TRABATTONI, Oralidade e escrita em Platão, forma dialógica de sua obra, chaman-
Trad. de Fernando E. de B. Rey Puente e do a atenção para a importância da Roberto Bolzani Filho, São Paulo, Discurso persuasão do interlocutor no confron- Editorial; Ilhéus: Editus, 2003, 216 p. to dialético, e considerando a verdade um atributo da alma e não do discur- Resultado de um trabalho conjunto de so, seja ele oral ou escrito. Conduzin- tradução dos professores Fernando Rey do-se por uma via razoável e constru- Puente (UFMG) e Roberto Bolzani Fi- tiva, além de bastante pessoal, discute lho (USP), o presente volume oferece criticamente as recentes interpretações ao leitor brasileiro, de maneira sucinta, das chamadas “doutrinas orais” de mas clara e abrangente, uma discussão Platão, sem recair na pura e simples sobre um problema de grande impor- proposição do primado das obras es- tância nos estudos sobre a filosofia critas entendidas como depositárias das platônica e sobre a filosofia em geral. doutrinas, como por vezes ocorre na Ele se inscreve assim como mais uma literatura moderna. contribuição ao debate que, já iniciado Em Oralidade e escritura, F. Trabattoni por outras publicações recentes, mere- retoma este tema e, de modo persua- ce uma atenção especial: o das ques- sivo, completa a reflexão já encami- tões que pesam sobre o problema da nhada nos dois trabalhos precedentes, oralidade e da escritura na filosofia observando uma grande coerência com platônica. os princípios teóricos, com o método e os resultados adquiridos neles. O professor F. Trabattoni é autor de reconhecidos trabalhos no terreno da Se em seus trabalhos prevalece a aten- filosofia antiga, dentre os quais se des- ção aos problemas historiográficos, filo- tacam três monografias sobre Platão: sóficos e teóricos que perpassam o tex- Scrivere nell’anima. Verità, dialettica e to platônico, nem por isto se poderá persuasione (1994); Platone (1998); e, dizer que o autor é desprovido dos Oralità e scrittura (1999), que temos o meios técnicos necessários a uma leitura prazer de saudar na bem cuidada tra- eficaz e original dos textos clássicos: dução aqui apresentada. competência lingüística, prática filológica, vasto conhecimento da bibliografia e A produção monográfica e ensaísta de capacidade de discutir as fontes primá- F. Trabattoni tem como principal obje- rias são atestados neste volume como to os problemas da filosofia de Platão no conjunto de sua produção ensaísta. e das doutrinas a ele atribuídas, embo- ra demonstre também uma significati- O autor retoma em Oralidade e escritu- va abertura aos filósofos Pré-Socráticos, ra sua exegese do Fedro e da Sétima ao pensamento de Aristóteles (Libertà Carta, fazendo anteceder-lhe uma re- e finalità nell’etica di Aristotele. Spunti flexão de caráter historiográfico e uma per una discussione, 1995; Sull’attualità análise dos testemunhos de Aristóteles dell’etica di Aristotele. Alcuni problemi, – “interpretação aristotelizante” da filo- 2000), assim como ao confronto entre sofia de Platão, como ele a qualifica. A Platão e pensadores modernos e con- consideração da doxografia aristotélica, que constitui a principal fonte para o temporâneos (Leopardi, Cassirer, conhecimento das doutrinas não escri- Rorty). tas de Platão, impõe uma abordagem Já em sua monografia de 1994, Scrivere crítica de como esse testemunho pode nell’anima , obra mais importante do ser compreendido e utilizado. A este autor no âmbito da questão retomada ponto, F. Trabattoni dirige críticas con- em Oralidade e escritura, apresenta uma tundentes à interpretação dos expoen- leitura original de Platão, insistindo na tes da escola de Tübingen.
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A partir de uma revalorização das e das Cartas (sobre várias das quais pesa chamadas “doutrinas não escritas de a dúvida quanto à autenticidade), Platão Platão”, que teve início na década de escreveu apenas diálogos, dos quais 1950 com os alemães H. Krämer e K. nunca é ele próprio o personagem; o Gaiser, da Universidade de Tübinguen, que torna difícil, no trabalho de inter- Alemanha, e ganhou um novo impul- pretação, a identificação das opiniões so na década de 1980 com os trabalhos que Platão teria defendido. Repertoria, de G. Reale, da Universidade de Milão, então, os prós e os contras das várias Itália, e de T. Szlezák, a escola de estratégias hermenéuticas, reconhecen- Tübinguen confere uma significativa do, por um lado, a necessidade de cri- importância a um conjunto de textos térios – como o da identificação, em que testemunhariam acerca do conteú- cada diálogo, do personagem que de- do do ensinamento oral de Platão re- sempenharia o papel de Platão, o do servado aos discípulos da Academia. contexto do diálogo – e, por outro, os limites desses critérios para fazer face a Ao situar-se numa posição diversa ao toda sorte de dificuldade. E se interro- da “nova interpretação de Platão” pro- ga: “Existe um ponto de referência fixo posta pelos estudiosos de Tübinguen- a partir do qual se possa reconstruir o Milão, o autor, com perspicácia e argu- pensamento platônico?” (p. 24). mentação consistente, vai deslindando passo a passo, nos trabalhos publica- Além disso, adverte que, apesar de dos, problemas, nem sempre perceptí- dispormos da quase totalidade de seus veis a “olhos nus”, na interpretação escritos, a tradição indireta não pode dos textos clássicos que constituem a ser negligenciada. Importantes teste- principal fonte para a sustentação de munhos, como os contidos na Metafísica suas teses. A respeito desta escola, ele de Aristóteles, atribuem a Platão dou- escreve: “Os tubingueses, com efeito, trinas filosóficas não dedutíveis direta- pretendem modificar a interpretação mente dos diálogos. do pensamento platônico modificando O autor então se interroga acerca da a qualidade e a quantidade dos princí- atitude a tomar diante de tal tradição pios a que esse pensamento teria che- e de como reconstruir uma imagem gado, sem perceber que desse modo coerente de sua filosofia levando em equivocam-se completamente sobre consideração uma e outra dessas fon- seu espírito, pois que ele não tinha tes. É a esta altura que tem início o como seu escopo primário a determi- exame da “nova interpretação de nação e a representação dos princípi- Platão” proposta pela escola de os” (p. 96). Tübingen. Para F. Trabattoni, o que Tomando como ponto de partida uma compromete tal interpretação não é exposição sobre o estado da questão tanto a aceitação histórica da perspec- (p. 21–37), onde explicita as dificulda- tiva à qual Aristóteles submete Platão, des próprias ao trabalho de reconstru- o que segundo ele colocaria em causa ção do pensamento platônico, equivo- não apenas a doutrina dos princípios, cadamente considerada segura em vir- como também a das idéias. “Se a pro- tude de se tratar do primeiro filósofo posta dos tubingueses é errônea, es- de quem dispomos da totalidade da creve o autor, o é porque o critério obra, ele mostrará que por si só tal para avaliar a filosofia de Platão não fato está longe de bastar a uma inter- pode ser dado pela qualidade e quan- pretação segura, constatando as diver- tidade dos princípios, não mais se po- sas razões que tornam esta tarefa com- derá dizer que a essência da filosofia plexa. Observa que, dentre outras coi- de Platão é constituída pela teoria das sas, com exceção da Apologia de Sócrates idéias; se, ao contrário, a imagem de
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Platão como filósofo das idéias, ofere- guarda diante dos obstáculos, renunci- cida por Aristóteles, é verdadeiramen- ando a exprimir a verdade em fórmu- te representativa de seu pensamento, las definitivas. Para tanto, à suficiência não se vê porque refutar a outra ima- da verdade para a vida prática, basta gem aristotélica de Platão, isto é, aque- que se saiba que existe um certo gêne- la expressa na doutrina dos princípios. ro de princípios, sem que seja necessá- Nem é útil aduzir como argumento o rio uma descrição detalhada e objetiva fato de que as duas doutrinas estariam de suas características. em oposição…” (p. 97). De sua análise do Fedro e da Sétima Outro aspecto que afasta a filosofia de Carta conclui que os motivos da apa- Platão do esquema aitiológico aristoté- rente congruência, afirmada pelos lico se situa no terreno da relação com Tübingueses, entre as reservas relati- os sofistas Górgias e Protágoras, com vamente à escrita e a existência de os quais uma afinidade pode ser per- doutrinas orais “nada mais é do que cebida nos diálogos em que admite uma uma ilusão de ótica, porque a opção debilidade intrínseca aos discursos (logoi) platônica em favor da comunicação oral “que os impede de nomear tudo e não tem, na verdade, o objeto de pro- somente aquilo que gostariam de no- mover a importância filosófica superi- mear”. Tal debilidade faz com que o or dos conteúdos que Platão expunha discurso filosófico permaneça, mesmo oralmente” (p. 206). Entretanto, não se quando verdadeiro em sua substância, trata de uma simples crítica destrutiva, “sempre aproximativo e perspectivo” uma vez que o estudo do Fedro e da (p. 99). Sétima Carta trouxe à luz “motivos originais e com freqüência negligencia- Isto corrobora a desconfiança da escri- dos, que obrigam a rever alguns este- ta que, além de fixar a doutrina, dá a reótipos correntes sobre a natureza da impressão de que é ela o essencial e filosofia platônica” (p. 206). não aquilo a que ela aspira, isto é os princípios. “Ela induz à ilusão”, conti- Oralidade e escritura contribui assim a nua F. Trabattoni, “de que a verdade mostrar os limites do novo paradigma possa estar contida em um discurso, hermenêutico, invalidando não apenas de forma fácil, simples e definitiva, sem a imagem “ultrametafísica” de Platão, considerar adequadamente que a ver- mas também a imagem tradicional que dade é sempre provisória e prospectiva, reduz seu pensamento ao conhecimen- quer pelas dificuldades inerentes ao to objetivo das idéias. Platão é assim discurso, quer pela necessidade da apresentado por F. Trabattoni como o mediação subjetiva” (p. 101). A inten- “filósofo em busca de um saber forte, ção de Platão é “salvaguardar uma mas também como um filósofo que verdade útil para a vida prática”, e, está plenamente consciente de quanta para F. Trabattoni, “a tentativa de fixá- ‘fraqueza’ torna difícil ao homem a via la em fórmulas fixas e definitivas tra- do conhecimento” (p. 206). duz-se em um perigosíssimo bume- rangue” (p.101). Entretanto, não se pode desconsiderar Miriam C. D. Peixoto de todo o discurso escrito veiculado ISI-CES, BH nos diálogos, mas antes colocar-se em