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construção romântica fica óbvia quando ele se pega, distraidamente, escrevendo “Lulu”
em esterco velho.
Tendo decidido morar com ela, precisa conviver com os ganidos emitidos pelos cli-
entes que ela recebe em casa. Quando ela engravida e, apaixonada, “exibindo a barriga e
os seios e dizendo que era para qualquer momento, já o sentia pular”, ele responde: “se ele
pula, não é meu”. E quando a criança nasce, os gritos do parto e o choro do bebê... então
já não é mais possível: ele a abandona e escolhe a solidão que passa agora a estar preen-
chida pelo horrível incômodo do sentimento do amor.
Essa novela de Beckett, ainda longe das narrativas curtas e fragmentadas que ca-
racterizariam sua obra a partir da década de 1970, desconstrói completamente a ideia de
um personagem com sentimentos nobres, construindo uma figura que, feliz ao não sentir
nada, percebe o amor como um sentimento torturante. Se há nobreza no amor que ele
sente, está na persistência, na obstinação, está na impossibilidade de não o sentir. E que
felicidade poder não estar apaixonado! Mas, diz o personagem de Beckett ao encerrar a
novela, “o amor não se encomenda”.
A encenação de Primeiro amor foi um processo de construção negativo: ao invés
de inserirmos elementos na cena, excluímos. Até chegarmos ao mínimo: a atriz, sentada
num banco, em um canto da sala, falando, contando. O movimento de cena se limitou aos
gestos dos braços e à lenta variação da iluminação que alternava a projeção da sombra
da atriz ora numa parece, ora em outra, como se multiplicássemos seus gestos. À frente
dela, no chão, era projetado um vídeo elaborado a partir de letras que se empilhavam, em
alguns momentos, e de palavras flutuando na água, em outros momentos: luz, como um
moto contínuo na cabeça do personagem, sem discurso, sem sentido. Do relato da atriz,
depreende-se que o amor, na perspectiva do desejo de solidão, é puro sofrimento.
A solidão é um mote que acompanha a obra de Beckett, uma solidão preenchida
por histórias cuja veracidade não é importante. Ele constrói histórias para que persona-
gens existam, mas não que eles tenham importância... eles são apenas nomes ou rostos.
O que importa é que sua existência se baseia na narrativa. É ela, em última instância, que
constitui aquele que fala. Não o conteúdo do que se fala, mas a própria fala. Ao ouvirmos
uma voz, temos a impressão de que alguém fala. Mas não podemos afirmar que há al-
guém... mas há a fala, portanto, talvez haja alguém.
Maurice Blanchot, em Agora onde? Agora quem?4 nos fala sobre a dissolução do
personagem ao analisar a trilogia Molloy, Malone morre e O inominável, todos escritos em
primeira pessoa. E a pergunta que ele se faz é: “Quem fala nos livros de Samuel
Beckett?” No primeiro romance, Molloy é um homem que, mesmo desestruturado, desen-
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volve ainda uma história e revela, em sua fala, referências do seu passado de maneira a
identificarmos, ali, traços de individualidade. Já Malone é um moribundo sobre uma cama.
Não se desloca mais e suas histórias se mostram como invenções que nunca acontece-
ram. Portanto, não sabemos nada sobre ele. Há um nome e um rosto, mas não há qual-
quer sinal de identificação nas suas falas. No terceiro e último... bem, o título já nos suge-
re: é um eu sem nome. Resta apenas a possibilidade de falar.
O sujeito em Beckett é sempre menos do que sua fala. Seus personagens são
sempre destroços humanos – quando não são partes de corpos – que dependem da nar-
rativa para existir. Não são homens idealizados com um passado que justifique o presen-
te; são figuras precárias, inúteis. Também no amor seus personagens são incompetentes.
Tudo o que eles querem é mergulhar na sua condição última: a solidão. Condição que só
pode ser superada pela possibilidade de, talvez, haver uma história na qual eles, talvez,
se encontrem. Talvez.
Entretanto, como fala o personagem de O inominável:
(...) é preciso continuar, não posso continuar, é preciso continuar, então vou continuar, é
preciso dizer palavras, enquanto houver, é preciso dizê-las, até que elas me encontrem,
até que elas me digam, estranha pena, estranho pecado, é preciso continuar, talvez já te-
nha sido feito, talvez já tenham me dito, talvez já tenham me levado até o limiar da minha
história, diante da porta que se abre para a minha história, isso me surpreenderia, se ela
se abrir, vai ser eu, vai ser o silêncio, ali onde estou, não sei, não saberei nunca, no silên-
cio não se sabe, é preciso continuar, não posso continuar, vou continuar.5
Beckett poderia continuar o romance infinitamente... porque sua narrativa não tem
nenhum lugar para chegar. Mas ele coloca um ponto final obrigando o leitor a fechar o livro.
Com Beckett, a linguagem não tem mais nenhum objetivo, nenhum fim. Ele fala sobre a
fala.
Diz-se que o amor preenche o corpo, antes vazio. Mas o Primeiro amor de
Beckett não tem futuro... se houver futuro, é vazio. Um vazio povoado de palavras.
Não há sujeito... ou melhor, a fala é o protagonista.
Valère Novarina – uma primeira experiência6
Nas experiências com Primeiro
amor e Na solidão dos campos de algo-
dão, dois textos que sinalizam um rompi-
mento com as expectativas construídas
pela narrativa tradicional, vi a oportunidade
de abordar, na encenação, o trabalho so-
bre a palavra compreendida como prota-
gonista do espetáculo. A atmosfera pre-
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de novo, se espantar de novo com a palavra. Mas é verdade que passei talvez mais tem-
po ouvindo música do que lendo ou lendo tratados de musicologia sem entender nada, e
comprando partituras sem saber lê-las. Da mesma forma, tenho bíblias em hebraico. E
assim livros impenetráveis agem sobre nós.16
***
Recentemente encenei Vocês que habitam o tempo17, também de Novarina. Para
esta montagem experimentei convidar um palhaço, Sérgio Machado, para integrar o elen-
co. O resultado foi, para mim, surpreendente. Percebi que aí estava, precisamente, a qua-
lidade de jogo que eu buscava. Via um ator sem qualquer narcisismo, concentrado ape-
nas no jogo do gesto e da elocução, no olhar franco para a plateia, sem ansiedade por ter
uma resposta imediata ao que ele propunha. Cheguei à conclusão de que precisaria tra-
balhar mais uma vez esse palhaço em uma nova experiência com um texto de Novarina
para ter a certeza de que as palavras, em cena, podem efetivamente se realizar como
peças de um jogo sem nenhuma finalidade.
No momento em que termino este artigo, visando à nova investida em um texto de
Novarina, já trabalho na montagem do monólogo Adramelech, na busca pelo tom exato do
jogo entre o ator e a plateia. Porque percebo que, com este autor, a palavra é um brin-
quedo e a tarefa do ator é, a partir desta compreensão, construir a sua precisa elocução
para lançá-la em direção à plateia de forma a convidá-la para o jogo.
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1
Encenei esse texto em 2012 no Teatro Marco Camarotti em Recife (PE). Cenário: Doris Rollemberg, Figu-
rinos: Luciano Pontes, Iluminação: João Denys, Trilha sonora: Marcelo Sena, Vídeo: Alan Oliveira e Rafael
Malta, Direção de movimento: Míriam Asfora, Preparação de elenco: Érico José. Elenco: Edjalma Freitas e
Tay Lopez. Esta montagem foi contemplada pelo Prêmio APACEPE nas categorias Direção e Melhor ator
(Tay Lopez).
2
“Um deal é uma transação comercial que diz respeito a valores proibidos ou estritamente controlados, e
cuja conclusão se dá em espaços neutros, indefinidos e não previstos para tal uso, entre provedores e pe-
dintes, por meio de acordo tácito, sinais convencionais ou conversa de duplo sentido, com o objetivo de
contornar os riscos de traição e trapaça (calote) que a operação implica – a qualquer hora do dia ou da
noite, independentemente das horas de abertura regulamentares dos locais de comércio homologados,
mas preferencialmente nas horas em que estes estão fechados.”
3
Encenei Primeiro amor em 2012, no Teatro Poeirinha (RJ), com Ana Kfouri no elenco.
4
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Trad. Maria Regina Louro. Lisboa: Relógio d’Água, 1984, p. 221-227.
5
BECKETT, Samuel. O inominável. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002,
p.189.
6
Encenei O animal do tempo em 2007, no Espaço Sesc (RJ), com Ana Kfouri no elenco.
7
NOVARINA, Valère. Diante da palavra Trad. Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
8
NOVARINA, Valère. Carta aos atores e Para Louis de Funès. Trad. Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro:
7Letras, 2009.
9
NOVARINA, Valère. O animal do tempo. Trad. Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
10
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. Trad. Angela Leite Lopes. São Paulo: Max Limonad, 1984, p.
120.
11
KANTOR, Tadeusz. O teatro da morte. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 202.
12
NOVARINA, Valère. Vocês que habitam o tempo. Trad. Angela Leite Lopes. Rio de Janeiro: 7Letras,
2009, p. 199.
13
DOSSIER VALÈRE NOVARINA. Paris, Europe, n. 880-881, août-septembre 2002, p. 166.
14
Ao pensar, espacialmente nesse encontro da palavra com o corpo, nessa encruzilhada, não pude deixar
de me lembrar da tensão sobre a qual Koltès trabalhava em Na solidão dos campos de algodão. O Cliente
e o Dealer se encontram num lugar onde tudo é desconhecido e impossível de discernir.
15
NOVARINA, Valère. Une langue inconnue. Carouge-Genève: Éditions Zoé, 2012.
16
NOVARINA, Valère. A onda da linguagem (entrevista). Trad. Angela Leite Lopes. In: LOPES, Angela Leite
(org.). NOVARINA em cena. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
17
NOVARINA, Valère. O ateliê voador e Vocês que habitam o tempo. Trad. Angela Leite Lopes. Rio de Ja-
neiro: 7Letras, 2009.
Encenei este texto em 2018 no Sesc Copacabana. Dramaturgia: Fátima Saadi, Cenário: Doris Rollemberg,
Figurinos: Nívea Faso, Iluminação: Binho Schaefer, Direção musical: Paula Leal e Amora Pêra, Elenco:
Antonio Alves, Cristina Flores, Fernanda Maia, Oscar Saraiva, Sérgio Machado e Maria Clara Vale (violon-
celo).
O autor
Antonio Guedes
Professor Adjunto do Curso de Artes Cênicas – EBA/UFRJ
Mestre em Comunicação e Cultura – ECO/UFRJ
Doutor em Artes – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Encenador e diretor artístico do Teatro do Pequeno Gesto
e-mail: guedes@eba.ufrj.br
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FOTO 1
Na solidão dos campos de algodão (2012). Encenação: Antonio Guedes. Foto: Jorge Clesio. Na foto: Tay
Lopez e Edjalma Freitas.
FOTO 2
Primeiro amor (2012). Encenação: Antonio Guedes. Foto: Dalton Valério. Na foto: Ana Kfouri.
FOTO 3
O animal do tempo (2007). Encenação: Antonio Guedes. Foto: Dalton Valério. Na foto: Ana Kfouri.
FOTO 4
Vocês que habitam o tempo (2018). Encenação: Antonio Guedes. Foto: Carolina Maduro. Na foto: Sérgio
Machado.