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Copyright© 2003 by Maria Eliza Linhares Borges

Projeto gráfico da capa


}airo A/varenga Fonseca
{"A Fotografia oas viagens de explora~ilo". Reproduzido de Tíssandicr.
Gastoo. Le Merveille.< de la pholo};rnph1e. París· Hachette. !874.
In .. KOSSOY; Boris. Ori¡:em e expansiio d<1ft,wgrnfia no Br<1.<il:
.<éculo XIX. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1980. p. 58)

Coordenadores da coler;llo
Carla Anastasia
Eduardo Paiva

Editorai;llo e!etrónica
Wuldénia Alvarenga Santos Ataide

Revisllo
Ana E/isa Ribeiro

Borges, Maria Eliza Linhares


B583f História & Fotografía J Mana Eliza Linhares Borges .-
Belo Horizonte: Auren1ic;¡, 2003.
l 36p. (Coler;ao História &.. Rcflexoes, 4)
ISBN 85-7526-075-8

1. Fotografia-história. I. Título. 11. Série.

cou 77(091)
791.43

AL'l.'!',!./
2003
Todos os direitos reservados pela Auti'ntica Editora.
Nenhuma parte drsta publica,;-.'io poderá ser reproduzída,
seja por meios medinicos, e!etrómcn, se¡a via cópia xerográfica
sem a autorizar;.'io prévia da editora.

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31 J J 0-060 - Bel o Horizonte - MG
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PABX: íSS 31) 3423 3022- TELEVENDAS 0800 2831322
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da vida e devofvidos a e/a com revelap5es inesperadas.
e•mail: autentica@a111ent icaed itora.~om .br Luis Humberco
SUMÁRIO

11
INTRODU(ÁO ........ .

CAPÍTULO 1
A Ciéncia Histórica na época 15
da invern;lio da Fotografía ..... .
A ilusao de movai;:iio ............................................................ 15

A historiografía metódica e a rcjeii;:ao do


documento fotográfico ........................................... .
19
As fontcs de pesquisa histórica e a ct.!w.:ai;:ao do olhar. .. .
25

CAPÍTULO 11
Tradi9iio e modemidade na mira dos fotográficos .............. 37
O retrato fotográfico: diálogos com a pintura................... .... 40
A era dos estúdios fotográficos ..................................... .
50
58
A era dos .:arti\es-postais ..................... .
62
A fotografia e as reprcsentao;:Oes da mortc.
67
Fotografia, imprema e políticas púhlkas ...... .

CAPÍTULO [[I
A História-conhecimento e o documento fotográfico 75
Pe;quisa histórica e documentos visuais.... ....... ... . .......... .......... 7 5
Viagens fotográficas ............................................................. 88
A Missáo Hc!iogrática Francesa e outras viagcns ......... .
92
..... 100
O Brasil e o imaginário dos fot6grafos viajantes .. .

. 111
CoNSIDERA(ÓES flNAIS .................................. .

FoTOGRAFIA: CRONOLOGJA .................................................. .115

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................. 12 J


INTRODU(:ÁO

Muito tem sido dita e escrito acerca da-. relar;oes entre


Imagens e Ciencias Sociais. Basta correr os olhos pelossumários
das revistas academicas, pelos catálogos de editoras voltadas
para o público universitário ou mesmo observar a disposir;fio
dos livros nas estantes e vitrines das livrarias para perceber a
proliferar;íio de temas ligados a esse campo de estudo. Entretan-
to, em que pese a inequívoca importáncia das imagens visuais
no trabalho de pesquisadores, estudantes e no cotidiano dos di-
ferentes setores da sociedade contemporiinea, ainda é possível
constatar a carencia de publicru;Oes que preencham a demanda
específica por critérios teórico-metodológicos acerca da utiliza-
r;iio de imagens fotográficas no campo da análise histórica. Muito
freqüentemente professores de História de diferentes níveis
educacionais nos relatam suas dificuldades para explorar, em
sala de aula, a rica relai;ao existente entre História e imagens,
particulannente entre História e Fotografia.
Este livro, sobre a relai;üo entre a história-conhecimen-
to e a fotografía, vero responder a algumas dessas demandas.
Mais que teorizar sobre a natureza da imagem fotográfica ou
mesmo criar novas categorias analíticas voltadas especifica-
mente para o estudo da iconografia saída da camera escura,
nossa inteni;üo primeira é contribuir para uro diálogo fértil
entre a fotografia, aqui entendida como matéria do conheci-
mento histórico, e a história-conhecimento. Para tal, busca-
mos sistematizar conhecimentos disseminados em diferentes

11
CmE<;..\o "Hl51óW, &.,. RLeLLSÜ[S" História & fotograf;a

estudos, muitas vezes inacessíveis 8.queles que, embora mo- que hoje orientam a análise dessa importante fonte de pesqui-
vidos por inquietar;6es metodológicas, nao sabem por onde sa histórica.
comer;ar essa busca. No terceiro e último capítulo, tratamos da relar;iio boje
No primeiro capítulo, levantamos urna questao pouco existente entre a história-conhecimento e o documento foto-
explorada pelos historiadores que boje vém se dedicando a gráfico. Após urna reflexao sobre a natureza da Jinguagem fo-
refletir acerca do lugar e do papel das imagens visuais, da fo- tográfica e de suas similitudes com outrns imagens, fizemos
tografia em especial, na pesquisa histórica. Analisamos as ra- urna breve incursa.o sobre as viagens fotográficas, de estran-
z6es teórico-metodológicas que levaram urna parcela signifi- geiros e nacionais, através do Brasil imperial e republicano.
cativa da comunidade de historiadores do século XIX a Certamente que ao transitarmos por esse longo período,
estabelecer urna hierarquia de importancia entre as fontes de mais que secular, que marca de um lado o surgimento da foto-
pesquisa histórica, a classificar as fontes vüuais como docu- grafía e de outro a sua incorpora¡;:5o a pesquisa histórica, nao
mentos de pesquisa de segunda categoría e, finalmente, a nao abordaremos todas as quest6es relativas a convivéncia entre
incluir a fotografia no rol dos documentos de pesquisaem His- essa imagem e a história-conhecimento. Ternos, no entanto, a
tória. Esse retorno a historiografia do século XIX nao é gra- convic~ao de que a natureza e a abrangencia da abordagem
tuito. Nao podemos nos esquecer de que os panlmetros que aqui proposta hao de contribuir para o estímulo a utiliza95o,
nortearam o ensino e a pesquisa histórica nesse período trans- cada vez maior, das imagens fotográficas na pesquisa e no en-
cenderam seu próprio tempo. Mais que isso, deram o tom, por sino da História.
décadas e décadas, a grande maioria dos manuais de história A realizai;ao <leste livro contou com a contribui9iio de
utilizados nas salas de aula das instituü;:6es universitárias e do diversas pessoas. Dentre elas gostaria de expressar minha gra-
ensino fundamental e médio no decorrer do século XX. Em tid5o a Amélia Aurora de Magalh5es, a Amelinha, pelo incen-
grande medida, pode-se dizer que a fon;a dessa heranr;a muito tivo e pela leitura criteriosade partes da prime ira versa.o. Tam-
contribuiu para dificultar o desenvolvimento de metodologías bém nao posso deixar de agradecer ao jovem fotógrafo Felipe
capazes de fazer falar as fontes visuais. de Freitas Dutra, pelo empréstimo de bibliografía; aos organi-
No segundo capítulo, buscamos mostrar que, embora re- zadores desta coleqao, Carla Maria Junho Anastásia e Eduar-
jeitada como fonte de pesquisa histórica, a fotografía introdu- do Franr;a Paiva, pela confian~a; ao Otávio e a Luiza, meus
ziu um novo tipo de ver e dar a ver a diversidade do mundo amores e companheiros de cada día: e a Marlucia pelas xíca-
moderno, rapidamente incorporado por homens e mulheres do ras de café.
século XIX e das primeiras décadas do século XX. Sem pre- Como de praxe, gostaria de dizer que as fa\ha,;, porventura
tender desenvolver urna história da fotografía, elegemos algu- contida,; neste \ivro, sao de minha inteira responsabilidade.
mas representar;oes fotográficas de maior expressao nesse pe-
ríodo para, a partir delas, buscarmos compreender os usos e as
fun~0es sociais a elas atribuídas pelos fotógrafos, profissionais
e amadores, dos anos oitocentos. Simultaneamente a esse des-
cortinar do olhar fotográfico introduzimos alguns dos critérios

12 13

l
CAPÍTULO l .....

,. __
A Ciencia Histórica na época
da inven~íío da Fotografía

A ilusao de inovarao

Antiga hóspede da literatura, da política e da filosofia, a


História busca, ao longo do século XIX, construir sua própria
morada. No decorrer desse período, historiadores de diferen-
tes correntes teórico-metodológicas empenharam-se na defi-
nii;ilo da fisionomía e da identidade cognitiva da História coro
o objetivo de distinguí-la das demais ciencias do homem. É
também esse o momento do surgimento de um novo tipo de
imagem visual: a fotografía. Desde entao, sua trajetória e suas
relai;óes com a história-conhecimento tCm p~sado por per-
cursos variados e até mesmo inimagináveis por seus criadores
e pelos historiadores de oficio do século XIX.
Hoje, a análise da relai;üo entre a história-conhecimento
e a fotografía, objeto central deste livro. comporta múltiplos
caminhos e diferentes abordagens. No entanto, esse diálogo,
cada vez mais fértil, nem sempre foi celebrado de maneira
positiva. No decorrer do século XIX e das primeiras décadas
do século XX, um grupo significativo de historiadores se re-
cusou a lani;ar müo da fotografia como fonte de pesquisa his-
tórica, muito embora os diferentes setores da sociedade e de
outras áreas científicas tenham valorizado e utilizado esse tipo
de imagem desde o seu surgimento.
Neste capítulo, ana\isaremos as razóes da rejeii;üo da fo-
tografía pelos historiadores ligados a historiografía metódica

IS
COLE~,'.() "HISJÓRI~ & ... REFtEXÓl> •
Históna & FotogrJiid

do século XIX. Mas por que iniciar o estudo da relar;ao entre a oferece através dos documentos" .1 Por isso mesmo, o trabalho
história-conhecimento e a fotografia a partir de sua nega91io?
do historiador era dar visibilidade ao passado até entao escon-
Nao será esta opr;ao um contra-senso?
dido nos documentos guardados nos arquivos. Nao por acaso
Por mais de urna vez ternos presenciado o uso da foto- os críticos desse modo de abordar a História dizem que a his-
grafia, como um recurso pedagógico destinado a despertar o
toriografía metódica instituiu a místi~a de um conhecimento
interesse de alunos do ensino fundamental pelo estudo da
essencialmente objetivo e mecánico, ou seja, natural.
história de sociedades passadas. O problema é que iniciati-
vas como essas, por certo louváveis, tém, muitas vezes, se Ora, quando o conceito de conhecimento histórico deixa
reduzido a mera reuni5o e exposir;ao das imagens coletadas. de ser percebido como dado natural e passa a ser entendido
Os cuidados necessários para a compreensao das particulari- como conteúdo cultural sujeito a interpretaf5es, estamos di-
dades da linguagem fotográfica siio, freqüentemente, descon- ante de um outro paradigma. A essa altura,já nao se pode mais
siderados. Tal procedimento acaba por reforr;ar nos alunas a aplicar as evidencias históricas e aos documentos os mesmos
idéia de que os homens e mulheres de ontem viviam exata- conceitos de fonte e de pesquisa histórica propostos pelo para-
mente como se apresentam nas respectivas fotografías. digma que dava suporte a historiografía metódica.
Quando utilizada sob essa perspectiva, a imagem foto- Como nos lembra Thomas Khun, um paradigma é um
gráfica está senda concebida como um dado natural, quer modo científico de produzir conhecimentos. Seu funcionamen-
dizer, como testemunho puro e/ou bruto dos fatos sociais. Os to pressup6e um arranjo entre perguntas e tentativas de res-
que assim procedem, encarama fotografía como duplicar;iio postas, mediado por hipóteses, que, durante um certo tempo,
do real. Transformada em espelho do real, a fotografía dis-
orienta os rumos da pesquisa da comunidade de praticantes de
pensa o emprego de metodologias capazes de fazé-la falar.
urna ciencia. Toda e qualquer questao que nao se encaixe nes-
Assim concebida, o tratamento dado a fotografía é o mesmo
que os historiadores do século XIX davam aos documentos se arranjo - ao qua! Khun chama de anomalia ou de viola~ao
por eles considerados como fonte de pesquisa histórica de expectativas-é tida como elemento perturbador e, por isso
Nessa época, ao historiador de ofício cabia coletar os do- mesmo, deve ser desconsiderada por aqueles que se guiam pela
cumentos oficiais, aplicar-lhes as regras do método crítico, lógica do respectivo paradigma. 2
responsáveis pela verificar;iio da autenticidade, da procedén- Eis aonde queremos chegar! Pelas raz6es que veremos
cia e da veracidade de seus conteúdos e, finalmente, enca- um pouco mais adiante, a comunidade de praticantes da his-
deá-los em urna seqüéncia temporal e espacial. A narrativa toriografía metódica entendía que a imagem fotográfica nao
derivada desse procedimento acabava por naturalizar os acon- preenchia os requisitos necessários para ser considerada fon-
tecimentos históricos. Em outras palavras, ao partir do pressu- te de pesquisa histórica. Percebida como urna anomalía, foi
posto de que "as coisas sao como si'io", a seqüéncia dos fatos
deixada de lado.
narrados era apresentada como senda a expressao natural da
verdade sobre o passado. ' RESIS, José Carlos . A Hi.<t,íriu entre u ft/,,_wjiu e ü n'i'¡1na. Siio Paulo. Átka.
Nao por outra raza.o, acredita-se, naque le momento, que 1996, p. 13.
'KUHN. Thomas. A e.</rutura dtL< rewilu¡-,Jes cien/ifi('a.<. 2.cd .. Siio Paulo: Pc~pe,:-
"a história - res gestae - existe em si, objetivamente, e se
tiva, 1978, p. 13.

16
17
Ü)LU;MJ "H1STÓRtA & ... Rmuüt,· Históri3 & Fotografia

Hoje, entretanto, a cogni9lio em História percorre cami- sociocultural. lntegram um sistema de significa9ao que nao
nhos bem distintos. Se a fotografia vem sendo cada vez mais pode ser reduzido ao nível das cren9as fonnais e conscientes.
utilizada como fonte, como objeto de análise e como recurso Pertencem a ordem do simbólico, da Jinguagem metafórica.
pedagógico, é porque a comunidade de praticantes da ciencia Sao portadoras de estilos cognitivos próprios.
histórica nao mais se orienta pelos fundamentos do paradigma Um retomo, breve que seja, ao paradigma metódico pode
metódico. Entretanto, há quem acredite que o uso de imagens nos ajudar a evitar a falácia do que estamos chamando de ilu-
fotográficas na pesquisa histórica signifique inovar, mesmo sao de inova9ño.
quando se lhe aplica o mesmo conceito de documento histórico
utilizado pela historiografia metódica. Nao se percebe, por exem-
A historiografia metódica e a
plo, que no novo paradigma nema História é um conhecimento
rejeirtío do documento fotográfico
meciinico destinado a traduzir a verdade dos fatos, nem o docu-
mento fala por si mesmo e nem o historiador é um mero trans-
O sucesso da publica9ao, em 1898, de lntrodurao aos
missor das infonna9óes nele contidas. Portanto, reunir imagens
Estudos Históricos nño foi gratuito. Ao lado da edi9ño dos
fotográficas de um determinado período e apresentá-las como
números de A Revista Histórica, surgida em 1876 na Fran9a, a
fiel retrJto do passado é um procedimento em tudo e por tudo
obra de Charles-Víctor Langlois e Charles Seignobos, dais pro-
igual a prática dos pesquisadores do século XIX.
fessores de História da Sorbonne, teve o mérito de condensar e
Lembremo-nos de que eles negaram o estatuto de docu-
divulgar os fundamentos epistemológicos da História, entendi-
mento histórico as imagens fotográficas, muito embora tenham
da como "um conhecimento científicamente conduzido".
lan9ado miio das iconografias contidas tanto na emblemática
quanto nas pinturas de história,já que "ilustravam" exatamen- Se, por um lado, esse "ensaio sobre o método das cien-
te o que estava posto nos documentos escritos. Ora, se usamos cias históricas" se encarregou "de subtrair a ciencia histórica
as imagens fotográficas sob essa mesma perspectiva, estamos, as causas sobrenaturais, de colocar em xeque o fina\ismo mar-
na realidade, criando umailusiío de inovariío. Quando utiliza- xista e o progressismo racionalista", por outro, resgata urna
da com fins compreensivos, a fotografía, ou qualquer outro antiga tradi9iio da pesquisa histórica. Embora tivessem um en-
tipo de iconografía, demanda o emprego de metodologias con- tendimento próprio do processo de cogni9iio histórica, Lan-
soantes com a lógica e os fundamentos teóricos que a defi- glois e Seignobos sustentaram a tese de Tucídides de que a
nem como fonte de pesquisa histórica. Inserí-la na pesquisa, pesquisa histórica se inicia coma suspeita. Segundo ele, acei-
a título de inova9ao, e aplicar-lhe o conceito de documento tar os documentos em seu conjunto, sem um exame prévio de
de um paradigma que nao a inclui no rol de suas fontes, é o sua autenticidade e procedencia, equivaleria a reproduzir o
mesmo que produzir um coquetel teórico-metodológico, por senso comum, fortemente comprometido com os interesses
certo nada esclarecedor. desse ou daquele ator social.
Quando as imagens visuais, dentre elas a fotografia. sao uti- Na era moderna, o legado tucidiano de crítica docu-
lizadas como fontes de pesquisa histórica, é porque funcionam mental foi fortalecido pelas contendas entre Lutero e a Igre-
como mediadoras e nao como reflexo de um dado universo ja. Ao colocar em dúvida a interpreta9ao que a Igreja dava

18 19
Cow;Ao "HISlO~IA & Rm,x◊D" Hostória & FotogrJfo

ao texto bíblico, Lutero e seus seguidores contribuíram para fundamento da história metódica: o da fusa.o entre realidade
disseminar o princfpio da dúvida e, indiretamente, favorecer e conhecimento histórico, entre história-matéria do conhe-
a crítica dos textos oficiais. No decorrer do século XVII, Des- cimento (história-fazer) e história-conhecimento dessa ma-
cartes estabelece urna relai;ao direta entre a dúvida metódi- téria (história-conhecimento).
ca, a aplicai;ao dos métodos de pesquisa e o conhecimento Esse conjunto de preceitos, já incorporado por muitos
científico. Grosso modo, pode-se dizer que esse clima de pesquisadores desde meados do século XIX, transcendeu, ra-
desconfiani;a diante do texto acabou por favorecer a nao-acei- pidamente, a própria comunidade de historiadores dedicados
tai;ao passiva das informa96es contidas nos documentos uti- exclusivamente a pesquisa histórica. Foi partilhado por orga-
lizados pelos historiadores. nizadores de bibliotecas e de acervos documentais financia-
Em 1681, o beneditino Dom Mabillon (1632-1701) pu- dos pelos cofres públicos, além de ser reafirmado, dentro e
blica urna espécie de manual, De Re Diplomática, destinado a fora da Europa, por professores de história e autores de manuais
distinguir documentos falsos de documentos que. com o tem- didáticos dessa disciplina. Os conteúdos expressos nesses ve-
po e as cópias, iam sendo adulterados, conscientemente ou ículos de transmissüo dos fundamentos do paradigma metó-
nao. Nao é incorreto dizer que essa obra de crítica textual fun- dico entravam pelas portas e janelas das salas de aula e se
ciona como um marco para a construi;ao de um método de alojavam no inconsciente dos alunos. 4 Contribuíam abertamen-
análise histórica do documento escrito. No século XIX, o his- te para a fonnai;ao de urna consciencia histórica ancorada, de
toriador alemao Leopoldo von Ranke reafirma a necessidade um lado, na aplica¡;ao do método de análise dos documentos
de o historiador buscar a autenticidade e a legitimidade dos escritos e, de outro, na valorizai;ao das a96es sociais daqueles
documentos históricos. Só assim eles nos mostrariam o acon- que eram considerados os verdadeiros sujeitos da História: os
tecido "tal como efetivamente tinha sucedido". 3 dirigentes políticos, civis e militares. Nao é demais lembrar
Como nos lembra o historiador Sérgio Buarque de Ho- que, além de pesquisadores, os autores de lntroduriio aos Es-
landa, essa afirmativa, proferida em 1824, foi largamente di- tudas Históricos, juntamente com outros praticantes da Esca-
fundida entre a comunidade de historiadores europeos, des- la Metódica, também
de o início da segunda metade do século XIX. Embora ela fonnularam os programas e elaboraram as obras de
tenha sido proferida por um historiador que, na prática, in- história destinadas aos al unos dos colégios e da escala
terpretava os documentos e neles buscava um nexo de senti- primária, [fundaramJ simul!aneamente urna disciplina
do para explicar os fatos narrados, suas palavras foram des- científica e segrcgaram um discurso ideológico que
contextualizadas e utilizadas de fonna pragmática, restrita e continuou a dominar o ensino e a investiga~iío em his-
simplista. Dentre os responsáveis pela vulgariza9ao da tese tória nas universidades [francesas] até os anos de 1940;
de Ranke, encontram-se os autores de lntrodur.ii.o aos Estu-
dos Históricos. Siio eles, também, os defensores de um outro • O livro do espanhol Santiago Calleja Fernández. Notüme.1 de Hi.<tárii, de E.<p,u1",
escrito em 1886 e utilizado nas esenias espantiolas dur.in1e as 1res primeiras déca•
das do século XX, contém urna série de fundamentos presentes na obra de Langlois
1
HOLANDA, Sé,gio Buarque de (org.) f,e11pold wm R,mke: hi.<tríria. Silo Paulo: e Seignobos. CALLEJA FERNANDEZ. San1iago.N11cim1e.r de histoda de Espmlu.
Ática. 1979, p. 14 Madrid: Casa Editorial Satumnino C. Ferrumdez, 1886.

20 21
Co,,,;,Ao 'H1sio•1A &... R,mxO"" H,s(ória & Fo1ografia

e inscreveram urna cvolw;ao mítica da coletividade simultaneamente, a produyiio didática de história e a pesqui-
francesa - sob a forma de urna galería de heróis e de sa de historiadores e cientistas sociais como Sérgio Buarque
combates cxcmplarcs - na memória de gera~6es de de Holanda e Gilberto Freyre.~
estudantes até os anos de 1960. j
Para o que nos interessa no momento, é importante lem-
No caso específico do Brasil, é possível encontrar ecos des- brar que muito embora os historiadores afinados como pensa-
sa concep~ao de História tanto nos dois vol u mes do manual mento da Escola Metódica nao tenham dispensado o uso de
didático de história de Joaquim Manoel de Macedo (1820- imagens visuais em suas pesquisas e em seus livros didáticos,
1883), LirOes de História do Brasil para uso do:.· ,~tunos do sempre supervalorizaram o documento escrito na produyiio de
imperial Colégio de Pedro 11, 1' assim como nas teses defen- suas narrativas. O uso da emblemática, safda da filatelia e da
didas por Joiio Ribeiro (1860-1934), autor deHistória do Bra- numismática, bem como o emprego das pinturas de história
sil.7 Alguns estudiosos da atualidade mostram que tanto as ajudaram-lhes a sustentar urna no~ao de História calcada na
idéias de Macedo quanto as de Joiio Ribeiro influenciaram, idéia de verdade sem mácula.
Além de confirmarem o que diziam os documentos escri-
'Sobie os pre~supostos dc,sa obra. ver: BOURDÉ. Guy e MARTIN. Hervé. A.1 tos, as imagens visuais tomavam mais palatável o entendimento
E.wo!a., Hi.1táncm. Lisboa: Europa-América, sld. íFórum da História), específi-
do que eslava posto nas fontes textuais. Sob essa perspectiva,
camente p. 94.
'O livro de Joaquim Manoel de Macedo, escrito o primeiro vo!ume em 1862 e o
os espécimes iconográficos acima referidos funcionavam tan-
segundo e 1863, foi forternente influenciado pela, idéias contidas em Hi.míria to como recurso didático, quanto como documento histórico.
Gernl do Brasil, de Adolfo Varnhagen, historiador de confi:m~a da Casa de Como fonte de pesquisa histórica ela apenas confirma va o que
Bragan~a e urn dos principais membros do Instituto Histórico Geográfico Brasi-
lciro ([HGBJ. Para além do importante papel dcsempenhado por Vamhagem, jun-
to ao JHGB, ,,obretudo no que se refere a coleta e organiza~.io do acervo docu- 'É unportanle re.saltar que os livros de Joaquim Manocl de Macedo cncarnam urna
mental brasileiro relativo nos séculos XVI. XVII e XVII, os analistas da produ~ao vis.io da forma~ao e da identidade nacional brJsileira 1nuito próxnna dos ideais da
historiográfica do século XIX tem s1<.lo uniinimes em atribuir a Varnhagem a di- Casa de Bragan~a. Já o hi~lori:Wor Jo5.o Ribeiro tinha um fone cornpromi,w com
fus.'i.o de urna vis:io de urna história do Brasil calcada nas idéia, da concilia~:lo. os ideais republicanos. Entretanto, um e outro foram defen~ore~ dos prcssupostos
da reforma e da cordialidadc do brasileiro. Sobre cssas quest5es. ver: gnoseológicos que alicen;aram n paradigma metódico. Algum eMudos sobre a
RODRIGUES. José Honório. Hi.míriü Combmeme. Rw de Janciro: Nova Fron- obra de Joiio Ribeiro susTenlam que rnuitos dos fundamentos contidos em seU!,
teirn. 1982, p. 191-296: BANDEIRA DE MELO, Ciro F. Se11hme.< da Hi.,1,iri<J. a escritos est,veram presentes na maioria dos manua,.1 ,.hdálicos de História até o
1·1m.<rrw;:llo do Bra.1i/ cm dms nwmwi,< didático.< de Hi.<11írw IUI .l'eKUl!du meMde início de !960. Sobre esta qucst5.o espedfics1mcnte. ver: BANDEIRA DE MELO,
di! sfrulo XIX. Siio Paulo; USP, 1997. (Tese de Dou1uramcnto); MATTOS, Selma Ciro F. Se11/wres da Hi.miri,i: a am.<ll"u¡-iio do Bm.,il em J,,ü 1111111ums didiitico.<
Rinaldi. Li~óes de Macedu. Uma pedagogía do südi10-cidadao no lmpério do de H1.míria 11a .<e111mda mewde do século XIX. Sao Paulo; USP. 1997. (Tese de
Brasil. In: MATTOS, llmar Rohloff de. (org.). Hi.,J,íria do e11.<11111 du híwiria 110 doutoramento). É importante rcssnltar que os livros de Joaquim Manoel de Mncedo
Brasil Rio de Jane1ro: Access. 1998, p. 31-44. encamam urna visiio da forma~.io e da idcntidadc nacional brasileira muito próxi-
ma dos ideais da Casa de Bragan~a. Ji\ o hhtoriador Jolio Ribeiro tinha um forte
'Alguns estudos chamam a aten~iio para a clara influencia, na ohra de Joao R1be1- compromisso comos idea1s republicanos. Emretanto. um e outro foram defensores
ro, das idéias do alem.io Karl Friedrich Phi!ipp von Martiu que. em 1840. foi dos pressupostos gnoseo!ógicos que aliccr~ararn o paradigma melódico. Alguns
vencedor de um concurso realilado pelo IHGB. coma obra Cl!mo u deve escre- estudos sobie a obra de JoJo Ribe1ro susternam que muito, dns fundamentos conh-
ver a himíria do Brasil. Hi\ quem sustente que muitas das idéias contidas no dos em seus escritos estiveram presentes na maioria dus manuais d1di\ti~os de Hi,-
livro de Jo5o Ribeiro e~tivernm piesentcs na maioria dos manuais didiiticos de tória até o inícm de 1960. Sobie esla qucst5.o espccificamente. ver: BANDEIRA
História até o início de !960. Sobie essa questño especificarnente. ver: BANDEI- DE MELO. Ciro F. Seuhore., da Hiil,irw. a w11.<trurilo do Brasil em doi.< m,mu,iÍ.1
RA DE MELO, Ciro F. Senlwre., da Hi.<tária: a c,m.,J¡·u¡·iio do Bnuil em doi., didátim.1 de Hi.míria 1w .<e);imda metade do .,érnlo XIX. S.io Paulo: USP. !997.
ma11uai., didátiw., de Hi,,túria ,w .<e);üllda metude do século XIX. Sño Paulo: (Tese de doutoramento): HANSEN, Patricia Snntos. A Hi.<táriu do Bra.,il de Joiío
USP, 1997. (Tese de Doutoramento). R1beim. Rio de Janeiro: Acces, 2CKlO. (Fe1~oes & Fmonomia)

22 23
Üllfy\<.l "HISTORIA& ... fsUlCXúES" Históna & íotowafia

já esta va dito nos documentos escritos. Dada essa posii;ao su- foram consideradas documento histórico. O que estaría, efeti-
balterna na hierarquía de importáncia dos documentos utiliza- vamente, por detrás de tal rejeii;J:o?
dos na pesquisa histórica, as imagens visuais na.o passavam de
documentos de segunda categoría. As Jontes de pesquisa histórica e a educafQO do olhar
Ora, constatar que as imagens visuais, aceitas pela histo-
riografía metódica, desempenharam as furn;5es de ilustrar o Nos livros VI e VII da República, Platao nos fala por
texto escrito e de despertar sentimentos patrióticos nos leito- metáforas. Sua Alegoria da Caverna nos remete a discussao
res, ajuda-nos a entender apenas parte do que estamos bi1scan- do papel formador e transfonnador da educa¡¡:ao (paidéia) que
do responder. Em outras palavras, compreender o lugar da em- visa ao conhecimento do mundo inteligível (dianóia). Para
blemática e da pintura de história no paradigma metódico nao Plata.o, a educa¡¡:5o é um processo complexo e tortuoso que
explica, por sisó, porque as imagens fotográficas levaram mais
de um século para serem aceitas como fonte de pesquisa nas ao invés de atribuir ciencia a alma, como se fosse pos-
Ciéncias Sociais e na História em particular. síve! introdudr a visao cm olhos ccgos, [a educarGo]
é a mancira mais fácil de fazer dar a volta a esse órg5.o
Quando a fotografia surge, em 1826, 9 suas imagens con- fo olho], urna vez que ele nao está cm posili:5.o corrcta
taram com o apoio de diversos homens de ciéncia, além de e nao olha para onde deve. 111
industriais, comerciantes e políticos. Já em 1839, Frarn;ois
Arago (1786-1853), membro do Parlamento francés, promove Tanto ele quanto Aristóteles concordam que a visao é o
urna reuniao conjunta da Academia de Ciéncias e de Belas mais completo e o mais nobre de todos os sentidos. Porém,
Artes da Fram¡:a como objetivo de exaltar sua natureza precisa para Plat5.o ela apenas equivalería aoBem qua~do e se ilumina-
e exata. Seu sucesso e sua credibilidade imediatos estavam da pela luz do sol. Com essa metáfora, quer d1zer que o ato de
ligados ao fato dela ser urna imagem produzida a partir de ver nao é um procedimento meramente técnico, nao brota natu-
processos físico-químicos. Seu forte potencial analógico, ain- ralmente do movimento medinico do olho. É, ao contrário, um
da que passível de adulterai;ao, estimulava a crem;a de que suas processo racional que depende da educa¡;aü da alma, i_st~ é, da
imagens eram urna reprodm;ao fiel do real, da "coisa tal como razao. É ela que coloca, segundo Platao, o olho na pos1_¡¡:~o cor-
ela é". Apesar da convic¡¡:fio generalizada de que o que sai da reta e permite ao filósofo distinguir a cópia de seu ongm~l, o
cárnera escura era cópia perfeita do real, a prática da pesquisa certo do errado, o verdadeiro do falso. Semprc que urna 1ma-
histórica desenvolvida nas universidades e demais centros aca- gem é !ida sem a media¡¡:ao da razao, ~la ~e transfo~a em um
démicos pennaneceu inalterada. As imagens fotográficas nao simulacro do real, ou seja, cria urna 1lusao de reahdade.
Já para Epicuro e Lucrécio, o olhar é um ato seAnsitivo e
• É irnponante assinalar que enlre os estudiosos da história da fotografia permanece meramente receptivo. Para ambos, o homem que ve recebe,
urna larga discord.:incia sobre a data da produ~:l.o da prime ira fotografia. De acordo
com GiSC:Je Freud. Nicéphore Niépcc terfa criado a fotografia em 1824; j:í para
Gabriel Bauret. a prime ira foto de Niépce data de 1826. Em Era 11111<1 \"eZ o rinemu, "' Metafoncamentc o sol e, o astro que represen ,a a lu1- e prnpida a evidencia _e a
a pri,neira fotografia é datada em 1823. Os marcos cronológicos referentes il histó- clarividencia no olhar do filósofo e ]he penrnte conhe~er as c_o~ex5e, ~,mre_ reahda:
ria da fotografia e dos fotógrafos ser.lo. neste livro, extraídos do DICTIONA/RE de de e aparencia. Sobre ís;o, ver: DIXSAUT. Monique. Le tro1s 1mages In. Phllm!.
Phm,,_ París: Larousse. 1996. Repub/iq,1e (/i,·re.1 Vf el Vil). Paris: Ed. Bordas. 1996. p. 11 l-l 15.

24 25
ClHE(ÁO "H"TO~IA &. REFiESóES" História & Forogr3f1J

passivamente, as imagens do mundo mediante a contempla- Isso significa que caberia ao conhecimento científico discer-
¡;ao de suas formas e cores. Diferentemente desses dois filóso- nir entre o falso e o verdadeiro, entre o certo e o errado.
fos, Platao caracteriza esse tipo de olhar quase como urna mio- Ora, ao criar o conceito de imagem como simulacro do
pia, já que a vi silo receptiva, meramente sensitiva, apenas dava real, Platao também entendia que o processo de percepyao do
a conhecer a superfície das coisas. E, conhecer pela aparéncia real se fazia mediante o diálogo entre os pólos do par verdade/
é o mesmo que se iludir, diria Platiio. falsidade. Para atingir a verdade seria necessário educar o olhar
Essas duas vertentes da filosofía do olhar sempre estive- do filósofo. Só assim ele estaría em condi96es de eliminar o
falso e ensinar a verdade. Na era moderna, parcelas descon-
ram presentes nos diferentes momentos da história do pensa-
textualizadas do pensamento de Plata.o seriam adotadas pela
mento ocidental. No entanto, os que acolheram urna, rejeita-
historiografia metódica. De Platao os racionalistas modernos
ram a outra. Por isso Bosi nos dirá que o racionalismo moderno
herdaram tanto a tese que identificava saber e compromisso
sempre se viu diante do dilema de "ou conhecer pelos sentidos
com a verdade, quanto a que sustentava a relayao direta entre
ou conhecer pela mente". 11
olhar nao educado pela razao e percepi;iio ilusória do real me-
Para o que nos interessa no momento, é importante frisar diante a produy5.o e/ou visualiza9iio de imagens.
que a ciéncia moderna atribuí um peso excessivo ao método e
Como desenvolvimento da técnica da perspectiva, desde
as técnicas de pesquisa no processo de explica¡;ao dos fenó-
0 Renascimento, ganha fori;a a antiga tese da rela¡;ao entre
menos físicos e sociais. Aliados ao uso da raza.o crítica, o cor-
educa9iio do olhar e produi;ao de imagem realista. Acredita-
reto emprego dos métodos e das técnicas de pesquisa garanti- se que toda e qualquer imagem visual que estabele9a urna
riam a neutralidade e a objetividade do conhecimento científico. combina95.o, exata, infalível e matemática, entre largura, es-
Esta combina¡;ao, própria do pensamento empírico-raciona- pessura e profundidade é urna reprodu9ao fiel do real, inde-
lista, contribuí para que a raza.o filosófica de Platao fosse aos pendentemente das conven96es sociais de seu desenhista,
poucos cedendo lugar a razüo prática do mundo moderno, pintor, escultor ou arquiteto.
preocupada com a prova documental. Por isso se diz que "o Etimologicamente o termo perspectiva significa o mes-
olho do racionalismo moderno examina, compara, esquadri- mo que olhar racionalizado ou ver claro. Nao por acaso, o ar-
nha, mede, analisa mas nunca exprime". 12 quiteto, matemático, crítico de arte e cartógrafo italiano Leone
Por detrás da excessiva valorizai;ao das técnicas e dos Battista Alberti (1405-1472) intitulou de Construzione leggi-
métodos de pesquisa se encontra urna lógica de organiza¡;ao tima seu tratado sobre a perspectiva. Assim como Alberti, ou-
da rela95.o entre conhecimento e rea\idade. Ao primeiro cabe- tros tratadistas do Renascimento também entendiam que "o
ria transmitir a verdade contida nos atos dos atores sociais, artista [é] um emissor do mundo", já que seu olho nao faz
expressas nos documentos escritos devidamente examinados. mais do que "atrair a imagem do objeto para seu intelecto,
13
assim como o ímii atrai a linha de ferro".
"Sobre a histórfa do olhar no Oddente, ver: BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar.
In: NO VAIS, Adauto (org.). O o/hur. S:io Paulo: Companhia das Lc1ras, 1988, p. 7 J ,, Sobre o papel da perspectiva no Renascimento. ver: BRUZZI. Hygina M. "Bast5es
'l Sobre a história do olhar no ocidente, ver: BOSJ, Alfredo. Fenomenología do olhar. cruzados ... In: Do iüfre/ ,w rangfrel • cm busca de um lugar pós-utópico. Belo
In: NOVAIS, Adauto (org.). O 0/hur. Silo Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 71. Horiionte: C/Arte, 2001. p. 98 e segs.

26 27
ÜJ<f(AO "HI.STORIA &.. , RtnL>út,'" H"tóri,, & Fotngraf,a

Ao adotar essa teoria e aplicá-la ao uso das imagens visuais propriamente a criatividade da obra. Dos aitistas, esperava-se
na pesquisa e no ensino da História, a historiografia metódica, a produyao de pinturas que pudessem produzir, exprimir e trans-
herdeira do racionalismo moderno, conjuga, de urna maneira mitir a seu público-alvo - os súditos reais - a glória dos feítos
singular, tradiyao e modemidade. Mais que isso, chancela o de seus dirigentes. Cria-se, assim, o ofício do pintor de histó-
antigo <litado popular-que ainda hoje conta com grande aceita- ria, responsável pela produ98.o de urna arte essencialmente
yao no conhecimento ordinário - que diz: é verdade porque vi pragmática e funcional que exalta, celebra e comemora os feí-
comos próprios olhos. Assim, sempre que o visto, traduzido em tos dos "heróis", apesar de ser tida como essencialmente rea-
imagens, emanasse de olhos que tivessem sido postos na posi- lista e verdadeira.
r;ao carreta, porque educado pelas técnicas da perspectiva, ha- Ao longo do tempo, tres grandes requisitos foram orien-
veria urna perfeita correspondencia entre realidade e imagem. tando a confecr;ao das pinturas de história. O primeiro era a
Mas, nem tuda que é matemático é exato e preciso e exigencia de que esses funcionários, pagos pelo erário real,
muito menos verdadeiro, advertiam, já no Renascimento, al- passassem pelo treinamento das Academias; o segundo pres-
guns estudiosos da perspectiva. Embora dominante, a certeza supunha que suas obras contassem como reconhecimento dos
da correspondencia entre imagem e realidade, entre imagem e reis; e o terceiro exigía que tais obras fossem publicamente re-
verdade, nao era tao un3nime como possa parecer. Nessa me- conhecidas mediante a aprovai;fto em concursos, requisito para
dida, sua utiliza9ll0 acabava por criar um certo desconforto suas exposi96es nos sal6es. 1~ Realismo, perfei9iio e veracidade
entre aqueles que se preocupavam em demonstrar a perfeita eramos principais atributos das imagens produzidas pelos pin-
sintonía entre iconografia e rea\idade. Para solucionaressa am- tores de história, figuras obrigatórias nas eampanhas civis e
bigüidade, a comunidade de historiadores, afinada comos pro- militares de reís; príncipes e generais do Antigo Regime e dos
pósitos da escala metódica, apoiou-se na antiga tese da infali- o
crovernos liberais do século XIX. Fruto da observar;ao in loco e
bilidade da educa91io do olhar. Concebe como documento elaboradas segundo os cftnones do paradigma perspectivo, acre-
histórico visual apenas aqueles cujas imagens fossem fruto do dibi\idade dessas imagens advinha, mu itas vezes, do fato de se-
aprendizado das academias de pintura. rem encomendadas. Nessa medida, pode-se dizer que e las eram
urna ilustrar;fto do conteúdo inscrito nos textos escritos.
É imp01tante lembrar que, a partir do século XIV, princi-
palmente, disseminaram-se por quase toda a Europa os espa- Sentimentos de ordem, respeito, patriotismo, heroísmo e
r;os destinados a educar o olhar de desenhistas e pintores se- consciencia nacional e cidadft foram, nos diferentes momentos
gundo a técnica da perspectiva: as Academias de Pintura e da História, objeto dessa pedagogía pragmática do olhar.
Escultura. Aí se ensinava a produzir imagens que nao apenas Nao resta a menor dúvida de que o discurso da educa9fto
espelhariam o real como também traduziriam os atos dos legí- do olhar do pintor de história serviu para transformar suas
timos sujeitos da História: os reis e seus círculos civil e mili- imagens em um recurso de autoridade. As imagens por eles
tar. A esse aprendizado, que nasce coma cultura de corte, cresce produzidas podiam ser consideradas um documento para a
sobo patrocínio da Igreja, alarga-se como poder da nobreza, pesquisa histórica nao apenas porque ilustravam o texto escrito,
sobretudo em Veneza e em Florenr;a, importa va mais a educa-
yao do olhar segundo objetivos previamente definidos do que "WILLlAMS. R. C11/1w·o. Rio lle Janc1ro: Pa, e Terra, 1992. p 189-190.

28
COLl<;Ao "Hi,J(>RIA &... Rm exm.," Hislón3 & Fotogr3(1a

mas sobretudo porque traziam a assinatura de urna autoridade presente impedia-lhe de figurar na galería, naquele período
reconhecida nos círculos do poder. Como veremos a seguir, a restrita, de documentos históricos.
prodm;fio fotográfica nao se encaixava nesse critério de vali~ Na realidade, as imagens produzidas pela cámera lúcida
dar¡:io científica da imagem. - como muitos chamavam a máquina fotográfica - foram far-
Nao podemos nos esquecer de que nos primeiros anos do tamente utilizadas por pintores, como Degas, por exemplo,
aparecimento da fotografia, os fotógrafos eram, na sua maio- interessados em captar do real as minúcias que o o\ho humano
ria, homens comuns - desenhistas e gravuristas autodidatas, nao era capaz de registrar. Nao raro encontramos livros didáti-
caricaturistas, pintores tidos como sem expressao artística. Nao cos, nacionais e estrangeiros, produzidos em meados da déca-
possuíam vínculos diretos comas Academias e suas imagens da de 1860, que também lanr¡:aram mao das imagens fotográfi-
abordavam temas e motivos quase sempre distantes da ar¡:iio cas para reproduzir as pinturas de história alocadas nos museus
dos homens considerados produtores da HistóriaY Jsso sem e corredores dos palácios. Como ainda nesse período nao se
dizer que, já por vaha do ano de 1880, o aperfeir¡:oamento conhecia a técnica de reprodur¡:ao da fotografía através da im-
das cameras fotográficas colocaría a fotografía ao alcance prensa, as imagens fotográficas chegavam até os livros media-
do homem comum. das pela técnica da litografía. Nao por acaso, nesse mesmo
Essa dilatar¡:iio do uso da fotografia faz com que os novos período, o poeta Baudelaire, antes de se convencer da dimen-
fotógrafos estabeles:am novas e distintos critérios de olhar para sao artística da fotografía, identificou sua natureza e seu po-
fazer suas tomadas dos acontecimentos sociais. Cada indivíduo tencial comos da imprensa. Quer dizer, conceituou-me como
define nao apenas o que merece ser registrado, mas também sob urna espécie de prótese, de artefato mec5.nico preciso, que nada
que ángulo as ar¡:6es sociais de seus cotidianos devem ser imor- criava, muito embora fosse dotada dos atributos necessários
talizadas. Os critérios da educar¡:ao do olhar, normatizados nas para auxiliar no avanr¡:o tecnológico e industrial.
Academias de Pintura, nao eram conhecidos pelos fotógrafos Por ser portadora de características tao distantes do con-
amadores. A eles interessava tao somente aprisionar cenas e ceito de documento próprio da historiografía metódica, a foto-
momentos significativos para suas vidas íntimas. grafía foi alijada da pesquisa histórica. Sua inclusfio nesse uni-
A essa prática, intitulada pelos setores de elite de banali- verso dependía, pois, de urna mudanr¡:a do paradigma histórico.
zar¡:íio do universo imagético, agrega-se o fato de a fotografía No final do século XIX, urna série de transforma96es nas
ser um testemunho do presente. Em princípio, suas imagens rela96es sociais e nos par5.metros do pensamento filosófico e
registram o aqui e o agora. Mas para a comunidade de prati- científico comer¡:a a colocar em causa os fundamentos da his-
cantes da historiografía metódica, o conceito de fato histórico toriografía metódica. Conseqüentemente inicia-se um proces-
estava estritamente atrelado ao estudo dos acontecimentos so que, em médio prazo, contribuiria para criar as condir¡:6es
passados. Ainda que se aceitasse a natureza precisa, exata e teóricas que levariam a urna mudanya do conceito de docu-
fiel da imagem fotográfica, sua vincular¡:iío com o momento mento histórico que, por sua vez, acabaría incorporando a fo-
tografía no rol de fontes de pesquisa histórica.
" No caso da caricalurn, por cxemplo. a diferen¡;a é gritantc. Suas imagens tinham
De um lado, ganhava forr¡:a a crítica a infalibilidade da
como objetivo a crítica dil!> a~ñt..":S do poder. Nessa medida, clas funcionavam como
urna espécie de contrn-história e n.iio de ilustrru;iio dos textos oficiais. ótica perspectiva. Crescia o número de pintores e estudiosos da

30 31
Cow;Ao "H"IORI~ &... REFlfXófS" Hislória & Fot<>graf,a

arte a sustentar a tese de que "nfio há perspectiva exata ou do, a tradi9ifo, na va esperan9a de poder preservar o que já se
proje91io absoluta do mundo, [pois], há sempre algo no espa90 desfazia. Outros alimentavam a crenya iluminista num futuro
que escapa ao olho, matematizado que seja"Y' De outro, urna promissor. Outros, ainda, apostavam na grande crise do capi-
corrente de filósofos e teóricos das Ciéncias Sociais já come- talismo como condi9ao para a revolu9ao socialista e o início
9ava a colocar em dúvida tanto a ti:io propalada existéncia de de urna nova era.
urna verdade única dos fenómenos sociais, quanto a corres- No campo da reflexi:io histórica, o historiador francés
pondéncia direta entre conhecimento e verdade. Esses sínto- Jules Michelet inclui, no rol de suas buscas intelectuais, au-
mas de mudan9a das bases teóricas do conhecimento científi- tores até entao relegados ao esquecimento, como Heródoto e
co eram fortemente influenciados pelos desdobramentos do Giambattista Vico, por exemplo. Das leituras dos textos do
processo de globaliza9iio, em curso desde a era das grandes primeiro, Michelet inicia um processo de reabilita9ao do de-
navega9óes. Além disso, o final do século XIX assiste a um poimento oral, além de subverter o princípio de que a ciéncia
prodigioso processo de transforma9i:io trazido pelas guerras; histórica se dedica va exclusivamente a análise do passado.
movimentos nacionalistas; investidas imperialistas; desenvol- Das teses de Giambattista Vico, autor de Scienza Nuova,
vimento acelerado da tecnologia e da ciéncia; migra9óes em Michelet extrai outros ensinamentos que iriam marcar sua
massa dos campos para as áreas urbanas, de países para paí- distancia em relayao aos historiadores da Escala Metódica,
ses; surgimento de novas classes sociais, novas oficios e no- dita positivista. Chama a aten9lio para a especificidade das
vas profiss6cs. Tudo que o mundo sempre conheccra empro- ciéncias do homem cm rela'rao as da natureza; prop6e a com-
por96es localizadas adquiria, a partir de enti:io, urna dimensiio bina9i:io de diferentes metodologías para a análise de evidén-
planetária. Essa reviravolta nas e das rela96es humanas gera cias históricas também diferentes, e defende a tese de que o
novas incertezas, p6e em xcque os valores que até entfio calya- conhecimento histórico se faz coma análise de dados anóni-
ram as tradi96es e os modos de ver das diferentes sociedades mos e n¡io, como queria a historiografía metódica, apenas
dentro e fara da Europa. coma análise dos dados saídos exclusivamente das a'r6cs de
atores socialmente privilegiados. Nos anos que se seguiram,
Os desafios do que mais tarde viria a ser denominado
os escritos de Vico também inspiraram autores como Dil-
de sociedade de massa, já detectados por Tocqueville, Marx,
they, Weber, Bcnedetto Croce e Collingwood,1 7 os quais, di-
Nietzsche, dentre outros, redirecionavam o olhar dos teóricos
reta ou indiretamente, tenam um papel preponderante na der-
das ciéncias sociais.
rubada do paradigma metódico.
As tensóes, os conflitos e os antagonismos em curso con-
Em meio a esse processo de mudan'ras, ganha for9a a
tribuíam para dilapidar os di.nones políticos, científicos e
tese weberiana da natureza compreemiva e interpretativa das
socioculturais que a Revolu9ao Inglesa arranhara, a Revolu-
9i:io Francesa golpeara e os diferentes desdobramentos sociaís ciencias da cultura. Weber
e políticos da Revolu9aü Industrial iam minando mais e mais.
" Sobre O pcnsamento de Vico e suas influi:ncias na filosofía e nas ciencias socinis.
No bojo dessas transforma96es alguns se apegavam ao passa- ver: WILSON. Edmund. Rumo,¡ E.,ra¡·iio Fit1/ü,1dia 2 ed .. Silo Paulo: Companh,a
da, Letras, 198/i (parte 1): RURKE. Pet,;,r Vico. Siio Paulo UNESP: _!997.
"BRUZZI, Hygma M. "Bas16es cruzados" In: Do 1üíve/ tw lu11Ki1·el - em bu.,rn de
THOMPSON, E. P A mi.<é,-ia da /eoriu m, um plunelúno de am.< - amui ª"
w11 l11K11r prí.,.ut,ípico. Bel o Honzontc: C/Arte, 2001, p. l 08 pen.,,,me,110 de A/1/,u.,ser. Rrn de Janeiro· Zahar. 1981

32 33
CülE(M.) "H"rº"'~ & ... Rmexms" Histúri~ & Folografia

combate resolutamente a idéia de que a Ciencia possa Com essas alterar;6es no e do pensamento, estavam aber-
engendrar "concep¡¡:Oes do mundo" de validade uni- tas algumas portas para o estabelecimento de um novo concei-
versal, fundadas no sentido objetivo do decurso histó-
to de realidade, de ciencia histórica, de método de pesquisa e,
rico. [Para ele], esse sentido objetivo nao existe e por
sobretudo, de documento histórico. As imagens visuais deixa-
isso mesmo nao existe urna ciencia social livre de pres-
riam de ser consideradas um retrato fiel dos fatos para se trans-
supostos valorativos. 1x
fonnarem em Jinguagens dotadas de sintaxe própria. Parafra-
Segundo ele, do passado só se pode conhecer as inten- seando Ítalo Calvino, as imagens fotográficas deixariam de
r;óes que motivaram as ar;6es sociais dos diferentes atores ser as coisas para se tomarem "figuras de coisas que signifi-
históricos. Sob essa perspectiva, a finalidade do processo cog- cam outra coisa". 19
nitivo deixa de ser a express5o da verdade dos fatos "tal como Sem embargo, esse clima de mudanr;as e inovar;6es nao
teriam acontécido" para se transformar em um processo de traria, de imediato, a derrubada do paradigma que norteara a
compreensao e interpretar;ao dos significados que os homens historiografía metódica. O apego a tradir;ao, a ausencia de
atribuíram as suas condutas sociais, sempre motivadas e/ou clareza sobre os rumos das transformar;6es em curso e a pró-
orientadas por expectativas em relar;5o a ar;iio dos outros. De pria vincular;5o do ensino de História, e até mesmo da pesquisa,
acordo com essa lógica de raciocínio, a dimensao objetiva e aos interesses do poder funcionariam como enlraves para a in-
racional do processo de conhecimento também implicará a corporar;5o e a difusiio de urna outra prática de pesquisa e de
aceita¡¡:iio de urna certa dose de subjetividade. O mundo a ser ensino da ciencia histórica.
dessacralizado pelo homem de ciencia niio é feíto de coisas, Enquanto isso, a fotografia ia senda utilizada, cada vez
mas de relar;6es sociais plenas de significados porque per- mais, por todos os segmentos das sociedades modernas. lnde-
passadas pela forr;a de valores, crern;:as, mitos, rituais e sim- pendentemente da resistencia dos membros da comunidade de
bolismos. Mediante o uso de urna metodología capaz de de- praticantes da historiografia metódica, suas imagens divulga-
tectar as estratégias racionais das ar;6es sociais, motivadas vam os feitos dos homens públicos e o cotidiano dos homens e
por interesses nem sempre racionais, tais como a fé, o dogma mulheres de diferentes classes sociais.
e os desejos, o homem calcula, racionaliza e cria meios para É para essa direr;5o que deslocaremos nosso olhar no ca-
atingir seus fins. Cabe ao cientista compreender e interpretar pítulo seguinte.
esses processos.
Sob essa ótica, nega-se a antiga tese da coincidencia en-
tre a história-fazer e a história-conhecimento. É assim que a
ciencia histórica, -como qualquer outra ciencia da cultura, se
desnaturaliza. Toma-se urna construr;5o que só funciona se
operada a partir de um conjunto de hipóteses.

'"COHN, Gabriel (org.). Weber. 2.ed .. Sao Paulo: Ática, 1982, p. 21 (Colei;5o Gran- "CALVINO. Ítalo. "As cidades e os símbolos". In: As ddude,, inviúvei.,. 3.ed. Siio
des Cientistas).
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 17.

34 35
CAPÍTULO 11 ..

Tradi~ao e modernidade
na mira dos fotográfos

A ansia de apreender o mundo a partir de suas manifes-


ta96es essencialmente objetivas e precisas, característica da
heran9a do pensamento cartesiano, niio foi suficiente para
eliminar a magia e a como9üo que as imagens visuais desper-
taram e despertam no homem. Ao longo dos séculas, as dife-
rentes sociedades tem criado distintas formas de produzir,
olhar, conceber, dialogar e utilizar suas produ96es imagéti-
cas. Ao possibilitar o constante dcsejo de eternizar a condi-
9iio humana, por certo transitória, a imagem fotográfica se
aproxima de outras iconografías produzidas no passado. Como
essas, a fotografía também desperta sentimentos de medo, an-
gústia, paixiio e encanto. Reúne e separa homens e mulheres,
infonna e celebra, reedita e produz comportamentos e valo-
res. Comunica e simboliza. Representa.
Sua gencse físico-química e sua capacidade reprodutiva
criam um novo profissional da imagem e inauguram nao ape-
nas urna estética própria, como também um novo tipo de olhar.
Todaessa novidade diz respeito a urna sociedade cada vez mais
laica, globalizada, veloz e tecnológica, em que as pessoas con-
vivem a um só tempo como medo do anonimato, a necessida-
de de preservar o presente, a incerteza sobre o futuro e a espe-
ran9a de constru9üo de urn mundo bem sucedido.
Foto é um termo que vern do grego, ph()s. Significa luz.
Fotografía quer dizer "a arte de fixar a luz de objetos mediante

37
CO!.F<;AO "HITTów, & . RmEX(>"" His!ó,;a & Fotogr~f,a

a a,;iio de certas subst.iincias". 1 Em 1826, o francés Joseph em 1839, por Fran,;ois Arago, membro do Parlamento Fran-
Nicéphore Niépce ( 1765-1833) desenvolveu a heliografia,2 cés, na Academia de Ciencias e de Belas Artes da Franva para
um processo químico para fixar, em urna camera escura, a divulgar as experiencias desses dais franceses.
luz emanada de objetos. Pouco tempo depois, Niépce se as- Como toda novidade, os primeiros anos da fotografia foram
sociou a Louis Jacques Mande Daguerre (1787-1851) que, marcados por urna intensa polemica acerca de sua natureza. En-
após 1839, veio a ser conhecido como o inventor da daguer- guanto uns conccbiam-na como urna técnica precisa e exata que
reotipia. Desse processo que consistía em usar urna fina ca- permitiría ao homem moderno realizar seu sonho de conquista e
mada de prata polida, aplicada sobre urna placa de cobre e domestica,;ao da natureza; outros encaravam-na como urna esté-
sensibilizada em vapor de iodo, resulta urna imagem de alta tica inteiramente nova que viria revolucionar o mundo das artes.
precisiio, embora em apenas urna cópia. Poucos anos antes, Houve, também, aqueles que, movidos por um misto de encanta-
em 1835, o eclético Wi\lam Henry Fox Talbot (1800-1877) mento e pragmatismo, niio se preocuparam com os debates teóri-
produzia o primeiro calótipo ou talbótipo, urna técnica que cos que a circundavam. Larn;aram mao da camera escura, profis-
permitía a reprodu,;iio da imagem em papel albuminado. En- sional ou amadoristicamente, para celebrar as conquistas da
guanto isso, em 1832, na recém-criada na,;iio brasileira, um modemidade e embalsamar fravoes de tempos que rapidamente
francés radicado na Vila de Siio Carlos (atual Campinas), iam se perdendo no turbilhao das mudan,;as em curso.
Antaine Hercule Romuald Florence ( 1804-1879), desenvol- Embora a análise da questiio conceitual da fotografia es-
via suas pesquisas sobre a reprodm;:iio de imagens mediante cape aos objetivos <leste livro, é importante lembrar que, entre
processos químicos que ele próprio chamou dephotographie, os anos 20 e 40 do século XX, momento da chamada Revolu-
termo que só se tornaria usual após 1839. 3 ,;iio Surrealista, muitos já conceituavam a fotografia como
Na realidade, entre fins da década de 1820 e meados dos imagem híbrida. Juntamente com as obras de pintores como
anos de 1860, indivíduos de diferentes lugares da Europa e das Miró, Picasso, Salvador Dali, Max Ernest, as colagens do fo-
tógrafo Man Ray ( 1890-1976) subverteram as tentativas ante-
Américas debru,;aram-se, isoladamente ou nao, na pesquisa de
riores de reduzi-la ora a um mecanismo técnico altamente so-
diversos processos físico-químicos com o objetivo de captar e
fisticado, ora ao campo do realismo estético. Desde entiio a
fixar imagens na di.mera escura. A identifica,;5.o dos nomes de
fotografia "encarna a forma híbrida de urna 'arte inexata' e, ao
Niépce e de Daguerre como inventores da fotografia deveu-se
mesmo tempo, de urna 'ciéncia artística', o que niio tem equi-
em grande medida a publicidade dada a reuniao, promovida
valentes na história do pensamento ocidental". 4
' BELLO NE. Rogcr. La ¡,lwtoJ¡m¡,hie. 2.ed .. París: PUF, 1997. p . .'i (Cole~5o Que No mes como o de Roland Barthes ( 1915-1980) e deCartier-
sais-je1) Bresson ( 1908) estilo associados a um conjunto dequestóes acer-
' No fü1al do livro o leitor encontrará urna se~iio in!ilulada Cmnolo¡;ill, onde poderá ca da especificidade da linguagem fotográfica e de sua possível
ser identificada a seqüencia histórica dos principais experimento, que dcram ori-
gem il fo1ografia. dos fatos mais relevantes sobre sua hi~lória e dos termos técnicos similitude com outros tipos iconográficos. A partir dos anos 80
aqu, empregados.
' Recentcmente Boris Kossoy trouxe il luz documentos que comprova,n a descobena 'COSTA. Rodrigues. Apud. ARRUDA. Rogério Pereira. (org.). A/bum de Bell_o
. - . . ,. B I Horizonte·· Autl!nlt-
isoladada fotografia por Hercule Florence. Sobreestaquestiio, ver: KOSSOY, Boris. Hormmre. Ed,~ao Fac-sumlar com Estudos Crmcos. e o
Origem e explln.<iio dll /11/oJ¡mjia - simio XIX. ca, 2003.

38 39
Cm,010 "HsTÓOIA &... REFLcXOE,"' Históna & Fotografía

do século XX, as teorías de Barthes, sobretudo, tém funciona- natureza polissémica e híbrida da imagem fotográfica. Parte sig-
do como ponto de partida para o debate e a reflexiio sobre nificativa da fotografia, profissional e/ou amadora, passou pela
questoes e problemas relativos a natureza da linguagem foto- confeci;iio de retrato de indivíduos cuja desejo era transcender
gráfica.5 Grosso modo, pode-se dizer que entre os teóricos das os muros do anonimato erigidos pelo ritmo acelerado e voraz da
imagens visuais, em geral, há urna tendéncia a destacar mais modemidade. Desde cedo o retrato fotográfico se coloca como
as similitudes existentes entre a fotografia e as demais inte- urna prova material da existéncia humana, além de alimentar a
grantes da "comunidade de imagens", para usarmos urna ex- memória individual e coletiva de homens públicos e de grupos
pressiio cara a Barthes. Já entre os analistas da imagem foto- sociais. Nao por acaso, antes de deixar o país rumo ao exílio, a
gráfica strito sensu, é possível localizar pelo menos duas família imperial doou aBiblioteca Nacional sua imensacolei;:ao
tendéncias analíticas. Alguns colocam a génese automática da de fotografías. Delas fazem parte mais de 400 retratos de D.
fotografía como um divisor de águas entre ela e as demais Pedro II que hoje tém motivado a pesquisa de muitos estudiosos
formas iconográficas; outros reconhecem sua génese automá- brasileiros. 6 Dada a importáncia do retrato fotográfico na histó-
tica mas a definem como urna imagem híbrida, ou seja, como ria dos usos e fum;6es da fotografía, iniciamos com ele nossa
um amálgama de natureza, térnica e cultura, cuja análise nao abordagem sobre algumas das principais modalidades fotográ-
se reduz a um único centro. Pressup6e aconjuga~ao, nem sem- ficas na~ primeiras décadas de sua existéncia.
pre simétrica, de suas diferentes dimens6es. Em 1854, portanto quinze anos depois do reconhecimen-
Como dito anteriormente, nao constituí objetivo nosso to oficial do daguerreótipo, o caricaturista, desenhista e escri-
desenvolver urna história da fotografia neste capítulo. Interes- tor Gaspard-Felix Toumachon, conhecido como Nadar ( 1820-
sa-nos tao somente compreender os sentidos que os fotógrafos, 1910), inaugura, no número 113 da rua Saint-Lazare em Paris,
profissionais e amadores, deram a fotografia entre os anos de um atelier de retratos fotográficos. !mediatamente, o estúdio
1839 e as primeiras décadas do século XX. Os usos e fum;:6es a desse membro da burguesía da capital francesa torna-se um
ela atribuídos pcrmitem-nos estabelecer alguns nexos entre os lugar privilegiado de reuniiio da elite artística, intelectual e
significados das imagens fotográficas no passado e sua utiliza- científica parisiense e estrangeira.
~üo nos diferentes campos da análise histórica na atualidade. Dentre seus clientes encontra-se o poeta Charles Baude-
Jaire ( 1821-1867), que anos antes havia resistido bravamente a
dimensüo artística da fotografia. Segundo Gisele Freund,7 Bau-
O retrato fotográfico: diálogos coma piflfura
delaire era um burgués de hábito e gasto nobres, com urna con-
cep<;:üo de arte fortemente influenciada pelos ca.nones da estética
Dentre as modalidades da linguagem fotográfica, o retrato
pictórica tradicional, criada a partir dos mestres da perspectiva.
pode ser visto como urna porta de acesso privilegiada- embora
Seu conceito de arte moderna pressupunha um estreito diálogo
existam outras igualmente importantes - para percebermos a
' Sobre este acervo, ver: VAZQUEZ, Pedro Karp. A f11to¡:rnfl11 1w fmpéno. Rio de
' Uma amostra interessante des,a, diferentes ahordagens po<le ser encontrada em Janeiro: Zahar. 2002 (Colc~iio Descobrindo o Brasil): KOSSOY. Bori~- Ori};eu., e
SAMAIN. Etienne (org.). O {otoir<ijico. S:io Paulo: HUCITEC/CNPq, !998. bem expmmlo dtJfotoirqfia ,,,, Brasil: .<fru/,, XIX. Rio de Janóro: FUNARTE, 1980.
como em MOREIRA LEITE. Miriam. Ret,-,¡tos de Jamilfo. 2.ed. re., Siio Paulo: ' FREUND, Gisi:le. /..a {oto¡.:rajia como documento ,wcial Barcelona: Editorial
EDUSPIFAPESP. 2000.
Gnst~vo Gi!i. 1993. p. 41

40 41
Cml\Ao "H,m)1<1~ &... R,mxúE\" História & ro1c,g,afia

entre modemidade e tradii;ilo. Para Baudelaire, era exatamente Ao posar para Nadar, Baudelaire parece ter admitido que
essa articulayao entre tempos culturais diferentes que possibili- a genese automática da fotografía nao se constituía em um
tava ao artista transcender a mesmice do universo cotidiano, impedimento para a realizar;ao de um ideal artístico. No en-
atado a fins típicamente imediatos, e dessa forma criar algo pe- tanto, é importante lembrar que quando o poeta entra no estú-
rene. Como a fotografia era por ele concebida apenas como urna dio da rua Saint-Lazare, já eram clientes de Nadar figuras de
técnica exata e precisa, sem nen hum lastro como passado, Bau- renome da intelectualidade francesa, tais como, Vigny, Balzac
delaire nao a incluía no universo artístico. 8 e Sarah Bemhardt, para ficarmos apenas nesses nomes. Isso
Rejeii;óes como essa explicam, pelo menos parcialmen- nos faz pensar que o conceito de arte níio se restringía aos esti-
te, porque tantos fotógrafos daquela época passaram a produ- los estéticos propriamente ditos. Assim como na pintura moder-
zir imagens fotográficas a partir de critérios que norteavam o na, a consagrayao da estética fotográfica também dependía do
universo da pintura. Dialogar coma tradii;ao era, talvez, o ca- reconhecimento público da autoría da obra. 9
minho mais seguro para validar a nova forma de olhar e dar a A fotografia reproduzida na página anterior (Figura \)
ver o mundo. nos mostra que o reconhecimento da autoridade de certosfo-
túgrafos, como ocorreu com Nadar, por exemplo, transcendia
os muros de seus estúdios. Em Um brasileiro cosmopolita no
atelié de Nadar, título dado a essa fotografía pela autora de O
espírito das roupas, apenas conhecemos a nacionalidade do
retratado e a autoría da imagem. Todavía, o exercício da infe-
réncia associativa - marca indelével do lrabalho do historia-
dor, em grande medida artífice da decifrar;ao de pistas e sinais
- permite-nos afirmar, como faz a autora do livro de onde foi
extraída essa foto, tratar-se de um retrato de um mernbro da
aristocracia brasileira, provavelmente ligado ao setor cafeeiro.
Afina!, na segunda metade dos anos oitocentos apenas pessoas
desse segmento social podiam se dar ao luxo de viajar para a
Europa e sobretudo pagar o valor de urna fotografía assinada
por Nadar. Se comparada coma produr;ao de outros fotógrafos-
artistas - que até meados dos anos de 1850 monopolizaram o
nascente mercado fotográfico na Franya, Inglaterra, Alemanha

' Se a polémica sobre a nature,a :lrtísticu ou nao da fotografia é aqui 1nencionada, é


porque foi encabc<;:ada por homens que exereern grande influencia sobre u~ seto re,
Figura f sociais que mais eonsum1am as imagens fotográficas naqucle período: a aristocra-
cia e a nascen(e burguesía. O que e[t,.~ d1ziam determinava tanto o que deveria ser
fotografado e como o fotógrafo devia proceder. Mais larde, como barateamento da
• Sobre o debate de Baudcl:ure coma fotognifia, ver: TEIXEIRA COELHO (org.J. A fotografía., esse debate continuou. com alguma.~ altera(¡'tks. a nortear o gosto e o
modemidade de BaudeW.ire - te~tos inéditos. Río de Janeiro: Paz e Terra, 1988. olhar dos segmentos socia is que passaram a consumir a ÍJrulgem fotográfica.

42 43
Cült~·A<> "H<STÓRlA &.. , REFLLX◊~" Históri~ & FotogrJÍ,~

e nos Estados Unidos da América-, veremos que a fotografia de seus clientes, condi9ao necessária para exprimir-lhes a in-
desse "brasileiro cosmopolita em París" guarda muitos pomos terioridade e a alma dos mesmos, Nadar lan9a müo do daguer-
de convergéncia com o padriio do retrato artístico dos anos reótipo para real9ar certos tra9os da individualidade feminina
oitocentos. cultuados pelo imaginário do século XIX. Nesse período, os
As linhas de fuga dos retratos, quase sempre a meio-corpo, atributos da mulher, sobretudo dos segmentos mais abastados,
atraem o olhar do expectador para os detalhes da ro upa, das miios eram identificados comas idéias de delicadeza, de sensualida-
e da expressao de seu olhar. O fotógrafo-artista quer, fundamen- de e de urna certa <lose de mistério. Para exprimi-los, Nadar se
talmente, exprimir urna tese corrente no mundo da pinturn., na apropria de alguns códigos já assentados no campo da pintura.
qua! o retrato artístico mais que informar, deveria representar. A combina¡;iio do nu e/ou seminu com as dobras irregulares
Ou seja, "condensar em urna imagem simbólica o essencial das dos tecidos, sornada ao jogo de claro/escuro, ressalta a expres-
qualidades e das fum;:6es de um indivíduo importante". 10 silo vaga e melancólica do olhar ao mesmo tempo em que
Um outro retrato, também feito por Nadar, indica-nos como mostra, esconde e sugere a sensualidade do carpo e o mistério
a rela9i'io fotografia/pintura acaba por propor urna estética distin- da alma feminina. É assim que a fotografía ressalta os atribu-
ta daquela produzida pelos ca.nones pictóricos em fun91ío da tex- tos femininos já consagrados pela literatura e pela pintura e
tura da imagem, da ausencia de cores e do jogo de luz e sombra. devidamente assentados no imaginário da época.

A foto abaixo, a sensualidade da atriz Sarah Bernhardt A foto abaixo, feíta pelo fotógrafo francés Gilmer, 1870,
contrasta coma sobriedade da imagem masculina, reproduzi- é outro exemplo do diálogo da fotografia com a pintura.
da anteriormente. Interessado em captar os tra¡;os fisionümicos

Figura 3

Nessa imagem, produzida a partir da técnica do colódio


úmido e reproduzida em papel albuminado, a busca da sensua-
Figura 2
lidade femininase faz presente a partirdacombina9áo dos mes-
mos elementos que, na pintura, constroem a estética da nudez.
'" BAURET, Gabriel. Appmche.< de /11 photo¡:rnphie. Paris: Natlian. 2002. p. 51. Ao carpo nu, naquele momento restrito ao carpo feminino,

44 45
Hostóri¿ & Fotograf1a
Cow;Ao "HISTúOIA &... R,mxOf\"

agrega-se o movimento dos cabelos e a identidade misteriosa importante marco da !uta por urna arte livre dos di.nones tradicio-
da mulher que, num movimento semi-aberto, deixa ver frag- nais e da ingerencia dos mecenas que inibiam a criatividade dos
mentos de sua face, aumentando, assim, adose de mistério artistas. Menos de tres década~ depois, a rebeldía contra a sub-
sugerida pela fotografía. Sobre a extensiio do tecido que for- missao da pintura aestética greco-romana e renascentista culmi-
ra o diva, destoca-se o olhar do expectador provavelmente na no movimento conhecido como Cubismo. Aí, seriam criadas
curioso e encantado coma suavidade das linhas do corpo nu, outras fonnas de representa91ío da figura humana, da vida em
sociedade e da natureza. Na nova estética. a fotografia funciona
liso e sensual de alguém que quase revela sua identidade.
como urna aliada da pintura. A partir de imagens fotográficas.
Trabalhando com esses para.metros, autorizados pela pintura e
pintores como Pablo Picasso, por exemplo, produzem, em água-
pela literatura, o fotógrafo acaba por produzir urna outra sinta-
forte e em óleo, urna nova estética pictórica. Outros pintores, nao
xe, própria da fotografía.
vinculados ao cubismo, também lan~am mao da fotografía visan-
Entretanto, o processo de individualizac;üo da fotografia do, com isso, agu~ar o olhar e captar detalhes do real nao percebi-
niio foi simples. Nao por acaso, muitos fotógrafos lam;aram mUo dos a olho nu. Ncsses casos, a inten~ao era produzir urna maior
de "urna série de técnicas como a goma bicromatada e o bromó- sensac;ao de realismo. Ma~, voltemos, por ora, as representac;6es
leo", como objetivo de aproximar a imagem fotográfica dos feminina~ veiculadas pela fotografia de fins do século XIX.
pariimetros estéticos próprios da pintura empastele água-forte,
por exemplo. 11 O emprego de recursos como esse sinaliza ape-
nas urna das dificuldades enfrentadas pela linguagem fotográfi-
ca para se legitimar e autonomizar no universo artístico.
Nao podemos nos esquecer, no entanto, que as articula-
~6es entre tradü;ao e modernidade nao se reduzem a um pro-
cesso de mao única. Da mesma forma que a linguagem pictó-
rica cria limites para o desabrochar da sintaxe fotográfica, o
seu desenvolvimento também repercute na primeira. Em 1865,
pintores como Monet, Pissarro e Cézane realizaram o Salon
de Refusés,I' evento universalmente reconhecido como um

" FABRIS, Annatcresa. "'A inven~5.o da fotografia: repercussóe~ sociai~•· In: FA"
BRIS, A1111atercsa (org.). FmoimJio: o.rns e f1111riíes '"' .<érnlo XIX. Siio Paulo:
EDUSP. 1998. p. 17. (Co!e~iio Texto & Arte.1).
" Qua.,;c que simultaneamente a rcaliza,;:in do Su/rm de Refu.,é.<, um grupo de pintores,
encabe~ado por Colben, Delacmix e Delarocbe. cria a Revista /,,e Reu/i.<me. Seu> tcx•
10s defendem a tese da "identidade entre realidadc da natureza e realidadc ática da Fígura4
jm,;¡gem". Para criar urna im,;¡gem "precisa". •·exata" e. portanto "real1sta", os pimores
lan~am rollo da lupa e de outros anifícios para "rcproduzir os lfa\'OS da realidade, Nessa imagem atribuída ao major Henry Arthur Herbert
imperceptíveis a olho nu" Esse rnovimcnto nega 11. fotografia o estatuto de arte; cla ( 1840-1901) - fotógrafo amador e membro do Parlamento In-
apenas é aceita comotéc11ica. Sobre essasqucsteies, ver: FREUND. G1SCle. f.a fotoim-
fiu '"""'" documento _.,,,-íu/. Barcelona: E.ditorial Gustavo Gilí, l'l93, p. 68--69. gles pelo distrito Kerry da Irlanda -, parece que o fotógrafo

46 47
Histón~ & Fotografia
Cow;Ao "HISTÓRI~ &... Rm"ms"

conjuga va urna vida com estilo e urna pitada de lustro intelec-


pretendia conjugar condir;ao social e genero, enguanto dialo-
tual, tal qual podemos ver na imagem reproduzida.
ga coma estética pictórica. Entretanto, a conjugar;ao entre o
Mas as representar;6es da mulher que vimos trabalhando
lugar da mulher no enquadramento da imagem, a moldura da
até agora niio esgotam O repertório do imaginário feminino
foto, os apetrechos que a comp5em criam urna fisionomia de
mulher com urna estética diferente das fotografias produzidas oitocentista.
Em Retrato de um.a serva, de 1851 (Figura 5), o fotógrafo
por Nadar e/ou por Julia Cameron, por exemplo.
francés Henri-Victor Regnault ( 18010-1878) - membro fundador
ve-se que o fotógrafo em questao cria um cenário no qua! da sociedade Francesa de Fotografia e incentivador das pesquisas
a figura feminina vem embalada por diversos ícones da vida para a conservar.;5.o da imagem fotográfi~a - lanr;ou mao da esté-
aristocrático-burguesa da Betle Épuque. Debrur;ada sobre um tica artística, própria dos fotográfos-arustas, par~ nos apresen-
livro, apoiado em urna mesa decorada com outros livros e ob- tar urna outra imagem de mulher. Retrntada a me10-corpo e so-
jetos requintados, e alocada em um aposento tipicamente fe- bre um fundo liso, os pontos de fuga da imagem centram o foco
minino, a musa da imagem, provavelmente urna filha do fotó- na fisionomía da mulher. Ao se utilizar desses recursos, o fotó-
grafo, aparenta concentrar-se sobre o texto a sua frente. Mais grafo parece dialogar com os critérios estéticos ~omina_ntes en-
que mistério e sensualidade, a imagem dessa jovem sugere tre os fotógrafos-artistas. Entretanto, o título da fotografta, com-
idéias de fragilidade e delicadeza. Remete o observador a um binado como pano na cabei;a, o engomado e a al_vura do aventa[
ambiente privado e pudico. Ora. na literatura ficcionista da e da gola de sua roupa ressaltam a insen;;i:io social da retratada.
época, a representar;ao de urna jovem da aristocracia ou da Revelam urna das faces do mundo feminino que mais crescem
alta burguesía pressupunha um cotidiano recatado, onde se no século XIX: 0 da empregada doméstica, cuja vida é de votada
a servir os caprichos e necessidades dos que pertencem aos seg-
mentos dominantes da sociedade.
Conforme O imaginário do século XIX, a identidade de
urna servuldnméstica esta va ligada ao mundo do trabalho ma-
,,l considerado improdutivo. Por i~so mesmo, sua imagem
nu• , . .
devcria remeter o ]eitor a um mundo sem hybns, ou sep, sem
excesso, 0 qua! se contrapunha ao universo das mulheres dos
segmentos hurgues e aristocrático, represent_ad~s _ª pa~tir de
metáforas da sensualidade, da fragílidade,da md1v1duahdade,
do mistério e do prazer.
A excer;i:io do primeiro retrato aqui traba~ha~o, privil.e-
giamos os retratos femininos. Nossa escol_ha nao e ~leatóna.
A mulher é um dos temas de interesse da mtelectualidade do
século XIX. Ao mesmo tempo em que cresce sua participar;ao
nas fábricas e em outros espai;os da vida pública, verifica-se
um esforr;o para identificá-la com o mundo privado, com a
Figura 5

49
48
Colt\Aü "HISTÓIIIA &... REFLEX<">Fs"
História & Fotografia

esfera da casa. Mulher-m1ie, mulher-esposa, mulher-pilar da !mediatamente inicia-se urna democratiza9íio dos valo-
conserva91io da família, mulher-educadora, mulher-enfermei- res e dos signos fotográficos. Os anúncios em jomais divulga-
ra foram algumas das principais representac;:6es da figura fe- vam o endere¡;:o do novo profissional da fotografia, bem como
minina presentes na literatura ficcional, médica, nos relatos o raio de extensa.o de sua produ¡;:fío. Como pequenas fábricas
de viajantes e na historiografía do século XIX. EmA Mu/her, de ilusa.o, seus estúdios atraiam homens e mulheres que, indivi-
o historiador Jules Michelet nao apenas vinculou mulher/fa- dualmente ou em grupos, davam vazfío as suas fantasias. Para
mília/estabilidade social, como também construiu urna liga- tal, os estúdios ofereciam urna variedade de apetrechos utili-
91io histórica entre a figura feminina e os oficios de fiar e zados na montagem de cenários de acordo com desejo de
costurar. 13 A maioria das imagens pictóricas e fotográficas auto-representa¡;áo de seu público. Réplicas de tapetes per-
das mulheres oitocentistas também relacionava mulher e ati- sas, cortinas de veludo e brocado, almofadas decoradas, pa-
vidades domésticas. Mesmo quando se encontrava na fábri- nos de fundo pintados com cenas rurais e/ou urbanas, roupas
ca, sua representai;iio simbolizava a extensa.o da casa. Nao de gala, instrumentos musicais, bengalas, sombrinhas de seda
seria, pois, incorreto dizer que a linguagem fotográfica tam- etc., eram disponibilizados aos clientes interessados em atri-
bém funcionava como um dos principais suportes a corrobo- buir realidade a seus sonhos e desejos.
rar com esse esfor90 de naturalizai;ao da condii;ilo feminina.

A era dos estúdios fotogr{{ficos

Já em meados do século XIX, urna inovai;ilo técnica nao


apenas popularizaría o retrato fotográfico, retirando seu mono-
pólio dos membros da aristocracia e da alta burguesía, como
também criaría as condii;óes para a implementa¡;aü da fotogra-
fía comercial e industrial. Em 1854, o fotógrafo frunces André
Adolphc Eugene Disdéri (1819-1889) cria um aparelho que per-
mitiría a tomada de até oito clichés simultilneos, iguais ou dife-
rentes, em urna única chapa. Estava inventado o chamado car-
tiio de visita, um retrato de cerca de 9,5 x 6,0cm, montado sobre
um carta.o rígido de 10 x 6,5 cm, aproximadamente. Essa inova-
i;fío técnica baratearía sensivelmente o custo da fotografía.
Figura 6
"MICHELET, Jules. A m11/lwr. Sii.o Paulo: Manins Fontcs, 1995. p. 14. É imponantc
lembrar que tal construi;iio nao re5iste a uma análise empírica. Muitos estudos so-
bre a mulher em sociedades do século XIX ou <le períodos an1criores 1em mostra<lo Travestidos de nobres e burgueses, esses homens e mu-
que a <livisiio sexual <lo tmbalho n.ío necessariarnente lega it figurJ femininn papéis lheres nao conseguiam, como nos lembra Fabris, escamotear
e/ou atividades própri~s do mundo doméstico.
sua origem socioeconómica. A pele mal tratada e o semblante

50
51
C01,y\o "H"--,º""' &... REm,,-,,,• História & Fotografía

cansado, combinados coma rigidez do corpo, nao desapare- Photografia Alem1i


ciam sob os disfarces sociais e acabavam por denunciar sua
Ruado Espírito Santo
posi9i'ío subalterna na estrutura social.
Perto do Teatro
A cita95o na página seguinte - extraída, entre tantas ou-
Os abaixo assinados tema honra de participar ao respeitável pú-
tras, de umjornal da cidade mineira de Juiz de Fora em 1883 -
blico desta cidade que acabam de montar o scu atelié na rua aci-
evidencia pe lo menos tres dos novos atributos da fotografiada
ma. Trabalham lüdos os días e com qualquer tempo.
era dos estúdios. O primeiro se refere a democratiza9ao do
Tiram retratos de todos os sistemas, garantin<lo completa perfei-
consumo de sua imagem, o segundo ao potencial de mobilida-
yao nos trabalhos; e assim esperamos anunciantes mcrecerem a
de espacial dos fotógrafos e de suas cria96es. Já o terceiro diz
valiosa protey1io do ilustrado público desta cidade.
respeito ao aparecimento de novos negócios e ofícios ligados
ao mundo da fotografia, tais como as empresas produtoras de Preyos:
equipamentos fotográficos, as casas especializadas na venda Retratos cartoes de visita, dúzia ... 6$000
de filmes, máquinas e papéis destinados a reprodu9iio da ima- Retratos cart6es de visita, abrilhantados, dúzia. .... 10$000
gem, de porta-retratos e sobretodo a forma95.o dos profissio- Retratos cartócs imperiais abrilhantados, dúzia ....... 18$000
nais da fotografia. Em fins do século XIX a\guns fotógrafos Tendo de seguir em pouco tempo para Barbaccna e S. Joao d 'El
mantinham estúdios fotográficos com fi\iais em diversas cida- Rei prevenimos ao respeitável público que a demora nesta cida-
des. Para tal, empregavam outros fotógrafos que nao apenas de será pequena.
respondiam pela produ9ao fotográfica dos estúdios, como tam- Os fotógrafos, Passig & lrmiioY
bém exerciam a fun95.o de fotógrafos ambulantes.
Esse foi o caso, por exemplo, do proprietário da Photo- A propósito da dissemina9lio/incorpora9ao dos padr6es
grqfia Alemü, Alberto Henschcl (1827-1882), que se associa fotográficos socialmente definidos, o relato de urna senhora
com outros fotógrafos e em 1867 inaugura um estúdio foto- italiana parece-nos emblemático. Canta-nos ela que crescera
gráfico em Recife e outro em Salvador. Tres anos depois. abre
vendo urna fotografia de tres tias, já falecidas, irmas de sua
urna filial no Rio de Janeiro e, em 1882, outra em Siío Paulo.
mae. Na imagem, as tias se encontravam a-;sentadas em um
Anos mais tarde, a recém-criada Belo Horizonte abrigaría mais
banco do jardim da casa materna e no colo de cada urna delas
um estúdio da Photogrufta Alemii. Henschel e inúmeros fotó-
havia um instrumento musical. Anos mais tarde, quando adulta,
grafos brasileiros se deslocavam pelo interior do país levando
as navidades que iam surgindo nos grandes centros da Europa
"De acordo corn Christo, o p~o de un1 ingrcsso para um camarote no Teatro Novelli,
e dos Estados Unidos, o que certamente contribuía para a disse- em Juiz de Fora. era, na época, de 25$000. J.,;so nos d:I urna idéia do público que
minai;iio de certos signos fotográficos. 14 esrova ern condi~ues de adquirir cartiies de visna. De acordo com Karp Vazquez, na
déaida de 1870, Christiano Júnior e Joaquim Jnsky Pachec<), dois fotógrafos do Río
de Janeiro, ofereciam a dúúa de retratos em fonnato rnrle de vi.lite por 5$000 e o
"Aos que se mteress;irem por urna pesquisa ,obre o, estúdios fotog:rMicos no Brasil fotógrafo B. Lopcs chegava a prestar o mesmo servi~o por mi 3$000. Na époc~ um
do século XIX. ver: KOSSY, Boris, Ori11e,,.; e exp,msiio d11foto11rafia 110 Bra.,il. daguerreól:ÍJIO custava entre 5$000 e 8$000. Sobre t:.>S/!S quest'3e~, CHRISTO. Maraliz
Século XIX. Río de Janeiro: Fund"',ilo Nacmnal de Arte, 1981. KARP VAZQUEZ, de C. V. A fotografía ntravés dos anúncios dejomab. Juiz de Fora. 1877-1910.
Pedro. A forografla 1w /mpério Rio dl' Janeiro: Zahar, 2002 (Colc,;ii.o Descobrin- úicu.<: Revi:fta de Hi.111fria. Juiz de Foro: UFJF, v 6. n. l. 2000, p. l30 e KARP
do o Brasil). VAZQUEZ. Pedro. Afo111grnji11 ,w lmpé1w. Rio de Janeiro: Zallar, 2002. p. 29.

52 53
CmEV,0 "H<STOKIA &... RlflfXOES" História & Fotograf,a

essa senhora perguntou a mae por que ela nao se interessara, integr~ao a que a família sujeita os seus novas membros"·lN
como as tias mais velhas, pela música. Para sua surpresa, a '
cria e\os, institui e preserva a memória familiar. Quando feita
mlle !he reve\ou que .suas irrnlls, a"i tias, jamais tinham apren- em estúdio, aauto-imagem da família soma va-se a interferéncia
dido a tocar qualquer instrumento musical. Decepcionada, a de um outro olhar: o do próprio fotógrafo, que também possuía
senhora lhe indagou sobre a raza.o daquela fotografia. Com seus critérios estéticos e seus condicionamentos técnicos.
mu ita naturalidade sua mae disse-lhe que "era costume da época Em O espírito das roupas, Gilda de Mello e Souza lan-
que moi;as de familia de classe média se apresentassem com i;ou mao da fotografia para, a partir do tema da moda no sécu-
os modos das jovens de classe alta" .16 lo XIX, retletir sobre quest6es ligadas ao conceito de classe
social e de sexo.
Além do retrato individual, os fotógrafos ambulantes e
os estúdios de fotografia também se dedicavam a produi;llo
dos álbuns de família, de grupos de profi.ssionais, de amigos e
dos álbuns de cidades. Em todos esses trabalhos o fotógrafo,
independente ou vinculado a alguma empresa, desempenhava
o papel de mediador da cultura do olhar fotográfico, mais tar-
de seguido de perta por amadores. Nllo por acaso, Miriam Mo-
reira Leite chama a ateni;ao para a uniformidade

entre os retratos antigos de familias judías russas, hra-


silciras, árabes, italianas e suecas que imigraram para
, Figura 7
Sao Paulo, a ponto de os retratos de urna família ju-
día russa (inadvertidamente) tercm sido esco\hidos
para ilustra~ao de um artigo sobre a família patriar-
cal hrasileira. 17

O padrfo a que a autora se refere diz respcito amaneira de


representar o grupo familiar. Nas fotografias de família - fos-
.sem e!a<; produzidas em estúdios ou nao- o que interessava era
a representai;ao dos papéis sociais. É com eles que se cria a
identidade do grupo e se instituí a memória de seus membros.
Segundo Bourdieu, "o álbum de família exprime a verdade da
recordai;ao social''. Funciona como urna espécie de "rito de

"Entrevista Relato de Maria Grazfa Scag!ia Linlmes;_ Astolfo DutrJ. t.lcd1978. Acervo Fig1iru 8
de entrevista_, t.la au1ora
" MORElRA LEITE, Míriam. Retrnlo.1 de família. 2.ed ver. S:io Paulo: EDUSP/ " BOURDIEU. 11pud. LE GOFF, Jacques. Memória. In: Emfrlopédiu Ein11udi. Por-
FAPESP, 2000, p. 76. to: lmprensa Nacional-Casa da Moeda, 1884, p. 39, v.1

54 55
¡,
l
Cow,Ao "HISTÓRIA &... R,mxO"" H1st6r1a & folografia

Ambas as imagens (Figuras 7 e 8) parecem ter sido pro- estúdio: o chamado pano de boca, urna tela pintada cuja fun-
duzidas em estúdios. Na primeira, salta-nos a vista a impesso- yiio era criar um cenário para a atua¡;iio das personagens, um
alidade dos fundos fotográficos diante dos quais se colocaram recurso aliás, muito utilizado nas óperas. Além da cerca de
as famílias retratadas. Em ambas pode-se ver urna espécie de madeira, as liga96es familiares (casais, filhos. tios, avó) tam-
cerca feita de madeira. Conscientemente ou nao. o fotógrafo bém sao representadas por pequenas e sutis difereni;as na for-
usou este signo para ressaltar o papel desse símbolo da proprie- ma de vestir, pentear e pela disposiyao espacial de cada um
dade privada da terra, quer dizer, da hereditariedade da proprie- deles no cenário montado pelo fotógrafo. Em ambas as foto-
dade fundiária. Observe-se que em ambas s1i') os jovens das grafías, os fotógrafos parecem querer ressaltar o pertencimen-
famílias que, alocados atrás das cercas, representam a conti- to dos membros das famílias a estratos sociais que indepen-
nuidade da propriedade privada da terra e, conseqüentemen- dem do trabalho árduo e pesado. 19
te, os valores a ela atribuídos. A combina9üo da representa91io Antes de passannos a análise de mais urna modalidade
tosca, quase caricata, da origem rural da família se completa fotográfica do período, cabe chamar a atenyao para um dos
com a disposi9iio espacial dos demais membros na imagem. A modos de conceber e olhar a imagem fotográfica muito co-
preseni;a da empregada doméstica. devidamente uniformiza- mum na época. Trata-se de um recurso conhecido como picto-
da, refor9a, no expectador, um ideal da família de classe alta, rialismo, criado com o duplo objetivo de retocar as imagens
Na primeira imagem, a metáfora de família integrada é para diminuir as ambigüidades que a técnica fotográfica nao
reafinnada pela figura do patriarca que, de pé ao fundo, sugere escondía e de aproximar mais a fotografía da pintura. 20 Os fo-
prot~ao e seguram¡:a aos demais, Resguardada pelo bra90 mas- tógrafos, muita!'i vezes ex-pintores, retocavam as fotografías
culino, a mulherde expressao sóbria parece ser a esposa e a mae com "lápis, cannim, grafite e esfuminho, de colorar;5.o com óleo,
da família patriarcal. Ao seu lado, mais a direita, urna outra aquarela e anilina". 21 Também se contratava o trabalho de minia-
mulher com vestes escuras e expressiio atenta tanto pode ser turistas para o retoque das fotos. Essa invenr;llo, contemporánea
urna preceptora das crian9as quanto urna tia solteira. O bambole
<liante do filho(a) car;ula. o único signo a nos reportar ainfancia " A novidade (la fotografia assusta mesmo aquele; que bt1scarn ncla urna forma de
como um espa¡;o do lúdico e da distrai;ao, era um dos brinque- perenizar sua passagpn pela vida. Em geral, antes das lomadas das po;.cs, os chen-
tes passavam alguns minutos na antc-snla dos ~stúdios di.,tramdo-s~ comas ima-
dos mais utiliz.ados nas fotografias de família daquele período. gen, de álbun, fotográficos. Esperava-sc que enquanto se Jc1ivcssem na cscolha
Ironicamente ou nao, esse símbolo da vida infantil é colocado dos apetrechos que uiam adornar o ccmírio para eles monlado, tarnWm pudes~em
ir se desconlrnmdo. Ainda assim, a cxpress;lo por vczes .t>su,tada do olhar dos
exatamente diante da crian¡;a que nao tem nem idade nem con-
fotografados sinaliza a artificialid.tdc do ato Je se deixar fotografar. Sobre a
trole motor suficientes para faze-lo funcionar. A rigidez das pos- arnbienta~iio na antc-,ala dos es1údios e no interior do~ mesmos, ver: LEMOS,
turas é outro sinal da artificialidade da situa91io gerada pela pre- Carlos A. c. Ambknta~ño ilusúria In: MOURA, Carlos E.M. de (org.) Rerrn10.1
qua.<e ¡,,,,N,lle.1. Sao Paulo: Nobd, 1983, p. 49•65.
sen¡;a de estranhos: a máquina e o fotógrafo.
'" FABRIS, Annateresa. A inven~lio da fotografia: repcrcuss5es sociais. In: FABRIS,
Com algumas diferem;as, a segunda imagem também nos Annateresa (org.). Fo111¡;rn{it1: uso., e fw1pies 110 .,irnlo XfX. S:io Paulo: EDUSP,
remete ao padrao da primeira. A reuniao de tres gera¡;óes em 1998, p. 2 l (Cole~lio Texto & Arte, 3)
" Dado que as reprodu~5es das imagen> destc livro ser.lo em preto e branca, nito
um único espa¡;o sugere a idéia de permanencia de valores, de
apresentarernos exemplos imagéticos dos retratos pintados. Certamente muitos dos
continuidade da instituiyao família, sinónimo de estabilidade leitores devcm ter tido a oportunidndc de ver alguns desse; espécimes tilo comuns
social. Essa foto tem, ao fundo, outra marca da produ¡;ao de no Brasil até cerca de meados do século XX.

56 57
Cm,<;,V, "Hi;róo,~ &... REFLlxm;" Hislória & íotografia

do barateamento da imagem fotográfica, acabou por inflacio- histórica, etc. Por mais realistas que fossem os cart5es pinta-
nar seu prei;o, cujos cálculos computavam os gastos com os dos, suas imagens niio logravam ultrapassar a sensayüo de reali-
suportes destinados a colorizar a imagem e com o pagamento dade, produzida pelas imagens fotográficas, ilustradas ou nüo.
do trabalho dos miniaturistas encarregados de pintar a fotogra- De mais a mais, os cart6es-postais fotográficos eram infinita-
fia, além dos custos da própria fotografia. Em virtude disso, a mente mais económicos e, portanto, mais comercializ.áveis.
foto-pintura funcionou com urna barreira socioeconómica<; no O sucesso de tal empreendimento levou, em pouco tempo,
interior do universo fotográfico. Entretanto, o rompimento des- fotógrafos e pequenos empresários a investir na prodm;ao eco-
sa fronteira nao tardaría a se concretizar. Hoje em dia, a foto- mercializa9ao de vista,; de paisagens, de cenas da vida rural e
pintura ainda é utilizada por um público de menor poder aqui- urbana, de monumentos históricos e de lugares que, por raz5es
sitivo, geralmente localizado em áreas econ6micas também diversas, iam se tomando cada vez mais objeto do desejo e das
mais pobres. 22 viagens de lazer da burguesía da Bel/e Époque. Em pouco tempo,
as paisagens, os monumentos históricos, o folclore regional, os
tipos pitorescos e a mao-de-obra das áreas rurais e urbanas tor-
A era dos cartOes-postais
naram-se os principais alvos da produi;ao dos cart6es-postais.
Para se ter urna idéia do sucesso desse empreendimento.
O aumento do consumo da fotografía iria se tomar ainda
Kossoy nos dizque,
mais acentuado quando, em 1888, o fotógrafo George Eastman
(1854-1934) passou a comercializar seu mais novo invento: a cm 1899, quando do inícioda "idade de ouro" dos car-
Kodak. Esse primeiro aparelho fotográfico portátil, por ele cha- t6es-postais [1900-1925], a Alemanha produziu 88
mado de instantéineo, continha um rolo de filme que pennitia milhües de unidades, seguida pela Inglaterra com 14
fazer até 100 imagens. Desde entao, a,;; imagens fotográficas milhües, Bélgica: 12 milh5cs e Fran~a: 8 milh5es. Já
tomaram-se objeto de comercializai;ao em larga escala. em 191 O, a Fran~a liderava essa indústria produzindo
nada menos que 123 milh5es de postais. 23
Um ano depois da inveni;aü do instantáneo, desenhistas e
pintores franceses encontraram urna utilizai;iio rentável para_as Assim como ontem, também hoje, os cart6es-postais ja-
imagens saídas da Kodak: criam ocurtiio-postal ilustrado, fe1to mais oferecem imagens-sintomas do feio e do desagradável. A
a partir da fotografia. Mais urna vez, a fotografiadialogava com expressUoparece um cartiío-postal sempre se refere a um ideal
a pintura. Punha suas lentes para fixar e divulgar partes de de belo consagrado pelas artes plásticas greco-romana e re-
vil as e cidades já consagradas por sua importánciacomercial, nascentista. Encantar o olhar do observador, celebrar um ima-
ginário que remeta a um mundo guiado pelas noi;Oes positivas
"Embora 11 ao se_ia objeto de nossa análise. niio podemos dc,xar de registrar a po_l~-
de progresso e civilidade sempre foram as principais fun96es
mica nasüda coma prit,ca pictorialista que nao ;e re~tringiu aos cartócs de visita,
mas csteve presente também nos cartóe~ postais e na reprodu~iio <le unagcns 11a sociais dos cartóes-postais. Náo por acaso, a medida que sua
midia imprcssa. Alguns analistas .sus1cnta111 que o pidorialismo lcria repre,ema<lo moda ia se alastrando, as cidades, locus por excelencia do
urna 11ega~iio <la linguagem fotográfica que, por sua natur~za lécnica e por sua
grande capacidade rcprodutiva. tem, des<le seu surgimenlo. um rn1nprotni,so com
ademocrati~iio da imagcm. Sobre es<,e debate, ver: BAURET. Gabriel.Appmc/,e.; " KOSSOY, Boris. Rea/idade.< e jiq·,ies ,w trama foto1-:rájirn_ 2.ed .. Siio Paulo:
de la p/l()/1tgmp/1ie. Paris: Nathan, 2002. p. 82. AteliC E<litorial, 2000. p. 64.

58 59
Co,fy\0 "H,sf<JSIA &.. , REFLEXOF.S" Histúria & Fotografía

exercício e das práticas civilizadoras, iam construindo suas ele, ao contrário, se completa comos demais planos da imagem.
vers6es higienizadas, oficiais e modernas do espa90 público. Ao fundo está um dos ícones da cidade-luz: o Arco do Triunfo.
Niio por acaso, os prédios públicos e as constrm;:6es arquitet6- Projetado para celebrar a vitória de Napoleao Bonaparte em
nicas esteticamente mais arrojadas foram os principais alvos Austerlitz, em 1805, esse marco da grandeza da na¡¡:i"ío francesa,
dos produtores dos cart6es-postais. Consumindo os ícones que concluído em 1836, remete o expectador ao passado e a tradi-
as representavam, o turista, que durante suas viagens inter- 9ao. Entre sua silhueta e o guarda de tránsito, estao os automó-
rompia a mesmice de seu cotidiano, quería mostrar a seus pa- veis que vém e vao, ícones, por sua vez, da velocidade do pro-
rentes e amigos que também ele participava do "avan90 da gresso e da modemidade. As mulheres sobre seus triciclos
civiliza9üo", simbolizada, nos caitóes-postais, por um mundo também sugerem urna certa combina¡¡:Jo entre tradi91io e mo-
ordenado por signos já identificados com as nrn;6es de belo, demidade. Se, por um lado, a presern;a feminina já ganha as
prazer e avan90, sobretudo tecnológico. ruas; por outro. ela se locomove no espa¡¡:o público com um
veículo que niio é tao moderno quanlo o automóvel, o qua!,
naqucle período era sempre guiado por homens. A conjuga95.o
automóvcl/triciclo desperta, no observador, imagens associadas
a um tipo de agilidadc superior ado movimento do corpo huma-
no. Fortalecem a cren9a na capacidade do homem conquistar e
dominar, via tecnología, a naturcza. Diante do guarda de transi-
to, no plano inferior da imagem, encontram-se as linhas que
demarcam, no chao. urna linguagem própria das normas de trán-
sito, signo da disciplina espacial urbana, condi9áo de integra-
950 e sobrevivéncia na11rbi.1·. No conjunto, a imagern exalacon-
tentamento, higicnizac;ao e interrn;ao entre as pe~soas. Agradável
e bonita como um cartilo-postal!
A identificac;ao entre modemidade e carciio-postal nao se
reduz a sua linguagem iconográfica. Na realidade. o cartiio-
postal é também urna modalidade nova de correspondéncia. É
urna comunicai;iio constituída de texto e imagem visual que ul-
trapassa dois !ipos de fronteiras. A espacial. geográfica, e a da
individualidade da correspondencia. As palavras do emitente,
livres do sigilo que os envelopes garantem aos textos das cartas,
v5.o se socializando até chegarem ao dcstinatário. O fotógrafo,
Essa imagem nos coloca diante de urna outra face do car- interlocutor oculto dessa comunica9iío multipartilhada, produz
ti:io-postal: sua dimen sao pedagógica. Vé-se que o foco princi- a comprova9i"ío do que oolho do(s) destinatário(s) niio pode(m)
pal do fotógrafo recai sobre a figura do guarda de tránsito. ver. No lado aposto do cartiío, as imagcns, ícones de urna
Entretanto, o sentido pedagógico da imagem nao se reduz a leitura positiva e otimista da modernidade, funcionam como

60 61
Col[(,.ÁO "HISTÓRIA & ... RmFxúlS" H,stórra & FotogratiJ

urna espécie de guia para a imaginm;iio tanto do emitente da entre os que as cultuavam. Em torno dos significados a elas
mensagem quanto de seu(s) receptor(es). atribuídos, os homens tanto podiam se unir quanto se separar.
Se os álbuns de família podem funcionar como fon te para Nas sociedades predominantemente laicas do mundo
o historiador problematizar temas ligados a história da vida moderno, mudam as formas de reverenciar a morte e a memó-
privada, os cart5es-postais, hoje pe9as cruciais dos acervos ria do morto. As cren9as sobrenaturais e os rituais fúnebres
das cidades, sao documentos que tanto informam quanto per-
mitem a análise das representa96es do espa90 público.
1 deixam de ser defendidos tiio apaixonadamente. A celebra91io
da marte ganha um calendário próprio e um espa90 que, dia a
1
dia, vai se tornando mais asséptico e impessoal. Ainda assim,
durante o ritual destinado a celebrar a memória do morto, seu
Afotografia e as representarOes da morte
retrato feito em vida é, comumente, distribuído entre os que
participaram de seu cotidiano. Para cultuar sua lembran9a, a
Urna multiplicidade de mitos, positivos e negativos, re- fotografía é um dos recursos mais utilizados.
lacionados com o tema da morte marca a trajetória do homem
No início de 2002, o Museu D'Orsay de Paris apresentou
ao longo da história da humanidade. Em todos os tempos, a
urna exposi91io intitulada/e dernier portrait. Em meio a escul-
passagem -definitiva para uns, temporária para outros -da vida
turas e pinturas de diferentes períodos da modernidade, desta-
para a morte é celebrada por diferentes rituais fúnebres. Ao exe-
cavam-se as fotografias que, entre 1854-60, também registra-
cutar seus ritos, os homens nao apenas criam formas para do-
ram "o último retrato" de crian9as, jovens e adultos. Esse
mesticar a dor e o medo <liante do sentimento de perda que a
costume de fotografar a morte recém-chegada, tao corriqueiro
marte acarreta, como também estabelecem normas para regular
na Fran9a oitocentista, era partil hado por muitas outras socie-
as condutas dos membros das comunidades a que pertencem.
dades do mundo moderno. Ao retratar um ente querido que
É assim que a no9iio de marte gloriosa fabrica o mito acaba de morrer, a imagem fotográfica faz reviver, em lingua-
do herói, cuja vida será reverenciada pelos vivos segundo gem e estética seculares, "algo que se assemelha ao estatuto
um calendário próprio. Hades, Inferno, Purgatório, Paraíso primitivo das imagens: a magia". Nesses casos, a fotografia
sao alguns dos lugares-ícones que a tradi9ao grega e crista funciona como um "substituto da posse de urna coisa ou pes-
destinaram a vida após a morte. As representa9ñes de cada soa querida, posse que !he confere algumas das características
um desses espai;os - celebrados pela literatura, música e ar- dos objetos únicos. 23 Sempre que vista, a imagem estimulará
tes plásticas - correspondem explica96es para o alcance e o lembrani;as e, quem sabe, aplacará a dor da perda.
limite da a9ao humana.
Naquela época, a confec91io do chamado último retrato
Nas sociedades tradicionais, os ritos fúnebres também seguia um padrao estético dado pela pintura. No século XVI,
incluíam a confec9iio de máscaras mortuárias, as quais nao o pintor italiano Jaco¡xi R. Tintoretto (1518-1594) pintara um
apenas guard:'!vam as propriedades do morto, como também quadro retratando a morte de sua filha. Sua estética da represen-
reverenciavam sua memória. Expostas em lugares especiais, ta9ao da vida que acabara de se esvair tomou-se um padrao para
elas eram sacralizadas e, como tais, instituíam, divulgavam,
refor9avam e alimentavam o sentimento de pertencimento "SONTAG, Susan. En.wü,,< ,<(lbre r,,wgrafi11. Lisboa: Dom Qui~otc. 1986, P· 137

62 63
e,,, F<,Ao "HisTO.IA &... Rmexm.s'" História & Fotograf,~

o~tros pintores e, mais tarde, para os fotógrafos oitocentistas. Além dos albos semi-abertos, a criru19a já marta traz na
Nao por acaso, muitas dessas fotografias eram assinadas por cabe9a urna cruz sustentada por urna espécie de toca. Essa cruz,
fotógrafos-artistas. símbolo do pertencimento ao mundo crista.o, funciona como
Ain~: hoje, o último retrato, feito no espa90 doméstico, é guia para os albos desprovidos de conhecimento sobre o traje-
urna trad19ao cultuada em certas comunidades rurais. Todavía, to a ser percorrido. Para os familiares do bebe recém-morto, a
n~sse_s casos, ele nao apenas tem um outro significado, como tam- fotografia funcionará como a prava de que a crian9a partiu
~m e reservado aquel es que nao tiveram tempo de experienciar a preparada para sua longa viagem ern dire9üo ao paraíso. Para
~ida, os recém-nascidos. Na fotografia que se segue, extraída do o historiador, interessado na decodifica9üo da imagem, esse
hvro Terra, o fotógrafo Sebastiao Salgado explica que, tipo de fotografía é o testemunho de urna das formas de mani-
Segundo a crem;a popular do Nordeste, quando mor- festa95.o do imaginário popular cristiio.
rem anjinhos, ainda nlío acos!umados com as coisas No século XX, as representa9óes do último retrato mi-
da v_ida e quase sem conhccer as misas de Deus, é graram para o espa¡;o público, para a imprensa, e adquiram
prenso que seus olhos sejam mantidos abertos para outros usos e fun96es. Reproduzidos ern jornais - inicial-
que possam encontrar com mais facilidade o caminho mente mediante a transcri9iio em litografías - eles privile-
do céu. Pois comos olhos fechados, os anjinhos erra- giam a notícia da rnorte de indivídum, cuja vida é associada
riam cegamente pelo limbo, ,,.m
.., nunca encontrar a
a algum tipo de inser¡;iío na esfera pública. Sua divulga~iio
morada do Senhor. Ceará, l 983.2l
visa estimular, no lcitor, sentimentos e valores professados
pelas ideologías que norteiam a linha editorial dos jornais
que o publicam.
Foi com objetivos como esse que, em 1938, os jornais
brasileiros cstamparam as imagens da morte de Lampiiio e scu
bando, os quais, conforme depoirncntos das autoridades, de-
safiavam os valores republicanos desde 1917, data cm que
Lampiiio entrara para o mundo do canga<;o. Em 1967, é a vez
da imprensa boliviana divulgar, em primeira mao. o último
retrato do comandante Che Guevara, um dos ícones da Rcvo-
lu9iio Cubana de jane1ro de 1959. lmediatamcnte, jornais de
diferentes países do bloca capitalista reproduziram a imagem
do carpo de Guevara como objetivo de celebrar o triunfo da
!uta contra o terrorismo em tempo de Guerra fria. Para muitos
Figura JO que viram essa fotografía, o último retrato de Guevara teve
outro significado. Representou um golpe na Juta em pral do
'-' SALGADO , Seb as t"-
1ao. -·
urr,,_ Silo Paulo: Cornpanhia das LI.'tras, 1997, p. !40. socialismo na América Latina.

64 65
Cow;.Ao ·H1,rúa1A & . Rtnrx(m" História & Fotogr~f,~
¡
I;.
de Janeiro e Vila Rica. Pelo que se sabe, sua cabei;a teria fica-
do exposta na capital da capitanía de Minas Gerais, de modo a
manter viva a lembrarn;a dos custos de urna rebeliao. Quando
veio a República, Pedro Américo criou o último retrato de Ti-
radentes, já entiio identificado como herói nacional.
Mas a divulgai;üo da fotografía na imprensa nao se res-
tringiu ao tema da marte. As cclebra96es e comemorai;óes
dos atos públicos dos chefes de Estado e do cotidiano de
suas famílias, as manifesta¡;óes políticas, as conquistas tec-
nológicas, as reformas no espa90 público, enfim, urna gama
variada de temas e acontecimentos foram, como tempo, pre-
enchendo as páginas dos jornais, modificando sua estética e,
sobretudo, contribuindo para criar urna outra rela9iio dos
Figura 11
homens comas imagens.
Nessa fotografía os membros do bando de Lampifío mais
¡:
pa~~~em pe9a~ d_e um museu macabro. Sem qualquer inten9fío Fotografia, imprensa e políticas públicas
art1st1ca, o obJet1vo do fotógrafo é informar o desbaratamento
d_e ~m dos últimos redutos do banditismo social no sertao bra-
Dentre os campos de visibilidade da imagem fotográfica
s1leiro. Ironía ou nfío, o fato é que a imagem também pó
na imprensa de fins do século XIX e início do século XX,
descoberto a violéncia dos meios de combate aa9iio de gru;o:
estavam também as representai;óes sobre as classes sociais.
que, como esse, eram considerados urna amea9a a estabilida-
Nesse período, o jornalista americano, Jacob-August Riis
de da nai;ao ~rasileira. Vestimentas, armas, o clássico chapéu
(1848-1914), especialista em crónicas policiais, descobre o
dos_ cangaceiros, botas, tudo ricamente ornado, querem sim-
poder de persuasiio e propaganda da fotografía e inaugura um
boh~ar o ~m da rebeldía camponesa que a cultura excludente
novo estilo jomalístico: o documentário ilustrado (Figura 12).
e latifund1_sta da República transfonnara em símbolo do caos e
Tal qua! no último retrato de Lampiiio e de Che Guevara,
da anarqma. As imagens das cabe9as de Lampifío e seu bando
aí também a solidariedade entre texto e imagem visa a fonna-
parecem ser um caso específico de diálogo da modemidade
9iio de opiniiio dos leitores de jomais. A diferen~a é que os
coma tradi9iio. Expor partes do corpo de rebeldes sobretudo
a b , ' temas de Riis privilegiavam a vida e nao a morte. Seu olhar se
ca ei;a, ~ u;1_costume antigo.2<> Para ficarmos apenas no pas-
dirigia para a sociedade concebida a partir de dois grandes
sado da ~•stona brasileira, lembremo-nos do carpo de Tira-
blocas: os pobres e os ricos nos Estados Unidos da América.
dentes diiacerado, exposto em pontos do caminho entre Ria
As imagens dos pobres traziam a tona o tema da sociedade de
'" É imponante lembrar .. .
massa, dos traba\hadores imigrantes, dos desempregados, men-
pública em S q~e as cabe~as dos cangacc1ros ficaram cxpos1as a visita~ao
sem sepu1tad:~a<iur ate 1969, quando urna decisiio judicial ,Jeterrninou que fos-
digos, em suma, do universo social identificado comas "classes
perigosas". Enguanto a produ~1io das imagens de trabalhadores

66 67
1 ern F(AD "HIS~ORIA &... R!fl f<(JfS" H,stóna & íotugrafia

¡! italianos, chineses, judeus, irlandeses etc., sobretudo dos de- Na transii;:1io do século XIX para o século XX, os grandes cen-
sempregados ou subempregados, eram guiadas por urna interpre- tros urbanos, sobretudo aqueles ligados aprodui;:1io industrial,
ta,;,:ao mornlista e refonnista, saída do olhar xenófobo de médicos recebiam um grande fluxo de migrantes. A organizru;ao de seus
e juristas de fins do século XIX, as representa,;,:óes fotográficas da espai;:os vai senda profundamente alterada pela preseni;:a de
burguesia pautavam-se por valores positivos, como a beleza novos atores sociais, cujas vidas os decretos municipais tenta-
plástica, a felicidade, a uniao da família, o lazer etc.27 vam regular e controlar. Ferreiros, sapateiros, costureiras, bom-
Ao relacionar a pobreza com as representa,;,:6es do aban- beiros, operários de fábricas, vendedores ambulantes de todo
dono, da enfermidade, da pregui,;,:a, do crimee da subnutrii;i'io, o o tipo, desempregados, mendigos e os chamados vagabundos
fotógrafo punha suas imagens a servfr;o dos discursos dos de- transitavam pelas ruas, bairros e praqas antes reservados aos
fensores das políticas sanitaristas, das refonnas urbanas e da antigos habitantes. Em meio a tais transfonnar.;:6es, criou-se o
aproYa<;fo de leis de controle e disciplinarizm¡:ao do trabalho. p5.nico das massas, das multid6es sem identidade própria, ime-
diatamente identificadas com a desordem. Para mantero con-
trole sobre o processo de alargamento das fronteiras do espaqo
público, as autoridades criavam urna série de políticas públicas,
alicerqadas por urna enorme literatura, sobretudo médica e jurí-
dica, que a mídia se encarrcgava de divulgar. Texto e imagem
compunham a nova linguagem destinada a domesticar o espai;:o
em diferentes metrópoles da Europa e das Américas.e~
Longe de ser um documento neutro, a fotografia cria
novas formas de documentar a vida em sociedade. Mais que
a palavra escrita, o desenho e a pintura, a pretensa objetivi-
dade da imagem fotográfica, veiculada nos jornais, nao ape-
nas informa o lcitor - sobre datas, localizai;:aü, nome de pe~-
soas envolvidas nos acontecimentos - sobre as transformac;6es
do lempo curto, como também cria verdades a partir de ían-
tasias do imaginário quase sempre produzidas por frai;6es da
classe dominante.
Figura /2

'' Ao lado das imagens sohrc a pobreza. cresce. também ne%c período. a produo;.'io
Amda que circunscrito as grandes cidadcs norte-america- fotognífica cspeciahzmla em documentar a., doen~as. Sua cm:ula<;:Uo 1inha destino

l¡ nas, o traba\ho fotográfico de Riis dialogava com o de outros


fotógrafos-jomalistas situados em outros espa(,'.OS geográficos.
eerto. as revbtas m¿d1cas. Ao lado dns mrngens da enfcrmubde. encontrJm-se as
dos laboral<írios de pesquisa. onde se vé médicos e pesquisadon..>s em seu, !ocal, de

!!¡¡, trabalho. O par saúdc/doen(:a orientn a;, rcpre;cnta(:OC<; do e,pa(:o ,ocial idcn1ifica-
do pelas idéins de ordem/desordem. Sobre e,sas ques1oe,. ver: SILVA, James R. De
"Sobre c,;sas qucstües. ver. LEMAGNY. Jean-CfauJc e ROUILLÉ. André. Hi.<loire aspectos quase floridos. Fotografos cm revistas médicas pauhstas, 1898-1920.
,,!'
"'
de /¡¡ ¡,hoto¡.:,·üplúe. París: Bordas, 1986. p. 64 e scgs.: FREUND. Gisi:!e. La folo-
grafia de prensa In: ÚI f/Jlo¡.:1·1ffi11 ,.,,,,.,, d11rn111e1110 .<ocio/ Barcelonn: Gili. [ 993
Revista Brnsi/eirn de Hwúria - C!Cncia e Soc1edade. S5o Paulo: ANPUH/
Humanitas Publica(:6es. v. 2!, n. 41, 2{)(ll. p. 201-216.

68 69
Hislória & íotogrJr.a
Cmry\o "HISTÓl<IA &... REFLcXOfS"

Deal, o governo Roosevelt contratou, soba direi;ao de um so-


Para se ter urna idéia do poder de difusiio dessas e de
ciólogo, o trabalho de fotógrafos renomados para documentar
outras vis6es da sociedade presentes nos jornais da épo~a, .é
os efeitos perversos da crise em solo americano. Nesse caso
importante lembrar que, em meados do século XIX, existta
específico, as cámeras fotográficas subsidiariam a montagem
apenas em Nova York cerca de dez mil ilustradores emprega-
dos na imprensa. A eles cabia transcrever em litografias as de um "balan90 objetivo das condir;0es de vida e trabalho nas
tomadas fotográficas feítas nas ruas e bairros da cidade. Entre áreas rurais do país";" coma finalidade de implementar pro-
gramas de modemizar;ao nas áreas rurais.
1855-60, o jornal 1/ustrated London News,
Em pouco tempo, a burocracia estatal norte-americana
promete a scus lcitores urna visilo dos principais acon-
teve em maos um testemunho verossímil e variado do estado
tecimentos mundiais. do progresso social e da vida
em que se encontrava a popular;ao das áreas rurais e das pe-
política, coma ajuda de imagens variadas e realistas".
Nessa época, sua tiragem pa.~sa de 200 mil para 300 quenas cidades atingidas pelos efeitos de urna crise de propor-
r;iio mundial. Das 270.000 imagens produzidas por esse mape-
mil cxcmplares. 29
amento do interior dos Estados Unidos da América, cerca de
A era moderna da imprensa ilustrada come9ou de fato a 170.000 encontram-se hoje arquivadas na Biblioteca do Con-
ganhar fülego com a contrata<;iio de fotógrafos socialmente gresso em Washington. Largamente difundidas na imprensa
reconhecidos para acompanhar os chefes políticos e militares da época, as imagens causaram polemica e protestos, sobretu-
em suas campanhas. Esse foi O caso das imagens produzidas do por parte dos grandes proprietários fundiários contrários,
pelo fotógrafo frances Le Gray que, a partir de 1856, passou a desde o início, aos propósitos reformistas da Casa Branca.
documentar o cotidiano das campanhas de Napoleiio III. En-
Muito provavelmente, a5 fotografías de crianr;as famintas;
tretanto, é durante a guerra dos Bóers (1899-1902) e da guerra
do desemprego generalizado; das migra96es em massa de pc-
russo-japonesa (1904-1905) que a fotografía de imprensa se
quenos agricultores e trabalhadores rurais empi [hados, como
firmou. Quando foi deflagrada a Primeira Grande Guerra, a
cmsas, em precárias camionetas e em vag5cs de treos; de carca-
fotografia de imprensa já era um dos principais veículos de
9as de animais espalhadas pelas estradas servimm para subsidiar
divulgai;ao de notícias e de produi;ao de interpretayiio sobre
as cena5 verossímeis e pungentes que, em 1940, compuseram a
os acontecimentos históricos.-111
trama do clássico do cinea5ta John Ford em As vinhas da ira.
,,- No decorrer do século XX, o avani;o das técnicas foto-
As constru96es fotográficas da equipe de fotógrafos da
gráficas e a mudan9a do padriio na edi9llo dos jomais foram
atribuindo as imagens fotográficas um papel cada vez maior Farm Security Admi11istratio11 tiveram um sentido distinto das
na imprensa escrita. Logo após os prime iros impactos da crise imagens da pobreza de Jacob-August Riis. Fotógrafos como
de 1929, o govemo norte-americano criou a Farm Securiry Walker Evans (1903-1975), por exemplo, transformaram a
Administra/ion (FSA, 1935-38). Como parte da política doNew Fann Security Adminisrration em um empreendimento de ca-
ráter "etnográfico". Fortemente influenciado pela literatura de
'' LEMAGNY. Jenn-Claudc e ROUJLLÉ. André. H,.,wire de /.1 plwlof.:rllphie. Paris: Flaubert e Baudelaire, Evans usou sua arte para documentar 0
Bordn.s, 1986. p. 76.
"'Sobre essas que,16es. ver: FRIZOT. Michel {org.). Noul'elle hi.<toire de/ll f,i " Dictwnw"ie de fo Plwto. Pans: Larousse. ! 996, fl. 220.
phot<Jf.:mphie. Paris: PUF. 2001

71
70
CouV\u ·'I-Jos1ów, & ... R,mxOcs" Hiotória & íotograf,a

que Walter Benjamim chamou de fisiognomia da metrópole, do historiador. Para responder as quest6es que orientam nos-
Ao invés de produzir um testemunho pretensamente neutro do sas pesquisas - calcadas em vestígios do passado e, portanto,
real, a equipe de fotógrafos contratados pelo governo norte- marcadas por urna margem relativamente grande de conjectu-
americano buscou apreender as sensa¡;6es de dor, sofrimento ras e incertezas - as imagens fotográficas devem ser vistas
e esperan¡;a, expressas nos trai;os fisionOmicos dos homens e como documentos que infonnam sobre a cultura material de
mulheres do interior. Movidos por essa inten¡;üo, suas ima- um detenninado período histórico e de urna detenninada cul-
gens atribuíram dignidade aqueles atéentao identificados como tura, e também como urna fonna simbólica que atribui signifi-
miseráveis, vagabundos e sobretudo comos membros da cha- cados as representa¡;6es e ao imaginário social.
mada frai;iio perigosa da sociedade. Os usos e as fun95es sociais atribuidas as imagens foto-
Para finalizar este capítulo, cabe ressaltar que a tese do gráficas do período analisado neste capítulo certamente nao
realismo, da exatidfi.o e da fidelidade das imagens fotográficas coincidem comos significados que hoje !hes conferimos. To-
- trai;o atribuído a fotografia em seus primeiros anos - já nüo davía, sem compreender as vozes dos homens e mulheres de
é mais cabível entre os anos 20 e 40 do século XX. Embora o ontem, nao podemos conhecer os sentidos que eles atribuiram
Movimento Surrealista nao possa ser responsabilizado pela as suas produ¡;6es simbólicas.
mudani;a na caracteriza91io da linguagem fotográfica, nao há
como negar que as montagens dos fotógrafos que dele parti-
ciparam muito contribuíram para problematizar sua natureza. A
partir de entüo, fica fortalecida a tese de que por detrás da cha-
mada camera lúcida há um ou mais indivíduos interessados em
divulgar suas inteni;6es sociais e suas vis6es da realidade. Ma~
nem por isso as imagens fotográficas perderam sua aura de
magia e encanto.
Em um livro sobre a rela¡;;üo entre a história-conhecimento
e a fotografía, interessa, fundamentalmente, res~altar que as
imagens fotográficas, assim como as literárias e sonoras, pro-
póem urna hermeneutica sobre as pníticas socia is e suas repre-
senta96es. Funcionam como sinais de orientai;:ao, como lin-
guagens. Quando utilizadas com fins compreensivos e
explicativos, elas demandam niio apenas o emprego de meto-
dologías afinadas com seus estilos cognitivos -que ajudam a
ler e interpretar suas ambigüidades e seus silencios - como
também o cruzamento com outros tipos de documentos. A cé-
lebre frase de Roland Barthes de "que urna imagem fala por
mil palavras" nem sempre se aplica aos objetivos do trabalho

72 73
CAPITULO 111..

A História-conhecimento
e o documento fotográfico

Pesquisa histórica e documentos visuais

Vimos, no capítulo II, que as sociedades oitocentistas se


apropriaram das imagens fotográficas e legitimaram seu modo
de ver e dar a ver a diversidade do mundo muito antes que a
pesquisa histórica lhes atribuísse o status de documento histó-
rico. Neste capítulo, i,nteressa-nos discutir o papel das ima-
gens fotográficas na pesquisa histórica. Para isso, faz-se ne-
cessário compreender como e porque elas foram incorporadas,
como documento, ao novo paradigma histórico.
Tomemos, como ponto de partida para nossa análise, o
texto PosirOes da História em /950, de Fernand Braudel. Com
ele, Braudel, um dos deuses-tutores da Escola dos Annales,
1
introduz sua aula inaugural no Collége de France em 1" de
dezembrode 1950. Ao dizer que "a história se encontra, hoje,
¡; diante de responsabilidades temíveis, mas também exaltan-
1 tes"1, este historiador inicia seu balarnro sobre a relar;ño en-
¡I,
1¡ tre as trajetórias da pesquisa histórica, o oficio do historia-
dor e a dinllmica social no decorrer da primeira metade do
século XX. Dirigindo-se a um público jovem e curioso acer-
ca de sua futura profissiio, Braudel analisa as conquistas teó-
i !
rico-metodológicas de sua gerar;ño e examina os desafíos já
enfrentados nas oficinas da história. Simultaneamente, deixa
entrever as conquistas e as responsabilidades que as mudanr;as

' BRAUDEL, F. Posi,;Oes da História em 1950. In: Escrito., .wbre a Hi.miria. Siio
Paulo: Perspcc1iva, 1978, p. 17.

75
Cou,;,.o "Hl5Tó•IA &... RfflE<Ois" História & íotografia

sociais em curso já sinalizam aos futuros membros da comu- Em princípio, o novo paradigma histórico implicaria a
nidade de historiadores. negayao da antiga hierarquía de importancia entre os diferen-
Assim como os praticantes da historiografía metódica, tes tipos de documentos. Fontes escritas, orais e visuais teriam
Braudel também atribuirá um papel de destaque ao documen- a mesma importUncia para e no trabalho do historiador. Deve-
to histórico. Todavía, a essa altura, outro é o conceito de fonte riam contribuir para multiplicar, diversificar e iluminar os no-
histórica e outro, também, é o lugar que ele ocupa no processo vos objetos que desde entíio confommm os novas territórios
de cogni<;ao histórica. Como os demais campos do saber cien- da pesquisa histórica. 3
tífico, a história-conhecimento também nao ficara imune ao Entretanto, veremos que a prática da pesquisa histórica
turbilhao de mudarn;as moral, política, económica e sociocul- continuará, por mais algumas décadas, a privilegiar o docu-
tural que, após a vivéncia de duas guerras mundiais, ia alte- mento escrito. No momento em que Braudel se dirigia aos fu-
rando a vida de indivíduos e grupos sociais, independentemente turos profissionais da história, os historiadores de oficio ainda
de classe, género, etnia e credo religioso. Como atores e intér- níio se sentiam a vontade para interrogar as fontes imagéticas
pretes das mudanyas em andamento, os historiadores proble- coma mesma desenvoltura com que lidavam comas fontes
matizam a realidade social e, a partir de seu próprio presente, escritas. Tímidamente, aqui e ali, ouviam-se vozes favoráveis
voltam-se para o estudo da multiplicidade de práticas sociais a incorporayao da multiplicidade de iconografías produzida
gestadas por homens e mulheres dos períodos anteriores. no passado. Na realidade, no final da década de 1930, Marc
Bloch já chamara a atenr;íio para a necessidade de se "obser-
Para responder as perguntas nascidas do e no presente e 4
var as imagens e compreender sua dimensíio ideológica". Nao
endereyá-las ao passado, os historiadores niio apenas intensifi-
obstante essa observar;iio, quando incorporada a pesquisa his-
cam seus diálogos com economistas, sociólogos, demógrafos e
tórica, a imagem visual ou era considerada urna fonte mais ou
dentistas políticos, como também desenvolvem novos métodos
menos fiel arealidade, ou era vista como manifestar;iio ideoló-
de pesquisa. No decorrer desse processo de traca e criayao, eles
gica, como sugerira Bloch.
negam o paradigma metódico. A história-fazer já níi.o mais se
Em que pese a importancia das imagens visuais no coti-
confunde coma história-conhecimento. O documento histórico
diano dos indivíduos, a prática da pesquisa histórica traduz o
nao mais é concebido como um dado puro que fala por si mes-
peso de sua própria tradiyao. Cerca de trinta anos após a colo-
mo e se oferece, objetivamente, ao historiador. Novos temas e
car;iio de Marc Bloch, e urna dezena de anos depois da aula
objetos de análise orientam a busca documental. Novos méto-
inaugural de Femand Braudel, essa situayfio finalmente seria
dos de pesquisa orientam o tratamento dado ao documento. A
prática da pesquisa histórica vai além do estudo das ayoes dos
Hobshawm fundamentaram os estudos sobre os mundos do trnñalho, na Fran~a. cla
homens pertencentes aos círculos do poder civil, religioso e alicer~ou os cstudos sobre as culturns populares mspirados nas reflcxües de M.
militar. Engloba, também, os testemunhos anónimos, deixados Baktin que, na Jt:llia, sua influeDcia criou as condi~óes para o surgimento da
por todos aquel es que combatem, resistero, interagem e negociam, metodología indic1ária de C. Gínzburg.
'GAULIN. Jean-Louis. A ascese do texto ou o retomo a~ fonces. ln: BOUTIER. Jcan
di reta e indiretamente, com as diferentes esferas do poder. 2 e JULIA, Dominique. (orgs.). P11s.wdos ren,mpostm - campos e cantciros da His·
cória. Río de Janciro: UFRJ/UGV. 1998, p. 173-182.
' Pouoo depois, essa massa documental daría origem a ch.amada história "vista ele ' SCHMITT, Jcan-Claudc. El historiador y las imágenes. Relaciones. Me~ico:
baixo" cojos desdobramentos na Inglaterra de E. P. Thompson, de C. Hill e de E. Michoacan. 1999, v. XX, p. 22.

76 77
Col[(,;\ü "Ht.,ró•tA &... Rtflt<ücs" História & Fotograíia

alterada. As imagens visuais seriam um dos mais importantes desconhecer o poder das imagen s. Para além de sua dimensao
veículos de divulga~iio de urna série de acontecimentos que, a plástica, elas nos p6em em contato com os sistemas de signifi-
um só tempo, sustentaría a bipolarizm;i'io do mundo e com~aria cai;iio das sociedades, com suas formas de representa~iio, com
a colocá-la em questfio. Lembremo-nos, por exemplo, de como seus imaginários. Para que os historiadores assim assimilas-
as imagens fotográficas e televisivas contribuíram para veicular sem as mensa gens imagética~. seus diálogos com teóricos como
e defender tanto os interesses político-ideológicos do bloco ca- E. Cassirer, E. Panofsky, Gombrich, M. Foucault, R. Williams,
pitalista, quanto osdo socialista. Previamente selecionadas, elas P. Francastel, P. Bourdieu, dentre outros, foram cruciais. A
justificariam a onda golpista que marcou as décadas de 1960 e partir de suas reflex6es, os profissionais da história redimen-
1970 na América Latina, assim como a expansiio das ditaduras sionam o fülego da História Social e Política, principal campo
de esquerda no leste europeo e na Ásia, silenciando sobre as de estudo da ciencia histórica até entüo. Percebem que se, por
diásporas, as persegui~6es e as torturas dos que ousavam resis- um lado, o estudo das práticas sociopolíticas é fundamental
tir a um mundo bipolarizado. Lembremo-nos, também, das re- para a compreensao dos processos históricos, por outro, to-
percuss6es socioculturais dos protestos contra a Guerra do Vie- mam consciencia de que os territórios da pesquisa histórica
tni'i; das a~6es dos grupos feministas que saíram as ruas em defesa nao podem abrir mao da análise dos sistemas de significai;ao e
dos direitos das mulheres; dos desdobramentos dos protestos representa¡;ao social.
estudantis na Fran~a. China e em tantas outms sociedades; dos Os processos de institui¡;ao, emissao, difusiio e recep~ao
ecos contestadores do festival de Woodstock. das áreas dos sentimentos, das atitudes e dos pressupostos que
Desde entiio, as imagens visuais - veiculadas pela im- marcam a cultura de um determinado grupo, campo por exce-
prensa escrita e televisiva, pelo cinema e nos outdoor.~ espa- lencia do historiador da cultura/ nao constituem urna exten-
lhados nas vias públicas-invadem a intimidarle e o cotidiano sao pura e simples do universo das práticas sociais. É median-
de milhares de pessoas. Seu poder de comunica9fio e orienta- te a análise dos processos simbólicos que se percebe como se
95.o é tal que Susan Sontag dirá que, criam os la9os de pertencimento entre os membros de urna
mesma sociedade, como e porque a memória coletiva pode
se é possível dizer que a fotografía restaura a rela¡;fío unir e separar indivíduos de urna mesma sociedade ou grupo
mais primitiva - a identidade parcial da imagem e do social, como e porque o lmaginário social refor9a certas vi-
objeto - o que é certo é que os poderes da imagem sao s6es de mundo mesmo quando as condi90es materiais para
agora sentidos de um modo muito diferente. A nrn;fio que elas existam já tenham desaparecido. Esses modos de co-
primitiva da eficácia das lmagens presume que as ima- municai;üo criam campos de saber comuns; funcionam como
gens possuem as qualidades das coisas reais, mas ago- sinais de orientai;fio inclusive para as práticas sociais.
ra tendemos a atribuir as coisas reais as qualidades de
urna imagem ..1 ' Sobre os campos Je abordagem da H1.,tcíria Cultural. ver: LE GOFF. Jacques A
l,i.mírie1 mH'll. 3.ed., Sao Paulo: Manins Fontes. 199.'i. BURKE, Peter (org.J. A
Os homens e mulheres que se dedicam a pensar e a refle- cscritn da hístória: novas perspectiva., sao Paulo: UNESP. 1990, p 7-39; HUNT,
tir sobre os diferentes campos da dina.mica social nao podem Lynn. (org.). A ,wva himíria C'ultural sao Paulo: Manins Fon1es, 1992. RIOUX.
Jcan-Pierre e SIRINELLI. Jean-Fran~ois. (orgs )_ Para una historia cultural. Mé~i-
co: Tauros, 1998; GOMBRICH, E. H. Paru um" l,i.miri" cu/1uml.Lisboa: Tmjectos,
'SONTAG, Susan Ensaios wbre llfotograj¡a, Lisboa: Dom QuixO!e, 1986, p. 139-140. 1994: WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Tcrra, 1992.

78 79
COLE\ÑJ "HIS16~1A &... R,m,óES" Históna & Fotografia

Nessa perspectiva, a análise das manifestar;5es culturais da Escala Metódica, a encamar;iio de urna verdade única e
nao só demandarla a valorizar;fio de outras fontes documentais, absoluta. O documento se apresenta como fragmentos do real
além das escritas, como também iria requerer outros métodos que nos chegam por meio das intenr;óes explícitas e ocultas,
de pesquisa e outros esquemas explicativos. Nas últimas tres voluntárias ou involuntárias de seus produtores; e, o conheci-
décadas do século XX, os diálogos entre os profissionais da mento histórico torna-se urna operar;ao teórico-metodológica
história-conhecimento e os estudiosos dos fenómenos cultu- que visa compreender e interpretar os sentidos que os atores
rais muito tem contribuído para que os praticantes da ciencia sociais atribuem a seus atos materiais e simbólicos. Quando se
histórica possam aprender a indagar as imagens visuais, sem trabalha com as imagens, sejam elas textuais, sonoras ou vi-
perder de vista as quest5es tipicamente históricas. 7 suais, a enfase da narrativa histórica se desloca do fato para as
Hoje niio mais se duvida da natureza polissemica da ima- versóes sobre o fato. Em muitas situar;óes, essas versóes po-
gem, da variabilidade de sentidos de suas formas de produr;ao, dem produzir outros fatos.
emissiio e recepr;iio. Sabe-se que urna imagem visual é urna O trabalho desenvolvido nas oficinas da história- infor-
forma simbólica cujo significado niio existe per si, quer dizer, mado, de um lado, pelos diálogos dos historiadores com os
" 'lá dentro', como coisa dada que pré-existe ao olhar, ainten- diversos analistas das imagens visuais e, de outro, pelo traque-
r;iio de quemo produz".~Vista sob essa ótica, ela deixa de ser jo dos profissionais da história no trato como documento his-
espelho ou a duplicar;iio do real, como queriam os historiado- tórico - reafirma a tese de que a intencionalidade do testemu-
res da historiografía metódica. Apresenta-se como urna lin- nho histórico, presente no documento escrito, também se
guagem que niio é nem verdadeira nem falsa. Seus discursos manifesta nas formas iconográficas. Ao lidar comas imagens
sinalizam lógicas diferenciadas de organizar;iio do pensamen- visuais, o historiador as encara como um documento, como
to, de ordenar;ao dos espar;os sociais e de medir;ao dos tempos urna constrw;ao cultural, cuja confecr;iio e difusiio tem urna
culturais. Constituem modos específicos de articular tradir;iio história que niio pode ser desconheClda pela análise histórica.
e modemidade. Por tudo isso, sabe-se que urna dada imagem é Sabe que as formas e os conteúdos imagéticos podem sofrer
urna representar;iio do mundo que varia de acordo com os có- alterai;óes, voluntárias ou nao.
digos culturais de quema produz. Ao analisar o processo de interpretar;iio/tradur;iio que
Ora, se o historiador assim a conceitua, é porque está os europeus do início da ldade Moderna faziam dos ídolos
operando com outra concepr;iio de realidade social, de docu- produzidos pelas culturas nativas do México pré-colonial,
mento, de pesquisa e de conhecimento histórico. Sob essa pers- cujos significados eram desconhecidos do leitor europeu,
pectiva, a realidade deixade ser, como queriam os historiadores Sérge Gruzinski chama a atenr;iio para as alterar;óes por que
passam essas imagens. Descontextualizadas, elas adquiriam,
7 Ainda que esse novo paradigma. histórico venha se afirmando na comunidade de na Europa, sentidos diferentes do que \hes havia sido atribuído
praticantes da ciencia histórica. sua ad~ii.o nii.o é absoluta e tampouco se maní festa
no ato da produr;iio. 9 Isso significa que se urna imagem é datada
cm urna única dire<,:~O- Sobre a busca de caminhos e solu<,:i\es sempre do ponto de
vista do historiador. ver: BOUTIER, Jean e DOMINIQUE, Juha (orgs.). P,usudos em sua fabricar;iio, sua recepr;ao pode ser completamente
recmn¡w.,t1J.<: c1Jmp11.1 e camem,,, da Hi.,táriu. Rio de Janeiro: UFRJIFGV. 1998.
• NORONHA, Ronaldo. Luzes e sombras. Pre.w:nru do CEC: 50 ,mo.1 de cinema em • GRUZINSKI. Serge. La guerra de /m mrugen., - de Cri.míbul Co/,ín u "Blude Runner"
Be/o Horizome. Belo Honzonte: Crisálida. 2001, p. 46. (1492-2019). 2. ed .. México: Fondo de Cultura Económica, 1999, p. 26 e segs.

80 81
e:,,, f<.Ao "H,srú•IA &... R"'"''". H,stóri~ & íoto¡:rafoa

alterada quando os que a consomem desconhecem os códi- inclusa.o e exclusiio. É escolha e, como tal. nüo apenas constituí
gos culturais a que ela se refere. urna representayiio do real, como também integra um sistema
Por isso, a pesquisa histórica niio pode dispensar a con- simbólico pautado por códigos oriundos da cultura que os pro-
textualizay1io da produyiío do documento, da mesma maneira duz. Diferentemente da pintura, do desenho, da caricatura, a
que <leve estar atenta aos diferentes sentidos que !he v1io sen- representayiio fotográfica pressup6e urna inter-relayao entre o
do atribuídos ao longo do tempo. As indagayóes: quem produ- olho do fotógrafo, a velocidade da máquina e o referente.
ziu tal documento?; que lugar seu produtor ocupa na estrutura Muitas vezes, enguanto os códigos culturais do fotógra-
social?; a quemé dirigida a mensagem de seu documento?; a fo definem a composiyaü dos cenários fotográficos, a veloci-
partir de que argumentos organizam seu discurso?: com que dade da cámera pode captar fragmentos do real nao previstos
tipo de dados sustenta sua argumentayiio?; o que parece pre- na idealiza'11io das poses, porque a chapa fotossensível capta a
tender com esta ou aquela afinnayiio?, funcionam como pon- luz emanada do objeto fotografado, sem a intervern;iio huma-
tos de partida para a análise documental. na. Roland Barthes afinnou que a fotografía, nessa e apenas
Esse o método da contextualizayiio, ainda que necessá- nessa fra~ao de tempo, é urna mensagem sem co'd.tgo. "Ent re-
rio, limita-se a esclarecer as indagay6es relativas ao produtor tanto, quando a intromissüo de fragmentos do real interfere no
da imagem e ao público a que se destina sua imagem. Além de planejamento da pose, o fotógrafo sente-se livre para cortar,
contextualizar a imagem, é preciso estar atento ao tipo de su- selecionar, fazer e refazer seu quadro. Lembremo-nos, por
porte utilizado para veicula-la.Como bem lembra Roland Bar- exemplo, dos critérios simbólicos que orientavam as monta-
thes, mesmo dentro da "comunidade de imagens", os suportes gens das fotografias de estúdios, analisadas no capítulo ante-
técnicos e as linguagens das imagens fotográfica, cinemato- rior. Em outras situay6es, o que a velocidade da cámera capta
gráfica, televisiva e virtual sao distintos. Cada um deles con- serve para confirmar.hipóteses. Em 1878, por exemplo, o fo-
tém urna sintaxe específica, porque cada um deles é um estilo tógrafo ingles radicado nos E.U.A. Eadweard Mybridge (1830-
cognitivo próprio. 10 Assim sendo, é preciso conhecer a gramá- 1904) fez urna série fotográfica sobre o percurso do galope de
tica da imagem coma qua] se traba\ha. um cavalo, confirmando, assim, a cren~a de que esse animal
retirava suas patas do chiio dL;ante o galope.
A imagem fotográfica é fixa. É produzida a partir de um
artefato físico-químico e pressup6e a existencia de um refe- O contraste entre os dois exemp\os expostos acima nos co-
rente. É matéria que pode ser tocada e apalpada. Informa so- loca diante das ambigüidades e dos paradoxos da linguagem foto-
bre os cenários, as personagens e os acontecimentos de urna gráfica. Em ambos os casos, suas irnagens sao de extrema valia
detenninada cultura material. É dotada de urna imensa varia- para o trabalho do historiador. Muito embora a genese auto-
bilidade plástica, materializada por seus diferentes formatos e mática da fotografía tenha criado o mito da cámera lúcida -
seus múltiplos enquadramentos. É fragmento congelado e da-
11 Muito cmbora ele 1e11ha dóxado claro que essa é apenas uma da~ dimensücs da
tado. Como outras imagens, ela também pressup6e umjogo de fotografia. que ocorre tao sornen te no cxa10 momenlo cm que a c5mera ~ disparnda.
suas palavras tém dado ongem a mu itas polémicas. Sobre as coloca~6es de Barthcs,
'" SAMA IN. Etienne Que,1óes heurística.~ cm tomo do uso da, iinagens nas citncias ver: BARTHES. Roland. O ú/,.·io e o obw.rn. Lisboa: Ed1~0Cs 70, 1984: Sobre a
soc,ms. In: FELDMAN-BIANCO. Belae MOREIRA LEITE. Miriam (orgs.). De• polémica germfa em tomo de sua afirma~ao. ver: FATORELLI. Antonio. Fotografm
.w1fio.< da l!!!llKem - fiHll)!r<lf/a. Ú:mWKl"<ifill e ¡•(deo llll.< ciencill.< .wn'ai.<. Cam- e modermdade. In: SAMA IN. Etiennc (org.J. U fow)!r<Ífi,·o. Sao Paulo: Huc1tcd
pinas: Papiros. 1998, p ..'i4-56. espccificarnente.
CNPq, 1998. p. 85-97.

82 83
Hislória & Fotograf,a

responsável pela crenr¡:a na capacidade da fotografía de duplicar em outros trabalhos fotográficos, a fotografia é a u~ s6 te~~
o real -, a imagem fotográfica conjuga realidade e ficr¡:ao. Os po cristalizar¡:ao e interrupi;ao de idéias e de te~porahdades.A
planos, os focos, o jogo de sombra e luz que a comp6em sao Por isso, Susan Sontag sustenta que "a maneira como na ca-
marcados pela encenar¡:ao que a intenr¡:i'io do fotógrafo cria. O mera a realidade se apresen ta é urna possibilidade dentre tan-
produto fotognífico oscila "entre aquilo que !he escapa e isto tas outras"_is
que nela infiltra". 12
Ciente das especificidades da linguagem foto~rá~i~a, de
Ao inventariar e informar os aspectos materiais de urna seus alcances, limites, particularidades e de suas stmtl1tudes
cultura, a conjugar;ao do tripé: fotógrafo, tecnologia e referen- com outras fonnas imagéticas, o historiador que escolhe usar
te faz com que a fotografía produza quadros a partir de frag-
o documento fotográfico deve saber, também, que. o _olhar do
mentos do real. Entre fins do século XIX e primeiras décadas
fotógrafo pode ter sido motivado por intenr¡:6es dtstmtas das
do século XX, muitos fotógrafos se dedicaram a produr¡:ao de
que norteiam a pesqmsa • do h'1stona· d or. "Para que seu estudo ,
álbuns de cidades. Para além da estética de cada fotógrafo,
que personaliza sua obra, a montagem desses álbuns revelava incorpore o que está explícito e implícito na imag_em fotog~a-
a forr¡:a de um padriio fotográfico próprio do tempo em que fica sem, no entanto, sucumbir as intern;6es do fotografo, alem
eles foram produzidos. Interessado em obtcr lucro com a ven- do método da contextualizai;ao da imagem, o cruzam~nto do
da do álbum, o fotógrafo escolhia as imagens e costurava urna documento visual comos textuais e orais toma-se um tmpera:
narrativa urbana capaz de tornar vcndável o produto de sua tivo para responder as quest6es tipicamen~e hi!tórica~. Essa e
criar¡:ao. Em geral, a seqüencia de imagens dava ver urna cida- urna operar¡:i'io que também requer a cornbmar¡:ao de diferentes
de moderna, evoluída e quase sempre higienizada. métodos de pesquisa.
Em posi9ao de destaque encontravam-se as fachadas dos Ao trabalhar comas litografías usadas para reproduzir
cstabelecimentos comerciais e bancários; dos hotéis que as imagens fotográficas e os desenhos dos viajant~s
aguardavam os turistas e homens de negócios de outras pra- estrangeiros no Brasil do século XIX, a antro~ó\oga Mana
r¡:as comerciais; as casas, varandas e jardins particulares onde Sylvia Porto Alegre prop6e a combina~ao ~o m~todo da con-
viviam as famílias da elite local: as inova96es urbanas que textualizar¡:ao com o da descontextuahzar¡:ao. Diferentemen-
atestavam o dinamismo da administra9ao pública; o moví-
te do primeiro, o segundo método per':1itiria enxergar as. pos-
mento das ruas, dos cafés, clubes e cinemas que informavam
sívei s incoerencias contidas nas ,magens produz1d~s,
e, simultanearnente, produziam urna leitura da urbe marcada
independentemente das inten96es do fotógrafo ou d~ desenh1s-
pela vi sao positiva do progresso e da modemidade. 13 Aí como
ta. Nesse caso, o olhar do pesquisador se deslocana _so~re as
" LISSOVSKY. Maurício. Sobo signo do "clic.. · fotografin e hístória em Walter .
1magens com o obietivo
J
de nelas• encontrar indícios e smais. •que
Benjanun. In: FELDMAN-BIANCO. Bda e LEITE. Miriam Moreira. (orgs.). De- evidenciem tra9os da cultura material e simbólica dos suJe1tos
•Wfím dt. lma1,;em; fi,10¡:m/iü. icm101,;r1,fia e t'ideo em ciiucia., .wcw,.,. Campinas;
Papiros. 1998. p. 26.
"BEJAMIN. W. A doutrina das semelhan~as. Textos e.trnlludm. Siio Paulo: Abril
"Um bclo estudo sobre álbuns de ~idade foi dc.senvolvido por ARRUDA. Rogfrio
Cultural. 1983. (Cole~iio Os Pensadores).
Pereira (org.). A/bum de Be/!,, Horll/111/e. E<h~alo Fac-.,imilar com Estudos Críti•
cus. Belo Horizonte: Au!Cnlica. 2003. Sobre outros ;ilhuns de fotografia produzi- .
"SONTAG Susan. En.,mo.<o . . ,< Lisboa·· Dom Qu,xote, !986, p. 30-31
bre oto1,;rn,w.
1
dos no Brasil do século XIX. ver VAZQUEZ, Pedro Karp. Fo1,i1,;rnJi,s Alemiie.1 no '
'" PAULA. Jeriel . do a H.,.,1or1a.
de. 1932: /m,igen.1 nmstrum · C=pínas·. UNICAMP/
Br,uil do .1écuio XIX Sao Paulo: Metalivro.1, 2000. UNIMEP. 1998, p. 224.

84 85
História & Fotogr~fia

retratados que, apesar de niio serem compreendidos pelo produ- Cada vez mais valorizada e freqüentada por pesquisado-
tor das imagens, foram por eles registrados. No caso específi- res e analistas da cultura, a prod~ao fotográfica, de ontem e
co das culturas indígenas, um exemplo desses indícios diz res- de hoje, muitas vezes motivada por urna intrincada rede de
peito as pinturas que vestem os carpos dos membros das interesses materiais e simbólicos, legou-nos urna enonne mas-
sociedades indígena,; nas data,; de celebrar;iio dos seus rituais sa documental. Desde meados dos anos de 1970 ela vem sen-
cosmológicos. Para muitos pintores, desenhistas e fotógrafos da coletada, classificada e organizada nos arquivos públicos e
estrangeiros, esses sinais nao passavam de meras tatuagens, privados. Esses acervos tem viabilizado o alargamento dos
eram um indício do primitivismo da vida indígena. Já os estu- campos de investiga9ao nao apenas dos profissionais da histó-
diosos da organizar;ao social e da cosmologia dos povos indí- ria, mas também de outros campos das ciéncias sociais.
genas sabem que essas inscrir;óes falam sobre Grande parte da documenta9ao coletada é anónima, nao
possui data ou local de produ9ao. Carece, portanto, de infor-
os aspectos biológicos, psicológicos e sociais dos mem-
ma96es que podem facilitar o emprego do método da contex-
bros do grupo, além de .,;er um clemcnto-chave para a
tualizar;iio imagética. Para fazé-la falar, o historiador precisa
compreens5.o do universo e a cxpress5.o do pensamcn-
lan9ar mao do saber dos que dominam a história das técnicas
to, dos mitos c da visiio de mundo. 17
fotográficas. Seu conhecimento muito contribui para desven-
Como se percebe, o uso combinado dos métodos de con- dar a data9.io das imagens, a identifícar;ao de suas possíveis
textualizar.;5.o e descontextualizar;ao nao dispensa o saber do filia9óes estéticas e, ainda, pennite-lhe levantar quest6es rela-
especialista acerca de seu objeto de análise, nem tampouco o cionadas com uso de um detenninado tipo de máquina foto-
cruzamento de diferentes tipos de documentos. Todos esses gráfica e a margem de liberdade do fotógrafo. Esses elemen-
cuidados teórico-metodológicos visam suprir \acunas oriun- tos técnicos pennitem ao analista saber, por exemplo, se urna
das da nao-existencia do documento ideal, ou seja, daquele imagem é, ou nao, fruto de urna montagem. Sabe-se, porexem-
que poderia responder a todas as indagar;6es do pesquisador. plo, que em detenninados momentos da história da fotografía,
Por isso se diz que o trabalho do historiador se inscreve no as cámeras fotográficas nao pennitiam fazer tomadas em am-
reino das possibilidades e da verossimi\hanr;a como real. bientes fechados, a menos que tais imagens fossem feítas em
Ao lanr;ar miio dessas estratégias de pesquisa, o histo- estúdios, os quais possuíam urna conjuga9iio de luz natural,
riador visa dessacralizar seu objeto de análise, quer dizer, que entrava pelas clarabóias dos estúdios, e luz artificial. As
desnaturalizá-lo. Assim como o fotógrafo, o historiador tam- contribuir;Oes desses profissionais deverffo ser acrescidas das
bém seleciona, corta e reúne documentos. Esta opera9ao, no quest6es teóricas que orientam a produr;iio dos especialistas
entanto, é guiada por teorías e conceitos sem os quais seria em imagens visuais. Esses campos de saber nao eliminam a
impossível compreender os sentidos que os atores sociais atri- necessidade de se cruzar a análise da imagem coma documen-
a
buem suas práticas e as suas representa96es. ta95.o escrita e oral contemporánea ao documento visual e tam-
pouco dispensam o diálogo com a produ9áo historiográfica
" Sobre essas questoes. ver: PORTO ALEGRE, Mana Sylvia. RcllexOCs sobre a referente ao objeto da análise em questiio.
iconografía etnográfica: por uma hcllllCnéut1ca visual. In: FELDMAN-BIANCO.
Befo e LEITE, Miriam Moreira. (orgs.).De.<11/iO.< da fmaKem;.fi,to)!l"ll/ia, 1n11w¡:r11fia
Nao obstante todos esses cuidados, o traba\ho desen-
e ,,frie" em <"iellóa., .,o,fai.1. Campínas: Papirus. 1998. p. 108. volvido nessa ou naquela oficina da história - calcado em

86 87
Cm,y\o "HISTÓRI~ &... REFLE,Ots" História & Fotow~f1J

vestígios e fragmentos do real, em impress6es, silencios e de acordo com os valores e signos que informam seu espelho
possibilidades - niio responderá a todas as indagar.;6es formu- cultural. Em casos de viagens patrocinadas por casas comer-
ladas. A natureza polissemicado real e das imagens fotográfi- ,; ciais, govemos, instituii;:5es científica" ou qualquer outro tipo
cas sempre manterá suas pory6es enigmáticas. Por isso mes- de interesse, além do património cultural do viajante agrega-se
mo, cada vez mais, ganham fo~aas tentativas dos historiadores a observayiio de fenómenos que estejam diretamente rela-
de operarem com os preceitos teórico-metodológicos da cha- cionados comos interesses dos financiadores da viagem.
mada história das possibilidades, onde se busca "fontes silen- Essa operai;:iio lógico-comparativa- ao mesmo tempo se-
ciosas e arredias falar com loquacidade." 1~ letiva e unificante e jamais definitiva - alimenta todo o pro-
Antes de concluirmos nossa análise sobre a relar;iio entre cesso de coleta, seleyiio, classificayiio e organizar;iio do que o
a história-conhecimento e as imagens fotográficas, faremos viajante deve privilegiar em seu relato. Em muitos casos, os
algumas considerar.;6es sobre os documentos fotográficos pro- trai;:os da cultura observada, que fogem ao padriio cultural do
duzidos pelas viagens fotográficas realizadas no Brasil ao lon- viajante, sao qualificados como exóticos ou fora de lugar. Exa-
go do século XIX e das primeiras décadas do século XX. tamente porque nao podem ser !idos a partir dos códigos cul-
turais do viajante, eles sao qualificados como primitivos, bár-
baros, ou algo equivalente. Em outras situay6es, o narrador
Viagens fotográficas
valoriza aspectos da vida social do outro e destaca as contri-
buiy6es da cultura observada para o "avanr;o" de sua própria
Desde Homero, os relatos de viagens nos remetem ao cultura, com O objetivo de, posteriormente, mostrar que a so-
tema da construr;iio da memória coletiva, no qua! os pares ciedade do narrador se apropriou desta ou daquela contribui-
lembrar/esquecer e identidade/alteridade funcionam como yiio para queimar etapas e ir além do "estágio" de c'.vilizayao e
janelas a orientar o olhar do viajante. A partir desses artifi- desenvolvimento da cultura observada. Outros, amda, cons-
cios, analíticos ele pinya do real, conscientemente ou nao, os troem narrativas combinadas. Quer dizer, valorizam e desva-
fragmentos que comporii.o a seqüencia de sua narrativa. Urna lorizam o outro em funyiio de seu imaginário. Raros sao os
vez ordenadas as imagens, textuais ou visuais, assumem o casos em que o viajante incorpora o imprevisível e o assimila
papel de mensagens, cuja funr;ao é estabelecer um elo entre desde o ponto de vista da cultura observada. Essa preocupa-
o viajante e seu público-alvo. yiio como outro é relativamente recente na história dos relatos
As análises dos relatos de viagem - decorrentes da com- de viagem. Vejamos alguns casos concretos.
binai;:iio de experiencias essencialmente individuais e motiva- Quando Heródoto valorizou os conhecimentos egípcios
yiio coletiva, produzidas em diferentes momentos da história de sobre a matemática, a astronomía, as técnicas de domínio e
todos os pavos - tém-nos apontado a presenya de alguns ele- domesticayiio das águas do ria Nilo, seu objetivo nao era ou-
mentos recorrentes. Os viajantes tendero a narrar o visto a partir tro senao valorizar a cultura hel@nica, que nüo havia se restrin-
da montagem de urna seqü@ncia de acontecimentos construída gido a incorporar esses conhecimentos. Conforme ia m?ntan-
do sua narrativa, Heródoto mostrava que os gregos tmham
" Sobre este método, ver · ROMEJRO. Adriana. Um i•i.1im1úrio na corte de D.
Joiia V- Revoltae rnelenarismo nas Minas Gerais. Belo Horiwme: Ed. UFMG,
ultrapassado os egípcios. Os exemplos abaixo nos oferecem a
2001. p. 16. visa.o de outros modelos de relatos de viagem.

88 89
Colfr,Ao "H<m'>olA &... REFLEXO~s·' História & Fotografia

Mais que um roteiro de viagem, os mapas medievais, os bem nos lembra Miriam Moreira Leite, o estrangeiro nfío tero
chamados T - O, produzidos nas abadias européias, represen- compromisso comos valores da cultura observada. Sua auto-
tavam a visao que os viajantes europeus, cristaos, tinham do nomía em rela¡;fío aos mesmos transforma-o em um observa-
ecúmeno nao-cristao. Por isso mesmo, a divisao do mundo era dor capaz de enxergar aspectos do real que passam desperce-
estruturada em urna lógica dual e excludente. Os lugares ocu- bidos 3.queles que integram as sociedades observadas. Urna
pados por sociedades nao-cristas eram designados, nos ma- outra varia¡;iio pode ser encontrada nos relatos de viagem pro-
pas, por signos que remetiam o peregrino a um mundo classi- duzidos por imigrantes. Ao eleger o novo território para ser
ficado como herege, quer dizer, pecaminoso e profano. Antes seu habitaf-0 , esse viajante tende a aceitar e incorporar parce-
mesmo de iniciar sua peregrina¡;üo a Terra Santa, o mapa que las do património cultural de sua nova sociedade. Há casos de
tinha em maüs separa va os territórios a ser percorridos em áreas
relatos de viagem em que o viajante usa a outra cultura como
sagradas, afinadas com os valores cristüos, e áreas profanas,
urna forma de criticar a sua própria sociedade. Essa modalida-
desprovidas de todo e qualquer valor.
de nonnalmente acontece quando o viajante é um indivíduo
No decorrer da Idade Moderna, urna complexa rede de que vive em situa¡;fío de perigo, de risco político-ideológico,
espelhos foi senda construída a partir do espelho cristiio e civi- por exemplo, em sua cultura de origem. Nesses casos, as via-
lizador dos conquistadores europeus, interessados em conquis- gens passam a ser fator de crítica social direcionada nao as
tar e dominar os tenitórios de ultramar. O etnocentrismo e os sociedades observadas, mas as do viajante.
valores cristaos dos viajantes europeos deram vida e combina-
ram diferentes espelhos, utilizados para olhar o outro, ou seja, Antes de passarmos aos relatos fotográficos propriamen-
as sociedades localizadas na África, Ásia e posteriormente no te ditas, que também seguem padreies semelhantes a esses, é
Novo Mundo. Entre os séculas XIV e XVIII. as imagens que preciso lembrar que qualquer pesquisador com prática de in-
compunham o espelho do diabo, espelho nístico, espelho selva- vestiga¡;iio empírica, por pequena que seja, sabe que as narra-
gem, espelho atrasado se misturavam comas do espelho dopa- tivas de viagem sfío sempre híbridas, tanto do ponto de vista
raíso. Os territórios em processo de conquista eram !idos em dos signos utilizados-combinam texto e imagem-, quanto da
fun¡;ao das articula¡;6es entre os espelhos que os diferentes via- significa¡;fío a eles atribuída. Quer dizer, mesclam fra¡;0es de
jantes escolhiam para se referir as culturas e a natureza dessas diferentes espelhos para transmitir suas mensagens. Isso sig-
áreas. Apoiados nacombina¡;iio de signos negativos e positivos, nifica que difícilmente se depara com um relato de viagem
os estrangeiros legitimavam a superioridade do espelho corte- que se encaixe em apenas um dos modelos acima apresenta-
sao e cristtio sobre os demais. 19 Dessa maneira, eles refor¡;avam dos. Esses cenários analíticos funcionam como pariimetros para
a memória coletiva dos grupos culturais envolvidos coma em- a análise documental. Sem o seu conhecimento, o pesquisador
presa colonizadora e negavam as culturas observadas o direito corre o risco de nao saber indagar as suas fontes.
de seguir seus próprios caminhos culturais. Desde o surgimento da fotografía, o fotógrafo é um indiví-
Há, ainda que observar, que esses modelos paradigmáti- duo que transita por diferentes territórios geográficos. Faz de
cos de relatos de viagens permitiram outras combina¡;eies. Como suas cameras verdadeiros postas de observa¡;ao das culturas

"Sobre es~a conjugm;iio de espelhos. ver: FONTANA, Josep. Europa ante el espejo. '" Sobre estas guestOCs, ver: MOREIRA LEITE, Miriam Ufct111z. 1..nn,s de Via~em.
Barcelona: Crítica. 1994. (Coleccíon La construcción de Europa). /830-1900. Río de Jandro: UFRJ. 1997.

90 91
CmE(AO "Him'.,.,~ &... Rfft[XÓES" História & Fotografia

alheias e da sua própria. A partir de seos códigos culturais ele de acordo com Le Goff, o momento áureo da preocupm;iio mo-
p6e as lentes de suas máquinas a registrar as paisagens e ª" derna com a preserva¡;iío da memória. Menos de um século de-
interferéncias do homem na vida social e natural. Quando dis- pois, as sociedades ocidentais investem na cria¡;iio de bibliote-
para sua camera, o fotógrafo cria e produz mundos. Toma-se cas, arquivos e museus, lugares privilegiados da celebra¡;ao da
um viajante que oferece a seu leitor imagens visuais cujo poder memória coletiva. Criam calendários para relembrar fatos e
de persuasiio pode ser muito superior e mais eficiente do que o
acontecimentos que marcaram a vida de suas na96es. Por de-
que emerge do relato escrito. Enguanto o relato textual produz,
trás dessa infla9i'io de comemora96es encontra-se, de um lado,
no leitor, urna visiio de conjunto apenas quando a leitura do
o medo do homem moderno da perda de seus elos históricos
texto se encerra, diante do texto visual, o expectador apreende,
como passado, que a velocidade das transforma96es sociais
de urna só vez, a mensagem que se quer transmitir. lsso, se a
parecía amea¡;ar. E, de outro, a necessidade de perenizar, de
confonna¡;iio dos signos imagéticos mantiver urna "fidelidade"
aos códigos culturais do expectador. Ao analisar os diferentes projetar, no futuro, sua existencia.
relatos fotográficos construídos sobre urna determinada reali- Niio por acaso, em 1837 criava-se, na Fran¡;a, a Comissiio
dade, o historiador deverá levar em conta as varia96es paradig- dos Monumentos Históricos. Estimulado por seus membros e
máticas que comp6em os relatos de viagem, desde Homero. pelos fotógrafos da recém-criada Société He/iographique, o
Ora, a genese automática da fotog:-afia mantém, ainda hoje, govemo frunces decidira inventariar seus monumentos histó-
a cren¡;a entre muitos de que as lentes fotográficas pennitem ricos. Com esse objetivo criou, em 1851. a chamada Missiio
conhecer o mundo "como ele é". Parceiro e cúmplice dos rela- Heliográfica Francesa. !mediatamente, as regi6es da na¡;i'io
tos textuais produzidos durante as viagens de dirigentes políti- francesa come¡;aram a ser mapeadas, dividas e entregues aos
cos e, sobretodo, dos membros das expedi96es científicas eco- mais renomados fotógrafos da Fran¡;a e de outros países da
merciais, a imagem fotográfica funciona, na realidade, como Europa e dos Estados Unidos da América. Iniciavam-se, as-
um espelho cultural, que tanto informa quanto constrói inter- sim, as chamadas viagens heliográficas. O nome dado a esse
preta96es sobre os objetos e sujeitos fotografados. Dentre a empreendimento, Missiio Heliográfica, é urna alusao direta
multiplicidade de usos e fun96es a ela atribuída, há que se res- ao heliógrafo de Niépce-22
saltar seu poder de celebrar e difundir a memória coletiva de
A partir de seus postas de observa¡;aü os fotógrafos de-
grupos sociais e sua capacidade de definir perfis socioculturais.
ram inicio ao inventário da situa¡;i'io em que se encontrava o
património arquitetónico do país, condii;aosine qua non para
A Missiio Heliográfica Francesa e ou.ras viagens sua posterior restaura¡;ao. Palácios, castelos, igrejas e pon-
tes, monumentos aos heróis nacionais, enfim, o conjunto ar-
A cria¡;iío da Grande Encic\opédia de 1751, registro de quitetónico historicamente vinculado aos calendários civil,
"urna memória alfabética parcelar na qua! cada engrenagem militar e religioso do passado frunces tomava-se objetos do
isolada contém urna parte animada da memória total" 21 , seta, olhar fotográfico. Como urna enciclopédia que, com seus ver-
betes, vai sugerindo índices para conhecer e interpretar as
" LE GOFF, Jacques. Memória. Enciclopédia Einaudi. Encidopédia Einaudi. Porto:
lmprensa Nacional-Casa da Moeda. 1884. p. 36. " Ver as inform~oes sobro o invento de Niépce na parte sobre ,:ronologia

92 93
Crne(:A(> "H,sn)<IA &... RtrllsOlS" Hístóna & Fotografia

ay5es sociais, essas imagens fotográficas informavam sobre Gustave Le Gray (1820-1882) embarcar como seu amigo o
o estado desses vestígios da cultura material francesa; escritor Alexandre Duma~ para urna viagem em tomo do Me-
funcionavam como pré-requisito para sua transformayiio em diterriineo. Depois de um desentendimento entre ambos, Le
lugar da memória coletiva. A. medida que os prédios eram Gray seguiu para o Líbano e a Síria. Meses depois de urna
restaurados, tornavam-se espayos da celebrayiio do patri- parada em Alexandria, chega ao Cairo em 1864.24
mónio cultural dos franceses. Funcionavam como medido- Certos da superioridade da cultura européia oitocentista,
res do tempo de glória do passado longínquo ou recente dos os fotógrafos faziam da arte fotográfica urna espécie de índice
membros dessa nayao. para o retomo as raízes de sua própria história. Urna ponte
Ao mesmo tempo, esses testemunhos da cultura mate- para movimentar o diálogo entre os tempos passado, presente
rial francesa eram representados nos cart5es-postais. Os tu- e futuro. Ao lado dos vestígios da cultura material das áreas
ristas que os adquiriam nii.o apenas alimentavam o sentimen- dominadas pelo Império Romano, ou que com ele mantiveram
to de participar da continuidade do pass ad o no presente, como relay5es, entiio expostos nos museus europeos, as imagens fo-
também usavam os correios para ajudar a difundir esses lu- tográficas também contribuiam para a constrw;;iío e celebra-
gares de memória, para usarmos urna expressiio cara a Pierre <riio da memória nacional dos diferentes países europeos.
Nora."-1 Em 1853, foi publicado o álbum Le Monument de Pa- A essa altura, o fotógrafo alemiio, radicado em Paris, Fré-
rís, muito provavelmente oriundo da ayiio dos fotógrafos da deric von Mareros ( 1809-1875) já desenvolvera urna camera
Société Heliographique. fotográfica que permitía produzir vistas de 12 por 40cm, com
Simultaneamente a essas viagens fotográficas pelo inte- fingulo de visiio superior a 150 graos. Esse avam¡:o técnico per-
rior da Frarn;a, as autoridades francesas, italianas, inglesas e mitiría a composi<rií.O de fotografías de paisagem, muito em-
alemiis enviavam seus fotógrafos para a Grécia, o Egito, a Pér- bora o ato de fotografar ao ar Jivre e em lugares distantes ain-
da fosse urna operayiio difícil. Com os pequenos verbetes de
sia, a China e tantos outros territórios das civilizay5es da An-
urna enciclopédia, as fotografías das ruínas gregas, dos monu-
tiguidade. Os chamados técnicos dadimera lúcida tinham como
mentos persas, das pirfimides egipcias, do exotismo de sua gente
missao fotografar as escavay5es arqueológicas patrocinadas
e de suas paisagens urbanas contagiavam o público que, em
por governos europeos. Esse misto de curiosidade e interesse
1867, pode conhecer as imagens da viagem de Le Gray, ex-
pelo Oriente niio se restringia apenas aos arqueólogos, estu-
postas nos salóes da Exposiyiio Universal de Paris. Em 1852,
diosos das culturas e fotógrafos. Englobava também os escri-
a /mprimerie Photographique, do fotógrafo e editor de álbuns
tores, romancistas e poetas, muito deles financiados pelas au-
fotográficos, Louis Désiré Blanquart-Evrard ( J 802-1872), pu-
toridades de seus países.
blicou o álbum de Du Camp, Egypte, Nubie, Palestine e Syrie,
Entre 1848 e 1852, o escritor Gustave Flaubert e o fotó-
grafo Máxime Du Camp (1822-1894) fizeram urna viagem "'É importante ress~ltar que. em muitos casos. os cor1ílitos entre fotógrafos e escrito-
res eram motivados por un)¡\ d1scordáncia entre o que se via e o que se regi;trava a
ao Egito. Em 1860, foi a vez do renomado fotógrafo frances,
partir do texto visu.il e do texto escrito. Este aspecto nos remete a polissemia do
real. pcrcebida de distintas m.meiras por fotógrafos e cscri1orcs. mesmo qu.mdo se
i, Sobre essaquesláo, ver: NORA, Pierre (org.)Le., /íe,u de mémoire. Paris: Gallimard trata de indivíduos educados em um mesmo ambiente sócio-cultural e que ¡mrti-
19~. • lham de uma mesma reserva de conhccimenlos.

94 95

j
Colf(AO "HNÚRIA &... Rm,xr,¡," História & Fotogralia

primeiro livro ilustrado de fotografias originais. 25 A circula- rela9ao entre fotógrafo, fotografía e viagem, a saber, seu po-
9ao dessas imagens, transcritas em litografias, foi tal que ain- der de conquistar o mundo, seu alto potencial de deslocamen-
da boje os livros especializados na história da fotografia tra- to espacial e, sobretudo, o papel de difusor de infonna9ño con-
zem inúmeras reprodm;6es das imagens en tao produzidas. Além centrado nas maos do fotógrafo.
de preciosos documentos históricos, elas constituem objeto do Se olharmos com cuidado a imagem anteriormente re-
interesse dos estudiosos da fotografía. produzida, veremos que a partir da articula9ao entre texto e
No exato momento em que essas viagens se multiplica- imagem, o caricaturista coloca o fotógrafo ao lado de tres gran-
vam, bem antes da idade de ouro do carta.o-postal, em 1861, des conquistadores do Egito: Alexandre, o Grande. César e
mais precisamente, o caricaturista frances, Henry de Mon- Napoleño. Como o tema principal da imagem é a importfincia
tault visualiza o poder de circula9ao de idéias contidas na da fotografía, o autor da iconografía afirma que, comparado
fotografia. Para comemorar o sucesso da viagem de Le Gray aos demais conquistadores, o fotógrafo Le Gray - aí represen-
ao Oriente, Montault, fez urna caricatura, anos mais tarde trans- tando urna categoría profissional - fora o único a "marcar sua
formada em cartao-postal pelo próprio Le Gray. conquista, gra9as a técnica do colódio". Segundo o texto ins-
crito no cartií.o-postal, a dimensao histórica da conquista dos
demais generais (Alexandre, César e Napolefl.o), "se perdera
coma morte dos soldados de seus respectivos batalh6es". Com
a circulai;lio da imagem fotográfica, Le Gray preservaría para
sempre a memória da reconquista do Egito.
Ao colocar o fotógrafo assentado sobre a di.mera escura,
o caricaturista, conscientemente ou nao, atribuí a máquina urna
identidade quase que absolutamente autónoma. Observe-se que
seu deslocamento no espa90 é associado a algo natural,já que
produzido pelo movimento das asas de um pássaro. Ao fotó-
grafo apenas cabe colocar o "olho" da camera, ou seja, de suas
lentes, na posii;ño carreta. Feito isso, a máquina se encarrega,
por si só, de registrar o que a potencia de sua objetiva é capaz
de apreender.
Se continuarmos a observar o que mais pode ser extraído
Figura 13 desse diálogo entre texto e imagem, veremos que o caricatu-
Nessa caricatura, tem-se urna metáfora bem-humorada de rista lani;a mao de um dos principais ingredientes da comuni-
ca9ao figurativa: a metáfora. Ao se referir ao Egito como o
algumas das características que definiam, naquele momento, a
país das cebolas (pays de oignons), Montaulf tem em mente,
"Sobre outros álbuns de viagem de Du Carnp. ver: DJCTIONAIRE de Piloto. París: em primeiro lugar, atingir o público frances e, em segundo,
Larousse, 1996, p. 195-196. faze-lo rir. Nao podemos nos esquecer de que a culinária tem

96 97
CoLE<;AO "H1sr(lfl1A &... REFLEX()FS'" História & Fologr~fi~

um papel importantíssimo na vida dos franceses. Portanto, a fotografia e literatura. Como dito anteriormente, as viagens
associa9iio entre Egito e cebolas parece perfeita. Ao colocar, fotográficas ao Oriente eram, quase sempre, feitas em compa-
no plano inferior da imagem, a silhueta de duas pirámides e nhia de algum escritor. Enguanto os escritores lan9avam müo
tres palmeiras, o caricaturista atribuí a sua caricatura urna di- da linguagem escrita para construir urna fisionomía, urna car-
mensao mais cosmopolita. Afina!, esses signos sao universal- tografia, das culturas visitadas, os fotógrafos produziam ima-
mente reconhecidos, pelo senso comum, como símbolos da gens visuais solidárias. complementares aos textos dos poetas
representa9ao do Egito. A silhueta de um na vio rumando para e romancistas. Esses diálogos entre literatura e fotografia fo-
terra firme, para o Egito, pode estar nos remetendo, simulta- ram tendo desdobramentos ao longo do tempo. Já na primeira
neamente, a dais significados. De um.lado, o caricaturista década do século XX, o escritor Marce! Proust, influenciado
usa esse recurso imagético para se referir ao meio de trans- pelas teorias da memória de Bérgson, lan9a miio da fotografia
porte utilizado na época para a comunica9ao entre Europa e para estimular suas lembran9as do passado. Segundo ele, a
a costa norte da África. De outro, Montaulf está ressaltando vida é vivida por meio da memória, é ela que funde a expe-
a superioridade da velocidade de comunica9ao da máquina riencia do passado latente, que a fotografia ajuda a vir atona,
fotográfica em rela9iio ao transporte marítimo, pois enguanto como presente. Hoje, alguns estudiosos usam a fotografia para
o navío ainda se dirige para o Egito, o invento de Niépce e estimular a memória do sujeito/objeto de suas pesquisas. Esse
Daguerre, entao aprimorado, já está noticiando o visto. Suas é o caso dos estudos de Oiga von Simpson, que conjugam do-
imagens voam pelo espa90. cumento oral e fotografia para estimular a memória de entre-
Mediante esse jogo entre o visível e o invisível, o carica- vistados sobre o Carnaval em Siio Paulo.
turista parece niio só associar fotografia e modemidade (leia- Retornemos as questóes das viagens fotográficas de Le
se velocidade, inova9iio tecnológica, comunica¡;iio ), como tam- Gray e de outros fotógrafos europeus dos anos oitocentos. Para
bém estabelecer um diálogo entre duas modalidades de imagem além do papel que elas desempenharam na constru9üo da me-
- texto escrito e visual -, cada urna delas dotada de sintaxe mória eda identidade cultural européia, as viagens fotográficas
própria. Já os sinais de um diálogo entre tradi9ao e modemi- também serviram para estimular a curiosidade das famílias
dade podem ser percebidos tanto na conjuga9üo entre pira.mi- abastadas, de governantes e de comerciantes. Ir ao Oriente tor-
des e camara escura quanto na linguagem textual, quando jo- na-se, naquele momento, um diferencial social. Nao por aca-
cosamente, o caricaturista atribuí a Le Gray - protótipo do so, em 1871, o imperador D. Pedro 1T incluiu o Oriente no
homem moderno - um papel mais importante do que o dos roteiro de sua longa turne ao exterior. Suas fotografías no Egi-
conquistadores Alexandre, o Grande, e César. A referencia a to, hoje soba guarda da Biblioteca Nacional, sao urna eviden-
Napoleao significa, muito provavelmente, urna forma de con- cia do poder de propaganda da fotografia.
tar o tempo, de mostrar a continuidade da presen¡;a francesa Considerado por muitos como o primeiro fotógrafo bra-
no Oriente, aí representado pelo Egito. sileiro, D. Pedro II nao escondeu seu fascínio pela fotografia.
Embora escape aos objetivos de nosso estudo, gastaría- Além de fotógrafo, ele deu o título de "Photographo da Casa

¡ mos de destacar outro desdobramento das viagens fotográficas


do século XIX. Referimo-nos, específicamente, a rela9iio entre
Imperial a 23 profissionais - 17 no Brasil e seis no exterior,
~lém de Marc Ferrez que recebeu o título de Photographo da

98 99
CoLE<;:,\O "H11TóalA &... REFLE,O[s" História & Fotograf,.,

Marinha Imperial" .26 O imperador tinha plena consciencia de estiveram para pesquisar a flora, a fauna e as riquezas mine-
que a fotografia é urna das mais fortes express6es do que o rais brasileiras. Quando nao integravam as comitivas cieatífí-
historiador Le Goff conceituou como documento/monumen- cas, os daguerreótipos eram manoseados pelos próprios pes-
to. Grande parte dos estudos sobre a fotografía no Brasil oito- quisadores. Assim como as viagens fotográficas ao Oriente,
centista se refere as centenas de fotografías - hoje distribuídas os relatos fotográficos e textuais de estrangeiros sobre o Bra-
sil também contribuíram para reforr.¡:ar imaginários, sustenta-
entre os acervos da própria Biblioteca Nacional, do Museu
dos pelos europeos, sobre a vida e a natureza na recém-criada
Imperial e do Museu Histórico Nacional - que D. Pedro doou
nar.¡:üo brasileira. Pode-se dizer que quando se referiam afauna
para a Biblioteca Nacional antes de seguir para o exílio.
e a flora bmsileiras, os membros das expedi96es científicas
tendiam a se orientar pelas imagens que sustentavam o espe-
O Brasil e o imaginário dos fotógrafos viajantes lho do paraíso. A vida social, nas vilas, cidades, n-Js sert5es e
nas selvas era, quase sempre, orientada pelos códigos cultu-
Grar.¡:as as pesquisas de diversos estudiosos da fotografia no rais que alicerr.¡:avam o espelho rústico, selvagem e atrasado.
Brasil, sabe-se boje que cerca de vinte fotógrafos alemaes aqui Vista como urna nar.¡:iio "que por assim dizer, nao tem passado"
estiveram juntamente com mais de duas dezenas de outros fotó- - para usar urna expressiio do médico e dentista Johann Ema-
grafos franceses, suíyos, espanhóis, portugueses, austríacos, in- nuel Pohl em Viagem ao interior do Brasil (1817-1821) -, a
gleses e italianos. Ao lado desses, diversos fotógrafos brasileiros pujanr.¡:a de sua natureza alimentou a projer.¡:iiG de futuro gran-
contribuíram paracomporo conjunto dos relatos fotográficos sobre dioso. Essa visüo foi partilhada por muitos fotógrafos estran-
o Brasil do século XIX e das primeiras décadas do século XX. geiros e brasileiros.
Assim como os relatos fotográficos sobre o Oriente, os que foram Para se ter urna idéia do que signifie,ava fazer tomadas
produzidos sobre o Brasil colocam-no diante de dais tipos de fotográficas nessas expedir.¡:0es, é importante levar em conta
viagem: a de deslocamento no espar.¡:o geográfico e a imaginária. as condi96es em que eram realizadas as v.iagens. Pensemos no
calor do sol; nas chovas torrenciais próp:ias de celtas estar.¡:0es
Nas trés últimas décadas, parte dessa produyao fotográfi-
do ano; no tamanho das cargas a serem transportadas; em seu
ca vem senda pesquisada e transformada em bons trabalhos transporte feito em lombo de burros e nos ombros dos guias e
hoje veiculados em livros e/ou periódicos academicos. Mais na precariedade dos caminhos. Agre•~uemos a esses desafíos
que analisar a obra deste ou daquele fotógrafo, nossa intenyiio as condir.¡:6es necessárias para a proJur.¡:iio das imagens foto-
é estimular novas pesquisas sobre temas e subtemas, a partir gráficas naquelas primeiras década/Ó de sua existencia.
das imagens deixadas por estese outros fotógrafos ainda nao Segundo o historiador Jean C mude Gautrand, a bagagem
estudados. Para isso, apoiamo-nos em alguns estudos sobre de viagem de um fotógrafo chegava, em 1849, a pesar cerca de
parte da produyüo fotográfica da época.
l. l 00 quilos. Seus estudos mostram que
Durante o Império de D. Pedro 11, muitos fotógrafos
Dcpois do surgimento do processo úmido nos anos
acompanharam as expedir.¡:0es científicas estrangeiras que aqui
de 1850, as coisas se tornaram ainda mais difíceis.
As chapasdecolódio deviam sercxpostas enguanto esta-
"HISTÓR!A dufoto¡:rnjiu 1w Br,ui/· punMwnu ¡:eral e refere11cio.1 bJ.11rn.1. 3.ed .•
Sao Paulo: Instituto Moreira Sa!les, 2002, p. 5. vam úmidas - sendo, portanto, preparadas in situ - e

100 JO]
COlf,;M) llH,sroa .... &... RttL[XOES" His16na & Fotograf,a

reveladas imediatamente depois de a exposi~üo ter sido Além dos complicadores próprios da técnica utilizada pelo
feita. Isso significava que os fotógrafos viajantes eram fotógrafo, Pedro Vazques ainda chama a atern;ao para outras
abrigados a transportarum laboratório completo. E, além variáveis a interferir no trabalho do fotógrafo. Segundo esse
do próprio laboratório com todos os seus acessórios, ha- pesquisador, se comparado aEuropa, no Brasil o uso do coló-
via urna tendadobrávcl que, urna vez montada, assegura- dio úmido era ainda mais complicado porque "a luz é menos
va a total escuridiio para que o fotógrafo pudesse proccs- suave e unifonne e o clima mais quente". 29
sar as placas. Eles também transportavam urna caixa de
Se o imaginário estrangeiro sobre o Brasil contribuía para
madeira que servia como mesa. Esta continha urna dúzia
estabelecer o que fotografar, as condiy6es de produ¡;ao das ima-
ou mais de fra,;cos de produtos químicos, um suprimen to
de chapas limpas, bacías e vidros, água destilada, supor- gens acabavam por definir o como fotografar. Combinados, es-
tes para as chapas, um tripé e, naturalmente, a própria ses elementos da construyao imagética criavam um padrao foto-
ciimera que chegava a pesar dezenas de quitos_ii gráfico. Propunham urna estética do olhar, plena metáforas e
mensagens culturais que, na realidade, tenderiam a uniformizar
Para nós historiadores, conhecer as condi¡;óes de produ- nao apenas o modo de ver o mundo, mas também o seu consu-
¡;ao de um documento é tao importante quanto saber sobre o
mo nas diferentes regi6es por onde transitavam os viajantes eu-
modo como ele circula e é absorvido pelos diferentes grupos
ropeus. Nessa medida, pode-se dizer que a fotografia de viagem
sociais. A cita9ao acima, sobre as viagens dos fotógrafos fran-
era ao mesmo tempo um dos produtos do mundo que vai se
ceses ao Oriente, muito provavelmente se aplica as imagens
globalizando, como também um produtor de para.metro univer-
de índios feitas tanto pelo fotógrafo Albert Frisch, em 1865 no
Amazonas, quanto pelo fotógrafo berlinense Paul Ehrenreich sal a influir na proposi~fio de políticas públicas, na interferencia
(1855-1914), durante urna expedi¡;ao, entre 1887/89, em dife- nas formas urbanas, na padronizayao do consumo de certas mer-
rentes províncias brasileiras. O périplo que os vulcanólogos cadorias e no modo de interpretar as rela96es sociais.
Alphons Stubel ( 1835-?) e Wilelm Reiss ( 1838-?) fizeram por O etnocentrismo de muitos fotógrafos nao !hes pennitia
diversas partes do território brasileiro, entre 1868 e 1876, além incluirem suas imagens o que Luis Humberto chama de o "im-
de suas viagens pela Colómbia, Equador, Chile, Bolívia, Peru previsto em fotografía". Ou seja, a aceita¡;ao da entrada, na
e os Estados Unidos da América também parece se encaixar fotografia, de algo nao previsto em sua tomada, do intruso que
no exemplo citado_ 2x se imiscui "indelevelmente no negativo".'" Em alguns casos
específicos a rejei9ao a esse intruso pode significar a negar;Uo
"Citado por VAZQUEZ. Pedro Karp. F1migrafo., Ale11uie., ,w Bra.<il do .<écu/o XIX.
Sao Paulo: Metalivros, 2000, p. 23-24. A unagem da capa do livrn é urna transcri-
alemilcs. m11es que a Akmanha existisse como país. A utiliza¡,,ao deseas denomin;i-
~ao em litografiade urna fotogralia extraída do livroMen·eilln de/,¡ plwtogrnplue.
~oes impróprias se devc ora ao fa!o de dcsconheccr sua ddade de origem. orn ao
publicada por Boris Kossoy em Orixe11s e expwmio d,¡ft,tow,¡fia ,w Brasil: simio
fato de o abrasileir.unento de scus nomcs ter sido as.,urnido pelos mesmos. Todas
XIX. Ela retrata urn acampamento fotogr;ífico durante urna viagem de eJ\plora~ilo
essas incorre~6es sinalizam as dificuldades que perrneiam o atual es1ágio em que
no Novo Mundo.
se encontr::un muitas das pesquisas sobre os fotógrafos cstrangciros no Brasil.
"Cabe aqui esclarecer que os estudiosos brasileirm, por nós pesquisados. desconhe-
'"VAZQUEZ. Pedro Karp. Folágrafo,< Alemüe.< no Bra.1// do .<indo XIX. sao Paulo:
ccm as datas de nascirnento e morte de alguns dos fotógrafos aqui mencionados.
Nossas buscas por essas infonn~iics cm dicionários fotogr:ilicos também foram Metalivros. 2000, p. 26.
infm1íferas. As indica~1ics sobre anacionalidade de alguns fotógrafos também cons- "' LUIS HUMBERTO. Fotogrufia. " p11étirn do hMal. Brasília: lmprcnsa OliciaV
lituem problemas. Há que se observar que alguns deles silo identificados como UNB. 2000. p. SO.

102 103
COLL(,ÑJ "H"TÓo.l~ &... REFLESóES" História & Foto¡:rJiia

da alteridade, a recusa em aceitar as difereni;as que penneiam regiiio, Frisch fazia urna espécie de montagem fotográfica. En-
urna cultura diferente da do produtor da imagem. guanto os indígenas eram fotografados, em separado, diante de
um fundo negro, as paisagens eram feitas em outras tomadas.
A preocupai;iio em eliminar o imprevisto encontra no re-
Na hora de montar a fotografía ele reunia as imagens, dispon-
trato individual um campo fértil. Grande parte dos fotógrafos
do em segundo plano a paisagem natural e, no primeiro, os
que se puseram a fotografar índios e negros, portanto mem-
indígenas. 31 Com esse recurso técnico, o fotógrafo materiali-
bros de grupos sociais niio integrantes da cultura aristocrático-
zava o imaginário europeu sobre a vida das populai;6es ditas
burguesa, criou representa~6es estereotipadas desses represen-
selvagens e primitivas que habitavam nas terras abaixo da Ji-
tantes das etnias e culturas marginalizadas no país.
nha do Equador.
A combinar;iio entre espelho rústico/selvagem e espelho
i paradisíaco, que deu origem ao imaginário europeu, aplicada,
durante a Idade Média, as regi6es do litoral do oceano Índico,
foi posteriormente transplantada para as águas e terras do Atliln-
1 tico e do Pacífico pela cartografía contemporilnea das grandes
1 navegai;6es. Na segunda metade do século XIX, o pretenso
realismo da fotografía ainda transmitia fragmentos dessas fan-
1 tasias sobre o Novo Mundo. No imaginário dos anos oitocen-
tos, essa herani;a cultural as vezes se mesclava com alguns
signos da visiio romiintica sobre os índios, presente nao ape-
¡,
nas entre os europeus, desde o Iluminismo, mas também nar-
1
rada no romance O Guarani, de José de Alencar, e posterior-
mente cantada na ópera de Carlos Gomes.
Na pose que Frisch construiu dos dois índios Umauá,
salta a vista sua inteni;iio de ressaltar a nobreza dos guerrei-
ros. Cabe aqui observar que as montagens fotográficas do
século XIX, como essa de Frisch, objetivavam produzir urna
Figura 14 imagem do real como algo natural e verdadeiro. Os estrangei-
ros em viagem pelo Brasil constituíam o público-alvo do con-
De acordo com a análise do estudioso Pedro Vazquez,
sumo de fotografías como essa. Interessava-lhes levar a seus
essa fotografia foi feita na Amazónia durante a viagem do fo-
países de origem urna "prava" da vida nas selvas brasileiras.
tógrafo Albert Frisch, natural de Hamburgo, em tomo do ano
Essas imagens podiam ser adquiridas em diversos estúdios
de 1865. Juntamente com outras imagens da regiiio amazóni-
fotográficos das capitais brasileiras. É importante ressaltar
ca, esse exemplarfoi exposto na Exposii;iio Universal de Paris
em 1867, e vendida, no Ria de Janeiro, pela Casa Leuzinger. -' 1 VAZQUEZ. Pedro Karp. Fouígrnf11J Alemiie.f no Bnml do .lécu/o XIX. Siío Paulo:
Para produzir urna visiio paradisíaca (espelho do paraíso) da Metalivros, 2000, p. 81

104 IOS
Com;Ao "HISTÓRIA &.,. REF\!M)ts" História & Fotografía

que essas "montagens" fotográficas nao podem ser compara- que conforme mostramos no capítulo anterior tinha urna ma-
das as montagens fotográficas do movimento surrealista das triz no Rio de Janeiro e filiais em Salvador, Recife e mais tar-
décadas de 20 e 30 do século XX, criadas com a finalidade de de em Belo Horizonte. Em sao Paulo, seu estúdio, inaugurado
dar a ver um real multifacetado e polisSl!mico, cujas fronteiras em 1882, chamou-se Photografia Imperial. Além desses
entre sonho e realidade sao mais fluidas do que pretendía o estabelecimentos, parece que ele e seus sócios estabeleciam
realismo da arte perspectiva. parcerias com outros fotógrafos, um sistema similar as atuais
No caso específico da fotografia no século XIX, os em- franquías, os quais percorriam cidades do interior do país. Em
pecilhos para fotografar em áreas distantes e de difícil acesso geral, os botéis eram o local mais utilizado para ser, por algum
contribuíram para que a fotografía privilegiasse as cenas da tempo, o estúdio des ses fotógrafos. 33
vida urbana. Os naturalistas, interessados na observayao da Outros, além de retratistas, eram tempora1amente contra-
natureza e na coleta de material para suas pesquisas, busca- tados por empresas para documentar seus empreendimentos.
vam outros meios para suprir as dificuldades do registro foto- Guilhenne Gaensly, considerado por Pedro Vazquez o maior
gráfico de suas viagens. Texto escrito e desenhos substituíam, fotógrafo do final do século XIX, foi contratado pela Light para
na maioria das vezes, a ausencia da cámera fotográfica. Tanto fotografar as instalai;óes dos trilhos dos bondes em Sao Paulo
é que ao fazer o inventário das perdas de sua expedii;iio ao no início da década de 1880. Anos antes, ele dominara a foto-
interior do Brasil, o diplomata e naturalista, Francis Castelnau, grafiaem Salvador. Também o inglés Ben R. Mulock documen-
lamenta a ocorrencia de "um terrível acidente" com "explosao tou os trabalhos da construi;iio da estrada de ferro Bahia ami S.
dos vidros que continham bromo e iodo", provavelmente des- Francisco Railway. O processo de instalai;iio da rede ferroviá-
tinados a produi;ao de imagens fotográficas a partir de um da- ria brasileira foi quase todo documentado por fotógrafos. Além
guerreótipo também danificado durante a viagem. Sua conclu- de Mulock, ostrabalhos de August Stahl, G. Gaensly, Augusto
siio, no entanto, deixa entrevero que realmente importa va para Amorethy e do fotógrafo brasileiro Marc Ferrez (1843- 1923)
sua viagem. Conforme palavras suas, felizmente, as perdas também registram imagens das atividades de implantai;ao dos
"tinham se limitado a objetos de tiio pouco valor".-12 trilhos, das máquinas, dos vag6es, das esta96es ferroviárias. A
As cidades - espayos por excelencia da mudani;a social, identificai;ao entre ferrovia e superai;iio do atraso nacional faz
da absori;iio das inovai;Oes tecnológicas, do comércio de mer- com que tais imagens, patrocinadas por empresas particulares
cadorias e das trocas simbólicas, enfim, termómetro dos no- e pelo capital público, produzam urna visiio estereotipada da
vos tempos - se constituíram no território por onde mais tran- realidade. Sua finalidade era dar a ver o avanyo da modemidade
sitou a maioria dos fotógrafos estrangeiros e nacionais. no Brasil. Por isso mesmo, a seqüéncia das imagens animava
urna narrativa imaginária do progresso do país.
Muitos deles aí montaram seus estúdios fotográficos e
os transfonnaram em pequenas fábricas de reprodui;ao do O fato dos trabalhos serem financiados limitava a mar-
padriio universal do retrato fotográfico comercial. Esse foi o gem de independéncia dos fotógrafos no que se refere ao tema
caso da Photographia Alem(l, do fotógrafo Alberto Henschel,
-" Para maiorcs detafües das imagens deste e de outros fotógrafos do período, ver os
dois esmdos de: VAZQUEZ, Pedro Karp. F"túgra{o.1 Alemiie.1 "" Bra.<il J,, século
-'' Citado por MOREIRA LEITE. Miriam. Livm.~ de \liagem. /830-1900. Rio de Ja- XIX. Siio Paulo: Metalivros, 2000; Afmografia no lmpirio. Rio de Janeiro: Zallar,
neiro: UFRJ, 1997, p. 182-83.
2002. (Cole~ilo Descobrindo o Brasil).

106 107
Crnf~AO "H»IORIA &... Rfflf,Ob"
Históna & Forograf,,,

das fotografias, no entanto, nao !hes subtraía seu valor artístico.


homens e mulheres, estrangeiros e nacionais, que viveram e
Durante 11 anos, o fotógrafo Revert Henrique Klumb esteve a
transitaram por partes do território brasileiro. Isoladamente ou
servis;o do governo brasileiro para fotografar a estrada Uniffo
em conjunto, essas imagens e as que foram produzidas nas
e Indústria, que liga Juiz de Fora a Petrópolis. O trabalho efe-
décadas posteriores fizeram circular modos específicos de ver
tivamente iniciado em 1863 e concluído em 1872 resultou no
0 espas;o e de conceber o tempo. Fundaram e re-fundaram os
livro Doze horas de diligéncia. Suas imagens foram transcri-
diferentes conceitos de identidade nacional, que desde o período
tas em litografia e entffo reproduzidas e revendidas em álbuns
imperial tem perpassado a história deste país.
ou separadamente.
Em suma, seus formatos, planos, texturas, seus jogos e
Um dos casos mais interessantes de fotografia patrocina-
luz e sombra ajudaram a edificar memórias coletivas, criaram
da é, a nosso ver, o do fotógrafo alagoano Augusto César Mal-
sentimento de pertencimento entre grupos sociais e alicers;a-
ta de Campos (1864-1957). Em 1903, esse imigrante nordesti-
ram imaginários concebidos a partir de espelhos culturais es-
no, radicado no Rio de Janeiro, foi contratado pela Prefeitura
trangeiros, muitos dos quais foram sendo internalizados por
dessa cidade para documentar a refoITna urbana acorrida na
membros de diversos segmentos sociais do país. Como men-
gesta.o do prefeito Pereira Passos. Cria-se aí o cargo de fotó-
sagens, elas nos comunicam seus referenciais estéticos e cu\-
grafo do poder público. Seu dia a dia era destinado a fotogra-
turais. Como nos lembra Pierre Francastel,
far as vielas e casas que seriam demolidas, as ruas que seriam
alargadas, transformadas em avenidas, os morros que seriam a imagem figurativa é sempre demarcada pelos valo-
retirados ou perforados para dar lugar a túneis. Suas imagens res de urna determinada época ou cultura, pertencc a
ajudavam a convencer empreiteiros e outros financiadores da cadeia de percepi;Oes onde está inserida. A ímagem
reforma urbanajá projetada, da necessidade da reurbanizas;ii.o . 1ente.··"
figurativa é urna percepi;ao aberta e po 1tva
da capital da República. Além desse trabalho, Malta também
deixou urna massa documental sobre o cotidiano da cidade
que cobre nao apenas os eventos oficiais da prefeitura, como
também os calendários das festas populares, como carnaval,
por exemplo. Segundo alguns estúdios, seu trabalho

é considerado pioneiro na área de reportagem ilustra-


da. Intuitivamente, Malta foi o primeiro fotógrafo bra-
sileiro a dar importancia a imagem como documento e
veículo de comunica~ii.o com linguagcm própria.-14

Essas e outras viagens fotográficas legaram-nos vis6es a


um só tempo diversas e unificantes dos ideais de sociedade de

" HISTÓRIA da fotograjia 110 Bra.1/1: panorumu geml e referénmu bd.1i,•a,<. 3.ed.,
Siio Paulo: Instituto Moreira Salles, 2002, p. 11
-" FRANCASTEL, Pierre. /ma¡:em, ~üdo e imagina¡-do. Lisboa: Prcsen~a. 1983, p. 50

108
109
CONSIDERAl;ÓES FINAIS

Como dissemos na introdm;ao deste livro, sua confec¡;ao


implicou a tomada de algumas decis6es. Algumas delas foram
definidas em funyíio dos objetivos da Colq:iio ReflexOes, da
qual História & Fotografia é parte. Outras estíio diretamente
relacionadas com o conteúdo que consideramos ser necessá-
rio a um pesquisador iniciante, interessado em refletir ques-
t5es ligadas a relai;ao entre a história-conhecimento e o uso do
documento fotográfico.
A leitura que oferecemos das imagens contidas no capí-
tulo II niio deve ser tomada como definitiva. Como observa-
mos em mais de urna ocasiiio, a fotografía, como as outras
imagens, é polissemica. Sua absori;iio varia muito em funi;íio
dos códigos culturais e da sensibilidade do Jeitor. Mais que
oferecer um modelo para a análise das imagens reproduzi-
das, o que constituiria um equívoco analítico, nossa intem;üo
foi ressaltar alguns elementos que, necessariamente, devem
fazer parte do uso da fotografia como documento de pesqui-
sa histórica. Chamar a aten9üo para os sentidos que os atores
sociais foram atribuindo as imagens fotográficas, ao longo
da segunda metade do século XIX e das primeiras décadas
do século XX, é o mesmo que desnaturalizaras imagen s. Equi-
vale a conceber a imagem fotográfica como constru9üo cul-
tural, como código aleatório porque variável conforme opa-
trimónio cultural de seus produtores. Significa entabular um
diálogo entre o visível e o invisível, entre o dito e o nao dita,
condi9fto sine qua non para se explorar os diferentes níveis
de análise de urna imagem-documento.

111
Cm,Qlo "HISlóRIA &.. , RHLEX◊ES" Hostória & íoto¡¡r,,fia

É assim que as imagens nos revelam as maneiras de sen- No conjunto, foram essas as quest6es privilegiadas ao
tir e pensar de um grupo social, que elas nos mostram como a longo deste livro. Para a\guns, sua leitura poderá constituir
memória coletiva vai sendo construída, criando lm;os de per- um primeiro contato com o uso do documento fotográfico na
tencimento mútuo e unindo os membros de urna mesma cole- pesquisa história. Para avan¡_;ar nesse processo, oferecemos urna
tividade. É também dessa maneira que podemos perceber como bibliografia vasta e diferenciada que, se procurada, poderá con-
o partilhamento de sentimentos nao é universal, muito embora tribuir para o aprofundamento das indaga96es aqui contidas e,
a forma como certas imagens é transmitida tenda a criar pa- muito provavelmente, para a ampliar.;ao do debate em torno
dr6es de comportamento e a\icen;ar identidades nacionais. Ao dos alcances, limites e desafios de se trabalhar com a icono-
analisar a disputa social em tomo do significado de urna mes- grafía, em geral, e a fotografía, em particular, nos diferentes
ma imagem, produzida e difundida em urna mesma sociedade, campos da pesquisa histórica.
o historiador tem aí urna cha ve importante para fugir dos ris- Mais que encerrar um debate, que por certo jamais será
cos de conceber o real como algo absoluto e natural, como interrompido, nossa intenr.;ao foi mostrar que a fotografia é urna
algo que preexiste ao sujeito social. A variabilidade dos pro- das janelas para refletirmos sobre nós mesmos e sobre as tantas
pósitos e das motivar.;6es que calr.;am as escolhas dos atores buscas que norteiam o caminhar tateante do ser humano.
sociais toma-se, nesse momento, urna realidade.
Conhecer essa multiplicidade de mundos, de interesses
materiais e simbólicos, equivale a conceber o real como cená-
rio mutável que está sempre em processo de forma¡_;ao. É per-
ceber como homens e mulheres de diferentes épocas se apro-
priam de seu passado, conjugam-no com seu presente e
apontam saídas para seu futuro.
Quando transformada em documento a ser utilizado pelo
historiador, a imagem fotográfica dessacralizará a rede de re-
la96es que a sustenta. Esse processo, marcado pelo jogo entre
razao e sensibilidade, nao se fará, no entanto, em detrimento
de sua magia e de seus múltiplos significados. Ao se debru¡_;ar
sobre as inten96es do produtor de urna imagem, sobre a análi-
se da dinimica social que interfere na produr.;iio imagética, o
pesquisador compreende mais facilmente que o conhecimento
histórico opera no reino das possibilidades e da verossimilhan-
r.;a. Seu ofício implica conhecer, compreender e interpretar, a
luz das evidencias históricas, da qua! a imagem fotográfica é
urna das manifestar.;6es, os sentidos que os indivíduos, isolada-
mente ou em grupo, quiseram atribuir as suas práticas sociais.

112 113
: 11
1'!

FOTOGRAFIA: CRONOLOGIA

Periodo Acontecimento

1500 Pintores e gravad ores usam a cimera es-


Ji cura inventada por Leonardo da Vinci.

f
f
1609
1618
1671
Galileu utiliza a lunela.
Invem;ao do microscópio.
O jesuítaAthanase Kneher faz a primeira
descrir;ao da lanterna mágica.
1790 Populariz.a-se, na Fram;a, o uso do Fisio-
i notrazo, retrato em madeira e em mar-
fim. Essa técnica nao tem nada a ver com
!" a da fotografia, muito cmbora osfisiono-
trutistas sejam considerados os precur-
sores ideológicos do fotógrafo retratista.
1798 Ocorre a primeira projci;ao de Fantas-
j¡ magories, mediante a u1ilizai;iio do
fantascópio (urna lanterna mágicaaper-
;¡ feiyoada).
! 1814 Joseph Nicéphorc Niépce (1765-1833)
inicia suas pesquisas sobre a fixa,;;ao de
imagens da dimera obscura a partir de
dois métodos distintos. O primeiro con-
sistía em testar a fotossensibílidade de
algumas substiincias como resina, fós-
foro e óleo em suportes de papel, vidro,

115
CoL[y\0 "H,sTóR,A &... Rmexms" História & Folografia

Período Acontecimento Período Acontecimento

metal e pcdra colocados cm urna came- 1837/38 As pesquisas de Daguerre levam-no a


ra negra. O segundo vlsava reproduzir descobrirque urna fina camada de prata
gravuras translúcidas a partir de urna su- poi ida, aplicada sobre urna placa de co-
perficie fotossensível mediante a a~iio bre e sensibilizada em vapor de iodo,
da luz. A esses dois proccssos ele dá o produzia urna imagem de alta precisfio
nome de Heliografia. embora em apenas urna cópia.
1826 As pesquisas de Nicéphore Niépce pcrmi- Em 1838, ele batiza seu invento de da-
tem-lhc captar a primeira imagem sobre a guerreotipia. Até 1855 o daguerreótipo
cámera escura: urna naturc.1.a marta. Para é o processo mais utilizado pelos fotó-
sua produ~áo foram nccessárias 14 hora~. grafos que viio se profissionalizando.
1829 Niépce se as.socia a Louis J. M. Dagucrre 1839 O astrónomo e político F. Arago divul-
( 1787-185 J ), pintor e decorador de tea- ga, na Academia de Ciéncias e Belas
tro. Juntos, d5.o continuidade as pesqui- Artes de Paris, a confiabilidade e a pre-
cisao da reprodu~ao de imagens por mé-
sas para a reprodrn;ao de imagens na
cámera escura. todo automático.
E~sa data é aceita por todos como o mo-
1832 O fotógrafo francés, radicado no Brasil,
mento da divulgaqfio da fotografia.
Anloine Herculc Romuald Florence
Daguerrc passa a comercializar sua in-
( 1804- 1879) desenvolve suas pesquisas
ven~ao cm diversos lugares da Europa e
sobre a reprodu~ao de imagens median-
dos Estados Unidos, além de publicar em
te proccssos químicos que ele próprio
diversos idioma~ scu livro Historique et
chamou de photographie.
descriptions de procédés du daguerréo-
! 835 O fotógrafo inglCS Wil!iam Henry Fox l}pe er du diorama.
Talbot ( 1800- I 877) substituí a placa 1847 O químico e negociante de tecidos Louis
metálica de Dagucrrc, o daguerrc6tipo, Désiré Blanquart-Évrard (1802-1872)
por um papel sensibilizado a partir do anuncia o resultado de suas pesquisas com
iodo. Essa técnica, conhecida como ca- o calótípo sobre papel albumirwdo. Os
lótipo, cria a possibilidade de reprodu- sais de prata niío silo mais sobre superfí-
~i'io de múltiplas cópias cm papel ou cm cie do papel, mas impregnam sua textu-
vidro. A partir da década de l 840 ela ra. Esse processo pennite preparar o ne-
seria utilizada por diversos fotógrafos. gativo em papel antes de tirar a foto. A
1835 Daguerre descobrc, no mesmo ano cm tiragem de suas pro vas cm positivo é mais
que Talbot, que os vapores de mercúrio fácil do que o processo inventado pelo
a cm como revelador de ima ens. in ICs Talbot em 1835.

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CoLE<;A<l "HISTóR" &.. , RtfLExúES" História & Fotografia

Período Acontecimento Período Acontecimento

1848 O fotógrafo ingles Frederick Scott Ar- 1858 O fotógrafo Nadar faz a primeira foto
cher (1813-1857) cria o colódio úmido, aérea.
processo que mescla partes iguais de 1879 Ferrier inventa o primeiro filme foto-
éter/álcool cm urna soluyfio de nitrato de gráfico.
celulose. O uso do colódio úmido em 1880/ Período em que predomina o uso dos
negativos sobre vidro e pravas de albu- 1910 negativos em gelatina e brome to de pra-
mina iria predominar entre 1855-1880. ta sobre vidro, bcm como as provas cm
1850 E criado o papel albuminado. papel directo de fabricayiio industrial (de
1851 O governo frances cria aMissionHélio- gelatina ou colódio).
graphique destinada a inventariar, me- 1888 George Eastman (1854-1934) comer-
<liante fotografias, o patrim6nio arqui- cializa seu mais novo invento: a Kodak,
tetónico da Fram;a. primeiro aparelho fotográfico portátil
Surge o ferrótipo, no qua! a imagem é contendo um rolo de filme que permitía
1856
produzida a partir do colódio úmido so- sacar até 100 imagcns, intitulado por ele
bre um suporte em chapa de ferro es- de instantiineo.
mallada com laca pre la e marrom. A cor 1892 O. Eastman cria a Eastman Kodak Com-
castanha da imagem permite sua visii.o pany e se dedica a fabricayiio de apare-
como positivo, quando colocada sobre lhos fotográficos cada vez mais fáceis de
urna supcrfície negra. serem manuseados pelo público amador,
como a Bmwnie, comcrciali7.ada a partir
Foi usado como retrato em substituiyiio
de 1900.
ao daguerreótipo, devido a seu baixo
custo. 1895 Irmfios Lumiere inventam o cinemató-
grafo. Em 28 de dezembro de 1895, exi-
1854 O fotógrafo frances André A. Eugene
bcm a primeira seyáo de cinema no salao
Disdéri ( 1819-1889) instala-se em Pa-
indiano do Grand Café, no boulevard dos
ris, onde abre um dos mais importantes
Capuchinhos, em París.
estúdios fotográficos. Cría urna modali-
dade fotográfica fe ita a partir de um apa- 1912 A Kodak cria o primeiro aparelho foto-
relho com 4 ou 6 objetivas. Esse apare- gráfico portátil.
lho pennite fazer de 6 a 8 cliches em 1925 Oskar Barnak cría a Leica, urna dime-
urna mesma placa fotográfica. Estava in- ra fotográfica de tamanho reduzido que
ventada a carte de visite, responsávcl usa um filme de rolo, utilizado no cine-
pelo barateamcnto e popularizayáo da ma, que permitía, a época, sacar 36 fo-
foto rafia. tos sem necessidade de ser recarregada.

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Cott:<;Ao "H1s1óR1A &... REFLrxOEs"

Período Acontecimento

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1927 A nos mais tarde, esse aparelho foi res-


ponsável pela grande difusao do foto-
j ornalismo.
1932 Surge o cinema falado .
A cor entra no cinema mediante urna téc-
ARRUDA, Rogério Pereira. (org.). A/bum de Bello Horizonte. Edi-
nica de superposi9ao de tres filmes co-
9ao Fac-similar com Estudos Críticos. Belo Horizonte: Autentica,
loridos em vermelho, azul e amarclo.
Somcnte na década de 1960 é que o ci- 2003.
nema adotaria a cor tal qual a conhece- BARTHES, Roland. A Cámara Clara: nota sobre afotografia. 2.ed.,
mos boje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
1947 Surge o primeiro modelo da Polaroid.
- - -. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edi96es 70, 1984.
1963 Surge a Instamatic 50 da Kodak.
1981 A Sony lan9a um protótipo do aparelho BAURET, Gabriel.Approches de /aphotographie. Paris: Nathan, 2002.
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1994 Início da comercializa9ao do CD-Rom. Graal/ Embrafilme, 199 l.
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BENDIX, Reinhard. Max Weber. Buenos Aires: Amorrortu, 1979.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade


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* As infonna~éíes contidas nesta ses;ao foram feítas a partir do Glossário contido em
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(Cole~ao Descobrindo o Brasil); do DICTIONAIREde Photo. Paris: Larousse, 1996 tura da modernidade. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1986.
e do texto "O Acervo Fotográfico do Arquivo Público Mineiro", de autoría de Juno
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