­
duziu um sábio capaz de desenvolver a interioridade do ser hu­
mano de modo a colocá-la em contato com a transcendência.
Confúcio, o maior sábio da China, não foi mais do que um con­
selheiro de estadistas. Estava como eles, limitado por uma visão
cosmológica do mundo, por uma compreensão da vida política
como um sistema de simples organização da burocracia estatal.
Nunca lhe passou pela cabeça a idéia de ser mais do que um con­
selheiro, de ser ele próprio um estadista que revolucionasse o
mundo chinês com idéias diversas daquelas que constituíam a es­
sência da cultura desse mundo.
Se compararmos Confúcio, o maior sábio da China, com
Sócrates, o maior sábio do Ocidente, teremos uma visão clara da
diferença, considerando unicamente as coisas que Confúéio não
fez: Confúcio foi apenas um conselheiro de estadistas, não foi ele
próprio um estadista; não criou um Estado dentro de si mesmo;
não fundamentou a autonomia do indivíduo; não descobriu a li­
berdade interior do indivíduo; não teve acesso à transcendência.
Confúcio limitou-se a formular preceitos baseados na experiência

1 13
de vida que era possível ter num mundo chinês - preceitos que
eram a inspiração dos governantes na organização da burocracia
estatal. Mas o grosso da população chinesa não tinha um conta­
to direto com essa sabedoria confuciana - ela só o atingia indi­
retamente pelos efeitos produzidos por aquela burocracia. Era no
culto aos antepassados e nos ecos longínquos da sabedoria confu­
ciana que residia a moralidade do povo chinês. O que mais havia
era a etiqueta imperial, uma absurda implantação de ritos em que
a sociedade inteira, desde as classes menos favorecidas até os fun­
cionários do mais alto escalão, renunciava à sua própria dignida­
de para prosternar-se diante da figura imperial como o crente fiel
de uma religião ordenada a um Deus todo-po9-eroso não se pros­
ternaria diante de sua imagem. O imperador, naturalmente, não
pretendia ser um Deus; mas pretendia ser escolhido, favorecido
por Deus. Para cúmulo da indignidade, a prosternação era obri­
gatória não apenas na sua presença como também na presença
de qualquer objeto ou documento procedente da augusta pessoa
do imperador.
Alain Peyrefitte conta-nos, no Império imóvel, os vexames
por que passou o embaixador Macartney, enviado de Sua Majes­
tade Britânica à China, no ano de 1 793, com a missão de propor
ao governo chinês a abertura das relações diplomáticas entre os
dois países. O imperador Quianlong recusou-se a admitir que
houvesse entre os dois países uma igualdade qualquer. Aceitava
receber o embaixador e seus presentes como um dos vários envia­
dos de países tributários que haviam solicitado uma audiência.
Além disso exigia a prosternação, o Kotow, em que por nove vezes
a cabeça do indivíduo prosternado devia tocar o solo.
Lorde Macartney não aceitou a imposição. Seria longo des­
crever todas as negociações que se seguiram e a que nenhum re­
sultado levaram . Macartney foi admitido à presença do impe­
rador e não fez o Kotow. Em compensação, em todas as outras
ocasiões foi tratado como o enviado de um país tributário, e sua

1 14
proposta do estabelecimento de relações diplomáticas foi inteira­
mente ignorada.
Fato curioso, Napoleão, prisioneiro de Santa Helena, soube
do ocorrido e foi da opinião de que o Kotow deveria ter sido acei­
to. Entretanto não externou essa opinião durante a visita que lhe
fez em 1 8 1 7, lorde Armherst, o segundo embaixador britânico a
tentar obter do governo chinês a proposta de estabelecimento de
relações diplomáticas entre os dois países. Sua argumentação era
precária, mas a delicadeza de sua discrição foi apreciada. Lorde
Armherst sabia perfeitamente pelos seus informantes qual era a
opinião do imperador destronado.
Como poderia o povo chinês cultivar a liberdade? O pro­
cessso de gradual desaparecimento da liberdade interior, em
virtude do desenvolvimento da liberdade exterior, e o gradual
desaparecimento desta última, em virtude do desenvolvimento
tecnológico, não poderia ter ocorrido na China porque desde o
início de sua civilização ela se mostrara completamente despos­
suída de qualquer noção do que fosse a liberdade. A China foi
e continua sendo a nossa maior cultura cosmológica. Falta-lhe
a noção de transcendência. Para que se tornasse possível um re­
lacionamento cultural entre o Ocidente e o Extremo Oriente
teria sido preciso que ocorresse uma revolução religiosa ou filo­
sófica de tal natureza que a noção de transcendência pudesse se
impor a uma população de quase um bilhão de habitantes. Is­
rael fez essa revolução no começo de sua história com uma po­
pulação incomparavelmente menor. A Grécia fez a sua quase
no fim de uma carreira gloriosa com um punhado de filósofos.
A China permanecerá a mesma de sempre, o " Império Imóvel"
de Alain Peyrefitte. Terá provavelmente outras revoluções me­
nores, políticas, que não abalarão sua estrutura moral e religio­
sa. A grande revolução espiritual de que tanto necessita para
entrar na estrada real da cultura humana, esta, provavelmente,
nunca ocorrerá.

1 15
No que diz respeito à tecnologia, creio que, mesmo tendo
assimilado a totalidade da tecnologia desenvolvida no Ocidente,
nada no seu projeto político se modificará. A China não tem uma
tradição de conquistas no mundo exterior. O que ela quer é con­
servar o seu Império tal como ele sempre foi. Está nas antípodas
do Império americano que cultiva o hábito de criar inimigos ima­
ginários como pretexto para aumentar cada vez mais seu poderio
militar. A China não parece ter consciência de que existem ao
redor de si potências militares com um alto coeficiente de poder
de agressão. Terá sem dúvida melhores armas para se defender de
eventuais ataques. Mas já deve ter compreendido que numa cor­
rida armamentista está demasiadamente atrásada para competir
com os países ocidentais. A descoberta de armas atômicas anula
na verdade qualquer argumento que se refira à superioridade nu­
mérica de seus habitantes, tão temida por Napoleão. Se não tiver
o mesmo número de bombas atômicas que já tem o Ocidente, es­
tará em evidente situação de inferioridade.
Não há portanto, como se vê, nenhuma garantia de que a
China possa impor sua imobilidade ao restante do mundo. Trata­
se de uma nação que não parece dispor de condições para dar
uma contribuição qualquer no sentido de atenuar no Ocidente os
malefícios causados pelo crescente desenvolvimento da tecnolo­
gia. Se não parece estar ela própria destinada a sofrer esses male­
fícios - em virtude de sua capacidade de resistir a qualquer tipo
de mudança - tampouco se mostra capaz de produzir o que
seria um contraveneno, isto é, o desenvolvimento da noção de li­
berdade - como, por exemplo, seria o caso da cultura ortodoxa
da Rússia do século XIX. O nosso mundo inteiro não deixará de
ser um planeta tecnológico pelo simples fato de o império da
China continuar a ser o que sempre foi, o Império Imóvel,
mesmo depois da implantação, na sua sociedade, da indústria
tecnológica. Será simplesmente um planeta sem liberdade, por
dois motivos: primeiro, porque uma considerável parte de sua

1 16
população nunca conheceu a liberdade; e segundo, porque a parte
restante a perdeu em virtude do processo de desenvolvimento
tecnológico por que passou.
São essas perspectivas que, por não se referirem a um futu­
ro imediato, nem por isso deixam de ser profundamente inquie­
tantes. O político, no mundo ocidental, que apresenta propostas
para a reforma de uma lei alude algumas vezes à nossa era tecno­
lógica como reforço ao peso de sua argumentação. Julga natural­
mente que adaptar-se às circunstâncias do seu tempo é um dever
que lhe é imposto. E não há dúvida de que está cheio de razões.
Mas isso mostra também o poder da tecnologia, sua força irresis­
tível, a capacidade que tem de impor sua presença sejam quais
forem as barreiras que uma força adversa tente levantar.
Essas forças adversas nada significam? Onde fica em tudo
isso a liberdade humana, essa liberdade de que tanto se fala e que
numa hora grave como essa em que estamos não nos dá o ar de
sua graça? Os filósofos pretendem que o homem dispõe de sua li­
berdade mesmo perante Deus. Estaria a tecnologia numa situa­
ção privilegiada, colocada numa esfera superior à esfera em que
existe a divindade? Seria essa a razão pela qual o homem não pa­
rece dispor de liberdade em face da tecnologia? É esse o motivo
pelo qual o homem tecnológico parece estar esquecendo Deus?
O homem contemporâneo é cioso não apenas de sua liber­
dade mas também de sua racionalidade. Não deveria ele, por um
dever de consciência, propor leis que abolissem qualquer crença
na divindade, uma vez que vivemos numa época tecnológica e
que a tecnologia está se mostrando situada num plano superior
ao da divindade?
Perante a tecnologia o homem contemporâneo está se mos­
trando ser não apenas submisso, passivo, heterônomo, mas tam­
bém inconsistente, com um coeficiente de racionalidade alta­
mente deficitário. Aceitamos a tecnologia mas não rejeitamos
Deus de modo claro. "Nem tanto ao mar, nem tanto à terrà', diz

1 17
o provérbio. Poder-se-ia aceitar a tecnologia, dentro de certos li­
mites, compatíveis com a crença em Deus. Mas é isso realmente
o que fazemos?
Se se pensa que esses limites não foram ainda ultrapassados
permitam-me apontar para alguns fatos que certamente não pas­
saram despercebidos. Quando o homem chegou à Lua o mundo
inteiro se comoveu e tinha-se nitidamente a impressão de que se
anunciava uma nova era. Ninguém pensava em Deus. Começou­
se a falar em ônibus espaciais, em excursões à Lua, como se se tra­
tasse de uma rotina a ser inaugurada. Começou-se a ver, no espa­
ço, objetos não identificados, discos voadores, como se outros
planetas estivessem igualmente habitados pela raça humana ou
por qualquer outro tipo de ser vivo, com a diferença de que ha­
viam atingido níveis mais elevados de desenvolvimento tecnoló­
gico. À medida que essas coisas apareciam, um fenômeno parale­
lo se produzia: o sentimento do mistério, do enigma profundo
que está na raiz de todas as coisas ia desaparecendo. Tudo parecia
natural. O sobrenatural parecia ser uma hipótese inútil que po­
deria ser jogada fora. O homem habituava-se a viver fora do pla­
neta que era seu hábitat natural. A tecnologia trabalhava para que
sua permanência nos espaços livres fosse a mais longa possível. Os
outros planetas, por enquanto, se mantinham, se mantêm inaces­
síveis. A tecnologia não desanima, continua obstinada. Durante
quanto tempo se esforçará por encontrar meios para vencer as di­
ficuldades que se têm apresentado? Chegará o dia em que ela terá
reconhecido que está verdadeiramente diante de uma esfinge,
que lhe dirigirá a pergunta à qual não saberá responder?
Enquanto isso não acontecer, só não viveremos completa­
mente desmoralizados, pretendendo ter uma liberdade de que de
fato não dispomos, porque haverá sempre alguém que terá con­
seguido preservar a liberdade interior que nenhuma tirania, nem
mesmo a tecnológica, poderá destruir. Há mais de vinte séculos
que homens desse jaez têm existido. E é muito provável que, en-

1 18
quanto o nosso planeta não for destruído por um suicídio tecno­
lógico, esses homens não cessarão de existir.
Entretanto, essa existência assegurada é de pouco consolo.
O contato desses homens com o restante da humanidade é ne­
cessariamente precário. A influência que têm sobre ela é pouco
mais do que nula. Vivem como aves raras, protegidos contra a
violência dos tempos por algo que é realmente inexprimível. Se
algum dia a humanidade, não em virtude do exercício de sua li­
berdade, mas por puro medo, alarmada pelas predições assusta­
doras dos movimentos ecológicos, reunir forças suficientes para
deter a marcha da tecnologia, o que significaria a extinção gra­
dual de seus excessos mais nocivos - se isso acontecer, é possí­
vel que essa espécie rara de homens que conseguiu preservar sua
liberdade interior se multiplique e possa então exercer plena­
mente sua influência. É em nome dessa possibilidade, confesse­
mos, um tanto remota, que vale a pena especular sobre como
seria o mundo se nele prevalecesse o exercício irrestrito de uma
plena liberdade.
Descrevemos, páginas atrás, a revelação que havia sido para
o século XIX europeu o aparecimento da literatura russa. Deve­
mos agora, na época atual, avaliar com toda a seriedade a impor­
tância da filosofia daquele país no século XIX - importância
não apenas para a Rússia de hoje como também e principalmen­
te para a cultura ocidental contemporânea.
Para isso precisaríamos examiná-la com algum cuidado. No
Ocidente, o instinto básico da racionalidade foi fundamento da
filosofia; no Oriente ortodoxo russo, esse fundamento foi dado
pelo instinto básico da liberdade. A diferença que existe entre a
filosofia russa e a filosofia do Ocidente não está, como muita
gente pensa, na imaturidade da primeira e na maturidade da se­
gunda. Trata-se de dois tipos de filosofia igualmente maduras,
mas que diferem uma da outra porque uma cultiva apenas o pro­
jeto da racionalidade enquanto a outra se dedicou mais ao proje-

1 19
to da liberdade. O Ocidente europeu orgulha-se do desenvolvi­
mento a que chegou, em matéria de teoria do conhecimento, mas
parece ter esquecido completamente o projeto de liberdade tão
genialmente proposto por Sócrates. A Rússia, estimulada por sua
religião, interessou-se por um projeto de liberdade, mas absteve­
se de seguir o exemplo do Ocidente europeu no que diz respeito
à sua excessiva concentração sobre o problema da racionalidade.
A crítica que a Rússia sempre fez à racionalidade européia era a
de uma obsessiva preocupação com a teoria do conhecimento
que a induzia a abandonar uma questão que lhe parecia ser igual­
mente prioritária - a questão da liberdade.
Qual dos lados teria razão? Posto desse modo, o problema
não parece ter solução. As duas partes, a Rússia do século XIX e
a Europa Ocidental, certamente realizaram experiências extrema­
mente valiosas para o mundo civilizado. Ficamos conhecendo da
maneira mais minuciosa, por meio de Kant, a estrutura íntima de
um certo tipo de racionalidade, essencial para a cultura do Oci­
dente. E ficamos igualmente conhecendo no vigor pleno de seu
dinamismo interno, mediante a literatura russa, a força criadora
e entusiasta da verdadeira liberdade. Esses são elementos positi­
vos de valor permanente: mas há ao lado deles elementos negati­
vos como a conceituação artificial de uma "razão prática" , de uma
"causalidade livre" , por parte de Kant e a concepção "wholista''
que ignora a distinção entre o estático e o dinâmico e de que é
um bom exemplo a palavra pravda, expressão russa que significa,
ao mesmo tempo, justiça e verdade.
A distinção entre o teórico e o prático foi estabelecida por
Aristóteles que desse modo rompeu com o estilo de pensar socrá­
tico e platônico. Sócrates, ao aj udar a alma humana nos seus tra­
balhos de parto para dar à luz o universal e conseqüentemente a
razão, colheu também uma nova criatura, a liberdade, que forma­
va assim com a razão um par de gêmeas, reunidas na síntese de
um parto único. A razão era universal e a liberdade era moral. A

1 20
Rússia do século XIX aspirava a essa síntese mas não sabia como
efetuá-la. Desviada do rumo certo, a experiência do Ocidente não
podia ajudá-la. Movida por um instinto cego mas dotada de an­
tenas que a mantinham na direção correta, ela aceitava a contri­
buição da racionalidade do Ocidente unicamente à medida que
ela não prej udicasse a expansão da sua liberdade. Para Nicolai
Berdiaev, por exemplo, o Ocidente nada tinha a oferecer em ma­
téria de liberdade - a liberdade do homem era inteiramente ir­
racional. Berdiaev remontava ao místico Jacob Boehm e não a
Sócrates para encontrar a origem da liberdade. A liberdade de Só­
crates, segundo ele, era a liberdade na razão, isto é, uma liberda­
de dominada pela razão. Ele acreditava que a liberdade fosse an­
terior ao "ser" . Mas, para fundamentar a sua crença, recorria a um
místico em vez de recorrer ao pai da racionalidade. Esta, por con­
seguinte ocupava, a seu ver, uma posição necessariamente secun­
dária, o que o levava naturalmente a negar a validade de qualquer
tipo de metafísica abstrata.
Assim, tanto na Rússia do séct ilo XIX quaL 'o na Europa
Ocidental, apenas Kierkegaard e Niet lsche recorreram a Sócrates.
E recorreram a ele não apenas porque estavam sufocados com a
excessiva preocupação com a teoria do conhecimento dos eu­
ropeus, como também por ansiarem por uma liberdade a que
sabiam estar o nome de Sócrates associado. O nome de Sócrates
representava razão e liberdade numa síntese única, orgânica, vis­
ceral. A síntese que queriam realizar os russos era uma síntese em
que a liberdade envolvia a razão, o contrário do que acreditavam
que Sócrates houvesse feito, isto é, envolver a liberdade na razão.
A filosofia russa não é nem teocêntrica nem cosmocêntrica, é to­
talmente antropocêntrica, com uma decidida orientação moral.
"A natureza do homem é vasta, demasiadamente vasta, mesmo -
seria necessário torná-la mais limitadà', diz Dimitri Karamazov,
personagem de Dostoievsky. O homem é demasiadamente livre.
Seria necessário torná-lo mais limitado.

121
Dostoievsky não nos explica como isso poderia ser feito. Só
nos assevera que alguma coisa deveria ser feita. Mas o papel prin­
cipal pareceria estar sempre reservado à liberdade. A razão pode­
ria então assumir um papel secundário: poderia ser utilizada no
corte de excessos, no estabelecimento de limites, sempre no en­
tendimento de que o grosso da liberdade, sua substância seria ri­
gorosamente preservada. O moralismo de Tolstoi, a sua Sonata de
Kreutzer, as críticas a Shakespeare, a Goethe, a Beethoven, que
tanto escandalizaram o mundo das artes e das letras no mundo
ocidental devem ser entendidos como uma homenagem à liber­
dade russa. A moral que no Ocidente constitui um obstáculo à li­
berdade humana é aqui associada à liberdade e transformada em
colaboradora na ação devastadora que se pretende exercer: o Bem
absoluto deverá ser praticado de forma excessiva, imoderadamen­
te, sem que qualquer tipo de beleza, de genialidade, ou mesmo os
mais sedutores acordes musicais possam nos desviar do caminho
obstinado que nos leva a seus domínios. É um moralismo mais
substancial, mais positivo, mais estimulante que o moralismo do
Ocidente, o qual, derivado da pobreza, da carência da liberdade
e não do seu excesso, se mostra negativo, deficiente em substân­
cia e incapaz de nos trazer outra coisa que não o desestímulo. Ho­
mens da mais refinada intelectualidade européia como Rilke ou
Wittgenstein se sentiram atraídos por Tolstoi.
Que grande moralista do Ocidente teria sido capaz de atrair
personalidades russas? Poderia me ser objetado que Rousseau
havia influenciado gênios como Dostoievsky e Tolstoi. Mas Rous­
seau foi um moralista entre aspas. O Bem para ele não existia, se
dissolvia na Natureza. Mesmo Tolstoi, para quem o Bem não se
situava em regiões transcendentes, mas na própria imanência,
mesmo Tolstoi não dissolvia o Bem na promiscuidade dessa ima­
nência. Para ele, o Bem continuava a ser o Bem com todas as prer­
rogativas que lhe eram inerentes quando habitava o mundo trans­
cendente. Dissolvido na Natureza, o homem natural de Rousseau

1 22
era ao mesmo tempo bom e livre. Era a sociedade que o havia ao
mesmo tempo pervertido e escravizado. Isso não fazia de Rousseau
um moralista porque não era sobre bases morais, mas sim sociais
e políticas, que assentava o edifício de seu pensamento.
O que Dostoievsky e Tolstoi admiravam em Rousseau era
sua crítica da civilização do Século das Luzes, sua crítica da civi­
lização européia, afinal. Eles sabiam perfeitamente que o homem
era naturalmente bom. Sabiam perfeitamente que a liberdade era
um fardo, uma fonte de sofrimento e não um dom paradisíaco.
E se tinham motivos para desejar o Bem, não tinham razão algu­
ma para procurar recuperar, por meio de leis sociais e políticas,
uma liberdade que nunca tinham perdido.
A comparação de Rousseau com Tolstoi é um exercício im­
portante porque nos permite caracterizar com maior precisão as
atitudes espirituais de um e de outro. No meu O conceito de uma
educação da cultura afirmei que Rousseau havia imanentizado a
idéia do Bem. Eu vi nesse fato um desestímulo para a vida moral.
Eis que agora, considerando o moralismo de Tolstoi, sou levado
a constatar que sua imanentização representava, ao contrário, um
estímulo para essa mesma vida moral. Como resolver essa chara­
da? Onde estaria o erro? Na primeira observação ou na segunda?
Ou haveria ainda uma terceira reflexão a fazer - procurar a razão
da oposição que se havia podido constatar entre o sentido de uma
das conclusões e o da outra?
Na minha opinião as duas conclusões eram corretas. O que
se passa é que para chegar a uma ou a outra fomos obrigados a
tomar como pontos de partida pontos de vista completamente
diversos e mesmo opostos: o ponto de vista do Ocidente euro­
peu, com sua visão de uma liberdade atrofiada e o ponto de vista
da Rússia do século XIX, com sua visão de uma liberdade plena,
excessiva talvez. Da promiscuidade com a imanência no Ociden­
te europeu, com sua liberdade atrofiada, não poderia resultar
senão um atrofiamento da própria vida moral, num desestímulo

1 23
para o fortalecimento dessa vida. Na Rússia do século XIX a exis­
tência de uma liberdade plena não é prejudicada pela promiscui­
dade na imanência a que é levada a idéia do Bem. Ao contrário,
a vida da moralidade se fortalece, a liberdade pode ser conduzida
a excessos, como se verifica no caso de Tolstoi. O escândalo pro­
duzido no Ocidente europeu pelas suas críticas a Shakespeare,
Goethe e Beethoven, não se teria produzido se tivéssemos nós, os
ocidentais, uma consciência clara das diferenças espirituais que
nos separam da cultura russa do século XIX.
Gogol foi o primeiro pensador russo a compreender que o
moralismo não era apenas uma atitude negativa mas que podia
também ser uma força construtiva, capaz de unificar a vida do es­
pírito das comunidades de um modo que o Ocidente europeu
nunca pôde compreender. O conflito entre o aspecto estético e o
aspecto ético sempre se decidiu na Europa Ocidental pela vitória
do estético - mesmo os países protestantes que tentaram duran­
te algum tempo revoltar-se contra as magnificências e o culto da
Beleza da Igreja de Roma acabaram mais cedo ou mais tarde por
render-se à magia desse culto. Não há nada na Itália que estimule
a devoção dos fiéis. Vai-se a Itália para ver Veneza, Florença, os Tú­
mulos Etruscos, os Templos de Paestum e da Sicília. Vai-se a Roma
mais para visitar o Coliseu, o Fórum Romano, o Palatinato, o
Pantheon, a Coluna de Trajano, a Fontana di Trevi, a Appia Anti­
ca, as Termas de Caracalla - menos para visitar as basílicas de São
Clemente, de São Giovanni in Laterano, de Santa Maria Maggio­
re; visita-se o Vaticano mais para admirar as maravilhas de Miguel
Angelo ou de Rafael e menos para receber a bênção do papa. É co­
nhecida a frase: "Roma veduta, fide perduta''. A Itália, desde os
tempos de Júlio Cesar, sempre fascinou os bárbaros do restante da
Europa. Mesmo depois de se terem civilizado continuaram a sen­
tir a mesma atração: católicos e protestantes sempre foram com­
pletar sua educação na Itália, consagrando assim a vitória do prin­
cípio estético de que a Itália tinha e continua tendo o monopólio.

1 24
Não pode assim haver dúvida alguma de que o conflito entre
o estético e o ético sempre se decidiu na Europa Ocidental pela vi­
tória do estético; quando era o ético que vencia, isso não era con­
siderado uma vitória, mas uma derrota. A cultura havia sido der­
rotada. Na Rússia do século XIX ninguém tinha tanta paixão pela
beleza quanto Gogol. É dele a pergunta: "Como pode alguém
amar o próximo? A alma do homem ama apenas o que é belo e os
pobres têm uma tão vil aparência - existe tão pouca beleza neles!
O princípio moral é impotente porque na realidade a alma é mo­
vida não por impulsos morais mas por impulsos estéticos!".
Gogol, entretanto, não decidiu pela vitória do estético. Nun­
ca poderia se conformar com a derrota do princípio moral como
parecia se ter conformado o Ocidente europeu. A sua vida intei­
ra foi atormentada por esse conflito mas, embora a sedutora be­
leza fosse infatigável nas suas tentativas para envolvê-lo, soube re­
sistir procurando por detrás de um sólido baluarte - a idéia de
uma cultura ortodoxa - proteger-se contra os assaltos repetidos.
Temos aqui uma nova forma de moralismo alimentada
como a de Tolstoi por uma reserva abundante de liberdade, mas
apoiada como não foi a de Tolstoi pela idéia de uma cultura ins­
pirada na ortodoxia cristã da Igreja russa. Havia sido de fato essa
Igreja que estimulara no espírito do povo russo o sentimento pela
liberdade. Na Rússia, diferentemente do Ocidente Europeu, foi
o Estado e não a Igreja que tentou algumas vezes sufocar no povo
russo o seu sentimento de liberdade. Esse é um dado que não po­
demos esquecer se quisermos fazer uma avaliação correta das for­
ças de que dispõem na cultura do mundo cristão os dois princí­
pios que vivem em conflito, o ético e o estético.
Se considerarmos que o cristianismo é uma religião que está
longe de estar extinta, que existem focos de religiosidade cristã
em número suficiente no mundo para alimentar a esperança nu­
ma ampla recuperação, os problemas que estamos considerando
podem revestir-se de uma inegável atualidade. A nova agressivi-

1 25
dade do islamismo contra as religiões afins, o judaísmo e o cris­
tianismo, deverá mais cedo ou mais tarde despertar os brios dos
cristãos e reavivar as brasas de uma fé uma tanto amortecida. Não
bastará lutar contra o terrorismo com as armas emperradas pela
indiferença de uma fé em vilegiatura. Será preciso aquecer essas
armas com o fervor de uma fé subitamente alarmada pela amea­
ça que representa uma outra fé instrumentada pela força de uma
paixão mais viva.
Isso naturalmente é o lado mais visível do problema, que
depende de muitos fatores imponderáveis. Na verdade o que se
poderia fazer para restituir aos povos cristãos a confiança em si
mesmos não é intensificar a produção de armas ou de outros ins­
trumentos de defesa - seria antes iniciar um trabalho de ordem
intelectual, espiritual, com o fim de incentivar nesses povos a re­
novação de uma consciência cultural que veio ao longo dos sécu­
los se perdendo.
Como vem se realizando essa perda? Creio não ser injusto
ou preconceituoso ao dizer que uma das causas principais do en­
fraquecimento da nossa consciência religiosa foi a superestimação
dada a uma das nossas qualidades - o instinto da curiosidade.
"Todo homem deseja conhecer" diz-nos Aristóteles ao começar
sua Metafísica. É esse realmente o primeiro movimento que indi­
ca que surgimos para a vida? Não é verdade que o recém-nascido
procura antes de mais nada alimento, sem saber donde ele pro­
vém, proteção, sem saber quem o protege, e chora sem saber que
é ouvido? Aristóteles constrói um mundo especialmente feito
para o homem curioso. E assim os outros mundos, os mundos
feitos para homens que tivessem outros instintos, que tivessem o
instinto da liberdade, por exemplo, ficaram esquecidos.
A religião de Cristo é uma religião de liberdade. O mundo
construído por Cristo não foi especialmente feito para o homem
curioso. Mas Aristóteles instalou-se nele como um ministro inde­
pendente, que elaborava suas próprias leis e as fazia cumprir, as

1 26
leis da curiosidade. A cristandade abandonava a sua liberdade
para cumprir as leis de Aristóteles. A liberdade de Cristo era uma
só, mas a curiosidade comportava um grande número de distin­
ções. Havia o teórico e o prático. Havia o natural, hábitat do ho­
mem e o sobrenatural visitado pelo Espírito Santo. Havia o Ato
e a Potência, sendo que era no Ato unicamente que se manifesta­
va integralmente a plenitude do ser.
Dessas distinções tiravam-se algumas conseqüências escan­
dalosamente opostas ao espírito da doutrina de Jesus: se só o Ato
era a manifestação plena do Ser, só o que era exterior poderia ter
alguma significação para as leis, para a autoridade do papa, para a
organização e a militância da Igreja. Tudo o que era interior esta­
va ainda em estado potencial - não havia ainda atingido a pleni­
tude do Ser. Aristóteles consegue assim transformar uma religião
da liberdade, da interioridade, numa religião da exterioridade -
um grande triunfo, na verdade um "tour de force" espetacular!
É realmente um espetáculo digno da mais apurada atenção
a maneira insidiosa pela qual Aristóteles se introduz no mundo
moderno, como um fantasma que se pensava ter sido exorcizado.
O exorcismo não havia sido eficaz. Aristóteles continuava a se
imiscuir nos negócios do dia-a-dia sem que ninguém se aperce­
besse. As críticas a ele feitas por Descartes e outros, no limiar da
Idade Moderna, não haviam atingido o essencial: não eram críti­
cas que limitassem as ambições do poder - o homem curioso de
Aristóteles não ambicionava outra coisa - mas, ao contrário,
eram críticas que reinvidicavam uma mais perfeita adequação aos
desígnios dessa ambição - era pela quantidade e não pela quali­
dade que e ra possível chegar a um mais completo domínio sobre
as forças do mundo exterior.
Essa crítica, entretanto, não deixava de reconhecer a contri­
buição dada por Aristóteles, a contribuição representada pela idéia
do homem curioso. A curiosidade de Aristóteles é a parente po­
bre da certeza de Descartes. Esta não teria tido, sem aquela, a idéia

1 27
de uma dúvida metódica, pela qual ela própria se confirmava. O
Cogito de Descartes foi a bandeira desfraldada por toda a moder­
nidade filosófica como o símbolo de uma adesão irrevogável ao
mundo da exterioridade, implantado por Aristóteles. O subjeti­
vismo de Descartes foi uma ficção. Não há sujeito sem liberdade
- essa é uma verdade que Husserl e seus discípulos, em nossos
tempos, iriam revelar.
Sem a idéia do homem curioso de Aristóteles, Descartes não
teria tido a idéia de conquistar uma "certeza" por meio do Cogi­
to. Podemos repetir essa asserção com referência a quase todos
os outros grandes acontecimentos na evolução filosófica da Euro­
pa Ocidental dos tempos modernos, com raríssimas exceções. E
mesmo Kant, o grande guru, talvez a figura mais respeitada de
toda a filosofia da Europa Ocidental nos tempos modernos, nada
mais fez do que levar à sua máxima potencialização essa idéia in­
sidiosa de Aristóteles, a idéia do homem curioso.
Sentimos agora a necessidade de dar uma marcha à ré.
Husserl, Wittgenstein, a filosofia analítica são exercícios que o
grande público ignora. Sartre e Heidegger foram coqueluche de
um fim de guerra mundial que se caracterizou sobretudo por
uma falta evidente de dignidade e respeitabilidade. No começo
de um novo milênio o que sentimos agudamente é que estamos
sendo asfixiados pela falta de liberdade criada por todas essas
condições adversas.
Por que escolhemos um caminho tão estéril, tão árido, tão
desprovido de perspectivas criativas? Por que amordaçamos nossa
liberdade e prosseguimos fanáticos como se não pudéssemos es­
colher senão um tal destino?
O projeto de vida de Aristóteles foi o projeto de vida do
homem curioso. Todo homem deseja saber, isto é, todo homem
é curioso. Mas o saber pode ser teórico ou prático. O saber teó­
rico nos leva à sabedoria filosófica, à metafísica. O saber prático
ao conhecimento das virtudes, da ética.

1 28
Aristóteles foi chamado à Corte de Felipe da Macedônia
para ser o preceptor de Alexandre. Que foi ele fazer lá? Ensinar a
metafísica a Alexandre? Creio não estar fazendo uma suposição
extravagante sugerindo que Felipe o teria expulso da Corte se o
visse ensinando a seu filho tais extravagâncias. Devia então intro­
duzi-lo no mundo das virtudes? Essa era uma responsabilidade
que representava, tradicionalmente, uma atribuição de Felipe.
Numa Corte Imperial ou Real, cabia tradicionalmente aos pais e
demais membros da Família Imperial ou Real transmitir a seus
descendentes as virtudes da linhagem. Sempre havia sido assim
na Grécia e o sistema mudou somente quando nela se introduziu
a democracia, ocasionando o aparecimento dos sofistas - edu­
cadores profissionais que preparavam os jovens para o exercício
da política em um quadro democrático.
Repitamos a pergunta: que ia fazer Aristóteles num Estado
não-democrático, chamado por Felipe? Como j á dissemos, não
poderia ter sido convidado para ensinar metafísica ou ética. Al­
guma coisa haveria nele que intrigava Felipe e que desejava que
fosse transmitida ao filho, alguma coisa que ele próprio não pos­
suía. O mundo logo ficou sabendo que Aristóteles fora ensinar a
Alexandre da Macedônia que quando se é príncipe não se preci­
sa estudar metafísica - basta alargar seu campo de visão e de
ação na história e conquistar novos espaços e povos para adminis­
trá-los do mesmo modo que administrava o pequeno mundo em
que nascera.
Tal é a saga da curiosidade! Com Descartes ela recebe um
novo alento porque não se trata agora de conquistar apenas
espaços históricos - trata-se nem mais nem menos do que con­
quistar toda a Natureza. Os dois esforços desenvolvem-se para­
lelamente até que um dia o homem se lança na mais inverossí­
mil, na mais fabulosa das aventuras: na conquista do espaço
interplanetário. O homem chega à Lua. Seus sonhos o vão le­
vando cada vez mais longe. Começa a fazer a sondagem dos pla-

129
netas, primeiras tentativas para um contato que não se sabe ain­
da se será possível.
Enquanto isso se passa, o que acontece na Terra? O que faz
o homem para melhorar a vida? Para melhorar o mundo (isto é, a
Terra) e a si mesmo? As estatísticas a esse respeito contam uma
triste história. Um número inacreditável de famintos, de miserá­
veis, de doentes, de desempregados. Uma distribuição de renda
insensata. Um desequilíbrio nas contas e nos orçamentos de todo
o mundo, uma vida de empréstimos e de dívidas a pagar que vão
se acumulando a um tal ponto que já não se pode pagar nem
mesmo os juros de tais dívidas. Tem-se mesmo a impressão de que
num dado momento tudo vai estourar e que as regras estabeleci­
das para o bom funcionamento das coisas vão desaparecer levadas
por um vendaval inesperado. Onde estarão então a curiosidade, a
conquista do poder, o poder da conquista, as virtudes intelectuais,
as virtudes morais, todo o aparato filosófico de Aristóteles?
Não estarão de modo visível, mas estejamos certos de que
estarão de modo imponderável. A curiosidade de Aristóteles esta­
rá presente na nossa total incapacidade de cuidarmos de nós mes­
mos. No abismal esquecimento de nós mesmos. Na total abstra­
ção que fazemos de nós mesmos, como se os nossos olhos abertos
para o mundo exterior fossem a única coisa que nos identificasse
como seres humanos. O cientista, debruçado sobre seus insetos,
se esquece de tomar a poção que o protegeria contra as febres. O
aventureiro que descobre a ilha deserta pisa na serpente veneno­
sa que o pica enfurecida. O próprio Aristóteles parece ter sido ví­
tima de sua curiosidade. Várias biografias ocidentais falam do seu
desmedido interesse pelas marés do rio Euripus, em Chalcis,
lugar para onde se retirou para viver os últimos anos de sua vida.
Uma das lendas que se criou diz que prestes a morrer ele se diri­
giu ao Criador nos seguintes termos: "[ . . ] a primeira, a funda­
.

mental razão em virtude da qual as coisas existem tais como são


- tende piedade de mim e diga-me" . Logo depois morreu.

1 30
Outra lenda diz que Aristóteles, desesperado com o fato de não
poder resolver o enigma das marés do Euripus, suicidou-se ati­
rando-se ao mar com o coração partido.
A curiosidade introduz modos de vida que são muito varia­
dos. Há numerosas maneiras de descuidar-se de si mesmo: as do
cientista e do aventureiro são apenas as mais expressivas. O
homem que quer ganhar dinheiro quer saber tudo sobre o que é
dinheiro. O homem que pratica o esporte quer saber tudo sobre
o esporte que pratica. O homem curioso tem horror ao diletan­
te. A curiosidade leva-o a um processo infinito. Essa é j ustamen­
te a coisa de que o homem que cuida de si mesmo deve se preser­
var - a curiosidade que o leva a um tal processo. É evidente que
um médico, um cirurgião, um dentista deve procurar saber tudo
quanto diz respeito à sua profissão. Mas tudo da profissão dele
não representa um processo infinito. A ciência sobre a qual ela se
baseia evolui num processo infinito mas não cabe ao profissional
senão recolher os últimos frutos dessa evolução. A honestidade
profissional não o obrigaria a nada mais do que isso. Mas a cu­
riosidade nele é um excitante que não o deixa descansar. Torna­
se famoso, rico, respeitado por não ter utilizado o tempo que
teria disponível para cuidar um pouco de si mesmo.
Na nossa sociedade cristã é comum ouvir-se dizer: "sou ca­
tólico mas não sou praticante" . Se não se é praticante, o que sig­
nifica ser católico? Kierkegaard queixava-se amargamente de
quem se pretende cristão sem sê-lo realmente. O que é necessário
para se ser verdadeiramente cristão? Era, pensava ele, crucificar
sua razão no paradoxo de uma vida histórica, imanente, que par­
ticipava também da transcendência divina. Quantos cristãos
fazem isso? Seria melhor, na verdade, deixar sem resposta essa per­
gunta. Os homens não cuidam de si mesmos. Não cuidam de sua
condição de cristãos. Todo o tempo disponível, que têm para pen­
sar, dedicam a conhecer o mundo, a satisfazer uma curiosidade
infinita, inesgotável das coisas que estão no mundo, o que impe-

131
de, o que veta, o que obstrui a curiosidade de conhecer a si mes­
mo, a sua condição de cristão, a sua condição de ser humano.
Quando se procura avaliar se um filósofo teria tido por si
próprio a capacidade de exercer uma influência da vastidão e da
profundidade dessa que venho tentando registrar, os joelhos co­
meçam a se dobrar sob o peso da responsabilidade a assumir.
Não se estaria sendo vítima de um abismal equívoco? Aristóte­
les é o favorito de um número considerável de scholars. Os in­
gleses, sobretudo, preferem a densidade de seus músculos ao ca­
ráter mais elástico da filosofia de Platão. Um filósofo inglês,
Leslie Becker, com quem tive o prazer de passar um weekend
numa casa de campo de amigos situada perto de Oxford, per­
guntou-me na ocasião de que modo eu usava o pijama, se com
o paletó por dentro ou por fora da calça. Disse-lhe a verdade -
era por fora. Riu-se contrafeito, mas logo recuperou seu equilí­
brio para dizer-me que eu fugia à regra. Normalmente eu deve­
ria usar o paletó enfiado dentro da calça. Tinha entendido que
eu era um platônico. Não posso negar que senti um certo pra­
zer em causar-lhe a decepção. Irritava-me de certo modo ver a
questão do contraste Platão-Aristóteles reduzida a maneiras di­
versas de vestir o pijama.
Mas, voltemos a coisas mais sérias. Entre os scholars, a situa­
ção, sem a menor dúvida, continua indefinida. Pode-se ser platô­
nico ou aristotélico. Isso não parece afetar o rumo das coisas. Os
scholars não parecem julgar que possa haver uma grande diferen­
ça entre os efeitos de uma ou de outra influência. Mas há mais a
observar: não havendo uma grande diferença, ainda assim prefe­
rem Aristóteles. Há nisso uma espécie de solidariedade profissio­
nal. Aristóteles é mais acadêmico do que Platão. Embora Platão
tenha fundado uma Academia, foi no Liceu de Aristóteles que li­
ções de filosofia foram dadas de maneira mais "acadêmica''. Na
Academia de Platão, os participantes reuniam-se para exprimir de
maneira livre seus pensamentos. No Liceu de Aristóteles, as lições

1 32
do mestre eram anotadas pelos alunos sem o intuito de dar uma
nova redação.
No mundo da ciência, a preferência vai igualmente para
Aristóteles. Embora Platão tenha estado mais próximo da ciência
física moderna do que Aristóteles (como demonstrou entre outros
nosso Álvaro Vieira Pinto, numa tese brilhante mas nunca publi­
cada) , é Aristóteles quem os cientistas modernos mais prezam. A
razão disso provavelmente se encontra no fato de ter sido Aristó­
teles quem mais exaltou o instinto de curiosidade que o homem
moderno tanto aprecia. Também a ciência dá a esse instinto a po­
sição privilegiada que lhe dava Aristóteles. Com isso naturalmen­
te atingimos uma faixa muitíssimo mais vasta de influência, visto
que os resultados da ciência estão aí, expostos da maneira mais ex­
plícita para todo mundo que tiver olhos e quiser ver.
Cuidar de si mesmo, fazer da razão um instrumento não
para conhecer o mundo exterior, mas para conhecer a si mesmo,
fica assim postergado a um segundo plano. Muita gente conside­
ra isso um luxo, a atividade de quem, tendo dinheiro, tem tam­
bém tempo disponível e não sabe como ocupá-lo. E há nisso,
evidentemente, uma pequena parcela de verdade. Platão, Kierke­
gaard, foram homens que puderam cuidar de si mesmos porque
tinham dinheiro. Mas outros como Nietzsche, como Dostoievs­
ky, eram senão pobres, pelo menos dependentes de recursos mais
modestos. O ponto essencial, entretanto, é que a motivação que
encontra a opinião do homem comum é completamente equi­
vocada. Não é porque tivessem dinheiro que Platão e Kierkega­
ard refletiram sobre a importância de cuidar-se de si mesmos.
Foi porque sentiam um impulso forte, irresistível para fazê-lo.
Nietzsche que tinha pouco dinheiro sentiu o mesmo impulso. E
Sócrates, que não tinha nenhum, sentiu o impulso mais que
todos eles.
Mas todas essas pessoas que acabamos de citar foram gê­
mos consagrados pela história, poder-se-á me objetar. É claro

1 33
que são gênios . Mas os gênios não são indivíduos diferentes do
restante da espécie humana. São exemplos para ela, exemplos
que por ser o que são deveriam ser seguidos. Evidentemente não
se pode imitar a genialidade. Mas só a mais cândida ingenuida­
de poderia nos levar a crer que seguindo o exemplo que nos é
dado por um gênio, chegaríamos à genialidade. Os exemplos
não estão visceralmente ligados às pessoas donde provêm. Para
um perdulário o exemplo de um avarento pode ser bom como
para o doidivanas o exemplo de uma pessoa excessivamente
preocupada com o peso de suas responsabilidades. Tudo depen­
de das posições relativas que ocupam o perdulário e o avarento,
o doidivanas e a pessoa esmagada pelo peso de suas responsabi­
lidades. É preciso que o perdulário e o doidivanas estejam ainda
numa faixa em que sejam sensíveis a influências. E é preciso
também que o avarento, a pessoa responsável não o sejam a um
tal ponto que confirme ainda mais o perdulário nas vantagens
de sua liberalidade, e o doidivanas nas vantagens de sua irres­
ponsabilidade. De uma maneira geral poder-se-ia dizer que é
preciso que um não despreze o outro a fim de que possa receber
a boa influência.
Na relação entre o homem comum e o gênio, o problema
é mais complexo. Estou falando naturalmente de gênios autên­
ticos e não de gênios inventados pela modernidade e que Robert
Musil satirizou: o gênio do futebol, o gênio da corrida de auto­
móveis, da corrida de cavalo etc. O homem comum raramente
compreende o gênio e para não desprezar-se a si próprio é leva­
do a ignorá-lo. Não é naturalmente uma ignorância total, mas
uma distância, uma superficialidade, o bastante para que seu or­
gulho próprio seja preservado. Por outro lado, esses homens ge­
niais são homens por toda parte conhecidos, famosos, celebrida­
des e, sob essa forma, a diferença entre nós e eles não fere nosso
orgulho e é mesmo capaz de suscitar nosso entusiasmo - com
a reserva íntima de que é porque é célebre, e não por seu valor

1 34
intrínseco, que poderemos tomá-lo como exemplo. Sócrates cui­
da de si mesmo, mas é célebre; não seria interessante tomá-lo
como exemplo?
Seja como for, as esperanças não estão de todo perdidas.
Não é fácil lutar contra Aristóteles, contra a curiosidade, contra
a ciência, contra a tecnologia. Mas vale a pena se manter na luta.
Pode parecer que estamos diante de uma avalanche que vai se
precipitar sobre nós e que infalivelmente nos há de soterrar. Mas
há pontos de resistência de que nem sempre nos lembramos. Há
espalhados pelo mundo um desejo informulado mas inextinguí­
vel de sobreviver, uma lembrança tenaz da vida tal como ela já
foi vivida e tal como poderia ainda sê-lo. Os ecologistas de hoje
serão, talvez, os humanistas de amanhã. O começo é modesto.
Quer-se apenas fazer cessar as agressões de que tem sido vítima
o nosso planeta. Existe no ar a idéia de que há uma agressão
maior a temer no futuro, temor menos justificado do que o que
se deve ter pelas agressões em curso. Provém de uma convicção
americana, produto de um misto de ingenuidade e astúcia. Essa
convicção não tem o menor fundamento, precisa ser desmorali­
zada. O nosso planeta não tem nada a temer, a não ser dos seus
próprios projetos e das decisões que vem tomando. O mundo
democrático que deveríamos ter não é o mundo democrático tal
como existe agora - um mundo que permite decisões de gabi­
nete. Um Congresso que vota os orçamentos militares que o
congresso norte-americano vem votando não merece mais que o
desprezo do povo que o elegeu. É um Congresso que traiu sua
missão representativa. Não creio que o povo norte-americano es­
teja obcecado pela idéia de se defender contra um inimigo invi­
sível. Não creio tampouco que deseje conquistar o mundo intei­
ro pela força das armas. Como pode então estar de acordo com
o ritmo cada vez mais acelerado na fabricação de seus instrumen­
tos de defesa que podem naturalmente ser também utilizados
como armas de ataque?

135
Ou é muita ingenuidade ou muita astúcia, em graus que ul­
trapassam de muito os limites da credibilidade. Por isso, na ava­
liação dos Estados Unidos pelo restante do mundo, a impressão
que prevalece é a de uma refinada hipocrisia - uma hipocrisia
visceral, profundamente entranhada na natureza da elite que go­
verna esse grande povo. É perda de tempo conversar ou discutir
com tais hipócritas. Eles dirão sempre a mesma coisa, seja qual
for o peso do nosso argumento. Nós queremos cuidar de nós
mesmos como indivíduos, como sociedades com suas tradições,
como planeta que representa nosso único e inalienável hábitat.
Os norte-americanos pretendem sempre querer cuidar dos ou­
tros, de sua paz, de sua liberdade, da sua segurança, de sua eco­
nomia e da sua democracia . . . Infelizmente dão sempre a impres­
são de que estão avidamente cuidando de si mesmos (no sentido
não-socrático da expressão) .
E aqui reencontramos, de maneira inesperada, o homem
curioso de Aristóteles. Os Estados Unidos representam como
povo, nação, o tipo do homem curioso de Aristóteles. Não cui­
dam de si mesmos (no sentido socrático da expressão) , mas gas­
tam todas as suas energias tentando cuidar do mundo não-ame­
ricano. Por que se sentem tão responsáveis pelo que acontece fora
de suas fronteiras? A rigor, os interesses que deveriam defender
seriam os interesses que se situassem dentro de suas fronteiras. O
homem que cuida de si mesmo (no sentido socrático) , não defen­
de interesses fora de si a não ser quando se trata de questões de
ética a que por algum motivo esteja ligado. O mesmo se deveria
dizer das nações. A nação que cuidasse de si mesma só deveria
cuidar dos interesses situados dentro de suas fronteiras com a ex­
ceção feita acima. Ser-nos-ia naturalmente objetado: o comércio,
como a moral, não tem fronteiras. Mas eu diria que o comércio
representa também o interesse das outras partes com que comer­
ciam. Se os Estados Unidos cuidam dos outros, como pretendem,
cuidando da sua paz, da sua segurança, da sua liberdade, da sua

1 36
democracia, não há como admitir que em matéria de comércio
mudem de orientação. Mas é efetivamente o que fazem. Defen­
dendo seus interesses econômicos em detrimento de outros, os
Estados Unidos estão procedendo num paralelismo perfeito com
o comportamento do homem curioso de Aristóteles: não estão
cuidando de si mesmos (no sentido socrático) , estão deixando
prosperar na sua alma vícios lamentáveis, hipocrisia, egoísmo, de­
sonestidade.

1 37
CAPÍTULO III

Repitamos mais uma vez o que já dissemos tantas vezes.


Dois homens lutaram no período moderno da filosofia do Oci­
dente pelo restabelecimento do prestígio de Sócrates; e conse­
qüentemente pelo restabelecimento do prestígio da idéia de liber­
dade no Ocidente - Kierkegaard e Nietzsche. É curioso que este
último não tenha reconhecido o companheiro solitário que teve
no seu século. Georg Brandes, o crítico dinamarquês que admi­
rou um e outro, manifestou por carta a Nietzsche o desejo de co­
nhecê-lo pessoalmente; mas a oportunidade nunca se apresentou.
Assim, essas duas forças espirituais nunca se encontraram. Nietzs­
che certamente teria saudado em Kierkegaard um irmão, alguém
que como ele havia sabido diagnosticar com precisão os males
que afligiam a época em que os dois viveram e discernir em Só­
crates a imensa originalidade que séculos anteriores não haviam
apreciado. Com eles a posição de Sócrates na cultura do mundo
ocidental deixou de ser simbólica para assumir uma função ativa,
dinâmica, emprestando-lhe a imagem não apenas de um parteiro
de idéias, de um precursor de princípios gerais, do descobridor da
racionalidade mas, sobretudo, a de um apóstolo da autonomia
individual, da liberdade interior, da liberdade moral, espiritual,
em oposição à liberdade exterior, outorgada, derivada do poder
exercido pela sociedade por intermédio de seus magistrados.

1 39
Para cada um desses dois admiradores de Sócrates a palavra
liberdade teve um significado diferente: Kierkegaard chamou-a
de ironia, Nietzsche deu-lhe o nome de Dionísio. Kierkegaard a
procurou primeiro em Hegel; desapontado, foi encontrá-la em
Sócrates. Nietzsche de início viu em Sócrates um inimigo da li­
berdade; mas no fim de sua vida consciente, mediante uma lenta
metamorfose em que se foi tornando transparente a significação
dos dois princípios, o socrático e o dionísiaco, a identificação de
ambos foi concretizada. O princípio dionisíaco, o princípio da li­
berdade que o motivara desde o início tão fortemente, o princí­
pio que o levara a romper com sua carreira de filólogo, ele o en­
contrava no fim de sua carreira de filósofo representado pela
figura de Sócrates, que no começo dessa mesma carreira tão mal
compreendera.
Vemos assim que o encontro com Sócrates não foi fácil nem
para um nem para outro. Bem consideradas as coisas, creio que
deva reconhecer que foi bem mais difícil para Nietzsche. Com a
publicação de sua Origem da Tragédia, o jovem autor prej udicou
inapelavelmente sua reputação como filólogo. Sócrates foi o cau­
sador desse tumulto. Sócrates, aliás, perturbava pela intermedia­
ção desses dois intérpretes a complacência, a satisfação própria
em que conviviam os corifeus da cultura humanista do século
XIX europeu.
A dissertação que Kierkegaard apresentou como candidato
ao grau de Master ofArts era intitulada: "O conceito de ironia -
com referência constante a Sócrates" . A banca examinadora viu­
se, de repente, confrontada com um espetáculo inédito: um
.
jovem estudante de teologia, conhecido em toda a cidade pela
firmeza de suas convicções cristãs, apresentava-se para ser sub­
metido a um questionamento relativo à tese encomiástica que
escrevera a respeito de um filósofo pagão! Tudo isso diante de
uma numerosa assistência conforme o noticiário da imprensa
de Copenhague.

1 40
O jovem opunha à racionalidade dogmática e germânica de
Hegel a racionalidade irônica de Sócrates. A banca examinadora
sentia-se algo escandalizada com a desenvoltura do jovem estu­
dante, pois Hegel era um monstro sagrado no meio universitário
dinamarquês, como era, aliás, em outros meios universitários da
Europa. Mas a dissertação era bem construída, e Kierkegaard ma­
nejava bem a dialética hegeliana. A dissertação foi aprovada com
louvor e assim Kierkegaard ficou conhecido em Copenhague
como autor, antes mesmo de publicar, sob pseudônimo, seu pri­
meiro livro.
O que Kierkegaard viu em Sócrates foi sobretudo a ironia.
Ele, que havia ido a Berlim para ouvir as preleções de Hegel e que
ao atacá-lo na sua dissertação utilizara o idioma hegeliano, apro­
veitou-se disso para, em outras ocasiões que se apresentaram, di­
vertir-se com a solenidade de Hegel, amparado na ironia de Sócra­
tes. Eu mesmo, identificado com ele, dei boas gargalhadas lendo
passagens do Postscripto em que o nome de Hegel vinha à baila.
Esse bom humor de Kierkegaard, entretanto, não parece ter
sido contagioso. Não conheço ninguém que se tenha deixado
conquistar por ele. Os comentaristas de Hegel, que li, são todos,
sem exceção, solenes como ele - em particular os j uristas. Creio
mesmo que os comentários bem-humorados de Kierkegaard te­
nham sido considerados pela filosofia acadêmica dos séculos XIX
e XX como pouco sérios, levianos e malevolamente orientados,
na hipótese pouco provável de que tenham sido registrados e
compreendidos. Não há lugar nessa filosofia para o bom humor
e a ironia. Os nossos filósofos oficiais querem ser homens de
ciência, compenetrados como eles, solenes, graves e prudentes
nas suas avaliações, ancorados numa certeza que não lhes permi­
te o devaneio ou o voltejar livre dos pássaros.
Há um paralelo a fazer entre a crítica impiedosa e agressiva
de Voltaire e a ironia de Sócrates e Kierkegaard. As duas têm um
traço em comum que é a irreverência, mas falta em Voltaire o

141
bom humor, a leveza, a graça que sobram no grego e no dinamar­
quês. Voltaire é um demolidor nato, um homem que fez da de­
molição o objetivo principal da sua vida. Sócrates e Kierkegaard
sabem também demolir, mas não foi para isso que um e outro
nasceram. É essa a nuance que torna a liberdade de um tão dife­
rente da liberdade dos dois outros. A liberdade de Voltaire é uma
liberdade prisioneira de si mesma, a liberdade do evadido que
para manter-se livre precisa estar sempre alerta, sempre atento aos
ruídos que possam significar sua próxima recaptura. A liberdade
de Sócrates e a de Kierkegaard são liberdades plenas, situadas a
uma distância incalculável de qualquer idéia de prisão, liberdades
de si para si, liberdades que são a verdadeira liberdade. Foi esse
tesouro que Sócrates trouxe consigo, que Kierkegaard redesco­
briu e que Nietzsche, por meio de imensas dificuldades e de uma
tragédia pessoal, transmitiu à sua época e também, aí vão minhas
esperanças, à nossa época.
Nietzsche como Kierkegaard foi buscar sua inspiração em
Sócrates. Mas a sabedoria que colheu não foi assimilada facil­
mente como se deu com Kierkegaard. Houve entre Sócrates
e Nietzsche uma luta de gigantes. Razão e liberdade pareceram a
Nietzsche, no princípio de sua carreira, dois princípios antagôni­
cos. Sócrates parecera-lhe representar unicamente o princípio da
razão e desse modo simbolizar a decadência da cultura da época
em que vivia, a cultura da civilização racionalista. O princípio
dionisíaco que descobrira na cultura grega lhe parecia representar
a liberdade de que aquela civilização era carente.
Dizemos isso grosso modo, sem considerar a civilização ro­
mântica que Nietzsche, durante um curto tempo, interpretou
como uma civilização dionisíaca. Desacreditado Wagner, desacre­
ditado Voltaire, Nietzsche viu-se novamente mergulhado na de­
cadência da cultura racionalista. Antes de cuidar dessa decadên­
cia, ele sentiu a necessidade de cuidar de sua própria decadência.
Nietzsche não era um homem curioso, ou antes, não era somen-

1 42
te um homem curioso. Era um homem que tinha como objetivo
principal cuidar-se de si mesmo. Deixara-se envolver pelo pensa­
mento de Schopenhauer, pela música de Wagner, pensando en­
contrar neles o pessimismo forte do instinto dionisíaco dos gre­
gos que tanto o entusiasmara. Mas vira em seguida que se tratava
de um pessimismo fraco, lamuriento, de origem romântica. As­
sim, sua primeira tentativa para conquistar a liberdade havia sido
malograda. Fez então uma segunda, confiando em Voltaire. Foi
nessa época que se despediu de Wagner, que avaliou corretamen­
te Schopenhauer e que viu voltados contra si não só o mundo fi­
losófico das universidades como também o mundo musical for­
mado em torno de Wagner.
Não demorou muito tempo para perceber que a liberdade de
Voltaire era precária. Era justamente o que desapareceria quando se
procurava penetrar no subsolo da cultura. Durante todo esse tem­
po, Sócrates permanecera criticável ou pelo menos afastado, silen­
cioso. Era justamente contra ele que as experiências com Wagner
e com Voltaire haviam sido tentadas. Mas agora que elas haviam
resultado em malogro, a figura de Sócrates se reapresentava discre­
tamente, enigmaticamente, parecendo dizer que era nela justa­
mente, e não em qualquer outra, que residia a solução procurada.
Essa volta a Sócrates foi uma evolução extremamente sutil.
A muitos leitores ela passou completamente despercebida. A re­
putação de que sua obra estava cheia de contradições, o precon­
ceito de que a loucura pairava como uma nuvem maligna sobre
os livros de Nietzsche, dificultaram para muitos a compreensão
plena e tranqüila da evolução que se processava. Quando Sócra­
tes, nos livros de Nietzsche, se encontra perfeitamente identifica­
do com Dionísio, muita gente ficou com a impressão, imagino,
de se encontrar no centro de um redemoinho, no eixo de um mo­
vimento giratório, uma sensação de começo de loucura, a loucu­
ra que teria tomado conta do espírito do filósofo. Mas o fato é
que a evolução do pensamento de Nietzsche se havia processado

1 43
de acordo com os padrões da mais lúcida racionalidade e com o
acréscimo de que Nietzsche havia conseguido recuperar a liber­
dade plena, a liberdade verdadeira, por meio de Sócrates, por
meio do homem que no início de sua carreira havia julgado ser
um inimigo jurado, um inimigo renitente, um inimigo obstina­
do dessa mesma liberdade.
O "canto do cisne" de Voltaire teve dois ecos, um grave,
outro mais agudo, que provinham de gerações diferentes. A mais
recente apresentava traços de uma certa desenvoltura, indo mes­
mo a uma tendência a atos de prestidigitação. Da mais antiga
vinha um som grave, tranqüilo, transmitindo talvez uma impres­
são de serenidade resignada. Kant, com sua razão prática, com
seu formalismo ético, com sua causalidade livre, parecia um chi­
nês, como dizia Nietzsche. Impossível encontrar alguém com
mais apego às tradições. Era melhor, muito melhor que a "moral
provisória" de Descartes. O grande revolucionário da razão teóri­
ca de Aristóteles sabia como acalmar a consciência conservadora
das classes tradicionalistas.
O outro som, mais agudo, provinha de Hegel, o grande
prestidigitador. Hegel conseguiu transmitir a seus espectadores
uma impressão de juventude. Encharcado de preconceitos racio­
nais, ele perdera completamente o respeito pela liberdade e resol­
vera cometer a violência de carregá-la esperneando (Kierkegaard)
para dentro de sua amada racionalidade. A dialética de Sócrates,
que consistia claramente num movimento da razão à liberdade e
da liberdade à razão, transformou-se em Hegel numa dialética da
razão, isto é, num movimento dentro da própria razão, a razão
indo de si mesma para si mesma e de si própria para si própria.
Um verdadeiro milagre! A lógica, que havia sido sempre tão imó­
vel quanto uma árvore não castigada pelos ventos, adquiria agora
uma mobilidade juvenil. A razão completava assim sua marcha
vitoriosa pelos campos de batalha, conquistando o último bas­
tião, o bastião da liberdade - que em outros tempos havia sido

1 44
sua aliada, mas que se tornara sua inimiga depois de suas perver­
sões. Trazida agora como prisioneira, era obrigada a servir como
escrava àquela que fora sua companheira.
Kierkegaard diverte-se no seu Postscripto considerando como
poderia haver movimento na lógica. Dá largas ao seu bom humor
vendo como Hegel não hesita diante dos maiores absurdos, fazen­
do com que a razão, esta faculdade geralmente séria e compene­
trada, consciente de seus deveres e responsabilidades se permita
agora ser astuciosa - traço de caráter normalmente encontrado
onde não há respeito próprio.
São essas duas personalidades, consideradas gigantes pela
consciência filosófica da modernidade, que dominam o panorama
atual. O que vem depois (não incluindo as exceções que sempre
fazemos) são Bergson, Husserl, Heidegger, Sartre e Wittgenstein.
Em nenhum deles o problema da liberdade é reconsiderado e re­
cuperado. Em Bergson vemos uma tímida tentativa de superar a
obsessão racionalista da época com intuições vitalistas de uma
grande oportunidade. Bergson apóia-se na ciência com o propósi­
to de superá-la. É assim que chega a conceitos que não deixam de
arejar a atmosfera abafada criada pela ciência: conceitos como
"a missão da vida é inserir na matéria uma certa soma de liberda­
de", sua concepção da moral fechada e da moral aberta, da religião
fechada e da religião aberta, coincidem de um certo modo com a
noção socrática da exterioridade e da interioridade. Mas Bergson
abordou apenas, sem desenvolvê-las, essas idéias essenciais.
Husserl propõe uma volta a Descartes, com reservas que não
incluem a questão da liberdade. Heidegger nos acusa de ter es­
quecido o "ser", um pecado, segundo ele, mais grave do que o pe­
cado original. Não fica claro na sua filosofia quem poderia redi­
mir um tal crime. Nem de longe se refere ao problema da
liberdade. Mais tarde, Sartre faz da liberdade o tema principal da
sua filosofia. Mas que liberdade! Sartre considera-se com direito
a tudo, sem nenhuma espécie de dever a não ser o que tem para

1 45
consigo mesmo - e esse dever é ter direito a tudo. Nenhum fi­
lósofo na nossa, e em outras épocas, ofereceu um espetáculo tão
deplorável para a sociedade que assistia ao desenrolar de sua vida.
Nenhum filósofo foi tão popular - et pour cause - com a ju­
ventude que o tomava como exemplo e que delirava diante de
seus pronunciamentos histéricos. Nenhum mestre encorajou tan­
to no espírito de seus discípulos a desordem mental, a falta de es­
crúpulos, a pretensão ridícula a se posicionar como totalmente
independente do mundo que o cercava.
Antes dessa época, em 1 936, Heidegger começou a dar seus
cursos sobre a filosofia de Nietzsche, cursos que se estenderam
por vários anos. Entre os muitos equívocos em que incidiu, des­
taca-se sobremodo sua opinião de que toda a obra publicada por
Nietzsche, durante a sua vida consciente (excetuado o Zaratustra) ,
foi apenas um hors d'oeuvre e que o que constitui realmente a es­
sência do seu pensamento está contido na sua obra póstuma.
O que essa opinião revela de incompreensão e de total inca­
pacidade de assimilar o que há de original no pensamento de um
autor é realmente incalculável. Heidegger nos diz que Nietzsche
havia sido o último metafísico do Ocidente mas não se preocupa
em saber que posição deveríamos atribuir a ele, Heidegger, se ti­
véssemos a idéia de considerá-lo um psicólogo. Aparentemente a
psicologia era uma arte ou uma ciência que não existia para ele.
A obsessão com a idéia do "ser" parece ser um sério impedimen­
to para quem é levado, pela força das circunstâncias, a enfrentar
problemas que só o psicólogo é capaz de resolver. Aristóteles co­
nheceu as mesmas dificuldades. Heidegger e ele, quando eram
obrigados a se embrenhar em análises psicológicas, manifestavam
uma notória incompetência. A divisão tripartite da alma huma­
na, por exemplo, foi uma dessas ocasiões em que a incompetên­
cia psicológica de Aristóteles se manifestou. A idéia de conceber
uma das três partes da alma humana como um instinto racioci­
nativo, ou uma razão desiderativa, é a idéia de um mau psicólo-

1 46
go. Quando um homem deseja alguma coisa, ele a deseja simples­
mente. Quando usa sua razão, ele está se opondo ou apoiando
esse desejo - que pode ser vil ou nobre. O que não há, o que
não pode haver é um instinto que é, ao mesmo tempo, razão ou
uma razão que é, ao mesmo tempo, instinto. O desejo poderá ser
vil ou nobre; e a razão que o apóia, ou que se opõe a ele, poderá
ser igualmente vil ou nobre. Mas ela não poderá nunca ser colo­
cada no mesmo plano que o desejo, pois isso seria desconhecer
completamente a maneira pela qual a razão funciona no seio das
paixões que agitam a alma humana.
Heidegger revela-se um mau psicólogo com sua idéia de
uma "omissão do ser" . Segundo ele, o "ser" se omite quando se
manifesta a existência - não há nada mais contrário ao que nos
ensina a arte e a ciência da psicologia: o ser se manifesta, só pode
se manifestar no existente. O próprio Aristóteles, acometido
como Heidegger da extravagância de querer pensar o "ser" pres­
cindindo do existente, cedo reconheceu que o ser não existente,
o real não existente, o particular não existente, era impensável -
e que só nas suas diferentes manifestações existenciais - como
substância, como essência, como ato, como potência, poderia ser
pensado. Mas Heidegger julgou que poderia ir mais longe do que
o mestre e se lançou na aventura e convidou-nos a imitá-lo, de
pensar o impensável. E o mais extraordinário de tudo isso é que
o convite foi aceito por muita gente, inclusive por uma elite que
sempre esteve na vanguarda dos grandes movimentos intelectuais
que deram à Europa o prestígio que nos nossos dias, bem ou mal,
ainda conserva: a elite francesa.
Quando se pensa então no contato que poderá ter havido
entre os dois filósofos - Heidegger e Nietzsche - será preciso
não perder de vista que se está investigando o contato entre um
filósofo desprovido do mais elementar dom psicológico e um fi­
lósofo que é, sem dúvida, um dos maiores psicólogos do mundo.
O desconforto que a proximidade dos dois pode causar, em de-

1 47
corrência de uma tal desproporção de competências é agravado
ainda pelo fato de que não é o mais dotado mas o menos dotado
que deverá falar sobre o outro. Obcecado pela idéia do "ser", Hei­
degger não pôde ver por que Nietzsche criticara Sócrates nem
por que, pouco a pouco, foi se reconciliando com ele. Tudo isso
não passava para ele de um hors d'oeuvre. Na verdade, um dos
mais intensos e dos mais interessantes dramas psicológicos, de
que o mundo já foi testemunha, se desenrolava perante os nossos
olhos. Só um espectador completamente insensível à riqueza e à
profundidade dos sentimentos então manifestados poderia me­
nosprezá-los a ponto de não levá-los absolutamente em conta.
Foi naturalmente o que fez Heidegger. O seu interesse por
Nietzsche, se não foi medíocre, foi mal direcionado, como o de
Elizabeth, a irmã do filósofo. Elizabeth cuidava de seus próprios
interesses, anti-semitas. Heidegger serviu-se de Nietzsche para
defender-se das acusações que o comprometiam com o nazismo.
Elizabeth acreditava, ou fingia acreditar, que os manuscritos
que o filósofo não julgara dignos de publicação continham o es­
sencial da obra de Nietzsche. Elizabeth ficará, sem a menor dúvi­
da, na História, como o exemplo único do mais profundo desres­
peito à memória de um parente que acontecia ser um gênio. E,
paralelamente, Heidegger ficará na História como o exemplo
único de um filósofo que manifestou a respeito de um colega o
mesmo profundo desrespeito.
Dizer que o que pensava Elizabeth a respeito do irmão era
tolice é coisa que não passa de uma decorrência de tudo quanto
sabemos sobre ela; mas, quando a tolice é em grande parte en­
dossada por alguém com uma reputação mundial, o caso muda
de figura. Nietzsche falava de vontade de poder como psicólogo.
Nunca lhe passou pela cabeça querer fazer dessa vontade um
princípio metafísico. Nietzsche interessava-se pela vontade de
poder porque via, em toda manifestação de vida, uma manifes­
tação de poder. Mas Nietzsche, ao contrário disse categoricamen-

1 48
te que essa vontade de poder podia ser contrariada - conside­
rando-a assim desqualificada para apresentar-se como um prin­
cípio metafísico.
Heidegger não era um psicólogo: isso é o mínimo que se po­
deria dizer dele. Nietzsche, que foi um psicólogo formidável,
nunca deu importância à idéia do "ser". E por quê? Justamente
porque era um grande psicólogo. Nietzsche chegou mesmo a
dizer que os gregos eram superficiais - porque eram profundos!
A idéia de uma essência, de uma substância, lhe era adversa. A
idéia do "ser" então lhe parecia o cúmulo da abstração, coisa de
fazer congelar o sangue em nossas veias. A vida para ele se nutria
de aparências. Não havia pensamento sem sangue quente circu­
lando nas veias, sem a participação de todos os instintos e emo­
ções do homem, sem a participação do seu próprio corpo. Isso
era psicologia e das mais profundas. Abstrair do particular é fugir
da profundidade, é mover-se em direção às nuvens, ao vazio, à va­
cuidade do nada. Nos dois tratados mais famosos que a moder­
nidade produziu sobre o "ser" , o de Heidegger e o de Sartre, o
"ser" é definido em função daquilo que ele não "é"; em Heideg­
ger, o "ser" se omite quando não vive voltado para a morte; em
Sartre o "ser" se neantiza constantemente, deixa de ser "ser" para
transformar-se em nada. Nesses dois tratados, a liberdade não
ocupa o menor espaço.
Tudo isso não parece ser mais do que um simples j ogo de
palavras, de escasso interesse. Com ele, Heidegger nada acres­
centa ao que outros pensadores já nos ensinaram sobre o cora­
ção e a alma humana. Quanto à Sartre, que além de filósofo era
romancista, sua psicologia parece obedecer a uma única lei - a
lei da vigilância recíproca. Segundo ele, estamos todos condena­
dos para todo o sempre a sofrer a pressão do olhar prescrutador
dos que vivem ao nosso lado. É algo parecido com a panóplia de
Bentham. A diferença é que não estamos em regime carcerário e
que o olhar que nos perscruta não resulta de nenhum dispositi-

1 49
vo engenhoso - é inerente à própria natureza humana, e nós
mesmos, com nosso olhar perscrutador, tomamos parte nessa
universal vigilância.
A aridez desses mundos em que viveram Heidegger e Sartre
não faz justiça à riqueza do panorama que a vida real nos descor­
tina. É de uma profunda melancolia a constatação do fato de que
as últimas décadas do século que acabou foram vividas sob a
influência intelectual e moral de tais mestres. As lições de Hei­
degger foram papagaiadas com uma obediência absolutamente
servil, já que não era possível transformar num idioma com­
preensível o que o mestre de Friburgo ditava para a humanidade.
Sartre, durante e depois da Guerra, era mais conciso, embora
fosse igualmente irresponsável. ''A escolha de si mesmo" foi o que
finalmente propôs aos seus alunos, mais do que predispostos a
ouvir e a seguir os seus conselhos. Numa França humilhada, ocu­
pada pelos alemães, Sartre só tinha palavras de desdém quando se
referia a De Gaulle, que, com seu patriotismo, com sua fé nos
altos destinos da nação a que pertencia, teve, desde o início da
tormenta, a coragem de dizer "não" ao país agressor. O grande
problema para Sartre, naqueles dias amargos, era a liberdade, a
"escolha de si mesmo" , como a maior expressão de liberdade, es­
quecendo que o francês naquela época já não tinha essa liberda­
de, que a única escolha que lhe havia sido possível ele não havia
feito e consistia simplesmente em optar pela França. O sucesso
que Sartre teve durante os tempos que se seguiram ao armistício
é talvez o mais terrível testemunho do que foi a França durante
todo o período em que se desencadeou a Guerra: um país acovar­
dado, conivente, incapaz de uma ação coletiva de grande enver­
gadura. Enquanto o povo de Londres dava ao mundo um espe­
táculo de inexcedível bravura, um exemplo de patriotismo, de
firmeza moral, de uma decisão inabalável de não ceder às amea­
ças do inimigo, a França não conseguia senão fazer uma resistên­
cia simbólica, algo para ser contado aos netos e bisnetos para que

1 50
pudessem crer que não eram os descendentes de um povo pusilâ­
nime e acovardado.
Outro fenômeno que ocorreu durante e depois da Guerra
foi o crescimento de uma nova onda de interesse em torno da
obra de Nietzsche. A literatura sobre Nietzsche já era grande an­
tes disso, mas agora contam-se por milhares os nomes dos escri­
tores que escreveram sobre ele. É um trabalho que ainda está por
ser feito, o de investigar os diferentes pontos de vista a partir dos
quais a obra nietzscheana tem sido examinada. Nós, aqui, quere­
mos apenas distinguir três tipos de abordagem que nos parecem
ter sido o terreno das controvérsias que o autor do Zaratustra tem
provocado depois de sua morte. O que não exclui evidentemen­
te outros tipos de abordagem.
Haveria, em primeiro lugar, a abordagem da "legendà' :
Nietzsche entendido não como um personagem histórico cujos
contornos podem ser realisticamente definidos graças a abundân­
cia de informações que temos recebido sobre ele mas como um
mito, como um símbolo, como um Jesus de Nazareth: alguém
que é alguma coisa mais do que a simples soma de informações
que temos sobre ele. O livro de Ernest Bertram, Nietzsche - en­
saio de mitologia, publicado em 1 9 1 8 , muito conhecido e discu­
tido na década dos vinte do século passado, é o exemplo clássico
deste tipo de abordagem.
Nela, a construção do mito de uma certa forma prejudica a
compreensão do personagem histórico: fica-se sem compreender
como o Nietzsche dionisíaco, contestador de Sócrates do primei­
ro livro (A origem da tragédia) se transforma no Nietzsche socrá­
tico dos últimos livros; ou como o "cristão que se ignora" se ma­
nifesta nos diversos momentos que marcam etapas decisivas na
evolução religiosa da personalidade de Nietzsche.
A segunda abordagem é a que resultou da interferência de
Elizabeth na obra do irmão. Elizabeth acreditava que "a vontade
de poder" era a intuição central do pensamento nietzscheano.

151
Com isso se identificava com o pensamento oficial da ideologia
nazista, representado principalmente pelo filósofo Alfred Baum­
let que reduzia a filosofia de Nietzsche a um sistema, tendo como
eixo principal "a vontade de poder" .
Há nessa abordagem uma omissão completa do aspecto
propriamente filosófico da obra de Nietzsche. Tudo é interpreta­
do em termos de política e o filósofo é utilizado unicamente
como um reforço à ideologia política do partido nazista.
A terceira abordagem é a de Heidegger. Heidegger conside­
rava sua abordagem uma prova de que seu pensamento não se
identificava com o pensamento nazista. Alfred Baumlet, e não
ele, era o filósofo oficial do nazismo - os dois discordavam a res­
peito de uma questão essencial: o problema do Eterno Retorno,
que Baumlet considerava um desprezível "egipcianismo" (termo
emprestado de Nietzsche) , uma experiência subjetiva, pessoal, re­
ligiosa, que qualquer político de bom senso suprimiria. Encarado
do ponto de vista do sistema, o "Eterno Retorno" apresentava-se
destituído de qualquer importância. "A vontade de poder", ao
contrário, era uma fórmula de ocorrências em geral. Objetiva­
mente falando, tinha sentido.
Para Heidegger, entretanto, o "Eterno Retorno" era uma
peça fundamental no sistema - uma peça que se articula direta­
mente com o elemento essencial do sistema: a problemática do
"ser" . Com isso, Heidegger, como Baumlet, reduzia a filosofia de
Nietzsche a um sistema, mas preservava o seu caráter filosófico,
abstendo-se de nele ver apenas suas implicações políticas.
Tal é a argumentação com que se defendeu Heidegger, sem­
pre que acusado de envolvimento com o nazismo. As frases com­
prometedoras, o distanciamento dos amigos judeus, a filiação ao
nazismo até o final da Guerra e o silêncio absoluto que manteve
até o fim da vida a respeito do holocausto, certamente não são ar­
gumentos que possam ser invocados a seu favor. Para os que
foram seduzidos pela sua visão de filósofo, resta então decidir o

1 52
que no seu próprio julgamento pesaria mais: se a prova apresen­
tada por Heidegger de que sua interpretação de Nietzsche difere
essencialmente da interpretação nazista, representada oficialmen­
te por Baumlet - ou se, por outro lado, não pesariam mais os
elementos indicados anteriormente e que de forma alguma pode­
riam ser considerados matéria de um dossiê, de uma documenta­
ção irrelevante.
Se quisermos agora decidir sobre qual das três abordagens
iria a nossa preferência, apontaríamos sem hesitação para a pri­
meira. É nela que encontraremos o que é mais importante na fi­
losofia de Nietzsche: o dinamismo de sua paixão, o projeto de
vida em que esteve envolvido. A concepção de História de Ber­
tram é justa até um certo ponto: a História é legenda única - no
caso de César, por exemplo, ou de Alexandre, o Grande. Mas há
outros casos em que a legenda não é única, como nos casos de
Jesus ou Sócrates. E não sabemos ainda qual será a legenda de
Nietzsche. Bertram fez uma primeira tentativa, um esboço do
que poderia vir a ser uma legenda; mas não nos C.L u o como e o
porquê dessa visão.
De um certo modo, a legenda que nos apresentou Bertram
prejudica a compreensão do personagem histórico. Isso aconte­
ceu em outros casos em que legenda e história se confrontaram.
A construção do mito católico derivado da história de Jesus pre­
j udicou a compreensão do personagem histórico que foi Jesus de
Nazareth. O mesmo pode-se dizer do mito protestante. Ao lado
deles, temos o mito j udaico, que parecerá a muitos mais sanguí­
neo, mais próximo da realidade.
A meu ver, há nessa predileção pelo mito uma certa dose de
exagero. A História é certamente a ciência das almas, a revelação
das almas; mas isso não deve significar que as almas desconheçam
a realidade histórica. Jesus nasceu em Nazareth, uma cidade da
Palestina, e não em qualquer outra cidade. Jesus foi a Jerusalém
onde foi preso e crucificado; as razões de sua ida a essa cidade são

1 53
motivos de controvérsia, e é justo que hajam controvérsias, por­
que Jesus foi um personagem histórico, e é natural que o histo­
riador pergunte quais foram seus motivos. Mas as legendas que se
formaram em torno de Jesus não admitem perguntas. Cada uma
delas tem sua resposta e a História é assim excluída da questão,
por assim dizer, sem cerimônia. Se Bertram tivesse aprofundado
um pouco mais sua concepção do conflito entre História e legen­
da, teria talvez dado um pouco mais de espaço à História. Mesmo
assim, quando comparamos sua abordagem de Nietzsche com as
duas outras, a de Alfred Baumlet e a de Heidegger, não podemos
deixar de constatar que é a que mais nos faz penetrar na proble­
mática nietzscheana.
As duas abordagens, a de Baumlet e a de Heidegger, seriam
então eliminadas, a primeira por ser política, a segunda por aco­
lher no seu seio uma preocupação totalmente alheia ao pensamen­
to de Nietzsche - a preocupação com a idéia do "ser" . Eugene
Fink há muito tempo havia assinalado que a falta essencial da in­
terpretação heideggeriana de Nietzsche reside no seu desinteresse
pelo elemento dionisíaco na filosofia do autor de Zaratustra. É de
fato esse desinteresse que torna essa interpretação tão desinteres­
sante. É realmente inconcebível que um intérprete que dedicou
tanto tempo e tantas páginas ao estudo de Nietzsche tenha passa­
do ao largo quando no seu horizonte surgiu esse problema.
Fink considerou que o desinteresse prejudicou a compreen­
são de como "a vontade de poder" se articulava com a idéia de
"Eterno Retorno" . Mas há razões mais importantes para lamen­
tar o desinteresse. Na verdade, a avaliação que faz Heidegger da
oposição - "dionisíaco-apolíneo" , tal como Nietzsche a descre­
veu em A origem da tragédia, mostra, nas entrelinhas, a falta de
entusiasmo do avaliador. Heidegger, a propósito, nos faz saber da
influência que Jacob Burckhardt teria exercido sobre o interesse
de Nietzsche na questão. Não contente com isso, nos declara que,
embora Nietzsche, melhor do que ninguém, conhecesse a impor-

1 54
tância de Holderlin na literatura alemã, não podia saber que o
poeta alemão havia exposto de uma maneira magnífica, mais pro­
funda e soberba do que a dele, aquela oposição. Fizera-o numa
carta dirigida a Casimir Ulrich Bohlendorff. Segundo Heidegger,
a oposição, em A Origem da tragédia ainda era pensada em ter­
mos de metafísica schopenhauriana, enquanto na Vontade de poder
(um livro editado por Elizabeth e sujeito a todo tipo de manipu­
lações) era pensado na base da posição fundamental definida por
tal livro. "Enquanto não discernirmos", nos diz Heidegger,

a natureza dessa transformação com suficiente clareza e enquan­


to não captarmos a essência da "vontade de poder" , seria bom pôr
de lado tal "oposição" que freqüentemente se transforma numa
fórmula vazia. A oposição Apolo-Dionísio foi durante muito
tempo o refúgio de um falatório sobre arte e sobre Nietzsche.
Para Nietzsche, permaneceu uma fonte de profunda obscuridade.

Na carta que Holderlim dirigiu a Casimir Ulrich Bohlen­


dorff está contida, segundo Heidegger, uma tremenda intuição,
mais profunda e mais soberba do que a de Nietzsche. Vale a pena
citá-la:

Meu amigo , você realizou muito em matéria de precisão , de


hábil articulação e nada sacrificou quanto ao calor e à paixão;
pelo contrário a elasticidade do seu espírito, como a de uma bem
temperada lâmina de aço , mostrou-se mais poderosa em conse­
qüência da disciplina a que foi submetida. Nada é mais difícil
para nós do que apreender o livre desempenho de nosso dom na­
cional. E acredito que a claridade na apresentação é originalmen­
te tão natural para nós como era para os gregos o fogo dos céus .
Por esse motivo os gregos serão mais facilmente ultrapassados no
que diz respeito a paixões magníficas do que no domínio intelec­
tual e em habilidade representativa que eram típicas de Homero.

155
Parece paradóxico. Mas afirmarei isso de novo e submeto a seu
exame e eventual emprego : o que é propriamente nacional se
torna cada vez menos prioritário à medida que a educação de al­
guém progride. Por este motivo os gregos não são na verdade
mestres da paixão sagrada, pois isto é inato neles, ao passo que
crescem em habilidade representacional a partir de Homero.
Aquele homem extraordinário era tão profundamente sensitivo
que foi capaz de captar a sobriedade j uniana do mundo ociden­
tal para seu reino apolíneo e se adaptar fielmente ao elemento es­
trangeiro.
Mas o que nos é próprio tem que ser apreendido tão completa­
mente quanto o que é estrangeiro. Por este motivo os gregos nos
são indispensáveis. Mais precisamente, no que somos propriamen­
te, no que é o nosso dom nacional, não podemos acompanhá-los,
j á que, como disse, o livre desempenho daquilo que somos pro­
priamente é o que há de mais difícil.

A nota do editor do livro de Heidegger sobre Nietzsche, tra­


duzido para o inglês por David Farrell Krell, registra que a carta
ocasionou muitos debates. Heidegger participou desses debates e
também Peter Szondi que fez observações críticas a respeito de
Heidegger. Segundo o editor, essas observações eram injustas, de­
masiadamente polêmicas para serem instrutivas; mas têm um in­
teresse como indicação das dimensões, fontes e participantes do
debate crítico: Wilhelm Michel, Friedrich Beitssner, Badia Alle­
mann, Walter Brocher e outros.
Tais são as informações dadas pela referida nota. O que nos
diz Heidegger a respeito da carta enviada por Holderlin a Casi­
mir Ulrich Bõhlendorff tem um acento marcadamente naciona­
lista. No seu texto, o filósofo contrasta a "paixão sagradà' e a "so­
briedade juniana e a habilidade representacional". A oposição,
diz ele, não deve ser entendida como uma descoberta indiferente
mas como a manifestação de uma meditação direta sobre o des-

1 56
tino e a determinação do povo germamco. Aqui, nos diz ele
ainda, devemos ficar satisfeitos com uma simples referência, já
que o processo de conhecer de Holderlin só poderia receber uma
definição adequada por uma interpretação de sua obra. Basta
reter da referência o seguinte: os variados conflitos do dionisíaco
e do apolíneo, da paixão sagrada e da habilidade representacional,
constituem uma lei estilística secreta da determinação histórica
do povo alemão; um dia teremos de nos encontrar prontos e dis­
postos a cumpri-la. A oposição não é uma fórmula com que de­
veremos nos contentar para descrever a cultura. Ao reconhecerem
o antagonismo, Holderin e Nietzsche sublinharam, há tempos, a
tarefa do povo germânico que é encontrar historicamente sua es­
sência. Descobriremos, nós também, esse dever. Uma coisa é
certa: a história se vingará de nós se não o fizermos.
Que tal para um livro que pretende ser a demonstração do
fato de que seu autor está dissociado do nacional-socialismo? Com
sua obsessão nacionalista, Heidegger procura por todos os meios
associar Nietzsche a seus projetos. Mas Nietzsche é um elemento
recalcitrante. Não só ele não se presta a uma parceria com Holder­
lin como mostra, ao romper com a filologia acadêmica, que seus
projetos filosóficos tinham uma dimensão que reduzia à insignifi­
cância as idéias de Holderlin sobre o destino do povo alemão.
Nietzsche destronava Sócrates, fazendo da Academia uma mera
agremiação de estudantes sem idéia diretora, sem autoridade esta­
belecida. Não se pratica um ato revolucionário dessa natureza sem
sofrer as mais graves conseqüências. Mesmo que Nietzsche quises­
se alertar o povo germânico do perigo de não compreender o sig­
nificado nacionalista da oposição Dionísio-Apolo - o que certa­
mente não ocorreu - um tal sinal de alerta se perderia no clamor
acadêmico que resultou do ato revolucionário de Nietzsche.
Heidegger não parece ter tido a menor noção do que Sócra­
tes representa para o mundo. Obcecado com a idéia do "ser", não
observou que a diferença fundamental que existe entre Platão e

1 57
Aristóteles é que, no primeiro, as idéias de "ser" e de "valor" estão
unidas, e no segundo, separadas. Só isso explica o fato de ter sido
Aristóteles levado a negar a importância da idéia de valor e a cons­
truir uma filosofia montada unicamente em cima da idéia do "ser" .
O menosprezo de Aristóteles pela idéia de valor é implícito.
O de Heidegger é explícito; mas em nenhum lugar de sua vasta
obra encontraremos uma explicação para o fato de ser a idéia de
valor de menor importância ou para o fato de que é necessário se­
pará-la da idéia do "ser" . Heidegger adota a opção de Aristóteles
mas, como ele, não se explica sobre as razões que o levaram a essa
opção. Paul Friedlander, na segunda edição inglesa de sua obra
monumental sobre Platão, publicada em 1 9 58, conduz uma dis­
cussão com Heidegger em que declara ser insustentável a tese
deste último em virtude da qual em Platão se assistiria ao proces­
so da transformação do conceito de aletheia - transformação do
seu sentido inicial de "não dissimulação da verdade para o senti­
do de correção na apreensão da verdade" . No ensaio "A doutrina
da verdade em Platão" , publicado em 1 947, Heidegger sustenta­
ra esta tese. No ensaio "O fim da filosofia e a tarefa de pensar"
publicado em 1 969, Heidegger explicitamente rejeita a tese que
havia defendido. Aparentemente o filósofo aceita o argumento
que Friedlander lhe havia apresentado. Dizemos aparentemente,
usando a precaução estilística de David Kerrell, que nos dá a in­
formação. Na verdade Heidegger, no ensaio com que prefaciou o
livro de William J. Richardson S. J. Heidegger Through Phenome­
nology to Thought, publicado em 1 962, pretende que somente
quem está pensando superficialmente ou, na verdade, não está
pensando de todo, pode-se contentar com a observação de que
Heidegger concebe a verdade como não dissimulação. O que pa­
rece é que é Paul Friedlander quem aqui está sendo visado. Pois
foi ele quem nos explicou como no seu livro sobre a doutrina da
verdade em Platão, publicado em 1 947, Heidegger havia susten­
tado essa tese. Mas o que Heidegger não nos diz é que foi tam-

1 58
bém Friedlander quem nos explicou que a tese era insustentável
- o que levou o próprio Heidegger a declarar que só espíritos su­
perficiais poderiam se contentar com ela. Se compararmos as
datas - ensaio sobre a doutrina da verdade, 1 947; obra de Frie­
dlander, 1 95 8 ; ensaio sobre o fim da filosofia e a tarefa de pen­
sar, 1 969; prefácio de Heidegger no livro de Richardson, 1 962,
verificamos o tempo durante o qual Heidegger parece ter pensa­
do superficialmente. Foi somente depois da crítica de Friedlander
que aparece na obra de Heidegger a figura da "presençà' - o re­
conhecimento do traço fundamental do "ser" .
A verdade é que Heidegger nunca acusou o recebimento da
lição de etimologia que Friedlander lhe deu. Este, ao contrário,
no final de sua discussão com Heidegger declarou-se grato ao fi­
lósofo por lhe ter ajudado a ver que as três facetas da palavra ale­
theia, a antológica, a epistemológica e a existencial, em Platão, es­
tavam unidas da maneira mais íntima e que por esse motivo, bem
como por muitos outros, ele se situava no sumito da filosofia
grega. A noção de não dissimulação não só é incorreta e desvir­
tuadora, nos diz ele, mas falha ao tentar j ustificar o que Heideg­
ger procurava realizar: salvar o conceito de verdade das dificulda­
des decorrentes da noção de subjetividade moderna. Mas a "não
dissimulação leva-nos justamente a essas dificuldades" porque
não existe "dissimulação" ou "não dissimulação" em si mesma.
"Não dissimulação" não faz sentido sem que seja "não dissimula­
ção" para alguém. Desse modo não poderia o reino da verdade e
da realidade de um lado e o reino da dissimulação do outro se
cruzarem de modo estranho? A realidade pode ser escondida, não
descoberta ou descoberta e reconhecida. Mas, da mesma manei­
ra, irrealidade, falsidade, equívoco, distorção podem ser escondi­
dos por mim, por alguém outro ou por todos nós.
Com relação a Aristóteles, Friedlander limita-se a dizer que
não consegue ver como, no capítulo final do livro nono da sua
Metafísica, a "não dissimulação" é o conceito predominante, a

1 59
noção básica do "ser". Ao se ler essas palavras de Heidegger, fica­
se ansiosamente esperando por uma interpretação desse capítulo.
Mas ela nunca vem.
Discute-se ainda hoje, na França, se Heidegger foi ou não
um grande filósofo. Há quem pense que sua associação com o na­
zismo invalida sua obra. Há os que consideram que o que pensa
um filósofo nada tem a ver com o que representa sua vida. E há
finalmente quem acredita que se recusar a pensar com Heidegger,
tendo em vista sua pessoa e sua biografia, equivale a abandonar
qualquer veleidade de uma interrogação filosófica, já que ele foi
o único filósofo contemporâneo que colocou diante de nós a
questão da diferença ontológica, isto é, a questão da diferença
entre o "ser" e o "existente" - que é, segundo Bernard Henry
Levy, a questão fundamental da filosofia.
Henry Levy exprimiu essa última opinião no seu livro Le
siecle et Sartre. Mas é verdade que a questão da diferença ontoló­
gica é a questão fundamental da filosofia? Heidegger tenta nos in­
cutir essa idéia. A verdade é que ele nos fala muito mais na omis­
são do "ser" do que no "ser" propriamente dito. De qualquer
forma, sua filosofia pretende ser uma filosofia do "ser", uma filo­
sofia, portanto, cujas origens se encontram inevitavelmente na
metafísica de Aristóteles. Não remonta a Parmênidas porque não
há trânsito entre o "ser" de Parmênidas e a realidade do mundo
como há entre o "ser" de Aristóteles e a realidade do mundo pelas
noções de Ato e Potência. Esse trânsito que, no caso de Aristóte­
les, resolve todos os problemas é considerado no caso de Heideg­
ger uma falta, um pecado grave. Ao haver o trânsito, há simulta­
neamente a omissão. O "ser", ao procurar se investir no existente,
se omite. Ele parece estar, como o "ser" de Parmênidas, condena­
do a uma eterna solidão. O homem curioso é aqui apanhado em
flagrante ao cometer sua falta. Quer cumprir seu destino de
homem curioso; mas sua curiosidade é uma disposição inadequa­
da para um ser que se recusa a ser investido no existente.

1 60
Bernard Henry Levy parece algo comprometido na questão
de saber se Heidegger foi ou não um grande filósofo. Há no seu
livro sobre Sartre o reconhecimento explícito de que, sem ele,
Sartre, Foucault, Lacan, Derrida, Barthes, Char, Althusser e Le­
vinas, isto é, os representantes mais legítimos da cultura francesa
mais recente, não teriam existido. Reconheceria ele, em última
análise, que foi esse pensamento que o impediu de exercer uma
crítica radical e impiedosa? Suas análises, pretendendo ser com­
pletas, são extravagantes. Um gênio que convive naturalmente
com sua infâmia, um gênio que somos obrigados não apenas a
suportar mas também a admirar, apesar da sua infâmia, é item
que até hoje não se encontrava nos cardápios da filosofia. A infâ­
mia é um atributo corrosivo, destruidor feroz de tudo quanto
pretenda ter uma aparência de virtude. A idéia de um gênio infa­
me só poderia aparecer no nosso século se fosse educado por mes­
tres que desdenham os valores. Temos tido homens de ciência
que a usam para fins criminosos e naturalmente não lhe negamos
a palavra gênio para designá-los. Mas isso é uma grande impro­
priedade de linguagem. Está contida na noção de gênio, como na
noção de Deus, a idéia de virtude. Os gênios estão próximos de
Deus. Deus não suportaria a proximidade de um gênio infame.
Sou por isso levado a discordar de Bernard Henry Levy,
quando ele nos diz que Heidegger foi um grande filósofo. A
França decididamente não se libertou ainda da imaturidade filo­
sófica que é o rastro da passagem de Sartre pelo mundo. Incapaz
de escrever para pessoas adultas, Sartre angariou em torno de si
uma larga audiência de estudantes. Infelizmente, em vez de
ajudá-los a desenvolver suas aptidões de modo a torná-los pessoas
adultas, tornou-se ele próprio um estudante sugado pela juveni­
lidade leviana e irresponsável daqueles que ele educara. Essa é, a
meu ver, a explicação mais razoável para o seu imenso sucesso. Se
Sartre é, como pensa Henry Levy, o filósofo que mais represen­
tou os conflitos e tendências do século passado, teremos de admi-

161
tir que foi ele o século da imaturidade e da irresponsabilidade, o
que significaria para nós uma herança indesejável.
Wittgenstein, o último dessa série de grandes filósofos que
viveram no âmbito da filosofia do homem curioso, não se ocu­
pou do problema da liberdade. Levou a preocupação epistemoló­
gica a suas últimas conseqüências - o que é extremamente inte­
ressante porque ele parece ver na absoluta transparência
intelectual uma obrigação moral. Esse é um tema que, em mo­
mento algum, desenvolve no seu tratado mas que deixa transpa­
recer por vezes nas suas cartas. Seu interesse por Tolstoi, por
Spengler, e seu gesto magnífico renunciando à fortuna que her­
dara são talvez sinais reveladores. Obrigado a levar durante um
certo tempo a vida modesta de um mestre-escola, não deixou
nunca de se interessar pela filosofia tal como a entendia e tal
como a filosofia analítica depois dele passou a entender.
Finalmente, depois de passar rapidamente em revista o que
pensaram sobre a liberdade os grandes filósofos do período mo­
derno da filosofia da Europa Ocidental, julgamos oportuno mos­
trar o que dela pensaram e continuam pensando o seu povo. O li­
beralismo é uma das teorias mais cínicas que o homem moderno
e contemporâneo do Ocidente tem inventado. Fazendo-se um
ventríloquo que, por intermédio de seu boneco fala de igualdade,
ele se assume livre e assume que já que somos todos livres somos
também todos iguais. O boneco refere-se às virtudes do ventrílo­
quo para elogiar suas próprias virtudes. Na realidade vivemos num
mundo tão desigual que seria insuportável se não houvesse o em­
buste de uma liberdade concebida como "uma igualdade das
oportunidàdes" . A economia nos nossos dias não é um exemplo
da prática "da igualdade das oportunidades" . Não é a troca de
mercadorias a fim de que o trabalho e o consumo sejam distribuí­
dos harmoniosamente entre os habitantes do planeta. A economia
hoje é o jogo desenfreado das finanças, isto é, daquilo que deveria
representar apenas um papel secundário na troca das mercadorias.

1 62
Em vez disso, representa o papel principal. Mais ainda: o papel
único, já que se produzem mercadorias não para consumi-las ou
para trocá-las por outras mercadorias, mas para utilizá-las na com­
pra de fichas que nos dê o direito de entrar no cassino das finanças.
Como chegou o mundo a essa situação lamentável? Ú nica e
exclusivamente montado na palavra liberalismo (ventríloquo que
pressupõe necessariamente o seu boneco igualitário) . Os homens
são livres e com iguais oportunidades. Mas a verdade é que há ho­
mens que são mais livres que outros e que têm um maior número
de oportunidades. São mais livres porque ganharam mais dinhei­
ro e ganharam mais dinheiro porque tiveram mais oportunidades,
ou porque elas foram diferentes, desiguais, melhores.
Não seria melhor começar com a diferença em vez de come­
çar com a igualdade? Não colheríamos melhores frutos se, desde
o princípio, aos que são diferentes proporcionássemos condições
mais adequadas para se tornarem iguais? Há em toda a história da
humanidade um só exemplo de alguém que, tendo recebido uma
educação descuidada, alguém analfabeto, tenha chegado aos mais
altos níveis da vida social? Não falo da vida espiritual, porque
para essa nem uma educação pouco apurada seria suficiente. O
gênio não surge do nada. O gênio é o resultado de uma longa
preparação. A democracia liberal apóia-se sobre a idéia de que
todos os homens são iguais pois, do contrário, os votos democrá­
ticos não teriam todos o mesmo peso específico. Tudo isso nos
mostra a inconsistência das idéias que pautam a vida do homem
contemporâneo.
Dar um nome à situação que se esconde por detrás do nosso
famoso liberalismo seria provocar reações despropositadas, dos li­
berais e dos conservadores; dos primeiros, pelas razões óbvias e,
dos segundos, pelo comodismo da virtude aristotélica que vê no
meio-termo a medida justa entre dois extremos. Deixemo-la
então sem nome, o que não quer dizer que deverá ser esquecida,
mas, ao contrário, na esperança de que será essa a maneira mais

1 63
eficaz de combater a ignomínia, a afronta à nossa sensibilidade
moral que tais sórdidos destemperos representam, e de exprimir
a grande vergonha que sentimos diante de uma situação que pa­
rece ser irremovível.
Os liberais criticam não apenas os fascistas como também os
"idealistas". Os fascistas são alvo fácil embora nem sempre as
identificações sejam corretas. Mas os "idealistas" parecem ser alvo
mais atraente. Diz-se, por exemplo, que com idealismo é difícil
criar fartura de alimentos. Para produzi-la é preciso ter uma ati­
tude mais realista diante da vida. Há vícios e virtudes na nature­
za humana. O homem é o que ele é e não o que ele deveria ser.
Mas mesmo suas fraquezas podem ser utilizadas de modo a bene­
ficiar a sociedade. O egoísmo humano é mais eficaz que o altruís­
mo quando se trata de criar fartura alimentar.
Que se trata de um sofisma, de uma insinuação derivada da
mais sórdida má-fé é fácil comprovar. Criar fartura alimentar não
resolve o problema da miséria humana. Só se a distribuíssemos,
contrariando nosso egoísmo, poderíamos resolvê-lo. E não foi
ainda descoberta a ciência econômica capaz de nos ensinar a con­
trariar nosso egoísmo. Fazer assim da economia a ciência madre
a que se deve submeter o homem político como um filho obe­
diente é um contra-senso, um suicídio que comete qualquer civi­
lização que se decida a entrar nas regras do jogo liberal. Que
nossa civilização não conheça outro caminho e o pratique, sem
desconfiar do abismo que a espera, é a constatação mais melan­
cólica a que uma reflexão sobre o futuro possa nos levar.

1 64
CAPÍTULO IV

Como descrever o tipo de homem que representasse um


contraste com o tipo de homem curioso de Aristóteles? Certa­
mente não seria um moron, um homem intelectualmente retarda­
do, incapaz de enfrentar os desafios da vida. Seria, ao contrário,
um homem tão intelectualmente desenvolvido quanto o mais cu­
rioso dos homens. A diferença entre os dois não consistiria na in­
tensidade da atividade desenvolvida, mas simplesmente na sua
direção. Um perder-se-ia nos espaços do mundo exterior. O
outro voltar-se-ia para a interioridade de um mundo que ele pró­
prio teria construído.
Paradoxalmente, a exterioridade do homem não pode exis­
tir antes da sua interioridade. O homem não começou sua vida
histórica sendo primeiro curioso, para, depois se interiorizar. O
homem bárbaro não é nem exteriorizado, nem o seu contrário. É
simplesmente um animal. Seu primeiro passo para deixar a bar­
bárie não é tornar-se curioso, exteriorizar-se, muito pelo contrá­
rio, é interiorizar-se. É somente, depois de ter dado esse primei­
ro passo que surge no seu caminho, como um acidente de
percurso, a surpresa de um desvio que o leva à exteriorização.
Assim a asserção de Aristóteles de que todo homem dese­
ja conhecer parece perder o aspecto imponente de uma lei impe­
rial a que toda a humanidade deva se submeter. Parece mesmo se

1 65
transformar numa expressão dogmática sem força para assumir
o caráter de uma verdade absoluta. Se disséssemos que todo
homem deseja conhecer a si mesmo, pareceria que havíamos sim­
plesmente acrescentado o "a si mesmo" ao enunciado de Aristó­
teles, completando assim a formulação do filósofo. Ou que ha­
víamos expresso uma lei secundária, derivada, dependente da lei
aristotélica. Mas, como já vimos, isso seria apenas uma aparência.
O homem tornou-se curioso do mundo exterior depois, e não
antes de ter criado um mundo interior - um teatro feito não para
distrações mas para a intensificação do sentimento da existência.
Há, com efeito, uma coincidência entre a evolução do tea­
tro como forma artística e a evolução do homem como ser moral.
O homem só se completa como homem quando cria dentro de
si mesmo o espaço da moralidade. Sem esse espaço o homem não
é um homem, é um animal. Da mesma forma, o teatro só é ver­
dadeiramente teatro quando a tragédia cria para si um coro de la­
mentações. O que vem depois não acrescenta nada nem à alma
humana nem ao teatro. O homem curioso de Aristóteles, o per­
sonagem sem a paixão trágica de Ésquilo ou Sófocles não acres­
centa nada à essência dessa alma ou desse teatro. Não houve aqui
evolução, houve talvez declínio, já que a história do homem é
inevitavelmente movimento - e, não havendo uma coisa, há de
haver forçosamente a outra.
O que é inquietante, entretanto, é que esse declínio tenha
durado tanto tempo, tanto tempo mesmo, já que se pode falar de
uma evolução processando-se dentro dele. O homem curioso já
assumiu várias formas: já assumiu a forma do homem empírico
de Bacon e de Hume, do homem racionalista de Descartes, do
homem crítico da razão de Kant, do homem fenomenológico de
Husserl, do homem lógico-filosófico de Wittgenstein, do ho­
mem analítico da filosofia contemporânea. O que pensarmos da
tecnologia será naturalmente o resultado de tudo o que tivermos
pensado desses diferentes representantes do homem curioso.

1 66
O homem contemporâneo exulta naturalmente com as ma­
ravilhas da tecnologia. Mas quem tiver acompanhado de perto as
agressões que a tecnologia, nem sempre inadvertidamente, faz à
natureza, para alcançar os seus grandes êxitos, terá também sofri­
do, diante de cada etapa dessa pretendida evolução, e terá talvez
se identificado com o sentimento do poeta de uma "Terra devas­
tadà' . E esse sentimento será certamente um hors d'o uvre do que
virá depois - uma catástrofe sem nome, algo verdadeiramente
indescritível, algo que, para ser configurado, exigiria a descober­
ta de novos meios de expressão.
O primeiro problema que o homem que procura conhecer
a si mesmo, o homem que cuida de si mesmo encontra, é o pro­
blema de sua liberdade - que pode depender de Deus ou de si
mesmo. No homem de Israel, depende de Deus ou de seu Mes­
sias. No homem trágico dos gregos (na sua luta contra o destino) ,
completamente de Deus. No homem socrático, de si mesmo. No
homem do cristianismo, de si mesmo e de Deus, se for católico,
de Deus inteiramente, se for protestante ou ortodoxo.
Quanto ao homem curioso, ele também encontra a liberda­
de, mas não em Deus ou em si mesmo, mas nos outros. Sua li­
berdade depende inteiramente dos outros. São sempre os outros
que encontramos quando lidamos com o problema da liberdade
do homem curioso - por isso damos à sua liberdade o nome de
liberdade exterior.
Que são com efeito as liberdades política, de imprensa, de
opinião, de credo religioso e de tantas outras atividades que dão
vida a uma sociedade? São todas elas liberdades que nos foram
outorgadas pelos outros. O século XX se engajou em duas gran­
des guerras que deixaram profundas cicatrizes na alma européia;
e fê-lo exclusivamente em nome dessa liberdade. A palavra liber­
dade está hoje na boca de todo mundo j ustamente porque é sem­
pre nessa liberdade exteriorizada que se pensa. Se nos referirmos
à existência de uma liberdade interior, todo mundo se cala sem

1 67
saber o que dizer. Para medirmos bem a distância que vai entre o
homem curioso, quando estava na sua adolescência e o homem
curioso de hoje, já maduro, basta compararmos duas grandes per­
sonalidades, Blaise Pascal, francês, que viveu no século XVII, e
Noam Chomsky, norte-americano, que vive hoje. O primeiro,
que fez grandes descobertas no campo da ciência, era um homem
curioso, mas também cuidava de si mesmo, como nos mostra o
seu famoso livro Pensées. O segundo é igualmente curioso, um
lingüista muito respeitado nos meios científicos mas também ex­
tremamente interessado pelo problema da liberdade humana. Só
que a liberdade por que está interessado não é a liberdade do
homem que cuida de si mesmo, mas, ao contrário, a liberdade ex­
teriorizada, a liberdade que o país donde é originário reconhece
como a única. Noam Chomsky, contra seu país, defende essa li­
berdade que, em outros países, tem sido por ele destruída.
O que protegia no século XIX a filosofia russa contra for­
mas exteriorizadas de conceber a liberdade era o pouco interesse
que manifestava pela teoria do conhecimento. Quando o espíri­
to se concentra sobre essa forma de conhecimento ele cria para si
mesmo a ilusão de que é nela que está sendo cumprido o seu des­
tino. A distinção entre o teórico e o prático, que já nos tempos
de Aristóteles havia desfechado um golpe sério na robusta inte­
gridade do pensamento humano, completa agora no mundo kan­
tiano a sua faina destruidora. O que é prático passa verdadeira­
mente a não mais entrar em linha de conta - mergulha no
fundo abismal da inexistência. A razão prática de Kant, tentando
imitar a excessiva circunspeção da razão teórica, consegue apenas
traçar no espaço "puro" arabescos sem sentido. Surgem continua­
ções tais como "causalidade livre'', "vontade purà', "imperativo
categórico" das quais o mínimo que se poderá dizer é que são
contraditórias. A impressão geral que essas novidades kantianas
nos produzem é a de que tentou-se colocar a liberdade humana
na camisa-de-força da racionalidade pura. Foi esse, depois do

1 68
golpe desfechado por Aristóteles, o trauma mais violento que so­
freu a liberdade interior do homem no Ocidente.
O povo russo do século XIX não passou por nada disso. Sua
racionalidade desenvolveu-se normalmente ao ar livre, sem ter
sido forçada a entrar, como paciente, na sala sinistra das opera­
ções epistemológicas. Sua filosofia é imatura, na perspectiva do
Ocidente. Faltou-lhe a circuncisão epistemológica do Ocidente.
Mas foi justamente por estarem os cristãos convertidos por São
Paulo livres da circuncisão exigida pelos cristãos j udaizantes que
o cristianismo se expandiu e se tornou uma religião universal.
Quem se preocupa com a liberdade interior do homem de­
senvolve ao mesmo tempo naturalmente, ao ar livre, a sua racio­
nalidade. Mas quem se preocupa exclusivamente com sua racio­
nalidade é levado irresistivelmente a esquecer ou a meter numa
camisa-de-força a sua liberdade. Não foi a Inquisição, ou a intro­
missão da autoridade da Igreja Católica na vida privada de seus
membros, que suprimiu o sopro de liberdade que havíamos rece­
bido do cristianismo primitivo. Foi unicamente a filosofia, repre­
sentada principalmente por Aristóteles, Descartes e Kant.
Isso faz com que nas investigações de todas essas questões
reine uma grande confusão. Mesmo os pensadores que mais pro­
fundamente refletiram sobre o problema da liberdade são propen­
sos a atribuir sua carência a fatores que não são os verdadeiros.
Dostoievsky, por exemplo, fez da "Legenda do Grande Inquisi­
dor" o poema que põe a nu a inconsistência dos planos de vida
que omitem a liberdade. Mas não são esses planos que omitem
verdadeiramente a liberdade interior. Ou por outra: não são eles
unicamente os responsáveis por essa omissão. Nesse sentido as
doutrinas socialistas são culpadas mas não são as únicas culpadas.
O que omite verdadeiramente a liberdade interior é uma teoria do
conhecimento em que o Grande Inquisidor de Dostoievsky pro­
vavelmente nunca teria pensado. Nietzsche, no seu conflito inte­
rior em busca da liberdade, presta uma homenagem a Voltaire,

1 69
mas logo vê que se tinha equivocado. O filósofo russo Berdiaev
acusa, em nome da liberdade, a moralidade católica cujas normas
sobre o sexo, por exemplo, não lhe parecem ultrapassar o nível dos
tratados sobre eugenia animal; diz que quer estar unido com Joana
D'Arc, não com o bispo de Cauchon que a fez queimar; com São
Francisco de Assis, não com os eclesiastas que o perseguiram; com
Jacob Boehm, não com o clero luterano que o condenou.
Tudo isso é verdadeiro mas não visa ao essencial problema,
à causa principal de sua existência. Mas é o próprio Berdiaev que
nos aponta para essa causa quando nos descreve as diferenças que
se podem notar entre o cristianismo oriental e o cristianismo oci­
dental. Essa é a contribuição mais importante que Berdiaev deu
para nossa investigação. Nós a encontramos no final do seu livro
Liberdade e espírito.
O filósofo russo oferece-nos um quadro comparativo de
duas formas de cristianismo, declarando que o que as distingue
não são diferenças de dogma, de organização ou classistas, mas o
caráter das experiências espirituais respectivas. A experiência es­
piritual, nos explica, é coisa mais profunda que o dogma e o pre­
cede no tempo. A organização da Igreja é determinada pela orien­
tação espiritual da vida das nações. Foram essas diferenças de
caráter primário, vital, que determinaram o desenvolvimento do
Leste e do Oeste.
O que foi escrito pela Patrística oriental sempre foi claramen­
te diverso do que escreveu a Patrística ocidental. No Oriente, a tra­
dição platônica sempre foi forte, mais mística, seus interesses mais
ontológicos e especulativos. Dogma em especial, deve sua elabora­
ção aos Doutores da Igreja oriental. Foi no Oriente que aparece­
ram tod<;>s os gnósticos e heréticos, um fato que testemunha o in­
teresse intenso com que a gnosis e as questões de um caráter
dogmático e religioso-metafísico eram consideradas. Um Origines
ou um São Gregório de Nyssa nunca teriam aparecido no Ociden­
te onde as tradições do estoicismo e do legalismo romano prevale-

1 70
ceram. No Ocidente os principais itens de interesse eram a orga­
nização da Igreja e as questões da graça, da liberdade e da reden­
ção. A Patrística ocidental não produziu nenhum grande pensa­
dor, com exceção de Santo Agostinho. O Ocidente produziu
somente escritores notáveis como Tertuliano e São Gerônimo.
No cristianismo oriental, a questão fundamental era a trans­
figuração da natureza, do mundo e do homem, numa palavra, a
theose. Ela está ligada ao caráter muito mais cósmico da ortodo­
xia e com seu interesse mais particular na Segunda Vinda de Cris­
to e na Ressurreição. Os doutores da Igreja oriental, Clemente de
Alexandria, Origines, São Gregório de Nyssa, São Gregório Na­
zianzen e outros, não teriam elaborado uma concepção do cris­
tianismo como uma religião de salvação pessoal nem uma doutri­
na da beatitude dos eleitos no Paraíso e da eterna danação do
restante da raça humana. O pensamento oriental sente-se menos
atraído pelas idéias de j ustificação e salvação do que pelas de
transfiguração e deificação. E é desse ponto de vista que a origem
de sua doutrina sobre a "apocastastase" deve ser tratada.
No Ocidente, no catolicismo em primeiro lugar e depois no
protestantismo, as questões principais são as da justificação da
salvação pelas obras ou pela fé, e a tentativa de avaliar a parte
exercida pela liberdade ou pela graça, respectivamente, no traba­
lho para a salvação. Essa é a razão pela qual a questão do critério
da autoridade assume uma tal importância - em tudo isso é
óbvio que existe uma concepção jurídica e social da salvação.
Trata-se de uma concepção que nunca despertará o menor inte­
resse nos círculos teológicos do Oriente: quando a atenção é con­
centrada sobre o critério da autoridade é evidente que não houve
uma transfiguração do homem ou da natureza, de que eles estão
separados de Deus e em oposição a Ele: o natural é separado do
sobrenatural e o que não foi transfigurado e não foi, portanto,
cristianizado necessita então ser submetido a uma disciplina, por
uma coerção exterior.

171
Do ponto de vista do cristianismo oriental, a natureza como
uma esfera independente do "ser" não existe; e isso porque se en­
contra separada de Deus e, portanto, em situação de pecado. O
verdadeiro "ser" do homem e do mundo tem suas raízes em
Deus. É em vista do fato de que a ortodoxia russa vê as coisas
desse modo que lhe parece estar mais perto da verdade do que o
catolicismo - este último, embora seja imensamente dinâmico,
não pressupõe a transfiguração da natureza e a deificação. O ca­
tolicismo não parece ansioso pela cristianização do mundo e da
raça humana e é por isso que sempre mostra ter um caráter mais
jurídico do que a ortodoxia.
Além disso, ortodoxos e católicos têm concepções diversas
no que diz respeito à graça. Na ortodoxia, a graça é um dom do
Espírito Santo. No catolicismo, a ação da graça é muito limitada
pela organização legalística da Igreja, e a doutrina do Espírito
Santo e a da graça estão quase completamente identificadas. À
natureza do Espírito Santo como uma Hypostase da Santíssima
Trindade não é atribuída a proeminência que lhe é devida. Na or­
todoxia, ao contrário, vê-se a atividade do Espírito Santo exerci­
da em toda parte. A ortodoxia é no fundo a religião do Espírito
Santo. A idéia do sacrifício e da "compra recuperadora'', tão cara
ao catolicismo, lhe é estranha. Daí deriva também uma concep­
ção completamente diferente da ação do Espírito Santo que é
vista como a transfiguração da natureza humana, como uma ilu­
minação, como um nascimento de uma nova criatura e não como
uma reconciliação com Deus ou como a justificação do homem
perante Deus.
Do ponto de vista ortodoxo, a graça pode mudar o homem
mas não justificá-lo porque se trata da ação livre do poder divino
exercida sobre a natureza do homem. Aliás, poderíamos pergun­
tar, é a justificação do homem necessária aos olhos de Deus? Fica
parecendo que estamos aqui diante de uma noção jurídica criada
pelas limitações do pensamento humano, incapaz que é de acei-

1 72
tar a verdade divina do cristianismo. Mesmo na ortodoxia a teo­
logia das escolas foi envenenada pela idéia de justificação se bem
que em grau menor do que no catolicismo.
A doutrina teológica mantém que o homem é salvo por
Cristo e que é reconciliado com Deus pelo sacrifício de Cristo.
Mas, se formos mais fundo na questão, veremos que muita gente
é salva não por Cristo, mas em Cristo, na nova raça espiritual que
teve início com Cristo, na nova natureza e na nova vida espiri­
tual. Cristo é, acima de tudo, a revelação de uma nova vida e do
Reino de Deus. Justificação e salvação são apenas movimentos se­
cundários no caminho do progresso espiritual. O Ocidente tende
a separar Deus e a humanidade mais do que o Oriente, ao mesmo
tempo que dá maior ênfase à missão da humanidade no seu esta­
do de isolamento. Tal é a origem da intensa e original atividade
do princípio antropológico na instituição do Papado. É um mito
criado pela história do cristianismo ocidental, um mito que se
tornou uma força propulsara e que de modo algum deve ser con­
siderado inteiramente negativo em seus resultados.
O cristianismo do Oriente é em espírito platonista, o do
Ocidente aristotélico. Essa é uma diferença não de doutrinas ou
de teorias, mas uma diferença de vida e de experiência. A ordem
da Natureza, de acordo com a concepção aristotélica, é taoísta,
não é penetrada por forças divinas. A concepção aristotélica da
relação entre a forma e a matéria domina a cultura do Ocidente.
Menos atenção é dada à potencialidade do "ser" . A matéria é por
assim dizer um aspecto do "não ser" . O verdadeiro "ser" é a ma­
téria sujeita à disciplina da forma. Não só o catolicismo mas a
quase totalidade da cultura ocidental deriva desse fato.
No Oriente, na ortodoxia, as forças do espírito estão ainda
na situação de "não realizadas, latentes, potenciais". O Oriente
está mesmo propenso a pensar que o que é latente, potencial, não
é nem imperfeito nem menos real do que o que j á está atualiza­
do. O desenvolvimento espiritual do Oriente não pode ser con-

1 73
cebido em termos de aristotelismo, pois, no seu pensamento re­
ligioso, o natural está enraizado no mundo das idéias e este
mundo apoiado em Deus.
No Ocidente todas as forças potenciais da vida devem ser
atualizadas; então somente o "ser autêntico" pode aparecer. O
Ocidente considera a vida sob o prisma da ação, aquilo que lhe
dá realidade: daí o valor atribuído à organização no catolicismo e
na cultura ocidental. A organização é o triunfo da forma, o triun­
fo de Aristóteles.
A ortodoxia não é militante, não é atualizada. Acredita mais
nas forças espirituais interiores que não são organizadas. Vemos
aqui a explicação da identificação do Reino de Deus com a vida
na Igreja no catolicismo ocidental. O Reino de Deus assume uma
forma, é organizado, atualizado na vida da Igreja. A consciência
histórica sufoca a consciência escatológica. O Reino de Deus não
é mais procurado ou esperado como uma transfiguração milagro­
sa do mundo a se realizar no fim dos tempos. A ortodoxia preser­
vou a concepção escatológica do Reino de Deus melhor que o ca­
tolicismo. A Igreja, no que diz respeito à ortodoxia, não é ainda
o Reino de Deus porque esse Reino só será inaugurado no fim
dos tempos juntamente com a segunda vinda de Cristo.
A contribuição de Berdiaev, nessa comparação que faz entre
o cristianismo oriental e o cristianismo ocidental, é magnífica.
Ela nos ilumina sobre uma grande variedade de aspectos da ques­
tão religiosa que não seria possível aqui examinar. A muitos des­
ses aspectos o problema da liberdade se encontra intimamente
entrelaçado. A Igreja Católica, por exemplo, como que escamo­
teou completamente a questão da escatologia, como se a tradição
de Israel não constituísse parte do cristianismo, como se não fi­
zesse falta à instituição da Igreja de Roma.
Completando os luminosos esclarecimentos de Berdiaev, de­
veremos, entretanto, observar que se o cristianismo oriental é
em espírito platonista, ele não apreciou suficientemente o fato de

1 74
que Platão foi um discípulo fidelíssimo de Sócrates. A tendência
de Berdiaev é mostrar-nos que o princípio da liberdade está mais
presente no Oriente do que no Ocidente, mas ele não parece dar
atenção ao fato de que não se pode tratar da questão da liberda­
de sem uma referência imediata a Sócrates. Sócrates não foi uni­
camente o parteiro das idéias racionais, foi também parteiro da
liberdade moral - e esse tipo de liberdade nos coloca imediata­
mente em face da questão do homem que cuida de si mesmo, em
oposição ao homem que só conhece o mundo exterior, que é so­
mente curioso, que parece não se dar conta da existência de um
mundo moral.
Em conseqüência, o que poderíamos dizer a respeito das
esplêndidas considerações que Berdiaev tece ao descrever as dife­
renças entre o cristianismo oriental e o ocidental é que são ex­
traordinárias no que se refere à supremacia do ''Ato" sobre a "Po­
têncià' no horizonte espiritual do Ocidente, supremacia que
corresponde realmente a um grande triunfo de Aristóteles. Mas
não devemos nos esquecer de outro grande triunfo de Aristóteles,
que foi o de impor aos filósofos do Ocidente, como noção bási­
ca para ulteriores desenvolvimentos, o esquema do "homem cu­
rioso", do homem que conhece o mundo exterior e não se inte­
ressa pelo conhecimento de si mesmo. Essa segunda imposição
representou um triunfo tão grande, senão maior do que o primei­
ro, porque colhia nas suas malhas os homens que se julgavam li­
vres de superstição religiosa e que eram assim entregues a um novo
tipo de superstição - a superstição do homem curioso, mais hábil
do que a outra a se insinuar nos meandros da alma humana.

1 75
CAPÍTULO V

Nossa investigação teve como início a análise de um certo


número de aspectos da cultura do Ocidente que exigia para a sua
compreensão que adotássemos pontos de vista parciais, não abran­
gentes, o que nos impedia de chegar a conclusões radicais. O fato
de ter a modernidade filosófica ignorado, desprezado a idéia de li­
berdade, nos parecia estar ligado ao esquecimento em que havia
caído a figura de Sócrates; mas as razões em virtude das quais esse
esquecimento havia ocorrido não estavam ainda claras para nós. A
oposição entre o homem socrático, que cuida de si mesmo e o ho­
mem aristotélico, devorado pela curiosidade do mundo exterior,
não se fizera ainda perfeitamente nítida - as conseqüências que
dela resultavam para um completo equacionamento do problema
da liberdade deviam ainda ser tiradas. Assim fomos evoluindo até
acharmos um dia em que uma comparação entre o cristianismo
do Ocidente e o cristianismo do Oriente se tornava necessária. Fe­
lizmente tínhamos Berdiaev para nos ajudar. Os frutos que colhe­
mos de sua contribuição são inestimáveis. Pela primeira vez, na
minha longa vida de reflexão e de pesquisa, imbuí-me da coragem
suficiente para emitir um pronunciamento negativo a respeito de
um filósofo que, reconheço, exerceu e exerce ainda sobre o mundo
ocidental uma influência incomparável. Estou convencido de que
Aristóteles exerceu sobre esse mundo uma inacreditável influência

1 77
e que sob esse aspecto ele é absolutamente insuperável. Mas, ao
mesmo tempo, estou certo de que no cômputo geral das coisas sua
influência foi extremamente perniciosa. Descartes, Bacon, Hume,
Spinoza, Leibniz, Kant, Husserl e tutti quanti a sofreram, embora
o tivessem criticado. No Ocidente as exceções são nossso velhos
conhecidos: Kierkegaard e Nietzsche. No mundo do cristianismo
oriental, a repulsa a Aristóteles é geral, mas foi preciso fazer uma
incursão nesse mundo para compreender a que abismos nos leva
a confiança na pilotagem de Aristóteles.
Mesmo no mundo oriental a presença de Aristóteles já se faz
sentir e provavelmente se fará sentir muito mais pela influência da
tecnologia - pois a tecnologia nada mais é que o último reben­
to, o último vestígio da passagem de Aristóteles pelo mundo. Aris­
tóteles é o inimigo declarado da qualquer tipo de religião que se
inspire na interioridade do homem - e essa é aparentemente
uma característica dos tipos de religião superiores. Não creio que
a filosofia de Aristóteles se adaptasse bem a um tipo de religião
que se inspirasse na exterioridade - a um tipo de religião mágica
- infelizmente todas as religiões que possuem essa característica
são do tipo inferior. Mas, de qualquer modo, isso não o torna mais
apto para se aliar a uma religião do tipo superior. Que, apesar disso,
a aliança se tenha consumado é o que nos mostra como a huma­
nidade convive bem com as anomalias. Porque não há outro nome
para designar o espetáculo que os séculos vêm assistindo de uma
filosofia vampiro que já não tem meios de viver com os seus pró­
prios recursos, mas que domina o futuro alimentando-se com o
sangue rico e puro de uma religião interiorizada que se entregou
passivamente, tornando-se ela própria um vampiro.
A realização de todos esses fatos vinha germinando no meu
espírito há muito tempo. Minha atração pelos russos, por Dos­
toievsky, por Tolstoi, por Gogol, por Pushkin, Soloviev e Berdiaev
é de longa data; minha fidelidade a Kierkegaard e a Nietzsche;
meus estudos de Platão e de Sócrates; o impacto da Paidéia de

1 78
Werner Jaeger, o de seu Aristóteles bem como o de Whiteney
Oates; a descoberta da História da filosofia russa de Zenkovsky ­
tudo isso contribuiu grandemente para que minhas idéias tomas­
sem o rumo que tomaram. Mas foi, creio eu uma releitura recen­
te do Espírito e Liberdade de Berdiaev que, acredito, me pôs na
pista que percorro agora. Sempre achei que havia algo de demo­
níaco na concepção aristotélica de ''Ato" e "Potêncià', algo de que
seria extremamente perigoso acercar-se. Mas nunca pensei, como
penso agora, que se trata de uma concepção que tem em si própria
uma potencialidade só comparável à dos artefatos atômicos; uma
espécie de esfinge com seu enigma "decifra-me ou te devorarei".
Algo vampiresco como parece ser a própria filosofia de Aristóteles.
Creio ter decifrado o enigma agora mas, se isso for verdade, não
sei o que pensar dos milhões de pessoas que viveram e vivem des­
percebidos dos perigos que as ameaçavam e ainda ameaçam.
''Ato" e "Potêncià' foram concepções que encontrei na mi­
nha primeira juventude, quando comecei a estudar filosofia. Lem­
bro-me de Santiago Dantas, estudante de Direito como eu, mas
numa classe mais avançada. Santiago dava aulas de filosofia a co­
legas mais jovens mas não a mim que assisti a algumas das aulas
porque era seu amigo. Com que prazer discorria ele sobre as no­
ções fundamentais da filosofia aristotélica! Com uma bela voz e
atitude estudadas, ele fascinava seus ouvintes. À pergunta de um de
seus alunos se era católico, respondia: "raciocínio catolicamente".
Um colega me dizia que Santiago "tinha um sol na cabeçà'. Assis­
tindo às suas aulas, senti, de início, uma desconfiança crescer den­
tro de mim, por todo aquele espetáculo. Santiago falava, acari­
ciando as palavras, deslizando sobre elas como um patinador
exímio num ringue de campeões. Havia em mim o encanto das
palavras adocicadas mas, ao mesmo tempo, um sentimento de re­
pulsa, de constrangimento, sem objetivo definido, sem forma de­
terminada. Ficava-me a impressão de que para Santiago a "Potên­
cià', a "Matérià' não era nada, um lixo que poderia ser varrido,

1 79
jogado fora. O importante era o "Ato", a "Formà', a ''Atualidade"
da qual a humanidade devia se ocupar. O mundo era como um
grande ovo, com a gema e a clara sem se misturarem. A gema era
o Ato e a clara, a Potência. Não deveriam nunca se misturar. O
Ato era tudo, a realidade, a essência do "Ser" . A Potência não era
coisa alguma. O Ato não se misturava com a Potência; o que fazia
era devorá-la. Transformada em Ato, a Potência desapareceria sem
deixar o menor vestígio de sua presença no mundo. Era assim que
naqueles tempos se estudava filosofia no Brasil.
Quando Santiago foi nomeado ministro das Relações Exte­
riores, a amizade que nos unira na primeira juventude já tinha
mudado, sem que tivesse havido entre nós qualquer rompimen­
to. Talvez as diferenças de temperamento se houvessem acentua­
do, talvez o rumo que tivessem tomado as nossas vidas se mani­
festassem agora por demais divergentes. O fato é que, quando me
encontrava, o ministro Santiago demonstrava uma certa frieza -
embora pretendesse, ao que pude apurar, ser meu amigo, para a
corte que o cercava. Cônsul em Bordeaux, conselheiro antigo,
vivia eu esquecido, escrevendo o meu primeiro livro sem que isso
prejudicasse, no que quer que fosse, o cumprimento dos deveres
funcionais que me eram atribuídos.
Fez-se uma grande reforma no ltamaraty em virtude da qual
para todos os primeiros secretários e, a fortiori, para os conselhei­
ros (que eram os primeiros secretários mais antigos e de maior
merecimento) 28 vagas foram abertas para a promoção a minis­
tro. As 28 vagas foram preenchidas sem que meu nome fosse con­
siderado. Jovens primeiros secretários com apenas quatro ou cin­
co anos nessa graduação passaram na minha frente, embora eu,
há mais de dez anos, já fosse primeiro secretário. Pouco depois o
Consulado em Bordeaux foi extinto, e eu fiquei aguardando a
minha transferência para outro posto.
Refletindo sobre as conseqüências desses atos administrati­
vos, compreendi que a minha situação era das mais graves. Eu de-

1 80
veria ser transferido para uma outra Missão para servir sob as or­
dens de um chefe mais jovem do que eu e com menos tempo do
que eu no ltamaraty. Filho de oficial da Marinha, eu havia conhe­
cido crise igual na vida de meu pai, ameaçado de preterição.
Lembro-me de que ele já havia tomado a resolução de pedir sua
reforma (aposentadoria) , caso a ameaça se realizasse. Felizmente
sua promoção chegou e ele pôde prosseguir na sua carreira sem
que a consciência de sua dignidade profissional fosse ofendida.
Era assim na Marinha Brasileira de antigamente - não sei se será
assim ainda hoje. No ltamaraty, na minha época, quem pedisse
demissão ou aposentadoria por se sentir ultrajado com uma pre­
terição, provocaria o riso. No ltamaraty, ninguém se sentia ultra­
jado por ter sido preterido injustamente. Não sei também se hoje
ainda é assim. Mas eu me sentiria ultrajado se fosse obrigado a
servir sob as ordens de um funcionário mais jovem do que eu e
que tivesse entrado no ltamaraty depois de mim.
Fiz saber ao secretário-geral do Ministério da Relações Ex­
teriores, embaixador Carlos Alfredo Bernardes, quais eram as mi­
nhas disposições. E, durante muito tempo, ficou-se sem saber o
que fazer de mim porque eu não aceitava nenhum dos postos
que me eram oferecidos. Não sei como não fui demitido. A si­
tuação só mudou quando Santiago finalmente deixou o car­
go. Com o novo ministro, Afonso Arinos de Mello Franco, o seu
chefe de Gabinete, ministro Roberto Assumpção, conseguiu
imediatamente a minha transferência para a Delegação do Brasil
junto à Unesco. Seu chefe, o embaixador Paulo Carneiro, era um
homem que eu admirava e de quem me tornei, no decorrer dos
anos, íntimo amigo. Quanto à Roberto Assumpção, sei que o
que fez por mim foi por amizade; mas ele próprio talvez não se
tenha dado conta do que significou para mim o seu gesto gene­
roso: não só a solução de uma grave crise, como também o res­
tabelecimento de um equilíbrio emocional perturbado por aque­
la agressão inesperada.

181
Tal é a triste história de minhas relações com Santiago Dan­
tas. É uma história que para mim ficou inextricavelmente ligada
às suas lições de filosofia e à sua lição sobre ''Ato e Potência" . A
"Potência'' era a relação que nos unia desde os primeiros anos da
faculdade - as horas que perdíamos jogando botão, recitando
Verlaine ou Rimbaud ou discutindo o valor poético das preposi­
ções nos poemas de Augusto Frederico Schmidt. O ''Ato" era o
cargo de ministro da Relações Exteriores, a desgraciosa disposição
de mostrar o seu poder, de tirar uma desforra, como se houvesse
em mim a presunção de possuir virtudes que não estivessem a seu
alcance. O ''Ato" parecia ser como que a negação da "Potência'',
a redução desta última a algo que se oferecia para ser devorado.
Exatamente como se ensinava na filosofia de Aristóteles.
Teria tido essa experiência original, a minha experiência
com o indivíduo Santiago Dantas, uma influência sobre a expe­
riência de cultura da minha maturidade? Haverá talvez mais coi­
sas a dizer sobre isso. O fato, entretanto, é que o desenvolvimen­
to da minha experiência original se realizou numa espécie de
contraponto ao desenvolvimento da experiência original de San­
tiago. Eu deixei a Faculdade de Direito sem ter a menor noção do
que ia fazer. Santiago deixou-a quando já estava preparando sua
tese sobre o "Direito de Vizinhança'' , que lhe daria uma situação
de professor catedrático. Enquanto eu entrava num curso para
tornar-me piloto da Reserva Naval Aérea, Santiago se integrava
num escritório de advocacia, empenhado, como ele mesmo con­
fessava, em ganhar dinheiro o mais depressa possível. Ele consi­
derava a vida que meus amigos e eu levávamos um desperdício
absurdo. Octávio de Faria havia comprado um sítio na região de
Itatiaia e lá passávamos semanas, meses, que eram uma verdadei­
ra afronta para a concepção de vida de Santiago. Ele nos explica­
va, quando o encontrávamos no Rio - queimados do sol, alheios
aos acontecimentos políticos, interessados apenas nos filmes que
os cinemas do Serrador exibiam - nos fazia ver que a vida da in-

1 82
teligência só se completava no campo da ação. Quem, como nós,
havia estudado Direito deveria seguir advocacia ou a profissão de
j uízes. Por que não fazíamos concursos? Dizia isso não a Octavio,
por quem tinha um certo respeito, pois já publicara um livro,
coisa que ele ainda não fizera, mas a José Artur da Frota Morei­
ra, a Vinicius de Morais e a mim que éramos mais jovens. Nós,
nessa época, já nos havíamos distanciado bastante dele; mas ou­
víamos aquelas preleções sem contrariá-lo, para rirmos depois
quando ele se afastava para fazer preleções em outras freguesias.
O que fazíamos no sítio de Octavio? No princípio, Octavio
fora para lá por questões de saúde. A vida que levava no Rio, dor­
mindo das sete horas da manhã até uma hora da tarde, era exaus­
tiva. O médico recomendara repouso. Seus pulmões estavam
numa situação delicada. Lembro-me de que, durante as primei­
ras semanas que passamos lá, Octavio dormiu ininterruptamen­
te, mostrando claramente o estado de cansaço e fraqueza em que
estava. Vinicius começava a escrever a sua melhor poesia. José Ar­
thur escrevia um romance que nunca terminou e do qual sua fa­
mília guarda as duzentas páginas que foram escritas. É uma pena
que nunca se tenham disposto a publicá-las. Quanto a mim,
creio que ainda estava em plena "potência" , naquele estado des­
prezível que Santiago anatematizava.
Embora tenha conseguido fazer uma carreira e tenha escri­
to livros, considero-me ainda hoje "em potêncià' . Sempre tive
realmente uma grande dificuldade em assumir uma forma, seja
ela qual fosse. Com Plínio Salgado, vi Santiago se tornar plena­
mente integralista. Não fui integralista, não fui comunista, não
sou liberal. Parece não haver no mundo um lugar para mim. Mas
acredito ser essa a opinião que um mundo aristotelizado tem a
meu respeito. Creio que posso ser considerado alguém que con­
tinua em "potêncià', alguém que persiste em manter-se em "po­
tência" . O que me fascina ainda hoje é a questão da liberdade: a
liberdade no Ocidente, a liberdade no Oriente, a liberdade em

1 83
mim mesmo. É o destino dessa situação "em potência'' de trans­
formar-se algum dia numa situação "em ato" ? É coisa em que
absolutamente não posso acreditar. A transformação "em ato"
significaria evidentemente a morte da liberdade. Aristóteles cer­
tamente se equivocou. A liberdade não poderá morrer nunca!
Com a razão, viverá o tempo que viver a humanidade. Foi real­
mente uma ação irrefletida, da parte de Aristóteles, procurar or­
ganizar a vida suprimindo a liberdade. A vida deve ser organiza­
da, mas a liberdade tem de ser mantida. Qualquer outra forma de
organização do mundo não passa de um simplismo. A liberdade
deve ser tomada em conta. E também a racionalidade. Mas como
organizar a vida levando em conta a liberdade? Já vimos o perigo
que existe em se organizar a vida levando em conta apenas a ra­
cionalidade. O mal que não foi evitado consistiu em permitir que
a racionalidade sufocasse a liberdade. Agora que queremos levar
em conta a liberdade não haverá o perigo de formar-se uma ava­
lanche de liberdade capaz de soterrar a racionalidade de modo ir­
recuperável? Temos as duas experiências, a do Ocidente cristão e
a do Oriente cristão. No Ocidente cristão, a liberdade foi prati­
camente extinta, mas no Oriente cristão a racionalidade foi de
um certo modo conservada. O historiador da filosofia russa, V.
V. Zenkovsky sugere (e penso, com muita procedência) que a
razão tem outros objetivos além da construção de uma teoria do
conhecimento - quiçá mais importantes do que essa tão cele­
brada construção. Pode, por exemplo, procurar unificar a vida es­
piritual mediante processos racionais. Sócrates, que aj udou a
alma humana nos seus trabalhos de parto a dar à luz a idéia ra­
cional, aj udou-a em seguida a dar novamente à luz a liberdade
moral. Nunca houve nele a preocupação de uma teoria do conhe­
cimento. Porque deve haver agora, para nós, essa preocupação? A
teoria do conhecimento é uma excrescência, uma atitude viciosa,
nociva à sã racionalidade. Evitá-la seria uma forma de evitar que
a liberdade entre em choque com ela num conflito prejudicial a

1 84
uma e a outra. A teoria do conhecimento baseia-se na crença de
que a razão poderá se alimentar de si própria, numa espécie de
autofagia. A razão para Kant não pode ser senão a razão que tem
raízes em si mesma. Ela recusa se nutrir aproveitando os alimen­
tos que a liberdade poderia lhe trazer. Desse modo morre de ina­
nição, formulando a doutrina do nomeno. O nomeno não é um
fenômeno, é a essência das coisas e por isso tem uma conotação
totalmente negativa. O nomeno é aquilo que o conhecimento
humano jamais poderá atingir.
Está claro que desse modo o papel mais brilhante ficará re­
servado para o fenômeno. Ao fenômeno fica atribuída toda a po­
sitividade, tudo quanto há de interessante em nosso mundo. A
própria moralidade, que parecia escapar ao destino melancólico
do nomeno, estava na verdade associada a ele. A liberdade, este
elemento alegre, sadio, positivo da vida espiritual, devia ser acor­
rentado ao sistema da ciência, transformando-se numa causa -
uma causalidade livre! Se não se identificava com a negatividade
pura do nomeno também não participava plenan. 'nte da positi­
vidade de fenômeno - por que de .e não extraía propriamente
sua realidade, mas apenas sua maneira de relacionar-se com
outro fenômeno.
Em Kant, a razão humana pareceu realmente ter encontra­
do seus limites. Com ele, o homem curioso de Aristóteles chega
diante de um muro que não pode ser transposto. Os russos pare­
cem ter razão quando dizem que há modos mais criativos de
usarmos a razão - modos que não nos levem à presença de uma
coisa tão negativa quanto é a concepção do nomeno.
Quem se obstina em prosseguir no caminho percorrido por
Kant perde seu tempo procurando derrubar o muro. Husserl,
Wittgenstein, a filosofia analítica montam guarda diante do
muro intransponível como o herói de Kafka diante da porta da
j ustiça. Como esse herói, nossos filósofos vão perdendo às forças,
vão envelhecendo, vencidos pelo tempo, pela fome, pelo cansaço.

1 85
No novo milênio, por quanto tempo resistirão ainda? A tecnolo­
gia que por seu lado está se desenvolvendo, vem avançando, vem
chegando perto. Quando chegar diante do muro será fácil derru­
bá-lo. Mas então não haverá mais nem Kant, nem Husserl, nem
Wittgenstein, nem filosofia analítica. Não haverá, nem mesmo
de um modo geral, filosofia.
Instalada a tecnologia, haverá espaço para outras coisas?
Pode-se imaginar uma circulação de idéias num mundo tecnoló­
gico? Um catolicismo tecnológico, por exemplo, ou um protes­
tantismo ou liberalismo tecnológico? O homem certamente joga
no lixo sua condição de ser pensante quando fala de era tecnoló­
gica. Era ou época sempre significou, desde que o homem come­
çou a usar a palavra como meio de expressão, um período da his­
tória distinto de outros por um determinado conteúdo de idéias
e de sentimentos. Qual seria o conteúdo da era tecnológica? Na
falta de qualquer sugestão que pudesse nos ajudar a responder a
essa questão seríamos obrigados a concluir que se trata de uma
era sem conteúdo cultural - ou, em outras palavras, de uma si­
tuação de barbárie. É isso que devemos esperar para o novo mi­
lênio? É isso que deverá constituir nosso motivo de alegria? Ou,
pelo contrário, deveremos ficar tristes mas resignados já que não
há meios de escapar a esse destino?
A perioridização da História em Idades da Pedra, do Bron­
ze, do Ferro e do Aço, nada tem a ver com a questão de que tra­
tamos agora. Havia então naturalmente uma tecnologia da pedra,
do bronze etc., mas a ênfase não era dada à tecnologia, o impor­
tante eram as diferentes matérias a que ela se aplicava, a tecnolo­
gia era secundária. Hoje, o que está acontecendo é que nada é im­
portante exceto a tecnologia. Deixamos de ser uma civilização
com um conteúdo cultural para ser uma civilização puramente
formal, como diria Aristóteles.
O que teria acontecido se tivessem sido Sócrates, Platão e
não Aristóteles quem estivesse "encostado" ao cristianismo oci-

1 86
dental? Essa é uma pergunta que está longe de ser ociosa. Temos
aqui um tipo de pergunta que o historiador deveria fazer de vez
em quando; é desastroso se submeter ao fatalismo dos aconteci­
mentos como se o que aconteceu devesse forçosamente acontecer.
Perguntas como essa seriam no mínimo um exercício de liberda­
de. De que os fatos ocorridos não eram obrigatórios temos pro­
vas exuberantes ao considerar simplesmente a história do cristia­
nismo oriental: como já dissemos, foi Platão quem mais influiu
no cristianismo russo.
Qual foi a melhor opção, a primeira ou a segunda? Aqui
seria preciso fazer uma pausa na nossa reflexão, uma pausa demo­
rada que tivesse consciência da importância e da gravidade dos
pensamentos que teríamos a examinar. O que na verdade quere­
mos? Lanço ao leitor essa pergunta, mas já que o livro não é o es­
paço ideal para o diálogo, ponho-me no seu lugar e tento respon­
der por ele. Queremos, sem a menor dúvida, viver numa atmosfera
mais límpida, mais dara, mais transparente. Queremos viver sem
mentiras, sem aparências enganosas, sem faz-de-conta, sem falsas
idéias, sem ilusões. Queremos viver sem o Ersatz, sem o aproxi­
mativo, sem o "pseudo". Queremos viver perto das coisas e das
pessoas que exalam o odor da mais pura autenticidade.
Isso é a vida. Como nós, seres vivos, poderíamos desejar ou­
tras coisas? Como podemos então viver como se não existissem
entre nós a miséria extrema, a pobreza indescritível, a fome exter­
minadora, a doença martirizante em proporções inacreditáveis?
Como ousamos falar em democracia, em liberalismo, em direitos
humanos, quando sabemos perfeitamente que tudo isso é ilusó­
rio, que tudo isso não passa de uma grotesca pantomima? O
Oriente pelo menos tem mais respeito próprio. Conhece suas
mazelas e sofre em silêncio. O que torna o Ocidente um culpado
irrecuperável é a sua presunção de já ter resolvido todos os seus
problemas a ponto de não precisar mais de um Deus que venha
em seu socorro.

1 87
A miséria, a pobreza, a fome, a doença - essas são coisas
gritantemente visíveis no nosso mundo cheio de complacência
consigo mesmo. Como podemos viver nesse mundo, satisfeitos,
quando sabemos que há nele bilhões de miseráveis, de famintos,
de doentes abandonados? Trata-se da ordem natural das coisas, de
situações inevitáveis? É claro que não. Foram todas conseqüên­
cias, efeitos, decorrências de ações ou omissões praticadas pelo
homem. Por que há tanta ignorância, tanta violência, tanta cri­
minalidade? A resposta é sempre a mesma: em decorrência de
ações ou omissões praticadas pelo homem.
O homem no nosso mundo não agride somente os seus se­
melhantes, agride também a natureza. Aqui, aparentemente, não
há justiça; o agressor tem a impressão de que não será punido.
Mas não há punição mais terrível do que aquela de que pensamos
estar livres. Mais cedo ou mais tarde, o agressor da natureza paga­
rá pelo crime de sua transgressão. Não há ser menos misericordio­
so, mais insensível às moções do arrependimento do que a natu­
reza. O agressor vive feliz, esquecido das agressões que praticou.
Mas, quando a punição chegar, ele não terá nem tempo para se ar­
repender. Não terá tempo para rezar. Não terá tempo para prepa­
rar uma oração em que a misericórdia de Deus fosse evocada.
Enquanto o homem não tinha competência para enfrentar
a natureza e eventualmente agredi-la, a natureza podia servir de
espaço para o advento das religiões. Objetos da natureza transfor­
mavam-se em divindades. O homem relacionava-se com Deus
pelo culto que prestava a esses objetos, num gesto de respeito, de
obediência, de profundo acordo. Quando, porém, o homem tor­
nou-se competente para agredir a natureza, para pôr-se em desa­
cordo com ela, não pensou que isso poderia provocar uma respos­
ta irada, um raio riscado no céu capaz de fulminá-lo. Que o Deus
misericordioso que atendia a seus pedidos pudesse se transformar
num Deus colérico, cruel e insensível que se vinga das insolências
que recebe era a última coisa que poderia pensar. O que está ha-

1 88
vendo hoje é uma situação em que o homem vai perdendo com­
pletamente essa inocência. Quando a perder completamente, só
haverá tempo para exalar o último suspiro. A tecnologia, que nos
parece hoje uma deusa, gera o demônio desse último suspiro. O
Deus que abandonamos não poderá mais vir em nosso auxílio.
Estará morto, assassinado por nós mesmos e com ele terão desa­
parecido sua compaixão e misericórdia. Sua voz protetora não
será mais ouvida, o mundo estará atordoado com a estridência
metálica, dissonante, infernal, da instrumentária tecnológica.
O que está acontecendo conosco, que vivemos nestes come­
ços da era tecnológica, oferece um aspecto de um certo modo
ambíguo. Por um lado, parece que fomos nós, com a nossa liber­
dade, que tornamos possível a sua entrada no mundo em que vi­
vemos. Por outro, vai nascendo a suspeita de que fomos obriga­
dos a fazê-lo, de que fomos constrangidos a abrir-lhe os braços e
desejar-lhe boas-vindas. A uma primeira renúncia de nossa liber­
dade seguiu-se uma segunda e depois uma terceira, e assim por
diante, provocando finalmente o desaparecimento das condições
que tínhamos para planejar um mundo tal como podem fazê-lo
os homens que são verdadeiramente livres.
Essas são as generalidades. Descendo a detalhes, veremos que
a nossa liberdade nos foi sendo tirada de duas maneiras diferentes,
quase opostas: em primeiro lugar, pelo homem curioso, aristotéli­
co, ávido de conhecer o mundo exterior; em segundo, pelo ho­
mem prático - uma criação aristotélica - que poderia ser filó­
sofo se se interessasse pelo que é geral, mas que se interessa apenas
pelo que há de mais particular. Ele vê apenas o problema do mo­
mento. Infelizmente o uso de tais recursos gerará outros proble­
mas que, por sua vez, serão resolvidos da mesma maneira pelo
mesmo homem prático. Assim o mundo, ao fim de algum tempo,
na sua página de créditos e débitos, em vez de ter na sua coluna
de créditos um saldo de soluções a seu favor, terá na coluna de
débitos uma quantidade de problemas não resolvidos em seu des-

1 89
favor. O acúmulo de problemas vai ocorrendo à medida que se
exerce seu poder de iniciativa. É dessa forma que a liberdade vai
sendo perdida paulatinamente, pela ação do homem míope, de
horizontes limitados - o homem prático. A fome, a miséria, a cri­
minalidade, a violência estão em quantidades astronômicas na co­
luna de Débitos como problemas não resolvidos. O homem prá­
tico já não tem a liberdade que seria necessária para resolvê-los.
No momento em que Aristóteles disse ou escreveu que to­
do homem deseja conhecer, a liberdade já estava condenada.
Havia naturalmente outras forças que se opunham a essa noção
aristotélica e foi-lhe portanto preciso algum tempo, muito tempo
mesmo, para impor sua presença. Houve um relais, uma passa­
gem da Idade Média para a Idade Moderna em que a tocha da
curiosidade passou de Aristóteles para Descartes. Daí espalhou-se
pela Europa Ocidental, no espaço e no tempo - e chegou até
nós, que vivemos os primeiros momentos da tecnologia, confu­
sos, sem saber se ainda poderemos reter o pouco que nos resta da
nossa liberdade.
É com ansiedade, portanto, que formulo a pergunta: Em
face da tecnologia estamos condenados a perder completamente
a nossa liberdade? Poderemos ter algum outro futuro que não seja
o da tecnologia?
Sei que essas perguntas só poderão causar irritação. Nin­
guém quer pensar no assunto. Os movimentos ecológicos estão
aí, calculando os desgastes que a tecnologia já tem provocado em
certas partes do nosso planeta. Sabe-se com precisão matemática
os efeitos que o progressivo aquecimento da Terra vem causando.
Calcula-se que, se continuarmos no ritmo em que vamos, nosso
planeta estará sendo brevemente vítima de cataclismas inominá­
veis - mudança de climas, extinção de espécies animais, luta
geral de todos contra todos na ânsia de conquistar terras que
ainda sejam habitáveis. A devastação das florestas da Amazônia
causará efeitos do mesmo gênero e outros ainda. O oxigênio que

1 90
as árvores absorvem deixará de ser absorvido. Os homens morre­
rão por excesso de oxigênio. Os rompimentos das camadas que
nos protegem do ozônio da atmosfera vão sendo descobertos; e,
embora já se saiba como recompô-las, o tempo necessário para essa
recomposição é demasiadamente longo para que o efeito da rup­
tura não se faça sentir de modo desastroso.
Vou oferecer ao leitor, em seguida, alguns dados que obtive
de Israel Klabin, relativamente a despesas militares mundiais cal­
culadas em três bilhões de dólares diários:

1 - Para desenvolver um programa de ajuda à agricultura


mundial que permitisse que todo mundo fosse dormir bem ali­
mentado, seriam necessários 40 bilhões de dólares por ano ou me­
nos que o custo anual do programa de Iniciativa da Defesa Estra­
tégica (Star Wars) nos Estados Unidos.
2 - Para fornecer água pura em condições sanitárias para
um terço da população mundial (água poluída é responsável por
80% das doenças do mundo subdesenvolvido) seriam precisos 56
bilhões de dólares anuais - equivalentes a pouco mais de doze
dias de despesas militares.
3 Para conservar a camada protetora do ozônio fornecen­
-

do CPF substitutos e modificando tecnologias industriais em


países subdesenvolvidos seria necessário um bilhão de dólares por
ano, equivalente a oito horas de despesas militares.
4 Um programa mundial de imunização de crianças de cinco
-

anos, que impediria a morte de um milhão de crianças por ano, cus­


taria 1 , 5 bilhão de dólares, o preço de um submarino tridente ou de
um dia de guerra no Golfo. Para acabar com a malária, doença que
mata um milhão de crianças por dia, seriam necessários 700 mi­
lhões de dólares, o equivalente a seis horas de despesas militares.
5 Para salvar 2 milhões de crianças do mundo subdesenvol­
-

vido que morrem anualmente de diarréia, seriam gastos 50 milhões


de dólares ou menos de despesas de meia hora para matar gente.

191
6 -Reverter o processo de desertificação custaria 1 2 bilhões
de dólares por ano ou quatro dias de despesas militares. Uma
campanha de antidesertificação traria também benefícios equiva­
lentes a 30 bilhões de dólares anuais.

Muitos outros exemplos poderiam ser citados. Os que demos,


entretanto, nos parecem suficientes para mostrar como o homem
do Ocidente contemporâneo usa a sua liberdade. Pode-se real­
mente considerar livre uma humanidade que se vincula a tais op­
ções militaristas? A liberdade consiste então unicamente no fato
de que há uma opção e de que não se é obrigado a tomá-la?
Colhi informações preciosas sobre os problemas ambientais,
de Israel Klabin, não só na conversa que tivemos como também
no artigo que publicou na revista Política Externa, volume 9, nº
2, abrangendo os meses de setembro, outubro e novembro do
ano 2000. O artigo, intitulado "Meio ambiente e política exter­
na brasileirà' , nos fala do progresso da campanha dos ecologistas
contra as devastações na natureza causadas pelas indústrias e pela
economia do mercado. Escrito antes da eleições norte-americanas
do ano de 2000 para a Presidência da República, ele nos lembra
que AI Gore tinha no seu perfil claramente desenhado o compro­
misso ecológico. Informa-nos que os novos profetas do movi­
mento ecológico não são políticos ou intelectuais desengajados,
mas cientistas que chefiam núcleos de saber nas universidades
mais influentes do planeta. Assim em Harvard, o movimento tem
em Edward O. Wilson o seu arauto, bem como na Universidade
de Maryland, o ex-economista chefe do Banco Mundial Herman
Dale, que promove um grupo chamado "ecological-economy" -
"Ecco-Ecco" - que trata da revisão da ciência econômica tradi­
cional. No Brasil já existe um centro de excelência de análise e
pesquisa sobre as relações econômico-ambientais no Instituto de
Pesquisas (IPEA) . O artigo menciona o fato de que a conseqüên­
cia, no âmbito político da ciência ambiental, é que ela é levada a

1 92
público sob a forma de questionamento ético. Aos poucos, a crise
de transparência do modelo econômico, político e social vigente
transborda para um novo modelo de coabitação entre o homem
e o meio ambiente. Também cresce, sob a forma de demanda
ética, a relação entre as conseqüências sociais derivadas da visão
de um crescimento econômico à outrance.
A dicotomia ciência-ética pareceria assim consubstanciar a
base doutrinária da nova posição política global. AI Gore, em seu
livro Earth in the Balance Ecology and the Human Spirit ( 1 992)
diz: " [ . . . ] we must make the rescue of the environment the cen­
tral organizing principie for civilization" . Durante sua campanha,
esse compromisso compareceu intacto em todas as suas declara­
ções. É pena que ele tenha perdido as eleições, vítima de proces­
sos que deveriam envergonhar não apenas os republicanos mas
todo o povo norte-americano.
De que existem muitos políticos norte-americanos que vêem
sem simpatia as preocupações ambientais não há a menor dúvi­
da. James Picherton, ex-assessor dos ex-presidentes Nixon e Bush
chama de environmenticism (romantismo ecológico) aqueles que
confrontam a economia do mercado com o esgotamento ambien­
tal, subestimando o impacto do mercado sobre a qualidade de
vida. É difícil prever quem vencerá nesse confronto entre ambien­
talistas e economistas de mercado. Demos alguns exemplos para
mostrar que já há alguns indícios de um despertar de consciências.
Mas temos plena consciência das imensas dificuldades que exis­
tem para que prevaleça, no nosso mundo devorado pela sede do
lucro a qualquer preço, o bom senso da atitude ambientalista.
O problema ambientalista tem um lugar neste livro porque
é um problema ético. A ética é uma disciplina que elabora nor­
mas de ação de modo a prevenir e a eliminar comportamentos
humanos que tendam a dois tipos de ataque - um voltado para
a natureza humana, para o que ela é na sua essência, para aquilo
em que a cultura pode transformá-la; outro para a natureza tout

1 93
court, complemento indispensável da natureza humana e tão sen­
sível quanto ela às transgressões de que possa ser a vítima.
Considerado sob esse ponto de vista, o homem da econo­
mia do mercado não é menos um agressor do que o homem curio­
so. Podemos mesmo ir mais longe porque ele agride não apenas
a natureza mas a sua própria integridade moral. Não pode, aliás,
agredir a natureza sem que tenha inicialmente agredido a sua pró­
pria constituição moral. Do homem que se presta ao jogo da eco­
nomia de mercado pode-se dizer, sem exagero, que ele vendeu a
sua alma. Vendeu-a a quem? Vendeu-a naturalmente a seus ins­
tintos mais perniciosos, mais anti-sociais, mais desonestos, pois
pretende que essa venda tenha sido feita não em benefício pró­
prio, mas em benefício da sociedade a que pertence.
Esse é o ponto de encontro de todas as desonestidades que
se cometem procurando justificá-las em nome de uma moral so­
cial. A economia do mercado é um jogo desavergonhado, mas
procura-se demonstrar que é o intervencionismo econômico que
está errado porque provoca uma diminuição de riqueza. Para
quem se destina a riqueza é assunto proibido, algo de que não se
fala. E, desse modo, com essa falta de transparência nas nossas
idéias e o que é pior, na nossa moralidade, vamos tocando o trem,
certos de que a razão está conosco.
Pode-se dizer que essa humanidade, tão numerosa que pare­
ce constituir a maioria dos seres humanos, vivendo dentro desse
clima de dissimulação e de sofismas, tem uma consciência lím­
pida, transparente, honesta? Essas indústrias colossais, que em­
pregam exércitos e desempregam outros tantos, são movidas por
quem? Há alguém entre eles que sofra pelos que perderam o em­
prego, pela poluição que sua empresa causa, pela exterminação
das pequenas empresas que o monopólio das grandes causa? O
contexto econômico e social, em que o homem contemporâneo
vive, não lhe permite ter uma consciência moral límpida, trans­
parente, honesta. Falamos muito, hoje, em ética, mas isso justa-

1 94
mente mostra que o fenômeno desapareceu do nosso planeta.
Também quando não se tem dinheiro fala-se muito nele. Nos
tempos em que os homens sabiam o que era ética, a respeitavam
e a praticavam, falava-se pouco nela. O mesmo acontece com a
liberdade e, se nos puséssemos a refletir, encontraríamos muitos
outros casos.
O problema ambiental é um problema ético, dissemos. Es­
taremos então condenados a nunca resolvê-lo, já que, como
vimos, o problema ético não é mais resolvido senão à custa de
dissimulações, sofismas, hipocrisias etc? A humanidade contem­
porânea está conseguindo viver sem ética. Os fingimentos a que
se tem prestado têm-lhe garantido uma espécie de sobrevivência.
Não seria então o caso de se pensar que o mesmo se poderia fazer
com o problema ambiental: bastaria então se falar muito a respei­
to dele, fazer pesquisas, denunciar desajustes, prever catástrofes e
não fazer nada. Teríamos, assim, demonstrado uma extrema luci­
dez, digna de provocar o mais legítimo entusiasmo por parte do
homem curioso. Poderíamos então ir assim tocando o trem,
como fizemos no caso do problema ético.
Há, entretanto, uma dificuldade que não consideramos. A
natureza física não é como a natureza humana. Ela não esquece,
não dissimula, não sofisma, não é hipócrita quando se trata das
agressões recebidas. Ela silencia mas isso não quer dizer que ela
não esteja preparando uma resposta. Em alguns casos, ela já tem
mesmo dito alguma coisa, mas nós continuamos sobrevivendo e
não houve ainda nenhum momento em que sentíssemos que o
nosso planeta estivesse eminentemente ameaçado.
Vamos esperar por esse momento? Tudo o que sabemos e o
que vemos nos leva a crer que sim. O problema ambiental é um
problema ético e sabemos a dificuldade que temos com esse pro­
blema. Com o planeta não podemos dissimular nem sofismar.
Ele não entende a nossa língua. Mas nós provavelmente acabare­
mos por entender a dele.

1 95
Há então duas alternativas: 1 ª) o problema ambiental, por
ser um problema ético, não se resolverá nunca, ou se resolverá
com a destruição do nosso planeta; 2ª) o problema ético, que não
se resolve nunca, comportando dentro de si o problema ambien­
tal, poderá um dia ser resolvido se o problema ambiental encon­
trar, antes dele, uma solução. Nesse caso, a solução do problema
ambiental seria a pista por meio da qual se resolveria também o
problema ético.
Essa solução, que à primeira vista pareceria fantasista, tem a
seu favor um bom número de razões. O problema ambiental
pode parecer menos premente, menos importante, menos decisi­
vo que o problema ético, mas há nele um coeficiente de franque­
za, de sinceridade, de honestidade que impede qualquer dissimu­
lação ou hipocrisia. Uma vez apresentado não há como fugir dele.
Ele não é só um problema, é uma ameaça de que não vemos
como escapar. Seus métodos de persuasão são mais diretos, mais
contundentes. Colocam em xeque não nossa lucidez, mas nossa
coragem já abalada. Talvez seja assim, por medo, por pavor de
um fim inapelável, que nos transformaremos um dia num
mundo ambientalista. E, nesse dia, quem sabe teremos grandes
chances de nos tornarmos também um mundo em que a ética
é respeitada.
Suponhamos que alguém tenha tomado uma decisão obvia­
mente estúpida - não quer estudar, quer permanecer na mais
completa ignorância. Podemos defendê-la dizendo que precisa­
mos respeitar sua liberdade? É utilizando exemplos radicais como
esse que podemos vislumbrar os laços, discretos mas firmes, que
ligam a liberdade à racionalidade. Ser racional não é apenas obe­
decer aos vínculos inflexíveis da causalidade, como se o mundo
fosse uma enorme máquina; e ser livre não é tampouco flutuar no
espaço, como se estivéssemos desvinculados de qualquer decisão,
seja ela qual for, seja ela apoiada em qualquer pretensão e sobretu­
do na pretensão de uma liberdade desvinculada da racionalidade.

1 96
Os filósofos contemporâneos costumam chamar de razão
desengajada a razão com que operam. Kant havia definido liber­
dade como uma "causalidade livre" . A razão desengajada não é
obviamente a razão hegemônica de Sócrates, a razão que dá ori­
gem à liberdade moral. A "causalidade livre" de Kant é equivalen­
te à liberdade moral - dá-lhe essa qualidade o fato de ser conce­
bida em termos de ciência: como sua antípoda. Concebida como
antípoda da ciência, a moralidade kantiana se declara ao mesmo
tempo vinculada a ela, já que pressupõe, como a ciência, um
princípio básico, o princípio da causalidade. Nada nos mostra de
maneira mais categórica o relacionamento íntimo que existe
entre a racionalidade e a liberdade do que a interpretação que dá
Kant do fenômeno moral - mesmo levando a concentração do
seu espírito sobre a racionalidade, aos excessos a que chegou, não
esqueceu a liberdade. E, se não podemos aceitar a sua concepção
de uma "causalidade livre", é porque temos uma noção mais alta
do que seja liberdade e não podemos acolhê-la representando o
papel de um simples apêndice, de um simples ornamento, enri­
quecendo a imagem magnífica da racionalidade.
Depois de Kant as coisas pioraram. Os vínculos entre razão
e liberdade que Kant havia abalado, romperam-se por completo.
Sartre, provavelmente o filósofo mais lido após a guerra, líder in­
telectual de várias gerações de um dos países culturalmente mais
influentes do mundo, um país entretanto que havia sido derrota­
do e no momento estava ocupado pelo inimigo - Sartre de iní­
cio não sabe o que fazer. No Café de Flore, em Saint Germain de
Pres, o centro da boêmia intelectual parisiense, escreve o Ser e o
nada, um ensaio de uma psicologia duvidosa, estéril, deprimen­
te. Nas últimas páginas há uma promessa de que o problema da
liberdade seria oportunamente examinado.
Teria sido melhor que nunca tivesse cumprido a promessa
- porque o que tinha a dizer sobre a liberdade humana era real­
mente lamentável. Quando a França se viu livre da ocupação das

1 97
tropas alemãs, Sartre pôs-se a proclamar histericamente o choix,
desconsiderando tudo quanto, como cidadão francês, deveria ter
sido objeto de seus cuidados. Charles de Gaulle, era para ele um
personagem "menor" . Tornou-se marxista, chegou mesmo a es­
crever que o marxismo era a filosofia insuperável de nossos tem­
pos. Interessava-se mais pela sorte dos países do Terceiro Mundo
do que pelo destino da França. Fez vista grossa aos crimes de Sta­
lin, como já havia feito vista grossa à conivência de Heidegger
com os crimes de Hitler.
Em que consistiu o choix de Sartre? Consistia simplesmen­
te na mais completa separação entre a liberdade e a racionalidade
no homem. Tínhamos inteira liberdade de nos escolhermos nós
mesmos. A escolha de si mesmo para Sartre não significava o cui­
dar-se de si mesmo de Sócrates. Significava antes, que qualquer
decisão, por mais arbitrária que fosse, que tomássemos a respeito
de nós mesmos, era absolutamente válida. Sartre viveu ele pró­
prio de acordo com essas normas que inculcava em seus discípu­
los. O sucesso que obtinha entre os estudantes é fácil imaginar.
Do enterro de Sartre, Paris inteira pareceu tomar parte. Dir-se-ia
que um grande profeta, um grande santo havia desaparecido.
Não há nada como um ideal, claramente concebido, para
dar forças e energia ao ser humano. A fraqueza das idéias, em
geral, é que elas não são claramente concebidas. Se o ideal de um
homem é escrever um livro, ele precisa saber em primeiro lugar
sobre o que quer escrever. Uma vez que sabe, isso deverá então
orientar os seus estudos em direção aos temas que pretende abor­
dar. Seria bom que tivesse alguma predileção por esses temas; mas
o importante é saber o que quer dizer: isso lhe dará o ímpeto e o
sentido em direção ao qual seus esforços deverão se empregar.
O homem de cultura que celebra o retorno de Sócrates à sua
convivência não o faz naturalmente, porque está dominado pela
idéia fixa de empreender um ataque à tecnologia. O retorno de
Sócrates é bem-vindo por mil outros motivos. Mas esses motivos

1 98
fazem parte da história secreta da cultura. Cada um de nós sabe
porque Sócrates lhe é caro; cada um de nós saboreia no recinto
de sua própria intimidade o paladar admirável desse alimento
que havia sido perdido e que forças inesperadas nos trazem de
volta. Que ele nos dê ânimo, para que num esforço coletivo con­
sigamos reduzir a pressão que sobre nós exerce a tecnologia, é
outra matéria. Que o ânimo nos será dado é fato indiscutível. No
mais, o que há a fazer é esperar que o tempo produza os seus efei­
tos nessa expectativa em que angústia e esperança se misturam.
Tais são os parâmetros da questão no Ocidente. Mas já
vimos o que aconteceu no mundo do cristianismo oriental. Nesse
mundo a liberdade espiritual parece dominar. Nele a filosofia não
parece ter-se rendido às seduções do homem curioso. É utópico
imaginar que as forças acumuladas pela Rússia do século XIX
possam agora, depois de consumada a revolução marxista, jorrar
com abundância sobre o Ocidente decadente? - um Ocidente
decadente mas que já tem como promessa de uma nova vida um
Sócrates recuperado por Kierkegaard e por Nietzsche?
Discute-se hoje em dia, no mundo ortodoxo, o destino da
cultura russa. Não vejo mais belo objetivo do que o propósito
de associar-se à cultura do Ocidente no intuito de salvá-la. Os
russos não deveriam mais ter o receio de contaminar-se - o
Ocidente conhece bem a doença de que padece e sabe que não
mais pode ser o líder cultural da humanidade - falta-lhe a li­
berdade necessária para combater sua doença. A cultura russa do
século XIX transborda de liberdade - e há alguns elementos da
cultura do Ocidente de que poderia se beneficiar. Por que então
em vez de se voltar para a Ásia, como parece ter sido um dos pla­
nos postos sobre a mesa na reunião mencionada por Georg
Henrik von Wright, no artigo a que me referi anteriormente,
não se voltar para o Ocidente, não para copiá-lo, não para se
deixar contaminar, mas para salvá-lo, para exercer uma influên­
cia positiva, possivelmente de comando? Em vez de uma Rússia

1 99
Asiática, teríamos um Ocidente Eslavófilo, um Ocidente que
teria renunciado definitivamente à pretensão de comandar os
destinos da humanidade.
É por esse caminho, talvez, que podemos enveredar. No
nosso último livro O humanista, insistimos no propósito de dar
um maior peso à cultura do que damos ao poder. O Ocidente
está intoxicado de poder. Uma das principais razões pelas quais
nos é difícil renunciar à tecnologia é que com isso perderíamos
uma soma fabulosa de poder. Isso nos parece representar uma
perda irreparável. Os Estados Unidos gasta quantias colossais
para aumentar o seu poder, embora já sejam uma superpotência
e não encontrem uma entidade que possa se opor a seus desíg­
nios: um poder que não encontra um outro poder que possa en­
frentá-lo já é uma realidade que se desenha no nosso horizonte
com uma nitidez irrecusável. Os Estados Unidos chegaram ao
ponto de serem obrigados a inventar a existência de inimigos.
Aqui temos um ponto de saturação talvez auspicioso: o poder se
desmanchando por falta de um ponto de aplicação? O destino da
tecnologia está cercado por pontos de interrogação. Não é só
nossa iniciativa que poderá embaraçá-la. Há também a sua dialé­
tica interna que não sabemos onde poderá levá-la. Quanto mais
dinheiro é gasto em tecnologia, menos dinheiro sobra para as ne­
cessidades imediatas de imensas aglomerações humanas que se
encontram privadas das forças necessárias para se interessar pelo
progresso humano. O que lhes resta de vitalidade mal chega para
compreender os motivos em virtude dos quais a comida que não
têm para comer é abundante nos restaurantes por onde passam.
Que outros pensamentos lhes poderão advir? A fome, dizem, não
é boa conselheira. Quanto tempo esses homens dasvalidos aceita­
rão a angústia de não ter o que comer quando sabem que uns
poucos comem fartamente e que há dinheiro gasto, somas colos­
sais, em iniciativas totalmente indiferentes à fome que lhes corrói
o estômago?

200
As guerras sempre existiram, mas agora que temos uma su­
perpotência é pouco provável que elas aconteçam, pelo menos em
escala mundial. Não sabemos, entretanto, se a China nos reserva
uma surpresa. Não é impossível que ela, que contém no seu bojo
a maior quantidade de seres humanos do planeta, pretenda um
dia competir com os Estados Unidos. Se o fizer, cairá sobre nós
uma catástrofe duplamente lamentável. Em primeiro lugar, daria
aos Estados Unidos o inimigo que lhe falta. Em segundo, o fato
de termos não apenas uma, mas duas superpotências prolongaria
por tempo indeterminado o reinado da tecnologia - os estímu­
los para o seu incessante desenvolvimento estariam sempre vivos.
A respeito dessa eventualidade, há entretanto duas conside­
rações que poderão talvez acalmar nossos temores. Em primeiro
lugar, a China emergiu para a civilização sem se dar conta de que
existiam outros mundos, outros centros de civilização no plane­
ta. Vivia como se o povo chinês e a vizinhança bárbara, que aos
poucos ia assimilando ao seu próprio mundo, fossem os únicos
seres humanos que existissem sobre a Terra. Isso naturalmente
tornou sua forma cosmológica de existência muito mais intensa
ou profunda do que aquela que vingava, por exemplo, no Orien­
te próximo, no Egito, na Assíria e na Babilônia ou nos países ba­
nhados pelo Mediterrâneo oriental. Nessa forma cosmológica de
existência, o povo chinês era o único que existia sobre a Terra, o
céu chinês, pai e mãe dos imperadores e dos reis que governavam
aquela terra, cujos limites pareciam se confundir com os limites
do planeta. O poder, por conseguinte, tinha para o chinês uma
significação necessariamente diversa daquela que sempre teve
para o homem ocidental. Representava naturalmente uma con­
cupiscência, um desejo de se apropriar daquilo que pertencia a
outrem. Mas esse instinto estava limitado ao mundo que conhe­
cia, ao mundo que pensava ser o único. Nunca houve na China
um Alexandre, um homem animado pelo desejo de conquistar
mundos diferentes. Isso que constitui um traço comum a todos

20 1
os outros povos não existia na China, e tanto quanto se pode exa­
minar não existe ainda hoje.
Segunda consideração: o poder nunca esteve na China com­
pletamente separado da cultura; os sábios da China, Confúcio
em primeiro lugar, sempre constituíram uma fonte de conselhos,
de advertências, de esclarecimentos onde os agentes do poder iam
se ilustrar. Fosse em forma compacta, quando os dois princípios,
o poder e a cultura viviam misturados na mais íntima união, fosse
quando estavam dissociados, com o aparecimento dos sábios, a
convivência sempre existiu. Em momento algum de sua longa
história, a China apresentou-se como uma realidade nua e crua
de poder. O poder só se conscientiza de si próprio quando um
inimigo lhe dá essa consciência.
Quando, portanto, os analistas políticos se põem a refletir
sobre o que aconteceria se a China, com sua enorme população,
conseguisse resolver plenamente seus problemas sociais atinentes
à alimentação, educação e saúde e decidisse se transformar numa
grande potência militar; quando começam a refletir sobre a
ameaça que isso representaria para o mundo, a garantia que en­
contram é a existência, nos Estados Unidos, de armas atômicas
que constituem um poder de agressão muitas vezes maior do que
possuiria a China, mesmo levando em conta o número de seus
habitantes. Mas a China poderia também se armar atomicamen­
te, uma vez que tivesse resolvido seus problemas econômicos. Os
Estados Unidos não poderiam intervir. Não poderiam intervir na
fase do fortalecimento do tecido social da China porque todo
país tem o direito de cuidar dos problemas de alimentação, saúde
e educação do seu povo. E só teria meios de agir muito tarde,
quando a China já tivesse adquirido uma plena autonomia, eco­
nômica e militar, e se decidisse a agredi-los, provocando a repro­
vação indignada do restante do mundo.
A China é, portanto, um grande ponto de interrogação. Sou
propenso a acreditar que ela se manterá fiel a seu passado e não

202
se tornará nunca uma simples máquina de poder. O homem terá
sempre para ela a fisionomia do chinês, o povo de cujos antepas­
sados não quer se esquecer. Os chineses que fugiram da fome para
os Estados Unidos, para a Inglaterra, para o Brasil, para os países
que podem lhes oferecer trabalho, procuram sempre reconstruir,
no novo habitat, uma China improvisada. Haveria talvez um
grande êxodo, como o descrito no Pentateuco, de diversas partes
do mundo em direção à China, no dia em que esse país puder
oferecer a seus nativos uma vida sem miséria e sem doença.
Essa seria naturalmente uma perspectiva otimista. Ficaría­
mos então apenas com os Estados Unidos, a sua obsessão do
poder e seus inimigos imaginários. As esperanças então poderiam
se concentrar sobre o fator tempo. Quanto tempo seria necessá­
rio para que essa fixação na idéia de poder que é o traço funda­
mental do caráter de todo norte-americano se diluísse, se desfi­
zesse, se anulasse? Pode-se entreter a idéia de que sua imaginação
se cansará um dia de entreter essa ilusão cômica de um inimigo
que os ameaça? Há ainda um público de crianças que deliram
com esses filmes que narram a invasão da Terra por todo tipo de
inimigos - até por germes que transformam homens normais
nos nossos mais perigosos inimigos?
Esse é na verdade um dos mais inesperados resultados da
ciência. Uma disciplina que, como o seu próprio nome sugere,
indica obediência a regras estabelecidas, parece ter de repente o
efeito de amolecer o cérebro das pessoas - pois como explicar de
outro modo que consista não apenas em associá-la como também
em dar-lhe a iniciativa na realização dos propósitos mais infames?
Sabemos todos que a ciência pode ser usada tanto para o bem
quanto para o mal. Mas que ela tenha a predisposição para o mal
é novidade que só o delírio causado pela obsessão dos inimigos
imaginários pode produzir. Não consigo esquecer os filmes a que
me referi há pouco. Há naturalmente quem pense que esses fil­
mes têm pouca importância, sendo tão fúteis quanto quaisquer

203
outros da indústria cinematográfica norte-americana. Pensa-se
também provavelmente que o norte-americano é um povo meio
criança, que se diverte com tolices. É , entretanto, um povo crian­
ça que constrói bombas atômicas e que já as lançou sobre popu­
lações indefesas.
A escravidão à tecnologia e a mística da ciência são hoje
duas características essenciais para a compreensão do que seja
nossa civilização. Observem como esse fato encerra um paradoxo
irônico. A tecnologia foi criada para libertar o homem da escra­
vidão do trabalho, a ciência foi instituída para destruir a mística.
Parece assim que o homem nasceu para viver num círculo vicio­
so: o trabalho o escraviza, a tecnologia o liberta dessa escravidão
para escravizá-lo de novo; a ciência dissipa as nuvens formadas
pela mística mas sua excessiva claridade é tão nociva à visão do
homem quanto haviam sido às nuvens da mística. A ironia do pa­
radoxo parece provir do fato que a liberdade do homem é mais
valiosa que o trabalho e a tecnologia, no primeiro caso: pois tanto
o trabalho quanto a tecnologia a cobiçam e a roubam. E a místi­
ca é mais necessária do que a ciência que a seqüestra para colocá­
la em seguida a seu serviço, no segundo.
Por que o homem contemporâneo fala tanto em liberdade?
Saberá ele, no seu íntimo, que não é um homem livre? Creio que
deve haver aí qualquer coisa análoga ao que os psicólogos chamam
de "fenômeno de compensação". É impossível que os homens de
hoje não sintam que não são livres. Vêem o seu mundo cada vez
mais entulhados com objetos produzidos pela tecnologia e cuja
presença exige deles uma aprovação forçada. Aparece o telefone
celular. Não são consultados para se saber se querem ou não usar
tal objeto; o telefone aparece no mercado e eles têm a liberdade de
comprá-lo ou não. O que acontece, entretanto, é que quase todo
mundo compra e que, se você por acaso decide não comprá-lo,
fica reduzido a uma situação pouco confortável, acaba finalmente
decidindo realizar a compra. Comprou não porque tivesse a liber-

204
dade de fazê-lo. Comprou porque foi obrigado a comprá-lo, for­
çado pela pressão que sobre você exercia toda a coletividade.
A liberdade que quero discutir aqui é a liberdade de com­
prar ou não comprar o telefone celular. Essa não é uma liberda­
de interior, que é a que mais me interessa. Mas é uma liberdade
exterior de um tipo diferente que merece uma menção especial:
não é uma condição que todos os homens possam ter sem se afe­
tarem uns aos outros, como a liberdade de expressão ou a liber­
dade de locomoção etc. , é uma condição que, para que todos te­
nham, alguns poderão ser afetados.
Explico-me melhor. A posse de um objeto como o telefone
celular é de um valor extraordinário. Quem cultiva amizades ou
trabalha dentro de um sistema em que o contato pessoal viabili­
za os negócios, não poderia ter encontrado instrumento mais
apropriado para atender às suas necessidades. O aparecimento do
telefone celular muda o estilo de vida de um grande número de
pessoas. Passou-se a viver com mais intensidade, com mais possi­
bilidades, com mais perspectivas. Não há dúvida de que o rela­
cionamento entre as pessoas, seja qual for o motivo que o deter­
mine, tornou-se mais fácil e mais prazeroso.
Tudo isso podemos dizer a favor do telefone celular e com
isso estamos reconhecendo os benefícios que tem nos trazido a
tecnologia. Mas a generalidade dessa afirmação nos induz talvez
a conclusões fictícias. Não é a humanidade inteira que é benefi­
ciada com o aparecimento do telefone celular - é uma parte so­
mente, quantitativamente superior ao restante, mas talvez quali­
tativamente não. O telefone celular beneficia um certo tipo de
homem, dando-lhe condições de atuar de modo mais livre no
mundo exterior em que circula; mas, ao fazê-lo, atropela, desres­
peita, incomoda um outro tipo de homem que gostaria igual­
mente de circular livremente no mundo exterior.
Suponhamos dois velhos amigos que se encontram num bar
para uma conversa que há muito tempo gostariam de ter feito.

205
Não se viam há anos e a razão desse afastamento havia sido um
mal-entendido que surgira entre os dois. Um observava no outro
uma volubilidade, uma preocupação de não brigar com nin­
guém, um desejo de agradar indiscriminadamente todas as pes­
soas que o incomodavam. Eram essas tendências que não faziam
dele um homem fútil, superficial; havia nele reservas de alma que
o tornavam capaz de amizades sinceras e mesmo de sentimentos
profundos - e era justamente isso que o amigo incomodado se
dispunha a dizer naquela hora em que, depois de tanto tempo,
se encontravam.
Havia pouca gente no bar e as primeiras frases de recompo­
sição da intimidade que sempre existira entre eles já tinham sido
trocadas. Cada um já havia contado o que fizera durante o tempo
em que não se viam e o momento da "conversà' que deveriam ter
já se anunciava no horizonte. Esvaziavam os seus copos de uís­
que, houve um curto silêncio e então o amigo injuriado começou
a falar.
Neste exato momento a chamada de um telefone celular in­
terrompeu a conversa. O amigo que estava em silêncio atende à
chamada, esboça um sorriso e inicia uma outra conversa prazero­
sa. O outro, frustrado no meio de uma frase, contempla estupe­
fato a mudança do cenário, sentindo reacender-se dentro de si as
recriminações que estava procurando exprimir.
A conversa telefônica dura alguns minutos. A outra conver­
sa retoma o seu fio interrompido. Mas a atmosfera está mudada.
Um está de mau humor, o outro, depois das desculpas procura
ser solícito. Um clima favorável parece estar se recompondo, mas
o telefone celular dá novamente um sinal. "Por que você não des­
liga essa m . . . ?", reclama furioso o amigo. O outro se desculpa de
novo, não pode fazê-lo. Fica sozinho, porque, enquanto conversa
ao telefone, o outro paga a despesa e vai-se embora.
Houve certamente, num caso como esse, um atentado à li­
berdade. Dois amigos não puderam se entender porque interpôs-

206
se entre eles um objeto que não permitiu que eles se comunicas­
sem livremente. A amizade é um sentimento delicado, uma emo­
ção sutil, que não prospera num contexto a que tenha acesso a
tecnologia. É possível que muitas amizades tenham sido destruí­
das pelo telefone celular.
Outros objetos produzidos pela tecnologia agridem tam­
bém a nossa liberdade. Os diferentes programas, inclusive as no­
velas, são motivos de discórdia nas famílias. Se cada membro da
família pudesse ter sua televisão, não haveria problema. Mas são
raras as famílias que podem se dar a esse luxo. O que acontece é
que, por uma razão ou por outra, há sempre alguém que impõe
a sua vontade. Essa vontade de um membro da família que pro­
duziria frutos, se aplicada à disciplina familiar, fica assim desmo­
ralizada por estar sendo utilizada egoisticamente contra a liberda­
de de outros membros da família.
Tudo isso naturalmente são os pequenos atentados à nossa
liberdade praticados pelos objetos produzidos pela tecnologia.
Mas o principal, o mais definitivo, o que constitui realmente
uma calamidade, é o atentado que a tecnologia pratica contra a
nossa liberdade, estabelecendo a impossibilidade de uma oferta
de trabalho a quem dele mais necessita, a quem dela depende
para o seu próprio sustento e o de sua família. Não há j ustifica­
ção possível para a criação de uma indústria que na sua previsão
de despesas, custos e lucros, inclua gastos superdimensionados
para a aquisição de máquinas e gastos irrisórios para a contrata­
ção de trabalhadores. Conseguir lucros com a fome dos desem­
pregados é a técnica empregada pela economia contemporânea
sem que se pense um só momento em reverter esse processo. Mas
uma sociedade, por mais desenvolvida que seja, que não conse­
gue resolver esse problema, é uma sociedade doente. É uma so­
ciedade ameaçada. É uma sociedade que deverá, dentro de um
período dificilmente previsível, tornar-se vítima de uma calami­
dade inevitável.

207
A tecnologia vai lentamente destruindo a força do trabalho
numa progressão que parece não ter fim. Há quem pretenda que
ela finalmente acabará criando suas próprias frentes de trabalho.
Não se vê no horizonte nenhum indício de que isso possa acon­
tecer. As estatísticas, eventualmente, podem mostrar uma peque­
na queda no índice de desemprego, para logo depois acusar uma
elevação muito maior do que havia sido a queda que a precede­
ra. Cada vez mais haverá no mundo homens sem trabalho. Os
homens que construirão as máquinas serão cada vez mais raros
(porque se construirão máquinas que possam durar mais que a
existência humana) e os homens que as porão em movimento
mais raros ainda (por que elas tendem cada vez mais a prescindir
o esforço humano) . O que acontecerá então? Um mundo entu­
lhado de máquinas capazes de produzir todas as necessidades da
vida e agrupamentos imensos de homens, sociedades, nações,
continentes inteiros com seus habitantes imobilizados, como se
tivessem manietados e amordaçados para que não possam empre­
gar sua força de trabalho para produzir aquilo de que mais urgen­
temente necessitam. Pode haver perspectiva mais sinistra do que
essa de miséria, de escravidão? Entretanto é ela, e somente ela,
que a tecnologia tem a nos oferecer na parte de suas atividades
que tem a ver com o homem.
No que tem a ver com a natureza, as perspectivas não são
mais brilhantes. Os ecologistas têm procurado alertar a humani­
dade, mas o homem só acredita no fato consumado - e o fato
consumado nesse caso significa a extinção do universo, do qual
naturalmente ele não será testemunha pois sua própria extinção
já terá acontecido.
Tais serão os resultados da presença de nossa sinistra convi­
dada. Convidada, sim, repitamos, mesmo que isso seja tomado
como uma insolência - porque ela não nos foi imposta. Éramos
homens livres e, se ela está entre nós, é porque lhe abrimos a
porta e lhe oferecemos nossa hospitalidade.

208
Estamos já começando a sentir o que está nos custando esse
gesto insensato. Em vão, tentamos criar frentes de trabalho. O de­
semprego aumenta, a miséria aumenta, a doença aumenta. Imagi­
nemos que os instrumentos das estatísticas oficiais tenham suas
agulhas, que sobem e descem, numa angústia febril, na esperança
já um pouco delirante de que a agulha desça, desça sempre, num
retorno saudável à normalidade. Esperança vã, sempre desmentida!
O normal já é agora, por muito tempo, uma situação de alarme.
Vivemos numa situação de alarme e nada se faz para eliminá-la. A
televisão nos mostra a realidade de países, do nosso entre eles, em
que a miséria já esculpiu a sua efígie na fisionomia de seus habitan­
tes. Elogia-se imediatamente a excelência do programa de televi­
são . . . uma grande realização! - como se os operadores do progra­
ma tivessem eliminado com a excelência do trabalho a miséria que
tinham revelado! Encontramos mil meios de diminuir ou mesmo
eliminar o clamor dos fatos que, ouvidos normalmente, iriam cer­
tamente nos escandalizar - fatos que, ouvidos normalmente,
iriam nos perturbar e tornar quase impossível enfrentar os vários
problemas que a vida em sociedade é pródiga em nos apresentar.
É por isso que a psicanálise passou a ser em nossos tempos
um must absoluto, algo como ir ao médico ou ao dentista. É raro
encontrarmos alguém que não foi "analisado" . Mas essa análise é
muito diferente da vida reexaminada de Sócrates. Na visão do fi­
lósofo é o próprio indivíduo que deve se examinar. Hoje, o indi­
víduo se deixa examinar, se entrega a um especialista que deverá
aj udá-lo a descobrir em si próprio algo que por si próprio não sa­
beria descobrir. A diferença que existe é a que há entre a água e o
vinho. O indivíduo socrático tem confiança em si próprio, em
suas próprias forças: é um homem livre. O indivíduo psicanalisa­
do não tem confiança em si próprio, em suas próprias forças: é
um homem que desconhece a liberdade.
Por qualquer lado que se encare o problema, a conclusão a
que chegaremos será sempre a mesma: o aparecimento da tecno-

209
logia provoca a extinção não só da liberdade interior como tam­
bém da liberdade exterior do homem. É uma insensatez pregar o
ideal socrático num mundo tecnológico. Mas é uma insensatez,
também, pregar um ideal liberal democrático nesse mesmo mun­
do. Mais insensatez do que tudo é não denunciar o demonismo
incrustado na argamassa do ideal tecnológico. Como deixar o
mundo abandonado, entregue à estupidez de uma vida escraviza­
da? Enquanto houver alguém que proteste, alguém que diga não
a essa cilada que a ciência nos armou, a esperança de dias melho­
res não será vã. Felizmente há ainda mundos não-tecnológicos.
Precisamos avisá-los, informá-los, preveni-los para que não se
deixem contaminar por essa estranha obsessão. É nesses mundos
que depositamos nossas esperanças. É desses mundos que poderá
vir a salvação.
A tecnologia está estreitamente associada ao poder. Aparen­
temente o mundo não-tecnológico, destituído de poder, nada
poderia contra ela. Mas isso só seria verdadeiro se não houvesse
escondidas no mundo não-tecnológico forças que sobrepujas­
sem as do poder tecnológico. O império romano todo-poderoso,
pagão e senhor absoluto das províncias que conquistara, conver­
teu-se ao cristianismo porque inesperadamente Constantino, um
de seus imperadores, converteu-se a ele. Nada fazia prever essa sú­
bita conversão. O cristianismo era uma religião fraca, perseguida.
O poder dos imperadores era imenso. Entretanto, o que parecia
impossível aconteceu. A França, derrotada e ocupada pelos ale­
mães, foi libertada e transformada numa nação vitoriosa na guer­
ra movida pelas forças aliadas contra os alemães em virtude da
ação de um homem, o general Charles de Gaulle, que soube
manter erguida até o fim a bandeira e a imagem de uma França
livre. O mundo tecnológico vencerá facilmente o mundo não­
tecnológico se neste não existirem forças escondidas, não conta­
minadas, zonas de liberdade que a tecnologia não conseguiu atin­
gir. A cultura russa do século XIX, por exemplo, poderá vir a ser

210
um jorro de liberdade que, lançado sobre o Ocidente, envolverá
engenheiros, técnicos, planejadores, toda a infernal máquina de
escravização, afundando-os, afogando-os e reduzindo-os aos ves­
tígios lamentáveis de um furacão passado. O mundo não-tecno­
lógico teria também sua "maquis" , como a França teve sua "resis­
tência", teve de Gaulle, como Constantino teve os cristãos que
o converteram. As "maquis" do mundo não-tecnológico seriam
Kierkegaard, Nietzsche, os seus numerosos admiradores, todos os
admiradores no Ocidente da cultura russa do século XIX, todos
os estudiosos que atualmente recompõem e tornam mais nítida e
incisiva a imagem desfeita, apagada de Sócrates. Seriam também
os ecologistas, os pacifistas, os homens que têm razões sérias para
detestar o poder e a violência. São focos de influência separados
uns dos outros, às vezes por grandes distâncias, mas que se reuni­
rão talvez, em algum momento do futuro, exibindo uma soma de
forças e de poder considerável.
Devo desculpar-me perante o leitor por estar misturando nes­
sas páginas tantas esperanças e desesperanças. O pensamento hu­
mano vive entre esses dois pólos, o da imaginação e o da realidade.
É fácil dizer o que é a imaginação, mas dizer o que é realidade é
coisa bem mais complicada. A realidade pode ser o que se vê, mas
também o que não se vê. Um homem que não vê a realidade pode
também ser desprovido de imaginação. Não que seja pouco inteli­
gente, apenas não vê a realidade. Se procurarmos especular um
pouco sobre esse fenômeno, veremos que não ver a realidade nem
sempre é uma qualidade negativa. Um homem bom é um homem
que muitas vezes não vê a realidade. Não a vê em situações em que
é discriminado. Não percebe que lhe está sendo feita uma injusti­
ça. Acha natural que não ocupe o lugar a que tem direito.
A realidade, portanto, não se contrapõe à imaginação como
o positivo se contrapõe ao negativo. Poderíamos mesmo dizer que,
em alguns casos, há mesmo necessidade de um pouco de imagi­
nação para poder ver bem a realidade.

21 1
Essas serão então as considerações de ordem geral que julga­
mos oportuno fazer antes de entrar na questão mais particular:
como seria o caso quando considerássemos o problema da tecno­
logia? Sem imaginação veríamos o quê? A tecnologia como ini­
miga da liberdade e da plenitude humana ou como benefício
caído dos céus sobre a humanidade para poupar-lhe esforços, au­
mentar sua eficiência no trabalho e multiplicar de modo inusita­
do suas possibilidades em todos os empreendimentos que tiver
em vista? Ou o contrário: com alguma imaginação, veríamos a
tecnologia como inimigo da liberdade, da plenitude humana ou
como um benefício caído dos céus etc.
O que torna difícil essas questões é o fato de que não esta­
mos seguros de como avaliar o preço da realidade ou da imagina­
ção. Chegamos à conclusão de que é preciso de alguma imagina­
ção para poder ver bem a realidade. Isso significaria que, sem
imaginação, não se veria a tecnologia como inimiga da liberdade,
o que por sua vez significaria que se veria a tecnologia como um
benefício caído dos céus etc. - o que nos deixa como única al­
ternativa o fato de que, para vermos a tecnologia como inimiga
da liberdade, precisaríamos estar munidos daquela porção de ima­
ginação que é necessária para que se possa bem ver a realidade.
Acreditamos então que a tecnologia é inimiga da liberda­
de e da plenitude humana. Acreditamos também que não só a
total carência de imaginação como também a sua presença exces­
siva podem levar à crença de que se trata de um benefício dos
céus etc. É possível que os defensores do mundo tecnológico
bradem enfurecidos: isto é uma inversão! Um absurdo! Está
diante do nariz de todo mundo que a tecnologia é um benefício
etc. Não é preciso um polegar de imaginação para enxergar isso!
Eu, prudentemente, mantenho a retaguarda. Acredito modesta­
mente na solidez da minha argumentação. O que falta a esses
senhores enfurecidos não é imaginação - eles a possuem em ex­
cesso. Não falo da imaginação de quem inventa inimigos formi-

212
dáveis como pretexto para construir as máquinas que deverão
destruí-los.
O que enfurece esses senhores é o fato de que somos nós,
justamente nós, poetas conhecidos de longa data, que estejamos
criticando excessos de imaginação e que estejamos pretendendo
estar mais perto da realidade das coisas do que eles que manipu­
lam o mundo. Fiquem tranqüilos! Não queremos entrar em ne­
nhum tipo de competição. Entre a imaginação e a realidade não
temos preferência. Julgamos as duas coisas excelentes e ficaríamos
envaidecidos se fôssemos caracterizados por uma parcialidade,
tanto por uma como pela outra. A dosagem de realidade e de
imaginação que entra no make-up de um homem perspicaz é
muito discutível; pode-se supor que há nele um agudo senso rea­
lista ou uma sutil capacidade criadora - mas, para julgar um fe­
nômeno como a tecnologia, a perspicácia me parece ser algo de
excessivo, uma faculdade que deveria ser reservada para proble­
mas mais delicados ou complexos. A tecnologia é uma realidade
pesada, talvez mesmo um pouco brutal, que exige, para ser bem
examinada, uma faculdade que lhe corresponda. Não seria j usto
chamá-la de brutal mas seria qualquer coisa que se aproximasse
do termo, uma faculdade robusta, digamos assim, que afasta os
pormenores da vida, a sutileza, o humor, a cordialidade, a suavi­
dade, a elegância, o estilo. Só se essas coisas não fizessem parte da
realidade da vida é que poderíamos considerá-la uma faculdade
realista. Infelizmente não é esse o caso.
A propósito do que estamos dizendo seria talvez oportuno
registrar que o homem contemporâneo da sociedade ocidental
tem o costume de pôr no mesmo saco não apenas as coisas mais
diferentes mas também aquelas que são mais adversas, as que cul­
tivam entre si a inimizade mais obstinada. O homem tecnológi­
co evidentemente não é um dândi, não cogita de poesia e é pri­
vado de qualquer sense of humour. Entretanto, esses são aspectos
da vida que, tomados isoladamente, despertam em muita gente

213
interesse ou mesmo entusiasmo. O que é interessante é ver o
"nosso homem", num consultório de médico, por exemplo, fo­
lhear com a mesma curiosidade excitada uma revista humorísti­
ca, uma outra dedicada à moda e uma terceira ocupada com
questões tecnológicas. O que haverá no espírito de um tal
homem que o torna tão insensível às diferenças que separam esses
mundos? Dir-se-ia que as incompatibilidades não o incomodam,
que se acomoda bem nessa convivência - talvez porque seja uma
convivência de possibilidades situadas em horizontes longe de
qualquer atualidade. Para ele, a mão pesada da tecnologia não se
fez sentir ainda. Não perdeu o emprego por causa dela, pode
viver ainda num mundo em que ela não está presente, com toda
a aspereza de suas exigências. Este homem - sua próxima vítima
- continuará lendo com entusiasmo revistas sobre o progresso
da tecnologia sem suspeitar de que está lendo justamente a histó­
ria do processo em virtude do qual será futuramente condenado
a uma vida miserável.
Há de ser necessário que todos nós pessoalmente nos sinta­
mos atingidos pelos malefícios da tecnologia para que levantemos
um clamor único de protesto contra ela? O seu triunfo, a carta
preciosa que guarda contra nós é o fato de que haverá sempre al­
guém que se disponha a fazer sua defesa - alguém que não sofre
ainda o impacto de seus malefícios, alguém que, pelo contrário,
esteja se sentindo beneficiado pela sua presença no mundo. Esses,
que ainda não sofreram o impacto, tenderão a diminuir - mas
os outros, os que sofreram, se encontram obviamente numa rota
de crescimento progressivo.
A natureza evidentemente já sofreu malefícios da tecnologia
de toda espécie. A natureza não tem voz mas tem seus meios de
significar o seu protesto. O homem finge não entender sua lin­
guagem. Mas haverá um dia em que essa linguagem se tornará
tão clara que o homem não terá mais como pretender não com­
preendê-la. Alguma coisa terá de ser feita então, porque se o

214
homem continuar agredindo à natureza, acabará despertando a
ira dos céus e provocando assim desastres irreparáveis na consti­
tuição do universo.
Há uma outra maneira de mostrar os aspectos negativos da
tecnologia que julgamos oportuno registrar para quem deseja se
aprofundar no estudo desse problema. Um dos grandes méritos
do filósofo francês algo esquecido, Henri Bergson, foi ter visto
que o mundo é constituído por uma multiplicidade de "nature­
zas simples" que se opõem de forma direta e intrínseca e cuja
oposição é absolutamente essencial para o equilíbrio do mundo
biológico e psicológico. São algumas delas: matéria e memória;
intuição e inteligência; evolução e criação; instinto e razão; lo­
quacidade e pensamento; emoção infra-intelectual e emoção
supra-intelectual; moralidade aberta e moralidade fechada; reli­
gião aberta e religião fechada; mobilidade e imobilidade; Homo
faber e Homo sapiens.
É da essência dessa filosofia isolar essa "naturezas simples",
analisar-lhes a estrutura para depois uni-las aos seus opostos,
também previamente isolados, também previamente analisados
na sua estrutura íntima, para ver como funcionam j untos na sín­
tese biológica ou psicológica assim formada. Bergson valeu-se dos
estudos de biologia mais recentes na sua época, das observações
feitas sobre as vítimas das atrocidades cometidas durante a Pri­
meira Guerra Mundial; foi um filósofo que partiu da experiência
mas que apoiou-se também numa intuição do movimento que o
fazia ver no processo psicológico um dinamismo em que se fun­
diam todos os elementos da alma sem que se pudesse distinguir
estados psicológicos separados uns dos outros.
Em Matéria e memória, um de seus primeiros livros, Berg­
son tenta chegar aos limites últimos que separam o corpo do es­
pírito humano. Em Evolução criadora, tenta mostrar como as
duas teorias, a evolucionista e a creacionista são deficientes e
como podem completar-se. Não há apenas evolução - há tam-

215
bém criação. A natureza não nos oferece um só indício de que
haja uma criação ex nihilo. A intuição capta a realidade na sua in­
teireza, a inteligência tem a necessidade de dividi-la, de fragmen­
tá-la, para apreendê-la. Loquaz é o homem que para pensar tem
a necessidade de, antes, passar pelas palavras. O pensador autên­
tico pensa, depois escolhe as palavras para o seu discurso. Emo­
ção infra-intelectual é aquela que nos domina sem que a inteli­
gência intervenha - é a emoção que pode sentir qualquer ser
humano, seja qual for seu estágio de desenvolvimento intelectual
ou moral. Emoção supra-intelectual é aquela que nos domina
mesmo depois de termos chegado aos níveis mais elevados da
cultura intelectual ou moral. Moralidade aberta é aquela que re­
sulta do nosso crescimento interno, da nossa capacidade de res­
ponder ao apelo do herói, do homem que nos acena com o ideal
da areté. Moral fechada é a que resulta da nossa submissão às exi­
gências do clã. Religião aberta ou fechada são as que seguem os
modelos, respectivamente, da moralidade aberta e da moralida­
de fechada.
Resta, entre os exemplos que citamos, a oposição entre o
Homo faber e o Homo sapiens. Deixei-a para o fim porque é ela
que mais diretamente diz respeito ao nosso problema da tecnolo­
gia. O Homo faber é o homem da tecnologia. Tudo o que sabe,
tudo o que aprendeu, foi unicamente para fazer, para fabricar. De
um certo modo depende de Homo sapiens. No dia em que o
Homo sapiens desaparecer, ele tenderá também a desaparecer.
Todos os pares de opostos de Bergson obedecem a essa lei. Cada
um deles está ligado ao seu oposto de um modo necessário, im­
prescindível. Um depende do outro: não exerceria bem suas fun­
ções sem o amparo do outro. Os pares de opostos de Bergson
estão interessados no próprio equilíbrio. A matéria não quer des­
truir a memória; a intuição não quer destruir a inteligência; a
evolução não quer destruir a criação, e assim por diante. Hoje,
entretanto, o que vemos é a tecnologia, representante contempo-

216
rânea do Homo faber de Bergson, querendo destruir o espírito, a
cultura, a liberdade do homem.
O que pensaria Bergson dessas intenções agressivas? Bergson
viveu numa época em que não havia ainda sido fabricada a bomba
atômica. Não sei o que ele teria pensado ao ter notícia da fabrica­
ção infernal, mas não creio que teria incluído o seu par Homo
faber - Homo sapiens no rol das forças que se mantêm em equi­
líbrio no mundo. O Homo faber seria então para ele o homem que
fabrica, portanto, a bomba infernal e o Homo sapiens continuaria
a ser o homem que pensa, que tem intuição, inteligência, que é
matéria e memória, que pensa antes e depois das palavras, não
apenas o homem que adquire conhecimentos unicamente com o
objetivo de fabricar máquinas infernais.
Deveríamos então dizer que Bergson está ultrapassado? Que
o mundo de hoje já não é mais o mundo que era o dele? Não seria
mal, creio eu, fazermos um pequeno exercício de imaginação e
indagar o que diria Bergson da bomba atômica se tivesse vivido
mais cinco anos. Bergson morreu em 1 94 1 e o hc :ror de Hiros­
hima aconteceu em 1 94 5 . Não creic que tivesse renegado sua fi­
losofia. Não creio que mudasse suas idéias sob a impressão de que
estava desatualizado. Diria apenas que a humanidade havia atin­
gido o limite máximo no processo em que estava envolvida no
sentido de um "frenesi" de materialismo que havia sido precedi­
do por um "frenesi" de espiritualismo em épocas anteriores. Diria
talvez que dum futuro longínquo se poderia, quem sabe, esperar
um novo frenesi de espiritualismo.
Tal seria, creio eu, a posição de Bergson se mais anos tives­
se vivido. Não se trata de uma suposição gratuita - está baseada
em pensamentos que exprimiu quando se permitiu aventurar
sobre o que seria o futuro da humanidade. Mas Bergson natural­
mente acreditava que esse "frenesi" de materialismo ainda estives­
se longe. E que o poder de fabricação do homem, longe ainda
desse "frenesi", respeitaria o equilíbrio necessário para que o po-

217
der do Homo sapiens retivesse as condições necessárias para se
afirmar plenamente.
Sobre esse ponto Bergson certamente se enganou - "o fre­
nesi" materialista já estava chegando. A tecnologia já começava a
destruir coisas e pessoas. Bergson pensara talvez num materialis­
mo feito de sensualismo e de paixões humanas. Isso também exis­
te. O materialismo apresenta-se sob diferentes formas, mas as
mais perversas são sua sede insaciável de poder e suas explosões
de crueldade. De qualquer maneira, Bergson o havia previsto.
Nós, que esquecemos Bergson, ainda não o reconhecemos.
O sortilégio das palavras é uma coisa desconcertante. Com a
maior leveza d' alma falamos habitualmente da nossa "era tecnoló­
gica" como de algo que tivesse plenos direitos à cidadania. Se dis­
séssemos "era materialistà', criaríamos um certo desconforto - sen­
tiríamos uma certa preocupação a pesar na nossa consciência. A
palavra "materialistà' tem uma conotação que nos desagrada. Ou
quem sabe, talvez nos aborreça porque é considerada uma expres­
são fora de moda. A palavra tecnologia é interessante, é moderna,
é atual. Uma época materialista é uma coisa ridícula, atrasada. Não
sei se é a má consciência que nos infunde o termo materialista,
criando até uma sensação de pecado, ou se é a conotação de poder,
de progresso, que para nós torna atraente a palavra tecnologia -
o fato é que preferimos claramente esta palavra à outra. Dizemos
tecnologia e não materialismo. Não nos perguntem por quê.
Não há dúvida de que uma época de "frenesi" espiritualista
seria uma época tão desequilibrada quanto uma época de "frene­
si" materialista. Mas isso não faz da época tecnológica uma época
equilibrada. O equilíbrio de que falo não é uma coisa de some­
nos, é o equilíbrio da vida, o equilíbrio sem o qual a vida no
nosso planeta seria impossível. Não há moda, não há progresso,
não há modernidade no que quer que se apresente, que esteja
mais de acordo com a moda, com o progresso ou com a moder­
nidade do que aquele equilíbrio que a tecnologia menospreza.

218
Bergson, por conseguinte, longe de ser um filósofo ultrapas­
sado, é um pensador que se antecipou ao que estava por vir e teve
a previsão certeira do que está acontecendo agora. Mas não ape­
nas isso. Ele nos revelou o segredo das "naturezas simples" , o jogo
delicado das variações em virtude do qual elas se mantêm em
equilíbrio. A intuição e a inteligência na Evolução criadora, por
exemplo, têm modos de agir ligeiramente diferentes do que têm
nas Duasfontes da moral e da religião, tendo em vista naturalmen­
te a preservação do mesmo equilíbrio que era necessário também
na outra. Quanto ao elemento escatológico do pensamento de
Bergson, os "frenesis" das Duas fontes . . . , trata-se de um fim de
mundo numa filosofia que cuidou sempre desse mundo, tal
como era na sua realidade presente, no jogo de suas combinações
sutis, no equilíbrio e na prudência das forças manifestadas.

219
CAPÍTULO VI

Quando se fala de liberdade se está falando de muitas coi­


sas: de humor, de ironia, de alegria, de aspiração, de entusiasmo.
É difícil, por exemplo, decidir se Bergson era ou não era um
homem livre. Bergson tinha muita consciência da presença da
ciência no mundo em que vivia. Seus estudos de física, de mate­
mática, de biologia e de psicologia experimental punham-no em
íntimo contato com os fatos da ciência. Sua análise da teoria da
relatividade de Einstein nos mostra quão atentamente acompa­
nhava a evolução da ciência. Não é impunemente que nos deixa­
mos levar a uma intimidade excessiva com a ciência.
O que se pode dizer, entretanto, é que Bergson fez muito
para diminuir a pressão que a ciência exercia contra a liberdade
humana. A sua noção de que "a missão da vida é inserir liberda­
de na matéria a fim de preparar a revolução do espírito" é lumi­
nosa. O vitalismo de Bergson parecia ser o prelúdio de uma nova
era de liberdade. Bergson pregava o movimento, não o movimen­
to da máquina, mas o movimento do espírito, pregava a criativi­
dade, não a criatividade do inerte mas a criatividade do que j á
está e m movimento. A alma humana, para ele, não s e caracteri­
zava por uma sucessão de estados, mas por um dinamismo em
que se fundiam as tendências mais opostas. Tudo isso contribuía
para uma situação em que era legítimo esperar que o sol da liber-

22 1
dade se anunciasse finalmente no horizonte de uma época por
demais castigada pelas nuvens sombrias da ciência.
Infelizmente o homem contemporâneo deu pouca ou ne­
nhuma atenção às palavras de Bergson. A missão da vida não foi
cumprida. Muito ao contrário, a vida foi seqüestrada, amarrada,
aprisionada, de modo a não poder mais intervir nos desmandos
que praticava a ciência. Hoje comete-se toda espécie de crimes
que se possa imaginar, todos os atentados contra a espécie huma­
na que seja possível conceber. Começa-se mesmo a fazer expe­
riências numa atividade particularmente odiosa: começa-se a
fazer experiências com a "fabricação" da vida. Depois de termos
desrespeitado a natureza com a libertação do átomo, estamos des­
respeitando a vida com a fabricação de "clones". Dentro em pou­
co, estaremos fazendo a mesma experiência com seres humanos.
A ousadia, o atrevimento, o despudoramento da ciência não têm
limites. Por que se está fazendo todas essas coisas, nós, que não
nos vendemos à ciência, não sabemos em absoluto. A população
do mundo inteiro está crescendo, há fome, miséria e ignorância
que já agora não podemos suportar, mas os cientistas não querem
saber disso, não querem saber de nada que se interponha ao pra­
zer de fabricar "clones" .
Seria oportuno comparar aqui Kant e Bergson. Ambos lida­
ram com a ciência e refletiram sobre a questão da liberdade. É cu­
riosa a analogia entre os dois tipos de reflexão: Kant julgou que a
liberdade equivale a mais um determinismo no conjunto de de­
terminismos existentes no mundo (Nicolai Hartman) ; Bergson
concebeu a liberdade como propósito, como missão que tivesse a
vida de inseri-la na matéria. A analogia mostra-nos bem como
nos dois casos a liberdade é vista como algo exterior, como algo
que não tem nada a ver com um sujeito em quem sua manifesta­
ção se produzisse. Um determinismo é uma força, mas uma força
que já se descaracterizou quando se mistura com o conj unto de
determinismos existentes no universo. A inserção da liberdade na

222
matéria é uma operação que depende não de um só indivíduo,
mas de toda a humanidade.
Kant foi um grande filósofo, Bergson foi um grande filóso­
fo. Como eles, outros filósofos, talvez menores, fizeram da liber­
dade um objeto de reflexão. Mas há uma grande diferença entre
fazer da liberdade um objeto de reflexão e encarnar em si mesmo
essa liberdade sobre a qual os outros refletem.
Para um homem se sentir livre, não basta pensar - posso
fazer tudo o que quero! É preciso saber o que se deve querer!
Muita gente considera esse "dever" um constrangimento, um
atentado à liberdade. Acham que a reflexão interior não é um
exame, do qual se sai aprovado ou reprovado, mas uma simples
constatação, um simples registro de que se é deste ou daquele
modo. Lembro-me de que na minha j uventude havia lido os ro­
mances de Charles Morgan com entusiasmo. Amigos ingleses, a
quem manifestava minha admiração, lançaram um jato de água
fria sobre ela, "Charles Morgan?", desdenharam eles num tom
que tornava supérflua qualquer resposta. "Escreve bem, mas des­
creve não os sentimentos que temos mas os sentimentos que de-
vemos ter.,,

Refletindo mais tarde sobre o episódio, procurei tornar mais


claro para mim porque aceitava o "dever" em Charles Morgan e
não o aceitava em Kant. O "dever" kantiano tem contra si a for­
malidade a que está associado. É uma obrigação que não leva em
conta a natureza humana. Kant não procura saber como é a na­
tureza humana para depois, escudado nessa sabedoria, elaborar a
estrutura do dever. Os estudos preparatórios que fez, antes de
lançar-se nessa elaboração, nada têm a ver com a natureza huma­
na. Referem-se antes à natureza física do universo e aos instru­
mentos de que dispõe o homem para conhecê-la.
Com Charles Morgan, o que se dá é algo totalmente dife­
rente. Morgan é um romancista platônico - o que quer dizer
que seus personagens lutam contra suas próprias paixões sem que

223
tenham a intenção de exterminá-las. Não há nenhuma castração,
nenhum ascetismo, nenhuma renúncia desesperada nos seus ro­
mances. Como Platão, Morgan sabe que as paixões humanas são
tão necessárias ao homem quanto à razão que as comanda. E é
por isso que, depois de bem estudar a natureza humana, ele con­
sente em dar um lugar de destaque ao "dever" tão desdenhado
por meus amigos ingleses.
Sócrates não fez da liberdade objeto de reflexão. Sócrates era
um homem livre: mas um homem livre que não falava em liber­
dade. O que Sócrates fazia e r a ensinar a virtude - ou antes -
procurar saber se a virtude podia ser ensinada.
Veja o leitor os caminhos transversos que Sócrates tomava
para chegar à liberdade. Foi por isso que ficou algo obscurecido
o fato de ser Sócrates o grande patrono da idéia de liberdade.
Considerou-se mais o fato de que Sócrates era o grande patrono
da idéia de racionalidade - o outro patronato ficava assim indu­
bitavelmente na sombra. Não esqueçamos então que Sócrates era
infalível quando se tratava de falar da virtude. Não esqueçamos
que ele foi o primeiro homem da História que perguntou se a vir­
tude poderia ser ensinada.
Essas considerações nos levam a mais uma, que para nossa
pesquisa é essencial. Se quisermos tratar do problema da liberda­
de com o respeito que lhe é devido deveremos sempre associá-lo
ao problema da virtude. Não se entende nada, no que diz respei­
to à liberdade, se não se procura ao mesmo tempo entender algo
que diga respeito à virtude.
Se compenetrarmo-nos da idéia de que liberdade e virtude
estão por natureza intimamente ligadas, muitos problemas que
vêm nos assediando de longa data desaparecerão como por encan­
to. A idéia de uma moral hipertrofiada, implícita na noção de mo­
ralismo é, por exemplo, uma delas. ''Amamos a 'liberdade' e detes­
tamos o 'dever' ." Isso é um equívoco, produto da ignorância. Não
conhecemos bem nem a 'liberdade' nem o "dever" . A liberdade

224
não é, como pensamos, uma solteira doidivanas que só cuida de
se divertir. É uma mulher casada. Seu marido é um homem sério
que não pode deixar de ter qualidades, pois de outro modo a li­
berdade não se teria casado com ele. Precisamos conhecer melhor
o casal. Não é razoável que amemos uma e detestemos o outro.
Sócrates era socialmente livre e se considerava interiormente
livre - já falamos disso. Era livre mas não falava de liberdade, fa­
lava de virtude. Foi por isso que Kierkegaard teve sua explosão de
angústia escrevendo que o mundo precisava de Sócrates e não
de novas leis ou de repúblicas. Foi por isso que Nietzsche, no fim de
sua carreira de filósofo, identificou Sócrates, o patrono da razão,
com Dionísio, o deus da liberdade. O que esses dois filósofos sen­
tiram foi que a virtude precisava ser vivificada por um jato abun­
dante de liberdade; e que a liberdade precisava ser dignificada com
sua aliança a uma virtude que não fosse mais desdenhada.
Falamos um pouco antes de moralismo. Esse foi um exem­
plo entre muitos que poderíamos dar dos problemas que a sepa­
ração entre a liberdade e a virtude nos tem criado. Na verdade, a
cultura do homem moderno do Ocidente foi dilacerada por um
conflito causado por essa separação. O conflito entre o princípio
estético e o princípio ético, que se manifestou em grande parte da
Europa Ocidental e mesmo no Brasil, a partir de Lutero, remon­
ta na verdade a essa velha separação que já Sócrates havia detec­
tado. Parece ser no fundo uma obstinada tendência da natureza
humana. Mas se não houver, de tempos em tempos, homens que
se oponham à sua manifestação, não haverá cultura. Sócrates viu­
se envolto num ambiente democrático, favorável à exterioridade
e ao "faz-de-contà' . Os homens não eram livres mas se diziam
como tais. Era fácil nesse ambiente apresentar como autêntico
um simulacro de virtude. Era fácil apresentar como autêntica
uma virtude que estava separada da liberdade. O que era difícil
era fazer o que Sócrates j ulgou ser sua missão: questionar essa vir­
tude que se apresentava como autêntica, examiná-la a fundo e

225
não descansar enquanto não encontrasse o seu vício fundamen­
tal, sua total desarticulação com a questão da liberdade.
A missão da vida não foi cumprida, diríamos nós, em res­
posta a Bergson. Não foi possível inserir a liberdade na matéria.
A revelação do espírito não acontecerá. A tecnologia, o "frenesi"
do materialismo se instalou no mundo. Bergson entretanto pare­
ce ter escolhido mal o termo. Não é um "frenesi". A tecnologia é
uma coisa fria, inexorável, metódica. Vai destruindo o que resta
de vida e de liberdade sem pressa, sem arroubos de cólera ou de
violência. O mundo é vasto, há ainda muito para destruir. Não
há urgência na tarefa de destruição. Não se trata de uma batalha
cujo desfecho não esteja ainda decidido. Trata-se apenas de uma
vitória que tranqüilamente será consolidada.
Será isso mesmo? A tecnologia parece estar segura de si
mesma. O absurdo que seria imaginar um mundo não-tecnoló­
gico! E o progresso, as descobertas, as inovações, as facilidades,
as imensas perspectivas que a tecnologia abre para o homem? E
o túnel submarino, a visita do homem à Lua, as sondagens dos
planetas, as estações espaciais? E as comunicações instantâneas
entre os mais distantes pontos do planeta, a internet, o compu­
tador? E os progressos da cirurgia, a restituição da vida a quem
perdeu os órgãos dos quais ela depende? E a curiosidade infini­
ta do homem que poderá agora ser satisfeita pois tem diante de
si um campo inesgotável?
Os poucos homens livres que ainda existem ouvem em si­
lêncio. Possivelmente não têm respostas para dar. Mas têm per­
guntas a fazer. Eles acham absurdo que o mundo deles, o mundo
livre, esteja sendo destruído. Acham absurdo que o mundo do es­
pírito que a liberdade construiu esteja também sendo demolido.
Eles também teriam mil coisas a citar do mundo que perdiam,
mais numerosas e de melhor qualidade do que as que citou a tec­
nologia, embora fossem menos grandiloqüentes, menos assom­
brosas, menos estupefacientes. Diriam, além disso, que não que-

226
riam convencer seus interlocutores de que o mundo livre era me­
lhor que o mundo tecnológico, mas diriam, sim, que os homens
tecnológicos não eram homens livres, pelo menos segundo os cri­
térios do que para eles, homens livres, era a liberdade. A tecnolo­
gia, diriam ainda, constrói instrumentos de que eles, homens li­
vres, não querem se servir. O que não os impediria naturalmente
de eventualmente se servirem de instrumentos que j ulgassem
úteis ou necessários para o bem-estar da humanidade.
E aqui chegamos ao nó essencial da questão. A liberdade
quer ser livre, a tecnologia quer ser tecnológica. Os otimistas
não vêem razão alguma para que não se possa viver num mundo
ao mesmo tempo livre e tecnológico. Cabe aos que vêem claro,
aos que não se deixam iludir, a pecha de serem tidos como pes­
simistas. O impasse a que chegamos é grave. A liberdade é arro­
gante, dirão os defensores da tecnologia - pretende obstruir
um desenvolvimento que já vem de longe e que tem sido obvia­
mente a origem de muitos benefícios para a humanidade. Mas
os defensores da liberdade dirão o mesmo - a tecnologia é ar­
rogante - pretende desconhecer quanto a razão lhe dá o direi­
to de ter sobre os seres vivos que povoam o universo uma ascen­
dência indiscutível.
Não é intrigante que o "homem curioso", esse ancestral da
tecnologia, tenha tão pouca curiosidade de saber o que se passa
na intimidade do homem livre? O "homem curioso" terá sempre
dificuldade em compreender o que se passa no espírito de um
homem livre quando lhe é acenada a possibilidade de participar
de uma aventura espacial: mostravam desinteresse, interesse rela­
tivo, sentimento de que há coisas mais importantes a fazer? "E se
fosse possível visitar outros planetas?", insistiria ainda, "não seria
diferente?", seu olhar se tornaria mais agudo, j ulgaria ter pro­
duzido um argumento mais forte, capaz de lançar uma certa con­
fusão no campo adversário. Percebe logo, entretanto, que não
houve emoção alguma, surpresa alguma, no homem que recebe

227
aquela promessa. "Não creio que haja no mundo algo melhor do
que o que existe sobre a Terra. " Tal me parece que seria sua res­
posta, que se poderia pretender aristocrática. O homem curioso
talvez sentisse nesse momento - nesse breve momento - que
havia qualquer coisa de medíocre, de mesquinho, de pequeno
burguês, na bisbilhotice a que dava o nome de curiosidade.
Diálogos como este normalmente não acontecem. Faz parte
da fatalidade das coisas que nunca aconteçam. Os momentos de
fraqueza de um ou outro dos interlocutores não chega a aflorar a
consciência dos que dialogam. As possibilidades continuam as
mesmas sem que uma aproximação de pontos de vista possa se
firmar. É só na imaginação que por vezes parece se desenhar o re­
sultado de um diálogo. Na vida real nada disso acontece.
Fica-se então na expectativa de um acontecer, de um fato
real, já que as possibilidades da imaginação têm pouca eficácia.
Ganha nesse caso a tecnologia. Nenhum fato, nenhum indício
positivo desponta no horizonte que nos transmita a esperança de
que o mundo da liberdade vai triunfar. Tenhamos a coragem e a
honestidade de reconhecer que é assim.
Vivemos num momento de "suspense", mas então, por uma
espécie de milagre, o paradoxo da liberdade se revela. Quanto
mais os fatos se acumulam para aniquilar nossa esperança, mais
seguros nos sentimos na afirmação de nossa liberdade - ela con­
siste precisamente nisso: numa recusa à escravidão tecnológica,
num mundo quase completamente tecnológico.
Recusar-se como? Acreditando, como Bergson, que como
seres vivos temos uma missão a cumprir e que essa missão é inse­
rir a liberdade na matéria e realizar assim a revolução do espírito.
Acreditando que não há uma alternativa para essa obrigação.
Acreditando que nenhuma outra forma de vida, que porventura
existe em outro planeta, possa ter uma missão mais gloriosa a
cumprir. Acreditando enfim que a forma humana da existência
no nosso planeta é a mais dotada e por isso a mais capaz de atrair

228
sobre s1 própria a atenção benevolente, interessada, amorosa
mesmo da divindade.
Que curiosidade malsã é essa, querer saber se há vida em
outros planetas, vidas talvez melhores, mais bem dotadas, com
mais recursos, com mais tecnologia? Vidas que se deixam dirigir
por deuses diferentes? Que falta de segurança em nós mesmos!
Que falta de amor pelo que somos! Em nenhuma fase histórica,
a curiosidade humana revelou de maneira tão acintosa sua mes­
quinhez, sua mediocridade, sua mentalidade pequeno-burguesa
quanto nessa época tecnológica. Gostaríamos de comparar o que
somos com o que são os seres extra-terrestres (a idéia de compa­
rar-se com alguém é inadmissível para um aristocrata) . Quere­
mos saber se há água, se há ar, se há uma temperatura suportável
em termos humanos em outros planetas. E se há seres que pres­
cindam desses elementos, sem serem inanimados. Quanta idioti­
ce misturada a cálculos precisos! Um dia, extenuados e desani­
mados, nessa longa caminhada que decidimos empreender em
direção ao infinito, compreenderemos afinal que o que estamos
ganhando não compensa as perdas que já sofremos, deixando o
nosso planeta abandonado e desfigurado. Compreenderemos
que há milhões de planetas de cuja existência não temos o menor
conhecimento e onde talvez poderíamos encontrar uma vida se­
melhante à nossa. Mas e daí? Tais planetas talvez tenham uma
vida mais rica do que a nossa, com palácios magníficos e deuses
mais benevolentes. Tudo isso, entretanto, ficará eternamente fora
do nosso alcance, são coisas que não saberemos nunca se existem
ou não. Grande tristeza para o homem curioso! Para ser comple­
tamente franco, devo confessar que não sinto o mais leve desejo
de consolá-lo.
Com isso fizemos um balanço do que se pode apresentar,
em sã consciência, como realizações da tecnologia no que diz res­
peito à exploração do espaço interplanetário. Em hora tardia se
reconhecerá o erro que se esteve cometendo, a rota equivocada

229
que se tomara, as esperanças infundadas que se alimentara, por
não ter levado em consideração a voz da liberdade.
Estamos ainda sendo otimistas, apesar de todas as reticên­
cias que fizemos. Estamos esquecendo os grandes desgastes eco­
lógicos, os já ocorridos e os que serão possíveis e provavelmente
inevitáveis. Derramamentos do petróleo dos navios em vastas ex­
tensões marítimas. Nesse momento, em que escrevo, a Baía de
Guanabara recebeu nas suas águas já poluídas, 1 ,3 milhões de li­
tros de petróleo, desastre causado por um vazamento nas tubula­
ções de uma refinaria da Petrobras. As bombas atômicas jogadas
contra populações indefesas, sobre Hiroshima com 1 40 mil mor­
tes, sobre Nagasaki com 70 mil vítimas. Os diversos choques cau­
sados na natureza todas as vezes em que é feita a experiência de
um artefato atômico. O direito de igualdade que reivindicam os
países que não possuem ainda armas nucleares. A preparação mi­
litar, febril, insensata dos Estados Unidos, uma potência militar
muitas vezes superior à qualquer outra, na defesa contra um ini­
migo imaginário - tudo isso e muito mais, relacionado a fatos
que nem sempre são expostos ao conhecimento do público, reve­
lam os estragos, o desgaste que a tecnologia, para poder existir,
para poder funcionar, causa no ecossistema do planeta. Esses es­
tragos nem sempre são recuperados. Alguns só o são depois de sé­
culos. Durante o tempo da recuperação, a humanidade não pára
de sofrer. Muitos sobreviventes de Hiroshima e de Nagasaki
foram morrendo aos poucos, vítimas da radioatividade que as ex­
plosões atômicas haviam causado. Onde há uma usina atômica,
há a possibilidade de uma invasão de radioatividade na vida de
quem mora nas suas cercanias. Não há como viver despreocupa­
do em tais áreas.
Dizer que o perigo atômico, a ameaça atômica não desvalo­
riza a vida é jogar palavras fora, como uma criança irresponsável.
Dizer que a natureza hoje nos dá as mesmas alegrias que dava an­
tigamente, só é possível para quem é muito jovem e não pode por

230
conseguinte saber como era a natureza antigamente. Não pode­
mos mais nos deliciar nas praias ou nas margens de um rio com
o calor de um sol inocente, quando o nosso corpo está pedindo
uma temperatura que lhe está negando a estação do ano, ou com
a temperatura baixa de águas límpidas quando o calor do verão
ou os exercícios ao ar livre tornam o nosso corpo mais quente.
Em razão das experiências atômicas, a atmosfera vai perdendo a
camada protetora que a defende das descargas elétricas produzi­
das nos espaços interplanetários. Existem os buracos de ozônio
que causam câncer na pele e talvez outras doenças ainda desco­
nhecidas. Não podemos contar além disso, nessas águas poluídas,
com os mais diversos prazeres como nadar, furar ondas ou con­
versar com amigos por detrás das ondas, enquanto a noite desce
sobre a praia e os nossos corpos perdem o calor acumulado du­
rante o dia de verão. O mar é hoje poluído pelos esgotos mal tra­
tados e pela indústria. Quem não conheceu a situação das praias
de Copacabana ou de Ipanema no Rio de Janeiro, setenta anos
atrás (e são naturalmente muito poucos os que o fizeram) conti­
nua a usá-las, desafiando os riscos que correm. Não temos esta­
tísticas para avaliar as conseqüências de uma tal imprudência. Há
também os que se expõem ao sol de hoje, nada inocente. Usam
pomadas, cremes protetores e não sei o que mais. É fácil imagi­
nar a situação pouco invejável a que ficam reduzidos esses corpos:
lambuzados, com areia poluída grudada na pele, castigada por
um sol impiedoso.
A história das relações entre a natureza e a tecnologia de­
veria começar com a história das relações entre a ciência e a natu­
reza. Quando os filósofos gregos pré-socráticos começaram a es­
pecular sobre a origem do universo estavam ainda como que em­
butidos num estilo cosmológico de cultura, o estilo que na Grécia
só desapareceria com o advento de Sócrates. Especulavam sobre
o princípio único donde se originariam todas as outras coisas.
Havia nessa especulação curiosidade, mas não somente ela. Havia

23 1
também reverência. Os precursores da ciência eram ao mesmo
tempo teólogos. Sócrates e Platão, também, embora não se inte­
ressassem pelos princípios únicos, geradores da diversidade das
coisas do universo, retiveram de seus antecessores a atitude mis­
ta de curiosidade e reverência. Foi somente com Aristóteles que
curiosidade e reverência se divorciaram e que a filosofia, embora
pretendesse ser distinta da ciência, assumisse uma atitude que não
se distinguia da atitude do cientista. Mas a curiosidade de Aristó­
teles era gratuita. Visava unicamente conhecer, estancar uma sede
que não tinha contornos definidos. A curiosidade da ciência é
mais definida, tem interesses mais precisos. Visa a outros obje­
tivos diferentes que o simples conhecer. Visa conhecer para que
possa, com os conhecimentos obtidos, conquistar, dominar a na­
tureza. Foi seguindo essa trajetória, que a ciência finalmente che­
gou à tecnologia. Na ciência, a intenção de conquistar a natureza
é claramente posta perante a consciência humana. Na tecnologia,
essa intenção não existe mais. É como se a natureza conquistada
fosse logo depois eliminada. A tecnologia não precisa mais da na­
tureza, nem mesmo como escrava. A tecnologia lida agora com os
átomos que não são mais a natureza organizada, formosamente
organizada, mas o caos que existia antes dela, o caos que pode ser
manipulado, mas não organizado, porque a organização pressu­
põe um sopro de vida. O sopro de vida diante do qual os átomos
se comportarão sempre como uma máquina cega de destruição.
Tais são, então, as relações entre a natureza e a tecnologia.
Não só o homem tecnológico não ama a natureza, como já a des­
truiu em parte ou já a está destruindo, depois de escravizá-la.
Quem não está vendo isso pode preparar-se para uma cruel sur­
presa: ao invés do paraíso tecnológico que pensa estar à sua espe­
ra, verá a boca medonha do inferno na iminência de tragá-lo. É
difícil não ter visões apocalípticas quando se fala de tecnologia.
Talvez o mundo já esteja se encaminhando para esses desfechos
assombrosos de que falavam os profetas.

232
Escrever num ano como o nosso, 200 l , nos incita a grandes
pensamentos. É como se o ano fosse uma grande porta aberta
para um mundo escolhido como palco para o desfilar de ações ex­
traordinárias. Fica parecendo que nele tudo pode acontecer: as
mais belas decisões, o acolhimento das mais corajosas propostas,
um firme propósito de rever todas as posições tomadas desde os
tempos mais recuados até os nossos dias, opções que dizem res­
peito ao que há de mais essencial na nossa vida; um exame frio,
minucioso, de tudo quanto temos pensado até hoje; uma proje­
ção mais interessada, mais calorosa do que poderíamos pensar
daqui para a frente.
Em primeiro lugar, poderíamos pensar que havia sido erra­
da a opção de Aristóteles de separar curiosidade e reverência. Esse
divórcio nunca deveria ter sido efetuado. O homem que é só
curioso é um bisbilhoteiro. O homem que é só reverente é um
homem cuja credulidade não está longe da crendice. Homens no­
táveis, que experimentaram em si mesmos o conflito entre a cu­
riosidade e a reverência, conheceram bem a tragédia em que con­
siste tal conflito. Pascal foi um deles, que nos falou da miséria e
da grandeza do homem. Kierkegaard foi outro, e Nietzsche um
terceiro. Mas foi em Sócrates - o Mestre da Humanidade, que
essas duas manifestações da natureza espiritual do homem, assu­
miram o seu aspecto mais solene, o seu aspecto, por assim dizer,
clássico. Pascal, Kierkegaard e Nietzsche nos deixaram ver o quan­
to sofreram com o conflito. Sócrates não nos concedeu esse privi­
légio. Do fato de sua morte constituir uma tragédia não nos resta
a menor dúvida. Mas Sócrates não nos deixa ver nem o sofrimen­
to que dela decorria, nem a intensidade com que era sentido.
Levado pela curiosidade, Sócrates pôs-se a questionar as
idéias sobre as quais se baseava a democracia ateniense. Acusado
pelo tribunal de Atenas de corromper a juventude, declarou que
se julgava inocente, e que não acreditava que devesse sofrer algu­
ma punição; entretanto, como era pobre, sugeria que lhe fosse

233
aplicada a multa de uma "mina" depois de ouvir as advertências
dos amigos. Ofendido, o tribunal condenou-o à morte. Sócrates
deveria beber a cicuta.
Alguns comentadores vêem nas sugestões de Sócrates um
gesto de ironia. E há realmente nesse gesto algo que se parece com
isso. Mas há também algo diferente por parte do filósofo, algo que
perpassa por toda a sua defesa durante o julgamento: reverência
pelas leis de Atenas, que ele com sua curiosidade havia molestado.
Pagaria de bom grado uma multa pela ofensa cometida, embora
não a julgasse tão grave quanto o faziam seus acusadores.
Mais tarde, já na prisão, à espera do momento em que de­
veria beber o veneno, recusa a oferta do amigo Critias, de escapar
da prisão. Tudo já estava combinado, o carcereiro havia sido com­
prado, a fuga dependia exclusivamente da vontade do prisionei­
ro. Mas Sócrates novamente mostra sua reverência pelas leis de
Atenas. A elas devia tudo, elas o haviam acolhido, protegido,
feito dele o homem que era. Não podia traí-las. Aqui não havia
ironia, era pura reverência às leis que ele mesmo tinha criticado.
E não se pense que a reverência de Sócrates se dirigia apenas
às leis de Atenas. Depois de condenado, Sócrates tinha ainda algo
a dizer a seus amigos.

Gostaria de contar a vocês a maravilha que me aconteceu; até


agora a faculdade divina que se manifesta no meu oráculo inte­
rior tem tido o hábito de se opor a mim, mesmo no que diz res­
peito a insignificâncias, como se eu fosse escorregar de alguma
forma, ou cometer um erro ; agora j á me aconteceu, como estão
bem vendo, algo que é considerado e geralmente tido como o úl­
timo , o pior dos males - mas o oráculo não fez nenhum sinal de
oposição, nem quando saí de casa de manhã, nem quando vim
para o tribunal, nem enquanto eu falava, nenhum sinal de oposi­
ção a alguma coisa que eu fosse dizer. Embora em outras ocasiões
ele me fizesse parar no meio de um discurso, desta vez a nada que

234
eu dissesse o oráculo fez oposição. O que penso desse seu silên­
cio? Vou dizer-lhes : foi um modo indireto de dizer-me que o que
está me acontecendo é um bem, e que os que pensam que a morte
é um mal estão errados; pois o sinal de oposição teria certamente
vindo se ele j ulgasse que o que está me acontecendo era um mal
e não um bem.

Sócrates, como se vê, tinha um oráculo interior ao qual obe­


decia, uma faculdade divina a que prestava reverência. Era essa
reverência que o fazia caminhar destemidamente para a morte. As
últimas palavras que dirigiu aos que o condenaram foram: ''A
hora da separação chegou, cada um de nós deverá seguir o seu ca­
minho - vocês para a vida, eu para a morte. O que será melhor
só Deus sabe" .
Pode haver mais extraordinário exemplo de grandeza do
que essa mistura de curiosidade e de reverência, assim mostrada?
É a qualidade absolutamente única dessa mistura que dá à situa­
ção de Sócrates, no mundo da cultura, um fulgor incomparável.
Que um homem como Sócrates tenha existido é um fato que jus­
tifica por si mesmo a existência do restante da humanidade. Que
um homem como Sócrates tenha existido, representa para a hu­
manidade um benefício incalculável. Mas isso só será verdadeiro
se Sócrates tiver herdeiros que saibam manter acesa a chama que
ele acendeu.
Aristóteles certamente não foi um desses herdeiros. Por um
desses caprichos do destino, ele exerceu sobre a humanidade uma
influência quantitativa que prejudicou a visão da influência qua­
litativa do pensamento de Sócrates. Fala-se muito no ateniense,
mas não há, como deveria haver, uma reflexão profunda sobre sua
vida e obra. Aristóteles, pelo contrário, esquadrinhado nos seus
mais ínfimos detalhes e ajudado pela sua aliança com a Igreja Ca­
tólica, transformou-se pouco a pouco na grande força filosófica
que liderou o pensamento na Idade Média. Além disso, o divór-

235
cio que se operara entre curiosidade e reverência fizera de Aristó­
teles um "inimigo não declarado" de Sócrates. A melhor maneira
de Aristóteles combater aquele que havia sido mestre de seu mes­
tre era não mencionar o seu nome. E é certamente supreendente
observar como, na sua obra volumosa, o nome daquele que foi,
por assim dizer, o seu avô espiritual, tenha sido tão raramente ci­
tado. Compare-se, por exemplo, o número de vezes que o nome
de Sócrates é citado em Kierkegaard e em Nietzsche - dois filó­
sofos que viveram mais de dois milênios depois dele - com as ci­
tações de Sócrates em Aristóteles e se verá que não é o tempo que
cria entre dois seres humanos abismos intransponíveis. Aristóteles
nasceu dezessete anos depois da morte de Sócrates.
O divórcio da curiosidade e da reverência em Aristóteles
não representou apenas um divórcio, mas também a supressão da
reverência. O Deus de Aristóteles era, não objeto de reverência,
mas de curiosidade. Era o primeiro motor que dava movimento
à vida e ao planeta, a causa primeira de todo movimento. Mas
essa curiosidade era gratuita como já dissemos. Todo homem de­
seja conhecer, dizia Aristóteles. Para que, por quê? O filósofo não
indagava. Mas, quando o vírus da curiosidade foi injetado em
Descartes, ele logo assume uma nova feição: passou a ser uma cu­
riosidade interessada. Interessada em quê? Descartes queria ter
certezas, tinha necessidade de saber se o que sabia era absoluta­
mente certo. E tinha essa necessidade porque só desse modo po­
deria conquistar a natureza.
Seu objetivo então era realizar essa conquista. Esse era o in­
teresse de sua curiosidade. Mas com isso a reverência de Sócrates
ficava ainda mais esquecida. O deus de Descartes é o Deus que
não permite que o diabo nos engane, insuflando em nós idéias
mentirosas - isto é, um Deus que está a serviço de seus propó­
sitos de conquistar a Natureza.
O que foi a carreira da filosofia e da ciência nos séculos que
vieram depois dos tempos de Descartes, talvez, nem todo mundo

236
saiba. Mas todo mundo sente, na própria carne, uma frenética
agitação em torno de uma curiosidade insaciável. Kant quer co­
nhecer do modo mais exaustivo a natureza do instrumento que
usa essa curiosidade - a razão. Ao ler sua Crítica da razão pura,
temos a impressão de estar visitando uma usina onde nos são
mostrados não somente os diversos processos em virtude dos
quais nossa curiosidade é satisfeita, isto é, a curiosidade em ação,
como também a estrutura da curiosidade, o seu formato, o seu
modo de relacionar-se, de apreender a realidade. No fim da Crí­
tica da razão prdtica, Kant nos fala das experiências mais sublimes
que são dadas ao homem conhecer: a visão do firmamento estre­
lado fora de nós mesmos e a lei moral dentro de nós. Mas o es­
forço que faz nessa ocasião, para tornar a curiosidade reverente e
a reverência curiosa, não me parece convincente. O firmamento
estrelado continua a ser para ele um objeto de curiosidade, pois
nunca foi dada à reverência a menor oportunidade para se mani­
festar, e a lei moral continua a ser igualmente um objeto de cu­
riosidade porque nunca foi feito o menor esforço para reverenciá­
la como ela poderia ser reverenciada.
A ciência e a religião continuam, em nossos dias, a trilhar os
seus caminhos separados, a ciência curiosa, a religião reverente.
Mas a filosofia perdeu-se completamente. Não vejo no século pas­
sado, entre os grandes filósofos, senão dois que conseguiram pre­
servar a curiosidade e reverência: Bergson e Voegelin. Mas mesmo
eles foram mais curiosos que reverentes. A biologia e a psicologia
num, a ciência política e histórica no outro, impediram que a re­
verência se tornasse um elemento mais essencial em suas persona­
lidades. Albert Schweitzer, que foi um homem livre e de uma
grandeza incontestável, professava uma "reverência pela vidà', que
era sem dúvida respeitável, mas que não foi a alicerçada em ele­
mentos que pudessem transformá-la numa doutrina filosófica.
A curiosidade divorciada da reverência se estiola, torna-se
uma faculdade pobre e mesquinha. Que o homem curioso tenha

237
se divorciado da reverência, para se unir em matrimônio à tecno­
logia, é a grande ameaça suspensa sobre as nossas cabeças, como
uma grande onda capaz de submergir nossas esperanças. Façamos
votos para que a ameaça não se concretize. Seria triste, muito tris­
te mesmo, que o mundo tecnológico se afirmasse plenamente,
sem que houvesse uma só voz capaz de perturbá-lo na euforia
dessa sua afirmação.

238
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Agostinho, Santo, pp. 4 1 , 5 1 , 5 5 , 5 6 , 5 8 , 5 9 , 60, 63, 1 7 1


Ahasveras, Judeu Errante, p.74
Alberto, O Grande, p . 5 5
Alexandre, O Grande, pp. 47, 1 29 , 1 5 3
Allemann, Badia, p. 1 5 6
Althusser, Louis, p. 1 6 1
Antígona, p. 1 7
Aquino, São Tomás de, pp. 5 0 , 5 1 , 5 5 , 5 6 , 60
Aristóteles, pp. 1 1 , 1 2, 1 3 , 1 8 , 1 9, 20, 28, 40, 4 1 , 50, 5 1 , 52, 5 5 , 56, 57, 5 8 ,
5 9 , 6 0 , 6 2 , 6 3 , 64, 7 1 , 1 20 , 1 26, 1 27, 1 28 , 1 29 , 1 30 , 1 3 1 , 1 32 , 1 33 , 1 3 5 ,
1 36 , 1 37, 1 44 , 1 46, 1 47, 1 5 8 , 1 5 9 , 1 60 , 1 6 5 , 1 66 , 1 68 , 1 69 , 1 74, 1 75 , 1 77,
1 78 , 1 79 , 1 82, 1 84 , 1 86, 1 90 , 232, 233, 23 5 , 236
Armherst, Lord, p. 1 1 5
Assis, São Francisco de, p. 1 70
Assumpção, Roberto, p. 1 8 1

Bach, Johann Sebastian , p. 8 1 , 87


Bacon , Francis, pp. 1 66 , 1 78
Banhes, Roland, p. 1 6 1
Baumlet, Alfred, pp. 1 52, 1 5 3 , 1 54
Becker, Leslie, p. 1 32
Bethoven, Ludwig Van , pp. 8 1 , 1 22 , 1 24
Beitssner, Friedrich, p. 1 5 6

239
Benthan, Jeremy, p. 1 49
Berdiaev, Nikolai, pp. 3 5 , 36, 37, 6 5 , 66, 9 0 , 92, 9 3 , 1 2 1 , 1 70 , 1 74 , 1 75 , 1 77,
1 78 , 1 79
Bernardes, Carlos Alfredo , p. 1 8 1
Bergson, Henri, pp. 1 4 5 , 2 1 5 , 2 1 6, 2 1 7, 2 1 8 , 2 1 9, 22 1 , 222, 223 , 226, 228, 237
Bertram, Ernest, pp. 1 5 1 , 1 5 3 , 1 54
Boehm, Jacob, pp. 6 8 , 1 2 1 , 1 70
Bohlendorff, Ulrich Casimir, pp. 1 5 5 , 1 5 6
Boileau, p. 1 1 O
Bonaparte, Napoleão, pp. 54, 1 1 5 , 1 1 6
Brandes, Georg, p. 1 3 9
Brocher, Walter, p. 1 5 6
Buonarroti, Michelangêlo, p. 1 24
Burckardt, Jacob, p. 1 54
Bush, George Herbert, p. 1 93

Capei, Lee M . , p. 74
Carneiro, Paulo , p. 1 8 1
Cauchon, Pierre Bispo, p . 1 70
Cesar, Julio, pp. 47, 5 4 , 1 24 , 1 5 3
Chaplin, Charles, p. 96
Char, René, p. 1 6 1
Chestov, p.92
Chomsky Noam, p. 1 68
Chopin, Frederic, p. 8 1
Clemente de alexandria, p. 1 7 1
Comte, Auguste, p. 47
Confúcio, p. 202
Constantino, Imperador, p. 2 1 1
Copérnico, p. 5 7
Creon, p. 1 7
Critias, pp. 1 7, 234

Dale, Herman, p. 1 92
Dantas, Francisco Santiago, pp. 1 79 , 1 80 , 1 8 1 , 1 82 , 1 89
De Gaulle, Charles, pp. 1 5 0 , 1 98 , 2 1 0 , 2 1 1

240
Derrida, Jacques, p. 1 6 1
Descartes, René, pp. 1 3 , 2 8 , 2 9 , 3 0 , 34, 44, 67, 6 8 , 70, 7 1 , 72, 73, 74, 79,
8 0 , 8 1 , 92, 93, 1 27, 1 28 , 1 29 , 1 44 , 1 4 5 , 1 66 , 1 69 , 1 78 , 1 90 , 236
Diderot, Denis, p.48
Dionísio, pp. 49, 54, 5 5 , 7 8 , 8 6 , 1 07, 1 40 , 1 43 , 1 5 5 , 1 57, 225
Dom Juan, pp 74,75
Dostoievsky, Fedor, pp. 34, 35, 36, 37, 5 1 , 64, 65, 8 3 , 90, 9 1 , 94, 1 2 1 , 1 22 ,
1 23 , 1 33 , 1 69 , 1 78

Einstein, Albert, p.22 1


Erasmus de Rotterdam, pp. 2 8 , 5 8 , 5 9 , 7 1
Eschylo, pp. 1 6, 22, 1 66
Eurípedes, p . 1 6

Faria, Octavio, pp. 1 82 , 1 83


Fausto, pp. 74, 7 5 , 76
Felipe de Macedônia, p. 1 29
Fink, Eugene, p. 1 54
Fõster-Nietzsche, Elizabeth, pp. 1 48 , 1 5 1
Foucault, Michel, p. 1 6 1
Frederik, Eleitor de Saxônia, p.28
Friedlander, Paul, p. 1 5 8 , 1 5 9

Galileu, pp. 57, 67


Garnet, Tay, p . 9 6
Gerônimo, S ã o , p. 1 7 1
Gifford, Adam, p.49
Goethe, Johan Wolfgang, pp. 47, 5 1 , 7 5 , 8 2 , 1 09 , 1 22 , 1 24
Gogol, Nikolai, pp. 37, 8 1 , 90, 1 04 , 1 24 , 1 2 5 , 1 78
Gorbachev, Mikhail, p. 6 5
Gregório d e Naziangen, São, p. 1 7 1
Gregório d e Nyssa, São, p . 1 7 1
Gore, AI , pp. 1 92, 1 93

24 1
H

Hartman, Nicolai, pp. 3 1 , 70, 7 1 , 72, 73, 74, 222


Haydn, Joseph, p . 8 1
Hegel, Friedrich, pp. 47, 1 40 , 1 4 1 , 1 44 , 1 45
Heidegger, Martin, pp. 1 28 , 1 4 5 , 1 46, 1 47, 1 48 , 1 49 , 1 5 0 , 1 52, 1 5 3 , 1 54, 1 5 5 ,
1 5 6, 1 57, 1 5 8 , 1 5 9 , 1 60 , 1 6 1 , 1 98
Helvetius, Claude, pp.46, 47, 4 8 , 50
Henry, Levy Bernard, pp. 1 60 , 1 6 1
Hitder, Adolf, pp. 24, 3 8 , 1 9 8
Hobbes, Thomas, p. 47
Holderlin, Friedrich, pp. 1 5 5 , 1 5 6 , 1 57
Homero , pp. 1 07, 1 5 5 , 1 5 6
Hume, pp. 1 66 , 1 78
Hus, Jan, p. 62
Husserl, Edmund, pp. 3 1 , 69, 70, 7 1 , 72, 73 , 79, 93, 1 28 , 1 4 5 , 1 66, 1 78 ,
1 85, 1 86

Jaeger, Werner, p. 1 79
Jesus, pp. 42, 5 1 , 63, 87, 8 8 , 8 9 , 90, 1 07, 1 27, 1 5 3 , 1 54
Joana D 'Arc, pp. 62, 1 70
Juan, Don, pp. 74, 7 5
Julio Cesar, pp 1 24

Kant, Immanuel, pp. 1 3 , 30, 3 1 , 34, 43, 47, 57, 6 1 , 7 1 , 72, 73, 74, 79, 8 0 ,
8 1 , 8 6 , 93, 1 20 , 1 2 8 , 1 44 , 1 66, 1 69 , 1 78 , 1 8 5 , 1 86 , 1 97, 2 2 2 , 223, 237
Kierkegaard, Sõren, pp. 1 5 , 34, 4 1 , 54, 66, 74, 75, 76, 78, 79, 8 1 , 82, 8 3 ,
90, 93, 1 09 , 1 1 0 , 1 2 1 , 1 3 1 , 1 33 , 1 3 9 , 1 40 , 1 4 1 , 1 42, 1 44 , 1 4 5 , 1 78 , 1 99 ,
2 1 1 , 2 2 5 , 233 , 236
Klabin, Israel, pp. 1 9 1 , 1 92
Klausner, Joseph, p. 8 9
Krell Farrell, David, p. 1 5 6

Lacan, Jacques, p. 1 6 1
Lang, Fritz, p . 9 6
Leibnitz, Gottfried, pp. 79, 8 1 , 1 78
Lênin, Vladmir Ilitch, p. 1 04
Leontiev, p. 92
Levinas, Emanuel, p. 1 6 1
Lima, Alceu Amoroso, p . 92
Listz, Franz, p. 8 1
Locke, John, p. 47
Lubtish, p. 96
Lutero, Martin, pp.28,29,30, 5 1 , 5 6 , 5 7, 5 9 , 60, 62, 63, 64, 6 8 , 69, 82, 22 5

Macartney, Embaixador, p. 1 1 4
Macintyre, Alasdair, p. 1 8 , 1 9, 4 8 , 4 9 , 5 0 , 5 1 , 5 2 , 5 5 , 5 6, 57, 60
Maritain, Jacques, p. 5 9
Marx, Karl, p. 2 3 , 47
Melanchthon, Philipp, p. 64
Mello Franco, Afonso Arinos, p. 1 8 1
Merezhkovski, Dimitri, p . 92
Mersenne, Marin, pp. 67, 69
Michel, Wilhelm, p. 1 5 6
Montaigne, Michel de, p. 5 1
Moraes, Vinícius de, p. 1 8 3
Moreira, José Arthur da Frota, p. 1 83
Morgan, Charles, pp. 223, 224
Mozart, p. 8 1
Murnau, p. 96
Musil, Robert, p. 1 34
Mussolini, Benito , p. 24,38

Nietzsche, Friedrich, pp. 34, 4 1 , 47, 4 8 , 49, 5 0 , 5 1 , 5 2 , 5 4 , 5 5 , 6 5 , 74, 76 ,


7 7 , 78, 79, 8 2 , 8 3 , 84, 8 5 , 8 6 , 9 1 , 93, 94, 1 06 , 1 09 , 1 1 0 , 1 2 1 , 1 33 , 1 39 ,
1 40 , 1 42 , 1 43 , 1 44 , 1 46, 1 47, 1 48 , 1 49 , 1 5 1 , 1 52 , 1 5 3 , 1 54 , 1 5 5 , 1 5 6,
1 57, 1 69 , 1 78 , 1 9 9 , 2 1 1 , 22 5 , 23 3 , 236
Nixon, Richard, p. 1 93

243
o

Oats, Whirney, p. 1 79
Occam, Guilherme, p. 5 6
Originés, p p . 1 70 , 1 7 1

Pabst, p. 96
Panarim, Alexandre, 1 0 5
Parmenidas, p. 1 60
Pascal, Blaise, pp. 5 1 , 1 68 , 233
Paulo, São, pp. 63, 87, 88, 1 69
Pedro, O Grande, p. 1 04 , 1 0 5
Pelágio, p. 57
Peyrefitte, Alain , pp. 1 1 4 , 1 1 5
Péricles, pp. 20, 22, 2 5 , 89
Pinto, Alvaro Vieira, pp 1 33
Philo de Alexandria, p. 4 1
Philoctetes, p . 1 7
Picherton, James, p. 1 93
Platão , pp. 1 5 , 1 8 , 20, 2 1 , 22, 2 5 , 3 5 , 4 1 , 5 1 , 5 9 , 63, 8 9 , 1 07, 1 32 , 1 33 ,
1 57, 1 5 8 , 1 5 9 , 1 7 5 , 1 78 , 1 86, 1 87, 224, 232
Platino, p. 4 1
Porfírio, p . 4 1
Pushkin, Aleksandr, pp. 90, 1 78

Q
Quianlong, imperador, p. 1 1 4

Rabelais, F � ançois, p. 5 1
Rafael, p. 1 24
Renoir, Jean, p. 96
Richardson, William j., pp. 1 5 8 , 1 5 9
Rilke, Rainer Maria, pp. 94, 1 22
Rimbaud, Arthur, p. 1 82
Rozanov, p. 92
Rousseau, Jean Jacques, pp. 47, 1 09 , 1 22, 1 23

244
s

Salgado, Plínio, p. 1 83
Sartre, Jean Paul, pp. 1 28 , 1 4 5 , 1 49 , 1 50 , 1 60, 1 6 1 , 1 97, 1 98
Scheler, Max, pp. 3 1 , 70, 72,73,74
Schiller, Friedrich, p. 82
Schmidt, Augusto Frederico, p . 1 82
Schopenhauer, Arthur, pp. 84, 86, 1 43
Schweitzer, Albert, pp. 87, 8 8 , 8 9 , 90, 93, 237
Shakespeare, William, pp. 5 1 , 1 22 , 1 24
Sócrates, pp. 1 1 , 1 3 , 1 4, 1 5 , 1 6, 1 7, 1 8 , 1 9 , 20, 2 1 , 22, 23, 30, 3 5 , 36, 40,
4 1 , 42, 44, 46, 47, 5 1 , 5 2 , 54, 5 6 , 58, 5 9 , 60, 74, 76, 77, 7 8 , 8 9 , 90, 1 06,
1 20, 1 2 1 , 1 33 , 1 3 5 , 1 39 , 1 40 , 1 4 1 , 1 42 , 1 43 , 1 44 , 148, 1 5 1 , 1 5 3 , 1 57,
1 75 , 1 77, 1 78 , 1 84, 1 86, 1 97, 1 9 8 , 1 99 , 2 1 1 , 224, 2 2 5 , 23 1 , 232, 233,
234, 23 5 , 236
Soloviev, pp. 37, 92, 1 78
Sophocles, pp. 1 8 , 22, 2 5 , 27
Spengler, Oswald, pp. 1 04, 1 62
Spinoza, Baruch, pp. 79, 8 1
Stalin, Joseph, p. 1 98
Stronheim, Von, p . 9 6
Szondi, Peter, p. 1 5 6

Teixeira, Carlos Alberto, pp. 9 8 , 9 9


Tertuliano, p. 1 7 1
Tolstoi, Leon, pp. 37, 8 3 , 9 0 , 94, 1 22, 1 23 , 1 24, 1 2 5 , 1 62

Verlaine, Paul, p. 1 82
Vidor, King, p. 96
Vieira Pinto, Álvaro, p. 1 33
Voegelin, Erich, pp. 4 5 , 46, 47, 237
Voltaire, pp. 46, 8 5 , 8 6 , 1 08 , 1 1 0 , 1 4 1 , 1 43 , 1 44, 1 69

Wagner, Richard, pp. 54, 7 5 , 84, 8 5 , 86, 1 42, 1 43


Weber, Max, pp. 29, 3 0

245
Wilamovitz, p.78
William, Wyler, p . 9 6
Wilson, Edward O . , p. 1 92
Wittgenstein, Ludwig, pp. 3 1 , 9 3 , 94, 1 22 , 1 28 , 1 4 5 , 1 62 , 1 66 , 1 8 5 , 1 86
Wright, Georg Henrick Von, pp. 1 04 , 1 0 5 , 1 99

Zenkovsky, V V , pp. 1 0 5 , 1 79 , 1 84

246
IMPRESSÃO E ACABAMENTO:

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