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INCOMPLETUDE

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COMPANHIA DAS LETRAS
Copyright © 2005 by Rebecca Goldstein
Atlas Books, L.L.C./ W.W. Norton & Company, Inc.
Publicado originalmente nos Estados Unidos.

TÍTULO ORIGINAL
Incompleteness - The proof and paradox of Kurt Gõdel

PROJETO GRÁFICO DA COLEÇÃO


Kiko Farkas/ Máquina Estúdio
Elisa Cardoso/ Máquina Estúdio

FOTO DE CAPA
© Bettmann/ Corbis/ LatinStock

PREPARAÇÃO
Leny Cordeiro

REVISÃO TÉCNICA
Iole de Freitas Druck
(professora do Instituto de Matemática
e Estatística da Universidade de São Paulo)

ÍNDICE REMISSIVO
Luciano Marchiori

REVISÃO
Carmen S. da Costa
Valquíria Della Pozza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (c1P)


(Câmara Brasileira do Livro, SP , Brasil)
Goldstein, Rebecca
Incompletude : a prova e o paradoxo de Kurt Gõdel/ Rebecca Goldstein ;
tradução Ivo Korytowski. - São Paulo : Companhia das Letras, 2008.

Título original: Incompleteness - the Proof and paradox of Kurt Gõdel.


Bibliografia.
ISBN 978 -85-359-1305-7

1.Gõdel, Kurt 2 . Logicistas - Áustria - Bibliografia 3. Logicistas -


Estados Unidos - Bibliografia 4. Teoria da prova r. Título.

08-08147

índice para catálogo sistemático:


1 . Logicistas : Biografia 510.92

[2008]
Todos os direitos desta edição reservados à
EDITORA SCHWARCZ LTDA .
Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32
04532-002 - São Paulo - SP
Telefone: (11) 3707-3500
Fax: (11) 3707-3501
www.companhiadasletras.com.br
Para Yael
a filha é conselheira da mãe
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .... .. .. ... . .. ... . ... ...... .. ... .. .. .. ... 11

CAPÍTULO 1 Um platônico entre positivistas ... .............. ...... ...... ... .. .. ...... ...... 45

CAPÍTULO 2 Hilbert e os formalistas . ..... ... ..... ... .. 102


CAPÍTULO 3 A prova da incompletude ......... ... . . 124
CAPÍTULO 4 A incompletude de Gõdel ... .... ... ... ... ... ... ....... ..... .. ....... .. ... ... ... 174

Notas .. . 221

Sugestões de leitura ... 228

Agradecimentos . . . 231

Índice remissivo ...... .. .. . . .. . 233


Mas todo erro se deve a fatores extrín-
secos (como a emoção e a educação): a
própria razão não erra.
Kurt Gõdel. 29 de novembro de 1972
INTRODUÇÃO
EXILADOS

,
E final de verão nos subúrbios de Nova Jersey. Dois homens cami-
nham por uma rua isolada, mãos entrelaçadas atrás das costas, con-
versando tranqüilamente. Sobre a cabeça deles, a copa espessa das
árvores os protege do céu. Mansões antigas erguem-se bem afastadas
da rua, enquanto do outro lado, logo depois dos olmos, se estende o
tapete verde e luxuriante de um campo de golfe, as vozes enfraquecidas
dos jogadores chegando como que de uma longa distância.
Mas, contrariando as aparências, não se trata de mais um dos encla-
ves suburbanos, povoados estritamente pela elite econômica, homens
deslocando-se diariamente ao centro da cidade para garantir sua
riqueza. Não, esta é Princeton, Nova Jersey, sede de uma das grandes
universidades do mundo, e portanto freqüentada por uma população
bem mais eclética do que se afigura à primeira vista. Neste momento
em que esses dois homens caminham de volta para casa por uma rua
tranqüila, a população de Princeton se tornou ainda mais cosmopolita,
com muitos dos melhores cérebros da Europa fugindo de Hitler. Nas
palavras de um educador americano: "Hitler sacode a árvore, e eu colho

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INCOMPLETUDE

as maçãs':' Algumas das melhores maçãs foram parar nesse pequeno


recanto do mundo.
Portanto, não surpreende que a língua em que os dois caminhan-
tes conversam seja o alemão. Um dos homens, trajando um elegante
paletó de linho branco que combina com seu chapéu de feltro igual-
mente branco, ainda está na casa dos trinta, enquanto o outro, em
calças folgadas seguras por suspensórios no estilo Velho Mundo, está
chegando aos setenta. Apesar da diferença de idade, parecem conver-
sar como colegas, embora às vezes o rosto do homem mais velho se
enrugue num freqüente sinal de espanto e ele acene que não com a
cabeça, como se o outro acabasse de dizer algo wirklich verrükt, real-
mente maluco.
Numa ponta da rua arborizada, na direção contrária à dos dois
caminhantes, o prédio novinho em folha d o Instituto de Estudos
Avançados, de tijolos vermelhos e estilo georgiano, ergue-se numa
vasta área gramada. O instituto funciona há m ais de uma década, alu-
gando um espaço no prédio gótico do Instituto de Matemática da Uni-
versidade de Princeton. Mas o influxo de cérebros europeus aumen-
tou o prestígio do instituto, que se mudou agora para seu próprio
campus espaçoso, a poucos quilômetros da universidade, com um
lago e uma pequena floresta, cruzada por trilhas, onde idéias fugidias
podem ser domesticadas.
O Instituto de Estudos Avançados já é, no início da década de 1940,
uma an omalia norte-americana, povoado por uns poucos pensadores
seletos. Talvez parte da explicação da singularidade do instituto seja o
fato de ter resultado das idéias visionárias de um único homem. Em
1930, o reformador educacional Abraham Flexner havia persuadido
os dois herdeiros de uma loja de departamentos de Nova Jersey, Louis
Bamberger e sua irmã, a sra. Felix Fuld, a criar um tipo novo de acade-
mia, dedicada à "utilidade do conhecimento inútil". Os dois magnatas
do varejo, motivados pelo objetivo filantrópico, haviam vendido sua
empresa à R. H. Macy and Co. p_oucas semanas antes do colapso da
Bolsa de Valores. Com uma fortuna de 30 milhões de dólares, pediram

12
INTRODUÇÃO. EXILADOS

conselho a Flexner de como aplicá-la para melhorar o nível intelectual


da humanidade.
Flexner, filho de imigrantes do Leste Europeu, se incumbira,
alguns anos antes, de denunciar a precariedade do ensino de medi-
cina norte-americano. Em torno da virada do século, havia um
excesso de faculdades de medicina concedendo diplomas que costu-
mavam ser uma mera indicação de que o contemplado havia pagado
a anuidade. Só o estado de Missouri tinha 42 faculdades de medicina;
a cidade de Chicago, catorze. O relatório de Flexner, que expunha a
impostura e foi publicado pela Fundação Carnegie para o Progresso
do Ensino, fez diferença. Algumas das piores instituições encerraram
as atividades.
Os Bamberger/Fuld estavam gratos aos antigos clientes de Nova
Jersey e queriam retribuir de algum jeito. A primeira idéia que tive-
ram foi a de criar uma faculdade de medicina, de modo que enviaram
seus representantes para falar com o homem que tanto entendia de
como a medicina devia ser ensinada. ( O irmão de Flexner dirigia a
Faculdade de Medicina da Universidade Rockefeller, que serviu de
modelo a Flexner.) Mas Flexner vinha acalentando sonhos ainda
mais utópicos do que assegurar que os médicos americanos soubes-
sem algo de medicina. Seus pensamentos sobre reforma educacional
haviam decididamente se afastado das ciências aplicadas e práticas. A
idéia de Flexner era criar um refúgio para os mais puros dos pensado-
res, concretizar a proverbial torre de marfim com tijolos vermelhos
sólidos: em suma, criar o que viria a ser conhecido como o Instituto
de Estudos Avançados.
Ali o corpo docente escolhido a dedo seria tratado como os prínci-
pes da Razão Pura. Receberia salários generosos (daí alguns apelida-
rem o lugar de "Instituto de Salários Avançados"), bem como o luxo
inestimável de tempo à vontade para pensar, sem precisar preparar
aulas nem corrigir provas de alunos - na verdade, totalmente libe-
rado da presença de alunos. Em vez disso, um fluxo sempre renovado
de acadêmicos mais jovens e brilhantes, que passaram a ser conheci-

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INCOMPLETUDE

dos como os "membros temporários", residiriu ali por um ou dois


anos, injetando o tônico revigorante de sua energia,juventude e entu-
siasmo no sangue dos gênios. "Aquela deveria ser uma sociedade livre
formada de acadêmicos", escreveu Flexner. "Livres, porque pessoas
maduras, animadas por propósitos intelectuais, devem ter liberdade
para perseguir seus próprios objetivos da sua própria maneira." Ela
deveria fornecer um ambiente simples, mas espaçoso, "e acima de
tudo tranqüilidade- sem os distúrbios das preocupações mundanas
ou da responsabilidade paternal por um corpo de estudantes imatu-
ros". Os Bamberger/Fuld queriam originalmente localizar sua escola
em Newark, Nova Jersey, mas Flexner os persuadiu de que Princeton,
com suas tradições seculares de vida acadêmica e suas camadas prote-
gidas de serenidade, seria bem mais propícia a obter os resultados
desejados de gênios não tolhidos.
Flexner decidiu fundamentar sua visão nos alicerces firmes da
matemática, "a mais rigorosa de todas as disciplinas", em suas palavras.
Os matemáticos, em certo sentido, são os acadêmicos mais distantes
dos pensamentos sobre "o mundo real" - uma expressão que, nesse
contexto, significa mais do que apenas o mundo prático do dia-a-dia.
A expressão pretende cobrir quase tudo que existe fisicamente, fora das
idéias, conceitos, teorias: o mundo da mente. Claro que o mundo da
mente pode ser, e costuma ser, sobre o mundo real, mas normalmente
não na matemática. Os matemáticos, em seu isolamento extremo,
podem não gozar (ou sofrer) da atenção do grande público. Mas, entre
os que vivem a vida da mente, eles são considerados com uma espécie
de respeito especial, devido ao rigor de seus métodos e à certeza de suas
conclusões, características singulares relacionadas a alguns dos moti-
vos que os tornam em grande parte inúteis ("inútil" no sentido de que
o conhecimento matemático não resulta, em si e por si, em nenhuma
conseqüência prática, em nenhuma forma de mudar nossa condição
material, para melhor ou para pior).
O rigor e a certeza do matemático são obtidos a priori, significando
que o matemático não recorre a quaisquer observações para chegar aos

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INTRODUÇÃO. EXILADOS

seus insights matemáticos,* nem esses insights matemáticos, em si e por


si, implicam observações, de modo que nada que observamos pode
solapar os motivos que temos para acreditar neles. Nenhuma experiên-
cia serviria de motivo para revisarmos, por exemplo, o fato de que 5 +
7 = 12. Se acrescentássemos 5 coisas a 7 coisas e obtivéssemos 13 coisas,
faríamos uma recontagem. Se mesmo após a recontagem continuásse-
mos obtendo 13 coisas, suporíamos que uma das 12 coisas havia se
dividido ou que estávamos vendo em dobro ou sonhando ou mesmo
enlouquecendo. A verdade de que 5 + 7 = 12 serve para avaliar expe-
riências de contagem, e não vice-versa.
A natureza a priori da matemática é uma coisa complicada, descon-
certante. É o que torna a matemática tão conclusiva, tão incorrigível:
uma vez provado, um teorema está imune à revisão empírica. Em geral,
conferimos à matemática uma espécie de invulnerabilidade, exata-
mente por ela ser a priori. No castelo altaneiro da Razão Pura, os mate-
máticos ocupam, supremos, a torre mais elevada, seus métodos consis-
tindo em pensar, puro pensar. Er_a isso que Flexner tinha em mente ao
considerar a disciplina deles a mais rigorosa.
Apesar de sua estatura intelectual, os matemáticos são relativa-
mente baratos de manter, exigindo, de novo nas palavras de Flexner,
somente "alguns homens, alguns estudantes, algumas salas, livros, qua-
dros-negros, giz, papel e lápis". Não é preciso nenhum laboratório caro,
observatório ou equipamento pesado. Os matemáticos carregam todo
o seu equipamento no crânio, o que é outra forma de dizer que a mate-
mática é a priori. Em seu raciocínio prático, Flexner também levou em
conta que a matemática é uma das poucas disciplinas em que existe
uma quase unanimidade sobre quem são os melhores. Não só a mate-

* Daí não se segue que essas crenças sejam inatas, ou seja, que nascemos com elas.
Obviamente, precisamos primeiro adquirir os conceitos, e a língua para expressá-los,
antes que possamos vir a acreditar que 5 + 7 = 12. A idéia de inato é psicológica,
enquanto a aprioricidade é um conceito epistemológico, relacionado à forma como a
crença é justificada, quais são os indícios a favor e contra ela.

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INCOMPLETUDE

mática tem a peculiaridade de chegar às suas conclusões mediante a


inatacável razão a priori, como a classificação de seus praticantes reflete
uma certeza quase matemática. Ao atuar não apenas como o projetista
do instituto, mas também como seu primeiro diretor, Flexner saberia
exatamente a quem chamar.
Ele logo atenuou as exigências para permitir o ingresso dos físicos
mais teóricos e dos economistas mais matemáticos e, no final de 1932,
pôde anunciar triunfalmente as primeiras contratações: o próprio
Oswald Veblen, de Princeton, um matemático de primeira linha, e nin-
guém menos que o alemão Albert Einstein, um cientista tão popular
que se tornou um dos alvos preferenciais dos nazistas. As teorias revo- ·
lucionárias da relatividade restrita e da relatividade geral haviam sido
atacadas por cientistas alemães como representantes da física patologi-
camente "judaica", corrompida pela paixão judaica e pela matemática
abstrata. Mesmo antes de os planos genocidas entrarem em operação,
o físico havia sido colocado na lista negra do Terceiro Reich.
Como era de esperar, uma série de universidades estavam mais do
que dispostas a abrir as portas para um refugiado tão prestigioso. Em
particular, o Instituto de Tecnologia da Califórnia, em Pasadena, vinha
vigorosamente tentando recrutá-lo. Mas Einstein preferiu Princeton,
alguns dizem por ter sido a primeira universidade norte-americana a
mostrar interesse por seu trabalho. Seus amigos, lançando os olhos cos-
mopolitas sobre aquele centro de estudos provinciano de Nova Jersey,
lhe perguntaram: "Você está querendo se suicidar?". Mas, com sua terra
natal tendo se tornado fanaticamente hostil, talvez a cordialidade pre-
matura e duradoura de Princeton se mostrasse irresistível. Einstein
pediu a Flexner um salário de 3 mil dólares, e Flexner ofereceu 16 mil.
Logo a famosa cabeça com cabelos carregados de íons estava passeando
pelas calçadas suburbanas, de modo que, pelo menos em uma ocasião,
um carro bateu numa árvore "depois que o motorista de repente reco-
nheceu aquele bonito velho caminhando pela rua".2
Outros luminares da Europa seguiram os passos de Einstein rumo
a Nova Jersey, inclusive o incrível polímata húngaro John von Neu-

16
INTRODUÇÃO. EXILADOS

mann, que começaria a construir o primeiro computador do mundo


no Instituto, escandalizando os membros que compartilhavam o ideal
de Flexner de manter o Instituto desobrigado de qualquer trabalho
"útil".* Mas foi Albert Einstein quem se imortalizou, embora ainda
bastante vivo,** como a apoteose do gênio, de modo que os moradores
da cidade passaram, quase desde o dia de sua chegada, a chamar o esta-
belecimento de Flexner de "Instituto Einstein".
Sem dúvida, o mais velho dos dois caminhantes flagrados na rua
arborizada que sai do instituto é ninguém menos que o habitante mais
famoso de Princeton, seu rosto outra vez demonstrando um espanto
zombeteiro com algo que o companheiro de caminhada acabou de
propor com aparente seriedade. O homem mais jovem, um lógico
matemático, reconhece a reação de Einstein mediante um sorriso fraco
e forçado, mas continua deduzindo as implicações de sua idéia com
precisão imperturbável.
Os temas de suas conversas diárias giram em torno da física e da
matemática, da filosofia e da política, e em todas essas áreas o lógico tende
a dizer algo que surpreende Einstein pela originalidade, profundidade,
ingenuidade ou mera estranheza. Todo o seu pensamento é regido por
um "axioma interessante': como Ernst Gabor Straus, o auxiliar de Eins-
tein de 1944 a 1947, certa vez o caracterizou. 3 Para cada fato, existe uma
explicação para aquele fato ser um fato; por que tem de ser um fato. Essa
convicção equivale à afirmação de que não existe contingência bruta no

* Como o primeiro empreendimento do instituto fora do domínio do puramente teó-


rico, o projeto foi criticado como "estando no lugar errado" mesmo por membros do
corpo docente que tinham em alta estima o trabalho em si, segundo o relato oficial da
Escola de Matemática do Instituto. Após a morte de Von Neumann, o computador foi
discretamente transferido para a Universidade de Princeton.
** Muitos contemporâneos relatam o "silêncio respeitoso" (nas palavras de Helen
Dukas, ibid.) que tornava conta de uma sala de conferências ou de um seminário
quando ele entrava. O filósofo Paul Benacerraf, estudante de pós-graduação em Prin-
ceton na época de Einstein, contou-me que o físico alemão às vezes costumava compa-
recer ao seminário semanal de filosofia das sextas-feiras, raramente falando, mas
mesmo assim fazendo sentir sua presença só por ser sua presença.

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INCOMPLETUDE

mundo, dados básicos que não precisariam ser dados. Em outras pala-
vras, o mundo jamais, nem sequer uma vez, falará para nós do jeito como
um pai exasperado falará com seu adolescente rebelde: "Quer saber por
quê? Vou dizer. Porque eu disse!': O mundo sempre tem uma explicação
para si, ou, nas palavras do companheiro de caminhada de Einstein: Die
Welt ist vernünftig, o mundo é inteligível. As conclusões que emanam da
aplicação rigorosamente sistemática deste "axioma interessante" a qual-
quer tema que ocorra a um lógico-da relação entre corpo e alma à polí-
tica global ou à própria política local do Instituto de Estudos Avançados
- costumam divergir radicalmente das opiniões do senso comum. Mas
o lógico não está nem aí para essa divergência. É como se um dos costu-
mes adquiridos de seu processo de pensamento fosse: se o raciocínio e o
senso comum divergirem, então ... tanto pior para o senso comum! O que
é, a longo prazo, o senso comum além de comum?
O homem mais jovem é bem menos conhecido, em sua época e na
nossa. No entanto, seu trabalho foi, à sua própria maneira, tão revolu-
cionário quanto o de Einstein, a ser incluído no pequeno conjunto das
descobertas mais radicais e rigorosas do século passado, todas com
conseqüências que pareciam transbordar para bem além de seus cam-
pos respectivos, infiltrando-se em nossos pressupostos mais básicos.
Pelo menos no campo das ciências matemáticas, o primeiro terço do
século xx fez das revoluções conceituais quase um hábito. O teorema
desse homem é a terceira perna, junto com o princípio da incerteza de
Heisenberg e a relatividade de Einstein, do tripé de cataclismos teóri-
cos cujas perturbações se fizeram sentir no cerne dos fundamentos das
"ciências exatas': As três descobertas parecem nos levar a um mundo
pouco familiar, tão contrário aos nossos pressupostos e intuições ante-
riores a ponto de, quase um século depois, continuarmos lutando para
entender onde, exatamente, aterrissamos.
A natureza arredia tanto do homem como de sua obra impede que
ele atinja o status de celebridade de seu colega de caminhada de Prin-
ceton e do autor do princípio da incerteza, a essa altura da história
quase certamente engajado no esforço para produzir a bomba atômica

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INTRODUÇÃO. EXILADOS

O lógico e o físico em uma de suas caminhadas


diárias de ida e volta ao Instituto de Estudos Avan-
çados. em Princeton. FOTO DE RICHARD ARENS. CORTESIA
DE AIP EMILIO SEGRÊ VISUAL ARCHIVES.

para a Alemanha nazista. O companheiro de caminhada de Einstein é


um revolucionário com um rosto desconhecido. Ele é o mais famoso
dentre os matemáticos dos quais você provavelmente nunca ouviu
falar. Ou, caso tenha ouvido falar dele, há uma boa chance de que,
embora não por culpa sua, você o associe ao tipo de idéias - subversi-
vamente hostis aos empreendimentos da racionalidade, da objetivi-
dade e da verdade - que ele não apenas rejeitou com veemência, mas
pensou ter refutado de modo conclusivo, matemático.
Ele é Kurt Gõdel, e, em 1930, aos 23 anos, produzir a uma prova
extraordinária na lógica matemática de algo conhecido como o teo-
rema da incompletude - na verdade, dois teoremas da incompletude
logicamente interligados.

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INCOMPLETUDE

Ao contrário dos outros resultados matemáticos, os teoremas da


incompletude de Gõdel são expressos sem o uso de números ou outros
formalismos simbólicos. Embora os detalhes da prova sejam técnicos
ao extremo, a estratégia geral da prova é agradavelmente simples. As
duas conclusões que emergem ao final de toda a pirotecnia formal são
expostas em linguagem quase comum. O artigo "Teorema de Gõdel" da
Encyclopedia of philosophy começa com uma exposição clara e direta
dos dois teoremas: 4

Pelo teorema de Gõdel, entende-se geralmente o seguinte enunciado:


Em qualquer sistema formal adequado à teoria dos números existe uma
fórmula indecidível- ou seja, uma fórmula que não pode ser provada e cuja
negação também não pode. (Esse enunciado é às vezes chamado de primeiro
teorema de Gõdel.)
Um corolário do teorema é que a consistência de um sistema formal ade-
quado à teoria dos números não pode ser provada dentro do sistema. (Às vezes é
esse corolário que é chamado de teorema de Gõdel; também é chamado de
segundo teorema de Gõdel.) Esses enunciados são generalizações formuladas um
tanto vagamente a partir de resultados publicados em 1931 por Kurt Gõdel, então
em Viena. ("Über formal unentscheidbare Satze der Principia Mathematica und
verwandter Systeme 1': aprovado para publicação em 17 de novembro de 1930.)
Embora não transpareça a partir desse enunciado conciso, os teo-
remas da incompletude são extraordinários (entre outros motivos)
pelo muito que têm a dizer. Pertencem ao ramo da matemática conhe-
cido como lógica formal ou lógica matemática, um campo visto, antes
da realização de Gõdel, como matematicamente suspeito.* Mas vão

* Antes que Gõdel entrasse em cena, os lógicos tendiam a ser membros de um departa-
mento de filosofia. Simon Kochen, um lógico do departamento de matemática da Uni-
.versidade de Princeton, observou para mim que "Gõdel pôs a lógica no mapa matemá-
tico. Todo departamento matemático importante agora tem um representante da lógica
em sua equipe. Podem ser apenas um ou dois lógicos, mas pelo menos haverá alguém"
(maio de 2002).

20
INTRODUÇÃO. EXILADOS

bem além de seu domínio formal estrito, abordando questões vastas e


complexas, como a natureza da verdade, do conhecimento e da certeza.
Dado que nossa natureza humana está intimamente envolvida na dis-
cussão dessas questões- afinal, falar de conhecimento pressupõe falar
de conhecedores-, os teoremas de Gõdel pareciam também ter coisas
importantes a dizer sobre o que as nossas mentes poderiam - e não
poderiam - ser.
Alguns pensadores têm visto nos teoremas de Gõdel ótimos grãos
para o moinho pós-moderno, pulverizando as formas velhas e absolu-
tistas de pensar acerca da verdade, da certeza, da objetividade e da
racionalidade. Um autor expressou o sentimento pós-moderno em
termos vivamente escatológicos:

Ele [Gõdel J é o diabo para a matemática. Após Gõdel, a idéia de que a matemá-
tica não era apenas uma linguagem de Deus, mas uma linguagem que podía-
mos decodificar para entender o universo e entender tudo ... isso já não fun-
ciona mais. Faz parte da grande incerteza pós-moderna em que vivemos. 5

A inevitável incompletude até de nossos sistemas formais de pensa-


mento demonstra que não existe um fundamento sólido que sirva de
base a qualquer sistema. Todas as verdades- mesmo aquelas que pare-
ciam tão certas a ponto de serem imunes _a toda possibilidade de revi-
são - são essencialmente manipuladas. De fato, a própria noção da
verdade objetiva é um mito socialmente construído. Nossas mentes
cognoscentes não estão entranhadas na verdade. Pelo contrário, toda a
noção de verdade está entranhada em nossas mentes, elas próprias os
lacaios involuntários de formas organizacionais de influência. A epis-
temologia nada mais é que a sociologia do poder. Assim é, de certa
forma, a versão pós-moderna de Gõdel.
Outros pensadores argumentaram que, no tocante à natureza da
mente humana, as implicações dos teoremas de Gõdel apontam para
uma direção totalmente diferente. Por exemplo, Roger Penrose, em
seus dois best-sellers, The emperor's new mind [A mente nova do rei] e

21
INCOMPLETUDE

Shadows of the mind [Sombras da mente], tornou os teoremas da


incompletude fundamentais ao seu argumento de que nossas mentes,
sejam lá o que forem, não podem ser computadores digitais. O que os
teoremas de Gõdel provam, afirma, é que, mesmo em nosso pensamento
mais técnico, regido por regras - ou seja, a matemática-, os proces-
sos de descoberta da verdade não podem ser reduzidos a procedimen-
tos mecânicos programados nos computadores. Observe que o argu-
mento de Penrose, frontalmente oposto à interpretação pós-moderna
do parágrafo anterior, entende que os resultados de Gõdel deixaram o
conhecimento matemático em grande parte intacto. Os teoremas de
Gõdel não demonstram os limites da mente humana, e sim os limites
dos modelos computacionais para a mente humana (basicamente,
modelos que reduzem todo o pensamento ao "seguir regras"). Não nos
deixam à deriva na incerteza pós-moderna, mas negam uma parti cu -
lar teoria redutiva da mente.
Os teoremas de Gõdel, então, parecem ser a mais rara das criaturas:
verdades matemáticas que também tratam - ainda que de forma
ambígua e controvertida-da questão central das humanidades: o que
está em jogo no fato de sermos humanos? Trata-se dos teoremas mais
prolixos da história da matemática. Embora haja desacordo sobre
quanto e o que, precisamente, eles dizem, não há dúvida de que dizem
muita coisa, e o que dizem se estende para além da matemática, decerto
à metamatemática e talvez até mais além. A natureza metamatemática
do teorema está intimamente ligada ao fato de que a Encyclopedia of
philosophy os enunciou em linguagem (mais ou menos) comum. Os
conceitos de "sistema formal", "indecidível" e "consistência" podem ser
semitécnicos e requerer explicação (daí o leitor não precisar se preocu-
par se o enunciado sucinto dos teoremas não ficou claro). Mas são con-
ceitos metamatemáticos cuja explicação (que acabará vindo) não é
dada na linguagem da matemática. As conclusões de Gõdel são teore-
mas matemáticos que conseguem escapar da mera matemática. Falam
tanto de dentro como de fora da matemática. Eis ainda outra faceta de
seu fascínio característico, faceta abordada em outro livro popular, o

22
INTRODUÇÃO. EXILADOS

livro de Douglas Hofstadter vencedor do prêmio Pulitzer, Godel,


Escher, Bach: Um entrelaçamento de gênios brilhantes ( Godel, Escher,
Bach: an eternal golden braid).
O prefixo meta vem do grego e significa "após,,, "além,,, sugerindo
um a visão de fora, por assim dizer. A metavisão de uma área cognitiva
levanta perguntas do seguinte tipo: como é possível para essa área do
conhecimento fazer o que está fazendo? A matemática, pela natureza
sui generis - a mais rigorosa das disciplinas, usando métodos a priori
para comprovar seus resultados muitas vezes espantosos, mas impecá-
veis-, sempre confrontou os teóricos do conhecimento ( conhecidos
como "epistemologistas,,) com metaperguntas, mais especificamente a
pergunta de como é possível ela fazer o que está fazendo. A certeza da
matemática, a infalibilidade divina que parece conferir aos seus conhe-
cedores, tem sido vista como um paradigma a ser imitado - se pode-
mos fazê-lo ali, façamos em outras disciplinas* - e também como um
enigma sobre o qual refletir: como podemos fazê-lo, ali ou em qualquer
disciplina? De que maneira criaturas como nós, produtos de um pro-
cesso cego de evolução, conseguem atingir qualquer tipo de infalibili-
dade? Para ajudar a entender esse enigma, lembremos uma observação
famosa de Groucho Marx, de que ele jamais seria sócio de um clube que
o aceitasse como sócio. De forma semelhante, algumas pessoas recla-
maram que, se a matemática é realmente tão segura, como pode ser
conhecida por seres como nós? Como podemos ter sido aceitos num
clube cognitivo tão fechado?
Metaperguntas sobre um campo, digamos, sobre ciência ou mate-
mática ou direito, não costumam ser perguntas contidas naquele pró-

* Essa epistemologia utopista caracteriza os racionalistas do século xvn: René Descar-


tes (1596-1650), Benedictus Spinoza (1632-77) e Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-
1716). Spinoza e Leibniz, em particular, acreditavam ser possível apoderar-se dos
padrões e métodos dos matemáticos e generalizá-los, de modo a responder a todas as
nossas indagações: científicas, éticas, até teológicas. Aí, quando surgissem divergências
teológicas do tipo que provoca guerras longas e sangrentas, os homens racionais pode-
riam responder: "Venham, vamos deduzir a priori".

23
INCOMPLETUDE

prio campo; não são, respectivamente, científicas ou matemáticas ou


jurídicas. Pelo contrário, são classificadas como perguntas filosóficas,
residindo, respectivamente, na filosofia da ciência, da matemática ou
do direito. Os teoremas de Gõdel são exceções espetaculares a essa regra
geral. Eles são ao mesmo tempo matemáticos e metamatemáticos. Têm
todo o rigor de algo provado a priori, mas estabelecem uma metacon -
clusão. É como se alguém tivesse pintado um quadro que consegue res-
ponder às perguntas básicas da estética: uma paisagem ou um retrato
que representa a natureza geral da beleza e talvez até explique por que
ela nos comove tanto. É extraordinário que um resultado matemático
tenha algo a dizer sobre a natureza da verdade matemática em geral.
Os dois teoremas de Gõdel tratam da própria questão que sempre
distinguiu a matemática: a certeza, a incorrigibilidade, a aprioricidade.
Será que os teoremas nos expulsam do clube cognitivo mais fechado
em epistemologia, solapando nossa pretensão de sermos capazes de
atingir, pelo menos na área da matemática, a certeza perfeita? Ou com
os teoremas continuamos membros com boa reputação? O próprio
Gõdel, como veremos, tinha convicções fortes sobre essa metaper-
gunta, que divergiam bastante das interpretações geralmente associa-
das ao seu trabalho.
Para Gõdel e Einstein, as meta perguntas de como a física e a mate-
mática, respectivamente, devem ser interpretadas - o que essas
poderosas formas de conhecimento realmente fazem e como o fazem
-são centrais ao seu trabalho técnico. Einstein também nutria meta-
convicções fortíssimas no tocante à física. Mais especificamente, as
metaconvicções de Einstein e Gõdel estavam voltadas para cogitações
acerca de seus respectivos campos serem descrições de uma realidade
objetiva - que existe a despeito de a imaginarmos - ou, pelo con-
trário, projeções humanas subjetivas, constructos intelectuais social-
mente compartilhados.
A ênfase que cada um deles punha nessas metaperguntas era, em si,
suficiente para distingui-los da maioria dos profissionais de seus cam-
pos respectivos. Não apenas aqueles dois homens estavam central-

24
INTRODUÇÃO . EXILADOS

mente interessados no metanível, mas, de forma ainda mais incomum,


queriam que seu trabalho técnico lançasse uma metaluz. Gõdel, na ver-
dade, adquirira a ambição, ainda quando graduando na Universidade
de Viena, de se dedicar somente ao tipo de matemática com implicações
filosóficas mais amplas. Esse é um objetivo de fato intimidador, em
certo sentido historicamente ambicioso; e um dos aspectos mais
espantosos de sua história é que ele conseguiu atingi-lo. Essa ambição
intimidadora, que ele preservou pela vida afora, pode ter limitado sua
produção, mas também garantiu que o que ele realizasse fosse pro-
fundo. Einstein, embora não tão rigoroso consigo mesmo como Gõdel,
mesmo assim cdmpartilhava a convicção de que uma ciência de quali-
dade nunca perde de vista as questões filosóficas mais amplas: ''A ciên-
cia sem epistemologia é-na medida em que seja concebível-primi-
tiva e confusa". 6
A amizade entre Einstein e Gõdel ainda é objeto de lendas e especu-
lação. Diariamente, os dois homens faziam o percurso de ida e volta ao
instituto, e outros os observavam com curiosidade, intrigados por terem
tanto a dizer um ao outro. Ernst Gabar Straus, por exemplo, escreveu:

Nenhuma história de Einstein em Princeton seria completa sem mencionar


sua amizade realmente calorosa e muito íntima com Kurt Gõdel. Eram pessoas
muito, muito diferentes, mas por algum motivo entendiam um ao outro e se
gostavam bastante. Einstein muitas vezes mencionava que sentia que não
deveria tornar-se um matemático, porque a abundância de problemas interes-
santes e atraentes era tamanha que você poderia se perder neles sem jamais
alcançar algo de real importância. Na física, ele conseguia ver quais eram os
problemas importantes e podia, por força de seu caráter e teimosia, persegui-
los. Mas ele me contou certa vez: ''Agora que conheci Gõdel, sei que a mesma
coisa existe em matemática". Claro que Gõdel tinha um axioma interessante
através do qual via o mundo, a saber: nada que acontece nele se deve ao acaso
ou à estupidez. Se você realmente levar esse axioma a sério, todas as teorias
estranhas em que Gõdel acreditava se tornam absolutamente necessárias. Ten-
tei várias vezes desafiá-lo, mas não havia saída. Quer dizer, a partir dos axiomas

25
INCOMPLETUDE

de Gõdel todas eram inferidas. Einstein de fato não se importava com aquilo,
achava até divertido. A não ser da última vez em que o vimos em 1953, quando
disse: "Veja bem, Gõdel está totalmente maluco". Ao que perguntei: "Bem, o
que ele fez de tão ruim?". Einstein respondeu: "Ele votou em Eisenhower". 7

A linguagem de Straus indica certa perplexidade quanto ao que os


dois homens viam um no outro; em particular, o que o físico sagaz
poderia ter visto no lógico neurótico. Einstein, escreveu Straus, era
"gregário, feliz, cheio de riso e sensatez". Gõdel, por outro lado, era
"solene ao extremo, muito sério, totalmente solitário e desconfiado da
sensatez como meio de chegar à verdade".
O Einstein da lenda - com seus cabelos revoltos e sua distração, com
a defesa quixotesca de um governo mundial e outras causas perdidas -
não costuma ser retratado como um sujeito astuto e cosmopolita, mas,
comparado a Gõdel, ele era. Quase todos em Princeton, mesmo seus
colegas matemáticos, achavam impossível conversar com Gõdel, seu
"axioma interessante" complicando exponencialmente qualquer dis-
cussão e decisão prática. Como escreveu o matemático Armand Borel
em sua história da Escola de Matemática do Instituto, ele e os outros às
vezes"achavamalógicado sucessordeAristóteles [... ] um tanto descon-
certante". 8 Os matemáticos acabaram resolvendo o problema em relação
a Gõdel banindo-o das reuniões, criando um departamento só para ele:
o único tomador de decisões estritamente relacionadas à lógica.
Embora a população de Princeton estivesse acostumada com tipos
excêntricos e a não olhar desconfiada para espécimes desgrenhados
fitando de modo inexpressivo (pelo menos aparentemente) além do
espaço-tempo, Kurt Gõdel deu a quase todos a impressão de estranhís-
simo, sendo quase impossível conversar com ele. Discreto, quando
falava, tendia a dizer coisas para as quais não havia resposta possível.
John Bahcall era um astrofísico jovem e promissor quando foi
apresentado a Gõdel num pequeno jantar do instituto. Identificou-se
como físico, ao que Gõdel respondeu, lacônico: "Não acredito na ciên-
cia natural". 9

26
INTRODUÇÃO. EXILADOS

O filósofo Thomas Nagel lembra-se de ter sentado ao lado de Gõdel


num pequeno jantar comemorativo no instituto e ter discutido com ele
o problema da mente-corpo, um velho enigma filosófico que os dois
homens haviam tentado solucionar. Nagel comentou com Gõdel que
sua visão dualista extrema (segundo a qual almas e corpos têm existên-
cias totalmente separadas, ligando-se mutuamente no nascimento em
uma espécie de parceria que é desfeita com a morte) parecia difícil de
conciliar com a teoria da evolução. Gõdel confirmou sua descrença na
evolução e culminou com a observação, como se ela reforçasse ainda
mais sua rejeição ao darwinismo: "Você sabe que Stálin tampouco
acreditava na evolução, e ele era um homem bem inteligente':
"Depois daquilo", Nagel me contou com um discreto sorriso, "sim-
plesmente desisti."* 10
O lingüista Noam Chomsky também conta que foi detido em seu
percurso lingüístico pelo lógico. Chomsky perguntou o que ele vinha
estudando, e recebeu uma resposta que provavelmente ninguém desde
Leibniz, no século xvn, tinha dado: "Estou tentando provar que as leis
da natureza são a priori". 11
Três mentes magníficas, tão à vontade no mundo das idéias puras
como ninguém neste planeta, mas com histórias (e existem outras) de
impasses insolúveis ao discutir idéias com Gõdel.
Einstein também, nas suas caminhadas diárias de ida e volta ao ins-
tituto, deparou com exemplos das estranhas intuições de Gõdel e seu
profundo "antiempirismo". Mesmo assim, Einstein sistematicamente

*A hostilidade de Gõdel à teoria da evolução torna-se compreensível à medida que se


entende melhor a mente dele. Um racionalista como Gõdel deseja remover o acaso e a
aleatoriedade, enquanto a seleção natural invoca a aleatoriedade e a contingência como
fatores explanatórios fundamentais . No nível da microevolução (mudanças de geração
para geração), a teoria concede um papel central à mutação e recombinação aleatórias.
No nível da m acroevolução (padrões na história da vida), concede um papel central à
contingência histórica, como os caprichos da geologia e do clima, ou eventos casuais
como o choque de um meteorito com a Terra, encobrindo o Sol, exterminando os
dinossauros e, assim, permitindo a mamíferos semelhantes a ratos habitar os nichos
ecológicos vagos. (Sou grata a Steven Pinker por essas informações.)

27
INCOMPLETUDE

buscava a companhia do lógico. De fato, o economista Oskar Morgens-


tern, * que conhecia Gõdel da época de Viena, confidenciou numa carta:

Einstein me contou várias vezes que, nos últimos anos de vida, procurava cons-
tantemente a companhia de Gõdel, a fim de ter discussões com ele. Certa vez, ele
me disse que seu próprio trabalho já não significava muito, que ele viera ao ins-
tituto meramente um das Privileg zu haben, mit Godel zu Fuss nach Hause gehen
zu dü1fen [ou seja, para ter o privilégio de caminhar para casa com Gõdel]. 12

Apesar do interesse em comum pelo metanível de seus campos respec-


tivos, a confissão de devoção de Einstein soa extravagante.
De sua parte, as cartas de Gõdel à mãe, Marianne, que permaneceu
na Europa (uma correspondência que lança certa luz sobre sua vida até
a morte dela, em 1966), estão cheias de referências a Einstein. Se Eins-
tein, nos últimos anos de vida, ia ao instituto pelo simples privilégio de
voltar para casa com Gõdel, para Gõdel não havia ninguém mais no
mundo todo com quem conversar, pelo menos não da forma como ele
costumava conversar com Einstein (uma exclusividade que se torna
ainda mais pungente quando lembramos que Gõdel era casado). Tanto
que, por exemplo, em 4 de julho de 194 7, em carta à mãe ele escreveu
que Einstein recebera ordens médicas de permanecer em repouso.
((Portanto estou agora totalmente solitário e quase não falo com nin-
guém em particular."
Aos que observavam sua sólida amizade, aquele era, e continua
sendo, um pequeno mistério. "Eu costumava vê-los percorrendo o
caminho de Fuld Hall a Olden Farm todo dia", contou-me o suíço
Armand Borel, que chegou ao instituto pouco depois de Gõdel,
quando me sentei no seu escritório. "Não sei sobre o que falavam. Pro-

*Morgenstern também fugira da Áustria ocupada pelos nazistas para o instituto.


Embora fosse economista, seu trabalho era matemático o bastante - ele é um dos cria-
dores, com Von Neumann, da teoria dos jogos-para permitir seu ingresso no Insti-
tuto de Flexner.

28
INTRODUÇÃO. EXILADOS

vavelmente sobre física, porque Gõdel também se interessava por


física, veja bem.* Eles não queriam falar com mais ninguém. Eles só
queriam falar um com o outro", concluiu, com um dar de ombros.
Para entendermos a relação entre Einstein e Gõdel e o que há por trás
da observação cismada de Straus de que "de algum modo, eles enten-
diam muito bem um ao outro", não podemos nos contentar com a expli-
cação simplista de que aqueles dois homens formavam um par intelec-
tual, constituindo, nas palavras do lógico Hao Wang, uma <<<categoria
natural' de dois membros, composta dos maiores <filósofos naturais' do
século". ** 13 Existe muito mais, além do fato de pertencerem a um grupo
tão seleto, a ser dito sobre o que uniu aqueles dois homens.
Existem as semelhanças superficiais, é claro. O fato, por exemplo, de
que ambos realizaram seu trabalho mais importante na Europa cen-
tral, em terras de língua alemã, de onde foram forçados a fugir. Mas,
nesse aspecto pelo menos, Einstein e Gõdel não eram únicos na Prin-
ceton de sua época. Um acadêmico após o outro tivera de trocar Viena,
Gõttingen e Budapeste por lugares como Pasadena e Princeton. O fato
de serem exilados políticos, que falavam a mesma língua natal e se
viram percorrendo a paisagem improvável dos subúrbios de Nova Jer-
sey, é pouco para explicar o vínculo especial entre eles, que intrigava até
seus colegas refugiados.
Existem outras semelhanças impressionantes entre os dois. Por
exemplo, o fato de ambos terem realizado seu trabalho mais impor-
tante ainda jovens. Einstein tinha 26 anos em 1905, seu annus mirabi-
lis, quando, como um obscuro funcionário do escritório de patentes
em Berna, Suíça, publicou seus artigos sobre a relatividade restrita, o
quantum de luz e o movimento browniano, além de completar sua dis-

*Godel produziu uma solução bem original para as equações de campo da relatividade
geral de Einstein, como uma surpresa para o aniversário de setenta anos de Einstein. Na
solução de Godel, o tempo é cíclico. Ver capítulo 4.
** Hao Wang ( 1921-95), lógico da Universidade Rockefeller, dedicou-se a compreender
as idéias de Gódel sobre tudo, da natureza da intuição matemática à transmigração das
almas, e produziu três livros com base no material coletado.

29
INCOMPLETUDE

sertação de doutorado. Os resultados de Gõdel (também em número


de três, embora o primeiro teorema da incompletude ofusque todo o
resto)* haviam sido obtidos três anos antes de chegar àquela idade.
Mais importante do que esse detalhe autobiográfico compartilhado
é o fato de que os dois haviam flertado, numa idade ainda mais prema-
tura, com a idéia de ingressar no campo que o outro escolhera. Gõdel
entrara na Universidade de Viena com a intenção de estudar física. Eins-
tein pensara inicialmente em se tornar matemático. Em certo sentido,
cada um viu no outro o que ele próprio poderia ter se tornado se sua
opção tivesse sido diferente, e havia sem dúvida certo fascínio nisso.
Mesmo assim, existem outros fatores que unem os dois. Gostaria de
propor que o motivo da compreensão e apreço profundos entre aquelas
duas "pessoas muito, muito diferentes" repousa no nível mais profundo
de suas idéias revolucionárias. Eles eram companheiros no sentido mais
profundo em que pensadores podem ser companheiros. Os dois
homens estavam comprometidos com uma compreensão da realidade,
e de seu próprio trabalho em relação àquela realidade, que os colocava
em conflito doloroso com a comunidade internacional de pensadores.
Cada um tendo apresentado resultados tão singularmente trans-
formadores que seus respectivos campos foram forçados a se reformu-
lar para abrigar aqueles resultados, a última coisa que Einstein e Gõdel
teriam sentido era serem marginalizados. Sentimentos de alienação,
descontentamento, isolamento são para os não-influentes e fracassa-
dos. Mas eles se sentiam, sim, descontentes e até rejeitados e, além do
mais, descontentes e rejeitados de formas profundamente semelhan-
tes: no metanível de seus campos, o nível em que você interpreta o que
tudo aquilo significa.
Existe um sentido, ao menos pelo que detectei ao tentar penetrar no
âmago de uma amizade que desconcertou os observadores, em que

* Suas outras duas realizações de 1929-30 foram o segundo teorema da incompletude e


a prova da completude do cálculo de predicados.

30
INTRODUÇÃO. EXILADOS

Einstein e Gõdel foram colegas de exílio dentro de um exílio maior,


sentido que vai bem além das condições geopolíticas que fizeram com
que buscassem a segurança de Princeton, Nova Jersey. Acredito que
foram colegas de exílio no sentido mais profundo em que é possível um
pensador estar exilado. Por mais estranho que pareça para homens tão
celebrados por suas contribuições, eles eram exilados intelectuais.
Para compreender plenamente a sensação de isolamento compar-
tilhada por eles, que permitiu a força coesiva de sua amizade famosa,
será necessário examinar as metaconvicções que os alienaram dos cole-
gas. Como deveríamos interpretar, em termos das questões filosóficas
mais amplas, a teoria da relatividade de Einstein e os teoremas da
incompletude de Gõdel? Como os autores dessas obras-primas do
pensamento humano as interpretaram, e como os outros o fizeram?
Teoremas da incompletude de Gõdel. Teorias da relatividade de
Einstein. Princípio da incerteza de Heisenberg. Os próprios nomes são
irresistivelmente sugestivos, parecendo injetar o elemento humano
mais impreciso nas ciências exatas, parecendo, até, sugerir que o ele-
mento humano prevalece sobre aqueles sistemas ultraprecisos - a
matemática e-a física teórica - , manchando-os com a nossa própria
imprecisão e subjetividade. d primado da subjetividade sobre a obje-
tividade - dos modos de raciocínio do tipo "as-coisas-são-como-as-
pensamos" ou "o-homem-é-a-medida-de-todas-as-coisas" - é uma
linha de pensamento decisiva, até dominante, na vida intelectual e cul-
tural do século xx. Os trabalhos de Gõdel e Einstein - reconhecidos
por todos como revolucionários e batizados com aqueles nomes suges-
tivos - costumam ser agrupados, junto com o princípio da incerteza
de Heisenberg, entre os motivos mais fortes da rejeição, pelo pensa-
mento moderno, do "mito da objetividade". A interpretação desse trio
faz parte da mitologia moderna- ou melhor, pós-moderna.
Assim, por exemplo, na aclamada peça de 1998 Copenhague, o dra-
maturgo Michael Frayn não apenas apresenta corretamente os físicos
Niels Bohr e Werner Heisenberg rejeitando a idéia de que a física é des-
critiva de uma realidade física objetiva, mas também identifica, erro-

31
INCOMPLETUDE

neamente, a teoria da relatividade de Einstein como o primeiro passo


da física moderna na direção daquela rejeição derradeira:

Bohr: Ela [a mecânica quântica] funciona, sim. Mas isso não é o mais impor-
tante. Porque você vê o que fizemos nesses três anos, Heisenberg? Sem exagero,
viramos o mundo pelo avesso. Sim, escute, é agora que vem a parte importante.
[... ] Trouxemos o homem de volta ao centro do universo. Ao longo da história,
vivemos nos achando deslocados. Vivemos nos exilando para a periferia das
coisas. Primeiro, nos transformamos num mero acessório dos propósitos
incognoscíveis de Deus. Figuras minúsculas ajoelhando na grande catedral da
criação. E assim que nos recuperamos, no Renascimento, assim que o homem
se tornou, como anunciara Protágoras, a medida de todas as coisas, fomos
jogados de novo para escanteio pelos produtos de nosso raciocínio! Somos de
novo apequenados à medida que os físicos constroem as novas catedrais para
contemplarmos - as leis da mecânica clássica que nos antecedem desde o iní-
cio da eternidade e que sobreviverão a nós até o fim da eternidade, que existem
quer existamos ou não. Até chegarmos ao início do século xx, quando somos
subitamente forçados a nos erguer de nossa posição ajoelhada.
Heisenberg: A coisa começa com Einstein.
Bohr: A coisa começa com Einstein. Ele mostra que a medição - a medição
de que depende toda a possibilidade da ciência-, a medição não é um evento
impessoal que ocorre com universalidade imparcial. É um ato humano, reali-
zado de um ponto de vista específico no tempo e no espaço, do ponto de vista
específico de um observador possível. Depois, aqui em Copenhague, naqueles
três anos em meados da década de 1920, nós descobrimos que não existe um uni-
verso objetivo precisamente determinável. Que o universo só existe como uma
série de aproximações. Só dentro dos limites determinados por nossa relação
com ele. Só pela compreensão alojada dentro da cabeça humana. 14

À semelhança da teoria da relatividade de Einstein, os teoremas da


incompletude de Gõdel têm sido vistos em lugar de destaque na revolta
intelectual do século xx contra a objetividade e a racionalidade. Por
exemplo, numa obra popular de filosofia escrita por William Barrett,

32
INTRODUÇÃO. EXILADOS

Irrational man: A study in existentialist philosophy, publicada em 1962,


quando Gõdel ainda estava vivo (e que tive de ler no verão anterior ao
meu ingresso na faculdade), Gõdel é situado junto com pensadores
como Martin Heidegger (1889-1976) e Friedrich Nietzsche (1844-
1900), destruidores de nossas ilusões de racionalidade e objetividade:

As descobertas de Gõdel parecem ter conseqüências ainda mais abrangentes


[do que a Incerteza de Heisenberg e a Complementaridade de Bohr], quando
se considera que, na tradição ocidental, a partir dos pitagóricos e Platão, a
matemática como o próprio modelo da inteligibilidade tem sido a cidadela
central do racionalismo. Agora se descobre que mesmo em sua ciência mais
precisa - no domínio em que sua razão parecia onipotente - o homem não
consegue escapar de sua finitude essencial; todo sistema de matemática que ele
constrói está fadado à incompletude. Gõdel mostrou que a matemática tem
problemas insolúveis, daí nunca poder ser formalizada em qualquer sistema
completo. [... ] Os matemáticos agora sabem que nunca conseguirão atingir a
base absoluta; na verdade, não existe uma base absoluta, já que a matemática
não tem uma realidade auto-subsistente independente da atividade humana
realizada pelos matemáticos. 15

Barrett enuncia corretamente o (primeiro) teorema da incomple-


tude, de que a matemática jamais pode ser formalizada em qualquer
sistema completo. E a conclusão filosófica que extrai está de acordo
com as tendências intelectuais mais em voga no século XX. Portanto, o
leitor se surpreenderá ao saber que o próprio Gõdel jamais fez tal infe-
rência. Na verdade, se eliminarmos o "não" antes de "realidade auto-
subsistente" chegaremos a um enunciado mais exato da visão metama-
temática do próprio Gõdel, a visão que inspirou todo o seu trabalho
matemático, inclusive seus famosos teoremas da incompletude.
Apesar de os gurus intelectuais terem interpretado Godel como sin-
tonizado com a grande revolta contra a objetividade e a racionalidade
que caracterizam grande parte do pensamento do século xx, não foi
dessa maneira que o próprio Gõdel interpretou seus resultados revolu-

33
INCOMPLETUDE

cionários. Exatamente o mesmo pode ser dito de Einstein. Ambos os


homens acreditavam firmemente na objetividade e interpretavam seus
próprios trabalhos mais famosos como respaldo a essa posição cada
vez mais impopular. Embora tantos de seus colegas intelectuais
tenham dado a virada subjetivista - citando as grandes realizações da
teoria da relatividade e dos teoremas da incompletude como indicado-
res daquela direção-, Einstein e Gõdel não o fizeram.
Tanto Einstein como Gõdel estão totalmente distantes de apoiar o
antigo princípio sofista de que "o homem é a medida de todas as coi-
sas': Para ambos, a metodologia de seus campos respectivos - as mis-
turas complexas de raciocínio, incluindo intuição e dedução (e, no caso
da física, que não é a priori, também observação) - não consiste em
conjuntos arbitrários de regras que regem um jogo mental ou jogo de
linguagem artificial e elaborado, que poderia ter sido igualmente
jogado com outro conjunto de regras, levando a uma construção total-
mente diferente da realidade. Não; para ambos os pensadores, essas são
as regras que levam nossas mentes além das limitações da experiência
pessoal para ganhar acesso a aspectos da realidade impossíveis de
conhecer de outra forma.
O profundo isolamento de Einstein em relação aos colegas cientis-
tas é tão conhecido (embora pouco entendido) como quase todos os
outros aspectos de sua vida célebre. Costuma ser explicado como resul-
tante de sua recusa obstinada em aceitar o avanço revolucionário da
mecânica quântica, em particular da sua natureza fundamentalmente
estocástica, da qual o elemento de puro acaso não consegue ser extir-
pado. A história familiar que se costuma contar é que, tendo realizado
sua própria revolução conceitua! quando jovem com suas teorias da
relatividade, tanto restrita como geral, ele se acomodou, como é cos-
tume dos homens mais velhos, numa mentalidade conservadora, inca-
paz de aceitar as revoluções da geração seguinte, ainda que essas revo-
luções posteriores fossem as extensões lógicas de suas próprias. Essa
versão da história de Einstein também faz parte da mitologia intelec-
tual do século xx.

34
INTRODUÇÃO. EXILADOS

No entanto, ela não é exata. O núcleo da alienação científica de


Einstein é sua rejeição da virada subjetivista, que, segundo o persona-
gem do dramaturgo, "começa com Einstein". Einstein não entendeu
sua teoria da relatividade como um indicador para a interpretação sub-
jetivista da física, e sim para a direção totalmente oposta. "Relativi-
dade", no contexto da teoria de Einstein, significa algo bem mais téc-
nico e restrito do que dizer que a medição (e, portanto, tudo) é relativa
aos pontos de vista humanos.* Para Einstein, ter seguido homens como
Werner Heisenberg e Niels Bohr na direção da subjetividade teria sido
negar o que ele considerava as metaimplicações mais fundamentais da
teoria da relatividade. Einstein interpretava sua teoria como represen-
tação da natureza objetiva do espaço-tempo, bem diferente de nosso
ponto de vista subjetivo, humano, do espaço e tempo.** Longe de nos
devolver ao centro do universo, descrevendo tudo como relativo ao
nosso ponto de vista experiencial, a teoria de Einstein, expressa em ter-
mos belamente matemáticos, oferece um vislumbre de uma realidade
física surpreendente. E é surpreendente porque difere totalmente do
que nos é dado por nossa apreensão experimental dela.

* As medições de propriedades como comprimento são, de acordo com a relatividade res-


trita, relativas a um sistema de coordenadas ou sistema de referência específico. Mas redu-
zir esses termos técnicos - sistema de coordenadas, sistema de referência - à idéia de
pontos de vista humanos é, digamos, absurdo. Temos a opção de diferentes sistemas de
coordenadas para descrever o movimento de algo, e, de acordo com a teoria da relativi-
dade, todos os sistemas de coordenadas são iguais; nenhum é privilegiado. Em um sistema
de coordenadas, um "observador" (que não precisa sequer ser uma entidade consciente e,
portanto, não precisa estar de fato observando, nem mesmo ser capaz de observar algo)
estará em repouso; em outro, ele estará se movendo. Costuma ser natural, embora não
obrigatório, escolher um sistema de coordenadas em relação ao qual um observador espe-
cífico está em repouso. Portanto, costuma ser natural (embora não obrigatório) escolher
o sistema de coordenadas em que a Terra, por exemplo, está em repouso. O movimento de
todos nós, terráqueos, com nosso sem-número de pontos de vista subjetivos, seria então
descrito em relação a um sistema de coordenadas, no qual a Terra está em repouso.
** Na teoria da relatividade, por exemplo, o tempo não flui, mas é, como a quarta dimen-
são, tão estático como o espaço. Em nítido contraste, o mais drástico (e pungente)
aspecto de nossa experiência do tempo é seu movimento incessante e unidirecional, que
nos leva para longe do passado em direção ao futuro.

35
INCOMPLETUDE

Einstein às vezes fala da realidade objetiva como o que está "lá fora",
e nas ''Notas autobiográficas" que forneceu, com seu bom humor auto-
depreciativo típico, ao Festschrift que P. A. Schilpp publicou em home-
nagem ao aniversário de setenta anos do físico,* ele explicitamente
identifica sua crença nessa realidade como o centro espiritual de sua
vida como cientista:

Está bastante claro para mim que o paraíso religioso da juventude, assim per-
dido, foi uma primeira tentativa de me libertar do "meramente pessoal", de
uma existência dominada por desejos, esperanças e sentimentos primitivos. Lá
fora havia esse mundo im enso, que existe a despeito de nós, seres humanos, e
que se acha diante de nós, qual enorme e eterno enigma, ao menos parcial-
mente acessível ao nosso exame e pensamento. A contemplação desse mundo
acenava para uma nova forma de libertação. [... ] A compreensão mental desse
mundo extrapessoal, dentro das possibilidades existentes, se afigurou à minha
imaginação, em parte consciente e, em parte, inconscientemente, como o obje-
tivo supremo. [... ] O caminho para esse paraíso não era tão tranqüilo e sedu-
tor como o caminho para o paraíso religioso; mas provou ser confiável, e eu
nunca me arrependi de minha escolha. 16

Esse é um enunciado eloqüente do credo de Einstein como cientista,


e nada poderia divergir mais dos sentimentos de quase todos os outros
físicos proeminentes de seu círculo.** Einstein entendia como atividade
da física descobrir teorias que ofereçam um vislumbre da natureza obje-
tiva que se acha "lá fora", atrás de nossas experiências.Werner Heisenberg,

* "Aqui estou para escrever, com a idade de 67 anos, algo semelhante ao meu próprio
obituário. Faço isso não apenas porque o dr. Schilpp me persuadiu a fazê-lo; mas por-
que, na verdade, acredito que é bom mostrar aos que se empenham ao nosso lado como
o empenho e o rigor parecem em retrospecto." (Schilpp, p. 3)
** Contrastemos essas palavras, por exemplo, com a afirmação de Werner Heisenberg:
"A idéia de um mundo real objetivo cujas mínimas partes existem objetivamente no
mesmo sentido em que pedras ou árvores existem, a despeito de serem observadas ou
não[ ... ] é impossível".

36
INTRODUÇÃO. EXILADOS

junto com homens como o dinamarquês Niels Bohr e o alemão Max.Bom


(os maiores defensores da interpretação de Copenhague da mecânica
quântica), rejeitam essa visão em nome de um movimento intelectual
conhecido como <<positivismo", segundo o qual qualquer tentativa de ir
além de nossa experiência resulta em um completo contra-senso.
Teremos a oportunidade de examinar mais detidamente o positi-
vismo no próximo capítulo, quando passarmos de Princeton, Nova
Jersey, para Viena, Áustria, e examinarmos as circunstâncias que pro-
duziram, quase como um ato de suprema rebelião intelectual contra os
positivistas, os dois teoremas da incompletude de Gõdel.
O positivismo, especialmente como passou a ser defendido pelo
grupo de cientistas,' matemáticos e físicos do famoso Círculo de Viena,
sob a forte influência do carismático filósofo vienense Ludwig Witt-
genstein, é uma teoria do significado rigorosa que lança mão liberal-
mente da expressão sem sentido. Em particular, ele tacha de sem sentido
qualquer proposição descritiva* que não possa, em princípio, ser veri-
ficada pelo conteúdo de nossa experiência. O significado de uma pro-
posição é dado pelo meio de verificá-la empiricamente (o critério veri-
ficacionista do significado).
Gõdel, assim como Einstein, está comprometido com a possibili-
dade de ir além das nossas experiências, ultrapassando os positivistas,
para descrever o mundo «lá fora". Só que, como o campo de Gõdel é a
matemática, o «lá fora" em que ele está interessado é o domínio da rea-
lidade abstrata. Seu compromisso com a existência objetiva da reali-
dade matemática é a visão conhecida como realismo conceitua! ou
matemático. É também conhecida como platonismo matemático, em

* Por proposição descritiva entende-se uma proposição que não seja verdadeira (ou falsa)
em virtude apenas de seu significado. As proposições cujo valor de verdade (verdade ou
falsidade) é uma função apenas de seu significado são chamadas de "analíticas" ou, às
vezes, "triviais". Assim, por exemplo, "todas as pessoas bilíngües falam pelo menos duas
línguas" é analítica. Uma proposição que seja, por outro lado, descritiva não é verdadeira
ou falsa apenas em virtude de seu significado, mas também em virtude dos fatos. Assim,
a proposição "eu sou bilíngüe" é falsa em virtude de seu significado e dos fatos.

37
INCOMPLETUDE

homenagem ao filósofo grego antigo cuja própria metafísica foi uma


rejeição veemente da crença do sofista Protágoras de que "o homem é
a medida de todas as coisas".
O platonismo é a visão de que as verdades da matemática são inde-
pendentes de quaisquer atividades humanas, como a construção de sis-
temas formais - com seus axiomas, definições, regras de inferência e
provas. As verdades da matemática são determinadas, de acordo com o
platonismo, pela realidade da matemática, pela natureza das entidades
reais, embora abstratas (números, conjuntos etc.), que constituem
aquela realidade. A estrutura, digamos, dos números naturais (que são
os velhos e regulares números de contagem: l, 2, 3 etc.) existe indepen-
dente de nós, de acordo com o realista matemático, assim como a estru-
tura do espaço-tempo, de acordo com o realista físico. E as propriedades
dos números 4 e 25 - de que, por exemplo, um é par, o outro é ímpar e
ambos são quadrados perfeitos - são tão objetivas como, de acordo
com o realista físico, as propriedades físicas da luz e da gravidade.
Para Gõdel, a matemática é um meio de revelar as características da
realidade matemática objetiva, assim como para Einstein a física é um
meio de revelar aspectos da realidade física objetiva. A compreensão de
Gõdel do que estamos fazendo quando praticamos matemática pode-
ria ser expressa em palavras que ecoam o credo de Einstein: "Lá fora há
esse m undo imenso, que existe a despeito de nós, seres humanos, e que
se acha diante de nós, qual enorme e eterno enigma, ao menos parcial-
mente acessível ao nosso exame e pensamento". Só que aqui o "lá fora"
deve ser compreendido como ainda mais distante do sujeito da expe-
riência, com seu ponto de vista tipicamente humano. O "lá fora" está
além do espaço-tempo físico; é uma realidade de abstração pura, de
verdades universais e necessárias, e nossa faculdade de raciocínio a
priori proporciona-misteriosamente-os meios de acessar esse der-
radeiro "lá fora", de obter pelo menos vislumbres parciais do que pode-
ria ser chamado de "realidade extrema".
O platonismo matemático de Gõdel não era, em si, incomum. Muitos
matemáticos foram realistas; e mesmo aqueles que não se intitulam como

38
INTRODUÇÃO. EXILADOS

tais, quando postos contra a parede e questionados sobre sua posição


metamatemática, resvalarão sem perceber no realismo ao falarem de seu
trabalho como suas«descobertas':* G. H. Hardy (1877-1947), um desta-
cado matemático inglês, expressou as próprias convicções platônicas em
seu clássico A mathematician's apology [Apologia de um matemático]:

Acredito que a realidade matemática reside fora de nós, que nossa função é des-
cobri-la ou observá-la, e que os teoremas que provamos, e que descrevemos
grandiloqüentemente como nossas "criações", não passam de anotações de
nossas observações. Essa visão foi defendida, de uma forma ou de outra, por
m u itos filósofos renomados, de Platão em diante, e usarei a linguagem que é
natural a um homem que a defenda. [... ]
Essa visão realista é muito mais plausível em relação à realidade matemá-
tica do que à física, porque os objetos matemáticos são bem semelhantes ao que
. parecem. Uma cadeira ou uma estrela são bem diferentes do que parecem ser;
quanto mais pensamos nelas, mais indistintos se tornam os seus contornos na
bruma da sensação circundante; mas "2" ou "317" não têm nada a ver com a
sensação, e suas propriedades se destacam mais claramente quanto mais perto
os examinamos. Pode ser que a física moderna se encaixe melhor na estrutura
da filosofia idealista - não acredito nisso, mas existem físicos eminentes que
dizem isso. A matemática pura, por outro lado, parece-me uma rocha onde
todo idealismo soçobra: 317 é primo, não porque pensamos assim, ou porque
nossas mentes são constituídas dessa ou daquela maneira, mas porque é assim,
porque a realidade matemática está estruturada desta maneira.**

* É interessante que isso se aplique até a David Hilbert, cujo formalismo se opunha fron-
talmente ao platonismo (ver capítulo 2).
** As circunstâncias da redação do clássico de Hardy são tão comoventes quanto incomuns.
Hardy perdera a criatividade matemática, o que tende a acontecer com matemáticos rela-
tivamente jovens. Um matemático de quarenta anos provavelmente já viveu seus melhores
anos, razão por que o prêmio mais prestigioso para matemáticos (não existe prêmio Nobel
de matemática), a Medalha Fields, é concedido a alguém com até quarenta anos. Hardyten-
tou o suicídio, sobreviveu à tentativa, e foi persuadido por C. P. Snow a escrever um livro
explicando a vida de um matemático. O resultado, A mathematician's apology, é incompa-
rável. Logo após terminá-lo, Hardy voltou a tentar o suicídio, dessa vez com sucesso.

39
INCOMPLETUDE

Os quase três milênios desde Platão nos deram uma profusão de


matemática nova e surpreendente, mas não muitos motivos novos
para acreditarmos no platonismo além daqueles do próprio filósofo
grego. Um matemático após o outro tem atestado, como Hardy, sua
convicção platônica ao dizer que está descobrindo, e não criando, ver-
dades matemáticas. Todavia, atestar é quase tudo que conseguimos
fazer... até Gõdel. A audaciosa ambição de Gõdel de atingir uma con-
clusão matemática que fosse, ao mesmo tempo, um resultado metama-
temático comprovador do realismo matemático foi precisamente o
que produziu seus teoremas da incompletude.
A visão metamatemática de Gõdel, sua afirmação da existência obje-
tiva e independente da realidade matemática, constitui talvez a essência
de sua vida, o que equivale a dizer que ele foi um homem bem estranho.
Sua perspectiva filosófica não foi uma expressão de sua matemática; sua
matemática foi uma expressão de sua perspectiva filosófica, de seu pla-
tonismo, portanto, a expressão mais profunda dele próprio. O fato de
sua obra, como a de Einstein, ter sido interpretada não apenas como
condizente com a revolta contra a antiobjetividade, mas como uma de
suas forças propulsaras mais poderosas, constitui uma ironia.
Einstein teve a sorte, nos últimos anos de vida, de contar com uma
alma filosófica gêmea, ainda que tão instável e estranha como Gõdel,
para atenuar a sensação de exílio. As palavras de Einstein citadas por
Morgenstern, de que, em seus últimos anos, ele ia ao escritório do ins-
tituto somente para ter o privilégio de voltar para casa com Gõdel, tor-
nam-se, nas sutilezas da metaluz, menos surpreendentes.
Após a morte de Einstein, em 1955, a sensação de exílio intelectual
de Gõdel aumentou. Sua identificação mais profunda era com o super-
racionalista Leibniz, morto havia trezentos anos. As explicações a que
o lógico chegou pela aplicação rigorosa de seu "axioma interessante"
assumiram tons ainda mais sombrios. O homem jovem no terno
branco e elegante deu lugar ao homem emaciado, soterrado num
sobretudo pesado e num cachecol mesmo no verão úmido e quente de
Nova Jersey, vendo conspirações por toda parte. Ele acabou acredi-

40
INTRODUÇÃO. EXILADOS

tando em uma enorme conspiração, aparentemente em atividade


havia séculos, para suprimir a verdade "e emburrecer os homens".
Aqueles que haviam descoberto o poder pleno da razão a priori,
homens como Leibniz, no século xvn, e Gõdel, no século xx, eram -
ele acreditava - homens marcados. Seu profundo isolamento -
quase alienação-dos colegas proporcionou um solo fértil para aquela
racionalidade descontrolada que é a paranóia.
O fato de o maior lógico desde Aristóteles ter perseguido a razão tão
resolutamente até tais conclusões ilógicas se afigurou paradoxal a mui-
tas pessoas. Mas, como espero deixar cada vez mais claro nos capítulos
seguintes, os paradoxos internos da personalidade de Gõdel foram,
pelo menos parcialmente, provocados pelas reações paradoxais do
mundo ao seu trabalho famoso. Seus teoremas da incompletude
foram , ao mesmo tempo, celebrados e ignorados. Seu conteúdo téc-
nico transformou os campos da lógica e da matemática; o método de
prova usado por ele, os conceitos definidos no decorrer da prova, leva-
ram a áreas de pesquisa totalmente novas, como a teoria da recursão e
a teoria dos modelos. Outras áreas centrais de pesquisa foram abando-
nadas, sobretudo as sancionadas pelo maior matemático da geração
imediatamente anterior a Gõdel, David Hilbert ( 1862-1943), tendo se
mostrado inúteis em virtude dos teoremas de Gõdel.
No entanto, a importância metamatemática dos teoremas, para
Gõdel seu aspecto mais importante, foi ignorada. De forma ainda mais
paradoxal, as correntes mais vanguardistas da cultura, apregoando a
incerteza pós-moderna e atacando a falsa mitologia de todos os abso-
lutos, reuniram seus teoremas com a relatividade de Einstein, reinter-
pretando-os de modo que negassem exatamente as convicções que
Gõdel e seu colega de exílio quiseram tanto demonstrar.
Os paradoxos, no sentido técnico, são aquelas catástrofes da razão
pelas quais a mente é compelida, pela própria lógica, a tirar conclusões
contraditórias. Muitos são do tipo auto-referencial; os problemas sur-
gem porque certos itens lingüísticos - uma descrição, uma sentença
-potencialmente se referem a si próprios. O mais antigo desses para-

41
INCOMPLETUDE

doxos é conhecido como o "paradoxo do mentiroso", que remonta aos


gregos antigos.* Ele gira em torno da sentença auto-referencial: "Esta
sentença é falsa". Esta sentença deve ser, como todas as sentenças, verda-
deira ou falsa. Mas se for verdadeira, então será falsa, pois é isso que ela
diz; e se for falsa, então será verdadeira, já que, novamente, é isso que
ela diz. Deve, portanto, ser verdadeira e falsa, e isso é um grave pro-
blema. A mente entra em parafuso.
Paradoxos como o do mentiroso desempenham um papel técnico
na prova concebida por Gõdel para seu extraordinário primeiro teo-
rema da incompletude. Gõdel conseguiu tomar a estrutura da parado-
xalidade auto-referencial- o tipo de estrutura que faz nossa mente
entrar em parafuso ao pensar que "Esta senten ça é falsa" - e trans-
formá-la em uma prova extraordinária de um dos resultados mais sur-
preendentes da história da matemática.** Isso parece quase paradoxal.
Os paradoxos sempre pareceram especificamente concebidos para nos
convencer de que não somos inteligentes o bastante para desvendar o
tema que nos levou até eles. Gõdel conseguiu transformar o paradoxo
de um sinal da limitação da inteligência em uma prova que propor-
ciona a compreensão profunda da natureza da verdade, do conheci-
mento e da certeza. De acordo com a visão platônica do próprio Gõdel
de sua prova, ela nos mostra que nossas mentes, ao saber matemática,

* Eis a referência textual da qual deriva o paradoxo: "Um dentre eles, seu próprio profeta,
disse: 'Os cretenses são sempre mentirosos'. [... ] Este testemunho é verdadeiro" (Tito
1:12-3).
** O fato de as conclusões matemáticas terem a capacidade de nos surpreender pode
parecer paradoxal. Tudo bem que o mundo frustre as nossas expectativas, nosso con-
tato experimental com ele levando a abruptos despertares. Mas como isso pode ocorrer
com conclusões atingidas puramente pela razão a priori? Se verdades a priori são-por
definição - imunes à revisão empírica, não é alguma experiência inesperada do
mundo que dá o tranco. Nós próprios devemos deduzir a confusão, e isso à primeira
vista parece estranho. Essa questão metamatemática também é abordada pelo prolixo
primeiro teorema de Gõdel. Para Gõdel, a realidade da matemática independente, da
qual nossos axiomas são apenas descrições incompletas, elimina a surpresa da sur-
preendente matemática.

42
INTRODUÇÃO. EXILADOS

estão escapando das limitações dos sistemas artificiais e apreendendo


as verdades independentes da realidade abstrata.
A estrutura da prova de Gõdel, ao recorrer a um paradoxo antigo,
alude em certo nível, ainda que apenas metaforicamente, aos paradoxos
da história que o século xx contou a si mesmo sobre algumas de suas
maiores realizações intelectuais - entre elas, os teoremas da incomple-
tude de Gõdel. Talvez um dia um historiador das idéias venha a explicar
a virada subjetivista de tantos pensadores influentes do século passado,
não apenas filósofos, mas também cientistas rigorosos, como Heisen-
berg e Bohr. Tal explicação está bem além do escopo deste livro. Mas o
que posso fazer é descrever os efeitos da revolta contra a objetividade
sobre um dos maiores pensadores do século xx: como essa revolta o ins-
tigou à prova dos teoremas da incompletude, e como a prova reinterpre-
tou esses teoremas como uma confirmação de si mesma.
Para entender toda a opulência - e o paradoxo - de Gõdel, seu
mundo e sua obra, será necessário dar dois passos para trás, depois que
o vimos voltando para casa com Einstein numa rua arborizada de Prin-
ceton. Retrocederemos primeiro para a Viena dos anos 20 de sua juven-
tude, o cenário de tantos dos ataques intelectuais e culturais daquele
jovem século à tradição. Depois retrocederemos ainda mais até a virada
do século, quando uma concepção da matemática deu origem a um
programa visando obter a completa formalizacão dessa ciência, pro-
grama que seria vitimado pelo trabalho do jovem e reservado lógico
com ambições metamatemáticas exageradas.

43
CAPÍTULO 1.
UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

PRIMEIRO AMOR

urt Gõdel tinha dezoito anos quando chegou a Viena para iniciar
K seus estudos na universidade. Embora tivesse nascido na Morávia,
hoje pertencente à República Tcheca, mas na época parte do Império
dos Habsburgo, sua chegada a Viena deve ter dado a sensação de uma
volta ao lar. Ele se considerava um exilado mesmo na terra natal.
Gõdel nasceu em 28 de abril de 1906, em Brno, que alemães e aus-
tríacos chamam até hoje de "Brünn". Seus pais, Rudolf e Marianne,
eram de origem alemã, e não tcheca, e se davam exclusivamente com os
demais alemães dos Sudetos que dominavam Brno. A cidade era o cen-
tro da indústria têxtil do Império dos Habsburgo. * Portanto, como
Rudolf não revelou pendores para os estudos humanísticos na escola

* É interessante que ela também abrigava o mosteiro agostiniano onde Gregor Mendel
( 1882-4) realizou seus experimentos extremamente tediosos e importantes com ervilhas,
que resultaram na descoberta das leis da dominância e recessividade em hereditariedade.

45
INCOMPLETUDE

primária, foi matriculado, aos doze anos, numa escola de tecelões, onde
descobriu sua vocação. Ele completou seus estudos ali com distinção e
obteve um emprego na fábrica têxtil de Friedrich Redlich, onde traba-
lhou até morrer. Fez uma carreira rápida e acabou se tornando diretor
e um dos sócios. Por isso, a família vivia com conforto e acabou com-
prando uma mansão num bairro elegante.
A mãe de Gódel, Marianne, era bem mais instruída e culta do que o
pai, o que não era incomum entre a burguesia do Império. Também era
usual a escolha do cônjuge resultar de preocupações práticas, e não de
inclinações românticas, o que parece também ter acontecido no casa-
mento dos Gódel. Como acontece nesses casos, os vínculos emocionais
mais fortes da mãe foram estabelecidos com os filhos: Rudolf, nascido
um ano após o casamento, e Kurt, nascido quatro anos depois e bati-
zado como Kurt Friedrich, o nome do meio em homenagem ao empre-
gador do pai, que foi o padrinho. Por algum motivo, o lógico abando-
nou o nome do meio ao se tornar cidadão americano em 1948.
Quase tudo que sabemos da infância de Kurt Gódel, embora seja
pouco, advém do irmão mais velho Rudolf, que escreveu uma breve
«História da família Gódel", bem como das respostas de Rudolf às per-
guntas dos lógicos Hao Wang e John Dawson sobre a infância de seu
irmão mais novo. (Rudolf foi físico, nunca se casou e permaneceu na
Áustria. Morreu em 1992, aos noventa anos.) 1
Sabemos através de Rudolf que Kurt fazia tantas perguntas que foi
apelidado de der Herr Warum, ou «sr. Por quê?". Quem convive com
crianças pequenas sabe muito bem que elas tendem a insistir nas per-
guntas. Nascemos com uma espécie de assombro ontológico (thaumá-
zein) que cai no esquecimento à medida que nos acostumamos com a
realidade do mundo. O thaumázein intenso da infância de Gõdel per-
sistiu por sua vida adulta. Desse modo, a criança que era chamada de
Herr Warum tornou-se o homem que iniciou os catorze princípios de
seu credo particular com Die Welt ist vernünftig: o mundo é racional.
Como muitos matemáticos brilhantes, Gódel alcançou certo nível de
maturidade precoce ainda na infância; então, tendo atingido aquele

46
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

A família Gõdel. e. 191 O: Marianne. Kurt. o pai. Rudolf. e o irmão. Rudolf.

nível, permaneceu ali. A foto em família que temos do futuro «sucessor


de Aristóteles"* aos quatro anos mostra um homenzinho querúbico,
olhando direto para a câmera, mãos apoiadas sobre a mesa, a ligeira
inclinação à frente dando a impressão de contemplação solene.

* Aristóteles costuma ser reconhecido como pai da lógica. Sua obra de lógica está
exposta na Analítica anterior, que faz parte da coletânea póstuma conhecida como
Organon. O filósofo teve o insight seminal de que, em um argumento da lógica dedutiva,
algumas palavras são logicamente relevantes, enquanto outras não. As palavras irrele-
vantes podem ser eliminadas, tornando-se variáveis. Assim, por exemplo, no silogismo
clássico se todos os homens são mortais, e Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal,
as palavras "homens': "mortal" e "Sócrates" são dispensáveis. Esse silogismo particular
é apenas uma instância do silogismo-esquema mais geral: se todos os Xs são Y, e i é um X,
então i é um Y. Denotar palavras logicamente irrelevantes por variáveis foi uma passa-
gem para a m aior generalidade e, portanto, para a ciência da lógica. Aristóteles, porém,
generalizou demais, afirmando que todo raciocínio dedutivo é silogístico. Os avanços
modernos do século x1x, mais especificamente do alemão Gottlob Frege ( 1848-1952 ),
revelaram a variedade maior dos argumentos dedutivos.

47
INCOMPLETUDE

Também ficamos sabendo por uma carta de Rudolf ao lógico Hao


Wang que, em torno dos cinco anos, o irmão mais novo sofreu de uma
leve neurose de ansiedade CleichteAngst Neurose))) e, aos oito, teve um
acesso grave de "reumatismo das juntas, com febre alta)). O paciente
pesquisou sobre sua doença e, ao descobrir que podia causar danos car-
díacos permanentes, inferiu que aquilo acontecera com ele. Gõdel pas-
sou a vida convencido de que sofria do coração, apesar da ausência de
quaisquer indícios. A conclusão a que chegou, sozinho, aos oito anos de
idade, contribuiria para a sua hipocondria vitalícia.
Quando as permutações aleatórias da combinação genética pro-
duzem um rebento cuja inteligência supera de longe a dos pais, a
criança enfrenta um tipo especial de aflição: reconhece sua total
dependência, já que não passa de uma criança, mas também percebe
claramente os graves limites da compreensão dos próprios pais. Na
maioria dos casos a pessoa só vem a reconhecer isso na adolescência,
quando a reação normal é uma mistura explosiva de orgulho, desdém
e revolta ( como podem ser tão tapados?). Mas a reação de uma criança
tende mais a ser de terror cego ( como podem estar cuidando de
mim?). A leichte Angst Neurose é uma indicação de que o precoce
Gõdel percebeu os limites da onisciência dos pais mais ou menos aos
cinco anos. Seria confortador, diante de tal conclusão abaladora,
especialmente quando reforçada por uma doença grave alguns anos
depois, derivar a seguinte conclusão adicional: existem sempre expli-
cações lógicas, e sou exatamente o tipo de pessoa capaz de descobri-
las. Os adultos à minha volta podem ser uns pobres coitados, mas por
sorte não preciso depender deles. Posso descobrir tudo sozinho. O
mundo é totalmente lógico, e minha mente também é - uma combi-
nação perfeita.
Possivelmente o jovem Gõdel teve alguns pensamentos assim para
atenuar o terror da descoberta, numa idade prematura, de ser bem mais
inteligente do que os pais. Isso explicaria muita coisa sobre o homem
que ele se tornaria. A criança é o pai do homem - ainda mais no caso
de gênios da matemática.

48
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Na escola, a K.-K. Staatsrealgymnasium mit deutscherUnterrichtss-


prache* (obviamente uma escola de língua alemã), Gõdel destacou-se
em todas as matérias e começou a mostrar a altivez e a solenidade mar-
cantes que o caracterizariam ao longo da vida. Um colega de classe,
Harry Klepetai'.-, escreveu para John Dawson que "desde o início [... ]
Gõdel mantinha-se mais ou menos reservado e dedicava a maior parte
do tempo aos estudos". Ele também informou que os interesses de
Gõdel eram "variados" e que "seu interesse em matemática e física [já]
se manifestara [... ] aos dez anos". 2
Gõdel, porém, recusou-se a cursar quaisquer cadeiras na língua da
república onde estava vivendo (a língua natal da maioria dos estudan-
tes era alemão). Klepetaf lembrou a Dawson que Gõdel foi o único
colega que ele nunca viu falando uma palavra sequer de tcheco e que,
especialmente após outubro de 1918, quando a República da Tchecos-
lováquia declarou a independência, "Gõdel considerou-se sempre aus-
tríaco e um exilado na Tchecoslováquia". 3 Assim, a sensação de exílio
começou cedo na vida e, em vários sentidos, alguns mais perniciosos
do que outros, possivelmente nunca o abandonou.
Gõdel ingressou na Universidade de Viena em 1924, com a inten-
ção de estudar física, mas, como contou mais tarde a Hao Wang, "seu
interesse na precisão levou-o da física à matemática e à lógica mate-
mática". 4 O interesse de Gõdel por física começara aos quinze anos,
quando ele leu a teoria das cores de Goethe, que fazia parte de um ata-
que geral à física newtoniana. Sua transição à matemática também foi
encorajada, ele contou a Hao Wang, pelas excelentes aulas de alguns de
seus professores na universidade. O curso de teoria dos números, minis-
trado pelo professor Phillip Furtwangler, atraía tamanho número de

* K.-K., abreviatura de Kaiserliche-Konigliche (imperial-real), designava as escolas em


terras da coroa austríaca. Kaiserliche e konigliche aplicava-se às escolas administradas
em conjunto pela Áustria e Hungria, e konigliche sozinho se referia às pertencentes à
Hungria. Esse sistema de abreviação imperial se presta à sátira, sendo de fato magistral-
mente satirizado por Robert Musil em seu romance O homem sem qualidades.

49
INCOMPLETUDE

estudantes (até quatrocentos) que era preciso distribuir senhas, em


dias alternados, para as cadeiras. Gõdel foi um desses estudantes arre-
batados, e mais tarde contou que aquelas foram as aulas mais maravi-
lhosas de sua vida.
Pretendendo se concentrar na teoria dos números, Gõdel mudou
sua especialização para matemática em 1926, mas em 1928 começou a
trabalhar em lógica matemática. Ele já era um platônico ferrenho em
1926 quando mudou da física para a matemática. Seu compromisso
metafísico se forjara no ano anterior, ao cursar história da filosofia com
o professor Heinrich Gomperz, cujo pai, Theodore, era um renomado
professor de filosofia antiga.
Não é fácil penetrar na vida íntima de Kurt Gõdel. Já é bastante reco-
nhecer que ela difere muito da vida dos outros. Por isso, raciocinar por
analogia não nos levará muito longe. Ademais, era um homem total-
mente reservado, que não demonstrava nada que não fosse de cunho
matemático. Foi um homem de paixões profundas, como sua vida mos-
trará. Mas essas paixões eram secretas e rigorosamente intelectuais.
No entanto, creio que podemos afirmar que, como tantos de nós,
Gõdel se apaixonou durante o curso universitário. Ele sofreu a transfi-
guração arrebatadora do amor, seu radical reordenamento das priori-
dades, que dá à vida um novo foco e sentido. Não se pode ser a mesma
pessoa de antes.
Kurt Gõdel apaixonou-se pelo platonismo, e já não podia ser a
mesma pessoa de antes.
Quais os indícios de uma paixão tão transformadora a ponto de
agitar aquele lógico opacamente autocontido? Ou seja, quais os indí-
cios além dos próprios teoremas da incompletude?
Alguns dos indícios residem no Nachlass, o legado literário de
Gõdel, abrigado na Biblioteca Firestone de Princeton. O Nachlass
ficara mofando no porão do instituto, até que John Dawson empreen-
deu a tarefa formidável de tornar-se arquivista de Gõdel. 5 ( Gõdel
empregava uma espécie de taquigrafia, Gabelsberger, aprendida no
curso secundário, de modo que a tarefa envolvia, acima de tudo, tradu-

50
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

ção.) Gõdel aparentemente guardou cada pedacinho de papel com que


cruzou na sua vida. Há artigos de revistas, notas de roupas, manuscri-
tos, fotos da família, exercícios de estudante, papeletas de livros
emprestados de bibliotecas em Viena e Princeton. Encontrei (na cole-
ção de objetos pessoais de Gõdel do instituto) aqueles pequenos ensi-
namentos bíblicos das testemunhas de Jeová, do tipo que os pregado-
res tentarão lhe impingir se você estiver em casa no meio do dia e
atender a campainha. Continham trechos cuidadosamente sublinha-
dos e comentários à margem, do próprio Gõdel.
Mais reveladores são os vários rascunhos de cartas que nunca foram
postadas, os manuscritos de artigos que ele prometeu entregar, revisou
cuidadosamente repetidas vezes e depois nunca liberou para publica-
ção.6A impressão é de uma cautela de proporções histéricas. Não uma
cautela cerebral, pois as ambições intelectuais de Gõdel eram audacio-
sas, suas intuições, fortes, sua vontade de levá-las à conclusão lógica,
inflexível. Pelo contrário, havia uma histeria de discrição em apresen-
tar seus pensamentos ao mundo externo. 7
Entre os documentos em que Gõdel trabalhou, mas que nunca
entregou, estão as respostas a um questionário preparado para ele por
um sociólogo. Burke D. Grandjean fizera repetidas tentativas de entre-
vistar Gõdel e, finalmente, concebeu um questionário para ele em 1974
(dois anos antes da morte do lógico). No Nachlass, há duas versões
ligeiramente diferentes do questionário respondido, bem como uma
carta datilografada, sem assinatura e nunca enviada, endereçada ao sr.
Grandjean e datada de 19 de agosto de 1975. A carta começa de maneira
um tanto ríspida: "Caro sr. Grandjean: Respondendo às suas consultas,
gostaria de dizer, em primeiro lugar, que não considero o meu trabalho
'uma faceta da atmosfera intelectual do início do século xx' - muito
pelo contrário". Pode-se imaginar a carta reverente do sociólogo que
provocou essa resposta irascível. No contexto de uma vida tão reser-
vada, essa carta, além dos dois conjuntos de respostas aos questioná-
rios, é reveladora. O tom furioso de Gõdel em sua resposta, não
enviada, a Grandjean reforça a impressão de que sua vida, especial-

51
INCOMPLETUDE

mente após a morte de Einstein, se caracterizou por uma profunda sen-


sação de isolamento intelectual - uma sensação de isolamento refor-
çada por interpretações errôneas de seu resultado mais famoso.
Grandjean listara vários pensadores e pedira que Gõdel indicasse
quais o haviam influenciado, e Gõdel deixou claro como eram equivo-
cados os pressupostos de Grandjean. Parece haver uma vida de exaspe-
ração por trás das respostas. Leibniz nem sequer é listado.
À pergunta de Grandjean "Existem influências às quais você atribui
significado especial no desenvolvimento de sua filosofia?", a resposta
inteira de Gõdel consistiu em: "Heinrich Gomp.[erz] Prof[essor] de
F [ilosofia] de Viena': Uma resposta que parece estranha, mas não é. Foi
na aula do professor Gomperz que o amor intelectual transfigurativo
de Gõdel foi engendrado. Conquanto Gõdel possa ter assistido arreba-
tado às aulas de teoria dos números do professor Furtwangler, foi na
introdução à história da filosofia do professor Gomperz que o verda-
deiro arrebatamento ocorreu.
Platão sempre exerceu forte apelo sobre quem gosta de matemática.
O próprio Platão gostava de matemática. À entrada da Academia, a
escola ateniense de educação superior que ele fundou (em essência, a
primeira universidade européia), liam-se as palavras: "Que aqui não
adentre quem não souber geometria".
O desprezo do filósofo grego antigo pelos sofistas, particularmente
por homens como Protágoras, deu origem à conotação negativa dessa
palavra designativa daqueles professores itinerantes. (A raiz da palavra
sofista é a palavra grega antiga para conhecimento. Filosofia, literal-
mente "amor à sabedoria", compartilha da mesma raiz.) Protágoras
pretendia que sua afirmação de que "o homem é a medida de todas as
coisas" se aplicasse de modo mais direto à esfera moral. Ele vinha defen-
dendo o que agora chamamos "relativismo moral", a afirmação de que
não existe diferença objetiva enúe certo e errado, apenas opiniões dife-
rentes, relativizadas para indivíduos ou conglomerados de indivíduos
que compartilham aproximadamente os mesmos valores (ou seja,
sociedades). "Verdadeiro", quando aplicado a opiniões morais, é uma

52
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

abreviatura de ((verdadeiro para x", onde x é um indivíduo ou uma


sociedade de indivíduos com opiniões éticas semelhantes.
Platão enfrentou os relativistas. Foi a ocupação de sua vida. Além de
defender a objetividade da verdade moral, ele também baseou a postu-
lação da verdade objetiva - na moral bem como em outras esferas -
em sua afirmação da objetividade de uma realidade abstrata, perceptí-
vel não pelos sentidos, mas pela razão.
A área em que o platonismo se mostrou mais teimosamente perdu-
rável é a matemática, ou melhor, a metamatemática. A sensação de um
matemático de estar descobrindo verdades objetivas, e não simples-
mente construindo sistemas, é um compromisso com o platonismo. A
convicção de que coisas como números e conjuntos servem de mode-
los para nossos sistemas, sistemas esses verdadeiros apenas na medida
em que descrevem a natureza de coisas como números e conjuntos,
representa igualmente um compromisso com o platonismo.
O primeiro contato com Platão pode ser uma experiência ine-
briante para quem é apaixonado por abstração (lembro-me do meu
próprio contato). 8 Pode se tornar uma espécie de êxtase. O próprio Pla-
tão argumentou que a beleza do mundo abstrato, que excede imensu-
ravelmente a de qualquer objeto particular, pode e deve despertar uma
paixão bem maior do que aquela provocada pela beleza individual das
pessoas (criaturas volúveis e imperfeitas, com cujo amor nem sequer
podemos contar e cuja beleza, além de não poder competir com a do
tipo transcendente, está sujeita à ação corrosiva do tempo). O uso da
expressão ((apaixonou-se" em relação à experiência de Gõdel na uni-
versidade é imitação do próprio Platão, que empregou uma linguagem
impregnada de erotismo para descrever a captação pela mente das
belezas da objetividade abstrata.
-,
"Se em algum momento da vida, meu caro Sócrates", continuou a estrangeira de
Mantinéia, "vale a pena para um homem viver, é nesse, quando contempla o pró-
prio Belo. Se algum dia o contemplares, verás que ele não se relaciona com o
outro, com as roupas ou com a formosura dos belos jovens e adolescentes, a cuja

53
INCOMPLETUDE

vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam
seus amados e sempre estejam com eles, sem comer nem beber, se de algum
modo fosse possível, mas só contemplando e estando ao seu lado! Que pensamos
então que aconteceria': disse ela, "se a alguém fosse dado contemplar o próprio
Belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carne humana, decores e outras mui-
tas ninharias mortais, mas a própria Beleza divina e única? Acaso imaginas",
disse, "que é mesquinha a vida de um homem que, de olhos voltados nessa dire-
ção, contempla a dita Beleza da maneira certa e desfruta a sua presença? 9

Um "banquete" (symposion, em grego) na verdade significava uma


festa regada a bebidas na Atenas de Platão, e, no diálogo ao qual ironi-
camente deu esse nome, Platão nos exorta a abandonar os êxtases
menores, inclusive os associados ao amor sensual por belos jovens, e
nos embebermos da beleza da verdade - o tipo de verdade necessária
e imutável adquirida pela razão pura e para a qual a matemática serve
de modelo. Um aspecto da visão platônica é a rejeição da bifurcação
fácil entre paixão, de um lado, e razão, de outro. Platão está nos convi-
dando para a razão apaixonada, o êxtase supremo. Claro que a susceti-
bilidade ao êxtase supremo depende da capacidade de captar o objeto
do amor intelectual, as belezas da abstração pura, "voltar os olhos nessa
direção e contemplar a dita Beleza da maneira certa e desfrutar a sua
presença". O jovem Kurt Gõdel era singularmente suscetível.
A reação de Gõdel à visão arrebatadora de Platão da verdade foi, ao
que parece, a decisão de se dedicar apenas à matemática de (para lembrar
a expressão de Einstein) "importância genuína': Teria que ser matemá-
tica com metassignificado, que fosse filosoficamente porosa de modo
que a fonte objetiva de toda verdade abstrata pudesse transparecer.
De início, Gõdel havia sido atraído pela teoria dos números por
acreditar que ela forneceria a prova mais forte e a aplicação mais clara
do realismo conceitual. 10 Foi em 1928, aos 22 anos, que seus interesses
matemáticos começaram a mudar para a lógica matemática. O fato de
ter sido atraído pela teoria dos números exatamente por causa do seu
compromisso platônico, conforme contou a Hao Wang, e depois sedes-

54
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

viado para a lógica matemática é intrigante. Hao Wang não fez a per-
gunta subseqüente: exatamente quando Gõdel vislumbrou que a lógica
poderia fornecer as conclusões matemáticas que vinha buscando?
É tentador especular a respeito, e a especulação esclarecida é o
máximo de que dispomos. Não temos uma idéia clara do caminho que
o levou aos seus teoremas, por meio de uma argumentação engenhosa
nunca vista antes.
Em contraste, sabemos muita coisa sobre as preocupações que leva-
ram Einstein à sua teoria da relatividade restrita. Está tudo nos regis-
tros públicos do cientista que desempenhou o papel de gênio profissio-
nal na imaginação coletiva do mundo. Sabemos como, a partir dos
dezesseis anos, ele costumava realizar experimentos de pensamento,
imaginando-se pegando carona num raio de luz, ou apostando corrida
com ele, tentando deduzir qual seria o aspecto das leis da física do
ponto de vista de um observador movendo-se à velocidade da luz.
Mas a genialidade de Gõdel nunca foi objeto de exibição pública
como a de Einstein. As fontes de sua inspi;ação, o mecanismo mental,
revelando como paradoxos antigos puderam se transformar em uma
prova, com conclusões permeadas de metaconotações, são desconheci-
dos. Ele deve ter vislumbrado o potencial metamatemático da lógica,
mesmo quando a lógica ainda era bem menos respeitável matematica-
mente do que se tornaria com seu trabalho. Não sabemos com precisão
quando ele obteve sua primeira prova da incompletude. O orientador de
sua dissertação (havia então avançado para a pós-graduação) nem
sequer sabia o que ele estava cogitando. Mas sabemos que, em 7 de outu-
bro de 1930, Gõdel obteve a prova do primeiro teorema da incompletude.
O lógico Jaakko Hintikka escreveu:

Um indicador da relevância de Gõdel foi o fato de que o momento mais impor-


tante de sua carreira foi também o momento mais importante da história da
lógica do século xx, talvez da história da lógica em geral. Esse grande momento
foi em 7 de outubro de 1930. O cenário: um congresso sobre os fundamentos
da matemática, em Kõnigsberg, em 5-Tde outubro de 1930. 11

55
INCOMPLETUDE

O que aconteceu em Kõnigsberg em 7 de outubro de 1930 foi que


Kurt Gõdel, um estudante de pós-graduação relativamente desconhe-
cido, ao participar de um congresso sobre metamatemática dominada
pelos líderes do campo, proferiu algumas palavras indicativas de que
tinha uma prova da incompletude da aritmética. Ele foi basicamente
ignorado por todos os presentes, com exceção de um matemático que
estava ali para representar uma posição metamatemática totalmente
divergente do platonismo de Gõdel, mas que foi inteligente o bastante
para perceber as implicações do "anúncio" discreto de Gõdel.
No entanto, há algo de errado nas palavras de Hintikka. O momento
mais importante na carreira de Gõdel não foi a revelação pública do pri-
meiro teorema da incompletude. Aquele momento parece o mais
importante porque foi ali que Gõdel deu uma leve indicação pública do
que vinha realizando. Os momentos mais importantes de sua carreira
foram, na verdade, aqueles sobre os quais nada sabemos: os momentos
das intuições, dos experimentos de pensamento ou seja lá o que for que
o levou à própria prova.
Sua convicção platônica deve tê-lo convencido, sem prova, de que a
realidade matemática deve exceder quaisquer tentativas formais de
contê-la. Mas como ele se apoderou da estratégia para provar a incom-
pletude? Como teve a idéia, em particular, de transformar em prova os
aspectos estruturais dos paradoxos auto-referenciais? Como lhe ocor-
reu a idéia inspirada da agora denominada "arimetização de Gõdel", a
técnica pela qual enunciados da matemática adquiririam duplos sen-
tidos, constituindo também enunciados metamatemáticos? A estraté-
gia geral da prova é espantosamente simples, os detalhes que tiveram
de ser elaborados são espantosamente complicados, e esses dois aspec-
tos espantosos despertam o desejo de saber melhor como ele chegou lá.
Mas tudo de que dispomos é o resultado: a prova que mudou para sem-
pre nossa compreensão da matemática e, com isso, talvez tenha aju-
dado a modificar nossa compreensão de nós mesmos.
Portanto, não é Kõnigsberg o cenário do verdadeiro drama, e sim
Viena - a Viena do final da década de 1920 e início da década de 1930,

56
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

uma cidade singular nos aspectos culturais e intelectuais. Nenhum


pensador cogita no vácuo - nem mesmo o mais puro dos matemáti-
cós puros, n;a. mais alta torre de marfim da Razão Pura.Nem mesmo um
pensador tão ferrenhamente fiel à integridade de suas próprias intui-
ções como Kurt Gõdel é totalmente indiferente, ainda que com espírito
de oposição, às opiniões predominantes em sua época, aos tipos de
questões que flutuam como esporos na atmosfera intelectual.
A cidade de Viena naquele período entre as duas guerras mundiais,
a estranha intensidade do pensamento e a criatividade que se desenvol-
viam ali desempenham seu papel na história dos teoremas de Gõdel.
Viena era então uma cidade com um número desproporcional de pen-
sadores e artistas seminais - cientistas, músicos, poetas, artistas
visuais, filósofos, arquitetos - que coletivamente pareciam atraídos
para uma só conversa intensa e alentada, abrangendo todas as discipli-
nas e formas de arte. Gõdel, por mais reservado que fosse, também aca-
bou participando da conversa.
Ali, naquela cidade extremamente teatral onde mesmo a vida inte-
lectual alcançava certa teatralidade, até Gõdel, a última pessoa do
mundo a buscar o drama aparente, alcançou certo grau dele.

DA VELHA DESORDEM SURGE UMA


CIDADE EM BUSCA DE NOVAS BASES

Se Princeton é um turbilhão intelectual de alta energia disfarçado de


local agradavelmente insípido na paisagem sub_urbana de Nova Jersey,
a Viena da década de 1920, quando Kurt Gõdel chegou como estu-
dante, era "o laboratório de pesquisa da destruição do mundo", nas
palavras famosas de um cronista da época, o jornalista e satirista Karl
Kraus. O romancista Herman Kesten viu-a como a cidade da "criação
brilhante em uma cultura não obstante decadente".
A vida intelectual fervilhante da cidade não se limitava às salas de
aula da universidade e às salas dos professores, estendendo-se aos

57
INCOMPLETUDE

numerosos cafés que até hoje parecem exibir a essência da vida vie-
nense. Muita coisa mudou na cidade, e no país como um todo, após a
Primeira Guerra Mundial e o colapso do Império dos Habsburgo em
1916. Mas Viena permaneceu, em sua atmosfera, uma pequena cidade
grande: o centro cultural indiscutível de seu país. A sensação de que ela
era quase uma entidade totalmente fechada em si mesma dentro do
país mais amplo, compartilhando pouco em termos de perspectiva
com o resto da população, talvez tenha um correspondente na relação
da atual Nova York com os Estados Unidos, embora a descontinuidade
entre a cidade e a cultura geral pareça ter sido bem maior no caso de
Viena e Áustria.
Na época de Gõdel, Viena ainda tinha a única universidade real da
Áustria, que cabia quase inteiramente em um único prédio. Essa con-
centração física da vida acadêmica refletia a vida intelectual em geral.
Tratava-se de uma cidade cujos pensadores pareciam se conhecer, ao
menos ligeiramente, influenciando o pensamento uns dos outros atra-
vés das diversas disciplinas, de modo que matemáticos, físicos, histo-
riadores, filósofos, romancistas, poetas, músicos, arquitetos e artistas
estavam envolvidos, em certo sentido, na mesma conversa. O tema
geral: a morte e decadência moral e intelectual de tudo que viera antes,
e a necessidade de construir metodologias, formas e fundamentos
inteiramente novos. Foi esse tema sustentado, em tantos campos dife-
rentes, que provocou o surgimento do que viemos a chamar moderni-
dade, e até pós-modernidade: em literatura, música, arquitetura, arte,
filosofia, psicologia, e, até certo ponto, ciência.
A Viena pós-1918 proporcionava uma grande arquibancada da
qual contemplar a rápida desintegração dos anacronismos. O Império
dos Habsburgo, aquela variação elaborada de temas do status quo e do
patriarcado, implodira com o fim da Grande Guerra. Onze nacionali-
dades diferentes - alemães, rutenos, italianos, eslovacos, romenos,
tchecos, poloneses, húngaros, eslovenos, croatas, transilvanos, saxões e
sérvios - estavam reunidas no império desgracioso; a entidade resul-
tante carecia, significativamente, de um nome aceito por todos. Seu

58
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

último líder foi Francisco José, imperador da Áustria desde 1848 e rei
da Hungria desde 1867, que reinou por um longo período. E a capital
do reino sem nome era Viena. Embora uma consciência unificadora se
sobrepusesse às várias nacionalidades do império, a "Cidade dos
Son hos", como Viena foi apropriadamente apelidada, conseguiu de
fato alcançar algo como aquela consciência cosmopolita supranacio-
nal imposta pelo mito do império.
Viena, no apogeu, havia sido uma capital imperial governando
cerca de 50 milhões de súditos. Agora estava reduzida à capital de uma
pequena e arruinada república alpina com pouco mais de 6 milhões de
cidadãos, quase todos alemães. (Muitos dos tchecos que viviam na
cidade partiram, o que atenuou um pouco a falta de moradia.) Mas, se
Viena caiu em termos políticos, sua importância como uma capital
intelectual do mundo era inigualável. A própria sensação de um
colapso espiritual e cultural (cuja iminência havia sido evidente aos
pensadores vienenses mesmo enquanto a dinastia dos Habsburgo
sobrevivia) intensificou a necessidade de buscar novas bases. A cons-
ciência coletiva dos cidadãos mais esclarecidos da cidade estava per-
meada de uma espécie de intensidade nervosa, o surto de idéias irrom-
pendo como a sintomatologia do gênio doentio.
Assim, encontramos em Viena não apenas o berço do sionismo, na
figura de Theodor Herzl, mas também das manifestações mais extre-
mas daquelas idéias em reação às quais surgiu o sionismo: o nazismo.
A cidade proporcionou o terreno fértil para a teoria de Freud do
inconsciente, da repressão, da histeria e da neurose. Foi lá que Klimt,
Schiele e Kokoschka pintaram as telas exuberantes e sensuais da Seces-
são.* Arnold Schõnberg e Alban Berg criaram a música atonal, e

* A Secessão foi fundada em 1897 por artistas que divergiam das políticas do establishment
artístico vienense. Um salão de exposições para os secessionistas foi inaugurado em 1898.
O pai de Ludwig Wittgenstein, o riquíssimo magnata do aço Karl Wittgenstein, foi um dos
três "benfeitores" cujos nomes foram gravados na placa após a entrada. Os outros dois
nomes pertencem a artistas famosos na época: Rudolf von Alt e Theodor Hõrmann.

59
INCOMPLETUDE

Adolph Loos concebeu uma espécie nova de arquitetura, em que a


forma era estritamente determinada pela função, a ornamentação
excessiva e os aposentos superestofados da burguesia dos Habsburgo
equivalendo à podridão moral.
Uma voz influente (e acerba) que soava pelos círculos culturais
superpostos de Viena pertencia ao jornalista Karl Kraus, o incansável
editor ( e basicamente o único redator) da revista satírica Die Fackel, ou
A Tocha. Kraus valia-se de sua revista para fustigar toda sorte de hipo-
crisia vienense, fosse praticada pela velha guarda ou pela avant-garde.
(Ele foi, por exemplo, um crítico implacável de Freud.) Kraus voltou
grande parte de sua cruzada feroz para a linguagem, desmascarando a
fraude que se oculta nas banalidades das formas respeitáveis de falar, o
vazio e o sentimentalismo insincero das obras de literatura e as frases
vazias dos jornalistas. "Falar e pensar são a mesma coisa", declarou ele
no seu livro Die Sprache (A linguagem): a estrada não apenas para teo-
rias melhores, mas para uma sociedade melhor, está pavimentada com
a precisão lingüística. O próprio Kraus era um estilista consumado,
alfinetando seus alvos em epigramas elegantes: "O psicanalista agarra
nossos sonhos como se fossem nossos bolsos". "O segredo do dema-
gogo é parecer tão burro quanto seu público, de modo que este se jul-
gue tão inteligente quanto ele.""O esteta está para a beleza como o por-
nógrafo, para o amor e o político, para a vida."
A atenção de Kraus à linguagem como o tema mais importante de
sua crítica ao pensamento soaria familiar aos estudantes de filosofia da
época, a ponto de parecer um truísmo. Embora o próprio Kraus não
fosse filósofo, exerceu forte impacto sobre os filósofos vienenses, e por-
tanto sobre os filósofos mundo afora. Ludwig Wittgenstein, em parti-
cular, era leitor assíduo de Die Fackel.
A visão de Kraus de que a falsidade intelectual agredia não apenas
a verdade, mas também a moralidade, foi muito convincente entre
seus contemporâneos vienenses. Uma sensação de premência moral
sub jazia suas discussões acerca de questões intelectuais e artísticas, e o
tom exortatório dos antigos profetas hebreus, conclamando a tribo ao

60
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

arrependimento, muitas vezes despontava nas discussões dos temas


mais abstratos, como por exemplo as condições para o sentido das
proposições. Idéias desacreditadas, solecismos, meias verdades e não-
proposições com fraseado complicado carregam a mácula fatal da
insuficiência moral. É moralmente imperativo romper com o passado
e pensar com clareza.
A cultura vertiginosa das idéias vienenses estava em exibição pública,
realizando-se em torno das mesinhas redondas dos muitos cafés da
cidade. (Um dos motivos disso, aliás, era a precariedade das moradias de
Viena: mal aquecidas e geralmente inadequadas, predispunham os vie-
nenses a passar seu tempo fora de casa.) Os literatos e outros artistas pre-
feriam lugares como o Café Museum, o Herrenhof ou o Café Central,
onde Peter Altenberg, por exemplo, correspondia, com tanto prazer, à
imagem popular do "poeta": camisa de cores berrantes, calças de listras
compridas e o pincenê pendendo poeticamente de uma fita preta. Em
outra mesa, Alban Berg e outros compositores podiam ser encontrados
discutindo a exaustão da tonalidade; ouAdolph Loos debatendo as bar-
baridades da arquitetura tradicional; ou o romancista Franz Werfel, que
escreveu sobre o "ambiente sombrio" do café em seu romance Bárbara ou
compaixão. Outro escritor, Alfred Polgar, propôs uma "Teoria do Café
Central", explicando que o estabelecimento era uma verdadeira Weltans-
chauung, "uma visão de mundo, mas cuja essência era evitar ver o
mundo". 12 Seus habitués, "na maior parte, pessoas cuja misantropia só era
igualada por sua ânsia pelos semelhantes, pessoas que querem estar sozi-
nhas mas precisam de companhia para tal':
Para os matemáticos como Gõdel, havia o Akazienhof, a apenas três
minutos a pé da universidade, bem como outros lugares: o Arkaden-
café, o Reichsrat, o Schattentor, os tampos de mesa de mármore branco
que proporcionavam uma superfície para escrevinhar as equações.
Não apenas a localização, mas também a categoria de pessoas que ele
atraía e seu respectivo status, bem com a seleção de periódicos e jornais
oferecidos, influenciavam a escolha do lugar onde um grupo específico
se reunia.

61
INCOMPLETUDE

Além da sociedade dos cafés, a vida intelectual de Viena também se


organizava em vários Kreise, ou círculos: grupos de discussão mais ou
menos formais que se reuniam semanalmente e giravam em torno dos
principais intelectuais da cidade. Muitos desses círculos se sobrepu-
nham. Alguns estavam ligados a uma universidade, outros não. Um
grande número se dedicava a discussões do socialismo (um deles, em
torno de Max Adler, se concentrava em Kant) e outros se orientavam
em torno das diferentes facções dentro do movimento psicanalítico.
Um grande número de círculos visava à discussão de filosofia, não ape-
nas de Kant, mas de figuras como Kierkegaard e Liev Tolstói, que goza-
vam de enorme influência na época. O filósofo Heinrich Gomperz, em
cuja aula Godel se convencera do platonismo, mantinha um grupo de
discussão centrado na história da filosofia. A geometria intelectual de
Viena era densamente composta de círculos.

O CÍRCULO DEViENA

De longe o mais importante daqueles círculos foi o que girava em torno


do filósofo Moritz Schlick, primeiro chamado, apropriadamente, de
Schlick Kreis, embora acabasse sendo conhecido, devido à sua impor-
tância, como Der Wiener-Kreis, o lendário Círculo de Viena. Foi a partir
desse grupo de pensadores que o influente movimento conhecido como
"positivismo lógico" em grande parte se disseminou. As prescrições
reformadoras do grupo mudaram a atitude de cientistas da natureza,
cientistas sociais, psicólogos e humanistas, levando-os a reformular as
questões de seus respectivos campos. Os efeitos perduram até hoje.
O comparecimento às reuniões do Círculo de Viena dependia de
convite. O filósofo Karl Popper, que se tornaria famoso e já era uma
força intelectual promissora, esperou com impaciência e em vão pelo
convite para aderir ao Kreis mais importante da cidade. 13
Kurt Godel foi convidado a aderir ao círculo ainda na pós-gradua-
ção e compareceu regularmente às sessões semanais entre os anos de

62
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

1926 e 1928. O interessante é que 1928 foi o ano em que ele se voltou para
a lógica matemática, que lhe renderia sua famosa prova. Não é de admi-
rar que ele deixasse de ter tempo ou motivação para as sessões semanais.
Sua associação com os positivistas lógicos levou à falsa crença de
que ele próprio foi um positivista e de que seus teoremas da incomple-
tude são uma conseqüência dos princípios positivistas. Os teoremas da
incompletude de Gõdel ainda costumam ser considerados um dos
maiores sucessos do positivismo lógico: o resultado revolucionário
da aplicação de seus princípios à matemática. Assim, por exemplo,
no recente Wittgenstein's poker [O atiçador de Wittgenstein], David
Edmonds e John Eidinow escrevem:

A voz do Círculo ainda pode ser ouvida em uma série de epônimos filosóficos. Em
1931, Gõdel publicou seu teorema que frustrou quaisquer tentativas de desenvol-
ver um fundamento lógico para a matemática. Ele mostrou que é impossível
demonstrar a consistência de um sistema aritmético formal dentro dele mesmo.
Seu artigo de quinze páginas provou que parte da matemática não podia ser pro-
vada - que quaisquer que fossem os axiomas aceitos na matemática, sempre
haveria algumas verdades que não poderiam ser validadas a partir deles. 14

A citação aos dois teoremas de Gõdel está mais ou menos correta,


embora tenham sido fundidos em um só "teorema". Mas dizer que a voz
do Círculo pode ser ouvida nos teoremas de Gõdel está muito distante
da verdade.A voz que Godel ouviu dentro de seus teoremas foi a do pla-
tonismo. Qualquer posição metafísica, e ainda mais o platonismo,
constitui pura e simplesmente um anátema para um positivista lógico.
Gõdel se tornara platônico em 1925, um ano antes de aderir ao
grupo de discussão. A orientação antimetafísica do grupo não teve
nenhuma influência sobre ele, e, quanto a seus membros, aparente-
mente nunca suspeitaram - pelo menos por um longo tempo - de
que ele não compartilhava de suas visões. Ao que tudo indica, ele deu
poucas pistas. Não era de sua natureza na época, e jamais seria, discu-
tir face a face com aqueles de quem discordava. Sua aversão ao conflito

63
INCOMPLETUDE

era tamanha que chegava a constituir uma excentricidade, embora não


das mais pronunciadas. Ele se recusava a contestar o ponto de vista de
outra pessoa, a não ser que tivesse certeza absoluta, ou seja, uma prova.
Por toda vida, Gõdel preferiu que suas provas matemáticas falassem
por ele. (Talvez não por acaso aquele homem cuja extrema reserva
ocultava convicções intensas tivesse produzido os resultados matemá-
ticos mais prolixos da história dessa disciplina.) Ele desanimava
quando os outros não captavam tudo que estava tentando dizer. 15 Até o
fim da vida deplorou que ainda considerassem seus pontos de vista
compatíveis com os do Círculo de Viena.*
Quais os pontos de vista do Círculo de Viena? O positivismo lógico foi,
acima de tudo, um movimento que falava em nome da precisão e do pro-
gresso associados às ciências. Procurou apropriar-se da metodologia que
tão bem servira às ciências, destilar a essência dessa metodologia, não ape-
nas para depurar a própria ciência de suas tendências mais misticamente
vagas e metafísicas- nenhuma caracterização continha uma carga nega-
tiva pior do que "metafísico"-, mas também para depurar todas as áreas
intelectuais. Tratava-se de um programa de higiene intelectual.
No espírito vienense da época, esse grupo de pensadores de diferen-
tes campos - matemática, filosofia, as ciências físicas e sociais - pre-
tendia dar aos restos decadentes das idéias antigas um rápido enterro,
conforme exigia o decoro, e fazer nascer em seu lugar um sistema cujo
fundamento salutar derivaria das ciências empíricas. O positivismo
lógico disseminou-se bem além do pequeno aposento despojado onde
o grupo se reunia e influenciou profundamente a posição filosófica de
filósofos e cientistas sociais e da natureza, muitos dos quais nem sequer
tinham consciência de possuir uma posição filosófica. Mas a preferên-
cia pela ausência de uma posição especificamente filosófica foi um dos
pontos principais enfatizados pelos positivistas lógicos. Tratava-se de

* Jean Cocteau escreveu em 1926 que "A pior tragédia para um poeta é ser admirado
embora mal entendido". Para um lógico, especialmente um com a delicada psicologia
de Gõdel, a tragédia é talvez ainda pior.

64
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

uma posição filosófica que visava abolir todas as posições filosóficas, o


que ao leitor pode parecer paradoxal.
O positivismo lógico é, às vezes, denominado "empirismo lógico" ou
"empirismo radical". O empirismo tradicional, exemplificado pelas
idéias do filósofo escocês David Hume ( 1711-76), procurou delinear os
limites do conhecimento. Havia, por um lado, o tipo de perguntas res-
pondíveis pelo raciocínio a priori; estas, de acordo com Hume, não
tinham importância ontológica. Não passavam de verdades conceituais
que nada nos informam sobre como o mundo realmente é; apenas refle-
tem relações abstratas entre conceitos. Hume chamou-as de "associa-
ções de idéias': Assim, a verdade de que os solteiros não são casados é
análoga à verdade de que os fantasmas são espíritos desencarnados dos
mortos e à verdade de que o sorvete sem gordura não tem gordura. Cada
uma é verdadeira a despeito da existência ou não de seu sujeito: soltei-
ros, fantasmas ou sorvete sem gordura. Por outro lado, existem propo-
sições que vão além do meramente conceitual e buscam descrever a
natureza do mundo, dizer quais coisas existem e quais as propriedades
das coisas e as relações entre elas. De acordo com o empirismo tradicio-
nal, quaisquer proposições que tratem da natureza do mundo- Hume
chamou-as de "questões de fato e existência''- só podem ser provadas
verdadeiras ou falsas por meios empíricos. Algum tipo de prova é indis-
pensável. A faculdade da razão a priori pode nos informar como os con-
ceitos se relacionam uns com os outros, mas não pode informar como é
o mundo além dos nossos conceitos. Para esse tipo de conhecimento,
precisamos de algum tipo de contato experimental com o mundo.
Recorrendo a um exemplo favorito, vejamos a questão da existência
de Deus, definido como um Ser transcendente situado fora do espaço e
do tempo, o que limita fortemente as possibilidades de contato experi-
mental. (Pelo menos, tais experiências teriam que ocorrer no tempo.)
Muitos empiristas tradicionais haviam considerado a existência de um
tal Deus transempírico totalmente incognoscível, já que os meios cog-
nitivos à nossa disposição são, em princípio, inadequados para respon-
der positiva ou negativamente à questão. Um Deus tão remoto - além

65
INCOMPLETUDE

da nossa experiência - pode existir, mas nunca saberemos se existe.


(Bertrand Russell, quando lhe perguntaram o que diria caso se encon-
trasse no Céu face a face com o Todo-Poderoso, brincou que sua res-
posta seria: "Senhor, por que não fornecestes mais indícios?")
Os positivistas lógicos transformaram a teoria empírica do conheci-
mento em uma teoria do significado. De acordo com esta última, os
meios empíricos importantes para a constatação da veracidade de uma
proposição também fornecem o próprio significado de uma proposição.
A teoria positivista do significado costuma, portanto, ser chamada de
"critério verificacionista da significabilidade': e estipula que os limites da
cognoscibilidade empírica mapeiam os limites da significabilidade.
Caso não se consiga, em princípio, imaginar nenhum conjunto possível
de experiências que serviriam de corroboração para uma proposição, o
que se tem é a mera aparência de uma proposição, destituída de signifi-
cado - o que os positivistas denominaram "pseudoproposição".
Ao declarar que os limites da cognoscibilidade são idênticos aos
limites da significabilidade, os positivistas deram ao aspecto proble-
mático de perguntas como a da existência de Deus ( ou de valores
morais ou de entidades abstratas) um enfoque renovado: a não-res-
pondibilidade de certas perguntas não é mais uma medida de nossas
deficiências cognitivas, mas sinal de que as perguntas jamais deveriam
ter sido formuladas.A incognoscibilidade é vista como sinal de um erro
no uso da linguagem. Se Deus (ou os valores morais, os universais ou
os números) é definido de modo que nenhum dado empírico possa
estar relacionado à pergunta sobre sua existência, então e~sa pergunta
é desmascarada como ipso facto sem sentido: nada pode ser conside-
rado como uma resposta genuína a ela. As supostas respostas - sim,
Deus existe! ou não, Ele não existe! - são ambas impostores proposi-
cionais. Tudo que possa ser legitimamente dito pode ser dito de modo
claro, com as condições para a sua significabilidade sendo idênticas às
condições para a sua verificabilidade (o que não quer dizer que todas as
proposições significativas sejam verdadeiras, é claro, e sim que haveria
algum conjunto de experiências - que não ocorreriam se a proposi-

66
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

ção fosse falsa- que estabeleceriam se a proposição é verdadeira). A


precisão (proporcionada pelo critério verificacionista da verdade)
torna.:.se o correspondente positivista da prece.
A transformação positivista da teoria empírica do conhecimento
em uma teoria do significado fez com que a expressão condenatória
"sem sentido"viesse a ser atribuída aos vestígios de grande parte do que
antes havia sido considerado conhecimento. Aquela expressão simples
permitia realizar um programa de higiene cognitiva como o mundo
jamais vira antes. O Círculo de Viena, que durou de 1924 a 1930, che-
gando ao fim com o trágico assassinato de Moritz Schlick por um ex-
aluno psicótico, * teve um efeito que se alastrou para fora de Viena e
continua agindo até hoje, com freqüência nos capítulos "filosóficos"
introdutórios de livros didáticos de ciências da natureza ou sociais. (A
presença nesses capítulos de expressões como "uma pergunta sem sen-
tido porque empiricamente irrespondível" é uma boa deixa. Em psico-
logia, por exemplo, a escola behaviorista que predominou por várias
décadas do século xx costumava afirmar que os termos psicológicos
não reduzíveis a estímulos e respostas observáveis eram sem sentido.)

DRAMA TIS PERSONAE DO CÍRCULO DE VIENA

Moritz Schlick, se não o pensador mais dinâmico e inovador do Cír-


culo, foi um homem cujas sinceridade positivista e capacidades orga-
nizacionais parecem ter sido fundamentais ao sucesso do grupo. Nas

* O aluno, Johann (ou Hans) N elbock já havia sido duas vezes internado em clínicas psi-
quiátricas por ameaçar Schlick. Ele desenvolvera um delírio em que o influente filósofo
era responsável não apenas por seus problemas sentimentais, mas também por suas
dificuldades em arranjar emprego. Ele atirou em Schlick na escadaria central do prédio
principal da universidade (uma placa de latão ainda marca o local) quando o filósofo se
apressava para dar uma aula. Os nazistas de Viena, já numerosos em 1930, aplaudiram
o assassino psicótico pela vitória na batalha pela higiene demográfica, sendo Schlick,
um protestante alemão, pintado nos jornais diários como um judeu ateu. Ateu ele era,
mas judeu nem um pouco. Na verdade, ele descendia da pequena nobreza prussiana.

67
INCOMPLETUDE

palavras do filósofo Rudolf Carnap: ''A atmosfera agradável das reu-


niões do Círculo devia-se, acima de tudo, à personalidade de Schlick e
à sua cordialidade, tolerância e modéstia inexauríveis". 16 Tendo estu-
dado física na Alemanha com o grande Max Planck, viera a Viena em
1922 para assumir a prestigiosa cátedra de filosofia das ciências indu-
tivas da universidade, a mesma cátedra que tivera como titulares Ernst
Mach e o gigante da física Ludwig Boltzmann (para quem a rejeição da
hipótese molecular por parte de Mach acarretara uma tragédia profis-
sional e pessoal).*
Schlick via com simpatia o clima de discussão em Viena, e sua pre-
sença na universidade logo atraiu pensadores de várias disciplinas com
idéias afins. De início, eles se reuniam num velho café vienense. Mas o
número de participantes gradualmente aumentou e, em 1924, Schlick
concordou em tornar as reuniões um pouco mais formais, transfe-
rindo o grupo para uma sala da universidade.
Embora todos (ou quase todos) no Círculo defendessem idéias posi-
tivistas e cada um (mesmo o platônico clandestino) tivesse um vínculo
ou afinidade profunda com as ciências exatas, entre eles reinava uma
diversidade de interesses, personalidades e opiniões. Havia, por exem-
plo, Rudolf Carnap, que estudara física e matemática em Jena, onde fora
influenciado pelo lógico Gottlob Frege (1848-1925). Carnap estava
"especialmente interessado nos problemas e técnicas da lógica formal"
e ficaria contente em ver todas as questões reduzidas a um tratamento
técnico - claro que aquelas que teimassem em se manter irredutíveis
seriam declaradas sem sentido. 18 Dizia-se que seu rosto, sobretudo na
juventude, "parecia quase exalar sinceridade e honestidade". 19 Sua fran-
queza intelectual impressionou seus colegas positivistas; ele trabalhava
e aprendia constantemente. Quando algum assunto que fosse novo para

* De uma análise estatística do comportamento de um grande número de moléculas


Boltzmann havia conseguido deduzir as leis da termodinâmica. Seu trabalho foi subes-
timado devido à rejeição positivista predominante da realidade das moléculas por parte
de Mach. Boltzmann suicidou-se, talvez em parte por desespero profissional. 11

68
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

ele ou no qual quisesse se atualizar surgia na conversa, apanhava um


pequeno caderno e anotava algumas palavras. 2º Sua facilidade de reda-
ção logo fez dele o principal expoente das idéias do Círculo.
Otto Neurath era cientista social e economista, um homem de
dimensão elefantina (ele assinava suas cartas com um desenho de ele-
fante), e energia e capacidade de gozar a vida igualmente elefantinas.
Tanto Carnap (que era um introvertido) como Neurath ( que não era)
tinham um pendor pelo utopismo político, e N eurath em particular ten-
tou conduzir o Círculo em direções políticas, muitas vezes dando a falsa
impressão, talvez involuntária, de que reinava no Círculo uma homoge-
neidade política. «Schlick em especial parecia ressentir-se disso, já que
em Viena o Círculo era conhecido por seu nome, o Schlick-Kreis:' 21
Neurath e Carnap sentiam também que o Círculo estava intima-
mente ligado a outros movimentos culturais. Em particular, havia uma
afinidade de pontos de vista entre o Círculo e a ideologia inspirada no
design industrial da Bauhaus.Ambos eram uma expressão da neue Sach-
lichkeit, a "nova objetividade" com o selo de aprovação das ciências. E na
Alemanha havia o "Grupo de Berlim", centrado no filósofo da ciência
Hans Reichenbach, cuja visão era quase idêntica à do Círculo de Schlick.
A irmã de Neurath, a cega Olga Neurath, fumante de charutos, tam-
bém era membro ativo do Círculo. Ela era matemática, com gostos
amplos que se estendiam à lógica. Na juventude, havia escrito três arti-
gos, um dos quais, sobre a álgebra das classes, é descrito por Clarence I.
Lewis, em sua Survey of symbolic logic [Pesquisa da lógica simbólica],
como "uma das contribuições mais importantes para a lógica simbólica':
Olga Neurath era casada com Hans Hahn, também importante
integrante do Círculo. Hahn havia sido responsável pela vinda de
Schlick da Alemanha para Viena. Matemático de primeira, seu nome
eternizou-se no útil teorema da extensão de Hahn-Banach na análise
funcional. Os interesses matemáticos de Hahn eram amplos, e ele aca-
bou se interessando por lógica. Foi ele quem chamou a atenção do Cír-
culo para os trabalhos em lógica matemática do alemão Gottlob Frege
e do inglês Bertrand Russell. Nutria também uma admiração ilimitada

69
INCOMPLETUDE

por Russell e prestou ao Círculo de Viena o grande serviço de poupar-


lhes a dificuldade de ler os monumentais Principia Mathematica, em
três volumes, explicando-os para eles em seu seminário do ano acadê-
mico de 1924-5.
Hans Hahn interessa particularmente à nossa história porque,
quando Gõdel decidiu mudar seu foco da teoria dos números para a
lógica matemática, Hahn tornou-se orientador de sua dissertação.
Embora a especialidade de Hahn não fosse lógica (conquanto tivesse
realizado algum trabalho significativo em teoria dos conjuntos), seus
interesses matemáticos eram flexíveis o suficiente para acomodar o
novo interesse de Gõdel. Gõdel entrou pela primeira vez em contato
com Hahn em 1925 ou 1926 e contou a Hao Wang que Hahn fora um
professor de primeira, explicando tudo "nos mínimos detalhes".
Os interesses intelectuais de Hahn também iam bem além da mate-
mática. Um dos interesses extramatemáticos de Hahn era a busca de
indícios empíricos dos fenómenos parapsicológicos, um tema quente
em Viena na época. Um grande número de médiuns célebres apareceu
nos anos do pós-guerra, e um comitê acabou sendo formado, incluindo
Schlick, Hahn e outros pensadores de orientação científica, com o obje-
tivo de investigar as alegações daqueles médiuns, cuja veracidade setor-
nou um incómodo ponto de discórdia dentro do Círculo.Apesar de des-
crente, Hahn tinha uma mente aberta o suficiente para aborrecer os
demais membros, por exemplo, seu cunhado Otto Neurath. "Quem se
interessa por essas questões?", perguntou certa vez Neurath com seu
vigor característico, respondendo à própria pergunta nos seus termos
sociológicos prediletos: ''Aristocratas acríticos e decadentes e alguns
intelectuais supercríticos como Hahn. Esse tipo de estudo fomenta a
crença nas forças sobrenaturais e serve apenas aos grupos reacionários". 22
Enfim havia também dois alunos jovens de Schlick, Frederich Wais-
mann e Herbert Feigl, que, como "alunos favoritos", foram convidados
por Schlick para se juntar ao Círculo. Hahn também convidaria dois de
seus alunos mais talentosos, Karl Menger e Kurt Gõdel, para a compa-
nhia seleta do Círculo de Schlick.

70
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

OUTRA VEZ: O HOMEM É A


MEDIDA DE TODAS AS COISAS

Em 1929, quando Schlickrejeitou a oferta de uma cátedra prestigiosa e


lucrativa em sua Alemanha natal, os demais membros do Círculo deci-
diram celebrar sua permanência publicando, em homenagem a Schlick,
um opúsculo que definia os princípios e objetivos de seu ponto de vista
conjunto. O resultado: uma espécie de manifesto positivista intitulado
Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis ou A visão de mundo
científica: O Círculo de Viena. "Tudo': anunciava o manifesto, "é acessí-
vel ao homem. O homem é a medida de todas as coisas." As antigas pala-
vras dos sofistas foram reiteradas textualmente, só que com nova cono-
tação científica: qualquer pergunta não suscetível, em princípio, à
medição, ou seja, aos procedimentos empíricos, simplesmente não é
uma pergunta. Como os limites da cognoscibilidade são congruentes
com os limites do significado, nenhuma questão significativa consegue
escapar ao nosso alcance. Somos cognitivamente completos.
Alguns anos depois, Herbert Feigl (que viria a se tornar um filósofo
da ciência proeminente nos Estados Unidos) foi co-autor de um artigo
no Journal ofPhilosophy americano intitulado "Logical positivism: a new
movement in European Philosophy': O artigo, escreve Feigl, forneceu ao
ccnosso movimento filosófico sua marca registrada internacional". 23
O termo ccpositivismo" havia muito estava em circulação, sempre
conotando uma atitude pró-científica como padrão para a significabi-
lidade. Originalmente se aplicou às idéias de Auguste Comte ( 1798-
1857) e Herbert Spencer (1820-1903). O físico vienense Ernst Mach
(1838-1916) exigira, em nome do positivismo, que todas as proposi-
ções significativas fossem redutíveis a constructos de impressões dos
sentidos, dando assim muito mais substância ao positivismo de Comte
e Spencer. O capítulo "Observações introdutórias" de seu livro Contri-
butions to the analysis ofsensations [Contribuições à análise das sensa-
ções] (1885) teve como subtítulo ccAntimetafísico". Seu positivismo o
levara a denunciar tanto a realidade dos átomos como a relatividade de

71
INCOMPLETUDE

Einstein. Os positivistas de Schlick reconheceram em Mach uma de


suas luzes orientadoras, embora moderando suas denúncias da relati-
vidade o suficiente para admitir Einstein, também, como uma de suas
inspirações (se bem que ignorando a interpretação realista dada por
Einstein à teoria dele. Os positivistas, pelo contrário, foram inspirados
pela redefinição de Einstein do conceito de "simultaneidade de even-
tos" em termos da velocidade da luz).
"Lógico" foi acrescentado a "positivismo", explica Feigl, para enfa-
tizar que os positivistas vienenses excluíam as proposições lógicas
( entre as quais incluíam a matemática) da disjunção normalmente
exclusiva: empírico ou sem sentido.

As verdades da matemática pura (ou seja, não incluindo a geometria física ou


outros ramos das ciências factuais) são de fato a priori. Mas são a priori porque
[... ] validadas com base no próprio significado dos conceitos envolvidos nas
proposições da matemática. O Círculo de Viena considerava, por exemplo, as
identidades da aritmética como verdades necessárias, baseadas na definição
dos conceitos de número - e, portanto, análogas às tautologias da lógica (tais
como "o que será será"; "o tempo mudará ou permanecerá o mesmo"; "não é
possível comer e não comer seu bolo ao mesmo tempo"). 24

Ou seja, os positivistas lógicos acreditavam que a matemática, assim


como a lógica, era destituída de qualquer conteúdo descritivo. As pro-
posições matemáticas, se não totalmente tautologias, são análogas a
elas. (É difícil entender essa sutileza, mas tudo bem por ora.) Em outras
palavras, a matemática é meramente sintática; sua verdade deriva das
regras dos sistemas formais, que são de três tipos básicos: as regras que
especificam quais são os símbolos do sistema (seu "alfabeto"); as regras
que especificam como os símbolos podem ser reunidos nas denomina-
das fórmulas bem-formadas; é as regras de inferência que especificam
quais fórmulas podem ser derivadas umas das outras.
Para ter uma noção do que significa caracterizar a matemática como
sintática (embora o conceito seja examinado mais de perto no próximo

72
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

capítulo), contrastemos esse ponto de vista com o platonismo. Para quem


acredita que a matemática é sintática, a expressão "é verdadeiro" assume
um significado especial quando aplicada a uma proposição matemática:
uma proposição matemática é verdadeira relativamente às regras estipu-
ladas - a sintaxe - de um sistema formal. De modo similar, para um
relativista moral como Protágoras, <<é verdadeiro': quando aplicado a um
enunciado ético, é uma abreviatura de <<é verdadeiro em relação a onde x':
x é uma pessoa _ou, mais provavelmente, um conglomerado de pessoas
com os mesmos valores éticos. As verdades morais só são verdadeiras em
relação às regras estipuladas por uma sociedade. São, na terminologia
acadêmica em voga, constructos sociais. De forma semelhante, segundo
esse ponto de vista, as verdades matemáticas são constructos formais.
Já um matemático platônico emprega a palavra "verdadeiro",
mesmo quando aplicada a enunciados matemáticos, exatamente da
forma como costumamos empregá-la: não como uma abreviatura
para "relativamente a x", mas para representar estados de coisas exis-
tentes. Para um platônico, a verdade matemática é o mesmo tipo de
verdade predominante em outros domínios. Uma proposição p é ver-
dadeira se e somente se p. "Papai Noel existe" é verdadeira se e somente
se Papai Noel existe. "Todo número par maior que 2 é a soma de dois
primos" é verdadeiro se e somente se não existe nenhum número par
maior que 2 que não seja a soma de dois primos (mesmo que jamais
consigamos prová-lo).*

* O matemático prussiano Christian Goldbach (1690-1764) conjecturou que todo


número par superior a 2 é a soma de dois números primos ( um número divisível ape-
nas por 1 e por si mesmo). Assim, por exemplo, 4 = 2 + 2, 6 = 3 + 3, 8 = 5 + 3, e assim por
diante. A conjectura de Goldbach foi confirmada para todo número par já verificado.
Mas ainda não se descobriu a prova da conclusão universal de que todo número par
maior que 2 é a soma de dois primos. O fato de a conjectura de Goldbach permanecer
sem prova significa (pelo menos de acordo com os platônicos) que, além do ponto até
onde foi a verificação dos matemáticos, um contra-exemplo pode estar espreitando: um
número par que não seja a soma de dois primos. Ou então (de acordo com o platônico
matemático) pode não existir contra-exemplo: todo número par pode ser a soma de
dois primos, sem que haja um meio formal de prová-lo. Um platônico afirma que exis_te
ou não um contra-exemplo, a despeito de termos uma prova disso.

73
INCOMPLETUDE

A visão, portanto, da natureza sintática da matemática - sua falta de


conteúdo descritivo - foi indicada no próprio nome "positivismo
lógico': (E o platônico Gõdel conviveu com os positivistas sem protestar.)
O cenário das reuniões do Círculo de Viena era "uma sala um tanto
sombria" no térreo do prédio da Boltzmanngasse que abrigava os insti-
tutos de matemática e física da universidade. (Hoje é o instituto meteo-
rológico. )25 A sala estava repleta de fileiras de cadeiras e mesas compri-
das diante de um quadro-negro. Quando não usada pelos positivistas,
era uma sala de leitura às vezes empregada para palestras. Aqueles que
chegavam primeiro às reuniões das noites de quinta-feira afastavam
algumas mesas e cadeiras do quadro-negro, o qual a maioria dos confe-
rencistas usava. As cadeiras eram dispostas informalmente em semicír-
culo diante do quadro-negro, e numa mesa comprida no fundo da sala
ficava quem quisesse fumar ou tomar notas. As pessoas conversavam de
pé em grupos até o sinal de Schlick: uma palma forte com as mãos. As
conversas cessavam, todos se sentavam, Schlick na extremidade da mesa
mais próxima do quadro-negro. Ele anunciava o tema do artigo a ser
lido ou da discussão a ser realizada, às vezes lia primeiro comunicados
de colegas, e os procedimentos formais da noite tinham início.
A cada reunião comparecia normalmente um máximo de vinte
membros vienenses e, às vezes, visitantes estrangeiros. Por exemplo,
John von Neumann ( que, entre outras capacidades prodigiosas, conse-
guia morar ao mesmo tempo em vários pontos afastados do globo,
inclusive Budapeste e Princeton) podia dar o ar de sua graça se estivesse
nas imediações. Passaram algum tempo com o grupo de Schlick: o
jovem Willard van Orman Quine, dos Estados Unidos, que viria a
dominar a filosofia analítica anglo-americana por várias décadas de
seu posto em Harvard; Carl Hempel, da Alemanha, que, entre outras
distinções, foi meu orientador no primeiro ano da pós-graduação; o
grande lógico polonês Alfred Tarski (nascido Tannenbaum) da Polô-
nia; e o filósofo Alfred Jules Ayer, da Inglaterra.Ayer, após passar alguns
meses em Viena e assimilar as doutrinas, retornou à Inglaterra e descre-
veu suas assimilações no altamente influente e polêmico Language,

74
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

truth, and logic [Linguagem, verdade e lógica], disseminando assim as


idéias dos positivistas de Viena no mundo de língua inglesa:

Estamos convictos de que nenhum enunciado referente a uma "realidade" que


transcende os limites de toda experiência sensível possível pode ter um signi-
ficado literal. Donde se depreende que os esforços daqueles que procuraram
descrever tal realidade foram todos dedicados à produção de contra-sensos.

De longe a figura mais influente ligada ao Círculo de Viena nem


sequer foi um membro dele, e na verdade se recusou firmemente a sê-
lo. Trata-se do filósofo Ludwig Wittgenstein. Wittgenstein, pelo
menos de acordo com a interpretação que irei propor, desempenha
um papel importante, ainda que ambíguo, na história dos teoremas
da incompletude de Gõdel. A influência quase mística de Wittgens-
tein sobre os membros do Círculo de Viena, pensadores estimados
em meio aos quais o jovem lógico passou a pensar rigorosamente
sobre os fundamentos da matemática, deve ter parecido extrema-
mente dúbia a uma pessoa com as convicções de Gõdel. Vestígios
ainda fumegantes do ressentimento de Gõdel em relação ao filó-
sofo encontram-se no Nachlass, escrito (embora nunca exposto ao
público) várias décadas após o Círculo de Viena deixar de existir e
poucos anos antes da morte do lógico.
Os pontos de vista de Gõdel e Wittgenstein sobre os fundamentos
da matemática estavam, como veremos, em desacordo, e nenhum deles
poderia reconhecer o trabalho do outro sem renunciar ao que havia de
mais essencial em sua própria concepção. Cada um, acredito, era um
espinho cravado na metamatemática do outro.

WITTGENSTEIN E O CÍRCULO

Wittgenstein provinha de uma das famílias mais abastadas e cultural-


mente elitistas de Viena, "o equivalente austríaco aos Krupp, Carnegie,

75
INCOMPLETUDE

Rothschild, cujo opulento palácio naAlleegasse acolhera concertos de


Brahms e Mahler, Clara Schumann, e do regente Bruno Walter". *26 Ele
foi, em sua intensidade, preocupações, ambições e conflitos, indelevel-
mente marcado pelas sensibilidades daquela cidade intensa, preocu-
pada, ambiciosa e conflituosa. Enquanto estudava engenharia aero-
náutica na Technische Hochschule de Berlim, tomou conhecimento do
paradoxo de Russell e se interessou pelos fundamentos da matemática.
O famoso paradoxo de Russell é do tipo auto-referencial. O para-
doxo do mentiroso- esta frase que você está lendo é falsa- é do mesmo
tipo. O problema ocorre porque certo item lingüístico fala sobre si
mesmo, ao menos potencialmente. Devido a essa auto-referenciali-
dade, acabamos ao mesmo tempo afirmando que certo enunciado é
verdadeiro e que também é falso, o que é logicamente impossível, caso
algo de fato o seja.
O paradoxo de Russell envolve o conjunto de todos os conjuntos que
não são elementos de si mesmos. Conjuntos são objetos abstratos que
contêm elementos, e alguns conjuntos podem ser elementos de si mes-
mos. Por exemplo, o conjunto de todos os objetos abstratos é elemento
de si mesmo, já que é um objeto abstrato. Alguns conjuntos (a maioria)
não são elementos de si mesmos. Por exemplo, o conjunto de todos os
matemáticos não é um matemático-é um objeto abstrato-de modo
que não é elemento de si mesmo. Agora formamos o conceito do con-
junto de todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos e per-
guntamos: ele é elemento de si mesmo? Ou ele é, ou não é, assim como
a sentença problemática do paradoxo do mentiroso é, ou não é verda-
deira. Mas, se o conjunto de todos os conjuntos que não são ele-
mentos de si mesmos é um elemento de si mesmo, então ele não é ele-
mento de si mesmo, já que contém apenas conjuntos que não são

* Era uma família extremamente musical. O irmão do filósofo, Paul, era um pianista
clássico que perdeu o braço direito na Primeira Guerra Mundial. Desenvolveu tamanha
capacidade com o braço esquerdo que conseguiu prosseguir a carreira. O famoso Con-
certo para a mão esquerda de Ravel foi composto para Paul Wittgenstein.

76
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

elementos de si mesmos. E, se não for elemento de si mesmo, então é


um elemento de si mesmo, já que contém todos os conjuntos que não
são elementos de si mesmos. Assim, ele é membro de si mesmo se e
somente se não é elemento de si mesmo. Nada bom.
Paradoxos têm sido muitas vezes encontrados espreitando nos
locais mais profundos do pensamento. Sua presença costuma ser um
sinal (como o canário que morre?) * de que conseguimos, às vezes invo-
luntariamente, topar com um lugar profundo e problemático, uma fis-
sura nos fundamentos. A descoberta do paradoxo de Russell teve con-
seqüências dolorosas sobre os fundamentos da matemática, em
especial para uma pessoa: Gottlob Frege. Frege acabara de concluir sua
obra monumental em dois volumes Grundgesetze der Arithmetic [As
leis fundamentais da aritmética], a primeira tentativa de reduzir a arit-
mética a um sistema de lógica formal. A lógica que Frege empregou
também inclui a teoria dos conjuntos. Em outras palavras (usando a
linguagem de um lógico), conjuntos são incluídos como indivíduos no
universo do discurso, sobre o qual as variáveis ligadas do sistema
variam. O que isso basicamente significa é que o sistema pode ser inter-
pretado como falando sobre conjuntos. Os números são então defini-
dos em termos de conjuntos, e as leis aritméticas são derivadas dos
axiomas e regras da teoria dos conjuntos e lógica.
Os axiomas da teoria dos conjuntos de Frege permitiam a forma-
ção do conjunto de todos os conjuntos que não são elementos de si
mesmos, e como esse conjunto envolve uma contradição - já que o
conjunto é e não é, ao mesmo tempo, elemento de si mesmo.:_ havia
algo de fundamentalmente errado com o sistema de Frege. Embora o
sistema fosse adequado para a expressão de verdades aritméticas, era
também inconsistente, a pior coisa que um sistema formal pode ser. É
possível provar absolutamente tudo ( e, portanto, efetivamente nada)

* Alusão ao canário que os mineiros costumavam levar para dentro das minas para saber
quando os níveis de oxigênio estavam baixos demais. A morte do canário era sinal de
que estava na hora de abandonar a mina. (N. T.)

77
INCOMPLETUDE

a partir de uma contradição.* Desse modo, um sistema inconsistente


é inútil como uma ferramenta de prova.
Russell e seu colaborador,Alfred North Whitehead, conceberam um
novo sistema formal para expressar verdades aritméticas, corporificado
em seus Principia mathematica (justamente a obra que figura no título
do artigo de 1931 em que Gõdel apresenta a prova do primeiro teorema
da incompletude). Entretanto, para assegurar a consistência, Russell e
Whitehead haviam imposto regras ad hoc para a formação de conjun-
tos. Sua teoria dos tipos determina que existem ordens crescentes no
universo do discurso - os «tipos» das coisas sobre as quais interpreta-
mos que a teoria formal fala. Indivíduos básicos constituem o tipo 1;
conjuntos de indivíduos, tipo n; conjuntos de conjuntos, tipo m; con-
juntos de conjuntos de conjuntos, tipo IV etc. Um item só pode ser ele-
mento de um item de tipo superior. A questão, portanto, de um con-
junto ser membro de si próprio nem sequer pode emergir. As regras dos
Principia mathematica impedem a formação de conjuntos geradores de
paradoxos, como o conjunto de todos os conjuntos não pertencentes a
si próprios. Russell e Whitehead denominaram as suas regras de "teoria
dos tipos», mas o problema era que não havia uma teoria real por trás das
regras, como eles próprios reconheceram a contragosto. A única expli-
cação para o fato de certos conjuntos serem admissíveis e outros não**
era que, caso se admitisse o não-admissível, coisas terríveis acontece-
riam com o sistema. O sistema formal deles é consistente por decreto.
O desafio que Russell e Whitehead lançaram aos lógicos de criar uma

* Eis por que se pode provar qualquer coisa a partir de uma contradição. A regra de infe-
rência conhecida como modus ponens diz que, de uma proposição condicional da forma
se p, então q (onde p e q são proposições aleatórias quaisquer) e da proposição p, você
pode deduzir q. Proposições da forma se p, então q são falsas se pé verdadeira e q é falsa,
e verdadeiras em todos os demais casos. Logo, caso p seja uma contradição, se p, então q
será verdadeira para qualquer q que se queira escolher. Portanto, da afirmação de uma
contradição p, qualquer coisa pode ser inferida.
** Outro conjunto gerador de paradoxo é o conjunto de todos os conjuntos, conhecido
como o conjunto universal. O matemático Georg Cantor (1845-1918) provou que o
conjunto das partes de um conjunto (formado de todos os seus subconjuntos) sempre

78
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

solução menos ad hoc para bloquear a formação de conjuntos paradoxais


foi o que desviou Wittgenstein da engenharia aeronáutica. O problema
que aturdira o grande lorde Russell era obviamente algo sobre o qual valia
a pena refletir. Wittgenstein foi para Cambridge, onde Russell era o filó-
sofo mais proeminente do corpo docente, e imediatamente se apresentou
ao eminente filósofo, matemático, ativista político e aristocrata.*
Primeiro Russell ficou um pouco desconfiado com a estranha vee-
mência do recém-chegado: "Meu alemão feroz [sic] aproximou-se e
discutiu comigo após minha palestra", escreveu Russell à sua amante da
época, Ottoline Morrell, a esposa aristocrática do parlamentar liberal
Phillip Morrell. Durante o caso amoroso, Russell escrevia para ela em
média três vezes ao dia, de modo que existe farta documentação sobre
aquele período de sua vida. Seria bom se o adultério sempre rendesse
esses resultados! "Ele está blindado contra quaisquer ataques do racio-
cínio. É realmente uma perda de tempo conversar com ele." Mas num
curto período de tempo (enquanto Wittgenstein ainda cursava a gra-
duação), as "ferozes" convicções do austríaco tiveram um efeito devas-
tador sobre a confiança de Russell em seus próprios poderes lógicos:

Estávamos ambos irritados com o calor- mostrei-lhe uma parte crucial do


que vinha escrevendo. Ele disse que estava tudo errado, sem perceber as dificul-
dades por ter julgado meu ponto de vista e saber que não podia funcionar. Não
consegui entender sua objeção- na verdade, ele não se expressou bem-, mas

tem uma cardinalidade maior que a do próprio conjunto original. Mas consideremos o
conjunto universal. É claro que nenhum conjunto poderia ter uma cardinalidade maior
que a do conjunto universal. Entretanto, seu conjunto das partes teria - uma contra-
dição. Isso é conhecido como o paradoxo de Cantor, e as regras da teoria dos conjuntos
precisam impedir a formação do conjunto universal.
* Ele foi, pelo menos após a morte do irmão mais velho, o terceiro conde de Russell. Seu
avô, lorde John Russell, introduziu a Reforro Bill de 1832 e serviu como primeiro-minis-
tro sob a rainha Vitória. Bertrand Russell foi um ativista político, em particular um paci-
fista. Foi preso duas vezes: primeiro, em 1918, durante seis meses, por um artigo supos-
tamente difamatório em uma revista pacifista, e de novo em 1961, aos 89 anos, por uma
semana, devido à sua campanha pelo desarmamento nuclear.

79
INCOMPLETUDE

sinto no íntimo que ele deve estar certo, e que ele viu algo que me passou des-
percebido. Se eu também conseguisse ver, não me importaria, mas nessas cir-
cunstâncias a questão é preocupante e acabou com meu prazer de escrever -
só posso me basear no que vejo, mas sinto que provavelmente está tudo errado,
e que Wittgenstein me achará um patife desonesto se eu prosseguir com isso. 27

A força da personalidade de Wittgenstein e sua atitude reforma-


dora diante da filosofia, o santo rigor da missão de desiludir os con-
temporâneos de suas presunções (que tinha muito a ver com sua sensa-
ção vienense da exaustão decadente das velhas tradições),* tudo isso
transformou a filosofia anglo-americana. Como Russell, os filósofos e
estudantes de filosofia de Cambridge que passaram a cercar Wittgens-
tein pareciam não ter que entendê-lo para saber "no íntimo que ele
devia estar certo". Seu brilho evidente, oracularmente (ainda que mal
expresso) dispensado contra o pano de fundo de uma personalidade
ferrenha e formidavelmente austera, tendia a resultar em uma exibição
com grande poder de convencimento. Wittgenstein com freqüência se
lamentava de que seus colegas e alunos de Cambridge não o entendiam.
Em parte era o aspecto vienense de seu pensamento que os descon-
certava. 29 Não foi apenas na determinação em obter uma metodologia
para abolir a decadência dos velhos costumes e renovar totalmente o
campo que ele se mostrou um vienense profundo. O modo atormen-
tadamente dramático de Wittgenstein cultivar seu campo de investiga-
ção, o culto do gênio que ele propagava, também eram bastante vienen-
ses. Ele lera na juventude e sempre conservara um grande respeito pelo
estranho escritor vienense Otto Weininger ( 1880-1903), "uma figura
quintessencialmente vienense" que sustentara que a única maneira de

* Wittgenstein n ão se lastimava, mas talvez até se orgulhasse perversamente do pequeno


número dos gigantes da história da filosofia que chegara a estudar. Por outro lado, as
epígrafes dos frontispícios de seus dois livros "foram retir adas de autores que dificil-
mente poderiam ter sido vienenses mais típicos: Kümberger para o Tractatus, Nestroy
para as Investigações".28

80
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

um homem justificar sua vida (para uma mulher, não existe maneira)
é adquirindo e cultivando a genialidade. 30 Weininger optou por se
matar com um tiro na mesma casa onde Beethoven, o gênio que ele
reverenciava acima de todos os demais, havia morrido. O próprio Witt-
genstein acalentou idéias suicidas por nove anos (seus três irmãos mais
velhos se suicidaram, também um ato quintessencialmente vienense),
até vir a Cambridge e ser declarado gênio por Russell. 31
Lá em Viena, Wittgenstein, in absentia, também vinha exercendo
uma profunda influência. Sua primeira obra publicada, Tractatus logico-
philosophicus, em parte escrita nas trincheiras da Primeira Guerra Mun-
dial, impressionara singularmente o grupo de Schlick. Tão estilística-
mente interessante quanto seu criador, a obra alcançou, em sua elegância
austera, uma espécie de poesia.* A ferramenta tradicional do filósofo-
º argumento - é dispensada. Cada afirmação é apresentada, como
observou certa vez Russell, "como se fosse um decreto do czar". A obscu-
ridade de sentido do poeta é preservada apesar da (por meio da?) preci-
são formal de seu sistema de numeração esmerado, que organiza hierar-
quicamente suas afirmações.Assim, digamos, a proposição 3.411 (Tanto
na geometria como na lógica, um lugar é uma possibilidade: algo pode exis-
tir nele) é uma elaboração da proposição 3.41 ( O sinal proposicional com
coordenadas lógicas - tal é o lugar lógico), que é uma elaboração da 3.4
( Uma proposição determina um lugar no espaço lógico). O sistema de
numeração foi copiado do matemático Peano, que o empregara na axio-
matização da aritmética, e é o sistema de numeração que Russell e Whi-
tehead também empregaram nos Principia mathematica.
O filósofo de Cambridge G. E. Moore sugeriu o título, inspirando-se
no Tractatus theologico-politicus de Spinoza. Bertrand Rus~ell escreveu a

* Que era uma espécie de poesia foi o elogio condenatório de Frege: "O prazer de ler seu
livro, portanto, não pode mais ser despertado pelo conteúdo, já conhecido, mas
somente pela forma peculiar dada pelo autor. O livi"o, assim, torna-se uma realização
artística, e não científica". (De uma carta de Frege a Wittgenstein de 16 de setembro de
1919, tradução inglesa em Monk 1990, p. 174.)

81
INCOMPLETUDE

introdução, que enfim, após muita dificuldade, assegurou ao autor uma


editora. Wittgenstein detestou a introdução, especialmente após tradu-
zida para o alemão: ''Todo o refinamento de seu estilo inglês': escreveu
para Russell, "obviamente se perdeu na tradução, e o que restou foi super-
ficialidade e deformação': A intimidade anterior entre Russell e Wittgens-
tein esfriou muito nos anos seguintes. "Ele tinha o orgulho de Lúcifer': foi
uma das últimas conclusões de Russell sobre o caráter de Wittgenstein.
Foi Kurt Reidemeister, um geômetra associado ao Círculo, quem
em 1924 ou 1925, a pedido de Schlick e Hahn, estudou o Tractatus e
sugeriu que o grupo o lesse em conjunto.
Foi assim que os positivistas iniciaram um estudo conjunto do Trac-
tatus, proposição por proposição, suas reuniões das noites de quinta-
feira agora dedicadas a Wittgenstein. Eles leram a obra não uma vez, mas
duas, o esforço ocupando grande parte do ano. (Essas leituras semanais
de trechos do Tractatus recordam a tradição judaica de leituras semanais
da Torá. Por acaso, nove dos catorze membros originais do Círculo eram
judeus de nascimento, embora claro que não por convicção - qualquer
discurso teísta era encarado como paradigmaticamente sem sentido.)
Os positivistas vienenses viram o críptico Tractatus como se ele ofe-
recesse exatamente as novas bases purificadoras que buscavam. A pro-
posição 4003, por exemplo, não poderia sintetizar mais perfeitamente
as suas convicções fundamentais:

A maioria das proposições e questões encontradas em obras filosóficas não são


falsas, mas sem sentido. Conseqüentemente, não podemos dar nenhuma res-
posta a perguntas dessa espécie, mas podemos apenas observar que são sem
sentido. A maioria das proposições e questões dos filósofos resulta de nossa
incapacidade de entender a lógica de nossa linguagem.[ ... ] E não surpreende
que os problemas mais profundos na verdade não sejam problemas.

Eles atribuíram a Wittgenstein o próprio critério verificacionista de


significabilidade deles, a saber, que o significado de uma proposição é
idêntico ao método de verificá-la. Ou, alternativamente, que o significado

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CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

de uma sentença pode ser reduzido à especificação das experiências que


fariam com que a proposição fosse sabidamente verdadeira. Eles vêem
uma confirmação de seu próprio positivismo em proposições como 6.53,
exortando as pessoas a "só dizer o que pode ser dito, ou seja, proposições
da ciência natural" e 4.11, "a totalidade de todas as proposições verdadei-
ras é toda a ciência natural (ou todo o corpus das ciências naturais),:
Eles também acreditavam que Wittgenstein tivesse explicado as ver-
dades da matemática e da lógica, reduzindo-as a tautologias, destituídas
de qualquer conteúdo descritivo.A proposição 4.461 afirma que "propo-
sições mostram o que dizem: tautologias e contradições mostram que
não dizem nada. Uma tautologia não tem condições de verdade, já que é
incondicionalmente verdadeira; e uma contradição não é verdadeira sob
nenhuma condição': Termos referentes a itens do mundo poderiam estar
contidos em tais tautologias, digamos, "Sócrates é mortal ou não é': Mas
essas palavras referenciais são irrelevantes à verdade da tautologia. É o
significado das constantes puramente lógicas - ou e não - que deter-
mina a verdade da tautologia, e "4.0132 Minha idéia fundamental é que
as 'constantes lógicas' não são representantes; que não pode haver repre-
sentantes da lógica dos fatos': Toda lógica é, em última análise, tautoló-
gica: "6.1262 A prova em lógica não passa de um expediente mecânico
para facilitar o reconhecimento de tautologias em casos complicados".
Como toda lógica é tautológica, ela não diz nada:" 5.43 Na verdade, todas
as proposições da lógica dizem a mesma coisa, a saber, nada':
"6.125 Portanto nunca pode haver surpresas em lógica:'
(Gõdel, é claro, estava destinado a fornecer a maior das surpresas da
história da lógica, a qual, nas palavras do lógico Jaakko Hintikka, é "mais
estranha que as outras por várias ordens de grandeza". 32 Portanto, o lei-
tor já deve suspeitar, a esta altura da discussão, que as visões de Wittgens-
tein sobre filosofia da lógica, culminando na proposição 6.125, o colo-
cariam em conflito frontal com os resultados de Gõdel. Como veremos,
Wittgenstein nunca aceitou que Gõdel tivesse provado o que de fato
provou. Isso, também, pode parecer ao leitor quase paradoxal.)
A discussão de Wittgenstein, no Tractatus, sobre a matemática em

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INCOMPLETUDE

contraste com a lógica é breve. A matemática, ele diz, é um método de


lógica (6.2 e 6.234); logo, presume-se que tudo que ele disse da lógica
se aplique à matemática. A matemática, ele diz (6.2 ), também não diz
nada, não tem conteúdo descritivo, embora, por ser expressa em equa-
ções, pareça ter:

6.2323 Uma equação apenas marca o ponto de vista do qual considero as duas
expressões; ela marca a sua equivalência de significado.
6.2341 Constitui a característica essencial do método matemático o
emprego de equações. Pois é devido a tal método que toda proposição da mate-
mática é óbvia.

As proposições matemáticas, assim como as tautologias da lógica,


não representam fato algum, porque são, em certo sentido, meramente
gramaticais. "6.233 Quando se pergunta se a intuição é necessária à
solução de problemas matemáticos, deve-se responder que a própria
linguagem fornece aqui a intuição necessária." (A Proposição 6.233
também o contrapõe frontalmente aos resultados de Gõdel, como
veremos.) Por linguagem propriamente dita, Wittgenstein subentende
sintaxe, as regras que estipulam aquilo que pode ser dito. A matemá-
tica, à semelhança da lógica, é sintática. Os significados são irrelevan-
tes à determinação da verdade, mesmo os "significados" das constantes
lógicas e do"=" matemático, pois não são nada além do que as regras
gramaticais que estipulam seu modo de emprego:

3.33 Na sintaxe lógica, o significado de um símbolo não deveria desempenhar


nenhum papel. Deve ser possível estabelecer a sintaxe lógica sem mencionar o sig-
nificado de um símbolo: somente a descrição de expressões pode ser pressuposta.

O interessante é que, com base apenas nessa proposição, Wittgens-


tein alega ter demonstrado o erro fundamental da teoria dos tipos:
"3.331 A partir dessa observação, voltamo-nos para a 'teoria dos tipos'
de Russell. Pode-se ver que Russell deve estar errado, porque teve de

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CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

mencionar o significado de símbolos ao estabelecer as regras para eles".


As duas proposições seguintes, 3.332 e 3.333, "liquidam o paradoxo de
Russell". Desse modo, Wittgenstein, pelo menos, estava satisfeito, pelo
menos enquanto escrevia o Tractatus, por ter solucionado o problema
que originalmente o atraiu à filosofia da lógica.
Wittgenstein viria mais tarde a rejeitar muitas das afirmações de seu
Tractatus. Na verdade, a descontinuidade de seu pensamento foi conside-
rada tão radical que ele foi dividido no "primeiro" e "segundo" (ou "úl-
timo") Wittgenstein. Em lugar da lógica da linguagem monolítica inicial,
o segundo Wittgenstein fala de muitos "jogos de linguagem" diferentes,
cada um com suas regras próprias. No primeiro Wittgenstein, o contra-
senso (por assim dizer) interessante, característico da filosofia, deriva da
violação das regras que ditam os limites de toda significabilidade; no
segundo Wittgenstein, o contra-senso interessante resulta de confundir
as regras de um jogo de linguagem com as de outro. (Comum aos dois
Wittgenstein é a crença de que todos os problemas filosóficos emergem de
confusões sobre sintaxe.) A visão homogênea de uma só linguagem, com
um conjunto de regras, que confortou os positivistas, deu lugar a um plu-
ralismo, com tintura pós-moderna, de jogos de linguagem. O segundo
Wittgenstein passou a enfatizar muito mais os aspectos sociais do cum-
primento de regras. As regras estão corporificadas em formas sociais de
comportamento (também atraente à sensibilidade pós-moderna).
Mesmo a lei da não-contradição não devia ser considerada absoluta:

Veremos a contradição a uma luz bem diferente se olharmos as suas ocorrên-


cias e as suas conseqüências antropologicamente, por assim dizer - ou
quando a olharmos com a exasperação de um matemático. Ou seja, nós a olha-
remos de modo diferente se tentarmos apenas descrever como a contradição
influencia os jogos de linguagem ou se tentarmos olhar para ela do ponto de
vista do legislador matemático. 33

A atitude de Wittgenstein diante da lógica matemática mudou radi-


calmente. A teoria pluralista do cumprimento de regras do segundo

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INCOMPLETUDE

Wittgenstein pretendia subverter o monologismo: que existe uma só


lógica e seu nome é Principia mathematica. Enquanto o primeiro Witt-
genstein trabalhara arduamente com Russell nos problemas da lógica,
o último Wittgenstein passou a considerar todo aquele campo como
uma "maldição" (enquanto Russell, desanimado com seus trabalhos
anteriores com Wittgenstein - sua incapacidade de entendê-lo-,
abandonou o campo e escreveu best-sellers).* 34
Mesmo assim, entre o primeiro e o último Wittgenstein existe
acordo suficiente em várias questões, inclusive questões fundamentais
da filosofia da matemática. O ponto de vista de Wittgenstein sobre o
cumprimento de regras mudou, mas ele permaneceu fiel à afirmação de
que toda a natureza da matemática deriva do cumprimento de regras.
Tudo que acontece na matemática é uma conseqüência do cumpri-
mento de regras, daí as "intuições" matemáticas não passarem de inven-
ções de nossa confusão. Se víssemos claramente o que estamos fazendo
quando realizamos matemática, não recorreríamos a essas invenções.
Tanto o primeiro como o segundo Wittgenstein concordam, então,
que não pode haver surpresas genuínas em matemática. Quando, por-
tanto, uma surpresa da ordem do resultado de Gõdel surgiu, teve que
ser negada.

DO QUE NÃO PODEMOS FALAR

Embora Wittgenstein possa ter acreditado que eliminou sumaria-


mente o paradoxo de Russell- exatamente o problema que o afastara
da engenharia aeronáutica e atraíra para o mundo da filosofia da

* Sua História da filosofia ocidental (History of Western philosophy ), publicada em 1945,


um relato bem abrangente e acessível exatamente do que seu título promete, tornou-se
um best-seller duradouro da Simon and Schuster. Russell voltou-se a tais popularizações
da filosofia, após abandonar o trabalho mais técnico ao qual se dedicara antes de Witt-
genstein entrar em sua vida.

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CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

lógica e da linguagem-, todo o Tractatus constitui um paradoxo con-


fesso, como o próprio filósofo francamente admite. De acordo com
suas próprias prescrições, as suas proposições são sem sentido. Witt-
genstein proibiu que se falasse sobre uma linguagem de dentro da lin-
guagem. Não se pode falar sobre a natureza sintática da lógica ou da
matemática sem violar a sintaxe da linguagem. Ela precisa ser
demonstrada.

6.54 Minhas proposições são elucidativas pelo fato de que aquele que me
entende acaba por reconhecê-las como contra-sensos, após se ter alçado atra-
vés delas - como degraus - para além delas. (Deve-se, por assim dizer, jogar
fora a escada após se ter subido por ela.)

A última metáfora, pela qual Wittgenstein é famoso, foi tomada do


crítico teatral/filósofo Fritz Mauthner, sobre cuja Sprachkritik Witt-
genstein te~deu a ser bem crítico no Tractatus. 4.0031: "Toda filosofia é
uma 'crítica da linguagem' (embora não no sentido de Mauthner) ".
A atitude de Wittgenstein para com a contradição inerente ao
Tractatus talvez seja mais zen que positivista. Ele considerou a contra-
dição inevitável. Ao contrário dos filósofos de orientação científica
que se inspiravam nele, ele convivia bem com paradoxos. O paradoxo
não significava, para Wittgenstein, que algo dera profundamente
errado no processo da razão, acionando um alarme para se ir em
busca da premissa falsa oculta. Sua despreocupação em face do para-
doxo constituía um aspecto de seu pensamento praticamente incom-
preensível para os membros do Círculo de Viena, tão distantes da
mentalidade zen.*

* Talvez por isso achasse as conversas com eles tão infrutíferas que, nas ocasiões em que
concordava em se encontrar com alguns, muitas vezes simplesmente se voltava para a
parede e lia em voz alta a poesia de Rabindranath Tagore, "um poeta indiano muito em
voga em Viena naquela época, cujos poemas expressam a visão mística diametralmente
oposta à dos membros do Círculo de Schlick". 35

87
INCOMPLETUDE

Em sua autobiografia, Carnap lembrou como o Círculo de Viena


penara com a afirmação de Wittgenstein sobre a questão da "possibili-
dade de falar sobre expressões lingüísticas': * Carnap pediu várias vezes
que Wittgenstein elucidasse esse ponto e foi sumariamente banido da
presença de Wittgenstein.
Schlick e Waismann tinham permissão de se reunir com Wittgens-
tein em pessoa regularmente. Waismann porque estava escrevendo um
comentário sobre o Tractatus - embora Wittgenstein acabasse desis-
tindo de fazer com que Waismann o enten desse, e o livro jamais ficasse
pronto. De todo o Círculo enfeitiçado por Wittgenstein, Waismann tal-
vez fosse o positivista mais apaixonado pelo filósofo. Ele mudava de
ponto de vista cada vez que Wittgenstein o fazia e, como alguns dos
estudantes de Cambridge igualmente impressionáveis, começou a imi-
tar os tiques de comportamento do filósofo. Em cada reunião de
quinta-feira do Círculo, ele informava os demais membros das últimas
novidades sobre as idéias do filósofo, começando pela ressalva: "Vou
contar para vocês os últimos progressos no pensamento de Wittgens-
tein, mas este rejeita qualquer responsabilidade por minhas formula-
ções. Lembrem-se disso': 37 Os membros do Círculo a quem Wittgens-
tein se recusava a receber ficavam assim informados, por meio de
Schlick e Waismann, das idéias do filósofo, que eram freqüentemente
citadas em seus artigos. Alguns filósofo~ austríacos expressaram dúvi-
das sobre a própria existência daquele "dr. Wittgenstein", ao qual o

* Carnap viria a aceitar (prematuramente) o teorem a da incompletude de Gõdel como


confirmação da insistência do Círculo na metalinguagem significativa, operacionali-
zando assim o programa positivo do Círculo de eliminação de todos os elementos meta-
físicos. ''Através do método de Gõdel", ele começou a demonstrar como "mesmo a me-
talógica da linguagem poderia ser aritmetizada e formulada na própria linguagem". Mas
foi o próprio Gõdel quem jogou um balde de água fria em Carnap, convencendo-o - ou
pelo menos tentando convencer - de que o resultado que ele produziu por seu método
entrava em conflito com o programa positivista. "Embora Gõdel não tivesse persuadido
Carnap nessa questão fundamental, ele conseguiu levar Carnap para uma direção forte-
mente platônica em sua definição de analíticidade, a base do programa de sintaxe."36

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CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

grupo de Schlick se referia com tanta freqüência. Talvez fosse simples-


mente uma invenção da imaginação de Schlick, "um personagem
mitológico inventado como um líder para o Círculo': 38
Assim como em Cambridge, o efeito de Wittgenstein nos positivis-
tas lógicos, em particular Schlick e Waismann, é quase inexplicável. A
esposa de Schlick lembra que o marido saiu de casa para ver Wittgens-
tein pela primeira vez como se estivesse partindo em peregrinação reli-
giosa. "Ele retornou em estado de êxtase, falando pouco, e senti que não
devia fazer perguntas."
Feigl, mais tarde, contou:

Schlick o adorava, e Waismann também. Como outros discípulos de Wittgens-


tein, chegaram até a imitar seus gestos e maneira de falar. Schlick atribuía a
Wittgenstein insights filosóficos profundos que, na minha opinião, foram for-
mulados com muito mais clareza na própria obra inicial de Schlick. 39

O tom de aspereza no depoimento de Feigl merece um comentário,


já que "Feigl sempre teve uma capacidade incomum de se relacionar
bem com todo mundo", 40 capacidade confirmada por seu artigo me-
morialista, em que quase todos com quem havia cruzado na vida são
descritos como dotados da personalidade mais amigável e da máxima
agudeza intelectual. A aversão de Feigl por Wittgenstein, expressa de
modo indireto, parece remontar à sua "admiração ilimitada por Car-
nap", um pensador sistematicamente preciso e consciencioso. 41 Após
banir Carnap de sua presença, Wittgenstein disse para Feigl: "Se ele não
consegue farejar isso, não posso ajudá-lo. Ele simplesmente não tem
nariz!". Quando a admiração de Feigl por Carnap se tornou clara, ele
também foi banido.
A exasperação de Wittgenstein com seus discípulos mesmo em sua
Viena natal, a insistência em que, embora pudesse parecer um positi-
vista, decididamente não era, gira em torno do sentido da proposição
final de seu Tractatus, numerada simplesmente como 7, a fulminante
(como as palavras de um antigo profeta): Wovon man nicht sprechen

89
INCOMPLETUDE

kann, darüber muss man schweigen, ou: aquilo de que não podemos
falar devemos consignar ao silêncio. O Círculo de Schlick interpretou
o enunciado conclusivo de Wittgenstein, bem como todo o seu livro,
como afirmação de que o uso impróprio das condições da linguagem
não apenas (tautologicamente) acaba em contra-senso, mas também
que, fora dos limites do dizível, nada existe. Mas para Wittgenstein exis-
tia realmente "aquilo de que não podemos falar': O ético ou - o que
representa a mesma coisa para ele - o místico é aquilo de que não
podemos falar. O ético, o místico, é ao mesmo tempo real e inexprimí-
vel. Ele acreditava ter explicado tudo que pode ser dito no Tractatus,
mas, como contou a um editor potencial ( que acabou aprovando o
livro), o que ele não dissera no Tractatus - porque não podia ser dito
- era mais importante do que aquilo que dissera:

Certa vez quis escrever algumas palavras no prefácio que acabei omitindo, mas
que escreverei para você agora porque podem ser uma chave para você: eu que-
ria escrever que meu trabalho consiste em duas partes: aquela que está aqui e
tudo que não escrevi. E exatamente essa segunda parte é a importante. Pois o
Ético está delimitado de dentro, por assim dizer, em meu livro; e estou conven-
cido de que, estritamente falando, só pode ser delimitado desta maneira. Em
suma, eu penso: tudo aquilo que muitos estão balbuciando hoje eu defini em
meu livro mantendo silêncio a respeito. 42

Ele julga ter demonstrado que é muito pouco o que pode ser dito ao
se dizer tudo que pode ser dito.
A pergunta é se o silêncio necessário, imposto pela proposição 7,
oculta absolutamente nada ou, pelo contrário, oculta todas as coisas
mais importantes. Os positivistas certamente interpretavam Wittgens-
tein dentro da primeira alternativa, o que é quase certamente um dos
motivos de ele achar que não entenderam nada do seu pensamento.
Ironicamente, o Círculo de Viena, unido por sua aversão profunda
ao mistério, vinha aceitando um pensador comprometido com o mis-
tério, pelo menos na medida em que questões de ética, estética, metafí-

90
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

sica, o sentido da vida - todos os assuntos que haviam banido do


domínio da análise racional - estavam envolvidas. O «indizível" é,
para Wittgenstein, como o "incognoscível" para os empiristas tradicio-
nais, uma medida de nossos limites. Ao tirar a medida de tudo que
podemos dizer, delimitando-o, em suas palavras, de dentro, ele está
tomando a medida de tudo que não podemos dizer, indicando-o sem
expressá-lo, já que a expressão é, em princípio, impossível.
Claro que, no tocante ao dizível, ele de fato propunha uma doutrina
compatível com o positivismo, que banisse o mistério. O significado de
uma proposição não tautológica é seu método de verificação. Quanto
à verdade matemática, Wittgenstein apresentou uma visão compatível
com a dos positivistas, dissolvendo nas regras da sintaxe o mistério
aparente de sua aprioricidade e certeza.
Conquanto Wittgenstein se enfurecesse com a insistência dos posi-
tivistas em ajustá-lo ao leito de Procrustes de sua precisão, eles quase
sempre reagiram com adoração, ao menos no início, enquanto Gõdel
ainda comparecia às sessões das noites de quinta-feira. Olga Taussky-
Todd, uma matemática da idade de Gõdel que passou algum tempo no
Círculo de Viena, escreve: "Wittgenstein era o ídolo do grupo. Sou tes-
temunha disso. Uma discussão podia ser resolvida citando-se seu Trac-
tatus". O visitante A. J. Ayer, que aproveitaria bem sua estada de três
meses em Viena, escreveu ao seu amigo Isaiah Berlin, na Inglaterra, em
fevereiro de 1933: "Wittgenstein é uma divindade para todos eles". Ber-
trand Russell, que eles também respeitavam como um empirista de boa
reputação, "foi um mero precursor de Cristo (Wittgenstein)':
Mesmo o mais sóbrio dos positivistas, Rudolf Carnap, admite, em
suas notas autobiográficas no volume de Schilpp em sua homenagem,
certa dose de veneração quase religiosa:

Quando ele começava a formular sua visão sobre algum problema filosófico
específico, costumávamos sentir a luta interna que o acometia naquele exato
momento, uma luta pela qual ele tentava penetra~ da escuridão até a luz sob
uma tensão intensa e dolorosa, que chegava a ser visível em seu rosto tão

91
INCOMPLETUDE

expressivo. Quando, enfim, às vezes após um esforço prolongado e árduo, sua


resposta aparecia, seu enunciado pairava diante de nós como uma obra de arte
recém-criada ou uma inspiração divina.[ ... ] A impressão que ele nos dava era
de que o insightsurgia como que por uma inspiração divina, de modo que não
podíamos evitar o sentimento de que qualqu er comentário ou análise racional
e sóbria seria uma profanação.

Foi nesse Círculo estranhamente encantado por Wittgenstein


(ainda mais estranho por ser um círculo de positivistas, os inimigos
jurados do feitiço cognitivo) que Kurt Gõdel ingressaria quando estu-
dante, um observador reservado captando com discrição as opiniões à
sua volta ... e chegando às próprias conclusões.

GÕDEL NO CÍRCULO DE VIENA:


O DISSIDENTE SILENCIOSO

Apesar do profundo e secreto desacordo com os positivistas, a filiação


de Gõdel ao Círculo resultou nos poucos anos mais gregários de sua
vida introvertida. Ele vinha se encontrando regularmente - não ape-
nas nas noites alternadas de quinta-feira na sala despojada onde o Cír-
culo de Viena completo se reunia, mas também nas sessões às altas
horas da noite nos cafés daquela cidade tagarela- com homens, e oca-
sionalmente com uma ou outra mulher, que _compartilhavam seu inte-
resse, ainda que não suas intuições, em questões de fundamentos.
O sempre amigável Feigl relata:

Do lado pessoal, eu mencionaria que Gõdel, junto com outro estudante mem-
bro do Círculo, Marcel Natkin ( originário de Loclz, Polônia), e eu viramos
grandes amigos. Encontrávamo- nos com freqüência para passear nos parques
de Viena e, é claro, tínhamos discussões intermin áveis sobre questões lógicas,
matemáticas, epistem ológicas e de filosofia das ciências nos cafés - às vezes
até altas horas da noite.

92
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Karl Menger, num curso de teoria das dimensões que vinha minis-
trando, teve um aluno chamado Kurt Gõdel, "um homem jovem,
magro e anormalmente quieto. Não me lembro de ter falado com ele
naquele tempo". 43 Foi através das reuniões regulares do Círculo que
Menger começou a se relacionar com Gõdel, que, embora atribulado,
persistiria até o fim da vida de Gõdel.
Quase todos que participavam daquelas reuniões descreveram
Gõdel nos mesmos termos, como evidentemente brilhante ( embora
nos perguntemos se essa evidência surgiu em retrospecto, depois de
plenamente compreendidas as implicações do anúncio de 1930), mas
sempre calado, sem confiar nos outros. Gõdel era, de acordo com Feigl,
"um trabalhador muito modesto e diligente, mas sua mente era clara-
mente de um gênio de primeira". 44 "Nunca ouvi Gõdel falar nessas reu-
niões nem participar das discussões; mas ele demonstrava interesse
mediante ligeiros movimentos da cabeça que indicavam aprovação,
ceticismo ou discordância': disse Menger, que também relata:

Após uma sessão em que Schlick, Hahn, Neurath e Waismann haviam falado
sobre linguagem, mas na qual Gõdel e eu não falamos nenhuma palavra,
comentei no caminho para casa: "Hoje mais uma vez superamos esses witt-
gensteinianos em seu wittgensteinismo: ficamos em silêncio". "Quanto mais
penso na linguagem", respondeu Gõdel, "mais me surpreendo com o fato de as
pessoas conseguirem entender umas às outras."

O que será que Kurt Gõdel pensava sobre aqueles "wittgensteinia-


nos"? Sabemos, é claro, embora eles não soubessem, que ele discordava
profundamente dos positivistas lógicos, sobretudo de sua interpretação
da verdade matemática, mas também dos aspectos mais gerais. Um
homem cuja alma havia sido arrebatada pela visão platônica da verdade
não podia simpatizar com denúncias da metafísica. Ele não aceitaria uma
teoria do significado que tachasse de "sem sentido" todos os enunciados
descritivos que não fossem em princípio empiricamente verificáveis. A
essência do platonismo matemático é a afirmação de que a matemática,

93
INCOMPLETUDE

embora não empírica, é ainda assim descritiva. Gõdel era um estranho no


ninho positivista. Embora compartilhasse do compromisso deles com a
precisão, bem como do interesse na aplicação filosófica dos avanços lógi-
cos de Frege, Russell e Whitehead, divergia totalmente de suas metacon-
vicções. Ele contou a Hao Wang, muitos anos depois (21 de novembro de
1971), que os positivistas estavam fundamentalmente errados ao pensar
que todo pensamento significativo pudesse ser reduzido às percepções
dos sentidos: ''Algum reducionismo está certo, [mas deveríamos] reduzir
a (outros) conceitos e verdades, não a percepções dos sentidos. [... ] É às
idéias platônicas que as coisas devem ser reduzidas': 45
Na carta não enviada ao sociólogo Grandjean, após seu ataque ini-
cial à sugestão lisonjeadora do sociólogo de que seu trabalho havia sido
"uma faceta da atmosfera intelectual do início do século xx", ele pros-
seguiu com as palavras:

É verdade que meu interesse pelos fundamentos da matemática foi despertado


pelo "Círculo de Viena", mas as conseqüências filosóficas de meus resultados,
bem como os princípios heurísticos que levaram a eles, não são nem um pouco
positivistas ou empiristas. Veja o que digo no livro recente de Hao Wang From
mathematics to philosophy, nas passagens citadas no Prefácio. Veja também
meu artigo "What is Cantor's continuum problem?" ["Qual é o problema do
continuum de Cantor?"] em Philosophy of mathematics, publicado pela Bena-
cerraf and Putnam em 1964; em particular,pp. 262-5 e pp. 270-2.*

* Nas páginas citadas, Gõdel expõe diretamente suas convicções platônicas, usando a
indecidibilidade da hipótese do continuum de Cantor (de que não existe nenhum con-
junto que seja ao mesmo tempo maior que o conjunto dos números naturais e menor que
o conjunto dos números reais no sentido da cardinalidade), um resultado matemático
que ele ajudou a provar, como provocação: "Pois se os significados dos termos primitivos
da teoria dos conjuntos [... ] forem aceitos como corretos, segue-se que os conceitos e teo-
remas da teoria dos conjuntos descrevem alguma realidade bem determinada, na qual a
conjectura de Cantor precisa ser verdadeira ou falsa. Logo, a sua indecidibilidade com base
nos axiomas aceitos atualmente só pode significar que esses axiomas não contêm uma
descrição completa daquela realidade. Tal convicção não é irreal, pois é possível mostrar
formas pelas quais a decisão de uma questão, que é indecidível com base nos axiomas
usuais, poderia não obstante ser obtida':

94
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Fui um realista conceitual e matemático desde cerca de 1925. Nunca sus-


tentei a visão de que a matemática é sintaxe da linguagem. Pelo contrário, essa
visão, entendida em qualquer sentido razoável, pode ser refutada por meus
resultados.

Está tudo dito naquela carta não postada. Gõdel havia se tornado
um realista matemático em 1925, havia participado das reuniões do
Círculo de Viena entre 1926 e 1928, e em 1928 começara a trabalhar na
prova do primeiro teorema da incompletude, que ele interpretou
como refutador de - um princípio central do Círculo de Viena, exata-
mente o princípio que fizera com que acrescentassem o termo cclógico"
à visão de Mach do positivismo. Ele usara a lógica matemática, a
menina dos olhos dos positivistas, para destruir a posição antimetafí-
sica positivista. No entanto, lá estava ele, em 1974, ainda tendo de expli-
car, em cartas que nunca enviou, que não era um positivista, que a
intenção de seus célebres teoremas havia sido, na verdade, provar que
os positivistas estavam errados. Os positivistas haviam endossado a
visão dos sofistas de que o homem é a medida da verdade. Gõdel ten-
tou defender o antagonista implacável dos sofistas: Platão.
Gõdel, ao contrário do amigo Einstein, não tinha um senso de iro-
nia bem desenvolvido, o que, no fim das contas, é uma lástima.

GÕDEL E WITIGENSTEIN

Difícil imaginar duas personalidades mais díspares. Wittgenstein e


Gõdel eram ambos gênios, ambos gênios torturados, de fato. Mas o
modo como apresentavam ao mundo a genialidade atormentada não
poderia ter sido mais radicalmente diferente.
Wittgenstein tinha visões claras sobre a natureza, os deveres e os pri-
vilégios dos gênios. Certa vez, ele falara com Russell sobre Beethoven:

95
INCOMPLETUDE

Um amigo de Beethoven contou que chegou à porta do músico e ouviu-o "pra-


guejando, uivando e cantando" a sua nova fuga. Decorrida uma hora completa,
Beethoven enfim veio até a porta, aspecto de quem lutara contra o diabo e
depois de 36 horas de jejum, porque a cozinheira e criada havia sido afugen-
tada por sua fúria. É assim que deve ser um homem. 46

Wittgenstein era esse tipo de homem, encenando o grande drama


do gênio, de modo que Russell, quando ainda estava fascinado, descre-
veu-o a Lady Ottoline como" [... ] talvez o exemplo mais perfeito que já
conheci do gênio como tradicionalmente concebido: entusiasmado,
profundo, intenso e dominador".
Ele era o tipo do gênio capaz de atrair discípulos tão fanáticos a
ponto de desabotoar os primeiros botões da camisa como ele e imitar
seus tiques e manias, como bater com as mãos na testa diante de um
insight filosófico ou de sua ausência. Eles podem ter discordado entre
si sobre a interpretação correta de Wittgenstein, mas concordavam que
a interpretação correta, se é que pudesse ser atingida, seria quase neces-
sariamente verdadeira. (Essa convicção persiste até hoje em bolsões
significativos da filosofia anglo-americana.) Embora ele declarasse
mais do que discutisse, as declarações se apresentam, individualmente
e em conjunto, com a austeridade lógica por que anseiam os pensado-
res em busca de rigor.
Essa austeridade se aplicava à pessoa também, como se a pureza da
lógica formal tivesse se corporificado no homem, seus padrões de ver-
dade absoluta impostos ao comportamento humano. Um episódio
escolhido quase aleatoriamente (existem tantos), contado por Fania
Pascal, que o conheceu em Cambridge na década de 1930, é prova disso:

Extraí as amígdalas e jazia no hospital Evelyn Nursing Home com pena de mim
mesma. Wittgenstein veio me visitar. Reclamei: "Sinto-me como um cão que
foi atropelado". Ele se indignou: "Você não sabe como se sente um cão que foi
atropelado".47

96
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Assim como padrões da matemática fizeram com que não-mate-


máticos se sentissem desprezivelmente inadequados por comparação,
os padrões comportamentais matematicamente rigorosos que Witt-
genstein parecia exigir podiam com facilidade fazer os outros se senti-
rem fraudulentos. Wittgenstein parecia, comprovadamente, a coisa
real. Era a genialidade manifesta, com todo o Sturm und Drang da cons-
ciência supremamente elevada, uma visão diante da qual se esperava
que um pensador, mesmo um positivista lógico, desfalecesse.
Em contraste com a exibição dramática de genialidade de Wittgens-
tein - seus alunos de Cambridge recordam que dava para ver o sofri-
mento dele ao pensar-, temos Gõdel, indicando com movimentos
ligeiros de cabeça quando concorda, discorda ou desconfia. Sua geniali-
dade hermeticamente fechada não permitindo que quase nada do Sturm
und Drang de sua consciência elevada se manifestasse, Gõdel não profe-
riu nenhuma palavra sobre sua discordância fundamental em relação às
crenças do Círculo de Viena até que dispusesse de uma prova matemá-
tica rigorosa que falasse em nome dele, até que tivesse teoremas matemá-
ticos prolixos o bastante para revelar suas convicções metafísicas.
É intrigante tentarmos imaginar o jovem Gõdel observando aque-
les filósofos mais velhos enfeitiçados por Wittgenstein, talvez bastante
ressentido ou crítico - não apenas dos pontos de vista, mas também
do estilo do gênio, tão diferente de seu próprio, gênio que fazia tanto
alarde sobre si mesmo, exigindo que os outros também participassem
do alarde. Podemos imaginar (de forma quase blasfema) se não teria
havido um tanto de emoção humana incitando o dissidente silencioso
a encontrar uma refutação conclusiva para confrontar a «inspiração
divina" do filósofo com uma autoridade maior: a matemática.
Tal motivação, embora colateral, não passa de conjectura, dada a
opacidade da vida interior de Gõdel. E temos a palavra de Gõdel de que
Wittgenstein em nada influenciou seu trabalho em lógica matemática.
Em um dos dois rascunhos da resposta não enviada ao questionário do
sociólogo Grandjean, ao responder à pergunta «Existe alguma influên-
cia à qual você atribui significado especial no desenvolvimento de sua

97
INCOMPLETUDE

filosofia?", após citar o professor Gomperz, * Gõdel fez uma observação


espontânea sobre quem, especificamente, não influenciara seu traba-
lho: "As idéias de Wittgenstein sobre a filosofia da matemática não
exerceram nenhuma influência sobre o meu trabalho, nem o interesse
do Círculo de Viena por aquele tema começou com Wittgenstein (mas
remonta ao professor Hans Hahn)".
Claro que influência, num sentido positivo, é bem diferente do tipo
de incentivo mais obscuro sobre o qual estou especulando. E o acrés-
cimo da ressalva espontânea sobre Wittgenstein revela, especialmente
numa personalidade tão tenaz, ao menos um ressentimento retrospec-
tivo. A influência do filósofo carismático sobre os membros do Círculo
de Viena pode tê-lo irritado, divertido (mais duvidoso) ou até ajudado
a inspirar-se na direção de sua prova: impossível saber. Mas o Gõdel
mais velho deixou, no registro escrito, algumas poucas alusões ao res-
sentimento exasperado em relação a Wittgenstein.
Em 1971, por exemplo, o matemático Kenneth Blackwell comentou
com Gõdel que havia uma passagem na Autobiografia de Russell em
que Gõdel era mencionado, com várias imprecisões (inclusive sua ori-
gem judaica), bem como uma referência um tanto superficial e sarcás-
tica ao platonismo de Gõdel: "Gõdel acabou se revelando um platônico
puro, e aparentemente acreditava que um 'não' eterno jazia lá no céu,
onde os lógicos virtuosos poderão encontrá-lo na vida futura".
Gõdel rascunhou uma carta, que evidentemente jamais foi enviada
e está até hoje no Nachlass, respondendo ponto por ponto às impreci-
sões de Russell sobre o tema Gõdel (inclusive sua suposta origem
judaica: "Devo dizer em primeiro lugar, a bem da verdade, que não sou
judeu - embora não considere essa questão nem um pouco impor-
tante") e terminando assim:

* No conjunto alternativo de respostas ao questionário, ele respondeu à mesma per-


gunta, "Existe alguma influência à qual você atribui significado especial no desenvolvi-
mento de sua filosofia?': incluindo as "aulas de matemática de Phillip Furtwãngler': bem
como as aulas de filosofia (introdutórias) de Gomperz".

98
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

Quanto ao meu platonismo "puro': não é mais "puro" que o do próprio Russell
em 1921, quando, na Introdução [àfilosofia matemática, publicada originalmente
em 1919] ele disse que "A lógica está tão interessada no mundo real quanto na ver-
dade o está a zoologia, embora com suas características mais abstratas e gerais':
Naquela época, Russell havia encontrado o "não" até mesmo neste mundo,
porém mais tarde, sob a influência de Wittgenstein, resolveu ignorá-lo.

Vindas de Gõdel, essas são palavras incisivas, motivo por que estão
mofando até hoje numa pasta na Biblioteca Firestone.
Um pouco mais do ressentimento latente durante décadas veio à
tona - dessa vez intencionalmente - quando seu velho conhecido
dos tempos de Viena, Karl Menger, mostrou algumas passagens da obra
póstuma de Wittgenstein, Bemerkungen über die Grundlagen der
Mathematik [Observações sobre os fundamentos da matemática], em
que Gõdel é mencionado. 48 Escreve Menger:

No início da década de 1970, comecei a escrever um livro sobre as minhas


lembranças do Círculo de Schlick. Para que fosse completo, procurei idéias
sobre Godel publicadas por Wittgenstein. Algumas estavam no seu livro
Observações sobre os fundamentos da matemática, publicado em 1956. Além
de observações evasivas na parte 5, o apêndice Ida parte 1 [ .. . ] contém urna
discussão do problema - sem, porém, nenhuma apreciação adequada do
trabalho de Gõdel. Na verdade, Wittgenstein se equivoca a ponto de dizer que
a única aplicação das provas da indecidibilidade é para "logische Kunststüc-
ken" [truques lógicos] .49

Depois que Menger mostrou as passagens para Gõdel, este respon-


deu a Menger:

No que diz respeito aos meus teoremas sobre proposições indecidíveis, a passa-
gem citada deixa claro que Wittgenstein não os entendeu (ou fingiu não entendê-
los). Ele os interpreta corno urna espécie de paradoxo lógico, quando na verdade
ocorre o contrário, a saber, um teorema matemático dentro de urna parte abso-

99
INCOMPLETUDE

lutamente incontestável da matemática (teoria finitária dos números ou combi-


natória). Aliás, a passagem inteira que você cita me parece um contra-senso. Ver,
por exemplo, o "medo supersticioso dos matemáticos" da contradição. *5º

Essas reações decididamente irritadas a Wittgenstein vêm após a


própria reação de Wittgenstein aos famosos resultados da incomple-
tude de Gõdel; e a natureza da reação de Wittgenstein era do tipo que
desperta ressentimento, ainda que não existisse nenhum antes. Witt-
genstein nunca chegou a aceitar que Gõdel tivesse, rigorosamente atra-
vés da matemática, alcançado um resultado de implicações metamate-
máticas. A existência de um resultado matemático com implicações
metamatemáticas contrariava o conceito de Wittgenstein de lingua-
gem, conhecimento, filosofia, tudo.As ambições historicamente auda-
ciosas do lógico reservado eram, de acordo com o ponto de vista de
Wittgenstein, irrealizáveis em princípio. Não admira que o filósofo
nem um pouco reservado descartasse os teoremas de Gõdel com a
expressão depreciativa« logische Kunststücken", um repúdio que muitos
matemáticos julgam até hoje extremamente antipático, como ao que
parece Gõdel também julgou. (Nenhum matemático com quem falei
tem algo de positivo a falar sobre Wittgenstein. Um matemático nitida-
mente enraivecido que conheço caracterizou a famosa proposiçao 7 de
Wittgenstein, Aquilo de que não podemos falar devemos consignar ao
silêncio, como "se realizasse a façanha de ser ao mesmo tempo gran-
diosa e vazia". O lógico Georg Kreisl, que quando estudante trabalhou
com Wittgenstein e, mais tarde, conheceu Gõdel, escreveu: "Os pontos
de vista de Wittgenstein sobre lógica matemática não valem grande

* Gõdel cita aqui uma observação entre parênteses na passagem 1, 17: "Die aberglaubis-
che Angst und Verehrung der Mathematiker von dem Widerspruch : O medo e veneração
supersticiosos dos matemáticos em face da contradição". Gõdel também escreveu para
Abraham Robinson, um jovem lógico matemático que Gõdel tinha em alta estima, que
o comentário de Wittgenstein sobre sua prova constitui uma "interpretação errônea,
totalmente trivial e desinteressante" de seus resultados.

100
CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS

coisa, porque ele sabia muito pouco a res_peito e o que sabia estava con-
finado à linha de produtos de Frege-Russell". 51 Kreisl também conde-
nou a influência transformadora de Wittgenstein sobre os estudantes,
inclusive ele próprio.)
Mas, num nível mais profundo do que os fundamentos da matemá-
tica, havia mais afinidade entre as idéias iniciais de Wittgenstein e o
resultado de Gõdel do que a compreensão (equivocada) que o Círculo
de Viena teve de Wittgenstein deixa transparecer. Wittgenstein na ver-
dade não foi positivista, como anunciou de modo insistente. E sua pro-
posição 7 do Tractatus representa uma versão de sua própria tese da
incompletude. Claro que, para apreciar plenamente a natureza do
desacordo e da afinidade entre Wittgenstein e Gõdel, é preciso enten-
der o que Gõdel de fato fez. Portanto, retornaremos à relação espinhosa
entre Wittgenstein e Gõdel mais tarde, após a apresentação das provas
dos teoremas da incompletude.
De qualquer modo, apesar da presença marcante de Wittgenstein
no círculo de homens entre os quais Gõdel passou seus anos intensa-
mente formativos, acaba sendo um mistério até que ponto o jovem
lógico e platônico convicto levou Wittgenstein a sério. Acima de Witt-
genstein se erguia a figura do matemático mais influente da época,
David Hilbert, uma figura que Gõdel não poderia descartar como
matematicamente incapaz. Como as de Wittgenstein, as idéias de Hil-
bert sobre a natureza da matemática não poderi~m ser mais incompa-
tíveis com o resultado matemático que o jovem Gõdel logo apresenta-
ria a um mundo pego de surpresa.

101
CAPÍTULO 2.
HILBERT E OS FORMALISTAS

A INTUIÇÃO DE UM MATEMÁTICO

V oltamos ao tema da singularidade irresistível da matemática, que


busca a verdade por meio do raciocínio a priori e estabelece suas
conclusões tão firmemente que nenhuma descoberta empírica sobre a
natureza do mundo consegue derrubá-las.
Desde a época remota dos gregos antigos, o conhecimento mate-
mático parecia, por um lado, a área menos problemática do conheci-
mento humano, de fato o próprio modelo ao qual todo conhecimento
deveria aspirar: certo e inatacável, em suma, comprovado. Não admira
que os utopistas epistemológicos, de Platão em diante, tenham insis-
tido na aplicação dos padrões e métodos da matemática, na medida do
possível, a todas as nossas tentativas de conhecimento.
Por outro lado, o conhecimento matemático tem parecido, para
epistemólogos mais pessimistas, altamente problemático, sua própria
certeza, que encoraja os utopistas, tornando-o suspeito a olhos mais
críticos. Como pode um conhecimento ser certo e inatacável, em suma,

102
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

comprovado? Talvez, argumentam alguns epistemólogos do tipo mais


pessimista, o conhecimento matemático não seja de fato um conheci-
mento. Talvez seja apenas um jogo, praticado com regras estipuladas,
dizendo nada sobre nada. '7here is no there, there" ("Ali não há ali")
é a frase famosa de Gertrude Stein sobre seu local de nascimento,
Oakland, Califórnia. O mesmo ocorre com a matemática, pelo menos
segundo algumas pessoas.
De modo que a pergunta é: de onde vem a certeza? Qual a nossa
fonte de certeza matemática? A base do conhecimento empírico con-
siste nas percepções dos sentidos: o que me é diretamente dado a
conhecer - ou ao menos pensar - sobre o mundo externo mediante
os sentidos da visão, audição, tato, paladar e olfato. A percepção senso-
rial permite que façamos contato com o que existe lá fora na realidade
física. Qual a base do conhecimento matemático? Existe algo como a
percepção sensorial em matemática? Será que as intuições matemáticas
constituem seu fundamento? Nossa faculdade de intuição seria o meio
de fazer contato com o que existe lá fora na realidade matemática? Ou
simplesmente não existe "lá fora"?
As provas matemáticas precisam partir de algum ponto. Com fre-
qüência, as provas partem de conclusões de outras provas e, a partir
delas, deduzem conclusões adicionais. Mas nem tudo pode ser pro-
vado, senão como podemos decolar? Deve existir, em matemática
assim como no conhecimento empírico, aquilo que nos é "dado". Dado
a nós por que meios? A intuição matemática é, muitas vezes, conside-
rada o equivalente a priori da percepção sensorial.
Intuições. Trata-se de algo ardiloso, e não apenas em matemática.
Supõe-se que uma intuição seja algo que sabemos pura e simplesmente,
em si e por si, e não com base em outro conhecimento. (Às vezes, é claro,
a palavra é empregada numa acepção mais fraca, no sentido de uma sen-
sação vaga, sem nenhuma certeza. Mas é no sentido mais forte que ela
funciona nos debates epistemológicos.) Obviamente, as intuições -
ou, mais precisamente, as alegações de intuições - variam muito de
pessoa para pessoa. Em algum lugar do planeta, neste momento, pes-

103
INCOMPLETUDE

soas estão se digladiando por defender intuições fundamentalmente


divergentes e claramente não matemáticas. Todas as intuições genuínas
são (tautologicamente) verdadeiras (tautologicamente, porque não as
chamaríamos de «genuínas" se não fossem verdadeiras). Mas nem todas
as pretensas intuições são intuições genuínas. Como distinguir se esta-
mos de posse do artigo genuíno? Motivações sombrias- acreditar, por
exemplo, em proposições que, se verdadeiras, aumentariam a nossa
importância, notoriamente proposições que afirmam a superioridade
inata do nosso próprio grupo - , além de abundantes, também tendem
a se ocultar. As crenças resultantes podem parecer intuitivamente
óbvias justo por não estarmos preparados para encarar sua origem real
e suspeita em nossas próprias situações pessoais e egos.
Você pode pensar que, em matemática - encastelada na mais ele-
vada torre da Razão Pura, distante do enlouquecedor cenário humano
lá embaixo-, motivações sombrias por trás das crenças são mínimas.
Não obstante, mesmo em matemática, podemos ser enganados.Aspec-
tos acidentais podem se insinuar em nosso raciocínio matemático mais
puro, apresentando-nos proposições que parecem intuitivamente
óbvias quando, na verdade, não são nada óbvias - talvez nem sejam
verdadeiras.
Para mostrar como as nossas «intuições" podem nos desencami-
nhar de modo traiçoeiro, vejamos os desenhos e diagramas freqüente-
mente usados para tentar tornar mais concretas as nossas abstrações
matemáticas. Essas concretizações são quase inevitáveis, mesmo para
as mentes mais argutas em matemática. David Hilbert, por exemplo,
que, como veremos logo, tentou mais que qualquer um impor as regras
mais rigorosas à matemática, escreveu:

Assim, as figuras geométricas são sinais ou símbolos mnemônicos da intuição


do espaço e são usadas como tais por todos os matemáticos. Quem é que não
usa sempre, junto com a desigualdade dupla a > b > c, a figura de três pontos
sucessivos numa linha reta como a figura geométrica da idéia de "entre"?
Quem é que não se vale de desenhos de segmentos e retângulos encerrados

104
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

uns dentro dos outros, quando necessários para provar com rigor perfeito um
teorema difícil sobre a continuidade de funções ou a existência de pontos de
acumulação? Quem dispensaria a figura do triângulo, o círculo com seu cen-
tro, ou a cruz de três eixos perpendiculares? 1

Dado que até o mais rigoroso dos matemáticos recorre a esses auxí-
lios da razão pura, pode acontecer de apelarmos, em nossa prova, a um
detalhe inteiramente acidental de nosso desenho, ou que os desenhos
dêem a impressão de que algo é de todo óbvio, quando na verdade não é.
Digamos, por exemplo, que você queira provar que os ângulos da
base de um triângulo isósceles são iguais. Apelando para o desenho l,
isso parece simplesmente óbvio, não precisando de prova. Ou digamos
que você queira provar que todos os ângulos de triângulos são agudos
(têm menos de 90 graus). Com essa "verdade" em mente, você só dese-
nha triângulos (desenho 2) que se conformem ao que quer provar.
Esses são os únicos triângulos que ocorrem a você.
Em outros campos do pensamento também - por exemplo, e
notoriamente, na ética - as pessoas podem ter a ilusão de "intuições".
Na ética, essas intuições ilusórias podem causar grandes tragédias no
mundo real. Einstein e Gõdel estavam naquele caminho tranqüilo em
Princeton porque parecia tão intuitivamente óbvio, a um grande
número de pessoas na Alemanha de Einstein e na Áustria d.e Gõdel, que
a coisa certa a fazer era purificar as nações arianas do mundo de seus
elementos não arianos. A matemática não é a única área onde as coisas
podem parecer intuitivamente óbvias e serem totalmente falsas. Mas a
matemática parece ser singular, porque ela, e só ela, parece oferecer um
método de depuração da verdade: o sistema axiomático. Não admira
que um racionalista como o filósofo do século xvu Spinoza, cuja famí-
lia de judeus portugueses estava vivendo em Amsterdã por motivos
semelhantes aos que trouxeram Einstein e Gõdel para Princeton, qui-
. sesse apropriar-se do método axiomático da matemática e aplicá-lo à
ética humana. O desejo de universalizar o rigor depurador da verdade
do método matemático é precisamente o que caracteriza o movimento

105
Desenho 1

Desenho 2
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

epistemológico conhecido como racionalismo. Mas a pergunta prévia


que precisa ser abordada, antes que comecemos a pensar na possibili-
dade de generalização do método matemático, é: em que consiste exa-
tamente o sistema axiomático, e como atinge seu rigor invejável?
A idéia por trás do sistema axiomático ( ou "axiomatizado" - usa-
rei os dois termos de modo alternado) é que as múltiplas verdades de
algum ramo particular da matemática, digamos, geometria ou arit-
mética, podem ser organizadas em axiomas, regras de inferência e teo-
remas. Os axiomas são as verdades básicas do sistema, intuitivamente
óbvias. Entendemos o que significam, e isso parece bastar para saber-
mos que são verdadeiros. Não requerem nenhuma prova adicional.
Usamos então as regras de inferência preservadoras de verdade* para
obter outras verdades não óbvias, os teoremas, resultantes desses
dados básicos.
Por exemplo, vejamos a aritmética, o ramo mais simples da mate-
mática. A aritmética envolve a estrutura dos números naturais - os
velhos e regulares números de contagem, mais o zero - e as relações
entre eles, dadas pelas operações de adição, multiplicação, e a relação
de sucessor, que leva você de qualquer número n ao número imediata-
mente seguinte na ordem natural (n + 1). Todas as demais operações
aritméticas, como a subtração e a divisão, podem ser definidas em ter-
mos dessas três.
Em 1889,GiuseppePeano (1858-1932) reduziuaaritméticaacinco
axiomas. Eis os três primeiros: zero é um número natural. O sucessor
de qualquer número natural é um número natural. Números distintos

* Essas regras de inferência são leis perfeitas de herança de verdade. A verdade perten-
cente aos ancestrais (os axiomas) não pode deixar de ser legada aos descendentes (os
teoremas). Assim, se você sabe que todos os x's são P' s, e sabe que certo indivíduo, i, é um
x, então, pela regra de inferência conhecida como "instanciação universal': você sabe
que i é um P. Por exemplo, digamos que você tenha certeza de que todos os matemáti-
cos realizam sua obra principal antes dos quarenta anos, e sabe também que Gõdel era
um matemático. Então você sabe também que Gõdel realizou sua obra principal antes
dos quarenta anos.

107
INCOMPLETUDE

nunca têm o mesmo sucessor. Todos os três parecem triviais, que é exa-
tamente como queremos os nossos axiomas. Os axiomas são tão tri-
viais que podemos pressupor que sejam verdadeiros sem prová-los,
com todo o resto decorrendo deles, como uma enorme planta serpen-
teante brotando de uma simples semente. Se queremos que toda a vege-
tação luxuriante seja garantida, não pode haver nenhuma dúvida pos-
sível sobre a verdade dos axiomas - e este "nenhuma dúvida possível"
é basicamente o que queremos dizer com "intuitivamente óbvio" ou
"dado básico", "trivial" ou "auto-evidente".
Os teoremas de um sistema axiomático, por outro lado, só são
aceitos como verdadeiros depois de provados, derivados dos axio-
mas ou derivados de outros teoremas, mediante regras de inferência
que preservam a verdade. Vejamos uma analogia: os axiomas são
como os primogênitos clássicos nas famílias: adorados simples-
mente por existir. Os teoremas são os filhos que vêm depois, aqueles
que têm de provar serem dignos de aceitação. (Os primogênitos podem
ignorar a analogia. Para mim, terceira a nascer, a metáfora exerce
certa atração.)
Portanto, em um sistema axiomático (esses sistemas foram origi-
nalmente concebidos pelos gregos antigos, em particular, Euclides),
começamos com poucos axiomas ( quanto menos, melhor, porque
queremos apelar ao mínimo à intuição para maximizar a certeza). Em
vez de uma política libertária de "vamos confiar nas boas intenções
(intuições) dos cidadãos (matemáticos) para fazer a coisa certa", o sis-
tema axiomático impõe alguns controles "governamentais" rígidos.
Em vez dos apelos aleatórios a intuições, precisa haver um consenso
geral sobre quais são os dados básicos imediatos - o fundamento-,
com todo o resto sujeito à regulamentação da regra axiomática. Você
pode imaginar a axiomatização como uma espécie de "grande governo
da matemática". A motivação subjacente ao sistema axiomático é maxi-
mizar a certeza minimizando os apelos a intuições, restringindo-as aos
poucos axiomas não elimináveis. Mas estes são cruciais porque, afinal,
precisamos partir de algum ponto.

108
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

Durante grande parte da história do pensamento ocidental, pelo


menos desde a época de Euclides, considerou-se que o sistema axioma-
tizado representasse a matemática- logo, o próprio conhecimento -
em sua forma mais perfeita. Gottlob Frege, que simplificou ainda mais
o sistema axiomático de Peano para a aritmética, derivando seus cinco
axiomas em um único, disse: "Em matemática, devemos sempre alme-
jar um sistema que seja completo em si mesmo". 2 É essa construção do
sistema que explica, segundo Frege, a certeza singular da matemática, e
"nenhuma ciência pode estar tão envolta na obscuridade como a mate-
mática, se deixar de construir um sistema': 3
O afã em limitar nossas intuições foi ainda mais longe. O objetivo
tornou-se eliminar por completo as intuições. Esse objetivo é o que nos
leva, enfim, à noção de um sistema formal. Um sistema formal é um sis-
tema axiomático destituído de qualquer apelo à intuição.
Por que dar o passo drástico de eliminar a intuição? Bem, as intui-
ções, como já dissemos, são um negócio ardiloso. Embora as intuições
genuínas sejam verdadeiras, como podemos saber quando estamos
de posse do artigo genuíno? Talvez não possamos. Talvez o poder de
convicção que leva à crença seja exatamente o mesmo quer a intuição
seja real ou não. Então, de que vale apelar à intuição? Portanto, se não
ocorresse nenhuma surpresa, pareceria recomendável n os livrarmos
desses apelos, sobretudo ao praticarmos a ''mais rigorosa de todas as
disciplinas".
Na verdade, ocorreram surpresas que fortaleceram ainda mais o
impulso em eliminar implacavelmente as intuições da matemática. O
século x1x testemunhou avanços matemáticos que abalaram a con-
fiança naqueles dados básicos intuitivamente óbvios de nossos siste-
mas axiomáticos. (Os primogênitos podem trilhar maus caminhos.) O
mais radical desses eventos solapadores foi a descoberta da geometria
não euclidiana. Esse avanço matemático imprevisto demonstrou que
um dos dados básicos da geometria de Euclides, o famoso postulado
das paralelas, afinal não é tão axiomático assim. Na verdade, é possível
construir geometrias consistentes em que esse postulado nem sequer é

109
INCOMPLETUDE

verdadeiro!* Depois a teoria dos conjuntos também forneceu notícias


desagradáveis sobre as nossas supostas intuições. Os dados básicos da
teoria dos conjuntos, também tão intuitivamente óbvios, levam à for-
mação de conjuntos infestados de paradoxos como o conjunto de
todos os conjuntos que não são elementos de si mesmos.
Claramente, as nossas intuições matemáticas não proporciona-
vam uma base tão segura assim. Se fosse possível expurgar nossos sis-
temas axiomáticos de quaisquer apelos à intuição, aquele seria o cami-
nho a seguir.
A eliminação das intuições se obtém destituindo o sistema axiomá-
tico de quaisquer significados, exceto aqueles definíveis em termos das

* O quinto dos cinco postulados de Euclides era o famoso postulado das paralelas,
segundo o qual, por qualquer ponto fora de uma reta, uma única reta pode ser dese-
nhada paralela à reta original. O próprio Euclides não ficou tão satisfeito com esse
último postulado, achando-o muito diferente dos demais, com sua referência velada ao
infinito, e sempre que pôde evitou empregá~lo em suas demonstrações. Por que o pos-
tulado das paralelas invoca o infinito? Duas retas são paralelas se, e somente se, nunca
se cruzam. Mas, se você tomar uma região finita do espaço, poderá traçar, por um ponto,
mais de uma reta paralela à outra linha (no sentido de não cruzar com ela). Portanto, o
postulado das paralelas faz referência implícita ao infinito, e quaisquer intuições sobre
o infinito despertam, com razão, desconfiança. A suspeita de Euclides sobre aquele ele-
mento de seu sistema (sua obra-prima intitulou-se Os elementos) perdurou ao longo
dos tempos, com diferentes matemáticos tentando converter o axioma problemático
em um teorema, deduzindo-o dos outros quatro axiomas. Até que, no século x1x, os
matemáticos mudaram de tática: tentaram mostrar que o quinto postulado decorria
dos outros quatro indiretamente, tomando os quatro e a negação do quinto para ver se
uma contradição poderia ser deduzida. Em vez de uma contradição, uma geometria
totalmente nova e consistente foi encontrada! Três matemáticos chegaram de modo
independente à geometria não euclidianas: o incomparável Carl Friedrich Gauss
(1777-1855), conhecido como "o príncipe dos matemáticos"; Nikolai lvánovitch
Lobatchevski (1792-1856); e o jovem János Bolyai (1802-60), o qual, ao topar com
aquele novo mundo matemático em 1823, escreveu ao pai, Farkas Bolyai, ele próprio
um matemático amigo de Gauss: "Descobri coisas tão maravilhosas que fiquei perplexo.
[... ] Do nada criei um estranho mundo novo". Quando lhe mostraram os resultados,
Gauss escreveu: "Considero esse jovem geômetra Bolyai um gênio de prin1eira gran-
deza". Mas teve de informar ao jovem gênio que ele não fora o primeiro a encontrar um
tal estranho mundo novo. O próprio Gauss o fizera, mas abafara os resultados por achá-
los controvertidos demais.

110
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

regras estipuladas pelo sistema. As regras, em termos das quais todo o


resto é definido, não pretendem ser nada além do estipulado. Não pre-
tendem descrever alguma realidade objetiva, de objetos independentes
como números ou conjuntos. Um sistema formal é precisamente o que
nos resta após essa eliminação do significado. Essa depuração conforma
novos ((controles governamentais", os mais enxutos que os matemáticos,
de modo que nenhum apelo à intuição intervenha. Imagine-a como a
tomada do poder da matemática pelos comunistas, abolindo aproprie-
dade privada (significados), tudo sendo controlado por regras públicas.
Um sistema formal, portanto, é um sistema axiomático, com seus
dados básicos primitivos (os axiomas), suas regras de inferência e seus
teoremas provados. Só que, em vez de formado de símbolos significa-
tivos- como termos que se referem ao número zero ou à função suces-
sor-, é formado inteiramente de sinais sem sentido, marcas no papel
cujo único significado é definido em termos das relações entre eles con-
forme estipuladas pelas regras. Se, por um lado, os sistemas axiomáticos
pré-expurgo falavam sobre, digamos, números (aritmética), conjun-
tos (teoria dos conjuntos) ou o espaço (geometria), um sistema formal
é um sistema axiomático que não fala, em si, sobre nada. Não precisa-
mos apelar às nossas intuições sobre números, conjuntos ou espaço ao
formular os dados básicos do sistema formal. Um sistema formal é
composto de regras estipuladas, que especificam os símbolos ('(alfa-
beto") do sistema e informam como combinar os símbolos entre si
para produzir configurações gramaticais (fórmulas bem-formadas) e
como proceder para deduzir fórmulas bem-formadas de outras fór-
mulas bem-formadas (as regras de inferência).
A formalização dos sistemas axiomáticos visava proporcionar o
padrão máximo de certeza para não dependermos das nossas intuições
do que é matematicamente óbvio e do que não é. Seu objetivo era evi-
tar de todo nossa dependência da intuição matemática>transformar
nossa atividade matemática em processos completamente determina-
dos por regras especificadas de modo tão claro a ponto de serem pura-
mente mecânicos, não requerendo nenhuma imaginação ou engenho-

111
INCOMPLETUDE

sidade, nem mesmo uma compreensão do que os símbolos significam.


Seguir as regras de um sistema formal - e um sistema formal é com- .
posto inteiramente de regras - equivale a engajar-se em uma ativi-
dade combinatória que, consistindo puramente em funções recursivas
(grosso modo, funções que informam como chegar a um resultado
tomando o resultado de outra função recursiva, ou de uma função
básica realmente simples),* pudesse ser programada num computa-
dor- em outras palavras, que seja computável. Essa atividade equivale
a descobrir coisas usando um algoritmo,** uma seqüência de opera-
ções que informam o que fazer a cada passo, dependendo do resultado
do passo anterior.
Como o parágrafo anterior procurou mostrar, toda uma família de
conceitos matemáticos inter-relacionados surgiu com a passagem para a
formalização. Os conceitos de um procedimento mecânico ou eficaz, de
funções recursivas e computáveis, de processos combinatórios e de um
algoritmo significam mais ou menos a mesma coisa: essa família de con-
ceitos gira em torno da idéia de regras aplicadas aos resultados de aplica-
ções anteriores das regras, sem levar em conta nenhum significado,
exceto o que possa ser captado nas próprias regras.
A intuição não tem nenhuma chance de exercer sua ação perigosa
num sistema formal. As intuições mostram o que devemos achar das
coisas reais: do espaço, dos números, dos conjuntos. Não temos intui-
ções sobre símbolos artificiais e sem sentido, e as regras rígidas criadas
para manipulá-los. Não precisamos delas. Tudo que nossa razão a
priori precisa fazer num sistema formal é especificado pelas regras,
razão pela qual a idéia de um sistema formal está tão intimamente rela-
cionada à idéia do computador, ao que os computadores podem efe-

* O conceito matemático tão útil de função recursiva foi definido a primeira vez por
Gõdel em sua prova do primeiro teorema da incompletude.
** Apalavra deriva do nome do matemático persa do século rx Abu Ja'far Muhammad
ibn Musa al-Khwarizmi, que escreveu um importante livro de matemática em torno de
825 que se chamou Kitab al jabr w'al-muqabala [Livro da completude e do balancea-
mento]. Também derivamos nossa palavra "álgebra" do título de seu livro.

112
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

tuar e como o efetuam. Daí o conceito de computável fazer parte do


emaranhado de conceitos em torno da noção de sistemas formais.
Os sistemas formais, ainda que suas implicações sejam complexas
a ponto de exigir certa perspicácia matemática para chegar até eles,
têm uma transparência que bloqueia a intuição. A intuição é (supos-
tamente) uma forma de tentar contornar a opacidade essencial das
coisas reais, uma forma de fazer contato com elas, e é uma forma que
se mostrou eminentemente não confiável em matemática, assim
como em outras partes. Uma matemática realizada formalmente é
uma matemática depurada de quaisquer verdades "evidentes" -
aquelas que alegam ter como base inquestionável a "verdadeira natu-
reza das coisas".
Se pudéssemos mostrar que sistemas formais logicamente consis-
tentes são adequados para provar todas as verdades da matemática,
teríamos eliminado com sucesso as intuições da matemática. (A ressalva
de "logicamente consistentes" é, sem dúvida, necessária, já que, a partir
de sistemas inconsistentes, é possível provar qualquer coisa.) Teríamos
mostrado, também, que a matemática não deveria ser considerada
intrinsecamente referida a algo. Ao banir as intuições, estaríamos elimi-
nando os supostos objetos das descrições matemáticas. Estaríamos
mostrando que a matemática simplesmente não é descritiva.
A afirmação de que é possível e desejável banir as intuições, mos-
trando que os sistemas formais são totalmente adequados à prática
da matemática, constitui a visão metamatemática conhecida como
formalismo.
Na interpretação do formalismo, a matemática se transforma num
xadrez elevado a uma ordem maior de complexidade. Todos concorda-
mos que não existe nenhuma realidade objetiva captada pelo sistema de
xadrez. As regras estipuladas constituem toda a verdade do xadrez. De
forma semelhante, de acordo com o formalismo, as regras estipuladas
constituem toda a verdade da matemática. Vencemos o jogo em mate-
mática provando teoremas - ou seja, mostrando que certas seqüências
não interpretadas de símbolos decorrem de outras seqüências não inter-

113
INCOMPLETUDE

pretadas de símbolos, por meio de regras de inferência combinadas. Não


existe verdade externa com a qual a matemática deva se comparar.
O primeiro teorema da incompletude de Gõdel afirma a incom-
pletude de qualquer sistema formal no qual seja possível expressar a
aritmética. Você já deve ter desconfiado que a conclusão de Gõdel tem
algo a dizer sobre a viabilidade (ou não) de eliminar todas as intui-
ções da matemática. A forma mais direta de entender as intuições é
imaginá-las dadas pela natureza das coisas: a intuição é vista como o
correspondente a priori da percepção sensorial, uma forma direta de
apreensão.Assim, a conclusão de Gõdel, ao ter algo a dizer sobre a via-
bilidade ( ou não) de eliminar todos os apelos às intuições da mate-
mática, talvez também tenha algo a dizer sobre a existência real dos
objetos matemáticos, como números e conjuntos. Em outras pala-
vras, a adequação de sistemas formais - sua consistência e comple-
tude - está ligada à questão da derradeira eliminabilidade das intui-
ções, que está ligada à questão da derradeira eliminabilidade de uma
realidade matemática, que é a questão definidora do realismo mate-
mático, ou platonismo. É devido a essas ligações que as conclusões de
Gõdel sobre os limites dos sistemas formais têm tanto a dizer. Foi
assim que se tornaram os teoremas mais prolixos da história da
matemática e foram vistos, pelo menos pelo autor, como afirmação
da posição metamatemática à qual se dedicara de corpo e alma. O
jovem estudante havia encontrado uma prova para um teorema, o
primeiro teorema da incompletude, dotada do rigor da matemática
e do alcance da filosofia.
A prolixidade matemática, ao contrário de qualquer outra espécie
de prolixidade, não poderia ter combinado melhor com as excentrici-
dades pessoais de Kurt Gõdel, um homem com tanta coisa a dizer sobre
a natureza da verdade, do conhecimento e da certeza matemática, mas
que gostaria de dizê-lo usando apenas a metodologia rigorosa da mate-
mática. Com uma prova à mão, ele não teria de se envolver nos tipos de
conversas humanas belicosas que via com desagrado, talvez até com
horror. Aposto que jamais houve um homem que combinasse tanta

114
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

convicção com tão pouca inclinação para defendê-la pelos meios nor-
mais de que somos dotados, a saber, a fala.
A ironia é que, embora os teoremas de Gõdel fossem aceitos como
da máxima importância, os outros nem sempre ouviram o que ele ten-
tava dizer neles. Eles ouviram- e continuam ouvindo - a voz do Cír-
culo de Viena ou do existencialismo ou do pós-modernismo ou de
qualquer outra tendência em voga no século xx. Ouviram tudo, menos
o que Gõdel estava tentando dizer.

A MATEMÁTICA SE TORNA FORMAL

O principal defensor do formalismo foi David Hilbert, o matemático


mais importante de sua época. "A matemática", escreveu Hilbert, "é
um jogo, que segue certas regras simples, com marcas sem sentido no
papel." 4 Sua proposta de formalizar um ramo após o outro da mate-
mática, começando pelo mais básico de todos, a aritmética, passou a
ser chamada de programa de Hilbert. O sucesso do programa de Hil-
bert ofereceria uma confirmação importante do formalismo, expli-
cando a aprioricidade sui generis da matemática como fruto da estipu-
lação de regras.
Os matemáticos, de acordo com o formalismo, não se dedicam a
descobrir verdades descritivas, sejam do mundo real de coisas no
espaço físico ou do mundo transempírico dos números e conjuntos.
Seu objetivo jamais foi descobrir, por exemplo, quantas retas, paralelas
a outra reta, podem passar por um dado ponto do espaço. O que fazem
é manipular as regras mecânicas de sistemas formais autocontidos que
sejam complexos a ponto de pôr à prova as habilidades dedutivas dos
matemáticos.
Em seu espírito, o formalismo de Hilbert aproximava-se das atitu-
des antimistério do Círculo de Viena, de modo que os positivistas lógi-
cos naturalmente o adotaram, como informa Feigl:

115
INCOMPLETUDE

Com os formalistas (por exemplo, Hilbert), consideraríamos as provas mate-


máticas como procedimentos que partem de um dado conjunto de combina-
ções de sinais (premissas, postulados) e, de acordo com regras de inferência
(regras de transformação), levam à dedução de uma conclusão.

O formalismo confirma, pelo menos na esfera da matemática, o que os


positivistas haviam declarado em seu manifesto: o homem é a medida
de todas as coisas. Criamos os nossos sistemas fo rmais, e a matemática
inteira decorre deles.
Durante séculos, epistemólogos utópicos, como Descartes e Leib-
niz, haviam se inspirado na certeza e aprioricidade singulares da mate-
mática e acalentado sonhos de estender essas características a todo o
domínio cognitivo, eliminando o recurso aos indícios empíricos, que
fornecem no máximo meras probabilidades. As características espe-
ciais da verdade matemática levaram homens normalmente modera-
dos, retrocedendo até Platão, a celebrações quase místicas do seu
alcance sobrenatural. Mas agora, com o formalismo, a aprioricidade e
a certeza da matemática seriam produto de nada menos místico do que
as regras mecânicas estipuladas de sistemas formais sem significado,
replicáveis pelas engenhocas eletrônicas prestes a serem inventadas.
Com o sucesso do programa de Hilbert, os fundamentos da matemá-
tica enfim seriam esclarecidos, e a nebulosidade que instigara a verti-
gem racionalista seria dissipada.
Em 1899, David Hilbert publicou Grundlagen der Geometrie, ou
Fundamentos da geometria, considerada a obra de geometria mais
influente desde Euclides. Sua importância foi bem além da geometria.
Ele mostrou que a geometria podia ser captada num sistema formal -
sob a condição de que a aritmética também fosse formalizada, já que a
geometria, como todos os ramos da matemática, pressupõe as verda-
des da aritmética. (Nesse sentido, a aritmética é o mais básico de todos
os sistemas matemáticos.)
Em 1900, um ano após publicar seus Grundlagen der Geometrie,
Hilbert proferiu a palestra programática do Segundo Congresso Inter-

116
CAPÍTULO 2. HILBERT E OIS FORMALISTAS

nacional de Matemáticos, realizado naquele ano em Paris . A data, inau-


gurando um século novo, foi importante. Na palestra, intitulada "Pro-
blemas matemáticos", Hilbert delegou a si mesmo a tarefa de descobrir
o que o novo século traria em termos de realizações matemáticas. Ele
expôs dez problemas cuja solução considerou mais importante.
Em sua introdução, que tem o tom de um técnico estimulando os
jogadores antes de uma partida, Hilbert assegura ao seu "time" de
matemáticos que, por mais difícil que um problema específico possa
parecer, a vitória é inevitável:

Essa convicção da solubilidade de qualquer problema matemático é um incen-


tivo poderoso para o trabalhador. Ouvimos dentro de nós o chamado perpé-
tuo: eis o problema. Busque sua solução. É possível encontrá-la pela pura
razão, pois na matemática não existe ignorabimus.

Hilbert descreve isso como uma convicção "que todo matemático


compartilha, mas que ninguém até agora respaldou com uma prova".
Ele então expôs os dez problemas.
É interessante que, embora sendo um lógico-apenas um lógico, de
acordo com os preconceitos matemáticos que persistiram até a sua
própria época (e dos quais há resquícios ainda hoje) - , Godel contri-
buísse enormemente para os dois primeiros problemas, bem como
para o décimo, que Hilbert, a figura predominante da matemática,
definiu como os problemas mais importantes a serem resolvidos.
O primeiro desses problemas é o que gira em torno da hipótese do
continuum de Cantor. O que é a hipótese do continuum de Cantor? O
grande matemático do século xrx Georg Cantor provou que (em ter-
mos gerais) existem mais números reais do que números naturais,
embora exista um número infinito de ambos. Cantor mostrou, por
meio de um argumento elegante chamado "argumento diagonal", que,
no pareamento infinito de cada número natural com um número real,
todo número natural corresponderá a um número real, mas alguns
números reais ficarão sem correspondente. O conjunto dos números

117
INCOMPLETUDE

reais tem, portanto, maior cardinalidade (um número maior de ele-


mentos) do que o conjunto dos números naturais. Cantor conjec-
turou que não existe nenhum conjunto infinito intermediário entre o
conjunto dos números naturais e o conjunto dos números reais. Ou
seja, não existe nenhum conjunto com cardinalidade superior à dos
números naturais e cardinalidade inferior à dos números reais. Essa é
a hipótese do continuum de Cantor, e o primeiro problema de Hilbert
era provar a verdade da hipótese do continuum de Cantor. Gõdel con-
tribuiria para a solução desse problema, embora não de uma maneira
que agradasse a Hilbert. Gõdel, junto com Paul Cohen, provou que,
dentro da teoria dos conjuntos existente, não há como provar a ver-
dade ou a falsidade da hipótese do continuum. Em outras palavras, o
status da hipótese do continuum é o que Hilbert afirmou que não
poderia existir: um ígnorabímus - uma afirmação que não pode ser
confirmada nem desacreditada, uma afirmação sobre a qual perma-
necemos ignorantes.
Mas é o segundo problema de Hilbert que é de interesse particular
para nós. Aqui, também, a solução de Gõdel não poderia ter sido mais
desagradável para Hilbert.

OSEGUNDO PROBLEMA DE HILBERT:


A CONSISTÊNCIA DA ARITMÉTICA
(A MAIS IMPORTANTE PROVA JÁ ENCONTRADA)

O segundo problema de Hilbert era provar a consistência dos axiomas


da aritmética. Um sistema é dito consistente se não produzir alguma
contradição lógica.
A premência do problema da consistência era um resultado direto
da guinada para o formalismo. Quando os axiomas eram compreendi-
dos como se fizessem afirmações verdadeiras sobre objetos reais, não
havia uma preocupação tão forte com a inconsistência. Quando se
dizia que algo era um axioma, pressupunha-se que aquilo era verda-

118
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

deiro no sentido mais ingênuo de "verdadeiro": ou seja, que aquilo des-


crevia algum estado de coisas. Assim, nem o axioma, nem qualquer teo-
rema deduzido do axioma poderiam contradizer logicamente qual-
quer outro axioma ou teorema, porque seriam todos afirmações
verdadeiras no sentido tradicional, prosaico de "verdadeiro": descriti-
vos de coisas reais. Descrições verdadeiras e precisas sobre a realidade
não podem ser logicamente incompatíveis entre si.
Façamos uma analogia: se estou descrevendo fielmente o meu apar-
tamento - que se localiza em Nova York, que tem apenas (para meu
azar) um banheiro - , não preciso parar e me preocupar se algumas
afirmações contradizem outras; se, por exemplo, poderei inferir que
moro no subúrbio de Nova Jersey e tenho quatro banheiros. Se todas as
minhas afirmações forem inequívocas e realmente descritivas, não se
contradirão entre si, já que a verdade objetiva confirma todas elas.
Mas num sistema formal, com axiomas privados de significado, e
a verdade se resumindo à dedutibilidade, não podemos pressupor
que os axiomas não gerarão teoremas logicamente incompatíveis.
Nossos sistemas formais são constituídos mediante regras estipula-
das. Quem garante que nós - meros seres humanos, afinal - cons-
truímos esses sistemas de forma consistente, que as regras não pro-
duzirão implicações contraditórias? Essa é a desvantagem de tomar o
homem como a medida matemática de todas as coisas, sem nenhuma
realidade independente para assegurar a consistência fundamental
de nossos axiomas.
Claro que, se meus axiomas levam a teoremas que são logicamente
incompatíveis, então meu sistema é inútil, pior que a seqüência mais
especulativa de conjecturas meramente probabilísticas ou de artifícios
metafísicos que pretendem alcançar além dos limites do Ser e da Graça
ideal.* Qualquer coisa pode ser deduzida dentro de um sistema inconsis-

* Alusão ao poema "How do I love thee?", de Elizabeth Barrett Browning: "How do I lave
thee? Let me count the ways./ I lave thee to the depth and breadth and height! My sou! can
reach, when feelingoutof sight / For the ends ofBeingand ideal Grace." (N. T.)

119
INCOMPLETUDE

tente, já que, a partir de uma contradição, qualquer proposição pode ser


provada. Você pode alegar que, em uma interpretação rigorosamente
formalista, a inconsistência perde a sua força. Afinal, qual o problema se,
pela manipulação de fórmulas sem sentido, chegamos a fórmulas con-
traditórias sem sentido? O problema é que o jogo fica arruinado, pois
simplesmente não é interessante tentar deduzir teoremas se tudo é dede-
tível. Mas isso não quer dizer que as contradições internas estejam
demonstrando desastrosamente que nossos sistemas não podem ser ver-
dadeiros - a eliminação da verdade extra-sistema é o próprio objetivo
do formalismo. Você também pode achar que a urgência com que Hil-
bert insistiu que a matemática fosse provada consistente mostrou que ele
não era de fato, no fundo, um formalista. De qualquer modo, seguindo a
agenda formalista, se a matemática deve ser depurada com sucesso das
intuições em prol da certeza, então provas formais da consistência dos sis-
temas depurados constituem uma necessidade premente.
A maior prioridade de todas era provar a consistência da aritmé-
tica. Outros sistemas de matemática, por exemplo, a geometria, tive-
ram sua consistência relativa provada: contanto que a aritmética, o mais
básico de todos os sistemas matemáticos, seja consistente. Esses tipos de
provas, que estabelecem a consistência de um sistema como conse-
qüência da consistência de outro sistema, são chamados provas relati-
vas de consistência. Todas essas provas relativas de consistência esta-
vam relacionadas à consistência da aritmética, que se tornou assim o
próximo passo, aquele que forneceria o fulcro para o programa de Hil-
bert. A prova da consistência da aritmética não podia ser relativa, como
as demais provas da consistência. Teria que ser uma "prova absoluta':
O tom da palestra de Hilbert de 1900 para as tropas matemáticas é
extremamente otimista. Ele tinha certeza de que uma prova absoluta
da consistência da aritmética era iminente. Mas, numa série de pales-
tras de Hilbert na década de 1920, seu otimismo modulou-se em algo
mais cauteloso. Sua mudança de humor foi provocada pelos paradoxos
da teoria dos conjuntos, mais visivelmente o paradoxo de Russell de
1902, que trouxe o conjunto de todos os conjuntos que não são ele-

120
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

mentos de si mesmos à atenção horrorizada dos matemáticos, aumen-


tando ainda mais os estragos do paradoxo de Cantor, envolvendo o
impossível conjunto universal, o conjunto de todos os conjuntos.* Hil-
bert considerou "a situação referente aos paradoxos" com desânimo:

Temos de admitir que o estado atual das coisas, em que topamos com os para-
doxos, é intolerável. Pense bem: as definições e métodos dedutivos que todos
aprendem, ensinam e empregam em matemática levam a absurdos! Se o pen-
samento matemático é falho, onde encontraremos verdade e certeza? 5

Mas ele continua expressando a confiança na existência de "um meio


totalmente satisfatório de escapar dos paradoxos sem traição" ao espí-
rito da matemática.
((Traição" ao espírito da matemática consistiria em ações como
expelir da matemática a própria noção de infinito, conforme vinha
sendo preconizada por matemáticos c9mo o holandês Luitzen Brou-
wer. Brouwer era um grande expoente da escola intuicionista de mate-
mática, que é uma outra perspectiva metamatemática. ** Dentre todas
as escolas não platônicas, os intuicionistas eram os que mais se opu-

* Ver nota do capítulo 1, página 78 (segunda nota).


**Os intuicionistas eram os mais rigorosos de todos quando se tratava dos métodos
aceitáveis de prova. As provas matemáticas deveriam limitar-se, de acordo com o intui-
cionista, a "provas construtivas", ou seja, aquelas que aplicavam operações concretas a
estruturas finitas ou "potencialmente" (mas não de fato) infinitas. Referências a estru-
turas infinitas completas eram proibidas, assim como provas indiretas com referências
à lei do terceiro excluído. Seguindo-se à risca as restrições rigorosas da matemática
intuicionista, grande parte da matemática aceita -por exemplo, partes da análise clás-
sica e mesmo da lógica clássica- não seria mais considerada aceitável. O próprio Brou-
wer renunciou a grande parte do trabalho que realizara antes de se converter num intui-
cional. Aliás, o nome "intuicionismo" pode parecer enganador, considerando-se o que
viemos falando de intuições até agora, como exatamente o tipo de apelo à verdade mate-
mática objetiva que os formalistas e intuicionistas pretendiam eliminar. Os intuicionis-
tas sustentavam que as construções finitárias representavam, na verdade, construções
mentais, a única espécie de construções mentais matemáticas que nós, seres finitos,
poderíamos empreender. Assim, eles alegavam que suas restrições às provas matemáti-
cas correspondiam de fato à psicologia humana.

121
INCOMPLETUDE

nham ao platonismo. Mesmo o formalismo pode ser interpretado de


modo a não excluir uma abordagem basicamente platônica da mate-
mática, contanto que intuições platonicamente sancionadas não inva-
dam a prática matemática. O próprio Hilbert muitas vezes parece um
platônico, embora de um tipo muito rigoroso consigo próprio.
Hilbert certamente queria evitar as limitações extremas que os
intuicionistas imporiam à prática matemática para impedir a possibi-
lidade de paradoxos. A abordagem que Hilbert tinha em mente,
quando falou em "esclarecer totalmente a natureza do infinito': estava
dentro do alcance dos sistemas formais finitários. * Em outras palavras,
a saída do atoleiro provocado na matemática pelos paradoxos da teo-
ria dos conjuntos estaria, de acordo com Hilbert, no processo purifica-
dor de formalização - ou seja, na solução dos problemas do que Hil-
bert denominou "teoria da prova".
O principal desses problemas era aquele que Hilbert pusera em
segundo lugar na sua lista da palestra de 1900: encontrar uma prova
finitária da consistência dos axiomas, primeiro da aritmética, depois
de sistemas axiomáticos progressivamente mais fortes. Tudo começa-
ria, então, com o passo "individual, mas absolutamente necessário" de
provar a consistência do sistema formal da aritmética. O trabalho pri-
meiro de Gottlob Frege e, após a descoberta do paradoxo de Russell,
deste e Whitehead em Principia mathematica, preparara o terreno para
a prova consagradora. O sistema formal exposto nos Principia mathe-
matica era suficiente para expressar todas as verdades da aritmética;
supunha-se também que fosse consistente. As regras ad hoc da teoria
dos tipos impediam a formação de conjuntos geradores de inconsis-

* Ao falarmos de sistemas formais até aqui neste livro, viemos falando de sistemas for-
mais finitários apenas, ou seja, sistemas formais com um alfabeto de símbolos finito ou
enumerável (ou contável), fórmulas de comprimento finito e regras de inferência
envolvendo apenas um número finito de premissas. (Os lógicos também trabalham
com sistemas formais com alfabetos não enumeráveis, fórmulas infinitamente longas e
provas com um número infinito de premissas.)

122
CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS

tências, como o conjunto de todos os conjuntos que não são elementos


de si próprios. Mesmo assim, uma prova formal da consistência era
uma necessidade. Depois, se além de consistente, um tal sistema formal
pudesse ter sua completude demonstrada, permitindo assim provar
todas as verdades aritméticas, o fulcro do programa de Hilbert teria
sido garantido, e a crise criada pelos paradoxos superada.
Entra em cena Gõdel.

123
CAPÍTULO 3.
A PROVA DA INCOMPLETUDE

GÕDEL EM KÕNIGSBERG

que o lógico Jaakko Hin tikka chamou de Sternstunde de Gõdel, sua


O hora da estrela, ocorreu em 7 de outubro de 1930. O cenário foi o
terceiro e último dia de um congresso em Kõnigsberg sobre a "Episte-
mologia das ciências exatas" que havia sido organizado pela Gesellshaft
für empirische Philosophie, a Sociedade para a Filosofia Empírica, uma
associação com pontos em comum com o Círculo de Viena e a Socie.:.
dade para a Filosofia Científica, um grupo de discussão de Berlim cujo
luminar era Hans Reichenbach, um filósofo da física. Os objetivos e ati-
vidades do grupo de Berlim assemelhavam-se aos do Círculo de Viena,
e desde o início existiram estreitos vínculos entre os dois. Alguns dos
matemáticos, lógicos e filósofos da matemática mais influentes haviam
sido convidados para dar palestras no congresso. Gõdel, que acabara de
concluir sua dissertação de doutorado, não era um peixe grande. Foi
programado que ele, junto com outros peixes pequenos, daria uma
palestra de vinte minutos no segundo dia do congresso.

124
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

No primeiro dia, houve quatro oradores, cada um defendendo uma


posição metamatemática diferente. A meta preocupação abordada foi,
como quase sempre acontece nas discussões de metamatemática, a
aprioricidade e a certeza irresistíveis da matemática. Como se permitiu
nosso ingresso no clube cognitivo mais fechado do universo?
Rudolf Carnap veio de trem de Viena com Gõdel para apresentar
uma dissertação intitulada ''As principais idéias do logicismo", expondo
a visão de que as verdades matemáticas são, em última análise, redutí-
veis a tautologias da lógica. Arend Heyting, um matemático holandês,
falou sobre "Os fundamentos intuicionistas da matemática", preconi-
zando a eliminação de todas as provas que não fossem rigorosamente
construtivas e que só se fizesse referência a idéias estritamente finitas
ou pelomenos enumeráveis. (O resultado seria a eliminação de mui-
tas partes bonitas da matemática.) David Hilbert, o principal defensor
do formalismo, não veio de Gõttingen, mas seu ponto de vista forma-
lista foi dignamente representado por John von Neumann. Houve
também uma dissertação intitulada "A natureza da matemática: o
ponto de vista de Wittgenstein", do resignado imitador de Wittgens-
tein Frederich Waismann.
Logicismo, intuicionismo, formalismo, Wittgenstein: não havia
nenhum representante do platonismo para defender aquele ponto de
vista no primeiro dia em Kõnigsberg. Todas as visões representadas ali
naquele dia estavam comprometidas com a crença de que a verdade
matemática era redutível à dedutividade. As divergências entre elas
eram sobre as condições de comprovação.
Como Waismann vinha se preparando para a palestra em Kõnigs-
berg, Wittgenstein se reuniu com ele e Schlick, na casa deste último,
regularmente no verão de 1930. Os pontos centrais da palestra de
Waismann, segundo o biógrafo de Wittgenstein, Ray Monk, foram:
"[ ... ] a aplicação do princípio da verificação à matemática para for-
mar a regra básica: 'O significado de um conceito matemático é seu
modo de uso e o sentido de uma proposição matemática é seu método
de verificação"'. 1

125
INCOMPLETUDE

Monk prossegue: "De qualquer modo, a palestra de Waismann e


todas as outras contribuições ao congresso foram eclipsadas pelo
anúncio ali da famosa prova da incompletude de Gõdel".
Na verdade, não foi exatamente isso que aconteceu no congresso
em Kõnigsberg. É compreensível a suposição do biógrafo de Wittgens-
tein de que o anúncio da "famosa prova da incompletude" de Gõdel
tivesse causado sensação entre os participantes do congresso, os quais,
naquele primeiro dia, ouviram palestras incompatíveis com o resul-
tado de Gõdel, cada palestra supondo que o conceito de verdade mate-
mática é, de alguma maneira, redutível à dedutibilidade. Mas o "anún-
cio" de Gõdel passou quase despercebido.
É verdade que a palestra de Waismann não sobressaiu em meio às
outras três, mas isso porque, como relatam Menger e outros, os demais
participantes concordaram que as idéias de Wittgenstein não estavam
ainda maduras para serem debatidas. Não foi porque Gõdel virou o
centro das atenções que Waismann foi empurrado para a sombra. Na
verdade, o anúncio de Gõdel, na sessão de fechamento no terceiro e
último dia do congresso, foi tão modesto e informal- tão pouco dra-
mático - que mal pode ser chamado de anúncio, e ninguém, exceto
um participante, prestou muita atenção nele.

O PRIMEIRO GRANDE MOMENTO DESPERCEBIDO


DE GÕDEL: UMA TRIVIALIDADE NÃO TÃO TRIVIAL

A palestra de vinte minutos de Gõdel no segundo dia do congresso


também atraíra pouca atenção. Foi basicamente um resumo do traba-
lho por ele realizado no ano anterior para sua dissertação de douto-
rado, trabalho este que não foi sobre a incompletude, e sim sobre a
completude. O que Gõdel fizera foi provar a completude do que se
denomina "cálculo de predicados" ou, às vezes, "lógica de primeira
ordem" ou "lógica quantificacional". Não importam os nomes feios,
que espantam as almas poéticas. Vamos rebatizar o sistema de lógica

126
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

formal em questão de "lógica límpida,,. Gõdel provou que a lógica lím-


pida é completa. Seus axiomas e regras de inferência permitem provar
todas as proposições logicamente verdadeiras, ou tautológicas, dentro
dela. Mas o que é essa noção de logicamente verdadeiro ou tautológico?
O simbolismo da lógica límpida permite representar proposições de
modo que sejam reduzidas a uma forma totalmente despojada. Ele for-
nece um meio de simbolizar a uma forma lógica das proposições e exi-
bir as relações lógicas entre elas. Dispõe de símbolos para palavras como
não, e, ou, se ... então ... , se e somente se, bem como para conceitos ((quan-
tificantes,, como todo, nenhum e alguns. Palavras como essas são as úni-
cas logicamente relevantes. São os significados desses termos, conforme
definidos pelas regras do sistema, que determinam a forma lógica das
proposições. Sentenças diferentes podem compartilhar a mesma forma
lógica e, do ponto de vista da lógica límpida, essas sentenças são essen-
cialmente iguais, já que são logicamente equivalentes ( continuando
assim a ascensão rumo à generalidade lógica, que coincide com o desen-
volvimento da ciência da lógica criada por Aristóteles) .
Vejamos, por exemplo, as sentenças "todos os homens casados são
casados,,, cctodos os bebês bonitos são bonitos,, e cctodos os argumentos
válidos são válidos". Todas essas sentenças são extraídas da proposição
mais geral que afirma: se algo possui dois atributos P e Q (ou, tecnica-
mente, satisfaz dois predicatos P e Q) - , digamos, ser um bebê e ser
bonito,-, então possui um desses atributos (satisfaz um dos predica-
dos), digamos, ser bonito.
A lógica límpida categoriza grupos inteiros de sentenças em termos
de sua forma lógica compartilhada, removendo todos os significados de
predicados e sujeitos específicos para descer até a lógica despojada.
Quanto aos termos não-lógicos, eles se referem a indivíduos - indiví-
duos específicos ou quaisquer indivíduos - e a predicados e relações
entre predicados. Para nos referirmos a qualquer dos indivíduos, usamos
variáveis como x e y, e para nos referirmos a indivíduos específicos, usa-
mos constantes, como a ou b.As propriedades são designadas por cons-
tantes predicativas como P e Q, e existem termos relacionais como R. A

127
INCOMPLETUDE

coisa mais fácil que podemos dizer na lógica límpida é que algum indiví-
duo satisfaz algum predicado: P(a). Lemos isso como: P de a (P satizfaz
a). Um pouco mais complicado é afirmar que algum indivíduo a possui
uma relação particular com outro b: R(a b). Depois talvez queiramos
dizer algo como: existe um ou outro indivíduo que possui uma proprie-
dade particular. Isso é simbolizado como :3xP(x), que se lê: existe um x
tal que P de x. Ou talvez queiramos dizer que todos os indivíduos satisfa-
zem P. Na lógica límpida isso é simbolizado como (x)P(x), e se lê: dado
qualquer x, P dex. Uma proposição logicamente verdadeira, ou uma tau-
tologia, é aquela que é verdadeira para quaisquer significados que atri-
buirmos aos termos não lógicos. (Como "logicamente verdadeiro" faz
referência a significados-algo é logicamente verdadeiro se é verdadeiro
para quaisquer significados atribuídos aos seus termos não lógicos - ,
trata-se de uma noção semântica, e não sintática.)
Assim, por exemplo, suponhamos que queremos dizer que, se algo
satisfaz dois predicados específicos, então satisfaz um daqueles predi-
cados. O simbolismo seria:
(x) (P(x) e Q(x)) ~ Q(x)*
Isso se lê assim: dado qualquer x, se x tem a propriedade P ex também
tem a propriedade Q, então x tem a propriedade Q. Isso é logicamente
verdadeiro e gerará um monte de proposições verdadeiras, formadas
pela substituição de P e Q por significados particulares.
Eis outra proposição logicamente verdadeira da lógica límpida:
(x) (y) ((x=y)~ (P(x) ~P(y)))
Isso significa: para todo x, para todo y, se x é igual a y, então x tem a pro-
priedade P se e somente se y tem a propriedade P. Não é preciso quebrar
a cabeça para ver que isso tem de acontecer: se duas coisas na verdade não
são duas, mas a mesma, então todas as propriedades de uma são as pro-

* Observe o papel dos parênteses na pontuação da lógica límpida. -(p & q) ou "p e q não
são ambos verdadeiros" é uma proposição totalmente diferente de -p & q, ou "não p é
verdadeiro e q também". Assim, "o presidente não é ao mesmo tempo afável e estúpido"
não é a mesma afirmação que "o presidente não é afável, e ele é estúpido':

128
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

priedades da outra. (O que realmente temos no caso da identidade é uma


coisa individual designada, ou selecionada, de duas maneiras diferentes.)
Dessa última proposição formalmente verdadeira da lógica límpida,
podemos obter verdades como: se Gõdel é o autor dos teoremas da
incompletude, então Gõdel é um platônico se e somente se o autor dos
teoremas da incompletude é um platônico. Se o professor Moriarty é o
mentor intelectual de todos os crimes de Londres, então o professor
Moriarty é um matemático se e somente se o mentor intelectual de todos
os crimes de Londres é um matemático. Se a lua é a deusa Diana, então a
lua é feita de queijo se e somente se a deusa Diana é feita de queijo. Obvia-
mente, você pode inserir o que bem entender como seu predicado P e
gerar uma afirmação trivialmente verdadeira, porque (x) (y) ( (x =y) ~
(P(x) ~ P(y))) é logicamente verdadeira. É uma tautologia; sua ver-
dade, uma função dos significados dos termos lógicos que a compõem.
O teorema da completude de Gõdel, o resultado que ele apresentou
no congresso de luminares lógicos, provou que todas essas proposições
logicamente verdadeiras são comprováveis dentro do sistema formal
da lógica límpida. Outra forma de enunciar o resultado da completude
de Gõdel é que, na lógica límpida, a verdade sintática e a verdade
semântica são equivalentes: as verdades decorrentes das regras do sis-
tema (as verdades sintáticas) geram todas as proposições logicamente
verdadeiras expressáveis dentro do sistema. A lógica límpida, então,
além de consistente (sua consistência já havia sido provada), também
é completa. (Sistemas inconsistentes são obviamente completos, por-
que podemos provar qualquer coisa neles. Eles são completos demàis.
É sobre sistemas consistentes que se faz a pergunta: eles são completos?
Suas regras sintáticas formais permitem que se prove tudo que se gos-
taria de provar? Eles permitem provar todas as verdades expressáveis
dentro do sistema?)
A completude é exatamente o que se gostaria de ter num sistema
formal de lógica, e foi um dos problemas para os quais Hilbert exigiu
uma solução. Foi tranqüilizador ter uma prova, mas, como a conclusão
nunca fora objeto de dúvida, o resultado do doutorado de Gõdel não

129
INCOMPLETUDE

pareceu muito empolgante. O jovem homem dera-se ao trabalho de


provar o que todos já aceitavam como verdade.
Em retrospecto, podemos ver que o que Gõdel havia provado em
sua dissertação era bem mais interessante- merecendo muito mais
preocupação por parte dos formalistas e simpatizantes -do que pare-
cera à primeira vista. Gõdel havia provado o resultado esperado: a
completude. Mas a dificuldade da prova - a prova substantiva, com
vários passos, que foi exigida - deveria ter impressionado as pessoas
como algo inesperado, até alarmante. Ao mostrar como era compli-
cado provar realmente a completude da lógica límpida, Gõdel estava
dando margem à possibilidade de que outros sistemas formais consis-
tentes - aqueles, por exemplo, enriquecidos pelos axiomas da aritmé-
tica - pudessem não ser completos. A não-trivialidade da prova da
completude da lógica límpida deve ter forçosamente suscitado a possi-
bilidade, ao platônico Gõdel, de que havia proposições aritmetica-
menteverdadeiras mas não comprováveis dentro de um sistema formal
de aritmética.*

* Godel escreveria a Wang muitos anos depois que sua prova da completude para o cál-
culo dos predicados - o problema de sua dissertação - também havia sido inspirada
por suas convicções platônicas: "O teorema da completude, matematicamente, não
passa de uma conseqüência quase trivial de Skolem 1922 ['Algumas observações sobre
a teoria dos conjuntos axiomatizada' ]. Contudo, o fato é que, naquela época, ninguém
(incluindo o próprio Skolem) chegou a essa conclusão. [ ... ] Tal cegueira é surpreen-
dente. Mas creio que a explicação não é difícil de encontrar. Reside numa falta generali-
zada, naquela época, da atitude epistemológica necessária em relação à metamatemá-
tica e ao raciocínio não finitário. O raciocínio não finitário em matemática só era
considerado amplamente significativo na medida em que pudesse ser 'interpretado' ou
'justificado' em termos da metamatemática finitária. (Observe-se que isso, na maior
parte, se revelou impossível em conseqüência de meus resultados e trabalhos subse-
qüentes.) De acordo com essa idéia, a metamatemática é a parte significativa da mate-
mática, através da qual os símbolos matemáticos (em si sem sentido) adquirem algum
substituto do significado, a saber, as regras de uso. Claro que a essência desse ponto de
vista é uma rejeição de todos os tipos de objetos abstratos ou infinitos, dos quais os sig-
nificados prima facie dos símbolos matemáticos são instâncias".2

130
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

A EXPLOSÃO MAIS SILENCIOSA:


GÕDEL ANUNCIA SEUS RESULTADOS

Gõdel não deu nenhum sinal da revolução que ocultava sob a manga
até o último dia do congresso, reservado à discussão geral dos artigos
dos dois dias anteriores. Ele esperou até que a discussão geral estivesse
bem avançada e, então, mencionou, numa única frase perfeita, que
proposições aritméticas verdadeiras, mas não dedutíveis, eram possí-
veis, e ele provara que elas existiam:

É possível-pressupondo a consistência (formal) da matemática clássica -


até dar exemplos de proposições (como as de Goldbach e Fermat)* que são
contextualmente [substancialmente] verdadeiras, mas não dedutíveis no sis-
tema formal da matemática clássica.

Pois é. A prova que se tornaria a "famosa prova da incompletude»


havia aparentemente sido obtida no ano anterior, quando Gõdel tinha
23 anos, e viria a ser submetida em 1932 como sua Habilitationsschrift,

* "Goldbach" e "Fermat" referem-se, respectivamente, à "conjectura de Goldbach" e ao


"último teorema de Fermat". Goldbach, como mencionamos na nota de rodapé do capí-
tulo l, havia conjecturado que todos os números pares maiores que 2 são a soma de dois
primos. O matemático francês Pierre de Fermat ( 1601-65) escrevera na margem de um
livro, encontrado após sua morte, que havia "descoberto uma demonstração realmente
maravilhosa da proposição" de que não existem inteiros x, y, z, n, com n > 2, tal que :X:' +
y'' =z", "que esta margem é estreüa demais para conter". Na época do anúncio de Gõdel,
nem a conjectura de Goldbach, nem o último teorema de Fermat haviam sido provados
verdadeiros ou falsos, embora gerações de matemáticos tivessem se esforçado por
prová-los. Em 1991, Andrew Wiles, da Universidade de Princeton, conseguiu demons-
trar, numa prova complicada que requereu os resultados de muitos outros matemáti-
cos e ocupou mais de 150 páginas, o último teorema de Fermat. A conjectura de Gold-
bach ainda não foi provada nem refutada. (Refutar seria fácil: bastaria encontrar um
número par que não fosse a soma de dois primos.) A possibilidade que Gõdel estava
enunciando em sua Sternstunde era que proposições como essas duas podem ser verda-
deiras, mas não dedutíveis dentro da teoria dos números formalizada. O que sua prova
famosa faz é produzir uma proposição, evidentemente verdadeira, mas que ele prova
não ser dedutível no sistema.

131
INCOMPLETUDE

o último estágio do processo prolongado para se tornar um Dozent aus-


tríaco ou alemão. É um dos exemplares de raciocínio matemático mais
espantosos já produzidos, espantoso tanto na simplicidade da estraté-
gia principal como na complexidade dos detalhes, a tradução meticu-
losa da metamatemática dentro da matemática mediante o que passou
a ser chamado de aritmetização de Gõdel. É uma mescla cuidadosa-
mente ordenada de várias camadas ou "vozes", tanto matemáticas como
metamatemáticas, o contraponto se fundindo em acordes harmônicos
nunca antes ouvidos.A música parece proporcionar uma metáfora bem
apropriada, razão pela qual Ernest Nagel e James R. Newman, em sua
obra explicativa clássica, Godel's proa![ A prova de Gõdel], descreveram
a prova como uma "sinfonia intelectual surpreendente".
Deve ter sido uma experiência extraordinariamente excitante ter
produzido tal música matemática, sobretudo por ser matemática que
canta, pelo menos ao ouvido do compositor, o seu adorado plato-
nismo. Mas, até aquele momento em Kõnigsberg, Gõdel não deixara
escapar uma só nota de sua prova sinfônica. Tal aparência silenciosa e
inexpressiva encerrando um barulho matemático tão poderoso.
Enfim, ele pronunciou uma frase lacônica e precisa, lançada in medias
res no último dia do congresso, em meio à recapitulação das preleções
dos dias anteriores. Gõdel apresentou-a sem fanfarra, tocada num sim-
ples pianíssimo.
O "anúncio" idiossincrático é compatível com a personalidade do
lógico. O enunciado conciso que compôs sua "hora da estrela", durando
no máximo uns trinta segundos e meticulosamente forjado, constitui
uma obra-prima em miniatura. Diz o que precisa dizer, nenhuma pala-
vra a mais. Deve ter sido preparado "nos mínimos detalhes" (para repe-
tir o elogio dele às aulas de Hahn), e ele deve ter refletido sobre o
momento exato de lançá-lo na discussão: no final dos três dias, como a
refutação conclusiva de todas as metaposições defendidas até então. O
homem que indicava com breves movimentos da cabeça sua aprovação,
ceticismo ou discordância deve ter pensado que a grande importância
de sua observação seria evidente para o público de Kõnigsberg.

132
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

A apresentação, mesmo dos assuntos mais rigorosos, pode fazer


muita diferença para a recepção das idéias de alguém. A ostentação
ajuda: uma moldura pesada e elaboradamente entalhada pode fazer a
obra de arte mais imperfeita parecer importante. Não temos relatos de
primeira mão de como foi a apresentação de Gõdel naquele dia de outu-
bro de 1930; do tipo de moldura expressiva que ele deu ao equivalente
matemático a uma pintura representando a natureza da própria
beleza. Mas sabemos o suficiente sobre o enfaticamente anticarismá-
tico Gõdel, com sua aversão ao drama e sua fé absoluta na implicação
lógica, para podermos imaginar como ocorreu. O enunciado sóbrio e
sem inflexão do xis da questão, sem quaisquer floreios retóricos,
nenhum contexto badalado para ajudar os ouvintes a captar a impor-
tância do que estava sendo dito. Nenhum Sturm und Drang, apenas um
gênio contido emitindo uma frase austera que implicava a existência de
uma prova de natureza e escopo inéditos.
"Quanto mais penso na linguagem", ele observou para Menger, ao
caminhar para casa uma noite com os "wittgensteinianos", "mais me
surpreendo com o fato de as pessoas conseguirem entender umas às
outras." Tal pessimismo sobre as possibilidades da comunicação -
·mesmo naquele estágio prematuro, antes das décadas que trouxeram
tantas interpretações errôneas, conquanto celebratórias, de sua obra
- deve certamente ter atiçado seu desejo de encontrar uma prova
matemática rigorosa para dizer tudo que tinha a dizer sobre a natureza
da verdade e do conhecimento matemático. Agora ele dispunha de tal
prova e estava anunciando seu resultado, ou pelo menos o primeiro dos
dois teoremas que decorreriam dele. Teria previsto que sua bomba
seria recebida com um misto de descrença e surpresa e, depois, com
uma saraivada de perguntas agressivas? Será que se preparou conscien-
ciosamente para todos os pedidos de elucidação adicional que por
certo se seguiriam, como o biógrafo de Wittgenstein imaginou a cena?
Gõdel sempre se desapontaria com a capacidade dos outros de
ignorar as implicações que ele escrupulosamente preparara para eles, e
sua experiência em Kõnigsberg deve ter sido um impressionante desa-

133
INCOMPLETUDE

pontamento, pois a reação foi um ressoante silêncio. A frase imacula-


damente composta foi proferida ... e a discussão prosseguiu como se
não tivesse sido. A transcrição da discussão daquele dia foi publicada
na revista Erkenntnis (editada por Carnap e Reichenbach, e o principal
órgão de divulgação dos pontos de vista do Círculo de Viena e do grupo
de Berlim de Reichenbach), e não inclui nenhuma discussão da obser-
vação de Gõdel. Tampouco alguma menção a Gõdel no relato da reu-
nião escrito por Hans Reichenbach. 3
Mesmo levando em conta a maneira de ser anticarismática de
Gõdel, sua observação deveria ter provocado um mínimo de perturba-
ção, um "Desculpe, sr. Godel, mas tenho a impressão de que o senhor aca-
bou de dizer que provou a existência de verdades aritméticas não dedutí-
veis. O senhor não pode ter dito isso, porque, além de contrariar todas as
nossas visões sobre a natureza da verdade matemática, parece uma contra-
dição em termos. Como o senhor pôde provar que existem proposições arit-
méticas ao mesmo tempo não dedutíveis e verdadeiras? Essa prova, ao mos-
trar que são verdadeiras, não constituiria uma demonstração delas,
contradizendo assim sua alegação de que não são dedutíveis? Um lógico
como o senhor não poderia estar afirmando tamanha contradição. Por-
tanto, o que foi mesmo que o senhor disse?".
O orientador da dissertação de Gõdel, Hans Hahn, estava presente
em Kõnigsberg. Na verdade, ele presidiu a discussão do último dia do
congresso. Será que Gõdel nada compartilhou de sua prova da incom-
pletude com o orientador? Não sabemos ao certo. Hao Wang escreve
que Gõdel concluiu sua dissertação, a prova da completude da lógica
dos predicados (a lógica límpida), sem mostrar para Hahn. Aquele
resultado vinha sendo preparado para publicação na época do con-
gresso (e presume-se que, àquela altura, Hahn a tivesse lido). Em suas
notas introdutórias à dissertação, que por um motivo desconhecido
foram eliminadas da versão publicada, Gõdel levantara a possibili-
dade da incompletude da aritmética, embora sem nenhuma indicação
de que a tivesse provado. Hahn deve ter lido aquela observação e não
a levou a sério. Talvez ele mesmo tenha aconselhado o jovem autor a

134
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

eliminar as notas. Talvez não quisesse que o aluno se expusesse sem


nenhuma prova a seu favor, tendo presumido, com base no que Gõdel
havia contado (ou no que não havia contado), que não existia
nenhuma prova.
Outro participante do congresso de quem se esperaria que reagisse
à observação de Gõdel era Rudolf Carnap. Carnap tivera mais tempo
que os outros para digerir a novidade de Gõdel, já que Gõdel lhe confi-
denciara seu resultado várias semanas antes. Em 26 de agosto de 1930,
de acordo com as Aufzeichnungen de Carnap em seu Nachlass, ele se
encontrara com Gõdel, Feigl e Waismann no Café Reichsrat, em Viena,
para discutir os planos da viagem a Kõnigsberg. Após resolverem os
detalhes práticos, a discussão voltou-se, nas palavras de Carnap, para a
((Entdeckung: Unvollstiindigkeit des Systems der PM; Schwierigkeit des
Widerspruchsfreiheitbeweises de Godel: a descoberta de Gõdel. A
incompletude do sistema dos Principia mathematica. A dificuldade de
provar sua consistência". (Observe que ele diz "dificuldade" aqui, não
ainda impossibilidade. Gõdel só provou plenamente seu segundo teo-
rema da incompletude após o congresso.) 4 De novo três dias depois,
Carnap registra que os mesmos quatro se encontraram no mesmo café
e que, antes que Feigl e Waismann chegassem, "erziihlt mir Godel von
seinen Entdeckungen - Gõdel contou-me sobre as suas descobertas".
Mesmo assim, no congresso, Carnap repetiu sua velha cantilena de que
a consistência era o único critério para julgar a adequação das teorias
formais em matemática, e a questão da completude nem sequer foi
levantada. Como pôde ele, dadas as Entdeckungen de Gõdel, não ter
questionado seu pensamento anterior? 5
A resposta parece ser que Carnap não entendeu a natureza da des-
coberta de Gõdel. A idéia de que os critérios da verdade semântica
pudessem ser separados dos critérios de dedutibilidade era tão impen-
sável, de um ponto de vista positivista, que ele simplesmente não con-
seguiu assimilar a essência do teorema.
Essa demora em apreender a importância do que Gõdel estava ten-
tando lhe dizer é confirmada por outra anotação no diário de Carnap,

135
INCOMPLETUDE

datada de 7 de fevereiro de 1931, depois que o famoso artigo de Gõdel


já havia sido publicado. "Godel hier. über seineArbeit, ich sage, dass sie
doch schwer verstiindlich ist. Gõdel esteve aqui. Sobre seu trabalho, digo
que é muito difícil de entender."
O silêncio retumbante que saudou o anúncio de Gõdel parece, em
retrospecto, um exemplo clássico da espécie de insensibilidade que
Thomas Kuhn discute em A estrutura das revoluções científicas:

Em ciência [... ] a novidade emerge somente com dificuldade, manifestada pela


resistência, contra um pano de fundo proporcionado pela expectativa. Inicial-
mente apenas o previsto e usual são experimentados, mesmo sob circunstân-
cias em que a anomalia será mais tarde observada. 6

VON NEUMANN PEGA A DEIXA

Por acaso, uma pessoa presente em Kõnigsberg captou a observação


anômala do jovem lógico: John von Neumann. Sua compreensão do
comentário sucinto de Gõdel é ainda mais impressionante se conside-
rarmos que os pontos de vista do próprio Von Neumann coincidiam
totalmente com os de Hilbert- ele havia sido designado porta-voz do
formalismo em Kõnigsberg - e que ele abrigava o tipo de inclinação
fortemente positivista para a qual a referência de Gõdel à verdade
semântica, independente de um sistema formal, talvez parecesse peri-
gosamente metafísica. Mesmo assim, ele abordou Gõdel, encerrada a
discussão daquele dia, pedindo detalhes. Gõdel deve ter contado o sufi-
ciente sobre como chegou à sua conclusão para que Von Neumann
levasse a sério o que ouviu. Este voltou a Princeton, ao Instituto de
Estudos Avançados, e continuou refletindo sobre a espantosa, preleção
ouvida em Kõnigsberg.
Depois de refletir algum tempo, Von Neumann descobriu um coro-
lário notável ao que Gõdel lhe contara. Von Neumann percebera, com
base no que Gõdel lhe dissera, que sua prova era condicional: o que ela

136
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

diz é que, se um sistema formal S da aritmética é consistente, então é pos-


sível construir uma proposição, que chamaremos de G, verdadeira mas
não comprovável naquele sistema. Assim, se Sé consistente, G é verda-
deira e não dedutível. Trivialmente, então, se Sé consistente, então G é
verdadeira. Von Neumann também compreendeu, com base no que
ouvira de Gõdel, que essa prova pode ser aplicada a um sistema de arit-
mética. (Esse é o truque realizado pela aritmetização de Gõdel.) Assim,
se a consistência de S podia ser provada em S, então G teria sido provada
em S-já que se segue da consistência de S que G é verdadeira. Mas isso
contradiz que G não é demonstrável. A única saída dessa contradição é
negar que se possa provar formalmente a consistência de S dentro do
sistema de aritmética.Assim, do resultado de Gõdel, outra impossibili-
dade se segue: é impossível provar formalmente a consistência de um
sistema de aritmética dentro daquele sistema de aritmética.
Von Neumann entrou em contato com Gõdel, informando-o
daquele corolário, e Gõdel respondeu de modo educado àquele homem
mais velho que a sua conclusão estava correta - conclusão que o pró-
prio Gõdel já havia provado rigorosamente. (Pode-se imaginar o sor-
riso sarcástico de Gõdel ao transmitir essa informação ao titã intelec-
tual, Von Neumann.) Esse corolário é conhecido como o segundo
teorema da incompletude de Gõdel e, embora uma mera conseqüência
do primeiro, é o que inicialmente recebeu atenção, com Von Neumann
o divulgando no instituto. O programa de Hilbert havia fornecido o
contexto para se perceber a importância do segundo teorema da
incompletude de Gõdel. Gõdelhavia provado que o segundo problema
de Hilbert não podia ser solucionado: jamais haveria uma prova formal
finitária da consistência dos axiomas da aritmética dentro do sistema
da aritmética. Jamais haveria a prova que servisse de fulcro para o pro-
grama de Hilbert. As conseqüências para o formalismo foram potentes
e devastadoras.
Fica claro do ponto de vista semântico - ou seja, quando pensa-
mos no que o sistema estritamente formal da aritmética significa -
que a aritmética é consistente, já que tem como modelo os números

137
INCOMPLETUDE

naturais. Fornecemos um modelo de sistema formal, também cha-


mado de interpretação, especificando um universo de discurso, tam-
bém chamado de domínio de índivíduos, sobre o qual as variáveis
variam, interpretando o que os termos predicativos e relacionais signi-
ficam e estipulando a quais elementos do domínio as constantes indi-
viduais se referem. Quando o sistema fo rmal da aritmética é dotado
dos significados usuais, envolvendo os números naturais e suas pro-
priedades, seus axiomas se mostram claramente verdadeiros e, assim,
devem ser consistentes, já que enunciados verdadeiros não podem ter
conseqüências falsas. Não que a consistência da aritmética estivesse de
fato sendo questionada (por pessoas que acreditam mesmo nos mime-
ros). A questão diz respeito ao modo como a consistência pode ser pro-
vada - uma questão importante do ponto de vista metamatemático,
uma questão premente para todos, exceto para o platônico.
A consistência de um sistema equivale à proposição que afirma que,
através das regras do sistema, nenhuma contradição pode ser derivada.
A proposição é, em si, combinatória, envolvendo regras simples de
manipulação de símbolos - regras que determinam quais seqüências
de símbolos decorrem de quais seqüências de símbolos. Essa proposi-
ção combinatória é, exatamente por ser combinatória, equivalente a
algo aritmético. Portanto, pode ser formulada dentro do sistema da
aritmética- e a questão natural a ser respondida é se ela pode ser pro-
vada dentro do sistema, e a resposta é que não pode. Os aspectos sintá-
ticos dos sistemas formais - que visavam evitar as intuições, aquelas
alimentadoras de paradoxos - não conseguem captar todas as verda-
des sobre o sistema, inclusive a verdade de sua própria consistência.
Gõdel havia provado que a consistência, exatamente aquilo cuja prova
se supunha iria assegurar os fundamentos do programa de Hilbert
(que pretendia evitar a formação de paradoxos na matemática), trans-
cendia o alcance desse mesmo programa.
A possibilidade de paradoxo, que o programa de Hilbert pretendia
eliminar para sempre, reafirmou-se. E uma das coisas mais estranhas
na prova bonita e esquisita que derrubou a defesa antiparadoxos de

138
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Hilbert foi a forma como o próprio paradoxo foi incorporado na estru-


tura da prova.

OPRIMEIRO TEOREMA DA INCOMPLETUDE:


A ESTRATÉGIA GERAL

As vinte e poucas páginas da famosa prova de Gõdel são densamente


compactas. Existem 46 definições preliminares. Existem também teo-
remas preliminares que precisam ser provados antes que o evento prin-
cipal possa ocorrer: a construção de uma proposição aritmética que
seja, ao mesmo tempo, verdadeira e não comprovável dentro do sis-
tema formal em consideração. As linhas de raciocínio da prova são alta-
mente comprimidas, compostas de uma hierarquia de níveis de dis-
curso interligados, as vozes fundidas da sinfonia.*
Embora os detalhes da prova sejam difíceis, a estratégia geral é -
felizmente! - a própria simplicidade. Simples mas estranha, como
seria de esperar de uma prova que chega tão perto da fronteira da auto-
contradição, provando que existem proposições aritméticas verdadei-
ras que não são comprováveis. Uma das coisas mais estranhas da prova
é que ela coopta a própria estrutura dos paradoxos auto-referenciais,
essas abominações para a razão, e reformula tal estrutura para seus

* Primeiramente, existem os enunciados próprios do sistema formal S para a aritmé-


tica em consideração (chamemo-los de S-sentenças); quando as S-sentenças são inter-
pretadas da maneira natural (ou seja, como enunciações sobre números naturais), elas
se transformam em enunciados aritméticos (chamemo-los de A-sentenças). Por meio
do procedimento conhecido como aritmetização de Gódel, a cada S-sentença é atri-
buído um número. Além desses, existem também os enunciados metamatemáticos
sobre as S-sentenças e sobre o sistema formal S (chamemo-las de M-sentenças) . As M-
sentenças, que descrevem as relações puramente formais entre os elementos do sistema
formal, são enunciados combinatórios, e assim, em certo sentido, podem ser imagina-
das como enunciados também matemáticos. Mas é preciso o sistema de codificação
engenhoso da aritmetização de Gõdel para efetivamente transformar as M-sentenças
em A-sentenças, de modo que, ao falar sobre o sistema formal da aritmética CM-senten-
ças), você também está fazendo enunciados aritméticos (A-sentenças) .

139
INCOMPLETUDE

próprios fins. A estratégia geral da prova - a parte deliciosamente


acessível da prova-pode ser compreendida no contexto do paradoxo
mais antigo que se conhece, o paradoxo do mentiroso.* Podemos dar
uma idéia da prova de uma maneira leve e fácil, e é o que faremos agora.
Depois, nas seções seguintes, nos concentraremos em preencher
alguns outros detalhes, indicando como o trabalho difícil é realizado.
Por tradição, o paradoxo do mentiroso é atribuído ao cretense Epi-
mênides, que teria dito algo como: Todos os cretenses são mentirosos.
Esta sentença, em si, não.é paradoxal, exceto na medida em que sugere
que o que Epimênides estava dizendo era algo como:
Esta própria sentença é falsa.
Ora, esta sentença, como já vimos, é verdadeira se e somente se é falsa
- uma situação nada boa, logicamente falando. A estratégia de Gõdel
envolve a seguinte preposição, análoga a esta sentença paradoxal:
Esta própria sentença não é dedutível dentro deste sistema.
Chamemos esta sentença de G. G, ao contrário de sua análoga, não é
paradoxal, embora seja, como toda proposição auto-referencial, um

* No artigo famoso de Gõdel de 1931, no qual a prova é originalmente apresentada, ele


menciona o paradoxo do mentiroso e o paradoxo de Richard, oferecendo-os como
apoios heurísticos para nos alçarmos ao estranho território de sua prova. Já estamos
familiarizados com o paradoxo do mentiroso. O paradoxo de Richard foi criado pelo
matemático francês Jules Richard. É meio complicado de enunciar, requerendo, como
a própria prova de Gõdel, certo tipo de mapeamento. Ordenam-se as propriedades dos
números naturais e atribui-se um número a cada uma das propriedades. O número atri-
buído a uma propriedade pode ou não ter aquela propriedade. Assim, digamos, 22 cor-
responde à propriedade "ser um número par". Então o próprio 22 tem a propriedade à
qual corresponde na ordenação richardiana. Agora definamos esta propriedade: "não
ter a propriedade atribuída a si própria na ordenação richardiana". Chamemos essa pro-
priedade "ser richardiano". A pergunta geradora de paradoxo é: o número que corres-
ponde a ser richardiano é, ele próprio, richardianoi'
Todas as outras formulações de sua prova-por exemplo, aquelas deAlan Turing e G.
J. Chaitin - incorporaram aspectos de paradoxos, embora paradoxos diferentes dos de
Gõdel, às suas próprias versões da prova. Esses paradoxos, embora diferentes entre si, são
todos da variedade auto-referencial. A afinidade entre o resultado da incompletude e o
paradoxo auto-referencial é, portanto, muito profunda, já que toda prova da incomple-
tude tem certa versão da paradoxalidade auto:..referencial espreitando ao fundo.

140
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

tanto estranha. (Mesmo a não paradoxal auto-referencial Esta própria


sentença é verdadeira é desconcertantemente estranha. O que ela está
dizendo? Onde está seu conteúdo?)
Através do sistema de codificação que viemos a chamar de "aritme-
tização de Gõdel" (claro que o modesto Gõdel não deu esse nome), G
pode ser traduzida em notação aritmética, de modo que constitua tam-
bém um enunciado aritmético. Esse é um dos pontos onde entra o tra-
balho difícil, e mais adiante neste capítulo mergulharemos um pouco
mais fundo nesse aspecto da prova. Gõdel encontrou uma forma enge-
nhosa de fazer uma linguagem aritmética falar de seu próprio forma-
lismo. O resultado da técnica é que G está simultaneamente fazendo
dois enunciados diferentes, afirmando uma declaração aritmética e
também afirmando sua própria não-dedutibilidade. Em outras pala-
vras, o que G tem a dizer, além de seu conteúdo aritmético direto (será
uma proposição aritmética estranha, depois de toda a confusão para
chegarmos lá), é:
G não é dedutível no sistema.
A negação de G, portanto, é a proposição:
G é dedutível no sistema.
Se G fosse dedutível, então sua negação - que, afinal, diz que G é
dedutível- seria verdadeira. Mas, se a negação de uma proposição é
verdadeira, então a própria proposição é falsa. Portanto, se G é dedu-
tível, então é falsa. Mas se G é dedutível, então também é verdadeira.
Afinal, o que mais uma prova mostra, supondo é claro que o sistema
seja consistente (já que num sistema inconsistente todas as proposi-
ções são dedutíveis)? Portanto, pressupondo-se a consistência do sis-
tema, se G é dedutível, então é ao mesmo tempo verdadeira e falsa -
uma contradição-, o que significa que G não é dedutível. Desse
modo, se o sistema é consistente, então G não é dedutível nele. Mas isso
é exatamente o que G diz: que não é dedutível. Assim, G é verdadeira.
Portanto, G é não comprovável e verdadeira, que é precisamente a
famosa conclusão da prova de Gõdel, de que existe uma proposição
verdadeira expressável no sistema, mas não dedutível, se o sistema for

141
INCOMPLETUDE

consistente. Como G também tem um significado diretamente arit-


mético que, é claro, é verdadeiro se G é verdadeira (porque ele é o que
diz G), a prova de Gõdel mostra que existem verdades aritméticas (por
exemplo, G!) que não podem ser provadas dentro do sistema formal,
supondo-se que o sistema seja consistente. Portanto, o sistema formal
é inconsistente ou incompleto.
Além disso, a prova demonstra que, se tentamos remediar a incomple-
tude acrescentando explicitamente G como um axioma, criando assim
um sistema formal novo e expandido, pode-se construir dentro daquele
sistema expandido um correspondente de G que é verdadeiro, mas não
dedutível, no sistema expandido. A conclusão: existem proposições com-
provadamente não dedutíveis, mas mesmo assim verdadeiras, em qual-
quer sistema formal que contenha a aritmética elementar, supondo que o
sistema seja consistente. Conclusão: um sistema rico o bastante para con-
ter a aritmética não pode ser ao mesmo tempo consistente e completo.
Essa é realmente a estratégia geral. Em certo sentido (uma vez que
se assimile a idéia estranha de que se possa construir uma proposição
individual que consegue falar simultaneamente de si mesma e da arit-
mética) ela é simples. Claro que o diabo mora nos detalhes, e é aos deta-
lhes diabólicos que nos voltaremos agora.

PASSO UM: DELINEAR UM SISTEMA FORMAL

Gõdel começa sua prova expondo seu sistema formal, que consiste,
como todos os sistemas formais, em um alfabeto de símbolos, regras
para combinar esses símbolos em fórmulas bem formadas, um con-
junto especial de fórmulas chamado "axiomas" e um aparato dedutivo
para deduzir ( como "conseqüências lógicas") fórmulas de outras fór-
mulas que devem ser axiomas ou conseqüências de axiomas.
Na maioria dos sistemas da lógica formal, convém dispor de símbo-
los para "e" (conjunção) e "ou" (disjunção), bem como para as expres-
sões "se ... então ..." (implicação material) e"... se e somente se ..." (equi-

142
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

valência). Existem também símbolos que expressam as noções quanti-


ficacionais de "todo" e ((algum". Entretanto, será mais conveniente ter o
mínimo de símbolos básicos possível. Podemos eliminar as conjunções
a favor de disjunções, já que ((P e q" significa a mesma coisa que "não é
o caso que p é falso ou q é falso". Assim, quero comer e quero permanecer
magro é equivalente a não é verdade que não quero comer ou não quero
permanecer magro. Depois podemos levar nossa eliminação um passo
adiante, já que a disjunção pode ser eliminada a favor da implicação
material, porque ('se p, então q" significa a mesma coisa de ((não-p ou q".
Podemos também eliminar a noção de ((algum", usando a noção de
((todo': já que ((existem alguns xs que são F'' é o mesmo que ((não é o caso
de que todos os xs não são F". Assim, alguns lógicos são racionais é equi-
valente a nem todos os lógicos são irracionais. Após nossas eliminações,
restam nove conceitos primitivos, e seus símbolos correspondentes,
com os quais expressar toda a aritmética em um sistema formal.

PASSO DOIS: ARITMETIZAÇÃO DE GÕDEL

O próximo passo da prova é conceber um método mecânico para atri-


buir um número único a cada proposição do sistema. É atribuindo
esses números que a fusão de vozes é obtida, com os enunciados arit-
méticos também constituindo enunciados metamatemáticos.
O lógico Simon Kochen mostrou-me a bela semelhança entre a
prova de Gõdel e a obra de Kafka (que Gõdel por acaso admirava).
Tanto em Kafka como em Gõdel, existe certa característica de Alice no
País das Maravilhas, uma sensação de que se adentrou um universo
estranho onde as coisas se transformam em outras, inclusive os pró-
prios significados. No entanto, tudo procede passo a passo de acordo
com a lógica mais rigorosa. (A lógica rigorosa de Kafka é subestimada.)
Grande parte do trabalho na prova de Gõdel representa, nas palavras
de Kochen, ((contabilidade': Esse duplo aspecto da prova espelha algo,
Kochen também disse, essencial sobre a mente de Gõdel também, os

143
INCOMPLETUDE

intensos saltos de imaginação associados a uma espécie de esforço lega-


lista. Ambos esses aspectos emergem na aritmetização de Gódel. Eis a
idéia básica:
O sistema formal, lembre-se, envolve uma variedade de tipos de
objetos: os símbolos do alfabeto, as combinações de símbolos em fór-
mulas, e seqüências especiais de fórmulas (em outras palavras, dedu-
ções). Tudo é construído com base nos símbolos básicos do alfabeto:
uma fórmula é uma seqüência desses símbolos, e uma dedução é uma
seqüência de fórmulas (com a conclusão sendo simplesmente a última
ocorrência da seqüência).
A aritmetizacão de Gódel começa, então; atribuindo um número a
cada símbolo primitivo do alfabeto. Uma vez todos os símbolos primi-
tivos tendo sido dotados de um número, continua-se com uma regra
para atribuir números às próprias fórmulas, com base nos números
correspondentes de seus constituintes. Depois que temos um número
de Gódel para cada fórmula bem formada, a aritmetização de Gódel é
completada com uma regra para atribuir números a seqüências de fór-
mulas, que são as deduções.
Além disso, uma vez cada fórmula dotada de um número corres-
pondente, conseguiremos analisar as relações estruturais entre as
proposições só pela análise das relações aritméticas entre seus núme-
ros correspondentes. Ou vice-versa. Por exemplo, uma fórmula será
dedutível de outra precisamente caso os números de Gódel das fór-
mulas estejam aritmeticamente relacionados entre si exatamente da
maneira certa. Em outras palavras, dois tipos diferentes de descrições
se reduzirão um ao outro: descrições aritméticas, estabelecendo rela-
ções entre números expressíveis dentro do sistema formal; e meta-
descrições sobre as relações lógicas existentes entre as fórmulas no
sistema. Esses metaenunciados são puramente sintáticos, pois não
passam de conseqüências da sintaxe do sistema formal, ou seja, suas
regras.
A idéia da aritmetização de Gódel é basicamente a idéia de codifi-
cação, que permite movimento de ida e volta entre as proposições ori-

144
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

ginais e os códigos. Na escola primária, meus amigos e eu tínhamos um


código semelhante para passar mensagens cifradas, atribuindo a cada
letra do alfabeto um número entre 1 e 26: 1 para ".N.', 2 para "B" etc. "Me
encontre"virava: 13 5 5 14 3 15 14 20 18 5.
O sistema de codificação empregado por Gõdel tinha de assegurar
que o mesmo número de Gõdel não fosse atribuído a coisas diferentes,
digamos, a alguma fórmula e também a uma seqüência de fórmulas
(uma dedução). As regras de codificação fornecem um algoritmo (um
conjunto de regras que informam, a cada passo, como proceder, mui-
tas vezes com base no resultado de uma aplicação anterior de regras do
conjunto) para chegar de qualquer fórmula, ou seqüência de fórmulas,
a um número de Gõdel único. Existe também um algoritmo para o pro-
cesso inverso: dado qualquer número de Gõdel, podemos efetivamente
descobrir qual objeto formal do sistema ele representa. A aritmetização
de Gõdel deve obedecer a uma condição adicional: as descrições sintá-
ticas das relações lógicas entre fórmulas no sistema precisam ser tradu-
zidas em proposições aritméticas fornecidas pelo sistema que sejam,
elas próprias, expressíveis dentro do sistema.
O espírito da aritmetização de Gõdel pode ser transmitido de uma
forma simples, embora, se quiséssemos ser rigorosos como Gõdel evi-
dentemente foi, não haveria nada de simples na codificação efetiva. A
notação posicional moderna nos é tão familiar que esquecemos que ela
própria é um sistema de codificação, exigindo provas no sistema for-
mal. Assim, por exemplo, o símbolo decimal comum 365 é uma abre-
viação de três vezes 1O ao quadrado, mais seis vezes 1O, mais cinco. O
sistema de codificação de Gõdel empregou os produtos exponenciais
de números primos e recorreu ao teorema da fatoração em primos, que
afirma que todo número pode ser fatorado de maneira única num pro-
duto de primos. O teorema da fatoração em primos garantiu a existên-
cia de um algoritmo para chegar de qualquer fórmula ou seqüência de
fórmulas a um número de Gõdel, e vice-versa. A justaposição de dígi-
tos que usamos a seguir seria, se rigorosa, tão complicada como o sis-
tema de Gõdel. Mas não seremos rigorosos.

145
INCOMPLETUDE

Primeiro, atribuiremos arbitrariamente um número natural a cada


símbolo do alfabeto do sistema formal. Podemos fazer tudo que é
_n ecessário para especificar um sistema formal de aritmética restrin-
gindo-nos a apenas nove símbolos, a cada um dos quais atribuiremos
um número de Gõdel:

Sinal básico Número de Godel Significado


1 não
-,'> 2 se ... então ...
X 3 variável
4 é igual a
o 5 zero
s 6 o sucessor de
( 7 sinal de pontuação
) 8 sinal de pontuação
9 linha

A noção quantificacional de "todos" é representada por parênteses


e variáveis. Assim, por exemplo, (x)F(x) significa: todos os xs satisfa-
zem F. A plica permite gerar variáveis adicionais: x, x', x", x" etc. Como
dispomos de um símbolo para zero, e um meio de indicar sucessores,
temos um meio de indicar todos os números naturais.
Agora especificamos uma regra para atribuir números de Gõdel a
fórmulas, as quais não passam de seqüências de símbolos do alfabeto_.
Adotamos a regra mais fácil possível, que lembra a codificação que
meus amigos e eu usávamos no primário.Nós simplesmente inserimos
o número de Gõdel para cada símbolo da fórmula, e aquele será o
número de Gõdel para a fórmula.
Assim, seja esta fórmula:
(p 1 ) (x) (x') ( ( s(x) = s(x'))-,. (x = x'))
Supondo-se que nosso universo de discurso (os objetos a que as variá-
veis interpretadas se referem) sejam os números naturais, o que p 1 diz
é que se dois números têm o mesmo sucessor, então eles são o mesmo

146
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

número. Em outras palavras, um número não pode ser o sucessor de


dois números diferentes. Mais literalmente: para todo x e para todo x: se
o sucessor de x é idêntico ao sucessor de x', então x é idêntico a x'.
Agora transformaremos esta fórmula em um número percorrendo
consecutivamente seus símbolos e substituindo cada um deles por seu
número de Gõdel. Cada símbolo da fórmula p 1 recebeu um número: a
abertura de parênteses um 7, o x um 3, o fechamento de parênteses um
8, o til um zero. Substituindo cada elemento da fórmula pelo número
de Gõdel correspondente, obtemos um número grande, que é o
número de Gõdel para a fórmula. Abreviando «o número de Gõdel da
proposição pi" por NG(p 1), obtemos:
NG(p 1) = 738739877673846739882734398
Desse modo, números de Gõdel são atribuídos a fórmulas, que são
seqüências de símbolos, e portanto a proposições, que são apenas fór-
mulas especiais. Do mesmo modo, números de Gõdel podem ser atri-
buídos a seqüências de proposições e, em particular, a deduções poten-
ciais, que são, afinal, apenas seqüências de proposições, usando-se os
números de Gõdel já atribuídos às proposições. Contabilidade! Em
nossa versão simplificada, o número de Gõdel de uma seqüência de
proposições (uma dedução potencial) é obtido basicamente juntando-
se os números de Gõdel das proposições seqüenciadas. Mas é impor-
tante poder extrair do número obtido, inequivocamente, a seqüência
original de proposições, e para isso precisaremos de algum tipo de sinal
que indicará onde uma P.roposição termina e a próxima começa -
como o retorno de carro da máquina de escrever. Deixaremos zero fun-
cionar como o nosso retorno de carro, indicando que agora vamos para
uma nova linha da prova.
Assim, digamos que, numa seqüência de proposições específica, p 1
seja seguida por p 2, onde p 2 é definida como:
(p 2 ) s(O) = s(O)
O número de Gõdel que corresponderá à seqüência de p 1 seguida
de p 2 é:
NG(pi, P2) = 7387398776738467398827343980675846758

147
INCOMPLETUDE

Através dos mecanismos inspirados de Gõdel, todas as relações


lógicas entre proposições do sistema formal se tornam relações arit-
méticas expressíveis na linguagem aritmética do próprio sistema.
Essa é a essência da beleza incrível da prova toda. Assim, se, por exem-
plo, F 1 implica logicamente F2 , então NG(F 1 ) terá certa relação pura-
mente aritmética com NG(F2 ). Suponhamos que se possa provar que,
se F 1 implica logicamente F2 , então NG(F 2 ) é um fator de NG(F 1 ).
Teríamos então duas maneiras de most rar que F 1 implica logica-
mente F2 : poderíamos usar as regras do sistema formal para deduzir
F 2 de F 1; ou poderíamos mostrar que NG(F 1 ) pode ser obtido de
NG(F 2 ) multiplicado por um inteiro. Suponhamos que NG(F 1 ) =
195589 e NG(F 2 ) = 317. 317 é um fator de 195589, pois 317 multipli-
cado por617 = 195589. Portanto que F1 implica logicamente F2 pode-
ria ser demonstrado usando as regras formais de prova para chegar a
F2 a partir de F1 , ou, alternativamente, usando as regras da aritmética
para chegar a NG(F 1 ) = 195589 multiplicando 617 por 317 = NG(F2 ).
O metassintático e o aritmético se reduzem um ao outro.
Uma vez que tenhamos esse tipo de redução entre a implicação lógica
e as relações aritméticas, podemos prosseguir e demonstrar que certas
seqüências de fórmulas- precisamente aquelas que constituem provas
- têm uma propriedade aritmética expressável no sistema. As pro-
vas, é claro, são constituídas de implicações lógicas. Assim, deduzir essa
propriedade aritmética (dos números de Gõdel de todas as provas do
sistema, e somente delas) será uma conseqüência do tipo de redução
discutida no parágrafo anterior. Os números de Gõdel daquelas
seqüências de fórmulas que são provas válidas dentro do sistema terão
certo tipo de propriedade aritmética, digamos, serão todos pares ou
serão todos ímpares ou serão números primos ou os quadrados de pri-
mos ou, mais provavelmente, uma propriedade bem mais complicada. ·
Em outras palavras, a relação metassintática de dedutibilidade setor-
nará uma relação aritmética; que uma seqüência de fórmulas é uma
prova corresponderá a determinada propriedade de números. A partir
disso, torna-se possível mostrar que todas e somente as fórmulas dedu-

148
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

tíveis do sistema, os teoremas, têm certa propriedade aritmética. Você


pode ver para onde estamos indo: para proposições aritméticas expres-
sáveis no sistema que também abordam a questão de sua própria
dedutibilidade dentro do sistema. A aritmetização de Gõdel permite
que certas proposições se envolvam em um tipo interessante de duplo
sentido, dizendo algo aritmético e também comentando sua própria
situação dentro do sistema formal, dizendo se são dedutíveis.
O duplo sentido dessas proposições pode ser comparado ao que
acontece às vezes numa peça de teatro, em particular quando a peça
apresenta atores como personagens, com suas próprias relações ((da
vida real", e depois apresenta esses personagens como atores de uma
peça dentro da peça.Através de um mecanismo cuidadoso, as falas dos
atores na peça dentro da peça também podem ser interpretadas como
se tivessem um significado de vida real em suas relações fora da peça
dentro da peça (na peça propriamente dita). A estratégia de Gõdel
pede que captemos algo análogo ao que o público de aldeões da ópera
Os palhaços (I pagliacci), de Leoncavallo, capta quando compreende
que os atores estão dizendo falas que, além de fazer sentido dentro da
peça, têm um sentido na vida deles fora do palco (dentro da ópera).*
Na produção teatral inspirada de Gõdel, as falas abordam as relações
formais dentro do sistema, a peça dentro da peça, e também revelam
relações aritméticas da vida real. A proposição que a prova de Gõdel
constrói, aquela que anunciará simultaneamente sua própria não-
dedutibilidade (dedutível) e uma relação aritmética verdadeira (não
dedutível), revela o mesmo tipo de duplo sentido do grito trágico final
de Os palhaços: ((La commedia efinita!" -A comédia terminou.

* A ópera Os palhaços é sobre uma trupe de comediantes numa aldeia. No segundo ato,
eles encenam uma peça dentro da ópera. Em meio à peça acontece uma tragédia da "vida
real" - ou seja, teatro e "realidade" se confundem. (N. T.)

149
INCOMPLETUDE

PASSO TRÊS: CRIAR UMA PROPOSIÇÃO


QUE SEJA VERDADEIRA PORQUE DIZ QUE
NÃO É DEDUTÍVEL

Tendo estabelecido suas camadas engenhosas de significado, Gõdel


agora prestidigita uma propriedade aritmética bem surpreendente,
que escreveremos como "Pr", para designar "dedutível ( tem uma
prova)". Porque, embora Pr seja unia propriedade puramente aritmé-
tica, é exatamente a propriedade em direção à qual todos os mecanis-
mos vêm conduzindo. É uma propriedade aritmética verdadeira para
todos os números de Gõdel das proposições dedutíveis do sistema (que
possuem prova no sistema), e somente delas. Escolho o verbo "presti-
digitar" deliberadamente porque, embora a redução entre o metassin-
tático e o aritmético estivesse conduzindo em direção a "Pr", existe uma
sensação de magia na entrada em cena de Pr.
Antes de chegarmos à propriedade, um pequeno ponto técnico
sobre como as propriedades são especificadas: por funções proposi-
cionais de uma só variável. Elas podem ser imaginadas como da
forma F(x). Essas são expressões do sistema formal que envolvem
uma só variável- o x, que é um "testa-de-ferro" colocado no lugar
de todo um espectro de valores atribuíveis no contexto dado (o domí-
nio dos indivíduos sobre os quais se fala) que podem ser atribuídos;
se você atribuir um valor para a variável, obterá uma fórmula que é
verdadeira ou falsa-em outras palavras, uma proposição. F(x), em
si, não é verdadeira nem falsa. Assim, digamos que F(x) significasse:
x é o sucessor de 1. Isso não é verdadeiro nem falso; não é uma propo-
sição, um enunciado definido, pois o que diz depende do que x real-
mente representa. Atribuir 2 para a variável x gera uma proposição
verdadeira, e atribuir qualquer outra coisa gera proposições falsas. É
assim que as propriedades são designadas no sistema: por funções
proposicionais de uma só variável.
Agora passemos para Pr(x), que é uma propriedade um tanto com-
plicada dos números. Lembre, antes de tudo, que a cada fórmula do

150
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

sistema formal foi atribuído um número através das maravilhas da


aritmetização de Gõdel. Assim, para cada fórmula p, temos algum
NG(p ), algum número natural. Os teoremas são um subconjunto espe-
cial das fórmulas do sistema, as proposições dedutíveis. Dado qualquer
número natural n, ele pode ou não corresponder a algum teorema do
sistema formal. Ou seja, pode ou não acontecer que n = NG(p) para
certa proposição p que é um teorema do sistema formal.
Agora estamos em condições de definir Pr(x). Os valores possíveis
para essa função proposicional, as coisas que atribuímos para a variá-
vel x, são (as expressões para) os números naturais. Para qualquer
número natural n, se n = NG(p) para um teorema p do sistema, dize-
mos que n satisfaz a propriedade Pr(x), ou seja, que Pr(n) é verda-
deira. Gõdel mostrou que essa propriedade pode de fato ser expressa
no sistema formal, ou seja, que é um exemplo de uma F(x). Pr(x) é
uma proposição aritmética formalmente expressível, embora muito
complicada, não algo que possamos apresentar explicitamente aqui.
Mas, mediante esta propriedade, Gõdel consegue tomar metassen-
tenças sobre o sistema, afirmando quais proposições são teoremas do
sistema, e transformá-las em sentenças aritméticas dentro do sis-
tema: "pé um teorema" é transformada em "Pr(NG(p) )". Dizer de um
n específico que tem a propriedade Pr(x) é dizer que esse número cor-
responde a um teorema do sistema formal.
Agora você deve estar pensando algo como: um número especí-
fico n ter a propriedade Pr(x) não é ter uma propriedade real de
números. O número n, por exemplo, pode ser par ou pode ser ímpar;
se é divisível por 2, é par. Digamos que seja. O fato de ser par é uma
propriedade aritmética real; n não poderia ser o número que é se não
fosse par. Em contraste, examinando-se essa propriedade Pr(x)
metassistêmica, ela não parece um tipo apropriado de propriedade
numérica. Um número n poderá ter essa propriedade apenas arbitra-
riamente, já que a proposição com que n está associado é arbitrária,
uma mera conseqüência da maneira como a aritmetização de Gõdel

151
INCOMPLETUDE

foi definida, os tais mecanismos inspirados.* É verdade, mas por mais


arbitrária que seja, Pr(x) é, mesmo assim, uma propriedade aritmética
real, e um número n terá ou não essa propriedade. E n não seria o
número que é se não tivesse ou deixasse de ter a propriedade. O fato de ·
Pr(x) ter um metassignificado não diminui seu caráter aritmético. Essa
propriedade Pr(x) é, de fato, estupenda, e nos permite dar o mergulho
no interior da prova.
O que usamos a seguir é, às vezes, chamado de lema diagonal. 7 É um
enunciado geral, e é de um caso particular dele que precisamos para
provar o teorema de Gõdel. ( Gõdel, na verdade, não o utilizou, mas dele
retirou o caso particular útil para seu teorema.) Utilizar esse lema geral
( que, é claro, não iremos provar) simplificará muito as coisas.
O lema diagonal afirma que a aritmetização de Gõdel satisfaz o
seguinte: para qualquer função proposicional F(x) de uma só variável,
existe um número n tal que o número de Gõdel de F(n), a proposição
que obtemos ao substituirmos x por n na função F(x), acaba sendo o
próprio n. (O fato de que tal número precise existir para cada F(x) dá
uma idéia do esforço sobre-humano na elaboração da aritmetização de
Gõdel.) Em outras palavras, o lema diagonal afirma que, para qualquer
F(x), existe um n tal que
n = NG(F(n)) (O)
O número que você obtém é o mesmo número com que começou, de
modo que o n especial associado a uma dada F corresponde precisa-
mente ao lugar onde o gráfico de y = NG(F(x)) corta a diagonal, o grá-
fico de y = x, onde x = n. Daí o nome "lema diagonal".
( OBSERVE: O enunciado n = NG(F(n)) está na metalinguagem. É uni

"enunciado normal", ou seja, não é um enunciado formal, e n à esquerda

* Compare-se isso com o paradoxo de Richard (nota de rodapé anterior), que Gódel
cita, junto com o paradoxo do mentiroso, como uma ajuda heurística para entender a
prova. O paradoxo de Richard também dá a sensação (ilusória) de atribuir uma pro-
priedade forjada, ou irreal, aos números (a propriedade de ser richardiano), que um
número terá ou não devido às atribuições arbitrárias de números a propriedades.

152
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

denota um número natural (normal). Entretanto, o n à direita repre-


senta a expressão no sistema formal que representa o número n, a saber
s(s(s( ... s(s(O)))) ), com n ocorrências de s.)
Observe que o número n que o lema diagonal associa com a função
proposicional F(x) é tal que a proposição com o número de Gõdel n-
a saber, (F ( n)) - diz que o próprio n tem a propriedade F. Ela é, grosso
modo, da forma: esta própria sentença é F. Murmúrios de auto-referên-
cia estão pairando no ar silencioso.
Agora retornemos àquela propriedade estupenda que Gõdel pro-
duziu, Pr, que é verdadeira para todos os números de Gõdel de teo-
rema, as fórmulas dedutíveis do sistema, e somente para eles. Um
número terá a propriedade aritmética Pr se e somente se correspon-
der ao número de Gõdel de uma proposição dedutível. Em outras
palavras:
Pr(NG(p)) se e somente se pé dedutível
Nós temos a noção metassintática do que Pr(x) significa (embora
não de seu significado aritmético; mas eu garanto que tem um signifi-
cado aritmético). Agora vejamos a propriedade:
- Pr(x)
Esta segunda propriedade será verdadeira para todos os números de
Gõdel de não-teoremas, e somente para eles; ou seja, é verdadeira para
os números de Gõdel de objetos que não são proposições dedutíveis no
sistema. Em outras palavras:
- Pr(NG(p)) se e somente se p não é comprovável ( 1)
Que tipo de sentença é ( 1)? É uma sentença metamatemática. Não
é uma sentença do sistema formal, nem uma sentença aritmética. Mas
mediante (1) podemos transformar algumas sentenças metamatemá-
ticas em sentenças aritméticas.
Ora, o lema diagonal diz respeito a qualquer função proposicional
F(x). Portanto, vamos aplicá-lo a F(x) = -Pr(x). O lema diagonal, lem-
bre-se, afirma que, para qualquer função proposicional F(x) de uma só
variável, existe um número n que é o número de Gõdel da própria pro-
posição que obtemos quando substituímos x por n na função. Estamos

153
INCOMPLETUDE

agora considerando a função proposicional - Pr. De acordo com o lema


diagonal, existe certo número, que chamaremos deg, tal que:
g=NG(-Pr(g)) (2)
Chegamos a (2) substituindo F por -Pr e n por g em (O).Aequação
(2) diz que g é o número de Gõdel da proposição que afirma que o
número g carece da propriedade aritmética Pr (satisfeita por todos os
números que são números de Gõdel de proposições dedutíveis, e
somente por eles).
Agora estamos prontos para construir nossa proposição G. Seja
G = - Pr(g) (3)
A proposição G afirma que o número g carece da propriedade Pr. Além
disso, de (2) e (3) , segue-se que:
NG(G) = g
Agora voltamos a ( 1) e fazemos certas substituições. Eis ( 1) de novo:
- Pr(NG(p)) se e somente se p não é dedutível
Fazendo com que p = G em (1) e usando o fato de que NG(G) = g,
obtemos:
- Pr(g) se e somente se G não é dedutível (4)
Ou seja, usando novamente (3) , G se e somente se G não é dedutível.
O que (4) está dizendo é que G é verdadeira se e somente se G não é
dedutível!
Claro que G é um enunciado puramente aritmético, mas ao mesmo
tempo fala sobre si mesmo, e o que está dizendo é que não é dedutível.
O que está dizendo é verdade? Bem, dificilmente poderia ser falso, pois
então teria que ser dedutível e, portanto, verdadeiro. A não ser que o sis-
tema formal da aritmética seja inconsistente, de modo que todas as suas
proposições fossem dedutíveis, mesmo as contradições. Esse é o ponto
da prova em que aquele pressuposto da consistência do sistema formal
é convocado para cumprir seu papel. E ele cumpre. A proposição G não
é dedutível e, dado que é isso o que ela diz, também é verdadeira. Não
mostramos que é verdadeira encontrando uma prova para ela dentro do
sistema formal, usando as regras puramente mecânicas daquele sis-
tema, ou seja, deduzindo-a. Pelo contrário, e ironicamente, mostramos

154
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

que é verdadeira saindo do sistema e mostrando que nenhuma prova


dela pode ser produzida dentro do sistema formal. Mostramos que G é
verdadeira mostrando que não pode ser provada, conforme ela diz.
Além do mais, Gõdel mostrou como construir uma proposição ver-
dadeira, mas não dedutível, não apenas para o sistema formal da arit-
mética que vimos discutindo, mas para qualquer sistema formal que
contenha aritmética. Portanto, se tentássemos contornar o primeiro
teorema da incompletude de Gõdel construindo um sistema formal
novo que tenha G como um dos axiomas, uma proposição problemá-
tica nova poderia ser construída para tal sistema. E assim por diante, ad
infinitum. Existem proposições comprovadamente não dedutíveis, mas
mesmo assim verdadeiras, em qualquer sistema formal que contenha a
aritmética elementar, pressupondo-se a consistência do sistema.
Esse foi o primeiro teorema da incompletude de Gõdel.

OSEGUNDO TEOREMA DA INCOMPLETUDE

O segundo teorema da incompletude afirma que a consistência de um


sistema formal que contenha a aritmética não pode ser formalmente pro-
vada dentro daquele sistema. Ele parece resultar, diretamente, do pri-
meiro teorema. Lembre que o primeiro resultado da incompletude tem a
forma de um enunciado condicional: se o sistema formal da aritmética é
consistente, então G não é dedutível. Seja C a proposição: "O sistema
formal da aritmética é consistente': Assim, o primeiro teorema da incom-
pletude informa: se C, então G não é dedutível. A aritmetização da propo-
sição "G não é dedutível" claro que é G.Assim, o que a primeira incomple-
tude diz é: e~ G, e essa conclusão foi provada dentro do sistema formal
da aritmética. Assim, se pudermos prosseguir e provar C dentro do sis-
tema formal da aritmética, estaríamos ipso facto provando G dentro do
sistema formal da aritmética, já que provamos que C ~ G. E, como pro-
vamos que G não é dedutível dentro do sistema formal da aritmética,
sabemos que C tampouco é dedutível no sistema formal da aritmética.

155
INCOMPLETUDE

Esse é o segundo teorema da incompletude de Gõdel.


Observe que o segundo teorema da incompletude não afirma que a
consistência de um sistema formal da aritmética não é dedutível de
nenhuma maneira. Ele simplesmente diz que um sistema formal que
contenha a aritmética não consegue provar a consistência de si
mesmo.* O sistema formal da aritmética é claramente consistente,
alguém pode argumentar, se recorrermos a considerações semânticas.
Afinal, os números naturais constituem um modelo do sistema formal
da aritmética, e, se um sistema tem um modelo, então ele é consistente.
Lembre-se das lições da descrição do meu apartamento de Nova York.
Na medida em que o descrevo de forma inequívoca e precisa (por
exemplo, ele só tem um banheiro), não preciso me preocupar com
autocontradições (ele tem quatro banheiros) espreitando na descri-
ção. Em outras palavras, quando o sistema fo rmal da aritmética é
dotado dos significados usuais, envolvendo os números naturais e suas
propriedades, os axiomas e tudo que decorre deles são verdadeiros e,
portanto, consistentes. Esse tipo de argumento a favor da consistência,
porém, sai do sistema formal, apelando para a existência dos números
naturais como um modelo. Esse não é o tipo de raciocínio que ofereça
consolo a um formalista, por mais que alegre o coração de um platô-
nico como Gõdel. Sistemas formais finitários eram, de acordo com Hil-
bert, anschaulich, transparentemente puros. Com tudo reduzido à esti-
pulação ou às conseqüências lógicas dos procedimentos mecânicos
estipulados, não há lugar para a obscuridade (possivelmente infectada
de paradoxos) se insinuar. Os sistemas formais finitários eram, de
acordo com o programa de Hilbert, o meio de extirpar a substância
paradoxal da noção de infinito:

* Em 1936, Gerhard Gentzen, membro da escola de Hilbert, provou a consistência da


aritmética, mas não foi dentro de um sistema formal finitário. Sua prova envolveu o tipo
de raciocínio transfinito cujo banimento Hilbert propusera a favor de sistemas formais
finitários.

156
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Trabalhar com o infinito só pode se tornar seguro através do finito. O papel que
resta para ser desempenhado pelo infinito é puramente o de uma idéia -
entendendo-se por uma idéia, na terminologia de Kant, um conceito da razão
que transcende toda experiência e que completa o concreto como uma totali-
dade-, o de uma idéia, ademais, em que podemos confiar firmemente dentro
do arcabouço erigido por nossa teoria. 8

O programa de Hilbert- de expurgar quaisquer referências às intui-


ções - estava mais particularmente voltado para nossas intuições do
infinito. Dado que somos criaturas finitas, não surpreende que essas
intuições se mostrassem, desde o início, as mais problemáticas. O pro-
fundo mal-estar que mesmo Euclides sentiu em relação ao seu quinto
postulado, e que se repetiu ao longo dos séculos, resulta de nossa falta total
de confiança em todas as questões infinitas. No entanto, a matemática, até
mesmo a aritmética básica, é impossível sem uma referência implícita ao
infinito. Se pudéssemos domar o infinito, capturando-o dentro de nossos
sistemas formais finitários, teríamos obtido o ajuste perfeito. O infinito
«se tornaria seguro através do finito", nas palavras de Hilbert.
O resultado de Gõdel revela a robustez da noção matemática de infi-
nito. Este não pode ser privado de sua vitalidade e transformado numa
idéia kantiana fantasmagórica pairando em algum lugar, mas sem entrar
na matemática. As intuições do infinito do matemático - em particular,
a estrutura infinita que são os números naturais - não podem mais ser
reduzidas a sistemas formais finitários, nem expurgadas da matemática.
Outra forma de ver a robustez de nossa intuição do infinito é con-
siderar que se conclui do trabalho de Gõdel que existem «modelos não-
standard" de aritmética. Especificamente, o teorema da completude de
Gõdel - aquela tese de doutorado que acabou se mostrando bem
menos trivial do que pareceu de início - informa, entre outras coisas,
que todo sistema formal consistente tem modelo. Existe um meio de
especificar um universo de discurso e interpretar os predicados, rela-
ções e constantes de modo que todos os teoremas do sistema formal
sejam afirmações verdadeiras. Disso e do primeiro teorema da incom-

157
INCOMPLETUDE

pletude de Gõdel se conclui que existe pelo menos um modelo stan-


dard da aritmética: um modelo que satisfaz todos os axiomas do sis-
tema formal da aritmética, mas no qual algumas das verdades da arit-
mética padrão - G, por exemplo - serão falsas. Assim, esse modelo
não-standard não consistirá nos números naturais da forma como os
conhecemos e adoramos.*
Os números naturais transcendem o sistema formal da aritmética, no
sentido de que o sistema formal não seleciona singularmente os números
naturais como seu modelo, como sendo aquilo de que trata o sistema for-
mal. O mesmo acontece em qualquer sistema formal maior que contém
a aritmética. Resta algo - sempre - que escapa à captura num sistema
formal. Foi a essa metaluz que Gõdel viu seus teoremas da incompletude.
O segundo teorema da incompletude de Gõdel, a conseqüência
direta do primeiro, como Von Neumann rapidamente percebeu, de fato
demoliu o programa de Hilbert para a transparência da matemática, já
que dele segue que a consistência dos sistemas formais finitários só podia
ser provada recorrendo-se a argumentos inexprimíveis dentro dos pró-
prios sistemas formais, por mais que sejam modificados e ampliados.
O segundo teorema da incompletude pôs o formalismo num
dilema impossível: o incentivo formalista era banir a opacidade da
natureza da coisa em si (espaço, números, conjuntos) em prol da trans-
parência dos sistemas formais. Mas é da máxima prioridade que um
sistema formal- drenado do teor descritivo que, na medida em que os
axiomas fossem realmente descritivos, asseguraria a sua consistência

* O estudo da teoria dos modelos - interpretações standards (com os números natu-


rais como o universo de discurso) e não-standard ( como distintas da teoria da prova:
o estudo dos aspectos puramente sintáticos de sistemas formais -surgiu como resul-
tado da prova da incompletude de Gõdel. A prova de Gõdel, além de inscrever a lógica,
nas palavras de Simon Kochen, "no mapa matemático", também apontou o caminho
para regiões novas e diferentes de pesquisa técnica. O próprio Gõdel nunca mostrou
muito interesse em fazer pesquisas nas áreas que sua prova gerou, o que não sur-
preende à luz de sua ambição audaciosa de se restringir à matemática com implica-
ções metamatemáticas.

158
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

- tenha a sua consistência provada. Isso só pode ser feito saindo-se do


sistema formal e apelando-se às intuições, as quais não podem ser for-
malizadas. ( O último artigo que Gõdel viria a publicar em sua vida
mostrou como a aritmética poderia ter sua consistência provada con-
tanto que se aceitem certos pressupostos sobre a realidade matemática
objetiva. 9 ) Os aspectos puramente sintáticos dos sistemas formais -
os aspectos transparentes - não são suficientes para provar todas as
proposições aritméticas verdadeiras expressáveis dentro do sistema (o
primeiro teorema da incompletude ) nem para fornecer uma prova da
consistência interna (o segundo teorema da incompletude).
Qual foi a reação de Hilbert ao golpe lógico contra seu belo plano?
O matemático Paul Bernays (1888-1977), que viera a Gõttingen para
servir como assistente de Hilbert, revela numa carta que ele (Bernays)
se tornara, algum tempo antes da prova de Gõdel, «cético [... ] quanto à
completude dos sistemas formais" e havia «expressado [suas dúvidas]
a Hilbert': w Hilbert, de acordo com Bernays, enfureceu-se; e ele se enfu-
receu quando tomou conhecimento da prova de Gõdel.
Mas uma prova é uma prova, como Hilbert, mais do que ninguém,
reconhecia.

WITIGENSTEIN E A INCOMPLETUDE

A reação de Wittgenstein à prova de Gõdel foi bem diferente da de Hil-


bert. Ele nunca se adaptou ao trabalho de Gõdel, como fez Hilbert,
embora indigesto à sua perspectiva filosófica e a todo o seu programa.
Existe uma incompatibilidade lógica entre as visões de Wittgenstein
sobre os fundamentos da matemática (tanto o primeiro Wittgenstein,
que soava positivista, como o último, que soava pós-moderno) e os
teoremas da incompletude de Gõdel. Wittgenstein reconheceu a
incompatibilidade. Ele não tomou os resultados matemáticos, como
fizeram tantos outros, e ajustou-os a certo molde metamatemático
mais do seu agrado, o molde do positivismo, existencialismo ou pós-

159
INCOMPLETUDE

modernismo. Reconheceu a incompatibilidade e replicou que Gõdel,


portanto, não poderia ter provado o que pensou ter provado:

A matemática não pode ser incompleta, assim como um sentido tampouco


pode ser incompleto. Aquilo que consigo entender, devo entender totalmente.
Isso está de acordo com o fato de que minha linguagem funciona da maneira
que é, e que a análise lógica não precisa acrescentar nada ao sentido presente
em minhas proposições para se chegar à clareza completa. 11

Realmente não surpreende que Wittgenstein descartasse o resul-


tado de Gõdel com uma descrição depreciadora como'' logische Kuns-
tstücken", truques lógicos, claramente destituídos da importância
metamatemática atribuída por Gõdel e outros matemáticos. A prova
de Gõdel, a própria possibilidade de uma prova daquele tipo, é proi-
bida por motivo dos objetivos wittgensteinianos, que permaneceram
constantes através da transformação do "primeiro" para o "último"
Wittgenstein, onde o primeiro Wittgenstein tinha uma visão monolí-
tica da linguagem e suas regras e o último Wittgenstein fraturou-a em
jogos de linguagem autocontidos, cada qual funcionando de acordo
com seu próprio conjunto de regras. Ele foi inflexível sobre a impos-
sibilidade de falar sobre uma linguagem formal como a prova de
Gõdel fala. Também foi inflexível ao negar que paradoxos, sendo epi-
fenômenos triviais das formas como a linguagem funciona, pudes-
sem ter conseqüências amplas e interessantes. (Ele discutiria exata-
mente esse ponto com o lógico Alan Turing, que ignorou Wittgenstein
e produziu outra prova extraordinária que compartilha muitos atri-
butos com a de Gõdel; tantos, de fato, que ela gera uma prova alterna-
tiva para a incompletude de sistemas formais ricos o suficiente para
expressarem a aritmética.) Ele foi, em termos mais gerais, inflexível ao
negar que resultados matemáticos, sendo os resultados de mera sin-
taxe, pudessem ter conseqüências amplas e interessantes fora da
matemática: "Nenhum cálculo pode solucionar um problema filosó-
fico. Um cálculo não pode dar informações sobre os fundamentos da

160
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

matemática". 12 Ele foi, em suma, inflexível ao negar a possibilidade de


uma prova como a de Gõdel.
Todas essas incompatibilidades inflexíveis proporcionam um con-
texto para se entender uma afirmação de Wittgenstein que tende a irri-
tar os matemáticos: "Minha tarefa não é falar sobre a prova de Gõdel,
por exemplo, e sim passar por cima dela". 13 Contudo, Wittgenstein
retorna, repetidamente, em suas Observações sobre os fundamentos da
matemática, ao teorema da incompletude de Gõdel, desconstruindo-o,
como diriam os pós-modernistas, tentando mostrar que seu signifi-
cado está em conflito com sua intenção, que ele não pode significar o
que pretende significar.
Todavia, se vamos além das incompatibilidades metamatemáticas
que separam Wittgenstein de Gõdel, chegamos a uma semelhança sur-
preendente, pelo menos entre o primeiro Wittgenstein e o lógico, mas-
carada pela interpretação positivista de Wittgenstein. Em certo sentido,
o primeiro Wittgenstein apresentou uma tese da incompletude própria
na proposição final do Tractatus. Assim como Gõdel demonstrou que
nossos sistemas formais não conseguem exaurir toda a realidade mate-
mática, o primeiro Wittgenstein argumentou que nossos sistemas lin-
güísticos não conseguem exaurir toda a realidade não matemática.
Tudo que pode ser dito pode ser dito claramente, de acordo com o Trac-
tatus; mas não podemos dizer as coisas mais importantes. Não pode-
mos dizer as verdades indizíveis, mas elas existem. De novo, vemos por
que Wittgenstein censurou os positivistas, por que às vezes tinha tanta
raiva de seus supostos discípulos a ponto de dar as costas a eles e ficar
defronte à parede, recitando poesia de um indiano místico ( um ato
hostil aos positivistas, se chegou a haver algum: curioso que a hostili-
dade latente parece não tê-los atingido).
Para Gõdel, cada sistema formal terá verdades expressáveis naquele
sistema que não serão dedutíveis; e uma das verdades mais importan-
tes sobre o sistema, que ele é consistente, não será dedutível dentro do
sistema. Assim, tanto Gõdel como o primeiro Wittgenstein estão uni-
dos contra a reiteração dos positivistas do antigo slogan sofista de que

161
INCOMPLETUDE

o homem é a medida de todas as coisas. Ambos os homens afirmam


uma incompletude fundamental que retira a medida do homem.
A de Wittgenstein é, de longe, a afirmação mais radical da incom-
pletude. Para Gõdel, existe conhecimento expressável que não pode ser
formalizado. Os limites da formalização, de nossa tentativa de reduzir
todo o conhecimento matemático às regras especificadas de um sis-
tema, não são coerentes com os limites de nosso conhecimento. Nosso
conhecimento matemático excede nossos sistemas. Para o primeiro
Wittgenstein, não existe conhecimento expressável que escape aos
limites que ele delineia. Do outro lado da significabilidade jazem os
temas mais importantes: ética, estética e o próprio significado da vida.
"Existem, de fato, coisas que não podem ser expressas em palavras. Elas
se fazem manifestas. Elas são o que é místico." 1'1
A atitude impositivisticamente positiva de Wittgenstein para com
a idéia do místico - ainda que seja o místico sem sentido - poderia
ter despertado certa simpatia em Gõdel. Gõdel foi até receptivo à suges-
tão de que seus teoremas da incompletude tinham conseqüências na
esfera mística, ou pelo menos religiosa. Em carta à mãe em 20 de outu-
bro de 1963, ele observou, sobre um artigo que ela enviara e que ele
ainda não lera, que abordava as implicações de seu trabalho: "Era de
esperar que, mais cedo ou mais tarde, minha prova se torne útil à reli-
gião, pois isso se justifica em certo sentido". No mínimo, Gõdel acredi-
tava que seu primeiro teorema da incompletude respaldava a insistên-
cia do platonismo na existência de um domínio supra-sensível de
verdades eternas. Claro que o platonismo não é o mesmo que religião
ou misticismo, mas existem afinidades.
Para o primeiro Wittgenstein, assim como para Gõdel, as tentativas
de sistematizar a realidade, de capturá-la totalmente dentro de nossas
construções límpidas concebidas para impedir qualquer contradição e
paradoxo, estão fadadas ao fracasso. O primeiro teorema da incomple-
tude de Gõdel informa que qualquer sistema formal consistente ade-
quado à expressão da aritmética deve deixar de fora grande parte da
realidade matemática, e seu segundo teorema informa que nenhum

162
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

desses sistemas formais consegue provar sua autoconsistência. Claro


que Gõdel acredita que esses sistemas são consistentes, já que têm um
modelo no domínio abstrato realmente existente. Wittgenstein acre-
dita de modo tão ardente na incapacidade de obter a completude e a
autoconsistência que permite que o próprio Tractatus ponha a nu sua
autocontradição, falando sobre o indizível, mesmo enquanto pronun-
cia o próprio enunciado que o proíbe.
Gõdel provavelmente não sabia que, em certo nível, ele e Wittgens-
.tein (o primeiro) compartilhavam uma convicção profunda na incom-
pletude, uma rejeição do ((homem como medida de todas as coisas"
sofista. Afinal, como informou no questionário de Grandjean, ele
nunca se aprofundou em Wittgenstein. Seu conhecimento do filósofo
era, segundo ele próprio, superficial, supostamente porque não se
empolgou o bastante com o que ouviu para estudar o filósofo. Sabia
apenas o que ouvia nas discussões do Círculo de Viena. E os positivis-
tas lógicos, ao estudar o precisamente obscuro Tractatus proposição
por proposição, estavam decididos a ignorar de forma sistemática
aqueles aspectos que teriam sensibilizado Gõdel, falando à sua própria
convicção em uma realidade que sempre escapa às nossas tentativas
ordenadas de precisão.
Claro que Gõdel e Wittgenstein situaram as partes esquivas da rea-
lidade de maneiras irreconciliavelmente diferentes. A convicção de
Gõdel, a interpretação metamatemática que deu a seus teoremas da
incompletude (bem como seu trabalho sobre a hipótese do conti-
nuum), era de serem aspectos da realidade matemática que devem
escapar à nossa sistematização formal (embora não ao nosso conheci-
mento), e a visão de Wittgenstein sobre os fundamentos da matemática
não aprovaria essa convicção. Para Wittgenstein, pelo menos o pri-
meiro Wittgenstein, todo conhecimento, e ainda mais o conhecimento
matemático, é sistematizável; o que sistematicamente escapa aos nos-
sos sistemas é o indizível, que inclui tudo que é importante. Gõdel acre-
ditava que nosso conhecimento expressável, comprovadamente nosso
conhecimento matemático, é maior que nossos sistemas. Aquilo que

163
INCOMPLETUDE

não podemos formalizar podemos, ainda assim, conhecer - o mate-


mático poderia ter dito, se tivesse vocação oracular.
Wittgenstein nunca deixou que o resultado de Gõdel influísse nas
suas visões sobre metamatemática, assunto que o obcecou cada vez
mais nos anos após a publicação do Tractatus e de seu abandono por
parte do autor. Seu intuito, como ele diz, foi passar por cima da prova
de Gõdel. Isso é interessante em si e pelo efeito atormentador sobre
Gõdel. O filósofo falara do silêncio necessário. Gõdel, suspeita-se, teria
gostado que aquele silêncio envolvesse o próprio filósofo.

A DIFUSÃO DA INCOMPLETUDE

A prova da incompletude inaugurou áreas totalmente novas de pes-


quisa, sobretudo a teoria dos modelos e a teoria da recursão. Gõdel
nunca quis se aprofundar nos problemas desses campos. Assim como
Einstein, sua alma gêmea, ele estava interessado no que Einstein deno-
minou problemas de ((importância genuína", ou seja, problemas na
interseção entre a ciência exata e a filosofia, problemas que irradiavam
metaimplicações. Ele deixou o ((trabalho de limpeza" (na terminologia
pitoresca de Thomas Kuhn) para os outros. A ambição e a confiança
intelectual desmedidas -tão incongruentemente acopladas ao temor
mundano e à modéstia - talvez tenham feito com que legasse menos
resultados do que poderia, mas também fizeram com que o alcance de
seus resultados fosse vasto.
Os teoremas da incompletude de Gõdel não nos impressionam
simplesmente por abrir áreas novas e promissoras de pesquisa técnica.
Descobertas profundas nas ciências exatas costumam fazer exata-
mente isso. O que torna os resultados de Gõdel tão estonteantes é o
mero volume de tudo que têm a dizer. O platônico apaixonado, que
convivera calado com os positivistas, sem murmurar uma palavra de
objeção, havia produzido os teoremas mais loquazes da história da
matemática.

164
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Foi devido à loquacidade deles que um filósofo como Wittgenstein


não pôde aceitá-los e se atribuiu a tarefa de passar por cima deles, e não
discuti-los.
(Wittgenstein continuaria argumentando contra a própria possi-
bilidade de um resultado como o de Gõdel com o jovem lógico inglês
Alan Turing, que viria a produzir uma prova que tem grande afini-
dade com a de Gõdel. Turing também conseguiria dar uma expressão
matemática clara a conceitos metamatemáticos e se apropriar da
estruturada paradoxalidade auto-referencial para suas próprias fina-
lidades. Alan Turing passara o ano acadêmico de 1936-7 no Instituto
de Estudos Avançados, onde os teoremas da incompletude de Gõdel
eram a ordem do dia entre Von Neumann e seu círculo. (Von Neu-
mann fez mais do que ninguém para disseminar a novidade das rea-
lizações de Gõdel.)* Turing retornou a Cambridge, sua mente ocu-
pada com a prova de Gõdel. Em seu primeiro semestre de volta à
Inglaterra, ministrou um curso em Cambridge sobre os «Fundamen-
tos da matemática". Naquele mesmo semestre, Wittgenstein também
estava dando um curso ali intitulado «Fundamentos da matemática",
mas os dois cursos não poderiam ter sido mais diferentes. Enquanto
o curso de Turing constituía uma introdução à lógica matemática,
Wittgenstein dedicou seu curso basicamente a argumentar contra a
possibilidade da lógica matemática em geral e contra suas implica-
ções para a metamatemática em particular. Turing compareceu às

* O lógico Stcphen Kleene, por exemplo, contou como Gódel "entrou na minha vida
intelectual. [... ] Um dia, no outono de 1931, o orador no colóquio de matemática de
Princeton foi John von Neumann. Em vez de falar de seu próprio trabalho (que era
abundante), ele abordou os resultados do artigo de 1931 de Gódel, que acabara de sair
na Monatschafte, mas que Church e nós em seu curso ainda não havíamos notado. Von
Neumann tivera uma prévia da primeira daquelas verdades (acompanhada de um
intercâmbio intelectual com Gódel) no encontro de Kónigsberg de setembro de 1930.
Após o colóquio, o curso de Church continuou se concentrando em seu sistema formal;
mas como atividade paralela lemos o artigo de Gõdel, que me revelou todo um mundo
novo de idéias e perspectiva fascinantes. A impressão que aquilo causou em mim foi
ainda maior devido à concisão e incisividade do tratamento de Gódel". 15

165
INCOMPLETUDE

aulas de Wittgenstein, pelo menos por algum tempo, e Wittgenstein


estava tão empenhado em fazer a cabeça de Turing que, quando o
lógico comparecia, a aula de Wittgenstein se concentrava totalmente
nesse objetivo. Quando Turing certa vez mencionou que não poderia
ir ao seminário na semana seguinte, Wittgenstein observou que então
a discussão daquela semana seria "parentética". * No final, Turing dei-
xou de comparecer, e logo depois produziu seu próprio resultado
metamatemático importante.)

* O terna central do acalorado debate entre Turing e Wittgenstein, naquele semestre,


foi se contradições e paradoxos podem ter alguma importância. Wittgenstein susten-
tou que não podem. Tornemos, por exemplo, o caso do paradoxo do mentiroso. A
visão de Wittgenstein a respeito era: "De certa forma, é estranho que isso tenha intri-
gado alguém - muito m ais extraordinário do que se poderia pensar: que isso fosse
algo que preocupasse seres humanos. Porque a coisa funciona assim: se urn hornern
diz 'estou mentindo', dizemos que se segue que ele não está mentindo, do que se segue
que ele está mentindo, e assim por diante. Bern, e daí? Você pode continuar assim até
cansar. Por que não? Não irnporta". 16 Mas Turing, cornprornetido corn a lógica rnate-
rnática e sabendo do emprego de Gõdel de paradoxos tradicionais corno o do menti-
roso, tinha a forte impressão de que o paradoxo do mentiroso - de que os paradoxos
e contradições ern geral- importa sim, e que às vezes indica o caminho para verda-
des quase necessariamente surpreendentes. Quando Wittgenstein insistiu que uma
contradição em urn sistema não era motivo de preocupação, já que tudo se reduzia,
ern última análise, à arbitrariedade dos jogos de linguagem, Turing parou de compa-
recer às palestras. Pouco depois, Turing produziu sua prova rnetamaternática. Onde
Gõdel sujeitou os conceitos de "dedutibilidade" e "completude" às suas técnicas trans-
formativas, Turing daria expressão matemática aos conceitos de "decidibilidade" e
"computabilidade". Uma pergunta rnaternática de certo tipo (que inclui urn número
infinito de perguntas específicas) é decidível se e somente se existe um algoritmo -
uma única série computável de operações -- para determinar, para qualquer dessas
perguntas, se a resposta é sirn ou não, sern necessariamente explicar por que a resposta
é sim ou n ão. Você não precisa entender por que urn algoritmo funciona para que seja
urn algoritmo e para que funcione. Ern particular, existe o tipo de pergunta matemá-
tica a respeito de uma proposição ser ou não formalmente dedutível. Não é difícil ver,
embora isso esteja um pouco além do escopo desta nota de rodapé, que o forrnalisrno
de Hilbert- ou, mais precisamente, a idéia, que Gõdel mostrou ser falsa, de que, para
toda proposição matemática, ela ou sua negação admite uma prova - implica que a
pergunta a respeito de uma proposição ser dedutível é decidível. Se tivéssemos um
algoritmo para mostrar se urna proposição ou sua negação é dedutível, então, dado
o formalismo de Hilbert, teríamos um algoritmo para a verdade matemática. Tal
algoritmo forneceria um m étodo combinatório puramente finitário para se captar o

166
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Graças à loquacidade deles o programa de Hilbert foi abandonado.


Hilbert tentara imunizar a matemática contra os paradoxos elimi-
nando quaisquer apelos à intuição. Gõdel havia provado que apelos à
intuição não podiam ser eliminados; ele havia solapado o programa de
imunização do formalismo. Em particular, nossas intuições sobre o
infinito - por mais susceptíveis que sejam às falácias invalidadoras,
como deixam bem claro os famigerados paradoxos ( que só podemos
evitar adotando regras ad hoé como as que Russell e Whitehead conce-
beram) - não podem ser substituídas pelos processos mecânicos,
livres de semântica, da manipulação maquinal de símbolos.
Tais conclusões metamatemáticas, que seguem - de uma prova
matemática a priori, são extraordinárias em si mesmas. Se esses resul-
tados metamatemáticos constituíssem todas as conseqüências dos teo-
remas da incompletude de Gõdel, seriam suficientes para marcar seu
trabalho como singularmente loquaz. Mas ouvimos dizer dos teore-
mas da incompletude de Gõdel que abordam, em sua efusividade irre-
primível, questões que vão bem além da metamatemática. Pensadores
eminentes têm interpretado os teoremas da incompletude como tendo
algo a dizer sobre a questão central das humanidades, a saber: o que nos

conceito de verdade matemática ( assim como o conceito de dedutibilidade matemá-


tica havia sido captado). Turing provou que não existe tal algoritmo, frustrando
ainda mais a esperança formalista de H ilbert. Sua prova é tão intimamente aliada à
de Gõdel que é possível inferir uma prova alternativa do primeiro teorema da incom-
pletude de Gõdel a partir dela. Gõdel ficou tão contente com o trabalho de Turing
que, em 1963, quando seu famoso artigo de 1931 foi republicado, acrescentou um
parágrafo afirmando que seus próprios dois teoremas da incompletude haviam sido
fortalecidos pelo trabalho de Turing. "Em conseqüência de avanços posteriores, em
particular do fato de que, graças ao trabalho de A. M. Turing [Turing (1937), 'On
computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem', Procee-
dings of the London Mathematical Society, 2" série, 42, pp. 230-65], dispõe-se agora de
uma definição precisa e inquestionavelmente adequada da noção geral de sistema
formal, uma versão geral completa dos Teoremas VI e XI é agora possível. Ou seja,
pode-se provar rigorosamente que, em todo sistema formal consistente que contém
certa quantidade de teoria dos números finitária, existem proposições aritméticas
indecidíveis e que, além disso, a consistência de qualquer desses sistemas não pode
ser provada no sistema." Infelizmente, Turing e Gõdel nunca se encontraram. Turing
morreu aos 42 anos, um suicida.

167
INCOMPLETUDE

torna humanos? A possibilidade de teoremas matemáticos terem algo a


dizer sobre um tema como esse - profundamente mergulhado na
complexa matéria da condição humana- é pegar o que já é extraordi-
nário e elevá-lo a uma ordem de espanto ainda mais alta.
Os formalistas haviam tentado garantir a certeza matemática elimi-
nando as intuições. Gõdel mostrara que a matemática não pode avan-
çar sem elas. Restringir-se a considerações sintáticas formais nem
sequer garantirá a consistência. Mas essas intuições matemáticas que
não podem ser eliminadas e não podem ser formalizadas: o que são?
Como se tornam disponíveis a seres como nós? Somos de novo lança-
dos de encontro à natureza misteriosa do conhecimento matemático,
de encontro à natureza misteriosa de nós mesmos como conhecedores
de matemática. Como chegamos a ter o conhecimento que temos?
Como conseguimos isso? O próprio Platão argumentara que o fato de
nossa mente racional conseguir entrar em contato com o domínio
eterno da abstração indica algo do eterno em nós: que a parte de nós
capaz de saber matemática é a parte que sobreviverá à nossa morte cor-
poral. Spinoza argumentaria dentro de linhas semelhantes.
Poucos pensadores pós-Gõdel de mentalidade científica estariam
talvez dispostos a seguir Platão e Spinoza e extrair, de nossa capacidade
de conhecimento matemático, conclusões sobre nossa imortalidade.
Afinal, vivemos não apenas com as verdades de Gõdel, mas também
com as verdades de Darwin. Nossas mentes resultam de mecanismos
cegos de evolução. Mesmo assim, muitos pensadores pós-Gõdel, de
mentalidade científica, declararam que ouviram, dentro da música
estranha dos teoremas matemáticos de Gõdel, notícias sobre nossa
natureza humana essencial. A partir dos teoremas da incompletude de
Gõdel, eles chegaram a conclusões sobre o que somos; ou, para ser mais
preciso, sobre o que não somos. Os teoremas de Gõdel nos informam,
de acordo com essa linha de raciocínio, o que nossas mentes simples-
mente não podem ser.
Em particular, o que nossas mentes não podem ser, segundo essa
linha de raciocínio, são computadores. O conhecimento matemático

168
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

que possuímos não pode ser captado em um sistema formal. É isso que
o primeiro teorema da incompletude de Gõdel parece informar. Mas
são os sistemas formais que captam a computação dos computadores,
razão por que conseguem descobrir as coisas sem recorrer a quaisquer
significados. Os computadores funcionam de acordo com algoritmos,
o que aparentemente não acontece conosco, donde se conclui que nos-
sas mentes não são computadores.
O primeiro dos argumentos que alegam uma ligação entre o pri-
meiro teorema da incompletude de Gõdel e a natureza da mente foi
publicado em 1961 pelo filósofo de Oxford John Lucas:

O teorema de Gõdel me parece provar que o mecanicismo é falso, ou seja, que


as mentes não podem ser explicadas como máquinas. Muitas outras pessoas
tiveram a mesma impressão: quase todo lógico matemático a quem mencionei
o assunto confessou ter pensamentos semelhantes, mas se sentiu relutante em
se comprometer em definitivo até ver o argumento inteiro formulado, com
todas as objeções plenamente enunciadas e apropriadamente contestadas. É o
que estou tentando fazer. 17

O argumento de Lucas foi bem direto. Ele argumentou que, por


mais complicada que seja uma máquina criada por nós, ela funcionará
de acordo com regras gravadas em circuitos e enunciáveis num sistema
formal; quando perguntarmos a essa máquina quais são as proposições
verdadeiras, para responder ela só será capaz de verificar quais propo-
sições decorrem das regras do sistema. Haverá portanto uma proposi-
ção que escapará à sua captação da verdade, que não é decidível pela
comprovação determinada por regras - uma proposição que nossas
mentes serão capazes de captar como verdadeira. Por mais que fortale-
çamos a máquina, acrescentando as proposições esquivas como axio-
mas, surgirá outra proposição que escapará a ela ... mas não a nós.

Essa fórmula a máquina será incapaz de reconhecer como verdadeira, embora


uma mente possa vê-la como verdadeira. De modo que a máquina continuará

169
INCOMPLETUDE

não sendo um modelo adequado da mente. Estamos tentando produzir um


modelo da mente que seja mecânico - que seja essencialmente "morto"-,
mas a mente, sendo de fato "viva", sempre consegue sobrepujar qualquer sis-
tema formal, ossificado, morto. Graças ao teorema de Gõdel, a mente sempre
tem a última palavra.

O matemático Roger Penrose, também professor de Oxford, publi-


cou dois livros, A mente nova do rei ( The emperor's new mind) e Sha-
dows of the mind, argumentando que os teoremas da incompletude de
Gõdel implicam a falsidade do mecanicismo, o beco sem saída do
campo da inteligência artificial, se a inteligência artificial pretender
explicar plenamente nosso pensamento. Seu argumento assemelha-se
ao de Lucas, embora ele faça um trabalho ainda mais minucioso de ten-
tar prever e refutar todas as objeções possíveis.

O que o teorema de Gõdel conseguiu? Foi em 1930 que o jovem e brilhante


matemático Kurt Gõdel surpreendeu um grupo dos principais matemáticos e
lógicos do mundo, em um encontro em Kõnigsberg, com o que viria a setor-
nar o famoso teorema. Este logo veio a ser aceito corno urna contribuição fun-
damental aos fundamentos da matemática - talvez o mais fundamental já
encontrado - , mas sustentarei que, ao estabelecer seu teorema, ele também
iniciou um grande passo à frente na filosofia da mente.
Entre as coisas que Gõdel indiscutivelmente comprovou foi que nenhum
sistema formal de regras matemáticas de prova seguras jamais será suficiente,
ainda que em princípio, para estabelecer todas as proposições verdadeiras da
aritmética comum. Isso é certamente bem notável. Mas temos fortes motivos
para afirmar também que seus resultados mostraram algo mais e confirma-
ram que a compreensão e o insight humanos n ão podem ser reduzidos a
nenhum conjunto de regras. Será parte do meu propósito aqui tentar conven-
cer o leitor de que o teorema de Gõdel de fato mostra isto, e fornece a base de
meu argumento de que o pensamento humano vai além do que pode ser
obtido por um computador, no sentido em que entendemos o termo "com-
putador" atualrnente. 18

170
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

Penrose acredita que, embora a mente não seja um computador,


trata-se de um sistema físico. A mente é idêntica ao cérebro. Portanto, a
natureza não mecanicista da mente decorrente, ele alega, do primeiro
teorema da incompletude de Gõdel deveria orientar nosso pensamento
para leis físicas não mecanicistas, do tipo sugerido pela mecânica quân-
tica. A mente intuidora da matemática, que comprovadamente não
pode ser captada de forma mecanicista, constitui, mesmo assim, um sis-
tema físico. Deveríamos, portanto, procurar desenvolver um tipo não
mecanicista, radicalmente novo de ciência - os mistérios da mecânica
quântica deveriam ser nosso guia aqui-, de modo a acomodar os
aspectos não computacionais da mente. A natureza não combinatória,
mas, ainda assim,física do pensamento mostra a natureza não combi-
natória das leis físicas básicas.
O próprio Gõdel foi bem mais cauteloso em extrair, de seus·famo-
sos teoremas matemáticos, conclusões sobre a natureza da mente
humana. O que está rigorosamente provado, ele sugeriu em conversas
com Hao Wang, bem como na conferência Gibbs proferida em Provi-
dence, Rhode Island, em 26 de fevereiro de 1951 (e nunca publicada),
não é uma proposição categórica no tocante à mente. Pelo contrário, o
que se depreende é uma disjunção, uma proposição do tipo "ou-ou':
Ou seja, ele estava admitindo que o não-mecanicismo não decorre,
pura e simplesmente, de seu teorema da incompletude. Existem saídas
possíveis para o mecanicista.
De acordo com Wang, Gõdel acreditava que o que havia sido rigo-
rosamente provado, supostamente com base no teorema da incomple-
tude, é: "Ou bem a mente humana ultrapassa todas as máquinas (para
ser mais preciso, ela consegue decidir mais questões teóricas sobre
números do que qualquer máquina), ou bem existem questões teóricas
sobre números indecidíveis para a mente humana". 19
O que Gõdel tinha exatamente em mente com essa segunda disjun-
ção? Penso que o que ele está considerando aqui é a possibilidade de ser-
mos de fato máquinas - ou seja, de que todo o nosso pensamento é
mecânico, determinado por regras gravad~s em circuitos - , mas de

171
INCOMPLETUDE

que estamos sob a ilusão de termos acesso à verdade matemática não


formalizável. Poderíamos possivelmente ser máquinas que sofrem de
delírio de grandeza matemática. O que decorre de seu teorema, ele
parece sugerir, é que, na medida em que não nos iludimos quanto à
nossa apreensão das verdades matemáticas, na medida em que temos
as intuições que pensamos ter, não somos máquinas. Se de fato temos
intuições, é impossível formalizar ( ou mecanizar) todas as nossas
intuições matemáticas, o que significa que de fato não somos máqui-
nas. Claro que não existe prova de que sabemos tudo que pensamos
saber, já que tudo que pensamos saber não pode ser formalizado; nisso
consiste a incompletude. Daí não podermos provar rigorosamente que
não somos máquinas. O teorema da incompletude, ao mostrar os limi-
tes da formalização, sugere que nossas mentes transcendem as máqui-
nas e torna impossível provar que nossas mentes transcendem as
máquinas. De novo, um quase paradoxo.
Portanto, Gõdel foi cauteloso quanto às conseqüências para a natu-
reza humana de seu teorema da incompletude. Embora tivesse intui-
ções sobre a natureza da mente, ele não deduziu, sendo um lógico
escrupuloso, nenhuma daquelas conclusões somente de seus teoremas
da incompletude. Gõdel nunca perdeu de vista a distinção entre intui-
ções e prova rigorosa. Afinal, a inevitabilidade daquela distinção havia
sido fortemente sugerida por sua prova famosa.
A segunda alternativa na conclusão disjuntiva de Gõdel sobre nos-
sas mentes conhecedoras da matemática, então, consiste nesta possibi-
lidade: iludimo-nos em nossas alegações de um conhecimento mate-
mático que excede toda formalização. Essa possibilidade - sendo
p'recisamente a possibilidade que fez Gõdel hesitar- tem um interesse
particular quando consideramos um aspecto da vida interior opaca de
Gõdel que já abordamos antes: seus próprios delírios graves.
Os teoremas de Gõdel espelham sombriamente o apuro da psico-
patologia: assim como não se consegue obter uma prova da consistên-
cia de um sistema formal dentro do próprio sistema, não se consegue
validar nossa racionalidade - nossa própria sanidade - usando a

172
CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE

própria racionalidade. Como uma pessoa, agindo dentro de um sis-


tema de crenças, incluindo crenças sobre crenças, consegue sair
daquele sistema para descobrir se é racional? Se todo o seu sistema é
infectado pela loucura, inclusive as próprias regras pelas quais você
raciocina, como sair racionalmente de sua loucura?*
Diz um livro-texto de psicopatologia: "Os delírios podem ser siste-
matizados em esquemas altamente desenvolvidos e racionalizados,
com alto grau de coerência interna uma vez admitida a premissa básica.
[... ] A ilusão com freqüência pode parecer lógica, embora excepcional-
mente intricada e complexa';. 2º
A paranóia não é o abandono da racionalidade. Pelo contrário, é a
racionalidade fora de controle, a busca inventiva de explicações tor-
nada implacável. Um psicólogo amigo meu expressou-a nestes termos:
"Uma pessoa paranóica é irracionalmente racional. [... ] O pensamento
paranóico se caracteriza não pela falta de lógica, mas por uma lógica
equivocada, pela lógica descontrolada". 21
Constitui uma ironia concluir este capítulo, que dá uma pequena
idéia da beleza sobre-humana da prova incomparável de Gõdel, com
observações sobre o paralelo trágico entre as limitações da dedutibili-
dade, engenhosamente demonstrada pelo sucessor de Aristóteles, e o
apuro da psicopatologia.

* O espelhamento sombrio se reflete numa observação de Furtwangler, que havia sido


o professor de matemática favorito de Gõdel, relatada por Olga Taussky-Todd em seu
estudo biográfico sobre Gõdel. "Auguste Bick forneceu-me uma observação divertida
de Furtwangler sobre o resultado de Gõdel, quando este sofreu um de seus ataques de
paranóia: "Sua doença é uma conseqüência de provar a não-dedutibilidade ou sua
doença é necessária para sua profissão?".

173
CAPÍTULO 4.
A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

FLAMINGO COR-DE-ROSA

li estava, inconcebivelmente, K. Goedel, listado como qualquer


A outro nome no catálogo telefônico laranja brilhante da comuni-
dade de Princeton.
Foi um momento docemente surreal. Eu acabara de chegar como
estudante de pós-graduação a Princeton e, só pela improbabilidade
emocionante daquilo, procurara o nome da mente mais fascinante da
cidade, o deus dominante, ainda que recluso, do lendário Instituto de
Estudos Avançados, a bucólicos três minutos de distância de onde eu
estava morando.
Parecia quase axiomático para mim, naquela época, que a maior
mente matemática, por acaso naquele momento da história a própria
mente de Kurt Godel, era necessariamente a maior de todas as mentes.
K. Goedel. Foi como abrir a lista telefônica local e encontrar B. Spinoza
ou I. Newton.
O catálogo telefônico da comunidade de Princeton me oferecera a

174
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

inacreditável dádiva não apenas de um número de telefone, mas tam-


bém do endereço de Gõdel. Claro que, uma vez de posse da informa-
ção, só me restava montar na minha bicicleta e pedalar até 145 Linden
Lane. Era uma casa simples de madeira, situada ortogonalmente em
relação à rua, ao contrário de todas as outras casas, de frente para a rua,
e essa singularidade me pareceu normal. O próprio local era compacto
e modesto, vagamente "europeu" com seu telhado de telhas vermelhas.
Em comparação, a casa em 115 Mercer Street, onde morara Einstein,
havia sido uma mansão ( mas não era).
A localidade não era por certo das mais elegantes de Princeton. Um
dia quente de setembro, a rua, sem árvores, exposta deprimentemente
ao sol do meio-dia. Não havia vivalma em torno da casa de Gõdel, mas
a visita conseguiu me dar mais um golpe surreal. O minúsculo pátio
dianteiro estava totalmente dominado por um daqueles flamingos cor-
de-rosa de plástico, equilibrado sobre uma das pernas finas.
Fitei, incrédula, a ave. Como um homem que produziu uma das
obras-primas do pensamento humano pode ter colocado um flamingo
cor-de-rosa no gramado diante da casa?
Claro que existia uma sra. Gõdel, uma ex-dançarina de cabaré,
segundo as más línguas. Visões de Der blaue Engel [O anjo azul] dança-
ram por minha cabeça, e logo atribuí o ornamento do gramado a uma
espécie de Marlene Dietrich transformada, contra todas as expectati-
vas, em uma dona de casa de Nova Jersey.
Eu não era o único morador de Princeton fascinado pela celebridade
fugidia do pensamento puro em nosso meio. Certa vez, encontrei o filó-
sofo Richard Rorty, um tanto atordoado, no mercad o de alimentos
Davidson's.Elemecontou,vozabafada,queacabaradeverGõdelnocor-
redor de alimentos congelados, empurrando seu carrinho de compras.
Voei por todos os corredores, mas o fantasma da lógica desaparecera.
"O que ele estava comprando?", perguntei a Rorty, pois os rumores
eram de que o homem praticamente não comia. Rortyfez um sinallúgu-
bre de não com a cabeça e disse que ficou atordoado demais para notar.
"Mas acho que podemos presumir que era algo congelado."

175
INCOMPLETUDE

Lembro-me de várias festas em que nós, estudantes de pós-gradua-


ção e membros do corpo docente - filósofos, matemáticos, físicos-,
sentamos em círculo e trocamos histórias sobre Gõdel. Alguém obser-
vara que todos os livros relacionados a Leibniz, na Biblioteca Firestone,
haviam sido apanhados por um K. Goedel. As fichas daqueles livros rapi-
damente desapareceram, os sortudos que chegaram primeiro levando-
as como troféus.
Numa festa, um colega de pós-graduação contou que alguém se
esgueirara até Gõdel, que estava sentado no seu escritório, para espiar
sobre seu ombro qual livro estava lendo: era (não há confirmação) o
poema de amor de Ovídio no original latino. Aquele mesmo estudante
de pós-graduação (agora um filósofo proeminente que permanecerá
incógnito), em certa festa onde nos excedemos um pouco, telefonou
para a casa de Gõdel, quando surgiu a questão da possibilidade de o sis-
tema telefônico internacional se tornar complexo ao ponto de ganhar
consciência. Acho que lembro que ele desligou o telefone ao ouvir a sra.
Gõdel dizer: "Kurtsy!".
Todos especulávamos sobre qual trabalho nosso herói estaria
desenvolvendo. Circularam rumores estranhos sobre uma prova da
existência de Deus - que acabaram se revelando verídicos. Gõdel,
assim como Leibniz, acreditava que alguma versão da execrável
"prova ontológica da existência de Deus" era válida. Esse é um argu-
mento que tenta deduzir, da definição correta de Deus, a existência de
Deus. * Ele mencionou para pelo menos um colega do instituto, o
filósofo Morton White, que só faltava acertar um passo para que sua
nova versão do argumento ontológico da existência de Deus pudesse
ser publicada. 1

* Aversão mais antiga do argumento ontológico é de santo Anselmo, e diz mais ou


menos isto: Deus é, por definição, o ser do qual nada maior pode ser concebido. Deus,
portanto, não pode ser concebido como não-existente, senão conseguiríamos concebê-
Lo como ainda maior, ou seja, como existindo. Portanto, é inconcebível que Deus não
exista; logo, Ele existe.

176
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

O tom de nosso fascínio por Gõdel não era sistematicamente reve-


rente. Havia até uma inegável irreverência subjacente. Achávamos hilá-
rio, por exemplo, que o maior lógico desde Aristóteles se iludisse a ponto
de acreditar que a existência de Deus pudesse ser provada a priori, que
ele estivesse talvez antevendo o dia em que os ateus seriam convencidos
de seu erro por um bom curso de lógica quantificacional. As histórias
que trocávamos eram gratificantes, pois histórias de gênios aloprados
são sempre gratificantes; nós reduzíamos os prodígios à estatura
humana, domesticávamos sua grandeza contando casos de suas esqui-
sitices cotidianas. Às vezes, deixamos de ver o lado humano desses talen-
tos prodigiosos, outra ironia que a história de Gõdel sugere.
A história de Gõdel forçou-me a confrontar uma ironia mais pes-
soal, já que exigiu que eu me familiarizasse de novo com um campo, a
lógica matemática, em que já estive bem mais imersa e fui bem mais
fluente. Anos de um tipo diferente de imersão, no domínio ilusório da
ficção, se interpuseram. Não é que a ficção renuncie à lógica objetiva,
embora a ficção não seja lógica como a entendemos formalmente; e
não é que a lógica da ficção não seja tão esquiva, complexa e espantosa
como a lógica matemática. Mesmo assim, a lógica da ficção é algo bem
diferente das provas formais, e eu sei que fui melhor matemática na
juventude, quando me sentava com os outros e imaturamente trocava
histórias sobre a genialidade e solidão de Gõdel. No entanto, pergunto-
me se poderia ter entendido sua história da mesma forma na época em
que eu era mais cegada pela lucidez.
Gõdel, por mais recluso que fosse, apareceu certa vez de surpresa
numa festa ao ar livre do instituto, na recepção dos novos membros
temporários em 1973, e, como Oskar Morgenstern escreveu em seu
diário, o lógico estava especialmente descontraído naquela noite, e aca-
bou "entretendo um grupo de jovens lógicos admiradores". Eu estava
naquele grupo, um dos acólitos boquiabertos ante o deus. Uma tenda
gigantesca abria-se sobre o gramado atrás de Olden Farm, a residência
do presidente do instituto, naquela época Karl Kaysen. Era uma noite
aprazível de outubro, e Gõdel, alinhado num terno escuro, também

177
INCOMPLETUDE

estava protegido por um longo cachecol de lã. Li em algum lugar que


sua altura era de 1,67 metro, mas ele pareceu ainda menor para mim, e
claro que era magérrimo. Nós todos sabíamos que o homem mal comia.
Ele estava, como Morgenstern descreveu, num estado de humor raro
(só eu ainda não sabia dessa raridade), claramente tentando fazer os
jovens se sentirem em casa. Ficamos quase todos estupefatos (eu certa-
mente fiquei). Assim, não o incomodamos com as perguntas que gos-
taríamos de ter feito, conforme admitimos uns aos outros depois que
ele, com um breve aceno da cabeça e votos de boa sorte em nosso tra-
balho futuro, desapareceu na penumbra que caía. Lembro-me de me
ter particularmente arrependido por não ter tido a coragem de pergun-
tar o que ele achava do artigo publicado pelo filósofo de Oxford John
Lucas, afirmando que do primeiro teorema da incompletude se podiam
tirar conclusões sobre a filosofia da mente.
Todos concordamos que gostaríamos de ter perguntado o que ele
vinha fazendo. Dizia-se que ele ia quase todo dia ao seu escritório do
instituto, onde se sentava tranqüilamente para trabalhar. Quais revo-
luções conceituais do lógico com aspecto de gnomo nos aguardavam?
Embora o número de suas publicações não fosse grande- a soma total
das páginas não passava de cem-, em conteúdo cada uma delas havia
sido mais do que meramente notável. Mas a última vez que ele publi-
cara algo foi em 1958: uma prova da consistência da aritmética na
revista Dialectica. *
Aquela edição particular da revista foi um Festschrift em homena -
gem ao septuagésimo aniversário do matemático Paul Bernays, o
antigo auxiliar de Hilbert que não encontrara, depois de despedido de
Gottingen como não-ariano, nenhum cargo acadêmico à altura de sua
capacidade. Foi Paul Bernays quem primeiro apresentou uma prova
totalmente detalhada do segundo teorema da incompletude, tendo
ouvido os detalhes a bordo do SS Georgia de seu colega de viagem

* Aquela foi a última coisa que ele publicou em sua vida.

178
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Gõdel. E Bernays aperfeiçoara a axiomatização de Von Neumann da


teoria dos conjuntos de uma forma que Gõdel aprovou totalmente e
aproveitou em seu próprio trabalho sobre teoria dos conjuntos. Assim,
era normal que Gõdel superasse sua relutância em publicar e contri-
buísse com o Festschrift.
Gõdel escrevera sobre um novo tipo de prova da consistência da
aritmética, de natureza não finitária e, portanto, coerente com seu
segundo teorema da incompletude. (Mas por não ser finitária não
cumpria as exigências do desafio de Hilbert.) Ele lecionara sobre
aquele novo tipo de prova da consistência em Yale e no instituto em
1941. O artigo de 1958 era um enunciado belamente conciso daquelas
idéias. Mesmo assim, o artigo não continha nenhum resultado novo.
As pessoas comentavam que existiam cadernos e mais cadernos de
idéias que ele nunca publicou.* Por que ele relutava tanto em publicar
seus textos? Existem indícios de que Gõdel suspeitava que suas idéias
seriam recebidas com ceticismo e desprezo. Hao Wang escreveu:
"Gõdel teria provavelmente publicado mais se vivesse numa comuni-
dade filosófica mais receptiva. Ele se recusava, por exemplo, a falar para
um público supostamente hostil': 3
Cada vez mais solitário, depois que perdeu o grande amigo de sua
vida, Einstein, ele não estava disposto a expor seus pontos de vista num

* No Nachlass, existe uma folha de papel em que Godel listou, provavelmente em 1970
de acordo com Hao Wang, toda a sua obra inédita, a partir de 1940. 2 Ela diz mais ou
menos isto:
1. Cerca de mil páginas estenográficas de 15 X 20 cm de anotações filosóficas ( = afir-
mações filosóficas) claramente escritas.
2. Dois artigos filosóficos quase prontos para publicação. [Seu artigo sobre a relativi-
dade e a filosofia de Kant e seu artigo sobre sintaxe e matemática, originalmente
escrito para o Festschriftde Carnap, mas nunca publicado.]
3. Alguns milhares de páginas de fragmentos filosóficos e [anotações sobre] literatura.
4. As provas claramente escritas dos meus [seus] resultados ontológicos.
5. Cerca de seiscentas páginas claramente escritas de resultados, perguntas e conjectu-
ras de teoria dos conjuntos e lógica ( até certo grau superados por evoluções recentes).
6. Muitas anotações sobre intuicionismo e outras questões fundamentais.

179
INCOMPLETUDE

ambiente que julgava talvez tão positivista quanto o que conheceu na


sala desarrumada da Universidade de Viena onde o grupo de Schlick se
reunia às seis horas das noites de terça-feira. Sua sensação de um
mundo cada vez mais dominado pelo já disperso Círculo de Viena
tinha sua razão de ser. Como conta Feigl em seu ensaio "The Wiener
Kreis in America" ("O Círculo de Viena nos Estados Unidos"), positi-
vistas como ele e homens como Hans Reichenbach e Carl Hempel, que
haviam vindo aos Estados Unidos para fugir dos nazistas, tiveram
grande sucesso em difundir suas idéias no exterior. Na Inglaterra, havia
o altamente influente A. J. Ayer, cujo Language, truth, and logic foi, em
grande parte, escrito com base no que ele ouviu em Viena. Willard van
Orman Quine, de Harvard, que também freqüentara o Círculo de
Viena e absorvera sua visão geral (embora viesse a discordar em temas
específicos, em artigos como "Two dogmas of empiricism" em seu
From a logical point of view), tornou-se a força dominante na filosofia
americana. O nome de Wittgenstein pairou postumamente com ainda
mais proeminência, a inclinação reverente em aceitá-lo a priori (antes
mesmo de entender o que ele queria dizer) persistindo nos círculos
analíticos, mesmo na ausência de sua presença persuasiva. E, nos
departamentos de física, a visão positivista de Niels Bohr e Werner Hei-
senberg se tornara como que a doutrina oficial, sendo forte até hoje.
(Seria um estudo interessante comparar as figuras de Niels Bohr e Lud-
wig Wittgenstein, ambos tão carismáticos quanto herméticos, seu her-
metismo apontando para o mesmo tipo de conclusão: uma proibição
aos tipos de perguntas que procuram relacionar o pensamento abs-
trato de suas disciplinas respectivas com a realidade objetiva.)
Assim, Gõdel não estava sendo paranóico ao julgar o clima das
idéias hostil às suas próprias, embora talvez superestimasse o grau de
"positivismo" nas universidades americanas e também subestimasse
sua própria reputação dentro da comunidade e o respeito correspon-
dente que seus pontos de vista despertariam, a ponto de talvez até
influenciar a ideologia predominante se tivesse entrado na_luta. Mas
aquela não era sua maneira de ser. Ele nunca teve medo de discordar

180
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

privadamente das visões predominantes em sua época; mas havia uma


rígida relutância em expressar publicamente suas posições antagôni-
cas em quaisquer condições que não uma prova conclusiva.
Mencionei ao filósofo Morton White que, ao escrever este livro,
passei a considerar Gõdel como um exilado intelectual, ou, pelo
menos, como alguém que se sentia no exílio. White pensou por algum
tempo e contou a seguinte história. Quando professor em Harvard,
convenceu a direção a convidar Gõdel para proferir a prestigiosa série
de conferências William James e se sentiu humilhado quando Gõdel
recusou o convite. Isso teria acontecido na década de 1960. Quando o
próprio White veio para o instituto como membro permanente, em
1970, ele se lembra de ter perguntado a Gõdel por que este recusou o
convite. A resposta de Gõdel veio em duas partes.
Em primeiro lugar, ele teria dito, o departamento de Harvard era
"empirista" demais, e ele achava que seria criticado pelo que tinha a
dizer. Em segundo lugar- e essa foi para vVhite a parte realmente inte-
ressante da resposta-, Gõdel sentia que estaria fazendo uma injustiça
às próprias idéias, porque ainda não as completara; expô--las prematu-
ramente a um público hostil seria uma injustiça para com elas.
Portanto, ao que parece, pelo menos com base nessa história, sua
relutância em exprimir suas intuições fora de moda, de alguma forma
aquém de uma prova, não refletia apenas sua aversão pelo embate inte-
lectual, mas estava também ligada a uma sensível obrigação ética com
as próprias idéias, o que é próprio de um platônico apaixonado.
Em 1964, Paul Benacerraf, do departamento de filosofia da Uni-
versidade de Princeton, e Hilary Putnam, de Harvard, organizaram
um livro intitulado Philosophy of mathematics e quiseram permissão
para incluir dois dos artigos de Gõdel, "Russell's mathematical logic"
e "What is Cantor's continuum problem?". Neste último ensaio, revi-
sado e expandido para aquele volume, Gõdel se permite enunciar, em
termos claros e distintos, o platonismo metafísico em que acreditava,
mesmo enquanto ouvia - um estranho no ninho - os membros do
Círculo de Viena proclamando o fim definitivo da metafísica, ou seja,

181
INCOMPLETUDE

de quaisquer afirmações de existência que vão além do empirica-


mente verificável: 4

Os objetos da teoria dos conjuntos transfinitos [... ] claramente não pertencem


ao mundo físico e mesmo sua ligação indireta com a experiência física é muito
tênue.[ ... ]
Mas, apesar de sua distância da experiência dos sentidos, temos um tipo de
percepção também dos objetos da teoria dos conjuntos, como mostra o fato de
que a verdade dos axiomas se impõe a nós. Não vejo motivo algum para ter-
mos menos confiança nesse tipo de percepção - a intuição matemática - do
que na percepção dos sentidos, que nos induz a desenvolver teorias físicas, a
esperar que percepções sensoriais futuras se ajustarão a elas e, além disso, a
acreditar que uma pergunta ainda não decidível tem sentido e pode ser deci-
dida no futuro. Os paradoxos da teoria dos conjuntos não são mais incômodos
para a matemática do que as ilusões dos sentidos para a física.

Godel explica no artigo como a hipótese do continuum de Cantor se


mostrou independente dos axiomas da teoria dos conjuntos, e seus
motivos para acreditar que a hipótese é falsa. (Foi dele a parte da prova
[da indecidibilidade da hipótese do continuum] que mostrou que não
se pode provar a falsidade da hipótese do continuum com base nos
axiomas atuais da teoria dos conjuntos, ou seja, que ela é consistente
com os axiomas da teoria dos conjuntos. Portanto, acreditar que
mesmo assim seja falsa é particularmente interessante. Paul Cohen
provou que a hipótese do continuum, com base nos axiomas da teoria
dos conjuntos, tampouco pode ter sua verdade comprovada. Assim,
juntos eles provaram a indecidibilidade da hipótese do continuum.) Ele
associa sua crença platônica na verdade ou falsidade objetiva de propo-
sições indecidíveis como a hipótese do continuum com seu próprio
resultado da incompletude:

O que, porém, mais do que qualquer outra coisa, justifica a aceitação desse cri-
tério de verdade na teoria dos conjuntos é o fato de que apelos constantes à

182
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

intuição matemática são necessários não apenas para obter respostas inequívo-
cas às perguntas da teoria dos conjuntos transfinitos, mas também para a solu-
ção dos problemas da teoria dos números finitária (do tipo da conjectura de
Goldbach [que, você deve lembrar, afirma que todo número par maior que dois
é a soma de dois primos]), em que o sentido e a exatidão dos conceitos estão
acima de quaisquer dúvidas. Isso decorre do fato de que, para todo sistema axio-
mático, existe um número infinitamente grande de proposições desse tipo.

Benacerraf contou-me como Gõdel telefonava diariamente para


ele ou Putnam, expressando sua ambivalência e arrependimento pela
inclusão de seus artigos no livro deles, concedendo sua permissão um
dia para retirá-la no dia seguinte, e depois reconsiderar a retirada no
dia posterior. Ele temia que os dois organizadores "positivistas" usas-
sem sua introdução para atacar as idéias dele. Só quando os dois, sepa-
rada e repetidamente, prometeram que pretendiam apenas situar cada
artigo no seu contexto apropriado e que não tinham nenhuma inten-
ção de avaliar quaisquer das contribuições escolhidas, ele enfim con-
cordou em incluir seus artigos.
Havia alguma base, perguntei a Benacerraf, para Gõdel achar que
ele ou Putnam eram positivistas?
"Bem, Putnam, em certo estágio pelo menos, com certeza. Afinal, o
orientador de sua dissertação havia sido Reichenbach."
O livro de Benacerraf/Putnam foi dividido em quatro seções: Parte
Um: "Os fundamentos da matemática"; Parte Dois: "A existência de
objetos matemáticos"; Parte Três: "Verdade matemática"; e Parte Qua-
tro: "Wittgenstein sobre matemática". Embora o volume inclua os tex-
tos de Frege, Hilbert, Gõdel - todos os líderes em fundamentos - ,
somente Wittgenstein, que nunca reconheceu a importância dos teo-
remas de Gõdel, é julgado digno de uma seção inteira. Como Gõdel
teria reagido ao receber seu exemplar?
Gõdel tinha o óbvio desejo de que as implicações plenas de seus
teoremas fossem tão transparentes para os outros como para si
mesmo, e não estava acima das reações humanas perfeitamente nor-

183
INCOMPLETUDE

mais de desapontamento e até ressentimento (embora este costu-


masse ficar oculto sob a opacidade de sua discrição). Ele reclamou
com Olga Taussky-Todd, como ela narra em seu estudo biográfico,
que Hilbert, mesmo após a prova de Gõdel, continuou defendendo o
formalismo. "Ele falou comigo sobre aquilo, acho que em Zurique, e
atacou o artigo de Hilbert (Tertium non datur' [Goettinger Nachr.
1932 J, dizendo algo como 'como ele pode escrever um tal artigo depois
daquilo que eu fiz?'".
Ele parece ter se sentido cada vez mais sozinho e encastelado na
torre mais alta da Razão Pura e se refugiou no tipo de isolamento pro-
fundo que poucos locais da Terra podem proporcionar tão plenamente
- se é isso que se quer - como o Instituto de Estudos Avançados.

O CAFÉ ESTÁ HORRÍVEL

Gõdel veio ao instituto para o ano acadêmico de 1933-4, o primeiro


ano de funcionamento. O matemático Veblen, uma das primeiras con-
tratações de Flexner para o nascente instituto, havia conhecido o jovem
lógico em Viena e se impressionara o suficiente para trazê-lo a Nova
Jersey para uma visita temporária. Claro que Von Neumann, que tam-
bém vinha passando parte do seu tempo em Princeton, estava bem
interessado no lógico que falara de seus teoremas revolucionários em
. uma frase direta e resumida proferida em Kõnigsberg. Gõdel não quis
lecionar no seu primeiro semestre nos Estados Unidos, ainda inseguro
com seu inglês, mas no segundo semestre deu uma série de palestras
sobre incompletude. QuandoAlan Turingveio passar o ano acadêmico
de 1936-7 em Princeton, a conversa no círculo de Von Neumann estava
repleta de referências a Gõdel, o que fez com que Turing, ao retornar a
Cambridge, decidisse seguir linhas gõdelianas de raciocínio, com tão
bons resultados.
A certa altura nessa primeira estada, Gõdel conheceu Einstein.
Einstein já se mudara permanentemente para Princeton, pois não

184
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

havia mais como retornar à Alemanha nazificada. Foi Veblen quem os


apresentou, mas a famosa amizade só começou vários anos depois,
quando o próprio Gõdel se mudou em definitivo para Princeton.
Gõdel, classificado como ariano, retornou a Viena ao final do ano
acadêmico. Menger notou que, ao retornar, Gõdel parecia ainda mais
frágil:

Gõdel estava mais reservado do que nunca após seu retorno dos Estados
Unidos; mas ele ainda conversava com os visitantes do Colóquio. [... ] Com
todos os membros do Colóquio, Gõdel foi generoso com opiniões e conse-
lhos em questões matemáticas e lógicas. Ele sistematicamente percebia pon-
tos problemáticos com rapidez e minúcia e dava respostas com a máxima pre-
cisão e o mínimo de palavras, muitas vezes revelando aspectos novos ao
perguntador. Ele expressava tudo isso como se fosse tudo algo natural, mas
muitas vezes com certa timidez, cujo encanto despertava o calor humano em
muitos ouvintes. 5

Gõdel passou algumas semanas num sanatório, após re~ornar a


Viena, onde o psiquiatra Julius Wagner-Jauregg, que ganhara um
Prêmio Nobel em 1927, diagnosticou um colapso nervoso causado
pelo excesso de trabalho. Claro que a causa pode não ter sido só o tra-
balho. A crise de Gõdel ocorreu pouco depois de Moritz Schlick ser
morto a tiros na escadaria da universidade. Esse evento foi profunda-
mente perturbador mesmo para a pessoa mais equilibrada. O assas-
sinato significou o fim efetivo do Círculo de Viena, embora sua
influência continuasse a se espalhar, especialmente depois que mui-
tos de seus antigos membros tiveram que se refugiar fora da Europa.
De qualquer modo, Gõdel se recuperou o suficiente, após algumas
semanas no sanatório, para voltar a lecionar seu curso em tópicos de
lógica matemática.
O cargo de Gõdel na Universidade de Viena era um tanto modesto.
Ele se tornou Privatdozent em Viena em 1933. Um Privatdozent tem o
direito de lecionar, embora não receba salário. Para fazer jus a essa

185
INCOMPLETUDE

honra, um candidato precisa escrever uma segunda dissertação. A


prova da completude do cálculo dos predicados (lógica límpida) de
Gõdel constituíra sua dissertação de doutorado. Sua prova da incom-
pletude da aritmética foi submetida como sua segunda dissertação, a
Habilitationsschrift. A comissão que examinou o pedido de Gõdel reu -
niu-se em 25 de novembro de 1932. Um candidato à Dozentur requer
um patrono, e Hans Hahn, seu orientador na dissertação, serviu como
patrono de Gõdel. Hahn testemunhou ao comitê que a dissertação de
Gõdel tinha grande valor científico e que a Habilitationsschrift era
"uma realização de primeira grandeza" que havia "atraído a máxima
atenção nos círculos científicos" e já estava destinada a ingressar na his-
tória da matemática ( o que parece, no todo, um elogio um tanto
fraco). * Hahn fez o julgamento não muito audacioso de que o trabalho
de Gõdel excedia de longe as exigências para a Habilitation, e o comitê
concordou por unanimidade.
Entretanto, esse não era o último obstáculo que um candidato pre-
cisava superar para ser declarado um Privatdozent. Todo o corpo
docente tinha de votar, não apenas no mérito científico do candidato,
mas também em seu mérito pessoal. "Os resultados, conforme regis-
trados pelo reitor em seu relatório de 17 de fevereiro de 1933 ao Minis-
tério da Instrução, foram, na questão de seú caráter, 51 votos positivos
e um <não'. Na questão de seu mérito científico, houve 49 votos positi-
vos e um espantoso <não'." (Dois professores devem ter ido embora
entre as duas votações.) John Dawson escreve que, em uma comunica-
ção particular, o "dr. Werner Schimanovich relatou que o autor do <não'
foi o professor Wirtinger, que achou que o artigo sobre a incompletude
era parecido demais com a dissertação", uma avaliação inconcebível-
mente equivocada, já que a dissertação havia provado a completude, e

* A revista Time, em comemoração ao final do último milênio, dedicou algumas edições


especiais às cem maiores mentes do século passado. Kurt Gõdel foi citado como o maior
m atemático do século. O interessante é que Ludwig Wittgenstein eAlan Turing também
entraram na lista, e Albert Einstein foi escolhido como a maior mente do século.

186
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

não a incompletude, de um sistema formal, qual seja, o cálculo dos pre-


dicados (ou lógica límpida).* Mas o fato de ter havido discordância a
respeito de os teoremas da incompletude tornarem Gõdel merecedor
de um cargo no escalão inferior da Universidade de Viena é estranho.
Qual teria sido a reação íntima de Gõdel à votação não unânime?
Gõdel, é claro, sabia da importância de seus teoremas em todo o seu
esplendor matemático e metamatemático. Mas sua audácia intelectual
estava tão estranhamente acoplada ao retraimento que seria temerário
tentar adivinhar o efeito por trás da opacidade.
Gõdel jamais aprenderia a lição mais elementar sobre como
manobrar para conseguir cargos e status. Pode-se imaginar que qual-
quer professor vienense que tentasse julgar a importância do trabalho
matemático com base na pompa do próprio matemático teria se equi-
vocado. No instituto não seria diferente. Somente em 1953 - após
receber um diploma honorário de Harvard, que citou os teoremas da
incompletude como a descoberta matemática mais importante dos
últimos cem anos, e ser eleito também para a Academia Nacional de
Ciências - Gõdel enfim se tornou membro permanente do instituto.
De novo, a iniciativa veio de Von Neumann, que, ao que se conta, teria
dito: ''Como qualquer um de nós pode ser chamado de professor
quando Gõdel não é?". 6 Dada a sua falta de status mundano, talvez não
seja de espantar que sua esposa sempre tenha considerado o irmão
mais velho de Gõdel o mais bem-sucedido dos dois: afinal, era um
doutor médico.
Gõdel casou-se com Adele Nimbursky (cujo sobrenome de solteira
era Porkert) em 1938. Hao Wang, que na primavera de 1978 ( o ano da
morte de Gõdel) decidiu escrever um resumo do desenvolvimento
intelectual de Gõdel, dando ao lógico a oportunidade de comentá-lo,

* Wirtinger era um matemático que, segundo os relatos, ficou amargurado e retraído


depois que seu colega, o professor Furtwãngler, recebeu um prêmio por um resultado
importante na teoria dos números algébricos. Que forma de conquistar uma nota de
rodapé na história do resultado matemático mais importante do século xx.

187
INCOMPLETUDE

escreve (em um posfácio): "G casou-se com Adele Porkert em 20 de


setembro de 1938. Ele pediu que eu excluísse essa informação de um
rascunho inicial sob a alegação de que a esposa não teve influência
direta sobre seu trabalho". 7 O casamento de Gõdel foi, de acordo com
quase todos, estranho. A mãe de Gõdel, em particular, achou inexpli-
cável a opção matrimonial do filho. Seu pai já havia morrido, mas de
qualquer modo ele nunca se aproximara do pai. Seu relacionamento
com a mãe, porém, foi totalmente diferente, de modo que a escolha
inesperada da noiva causou certo mal-estar.
O rol das reclamações maternas contra Adele era basicamente
este: era uma mulher divorciada, da religião errada (católica), classe
social errada (baixa), idade errada (seis anos mais velha que Gõdel) ,
aparência errada (ela tinha uma mancha da cor de vinho do Porto num
lado do rosto) e, talvez a mais grave, profissão errada (ela havia sido
dançarina de cabaré; ela dizia às pessoas que tinha sido balé, mas era
mentira).
A maior parte da "sociedade" de Prin ceton concordou com a mãe
de Gõdel. Quando Adele chegou a Princeton, Oskar Morgenstern des-
creveu-a como uma típica lavadeira vienense e previu corretamente
que ela seria um fracasso social. "Claro que Gõdel está meio maluco",
ele registrou em seu diário. A confirmação da previsão de Morgens-
tern causou muito sofrimento a Adele Gõdel, embora seu marido não
se importasse. Gõdel era tão indiferente às reprimendas como às pró-
prias causas delas. Ele havia se casado com uma dona de casa, e Adele
mostrou-se capaz de cuidar de seu frágil corpo e alma dentro das pos-
sibilidades de um mero mortal. Adele contou a uma vizinha que, ainda
em Viena, quando se envolveu com Gõdel, ela costumava provar a
comida dele, antevendo os sombrios ataques de paranóia que cada vez
mais o dominariam.
Logo após o casamento em Viena, Gõdel zarpou, sem a esposa, de
novo para Princeton, onde Von Neumann despertara um grande inte-
resse pelos teoremas de Gõdel. Ele lecionou naquele semestre no insti-
tuto sobre as suas descobertas em teoria dos conjuntos (envolvendo

188
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

tanto os axiomas da escolha* como a hipótese do continuum) .Após pas-


sar o período de outono no instituto, foi para South Bend, Indiana, para
passar o período da primavera em Notre-Dame. Sua visita a Notre-
Dame deveu-se a Menger, que decidira emigrar e foi parar em Indiana.
Enquanto Gõdel estava em South Bend, a Tchecoslováquia foi
entregue a Hitler. Naquele ano fatídico de 1939, o mundo inteiro estava
prendendo a respiração. Para o desânimo de Menger, Gõdel, em vez de
trazer Adele e resolver se fixar nos Estados Unidos, insistiu em voltar a

* O axioma da escolha envolve coleções de conjuntos, particularmente coleções infinitas.


Existem várias maneiras de enunciar o axioma. Na verdade, existe um livro inteiro, de H.
Rubin e J. Rubin, intitulado Equivalents of the axiom of choice. Uma versão simples do
axioma é: para qualquer conjunto de conjuntos não vazios e dois a dois disjuntos (con-
juntos que não possuem elementos em comum), existe um conjunto que contém exata-
mente um elemento de cada um dos conjuntos não vazios. Em outras palavras, se você tem
uma coleção de conjuntos que não se sobrepõem uns aos outros, grosso modo pode for-
mar uma coleção escolhendo um membro de cada conjunto da coleção. (Você só precisa
realmente do axioma quando a coleção é infinita.) Outra forma de enunciar o axioma da
escolha é: para qualquer conjunto de conjuntos não vazios, existe uma função que atribui
a cada um desses conjuntos não vazios um de seus membros. Um número infinito de esco-
lhas (daí o nome do axioma) pode ser necessário, razão por que o axioma recebeu tanta
atenção. O axioma está dizendo que certo conjunto existe, embora o conjunto não seja
realmente especificado ou construído. O axioma da escolha talvez seja o segundo axioma
mais discutido da matemática, depois do postulado das paralelas de Euclides. Como o
postulado das paralelas, o axioma da escolha teve provada sua independência em relação
aos demais axiomas, nesse caso da teoria dos conjuntos. Gõdel provou a primeira parte da
independência mostrando que o axioma é consistente com os outros axiomas da teoria
dos conjuntos; e depois (assim como com a hipótese do continuum ), Paul Cohen comple-
tou a prova (em 1963) mostrando que a negação do axioma da escolha é consistente com
os outros axiomas. Assim como a prova da independência lógica do postulado das para-
lelas deu origem às geometrias não euclidianas, existe também uma form a não-canto-
riana de teoria dos conjuntos que usa a negação do axioma da escolha. Mas, embora a pró-
pria idéia do número infinito de escolhas envolvidas no axioma da escolha possa tornar a
matemática um tanto confusa, a maioria dos matemáticos não hesita em lançar mão do
axioma ao fazer suas provas (não construtivas), porque, com tantas aplicações importan-
tes em praticamente todos os ramos da matemática, sua rejeição limitaria os movimentos
dos matemáticos. Não está claro quando Gõdel começou a pensar na teoria dos conjun-
tos, e tampouco está claro quando provou que o axioma da escolha é consistente com os
demais axiomas da teüria dos conjuntos. Ele só revelou sua prova no ano seguinte, quando
retornou a Princeton. Não surpreende ter sido Von Neumann quem ouviu a confidência
do importante resultado novo, que Gõdel publicou em 1938.

189
INCOMPLETUDE

Viena. Ele estava contrariado porque sua Dozentur corria o risco de ser
revogada pela Nova Ordem, e achou que deveria voltar correndo para
garantir que seus direitos não fossem violados. Menger, um admirador
de Gõdel, ficou decepcionado.

Ele havia reclamado da revogação de sua docência e falara de direitos violados.


"Como alguém pode falar de direitos na atual situação?", perguntei. "E que valor
prático podem mesmo ter direitos na Universidade de Viena para você sob tais
circunstâncias?" Mas, apesar dos apelos e advertências de todos os seus conhe-
cidos em Notre-Dame e Princeton, ele estava determinado a ir a Viena; e foi. 8

Um homem capaz de ser aterrorizado por um refrigerador, convencido


de que estava emitindo gases venenosos, retornou à Viena conquistada
pelos nazistas para assegurar "seus direitos".
O mundo de Gõdel em Viena estava agora totalmente nazificado.
Menger escrevera a Veblen, enquanto ainda em Viena, que "embora eu
[... ] não acredite que a Áustria tenha mais de 45% de nazistas, a porcen-
tagem nas universidades é certamente de 75% e, entre os matemáticos,
tenho de conviver com, [afora] alguns alunos meus, perto de 100%':
Gõdel decididamente não era anti-semita. Ele nunca se incomo-
dou quando os outros acharam que era judeu. Apenas corrigia o erro
"em prol da verdade", como escreveu na correção não enviada à auto-
biografia de Bertrand Russell. O grupo de pensadores com quem con-
vivera em Viena era predominantemente de judeus. Gõdel é a perso-
nalização perfeita do conselho irônico que o satirista Leon Hirshfeld
dava aos viajantes: "Cuidado em sua estada em Viena para não ser inte-
ressante ou original demais, senão você pode ser chamado pelas cos-
tas de judeu".
Embora não compartilhasse das teorias raciais grosseiramente sim-
plificadoras que vinham gozando de tanta popularidade em Viena e
outros lugares, Gõdel mostrou-se de uma indiferença constrangedora
ao sofrimento das vítimas daquelas teorias raciais. O filósofo positivista
(judeu) Gustav Bergmann recordou a John Dawson que, pouco depois

190
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

de chegar aos Estados Unidos, em outubro de 1938, foi convidado para


almoçar com Gõdel, que perguntou, com uma ignorância encantadora:
"O que o traz para os Estados Unidos, Herr Bergmann?': 9
Para Menger, havia um limite para o grau em que se podia perdoar
a genialidade ignorante:

Durante o verão, não tive notícias de Gõdel. Mas em 30 de agosto de 1939, um


dos poucos dias entre o pacto de Hitler-Stálin e a entrada das tropas alemãs na
Polônia que desencadeou a Segunda Guerra Mundial, ele me escreveu uma
carta que pode bem representar o cúmulo da despreocupação, às vésperas de
eventos que abalariam o mundo: "Desde o final de junho, estou de volta a
Viena, e tive de realizar tantas tarefas que infelizmente não foi possível escrever
nada para o Colóquio. Como foram os resultados das provas de minhas aulas
de lógica?[ .. .] No outono espero estar de volta a Princeton".1º

A afeição de Menger por Gõdel esfriou muito, só retornando décadas


depois, no final da vida de Gõdel, quando Menger passou a entender
mais completamente a estranheza profunda e permanente do lógico.
Ali estava Gõdel na Viena de 1939. Mas era uma Viena tristemente
mudada, como até Gõdel deve ter percebido, ao menos um pouquinho.
O velho Círculo é claro que já não existia. Schlick havia sido assassinado
por um estudante psicótico que foi então transformado em herói pela
imprensa nazista. Feigl, Carnap e Menger haviam fugido da atmosfera
cada vez mais venenosa. Hans Hahn morrera de câncer em 24 de feve-
reiro de 1934, aos 55 anos - um dia antes de um grupo de nazistas ata-
car a chancelaria em Viena e assassinar Dollfuss num Putsch fracassado.
Não obstante, Gõdel aparentemente pretendia permanecer em
Viena. Sua esposa e ele haviam renovado o contrato de locação do apar-
tamento e providenciaram até algumas reformas. Além disso, ele ten-
tara se tornar um Dozent neuer Ordnung. As autoridades "da Nova
Ordem" que vetaram sua solicitação observaram que ele era "bem
recomendado cientificamente", mas sua Habilitation havia sido super-
visionada pelo "professor judeu Hahn': e que "contribuía para seu des-

191
INCOMPLETUDE

crédito" o fato de ter "sempre circulado em meios liberais-judaicos".


Para ser justo com ele, observou-se que a "matemática estava naquela
época fortemente verjudet", ou judaizada. A autoridade incumbida do
caso de Gõdel,, o dr. A. Marchet, o Dozentbundsführer, não encontrou
nenhuma declaração de Gõdel contrária ao nacional-socialismo, mas
tampouco alguma declaração a favor. A decisão do dr. Marchet quanto
à posição de Gõdel na Nova Ordem ficou em banho-maria: ele não
conseguiu decidir pela aprovação de Gõdel, nem por ora rejeitá-lo.
O evento que parece ter precipitado sua decisão de deixar Viena foi
que Gõdel voltou a ser confundido com um judeu, dessa vez de forma
bem mais ameaçadora, pois foi por um grupo de jovens arruaceiros na
vizinhança da universidade. Ele foi atacado fisicamente, e seus óculos
foram atirados na calçada. Gõdel não parecia diferente de um judeu,
com seu sobretudo comprido habitual, chapéu de feltro e óculos com
lentes de fundo de garrafa. Parecia um intelectual, e isso era incrimina-
dor o suficiente. A valente Adele, exibindo as habilidades protetoras
pelas quais ele sem dúvida se casou com ela, enfrentou os fascistas com
seu guarda-chuva.
Gõdel também sofreu o choque de ser considerado apto para o
serviço militar, algo inimaginável. ( O comitê de recrutamento nos
Estados Unidos quase automaticamente o classificara como 4-F: dis-
pensado por incapacidade física.) As autoridades se recusaram adis-
pensá-lo do serviço militar por causa do coração, que Gõdel conti-
nuava sustentando ter sido prejudicado por seu ataque de febre
reumática aos oito anos. Eles também ignoraram os indícios mais con-
vincentes de sua instabilidade mental, incluindo, àquela altura, algu-
mas permanências adicionais em sanatórios. Sorte dele, já que os
"doentes mentais", em vez de despachados para o front, eram enviados
aonde pudessem ser eliminados com mais eficiência.
Era difícil obter uma licença para se ausentar da Universidade de
Viena, bem como autorização para deixar a Áustria rumo aos Estados
Unidos, tanto dos austríacos como dos americanos, mas os defensores
de Gõdel em Princeton - Abraham Flexner, o sucessor de Flexner

192
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

como diretor do Instituto,* FrankAydelotte, Veblen e Von Neumann -


uniram forças para possibilitar a travessia do Atlântico. Gõdel creditou
a autorização, em particular, à carta de Aydelotte ao encarregado de
negócios da embaixada alemã em Washington. Naquela carta, datada de
1rr de dezembro de 1939, o novo diretor do instituto declarou que Gõdel
era um ariano e um dos maiores matemáticos do mundo. "Seu caso difi-
cilmente criaria um precedente'~ raciocinouAydelotte, "porque existem
muito poucos homens no mundo com sua estatura científica." 11
Os Gõdel começaram sua viagem para o Novo Mundo, primeiro
atravessando a Rússia pela ferrovia transiberiana, e seguindo até o
Japão. A autorização de saída alemã exigira essa rota, e, além disso, con-
forme Gõdel escreveu numa carta aAydelotte, "fui informado em todas
as agências de vapores que o perigo de cidadãos alemães serem detidos
pelos ingleses é muito grande no Atlântico': Eles chegaram a Yokohama
em 2 de fevereiro de 1940, um dia depois de o navio reservado para eles
pelo instituto ter partido. O casal teve de aguardar pelo próximo navio,
o President Cleveland, que aportou em San Francisco em 4 de março.
Dali foi só pegar a ferrovia transcontinental até Nova York e, depois,
enfim viajar até seu novo lar em Princeton.
Isso parece um drama, no sentido normal da palavra. Mas Gõdel
estava totalmente acima do tipo de drama de quem fugia da Europa
nazista. "Gõdel chegou de Viena", escreveu Oskar Morgenstern em seu
diário. Morgenstern, também natural de Viena, estava doido para rece-
ber do lógico recém-chegado notícias da cidade invadida. "Em seu
misto de profundidade e desligamento, ele é bem engraçado. [... ]
Quando perguntei sobre Viena, respondeu: 'O café está horrível'."
Adele faria a viagem de volta várias vezes após a guerra para visitar
sua mãe em Viena, mas Gõdel nunca mais pôs os pés em solo europeu.

* A renúncia de Flexner resultou de duas nomeações suas, ambas de economistas, sem


consultar primeiro o melindroso corpo docente. Os matemáticos eram particular-
mente sensíveis nesse ponto, prenunciando eventos que toldariam os últimos anos de
Gódel no instituto.

193
INCOMPLETUDE

Sua mãe teria que vir para Princeton, como fez várias vezes, para se
verem de novo. Na verdade, ao contrário do acadêmico peripatético
típico, ele raramente, nos próximos 38 anos de vida, saiu do município
de Princeton.
Nem sequer conseguiram convencer Gõdel a fazer o trajeto, facil-
mente percorrível a pé, até a Universidade de Princeton, quando, em
1975, esta enfim lhe ofereceu um título de doutor honoris causa. Ele já
possuía este título de Harvard, Yale, Amherst e Rockefeller. Foi basica-
mente pelos esforços de Paul Benacerraf que a universidade decidiu
reconhecer o gênio que se tornara uma espécie de Greta Garbo do
mundo intelectual, em seu desejo de não ser incomodado. Entretanto,
com a aproximação do dia da cerimônia, o prazer inicial de Gõdel deu
lugar à sua tergiversação bem mais característica, que continuou até a
manhã do evento. Benacerraf e Simon Kochen ofereceram-se para
levá-lo de carro à cerimônia e cuidar de todas as outras preocupações,
mas Gõdel acabou não comparecendo à homenagem. Talvez ele esti-
vesse aborrecido por ela ter vindo tarde demais. "Dez anos atrás", ele
contou a Morgenstern, "tal coisa [... ] teria sido apropriada." A única
condição para se receber o título de doutor honoris causa é comparecer
à cerimônia. Portanto, embora no programa constasse que Gõdel rece-
bera o título de Doutor em Ciência, o programa mentiu. Ali, porém,
está a citação amável:

Sua análise revolucionária dos métodos de_prova recebidos naquele ramo da


matemática tão familiar e elementar, a aritmética dos números inteiros, abalou
os fundamentos de nossa compreensão tanto da mente humana como do
alcance de um de seus instrumentos favoritos: o método axiomático. Como
todas as revoluções importantes, a dele não apenas mostrou os limites dos méto-
dos antigos, mas também se revelou um fértil manancial de métodos originais,
deixando em sua esteira disciplinas novas e florescentes. A lógica, matemática e
filosofia continuam se beneficiando imensuravelmente de sua genialidade.

194
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Um episódio sobre Gõdel nos Estados Unidos, a respeito de sua


aquisição da cidadania norte-americana, merece ser repetido. Talvez
seja a história mais famosa contada sobre Gõdel. (Ela nos vem por meio
de Morgenstern.) Além de envolver Einstein bancando o certinho, em
contraste com o maluco do Gõdel, também realça a excentricidade do
gênio. Todo mundo parece gostar desse tipo de história. (Numa pales-
tra que dei na minha faculdade sobre um capítulo deste livro, a "pausa
para perguntas" logo degenerou numa sessão de troca dessas histórias
sobre Gõdel. Infelizmente, eu já tinha ouvido todas elas.)
Gõdel levou muito a sério a questão da cidadania americana, estu-
dando a fundo para seu exame. Tão a fundo que acreditou ter feito uma
descoberta perturbadora: existe uma contradição interna na Consti-
tuição americana que permitiria que sua democracia deteriorasse
numa tirania.*
Num estado de profunda consternação, Gõdel revelou sua desco-
berta a Morgenstern. Houve sempre um forte pendor legalista em
Gõdel, um fascínio por examinar o significado e as implicações das leis
humanas, que refletia tenuemente seu interesse pelas leis eternas da
lógica. O economista ficou surpreso com o argumento de Gõdel e tam-
bém preocupado, porque sabia que, do jeito que Gõdel era, poderia
perfeitamente se comportar de modo a colocar em risco sua tão
ansiada cidadania. Morgenstern consultou Einstein sobre como
melhor lidar com o lógico.
No dia do teste da cidadania de Gõdel, 5 de dezembro de 194 7, Mor-
genstern e Einstein chegaram para levar Gõdel até Trenton. Morgens-
tern ficou incumbido de dirigir o carro, e Einstein, de distrair Gõdel.

* Infelizmente, o relato de Morgenstern, e portanto todos os que seguem dele, omitem


a falha constitucional exata. Perguntei a John Dawson se ele sabia qual era, e ele mandou
um e-mail respondendo: "Não, não sei, embora muitos tenham feito essa pergunta.
Existe um conjunto de notas taquigráficas no Nachlass de Godel referentes ao governo
americano (presumivelmente tomadas enquanto estudava para o exame da cidadania)
que poderiam conter a resposta, mas transcrever aquele item específico nunca teve a
mesma prioridade do material matemático" (3 de janeiro de 2004).

195
INCOMPLETUDE

Assim que este adentrou o carro, Einstein, sem lhe dar nenhuma
chance de falar, saudou-o com uma piada.
"Você está preparado para sua penúltima prova?"
"O que você quer dizer com 'penúltima'?"
"Muito simples. A última será quando você entrar no seu túmulo."
Humor do Velho Mundo.
Einstein continuou contando uma história após a outra, inclusive
uma sobre um recente caçador de autógrafos. Ele observou que tais
pessoas são os últimos dos canibais, pois procuram se apossar das
almas de quem eles ingerem. Assim, os três membros do Instituto de
Estudos Avançados conseguiram chegar ao palácio da Justiça Federal
de Trenton. Havia vários candidatos na frente, de modo que Einstein se
resignou a continuar suas brincadeiras diversionistas. Mas por sorte
descobriram que o juiz, de nome Philip Forman, era o mesmo que
ministrara o juramento de cidadania a Einstein alguns anos antes, e ele
conduziu imediatamente os três homens à sua sala.
Einstein e Forman conversaram um pouco e Gõdel, sentado tran-
qüilo e esperando a sua vez, parecia ter sido esquecido. Mas Forman
acabou chegando ao que interessava.
"Até agora você teve a cidadania alemã."
De imediato, Gõdel corrigiu o erro do juiz: cidadania austríaca.
Devidamente corrigido, o juiz prosseguiu.
"De qualquer modo, foi sob uma ditadura cruel. Por sorte, isso não
é possível nos Estados Unidos."
Aquela era exatamente a deixa pela qual o lógico aguardava.
"Pelo contrário", objetou ele. "Sei precisamente como isso pode
acontecer aqui", e começou sua exposição sobre a falha na Constitui-
ção. Forman, Morgenstern e Einstein trocaram olhares significativos, e
o juiz interrompeu a peroração de Gõdel com um sumário "Não há
necessidade de entrar nesses detalhes" e conduziu a conversa para
temas menos perigosos. Algumas semanas depois de prestar o jura-
mento, Gõdel descreveu Forman, em carta para a mãe, como "uma pes-
soa bem simpática".

196
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

"A LÓGICA. ELA ERA IMPOSSÍVEL'

Diariamente, Einstein e Gõdel voltavam a pé do instituto para casa, em


profundas conversas, enquanto as pessoas observavam, curiosas.
Gõdel tinha grande prazer - talvez até orgulho - com sua amizade:
as referências a Einstein nas cartas à mãe são prova disso. "Vivo me
espantando pelo fato de Einstein caminhar até o instituto com esse
tempo ruim. Mas ele parece; nesse aspecto, tão insensato quanto você",
Gõdel escreveu para sua mãe, implicando com ela, num inclemente 17
de fevereiro de 1948. E em 12 de julho do mesmo ano: "Vejo Einstein
quase diariamente. Ele é muito saudável para a idade. Nem dá para per-
ceber que está com quase setenta anos, e ele agora parece se sentir ótimo
em termos de sua saúde".
Mas apenas poucos meses depois disso, no outono de 1948, Eins-
tein, com crises agudas de dor no abdômen superior, internou-se no
Hospital Judaico de Brooklyn para uma laparotomia exploratória. Um
aneurisma abdominal foi descoberto. Alguns anos depois, Einstein
descobriu que o aneurisma estava crescendo. Relata Helen Dukas:
"Todos em torno dele sabíamos da espada de Dâmocles pendendo
sobre nós. Ele também sabia, e esperou pelo pior, calmo e sorridente':
Einstein tomou cuidado para que Gõdel, tão obcecado com sua
própria saúde, jamais soubesse daquilo. Einstein sempre procurou
proteger seu amigo delicado e mais jovem. Assim, Gõdel escreveu repe-
tidamente à mãe sobre a boa saúde de Einstein (comparada com seus
próprios problemas de saúde, reais e imaginários), até a carta de 25 de
abril de 1955. Einstein havia morrido em 18 de abril de 1955:

A morte de Einstein claro que foi um grande choque para mim, pois eu não a
esperava. Exatamente nas últimas semanas Einstein deu a impressão de estar
completamente saudável. Ao caminhar comigo por meia hora até o instituto,
ao mesmo tempo que conversava, não mostrava nenhum sinal de fadiga, ao
contrário do que acontecera em muitas ocasiões anteriores. Em termos pes-
soais, perdi muito com a sua morte, especialmente porque, em seus últimos

197
INCOMPLETUDE

dias, ele me tratava ainda melhor do que antes, e tive a sensação de que queria
se abrir mais do que antes. Ele preferia não compartilhar muitos dos seus pro-
blemas pessoais. Naturalmente meu estado de saúde piorou durante a última
semana, em especial o sono e o apetite. Mas tomei uma pílula forte para dor-
mir algumas vezes e estou agora mais sob controle.

Após a morte de Einstein, a sensação de exílio de Gõdel deve ter se


aprofundado. Quando Einstein se afastara por ordens médicas para
repousar, Gõdel se queixou à mãe de não ter ninguém com quem con-
versar. Agora, nunca mais teria alguém.
Seu profundo isolamento não resultava apenas da alienação inte-
lectual em relação ao positivismo filosófico, que ele sentia tê-lo acom-
panhado de Viena ao Novo Mundo (o que, de certa forma, ocorreu).
Também no nível pessoal, Gõdel vivia totalmente alienado de seus
colegas matemáticos do instituto. Ao contrário de Einstein, eles não se
interessavam por seu "axioma estranho", sua versão do princípio da
razão suficiente de Leibniz, que o predispunha a acreditar que tudo que
acontece tem uma explicação totalmente lógica - sobretudo depois
que a aplicação do axioma levou Gõdel a acreditar que quem detinha o
poder tinha razões suficientes para tal. O axioma predispunha Gõdel a
conceder aos detentores do poder o benefício da dúvida - eles devem
ter boas razões para suas decisões e ações, ainda que os dados empíri-
cos pareçam indicar o contrário - , e tal raciocínio contribuiu para
afastar profundamente o lógico de seus colegas do instituto.
No tocante à matemática, os matemáticos constataram que Gõdel,
conquanto um lógico, participava ativamente de suas discussões teóri-
cas. "De fato, ele sabia mais matemática do que eu suspeitara", Borel
explicou para mim quando o visitei no instituto. "Ele conseguia parti-
cipar de discussões não apenas sobre lógica. Em matemática, ele real-
mente tomava parte de nossas discussões."
Era no campo mais prático que Gõdel se indispunha com seus cole-
gas matemáticos, pelo menos da forma como esse campo se apresen-
tava no instituto: a questão vital das nomeações. Quando se tratava de

198
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

nomear um membro permanente para o instituto, mesmo o mais dis-


traído dos pensadores ficava atento: quem é digno de adentrar os
domínios etéreos da razão pura?
Flexner escolhera a matemática, "a mais rigorosa das disciplinas",
como seu modelo. Não apenas os resultados matemáticos são seguros,
mas a profundidade e a importância relativas dos resultados também
são seguras. Do mesmo modo, a profundidade e a importância relati-
vas dos próprios matemáticos são igualmente seguras. Os matemáticos
sabem exatamente quais dentre eles são os melhores, e são estes que
merecem ingressar no Instituto. Os matemáticos do Instituto têm a
tradição de julgar as outras disciplinas com certo rigor.
Os matemáticos reagiram contra as tentativas de Flexner de diver-
sificar a população do instituto e incluir estudiosos de economia, polí-
tica e das humanidades. Flexner conseguiu criar duas escolas novas,
uma de economia e política e outra de estudos humanísticos, mas a
batalha foi acirrada e, ao se aposentar, quatro anos depois, Flexner era
um homem cansado. Obter o dinheiro inicial dos Bamberger/Fuld-
que, afinal, tinham respeito por ele e suas opiniões - havia sido sopa
em comparação à aceitação de suas propostas pelos matemáticos. Seu
sucessor, FrankAydelotte, obteve, quase sempre, a aprovação dos mate-
máticos. Ele era, nas palavras de Einstein, "um homem tranqüilo, inca-
paz de perturbar pessoas que estão tentando pensar".
Quando Aydelotte se aposentou, em 1947, a direção passou para
J. Robert Oppenheimer, que voltara a lecionar em Berkeley e Caltech
após o término bem-sucedido do "Projeto Manhattan": a missão,
durante a guerra, que reunira muitos dos principais físicos dos Estados
Unidos para desenvolver a primeira bomba atômica. Oppenheimer
havia hesitado, assim como Einstein, em se mudar para Princeton.
Após visitar o instituto, falou em tom zombeteiro de seus "luminares
solipsistas". Mesmo assim, ele veio, e pouco depois ele e os matemáticos
se desentendiam.
Oppenheimer, compreensivelmente, estava interessado em fortale-
cer a escola de física do instituto. Nomeações individuais fizeram mate-

199
INCOMPLETUDE

máticos como Von Neumann e Deane Montgomery entrarem em rota


de colisão com o diretor. Na época de Oppenheimer, todo o corpo
docente votava a cada nomeação. Ninguém podia na verdade julgar o
trabalho dos matemáticos a não ser os próprios matemáticos, embora
eles parecessem totalmente à vontade ao julgar o trabalho de físicos, eco-
nomistas, historiadores e humanistas (outro grupo de privilegiados na
torre mais alta da Razão Pura). Ironicamente, os matemáticos, em geral
desligados, eram a força a ser levada em conta nos assuntos mais práticos
do instituto. Alguns teorizaram, em tom de piada, que o problema dos
matemáticos não são apenas os padrões elevados que costumam empre-
gar, mas a tendência a trabalhar menos horas por dia do que as outras
pessoas. Com isso, sobra muito tempo para ficarem aprontando.
Mas não foi apenas a defesa de Oppenheimer dos não-matemáticos
que jogou lenha na fogueira dos matemáticos. Foi a candidatura do
matemático John Milnor que acendeu o fósforo. John Milnor era então
matemático na Universidade de Princeton. Aos dezoito anos, quando
calouro em Princeton, ele ouvira falar sobre uma conjectura do topólo-
go polonês Karol Borsuk sobre a curvatura total de um nó não trivial no
espaço.Milnordescobriu uma provadaconjecturaelevou-aaoseu pro-
fessor, dizendo: "Não vejo nada de errado nisso, e você?". O professor
tampouco viu, bem como os colegas. Um ano depois, Milnor desenvol-
vera uma teoria geral de curvatura da qual a prova da conjectura de Bor-
suk não passava de mero subproduto. Ele continuou com uma carreira
brilhante, e os matemáticos do instituto quiseram que ele fosse para lá.
Oppenheimer foi contra, alegando que o instituto prometera à univer-
sidade não ficar atraindo seus elementos. Os matemáticos acusaram
Oppenheimer de inventar essa promessa em causa própria. (As dúvidas
dos matemáticos quanto à boa-fé de Oppenheimer eram tão profundas
e arraigadas que consegui captar seus ecos ainda hoje. Um matemático,
ao descrever o caminho que levava direto de Fuld Hall a Olden Farm, a
residência do diretor - o mesmo caminho que Einstein e Gõdel percor-
riam diariamente - , contou-me que, após a morte de Einstein, Oppe-
n heimer "por algum motivo suprimiu o caminho", ou seja, deixou o

200
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

mato crescer nele. "Não tenho idéia do motivo", concluiu o matemático,


com um olhar sombrio fortemente sugestivo do intento sinistro por trás
da supressão do caminho.)
Gõdel, como Borel me explicou, queria a vinda de Milnor tanto
quanto os demais matemáticos, mas era incapaz de se opor à autoridade
do diretor. Foi o respeito incontestável de Gõdel pelos direitos da auto-
ridade que fez com que os demais matemáticos concluíssem "que não
havia como argumentar" [com Gõdel], segundo Borel, que continuou:

A lógica era simplesmente estranha. Não podia haver discussão, nem mesmo
uma forma comum de discutir o assunto. Ele estava sempre a favor da autori-
dade. Deane Montgomery e eu estávamos conversando com Gõdel, e a lógica
era totalmente absurda. Ali estava um homem que teve de fugir dos fascistas no
poder na Áustria. No entanto, por sua lógica, não se deve desafiar a autoridade.
A lógica era simplesmente absurda. A situação no departamento ficou tão
ruim que decidimos, por unanimidade, que dali em diante a lógica seria tra-
tada em separado.

O que isso significava era que Gõdel não seria mais incluído nas dis-
cussões dos matemáticos sobre nomeações: ele deixou de receber os
currículos dos candidatos, sua opinião não foi mais solicitada, nem
esteve mais presente nas reuniões. Foi exilado no seu próprio campo: a
lógica. Ele decidiria sobre a nomeação de lógicos, junto com o matemá-
tico Hassler Whitney.
Isso foi em 1961, e depois daquilo quase toda conversa entre Gõdel e
os demais matemáticos cessou. Apenas Whitney manteve certo contato
com Gõdel. E o contato era somente do tipo mais profissional, tal como
Gõdel queria.No serviço religioso em memória de Gõdel, Whitney lem-
brou que, certa vez, ao fazer uma visita a Gõdel, este ficou surpreso, já
que nenhum "assunto preciso" trouxera Whitney à sua porta.
Gõdel também desenvolveu uma forte preferência por realizar todas
as conversas pelo telefone. Ainda que um colega estivesse a curta distân-
cia de seu escritório no instituto, Gõdel pedia que usasse o telefone.

201
INCOMPLETUDE

Houve um breve período, no início da década de 1970, em que Gõdel


manifestou o que foi, para ele, uma sociabilidade incomum. Simon
Kochen contou-me que, durante esse período, Gõdel costumava visitá-
lo para se atualizar sobre os trabalhos mais recentes em seu campo. Em
março de 1973,Abraham Robinson ( 1918-74), um matemático cujo tra-
balho Gõdel admirava, deu uma palestra no instituto. O trabalho de
Robinson empregara as técnicas da lógica formal - muitas delas desen-
volvidas por Gõdel no decorrer de sua prova do primeiro teorema da
incompletude - para solucionar problemas comuns em álgebra,
criando a denominada "análise não-standard': Tais extensões do alcance
da lógica eram sempre encorajadoras para Gõdel. (O trabalho de Simon
Kochen, quando um lógico bem jovem, também aplicara a lógica formal
a um problema matemático mais tradicional.) A palestra de Robinson
fez com que o normalmente taciturno Gõdel se levantasse para congra-
tular Robinson por seu trabalho.* A análise não-standard, ele disse, não
era "uma moda dos lógicos matemáticos", mas estava destinada a setor-
nar "a análise do futuro. [... ] Nos séculos vindouros, será considerado
estranho [... ] que a primeira teoria exata dos infinitesimais tenha sido
desenvolvida trezentos anos após a invenção do cálculo diferencial': 12
No outono de 1973, Gõdel surpreendeu a todos ao dar o ar de sua
graça naquela festa ao ar livre em que tive minha única oportunidade
de conhecê-lo. Lembro que a filha de Iossíf Stálin, Svetlana Alliluieva,
uma celebridade menor dos anos 70 devido às suas memórias, esteve
presente também, mas quem ligaria para uma Stálin quando Gõdel
estava lá? Nunca mais consegui vê-lo.
Depois Gõdel conseguiu enfurecer seus colegas outra vez, durante
a controvérsia que causou ondas tão grandes que chegaram às páginas
do New York Times e de revistas como a Ha rper's e Atlantic Monthly
(cuja capa da edição de fevereiro de 1974 dizia: "Tempos difíceis no

* Alguns meses após a palestra, Robinson sucumbiu ao câncer pancreático, uma morte
que, segundo os relatos, abalou Gõdel.

202
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Monte Olimpo: a grande batalha em Princeton"). Embora o diretor


agora fosse outro - Karl Kaysen, que recebera o comando de Oppe-
nheimer em 1966* - , o pomo da discórdia era o mesmo: nomeações.
Kaysen viera ao instituto oriundo do Departamento de Economia de
Harvard, mas se licenciara de Harvard em 1961 a fim de trabalhar para
McGeorge Bundy no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca,
no governo Kennedy. Para os matemáticos, aquilo era compromisso
demais com o mundo real, e eles - exceto Gõdel - já estavam forte-
mente inclinados a desconfiar do novo chefe do campus.** Mas, quando
Kaysen propôs criar uma nova escola de ciências sociais, prometendo ele
próprio obter os recursos financeiros, os matemáticos, bem como mui-
tos membros da Escola de História, prepararam-se para a guerra total.
A primeira nomeação foi de Clifford Geertz, antropólogo cultural da
Universidade de Chicago, cujo trabalho aborda todos os aspectos da cul-
tura e cujas credenciais profissionais eram invejáveis. Ele conseguiu
entrar. Foi a candidatura de Robert Bellah, um sociólogo da religião de
Berkeley, que fez o clima de hostilidade degenerar em batalha campal.
Embora as armas fossem palavras, elas podiam ser bem incisivas, até mor-
tais. O matemático André Weil, *** por exemplo, teria dito ao New York

* Oppenheimer conseguira fundir a fracassada Escola de Economia e Política com a flo-


rescente Escola de Humanidades para criar a nova Escola de História. Mas quando se
afastou do Instituto - com menos de seis meses de vida pela frente - constatou que
metade do corpo docente não falava com ele. Todos os matemáticos- com exceção de
Gõdel - estavam no campo inimigo. Quando se fala com matemáticos sobreviventes
daquele período mesmo hoje, o caráter de Oppenheimer é descrito em termos negati-
vos. As lembranças parecem nunca enfraquecer no Instituto.
** Sua obra acadêmica envolveu basicamente a política antitruste norte-americana; ele
realizara um estudo do processo antitruste United States versus United Shoe Machinery
Corporation. Disse o matemático André Weil: ''Acho que ele escreveu sua tese sobre uma
fábrica de sapatos".
*** Weil viera ao instituto oriundo da França, e havia sido um dos participantes origi-
nais da existência imaginária de "Nicolas Bourbaki". Foi sob esse pseudônimo (Bour-
baki era identificado como "ex -membro da Academia Real Poldaviana") que um grupo
de jovens matemáticos publicou pelo menos duas dúzias de tratados matemáticos da
máxima qualidade, alçando o nível de prova a um novo padrão de rigor.

203
INCOMPLETUDE

Times o seguinte: "Muitos de nós começamos a ler os trabalhos inúteis do


sr. Bellah. Vi candidatos fracos antes, mas nunca tive uma sensação tão
grande de estar desperdiçando meu tempo': Alguns partidários de Bellah
objetaram que para Weil, um matemático que empregava os padrões ele-
vados de sua disciplina, qualquer tentativa de estudar a religião careceria
de rigor. Weil replicou que, pelo contrário, tinha uma ligação pessoal com
aqueles temas. Afinal, sua irmã havia sido a famosa mística Simone Weil.
Gõdel de novo concordou, em princípio, com os matemáticos.
Borel contou-me que Gõdel havia dito que a nomeação de Bellah seria
a mais fraca da história do instituto. Na reunião do corpo docente para
discutir a candidatura de Bellah - em que muitas coisas deploráveis
foram ditas no calor da emoção e depois liberadas para a imprensa pela
"maioria dissidente", depois que Kaysen deixou clara a intenção de
ignorar o voto do corpo docente - , Gõdel superou sua reserva e se
manifestou em termos frios e racionais. (Seus aliados ficaram aliviados
com sua sensatez nas observações públicas; num encontro que antece-
deu a própria reunião, ele especulara privadamente que talvez Bellah,
proveniente do Canadá, tinha o apoio do conselho de administração
porque seu diretor havia sido o embaixador canadense, e talvez Bellah
tivesse sido espião pelo Canadá! Isso, segundo minha fonte da história,
que, após todos esses anos, ainda deseja permanecer anônima, era
típico do raciocínio de Gõdel. Como Gõdel havia lido os trabalhos de
Bellah e não vira nada demais neles, estava procurando a razão que tor-
nasse inteligível a decisão das autoridades.)
Na reunião pública, Gõdel distinguiu, num estilo verdadeiramente
gõdeliano, a influência que as idéias podem ter de sua verdade objetiva.
(Indícios de Platão fustigando os sofistas de seu tempo.) Os defensores
de Bellah falavam apenas da primeira, não da última. A obra de Bellah,
Gõdel estava racionalmente mostrando, pode ter influenciado muitos
em seu próprio campo, mas isso, em si, não é motivo para julgá-la verda-
deira. Idéias populares não são necessariamente idéias verdadeiras. A
contra-alegação de que, em campos como a sociologia, a influência é
tudo, a noção de verdade objetiva sendo inaplicável (Kaysen, em resposta

204
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

a Gõdel, invocou essa linha de raciocínio), representava, para Gõdel, a


mais grave deslegitimação possível de um campo como a sociologia. "Ele
[Gõdel] também observou que muitos cientistas de grande inteligência,
originalidade, saber e influência produziram teorias completamente
erradas, como por exemplo Stahl, o inventor da teoria do fl.ogístico." 13
No entanto, na hora do voto, Gõdel foi um dos poucos matemáti-
cos a não votarem contra a nomeação, de novo achando impossível
desafiar a autoridade. A votação final do corpo docente foi de treze con-
tra Bellah, oito a favor e três abstenções. Um dos que se abstiveram foi
Kurt Gõdel. Foi a confirmação final, para os colegas matemáticos de
Gõdel, de que "a lógica era totalmente absurda".
Toda aquela novela da nomeação de Bellah teve um final adequada-
mente infeliz: a filha de Bellah faleceu, e este, de luto, não se interessou
mais pelo cargo. Pouco depois do caso Bellah, Kaysen deixou o insti-
tuto, cansado dos seus adversários matemáticos (como Oppenheimer
e Flexner ao se demitirem, totalmente esgotado). O diretor atual do
instituto é considerado pelos matemáticos um homem razoável.
O caso Bellah gerou tamanha controvérsia que, ao falar com alguns
dos participantes agora, mais de um quarto de século depois, ainda
consegui detectar sinais de fúria do passado. Kaysen contou-me que,
durante a confusão em torno de Bellah, Gõdel às vezes telefonava para
comentar o assunto com ele. "Ele estava muito angustiado com a
atmosfera de incivilidade."
Assim, embora tivesse se aliado brevemente aos colegas matemáti-
cos do instituto no julgamento do trabalho do novo candidato, seu exí-
lio continuou. Na verdade, aumentou.

"SÓ CONSIGO TOMAR DECISÕES NEGATIVAS"

Karl Menger, o velho conhecido de Gõdel do Círculo de Viena, feliz em


seu refúgio em Notre-Dame, escreveu:

205
INCOMPLETUDE

Em cada uma de minhas confessadamente poucas viagens a Princeton, tive


longas conversas com Gõdel. Afora sua amizade com Einstein e (sobretudo
após sua morte) com Morgenstern, Gõdel me pareceu bem solitário. Certa vez,
ele me surpreendeu com a pergunta: "Onde está Artin agora?" [Trata-se do
algebrista EmilArtin.] Quando respondi: "Em Princeton, falei com ele ontem",
Gõdel disse: "Pensei que tivesse ido embora há tempos. Não o vejo faz anos".14

Mais triste ainda é que Menger acha que o isolamento de Godel no


instituto contribuiu para sua falta de publicações:

Em nenhum momento de sua vida, Gõdel precisou de estímulo intelectual para


conceber e desenvolver idéias originais e inesperadas. Mas ele precisava de um
grupo afim sugerindo que relatasse as descobertas, lembrando e, se necessário,
pressionando-o delicadamente a anotá-las. Tudo isso ele tivera no início de sua
estada em Princeton em torno da publicação de seus dois livretos e do artigo
sobre Russell. E ele aparentemente poderia ter achado tal apoio mais tarde. Mas
parece que nunca procurou por ele, e ninguém se ofereceu como voluntário. O
fato é que não consegui observar nada desse tipo na década de 1950. Pelo con-
trário, logo ficou claro para mim que ele anotava muitas idéias brilhantes ape-
nas para a gaveta de sua escrivaninha. Do ponto de vista do mundo externo, seu
talento incomparável jazia lamentavelmente subaproveitado.

Foi nesse isolamento profundo que as tendências paranóicas de que


Godel sofrera mesmo na juventude ganharam força. Talvez esse obscu-
recimento de sua perspectiva mental tivesse sido inevitável com a
idade. Mesmo assim, o isolamento imposto, aliado à hostilidade dos
colegas, não deve ter sido benéfico a ele. Como costumávamos dizer
nos anos 60: só porque você é paranóico não quer dizer que eles não
estejam realmente atrás de você.
Depois da morte de Einstein, a identificação mais profunda de
Godel parece ter sido com Leibniz. Tão forte foi ela que Godel estendeu
sua própria fantasia paranóica da racionalidade ameaçada ao raciona-
lista do século xvn.

206
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Na estimativa de Gõdel, Leibniz foi um pensador ainda maior do


que a posteridade percebeu, levando suas idéias de uma characteristica
universalis - um alfabeto que seriá usado para representar de forma
lógica os pensamentos, tornando transparentes as suas relações lógicas
internas - a um estágio mais avançado do que sugerem os testemu-
nhos escritos. Gõdel confidenciara a Karl Menger sua suspeita de que
alguns dos «textos importantes [de Leibniz], além de não serem publi-
cados, tiveram seus manuscritos destruídos".
«Quem teria interesse em destruir os textos de Leibniz?", indagou
Menger. 15
«Naturalmente aqueles que não querem que os homens se tornem
mais inteligentes", foi a resposta do lógico.
Menger então sugeriu que o livre-pensador iconoclasta Voltaire
teria sido um alvo de censura mais provável, mas Gõdel discordou:
"Quem é que já se tornou mais inteligente lendo os textos de Vol-
taire?"
Menger mencionou a conversa para Oskar Morgenstern, que tam-
bém tinha uma história para contar sobre o tema de Leibniz e Gõdel.
Ele também havia sido alertado por Gõdel sobre a supressão premedi-
tada das contribuições de Leibniz e tentara dissuadir o lógico de sua
convicção. Finalmente, para convencer Morgenstern, Gõdel levou o
economista à Biblioteca Firestone da universidade e reuniu «uma
abundância de material realmente espantoso", nas palavras de Mor-
genstern. O material consistia em livros e artigos com referências exa-
tas a textos publicados de Leibniz, por um lado, e as próprias obras cita-
das, por outro lado. Nas fontes primárias faltavam passagens que
haviam sido citadas nas fontes secundárias, como se tivessem sido
excluídas.
«Esse material era realmente muito espantoso", um Morgenstern
pasmado (mas não convencido) admitiu.
Gõdel sempre se preocupou de não estar cumprindo o que o insti-
tuto esperava dele, sentindo-se por isso não apenas culpado, mas tam-
bém inseguro. Por incrível que pareça, o homem citado por Harvard

207
INCOMPLETUDE

como autor da descoberta matemática mais importante do século - o


pensador só superado por Einstein na reputação de fazer do instituto o
refúgio de divindades intelectuais em sua breve estada na Terra - às
vezes telefonava para Morgenstern em pânico, dizendo que temia ser
expulso. Ele também revelou suas suspeitas de que havia pessoas que-
rendo matá-lo, de que a esposa, Adele, havia doado todo o seu dinheiro
e de que seus médicos não entendiam nada do seu caso e conspiravam
contra ele. 16
Oskar Morgenstern permaneceu um amigo maravilhoso de Gõdel,
leal e dedicado, o único vínculo remanescente de Gõdel, além da esposa
Adele, com os velhos dias em Viena. Mesmo quando Morgenstern
estava morrendo de câncer metastatizado, fato tragicamente aparente
a todos os seus conhecidos, exceto Gõdel, suas anotações no diário
estão cheias de preocupação com o lógico.

Hoje[ ...] Kurt Gõdel telefonou de novo[ ... ] e falou comigo uns quinze minu-
tos. [... ] Após perguntar rapidamente como eu estava e afirmar que[ ... ] meu
câncer não apenas seria detido, mas recuaria [... ] passou a falar de seus próprios
problemas. Ele afirmou que os médicos não estão dizendo a verdade a ele, que
eles não querem lidar com ele, que ele está numa situação crítica (exatamente o
que me contou, com as mesmas palavras, algumas semanas atrás, alguns meses
atrás, dois anos atrás), e que eu devia ajudá-lo a se internar no Hospital Prince-
ton. [... ] [Ele] também me garantiu que[ ... ] talvez dois anos atrás, dois [... ]
homens apareceram alegando ser médicos. [... ] Eles eram trapaceiros [que]
estavam tentando interná-lo no hospital[ ...] e ele[ ... ] teve grande dificuldade
em desmascará-los. [... ] É difícil descrever O" que tal conversa [... ] significa para
mim: eis um dos homens mais brilhantes do nosso século, muito ligado a mim,
[... ] [que] está claramente com uma perturbação mental, sofrendo de certo tipo
de paranóia, contando com minha ajuda,[ ... ] e eu não consigo dar essa ajuda.
Mesmo quando eu podia me locomover e tentava ajudá-lo[ ... ] não conseguia
nada. [... ] [Agora,] ao se agarrar a mim - e ele não tem mais ninguém, isso está
claro - ele aumenta o fardo que estou carregando. 17

208
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Essa foi a anotação do diário de 1O de julho de 1977. Dezesseis dias


depois, Oskar Morgenstern estava morto. Horas após a morte do eco-
nomista, Gõdel telefonou para a casa dele, esperando falar com ele, para
botar para fora o conteúdo de seus delírios sombrios. A notícia de que
seu único aliado de confiança acabara de morrer o chocou tanto que
Gõdel simplesmente desligou o telefone sem dizer nenhuma palavra.
Adele também vinha sofrendo de problemas de saúde e teve de ser
hospitalizada durante esse período. Desse modo, Gõdel teve de se virar
sozinho nos meses de outono, e depois no inverno. Com Morgenstern
morto e Adele distante, o declínio do lógico foi flagrante.
A única pessoa que talvez tenha tentado fazer contato com Gõdel nes-
ses poucos últimos meses de sua vida foi o fiel seguidor, o lógico Hao
Wang. Wang ausentou-se do país de meados de setembro a meados de
novembro de 1977, mas pouco antes da partida telefonou para Gõdel avi-
sando que estava indo visitá-lo. Wang chegou trazendo um frango que sua
esposa preparara para Gõdel. Sempre hipocondríaco, excessivamente
cuidadoso com o que seu corpo ingeria e temendo ser envenenado, a falta
de alimentação estava degenerando em inanição. Quando Wang chegou
à casa em Linden Lane, Gõdel "olhou-o desconfiado" e recusou-se a abrir
a porta. Wang deixou o frango na soleira da porta e partiu. 1ª
Wang conseguiu enfim entrar na casa de Gõdel em 17 de dezembro
e parece ter se tranqüilizado com o comportamento e a aparência de
Gõdel (embora ele devesse estar debilitado): "Sua mente continuava
ágil e ele não parecia doente. Ele disse: 'Perdi a capacidade de tomar
decisões positivas. Só consigo tomar decisões negativas": 19
Adele voltou do hospital no final de dezembro e, em 29 de dezem-
bro (com ajuda de Hassler Whitney), persuadiu Gõdel a se internar no
Hospital Princeton. "Comentou-se que o peso de Gõdel caíra para
trinta quilos antes de sua morte e que, quase no final, sua paranóia
assumiu a forma de uma síndrome clássica: medo do envenenamento
alimentar que leva à auto-inanição." 2º
Kurt Gõdel morreu na posição fetal no sábado, 14 de janeiro de
1978, à uma da tarde. De acordo com o atestado de óbito, emitido pelo

209
INCOMPLETUDE

Tribunal do Condado de Mercer em Trenton, ele morreu de "subnutri-


ção e inanição" causadas por "distúrbios de personalidade".
Karl Menger contribuiu com uma última história:

Num dos últimos telefonemas antes de sua morte (em julho de 1977), Mor-
genstern descreveu um fato que me despertou lembranças de acontecimentos
que, tempos atrás, haviam de algum modo me afastado de Gõdel* - mas
despertou-as por seu contraste com aquelas lembranças, de modo que a histó-
ria de Morgenstern me comoveu muito. De novo, estavam em questão os direi-
tos de Gõdel, em que sua meticulosidade não conhecia limites. O que aconte-
ceu foi que Gõdel, aparentemente muito doente, procurou o Hospital
Princeton e foi admitido, mas logo depois insistiu que não tinha direito a um
dos benefícios oferecidos, já que sua apólice de seguro não o previa. Ele por-
tanto se recusou a aceitar o benefício. Os detalhes do caso me escapam agora,
embora eu esteja claramente convencido de que a lógica de Gõdel, ao interpre-
tar o contrato de seguro, foi superior à do hospital. Mas seja o que for, em sua
precisão jurídica, Gõdel inabalavelmente defendeu sua posição.

Gõdel foi sepultado em 19 de janeiro no Cemitério de Princeton, na


Witherspoon Street. O funeral foi simples e íntimo. Mas a 3 de março
celebrou-se um serviço religioso em memória de Gõdel no instituto,
presidido por André Weil. Os oradores foram Hao Wang, Hassler
Whitney e - em substituição de última hora do proeminente lógico
Robert Solovay, que viera de avião da Califórnia, mas cujo carro alu-
gado mergulhou numa vala cheia de neve - Simon Kochen.
Kochen recordou, em seu tributo a Gõdel, que, na prova oral de seu
doutorado, o examinador, Stephen Kleene, pediu que mencionasse
cinco dos teoremas de Gõdel. O fato era que "cada um dos teoremas
[foi] o início de todo um ramo da lógica matemática moderna". Ateo-

* Menger se refere aqui à indignação de Gõdel porque seus direitos como docente uni-
versitário haviam sido ameaçados pelo Terceiro Reich.

210
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

ria da prova, a teoria dos modelos, a teoria da recursão, a teoria dos con-
juntos, a lógica intuicionista, todas haviam sido transformadas pelo
trabalho de Gõdel ou, em certos casos, se originaram desse trabalho.
Kochen então comparou o trabalho de Gõdel com o de Einstein, em
termos da forma como ambos resultaram da reflexão profunda sobre
os fundamentos. "Aquela foi uma comparação óbvia de se fazer",
Kochen me contou.
O mais surpreendente é que ele também comparou o trabalho de
Gõdel com o de Kafka, sem saber que o próprio Gõdel admirava o escri-
tor.* Ambos os homens combinaram sua inclinação fortemente "lega-
lista", nas palavras de Kochen, com uma capacidade sobrenatural,
quase surreal, de criar mundos independentes, mundos que podem
parecer, à primeira vista, contrários à lógica, mas que se compõem do
próprio material da lógica. "Existe um quê de Alice no País das Mara-
vilhas no trabalho de ambos os homens", disse-me Kochen.
Kochen contou-me que, se tivesse tido tempo para preparar suas
observações, é provável que jamais tivesse feito a analogia com Kafka.
Só porque teve de produzir algo rapidamente é que lançou mão
daquela vaga impressão que o trabalho de Gõdel sempre lhe dera, mas
na qual nunca se aprofundara. Mas todos com quem falei que estive-
. ram presentes ao serviço 'em memória de Gõdel se lembram da obser-
vação de Kochen. A comparação com Kafka, outra mente sui generis da
Europa Central, conseguiu captar algo de surpreendente e verdadeiro.

* Godel escreveu para sua mãe, em 4 e 19 de julho de 1962, sobre sua "descoberta
recente" do "poeta moderno': Franz Kafka. Godel também apreciava pintura abstrata
e surrealista. Em outros aspectos, seus gostos culturais são notáveis pelo infantilismo.
Além de preferir contos de fadas a Goethe e Shakespeare, escrevendo à mãe que
somente naquelas histórias o mundo está representado como deveria, também era fã
d9s filmes de Disney e viu Branca de Neve pelo menos três vezes.

211
INCOMPLETUDE

INCOMPLETUDE (TUDO DE NOVO)

Einstein e Gõdel compartilhavam, entre muitas outras coisas, uma


preocupação com a natureza do tempo. Apesar das distorções popula-
res, até certo ponto encorajadas pelas vagas alusões da palavra "relati-
vidade", Einstein estava, como já vimos, muito longe de interpretar sua
famosa teoria em termos subjetivos. Pelo contrário, em sua interpreta-
ção, a teoria da relatividade oferece uma descrição realista do tempo

Einstein e Gõdel no caminho suprimido que ligava Fuld


Hall a Olden Farm. LEONARD MCCOMBE/ TIME LIFE PICTURES/ GETTY
IMAGES.

212
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

radicalmente distinta de nossa experiência subjetiva do tempo. Na


hipótese einsteiniana, o gigantesco abismo entre o "lá fora" e o "aqui
dentro" aumenta ainda mais, pois falta ao tempo objetivo - o tempo
descrito nas equações da teoria da relatividade - exatamente a carac-
terística essencial à nossa experiência subjetiva do tempo: o fluxo ine-
xorável, os nossos ontens iluminando o caminho para a poeira da
morte.* Existe algo que conheçamos mais intimamente do que a fuga-
cidade do tempo, a transitoriedade de cada momento?
Contudo, por incrível que pareça, a coisa não é bem assim ... se levar-
mos a física de Einstein a sério. A natureza da realidade que emerge da
física de Einstein é bem mais surpreendente que a divisa simplista, tão
do agrado dos universitários: tudo é relativo a pontos de vista subjeti-
vos. Na física de Einstein, não há nenhuma passagem do tempo,
nenhum fluxo unidirecional afastando-se do passado determinado
rumo ao futuro incerto. O componente temporal do espaço-tempo é
tão estático quanto os componentes espaciais; o tempo físico é tão
parado quanto o espaço físico. Está tudo exposto, todo o desenrolar dos
eventos, no complexo de espaço-tempo quadridimensional não flexio-
nado. As distinções que fazemos entre passado, presente e futuro -
distinções tão emocionalmente carregadas e sem as quais nem sequer
podemos começar a descrever nossos mundos interiores - só têm
relevância dentro desses mundos interiores. O tempo objetivo, como
caracterizado na relatividade, não permite a distinção entre passado,

* Um artigo no New York Times, publicado, de modo bem apropriado, no dia do Ano-
Novo, delineou admiravelmente o fosso entre o tempo subjetivo e objetivo: "Cem anos
atrás, faltavam ainda dezoito meses para a descoberta da relatividade restrita, e a ciên-
cia adotava a descrição newtoniana do tempo. Agora, porém, a noção de tempo da física
moderna opõe-se claramente àquela que a maioria de nós internalizou. Einstein rece-
beu a incapacidade da ciência de confirmar a experiência familiar do tempo com uma
'resignação dolorosa mas inevitável'. Os progressos desde a sua era apenas ampliaram a
disparidade entre a experiência comum e o conhecimento científico.A maioria dos físi-
cos lida com essa disparidade compartimentalizando: existe o tempo entendido cienti-
ficamente, e existe o tempo experimentado intuitivamente. Durante décadas, procurei
trazer minha experiência para mais perto de minha compreensão". 21

213
INCOMPLETUDE

presente e futuro. Ou, como Einstein contou a Rudolf Carnap, "a expe-
riência do agora significa algo especial para o homem, algo essencial-
mente diferente do passado e futuro, mas essa diferença importante
não ocorre, nem pode ocorrer, dentro da física".
Entendendo a teoria da relatividade como se implicasse a inexistência
de um agora absoluto que flui numa onda implacável de temporalidade,
Einstein, vivendo "sob a espada de Dâmocles': parece confortar-se em sua
visão de uma objetividade física não flexionada. Em carta de condolên-
cias à viúva de Michele Besso, seu velho amigo e colega físico, Einstein
escreveu: "Ao deixar este mundo estranho, ele mais uma vez me precedeu
por pouco. Isso não significa nada. Para nós, físicos convictos, a distinção
entre passado, presente e futuro é apenas uma ilusão, embora persistente':
É uma visão de objetividade impessoal suficiente para tornar
menos amargo, pelo menos para Einstein, um dos pensamentos mais
desagradáveis: o pensamento de nossa própria morte pessoal. A impas-
sibilidade de Einstein nos lembra, em sua transcendência, a morte de
Sócrates, que tanto inspirou Platão e, através de Platão, toda a civiliza-
ção ocidental. Trata-se de realismo científico levado a alturas heróicas.
O físico que discutiu o sentido do tempo em suas caminhadas diárias
com o lógico estava morrendo, e sabia disso.
Gõdel, não menos que Einstein, acreditava que o tempo é bem dife-
rente do que parece para nós. Sua personalidade pode não ter sido do tipo
que permitisse usar sua visão do tempo para superar os temores- reais
e imaginários- que atormentavam sua existência mortal, mas talvez
essa visão tenha oferecido algum grau de consolo. Seu próprio trabalho
em teoria da relatividade forneceu-lhe um modelo do tempo de que
parece ter gostado profundamente, por se harmonizar com a própria
essência do homem, à semelhança de sua adoção do platonismo.
Gõdel, é claro, tinha um antigo interesse em física. Ele ingressara na
Universidade de Viena pretendendo estudar física, o que fez nos primei-
ros dois ou três anos de estudante, antes de mudar para a matemática.
Seu relacionamento com Einstein reavivou o antigo interesse em física,
e a certa altura Gõdel começou a refletir sobre a teoria da relatividade.

214
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

Ele propôs um modelo totalmente original que satisfazia as equações de


campo de Einstein da relatividade geral, um modelo tão no estilo de
Alice no País das Maravilhas como todas as suas outras realizações.
No modelo de Gõdel, o tempo é cíclico. Além de todos os eventos
estarem dispostos indiferentemente às distinções flexionadas entre
passado, presente e futuro, ocorrem também repetições infinitas dos
padrões, e o paralelismo entre espaço e tempo, implícito na teoria da
relatividade, é estendido ainda mais. Escreveu Gõdel:

Constata-se que as condições temporais nesses universos mostram [... ]


padrões surpreendentes, fortalecendo o ponto de vista idealista (segundo o
qual toda mudança é realmente uma ilusão não objetiva). Quer dizer, fazendo-
se uma viagem de ida e volta numa nave espacial em uma curva suficiente-
mente ampla, é possível nesses mundos viajar para qualquer região do passado,
presente e futuro, e de volta, exatamente como é possível em outros mundos
viajar para partes distantes do espaço.22

Gõdel publicou sua solução para as equações de Einstein no volume


de Festschrift em homenagem ao septuagésimo aniversário de Eins-
tein. * As observações de Einstein ao artigo, também publicadas no
Festschrift, reconhecem que ele ficou "perturbado" com a possibilidade
de linhas temporais em anel, que permitissem retornar ao passado, que
Gõdel divertidamente expôs. A resposta de Einstein reconheceu a vali-
dade das deduções de Gõdel, mas também deu a entender que a solu-
ção de Gõdel poderia "ser excluída por motivos físicos".23

* Schilpp havia abordado Gõdel pela primeira vez em 1946 para que contribuísse com
um ensaio naquele Festschrift em homenagem a Einstein. Gõdel imediatamente con-
cordou, mas a entrega do artigo definitivo sofreria muitos adiamentos. Schilpp esperava
ter seu volume pronto para o septuagésimo aniversário de Einstein (14 de março de
1949). Gõdel só terminou seu artigo um mês antes e mesmo então não o entregou.
Schilpp fez Gõdel concordar em presentear Einstein com o artigo na festa de aniversá-
rio de gala oferecida a ele no Princeton Inn em 19 de março. Pouco depois, Schilpp rece-
beu ·uma cópia do artigo.

215
INCOMPLETUDE

Não está claro quanto de seu trabalho cosmológico Gõdel compar-


tilhara com seu parceiro diário de caminhadas antes de entregar os
resultados em seu septuagésimo aniversário, mas a reação de Einstein
ao artigo sugere que Gõdel compartilhou pouca coisa. Os anéis de
tempo fechados de Gõdel, que permitiam, ao menos teoricamente, que
se retornasse ao passado, foram aceitos por Einstein como formal-
mente possíveis, no sentido de que Gõdel mostrara que esse modelo do
tempo soluciona as equações de campo de Einstein. Mas, como físico e
um homem de bom senso, Einstein preferia que suas equações de
campo excluíssem uma possibilidade tão no estilo de Alice no País das
Maravilhas como os anéis de tempo.
Mas o modelo do tempo cíclico parece ter agradado a Gõdel. Será
que Gõdel gostou da idéia de poder retroceder e viver sua vida nova-
mente? Será, como o amigo Einstein, que extraiu algum tipo de consolo
de sua contemplação da natureza real do tempo, diferente da finalidade
unidirecional de nossa experiência dele?
Quem sabe? A opacidade do lógico prevalece. Entretanto, existe
um fato interessante que talvez permita uma olhadela por trás da
opacidade. Gõdel levou sua solução extraordinária das equações de
Einstein tão a sério que desceu, provavelmente pela única vez na vida,
das altas esferas da Razão Pura para tentar adquirir dados empíricos
(!) reais em apoio ao seu modelo de anel fechado do tempo. John
Archibald Wheeler e Kip Thorrte, dois dos físicos mais proeminentes
naquela época, que haviam colaborado (junto com Charles Misner)
num maravilhoso livro sobre gravitação, foram rigorosamente ques-
tionados por Gõdel, no início da década de 1970, a respeito de terem
achado algum indício a favor, ou contra, um sentido de rotação pre-
ferencial das galáxias. Gõdel deixou claro o desapontamento, relatou
Wheeler, quando eles confessaram que simplesmente não examina-
ram a questão:

Constatamos que ele próprio, como um passo preliminar para obter alguns
indícios, havia apanhado o grande atlas das galáxias de Hubble. Gõdel, que

216
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

você imagina como o matemático dos matemáticos, pegara uma régua, obti-
vera o ângulo, calculara uma estatística daqueles números e concluíra que,
dentro da margem de erro estatística, não existia um sentido de rotação prefe-
rencial. [... ]
Cerca de um ano após nossa visita a Gõdel, eu estava no fim do corredor
aqui, no escritório de Jim Peebles [um astrofísico proeminente de Princeton]
conversando sobre cosmologia, quando um estudante entrou e atirou na mesa
um calhamaço. "Aqui está, professor Peebles!" Então eu disse para ele: "O que
é isto?': Ele respondeu: "É minha tese". "Sobre o quê?" "É sobre a possível exis-
tência de um sentido de rotação preferencial nas galáxias:' "Que maravilha",
disse eu, "Gõdel ficará muito contente:' "Quem é Gõdel?" "Veja bem': respondi,
"se você o chamar de o maior lógico desde Aristóteles, ainda será pouco." "Você
está brincando?" "Não, não estou." "Em que país ele vive?" "Bem aqui em Prin-
ceton", respondi. Então peguei o telefone e liguei para Gõdel, encontrei-o em
casa e contei sobre aquilo. Logo suas perguntas chegaram num ponto em que
eu não conseguia responder. Passei o fone para o estudante, e logo elas chega-
ram ao ponto em que ele não conseguiu responder. Ele passou o fone para Pee-
bles, e quando Peebles enfim desligou, disse: "Puxa, deveríamos ter conversado
com Gõdel antes de realizar o trabalho". 24

Quando Gõdel apresentou suas idéias sobre relatividade no Insti-


tuto, o que ocorreu vários anos antes das conversas com Wheeler,
Thorne e Peebles, os físicos presentes se admiraram com o acerto com
que o lógico matemático captara as sutilezas da teoria física. Mas claro
que este tivera o privilégio de discutir as complexidades da teoria com
o próprio teórico - ainda que o teórico confessasse que, no final, só ia
ao escritório para ter o privilégio de voltar andando para casa diaria-
mente com o lógico, as duas grandes mentes do século xx capazes de
compartilhar, ao menos por alguns momentos, seu exílio intelectual.
É tentador associar a atração de Gõdel por esses anéis de tempo
fechados com uma observação passageira de Hao Wang, que indica
coino Gõdel considerara sua vida incompleta:

217
INCOMPLETUDE

Em filosofia, Gõdel nunca chegou ao que procurava: uma visão de mundo


nova, seus componentes básicos e as regras de sua composição. Vários filóso-
fos, em particular Platão e Descartes, alegam ter tido, em certos momentos da
vida, uma visão intuitiva desse tipo, totalmente diferente da visão corriqueira
domundo. 25

E, de novo, Wang fez referência a uma experiência transcendental


que Gõdel aguardara a vida inteira:

Ele também procurou (sem conseguir obter) uma epifania (uma revelação ou
iluminação súbita) que lhe permitisse ver o mundo a uma luz diferente. (Em
suas con~ersas comigo, ele disse várias vezes que Platão, Descartes e Husserl
tiveram tal experiência.)26

A filosofia inspirara a formidável carreira matemática de Kurt


Gõdel desde o início. Ela constituiu seu foco desde o primeiro curso de
história da filosofia na Universidade de Viena, quando Gõdel, como
tantos apaixonados pela abstração, descobriu em Platão uma visão da
realidade que correspondia ao seu amor intelectual. Dado que a filoso-
fia havia sido sua finalidade, foi também à luz da filosofia que ele julgou
sua vida, finalmente, incompleta. Já não acreditando na possibilidade
de fazer os outros mudarem de idéia, nem mesmo mediante uma prova
a priori, aguardou a epifania que faria com que ele mudasse. Com a sen-
sação de sua própria incompletude- e talvez também com o terror da
morte preservado de uma criança que acredita que seu coração de oito
anos foi fatalmente comprometido-, ele foi atraído para seu modelo
de uma vida eterna de tempo cíclico, um modelo que solapa a realidade
da morte pessoal.
Se o tempo volta sobre si mesmo, como Gõdel procurou compro-
var empiricamente nos últimos atormentados anos de vida, então um
Gõdel jovem voltará a sentar-se numa sala de aula da Universidade de
Viena, transfigurado pela idéia das verdades infinitas e eternas que
jazem suspensas, além de quaisquer imperfeições humanas, das confu-

218
CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL

sões, turvações e distorções que o fazem indagar como as pessoas che-


gam a se entender umas às outras. E ele pensará em usar a linguagem da
matemática de uma maneira que ninguém pensou em usar antes, de
modo que fale sobre si própria - com precisão matemática, para que
todos entendam. Ele sonhará, silenciosa e audazmente, em provar um
teorema matemático diferente de tudo que já se viu, um teorema mate-
mático que iluminará a natureza da própria matemática.
E depois porá suas mãos à obra.

219
NOTAS

INTRODUÇÃO [pp. 11-43]


1. Citação sem nomear o autor em "Bad days on Mount Olympus: the Big shoot-out
in Princeton': Atlantic Monthly, fevereiro de 1974.
2. Helen Dukas, secretária de Einstein, em carta a C. Seelig, conforme citado em Abra-
ham Pais, "Subtle is the Lord ..." : The science and the life·of Albert Einstein. Oxford:
Oxford University Press, 1982, p. 473.
3. Harry Woolf ( org.), Some strangeness ofproportion: A centennial sy mposium to cele-
bra te the achievements of Albert Einstein. Reading, MA.: Addison-Wesley, 1980, p.
485.
4. J. Van Heijenoort, The encyclopedia ofphilosophy, vol. 3, Paul Edwards ( org.). Nova
York: Macmillan Publishing Co., Inc. e Free Pre_ss, 1967, pp. 348-9.
5. David Foster Wallace, ''Approaching infinity': Boston Globe, 12 de dezembro de 2003.
6. Pau.IA. Schilpp,AlbertEinstein, philosopher-scientist. Nova York: Tudor, 1949, p. 684.
7. Woolf, op. cit.
a. Armand Borel, "The School of Mathematics at the Institute for Advanced Study':
em A century of mathematics in America, Peter Duren (org.). Providence, RI: Ame-
rican Mathematical Society, 1989, p. 130.
9. Citado em Ed Regis, Who got Einstein's office? Eccentricity and genius at the Institute
for Advanced Study. Cambridge, MA: Perseus, 1987, p. 58. Também confirmei a his-
tória com John Bahcall.
1o. Conversa particular, maio de 2002.
11 . Relatado para mim por Paul Benacerraf, que soube da conversa por Chomsky.

221
INCOMPLETUDE

12. Em carta a Bruno Kreisky (secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros da


Áustria) datada de 25 de outubro de 1965.
13. Hao Wang, Rejlections on Kurt Godel. Cambridge, MA: MIT Press, 1987, p. 2.
14. Michael Frayn, Copenhague. Nova York: Anchor Books, 1998, pp. 71-2.
15. William Barrett, Irrational man: A study in existentialist philosophy. Nova York:
Anchor Books, 1962; 1990, p. 39.
16. Schilpp, op. cit., p. 5.

CAPÍTULO 1. UM PLATÔNICO ENTRE POSITIVISTAS [pp. 45-101]


1. Reimpresso em Godel remembered: Salzburg 10-12 July 1983, P. Weingartner e L.
Schmetterer (orgs.). Nápoles: Bibiopolis, 1987.
2. John Dawson,Logical dilemmas: The life and work ofKurtGodel. Wellesley, MA: A K
Peters LTD, 1997, p. 4.
3. Dawson, 1997, op. cit., p. 15.
4. Wang, 1987, op. cit., p.41.
5. Ver também a excelente biografia de Gõdel, já citada, escrita por Dawson, 1997.
6. Por exemplo, o artigo para o Festschrift de Rudolf Carnap, que ele havia prometido
a P. A. Schilpp em 1953. Gõdel produziu nada menos que seis versões da "breve
nota", que acabou se tornando um extenso manuscrito. Ele fez sucessivas revisões
até 1959, quando enfim escreveu para Schilpp dando o assunto por encerrado. Duas
das seis versões foram publicadas postumamente sob o título "A matemática é a sin-
taxe da linguagem?': no volume III das Collected works de Gõdel.
7. Solomon Feferman expressou esse aspecto duplo da personalidade de Gõdel nestes
termos: "O que acho impressionante aqui é o contraste, por um lado, entre a pro-
fundidade das convicções de Gõdel subjacentes ao seu trabalho, combinada com a
certeza no insight que leva ao núcleo de cada problema, e, por outro lado, a rédea
curta que ele impôs à expressão de seus pensamentos verdadeiros". Ver Solomon
Feferman, "Kurt Gõdel: conviction and caution", em Godel's theorem in focus, S. G.
Shanker (org.). Londres: Croom Helm, 1988, p. 111.
8. Ver Rebecca Goldstein, "Writers on writing: on the wings of enchantment", The New
York Times, 19 de dezembro de 2002.
9. Symposion, 21 ld-21 le. Tradução de William S. Cobb, State UniversityofNewYork,
1993.
10. Wang, 1987, op. cit., p. 22.
11 . Jaakko Hintikka, On Godel. Belmont, cA: Wadsworth Thomson Learning, 2000, p. 1.
12. Citado em Alan S. Janik e Hans Veigl, Wittgenstein in Vienna: A biographical excur-
sion through the city and its history. Nova York: Springer, 1998, p. 88.
e
13. Ver em David Edmonds John Edinow, Wittgenstein 's poker: Th e story of a ten-
minute argument between two great philosophers. Nova York: HarperCollins, 2001.
Uma discussão viva da exclusão de Popper do Círculo de Viena e do antagonismo a
Wittgenstein subjacente.

222
NOTAS

14. Edmonds e Edinow, op. cit., p. 163.


15. Ele próprio reconheceu, em carta ao matemático Menger, que havia contribuído
(supostamente por sua aversão a abordá-lo) para o mal-entendido: "Em conse-
qüência do cansaço freqüente, quase nunca respondo às cartas antes de uma
semana. Mas nesse caso houve uma razão especial, a saber, que sempre me inibo em
escrever sobre minha relação com o Círculo de Viena porque nunca fui um positi-
vista lógico conforme o termo costuma ser entendido e explicado no [manifesto de]
1929. Por outro lado, algumas publicações (provavelmente em parte por minha
própria culpa) dão a impressão de que fui'~ Citado em Wang 1987, op. cit., p. 49.
16. Rudolf Carnap, "Intellectual autobiography", em The philosophy of Rudolf Carnap ,
P.A. Schilpp (org.). La Salle, rL: Open Court, 1963.
17. Para uma discussão fascinante da vida e da obra de Boltzmann, ver David Lindley,
Boltzmann's atam: The great debate that launched a revolution in physics. Nova York:
Free Press, 2001.
18. Herbert Feigl, "The Wiener Kreis in America", em The intellectual migration: Europe
andAmerica, 1930-1960, Donald Fleming e Bernard Bailyn (orgs.). Cambridge, MA:
Harvard University Press, 1969, p. 635.
19. Karl Menger, Reminiscences ofthe Vienna Circle and the Mathematical Colloquia, Louise
Golland, Brian McGuinness e Abe Sklar (orgs.). Dordrecht: Kluwer, 1994, p. 63.
20. Menger, op. cit., p. 64.
21 . Menger, op. cit., p. 65.
22. Menger, op. cit., pp. 61-2.
23. Feigl, op. cit., p. 630.
24. Feigl, op. cit., p. 652.
25. Menger, op. cit., p. 55.
26. Ray Monk, Ludwig Wittgenstein: The duty ofgenius. Nova York: Penguin, 1990, p. 72.
27. Bertrand Russell para Ottoline Morrel, 2 7 de maio de 1913.
28. Allan Janik e Stephan Toulmin, Wittgenstein's Vienna. Nova York: Simon and Schus-
ter, 1973,p.27.
29. Esse é um tema dominante em Janik e Toulmin, op. cit. "Aqueles de nós que compa-
recíamos às suas aulas [na Universidade de Cambridge] ainda nos achávamos
vendo suas idéias, seus métodos de argumentar e seus próprios temas de discussão
como algo totalmente original e próprio dele. [... ] Se havia um abismo intelectual
entre ele e nós, não era porque seus métodos filosóficos, estilo de exposição e tema
fossem (como supúnhamos) singulares e ímpares. Era um sinal, isso sim, de um
choque de culturas: o choque entre um pensador vienense cujos problemas intelec-
tuais e atitudes pessoais haviam se formado no ambiente neokantiano do pré-1914,
em que a lógica e a ética estavam essencialmente ligadas entre si e com a crítica à lin-
guagem (Sprachkritik), e um público de estudantes cujas questões filosóficas
haviam sido moldadas pelo empirismo[ ... ] neo-humiano de Moore, Russell e seus
colegas" (pp. 21-2).
30. Monk, op. cit. , p. 20.

223
INCOMPLETUDE

31. "Os pensamentos suicidas recorrentes de Wittgenstein entre 1903 e 1912, e o fato de
que esses pensamentos só diminuíram depois do reconhecimento de sua geniali-
dade por Russell, indicam que ele aceitou esse imperativo (de Weininger) em todo
o seu rigor assustador." Monk, op. cit., p. 25.
32. Jaakko Hintikka, op. cit., p. 3. Hintikka fala aqui de modo mais amplo, não só da
lógica; ele está falando de toda a matemática.
33. Remarks on the foundations of mathematics. Cambridge, MA: MIT Press, 1967, p. 11 O.
34. Ele escreve, por exemplo: "A maldição da invasão da matemática pela lógica mate-
mática é que agora qualquer proposição pode ser representada em simbolismo
matemático, e isso faz com que nos sintamos obrigados a entendê-la. Embora esse
método de escrita não passe de uma tradução obscura de prosa banal". Wittgenstein,
op. cit.,p.155.
35. Monk, op. cit., p. 243.
36. Eckehart Kõhler, "Gõdel and the Vienna Circle: platonism versus formalism", em
History oflogic, methodology, and philosophy ofscience, seção 13. Vienna Institute for
Advanced Studies. Mais tarde citado em S: G. Shanker (org.), Godel's theorem in
focus. Londres: Croom Helm, 1988.
37. Citado em Janik e Veigl, op. cit., p. 63.
38. Monk, op. cit., p. 284.
39. Feigl, op. cit., p. 638.
40. Menger, op. cit., p. 66.
41.Ibid.
42. Carta a Ludwigvon Ficker, citada em Monk, op. cit., p. 178. A carta está sem data, mas
Monk informa que quase certamente foi escrita em 19 de novembro de 1919.
43. Menger, op. cit., p. 201.
44. Feigl, op. cit., p. 640.
45. A logical journey from Godel to philosophy. Cambridge, MA: MIT Press, 1996.
46. Bertrand Russell para Ottoline Morrell, 23 de abril de 1912.
47. Fania Pascal, "Wittgenstein: a personal memoir ", em Recollections ofWittgenstein, R.
Rhees (org.). Oxford: Oxford Press, 1984, pp. 28-9.
48. Menger, op. cit., p. 230.
49. A passagem está em Observações sobre os fundamentos da matemática, apêndice 1,
p. 19: "Você diz: [...],portanto Pé verdadeiro e improvável. Isso presumivelmente
significa: Portanto P. Tudo bem para mim - mas com que finalidade você escreve
essa 'afirmação'? (É como se alguém tivesse extraído de certos princípios sobre for -
mas naturais e estilo arquitetônico a idéia de que no monte Everest, onde ninguém
consegue viver, caberia um chalé no estilo barroco.) Como tornar a verdade da afir-
mação plausível para mim, se ela não tem nenhuma utilidade a não ser esses peque-
nos truques lógicos?".
50. Menger, op. cit.,p. 231.
51. Georg Kreisl, "Wittgenstein's 'Remarks on the foundations of mathematics"'. British
Journal for the Philosophy of Science, rv, 1958, pp. 143-4.

224
NOTAS

CAPÍTULO 2. HILBERT E OS FORMALISTAS [pp. 102-23]


1. David Hilbert, "Mathematische Probleme: Vortrag, gehalten auf dem internatio-
nale Mathematischer-Kongress zu Paris 1900". Nachrichten von der Koniglichen
Gesellschaft der Wissenschaften zu Gottingen, pp. 253-97. Tradução inglesa em Felix
Brower (org.), "Mathematical developments arising from the Hilbert problems",
Proceedings of Symposia in Pure Mathematics xxvm, partes 1 e 2. Providence, RI:
American Mathematical Society, 1976.
2. Gottlob Frege, Begriffsschr~ft, eine der arithmetischen nachgebildete Formelsprache
des reinen Denkens. Halle: Nebert, 1879. Tradução inglesa em Jean van Heijenoort
(org.), From Frege to Godel: a source book in mathematical logic, 1879-1931. Cam-
bridge, MA: Harvard University Press, 1967, p. 279.
3. Jean van Heijenoort ( org.), op. cit., p. 242.
4. Citado em John de Pillis e Nick Rose, Mathematical maxims and minims. Raleigh,
NC, 1988.
5. David Hilbert, "On the infinite", em Philosophy of mathematics, Paul Benacerraf e
Hilary Putnam ( orgs.). Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1964, p. 141 . Tradução
inglesa de uma palestra proferida em 4 de junho de 1925 num congresso da Socie-
dade Matemática da Vestfália, em Münster, em homenagem a Karl Weierstrass. Tra-
duzido por Erna Putnam e Geral d J. Massey deMathematischeAnnalen (Berlim), nº
95, 1925,pp.161-90.

CAPÍTULO 3. A PROVA DA INCOMPLETUDE [pp. 124-73]


1. Monk, op. cit., p. 295.
2. Hao Wang, From mathematics to philosophy. Nova York: Humanities Press, 1974, pp.
8-9.
3. O relato de Reichenbach foi publicado em Die Naturwissenschaften , vol. 18 ( 1930),
pp. 1093-4.
4. John Dawson, "The reception of Gõdel's incompleteness theorems", em Gode l's
theorem in focus, S. G. Shanker (org.). Londres: Croom Helm, 1988, p. 91, nota de
rodapé 2.
5. Ver Dawson ( 1988) para uma discussão minuciosa da reação, ou falta inicial dela, ao
primeiro teorema da incompletude de Gõdel.
6. Kuhn, op. cit., p. 64.
7. Ver Hintikka, op. cit., p 33.
a. Hilbert 1964, op. cit., p. 151.
9. "Über eine bisher noch nicht benutzte Erweiterung des finiten Standpunktes", Dia-
lectica 12 (1958),pp. 280-7.
1o. Carta a Constance Rei d Bernays, 3 de agosto de 1966; citado em Dawson 1997, p. 72.
11. Wittgenstein 1967, op. cit., p. 158.
12. Philosophical remarks, p. 296.
13. Remarks on the foundations of mathematics v, p. 16.

225
INCOMPLETUDE

14. Tractatus, 6522.


15. Stephen C. Kleene, "Gõdel's impression on students oflogic in the 1930s", em Godel
remembered, Paul Weingartner e Leopold Schmetterer (orgs.). Naples: Bibliopolis,
1987,p. 52.
16. "Wittgenstein's lectures on the foundations of mathematics: Cambridge 1939", em
Notes of R. G. Bosanquet, Norman Malcolm, Rush Rhees, Yorick Smythies, Cora Dia-
mond (org.) Ithaca, NY: Cornell University Press, 1976, palestra xx1, pp. 206-7.
17. J. R. Lucas, "Minds, machines, and Godel':Philosophy, xxxv1 (1961), p. 112.
18. Roger Penrose, Shadows of the mind: A search for the missing science of consciousness.
Oxford: Oxford University Press, 1994, pp. 64-5.
19. Wang, 1974, op. cit., p. 324.
20. Shervert H. Frazier e Arthur C. Carr, Introduction to psychopathology. Jason Aron-
son, 1983, p. 106.
21 . James W. Anderson, professor adjunto de psicologia clínica, Northwestern Univer-
sity, comunicação pessoal, 7 de outubro de 2003.

CAPÍTULO 4. A INCOMPLETUDE DE GÕDEL [pp. 174-219]


1. Conversa particular com Morton White, maio de 2002.
2. Wang1987,op.cit.,p.9.
3. Wang 1987, op. cit., p. 29.
4. O original saiu noAmerican MathematicalMonthly 54 (1947), pp. 515-25. O origi-
nal havia sido publicado antes de Paul Cohen provar que a hipótese do continuum
não podia ser deduzida dos axiomas da teoria dos conjuntos.
5. Menger, op. cit., p. 205.
6. Stanislaw M. Ulam, Adventures of a mathematician. Nova York: Charles Scribner's
Sons, 1976, p. 80. Como observa Dawson (Dawson 197, p. 302, nota 462), "Vale a
pena observar que o próprio Gõdel parece nunca ter reclamado de sua posição, seja
em público ou em observações privadas ou correspondência".
7. Wang 1988, op. cit., p. 4 7, nota de rodapé 7.
8. Menger, op. cit., p. 123.
9. Dawson 1997, op. cit., p. 90.
10. Menger, op. cit., p. 124.
11 . Dawson, 1977,op. cit.,p.148.
12. Dawson, 1997, op. cit., p. 244.
13. Morton Gabriel White,A philosopher's story. University Park, PA: Pennsylvania State
University Press, 1999, p. 303.
14. Menger, op. cit., p. 226.
15. Menger, op. cit., p. 19.
16. Dawson, 1997, op. cit., pp. 249-50.
17. Documentos de Morgenstern, Perkins Memorial Library, Duke University, pasta
"Gõdel, Kurt, 1974-1977".

226
NOTAS

18. Wang 1987, op. cit., p. 133.


19. Ibid.
20. Ibid.
21. "The time we thought we knew", Brian Greene, editorial opinativo, The New York
Times, 1º de janeiro de 2004.
22. Kurt Gõdel, ''A remark about the relationship between relativity theory and idealis-
tic philosophy", em Albert Einstein philosopher scientist, org. Paul Arthur Schilpp.
Nova York: MJF Books,1949, p. 560.
23. Einstein, op. cit., pp. 687-8.
24. Jeremy Bernstein, Quantum profiles. Princeton, JN: Princeton University Press,
1991,pp.140-l.
25. Wang 1987, op. cit., p. 46.
26. Wang 1987, op. cit.,_p. 196.

227
SUGESTÕES DE LEITURA

Como muitos antes e depois de mim, minha primeira exposição substan-


tiva aos teoremas da incompletude de Godel não se deu através do estudo
do próprio artigo famoso de 1931, mas da leitura, quando estudante de
graduação, do célebre Godel's proof, de Ernest Nagel e James R. Newman
(Nova York: NewYork University Press, 1968). Trata-se de uma exposição
popular que consegue detalhar até certo ponto a substância da prova.
Meu mundo se abalou. Ao relê-lo após todos esses anos, voltei a me
impressionar. É um livrinho maravilhoso, de certa forma um clássico.
O livro fininho (setenta páginas) de Jaakko Hintikka, On Godel (Bel-
mont, cA: Wadsworth Thomson Learning, 2000), também é uma apre-
sentação clara e concisa da prova de Godel para, o não-especialista. Como
o mais extenso Godel'sproof, o livro de Hintikka não requer conhecimen-
tos prévios de lógica. O autor também tem bom senso de humor.
No tocante à vida do lógico, Logical dilemmas: The life and work of
Kurt Godel (Wellesley, MA: A K Peters, 1997), de John Dawson, é defini-
tivo. Por ser um lógico e também o arquivista de Godel, cuja esposa
aprendeu a traduzir a taquigrafia de Godel, Dawson esteve numa posi-

228
SUGESTÕES DE LEITURA

ção incomparável para apresentar a vida de Gõdel. Fui informada pelo


matemático Armand Borel, do instituto, que o legado literário de Gõdel,
que havia sido doado para o Instituto de Estudos Avançados pela viúva
de Gõdel, jazia num caos total, empilhado desordenadamente em cai-
xas velhas, até que "um jovem" (Dawson) se ofereceu para pôr tudo em
ordem. "Ele fez um bom trabalho, me contaram." Bota bom nisso!
John Dawson também escreveu dois artigos sobre Gõdel que são
acessíveis e interessantes: "Kurt Gõdel in sharper focus" e "The recep-
tion of Gõdel's incompleteness theorems". Ambos foram republicados
em Godel's theorem in focus, organizado por Stuart Shanker, junto com
outros ensaios interessantes, inclusive "Kurt Gõdel: conviction and
caution", de Solomon Feferman.
Hao Wang produziu três livros um tanto excêntricos, mas intrigan-
tes, com base em suas sondagens da mente de Gõdel: From mathema-
tics to philosophy (Nova York: Humanities Press, 1974), Reflections on
KurtGodel (Cambridge, MA: MIT Press, 1987) eA logical journey (Cam-
bridge, MA: MIT Press, 1996). Os livros narram conversas que Wang teve
com Gõdel, entremeadas com a história da vida do lógico e as próprias
visões de Wang sobre os temas que ele e Gõdel discutiram. O que falta
em estrutura, eles compensam em conteúdo.
Há vários estudos biográficos sobre Gõdel, escritos por quem o
conheceu originalmente em Viena, e eles são fascinantes e de certo
modo tocantes. Em primeiro lugar, vem Georg Kreisl, "Kurt Gõdel:
1906-1978 ", Biographical memoirs offellows of the Royal Society, vol. 26
(1980), pp. 148-224. Kreisl, um eminente lógico matemático, está
numa posição singular, tendo conhecido bem Wittgenstein quando
estudante (Kreisl) e, mais tarde, tendo travado conhecimento com
Gõdel em Princeton. Karl Menger havia sido convidado, junto com
Gõdel, a ingressar no Círculo de Viena, como alunos preferidos de
Hans Hahn, e suas reminiscências em primeira mão de Gõdel são con-
tadas em "Memories of Kurt Gõdel': em Reminiscences of the Vienna
Circle and the Mathematical Colloquium, org. Louise Golland, Brian
McGuinness eAbe Sklar (Dordrecht: Kluwer, 1994). Depois vem Olga

229
INCOMPLETUDE

Taussky-Todd, ela própria uma teórica dos números, que também


conheceu Gõdel quando eram estudantes. Suas "Remembrances of
Kurt Gõdel" estão em Godel remembered (Naples: Bibliopolis, 1987).
Se o leitor estiver interessado em ver como um polímata contempo-
râneo aplica os teoremas de Gõdel ao seu próprio pensamento cientí-
fico criativo, deve ler Roger Penrose, The emperor's new mind: concer-
ning computers, minds, and the laws of physics (Nova York: Penguin,
1989) [ed. brasileiraA mentenovadorei,RiodeJaneiro:Campus, 1993]
e seu Shadows of the mind: A search for the missing science of conscious-
ness (Oxford: Oxford University Press, 1994). Assim como Gõdel, Pen-
rose é um platônico matemático convicto; ele interpreta os teoremas da
incompletude exatamente como Gõdel fazia. Discute ainda outros
pontos fascinantes da matemática - inclusive as contribuições de
Turing à obra iniciada por Gõdel, o conjunto de Mandelbrot e o pró-
prio trabalho de Penrose sobre o ladrilhamento do plano - e afirma
que apontam na direção do platonismo. O argumento geral de Penrose
é que o conhecimento matemático, o fato surpreendente de que o
temos, é indício de que as leis da física são de um caráter fundamental-
mente diferente do que imaginamos até agora.
O livro de Hofstadter ganhador do Prêmio Pulitzer, Godel, Escher,
Bach: the eternal golden braid (Nova York: Basic Books, 1974 [ed. brasileira
Godel, Escher, Bach: Um entrelaçamento de gênios brilhantes, Brasília: Edi-
tora da UnB, 2000) é uma incursão animada pela auto-referencialidade.
Hofstadter entrelaça magnificamente idéias da lógica, arte e música,
como promete o título. Quando, ao ser indagada em que vinha trabalhan-
do nos últimos anos, eu respondia "Gõdel': com freqüência recebia em
resposta um olhar vago. Aí eu mencionava o título do best-seller de Hofs-
tadter, e o olhar inexpressivo dava lugar a um sorriso e um "Oh, sim!':
Finalmente, existem os textos do próprio Gõdel, seus poucos arti- ·
gos publicados e as muitas obras que deixou inéditas, em Collected
works, org. Solomon Feferman et al. (Oxford: Oxford University Press,
1986-). Até agora saíram três volumes.

230
AGRADECIMENTOS

Se falta alguma coisa a Tina Bennett para ser a agente literária perfeita, é
algo que não consegui descobrir. O projeto atual serviu para revelar
aspectos novos das formas de Tina apoiar irrestritamente seus escritores.
Sou extremamente grata às seguintes pessoas que compartilharam
comigo suas lembranças de Kurt Gõdel: John Bahcall, Paul Benacerraf,
Armand Borel, Thomas Nagel, Morton White. Todos me dedicaram
um tempo enorme. Simon Kochen, além de falar longas horas comigo,
também leu generosamente meus originais, detectando alguns erros
técnicos, pelo que sou profundamente grata, e respondendo a consul-
tas adicionais por e-mail. Berel Lang também leu os originais, e seus
comentários, também, foram profundos, substantivos e úteis.
Agradeço a John Dawson não apenas pelo trabalho hercúleo que
realizou como arquivista de Gõdel, que possibilitou o trabalho de
todos os estudiosos subseqüentes, mas também às suas respostas ime-
diatas a todas as perguntas que surgiram.
Como sempre, o físico-filósofo Sheldon Goldstein teve idéias que
foram preciosas. Ele, mais que ninguém, me ajudou a retornar à lógica

231
INCOMPLETUDE

· matemática. Aposto que não há ninguém neste mundo capaz como ele
de lembrar alguém da beleza e elegância do pensamento abstrato. Ste-
ven Pinker generosamente leu alguns capítulos ainda incipientes,
quando eu estava treinando a "escrita técnica popular", e seus comen-
tários e encorajamentos me deram a maior força. E, quando quase
desisti, Yael Goldstein calmamente me fez voltar ao teclado, oferecendo
o tipo de conselhos sábios e críticas e orientação substantivas sem os
quais este livro não teria sido escrito.
Por isso, dedico este livro a ela, com gratidão, amor e admiração.

232
ÍNDICE REMISSIVO

"A matemática é a sintaxe da lingua- aritmetização de Gõdel, 56, 132, 137,


gem?" (Gõdel), 222 139,141, 144-5,149,151-3
Adler, Max, 62 Artin, Emil, 206
álgebra, 69,112,202 Atlantic Monthly, 202
algoritmos, 112,145, 166-7, 169 Autobiografia (Russell) , 98
"Algumas observações sobre a teoria auto-referenciais, afirmações, 41, 42,
dos conjuntos axiomatizada" (Sko- 56,76,139-41,165
lem), 130 "axioma da escolha", 189
Alliluieva, Svetlana, 202 Aydelotte, Frank, 193, 199
Alt, Rudolf von, 59 Ayer,Alfred Jules, 74, 91 , 180
Altenberg, Peter, 61
análise não-standard, 202 Bahcall, John, 26, 221
Analítica anterior (Aristóteles), 47 Bambergér, Louis, 12-4, 199
Anselmo, santo, 176 Bárbara ou compaixão (Werfel), 61
"argumento diagonal': 117 Barrett, William, 32,222
Aristóteles, 26,41,47, 127,173,177,217 Beethoven, Ludwigvan, 81~ 95, 96
aritmética: completude versus consis- Bellah, Robert, 203, 204, 205
tência, 56, 114-22, 130-1, 137~141- Benacerraf, Paul, 17, 94,181,183,194,
2, 148, 153-8, 178, 186; prova de 221,225
Gõdel da consistência, 178; vertam- Berg,Alban, 59,61
bém números Bergmann, Gustav, 190,191

233
INCOMPLETUDE

Bernays,Paul,159,178,179,225 Comte, Auguste, 71


Besso, Michele, 214 Concerto para a mão esquerda (Ravel),
Bick, Auguste, 173 76
Blackwell, Kenneth, 98 conjectura de Goldbach, 73, 131, 183
Bohr,Niels,31-3,35,37,43, 180 conjunto universal, 78, 121
Boltzmann, Ludwig, 68, 223 Constituição Americana, 195
Bolyai, Farkas, 11 O Contributions to the analysis of sensa-
Bolyai, János, 11 O tion (Mach), 71
bomba atômica, 18,199 Copenhague (Frayn), 31-2
Borel,Armand, 26, 28, 198, 20 l, 204,221 curvas complexas, 200
Born, Max, 3 7
Borsuk, Karol, 200 Darwin, Charles, 168
"Bourbaki, Nicolas", 203 Dawson,John,46,49-50, 186,190,195,
Branca de Neve (filme), 211 222,225-6
Brouwer, Luitzen, 121 decidibilidade, 166
Bundy, McGeorge, 203 Descartes, René, 23, 116,218
Deus, existência de, 65-6, 176, 177
cálculo dos predicados, 126, 130, 186, Dukas, Helen, 17, 197, 221
187
Cantor, Georg, 78, 117 Edmonds, David, 63, 222-3
Cantor, hipótese do continuum de, 94, Eidinow, John, 63
117,118,182 Einstein, Albert: antecedentes judaicos,
Cantor,paradoxo de, 79,121 16; como cidadão norte-americano,
Carnap, Rudolf, 68-9, 88-9, 91, 125, 195; como exilado político, 29, 105;
134-5,179,191,214,222-3 como físico, 25, 29 (ver também teo-
Chaitin, G. J., 140 ria da relatividade); como realista
Chomsky, Noam, 27,221 científico, 35-8, 213-4; fotografias
ciência: metodologia, 25-6, 64; pura, de, 19,212; Gõdel comparado com,
14, 22-3, 72, 83-4; revoluções na, 29-31,34, 37,40-1, 95, 164,208,211;
18, 136, 194; subjetividade na, 31, interesse pela matemática, 25, 29, 54;
32,33,71 isolamento intelectual, 29-32, 34-7,
Círculo de Viena, 37, 62, 64, 67, 70-5, 87 - 40-1; lendas sobre, 26, 34-5; morte,
8,90-2,94,95,97-8, 101,115,124, 52, 196-8, 206, 214; no Instituto de
134,163,180-1,185,205,222-3 Estudos Avançados, 12, 16-7, 40,
Cocteau, Jean, 64 196-9; notas autobiográficas, 36;
cognição,21-3,27,32,33,169-73,l77 relacionamento de Gõdel com, 17,
Cohen, Paul, 118,182,189,226 18,19,25-37,40-l,43,179,184,195-
computabilidade, 166 8,200,206,212-6;reputação, 16-7,
computadores, 17,22, 112,168, 170-1 29,32, 186

234
ÍNDICE REMISSIVO

Eisenhower, Dwight D., 26 Frege, Gottlob, 47, 68-9, 77, 81, 94, 101,
Elementos (Euclides), 110 109,122,183,225
empirismo, 65,223 Freud, Sigmund, 59- 60
Encyclopedia ofphilosophy, 20, 22 From a logícal point ofview (Quine), 180
Epimênides, 140 From mathematics to philosophy (Wang),
epistemologia, 21, 23-5 94,225
Equivalents ofthe axiom ofchoice (Rubin Fuld, sra. Felix:, 12-4, 28, 199-200, 212
e Rubin), 189 "Fundamentos intuicionistas da mate-
Estrutura das revoluções científicas, A mática, Os" (Heyting), 125
(Kuhn), 136 Furtwangler, Phillip, 49, 52, 98, 173,
Euclides,108,109,116,157,189 187
evolução, 27, 168
existencialismo, 115, 159 galáxias, rotação das, 216-7
experimentos de pensamento, 55-6 Gauss, Carl Friedrich, 11 O
Geertz, Clifford, 203
Fackel, Die, 60 Gentzen, Gerhard, 156
Feferman, Solomon, 222 geometria,52,62, 72,81, 107,109,111,
Feigl, Herbert, 70-2, 89, 92, 93, 115, 116, 120, 189
135,180,191,223-4 geometria não-euclidiana, 110
Fermat, Pierre de, 131 Gõdel, Adele Nimbursky (Porkert),
Fermat, último teorema, 131 187-9,192-3,208,209
filosofia, 17, 20, 24, 32, 39, 50, 52, 58, 60, Godel, Escher, Bach: Um entrelaçamen-
62,64,68, 74,80,83,85-7,92,96, to de gênios brilhantes (Hofstadter),
98,99, 100,114,164,170, 178-81, 23
194, 218 Gõdel, Kurt: "axioma interessante", 17,
física, 16, 17, 24-5, 29, 31, 34.,9, 49-50, 18,25,26,40, 198;ambição,25, 40,
55,58,68,72,74,103,124,171,180, 43,51,54,100,158,164,187,217-8;
182,192,199,213,214,217 antecedentes alemães, 45-9, 105;
Flexner,Abraham, 12-7,28, 184, 192-3, aparência física, 12, 178, 191-2;
199,205 auto-inanição, 178, 208-9; casa-
formalismo, 20, 39, 113, 115-6, 118, mento, 28,175, 188-9, 192-3,209;
120,122,125,136-7,141,158,166- como cidadão norte-americano,
7,184 46, 195-6; como exilado político,
Forman, Philip, 196 ll -2,29,45,49,105,l84-6,l89-96;
fórmulas, 72,111,120,122,142, 144-7, como lógico,, 17 -20, 26, 40-3, 48-50,
151,153 55,63-4,98, 117,177,184, 195-6,
Francisco José, imperador da Áustria, 198,201,21 7; como platônico, 37-
59 40,50,52-4,62-3, 73-4,88,93-5,98,
Frayn, Michael, 31, 222 99,130,156,162,164, 179,181-4,

235
INCOMPLETUDE

204,214,218; conferências em Yale 215,222; questionário respondido,


(1941), 179; correspondência, 28, 51, 97-8, 163; reputação, 18-9, 29,
50-l, 94,98-9,162,190,196-8,211; 57,124, 174-9, 181, 185-7, 192-4,
dissertações de doutorado, 124, 207,210-l,217,226;reserva,49-51,
126,129-30,134,157,186;I)ozente 64, 92-3, 97-8, 115, 132-3, 164-5,
Privatdozent,nomeações, 132, 185- 174-5, 177-9, 181; respeito pelas
6, 190-l;educação,25,28,30,43, autoridades, 198-201, 204-5; revo-
45, 48-50; encontro da autora com, lução da matemática, 18-9, 32-3,
177-8, 202; falsamente tachado de 54,136,174, 183-7, 193-4;saúde
judeu, 98, 185, 190-3; febre reumá- fraca,48, 185, 192,208-9,218;ser-
tica,48, 192; fotografias, 19,47,212; viço religioso em sua memória,
infância, 45-9, 218; influências 201, 210-1; tendências legalistas,
sobre, 49-50, 94, 97-8, 163; inte- 195, 196, 209-1; títulos honorários,
resse pela física,29-30,49, 179, 213- 187, 194; visão da linguagem, 93,
8; isolamento intelectual, 25-7, 30- 133, 219
2, 37-40, 51,179, 181-4, 198-209, Gõdel, Marianne, 28, 45-7
217-8; legado literário (Nachlass ), Gõdel, Rudolf (irmão), 46-8
50-2, 75, 98-9, 179, 195; lendas Gõdel, Rudolf (pai), 45-6, 188
sobre,26-7,175,177-9,195,216-7; Godel's proof(Nagel e Newman), 132
morte, 209-11, 218; na conferência Goethe, Johann Wolfgang von, 49, 211
de Kõnigsberg, 55-6, 124-6, 131-6, Goldbach, Christian, 73, 131
165, 170, 184; na Universidade de Gomperz, Heinrich, 50, 52, 62, 98
Viena,25,28,30,43,45,49-50,56- Gomperz, Theodore, 50
86,97, 124, 184-6,190-3, 214,218; Grandjean, Burke D., 51-2, 94, 97,163
nascimento, 45; no Círculo de Grundgesetze der Arithmetic (Frege), 77
Viena, 91-9, 115, 135, 163, 180-1, Grundlagen der Geometrie (Hilbert),
191,198,223; no Instituto de Estu- 116
dos Avançados, 12, 18, 19, 26-8, 40,
174,177-8,181,184,187,189,193- Hahn, Hans, 69, 70, 82, 93, 98, 132, 134,
4, 197-209; oposição ao positi- 186, 191
vismo lógico, 74, 92, 180-4, 198, Hardy, G. H., 39, 40
223; palestra Gibbs (1951), 171; Heidegger, Martin, 33
palestras de Harvard, 181; para- Heisenberg, Werner, 18, 31-6, 43,180
nóia, 26, 41 , 48,173,178,188,192, Hempel, Carl, 74, 180
202, 206-9; personalidade, 26-7, 41, Herzl, Theodore, 59
48,50,52 , 64,97, 188-94,222;pro- Heyting,Arend, 125
blema cardíaco, 48, 192, 218 (ver Hilbert,David,39,41, 101-2, 104, 115-
teoremas da incompletude); publi- 8, 120-3, 125, 129, 136-9, 156-9,
cações,29, 51, 94, 178-9, 181-3, 206, 166-7,178-9,183-4, 225

236
ÍNDICE REM ISSIVO

Hintikka, Jaakko, 55-6, 83, 124, 222, K. -K. Staatsrealgymnasium mit deuts-
224-5 cher Unterrichtssprache, 49
Hirshfeld, Leon, 190 Kafka, Franz, 143,211
"História da família Gõdel" (R. Gõdel), Kant, Immanuel, 62, 15 7, 179
46 Kaysen, Karl, 177, 203-5
História da filosofia ocidental (Russell), Kesten, Herman, 5 7
86 Khwarizmi,Abu Ja'far Muhammad ibn
Hitler,Adolf, 11,189,191 Musa al-, 112
Hofstadter, Douglas, 23 Kleene,Stephen,165,210,226
Homem sem qualidades, O (Musil), 49 Klepetaf, Harry, 49
Hõrmann, Theodor, 59 Kochen,Simon,20,143,158,194,202,
Hume, David, 65 210,211
Kraus, Karl, 57, 60
Império dos Habsburgo, 45, 58 Kreisl, Georg, 100--1, 224
infinito, 110, 117, 121-2, 156-7, 166-7, Kuhn, Thomas, 136,164,225
189
instanciação universal, 107 Language, truth, and logic (Ayer ), 74, 180
Instituto de Estudos Avançados: direto- Leibniz, Gottfried Wilhelm, 23, 27, 40-
res, 16-7,28, 177,184,193, 199-200, l, 52,116,176, 198, 206-7
203 -5; Einstein como membro, Leoncavallo, Ruggero, 149
16-7, 40, 196-9; exilados políticos, Lewis, Clarence I., 69
11-2, 29; faculdade de matemática, linguagem: "jogos" de, 34, 85; abstra-
14-7, 26, 136, 165, 193, 198-205; ção e, 11, 60-1, 66, 133; paradoxos,
fundação, °12-3; Gõdel como mem- 42, 86-7, 160; significado e, 66, 72-
bro, 12, 17-9,26-8,40,174, 177-8, 3, 93, 127-30;sintaxe, 72-3,84,87,
181, 184, 187-9, 193-4, 197-209; 91,95,160;verdadee,83,88,160
nomeações para, 193, 198-205 Lobatchevski, Nikolai Ivánovitch, 110
inteligência artificial, 170 lógica: "límpida", 127-30, 134, 186-7;
Introdução à filosofia matemática (Rus- contradição na, 77, 79, 85-6, 100,
sell), 99 113 -4, 118-20, 162, 166; dedução
intuição, 29, 34, 84, 102-4, 108-14, 157, na,34,47, 115, 121, 142;formal,20,
167, 182-3 68, 77, 96, 142,202; natureza abs-
intuicionismo, 121, 125, 179 tratada,60,66,99, 130, 168-73,218;
Irrational man: A study in existentialist natureza sintática, 72-3, 84-5, 87,
philosophy (Barrett) , 33 91,95, 128-30, 138, 144-5, 148-9,
153-4, 159-60; paradoxos na, 41-2,
jogo,85,103,113,115,120,160,166 55-6, 76-8,83-4,86-7,99- 100,120-
judeus,67,82,98,105,190-2 l, 123, 138,140, 152, 156,160,162,
166-7; predicados na, 126-30; pro-

237
INCOMPLETUDE

posições na, 37, 66, 71-2, 78, 82-7, 130, 142, 167; teor descritivo, 72-4,
127-30; provas na, 122, 166; regras, 93, 115, 119, 158; teoremas, 99, 107-
84-6, 129-30; silogística, 47; simbó- 8, 111, 113-4, 119, 169; verdade da,
lica, 69, 145-6; tautologias na, 72, 72-3, 82-6, 91-3, 116, 118-9, 125,
83-4, 90, 104, 125, 127; variáveis na, 133-4, 159, 172-3; ver também arit-
127-8, 146;verdadena,37-8,42,82- mética; geometria; lógica
6, 98, 99, l28-30, l66, 224 Mathematician's apology, A (Hardy), 39
"Logical positivism: a new movement Mauthner, Fritz, 87
in European philosophy" (Blum- mecânica quântica, 32, 34, 37, 171
berg e Feigl), 71 Medalha Fields, 39
Loos, Adolph, 60-1 Mendel, Gregor, 45
Lucas, John, 169-70, 178,226 Menger, Karl, 70, 93, 99, 126, 133, 185,
luz, propriedades, 29, 38, 72 189-91,205-7,210,223-4;226
Mente nova do rei, A (Penrose), 21, 170
Mach,Ernst,68,71,72,95 mente ver cognição
Marchet,A., 192 metafísica, 38, 63, 90, 93, 136, 181
Marx, Groucho, 23 Milnor, John, 200-1
matemática: axiomas, 63, 94, 103-13, Misner, Charles, 216
118-9, 122, 137, 156-8, 169, 182, misticismo, 90,116, 161-2
189, 194; combinatória, 100, 138, modus ponens, 78
17l;comociência pura, 14,22-3, 72, Monk, Ray, 125
83-4; diagramas e esboços, 104-5; Montgomery, Deane, 200-1
filosofia e, 24, 50, 52-4, 85-6, 164; Moore, G. E., 81,223
física comparada com, 25, 30-1; for- Morgenstern, Oskar, 28, 40, 177-8, 188,
malismo, 22, 39, 73-4, 83-6, 109, 193-6,206-10,226
111, 113-22, 125, 136; influência de Morrell, Ottoline, 79,224
Gõdel sobre a, 18-9, 32-3, 50, 54, Musil, Robert, 49
135, 174, 183 -7, 193-4; metamate- mutação genética, 27
mática,22,33,39-42,53,56, 75, 113-
4, 121, 125,130,132,153,160,163- Nagel, Ernest, 132
7;naturezaapriori, 14-5,23-4,41-2, Nagel, Thomas, 27
65,72, 102-3, 112-3,218;natureza Natkin, Marcel, 92
sintática, 84-5, 95, 111, 159, 168; "Natureza da matemática: o ponto de
provas na, 64, 97, 103, 116, 121, 133, vista de Wittgenstein, N' (Wais-
167; realidade da, 37-40, 54, 103, mann), 125
113, 114, 119; realidade objetiva na, nazismo, 16, 19, 28, 59, 67, 180, 190-1,
24, 31-40, 94; regras, 85-6, 103, 107 - 193
12, 115-6, 130, 144, 167, 169-71; Nelbõck, Johann (Hans), 67
símbolos, 72-3, 85,104, 111-2, 116, Neurath, Olga, 69

238
ÍNDICE REMISSIVO

N eurath, Otto, 69-70, 93 pitagóricos, 33


New York Times, 202-3, 213,222,227 Planck, Max, 68
Newman, James R., 132 Platão, 33, 39-40, 52-4, 95, 102, 116,
Newton, Isaac, 49,213 168,204,214,218
"Nicolas Bourbaki", 203 platonismo, 37-40, 50, 53, 56, 62-3, 73,
Nietzsche, Friedrich, 33 93,98,99, 114,122,125,132,162,
"Notas autobiográficas" (Einstein), 36 181,214
números: conjuntos, 53, 70, 76-8, 94, Polgar, Alfred, 61
110,115,117,120,122,179,182,188, Popper, Karl, 62, 222
189,2ll;naturais,38,94, 107, 117-8, positivismo lógico, 37, 62-5, 71-2, 74,
137-40, 146,151, 156-8;pares, 73, 83,91,159,180,198
131, 140, 183; primos, 73, 145, 148; pós-modernismo, 115,159
propriedades, 145-7, 150-5, 158; postulado das paralelas, 109, 189
reais, 94, 117, 118; teoria dos, 20, 49- Primeira Guerra Mundial, 58, 76, 81
50, 52, 54, 70,131,167,183,l87 "Principais idéias do logicismo, As"
(Carnap), 125
Observações sobre os fundamentos da Principia mathematica (Russell e Whi-
matemática (Wittgenstein), 99, tehead), 78, 81, 86,122,135
161,224 princípio da incerteza, 18, 31
"On computable numbers, with an "Problemas matemáticos" (Hilbert),
application to the Entscheidungs- 117
problem" (Turing), 167 proposições"ou-ou", 171-3
ontologia, 65, 176 proposições analíticas, 3 7
Oppenheimer, J. Robert, 199-200, 203, proposições descritivas, 3 7
205 proposições indecidíveis, 99, 182
Organon (Aristóteles), 4 7 Protágoras,32,38,52,73
Ovídio, 176 provas construtivas, 121, 125
provas finitárias, 100, 122, 125, 130,
Pagliacci, I (Leoncavallo), 149 137, 156-8, 179
paradoxo de Richard, 140,152 provas não-finitárias, 130, 179
"paradoxo do mentiroso", 42, 76, 140, "pseudoproposições", 66
152,166 psicologia, 58, 64, 67,121,226
Pascal, Fania, 96, 224 Putnam, Hilary, 94,181,183,225
Peano, Giuseppe, 81, 107, 109
Peebles, Jim, 217 Quine, Willard vau Orman, 74, 180
Penrose, Roger, 21-2, 170-1, 226
Philosophy of mathematics (Benacerraf Ravel, Maurice, 76
e Putnam, orgs.), 94,181 Razão Pura, 13, 15, 57, 104,184,200,
Pinker, Steven, 27 216

239
INCOMPLETUDE

realidade: abstrata, 37, 38, 43, 53-4, 180; sociologia, 21, 204
como incognoscível, 91; contingên- Sócrates, 47, 53, 83,214
cia e, 17-8, 27; delírio versus, 171, sofistas, 52, 71, 95,204
172-3; empírica, 27, 42, 64-7, 71 -5, Solovay, Robert, 21 O
91, 93, 116, 181, 216-7, 223; mate- Spencer, Herbert, 71
mática,37-40,56, 103,114,159, 161 - Spinoza, Benedictus, 23, 81, 105, 168,
3; objetiva, 19-24, 31-40, 43, 52-4, 174
94,111,113, 118-9,159, 171 -3,180, Sprache, Die (Kraus), 60
213; percepção da, 39, 71, 94, 103, Sprachkritik (Mauthner), 87,223
114, 182; significado e, 37, 66-8, 71 - Stálin, Iossíf, 27,191,202
2, 82, 84-5, 94,110, 119, 162; subje- Straus, Ernst Gabor, 17, 25, 26, 29
tiva, 21, 24, 31-3, 53, 71-5, 171-3; Survey ofsymbolic logic (Lewis), 69
transcendental, 75,162, 214-5, 218
Redlich, Friedrich, 46 Tagore, Rabindranath, 87
Reichenbach, Hans, 69, 124, 134, 180, Tarski, Alfred, 74
183,225 Taussky-Todd, Olga, 91, 173, 184
Reidemeister, Kurt, 82 tempo, natureza do, 29, 35, 38, 212 -8
religião, 162, 188, 203-4 teorema da extensão de Hahn-Banach,
Richard, Jules, 140 69
Robinson,Abraham, 100, 202 "Teorema de Gõdel" (Encyclopedia of
Rorty, Richard, 175 philosophy), 20
Rubin, H., 189 teoremas da incompletude, 131-58;
Rubin, J., 189 analogia musical, 132, 149; aritme-
Russell, Bertrand: Gõdel e, 98-9, 181-3, tização de Gõdel nos, 56, 132, 137,
190; paradoxo formulado por, 76- 141, 143-51; como "logische Kuns-
7, 85 -6, 120, 122; Wittgenstein e, tstücken", 99, 100, 160, 224; como
78-81,86,91,95, 101,224 modelos conceituais, 22; comple-
"Russell's Mathematical Logic" (Gõdel), tude versus consistência, 19-20, 56,
181 118-22, 129-31, 135, 137, 141-2,
148, 153-8, 162, 166-7, 186; con-
Schilpp, P. A., 36, 91,215, 221-3, 227 texto cultural vienense, 56-86; con-
Schimanovich, Werner, 186 tradizendo o positivismo lógico,
Schlick,Moritz, 62, 67-72, 74, 81-2, 87- 63, 88, 95,135,159,16 1,223; defini-
90, 93, 99,125,180,185,191 ções preliminares para, 139; desen-
Schõnberg, Arnold, 59 volvim ento, 19, 30, 40, 50, 55-6, 63,
Secessão, 59 131-5, 218; divulgação pública, 56,
Shadows ofthe mind (Penrose), 22, 170, 63,93, 124-6, 131-6, 165,170,184;
226 enunciado, 20, 22, 63,131; explica-
Snow, C. P., 39 ção da autora, 139-58; formalismo

240
ÍNDICE REMISSIVO

e, 113-4, 123, 126, 136-8, 141-2, de campo para, 29, 214-6; geral, 16,
148-50, 154-8, 167,170,172,184; 35,215; interpretação popular errô-
fórmulas nos, 142-7, 151; impactos nea, 32-3, 212; realidade objetiva e,
científicos, 18-9, 136, 158, 164-5, 31-2, 35-6, 71,212; restrita, 16, 29,
167-73, 194; implicações filosófi- 35, 55; sistema de coordenadas na,
cas, 24, 57, 162, 168-73, 178; impli- 35; trabalho de Gõdel na, 29, 179,
cações matemáticas, 21, 24, 43, 63, 212-8
133-8;158, 160, 186-7, 194,210-1, teoria dos conjuntos transfinitos, 182
218; implicações metamatemáti- teoria dos jogos, 28, 34, 85
cas, 22-4, 3 l -3, 42, 88, 100-1, 138, teoria dos modelos, 41, 158, 164, 211
143-9, 158-64, 167-73, 187; inter- teoria dos tipos, 78, 84, 122
pretação de Turing, 165,167; inter- teoria molecular, 68
pretação popular errônea, 20-2, 32- terceiro excluído, lei do, 121
3, 52, 63-4, 133,223; justaposição termodinâmica, 68
de dígitos, 145-7; lema diagonal, "Tertium non datur" (Hilbert), 184
152-4; objetividade e, 32-3, 43; thaumázein (assombro ontológico), 46
paradoxos e, 41-2, 55-6, 83, 138-9, Thorne, Kip, 216, 217
152, 156; primeiro teorema, 20, 30, Time, 186
33,42,55,63,114,133,137,139-54, Tractatus logico-philosophicus (Witt-
167, 171, 178, 202, 225; procedi- genstein), 81
mentos mecânicos nos, 143-9, 154; Tractatus theologico-politicus (Spi-
propriedades dos números nos, noza), 81
145-7,150-5,158;prova,56,63,97, triângulo isósceles, 105
99, 129-30, 133, 136-8,141-4, 148- Turing,Alan, 140,160, 165-7, 184,186
55, 158, 166; publicação (1931), 20, "Two dogmas of empiricism" (Quine),
140, 165, 167; reação de Von Neu- 180
mann, 136, 137, 158; reação de
Wittgenstein, 75, 83-4, 86, 95-101, "über formal unentscheidbare Satze der
133, 159-65, 183; relações sintáticas Principia Mat:hematica und ver-
nos, 144-5, 148-9, 153-4, 159;se- wandter Systeme I" (Gõdel), 20; ver
gundoteorema,20,30,63, 135,137, também teoremas da incompletude
155-8, 178; teoria da relatividade Universidade de Princeton, 11-2, 14,
comparada com, 31-3 16-20,25-6,29,31,37,43,50-l,57,
teoria da prova, 122,211 74,105,131,136,165, 174-5, 181,
teoria da recursão, 41, 164, 211 184-5, 188-94, 199-200,203,206,
teoria da relatividade: como revolução 208-10, 215,217
conceitua!, 18, 31-6, 71; continuum
de espaço-tempo na, 35, 38, 213-8; Veblen, Oswald, 16, 184, 185,190,193
desenvolvimento, 29, 55; equações verdade: absoluta, 96, 105; beleza e, 24,

241
INCOMPLETUDE

53-4; leis de herança da, 107; lin- Whitney, I-Iassler, 201,209,210


güística, 82-3, 88, 160; matemática, "Wiener !(reis inAmerica, The" (Feigl),
72-3, 82-6, 91-3, 116, 118-9, 125, 180
133-4, 159,172,173; moralidade e, Wiles, Andrew, 131
52, 60, 73, 90, 105, 223; na lógica, Wirtinger, professor, 186-7
37-8,41-2,82-6,98-9,128-30,166, Wissenschaftliche Weltauffassung: Der
224; objetiva, 19-21, 53, 65, 72, 98, Wiener Kreis, 71
99,119,182,204 Wittgenstein, Karl, 59
Voltaire, 207 Wittgenstein, Ludwig: análise lingüís-
Von Neumann, John, 16-7, 28, 74,125, tica, 60, 81-6, 89-92, 99; Círculo de
136-7, 158, 165, 179, 184, 187-9, Viena e, 3 7, 38, 75-92, 99-100, 224;
193,200 filosofia inicial versus final de, 84-
6, 159; formação, 75, 86; Gõdel
Wagner-Jauregg, Julius, 185 comparado com, 92, 96-7, 99-100,
Waismann, Frederich, 70, 88-9, 93, 159-64, 183; influência, 37, 88-92,
125-6,135 95-6, 100; na Universidade de
Wang,I-Iao,29,46,48-9,54-5, 70,94, . Cambridge, 79-80, 88, 95-6, 165,
130, 134, 171, 179, 187, 209-10, 167; personalidade, 79-80, 88-90,
217-8, 222-7 95-7, 99-100, 224; positivismo
Weil,André, 203, 210 lógico e, 37, 87-92, 100, 159, 161;
Weil, Simone, 204 reputação, 125, 180, 183, 186; Rus-
Weininger, Otto, 80-1, 224 sell e, 79-81, 85-6, 91, 95,100,224;
Werfel, Franz, 61 teoremas de Gõdel vistos por, 75,
"What is Cantor's continuum pro- 83-4,86,95-101,133,159-65,183
blem?" (Gõdel), 181 Wittgenstein, Paul, 76
Wheeler, John Archibald, 216-7 Wi ttgenstein's poker (Edmonds e Eidi-
White,Morton, 176,18 1 now), 63,222
Whitehead, Alfred North, 78, 81, 94,
122,167 zen-budismo, 87

242
Esta obra foi composta em Janson
por Osmane Garcia Filho e impressa
pela Prol Editora Gráfica em ofsete
sobre papel Pólen Soft da Suzano
Papel e Celulose para a Editora
Schwarcz em setembro de 2008.

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