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2ª Jornada Científica da FASP-ES | Revista de Artigos

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APRESENTAÇÃO

“Sem um fim social o saber será a maior das futilidades”


GILBERTO FREYRE

O Fórum de Assistentes Sociais e Psicólogos do Poder Judiciário do Espírito Santo (FASP/


ES) Biênio 2016/2017 comemora doze anos de existência. O espaço, fruto de um esforço
organizativo das categorias profissionais que o compõem, entre lutas, resistências, capacita-
ções, debates, avanços e dilemas, tem muito a comemorar nesta caminhada.

Inicialmente queremos agradecer as gestões anteriores que trilharam um árduo caminho até
aqui. Agradecemos aos companheiros e companheiras da atual gestão que acreditaram na
possibilidade de realização desta II Jornada Científica, com o objetivo de promover a integra-
ção multidisciplinar de conhecimentos possibilitando, assim, o debate de ideias, a sistemati-
zação da prática e a criação de espaços reflexivos de construção de diálogos e do conheci-
mento entre os profissionais do FASP/ES e aqueles que se interessam e estudam o tema.

Também agradecemos imensamente os apoiadores deste evento, sem os quais não terí-
amos condições objetivas de realizá-lo. Agradecemos especialmente a todos e todas que
se debruçaram nesta realidade e escreveram seus trabalhos contribuindo com as comu-
nicações orais. Nosso carinho especial à comissão avaliadora, que analisou de maneira
comprometida estes escritos. Os trabalhos nesta revista, assim como suas apresentações
orais na Jornada, estão divididos em cinco eixos: Gestão do Trabalho; Gênero, Geração e
Etnia; Sistema Penal; Família e Criança e Adolescente.

Em tempos de criminalização da questão social, crise econômica, desemprego, corte de


direitos sociais, avanço de pautas conservadoras, defesa da redução da maioridade penal,
culpabilização das famílias, racismos, machismos, homofobia e violência- esperamos que
este evento seja um fôlego necessário.

Começamos esta apresentação com a frase escrita nos muros de Paris, durante as revoltas de
maio de 1848, que dizia: “o que nós queremos, de fato, é que as ideias voltem a ser perigosas.”

Que possamos embarcar nesta jornada inicialmente para re-conhecer a realidade, para modifi-
cá-la, e que saiamos deste encontro potencializados e dispostos a reinventar nossas atuações e
nossas lutas. Que unamos forças, reflexões, empenho e coragem na ultrapassagem da igualdade
formal, jurídica, para a igualdade real, concreta, na busca pela verdadeira emancipação humana.

A Comissão Organizadora/2017
Sumário

EIXO TEMÁTICO: GESTÃO DO TRABALHO

IMPLICAÇÕES DA INTENSIFICAÇÃO DO TRABALHO NO COMPROMISSO ÉTICO-


7
POLÍTICO DAS ASSISTENTES SOCIAIS

PROGRAMA DE PREPARAÇÃO PARA APOSENTADORIA DO PODER JUDICIÁRIO DO


18
ESTADO DO ESPÍRITO SANTO - RELATO DE EXPERIÊNCIA

VIVENCIANDO O CRAS: PENSANDO O TRABALHO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL TENDO


O VÍNCULO COMO MATÉRIA-PRIMA E BASE DE AÇÃO DO PRÓPRIO TRABALHO 27
TÉCNICO

EIXO TEMÁTICO: GÊNERO, GERAÇÃO E ETNIA

PROTEÇÃO SOCIAL E LEI MARIA DA PENHA 39

RESPONSABILIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DO HOMEM AUTOR DE VIOLÊNCIA: UMA


51
NOVA POSSIBILIDADE DE ABORDAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

RODAS DE CONVERSAS: PERCEPÇÃO DE MULHERES CACHOEIRENSES SOBRE A


57
“LEI MARIA DA PENHA”

EIXO TEMÁTICO: SISTEMA PENAL

DIA DE VISITA: A INFLUÊNCIA DO ENCARCERAMENTO NA IDENTIDADE SOCIAL DE


69
MULHERES QUE FAZEM VISITAS PERIÓDICAS À PENITENCIÁRIAS MASCULINAS

A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO DA EQUIPE PSICOSSOCIAL NA AUDIÊNCIA DE


82
CUSTÓDIA DO ESPÍRITO SANTO

EXPERIÊNCIA DA VARA DE EXECUÇÕES PENAIS E MEDIDAS ALTERNATIVAS


DE VITÓRIA/ES: TRANSPARÊNCIA E DEMOCRATIZAÇÃO NA DESTINAÇÃO DOS 90
RECURSOS PROVENIENTES DAS PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

A VIOLAÇÃO OCULTA NA PROTEÇÃO: UMA PROVOCAÇÃO NECESSÁRIA 102

ACOLHIMENTO INFANTIL E A FORMAÇÃO DE VÍNCULOS NA


113
INSTITUCIONALIZAÇÃO

GARANTINDO DIREITOS OU ACELERANDO ROMPIMENTOS? REFLEXÕES


INTERDISCIPLINARES SOBRE O ANTEPROJETO DE LEI QUE ALTERA OS 126
PROCEDIMENTOS PARA A ADOÇÃO

GLOSSÁRIO DA INTERNAÇÃO: VIOLÊNCIA COMO LINGUAGEM. 137


NOTAS PARA PENSAR A PROTEÇÃO A CRIANÇAS E ADOLESCENTES ATRAVÉS DAS
149
PRÁTICAS DO COMISSÁRIO DE JUSTIÇA DA INFÂNCIA DA JUVENTUDE E DO IDOSO

O OLHAR SOBRE A PRIVAÇÃO NA ÓTICA DOS INVISÍVEIS 158

O PAPEL DO PSICÓLOGO DIANTE DO COMPORTAMENTO SUICIDA EM


170
ADOLESCENTES QUE CUMPREM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO.

OS DESAFIOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA GARANTIA DE DIREITOS: UM ESTUDO


182
NA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE

PLANO INDIVIDUAL DE ATENDIMENTO X RELATÓRIO TÉCNICO


INTERPROFISSIONAL: A DUBIEDADE ENTRE A GARANTIA DE DIREITOS E A 192
SUPOSTA PRODUÇÃO DE PROVA EM JUÍZO

QUANDO UM NÃO QUER, NÃO SE ADOTA: REFLEXÕES SOBRE DEVOLUÇÃO A


204
PARTIR DA HISTÓRIA DE UMA CRIANÇA

RELATO DE PRÁTICA DAS ASSISTENTES SOCIAIS E PSICÓLOGAS DO NÚCLEO DE


PROMOÇÃO DA FILIAÇÃO DO TJ/AL NAS ADOÇÕES UNILATERAIS CONSENSUAIS 215
COM RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

ADAPTAÇÃO DE UMA ESCALA DE COPING PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM


225
CONTEXTO DE DIVÓRCIO PARENTAL

ALIENAÇÃO PARENTAL: REFLEXÕES SOBRE A LEI E A ATUAÇÃO PROFISSIONAL


234
DAS/OS ASSISTENTES SOCIAIS

GUARDA COMPARTILHADA: ASPECTOS PSICOLÓGICOS E SOCIAIS E A GARANTIA


244
DO DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR

NOVAS PERSPECTIVAS DAS AÇÕES DE FAMÍLIA: A CULTURA DO LITÍGIO PERDE A


254
SUA FORÇA

PRIVACIDADE DAS FAMÍLIAS E CONFLITOS NAS REDES SOCIAIS 263

QUANDO AVÓS ASSUMEM O CUIDADO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SEUS


273
NÚCLEOS FAMILIARES
GESTÃO DO
TRABALHO
IMPLICAÇÕES DA INTENSIFICAÇÃO DO
TRABALHO NO COMPROMISSO ÉTICO-
POLÍTICO DAS ASSISTENTES SOCIAIS

Grace Kelly Moura de Oliveira1

EIXO TEMÁTICO: GESTÃO DO TRABALHO

As mudanças ocorridas no comportamento do Estado e no modelo de produ-


ção na sociedade capitalista vem impactando no decorrer dos anos no traba-
lho desempenhado pelas Assistentes Sociais. Nos últimos anos, com adoção
de um comportamento Neoliberal por parte do Estado e da implementação do
modelo Toyotista de produção as Assistentes Sociais, especificamente do sócio
jurídico, vem enfrentando uma realidade de intensificação da extração de mais-
trabalho, o que repercute na capacidade das profissionais de desempenharem
um trabalho comprometido com o projeto ético-político hegemônico do Serviço
Social. Esta pesquisa motivou-se pela realização de estágio no Tribunal de Jus-
tiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e baseia-se na pesquisa realizada para o Trabalho
de Conclusão de Curso de Serviço Social no ano de 2016, que buscou analisar

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os impactos da intensificação do trabalho na saúde das Assistentes Sociais. O
objetivo deste artigo é desvendar a realidade vivenciada pelas Assistentes So-
ciais inseridas no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, analisando
os processos de exploração a que estão submetidas e como isso interfere no
compromisso ético e político dessas profissionais. A perspectiva de análise
utilizada foi o materialismo histórico-dialético e a metodologia adotada foi pes-
quisa bibliográfica, documental e pesquisa de campo com 10 (dez) Assistentes
Sociais do TJRJ.

Palavras-Chave: Exploração. Assistentes Sociais. Judiciário. Ética. 7

1. Introdução

As mudanças ocorridas nos modelos de produção do sistema capitalista nos últimos


anos vêm provocando impactos consideráveis no mundo do trabalho, especialmente
quando atreladas às formas de gerenciamento do Estado. Essas modificações não limi-
tam-se apenas à esfera da produção material, mas também chegam ao setor de serviços,
onde encontra-se o Assistente Social.

Após a Segunda Guerra Mundial um novo modelo de organização da produção e do tra-


balho ganha força na Europa2. Esse modelo é denominado fordismo e tem como base o
trabalho especializado e a utilização de linhas de montagem para a produção em massa.

1 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense e ex-estagiária do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: gracekelly.moura@gmail.com Telefone: (21)96876-8171/ (21) 98468-9140

2 Apesar de o modelo fordista ter surgido no início do século XIX, apenas após a Segunda Guerra Mundial
ele passou a ser utilizado mais efetivamente. (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 87).
Através do uso de esteiras, o modelo fordista buscava eliminar o tempo morto na produção
através da repetição de movimentos por parte dos trabalhadores durante toda a jornada de tra-
balho, o que resulta numa maior exploração da força de trabalho (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

Aliado a essa nova forma de produzir, e com o intuito de superar a crise de 1929, surge tam-
bém na Europa um modelo de Estado para atender às demandas do mercado na época, um
Estado mais amplo, com grande investimento em políticas sociais que permitissem o esco-
amento das mercadorias produzidas. Nesse período o Estado torna-se muito importante na
geração de empregos, mas também sob uma grande exploração, muito parecida com o modo
de gestão adotado no âmbito empresarial, isto é, muito parecido com o fordismo (FONSECA,
2002 apud CARVALHO, 2015). Os novos modelos de produção e de Estado (conhecido como
Estado de Bem – Estar Social) posteriormente se espalharam para vários outros países.

O modelo fordista, no entanto, exigia um consumo padronizado para manter a produção em


massa e possuía contratos de trabalho muito rígidos e qualquer tentativa de flexibilizá-los so-
fria resistência por parte dos trabalhadores através de greves. O Estado, por sua vez, aumentou
seus gastos com políticas públicas que colaborassem para o escoamento da produção fordista,
porém a rigidez deste modelo de produção não permitia o aumento da arrecadação tributária
para manter o financiamento das políticas sociais. Com isso, entre 1965 e 1973, os modelos de
produção e de Estado começam a demonstrar sua insuficiência na manutenção da acumulação

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capitalista e a solução encontrada pelos Estados Unidos para superar esse quadro é o aumen-
to da impressão de dólares, o que causou o aumento da inflação e colaborou para uma crise,
especialmente após o aumento do preço do barril de petróleo (HARVEY,2007).3

Com o aprofundamento da crise o capital reestrutura a produção, substituindo o modelo de


produção em massa por um mais flexível. Na década de 1970, após 30 anos gloriosos, por-
tanto o modelo fordista e o Estado de Bem-Estar Social chegam a seu esgotamento (HARVEY,
2007). Na década de 1980 as empresas passam então a utilizar mais efetivamente uma nova
forma de organização da produção (BEHRING; BOSCHETTI, 2011), conhecido como Toyotis-
8
mo, e que baseia-se na flexibilização dos processos de trabalho. As empresas buscam o au-
mento da produção, porém com o mínimo possível de funcionários e para isso utilizam cada
vez mais tecnologia e uma nova forma de gestão que explora ainda mais a força de trabalho.

Com o surgimento de um novo modelo de produção, o capital exige também um Estado mais
enxuto em suas funções para satisfazer as demandas do mercado, o qual ganha hegemonia
na década de 1980 (BEHRING; BOSCHETTI, 2011). Esse novo Estado, denominado Neoli-
beral, reduz-se e repassa suas funções para a iniciativa privada para tentar superar a crise
do capital. Ele também passa por uma reforma em seu modelo de gestão, adotando uma
administração pautada no novo modelo produtivo, isto é, no modelo Toyotista, que baseia-se
principalmente no trabalho em equipe, no envolvimento com metas, na utilização de novas
tecnologias e no controle do trabalho pelo próprio trabalhador (ANTUNES, 1999).

Por conta do novo comportamento do Estado que deixa de investir em políticas sociais, mui-
tas pessoas – especialmente dos segmentos mais pauperizados – necessitam recorrer ao

3 Além disso, há em 1975 a quebra da Bolsa de Valores de Nova York. Diante disso, muitas empresas
reestruturam sua produção para recuperar suas taxas de lucro e superar a crise. Para isso as empresas necessitam
de um controle ainda maior do trabalho, uma maior racionalidade na gestão e novos consumidores. Isso faz com que
muitas empresas comecem a adentrar países cujas legislações do trabalho são menos rígidas, onde a exploração dos
trabalhadores poderia ser maior. (HARVEY, 2007)
Poder Judiciário para ter acesso a seus direitos de saúde, moradia, entre outros, o que causa
um aumento do volume processual nos Tribunais de Justiça, aumentando consequentemente
a demanda para o Serviço Social sócio jurídico (SIERRA, 2011).

Ocorre que com a Reforma do Estado sob as orientações neoliberais, ocorrida no Brasil a
partir de 1995, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro também passa por uma
reorganização, de modo a também cortar “gastos” e extrair mais trabalho de seus servidores,
que passam a sofrer uma pressão ainda maior quanto a prazos (FGV, 2005). Assim sendo, as
Assistentes Sociais dessa instituição passam a enfrentar um quadro de número reduzido de
profissionais, aumento de cobrança institucional e da demanda de trabalho.

Esse aumento da exploração traz inúmeros impactos ao processo de trabalho dessas profissio-
nais, dentre os quais no compromisso ético-político das Assistentes Sociais que por mais que
tentem realizar um trabalho comprometido com os usuários são impedidas, diante da pressão
por trabalho e da falta de tempo, de realizar algumas atividades mais reflexivas e que extrapo-
lem as demandas institucionais, como por exemplo grupos e supervisão de estágio.

É sobre essa questão que nos debruçaremos no decorrer deste artigo, buscando desvendar
a realidade das Assistentes Sociais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro
através de pesquisa bibliográfica e documental. Procuraremos analisar as modificações
ocorridas na forma de produção e no mundo do trabalho, bem como as transformações

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ocorridas no Estado, especificamente no que se refere ao Tribunal de Justiça. Por fim, bus-
caremos analisar como essas transformações interferem no compromisso ético-político
das Assistentes Sociais da instituição em tela.

2. Modelos de produção e do Estado: Expressões ao mun-


do do trabalho
9
Com a crise de 1929 o capital busca novas alternativas para a retomada dos lucros e, confor-
me constata-se na literatura, as ideias de Keynes ganham grande relevância nesse processo.
Com o objetivo de evitar a queda da taxa de lucros, ele propunha que o Estado lançasse mão
de algumas estratégias como abrir postos de trabalho no serviço público e aumentar a renda
dos trabalhadores por meio de políticas sociais e salários compatíveis com o consumo. Além
disso, o Estado também deveria fazer uma arrecadação tributária para utilizar como reserva
em momentos de provável crise. Aliado ao modelo gerencial proposto por Keynes e adotado
pelo Estado, também ganha força um modelo de produção já bastante conhecido na literatu-
ra do Serviço Social, referimo-nos ao modelo fordista, o qual tinha como base a produção em
massa e o trabalho especializado (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).

Analisando características dessa organização em contextos econômicos anteriores cons-


tatamos com Harvey (2007) que Ford inspirou-se no modelo de organização proposto por
Frederick Taylor – que se baseava na divisão das tarefas entre os trabalhadores, conside-
rando-se o tempo necessário para a realização dessas atividades, com o objetivo de aumen-
tar o lucro – para propor a utilização de esteiras para reduzir o tempo de locomoção dos
trabalhadores nas fábricas, o que ele considerava como uma forma eficaz para aumentar
a produção, mas em uma perspectiva crítica pode-se avaliar que esse processo resulta na
ampliação da exploração do trabalho. Para Behring e Boschetti (2011) o modelo Fordista bus-
cava um considerável aumento da produtividade através de uma rigorosa gestão do tempo,
que objetivava eliminar o tempo morto da produção mediante a repetição de movimentos
pelos trabalhadores durante toda a jornada de trabalho.

Entre 1965 e 1973 o Keynesianismo – Fordismo começa a demonstrar seu esgotamento e sua
insuficiência para manter a reprodução capitalista, uma vez que para manter a produção em
massa era necessário também manter um padrão de consumo. Essa rigidez típica da produ-
ção fordista impedia o aumento da arrecadação tributária para financiar as crescentes políti-
cas públicas que auxiliavam no bom funcionamento do mercado. Harvey (2007) nos esclarece
que diante desse contexto a única solução encontrada pelos Estados Unidos foi aumentar a
impressão de dólares, o que implicou no crescimento da inflação, e que o aumento do preço
do barril de petróleo, feito pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP)
em 1973, causou modificações na gestão e no uso de tecnologia de diversos segmentos da
economia, com o objetivo de reduzir os gastos com energia, o que intensifica a crise.

O aprofundamento da crise e o recuo da “ameaça socialista” – por conta da dissolução do


bloco socialista no Leste Europeu na década de 1980 – fazem com que o capital realize
uma reestruturação produtiva, atacando os direitos dos trabalhadores dos países centrais.
É nesse contexto que o Neoliberalismo ganha espaço e começa a orientar os países, no
sentido de realizarem uma reestruturação produtiva, retroagirem nos direitos sociais, inicia-

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rem processos de privatizações e reduzir o estado (ANTUNES, 2001). Os Estados começam
receber orientações de entidades como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional,
de modo a satisfazerem aos anseios do capital (BORON,1999). No campo produtivo ganha
força o uso de novas tecnologias e a busca de uma adesão dos trabalhadores aos interesses
das empresas. Esse novo modelo de gestão e de organização produtiva iniciou-se na fábrica
Toyota, no Japão, e com a crise ela avança para os países do ocidente (ANTUNES, 2001).
Esse modelo tem como objetivo aumentar a exploração da força de trabalho e para isso ela
utiliza algumas estratégias, como a exigência de trabalhadores polivalentes, terceirizações e
o trabalho em equipe, além do estabelecimento de metas para os funcionários e o autocon-
10
trole sobre a qualidade do próprio trabalho (ANTUNES, 1999).

Com a mudança no gerenciamento do Estado para um modelo Neoliberal os interesses


capitalistas são preservados e há uma redução no investimento em políticas sociais
(BEHRING, 2012). Diversos direitos sociais transformam-se em mercadorias para quem
tem condições de pagar por eles (BORON, 1999). Quando o setor privado torna-se o res-
ponsável por fornecer esses direitos sociais (como, por exemplo, a saúde) acaba-se com o
princípio da universalidade e muitos sujeitos precisam recorrer ao judiciário para buscar o
atendimento de suas demandas (IAMAMOTO, 2004).

3. Estado Neoliberal, judicialização das políticas sociais


e Serviço Social

Uma questão que causa profundo impacto no processo de trabalho das Assistentes So-
ciais inseridas no contexto judiciário é a judicialização das políticas sociais e da questão
social. Muitos pesquisadores vêm apontando que o comportamento Neoliberal assumi-
do pelo Estado brasileiro na década de 1990 culmina no aumento do desemprego e na
redução da proteção social aos trabalhadores (SIERRA, 2011). Essa judicialização contribui
para o aumento processual no Poder Judiciário, o que por sua vez colabora para o aumento
da demanda para as Assistentes Sociais das instituições do direito, mais especificamente
do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

As transformações ocorridas nos últimos anos com o enraizamento do Neoliberalismo e da


reestruturação produtiva não param no setor produtivo, mas também rebatem no setor de servi-
ços, onde atuam os Assistentes Sociais. Marx esclarece que o trabalho no setor de serviços não
produz valor de troca, mas valor de uso e por isso constitui-se num trabalho não-produtivo:

Quando se compra o trabalho para o consumir como valor de uso, como serviço, não para
colocar como fator vivo no lugar do valor do capital variável e o incorporar no processo capi-
talista de produção, o trabalho não é produtivo e o trabalhador assalariado não é trabalhador
produtivo. O seu trabalho é consumido por causa do seu valor de uso e não como trabalho que
gera valores de troca; é consumido improdutivamente (MARX, s.d apud AMORIM, 2006, p. 67).

4. As transformações no mundo do trabalho e o Serviço


Social no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro

Apesar de o trabalho do Assistente Social não ser produtor direto de mais-valia, ele também
depende dos meios oferecidos pelas instituições empregadoras e que também atravessadas

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pelas relações de classe existentes na sociedade capitalista (RAICHELIS, 2011). Quando
ocorrem mudanças na instituição, isso rebate na realização do trabalho do Assistente Social,
pois são as instituições empregadoras que estabelecem qual será a jornada de trabalho a ser
cumprida, qual será a remuneração e a intensidade do trabalho (RAICHELIS, 2011).

As características do Estado em cada período histórico causam impacto na realização do


trabalho nos setores de serviços públicos. No Estado de Bem-Estar Social esse setor foi funda-
mental, pois com o aumento dos serviços estatais tornou-se necessária a criação de empregos
entre 1950 e 1980 (ROSE, 1985 apud MATTOS, 2005, p. 119), especialmente nas atividades dos 11
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, as quais são consideradas essencialmente estatais
(MATTOS, 2005). Porém, o aumento dos empregos no setor público também ocorreu sob uma
grande exploração dos trabalhadores, típica da lógica fordista, predominante na época. Essa
forma de gestão tinha como característica um rígido controle da força de trabalho, o que tam-
bém é adotado pelo Estado (FONSECA, 2002 apud CARVALHO, 2015, p.22).

As transformações ocorridas no Brasil após a chegada do Neoliberalismo e da Reestrutura-


ção Produtiva vão contra os direitos que os trabalhadores conquistaram nos anos 1980. A
consequência disso tem sido o aumento do desemprego, da pobreza e a redução da proteção
social. Esses fatores aprofundam as expressões da questão social, a qual constitui o objeto
de trabalho dos Assistentes Sociais e que vem se transformando em grandes demandas para
o judiciário brasileiro, campo caracterizado pela intensificação da cobrança por mais produti-
vidade no trabalho (CUNHA, 2015, p. 9).

Entre os anos de 1996 e 1998 o Banco Mundial formulou estratégias para remodelar os
países, adequando-os aos padrões neoliberais. Essas estratégias buscavam o alívio da
pobreza, mas também a continuidade da desregulamentação do trabalho e a Reforma do
Estado. Ele estabelece dez iniciativas que os Estados deveriam seguir para uma globaliza-
ção financeira mais eficaz (PEREIRA, 2006):
1) blindagem das agências estatais responsáveis pela condução da política econômica contra
qualquer tipo de pressão ou controle democráticos; 2) quebra dos direitos dos trabalhadores do
setor público; 3) enxugamento e “racionalização gerencial” de todo funcionalismo público, por
meio da adoção de novas tecnologias e formas de controle e concorrência do processo de traba-
lho já utilizadas no setor privado; 4) implementação acelerada da descentralização administrativa
(na prática, muito mais uma desconcentração seletiva de funções do Executivo federal); 5) ex-
pansão de todo tipo de arranjos “público- privados” para a execução de políticas públicas; 6) re-
organização do sistema escolar e do poder judiciário, mediante descentralização administrativa,
padrões de remuneração por produtividade e adoção de formas de concorrência para captação de
recursos; 7)finalização do ciclo de privatizações de empresas e bancos públicos; 8)reestruturação
da seguridade social, aumentando o tempo de contribuição e abrindo espaço para fundos priva-
dos; 9) “modernização” do instrumental jurídico e repressivo necessário à segurança dos direitos
de propriedade; 10) criação de marcos institucionais que garantissem a segurança e a alta renta-
bilidade dos fluxos de capital financeiro, especialmente os de curto prazo (PEREIRA, 2006, p. 15).

Essas estratégias vêm se concretizando em diversos setores da sociedade brasileira,


principalmente no Poder Judiciário do Rio de Janeiro. A partir de 2003 isso se torna
mais evidente, pois o Judiciário fluminense reformula-se administrativamente e imple-
menta uma gestão estratégica. A partir daí busca-se uma forma de gestão mais parecida
com aquela utilizada no Toyotismo, utilizando-se, por exemplo, o trabalho em equipe e a
busca pela solução de problemas (FGV, 2005).

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Uma das orientações fornecidas pelo Banco Mundial (1996, p. 12) foi a realização de um
reexame do número de servidores do Judiciário, para verificar se as demandas do mercado
estavam sendo atendidas de forma satisfatória. Em conformidade com essa orientação,
em 2009 o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro reorganiza as equipes de
Serviço Social, o que na lógica da instituição teria como objetivo “racionalizar” os recursos
humanos para limitar os gastos com pessoal, evitando assim realizar novas convocações,
tendo em vista que no período vivenciava-se um contexto de exigência de redução de cus-
tos por parte dos Poderes da República.
12
De acordo com o Parecer da Corregedoria Geral de Justiça (2009a, p. 27), no ano de
2009 havia 300 (trezentos) Assistentes Sociais e 152 (cento e cinquenta e dois) Psicólo-
gos para atender a mais de 603 (seiscentos e três serventias), o que não era suficiente.
Segundo o mesmo parecer o aumento da quantidade de cargos necessitaria de alteração
da lei, o que era improvável, já que a lógica predominante era a de redução dos gastos
por parte Poderes da República. Dessa forma, podemos identificar que, a alternativa de
criação das Equipes Técnicas Interdisciplinares Cíveis (ETIC) segue uma lógica gerencial
muito semelhante às tendências dos setores de produção e de serviços, oriundos da
crise estrutural do sistema do capital.

A implementação das ETICs ocorreu, para contornar a realidade da falta de servidoras.


Essa solução institucional deveria ser algo temporário, mas a insuficiência de Assistentes
Sociais torna-se uma realidade cada vez mais evidente. Nas entrevistas realizadas com 10
(dez) Assistente Sociais das ETICs do 2º Núcleo Regional do TJRJ foi possível perceber que,
apesar da reorganização das equipes, a instituição uma realidade de falta de profissionais
de Serviço Social. Das 10 (dez) Assistentes Sociais entrevistadas, 07 (sete) declararam que
o número de profissionais é insuficiente para a realização do trabalho, 02 (duas) declararam
que depende do período e apenas 01 (uma) respondeu que é suficiente, comparando-se com
a realidade de outras Comarcas. Analisando criticamente podemos notar a instalação da
lógica das empresas no setor judiciário do Rio de Janeiro, que mesmo com um aumento da
demanda mantem um quadro enxuto de profissionais, assim como na gestão Toyotista. Com
a utilização do trabalho em equipe a exploração de mais-trabalho se intensifica.

As exigências institucionais aliadas à possibilidade de perda da estabilidade caso a ava-


liação de desempenho das servidoras não seja satisfatória, possibilita a intensificação da
exploração das Assistentes Sociais do judiciário. Essas exigências interferem no processo
de trabalho e dificultam que as profissionais consigam realizar um trabalho comprometido
com o projeto ético – político da profissão.

5. Exigências institucionais e compromisso ético-políti-


co do Serviço Social

As exigências institucionais apresentam incompatibilidades com a realização de um trabalho


social que contribua para a emancipação humana, conforme o exposto no Código de Ética do
Assistente Social (1993) em seu inciso VIII:

VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova or-
dem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero (CFESS, 1993, p. 24).

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Com a judicialização das políticas sociais, consequência do comportamento neoliberal do Estado,
o volume processual vem crescendo no Tribunal de Justiça, culminando no aumento da demanda
também para o Serviço Social da instituição. O número reduzido de Assistentes Sociais e a resis-
tência do Tribunal de Justiça em contratar novas profissionais faz com que as Assistentes Sociais
da instituição sejam sobrecarregadas e necessitem utilizar todo o seu tempo para realizar as
tarefas que são demandadas pela instituição, ainda que busquem fazê-las de forma comprome-
tida com os interesses dos usuários. Os dados colhidos nas entrevistas nos permitem identificar
que as exigências institucionais vêm interferindo nos processos de trabalho do Serviço Social e
impedindo a realização de atividades mais reflexivas e que busquem atender mais efetivamente 13
as demandas dos usuários. Uma das Assistentes Sociais entrevistadas fez o seguinte relato:

(...) eu estou um pouco cansada desse trabalho, se eu pudesse eu pediria a minha aposenta-
doria amanhã, assim porque eu acho repetitivo, um trabalho muito repetitivo. E você faz aquilo:
pega o processo, lê, chama a parte ‘pra’ a entrevista e faz relatório. Então, esse trabalho pra
mim, 12 anos no Tribunal, eu ‘tô’ cansada desse trabalho. Eu gostaria de fazer uma coisa dife-
rente, também não sei te dizer o quê, de repente um grupo. Eu acho legal, sabe, trabalhar com
grupo, mas eu também não vejo perspectiva de trabalhar assim aqui dentro, não consigo ver um
trabalho diferente, então eu hoje estou um pouco sem gás, assim, estou desanimada. (Relato de
Assistente Social da ETIC- 2º NUR).

A intensificação da exploração do trabalho também faz com que se torne cada vez mais di-
fícil para as profissionais cumprirem seu compromisso de constante aprimoramento intelec-
tual, pois essas profissionais necessitam extrapolar seu horário de trabalho para conseguir
finalizar suas atividades nos prazos exigidos. É preciso considerar ainda a questão de gênero
que envolve a profissão. Conforme explicita Santos (2013):

A mulher apoderou-se de diversos espaços, principalmente da esfera pública, que outrora lhes
eram recusados. No entanto, nessas conquistas ainda permeiam desigualdades, visto que mes-
mo se deslocando para a esfera pública é subjugada a continuar também na esfera privada,
acabando por exercer uma dupla jornada de trabalho (SANTOS, 2013, p. 7).
As Assistentes Sociais também são sujeitos que vivenciam as mesmas questões que
perpassam todos os outros sujeitos da sociedade capitalista, dentre as quais a questão de
gênero, porquanto essas profissionais além de corresponder às exigências profissionais
também necessitam dedicar-se a outras atividades no âmbito privado, pois muitas são mães,
filhas que cuidam de seus pais, etc. O trabalho no Tribunal de Justiça vem consumindo não
só o horário formal de trabalho, mas também o tempo que essas mulheres deveriam dedicar
a outras atividades, como ao descanso e ao lazer, por exemplo. Das 10 (dez) entrevistadas,
07 (sete) afirmaram que costumam finalizar as atividades laborativas fora do ambiente de
trabalho. Isso aliado à questão de gênero que sobrecarrega também as Assistentes Sociais
faz com que o compromisso de dar continuidade ao aprimoramento intelectual torne-se uma
árdua tarefa, que muitas vezes as profissionais não conseguem cumprir.

E o compromisso com a qualificação não se limita apenas às próprias Assistentes Sociais, mas
também aos graduandos em Serviço Social que necessitam realizar estágio para completar sua
formação, conforme as diretrizes curriculares da ABEPSS, que estabelecem que o estágio em
Serviço Social pressupõe supervisão acadêmica e também supervisão por um Assistente Social
do campo, buscando realizar reflexão, acompanhamento e sistematização das atividades.

Estágio Supervisionado: É uma atividade curricular obrigatória que se configura a partir da


inserção do aluno no espaço sócio-institucional objetivando capacitá-lo para o exercício do
trabalho profissional, o que pressupõe supervisão sistemática. Esta supervisão será feita pelo

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professor supervisor e pelo profissional do campo, através da reflexão, acompanhamento e sis-
tematização com base em planos de estágio, elaborados em conjunto entre Unidade de Ensino
e Unidade Campo de Estágio, tendo como referência a Lei 8662/93 ( Lei de Regulamentação da
Profissão ) e o Código de Ética do Profissional ( 1993 ). O Estágio Supervisionado é concomi-
tante ao período letivo escolar (ABEPSS, 2006, p. 19).

O estágio em Serviço Social é uma atividade de fundamental importância no processo de for-


mação de novos Assistentes Sociais, momento em que o estudante terá contato com a práti-
ca profissional e aprimorará seu conhecimento teórico-prático. Por outro lado, essa também
14
é uma atividade que demanda tempo dos profissionais para que eles possam se dedicar com
qualidade às atividades de supervisão. Conforme podemos perceber as exigências institu-
cionais consomem todo o tempo das Assistentes Sociais, o que também dificulta que essas
profissionais possam cumprir seu compromisso com os futuros Assistentes Sociais através
da abertura de vagas de estágio e de uma supervisão de campo de qualidade, estremecendo
mais uma vez o compromisso ético-político das profissionais do sócio jurídico.

6. Considerações finais

Este trabalho buscou analisar as transformações ocorridas no trabalho das Assistentes


Sociais do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e como elas interferem no
compromisso ético-político dessas profissionais. Buscou-se compreender o comporta-
mento do Estado e as modificações no mundo do trabalho para compreender as determi-
nações ao objeto em análise.

Conforme buscou-se analisar, a partir de 1970 os Estados reduzem-se ao máximo suas fun-
ções, passando tudo para as mãos do mercado com vistas a atender suas exigências e com
o objetivo de superar a crise vivenciada à época (THERBORN, 1999). A partir de 1990 essas
modificações e reestruturações se consolidam no Brasil, que passa por uma fase de retirada
de direitos sociais e trabalhistas (DRUCK, 2011, p. 52).

A partir de 1995 ocorrem profundas modificações na forma de administração do Estado


brasileiro, que começa a utilizar uma forma de gestão baseada naquela usada nas empresas.
Essa Reforma acontece à custa dos direitos trabalhistas e previdenciários, flexibiliza a esta-
bilidade dos servidores, condicionando-a à avaliação de desempenho, a qual é feita mediante
novos mecanismos de controle de trabalho (BRASIL, 1995). As modificações assumidas
pelo Estado chegam à realidade das Assistentes Sociais do sócio jurídico, as quais têm
um aumento na demanda de trabalho por conta do processo de judicialização das políticas
sociais, fruto do enxugamento do Estado que causa o aumento do desemprego e a redução
das políticas sociais de cunho universal (IAMAMOTO, 2004, p. 3).

Aliado a esse aumento da demanda vem também a resistência do Tribunal de Justiça em


convocar novos profissionais, sobrecarregando as Assistentes Sociais da instituição, as
quais são ainda submetidas a uma pressão constante pelo o cumprimento de prazos e
resposta às exigências institucionais, que se intensifica ainda mais com a implementação do
processo eletrônico que tem como objetivo acelerar os atos processuais. Essa intensifica-
ção da exploração rebate no compromisso ético e político das Assistentes Sociais, as quais
diante da pressão por mais trabalho faz com que seja cada vez mais difícil cumprir com os

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compromissos de aprimoramento intelectual, de uma atividade profissional comprometida
com a construção de uma nova ordem societária e também com a formação de novos Assis-
tentes Sociais através da abertura de vagas de estágio.

Ainda que as Assistentes Sociais tenham um compromisso com seus usuários e busquem
realizar um trabalho comprometido com o projeto ético-político hegemônico do Serviço So-
cial, as demandas institucionais vêm interferindo na autonomia dos profissionais na escolha
das atividades que serão realizadas, por exemplo, atividades com grupos e supervisão de
estágio. Entretanto, não se deve adotar uma postura pessimista, é necessário resistir às
15
imposições que vem sendo feitas dentro do Tribunal de Justiça, como em diversas outras
instituições. Através da união dos profissionais e da luta coletiva é possível resistir e buscar
um Serviço Social cada vez mais comprometido com as demandas de seus usuários.

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17
PROGRAMA DE PREPARAÇÃO
PARA APOSENTADORIA DO PODER
JUDICIÁRIO DO ESTADO DO ESPÍRITO
SANTO - RELATO DE EXPERIÊNCIA

Rosely Socolott da Silva Santos1 e Elissa Orlandi2

EIXO TEMÁTICO: GESTÃO DO TRABALHO

Diante da centralidade que o trabalho ocupa na sociedade capitalista, de super-


valorização do papel profissional, concomitante a uma imagem estereotipada do
ser humano aposentado e do envelhecimento, a proximidade da aposentadoria
se constituiu em um processo único e diferenciado para cada pessoa, que pode
gerar sentimentos ambíguos de liberdade e crise. Este artigo visa apresentar
a prática do Programa de Preparação para Aposentadoria (PPA) do Poder Ju-
diciário do Estado do Espírito Santo (PJES), que tem por objetivo criar um es-
paço de reflexão sobre os aspectos que envolvam a aposentadoria, de forma a
estimular o planejamento desta etapa e contribuir para a qualidade de vida dos

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magistrados e servidores. Mostrar-se-á a experiência de implantação, planeja-
mento e execução do Programa, bem como o alcance de seus objetivos. Trata-se
de um relato de experiência de natureza descritiva, que utilizou-se de pesquisa
documental. Conclui-se que o Programa tem sido importante na sensibilização
quanto à temática aposentadoria na instituição, e que dentre as ações realiza-
das, destacam-se os Encontros sobre Aposentadoria e os Grupos de Preparação
para Aposentadoria, que possuem grande índice de participação e avaliação po-
sitiva. No entanto, são apontadas a continuidade de algumas ações do Programa,
bem como a necessidade de aprimoramento com a adoção de algumas práticas.
18
Palavras-chave: Judiciário, Aposentadoria, Preparação.

1. Introdução

Compreende-se que refletir sobre a temática da aposentadoria nos remete ao significado do


trabalho para o ser humano. O trabalho pode ser compreendido como todo esforço, físico ou
psíquico, do ser humano ao mediar em um ambiente com o objetivo de transformar. Ou seja,
por meio do trabalho o ser humano interage na natureza, transformando-a e sendo transfor-
mado por essa (ZANELLI, SILVA, SOARES, 2010).

Os processos de socialização primária e secundária nos moldam para o trabalho, mesmo


quando ainda não entendemos de modo exato seu significado, pois na fase adulta, espera-se

1 Assistente Social do TJES. Pós-graduada em Gestão em Saúde pela Universidade do Espírito Santo (UFES),
Gestão Pública pelo IFES e Política Social, Gestão e Controle Social pela Emescam. E-mail: rosysocolott@hotmail.
com. Telefone: (27) 99829-8990

2 Psicóloga. Mestre em Psicologia. Tutora do Curso de Pós-Graduação em Gestão em Saúde, Universidade


do Espírito Santo (UFES).elissaorlandi@terra.com.br. Telefone: (27) 99994-5866
a inserção no mundo do trabalho (ZANELLI, SILVA, SOARES, 2010). Assim, o trabalho ocupa
um papel de destaque na vida do indivíduo, na medida em que confere às pessoas um
valor, uma “identidade”, a partir da ocupação que ela desempenha na sociedade. Através
do trabalho, o indivíduo reconfigura a percepção de si mesmo e do ambiente, favorecendo
o desenvolvimento pessoal e os processos de autodescrição e autoavaliação, conforme
acreditam os autores Soares e Costa (2011), Silva (2006) e Zanelli, Silva, Soares (2010).

Desta forma, o afastamento do mundo laboral com a aposentadoria, geralmente produz


sentimentos ambíguos: de liberdade e crise. Liberdade, pela possibilidade de realizar
atividades de lazer e concretização de planos, anteriormente não possíveis de realizar; e
crise, pela não aceitação da condição de aposentado, devido à imagem estigmatizada de
ser inativo (Santos 1990 apud Soares e Costa 2011).

Conforme França (2002) e os autores Zanelli, Silva e Soares (2010), atrelado ao trabalho
estão questões como: a remuneração; o status; as relações no ambiente de trabalho; o
prazer na realização da atividade e o círculo de amizades. Todos esses fatores compõem
um referencial para o viver, sendo difícil o desligamento das atividades do trabalho, prin-
cipalmente quando não se vislumbra outros projetos e possibilidades. Pontuam que não
são poucos, relatos de separação conjugal, doenças psicossomáticas e até suicídio nos
primeiros meses ou anos de aposentadoria.

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Muitas vezes, e de forma preconceituosa, o envelhecimento é entendido somente como
uma fase de inatividade, de adoecimento, de morte, de dependência, de isolamento, de de-
clínio físico e perda de papéis sociais de referência, conforme apontam alguns estudiosos
da área (SOARES, COSTA, 2011), (ZANELLI, SILVA,1996). Para Santos (1990 apud ZANELLI,
SILVA, SOARES, 2010) o modo de produção capitalista supervaloriza o produtivo, da ótica
racional e econômica, e deprecia o ser humano aposentado, sendo que tais conteúdos não
se manifestam apenas no nível consciente, mas muitas vezes de maneira velada.

Todas estas questões são vivenciadas de formas diferentes pelas pessoas, tendo em 19
vista que o envelhecimento é um processo heterogêneo, ou seja, mais que um fenôme-
no natural, biológico e orgânico, é também um fenômeno social, econômico, político e
cultural (CUNHA, 2010).

Diante destas considerações, a preparação para a aposentadoria torna-se imprescindível


para favorecer a qualidade de vida, na medida em que fortalece a criatividade, a construção
de novos papéis sociais e o diálogo com o mundo além do ambiente institucional. Contribui
ainda para o bem-estar, para a manutenção da autonomia e a integração social, conforme
apontam estudiosos da temática (FRANÇA, SOARES 2009), (ZANELLI, SILVA, SOARES,
2010), (SOARES, COSTA, 2011), (MURTA, FRANÇA, SEIDEL, 2014).

Segundo França (2008), quanto mais alto o cargo da pessoa, mais difícil será o pro-
cesso de aposentadoria, tendo em vista a “perda” do status. Desta forma, programas
de preparação para aposentadoria tem se revelado espaço de reflexão por excelência
para transição para a nova etapa da vida com planejamento, segurança, tranquilidade e
qualidade. Preparação compreendida no sentido de tomada de consciência ou reflexão,
incentivando a descoberta de potencialidades de ação de vida que não se esgotam com a
consolidação da aposentadoria (ZANELLI, SILVA, SOARES, 2010).
O caráter preventivo do programa não deve ser comparado à terapia de grupo, visto que
este tem por finalidade alcançar estágios “mais profundos dos processos psicológicos
(CASTILHO, 1992), enquanto que o programa estabelece uma oportunidade de reflexão,
aprendizado e crescimento pessoal” (BERNHOEFT, 1991; FRANÇA, 1992; ZANELLI e SIL-
VA, 1996 apud Zanelli, 2000, p. 163).

Dessa forma, este trabalho tem por objetivo apresentar um relato de experiência do Programa de
Preparação para Aposentadoria (PPA) do Poder Judiciário do Estado do Espírito Santo (PJES).

2. Desenvolvimento

O PJES é uma organização autônoma, composta de vários órgãos, sendo o órgão supremo o
Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), com sede na capital e jurisdição em
todo o território do Estado. O quadro funcional é de 4.008 trabalhadores, sendo em torno de
28 desembargadores, 316 magistrados e 3.664 servidores, conforme dados de maio de 2016.

Em agosto de 2012, o TJES implantou o PPA do PJES, aprovado pela Secretaria Geral do
órgão. O Programa é planejado e executado pela Coordenadoria de Serviços Psicossociais e
de Saúde (CSPS) vinculada a Secretaria de Gestão de Pessoas.

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A implantação do PPA surgiu a partir da necessidade diagnosticada por profissionais da área
de Serviço Social e Psicologia da CSPS (equipe anterior a atual), mediante a observação de
relatos pessoais dos trabalhadores, na maioria negativos associados à aposentadoria, junto
às dificuldades destes, em se aposentar. Somado a isso, havia o anseio da presidência do
TJES, gestão 2012-2013, em trabalhar essa temática no órgão.

Desta forma, no início de 2012, a equipe técnica da CSPS, advinda do último concurso do
PJES, foi solicitada a atender tal demanda. Cabe ressaltar que a equipe não realizou diag-
nóstico com o público-alvo para a implantação do Programa, antes, porém, foram realizadas 20
diversas visitas institucionais a órgãos públicos e empresa privada no Estado do Espírito
Santo, levantamento sobre a experiência do PPA em outros Tribunais de Justiça do país e
pesquisa bibliográfica sobre a temática. Vale destacar que os órgãos públicos estaduais
visitados foram na esfera municipal e um caracterizado por sociedade de economia mista.

O PPA/PJES tem como objetivo geral criar um espaço de reflexão sobre os aspectos que
envolvem a aposentadoria, de forma a estimular o planejamento dessa etapa e contribuir
para a qualidade de vida dos magistrados e servidores. Tem como público-alvo, pessoas que
estejam há 2 (dois) anos da aposentadoria, sendo meta a longo prazo trabalhar a temática
com todos os trabalhadores do órgão desde sua admissão, bem como alcançar os servidores
de todas as comarcas do Estado.

O Programa é composto das seguintes atividades: Atendimento individual, Encontro sobre


Aposentadoria e o Grupo de Preparação para Aposentadoria, que serão detalhados respectiva-
mente. Outras atividades correlatas ao tema poderão ser formuladas conforme a demanda.

O Atendimento Individual é uma ação alternativa as ações grupais, e visa atender e acompa-
nhar magistrados e servidores que estão próximos à aposentadoria. A demanda é espontânea,
sendo necessário agendamento prévio com a equipe da CSPS, a qual realiza os atendimentos.
O Encontro sobre Aposentadoria é um evento informativo com objetivo de esclarecer dúvidas
sobre as modalidades e o processo de aposentadoria como: averbação de tempo de serviço,
abono permanência, dentre outros benefícios e direitos. O evento é realizado com a parceria
do IPAJM (Instituto de Previdência dos Servidores do Estado do Espírito Santo) e destina-se a
todos os servidores e magistrados, independente do tempo de contribuição e idade. Através
desta atividade, possibilita-se a todos servidores e magistrados da instituição a proximidade
com a temática aposentadoria, não apenas os pré-aposentandos.

O Grupo de PPA é realizado em 4 (quatro) módulos, quais sejam: Projeto de Vida, Finanças
e Orçamento Doméstico, Direito Previdenciário (Balcão de Informações) e Saúde. Inicia-se
o Grupo de PPA, com a realização de um Pré-Encontro, realizado antes da execução dos
módulos, para apresentação da proposta do Grupo, integração dos participantes e levanta-
mento das expectativas. A importância do levantamento de expectativas, se justifica tendo
em vista que os procedimentos adotados devem ser motivadores para o indivíduo, sensíveis
a sua cultura e adaptados às suas necessidades. Consta no escopo do programa aprovado, a
possibilidade de realização de um quinto módulo com temas sugeridos pelos participantes.

O desenvolvimento do Grupo de PPA é caracterizado por ser um trabalho grupal, uma moda-
lidade de intervenção que contribui para a troca de experiência e opiniões sobre a temática
entre os integrantes (MURTA, FRANÇA E SEIDEL, 2014). A metodologia utilizada busca

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despertar o interesse para cada temática (tratada nos módulos), estimular a absorção dos
conteúdos e a construção coletiva.

Inicialmente, para planejamento e organização do trabalho e dos instrutores, o tempo de


realização, atividades propostas e objetivos a alcançar, são previamente fixados. Utiliza-
se atividades informativas e vivenciais, por meio de palestras, dinâmicas grupais, depoi-
mentos de ex-participantes aposentados, apresentação cultural, vídeos, leitura de textos,
que podem variar conforme demanda e expectativa dos participantes, colhida através de
questionário ou atividade dinâmica no Pré-Encontro. Assim, a consolidação desses dados
21
é utilizada para direcionar o foco dos assuntos a serem discutidos, buscando contemplar a
expectativa dos pré-aposentandos.

Os grupos são constituídos por, no máximo, 35 pré-aposentandos. O número reduzido de


participantes por grupo é opcional e constitui-se em estratégia para fomentar a participa-
ção e aprofundamento nas discussões e vivências. Com o início desta atividade, perce-
beu-se grande interesse pela ação, sendo necessário definir critérios de seleção, caso o
número de inscritos ultrapasse o de vagas.

Os critérios definidos respectivamente são: estar em abono permanência, estar mais de um


ano e meio afastado por Licença Tratamento Própria Saúde, estar há 2 (dois) anos da aposen-
tadoria. Caso haja empate, a prioridade é para o pré-aposentando com maior idade. Tais crité-
rios foram definidos em 2016, após a promulgação da Lei Complementar n.º 152 em dezembro
de 2015, que redefiniu a idade da aposentadoria compulsória para 75 anos. Anteriormente os
critérios utilizados eram: ter 68 anos de idade ou mais, estar usufruindo abono permanência,
estar há mais de um ano e meio afastado por licença para tratamento da própria saúde.

A participação é voluntária, porém uma vez inscritos, salienta-se a necessidade da partici-


pação efetiva, pois as ausências aos módulos comprometem a efetividade do trabalho e
consequentemente a preparação para aposentadoria. Os módulos ocorrem durante horário
do expediente, garantida a participação através de falta abonada, autorizada pela Presidên-
cia do TJES, mediante a efetiva presença do pré-aposentando. Enviamos as chefias imediatas
dos participantes, comunicado contendo a programação e a autorização da Presidência.

É fomentada a participação de familiares em todos os módulos do grupo, possibilitando um


acompanhante por pré-aposentando, para que possam contribuir e apoiar as escolhas e deci-
sões da nova fase, conforme apontam França (2002), França e Soares (2009) e Zanelli (2000).

Cada módulo tem a duração de cerca de 4 horas, com exceção do Módulo Direito Previ-
denciário trabalhado na forma de “Balcão de Informações”, que proporciona atendimento
individualizado aos participantes com os técnicos do IPAJM, a fim de saberem qual sua
real condição funcional e de direitos para aposentadoria. Esta metodologia de trabalhar
com a questão previdenciária, vem corroborando para sanar uma das grandes expectativas
(iniciais) dos participantes, qual seja, sobre a remuneração pós-aposentadoria. A duração
do atendimento são de 15 minutos para cada participantes. Para organização da equipe, o
intervalo entre um atendimento e outro são de 20 minutos.

No mesmo dia do “Balcão de Informações” é realizado, pela enfermeira da CSPS, o levanta-


mento de saúde, para conhecer dados de saúde dos pré-aposentandos, e utilizá-los, no Módu-
lo de Saúde, através de uma abordagem mais próxima a realidade destes.

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Ao final de cada módulo é aplicado uma avaliação, e após 6 (seis) meses do término desta
ação, é realizado o Monitoramento do Grupo de PPA que, através de atividade grupal e avalia-
ções individuais, verifica o impacto das ações para os participantes. Tais dados são tabula-
dos, a fim de balizar a equipe quanto a necessidade de aprimoramento.

Quanto a divulgação do PPA/PJES, é realizada através de vários meios de comunicação da


instituição, quais sejam: intranet, e-mail e cartazes. Para o Encontro sobre Aposentadoria
o participante realiza a inscrição no link divulgado, e está automaticamente inserido. Para
o Grupo de Preparação para Aposentadoria com a divulgação, dá-se início a pré-inscrição, 22
por telefone, pois há necessidade de coletar dados adicionais. Conforme descrito anterior-
mente, havendo necessidade é realizada uma seleção. Apenas após o término desta, são
divulgados os participantes do Grupo de PPA.

Para a realização das atividades, o Programa conta com equipe multidisciplinar composta
de assistentes sociais, psicólogos e enfermeira lotados na CSPS. Através da parceria com o
IPAJM e a participação de instrutores (voluntários) convidados, até o momento, foi possível
executar as ações planejadas bem como alcançar o objetivo do programa, comprovado pela
equipe através dos relatos, avaliação dos participantes e Monitoramento do Grupo de PPA.
Conforme França (2002, p.44) “deve ser estudada a hipótese da solicitação de profissionais
de organizações governamentais e não-governamentais para a colaboração no programa”.

Existe o compromisso ético da equipe do Programa de não pressionar o servidor a se


aposentar, pois esta é uma decisão individual. A equipe tem por finalidade despertá-los para
uma reflexão sobre seu momento de vida pessoal e profissional, respeitando decisão de cada
pré-aposentando. Tal princípio é corroborado por França e Soares (2009, p. 749) “a prepara-
ção para aposentadoria é um recurso a ser disponibilizado pelas organizações, desde que
garantida à oportunidade da livre escolha”.
3. Resultados e Considerações

O PPA/PJES, até agosto de 2016, fomentou a preparação para aposentadoria de magistra-


dos e servidores, através de 143 atendimentos individuais, 300 participações nos Encontros
sobre Aposentadoria e a participação de 129 pré-aposentandos nos Grupos de PPA.

As atividades do Programa iniciaram em novembro de 2012, com a realização do 1º


Encontro sobre Aposentaria, que surpreendeu a equipe da CSPS, com o número de inscri-
tos maior que a capacidade do auditório, o que levou a realização do 2º Encontro sobre
Aposentadoria com intervalo de cerca de 5 meses.

Os Encontros sobre Aposentadoria 1º, 2º, 3º e 4º contaram respectivamente, com 108, 98, 48
e 46 participantes. Cabe ressaltar que o 1º e 2º Encontro sobre Aposentadoria foram realiza-
dos em Vitória, e o 3º e 4º em comarcas do interior do Estado, respectivamente, Cachoeiro
de Itapemirim e Colatina. Os Grupos de PPA 1º, 2º, 3º e 4º contaram respectivamente, com
37, 36, 31, 25 participantes. Sempre realizados em Vitória, onde se concentra o maior número
de pessoas próximas a aposentadoria. O 5º Grupo de PPA (em andamento), será realizado
em Linhares e conta com 23 pré-aposentandos inscritos.

Quanto os dados das avaliações dos Encontros sobre Aposentadoria, referente ao item dú-

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vidas esclarecidas satisfatoriamente, temos uma média de 85,75% dos relatos. Concernente
aos Grupos de PPA são vários os dados dos módulos, então informaremos aqui, que a média
de 81,% dos respondentes aos questionários utilizados, atribuíram as notas de 8 a 10, no
impacto que a participação no Grupo de PPA teve na vida dos participantes.

A maioria dos participantes demostra satisfação e se sentem valorizados pela equipe, que
busca ouvi-los, mantêm contato próximo aos integrantes do grupo, apoia, conforme possibili-
dades, as necessidades do grupo, e organiza os módulos a fim de suprir suas expectativas.

Cabe informar que observa-se uma pequena participação de magistrados nas atividades do 23
Programa, o que merece por parte da equipe, análise e estabelecimento de estratégias para
aumentar a adesão deste público ao Programa.

As ações realizadas em comarcas do interior do Estado são realizadas de forma regionali-


zada, e visa atender todas as comarcas circunvizinhas, tendo por finalidade alcançar a meta
estabelecida inicialmente pelo Programa de atingir todos os servidores e magistrados do
Judiciário Capixaba. Outra meta estabelecida para longo prazo já iniciada pelas ações, é
instigar a temática aposentadoria com todos os trabalhadores do órgão desde sua admissão,
o que ocorre com a realização do Encontro sobre Aposentadoria.

Porém, sabe-se que é necessário avançar nesta meta, pois segundo Murta, França, Seidl
(2014, p. 70) “é altamente recomendável que pessoas no início ou no meio da carreira tam-
bém participem de ações de educação para aposentadoria, pois este é um processo comple-
xo que pode ser bem-sucedido quanto mais cedo for iniciado”.

O 1º Grupo foi realizado em ambiente externo ao institucional, a fim de proporcionar ambien-


te o mais informal possível, conforme ressalta Silva (2006). Porém, por falta de recurso finan-
ceiros, os outros grupos foram realizados nas dependências do TJES. Avalia-se, que mesmos
não sendo disponibilizado todos os recursos necessários, a não realização das atividades do
Programa será mais prejudicial ao público-alvo.
A equipe fomenta nos Grupos de PPA o protagonismo dos pré-aposentandos, na medida
em que desmistifica ser um “curso”, sendo imprescindível a interação do grupo, bem como
a corresponsabilidade do pré-aposentando com as atividades desenvolvidas. Além disso,
gradativamente o Programa vem quebrando o paradigma de que apenas quem está próximo à
aposentadoria necessita refletir e planejar essa fase.

Algumas atividades do PPA/PJES possuem grande índice de participação e avaliação positiva,


no entanto, percebe-se a necessidade de avançar em alguns pontos, a saber: sensibilização
dos gestores e ocupantes de cargos de chefia no PJES, para ciência da proposta do Programa,
bem como a relevância de fornecer suporte ao trabalhador pré-aposentando, a fim de poten-
cializar o apoio da participação deste nas ações, e encaminhamento à equipe da CSPS.

Alguns componentes da equipe que desenvolvem o PPA/PJES participaram do III Congres-


so de Brasileiro de Orientação para Aposentadoria (CONBOA), realizado em 2014 com a
apresentação de pôster. Porém, verifica-se a necessidade da continuidade de capacitação e
formação na área por parte de toda a equipe da CSPS para aprimoramento do trabalho.

Em 2015 houve a proposta de normatização do Programa, com objetivo de assegurar sua


execução independente da alternância da Alta Administração, que ocorre bienalmente.
Porém, diante da conjuntura externa e interna a instituição, avaliou-se que o momento
não foi oportuno para tal publicação, tendo em vista que poderia haver subtração de

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garantias profícuas ao PPA/PJES.

Para 2016, está prevista a criação e realização de outra ação do PPA/PJES, com o intuito
de fazer uma nova avaliação do impacto dos Grupos de PPA, possibilitar que os parti-
cipantes troquem experiências acerca do seu processo de aposentadoria, e propiciar
integração dos pré-aposentandos. Tal atividade será realizada com a junção de todos os
pré-aposentandos dos Grupos de PPA (total de 5, até a data prevista no mês de novem-
bro), inicialmente como projeto-piloto.
24
Observa-se que para os atendimentos individuais a demanda espontânea é pequena, em-
bora nota-se que o público-alvo do Programa, apresenta questões individuais complexas
de serem abordadas em atividades grupais ou coletivas. Desta forma, está em curso um
projeto-piloto de reestruturação dos atendimentos individuais, em que através de critérios
pré-definidos, haverá uma abordagem (convite) para vinculação aos atendimentos. Tal
atendimento será conforme demanda do atendido, podendo variar desde a orientação
quanto a documentação, a fim de evitar retrabalho do RH/TJES e do IPAJM; quanto ao
acompanhamento das questões psicossociais, a fim de contribuir para o processo decisó-
rio e a qualidade de vida do pré-aposentando.

Além disso, está prevista a reestruturação do Programa, com a criação de indicadores,


pois embora haja avaliações de cada atividade desde o início das atividades, bem como,
em especial para o Grupo de PPA, a realização do Monitoramento do Grupo de PPA após 6
meses do término, atenta-se para a imperiosa necessidade da elaboração de indicadores a
fim de examinar não apenas uma situação pontual, mas de continuidade e de oportunidade
de melhoria. No entanto, verifica-se a escassez de material teórico-metodológico, que tratem
de indicadores em programa de preparação para aposentadoria.
4. Considerações finais

O PPA/PJES é de fundamental importância, tendo em vista a centralidade que o trabalho


ocupa na sociedade capitalista, bem como pelas particularidades do processo de trabalho no
Judiciário, onde prevalece o trabalho de forma mecanizada, burocrática e relações de poder
verticalizada. Para Zanelli, Silva e Soares (2010, p. 43) “A organização tradicional molda
os conhecimentos, as habilidades, as atitudes, as necessidades e até os desejos. De igual
modo, ignora as necessidades, as expectativas, os projetos, os anseios e os temores”.

Concernente ao PPA do PJES encontramos a necessidade de continuidade de algumas ações


e a necessidade de avanços em alguns aspectos. Continuidade: em sua execução, visto que
os dados comprovam sua pertinência; na realização de atividades diversificadas que pro-
porcione abordagem individual e coletiva; na busca por proporcionar o Programa a todos os
servidores e magistrados do PJES, conforme as especificidades de cada atividade no acesso
ao público-alvo; e na busca por aprimoramento visando alcançar a efetividades das ações.

Quanto aos avanços, vislumbra-se: a necessidade de efetivar a normatização do PPA/PJES,


a fim de garantir a continuidade das ações; executar o projeto-piloto de reestruturação dos
atendimentos individuais; buscar constantemente a capacitação da equipe técnica; realizar
pesquisa com magistrados e servidores sobre a temática; intensificar a proximidade com a

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AMAGES, a fim de buscar elevar o quantitativo de magistrados participantes das atividades
do Programa; aperfeiçoar o levantamento de necessidades e expectativas do público-alvo,
com destaque para o perfil destes.

Conclui-se que o desligamento do mundo do trabalho é um momento que requer antecipa-


damente preparação, para tomada de decisão consciente, mas, sobretudo, que possibilite o
pós-aposentadoria de forma ativa e participativa. Para o alcance da efetividade dos pro-
gramas de preparação para aposentadoria são fundamentais: o cuidadoso planejamento,
organização e execução das atividades realizadas por seus facilitadores; e o envolvimento 25
dos pré-aposentados, enquanto corresponsáveis por este processo. Urge, porém, que as
instituições assumam o compromisso com seus trabalhadores, através da viabilização de
meios para a implementação e manutenção de programas, que promovam um planejamento
adequado, para uma decisão segura em relação à aposentadoria e, consequentemente, um
envelhecimento bem-sucedido e com qualidade.

Referências

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Nacional de Pesquisadores em Serviço Social, Rio de Janeiro, 2010.

FRANÇA L. H. de F. P. Repensando aposentadoria com qualidade: um manual para facilitares


de programas de educação para a aposentadoria em comunidades. Rio de janeiro: UNATI/
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Acesso em 20 out. 2015.
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Nova Zelândia. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.

FRANÇA, L. H. de F. P.; SOARES, D. H. P.. Preparação para a Aposentadoria como parte da


Educação ao Longo da Vida. Psicologia Ciência e Profissão, v. 29, n.° 4, p. 738-751, 2009. Dis-
ponível em <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v29n4/v29n4a07.pdf>. Acesso em: 19 out. 2015.

MURTA, S. G; FRANÇA, C. L.; SEIDEL, J. Programas de Educação para Aposentadoria: como


Planejar, Implementar e Avaliar: Sinopsys, 2014.

SILVA, H. B. da. Preparação para Aposentadoria: Lições de Ensinar e Aprender Fazendo. Serra:
Companhia Siderúrgica de Tubarão, 2006.

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tervenção ao final da carreira. Revista de Ciências Humanas Florianópolis, ed. Especial, 157-
176, 2000. Disponível em: <https://periodicos.ufsc.br/index.php/revistacfh/article/viewFi-
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ZANELLI, J. C.; SILVA, N.; SOARES, D. H. P. Orientações para aposentadoria nas organizações
de trabalho: construção de projetos no pós-carreira. Porto Alegre: Artmed, 2010.

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26
VIVENCIANDO O CRAS: PENSANDO O
TRABALHO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL
TENDO O VÍNCULO COMO MATÉRIA-
PRIMA E BASE DE AÇÃO DO PRÓPRIO
TRABALHO TÉCNICO

Abigail Marinho da Silva1, Júlia Flávia Gomes Pereira2 e Gilead Marchezi Tavares3

EIXO TEMÁTICO: GESTÃO DO TRABALHO

O psicólogo, atualmente, é um dos profissionais que compõe o corpo técnico da


equipe do Sistema Único de Assistência Social, seja em sua esfera básica ou es-
pecial. Tal contexto vem fazendo com que essa profissão, nos equipamentos da
assistência, seja marcada por inquietações e desafios que exigem a invenção de
novos conhecimentos, de novos possíveis dentro da prática profissional. Assim
sendo, visando tornar visíveis técnicas, recursos, estratégias, conhecimentos
diversos e processos sociais, que favoreçam transformações em nível local de

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situações sociais responsáveis por sofrimentos ético-políticos na Assistência
Social (no nível técnico e no nível social), propomos uma atuação no Sistema
Único de Assistência Social a partir da proposição de Projeto de Extensão no
município de Cariacica, compreendido como uma forma comprometida e com-
partilhada de fazeres e saberes exercidos por trabalhadores dos serviços do
SUAS.Visa-se, também, fazer das análises aqui elencadas uma força (micro)
revolucionária para manutenção das políticas públicas na Assistência Social;
força esta a ser desenvolvida diariamente no trabalho assistencial, haja vista a
despotencialização constante desse campo de trabalho pelo sucateamento tan-
to no nível vertical (Estado) quanto no nível horizontal (organização técnica).
27

Palavras-chave: Trabalho; Assistência Social; Vínculo; Processos de Trabalho.

1. Introdução

As Políticas de Assistência Social, que compõem grande parte da assistência à criança e ao


adolescente no Brasil, até 1988 eram concebidas inclusive perante a Lei como ações isola-
das de doação e caridade. No entanto, com a nova Constituição Federal passam a vigorar
como Política Pública, e enquanto tal, figuram no campo dos direitos, da universalização dos
acessos e da responsabilização estatal. A Lei de Organização da Assistência Social (Lei
Federal 8742/93 – LOAS) regulamenta os artigos 203 e 204 da Constituição Federal de 1988,

1 Psicóloga pela Universidade Federal do Espírito Santo e mestranda do Programa de Pós-graduação de


Psicologia Institucional da UFES. abigailmarinhodasilva@gmail.com / (27) 996419497

2 Psicóloga pela Universidade Federal do Espírito Santo e mestranda do Programa de Pós-graduação de


Psicologia Institucional da UFES. juliaflavia.g@hotmail.com / (27) 995891667

3 Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo – bolsista FAPES


(Edital Pesquisador Capixaba). gileadmt.2014@gmail.com / (27) 992990488
inserindo a assistência social na Política de Seguridade Social não contributiva. A Assistên-
cia Social, juntamente com a saúde e a previdência social, tem como proposta a promoção
do bem-estar social do brasileiro. Dessa forma, a assistência social é um dever do Estado e
um direito de toda pessoa, como membro da sociedade, “quando dela necessitar” (CF-88, Art.
203). Entre as Diretrizes da LOAS, aparece a participação da população, por meio de orga-
nizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os
níveis através da criação dos Conselhos de Assistência Social; e a primazia da condução do
Estado na condução da política de assistência social.

Nesse sentido, em setembro de 2004, o Conselho Nacional de Assistência Social aprovou


a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), após ampla discussão em encontros,
seminários, reuniões, oficinas e palestras em todo território brasileiro, constituindo-se, desse
modo, como resultado de trabalho democrático e descentralizado.

Na PNAS, a assistência social define seu público alvo: os cidadãos e os grupos que se
encontram em situações de vulnerabilidade e riscos. Segundo as Normas Operacionais
Básicas do Sistema Único de Assistência Social (BRASIL, 2005), a vulnerabilidade social é
decorrente da pobreza, da privação (entendida como ausência de renda, precário ou nulo
acesso aos serviços públicos, dentre outros) e/ou fragilização de vínculos afetivos, sejam
eles relacionais ou de pertencimento social, sendo considerada a combinação de diversas

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características da população (infra-estrutura de moradia, renda per capita, anos de esco-
laridade, presença de crianças, idosos e/ou deficientes) para compor a Taxa de Vulnerabi-
lidade de determinado território. Pode-se afirmar que a vulnerabilidade diz respeito mais à
condição concreta (nível sócio-econômico, classificação racial, diferenciação de gênero,
etc.) dos sujeitos em relação ao seu contexto de vida, do que a situações provisórias. Os
riscos, por sua vez, dizem respeito à dimensão de precarização situacional que pode ser
decorrente das condições de vida dos sujeitos ou não (BRASIL, 2005).

A PNAS tem como funções: proteção social (básica e especial); defesa dos direitos socioa-
28
ssistenciais e a vigilância social (BRASIL, 2005). Esta última, em especial, consiste em de-
senvolver meios de gestão para conhecer a presença das formas de vulnerabilidade social e
riscos da população e do território para se reordenar as políticas sociais, ou seja, a produção
de taxas de vulnerabilidade e indicadores de risco.

Como uma política de proteção social, a PNAS tem como princípios a garantia universal dos
direitos dos cidadãos, respeitando sua dignidade e igualdade sem qualquer tipo de discrimina-
ção, a divulgação dos serviços oferecidos e o atendimento às necessidades sociais mediante
sua renda econômica. Seu objetivo principal é a busca pelo protagonismo dos cidadãos para
que possam prover-se de forma própria e sustentável. Para que isso se efetue, a política tem
como diretrizes uma organização descentralizada e participativa, gestão nas três esferas de
governo, e a centralidade nas famílias no que diz respeito à oferta de seus serviços. Assim, os
serviços socioassistenciais são oferecidos pelo governo mediante a matricialidadesociofami-
liar, considerando a família como mediador entre os sujeitos e a sociedade (BRASIL, 2005).

Desse modo, em consonância com a LOAS, os serviços de Proteção Social Básica passam a
ser oferecidos em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Localizados em áreas
consideradas de vulnerabilidade social, esses estabelecimentos devem oferecer grupos, pro-
gramas, centros de convivência e informação e serviços de convivência e fortalecimento de
vínculos familiares e comunitários. O Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos
(SCFV) pode ser oferecido pelo Centro, contudo não é um trabalho exclusivo do CRAS; porém,
se ofertado por outra instância que não seja o CRAS, este deve referenciar esse serviço, ou
seja, acompanhar o trabalho implementado nesse SCFV externo ao CRAS (Brasil, 2016). Com
isso, pode-se dizer que o CRAS se constitui como um dispositivo com diversos serviços, que
serão usufruídos segundo a demanda e a necessidade dos usuários.

Os serviços de Proteção Social Especial são divididos em dois níveis de complexidade: os de


média complexidade e os de alta complexidade. A Proteção Social Especial está ligada aos
aparelhos do judiciário e ao Ministério Público, Sistemas de Garantia de Direitos. Os serviços
de média complexidade, oferecidos nos Centros de Referência Especializados da Assistência
Social (CREAS), compreendem os serviços aos sujeitos que tiveram seus direitos violados,
mas cujos vínculos familiares e comunitários não estão rompidos. Já os de alta complexi-
dade oferecem proteção integral àqueles que não possuem nenhum tipo de referência e que
tiveram seus vínculos familiares e, ou, comunitários interrompidos.

Atualmente, o psicólogo é um dos profissionais que compõe o corpo técnico da equipe do


Sistema Único de Assistência Social, seja em sua esfera básica ou especial. Sendo assim,
esse profissional também é responsável pela implementação dos princípios e diretrizes
da PNAS com base em suas normativas. Contudo, a psicologia como ciência e profissão
teve sua trajetória marcada pela manutenção de um ideal burguês e caracterizava-se

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especialmente pelo atendimento clínico individual e pela determinação de modos de vida,
na medida em que cabia à profissão a classificação e o diagnóstico de disfuncionalidades.
Posto isto, o referencial histórico da psicologia vai de encontro ao que caracteriza o novo
cenário da assistência social no Brasil, uma vez que este preconiza o trabalho do psicólo-
go em conjunto com os demais profissionais, especialmente com o assistente social, e o
veto quanto à realização de psicoterapia. Tal contexto vem fazendo com que a profissão,
nos equipamentos da assistência, seja marcada por inquietações e desafios que exigem a
invenção de novos conhecimentos, de novos possíveis dentro da prática profissional. Isso
deverá refletir uma postura profissional diferente da que marca historicamente a atuação
29
dos psicólogos (RODRIGUES, GUARESCHI & CRUZ, 2013).

Entendemos que o trabalho do psicólogo no campo da assistência social, para além da


captura de forças normativas e do exercício meramente técnico, pode ser concebido como
processo político inventivo e dinâmico que não se cristaliza em uma posição cientificista.

Articular Psicologia e Política produz uma série de outros efeitos, como a clareza de que nos-
sas práticas não são neutras, elas produzem efeitos poderosíssimos no mundo; são, portanto,
políticas. Assumir tais questões é estabelecer rupturas com o pensamento hegemônico no oci-
dente: é romper com as ‘verdades’ que estão no mundo e vê-las como temporárias, mutantes,
provisórias, enfim, como produções (COIMBRA, 2002, p. 10).

Haja vista que os serviços da Assistência Social operam em função do risco e da vulnerabili-
dade “decorrentes” da fragilidade dos vínculos familiares e sociais de crianças, adolescentes
e famílias pobres, compreendemos ser fundamental a formação crítica dos profissionais,
permitida pelo acompanhamento e atuação permanente na construção de uma tecnologia
social que faz operar a rede de atenção à infância, à adolescência e às famílias pobres.

Nesse sentido, propomos uma atuação no Sistema Único de Assistência Social a partir da
proposição de Projeto de Extensão compreendido como uma forma comprometida e com-
partilhada de fazeres e saberes exercidos por trabalhadores dos serviços do SUAS, tornando
visíveis técnicas, recursos, estratégias, conhecimentos diversos e processos sociais, que
favoreçam transformações em nível local de situações sociais responsáveis por sofrimentos
ético-políticos. A tentativa configura-se como análise das noções de risco, vínculo e família
que coabitam a Política de assistência social de forma a permitir a emergência de discursos
de verdade que reverberam nos serviços, problematizando eticamente os processos insti-
tucionais presentes nas práticas do SUAS, buscando entender o que tem sido feito na/da
atuação nos serviços frente ao encontro com suas normativas. Busca-se, também, fazer das
análises aqui elencadas uma força (micro)revolucionária para manutenção das políticas pú-
blicas na Assistência Social; força esta a ser desenvolvida diariamente no trabalho assisten-
cial, pois há a percepção de que esse trabalho vem sendo despotencializado constantemente
– de cima (Estado) e de dentro (organização técnica).

Para tais objetivos, durante o ano letivo de 2016, por meio da extensão universitária da Universi-
dade Federal do Espírito Santo (UFES), efetivou-se um acompanhamento semanal (de 8 horas)
da rotina de um CRAS do município de Cariacica4, com ocupações diversas no equipamento. As
análises desenvolvidas acerca desse período de trocas com o corpo técnico compõem este docu-
mento, tendo como base de coleta os diários de campo, utilizados como instrumento principal.

Entende-se aqui o CRAS como dispositivo, isto é, como um agenciamento que articula
e dispõe de diversos processos de produção de subjetivação atravessada por saberes,

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poderes, atualizações e virtualizações (DELEUZE, 1989). Assim, algumas problematizações
nos servem de justificativa do trabalho de extensão realizado; problematizações estas que
servem de analíticas, podendo auxiliar a leitura deste artigo ao problematizar o CRAS e os
serviços oferecidos aos usuários: a quem ele tem servido? Quais efeitos têm sido vislumbra-
dos a partir das práticas técnicas e não-técnicas efetivadas? Como sobrevive o trabalhado da
Assistência Social que é notoriamente tão sucateado? Essas e outras questões dispararam
(e ainda disparam) o exercício analítico resultantes desse trabalho de extensão.

30
2. Desenvolvimento
2.1 Acolher - uma ação continuada

Esta seção tratará do acolhimento, que é um dos primeiros trabalhos a serempreendido


pelos técnicos da proteção social básica. Há aqui também o intuito de evidenciar outras
facetas do acolhimento: mais do que mera recepção, mas também como prática de
cuidado e de estabelecimento de vínculos.

A participação no acolhimento se fez como a primeira atividade da extensão, ou seja, inaugu-


rou nossa entrada no CRAS. Uma vez na semana, famílias que ainda não possuem cadastro
no CRAS são agendadas para passarem pelo chamado“acolhimento”. Este tem duração
média de trinta minutos e nele são explicados os serviços oferecidos pelo CRAS.

Ao participar e observar como o acolhimento acontecia foi possível perceber o quanto esse
nome não fazia jus ao que ocorria todas as semanas.

4 Por demanda do corpo técnico de um CRAS de Cariacica, o projeto de extensão foi proposto e construído
em conjunto com a Gerência de Proteção Básica da Assistência Social de Cariacica e foi consolidado em alguns CRAS
da rede assistencial de Cariacica.
As cadeiras ficavam enfileiradas como em uma sala de aula, a pessoa que conduzia o acolhi-
mento falava sem pausa dos vários benefícios que o CRAS podia oferecer usando jargões e
palavras muito difíceis de compreender por se tratarem de termos muito específicos [...]. O
modo no qual apresentava os benefíciosdava a entender que eram uma caridade do governo e
não um direito que aquelas pessoas tinham. Também havia a impressão que aquele momento
deveria acabar o mais breve possível, pois haviam muitas outras coisas mais importantes a
fazer. (Relato do diário de Campo).

O CRAS não era apresentado como um espaço a ser ocupado por aquelas famílias. Na lógica
mercadológica na qual fazemos parte, os lugares, as coisas e as pessoas são objetos decon-
sumo. Estava mais para uma apresentação, e não acolhimento. O CRAS, assim, era entendido
como uma casa de pegar benefícios. Mas, essa instituição tem uma proposta diferente: o
fortalecimento de vínculo. Assim, não há como fortalecer vínculos num lugar onde apenas se
“consome”. Fortalecer vínculos está diretamente ligado com acolhimento, vivência, eman-
cipação. Acolher, nesse contexto, é mais do que dizer os serviços que existem no CRAS; é
também explicar que ali é um espaço que é da população, no qual é possível ter acesso aos
benefícios a que têm direito, que podem compor com o espaço em suas atividades, que os
profissionais estão a serviço dessa população e que eles podem gerir juntos aquele espaço.

Percebemos que o não acolhimento era característica – reflexo – da própria dinâmica


instalada no CRAS. A prática de não acolher estava presente desde a esfera da recepção dos

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usuários até na relação estabelecida dentro da própria equipe. Isso prejudicava o trabalho dos
profissionais e a entrada dos usuários. Um dos efeitos do não acolhimento era a proliferação
de tarefas para os próprios técnicos: os usuários não entendiam nada durante o “acolhimen-
to-apresentação” e quando era o momento de fazer seus cadastros, eles tiravam as dúvidas
com os técnicos, que tinham que explicar tudo novamente. Um desconhecimento do CRAS e
seus serviços pelos usuários mostrava-se como um fator a mais para a realização de um real
acolhimento, pois o CRAS não estava vivo no território, se resumindo apenas a um local físico.

A gestão da proteção social básica, no âmbito do CRAS “responde ao princípio de descen-


31
tralização do SUAS e tem por objetivo promover a atuação preventiva, disponibilizar serviços
próximos do local de moradia das famílias, racionalizar as ofertas e traduzir o referencia-
mento dos serviços ao CRAS em ação concreta” (BRASIL, 2009). Isso só é possível através
do diagnóstico socioterritorial, que percebemosnão ser realizado, fazendo, assim,com que o
acolhimento-apresentaçãose configurasse como mais uma demanda dos usuários.

O acolhimento era dificultado pela enorme demanda de trabalho e falta de momentos


de parada de cuidado; situação importante para a análise do que tem sido produzido no
trabalhodesseCRAS. Quanto mais os técnicos percebiam as demandas se acumularem dia
a dia, mais apontavam para si a incapacidade de resolvê-las e a falta de estabilizações
aumentavam ainda mais esse sentimento de fracasso diante de todo o trabalho a ser feito.
Sem as reuniões de trocas (e porque não chamar de reunião de ACOLHIMENTO do sofri-
mento dos profissionais diante do não cumprimento de todo o trabalho), cada vez mais o
trabalho se individualizava e se tornava pessoal. Claramente o trabalho se tornou pessoal,
cada trabalhador vendo que sua demanda era enorme e inatingível,os culpados eram inves-
tigados para justificar o não cumprimento dessas tarefas. Achavam-se culpados entre eles
mesmos: os técnicos, a gestão, e também os usuários.

Aqui falamos de práticas e processos institucionais que são construídos historicamente. Essa
ausência de acolhimento (de usuários, de demandas, de técnicos, dentre outros) não acontece
apenas no CRAS vivenciado pela a extensão universitária; não é um problema específico desse
CRAS, e não é nosso objetivo insinuar tal coisa. Essas práticas nos perpassam, pois não há
um sujeito proprietário dessas práticas. Seguimos a análise por esse percurso, por compre-
ender que não é individualizando uma determinada prática que poderemos problematizá-la
(TAVARES, GUIDONI & CAPELINI, 2013). Ao percebermos a atualização de práticas do não aco-
lhimento, compreendemos a importância de analisar os processos institucionais que dificul-
tam a composição de uma rede e de uma grupalidade, que tem no vínculo sua matéria prima.

3. Uma extensão marcada pelo ‘Vínculo’

Segundo a PNAS (BRASIL, 2005), “a proteção social básica tem como objetivos prevenir situ-
ações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortaleci-
mento de vínculos familiares e comunitários”. O que chama a atenção é o fortalecimento dos
vínculos como um dos objetivos a serem alcançados pelosserviços desenvolvidos nos CRAS,
ao passo que durante nossa chegada ao equipamento, vários técnicos da rede socioassisten-
cial de Cariacica haviam sido demitidos. É característico na Grande Vitória a transitoriedade
dos profissionais na área da Assistência Social. Justamente um serviço que preconiza a vin-
culação como forma de prevenção de situações de risco, percebe-se o rompimento rotineiro
dos vínculos partindo dessa situação de demissão com a qual nos deparamos durante nossa

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inserção no CRAS. Momento muito delicado, pois havia vinculação não apenas com os
usuários, mas também com o corpo técnico restante, que ficaria no CRAS mobilizando meios
e formas para atuarem a partir de uma grande defasagem. O luto permeava o ambiente, e
poucos sorrisos eram emitidos durante aqueles primeiros dias no equipamento.

Vínculo foi à palavra do ano. Foi nosso objetivo e também um dos nossos principais objetos de
estudo. A sua ausência também foi marcante para as análises e discussões do trabalho desen-
volvido na Assistência Social e como ele pode gerir as afetações que emergem no trabalho do
campo assistencial. Para tratar, assim, da noção de vínculo que se mostrou tão medular nesse
32
ano, trazemos para este artigo uma situação assistida como introdutora dessa temática.

Durante uma reunião do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) com


todos os educadores e a técnica de referência, muitos assuntos foram colocados à mesa
para a discussão: a vida familiar das crianças que faziam parte do grupo do SCFV, as dificul-
dades a serem enfrentadas no que tange às atividades desenvolvidas com os adolescentes,
o planejamento das temáticas, dentre outros assuntos. Num dado momento, a educadora
cultural apontou o problema da rotatividade dos técnicos e educadores na Assistência Social
de Cariacica e que isso dificultava um trabalho mais engajado e com vinculações, tanto com
as crianças e os adolescentes quanto com os demais técnicos do CRAS. Pontuado isso, a
educadora, assim, afirmou que não criava vínculos com as crianças porque tinha total convic-
ção de que um dia seria remanejada ou demitida. Paradoxalmente, a educadora continuou a
fala contando um caso de outro educador que seria realocado de CRAS, mas que as crianças
e seus familiaresatendidos por ele no SCFV no qual desenvolvia suas atividades lutaram para
mantê-lo no mesmo CRAS e tiveram êxito.

Partindo desse relato, muitas questões podem ser frisadas para pensar o vínculo e sua
importância como base de ação para as intervenções necessárias. É notória a clareza da
educadora quanto a um dos principais problemas do campo da Assistência Social, contudo,
ao mesmo tempo em que ela afirma uma defesa pessoal de não se vincular aos usuários, ela
apresenta um caso onde a vinculação foi chave para a luta dos usuários pelos seus desejos.
Protege-se da tristeza de um dia ter que se distanciar daquilo que recebeu seu investimento
afetivo, mas ao mesmo tempo contempla a importância da vinculação de um educador com
as crianças e adolescentes do serviço. É belo perceber o desejo pelo vínculo, mas a esquiva
deste a ninguém protege, na verdade desprotege, vulnerabiliza aquilo que poderia estar “se-
guro” dentro de uma rede de relações quentes – que recebe investimento afetivo.

É descabido conceber um serviço no qual o fortalecimento dos vínculos é entendido como o


ponto chave para a diminuição dos riscos sociais, mas que, incoerentemente, fomenta a defesa
por parte do corpo técnico às vinculações ao primar pela praxe de demissão e remanejamento.

Urge, assim, defender um trabalho vinculado, ou seja, um trabalho que tem o investimento afetivo
como articulação para o estabelecimento de relaçõesque produzam práticas de lutas – como
os usuários que defenderam seu desejo pelo educador –, práticas não tutelares, nas quais os
usuários entendem seus direitos e lutam por eles e os técnicos entendem o seu trabalho como
produção e transformação de realidades, e práticas de confiança – de co-fiar: fiar junto –,produ-
zindoum trabalho em conjunto/parceria com o outro pela via da engajamento e troca de ideias.

O vínculo estava de alguma maneira presente nesse CRAS. Na mesma reunião relatada,
percebemos como os casos eram discutidos: cada criança e adolescente era chamado pelo
nome e suas vidas eram tratadas a partir da perspectiva de cada educador e técnico que de

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alguma forma estabeleceu contato com aquela criança e adolescente. Isso chama a atenção,
pois a proximidade afetiva era percebida ao se conhecer cada um pelo nome e pela histó-
ria que carregava – pela vinculação construída. Mais uma evidência de que o SCFV não se
pretende ser uma escola ou ter aulas, como há muito já se ouvia nos encontros realizados
com os grupos de adolescentes; falas essas emitidas também por alguns educadores que
insistiam em chamar suas atividades de aulas. O SCFV objetiva, de maneira simples, apenas
duas coisas: a convivência e o fortalecimento dos vínculos. As técnicas a serem implemen-
tadas e os meios cabem aos educadores produzirem juntos com os usuários desse serviço
33
pela via da troca dos saberes e dos fazeres – pelas vinculações.

4. “...Lá no SCFV.”

Como colocado, nossa chegada ao CRAS se deu num período delicado para todos que lá
estavam e foram perceptíveis as resistências paranos inserirmos em alguma atividade do ex-
pediente da instituição. Prontificamo-nos a tudo: estávamos dispostas a fazer o que nos fosse
demandado, sem prerrogativas a priori de nosso lugar naquela experiência de extensão; nossas
funções se dariam em ato, no encontro com o espaço e com os profissionais daquele Centro.

Com a correria do trabalho a ser terminado e entregue pelos técnicos que deixariam aquele
CRAS, o único lugar que pôde nos acolher, dadas as circunstâncias da dinâmica do trabalho,
foi o SCFV. Contudo, essa situação de “acolhida” das extensionistas ao SCFV se confundia
com o único locus que estava aberto para nossa entrada no CRAS. Locus esse muitas vezes
entendido como um fora do CRAS, como um serviço separado dos demais oferecidos na
instituição; como um “lá” e não um “aqui”. Em outras palavras, percebemos o SCFV como o
que sobra do CRAS, e para lá fomos, haja vista a situação delicada com a qual todos técnicos
se deparavam, bem como esse modo de encarar o SCFV alhures do CRAS.
Como todo início, a extensão procurava o seu lugar no CRAS e o SCFV se configurou durante o
ano de 2016 como o principal serviço que compôs com as extensionistas. Uma de nós conse-
guiu transitar pelos demais serviços oferecidos pelo CRAS, o que enriqueceu muito as trocas
entre nós e os técnicos. Contudo, foi perceptível a separação do CRAS e o SCFV, não apenas
durante o desenvolvimento das atividades com os educadores do serviço, mas também nas
falas dos demais técnicos quando se referiam ao serviço de uma maneira muito distante. Com
exceçãoda técnica de referência do SCFV, os demais técnicos afirmavam não saber o que se
passava entre as quatro paredes que recebiam os grupos de crianças, adolescentes e idosos.

Esse desconhecimento pode possuir inúmeras causas institucionais (como SCFV não ser a
maior prioridade dos CRAS se comparado ao Programa de Atenção Integral à Família -PAIF),
causas profissionais (cada técnico tendo sua função, não cabendo a ele ter que se inteirar
acerca do trabalho do outro, haja vista a já sobrecarga de afazeres diários), causas pessoais
(como não desejar conhecer o SCFV), dentre outras tantas causas. A despeito das causas,
por que não pensar os efeitos desse desconhecimento do serviço de grupos oferecido e no
quanto isso tem influenciado no acompanhamento prestado aos usuários do CRAS?

Pensar efeitos das práticas está diretamente ligado à análise de implicação, um exercício
de pensamento que permite traçar os percursos das práticas e perceber os afetos que elas
podem suscitar. Tal análise auxilia num olhar mais amplo, encarando as circunstâncias como

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acontecimentos passíveis de transformação – transformação esta possível através do traba-
lho e do estabelecimento dos vínculos. Assim, a análise de implicação não visa encontrar as
causas de algum problema, nem mesmo apontar culpados, mas desnaturalizar e despessoali-
zar discursos e práticas (COIMBRA & NASCIMENTO, 2007).

A desnaturalização e a despessoalização são processos que já de início evidenciam a


provisoriedade das formas – sujeitos, estereótipos, papéis, por exemplo –, trazendo para a
luz as relações de poder, ou o jogo das forças. No pensamento foucaultiano, o poder não é
entendido como substância, que pode ser contida ou apropriada; ou seja, não é da ordem
34
da propriedade(FOUCAULT, 1977). Entende-se o poder como “(...) exercícios que envolvem
estratégias sem sujeitos, quase mudas e cegas, mas que nos fazem ver e dizer” (MACHADO,
2010, p. 109). Para tanto, o poder é entendido como relações de forças; forças estas que
nunca estão no singular, pois estão continuamente se relacionando, não tendo nem sujeito
nem objeto(DELEUZE, 2013). São ações sobre ações possíveis, não existe outro objeto a não
serem outras forças, lembrando que cada força tem o poder de afetar e ser afetada; ao passo
que as formas são moduladas por essa relação das forças, pois as forças “desestabilizam as
formas do ver e do dizer, alteram suas direções e contornos (...)”(MACHADO, 2010, p. 110).

Posto tudo isso, entendemos que o SCFV é percorrido por variadas forças que o desestabi-
liza constantemente. O mesmo ocorre com cada técnico e profissional do CRAS. A proble-
mática do deslocamento do SCFV para um fora da instituição, para um “lá”, não necessita
de uma apresentação de culpados, daqueles que o tratam como um serviço desconhecido
e aquém do CRAS. Fala da urgência, na verdade, de questionamentos das práticas que
permitem esse afastamento do serviço, evidenciando as forças e suas relações, permitin-
do entender como tem afetado cada técnico e os discursos que tem sido (re)produzidos.
Assim, não se mostra tão importante o ‘quem’ e sim o ‘o que faz funcionar’, pois o ‘quem’ é
circunstancial. Ao se permitir tal análise acusar-se-á a necessidade de análises permanen-
tes do que fazemos funcionar(MACHADO, 2010).
5. Um trabalho “desqualificado”

A correria na realização das tarefas diárias no trabalho do CRAS era constante; era a rotina
daquele Centro. Um trabalho que é desvalorizado pela baixa remuneração e pela sua rotativi-
dade, se comparado às demais áreas, corroboracom o sucateamento das políticas públicas.
Tem-se a sobrecarga de tarefas como o comum na rede Assistencial de Cariacica.

Como todo trabalho técnico, normativas auxiliam o fazer cotidiano dos profissionais do CRAS
que servem de diretriz para o logro dos objetivos da PNAS por meio do trabalho técnico
desenvolvido na Assistência Social. As normativas têm o intuito de apenas auxiliar, o que se
confunde diversas vezes com ditar as práticas profissionais.

Ditar práticas está diretamente ligado com o endurecimento das mesmas: ocorre uma repro-
dução de fazeres, de discursos e de modos de organizar o trabalho. A confusão da função
das normativas e suas diretrizes técnicas é necessária trazer à luz da análise de implicação,
já defendida aqui anteriormente, para entender o que se tem produzido a partir dessa repeti-
ção das práticas, dessa ditadura das normas sobre o trabalho técnico da Assistência Social.
Como dissemos: o que faz funcionar esse modo de gerir o trabalho na Assistência Social de
Cariacica e o que se produz, mostram-se como questionamentos constantes e pertinentes
para o desenvolvimento de outras práticas e outros discursos – podendo reverberar nos
usuários atendidos e suas conquistas pelos seus direitos.

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A reprodução, diferentemente da produção, entende as práticas em outro plano – não
situado e não localizado. Isto é, a reprodução “cabe” em qualquer locus e em qualquer
sujeito; práticas ditadas que são reproduzidas em qualquer lugar e por qualquer pessoa
não considerando a ambiência e a dinâmica local, impedindo, assim, produções, variações
e diferenciações – aceitam-se apenas a repetição.

Essa ideia de reprodução é extremamente perigosa para a vida – vida como sinônimo de
criação, invenção e produção de novas normativas. O entorpecimento através das repro- 35
duções, entendidas aqui neste artigo como a reprodução não situada e não localizada das
diretrizes normativas do trabalho na Assistência, paralisa e mortifica o processo inventivo.
Machado(2010) afirma que esse entorpecimento

(...) estanca a vida em seu processo, que a poda em sua expansão, que a paralisa em seus itine-
rários possíveis. Possíveis que inventamos ao experimentarmos o aumento de nossa potência
de ser afetado. (...) entorpece os sentidos, que anestesia a pele que veda seus poros às afec-
ções, que produz formas de vida fatigadas. (...) “Estar cansado, ser indiferente, é sem dúvida a
mesma coisa”. A indiferença é o próprio sentido do cansaço, é a sua verdade cansada (p. 120).

Assim, o afã do trabalho percebido no CRAS vivenciado se mostra apenas como um sintoma
de algo muito maior: um trabalho entorpecido pelas normativas; na verdade, entorpecido pelo
modo de lançar mão das normativas, atribuindo a elas a regra máxima no Centro, não poden-
do ser infringida por nenhum técnico independentemente das situações colocadas. Tem-se
assim um CRAS com profissionais fatigados pela repetição e com os sentidos entorpecidos
para criar outras práticas que permitam a sensação de realização e mudança de realidade.

Faz-se mais do que urgente e necessário um rompimento dessa ideia de reprodução não
situada das normativas técnicas. Seu papel é apenas auxiliar o trabalho e não endurecê-lo
e engessá-lo. Apostar num trabalho que percebe os fluxos e o percorre como um artesão
segue o fluxo das fibras da madeira para seu entalhe. Há a necessidade, para um bom
entalhe, de deixar a ferramenta seguir o fluxo e ambos se direcionando para que ao fim,
alguma bela forma apareça (DELEUZE & GUATTARI, 2012). Enveredar-se por espaços nunca
pisados e arados é importante para outros afetos e outras normas serem construídas.
Assim, entender-se-á que o trabalho antes de ser separado e atribuída a sua função, é um
trabalho desqualificado, que não recebeu atribuições e qualidades. Antes, porém, ele se
deixou percorrer por territórios, fluxos, fibras, para então estabelecer seus sentidos e suas
funções – e suas normativas (DELEUZE & GUATTARI, 2012).

Nossa proposta aqui, assim, é mostrar que um trabalho antes desqualificado, no sentido de
que não recebeu funções máximas a priori, pode permitir outras qualificações que se darão
em ato. As técnicas e ferramentas a serem utilizadas também se constituirão articuladas a
esse trabalho antes desqualificado. As ferramentas são consequências e não são elas que
ditam o trabalho; é exatamente o contrário: é pela relação com o trabalho que a ferramenta
vai se constituindo (DELEUZE & GUATTARI, 2012). Entendemos, então, as normativas como
ferramentas de trabalho que auxiliam no manejo da matéria tanto para qualificar tal trabalho,
quanto para produzir e criar novas formas. Temos, assim, não um trabalho no CRAS pressu-
posto pelas normativas (ferramenta), mas um trabalho que supõe e que produz normativas.

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3. Considerações Finais

Durante esse tempo de vivências e partilhas dentro do equipamento CRAS, percebemos o


sucateamento dos serviços públicos, principalmente os socioassistenciais e o quanto é ne-
cessário afirmar a todo o momento a importância desses serviços, que resistem mesmo com
a diminuição considerável dos recursos necessários para sua manutenção.

Assim, é importante afirmar, que mesmo diante desse cenário caótico, o maior recurso ainda
são os afetos. Diante de um trabalho no qual o objetivo é fortalecer vínculos, vincular-se é 36
algo indispensável. Mesmo com a grande demanda dentro do CRAS, a equipe técnica neces-
sita de (re) pensar sobre os rumos do seu trabalho, entendendo que momentos de parada e
acolhimento mútuo também se configuram em trabalho.

Como já foi dito, o trabalho na Assistência Social se realiza com muitos fatores que o
enfraquecem: falta de recursos, rotatividade de profissionais, dificuldades de gestão, entre
outros. O trabalho aparece sempre como algo a se fazer (como se nenhum trabalhofosse
feito), devido a curta permanência dos funcionários, tanto na gestão quanto na ponta.
É necessário que seja articulada um tipo de tecnologia social para que esse trabalho
não se perca tão facilmente, e tenha que ser feito do zero a cada mudança do quadro de
trabalhadores. A tecnologia social é compreendida tradicionalmente como “produtos,
técnicas ou metodologias replicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que
representem efetivas soluções de transformação social” (FUNDAÇÃO BANCO DO BRA-
SIL, 2004). Mas, nesse caso, nos apropriamos desse conceito compreendendo que não é
possível replicar fórmulas estáticas e prontas, pois as composições mudam a cada tempo
e momento e é necessário estar aberto para o que se faz de novo nas relações (sempre
locais e situadas). Estar disponível para o novo, não significa partir do nada, mas sim
criar estratégias que possam dar continuidade a um trabalho já realizado. Desse modo, é
possível evidenciar a grande demanda de trabalho, mostrando as articulações feitas, o que
foi possível e o que não foi possível. Assim, o profissional que chega pode situar-se melhor
no campo de trabalho, apoiado a outros que também passaram por ali.

Tudo isso pode possibilitar o avanço do trabalho e abrir outros caminhos para que outros
pontos avancem, como por exemplo: um maior contato do equipamento com a comunidade.
Pensar junto com quem já esteve nesse trabalho e junto com a equipe que o compõe permite
que esse passo seja dado. O trabalho não começará do zero, pois ele já vem sendo pensado;
pensar o CRAS como um equipamento que seja vivo no território, atingindo seus usuários de
muitas formas, dentro e além das paredes do CRAS

Referências

BRASIL, Lei Federal nº 8742. Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Brasília: DF, 7de de-
zembro de 1993.

Brasil, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Caderno de Orientações: Ser-

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viço de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência e Fortalecimento
de Vínculos. Brasília, 2016.

BRASIL, Ministério do desenvolvimento social e combate à fome. Política Nacional de Assis-


tência Social PNAS/ 2004: Norma Operacional Básica NOB/SUAS, Brasília, 2005

BRASIL, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Orientações Técnicas: Cen-


tro de Referência de Assistência Social – CRAS, 2009.

COIMBRA, C. M. B. Psicologia e Política: A Produção de Verdades Competentes. 2002. Disponível


em http://www.slab.uff.br/images/Aqruivos/textos_sti/Cec%C3%ADlia%20Coimbra/texto67.pdf

COIMBRA, C. M. B; NASCIMENTO, M. L. Sobreimplicação: práticas de esvaziamento político? 37


In: ARANTES, E. M. M; NASCIMENTO, M. L. N; FONSECA, T. M. G. (Org.). Práticas psi inventan-
do a vida. Niterói: Eduff, 2007. p. 27-38.

DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: brasiliense. 9ª reimp, 2013.

DELEUZE, G. Qu’est-cequ’undisposif?In: Michel Foucault philosophe. Rencontreinternationale.


Paris 9, 10, 11 janvier 1988. Paris, Seuil, 1989.

DELEUZE, G; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Vol 5, 2 ed. São Paulo:
Editora 34, 2012.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1977.

FUNDAÇÃO BANCO DO BRASIL (FBB). Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvi-
mento. Rio de Janeiro: 2004.

MACHADO, L. D. À flor da pele: subjetividade, cinema e clínica no contemporâneo. Porto Ale-


gre: Editora Sulina, 2010.

RODRIGUES, L; GUARESCHI, N.; CRUZ, L. A centralidade do vínculo familiar e comunitário nas


políticas públicas de assistência social. Interlocuções entre a psicologia e a política nacional
de assistência social, p. 11-22, 2013.

TAVARES, G. M.; GUIDONI, J. P.; CAPELINI, T. C. As práticas que compõem a educação integral
em Vitória (ES): Uma análise da relação infância/pobreza/risco. In: CRUZ, L. R.; RODRIGUES,
L.; GUARESCHI, N. M. F. Interlocuções entre aPsicologia e a Política Nacional de Assistência
Social. Santa Cruz do sul: EDUNISC, 2013. P. 43-58.
38

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GERAÇÃO
GÊNERO,

E ETNIA
PROTEÇÃO SOCIAL E LEI MARIA
DA PENHA

Emilly Marques Tenorio1

EIXO TEMÁTICO: GÊNERO, GERAÇÃO E ETNIA

Resumo: O presente trabalho resulta de reflexões, desenvolvidas no âmbito do


mestrado em Política Social, no qual debatemos acerca das medidas de prote-
ção de urgência da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha (LMP).
Partindo da premissa de que toda proteção social para mulheres em uma socie-
dade patriarcal-racista-capitalista é limitada, realizamos alguns apontamentos
sobre a conceituação de proteção social e quanto à operacionalização das me-
didas de proteção. Como metodologia realizamos pesquisa documental em pro-
cessos judiciais cuja matéria era a requisição de medidas protetivas em uma
vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher. Percebe-
mos que a “proteção social” ofertada à mulher no judiciário são as mais imedia-
tistas, gira em torno de medidas de restrição de direitos dos homens (medidas
de afastamento e proibição de contato), pouco promovendo inserção em políti-

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cas públicas de prevenção ou acompanhamento para os/as envolvidos/as, tra-
zendo um reducionismo ao próprio espírito da lei e conservando o tradicional
papel punitivista do direito. Consideramos que as medidas mais progressistas
da LPM tendem a ser aplicadas, caso haja uma intervenção de equipe técnica
especializada no atendimento aos sujeitos envolvidos.

Palavras-chave: Lei Maria da Penha, proteção social, medidas de proteção de


urgência

39

1. Introdução

O presente artigo condensa algumas reflexões, em uma perspectiva histórica materia-


lista-dialética, desenvolvidas no âmbito da nossa dissertação de mestrado em Política
Social, denominada “Entre a polícia e as políticas: análise crítico-feminista da Lei Maria
da Penha e das medidas de proteção de urgência judiciais”. Nela analisamos a atuação
do poder judiciário, especificamente o capixaba, e a aplicação das medidas de proteção
de urgência (MPUs), no enfrentamento a uma das formas de violência cotidiana sofridas
pelas mulheres em nossa sociedade patriarcal-racista-capitalista: a violência doméstica
e familiar. Dessa forma, estudamos a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da
Penha (LMP), com foco na proteção social conferida a essas mulheres via judicialização
e não em seus aspectos técnico-jurídicos. Neste trabalho optamos por realizar alguns
apontamentos sobre a conceituação de proteção social e quanto à operacionalização
das medidas de proteção.

1 Especialista em Gênero e Sexualidade pela UERJ, mestre em Política Social pela UFES. Assistente social
do TJES. E-mail: emillypmarques@gmail.com; telefones: (27) 996184116/ (27) 3161-7050.
Metodologicamente realizamos pesquisa documental em processos de requisição de MPUs,
indicadas por informantes-chave2 da vara especializada da capital (servidor/a do cartório,
equipe técnica, juiz/a) com a intenção de identificar o direcionamento dado às medidas.
Durante a pesquisa de campo na vara selecionada, a 1ª Vara Especializada em Violência
Doméstica e Familiar da Comarca da Capital, Vitória/ES, embora a mais estruturada dentre
as varas especializadas do Poder Judiciário do Espírito Santo, pudemos identificar que não
há os requisitos sugeridos pelo CNJ, o que dificulta a promoção articulada dos três eixos
sistematizados na Lei Maria da Penha.

A vara estudada possui 5994 processos, dentre esses 3154 são requisições de medidas de
proteção de urgência3. A vara possui um/a magistrado/a e em seu gabinete trabalham um/a
assessor/a e um/a estagiário/a voluntário/a. A equipe do cartório é formada por quatro
servidores/as efetivos/as e quatro estagiários/as, dentre esses três são voluntários/as. A
equipe técnica é composta por dois/duas assistentes sociais e dois/duas psicólogos/as,
sendo estes/as lotados/as na vara por resolução4.

Antes de prosseguirmos com as análises, importante despersonificar os encaminhamentos


feitos pela delegacia, defensoria, promotoria de justiça, equipe técnica, servidores/as, carto-
rários/as, advogados/as. Os processos selecionados foram de distintas épocas e atendidos
por diferentes operadores/as do sistema de justiça, ademais têm-se casos de plantonistas

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ou substitutos/as em diversas ações. A equipe técnica também não teve distinções quanto
à especialidade de quem conduziu cada caso, com fins de preservação das categorias e de
seus/suas profissionais.

O objetivo principal foi compreender a lógica de atuação desse poder e a direção das medi-
das e não analisar condutas específicas de determinados sujeitos, bem mesmo por causa
das questões éticas de sigilo e preservação da identidade de todos/as envolvidos/as. Dessa
forma, estudamos algumas solicitações de medidas de proteção de urgência (MPU) e o
direcionamento dado aos casos, já que tal instância situa-se entre a “polícia”, que representa
40
o ponto de partida de recebimento e registro das denúncias, e as “políticas”, a depender da
compreensão que possuem de proteção dessas mulheres.

Com o processo de inclusão/exclusão da amostra, tivemos indicadas trinta histórias, porém


dezenove casos e vinte processos de requisição de medidas de proteção foram incluídos.
Isto se deve ao fato de que uma das mulheres possuía dois processos com requeridos dife-
rentes e outro caso requerentes e requeridas, invertem os papéis e solicitaram MPUs mútuas.

Na maioria das situações estudadas (quinze), a violência envolvia indivíduos que têm ou ti-
nham uma relação afetiva (namorados/as, companheiros/as, cônjuges), o que está de acordo

2 De acordo com nosso tempo, recursos e objetivos de pesquisa, seguimos o trabalho com uma amostragem
formada a partir da indicação de informantes-chave. Flick (2004, p. 83) aborda que tal amostra nos traz possibilidades
de acessar estrategicamente “casos típicos, caso críticos, casos delicados ou politicamente importantes ou até
mesmo [utilizar] o critério da conveniência (casos mais fáceis de serem acessados) ”.

3 Levantamento realizado em 06 de março de 2017.

4 Cabe deixar nítido que, na realidade, nenhuma vara especializada possui equipe técnica exclusiva para
atendimento às demandas da Lei 11.340/2006, porém o TJES instaurou a Resolução 013/2012, determinando que
as Centrais de Apoio Multidisciplinares se subdividissem para o atendimento desta matéria nas comarcas da Grande
Vitória. Inicialmente, todas as equipes assim procederam, porém com o acúmulo de processos, todas as equipes
retornaram à configuração original, exceto a CAM de Vitória, que já funcionava inclusive em outro espaço físico, o que
facilitou a manutenção da medida e que também não possui outras comarcas integrantes em sua região judiciária.
com os elementos trazidos pelo Mapa da Violência de 2015, que as agressões cujas vítimas
são mulheres preponderam os parceiros e ex-parceiros na taxa 35,1% (WAISELFISZ, 2015).
Em menor número (quatro), no universo estudado, tratava-se de outras relações de parentes-
co (mãe/filho, madrasta, pai/avô e enteada/filha e neta), além do caso de uma idosa, em que
as filhas que requereram a medida para a mãe, mas ela manifestou que não sofreu nenhum
tipo de violência no relacionamento conjugal.

Como principais referências teóricas selecionamos pensadoras do feminismo materialista


e sua categoria de “relações sociais de sexo” e autores/as da crítica marxista ao Direito,
especialmente os/as vinculados ao pensamento lukácsiano, bem como pesquisadores/as
da criminologia crítica e feminista. Nos limites espaciais desse artigo, primeiramente nos
detivemos a apresentar breves reflexões sobre a esfera jurídica e a proteção social dentro do
sistema patriarcal-racista-capitalista e, posteriormente, como consequência, da operacionali-
zação da LMP.

2. Limites da esfera jurídica para a transformação social

Quando abordamos a violência contra a mulher (VCM), em uma análise materialista, o ponto
de partida de análise situa-se nas desigualdades existentes entre homens e mulheres em

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nossa sociedade, assim como, para pensarmos no espaço do Direito também partimos da
realidade, das lutas por transformação, e não das normativas legais. Partimos do solo do co-
tidiano, da vida concreta das mulheres, das desigualdades que vivenciam, pois concordamos
com Santos (2016, p. 61) que:

Este é o nosso ponto de partida, ao refletirmos sobre DH [direitos humanos] os indivíduos em


sua vida cotidiana, situados em suas condições objetivas e subjetivas. Nosso ponto de partida
não se refere, portanto, aos tratados, leis, acordos e conquistas legais, posto que estes consis-
tem no ponto de partida do pensamento liberal.
41
A conceituação de “relações sociais de sexo” , elaborada pelas feministas materialistas
5

francesas, coaduna melhor com os objetivos deste trabalho e suas lentes de análise para
compreensão da opressão, exploração e apropriação das mulheres, apesar de não podermos
nos aprofundar sobre ela nesse breve artigo. Sinalizamos apenas que a mulher é considerada
como sujeito político coletivo e seus principais elementos de análise são a centralidade do
trabalho, sua divisão sexual e o trabalho não pago articulado com outras desigualdades es-
truturantes, como raça/etnia, classe, sexo [e sexualidade], não hierarquizando e nem segmen-
tando opressões, que baseadas nas conceituações de Daniéle Kergoat, são coextensivas,
consubstanciais, enoveladas (CISNE, 2014).

Portanto, pensar na VCM, vai além de abordar uma legislação específica para enfrentá-la.
É compreender a lei forjada em uma totalidade, numa realidade em que treze mulheres são
assassinadas por dia no Brasil. A taxa de homicídios entre mulheres cresceu 11,6% em dez
anos (2014 a 2014) e 18 estados apresentaram taxa de mortalidade por homicídio de mulhe-

5 Nesta teorização, diferencia-se as relações pessoais, intersubjetivas, das relações sociais, estruturais. As
relações intersubjetivas são próprias dos indivíduos concretos entre os quais as estabelecem. As relações sociais, por
sua vez são abstratas e opõem grupos sociais em torno de uma disputa [enjeu]” (KERGOAT, 2010, p.95). A superação
da unidade dialética entre “as subestruturas básicas de poder da sociedade capitalista” de sexo, raça e classe só
podem ser alcançadas coletivamente, não havendo saídas individuais (CISNE, 2014).
res acima da média nacional, dentre eles o Espírito Santo (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURAN-
ÇA..., 2016, p. 26-27). Cabe destacar, desde já, que entendemos a violência e outras formas
de opressão como fenômenos estruturais desta sociedade e não apenas culturais, a partir de
uma perspectiva materialista histórica-dialética, que não se propõe a separar a esfera da es-
trutura, da superestrutura, tendo em vista que as mesmas estão dialeticamente articuladas.

Para pensarmos a proteção social das mulheres em um cenário machista, racista e desigual,
precisamos compreender também o espaço jurídico, seus limites e tensões, para posterior-
mente refletirmos sobre a dificuldade de atribuir a ele uma pretensa proteção social. A LMP
prevê um tripé em sua operacionalização, contenção, prevenção e assistência (CAMPOS,
2011; CAMPOS; CARVALHO, 2011). Tradicionalmente, o judiciário tem atuado, principalmen-
te no Direito Penal, com o viés coercitivo, punitivo. Porém, com as inovações legais da Lei
11.340/2006, novas atribuições são exigidas desta esfera (BRASIL, 2006).

Santos (2005, p. 79) destaca, conforme as premissas lukacsianas, que o Direito é um com-
plexo social parcial que tem uma certa dependência/autonomia frente à totalidade da vida
social, mas que não se constitui “numa dimensão insuprimível do ser social, mas responde e
justifica uma determinada configuração societária que, ao se tornar cada vez mais complexa
encontra-se submetida às tensões e contradições classistas”.

Produz fetichização por aparecer desconectado da realidade e com isso possui um espe-

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lhamento deformado da realidade, “uma manipulação homogeneizante de cunho conceitu-
al-abstrato” (LUKÁCS, ([1981] 2013, p. 239). Se propõe a dirimir conflitos e antagonismos
sociais, o que se constitui uma “ilusão jurídica”, já que autonomiza tal complexo das
mediações materiais e políticas, sendo seu ordenamento ancorado “na vontade da respec-
tiva classe dominante de ordenar a práxis social em conformidade com suas intenções”
(LUKÁCS, ([1981] 2013, p. 240).

Sua lógica jurídica, técnica, demonstra coesão teórica, sem contradições, porém ao tentar
homogeneizar a realidade concreta apresenta seu caráter arbitrário e por fazer-se neces- 42
sário uma técnica de manipulação bem própria, “esse complexo só é capaz de se repro-
duzir se a sociedade renovar constantemente a produção dos ‘especialistas’ (de juízes e
advogados até policiais e carrascos) ” (LUKÁCS ([1981] 2013, p. 247). O funcionamento
do direito positivo está baseado em:

manipular um turbilhão de contradições de tal maneira que disso surja não só um sistema unitá-
rio, mas um sistema capaz de regular na prática o acontecer social contraditório, tendendo para
sua otimização, capaz de mover-se elasticamente entre polos antinômicos – por exemplo, entre
a pura força e a persuasão que chega às raias da moralidade -, visando implementar, no curso
das constantes variações do equilíbrio dentro de uma dominação de classes que se modifica de
modo lento ou mais acelerado, as decisões em cada caso mais favoráveis para essa sociedade,
que exerçam as influências mais favoráveis sobre a práxis social (LUKÁCS, [1981] 2013, p. 247).

Vaisman (2010) expõe que antes da esfera ideológica do direito, toda a comunidade era
responsável por dirimir os conflitos, não necessitando de um grupo de especialistas
para sua manutenção, reprodução e transformação. É uma ideologia específica, pois
não nasce espontaneamente, como os costumes, mas deles se alimentam. O interesse
burguês aparece como interesse universal, restrito a uma igualdade formal. Desta forma,
percebemos que a desigualdade não está no campo jurídico e sim nas relações econômi-
cas de produção (SARTORI, 2014).
Nossa preocupação é que a utilização restrita ao direito burguês positivado com a expec-
tativa de superação da violência contra a mulher, pode ao mesmo tempo, trazer passivação
das reivindicações feministas, individualizar as saídas da violência, sem abalar ou modifi-
car estruturalmente o sistema:

Somente nas condições sócio-concretas e no ambiente contraditório da luta de classes é


possível definir precisamente se determinada luta por direito e sua respectiva configuração
legal, orienta-se para desmistificar formas históricas de dominação ou, ao contrário, aprofun-
da e reforça ações conformistas, por disseminar, ideologicamente, a igualdade perante a lei,
como se esta fosse a própria resolução de uma dada forma de opressão e de exploração.
Disciplinar, amenizar conflito e resolver formas de opressão são questões qualitativamente
diferentes. No primeiro caso, trata-se de administrar os problemas e, no segundo, enfrentá-
-los (SANTOS, 2005, p.84, grifos nossos).

Ademais, corre-se o risco de se reduzir uma questão estrutural do sistema patriarcal-racista-


capitalista a um problema jurídico, voltado para outra face perversa deste modo de vida: a
punição. Sendo assim, importante realizar mediações entre o direito e as pautas feministas,
já que historicamente, o movimento feminista tem atrelado suas pautas à busca por direitos
civis, políticos e sociais. Afirmam sua luta por igualdade entre homens e mulheres alinhados
com a perspectiva dos direitos humanos.

Cisne (2015) reafirma a importância da luta por direitos humanos, e, portanto, pelos legítimos

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direitos das mulheres, mas problematiza que os direitos formalmente legalizados, não podem
ser um fim em si mesmo, e que todos os seus limites e contradições devem ser considerados
em uma sociedade que possui desigualdades de classe, raça/etnia e sexo. Essa sociedade “não
apenas provoca a demanda pela luta por direitos humanos, mas a exige” (CISNE, 2015, p. 152).

Enredadas nestas contradições, não nos é possível alcançar a emancipação feminina, o que
será melhor analisado no próximo tópico, ao fornecermos tratamento analítico à própria
lei Maria da Penha. Por outro lado, a luta por direitos constitui uma pauta que impulsiona
grandes mobilizações, podendo ser estratégica nos limites deste sistema e auxiliando na 43
formação da consciência militante feminista6. Nessa direção, Cisne (2015) defende que os
direitos humanos sejam uma tática que também permite expor tais desigualdades.

Melo (2011) destaca este caráter ambíguo do Direito, pois se ele exerce um papel de con-
formação e arrefecimento da sociedade de classes, através de soluções ilusórias, dialeti-
camente, sua arena também promove resistências, como espaço de lutas políticas, tendo
em vista que as soluções individuais oferecidas por estes fracassam, abrindo espaço para
busca de alternativas efetivas. Apesar do Direito ser este complexo parcial técnico-manipu-
lador, Lukács pontua que ele:

[...] pode adquirir até mesmo uma autonomia relativa considerável com relação ao regime vi-
gente em cada caso [...] os espaços de manobra que surgem desse modo baseiam-se, por sua

6 De acordo com Cisne (2014) a consciência feminista se refere à percepção da mulher como sujeito de
sua vida, o que demanda a ruptura com as mais variadas formas de apropriação sobre o nosso corpo, tempo e
trabalho, bem como a superação da ideologia de naturalização da subalternidade feminina. Já a consciência militante
é uma consciência associada voltada para transformação social. Essa consciência necessariamente se associa à
perspectiva da classe trabalhadora e se expressa na formação de movimentos de mulheres e nas lutas que os mesmos
pautam. A consciência militante feminista, portanto, não resulta apenas de uma simples reação às opressões. Ela é
um continuum que envolve um movimento dialético entre formação política, organização e lutas, que vão da dimensão
individual, da ruptura com o “privado” à dimensão coletiva, de organização política voltada para a transformação
social.
vez, nas relações de forças reais entre as classes, o que não anula essa condição do direito de
ser uma espécie de Estado dentro do Estado, mas apenas determina concretamente seu caráter
e seus limites (LUKÁCS ([1981] 2013, p. 247)

Para Melo (2011), não basta negar o direito, já que a maioria das pautas das lutas sociais são
transformar suas demandas políticas em direito positivado, em leis escritas. A autora reflete
que um dos problemas é quando a luta política se transforma apenas em um direito, em uma
lei, perdendo seu caráter coletivo e reivindicatório. Portanto, o direito é útil para o capitalismo
não apenas em virtude das regras que legitima, principalmente vinculadas aos bens patrimo-
niais, às trocas e à propriedade privada, mas pela sua aceitação como forma de organizar a
vida em sociedade, como se abrigasse o interesse de todos e todas. Desta forma, além de
seu braço coercitivo, possui um importante papel na formação da consciência social.

Nesse processo de desestranhamento ou desalienação, temos que compreender o direito


como “algo em construção, um processo contínuo de afirmação e negação”, combatendo
às raízes desse estranhamento, pensando em uma sociedade não alienada e nem for-
mada por classes antagônicas cujos interesses são irreconciliáveis (IASI, 2005). Diante
destas reflexões e ponderações dos limites da esfera jurídica para a transformação
social, reforçamos que, compreendendo o Direito como ideologia, este possui uma fun-
ção prática no cotidiano e pode influenciar nos comportamentos violentos, nas formas
de agir, dependendo das escolhas subjetivas feitas pelos sujeitos envolvidos, abrindo,

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mesmo com suas limitações, outras possibilidades históricas diante da coletividade.
Para isso, não podemos deixar de lado a leitura dessa arena de poder e nem abandonar a
luta política em busca de construir outras alternativas.

3. Lei maria da penha e medidas de proteção de urgência

Inicialmente, ressaltamos o importante papel do movimento feminista na busca por legisla-


44
ções que forneçam para as mulheres nessa sociedade desigual alguma forma de proteção
social e ampliação de direitos. Neste tópico, apresentamos algumas indicações sobre a
operacionalização da LMP e direcionamento das medidas de proteção de urgência.

A LMP foi fruto de pressão de organizações internacionais e sua legislação foi constru-
ída de forma coletiva com instituições e ONGs feministas, após o país ser denunciado
junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (OEA) pelo caso de Maria da Penha Fernandes, mulher que sofreu várias vio-
lências físicas e tentativas de homicídio no casamento, ficando paraplégica após levar
um tiro, na coluna, disparado pelo marido.

Lage e Nader (2013) expõem que, historicamente, no Brasil, a violência contra mulher foi vis-
ta como questão da ordem privada e, por isso, não necessitaria de intervenção estatal, já que
os atos de violência seriam justificáveis quando cometido por pais e maridos contra filhas
e esposas. Anterior à lei nº 11.340/2006, a violência contra a mulher não constituía figura
jurídica, sendo encaminhada à justiça dependendo da tipificação interpretativa da queixa da
vítima. A LMP, trouxe inovações jurídicas com a tentativa de uma celeridade processual e a
possibilidade de solicitar medidas de proteção baseadas apenas na demanda apresentada
pela mulher, com indícios de materialidade.
Embora nosso objetivo não seja priorizar os aspectos processuais técnico-jurídicos da LMP,
sinalizamos que, de acordo com Fernandes (2015, p. 140) a aplicação das medidas de prote-
ção possui controvérsias, pois a lei silenciou quanto “a necessidade de estarem vinculadas
a um procedimento, duração das medidas, rito, recursos cabíveis e outros”. Dessa forma,
pode-se haver divergências quanto a operacionalização e aplicação das MPUs pelo judiciário
altamente centrado nesses aspectos ritualísticos. Retomamos que o presente artigo, preten-
de fazer alguns apontamentos sobre a conceituação de proteção social e a operacionaliza-
ção das medidas de proteção.

Salientamos que ao pensarmos quanto à proteção social das mulheres, precisamos, nos
limites desta sociedade, voltar-nos realmente para a proteção da mulher e, para nós, o en-
carceramento não pode ser tido como uma política preventiva. Lotar cadeias não transforma
a realidade e as medidas protetivas de urgência não podem servir de antessala da prisão.
Muitas mulheres requisitam alguma forma de proteção, mas não desejam representam crimi-
nalmente ou querem uma responsabilização diferenciada da prisão.

Dentre os casos estudados, apenas nove desejaram representar criminalmente, sendo que
dentre essas, uma desiste tanto das MPU, quanto da representação e retorna ao convívio
com o marido, uma situação ambas se representam mutuamente e tem seus casos posterior-
mente arquivados, e sete seguiram com a representação criminal, mas as ações penais não

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foram analisadas nessa pesquisa.

Recente decisão da 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo,


deferiu pedido da Defensoria Pública do Estado e garantiu proteção a uma mulher que optou
por não processar criminalmente seu companheiro, o que traz à tona a realidade de muitas
outras mulheres, que já apontávamos na apresentação desse trabalho, as quais não desejam
representar criminalmente, mas sim anseiam por alguma forma de proteção. Os desem-
bargadores concluíram que “as medidas previstas na Lei Maria da Penha têm o objetivo de
assegurar direitos fundamentais, ao invés de provar crimes” (IBDFAM, 2016, s.p).
45
Abordar medidas de proteção de urgência sem inserir no debate o desafio da própria prote-
ção social no capitalismo contemporâneo nos parece remeter à já falada perspectiva salva-
cionista e liberal do Direito tradicional que não atende à vida das mulheres em sua concretu-
de. Marques e Mendes (2013) ao pensar a interface entre o capitalismo contemporâneo e a
proteção social, abordam os impactos nesta última, com maior deterioração das condições
de trabalho e cortes tanto no acesso quanto na cobertura das políticas sociais.

No Brasil, a lei 11.340/2006 traz uma proposta de criação e ampliação de atendimentos às


mulheres em situação de violência doméstica e familiar contra a mulher formando uma rede
de enfrentamento e de atendimento a essa demanda. Como pensar na ampliação e qualidade
dos serviços diante do desmonte dos mesmos nessa conjuntura? Nos parece que, no cenário
conservador atual, estamos nos direcionando a não perder o que já existe, mesmo de forma
insuficiente e limitada. Porém não podemos deixar de lado a busca pelo aperfeiçoamento
das legislações existentes e a análise de que toda proteção social nesse sistema patriarcal-
-racista-capitalista não promove transformações sociais profundas, mas propicia sobrevivên-
cias diante de tamanha desigualdade.

Debater proteção social não é um tema pacificado, o que traz dificuldades em sua conceitua-
ção, pois “proteção” pode ter diferentes significados a partir de teorias e ideologias diferen-
tes. Assim como a luta por direitos humanos também traz diversas tensões e conflitos na es-
querda. Tais dificuldades, em nossa opinião, persistem, ao debatermos medidas de proteção
para mulheres, já que não há consenso de que proteção é essa e nem em como efetuá-la ou
quais direitos e como devem ser garantidos.

Primeiro, porque elas são sujeitas que tem histórias, desejos e expectativas diferenciadas,
crenças, opiniões, raças/etnias, orientações sexuais, idades, dentre tantos outros mar-
cadores de diferenças, mas que são arroladas e encaixadas em procedimentos jurídicos
padronizados. Segundo, porque concepções diferentes de proteção levam a planejamento,
avaliação e execução de políticas de forma diferenciada, porque também compreendem
diferentemente quais necessidades devem ser atendidas pelo Estado. Sendo assim,
podemos considerar uma política como residual e precária e outro/a considerá-la como
suficiente e “empoderadora”.

Destacamos, desde já, que, em nossa perspectiva, “a proteção social no capitalismo não está
exclusivamente comprometida com as necessidades sociais” e ainda que “o termo proteção
encerra em si um ardil ideológico, a ser teoricamente desmontado, visto que ele falseia a
realidade por se expressar semanticamente como sendo sempre positivo” (PEREIRA 2013,
p. 24). Por analogia, podemos também pensar sobre as medidas de proteção de urgência
sempre como positivas, mas veremos nos casos concretos trazidos pela pesquisa de campo,

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o quão contraditórias e regressivas elas podem ser em determinadas situações, o que nos
exige vigilância crítica e compromisso ético.

Adotamos nesta pesquisa, a partir de categorização nossa da própria lei, que as decisões
de contenção são aquelas que englobam ações repressivas, de afastamento, privação
de direitos e de responsabilização; as de assistência aquelas que fortalecem a rede de
atendimento, deferem ações assistenciais e garantia de outros direitos, ademais, contem-
plam encaminhamento a benefícios, políticas e serviços públicos, assistência judiciária,
acolhimento institucional e abrangem decisões cíveis, como separação, guarda e alimen-
46
tos e as de prevenção aquelas que contemplam ações educativas que interferem nos
padrões sexistas, orientações aos atendidos ou inserção em grupos reflexivos e serviços
de acompanhamento/ “tratamento”.

Percebemos, a partir dos casos analisados que as principais decisões referentes a re-
quisição das medidas de proteção de urgência, restringem-se às ações de contenção: à
proibição de afastamento e de contato e, quando há coabitação, também se defere afas-
tamento do lar. Notamos que, mesmo após o deferimento judicial, majoritariamente há
relatos de descumprimento das medidas, resultando ora em advertências em audiência,
ora em decretações de prisões preventivas. Ainda havia casos de descumprimento das
MPUs, no qual o abrigamento e a concessão do DSP7 foram acionadas e que, se situam
nas ações de assistência/prevenção.

Em muitos casos, percebemos a necessidade do agendamento de audiências para decidirem


qual dessas ações serão adotadas. Sobre as audiências, Fernandes (2015, p. 175) aponta que

7 O Dispositivo de Segurança Preventiva (DSP), conhecido como ‘botão do pânico”, consiste na distribuição
de dispositivos equipados com GPS e interligado à guarda municipal de Vitória entregues às mulheres que possuíam
medida protetiva de urgência. Ao acionar o botão, a guarda possui sua localização e o áudio ambiente começa a ser
gravado (BRASIL, 2013). Uma análise inicial sobre a experiência pode ser encontrada em Peixoto; Taufner; Garcia
(2016).
É possível, eventualmente, a realização de audiência para ouvir as partes ou até testemunhas
com o fim exclusivo de se verificar se há situação de risco e quais as medidas pertinentes,
bem como tentar conciliar as partes quanto a questões familiares como guarda, visitas, ali-
mentos. Obviamente, não deve o juiz tentar conciliar vítima e autor para que ela desista do
processo.

A necessidade de analisar as requisições que vem nos boletins de ocorrência podem ser
para analisar quais as medidas realmente necessárias de acordo com cada situação. Nas
requisições vindas da delegacia, em alguns casos, percebemos certa padronização dos pe-
didos, independentemente da realidade apresentada no depoimento prestado pela mulher.

Percebemos que a “proteção social” ofertada à mulher no judiciário são as mais imediatis-
tas, gira em torno de medidas de restrição de direitos dos homens (medidas de afastamen-
to e proibição de contato), pouco promovendo inserção em políticas públicas de prevenção
ou acompanhamento para os/as envolvidos/as, trazendo um reducionismo ao próprio
espírito da lei e conservando o tradicional papel punitivista8 do direito.

Apesar do judiciário aplicar majoritariamente medidas de restrição de direitos dos/as re-


queridos/as, as dimensões da proteção e assistência perpassam seus/suas operadores/as
que, diversas vezes, acionam ou requerem o atendimento da equipe técnica, seja em virtude
da litigiosidade presente nas relações ou da necessidade de articulação das políticas pú-

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blicas, para além do restrito espaço judicial. Por isso, consideramos que as medidas mais
progressistas da LPM tendem a ser aplicadas, caso haja uma intervenção de equipe técnica
especializada no atendimento aos sujeitos envolvidos.

A Lei 11.340/2006 não prevê obrigatoriedade da equipe técnica, porém o Manual de Rotinas
e Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFMs)
indica a relevância da atuação de assistentes sociais e psicólogos/as, pois são considera-
dos como profissionais auxiliares do juízo:

A equipe multidisciplinar também tem o importante papel de auxiliar o Juízo na compreensão 47


do contexto familiar em que ocorre a situação de violência e as peculiaridades e necessida-
des daquela unidade familiar, assim como da vítima e do agressor (CNJ, 2010, p. 41).

Recomenda ainda a inserção de equipe técnica multidisciplinar tanto nos processos de co-
nhecimento (MPUs e Inquéritos policiais), quanto nos de execução (ações penais e execu-
ção penal) (CNJ, 2010, p. 19). Defendemos que o atendimento da equipe técnica traz outros
elementos mais complexos aos autos e demonstram as contradições da vida cotidiana que
o direito não dá conta de responder.

8 A Lei 11.340/2006 equipara-se a outras legislações protetivas que também possuem um conteúdo
punitivo quando os direitos de seus usuários são violados. Esta é uma grande polêmica dentro da criminologia
crítica tendo em vista que leis de proteção reforçam o sistema penal que para eles trata-se de uma ilusão e um
reforço às violências. Andrade (2012) expõe sobre o profundo debate para a compreensão das relações entre
criminalidade, sistema de justiça penal, criminalização e mulher/feminino. Para ela a criminologia é androcêntrica
tanto no objeto do saber (mulher enquanto autora e vítima de crimes) quanto nos produtores do saber (sujeitos na
produção da ciência). Nessa direção, Cortês (2013) expõe como as leis penais sempre foram discriminatórias e
sexistas em relação ao tratamento dado às mulheres.
4. Considerações finais

A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, previu uma expansão dos serviços de atendi-
mento e enfrentamento à violência, num momento de aprofundamento do projeto neoliberal
de corte dos gastos públicos e ataque às políticas sociais. A legislação é nova, o que já traz
enormes desafios à uma instituição conservadora e tradicional como o poder judiciário.

Buscamos ao longo do artigo, tecer algumas considerações sobre os limites dos avanços
legais e a relação com a proteção social. Parafraseando Mauro Iasi (2005), afirmamos que
os/as iguais perante à lei ainda se reproduzem desigualmente, ou seja, a base das desigual-
dades não está no texto jurídico, apesar de historicamente diversas leis serem forjadas para
reproduzir e legitimar opressões.

Precisamos, portanto, definir se o nosso objetivo final é administrar ou acabar com as


opressões, porque se nos dirigirmos a segunda opção, não é na arena jurídica que vamos
alcançar tal transformação, tendo em vista que ela se situa na esfera da administração e
mediação de conflitos e manutenção do status quo. A legislação deve ser vista como tática
das lutas sociais para promover garantias mínimas em direção a um objetivo maior. A defesa
de uma proteção social no âmbito de uma sociedade desigual não pode ser nosso horizonte
ético-político, pois ela sempre será limitada. Porém atualmente, esta proteção tende a sofrer

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diuturnamente enormes retrocessos.

Fora isso, trabalhar com proteção é uma linguagem a ser aprendida num espaço alta-
mente punitivista. Mota (2011) analisou os escritos do jovem Marx sobre o Direito. Con-
clui que as obras marxianas até 1843, possuíam um caráter reformista, compreendendo
que a injustiça e a desigualdade ocorriam porque as instituições não cumpriam o papel
para qual foram criadas. Marx iniciou seu debate no direito estudando leis específicas,
por meio de fontes jurídicas positivas tradicionais. Dedicou-se posteriormente, à análise
da totalidade das relações sociais. Atualmente, percebemos que a injustiça e a desigual- 48
dade também ocorrem devido a existência dessas instituições que cumprem seu papel
ofuscando as raízes dessas desigualdades.

Por isso, para além de debater a legislação em si mesma, o debate precisa perpassar a pro-
teção social pública e, para além, da tipificação dos casos de acordo com a lei ou do debate
sobre o aprimoramento de sua aplicação devemos olhar para o fato do porquê tais situações
ainda persistem contemporaneamente.

Não perder de vista seus fundamentos estruturais e de que, embora nem todas as situações
judicializadas tenham como objeto “violência baseada no gênero”, usando os termos legais, o
fato de mulheres acionarem o sistema de justiça, seja por qual demanda o façam, já demar-
cam um atendimento “generificado” dos/as operadores/as do direito. Significa ser mulher,
numa sociedade patriarcal, racista e capitalista, fundada e sustentada por tais desigualdades
e por instituições criadas diante de sua complexificação e acirramento.

Em nossa pesquisa confirmamos que muitas mulheres acionam tal mecanismo reivindican-
do alguma forma de proteção e não criminalização de sujeitos que possuem ou possuíram
algum vínculo familiar e/ou afetivo. Desejam transformar e superar sua situação de violên-
cia, mas o que ocorre tradicionalmente é a restrição de direitos da pessoa indicada como
autora da violência, ao invés de promoção de direitos a quem solicita as medidas. Nota-
mos ainda que tal situação poder ser alterada quando há atuação da equipe técnica que
possui, geralmente, objetivos voltados para o cuidado, fortalecimento e acompanhamento
dos sujeitos atendidos, independente do “pólo” que compõe a ação. Tal indicação nos traz
problemas no que tange a aplicação integral do “espírito” da LMP, tendo em vista o baixo
quantitativo desses/as profissionais no judiciário e a ausência ou baixo número de equipes
específicas voltadas para a temática.

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RESPONSABILIZAÇÃO E EDUCAÇÃO DO
HOMEM AUTOR DE VIOLÊNCIA: UMA
NOVA POSSIBILIDADE DE ABORDAR A
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Rayanne Rocha Marcelino1

EIXO TEMÁTICO: GÊNERO, GERAÇÃO E ETNIA

O presente artigo traz como proposta a discussão da violência de gênero na pers-


pectiva do homem autor da violência, sendo esta violência resultante de uma
cultura que tem o machismo e o patriarcado como estruturantes das relações
socialmente e historicamente construídas. É feito um resgate histórico da temá-
tica, abordamos o contexto atual e a partir dessa análise serão abordadas novas
perspectivas e rumos frente à problemática apresentada.

Palavras-chave: Violência. Gênero. Mulher. Responsabilização.

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1. Introdução

A origem da violência, segundo Rousseau apud Barcellos (1998) se deu com o advento da
propriedade privada, onde o poder passa a ter forças nas relações sociais onde o homem busca
somente suprir as suas necessidades individuais. Deste processo resulta a luta de classes, com-
posta por proprietários X subordinados/não proprietários dos meios de produção, contudo esta
51
desigualdade pode gerar uma violência considerada positiva, resultado da indignação dos subor-
dinados não satisfeitos com sua condição. Essa violência é então fruto do contexto vivenciado, é
uma violência estrutural “[...] ela resulta e integra as relações sociais em que existem estruturas
de poder e classes sociais. Fundamentalmente, ela se manifesta na luta de classes” (p. 33). A
crítica feita por Karl Marx em relação à luta de classes existente no sistema capitalista coloca
em voga a estreita relação da violência com a contradição gerada por este sistema econômico.
Neste contexto a violência passa a ser social. Muitos autores acreditam que o processo revolu-
cionário, que objetiva outra sociedade, se dará por meio do uso da violência.

Entretanto, mesmo sendo estrutural, a violência não pode ser naturalizada nas relações so-
ciais, tampouco nas relações de sexo, como é feito há séculos em relação à violência cometi-
da contra as mulheres, o que Saffioti (2004) retrata de forma clara quando diz que:

[...] o entendimento popular da violência apoia-se num conceito, durante muito tempo, e
ainda hoje, aceito como o verdadeiro e único. Trata-se da violência como ruptura de qualquer
forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica, integridade sexual,
integridade moral (p.17).

1 Bacharel em Serviço Social. Universidade Federal do Espírito Santo. Email: rayanne.rocha19@gmail.com


(027) 99982-2350
Assim, a violência sofrida pelas mulheres foi por anos naturalizada por pensamentos machistas
que caracterizam a sociedade na qual vivemos, estas violências afetam de maneira relevante a
vida das mulheres, constrangendo-as e deixando sequelas físicas e psicológicas, além de ferir
os princípios dos direitos humanos adotados pelo Brasil2. A violência acomete tanto os homens
quanto as mulheres, o primeiro, em sua maioria no espaço público, e as mulheres no espaço
privado, dentro de seus próprios lares por pessoas com as quais se têm relações afetivas e
de quem não se espera uma atitude violenta. Ainda assim, a violência contra a mulher deve
ser vista como de responsabilidade de toda a sociedade e também, não menos importante, de
responsabilidade do Estado, que deve garantir as mulheres o direito a vida com dignidade. Num
contexto recente, como resultado de anos lutas e reivindicações por parte do movimento femi-
nista3, tivemos a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da
República (2003), e a lei 11.340/06 conhecida como lei Maria da Penha, que significam grande
avanço no que diz respeito à visibilidade da questão da violência contra a mulher, e que tem
como enfoque a punição dos agressores, entre outras ações do poder público para enfrentar
a problemática, porém, ainda não são suficientes e eficazes em seu total funcionamento. Pois
sabemos que transformar hábitos fortemente enraizados numa sociedade não é fácil e nem
rápido, e exige muito interesse de todos os envolvidos.

2. Desenvolvimento

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2.1 Violência e gênero

Gênero não remete somente a mulher, este se refere aos papéis estabelecidos ao homem e a
mulher e as relações sociais resultadas deste contexto. Neste artigo abordamos a violência
que resulta destas relações, estabelecidas social e culturalmente, que colocam a mulher em
situação de desigualdade frente ao homem e a submete as decisões do mesmo. A submis-
são da mulher é algo existente em nossa sociedade há muitos anos e esta diretamente ligada
à ordem patriarcal de gênero, que estabelece poder ao homem, permitindo a este o controle,
por exemplo, da vida sexual e reprodutiva da mulher. Acredita-se que foi com o advento da 52
sociedade capitalista, com a divisão sexual do trabalho, que passou a ficar mais evidente a
submissão do sexo feminino em relação ao masculino4. Assim, “um dos elementos nucleares
do patriarcado reside exatamente no controle da sexualidade feminina, a fim de assegurar
a fidelidade da esposa ao marido” (SAFFIOTI, 2004, p. 49). Ainda sobre o patriarcado, é nele
que se concentra toda a naturalização da subalternidade da mulher e da violência sofrida
por esta. O patriarcado é inerente ao sistema capitalista e o favorece, quando trata a mulher
como mão de obra barata e por até pouco tempo impedida de questionar suas condições de
trabalho e vida. Por terem sido socializadas na cultura do patriarcado, poucas contestam sua
condição, as mulheres foram educadas para conviverem com a impotência, os homens não, a
estes não é permitido demonstrar fraqueza, além disso, o uso da força por meio da violência
é a forma como estes foram ensinados a lidar com as frustrações e os “nãos” da vida. Com

2 Declaração e plataforma de Ação de Viena, 1993. Declaração sobre a eliminação da violência contra a
mulher, Assembléia Geral da ONU, 1993. Convenção Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência
contra a mulher, Belém do Para, 1994. Entre outros.

3 Década de 1970, marco histórico de inicio das reivindicações. Primeiras décadas do século XX, a partir
1920 lutavam pelo direito ao voto e por direitos trabalhistas.

4 Flávio Urra sociólogo que discuti masculinidades. Masculinidades: reconstruindo relações de igualdade.
Disponível em: <http://flaviourra.wordpress.com>. Acessado em: 11 de Outubro de 2013.
isso temos base para compreender por que muitas mulheres vivenciam situações de violên-
cia por muitos e muitos anos de suas vidas, pois as relações que estabelecem são regidas
pela prática do poder e do medo.

São das mais diversas as violências sofridas pelas mulheres: física; sexual, psicológica; mo-
ral e financeira, caracterizadas pela desvalorização da mulher. Uma das violências que mais
sofrem as mulheres é a doméstica, envolta em relações de afeto e convivência. Sabe-se que
os maiores autores de violência doméstica5 contra a mulher são seus maridos, companheiros
e parceiros, ou seja, pessoas que as mulheres têm alguma ligação conjugal ou vínculo afeti-
vo. Dados do Mapa da Violência 2012 apontam que 20 dos 59 autores de violência contra as
mulheres são seus companheiros e ex-companheiros, girando em torno dos 38,7 a 49,1 % dos
casos notificados pelos serviços de saúde, conforme Lei nº 10.778, de 24 de novembro de
2003, que estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência
contra a mulher que for atendida em serviços de saúde, públicos ou privados.

Assim, a desigualdade de gênero, construída socialmente é o que respalda as atitudes violen-


tas por parte destes companheiros. Mas isso não pode ser entendido socialmente como na-
tural, banal e permissível aos homens. Entender o processo socioeducacional em que estão
envolvidos faz toda diferença, pois este não considera sua masculinidade, o que é de total
importância para desconstruir a cultura machista, tão forte e presente em nossa sociedade e

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construir relações mais igualitárias entre os sexos.

A responsabilização e a educação do homem autor de violência6, trabalhada de forma que


busque romper com as diferenças existentes hoje, pode trazer mudanças consideráveis. De
maneira que, de forma ainda branda, esta proposta já existe, por meio de ações e serviços de
responsabilização e educação do homem autor de violência, previstos na Lei 11.340/06 – Lei
Maria da Penha em seus artigos artigo 46 e 35, Inciso V e na Política Nacional de Enfren-
tamento a Violência contra a Mulher (2011), que apontam como tais inovadoras propostas
podem trazer novas abordagens para as ações de combate a violência contra a mulher.
53
Este artigo se baseia teoricamente, além dos importantes instrumentos de efetivação de di-
reitos citados acima, também na produção científica de pesquisadoras pioneiras nos estudos
de violência, violência de gênero e masculinidades como Heleieth Saffioti e Eva Blay. E que já
trazem a luz das pesquisas de violência contra a mulher a proposta da abordagem do homem
autor de violência como possível forma de proporcionar mudanças nas relações entre os
gêneros e nas desigualdades que rodeiam estas relações.

Saffioti (2004) aponta que “penas alternativas como estas de caráter pedagógico, podem
oferecer uma expectativa de mudança nas relações de gênero” o que pode por oportunizar
novas ações e políticas sociais voltadas para a questão. A utilização destas autoras como
referências, para além da abordagem crítica marxista que trazem, tem o intuito de emba-
sar a crença de que a existência deste tipo de proposta pode trazer mudança à realidade
hoje vivida por muitas mulheres no Brasil. Com o pensamento de que se pode alcançar o
proposto pela lei com implementação de políticas públicas que visem à responsabilização,

5 Dados contidos no Relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência Contra Mulheres,
publicada no ano de 2012, disponível na página da Secretaria Especial para as Mulheres.

6 Entrevista de Ângela Davis, ex-integrante do grupo Panteras Negras ao portal Géledes. Criminalizar a
violência não basta para erradicá-la. Disponível em <http://www.geledes.org.br/criminalizar-violencia-domestica-nao-
basta-para-erradica-la-diz-angela-davis/#axzz3UsOFsJVb>. Acesso em: 19 de Março de 2015.
de modo que, será trabalhada a sua atitude impensada, passível de punição e a educação,
para mudança de tal atitude resultada em violência.

A violência contra as mulheres é sempre alvo de questionamentos, pois mesmo com ações,
políticas e leis aprovadas, tal realidade não tem mudado e aumentado a busca por respostas
concretas por parte dos movimentos que lutam pelos direitos das mulheres e isso tem dado
maior visibilidade à questão. Em contrapartida, no que diz respeito ao direito de viver das mu-
lheres não tem havido nenhuma garantia por parte do poder público, e tem se elevado cada
vez mais os casos de violência. O que tem acontecido, ou melhor, o que não tem acontecido
para que os índices de violência contra as mulheres diminuam? Parte daí o entendimento de
que se deve começar a considerar também a outra parte envolvida nos casos de agressão,
com medidas e ações que trabalhem na perspectiva da educação e responsabilização dos
homens autores de violência o que pode vir a reduzir os casos ou a reincidência de violência
contra a mulher, pois como afirma Saffioti (2004), temos que “auxiliar também o agressor
para uma transformação na relação violenta” não somente a mulher vítima de violência.

Na abordagem ao homem autor de violência, embora as pesquisadoras aqui mencionadas


já tenham atentado para essa perspectiva ainda no século passado, estudos e produções
teóricas são ainda poucos. A sociedade civil por meio de organizações e instituições não
governamentais (ONG’S) tem trazido isso como um novo caminho. Exemplos como os de

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ações que visem entender a violência contra a mulher, suas particularidades e causas exis-
tem com experiências de grande êxito no estado de São Paulo nas cidades que compõem o
grande ABC Paulista, os “grupos de reflexão”, nome utilizado nos exemplos, iniciaram após
a instalação das Varas de Família, Juizados, etc. No entendimento de que a violência con-
tra a mulher não deve deixar de ser criminalizada, porém, após muitos anos de trabalho,
estudos, e observações, também se buscou ouvir e dar voz aquele que agiu com violência.
Partindo da tentativa de compreender a forma que o homem se vê no mundo e se relacio-
na, por se entender que este homem é bombardeado pelos conceitos conservadores da
sociedade capitalista, que a priori está sempre ditando o seu modo de agir. Na realidade
54
de São Paulo, como já citado, estes grupos estão diretamente ligados à justiça “como
responsabilização dos homens, porém surgem como lugar de acolhida e possibilidade de
reflexão, na perspectiva de que é possível a construção de novas referências nas relações
sociais por meio da educação.” (pág. 199). Estas experiências são relatadas no livro
Feminismos e Masculinidades: novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher
de Eva Blay (Orgs.), 2014, no livro, vários casos de “grupos de reflexão” são citados, que
mesmo sob cunho judicial contou com facilitadores que não hesitarão em trabalhar com os
homens envolvidos a igualdade entre os gêneros e a construção de novas masculinidades,
deixando livre ao grupo a exposição de suas inquietações e questionamentos comuns aos
homens, e que assim no passar de oito a nove meses de acompanhamento, era visível a
mudança de pensamentos e até a postura dos homens envolvidos.

2.2 Outra educação, novos valores

Quando discutimos aqui sobre novas ações que dizem respeito à violência contra a mulher,
como a responsabilização e educação dos homens autores de violência, queremos dizer
que uma nova forma de educar é possível, com diálogos que considere a masculinidade
como não sendo sinônimo de virilidade ou demonstração de força, muito menos de que
ao sexo masculino tudo é permitido. É acima de tudo desconstruir algo tão forte e cultural
numa sociedade cujo seu sistema econômico possui total influência sobre as relações e
que deve ser questionado. O que não é fácil, mas temos de considerar os avanços que a
luta do movimento feminista tem alcançado e os debates teóricos encabeçados pelo mes-
mo, atualmente, como o da sexualidade feminina, que ainda sofre resistência e é tido como
tabu. A mulher tem vontades e direitos e capacidade de decidir sobre sua própria vida, e
não deve ser vista como objeto sexual e isso tem repercutido nos mais variados meios de
comunicação e até na política dita “democrática” do nosso país, por exemplo, que sempre
foi canal expresso de disseminação da cultura machista/sexista. E que ainda deve ser
muito mais ocupada pelas mulheres. Sem esquecer também da questão de gênero que
vem tendo possibilidade de ser discutida mais abertamente, como se objetivam fazer nas
escolas, o que traz uma nova visão da temática para os envolvidos neste contexto. O que
nos leva a acreditar que o movimento de mulheres não é somente aquele que se forma
dentro dos muros da universidade, muito pelo contrário, ser feminista é quando tomamos
outro patamar de consciência (dos nossos direitos) para lidar com questões do dia-a-dia
das mulheres. Tudo isso aponta para novos caminhos que talvez não se imaginar-se che-
gar tão cedo, mas que graças às próprias mulheres e a luta destas, que não aceitam mais
suas condições de subalternas, que cansaram de terem seus direitos violados, e encoraja-
ram-se a questionar e se fazerem vistas. Ainda que os indicadores elevados de violência
aparentemente mostrem que não, as mulheres têm sido protagonistas de suas histórias,

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e da história deste país buscando acima de tudo uma possibilidade de transformação da
sociedade rumo a uma nova realidade, como ressalta Samora Machel (1982, p. 18): a luta
pela emancipação das mulheres está associada à luta pela emancipação humana.

3. Considerações Finais

Como afirmou brilhantemente Cisne (2013, p. 55): “nada que se trate de relações humanas
e sociais possui neutralidade ou nasce de forma isolada no interior de um indivíduo […]”. 55

Não concordamos com explicações simplistas de que homens são violentos porque assim
o foram desde os primórdios. Sabemos também que o capitalismo contribui para essa so-
breposição do homem em detrimento da mulher, visto que o capitalismo é incompatível com
a igualdade. Há novos rumos possíveis dentro dessa sociedade que vivemos atualmente?
Diante disso, ficam questionamentos: Como estamos contribuindo para o rompimento desse
ciclo de violência contra as mulheres? Nesse sentido, sabemos que a inquietação que gera
a mudança não se esgota neste breve estudo de alguns apontamentos. Ao contrário, nos
abre infinitas possibilidades de imersão nesse universo das relações humanas. E nos coloca
frente a novas formas de enfrentamentos das violências aqui mencionadas.
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<http://flaviourra.wordpress.com>. Acessado em: 11 de Outubro de 2013.
RODAS DE CONVERSAS: PERCEPÇÃO DE
MULHERES CACHOEIRENSES SOBRE A
“LEI MARIA DA PENHA”

Rossana Amorim Pontes 1

EIXO TEMÁTICO: GÊNERO. GERAÇÃO E ETNIA

Resumo:Este trabalho parte de uma inquietação da autora de, em primeiro


lugar, descrever e analisar sobre a experiência enquanto facilitadora dos en-
contros do Projeto “Ciranda Feminina”, promovido pela Secretaria Municipal
de Desenvolvimento Social (SEMDES), da Prefeitura Municipal de Cachoeiro
de Itapemirim; em segundo lugar, de trazer à comunidade científica o univer-
so sociojurídico e como as mulheres participantes do Projeto percebem a Lei
11.340/2006, mais conhecida como “Lei Maria da Penha”, e a eficiência do Poder
Público em garantir o cumprimento da referida Lei; em terceiro lugar, fortalecer
a parceria interinstitucional e o trabalho em rede em torno do atendimento à
mulher vítima de violência doméstica e intrafamiliar.

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Palavras-chave: Violência Doméstica contra a Mulher, Roda de Conversa, Tra-
balho em Rede.

“Uma criatura muito estranha, complexa, emerge então. Na imaginação, ela


é da mais alta importância; em termos práticos, é completamente insignifi-
cante. Atravessa a poesia de uma ponta à outra; por pouco está ausente da
história. Domina a vida de reis e conquistadores na ficção; na vida real, era
escrava de qualquer rapazola cujos pais lhe enfiassem uma aliança no dedo” 57
(Virginia Woolf)

1. Introdução

A violência de gênero contra as mulheres é um fenômeno que ocorre nas sociedades


contemporâneas podendo ser identificada em várias partes do mundo, atingindo mu-
lheres de diferentes classes sociais, faixas etárias, raças e etnias, embora, nem sempre
visível ou considerada como um problema social. Particularmente, desde as últimas
décadas do século XX, a violência doméstica e familiar tem sido alvo de estudos que
buscam conferir visibilidade, compreender esses fenômenos, e também refletir sobre os
serviços públicos e as políticas de enfrentamento.

O importante debate sobre a violência de gênero tem seu fio condutor no movimento feminis-
ta, que a partir da segunda metade do século XX, em meados dos anos 60, traz e problemati-
za a situação de opressão que historicamente é submetida as mulheres em vários campos e

1 Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e Assistente Social no
Tribunal de Justiça do Espírito Santo. E-mail: ropontes@oi.com.br, tel (28) 99885-8310
em várias dimensões. Esse debate em torno da opressão potencializa mulheres a produzi-
rem demarcações políticas e teóricas acerca do tema.

Nomeado como sistema de dominação patriarcal, o patriarcado é definido como sistema


de estruturas e práticas nas quais os homens como grupo social dominam e oprimem as
mulheres. Segundo Saffioti (2004):

Por patriarcado compreendemos o sistema de dominação e exploração sobre as mulheres,


regido pelo medo e pela desigualdade de poder entre homens e mulheres. Por ser funcional
aos interesses capitalistas, esse sistema não foi apenas apropriado, mas fundido ao atual
modo de produção, formando um sistema: o patriarcal capitalista, pautado na exploração
intensificada da força de trabalho, especialmente a feminina. Entende-se que o patriarca-
do é um sistema que funciona independentemente da presença dos homens, ou seja, ele
encontra –se enraizado nas relações sociais de tal forma que, mesmo entre mulheres, sem
necessariamente haver presença masculina, há sua ratificação e reprodução. (Saffioti, 2004
apud Cisne, 2015 p. 152).

Dessa maneira, a relação estabelecida entre os sexos, historicamente, foi construída e


demarcada de tal de forma a estabelecer relações de poder e verticalizar posições entre
si. À luz dessa análise, implica entender que esse processo está enraizado no passado,
apresenta-se no presente e é fruto de lutas e denúncias contínuas do movimento feminista
mundial. Portanto, as questões ligadas à mulher tanto no contexto macropolítico como

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no cotidiano, especificamente, no que diz respeito a suas relações afetivo-conjugais, não
recebem o enlevo que merecem, merecimento este causado pelo fato de se tratar de um
desequilíbrio de forças históricas ligadas à questão do gênero. Para se ter uma ideia,
dentro do conjunto de expressões populares na cultura brasileira, existe o ditado “em briga
de marido e mulher, não se mete a colher”. A frase efetivamente compõe o imaginário dos
brasileiros e refletem o quanto, para a sociedade brasileira, os conflitos conjugais perten-
cem ao âmbito do privado, e resistem em levar a questão a público, mesmo quando se sabe
que estes conflitos são permeados por violências e opressões diversas.
58
No Brasil, a violência contra a mulher tornou-se alvo de manifestações de grupos feminis-
tas a partir da década de 1970, quando ecoavam vozes no sentido de tornar a questão a ser
discutida no âmbito público. De acordo com Santos (2011):

A violência doméstica e familiar contra a mulher permaneceu oculta entre quatro paredes
até a década de 1970. Tanto o estado como a sociedade em geral não a reconheciam como
um problema social e público, nem tampouco como uma questão de saúde pública, sendo
convenientes com essa prática social, por considerá-la como uma questão de ordem privada
e “normal” (Santos apud Tavares, 2015, p.547)

Naquele momento, o Brasil passava por profundas mudanças estruturais: a luta pela demo-
cratização do país através de manifestações contrárias ao regime militar que se instaurara,
possibilitou uma expansão de movimentos de mulheres engajadas por essas causas e pela
luta contra violência doméstica e familiar. Com a redemocratização, na década de 1980,
vários grupos de mulheres feministas iniciam um processo de discussão de pautas gene-
ralizadas, temas como: sexualidade e violência, saúde, ideologia, formação profissional e
mercado de trabalho, além de outras vão sendo incorporadas e reatualizadas. Nesse senti-
do, a politização da violência doméstica e familiar possibilitou a construção e discussão de
políticas de enfrentamento à violência, exigidas pelas mulheres naquele período histórico.
É pertinente destacar nesse período a criação do SOS Corpo (1978) Recife, SOS Corpo (1981)
São Paulo, podendo-se dizer que foram as primeiras organizações civis de atendimento às
mulheres vítimas de violência. As demandas que até então eram visibilizadas somente atra-
vés de coletivos e trabalhos voluntários, são incorporadas pelo governo. Em 1985, foi criado
o Conselho Nacional de Direitos da Mulher: órgão oficial de representação das mulheres, com
“[...] a finalidade de promover em âmbito nacional, políticas que visem a eliminar a discrimi-
nação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade de direitos, bem como sua plena
participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do País” (Brasil, 1985 apud Go-
mes, 2010). Conselhos Municipais e Estaduais da Mulher foram gradativamente instituídos
em todo país, paralelamente à formulação de programas governamentais e políticas públicas
voltadas para a mulher como o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM),
de 1984, e as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Com relação às
DEAMs, a primeira unidade foi criada em São Paulo, em 1986 e hoje já somam cerca de 467
unidades no país. Essas delegacias propiciaram grande expressividade política às organiza-
ções feministas, fortaleceram o seu diálogo com o Estado e constituíram-se como a primeira
grande política de gênero na área de segurança.

Há que considerar que o movimento feminista brasileiro teve papel fundamental ao combate
à violência, na medida em que fortaleceu espaços de discussão sobre o fenômeno, além
de problematizar situações que, até então, eram vistas de maneira a naturalizar a violência

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sofrida pelas mulheres. Como forma de combater tais situações, destacam-se atos que eram
nomeados como violência, que atentavam contra vida das mulheres e que até então se justi-
ficavam como “contra legítima defesa da honra” assim colocada no código penal brasileiro.
Uma das estratégias eleitas pelos movimentos foi o campo das reformas legais. Gradativa-
mente, leis discriminatórias foram sendo alteradas ou excluídas do ordenamento jurídico,
como exemplo o crime de adultério, o princípio da igualdade entre homens e mulheres em
todos os campos da vida social (art. 5°, I), inclusive na sociedade conjugal (art. 226, 5°) e
também, a inclusão do art. 226, § 8°, por meio do qual “ o Estado assegurará a assistência à
família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violên- 59
cia no âmbito das relações”. Antecessora à Lei Maria da Penha, a Lei Federal 9.099, de 1995,
que criou os Juizados Especiais Criminais (JECRIMs) para lidar com os casos decorrentes de
crimes considerados de “menor potencial ofensivo”, como por exemplo, ameaça lesão corpo-
ral leve e injúria, foi considerada como a mais significativa transformação no tratamento da
violência doméstica no âmbito da Justiça. No entanto, as alterações à Lei Maria da Penha,
na esfera penal, foram pontuais, em geral, na questão da majoração da pena, e não produziu
o efeito esperado tanto na responsabilização dos autores dos crimes quanto na prevenção e
assistência às mulheres em situação de violência.

A história que culminou na criação do Projeto de Lei 4.559/2004 e posterior promulgação


da Lei 11.340/2006 possui dificultadores que permitem analisar a própria condição da mu-
lher e do movimento feminista no cenário político atual. Muito mais do que uma homena-
gem, a referência do nome da lei a senhora Maria da Penha Maia Fernandes é um símbolo
desta luta. Vítima de tentativas reiteradas de violência física praticada por seu companhei-
ro, a referida senhora assistiu por um período de quase 20 anos seu caso ser devidamente
julgado pelo Poder Judiciário. A revolta com relação a esta demora e tratamento do caso
pela justiça (o que também era observado no caso de muitas outras brasileiras) motivou
um movimento micro e macropolítico de denúncia da situação brasileira às Cortes Inter-
nacionais de defesa dos Direitos Humanos. A criação do projeto de Lei elaborado por uma
comissão interministerial, constituída pelo governo e por feministas integrantes de organi-
zações governamentais e redes de apoios à mulheres vítimas de violência, elaborou a mi-
nuta original da lei, que foi aprovada pelo Congresso e assinada pelo presidente Luís Inácio
Lula da Silva em sete de agosto de 2006. A Lei de Enfrentamento à Violência Doméstica e
Familiar Contra a Mulher (Lei n 11.340), mais conhecida como Lei Maria da Penha, entrou
em vigor no mês de setembro do mesmo ano.

Sobremaneira, a lei trouxe avanços significativos no que se refere à proteção social das
mulheres em situação de violência, segundo Tavares (2015) esses avanços dizem respeito a
mudança de paradigma no enfrentamento à violência, incorporação da perspectiva de gênero
para tratar da desigualdade e da violência contra a mulher, incorporação da ótica preventiva,
integrada e multidisciplinar, fortalecimento da ótica punitiva, harmonização com a Conven-
ção Cedaw/ONU e com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violên-
cia contra a Mulher, consolidação de um conceito ampliado de família e visibilidade ao direito
à livre orientação sexual, e ainda estímulo à criação de bancos de dados e estatísticas.

Os avanços legislativos, entretanto, ainda não representam a garantia de uma vida livre de
agressões para uma parcela significativa das mais de 100 milhões de mulheres que vivem no
Brasil, uma vez que ausência de vontade política e dotação orçamentária estão no centro das
dificuldades de implementação de políticas públicas. No atual governo houve um recrudes-

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cimento quanto à dotação orçamentária, no que tange às Políticas Pública de Proteção aos
Direitos da Mulher21 ocasionando impactos significativos na qualidade de trabalho ofertado
a essas mulheres em espaços necessários a sua proteção. Portanto, entender e contextuali-
zar os caminhos históricos percorridos até a promulgação da lei e o quadro atual no qual as
mulheres ainda são vítimas de violência, merece atenção.

A título de avaliar os serviços ofertados às mulheres vítimas de violência, CPMI (Comissão


Parlamentar Mista de Inquérito) de Violência Contra a Mulher(2013), realizou uma análise
acerca desses serviços, conforme as prerrogativas da Lei Maria da Penha, dessas dados
60
constam: existem no país 965 serviços especializados de atendimento às mulheres, dentre
os quais 408 Delegacias da Mulher (DEAMs), 103 núcleos especializados em delegacias
comuns, 202 Centros de Referência de Atendimento à Mulher, 71 casas-abrigo, 66 juizados
especializados, 27 varas adaptadas, 64 promotorias especializadas e 36 núcleos ou defen-
sorias especializadas 21. Esses serviços constituem a rede especializada em atendimento
e são fundamentais para as políticas de prevenção e assistência à violência doméstica e
familiar, previstas na Lei Maria da Penha. A CPMI avaliou que, apesar do aumento significati-
vo em número de serviços nas últimas décadas, o crescimento não acompanhou a demanda.
Ainda, segundo dados do Dossiê Feminicídio (2017), produzido pela Agência Patricia Galvão,
“rota crítica” é o nome dado por especialistas ao caminho fragmentado que a mulher percor-
re buscando o atendimento do Estado, arcando sozinha com uma série de obstáculos, que
vão do acesso ao transporte a repetir reiteradas vezes o relato da violência sofrida e ter que
enfrentar com frequência a violência institucional praticada por profissionais que reprodu-
zem discriminações contra as mulheres nos próprios serviços que deveriam acolhê-las com
atenção e respeito. No que diz respeito a situação das varas de atendimento específico às
mulheres, a CPMI (2013) constatou que o número de juizados e varas especializadas no país

2 Este trecho foi extraído da reportagem publicada em endereço eletrônico. Vide. www.vermelho.org.br/
noticia/295144-1.
é insignificante diante da demanda existente. A maioria situa-se em capitais, não tem equipe
multidisciplinar adequada e completa, não possui servidores/as em número suficiente e tem
excesso de processos em tramitação, levando à prescrição de muitos feitos.

Tal quadro se estende ao judiciário no Estado do Espirito Santo, quanto às demandas


concernentes a Lei 11.340/2006. É percebível a escassez de Varas Especializadas em
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em sua maioria, concentradas na região
da Grande Vitória e praticamente nenhuma localizada no interior do Estado (apenas 1 na
cidade de Linhares). De acordo com Tenório (2017), existem seis Varas Especializadas em
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher no estado do Espírito Santo: cinco situadas
na comarca da capital (6ª Vara Criminal do Juízo da Serra, 5ª Vara Criminal do Juízo de
Cariacica, 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do
Juízo de Vitória, 5ª e 9ª Vara Criminal do Juízo de Vila Velha, esta última a mais recente
instalada), e apenas uma no interior (4ª Vara Criminal da Comarca de Linhares). Ainda,
segundo Tenório (2017), a entrada da equipe técnica (assistentes sociais e psicóloga(o)s
no atendimento processual da Lei Maria da Penha é recente. Anteriormente ao concurso
público realizado em 2011, com efetiva posse em 2012, a equipe era composta somente
por assistentes sociais majoritariamente vinculados às varas especializadas de Infância
e Juventude, e não havia psicólogos/as no seu quadro permanente. Por meio da criação
de doze Centrais de Apoio Multidisciplinares (CAM), através da a Lei Complementar nº

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567/2010, em seu artigo XXVIII, § 7º determinou a criação das Centrais de Apoio Multidis-
ciplinar das Zonas Judiciárias. Apesar do aumento de profissionais nos quadros da insti-
tuição, apenas a 1ª Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher
do Juízo de Vitória dispõe de equipe específica: duas assistentes sociais e um psicólogo
e uma psicóloga advindos da Central de Apoio Multidisciplinar de Vitória, a partir de uma
determinação prevista na Resolução 013/2012.

Tais análises nos permite entender a importância de fortalecer os espaços de atenção às


mulheres vítimas de violência de forma qualificada. A proposta dos profissionais com a
61
rede socioassistencial teve objetivo de fortalecer esses espaços tão importantes no que diz
respeito ao atendimento às mulheres. O presente artigo se propõe a falar dessa experiência
de forma a vislumbrar um trabalho em rede de caráter preventivo, informativo e tornar o uni-
verso sociojurídico acessível às mulheres participantes do Projeto Ciranda Feminina. A roda
de conversa foi o caminho utilizado pelos profissionais para tornar possível a reflexão das
mulheres sobre suas relações e condições sociais, através da Lei Maria da Penha. A experi-
ência do judiciário junto a rede socioassistencial do município de Cachoeiro de Itapemirim
tornou-se possível à medida em que as equipes se propuseram a colocar em prática essa
experiência desafiadora, mas, ao mesmo tempo, possível e necessária.

2. Desenvolvimento

O Projeto “Ciranda Feminina” foi instituído pela Prefeitura Municipal de Cachoeiro de


Itapemirim. É coordenado pelo Serviço de Atenção à Mulher e Famílias com Direitos
Violados, vinculado ao Centro Regional Especializado de Assistência Social (CREAS) do
Município e pela Gerência de Direitos Humanos da referida Secretaria. O público-alvo do
Projeto são as mulheres que vivem nas regiões atendidas pelos Centros Regionais de
Assistência Social (CRAS) e as mulheres diretamente atendidas pelos serviços ofereci-
dos por este Centro, como o serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos e de
Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF).

A profissional que redige este artigo compõe a Central de Apoio Multidisciplinar da Comarca
de Cachoeiro de Itapemirim. Conforme exposto anteriormente, as Centrais de Apoio Multi-
disciplinar foram instituídas pelo Tribunal de Justiça Estadual, por intermédio legal da Lei
Complementar Estadual nº 567/2010, com o intento de distribuir os profissionais das áreas
de Serviço Social e Psicologia dentro dos contornos geográficos do Estado. A esta equipe
fica o encargo de auxiliar os Magistrados na análise de Processos Judiciais nas áreas de
Família e Órfãos e Sucessões, Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Infância/
Juventude (neste último caso, às Comarcas Integrantes da Região Judiciária32). A parceria
promovida em torno do Projeto Ciranda Feminina, desenvolvida no ano de 2013, constituiu
uma aproximação entre os trabalhos do Poder Judiciário e do Poder Executivo em torno da
mulher vítima de violência doméstica, cumprindo assim o chamado “Trabalho em Rede”.

Neste projeto, aos profissionais da Central de Apoio Multidisciplinar (psicólogo e assistente


social) ficou a tarefa de facilitadores dos encontros promovidos. A tarefa de “facilitador”
seria, dentro do esquema metodológico do trabalho em grupo, promover a fala compartilha-
da e trabalhar o conteúdo das verbalizações das mulheres participantes, de modo que elas
pudessem expor em palavras conteúdos subjetivos e refletir a partir destes conteúdos. A

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“Lei Maria da Penha” constitui-se como marco legal e político na garantia dos direitos das
mulheres, tornar acessível o conteúdo desta lei às mulheres, foi uma das propostas desse
trabalho. Para a confecção deste artigo, a autora destacou falas que, em sua percepção,
merecem análise por levar a refletir sobre aspectos diferentes da presentificação da violência
doméstica e familiar contra a mulher em nossos dias.

Em termos da Lei Maria da Penha, várias são as redes de proteção necessárias a esse
enfrentamento, no caso específico, tomou-se o trabalho preventivo como ponto de partida de
diálogo com a rede de atendimento em questão. O “Projeto Ciranda Feminina”, atendeu até o
62
dia 17 de março de 2017, o universo de 1.457 mulheres, com a proposta de levar informações
sobre a importância de prevenção ao combate à violência contra a mulher. As rodas de con-
versa foi o instrumental utilizado para socializar as informações sobre o tema, pressupõe-se
as redes de proteção e atendimento às mulheres, como espaços privilegiados para efetivar
qualitativamente a legitimidade de tal trabalho. Portanto, os profissionais propuseram um tra-
balho de diálogo com a rede sócio assistencial municipal que atende às mulheres vítimas de
violência doméstica e familiar afim de estreitar os laços e firmar parcerias entre os poderes.

A escolha do instrumental Rodas de Conversa, constitui uma das alternativas metodológicas


relativamente mais viáveis, pois visam o diálogo em torno da temática, uma relação horizon-
tal entre a/os participantes, a desconstrução/construção de conceitos e o compartilhamento
de vivências, que por sua vez propicia o entrelaçamento entre o modo de compreender o
mundo em suas relações e subjetividade, isto é, na Roda de Conversa o indivíduo expõe sua
vivência e, ao mesmo tempo, reflete sobre modos diferentes de ocorrência daquela vivência

3 Segundo a Lei Complementar Estadual nº 234/2002, as Regiões Judiciárias seriam grupos de Comarcas
(cada Comarca compreende um Município, existindo casos em que uma Comarca compreende mais de um município,
desde que contíguos) com uma sede especificada no Código de Organização Judiciária. No caso da Central de Apoio
Multidisciplinar de Cachoeiro de Itapemirim, a região compreendida de atuação abrange os municípios de Alegre,
Apiacá, Atílio Vivácqua, Bom Jesus do Norte, Cachoeiro de Itapemirim, Castelo, Divino de São Lourenço, Guaçuí,
Jerônimo Monteiro, Mimoso do Sul, Muqui, Rio Novo do Sul, São José do Calçado e Vargem Alta.
junto a outros indivíduos em torno do mesmo assunto. Esse compartilhamento poderá pro-
mover junto às mulheres identificação com outra e no grupo, possibilitando o empoderamen-
to coletivo afim de compor estratégias de enfrentamento a uma dada situação.

A definição de “Roda de Conversa”, compreende uma metodologia participativa com a


pretensão de promover uma cultura de reflexão sobre os Direitos Humanos. Na consideração
da autora deste artigo, a modalidade descrita aplica-se a outras temáticas, como é o caso
da violência doméstica e familiar contra a mulher. As Rodas de Conversa buscam estimular
a participação e a reflexão através do diálogo entre os participantes, com uma postura de
escuta e circulação da palavra, conduzidos por um (a) facilitador (a).

Quanto ao termo “Trabalho em Rede”, a autora apoiou-se nas definições de Bourguignon


(2011) e Carlson e Pinheiro (2013).

Segundo Bourguignon (2011):

O termo rede sugere a ideia de articulação, conexão, vínculos, ações complementares, rela-
ções horizontais entre parceiros, interdependência de serviços para garantir a integralidade
da atenção aos segmentos sociais vulnerabilizados ou em situação de risco social e pessoal
(Bourguignon apud Ferrari; Tavares, 2016.p.6).

Carlson e Pinheiro (2013) adicionam o conceito de “rede interna”, referindo-se a um

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trabalho em rede em que:

Pressupõe um processo de interação e disponibilização para compartilhar afeto e conhecimen-


to. A formação da rede interna, nessa visão, passa por compartilhamento, intercomunicação,
inclusão e interesse comum dos sujeitos. É fundamental para ações de construção coletiva, o
que aponta para a qualificação permanente da metodologia do trabalho social. Essa dimensão
humana da rede é fabulosa e faz crer que, muito mais do que nós, ela é formada por laços —
laços de parceria e afeto entre colegas que se debruçam, sofrem e empreendem esforços pelas
mesmas questões. Vista por esse prisma, não deixa de ser também um exercício de solidarie-
dade e estratégia de sobrevivência profissional, já que, na mesma proporção do conhecimento 63
técnico, nosso trabalho exige estrutura emocional fortalecida como condição para ações quali-
ficadas (Carlson e Pinheiro apud Ferrari; Tavares 2016, p. 8).

Em relação aos encontros, totalizaram 10, atingindo o universo de 254 mulheres. Cada en-
contro tinha a duração em torno de 50 minutos, com frequência mensal. O material utilizado
foi produzido pelos próprios profissionais, nesse material foram desenvolvidos tópicos em
forma de questionamento das seguintes categorias: violência e suas múltiplas expressões,
Lei Maria Da Penha, medidas protetivas, fluxo de atendimento, consequências e efeitos da
violência nas relações familiares. Para tanto, foram utilizados os seguintes recursos: slides
em Power Point, nos quais apresentou-se às temáticas para discussão em grupo.

A divulgação ficou sob a responsabilidade da Gerência de Direitos Humanos da Secretaria


Municipal de Desenvolvimento Social, que elaborou um cronograma de datas. Próximo às
datas definidas, a equipe da Gerência realizou um trabalho de divulgação articulado com os
profissionais do CRAS (Centro Regional de Assistência Social) local e/ou da área de saúde
territorial. Em algumas comunidades, o espaço para a execução do encontro é cedido por
alguma instituição da comunidade, como Igreja, Centro Comunitário, etc. Além da organiza-
ção dos encontros, a equipe do Poder Executivo Municipal também coordena a preparação
do espaço, dos recursos audiovisuais e do lanche.
Enquanto referencial teórico-metodológico, a autora buscou fundamentar sua análise a par-
tir da realidade das mulheres ouvidas. Trata-se de entender o ser social a partir das media-
ções, a teoria social de Karl Marx nos permite realizar uma análise crítica da realidade, de
forma a apreender o ser social a partir de suas mediações. Interessa-nos compreender que
tais mediações são construídas a partir de relações sociais dinâmicas e multifacetadas,
segundo Yasbek (2009, p. 144) “essas relações que constituem a sociabilidade humana,
implicam âmbitos diferenciados e uma trama que envolve o social, o político, o econômico,
o cultural, o religioso, as questões de gênero, a idade, a etnia, etc”.

2.1. Análise dos discursos e falas a partir das categorias discutidas em grupo:

• “Por que não existe Lei Maria da Penha para homens? ”

Primeiramente, devemos ter em mente que esta fala parte de um contexto sócio-
-histórico em que a sociedade brasileira ainda não se empoderou do conceito de
equidade. Em outras palavras, a sociedade muitas vezes se ateve ao princípio da
igualdade em seu modo de pensar as leis e a organização da sociedade. Ocorre
que a Lei Maria da Penha vem abarcar uma situação de desigualdade de poder,
na qual tende a uma desvalorização da figura do feminino em comparação ao

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masculino. Por isso, a iniciativa da lei vai ao encontro de minimizar esta dispari-
dade social e estabelecer mecanismos de coibir excessos e violação de direitos
motivados por esta cultura de desequilíbrio na relação entre o “masculino” e o
“feminino”. Nas rodas de conversa buscou-se junto às mulheres contextualizar a
importância da lei e realizar um contraponto em relação a posição de inferioridade
que a mulher historicamente ocupa na sociedade.

• “Tem mulher que realmente gosta de apanhar pois fazem denúncia e desistem”

Nas Rodas de Conversa, este tipo de fala aparecia com relevante frequência dada a 64
situação vivenciada cotidianamente por estas mulheres. Esta percepção comparti-
lhada nos coloca a discutir a importância de levar as mulheres a refletirem sobre sua
condição social, compreendendo o que cada uma expressa a si mesma. Na medida
em que se concebe esta reflexão, há um entendimento das realidades das mulheres
que possuem dificuldade em manter a denúncia e não rompem este ciclo de violência.
Devemos pensar em ações propositivas que incentivem o debate de questões relativas
à condição da mulher na sociedade brasileira, em diferentes espaços, como na área da
educação, saúde e mídias sociais, por exemplo.

• “Homem fica agressivo por conta do álcool (e outras drogas) sim”

O que se observa, na prática, é que a droga tem seu efeito estimulante, porém, ela não
é um fator causal isolado, mas sim um fator potencializador ao lado de outros fatores.
Em outras palavras, a droga não bloqueia o indivíduo de raciocinar, mesmo com
limitações, se ele pode se valer ou não de atos agressivos. Se assim fosse, seriam
observados casos de indivíduos que, por uso de substâncias psicoativas, agrediriam
outros homens ou até mesmo figuras de autoridade, o que não ocorre. O espaço onde
ele encontra facilidade para exibir reações agressivas é o espaço doméstico contra a
mulher. Com isso, a conclusão que se tem nesta situação, é a de que o desequilíbrio
de poder relacionado ao gênero é um dos fatores de maior influência nos casos de
agressão contra a mulher, sendo a droga um dos fatores facilitadores auxiliares.

• “Discussão de marido e mulher é melhor não se meter”

Naturalizou-se em nossa sociedade a concepção de que as relações de afeto são


privadas. Ao longo da história, foi determinado às mulheres como “seu” apenas o
espaço doméstico. Partindo da fala destas mulheres, entende-se que existe um costume
construído historicamente e cristalizado nas relações sociais de que as ocorrências em
um dado espaço particular não devem receber interferência do grupo social, de pessoas
próximas. Com isso, eventos críticos de violação de direitos são tratados com inércia
por pessoas próximas. O que se deve ter em mente é que existe um imperativo ético
maior a ser valorizado que é o de que, independente de se tratar de um espaço perten-
cente a outro, existe uma situação de violência e que precisa receber atenção.

• “Tem mulher que usa a Lei Maria da Penha para prejudicar o homem”

Pela fala das mulheres, percebe-se existir uma concepção compartilhada da mulher de
que ela “tenta tirar proveito”, capitalizar por intermédio da lei seus interesses. Essa fala,
porém, vai ao encontro do discurso machista historicamente concebido, e que as mulheres
acabam subjetivando e reproduzindo. As medidas protetivas, neste contexto, justificariam

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este discurso, pois aí hipoteticamente a mulher se utilizaria da medida recebida para tentar
prejudicar o homem. Cabe aqui fazer uma reflexão de que não se deve associar ao femini-
no esta imagem de “figura aproveitadora”, o que está encoberto por trás deste discurso e
que casos de abuso das medidas concedidas em lei cabem ao judiciário identificar estes
casos que, cumpre-se dizer, ocorrem em qualquer esfera do direito.

• “A Violência Psicológica é mais comum do que a Física”

Percebe-se como positiva a expressão deste tipo de fala, pois essa análise por parte
65
das mulheres desconstrói a noção de que violência unicamente se associaria a agres-
são física. As mulheres conseguiram captar e identificar diferentes e ricos exemplos de
violência psicológica. Na roda de conversa, foi possível socializar situações de violência
psicológica, permitindo a uma compreender como violência psicológica algo que apenas
outra conseguiu identificar.

• “O atendimento na Delegacia é ruim”

Na roda de conversa, compareceram muitas queixas com relação ao atendimento ofere-


cido por esta rede de atendimento. Muitas delas verbalizaram dúvidas se a denúncia se
tornaria efetivamente um processo judicial. Em parte, tal situação permite uma reflexão
acerca da violência estrutural que as mulheres estão expostas. A precariedade na oferta
deste serviço indica o descaso do administrador público tanto na estrutura física, muitas
vezes inadequada e insuficiente para o atendimento, quanto na estrutura de qualificação
do pessoal. Muitos destes profissionais que lidam diretamente com a mulher acabam
por reproduzir situações de violência.
3. Considerações finais

No presente artigo, a autora analisou a dinâmica dos encontros e as verbalizações das


mulheres que participaram das referidas Rodas de Conversa, partindo do pressuposto de
que a violência praticada contra as mulheres é componente de uma sociedade permeada
pela violência submetida tanto a homens quanto mulheres, tendo por sua origem o modo
de produção e reprodução da sociedade capitalista, focada no modelo neoliberal atual. As
transformações do mundo do trabalho, a reestruturação produtiva, a fragmentação da clas-
se trabalhadora, propiciou uma massa de trabalhadores desempregados, terceirizados e se
submetendo a condições de trabalho precarizadas. Como violência estrutural, se entende
que ela potencializa e amplia tantas outras, além da violência contra a mulher, contra crian-
ças, jovens, negros, população LGBT. Ao mesmo tempo, há que se entender que ao longo
da história, a violência tem sido utilizada como um instrumento patriarcal de controle, do-
minação e exploração de todas mulheres, e muitas das vezes, ela é utilizada quando as de-
mais formas de controle não são suficientes para impedir o nosso próprio questionamento
e o enfrentamento da opressão no espaço público e privado. As rodas foram realizadas em
bairros periféricos, não raro, os profissionais se depararam com falas de mulheres materia-
lizadas por suas condições de vida e de seus companheiros: desemprego, dificuldade de
acesso à rede de saúde e assistência social, violência urbana. Nesse sentido, a fala das

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mulheres são permeadas e entrecruzadas por essas realidades e, como, tal foram valora-
das na tentativa de ampliar as discussões ao nível macropolítico, de enfrentamento e de
possíveis proposições. A parceria com a SEMDES permitiu esta reflexão ampliada acerca
do trabalho de atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica nos diferentes
setores e instituições envolvidos. A aproximação entre as equipes dos poderes judiciário
estadual e executivo municipal, que até então não existia, de certa maneira potencializa o
serviço oferecido por cada um destes entes a estas mulheres. Mesmo com as limitações
que dizem respeito ao trabalho ofertado pela Central de Apoio Multidisciplinar, além das
citadas no que diz respeito às redes de atenção, esta iniciativa partiu de um compromisso
66
ético e político dos profissionais desta Central de aprimorar o fluxo de trabalho e atendi-
mento em prol do bem-estar das mulheres vítimas de violência doméstica.

Sendo assim, trabalhar a violência doméstica e familiar contra a mulher envolve não
apenas trabalhar as situações de violação de direitos que chegam às delegacias (e aqui
poderíamos reverberar os elogios já concedidos à Lei 11.340/2006, pois ela obriga o
administrador público a desenvolver uma estrutura em que a mulher vítima de violência
doméstica seja tratada com prioridade pelo poder público, além de receber uma atenção
biopsicossocial), mas também trabalhar ao nível das consciências coletivas, trabalhar ao
nível das construções de mundo, de gênero em que cada um, homens e mulheres, ocupam
nas relações sociais postas. É necessário entender que cada uma das mulheres vive essa
experiência, ao mesmo tempo comum e singularmente e ela se agrava em função das de-
sigualdades existentes de classe, raça/cor e orientação sexual, assim em como em função
dos diferentes contextos em que vivemos.

O trabalho com as percepções compartilhadas por homens e mulheres que compõem a


sociedade, será um fator facilitador para o desenvolvimento e execução de políticas públicas
destinadas a minimizar a atual situação da violência doméstica e familiar contra a mulher.
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SOCIAL DE MULHERES QUE
FAZEM VISITAS PERIÓDICAS À
PENITENCIÁRIAS MASCULINAS

Simone Aquino De Nadai1 e Gabriel de Castro Augusto Alvarenga2

EIXO TEMÁTICO: SISTEMA PENAL

Esse projeto propôs realizar uma pesquisa-intervenção, utilizando como ferra-


menta a cartografia. O interesse em abordar o tema, surgiu, pela ausência de po-
líticas públicas destinadas a esse contingente feminino, tendo em conta, condi-
ções especificas de vulnerabilidade. Assim sendo, fez-se um estudo de campo
na Penitenciária Estadual de Vila Velha 1 (PEVV 1), em Xuri - Vila Velha/ES,
onde foram realizadas entrevistas com mulheres que fazem visitas periódicas à
penitenciária. A partir de nossa experiência no campo, pudemos observar a ne-

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cessidade da inserção de um espaço de escuta e apoio destinado às visitantes.

Palavras-chave: Gênero; Mulher; Estigma; Instituição Penitenciária.

1. Introdução

Ao se predispor a visitar um familiar encarcerado, a mulher passa a ser um suporte, um elo 69


de comunicação entre dois mundos. Haja vista, que a mulher é tida socialmente, como um
elemento agregador dentro do ambiente familiar, adquire a responsabilidade no cuidado
de seus membros, levando-as, muitas vezes, a fazer renúncias e sacrifícios pelos mesmos.
Sendo assim, ao realizar as visitas, oportuniza ao familiar encarcerado, saber o que está
acontecendo na vida extramuros (AZEVEDO, 2012, p.37). Sanchez (2010, p.18) cita a Resolu-
ção SEAP3 Nº142, de 08 de novembro de 2006, que considera “a visita como instrumento de
preservação e de estreitamento dos laços familiares e de amizade extremamente importante
no processo de reinserção social do preso”. Nessa perspectiva, é evidente a importância das
visitas feitas por familiares, pois aproxima o indivíduo encarcerado de situações vivenciadas
anteriormente, oferecendo base para reestruturação do mesmo (FREITAS, 2008, p.59). Desse
modo, a família, aqui representada pela mulher, desempenha um papel influenciador, auxilian-
do no resgate de valores que por muitas vezes é perdido no cárcere (FREITAS, 2008, p.46).

1 Graduanda do curso de Psicologia do Centro Universitário São Camilo – ES, simoneadenadai@gmail.com,


(27) 9 9880-7122.

2 Psicólogo e Professor do colegiado do Curso de Psicologia do Centro Universitário São Camilo – ES,
Mestre em Psicologia pela UFF e Doutorando em Psicologia pela UFF, gabrielcastroaugusto@gmail.com, (21) 9 8027-
7737.

3 SEAP: Secretaria de Estado de Administração Penitenciária.


Com relação aos fatores que motivam mulheres a fazerem visitas periódicas à penitenciárias,
Spagna (2008, p.212) os reúne em três categorias: amor, medo e ódio. Onde, as mulheres
que fazem visitas pelo vínculo amoroso, “são movidas pelo sentimento de cuidado e aten-
ção” para com o indivíduo encarcerado; as que visitam em função do medo, comumente são
vítimas de ameaças a integridade física da mesma, de seus filhos, familiares e amigos; e por
fim, o sentimento de ódio com relação ao indivíduo encarcerado, onde “ocorre uma inversão
de papeis de dominação, pois agora são eles que dependem delas” (SPAGNA, 2008, p.212).

Sendo assim, ao vivenciar estas circunstâncias, a mulher acaba abrindo mão de sua identidade,
por uma outra identidade motivada por fatores externos, como afirma Spagna (2008, p. 214).

A identidade social virtual consiste na forma como o indivíduo constrói sua imagem com base
na interação com os demais, onde o fator determinante é a maneira como a coletividade o
identifica. A identidade social real é aquela construída a partir dos atributos e características
reais ou próprias do indivíduo (SPAGNA, 2008, p.215).

Diante disso, compreende-se que as consequências da pena do indivíduo encarcerado, atinge


também a sua família, uma vez que, através de seus preconceitos, a sociedade acaba impu-
tando certos atributos depreciativos aos que se encontram em situação de encarceramento.
Porém, como afirma Freitas (2008, p.47),

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[...] a punição do criminoso é um procedimento justo, contudo esse direito não dá respaldo a
extensão dos efeitos penais aos familiares do mesmo, o que contraria direitos fundamentais,
ferindo moralmente, o preso e seus familiares, haja vista que aquele sofre por perceber que sua
família sente os efeitos decorrentes de sua pena [...].

Segundo Spagna (2008, p.204) o grupo social que constitui a expressiva maioria das visitas que
os encarcerados recebem, é composto por mulheres. Sendo assim, nos interessamos em com-
preender como elas se percebem enquanto visitantes numa instituição prisional (AZEVEDO, 2012,
p.31). Partindo desse ponto, visamos compreender a influência do encarceramento na identidade
social de mulheres que se encontram com familiares encarcerados, buscando entender os senti- 70
mentos e motivações que as levam a fazerem visitas periódicas à penitenciárias masculinas.

O interesse em abordar o tema acerca dos efeitos do encarceramento na identidade social


das mulheres que fazem visitas periódicas, surgiu no decorrer do curso de psicologia do Cen-
tro Universitário São Camilo - ES, por ser um assunto pouco discutido no âmbito social, mas
também pela ausência de políticas públicas destinadas a esse contingente feminino, tendo
em conta, condições especificas de vulnerabilidade. Como aponta Foucault (2002), citado
por Azevedo (2012, p.34) o verdadeiro interesse da sociedade é saber como o delinquente4
está sendo controlado, vigiado e punido. Neste sentido, os familiares que se submetem as vi-
sitações notam sua identidade ser desconstruída, e acabam arcando com as consequências
sociais juntamente com o familiar encarcerado, como sugere Azevedo (2012, p.34).

Naquele universo de visitantes havia construções e desconstruções e, por conseguinte, o indi-


víduo, que ao vivenciar a sua identidade expressando-se naquilo que é mais básico ao ser na
sociedade, “eu sou fulano de tal”, naquela experiência enquanto parente de preso via a sua iden-
tidade reduzir-se a ser “parente do preso sicrano de tal”. Toda a construção de um eu, era des-
construída por aquela nova condição que surgiu a partir da vivência e escolha do outro, o preso.

4 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Século XXI Escolar. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira S.A. 2000. 790p.
Em virtude desses fatores, pretendemos, através de nossa experiência, tornar visível a situa-
ção vivenciada por elas enquanto visitantes, expondo percepções acerca desse campo, que
nos ajude a melhor intervir e auxiliá-las nessa situação.

2. Metodologia

Esse projeto propôs realizar uma pesquisa-intervenção, utilizando como ferramenta a carto-
grafia, sendo este, um método que pressupõe um posicionamento e prática ética no trabalho
do pesquisador, pois este, não se orienta por regras preestabelecidas. Deste modo, “o traba-
lho de análise é a um só tempo o de descrever, intervir, e criar efeitos-subjetividade (PASSOS;
KASTRUP; ESCOSSIA, 2009, p.27).

Portanto, a fim de aprofundarmos as reflexões sobre a temática, o registro de nossas


experiências será feito por meio de relatos de caso, constituindo-se, dessa forma, como “um
disparador de desdobramentos da pesquisa” (PASSOS; KASTRUP; ESCOSSIA, 2009, p.173).

Assim sendo, fez-se um estudo de campo na Penitenciária Estadual de Vila Velha 1 (PEVV 1),
em Xuri - Vila Velha/ES5, onde foram realizadas entrevistas com mulheres que fazem visitas
periódicas à penitenciária. O estudo de campo, segundo Gil (2002, p.53) é desenvolvido por

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meio da observação direta e de entrevistas a fim de obter explicações e interpretações que
ocorrem no grupo, apresentando, dessa forma, maior flexibilidade.

Seguindo essa direção, nosso estudo coloca em análise os processos de conhecimento,


no qual, todos estão implicados, impedindo, portanto, “qualquer pretensão à neutralidade”
(PASSOS; KASTRUP; ESCOSSIA, 2009, p.30).

Para tanto, entramos em contato com a Secretaria de Estado da Justiça (SEJUS)6, por inter-
médio da Gerente de Reintegração Social e Cidadania, Maria Jovelina Debona, na qual nos
orientou sobre o processo de autorização de pesquisa. Após autorizada pelo Secretário de 71
Estado da Justiça (ANEXO I), fomos informados, pelo Assistente Social da PEVV 1, sobre o
local onde ocorreriam os encontros, bem como as datas e horários dos mesmos.

A Penitenciária Estadual de Vila Velha 1 (PEVV 1), é uma instituição prisional de regime fechado, ou
seja, o indivíduo encarcerado “tem que cumprir pelo menos 1/3 da condenação em cadeias fecha-
das e não podem sair do estabelecimento” (BATISTA, 2013, p,95), criada em novembro de 20107.

Os encontros ocorreram entre os meses de outubro e novembro do ano de 2016 (dois mil e
dezesseis), por volta de quatro horas cada, onde foram realizadas entrevistas semiestrutura-
das, no qual, esbarramos em diversas variáveis (família, identidade, gênero, encarceramento,
entre outros). Adotamos entrevistas semiestruturadas por se tratar da formulação de um ro-
teiro com perguntas principais, que foram complementadas com outras questões de acordo
com as circunstâncias encontradas na pesquisa (MAZINI, 2004, p.2).

5 Endereço: Rodovia Governador Mário Covas, S/N, Xuri - Vila Velha/ES - CEP 29127-815
Telefone: (27) 99946-5219

6 Endereço: Avenida Governador Bley, 236 – Centro CEP: 29010-150 - Vitória / ES


Tel.: (27) 3636-5700

7 Fonte: TJES
Os relatos foram registrados em questionários impressos (ANEXO II), no qual, continham em
sua parte superior, o título da pesquisa e abaixo deste, espaços à serem preenchidos com os
dados pessoais das entrevistadas. Na parte inferior do mesmo, estavam dispostas 3 (três)
perguntas, que foram complementadas a partir dos relatos das visitantes entrevistadas. As
perguntas foram construídas a partir dos objetivos propostos no projeto, entregue anterior-
mente à Secretaria de Estado da Justiça, no qual, enfatizavam a influência do vínculo com
o indivíduo encarcerado dentro e fora da instituição prisional, além do impacto na rotina de
vida das mulheres que fazem as visitas.

Foram tomadas todas as medidas de prevenção de riscos para que não ocorresse nenhum
dano físico, psíquico, moral e ético a participante. Sendo considerado também a privacidade
e confidencialidade das mulheres no que diz respeito aos dados coletados que envolvam sua
intimidade e de sua família, aqui representado pelo indivíduo encarcerado, sendo esse direito
garantido através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (ANEXO III).

Sendo assim, com o intuito de preservar a identidade das participantes da pesquisa, o


registro dos relatos obtidos foram referenciados através da primeira letra do nome da
visitante entrevistada. Porém, devido à ocorrência mais de uma participante com a mesma
letra, estas tiveram após a letra referente ao seu nome, um número (ex.:M1; M2; etc.), a fim
de evidenciar sua singularidade.

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3. Da história das prisões

“As ‘Luzes’ que descobriram as liberdades inventaram também as disciplinas”


(FOUCAULT, 1987, p,183).

O contexto histórico na qual se desenvolveu o sistema penitenciário, foi marcado por trans-
formações, mas também, muitas permanências, como aponta Chies (2013, p.19).
72
Desenvolve-se [a prisão], entretanto, associado às sociedades modernas, contexto no qual se
consolida, se dinamiza, se dimensiona e se redimensiona acompanhando as próprias transfor-
mações e permanências de expressões sociais, políticas e econômicas da modernidade.

Dentre tantas mudanças, pode-se salientar o desaparecimento dos suplícios8, entre os


séculos XVIII e XIX, o que causou uma alteração nos modos de punir, tornando tal prática
mais sutil. Houve, dessa forma, “uma certa discrição na arte de fazer sofrer” (FOUCAULT,
1987, p.12). O corpo, antes marcado e exposto, agora encontra-se como uma ferramenta
tendo em vista outras finalidades.

O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos da pena. [...] Se a jus-
tiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente,
segundo regras rígidas e visando a um objetivo bem mais “elevado” (FOUCAULT, 1987, p.14).

De acordo com Chies (2013, p.22) as mudança nas práticas punitivas foram determinadas
por forças sociais, tendo como principal objetivo o poder sobre o corpo, o que manifestava o
valor de um material humano disponível.

8 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Século XXI Escolar. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira S.A. 2000. 790p.
Este investimento político no corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à
sua utilização econômica, é, numa boa proporção, como uma força de produção que o corpo é
investido por relações de poder e de dominação (FOUCAULT, 1987, p.25).

Sendo assim, “o que substituiu o suplício não foi um encarceramento maciço, foi um disposi-
tivo disciplinar cuidadosamente articulado” (FOUCAULT, 1987, p.220). Com isso, as institui-
ções disciplinares surgem para melhor observar, para se ter o mais amplo domínio sobre
o comportamento. Desse modo, o poder disciplinar acaba por “fabricar” indivíduos dóceis
e úteis (FOUCAUT, 1987, p.143-145). Com o propósito de atingir esta finalidade criou-se a
instituição-prisão, que, segundo Foucault (1987, p.196-197), foi desde seu início encarregada
de corrigir, e também, de modificar os indivíduos através da privação de liberdade.

Palavras por palavras, de um século a outro, as mesmas proposições fundamentais se repetem.


E são dadas a cada vez como a formulação enfim obtida, enfim aceita de uma reforma até então
sempre fracassada (FOUCAULT, 1987, p.225).

Diante disso, observa-se uma grande ação de poder nas prisões, que acaba por inviabili-
zar qualquer tipo de transformação. Pois, como afirma Gutierrez e Almeida (2012, p.89),
“o sistema prisional [...] impede qualquer relação de reciprocidade, em que as ações dos
sujeitos encarcerados visam somente sobreviver, numa luta diária contra as agruras e
sofrimentos que a reclusão os faz”.

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Mediante o exposto, faz-se necessário neste momento, nos atermos à questão de gênero,
que apresenta-se tão explicitamente em nosso campo de estudo. Contudo, entende-se que
este assunto vai muito além do que conseguimos abordar no artigo, uma vez que, o feminino
em nosso cotidiano, ainda é alvo de exclusões, dominações e poderes de opressão que extra-
vasam o sistema prisional. Pois como afirma Simone de Beauvoir, citado por Reynolds (2014,
p.210), “a identidade feminina, devido aos modos pelos quais a sociedade foi organizada, é
muito vinculada à identidade dos homens ao redor delas, sejam eles pais, maridos ou filhos”.
Sendo assim, é relevante salientar que o gênero feminino, foi e ainda é, associado à fragili-
73
dade e a submissão (AGULAR, 2005, p179), sendo a este contingente, atribuídos as respon-
sabilidades sobre seus entes. Portanto, ao visitar um familiar encarcerado, neste local onde
estão retidos, como afirma Spagna (2008, p.1), aqueles que desafiam as regras da sociedade,
a mulher torna-se, socialmente, invisibilizada, conduzindo-a a exclusão e ao desamparo,
cabendo a ela a reafirmação de sua “inocência” (SPAGNA, 2008, p.12).

4. A mulher como elo de comunicação

“Mãe como vai lá em casa?


Como anda os manos da quebrada?
Diga aos manos que eu mandei lembranças
Dá um abraço bem forte nas crianças” (Racionais MC’s).

Como sugere Almeida e Gutierrez (2012, p.89), a penitenciária é uma sociedade dentro de
outra sociedade, com seus códigos internos próprios, onde concentra-se uma vigilância
constante. Nesse sentido, procuramos durante a pesquisa, além de realizar as entrevistas,
observar os movimentos e a forma como a instituição e seus visitantes se organizam,
entremeados nesse local onde o poder disciplinar se faz, tão explicitamente, presente. É
relevante salientar que, as observações e os relatos apresentados, ocorreram durante todo
o período de realização da pesquisa.

Ao chegarmos à penitenciária, nos deparamos com uma fila, em frente ao portão principal,
composta na maioria por mulheres, onde aguardavam a entrega das senhas para os atendi-
mentos. Aquelas pessoas permaneceram no local por, aproximadamente, 2 (duas) horas até
serem atendidas por um agente penitenciário.

Os atendimentos familiares são realizados sempre nas quartas-feiras, no qual, são distri-
buídas somente 60 (sessenta) senhas. Tais atendimentos, consistem em sociais, onde se
organizam as visitas, são feitos os cadastros, entre outras questões relacionadas à área; e
de saúde, onde são feitos atendimentos com relação a medicações (entrega de remédios
e/ou de receitas), estado de saúde dos indivíduos encarcerados, entre outras questões.
Estes atendimentos são realizados por assistentes sociais, psicólogos e enfermeiros que
trabalham na penitenciária. Após a entrega das senhas, os visitantes foram encaminhados
à sala 101, que se localiza dentro da penitenciária, onde aguardaram até serem atendidos.
Com relação as normas da instituição para pessoas visitantes, é proibido o uso de celula-
res, de roupas curtas, transparentes e/ou decotadas e de calçados pretos, além disso, são
impedidos de entrarem com bolsas nas salas onde ocorrem os atendimentos e nos locais
de visitas. No entanto, por vezes, tais regras acabam por serem “esquecidas”, como por

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exemplo, chegarem na instituição com blusas decotadas; neste momento, são advertidas
pelos funcionários do local e acabam tendo que pedir tais vestimentas emprestado à al-
guém. O que nos faz pensar que há entre elas, de certa forma, uma relação de companhei-
rismo9, que pode vir a ocorrer devido a se encontrarem na mesma situação: a de visitantes
de uma instituição penitenciária. Pois, segundo Goffman (2008, p.38) “há um conjunto de
indivíduos dos quais o estigmatizado pode esperar algum apoio: aqueles que comparti-
lham seu estigma e, em virtude disso, são definidos e se definem como iguais”.

Outra questão que nos chamou atenção, foi com relação ao trabalho dentro da instituição,
74
onde um dos “internos trabalhadores”, como são chamados os indivíduos encarcerados que
fazem algum tipo de trabalho na penitenciária, se comportou ao passar pela sala 101. Naque-
le dia a sala estava bem cheia, e ele nem se quer fez contato visual com as pessoas que ali
estavam, o que nos fez recordar Foucault (1987, p.168), quando afirma que:

Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as limitações
do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmo; inscreve em si a relação de poder na
qual ele desempenha simultaneamente os dois papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição.

Ainda sobre o trabalho do indivíduo encarcerado pode-se salientar que:

A realização de uma atividade por parte do trabalhador preso, desde que orientada de acordo
com sua aptidão e capacidade, propicia ao mesmo a sua valorização enquanto ser humano e a
concretização de sua dignidade. Além disso, tal atividade possibilita que o detento se prepare
para a vida futura fora do estabelecimento penitenciário, como cidadão capaz de colaborar com
a sociedade da qual foi retirado (CABRAL; SILVA, 2010, p.160).

Assim sendo, após este primeiro contato com a instituição, fomos também autorizados
a nos encaminharmos a sala 101, onde foram realizadas as entrevistas. Ao entrarmos,

9 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio Século XXI Escolar. 4.ed. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira S.A. 2000. 790p.
notamos uma grande agitação no local, o que acreditamos ser por conta do longo tempo
em que esperam até serem atendidas. Como afirma este relato, em que a entrevistada
reclama da demora no atendimento:

E1: “Eles [os funcionário da instituição] não querem nem saber da gente. Saio cedo de casa,
com pressa pra não perder o ônibus, nem dá tempo de tomar café. Estou faminta!”.

Ao passo que os atendimentos iniciavam, a agitação e o número de pessoas diminuíam, o


que tornava mais evidente o cansaço vivenciado por elas. Algumas conversavam para passar
o tempo, outras ficavam de pé aguardando serem chamadas e outras ainda, acabavam
pegando no sono.

Ao nos aproximarmos delas, nos apresentamos e falamos a respeito da pesquisa. Muitas


apresentaram certa desconfiança, tinham receio que seu relato pudesse, de alguma forma,
prejudicar o familiar encarcerado, outras, por sua vez, mostraram-se interessadas em saber
os objetivos da pesquisa, e logo nos perguntavam o que queríamos saber. Ao expor suas
preocupações, pudemos notar que haviam nelas um cuidado em preservar a si e ao familiar
encarcerado de qualquer dano que pudesse lhes ocorrer. Pois, como afirma Foucault (1987,
p.166), o indivíduo em cárcere é constantemente vigiado, o que o faz sustentar uma relação
de poder, sendo tal condição, compartilhada com a mulher que se predispõe à visitá-lo.

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[...] aqueles que se relacionam com um indivíduo estigmatizado socialmente, [...] estão obriga-
dos a compartilhar um pouco do descrédito do estigmatizado com o qual eles se relacionam
(GOFFMAN, 1988, apud AZEVEDO, 2012, p.35).

Essa situação, acaba “obrigando-as” a omitir e, por vezes, mentir sobre as circunstâncias em
que se encontra o familiar.

M1: “Sou professora, trabalho em uma escola, aí quando preciso sair pra vir aqui, eu falo com
a diretora. Ela sabe que ele [o filho] está aqui, mais hoje, por exemplo, precisei mentir pra
coordenadora. Ela não sabe. Eu não preciso ficar contando pra todo mundo o que aconteceu 75
com meu filho”.

Através dos relatos, pode-se perceber que tal situação é vivenciada com bastante dificuldade
por elas; seja pela dificuldade financeira, por conta da distância entre a penitenciária e suas
residências, ou ainda por outras questões apontadas.

M2: “É amor; é amor! Só amor de mãe pra aguentar isso aqui. É difícil, a família sofre muito”.

C1: “É muita humilhação! A gente tem que ajoelhar e chorar pra Deus”.

Entre uma entrevista e outra, sentamos ao fundo da sala afim de observar a movimentação
das pessoas no local. Com isso, pudemos notar que entre elas há uma certa organização com
relação aos atendimentos e com o bem-estar dos indivíduos encarcerados. Como por exemplo,
em um dos encontros observamos que estavam com o intuito de formar um grupo de mulheres
afim de comprar ventiladores para as celas, demonstravam estarem preocupadas que seus
companheiros sofressem por conta do forte calor do verão. Elas, segundo uma das mulheres,
iriam fazer a compra do quantitativo de ventiladores necessários e dividiram o valor da compra.

Nesse sentido, nota-se nelas “um sentimento de cuidado e atenção para com o preso.
Querem e precisam cuidar dos mesmos para se sentirem completas” (SPAGNA, 2008, p. 10).
Outras, por sua vez, colocam-se mais firmes diante do companheiro encarcerado, demons-
trando, uma certa, desmotivação para com as visitas.

E1: “Ou ele [o marido] procura se consertar, ou vai continuar na vida ruim. A gente tem que
procurar uma melhora, mas ele não procura. Quando sai, começa a trabalhar, mais aí vem os
amiguinhos fazem a cabeça dele tudo de novo”.

No que se referem as visitas familiares, fomos esclarecidos por uma das entrevistadas,
que são agendadas de 14 (quatorze) em 14 (quatorze) dias, sempre nos mesmos dias
e horários. Ocorrem no pátio da PEVV 1, por cerca de 1 (uma) hora, onde elas ficam em
contato direto com o indivíduo encarcerado. Além disso, segundo relatos, houveram modifi-
cações nas revistas íntimas realizadas nos dias de visita, já que tal procedimento acabava
expondo a intimidade das mulheres que fazem as visitas (ALMEIDA; BRITO; ALMEIDA, p.7).
Antes, o procedimento previa que a visitante se despisse e realizasse no mínimo 3 (três)
agachamento de frente e costas (ALMEIDA; BRITO; ALMEIDA, p.7); atualmente, de acordo
com as entrevistadas, quem se submetem as revistas corporais são os indivíduos que
estão em cárcere, logo após as visitas.

Com relação as visitas íntimas, pudemos observar parte do procedimento pela qual elas
passam. Assim como nas visitas familiares, a visita íntima é agendada de 14 (quatorze)
em 14 (quatorze) dias, sendo necessário para agendá-la apresentar certidão de casamento

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ou união estável e certidão de nascimento. As visitas íntimas também deveriam durar o
tempo de 1 (uma) hora, porém, normalmente, as agentes responsáveis interrompem em
uns 40 (quarenta) minutos.

A cada dia em que estivemos na penitenciária, ocorreram, aproximadamente, 5 (cinco)


visitas íntimas, onde, já em posse de seus pertences (lençóis de casal e toalhas de banho),
aguardavam a chegada da agente penitenciária que as acompanhavam a uma sala onde
tiveram os objetos revistados.
76
Foi interessante notarmos, que apesar de todas as circunstâncias pelas quais passam por
conta de estarem em uma instituição penitenciária, elas mostravam-se muito animadas, além
do mais, dedicam uma atenção toda especial à aparência; como por exemplo: roupas alinha-
das, cabelos bem cuidados e bem maquiadas. Era possível ouvir, que ao término das visitas,
quando passavam pela sala 101, os comentários de outras mulheres, na qual, questionavam
a coragem daqueles mulheres a se sujeitar a tal situação.

Sendo assim, pode-se perceber que, apesar de estarem a tanto tempo fazendo as visitas,
uma boa parte delas, não concordam com as visitas íntimas. Pois, relatam não merecerem
se sujeitarem a esse constrangimento, sendo que em nenhum momento seus companheiros,
que neste momento estão encarcerados, pensaram nelas.

5. Considerações finais

No decorrer da pesquisa, tivemos a oportunidade de conhecer um pouco da rotina e das


experiências vivenciadas por mulheres que fazem visitas à penitenciárias masculinas. Sabe-
mos que o trabalho realizado, foi só o início de um longo caminho à percorrer.
Através desse contato com elas, foi possível perceber que muitos são os sentimentos (amor,
piedade, etc.) inerentes ao ato de visitar, e que estes as motivam a permanecerem vinculadas
ao indivíduo encarcerado. Inclusive, nota-se que em muitos discursos, há um certo confor-
mismo com a situação em que se encontram, uma vez que, em boa parte dos casos relata-
dos, o familiar encarcerado é reincidente.

Durante nossa permanência na instituição, notamos que apesar de muitas mudanças, ainda
há muitos excessos com relação ao trato com este contingente de visitantes, refletindo,
dessa forma, em sua vivência dentro e fora da instituição.

A partir de nossa experiência no campo, pudemos observar a necessidade da inserção de um


espaço de escuta e apoio destinado às visitantes, que devido a sua condição social, acabam
arcando com as consequências da pena de seu familiar. Sendo assim, observa-se a impor-
tância de olharmos com mais delicadeza para esse grupo social. Portanto, todo o trabalho
realizado, nos oportunizou ampliar nossas reflexões e percepções sobre o campo, podendo,
através destas, contribuir para estudos futuros.

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78
79

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Anexo I
Anexo II

Questionário semiestruturado para a pesquisa: “DIA DE VISITA: A INFLUÊNCIA DO


ENCARCERAMENTO NA IDENTIDADE SOCIAL DE MULHERES QUE FAZEM VISITAS PE-
RIÓDICAS À PENITENCIARIAS MASCULINAS”.

Iniciais da participante: Bairro:

Parentesco com o indivíduo encarcerado:

Há quanto tempo faz as visitas:

Como vivencia as visitas dentro da instituição?

Como o vínculo com o indivíduo encarcerado é vivenciado fora da instituição prisio-


nal?

E como esse vínculo interferem na rotina de vida ou em quem é?

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Anexo III

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

O (a) senhor (a) está sendo convidado (a) a participar de um estudo, que tem como objetivo
compreender a influência do encarceramento na identidade social de mulheres que se encon-
tram com familiares encarcerados. Embora aceite a participação nesta pesquisa está garanti-
do que poderá desistir a qualquer momento inclusive sem motivo, bastando para isso, informar
sua decisão de desistência, da maneira mais conivente. Foi esclarecido, ainda, que por ser
uma participação voluntária e sem interesse financeiro, o senhor (a) não terá direito a nenhu-
ma remuneração. A participação na pesquisa não incorrerá em riscos ou prejuízos de qualquer
natureza. Os dados referentes a esta pesquisa serão publicados em revistas especializadas,
garantindo o sigilo dos participantes. O (a) senhor (a) poderá solicitar informações e escla-
recer dúvidas durante todas as fases da pesquisa, inclusive após a publicação. A coleta de
dados para a pesquisa será desenvolvida através da avaliação e aplicação de um questionário
semiestruturado, sendo garantido privacidade e confidência das informações. Será realizada
pela aluna do curso de graduação em Psicologia Simone Aquino De Nadai, sob orientação do
Professor Gabriel de Castro Augusto Alvarenga.

Em caso de dúvidas sobre os procedimentos e todo funcionamento da pesquisa entrar em con-


tato com o Professor responsável Hélio Gustavo Santos pelo telefone (28) 992512005 ou com
o Plantão de dúvidas do Comitê de Ética e Pesquisa (28) 3526-5942 ou pelo e-mail: duvidas.
coep@saocamilo-es.br .

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Eu, ________________________________________________________, fui esclarecido sobre a pes-
quisa “Dia de visita: a influência do encarceramento na identidade social de mulheres que
fazem visitas periódicas à penitenciárias masculinas”. Cachoeiro de Itapemirim, _______ de
_­­­­­_______________ de _______

Assinatura (de acordo) ____________________________________

RG: ____________________________________

CPF: ____________________________________

Telefone: ____________________________________
81
Data: _____/_____/_____
A IMPORTÂNCIA DO TRABALHO DA
EQUIPE PSICOSSOCIAL NA AUDIÊNCIA
DE CUSTÓDIA DO ESPÍRITO SANTO

Bruno da Silva Campos1, Flavia Borges de Deus2 e Natureza Vieira3

EIXO TEMÁTICO: SISTEMA PENAL

Esse trabalho visa apresentar a importância da equipe psicossocial, na au-


diência de custódia do ES.A equipe é composta por dois psicólogos e duas
assistentes sociais e somam um total de 4884atendimentos aos autuados.A
presença dessa equipe, é um diferencial do nosso Estado e tem contribuído
para os encaminhamentos das pessoas que recebem a liberdade provisória,
mediante o cumprimento de medidas cautelares.

Palavras-chave: Audiência de Custódia; Psicologia; Prisão em flagrante; Psi-


cossocial;Serviço Social

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1. Introdução

O Sistema Penitenciário do Estado do Espírito Santo tem passado nos últimos anos, por
um processo de contínua reestruturação, tanto em sua estrutura física, quanto organiza-
cional, em especial na consolidação de um modelo de gestão moderno, que prima pela
profissionalização das equipes administrativas e operacionais, sempre objetivando o
cumprimento integral da Lei de Execuções Penais. 82

Nesse sentido, o Governo do Estado em parceria com o Ministério da Justiça im-


plantou a Audiência de Custódia, visando a diminuir o encarceramento em massa e
promover a efetivação dos direitos humanos e combater a superlotação carcerária.
Reforçando, assim, o compromisso do Brasil na proteção dos Direitos Humanos, como
proposto na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da
Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992, que dispõe que “toda pessoa detida deve
ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada a
exercer funções judiciais” (art. 7º).

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da UFES e psicólogo da


secretaria do Estado de Justiça do Espírito Santo – SEJUS/ES. Especialista em Dependência Química (EMESCAM).
Membro pesquisador do observatório de direitos humanos e justiça criminal do Espírito Santo / ODHES – UFES.
E-mail: brunocampos1@gmail.comtel.: (27) 998339623

2 Psicóloga, formada pela UFES. Atua nasecretaria do Estado de Justiça do Espírito Santo – SEJUS/ES.
Especialista Gestão estratégica de recursos humanos. Cursando pós-graduação em Direitos Humanos pela UFES
e Assistente Social da Secretaria do Estado de Justiça do Espírito Santo – SEJUS/ES. E-mail: flavia.borges@sejus.
es.gov.brtel.: (27) 988083792

3 Especialista Gestão Prisional e Políticas Sociais e Assistente Social da Secretaria do Estado de Justiça
do Espírito Santo – SEJUS/ES. E-mail: natureza.vieira28@gmail.com.tel.: (27) 99529-0205
Segundo dados publicados pelo Conselho Nacional de Justiça no “Mapa do Encarcera-
mento”, no Brasil 58% dos detentos são negros, 61% dos presos são condenados e 38%
são provisórios aguardando julgamento. Em relação à faixa etária 54% eram jovens entre
18 e 24 anos com pouca ou nenhuma escolaridade. Os crimes contra a pessoa ficam em
torno de 12% (BRASIL, 2015).

Dito isso, o presente artigo abordará a relevância do trabalho desenvolvido pela equipe
psicossocial tendo como cenário o projeto de audiência de custódia.Salientando assim o
trabalho dos profissionais de serviço social e psicologia que atuam econtribuem para a
promoção de cidadania e efetivação de direitos do público assistido, buscando identificar
as demandas dos usuários e os encaminhamentos que cada caso requer. Aliviando dessa
forma a porta de entrada no sistema carcerário.

Neste contexto, ressaltamos que a equipe psicossocial consiste em garantir os direitos


dos autuados, conforme previsto na Constituição de 88 e na Lei de Execução Penal, a partir
do comprometimento com ética, no que tange à afirmação da cidadania, através do desen-
volvimento de ações e intervenções voltadas à orientação e esclarecimento, com foco na
reintegração social, bem como reduzir os impactos da criminalidade e violência.

Para esclarecer melhor tal ideia, é necessário construir um cenário que permita entender o
poder exercido sobre os corpos, os critérios de negociação e a necessidade de controles

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informações e, o modo com que o Estado mantém camuflado a política sobre o corpo.

O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência


ou ideologia, mascomeça no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corpo-
ral que, antes de tudo, investiu sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica.
(Foucault, 1989, p. 82)

Frisa-se, que as informações coletadas na audiência de custódia em Viana/ES, onde os auto-


res trabalham, trouxeram subsídios para a pesquisa empírica. Todos os dados aqui apresen-
tados, são fornecidos ao CNJ e ao tribunal de justiça do Espírito Santo. 83

2. Desenvolvimento

As Audiências de Custódia no Estado do Espírito Santo, iniciadas em maio de 2015,


ocorrem em parceria com o Conselho Nacional de Justiça - CNJ, Ministério da Justiça,
Tribunal de Justiça - ES e Secretaria do Estado de Justiça - SEJUS, e visam a rápida
apresentação do preso, em prisão em flagrante, a um juiz, no prazo máximo de 24h.
Em um ano e meio de funcionamento do projeto, segundo dados estatísticos enviados
pelo Módulo da Audiência de Custódia ao CNJ, foram realizadas 9.457 audiências de
custódia, onde 4.337 resultaram em Liberdade Provisória com cumprimento de medidas
cautelares ou relaxamento e 5.120 resultaram em prisão preventiva. Destas audiências,
512 autuadas eram mulheres.

“[...]a denominada audiência e apresentação ou de custódia é um instrumento de natureza pré-


-processual que pode ser definido como um ato destinado a concretizar o direito reconhecido
a todo indivíduo preso, a ser conduzido, sem demora, à presença de uma autoridade judiciária
(juiz, desembargador ou ministro, a depender da incidência, ou não, de foro de prerrogativa)
com objetivo de que a prisão em flagrante seja analisada, quanto a sua legalidade e neces-
sidade e seja cessada a constrição, se ilegal, ou mesmo ratificada e fortalecida através da
decretação da prisão preventiva, ou, ainda, substituída por outra medida cautelar alternativa, se
cabível.[...]” (OLIVEIRA, BRASIL, SOUZA E SILVA, 2015 p 108)

Segundo a legislação, o juiz analisará a prisão sob o aspecto da legalidade e deverá funda-
mentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preven-
tiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem
inadequadas ou insuficientes às medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder
liberdade provisória, com ou sem fiança. De acordo com o CNJ, o juiz poderá avaliar tam-
bém eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, bem como outras irregularidades,
ao contrário do que era realizado anteriormente, onde o contato entre o juiz e a pessoa
presa ocorria somente alguns meses após sua prisão, no dia da sua audiência de instrução
e julgamento. Com a implantação das Audiências de Custódia o Brasil, busca combater a
superlotação carcerária, inibindo a execução de atos de tortura, tratamento cruel, desu-
mano e degradante em interrogatórios policiais. Reforçando, assim, o compromisso do
País na proteção dos Direitos Humanos, como proposto na Convenção Americana Sobre
Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), ratificada pelo Brasil em 1992, que
dispõe que “toda pessoa detida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou
outra autoridade autorizada a exercer funções judiciais” (art. 7º).

As audiências de custódia ocorrem em um prédio situado no complexo penitenciário de

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Viana, em frente ao Centro de Triagem, no Estado do Espírito Santo, onde chegam a maior
parte das pessoas presas na grande Vitória – Serra, Vila Velha, Vitória, Cariacica, Viana e
as comarcas do interior do Estado: Marechal Floriano, Afonso Claudio, Domingos Martins
e Venda Nova do Imigrante. O cotidiano do trabalho é bem movimentado e o número de
presos varia de acordo com o dia.

Desde o início da Implantação do Projeto o setor psicossocial realizou um total de qua-


tro mil, oitocentos e oitenta e seis (4886) atendimentos. Destaca-se que o setor efetuou
encaminhamentos para a Gerência de Reintegração Social e Cidadania da Sejus; Projeto 84
Rede Abraço ou Pro-Viv; Centro de referência de Especializado de Assistência Social; Centro
de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas; abrigos e outras Instituições de atendimento para
tratamento de dependência química, destacaremos abaixo alguns desses atendimentos.

3. Como funciona a Audiência de Custodia na Grande Vitoria

Os autos de prisões em flagrantes – APF, são protocolados no Projeto Audiência de Cus-


todia com até 24h depois da prisão em flagrante. Os APFs são pesquisados onde é feito o
levantamento de dados sobre o histórico criminal do autuado. Enquanto isso, os autuados
são deixados pela polícia civil no Centro de Triagem onde estes passam por procedimentos
de segurança e são uniformizados. Assim que são conduzidos a audiência de custodia, os
autuados que não possuem advogados, são atendidos previamente pela Defensoria Pública.
Os que possuem advogados passam a ter atendimento por estes. Quando é solicitado, é
realizado atendimento ao autuado pela equipe psicossocial para verificar possíveis transtor-
nos psíquicos e, em caso da lei Maria da Penha, é realizado contato com a vítima pela equipe
onde é produzido um relatoria que é anexado ao APF. Insta frisar que o projeto só realiza
audiências de autuados presos pela lei Maria da Penha aos finais de semanas e feriados,
onde o fórum especializado não funciona.
No Espírito Santo a Audiência de Custodia conta com um diferencial em relação aos outros
estados do país. Compõem o projeto uma equipe psicossocial constituída por 2 psicólo-
gos e 2 assistentes socais, que se intercalam em regime de plantão. A presença da equipe
psicossocial visa dar um maior suporte de informações ao juiz acerca do autuado e, em
alguns casos, da vítima(em caso da lei Maria da Penha), além disso, a equipe dá orientações,
identifica demandas do autuado e realiza encaminhamento para a pessoa que recebeu o
benefício da liberdade provisória (ou ainda em casos de pagamento de fiança) para as redes
de assistência do município ou estado.

Depois de realizadas as audiências, os autuados que receberam liberdade provisória, ou fiança


são atendidos por psicólogos e assistentes sociais para a realização de possíveis encaminha-
mentos (abrigos, tratamento para dependência química, programas de emprego e capacitação
profissional, CRAS, CREAS...). Depois de tudo finalizado, os autuados retornam para o Centro
de Triagem de Viana, onde os que receberam liberdade provisória fica separados aguardando
o alvará chegar, os que a prisão em flagrante foi convertida para prisão preventiva ficam juntos
aos demais internos da unidade e os que precisam de transferências (caso de internos homos-
sexuais por exemplo) são mantidos separados até sua transferência. Todos os autuados que
forem liberados para responderem o processo em liberdade tem a passagem para a Grande
Vitória gratuita, basta apresentar o alvará para o cobrador do ônibus.

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Figura 1. Perfil dos autuados atendidos no período de maio de 2015 à fevereiro de 2017.

Ao realizar análise da figura 1 nota-se que os encaminhamentos para acompanhamento de


dependência química junto à rede se destacam, visto que um quantitativo significativo dos
autuados fazem uso de substâncias psicoativas.

4. Como a equipe psicossocial trabalha

• No caso das pessoas com transtorno mental em conflito com a lei

A equipe psicossocial auxilia na identificação de pessoas com indícios de transtornos


psíquicos, onde é realizada tentativa de contato telefônico com os familiares e, em
caso negativo, é possível acionar a rede de atendimento em saúde mental para verificar
se existem mais dados sobre o sujeito, seus familiares e seu histórico no tratamento
mental, para que estas informações sejam levadas ao conhecimento do juiz antes da
realização da audiência através de um relatório. Até o momento foram realizadas 90
audiências com pessoas acometidas por algum tipo de transtorno mental.
• No caso de delitos que envolvam a Lei Maria da Penha

Outra situação em que a equipe se faz necessária é nos casos em que (nos finais
de semana e feriados) a Audiência de Custodia recebe os casos de Maria da Penha.
Nesta situação, a equipe entra em contato com vitima buscando maiores informações
acerca do convívio do autuado com esta, buscando dar maior suporte de informações
ao juiz. Toda essa informações são colocadas em um relatório que são anexadas ao
processo antes da realização das audiências. No Final da Audiência, a equipe ainda
realiza contato telefônico com a vítima para informá-la sobre a decisão e explica-la
sobre as medidas cautelares aplicas ao caso.

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Figura 2.As intervenções realizadas pela Equipe Psicossocial junto aos autuados assistidos no período de maio de
2015 à fevereiro de 2017.

Analisando a figura 2 nota-se que as intervenções psicossociais junto aos familiares dos
autuados que possuem transtorno mental e dependência química é expressiva, visto que
em sua maioria os autuados que cometem agressão física realizam uso de substâncias
psicoativas (álcool e outras drogas) ou possuem comprometimento psíquico/mental.

• Pessoas em situação de rua 86

Alguns autuados no momento do atendimento relataram estar em situação de rua.


Os atendimentos e encaminhamentos, nesses casos, foram efetuados no sentido de
garantir direitos ao cidadão que obteve o direito de responder ao processo em liberda-
de. Destaca-se que algumas dessas pessoas atendidas eram de cidades do interior do
Estado do Espírito Santo, e ou de outros Estados da federação.

• Dependentes Químicos

A equipe psicossocial realiza atendimentos e encaminhamentos (PROV VIV, CAPS AD,


CAPS) sempre que identificamos que o autuado faz o uso de substâncias psicoativas,
visando que o mesmo seja assistido e acompanhado no que concerne à dependência
química, que é um fator que contribui para que esse sujeito retorne à criminalidade.

• Encaminhamentos para trabalho e cursos profissionalizantes.

Alguns autuados, ao relatar que encontravam-se desempregados, foram encami-


nhados para Gerência de Reintregraçao Social e Cidadania da Secretaria de Justiça
do Estado do Espirito Santo, para inclusão em curso de qualificação profissional ou
encaminhamento ao mercado de trabalho.
A Gerência de Reintegração Social e Cidadania foi implantada na Secretaria de Estado
da Justiça (Sejus) em 10 de janeiro de 2014, com a finalidade de planejar, adminis-
trar e monitorar os programas e projetos de assistência ao preso e a reintegração do
egresso à sociedade, bem como o trabalho de promoção social junto à família. Atual-
mente está funcionando na Central de Atendimento ao Egresso e à Família e de Penas
e Medidas Alternativas, localizada naCAEF-Grande Vitória Av. Jerônimo Monteiro, nº
96, Ed. Aureliano Hoffman, Sobreloja, Centro de Vitória. Outros dois centros como
este, estão localizados na região norte e sul do Estado, nos municípios de Cachoeiro
do Itapemirim e São Mateus

• No caso do autuado ter recebido liberdade provisória, com o cumprimento de medida cautelar.

Depois da realização das audiências, a equipe realiza atendimentos aos autuados onde
é realizado uma breve anamneses e são dadas orientações sobre as medidas cautela-
res aplicadas ao caso. O autuado recebe todas as orientações que condicionam a sua
liberdade. Quando identificado algum tipo de demanda (dependência química, situação
de rua, baixa escolaridade, falta de emprego, falta de documentação) a equipe psicos-
social realiza encaminhamentos para a rede de assistência social onde o referido pode
ter acesso a alguns desses serviços (abrigos, Centro POP, projetos para tratamento de
dependênciaquímica, escritório social, CRAS, CREAS, Superintendência). Ao receber o

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alvará o autuado possui passagem intermunicipal gratuita para retornar a sua residência,
basta apresentar o alvará de soltura.

As modalidades de medidas cautelares diversas da prisão constituem um rol taxativo


estão previstas do artigo 319 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:

Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar
e justificar atividades;
87
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias rela-
cionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar
o risco de novas infrações;

III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacio-
nadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;

IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessá-


ria para a investigação ou instrução;

V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou


acusado tenha residência e trabalho fixos;

VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou finan-


ceira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais;

VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou
grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do
Código Penal) e houver risco de reiteração;

VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo,
evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;

IX – monitoração eletrônica (BRASIL, 1941).


• No Caso de fiança, em que o autuado não possui advogado.

Após a Audiência, quando o advogado não possui advogado particular e é estabele-


cida fiança para que o autuado possa responder ao processo em liberdade, a equipe
psicossocial faz contato telefônico com a família para informar sobre a fiança e dar as
orientações sobre o pagamento. Quando a família não tem condições de pagar a fian-
ça, tal informação é passada a Defensoria Pública para que as devidas providencias
sejam tomadas. Assim como acontece com o autuado em caso de liberdade provisó-
ria, a equipe passa as orientações sobre as medidas cautelares e realiza encaminha-
mentos quando necessário.

O trabalho da equipe psicossocial na audiência de Custodia visa minimizar as variáveis


que podem levar um sujeito a delinquir (falta de emprego, falta de capacitação profissio-
nal, dependência química, baixa escolaridade, situação de rua, falta de conhecimento em
onde busca ajuda), através da orientação, informação e encaminhamento a serviços que
podem lidar com a demanda do autuado. Não há como mensurar a proporção que enca-
minhamentos de fato auxiliam o sujeito, tendo em vista que são entregues ao sujeito e
fica a seu cargo se apresentar ou não ao local para o qual foi encaminhado.

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Figura 3.Encaminhamentos realizados pela Equipe Psicossocial no período de maio de 2015 à Fevereiro de 2017
junto à rede.

Ao analisar a figura 3 nota-se que dos encaminhamentos realizados junto a rede de


assistência se destacam os encaminhamentos à Gerencia de Reintegração Social e Cida-
dania que visa inserir os autuados em cursos profissionalizantes e mercado de trabalho.
Nota-se ainda o quantitativo expressivo de encaminhamentos ao PROV VIV, em decor-
rência do grande número de autuados usuários de substâncias psicoativas que passam
pela audiência de custodia.

Considerações Finais

As Audiências de Custódia do Estado do Espírito Santo, tem contribuído para diminuir o


fluxo de entrada de mulheres e homens nos presídios capixabas. Contudo algo envolvendo
políticas públicas de inclusão precisam ser fortalecidas, para que essas pessoas tenham a
oportunidade de trilhar novos caminhos.Baseado nas estatísticas apresentadas pelo CNJ, a
realização da audiência de custódia tem se mostrado como uma ferramenta eficaz no contro-
le da aplicação da restrição de liberdade pela prisão provisória.

“O fato de a expansão carcerária não ser um destino, mas uma política, significa que ela pode ser
questionada, desacelerada, e por fim revertida por outras políticas”. (LoïcWacquant, 1999, p 57)

A presença da equipe psicossocial atuando em conjunto com o judiciário, dentro das audiên-
cias, demonstra que o projeto também corrobora e reconhece a importância de oportunizar
as pessoas que foram autuadas e que aqui são atendidas, encaminhamentos para serviços
básicos de saúde, educação e assistência social.

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EXPERIÊNCIA DA VARA DE EXECUÇÕES
PENAIS E MEDIDAS ALTERNATIVAS
DE VITÓRIA/ES: TRANSPARÊNCIA E
DEMOCRATIZAÇÃO NA DESTINAÇÃO
DOS RECURSOS PROVENIENTES DAS
PRESTAÇÕES PECUNIÁRIAS

Sonia Maria Corrêa Cavassani1 e Iva Elisa Kobi Ghil2

EIXO TEMÁTICO: SISTEMA PENAL

Resumo: Trata-se de do relato da experiência de implantação de novo mode-


lo de destinação dos recursos provenientes da Prestação Pecuniária, objeto de
Transação Penal, Suspensão condicional do Processo e da Sentença condena-
tória, na Vara de Execuções Penais e Medidas alternativas de Vitória/ES que
teve início no ano de 2013.

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O novo modelo, que prima pela democratização e transparência, tem atendido
aos objetivos propostos, além de possibilitar a realização de projetos que causam
impactos positivos às instituições e aos seus usuários, bem como maior eficácia
na fiscalização da aplicação dos recursos, e ainda estímulo para a abertura de va-
gas para pessoas condenadas ou determinadas a prestar serviços à comunidade.

Palavras chave: Prestação Pecuniária, democratização, transparência.

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1. Introdução

O Conselho Nacional de Justiça - CNJ criou uma comissão no ano de 2012 formada por
magistrados e profissionais de serviço social, sendo que um dos objetos de trabalho deste
grupo foi a definição de critérios para o repasse dos recursos provenientes das prestações
pecuniárias pelos Tribunais de Justiça.

A necessidade de definição de critérios únicos teve sua origem na constatação de que nos
Estados da Federação, tanto na esfera estadual como na federal, os magistrados vinham ado-
tando procedimentos diferenciados na destinação dos referidos recursos. Assim, resultou a
Resolução 154/2013 do Conselho Nacional de Justiça, de 13 de julho de 2013, estabelecendo
critérios únicos para acessibilidade aos valores originários das penas pecuniárias, baseado
no princípio da transparência no trato com os recursos públicos.

1 Sonia Maria Corrêa Cavassani: Analista Judiciário - Serviço Social do Poder Judicário do Espírito Santo.
Tel. 27. 331983137. sonia.vepema@gmail.com

2 Iva Elisa Kobi Ghil: Assistente Social, Analista Judiciário - Serviço Social do Poder Judicário do Espírito
Santo. Tel. 27. 331983137. iva.vepema@gmail.com
O princípio da transparência emerge na administração pública em função de sua relevância
social na consolidação da democracia e preservação do interesse da população na admi-
nistração dos recursos públicos.

Souza afirma que

A transparência nos atos da administração Pública tem como desígnio impedir ações impró-
prias e eventuais como o uso indevido dos bens pública por parte dos governantes e adminis-
tradores, alargando o acesso dos cidadãos às informações públicas, em todas as esferas, a fim
da edificação de um país mais democrático, onde todos os segmentos da sociedade possam
desempenhar com êxito o controle social, ajudando na efetivação de uma gestão mais eficaz e
eficiente. (SOUZA et al 2009, p. 12)

Para Sacramento & Pinho (2007) a adoção do princípio da transparência nas ações
governamentais contribui para a redução da corrupção no espaço público, tornando a
sociedade civil mais democrática.

Seguindo esta premissa o Planejamento Estratégico do Tribunal de Justiça do Estado do Es-


pírito Santo para o período de 2010/2015, preconizou como um dos valores para a sociedade
o princípio da transparência.

No sentido de dar materialidade a este princípio, o Poder Judiciário do Estado do Espírito

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Santo com base na Resolução 154 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Provimento
21 da Corregedoria Nacional de Justiça, assume o compromisso de tornar transparente a
destinação dos recursos procedentes das prestações pecuniárias.

As normativas legais citadas estabelecem diretrizes sobre a destinação dos valores depo-
sitados na conta judicial, quando não destinados à vítima ou aos seus dependentes. Tais
valores serão repassados a financiamentos de projetos em favor das instituições previa-
mente cadastradas/conveniadas na unidade gestora competente, desde que preencham os
requisitos determinados pelo CNJ.
91
As novas diretrizes as penas pecuniárias serão direcionadas a implementação e conclusão
de projetos voltados para o público alvo formado pelo terceiro setor e pelo poder público,
propiciando ações que não seriam possíveis sem a doação de tal verba.

De acordo com Fernandes (2002) o terceiro setor começou a surgir a partir do momento em
que o Estado não estava mais atendendo satisfatoriamente a prestação de bens e serviços à
população. O referido setor não tem obrigação de prestar serviços, mas se apresenta como a
solução para grande parte das demandas da sociedade, e assim, beneficia principalmente o
Estado que deixa à cargo das mesmas parte de suas responsabilidades.

No que diz respeito à execução da Prestação de Serviços à Comunidade, a alternativa penal


mais aplicada no Espírito Santo, sua prática só é possível por contar com o terceiro setor,
visto que o Estado pouco abre suas portas para o cumprimento de tais atividades.

2. Processo de concepção e implementação do projeto


pela Vepema

Na região metropolitana da grande Vitória, que engloba os municípios de Vitória, Serra, Vila
Velha, Cariacica e Viana, a execução das penas e medida alternativas é realizada pela 7ª Vara
Criminal de Vitória - Vara de Execuções Penais e Medidas Alternativas (VEPEMA), cujo juiz
passou a ser o gestor da conta para depósito dos valores oriundos de prestação pecuniá-
ria, objeto de transação penal e de sentença condenatória.

Na fase de concepção do projeto foi nomeada uma comissão pela presidência do Tri-
bunal de Justiça que envolveu servidores da área de planejamento e gestão de projetos
do Tribunal de Justiça/ES, da assessoria da presidência, da Corregedoria de Justiça e o
magistrado da VEPEMA.

Esta comissão estabeleceu critérios e diretrizes para o judiciário capixaba. O Ato Normativo foi
publicado no Diário da Justiça do Espírito Santo em consonância com as diretrizes do CNJ.

A Secretaria de Tecnologia da Informação do TJES se encarregou da ferramenta para a


autuação dos processos referentes aos projetos apresentados, a inclusão dos dados
necessários, visualização da tramitação do processo em todas as suas fases, monito-
ramento dos valores depositados, entre outros, através do sistema e-JUD (Sistema de
Automação do Poder Judiciário).

Foi providenciada ainda, a abertura de conta judicial vinculada à VEPEMA e definição de


fluxo bancário com o judiciário.

No âmbito da VEPEMA o juiz titular da referida vara, na condição de gestor do Fundo da Pres-

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tação Pecuniária da região da Grande Vitória/ES, definiu que tais recursos seriam destinados
às organizações da sociedade civil e do poder público conveniadas com a VEPEMA, e que
já participam ativamente no cotidiano de trabalho desta ao receber prestadores de serviços
para o cumprimento da pena ou medida de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC).

O projeto contou com o protagonismo dos profissionais dos setores de Serviço Social
e Psicologia, Fiscalização, Cartório e Gabinete do Juízo da VEPEMA, responsáveis pela
sua implementação.
92
As instituições para terem acesso aos valores depositados na conta judicial (fundo/ VEPE-
MA) deveriam se orientar pelos critérios estabelecidos em edital.

3. Etapas do projeto

Buscando informar as instituições sobre o novo método de acesso aos recursos da presta-
ção pecuniária, foi pautado um momento informativo.

A VEPEMA realiza anualmente o Fórum de Discussão sobre Penas e medidas Alternativas


com as Instituições Parceiras, e em novembro de 2013 foi realizado o XI Fórum e este teve
como tema a nova forma de destinação e administração das penas pecuniárias.

Neste Fórum foi apresentado à instituições parceiras o novo formato a ser adotado
e realizados os esclarecimentos e orientações sobre a nova forma de acesso à verba
proveniente das penas pecuniárias.

Os editais 001/2014, 001/2015 e 001/2017 foram publicados no Diário da Justiça


do Espírito Santo estabelecendo os critérios para participação, seleção, repasse da
verba e prestação de contas.
Nos dois primeiros editais a primeira fase do processo de seleção era de habilitação jurídica
onde foram apresentados os documentos exigidos seguidos de emissão de habilitação para
as instituições atenderam aos requisitos.

No segundo momento as instituições habilitadas apresentaram seus projetos que foram


avaliados por uma comissão composta por 03 (três) Assistentes Sociais da VEPEMA, obe-
decendo aos critérios propostos pelo CNJ nos itens I a IV do § 1º do artigo 2º da Resolu-
ção nº 154 de 13 de julho de 2012.

No terceiro edital, após ter sido avaliado que os trâmites necessitavam de maior agilidade,
a documentação e os projetos passaram a ser apresentados em um só momento, sendo
que após a aprovação da documentação pelo Ministério Público, os projetos são encami-
nhados para a avaliação social.

Após a avaliação realizada pela comissão de Assistentes Sociais os projetos são enca-
minhados mais uma vez ao Ministério Público, e por último a classificação é homolo-
gada pelo magistrado.

A classificação das entidades beneficiadas, a descrição resumida do objeto de despesa, bem


como o valor a ser recebido foram publicadas com prazo para recursos.

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A assinatura e entrega dos alvarás para acesso aos recursos referentes ao edital de 2013
ocorreram em agosto de 2014 e em setembro de 2015 foram entregues os alvarás referentes ao
segundo edital. Os projetos referentes ao edital de 2017 ainda estão em fase de avaliação.

Conforme já foi citado, o segundo e o terceiro edital, sofreram algumas alterações visando
sua adequação à realidade vivenciada pelas instituições, evitar a repetição de equívocos, e
facilitar a compreensão por parte da instituição, bem como estimular sua participação.

Na avaliação dos projetos apresentados em 2014 a comissão de assistentes sociais perce-


beu que era necessário criar critérios objetivos e claramente mesuráveis para a avaliação do 93
item I do § 1º do art. 2º da Resolução 154, de 13 de julho de 2012 do Conselho Nacional de
Justiça, ou seja, “Oferecimento de oportunidade para o cumprimento da prestação de servi-
ços à comunidade, mantendo por maior tempo número expressivo de cumpridores”.

Considerando que as instituições que compõe a rede de instituições parceiras para o recebi-
mento de prestadores de serviços, no que diz respeito à estrutura física e tipo de atividade
exercida, foi elaborado o Instrumento de Classificação da Rede Conveniada com a VEPEMA
(anexo I), tal instrumento se mostrou de grande utilidade para a avaliação dos projetos apre-
sentados em 2014, embasando-a de forma mais consistente.

Cada instituição deve realizar a prestação de contas em até 30 dias após o prazo previsto
para a conclusão do projeto de acordo com o cronograma apresentado.

A documentação referente a prestação de contas apresentada deve ser encaminhada


à Comissão de Serviço Social da VEPEMA para avaliação da conclusão do projeto, ao
Ministério Público e por último ao juiz para decidir pela aprovação ou homologação e
publicação no Diário da Justiça.
4. Resultados

No primeiro edital foram apresentados quarenta e um projetos oriundos de trinta e cinco de


instituições parceiras dos 05 municípios da Grande Vitória. Destes nove tiveram sua solici-
tação indeferida por falta ou irregularidades na documentação apresentada, e 32 obtiveram
recursos no total de R$ 1.237.999, 17 (um milhão duzentos e trinta e sete mil e novecentos e
noventa e nove reais e dezessete centavos).

Alguns projetos contemplaram mais de um elemento de despesa sendo que no total 19 pro-
jetos tinham como objetivo a aquisição de material permanente, 14 o pagamento de pessoal,
12 obras, 04 compra de veículos, e 14 objetivavam compra de material de consumo. Todas as
instituições apresentaram suas prestações de contas.

No segundo edital foram apresentados projetos 44 oriundos de 43 instituições. Sendo


que, 08 tiveram sua participação indeferida por deficiência ou irregularidades na documen-
tação, e foram beneficiadas 36 instituições com recursos para seus projetos no total de
R$ 1.337.750,47 (um milhão trezentos e trinta e sete mil e setecentos e cinquenta reais e
quarenta e sete centavos).

A maioria dos projetos, do mesmo modo como ocorreu no primeiro edital, contemplaram

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mais de um elemento de despesa, e estes não diferiram muito dos contemplados no primeiro
edital, sendo que 22 projetos objetivavam a aquisição de material permanente, 20 o paga-
mento de pessoal, 11 obras, 03 a compra de veículos, 16 a compra de material permanente, e
09 o pagamento de despesas.

Apenas 11 instituições apresentaram a prestação de contas até o momento, pois as demais


ainda têm prazo para a finalização dos projetos apresentados.

O instrumento criado para a avaliação do item 1 da Resolução da 154, do Conselho Na-


94
cional de Justiça, que diz respeito ao números de prestadores de serviços à comunidade
recebidos pelas instituições, foi usado para a avaliação dos projetos apresentados no
segundo edital, e se mostrou bastante útil no sentido de dar mais objetividade e orientar a
avaliação de forma mais justa.

5. Considerações finais

Os servidores da VEPEMA e do Ministério Público envolvidos na execução do processo apre-


sentado, bem como o magistrado, em reunião para avaliar os resultados obtidos e planeja
sua continuidade, avaliaram que a metodologia utilizada foi assertiva.

Observa-se que as instituições contempladas buscam canalizar os recursos para atividades


de cunho educativo-formativo, na estruturação dos locais de funcionamento de projetos, pro-
gramas ou atividades, na aquisição de materiais, equipamentos e veículos para dar suporte
as rotinas institucionais entre outros.

Foi possível observar que a verba, antes distribuída de forma diluída, não possibilitava a
realização de grandes projetos, não impactando de forma tão positiva a instituição e seus
usuários, além de dificultar a fiscalização de sua utilização.
O critério de avaliação que considera, para efeito de classificação, o número de pessoas
recebidas para cumprir penas ou medidas alternativas pela instituição estimula a abertura de
vagas e realização de convênios para este fim. É necessário ressaltar que as vaga oferecidas
pelas instituições parceiras são essenciais para a continuidade da execução das Penas e
Medidas Alternativas, cuja aplicação vem sendo ampliada.

A classificação das instituições de acordo com o seu porte, e número de prestadores que po-
dem ser recebidos para o cumprimento da PSC, organiza e estimula aumento de vagas, além
de dar um caráter mais objetivo à avaliação executada pela comissão de serviço social.

Fica evidenciado ainda, que esta experiência propicia o acesso aos recursos das prestações
pecuniárias de forma democrática e com total transparência, permitindo gerar benefícios a
pessoas e grupos vulneráveis da sociedade.

Referências

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Disponível em: <www.cnj.jus.br> Acesso em: 06/03/2017.

DIÁRIO DA JUSTIÇA DO ESPÍRITO SANTO. Disponível em: <http://www.tjes.jus.br> Acesso em:


06/03/2017

FERNANDES, Ruben César. Privado porém público: O terceiro setor na América Latina. 3. de.
Rio de Janeiro: Relume-dumará, 2002.

SACRAMENTO, Ana Rita Silva; PINHO, José Antônio Gomes. Transparência na administração
pública: o que mudou depois da Lei de Responsabilidade Fiscal? Um estudo exploratório em 95
seis municípios da Região Metropolitana de Salvador. Revista de Contabilidade da UFBA.v.1,
n.1, set/dez 2007.

SOUZA, Auriza Carvalho et all. A relevância da transparência da gestão pública municipal.


Revista Campus. Piratininga, v.2, n.5.6-20, dez 2009.

Anexo I

Classificação da Rede conveniada com a Vepema

Classificações definidas para serem utilizadas pelo Serviço Social e Psicológico da Vara de
Execuções Penais e Medidas Alternativas para a rede conveniada com a vara: Grande, Médio
e Pequeno Porte.

Critérios

Estrutura física (tamanho)


Número de pessoas atendidas/acompanhadas/abrigadas
Horários de atendimento
Atividades / Projetos / Programas desenvolvidos
Número de funcionários
Capacidade de vagas para a prestação de serviços (PSC)
Localização

Número esperado de prestadores de serviços por mês:

Grande porte: no mínimo 15 beneficiários por mês


Médio porte: no mínimo 10 beneficiários por mês
Pequeno porte: no mínimo 05 beneficiários por mês
- As instituições que recebem número maior de beneficiários que o estabelecido, receberão
pontuação acima da média e aquelas que recebem menos, a pontuação será inferior a média.
- Nas instituições de Grande Porte, a cada 03 (três) beneficiários acima da média esperada
será acrescentado 01 (um) ponto. No caso de operar com número inferior à média, o decrés-
cimo de pontos se dará na mesma ordem, ou seja, menos 01 (um) ponto a cada 03 negativos.
- Nas instituições de Médio Porte, a cada 02 (dois) beneficiários acima da média esperada será
acrescentado 01 (um) ponto. No caso de operar com número inferior à média, o decréscimo de
pontos se dará na mesma ordem, ou seja, menos 01 (um) ponto a cada 02 negativos.
- Nas instituições de Pequeno Porte, a cada 01 (um) beneficiário acima da média esperada será
acrescentado 01 (um) ponto. No caso de operar com número inferior à média, o decréscimo
de pontos se dará na mesma ordem, ou seja, menos 01 (um) ponto a cada 01 (um) negativo.
Para efeito de análise, serão consideradas as particularidades que envolvem algumas institui-
ções que devido à localização e/ou horário de funcionamento, entre outros, não têm as vagas
de prestação de serviços supridas pelo SSP.

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Instituições conveniadas e classificação proposta pelo SSP/Vepema:

Grande Porte

AVEDALMA
CREFES - CENTRO DE REABILITAÇÃO FÍSICA DO ESTADO DO ES
HOSPITAL INFANTIL MATERNIDADE DE VILA VELHA - Heimaba
HOSPITAL ESTADUAL DE ATENÇÃO CLÍNICA (Cariacica)
HOSPITAL ANTÔNIO BEZERRA DE FARIA
HOSPITAL DR. DÓRIO SILVA 96
HOSPITAL EVANGÉLICO DE VILA VELHA
HOSPITAL INFANTIL DE VITÓRIA
HOSPITAL SÃO LUCAS
SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE VITÓRIA
SOCIEDADE DE ASSISTENCIA À VELHICE DESAMPARADA (Asilo de Velhos de Vitória)

Médio Porte

ABRIGO DE IDOSOS ABEL LINO PORTELA


ABRIGO DE IDOSOS “LAR POUSO DA ESPERANÇA
ABRIGO JOÃO CALVINO
ABRIGO ARCO-IRIS PARA POPULAÇÃO ADULTA DE RUA
ADRA - Albergue Noturno (Centro - Vitória)
ADRA - Abrigo para população em situação de rua adulta (Jabour - Vitória)
AICA - PROJETO CIDADÃ - NOVO HORIZONTE
ALAS - Associação Luterana de Assistência Social
ALBERGUE ANA PAULA
AMAES: ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS DOS AUTISTAS DO ESPÍRITO SANTO
APADD - ASSOC. DE PREVENÇÃO E ASSIST. DEPENDENTES DE DROGAS
APAE Cariacica
APAE Serra
APAE Vila Velha
APAE Vitória
ASSOCIAÇÃO AMOR E VIDA: “CASA JESUS MENINO”
ASSOCIAÇÃO AMOR E VIDA:”CENTRO AMBIENTAL SÃO JOÃO BATISTA”
ASSOCIAÇÃO CRECHE “SÃO VICENTE DE PAULO”
ASSOCIAÇÃO LAR SEMENTE DO AMOR: SEDE
ASSOCIAÇÃO MENSAGEIROS DA BOA NOVA: ARCA DA ALIANÇA
ASSOCIAÇÃO PESTALOZZI DA SERRA
ASSOCIAÇÃO PESTALOZZI - VILA VELHA
ASSOCIAÇÃO LAR DA TERCEIRA IDADE PROFESSOR COELHO SAMPAIO
CAC - CENTRO DE APOIO AO CIDADÃO
CAOCA - CASA DE ACOLHIMENTO E ORIENTAÇÃO A CRIANÇA E ADOLESCENTES
CASA DE ALIANÇA CRISTO VIVE
CASA DE APOIO CAMPO GRANDE
CER - MULHER (IEBV)
CIDADE DO GAROTO - SBCP
ESCOLA ABERTA: ALGER RIBEIRO BOSSOIS - CIDADE DA BARRA

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ESCOLA ABERTA: ANA BERNARDES ROCHA - ARGOLAS
ESCOLA ABERTA: ANTÔNIO BEZERRA DE FARIAS - VILA GARRIDO
ESCOLA ABERTA: BASÍLIO COSTALONGA - PAUL
ESCOLA ABERTA: DEOLINDO PERIM - ULISSES GUIMARÃ
ESCOLA ABERTA: DES. FERREIRA COELHO - GLORIA
ESCOLA ABERTA: DR. TUFFY NADER - BARRA JUCU (ANTIGA M. EMELINA)
ESCOLA ABERTA: GIL BERNARDES - ALVORADA
ESCOLA ABERTA: GOV. CRISTIANO DIAS LOPES FILHO - SÃO CONRADO 97
ESCOLA ABERTA: GRACIANO NEVES - PAUL
ESCOLA ABERTA: GUILHERME SANTOS - SANTA INÊZ
ESCOLA ABERTA: ILHA DA JUSSARA - ULISSES GUIMARÃES
ESCOLA ABERTA: IRMÃ FELICIANA GARCIA - ILHA DOS AIRES
ESCOLA ABERTA: JOFFRE FRAGA - VALE ENCANTADO
ESCOLA ABERTA: JUIZ JAIRO DE MATTOS PEREIRA - SÃO TORQUATO
ESCOLA ABERTA: LEONEL DE MOURA BRIZOLA - SANTA RITA
ESCOLA ABERTA: MACIONÍLIA MAURÍ BUENO - ILHA DAS FLORES
ESCOLA ABERTA: MARINA BARCELLOS SILVEIRA - ARAÇÁS
ESCOLA ABERTA: NAYDES BRANDÃO - GLÓRIA
ESCOLA ABERTA: OFÉLIA ESCOBAR - ARIBIRI
ESCOLA ABERTA: PAULO CÉSAR VINHA - TERRA VERMELHA
ESCOLA ABERTA: PAULO MARES GUIA - COBILÂNDIA
ESCOLA ABERTA: PROF. AYLTON DE ALMEIDA - BRUNELA II
ESCOLA ABERTA: PROF. DARCY RIBEIRO - JOAO GOULART
ESCOLA ABERTA: PROF. LUIZ MALIZECK - DIVINO ESPÍRITO SANTO
ESCOLA ABERTA: PROF. RUBENS JOSÉ VERVLOET GOMES - SOTECO
ESCOLA ABERTA: PROF. THELMO TORRES - ITAPOÃ
ESCOLA ABERTA: REV. ANTÔNIO DA SILVA COSMO - SANTOS DUMOND
ESCOLA ABERTA: SEDE
ESCOLA ABERTA: SENADOR JOÃO DE M. CALMON - PRAIA DAS GAIVOTAS
ESCOLA ABERTA: ULISSES Á - ATAIDE
ESCOLA DE PRIMEIRO GRAU “SÃO MARCOS” - SERRA
ESCOLA FLOR DE CACTUS - Serra
ESCOLA (EEEF) “ANTÔNIO ESTEVES”(CARIACICA)
ESCOLA (EEEF) “EULÁLIA MOREIRA”(CARIACICA)
ESCOLA (EEEFM) “PROF. JOSÉ LEÃO NUNES” (CARIACICA)
ESCOLA (EEEFM) “SÃO JOÃO BATISTA” - AMAC (CARIACICA)
ESCOLA (EMEF) “ANTÔNIO COUTINHO DE OLIVEIRA” (CARIACICA)
ESCOLA (EMEF) “MARTIM LUTERO” (CARIACICA)
ESQUADRÃO RESGATE VIDA
FAAVE
INSTITUTO FRANCISCANO (abrigamento de idosos)
INSTITUTO LUIZ BRAILLE
JASB - CRISTOLÂNDIA
LAR BATISTA ALBERTINE MEADOR

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LAR FREI AURÉ STULZER (COMUNIDADE BOM PASTOR)
MONTANHA DA ESPERANÇA
NÚCLEO SOCIAL ROGER FERNANDES RODRIGUES (Creche Bem Me Quer)
OBRA SOCIAL GABRIEL DELANE (Cariacica)
OBRA SOCIAL CRISTO REI
PROJETO SOL
SEJUS - SECRETARIA ESTADUAL DE JUSTIÇ ARQUIVO/ALMOXARIFADO/PATRIMÔNIO
SEMCID - CASA DO CIDADÃO
SEMEART 98
UMEI - SARAH VICTALINO GUEIROS - BARRAMARES
UNIÃO DE CEGOS DOM PEDRO II - UNICEP
UNIDADE DE SAÚDE DA GLÓRIA
UNIDOS DE INHANGUETÁ - ESCOLINHA DE FUTEBOL

Pequeno porte

ADRA - CASA LAR 1 - pessoas c/ transtorno mental


ADRA 2 - CASA LAR 2
AESMP - ASSOCIAÇÃO ESPIRITOSSANTENSE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
AICA - PROJETO CURUMIM - JOSE DE ANCHIETA
AICA - PROJETO LEGAL - CENTRAL CARAPINA
AICA - PROJETO MENINOS E MENINAS DO MESTRE - PLANALTO SERRANO
AICA - PROJETO NOSSA CASA (CASA DE PASSAGEM)
AICA - PROJETO SEMENTE - RESIDENCIAL JACARAIPE
ALIANCAPOEIRA
ASSOCIAÇÃO MENSAGEIROS DA BOA NOVA - CENTRO DE FORMAÇÃO JUVENIL
ASSOCIAÇÃO DE MORADORES PRAIA DAS GAIVOTAS
ASSOCIAÇÃO O BOM SAMARITANO DO BRASIL
ASSOCIAÇÃO LAR SEMENTE DO AMOR: NÚCLEO JARDIM CARAPINA
ASSOCIAÇÃO LAR SEMENTE DO AMOR: NÚCLEO NA ONDA DO FUTURO
ASSOCIAÇÃO LAR SEMENTE DO AMOR: NÚCLEO PLANALTO SERRANO
ASSOCIAÇÃO LAR SEMENTE DO AMOR: NÚCLEO POMAR DO AMOR
CAP FEMININA
CASA DO MENINO
CASA LAR PADRE GABRIEL DIMICOLI - REDE AICA
CASA-LAR “AZIZA SUET” - CASA DAS MENINAS (IEBV)
CASA-LAR “ROSALINA BAHIENSE” - CASA DOS MENINOS (IEBV)
CDDH - CENTRO DE DEFESA DOS DIREITOS HUMANOS DA SERRA
CENTRO POP E ABORDAGEM SOCIAL
COMUNIDADE ÁGUA VIVA - CASA DE ACOLHIDA FILHO PRÓDIGO
CRAS - REGIÃO III - PAUL (ANTIGO VILA GARRIDO)
CRECHE MENINO JESUS
ESQUADRÃO RESGATE VIDA - SEDE - SOTECO
FEDERAÇÃO ESPÍRITA DO ESPÍRITO SANTO - FEEES
FRATERNIDADE TABAJARA
FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA DO BRASIL - Cariacica
FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA - CASA DE ACOLHIDA I - TABUAZEIRO

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FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA - CENTRO DE VIVÊNCIA I (ANTIGA CASA ROSA)
FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA - CENTRO DE VIVÊNCIA II
FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA - CENTRO DE VIVÊNCIA III (ANTIGA CASA VERDE)
FUNDAÇÃO FÉ E ALEGRIA - CENTRO DE VIVÊNCIA IV (ANTIGA CASA LAR)
ICIAS - INSTITUTO CAPIXABA DE INSERÇÃO E AMPARO SOCIAL
IGES - RESIDÊNCIA INCLUSIVA EM BICANGA
IGES - RESIDÊNCIA INCLUSIVA EM MANGUINHOS
INSTITUTO CONTINENTAL EM AÇÃO - ICA 99
INSTITUTO DE EDUCAÇÃO SOCIAL JOANA DARC
INSTITUTO CORAÇÃO DA CRIANÇA - ICC
INSTITUTO MISSÕES - ASSISTÊNCIA SOCIAL IRMÃ DULCE
INSTITUTO SEM FRONTEIRAS DE AJUDA HUMANITÁRIA - PAH
INSTITUTO SOCIAL ESPERANÇA - ARGOLAS
JOCUM - JOVENS COM UMA MISSÃO (Cariacica)
OBRA SOCIAL GABRIEL DELANE (Viana)
OBRA SOCIAL NOSSA SENHORA DAS GRAÇAS
OBRAS PASSIONISTAS - PROJETO DOM MAURO PEREIRA BASTOS
PARÓQUIA BOM PASTOR
PROJETO VIDA “PADRE GAILHAC”
REAME
SEMDS - BANCO DE ALIMENTOS
SEMDS - SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL (CARIACICA)
SETRAN - SEC. DE TRANSPORTES, TRÂNSITO E INFRAESTRTUTURA URBANA (VITÓRIA)
SOCIEDADE SÃO VICENTE DE PAULO - BAZAR
UNIDADE DE SAÚDE DA GLORIA
UNIDADE DE SAÚDE DE ARAÇÁS
UNIDADE DE SAÚDE DE BARRA DO JUCU
UNIDADE DE SAÚDE DE BARRAMARES
UNIDADE DE SAÚDE DE COQUEIRAL
UNIDADE DE SAÚDE DE DOM JOÃO BATISTA
UNIDADE DE SAÚDE DE JARDIM MARILÂNDIA
UNIDADE DE SAÚDE DE PAUL
UNIDADE DE SAÚDE DE PONTA DA FRUTA
UNIDADE DE SAÚDE DE SANTA RITA
UNIDADE DE SAÚDE DE SÃO TORQUATO
UNIDADE DE SAÚDE DE TERRA VERMELHA
UNIDADE DE SAÚDE DE ULISSES GUIMARÃES
UNIDADE DE SAÚDE DE VALE ENCANTADO
UNIDADE DE SAÚDE DE VILA GARRIDO
UNIDADE DE SAÚDE DE VILA NOVA
UNIDADE DE SAÚDE DO IBES
UNIDADE SAÚDE DE COQUEIRAL

Vitória/ES, 18 de setembro de 2015

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ADOLESCENTE
CRIANÇA E
SISTEMA
PENAL
A VIOLAÇÃO OCULTA NA PROTEÇÃO:
UMA PROVOCAÇÃO NECESSÁRIA

Alzirene Ferreira Araújo D’Assunção1 e Valdécio Carlos da Silva Junior2

EIXO TEMÁTICO: INFÂNCIA E JUVENTUDE

A proteção social pode ser entendida como forma de inclusão dos destinatários
da assistência social nas políticas sociais específicas, propiciando-lhes o acesso a
bens, serviços e aos direitos fundamentais. Proteger de maneira integral crianças
e adolescentes, assegurando seus direitos como previsto pelo Estatuto da Criança
e do Adolescente é prerrogativa do Sistema de Garantia de Direitos, composto pelo
Conselho Tutelar, Promotoria, Justiça, Defensoria Pública e pela rede de proteção
social estabelecida na Política Nacional de Assistência Social. Os sujeitos e suas
famílias que usualmente estão inseridas nesse sistema fazem parte de um público
específico, marcado pela trajetória sócio histórica da desigualdade social. O pre-
sente trabalho apresenta breve discussão acerca do processo de proteção social
envolvendo crianças e adolescentes. Discute o fenômeno da violação de direitos
enquanto desdobramento da aplicação das próprias medidas protetivas, a partir

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da compreensão da “questão social” e suas múltiplas expressões no contexto da
infância e juventude. Para tanto, procura-se refletir sobre o papel do/a assistente
social dentro do Poder Judiciário e sua relação com a “questão social” e a importân-
cia para a proteção social de sujeitos em desenvolvimento e suas famílias.

Palavras chave: Crianças e Adolescentes. Convivência Familiar e Comunitária.


Medidas de Proteção

“A utopia partilhada é a mola da história.”


Dom Hélder Câmara 102

1. Introdução

O presente artigo tem como objetivo discutir a aplicação de medida protetiva a crianças e
adolescentes no contexto do Sistema de Garantias de Direito (SGD). Duas questões norteiam
a reflexão proposta: a) a aplicação de medidas protetivas pode representar a violação de
direitos? Se sim, em quais contextos? b) qual é o papel do/a assistente social no desfecho
desse processo? Com base nessas questões, procurou-se refletir acerca do processo de
trabalho desse profissional dentro do campo sociojurídico, analisando conceitos presentes
no cotidiano profissional, como risco, vulnerabilidade e “questão social”3.

1 Graduada em Ciências Sociais (UFMG), Serviço Social (ULBRA), especialista em Políticas Públicas (UFMG)
e Gestão Pública (UEMG). Analista Judiciário – AE: Serviço Social do TJES – 1ª Vara da Infância e Juventude de
Linhares. E-mail:afassuncao@yahoo.com.br – Tel.: (27) 3264-0743

2 Graduado em Serviço Social (UFPE), especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça
(UFES). Analista Judiciário – AE: Serviço Social do TJES – Central de Apoio Multidisciplinar de Linhares. Email:
vcjunior@tjes.jus.br – Tel. .: (27) 3264-0743.

3 SANTOS (2012) explica que muitos teóricos/as do Serviço Social no Brasil utilizam aspar ao falar sobre a
“questão social” tanto pela origem conservadora da expressão quando pelo cuidado em não elevar o termo ao estatuto
de categoria, a partir de uma perspectiva analítica marxiana.
A atuação dos/as técnicos/as do Poder Judiciário do estado do Espírito Santo, precipua-
mente, está associada a um processo de trabalho, que no caso das medidas de proteção,
ocorrem quando já houve uma ou mais violações de direito. Mas além dessa atuação técnica,
é preciso se atentar para outras dimensões do exercício profissional, principalmente no que
se refere à articulação da rede de proteção socioassistencial das localidades jurisdiciona-
das. Geralmente os/as profissionais das equipes técnicas multidisciplinares (em sua grande
maioria de formação em Psicologia e Serviço Social) estão lotados em Varas da Infância e
Juventude, da Família, Órfãos e Sucessões e Varas Criminais.

É a partir desse contexto que se pretende desenvolver o tema e apresentar considerações


acerca de realidades que muitas vezes se colocam na contramão da proteção integral dos
sujeitos, conforme preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD - Lei
8.069 de 1990); na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004) e no Plano Nacio-
nal de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária (PNCFC, 2006).

A esse respeito, o ECRIAD (artigo 19) prevê que crianças e adolescentes, sujeitos em desen-
volvimento, devem prioritariamente crescer no seio de sua família4, devendo ser respeitada
sua origem, sua história, seus vínculos familiares e comunitários. Em atendimento a esta
prerrogativa a Política Nacional de Assistência Social cria o Sistema Único de Assistência

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Social (SUAS), trazendo em sua estrutura diferentes níveis de proteção, dando centralidade à
instituição família. Coloca-se em destaque a proteção básica, que atua em rede e visa ações
de fortalecimento dos vínculos e redução das situações de vulnerabilidades e riscos sociais
(PNAS, 2004). Com base nesses pressupostos, será apresentado um caso que foi analisado
sob o olhar de profissionais do Serviço Social que vem atuando no Poder Judiciário.

O método proposto neste trabalho refere-se à análise qualitativa, através do estudo de caso,
exame documental e pesquisa bibliográfica. Tais instrumentais também fazem parte da cons-
trução das análises cotidianas no processo de trabalho desses profissionais.
103
Sendo assim, o trabalho está estruturado em três tópicos nos quais, o primeiro refere-
se à contextualização do mesmo. No segundo são apresentados o Sistema de Garantia
de Direitos, os marcos legais e sua materialização através das políticas de proteção
envolvendo crianças e adolescentes. Neste tópico também são tecidas as considerações
a partir da apresentação do caso e o papel do/a assistente social nesse processo e, por
fim, são apresentadas as considerações acerca das implicações das medidas protetivas
aplicadas aos sujeitos em questão.

2. Desenvolvimento
2.1 O Sistema de Garantia de Direitos

Para se falar do conceito garantia de direitos, necessariamente, deve-se recorrer à fundamen-


tação e institucionalização dos direitos humanos, melhor dizendo, os direitos conhecidos
como fundamentais. Segundo Rabenhorst,

4 O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei nº 8.069/1990, e sua alteração pela Lei nº 12.010/2009 define
a família natural como a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes, e ainda, família
extensa ou ampliada como aquela que se estende para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada
por parentes próximos com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade
(ECRIAD/1990, art. 25; Lei nº 12.010/2009).
O que se convencionou chamar ‘direitos humanos’ são exatamente os direitos correspon-
dentes à dignidade dos seres humanos. São direitos que possuímos não porque o Estado
assim decidiu, através de suas leis, ou porque nós mesmos assim o fizemos, por intermédio
dos nossos acordos. Direitos humanos, por mais pleonástico que isso possa parecer, são di-
reitos que possuímos pelo simples fato de que somos humanos (RABENHORST, 2008, p. 04).

Parafraseando Moraes (2002), os direitos humanos referem-se ao conjunto institucionali-


zado de direitos e garantias do ser humano que tem por finalidade básica o respeito a sua
dignidade, por meio de sua proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento
de condições mínimas de vida e de desenvolvimento da personalidade humana.

Alves (2010) chama a atenção para a compreensão dos direitos humanos enquanto
fundamentais e complementares. Ressalta que as quatro gerações de direitos surgiram em
momentos históricos distintos, sem que houvesse, no entanto, contradição entre eles.

No Brasil o construto do conceito garantia de direitos se institucionaliza somente com a


redemocratização do país a partir de 1985.

No enfrentamento à violação de direitos envolvendo crianças e adolescentes entram


em cena importantes instrumentos legais como a Constituição brasileira de 1988, o
Estatuto da Criança e do Adolescente aprovado e instituído em 1990 e a Política Na-
cional de Assistência Social (PNAS), criada em 2004, que desde então vem garantindo

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os direitos de proteção ao público infanto-juvenil.

Esses instrumentos vieram estabelecer uma série de mecanismos de preservação dos direi-
tos humanos garantidores de um desenvolvimento digno. As instituições família, sociedade
e Estado, solidariamente são obrigados a proporcionar a todas as crianças e adolescentes o
respeito a seus direitos fundamentais. Nesse aspecto, a Constituição brasileira de 1988 trou-
xe pela primeira vez a questão da criança como prioridade absoluta, sendo que sua proteção:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com ab- 104


soluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissiona-
lização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão (C.F. 1988, art. 227).

A fundamentação da PNAS se expressa através do sistema de proteção social brasilei-


ro no âmbito da garantia e defesa de direito. Significa dizer que através do anseio dos
setores civis e técnico-profissionais efetivou-se a Assistência Social como uma política
de Estado definida em lei. Esta conquista representa um grande avanço em termos de
proteção social ao povo brasileiro. Segundo a PNAS (2004),

A Assistência Social como política de proteção social configura-se como uma nova situação
para o Brasil. Ela significa garantir a todos, que dela necessitam, e sem contribuição pré-
via a provisão dessa proteção. Esta perspectiva significaria aportar quem, quantos, quais e
onde estão os brasileiros demandatários de serviços e atenções de assistência social (PNAS,
2004, p.15).

Contudo, ressaltamos o viés contraditório inerente às políticas sociais no capitalismo,


que distancia os direitos sociais formais da realidade social cotidiana, de modo que a
universalização é substituída por uma perspectiva de redução de danos e gerenciamento
da pobreza (MARTINS, 2012).
A materialização das contradições das políticas sociais é ainda mais visível na conjuntura
neoliberal, particularmente através da contra-reforma do Estado.

O “projeto/processo neoliberal” constituiu a atual estratégia hegemônica de reestruturação


geral do capital – em face da crise, do avanço tecnocientífico e das lutas de classe que se
desenvolveram no pós-1970, e que se desdobra basicamente em três frentes: a ofensiva con-
tra o trabalho (atingindo as leis e direitos trabalhistas e as lutas sindicais e da esquerda) e
as chamadas “reestruturação produtiva” e “(contra)reforma do Estado” (DURIGUETTO e MON-
TAÑO, 2010, p. 193).

Desta forma, conclui-se que o SGD nasce e se desenvolve numa conjuntura de tensões,
disputas e contradições, que incidem diretamente sobre a conformação das políticas
sociais, o acesso ao direito e consequentemente o trabalho do/a assistente social.

2.2 Risco e vulnerabilidade social.

O aparato legal existe permitiu a construção do SGD e por meio dele ocorrem os gerencia-
mentos das expressões “questão social”. O Poder Judiciário, como parte do SGD, possui um
papel emblemático, sendo espaço de coerção e também de garantia de direitos, deliberando
sobre questões intimamente ligadas à própria “questão social” e suas expressões.

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A escassez de recursos materiais e imateriais que condicionam o modo de vida dos sujeitos
deságua no Poder Judiciário de inúmeras formas, dentre as quais chamamos a atenção
para as medidas de proteção baseadas em circunstâncias envolvendo risco ou vulnerabilida-
de social. “O Judiciário é solicitado, então, a intervir em uma questão que é de ordem social
e não legal, ou seja, a origem das situações apontadas relaciona-se com a questão social, e
a ação não deve passar meramente pela ação jurídica” (FÁVERO, 2007, p. 69).

Fávero (2007) ao discutir a perda do poder familiar vincula a condição de carência social
e econômica sobre as famílias sobre as quais eram aplicadas as medidas. 105

Ainda que a determinação da perda do poder familiar não se dê explicitamente por causa
das condições de pobreza em que vivem (o que contrariaria a lei), muitas vezes essa é a
alegação da mãe e/ou do pai ao entregar o filho, o que acontece, em vários casos, anos
antes da destituição do poder familiar (FÁVERO, 2007, p. 39).

Tendo em vista que expressões da “questão social” em muitos casos impulsionam medi-
das de proteção tal como acolhimento institucional ou destituição do poder familiar, nos
propomos a questionar: qual o tipo de proteção que estamos tratando?

A PNAS estabelece vulnerabilidade e risco como uma condição que afeta e delineia o
público usuário dos serviços criados pela política de assistência social, definindo como:

famílias e indivíduos com perda ou fragilidade de vínculos de afetividade, pertencimento


e sociabilidade; ciclos de vida; identidades estigmatizadas em termos étnico, cultural e
sexual; desvantagem pessoal resultante de deficiências; exclusão pela pobreza e, ou, no
acesso às demais políticas públicas; uso de substâncias psicoativas; diferentes formas de
violência advinda do núcleo familiar, grupos e indivíduos; inserção precária ou não inserção
no mercado de trabalho formal e informal; estratégias e alternativas diferenciadas de so-
brevivência que podem representar risco pessoal e social (PNAS, 2004, p. 27).
Para Carneiro e Veiga (2004) apud Janczura (2012) a vulnerabilidade pode ser definida como
exposição a riscos e baixa capacidade material, simbólica e comportamental de famílias e
pessoas para enfrentarem e superarem os desafios com que se defrontam. Já o risco não
implica unicamente a uma ameaça ou um perigo imediato, mas a um futuro próximo, quando
há a ausência de uma ação preventiva (JANCZURA, 2012).

Nessa toada, as autoras supracitadas afirmam que pessoas, famílias e comunidades são
vulneráveis quando não dispõem de recursos materiais e imateriais para enfrentarem com
sucesso os riscos a que são ou estão submetidas. Sendo assim, os termos vulnerabilidade e
risco social podem ser entendidos como sendo o resultante de uma condição sócio-histórica,
marcada pelas desigualdades e injustiças sociais, na qual consiste e perduram a pobreza e
todos os seus elementos que fragilizam os sujeitos de direitos. Conforme cita OLIVEIRA,

A garantia dos direitos sociais se fez ao logo da história da sociedade brasileira a partir de um mo-
vimento amplo de resistência, necessário para a implementação de políticas sociais específicas
públicas no atendimento das necessidades humanas, muitas delas também específicas para o
atendimento de situações focais e pontuais, através dos direitos sociais (OLIVEIRA, 2010, p. 09).

Martins (2012) alerta para a forma conservadora e reacionária com que o termo risco pode ser
interpretado. A autora explica que o termo risco surge no campo da medicina para distinguir
formas de adoecimento humano, vinculados à realidade social. Contudo, a partir da apropria-

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ção do termo no campo das ciências sociais, o “risco social”, possibilita formas de controle so-
bre os sujeitos a partir da possibilidade de ocorrência de eventos futuros, atribuindo ao sujeito
a responsabilidade pelas escolhas que podem resultar na ocorrência dos fatos. Para a autora,

Nossa análise reforça que o conceito de risco não pode ser identificado como elemento capaz de
servir de fundamento ou base para a proteção social. Pelo contrário. A teoria do risco fundamenta
discursos que embasam novas formas de gerir a (des)proteção social. [...] Tais conceitos desdo-
bram-se fundamentalmente em políticas que culpabilizam o indivíduo por sua situação, a partir
do entendimento neoliberal que todo indivíduo é livre empreendedor e tem a responsabilidade de
viver do seu trabalho, constituindo a assistência pública apenas um paliativo destinado àqueles 106
que são incapazes de se manter de maneira autônoma (MARTINS, 2012, p. 93-93).

Compreendemos que a utilização inadequada de termos como risco e vulnerabilidade social,


dada sua dimensão subjetiva, compromete, por um lado, os direitos das crianças e adolescen-
tes, assim como influencia o direcionamento das políticas sociais numa perspectiva neoliberal.

2.3 Expressões da “questão social” no trabalho do/a assistente social no Po-


der Judiciário

O processo de formação social de nossa sociedade está profundamente marcado pelas


desigualdades. Desigualdades essas que não se limitam tão somente ao aspecto econômico,
mas marcam todas as relações estabelecidas, sejam elas de cunho social, político ou
cultural. A partir desse contexto pode-se afirmar que no bojo dessas relações surge
como categoria de análise e objeto de intervenção do Serviço Social, a “questão social”.
Para Cerqueira Filho (1982) apud Türk (2004),

A “questão social” é o conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos que o surgimento


da classe operária impôs no curso da constituição da sociedade capitalista. Assim, a “questão
social” está fundamentalmente vinculada ao conflito entre o capital e o trabalho (2004, p.11).
Entendendo assim, a “questão social” consiste não apenas num objeto em si, mas nas múlti-
plas expressões que se dão desse processo resultante do capitalismo. Para Iamamoto,

O Serviço Social tem na “questão social” a base de sua fundação como especialização do traba-
lho. “questão social” apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades da socie-
dade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva,
o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se
privada, monopolizada por uma parte da sociedade (2010, p. 27).

A autora afirma ainda que os assistentes sociais trabalham com a “questão social” nas suas
mais variadas expressões cotidianas, e que essas se alteram, reconfiguram-se de acordo
com as transformações sociais (IAMAMOTO, 2010).

Nesse sentido, é preciso que o/a assistente social saiba apreender a “questão social” no seu
campo de trabalho, entendendo-a como processo passível de transformação, pois as mudan-
ças que ocorrem na sociedade ao longo do tempo faz com que ocorra alteração também no
processo de trabalho desse profissional.

Importante dizer que o objeto do trabalho técnico dentro do Poder Judiciário em situação de
violação de direitos, envolvendo crianças e adolescentes, se refere às consequências das
desigualdades sociais. As configurações sociais, que envolvem desigualdade e pobreza,
violência, negligência e abandono, tráfico de drogas e criminalidade fragiliza e impõe aos

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sujeitos uma dada condição social e pessoal.

Assim, pode-se dizer que crianças e adolescentes ao chegarem a serem protegidos por medi-
da de proteção já sofreram uma sequência de violação de direitos ao longo de suas trajetó-
rias. São sujeitos que por vezes vivenciam situações de fragilidades, que subtraem sonhos,
possibilidades, o que aumenta significativamente o risco através da exposição.

Do ponto de vista legal e normativo, as diretrizes para o trabalho do/a assistente social no
Poder Judiciário do estado do Espírito Santo estão baseadas no Estatuto da Criança e do
107
Adolescente de 1990, no Código de Ética do Assistente Social de 1993, na Política Nacional
de Assistência Social de 2004 e no Código de Normas do PJES. Esses instrumentos, além da
formação profissional e da interdisciplinaridade metodológica, são os principais norteadores
da atuação técnica. Outro aspecto bastante trabalhado pelos/as assistentes sociais se dá
através da articulação das redes, esta entendida com sendo extremamente importante para o
atendimento das demandas sociais, que cada vez mais, se manifestam diversas e complexas.

2.4 Apresentação e avaliação de caso

Identificação do processo

AÇÃO PROPOSTA Reintegração do poder familiar.

REQUERENTE A genitora

REQUERIDO A criança (vítima)

ANO DE AJUIZAMENTO Outubro/2015

MOTIVAÇÃO DA MEDIDA PROTETIVA Ocorrência de agressão física


Dos Fatos: Consta na inicial a informação do afastamento de uma criança (5 anos de idade)
de seu núcleo familiar após aplicação de medida protetiva em decorrência de agressão física
cometida pelo genitor. Que a medida foi aplicada por um dos entes do SGD, após denúncia
feita por vizinhos e consistiu no encaminhamento da criança à Delegacia local para registro de
ocorrência, realização de exame, e posterior colocação em família extensa. Na aplicação da
medida de afastamento, o genitor foi proibido de manter contato com a criança. Que um dos
familiares que havia se colocado à disposição para assumir os cuidados da criança já não tinha
o interesse em ficar com ela, manifestando o desejo de devolvê-la para a mãe.

Da situação socioeconômica do núcleo familiar: É composta pelos genitores e três filhos,


entre os quais se encontra a criança vitimizada. Que os genitores têm idade entre 20 e 33 anos,
ambos com baixa escolaridade. Que o grupo de irmãos tem idade entre 1 a 5 anos. Que os geni-
tores realizam atividades no campo e residem em área rural há dois anos. Que a renda média
do grupo familiar é de um salário-mínimo e meio. Que residem em imóvel alugado.

Do contexto familiar encontrado durante realização do estudo social: Tendo passado


10 meses da aplicação da medida, os genitores ainda não haviam conseguido reverter
a situação. Que chegaram a procurar a Defensoria Pública, mas observaram muita de-
mora na resolução do caso. Que diante dessa situação, o genitor, por meio de um acerto
na empresa em que trabalhava, conseguiu obter a quantia de R$ 2.500,00 e pagou um

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advogado particular para atender o caso. Que foi somente com o ingresso da ação judicial
de reintegração do poder familiar pelos genitores que o Poder Judiciário, assim como a
Promotoria teve conhecimento do caso. Que o grupo familiar se encontrava em situação de
fragilidade emocional devido à separação. Que os familiares que acolheram a criança não
queriam manter a situação do afastamento porque ela nesse percurso passou a apresentar
um quadro de constante adoecimento físico e emocional.

Considerações: Foi observado que a aplicação da medida protetiva desencadeou uma


série de efeitos e prejuízos sobre a criança.
108
Da data do fato até a atuação da equipe técnica teriam se passado dez meses, o que repre-
senta muito tempo no universo infato-juvenil. Este fato decorre da engrenagem do sistema
judiciário, caracterizado por um tipo de burocracia que distancia o tempo das instituições do
tempo da criança/adolescente. Desde o atendimento inicial na Defensoria Pública verifica-se
a precarização do serviço público do sistema de justiça, que percorre o conjunto de institui-
ções como Poder Judiciário e Ministério Público.

Com o afastamento da criança resultou na perda o convívio com os dois irmãos mais novos.
Trata-se de um tipo de violação por vezes invisível no sistema de justiça. O rompimento dos
vínculos fraternais foi avaliado como consequência da condução da medida de proteção.

Durante o afastamento do núcleo familiar, a criança foi colocada sob responsabilidade de


dois grupos familiares diferentes, passando por muitas mudanças em curto período de
tempo, perdendo referências importantes para o seu processo de desenvolvimento. Ademais,
na aplicação da medida de afastamento não houve estudo e avaliação do caso para posterior
encaminhamento e outras formas de intervenção.

Este caso exemplifica demandas que têm chegado até as equipes técnicas e que têm
feito com que algumas situações sejam postas em questionamento, a exemplo de situa-
ções de acolhimento institucional de meninas em contexto de abuso sexual intrafamiliar,
o que subverte a lógica da proteção.

Ao retornamos a pergunta, “de qual tipo de proteção estamos falando?”, buscamos provocar
o leitor para medidas judiciais que em nome do combate ao risco e à vulnerabilidade social,
aciona uma “proteção” que culpabiliza as vítimas e famílias, quando não as punem. Fávero
apud Bourdieu chama a não nomeação dessas relações como relações de violência como
violência simbólica “que é a violência que somente pode ser exercida por aquele que a
exerce e suportada por aquele que a suporta sob uma forma tal que ela permaneça como que
desconhecida, isto é, reconhecida como legítima” (FÁVERO apud BOURDIEU, 2007, p. 39-40).

Consideramos intervenções institucionais equivocadas como formas de violência, porém,


em decorrência do público-alvo das ações de medidas de proteção, a violência não é
percebida como tal, dada a soberania atribuída ao judiciário no imaginário popular, ou seja,
sua legitimação perante as famílias pobres.

Nesse sentido, verifica-se que o público usuário, que sofre com os desdobramentos da aplicação
das medidas refere-se às famílias, de baixa renda, pouca escolaridade, com pouco acesso aos
serviços socioassistenciais, muitas vezes, migrantes de outros estados ou regiões com baixo
desenvolvimento socioeconômico, se encontrando em situação de risco e vulnerabilidade social.

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Conclui-se que as medidas de proteção devem ser realizadas mediante avaliações técnicas
criteriosas, sob pena de expor a crianças, adolescentes e famílias a novas situações de viola-
ção decorrente dos efeitos das medidas de proteção.

3. Considerações Finais

Ainda que as políticas sociais não tenham por finalidade eliminar definitivamente as ex-
pressões da “questão social”, o que somente é possível com a superação da própria ordem 109
burguesa, elas adquirem valor precioso na cena contemporânea quando consideramos que
“a nossa história se constituiu desde os primeiros tempos sobre uma base social hierarqui-
zada, excludente e discriminatória” (SIMÕES, 2010, p. 21).

Lócus privilegiado do trabalho do/a assistente social, as políticas sociais não estão
isentas de contradições e tensões, pelo contrário, são alvos permanentes de disputas
entre projetos hegemônicos divergentes.

Potyara Pereira (2001, p. 57) faz uma provocação necessária quando afirma que para muitos/
as assistentes sociais, a “questão social” não está clara. Compreende-se como fundamen-
tal que o/a assistente social saiba apreender o significado da “questão social” e das suas
manifestações em seu campo de trabalho, entendendo as políticas sociais como formas de
resistência ao avanço dos interesses da classe dominante sobre a classe trabalhadora. Cada
direito social conquistado implica num limite posto ao avanço desenfreado do capital, assim
como nos ensina Marilda Iamamoto (2009, p. 16): “a luta pela afirmação dos direitos é hoje
também uma luta contra o capital”.

A partir desta tese, percebemos os direitos sociais como instrumentos que viabilizam condi-
ções mínimas de existência para a classe trabalhadora, pois é justamente sobre esta classe
que recaem as vivências de risco e vulnerabilidade social. Consolidar direitos sociais como o
Estatuto da Criança e do Adolescente e os Sistemas únicos de Saúde e de Assistência Social
ainda constituem grande desafio para o Estado brasileiro e seu corpo profissional.

Considera-se pertinente lançar luzes para as armadilhas postas pela imediaticidade, que
oculta os nexos entre a “questão social” e as demandas institucionais, ressignificando o fa-
zer profissional a partir do distanciamento da direção social articulada pelo Código de Ética
Profissional, pela lei de regulamentação da profissão de Assistente Social e pelas Diretrizes
Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social – ABEPSS.

Ao realizar estudo do caso em tela, observou-se uma sequência de exposições que


envolviam à aplicação da medida protetiva. Ficou caracterizado que diante do ocorrido
havia a necessidade da aplicação de medida para proteção da criança. Nesse sentido, o
que se colocou em questão não foi quanto à necessidade da medida, mas sim a forma
como a mesma foi aplicada, incorrendo em uma série de negligências que expôs e apro-
fundou o contexto de violações de direitos.

Este trabalho não visa desqualificar as medidas de proteção em si, que são avanços
na política de atendimento à infância e juventude, mas chamar a atenção para sua
aplicação, no intuito de alertar sobre as violações de direito ocultas nos discursos que
envolvem risco, vulnerabilidade e proteção social.

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A partir destas reflexões, evidenciam-se preocupações sobre a dissociação entre as previ-
sões legais e as ações institucionais, que dentre outros, apresenta como tendência a trans-
formação de direitos sociais como as medidas de proteção - tão caras à classe trabalhadora
- em novas formas de violação de direitos, resgatando o desenvolvimento de intervenções
moralizadoras, disciplinadoras ou mesmo punitivas no âmbito do exercício profissional e das
intervenções institucionais, apesar das “boas intenções”.

110

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112
ACOLHIMENTO INFANTIL E A
FORMAÇÃO DE VÍNCULOS NA
INSTITUCIONALIZAÇÃO

Julieny Baroni Zandonadi1

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

O acolhimento institucional de crianças constitui-se, no meio jurídico, como


uma medida de proteção, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adoles-
cente, devendo ser utilizado em último caso, visto os impactos negativos e o
enfraquecimento dos vínculos familiares e com a comunidade, por ele oca-
sionados. A criança que se encontra acolhida, além de enfrentar dificuldades
oriundas das relações familiares fragilizadas, depara-se com a necessidade
em ter que se adaptar a um novo ambiente, marcado por vezes pela frieza e a
impessoalidade. Assim, a vivência de uma relação calorosa, íntima e contínua
com o seu cuidador mostra-se essencial à saúde mental das crianças aco-
lhidas. Ao passo que, a ausência ou a falta dessa relação afetiva entre crian-
ça-cuidador poderá acarretar sérios impactos no desenvolvimento psicoemo-

2ª Jornada Científica da FASP-ES | Revista de Artigos


cional dos infantes. A metodologia utilizada nesta pesquisa foi a de revisão
literária que pretendeu identificar os fatores de risco e de proteção existentes
na relação cuidador e crianças que vivem em instituições de acolhimento. Fo-
ram identificados nesta revisão literária os seguintes fatores de risco: contato
superficial ou raras demonstrações de carinho e afeto de cuidadores para com
as crianças, o uso de palavrões e abuso de poder por cuidadores e a falta de
preparo técnico de cuidadores para o trabalho em instituições de acolhimen-
to infantil. Quanto aos fatores de proteção foram identificados os seguintes:
comportamento de apego ou a busca infantil por vinculação afetiva de um
adulto, a baixa proporção de adultos cuidadores e crianças, e a capacidade 113
de resiliência desenvolvida pelos infantes acolhidos. Portanto, considera-
se de extrema relevância que o Estado possa investir no aprofundamento de
pesquisas que abordem o tema do acolhimento institucional, dando foco nas
relações de vinculação e de atuação dos profissionais que lidam diretamente
com o cuidado e a educação de crianças acolhidas. Pretende-se, dessa forma,
proporcionar a melhoria nas condições de trabalho, de remuneração, de capa-
citação contínua desses cuidadores e na vida desses profissionais como um
todo. E como consequência, deseja-se reduzir os impactos negativos e aumen-
tar os impactos positivos da institucionalização para as crianças acolhidas,
favorecendo o adequado desenvolvimento psicoemocional das mesmas.

Palavras-chave: Acolhimento Institucional. Criança. Vínculo. Fator de Risco.


Fator de Proteção.

1 Graduada em Psicologia (UFES), especialista em Gestão Estratégica de Recursos Humanos (FAESA) e


em Psicologia Jurídica (UNIARA). Analista Judiciário – AE: Psicologia do TJES – 1ª Vara da Infância e Juventude de
Linhares. E-mail: julybazan@yahoo.com.br – Tel.: (27) 3264-0743 – Ramal 275
1. Introdução

O acolhimento institucional de crianças constitui-se, no meio jurídico, como uma medida de


proteção, preconizada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo aplicada quando os
direitos fundamentais daqueles foram violados, quer seja por ação ou omissão da sociedade
ou do Estado; ou pela falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; ou ainda, em razão
de sua conduta. (BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990, 1990).

A decisão pelo acolhimento infantil pode ocorrer por diversas causas, como maus tratos,
negligência, abuso sexual por familiares ou estranhos, dependência química e alcoólica
dos genitores ou responsáveis, abandono, prisão ou morte dos pais, entre outros motivos.
Assim, crianças que estejam acolhidas, estão, provisoriamente, sob a tutela do Estado,
sendo este o responsável pelo seu cuidado, até que seja encontrada nova alternativa que
poderá ser a reintegração familiar ou a adoção.

Embora o acolhimento institucional seja considerado uma medida de proteção à criança,


esse recurso deveria ser utilizado em último caso, visto os impactos negativos e o enfraque-
cimento dos vínculos familiares e com a comunidade, por ele ocasionados. A criança que se
encontra acolhida, além de enfrentar dificuldades oriundas das relações familiares fragiliza-
das, se depara com a necessidade em ter que se adaptar a um novo ambiente, marcado por

2ª Jornada Científica da FASP-ES | Revista de Artigos


vezes, pela frieza e a impessoalidade. (FRANCO; TINOCO, 2011, p.428).

A vivência da criança que é institucionalizada em uma casa abrigo normalmente envolve, além
do afastamento de sua família e de sua casa, o afastamento de tudo o que lhe era conhecido:
brinquedos, comidas, aromas, hábitos, contato com vizinhos e comunidade, escola, colegas,
lugares conhecidos que frequentava. Trata-se, portanto, de uma experiência de múltiplos rom-
pimentos, que requer a elaboração de múltiplos lutos. (FRANCO; TINOCO, 2011, p.429)

Através da contribuição das autoras, percebe-se o quanto pode ser doloroso e angustiante
para uma criança estar acolhida, gerando a necessidade de elaboração e recuperação das 114
diversas perdas e de rupturas emocionais sofridas.

Diante dessas situações, é comum que crianças intensifiquem comportamentos de procura e


proteção, visto que pessoas, brinquedos, lugares com os quais elas mantinham uma relação
de apego, já não podem ser mais acessados. (FRANCO; TINOCO, 2011, p.429)

A partir dessa busca por proteção dentro das instituições de acolhimento que crianças
constroem vínculos de afeto e carinho junto aos seus cuidadores mais próximos. Tal com-
portamento pode ser compreendido à luz da Teoria do Apego, formulado por John Bowlby,
que buscou entender como se constroem os vínculos entre mãe-bebê e a influência dessa
relação na compreensão da personalidade. Sendo assim, observou que, desde o nascimento,
a criança necessita do apoio de seu cuidador para a sobrevivência, ao longo de seu desen-
volvimento. A partir do olhar do seu cuidador, ela conhecerá a realidade externa, através de
comportamentos exploratórios. Porém, ao sinal de perigo, o sistema comportamental de
apego que busca pela proximidade, é então, ativado, fazendo com que a criança procure seu
cuidador para que a proteja (BARSTAD, 2013, p. 9).

Assim é formada uma base segura, como denomina Bowlby (1969/1993), e a criança sente-se
livre para explorar, aprender, desenvolver-se e manejar a ansiedade, contando que pode voltar
para o cuidador diante de algum perigo ou ameaça. (FRANCO; TINOCO, 2011, p.428).
Diante de tais estudos sobre a importância do apego e do cuidado para com a criança, torna-
se compreensível que a ausência ou a fragilidade dessa relação afetuosa, poderá ocasionar
diversos prejuízos em seu desenvolvimento biopsicossocial. Segundo Barros e Fiamenghi
Jr (2007), o cuidador é o mediador de muitos comportamentos que a criança desenvolverá,
regulando sua atenção, curiosidade, cognição, linguagem, emoções, entre outros.

Elaborar a experiência da institucionalização, não é uma tarefa muito fácil principalmente


quando se é uma criança em desenvolvimento e ainda se tem presente diversos fatores de
risco durante este doloroso processo. Sendo assim, considera-se de grande relevância que
se intensifiquem os estudos sobre o tema, a fim de que possamos compreender melhor os
impactos negativos da institucionalização na vida subjetiva das crianças atualmente acolhi-
das e descobrir quais são os fatores de proteção que mais favorecem o enfrentamento da
experiência institucional de forma mais assertiva e saudável.

A partir do tema proposto, pretende-se como objetivo deste artigo identificar os fatores de
risco e de proteção na relação cuidador e crianças institucionalizadas que facilitariam e os
que impossibilitariam o processo de elaboração de perdas e de adaptação da criança à nova
realidade institucional. Além da possibilidade de proporcionar maior aprofundamento e com-
preensão da temática formação de vínculos nas instituições de acolhimento infantil.

O método escolhido para a coleta de dados foi o levantamento bibliográfico. Assim foram

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definidas as palavras chave para a realização desse levantamento, buscando-se delinear o
conhecimento existente a respeito do assunto, nos artigos de pesquisa publicados em revis-
tas nacionais, bem como teses e dissertações sobre o assunto, considerando também indi-
cações bibliográficas encontradas nas referências dessas obras. As palavras chave adotadas
foram: abrigo, abrigos, abrigamento, acolhimento institucional, vinculação, mãe social.

A base de dados utilizada para o levantamento bibliográfico foi o SCIELO2. Após o levanta-
mento das obras existentes nessa base a partir das palavras chave, foram descartadas aque-
las que fugiam ao âmbito definido para este artigo. Os materiais selecionados foram objeto 115
de leitura e fichamento, sendo destacadas as principais contribuições encontradas segundo
o interesse deste artigo, articulando-as de modo a contextualizar e justificar sua realização,
além de subsidiar a posterior análise de dados.

2. O Acolhimento Institucional Como Medida de Proteção

O acolhimento institucional é uma medida de proteção prevista no Estatuto da Criança e


do Adolescente (ECA), podendo ser considerado como uma conquista em prol da garantia
integral dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes brasileiros. Através do advento
da Lei 8.069/1990 (ECA), elevou a criança e o adolescente à condição de sujeitos de direitos
e de pessoas em desenvolvimento, assegurando-lhes inúmeras prerrogativas e mecanismos
de proteção. Porém, é importante salientar que tal conquista foi obtida através de inúmeras
lutas e movimentos sociais ocorridos anteriormente à promulgação do ECA.

2 Scientific Eletronic Library Online: www.scielo.br


Sendo assim, é importante que se conheça um pouco mais sobre a história de conquistas
dos Direitos da Criança e do Adolescente e sobre a mudança de configuração da família para
que se possa ter uma maior compreensão das questões que envolvem o tema proposto.

Como marco histórico, destaca-se o ano de 1874, quando ocorreu um fato que ganhou
grande publicidade na mídia nova-iorquina e que representou o início das lutas em prol do
Direito da Infância e Juventude. O caso retratou uma menina de 9 anos, Mary Ellen, que foi
submetida a severos maus tratos por seus pais. Como não havia legislação na época que
pudesse protegê-la, o promotor do caso invocou a condição da criança pertencente ao reino
animal, devendo seus responsáveis zelar pelo seu bem-estar, assim como era previsto em
relação aos animais, e defendido pela Sociedade de Prevenção à Crueldade aos Animais de
Nova York. Através dessa justificativa do promotor que Mary Ellen conseguiu ser retirada da
companhia de seus pais adotivos colocada em uma instituição de acolhimento do Estado.
Foi a partir desse caso que surgiu a primeira organização no mundo dedicada a combater
maus-tratos na infância, Sociedade de Prevenção da Crueldade contra Crianças de Nova York
(New York Society for the Prevention of Cruelty to Children) (LIBERATI, 2003, p. 36).

Diante desse caso, foi possível perceber que eram negados às crianças e adolescentes direi-
tos fundamentais, sendo possível afirmar que os direitos da infância e da adolescência foram
sendo conquistados a partir de situações como essa, que causavam sofrimento, dor, doença

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e morte a crianças e adolescentes ao longo do mundo.

Destaca-se também a criação da União Internacional Salve as Crianças (International Save


the Children Aliance) para promover ajuda humanitária às crianças que se encontravam aban-
donadas em razão da morte de seus pais na Segunda Guerra Mundial. Pode-se citar, ainda,
alguns documentos internacionais que marcaram a história da ampliação dos direitos da
criança e do adolescente, como a Declaração de Genebra, apresentada à Assembleia Geral
da Liga das Nações em 1924; a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada na Assem-
bleia Geral da ONU de 1959 por unanimidade; as Regras Mínimas das Nações Unidas para
116
a Administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing – Res. 40/33 da
Assembleia Geral da ONU de 1985 e a Convenção sobre os Direitos da Criança – (Res. 44/25)
da Assembleia Geral da ONU de 1989 (LIBERATI, 2003, p. 36-38).

A primeira norma legal brasileira surgiu em 1927, com o Decreto nº 17.943-A, conhecido
como “Código Mello Mattos”, que prevaleceu até 1979. Este Código de 1927 estava direcio-
nado para o menor abandonado ou delinquente, aquele que causa a desordem, geralmente
pobre, sujo e mal vestido, que precisa ser punido com o encarceramento, ainda que separa-
damente dos adultos (LIBERATI, 2003, p. 41).

Um novo Código de Menores foi promulgado em 1979 (Lei 6.697/79), direcionado ao menor
em situação irregular, expressão que substituiu as expressões: menor abandonado, delin-
quente, infrator, transviado, desvalido, exposto, centralizando todas as decisões na figura do
juiz da infância, mantendo a visão conservadora, higienista e punitiva (LIBERATI, 2003, p. 42).

A Constituição Federal de 1988 seguiu as tendências mundiais e representou um divisor de


águas na história do direito e da justiça no país, firmando princípios de respeito à pessoa
humana, de defesa da democracia e de proteção integral à criança e ao adolescente.
A prioridade absoluta em relação à criança e ao adolescente foi estabelecida no seu art.227,
cujo dever de proteção pertence à família, à sociedade e ao Estado, especificando quais direitos
devem ser atendidos: à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização,
à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência comunitária, além de colocá-los a
salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Para dar efetividade à doutrina da proteção integral à criança e ao adolescente, entendidos


enquanto sujeitos de direitos e não mais como objeto de ações estatais punitivas, é aprovado
o Estatuto da Criança e do Adolescente em 13 de julho de 1990.

O Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 adota o princípio da proteção integral, inse-


rindo aspectos preventivos, protetivos e socioeducativos. Prioriza o atendimento às neces-
sidades sociais da família de origem, de modo que ela se fortaleça ou adquira condições de
exercer o cuidado de seus filhos de forma digna (LIBERATI, 2003, p. 63).

A partir de uma análise histórica da concepção dos Direitos da Criança e do Adolescente no


Brasil, é possível perceber que houve um grande avanço na concepção da criança e do ado-
lescente pelo mundo e nas leis brasileiras, passando de uma doutrina da situação irregular
para a doutrina da proteção integral, sendo ratificada pela Constituição Federal de 1988 e
pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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Ao passo que também houve uma reconfiguração da família e do cuidado para com a criança
e o adolescente. Após a consolidação dos avanços conseguidos através da Revolução
Industrial do século XIX, ocorre um retraimento das redes familiares, queda da fecundidade,
o fim da grande família e de amplas redes de sociabilidade e ajuda econômica, em função da
exploração exacerbada da mão-de-obra naquele momento. Donzelot (1980) vai chamar esse
processo de “crise da família”, sem a qual não mais será possível a manutenção daquilo que
Castel (1994) denominava “proteção por proximidade”, realizada pelas redes intrafamiliares
ou de vizinhança, uma rede de relações propiciada pela aproximação geográfica, social e
econômica (AYRES; CARDOSO; PEREIRA, 2009, p. 128). 117

Castel (1998) em seus estudos sobre as questões sociais nos aponta a existência, na socieda-
de pré-industrial, de formas de relacionamento comunitário definido como “societal”, no qual
a proteção era produzida pelas relações presentes na família e na convivência com vizinhos e
amigos, expressa na “proteção por proximidade”. Ou seja, uma “sociedade sem social” (AYRES;
CARDOSO; PEREIRA, 2009, p. 128).

Assim em uma “sociedade sem social”, a socialização da criança que antes era realizada
fora do seio familiar foi sendo reduzida aos limites das residências das famílias burguesas.
Portanto, com a vigência dessa nova forma de configuração familiar, o encargo de educação
e socialização passou a ser da família, principalmente, e da escola.

Contudo, escola e família não conseguiram sucesso para a plena sociabilização das crianças e
adolescentes, passando a haver um grande contingente de abandonados ou infratores, quando
da emergência de casas filantrópicas e assistencialistas, como ocorreu no Brasil no início do
período Republicano. (MARTINS, 2004, p.65).

A partir da incapacidade e impossibilidade das famílias em não conseguirem assumir de fato a


socialização e educação dos filhos menores, o acolhimento institucional se tornou uma opção
de medida de proteção essencial, a fim de garantir os direitos da criança e do adolescente.
Nesse momento, é deslocado da família e da escola o dever de garantir a proteção integral
de toda a criança e adolescente brasileiro, também para o Estado e Sociedade, compartilhan-
do entre eles essa responsabilidade.

Como consequência dessa transferência e delegação de cuidados, tem se percebido um


aumento no número de crianças acolhidas em todo o país, principalmente nos grandes
centros econômicos em virtude de um ritmo de vida acelerado, de questões sociais típicas
do meio urbano e da própria “terceirização” da educação de crianças e adolescentes que
as famílias modernas tem se utilizado, se distanciando, assim, de seus deveres e respon-
sabilidades para com a criança e o adolescente.

O capítulo III, artigo 19, do Estatuto da Criança e do Adolescente, afirma que:

Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e, ex-
cepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em
ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes (BRASIL,
Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990, 1990).

Nesse sentido, entende-se que deve ser assegurado o direito de crianças e adolescentes ser
educados dentro de um seio familiar e que, ainda, as instituições de acolhimento possuem a
função de zelar e proteger a criança e o adolescente por tempo determinado, devendo essas,
dentro de um curto espaço de tempo, reivindicar a volta das crianças e adolescentes às suas

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famílias de origem ou à colocação em família substituta, garantindo assim, o direito a convi-
vência familiar e comunitária de crianças e adolescentes acolhidos.

Dessa forma, os serviços de acolhimento institucional precisam ser um ambiente cuidadosa-


mente organizado e provisório, a fim de possibilitar o desenvolvimento adequado da criança
e, para tanto se constituir como espaço de promoção de vínculos seguros, além de promover
aos infantes e adolescentes acolhidos, saúde e equilíbrio emocional.

118
3. A Formação de Vínculos na Relação Criança Intitucio-
nalizada e Cuidador

A chegada de uma criança em uma instituição de acolhimento é ocasionada por diversos


motivos, sendo homologada posteriormente pelo juiz responsável pela comarca. Portanto,
a criança acolhida ficará, provisoriamente, sob a tutela do Estado, sendo este o responsável
pelo seu cuidado, até que se encontrem alternativas para que seja reestabelecida a convivên-
cia familiar e comunitária a qual lhe é garantida por direito.

O tempo de institucionalização de uma criança ou adolescente deve ser restrito, não devendo
ultrapassar os dois anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior inte-
resse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciária. E ainda, toda criança e ado-
lescente terá sua situação reavaliada, no máximo, a cada seis meses, devendo a autoridade
judiciária competente, com base em relatório elaborado por equipe multidisciplinar, decidir
de forma fundamentada pela possibilidade de reintegração familiar ou colocação em família
substituta (BRASIL, Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990, 1990).

Independente do tempo de acolhimento, a experiência da institucionalização pode ser vivida


pela criança como uma situação traumática, em que há a existência de diversos sentimentos
negativos, ocasionados pela situação de perda e ruptura com o seio familiar. Em muitos ca-
sos, tais sentimentos negativos, são somados a outras experiências de trauma e dor, como
o abuso sexual, violência e negligência paternas, gerando outros tipos de sentimentos
de perdas, como a perda da segurança, da inocência e da confiança no outro e no mundo
(FRANCO; TINOCO, 2011, p. 428).

Não só a perda é tida como a causadora de distúrbios, mas, principalmente, as consequências


e acontecimentos que a precedem e a sucedem (Bowlby, 1995,1993b; Ferreira, 1984; Parkes,
2005; Rutter, 1979, 1985). Tão mais desestruturador será para a criança se, além da separação e
perda, ela não tiver alguém para assumir seu cuidado, não puder expressar seus sentimentos e
tê-los compreendidos, tiver vivido perdas anteriores mal elaboradas e passar por novas perdas.
(FRANCO; TINOCO, 2011, p. 428).

Portanto, é compreensível que a passagem pela institucionalização é uma experiência


intensa e difícil para todos os envolvidos: criança, pais, familiares, profissionais. Sendo
primordial para o desenvolvimento emocional saudável da criança que ela passe por um
processo de readaptação e recuperação, envolvendo a vivência de um processo de luto
pelas mudanças, separações e perdas vividas (FRANCO; TINOCO, 2011, p. 428).

Em situações de institucionalização, é comum que crianças intensifiquem comportamentos


de procura e proteção, visto que pessoas, brinquedos, lugares com os quais elas manti-
nham uma relação de apego, já não podem ser mais acessados. Portanto, é compreensível

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que dentro dos serviços de acolhimento institucional, crianças busquem seus cuidadores,
tornando-os figuras de apego, a fim de suprirem suas necessidades de proteção e seguran-
ça em um ambiente desconhecido para elas (FRANCO; TINOCO, 2011, p.429).

A Teoria do Apego, formulada por John Bowlby, alcançou lugar de destaque na compreensão
da formação e do rompimento dos vínculos afetivos. Conforme o autor, a qualidade do relacio-
namento da criança com seus cuidadores, assim como as experiências de separação e perda
dessas relações, teriam interferência nos seus relacionamentos futuros (Bowlby, 1969/1993;
1993a; 1993b). (FRANCO; TINOCO, 2011, p.428).

119
A função da figura de apego é essencial para o saudável desenvolvimento emocional infan-
til. A criança desenvolve o comportamento de apego à figura com quem mantém proximida-
de, comumente, a mãe ou seu substituto, buscando fonte de confiança e proteção. Portan-
to, será para a figura de apego que a criança irá se dirigir, quando precisar de proteção e
suporte, servindo para a mesma como porto seguro ou base segura (BARSTAD, 2013, p.17).

Quanto ao conceito de base segura, formulado por Bowlby (1969), pode ser entendido
quando o cuidador está presente e próximo da criança, interagindo com ela, o compor-
tamento de apego é desativado, o que permite com que a criança explore o ambiente à
sua volta. Sendo assim, o cuidador faz o papel de base segura, de onde a criança pode
explorar o ambiente, mas também para onde ela pode voltar quando se sentir cansada ou
com medo (BARSTAD, 2013, p.17).

Entende-se, portanto, que a construção de vínculos de afeto e de carinho entre a


criança e seu cuidador, é essencial para a saúde mental da criança acolhida. Embora
para tanto, a criança precisa acreditar que o seu cuidador está disponível. Ele deve ser
acessível, atento, capaz de identificar as necessidades da criança, permitir a depen-
dência e estar apto a prover as necessidades de proteção e cuidado, sem ser intrusivo
(FRANCO; TINOCO, 2011, p.429).
A presença de cuidados disponíveis e contínuos é essencial para a formação de vínculos de
afeto com a criança, além da sensibi­lidade e da responsividade do cuidador. Sendo, portanto,
imprescindível à criança a sintonia afetiva entre ela e seu cuidador para a aquisição do senti-
mento de segurança emocional. (BENETTI; GOLIN, 2013, p. 241)

A natureza dos laços emocionais construídos desde os primeiros tempos de vida assume es-
pecial relevância ao longo do desenvolvimento psicológico da criança. Numa perspectiva da
teoria evolucionista da vinculação, a criança está dotada desde cedo de um sistema capaz de
diversificar os seus comportamentos com o fim de manter a proximidade da figura de vincula-
ção e garantir a sua sobrevivência. (BOWLBY, 1969 apud MATOS; MOTA, 2008, p.369)

Dessa forma, a simples ausência da mãe ou de figuras familiares para a criança em situa-
ções de acolhimento institucional, não implica, necessariamente, o desencadeamento de
reações comportamentais patológicas e/ou de sentimentos negativos, desde que esteja
presente e estabelecido o vínculo afetivo com a figura cuidadora e que estará predisposta
para acarinhar e proteger a criança sempre que esta necessitar.

A formação de vínculos entre crianças acolhidas e seus cuidadores se revela como um


fator extremamente positivo para que a criança possa suportar os impactos negativos da
institucionalização. Sendo através da presença de figuras capazes de satisfazer as suas
necessidades básicas, onde se inclui o afeto, carinho, proteção e segurança, que propor-

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cionam o desenvolvimento de mecanismos de regulação emocional e um sentimento de
competência pessoal na criança, reforçando uma representação positiva de si própria e
das figuras de vinculação (MATOS; MOTA, 2008, p.368).

Apesar do comportamento de apego e da vinculação afetiva estar ligados à satisfação das


necessidades tanto de cuidados físicos quanto de amparo, a presença de afeto e proteção é
mais importante do que a alimentação e outros cuidados. Dessa forma, para a formação de
vínculos e a manutenção do comportamento de apego, mais importante do que o cuidado
físico são as demonstrações explícitas e espontâneas de afeto do cuidador, além de sua
120
iniciativa e capacidade de acolher rapidamente a criança (FRANCO; TINOCO, 2011, p. 429).

É notório que a separação vivida por uma criança que foi acolhida independente do motivo é
uma situação que envolve diversas perdas físicas e emocionais, além de perda de vínculos
com pessoas e com sua família de origem. Sendo necessário que a criança passe por um
processo de adaptação física e emocional, buscando novos significados para sua atual con-
dição. Portanto, é através da capacidade de formação de vínculos de qualidade que a criança
acolhida atuará ativamente dentro do processo de adaptação e de reestruturação emocional,
dando continuidade à vida de modo satisfatório, saudável e prazeroso.

4. Os Fatores de Risco e de Proteção Existentes na Rela-


ção Criança Intitucionalizada e Cuidador

A criança deve ser entendida como um ser que precisa de cuidados especiais, necessitando
de um adulto-cuidador sempre por perto, a fim de suprir suas necessidades básicas. Porém
ela necessita para além dos cuidados de alimentação e higiene, mas sim, de contato afetivo
contínuo advindo de uma figura constante, podendo ser a própria mãe ou um cuidador substi-
tuto competente, com a qual estabelecerá relações de apego que vêm assegurar e favorecer
seu desenvolvimento biopsicoafetivo. Entende-se por cuidador competente, o indivíduo
capaz de entender e decifrar os sinais que a criança emite para então atendê-la nas suas
necessidades desenvolvimentais. (BÖEING; CREPALDI, 2004, p.214).

Nesse sentido, é possível compreender que existam fatores de proteção e fatores de risco pre-
sentes na relação criança-cuidador que podem favorecer ou desfavorecer o contínuo e adequado
desenvolvimento psicoemocional da criança institucionalizada. Assim, a vivência de uma relação
calorosa, íntima e contínua com a mãe ou o seu cuidador mostra-se essencial à saúde mental
das crianças acolhidas. Ao passo que, a ausência ou a falta dessa relação afetiva entre criança-
cuidador poderá acarretar sérios impactos no desenvolvimento psicoafetivo dos infantes.

A privação quase que total, observada, por vezes, em instituições de abrigos, creches, hospitais,
aumenta a severidade dos danos no desenvolvimento psicoafetivo, denominada “hospitalismo”;
sendo que a privação total, por sua vez, pode aniquilar a capacidade da criança de estabelecer
relações futuras com outras pessoas. (BÖEING; CREPALDI, 2004, p.213).

Como fatores de risco presentes na relação cuidador-criança institucionalizada pode-se


destacar o contato superficial ou raras demonstrações de carinho e afeto de cuidadores para
com as crianças, o uso de palavrões e abuso de poder por cuidadores e a falta de preparo
técnico de cuidadores para o trabalho em instituições de acolhimento infantil. Esses são
fatores de risco que impedem que a criança possa se desenvolver de forma satisfatória,

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podendo ocasionar ainda mais rupturas e a re-violação dos direitos da criança acolhida.

Dessa forma, crianças que são acolhidas e não tem a possibilidade de estar em um ambiente
institucional capaz de lhe proporcionar o desenvolvimento de vínculos de afeto por meio de
interações próximas e previsíveis, uma vez que essas interações acontecem na maior parte
do tempo de forma superficial e apressadamente, é possível ser constatado que o ambiente
não respondeu de forma constante e sensível às manifestações e necessidades da criança
acolhida (BARROS; FIAMENGHI JR, 2007, p. 1.267).

Tal problemática configura-se, portanto, como um grande fator de risco existente na relação 121

cuidador-criança, na medida em que o processo de desenvolvimento infantil poderá ser preju-


dicado, já que o mesmo é dependente do apoio e do afeto da figura de apego.

O abuso de poder e o uso de palavrões por cuidadores infantis é um fator de risco passível de
ser encontrado com frequência dentro das instituições de acolhimento. Além de uma atmosfe-
ra de repreensão e autoritarismo com atitudes hostis e ameaçadores fazem parte do cotidiano
de crianças acolhidas. Portanto, elogios e gestos de ternura tornam-se raros e escassos,
dando lugar a palavras destrutivas e de ameaças (BARROS; FIAMENGHI JR, 2007, p. 1.267).

Os impactos dessa relação conflituosa e autoritária poderá ser sentido pelas crianças atra-
vés da não vinculação destas com seus cuidadores, que deveriam cumprir com a função de
figura de apego e suprir a necessidade infantil de se vincular a alguém, na ausência da mãe,
deste que este seja capaz de fornecer uma base segura para que a criança possa se desen-
volver (BARROS; FIAMENGHI JR, 2007, p. 1.268).

É possível compreender, portanto, a importância do ambiente em que a criança está inse-


rida como propulsor de saúde psicológica. Entretanto várias instituições de acolhimento
infantil têm falhado, continuamente, em oferecer às crianças a segurança afetiva de que
elas necessitam para seu desenvolvimento.
Quanto a essa situação, pode-se atribuir grande parcela de responsabilidade à falta de
preparo técnico de cuidadores infantis que atuam nas instituições de acolhimento. Além
do número insuficiente de profissionais nas instituições, o que acarreta uma sobrecarga de
trabalho para os cuidadores (BARROS; FIAMENGHI JR, 2007, p. 1.268).

Quanto aos fatores de proteção existentes na relação cuidador-criança institucionalizada


pode-se destacar o comportamento de apego ou a busca infantil por vinculação afetiva de
um adulto, a baixa proporção de adultos cuidadores e crianças, e a capacidade de resiliência
desenvolvida pelos infantes acolhidos. Tais fatores de proteção visam proteger a criança
acolhida dos diversos impactos negativos ocasionados pela institucionalização, além de
auxiliá-las no processo de adaptação e de reestruturação emocional.

É através do comportamento de apego que a criança institucionalizada poderá satisfazer


suas necessidades básicas de afeto, carinho, proteção e segurança, que proporcionam o de-
senvolvimento de mecanismos de proteção e de regulação emocional, além de um sentimen-
to de competência pessoal na criança (MATOS; MOTA, 2008, p.368).

Portanto a construção de vínculos de afeto e de carinho entre a criança e seu cuidador, é es-
sencial para a manutenção da saúde mental da criança acolhida, embora seja necessário que
o cuidador esteja acessível, atento, capaz de identificar as necessidades da criança, permitir
a dependência e esteja apto a prover as necessidades de proteção e cuidado prontamente,

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sem ser intrusivo (FRANCO; TINOCO, 2011, p.429).

A baixa proporção entre adultos cuidadores e crianças acolhidas constitui-se como fator
de proteção na medida em que a instituição de acolhimento terá profissionais em quanti-
dade suficiente para atender as demandas de trabalho e de cuidados para com as crianças,
dispensando às mesmas, maior tempo de contato e melhor qualidade na relação afetiva
entre ambos. Assim, é importante estabelecer uma forte e constante vinculação afetiva
com a criança, a fim de lhe proporcionar um saudável desenvolvimento físico, psíquico e
social (BARROS; FIAMENGHI JR, 2007, p. 1.269). 122

A capacidade de resiliência pode ser desenvolvida por muitas crianças que viveram situ-
ações de estresse, risco, negligência ou violência em seu cotidiano, o que pode levá-las a
apresentar distúrbios emocionais e problemas de conduta, porém nem todas apresentam
estes comportamentos. Pelo contrário, algumas delas conseguem adaptar-se e superar
essas situações traumáticas, demonstrando, entre outras habilidades, competência social
e resiliência para se sair bem frente a fatores potencialmente estressores do ambiente
(BARROS; FIAMENGHI JR, 2007, p. 1.269).

5. Considerações Finais

A partir da minha prática profissional dentro da Vara da Infância e Juventude, percebe-se que
pais e famílias contemporâneos não estão conseguindo assumir a responsabilidade e o de-
ver de guarda, sustento e educação de seus filhos, conforme preconiza o Estatuto da Criança
e do Adolescente. Passando assim, a total responsabilidade de cuidar de seus filhos para o
Estado, quando esta deveria ser compartilhada.
Dessa forma, o acolhimento institucional se tornou alternativa única, diante da incapaci-
dade e impossibilidade das famílias em não conseguirem assumir de fato a socialização
e educação dos filhos menores. No entanto, como consequência tem se percebido, a cada
dia, o aumento do número de crianças acolhidas institucionalmente e a elevação do tempo
de acolhimento das mesmas, devido a diversos fatores institucionais e entraves processu-
ais que ainda precisam ser superados.

Tal situação traz bastante preocupação que nos convida a refletir sobre como o cuidado
e as relações socioafetivas entre crianças e seus cuidadores estão sendo estabelecidas
em um ambiente institucional que deveria ser provisório e que passa a ser, agora, a única
opção por um longo tempo.

Sendo assim, ao longo desse artigo, buscou-se trazer maior compreensão sobre a importân-
cia da formação de vínculos na relação cuidador e criança institucionalizada para o processo
de elaboração de perdas e de adaptação da criança à nova realidade institucional. Além de
destacar os principais fatores de risco e de proteção presentes nessa relação para o desen-
volvimento psicoemocional de crianças acolhidas.

Como ponto de convergência dos estudos apresentados pelas autoras (FRANCO; TINOCO,
2011; MATOS; MOTA, 2008), conclui-se que a construção de vínculos de afeto e de carinho
de qualidade entre a criança acolhida e seu cuidador, se torna essencial para a saúde men-

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tal da criança acolhida, favorecendo o processo de regulação emocional e de adaptação ao
ambiente institucional dos infantes.

A luz da Teoria do Apego, formulada por Bowlby (1969/1993 apud FRANCO; TINOCO, 2011),
é possível ser compreendido a importância e o papel do cuidador para as crianças acolhi-
das, representando para as mesmas, figuras de apego que exercem a função de suprir suas
necessidades de proteção e segurança em um ambiente desconhecido, além de servir como
porto seguro ou base segura para os infantes acolhidos (BARSTAD, 2013, p.17).
123
Dessa forma, entende-se que a relação cuidador e criança acolhida deva ser saudável, tranquila
e formadora de vínculos afetivos, visto os impactos negativos que podem ser ocasionados na
saúde mental da criança, caso ela seja privada de contínuo e bons contatos com seu cuidador.

Conforme os autores referenciados (BARROS; FIAMENGHI JR, 2007) pode-se afirmar que é de
extrema importância que a criança acolhida tenha a possibilidade de estar em um ambiente
institucional capaz de lhe proporcionar o desenvolvimento de vínculos de afeto por meio de
interações próximas e previsíveis entre ela e seus cuidadores, contribuindo para o seu ade-
quado desenvolvimento psicoemocional e adaptação ao ambiente institucional.

No entanto, percebe-se que, na prática, várias instituições de acolhimento infantil da atualidade


têm falhado continuamente em oferecer às crianças a segurança afetiva de que elas necessi-
tam para seu desenvolvimento, sendo, ainda, geradoras de relações conflituosas e inseguras
entre crianças e cuidadores, ao invés de produzirem relações de proteção e afeto.

Diante da precariedade no atendimento às crianças acolhidas, os autores (BARROS; FIA-


MENGHI JR, 2007) atribuem grande parcela de responsabilidade à falta de preparo técnico
dos cuidadores infantis que atuam nas atuais instituições de acolhimento, além do número
insuficiente de profissionais nas instituições, o que acarreta uma sobrecarga de trabalho.
Portanto, constitui como demanda de urgência, o preparo em cursos de capacitação profissio-
nal de cuidadores para que possam acolher com maior competência as necessidades de apego
e de referência das crianças acolhidas, favorecendo o seu desenvolvimento psicoemocional.

Considera-se de extrema relevância, portanto, que o Estado possa investir no aprofundamento


de pesquisas que abordem o tema do acolhimento institucional, dando foco nas relações de
vinculação e de atuação dos profissionais que lidam diretamente com o cuidado e a educação
de crianças acolhidas, visando, dessa forma, a melhoria nas condições de trabalho, de remunera-
ção, na capacitação contínua desses cuidadores e na vida desses profissionais como um todo.

Como consequência dessas ações, pretende-se reduzir os impactos negativos e aumentar os


impactos positivos da institucionalização para as crianças acolhidas, além de poder propor-
cionar as mesmas melhores condições de vida dentro do ambiente institucional.

6. Referências

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Acesso em: 27 abr. 2014.

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125
GARANTINDO DIREITOS OU
ACELERANDO ROMPIMENTOS?
REFLEXÕES INTERDISCIPLINARES SOBRE
O ANTEPROJETO DE LEI QUE ALTERA OS
PROCEDIMENTOS PARA A ADOÇÃO

Ana Paula Hachich de Souza1, Edna Fernandes da Rocha2 e Thais Felipe Silva
dos Santos3

EIXO TEMÁTICO:CRIANÇA E ADOLESCENTE

O presente artigo apresenta reflexões e considerações, do ponto de vista da


Psicologia e do Serviço Social, a respeito das propostas de alteração do Ante-
projeto de Lei no que se refere, prioritariamente, à adoção.

Foi pautada a importância de uma prática profissional responsável, que con-


temple uma análise profunda do contexto social e leve em consideração as
violações de direitos às quais as famílias são expostas, atenta, ainda, à con-

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juntura atual de fragilização das políticas públicas e à precarização das con-
dições de trabalho de forma geral.

Partindo da premissa de que o trabalho realizado por psicólogas/os e assis-


tentes social, o no contexto do Poder Judiciário, deve primar e se pautar na
perspectiva de garantia de direitos de crianças e adolescentes, entre eles a
convivência familiar, foram abordadas e analisadas algumas das propostas
que tratam do processo adotivo e, por sua relação com a temática, da desti-
tuição do poder familiar. Foi analisada, ainda, a proposta de alteração que se
refere ao trabalho das equipes técnicas e à possibilidade de contratação de
126
profissionais externos para a realização de estudos em casos de destituição
do poder familiar.

Os questionamentos se direcionam aos possíveis objetivos contidos nas en-


trelinhas do Anteprojeto de lei e a quais interesses as propostas atendem,
visto que muitas das alterações têm o escopo de acelerar os processos de
adoção sem, a nosso ver, se preocupar com a garantia do desenvolvimento
integral preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Palavras-Chaves: Estatuto da Criança e do Adolescente,Anteprojeto de Lei,


Adoção, Destituição do Poder Familiar, Equipe Técnica Interdisciplinar.

1 Psicóloga Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especialista em Psicologia Clínica
e Psicologia Jurídica. anahachich@gmail.com – tel. (13) 99116-2445.

2 Assistente Social Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Doutora e Mestre em
Serviço Social pela PUCSP; Especialista em Serviço Social Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo. social.ednarocha@gmail.com – tel. (11) 991034688

3 Assistente Social Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Especialista em Saúde
Coletiva e Saúde da Família pela Universidade Cruzeiro do Sul. thaislipe@gmail.com – tel. (11) 963954226.
1. Introdução

Muitas alterações aconteceram ao longo das últimas décadas no que diz respeito à legisla-
ção pertinente à infância e adolescência.

Conforme pode ser verificado de forma central em Arièse também em Rizzini e Del Priore,
entre outros autores importantes, as concepções de infância foram inúmeras durante a
história da humanidade, passando desde serem tratados como miniadultos a objetos de
intervenção por parte do Estado e da Igreja.

Partimos do pressuposto de que, desde o fim do século XX, mudanças positivas ocorreram,
inicialmente com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e, então, com a conquista
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ambos resultantes de muitas lutas.

Trouxe, o Estatuto, uma nova concepção, fundamentalmente diferente das anteriores, de


crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e não mais como objetos passivos de
intervenção. Propõe, a Lei, que eles sejam protagonistas, e tem como foco a proteção por
meio do acesso às políticas públicas, sendo a convivência com suas famílias de origem
um dos principais direitos a serem garantidos.

Diante de todo o exposto, consideramos importante analisarmos as propostas e concep-

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ções contidas no Anteprojeto deLei que altera os procedimentos para a adoção, conhecido
como “PL da adoção”. O Anteprojeto proposto tem como um dos argumentos agilizar os
procedimentos de destituição do poder familiar e acelerar os processos de adoção a fim
de “garantir” os direitos infanto-juvenis.

Constituirá objetivo geral deste artigo realizar aproximações sucessivas às alterações


propostas pelo Anteprojeto de Lei no Estatuto da Criança e do Adolescente com vistas a ace-
lerar os procedimentos para a adoção. De forma específicaa proteção/desproteção que tais
mudanças podem ocasionar para a garantia de direitos de crianças e adolescente, bem como 127
suas famílias com rebatimento no exercício profissional da equipe interdisciplinar.

O artigo foi construído a partir da análise das fontes documentais que abordam o
Anteprojeto de Lei que propõe alterações no Estatuto da Criança e do Adolescente,
notadamente fontes legislativas, as quais foram apreciadas com base na metodologia de
análise de conteúdo, com foco em categorias relacionadas à problematização do tema.
As contumazes leituras e a atuação técnica como nos processos judiciais que tem por
natureza a destituição do poder familiar e a adoção, alterações que suscitaram indaga-
ções e serviram de alicerce paraelaboração do presente artigo, pois conforme Baptista,
“é com a incidência do saber produzido sobre a sua prática [que] o saber crítico aponta
para o fazer crítico” (BAPTISTA, 1995, p.89).

2. Trabalho interdisciplinar: uma prática garantidora


de direitos

Como já exposto, traz o Anteprojeto várias propostas que necessitam ser analisadas sob a
ótica da garantia de direitos das crianças e adolescentes e suas famílias.
Do ponto de vista da Psicologia, diversas são as preocupações no que se refere a uma
possível revitimização de pessoas já violentadas pela ausência de políticas públicas,
inclusive de forma transgeracional, visto que não se consegue romper o ciclo de vulne-
rabilidade instituído pelas diferenças sociais.

Como aponta o Código de Ética Profissional do Psicólogo, é responsabilidade das/os


profissionais analisar a realidade de forma crítica, levando em consideração os aspectos
históricos, políticos, econômicos, sociais e culturais. Tal prerrogativa consta no Princípio
Fundamental III no documento norteador do exercício da Psicologia.

Ainda como fundamento de uma prática garantidora de direitos, podemos apontar o Prin-
cípio I: “O psicólogo baseará o seu trabalho no respeito e na promoção da liberdade, da
dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, apoiado nos valores que emba-
sam a Declaração Universal dos Direitos Humanos.” (CEPP, 2005).Igualmente importante é
o princípio seguinte (Princípio Fundamental II – CEPP, 2005), que indica que o exercício da
Psicologia deve estar comprometido com “a eliminação de formas de negligência, discri-
minação, exploração, violência, crueldade e opressão” (CEPP, 2005).

Tais condições para a atuação ética estão diretamente relacionadas ao princípio citado
anteriormente, visto que é preciso que o profissional, a fim de promover a liberdade, a dig-

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nidade, a igualdade e a integridade, precisa estar atento às formas mais sutis de violações
de direitos, que podem se apresentar camufladas como proteção.

No âmbito social, consideramos que o Anteprojeto atribui às famílias a culpabilização


pelas vulnerabilidades sociais decorrentes dos processos societários mais amplos,
notadamente a apropriação privada da riqueza socialmente produzida. A questão social
emerge no cotidiano em suas objetivações, como o desemprego, subemprego, não aces-
so à saúde, a falta de moradia, o analfabetismo, a violência, dentre outros aspetos que
excluem os sujeitos do modo de vida digno. O trabalho com famílias precisa buscar a
128
gênese dessa desigualdade para contextualizar as relações estabelecidas, dentro e fora
do espaço familial, a fim de identificar as razões que de fato impedem a convivência de
crianças e adolescentes com a família de origem. A apreensão fragmentada da dinâmica
contida no movimento da realidade pode despolitizar as questão e naturalizar a incapa-
cidade das famílias pobres.

Nesse sentido, o estudo crítico das alterações propostas para aligeiramento da ado-
ção aponta que as famílias que perdem seus filhos são tratadas de forma apartada da
sociedade em que vivemos e que os avanços conquistados com o Estatuto da Criança e
do Adolescente para crianças e adolescentes, que são vistos como sujeitos de direitos e
em condição peculiar do desenvolvimento, estão ameaçados.

Esse rebatimento das expressões da questão social também ocorre na atuação profissio-
nal da equipe técnica na medida em que precariza os estudos realizados por assistentes
sociais e psicólogos para acelerar os processos de adoção.

No contexto social de aprofundamento da desigualdade estrutural e retomada do con-


servadorismo, pontuamos a falta de discussão com coletivos que se debruçam sobre
os direitos de crianças e adolescentes.
Por outro lado, compreendemos que a destituição do poder familiar com vistas à adoção
na forma proposta pelo Anteprojeto pode ampliar o afastamento das crianças e adoles-
centes de suas famílias de origem, mas não assegura a adoção desses mesmo sujeitos.

Por fim, consideramos que o Serviço Social tem uma participação ativa na luta pela
garantia de direitos e na proteção de criança e adolescentes e nas palavras de Barroco
(2011),

[...] o cenário atual pode ser facilitador da reatualização de projetos conservadores na


profissão, mas entendendo também que nossa trajetória de lutas, inserida no universo de
resistências da sociedade brasileira permite esse enfrentamento, quero afirmar que do
ponto de vista ético-político a busca de ruptura com o conservadorismo no Serviço Social
— princípio e objetivo que norteou (norteia) o projeto ético‑político nesses trinta anos — é
neste momento renovado como um grande desafio: o enfrentamento de suas novas formas
ético‑políticas e manifestações teórico‑práticas. (BARROCO: 2011, p.211/212)

Os apontamentos acima se fazem importantes porque, a nosso ver, é com esta base que
devemos filtrar a leitura deste Anteprojeto e o que traz em suas entrelinhas, tornando-se
fundamental questionar quais respostas estão sendo propostase a quem atendem.

Consideramos que as propostas do Projeto envolvem direitos humanos e as reflexões


devem, portanto, partir desse pressuposto - como garantir direitos já estabelecidos pelas

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políticas públicas, como a convivência familiar e comunitária?

3. Problematizando o Anteprojeto à luz da Psicologia e


do Serviço Social

A fim de podermos proceder a uma análise mais apurada, optamos por selecionar
alguns artigos que consideramos estar diretamente relacionados ao intento de acelerar
os processos de adoção, já apontando as possíveis complicações e implicações éticas 129

decorrentes da concretização das alterações propostas.

Com relação ao artigo 46 do ECA, a proposta é de que a duração do estágio de convi-


vência seja limitada ao prazo máximo de noventa dias, tendo como parâmetros a faixa
etária da criança e/ou adolescente e as particularidades de cada caso. Embora possa ser
prorrogado por mais noventa dias, é necessária a decisão fundamentada do juiz.

O artigo atual, por sua vez, dispõe que o prazo para acompanhamento do estágio de
convivência, o qual deverá ser feito pelas equipes técnicas, deve ser fixado pelo juiz,
com atenção às peculiaridades de cada caso. Torna-se necessário o questionamento
das motivações desta limitação do tempo para todos os casos e, ainda, os aponta-
mentos dos prejuízos que tal condição pode causar. Do ponto de vista psicológico e
social, não há como instituir prazo máximo, visto que, muitas vezes, o passar do tem-
po é necessário para que sejam feitas intervenções técnicas que possibilitarão a per-
manência da criança naquela nova família. A limitação de tempo da atuação técnica
com relação à inserção daquela criança em uma família pode, por exemplo, provocar a
interrupção do processo adotivo e a consequente devolução da criança e/ou adoles-
cente, caso a família não se sinta, ainda, segura e preparada, mas seja pressionada a
declarar um posicionamento definitivo.
A nova interação decorrente da colocação em família substituta é fonte de diversos senti-
mentos, que podem sercontraditórios, a princípio, e que necessitam da leitura atenta da Psi-
cologia e do Serviço Social. Provoca mudanças na rotina do casal, na relação conjugal (caso
exista), bem como pode fazer ressurgir o sofrimento por uma possível infertilidade. Enfim,
são inúmeras as situações que, caso não tenham o acompanhamento adequado, pelo tempo
necessário, podem colocar em risco o processo adotivo e ocasionar prejuízos ao desenvolvi-
mento emocional e social da criança e/ou adolescente.

A alteração ocorrida noEstatuto da Criança e do Adolescente, no ano de 2009,por meio da Lei


12.010, reflete o reconhecimento da importância do estágio de convivência, visto que modifi-
cou o § 1.º do artigo 46, que dispensava tal processo para casos que envolvessem crianças
menores de um ano de idade ou se a convivência já estivesse se dando de modo informal,
para dispor que o estágio só pode ser suprimido caso o adotando esteja sob os cuidados
do adotante de forma reconhecida juridicamente, ou seja, pelos dispositivos de Guarda ou
Tutela, durante período de tempo que possibilite a avaliação da conveniência da adoção.

Já a proposta atualcontida no § 5.º do mesmo artigo indica que, nas adoções internacio-
nais, o estágio de convivência aconteça de 15 a 45 dias, sendo tal prazo máximo impror-
rogável, devendo ser apresentado posicionamento técnico com relação ao deferimento da
adoção ao fim deste período.

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Sob o aspecto técnico, consideramos, no entanto, que o prazo de 15 dias é insuficiente para
avaliar aconveniência de uma adoção internacional. Além dos motivos já expostos anterior-
mente, acresce-se o fato complicador de que a criança será inserida em uma nova cultura,
com um idioma, hábitos e tradições que ela não conhece.

De forma diversa da adoção por família brasileira, quando, via de regra, há uma aproximação
gradativa entre os pretendentes e a criança e/ou adolescente, na adoção internacional, a
partir da chegada da família adotiva no Brasil, a convivência é imediata. Na maior parte dos
casos, são exíguas, devido ao curto lapso temporal, as intervenções e orientações técnicas 130
para a construção de relações que poderão se tornar definitivas.

Entendemos que outros problemas podem decorrer da restrição do prazo para o estágio
de convivência. Ansiosa por concretizar seu desejo, a família pode decidir, ainda que não
se sinta pronta, por concretizar a adoção internacional; no entanto, caso a convivência não
dê certo, a criança e/ou adolescente já não terá mais a nacionalidade brasileira e terá de
permanecer acolhida em um país estrangeiro, sem nenhuma referência conhecida. Por outro
lado, não havendo tempo suficiente para as intervenções com relação às possíveis dificulda-
des que comumente surgem nessas colocações, sentindo-se pressionada a decidir, a família
pode optar por interromper o processo adotivo, com prejuízos para todos os envolvidos.

Um pouco mais adiante, há duas propostas de alteração relacionadas diretamente à adoção,


as quais parecem priorizar a adoção internacional.Consideramos necessário o debate sobre
a mudança do inciso III do artigo 50, que pretende que seja “[...] na ausência de pretendentes
habilitados residentes no país [...]realizado o encaminhamento imediato da criança ouado-
lescente à Adoção Internacional, independentemente de decisão judicial”.Da mesma forma o
artigo 51, em seu inciso II, que pretende dispor que, a partir de um ano da data da destituição
do poder familiar sem que tenha sido feita a colocação em família adotiva brasileira, a crian-
ça e/ou adolescente será encaminhada para adoção internacional. Na atuação profissional,
constatamos que há casos em que a criança e/ou adolescente pode estar preparada/o para
ser adotada em seu país, mas não para uma adoção internacional, por isso consideramos
que a aprovação dessas propostas é contrária à proteção das crianças e adolescentes.

A quais interesses estão relacionados essa decisão? Como já exposto, a mudança da criança
e/ou adolescente para outro país envolve muitos aspectos e sentimentos. Muitos não apre-
sentam disponibilidade emocional e/ou recursos internos para enfrentar tal situação sem
um intenso sofrimento. Outros, ainda, necessitam de um tempo maior de elaboração do luto
pela perda dos pais, de elaboração dossentimentos decorrentes das diversas situações que
a criança/adolescente pode ter vivenciado, como abandono, rejeição, violência, entre outras.
Parece-nos, portanto, que tal sugestão tem como fundamento atender a interesses terceiros
que não o bem-estar da infância e juventude.

O artigo 92, por sua vez, atualmente dispõe que as entidades de acolhimento devem ter como
um dos princípios de sua atuação a integração em família substituta quando esgotados os
recursos de manutenção na família natural ou extensa (inciso II). Caso o ANTEPROJETO seja
aprovado, tal inciso terá um acréscimo: “integração em família substituta ou adotiva, quando
esgotados os recursosde manutenção na família natural ou extensa, desde que presente o
vínculocomprovado de afinidade e afetividade [...]”.Parece-nos que tal alteração pode vir a
ser utilizada de forma a favorecer as adoções diretas e intuitu personae, situação bastante

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combatida pela Lei n.º 12.010/2009, que apresentava a preocupação de proteger as crianças
e adolescentes de situações decorrentes desse tipo de adoção, que se dão, via de regra, sem
que a família adotiva tenha passado previamente por avaliações e momentos de orientação.

Por fim, preocupa-nos sobremaneira a proposta de acréscimo do § 6.º ao artigo 161,


constante na seção sobre Destituição do Poder Familiar, que indica que seja nomeado pelo
magistrado um profissional idôneo, graduado preferencialmente na área específica, em caso
de ausência de servidores judiciários responsáveis pelas avaliações psicológicas e sociais.

Vários questionamentos decorrem desta proposta. O apontamento inicial diz respeito 131
ao preconizado no Estatuto, na seção sobre os serviços auxiliares, quanto à previsão de
recursos, pelo Poder Judiciário, para o funcionamento de equipes técnicas para assessorar
a Justiça da Infância e Juventude, tendo, entre suas competências, o desenvolvimento de
trabalhos de prevenção (artigos 150 e 151).

Outro questionamento que deve ser feito diante de tal proposta é sobre as condições de trabalho
dos servidores judiciários de forma geral, mas, especialmente, das equipes técnicas. Se a
própria legislação dispõe a obrigatoriedade de recursos para a manutenção de tais profissionais,
por que alterar o Estatuto já contando com a possibilidade de tal ausência em vez de adicionar,
por exemplo, um artigo e/ou parágrafo que responsabilize o Poder Judiciário por tal condição?

A nosso ver, é temerária a precarização trabalhista que se almeja inserir, pois entendemos a atu-
ação dos setores psicossociaiscomo fundamental para a garantia de direitos das crianças, ado-
lescentes e suas famílias, bem como que os profissionais que venham a lidar com os casos de
Destituição do Poder Familiar estejam familiarizados com os meandros e demandas referentes a
tais situações e com as peculiaridades do trabalho técnico desenvolvido na área sociojurídica.

As equipes técnicas judiciárias acumulam, ao longo do tempo, expertise na atuação


desses casos, devendo ser ofertadas aos psicólogos e assistentes sociais capacitação
profissional permanente e a possibilidade de compartilhamento das experiências adqui-
ridas, a fim de garantir uma atuação adequada, conforme estabelecemseus respectivos
Códigos de Ética. A alínea c do artigo 1.º do Código de Ética Profissional do Psicólogo
aponta como responsabilidade “Prestar serviços psicológicos de qualidade, em condições
de trabalho dignas eapropriadas à natureza desses serviços, utilizando princípios, conheci-
mentos e técnicasreconhecidamente fundamentados na ciência psicológica, na ética e na
legislaçãoprofissional” (CEPP, 2005).

Já o Código de Ética do Assistente Social traz seu bojo permeado pela liberdade e
justiça social como valores centrais, e ainda preceitua em seu artigo 7º, alínea “a” que o
profissional deve “dispor de condições de trabalho condignas, seja em entidade pública
ou privada, de forma a garantir a qualidade do exercício profissional” (Código de Ética do
Assistente Social, 2012, p. 31).

Assim, a ausência de profissionais e/ou de condições de trabalho afeta diretamente a


qualidade dos atendimentos à população, público-alvo de nossa atuação profissional, visto
que o pertencimento dos técnicos à instituição, em certo grau, proporciona um grau de
comprometimento com a instituição e com asociedade.

Outra questão a ser considerada é a possibilidade de que tais avaliações sejam feitas por
profissionais de nível superior preferencialmente na área especifica, deixando em aberto a pos-

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sibilidade de que profissionais com formações bastante diversas procedam a avaliações tão
complexas e importantes apenas com cursos, por exemplo, relacionados à natureza do exame.

Nossa experiência prática tem demonstrado que o trabalho por parte das equipes técnicas
e, sobretudo, por parte das instituições acolhedoras no sentido de promover a convivência
familiar e comunitária das crianças de adolescentes, envolve tanto a clareza sobre a sua
posição no Sistema de Garantia de Direitos como a constante capacitação profissional.

O atual contexto sociopolítico e econômico, que cada vez mais tem afetado as condições 132
de vida das pessoas, sem o devido entendimento crítico e compromisso pode, facilmente,
perceber como “inovação” propostas que, inclusive, vão na contramão dos projetos ético-
-políticos de ambas as profissões.

Práticas imediatistas, pautadas no “aqui-agora” (COELHO, 2013) e que buscam atender apenas às
demandas institucionais e à legislação, não viabilizam o acesso a direitos garantidos constitucio-
nalmente, podendo, ao contrário, se distanciar destes. Em nossa avaliação entendemos que as
modificações propostas no Estatuto da Criança e do Adolescente privilegiam essa imediaticidade.

É necessário que os profissionais que (ainda) direcionam um olhar estigmatizante sobre as


famílias – ditas “incapazes” – ampliem seus conhecimentos, superando barreiras que não
só reproduzem o senso comum (“mais uma família que não dá conta dos seus...”) como tam-
bém os impedem de refletir sobre a importância da autonomia profissional consciente – para
além do cumprimento de prazos exíguos em dar respostas imediatas sobre trajetórias de
vida marcadas pelas expressões da questão social, onde sobressaem o abandono, rompi-
mentos e descontinuidades – seja em relação aos laços afetivos-relacionais, seja em relação
ao acesso de todos os membros da família às políticas públicas.

Daí a importância de que os profissionais inseridos no Sistema de Garantia de Direitos


tenham competências técnica e política e sejam capazes de promover uma análise de
conjuntura sobre a realidade, identificando violações de direitos que se manifestam como
agilidade processual e que podem atender apenas aos interesses de uma minoria (privile-
giada) em detrimento de interesses comuns e coletivos.

Com isso, estamos demarcando algumas reflexões para contribuir no debate de um tema que
requer o aprofundamento por parte dos profissionais.

Entendemos que o aceleramento da colocação de crianças em família substituta pode


acarretar consequências importantes que, do ponto de vista profissional, não contribuem
para o fortalecimento de do preconizado pelo paradigma trazido inicialmente pelo Esta-
tuto da Criança e do Adolescente.

Nesse sentido, pontuamos que é por meio da perícia social que o assistente social se
posiciona sobre determinada situação. Fávero (2010, p. 44), nos diz que “a pericia social é
o estudo social realizado com base nos fundamentos teórico-metodológico, ético-politico e
técnico-operativo, próprios do Serviço Social, com finalidades reservadas a julgamentos”.Isto
porque o seu resultado – laudo social – irá subsidiar uma decisão ou sentença judicial.

No âmbito profissional, consideramos como necessário retomar a discussão sobre o


aparente na prática do assistente social. Compreendemos que a imediaticidade se refere
às ações profissionais nas quais o trabalhador social não avança na análise da situação

2ª Jornada Científica da FASP-ES | Revista de Artigos


que se apresenta como uma demanda e expressão da questão social, uma vez que o senso
comum e a certeza sensível (ou seja, aquela certeza de que apenas o conhecimento prévio
e a verdade universal) balizam a sua prática profissional.

De acordo com Coelho (2011, p.28) “a verdade está em sua prática cotidiana porque dela
advém o saber imediato, relativo ao seu fazer profissional”.

Quando se pensa no trabalho das equipes técnicas, as distintas realidades e situações às


quais os profissionais estão submetidos e as questões anteriormente citadas, em nosso
133
ponto de vista, podem comprometer o direcionamento que deve ser dado, por exemplo,
diante de uma família cuja trajetória é marcada por situações de vulnerabilidade e o pa-
recer técnico desconsidera o percurso sócio-histórico desta família e os rebatimentos da
questão social sobre o agrupamento familiar.

Outra implicação importante se refere ao risco diante do aligeiramento para colocação da


criança/adolescente em família substituta, quepode contribuir para o aumentodas devolu-
ções de crianças por parte do casal requerente. No que se refere às consequências sobre
a devolução de crianças/adolescentes, observamos que a celeridade pretendida pode
impactar profundamente a vida destas/es, que são revitimizadas/ospor uma nova rejeição,
fazendo do Estado um agente desprotetor.

Consideramos, portanto, como fundamental, que o Poder Judiciário assegure, em seu qua-
dro de profissionais, equipes técnicas capacitadas que contem com condições de trabalho
adequadas, a fim de atuar com qualidade em situações que podem provocar profundas
mudanças nas vidas das pessoas atendidas.

Conforme exposto em documento elaborado pelo Núcleo da Justiça do Conselho Regional


de Psicologia como contribuição à audiência pública sobre a temática organizada pelo NECA
em parceria com o Instituto Sedes Sapientiae, as propostas contidas neste Anteprojeto pare-
cem ter como objetivo desburocratizar os processos de adoção a fim de acelerar tais pro-
cessos, sem propor, no entanto, por meio da oferta e da qualificação das políticas públicas,
soluções para osproblemas sociais e institucionais, como o longo período de instituciona-
lização e a falta de interesse de pretendentes por crianças mais velhas. Consideramos que
tais propostas não contribuem para a superação das condições de vulnerabilidade que as
famílias já vivenciam cotidianamente. Nesse sentido entendemos que o Estado também
viola direitos quando não garante os direitos sociais básicos para que crianças e adoles-
centes desfrutem de desenvolvimento integral ao permanecerem com suas famílias.

4. Considerações

Pensar em situações que envolvem tanto a destituição do poder familiar como a acelera-
ção dos processos de adoção, com base nas propostas do chamadoAnteprojeto da adoção
remonta à necessidade urgente de um debate aprofundado, seja pelos atores envolvidos
nas políticas públicas, incluindo-se aí as equipes técnicas do judiciário, seja pela participa-
ção da sociedade civil, por meio de seus representantes.

Mudanças relacionadas ao acompanhamento do estágio de convivência entre a criança/


adolescente a ser adotada e os requerentes (adotantes), por exemplo, encurtando este

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período para o prazo de apenas 90 dias para adoções nacionais e de 15 dias a 45 dias,
no caso das internacionais, podem resultar em consequências negativas, especialmen-
te para os adotandos, em médio e longo prazo, dificultando que o Judiciário, enquanto
órgão do Sistema de Garantia de Direitos, atue na proteção e na efetivação do direito à
convivência familiar e comunitária.

Como defendemos no desenvolvimento do presente artigo, a limitação na atuação dos


peritos psicólogos e assistente sociais no acompanhamento das crianças e famílias que
estão em processo de adoção impossibilita um olhar mais apurado sobre esta nova reali- 134
dade, dificultando a emissão de um parecer conclusivo por parte dos técnicos.

Na mesma direção, as implicações decorrentes da possível terceirização das equipes


técnicas, ou seja, da nomeação de profissionais não servidores dos tribunais de justiça
para a atuação em casos dessa natureza, ao que nos parece, vai na contramão da presta-
ção um serviço de qualidade que, mesmo diante das precárias condições de trabalho, os
peritos que exercem cargo público buscam manter.

Para além da necessidade de aumentar o quadro de servidores de carreira por meio


de concursos públicos, se faz mister a constante capacitação dos profissionais, o que
poderá, de maneira mais eficaz, garantir um atendimento digno à população e, conse-
quentemente, a promoção do direito à convivência familiar e comunitária das crianças e
adolescentes que são o alvo do Anteprojeto em questão.

O não acesso por parte destas famílias aos direitos fundamentais e previstos na Cons-
tituição federal de 1988, como saúde, trabalho, educação, transporte, entre outros, não
pode ser o “trampolim” para que as crianças sejam destituídas do poder familiar, cumulado
com os processos de adoções aceleradas, sem o devido acompanhamento por parte das
equipes técnicas, sob o risco de, alegando ofertar proteção, revitimizá-los.
A adoção, como bem apontamos, não deve estar alinhada com benefíciosaos adotantes,
mas, sobretudo, a atender ao superior interesse das crianças e adolescentes.

Nesse sentido, reforçamos, ainda, que também se faz necessário o aperfeiçoamento de


políticas públicas voltadas às famílias para que sejam eficaz e efetivamente consolidadas
de forma a garantir que as crianças e adolescentes permaneçam e fortaleçam os vínculos
com suas famílias de origem (conforme já estabelecido no ECA), tendo em vista ser a
adoção medida última e quando esgotadas as chances de retorno.

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136
GLOSSÁRIO DA INTERNAÇÃO:
VIOLÊNCIA COMO LINGUAGEM.

Joseane Duarte Ouro Alves1

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

O presente trabalho visa analisar como tem se dado, nos espaços destinados
à internação de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de
privação de liberdade, a relação desse recorte da juventude com a linguagem,
com o poder e com a violência nesses espaços. Destaca-se os desafios das ins-
tituições totais dessa natureza na superação da violência como linguagem, vio-
lência essa que se perpetua incólume ao longo do tempo.

Palavras-chave: Internação; Linguagem; Adolescência; Violência.

1. Introdução

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Este trabalho surge do contato, advindo da atuação profissional da autora, junto às institui-
ções totais destinadas a internação dos adolescentes em conflito com a lei na região metro-
politana de Vitória, Espírito Santo, chamadas de Unidades de Internação Socioeducativas.

A atuação profissional impõe o convívio e à interlocução com profissionais, jovens e familia-


res que compartilham, no espaço das unidades, de uma linguagem própria, já que é comum o
uso de gírias, chistes e expressões que encontram um significado particular nesses contextos.
137
Algumas palavras ganham um significado próprio dentro dessas instituições. Assim, uma
análise da subversão do significado da palavra, da criptografia das expressões, em alguma
medida, nos põe em contato com os códigos e normatizações construídas dentro das unida-
des de internação. A existência dessas regras próprias também desnudam, para o observa-
dor mais atento, os valores que subjazem nos sujeitos que, numa dinâmica de privações, não
encontram meios de construção de laços baseados no diálogo.

O objetivo do presente trabalho é pensar em como, por meio de uma análise sociolinguística,
ainda que incipiente, pode-se interferir ou modificar as institucionalidades que consideramos
problemáticas e se repensar as práticas nesses espaços.

Poucos estudos nessa área, como demonstra nosso restrito referencial bibliográfico, denun-
ciam que a naturalização de uma linguagem diferenciada é algo há muito “aceito” pelos diri-
gentes e demais operadores que convivem nesses espaços. Ao mesmo tempo, a manutenção
das expressões herméticas aos “de fora” confere uma identificação por parte dos sujeitos
que compartilham desse idioma codificado.

1 Graduação em Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010). Mestre em Serviço Social
pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de Juiz de Fora (2013). Atualmente é Assistente Social do
Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. E-mail: joseanedoa@hotmail.com. Telefone: (27) 981486368.
A metodologia consiste na escolha de algumas expressões consideradas significativas, já
que o vasto material disponibilizado pelos internos poderia render-nos uma extensa análi-
se, o que fugiria das possibilidades desse artigo.

O trajeto escolhido para consecução dos objetivos desse artigo demandou um caminho que se
construiu com o resgate da história das instituições destinadas à aplicação das penas priva-
tivas de liberdade. Em seguida, abordaram-se as particularidades do corte geracional juvenil
nessa sociedade e, consequentemente, também da juventude que sobrevive nesses espaços
atualmente. Paralelamente a isso, destacou-se a análise das modificações contemporâneas da
sociedade em que vivemos com ênfase à hegemonia do capitalismo globalizado hoje e seus
ditames de mercado. Por fim, efetivou-se a análise das expressões e seus signos dentro do
contexto das instituições totais aqui analisadas concluindo-se com as indicações dos desafios
postos tanto aos trabalhadores desses espaços quanto à juventude que hoje está dentro deles.

2. Desenvolvimento

Para a análise que propomos aqui, partimos das interpretações já amplamente conhecidas
tanto de Goffman (1961) acerca dos hospitais para portadores de transtornos mentais,
quanto de Foucault (1987) sobre as prisões.

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Suas leituras particulares se complementam no que chamamos de instituições totais e
são importantes porque se interessam pelo modus operandi desses espaços. Por meio da
compreensão do funcionamento dessas instituições os dois autores citados estruturaram
importantes categorias utilizadas pelos estudiosos do assunto ainda hoje.

Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um
grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais am-
pla por considerável período de tempo, leva uma vida fechada e formalmente administrada.
(GOFFMAN, 1961, p.11) 138

A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos: deve tomar a seu cargo
todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu com-
portamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola,
a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é “onidisciplinar”.
(FOUCAULT, 1987, p. 264)

De antemão informa-se que as análises desses autores se adéquam à realidade em que


vivemos hoje já que, apesar das mudanças sociais ocorridas nos últimos séculos, as
instituições totais mantém uma estrutura de funcionamento que não se alterou significati-
vamente desde a sua criação.

Numa interlocução com esses autores percebemos como esses espaços, no passar dos séculos,
pouco se reinventaram. É como se sobrevivessem, estanques, reproduzidos como instrumentos de
controle aparentemente perenes e descolados das mudanças mais amplas ocorridas na sociedade.

Debruçar-se sobre aspectos mais singulares da dinâmica desses espaços pode ser, nesse
sentido, tentar compreender como a comprovada ineficácia do encarceramento na busca
de seus objetivos declarados pode ser permanentemente olvidada em prol de sua utilização
como instrumento de segregação socioespacial.
Se há um consenso nas pesquisas sobre o tema este reside justamente na constatação da
ineficácia desse sistema. Um sistema que, desde sua criação, pode ser considerado incapaz
de cumprir as metas que se impõe e que anacronicamente se arrasta na modernidade.

Num breve resgate histórico, sabemos que antes do século XVI havia uma aplicação massiva
de sentenças de morte, execução, banimento, mutilação, marcação a ferro e açoite, de modo
a exterminar uma gama de “transgressores”. Contudo, no final daquele século, começam a
ocorrer mudanças graduais nas estratégias de punição que iam ao encontro da monetariza-
ção da sociedade com a instauração das fianças, por exemplo.

Mais tarde, passou-se à utilização da mão de obra dos presos em tarefas relacionadas à
produção de mercadorias manufaturadas e, posteriormente, às industrializadas.

A possibilidade de explorar a força de trabalho dos prisioneiros passou a receber mais aten-
ção, principalmente com a enorme demanda de homens para as galés, exército, deportação e
trabalhos penosos. Essas mudanças não resultaram de considerações humanitárias, mas de
um certo desenvolvimento econômico que revelava o valor potencial de uma massa de material
humano completamente à disposição das autoridades. (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2008, p. 43)

Rusche e Kirchheimer demonstraram a importância da prisão na transição para o modo de pro-


dução capitalista, já que a mão de obra dos encarcerados era explorada como meio de produ-
ção de mercadorias e contribuía para o acumulo de riquezas num dado momento histórico.

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Destaca-se que falamos aqui dos objetivos velados do sistema naquele marco histórico, já que
seus objetivos declarados de “reinserção” e “ressocialização” nunca passaram de mera retórica,
insustentável a qualquer análise rigorosa dos conceitos, como ensina-nos Martins (2002).

Porém, na contemporaneidade, é possível dizer que a manutenção de uma estrutura de


funcionamento própria dos séculos passados acompanha, pari passu, o distanciamento dessa
função velada ancestral, isto é, das funcionalidades produtivas que o cárcere teve no passado.
139
Hoje, diversos autores coadunam que a massa de encarcerados constitui o atual lu-
pemproletariado marxista, isto é, uma sobra incapaz de inserção na sociedade pela
via produtiva tradicional e alijada, consequentemente, da sociedade de mercado. Sua
inserção, portanto, é sempre marginal. Uma inserção pela própria exclusão que confere
uma unidade a esses indivíduos: um traço comum - a condição de miséria econômica dos
encarcerados - desde a criação das prisões.

Assim, na atualidade, os objetivos do encarceramento estão restritos à sua função de


segregação socioespacial de uma parcela específica de sujeitos sociais, marginalizados do
principal mecanismo de integração e pertencimento dessa sociedade: o consumo.

Os alijados das possibilidades do consumo não podem ser vistos, nessa lógica, como
cidadãos. Suas possibilidades restritas de participação na vida pública - convertida em
consumir mercadorias, serviços, lazer etc - inferioriza os sujeitos e marginaliza os grupos
que não acessam esse mercado.

A necessidade de estabelecermos uma visão não moralizadora deste consumo faz-se


urgente no contexto atual, contexto este em que parece que desejamos isolar os jovens
internos de toda a experiência com a ética do capitalismo.
O isolamento propiciado pelos muros da unidade de internação não é capaz de separar
os sujeitos que lá se encontram da trama das relações sociais que estabelecemos em
nossa organização da sociedade.

É no consumo de bens e serviços de saúde, educação, segurança, alimentação, vestuário,


transporte etc que existimos no espaço e na materialidade da vida cotidiana. Livre mercado e
responsabilidade individual são conceitos hegemônicos nesta sociedade.

A nova dinâmica do modo de produção em que vivemos glorifica o liberalismo das relações
e cultua o divino mercado, como batizado por Dufour (2008). Para a juventude, essa lupem-
proletarização é agravada, já que em todos os países do globo é ela quem sofre os maiores
impactos do excesso de força de trabalho disponível.

A questão do jovem e o trabalho também se vê rodeada por outros aspectos, entre os quais
sobressaem as dificuldades estruturais impostas por um padrão de crescimento econômico
pouco ou nada generoso na geração de oportunidades, notadamente para aquelas frações da
PEA (População Economicamente Ativa) sem nenhuma ou com escassa experiência anterior
de trabalho e, muitas vezes, com escolaridade inferior à requerida – especialmente quando
o processo de formação educacional foi interrompido sem que se tivesse completado o ciclo
escolar compatível com a respectiva faixa etária (BRANCO, 2011, p.132).

Para agravar os processos de marginalização da contemporaneidade, temos que em nossa

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sociedade atual a cronologização do curso da vida impõe regras de pertencimento geracional
e enquadra os sujeitos, conforme seu presente, no curso das possibilidades de consumo exis-
tentes. A intensidade da imposição da regra de consumo como modo de pertencimento social
confere uma invisibilidade à juventude que não tem acesso as mercadorias.

Cassab (2001) afirma que com as transformações históricas decorrentes da consolidação


da sociedade industrial, a supervisão constante que era aplicada aos jovens das famílias
burguesas vai se consolidar também sobre os jovens das famílias pobres. Entretanto, se os
primeiros são destinatários de sentimentos de esperança, afeto e cuidado, com ênfase ao 140
respeito de sua fase peculiar de desenvolvimento, aos jovens pobres recai apenas o signo
da selvageria, da falta de educação, para quem só resta a obediência e a subalternidade
como única forma de integração. Estes sujeitos experimentam a passagem da condição de
crianças pobres para a de personagens perigosos.

Uma passagem da condição de crianças pobres, vistas como vítimas inocentes e objeto de uma
certa comiseração social, para a de personagens agressivos, potencialmente perigosos, que de-
vem estar sob constante vigilância (CASSAB, 2001, p.9).

Esta mudança de olhar pode ser verificada nas mais diversas formas de representação que
são socialmente destinadas à estes jovens. Nos meios de comunicação, na produção aca-
dêmica e na prática cotidiana dos que trabalham com esta juventude é possível identificar
esse discurso - que transforma o jovem pobre em elemento constantemente demandante de
controle – e para o qual a única saída é a resiliência frente à sua condição marginal.

Conforme salienta Sales (2007), pode-se somar a isso a representação que cada vez mais
sedimenta a juventude pobre como metáfora da violência.

Se a família deixa de ser o suporte e guardiã dos elos de afetividade e sociabilidade – e,


mais, abusa, maltrata e negligencia – muitas crianças e adolescentes fogem do convívio fa-
miliar pelas diversas portas da luta pela sobrevivência. Na ausência de suportes públicos de
retaguarda e proteção suficientes – previstos no ECA e na LOAS – prevalecem as respostas
individuais frente a este tipo de drama familiar, as quais contam com pouquíssima ou nenhu-
ma visibilidade (SALES, 2007, p. 24).

Assim, é preciso considerar o contexto e as experiências que servem de base à construção


dos valores e dos sentidos que estes jovens atribuem às suas vidas e é neste sentido que
Sales (2007) situa a dúbia relação entre visibilidade X invisibilidade, sob a qual passeiam as
representações da infância e da juventude pobres.

Se de um lado persiste a invisibilidade do sofrimento por qual passam crianças e adolescen-


tes pobres nas suas áreas de moradia e socialização – nas diversas privações materiais,
culturais e afetivas – de outro, a visibilidade das práticas infracionais juvenis é intensificada
pelo preconceito e pelo medo da violência que estes sujeitos podem disparar.

Neste sentido, a autora afirma que se “trata, portanto, de uma visibilidade perversa, seletiva e
reprodutora de discriminações históricas contra os setores mais pauperizados e insubmissos
das classes trabalhadoras urbanas” (SALES, 2007, p. 27).

É nesse ponto que opera a lógica dominante e hegemônica que hoje exacerba valores
individualistas. A existência dessa juventude que necessita de apoio social e que carece de
proteção deságua na filiação dela ao paradigma hegemônico do mercado sem os mecanis-

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mos de acesso que poderiam fazer essa relação existir.

Resulta disso que esses jovens se filiam a essa lógica da resolutividade das questões
pelas “soluções” individuais. E é nas ruas, nas ilegalidades e na violência que estes encon-
tram os meios de existir nessa sociedade.

Sabemos que, no debate da violência, se sobressai de maneira desproporcional o papel da ju-


ventude, especialmente a negra, urbana e periférica. Desproporcional porque, como sabemos,
não são os jovens os responsáveis pela maioria dos crimes violentos cometidos em nossa
sociedade. O Ministério da Justiça, em junho de 2015, divulgou à imprensa a informação de 141
que menores de 18 anos são responsáveis por 0,9% do total de crimes cometidos no Brasil.

Além disso, apesar do aumento no número de jovens envolvidos em ilícitos – manifesto no


aumento do encarceramento desses sujeitos – conforme se verifica no último registro da propor-
ção feito pelo Levantamento Nacional do Atendimento Socioeducativo de 2011, da Secretaria de
Direitos Humanos, a média do Brasil é de 9,5 internados para cada 10.000 adolescentes no país.

Com as particularidades regionais que aumentam ou reduzem essa cifra, o que está claro é
que os jovens que praticam crimes passíveis de encarceramento, e que por isso são sele-
cionados pelo sistema de justiça juvenil, representam uma parcela ínfima diante do número
absoluto de jovens que vivem no país hoje. Destacamos isso já que há ai um elemento de
escolha dessa parcela da juventude por esse modo de atuação no laço social.

O que salta aos olhos nesse contexto? O clamor pelo controle penal desses sujeitos
(redução da maioridade, aumento do tempo das penas etc) é estatisticamente despro-
porcional à gravidade do problema.

Não podemos e não devemos, certamente, reduzir a importância da tragédia que os atos praticados
e sofridos pela juventude pobre representam na nossa vida social. Eles demonstram as fraturas
e feridas históricas que ainda não tivemos capacidade de curar. Contudo, situar o problema com
exatidão tem sido uma tarefa para acadêmicos, já que a mídia e o jornalismo sensacionalista se
preocupam menos com os fatos e mais com a comercialização de seus tablóides desinformantes.

Para Catroli e Rosa (2013) a violenta desqualificação das vidas de uma parcela da juventude
brasileira – consequência da falta de perspectiva de inscrição em um laço indicador de par-
ticipação no social – provoca em alguns jovens a inversão de seu lugar: de passivos à ativos
da violência. Essa é a estratégia de subjetivação encontrada por alguns deles no contexto em
que vivemos hoje e que nos deparamos no trabalho com essa juventude.

Arendt (2016) se dedicou à interpretação da violência, tendo se debruçado sobre a história


das guerras, sobre diversos conflitos regionais e também sobre revoltas estudantis, bem
como manifestações de grupos de extermínio etc.

A autora ainda afirma que nada pode ser tão perigoso para um entendimento real da questão
da violência quanto uma tradição de pensamento “organicista”, ou seja, uma interpretação do
fenômeno político-social da violência em termos biológicos.

A autora destaca que a tentativa de naturalizar a interpretação de um fenômeno social como a


violência só serviria como mecanismo teórico facilitador de promoção de mais violência.

A partir do instante em que se começa a falar em termos biológicos – ao invés de políticos

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– uma naturalização da violência se opera, numa metáfora perigosa utilizada por diversos
teóricos “apologistas” de uma ação política calcada em violência.2 Michaud (1989) também
já destacava esse mesmo problema em seu clássico livro sobre a violência.

Arendt (2016) também dá ênfase na relação entre violência e poder – em como a maior
burocratização da vida pública parece ser uma das explicações para o aumento da vio-
lência, em termos político-sociais.

Analisando o movimento global de burocratização dos estados nacionais, ela identifi-


ca alguns aspectos em que a violência pode ser vista como expressão dos problemas 142
advindos do não-diálogo com o poder.

Em uma burocracia plenamente desenvolvida não há ninguém a quem se possa inquirir, a quem
se possa apresentar queixas, sobre quem exercer as pressões do poder. A burocracia é a forma
na qual todas as pessoas estão privadas da liberdade política, do pode de agir; pois o domínio
de ninguém não é um não domínio, e onde todos são igualmente impotentes temos uma tirania
sem tirano. (ARENDT, 2016, p. 101)

A esse fenômeno de transmutação de governos em administrações e de repúblicas em


burocracias, Arendt (2016) chama “o poder anônimo dos administradores” que, dificul-
tando as formas políticas de manifestação e representatividade política dos sujeitos
favorece, em contrapartida, à expansão da violência como meio de canalização de
demandas sociais.

Como afirma Sales (2007): nossa juventude pobre se posiciona em um lugar de “invisibilidade”
que é rompido grande parte das vezes apenas em momentos de crise, conflitos e violência

2 Assim, ela usa o exemplo de como a naturalização dos processos racistas opera, isto é, numa lógica que
se funda em fatos orgânicos naturais – como a cor da pele – e que é consequência lógica e racional de um sistema
ideológico explicito, não de puros preconceitos individuais.
extrema. Ainda que essa juventude pobre seja autora e vítima de sua própria chacina social, ela
raramente é noticiada quando sofre, mas sempre destacada quando pratica a violência.

Dentro das instituições totais, e aqui nos limitamos a falar da experiência com os jovens
em unidades de internação, percebemos como a linguagem e os discursos se orientam
na mesma lógica aqui descrita.

Os jovens, dentro das instituições totais, devem perder a sua individualidade, numa espécie
de “desconfiguração” pessoal que lhes permita a submissão às regras institucionais. Só a
partir dessa abertura o jovem estaria apto a sua “reconfiguração” dentro dos ditames da lei.

O internado descobre que perdeu alguns dos papéis em virtude da barreira que o separa do
mundo externo. Gera1mente, o processo de admissão também leva a outros processos de per-
da e mortificação. Muito frequentemente verificamos que a equipe dirigente emprega o que
denominamos processos de admissão: obter uma história de vida, tirar fotografia, pesar, ti-
rar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pessoais para que sejam
guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar
instruções quanto a regras, designar um local para o internado. (GOFFMAN, 1961, p. 25)

Os itens capazes de oferecer algum traço de pessoalidade aos internos – roupas, itens de higie-
ne - são substituído por uniformes padronizados e por itens impessoais. A correspondência é
violada, as rotinas são padronizadas e espera-se, sempre, a obediência e submissão.

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O autor também destaca que os processos de admissão nesses espaços normalmente
passam por testes de obediência, uma espécie de iniciação, onde a equipe dirigente da ins-
tituição ou os internados - normalmente os dois grupos – procuram dar uma noção exata da
condição do sujeito no momento em que ele entra no espaço da privação de liberdade.

É nesse ínterim de tentativas de despersonificação dos sujeitos e de ataques à sua


individualidade que surge, dentro desses espaços, uma criptografia própria, que traduz
a dinâmica da condição e das normatizações que regulam as relações estabelecidas
143
nestes espaços. Aqui temos o primeiro termo que nos chama atenção dentro da dinâmi-
ca institucional: a chamada representação.

Dentro das unidades de internação é corriqueiro ouvirmos dos jovens e também dos profis-
sionais a noção de que um jovem representou para outro jovem.

O significado usual do verbo representar esta relacionado às artes, já que normalmente pensa-
mos na representação de papéis no teatro ou de reproduções por meio da escultura, da pintura,
da gravura etc. O significado exigido desse verbo, no contexto da privação de liberdade, esta
relacionado à outra ideia, cara aos que se situam internados ou trabalhando nesses espaços.

Representar, dentro da unidade de internação, significa obedecer às ordens ditadas pelos


mais fortes dos internos, demonstrando para a instituição, à revelia da vontade daquele
que obedece, a sua insubordinação às regras impostas pelos dirigentes e sua subordina-
ção às regras do grupo de internados.

Temos aqui uma disputa pelo poder que é marcada, novamente, pela violência. Os atos de
representação, nesses casos, envolvem a violência física contra funcionários dos estabeleci-
mentos ou contra outros internos, especialmente aqueles colocados em situação desfavorá-
vel dentro da dinâmica institucional, também chamados de bola.
O bola é, nessa dinâmica, aquele interno que, por alguma razão, passa a ser perseguido pelos
demais – a negativa de “representar” o grupo pode colocar um jovem nessa condição, bem
como uma delação, por exemplo – o bola é privado do convívio com os demais jovens devido
ao seu risco de morte pela ação violenta do grupo.

Destacamos que ambas as expressões guardam similaridades com os significados origi-


nais das palavras, mas adquirem, na unidade, uma simbologia violenta, própria da natureza
das relações naqueles espaços. Quando ocorre de um interno ser agredido por outros
internos diz-se que foi vítima de um atropelo.

O atropelo significa que um grupo se uniu para agredir um interno, seja porque este desres-
peitou as normas instituídas pelo grupo de internos, seja porque alguém com mais poder
dentre os internos exigiu que os outros o fizessem. Em regra, quem agride fisicamente o faz
por determinação de outros, numa relação de submissão de uns internos sob os outros.

Assim também é caso da expressão bater chapão, que designa à ação de bater com os pés,
mãos e objetos disponíveis as portas dos alojamentos quando se necessita de alguma coisa.
A forma de manifestação das demandas pelos internos vem, novamente, acompanhada da
violência, já que conforme se verifica a linguagem que se compreende nos espaços de priva-
ção de liberdade é dominantemente violenta. Se há um indicativo de movimento de motim,
dentro da unidade, diz-se que a mesma irá virar.

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Aqui o significado do termo se adequa à realidade do ato desejado, ou seja, deseja-se virar
a instituição tomando o lugar de direção e colocando os dirigentes na condição de dirigi-
dos, como ocorre com frequência nas rebeliões.

Assim, poderíamos citar uma diversidade de exemplos de como a linguagem própria das
instituições totais, neste caso destinada aos jovens, indicam as relações que se estabe-
lecem dentro daquele espaço.
144
Assim, ainda que as instâncias corresponsáveis por estes espaços tenham acesso à parte
dos significados desses termos, a significação da existência destes – isto é, de uma lingua-
gem própria criptografada aos de fora– é a demonstração da incapacidade do controle total
sobre o outro. Além disso, as expressões são mutáveis, sendo constantemente substituídas
quando a sua popularização faz-se irreversível.

Os jovens internos criativamente reinventam o seu português, dando novos signos às pala-
vras, criando códigos incompreensíveis, por vezes até mesmo pelos próprios profissionais
que atuam nestes espaços.

Sua capacidade inventiva, contudo, se destaca pela incapacidade de estabelecerem


relações pacíficas com seus iguais. A “guerra” que os impele todo o tempo à violência nas
ruas se reproduz na privação de liberdade.

Assim como nas ruas, os jovens adquirem visibilidade dentro da unidade quando rompem
com as regras da instituição. Adquirem identidade da mesma forma que o faziam antes da
intervenção do Estado. Precisam se reafirmar enquanto membros do grupo, precisam “repre-
sentar” e “bater chapão”. Também precisam se diferenciar dentro de um espaço destinado à
sua despersonificação e reagem à ela com os mecanismos que dispõe sendo que, mais uma
vez, se identificam com a sua vida regressa.
A existência de uma sociolinguagem própria da internação nos obriga a refletir sobre a forma
como os jovens entram, permanecem e saem desses espaços, já que por vezes as identida-
des infracionais são reforçadas pela própria identificação ao grupo.

As expressões, ainda que situadas no mesmo campo semântico dos sentidos originais
incluem um elemento desagregador às rotinas institucionais. Esses códigos de socialização,
signos do grupo, reforçam uma perspectiva violenta de relacionamento interno.

Dar ataque, na gíria dos jovens, é enfrentar o inimigo no território do inimigo. Dentro da nossa
realidade, os jovens “atacam pela língua”, ao modificá-la onde o outro, detentor do conheci-
mento formal e agente do controle, não deve alcançar.

Conforme destaca Rubim (2009) é na superfície do corpo que se inicia o processo de


pertencimento – é com um corpo marcado, torturado e amordaçado que o adolescente é
convidado a dar provas de sua lealdade ao grupo.

É por meio do encontro com esses corpos marcados e com sua linguagem que chegamos à
necessidade desse artigo, já que o encontro regular com essas marcas produzem impotên-
cia, desesperança e sofrimento naqueles que se contrapõe a violência como linguagem.

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3. Considerações Finais

Por fim, destacamos que ao compartilhar as visões de Arendt (2016) sobre a violência
buscamos desconstruir a visão de que a existência da mesma seja algo natural. Ainda que
ela seja característica do mundo animal e humano, a evolução da cultura e organização
civilizada dos homens se contrapõe à sua existência.

Assim, problematiza-se o quanto a transposição de pesquisas das chamadas “ciências


naturais” influencia na naturalização dos comportamentos violentos humanos e o quanto a 145
desnaturalização da violência precisa ser pensada.

Da agressividade, definida como um impulso instintivo, diz-se que ela representa o mesmo
papel funcional no âmbito da natureza, que os instintos sexuais e os de nutrição no processo
vital do individuo e da espécie. [...] Segundo essa interpretação, a violência sem provocação é
‘natural’; se ela perdeu a sua rationale, basicamente, a sua função na autopreservação tornou-
se ‘irracional’, e essa é supostamente a razão pela qual os homens podem ser mais ‘bestiais’
do que os outros animais. (ARENDT, 2016)

Colocamos aqui em xeque a ideia de que a agressividade e violência seriam atributos instintu-
ais irracionais. A violência, neste sentido, não é “nem bestial, nem irracional”. A agressividade
e a violência, assim entendidas, se inscrevem no humano e no racional. Costa (1984), valendo-
se de uma leitura freudiana da questão, também a situa nos mesmos termos, já que para ele a
violência não se define puramente como desejo instintivo ou pura impulsão irracional.

Assim, estamos diante da particularidade da violência humana, que erroneamente compreendida


por alguns como irracional é, em verdade, manifestação de algo exclusivo do homem: o desejo.

Cabe aqui destacarmos o desafio enfrentado pelos profissionais que atendem esses inter-
nos. A necessidade de estabelecimento de um vínculo que possa permitir uma relação de
confiança e o estabelecimento de um trabalho de compreensão do desejo do sujeito, no
espaço da internação, é ceifada pela obrigatoriedade desses profissionais “avaliarem” o com-
portamento do interno e de elaborarem um relatório que terá a finalidade de subsidiar uma
decisão judicial sobre a permanência ou não desse jovem dentro da unidade.

Acreditamos, conforme destaca Rosa (2002), que a psicanálise, nesse sentido, poderia ser
um instrumento de criação de resistências à instrumentalização do gozo e à manipulação da
vida operada por essa sociedade de mercado.

Para a autora, o conjunto de significantes à disposição do sujeito adolescente das periferias


é marcado por significados que geram dificuldades de inscrição desse sujeito no laço social.

O resultado é a produção de sujeitos sem afiliação nominativa no campo simbólico, sujeitos


em deriva. Ou, muitas vezes, sujeitos identificados ao pior dos significantes disponibilizados a
ele pelo social, sujeitos de vida e morte sem qualquer valor social positivo de pertencimento,
sujeitos de existência desqualificada, anônima. (Catroli; Rosa, 2013, p. 302)

A violência é o emprego desejado da agressividade e, neste sentido, ela pode ser racional
ou irracional, consciente ou inconsciente, voluntária ou involuntária. Isso, portanto, situa
a violência no âmbito do racional e, por isso mesmo, evita-nos animalizar suas manifesta-
ções no mundo social.

Após definir a violência como pura manifestação da agressividade, como algo, portanto, indo-

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mável, ele [Freud] a define como instrumento ou meio de que se servem os homens para implan-
tarem a ordem da lei e do direito. Por fim, depois de exaltar a constância e a irredutibilidade dos
instintos de destruição, fecha o raciocínio afirmando a existência de uma espécie de ‘instinto de
paz’, criando, socialmente, o que deita por terra sua tese inicial. [...] A aparente incoerência da
teoria revela o que Freud não pode deixar de notar: não existe um ‘instinto de violência’. O que
existe é um instinto agressivo que pode coexistir perfeitamente com a possibilidade do homem
desejar a paz e com a possibilidade do homem empregar a violência. (Costa, 1984, p. 27)

Arendt (2016) também nos conduz a um percurso de pensamento que demonstra como o
decréscimo do poder, que está relacionado à diminuição da capacidade de agir em conjunto, 146
torna-se um convite à violência. Seja da parte dos governantes, seja dos governados, aqueles
que perdem a capacidade de agir em conjunto e por consenso dificilmente resistem à tenta-
ção de substituir um poder decadente pela violência.

A autora, tomando o cuidado da diferenciação necessária entre poder e violência, nos conduz
a ideia de que o poder, sem a legitimidade, não existe, ainda que disponha da violência.

A violência sempre pode destruir o poder; do cano de uma arma emerge o comando mais
efetivo, resultando na mais perfeita e instantânea obediência. O que nunca emergirá daí
é o poder. […] O domínio pela pura violência advém de onde o poder está sendo perdido.
(ARENDT, 2016, p. 71)

Trata-se, portanto, de se repensar as práticas institucionais em sua legitimidade, de abor-


dar a lei em seu aspecto de ordenamento e de uma autoridade que não se baseie, exclusi-
vamente, na coerção.

Por fim, resta-nos então questionar abordagens que façam apologias da violência e destacar
a importância de impugnarmos o conflito como mecanismos de ação.

Se há violência nos espaços de privação de liberdade é possível que essa decorra das razões
já elencadas: da impotência do poder que tenta controlar sem legitimidade e da inexistência
de canais de comunicação, de politização dos conflitos e de resoluções não violentas das
questões, onde a linguagem tem que estar a serviço de uma cultura de paz.

A juventude, portanto, sai do anonimato nas instituições totais pela sua inventividade, mas se
mostra incapaz, ainda, de reconhecer que precisa encontrar caminhos que resultem em sua
liberdade e, não mais, na sua própria chacina.

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148
NOTAS PARA PENSAR A PROTEÇÃO A
CRIANÇAS E ADOLESCENTES ATRAVÉS DAS
PRÁTICAS DO COMISSÁRIO DE JUSTIÇA DA
INFÂNCIA DA JUVENTUDE E DO IDOSO

Thiago Sandes de Brito1

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

A problemática que introduzimos neste trabalho diz respeito à análise dos dispo-
sitivos de intervenção na área da infância e adolescência a partir das diretrizes
propostas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Lei 8.069/90), tendo
como ênfase as práticas deflagradas como de proteção comumente adotadas em
relação a crianças e adolescentes pobres. Para tanto, propomos como território
para a pesquisa o espaço da Vara da Infância e Juventude e do Idoso (VIJI), a
partir do trabalho endereçado ao Comissário de Justiça da Infância da Juven-
tude e do Idoso (CJIJI), integrante da equipe técnica interprofissional, a fim de
compreendermos os efeitos das práticas desse técnico no campo da proteção. Ao

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ressaltarmos o exercício do CJIJI, para além de ampliarmos o conhecimento da
atuação deste no âmbito da VIJI e da possível interlocução com a política de pro-
teção destinada a crianças e adolescentes, buscaremos problematizar a apropria-
ção do profissional psicólogo dentre aqueles que possuem a formação exigida
para assumir o cargo. Demarcamos, assim, a importância de explorar esse lugar
no qual o psicólogo também é convocado a ocupar no Judiciário. Privilegiaremos
o uso do diário de campo como instrumento-ferramenta de pesquisa.

Palavras–chaves: Comissário de Justiça. Proteção. Criança. Adolescente.


149

1. Introdução

A problemática que introduzimos no escopo desta proposta2 diz respeito à análise dos dispo-
sitivos de intervenção na área da infância e adolescência a partir das diretrizes propostas pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA; Lei 8.069/90), tendo como ênfase as práticas defla-
gradas como de proteção comumente adotadas em relação a crianças e adolescentes pobres.

Ventilamos a hipótese de que apesar das importantes transformações advindas no campo, per-
manecem as práticas pautadas por discursos coercitivos que visam ao controle das mazelas so-
ciais através da atenção aos modos de existência de crianças, adolescentes e famílias pobres.

1 Analista Judiciário – Especialidade: Comissário de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso – Tribunal


de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia/
Universidade do Federal Fluminense. Email: tsbrito.rj@gmail.com Telefone: (21) 99217-6320.

2 Convém esclarecer que esse texto faz parte das primeiras análises engendradas a partir da pesquisa
intitulada por “Encontros com o Judiciário”, instaurada no Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF), cujo início se deu no mês de setembro do ano de 2016.
Nos percursos irrompidos em nome da proteção e garantia de direitos para essa parcela da
população, muitas das formas de intervenção adotadas por profissionais nos equipamen-
tos sociais são enviesadas pelo apelo ao modelo da segurança. As práticas parecem ex-
pressar mais os velhos olhares e hábitos do que os deslocamentos esperados pelos atores
e movimentos sociais à época da promulgação do ECA, desejosos de ver essa parcela da
população tratada a partir de parâmetros igualitários.

Para tanto, propomos como território para a problematização o espaço da Vara da Infância
e Juventude e do Idoso (VIJI), a partir do trabalho realizado pela equipe técnica interprofis-
sional, sobretudo aquele endereçado ao Comissário de Justiça da Infância da Juventude e
do Idoso, lugar ocupado pelo autor3 desse texto, a fim de compreendermos os efeitos das
práticas destinadas a crianças e adolescentes.

Ao ressaltarmos o exercício do Comissário de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso,


para além de ampliarmos o conhecimento da atuação desse técnico no âmbito da VIJI e da
possível interlocução com a política de proteção destinada a crianças e adolescentes, busca-
remos problematizar a apropriação do profissional psicólogo dentre aqueles que possuem a
formação exigida para assumir o cargo4. Demarcamos, assim, a importância de explorar esse
lugar no qual o psicólogo também é convocado a ocupar no Judiciário.

Com o propósito de desenvolvermos a proposta em tela, faremos a escolha pelo diálogo entre os

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referenciais teóricos desenvolvidos por Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari, bem como
de teóricos da análise institucional, da criminologia crítica e demais pesquisadores do campo.

2. Justificativa

A construção de um modelo de intervenção sobre a criança e o adolescente é um processo


complexo que hoje se ampara em textos legais – as Convenções Internacionais das quais
150
o Brasil é signatário; o Art. 227 da Constituição Federal de 1988; o ECA – e incorpora as
demandas políticas dos movimentos sociais pela defesa da igualdade e consecução da cida-
dania. Esse conjunto, no seu todo, clama por mudanças no Estado e na sociedade, no público
e no privado. Mas essas noções – igualdade e cidadania – comportam muitos sentidos.

O ECA foi aprovado por parte de segmentos importantes da sociedade na esperança de ver
crianças e adolescentes tratados de forma diferente. Ele reconhece as crianças e os ado-
lescentes como cidadãos e sujeitos de direitos, vistos de forma igualitária, como prioridade
absoluta, sendo respeitada a sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento (BRASIL,
1990). O reconhecimento legal da criança e do adolescente como sujeitos de direitos produz
demandas e responsabilidades por parte de agentes (a família, a comunidade, a sociedade e
o Estado) que devem garantir a concretização destes na vida de cada criança e adolescente
que tenham seus direitos ameaçados ou violados.

3 A datar do mês de julho do ano de 2012, encontro-me como servidor público do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio de Janeiro. Desde sempre, atuando em Vara de Infância, Juventude e do Idoso, exercendo o cargo de
Analista Judiciário - Especialidade: Comissário de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso.

4 No Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro, a formação em Psicologia configura como uma das
possíveis para o exercício da especialidade de Comissário de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso (Art. 420;
CGJ, 2015).
Nesse contexto, embora o ECA incorpore uma série de mudanças, as configurações que
assumem as práticas relativas a esse segmento da população no cenário brasileiro revelam
descompassos, tensões e contrapontos com a leitura que a lei prometia. Compreendermos os
delineamentos que os princípios e avanços estabelecidos pelo ECA vêm assumindo no plano
das práticas sociais, torna-se importante para que possamos verificar como operam o con-
junto de dispositivos que incidem sobre esse segmento da população e a sua aplicabilidade
naquilo que se refere às promessas de transformação e melhoria das condições de vida nor-
malmente embutidas no discurso sobre as ações que incidem sobre crianças e adolescentes.

As práticas sociais ocupam importante lugar no pensamento de Michel Foucault, quem


afirma que são elas que fazem aparecer os diferentes objetos, saberes e sujeitos. Mais do
que entendê-las como possuidoras de uma essência ou natureza própria, as nossas práticas
tornam-se importantes instrumentos de reprodução e/ou criação, operando no tecido social
como instrumento normativo em torno do qual circulam estrategicamente os sujeitos, produ-
zindo os mais diversos efeitos (FOUCAULT, 2004a).

Nesse sentido, visando refletir acerca das concepções de proteção que são destinadas a
crianças e adolescentes, torna-se legítimo debruçarmos sobre as práticas sociais historica-
mente engendradas no âmbito das relações produzidas pelos equipamentos sociojurídicos
para com crianças, adolescentes e famílias pobres.

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Demarcamos a escolha por estabelecer o domínio do Judiciário como o ponto de partida
para a problematização das forças que compõem esse campo de tensões e de onde emer-
gem novos objetos e formas instituídas de sujeitos (FOUCAULT, 2003). Ao iniciarmos a
discussão, ressaltamos a relevância em explorar o estudo através do acompanhamento do
trabalho instaurado pela equipe técnica interprofissional, enfatizando as práticas do Comis-
sário de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso.

O ECA dispõe genericamente sobre algumas das competências da equipe, a saber:


151
Art. 151 Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe forem reservadas
pela legislação local5, fornecer subsídios por escrito mediante laudos, ou verbalmente, na au-
diência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento,
prevenção e outros, tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurando a
livre manifestação do ponto de vista técnico.

Ainda que breve, ao versar sobre a equipe técnica interprofissional, salta aos olhos a neces-
sidade de estabelecer o espaço do Judiciário como o campo reconhecidamente do juiz, a
autoridade judiciária que determinará o lugar que cada um dos especialistas vai ocupar.

COIMBRA et. al. (2008a) convidam a pensar criticamente sobre esse lugar no qual o
profissional é convocado para se manifestar - da avaliação especializada -, visando
auxiliar ao juiz nos desdobramentos suscitados pelo trâmite processual. Sucintamente,
colocam em tela o que normalmente se espera do especialista psicólogo e assistente
social, encarregados, à parte, de campos construídos como distintos, mas que são afins:
o psicológico e o social.

5 No Estado do Rio de Janeiro, o Poder Judiciário, através do Livro II, Título I, Capítulo III, Seções X a XII, da
Consolidação Normativa da Corregedoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (op. cit.), busca esmiuçar as competências
de Assistentes Sociais, Comissários de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso e Psicólogos.
A crença em especificidades da Psicologia e do Serviço Social como disciplinas possuidoras de
fronteiras previamente delimitadas poderia estar sendo superada à medida que o social e o psi-
cológico fossem percebidos como campos que se cruzam, se constituem, se complementam e
que são historicamente construídos. A possibilidade de uma intervenção que não fragmente ou
que limite a vida a partir de objetos percebidos como estáticos e naturais, parece ser, então, o
desafio que nos coloca no cotidiano das práticas presentes no Judiciário (Ibid., p. 33).

Nessa perspectiva, pretendemos trazer à cena o especialista Comissário de Justiça da


Infância da Juventude e do Idoso, a fim de somar ao desafio de problematizar o campo
sócio-historicamente construído como de sua intervenção no domínio das práticas direcio-
nadas à equipe técnica interprofissional.

No Estado do Rio de Janeiro, o Poder Judiciário, através da Consolidação Normativa da


Corregedoria Geral do Estado do Rio de Janeiro – Parte Judicial (op. cit.), do Art. 420 ao Art.
430, organiza alguns dos deveres do Comissário de Justiça. Inicialmente, dispõe que:

Art. 420 O Analista Judiciário na Especialidade de Comissário de Justiça da Infância, da Juven-


tude e do Idoso é hierarquicamente subordinado ao Juiz de Direito e tecnicamente vinculado ao
Serviço de Apoio aos Comissários de Justiça e exercefunções de fiscalização, de garantia e de
proteção dos direitos da criança e do adolescente vedando-lhe o porte de arma. [grifo nosso]

Convém destacar que no conjunto das atribuições mais gerais que estão dispostas nesse

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documento, e razoavelmente discriminadas no Art. 4226, nota-se que é preponderante a
assimilação da “fiscalização” como sendo a função que melhor configura o trabalho desse
especialista. Privilegia-se no meio jurídico o entendimento de que o campo de atuação desse
profissional deve ser norteado pela atividade de fiscalização dos diversos espaços que
tratam de assuntos referentes a crianças e adolescentes.

Noutras palavras, há uma apropriação do trabalho do Comissário de Justiça da Infância da


Juventude e do Idoso de modo que o faz se aproximar muito mais de práticas com ênfase na
vigilância e no controle de crianças e adolescentes, valendo-se da justificativa da proteção e
152
garantia dos direitos desse segmento da população.

Em tese, a compreensão sobre as ações que devem ser engendradas pelo Comissário de Jus-
tiça parece, ainda, ter como norte concepções construídas à época em que estavam em vigor
os Códigos de Menores, sendo inevitável estabelecer um paralelo com algumas das práticas
exercidas pela figura do Comissário de Vigilância7, a quem, grosso modo, era confiado o de-
senvolvimento da investigação e vigilância de alguns dos casos que tramitavam pelo Juizado.

Portanto, torna-se importante o acompanhamento e a problematização das práticas do


Comissário de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso, visando ampliar o conhecimen-
to da atuação adotada por esse profissional no espaço do Judiciário e na interlocução com
crianças, adolescentes e suas famílias, bem como com os equipamentos da assistência
social, a fim de ampliar a discussão acerca da política de proteção e garantia dos direitos
destinada a crianças e adolescentes.

6 Disponível em: http://cgj.tjrj.jus.br/consultas/legislacao/consolidacao-normativa-parte-judicial. Acesso


em: 15 de abril de 2017.

7 Mais informações, ver Art. 152, em: BRASIL. Decreto N°. 17.943-A de 12 de outubro de 1927. Código
dos Menores. Brasília, 1927. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/d17943a.htm.
Acesso em 15 de abril de 2017.
Pretendemos tensionar esse campo que, ora captura o profissional para fixar a cadeira
a determinado modo de atuação condizente ao especialismo que representa, muitas das
vezes endereçando seu trabalho ao juiz; ora o técnico que produz escapes e resistências
por intermédio de suas práticas, compondo parcerias outras, a começar com os usuários
que são a finalidade da sua intervenção.

Em que pese a rijeza do Judiciário e das relações hierarquizadas, compartilhamos da


análise foucaultiana acerca do poder, o qual não está localizado numa personalidade ou
de que alguém seja seu proprietário, mas sim como participando de um jogo de forças
que não está localizado em nenhum ponto da estrutura, a que ninguém escapa, atraves-
sando todo o corpo social (FOUCAULT, 2004b).

3. Objetivos
3.1 Objetivo Geral

Discutir, a partir do Judiciário, as práticas voltadas à proteção de crianças e adolescentes


engendradas na Vara da Infância e Juventude e do Idoso.

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3.2 Objetivos Específicos

• Analisar as práticas e efeitos da intervenção realizada junto a crianças, adolescentes e


suas famílias pela equipe técnica interprofissional, com ênfase no trabalho do Comissá-
rio de Justiça da Infância da Juventude e do Idoso;

• Problematizar a incorporação do profissional psicólogo como Comissário de Justiça da In-


fância da Juventude e do Idoso a que é convidado a ocupar dentre as carreiras no Judiciário;

153

4. Percurso metodológico e ferramentas de análise

Os instrumentos oferecidos pela socioanálise permitem a composição de um distinto referencial


de pesquisa. Nele, as análises das produções de subjetividades se dão na processualidade e
as múltiplas relações que constituem o campo são entendidas sócio-historicamente. Isto é, as
relações de poder não são pensadas a partir de um ponto de origem, caracterizando verdades ab-
solutas (FOUCAULT, 1996). O que se tem é a construção constante das formas de produção que,
engendradas por forças múltiplas, atravessam, esquadrinham, disciplinam e/ou singularizam os
sujeitos e todas as redes nas quais está inserido. As transversalidades que constituem o campo
de pesquisa modificarão e produzirão efeitos nesse mesmo campo. Entendendo como efeitos:

[...] formalizações de fenômenos recorrentes, que só se produzem/reproduzem em certas con-


dições. Devem ser conhecidos não para que se os reverencie à maneira de uma legalidade
positivista (assim é... assim deve ser..), e sim para que se os possa analisar, combater ou
favorecer no campo (da intervenção, da pesquisa, da escritura, do movimento social e etc.)
(RODRIGUES, 2004, p. 144).

Nesse sentido, ocorre o reconhecimento de casualidades que são elevadas a instâncias


hegemônicas. Isto é, virtualidades alcançam status hegemônicos de acordo com os arranjos
políticos, econômicos, sociais, institucionais, dentre outros. Dessa forma, o acompanhamen-
to do processo é o eixo da pesquisa, pois a partir dele torna-se possível a aproximação e o
reconhecimento de (determinadas) forças que atravessam e produzem formas de ser e estar.

É fundamental a compreensão de que nesse acompanhamento todos os atores desse


processo estão implicados, afetando e afetando-se durante esse percurso. Os espaços
ocupados são fluidos e a ação de pesquisar provoca, interfere e modifica esse campo. As
práticas executadas nesses territórios são colocadas em análise, incluindo – principalmen-
te e primeiramente – as que partem do pesquisador.

De acordo com a socioanálise, o pesquisar é um modo de intervenção social em que o


pesquisador estará implicado. O conceito de implicação se refere às forças inconscientes –
na esfera institucional – que se atravessam. Os efeitos desse atravessamento são valores,
expectativas, desejos e crenças que são produzidos e instituídos como realidade. E caberá à
análise o rompimento das formas instituídas (PASSOS & BARROS, 2010). A análise/interven-
ção modula o campo a ser pesquisado, limitando-o e configurando-o.

O próprio método é processual, os desdobramentos da pesquisa se modificarão pela pró-


pria presença do pesquisador no campo.

As práticas sociais analisadas serão entendidas como produções, tais formas são constitu-
ídas em processos compostos por múltiplos vetores. A prática da socioanálise coloca em

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evidência os analisadores – circunstâncias ou atores que permitem a denúncia ou esclareci-
mento das formas de poder produzidas de uma organização, grupo, instituição ou sistema,
dessa forma, realçando as relações de poder existentes e suas produções.

A escolha da metodologia analítica tem como intuito uma ação para além da observação
de um objeto, afastando-se até mesmo das reflexões tradicionais de pesquisa. De acordo
com Rodrigues (op. cit.), o “objeto” da análise institucional nada mais é do que sua própria
instauração ou instituição, isto é, o que institui a situação de intervenção: encomenda,
demanda, dinheiro, contrato, tempo, etc. Nesse sentido, pesquisar e intervir são indissoci- 154
áveis, as categorias de sujeito/pesquisador e objeto/pesquisado é desconstruído, desca-
racterizando a polaridade sujeito e objeto. A própria investigação dos registros solicitados
para pesquisa carrega um intervir.

Os analisadores ramificam-se em naturais e construídos. O primeiro diz respeito às cate-


gorias criadas como o louco, velho, mulher, criança e aborda um viés em que essas são
separações instituídas pelas práticas sociais e que são elevadas a categorias de normas e
sanções por meio dos analisadores construídos. No entanto, o emprego do adjetivo natural
não remete à natureza mais profunda, afinal todo analisador é sócio-histórico. O registro
natural é a descrição antagônica ao construído. Para Rodrigues (op. cit.):

O analisador natural vem ao encontro da situação sem ser intencionalmente proposto ou con-
trolado, ao passo que o construído é um dispositivo artificialmente instalado. Às vezes se di-
zem históricos os analisadores naturais, o que não resolve inteiramente o problema da falta de
clareza: não seriam igualmente históricos os analisadores construídos? (p. 146)

Um dos analisadores citados como natural seria a criança e um dos consequentes analisadores
construídos: a infância e adolescência. Dessa forma, categorias surgem para dar conta de um
contexto socioeconômico e político onde as relações de poder produzem normas e regulações.
5. Considerações Finais

Nessa perspectiva, os que escapam dessas regularizações são enquadrados em práticas ju-
ridicializantes e criminalizantes. Para dar conta das demandas apresentadas, estratégias são
criadas e políticas são desenvolvidas a fim de promover a “proteção” dos mesmos, noutras
palavras, tecnologias que visam a produção de controle/tutela das suas vidas.

Enquanto a regulação econômica se dá espontaneamente, pelas propriedades formais da con-


corrência, a regulação social por sua vez – a regulação social dos conflitos, das irregularidades
de comportamento, dos danos provocados por uns aos outros, etc. -, tudo isso vai exigir um
intervencionismo, um intervencionismo judiciário, que deverá ser praticado como arbitragem
no âmbito das regras do jogo. […] à medida que vocês libertarem os sujeitos econômicos e
deixarem que eles joguem seu jogo, quanto mais os libertarem, mais, ao mesmo tempo, vocês
os destacarão do estatuto de funcionários virtuais a que um plano os prendia e mais multipli-
carão necessariamente os juízes. […] multiplicação da dinâmica das empresas e, com isso,
necessidade de instâncias judiciárias ou, em todo caso, de instâncias de arbitragem cada vez
mais numerosas (FOUCAULT, 2008a, p. 240-241).

Alguns estudos, dentre eles BATISTA (2010), NASCIMENTO (2002), SCHEINVAR (2000)
revelam que embora o ECA tenha incorporado uma série de questionamentos, como por
exemplo, o reconhecimento de crianças e adolescentes como sujeitos merecedores de

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proteção integral e a substituição da concepção de “menor” por criança e adolescente,
buscando a descriminalização da infância e adolescência pobres, a prática revela que as
ações voltadas à proteção encontram-se ainda revestidas por princípios compensatórios
e repressivos no que se refere às crianças e aos adolescentes pobres, naturalizando-os
como “carentes” e/ou em situação de “risco” e “vulnerabilidade”, sendo inevitável o sur-
gimento da dicotomia: infância/adolescência “normal” em oposição à de “risco”, quase
sempre atravessada pela pobreza e, portanto, alvo de controle social como estratégia de
segurança (FOUCAULT, 2008b).

155
Constatamos diariamente a incessante tentativa de esvaziamento subjetivo do modo de
existência de crianças e adolescentes pobres. O poder que os atravessam parece circunscre-
vê-los apenas sob a marca de um único domínio que compõem as nossas vidas: o da segu-
rança/punitivo. Produzem-se subjetividades imputadas a esse público que os aprisionam e
que encerram a possibilidade de proliferação de outros modos de existência. Marcados por
processos de criminalização e judicialização, não passarão mais despercebidos, e assim,
encontram-se inscritos na lei punitiva dominante.

Faz parte da economia do poder na atualidade a multiplicação do poder da magistratura e,


principalmente, a multiplicação da função judiciária no corpo social. O que hoje se observa é
a multiplicação dos objetos judiciáveis, a redefinição do sentido da violência, o que significa
também a multiplicação das atribuições judiciárias [...] regulamentação jurídica de todos os
comportamentos como modalidade de governo (LOBO, 2012).

Neste ponto, nos aproximamos das vidas infames, vidas desconhecidas que não poderão
mais passar despercebidas, visto terem sido atravessadas pelo poder, seja na tentativa de
escapar às suas armadilhas ou para fazer uso das suas forças (FOUCAULT, 2006). Vidas que
na encruzilhada dos múltiplos componentes de subjetividade que as atravessam, são enqua-
dradas de modo a circunscrevê-las apenas ao domínio da lei e às categorias de normatização
que instauram a relação da transcendência nas relações de representação.
Notamos a cristalização da negatividade e da violência, por meio da sociedade, nos
modos de existir dos jovens e famílias pobres, tal qual estivessem inscritas em suas
essências. Guattari (2009) nos aponta que:

a violência e a negatividade resultam sempre de Agenciamentos subjetivos complexos: elas


não estão intrinsecamente inscritas na essência da espécie humana, são construídas e sus-
tentadas por múltiplos Agenciamentos de enunciação [...] Na falta de uma tolerância e de uma
inventividade permanente para “imaginarizar” os diversos avatares da violência, a sociedade
corre o risco de fazê-los cristalizar-se no real (p. 42-43).

Por agenciamento subjetivo de enunciação, podemos dizer que é o “meio” que se instaura
na relação sujeito – objeto, a instância fundadora da intencionalidade. Não corresponde
nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada. A lógica
capitalística é mister em disseminar valores onde todos nós, a propósito, teríamos que
nos situar. Há uma constante tentativa de contaminar, de suprimir os processos criativos,
inventivos que engendrariam processos de singularização. Ao contrário, produzem-se
subjetividades serializadas, normalizadas, esquadrinhadas, tal como se existisse uma lei
transcendental que as definem (GUATTARI & ROLNIK, 2010).

Indivíduos são fabricados e marcados enquanto objetos de interesse do poder. Ao tempo que os
formam, constroem realidades oferecidas enquanto verdades: “[...] o exercício do poder cria per-

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petuamente saber e, inversamente, o saber acarreta efeitos de poder” (FOUCAULT, 2004c, p. 142).

Referências
156

BATISTA, Vera M. A governamentalização da juventude: policizando o social. Revista EPOS, v.


1, n. 1, 2010. Disponível em: http://revistaepos.org/arquivos/01/verabatista.pdf. Acesso em:
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SCHEINVAR, Estela. Anotações para pensar a proteção à criança. Rev. Departamento de Psico-
logia da UFF, v. 10, n. 2-3, pp. 66-79, 2000.

157
O OLHAR SOBRE A PRIVAÇÃO NA ÓTICA
DOS INVISÍVEIS

Renato Luchi Marassati1, Rosemary Grippa Pinto2 e Vagner Simplício3

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

A adolescência é compreendida pela maioria dos teóricos como uma fase de


transição, entre a infância e a vida adulta, na qual ocorrem inúmeras mudanças
em vários aspectos da vida no individuo – o biológico, o psicológico, o social e o
afetivo. Como em toda e qualquer transição, faz-se necessária uma adaptação ao
novo, uma reordenação. Partindo desse pressuposto, acredita-se que em determi-
nado momento de sua trajetória de vida, o sujeito deve reformular os conceitos
sobre si mesmo, possibilitando assim uma nova construção de valores pessoais
e sociais. Nessa lógica, o recurso fotográfico é uma ferramenta que possibilita a
expressão mais intima do olhar de quem fotografa, sobre o que ele vê, sendo uma
das mais sublimes formas de expressão do ser humano. Nesse diapasão, este
projeto de intervenção teve como objetivo o questionamento e a problematização
do modo como os adolescentes e jovens que se encontram privados de liberdade,

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enxergam sua atual condição em uma Unidade socioeducativa de Internação, lo-
calizada no Norte do estado do Espírito Santo. Através de atividades lúdicas, ro-
das de conversas, palestras, filmes e curta-metragem, os socioeducandos foram
levados a reflexão sobre sua atual condição, além de discutir sobre a trajetória
do ato infracional. Posterior, os adolescentes participaram de uma oficina sobre
fotografia, em que tiveram contato com um equipamento profissional fotográfico,
onde cada sujeito expressou, através do ato de fotografar, o significado da priva-
ção de liberdade. Como resultado, este trabalho possibilitou a criação de espaços
de discussão, gerando incomodo, desconforto, questionamento e empoderamen-
to acerca da temática da privação de liberdade e suas consequências. Possibili-
tou uma reflexão acerca de sua atual condição de vida, neste espaço de privação
158
de liberdade e modos de enfretamento das adversidades cotidianas.

Palavras chaves: socioeducação; fotografia; empoderamento; intervenção.

1. Introdução

A adolescência pode ser compreendida no campo da Psicologia como uma fase natural do
desenvolvimento humano, marcada por transformações físicas e emocionais, por outro lado,
pode também, para outras áreas da Psicologia ser entendida como uma construção social e
histórica que tem como objetivo demarcar as mudanças no sujeito, fruto de sua relação com
o meio em que vive (AVILA, 2005).

1 Bacharelado em Psicologia. Faculdade Pitágoras. E-mail: renato_luchim@hotmail.com. Telefone: 99887-2394.

2 Graduada em Serviço Social. Faculdade de Vila Velha. E-mail: r.grippa@yahoo.com.br. Telefone: 99974-3712.

3 Bacharelado em Direito. Faculdade de Ensino Superior de Linhares. E-mail: v.simplicio@hotmail.com.


Telefone: 3151-2299
Na contemporaneidade a adolescência é fruto de uma sociedade capitalista, individuali-
zante, consumista e excludente, sendo esses, modos de subjetivação que são reafirmados
pelos saberes como a Psicologia, por exemplo, e demarcam os territórios que naturalizam
e estereotipam a adolescência definindo aquilo que é próprio ou não, bom ou mau, certo ou
errado, normal ou patológico para o ser adolescente.

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), toda criança e


adolescente gozam de todos direitos inerentes a pessoa humana, sendo dever da família, da
comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar tais direitos. Neste diapa-
são, deve-se atentar para os diversos mecanismos existentes na sociedade, na intenção de
garantir que tais direitos, elencados no estatuto, sejam de fato garantidos.

Segundo Castro (2006), a sociedade atual está repleta de contradições, existem avanços
tecnológicos que por um lado traz o progresso e por outro traz dificuldades, pois não são
todos que possuem condições de obter tudo que a sociedade capitalista oferece. Nesse
contexto de consumo que a maioria dos jovens estão inseridos, na maioria das vezes, a
trajetória de vida é marcada pela exclusão social. Sendo assim, muitas vezes o adolescen-
te encontra no cometimento do ato infracional uma forma de marcar sua existência, de
fazer parte do mundo (CASTRO, 2006).

De acordo com Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990, p. 11) em seu art 112:

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Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao ado-
lescente as seguintes medidas: I – advertência; II – obrigação de reparar o dano; III – prestação
de serviços à comunidade; IV – liberdade assistida; V – inserção em regime de semiliberdade; VI
– internação em estabelecimento educacional; VII – qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

A lei de nº 12.594 de janeiro de 2012, institui o Sistema Nacional de Atendimento Socio-


educativo (SINASE), lei essa que regulamenta a execução das medidas socioeducativas
destinadas ao adolescente que pratique ato infracional.
159
O § 1º do art 1º da lei de nº 12.594 aponta que:

§ 1º Entende-se por Sinase o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem
a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais,
distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendi-
mento a adolescente em conflito com a lei.

Como dito anteriormente, no estado do Espírito Santo o órgão responsável por executar
as medidas socioeducativas é Instituto de Atendimento Sócio-educativo do Espirito
Santo (IASES). O IASES busca, em seus objetivos a reinserção na sociedade e o forta-
lecimento de vínculos familiares e comunitários de adolescentes em conflito com a lei,
promovendo a garantia dos direitos desses sujeitos.

O processo de responsabilização do adolescente em conflito com a lei deve apresentar um


caráter educativo, de modo que as medidas socioeducativas (re)instituam direitos, inter-
rompam a trajetória infracional e permitam aos adolescentes a inclusão social, educacio-
nal, cultural e profissional (BRASIL, 2013).

Contudo, na prática a Política de Socioeducação não se concretizou completamente, estando


ainda no papel. A medida socioeducativa de internação não possibilita o retorno desses ado-
lescentes ao convívio social. O autor ainda destaca que é necessário que a implementação do
Estatuto da Criança e do Adolescente seja efetivada em sua totalidade (A POLÍTICA..., 2016).

Segundo Aranzedo e Souza (2007), na maioria das instituições de internação de adolescentes


no país o aspecto coercitivo da privação de liberdade predomina sobre o trabalho socioeducati-
vo. As práticas socioeducativas deveriam possibilitar voz aos adolescentes e tratá-los como su-
jeitos de direitos, porém acabam violando-os e tornando esse espaço em produtor de violência.

Ressalta-se que o conceito de violência aqui abordado não se restringe a física ou verbal,
mas ao apresentado por Chauí (1980), sendo que violência não é a transgressão das leis, e
sim a coisificação do sujeito, ou seja, é algo imposto que vem de cima para baixo.

Para Foucault (2004, apud CUNHA et al, 2013, p. 02) na sociedade moderna não bastava
apenas punir o infrator, precisa-se alcançar um saber sobre as razões de sua infração que es-
timulasse a construção de práticas que possuísse a capacidade de neutralizar sua periculo-
sidade e modificar sua conduta. A partir dessa demanda os agentes da ciência criminológica
buscavam responder qual decisão seria adequada: se seria acessível á sanção penal, curável
ou readaptável, seria melhor o hospício ou prisão, se o enclausuramento seria breve ou longo,
um tratamento médico ou medidas de segurança. Estes agentes norteariam o juiz a estabele-
cer as medidas adequadas a cada caso, buscando não mais excluir o infrator, mas recuperá-
-lo porque o importante era reparar o mau, assim o criminoso poderia voltar a sociedade.

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É importante que o profissional psicólogo aposte no sujeito, em sua capacidade de se rein-
ventar. Que ofereça espaços que possibilite novas formas de subjetivação, ou seja, descons-
truir e (re)construir, junto dos sujeitos, novos modos de ser e estar no mundo.

Cunha entre outros (2013), apontam sobre como é fundamental o envolvimento com o univer-
so simbólico dos adolescentes para a realização de intervenções.

Refletindo na importância de se utilizar uma ferramenta de trabalho como norteador de ações


160
estratégicas, o recurso fotográfico pode exercer um papel importante no contexto pessoal e co-
munitário, uma vez que geralmente esta ferramenta é utilizada apenas como um produto visual.

De acordo com Gomes (1996, apud MAHEIRIE; BOEING; PINTO, 2005, p. 215), é durante
o registro de uma vivência, que a fotografia pode provocar sensações, percepções, sen-
timentos diferentes dando vazão a subjetividade deste sujeito, eternizando tal momen-
to/experiência. É através da imagem que diversos aspectos podem ser identificados,
trazendo novas informações dos observantes.

Para Gomes e Dimenstein (2014, p. 806):

A fotografia provoca discursos e se apresenta como uma fonte privilegiada de informações


da realidade estudada e da visão de mundo dos participantes. A articulação imagem-discur-
so mostra-se potente no acesso a diferentes dimensões dos sujeitos e se constitui em uma
estratégia de intervenção em várias problemáticas. Dessa forma, as narrativas visuais têm
uma função estratégica, contribuindo para superar barreiras culturais entre pesquisador e
pesquisado, produzindo conhecimentos culturalmente sensíveis, seja no campo da Psicolo-
gia, seja na Saúde Coletiva.

Assim a fotografia deve ser utilizada como uma ferramenta com considerável potencial na
psicologia, através de modos subjetivadores da produção de conhecimentos e busca de
autonomia de sujeitos acometidos da privação de liberdade. Refere-se a uma estratégia
em que uma mesma realidade, pode trazer infinitas possibilidades de interpretação,
sempre a partir da ótica de cada sujeito, sendo mais um recurso da caixa de ferramenta
do pesquisador (GOMES; DIMENSTEIN, 2014).

Portanto, para Gomes e Dimenstein (2014), o recurso fotográfico pode produzir inter-
ferência no plano das habilidades e competências dos participantes desse projeto de
intervenção, produzindo empoderamento.

Portanto, este projeto de intervenção, tem por objetivo possibilitar ao adolescente


privado de liberdade, a expressão da realidade vivenciada nos intramuros da Unidade
de Internação Provisória, localizada no município de Linhares-ES, utilizando o recurso
fotográfico como instrumento expressivo. Tal atividade visa entre outras questões o
olhar do sujeito privado de liberdade, acerca da realidade vivenciada no contexto de
privação de liberdade.

Este trabalho proporcionará um entendimento de questões subjetiva de adolescentes


em cumprimento de medida socioeducativa de internação, através não somente da fala,
mas do olhar com relação a privação de liberdade. O recurso fotográfico possibilitará,
novos olhares com relação a atual condição em que estes atores se encontram, e atra-
vés de discussões e problematizações, possibilidade destes enfrentarem as adversida-

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des cotidianas, não somente no contexto de privação de liberdade, mas ao serem desin-
ternados. Portanto, diante do exposto, faz-se de extrema importância a realização deste
projeto de intervenção, uma vez utilizando o recurso fotográfico como ferramenta, para
a discussão e o questionamento na intenção de trabalhar com adolescentes privados de
liberdade, questões pessoais, sociais e familiares.

O desenvolvimento desta oficina ocorreu na Unidade de Internação Provisória (UNIP -


Norte), localizada no município de Linhares-ES, tendo a participação de vinte adolescentes
e jovens privados de liberdade. As idades dos socioeducandos alteram entre quatorze e 161
vinte anos. O projeto foi realizado com adolescentes e jovens que se encontram na fase
Conclusiva de atendimento, dentro das ações pedagógicas desta referida unidade.O pro-
jeto contou com a participação de um profissional em fotografia, que discorreu sobre esta
temática especifica, além de expor técnicas para o bom uso do equipamento.

A Psicologia em consonância com o Serviço Social possibilitou aos jovens participantes


desta oficina, o desenvolvimento da atividade na finalidade de expor figuras fotográficas
da representação de sua realidade, enquanto sujeito privado de liberdade.Como recurso
foi utilizado uma máquina fotográfica para registrar as imagens. Posteriormente as foto-
grafias foram tratadas e impressas em papel fotográfico.

Para que este projeto de intervenção fosse posto em pratica, alguns procedimentos foram
seguidos. Primeiramente, foi solicitado autorização à gerente da Unidade de Internação
Provisória para que tal trabalho fosse realizado. Em seguida, já com o parecer afirmativo
para a realização de tal projeto, foi apresentado o projeto à um profissional em fotografia
que aceitou realizar o trabalho voluntariamente.
2. Desenvolvimento
2.1 Primeiro Encontro

Nesta data, os responsáveis pelo projeto de fotografia, adentraram no espaço da Fase


Conclusiva, para discorrer sobre o referido projeto, ou seja, os objetivos, o funcionamento e
execução das atividades, visando a apresentação da proposta.

Inicialmente foi pontuado que o objetivo girava em torno da problematização de algumas


temáticas especificas, que seriam discutidas e problematizadas através de rodas de con-
versas, filmes e atividades diversificadas. Que algumas pessoas, seriam convidadas, para o
desenvolvimento de alguns encontros. Foi pontuado que o principal objetivo seria em torno
da temática da privação de liberdade.

Foi discorrido todas as fases do projeto, onde a maioria dos adolescentes que se encontra-
vam neste espaço, aderiram a proposta, sendo que alguns adolescentes – cerca de cinco
socioeducandos, não aderiram a proposta.

2.2 Segundo Encontro

No dia 03 de janeiro deste ano corrente, os adolescentes que estão lotados na Moradia A –

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Fase Conclusiva de atendimento da Unidade de Internação Provisória Norte, assistiram ao
filme “Querô”, juntamente com os técnicos que os acompanham.

Querô, é um filme brasileiro de 2007, dirigido por Carlos Cortez, baseado na obra de Plínio
Marcos. O personagem principal – Querô (seu apelido pois sua mãe morreu após se embria-
gar com uma garrafa de querosene) é um menor abandonado, criado pela vida, sobrevivendo
sozinho na região portuária de Santos, em situação de pobreza e abandono.

Após a execução do filme, os adolescentes e os técnicos (Psicólogo e Assistente Social), 162


fizeram uma roda de conversa, para discutir o referido filme. Para iniciar a conversa, foram
feitos alguns questionamentos. Segue abaixo alguns deles:

Qual mensagem o filme traz?

Alguns adolescentes expuseram que o filme conta a história de um adolescente que sofreu
na vida e que tinha muito ódio no coração. Que nasceu de uma “garota de programa”, sem pai
e que se envolveu com más companhias e que acabou sendo privado de sua liberdade.

O personagem Querô soube enfrentar as adversidades da vida?

De acordo com o grupo, Querô poderia ter tido uma história de vida diferente. Que tentou
mudar de vida, mas o policial “corrupto” não permitiu que isso ocorresse.

Como a história do personagem poderia ter sido diferente?

Um adolescente colocou que o garoto poderia ter matado o policial direito, assim, ele poderia
não ter sido baleado no final do filme. Outro socioeducando disse que ele poderia ter mudado
de cidade e ter deixado essa história triste para traz. Um participante colocou que, logo
após a rebelião que culminou em sua fuga, Querô poderia ter se entregado, vindo a cumprir a
medida de internação na Febem.
No final do encontro a equipe responsável pela execução do referido projeto, levantou alguns
questionamentos entorno da realidade de cada sujeito que ali se encontrava, tendo como
meta apenas a reflexão dos adolescentes e jovens.

2.3 Terceiro Encontro

Nesta data, os adolescentes assistiram à dois curtas metragens em animação, sendo eles
Frat e Vida-Maria.

Inicialmente, foi discutido com os adolescentes a necessidade de prestarem atenção ao


primeiro curta (Frat), pois o áudio estava em francês, portanto a necessidade de darem
uma atenção maior as imagens expostas. Frat é um curta metragem produzido pela escola
francesa ESMA. Retrata a crueldade humana que está contaminada por uma doença que
a transforma em pedra. Após a execução do referido material, foi aberta uma roda de
conversa, para que os adolescentes pudessem compartilhar informações acerca de suas
percepções. Foram feitos alguns questionamentos:

Qual o entendimento do filme?

De acordo com o posicionamento do socioeducando L.S. de 19 anos, “o menino amava o pai,

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porém com a situação de violência, as pessoas acabavam se tornando pedra.”

Outro adolescente, E.C. de 17 anos, relatou que “o sangue do menino representava


bondade”. Já o socioeducando B.M.J de 18 anos expos que “o sangue tinha o significado
de compaixão”. Um terceiro adolescente, J.M.V. de 17 anos compreendeu que “o sangue
representava carinho e cuidado entre as pessoas”. A equipe levou os socioeducandos a
refletirem sobre o que significava tais palavras citadas, sendo que o adolescente H.M.F. de
18 anos, disse que “representava o amor ao próximo”

Porque as pessoas no vídeo, se transformam em pedra? 163

Neste questionamento o socioeducando L.S de 19 anos disse que “devido à violência entre o
pai e seus colegas, além da agressão ao filho, o menino foi alimentando um ódio no coração
e depois acabou se tornando pedra”. O socioeducando E.C. de 17 anos, completou dizendo
que “era muita violência em casa e o menino via a foto para lembrar das coisas boas, mas
acabou se deixando levar pelas coisas ruins”.

Realizando um paralelo entre o que foi retratado no vídeo e o cumprimento da medida socioe-
ducativa, o menino poderia ter tido uma história diferente?

O socioeducando E.C. de 17 anos, disse que o menino “poderia ter pensado em suas atitudes
e não ter agido daquela forma, para não virar pedra”. B.M.J. de 18 anos, colocou que “o meni-
no não era pra ter amassado a foto, pois era uma lembrança positiva que tinha do irmão”.

Após o levantamento dos questionamentos e a discussão do referido vídeo, foi passado o


curta metragem Vida-Maria. O filme se passa no sertão nordestino e retrata a vida de Maria
José, uma menina de cinco anos a quem lhe é negado o direito de ter infância, tendo ela que
deixar os estudos e trabalhar para ajudar a família. Com 5 anos, é levada a largar os estudos
para trabalhar. Enquanto trabalha, ela cresce, casa, tem filhos, envelhece. Posterior a exibição
do curta metragem, foi aberta uma discussão acerca da percepção do vídeo.
O que o curta Vida Maria representa?

Para o adolescente L.S. de 19 anos, o vídeo fala sobre a “história de uma menina que cresce
trabalhando, tendo que cuidar das atividades de casa e não teve oportunidade. A menina não teve
amor dentro de casa e acabou repetindo a história que a mãe teve com ela no inicio do vídeo”.

Como a personagem poderia ter modificado sua história?

De acordo com o socioeducando J.S. de 18 anos, “a criança poderia ter sido dedicada aos
estudos, vindo a modificar sua história de vida”. O adolescente D. P. de 15 anos disse que
“é a reprodução da história de vida... que passa de mãe para mãe”. Para o adolescente
K.S.C. de 15 anos, “a menina poderia ter pensado diferente, assim, talvez tivesse tido ou-
tras oportunidades na história de vida para F.K.P.M. de 17 anos “a Maria, poderia ter saído
de caso quando estava maior... ter continuado os estudos, mesmo contra a vontade da
mãe, que só queria que ela trabalhasse e cuidasse das atividades de casa.”

O que fazer para que nós enquanto sujeitos de direitos, não reproduzamos a história de vida de Maria?

Para o socioeducando B.M.J. de 18 anos, “devemos sempre pensar em nossas ações, pois
nossa história de vida depende das escolhas que fazemos”. Para L.S. de 19 anos, o cami-
nho é “terminar os estudos, conseguir um trampo, e formar uma família, para que a história

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não se repita da mesma forma como no vídeo”

Fazendo um comparativo entre os dois vídeos, qual a semelhança nas histórias de Frat e Vida-Maria?

Os socioeducandos expuseram como semelhança entre os vídeos a reprodução de deter-


minadas ações do cotidiano, como por exemplo o adolescente F.K.P.M. de 17 anos citou
que “a mãe da menina não teve sabedoria para ajudar ela a fazer coisas de forma diferente,
queria apenas que ela ajudasse nos serviços de casa”. J.S.P. de 18 anos, completou dizen-
do “a mãe da menina não deixou ela se dedicar com os estudos enquanto era criança”. Na
oportunidade, L.S. de 19 anos, verbalizou “as coisas foram acontecendo de descendência 164
à descendência com as Marias e naquela situação não tinha amor”. K.S.C. de 15 anos,
também contribuiu dizendo que “era preciso a menina pensar diferente, porque só estava
repetindo as tarefas que a mãe fazia e não conseguia fazer outra coisa”.

No decorrer das falas dos socioeducandos, a equipe técnica fez as colocações


pertinentes aos discussões e visando contribuir com o processo reflexivo perante os
objetivos propostos pela atividade.

Ao final dos assuntos expostos, a equipe levou os adolescentes a refletir sobre o ciclo que
transcorre na rotina de determinadas famílias em situações do cotidiano e que muitas ve-
zes as ações são reproduzidas. Foi abordado também que esse fato caracteriza um círculo
vicioso entre os membros familiares, tanto no “FRAT” como em “Vida Maria”. Pontuamos
ainda que o cumprimento da medida de internação também pode ser compreendida como
uma oportunidade para repensar as atitudes enquanto estão privados de liberdade. E a
internação em meio fechado é o momento para refletir e buscar estratégias para enfrentar
as adversidades da vida, visto que ao longo do processo socioeducativo a equipe trabalha
questões com ênfase na autonomia, autoestima e capacidade de construir uma nova histó-
ria de vida como cidadão e sujeito de direitos.
2.4 Quarto Encontro

Neste encontro, uma assistente social que atua com adolescentes que cumprem medida socio-
educativa em meio aberto na cidade de Linhares-ES, foi convidada a explanar o assunto sobre
exclusão social com os adolescentes que estão inseridos na fase conclusiva de atendimento.

Incialmente a mesma fez uma apresentação sobre si e suas qualificações e iniciou, atra-
vés de recurso visual (slides), o conteúdo que havia programado. Inicialmente, discorreu
sobre o capitalismo, o qual vivenciamos no decorre do nosso dia-a-dia, onde há uma
forte tendência de valorizar o objeto e não se atentar as relações pessoais, ou seja, um
processo de coisificação do sujeito.

Ademais, foi discutido sobre os direitos que temos enquanto cidadão e como devemos agir
para melhorar a condição do local em que vivemos, levando os adolescentes a refletirem e
perceberem os espaços comunitários de discussão, para modificar o contexto social. Neste
sentido discorreu ainda sobre a constituição federal, a lei maior de nosso país na intenção de
possibilitar um espaço de discussão critica da realidade que vivenciam ao longo da vida.

Para além, falou-se sobre o preconceito e as questões sobre marginalização, além das ações
que cada sujeito faz e que automaticamente adentra neste processo de exclusão, quando
este abre mão das oportunidades e não realiza um movimento inverso para modificar sua

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história de vida a nível pessoal, social e familiar.

2.5 Quinto Encontro

A proposta para este encontro foi discutir e problematizar com os adolescentes privados
de liberdade, as possibilidades que se tem para melhorar a qualidade de vida pessoal e
daqueles de seu entorno.

A proposta girou em torno da execução de um júri simulado realizado no espaço de convi- 165

vência da moradia. Inicialmente, os participantes foram levados a relembrar parte do filme


“Querô” que assistiram em 03/01/2017, atividade referente ao projeto de fotografia.

Como metodologia para participação na atividade, dentre os 22 socioeducandos houve a


divisão em dois grupos contendo 11 adolescentes cada, no qual um grupo deveria defen-
der a posição “Favorável a aplicação da medida socioeducativa de internação” e outro gru-
po, com a posição “Contrário a medida de internação aplicada”. Foi concedido tempo de 05
minutos para discussão e para abordagem sobre o tema. Ao retornarem, o grupo Favorável
iniciou a discussão no qual o adolescente F.K.P.M. de 17 anos afirmou “foi certo aplicar a
medida de internação porque o menino precisava refletir sobre os fatos da sua vida e se
ele não fosse privado de liberdade não iria mudar de vida nunca”; outro socioeducando de
nome B.M.J. de 18 anos completou dizendo “praticou o ato e tinha que pagar para não ficar
impune e cometer outros atos”. Em sequencia foi oportunizado a fala ao grupo contrário
a aplicação da medida e jovem de nome L.S. de 19 anos disse “nenhum juiz pensa que
prender Querô ia resolver para ele não cometer mais ato infracional, afinal ele não tinha
pai nem mãe, foi criado sem família para dar apoio, ele precisava mesmo era de atendi-
mento psicológico e assistente social do CRAS e do CREAS”; outro socioeducando A.A.M.
de 18 anos completou dizendo “o menino ficou só alimentando ódio dentro da mente dele
naquele lugar, não foi certo internar ele”.
De forma sequencial a equipe oportunizava aos participantes de cada grupo, realizar um
processo de reflexão frente aos argumentos propostos por cada adolescente e a discussão
foi muito positiva corroborando com os objetivos propostos pela referida atividade.

2.6 Sexto Encontro

A proposta para este encontro foi apresentar aos adolescentes noções básicas de
fotografia. Temas como a história da fotografia, o surgimento das primeiras câmeras
fotográficas, a transição do sistema analógico (filme) para o digital e composição foto-
gráfica foram assuntos na ocasião.

Utilizando o sistema expositivo de imagens, foi discutido com os socioeducandos princípios e


regras de composição de imagem, ângulos, velocidade de obturador e abertura de diafragma.

Em um segundo momento os adolescentes tiveram contato com diversos equipamentos


fotográficos, sendo demonstrado em quais situações estes têm aplicação.

O objetivo principal da atividade proposta foi desenvolver no socioeducando um olhar


técnico das imagens que cotidianamente são apresentadas aos mesmo por meio de
jornais, revistas e meios eletrônicos.

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2.7 Sétimo Encontro

Neste dia, a equipe de referência do projeto, adentrou a moradia – fase conclusiva, para
discorrer que nesta etapa, os sujeitos sairiam, nos espaços intramuros da unidade, para
fotografarem a representação da privação de liberdade. Foi informado ainda que pode-
riam realizar o registro de três imagens.

Sendo assim, todos os participantes foram deslocados para a quadra de esportes da 166
unidade para que aguardasse o início da atividade. Assim, um de cada vez, os adoles-
centes eram conduzidos pelo fotografo e os técnicos de referencia ao local escolhido
pelo próprio adolescente, onde era registrado a imagem. Ao fim, cada adolescente
retornava para a moradia, sendo que não tinha contato com os adolescentes que esta-
vam aguardando na quadra, a fim de não “contaminar” a visão do outro, com o que já
havia escolhido para fotografar.

Ao final do dia, vinte adolescentes e jovens, haviam fotografado as imagens que na visão
individual, representava a visão sobre a privação de liberdade.

Foi utilizado uma máquina fotográfica de marca Cannon para o registro das imagens, sendo
que a máquina fotográfica é própria da unidade. As fotos foram descarregadas em um com-
putador permanecendo na unidade, não havendo divulgação.

Importante salientar que em nenhum momento, os adolescentes foram induzidos de alguma


forma a escolherem o local aonde fotografar, sendo de livre escolha as imagens registradas.
2.8 Oitavo Encontro

Nesta etapa, os adolescentes individualmente foram conduzidos até a sala da equipe


técnica, para que pudessem escolher dentre as três fotos que foram fotografadas por eles
mesmo, apenas uma imagem que representassem a privação para si, sendo aquela que
mais lhe chamou a atenção!

Assim, cada adolescente pode visualizar em um computador as três imagens e posterior a isto, es-
colheram uma foto de sua autoria, sendo que lhes era dito que a imagem escolhida seria impressa
em papel fotográfico especifico, em tamanho que seria determinado em um outro momento.

2.9 Nono Encontro

Iniciamos nossa atividade no espaço coletivo da moradia, fazendo um breve retrocesso com
relação ao projeto e tudo o que foi discutido com os adolescentes e jovens desde o primeiro en-
contro até a atual data. Destacamos o fato do título do trabalho “O olhar sobre a privação na ótica
dos invisíveis”, cujo principal tema foi a privação de liberdade. Trouxeram recordações acerca do
filme “Querô”, os curta metragem, a palestra sobre exclusão social e a atividade “Júri Simulado”.

Posteriormente, foi entregue para cada adolescente uma xerox em tamanho reduzido da foto

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que foi escolhida por ele mesmo, para que, ao olhar para a foto, escrevesse uma frase ou um
texto que trouxesse uma reflexão acerca da imagem. Assim foi dado um tempo para que
cada adolescente refletisse em uma frase que representasse a imagem escolhida. Os socio-
educando foram informados, que as referidas frases, seriam inseridas nas bordas das fotos,
contendo as letras das iniciais de seus respectivos nomes e a idade.

3. Considerações Finais
167
O projeto de intervenção intitulado como “O olhar sobre a privação na ótica dos invisíveis”,
surgiu da necessidade de criar espaços de discussão, para os atores que se encontram
vivenciando a privação de liberdade. Mas foi além. Ganhou forma, incomodou, gerou
desconforto, possibilitou empoderamento. A cada encontro os participantes deste projeto,
se comunicavam, não somente através da fala, mas no modo como interagiam com os
outros atores, nos olhares, na postura corporal. Não se pode afirmar que o trabalho atingiu
seu objetivo, uma vez que estamos discorrendo sobre a subjetividade de cada participante,
ou seja, como cada sujeito se coloca nas suas relações e se percebe no contexto em que
se encontra. Porém ele gerou inquietações possibilitando estes sujeitos a refletirem sobre
sua atual condição de vida, vindo a repensarem em suas ações cotidianas e o modo como
podem enfrentar as adversidades cotidianas.

Importante destacar, que após o trabalho com os adolescentes, as fotos foram impressas em
papel especifico e na data de 08 de março de 2016, foi realizada na Unidade de Internação
Provisória, uma exposição. Neste evento, foram convidados entidades que atuam diretamen-
te ou indiretamente com crianças, adolescentes e jovens, além de autoridades, o sistema de
justiça e demais apoiadores. A intenção é que esta exposição seja expandida para alguns
locais comunitários, na intenção de possibilitar a sociedade, um olhar mais apurado para as
questões que perpassam o contexto socioeducativo de privação de liberdade.
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2ª Jornada Científica da FASP-ES | Revista de Artigos


169
O PAPEL DO PSICÓLOGO DIANTE
DO COMPORTAMENTO SUICIDA EM
ADOLESCENTES QUE CUMPREM MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO.

Charles Santos Souza1, Franciely Alves Sales¹, Franco Pessini¹, Isabella Delunardo
Valério¹, Lorraine Lopes Ribeiro¹, Pablo Cesar Teixeira¹, Raiara dos Santos Silva¹,
Rayane Bertelli Cuzzuol¹, Tainor dos Santos¹, Tamiris Guaitolini¹, Thais de Castilho
Monteiro¹, Natany Araujo¹ e Raphael do Amaral Vaz2

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

O presente artigo teve como objetivo investigar como acontece a intervenção


de Psicólogos diante de adolescentes com ideação suicida ou tentativa de sui-
cídio nos ambientes de privação de liberdade. Através da pesquisa constata-se
a falta de formação, cursos e preparação para estes profissionais lidarem com
situações que envolvem a temática do suicídio. O ambiente em que o adoles-
cente está inserido na medida de internação por si só se configura como de

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risco, principalmente com os agravantes de superlotação, falta de atividades,
isolamento e falta de habilidade da equipe para lidar com os mesmos. Neste
sentido, para a efetivação de um trabalho com proposta preventiva, há a neces-
sidade de que o profissional tenha uma postura aberta nos atendimentos junto
a uma escuta qualificada, ou seja, há a necessidade da formação qualificada
dos profissionais para trabalharem com os jovens, de forma que busquem de-
senvolver um trabalho empático, criando vínculo para com estes jovens. Além
disso, foi observada a necessidade de trabalhar os fatores que despertem nestes
adolescentes a valorização da vida, a autoestima e resiliência. Portanto, faz-se
necessário que programas e estratégias de prevenção dos comportamentos sui- 170
cidas sejam incluídos na pauta nos Serviços Públicos.

Palavras-chave: Suicídio na adolescência, Socioeducação, Psicologia Junguiana.

1. Introdução

A adolescência é um período do desenvolvimento humano em que o indivíduo vivencia mui-


tas mudanças e conflitos, consigo mesmo e na relação com o mundo externo. Em algumas
situações da vida pessoal, o adolescente não consegue administrar suas emoções e impul-
sos, ocorrendo assim, um desconforto enorme que causa frustrações insuportáveis.

No que se refere aos adolescentes privados de liberdade, devemos, antes de tudo, ter um
trabalho muito específico para este público. Cada adolescente possui uma história de vida
peculiar e necessita de realizar intervenções técnicas próprias para realidade de cada um.

1 Acadêmicos de Psicologia da Faculdade Brasileira – MULTIVIX.

2 Docente Mestre em Psicologia da Faculdade Brasileira – MULTIVIX.


Acreditamos que ao efetuar um trabalho especializado para este público socioeducativo,
os adolescentes terão a oportunidade de elaborar soluções possíveis de mudanças e
possibilidades de perspectivas futuras.

No entanto, durante o tempo de internação, muitos desses socioeducandos enfrentam várias


dificuldades, dentre elas, seus limites emocionais e afetivos. A ausência das “amizades”, das
drogas, do convívio na comunidade, do aconchego familiar e outras demandas que surgem
constantemente no cumprimento da medida socioeducativa se apresentam de maneira
intensa na vida dos adolescentes. Com esses conflitos existenciais, alguns socioeducandos
se tornam vulneráveis à pensamentos e tentativas de suicídios. Edwin Shneidman (1993)
citado por Botega et al (2010, p. 13) afirma que o estado psíquico geralmente encontrado
em alguém prestes a se matar é de uma dor emocional intolerável, vivenciada como uma
turbulência emocional interminável, uma sensação angustiante de estar preso em si mesmo,
sem encontrar saída. O desespero leva, então, à necessidade de um alívio rápido: matar-se
para interromper a dor psíquica.

Nesta perspectiva, consideramos válido abordar os tipos de comportamentos suicidas. O


comportamento suicida é classificado em três categorias diferentes: ideação suicida, tenta-
tiva de suicídio e suicídio consumado. Alguns estudos clínicos e epidemiológicos sugerem a
presença de uma possível gradiente de severidade e de heterogeneidade entre estas diferen-

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tes categorias. Num dos extremos tem-se a ideação suicida (pensamentos, ideias, planeja-
mento e desejo de se matar) e, no outro, o suicídio consumado, com a tentativa de suicídio
entre estes (Maris, Bermann, & Silverman, 2000).

Segundo dados do ano de 2000 compilados pela Organização Mundial da Saúde (OMS,
2000b), o Brasil figura entre os 10 países que registram os maiores números absolutos de
suicídios. Na revisão de literatura pesquisada, até o momento, observamos que no Brasil as
taxas de mortalidade por suicídio variam entre 3,5 e 4,6 óbitos dentre 100.000 habitantes (cf.
Barros, Oliveira, & Marin-Leon, 2004; Souza, Minayo, & Malaquias, 2002). Estudos demons-
171
tram que as regiões brasileiras que apresentam maior índice de mortalidade por suicídio con-
sistem na Região Sul e na Região Nordeste do país (cf. Barros, Oliveira, & Marin-Leon, 2004).

Souza, Minayo, e Malaquias (2002) afirmam que as capitais de Porto Alegre e de Curitiba
apresentam maior índice de jovens entre 15 e 24 anos que cometem ou cometeram suicídio.
Por outro lado, sabemos que muitas mortes de suicídio são imprecisas quanto a sua classifi-
cação; algumas são vistas como acidentais e outras como não intencionais.

Diante dessa perspectiva, Botega et al (2012) advoga que a estimativa nas tentativas de
suicídio superem o número de suicídios em pelo menos 10 vezes e que das pessoas que ten-
tam o suicídio, 15 a 25% tentarão se matar no ano seguinte e das que tentam o suicídio, 10%
conseguem se matar nos próximos 10 anos. No entanto, devemos levar também em conside-
ração o fato de que cerca de 10% de “óbitos por causas externas são de tipo ignorado”, desta
forma fica-se sem saber se as mortes foram por homicídio, suicídio ou acidente.

Os fatores de risco mais enumerados pela literatura internacional (WHO, 2001, 2002; De Leo,
Bertolote & Lester, 2003), para o suicídio na adolescência são: culturais e sociodemográficos;
familiares; estilo cognitivo e personalidade; perdas; conflitos interpessoais e problemas de
relacionamento; transtornos psiquiátricos; tentativa prévia de suicídio ou história de comporta-
mento suicida; suicídio de amigo ou conhecido. Por outro lado, uma pequena porcentagem de
suicídios ocorre em adolescentes vulneráveis que estão expostos ao suicídio na vida real, ou
através da mídia, ou sob influência de alguém que tenha comportamento suicida (WHO, 2001).

Entre os fatores protetores estão à boa relação com os membros da família, o apoio familiar
e a confiança em alguém; boas habilidades sociais, busca por ajuda e conselhos, senso de
valor pessoal, abertura para novas experiências e aprendizados, habilidade em comunicar-se,
receptividade com a ajuda dos outros e projetos de vida; valores culturais, lazer, esporte, reli-
gião, boas relações com amigos e colegas, boas relações com professores e outros adultos,
apoio de pessoas relevantes e amigos que não usem drogas; e, por fim, uma dieta saudável,
boa qualidade do sono e atividade física (WHO, 2001, 2002).

Dessa forma, faz-se necessário que programas e estratégias de prevenção dos comporta-
mentos suicidas sejam incluídos na pauta das políticas de educação e saúde pública, uma
vez que a perda prematura de adolescentes por suicídio pode e deve ser evitada. Um dos tó-
picos prioritários da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2000b) é exatamente a prevenção
do comportamento suicida, sendo que 90% dos suicídios poderiam ser evitados se houvesse
um trabalho preventivo, portanto, acredita-se que e ações preventivas, educativas, assisten-
ciais e de pesquisa sejam necessárias para a sensibilização da valorização da vida.

Considerando a abordagem psicológica que tomamos como base para tratar do suicídio, a
Psicologia Analítica, encontramos alguns autores que estudam sobre o suicídio e suas im-

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plicações na vida do indivíduo e na vida social. Um dos autores que merece destaque nesta
revisão de literatura feita incialmente vem a ser James Hillman, que apresenta na sua obra
Suicídio e Alma, desde uma visão histórica deste comportamento na vida do indivíduo até as
intervenções que o analista precisa ter quando estiver diante de uma situação de suicídio.

Observamos que, segundo Hillman (2009a; 2009b), o suicídio é compreendido como uma
realidade psíquica, na qual considera os pensamentos suicidas como atitudes psicológicas.
Os modelos de pensamentos suicidas são vistos como atitudes semiconscientes que estão
integrados na psique. O trabalho analítico com paciente suicida ocorre quando o analista 172
elabora a morte no seu aspecto psicológico. Quando a simbologia da morte é compreendida
pelo paciente, o analista agirá dinamicamente este tema, propondo e sustentando a terapia
(Hillman, 2009a; Oliveira, 2012), como um espaço para se reimaginar a morte e o corpo em
relação aos aspectos sombrios do suicídio, de maneira que o paciente possa trazer livremen-
te suas fantasias e ideias a respeito.

Neste processo concretizar os objetivos que a vida apresenta durante o seu percurso
no desenvolvimento humano, segundo Jung (2006b), no seu livro Memórias, sonhos,
reflexões, afirma que o ser humano busca constantemente sua autorrealização, ou
seja, seu processo de individuação, mas precisa aprender como alcançar seus sonhos
afim de que sejam realizações concretas na sua vida. Caso contrário, a vida se tornará
muito penosa e amarga.

Com base nestas colocações de Jung, deparamos com algumas reações que vão ao
encontro das dificuldades que os adolescentes enfrentam durante o cumprimento da sua
medida de internação; como por exemplo, o medo da vida ou manifestações de alguns sin-
tomas depressivos. Perante a esta realidade, aprofundaremos nesta pesquisa na atuação
do psicólogo neste ambiente privativo de liberdade.
Jung (2013, § 9), aponta que a psicoterapia diz sobre um método dialético, um diálogo
entre o psicólogo e o paciente. Sendo o indivíduo um sistema psíquico que, intervindo
sobre o outro, irá interagir com o sistema psíquico deste outro, será uma relação de troca.
O psicólogo precisa inteirar-se sobre a vida do adolescente e também sobre sua condição
psíquica e espiritual existente em seu contexto, onde ocorrem influências tradicionais e/ou
filosóficas, que podem possuir uma função decisiva na atitude, vida, no pensamento ou no
comportamento deste sujeito.

Para que possamos alcançar um objetivo na vida destes adolescentes que pensam ou já
tentaram suicídio, antes de tudo, devemos analisar as ações de suicídio como parte do
processo de individuação daquele sujeito. Quando mencionamos o conceito do processo
de individuação para estudar os comportamentos suicidas de adolescentes em conflito
com a lei, remetemos ao pensamento de Bracco (2012) que nos afirma a vida humana
como sendo uma jornada infinita de complexo da alma que busca, por sua vez, uma
integridade em acordo com as capacidades e potencialidades de cada indivíduo. E nesta
busca, o autor ainda afirma, o indivíduo chegará à realização máxima do que chamamos,
na Psicologia Analítica, de Self, ou seja, a autorrealização da alma.

Com base nessa afirmação do autor citado acima, podemos nos questionar como o
psicólogo que atua neste ambiente socioeducativo trabalhará com a consciência deste

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adolescente a partir das capacidades e potencialidades deste sujeito que cumpre medida
de internação a fim de serem integradas na sua alma uma vez que este mesmo indivíduo
considera sua vida sem possibilidades de desvincular-se com a criminalidade. Outro ques-
tionamento que fazemos consiste se seria possível realizar uma intervenção psicológica
com base neste conceito de processo de individuação.

O que podemos observar neste primeiro momento, ao estudar sobre os pensamentos e


atitudes do adolescente que apresenta ideação suicida ou tentativa baseia-se sempre em
um conflito emocional que o próprio indivíduo não consegue suportar psicologicamente
173
somatizando por sua vez no seu próprio corpo por meio da morte física. Logo, a proposta da
pesquisa consiste além de propor instrumentos ao psicólogo para tratar dessas questões
de risco de vida, é compreender a dinâmica psicológica deste adolescente a partir do seu
processo de individuação, ou seja, do seu autoconhecimento.

Neste momento em que foi identificado esses sintomas que caracterizam como fatores de
risco para cometer um suicídio, se torna fundamental nas intervenções psicológicas esta-
belecer um diálogo com este adolescente para que ele enfrente o diálogo interno com seus
pensamentos sobre a morte de tal forma que ele organize a simbologia dessa morte que o
cerca por pensamentos. Será por meio desta elaboração simbólica da morte que se encontra
os desafios nas intervenções psicológicas nos ambientes socioeducativos. Perante esses
desafios que nossa pesquisa pretende colaborar para que os profissionais que atuam nestes
locais tenham instrumentos que favoreçam na construção simbólica desta morte que este
adolescente procura tanto no seu corpo, porém se localiza no seu campo emocional.

Diante desses estudos observados, neste primeiro momento, notamos a importância de


avaliar as formas de intervenção do psicólogo perante esta realidade. Sabemos que nas
unidades socioeducativas não compete a este profissional realizar um trabalho voltado para
área clínica, mas uma atuação totalmente direcionada para a inclusão social desses adoles-
centes. Com base neste entendimento das ações do psicólogo neste tipo de ambiente, nos
leva a questionar se este profissional possui ou não instrumentos que planeja as práticas
psicológicas neste adolescente que se encontra privado de liberdade.

A situação de internação em instituições socioeducativas pode agravar alguns dos fatores de


risco se ela privar o adolescente de atividades físicas, contato com a família e outros fatores
de proteção ao suicídio. Alguns fatores devem ser apontados pelo Serviço Social como os
culturais, sociodemográficos e familiares, de modo a aumentar a previsão do comportamento
suicida. Todos os profissionais deverão se envolver, especialmente aqueles que poderão
trabalhar para minimizar os fatores de risco e maximizar os fatores de proteção (pedagogo,
professor de educação física, psicólogo, assistente social e equipe de segurança).

Durante os atendimentos técnicos realizados na Unidade Metropolitana em Xuri/Vila Velha, no


período de 2011 até março de 2015, pelo professor-orientador Raphael do Amaral Vaz, obser-
vamos que muitos socioeducandos vivenciam seus limites emocionais de saudade familiar,
tempo ocioso e a própria privação de liberdade de forma insuportável. Reconhecemos que no
período de 2011 a 2012, foi o período mais crítico na Unidade por razões administrativas do
local. Por outro lado, o que observamos atualmente vem a ser um período de ausência nas
manifestações de tentativas e pensamentos suicidas. Apenas alguns casos surgem ao longo
deste período, após 2012 até a data presente. No entanto, o que nos chama atenção, neste
momento, é a prática dos psicólogos perante esta manifestação psicológica. Muitos desses

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profissionais, quando se deparam com esta realidade do suicídio, tentam se apoiar na sua
abordagem que se especializaram e buscam adaptá-la para a realidade da Socioeducação.

Diante dessas observações, consideramos como relevante elaborar este projeto para avaliar
quais as dificuldades que estes profissionais se encontram quando surge casos de suicídio.
Uma vez que o tema do suicídio é pouco ou nenhum momento chega a ser comentado e estu-
dado durante o período da nossa formação acadêmica, consideramos que esta pesquisa pode-
rá colaborar, com suas reflexões, tanto para os profissionais que se encontram neste ambiente
do cumprimento da medida socioeducativa de internação quanto na formação acadêmica da
174
Psicologia. Por fim, acreditamos que o objetivo deste projeto é levantar as possibilidades de
uma intervenção psicológica, com qualidade, para prevenção de suicídio e promover a vida.

O presente artigo teve como objetivo investigar de forma qualitativa e quantitativa como
acontece a intervenção de Psicólogos diante de adolescentes com ideação suicida ou ten-
tativa de suicídio nos ambientes de privação de liberdade, promovendo orientação de novas
formas de intervenção para esses profissionais e contribuir na formação acadêmica dos alu-
nos de graduação de Psicologia como adquirir um manejo terapêutico em casos de suicídio,
principalmente em ambientes socioeducativos.

2. Material e Métodos

A presente pesquisa ocorreu no período de Setembro de 2015 a Outubro de 2016. Os locais de


realização das entrevistas foram escolhidos de acordo com a disponibilidade dos participantes,
tendo sido realizada em sua grande maioria em locais de trabalho ou locais públicos. A escolha
dos participantes se deu a partir do seguinte critério: Psicólogos que trabalharam ou trabalham
no Sistema de Socioeducação do Espírito Santo na Unidade de Xuri – Vila Velha. O contato com
estes profissionais foi realizado através da indicação de outros trabalhadores do serviço.
A metodologia adotada desta pesquisa foi descritiva utilizando o método misto, o qual,
segundo Creswell (2010), afirma que consiste na combinação das questões de pesquisa
em uma análise de dados no primeiro momento. Em seguida fundem-se os dois modos
de dados – análise e coleta de dados – em temas qualitativos comparando com dados
quantitativos descritivos. Tal método, segundo o autor, poderá ocorrer tanto em um único
estudo e/ou em vários estudos de investigação. Outro autor que vem ao encontro com o
pensamento do autor supracitado, Richardson et al (1999) pontuam que a coleta de dados,
entrevistas, observações e discussões da análise permitem verificar os resultados dos
questionários e ampliar as relações descobertas.

Sendo assim, esta pesquisa foi baseada nos dados coletados pelas entrevistas realizadas
com os profissionais da área da Psicologia que trabalham nas Unidades de Internação do
IASES (Instituto de Atendimento Socioeducativo do Estado do Espírito Santo). Para as entre-
vistas, foi utilizado como ferramenta um roteiro semi-estruturado. Algumas destas entrevis-
tas foram gravadas e transcritas pelos pesquisadores, enquanto outras foram respondidas
via e-mail pelos participantes por motivo de conveniência por parte dos entrevistadores. Em
média, foi observada uma duração de 1 hora para cada entrevista.

Em seguida, as respostas foram categorizadas a partir do significado das falas e sendo confronta-
das com a literatura disponível. Tais categorias possibilitaram identificar norteadores que possam

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traçar novos instrumentos de intervenção psicológica para esses profissionais que trabalham em
uma unidade de internação, bem como orientação para os alunos de graduação em Psicologia.

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da MULTIVIX, sob o número 1.624.314.

3. Resultados

Participaram da pesquisa 07 psicólogos do Instituto. Desses, 01 respondeu a entrevista via


175
e-mail devido a conveniência no tempo e lugar por parte do psicólogo.

No que se refere ao papel do psicólogo e sua preparação para lidar com situações que
envolvem o suicídio, percebe-se uma falta de formação, cursos e preparação para estes
profissionais. Sendo essa uma área que demanda muito cuidado e embasamento que
estabeleça condições para todo processo de prevenção do mesmo. De acordo com os
psicólogos entrevistados, 100% deles deixaram claro em todos os momentos que toda sua
formação para prevenção de suicídio, na maioria das vezes é o pouco que eles estuda-
ram no período de sua graduação. Não existe uma formação pronta para isso, portanto é
preciso buscar em livros, ler materiais, e de acordo com suas experiências eles buscam na
prática desenvolver um trabalho voltado para a prevenção do suicídio. Além disso, sinali-
zam que durante as intervenções buscam trabalhar com os adolescentes esse processo de
trabalhar o futuro e especialmente a autoestima.

Os dados mostram que a escuta psicológica (57%) aparece como principal fator descrito
pelos psicólogos em casos de intervenções com os adolescentes, a própria privação de
liberdade é um fator extremamente estressante para alguns, é fundamental o trabalho
voltada para escuta, ouvir bastante aqueles adolescentes. Tendo em seguida a função
do autoflagelo (14%), é muito importante avaliar toda essa questão, pois vem a ser uma
realidade aonde os profissionais atendem 40 à 70 adolescentes que estão sobre sua
responsabilidade. Em consequência desta realidade socioeducativa precária, observamos
que a ausência de uma atenção devida, por meio da escuta psicológica ocasiona muitos
casos de autoflagelo. Por outro lado, é possível notar que os psicólogos pontuam as
oportunidades de terem uma escuta com os adolescentes que tem ideação suicida, estes
socioeducandos conseguem obter um novo sentido a sua vida. Os profissionais trazem
também a valorização da vida (29%) como fator importante nas intervenções, buscando
potencializar a existência, identificando valor que a vida pode ter e o verdadeiro motivo
de sua existência. Todo esse processo estimula a autoestima, do socioeducando, e a
vontade de continuar lutando por si mesmo.

Em relação ao contato inicial do psicólogo com o socioeducando que apresenta no atendi-


mento como queixa a ideação suicida, notou-se em todas as respostas dos psicólogos entre-
vistados que a ideação suicida pode ser enxergada por eles ou pelos demais agentes socioe-
ducativos muitas vezes com um olhar de chantagem, de barganha. No entanto, os psicólogos
acolhem esse adolescente no atendimento e constroem um vínculo mais humanizador, sem
ter um postura ou interpretação sobre as atitudes do socioeducando de forma punitiva.

No que diz respeito aos fatores de risco que comumente se apresentam em casos de
ideação ou tentativa de suicídio, podemos notar que o ambiente em que o adolescente está
inserido na medida de internação por si só se configura como de risco, principalmente com

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os agravantes de superlotação, falta de atividades, isolamento e falta de habilidade da equi-
pe para lidar com os mesmos. Além disso, constatamos que grande parte chega a instituição
com uma série de direitos negados e abandono, o que pode dificultar a criação de laços
afetivos no local, podendo levar ao comportamento suicida.

A estrutura da instituição (36%) aparece como principal fator descrito pelos psicólogos
em casos que envolvem suicídio dentro da instituição, principalmente no que se refere à
superlotação e à falta de profissionais suficientes para atender a demanda do local, tendo
em seguida ociosidade (22%), vulnerabilidade social (21%) isolamento (14%) e falta da
176
substância psicoativa (7%), respectivamente.

Assim como os fatores de risco podem levar ao suicídio, existem outros que podem servir de
proteção, que são conhecidos como fatores de proteção. Entre os fatores protetores estão a
boa relação com os membros da família, o apoio familiar e a confiança em alguém (fatores
familiares); boas habilidades sociais, busca por ajuda e conselhos, senso de valor pessoal,
abertura para novas experiências e aprendizados, habilidade em comunicar-se, receptivi-
dade com a ajuda dos outros e projetos de vida (estilo cognitivo e personalidade); valores
culturais, lazer, esporte, religião, boas relações com amigos e colegas, boas relações com
professores e outros adultos, apoio de pessoas relevantes e amigos que não usem drogas
(fatores culturais e socidemográficos); e, por fim, uma dieta saudável, boa qualidade do sono
e atividade física (fatores ambientais) (WHO, 2001, 2002).

Trazendo estes dados para o contexto socioeducativo, constatamos nas entrevistas que os
vínculos afetivos (relacionamentos interpessoais) de fato evidenciam ser os principais fato-
res de proteção, bem como planos para o futuro, atividades dentro da unidade e espirituali-
dade. A família/vínculos afetivos (67%) se apresenta como o maior fator de proteção dentro
da Unidade Socioeducativa, com as categorias de planos para o futuro (17%), espiritualidade
(8%) e atividades na unidade (8%) em seguida, respectivamente.
Além do acompanhamento individual, o acompanhamento em pequenos grupos de adoles-
centes também aparece como uma alternativa de prevenção. No que se refere ainda sobre
prevenção, nas respostas dos entrevistadores fica evidente a importância de prevenir fora
das unidades, promovendo a inclusão desses jovens na sociedade, com o aparecimento de
oportunidades no mercado de trabalho e a criação de grupos de família dentro das unidades
de saúde, CAPS e inclusão de serviços sociais, como aulas de música, dança, cursos de
formação de acordo com a necessidade da comunidade.

Em relação a trabalhos preventivos, a alternativa de qualificação dos profissionais aparece


como principal fator preventivo em relação ao suicídio (25%) sendo frisada a importância
de estes profissionais estarem bem orientados, não só os psicólogos, mas toda a equipe
que terá contato com os adolescentes nas unidades socioeducativas. Os jogos, as ofici-
nas, os esportes e cursos aparecem logo após (19%) apontando a necessidade desses ti-
pos de incentivo aos jovens nas unidades para prevenir o desejo ou pensamento relaciona-
do ao suicídio. Juntamente a mesma porcentagem, o acompanhamento familiar se mostra
extremamente necessário (19%). A espiritualidade (12%), novamente, aparece como fator
que pode ser trabalhado como medida preventiva, independente de crença ou religião. São
trabalhados pelos psicólogos a resiliência, esperança e autoestima (13%) demonstrando
um equilíbrio relacionado a trabalhar essas questões com um melhor acompanhamento da
família, mais estruturado. O atendimento em pequenos grupos e a inclusão desses jovens

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na sociedade possui a mesma porcentagem (6%).

No que tange as dificuldades do psicólogo encontradas durante o atendimento ao socio-


educando que tentou suicídio, é possível evidenciar que nas respostas dos entrevistados
aparece em grande medida, novamente, o discurso da necessidade de promover uma
qualificação ampliada sobre o tema tanto para as equipes multiprofissionais quanto para
os colaboradores ali presentes, pois o adolescente que se encontra em medida privativa de
liberdade (internação) convive, diariamente, com os mais diversos profissionais, de áreas
distintas, desde o psicólogo ao agente penitenciário.
177

Sendo assim, a comunidade socioeducativa deve estar ciente da complexidade do suicí-


dio e a importância de estruturar ações, conceitos e abordagens, básicas ou complexas,
para a prevenção do suicídio em socioeducando que apresenta ideação suicida buscando
reconhecer e responder adequadamente a essa realidade. Tais ações e abordagens só
poderão acontecer a partir do compartilhamento de informações e conhecimentos acerca
do tema. Além disso, encontramos na resposta de um dos participantes a importância do
psicólogo está acessível a uma escuta diferenciada afim de o adolescente reconhecer que
sua história de vida tem valor.

Outro dado importante nas respostas dos participantes foi a construção de projetos como
forma dos adolescentes enfrentarem este ambiente de internação não como algo desagradável,
com a finalidade deles reavaliarem sua vida pessoal. Um dos participantes demonstrou a valori-
zação de tais projetos na prevenção do suicídio e relata, também, a dificuldade em efetivar e ex-
cetuar ações no contexto socioeducativo. Por outro lado, a dificuldade de um acompanhamento
contínuo e integrado com os socioeducandos com ideação suicida foi destacado nas respostas
dos entrevistados, alegando que a falta de psicólogos efetivos na Instituição e a dificuldade de
um trabalho homogêneo com os profissionais da comunidade socioeducativa retarda a elabora-
ção de um atendimento psicológico para este tipo de socioeducando.
Em relação a casos em que o psicólogo não conseguiu evitar o ato suicida, notamos que,
83.33% dos entrevistados relataram que durante a sua permanência nas unidades de medida
socioeducativas de internação, não tiveram casos de adolescentes que estavam com a idea-
ção suicida e conseguiram dar fim a sua própria vida. Entretanto, uma das entrevistadas cita
um caso de ato suicida cometido por um dos internos, porém, não soube informar detalhes
do acontecido, pois não era o profissional de referência.

4. Discussão

Percebe-se que o ato suicida é um fator de suma importância dentro da medida sociedu-
cativa. A resiliência, determinação e o trabalho incansável da socioeducação permite o
cumprimento de medidas socioeducativas, objetivando-se a garantia de direitos e a mínima
intervenção, permitindo-se que o trabalho do psicólogo seja o mais construtivo possível para
(re)definição de horizontes dos nossos adolescentes, quando trazemos os desafios dos
profissionais, o trabalho realizado dentro das unidades deve levar em conta a valorização do
sujeito. Tais considerações vão ao encontro de Botega (2015c) que afirma o papel dos pro-
fissionais da área da saúde, que é trabalhar no processo de intervenção, pois afeta profunda-
mente à família, esses adolescentes precisam de ajuda para lidar com o sofrimento psíquico.

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Os profissionais da saúde devem preparar-se para oferecer apoio emocional às pessoas, e
proporcionar um ambiente de apoio. Neste sentido, o psicólogo deve buscar um atendimento
com foco, tendo como objetivo a escuta desenvolvida, para valorizar a vida do adolescente
em atendimento que envolve ideação suicida. Em relação ao objetivo da escuta conforme
Botega (2015c) é necessário reduzir a perturbação mental, e consequentemente, o risco de
suicídio a fim de deixar o paciente se expressar livremente.

Outro dado importante a ser destacado vem a ser as fantasias que os adolescentes pos-
suem em relação à vida pessoal, familiar e social, das quais, muito se envolvem nessas 178
fantasias que criam a ponto de não conseguirem reconstruir suas vidas e suas relações.
Então há a necessidade do psicólogo atentar-se a estas fantasias, pois elas dizem muito
sobre como os adolescentes se vêem perante a sociedade.

Por meio das entrevistas se constata que existe no ambiente socioeducativo fatores de ris-
co que podem levar a ideações ou tentativas de suicídio, no qual a estrutura da instituição
e a situação de vulnerabilidade social em que se encontram são as questões mais fre-
quentes que surgem na fala dos psicólogos. Como vimos no embasamento teórico, Bracco
(2012) afirma que o processo de individuação é a mais valiosa meta de qualquer indivíduo,
pois, o mesmo buscará se autoconhecer por meio da sua convivência social. Apesar de
não se pode ver com bons olhares uma Lei Penal que, sob justificativa de proteger a cole-
tividade, desdenhe o indivíduo (adolescente) não como um membro da sociedade e sim
como um infrator. Isso significaria colocar o Estado num patamar superior a cada uma das
pessoas singulares que compõe este exato estado.

Nos relatos é notado que a grande maioria destes adolescentes chega à Unidade com
uma série de direitos violados, além de contextos desestruturados, que quando estão num
ambiente de privação de liberdade com poucas atividades e muita ociosidade, podem estar
de fato mais propensos a comportamentos suicidas. Para complementar estas informações,
vão ao encontro das afirmações de Botega (2015) e Jung (2006a, §344; §358), no qual as
ideias sobre questões familiares e relacionamentos interpessoais podem acarretar pensa-
mentos suicidas devido às consequências que geram na vida do adolescente ou da pessoa.

Pelos motivos acima listados, os fatores de proteção tornam-se essenciais para o traba-
lho com os adolescentes, no qual a família e os planos para o futuro, neste contexto, se
tornam os principais fatores protetores, conforme os psicólogos. Conforme vimos, Bracco
(2012) e Pérez (2015) afirmam a necessidade de buscar a integralidade de acordo com
as suas capacidades e potencialidades, a fim de que o adolescente não apresente pensa-
mentos suicidas, pois, quando não há esta integralidade surgem as tentativas de suicídio,
sendo este o processo de individuação. Como pontua Jung (2006b), estamos diante de um
processo através do qual um ser torna-se um “individuum” psicológico, isto é, uma unidade
autônoma e indivisível, uma totalidade.

No que tange ao trabalho preventivo com os adolescentes das unidades socioeducativas, nota-
mos nas entrevistas a necessidade do profissional possuir uma postura aberta nos atendimen-
tos juntamente com uma escuta qualificada, ou seja, há a necessidade da formação qualificada
dos profissionais para então trabalharem com os jovens, de forma que trabalhem com a empa-
tia. Conforme foi mencionado por Botega (2015) a importância da qualificação do profissional,
pois, a forma como ele se expressa com o adolescente é importante, pois é nesse diálogo que

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o vínculo começará a ser construído juntamente à empatia do atendido para com o psicólogo.

Por fim, observamos que o ato suicida não é algo previsível, os métodos utilizados pelos
socioeducandos com o intuito de pôr fim em sua vida, são os mais excêntricos devido à res-
trição de objetos. Em momentos de crises, os adolescentes contam apenas com o amparo
dos próprios internos, familiares e profissionais existentes da instituição, evidenciando o
estreitamento e enfraquecimento de seus laços, por se encontrar na medida de internação. O
fato do estreitamento e enfraquecimento dos laços afetivos dos socioeducandos nos remete
a afirmação de Hillman (2009a; 2009b) relata que o suicídio representa um afrouxamento da
179
estrutura social, um enfraquecimento dos laços grupais, uma desintegração.

Utiliza-se como orientação para retardar a ideação suicida, a criação de vínculos de proteção
para esse adolescente, como o apoio de familiares e profissionais da comunidade. Tais conside-
rações vai ao encontro de Botega (2015c) o qual afirma que em casos de crise suicida o psicólo-
go deverá entrar em contato com os familiares buscando criar linha de proteção para o indivíduo,
impedindo que o ato suicida se consuma, através da manutenção de seus laços e vínculos.

Além disso, o psicólogo deve iniciar um atendimento mais contínuo com esse interno, buscando
através de uma escuta ampliada e intervenções (projetos) a saída desse sofrimento psíquico,
conforme mencionamos anteriormente, Botega (2015c) relata que ouvir e acolher o paciente é
primordial, respeitando os momentos de silêncio e sabendo a hora de sair deles, sempre com o
intuito de ajudá-lo a sair da crise. No entanto, no âmbito da medida socioeducativa de internação,
há dificuldade de um acompanhamento contínuo e integrado com os internos com ideação suicida.

Essa escuta é um auxílio ao paciente para que ele veja outra solução além do suicídio. Pos-
sibilita ao psicólogo, também, o diagnóstico das possíveis potencialidades de atos suicidas
e seus fatores, podendo ser utilizado como estratégia de enfrentamento a esse fenômeno,
visando compreender o indivíduo e suas singularidades. Isso se torna compreensivo quando
recordamos as considerações de Jung (2013, §9) ao pontuarmos que a psicoterapia deve uti-
lizar o método dialético, que consiste na possibilidade de criação de novas sínteses a partir
do diálogo entre dois indivíduos, na qual se confronta as hipóteses e percepções.

5. Conclusão

A preparação acadêmica dos profissionais para lidar com situações de risco dentro das unidades
de atendimento socioeducativo e a orientação para com a família, são de suma importância para
oferecer um contexto ideal para os adolescentes com ideação suicida ou tentativa de suicido.

Portanto, os resultados das entrevistas e análises desse trabalho nos mostram a importância
das atividades voltadas para uma ação socioeducativa. As políticas públicas redistributivas,
dão inclusão social através de interações com aulas de dança, música, cursos de formação
de acordo com a necessidade de cada grupo, garantindo assim, a qualidade de vida dos
jovens e possibilitando a reinserção dos mesmos na sociedade de forma efetiva. Permitindo
assim, uma melhora positiva do individuo referente a pensamentos suicidas.

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Referências

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Tradução de L. A. Reto & A. Pinheiro. Lisboa: Edições 70, 1979.  

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OS DESAFIOS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS
NA GARANTIA DE DIREITOS: UM ESTUDO
NA VARA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE

Carmen Sílvia Righetti Nóbile1

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

Este trabalho constitui-se em uma síntese do estudo realizado no interior do


Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Estadual Pau-
lista “Júlio de Mesquita Filho”, Franca-SP, nível de doutorado. Nossa pesquisa
visa identificar as decisões do Poder Judiciário para a garantia de direitos na
área da Infância e Juventude, em face da falta de implantação e/ou implemen-
tação de Políticas Públicas. Partimos do pressuposto de que os direitos fun-
damentais são considerados o núcleo essencial das constituições e do Esta-
do Democrático de Direito. Trava-se o embate entre a efetividade das normas
constitucionais e às limitações de uma ação concreta do Estado na execução
das Políticas Públicas que garantam os direitos conquistados. Isso gera uma
tensão latente que acaba represada nas instâncias do interior do Estado que se

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propõem administrar esses conflitos: predominantemente o Poder Judiciário,
que tem esta sua função primordial.

Palavras-chave: Poder Judiciário. Políticas Públicas. Infância e Juventude. Di-


reitos fundamentais. Rede de serviços.

1. Introdução 182

As pessoas que procuram os Tribunais de Justiça em nosso país estão em busca de solu-
ções para os conflitos, latentes ou explícitos, que estão vivenciando. No caso das Varas da
Infância e Juventude, por atender predominantemente crianças e adolescentes em situação
de risco e vulnerabilidade social, podemos dizer que os envolvidos vivem e sobrevivem com
grandes necessidades: são desempregados, trabalhadores rurais temporários, empregadas
domésticas, faxineiras, ambulantes e outros. Muitas vezes, essas pessoas já passaram por
atendimentos realizados pelo Conselho Tutelar, serviços de assistência social, de assistência
à saúde e, estão muitas vezes, envolvidas em situações de violência e crimes.

Essas pessoas procuram a justiça ou são encaminhadas ao Poder Judiciário para providên-
cias específicas, relacionadas, em geral, a algum ato praticado ou a algum tipo de omissão
grave que implique problemas para as crianças e os adolescentes sob suas responsabilida-
des. O Poder Judiciário, por meio dos Tribunais de Justiça, é instigado de forma a dar uma
resposta aos conflitos em que eles estão envolvidos.

1 Assistente Social no Tribunal de Justiça de São Paulo, doutora em Serviço Social pela UNESP- Franca/SP;
Mestre em Serviço social e Politica Social pela UEL-PR (Universidade Estadual de Londrina-PR); Graduada em Serviço
Social pela UEL-PR; e-mail:csrighetti@yahoo.com.br / crighetti@tjsp.jus.br. Telefone: (18) 3341-11-07 / (18)3341-6155.
Acerca dos conflitos de interesses que se referem a crianças e adolescentes, pode-se dizer
que o Brasil possui um parâmetro de solução, no caso a legislação, bastante avançado: o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ou Lei nº 8.069, de 1990.2 No entanto, o citado
estatuto é apenas um dos aspectos necessários para a garantia de direitos. Esses direitos
dependem, para sua garantia, de uma ação concreta do Estado e da atuação do Poder Execu-
tivo na execução das políticas públicas que assegurem os direitos conquistados.

Nossa experiência profissional de mais de dezoito anos, atuando como Assistente Social, no
interior do Poder Judiciário paulista nos instiga a melhor compreender esses mecanismos.
Nossos questionamentos passam por buscar respostas às seguintes perguntas: Que respos-
tas são dadas pelo Judiciário em casos que envolvem políticas publicas? Até que ponto a
intervenção Judicial, visando cumprimento das Políticas Publicas, na implementação de di-
reitos sociais, se caracteriza afronta a divisão e independência dos poderes que constituem
o Estado Democrático de Direito? Até que ponto, depois de esgotadas outras instâncias
(de natureza política e administrativa), pode-se buscar a intervenção do judiciário visando à
implementação de políticas públicas pertinentes aos direitos fundamentais?

A partir do exposto, definiu-se como problema de pesquisa: como são enfrentados pelo
Poder Judiciário à garantia de direitos versus a falta de políticas públicas?

Tendo definido a temática desse estudo, é importante, também, sinalizar as etapas de reflexão

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do itinerário, ou seja, o percurso metodológico realizado para a elaboração dessa pesquisa.

2. A trajetória de uma pesquisa

Numa instituição forense brasileira, toda historia dos conflitos (a lide) está registrada
nos autos3 de um processo4 judicial, a qual é encerrada com a decisão do Juiz. Todas as
informações, providências, determinações e decisões tomadas no decorrer de um proces-
183
so precisam estar registradas nesses autos. “O que não está nos autos, não está na vida”
afirma Selma Magalhães (2003, p.35).

Os autos contêm diferentes olhares de uma mesma questão, a produção da sentença final
pelo juiz forma-se depois de certo percurso em que diversos profissionais, a cada momen-
to, atuam na interpretação da realidade para o juiz. Como aponta Esteves (1989), é um
“quebra cabeça feito a várias mãos”. No entanto, a sentença não é apenas uma “palavra em
vão”, mas trata-se de uma comunicação escrita que estabelece consequências concretas
na vida das pessoas envolvidas.

2 Emilio Garcia Mendez, assessor do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância; em inglês, “United
Nations Children’s Fund”) para os Direitos da Criança na América Latina, em seu livro Infância e cidadania na América
Latina, dedica três dos doze capítulos do livro à apresentação do Estatuto da Criança e do Adolescente brasileiro
como a mais moderna e perfeita legislação do mundo na área a que pertence (MENDEZ, 1998).

3 Autos – constam todas as peças pertencentes ao processo (capa).

4 Processo – confunde-se com Autos. Processo é uma série ordenada de atos que tende à composição de
uma lide. É o universo de atos. Trata-se de uma fórmula criada para garantir os direitos das partes, evitando decisões
arbitrárias dos agentes públicos, bem como julgamentos personalistas, paternalistas, etc.. Mais do que um mero
amontoado de atos, o processo representa uma técnica de limitação do poder estatal.
Diante dessa peculiaridade do universo forense, que admite como práticas cotidianas comunica-
ções escritas, optou-se, neste estudo, ora apresentado, por pesquisar os autos judiciais; consi-
derando que, nestes, se concentram os fatos, a demanda apresentada, a trajetória, a situação da
vida das pessoas envolvidas; como também, demonstram as manifestações do Ministério Públi-
co, as Determinações Judiciais, os estudos sociais e psicológicos, quando existentes e, por fim,
a sentença judicial, apresentando as respostas do Poder Judiciário aos conflitos apresentados.

Embasada na experiência profissional, observou-se que os casos atendidos na Vara da Infân-


cia e Juventude envolvem, na sua maior parte, uma população desprovida de recursos e tam-
bém, quando os direitos das crianças e dos adolescentes estabelecidos pelo ECA (Estatuto
da Criança e do Adolescente) são ameaçados ou violados por conduta dos próprios, ou ainda
por ação ou omissão da família, sociedade ou Estado, precipitam demandas sociais não
resolvidas, ou não solucionadas pelos agentes do poder público. Devido a essas caracterís-
ticas, típicas dos casos atendidos nessa área, tornou-se o local especialmente interessante
para a escolha de nossa pesquisa: o estudo dos autos que tramitam na Vara da Infância e
Juventude no Tribunal de Justiça de São Paulo.

Considerando os vários tipos de ações na Vara da Infância e Juventude, observou-se a


existência de muitos processos iniciados a partir de solicitações dos Conselhos Tutelares.
Neles, os Conselhos Tutelares alegavam de que não conseguiam “sozinhos dar respos-

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tas” ou “solucionar a situação” e pediam a intervenção do Poder Judiciário, no entanto,
acolhiam crianças e adolescentes, em instituições. Há nesses autos, uma tentativa prévia
dos Conselhos Tutelares em resolver os problemas, no encaminhamento dos problemas
apresentados pelas crianças, adolescentes e suas famílias; sendo possível perceber um
conflito latente entre o Conselho Tutelar e os órgãos do poder público (escola, sistema de
saúde, etc...). No acolhimento institucional, os Conselhos Tutelares solicitam ao Ministé-
rio Público que provoque o Judiciário a dar uma resposta a um conflito, solicitando que
a criança e/ou adolescente seja reinserida em sua família de origem ou extensa ou na
família substituta, através de adoção.
184

Ainda os estudos5 apontam que as famílias, nos casos de acolhimento institucional,


estão entre aquelas que não contam com suporte necessário para exercerem integral-
mente as funções de provedoras e mantenedoras dos filhos, devido, entre tantas outras
questões, à escassez de programas e/ou políticas públicas voltadas ao atendimento de
seus direitos sociais.

A análise dos resultados da pesquisa foi possível perceber que várias famílias têm consciência
de que sua condição financeira precária afeta, e muito, a vida de seus filhos, netos, sobrinhos e/
ou irmãos, mas não visualizam possibilidades de mudanças dessa situação em razão principal-
mente da dificuldade de conseguirem emprego e/ou manterem um trabalho fixo. Ou, ainda, por
não contarem com programas socioeducativos nas proximidades de sua moradia, como vaga
em creches, centros de juventude etc. Em decorrência, muitas vezes se sentem incapazes de
cuidar das crianças e/ou adolescentes e, apesar de desejarem tê-los de volta, várias observam
que é bom que estejam abrigados, porque assim estão tendo melhores condições de vida (FÁ-
VERO; VITALE; BAPTISTA, 2008, p. 118-119).

5 Para aprofundamento da questão, ver o trabalho de Eunice Teresinha Fávero, Maria Amália Faller Vitale e
Myrian Veras Baptista (2008), intitulado Famílias de crianças e adolescentes abrigados: quem são, como vivem, o que
pensam, o que desejam. E o trabalho de Rita C.S. Oliveira (2007), intitulado Quero voltar para a casa.
De acordo com esses parâmetros a pesquisa foi realizada na Vara da Infância e Juventude,
na Comarca da 26ª Circunscrição6, com recorte temporal de janeiro a dezembro/2013. Res-
salta-se que este período foi estabelecido levando-se em conta que presumimos que a maior
parte dos casos analisados estariam encerrados no momento de nossa pesquisa, contendo
assim, todas as peças dos autos para procedermos nosso estudo.

A identidade das crianças e adolescentes participantes, bem como seus familiares, foram
preservados. Para isto, foram estes identificados através de um nome fictício e idade. Além
disto, a pesquisa foi realizada mediante a autorização do Tribunal de Justiça de São Paulo,
sendo esta a autoridade competente que precisou autorizar a realização desta pesquisa.

Apresentamos a seguir, o resumo de um dos casos estudados, buscando reproduzir a trajetória de vida
de cada uma das crianças/grupos de irmãos/famílias envolvidas nos processos, com vistas a identifi-
car quais são as respostas do Poder Judiciário às demandas sociais postas em cada um deles.

Os casos das crianças: Sabrina (4 anos), Ágata (1 ano) e Daniela (10 anos) e
do adolescente Marcos (13 anos)

1. CASO - IDENTIFICAÇÃO

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Sabrina (4 anos), Ágata (1 ano), Daniela (10 anos) e Marcos (13 anos)
Acolhidos: 02/04/2013
Desacolhidos: 04/12/2013
Autos principal: 155 páginas.
Apensos: quatro apensos, com 161, 175, 152 e 147 páginas.

2. DESCRIÇÃO
185

O MP solicita o acolhimento institucional das quatro crianças, por conta das situações de
risco que estavam sendo submetidas, haja vista o comportamento de sua genitora que,
mesmo alertada, não tomou providências visando sanar os problemas apontados, tais
como a má higiene no local. Os menores vinham sendo acompanhados pelo Conselho
Tutelar desde 2003. A situação ficou extremamente grave quando, o Conselho Tutelar
*CRAS – Centro de Referência da
verificou que o irmão da suplicada (tio materno dos menores) apresentava quadro de Assistência Social - responsável
transtorno mental agravado pelo uso de substâncias entorpecentes, sendo necessária a pela organização e oferta dos
serviços socioassistenciais da
intervenção policial para contê-lo. ANEXO: 1) relatório do CT; 2) oficio da Vigilância sani- Proteção Social Básica do Siste-
tária; constando a visita realizada, a qual aponta que a genitora reside com seus três filhos ma Único de Assistência Social
(SUAS) nas áreas de vulnerabilida-
apenas em um cômodo, que serve como quarto, cozinha, não possui pia para lavagem de e risco social dos municípios.
de louças, nem armários. Por falta de local adequado para guardar roupas e armazenar
** CREAS – Centro de Referência
utensílios de cozinha, materiais de limpeza, tudo fica desorganizado em um único cômodo;
Especializado da Assistência So-
3) relatório do CREAS; 4) relatório do CRAS* e CREAS** ; 5) estudo psicossocial (judiciário); cial - oferta de trabalho social es-
pecializado a famílias e indivíduos
6) advertência Judicial da genitora.
em situação de risco pessoal ou
social, por violação de direitos.

6 A 26ª Circunscrição Judiciária do Estado de São Paulo abrange os Fóruns das Comarcas de Assis, Cândido
Mota, Quatá, Palmital, Macaraí e Paraguaçu Paulista.
3. ÓRGÃOS ENVOLVIDOS

CT, Casa de Acolhimento, assistente social e psicóloga no Judiciário, CRAS, CREAS,


Secretária Municipal de Saúde, Assistência Social e Educação.

4. PIA E AÇÕES DOS PROFISSIONAIS DA CASA DE ACOLHIMENTO

1. Encaminha oficio informando o comportamento da genitora na instituição: se


nega a ouvir e aceitar às orientações, quebrando as regras e rotina da casa. A
coordenadora tentou orientar a genitora, a qual se negou as orientações. A co-
ordenadora e a genitora se desentenderam. Foi elaborado Boletim de Ocorrên-
cias. A coordenadora sugere à proibição de visitas da Sra. Daiana aos filhos.

2. PIA- Consta individualmente o período escolar de Marcos, Sabrina, Ágata e


Daniela, sendo todos frequentes e rendimento escolar satisfatórios. Não apre-
sentam problemas de saúde. Não tiveram acolhimento anterior. A opinião das
crianças reflete na preferência em retornar ao convívio com a mãe. Em relação
à situação familiar, pontuam: que a genitora e os filhos mantem um forte víncu-

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lo afetivo, os filhos pretendem voltar ao convívio familiar com a genitora.

PROPOSTA: Há a possibilidade da reintegração familiar, desde que a genitora


aceite passar por acompanhamento psicológico, bem como visitas e orienta-
ções dos órgãos que se fizerem necessários, como CREAS, CRAS, Conselho
Tutelar e Secretaria de Saúde.

5. AÇÕES DA ASSISTENTE SOCIAL E PSICÓLOGA (JUDICIÁRIO)


186

1. Estudo psico-social: relata que a Sra. Daiana foi acolhida dia 01/04/2013 com os
filhos, pois estava amamentando a criança Ágata, tendo permanecido na Casa de
acolhimento até o ultimo dia 26, quando foi solicitada a sua saída do local, devido
a não ter seguido as regras da instituição. Atualmente, reside com a filha de 17
anos, que convive com Vilson, com quem tem um filho de 9 meses. Em entrevista
com a genitora, apresentou justificativas evasivas e inconsistentes, atribuindo ao
irmão a responsabilidade vivenciada por ela e os filhos. Compareceram ao atendi-
mento às crianças. Marcos e Daniela declararam que, enquanto estiveram no con-
vívio da genitora, eram frequentes à escola, são devidamente atendidos pela mãe
e desejam retornar junto dela. Conclusão: A Sra. Daiana mostra-se impermeável
às orientações técnicas, bem como a intervenção dos demais órgãos. Sugerimos
que a Sra. Daiana seja encaminhada coercitivamente à avaliação psiquiátrica,
uma vez que ela se nega a realizá-la e que as crianças permaneçam acolhidas.
Os casos das crianças: Sabrina (4 anos), Ágata (1 ano) e Daniela ( 10 anos) e do adolescente Marcos (13 anos)

2. Novo estudo psico-social: Consta que a genitora mantém o relacionamento com


Rogério. Continua o tratamento psicológico e trabalhando como faxineira. As
crianças reafirmaram o desejo de retornarem para junto da genitora. Durante
a visita atual, observamos que foi concluída a reforma da moradia, a qual de-
monstrou reunir condições para o devido recebimento dos filhos.

6. AÇÕES DA ASSISTENTE SOCIAL E PSICÓLOGA (JUDICIÁRIO)

Juiz, Ministério Público, a genitora e seu defensor, as crianças, a Assistente Social


e Psicóloga no Fórum, a Coordenadora da Casa de Acolhimento, representantes
da Secretária de Saúde, Educação, Assistência Social, CREAS, CRAS I e CRAS II,
e do Conselho Tutelar. A genitora relatou que tem a intensão de ter a guarda dos
filhos. Manifestação do representante da Casa de Acolhimento pela manutenção do
acolhimento, na medida em que por ora, ainda falta energia elétrica na residência e
a genitora não tem renda fixa. Manifesta também pela saída dos adolescentes para
passarem os finais de semana com a genitora. Demais órgãos, Ministério Público

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e advogada manifestam no mesmo sentido. Foram acordadas as seguintes ações:
1) as crianças permanecerão acolhidas; 2) estão liberadas as saídas nos finais de
semana para que fiquem com a mãe; 3) novo estudo psicossocial; 4) o CRAS se
compromete ao fornecimento de cesta básica mensal 5) o CRAS se compromete,
ainda, a informar a este Juízo, a respeito da efetiva inclusão da genitora no “Progra-
ma Renda Cidadã”, bem como na taxa social de serviços públicos.

7. MANIFESTAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO


187

1. Acolhe às sugestões do setor técnico.

2. Opina pela suspensão do direito de visitas da genitora aos filhos.

3. Acata as sugestões do setor técnico, que as crianças sejam desacolhidas e


entregue a genitora.

8. DECISÃO JUDICIAL

1. Determina o acolhimento, guia de acolhimento, citação da requerida, para apre-


sentar contestação. Oficio ao Conselho Tutelar para providenciar o registro de
nascimento da menor Ágata. Realização do estudo psico- social (judiciário).

2. O Juiz defere o pedido de suspensão de visitas da genitora por três meses.

3. HOMOLOGA o Plano Individual de Atendimento e as ações acordadas no termo


de audiência.

4. Acata as sugestões, desacolhendo as crianças para que retorne ao convívio materno.


O caso apresentado acima demonstra como o Judiciário, o Ministério Público, e a Rede
de Serviços internalizam e incorporam o mesmo discurso. Observamos que todos os
profissionais envolvidos possuem a mesma postura em relação os cuidados da genitora
com os filhos. A Vigilância Sanitária cita que a genitora mora em dois cômodos com
quatro filhos, sendo difícil a organização da casa. Na escola não há queixas, as crian-
ças estão matriculadas e frequentes. Os filhos não se queixam da mãe, pelo contrário,
apresentam fortes vínculos afetivos com a mesma, sendo esse fato descrito por vários
profissionais dos vários serviços (Serviço Social e Psicologia no Judiciário, Casa de
Acolhimento, CREAS, CRAS).

Ainda os profissionais da Casa de Acolhimento, solicitam a suspensão das visitas pela mãe,
sendo que a genitora foi acolhida junto aos filhos, pois estava amamentando Ágata. Não
houve questionamentos pelo Ministério Público e nem pelo Judiciário se esse afastamento
prejudicaria a amamentação e os vínculos com os filhos, não defendendo assim, o direito das
crianças. A mãe permaneceu três meses com as visitas suspensas aos filhos.

A genitora constantemente é taxada pelos profissionais, como negligente devido à falta


de higiene. Encontramos situações semelhantes no estudo dos demais processos judi-
ciais estudados na pesquisa.

Buscando compreender como o judiciário responde aos casos que necessitam da atuação

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de políticas públicas, nos estudos e na pesquisa realizada, verificamos que, o Juiz com
base no conteúdo dos pareceres dos diversos profissionais (seja da rede de serviços ou do
judiciário), direta ou indiretamente, acata, incorpora e se apropria, do saber desses profis-
sionais, na sentença que profere.

Acreditamos que tal situação ocorre, justamente porque os vários profissionais do sistema
de garantia de direitos da criança e do adolescente e, em especial, o assistente social, inter-
pretam e intervêm nas relações concretas do cotidiano que permeiam as relações familiares
e sociais, as relações do Judiciário com as pessoas e, enfim, as relações do sujeito com tudo 188
o que o envolve (família, escola, clube, parentes, programas sociais, etc.), e o juiz se apropria
desses saberes legitimando-o, reforçando o poder simbólico da instituição judiciária.

Na avaliação da situação de crianças, adolescentes e famílias na Vara da Infância e Juven-


tude, o assistente social e os profissionais da rede de serviços, investidos do poder sim-
bólico, podem adentrar às casas, falar com as pessoas, avaliá-las e emitir pareceres sobre
o destino de suas vidas. Por outro lado, observamos também que, o assistente social no
judiciário incorpora e se apropria da linguagem jurídica em seus relatórios e pareceres,
reproduzindo a dinâmica da própria instituição e o poder concentrador que ela possui. A
profissão não é uma ilha e ela acaba por refletir e fazer parte dessa dinâmica do processo
jurídico e social mais amplo.

Destacamos que todos os sistemas simbólicos (a politica, a religião, o direito, entre outros)
são caracterizados por agentes dotados de um mesmo habitus. Os atores corporificam
papéis e os efetivam cotidianamente. (BOURDIEU, 1989).

A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações fa-
miliares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se
daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores
e visões do mundo diferentes e antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os
dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que são invocados tanto para justificar
como para inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos
dominantes. (BOURDIEU, 1989, p. 242).

Nessa análise, observamos ainda que a interpretação da lei não é o ato solitário de um magistra-
do em fundamentar a demanda na razão jurídica; o conteúdo prático da lei se revela no resultado
de uma luta simbólica entre os vários profissionais dotados de competência técnicas. Essa
situação se destaca com mais veemência na Vara da Infância e Juventude, através dos colabora-
dores institucionais do Juiz, ou seja, dos vários profissionais dos diversos órgãos institucionais.

Na pesquisa realizada, detectamos também, que os representantes da sociedade civil e do Poder


Público, nos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, na maioria das vezes, também são
os mesmos que participam das audiências concentradas nos casos de crianças e/ou adolescen-
tes acolhidos, podendo esses, contribuírem ou influenciarem a agenda na elaboração de políticas
públicas, ou das decisões partilhadas em relação a vida dessas crianças/ adolescentes e famílias.

Nessa rede de profissionais, é promovido um conselho de administração de gestão da


infância e juventude, e a família aparece como cercada pelos acompanhamentos propostos,
ocasionando a existência de um complexo tutelar em torno da administração de gestão da
infância e juventude desadaptada.

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Desencadeia-se um processo de controle e de tutela por pessoas bem intencionadas ou por
especialistas reconhecidos, considerando o perigo que as crianças e adolescentes correm
em sua família, que levam os envolvidos, comumente a escolher entre uma sujeição às nor-
mas e/ou orientações sugeridas pelos experts, profissionais da área, que são os que sabem
as regras. Tal intervenção profissional acarreta, muitas vezes, a responsabilização das pesso-
as devido às precárias condições sócio econômicas em que vivem.

5. Considerações Finais 189

A Justiça da Infância e Juventude tem modificando a sua atuação, na busca de articulações


interinstitucionais com a rede de serviços; seja através da exigência da elaboração do Plano
Individual de Atendimento, do acompanhamento dos casos acolhidos com a rede de serviços
sócio assistencial ou da realização das audiências concentradas, buscando alternativas para
os problemas apresentados e para o cumprimento da Lei 12.010/2009 (Lei do direito à con-
vivência familiar de crianças e adolescentes). Estas articulações possibilitaram a atuação
de atores como parte da responsabilidade pública na solução dos problemas que levam uma
criança e/ou adolescente ao afastamento da família, pois se encontram em situação de risco
e vulnerabilidade social e necessitam de medidas de proteção.

Considerando as alterações da Lei 12.010, as audiências concentradas e a necessidade do


trabalho em rede, no presente trabalho, foi demonstrado que as crianças, os adolescentes
e famílias de acolhidos institucionalmente, são atendidos e acompanhados por vários pro-
fissionais dos diversos setores, que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, seja ele,
Municipal, Estadual ou Federal. Estes profissionais buscam decisões colegiadas, para o
problema apresentado e na pesquisa em tela, em todas as situações houve a homologação
judicial dos acordos realizados pelos profissionais envolvidos, sugerindo uma tendência de
apropriação dos saberes desses profissionais.
No entanto, observamos que mesmo com a alteração da lei e com o trabalho em rede, foi
proporcionada uma alteração de atitudes dos profissionais de culpabilizar à família. Os
profissionais do Sistema de Garantia de Direitos se fortalecem e compartilham da mesma
postura e proposta. Situação essa que dificulta ainda mais, às crianças, aos adolescentes
e famílias, defenderem desse posicionamento conjunto em rede.

Em relação ao objetivo de nossa pesquisa em identificar como o Poder Judiciário intervém


para garantir direitos na área da Infância e Juventude, em face da necessidade de implantação
de políticas públicas; detectamos que tal situação, vai além da ausência de políticas públicas
implantadas pelo Estado, em determinados foco de atenção. Os profissionais têm o poder
simbólico de indicarem alternativas, pois geralmente são eles, os atores envolvidos que cons-
troem a representação e soluções dos problemas e indicam ou elegem situações que o Estado
irá intervir. No entanto, a postura tem sido de culpabilizar a família. Trata-se de uma ideologia
que perpassa toda a sociedade, de criminalização, de responsabilização do pobre.

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e dá outras providências. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 04 ago. 2009. Retificado no DOU
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191
PLANO INDIVIDUAL DE
ATENDIMENTO X RELATÓRIO TÉCNICO
INTERPROFISSIONAL: A DUBIEDADE
ENTRE A GARANTIA DE DIREITOS E A
SUPOSTA PRODUÇÃO DE PROVA EM JUÍZO

Lívia Gaspari Nascimento1

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

Este trabalho visa analisar a confecção de documentos judiciais envolvendo o


adolescente em conflito com a lei. Esses documentos são caracterizados pelo
Plano Individual de Atendimento e pelo Relatório Técnico Interprofissional, que
contribuem diretamente para a reavaliação da medida socioeducativa. Serão
apresentados no transcorrer deste estudo os resultados preliminares da pes-
quisa qualitativa realizada, pesquisa essa, proba de seguimento a posteriori.
Salienta-se que o intento para a realização deste trabalho estribou-se a partir

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de experiência empírica anteriormente vivenciada.

Palavras-chave: Adolescente em Conflito com a Lei; Medida Socioeducativa;


Plano Individual de Atendimento; Relatório Técnico Interprofissional;

1. Introdução
192
O presente trabalho objetiva abordar assuntos correlatos à trajetória do adolescente em
conflito com a lei, adotando como preceito as medidas socioeducativas, sua aplicabilidade,
até a confecção de documentos judiciais. Depreende-se que este estudo fora organizado
levando em consideração a prática de empirismo experienciado pela autora, ao trabalhar no
Instituto de Atendimento Socioeducativo do Espírito Santo, atrelada às unidades localizadas
no município de Cachoeiro de Itapemirim/ES. Nas aludidas instituições, inquietudes surgiram
em ensejos, a partir do preenchimento do PIA e do relatório técnico, questionamentos esses,
que se assemelham aos resultados que serão apresentados neste estudo.

Para a aplicabilidade deste trabalho, optou-se por realizar uma pesquisa científica de
base qualitativa, por meio de análise documental em revistas, artigos e livros, para
melhor elucidar as questões a serem abordadas. Faz-se saber, que a análise documen-
tal para a pesquisa não fora delimitada, sendo priorizada a utilização de textos que se
assemelham a problemática apresentada.

1 Assistente Social formada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Política Pública,
Gestão e Controle Social pela Faculdade de Educação da Serra (FASE). Especialista em Medidas Socioeducativas pela
Faculdade de Educação da Serra (FASE). Atuou como Assistente Social Socioeducativo no Instituto de Atendimento
Socioeducativo do Espírito Santo (IASES) entre os anos de 2011 a 2016. Email: liviagasp@yahoo.com.br – Telefone
para contato: (28) 99921-7804.
Salienta-se que a autora Arilda Schmidt Godoy (1995), caracteriza a cientificidade, baseada
na análise documental, como considerável alicerce para a descoberta de novos elemen-
tos, por não estar focalizado em questionamentos genuinamente estruturados. Sinaliza
atenção especial a esta linha de pesquisa, por possibilitar interpretação complementar ao
objeto de estudo analisado.

Por meio da análise documental, diversificados autores contribuíram para a confecção des-
te trabalho, tendo destaque autores como Albuquerque et. al. (2015); Costa et. al (2011) e
sua referência de autores; o Conselho Regional de Psicologia do Paraná que atribuiu deba-
te à problemática aqui acometida e Jonas Zoli Segura (2012) que representa a Defensoria
Pública do Estado de São Paulo.

Salienta-se que o objetivo deste trabalho, centralizava-se, exclusivamente, na criticidade


à elaboração do Plano Individual de Atendimento e do Relatório Técnico Interprofissional.
Todavia, a resposta advinda através da pesquisa nos possibilitou, além de respostas,
inquietudes probas de maior análise posterior.

2. Medidas Socioeducativas: Um breve relato.

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O modelo processual legal vigente considera como adolescente em conflito com a lei, pesso-
as na faixa etária entre 12 a 18 anos de idade incompletos que cometeram ato infracional, o
que compreende-se por envolvimento direto com a prática de “crime ou contravenção penal”
como vigora o artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD). Confirmada a
prática de ato infracional, são designadas ao adolescente medidas socioeducativas e/ou pro-
tetivas. Valida-se que aos menores de 12 anos de idade que cometerem ato infracional, são
designadas medidas de proteção como preconiza os artigos 98 e 101 do aludido ECRIAD.

As medidas sancionatórias são realizadas a partir do que preconiza a Doutrina de Proteção


193
Integral datada nos Direitos Humanos e na Constituição Federal Brasileira de 1988, bem
como pela lei 8.069/90 decorrente do Estatuto da Criança e do Adolescente. Na vigência
deste modelo, toda a prática de ato infracional precisa ser constatada e jurisdicionalmente
avaliada levando em consideração a gravidade do ato e os direitos específicos da infância e
juventude. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem como base a proteção primária, por
meio de garantia de direitos fundamentais, e como diretiva a prevenção secundária e terciá-
ria, através da aplicação de medidas protetivas (art. 101) e socioeducativas (art. 112).

Avaliada a prática de infração, podem ser designadas as seguintes medidas socioeducativas


ao adolescente em conflito com a lei, tendo critérios de responsabilização tanto em meio
aberto como em imputação privativa de liberdade, sendo seis as indicações: advertência;
obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida;
semiliberdade e internação. A aplicabilidade das sanções é definida a partir do teor do ato
infracional, da condição sociofamiliar e do amparo dos órgãos de proteção.

Complementando o Estatuto da Criança e do Adolescente no que concerne à aplicabilidade


das medidas socioeducativas, fora instituído o Sistema Nacional de Atendimento Socioedu-
cativo (SINASE) por meio da resolução n.º 119/2006 do Conselho Nacional da Criança e do
Adolescente (CONANDA), sendo instituído por meio da lei n.º 12.594 em 18 de Janeiro de
2012. A concepção da referida lei, tem por primórdio regulamentar como o Poder Público e
demais órgãos governamentais, deverá prestar o atendimento ao adolescente e à sua família,
baseado no que preconiza os direitos específicos correlatos à infância e juventude.

Com a vigência do SINASE passa a ser obrigatória a elaboração e implementação em âmbito


governamental dos Planos de Atendimento Socioeducativo, com o objetivo de oferecer pro-
gramas oriundos à execução das medidas socioeducativas em meio aberto, com a responsa-
bilidade advinda dos municípios, e as privativas de liberdade por incumbência do Estado.

Nesta perspectiva, legalmente, o adolescente em conflito com a lei detém o direito a um tratamen-
to particularizado com caráter ressocializador, com o apoio de sua família e de técnicos/profissio-
nais que atuam nos órgãos de proteção, a fim de auxiliar no aprimoramento de um planejamento
de vida elaborado. Concernente a este planejamento, o artigo 52 do SINASE especifica que:

O cumprimento das medidas socioeducativas, em regime de prestação de serviços à comu-


nidade, liberdade assistida, semiliberdade ou internação, dependerá de Plano Individual de
Atendimento (PIA), instrumento de previsão, registro e gestão das atividades a serem desen-
volvidas com o adolescente.

O parágrafo único do citado artigo instrui que o Plano Individual de Atendimento (PIA) deve ser
elaborado por equipe técnica de referência do adolescente, bem como com a participação do
socioeducando e de seu âmbito familiar, sendo obrigatória a participação da família no proces-

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so socioeducativo, sendo passível, em casos de omissão, responsabilização administrativa.

Em complemento, o artigo 58 do SINASE estabelece que em casos de nova avaliação da medida


socioeducativa, “é obrigatória a apresentação pela direção do programa de atendimento de rela-
tório da equipe técnica sobre a evolução do adolescente no cumprimento do plano individual”.

Os denominados documentos técnicos como o PIA e o relatório da equipe técnica possuem


a sua particularidade e relevância, ao se tratarem de documentos com critério pedagógico e
avaliativo, respectivamente, dos quais são o nosso objeto de estudo neste trabalho.
194

3. Plano Individual de Atendimento e Relatório da Equi-


pe Técnica: A confecção dos documentos judiciais.

O Plano Individual de Atendimento está no disposto do SINASE no Título II – Da execução


das Medidas Socioeducativas, especificadas no capítulo IV, e remete critérios quanto à
sua elaboração técnica. Depreende-se que o sistema socioeducativo por meio do PIA deve
intervir diretamente na vida do adolescente autor de ato infracional de forma a cotizar a
construção de sua identidade, proporcionar o discernimento quanto a perspectivas atinen-
tes à projeção de vida, desenvolver a sua cidadania e competências correlatas às suas
habilidades pessoais, cognitivas, bem como produtivas.

Objetiva-se com a construção do PIA, fundamentar o acompanhamento pessoal e social do


adolescente, compactuando metas e compromissos entre socioeducando x família defronte
todo o processo socioeducativo. Albuquerque et. al. (2015) apontam sobre o padrão peculiar
que denota o Plano Individual de Atendimento. Primariam que a partir do momento em que
o adolescente, participa da construção de um mecanismo, que se refere a toda metodologia
técnica que com ele será trabalhada, lhe é assegurado os seus direitos fundamentais preco-
nizados em lei, além de garantida a sua individualização em frente a todo esse processo.
Avalia-se que a construção do Plano Individual de Atendimento se inicia desde o acolhimento
do adolescente dentro da instituição, e deve ser preenchido por meio do diagnóstico polidimen-
sional, através de intervenções técnicas com o adolescente e a sua família. Defronte a essa
interação, cada categoria profissional por meio do acompanhamento, procederá de seu parecer
profissional acerca do que for observado, e a partir destes pareceres é abalizado o diagnóstico.

Depreende-se que o diagnóstico polidimensional está fundamentado no Estatuto da


Criança e do Adolescente em seu artigo 94, e denota a obrigatoriedade no inciso XIII de
que a equipe deverá “Proceder a estudo social e pessoal de cada caso”. Quando o artigo
supradito se remete a avalizar a realização de estudo, temos dois temas específicos em
destaque, que são o Estudo Social e o Estudo de Caso.

Depreende-se que “O estudo social é um processo [...] que tem por finalidade conhecer
com profundidade, e de forma crítica, uma determinada situação ou expressão da questão
social [...]” (CEFESS, 2003, p. 42). No que concerne ao Estudo de Caso, este é implicado a
todas as entidades que desenvolvem programas de internação, e se refere “[...] ao levanta-
mento com mais profundidade de determinado caso ou grupo humano sob todos os seus
aspectos” (MARCONI; LAKATOS 2011, p. 276).

É ressaltante a explanação de André (1984, p. 52) neste contexto, pois a autora sinali-
za elementos importantes e característicos deste instrumental técnico conveniente às

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categorias profissionais:

Os estudos de caso buscam a descoberta. Mesmo que o investigador parta de alguns pressu-
postos que orientam a coleta inicial de dados, ele estará constantemente atento a elementos
que podem emergir como importantes durante o estudo, aspectos não previstos, dimensões
não estabelecidas a priori. A compreensão do objeto se efetua a partir dos dados e em função
deles. Os estudos de caso enfatizam “a interpretação e contexto”. É um pressuposto básico
deste tipo de estudo que uma apreensão mais completa do objeto só é possível se for levado
em conta o contexto no qual este se insere.
195
Neste parâmetro, remetendo-se ao adolescente em conflito com a lei, pode-se observar a
relevância da integração profissional de forma a promover um estudo que compreenda a par-
ticularidade deste adolescente, o que o motivou à prática de ato infracional, conhecer a sua
própria história de vida, os fatores socioeconômicos, dentre outros aspectos CASTRO 2006
(apud, GUIDINI 2012). Depreende-se que a abalizada menção nos expede a dizer que a prática
de ato infracional é fundamentada por motivações interligadas a situações vivenciadas, em
que o adolescente viabiliza como alternativa, por circunstâncias singulares, a prática da ilega-
lidade (HAMOY, 2008). Nessas circunstâncias, salienta-se a importância de um estudo mais
aprofundado acerca do objeto de ação, bem como maior interação entre as categorias profis-
sionais de forma a perceber essas circunstâncias e arrazoar alternativas para rompê-las.

E é a partir dessa interação profissional que se fundamenta o estudo de caso que resulta no
diagnóstico polidimensional. É neste momento que se finda a prática interdisciplinar da equi-
pe ao identificar o seu objeto de ação e as demandas a serem trabalhadas. De acordo com
Severino (2007), a interdisciplinaridade é a união de diversificadas áreas de conhecimento,
que se encontram para se complementarem em uma relação contraditória e dialética, onde
cada área de conhecimento tem as suas respectivas contribuições, e se caracterizam pela
intensidade da troca de conhecimento entre os profissionais.
Cada instituição socioeducativa possui o seu próprio critério político/pedagógico para
gerir o parâmetro institucional concernente à legislação. Ao avalizar o estudo de caso,
considera-se importante retratar que a prática interdisciplinar não deve ser restrita
somente à equipe técnica:

[...] Desta maneira, fica mais fácil conhecer o adolescente por inteiro e tornar o estudo de caso
menos suscetível a avaliações, interpretações pessoais e projeções individuais. É de suma im-
portância o envolvimento, além da equipe técnica, dos professores e agentes socioeducativos.

O trecho supradito, fora retirado do Manual de Orientação acerca do preenchimento do Plano


Individual de Atendimento promovido pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. Ao retratar
sobre avaliações e interpretações pessoais, o SINASE preconiza veemente capacitação
continuada para todos os atores sociais que se remetem a trabalhar dentro do sistema socio-
educativo. O objetivo central é evitar a concepção de pontos de vista avalizados no senso co-
mum, de forma a não vigorar pensamentos preconcebidos acerca da prática de ilegalidade.
E neste aspecto, é importante dizer, que a conjuntura brasileira, por vezes, é abalizada pelo
senso comum, que denota a imagem de que o adolescente em conflito com a lei é o principal
gerador das causas da violência na sociedade. Este pensamento, em ensejos, é fundamen-
tado pela própria midiatização, que desconsidera que esse autor de ato infracional possa ter
primeiro padecido de uma conjuntura nefasta de violações de direito. Deste modo, sinaliza-se
que a privação de liberdade seja a opção mais sadia para conter o fenômeno da marginali-

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zação, perspectiva esta ilusória, preconceituosa e inconsistente se levada em consideração
todo o contexto que este sujeito se encontra/va inserido.

Ao se remeter à área técnica, observa-se a atuação de diversificadas categorias profissio-


nais com relativos atributos na socioeducação, e nessa perspectiva, o SINASE explicita
ser ressaltante o conhecimento teórico/metodológico das categorias, de forma a avalizar
a qualidade e a eficácia da proposta socioeducativa aplicada. Destarte, Iamamoto (2003)
apresenta criticidade ao avalizar sobre a proeminência da junção teoria x prática. A autora
em seu discurso condiciona que a aludida prática, possibilita maior juízo crítico acerca da 196
totalidade, permitindo assim, melhor compreensão acerca do objeto de estudo/observa-
ção, além de resultados mais eficazes no campo de atuação.

Depreende-se que a partir da confecção do PIA, inumeráveis orientações de preenchimento


do aludido documento são instituídos pela própria legislação. Albuquerque et. al. (2015, p.
345) apresentam um viés crítico interessante a partir desta perspectiva, ao orientarem os
profissionais técnicos quanto à complementação do PIA de forma a não tornar o documento
burocrático, como um mero jogo de perguntas e respostas, além de considerarem importante
a sua revisão continuamente. As respectivas autoras realizaram uma pesquisa com profissio-
nais das Casas de Semiliberdade e impetraram respostas relevantes que apresentam graúda
reflexão acerca deste Plano. Os técnicos opinam ser o PIA um instrumental que possibilita
ao adolescente conhecer a sua subjetividade, reconstruir a sua vida, levá-lo à reflexão de que
é possível resgatar a sua própria história, além de fazê-lo identificar os fatores que o conduzi-
ram à ilegitimidade. Complementam dizendo que:

[...] o PIA deve refletir o projeto político-pedagógico [...] e propor intervenções individuais e gru-
pais que promovam a integração social e comunitária do adolescente. E, por fim, deve ser um
instrumento que singularize o adolescente e contribua para a construção de uma subjetividade
expressiva e criativa (IBID, p. 345).
Em complemento ao Plano Individual de Atendimento tem-se a elaboração do relatório técni-
co, que como já dito, é deprecado em casos de reavaliação da medida socioeducativa. Para a
construção deste relatório, é fundamental que o mesmo apresente os resultados dos objetivos
e metas que foram cominadas no PIA por adolescente e família, como profere o artigo 58 do SI-
NASE. Além dos resultados alcançados, o relatório técnico possui a sua particularidade ao ter a
ele remetido o parecer técnico profissional, de forma a subsidiar o operador de direito à tomada
de decisão no que concerne à progressão ou a manutenção da medida socioeducativa2:

O relatório, com certeza, subsidia o juiz em sua tarefa, ao trazer aspectos subjetivos do adoles-
cente, mas sua função não é somente esta. O relatório permite conhecer melhor o sujeito em
sua realidade social e familiar, e não somente no seu lado delinquente, que é o que mais inte-
ressa à Justiça. Embora o interesse da Justiça seja compreender aspectos específicos do ato
delinquente, cabe à equipe psicossocial responsável pela elaboração do relatório transformar
esta solicitação em uma possibilidade de conhecimento do sujeito e de sua história. Torna-se
necessário discutir o olhar da sociedade sobre este sujeito, já que, em função do ato cometido,
os estereótipos podem prevalecer sobre a subjetividade (COSTA et. al 2011, p. 384).

O artigo 118 do Estatuto da Criança e do Adolescente considera o técnico a pessoa que


acompanhará o adolescente durante toda a medida socioeducativa. A equipe técnica que
normalmente rege o sistema socioeducativo é formada por assistente social, psicólogo, pe-
dagogo, assessor jurídico, dentre outros, tendo em subsequência, todas as suas atribuições

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predefinidas pelo SINASE, inclusive no que concerne à composição de documentos judiciais.
Sobre esta questão Albuquerque et. al. (2015, p.349) apresentaram em sua pesquisa a preo-
cupação dos profissionais da Casa de Semiliberdade que em ensejos, proferiram questiona-
mentos até sobre o que pode ou não compor um relatório técnico judicial:

[...] o que se pode escrever no PIA e nos outros relatórios? Como trabalhar com o adolescente
sem expô‑los aos íntimos da sua história? Como manter o pacto com o adolescente se por
vezes o PIA se transforma em um instrumento que registra seus atos infracionais? Estas per-
guntas se colocam, sobretudo quando o juiz lê o documento em voz alta, que pode produzir
constrangimentos para o adolescente e os técnicos. Um dos técnicos aponta a necessidade de
197
avaliar qual informação é do âmbito do atendimento, e merece sigilo, e qual informação é do
serviço e deve ser transmitida para garantir a continuidade do trabalho.

As perquisições apresentadas através dos relatos dos profissionais entrevistados simboliza


um viés de inquietações das categorias quando se remetem a produção de documentos
judiciais. Defronte a isto, em ensejos, são promovidos encontros entre os representantes
das categorias para pleitear debates que promovam uma discussão sobre o que se pode ou
não considerar como atribuição privativa dos profissionais mediante o seu fazer profissio-
nal. Dentre os debates realizados, damos destaque à discussão promovida pelo Conselho
Regional de Psicologia do Paraná, que se propôs a debater com profissionais da área ques-
tões oriundas ao contexto socioeducativo. No que concerne ao sigilo profissional, questão
evidenciada por Albuquerque et. al. (2015) na pesquisa supradita, tomamos como exemplo o
posicionamento do Conselho Regional de Psicologia do Paraná que abaliza:

[...] o sigilo é preservado dentro daquilo que a produção de documentos prevê, sendo comu-
nicado a justiça apenas as informações necessárias a reavaliação da medida. Toda avaliação

2 Art. 151 -  Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições que lhe forem reservadas pela
legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na audiência, e bem assim
desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros, tudo sob a imediata
subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico.
encaminhada ao judiciário é de acesso do adolescente e deve ser trabalhada com este, no
sentido de auxiliar o processo reflexivo (2014, p. 12).

Defronte a esta responsabilidade do que inserir ou não no relatório técnico, as categorias


profissionais se deparam com outra função, por vezes, implementada pela própria instituição
socioeducativa da qual prestam serviço. A determinação que por vezes é atrelada se refere
ao papel do profissional de sugerir ao operador de direito, se o autor de ato infracional se
encontra apto ou não à progressão da medida socioeducativa. Damos destaque a esta dis-
cussão pelo fato de que em alguns ensejos, há discordância sobre esta temática advinda até
de uma mesma categoria profissional. Neste panorama, novamente damos ênfase à discus-
são promovida pelo Conselho Regional de Psicologia do Paraná, tendo destaque a opinião
de profissionais oriundos dos municípios de Londrina e Curitiba que apresentaram opiniões
díspares no que concerne à sugestão na reavaliação da medida socioeducativa.

Vejamos o que assinalam os profissionais do município de Londrina/PR, que se apresen-


tam desfavoráveis à indicação:

Em relação ao Relatório Técnico produzido para instruir processo de conhecimento, há um en-


tendimento do grupo de que nesta fase qualquer menção a Medida Socioeducativa, enquanto
conclusão, seria inadequada e estaria desconsiderando os direitos do adolescente. Nesta fase
o adolescente é presumidamente inocente e a indicação de Medida Socioeducativa (MSE) em

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relatório técnico poderia assumir o caráter de condenação antes da própria sentença (2014, p. 3).

Vejamos o que abalizam os profissionais do município de Curitiba/PR que se apresentam


favoráveis à sugestão:

Quanto a indicação de MSE [...] compreendem que a não indicação pode se constituir em omis-
são, posto que, ao realizarem a avaliação, levam em conta fatores que indicam para a necessi-
dade de intervenções em diferentes níveis de liberdade (2014, p. 12).

As opiniões díspares aqui apresentadas são distribuídas como apreciações particulares


de membros de uma categoria, e o que chama a atenção nestas verbalizações, é que 198

apesar de se contrariarem sobre a indicação ou não da medida socioeducativa adequada,


a categoria sempre salienta sobre a manutenção da garantia de direitos, sendo este o foco
primórdio, independentemente da instrumentalidade de ação. Fora mencionado ao longo
deste trabalho sobre a “livre manifestação do ponto de vista técnico”, augurada no artigo
151 do ECRIAD. Nassralla (2012) avalia que a equipe técnica pode sim sugestionar sobre a
medida socioeducativa adequada ao socioeducando caso considere conveniente, salien-
tando que não existem leis que a impeçam de fazer.

Para a construção de um relatório técnico, tendo ou não esta indicação, é ressaltante o cuida-
do na composição deste documento, de forma a não contrapor a sua centralidade. Foucault,
1986 (apud, COSTA et. al, 2011) ajuíza cautela na elaboração do relatório de forma a não
transpor ao adolescente a imagem de um delinquente juvenil, seja pela prática da ilegitimida-
de, da midiatização ou até mesmo da composição de juízo de valor do técnico que o elabora. E
dependendo da centralidade de seu relatório, diversos sujeitos podem ser construídos, como o
infrator com perfil de delinquente, a vítima, o bandido, ou até mesmo um calamitoso agressor.

Para maior aclaração dessa discussão, considera-se relevante a apresentação empírica de


um trecho do relatório técnico apresentado pela equipe da Fundação Casa do Estado de
São Paulo para a autoridade judiciária. Enfatizamos que o trecho deste relatório fora ane-
xado em documento elaborado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo por, segun-
do o órgão, apresentar irregularidade quanto à sua elaboração técnica, por não apresentar
sigilo profissional em determinados trechos. Para maior explicitação, apresentaremos o
trecho de um dos relatórios apresentados:

[...] de S. J. de M. J.: “Quanto ao ato infracional que motivou esta internação relatou que estava
na balada em companhia do amigo Jonatan e de outros dois amigos maiores de idade quando
foi convidado a participar de um roubo de um carro. Sandro relatou que ele e um rapaz maior de
idade abordaram os ocupantes de um carro Celta no bairro Agapeama, portavam um revólver e
anunciaram o assalto, em seguida encontraram com Jonatan e o outro maior e seguiram para
uma casa localizada na vila Tupi em Várzea Paulista. No dia seguinte enquanto discutiam sobre
o que fazer com o carro foram surpreendidos pela polícia”.

Observa-se no trecho deste relatório, que o técnico que acompanhava o autor de ato infracio-
nal, mencionou a sua confissão enfrente a contravenção, dúvida esta que como destacamos,
de fato envolve as categorias profissionais na laboração destes documentos. A Defensoria
Pública do Estado de São Paulo, ao questionar trechos dos relatórios enviados à Vara da
Infância e Juventude, afirma que a equipe técnica, ao trazer no bojo do relatório a confissão
do autor de ato infracional, viola inúmeras garantias de direitos que a ele são asseguradas.
Dentre estas garantias, mencionam o direito de o adolescente não pronunciar-se sobre o
ato infracional sem a presença da família e de seu advogado de defesa, direito este previsto

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constitucionalmente no art. 5º Inciso LXIII da Constituição Federal, além do princípio da
proteção integral e do disposto no art. 35 Inciso I do SINASE.

Sobre essa confissão, ainda acrescem:

Não há qualquer argumento que sustente a validade desta confissão prestada perante a equipe
técnica. Além disto, em nenhum dos diversos relatórios analisados, constou qualquer informa-
ção a respeito de eventual ciência do adolescente de que o documento produzido instruiria o
seu processo socioeducativo. Portanto, em tais casos, além do direito ao silêncio, há violação
expressa ao direito à informação assegurado a todo adolescente acusado da prática de algum
199
ato infracional [...] (2012, p. 6).

Ademais, ainda consideram constitucionalmente ilícita, a alegação citada em relatório técni-


co, de que o adolescente tenha verbalizado a prática de ato infracional:

Dispõe o art. 5º, LVI, da Constituição Federal que “são inadmissíveis no processo, as provas ob-
tidas por meios ilícitos”. Já o art. 157 do Código de Processo Penal traz previsão semelhante,
ao dispor que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas,
assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”. (2012, p. 7).

É intuído das explanações mencionadas, que mesmo o adolescente tendo expresso negativa
quanto à prática de ato infracional, durante a oitiva informal e na audiência de apresentação,
a sua confissão fora mencionada em relatório técnico. Em vista desta polemicidade Brito,
2005 (apud, COSTA et. al, 2011) enfatiza que o profissional técnico deve de fato suprimir a
prática pericial investigativa, com nulidade no apontamento de verdade/mentira ou certo/
errado, para melhor engajar o seu fazer profissional. Para o autor, esta fundamentalidade é
expressiva, já que aos operadores de direito é apropriado um parecer técnico totalizado em
provas, para que a decisão judicial seja mais bem engajada em culpabilização ou inocência.

Fora referido nas alegações da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que a con-
fissão do adolescente fora citada em relatório técnico sem o seu consentimento. Não
podemos afirmar que a auferida elucidação é verídica ou apenas argumento para alavancar
a contraposição aos pareceres técnicos, todavia, qualquer documento jurisdicional, seja o
Plano Individual de Atendimento ou o relatório técnico de avaliação, deve ser confecciona-
do com a participação do autor de ato infracional e sua família.

Dando sequencia a este debate, outra menção enfatizada pela Defensoria, é a violação ao Có-
digo de Ética Profissional das categorias profissionais ao mencionar em relatório a confissão
do adolescente. Dos termos atrelados ao debate, é ressaltante dizer, que quando se tratam
de violações ao código de ética profissional, as inculpações administrativas e as medidas
disciplinares devem ser avaliadas e aplicadas pelos respectivos conselhos das categorias. A
criticidade de certo é válida, mas a afirmativa de erroneidade na prática profissional deve ser
realizada pelos seus representantes. E tendo em vista tudo o que fora discutido neste traba-
lho, tendo destaque a importância dos documentos judiciais, a sua composição, o perfil do
autor de ato infracional, sua família e da equipe interprofissional, se faz imprescindível visar
uma prática interdisciplinar eficaz, seja no acompanhamento ou na escrita de documentos.
Em toda ação deve-se levar em consideração a garantia de direitos do objeto de ação, que
aqui apresentado, é um ser em desenvolvimento.

4. Considerações Finais:

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O objetivo atinente deste trabalho, fora discutir sobre as peculiaridades que envolvem a
elaboração do PIA e do Relatório Técnico interprofissional, que como observado, possuem
características singulares, interligando-se do planejamento até a avaliação. Defronte a
pesquisa apresentada, conclui-se que, a priori, todo o profissional que se remete a trabalhar
com medida socioeducativa deve se capacitar, a fim de conhecer a problemática e dirimir
possíveis estereótipos abalizados no senso comum. Nesta perspectiva, observou-se que
pensamentos delineados, posteriormente, podem vir a prejudicar a compreensão do objeto
de estudo e interferir na atividade empírica profissional. 200

Em subsequência, conclui-se que o instrumento interligado à capacitação, é a prática de estudo


de caso, que deve ser realizado entre a equipe interprofissional, para que sejam discutidos metas
e resultados, relativos a cada área técnica de atuação. Concordamos com trechos mencionados
durante a pesquisa sobre o Manual de Orientação acerca do preenchimento do PIA, promovido
pelo Estado do Rio de Janeiro, que indica a realização de estudo de caso por todas as categorias
profissionais que acompanham diretamente o adolescente. Desta forma, professores, agentes
socioeducativos, dentre outros profissionais, também podem contribuir com o processo de inter-
venção, de forma a se obter resultados mais eficazes, e findar de fato a prática interdisciplinar.

Autores referidos durante a pesquisa qualitativa atribuem que o relatório técnico deve
conter centralizadamente, aspectos que fundamentem o histórico sociofamilar e a garantia
de direitos, sendo este o desígnio profissional/institucional. Essa menção é corroborada
pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, ao apresentar análise crítica de relatórios
encaminhados para a Vara da Infância e Juventude do referido Estado. Todavia, a Defensoria
Pública contesta que a equipe técnica esboce em documento a confissão do adolescente
defronte o ato infracional, salientando punição administrativa para o profissional e comu-
mente violação de direitos ao adolescente.
Outros analisáveis questionamentos surgiram ao longo deste trabalho, como os demons-
trados na pesquisa realizada por Albuquerque et. al. (2015), tendo os técnicos da Casa de
Semiliberdade, questionado o que deve ser esboçado ou não no PIA e no Relatório Técnico.
Outra dubiedade apresentada, fora a promovida em discussão pelo Conselho Regional de
Psicologia do Paraná, que elucidam opiniões díspares sobre a sugestão na reavaliação da
medida socioeducativa.

A partir de todos os critérios até aqui estabelecidos e discutidos, lançamos a este debate,
sugestivos questionamentos a caráter de análise.

Sabe-se que o direcionamento para a fundamentação do PIA é propriamente explicitada


pelo SINASE, que rege orientações quanto à sua composição. O SINASE também abaliza
que a fundamentalidade do relatório interprofissional é ter a ele remetido os resultados de
objetivos e metas culminadas no PIA, além do parecer técnico de forma a subsidiar o ope-
rador de direito na tomada de decisão. Ao ter a ele expedido a responsabilidade de auxiliar
o juiz em uma avaliação, é de fato conveniente ao técnico sugestionar na reavaliação da
medida socioeducativa?

Sabe-se que o papel do técnico, que se remete a trabalhar com medida socioeducativa é a
centralidade da garantia de direitos, que deve ser focal na construção de relatórios judiciais.
O profissional técnico, além disso, possui autonomia na construção de seu fazer profissional,

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garantida por seu código de ética. Levando em consideração a garantia de direitos e a au-
tonomia profissional, em qual momento a equipe técnica pode perpetrar alusão à prática de
ato infracional em seu relatório, caso considere conveniente à avaliação jurisdicional? Essa
menção é permitida por lei ou há impedimentos jurídicos?

Nesta perspectiva de análise crítica, Kolker, 2004 (apud, COSTA et. al, 2011, p. 385) elucida
que os dados que compõem um documento jurisdicional possui o poder de decisão quanto à
história de vida do indivíduo, tendo que ser preenchido com cautela, ética e responsabilidade,
por ter em mãos a autoridade de possibilitar o destino de um sujeito. Concernente a isto, o 201
autor acrescenta que na confecção do relatório técnico o usuário/cliente poderá:

[...] ter sua pena acrescida ou alterada desfavoravelmente, dependendo da qualidade da


interpretação das informações contidas. Ao adolescente é imposto que colabore com um
profissional que poderá, ao final, concorrer para sua insatisfação em relação ao que o estudo
ressaltar. Por outro lado, este profissional sabe que o futuro deste adolescente depende da
forma como o relatório for escrito e das informações nele colocadas com mais ênfase.

E dentro deste parâmetro de inquietudes, julgamos essencial maior discussão e aclaração


em relação à aplicabilidade dos documentos judiciais que envolvem o adolescente em confli-
to com a lei, para que não sejam cerceadas informações que visem à prática interdisciplinar
eficaz, tampouco a fundamentalidade da garantia de direitos.
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203
QUANDO UM NÃO QUER, NÃO
SE ADOTA: REFLEXÕES SOBRE
DEVOLUÇÃO A PARTIR DA HISTÓRIA DE
UMA CRIANÇA

Michelle Villaça Lino1

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

O presente artigo se refere a um recorte do objeto de pesquisa do doutorado. Pre-


tende problematizar, por meio de uma história de vida, a questão da devolução
de crianças e de adolescentes, que antes estavam acolhidos institucionalmente,
e que passaram por processos de adoção mal sucedida. Apesar de a Lei 12010/09
não discorrer sobre a temática da devolução, na prática, crianças e adolescentes
têm sido devolvidos durante ou mesmo após finalização do processo de adoção
legal. Requerentes habilitados para adoção, ou não, devolvem crianças e adoles-
centes, pelos mais variados motivos: inadaptação dos membros da nova família;
comportamento da criança; descoberta da gravidez da requerente durante perí-

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odo de adaptação; prazo de estágio de convivência ou guarda provisória prolon-
gada por tempo demais; demora para julgamento da destituição do poder fami-
liar dos genitores da criança; separação dos requerentes, dentre outros motivos.
Devolução: Dar de volta àquilo que não lhe pertence, não lhe serve. Devolvem-se
usualmente objetos. Então por que devolver crianças e adolescentes? O fato é que,
seja após reintegração familiar, seja após iniciado ou finalizado o processo de
guarda ou de adoção, o retorno da criança e/ou do adolescente para a entidade de
acolhimento pode gerar marcas invisíveis profundas e difíceis de lidar.

Palavras–chaves: Acolhimento institucional. Adoção. Devolução. Criança. 204


Adolescente.

1. Introdução

“Eu só quero voltar pro abrigo!”. Repetia incessantemente Pedro durante o atendimento que
culminaria em sua “devolução” à entidade de acolhimento.

A história de Pedro2

(Diário de Campo, 2016)

Pedro era o caçula de um grupo de irmãos. Eles moravam em casa simples com seus genitores.
Sua genitora tinha comprometimento psiquiátrico e seu genitor era usuário de drogas. A família

1 Analista Judiciário com especialidade em Psicologia – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de janeiro. Email: mvlino@
gmail.com Telefone: 99468-8489.

2 O nome próprio foi alterado e alguns dados foram omitidos para preservação da criança.
vivia em condições precárias e as cenas de violência familiar eram frequentes. Vizinhos fizeram
denúncias e o conselho tutelar local interviu. A família foi classificada como negligente e adverti-
da. Foi também encaminhada para a rede de saúde do município (CAPS). Não aderiram a encami-
nhamento algum. A violência familiar continuou sendo praticada pelo genitor contra a genitora das
crianças. Novamente outra intervenção do conselho tutelar. Dessa vez, acolhimento dos infantes.
Isso aconteceu há aproximadamente quatro anos atrás. Pedro e seus irmãos percorreram algumas
entidades de acolhimento do município. Em uma delas, uma senhora, voluntária da instituição,
se afeiçoou pela criança e resolveu pedir sua guarda de direito. Deram-lhe a guarda provisória.
A criança foi morar com ela. Nesse mesmo período, um casal solicitou a adoção de seus outros
dois irmãos. E assim foi feito. Os irmãos foram separados. Meses depois a guardiã de Pedro não
o quis mais. Justificou que estava com problemas de saúde e que a criança ‘não obedecia’. Tentou
passar Pedro para outra família, mas eles também não o quiseram. “Cuidar por uns dias, sim, mas
pedir a guarda é muita responsabilidade”, disse a guardiã provisória da criança. Pedro foi devol-
vido para a entidade de acolhimento. Seus irmãos não. Devido ao tráfico de drogas nas proximi-
dades da instituição onde a criança estava, não houve alternativa a não ser fechá-la, pois, quando
a polícia fazia operações, era para lá que alguns ditos traficantes fugiam. Pedro foi para outra
entidade de acolhimento. Chegando lá, uma das voluntárias se encantou pela criança. Comunicou
a seu marido. O casal já era habilitado, ou seja, podia adotar. Pedro agora já era um pré-adoles-
cente e com dois anos a mais da idade pretendida pelo casal, que preferiam crianças mais jovens.
Porém, quando o requerente conheceu Pedro, disse que se “apaixonou pela criança”. Pronto! Tudo

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perfeito! Pedro se afeiçoou ao casal e houve reciprocidade. Pedro ganhou uma família!

Era desejo de Pedro ter uma família.

Era desejo do casal ter um filho.

Era desejo da instituição o desacolhimento da criança.

Era desejo da Vara da Infância, Juventude e Idoso que “todos os desejos fossem realizados”.
205
A aproximação da criança com o casal começou. O casal demonstrava afeto e carinho por
Pedro. Entretanto, acreditávamos que era melhor “ir devagar”, posto que a criança já havia
passado por uma experiência de inserção em família substituta mal sucedida. Orienta-
mos insistentemente o casal. Não adiantou. Eles tinham pressa. Em audiência concentrada3
foram liberadas visitações com pernoite (da criança à casa do casal). Dois meses depois,
conseguiram a guarda provisória. Tudo parecia caminhar bem.

Em contato com as equipes da entidade de acolhimento e do juízo o casal informava que a


criança estava se adaptando e os elogios eram frequentes. Por morarem em outro município,
convencionou-se envios semanais de fotos da criança como forma de demonstrar como se
dava a adaptação da mesma. No entanto, cerca de um mês e meio após o casal ter obtido
a guarda provisória, recebemos um contato telefônico do guardião de Pedro informando
que, naquela manhã o levaria à Vara de Infância (junto com os pertences da criança) para
devolvê-lo, pois o mesmo não tinha mais interesse em permanecer sob os cuidados do casal.
Assim o fizeram. Ouvimos. Ponderamos. Refletimos. Tentamos mediar, mas, de acordo com
o requerente: “não poderia mais oferecer amor de pai à criança!”.

3 Conjunto de medidas que objetivam sistematizar o controle de atos administrativos e processuais para
garantir o retorno de crianças e adolescentes institucionalizados para as suas famílias. Disponível em <http://www.
tjpb.jus.br/wp-content/uploads/2012/05/COINJU-1.-PLANO-OPERACIONAL.pdf>. Acessado em 07 ago. 2016.
A fim de melhor compreender o que levou à tomada daquela decisão, optamos por ouvir
cada membro da família em separado. Em contato com a guardiã de Pedro fomos infor-
mados de que a adoção nunca foi seu desejo, mas sim de seu marido e que somente o fez
para “agradá-lo”. O casal tinha filhos de outros relacionamentos (todos adultos). De acordo
com a requerente, seu esposo nunca teve um filho e, por isso, o desejo em adotar somente
um menino na faixa etária já citada.

Durante os atendimentos a demanda inicial foi sendo desconstruída – a de que Pedro não
queria mais ficar com o casal. Pedro só facilitou, se antecipou, entendeu que, naquela
família, não teria mais como ficar. Mas poderia ele optar por não voltar para a entidade de
acolhimento? E se isso fosse possível, para onde iria a criança?

Do casal, reclamações sobre a morosidade do andamento do processo; sobre a decepção


no que se refere ao comportamento da criança. Cabe aqui ressaltar que, em relação à
mudança comportamental de Pedro, a mesma se deu a partir do momento em que o casal
“descobriu” que o Poder Familiar da criança não estava destituído, mas sim suspenso e
que, por isso, teriam que aguardar o julgamento da destituição para dar entrada no pedido
de adoção. No dia em que souberam, Pedro estava na companhia dos requerentes e pre-
senciou o sentimento de revolta vivenciado pelas partes.

Em atendimento, a guardiã da criança chegou a mencionar que sua vontade era de ‘devolver’

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Pedro no dia em que soube que teriam que aguardar decisão final do juízo. Desde aquela data
o comportamento da criança mudou. Em atendimento a criança revelou que seu guardião lhe
disse que toda bagunça realizada pela criança seria advertida por meio de “chineladas”.

Considerando as falas anteriores, onde o casal não só informava “que estava tudo bem”
como também demonstrava, por meio de fotos da criança na escola, na catequese, no fute-
bol, nos momentos de lazer entre a criança e o guardião, que a adaptação dessa família em
construção fluía de modo saudável, não entendíamos o que havia mudado.
206
Após o casal nos informar sobre a descoberta da suspensão do poder familiar da criança
e de que teriam que aguardar, percebemos que ansiedade e frustração foram sentimentos
determinantes que catalisaram o fim do começo de uma relação. Pelo menos em relação ao
requerente. Não conseguiram lidar com tais sentimentos. Ninguém conseguiu. E, por isso, a
criança, bode expiatório dessa relação familiar em construção, começou a se comportar de
modo desobediente/inadequado. Não queria ir para escola. Como querer? A requerente era
professora há anos na escola onde a criança estudava. Pedro era mais vigiado que condena-
do em presídio de segurança máxima.

De centro das atenções, a criança passou a ser centro de todos os problemas e, por isso,
pediu para voltar para a instituição, pois lá poderia ser “mais um”. Poderia se misturar aos
demais. A atenção seria dividida. Não seria mais o foco. Não queria mais lidar com isso.
Durante o atendimento Pedro nos pediu uma nova família, mas dessa vez com dois ou três
irmãos. Queria definitivamente uma família, mas não ser o centro dela. Só pertencer. Fazer
parte. Ser um membro como os demais. Ser acolhido. Isso bastava para a criança.

No processo da criança, nenhuma tentativa de trabalho com os genitores, nenhuma proble-


matização, tudo feito metodicamente. Pais citados judicialmente, não encontrados – até o
aparecimento espontâneo da genitora das crianças. Ela apareceu, pediu os filhos de volta,
mas não se sabe se é merecedora. Quem decidirá por ela e por seus filhos é quem pouco
ou nada sabe sobre sua história de vida, suas dores e dificuldades. Quem definirá se a
mesma terá ou não seus filhos de volta é o Juiz.

[...] quando crianças são colocadas em famílias substitutas (adotivas), na maioria das vezes
isso ocorre pela vulnerabilidade social a que estão expostas as famílias pobres, bem como
pela presença deficiente de proteção social por parte do Estado, por intermédio de políticas
públicas, e pela falta de uma cultura de convivência familiar e comunitária que garanta à
criança e/ou ao adolescente a permanência em sua própria família. Nessa perspectiva, os
processos de adoção podem ser vistos tanto como mais uma forma de violar direitos, se não
forem realmente esgotadas todas as possibilidades de retorno da criança à sua família de ori-
gem, quanto como um modo alternativo para a garantia de convivência familiar e comunitária,
de direitos e de cidadania para crianças e adolescentes. (GOES, 2014a, p.86).

Ainda, segundo a autora,

Juridicamente reconhecida como Lei da Convivência Familiar e Comunitária, veio reforçar


a necessidade de esforços sociais e institucionais para a preservação dos vínculos e da
convivência familiar, definindo que somente em casos excepcionais e extraordinários se
justifica a medida de colocação de criança/adolescente em família substituta, ou seja, em
adoção. Entretanto, percebemos que ainda há muitos desafios no sentido da implementa-
ção de uma política efetiva para que os reais interesses das crianças e dos adolescentes
sejam garantidos, especialmente para aqueles que se encontram em situação de vulnerabi-

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lidade social. (GOES, 2014a, p.87).

Pouco ou nada se pode fazer para reverter uma história de vida fragmentada e recortada de
famílias como essa (pobres, criminalizadas, vulneráveis, em risco), quando ela é levada ao
judiciário. Holofotes são ligados sobre essas famílias; suas vozes e singularidade descon-
sideradas, silenciadas em nome da prioridade absoluta e proteção integral da criança. Esse
tipo de proteção não acolhe, mas rotula, desqualifica, ofusca e desconsidera a dinâmica fa-
miliar. É um tipo de proteção perversa que se utiliza do jargão “em nome do bem” para invadir
as famílias, criminaliza-las, pedagogizar suas condutas, seus fazeres e afazeres para, talvez,
com isso, as mesmas terem seus filhos de volta. 207

Quando a criança ou o adolescente não se encontra em condições tidas pelos especialistas


como normais, o Estado reserva-lhes espaços próprios, prática tida como de proteção, com a
imposição de um modelo instituído de assistência especializada, de discursos competentes,
de moralização, culpabilização e criminalização. O fato de estar sendo assim protegidos fun-
ciona como uma reafirmação do lugar que já habitam, o da desqualificação da diferença, visto
que existiriam formas hegemônicas de existência. (NASCIMENTO, 2015, p. 24).

No intuito de dar “celeridade” à resolução da situação da criança (ou do adolescente),


processos de Destituição do Poder Familiar (DPF) vão sendo instaurados. Se a família não
cumpriu aquilo que lhe foi determinado, não serve mais para a criança e, por isso, deve-se
buscar uma outra família – organizada pedagógica e higienicamente.

Em seu texto, a autora Carmem Lucia Eiterer (2011) nos mostra que tal prática, ainda atual,
de tentativas de colocação de crianças e de adolescentes em famílias substitutas ou exten-
sas, é uma forma de controlar a infância pela lógica do discurso da proteção.

[...] século XIX, associado ao Iluminismo e ao liberalismo, inspirado em ideias políticas euro-
peias, a racionalidade brasileira descobre a infância como fonte de força de trabalho poten-
cial. E, por essa razão, as crianças vão merecer atenção do Estado. [...] Assim, medidas de
higienização e de disciplinarização [...] são implementadas com vistas a garantir a transfor-
mação dos hábitos da população pela disseminação de padrões aceitáveis de comportamento.
[...] Cabia então proteger as crianças de suas próprias famílias (EITERER, 2011, p.97).

2. Adoção como dispositivo de “proteção”?

Em nome da proteção, a família substituta, em muitos casos, age como única possibilidade
de “solução” daquele infante. Inegável que proteger a criança e o adolescente é preciso,
mas até que ponto essa proteção não fere seus direitos? Felizes com a possibilidade da
saída da criança e sua ida para uma família, nem sempre, enquanto profissionais, nos posi-
cionamos de maneira mais ponderada e assertiva nas indicações de colocação em família
substituta ou mesmo reintegração. Se alguém se interessa por uma criança, em muitos
casos, pouco problematizamos junto com a parte endereçada [a criança] se é seu interesse
[ou não] conviver na família que a ela se apresenta.

No caso de Pedro, por exemplo, por ter dez anos é sabido que, quanto mais idade a criança
tiver, piores as chances de ser adotada. Apesar de, conforme dados dos censos do MCA, ser
essa a realidade das crianças em condições de serem adotadas. Crianças “disponíveis”4 à ado-
ção, com idades superiores a 07 anos, representam a maioria dos acolhidos institucionalmente.

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Em se tratando de adoções tardias, é preciso ter prudência para que a cautela não ceda
espaço para a euforia de ter uma criança (não necessariamente um filho). Sim, ter uma
criança é algo completamente diferente de ter um filho. Quando um requerente (seja casal ou
solteiro(a)) leva para casa uma criança, alertas e ponderações feitas pelos profissionais das
entidades de acolhimento e do juízo não são suficientes para impedir possíveis devoluções.
Talvez, por isso, a devolução de Pedro tenha ocorrido. Pedro foi tratado como criança, não
como filho. Talvez se ele fosse tratado como Pinóquio?

A história de Pinóquio representa a mudança simbólica da criança em filho. Gepeto era


carpinteiro. Morava sozinho em sua casa. Ele e seus inúmeros brinquedos que construía e 208
consertava. Não tinha filhos. Um dia, resolveu construir um lindo boneco de madeira. Chamou-o
de Pinóquio. Encantado por sua criação, desejou que o boneco virasse um menino de verdade.
Disse: “Serás o filho que não tive”. Antes de deitar-se para dormir, resolveu fazer um pedido
às estrelas. Pediu que seu boneco virasse um menino de verdade. Tamanha sua vontade, ao
acordar percebeu que seu desejo havia se tornado realidade. Pinóquio, como muitas crianças,
era curioso e, às vezes, mentiroso. Colocou-se em algumas enrascadas! Porém, nada disso
diminuía o que aquele senhor carpinteiro sentia por Pinóquio. O menino de Gepeto era seu filho!

Ter consigo uma criança. Ser seu responsável legal ou, ainda, exercer a função de garantir
que os direitos dos infantes sejam preservados, não configura uma filiação.

[...] a filiação decorre da convivência diária e não da consanguinidade, exortando o papel de


ser pai e mãe. Sobre este aspecto, cumpre ressaltar que qualquer que seja a origem da filiação,
esta deve se reger pelos parâmetros da legalidade e da afetividade, ante a necessidade do filho
ter paternidade reconhecida pela ordem jurídica e do tratamento que a ele deve ser dispensado,
sempre com amor, carinho, respeito e dignidade. (CRUZ, 2014, p.11).

4 Disponível em <http://queroumafamilia.mprj.mp.br/documents/160911/161988/Cartilha_Sistema_Quero_
uma_Familia.pdf>. Acessado em 18 out. 2016.
A maternidade/paternidade é uma construção, uma produção social. Não é fácil. Não existe
manual, ou melhor, existem muitas receitinhas e dicas teóricas que mais atrapalham que ajudam
àqueles que vivem com os pés na fantasia do filho concebido, gerado e parido na mente. Porém,
na prática, tal material para nada serve e, em alguns casos, atrapalha, pois só rotula e estigmati-
za a criança bem como gera medo e insegurança nos que desejam a maternidade-paternidade.

Alguns modelos presentes no imaginário dizem respeito não apenas à família idealizada,
mas também a noções que se imbricam e concorrem para a construção de um padrão que
leva em conta a consanguinidade, o amor materno idealizado e uma compreensão falsa de
legitimidade. Assim, funda-se a crença de que o outro (que não é do meu sangue) pode vir a
criar problemas. [...] gestar não implica em maternidade, ou paternidade. Da mesma forma,
gestar não implica amar. De mesmo modo, insistimos que “pegar para criar” não é o mesmo
que adotar. A adoção é uma das maneiras legais de constituição de uma família, ou seja, de
se ter filhos. (EITERER, 2011, p. 80-81).

A adoção é uma escolha e não uma imposição. Ter um filho é uma escolha. Mas então, se
a adoção é uma escolha, nos casos de devolução, significa que o(s) requerente(s) esco-
lheu(ram) errado? Sendo assim, ele é culpado e deve ser responsabilizado única e exclusiva-
mente por sua escolha mal sucedida? Teria a equipe técnica do juízo preparado e acompa-
nhado de maneira pouco ou nada efetiva? Seria ela culpada? Existe culpa?

Sabemos que, principalmente nos casos de adoção tardia5, o período de adaptação da nova

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família, em que a criança e/ou o adolescente estão inseridos, é algo importante e, ao mesmo
tempo, delicado. Período simbolicamente correspondente a uma espécie de resguardo onde
pais e filhos iniciam mudanças significativas em seus modos de vida. Durante o resguardo as
mudanças na rotina, o lidar com o novo, tudo é instabilizante e instabilizador. Daí a importância
do apoio não somente da rede familiar e comunitária, a qual essa família em construção faz par-
te, como também dos profissionais que intermedeiam a chegada da criança na vida da família.

Na nova família é importante que as regras sejam flexibilizadas, preferencialmente. Por exem-
plo: Aqui em casa dormimos às sete da noite todos os dias, diz a nova família da criança. Mas 209
a criança está acostumada a dormir às oito da noite todos os dias. Por que não flexibilizar? Por
que todo questionamento ou oposição às regras tende a ser visto como rebeldia ou problema?

A idealização desse novo membro, quando acompanhada de uma rigidez, pode aprisionar e
bloquear o crescimento e aprendizagem conjunta dessa família. A frustração de não ter uma
criança que corresponda às expectativas imaginadas; a distorção da demonstração do afeto; a
impaciência; o medo; a ansiedade são fatores que juntos (ou não) tendem a aparecer. Não se
pode furtar de considerar tudo isso. E muito menos deixar de problematizar essas questões.

Durante a entrevista de devolução de Pedro, seu guardião sugeriu a elaboração de uma


metodologia mais assertiva que pudesse direcionar melhor os acolhidos, de acordo com
as características de seus futuros pais. Mas afinal? Do que realmente estamos falando?
Seria essa a solução: criação de um manual diretivo onde se pudesse traçar perfis com-
patíveis de pais e filhos adotivos? Um catálogo de crianças? Criança-produto? Considerar

5 A expressão “adoção tardia”, bastante utilizada, refere-se à adoção de crianças maiores ou de adolescentes.
Remete à discutível ideia de que a adoção seja uma prerrogativa de recém-nascidos e bebês e de que as crianças maiores
seriam adotadas fora de um tempo ideal. Desconsidera-se, com isso, que grande parte das crianças em situação de
adoção tem mais de 2 anos de idade e que nem todos pretendentes à adoção desejam bebês como filhos. Disponível em
<http://portaldaadocao.com.br/docs/cartilhas/AMB_adocao_passo_2008.pdf>. Acessado em 07 set. 2016.
a criança a partir das expectativas dos adultos (habilitados ou não) aumentaria o número
de adoções e, concomitantemente, diminuiria as devoluções? Não seria essa uma relação
puramente mercadológica e comercial?

Goes (2014a), em seu texto, deixa claro que, enquanto profissionais, buscamos famílias para
os que estão acolhidos e sem perspectiva de reintegração familiar. Mas, na prática, será que
realmente estamos fazendo isso? Será que nós, profissionais, temos meios de garantir uma ado-
ção 100% eficaz? Ter certeza da não devolução de uma criança? É sabido que não e também é
importante nos despirmos de tamanha prepotência – achar que temos felling e conhecimento su-
ficientes para evitar a devolução de crianças. Precisamos falar mais, discutir, problematizar mais
os caminhos e descaminhos da adoção para, assim, compreendermos melhor as devoluções.

Impera a necessidade de que as crianças/adolescentes tenham ‘prioridade absoluta’ e sejam


colocados em primeiro plano. Assim, destacamos a necessidade de que os adultos sejam res-
ponsáveis e comprometidos (todos, desde os representantes do Judiciário até os pretenden-
tes) pelo processo de adoção. Nesta direção, destacamos que, no caso dos pretendentes, esse
compromisso vai além daquele que se assemelha ao de um ‘consumidor’ que busca na loja um
‘brinquedo’ e que, se não gostar, poderá devolvê-lo. (GOES, 2014a, p. 90).

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), “a adoção é medida


excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de

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manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa” (art. 39, §1°).

Segundo Silva & Silva (2012),

A adoção é um ato jurídico no qual se cria um vínculo de parentesco por opção entre duas pes-
soas que não possuem laços biológicos. Em 1965, foi promulgada a Lei 4.655 que definiu a ado-
ção como irrevogável. As crianças e adolescentes adotados passaram a ter os mesmos direitos
e deveres dos filhos biológicos, sendo rompido qualquer laço com a família biológica (p.2).

Teoricamente, quando os recursos em prol da cessação da violação dos direitos da criança


e do adolescente, praticados por seus genitores ou responsáveis se esgotam, é que o poder 210
familiar é definitivamente destituído e eles são “disponibilizados” para colocação em família
substituta. É dito que estão ‘disponíveis’ para adoção. Na prática, remete-se exclusivamente
às famílias naturais6 (formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes) o dever de
resolverem suas questões, aderirem aos encaminhamentos determinados pelos profissionais
ou mesmo pela justiça e de se adequarem a um modelo capaz de garantir a preservação dos
direitos de seus membros em desenvolvimento.

A família aparece, portanto, como primeiro espaço em que a criança se desenvolve enquanto
ser social, atuando na mediação entre os indivíduos e as normas, regras e valores da socie-
dade. Ela é o responsável primeiro pela garantia e efetivação dos direitos das crianças e dos
adolescentes à vida, à proteção e ao desenvolvimento de habilidades humanas, de modo que
estes possam dispor das condições materiais e humanas necessárias ao seu desenvolvimento.
(QUEIROZ & BRITO, 2013, p.59).

Em nome da proteção e considerando o direito à convivência familiar, crianças e adolescen-


tes são, por vezes, colocados em famílias substitutas. Acontece que, na prática, nem sempre
isso acontece. Em muitos casos, a criança nem volta para sua família ‘natural’, nem vai para
a família substituta. Permanece acolhida aguardando que decidam sobre ela.

6 Art 25 – Lei 8069/90.


Assim, os meses e anos passam, a criança e o adolescente crescem institucionalizados.
Vão guardando consigo suas lembranças, memórias do que viveram ou do que poderiam ter
vivido. O tempo passa e urge colocar a criança e o adolescente em alguma família. Às vezes
o tempo passa de modo tão acelerado que, quando se volta o olhar sob a criança, ela já está
crescida e completamente ‘fora do perfil’ desejado.

A partir da legislação vigente no Brasil, podemos afirmar que temos uma expansão legal da
concepção da adoção, concebida como medida protetiva e excepcional que visa à satisfação
prioritária dos direitos da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária. No en-
tanto, ela precisa ter ressonância no movimento da sociedade, o que se tem configurado como
uma questão complexa, pois observamos resistências de ordem socioculturais na materializa-
ção desses direitos legalizados. O Brasil (2010) conta com uma quantidade enorme de crianças
maiores de três anos, disponíveis para adoção, que não se enquadram nas expectativas dos
pais pretendentes, uma vez que a maior demanda é para crianças abaixo dessa faixa etária
(QUEIROZ & BRITO, 2013, p.56).

A adoção é um ato jurídico onde a relação de parentesco e o vínculo se dão por opção. Ao legalizar
a relação, a adoção legitima a filiação afetiva. A história legal da adoção no Brasil data do início do
século XX. O assunto foi tratado pela primeira vez em 1916, no Código Civil brasileiro7 (artigos 368
a 378). Depois da iniciativa, seguiram-se a aprovação de outras leis: 3.133/19578, 4.655/19659 e
6.697/197910, 8.069/199011. Este alterado depois pela atual legislação (Lei n°. 12.010/09).

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A palavra adotar vem do latim adoptare que significa escolher, perfilhar, dar o seu nome a,
optar, ajuntar, escolher, desejar. Do ponto de vista jurídico, a adoção é um procedimento
legal que consiste em transferir todos os direitos e deveres de pais biológicos para uma
família substituta, conferindo para crianças/adolescentes todos os direitos e deveres de
filho, quando e somente quando forem esgotados todos os recursos oferecidos para que a
convivência com a família original seja mantida. É regulamentada pelo Código Civil e pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que determina claramente que a adoção deve
priorizar as reais necessidades, interesses e direitos da criança/adolescente. A adoção
representa também a oportunidade do exercício da paternidade/maternidade para pais que
não puderam ter filhos biológicos ou que optaram por ter filhos sem vinculação genética, 211
além de eventualmente atender as necessidades da família de origem, que não pode cuidar
de seu filho. (AMB, 2008, p.6).

Para Faleiros & Moraes (2014), “O processo de adoção é visto como uma vinculação/revincu-
lação que implica uma relação particular tanto do mundo interno como o externo, este um pro-
cesso de comunicação e aprendizagem” (p.30-31). Para os autores, numa vinculação adotiva,
há de se considerar a história particular do(s) infante(s). Porém, ressaltam que a convivência, a
comunicação, os laços construídos nessa nova relação são fatores importantes para a qualida-
de dos vínculos estabelecidos entre os membros dessa família em construção.

A vinculação, envolve por sua vez, processos dolorosos de separação que precisam ser
desvelados com cuidado, no convívio diário com a família adotiva, daí a importância em
considerar a gama de relações internas e externas que a criança traz consigo nesse pro-
cesso de pertencimento. [...] Considerar todos os vínculos instituídos durante a infância

7 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm.

8 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/L3133.htm

9 http://legislacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/Viw_Identificacao/lei%204.655-1965?OpenDocument

10 http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-6697-10-outubro-1979-365840-publicacaooriginal-
1-pl.html

11 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
e adolescência, sejam eles, familiar ou institucional é uma tentativa de resgatar a história
individual da criança, processo esse que tende a facilitar a construção dessa nova filiação.
(FALEIROS & MORAES, 2014, p.31-32).

3. Considerações Finais

O caráter irrevogável da adoção não impede a devolução de crianças e de adolescentes. A


grosso modo, temos o hábito de devolver aquilo que não é nosso, que não nos pertence ou se
tornou obsoleto ou que é provisório ou que não nos serve mais. Fazemos isso constantemente
com coisas e produtos. O que não nos serve, descartamos. A ideia de criança como objeto e
não como parte de uma dinâmica familiar em construção é apontada como justificativa para
devolução (GOES,2014a, 2014b; ALVES, 2014; PINHO, 2014, LADVOCAT, 2014).

Goes (2014a) exemplifica o lugar da criança como objeto ao descrever uma cena onde os
pretendentes à adoção declaravam o desejo de devolução de uma infante que estavam na
companhia do casal há cerca de dez meses. Durante o período de convivência com a criança,
os requerentes engravidaram e compareceram com o filho recém-nato para devolver aquela
que um dia foi chamada de filha, pelo casal. Nesse sentido, diz a autora,

[...] a criança virou coisa e, coisificada, passou a ser tratada como um objeto nas mãos de

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adultos que tinham o poder de decisão sobre a sua vida; a criança, colocada nesta cena, pa-
rece se tornar um objeto, ou uma mercadoria, que apesar de ser educada e uma boa menina,
tinha defeitos: havia mentido sobre questões escolares e furtado canetinhas da colega da
escola. E, como em um processo em que a mercadoria apresenta um problema, o cliente
retorna para devolvê-lo (p.90).

Ladvocat (2014, p.127), alerta para a importância de não se considerar a criança a ser
adotada como um “presente idealizado”, “um pacote” contendo todas as realizações dos
desejos daqueles que desejam adotar.
212
Alves (2014, p.247) também aponta a visão, em muitos habilitados à adoção, de que recebe-
ram um “produto especial” para, assim, realizarem o sonho do “exercício parental”.

Sonhos. Desejos. Fantasias. Expectativas. Por vezes, não permitem que a família lide com
a realidade que a ela se apresenta, ou mesmo que ela consiga construir uma forma pos-
sível de existir e de não desistir de si. Nesse sentido, adoção “bem sucedida” dependeria
de quem? Do que? Dos adultos? Das crianças? Da família extensa? Sim! A família extensa
(tios, avós, primos) é importante na adoção.

Faleiros & Moraes (2014), em seu artigo Desafios e Possibilidades na Adoção, após pesquisa
com quatro famílias onde duas mantiveram a adoção e as outras duas devolveram as crian-
ças, destacam que o apoio familiar e de amigos se faz mister para a superação de conflitos.
A aceitação do infante pelos demais familiares e amigos é apontada, pelos autores, como
algo fundamental para o fortalecimento dos vínculos familiares.

Sabemos que há casos onde a família extensa da criança não se faz presente por razões
diversas. No caso das famílias com vínculo biológico: ausência de disponibilidade interna e/ou
financeira para cuidar, localização desconhecida, desconhecimento do acolhimento do infante.
No caso dos familiares das famílias substitutas: ausência de sentimento de pertencimento
do infante àquela família, preconceito, ausência de disponibilidade para auxiliar à família em
construção, dentre outros. Também há casos onde a criança não se adapta à família substituta
e, em algumas situações, pede para ser reacolhida institucionalmente. Mas, principalmente,
sabemos que, o desejo maior, dos que se encontram acolhidos, é poder ter uma família.

Pode parecer um paradoxo para muitos requerentes que idealizam “filhos de contos de
fadas”, mas há de se lembrar que independente do motivo que culminou em seu acolhimento,
de um modo geral, toda criança e todo adolescente, quer sentir-se seguro e acolhido em sua
família (seja ela de origem, extensa, ampliada ou substituta).

Referências

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214
RELATO DE PRÁTICA DAS ASSISTENTES
SOCIAIS E PSICÓLOGAS DO NÚCLEO DE
PROMOÇÃO DA FILIAÇÃO DO TJ/AL NAS
ADOÇÕES UNILATERAIS CONSENSUAIS
COM RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO
SOCIOAFETIVA

Priscilla Azevedo Monteiro de Abreu1, Flávia Kelly Silva Mendes dos Santos2,
Auzeni e Almeida da Costa3

EIXO TEMÁTICO: CRIANÇA E ADOLESCENTE

O Núcleo de Promoção da Filiação do Tribunal de Justiça de Alagoas, que é o órgão


centralizador de ações de averiguação de paternidade de Maceió, foi criado através
da Resolução nº36/2008 com a finalidade de promover o efetivo cumprimento do
princípio da prioridade absoluta contido na CF/88 e, em especial, o disposto na Lei

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nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992, e na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Além
das averiguações de paternidade, o NPF/TJ/AL desenvolve um projeto que permite
realizar adoções unilaterais por padrasto nos casos em que não for possível locali-
zar o pai biológico e/ou família paterna. Isto posto, este trabalho propõe-se a apre-
sentar o relato da prática profissional de assistentes sociais e psicólogas do NPF/
TJ/AL, nos casos de adoção unilateral consensual por padrasto. O interesse em
discutir a prática parte da necessidade de refletir sobre os processos de trabalho
visando qualificá-los bem como dar visibilidade à atuação desses profissionais no
âmbito do poder judiciário. Para tanto, utilizou-se pesquisa bibliográfica acerca das
temáticas que abrangem família, filiação socioafetiva e adoção unilateral, pesquisa
215
documental e também leitura dos laudos psicológicos e pareceres sociais emitidos
pela equipe psicossocial. Na prática cotidiana, os estudos psicossociais para fins
de adoção unilateral consensual realizados pelas assistentes sociais e psicólogas
do NPF permitem concluir se a relação estabelecida entre o adotante e o adotando
é uma relação de solidariedade, constituída sob os sentimentos de afeto, de amor e
cooperação e se o padrasto exerce junto à genitora a responsabilidade conjunta de
cuidar, manter e educar à criança/adolescente. Dessa forma, através do uso de todo
instrumental desses profissionais, torna-se possível emitir opinião fundamentada
sobre os processos de adoção unilateral consensual, visando atender ao melhor
interesse da criança ou adolescente.

Palavras-chave: filiação socioafetiva, adoção unilateral consensual, relato de


prática profissional.

1 Assistente Social, formada pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Especialista em Educação em
Direitos Humanos e Diversidade (UFAL), Analista Judiciária Especializada em Serviço Social do Tribunal de Justiça/AL
e assistente social da UFAL, E-mail priscillaabreu@tjal.jus.br, Telefone (82)99972-5392

2 Assistente Social, formada pela UFAL, Especialista em Dependência Química (Centro Universitário
Cesmac/AL), Analista Judiciária Especializada em Serviço Social do Tribunal de Justiça/AL e assistente social da
Polícia Militar/AL, E-mail flaviasantos@tjal.jus.br, Telefone (82)99653-4238

3 Psicóloga formada pela UFAL, Especialista em Gestão de Pessoas (Faculdade Maurício de Nassau/PE),
Analista Judiciária Especializada em Psicologia do Tribunal de Justiça/AL e Psicóloga da Prefeitura de Maceió, E-mail
auzenicosta@tjal.jus.br, Telefone (82)98815-9132
1. Introdução

A estrutura familiar é uma construção cultural e, na atualidade, o referencial pai e mãe vem
sendo estabelecido não somente pela origem genética, mas pelo elo afetivo. Com a pro-
mulgação da atual constituição federativa brasileira, passou-se a ter a possibilidade jurídica
do reconhecimento das famílias plurais, igualdade de gêneros e de filiação. O casamento
deixou de ser a única forma de reconhecimento de família, pois se consentiu o princípio da
afetividade como um direito fundamental e todos os filhos passaram a ser protegidos, pouco
importando a sua origem (LOPES, 2014). Assim, a afetividade trouxe consigo o conceito de
parentalidade socioafetiva que ultrapassa a consanguinidade.

Historicamente, a família constituiu-se como um importante elemento na formação do indiví-


duo enquanto ser social. De acordo com Oliveira (2012, pág. 3):

A família constitui-se a instância básica, na qual o sentimento de pertencimento e identidade


social é desenvolvido e mantido e, também, são transmitidos os valores e condutas pessoais.
Apresenta certa pluralidade de relações interpessoais e diversidades culturais, que devem
ser reconhecidas e respeitadas, em uma rede de vínculos comunitários, segundo o grupo
social em que está inserida.

A história social das famílias também mostra que a família vem mudando, dando espaço à

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multiplicidade e a variedade das novas configurações familiares no contexto brasileiro, dadas
as mudanças ocorridas socialmente no processo de desenvolvimento da sociedade.

Antes do advento da Constituição Federal de 1988 e seu princípio da igualdade, só havia


uma filiação legítima, sendo as demais taxadas em suas diferenças; após a consolidação
da Constituição, surgiram novas possibilidades para o reconhecimento das filiações plurais
(LIMA, 2013). Segundo Cassetari (2015):

(...) a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre
pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes 216
fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas. E, caso seja comprovada,
entendemos que os filhos socioafetivos deverão ter os mesmos direitos dos biológicos, em
razão da igualdade prevista em nossa Constituição (pág. 16).

Dessa forma, esse artigo tem como objetivo apresentar o trabalho desenvolvido pela equipe
psicossocial do Núcleo de Promoção da Filiação do Tribunal de Justiça de Alagoas (NPF/
TJAL) no processo de adoção unilateral consensual4. A relevância desse trabalho reside no
fato de que é necessário refletir sobre os processos de trabalho, no intuito de qualificar a prá-
tica, bem como dar visibilidade à atuação desses profissionais no âmbito do poder judiciário.

Como aporte metodológico, as autoras realizaram pesquisa bibliográfica e documental acer-


ca das temáticas que envolvem a família, filiação socioafetiva, adoção unilateral consensual,
bem como a leitura e discussão dos laudos e pareceres emitidos por estas profissionais
durante as avaliações para fins de adoção unilateral consensual.

4 O uso da terminologia adoção unilateral consensual foi sustentado na Dissertação de Mestrado de


DANTAS, Ana Florinda. O pátrio poder quanto à pessoa do filho no direito brasileiro e as limitações ao seu exercício,
decorrentes do controle judicial. Orientação do Prof. Doutor Luiz Manoel de Menezes Leitão. Lisboa, 2002, p.33; 147.
2. 2. Desenvolvimento
2.1 O Núcleo De Promoção Da Filiação

O NPF/TJAL é o órgão centralizador das ações de averiguação de paternidade de Maceió,


conforme o artigo 4º da Resolução nº36/2008 do TJAL, que indica:

O Núcleo de Promoção da Filiação – NPF tem por objetivo servir como órgão centralizador das
averiguações de paternidade encaminhadas pelos Oficiais de Registro Civil, a fim de promover
o efetivo cumprimento do princípio da prioridade absoluta contido na CF/88 e, em especial, o
disposto na Lei nº 8.560, de 29 de dezembro de 1992, e na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990.

A necessidade da criação de um setor especializado em ações de conciliação para


reconhecimento de paternidade foi constatada a partir do projeto de iniciação científica Se-
mente, do Centro Universitário Cesmac, desenvolvido em 2006 e 2007, cuja coordenadora
foi a Juíza Ana Florinda Mendonça da Silva Dantas. Os estudos desse projeto apontaram
que na capital alagoana havia um índice de 20% de crianças sem o nome do pai em seus
registros de nascimento. Ademais, as ações que visavam dar resolutividade aos registros
incompletos em cumprimento à Lei 8.560/92 transcorriam nas Varas de Família e havia
uma dificuldade em encerrá-las de modo célere.

A Lei 8.560/92 prevê em seu artigo 2º que: “em registro de nascimento de menor apenas com

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a maternidade estabelecida, o oficial remeterá ao juiz certidão integral do registro e o nome e
prenome, profissão, identidade e residência do suposto pai, a fim de ser averiguada oficiosamente
a procedência da alegação.” Tal procedimento é realizado pelos cartórios de Maceió sendo enca-
minhados os registros para o NPF/TJ/AL desde 2009 quando efetivamente o trabalho teve início.

A equipe que atua no NPF/TJ/AL é composta por analistas judiciários da área de Direito,
assistentes sociais, psicólogas e estagiários dessas áreas de atuação, sendo coordenado
pela Juíza Ana Florinda Mendonça da Silva Dantas e contando ainda com uma Promotora
de Justiça e uma Defensora Pública. É essa equipe que realiza os procedimentos indica- 217
dos pela lei 8.560/92, através da intimação das genitoras e também dos supostos pais a
fim de possibilitar o reconhecimento da paternidade e de maternidade, se for o caso. O
atendimento é realizado no Fórum Estadual Desembargador Jairon Maia Fernandes e numa
extensão do NPF no Centro Universitário Cesmac.

Não obstante, um diferencial no atendimento a essas genitoras e supostos pais é que são
assistentes sociais e/ou psicólogos, com formação em conciliação e mediação, que realizam as
intervenções nas audiências para reconhecimento da filiação. Nestas audiências, além do reco-
nhecimento da paternidade, acordam-se também outros direitos, tais como: guarda, convivência
e pensão alimentícia, visando o melhor interesse da criança, bem como evitar a necessidade
de ingresso de ações judiciais para tratar de direitos filiatórios. Quando é realizado o reconheci-
mento, o NPF/TJ/AL encaminha os mandados de averbação para os cartórios de registro civil a
fim de serem expedidos os novos registros de nascimento dos requerentes e, nos casos em que
é avaliada a impossibilidade do pagamento pelas partes, esse documento é obtido gratuitamente.

Atualmente, tramitam no NPF/TJ/AL 1673 ações de averiguação de paternidade. Realiza-se tam-


bém reconhecimento de paternidade nos casos de pais falecidos, por meio da coleta de material
genético de familiares do suposto pai, reconhecimento de pais que estão cumprindo pena privativa
de liberdade e também de requerentes adultos, estes últimos buscam o serviço do NPF/TJ/AL
espontaneamente ou já foram partes de algum processo de averiguação. Nos casos em que os
supostos pais residem fora da Comarca de Maceió, estes são ouvidos nas comarcas onde residem.

Além das demandas elencadas acima, o Núcleo de Promoção da Filiação, em parceria com as es-
colas municipais e estaduais, realiza anualmente mutirões, deslocando sua equipe multidisciplinar
às escolas para que possa ser feito atendimento às crianças, adolescentes e adultos matriculados
na rede de ensino visando garantir o registro completo e os demais direitos dele decorrentes.
Além dessas ações, o NPF/TJ/AL promove atividades externas, seguindo um planejamento anual.

Em decorrência das ações de averiguação de paternidade surgiram outras demandas para o


Núcleo de Promoção da Filiação, tais como: regularização de guarda para terceiros e adoções
unilaterais por padrasto, ambas tem origem quando não é possível concluir a averiguação de
paternidade por impossibilidade de localização do pai biológico ou quando há necessidade
de garantir o melhor interesse da criança, que, em alguns casos, já possui vínculos afetivos
com terceiros, ainda que tenha a maternidade e paternidade biológicas reconhecidas.

A seguir, abordaremos as especificidades dos processos de adoção unilateral consensual


por padrasto realizados pelo NPF/TJ/AL.

2.2 Projeto Adoção Simples: Adoção Unilateral Consensual Com Reconheci-

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mento De Filiação Socioafetiva

A adoção, conforme a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é definida


como “medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados
os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, (…)”
(Art. 39, § 1o). Enquanto a adoção unilateral, segundo Paiva, 2008, pág. 79:

(…) ocorre quando um dos cônjuges/concubinos decide adotar o filho do outro, caso em que
os vínculos de filiação do cônjuge/concubino que é genitor(a) da criança se mantém. O termo
unilateral significa que a substituição da filiação ocorre apenas na linha materna ou paterna. 218

Considerando a realidade de inúmeras genitoras que são atendidas no Núcleo de Promoção


da Filiação cuja localização dos supostos pais dos filhos torna-se inviável e visando cumprir
a atribuição do NPF/TJ/AL de buscar garantir o registro completo para os requerentes é que
se elaborou o projeto adoção simples, no ano de 2010 com o objetivo principal de:

Promover com simplicidade e rapidez processos de adoção por padrastos (adoção unilateral),
legalizando a filiação socioafetiva construída na convivência da criança ou adolescente com o
marido/esposa ou companheiro (a) da sua mãe/pai, em casos cuja filiação socioafetiva neces-
sita ser legalmente reconhecida e regularizada (…) (pág. 4).

Nos processos de averiguação de paternidade do NPF/TJ/AL é comum observar que as genito-


ras dos requerentes têm companheiros que realizam o papel de pai e que, por vezes, estes têm
o desejo de incluir seu nome como pai no registro da criança. Tendo como subsídio a ideia de
Bochnia (2008, p.109) de que “os vínculos de sangue são profundos, mas os vínculos do afeto
podem ser mais, vez que são fruto de uma escolha (...)” e o fato de que a legislação prevê a
possibilidade de adoção por padrasto ou madrasta, conforme o artigo 1626 do Código Civil:

Art. 1.626. A adoção atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo
com os pais e parentes consanguíneos, salvo quanto aos impedimentos para o casamento.
Nos processos de adoção unilateral consensual do NPF/TJ/AL, torna-se desnecessária a
destituição do poder familiar, o que simplifica o processo de adoção unilateral. O trâmite
processual nesses casos é diferente do processo comum de adoção, que incluiria a inscrição
em cadastro nacional de pessoas aptas a adotar, participação em cursos promovidos pelas
equipes técnicas da justiça da Infância e Juventude e também estágio de convivência com o
adotando. Como condições para que o processo de averiguação de paternidade seja encami-
nhado para adoção unilateral consensual, obrigatoriamente o pai biológico deve ser desco-
nhecido ou não localizado (ou sua família nos casos de pai falecido), a diferença de idade
entre o adotante e o adotando deve ser de 16 anos (condição disposta no ECA) e a relação
paterno-filial já deve ter estabilidade, com tempo mínimo de convivência de cinco anos.

De acordo com o projeto de adoção simples supracitado: o rito processual é realizado em


ordem diversa dos processos comuns de adoção, haja vista que o estudo é realizado pela
equipe psicossocial antes da ação judicial, de modo a evitar maiores consequências nos
casos em que haja parecer desfavorável. Assim, durante a realização do estudo psicosso-
cial, a família é orientada quanto à irrevogabilidade da adoção e dos seus efeitos, inclusive
previdenciários e em caso de fim do relacionamento entre a mãe e o padrasto do requerente.
Os processos também têm a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública.

Os processos de averiguação de paternidade que evoluem para processos de adoção

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unilateral no NPF/TJ/AL são acompanhados durante um período que varia em torno de
três meses a um ano e anualmente acontece a audiência coletiva, na qual se regulariza a
relação já existente de paternidade. Desde o início do projeto, soma-se 65 processos que
envolvem crianças e adolescentes que tiveram a adoção unilateral consensual oficializa-
das pelo NPF/TJ/AL, assim distribuídos ao longo dos anos: 2010 (06), 2011 (12), 2012
(13), 2013 (15), 2014 (8), 2015 (6) e 2016 (5).

Nesse sentido, o projeto de adoção consensual unilateral por padrasto é de suma importân-
cia porque busca assegurar aos requerentes dos processos de averiguação de paternidade
219
cujos pais biológicos não foram identificados ou localizados, um sentido amplo de família,
reconhecendo formalmente, os vínculos socioafetivos existentes entre eles e os padrastos,
tendo como referência o fato de que “o afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e
solidariedade derivam da convivência familiar e não do sangue.” (Lobo, 2004, p.50).”

2.3 Relato De Prática De Assistentes Sociais E Psicólogas Do Npf/Tj-Al Nas Ado-


ções Unilaterais Consensuais Com Reconhecimento Da Filiação Socioafetiva

Nos processos de averiguação de paternidade, diante da impossibilidade posta pela genitora de


localização do suposto pai do requerente e da possibilidade de realização de adoção unilateral
por padrasto, os processos são encaminhados para avaliação de adoção unilateral por equipe
psicossocial, para emissão de laudo e parecer com fins de subsidiar a decisão da magistrada.

Através do estudo social e psicológico, busca-se constatar se o adotante cumpre as funções


de assistir, criar e educar o adotando, prestando cuidado, proteção, educação e zelo pelo seu
bem-estar e integridade física, mental, moral, espiritual e social, sendo assim, já desempenha
o papel da família atribuído pela legislação, descritos na CF 1988 nos artigos 227 e 229.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,


com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à pro-
fissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comu-
nitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração,
violência, crueldade e opressão.

A avaliação psicossocial deve ser realizada somente se for da vontade das partes (adotan-
do, genitora e adotante) efetivar a adoção unilateral, para que se formalize uma relação de
paternidade já está estabelecida na vida dos sujeitos, tendo como objetivo do estudo que
seja constatado que a criança/adolescente já tem um vínculo socioafetivo de parentalida-
de com o adotante e que a realidade estudada aponte se a medida da adoção unilateral se
configura como a mais benéfica para o adotando.

Para dar início a esse estudo, deve estar claro para a família (adotante, adotando e genitora) de
que a adoção é irrevogável, segundo a legislação, e questionado se os mesmos têm certeza em
relação à decisão sobre a adoção, sendo isso confirmado nos atendimentos individuais e/ou
em grupo. No período de acompanhamento dessas famílias, o adotando é ouvido separadamen-
te e também em conjunto com sua família, tendo em vista que de acordo com Paiva (2008, pág.
80): “(...) é importante observar qual a compreensão que a criança ou adolescente possui acer-
ca do pedido (de adoção) e se possui liberdade para discordar, caso não queira ser adotado.”

As partes devem também ficar cientes de que a partir do momento da adoção o adotando
passar a ter os mesmos direitos filiatórios que os filhos biológicos do adotante, caso exis-

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tam, conforme explicitado no Estatuto da Criança e do Adolescente:

A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive
sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos
matrimoniais. (Art. 41)

Desta forma, a família deve dar o aval para que a equipe possa realizar o estudo psicosso-
cial, possibilitando que se conheça como foi construída a relação afetiva entre o adotante e o
adotando e como o padrasto passou a estabelecer um papel de referência paterna, ofertando
não só proteção e cuidado, mas também todos os meios necessários para o bom desenvolvi- 220
mento psicoemocional e físico do requerente.

2.3.1 Estudo Social Por Assistente Social Para Fins De Adoção Unilateral Consensual

Para realização dos estudos sociais para fins de adoção unilateral, as assistentes sociais
do NPF utilizam os seguintes instrumentos: Análise do conteúdo processual; Entrevista
semiestruturada; Visita domiciliar; Observação participante; Estudo da legislação e de
literatura sobre adoção unilateral, emissão de laudo e parecer social. A partir do uso desses
instrumentos, torna-se possível realizar a análise socioeconômica e cultural da família, em
que participam o padrasto interessado em realizar a adoção unilateral, o/a requerente e sua
genitora, tendo momentos em que abordamos as partes juntas e em outros em que realiza-
mos a abordagem separadamente.

Na abordagem do Serviço Social, busca-se saber se o adotante tem conhecimento de sua


origem genética, pois é regra do protocolo do NPF de que este tenha ciência de que não é
filho biológico do adotado, primando-se sempre de que tenha conhecimento de sua histó-
ria. Busca-se também apreender quais os reais motivos para o adotante pleitear a adoção,
bem como cientificar as partes da seriedade dessa decisão, visto ser medida excepcional e
irrevogável. Estudamos como se dá o relacionamento familiar dentro do ambiente residencial
em que a família convive e estabelece suas relações sociais e a relação do adotando com a
família extensa do adotante, pois com o deferimento do pedido da adoção, o adotando passa
a ter não somente um pai, mas também amplia-se a sua família. Além disso, é feita a aprecia-
ção da situação econômica familiar, das condições de saúde, educação e lazer, com fins de
se examine se a família está em situação de risco social.

2.3.2 Estudo Psicológico Para Fins De Adoção Unilateral Consensual

Além do estudo social, para fins da adoção unilateral, é realizada a avaliação psicológica
composta de análise documental, entrevista semiestruturada, visita domiciliar, observação,
aplicação de testes psicológicos e emissão de laudo psicológico. A entrevista semiestru-
turada é realizada com o adotante, adotando (quando a idade permite), mãe do adotando e
outros, familiares ou não, caso se julgue necessário e é feita individual e também coletiva-
mente quando o caso exigir. Na visita domiciliar é possível observar o comportamento dos
envolvidos no próprio domicílio. Já os testes psicológicos podem ser utilizados alguns casos
e permite complementar as informações coletadas nas etapas anteriores. Quando usados
prevalecem os projetivos e expressivos de personalidade.

Em suma, a avaliação psicológica nos casos de adoção unilateral consensual tem por fina-
lidade primordial coletar informações que possibilitem conhecer a história pessoal e familiar

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do candidato à adoção unilateral, o relacionamento com a família extensa, a história conjugal
do casal, aspectos da vida afetiva e social dos membros da família, crenças e valores, além
de como o pai biológico é representado psiquicamente para criança ou adolescente. Esses
elementos permitem compreender a dinâmica familiar, bem como inferir se existe ou não a
presença do vínculo socioafetivo estabelecido entre adotante e adotando.

2.3.3 Audiência Coletiva

A audiência coletiva de adoção unilateral consensual é promovida pelo NPF/TJ/AL e rea-


221
lizada uma vez por ano. Tem como objetivo oficializar a adoção de crianças e adolescen-
tes que já mantém uma relação de pai e filho com o padrasto estabelecida há no mínimo
cinco anos, além da constatação da existência do vínculo socioafetivo, dos casos
acompanhados ao longo do ano pela equipe psicossocial. A audiência é conduzida pela
juíza Coordenadora do Núcleo, mediante autorização da presidência do TJ/AL publicada
anualmente no Diário de Justiça de Alagoas. O evento conta com a participação da juíza
coordenadora do Núcleo, de toda a equipe do NPF/TJ/AL e dos estagiários, da represen-
tante do Ministério Público e da Defensoria Pública e das famílias que tiveram sentença
judicial favorável à adoção unilateral.

A audiência de adoção coletiva é conduzida de forma leve e descontraída, com dinâmica


de grupo, espaço lúdico para receber as crianças e adolescentes, distribuição de brindes
os adotantes e adotandos e café da manhã coletivo. Compete às assistentes sociais e
psicólogas proferirem palestra de sensibilização, chamando a atenção para importância da
decisão assumida pelos adotantes, enfatizando os direitos, deveres e responsabilidades
que a oficialização da adoção implica. Para tal utilizam recursos como filmes, músicas e
poemas a fim de tornar o evento mais suave.
3. Considerações Finais

Na prática cotidiana, os estudos psicossociais para fins de adoção unilateral consensual


realizados pelas assistentes sociais e psicólogas do NPF permitem concluir se a relação
estabelecida entre o adotante e o adotado é uma relação de solidariedade, constituída sob
os sentimentos de afeto, de amor e cooperação e se o padrasto exerce junto à genitora a
responsabilidade conjunta de cuidar, manter e educar à criança/adolescente, sem distinção
entre este e outros filhos biológicos, caso existam.

Além disso, a equipe psicossocial nos estudos com vistas à adoção unilateral deve constatar se
o adotando está sendo suprido em suas necessidades básicas de saúde, educação, alimenta-
ção, afeto, e se o ambiente familiar favorece um bom desenvolvimento da criança nos aspectos
afetivos, psicológicos, culturais e sociais, ou seja, já desempenham o papel da família.

Deve-se observar, então, se a paternidade socioafetiva está estabelecida, pois conforme


afirma Queiroz (2001, pág. 128):

A paternidade envolve a função de pai, que vai muito além do dimensionamento do vínculo
biológico. O aspecto da paternidade não se limita meramente à concepção; mais importante é
o acompanhamento de todo o desenvolvimento após o nascimento, tomando para si a respon-
sabilidade na criação, manutenção e educação do filho.

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Ainda, como afirma Pereira (2012, pág. 215): “o que garante o cumprimento das funções
parentais não é a similitude genética ou a derivação sanguínea, mas, o cuidado e o des-
velo dedicados aos filhos”.

Outro fato relevante é que é necessário para efetivar as ações do NPF/TJ/AL ter clareza so-
bre a dinâmica das famílias, que tem se modificado cotidianamente, inclusive, como expres-
são da questão social, temos cada vez mais famílias extensas em virtude da necessidade
de sobrevivência material e também da ausência paterna. No entanto, e contraditoriamente,
222
as famílias extensas surgem também por laços de afetividade, pois, “(...) o ser humano não
perde jamais a necessidade de estabelecer vínculos. É aí que reside a certeza da sobrevi-
vência dessa instituição (família). Ela retorna sempre: seja recomposta, monoparental, etc.”
[Roudinesco, 2004 apud Weber (org.), p. 23].

Em consonância com o que foi abordado nesse trabalho, Bannura (2009) entende que somente
a investigação efetiva das relações que melhor aproveitam o interesse da criança resultará
em valorização verdadeira da parentalidade. É sob esse pilar que caminham os processos da
adoção unilateral consensual realizada pelo NPF/TJ/AL, buscando-se sempre considerar as
dinâmicas das famílias e dar primazia ao melhor interesse da criança/adolescente.

Referências

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de – análise psicojurídica. / Ivone Maria Candido Coelho de Souza (Coord.). / Curitiba: Juruá, 2009.
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________ LEI 8.560 DE 29 DE DEZEMBRO DE 1992. Regula a investigação de paternidade dos


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LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética.In: Revista
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OLIVEIRA, Aloídes Souza de. Família: um desafio para os assistentes sociais. In:  Ambito Jurí-
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PAIVA, Leila Dutra de. Adoção: significados e possibilidades, Ed.Casa do Psicólogo, São
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PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo:
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QUEIROZ, Juliane Fernandes. Paternidade: aspectos jurídicos e técnicos de inseminação arti-
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dos: Centrais de Registro de Nascimento e Núcleo de Promoção da Filiação e Adota outras
providências.

______. Desburocratizando o acesso ao Direito da Filiação. Cartilha do NPF/TJ/AL. Unicef,


Recife, [...]. 223
224

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FAMÍLIA
ADAPTAÇÃO DE UMA ESCALA DE COPING
PARA CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM
CONTEXTO DE DIVÓRCIO PARENTAL

Cláudia Paresqui Roseiro1, Camila Nasser Mancini2 e Kely Maria Pereira de


Paula3

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

O divórcio parental acarreta vários desdobramentos no curso de vida do


filho do casal, que podem torná-lo vulnerável às repercussões do stress em
resposta aos desafios impostos pela nova realidade do contexto familiar. A
investigação sobre o enfrentamento da criança e do adolescente frente ao
divórcio dos pais e seus desdobramentos emocionais é relevante na com-
preensão de estratégias que possam minimizar os efeitos de estressores
que podem contribuir para desfechos mal adaptativos. Para tanto, é impor-
tante a produção de escalas adaptadas a esta população e que abordem com
efetividade os estressores comuns a este contexto.

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Palavras chave: coping; desenvolvimento infantil; divórcio.

1. Introdução

Atualmente, os estudos sobre o divórcio e o impacto do rompimento familiar vêm adotando


uma perspectiva conceitual de transição desenvolvimental, caracterizando a separação
225
como um evento estressor num processo sistêmico e dinâmico, envolvendo fatores media-
dores e moderadores, os quais contribuem para a variabilidade de respostas adaptativas
(AHRONS, 1980; CARTER; MACGOLDRICK, 2011; KELLY; EMERY, 2003; NUNES-COSTA et
al., 2009; PECK; MANIOCHERIAN, 2011; RAPOSO et al., 2011). Nesse sentido, o divórcio
pode ser considerado um evento estressor transitório, com potencial para acarretar efeitos
negativos no ajustamento de crianças e adolescentes cuja magnitude e duração dependem
de outras circunstâncias (KELLY; EMERY, 2003; RAPOSO et al., 2011).

A separação do casal, mesmo que se dê de forma pacífica e amigável por ambas as partes,
pode se tornar uma fonte de stress para a criança, devido seus desdobramentos em sua
rotina. Mudanças de escola, local de moradia, variações de regras e permissões de acordo
com a custódia de cada cuidador, representam uma sucessão de contingências às quais a
criança deverá disponibilizar um contingente de energia para se adaptar a cada mudança,
deixando-a vulnerável para desenvolver stress (LIPP, 2014).

1 Psicóloga – TJ/ES, Doutoranda em Psicologia – PPGP/UFES. claudiaproseiro@gmail.com / 3149-2578

2 Psicóloga, Mestranda em Psicologia – PPGP/UFES. camilanmancini@gmail.com

3 Psicóloga, Professora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento – PPGP/UFES.


kelymppaula@gmail.com
Além disso, desdobramentos comuns como a alteração do nível socioeconômico familiar, a
diminuição no suporte e no efetivo controle parental, a diminuição no contato com um dos
genitores (com o qual a criança não reside), conflito contínuo entre os pais e outros eventos
estressantes são considerados variáveis mediadoras, associadas ao pior ajustamento dos
filhos à separação familiar (AMATO, 2000; AMATO; KEITH, 1991). O divórcio, associado a
essas circunstâncias, pode promover problemas de saúde física e psicológica nos filhos, pre-
judicando seu desenvolvimento, sobretudo com relação ao rendimento acadêmico, relações
interpessoais e problemas de internalização e externalização (NUNES-COSTA et al., 2009). O
conflito interparental é considerado, nessa linha, o fator de risco que possui maior impacto
no ajustamento à separação familiar e ao baixo nível de bem-estar em crianças e adolescen-
tes, (BRAZELTON, 1994; KELLY; EMERY, 2003; RAPOSO et al., 2011; SANDLER et al., 2003).

O contexto familiar conflitivo e as situações constantes de discórdia entre o casal podem


caracterizar-se por diferentes níveis de intensidade, frequência, conteúdo e resolução,
sendo expressos de forma aberta ou encoberta (BENETTI, 2006). A qualidade da relação
parental e a presença de discórdia no ambiente familiar são fatores associados à etiologia
de distúrbios emocionais na criança e no adolescente (CUMMINGS; DAVIES, 2002; WAM-
BOLDT; WAMBOLDT, 2000). Por conseguinte, a exposição da criança a episódios frequen-
tes de disputa/conflito entre o casal como forma de relacionamento familiar é um fator
determinante de estresse na criança (BENETTI, 2006).

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Frente às situações de adversidade, em que o sujeito interpreta o meio como ameaça aos
seus recursos e bem-estar, o nível de estresse pode se elevar como resposta física e/ou
psíquica, mesmo em crianças muito pequenas. Podemos definir o estresse como um esta-
do de tensão que causa uma ruptura na homeostase do indivíduo, interferindo no equilíbrio
emocional e/ou fisiológico (LIPP, 2000).

Visando a retomada do equilíbrio frente a um estressor em potencial, o coping se estabelece


regulando os níveis de estresse em busca de reaver a estabilidade psicológica do sujeito.
226
Desse modo, o conjunto de estratégias de enfrentamento adotadas irá definir de que forma o
sujeito irá lidar com o evento estressor, sendo determinante nas consequências e resoluções
resultantes do conflito (LAZARUS; FOLKMAN, 1984). Assim, o coping pode ser definido como a
competência de se adaptar e lidar com contextos que desafiam, ameaçam ou excedem o equilí-
brio psíquico e biológico, sendo estes essenciais ao desenvolvimento humano (LEES, 2007).

O coping ou processo de enfrentamento de crianças e adolescentes à separação parental


dependerá de recursos pessoais e sociais disponíveis nos contextos pós-divórcio de cada fa-
mília, de acordo com a configuração particular de fatores de risco e proteção (AMATO, 2000;
AMATO; KEITH, 1991; HETHERINGTON; ELMORE, 2003). Os fatores protetivos são conside-
rados variáveis moderadoras no enfrentamento dos filhos ao divórcio parental, que poderão
atenuar seus possíveis efeitos negativos (BARON; KENNY, 1986) e promover o processo de
resiliência da família. Dentre os fatores protetivos apontados por Amato (2000), que favore-
cem trajetórias positivas nos filhos, estão o uso de estratégias ativas de enfrentamento pela
criança, o suporte social, a percepção infantil sobre o divórcio sem autoculpa e os arranjos
de guarda que facilitam a convivência do filho com ambos os genitores.

A coparentalidade cooperativa, por exemplo, que se caracteriza pelo engajamento e coope-


ração mútua de ambos os pais na educação, cuidados e decisões sobre a vida dos filhos
(MACIE, 2002) é uma variável relevante na promoção do ajustamento saudável da criança
ao divórcio. Os pais que buscam alçar uma relação ativa de coparentalidade, ao visarem o
bem-estar e a integridade dos filhos, estabelecem uma relação saudável, constituindo novos
papéis parentais flexíveis e adaptáveis de acordo com as necessidades da criança. Dessa
forma, a responsabilidade pela criação e pelas tomadas de decisão que englobam a parenta-
lidade é feita de forma partilhada e assertiva, privando a criança de possíveis mal ajustamen-
tos no seu curso de desenvolvimento (RAPOSO et al., 2011).

Diante desses vários aspectos que englobam a temática do divórcio parental e das reper-
cussões no desenvolvimento da criança e do adolescente, torna-se relevante considerar
as variáveis contextuais e pessoais dos mesmos, que vivenciam o divórcio parental, para
a compreensão mais ampla do processo de enfrentamento e o potencial estressor desta
nova realidade em suas vidas. Nesse sentido, diferentes pesquisas têm se concentrado na
investigação das relações estabelecidas entre o estresse, o processo de enfrentamento e a
saúde física e psicológica dos indivíduos.

2. Coping como ação regulatória

Os estudos sobre o coping durante a infância e adolescência objetivam conhecer o modo


como as crianças lidam com os estressores atuais em seu real contexto de vida (SKINNER;

2ª Jornada Científica da FASP-ES | Revista de Artigos


ZIMMER-GEMBECK, 2007). Seguindo uma visão desenvolvimentista sobre o modo como as
pessoas enfrentam os eventos estressores, a Motivational Theory of coping – MTC considera
o coping como ação regulatória, referindo-se a padrões organizados de comportamento,
emoção, atenção e motivação no enfrentamento de eventos estressores (SKINNER, 1999;
SKINNER; EDGE; ALTMAN; SHERWOOD, 2003; ZIMMER-GEMBECH; SKINNER, 2009).

O coping ou processo de enfrentamento pode ser entendido como um processo transacional no


qual vários elementos da reação ao estresse são evocados e coordenados em tempo real, para
que as pessoas se autorregulem e lidem com a situação estressora. Na perspectiva Motiva- 227
cional, as pessoas têm papel ativo no processo de enfretamento das situações adversas que
afetam suas necessidades psicológicas básicas, quais sejam, necessidade de relacionamento,
necessidade de competência e necessidade de autonomia (RAMOS; ENUMO; PAULA, 2015).
O coping, dessa forma, abrange os esforços individuais para manter, restaurar e reparar essas
necessidades psicológicas básicas afetadas por experiências estressantes (SKINNER, 1999).

Os teóricos da abordagem do coping como ação regulatória propuseram um sistema


estrutural e hierárquico, diferenciando os comportamentos de coping (respostas do indiví-
duo ao lidar com a situação estressante), as estratégias de enfrentamento (categorização
dos comportamentos de coping) e o processo adaptativo (resultados ou conseqüências do
enfrentamento) (SKINNER; EDGE; ALTMAN; SHERWOOD, 2003). Esse sistema compreende o
conjunto de 12 famílias de coping, consideradas instâncias mais altas de categorização das
estratégias de enfrentamento com os processos adaptativos, são elas: Autoconfiança, Busca
de suporte, Resolução de problemas, Busca de informações, Acomodação, Negociação, Dele-
gação, Isolamento, Desamparo, Fuga, Submissão e Oposição (SKINNER et al., 2003).

As 12 famílias de enfrentamento da Teoria Motivacional do coping são organizadas em


termos de desafio ou ameaça às três necessidades psicológicas básicas, em que cada
categoria pode ser analisada conforme os comportamentos típicos, a emoção associada e a
orientação motivacional (RAMOS et al, 2015). A proposta de Skinner e colaboradores (2003)
avançam, do ponto de vista teórico, ao demonstrar a relação entre as estratégias de enfren-
tamento e suas funções adaptativas. Como o coping se constitui em um processo dinâmico
e multideterminado, torna-se importante considerar em sua avaliação as características
específicas do indivíduo, do contexto em que ocorre e dos efeitos alcançados.

A maneira como as crianças e os adolescentes lidam com os eventos estressantes são


influenciadas por diferentes variáveis, dentre eles o contexto social, os recursos pessoais
da criança e o modo como a criança estrutura e responde ao evento (SKINNER; WELLBORN,
1994). Dentre os recursos individuais na infância, estão a idade, o sexo, os fatores genéticos, o
temperamento, a inteligência e outras habilidades. Dentre os fatores interpessoais, encontram-
se a rede de apoio e grupos sociais, as relações próximas com membros familiares, professo-
res e pares, e o contexto social (RUTTER, 1987). A Teoria Motivacional do coping constitui-se
em uma perspectiva de grande utilidade uma vez que possibilita a identificação dos mecanis-
mos contínuos entre recursos pessoais e sociais que interagem na mediação dos efeitos das
experiências estressantes e na avaliação das crianças e adolescentes sobre o estressor.

Em um estudo longitudinal de Vélez, Wolchik, Tein e Sandler (2011), um programa de desen-


volvimento da qualidade de relacionamento entre mãe e filho no contexto do divórcio levou
um aumento significativo nos níveis de coping engajado em curto prazo (6 meses após a con-

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clusão do programa) e em longo prazo (6 anos após intervenção). Dessa forma, observou-se
que relacionamentos de qualidade, especialmente com os cuidadores, podem auxiliar os
mais jovens a se sentirem menos ameaçados por eventos estressantes, em que o cuidador
pode reforçar o uso de coping engajado e auxiliar na identificação de estratégias eficientes,
levando um aumento na confiança do filho em lidar com estressores futuros.

Algumas pesquisas relacionadas ao ajustamento infantil na situação do divórcio têm


afirmado que o uso de estratégias de enfrentamento ativas se relaciona com a redução de
problemas psicológicos e estratégias de evitação conduzem a maiores problemas psicológi-
228
cos (AMATO, 2000; SANDLER et al., 1994). Por outro lado, outros estudos têm indicado que
estratégias de enfrentamento ativo são menos eficazes quando os estressores são caracteri-
zados como incontroláveis, como na situação da separação parental, por exemplo (COMPAS
et al, 2001; SANDLER; REYNOLDS; KLIEWER; RAMIREZ, 1992).

Dessa forma, destaca-se a importância de se investigar a relação entre as estratégias de


enfrentamento de crianças e adolescentes e estressores específicos de seu contexto. Neste
trabalho, buscou-se identificar e descrever o processo de adequação de um instrumento de
avaliação do enfrentamento de situações estressoras específicas a partir dos princípios da
Teoria Motivacional do coping, para o contexto de divórcio parental.

3. Método
3.1 Participantes

Participaram deste estudo 10 crianças e adolescentes com idades entre 10 a 14 anos


(idade média= 11,7), sendo seis meninos e quatro meninas. Os participantes responderam
a Escala de Enfrentamento – Divórcio Parental e inquérito posterior sobre o compreensão e
clareza do instrumento.
3.2 Instrumento

A Escala de Enfrentamento – Divórcio Parental é um instrumento baseado na Escala de


Enfrentamento traduzida e adaptado por Justo (2015), a partir do coping Response Booklet -
CRB (LEES, 2007). O instrumento original foi construído para examinar alguns dos princípios
da Teoria motivacional do coping (MTC) e acessar as 12 famílias propostas por Skinner et al
(2003). A escala apresenta 21 itens que buscam identificar seis medidas: reação emocional,
avaliação de ameaça, avaliação de desafio, orientação, identificação e o uso das 12 famílias
de enfrentamento, com base na MTC. As opções de resposta compreendem uma escala Li-
kert de cinco pontos (1= nem um pouco, a 5= totalmente). Na análise de consistência interna
da Escala de Enfrentamento (Justo, 2015), utilizando-se o coeficiente de alfa de cronbach, foi
verificado bom nível de consistência interna na subescala Enfrentamento Adaptativo (0,72) e
um nível de consistência satisfatório na subescala de Enfrentamento Não Adaptativo (0,65).

3.3 Procedimento de Adequação do Instrumento ao contexto de investigação

Para considerar a medida do divórcio parental, o instrumento foi adaptado para esse
contexto, em que as situações apresentadas às crianças e adolescentes foram referentes
aos estressores mais relacionados a essa condição. A partir da revisão de literatura, foram
identificados e selecionados três estressores específicos do contexto de divórcio: conflito

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interparental, afastamento de um genitor e problemas financeiros.

O coping Response Booklet - CRB (Lees, 2007) era composto por um conjunto de 8 vinhetas de
videotapes, com eventos estressores do cotidiano infantil, na relação com pais (discussão ver-
bal com o pai), na relação com os pares (não ser escolhido pelos colegas para jogar no time)
e estressores intrapessoais (fazer uma avaliação na sala de aula). A criança reportava suas
emoções, avaliação de ameaça ou desafio, orientação e respostas de coping para cada evento.

Em sua pesquisa de doutorado, Ana Paula Justo (2015) adaptou o CRB para situações 229
vivenciadas na Adolescência, aplicando com participantes com idade entre 12 e 15 anos. Foi
elaborada uma escala com 21 itens, os quais avaliavam 6 itens: reação emocional (3 itens:
tristeza, medo e raiva); avaliação de ameaça (3 itens: um para cada necessidade psicológica
básica); avaliação de desafio (1 item: interesse); orientação (1 item: evitação); características
de identificação; e o uso das 12 famílias de enfrentamento. As situações estressoras para
adolescentes, concernentes aos relacionamentos interpessoais com pais e com pares, eram
lidas para os participantes que, em seguida, respondiam 3 vezes a Escala de Enfrentamento,
cada resposta referente a uma situação específica.

Na adequação realizada neste trabalho, após a seleção dos estressores específicos, foram
elaborados desenhos que indicassem uma cena para casa situação, de maneira lúdica e com
versão feminina e masculina. As cenas foram apresentadas aos participantes e seguidas da
aplicação da Escala de Enfrentamento. Após administração do instrumento, o participante
respondia um inquérito sobre seu entendimento dos itens da escala, de forma a avaliar
possíveis dificuldades e dúvidas em relação ao vocabulário e compreensão das perguntas.
Também eram conduzidas questões relativas à clareza e representatividade dos desenhos.
Durante toda a aplicação os participantes foram incentivados a expressar suas dúvidas e
pedir esclarecimentos, bem como manifestar suas impressões sobre a escala.
3.4 Resultados

Em relação aos itens da Escala de Enfrentamento, a maioria dos participantes apresentou boa
compreensão dos itens, verbalizando algumas dificuldades de entendimento em relação aos
termos “capaz”, “acolhido” e “interessado”. Para melhorar a compreensão destas palavras, à ex-
pressão “acolhido” foram acrescentados os termos “cuidado, amado”. No que tange aos outros
dois termos optou-se pela não alteração, buscando explicá-los melhor durante a aplicação.

Em relação às cenas, os participantes descreveram as representações gráficas como


claras e de fácil percepção. Algumas modificações foram sugeridas pelos participantes
em relação à ilustração da figura do pai na cena dois, a fim de torná-la mais representativa
(colocar mangas na blusa e barba no rosto).

A cenas foram apresentadas na mesma sequência: conflito interparental (situação 1), afasta-
mento de um dos genitores (situação 2) e problemas financeiros (situação 3). Como os partici-
pantes vivenciaram o divórcio dos pais em momentos distintos, variando o tempo de separação
parental entre seis meses a sete anos passados, foi introduzida uma pergunta na escala buscan-
do verificar a ocorrência do estressor específico para cada sujeito. Dessa forma, inicialmente, o
participante respondia se cada situação havia ou não ocorrido com ele e sua família.

Observou-se que os participantes respondiam a escala com certa introspecção e sobriedade,

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tendo um participante manifestado choro durante a aplicação. A situação foi prontamen-
te atendida pela aplicadora, que interrompeu a pesquisa e forneceu o suporte emocional
necessário à criança. Todavia, todos os participantes referiram ter gostado de participar da
pesquisa e de responder ao instrumento, sinalizando a maioria das crianças e adolescentes
não ter tido oportunidade anterior de falar sobre sua vivencia durante separação dos pais.

Por meio das respostas aos itens da Escala de Enfrentamento – Divórcio Parental, verifi-
cou-se que a reações emocionais de tristeza e raiva foram mais frequentes na situação de
Conflito Interparental (m= 4,25). Já a reação de medo foi mais frequente nas situações de 230
Problemas Financeiros e Conflito Interparental (m=3). As três situações foram avaliadas pe-
los participantes como um desafio, sendo que a situação de Problemas Financeiros recebeu
percentual mais elevados de respostas “muito/bastante”.

Do conjunto das 12 famílias de coping investigadas, as categorias mais utilizadas pelos par-
ticipantes foram a Busca de informações (m= 4) e Busca de suporte (m= 3,5), seguidas das
categorias Resolução de problemas, Negociação e Desamparo (m= 3,33). Dessas, somente a
categoria Desamparo faz parte do grupo de estratégias de enfrentamento com provável des-
fecho adaptativo negativo. As famílias de coping menos utilizadas pelos participantes foram
a Autoconfiança (m= 2,52), o Isolamento (m= 2,58) e a Submissão (m= 2,58). Salienta-se que
a primeira é classificada como categoria de provável desfecho adaptativo positivo.

3.5 Discussão

Ao se pesquisar o coping e seus desdobramentos no desenvolvimento, se faz relevante inves-


tigar as variáveis que constituem o contexto no qual a criança ou adolescente se encontram,
especialmente quais são os estressores que mais ameaçam o seu bem-estar. Após o levan-
tamento bibliográfico, elegeu-se como os estressores mais comuns e negativos, o conflito
interparental, o afastamento de um dos genitores e os problemas financeiros decorrentes da
nova realidade da família. Os participantes não apresentaram dificuldades em identificar as
cenas que faziam alusão a tais situações, e fizeram apenas o apontamento de aprimorar a
representação da figura paterna, tornando-a mais austera (barba e roupa social).

Apesar de os participantes terem vivenciado o divórcio dos pais em diferentes momentos e


em diversas circunstâncias, todos se mostraram introspectivos e sérios ao refletirem sobre
este processo, expressando tensão ao se falar sobre o assunto, tendo uma criança demons-
trado choro durante a aplicação. Este dado vai de conformidade com os apontamentos de
Lipp (2014) e Raposo e colaboradores (2011), que afirmam que mesmo que com diferentes
repercussões, o divórcio parental se apresenta como um estressor para o filho do casal.
Porém, o enfrentamento (coping) será delineado de acordo com os recursos disponíveis e as
diferentes configurações do contexto e da criança (SKINNER; WELLBORN, 1994).

Um importante achado foi a alta carga emocional atribuída pelos jovens na situação Conflito
Interparental (média de 4,25, em que 5 era o valor máximo). Este dado corrobora com a noção de
que o conflito parental é o fator de risco que possui maior impacto no ajustamento à separação
e em consequências negativas ao bem-estar dos filhos (BRAZELTON, 1994; KELLY; EMERY, 2003;
RAPOSO et al., 2011; SANDLER et al., 2003). Além disso, o contexto familiar conflitivo, especial-
mente a qualidade da relação parental, são fatores associados à etiologia de distúrbios emocio-
nais na criança e no adolescente (CUMMINGS; DAVIES, 2002; WAMBOLDT; WAMBOLDT, 2000).

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As três situações apresentadas foram avaliadas como um desafio, em que a situação de Proble-
mas Financeiros recebeu percentual mais elevados de respostas “muito/bastante” e ter sido for-
temente atrelada a emoção “medo”. A alteração do nível econômico e a percepção de instabilida-
de financeira por parte da criança e do adolescente pode reverberar em ansiedade e insegurança
como sintomas atrelados ao estresse proveniente desta nova realidade (AMATO, 2000).

As duas famílias de coping mais comumente utilizadas foram Busca de Informações e


Busca de Suporte, ambas consideradas adaptativas positivas, explicitando um engajamen-
to dos participantes em operacionalizar meios para lidar com a situação. Neste sentido, o 231
cuidador pode ser um importante ator na promoção de estratégias adaptativas do jovem,
ao reforçar o uso de coping engajado e fornecer ajuda na discriminação de estratégias
eficientes, contribuindo para um aumento na confiança do filho em lidar com estressores
futuros (VÉLEZ; WOLCHIK; TEIN; SANDLER, 2011).

4. Considerações Finais

O desenvolvimento de escalas adaptadas ao contexto de interesse torna a investigação das


estratégias de enfrentamento mais assertiva e eficiente, uma vez que a delimitação de um
estressor que faz parte do contexto que está sendo vivenciado facilita sua compreensão e
torna o instrumento mais sensível a respostas comportamentais e emocionais específicas,
dentro de uma proposta desenvolvimentista.

É importante avaliar, em situação de rompimento familiar, a relação entre as variáveis


pessoais e contextuais que podem incrementar ou diminuir as dificuldades de enfrentamen-
to de grupos de risco, fornecendo subsídios a intervenções, como a oferta de serviços de
promoção de saúde, visando auxiliar crianças e adolescentes no processo de adaptação à
nova situação e às consequentes alterações em sua rotina. Além disso, é relevante que os
profissionais implicados neste processo orientem os pais para a importância de se buscar
promover a coparentalidade cooperativa, visando minimizar as repercussões emocionais e
psicofisiológicas nos filhos durante o processo de separação, assim como nos próprios pais.
Ademais, buscando conciliar pesquisa com prática profissional, as escalas específicas de
avaliação também poderão instrumentalizar profissionais que atuam diretamente com famí-
lias nesse contexto, facilitando a adoção de atitudes preventivas para os problemas de saúde
física e mental na infância e adolescência, decorrentes do rompimento familiar.

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ALIENAÇÃO PARENTAL: REFLEXÕES
SOBRE A LEI E A ATUAÇÃO PROFISSIONAL
DAS/OS ASSISTENTES SOCIAIS

Thaís Tononi Batista1

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

O artigo é fruto da pesquisa de Mestrado intitulada “Judicialização dos confli-


tos intrafamiliares: considerações do Serviço Social sobre a alienação paren-
tal”. Nesse momento, pretendemos discutir o tema aliando-o às reflexões sobre
a Lei nº 12. 318 de 2010 e à intervenção da/o assistente social em consonância
com o projeto ético-político da profissão.

Palavras chave: Alienação parental. Serviço Social. Projeto Ético-político.

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1. Introdução

O artigo que ora se apresenta tem por objetivo discutir a temática da alienação parental e a
intervenção da/o assistente social. Trata-se de uma síntese a partir do conteúdo abordado na
dissertação de mestrado cujo tema foi a alienação parental no contexto da judicialização das
relações intrafamiliares. Nesse momento, procurou-se recuperar as discussões em torno da lei
nº 12.318 de 2010, buscando pensar a intervenção da/o assistente social nesse contexto sem
perder de vista os preceitos que balizam a profissão a partir de seu projeto ético-político.
234
O interesse pelo tema se deu em decorrência da inserção profissional no Tribunal de Justiça do
Espírito Santo (TJES)-Central de Apoio Multidisciplinar da Comarca de Cariacica2 que engloba
profissionais de Serviço Social e Psicologia a quem cumpre subsidiar os juízes das Varas de
Família, mediante elaboração de estudos, laudos e pareceres específicos a cada área do saber.

Apesar de sua evidência atual, a síndrome da alienação parental foi descrita a primeira vez
pelo psiquiatra norte americano Richard Gardner na década de 80, sendo caracterizada como
“um distúrbio infantil que surgiria, especialmente, em crianças cujos pais se encontravam
em litígio conjugal” sendo “induzida pelo genitor nomeado de alienador, que na maioria dos
casos se refere à figura do guardião, [...]” (SOUSA, 2010, p. 14).

No entanto, Sousa (2010) nos chama atenção para o fato de que Gardner “não empreendeu
pesquisa científica sobre o assunto” e desconsiderou “a existência de pesquisas sobre sepa-
ração conjugal e guarda de filhos” (p. 16), amparando-se exclusivamente em seus próprios

1 Assistente Social do Tribunal de Justiça do Espírito Santo. Especialista em Gestão de Políticas Públicas
em Gênero e Raça e mestre em Política Social, ambos pela UFES. E-mail: thaistononi@hotmail.com. Tel: 99837-1333.

2 As Centrais de Apoio Multidisciplinar têm suas atribuições regulamentadas por meio da Resolução nº 066
de 2011 do PJES e trata de seu funcionamento e estruturação, bem como define as atribuições da equipe técnica.
A CAM Cariacica é responsável por atender a seis comarcas nas matérias de família, infância e juventude (exceto a
Comarca sede que é Cariacica que possui Vara de Infância e Juventude) e violência doméstica.
estudos. Para esta autora é de suma importância situar os diversos fatores que podem
contribuir para os comportamentos entre genitores e filhos após a separação do casal, de
modo que sugere ir além de questões individuais e patológicas (SOUSA, 2010). Isto posto,
questiona a autora a rápida difusão e até mesmo naturalização do tema SAP (síndrome
da alienação parental) o que considera que “absolutiza a existência de uma síndrome nas
situações de separação conjugal litigiosa” (SOUSA, 2010, p. 17).

Compreendemos que a problemática deve ser abordada numa perspectiva sócio-histórica


dos papéis parentais, concebendo os atores envolvidos enquanto sujeitos em constante
transformação. Ou seja, enquanto atores que são afetados pelas mudanças exteriores
à família as quais provocam alterações significativas nos padrões de comportamento
de homens e mulheres, revolucionando os costumes, a sexualidade e o casamento, por
exemplo. A leitura voltada para a perspectiva histórica nos permite inferir que “se as
mulheres aparecem, com frequência, muito apegadas aos filhos após separação [...],
isso pode ser visto como resultado de uma construção sócio-histórica sobre os papéis
parentais” (SOUSA, 2010, p. 19).

O caminho trilhado ao longo da elaboração daquele trabalho nos permitiu afirmar e


reiterar a importância de o profissional retornar aos aspectos teórico-metodológicos,
ético-políticos e técnico-operativos que balizam a profissão, buscando (re)estabelecer a

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ligação com o conteúdo profissional crítico que nos orienta.

2. Desenvolvimento
2.1 Alguns apontamentos sobre a Alienação Parental

Inicialmente é preciso ter em conta uma importante diferenciação entre alienação parental
e síndrome da alienação parental (SAP). A alienação parental se constituiria em linhas
gerais, num recurso de que dispõe um dos genitores objetivando mudar a percepção da
235
criança em relação ao outro genitor. Quanto a SAP, seria uma espécie de resultante do
processo de alienação parental, que traz consigo consequências emocionais e se constitui
num distúrbio, necessitando ainda da participação ativa da criança, segundo Gardner.

Gardner (2002) ao descrever a Síndrome da Alienação Parental (SAP) a sintetizou da


seguinte forma:

A Síndrome de Alienação Parental (SAP) é um distúrbio da infância que aparece quase exclu-
sivamente no contexto de disputas de custódia de crianças. Sua manifestação preliminar é a
campanha denegritória contra um dos genitores, uma campanha feita pela própria criança e
que não tenha nenhuma justificação. Resulta da combinação das instruções de um genitor (o
que faz a “lavagem cerebral, programação, doutrinação”) e contribuições da própria criança
para caluniar o genitor-alvo. Quando o abuso e/ou a negligência parentais verdadeiros estão
presentes, a animosidade da criança pode ser justificada, e assim a explicação de Síndrome
de Alienação Parental para a hostilidade da criança não é aplicável (GARDNER, 2002).

Assim sendo, não bastaria haver uma programação ou lavagem cerebral da criança para
que se configure a SAP, é indispensável, no entender de Gardner, que a criança contribua
com a difamação, aderindo à programação e “deletando” suas lembranças positivas em
relação ao outro genitor.
Valente (2014a) também recupera o sentido da síndrome da alienação parental na perspecti-
va de Gardner, mas busca desconstruir tal concepção, pois considera que a alienação paren-
tal deve ser compreendida a partir de uma abordagem mais ampla que leve em conta aspec-
tos sociais, buscando compreender em que medida as transformações “refletem processos
sociais mais amplos, atravessados por mudanças nas mentalidades” (VALENTE, 2008a, p.
70). A estudiosa procura refletir o tema a partir de referenciais do pensamento contemporâ-
neo, rejeitando o viés de cunho ajustador proposto por Gardner. Dessa forma, procura pensar
“os sujeitos que vivenciam processos de alienação parental” não “como meros opositores,
como se configura no processo judicial” (VALENTE, 2014a, p. 56).

A alienação parental tal qual se apresenta nos litígios de família “consiste em restringir ou
eliminar o papel do chamado ‘visitante’ na vida da criança” e conforme Valente (2008a, p.
73) comparece em ações de divórcio, guarda e regulamentação de visitas. A autora ressalta
ainda que “o pagamento dos alimentos costuma, com enorme frequência, ser motivo de
contenda”, não sendo raro “o guardião admitir que impede a visitação pois aquele que a
requer não cumpre o dever de alimentar o filho ou a pensão estipulada não atende suas reais
necessidades” (VALENTE, 2008a, p.74). Contudo, adverte a autora, embora tal problemática
compareça com certa frequência no Judiciário, não há no Brasil registros oficiais acerca da
ocorrência da alienação parental. Além disso, é algo que pode ocorrer em qualquer classe
social, obviamente que ganhando contornos específicos mediante as situações concretas.

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A leitura empreendida por Gardner remete a uma conceituação médica que se assemelha
a uma patologia psiquiátrica e afasta outros elementos possíveis de análise, sobretudo as
complexas transformações sociais no âmbito da própria família e nesse contexto a questão
do gênero, já que ocorre uma tendência a se reproduzir as normas dominantes quando das
disputas judiciais, ou seja, “as disputas de guarda e os conflitos sobre visitação se inscreve-
riam como uma manifestação da disputa entre os gêneros” (ANTUNES, 2010, p. 73).

Trata-se de uma perspectiva vinculada à psiquiatria classificatória, que apresenta um viés


236
puramente ajustador e que no contexto da alienação parental trata os sujeitos como meros
opositores tal qual o processo judicial, além de estabelecer uma relação de causa e efeito
que diminui a capacidade de os indivíduos reagirem frente às adversidades da vida.

Todavia, para que se compreenda a alienação parental se faz necessário abandonar a pers-
pectiva dualista que coloca alienador (aquele que afasta) versus alienado (aquele que é afas-
tado). É preciso pensar sobre os “pais e mães cujos filhos sofrem processos de alienação
parental como sujeitos perpassados pela avalanche de transformações ocorridas na família
nas últimas décadas” (VALENTE, 2014a, p. 56).

Os sujeitos envolvidos em processos de alienação parental são homens e mulheres atraves-


sados pelas questões de seu tempo, aturdidos entre os deveres parentais e as exigências de
eficiência e sucesso que demandam os tempos atuais. Desse modo, deve-se evitar rotulá-los
de alienadores, ou mesmo vitimizá-los (VALENTE, 2014a, p. 63).

Sousa (2010) destaca que a visão de Gardner é determinista e limitada no que tange ao com-
portamento dos atores sociais envolvidos, sendo ignorados os processos de singularidade
dos sujeitos e sua capacidade de lidar com os conflitos.
2.2 Alienação Parental e Síndrome da Alienação Parental (SAP): o Judiciário
como palco das disputas entre os gêneros

Observa-se que as disputas pela guarda e visitação dos filhos não é algo relacionado
apenas ao âmbito individual e psicológico. Tais elementos se fazem presentes em muitos
casos, mas os conflitos do ex-casal são, antes de tudo, processos sociais inter-relaciona-
dos às transformações estruturais que vem impactando as relações familiares, sobretudo
nas últimas décadas.

Grande parte das queixas apresentadas pelos envolvidos encontra-se vinculada “à heranças
culturais que se expressam nas críticas ao comportamento do outro”, pois cada ex-cônjuge
traz consigo expectativas sobre o outro tendo por base sua própria herança cultural apoiada
em diferentes visões de mundo (ANTUNES, 2010, p. 75).

Trata-se, portanto, de questionar os ideais de família centrados na figura da mãe, ‘senhora’


das relações parentais filiais e de outro lado a ideia de família nuclear ainda muito alimenta-
da em nossa sociedade, pois ambas as perspectivas representam uma visão naturalizada de
família, fortemente marcada pelo positivismo.

Na contemporaneidade apenas uma minoria das famílias poderia ser considerada a família
padrão da década de 50 do século XX, compostas por casais intactos e filhos nascidos do

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casamento, sendo a mãe dona de casa e o pai o único provedor. Tal situação já não se verifi-
ca nos dias atuais, somando-se o fato, por exemplo, de que ter um filho significa, entre outras
coisas, um encargo econômico que nem todas as pessoas estão dispostas ou possuem
condições de assumir, de modo que tal decisão tem sido mais guiada por necessidades
psicológicas e emocionais (VALENTE, 2014a).

Trata-se, conforme pondera Valente (2014a) de se “refletir as normas de filiação, na sociedade


contemporânea”, buscando-se “alargar a compreensão dos dilemas e tensões que perpassam a
família contemporânea” envolta pela “avalanche de transformações” que “encontra resistência
237
no modelo tradicional, provocando as tensões que, em casos extremos, levam as famílias aos
tribunais, exigindo constantes redefinições, inclusive no marco legal” (VALENTE, 2014a, p. 62).

Araújo e Scalon (2005, p. 20-21) apresentam importantes reflexões acerca das relações
familiares dando ênfase nas expectativas das mulheres:

Num cenário de crescente individuação e, ao mesmo tempo, de riscos e incertezas da moderni-


dade, as relações familiares, sobretudo de casais, tendem a concentrar elevadas expectativas
de afeto e autenticidade. Contudo, para a mulher, esse processo continua tendo mão dupla: por
um lado lhe permite maior autonomia em suas escolhas, possibilidades de rompimento de vín-
culos quando estes não lhe são satisfatórios e maior liberdade no exercício de sua afetividade
e de sua sexualidade; por outro, tais expectativas tendem a estabelecer novos tipos de sobre-
cargas emocionais, geradas pelo desafio de ser competitiva e eficiente no mercado de trabalho,
cumprir suas responsabilidades gerenciais – suas ‘obrigações’ organizacionais na família – e,
ao mesmo tempo, responder de forma satisfatória às cobranças emocionais, cobranças estas
que também são socialmente estimuladas.

Antunes (2010) resgata a família em meio ao processo de separação conflituosa do casal,


num contexto de disputa de poder entre os ex-cônjuges que acaba por envolver os filhos
como “peso de balança”. O envolvimento dos filhos torna ainda mais delicada a intervenção
dos profissionais do Poder Judiciário, “demandando procedimentos mais demorados e que
são mais propensos a emergências de conflitos no decorrer do trâmite processual” (ANTU-
NES, 2010, p.71). Para a autora a probabilidade da ocorrência de processos de alienação
parental é maior em crianças cujos pais vivenciam processos de divórcio altamente destruti-
vos ou com filhos gerados de relações curtas e instáveis.

A lide conjugal pode ser marcada ainda por pedidos de diminuição, quando não da suspen-
são de pernoite e até mesmo inversão de guarda que são justificados por um dos cônjuges
como sendo fruto do desejo da criança que apresenta aversão ao outro genitor. Não obs-
tante o discurso da criança apresentar-se como uma reprodução da lide conjugal, muitas
vezes marcado por uma forte criticidade e agressividade em relação a um dos genitores, a
situação tende a se agravar ainda mais quando, acompanhadas às denúncias de alienação
parental, incluem-se acusações de maus tratos e/ou falsos abusos sexuais cometidos
contra a criança. Sendo tal atitude considerada repulsiva pela sociedade de um modo
geral, os profissionais que lidam com a situação podem ser convencidos pelo discurso do
informante de maneira a direcionarem seus estudos e pareceres confirmando a ocorrência
do ato e assim, concorrer para um agravamento do drama familiar e reforçando até mesmo
a alienação parental (ANTUNES, 2010).

2.3 Algumas considerações sobre a “Lei da Alienação Parental”

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Com a Constituição de 1988 e posteriormente com o Estatuto da Criança e do Adolescente
de 1990 (ECA), as crianças passaram da condição de objeto de proteção a sujeitos de direi-
tos, passando a ser “prioridade absoluta cujo dever de proteção cabe à família, à sociedade e
ao Estado”. Trata-se do chamado paradigma da proteção integral.

Assim, no que concerne à condição de sujeitos de direitos, tendo em vista ainda o direito à
convivência familiar e comunitária de forma ampla, a defesa dos direitos de crianças e ado-
lescentes surge como um dos argumentos mais fortes em defesa da Lei nº 12.318 de 2010.
238
Para Souza (2014)

na seara jurídica, a alienação parental é considerada uma forma de violência praticada pelo guar-
dião [...], parente ou não, de uma pessoa menor de 18 anos. Essa violência consiste no ato ou
omissão de impedir, de maneira injustificada, a convivência da criança ou do adolescente com o
genitor que não detém a guarda (SOUZA, 2014, p. 108).

E no que diz respeito ao enfrentamento da questão destaca a autora o papel punitivo do


Estado afirmando que:

Sem dúvida, a Alienação Parental praticada por um dos ex-cônjuges contra o outro, tendo o filho
como arma e modus operandi, merece a reprimenda estatal, visto que é uma forma de abuso no
exercício do poder parental (p. 110-111).

Conclui a estudiosa que a Lei que dispõe sobre a alienação parental chegou em boa hora,
trazendo um conceito legal e possibilidades de sanção ao genitor considerado “alienador”.
De um modo geral, a visão expressa por Souza (2014) é compartilhada no âmbito do Direito
sendo a criação da referida lei avaliada de forma positiva por permitir o enquadramento do
comportamento do “alienador” tornando possível sua punição. Trata-se de uma visão igual-
mente partilhada por pais e mães que se encontram afastados de seus filhos e que atribuem
tal afastamento à prática da alienação parental.
Contudo, compreendemos que outro olhar sobre a concepção e as possibilidades desta lei se
faz necessário. As autoras Sousa e Brito (2011) refletem sobre o fato de que a proposta de
Gardner ganhou rápida difusão no Brasil e em outros países. No caso brasileiro, consideram
que há poucas produções sobre o tema e sobre o conceito de SAP bem como atestam haver
uma “ausência de questionamentos sobre a ideia de um distúrbio infantil ligado às situações
de disputa entre pais separados”, o que “vêm contribuindo para a naturalização do assunto
de forma acrítica” levando a crer que “muitos casos de litígio conjugal têm como consequên-
cia o surgimento da denominada síndrome” (SOUSA; BRITO, 2011, p. 269).

Assim, em que pese a importância da referida lei, chamamos atenção para o seu processo de
construção o qual, segundo Sousa e Brito (2011), contou com forte empenho de associações
de pais separados que atuaram na promoção das ideias do psiquiatra norte americano Gard-
ner. Ademais, ponderam as autoras, que inicialmente tais associações se dedicaram

a promover a igualdade de direitos e deveres de pais separados, gerando, com isso, uma série
de debates acerca da importância da modalidade de guarda compartilhada como forma de
preservar a convivência familiar após o rompimento conjugal (SOUSA; BRITO, 2011, p. 270).

No entanto, a bandeira em torno da defesa da guarda compartilhada, apesar das contrarieda-


des do modelo, cedeu lugar à divulgação da SAP, havendo, portanto, uma “mudança de foco
do tema igualdade parental para a temática da SAP” em 2006, quando da tramitação célere

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do projeto de lei sobre a guarda compartilhada (SOUSA; BRITO, 2011). E a partir da aprovação
da Lei nº 11.698 de 2008 (Guarda Compartilhada)

houve acréscimo do número de eventos e publicações bem como de informações veiculadas


pelos diferentes meios de comunicação sobre a SAP. A mobilização da opinião pública e a
comoção gerada em torno do sofrimento de crianças que supostamente seriam vítimas da SAP
culminou, naquele mesmo ano, na elaboração do Projeto de Lei nº. 4853/08, que teria como
objetivo identificar e punir os genitores responsáveis pela alienação parental dos filhos. Tal
projeto, com célere trâmite legislativo, foi sancionado pelo Presidente da República, em agosto
de 2010, como Lei nº 12.318/10 (SOUSA; BRITO, 2011, p. 270). 239

Importante salientar, tal qual o fazem Sousa e Brito (2011), que a defesa de Gardner consistia
em incorporar a SAP ao rol de transtornos mentais infantis que compõem o Manual Diagnós-
tico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-V, pela Associação Americana de Psiquiatria.
Assim sendo, ao ser incorporada, contribuiria também para o incremento de pesquisas que
visam a disponibilizar novos medicamentos no mercado, justificando a medicalização de
várias crianças, a exemplo do distúrbio do déficit de atenção com hiperatividade.

Por outro lado, observa-se que ao contrário do Brasil, cujas pesquisas sobre separação
conjugal parecem ser desconsideradas quando o assunto é SAP, em outros países têm sido
solicitados estudos sobre as consequências da separação conjugal para pais e filhos, objeti-
vando com isso obter-se maior clareza do que é necessário se modificar nas leis que tratam
da convivência familiar entre pais e filhos no contexto pós-divórcio (SOUSA; BRITO, 2011).

Este fato, no entender das autoras, significa que tem havido no âmbito internacional uma pre-
ocupação em relação à necessidade de que o ordenamento jurídico seja “um fator de suporte
ao exercício da paternidade e da maternidade” (SOUSA; BRITO, 2011, p. 273).

Todavia, no caso brasileiro, a exposição de motivos que acompanhou o projeto de lei


procurou enfatizar a definição legal em torno da alienação parental, embasando-se em um
livro editado por uma associação de pais separados e textos difundidos no site da referida
associação e de outras, não havendo no corpo do texto referências a dados “que embasem
o registro sobre a proporção similar entre homens e mulheres alienadores” ou à literatura
internacional sobre o tema bem como os questionamentos e polêmicas explicitados. Tal
condução inviabilizou reflexões e debates em torno do assunto e contribuiu para atestá-
-lo como uma verdade incontestável, reduzindo “a problemática que envolve as relações
parentais no divórcio a disposições pessoais, especialmente no que se refere ao genitor”
(SOUSA; BRITO, 2011, p. 274).

Nesse contexto, Sousa e Brito (2011) ponderam que a lei gerou uma perspectiva de vitimiza-
ção na qual todos seriam vítimas: o genitor dito alienador que seria doente; a criança, pois
seria a portadora da síndrome, já que na definição de Gardner ela necessita participar do ato;
e o genitor alienado, que seria vítima do afastamento de seu filho/a.

Retomando a Lei da Guarda Compartilhada é interessante notar que esta, ao contrário da


Lei da Alienação Parental, teve sua tramitação aliada a um processo de debates, eventos,
matérias veiculadas sobre temas como o exercício da maternidade e paternidade, entre
outros, o que contribuiu para um processo de amadurecimento acerca de questões como
divórcio e separações, entre conjugalidade e parentalidade. Entretanto, com a mudança de
foco para a alienação parental houve no cenário nacional um sentimento de “clamor por

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punição dos denominados genitores alienadores”, fato que contribuiu para o entendimento
de uma atuação profissional voltada à identificação e avaliação com vistas à apuração da
existência da SAP tal qual sinalizam Sousa e Brito (2011).

A defesa em torno dos vínculos parentais de forma ampla soa contraditório na medida em
que a própria lei prevê o afastamento do genitor considerado alienador da vida de seu filho, o
que pode ser fonte de grande sofrimento para a criança já que ela mantém com este cônjuge
um forte vínculo. E no que concerne à punição aos genitores é preciso observar que as medi-
das aplicadas serão tomadas a partir do diagnóstico da alienação parental através da perícia
240
“biopsicossocial”, portanto, considerando também o parecer da/o assistente social.

2.4 O Serviço Social e a Alienação Parental

Importante salientar que os aspectos clínicos e jurídicos da SAP são relevantes e não podem
ser negados, contudo, concordamos com Valente (2014a) que estes têm sido abordados
pelos profissionais de saúde mental e juristas, cabendo aos assistentes sociais pensar a SAP
numa perspectiva interligada às relações familiares como relações socialmente construídas.

Ao abordar as transformações sociais que acarretaram a família, Valente (2008a, p. 71)


ressalta que “se por um lado, a família mudou muito [...], por outro lado sobrevive – seja
em nosso imaginário, seja na realidade mesma o ideal da família nuclear ‘estruturada’” e
nesse sentido é importante que os profissionais que atuam no Judiciário tenham em mente
que “as famílias que litigam na justiça não se enquadram no modelo idealizado de família
nuclear”, pois seus integrantes muitas vezes já vivenciaram outra vida conjugal. Assim, os
profissionais que atuam com a demanda da família devem se esquivar de uma “postura
normativa, que levaria a qualificar estas famílias como desviantes, promíscuas, ‘desestru-
turadas’ ou ‘disfuncionais’” (VALENTE, 2008a, p. 71).
A estudiosa ressalta ainda que em seu parecer técnico a/o assistente social deve buscar
registrar os embates de gênero travados entre os pais e familiares das crianças, desve-
lando os preconceitos relativos ao cuidado, os quais geram conflitos, bem como deve
ressaltar a ausência de políticas públicas para atender as famílias em momentos de
transição ou crise (VALENTE, 2014b).

No caso da alienação parental é importante destacar que a ausência de estudos voltados


para o tema no âmbito do Serviço Social parece contribuir para que os profissionais se ques-
tionem sobre qual a sua “especificidade” na abordagem da problemática. Com isso, muitas
vezes deixam de buscar nos elementos historicamente atrelados à profissão tais como a
questão social e suas múltiplas expressões e as políticas sociais, os fundamentos necessá-
rios para sua intervenção. Esta ausência de discussão e de acúmulo teórico sobre o tema em
específico parece contribuir para que os profissionais não se sintam seguros (ou ao menos
se questionem) sobre o que de fato podem fazer.

Ao analisarmos a lei infere-se que a/o assistente social pode se ver confrontado em rela-
ção ao seu papel. Tomemos como ponto de partida as reflexões de Sousa e Brito (2011)
que se referem à atuação dos psicólogos no contexto da referida lei. As ponderações apre-
sentadas pelas estudiosas podem facilmente ser transplantadas para a realidade também
da/o assistente social, pois no que tange ao Serviço Social apesar de a referida lei prever

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em seu texto a atuação deste profissional na realização de perícia “biopsicossocial” a qual
se destina a averiguar a ocorrência da SAP, a discussão em torno do assunto parece não
ter se espraiado sobre a categoria, não tendo sido alvo de análise dos profissionais por
meio de seus órgãos de classe.

Não fica claro o papel da/o assistente social, uma vez que a lei aborda a realização de perícia
psicológica e/ou biopsicossocial, contudo, por seu contexto e finalidade, infere-se que os
profissionais, por meio da perícia social – a qual compreendemos que necessariamente ocor-
reria paralelamente às perícias psicológica e médica (levando-se ao pé da letra o texto da lei
241
que denomina perícia biopsicossocial) – deveriam detectar tais comportamentos elencados
como pertinentes ao perfil do “genitor alienador”.

Ademais, a lei se ocupa de estabelecer até mesmo a forma de elaboração do laudo, pois
prevê que este deve se basear “em exame de documentos dos autos, histórico do relacio-
namento do casal e da separação, cronologia de incidentes, avaliação da personalidade
dos envolvidos e exame da forma como a criança ou adolescente se manifesta acerca de
eventual acusação contra genitor” além de prever aspectos tais como a aptidão profissional
ou acadêmica para se atestar a alienação parental e o estabelecimento de prazo máximo de
90 dias para tal diagnóstico (SOUSA; BRITO, 2011, p. 276).

A nosso ver, a/o assistente social deve trazer à tona os processos sociais relacionados à história
de vida dos envolvidos, ao convívio, à construção dos laços familiares e comunitários, à possibi-
lidade de acesso dos indivíduos e famílias às políticas públicas, a fim de que possibilitem uma
percepção mais ampliada da questão pela autoridade judiciária para a tomada de decisão que
melhor atenda aos interesses do envolvidos, sobretudo de crianças e adolescentes.

Assim, compreendemos que a/o assistente social possui um importante papel, pois a partir
da sua competência profissional as expressões da questão social que atravessam as vidas
dos sujeitos envolvidos são trazidas para os “autos do processo”. O profissional tem o com-
promisso ético de buscar desvelar os processos sociais que perpassam a vida das pessoas
que se encontram envolvidas na lide, trazendo à tona seus aspectos mais amplos e refletindo
como estes rebatem também nas singularidades dos sujeitos.

3. Considerações Finais

Compreendemos que muitos são os desafios que perpassam a atuação da/o assistente
social na área sociojurídica e lidar com processos que tratam da alienação parental não
é diferente. As situações que envolvem acusações de alienação parental apresentam-se
como desafio aos profissionais do Serviço Social, tendo em vista que a realidade é algo
extremamente mutável e que tais mudanças vêm impactando de modo a flexibilizar as re-
lações familiares. Soma-se a isso a incipiente produção teórica sobre o tema por parte do
Serviço Social brasileiro. Não obstante, a ausência de debate e produção parece contribuir
para que os profissionais se questionem acerca da “especificidade” de sua atuação nos
casos denominados de alienação parental.

Nesse contexto, ainda que para as/os assistentes sociais a questão social seja historica-
mente um elemento indispensável de análise suas refrações nem sempre comparecem de
forma explícita nas ações que tramitam no Poder Judiciário. Apresentam-se num primeiro

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momento travestidas em litígios entre as “partes”, em conflitos familiares ou em manifes-
tações de transgressão a leis, necessitando, portanto, de enquadramento. Por isso mesmo
a intervenção profissional se torna importante, no sentido de desvelar tais expressões, de
modo que nosso questionamento se refere à possibilidade de uma intervenção profissional
que vá para além do enquadramento dos sujeitos, buscando superar a punição em detri-
mento de abordagens que propiciem a reflexão e a ressignificação.

É preciso ter em conta que da intervenção profissional decorrem questões importantes


relacionadas à construção de um projeto ético-político crítico, que entre outras coisas, nega 242
o arbítrio e toda forma de opressão, buscando antes a plena expansão dos indivíduos so-
ciais; a defesa dos direitos humanos; a ampliação da democracia, entre outros princípios. A
perspectiva em que a/o profissional procura atuar é fundamental para a construção de seus
argumentos, devendo estar atento à posicionamentos preconceituosos e discriminatórios e
discursos que acabam por negar ou inviabilizar o acesso a direitos.

Assim, entendemos que é preciso que diante desse compromisso as/os profissionais explo-
rem ainda mais tal perspectiva crítica de análise em seus estudos. Devem considerar em seus
estudos e pareceres a dimensão da historicidade ontológica do ser social e reconhecer que o
lugar que ocupam e as afirmações que fazem em seus documentos constituem um “saber-poder”
que trará repercussões na vida dos indivíduos. Devem cotidianamente disputar os significados
de justiça e cidadania buscando o aprofundamento e a problematização “do existir humano pelas
determinações do modo de produção capitalista, que subverte os valores emancipatórios e deter-
mina a miséria do gênero humano em um mundo de abundância material” (BRASIL, 2014, p.22).
Referências

ANTUNES, A. L. M. de P. “Sentença vem de sentimento”: sobre a subjetividade dos atores ju-


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ARAÚJO, C.; SCALON, C. Percepções e atitudes de mulheres e homens sobre a conciliação


entre família e trabalho pago no Brasil. In: ______, Gênero, família e trabalho no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2005.

BRASIL. Atuação de assistentes sociais no Sociojurídico: subsídios para reflexão. Brasí-


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GARDNER, R. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação Pa-


rental (SAP)? New York: Universidade de Columbia. 2002. Tradução. Disponível em: <http://
www.alienacaoparental.com.br>. Acesso em 20 de março de 2015.

SOUSA, A. M. de. Síndrome da alienação parental: um novo tema nos juízos de família. São
Paulo: Cortez, 2010.

SOUSA, A. M. de; BRITO, L. M. T. de. Síndrome de Alienação Parental: da Teoria Norte-Ameri-


cana à Nova Lei Brasileira. Psicologia: Ciência e profissão, 2011.

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SOUZA, J. R. Alienação parental sob a perspectiva do direito à convivência familiar. São
Paulo: Mundo Jurídico, 2014.

VALENTE, M. L. C. S. Síndrome da alienação parental: a perspectiva do Serviço Social.


Associação de Pais e Mães separados (org.). Síndrome da alienação parental e a tirania do
guardião: aspectos psicológicos, sociais e jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2008a.

______. Alienação parental: sintoma da modernidade? In: SILVA, A. M. R. da; BORBA, D. V.


(orgs.). A morte inventada: alienação parental em ensaios e vozes. São Paulo: Saraiva. 2014a. 243

______. O processo de trabalho do assistente social no Judiciário: o trabalho com famílias.


Capacitação em caráter de supervisão para a equipe do TJ/ES. Vitória. 2014b. 46 slides: color.
GUARDA COMPARTILHADA:
ASPECTOS PSICOLÓGICOS E SOCIAIS
E A GARANTIA DO DIREITO À
CONVIVÊNCIA FAMILIAR

Thais Felipe Silva dos Santos1, Ana Paula Hachich de Souza2 e Edna Fernandes
da Rocha3

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

A partir do eixo temático Família, o presente artigo problematiza a efetivação da


modalidade de Guarda Compartilhada como regra, com equilíbrio de tempo de
convivência entre os genitores nos processos de separação/divórcio. O trabalho
foi desenvolvido levando em conta as contribuições que os profissionais da Psi-
cologia e do Serviço Social que atuam nas demandas das Varas de Família do Po-
der Judiciário podem dar ao debate sobre o desafio dessa modalidade de guarda.
O texto conceitua brevemente guarda unilateral e concentra esforços na Guarda
Compartilhada ao discorrer sobre a determinação legal e a realidade vivenciada.

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Ao aliar teoria e prática notamos que a letra da lei não alcança a efetividade que a
modalidade de guarda compartilhada almeja como avanço civilizatório para a pa-
rentalidade na perspectiva da garantia de direitos da participação dos genitores
na criação dos filhos e também na desejada equidade entre homens e mulheres.
Pontuamos os aspectos controvertidos da legislação que emergem nos estudos
técnicos em processos de guarda, nas quais constatamos que nem sempre a
guarda compartilhada é exequível na forma preconizada, pois os resquícios da
conjugalidade sobressaem ao bem-estar da prole.

Dentre outros aspectos, sob o ponto de vista técnico, abordamos a ausência de 244
diálogo entre os pais e a interpretação do compartilhamento de responsabili-
dades como alternância de residência, provocando o rodízio dos filhos entre as
moradias dos genitores de forma inflexível.

Nesse cenário, compreendemos que a Psicologia e o Serviço Social são áreas


do conhecimento importantes para ressignificar a demanda ao priorizar a ga-
rantia dos direitos infanto-juvenis de forma integral, ainda que não seja com a
sugestão da guarda compartilhada a qualquer preço.

Palavras-Chaves: Guarda Compartilhada, Cuidado, Alternância de Residência,


Perícia Psicológica, Perícia Social.

1 Assistente Social Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e Especialista em Saúde
Coletiva e Saúde da Família pela Universidade Cruzeiro do Sul.thaislipe@gmail.com – tel. (11) 963954226.

2 Psicóloga Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, especialista em Psicologia Clínica e
Psicologia Jurídica. anahachich@gmail.com – tel. (13) 99116-2445.

3 Assistente Social Judiciário do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Doutora e Mestre em Serviço
Social pela PUCSP; Especialista em Serviço Social Hospitalar pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo.social.ednarocha@gmail.com – tel. (11) 98780-1093.
1. Introdução

Há quase duas décadas a temática da Guarda Compartilhada vem sendo discutida no Brasil.
Inicialmente debatida na Europa, com a promulgação de leis na Inglaterra e França, por exem-
plo, o assunto passou a ser legislado em nosso país com a aprovação da Lei n.º 11.698/2008.

No entanto, mantidas as dificuldades inicialmente observadas no que se refere à compreen-


são e à aplicação de tal modalidade de Guarda, nova lei foi promulgada em 2014, a qual ficou
conhecida como a “Nova Lei da Guarda Compartilhada”.

Não obstante, a prática profissional demonstra que ainda há muito desconhecimento, tanto
por parte da sociedade quanto por parte dos profissionais das áreas da Psicologia e do Servi-
ço Social, quanto ao compartilhamento da guarda no cotidiano.

Não é incomum que os filhos integrem a lista de propriedades a serem divididas ao término
da convivência conjugal, sendo, assim, o tempo e a rotina das crianças e adolescentes repar-
tido de forma simétrica, culminando na alternância de residências.

Muitas vezes, tal divisão implica na ausência de uma rotina estável, visto que, quando em
contato com um genitor, os hábitos mantidos na outra casa se tornam alvo de críticas, e vice-
versa, proporcionando um ambiente de insegurança para a criança e/ou adolescente.

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Constituirá objetivo geral deste artigo realizar aproximações sucessivas à Guarda Com-
partilhada, e de forma específica problematizar sua efetividade nas demandas em litígio
e identificar alguns entraves que podem interferir no exercício saudável da parentalidade.
Consideramos, diante de tais constatações, ser de fundamental importância a reflexão e o
debate sobre as questões relacionadas à guarda compartilhada, passando pelo histórico da
sua construção jurídica, pelas importantes mudanças nas configurações familiares ocorridas
nas últimas décadas e, por fim, pelas atuações das psicólogas e assistentes sociais que
trabalham no contexto judicial e que devem se pautar, de forma intransigente, na proteção e 245
garantia dos direitos das crianças e adolescentes.

O artigo foi construído a partir doexame das fontes documentais que abordam a Guarda
Compartilhada, notadamente fontes legislativas, as quais foram apreciadas com base na
metodologia de análise de conteúdo, com foco em categorias relacionadas à problematiza-
ção do tema. As contumazes leituras e a atuação técnica nos processos judiciais que tem
por natureza a guarda suscitaram indagações que serviram de alicerce paraelaboração do
presente artigo, pois conforme Baptista, “é com a incidência do saber produzido sobre a sua
prática [que] o saber crítico aponta para o fazer crítico”. (BAPTISTA, 1995, p.89)

2. Breve Histórico sobre a Guarda Compartilhada no Bra-


sil: CF de 1988 e Código Civil de 2002

Durante anos, a responsabilidade legal pela família foi imputada ao homem, não obstante
os cuidados e tarefas cotidianas desde sempre tenham sido delegadas às mulheres. No
entanto, com a promulgação da Constituição de 1988, homens e mulheres passaram a ter os
mesmos direitos, sendo eliminada da lei a expressão “pátrio poder”; passa, então, a vigorar o
poder familiar, exercido igualitariamente por ambos os genitores.
Assim, com a dissolução do casamento ou da união estável (que passa a ser reconhe-
cida legalmente), exerceria a guarda aquele que reunisse melhores condições. Contudo,
majoritariamente foram as mulheres que, por muito tempo e de forma quase naturalizada,
exerceram a guarda unilateral.

Com o Novo Código Civil – Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002, as mulheres também
passam a decidir sobre a sociedade conjugal em colaboração com o homem, e não mais sob
a égide masculina. Este Código, inclusive, reafirma o exercício do poder familiar por ambos
os genitores, mesmo que estes venham a se separar.

Até aqui, vigorava a modalidade de guarda unilateral e, conforme o art. 1583 do Código Civil,
a guarda seria exercida conforme o que fosse acordado entre os genitores.

De acordo com Rocha (2012), no Brasil, no ano de 2003, começam a surgir algumas discussões
sobre a Guarda Compartilhada, tendo por base as experiências de países como Estados Unidos
e Canadá, cujos tribunais já estabeleciam esta modalidade. Vale destacar que datam de 1972,
na Inglaterra, as primeiras notícias sobre a “guarda conjunta”, seguida da França, em 1976.

A partir desses debates iniciais, com a efervescência de movimentos sociais e algumas asso-
ciações de pais e mães separados no Brasil, foi apresentado um projeto de lei que contemplava
a temática, aprovado em 2008como Lei n.º 11.698 de 11 de junho, sendo estabelecida a Guarda

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Compartilhada por meio da alteração dos artigos 1583 e 1584 do Código Civil de 2002.

Com a modificação, a guarda passa a ser unilateral ou compartilhada. Não obstante a


aprovação da lei, não havia consenso sobre a sua aplicabilidade, posto que ainda prevale-
cia o estabelecimento da guarda unilateral.

Por este motivo, foi proposto outro projeto de lei e, em 2014, foi aprovada a “Nova Lei da
Guarda Compartilhada”(Lei n.º 13.058 de 22/12/2014), em que a regra é a guarda compar-
tilhada, ou seja, a ser exercida por pai e mãe, caso ambos tenham condições e interesse,
246
mesmo que não haja relacionamento cordial e consenso entre eles. Esta “nova” lei também
estabelece que o convívio dos filhos com ambos os genitores seja equilibrado.

Em nossa experiência como assistentes sociais e psicólogos atuandoem Varas de Famí-


lia, observamos que, embora as legislações sobre Guarda Compartilhada, via de regra,
busquem conceituá-la e parametrizar o seu estabelecimento, na prática, parece não haver
consenso sobre o seu significado, surgindo outras alternativas para o exercício da guarda,
para além das estabelecidas pela legislação.

Ainda que, no caso desta “nova” lei, ela surja com o objetivo de efetivar e garantir que a
guarda compartilhada seja a regra e não a exceção, entendemos que aspectos culturais,
geográficos e ligados à compreensão do que seja a guarda compartilhada dão a dimen-
são do quanto o debate sobre guarda ainda requer aprofundamentoe que não apenas a
legislação estabeleça os critérios e conceitue as modalidades de guarda – remetendo a
uma discussão sobretudo jurídica, outros campos do saberes, que têm presença mar-
cante no universo jurídico especialmente nas varas de família, ou seja, a Psicologia e o
Serviço Social - também contribuam.

Assim, propomos como ponto de partida retomarmos alguns conceitos que poderão balizar
as nossas reflexões a respeito da guarda e seu exercício.
No que se refere às guardas determinadas pela Justiça, tomamos como referência a Lei n.º
11.698/2008, que estabelece que a guarda será unilateral ou compartilhada.

De acordo com o artigo 1.583, em seu § 1.º, “compreende-se por guarda unilateral aquela
atribuída a um só dos genitores ou alguém que o substitua” (BRASIL, 2008, art. 1.583, § 1.º).

Assim, embora o poder familiar seja exercido por ambos, a tomada de decisão sobre os
filhos é exercida pelo guardião, independentemente da posição do genitor não guardião, cabe
ao não guardião supervisionar o interesse dos filhos.

A guarda compartilhada, por sua vez, é a “responsabilização conjunta e o exercício de


direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder
familiar dos filhos em comum” (BRASIL, 2008,art. 1.584, § 5.º).

Neste caso, cabe a ambos os genitores acompanhar todas as questões relativas aos filhos,
devendo a decisão final ser tomada de forma conjunta e participativa.

Outro ponto controverso diz respeito ao estabelecimento da guarda compartilhada como


regra se, em grande parte das situações, as pessoas enfrentam litígios e o diálogo é quase
inexistente, pois as diversidades podem ser acirradas por meio da exigência de contato com
repercussão para o desenvolvimento saudável da criança e/ou adolescente.

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Uma das consequências desta falta de clareza foi o surgimento, em meio a estas duas moda-
lidades de guarda jurídica,da alternância de residência.

Na alternância de residência, os filhos “rodiziam” entre a casa dos genitores semanal ou quin-
zenalmente, ou ainda de acordo com os dias estabelecidos.

A alternância de residência, todavia, pode prejudicar o estabelecimento de uma rotina


para as crianças que “se mudam” constantemente para a moradia de um e outro genitor,
podendo afetar, inclusive, a autoridade dos pais diante de uma dinâmica familiar que pode 247
se tornar instável, especialmente para os filhos.

Cabe ressaltar que a alternância de residência não se confunde com a guarda alternada,
na qual o genitor que fica responsável naquela semana ou quinzena tem plena autonomia
nas decisões sobre a criança, independentemente da opinião do outro, o que também
pode trazer implicações na vida dos filhos.

3. A família e suas configurações

Ao longo das últimas décadas, foram muitas as mudanças nas configurações familiares. A
partir da crise da família nuclear burguesa, houve grande aumento do número de divórcios
e também de novas uniões. Com isso, ocorreu uma readequação dos papéis familiares e
também uma atuação mais intensa de outras figuras que passam a conviver de forma mais
participativa no grupo familiar, como padrastos e madrastas, avós, entre outros.

Muitas dessas alterações se deram porque, diferentemente das motivações anteriores para
as construções conjugais, baseadas prioritariamente em questões econômicas e sociais, na
contemporaneidade, as relações amorosas passam a ser construídas com base nas ques-
tões afetivas. Tal condição reflete diretamente nas possibilidades de término dessasrelações
e, também, na forma como a parentalidade será exercida no pós-divórcio.

Maldonado (2009) aponta que separações conjugais podem reativar os sentimentos de


perdas e rompimentos anteriores, intensificando o sofrimento decorrente da separação
atual. Sendo vivida como um luto, muitas podem ser as reações decorrentes da separação
e as condições gerais influenciam diretamente a forma como o ex-casal vai lidar com o
compartilhamento das responsabilidades parentais. As reações são diversas e, em meio a
tudo isso, estão os filhos. Para a autora, esse momento de crise pode, no entanto, oportu-
nizar transformações positivas na dinâmica familiar.

A partir dos recasamentos, por exemplo, as crianças frutos da primeira relação ganham
novos “irmãos”, filhos da madrasta e/ou do padrasto, que passam a ser membros consti-
tuintes desta nova família, e com isso, modificam as relações já existentes, o que exige
uma reacomodação dos papéis. Da mesma forma, a participação de avós tem se dado de
forma mais ativa em virtude das dificuldades que vêm surgindo, como gestações precoces,
desemprego e ausência de políticas públicas.

Não obstante todas essas mudanças, a visão de família para grande parte da sociedade
ainda é baseada nos papéis materno e paterno, exigindo adaptações que, muitas vezes, os
grupos familiares não conseguem atender. Ou seja, a sociedade ainda espera que as famílias

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sejam formadas nos moldes da família nuclear tradicional.

Vale citar Roudinesco (2003, p.19), para quem, com a explicitação dessas configurações,
sem as correspondentes mudanças de paradigma, “a transmissão da autoridade vai se
tornando então cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e re-
composições conjugais aumentam”, nos quais, via de regra, tenta-se afastar a criança do
genitor não detentor da guarda (unilateral).

Apesar dessa visão tradicional no que serefere ao conceito de família, observamos que as 248
configurações são inúmeras, ou seja, não há um padrão de arranjo familiar, o qual é definido,
entre outros aspectos, com base na subjetividade de cada um.

Conforme aponta Szymasnki (2006), família pode ser definida como:

[...] um agrupamento humano com um núcleo em torno do qual as pessoas se unem, primordial-
mente, por razões afetivas, dentro de um projeto de vida, em que compartilham um quotidiano,
e, no decorrer das trocas intersubjetivas, transmitem tradições, planejam seu futuro, aconse-
lham-se, atendem aos idosos, formam crianças e adolescentes. (SZYMASNKI, 2006, p. 10).

Ocorrida a separação, seria importante que o grupo familiar criasse novas estratégias de enfren-
tamento do cotidiano, garantindo o bem-estar dos filhos e a convivência saudável com ambas as
linhagens. No entanto, observamos em nossa prática profissional que as mudanças ocorridas na
contemporaneidade não necessariamente promoveram novas formas de lidar com as separa-
ções e, assim, muitas vezes, o término da relação não só expõe os conflitos anteriores como os
intensifica e, ainda, faz com que abarquem também o lócus das relações parentais.

No transcurso pericial, buscamos minimizar os efeitos da separação na vida dos filhos e, para
tanto, trazemos a criança e/ou adolescente para o centro do debate, ao priorizar o exercício
da parentalidade por cada um dos responsáveis, já que os genitores, por estarem abarcados
pelos conflitos da conjugalidade, tendem a ofuscar as funções parentais do/a ex-parceiro/a,
adotando a participação deste/a na vida da prole como irrelevante ou como prejudicial.

Compreendemos que, na perspectiva de garantia de direitos, ao primar pela proteção e


convivência dos filhos com ambos os genitores, podemos promover reflexões sobre o poder
familiar, o exercício da paternagem e da maternagem, pertencimento, a importância de
preservar a imagem do ex-cônjuge para os filhos, clarificar os tipos de guarda em vigor no
ordenamento jurídico brasileiro, identidade, segurança, a importância do diálogo cordial entre
os pais para contribuir para o bem-estar da prole, a visão de família e a relevância dos víncu-
los relacionais, desvincular o papel conjugal das responsabilidades parentais, dentre outras
contribuições norteadas pela defesa intransigente dos direitos.

Nos processos de guarda, buscamos também referenciar a rede de apoio familiar dos envol-
vidos na lide com o objetivo de ampliar a proteção da criança e/ou adolescente. São indiví-
duos pertencentes ao círculo de convivência da família que podem ser acionados em caso
de necessidade para amparar a criança e/ou adolescente em contingências. Não raro, a rede
de apoio é composta por vizinhos, amigos, mães de amigos da escola, dentre outros atores
que auxiliam a família na proteção de seus membros. Nesse contexto, os profissionais “...
privilegiam o âmbito simbólico e relacional que varia entre os diversos grupossociais, muitas
pessoas podem ser consideradas como ‘família’.” (PNCFC, 2006, p. 25).

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4. Perícia psicológica e social: o papel do perito nas ações
de Guarda
4.1 Da perícia psicológica

A importância da Psicologia no sistema de justiça se dá pelo fato de possibilitar a hu-


manização do processo, a consideração e o desvelamento dos aspectos subjetivos nas
questões positivadas do Direito.
249

Segundo Teixeira, “Ao fornecer ao Judiciário elementos de análise a respeito da con-


dição particular dos sujeitos envolvidos na demanda jurídica, o psicólogo constrói a
possibilidade de resgate do sujeito frente à despersonalização que o processo judicial
pode produzir [..]” (p. 207).

Consideramos que, para além da oferta de subsídios aos operadores do Direito, reside a
base do trabalho do psicólogo judiciário na promoção e garantia de direitos das pessoas
atendidas, devendo contemplaro contexto sociale suas influências sobre as formas de
funcionamento das famílias.

Assim, as mudanças nas configurações familiares referidas anteriormente trouxeram implicações


relevantes para a atuação técnica dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Poder Judiciário.

Em primeiro lugar, torna-se imprescindível que os profissionais estejam atentos acerca do con-
ceito de família que embasa sua prática profissional, objetivando evitar que seus pré-conceitos
afetem sua atuação de forma a produzir julgamentos sobre outras formas e dinâmicas familiares.

Durante o trabalho com as famílias, é importante que o técnico tente compreender quais são os
mitos e concepções que acompanham as pessoas, como a questão do mito do amor materno,
do modelo ideal de família, do homem como provedor, dentre outras que podem influenciar a
convivência durante e após a separação.Nas palavras de Castro, “a psicologia auxilia a revelar as-
pectos das motivações e intenções de um indivíduo em uma determinada ação” (2003, p.29-30).

É a partir da análise dessas questões, em conjunto com as pessoas envolvidas, que podem
surgir novas formas de convivência, que levem em conta os direitos das crianças e/ou
adolescentes ao convívio familiar saudável com ambas as linhagens familiares. Souza e
Campos (2012) pontuam a restrição da convivência com um dos genitores como uma vio-
lação e ressaltam a diferença existente entre as ações que tramitam nas Varas da Infância
e Juventude e nas Varas de Família e Sucessões. As autoras expõem que, nas primeiras,
“geralmente ela [violência] é explícita, o que provoca maior comoção e interferências
diretas por parte dos envolvidos. Em contrapartida, nos casos de litígio, ela encontra-se
encoberta e disfarçada” (SOUZA e CAMPOS, 2012, p. 141).

Consideramos, entretanto, que por meio de uma atuação ética e responsável, atenta ao preco-
nizado nos princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Psicólogo, o conflito e a
crise podem ser percebidos como uma oportunidade de mudança,como uma retomada da auto-
nomia e do protagonismo nas decisões sobre as próprias vidas e as vidas dos filhos em comum.

Complementamos com as palavras de Teixeira:

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[...] uma prática despolitizada, ainda que remeta a questões técnicas, é, antes de tudo, uma po-
sição política que nega, em última análise, aos usuários e demandantesdos serviços públicos a
possibilidade de se contar com o saber psicológico para dirimir conflitos e materializar direitos.
(TEIXEIRA, 2012, p. 209).

4.2 Da perícia social

Com relação à atuação do assistente social,segundo Fávero, na área jurídica, a perícia se refere:
250
... a uma avaliação, exame ou vistora, solicitada ou determinada sempre que a situação exigir
um parecer técnico ou científico de uma determinada área do conhecimento, que contribua para
o juiz forma a sua convicção para a tomada de decisão. (FÁVERO, 2010, p. 43).

Nesse contexto, a perícia social é uma atribuição privativa do assistente social por estar
alicerçada em conhecimentos próprios do Serviço Social.

Ao desenvolvermos um laudo social em processos que tenham a guarda como natureza, pro-
cedido a leitura crítica dos autos, iniciamos a construção do estudo social tendo como bali-
zador a proteção dos direitos das crianças e adolescentes abarcados na lide, considerando
sua condição peculiar de pessoas em desenvolvimento. Isso não quer dizer que o trato dos
demais sujeitos envolvidos na ação não será ancorado nos princípios éticos que norteiam o
fazer profissional do Assistente Social, mas incide, desde logo, o posicionamento em favor
de um lado, o da garantia de direitos para proteção da infância.

Em ações de guardao estudo social abrange, de forma geral, o exercício das funções paren-
tais de inserção no sistema educacional, acompanhamento de saúde, assistência material,
realidade socioeconômica de cada um dos genitores, inserção cultural, convivência com a
família extensa, exercício da autoridade parental, participação de cada um dos genitores
nodesenvolvimento e criação da prole, o percurso sócio-histórico familial, pertencimento,
a identidade e o convívio social, dentre outros aspectos, que se façam necessários para a
compreensão da realidade vivenciada pelo grupo familiar.

Na intervenção com o par parental podem emergir nas demandas a propositura de reflexões
socioeducativas com os genitores a fim de minimizar os efeitos que o processo de divórcio pode
acarretar para as crianças e/ou adolescentes. Nesse sentido, Fávero (2009) esclarece que

[...] mesmo que solicitado para uma perícia, o assistente social pode, e, em muitas situações,
deve – ir além do procedimento da constatação, descrição e interpretação da situação. A ação
em prol da possibilidade de efetivação de direitos pode ser parte integrante de informações
importantes a serem registradas em relatórios ou laudos que instruirão o processo judicial
(FÁVERO, 2009, p. 630).

Tendo o Novo Código de Processo Civil como balizador dos processos em Vara de Família,
convém lembrarmos que o artigo 473, inciso III, institui que o perito deve indicar no laudo o
método de análise utilizado para a construção do documento. Na apresentação do laudo so-
cial convém ao profissional indicar a metodologia utilizada para a construção do seu trabalho.
O laudo social não precisa apresentar todos os dados coletados no estudo social, entendemos
que o perito precisa eleger os dados analíticos que trarão a compreensão de seu contexto.

Portanto, sob o ponto de vista social, consideramos que ao perito assistente social cabe ela-
borar parecer conclusivo, inclusive com a sugestão da modalidade de guarda e pontuar consi-

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derações finais para as situações em que tenha contato com apenas uma das partes da lide
por se tratar de carta precatória4. Neste caso, o estudo elaborado será limitado somente a um
dos núcleos familiares envolvidos, ou seja, unilateral, diluindo-se a visão social de totalidade.

5. Considerações finais

A partir da importância da garantia do direito à convivência familiar e do superior interesse


251
de crianças e adolescentes, procuramos problematizar a modalidade da guarda compartilha-
da como regra no ornamento jurídico vigente. O nosso olhar parte da atuação nos processos
de guarda em Varas de Família no Tribunal de Justiça de São Paulo.

As reflexões conjugam a relação teórico – prática das vivências técnicas de assistentes so-
ciais e psicóloga com o ordenamento jurídico frente à realidade do desenlace conjugal, tendo
a criança e/ou adolescente como sujeitos de direitos em fase peculiar de desenvolvimento.

Nosso diálogo tece algumas considerações sobre o processo histórico da guarda dos fi-
lhos, até então com naturalização do exercício da maternagem. Na atualidade, observamos
uma inflexão do masculino no papel de cuidador, sendo cada vez mais comum que homens
também exercitem a paternagem. Essa aproximação pode incomodar algumas mulheres
que, até então, tinham a primazia do cuidado.

As perícias psicológicas e sociais mostram que existem pais com interesse e disposição para a
guarda dos filhos, no entanto, o pedido de guarda compartilhada surge imiscuído por outras de-

4 Trata-se de um pedido que um juiz envia a outro de outra comarca. Assim, um juiz (dito deprecante)
envia carta precatória para o juiz de outra comarca (dito deprecado) para citar, intimar e/ou realizar perícia social e
psicológica. O envio de carta precatória ocorre quando uma das pessoasum dos sujeitos envolvidos na ação reside ou
tem domicílio em outra cidade.
mandas para além das estabelecidas na legislação. A falta de clareza do texto legal faz emergir
na prática o pedido de divisão cartesiana do tempo de convivência com a prole com a alternân-
cia de residência e a diminuição dos alimentos em razão desse tempo compartilhado de forma
matemática. A nosso ver, nesses casos, o balizador passa a ser o interesse dos adultos ao
invés do direito dos filhos, os quais são, de fato, quem deve ser amparado pela legislação.

A atuação de assistente sociais e psicólogos na promoção de garantia de direitos, no âmbito do


Judiciário, aponta que, apesar das modificações e esclarecimentos legais realizadosa respeito
daguarda compartilhada, a discussão carece de aprofundamento, pois existem desafios atinentes
às relações humanas que precisam ser considerados, como os dissabores do fim da conjugali-
dade, a influência da alternância de residência para a criação e o desenvolvimento dos filhos, a
tomada de decisões conjuntas por pessoas que sustentam a lide, dentre outros aspectos que
podem reverberar no bem-estar da criança e/ou adolescente. Consideramos que a convivência fa-
miliar para a criança e/ou adolescente precisa ser saudável com ambas as linhagens familiares.

Entendemos que o exercício da guarda compartilhada deve ser analisado detidamente caso a
caso, com observância principal no superior interesse da criança e/ou adolescente.

Desta forma, ponderamos que, por si só, a legislação e a decisão judicial não têm o condão
de favorecer o diálogo entre os genitores em todos os casos; ao contrário, pode, em algumas
situações, acirrar dissabores com consequências negativas para a prole.

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Notamos que a divisão matemática do tempo de convivência com os filhos atende muito
mais aos interesses dos pais do que à proteção das crianças e adolescentes, podendo,
ainda, subjazer questões econômicas.

Sob o aspecto psicológico e social, acreditamos que a alternância de residência em um con-


texto de desentendimentos e falta de diálogo, não possibilita o estabelecimento de ambiente
estável, rotinas claras e exequíveis e cuidados previsíveis, sobretudo para uma criança.
252
Finalmente, entendemos que a mudança de paradigma do exercício da guarda é salutar para
o incremento de mudanças sociais e para efetivar a almejada igualdade entre homens e mu-
lheres, no entanto, a inserção da guarda compartilhada não deveria emergir como regra totali-
tária, pois tal parametrização não abarca a singularidade e as particularidades das famílias.

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NOVAS PERSPECTIVAS DAS AÇÕES
DE FAMÍLIA: A CULTURA DO LITÍGIO
PERDE A SUA FORÇA

Bruna Lyra Duque1 e Danilo Ribeiro Silva dos Santos2

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

O presente estudo analisará o novo procedimento das ações de família,


diante das importantes alterações promovidas no Código de Processo Civil.
O artigo propõe abordar, assim, as novas perspectivas do processo, enfa-
tizando a preocupação do legislador de ir além da defesa dos direitos dos
indivíduos, mas buscando, também, a contenção de litígios, o que poderá
ser assegurado, no âmbito ou fora do processo, com a utilização de práticas
de mediação e de conciliação. O tema será estudado tomando por base as
perspectivas multidisciplinar e jurídica, por força da necessária conexão
do direito, da psicanálise, do serviço social e da sociologia. A proposta do
trabalho será compreender, a partir do afeto e da solidariedade familiar, o
sujeito de direito como o verdadeiro ator e condutor da sua vida privada, o

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que se espera que esta esteja cada vez menos judicializada.

Palavras-Chave: Ações de família. Afeto. Solidariedade. Litígio.

“Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras [...].
Recomeça” (Cora Coralina).

254
1. Introdução

No cenário de forte alteração legislativa, com impacto na mudança comportamental


dos atores envolvidos, é interessante retomar a ideia, segundo Carlos Drummond de
Andrade (2012, p. 41), de “como a vida muda” e de “como a vida é tudo”. A compreen-
são da família, a partir dessa noção de transformação, busca sempre a sua reinvenção
no tempo e no espaço.

Sem a família não é possível falar em plenitude de qualquer organização social ou jurídica.
Novos tempos chegam para o processo judicial de família.

A legislação avança e se mostra mais preocupada com os deveres fundamentais de


cuidado material, moral e psicológico atribuídos aos pais, como é o caso da obrigação de
prestar alimentos, a importância às condutas afetivas, bem como a responsabilidade civil

1 Doutora e Mestre do programa de pós-graduação stricto sensu em Direitos e Garantias Fundamentais


da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Especialista em Direito Empresarial (FDV). Professora de Direito Civil da
graduação e pós-graduação lato sensu da FDV. Advogada e sócia fundadora do escritório Lyra Duque Advogados.

2 Mestrando do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito pela Universidade Federal do Espírito
Santo. Especialista em Direito Empresarial (FGV). Advogado e sócio do escritório Lyra Duque Advogados.
no ambiente familiar, de acordo com a estrutura normativa do Código Civil e conforme
expressamente delimita o artigo 2273 da Constituição Federal.

O artigo buscará, assim, compreender como se estruturam as ações judiciais de família,


diante das importantes alterações promovidas no Código de Processo Civil. A temática
será estudada a partir da investigação do tema sob a perspectiva da funcionalidade
jurídica das relações familiares e o cumprimento dos deveres fundamentais, no mesmo
âmbito, pelos atores envolvidos.

2. Novas Perspectivas das Ações de Família

“O progresso é impossível sem mudança; e aqueles que não conseguem


mudar as suas mentes não conseguem mudar nada”
(George Bernard Shaw).

A estrutura normativa prevista no Código de Processo Civil de 2015 orienta, hodiernamente,


que sempre há tempo para mediar e conciliar, não existindo problema algum de, já estando
o caso judicializado, oportunizar as partes à mediação, sendo que o objetivo maior é o
alcance da solução pacífica dos litígios envolvendo o Direito de Família.

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A mediação é um método adequado à solução de conflitos familiares, em que se busca
restaurar a comunicação entre as partes, por meio da figura do mediador eleito pelos
próprios indivíduos, que são conduzidos ao empoderamento na busca de solução cons-
truída, por si mesmos, pela via consensual. Na visão de Carlos Eduardo de Vasconcelos
(2015, p. 56), tem-se por mediação:

[...] método dialogal de solução ou transformação de conflitos interpessoais em que os


mediandos escolhem ou aceitam terceiro(s) mediadore(es), com aptidão para conduzir o
processo e facilitar o diálogo, a começar pelas apresentações, explicações e compromissos 255
iniciais, sequenciando com narrativas e escutas alternadas dos mediandos, recontextualiza-
ções e resumo do(s) mediador(es), com vistas a se construir a compreensão das vivências
afetivas e materiais da disputa, migrar das posições antagônicas para a identificação dos
interesses e necessidades comuns e para o entendimento sobre as alternativas mais consis-
tentes, de modo que, havendo consenso, seja concretizado o acordo.

Tendo em vista que o Direito de Família convive com questões patrimoniais e extrapatrimo-
niais, exigem-se soluções efetivas do conflito e, neste sentido, Ronaldo Cramer e Virgílio
Mathias (2015, p. 1004) lecionam que “com efeito, solucionar conflitos familiares não sig-
nifica somente acertar questões patrimoniais, mas sobretudo, resolver questões afetivas e
sociais, o que torna uma grande conquista a solução amigável do litígio”.

Com vistas a mediar ou conciliar, pode-se citar o exemplo de ajuizamento da ação de famí-
lia e a consequente convocação do réu sem acesso ao conteúdo dos pedidos iniciais. Isso
acontece, justamente, com o intuito de viabilizar a mediação e conciliação em audiência e,
em caso de restar infrutífera, numa etapa seguinte, propiciar a defesa no processo judicial.

3 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Neste ponto, louvável a ideia do legislador de 2015, no artigo 694, parágrafo único, do
Código de Processo Civil4, no momento que possibilitou a via consensual aos próprios
litigantes com o uso da mediação extrajudicial ou atendimento multidisciplinar, ainda que a
ação de família esteja em curso no Judiciário.

É importante, dessa maneira, compreender a diferenciação entre mediação e atendimento mul-


tidisciplinar, uma vez que as suas finalidades se distinguem. Enquanto a mediação busca “[...]
aproximar as partes para uma solução consensual, na busca de propostas que possam atender
seus anseios e pretensões”, o atendimento multidisciplinar se volta ao tratamento, propriamen-
te dito, do conflito em si, isto é, busca entender as feridas e os traumas ocasionados pelos “[...]
problemas familiares acarretam, construindo canais de comunicação entre as partes envolvi-
das, o que pode direcionar para uma reconciliação, ou, até mesmo, para um desfazimento da
relação de uma forma mais madura e menos dramática”(STOLZE e GAGLIANO, 2016, p. 160).

Assim sendo, enquanto a mediação busca restaurar a comunicação que foi rompida pelo
conflito familiar e envolvê-las, ativamente, na busca da solução consensual, o atendimento
multidisciplinar adentra na raiz do problema, para fins de analisar o ambiente familiar e iden-
tificar com os envolvidos os traumas psicológicos causados pelo problema latente.

Fernanda Tartuce (2015, p. 324) esclarece sobre o tema, no que toca à importância da
mediação no Direito de Família, que “[...] em respeito à sua capacidade de autodeterminação,

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o indivíduo deve estar pronto para definir os rumos de seu destino, sabendo identificar o
melhor para si sem necessitar da decisão impositiva de um terceiro [...].

Diante dessa perspectiva, o Poder Judiciário precisa se emparelhar para privilegiar a justiça
consensual, com orientação e estímulo a todos os operadores do Direito (advogados, servido-
res, juízes, defensores públicos e membros do Ministério Público), a fim de que busquem, sem-
pre que couber, o tratamento consensual às demandas de família, seja dentro ou fora processo.

Com isso, não se almeja colocar a mediação como substitutiva do processo judicial ou como 256
saída para desafogar o número elevado de judicialização dos conflitos familiares. Ao revés, o
que se pretende nas ações de família é restabelecer o aspecto comunicacional, haja vista que,
mesmo após o conflito instaurado, as partes necessitarão identificar as divergências e solu-
cioná-las em prol da manutenção do convívio familiar e de viverem sem o processo judicial.

A ideia de mediar consiste no ato de emancipação do indivíduo e na tomada de consciência


de que os próprios sujeitos podem construir alternativas criadoras de solução de conflitos,
independentemente, do Poder Judiciário, o que confere efetiva dimensão à justiça consensual.

Em homenagem, pois, ao princípio da autonomia privada, os sujeitos são livres para participar de
sessões de mediação e conciliação nos conflitos familiares, sendo certo que a solução construí-
da tende a ser mais aceita do que decisão outorgada pelo Judiciário, muitas vezes sem possibili-
dade de conhecer a fundo o conflito e os seus desdobramentos para além dos aspectos jurídicos.

Isto porque já é sabido que o Poder Judiciário brasileiro enfrenta o abarrotamento de demandas
judiciais, a lentidão no julgamento dos processos e, muitas vezes, a prestação jurisdicional não
enfrenta, a contento, a solução definitiva dos conflitos e, ainda, surge tardia ao jurisdicionado.

4 Art. 694, parágrafo único. A requerimento das partes, o juiz pode determinar a suspensão do processo
enquanto os litigantes se submetem a mediação extrajudicial ou a atendimento multidisciplinar.
Faz-se necessário, então, que o advogado resguarde os interesses do seu cliente na me-
diação e que ambos adotem um perfil colaborativo, com a finalidade de chegar à comuni-
cação efetiva e à solução consensual do conflito.

Outra perspectiva do processo judicial de família consiste na produção de provas com o uso
da ata notarial. O legislador processual, nos termos do artigo 384 do Código de Processo
Civil de 20155, prescreve que o indivíduo pode usar a ata notarial com a finalidade de atestar
ou documentar a existência e o modo de existir de determinado fato.

Considerando que o Direito de Família lida com direitos existenciais, os operadores do Direito
devem trabalhar com cautela a utilização da ata notarial, a fim de gerar provas, sem prescin-
dir a preservação dos direitos constitucionais dos indivíduos ligados à honra, à imagem, à
intimidade e à privacidade dos sujeitos envolvidos no processo judicial de família.

Por fim, cabe advertir que, no processo judicial de família, a preocupação além da defesa dos
direitos dos indivíduos é também com a contenção de litígios, o que pode ser assegurado, no
âmbito ou fora do processo, com a utilização de práticas de mediação e conciliação.

3. A Cultura do Litígio Perde a Sua Força: O Reforço da


Visão Multidisciplinar

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“Todo erro grande, é produto de pequenos erros”
(Francisco Cândido Xavier).

A partir da vigência do novo Código de Processo Civil, a cultura do litígio perde a sua força
nas ações de família. A mediação passa a ser um novo caminho para a composição do
conflito. O sujeito de direito passa, verdadeiramente, a ser ator e condutor da sua vida
privada, ainda que judicializada.
257

Como mencionado, o artigo 694do CPC disciplina que todos os esforços serão voltados para
a solução consensual da controvérsia, devendo o magistrado dispor do auxílio de profissio-
nais de outras áreas do conhecimento. Há uma maior ênfase nos instrumentos da negocia-
ção, da conciliação e da mediação entre as partes envolvidas.

Do mesmo modo, a perspectiva transdisciplinar6 ganha mais espaço, pois há nítida ligação,
nos casos de família, do direito, da psicanálise, do serviço social e da sociologia.

Há na nova lei uma tentativa de substituir a “cultura da guerra”, pela “cultura da paz”
(TARTUCE, 2015, p. 324). Por consequência, nota-se a necessidade de transformação não
apenas da conduta dos profissionais que atuam na área de família, mas uma mudança no
modo de ensino do processo e do Direito.

5 Art. 384. A existência e o modo de existir de algum fato podem ser atestados ou documentados, a
requerimento do interessado, mediante ata lavrada por tabelião.

6 Dispõe o art. 151 da Lei 8.069 de 1990: “Compete à equipe interprofissional dentre outras atribuições
que lhe forem reservadas pela legislação local, fornecer subsídios por escrito, mediante laudos, ou verbalmente, na
audiência, e bem assim desenvolver trabalhos de aconselhamento, orientação, encaminhamento, prevenção e outros,
tudo sob a imediata subordinação à autoridade judiciária, assegurada a livre manifestação do ponto de vista técnico”.
Ademais, sem consenso, não há composição alternativa de conflito algum. Nenhum magis-
trado regulará com efetividade o cumprimento de direitos e deveres, sem a participação ativa
dos envolvidos no caso, porque o afeto e o respeito e não se pede.

Como forma salvaguardar os direitos da família, da criança e do adolescente, a mediação se


estrutura, por meio do incentivo a uma convivência familiar mais saudável a partir da reso-
lução de conflitos extrajudicialmente e judicialmente, uma vez que esta via tem por escopo
chegar a um acordo que seja o reflexo dos interesses dos integrantes da família, reconstruin-
do a possibilidade de diálogo entre eles (DUQUE e LEITE, 2015, p. 297).

A mediação como instrumento de “resolução de desordens familiares muito se deve ao reco-


nhecimento da autodeterminação do sujeito, liberado para a livre condução de suas relações
horizontais de família” (MADALENO e MADALENO, 2015, p. 160).

Dessa maneira, importante aplicação terá a mediação nos casos envolvendo alienação pa-
rental. A síndrome da alienação parental, nas palavras de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo
Pamplona Filho (2014. p. 614), representa um verdadeiro “distúrbio que assola crianças e
adolescentes vítimas da interferência psicológica indevida realizada por um dos pais com
o propósito de fazer com que repudie o outro genitor”. Quando identificada tal interferên-
cia, a guarda poderá ser analisada pelo magistrado buscando proteger os interesses da
criança e do adolescente7.

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Essa síndrome, regulada Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010, caracteriza-se pela “utilização do
filho como instrumento de catarse emocional ou extravasamento de mágoa, além de traduzir detes-
tável covardia, acarreta profundas feridas na alma do menor” (STOLZE e GAGLIANO, 2014. p. 614).

A Constituição Federal de 1988, além de garantir direitos fundamentais, segundo os quais


devem ter eficácia e aplicação imediata, preocupou-se em estabelecer também deveres funda-
mentais. Os deveres fundamentais, como categoria jurídico-constitucional, são condutas positi-
vas ou negativas que promovem a efetivação dos direitos fundamentais (DUQUE, 2015, p. 33). 258

Do mesmo modo, a eficácia dos deveres fundamentais passa a ser relevante, na área de
família, não apenas como um dever do Estado, mas como algo que deve ser observado nas
relações privadas, pois a todo direito há um dever correspondente. Por exemplo, ao lado do
direito dos pais à convivência com os seus filhos, é importante destacar a previsão de um
dever fundamental dos pais de resguardar a incolumidade psíquica e o relacionamento sau-
dável com as crianças e os adolescentes, evitando a desestruturação familiar8.

Não se pode perder de vista, que as relações familiares são estruturadas na relação de
amor e cooperação. A base do vínculo humano se constrói na solidariedade. O tema da
funcionalização dos vínculos jurídicos passa a permitir uma nova compreensão, por exem-

7 “1. Deve sempre prevalecer o interesse da criança ou adolescente, acima de todos os demais. 2. Não
estando a adolescente em situação de risco e mantendo ela boa convivência com a genitora, com quem sempre
conviveu, descabe promover a alteração de guarda. 3. Necessitando a genitora superar seus conflitos pessoais e
evitar conduta que configure alienação parental, deverá iniciar de forma imediata o acompanhamento psicológico e
a terapia familiar. Recurso desprovido. (TJ-RS. Apelação Cível Nº 70062004692, Sétima Câmara Cível, Relator: Sérgio
Fernando de Vasconcellos Chaves, Julgado em 26/11/2014)”.

8 “[...]A visitação deve ser exercida com zelo e responsabilidade e deve proporcionar para a filha momentos
de lazer, afetividade e descontração, permitindo uma convivência saudável entre a filha e o genitor não guardião [...].
(TJ-RS. AI 70062018569 RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, Data de Julgamento: 26/11/2014.
Sétima Câmara Cível.)”.
plo, das relações conjugais que passam por rupturas e não mais se mantêm por meio de
um liame formal, tal como ocorre no divórcio.

O elemento complementaridade é essencial diante deste cenário. Tal noção é baseada na

necessidade de se valorar, com a devida importância, a responsabilidade conjunta e plena


dos pais no efetivo exercício de direitos e deveres ligados ao poder familiar.

Convém refletir que a responsabilidade familiar (pais, mães, avós, etc.) reside, dentre outros,
nos deveres de prestar subsistência, saúde, educação, cuidado, zelo, afeto e propiciar as
melhores condições psíquicas e espirituais aos filhos. Mas, infelizmente, mergulhados no
intenso conflito que a ruptura do laço conjugal promove, os pais se interessam mais nos seus
próprios desejos do que nos deveres inerentes às suas funções.

Objetivando reduzir o conflito, o direito tenta intervir nas delicadas relações familiares.
Será que há redução mesmo do conflito? Nos casos de guarda, pelo contrário, a prática
demonstra um intenso conflito para regular a guarda compartilhada e a imposição de pena-
lidades em caso de inexistência do afeto.

Nota-se que, quando o assunto se volta para a responsabilidade civil no âmbito familiar,
as questões emotivas ganham sinais de monetarização, intensificando-se as intervenções

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judiciais na imposição de condutas que deveriam ser tomadas, espontaneamente, pelos pais,
se estes se portassem como os sujeitos detentores das funções parentais complementares e
não de condutas dispersas em seu próprio “eu”.

Funções que buscam uma reciprocidade também se baseiam em aportes de energias recípro-
cas em busca de um fim comum. Por mais que os sujeitos estejam distantes, por questões
que não mais se apresentam como condutas afetivas e cooperativas em prol da aliança
familiar, os frutos que derivam do casal permanecem, os filhos. Isso se demonstra relevante
na medida em que uma convivência familiar tranquila e equilibrada proporciona um ambiente
259
favorável para o desenvolvimento da criança, sobretudo no aspecto afetivo, psicológico e
material, visando a formação psicológica livre de transtornos e traumas.

4. As Novas Funções, a Afetividade e a Solidariedade das


Relações Familiares

“Quero colo. Vou fugir de casa. Posso dormir aqui com vocês? [...]. Meu filho
vai ter nome de santo. Quero o nome mais bonito [...]”.
(Legião Urbana)

A funcionalização do direito impõe um novo tratamento jurídico da família que, por sua vez,
se volta ao viés constitucional sobre a comunidade familiar, posto que é o refúgio dos direi-
tos e deveres fundamentais garantidos a todo indivíduo.

As relações familiares devem ser garantidas “constitucionalmente não em razão de titularizar


um interesse superior ou superindividual, mas em função da realização das exigências das
pessoas humanas” (NOGUEIRA DA GAMA, 2008, p. 125).
O escopo “precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições
necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto,
como mola propulsora” (CHAVES DE FARIAS e ROSENVALD, 2014. p. 36). Aí está a família
atendendo a sua função social.

Anderson Sant’Ana Pedra (2003, p. 196-197) enfatiza que, a partir da vigência do Código Civil
de 2002, cabe ao intérprete da norma alterar o foco de análise do direito civil, “[...] deixando
que este se ilumine pelos valores contidos na Constituição de 1988 a fim de conseguir um
novo contorno do direito civil, agora à luz do Texto Constitucional”.

Como sugere Marcus André Vieira (2001, p. 234), não se deve tomar o afeto “como subs-
tantivo, mas sim fazê-lo passar ao verbo”. Reforçar a necessidade do cumprimento dos
deveres na seara familiar (aí incluindo a afetividade como conduta) é, sem dúvida alguma,
uma excelente mudança para a sociedade.

As relações familiares funcionalizadas, pautadas na afetividade9 e na perspectiva da soli-


dariedade, tomam como fundamento básico a figura do afeto, no prisma do cuidado, que é
uma conduta imprescindível para o desenvolvimento completo da criança que necessita de
amparo para além do mero dever dos pais de prestarem alimentos.

Como se sabe, nas relações privadas, há ampla incidência de normas constitucionais,

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sendo impensável considerar que os sujeitos que integram determinado núcleo fami-
liar possam, por exemplo, se utilizar de instrumentos públicos e/ou particulares sem a
preocupação de promover o justo equilíbrio patrimonial e, ainda mais, o bem-estar e a
melhoria do ambiente familiar.

A família contemporânea, portanto, possui amparo na solidariedade indicada no artigo 3o, inci-
so I, da Constituição da República que “fundamenta a existência da afetividade em seu concei-
to”, permitindo atribuir à família uma função social relevante (CASSETARI, 2015, p. 2015).
260
Nesta perspectiva, o reconhecimento dos deveres fundamentais se projeta a recuperar a
aplicação dos direitos em vários pontos de vista, tais como social, econômico e político, o
que levará a reconhecer o outro e, consequentemente, a sociedade (DUQUE, 2015, p. 33).

5. Considerações Finais

Constata-se que, a partir do novo Código de Processo Civil, a cultura do litígio perde, cada
vez mais, a sua força nas ações de família. A mediação é a saída inegável para a composi-
ção do conflito. O sujeito de direito passa, dessa forma, a ser o ator e o condutor da sua vida
privada, o que se espera que esta esteja cada vez menos judicializada.

Quando a concretização do afeto passa a ser realidade nos núcleos familiares, promove-se
uma transição de critérios valorativos, afastando-se das funções meramente patrimoniais e
ingressando na visão existencial dos seus membros.

9 O princípio da afetividade não se confunde com a socioafetividade, sendo institutos autônomos, mas
em conexão. Há quem defenda que a “socioafetivadade é a publicidade da afetividade, é a emergência do animus
constitutivo familiar”, como se dá na filiação (PORFÍRIO, p. 39-55, 2015).
Com o novo Código de Processo Civil, as modificações promovidas nas ações de família
objetivaram alcançar essa funcionalização das relações familiares, incentivando à reso-
lução efetiva, célere e consensual dos conflitos de interesses. Dessa maneira, entende-se
que o fim precípuo da família, cada vez mais, passa a ser a solidariedade social e a sua
resolução (mínimo de judicialização).

Nas relações familiares, o carinho, o afeto, o cuidado e a proteção são comportamentos es-
senciais para uma boa convivência. Algumas condutas, por imposição legal, fazem parte do

núcleo de deveres dos pais em relação aos filhos. Outros deveres, no entanto, estão
ligados à pessoa humana, mas são, essencialmente, voluntários, não se pedem e não se
medem - aqui tem-se o amor e o afeto.

Em razão disso, defende-se que a funcionalização do direito de família impõe um novo tratamen-
to jurídico dos seus membros que, por sua vez, se volta ao viés constitucional sobre toda a estru-
tura familiar, posto que é o refúgio dos direitos e deveres fundamentais garantidos ao indivíduo.

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Referências

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Paulo: Atlas, 2015.

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Rio de Janeiro: Forense, 2015. 261

DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Saraiva, 2012.

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tos a partir da solidariedade. 2015. Tese (Doutorado em Direitos e Garantias Fundamentais).
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NOGUEIRA DA GAMA, Guilherme Calmon. Princípios constitucionais de direito de família. São


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Família e das Sucessões, São Paulo, a. 2, v. 3, p. 39-55, jan./mar., 2015.

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262
PRIVACIDADE DAS FAMÍLIAS E
CONFLITOS NAS REDES SOCIAIS

Arthur Emanuel Leal Abreu1

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

Nos últimos tempos, verifica-se o desenvolvimento de novas tecnologias que


revolucionam a sociedade, como a internet e, por consequência, as redes so-
ciais. Paralelamente, percebe-se a transformação da noção de família, bem
como sua passagem da esfera pública para a esfera privada da vida das pesso-
as. Diante disso, este artigo analisa a transposição dos conflitos familiares, de
natureza eminentemente privada, para as redes sociais, denotando uma pu-
blicização e uma espetacularização desses conflitos. Nesse contexto, identifi-
ca-se o fenômeno da “cultura da ostentação”, consistente no exibicionismo de
riquezas ou bens materiais. Em contrapartida, verifica-se, na seara familista,
a concomitância da ostentação nas redes sociais com o inadimplemento de
prestações alimentícias, sob a alegação de impossibilidade financeira. Diante
disso, recomenda-se o registro e armazenamento das publicações disponibi-

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lizadas na internet, para eventual uso como meios de prova em processo judi-
cial, em conformidade com o Código de Processo Civil de 2015. Por outro lado,
desaconselhamos veementemente a participação em discussões acaloradas
nas redes sociais acerca de questões familiares. Nesse sentido, procede-se ao
estudo de um caso de suposto inadimplemento de prestações alimentícias,
tornado público nas redes sociais: em janeiro de 2017, um indivíduo publicou
uma mensagem em um grupo do Facebook, destinado a anúncios voltados ao
município de Guarapari/ES, manifestando o interesse em adquirir ingressos
para um show. Após um comentário demandando que o usuário efetuasse o
pagamento de alimentos ao filho, houve a espetacularização do conflito, que
passou a ter repercussão nacional, ultrapassando os limites da intimidade da
263
família. Diante disso, propõe-se outro comportamento na internet, abstendo-
se de se envolver em conflitos familiares na internet e buscando uma solução
justa para eles. Na busca pela justiça, recomenda-se, primeiramente, a me-
diação como método alternativo de resolução de conflitos, tendo em vista a
natureza das relações familiares e o princípio da intervenção estatal mínima.
Em caso de insucesso, admite-se recorrer ao Poder Judiciário, inclusive com
o uso dos registros extraídos das redes sociais como elementos de prova nas
ações de família. Com isso, busca-se harmonizar a preservação das relações
familiares com uma solução justa para os conflitos.

Palavras-chave: família; redes sociais; internet; ostentação; mediação.

1 Pós-graduando em Compliance, Lei Anticorrupção e Controle da Administração Pública, pela Faculdade


de Direito de Vitória (FDV) e em Linguagem, Tecnologia e Ensino, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Bacharel em Direito pela FDV. E-mail: arthurlealabreu@hotmail.com. Telefone: (27) 99835-5995.
1. INTRODUÇÃO

O decorrer do tempo propicia transformações em diversos aspectos da vida e do conheci-


mento. Algumas instituições tradicionais evoluem, modificando-se sua concepção, como
ocorreu com a família. Além disso, há o surgimento de novas tecnologias, alterando a forma
como as pessoas interagem entre si e com o mundo.

Com o desenvolvimento da internet e, por consequência, das redes sociais, antigos conflitos
são transpostos para o ambiente virtual. Dentre eles, incluem-se as questões familiares, que,
apesar de essencialmente atreladas à intimidade daquele núcleo, passam a ser discutidas
diante dos olhos de um público indeterminável.

Diante disso, o presente artigo visa a identificar os contornos e as repercussões de


conflitos familiares nas redes sociais, buscando indicar comportamentos recomendáveis
frente a esses conflitos, a fim de mitigar seus impactos negativos. Para tanto, apresen-
ta-se uma perspectiva histórica, tanto do desenvolvimento das redes sociais quanto das
mudanças na compreensão das famílias.

Nesse contexto, desponta a necessidade de análise da privacidade, tanto no ambiente


digital quanto no âmbito familiar. Diante disso, discute-se a identificação das instituições

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familiares, ao longo do tempo, com a esfera pública e privada, apontando-se a consolida-
ção do princípio da menor intervenção estatal na família.

Ainda, analisa-se a privacidade nas relações familiares, com base em uma perspectiva do direi-
to civil-constitucional, contextualizada com a sociedade atual, conectada à internet e (super)ex-
posta nas redes sociais. Nesse sentido, procede-se a um estudo de caso referente a um conflito
familiar, de suposto inadimplemento de prestações alimentícias, transformado em espetáculo
público no Facebook. Ao final, formulam-se algumas propostas de comportamentos nas redes
sociais, quando o assunto é a família, com o intuito de preservar as relações familiares.
264

2. As Redes Sociais

Constantemente, o surgimento de novas tecnologias provoca transformações profundas


na sociedade. Uma das principais inovações tecnológicas foi, sem dúvidas, a internet,
que revolucionou o acesso à informação, as contratações, as comunicações e, principal-
mente, os relacionamentos interpessoais.

Por um lado, a internet facilitou as comunicações à distância, por meio de recursos como
e-mails, chats e aplicativos de mensagens. Por outro, os relacionamentos interpessoais pas-
saram a se desenvolver mais no ambiente virtual do que na realidade física.

Conforme ensina Marcel Leonardi2, “a visão original do principal criador da World Wide
Web era a de um espelho que refletisse as relações sociais”. Contudo, essa ideia revelou-
se inadequada, à medida que as interações sociais passaram a ocorrer, primariamente, na
internet, sem refletir a realidade externa.

2 LEONARDI, Marcel. Tutela e privacidade na internet. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28.
Atualmente, essas interações ocorrem, em boa parte, em redes sociais virtuais, como o
Facebook e o Instagram. As pessoas compartilham fatos, imagens e vídeos de seu cotidiano,
consubstanciando verdadeiras limitações voluntárias ao seu direito à privacidade. Inclusive,
o sociólogo Zygmunt Bauman3 aponta uma tendência a essas limitações voluntárias:

Nos nossos dias, não é tanto a possibilidade de traição ou violação da privacidade que nos as-
susta, mas seu oposto: fechar todas as saídas do mundo privado, fazer dele uma prisão [...]. “Ser
uma celebridade” (quer dizer, estar constantemente exposto aos olhos do público, sem ter neces-
sidade nem direito ao sigilo privado) é hoje o modelo de sucesso mais difundido e mais popular.

Dessa forma, as redes sociais tornam-se um repositório de informações sobre diversos as-
pectos da vida de seus usuários. Com isso, aqueles que fazem parte de seus círculos virtuais
– por excelência, os amigos do Facebook – passam a ter acesso à sua vida por meio da lente
digital. Mais além, ficam expostos não só os usuários, que disponibilizam os conteúdos na
rede, mas também as pessoas que integram seus grupos mais próximos – família e amigos.
Diante disso, é preciso analisar algumas particularidades das relações familiares.

3. Famílias e Privacidade

Inicialmente, é preciso tecer algumas considerações acerca da noção de família. De

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acordo com Giselle Groeninga4, “a família, em primeiro lugar, é um sistema e, como tal,
o todo da família é maior do que a soma das partes, dos membros que a compõem”. Ou
seja, as relações entre os componentes da família e a perspectiva do todo são importan-
tes para sua compreensão.

É importante salientar que as relações familiares são continuadas, prolongam-se no tempo.


Isso deve ser levado em consideração diante do surgimento de conflitos. Afinal, não basta
pôr fim ao problema que se manifesta, sendo necessário, também, preservar as relações
entre os sujeitos, ligados por vínculos sanguíneos e/ou afetivos. 265

Além disso, “a família é também uma instituição social, com normas jurídicas que defi-
nem direitos e deveres de cada um e que a sociedade deve garantir, seja qual for a sua
configuração”5. Essa visão da família como instituição “dá vazão à presença do Estado na
disciplina de suas relações jurídicas”6. Com isso, discute-se a filiação do Direito de Família
ao ramo do Direito Público ou do Direito Privado. Cumpre estatuir, de início, que a aproxi-
mação com o público ou com o privado deve ser analisada sob uma perspectiva histórica,
tendo em vista as variações ocorridas ao longo do tempo.

Nesse sentido, Cristiano Chaves7 remete a “tempos remotos, nos quais a atuação do Estado
nas relações familiares era abundante, especialmente através da edição de normas jurídicas
limitando a vontade do titular”. Nesse contexto, preponderava o interesse estatal, em detrimen-

3 BAUMAN, Zygmunt. 44 cartas do mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 41.

4 GROENINGA, Giselle Câmara et. al. Direito civil: direito de família. São Paulo: RT, 2008, p. 22.

5 GROENINGA, Giselle Câmara et. al. Direito civil: direito de família. São Paulo: RT, 2008, p. 22.

6 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 177.

7 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. 8. ed. rev. e atual.
Salvador: JusPodivm, 2016, p. 47.
to da autonomia privada dos membros do núcleo familiar. A interferência estatal levava, ainda,
a uma padronização, exigindo-se a reprodução de um único modelo para caracterizar a família.

Todavia, sucessivas teorias passaram a incluir a família em uma esfera privada, prote-
gendo-a das ingerências do Estado. De acordo com Will Kymlicka8, “a primeira defesa da
privacidade baseada na família foi a doutrina do pater familias”, segundo a qual os assun-
tos familiares integravam a esfera privada do homem, chefe da família, razão pela qual o
Estado não poderia intervir. Posteriormente, reconheceu-se a autonomia familiar e, mais
adiante, o direito à privacidade baseado na família9.

Cumpre ressaltar que, historicamente, a família possuía um caráter patriarcal, chefiada por
um homem, e patrimonial, voltando-se à proteção e à manutenção do patrimônio acumu-
lado, com a posterior sucessão dos bens em favor dos familiares próximos. “Era interesse
do Estado que esta família monolítica, como unidade produtiva e esteio econômico da
nação, fosse regulamentada ostensivamente”10.

Contudo, mais recentemente, tem-se alterado a concepção de família, destacando-se a afeti-


vidade como elemento central das famílias. Nas palavras de Rodrigo da Cunha Pereira11:

Com o declínio do patriarcalismo, a família perdeu sua força como instituição e hierarquia
rígida, ficou menos patrimonialista, deixou de ser essencialmente um núcleo econômico e de

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reprodução para ser o espaço do amor e do companheirismo, e um centro formador e de desen-
volvimento do sujeito, de sua dignidade, de sua humanidade e humanização.

Assim, a família não deve ser vista como um bloco estático, com interesses próprios e autô-
nomos, mas um sistema, composto por indivíduos, titulares da dignidade da pessoa humana,
cujos interesses devem ser harmonizados e promovidos pela instituição familiar. Nesse
grupo tão íntimo, deve-se reafirmar a preocupação com a solidariedade e a alteridade, mas
também com a individualidade de cada um de seus componentes.

Dessa forma, “a família contemporânea não admite mais ingerência do Estado, sobretudo no 266
que se refere à intimidade de seus membros. […] A intervenção do Estado deve, apenas e tão
somente, ter o condão de tutelar a família e dar-lhe garantias”12. Verifica-se, portanto, a clara
consolidação do Direito de Família no âmbito privado, protegendo a instituição familiar e
seus membros da interferência estatal excessiva.

No que se refere à intimidade, convém rememorar a lição de Pietro Perlingieri13:

A intimidade da vida privada vista como bem assume uma característica precípua em relação
ao lugar-comunidade dos afetos. Na mais ampla problemática da privacidade, assume um

8 KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
334-335.

9 Ibidem, p. 335-336.

10 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 180-181.

11 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões: ilustrado. São Paulo: Saraiva,
2015.

12 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 181-182.

13 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 182-183.
papel independente a tutela da intimidade da vida privada do grupo familiar, especialmente
do núcleo convivente. [...] Cada um tem o direito, em relação aos parentes próximos, a que
fatos e comportamentos de natureza existencial, relativos a ele e à sua família em sentido
lato, não sejam divulgados ao externo.

Entretanto, embora se reconheça o caráter privado das famílias, não se pode ignorar o
fenômeno da publicização das relações familiares, por meio da exposição na internet. Afinal,
na sociedade atual, as pessoas alimentam suas redes sociais com inúmeras informações e
registros fotográficos, devassando a privacidade da família. Com isso, a internet e as redes
sociais tornam-se palco de conflitos familiares clássicos.

4. Redes Sociais e Direito de Família

Conforme mencionado anteriormente, as redes sociais tornaram-se um ambiente próprio de


relacionamentos, não necessariamente refletindo as relações já consolidadas no ambiente
externo. Assim, as interações ocorrem tanto com pessoas próximas quanto com pessoas
distantes, espacial ou afetivamente.

É comum que amigos e familiares tenham contato entre si por meio das redes sociais. Porém,
quanto mais precária for a comunicação direta entre essas pessoas, maiores são as chances

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de se desenvolverem conflitos e/ou mal-entendidos. Afinal, a máxima “as aparências enganam”
ganha especial relevo no ambiente digital, no qual se postam conteúdos ilimitados, como
frases, imagens e vídeos, que podem ser uma representação deturpada da realidade.

Atualmente, um fenômeno comum na sociedade é a denominada “cultura da ostentação”,


isto é, o exibicionismo de bens materiais de alto valor, luxuosos. Esse fenômeno tem como
grande aliada a internet, que potencializa a (super)exposição e o exibicionismo. Entretanto,
“o problema da referida ostentação está quando o sujeito devedor expõe na Internet uma vida
cheia de luxos, mas afirma não poder arcar com seus compromissos”14. 267

Nesses casos, há uma incongruência entre o padrão de vida promovido nas redes sociais
e o argumento de impossibilidade financeira. Na seara familista, esse conflito é recorrente-
mente verificado no bojo de ações de alimentos. De um lado, o alimentante deixa de pagar
os alimentos devidos e/ou alega a impossibilidade de com eles arcar, ou, ainda, requer a
diminuição de seu valor, sob a alegação de que não é capaz de suportar tais dispêndios. Em
contrapartida, as redes sociais desse mesmo alimentante encontram-se repletas de registros
fotográficos, mostrando-o em eventos e viagens, ao lado de bens valiosos, enfim, exibindo
um padrão de vida elevado, incompatível com a alegada insuficiência financeira.

Diante dessa incompatibilidade, uma das proposições deve ser falsa: ou o alimentante não
apresenta, de fato, a condição financeira que ostenta na internet, sendo realmente incapaz
de arcar com os alimentos fixados, ou, apesar de suas alegações, ele tem, sim, condições
de suportar as prestações alimentícias.

14 OLMOS, Olívia Martins de Quadros; FAVERA, Rafaela Bolson Dalla. Ostentação nas redes sociais como
meio de prova e o posicionamento dos tribunais de justiça: liberdade de expressão versus dívidas. In: SEMINÁRIO
NACIONAL DEMANDAS SOCIAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, XI, 2015, Santa Cruz do
Sul. Anais... Santa Cruz do Sul: Unisc, 2015.
Em qualquer desses cenários, a ostentação no ambiente virtual pode ser levada ao Judiciário
como meio de prova. Afinal, o Código de Processo Civil de 2015 incluiu, expressamente, as foto-
grafias extraídas da rede mundial de computadores e as mensagens eletrônicas como meios de
prova, nos termos do art. 422, parágrafos 1º e 3º, respectivamente15. Conforme alerta o Desembar-
gador Paulo Dimas, “as pessoas estão produzindo provas contra si mesmas sem se dar conta”16.

Nesse sentido, no julgamento do Agravo de Instrumento nº 3199884/PE, o Desembargador


Relator afirma em seu voto que,

ao postar em sua rede social fotografias que ostentam uma vida alimentada por luxos como ida
a shows internacionais, posse de animais de grande porte e sabidamente de elevado valor de
mercado, viagens, passeios de lancha, presença em eventos de público selecionado e consumo
de alimentos e bebidas notoriamente diferenciados (fls. 326/356), o alimentante certamente
indica possuir status social que não se coaduna com o de pessoas que passam por dificulda-
des financeiras. É verdade que, como se diz popularmente, as aparências podem enganar e o
recorrente pode ser pessoa que apenas optou por parecer abastado sem, efetivamente, possuir
tal condição. Mas o agravante, ao obter certos bônus sociais decorrentes da ostentação de
riquezas, deve, sem dúvida alguma, suportar o ônus que essa mesma ostentação traz consigo.
E a obrigação alimentícia é apenas um exemplo dele17.

Ora, percebe-se que as publicações na rede social foram utilizadas como evidências de que o
alimentante dispunha de condições financeiras de suportar as prestações alimentícias. Res-

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salva-se, contudo, que não houve presunção absoluta da capacidade financeira do alimentan-
te. Pelo contrário, o próprio Desembargador reconhece a possibilidade de que as fotografias
do recorrente não correspondam à sua realidade patrimonial.

Dessa forma, oportunizou-se o contraditório. Todavia, a conclusão pela situação abastada do


alimentante “a que as provas indiciárias das fls. 326/356 leva, não foi, em momento algum,
rechaçada de forma convincente”18. Portanto, no caso em análise, foi reconhecida a favorável
situação financeira do recorrente, que demonstra sua possibilidade de arcar com os alimentos.
268
Se, de um lado, é admitido – e recomendável – registrar indícios das condições financeiras
por meio dos conteúdos publicados na internet, não podemos ser coniventes com a prolife-
ração de discussões acaloradas nas redes sociais, especialmente no âmbito das relações
familiares. Para melhor ilustrar nosso posicionamento, vamos recorrer a um estudo de caso.

3.1 Pensão Alimentícia X Baile Do Dennis

Conforme notícia publicada no site Gazeta Online19, um usuário do Facebook publicou, em ja-
neiro de 2017, uma mensagem em um grupo de classificados de Guarapari/ES, com o intuito

15 BRASIL. Código de Processo Civil, de 16 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 29 mar. 2017.

16 TRINDADE, Eliane. Posts em redes sociais viram provas na Justiça. Folha de S. Paulo, 25 jun. 2011.
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2506201101.htm>. Acesso em 29 mar. 2017.

17 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Agravo de instrumento n. 3199884-PE. Relator:


Des. Roberto da Silva Maia. Data de julgamento: 25 mar. 2014. Data de publicação: 01 abr. 2014.

18 Ibidem.

19 GAZETA ONLINE. Pedido de ingresso do Baile do Dennis gera resposta ‘sagaz’ a jovem. Gazeta Online, 22
jan. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/4y08aZ>. Acesso em: 29 mar. 2017.
de comprar dois ingressos para um show, intitulado “Baile do Dennis”. Porém, quem respon-
deu à publicação foi uma mulher, demandando que o usuário pagasse a pensão alimentícia
do filho, em vez de comprar ingresso para show.

Com isso, verifica-se a publicização de um conflito familiar, exposto, inicialmente, a todos


os membros do grupo de classificados. Aumentando as proporções do caso, este se tornou
notícia, sendo mencionado em diversos veículos de comunicação, no âmbito local e nacional.
Para completar, a empresa produtora do show e o próprio Dennis, atração do evento, manifes-
taram-se acerca das postagens sobre a suposta dívida alimentícia20.

Percebe-se, então, que a situação conflituosa ultrapassou a esfera familiar – notadamente


privada –, tornando-se tema de discussão entre inúmeras pessoas que sequer conheciam
os fatos e os sujeitos envolvidos. Há uma verdadeira espetacularização do conflito familiar.
Quanto aos indivíduos afetados, é importante destacar que, assim como na maioria dos
conflitos entre ex-casais, quem mais sofre são os filhos.

Aliás, estes são colocados em uma situação deveras incômoda. Como afirma Pietro Per-
lingieri21, “a comunhão material e espiritual que identifica cada família continua mesmo na
presença de eventos que marcam a separação de alguns de seus componentes: por exemplo,
os filhos que prosseguem a convivência com o cônjuge [...] divorciado [...]”. Ou seja, mesmo
que não haja mais laços de afetividade entre o ex-casal, ainda há laços familiares cercando-

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-os. Afinal, ambos fazem parte da família dos filhos comuns.

Dessa forma, é evidente que são estes os maiores prejudicados em decorrência dos conflitos
familiares. A exposição desses conflitos nas redes sociais só agrava a situação, pois também
se viola sua privacidade. Nesse contexto, convém lembrar um dos princípios norteadores do
Direito de Família: o melhor interesse do menor. Por meio de suas condutas, ambos os pais do
alimentando parecem não se dar conta da necessidade de preservação dos interesses do filho.

Em suma, tendo em vista o caso narrado, ainda que o alimentante esteja em débito, em 269
razão do não pagamento das prestações alimentícias, também se revela inadequada a con-
duta da mulher que utiliza as redes sociais para envergonhar o devedor. A internet não é o
ambiente adequado para se discutirem os conflitos familiares, uma vez que é uma esfera
eminentemente pública, na qual é quase impossível restringir o alcance dos conteúdos dis-
ponibilizados. Levar as questões familiares para as redes sociais é uma afronta ao caráter
privado e de intimidade das famílias.

5. Propostas de Comportamento Diante de Conflitos


Familiares

Diante de casos de ostentação nas redes sociais, em vez de atacar o alimentante por meio
de comentários virtuais, deve o alimentando (por meio de seu representante) salvar as
fotografias e outras publicações que reproduzam a situação financeira do alimentante. Esses

20 BENEZATH, Rita. Dennis DJ compartilha “puxão de orelha” em capixaba e manda recado. Gazeta Online, 23
jan. 2017. Disponível em: <https://goo.gl/0dTJ8i>. Acesso em: 29 mar. 2017.

21 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 244.
documentos poderão (e deverão) ser utilizados como meios de prova, no âmbito judicial, a
fim de refutar eventuais alegações de incapacidade de arcar com a prestação de alimentos.

Além disso, os registros de ostentação podem dar substrato a uma ação revisional de ali-
mentos, postulando pela majoração do quantum fixado. Na lição de Rolf Madaleno22:

Qualquer alteração nas necessidades do credor ou nas possibilidades do devedor dá azo à


revisão dos alimentos, como por exemplo, […] o simples e visível acréscimo dos recursos per-
cebidos pelo alimentante, […] devendo seus filhos credores da pensão alimentícia originária
acompanhar a evolução e o crescimento financeiro do pai, no limite evidentemente da concreta
necessidade dos alimentados, pois o direito alimentar não outorga ao credor participar a custa
do devedor de uma vida de luxo, ócio e opulência.

Reafirma-se, portanto, que em vez de agravar o conflito, por meio da espetacularização de


um conflito nas redes sociais, deve-se buscar o direito do alimentando por meio da justiça.
Nesse ponto, é oportuno apontar que isso não precisa ocorrer, necessariamente, com a inter-
ferência do Poder Judiciário. Afinal, como discorre a juíza francesa Danièle Ganancia23:

A natureza dos conflitos de família, antes de serem jurídicos, são essencialmente afetivos, psi-
cológicos, relacionais, envolvendo sofrimento. Assim, os juízes questionam-se sobre o efetivo
papel que desempenham nesses conflitos, conscientizando-se dos limites do Judiciário.

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Desse modo, é pertinente a busca pela mediação como método alternativo de solução de
conflitos. Inclusive, o Novo Código de Processo Civil incentiva essa prática. Nesse sentido,
o artigo 694 dispõe que: “Nas ações de família, todos os esforços serão empreendidos para
a solução consensual da controvérsia, devendo o juiz dispor do auxílio de profissionais de
outras áreas de conhecimento para a mediação e conciliação”24.

Cumpre observar que, nas ações de família, por existir vínculo anterior entre as partes, é
recomendável a atuação de um mediador, que “auxiliará aos interessados a compreender
as questões e os interesses em conflito, de modo que eles possam, pelo restabelecimento
270
da comunicação, identificar, por si próprios, soluções consensuais que gerem benefícios
mútuos”25, nos termos do art. 165, § 3º, do CPC. Essa atuação coaduna-se, ainda, com o
princípio da menor intervenção estatal, identificado por Rodrigo da Cunha Pereira26, tentando-
se, inicialmente, que as próprias partes solucionem o conflito.

Além disso, Maria Berenice Dias27 ressalta que “a possibilidade de as partes declinarem da
audiência de mediação, alegando desinteresse na autocomposição (CPC 334 parágrafo 5º),

22 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p.
1036.

23 GANANCIA, Daniéle. Justiça e mediação familiar: uma parceria a serviço da co-parentabilidade. Revista
do Advogado, São Paulo, n. 62, p. 7-15, mar. 2001.

24 BRASIL. Código de Processo Civil, de 16 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 29 mar. 2017.

25 BRASIL. Código de Processo Civil, de 16 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/


ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em 29 mar. 2017.

26 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012, p. 176-183.

27 DIAS, Maria Berenice. A Lei de Alimentos e o que sobrou dela com o novo CPC (Parte 1). Conjur, 18 set.
2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-set-18/processo-familiar-lei-alimentos-sobrou-dela-cpc-parte>.
Acesso em: 29 mar. 2017.
não existe no âmbito das ações de família (CPC 695) e, via de consequência, também em
demandas alimentares”. Com isso, promove-se a cultura da mediação no âmbito familiar.

Conclui-se, portanto, que os bate-bocas virtuais devem dar lugar à busca pela solução jus-
ta do caso. Nesse caminho, recomenda-se privilegiar os métodos alternativos de resolução
de conflitos, no caso, a mediação – seja esta judicial ou extrajudicial. Em última instância,
caso o conflito seja levado à apreciação do Poder Judiciário, devem ser admitidas como
indícios de prova as postagens em redes sociais.

6. Considerações Finais

Ao longo do tempo, a concepção de família modificou-se, bem como suas interações espa-
lharam-se, também, pelo ambiente digital. Por consequência, não são incomuns conflitos
familiares desenvolvendo-se por meio da internet, especialmente nas redes sociais.

Diante disso, é necessária a consolidação de um comportamento que preserve o caráter


privado e a intimidade das famílias. Primeiramente, devem-se evitar as discussões públicas
no espaço virtual, de modo que as questões familiares não fiquem sujeitas à exposição a
pessoas que não pertencem àquele núcleo. Além de afastar a interferência externa, isso

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ajuda a proteger as relações familiares, reduzindo as chances de acirramento dos conflitos
existentes e de surgimento de novos problemas.

Por outro lado, as mensagens e fotografias publicadas na internet podem e devem ser utilizadas
como elementos de prova no Direito de Família, como, por exemplo, em situações análogas ao
caso estudado: diante da incongruência entre a ostentação nas redes sociais e o inadimplemen-
to de prestações alimentícias, sob a alegação de impossibilidade financeira. Conforme o Código
de Processo Civil de 2015, tais registros podem consistir em meios de prova em ações judiciais.

Entretanto, é imperioso apontar para a busca preferencial pela mediação, como método 271
alternativo de resolução de conflitos familiares. Tendo em vista o princípio da menor interfe-
rência estatal nas famílias, em razão de seu caráter privado e de intimidade, convém tentar a
solução consensual do litígio, também em atenção ao Novo Código de Processo Civil. Com
isso, visa-se não só a “desafogar” o Poder Judiciário, mas, principalmente, à obtenção de
melhores soluções para os conflitos de família, preservando as relações entre seus membros
e proporcionando a realização de pretensões de todos os envolvidos.

Ressalta-se, ainda, que, na mediação, devem ser valorizadas outras áreas de conheci-
mento, além da ciência jurídica, como a psicologia e o serviço social. Afinal, as relações
familiares são continuadas, prolongam-se no tempo, e seus conflitos são, essencialmente,
afetivos. Essas particularidades devem ser levadas em conta nos casos de mediação
extrajudicial e, principalmente, judicial, devendo o juiz recorrer ao auxílio de profissionais
dessas áreas para proferir melhores decisões. Em suma, com essas propostas, espera-se
alcançar melhores soluções para os conflitos familiares.
Referências

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______. Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Agravo de instrumento n. 3199884-PE.


Relator: Des. Roberto da Silva Maia. Data de julgamento: 25 mar. 2014. Data de publicação:
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so em 29 mar. 2017.
QUANDO AVÓS ASSUMEM O CUIDADO
DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM
SEUS NÚCLEOS FAMILIARES

Lorena Evangelista Santos1

EIXO TEMÁTICO: FAMÍLIA

O presente estudo busca contribuir para a reflexão a respeito do cuidado de


crianças e adolescentes sob a responsabilidade de avós, as quais devido ao
contexto social passam a desenvolver o cuidado de seus netos. Como espaço
temporal, o estudo é na perspectiva de relato de experiência, possibilitado de-
vido à inserção no Programa de Residência Multiprofissional no ano de 2016,
tendo por recorte este ano e a inserção em dois campos de prática, ambula-
tório e unidade de saúde (níveis secundários e primários de atenção). Assim
buscou-se levantar e questionar aspectos observados quanto às avós que de-
senvolvem esse papel de cuidado dos netos. Para isso utilizou-se como meto-
dologia pesquisa descritiva e exploratória e analise de conteúdo, os quais for-
neceram caminhos para o estudo, dialogando sempre com o que bibliografias

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trazem a respeito da temática.

Palavras-chave: Família. Avós. Criança e adolescente.

1. Introdução

A estrutura familiar brasileira tem apresentado novas formas de organização (GABARDO et al, 273
2009), de tal forma que o modelo formado por pai, mãe e filho, ainda que em maior número,
tem dado lugar aos novos arranjos familiares (TEIXEIRA, 2008). Dito isso, observa-se que as
famílias têm apresentado formações diversificadas, podendo ser: Conjugal (pais e filhos), de
varias gerações, chefiada por homem ou mulher, unipessoal, homossexual, de irmãos, dentre
outras (TEIXEIRA, 2008). Assim,

A dinâmica familiar será compreendida à luz da maneira pela qual os membros da família se re-
lacionam e mantêm seus vínculos. Associado a isso, a dinâmica se dá por meio das interações
que são estabelecidas em sua estrutura, ou seja, é o modo pelo qual seus membros lidam com
problemas e conflitos originários do ideal da família, a partir das relações hierárquicas e dos
papéis familiares (CALOBRIZI, 2001, p.06).

Ainda sobre a dinâmica familiar, acrescenta-se que, os efeitos das crises econômicas, so-
ciais e a organização do mundo do trabalho também se refletem nas mudanças das confi-
gurações familiares, onde essas em determinadas situações se moldam para sobreviver às
adversidades e obstáculos da sociedade contemporânea (CALOBRIZI, 2001).

1 Assistente Social residente do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Criança e do


Adolescente. Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail:lorsantos@hotmail.com. Telefone: (27)99972-0247
Dessa maneira, independente dos novos modelos de organização familiar, deve-se entender
que o mais importante é garantir o bem-estar a todos, ou seja, a garantia da sobrevivência, do
desenvolvimento e da proteção integral de seus membros, de forma que os mesmos estejam
satisfeitos com as pessoas e meio em que vivem e não apenas adaptados a uma situação
que a vida proporcionou (GABARDO et al, 2009).

Nesse sentido, este trabalho busca abordar a responsabilidade que as avós têm assumido
quanto ao cuidado de seus netos, entendendo que a transferência de cuidado (dos pais para
as avós) é assumida por diversos fatores sociais que perpassam as famílias.

A princípio torna-se essencial entender que embora seja bom manter o cuidado da criança
e/ou do adolescente no núcleo familiar, pode ocorrer de ao assumirem esta responsabili-
dade primária, as avós substituam o papel da mãe, cabendo a estas avós funções seme-
lhantes ao da função materna (MAINETTI; WANDERBROOCKE, 2013). Atrelado a este fator,
existem outras questões que podem decorrer dessa transferência, especialmente quando a
avó cuida dos netos em tempo parcial ou integral, o que pode acarretar em altos níveis de
stress e sobrecarga (ARRAIS et al, 2014).

Considerando tais questões, o presente estudo tem por objetivo contribuir de maneira provo-
cativa e reflexiva a respeito de crianças e adolescentes que são criados por avós no estado
do Espírito Santo. Ressalta-se ainda que o estudo ora apresentado constitui-se de relato de

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experiência proporcionada pela inserção no Programa de Residência Multiprofissional em
Saúde da Criança e do Adolescente no Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes
– HUCAM no primeiro ano de 2016, enquanto assistente social. Logo, as questões trabalha-
das restringem-se aos atendimentos do primeiro ano de residência e aos seus respectivos
campos de prática (ambulatório e unidade de saúde).

Quanto à experiência vivenciada nesse ano, acrescenta-se que durante a estadia nestes cam-
pos de prática, a temática aqui apresentada repercutiu entre os residentes, visto que tornava
cada vez mais expressivo o número de crianças e adolescentes cuidadas por avós. A partir 274
de tais inquietações e recorrendo a literatura, estudos como de Mainett e Wanderbroocke
(2013) apontam que dentre os fatores existentes para que avós assumam a criação de seus
netos, destaca-se: substituição de pais falecidos, gravidez na adolescência, negligência por
parte dos pais, dependência química, transtornos mentais por parte dos pais ou até mesmo
dos netos e algum tipo de violência. Fatores estes que, em alguns casos, fizeram-se presente
para Equipe de Residência Multiprofissional nos campos de atuação supracitados.

Diante dos expostos, defende-se a necessidade de estudos que contribuam para a temática, visto
que o assunto aqui abordado aparece em seus diversos níveis de atenção em saúde e no que tan-
ge ao referencial teórico, observou-se uma escassa literatura da temática nesta política. Enten-
dendo isso, o presente trabalho adota como metodologia, a pesquisa descritiva e exploratória.

O uso da pesquisa exploratória justifica-se por envolver levantamento de dados e possibilida-


de de explicitar melhor o problema com base em referencial bibliográfico (GIL, 2008).

No que tange a adesão da pesquisa descritiva, julga-se pertinente o seu uso por meio da
compreensão de que esse tipo de pesquisa possibilita a descrição de características/
peculiaridade de um determinado público na coleta de dado, e é exatamente isso que o
estudo buscará apresentar (GIL, 2008).
Como técnica de análise utilizou-se a Análise de Conteúdo que implica em categorizar
mediante embasamento teórico (BARDIN, 1997). Sendo uma técnica que procura identificar a
especificidade dos dados encontrados (BARDIN, 1997).

2. Quando Avós Assumem o Cuidado de Seus Netos: Uma


Questão a Ser Discutida

O programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Criança e do Adolescente do


Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (HUCAM) ligado a Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES) é composto por diversos profissionais da área da saúde, exceto mé-
dicos. Caracterizado pela integração de ensino e serviço (portaria Interministerial nº506,
de 24/04/2008), o programa possui uma carga horária de sessenta horas semanais, sendo
80% em prática assistencial e 20% de atividade teórica, ao final dos dois anos de residên-
cia a carga horária total é de 5.760 horas.

Em 2016, a equipe que se insere (Residentes do primeiro ano –R1) contavam com 18 profis-
sionais de sete áreas de atuação, a saber: Assistentes Sociais, Cirurgiã-Dentista, Enfermeiras,
Farmacêuticos, Fonoaudiólogos, Terapeuta Ocupacional e Psicólogos.

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Dando ênfase ao campo de prática (o qual ocupa 80% da carga horária da residência), ao
serem inseridos na residência multiprofissional, os profissionais são divididos em duas
equipes, as quais atuam no ambulatório de pediatria do HUCAM ao longo de um semestre
e em uma unidade de saúde do território Maruípe. Coloca-se que ao serem inserido nestes
campos, a prática dos residentes é acompanhada de maneira sistêmica por profissionais do
serviço, os quais respondem por essas práticas e pela coordenação da residência.

Quanto à fundamentação da inserção desses profissionais nos serviços, a equipe de


residência multiprofissional se constitui enquanto uma alternativa para efetuar uma inte-
275
gralidade em saúde. Para tal, julga-se necessário à compreensão do processo multipro-
fissional constituído no interior da equipe.

Segundo Feuerwerker e Sena-Chompre (1999), o trabalho multiprofissional promove a integra-


ção entre conhecimentos técnicos diferentes, fato que garante propostas de intervenção, as
quais não seriam produzidas por um profissional isolado. Partindo desse pressuposto, com-
preende-se a multiprofissionalidade como uma modalidade de trabalho que se fundamenta
na troca de vários saberes e intervenções.

Na prática, a multiprofissionalidade constitui-se como desafio para os profissionais de saúde,


uma vez que requer que os conflitos sejam enfrentados de forma dialógica e em muitos ca-
sos, a prática desses profissionais ocorre de maneira corriqueira (PEDUZZI, 1998). Entretan-
to, apesar dos desafios é necessário colocar a multiprofissionalidade em execução, devido
ao seu potencial de contribuição para o atendimento integral ao paciente.

Prosseguindo, acrescenta-se que durante a estadia nestes espaços de inserção, a equipe


de residência buscava conhecer o trabalho dos profissionais do serviço, posteriormente
organizavam sua rotina de trabalho que consistia em participar de atividades do serviço (a
depender do campo, ambulatório ou unidade de saúde) de forma paralela às atividades da
residência (acolhimento familiar, atendimento multiprofissional, interconsultas, atividades
com grupos, Programa Saúde na Escola – apenas na unidade de saúde –, discussão multi-
profissional e atendimento específico).

Durante as atividades da residência, a equipe buscava trabalhar a triple criança e/ou ado-
lescente, equipe e família, relação essa estabelecida durante o tratamento. A escolha desse
modelo de trabalho consiste em entender que o processo saúde-doença é envolvido por
diversos fatores, e que a participação no processo de acompanhamento vai para além de
acatar decisões, mas em construir em conjunto a melhor proposta de tratamento.

De tal forma que é do olhar minucioso que emerge a observação sobre alguns aspectos
que envolvem as famílias das crianças e adolescentes, dentre eles os das avós como
principais cuidadoras.

Essa questão aparece desde o acolhimento quando são convocados os responsáveis para
uma roda de conversa, passando pelo atendimento multiprofissional mediante a identificação
do principal cuidador da criança e/ou adolescente e apresenta-se de forma mais detalhada
em atendimentos específicos (principalmente do serviço social).

Nesta perspectiva, o estudo aqui apresentado persiste sob a percepção do serviço


social, o qual teve maior aproximação com as famílias e buscou direcionar algumas
questões colocadas em atendimento.

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No que tange aos atendimentos específicos com as famílias onde o principal cuidador ou
até mesmo responsável eram as avós, observou-se que das 28 famílias acompanhadas pelo
serviço social (março-agosto de 2016 no ambulatório e de agosto-fevereiro de 2017), 10
tinham como principal cuidador/provedor/responsável as avós, apresentando um percentual
de 35,71% do total de famílias atendidas (justifica-se que os demais também apresentavam
outras formas de organização e não seguiam necessariamente o modelo pai e mãe). Acredi-
ta-se que apesar de não ser majoritário, o número é expressivo.
276
Quanto à estrutura familiar que engloba a co-habitação de avós e netos, podemos evidenciar
dois grupos, a saber: no primeiro, temos os lares compostos por três gerações, os quais
apresentaram considerável aumento a partir da década de 80, e em que ambos os pais ou ao
menos um deles reside com avós e netos (ARRAIS et al, 2012); no segundo grupo, mais co-
mum a partir da década de 90, os pais estão ausentes do lar e cabe aos avós todo o cuidado
com os netos (ARRAIS et al, 2012).

Apesar da presença dos dois modelos citados, o segundo grupo – pais ausentes do lar – foi
o mais expressivo por vários motivos: mãe que mora em outro estado/país, pai que viaja
muito, uso de substâncias psicoativas, pai ou mãe em reclusão, pais que trabalham muito,
abandono de lar, recusa em cuidar por se considerar incapaz, casamentos diferentes, gravi-
dez na adolescência, transtorno mental por parte da criança e/ou adolescente, envolvimento
em tráfico de drogas por parte dos pais, dentre outros.

Esses fatores revelam que estas famílias possuem questões que em muitos casos exigiam
o acompanhamento pela rede de proteção à criança e ao adolescente, isso por entender
que o cuidado envolve aspectos físicos, sociais, econômicos e psicológicos. De forma
que, ao perceber que ao perceber que a família não estava recebendo o cuidado que neces-
sitava na rede de proteção, buscava-se direcioná-las.
Enfatiza-se ainda que, das 10 famílias, apenas 02 possuíam a guarda da criança e/ou
adolescente e 01 não tinha certeza se tinha ou não (senhora de idade avançada, relata
que quando pegou a criança da filha lembra que assinou um papel, mas não tinha nenhum
documento que comprovasse a guarda). As demais não tinham formalizado e não possuíam
interesse e quando mencionada a necessidade de formalizar, as mesmas demonstravam
recusa em continuar o atendimento e em sua grande maioria falavam que não, pois temiam
a retomada de cuidado das crianças e/ou adolescentes pelos pais.

Menciona-se que, no que tange ao cuidado, as avós assumiam toda a responsabilidade, estan-
do sempre presente no tratamento, entretanto, em alguns casos, mesmo com a existência de
mais pessoas inseridas no seio familiar, cabia somente a elas a resolutividade das demandas
de seus netos, mostrando que realmente “As mulheres idosas em especial, assumem papel im-
portante frente às novas configurações familiares” (MAINETTI; WANDERBROOCKE, 2013, p.04).

Tais questões podem gerar dificuldade às avós em diferenciar o que é ser avó do papel que
desempenham como cuidadoras dos netos (LOPES; NERI; PARK, 2005). Sendo observado, em al-
guns momentos, a troca da figura, de modo que a avó passa a ser chamada de mãe pelo seu neto.

Diante dos vários efeitos que tem esse fenômeno, nota-se que em muitos casos, ao
assumirem a responsabilidade de criarem seus netos, as avós perdem a representação do
que é ser avó para assumirem uma função materna, a qual se sobrepõe ao papel de avó

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(MAINETTI; WANDERBROOCKE, 2013). Assim, as avós experimentam diversos sentimentos,
como demonstrado por estudos (Os casos analisados apresentaram semelhanças com
estudos desenvolvidos por Araujo e Dias (2010),

A perda (dos filhos, dos companheiros de sua idade, de sua liberdade); ansiedade, ao ter que li-
dar com crianças ainda em desenvolvimento; raiva e rancor contra os filhos que as deixaram em
tal situação. Elas também podem vivenciar medo de não poderem acompanhar o crescimento
dos netos até se tornarem adultos e de não ter quem cuide deles na sua falta. Muitas se senti-
ram inadequadas e acharam que faltaram como mães e, com isto, apresentaram confusão de
277
papel por estarem desempenhando uma função que, na realidade, seria dos pais. Elas também
se queixaram de seu estado de saúde e algumas chegaram a desenvolver depressão. As avós
tenderam a esquecer sua própria condição de saúde para atender às necessidades dos netos.
Outros sentimentos relatados pelos avós configuram uma ambivalência: cansaço e medo de
perder sua privacidade se misturaram aos de realização, renovação, orgulho e satisfação de
terem contribuído com seus filhos e netos.

Considerando os aspectos descritos, pondera-se que além de serem mencionadas como


sendo pessoas que podem oferecer suporte e apoio ao adolescente e à criança, deve ser
considerada a necessidade das avós de receberem apoio na função substitutiva, uma vez que,
apesar de desejarem continuar exercendo o papel de cuidadoras, as avós expressam também,
somadas ao fator idade, queixas de sobrecarga, cansaço e estresse (ARRAIS et al, 2014).

Estas queixas fizeram-se presentes durante os atendimentos, com isso buscou-se trabalhar o
cuidado consigo, articulando-se sempre com os dispositivos de saúde e frisando junto a eles a
necessidade de acompanhamento das referidas avós. Embora tenha ocorrido esse movimento
por parte dos profissionais que procuravam sempre colocar a importância de cuidar de si para
cuidar do outro, nem sempre foi possível obter sucesso, pois ocorria pouca adesão de trata-
mento para elas, diferente do que ocorria para seus netos, pois uma das demandas colocadas
por elas consistia na busca de qualidade de vida para seus netos, esquecendo-se de si.
Entretanto, apesar da oferta de cuidado e proteção com as crianças e/ou adolescente, visto
que é inquestionável o forte vinculo estabelecido, a sobrecarga se fazia muito presente, sen-
do colocada a responsabilidade de prover o suporte familiar como algo que não era almeja-
do, mas que se fez necessário. De acordo com Mainete e Wanderbroocke (2013, p.07),

Ao assumir um neto para criar, essas mulheres, pertencentes a uma camada mais desfavoreci-
da, tiveram que remanejar sua vida nos aspectos profissional, financeiro e familiar, para darem
conta do aumento das despesas e tarefas domésticas.

Visto que essas mulheres acabam retomando um lugar que já foi desenvolvido por elas,
sendo assim absorvem novas responsabilidades, as quais não necessariamente eram
almejadas. Outro aspecto que merece ser dito corresponde às demandas trazidas por
essas avós, sendo: tratamento especializado para os netos, Bolsa Família, dificuldade
de compreensão do tratamento, busca por orientação quanto à procura de tratamento de
alto custo e principalmente requisição de orientações quanto ao Beneficio de Prestação
Continuada- BPC. Esclarece-se que a procura deste último ocorre devido a suspeita ou
diagnostico de algum comprometimento neurológico.

Diante das demandas trazidas, buscava-se orientar e direcionar as mulheres atendidas aos
dispositivos de competência, sendo necessário articular ou conversar primeiro e depois
direcioná-las conforme o que foi pactuado com a rede ou com os profissionais que já acom-

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panhavam essas famílias. Tais ações justificam-se pela constatação de que quando ocorria
a mediação entre usuário e profissionais/dispositivos os resultados eram mais favoráveis,
sendo postulados até mesmo pelas próprias famílias atendidas.

No que tange à articulação externa, em muitos casos foram obtidas respostas satisfató-
rias, entretanto, observou-se que os dispositivos sofrem com a crise instaurada no país,
apresentando escassez de recursos e/ou métodos para sanar com a necessidade assisten-
cial absorvida pelo município. Acredita-se que mediante dificuldades que envolvem uma
questão estrutural, é de extrema importância contextualizar as famílias sobre a conjuntura 278
social que as envolve, trabalhando sempre na perspectiva de emancipação (CALOBRIZI,
2001). Entretanto, no que tange à responsabilidade sobre a criança e o adolescente, a
Constituição Federal de 1988 estabelece no art.227 que

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,


com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissio-
nalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão (BRASIL, 1988, p.37).

Ou seja, se o Estado não consegue prover o que foi estabelecido na Carta Magna, ele se omite
em suas obrigações, justificando-se sob a ótica de ausência de recurso. Entre as consequências
dessa omissão está a responsabilização exclusiva, em alguns casos, das famílias atendidas.

Assim, observou-se que embora as avós necessitem de algum tipo de beneficio da assistência
social para complementação de renda (já que a aposentadoria não é algo assegurado a to-
das), nem sempre era obtido sucesso quanto às requisições de caráter assistencial, restando-
lhes viver de rendas informais, com o auxílio de parentes ou até mesmo da sociedade civil.

Salienta-se que, mesmos com todas as dificuldades financeiras, as avós não abandonaram
seus netos e nem pensavam nisso. E mesmo absorvendo todo esse papel, as avós explici-
tavam que a função exercida não é socialmente reconhecida, mas estabelecida como dever
posto a elas, o que as fazia aceitar tal obrigação.

Com isso, afirma-se por meio da experiência vivenciada que apesar das diversas questões
que perpassam a responsabilidade que as avós têm assumido ao se comprometerem a
prover o cuidado de maneira integral aos seus netos, elas não medem esforços para tê-los ao
seu lado e buscam contribuir para o pleno desenvolvimento dessas crianças/adolescentes. E
que tanto as avós como os netos são envolvidos por essa relação, onde ambos se proporcio-
nam vivenciar momentos de alegria, carinho e companheirismo.

3. Considerações Finais

A partir da realização do presente estudo, observou-se que a questão da transferência de


responsabilidade no cuidado de crianças e adolescentes para as avós, é tema que já vem
sendo discutido por alguns autores. Contudo, foram encontrados poucos trabalhos que
abordem os efeitos desse fenômeno nos netos.

Lopes, Neri e Park (2005) apontam que, na ausência dos pais, ter avós como cuidadores
principais pode ser mais benéfico para as crianças do que morar com outras pessoas. Isso

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devido à sensação de pertencimento à sua família de origem. Entretanto, segundo Araújo
(2010), o sentimento da criança de abandono e sensação de não pertencimento a esse
novo contexto familiar ainda ocorre.

Nesse sentindo, o questionamento sobre o que isso representava na visão da criança e/ou
adolescente fez-se presente para o serviço social como também para toda equipe durante as
discussões de caso, porém não foi possível obter resposta concreta para a prerrogativa.

É importante ressaltar que não há uma forma de organização familiar ideal para um
desenvolvimento saudável da criança. Uma família relativamente estabelecida não garante 279
a segurança de que as crianças não cresçam sem angústia e dificuldades (MAINETTI;
WANDERBROOCKE, 2013).

Quanto ao que a bibliografia aponta sobre os fatores sociais que levam as avós a assumirem
o cuidado de seus netos, observou-se as questões vistas nesta experiência condizem com os
estudos. Entretanto, necessita-se de expandir os estudos, visto que diversas podem ser as
implicações que esta responsabilidade pode trazer, tanto para as avós como para seus netos.

Com relação às peculiaridades do estudo, em especial a questão da não formalização desse


cuidado (não ter a guardar) coloca-se que foram passadas todas as informações para que se
formalize e explicado sobre as implicações que isso pode ter.

Outra questão de suma importância diz respeito à dificuldade em arcar com as despesas
da família, pois as avós relatam da dificuldade em conseguir apoio familiar e até mesmo
na rede para questões ligadas a assistência de maneira geral (assistência social, farma-
cêutica, médica, entre outras).

Por fim, diante de todas as questões aqui apresentadas, o estudo conclui dizendo da
necessidade de viabilizar direitos para com as novas formas de organização familiar, em
especial as avós que cuidam de seus netos, pois quando o Estado se omite de suas obriga-
ções (justificando escassez de recursos) e aplica políticas focalizadas, uma considerável
parcela de pessoas fica desprotegidas socialmente.

Daí emerge a necessidade de oferta de ações para com esse público, sendo essencial traba-
lhar questões que atravessam o cuidado com o outro e consigo, pois foi observado que em
muitos casos, o olhar para si já não é considerado por essas cuidadoras.

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REVISTA CIENTÍFICA
2ª Jornada Científica do Fórum de Assistentes Sociais
e Psicólogos do Poder Judiciário do Espírito Santo
Realização

Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo

Fórum de Assistentes Sociais e Psicólogos do Poder Judiciário do Espírito Santo (FASP/ES) -


Biênio 2016/2017

Parceria
Escola de Magistratura do Estado do Espírito Conselho Regional de Serviço Social –
Santo (EMES) CRESS/17ª Região

Universidade Federal do Espírito Santo Associação dos Servidores do Poder


(UFES) Judiciário do Espírito Santo (AJUDES)

Conselho Regional de Psicologia – CRP/16ª Sindicato dos Trabalhadores do Poder


Região Judiciário (SindiJudiciário-ES)

Comissão Organizadora

Ana Paula Brito Mozer Raquel Mota Mascarenhas

Cristiane de Mesquita Silva Renata Santiago Lima

Emilly Marques Tenorio Rosely Socolott da Silva Santos

Fernanda Pinheiro de Oliveira

Banca Avaliadora

Prof.ª Me. Camila Costa Valadão – Mestre em Política Social pela Universidade Federal do
Espírito Santo. Professora do curso de Serviço Social da Faculdade Católica Salesiana de Vitó-
ria-ES e conselheira do Conselho Regional de Serviço Social 17º Região/ES (gestão2014-2017).

Prof.ª Dr.ª Fabiana Pinheiro Ramos – Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Fe-
deral do Espírito Santo; Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade
Federal do Espírito Santo e membro da diretoria nacional da Associação Brasileira de Ensino
em Psicologia (ABEP) (biênio 2013-2015).

Prof.ª Me. Naara de Lima Campos – Doutoranda e Mestre em Política Social pela Universida-
de Federal do Espírito Santo. Professora do Curso de Serviço Social da Faculdade Multivix e
conselheira do Conselho Regional de Serviço Social 17º Região/ES (gestão2014-2017).

Prof.ª Dr.ª Rebeca Valadão Bussinger – Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Fe-
deral do Espírito Santo; Professora do curso de Pedagogia da Universidade Estácio de Sá de Vila
Velha e conselheira titular do Conselho Regional de Psicologia 16º Região/ES (gestão 2013-2016).

Revisão ABNT e Gramatical: Os artigos foram publicados na íntegra sob a responsabilidade de


seus respectivos autores.

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